Você está na página 1de 505

América profunda

movimentos seminais na
O pensamento de
Rodolfo Kusch

Ana Lúcia Liberato Tettamanzy


Beatriz Osório Stumpf
Cláudia Pereira Antunes
Cláudia Porcellis Aristimunha
Fernanda Brabo Sousa
Maria Aparecida Bergamaschi
(Organizadoras)
Copyright © Editora CirKula LTDA, 2019.
1° edição - 2019

Edição, Diagramação e Projeto Gráfico: Mauro Meirelles


Revisão Técnica: Ana Flávia Fuesternau, Isabel Becker da Costa,
Laura Nelly Mansur Serres
Capa: Marina Araujo Vargas
Impressão: Copiart
Tiragem: 100 exemplares impressos e 300 para distribuição on-
line no site da Editora.

Editora CirKula
Av. Osvaldo Aranha, 522 - Loja 1 - Bomfim
Porto Alegre - RS - CEP: 90035-190
e-mail: editora@cirkula.com.br
Loja Virtual: www.livrariacirkula.com.br
América profunda
Rodolfo Kusch
movimentos seminais na
O pensamento de

Ana Lúcia Liberato Tettamanzy


Beatriz Osório Stumpf
Cláudia Pereira Antunes
Cláudia Porcellis Aristimunha
Fernanda Brabo Sousa
Maria Aparecida Bergamaschi
(Organizadoras)

Porto Alegre
2019
CONSELHO EDITORIAL

Mauro Meirelles (Brasil) Jussara Reis Prá (Brasil)

José Rogério Lopes (Brasil) César A. S. Figueiredo (Brasil)

CONSELHO CIENTÍFICO

Alejandro Frigerio (Argentina) André L. da Silva (Brasil)


Antonio David Cattani (Brasil) Arnaud Sales (Canadá)
Carlos Cullen (Argentina) Cíntia Inês Boll (Brasil)
Daniel Gustavo Mocelin (Brasil) Débora A. Feitosa (Brasil)
Dominique Maingueneau (França) Edson Antoni (Brasil)
Estela M. Giordani (Brasil) Hermógenes S. Filho (Brasil)
Hilario Wynarczyk (Argentina) Ileizi L. Fiorelli Silva (Brasil)
Jaqueline Moll (Brasil) José O. C. de Souza (Brasil)
José Rogério Lopes (Brasil) Juan Pablo Perez (Argentina)
Leandro Raizer (Brasil) Luís F. S. C. da Silva (Brasil)
Lygia Costa (Brasil) Maria R. Momesso (Brasil)
Marie Jane Soares Carvalho (Brasil) Mario Mejía Huamán (Peru)
Marta Nornberg (Brasil) Mauro Meirelles (Brasil)
Neusa Vaz e Silva (Brasil) Olga L. R. Ramírez (Colômbia)
Raul F. Betancourt (Alemanha) Simone L. Sperhacke (Brasil)
Silvio Roberto Taffarel (Brasil) Stefania Capone (França)
Thiago Ingrassia Pereira (Brasil) Verônica M. Ximenes (Brasil)
Wrana Panizzi (Brasil) Zilá Bernd (Brasil)
Sumário
19 Apresentação

Seção 1 - Com oS péS no Solo e no Sagrado: vozeS da amériCa


profunda

25 História de Mumbuca: memória, tempo e espaço


Ana Lúcia Pereira

31 Os Estudantes Indígenas e os desafios acadêmicos


Bruno Ferreira Kaingang

37 A Interculturalidade dentro da Filosofia Kanhgág


Dorvalino Cardoso

43 Relato de experiência: Implementação das Leis 10.639/03


e 11.645/08 em Esteio
Graziela Oliveira Neto da Rosa

47 O testemunho de um estudante guarani


e seu duplo pertencimento
Isael S. Pinheiro

53 Investigación sobre memorias de conflictividad


de mujeres mapuche en la Araucanía
Margarita Canio Llanquinao
Solange Cárcamo Landero

61 Afro-Reparação e Educação Superior: a Práxis Negra


Marta Mariano Alves

73 A contação de histórias e a resistência pela identidade


cultural brasileira
Tainã do Nascimento Rosa
Seção 2 - por que lo que eS Semilla llegará a Ser fruto: expe-
riênCiaS em eduCação a partir de KuSCh

81 A sabedoria Guarani e a psicologia complexa como


contribuições à educação
Ana Flávia Fuerstenau
Ana Luísa Teixeira de Menezes

85 O diálogo de Freire e Kusch com a Educação Indígena


Ana Lúcia Castro Brum
Magali Mendes de Menezes
Júlio Pedroso da Silva

91 Caminhos para o ninho de resistência e saberes indígenas


em espaço escolar
Angela Maria Araújo Leite

99 Encontro com as culturas indígenas: quando as aulas


podem ser um espaço-tempo para problematizar e recriar
formas de ver, dizer e celebrar as diferenças
Denise Wildner Theves
Mariane Paludette Dorneles

105 A comunidade e os fenômenos coletivos como elementos


fundamentais da qualidade na educação básica
Diogo Silveira Heredia y Antunes

111 Referentes éticos mapuche en la investigación científica:


una necesidad urgente en contextos interétnicos
e interculturales
Fernando Fuica-García

117 Trajetórias Ameríndias em seus Itinerários de Escolarização:


uma reflexão do pensamento de Rodolfo Kusch
com a Educação Escolar Indígena no RS
Francisco Moreira Alves
Íris Pereira Guedes
Jaqueline da Rosa Cunha
Rafael Frizzo
123 La interculturalidad como saber emergente y transversal
en la educación primaria de la provincia
de Córdoba, Argentina
Hebe Gargiulo
Carlos Norry

127 Fazeres educativos no estar sendo da Tekoá Yvy Poty


Jéferson Pereira Tanger

133 O “estar sendo” Mbya Guarani professor na construção


da Educação Diferenciada no Território do Litoral
Norte do Rio Grande do Sul
Josieli Silva

135 Educação Indígena sob o ponto de vista


de seus protagonistas
Juçara Benvenuti
Maria Aparecida Bergamaschi

141 Trajetos da prática intercultural no diálogo


com agroecologistas de Maquiné
Leonardo Castro Dorneles

145 A educação das relações etnicorraciais como método de


conhecer e valorizar novas formas de conhecimento
Lucas Giacomini Pesce

151 Aprendiendo a hacer investigación juntos: Los procesos


de transmisión de prácticas comunicativas bilingües
guaraní-castellano en una Escuela de Familia
Agrícola de Corrientes, Argentina
Lucrecia Zárate
Tamara Alegre

157 Movimentos de fagocitação e de descolonização


na escola indígena Mbyá Guarani
Márcia Luísa Tomazzoni
163 Estrategias politicas para la inclusion social
María Candela Cedrón

169 Re-existência indígena na UFRGS: movimentos do estar


sendo indígena universitário
Michele Barcelos Doebber

175 Por uma escola intercultural: repensando a Iniciação


Científica no currículo dos Anos Iniciais
do Colégio de Aplicação da UFRGS
Priscila de Souza Oliveira
Tanise Müller Ramos

181 Percebendo formas de estar: a sala de aula e as práticas


de envolvimento com o ambiente
Sofia Robin Ávila da Silva

187 A educação das relações etnicorraciais e o diálogo


intercultural: fortalecendo a necessidade das leis
10.639/2003 e 11.645/2008 na escola
contemporânea brasileira
Tanise Müller Ramos

191 Uma proposta intercultural por meio de saberes quilombolas


Vanda Aparecida Fávero Pino
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

Seção 3 - de um noSotroS Colonial a um noSotroS naS prátiCaS e


lutaS SituadaS

199 “Sou uma Negra Ângela, uma Iyalorixá”: vivências de uma


mulher negra de terreiro no Sul do Brasil
Dandara Rodrigues Dorneles

205 La utopía del fundamento: aciertos fundantes de las ciencias


en Occidente y la construcción de la figura del productor
situado de conocimientos
Daniel Badagnani
211 Política en América Profunda: la lectura del peronismo en
“La Negación en el pensamiento popular”
Domingo Ighina

215 A crise ambiental e as mediações pedagógicas


como lócus de (des)colonialidade
Eloisa de Souza Santos
Michelle Mendes Ribeiro

221 A história, o legado e a importância das mulheres na saúde,


na alimentação e conquistas sociais
Franciéli Aline Conte
Karen Villanova Lima
Daisy Peres Godoy
Johannes Doll

227 Reinventar: Ser y hacer en el territorio: presente,


pasado y futuro
Gabriela Aznares
Rocío Belén Galvez
Silvana Priscila Salzano

231 Rigoberta Menchú Tum e a luta pelos direitos


humanos na Guatemala
Gabriela Metz Schmidt
Isabel da Costa
Lilian Machado Nunes

235 Territorialidades, interculturalidades e as mulheres


dos quilombos de São Lourenço do Sul-RS/Brasil
Graziela Rinaldi da Rosa
Michaella Sant’ Anna

241 A relação dos povos Guarani e Kaiowá com o território:


um caminho para a conservação ambiental
Jhersyka da Rosa Cleve
247 Sentidos do Trabalho para os indígenas conforme a obra
de Rodolfo Kusch
Juliana da Cruz Mülling
Simone Valdete dos Santos

253 A Terra Me Disse: Lições e saberes Tupi Guarani


sobre sustentabilidade
Karen Villanova Lima

259 Alternativa decolonial de mundo


Laura Cristina Reyes

263 Rodolfo Kusch: La cultura como herramienta para


una filosofía situada
Nicolás Evaristo Saltapé

269 O pátio de objetos sintéticos do colonialismo: aproximações


entre Rodolfo Kusch e Antônio Bispo dos Santos
Nidiane Saldanha Perdomo

273 La esclavitud cultural de América Latina a partir


de la colonización
Rayane Ancelmo Leal

279 Concepções sobre o processo de colonização das


Américas à luz da teoria de Rodolfo Kusch
Ricardo Francelino da Silva
Alonso Bezerra de Carvalho

285 Antiguas y nuevas afectaciones de los Aché


Sebastián Castiñeira
Lilian Morinigo
Sara Quintana

291 Mujeres mapuche y polifonía de la conflictividad


intercultural en el Ngulumapu
Solange Cárcamo-Landero
295 Andila Kaingáng: A trajetória da liberdade
Susana Andréa Inácio Belfort

Seção 4 - el Sentido de una obra no Se agota Con el autor, Sino


Con el pueblo que la abSorbe: o monStruoSo, o dual, o amorfo e
o bárbaro na amériCa profunda

303 A circum-navegação de Carolina como decolonialidade


Alice Soares

307 Os Indígenas e Seu Caminhar pelo Interior do Nosso Estado:


memórias e narrativas presentes no ser e estar do futuro
Ana Isabel Santos

311 O Pensamento Decolonial e as Poéticas Orais: saraus e slams


Ana Paula Freitas dos Santos

315 Em Busca da Terceira Margem: nas fronteiras da América


profunda
Daniela Severo de Souza Scheifler

319 Os Filhos da Terra Semeando Palavras: a cosmovisão


indígena e o pensamento seminal em
Yvyrupa - a terra uma só
Diego Bonatti
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy

325 Feminismo Negro: pensando o lugar da mulher e do


protagonismo negro na literatura de Conceição Evaristo
Elen Karla Sousa da Silva
Daniel Conte

329 Poesia, Ancestralidade e (R)Existência em Águas


da Cabaça, de Elizandra Souza
Francine Vargas

333 Becos da Memória: uma análise contra-colonial sobre


o território na escrita de Conceição Evaristo
Ivana Amorim da Silva
339 El Discurso Público y la Narrativa de Sacerdotes Indígenas
Mapuche, en la Región de La Araucanía: una mirada
en perspectiva hermenéutica intercultural
Jorge Araya Anabalón

343 As Narrativas do Tambor como Práticas Decoloniais


Liliam Ramos da Silva
Richard Serraria

349 A Ancestralidade em Sala de Aula: livros e documentários


ameríndios como recursos didáticos
Luana Barth Gomes
Cledes Antonio Casagrande

355 A Música na América Latina como Antagonismo


ao Mercado Cultural
Maicon Dorigatti

361 Pontos de Contato entre o Pensamento de Rodolfo Kusch


e o Animismo na Literatura
Marcos Lampert Varnieri

367 Memórias de um Insurgente Guarani Mbya no Litoral


Norte do Rio Grande do Sul: biografia autorizada para Jurua
Maria Cristina Schefer
André Benites

371 Narrativas e Memórias de Mulheres Negras


em suas Escrituras
Naíra Corrêa Daubermann

377 De Nuestra América a la América Profunda: un diálogo


entre José Martí y Rodolfo Kusch
Olga Lucia Reyes Ramírez
Diana Carolina Gamboa Gamba
383 “Etnomídia Indígena, por uma Demarcação
Comunicacional, Já!”: o território de identidades,
informação e resistência da Rádio Yandê
Raquel Gomes Carneiro

389 Quando o Narrador se Cala e Faz-se Urgente Ouvir


o “Outro”, Enquanto Ele Existe: “cedo-lhe pois, muito
contente, a palavra (ou a fala?... e a voz?...)...”
Renata de Oliveira Klipel

395 YVYRUPA: Sem pena nem cocar, uma perspectiva sobre o


mito fundador e a cosmovisão Guarani Mbyá
Suelen dos Santos Villanova

Seção 5 - vivir eS Saber, Saber eS penSar Siendo: reflexõeS em


torno daS trevaS que aCerCam o Saber lúCido

403 A saúde bucal e do ser numa perspectiva intercultural na


educação escolarizada guarani mbya de Pindo Mirim
Adriana Rosa Marques
Leo Anderson Meira Martins

409 Por uma Educação Situada: reflexões a partir


de Rodolfo Kusch
Alonso Bezerra de Carvalho

415 Educação tradicional: re-existencia de modo de ser guarani?


Beatriz Garcia Lucio

421 Educação escolar indígena: Refletindo com o pensamento


de Rodolfo Kusch
Beatriz Osorio Stumpf

427 Educação das relações étnico-raciais e educação para


manejo do mundo: pedagogias emergentes na América
Carla Beatriz Meinerz
431 Método Kusch: la voluntad entre el estar y el “ser”-ego: el
camino del estar-siendo para un nuevo pensamiento
abya yalense (“americano”)
[Rodolfo kusch filósofo de la liberación]
Carlos Francisco Bauer

435 Céu, mar, terra, coração... Sopremos ventos do Sul


Cidara Loguercio Souza
Ana Maria Netto Machado

441 Pensar, com Rodolfo Kusch, a Educação como Escuta


Cláudio Roberto Brocanelli

447 Temporalidade Mbyá-Guarani no museu: uma experiência de


curadoria compartilhada a partir de diálogos interculturais
Daniela Mei Lipp Nissinen
Iandora de Melo Quadrado
Victória Santos Deckmann

451 “Los desconocidos de siempre también existen”


Gabriela Alejandra Insua Alves de Oliveira

459 Awa Vana: grafismo Yawanawa e o xamanismo feminino


Josiane Abrunhosa da Silva Ulrich

463 Invisibilização ou fronteiras das diferenças: situações


perceptivistas a partir do Mbyá Rekó
ou fugas ontocosmoecológicas
Leonardo de O. Guaragni

467 Reflexões político-sociológicas: no cenário


brasileiro contemporâneo
Liliana Ferreira
Vinicius Da Silva
473 A despolarização entre o humano e a natureza e o encontro
com o sensível na educação com os indígenas:
sincronicidade e espiritualidade
Maria Cristina Graeff Wernz
Onorio Isaías de Moura
Ana Luísa Teixeira de Menezes

479 Manifestaciones del espíritu ecológico Kuschiano


en Colombia: Consultas Populares como aproximación
a los saberes americanos
Maria Fernanda Masmela
Carlos Andrés Rincón Arias

485 Del pachakuti al pachakutxa: saber tenebroso, espiritualidad


y literatura en el estar-sentir-pensar-viajar de Rodolfo Kusch
Ramiro Huanca Soto

491 Povos originários da Nossa América: autores do sul que


valorizaram a presença e cultura indígenas
Stela Macedo Lima
Ana Maria Netto Machado
Vanice dos Santos

497 La dis-torsión del deseo de conocer entre la levedad del Eros


(Ser alguien) y la gravidez del Suelo (Estar-siendo)
Walter Omar Fernández
apresentação

Ana Lúcia Liberato Tettamanzy


Beatriz Osório Stumpf
Cláudia Pereira Antunes
Cláudia Porcellis Aristimunha
Fernanda Brabo Sousa
Maria Aparecida Bergamaschi
(Organizadoras)
ApresentAção: quAndo As ideiAs grAvitAm
A pArtir do solo

Y lo que no es Occidente, ni ciudad, ni pulcritu-


de es hedor, o sea América. (Rodolfo Kusch)

Esse livro resulta de reflexões e inquietações surgidas a partir das


VIII Jornadas O pensamento de Rodolfo Kusch - territorialidades
e interculturalidades: movimentos seminais na América Profunda,
ocorridas de 6 a 8 de novembro em Porto Alegre, na Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul. O evento apostou em teorias e metodologias
desenvolvidas a partir de vivências colaborativas e participantes com se-
tores populares da América em situações de luta, bem como de movimen-
tos sociais que promovem transformações necessárias em uma sociedade
ainda marcada pela colonialidade. Essas experiências vão ao encontro de
uma ética e uma estética que permitem à Universidade perscrutar com
cuidado a voz de interlocutores e, aos poucos, inserir nos dizeres e nos
fazeres acadêmicos a presença indígena, negra e popular.
Rodolfo Kusch contrapôs ao “ser alguém” da cultura ocidental um
modo de pesquisar, de trabalhar e de viver vinculado ao que denominou o
“mero estar”, uma forma de cultivo a um pensamento germinal, que emer-
ge do centro da mandala indígena onde estão o milho, a terra, a América
Profunda, em suma, o coração. Günther Rodolfo Kusch (Buenos Aires,
1922 -1979) foi professor de filosofia na Universidade de Buenos Aires
(UBA ), exerceu atividade técnica no setor de Psicologia Educacional e
Orientação Educacional do Ministério de Educação na província de Bue-
nos Aires, além de ampla atividade docente no ensino secundário e, sobre-
tudo, no ensino superior em universidades argentinas e bolivianas (Oru-
ru; Salta; Mendoza). Foi autor de obra filosófica e literária considerável:
La Seducción de la Barbarie (1953); América Profunda (1962); De la mala
vida porteña (1996); Indios, porteños y dioses (1964); El Pensamento Indígena
y Popular en América (1973); La Negación en el Pensamento Popular (1975);
Geocultura del Hombre Americano (1975/6); Esbozo de uma Antropología
Filosófica Americana (1978). Veio a construir seu pensamento original a
partir de deslocamentos em trabalhos de campo pelo continente, notada-
mente na região noroeste da Argentina (Jujuy) e no altiplano boliviano.
Na escuta e na imersão perante gentes e solos americanos afetados pela
colonização, formula conceitos como o de “fagocitação”, que exprime a

19
convivência de caos e opostos no cosmos e nos sujeitos indígenas e popu-
lares. Esse encontro com a profundidade da terra talvez explique a opção
por viver os últimos anos de sua vida em Maimará (Jujuy).
O tema das VIII Jornadas, “Territorialidades e Interculturali-
dades: movimentos seminais na América Profunda”, revela as iden-
tificações do grupo vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) e à Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) com o
“Programa Pensamiento Americano”, da Universidad Nacional Tres de
Febrero (UNTREF), de Buenos Aires, que promoveu várias das edições
anteriores do evento, sempre posicionadas num movimento descolonial e
intercultural, inspirador de espaços de re-existência. Realizada pela pri-
meira vez em Porto Alegre, a proposta pretendeu, primeiramente, apro-
fundar a compreensão da obra kuscheana enquanto desafio de vincular
os pensamentos indígena, popular e acadêmico e com isso construir um
relato próprio em torno de identidades histórico-culturais dos povos in-
do-afro-latino-americanos desde a América. Também houve a intenção
de provocar o diálogo dessa obra com as de autores ligados a áreas como
pensamento social, educação, artes, e ainda com a práxis de coletivos no
Brasil que inserem modos de sentir, pensar e fazer baseados em matrizes
civilizacionais não ocidentais.
Tais motivações guiaram a estruturação do evento. Na abertura as
vozes originárias se fizeram presentes desde a apresentação do coral Gua-
rani Mbyá e as falas entoadas das sábias Iracema Nascimento e Talcira
Gomes, respectivamente dos povos Kaingang e Guarani Mbyá. Seguiram
na conferência em que estiveram Casé Angatu Xucuru Tupinambá, An-
dila Nĩvygsãnh Inácio e Malvina Dorneles, mediados por Bruno Ferrei-
ra (UFRGS e Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká
Miguel). Ao longo do evento, as intenções dialógicas e as oposições com-
plementares guiaram a Programação. Foram organizadas 3 Mesas de sa-
bedoria, que contaram com os seguintes participantes: Mesa I – Saberes
Indígenas na escola, com Miguel Ribeiro (Escola Indígena Kaingang
– Terra Indígena Guarita, RS) Joel Pereira (Escola Indígena Guarani Vi-
cente karai Okendá – Getúlio Vargas, RS) e Ivone Daniel (Escola Indíge-
na Kaingang – Terra Indígena Ligeiro, RS), com a mediação de Susana
Inácio (UFRGS e Terra indígena Serrinha); Mesa II : Territórios e
Territorialidades, com Santiago Franco (Liderança Guarani-Mbyá –
Tekoa Yvy Poty), Eduardo Davi de Oliveira (UFBA) e José Mauricio
Nilian Carcamo (Universidad Popular Originaria /UPO, do povo Mapu-
che), com a mediação de Fernanda Brabo Sousa ; e a Mesa III: Perspecti-
vismo intercultural, com Walter Boechat (UFRJ), Zaqueu Key Claudino

20
(UFRGS e Escola Kaingang Guarita, RS) e Mario Vilca (UNJu/Jujuy),
com a mediação de Ana Luísa Teixeira de Menezes . Houve ainda sessões
com 4 Mini-Conferências simultâneas: Estética - Dimensión estética del
pensamiento kuscheano - Juan Pablo Perez (UNTREF) e debatedor Dan-
nilo Melo; Alma Brasileira -Walter Boechat (UFRJ) e debatedora: Fáti-
ma Souza, Interculturalidade e Educação – Neusa Vaz e Silva (UFRGS)
e debatedora Magali Mendes de Menezes; e Kusch e Educação – José
Alejandro Tasat (UNTREF) e debatedora Maria Aparecida Bergamaschi.
O mesmo espírito seminal marcou a Conferência de encerramento: O
Popular como re-existência: Freire e Kusch, com a presença de Baldui-
no Andreola (UFRGS, Brasil) e Carlos Cullen (UNTREF/UBA, Argen-
tina). Nessa aproximação entre os dois pensadores é notória a confluência
de ideias libertárias que seguem influenciando reflexões, práticas docen-
tes e sociais que emergem das urgências da geocultura americana, ou seja,
da realidade situada.
Cabe destacar a série de atividades que compuseram momentos de
sentir-pensar-fazer: a exposição fotográfica de Verá Poty Benites e Da-
nilo Christidis; a exposição comentada da artista Silvia Ricopa (Shipibo-
-Konibo, Peru); as sessões de filmes de autorias indígenas e não indíge-
nas, organizadas por Ana Letícia Meira e José Tasat; as aprendizagens
Vivenciais através de biodança, com Rudimar Florindo Merlo; de con-
tação de histórias, com o Grupo Quem conta um conto; de conversa com
Josias Loureiro de Mello e Marcos Vesolosquiki Kaingang, indígenas uni-
versitários; de conversa com Cidara Loguercio e Vherá Poty sobre diálo-
go intercultural no Museu; e de Roda de Capoeira Angola com o grupo
Africanamente. Lembramos ainda das experiências em saídas de cam-
po para aldeia Guarani, comunidade Quilombola e lugares de resistência
urbana no centro de Porto Alegre.
Foram realizadas também sessões de apresentação de comunica-
ções orais em torno de 11 eixos temáticos formulados com o aporte do
pensamento de Kusch, a saber: Educação, interculturalidades e liberta-
ção; Povos indígenas: educação, cosmologias e línguas; Filosofias do sul e
processos de libertação; Histórias, memórias e narrativas; Corporeidade,
espiritualidade e saúde; Colonialismo, colonialidade e pensamento decolo-
nial; Teatro, artes, literaturas e estéticas; Políticas e estudos de América;
Mulheres, sabedorias e lutas; Territórios, territorialidades e modos de es-
tar sendo; e América profunda, democracias e movimentos sociais. Desses
debates surgiu este livro composto pelos resumos expandidos encaminha-
dos pelos participantes das VIII Jornadas O pensamento de Rodolfo
Kusch. Embora tenham sido originalmente formulados enquanto propos-

21
tas de apresentação de acordo com os eixos temáticos do evento, apare-
cem aqui reconfigurados. Por partilharem de inúmeros pontos de contato
sugeridos de antemão pela multifacetada reflexão kuscheana, apresentam
pensamentos de fronteira, vale dizer, contaminados de impurezas e de
opostos. E, como tal, desafiam o medo de habitar o mundo com a potência
das sementes que irrompem com e a partir do lugar. Não é coincidência
que muitos dos textos reportam existências a partir do “estar no más” e
de circunstâncias que demandam o enfrentamento do que ainda é colo-
nial neste continente. Mesmo os textos conceituais e reflexivos trazem as
arestas do saber tenebroso e bárbaro que acerca a pretensão sem corpo do
saber causal, aquele que convida a “ser alguien”.
Gravitados pelo solo comum, americano, e inspirados pela força dos
encontros entre disciplinas e entre culturas ocorridos nessa margem de
rio/lago ao sul do Brasil, compartilhamos com os leitores esse pensar
vivo, desde o corpo e o ritual, que emerge de criadores de saberes coletivos
e horizontais. Começamos com a seção “Com os pés no solo e no sagrado:
vozes da América profunda”, que destaca algumas enunciações indígenas.
Com “Por que lo que es semilla llegará a ser fruto: experiências em educa-
ção a partir de Kusch”, apresentamos a partilha de práticas que nascem do
solo. Na seção seguinte, acrescentamos contribuições acerca de fazeres e
pensares de resistência: “De um nosotros colonial a um nosotros nas prá-
ticas e lutas situadas”. Continuamos com a seção dedicada às criações: “El
sentido de una obra no se agota con el autor, sino con el pueblo que la ab-
sorbe: o monstruoso, o dual, o amorfo e o bárbaro na América profunda”.
Trazemos ainda textos permeados de contaminações de ideias na seção
“Vivir es saber, saber es pensar siendo: reflexões em torno das trevas que
acercam o saber lúcido”.
Os escritos aqui reunidos em sua forma e conteúdo traduzem po-
tências do pensamento kuscheano. Como textos “sem medo de habitar
o mundo”, esperamos que inspirem lutas e re-existências que seguem
urgentes em tempos novamente sombrios. É possível imaginar que, es-
tivessem Rodolfo Kusch e Paulo Freire vivos, impulsionariam emancipa-
ção e rebeldias nas salas de aula, no campo, nas montanhas, nos rituais
e mesmo nas cidades conflituosas em sua aparente ocidentalização. Seus
pensamentos seguem como sementes de libertação para sujeitos e co-
letivos comprometidos em mudar a própria história frente a novas (ve-
lhas) opressões.

22
os pés no solo e no sagrado

vozes da América
profunda
Com

seção 1
HistóriA de mumbucA: memóriA, tempo e espAço

Ana Lúcia Pereira1

De uma abelha surgiu o nome


Desse nome um povoado
Desse povoado nasceram pessoas
Que com amor são lembrados.
(Campo do turista)2

Mumbuca é o nome de uma abelha. É assim que os moradores de


Mumbuca começam a contar a sua história e a história do povoado. So-
mente ouvindo as histórias e as cantigas que são cantadas por todos os
moradores e frequentemente acompanhadas pelo som da viola de vereda3,
é possível tomar contato com o universo do Povoado Mumbuca. As letras
das músicas expressam a cultura local, aspectos naturais do Jalapão e a
história do povoado.
Além das músicas, a história do passado também pode ser conhe-
cida pelos fatos narrados pelos membros do grupo, tendo sempre como
referência à memória da família de origem. Os moradores de Mumbuca se
fundamentam na memória da pessoa mais velha do povoado ou na memó-
ria do seu próprio pai ou mãe, reforçando a ideia de que aquilo que será
relatado está cravado no tempo da sua infância ou da sua própria existên-
cia no seio familiar.

De quando eu me existi, que eu nasci da minha mãe, que eu me compreen-


di, com a minha inteligência, de tempo de eu conviver com o meu pai, com
a minha mãe (Liderança 1, 57 anos).

Outra forma da comunidade conceber a memória, o tempo e o espa-


ço, é a partir da consciência de si. É afirmando a própria idade, somada à

1 Doutora de Sociologia. Docente do Curso de Direito da Universidade Federal do To-


cantins. E-mail: analuciap@uft.edu.br
2 Música de Maurício, Arnon, Ana Cláudia, Josivan e Edvan.
3 Chamada de viola de vereda ou viola de buriti. É um instrumento musical fabricado
por um dos tocadores. Com o talo da folha do buriti ele faz o corpo da viola, que é preso
com grampos de taboca; já o cavalete, as tarraxas e outras partes da viola são feitas da
madeira vinhático.
25
idade de um ascendente ou se colocar na ordem de nascimento dos pró-
prios filhos ou dos irmãos, sempre no âmbito da família.

[...] aqui numa comunidade que nois tinha muito amor. Que. por muitos
anos... minha mãe nasceu aqui.. eu to com sessenta anos, sessenta e seis
anos... e não sou a primeira filha não. Sou a terceira filha (Mumbuquense
4, 66 anos).

Quando querem voltar a um tempo mais distante, que está para além
da sua própria existência, os mumbuquenses nos dizem: “a vó da gente”,
“a bisavó”, “o mais velho”. A comunidade expõe em lugar central (na loja
da associação), a árvore genealógica que foi construída recentemente4 em
que se pode perceber que a formação da comunidade ocorreu pela união
de três famílias: Beato, Bento e Pereira.
No seio da comunidade, a pessoa mais velha é D. Laurentina Matos,
94 anos, tratada pelos moradores como Vó Laurentina, Vó Lôra ou Vó
Grossa. Ela é bisneta de um dos casais fundadores (José Delfino Bento e
Maria Jacinta). D. Laurentina Matos foi parteira durante 40 anos. É des-
cendente do tronco dos Pereira, porque o seu avô materno, Emídio Perei-
ra, ao contrair casamento com uma filha dos Bento, atribuiu sobrenome à
sua mãe, Laurina Pereira, que foi casada com o Sr. Silvério Ribeiro Matos,
representantes da terceira geração da família.
No momento em que a pesquisa acontece5, a história da comunidade
está ancorada na terceira geração, porque a lembrança da história de vida
da D. Laurina Pereira é sempre trazida à tona, por ser a pessoa que criou a
técnica do artesanato do capim dourado, principal atividade desenvolvida
pela comunidade para a geração de renda.
A produção do artesanato com os fios do capim dourado e da seda
do buriti foi herdada pela filha de D. Laurina Pereira, chamada Guilher-
mina Ribeiro da Silva, conhecida como D. Miúda, falecida em novembro
de 2010. A tradição do capim dourado é retratada nas peças de teatro que
contam a história de resistência e luta dos ancestrais. Na letra da músi-
ca, a força da família Pereira é comparada com um pau (madeira, árvore)
muito forte, que fulora (floresce), mas não cai, o pau pereira: “Pau pereira,
pau pereira, é um pau de opinião, todo pau fulora e cai, mas o pau pereira não.”
(Cantiga de roda da Comunidade Mumbuca).

4 Projeto “Capim Dourado Trançando a Tradição”, aprovado pelo Ministério de Cul-


tura em dezembro de 2008, através do Convênio nº 702124/2008, de autoria da Funda-
ção Cultural do Estado do Tocantins.
5 Pesquisa finalizada no ano de 2012. Tese de doutorado PEREIRA (2012).
26
O outro mais velho é o Sr. Diolino Beato, tratado como Vô Dió. Tem
93 anos, é viúvo da Sra. Maria Francisca e bisneto de outro casal funda-
dor - Antônio Beato e Luiza. Sr. Diolino foi um sertanejo que andou pelas
fazendas de gado da região, vendendo os bens produzidos pela comunida-
de. Conhece cada canto do Jalapão porque explorou cada pedaço de chão
muitas vezes a pé, outras vezes no lombo de um cavalo ou na condução de
uma tropa.
Situando a D. Laurentina e o Sr. Diolino na árvore genealógica da
comunidade, presumimos que a família está na sétima geração. Conceben-
do o tempo sob o ponto de vista dos mumbuquenses e atribuindo 20 anos
para cada geração, presumimos que o Povoado Mumbuca formou-se há
mais ou menos 150 anos atrás (por volta de 1870, final do século XIX).
Durante a pesquisa etnográfica, a primeira preocupação que tive-
mos foi saber qual seria o motivo que levou a família de origem a escolher
aquele local para se instalar, por volta de um século e meio atrás. No pro-
cesso de entrevistas ouvimos algumas justificativas que seguem a mesma
linha de raciocínio, ou seja, a saga de uma família que saiu da Bahia para
fugir da seca, da fome e da escravidão.
Ainda que a repetição dessa história torna-se corrente na comuni-
dade, percebemos que nas entrelinhas existem duas concepções diferentes
para a origem e ocupação do local: uma que se baseia na fuga do trabalho
escravo e a outra que se baseia na procura de terra livre.
No contexto de fuga do trabalho escravo, uma das lideranças nos con-
ta a origem da comunidade: “[...] dizemos que nosso antepassado veio da Bahia
correndo da seca, da fome, da escravidão mesmo.” (Liderança 1, 64 anos).
Esse depoimento nos informa sobre o contexto geográfico (cita o
Estado de origem do antepassado – a Bahia), o contexto sócio-econômico
(aponta o problema da seca e da fome como motivador da migração) e o
modo de produção vigente na época (a escravidão).
Uma possibilidade a ser considerada é o movimento migratório for-
çado, ou seja, o Povoado teve origem no processo de migração de uma fa-
mília que saiu “correndo” da Bahia. A palavra “correndo” explicita a ideia
de movimento, de ação, de necessidade imediata. Ainda que a liderança
não afirme literalmente que o seu antepassado vivia na condição de escra-
vizado, nos induz a imaginar que ele estava em fuga do trabalho escravo,
da escravidão.
Essa concepção, em si mesma, não nos permite deduzir se esse an-
tepassado era africano, indígena ou branco, mas nos induz a pensar que
vivia sob o jugo do trabalho escravo. É um dado a se pensar quando hoje
olhamos para os moradores da comunidade somente pelo aspecto físico ou

27
pela cor da pele, pois encontramos um grupo misto composto por pessoas
negras, brancas e mestiças.
Ainda que a miscigenação possa ter ocorrido ao longo do tempo,
Jamerson Jr. (2002, p. 203), afirma que “os europeus adentraram inicial-
mente na área que atualmente constitui os Estados de Goiás e Tocantins
em busca de escravos indígenas e, depois, ouro e diamantes”.
Nessa linha é possível conceber que a Comunidade Mumbuca já sur-
giu miscigenada. No contexto da procura de terra livre, outra mumbu-
quense nos conta sobre os seus antepassados com mais detalhes:

[...] eles eram escravos e quando a Princesa Isabel decretou a Lei Áurea, a
lei que libertou os escravos, alguns fazendeiros que tinham a fazenda mui-
to grande, eles deram um pedaço de terra para essas pessoas. E outros não,
mandaram embora. E esse pessoal foram vindo pra cá e foram habitando
essa região aqui (Mumbuquense, 3).

Esse depoimento concebe a família de origem numa situação de


transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Também estabelece
um marco histórico para a origem do Povoado (o decreto da Lei Áurea).
Outro dado desse depoimento é que aponta a desintegração das fazendas,
a posse de terras para uns e a destituição de outros.
Nesse relato, a frase “esse pessoal foram vindo pra cá e foram habitando
essa região aqui”, fica mais evidente a forma de ocupação do local e a impor-
tância da terra para a família de origem.
Na nossa concepção, as duas versões nos ajudam a refletir sobre a
origem e a formação histórica do Povoado Mumbuca, adotando os três
referenciais: o Norte de Goiás.6 como referência de espaço; o final do sé-
culo XIX, como referência de tempo e a trajetória da família de origem
como protagonista. A opção pelo estudo da Comunidade Mumbuca se deu
porque é uma comunidade que está envolvida em uma teia de relações que
permite contextualizar a vulnerabilidade social e a insegurança alimentar
e nutricional em âmbito local, estadual, regional e federal. Daí se apresen-
ta três temas pertinentes: defesa do território, construção da identidade
étnica e garantia da soberania alimentar.
Como caracterização espacial, a Comunidade Mumbuca é um lócus
privilegiado para o desenvolvimento desta pesquisa. Seu território foi in-
corporado ao Parque Estadual do Jalapão, criado pela Lei Estadual de 12
de janeiro de 2001.

6 O Estado do Tocantins foi criado em 1988. No período da escravidão essa região era
considerada o norte do Estado de Goiás.
28
O Parque Estadual do Jalapão é uma Unidade de Conservação Inte-
gral, que ocupa uma área de quase 150 mil hectares de terra no município
de Mateiros. Pela regra legal, nesse parque não é permitida a presença de
moradores em seu interior. Todavia, o fato é que os moradores de Mum-
buca residem no local há mais de um século. Em face disso, a criação do
Parque gerou uma série de conflitos que deixam a comunidade numa si-
tuação de vulnerabilidade social.
A localização da Comunidade Quilombola Mumbuca está inteira-
mente situada no município de Mateiros, Estado do Tocantins. Esse mu-
nicípio faz divisa com o Estado do Piauí e concentra a maior região eco-
turística do Jalapão.
A comunidade está com o processo de regularização fundiária for-
malizado no Incra/TO, possui a Certidão de Auto-reconhecimento emi-
tida pela Fundação Cultural Palmares, desde 16 de janeiro de 2006, ainda
assim o território ainda não foi reconhecido e nem titulado.
Dentre as comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palma-
res no Estado do Tocantins, a Comunidade Quilombola Mumbuca nos
permite pensar o sentido do humano no contexto da realidade latino-ame-
ricana, assim como nos propõe Rodolfo Kusch, em sua obra Esbozo de uma
Antropologia Filosófica Americana (1978).

29
Referências
ARNON, et Al. Campo do turista. Violinha de vereda viola de buriti. Arnon &
Mauricio. Comunidade Mumbuca. Voz e performance na tessitura das palavras e
do capim dourado: as manifestações dos artesãos do Tocantins. Faixa 16, Funar-
te/CEULP/ULBRA. s/d. 1CD-ROM
JAMESON JÚNIOR, D. M. A economia de Goiás no século XIX. In: GIRAL-
DIN, O. (Org). A (trans)formação histórica do Tocantins. Goiânia: Editora
da UFG, 2002, p. 203-227.
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de uma Antropologia Filosófica Americana. Bue-
nos Aires: Ediciones Castañeda, 1978.
PEREIRA, Ana Lúcia. FAMÍLIAS QUILOMBOLAS: história, resistência e
luta contra a vulnerabilidade social, insegurança alimentar e nutricional
na Comunidade Mumbuca - Estado do Tocantins. Tese de Doutorado. Ara-
raquara. Universidade Estadual Paulista, 2012.
SANTINHA. Pau pereira. Intérprete: executado pelo grupo. In: MEDINA, M.
F. (Coordenadora da pesquisa.); MEDINA, J. (Direção musical); BORGES, T.
(Gravação). Cantigas de Roda: Comunidade Mumbuca. Funarte/CEULP/
ULBRA. s/d. 1CD. Faixa 11.

30
os estudAntes indígenAs e os desAfios AcAdêmicos

Bruno Ferreira Kaingang1

Os povos indígenas vêm sofrendo diferentes formas de repressão des-


de o inicio da colonização no Brasil, de forma explícita. Essa prática criou
e enraizou uma visão negativa desses povos que perdura até os dias atuais.
Foram obrigados a abandonar ou, ao menos tentaram fazer substituir as
crenças ancestrais por outra religião, a dos brancos, que introduziram a
ideia de demônio em seus (nossos) rituais. Os colonizadores introduziram
também suas línguas, negando nossas manifestações, cantos e narrativas
pronunciados na língua nativa materna. Reduziram os territórios criando
os aldeamentos em uma falsa felicidade de sociedade civilizada.
O preconceito, a discriminação, o racismo estão presentes nos mais
variados lugares, inclusive nos espaços acadêmicos. Os indígenas que
saem de suas terras (aldeias) e vão para as cidades, encontram muitas di-
ficuldades de adaptação para viver nos centros urbanos onde vão estudar
e trabalhar. Em geral são julgados como atrasados, inferiores, recebendo
da sociedade não indígena palavras preconceituosas como, por exemplo,
“nem parece índio, está bem vestido”.
É preciso relembrar que no Brasil tivemos um longo período dedi-
cado à negação da diversidade ao extermínio cultural e físico: a escravidão
indígena; a incorporação da mão de obra desses indígenas à sociedade na-
cional, muitas das vezes ligado a igreja; a desqualificação e destruição das
organizações sociais desses povos; séculos de recusa as suas crenças, suas
línguas, costumes, tradições; tempos que seus rezadores eram tidos como
feiticeiros e foram perseguidos e mortos. No entendimento dos “civiliza-
dos”, vindos do outro lado do Atlântico, esses povos não tinham tecnolo-
gias, povos sem conhecimentos. Em boa medida esse entendimento ainda
permanece muito bem vivo e enraizado nos nossos dias.
Com o passar dos tempos, o Estado brasileiro moderniza suas práticas
de silenciar os povos indígenas, desenvolvendo projetos de grande impacto
sobre essas sociedades e seus territórios, construindo represas hidroelétri-

1 Kaingang, Professor de História do Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo


Manhká Miguel, Terra Indígena Inhacorá- RS, Brasil; Mestre em Educação e douto-
rando Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS,
Bolsista: CNPq.
31
cas, estradas, atividade mineradora, desmatamentos das florestas, atividades
agrícolas com o uso desenfreado de agrotóxicos, causando impacto sobre a
vida das comunidades indígenas. Ignoram a consulta prévia estabelecida em
leis nacionais e internacionais, de acordo com os Direitos Humanos, preca-
rizando a vida dessas populações que, além disso, são acusadas de atrapalhar
o desenvolvimento. Uma atitude clara de preconceito e discriminação.
Essas práticas vêm sendo desenvolvidas desde a criação do Serviço
de Proteção ao Índio – SPI, em 1910, instituição que desenvolveu politicas
públicas para a integração dos indígenas na sociedade nacional, desrespei-
tando as culturas, as línguas, fortalecendo a ideia de inferioridade. Nesse
sentido, a escola foi utilizada como uma das ferramentas para introduzir
valores ocidentais brancos, proliferando a língua portuguesa, lembrando
que práticas desta natureza estavam presentes desde o início da coloni-
zação, principalmente a busca da integração dos indígenas à sociedade
nacional. As iniciativas inovadoras que pretendiam modernizar o Brasil
do século XX foram mais uma vez desastrosas para os povos indígenas.
Diante do contexto de séculos de colonização, a partir dos anos 1970
os indígenas se mobilizam de maneira mais efetiva e formam suas organi-
zações. Começaram a participar de forma muito assídua nas discussões e na
construção da Constituição Federal do Brasil de 1988. Desse modo busca-
ram construir novos caminhos para a garantia das culturas, das identidades
como povos produtores de conhecimentos a partir de uma visão de mundo
próprio, da garantia de seus territórios, das crenças, línguas, do direito. En-
fim, a luta por assegurar o direito de sermos sujeitos de nossa existência,
de nossas histórias e outra perspectiva de ver o mundo a partir de nossas
cosmologias, por meio de manifestações culturais próprias.
As garantias legais conquistadas na Constituição Federal de 1988
estão estampadas em dois principais artigos referentes aos povos indíge-
nas brasileiros: Artigo 231 - “São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens” e Artigo 232 - “Os índios, suas comunidades
e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus di-
reitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
A ida às universidades se faz necessária para melhor compreensão das leis
e a construção de políticas que venham a atender as necessidades dessas
populações, fazendo cumprir o que reza a lei maior do país.
Essa ida à universidade é realizada em dois movimentos, em tempos
diferentes. O primeiro, a necessidade de construir alianças. Nesse sentido,
a universidade vai ser umas das parceiras escolhidas para as lutas. Com

32
isso, buscamos conhecer melhor a sociedade não indígena ocidental para
podermos construir um diálogo mais igual, horizontal. Com essa determi-
nação vamos ocupando os cursos que entendemos ser necessário para nos-
sas lutas e para a construção de políticas pública condizentes para nossos
povos. No caso específico do povo Kaingang do Rio Grande do Sul, em um
primeiro momento foram eleitos os cursos Direito, História, Pedagogia e
Agronomia (início dos anos 1990). Com o passar dos tempos, a gama de
cursos de graduação vai se estendendo para outros cursos escolhidos pelas
lideranças kaingang, atendendo a preocupação em formar profissionais em
uma gama mais abrangente. Dentro deste movimento destaco a importân-
cia das ações afirmativas, que ajudam a diminuir as desvantagens.
Num segundo movimento, é a chegada aos Programas de Pós-Gra-
duação (Mestrados e Doutorados); a busca pela construção de pesquisas
que apresentem e representem o seu povo indígena para a universidade e
de maneira geral para a sociedade não indígena, mostrando nossas diferen-
ças, nossa língua, nossos costumes, nossas tradições, nossa cultura, nossos
conhecimentos, outro jeito de ver o mundo. Mostrar que somos povos que
temos como nosso regulador social a reciprocidade, o coletivo imperando
sobre a individualidade, com conhecimentos construídos a partir de nossas
ancestralidades de forma coletiva. Nesse sentido, trazendo outros concei-
tos de sociedades e colocando em questionamentos antigas visões a respei-
to dos indígenas, que sempre foram apresentados como uma coisa velha,
sem valor, no passado, com o forte olhar do preconceito e da discriminação.
Acredito que a escolha da universidade como uma das parceiras
para as lutas indígenas vem muito por ser um espaço de produção de re-
flexões, em que nós indígenas também podemos trazer nossos conceitos
para serem compartilhados e mostrar nossos valores diante das demais
sociedades. Os indígenas, ao longo do tempo, vêm mantendo e susten-
tando a vida de forma limpa e saudável, garantindo a sobrevivência das
gerações do presente e do futuro.
É claro que a universidade é desafiadora para os indígenas. Estou
falando de um espaço que ainda nos é desconhecido, uma instituição que
está distante de nossas realidades, mas que tem suas importâncias, qual
seja o de auxiliar os indígenas que a frequentam, construindo com esses
uma opinião crítica diante das realidades sociais e no reconhecimento cien-
tífico, tecnológico e cultural dos indígenas. Nesse sentido, servirá como
um instrumento fortalecedor de nossas lutas, com o comprometimento
da construção de uma sociedade mais justa e respeitosa diante das diver-
sidades étnica, linguística, cultural e epistêmica. Porém, aos poucos as
barreiras vão se rompendo, pois nós estudantes indígenas também vamos

33
impondo-nos de forma qualificada, numa clara posição de trazer e afirmar
nossos jeitos próprios de construir conhecimentos, muito evidenciados
nas escritas de nossos trabalhos, uma escrita que vem do movimento de
dentro para fora, na busca do equilíbrio da emoção com a razão, eviden-
ciada de forma muito forte na oralidade. Penso que além de adquirirmos
os conhecimentos e as tecnologias oferecidos pela universidade, é preci-
so estar atento para a manutenção de nossa identidade cultural, nossos
costumes, tradições, as formas próprias de construir e transmitir nossos
conhecimentos, nossas metodologias. A preocupação é como que a univer-
sidade acolhe esse estudante com as suas diferentes formas de produzir
conhecimento e de se expressar, que tem como princípio a oralidade e não
a escrita. Isso ainda carece de muitas reflexões por parte dos docentes,
junto com os estudantes indígenas. Por ser desafiador, é necessário e ur-
gente fazer um diálogo levando em consideração essas questões.
Outras situações importantes a serem observadas nos estudantes in-
dígenas e que dizem respeito à questão específica de suas famílias é a perma-
nência do estudante na cidade com a sua família, pois muitas das vezes es-
ses(as) estudantes são casados(as), têm filhos(as). Aliás, esta é uma realidade
da maioria, pois, segundo nossas culturas, não vivemos separados um dos
outros; de maneira especial, não nos distanciamos de nossos parentes. Isso
causa incompreensões entre os estudantes indígenas, a universidade e os
professores. Para o povo Kaingang, segundo sua tradição, todos são Kanh-
kã2, onde um sustenta o outro, o desenvolvimento de uma filosofia própria,
pensar e propor pensar sobre o ser da América (KUSCH, 1976).
Para os indígenas, sendo de tradição oral, a escrita é um desafio na
relação de produção do estudante indígena na vida acadêmica e carece
de uma atenção muito especial, pois como já dito, os indígenas têm como
meio principal de transmitir seus conhecimentos a oralidade. Diante disso,
a escrita passa a ser um grande desafio: são dois mundos distintos. Nesse
sentido é importante compreender o “poder” da oralidade para os indíge-
nas. A oralidade permite os indígenas criarem e recriarem suas histórias,
suas narrativas que vão se movimentando ao longo dos tempos e dos di-
ferentes contextos e assim vão criando e repassando seus conhecimentos.
Existe uma dinâmica de se atualizar a cada situação de tempo e espaço.
A oralidade e a escrita evocam situações distintas, entretanto coexistem
em nossa sociedade, mesmo nesse tempo-espaço de triunfo da linguagem

2 KANHKÃ – a tradução mais próxima para a língua portuguesa é Céu. Na compreen-


são kaingang, Kanhkã é o que sustenta as relações entre as pessoas e desse modo im-
pedindo seu distanciamento da comunidade ou do modo de vida, uma representação de
tempo e espaço antológico.
34
que nos acostumamos a registrar e ler no papel (BERGAMASCHI, 2005).
A escrita é umas das dificuldades que muitas vezes levam os estudantes
indígenas a não cumprir prazos de entrega de trabalhos e assim passarem
por situações desconfortáveis em relação a seus colegas não indígenas.
São situações que levam a discriminação e ao preconceito. É reconhecido
que professores, teoricamente valorizam os estudantes indígenas, a di-
versidade, seu jeito de ser, mas nas práticas acadêmicas atuam de forma
padronizada, o que é historicamente possível, pois sempre se buscou a
homogeneização pela escola.
Apesar das dificuldades de compreender os estudantes indígenas
na universidade, acredito que contribuímos muito com nossos trabalhos
escritos. Formamos uma legião de intelectuais presentes em diversas uni-
versidades brasileiras, promovendo ganhos para os povos indígenas e para
sociedade acadêmica, numa clara intenção de colaborar na busca de alter-
nativas para a humanidade, colocando nossos conhecimentos e nossos sa-
beres constituídos na coletividade e na ancestralidade a serviço de todos.
Nesse contexto, trazendo também a demanda dos povos indígenas para
fazerem parte das reflexões das universidades, pois há também a percep-
ção desses espaços como estratégicos e relevantes para o diálogo, objeti-
vando as demandas dos povos indígenas e suas comunidades.
Acredito também no enriquecimento da universidade, reconhecen-
do as culturas com as quais a sociedade e as pessoas interagiram durante
anos e as relações estabelecidas com elas. Construindo uma visão de mun-
do, percebe-se como as pessoas estabeleceram e estabelecem relaciona-
mentos, como construíram e constroem conhecimento sobre o mundo e
sua percepção do tempo e espaço da humanidade. Por fim, o racismo é a
não aceitação do conhecimento do outro, o outro como sujeito e produtor
de saberes e sabores. E não é só pela presença física, mas também é uma
presença completa, orgânica com os conhecimentos, as línguas e os méto-
dos de construir os mais diversos conhecimentos.

Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e. Enquanto o encanto perma-
nece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. Tese de Douto-
rado. Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, 2005.
KUSCH, Rodolfo. Geocultura Del Hombre Americano. Colección Estúdios
Latinoamericanos. Buenos Aires, 1976.
SILVA, Luiz Fernando e (org). Coletânea da legislação indígena brasileira.
Brasilia: CGDTI/FUNAI, 2008.
35
A interculturAlidAde dentro dA filosofiA KAnHgág

Dorvalino Cardoso1

Introdução

Procuro aqui pensar a interculturalidade dentro da visão indíge-


na através de cinco eixos temáticos: no primeiro, onde destaco que como
povo, nossa cultura e identidade são sagrados. Já no segundo eixo falo de
como o passado projeta o nosso futuro, orientando o nosso caminhar. No
terceiro eixo, onde nos identificamos como sendo a natureza, saliento a
importância da mesma e nosso dever de preservação. No quarto, falo da
necessidade de aprendermos com a mesma, entendendo sua linguagem
que nos fala. Nas considerações finais, destaco que todos os povos, com
sua identidade, cultura e organização formam a sua filosofia, e a obrigação
de seguirmos a mesma dentro da escola indígena. Faço um olhar sobre
este ensinamento popular que emana da vida (KUSCH, 1978).

Desenvolvimento

Cultura e identidade indígena são sagrados Partindo do princípio


que minha primeira identidade parte do meu próprio nome, dentro dos
meus valores culturais o mesmo tem um valor de extrema importância. O
meu nome carrega então, dentro desta perspectiva, meus valores, minha
cultura e minhas origens. Não posso negar este fato e sim reafirmá-lo,
para assim propor um diálogo com as diferentes culturas que me cercam.
A interculturalidade partindo de mim, das minhas próprias linha-
gens clâmicas. Meu avô materno é Xogleng e minha avó Guarani. Já meus
avós paternos são Kanhgág coroados. Hoje, no Brasil, existem várias cul-
turas entrelaçadas. Até mesmo dentro da minha própria etnia Kanhgág já
existem diferenças. Não encontramos mais um ponto único. Isso se deve
ao fato de que como povo, etnia estamos sempre em movimento. Estamos
rodeados de outras culturas e nossos conhecimentos sofrem ressignifi-
cações. Nada é estático, neste campo onde as interaprendizagens acabam
acontecendo. Mas, para que estas interaprendizagens realmente ocorram
de forma plena as diferentes culturas têm que ter abertura para o diálogo.
1 Mestre em Educação – UFRGS.
37
Este exercício de dialogar é o que proporciona ricas aprendizagens,
por os que são por esta prática envolvidos. O passado projetando o futuro.
Dentro da perspectiva cultural indígena, para irmos adiante na nossa ca-
minhada pessoal, precisamos de um ponto de partida. O mesmo se localiza
no nosso passado, lembrando que o passado também é futuro. Já nossas
origens que são consideradas o nosso patrimônio, a cultura sagrada é o
principal patrimônio de um povo. É de extrema relevância o que ficou no
passado. Ele faz parte do nosso presente e projeta o nosso futuro. O pla-
neta é uma esfera, todas as coisas têm um peso fixo.
O passado, o presente e o futuro vivem dentro deste sistema pla-
netário. Não pode ser ignorado. Essa prática nos permite aprender com
os nossos erros, remodelar os nossos objetivos, tentando dessa maneira
desenhar um futuro melhor para nossos descendentes que continuarão
a caminhada, lembrando que cada indivíduo deixa suas marcas, que são
únicas, peculiares a cada um. Pensando dessa maneira, a cultura e a iden-
tidade dos povos kaingang são sagrados.
Somente aqueles saberes que adquiro ao longo da minha jornada pes-
soal, não têm tanto valor. Eles serão agregados, somados, mas nunca devem
se sobrepor aos valores culturais e identitários da minha etnia, à qual me
vinculo. Esses valores culturais e identitários devem sempre se destacar em
mim como pessoa. Ao cruzar e andar no meio das diferentes culturas que
me cercam, não é pela minha aparência que devo ser notado, mas pelos meus
valores, meu modo de falar e minhas convicções que devo sempre trazer
junto a mim, respeitando e cumprindo as mesmas rigorosamente.
Os povos indígenas em geral, no processo civilizatório, passaram
por um período considerado por muitos como uma legítima barbárie. De
acordo com essa visão, a cultura e a identidade cultural indígena foram
negadas. Como povo, fomos obrigados a negar nossos valores culturais e
patrimoniais. O que para nós era sagrado foi considerado profano. Todos
os povos do planeta são civilizados no momento que praticam suas práti-
cas, suas culturas dentro das suas organizações.
Não podemos ser considerados civilizados somente quando sabe-
mos a “cultura dominante”. Fomos obrigados a incorporar valores e as-
pectos culturais que não nos pertenciam. Não houve uma troca e sim uma
substituição que nos foi imposta. E o pior, passamos por um processo de
negação. Para muitos, foi necessário negar, para poderem continuar vivos.
Segundo Todorov (2010), não existe uma cultura superior a outra. Todas
as culturas vivem dentro de uma pluralidade, e por este motivo não podem
ser consideradas como civilizadas. Todos a partir de seus atos podem ser
tornar bárbaros ou civilizados. Todorov (2010, p. 65) fala que:

38
[...] a pluralidade das culturas (um fato incontestável) não impede,
de modo algum, a unidade da humanidade (outro fato incontestá-
vel), nem, portanto, o julgamento que estabelece a realidade dos
atos bárbaros e dos gestos civilizados. Nenhuma cultura traz em
seu bojo a marca de barbárie, nenhum povo é definitivamente ci-
vilizado; todos podem tornar-se bárbaros ou civilizados. Esse é o
caráter próprio da espécie humana.

Essa prova de sobrevivência, que muitos povos indígenas passaram


teve e tem um preço muito alto até os dias de hoje. Atualmente, luta-
mos para resgatar valores, patrimônios e culturas que foram dizimados. É
nesse resgate, nesta busca incessante que os indígenas atuais trabalham,
lutam. Tentam resgatar de muitas memórias perdidas o que ficou no pas-
sado, colocando agora para o escrito, passando assim do oral para o re-
gistro. Somos a natureza. Como etnia Kanhgág, acreditamos que somos a
natureza que nos rodeia. Não existem existências, vidas separadas.
Somos compostos por três substâncias básicas: água, terra e atmos-
fera. Olhando de forma crítica para os três elementos básicos que com-
põem a humanidade, faço os seguintes questionamentos. Pergunta nú-
mero 1: Como está nossa água? As nossas fontes, os nossos rios? Estão
limpos e saudáveis? A água tem vida, mas a humanidade que se considera
“civilizada” está matando-a diariamente. As fábricas são um exemplo cla-
ro, que despejam lixo nos rios, nas fontes de água todo o dia, a toda hora.
Isso não é humano e sim desumano! E o que falar do desperdício dessa
fonte de vida? Enquanto em alguns lugares se tem tantas fontes disponí-
veis ainda, já existem lugares onde a mesma é racionada ou já não existe
mais. O que acontecerá quando não tivermos mais água para beber? Nos-
sa fonte de vida, do que somos compostos está morrendo e nós também.
Mas, infelizmente, poucos estão se dando conta desse fato.
Agora vamos analisar a pergunta número 2: Como estão os nos-
sos solos, a nossa terra? Antigamente, nossos antepassados plantavam
e colhiam. Viviam basicamente da terra. Hoje, devido aos grandes em-
preendimentos imobiliários que nos cercam, não existe mais terra para
plantar. Por este motivo, acabamos tendo que obter outras formas de
renda, que pode por vezes ser perigosa e que causa doenças. Muitos mo-
ram em condomínios de luxo, cercados de todo o tipo de conforto, mas
não sabem o valor da terra que têm sob os pés. Não dão atenção alguma
a este fato e nem valorizam o que provém da mesma. Ninguém gosta de
estar aprisionado, nascemos para estar em contato com a natureza. A
ganância do ter e ser tomou conta do ser humano, que esqueceu que a
terra é para todos.
39
Hoje, poucos tem acesso à terra, que está poluída, como a água.
Pouco se planta e esse pouco ainda não floresce e brota como antigamen-
te. Agrotóxicos e hormônios são oferecidos para fabricar a nossa comida,
para plantas crescerem e incorporarem. Plantas são modificadas cienti-
ficamente nos laboratórios e revendidas a grandes produtores. A terra
virou objeto de negócio, Deus deu a terra para todas as vidas do planeta.
Doenças avançam cada vez mais. O que dizer do câncer, que todos os dias
ressurge com novas formas raras? A tuberculose que todos diziam já não
existir mais, que estava erradicada em nosso país, volta a ressurgir com
mais força. A diabete, a obesidade entre tantos outros problemas. O ser
humano cada vez mais tem seu índice de imunidade considerado mais
baixo. Como explicar esse fenômeno? Fala-se em qualidade de vida, lon-
gevidade. Minha pergunta: Será mesmo? Vivemos mais, mas a que preço?
Estamos cada vez mais doentes. Eu sugiro darmos mais atenção para os
pajés neste momento de desespero. Eles podem nos dar a solução.
Pergunta número 3: O que dizer do ar que respiramos? Ele existe
ainda? Onde? Como fazer para respirar ar puro nos dias atuais? Ao obser-
var um final de tarde, de uma grande cidade, não consigo mais visualizar o
nosso céu, nossa atmosfera limpa. Ela faz parte de mim, da criação. Mas o
que consigo visualizar é uma massa, que às vezes se mostra cinza ou preta.
Estou no meio de tudo isso, mas minha vida fica a cada dia mais curta. O
meu pulmão, que assim como meu coração, é a mola mestra, que faz girar
a máquina, que se chama corpo, está recebendo esta nuvem cinza ou preta.
Como estará ficando o meu corpo então? Lembrando que esta ingestão de
ar ocorre todos os dias, minuto a minuto, durante toda a minha existência.
Ao recordar a infância, lembro dos finais de tarde, onde saía a andar na
mata, observar o pôr-do-sol e o canto dos pássaros.
Hoje, constato com tristeza, que não posso mais enxergar um pôr-
-do-sol como antes, devido ao grande índice de poluição e aos pássaros
cada vez mais raros no céu. Motivo: O nosso ar já não existe mais. Está
morrendo. Lembrando que na primeira parte desta escrita salientei que,
como seres humanos, somos formados por três substâncias básicas: água,
terra e atmosfera. Se constatarmos que estes três elementos estão mor-
rendo, faço a pergunta final: e nós, como formados destes elementos, não
estamos morrendo também? É uma pergunta a se considerar, pensar e
refletir. Independente de cultura ou valores que nos regem, como seres
humanos em geral, devemos sempre repensar o que estamos fazendo com
este “mundo” que nos foi legado por Deus. Aprendendo com a natureza.
Os povos indígenas possuem um conhecimento assim milenar, muito
antes da colonização. Então eles também possuem um conhecimento, as-

40
sim de exploração da natureza. Eu e o meu povo, que nos criamos junto da
natureza, por exemplo, dos animais, das árvores, da cosmologia, dos rios,
acreditamos que todas estas coisas têm uma sabedoria. Elas são uma vida,
então elas têm uma sabedoria. É essa leitura que eu fazia, quando vivia junto
à floresta. Como etnia, gostamos de contar quando nasceram as coisas. Gos-
tamos de trabalhar também os pensamentos, ou seja, de contar os valores,
vamos dizer, dos rios, os valores dos animais, a valor da água e os valores
da humanidade. A ciência, ela separa o humano. A humanidade da natureza.
E os professores trabalham separadamente isso, humanidade e natureza. E
nós como etnia entendemos assim, que nós somos a natureza.
No momento que nós matamos a terra, nós estamos nos matando.
No momento em que a gente polui os rios, que o rio tem veneno, nós es-
tamos envenenando o nosso corpo. E nós precisamos dessa natureza. No
momento que a gente não viver da luz do sol, nós nos prejudicamos. Por
isso que dá doença depois. O contato do humano com a luz do sol fortalece
a gente. O homem precisa desta energia para sobreviver. E o sol nasceu
para isso. É para humanizar toda a natureza. Ele tem sua força. Os indíge-
nas adoravam o sol como Deus.

Algumas considerações finais...

Os povos indígenas com sua identidade, cultura e organização for-


mam a sua filosofia. Os indígenas Kaingang Coroados, em especial, têm a
sua formação a partir das linhas clâmicas kamë e kanhru, que são oriundas
da natureza, que por sua vez também têm a sua classificação e seus mitos de
origem. Lembrando que mitos e cosmologia para os povos indígenas têm
diferentes significados, conforme já descrito por Bergamaschi (2012, p. 91):

[...] mitos são narrativas que se referem á origem, ao des-


tino, aos sistemas de trocas, ao processo de comunicação de
humanos e não humanos em um dado território. Já a cosmo-
logia refere-se a teorias acerca do mundo, em especial, sobre
forma, o conteúdo e o ritmo do universo.

Um exemplo de mito de origem é do sol e da lua, que origina as me-


tades clâmicas, dos povos indígenas Kanhgág Coroados, o kamë e o kanhru.
Segundo os mitos Kanhgág, kamë e kanhru são dois irmãos primordiais.
Juntos, não somente produziram divisões entre a humanidade, mas tam-
bém entre os seres do cosmos. O sol é kamë e a lua é kanhru. Esses relatos
orais dos mais antigos passaram a ser registrados de forma escrita, pas-

41
sando das memórias para o registro, conforme descrito por Bergamaschi
(2012, p. 108):

[...] como contam os mais velhos, em tempos priveros, eram dois sóis que
existiam, o que implicava a ausência da noite, do orvalho, da água e, como
conseqüência, a impossibilidade de multiplicação das plantas, das pessoas,
dos rios...da vida como um todo.Mas, transcorrida uma briga entre os dois,
um deles, o Sol vencedor, vazou os olhos do outro, o Sol perdedor. Este
enfraquecido, transformou-se em lua, dando início á noite e aos ventos
para refrescar a Terra. Em sua origem, portanto, Sol e Lua (ex-Sol) são o
mesmo ser. O dia /Sol e a Lua / noite complementam o mundo, permitin-
do a existência da vida, pois a fertilidade vem da oposição e a complemen-
taridade de tudo que existe.

Devo destacar que estes mitos fazem parte da nossa filosofia como
povo e sobretudo que somente por intermédio desses relatos orais que atual-
mente passaram a ser registrados, que as explicações referentes a origem
dos cosmos encontram a sua explicação lógica. Volto a reafirmar que pen-
sando e agindo dessa forma, todos os seres que existem no mundo voltam a
relacionar. Todos os movimentos estão entrelaçados. O presente que vive-
mos se concentra no passado, presente e futuro em um presente contínuo.
Deste conhecimento “popular [...] que emerge do sofrimento da
vida, de uma resistência que se faz teimosia, popular como marca de um
povo, antítese necessária para que sujeitos possam dizer (a si mesmos) que
existem. “ (KUSCH, 1978, p. 675).

Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. DALLA ZEN, Maria Isabel Habckost. XA-
VIER, Maria Luisa Merino de Freitas (Organizadoras). Povos Indígenas &
Educação. 2. ed. Porto Alegre: Mediação, 2012.
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de uma antropologia filosófica americana. Buenos
Aires: Ediciones Castaneda, 1978.
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civili-
zações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

42
relAto de experiênciA: implementAção dAs
leis 10.639/03 e 11.645/08 em esteio
Graziela Oliveira Neto da Rosa

A ausência de discussões sobre as relações étnicas raciais na sociedade


brasileira, o silêncio e a falta de diálogo impedindo a melhoria do relacio-
namento interpessoal entre os atores que integram o espaço escolar, aca-
bam contribuindo para a naturalização do preconceito e das discriminações
raciais presentes na escola e fora dela, conforme diz Santos (1999). O que
não podemos aceitar, enquanto educadores, e mais que isto, devemos nos
fortalecer e lutar para a garantia dos direitos. O presente artigo tem como
abordagem uma reflexão inicial, sobre a importância da implementação das
leis 10.639/03 e 11.645/08, que tratam do ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena, no cotidiano escolar do município de Esteio/RS.
Ao longo dos anos a educação vem sendo alvo de debates e discus-
sões em várias temáticas que permeiam o processo educativo e um desses
debates referem-se às leis. Através de projetos mais pessoais do que coleti-
vos, alguns professores da rede municipal e também o Movimento Negro
UNIRAÇAS, tensionaram a administração municipal em implementar
uma prática pedagógica voltada para relações étnicas raciais.
Lutar pela aplicabilidade das leis, passou a fazer parte da rotina do
Grupo de Trabalho Africanidades. Inicia-se então uma proposta pedagó-
gica de modificar os olhares sobre a história indígena, africana e afro-bra-
sileira em nossas salas de aula e no cotidiano escolar. Era preciso coti-
dianamente reafirmarmos que a escola não é intercultural, não respeita
outras formas, outros meios a não ser o imposto pelo modelo europeu, diz
Bergamaschi e Gomes (2012).
Foi inspirado nos alunos que encontramos energia para desenvolver
um projeto voltado para as relações Étnico-Raciais. Entender que se faz
necessário mobilizar os demais colegas para o olhar sensível às diferentes
raças que havia na nossa comunidade escolar é urgente.
Observou-se que no meio escolar, havia necessidade de fortalecer a
autoestima dos alunos negros. Eu e os demais professores, começamos a
desenvolver um projeto de identidade, no qual as crianças pudessem de
fato se auto declarar, sem ter vergonha do que eram e também se reconhe-
cer como pertencentes a essa sociedade plural.

43
A construção da autoestima da criança negra, segundo Cerqueira
(2005), depende muito do ambiente escolar pois é onde a criança vivencia
parte do seu dia a dia. As relações estabelecidas na interação em classe
podem contribuir para que a criança negra cresça sentindo-se diferente,
mas não desigual.
Comparo o modo como me sinto aos Malês, movimento de negros
que resistiram e reagiram quando algo lhes foi imposto, principalmente
quando atingia sua crença e cultura. Da forma como a história tentou si-
lenciar meu povo, hoje vejo a oportunidade de também resistir, ao invés se
ser mais uma a se calar.
A trajetória percorrida em múltiplos espaços da educação, oportuni-
zou-me diferentes experiências, assim me encorajando a buscar a ciência
e a pesquisa como ferramentas de trabalho para acabar com o preconceito
nos diferentes ambientes. Fui uma das responsáveis pela implementação
das leis 10.639/03 e 11.645/08 na educação da cidade, mesmo antes de
tornar-me uma pesquisadora da temática. Conforme Meinerz (2017), era
uma professora negra que, motivada pela causa, fazia as coisas acontece-
rem na escola.
Ao longo do tempo, descobri que o mesmo ocorria com os demais
professores, por ideal e por afeto à causa, faziam valer a lei. Souza (2002)
diz que o educador se depara, frequentemente, com uma série de evidên-
cias das questões raciais e do preconceito, tendo ou não clareza delas e, al-
gumas vezes, utiliza práticas do senso comum, que, segundo a autora, po-
dem até mesmo reforçar o racismo. Na intencionalidade de reverter essa
situação, que se iniciou um forte trabalho nas escolas municipais, acreditar
que é imprescindível descolonizar nossas atitudes, foi determinante para
muitos professores.
Vivemos um momento dolorido, em que as pessoas estão assumindo
que são racistas. Esse cenário social vem refletindo diretamente no con-
texto escolar, e como educadora venho me questionando sobre como a
escola e a família está lidando com essa situação. O egoísmo, o não envol-
vimento com as políticas públicas de forma sistemática e o descrédito com
os agentes públicos, certamente tem levado o nosso país para uma crise
cultural. Por vezes impossibilitando uma troca de aprendizagens entre as
diferentes culturas.
O fato é que, infelizmente, a cultura escolar prioriza o homogêneo.
E nesse sentido, as diferenças são consideradas um “problema” a resolver.
Compreendendo este cenário, que o Grupo de Trabalho Africanidades
(GTA), percebe a necessidade de estudar coletivamente as leis 10.639/03
e 11.645/08. Foi através desses estudos no GTA que garantimos a imple-

44
mentação nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas o projeto Diver-
sidade, assim como a aplicabilidade das Leis no currículo escolar.
Sabemos que a educação tem um objetivo maior do que somente
preparar os alunos para o mercado de trabalho, o foco central da educação
deve estar nos sujeitos de direitos, eles são diversos em gênero, credo,
etnia, entre outros. De fato, essa diversidade tem sido tratada de forma
desigual e discriminatória ao longo dos séculos e ainda não foram devida-
mente equacionadas pelas escolas e seus currículos.
Ao longo dos anos, foi possível realizar diferentes ações, sempre
construindo com os colegas professores, tínhamos a responsabilidade, por
garantir as atividades e projetos realizados nos espaços escolares. Com a
indicação de um professor ou professora, por escola, foi possível articular,
acompanhar e qualificar o trabalho da diversidade no espaço escolar. No
decurso desses anos, houveram diferentes formações e capacitações, com
o intuito de multiplicar saberes e ressignificar o lugar das diferenças, pois
a ideia de ter um espaço delimitado no calendário escolar, nessa proposta,
estava sendo totalmente descartada.
Após formação do Grupo Africanidades, foram construídas estra-
tégias que garantiram nos anos de 2012 até 2016 a efetivação do traba-
lho na escola, processo este que foi criando formas e possibilitando novas
ideias e outros caminhos. Uma das ações realizadas na rede municipal de
ensino, foi o I Colóquio Municipal, que teve como tema central “O lugar
da diferença nas práticas cotidianas”, o evento resultou numa publicação,
que foi fruto de uma sequência de atividades viabilizadas pela Secretaria
Municipal de Educação do município de Esteio.
E hoje, como está sendo garantido a aplicabilidade das leis 10.639/03
e 11.645/08 na rede municipal de ensino? Conseguimos efetivamente des-
colonizar a educação de Esteio?

45
Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida, GOMES, Luana Barth. A Temática In-
dígena na Escola: ensaios de educação intercultural. Disponível em: http://
www.curriculosemfronteiras.org/vol12iss1articles/bergamaschi-gomes.pdf.
CERQUEIRA, Valdimarina Santos. A construção da auto-estima da criança ne-
gra no cotidiano escolar. In.: OLIVEIRA, Iolanda de; SILVA, Petronilha Beatriz
Gonçalves; PINTO, Regina Pahim. (orgs.). Negro e educação: escola, identi-
dades, cultura e políticas públicas. São Paulo: Ação Educativa/ANPED, 2005.
MEINERZ, Carla Beatriz. Ensino de História, Diálogo Intercultural e Relações
Étnico-Raciais. Educação e Realidade, v. 42, n. 1, p. 59-77, 2017.
SANTOS, Boaventura de Souza. A Construção Multicultural da Igualdade e
da Diferença. OFICINA DO CES. Nº 135 - 1999: Publicação seriada do Centro
de Estudos Sociais. Praça D. Dinis. Colégio São Jerónimo, Coimbra. Disponível
em: < http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/135/135.pdf>.
SOUZA, Yvone Costa de. Crianças Negras: deixei meu coração embaixo da
carteira. Porto Alegre: Mediação, 2002.

46
o testemunHo de um estudAnte guArAni
e seu duplo pertencimento

Isael S. Pinheiro1

Introdução

Este estudo apresenta o testemunho da minha trajetória acadêmica


e profissional a partir do qual busc evidenciar as experiências como estu-
dante e profissional Guarani. Busco narrar a cerca das seguintes questões:
a escolha do curso e da universidade; minha vivência enquanto estudante
Guarani; as relações com a família e com a comunidade a partir da con-
dição como estudante e como profissional; as relações estabelecidas com
as organizações contratantes – as iniciativas individuais e coletivas em-
preendidas como profissional; a relação com as lutas indígenas, bem como
as dificuldades, contradições, conflitos e resistências.

A vida na aldeia

Nasci em 1992 na Terra Indígena Barão de Antonina, município de São


Jerônimo da Serra, norte do estado do Paraná. O cenário era rico e belo, era
um lugar paradisíaco às margens do rio Tigre. O Rio Tigre até hoje é muito
importante para os indígenas da região, afluente da margem direita do Rio
Tibagi, no Município de São Jerônimo da Serra, estado do Paraná. Lá eu vivi
a minha infância até os sete anos de idade. Meu pai era filho de uma família
paulista, do interior do estado de São Paulo. Minha mãe é índia Guarani.
Em 1999, com o falecimento do meu pai, a minha família se mudou
para a cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná, a então grande
cidade, fugindo dos problemas econômicos e em busca de melhorias e de
oportunidades. Na cidade grande estudei até o 4° ano do primário. Mas
a principal causa da mudança para a cidade foi a dificuldade que minha
mãe enfrentava para sustentar a família na questão alimentar, uma vez
que se encontrava sem o meu pai, pois eu e os meus irmãos ainda éramos
pequenos, estávamos constantemente sem condições de ajudar. Além dis-
so, as condições onde morávamos na aldeia não nos favoreciam e nem nos
davam proteção, pois era bem longe do posto “sede”.
1 Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGEdu/
UFRGS. Bolsista de Doutorado do CNPq/Brasil. Contato: isaelsp.edu@gmail.com.
47
A Terra Indígena Barão de Antonina estava passando por um período
muito difícil, havia muitos posseiros ocupando áreas que pertenciam a
(TI) “Terra Indígena”. Os recursos para a subsistência se encontravam
muito escassos e já não havia condições de vida para todas as famílias.
O período da minha infância corresponde aos últimos anos dos
grandes conflitos agrários, uma vez que muitas outras lutas viriam a se
tornar frequentes. Ainda tive o privilégio de participar de algumas ceri-
mônias e rituais na casa grande opy, nossa casa de reza, coisa que me mar-
caria muito durante a minha juventude. Infelizmente, hoje, praticamente
se encontra abandonada.
A Terra Indígena São Jerônimo, hoje habitada por minha família,
era uma grande aldeia e referência do povo Kaingang, razão pela qual as
principais festas e cerimônias são sempre mais marcantes. Minha bisavó
materna era Guarani; não sabemos a qual grupo ela pertencia, sabemos
apenas que veio com um grupo Guarani do Paraguai. O nome da minha
bisavó era Leopoldina, que foi dado por missionários.
O meu pai era paulista, conheceu minha mãe na Terra Indígena Ba-
rão de Antonina, onde se casaram e tiveram quatro filhos. Um faleceu com
a idade de um ano. Infelizmente, meu pai também viria a falecer e sem
deixar informações sobre seus familiares. Minha mãe quando casou já fa-
lava português, por isso não aprendi em casa a falar a língua tradicional;
foi somente através da minha convivência com os meus amigos Guarani e
Kaingang que eram falantes da língua tradicional que passei a pronunciar
e a entender. Somente minha bisavó e algumas tias falavam fluentemente
na língua Guarani. Minha mãe não conseguiu falar em Guarani, ela pas-
sou a falar apenas português, uma vez que ela também falava com muita
dificuldade (à época todos não tinham estudo algum). Além disto, para
a mentalidade da época, falar em português era mais “civilizado” do que
falar em língua indígena.
A vida na cidade durou até os meus 12 anos, depois voltei para a al-
deia onde fui morar na Terra Indígena São Jeronimo, local onde minha avó
já se encontrava. Morei nessa aldeia durante todo o meu período de ado-
lescente e vida adulta e foi para mim inesquecível e marcou profundamen-
te minha personalidade e identidade. Convivi com minha mãe até os meus
13 anos de idade, depois ela se casou com um não indígena e se mudou
para outra cidade, eu e os meus irmãos fomos deixados com a avó mater-
na, e com o passar do tempo meu irmão mais velho se casou e também foi
embora para a cidade e o mais novo foi embora com minha mãe, somente
eu permaneci com a minha avó, aliás, até hoje vivo com ela. Os anos de
vida na aldeia foram marcantes, pude acompanhar todas as atividades da

48
comunidade, aprendi as coisas da vida Guarani, Kaingang, Xetá, das lições
morais, espirituais e as necessidades para a vida material e sociocultural.
Além disso, frequentei todas as atividades religiosas e comunitárias. Gos-
tava de pescar, caçar, brincar com meus amigos, gostava de ir para a esco-
la, trabalhar na roça e ajudar a minha avó nas atividades diárias.
Diante de uma situação extremamente oposta em relação àquela vi-
vida pelos nossos antepassados, hoje, nossos parentes e demais Guaranis
sobrevivem em pequenas áreas reduzidas muito aquém do que foi o nos-
so território tradicional. As condições que enfrentamos atualmente são
marcadas por vários problemas decorrentes da falta de espaço físico e da
escassez de recursos naturais essenciais para a nossa reprodução física e
cultural. Isso tem levado muitas famílias a se tornarem dependentes do
trabalho assalariado nas fazendas e cidades próximas às aldeias.

A vida na universidade

Em 2011, optei em fazer o curso de licenciatura em Geografia na


Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), do qual consegui in-
gressar através do Vestibular Indígena do Estado do Paraná. Durante o
percurso me deparei com várias dificuldades, uma delas era em acompanhar
a turma, pois me via como um estudante atrasado e estranho perante os
meus colegas. Inserir-se, viver e frequentar um ambiente diferente da nossa
realidade, ou seja, do nosso espaço de conforto e convivência acaba sendo
no início muito traumático. Aos poucos fui absorvendo a burocracia da uni-
versidade e passei a entender melhor os modos culturais dos meus colegas.
Apesar das dificuldades de permanência e de “adaptação” consegui concluir
o meu curso de graduação em 2014. Creio que a persistência e a resistência
me fizeram superar os estereótipos e os pequenos preconceitos que tive que
enfrentar durante os quatro longos anos na universidade.
Desde o meu primeiro ano na universidade procurei estar atento
aos movimentos indígenas. Fui representante dos estudantes indígenas
na universidade, participava das reuniões e dos encontros colegiais, e após
concluir o meu curso tive a oportunidade de lecionar na escola da minha
aldeia por três anos. Depois da graduação, o estudo tomou conta da mi-
nha vida e passei a me dedicar mais à pesquisa política. No ano de 2015,
iniciei a minha primeira especialização, a qual fiz em um ano: o curso de
Educação e Gestão Ambiental. Neste mesmo ano prestei a seleção para o
Mestrado em Educação, na Universidade Estadual de Maringá (UEM).
No ano de 2016, após uma série de estudos, consegui ser aprovado na difí-
cil seleção. Tive que ir embora da minha aldeia para a cidade de Maringá,

49
era a segunda vez que eu estava saindo da minha aldeia. Foram dois anos
de curso e de muito trabalho. Além disso, foi um novo cenário, ou melhor,
um novo mundo, tanto cultural, intelectual e científico.
Pude participar de grupos de estudos e atuei como coordenador
de um grupo de estudos com os universitários indígenas num projeto de
pesquisa denominado “Observatório da Educação Escolar Indígena, in-
titulado: Interculturalidade e interdisciplinaridade na educação escolar
indígena no Paraná: contribuição à alfabetização, formação de professores
e elaboração de materiais didáticos bilíngues, financiado pela CAPES/
DEB/SECADI/INEP”, que durou até o começo de 2017. Esse projeto
contava com estudantes indígenas matriculados em diversos cursos. Em
nossas atividades de pesquisa, leituras e discussões, foram produzidos vá-
rios trabalhos que foram essenciais para a minha formação.
Participei também de alguns eventos internos, porém, mesmo com
bolsa de estudos da CAPES/OBEDUC, no período, estive restrito por
condições financeiras de participar de eventos de maiores impactos. Um
dos mais importantes eventos que pude participar com apoio para trans-
porte e estadia foi o “Seminário Internacional de Etnologia Guarani”, rea-
lizado na Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), no muni-
cípio de Dourados (MS). Através da minha orientadora recebi o convite
para participar das reuniões do Programa Institucional de Bolsas de Ini-
ciação à Docência (Pibid) Diversidade, onde participavam alguns univer-
sitários indígenas dos cursos de graduação. Muitos desses universitários
provinham das mesmas terras indígenas que eu frequentava, possibilitan-
do-me assim entender melhor o modo de vida deles, já que muitos haviam
saídos de suas aldeias.
Um dos primeiros eventos nacionais que estive envolvido ocorreu,
entre os dias 15 e 19 de outubro de 2017, em Brasília, na UnB, III Fórum
Nacional da Educação Escolar Indígena, com a participação de, aproxima-
damente, 400 pessoas, representantes de 29 povos indígenas de 17 Estados,
entre professores, lideranças e universidades. No evento foi enfatizado que
a Educação Escolar Indígena deveria ser tratada como prioridade nas po-
líticas públicas, tendo em vista que os povos indígenas são elementos fun-
dantes na constituição do nosso país, tendo o Estado brasileiro uma dívida
histórica imensa, que só será resgatada com o cumprimento da Constituição
Federal e dos Direitos Humanos. Nesse encontro tive a oportunidade de dis-
cutir junto com outros grupos indígenas os grandes desafios agravados
pelo governo e me propus estudar de forma analítica o sistema político
brasileiro. Outro encontro importante que estive foi a II Conferência Na-
cional de Educação Escolar Indígena (CONEEI), que ocorreu em Brasília

50
(DF), entre os dias 20 a 22 de março de 2018, com o tema “O sistema na-
cional de Educação Escolar Indígena: regime de colaboração participação
e autonomia dos povos indígenas”. Antes da etapa nacional, eu já havia
participado da etapa regional, realizada em Florianópolis (SC). A etapa
nacional contou com presença de pelo menos 600 delegados – entre indíge-
nas, gestores, apoiadores – e mais de 90 convidados e observadores. Foram
três dias de intensos debates, oscilando entre otimismos com o futuro da
educação e pessimismo pelo contexto atual de corte de verbas e imposição
de limites e regras pelo governo federal. Essa segunda conferência teve
como objetivo avaliar os avanços, impasses e desafios da Educação Escola
Indígena (EEI); construir propostas para consolidar a política nacional de
educação escolar indígena; reafirmar o direito à educação específica e di-
ferenciada e ampliar o diálogo do regime de colaboração. Estive durante
todos os dias lendo as propostas locais e estaduais. De certa forma, minha
participação teve pontos positivos, pois consegui junto com outros grupos
indígenas a aprovação de uma proposta sobre o Ensino Médio, Educação
Profissional e Tecnológica e Ensino Médio Profissionalizante. Foram 25
propostas aprovadas na II CONEEI, essas propostas reafirmaram a vonta-
de das comunidades e dos movimentos indígenas de lutarem pelo cumpri-
mento das políticas de educação escolar indígena no país.

Considerações finais

A narrativa adotada como estratégia de história de vida enseja a


singularidade das nossas trajetórias, ainda que vivemos em uma sociedade
capitalista, com heranças colonialistas, as quais provocam e controlam a
cultura global, continuamos lutando pela (re)conquista dos nossos ter-
ritórios, dos nossos saberes, nossa cultura e também por mais direitos
de igualdade. Conforme a conjuntura política brasileira vai passando por
mudanças, é possível sentir o movimento das novas gerações indígenas
buscando dar visibilidade aos diferentes conflitos por eles enfrentados.
Uns deles têm sido contra o agronegócio, ou melhor, contra os fazen-
deiros que vestem novas máscaras e continuam obtendo o apoio do atual
governo através de novas configurações políticas. Recentemente tivemos
a oportunidade de acompanhar as acirradas lutas pela aprovação de várias
PECS que ameaçam nossas terras e os nossos recursos. Os grandes lati-
fundiários pressionam fortemente a bancada ruralista para controlarem
as demarcações de terras indígenas.

51
investigAción sobre memoriAs de conflictividAd
de mujeres mApucHe en lA ArAucAníA
Margarita Canio Llanquinao1
Solange Cárcamo Landero2

Mapuche, mujeres, memorias e interculturalidad

El análisis científico social se ha centrado en los grandes relatos del


conflicto chileno- mapuche y ha dejado de lado la heterogeneidad de las
historias de vida de hombres y mujeres (Nahuelpan, 2013). En la prác-
tica, lo anterior se ha expresado en las demandas y reivindicaciones del
movimiento social mapuche que permanentemente se reconstruye desde
memorias de despojo, violencia, injusticias y discriminación, por una par-
te, y desde memorias de comunalidad, reciprocidad, resistencia y prácticas
culturales, por otra. (Comunidad de Historia Mapuche 2012 y 2015). Las
investigaciones permiten ampliar la mirada y aportar nuevas interpreta-
ciones de las memorias de conflictividad en La Araucanía desde el cono-
cimiento situado de las mujeres mapuche, la recuperación de su memoria
oral y su discurso-narrativo. En concreto, esta propuesta se articula en 2
líneas de investigación.

Conflictividad intercultural y memorias de violencia de


mujeres mapuche en La Araucanía

A pesar de la extensa bibliografía relativa a los conflictos socio-


culturales e históricos derivados del contacto interétnico en el contexto

1 Es docente y académica del Departamento de Lenguas, Facultad de Ciencias Sociales


y Humanidades, Universidad Católica de Temuko, Chile. Posee grados de Licenciatura
en Educación Intercultural en Contexto Mapuche por la misma Universidad. Magister
en Estudios Americanos por la Universidad de Sevilla, España. Sus líneas de trabajo son;
enseñanza de la lengua y cultura mapuche (pueblo originario que habita en el sur de Chile
y Argentina), investigaciones en el marco de la memoria oral y tradiciones orales mapuche.
2 Es académica del Departamento de Trabajo Social, Facultad de Ciencias Sociales y Hu-
manidades, Universidad Católica de Temuko, Chile. Tiene el grado de Magister en Cien-
cias Sociales Aplicadas por la Universidad de la Frontera, Chile. Doctora en Ciencias
Humanas, mención discurso y Cultura. Sus principales líneas de trabajos e investigación
son la conflictividad e interculturalidad crítica.
53
regional de La Araucanía, son aún escasos los estudios que se enfocan en
temas de memoria y conflictividad desde la perspectiva de las mujeres
mapuche. En este sentido, en las últimas décadas se ha demostrado que
los “vacíos de información” y la “invisibilidad analítica” de las mujeres ma-
puche constituyen un obstáculo para el reconocimiento de la diversidad
cultural y para la diferenciación de género basada en la etnicidad (Gon-
zález Caniulef, 2003; Mattus, C. 2009). Un aspecto central en esta línea
de investigación dice relación con estudiar y dar densidad interpretativa a
las memorias de conflictividad de las mujeres mapuche en La Araucanía.
En este sentido, acogemos el concepto de conflictividad desde las pers-
pectivas que destacan el sentido histórico, relacional y constructivo de las
situaciones sociales conflictivas (Sarti y Aguilar, 2010; Wieviorka, 2010;
Navarro Lores, 2012). Al respecto, la perspectiva de Wieviorka (2010)
nos remite a la propuesta fundacional de Simmel, G. (1903), para quien
el conflicto es “un movimiento” que protege del dualismo que separa, un
camino que conduce a la unidad. Desde este punto de vista, los conflictos
se desarrollan desde unas lógicas de relación y no de destrucción o super-
vivencia (Wieviorka, 2010).
Esta interpretación de los conflictos es coherente con la noción de
conflictividad entendida como situación histórica que deviene en comple-
jidad arraigada a tensiones no resueltas en su momento y que permanecen
atadas a condiciones estructurales socioeconómicas, culturales y psicoló-
gicas (Satir y Aguilar, 2010). Así, la conflictividad intercultural es cons-
titutiva de las dinámicas de reconocimiento de la diversidad cultural y se
sitúa en la base de las relaciones dialógicas y de las democracias delibera-
tivas. Por esta razón, la conflictividad intercultural implica un trabajo con
las memorias dado que necesariamente remite al reconocimiento histórico
del sufrimiento de los pueblos originarios en el marco del colonialismo aún
vigente. Otro aspecto central en esta línea de investigación dice relación
con las memorias de violencia, que normalmente se han relacionado con el
espacio doméstico. Sin embargo, y tal como sostienen Painemal Morales y
Álvarez Díaz (2016), las experiencias de violencia en las mujeres mapuche
no se limitan a lo intrafamiliar, pues se entrecruzan con otras violencias
sociales de carácter histórico. Estas remiten a la época de la anexión de los
territorios mapuche al Estado chileno, lo que implicó para las mujeres ser
sometidas a fuertes disciplinamientos y prácticas discriminatorias hasta
el punto de ser forzadas a renegar de sí mismas y de su cultura (Calfío
Montalva, 2016). Al respecto, Vásquez Tolosa (2015) considera que estas
prácticas contribuyeron a la naturalización de la violencia hacia la mujer
mapuche en espacios intra e interculturales en las décadas siguientes a

54
la anexión territorial. La autora advierte sobre la continuidad de formas
de violencia del periodo colonial, pero a la vez sugiere el reforzamiento
de tensiones en las relaciones intra-étnicas. Como consecuencia de lo an-
terior, las mujeres fueron reducidas al rol de madres y esposas, se vieron
impedidas de tomar decisiones en la comunidad, lo cual, en definitiva, las
hizo especialmente vulnerables frente a la violencia en espacios públicos y
privados (Painemal Morales y Álvarez Díaz, 2016).
La reconstrucción de las historias de conflictividad y violencias
supone adentrarse en las memorias y testimonios de quienes han pro-
tagonizado estos eventos. Algunas fuentes relevantes en este sentido
son testimonios de sobrevivientes (Canío y Pozo, 2013) y textos que
entrecruzan memoria oral y construcción narrativa de las historias de
vida, como es el caso del relato Katrilef de Graciela Huinao (2015). En
el análisis que hace Llamunao Vega (2016) de este texto, identifica una
serie de mecanismos a través de los cuales se expresa la violencia y mar-
ginación hacia la mujer mapuche.
En un plano teórico-político, Nahuelpan (2013) acude al concepto
de “zonas grises de la memoria mapuche” para referirse a las interaccio-
nes sociales e intersubjetivas que configuran experiencias de sufrimiento
social en hombres y mujeres mapuche en condiciones de marginalidad,
desigualdad social y violencia colonial. Las zonas grises configuran espa-
cios sociales y cognitivos que desafían las representaciones establecidas
en los discursos sobre la conflictividad chileno-mapuche al develar expe-
riencias de sujetos en su cotidianeidad.
En síntesis, si bien, como hemos visto, existen investigaciones pre-
liminares que se aproximan al estudio de la conflictividad intercultural y
memorias de violencia de mujeres mapuche en La Araucanía, se hace ne-
cesario profundizar en la expresión de las subjetividades de las mujeres en
relación al problema identificado. Dado que la conflictividad y la violencia
se manifiestan en narraciones autobiográficas, esta línea propone un cruce
analítico entre memorias, historias de vida y discurso como práctica social.
Socialización lingüística, trayectorias vitales y tensiones identita-
rias de mujeres mapuche en La Araucanía
Como correlato de la primera línea de investigación, nos propone-
mos estudiar procesos de socialización lingüística y trayectorias vitales de
mujeres mapuche de La Araucanía, bajo el supuesto de que estos operan
como espacios sociales de conflictividad intra e intercultural que repercu-
ten directamente en sus configuraciones identitarias.
Las memorias orales permiten observar el despliegue a través del
tiempo de prácticas y procesos de resistencia cultural a nivel individual,

55
familiar y social-comunitario (Comunidad de Historia Mapuche, 2012 y
2015). Las experiencias de estas personas y los colectivos de los que for-
man parte se sitúan en coordenadas históricas y territoriales con sus pro-
pias especificidades. No obstante, las prácticas y discursos de resistencia
se nutren de un sistema de pensamiento socio-religioso que, a su vez, con-
figura un entramado cultural que encuentra en el mapuzungun su propia
vía de expresión (Quidel, 2014).
En relación a este último aspecto, los estudios sobre la vitalidad del
mapuzungun suelen enfocarse en la dimensión cuantitativa del problema,
enfatizando su condición de lengua en peligro. Las investigaciones publi-
cadas en los últimos años describen este escenario de desplazamiento to-
mando en cuenta variables territoriales, generacionales y situacionales, con
escasa atención a la variable de género (Zúñiga y Olate, 2017). Lo anterior
contrasta con el rol fundamental que le cabe a la mujer en la transmisión
de la lengua y la cultura en el ámbito intrafamiliar, además de ciertos ro-
les específicos en las prácticas socio-religiosas. En la dimensión cualitativa,
algunos trabajos se enfocan en los significados que los propios hablantes
atribuyen a la pérdida de vitalidad del mapuzungun sobre la base de sus tra-
yectorias vitales (Wittig, 2009; Teillier, Llanquinao y Flores-Farfán, 2016),
sin embargo, no se profundiza en las redes de socialización lingüística “pro-
pias” de las mujeres mapuche, que trascienden el espacio intrafamiliar y se
expresan también en redes de asociatividad intra y extracomunitarias.
Se trata de una interpretación situada en un territorio y una tem-
poralidad específicos. Otros trabajos que analizan biografías sociolin-
güísticas de hablantes de mapuzungun (por ejemplo, Wittig, 2009 y Mu-
ñoz-Cruz, 2010) plantean la necesidad de profundizar en el análisis del
papel que cumple la lengua en las configuraciones identitarias de los ha-
blantes en sus distintas etapas de vida. Sin embargo, por las característi-
cas metodológicas de tales estudios, no es posible hacer planteamientos de
mayor alcance respecto de dinámicas de socialización lingüística propias
de mujeres mapuche.
Para avanzar en estas indagaciones, se requiere un abordaje que in-
tegre las dimensiones de la memoria y las configuraciones identitarias, por
una parte, las continuidades y transformaciones del pensamiento y las prác-
ticas socio-religiosas mapuche, por otra. Se requiere, entonces un enfoque
que trascienda las categorías convencionales del análisis sociolingüístico,
pues las dimensiones aquí señaladas adquieren su sentido más profundo en
una conceptualización de la lengua como dispositivo de una representación
particular del mundo en tensión con las propias vivencias de subalternidad
y resistencia (Teillier, Llanquinao y Flores-Farfán, 2016).

56
A partir de estas consideraciones, se propone un estudio de al-
cance exploratorio que indague en las experiencias de socialización y
transmisión de la lengua mapuche en mujeres mapuche que permitan,
por una parte, profundizar en la idea del bilingüismo cíclico esbozado
por Durán y Ramos (1989), teniendo en cuenta las transformaciones del
contexto sociocultural en que se desenvuelven las mujeres mapuche en
la actualidad y, por otro, la recuperación de memorias orales de mujeres
mapuche que, desde una epistemología propia, otorguen nuevos signifi-
cados a los relatos dominantes respecto de la continuidad/discontinui-
dad del mapuzungun en los escenarios sociales contemporáneos. En una
mirada alcance general que enfatiza en la condición de lengua en peligro
del mapuzugun, se reconoce a La Araucanía como una región con mayo-
res índices de vitalidad.
De este modo, buscamos investigar experiencias vivenciadas por
mujeres mapuche en la Araucanía desde discursos narrativos autobiográ-
ficos que rescaten lo cotidiano en su heterogeneidad y dinamismo. Parti-
mos del supuesto de que los discursos y las experiencias relatadas re-con-
figuran procesos socioculturales complejos como: el género en relación
con lo étnico-cultural y el territorio; las prácticas socio-comunitarias y su
incidencia en la organización social; conflictividad intercultural presente
en la transmisión de la lengua; identidades tensionadas que reflejan ro-
les tradicionales y modernos en permanente transformación, entre otros.
(Mora, Fernández y Ortega, 2016).

57
Referencias
ARGUETA, J. Oralidad y cultura: la identidad, la memoria, lo estético y lo
maravilloso. México: Colectivo Memoria y Vida Cotidiana, 1994.
BIORD, H. Memoria oral y eventos históricos: metáforas, analogías y corres-
pondencias. Presente y Pasado, v. 10, n. 20, pp. 55-74, 2005.
CALFÍO MONTALVA, M. Cuerpos marcados. Comunidades en construcción.
En: PAINEMAL, M.; ÁLVAREZ, A. Mujeres y pueblos originarios. Luchas y
resistencias hacia la descolonización. Santiago: Pehuén y Centro de Estudios
Interculturales e Indígenas, 2016. Pp. 33-38.
CANIO, M.; POZO, G. (Eds). Historia y conocimiento oral mapuche. So-
brevivientes de la “Campaña del desierto” y “Ocupación de la Araucanía”
(1899-1926). Santiago de Chile, Lom Ediciones, 2013
CÁRCAMO, S. La acción social como proyecto intersubjetivo culturalmente si-
tuado. Alpha, n, 30, pp. 27-40, 2010.
CÁRCAMO, S. La antropología literaria: lenguaje intercultural de las ciencias
humanas. Estudios filológicos, n. 42, pp. 7-23, 2007.
COMUNIDAD DE HISTORIA MAPUCHE (2015): Awükan ka kuxankan
zugu wajmapu mew. Violencias coloniales en Wajmapu. Temuco: Ediciones
Comunidad de Historia Mapuche, 2015.
COMUNIDAD DE HISTORIA MAPUCHE. Ta iñ fijke xipa rakizuamelu-
wün. Historia, colonialismo y resistencia desde el país Mapuche. Temuco:
Ediciones Comunidad de Historia Mapuche, 2012.
FOUCAULT, M. The archaeology of knowledge and the discourse of lan-
guage. New York: Pantheon Books, 1992.
GILI, M. La historia oral y la memoria colectiva como herramientas para el re-
gistro del pasado. Revista Tefros, v. 8, pp. 1-7, 2010.
GONZÁLEZ, C. La Discriminación en Chile. El Caso de las Mujeres Mapuche.
In: Working Paper Series 23. Instituto de Estudios Indígenas, Universidad de
la Frontera, 2003.
GUIGOU, N. Comunicación, antropología y memoria: los estilos de creen-
cia en la Alta Modernidad. Montevideo: Nordan–Comunidad, 2009.
HALBWACHS, M. Los marcos sociales de la memoria. Barcelona: Anthro-
pos, 2004.

58
HERNÁNDEZ SAMPIERI, R., FERNÁNDEZ COLLADO, C.; BAPTISTA
LUCIO, P. Metodología de la investigación. Distrito Federal: McGraw-Hill
Interamericana, 2006.
HUINAO, G. Katrilef, hija de un ülmen williche - Relato de su vida. In: PAI-
NEMAL, M.; ÁLVAREZ, A. Cuerpos racializados. Mujeres comunitarias y
pueblos racializados. Santiago: Pehuén y Centro de Estudios Interculturales e
Indígenas, 2015. Pp. 27-32.
LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1990.
LLAMUNAO VEGA, C. F. Re-presentación de las mujeres en el relato testimo-
nial Katrilef de Graciela Huinao. Documentos Lingüísticos y Literarios, n.
34, pp. 67-79, 2016.
MORA, G.; FERNÁNDEZ, C.; ORTEGA, S. Asociacionismo productivo y em-
poderamiento de mujeres rurales: Madres multiactivas, socias y mujeres campe-
sinas. CUHSO, v. 26, n. 1, pp. 133-160, 2016.
NAHUELPAN, H. Las ‘zonas grises’ de las historias mapuche. Colonialismo in-
ternalizado, marginalidad y políticas de la memoria. Revista de Historia Social
y de las Mentalidades, v. 17, n. 1, pp. 9-31, 2013.
PAINEMAL, M.; ÁLVAREZ A. Construyendo herramientas decolonizadas: Pre-
vención de violencias con mujeres mapuche. In: PAINEMAL, M.; ÁLVAREZ A.
Mujeres y pueblos originarios. Luchas y resistencias hacia la descoloniza-
ción. Santiago: Pehuén y Centro de Estudios Interculturales e Indígenas, 2016.
QUIDEL, J. Importancia de las lenguas en el proceso de reconstrucción del cono-
cimiento propio de los pueblos indígenas. In: CAMPOS, C. RIVADENEIRA, M. I.
(Coords.). El Diálogo de saberes en los Estados Plurinacionales, 2014.
TEILLIER, F.; LLANQUINAO, G.; FLORE-FARFÁN, J. A. Revitalización lin-
güística del mapunzugun: epistemologías y metodologías del hablante. Contex-
tos, n. 33, pp. 71-92, 2016.
VÁSQUEZ TOLOZA, A. Expedientes del dolor: mujeres Mapuche en la fron-
tera de la violencia (1900 - 1950). In: Awükan ka kuxankan zugu wajmapu
mew. Violencias coloniales en Wajmapu. Temuco: Ediciones Comunidad de
Historia Mapuche, 2015. Pp. 141-158.
WITTIG, F. Desplazamiento y vigencia del mapudungun en Chile: un análisis des-
de el discurso reflexivo de los hablantes urbanos. RLA, n. 47, pp. 135-155, 2009.
WITTIG, F.; OLATE, A. El mapuzugun en La Araucanía. Apuntes en torno al
desfase entre la politización de la lengua y el escenario sociolingüístico local.
Universos, n. 13, pp. 119-134, 2016.
59
Afro-repArAção e educAção superior: A práxis negrA

Marta Mariano Alves1

A adoção da política de ações afirmativas nas IES (Instituições de


Educação Superior) brasileiras é consequência de uma atuação do Movi-
mento Negro que antecede a implementação dessa política e é inerente a um
processo de luta por reparações (VIEIRA JUNIOR, 2011; HABIB, 2013;
DOMINGUES, 2018), reparação humanitária (CAVALLEIRO, 2006, p.21)
ou reparação histórica (DOMINGUES, 2005). No presente texto a luta
por afro-reparação é entendida como um conjunto de expectativas presente
em uma diversidade de países em consequência de uma diáspora negra que
decorre da escravização e do esforço de combate ao racismo interpessoal,
institucional e estrutural. E igualmente, considera esse processo de luta
como ação negra de transformação, como parte de uma práxis negra, que
tem como referência a produção teórica de Clóvis Moura.
Clóvis Moura considera o negro como um sujeito político e em seus
estudos advoga por uma sociologia da Práxis Negra (MOURA, 1978,
1983, 1988a, 1988b, 1992, 1994, 2003), com capacidade de romper com
uma estrutura social dominante e demonstrar a dialética das mudanças
sociais. Na sua estruturação teórica o autor fornece elementos para pensar
a intersecção entre classe e raça e considera como alicerce da estrutura
econômico-social brasileira os modos de produção escravista (produção
mercantil) e o capitalista dependente. Segundo Clóvis Moura, na transi-
ção entre os modos de produção não aconteceram mudanças sociais es-
truturais nas relações entre os descendentes dos europeus (brancos) e dos
africanos (negros), o que manteve respectivamente a relação de superiori-
dade e inferioridade entre esses dois grupos e consequentemente intacto
um racismo estrutural (ALMEIDA, 2019). Deste modo os mecanismos
históricos que resultam desses modos de produção, as insurreições escra-
vas e a “quilombagem” (MOURA, 1992, p.22), são ao mesmo tempo luta
antirracista e agente de mudança social. Moura afirma que, “as manifes-
tações culturais das populações oprimidas, as afro-brasileiras em particu-
lar, foram consideradas como elementos marginais à elaboração do ethos
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul; Linha de pesquisa: Educação, Culturas e Humanidades. Bolsista
CNPq. E-mail: malves.ufrgs@gmail.com
61
nacional” (MOURA, 1992, p.36). No entanto, considera a cultura negra,
o vocabulário, a indumentária, como instrumentos de autoconsciência, au-
todefesa e proteção da comunidade negra.
É possível caracterizar a luta por afro-reparação como práxis ne-
gra a partir do agrupamento de algumas informações históricas. De
acordo com Vuckovic (2004, p.885) foram realizados alguns eventos in-
ternacionais com foco no debate a respeito do direito da África a repara-
ção pelas consequências da escravização. Em 1990 aconteceu o evento
em Lagos (Nigéria); 1993 em Abuja (Nigéria); 1999 em Ouidah (África
Ocidental), St. Louis (United States of America) e Accra (Gana). A te-
mática reparação também foi debatida em 2001, na Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Cor-
relata (Durban/África do Sul).
No contexto brasileiro, de acordo com Lopes (2004) em 1993 sur-
ge o Movimento pelas Reparações dos Afro-descendentes (MPR) e em
1994 é apresentada à justiça federal um pedido para declarar a União
“responsável pela ação escravista, pelas omissões da abolição e pelas
consequências que tais fatos acarretaram” (LOPES, 2004, p.571). Em 20
de novembro de 1995 foi realizada em Brasília a “Marcha Zumbi Contra
o Racismo, pela Igualdade e a Vida”, com o objetivo de solicitar ações
de combate às restrições de direitos constitucionais da qual é vítima
a população negra. Participaram da marcha aproximadamente 30 mil
pessoas (membros e apoiadores do Movimento Negro, representantes
sindicais, pastorais católicas ligadas a Teologia da Libertação, partidos
políticos e organizações não governamentais) e reivindicações foram en-
tregues ao presidente da república.
A tabela na sequência apresenta acontecimentos (eventos e legisla-
ções) em ordem cronológica, os quais são considerados como elementos
que caracterizam o apoio, ou ação de legitimação da adoção de ação afir-
mativa nas IES brasileiras. E igualmente, a tabela exibe manifestações de
uma práxis negra de reivindicação por afro-reparação.

62
Tabela 1 - Elementos de apoio e influência na reserva de vagas para ne-
gros(as) nas IES
Ano/Local Evento/Descrição
Projeto de Lei nº 1.332 (Câmara dos Deputados) - ação
1983
compensatória com reserva de vagas e alteração curricu-
(Brasília - Brasil)
lar.
1990 Conferência Mundial sobre as Reparações à África e
(Lagos/Nigéria) aos Africanos da Diáspora.
Abuja Pan-African Conference on Reparations For
African Enslavement, Colonization And Neo-Colo-
nization - “Calls upon the international community to
recognize that there is a unique and unprecedented moral
debt owed to the African peoples which has Yet to be paid
1993 - the debt of compensation to the Africans as the most
(Abuja/Nigéria) humiliated and exploited people of the last four centuries
of modern history”. (ORGANIZATION OF AFRICAN
UNITY, 1993).

Disponível em: http://ncobra.org/ resources/pdf/The-


AbujaProclamation.pdf.
Movimento pelas Reparações dos Afro-descendentes
1993
(MPR) - criado para lutar por reparações (LOPES, 2004,
(São Paulo/Brasil)
p.571).
Ação jurídica coletiva de representantes da comunidade
1994
negra - entre os proponentes a ex-escravizada Maria do
(São Paulo/
Carmo Gerônimo com 125 anos de idade (LOPES, 2004,
Brasil)
p. 571).
Programa de superação do racismo e da desigualda-
de racial - entregue durante a “Marcha Zumbi contra
1995
o racismo, pela igualdade e a vida” ao Presidente da Re-
(20 de novembro/
pública, nele constava solicitação de ações afirmativas de
Brasília - Brasil)
acesso à universidade e outros espaços educacionais para
o povo negro.
Decreto de 20 de novembro - cria após a Marcha Zumbi
1995
Contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida o Grupo de
(20 de novembro/
Trabalho Interministerial de Valorização da População
Brasília - Brasil)
Negra.
Projeto de Lei 1.239 (Câmara dos Deputados) - garante
1995
a reparação com indenização para os descendentes dos
(04 de dezembro/
escravizados no Brasil (indenização financeira, titulação
Brasília - Brasil)
de terras, alteração curricular).
63
Decreto nº 1904 (I Programa Nacional dos Direitos Hu-
1996
manos/PNDH-1) - com base no “Programa de Superação
(13 de maio/
do Racismo e da Desigualdade Racial”, propõe ações afir-
Brasília - Brasil)
mativas para negros(as) nos cursos profissionalizantes,
universidade e áreas de tecnologia de ponta.
1997 Resolução 52/111 (ONU) - aprova a realização da III
(12 de dezembro/ Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discrimi-
ONU- Genebra) nação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.
III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Dis-
criminação Racial, Xenofobia e Intolerância Corre-
2001
lata - as “posições defendidas pelo Brasil em Durban, em
(31 de agosto a
2001, foram definidas a partir de um intenso, frutífero e
8 de setembro/
nem sempre fácil diálogo entre o Governo e representantes
Durban - África
do Movimento Negro brasileiro. Como consequência desse
do Sul)
processo, passaram a ser implementadas no País políticas
públicas de ação afirmativa” (SILVA, 2011, p. 16-17).
Decreto nº 3.952 (Conselho Nacional de Combate à Dis-
2001 criminação/CNCD) - criado para propor e implementar
(4 de outubro/ políticas nacionais de combate à discriminação e propor,
Brasil) acompanhar e avaliar políticas públicas afirmativas de
promoção da igualdade.
Convenção Internacional para a Eliminação de Toda
2002 Forma de Discriminação Racial - Brasil assina a de-
(13 de maio / claração facultativa prevista no artigo 14 da Convenção
Brasil) Internacional para a Eliminação de Toda Forma de Dis-
criminação Racial.
Decreto nº 4.228 (Programa Nacional de Ações Afir-
2002 mativas) - responsável pela gestão estratégica de metas
(13 de maio/ de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas
Brasil) portadoras de deficiência no âmbito da administração pú-
blica federal.
Decreto nº 4.229 (Programa Nacional de Direitos Hu-
2002 manos/PNDH-2) - menciona no tópico “Garantia do
(13 de maio/ Direito à Igualdade” (itens 122, 123, 193, 388) a adoção
Brasil) no poder público e iniciativa privada de políticas de ação
afirmativa no combater a desigualdade.
Programa Brasil Sem Racismo - proposta de campa-
nha eleitoral para Presidência da República vencedora na
2002
eleição em 2002, que com base na Conferência de Durban
(Brasil)
em 2001 assume o compromisso de inserção de jovens e
adultos negros nas universidades.

64
Lei nº 10.558 (Programa Diversidade na Universidade)
2002
- incentiva as IES a desenvolver estratégias de inclusão
(13 de novembro/
social e combate à discriminação racial, e prevê apoio fi-
Brasil)
nanceiro.
Nota ao Alto Comissariado para os Direitos Huma-
nos da ONU. “Informa que o governo brasileiro adotou
2003
em parceria com a sociedade civil, uma série de medidas
(ONU/Genebra)
inspiradas nos dispositivos acordados em Durban” (SIL-
VA, 2011, p.244).
Medida Provisória n° 111 e Lei nº 10.678 - Cria a Se-
cretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial da Presidência da República - SEPPIR par asses-
soria a Presidência da República na execução de políticas
2003
para a promoção da igualdade racial; coordenar as políti-
(21 de março/
cas nessa área, promover programas de cooperação com
Brasil)
organismos nacionais e internacionais, públicos e priva-
dos; acompanhar a implementação de legislação de ação
afirmativa em cumprimento aos compromissos interna-
cionais assinados pelo Brasil.
Decreto nº 4.886 (Política Nacional de Promoção da
Igualdade Racial - PNPIR) -transforma a promoção da
2003
igualdade racial em uma política de Estado, tem como re-
(20 de novembro/
ferência o definido na Conferência de Durban/2001 e os
Brasil)
compromissos assumidos no Programa Brasil Sem Ra-
cismo.
Parecer MEC CNE/CP nº 03/2004 (Diretrizes Cur-
riculares Nacionais para a Educação das Relações Étni-
co-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
2004 -Brasileira e Africana) - “O parecer procura oferecer uma
(10 de março/ resposta, entre outras, na área da educação, à demanda
Brasil) da população afrodescendente, no sentido de políticas de
ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de
reconhecimento e valorização de sua história, cultura,
identidade”. (BRASIL, 2004, p.9)
2007 Decreto nº 6.096 (Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(24 de abril /
- REUNI) - incentivo financeiro para a ampliação das po-
Brasil) líticas de inclusão e assistência estudantil.

65
Decreto nº 7.037 (Programa Nacional de Direitos Hu-
manos do Brasil/PNDH-3) - Menciona no Eixo Orienta-
2009 dor III (Objetivo estratégico V, h e Objetivo estratégico
(21 de dezembro/ VI, h), medidas compensatórias para a população negra
Brasil) de apoio a superação da sua condição social, como as
ações afirmativas no ensino superior e no âmbito da ad-
ministração pública.
Decreto nº 7.234 (Programa Nacional de Assistência
Estudantil/PNAES) - recurso financeiro para fomentar
2010 ações nas áreas de moradia estudantil; alimentação; trans-
(19 de julho/ porte; atenção à saúde; inclusão digital; cultura; esporte;
Brasil) creche; apoio pedagógico; acesso, participação e aprendi-
zagem de estudantes com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação.
Lei nº 12.288 (Estatuto da Igualdade Racial) - indica a
2010
adoção de programas de ação afirmativa para a população
(20 de julho/
negra na área da educação com o objetivo de reparar as
Brasil)
distorções e desigualdades sociais.
2012 Lei nº 12.711 e Decreto nº 7.824 - a reserva de vagas
(29 de agosto/ nas universidades federais e nas instituições federais de
Brasil) ensino técnico de nível médio passa a ser direito jurídico.
Portaria MEC nº 389 (Programa de Bolsa Permanência)
- disponibiliza auxílio financeiro para estudantes da gra-
2013 duação com objetivo de minimizar desigualdades sociais
(Brasil) e étnico-raciais e viabilizar a permanência de estudantes
em situação de vulnerabilidade socioeconômica, em espe-
cial os indígenas e quilombolas, nos cursos de graduação.
Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Dis-
criminação Racial e Formas Correlatas de Intolerân-
2013 (5 de junho/ cia - Considerou como vítimas do racismo, discriminação
Guatemala - Or- racial e intolerância nas Américas os afrodescendentes,
ganização dos Es- povos indígenas, e outros grupos raciais e étnicos afeta-
tados Americanos dos por essas manifestações. E definiu como dever dos
- OEA) Estados prevenir, eliminar, proibir e punir atos e manifes-
tações de racismo, discriminação racial e formas correla-
tas de intolerância.

66
Lei nº 13.005 (Plano Nacional de Educação/PNE 2014-
2024) - meta “11.13” menciona a ação afirmativa como
2014
mecanismo de combate a desigualdade étnico-racial e na
(25 de junho/
meta “12.9” indica o uso de políticas de ação afirmativa na
Brasil)
educação superior. Disponível em: http://portal.stf.jus.
br/processos/detalhe.asp?incidente=2691269
Acórdão na Argüição de Descumprimento de Precei-
to Fundamental 186/DF - Com relação a cotas em IES
para negros(as) registra: “todos nós temos a responsabi-
lidade de reparar os danos causados pelos equívocos de
2014 nossos antepassados, sob pena de, ao contribuir, ainda que
(STF- Brasil) por omissão, para a perpetuação daquelas mazelas, nos
tornarmos partícipes desses erros lastimáveis”. (BRASIL.
STF. 2014,Voto p. 9).

Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/deta-


lhe.asp?incidente=2691269
Lei nº12.990 - reserva aos negros 20% (vinte por cento)
das vagas oferecidas nos concursos públicos para provi-
2014
mento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito
(9 de junho/
da administração pública federal, das autarquias, das fun-
Brasil)
dações públicas, das empresas públicas e das sociedades
de economia mista controladas pela União.
Portaria MEC nº 929 - institui Grupo de Trabalho para
analisar e propor mecanismos de inclusão de estudantes
2015
autodeclarados pretos, pardos e indígenas e estudantes
(14 de setembro/
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento
Brasil)
e altas habilidades, em programas de mestrado e doutora-
do e em programas de mobilidade internacional.
Portaria MEC nº 13 - dispõe sobre a indução de Ações
Afirmativas na Pós-Graduação e define o prazo de no-
2016
venta dias para apresentação de proposta pelas IES sobre
(11 de maio/
inclusão de negros (pretos e pardos), indígenas e pessoas
Brasil)
com deficiência em seus programas de pós-graduação
(Mestrado, Mestrado Profissional e Doutorado).

67
Acórdão na Ação Declaratória de Constitucionalida-
de 41/DF (Lei nº 12.990/2014) - com relação a cotas
em IES para negros(as) registra que “o primeiro funda-
mento é uma reparação histórica a pessoas que herdaram
2017 o peso e o custo social do estigma moral, social e eco-
(STF - Brasil) nômico, que foi a escravidão no Brasil”.(BRASIL. STF.
2017, Relator,p.7-8).

Disponível em: http://portal.stf.jus.br/ processos/deta-


lhe.asp?incidente =4917166
Portaria Normativa SEGRT nº 4 - regulamenta pro-
cedimento de heteroidentificação complementar à au-
2018
todeclaração dos candidatos negros, para fins de preen-
(6 de abril/Brasil)
chimento das vagas reservadas nos concursos públicos
federais, nos termos da Lei n°12.990/2014.
Fonte: Autora (Marta Mariano Alves), 2019.

A respeito do processo de reserva de vagas (cotas) nas IES brasi-


leiras, esse procedimento antecede a Lei nº 12.711/2012 e resultou da
iniciativa interna de IES ou da influência do programa REUNI (Decreto
nº 6.096). Com relação ao programa REUNI a maioria das universidades
federais com reserva de vagas anteriores a 2012 possuíam vínculo com o
programa. As reservas de vagas nas IES federais anteriores a 2012 não
apresentam como beneficiários principais negros(as), mas sim os estudan-
tes provenientes da escola pública. O que pode ser verificado nas informa-
ções demonstradas abaixo no “Gráfico 1”. E situação idêntica a observada
no “Gráfico 1” é constatada no “Gráfico 2”, o qual exibe a situação da ação
afirmativa nas IES Estaduais em 2016. Os gráficos demonstram que a
maioria das IES tem reservado vagas para o segmento da escola pública
mesmo antes da Lei nº 12.711/2012.

68
As informações expostas nesse texto permitem considerar como fa-
tor condicionante da reserva de vagas para negros(as) no Brasil fatores
políticos decorrentes de uma práxis negra, resultante da manifestação,
organização e articulação do movimento negro que estruturou relações
de solidariedade em uma luta antirracista. E igualmente considerar, que

69
no Brasil a partir do inicio dos anos 2000, a ascensão ao Poder Executivo
de um grupo ideológico-político sensível a algumas pautas do movimento
negro e com o qual existiam algumas alianças anteriores as eleições do
ano de 2002, influenciou em forma de legislação a elaboração de uma po-
lítica de Estado de combate ao preconceito, a discriminação e ao racismo.

70
Referências
ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
CAVALLEIRO, E. A diversidade étnico-racial na educação. In: Orientações e
Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais. Brasília: Ministério da
Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade -
SECAD, 2006.
DOMINGUES, P. Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de uma re-
paração histórica. Revista Brasileira de Educação, n. 29, pp. 164-176, 2005.
______. Agenciar raça, reinventar a nação: o Movimento pelas reparações no
Brasil. Revista Análise Social, n. 227, pp. 332-361, 2018.
HABIB, A.; BENTLEY, K. Reparação racial, identidade nacional e cidadania na
África do Sul pós-apartheid. In: PAIVA, A. R. Ação afirmativa em questão:
Brasil, Estados Unidos, África do Sul e França. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
LOPES, N. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo
Negro, 2004.
MOURA, C. A sociologia posta em questão. São Paulo: Livraria Editora Ciên-
cias Humanas LTDA, 1978.
______. Brasil: raízes do protesto negro. São Paulo: Global Ed., 1983.
______. Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988a.
______. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1988b.
______. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática S.A, 1992.
______. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Editora Anita, 1994.
______. A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasilei-
ro. Maceió: EDUFAL, 2003.
SILVA, S. J. A. As Nações Unidas e a luta internacional contra o racismo.
Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011.
VIEIRA JUNIOR, R. J. A. Responsabilização objetiva do Estado: segregação
institucional do negro e adoção de ações afirmativas como reparação aos
danos causados. Paraná-Curitiba, Editora Juruá, 2011.
VUCKOVIC, N. Quem pede reparações e por quais crimes? In: FERRO, M.
(Org.). O livro Negro do Colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

71
A contAção de HistóriAs e A resistênciA pelA identidAde
culturAl brAsileirA

Tainã do Nascimento Rosa1

Primeiras considerações

O objetivo desse resumo expandido é discutir a importância da con-


tação de histórias como integrante do modo de vida dos “povos afro-pin-
dorâmicos”2 que vivem no Brasil desde a época da colonização até os dias
atuais, e a resistência cultural possibilitada pela mesma através de sua
perpetração e presença na construção da identidade cultural brasileira –
promovendo a possibilidade de afastamento dos fenômenos de dominação
e massificação cultural. A metodologia utilizada é a discussão teórica a
partir da interação entre as considerações de Kusch (2007) sobre a impor-
tância da aproximação entre o americano e a terra, Hampaté Bâ (2010) e
Munduruku (2016) acerca das tradições orais indígena e africana, respec-
tivamente e Bispo (2015) com o conceito de biointeração.

A contação de histórias no Brasil como ato de resistência

[...]
Por que mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade.
(BISPO, 2015, p.45).

A contação de histórias é uma prática oral ancestral que carrega a


sabedoria, a memória, a história e os costumes dos povos que a cultuam.
Tem seu início num tempo pré-histórico por meio da criação de mitos que
1 Mestranda em Letras, na área de Estudos de Literatura, na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
2 Bispo (2015) utiliza a expressão “povos afro-pindorâmicos” para denominar os povos
africanos e indígenas que viveram nas Américas durante a colonização e que habitam
esse território até os dias atuais. A palavra “Pindorama” significa “terra de palmeiras”
em tupi-guarani.
73
tentavam explicar a origem da vida e o lugar e o destino do ser humano
no mundo (MATOS; SORSY, 2009). Conforme Kush (2007, p.109), para o
americano só a ciência europeia não basta para explicar seu modo de vida,
é preciso se aproximar da terra, vivê-la para compreendê-la, pois “[...] a
atitude científica europeia limita e reduz a realidade”3.
A religiosidade de um povo orienta a sua cosmovisão. Nesse sen-
tido, o afastamento da Europa cristã e monoteísta para com a terra se
dá, pois, seus seguidores creem em um Deus que determina - através
dos escritos da bíblia - o trabalho na natureza como castigo, um fardo
a ser vivenciado; enquanto que, de forma oposta, os povos “afro-pin-
dorâmicos” e seus descendentes, por meio da religiosidade politeísta,
compreendem o trabalho na terra como parte da vida, como prática
que lhes dá condições para viver integrado à natureza num processo de
“biointeração”, ou seja, na interação entre os sujeitos e a natureza de
forma equilibrada (BISPO, 2015).
O conceito de biointeração foi proposto por Bispo (2015) a partir de
suas vivências como integrante do Quilombo Saco-Curtume, no estado
Piauí/Brasil. Segundo o autor, essas experiências pressupõem que cada
sujeito viva em coletivo com os integrantes do seu grupo e com a natu-
reza, respeitando os limites do ambiente e extraindo do mesmo apenas o
que precisam para viver. Apresenta essa perspectiva como uma alterna-
tiva ao modo de vida desenvolvimentista proposto pelos colonizadores
brasileiros – e perpetuado pelo Império e o Estado de Direito brasileiro.
É um modo de vida oposto à aceleração da modernidade que afasta os su-
jeitos da terra e, com isso, os saberes tradicionais e as narrativas vividas e
compartilhadas nesse ambiente. Assim, como fomento à aproximação com
a natureza, os mitos e os contos, tanto na sociedade tradicional antiga,
quanto na contemporânea, surgem como possibilidade de aproximação
com as nossas origens, com a nossa própria identidade cultural.
Hall (2006) afirma que parte da identidade cultural de uma socie-
dade é constituída pela sua identidade nacional, esta construída a partir
da produção de sentidos de uma cultura nacional. “Esses sentidos estão
contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que co-
nectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas”
(Ibidem, p. 51). Portanto, a contação de histórias contribui para com o for-
talecimento da identidade cultural brasileira por meio do resgate de suas
origens ancestrais, visto que o hábito de ouvir histórias desde cedo ajuda
na formação de identidades; no momento da contação, estabelece-se uma
relação de troca entre contador e ouvintes, o que faz com que toda a ba-
3 Tradução nossa.
74
gagem cultural e afetiva destes ouvintes venha à tona, assim, levando-os a
ser quem são (TORRES; TETTAMANZY, 2008).
Duas são as fontes que sustentam a contação de histórias, parte da
tradição oral, no Brasil: a primeira dos povos originários, indígenas na-
tivos do nosso país; e a segunda dos povos africanos diaspóricos, vindos
de diferentes países para o Brasil durante a escravidão e que desde então
enriquecem a nossa cultura. Os mitos dos povos indígenas, preservados
até os dias atuais, nos explicam a vida na natureza desde as origens, ilus-
trando de onde os indígenas vieram e para onde vão, como encontrar ali-
mento, como ocorre o namoro entre homens e mulheres, e como algumas
pessoas se transformaram em animais por serem desobedientes, em suma,
histórias que ensinam as formas do bem-viver (MUNDURUKU, 2016).
Os mitos e os contos herdados das sociedades africanas diaspóricas, tam-
bém alicerçadas na oralidade, integram estas vivências com narrativas
orais em que são ritualizados mitos de origem, assim como, histórias de
heróis e terras distantes (HAMPATÉ BÂ, 2010). A partir destas narra-
tivas orais, as histórias, as memórias, os costumes e os saberes tradicio-
nais dos povos originários e diaspóricos são preservados a fim de serem
transmitidos às gerações posteriores como contributo para a construção
de suas identidades e preservação dessa herança cultural. Nesta direção, a
contação de histórias configura-se como prática pós-colonial, pois promo-
ve a perpetração e valorização de conhecimentos ancestrais e a resistência
às culturas massificadas, num movimento que se afasta dos fenômenos
colonialista e imperialista.
Hampaté Bâ (Ibdem) nos elucida, em capítulo de livro, sobre a força
do contador de histórias na sociedade ao narrar o fato histórico de que na
época da colonização na África os contadores de histórias terem sido per-
seguidos por transmitirem os saberes tradicionais do seu povo, enquanto
os colonizadores forçavam implantar suas próprias concepções. O autor
expõe a luta e a resistência de muitos contadores tradicionais africanos ao
fugirem para as matas afim de preservar estes conhecimentos e o compro-
misso dele próprio em registrar histórias de sua cultura com o intuito de
transmiti-las a gerações posteriores. Munduruku (2016) reforça sobre a
potência da tradição oral e dos costumes indígenas, em geral - e o temor
dos não-indígenas sobre estes -, e a tentativa de domesticação dos povos
originários pela escola. O autor explicita que as narrativas orais dentro
das comunidades indígenas fortalecem o seu pertencimento ao povo para
resistir a este esforço de aculturação externa, dentre outros que são so-
fridos por esses povos. Assim, tais vivências indígenas e africanas se in-
ter-relacionam, quer no que concerne à tradição oral, quer na resistência

75
pela preservação da mesma. Ambas contribuindo para a construção da
identidade cultural brasileira.
De acordo com Said (1993, s/p), “em nossa época, o colonialismo
direto se extinguiu em boa medida; [já] o imperialismo [...] sobrevive
onde sempre existiu, numa espécie de esfera cultural geral, bem como em
determinadas práticas políticas, ideológicas, econômicas e sociais”. Nessa
direção, compreende-se que a colonização de forma direta no Brasil se ex-
tinguiu, no entanto, os povos afro-pindorâmicos continuam sendo ataca-
dos de outras formas, como com o silenciamento de suas culturas. Negar
a tradição oral e tentar substituí-la pela escrita, ao invés de propor que
as duas coexistam, é uma tentativa de re-colonização por parte do pensa-
mento ocidental. Assim, a resistência cultural se faz como forma de en-
frentar o etnocídio vivenciado no Brasil (Ibdem). A contação de histórias
apresenta-se como possibilidade de preservação e repositório da história e
memória dos povos afro-pindorâmicos para resistir ao genocídio cultural
que assola o país e que tenta excluir a tradição oral.
Posto isto, a vivência da prática de contação de histórias pela so-
ciedade como um todo mostra-se como prática essencial para a preser-
vação da herança cultural brasileira manifestada pelos povos afro-pin-
dorâmicos. Experienciando-a de modo intenso, contínuo e frequente, e
integrando-a como constituinte da rotina e possibilidade de aproxima-
ção com a terra, assim como os povos originários e diaspóricos a viven-
ciam desde as nossas origens.

Considerações finais

A contação de histórias no Brasil, por via de mitos e contos, pre-


serva e transmite os saberes tradicionais do povo brasileiro. Desde as
origens é ritualizada pelos povos afro-pindorâmicos, os principais atuan-
tes na preservação desta literatura oral. No entanto, enquanto herança
cultural ancestral, esta prática faz parte da cultura e identidade de todos
os brasileiros, sendo a sociedade como um todo a responsável por sua
preservação. É uma prática que pode ser vivenciada por todos e que
aproxima as pessoas umas das outras e da terra, com seus momentos de
partilha e roda.
Por conseguinte, é preciso fomentar essa expressão cultural, não a
restringindo somente a comunidades específicas, pois embora os povos
afro-pindorâmicos e seus descendentes preservem essas narrativas orais
com afinco, não devem ser os únicos responsáveis por esse legado, visto
que é parte da herança cultural de todos os brasileiros. E, portanto, tam-

76
bém encarregues pela manutenção e preservação desse conhecimento e
herança ancestral. Dito isto, a contação de histórias se posiciona com uma
relevância social de suma importância, ao preservar esta herança cultural
a sociedade tem mais força para resistir às imposições culturais externas,
inserindo o Brasil no centro de produção e manutenção do seu próprio
conhecimento.

Referências
BISPO, A. Colonização, Quilombos: modos e significações. Brasília:
CNPQ, 2015.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.
HAMPATÉ BÂ, A. A tradição viva. In: KI-ZERBO (Editor). História geral da
África, I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010.
KUSCH, R. Obras Completas. Rosario: Fundación A. Ross, 2007.
MUNDURUKU, D. A história de uma vez: um olhar sobre o contador de histó-
rias indígena. In.: MEDEIROS, F. H. N.; MORAES, T. M. R. Contação de his-
tórias: Tradição, poéticas e interfaces. Edições Sesc-SP, 2016. E-book Kindle.
SAID. E. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
E-book Kindle.
TORRES, S. M.; TETTAMANZY, A. L. L. Contação de histórias: resgate da
memória e estímulo à imaginação. Nau Literária, v. 4, n. 1, 2008.

77
que lo que es semilla
llegará a ser fruto

experiências em
educação a partir
de Kusch
por

seção 2
A sAbedoriA guArAni e A psicologiA complexA
como contribuições à educAção

Ana Flávia Fuerstenau1


Ana Luísa Teixeira de Menezes2

Este trabalho apresenta as reflexões obtidas a partir de ações rea-


lizadas como parte do projeto de pesquisa “Aprendizagens interculturais
com os Guarani: produção de conhecimentos ameríndios para a educação
das infâncias”, aprovado pelo Edital Universal CNPq 2016, vinculado aos
Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) e Psicologia Pro-
fissional, da Universidade de Santa Cruz do Sul. Essas ações foram reali-
zadas a partir de investigações nos campos educativos da interculturalida-
de e da psicologia complexa, que permitem repensar o processo educativo
como uma dimensão também psíquica, dotada de sentidos e subjetivações.
Como entendimentos norteadores no campo da interculturalidade,
torna-se fundamental compreender que nos orientamos, desde a coloniza-
ção da América, a partir de formas de pensar concebidas em um contexto
cultural diferente do nosso, quase sempre eurocêntrico. José Tasat (2016)
associa essa América colonizada à insistência em “surgir de outra manei-
ra” (p. 12), a uma dualidade qualitativa na qual o latinoamericano se vê
seduzido por uma “civilização”, em vez de uma “barbárie”; pelo “moderno”
em lugar do “primitivo”. Essa dicotomização, como visualizava Kusch, se-
parou a América em uma racionalidade fundante, vista como útil, e uma
irracionalidade arcaica, inútil. Nosso trabalho enquanto sul-americanos
se torna, então, organizar esse trajeto de retorno a nossas próprias epis-
temes, para poder construir outras a partir delas (TASAT; PÉREZ, 2016).
Sob o ponto de vista da psicologia complexa, James Hillman
(2010) faz uso do termo personificar para denominar a atividade psico-
lógica básica de experimentar o mundo como um campo psicológico, de
forma espontânea, cultivando a alma - “um lugar interno, uma pessoa
mais ao fundo ou uma presença perene” (p. 27). Personificar sempre foi
fundamental, pois dar subjetividade e intencionalidade a um substanti-
vo significa entrar em outra dimensão psicológica. No entanto, a visão
de mundo moderna refreou a alma e sua ciência e metafísica baniram a
1 Graduanda em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
2 Pós-doutora e professora no Programa de Pós-Graduação e no departamento de Psi-
cologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
81
subjetividade almada do mundo externo. Essa visão de nós mesmos e
do mundo anulou nossa capacidade de imaginar, enrijecendo e fixando
nossas relações com a personalidade, a matéria, a metafísica etc (HILL-
MAN, 2010). Esse processo de despersonificação vivido pela sociedade
ocidental moderna, associado à noção da apropriação de ideias euro-
cêntricas e de referenciais inautênticos, pode ser entendido como uma
produção de “sujeitos culturais sem cultura” (KUSCH, 2012).
Embora intangível e indefinível, a alma é frequentemente identifi-
cada com o princípio da vida, e neste sentido é tarefa da psicologia ofere-
cer um caminho e encontrar um lugar para a alma dentro de seu próprio
campo (HILLMAN, 2010). Dialogando com Rodolfo Kusch e Jung (1981),
aproximamos a América Profunda como o lugar profundo que podemos
nos conectar, encontrando a alma brasileira, conforme nos convida Boe-
chat (2014). Nesse encontro epistemológico, temos proposto aproximar
saberes indígenas e não-indígenas na formação do sujeito e seu conheci-
mento, buscando enriquecer os ambientes de aprendizado com o objetivo
de possibilitar uma maior significação para o sujeito que aprende e ensina.
Para tanto, realizamos, ao longo do primeiro semestre de 2019, ati-
vidades de aproximação com a cultura indígena, como aulas sobre a lin-
guagem Guarani; confecção de chocalhos tradicionais; rodas de conversa
com caciques e moradores de uma aldeia próxima. Também exploramos
as problemáticas vividas no psiquismo sul-americano, com palestra e ro-
das de conversa sobre os novos significados do popular na América Pro-
funda. Essa relação desperta nos sujeitos universitários um pensamento
intercultural, possibilitando um encontro com a geocultura, à medida em
que reconhece a importância da noção educativa de que o indígena busca
as respostas a partir de sua própria cultura. Nessa dimensão, a intercultu-
ralidade é entendida como um espaço de aprendizagens e transformações
(MENEZES; MORETTI, 2018).
Além desse movimento intercultural no âmbito universitário, pro-
porcionamos a um grupo de 15 alunos de 6º e 7º anos de uma escola mu-
nicipal uma sequência de seis encontros em que se trabalhou a expressão
individual em trabalhos pessoais e coletivos, como produção de obras em
argila, tinta, lápis de colorir, giz de cera etc. Nesses trabalhos, ativamos a
ancestralidade, potenciais criativos e a capacidade expressiva de cada um,
fomentando o livre fluxo de ideias e sentimentos entre o mundo interno,
sensível, e o mundo externo, material. Nos mesmos encontros, possibili-
tamos, em diferentes momentos, a contação de mitos indígenas, potencia-
lizando a capacidade de simbolizar, significar e utilizar metáforas para a
compreensão do ser humano e da vida. O diálogo com a cultura Guarani

82
conflui com a psicologia complexa à medida em que respeita a organicida-
de, os símbolos e a individualidade do ser humano, contribuindo de forma
elementar para a germinação dessa luta por uma educação com alma.
A compreensão da educação se reflete, por fim, nesse diálogo de cos-
mologias e de concepções educativas, percebidas ao longo da convivência.
A sabedoria Guarani apresenta uma educação assentada em princípios: a
relação entre o divino e o humano, entre o espírito e o corpo, sendo esse
último almado, em uma busca pela perfeição. Essa corporeidade foi viven-
ciada nos encontros através de vivências de biodança, em que desenvol-
vemos o olhar para o outro. Nessa percepção, as crianças representam o
limiar dessa relação divino-humano, o que provoca esse olhar diferenciado
a elas. Falamos, dessa forma, de uma educação intercultural como encon-
tros cosmológicos, em que corpo e espírito se integram em uma mesma
dimensão (BERGAMASCHI; MENEZES, 2016).
O projeto de encontros foi tão bem aceito que decidimos dar-lhe
continuidade, formando novos grupos de estudantes, de diferentes anos
escolares, a serem trabalhados durante o segundo semestre de 2019. En-
tendendo a comunidade escolar como dotada de alma e de completude,
vimos também a necessidade de estender este projeto aos professores da
instituição. Trabalhando com uma metodologia de pesquisa colaborativa
e participante, concluímos que as práticas e princípios educativos Gua-
rani contribuem com uma educação integrada ao sensível, ativando uma
função psíquica simbólica no pensamento. Temos experienciado as apren-
dizagens interculturais com os Guarani como espaços de formação educa-
tiva, através dos quais a vivência, a intuição e a imagem são integradas à
educação e ao autoconhecimento no diálogo e ressignificação da aprendi-
zagem na educação básica.

Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida; MENEZES, Ana Luisa Teixeira de. Crian-
ças indígenas, educação, escola e interculturalidade. Revista e-Curriculum,
[S.l.], v. 14, n. 2, p. 741 - 764, ago. 2016.
BOECHAT, Walter (org.) A Alma brasileira. Luzes e Sombra. Petrópolis: Vo-
zes, 2014.
JUNG, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. Tradução de Frei
Valdemar de Amaral. Petrópolis: Vozes, 1981.
KUSCH, Rodolfo. Geocultura del hombre americano. Rosario: Fundación A.
Ross, 2012.

83
MENEZES, Ana Luisa Teixeira de; MORETTI, Cheron Zanini. Aprendendo
com os Guarani: geocultura através do ensino, pesquisa, extensão na universida-
de comunitária. Sinergias, n. 6, p. 25 - 38, jan. 2018.
HILLMAN, James. Re-vendo a Psicologia. Gustavo Barcellos (trad.) Petrópo-
lis, RJ: Vozes, 2010.
TASAT, José Alejandro; PÉREZ, Juan Pablo (orgs.). Arte, estética, literatura
y teatro en Rodolfo Kusch. Buenos Aires: Ediciones del CCC-Eduntref, 2016.

84
o diálogo de freire e KuscH com A educAção indígenA

Ana Lúcia Castro Brum1


Magali Mendes de Menezes2
Júlio Pedroso da Silva3

A história da América Latina

A América Latina sofreu inúmeras barbáries desde a sua ocupação,


exploração de suas riquezas naturais, massacre dos povos originários (in-
dígenas), escravidão do povo africano que foi trazido para ser explorado,
além dos europeus que iludidos acreditavam que receberiam pedaços de
terras neste continente. Por consequência, a América Latina possui san-
gue de muitos povos na sua história, contada, hoje, por nossos historia-
dores e relembrada constantemente pelos movimentos negros e indíge-
nas. Mas quem conta efetivamente a história? Será que estes povos que
viveram esta história de violência e barbárie conseguem ter o direito de
pronunciar sua história e serem ouvidos? O direito a sua palavra, como
nos diz Freire?
Como resultado da conquista dos europeus, principalmente por es-
panhóis e portugueses, há mais de 500 anos, originaram-se movimentos
de luta do povo oprimido por mais liberdade, justiça, preservação de seus
valores culturais, defesa de suas terras, além de tantas outras bandeiras de
resistência. Filósofos, pedagogos, poetas, líderes da América Latina come-
çaram a ouvir o lamento do povo oprimido.
Em toda a América Latina teve início um movimento popular, uma
efervescência das massas populares, onde o povo ativamente estava parti-
cipando da política de seu país. Freire e Kusch participam desta rebelião
contribuindo para a libertação dos povos oprimidos da América Latina.

1 Mestre em Educação pelo PPGEDU/UFRGS. Linha de Pesquisa: Educação, Culturas


e Humanidades. E-mail: analubrum64@gmail.com
2 Professora Doutora de Filosofia da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Linha de Pesquisa: Educação, Culturas e Humanidades.
E-mail: magaliufrgs@gmail.com
3 Aluno de Mestrado no PPGEDU/UFRGS. Linha de Pesquisa: Educação, Culturas e
Humanidades. E-mail: juliokupri@gmail.com
85
O pensamento de Paulo Freire

Nesta mesma direção, o educador brasileiro Paulo Freire inicia uma


campanha de alfabetização de adultos no interior do Nordeste, dentro de
um contexto em que políticas de mudança estavam acontecendo no Brasil.
Um movimento latino-americano cultural desponta na América Latina,
que para Brandão (1994) é a Educação Popular, um novo paradigma edu-
cativo em meados dos anos 50 e início dos anos 60. Segundo Zitkoski, a
respeito da educação “popular”:

[...] a educação popular fundamenta-se concretamente na transformação


da realidade social através de uma visão libertadora. Busca-se assim, uma
educação para o povo, mas uma educação que o povo cria, que vem da base,
de baixo para cima, através de um processo de emersão das classes sociais
marginalizadas, que passam de objetos do sistema econômico para sujeitos
políticos, enquanto cidadãos com direito de dizer a sua palavra e decidir os
rumos da sociedade (ZITKOSKI, 2000, p. 25).

A Educação Popular busca educar o cidadão e criar uma nova cul-


tura que forme a pessoa humana nas suas dimensões social, ética, política
e comunitária. É nesse sentido que se concebe uma prática educativa em
que o povo requer a autonomia, o diálogo, a participação, a reflexão crítica,
conscientizadora e libertadora. Paulo Freire é um dos pioneiros, quando
nos anos 60 defendeu, no último capítulo da sua famosa obra Pedagogia
do Oprimido, que a dialética do processo de libertação dos oprimidos deve
fundamentar-se em bases culturais. A tese de Freire defende que a revolu-
ção verdadeira deve ser a revolução da cultura.
Freire (1988, p. 81) concebe que o diálogo é uma exigência radical
para a educação libertadora. E, dessa forma coloca as principais exigên-
cias de um diálogo verdadeiro, quais sejam: o amor, a esperança, fé no ser
humano, pensar crítico e dialético, a humildade e a solidariedade.

[...] ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo


se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é
consequência óbvia. Seria, uma contradição se, amoroso, humilde e cheio
de fé, o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos.

O diálogo, portanto, para Freire é compromisso com a humanização


e com o respeito aos saberes dos outros e das diferenças culturais onde
estamos inseridos. Portanto, o diálogo requer humildade para escutar e
aprender com os outros.

86
O pensamento de Rodolfo Kusch

Filósofo argentino nascido em 1922, filho de alemães, era da classe


média, saiu de Buenos Aires. O pensamento de Kusch e sua obra filosófica
condensam o desafio de vincular o pensamento acadêmico e o pensamento
andino. Ele, ao longo de sua obra, convida-nos a pensar e refletir o ho-
rizonte imediato e as discussões para a construção de um relato próprio
sobre as identidades histórico-culturais desde os povos da América.
América profunda é o fundamento exato da definição do homem
americano em sua dimensão humana, social e ética, após muitas viagens
as zonas dos povos indígenas Aimará, até chegar a um pensar americano.
Segundo Kusch, para compreender o homem americano é imprescindível:

[...] desde un primer momento pense que no se trataba de hungario todo


en el gabinete, sino que recoger el material viviente en las andanzas por
las tierras de America, y comer junto a su gente, participar de sus fiestas
y sondear su pasado en los yacimientos arqueológicos y también debia
tomar en cuenta ese pensar natural que se recoge en las calles y en los
barrios de la gran ciudad. Sólo así se gana firmeza en la difícil tarea de
asegurar un fundamento para pensar lo americano (KUSCH, 2000, p. 5).

E com essa afirmação, Kusch foi pesquisar a partir da convivência com


os povos indígenas de uma América que estava escondida, sua cultura, sua
língua, danças, mitos, cosmologia, o estar americano, o pensamento ameri-
cano. Rodolfo Kusch escreve em seu livro “America Profunda” (TOMO II,
2000), sobre o pensamento popular, a religiosidade popular, a negação como
existência, em “la negación en el pensamiento popular”. Kusch faz uma re-
flexão sobre o processo de colonização que passou a América, onde a cultura
de diferentes povos que existiam neste continente foi violentada, colocando
a cultura ocidental por cima, encobrindo as culturas ameríndia e africana.
Este processo de encobrimento do pensamento popular foi a negação
da história do povo americano, logo após a negação veio o ressentimento pela
alienação, foi um silenciamento da história, onde Kusch expressa (2000, p.
571), “por eso somos malos industriales también pésimos revolucionários”.
Anastacio Quiroga, folclorista, criador de cabras, fala da concepção
do mundo popular, dizendo que a natureza ensina, mas só para quem tem
o dom pode aprendê-la, o livro vende letras e não cultura, a humanidade
consiste em estar ao lado da natureza, assim se chega a “las essencias de la
vida”, a “ lo necessário”, a “la pureza”. Don Anastacio, citado muitas vezes
por Kusch, propõe manter a dignidade e nega a rebelião, e Kusch nos diz
que “si yo no me venzo a mí mismo, no podré lograr la convivencia, ni lo-
87
gro el acuerdo para vivir todos juntos en paz” (KUSCH, 2000, p. 580). Don
Anastacio propõe a natureza como um elemento inspirador de energia vital
e ética para a vida; na natureza está o saber. A natureza legitima os costu-
mes do saber popular.
Kusch propõe refletir sobre o pensamento mágico como oposto ao
pensamento técnico. O pensar mágico se caracteriza por uma ausência da
lógica de coisas, pois este pensar implica em uma fonte energética, que nos
leva aos operadores seminais, para revelar o sagrado, o natural, uma em
busca de um caminho do pensamento popular, do “pensamiento indígena y
popular en America”.
Kusch e alguns amigos intelectuais pensavam na vida do povo in-
dígena que não tinha o que comer, e necessitava de ajuda para sobreviver.
Contudo, não percebia em Freire um caminho possível para compreender a
realidade destes indígenas:

[...] estábamos trabajando con el método de Freyre, llevaba a pensar que


había despertar en el indígena la necessaria rebeldía para que este su vez
logre disputar el alimento a la clase dirigente que lo oprimía. Pero pensá-
bamos que esto destruía a la cultura indígena, porque la incorpora al lum-
pen de la ciudad. La cuestión era no tocar la cultura indígena y procurar en
cambio su evolución a partir de sus propias pautas (KUSCH, 2000, p. 633).

Kusch propõe que se comece tudo de novo, o que constitui o indí-


gena como uma cultura distinta. A música de Martin Fierro traduz este
sentido, pois seu canto fala do céu, da terra, do mar, dos deuses, da criação.
O canto é uma denúncia para que o homem volte para a vida natural, a
vida simples de viver. Viver o pensamento indígena.

Um pensar indígena para a educação escolar indígena

Pensar a educação indígena é pensar sempre de outro lugar da edu-


cação, é uma oportunidade de pensar na diferença, de ver o mundo, desde
o outro lugar, através de uma troca de culturas, de sentimentos, de alegria,
mas também como um lugar de muita luta. A educação escolar indígena é
um desafio, é uma terra misteriosa que pretendi conhecer um pouco mais
junto com os(as) professores(as) indígenas, entendendo como trabalham,
estudam, se formam para educar as novas gerações, indo além da escola
esta formação. Segundo Bergamaschi e Menezes (2015), “a amorosidade
à flor da pele, está muito presente na educação indígena Guarani”. Kusch
vai mais além, diz que “o povo ameríndio vê e sente com coração”. Segun-
do Kusch (1977, apud BERGAMASCHI e MENEZES, 2015, p. 123), “el
88
corazón ha sido desde antiguo el órgano que, a la vez, ve y siente. Tiene
el valor de un regulador intuitivo del juicio [...] se trata de una especie de
coordinación entre sujeto y objeto, con el predominio de un sujeto total”.
Rodolfo Kusch, filósofo argentino, quer nos dizer que o povo ameríndio
escuta o coração, pois o coração vê e sente, como um regulador intuitivo.
O povo escuta esse coração.
Acreditamos que a educação intercultural vai fazer a revolução cul-
tural, pois teremos novos caminhos com mais solidariedade e amor. Pa-
rafraseando Freire, esperamos que permaneça a nossa confiança no povo
indígena, nossa fé nos homens e mulheres e na criação de um mundo em
que seja menos difícil amar.

Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os caminhos cruzados: formas de pensar e
realizar a educação na América Latina. In: Educação Popular: utopia Latino
Americana. São Paulo: Cortez, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas TOMO II. Rosario: Editorial Fundácion
Ross, 2000.
MENEZES, Ana Luisa Teixeira de; BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Educa-
ção ameríndia: a dança e a escola Guarani. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2015.
ZITKOSKI, Jaime José. Horizontes da refundamentação em educação popu-
lar. Frederico Westphalen: Editora URI, 2000.

89
cAminHos pArA o ninHo de resistênciA e sAberes
indígenAs em espAço escolAr

Angela Maria Araújo Leite1

(Ser y estar) Quizás se vinculen como la copa de un árbol


con sus raices. Por una parte, uno es esa frondosa definicion
que hace de sí en el aire, y por la otra, uno trata de palpar
por debajo sus propias raices que lo sostienen. Y nosotros
aquí queremos siempre hacer copa, como si hubiera árboles
sin raices, solo para menearse a todos los vientos, saberlo
todo, y vestir de todo.
Rodolfo Kusch (De la mala vida Porteña,
Tomo I, 2007, p. 426)

Pensar sobre os caminhos que marcam a resistência e a sabedoria


indígena é mister mergulhar em suas raízes e compreender os movimen-
tos dos povos originários frente às tentativas de negar seus saberes. Para
tanto, é necessário reconhecer o protagonismo com que os saberes ori-
ginários resistiram a um pensamento único e se mantiveram no cenário
identitário, específico de cada povo.
É uma situação que, para compreendê-la é importante considerar
“o ser e o estar”, que nos fala Rodolfo Kusch. Segundo o autor, para ser
alguém “es preciso un andamio de cosas, empresas, conceptos, todo um
armado perfectamente orgânico, porque, si no, ninguno será nadie”. Con-
tudo, os povos originários mantêm em suas raízes o estar sendo, o que
“se liga a situación, lugar, condición o modo, o sea a una falta de armado,
apenas a una pura referencia al hecho simple de haber nacido, sin saber
para qué, pero sintiendo una rara solidez en esto mismo, un mistério que
tiene antiguas raíces” (KUSCH, 2007, p. 426).
Kusch (2000) nos alerta para a luta entre o ser alguém de base euro-
peia e o estar aqui indígena. Assim, a sociedade não indígena se constituiu
sobre a ânsia de ser alguém que é inteligente, que resolve os problemas a
partir da teoria e da técnica, que tem a cidade como centro, onde o homem é
deus e a elite, a partir de uma pequena história (dos últimos 400 anos), que
supõe mover a massa da grande história. Por outro lado, temos uma socie-

1 Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e


Docente na Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL.
91
dade indígena que buscar organizar a realidade e partir de um “mero estar”,
no sentido de estar aqui, “como sobrevivencia. Como acomodacion a un am-
bito por parte de los pueblos precolombinos, con una peculiar organizacion
y espiritu y esa rara capacidad de cimentarse a traves de uma radicacion de
varios milenios en las tierras de America” (KUSCH, 2000, p. 164).
Os povos indígenas, especialmente considerado por mim os que ha-
bitam o estado de Alagoas, vivem a dualidade do ser e do estar que trata
Kusch, o ser do mundo ocidental e o estar do mundo originário. A escola
se torna o locus, por excelência, dessa dualidade: aprender para ser alguém,
com o desafio de não abandonar suas raízes, seu jeito de estar no mundo. A
escola passa a ser fagocitada e torna-se espaço de resistência, outro jeito
de estar no mundo, de estar sendo. Fagocitar é, segundo Kusch, quando a
América absorve as coisas do ocidente. Observando as escolas indígenas,
percebo que uma escola fagocitada compreende o ensinamento ocidental
aliado a uma sabedoria originária, própria do povo que a organiza e se
empodera ao organizá-la de forma que atenda às suas necessidades.
O ninho que anuncio no título deste trabalho refere à pesquisa de
doutorado em Educação, intitulada “Ninho de saberes: sensibilidades e
(in)visibilidades em práticas educacionais indígenas em Alagoas” que está
em andamento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assim
como minha escrita, o título também é tecido a partir de projetos origi-
nários. Foi inspirado na pesquisa da professora Kaingang, Dra. Márcia
Gojten Nascimento, apresentado no Encontro de Saberes Indígenas na
Escola, promovido pela UFRGS em abril de 2018, em que registrei e bus-
quei refletir sobre algumas questões, a exemplo do fato de o Estado bra-
sileiro não ter delegado ao indígena o cuidado da escola e ainda impor um
currículo que não leva em consideração a memória, a história, a língua, a
cultura e os conhecimentos dos povos.
Nascimento, Doutora e Mestra em linguística, reside na Terra In-
dígena de Nonoai/RS, aonde desenvolve um projeto de revitalização da
língua Kaingang, denominado “Kanhgág vĩ mré ẽg jykre pẽ jagfe (Ninho
de língua e cultura Kaingang)”. O trabalho foi inspirado na experiência
do povo Mãori, Nova Zelândia, que possui um programa de revitalização
linguística e cultural, chamado Kõhanga Reo ou “Ninho de Língua”, desde
a década de 1980 e considerado um dos mais bem-sucedidos no mundo.
Desenvolvendo meu trabalho como pesquisadora e professora da
UNEAL e atendendo o convite da direção da Escola Estadual Indígena
Itapó, localizada na aldeia Karapotó Plak-ô, fui ministrar uma atividade
de formação de professores. Todos os que participaram eram indígenas e
vivem na aldeia. Naquele espaço de vida do povo Karapotó Plak-ô, está

92
em andamento um projeto chamado “Língua materna”, proposta como
processo de “levantamento” de sua língua originária. Segundo Ana Lúcia
Ferreira de Souza, que é diretora da escola, em seu trabalho de conclusão
de curso “A história do povo Karapoto Plak-ô no processo de reelabora-
ção linguística”, já estão atuando na escola para recuperação da língua
do tronco Macro-Jê, através da gramática kariri. Para Souza, “a língua
indígena foi deixada para trás, sendo substituída pelo Português, mas aos
poucos está sendo levantada” (2007, p.34). Levantar significa erguer e não
se ergue algo que já se perdeu, mas figurativamente, lembro uma árvore,
curvada pelo vento e que após a tempestade retorna seu tronco em direção
ao sol do meio dia. Ergue-se, majestosa, apoiada em suas raízes.
Considerando que o Brasil é um país multilíngue, compreende-se
as políticas que justificam esta condição, mas, na prática, sem ações efeti-
vas que atendam aos falantes de línguas diversas. Aos povos indígenas é
dado o direito ao “fortalecimento das práticas socioculturais e da língua
materna de cada comunidade indígena”, disposto no Art. 2º do Decreto
nº 6.861/2009, ao tratar sobre os objetivos da educação escolar indígena.
Na Escola Estadual Indígena Itapó, apesar de ainda constar como
projeto, a língua materna vai sendo reelaborada e com força para ser in-
troduzida no currículo escolar, como determina a Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional – LDBN/96.

Material elaborado por alunos e professores da Escola Estadual Indígena Itapó

Fonte: A autora

93
Percebo que a escola, mesmo sendo denominada indígena e funcio-
nando em seu território, não é espaço para revelação dos segredos de sua
cultura e religiosidade. Estes continuam protegidos dos “cabeça-seca”2.
A escola, então, se revela apenas um instrumento para “ser” e aprender a
conviver com o mundo ocidental, para o indígena um “não-lugar”3, sem
referência identitária, em oposição ao espaço antropológico que é a terra/
aldeia indígena, criadora de identidade. Mas, mesmo assim escutamos o
que reverbera na escola, desse estar indígena.
Durante a formação, várias atividades foram sendo propostas e ela-
boradas. Três grupos foram formados e cada um ficou responsável por
refletir e produzir de acordo com os saberes tradicionais e as práticas
coletivas. A primeira atividade foi a confecção de um calendário, em forma
de mandala, com os meses do ano escritos na língua materna. Em função
do tempo, apenas três indicadores foram utilizados: climáticos, da comu-
nidade e da escola. Sobre a mandala, Kusch (2000) diz que sua origem está
na sabedoria dos povos originários; segundo o autor, os conhecimentos
indígenas são mandálicos.
A mandala criada pelos professores contempla atividades escolares
comuns a qualquer espaço escolar não indígena, exceto nos meses de ja-
neiro e fevereiro (tuãdara e piracema), quando a comunidade vivencia seus
rituais. O calendário foi caracterizado por uma dimensão bilíngue (ima-
gem abaixo), proposto e elaborado pelos professores indígenas.

Fonte: A autora

2 Nome dado aos não indígenas.


3 Para Marc Augé “não-lugar” é o espaço de passagem, no qual não se tem identidade.
94
Mais duas atividades foram realizadas: a confecção do mapa da terra
indígena, a partir dos saberes e vivências, e a técnica fotográfica denomi-
nada Photovoice4, pois a fotografia é reflexo da emoção de quem fotografa
e expressa o que o outro quer falar e irá eternizar em uma imagem. As
imagens contemplam a cultura e identidade do povo Karapotó Plak-ô.
Nesse sentido, foram registradas o lugar onde ocorre o ritual sagrado,
a pintura corporal feita com a tinta vermelha (extraída de uma rocha), a
professora indígena fumando o pauy (cachimbo) e a imagem da aldeia a
partir da escola.
Por fim, o mapa confeccionado, simbolizando o que, territorialmen-
te, destaca-se na terra Karapotó Plak-ô, a exemplo do centro da aldeia e
as principais construções, o rio, a fonte e o sistema de tratamento de água
que abastece a aldeia, a reserva florestal e os acessos para a terra indígena,
incluindo a BR 101.

4 Técnica desenvolvida em 1997, por Caroline Wang e Mary Ann Burris.


95
Fonte: A autora

Após um dia, compreendendo os movimentos de resistências e co-


nhecendo os saberes impregnados no espaço escolar, escrevi:

Ao fundo, o som da maraca... Durante todo o dia a maraca foi tocada, não
ousei perguntar quem ou porque aquele som se fez presente todo o tempo.
(...) Neste dia retorno da escola, localizada no município de São Sebastião,
bastante feliz, encharcada de esperança e entusiasmo, culpa da chuva que
o tempo todo insistia em invadir a sala pelas brechas das telhas. Sentia que
começava a vislumbrar o ninho... (Diário de campo, 10 jul. 2019).

Aqui, quero alertar que a língua escrita, na escola, é ainda o maior


obstáculo para recuperação da língua materna. A escrita da língua in-
dígena foi elaborada pelo colonizador, com regras gramaticais e forma
correta de escrever uma frase. Contudo, a língua falada se manteve em
rituais e momentos de interação íntima entre os grupos indígenas, como
símbolo de resistência. A grafia é colonizadora, a fala é originária. Quiçá
a escola venha a implementar uma escrita que possa contribuir nos pro-
cessos de descolonização.

96
Referências
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermo-
dernidade. São Paulo: Papirus, 1994.
BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional. Brasília, DF,23 dez. 1996.
KUSCH, Rodolfo. El Pensamiento Indígena y Popular en América. Obras
Completas, Tomo 2, Rosario, Buenos Aires: Fundación Ross, 2000.
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas, Tomo 1. Buenos Aires: Fundación Ross, 2007.
KUSCH, Rodolfo. Geocultura del hombre americano. Obras Completas, Tomo
3. Buenos Aires: Fundación Ross, 2007.
NASCIMENTO, Marcia Gojten; MAIA, Marcus; WHAN, Chang. Kanhgág vĩ
jagfe - ninho de língua e cultura kaingang na terra indígena Nonoai (RS) – uma
proposta de diálogo intercultural com o povo Māori da Nova Zelândia. Revis-
ta Linguística / Revista do Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume 13, n.1 jan de 2017, p. 367-383.
SOUZA, Ana Lúcia Ferreira. A história do povo Karapoto Plak-ô no proces-
so de reelaboração linguística. TCC. Curso de Licenciatura em Letras. Facul-
dade de Formação de Professores de Penedo – FFPP da Fundação Educacional
do Baixo São Francisco Dr. Raimundo Marinho – FEBSF. 2007.

97
encontro com As culturAs indígenAs: quAndo As AulAs
podem ser um espAço-tempo pArA problemAtizAr e recriAr
formAs de ver, dizer e celebrAr As diferençAs

Denise Wildner Theves1


Mariane Paludette Dorneles2

O estudo objetivou o reconhecimento e a valorização das culturas


indígenas inseridas na perspectiva da interculturalidade e o desenvolvi-
mento de propostas de ensino que busquem descontruir estereótipos e
preconceitos. As atividades foram desenvolvidas junto a turmas de alunos
da Educação Básica e do Curso de Pedagogia.
O projeto buscou estabelecer a contextualização do processo de
ocupação do território do Rio Grande do Sul, do qual resultaram culturas
que foram sendo constituídas através da história das relações dos seres
humanos entre si e com o ambiente. Para isso, o estudo propôs conhecer o
modo de vida dos indígenas na atualidade, em especial a cultura Guarani-
-Mbyá. Nesse sentido, vivenciar momentos de aprendizagem em espaços
externos ao ambiente escolar apresentou-se como uma experiência com
diferentes sentidos e repleta de momentos considerados únicos.
A possibilidade de interagir com um grupo constituído por ou-
tra cultura, permanecendo por um dia em uma aldeia indígena Guarany
Mbyá, possibilitou essa experiência vivenciada de maneira única e, por
isso, inesquecível para cada um dos alunos que dela participou. No retor-
no para a escola/universidade, a sistematização e a expressão das apren-
dizagens advindas dessa experiência foram realizadas com o uso de dife-
rentes linguagens e momentos de interação dos alunos.
A partir delas, pôde-se refletir sobre possibilidades de trabalho com
diferentes componentes curriculares e contribuir para a construção de ou-
tros olhares e conhecimentos sobre a vida dos indígenas na contempora-
neidade e os modos de compreender o Outro.

1 Professora no Curso de Pedagogia do Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRIT-


TER), Porto Alegre (RS). Professora de Geografia no Ensino Fundamental do Colégio
Evangélico Alberto Torres (CEAT), Lajeado (RS). Doutora em ensino de Geografia, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: denisetheves@gmail.com
2 Professora no Curso de Pedagogia do Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRIT-
TER), Porto Alegre (RS). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Botânica na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: marianepd@hotmail.com
99
Introdução

As atividades foram desenvolvidas junto a turmas de alunos do


quinto ano do Ensino Fundamental, no componente curricular de Estu-
dos Geográficos e Históricos, em uma escola comunitária localizada no
Bairro Centro, em Lajeado, no Rio Grande do Sul. Além disso, junto aos
alunos que participaram da disciplina Identidades e Diversidades Étnico-
-Raciais, do Curso de Pedagogia do Centro Universitário Ritter dos Reis,
em Porto Alegre. O propósito que alicerçou o projeto foi o reconhecimen-
to e a valorização das culturas indígenas inseridas na perspectiva da inter-
culturalidade e o desenvolvimento de propostas de ensino que buscassem
descontruir estereótipos e preconceitos sobre os povos indígenas.
Com este objetivo, vivenciar momentos de aprendizagem em espa-
ços externos ao ambiente escolar/universitário apresenta-se como uma ex-
periência com diferentes sentidos e repleta de momentos que podem ser
considerados únicos. As denominações são variadas: saídas de campo, aulas
passeio, viagens de estudos, estudos do meio, entre outros; contudo, todos
possibilitam construir conhecimentos de maneira singular e dinâmica.
Quando essa vivência trouxer possibilidades de interagir com um gru-
po constituído por outra cultura, o inimaginável pode acontecer! Eis que
permanecer um dia em uma aldeia indígena Guarany Mbyá possibilitou essa
experiência vivenciada de maneira única e, por isso, potente para o desen-
volvimento de um pensamento que vê e sente o Outro a partir da alteridade.
No retorno para a escola/universidade, a sistematização e a expres-
são das aprendizagens advindas dessa experiência foram realizadas com
o uso de diferentes linguagens e com elas, surgiram oportunidades para a
criação de propostas didáticas alicerçadas na interculturalidade.

Metodologia - Pontos de partida, caminhos e chegadas: os contextos


do trabalho e os temas de estudo

Inicialmente foi proposta a contextualização da chegada dos pri-


meiros seres humanos ao continente que seria denominado de América e
as hipóteses que supõem a chegada dos primeiros habitantes às terras do
atual Rio Grande do Sul, através de diferentes ondas migratórias.
Com essas abordagens, tornou-se possível estabelecer relações en-
tre a ocupação do território do atual Rio Grande do Sul e o desenvolvi-
mento de diferentes modos de viver e a criação de culturas. Afinal, todo
agrupamento humano tem culturas que resultam da história de relações
que se dão entre os próprios homens e entre estes e o meio ambiente; uma

100
história que foi (e continua sendo) drasticamente alterada pela realidade
da colonização (ISA, 2015a).
O processo de povoamento dessas terras, desencadeado pelos co-
lonizadores europeus, propôs agrupamentos e divisões desses grupos
de habitantes em tribos, famílias e troncos linguísticos. Assim, referir-se
aos indígenas3 habitantes do território rio-grandense, até os dias de hoje,
pressupõe considerar sua família linguística.
Por outro lado, cabe reafirmar que os atuais povos indígenas brasi-
leiros são os grupos descendentes dos primeiros habitantes do continente
4

americano que aqui viviam antes da chegada dos colonizadores europeus.


A indicação de indígenas, advinda da denominação “índios”, é fruto de
um equívoco histórico dos colonizadores que, tendo chegado às Américas,
julgaram estar na Índia (ISA, 2015a).
Os indígenas habitantes do Rio Grande do Sul, na atualidade, fazem
parte dos grupos Guarani, Kaingang e Charrua. Nosso estudo concentrou-
-se no grupo Guarani5, que possui três subdivisões: os Mbyá, os Nhandeva e
os Kaiowá. Esses subgrupos apresentam variações na linguística, no modo
de viver, assim como na organização social, econômica e religiosa. A língua
falada é o Guarani, que provém do tronco linguístico tupi, da família tupi-
-guarani. De acordo com Medeiros e Gomes (2014), estes indígenas estão
organizados em aldeias na zona rural e em várias cidades do Rio Grande do
Sul, sendo cinco delas na região metropolitana de Porto Alegre.
Como atividade integrante da Semana com a cultura Guarani-M-
byá, proposta pela comunidade indígena e pelo Museu da UFRGS (POA/
RS), tornou-se possível participar de um dia de vivências e aprendizagens
na aldeia Tekoá Pindó Mirim (Terra Indígena Parque de Itapuã), no mu-
nicípio de Viamão (RS). A atividade foi oportunizada como forma de in-
teração cultural na forma de diálogos e trocas entre os envolvidos. Desse
modo, essa vivência buscou oportunizar conhecimentos sobre os valores
dessa cultura Guarani-Mbyá.

3 A expressão genérica povos indígenas refere-se a grupos humanos espalhados por todo
o mundo, e que são bastante diferentes entre si. É apenas o uso corrente da linguagem
que faz com que, em nosso país e em outros, fale-se em povos indígenas. (ISA, 2015b).
4 Atualmente encontramos no Brasil povos indígenas falantes de mais de 150 línguas dife-
rentes. Esses povos somam, segundo o Censo IBGE 2010, aproximadamente 897 mil indí-
genas. Sendo que, aproximadamente 324 mil vivem em cidades e 572 mil vivem em áreas ru-
rais, o que corresponde aproximadamente a 0,47% da população total do país. (ISA, 2015a).
5 A população Guarani no Brasil esteve estimada, em 2008, em aproximadamente 51
mil pessoas entre os Kaiowá (31.000), Ñandeva (13.000) e Mbya (7.000), distribuídas em
vários estados do Brasil, inclusive no Rio Grande do Sul.(ISA, 2015c)
101
Resultados e discussões

Após a participação no dia com a comunidade indígena, os momen-


tos vivenciados na aldeia foram o assunto das aulas e a partir dele foram
criadas e propostas atividades utilizando diferentes linguagens. Além dis-
so, a proposta ressaltou o quanto esse momento de experimentar a vida
no contexto dessa cultura pode contribuir para desconstruir estereótipos
e preconceitos em relação aos diferentes modos de vida dos indígenas.
A participação na Semana com a cultura Guarani-Mbyá vem sendo
realizada desde 2014 e a cada ano tem sido reafirmada a importância da
participação na mesma através dos relatos e expressões dos alunos que
evidenciam a potência dessa vivência.
As propostas vividas, criadas e experimentadas com os alunos apon-
tam-nos as possibilidades de reinventar os modos de ensinar e aprender
na busca por conhecer, e de acolher o Outro na interação pedagógica. Afi-
nal, só posso descobrir quem sou com o Outro, num movimento dialético
entre identidade e alteridade. Kaercher e Tonini (2015, p. 68) provocam:

[...] que a escola ajudasse, não apenas a constatar o óbvio (há uma multi-
plicidade de entes diferentes de mim), mas que essas diferenças não fossem
mais vistas como ameaça ou anomalia. Esse esforço de alteridade pode (e
deve) ser papel da escola e de nós, professores.

Acreditamos que a prática pedagógica implica outras maneiras de se


relacionar com a realidade, com os outros e consigo mesmo. É, portanto,
nosso olhar e sentir colocado sobre o mundo, sobre as coisas, sobre as cul-
turas e sobre as diferenças que convém interrogar e recriar.
Nesse sentido, faz-se urgente e necessário a escola ampliar as possi-
bilidades de trabalho a partir de diferentes culturas, afinal, o “currículo é
um espaço de constituição de identidades, lugar onde se produz memória,
modos de ser e de conviver” (PEREIRA, 2012, p.7).
As atividades desenvolvidas, a partir desse dia de vivências, deram
sentido aos conhecimentos desenvolvidos e novos saberes foram se consti-
tuindo com a interação dos alunos com o contexto cultural dos Guarani-
-Mbyá, constituindo o espaço pedagógico alicerçado na interculturalidade.

Considerações finais

Os alunos e os indígenas nos ensinaram que ver e pensar o Outro, o


“não eu”, exige novas posturas, na busca pela construção de novas memó-
rias, (re)criando nossos modos de ver, sentir e apreender o mundo. Neste
102
sentido, faz-se urgente e necessário a escola abrir-se aos diferentes modos
de vida para constituir-se em um lugar que leve em conta nossa ancestra-
lidade, ampliando as premissas do senso comum e dos saberes preestabe-
lecidos a partir de modelos carregados de julgamentos.
As propostas didáticas e as reações dos alunos evidenciaram que os
conteúdos, o currículo, as aulas são pautados por uma postura epistemoló-
gica, por atitudes éticas e políticas. Assim, as aulas são um espaço-tempo
em potencial para problematizar e recriar formas de ver, dizer e celebrar
as diferenças e as culturas.

Referências
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Instituto Socioambiental. Disponí-
vel em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/ quem-sao/povos-
-indigenas. Acesso em: 27 ago. 2015a.
______. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/
quem-sao/povos-indigenas. Acesso em: 27 ago. 2015b.
______. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mb-
ya/1289. Acesso em: 27 ago. 2015c.
MEDEIROS, Juliana S.; GOMES, Luana Barth. Povos Indígenas: diversidade na
escola. In: GIORDANI, Ana C. C... [et al] (orgs.); MEINERZ, Carla B. Curso
de aperfeiçoamento produção de material didático para diversidade. 3 ed.
ver. e ampl. Porto Alegre: Evangraf, 2014.
PEREIRA, Nilton Mullet. Diversidade e diferença: problemas teóricos e pe-
dagógicos. In: KAERCHER, Nestor; TONINI, Ivaine Maria (orgs.). Curso de
Aperfeiçoamento Produção de Material Didático para Diversidade. 2. ed.
Porto Alegre: Evangraf, UFRGS. 2012. p. 1-12.
KAERCHER, Nestor André, TONINI, Ivaine Maria. A diferença como possibili-
dade de discutir a desigualdade e combater preconceitos: a geografia que faz a di-
ferença. In: CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos et al (Orgs.). Movimentos no
ensinar geografia: rompendo rotações. Porto Alegre: Evangraf, 2015. p. 55-71.

103
A comunidAde e os fenômenos coletivos como elementos
fundAmentAis dA quAlidAde nA educAção básicA

Diogo Silveira Heredia y Antunes1

Introdução

Os vuelcos (KUSCH, 1999), ou viradas inesperadas, ocorridos na re-


cente história do Brasil, marcados pelo impeachment da presidenta Dilma
Roussef e pelo fenômeno das eleições de 2018, marcada por polarizações,
rompimentos e ódio, são a ponta de um iceberg que reflete o momento so-
cial e cultural do Brasil, e que evoca a necessidade de revermos os rumos
que assumimos em nossa caminhada coletiva como projeto de sociedade.
As breves reflexões que trago aqui estão direcionadas a pensar a qualida-
de em educação, mais especificamente educação básica, a partir de outros
olhares, tendo como pano de fundo a filosofia latinoamericana.
A emergência de achados que apontam a importância da valorização
das relações humanas como elemento fundamental na qualidade em edu-
cação forma o pilar central dos argumentos que apresento. Este achado
converge com a antiga sabedoria dos povos originários que, ainda que
respeitassem e incentivassem o desenvolvimento individual de cada mem-
bro de suas sociedades, pautavam sua organização social na comunidade
(KUSCH, 1999). Tenho como intuito realizar breves reflexões a respeito
da importância de assimilarmos ao conceito de qualidade uma compreen-
são coletiva, centrada na comunidade escolar.
A qualidade é um dos aspectos que têm justificado a busca por
transformações na educação escolar convencional2, tanto em escolas pú-
blicas como privadas. Mas os conceitos, as concepções e as representações
sobre o que é uma educação de qualidade possuem múltiplos significados
e encontram divergências dependendo do grupo social. Tais concepções
articulam-se, em última instância, ao ideal de sociedade que cada grupo ou

1 Aluno de Doutorado em Educação da PUCRS, bolsista Capes. Professor de educação


física da escola Amigos do Verde.
2 Marcada pela organização rígida dos tempos, pela arquitetura pouco ou nada acolhe-
dora, por estabelecer conteúdos a priori, ensinando-os da mesma forma a todos os alu-
nos, muito centrada no desenvolvimento da racionalidade e da competitividade. Utiliza
métodos de ensino ainda centrados na “transmissão” de conhecimentos, pela divisão por
idades e pelas formas autoritárias de lidar com a criança (BASTINI, 2000).
105
sujeito espera construir para as novas gerações (DOURADO; OLIVEI-
RA; SANTOS, 2007).
A gravidade das crises sociais, ecológicas, psíquicas e econômicas que
atingem a humanidade, a partir do sucesso do neoliberalismo e do fracasso
de boa parte das experiências de implementação do socialismo, não deixam
dúvidas da necessidade de “novas” perspectivas que possam servir de base
para a sociedade contemporânea. Ainda que haja movimentos de transfor-
mações rápidas e constantes na sociedade contemporânea, há, na comple-
mentaridade do Kósmos, forças de manutenção e continuidade, que trazem
à tona a sabedoria de antigos conhecimentos das sociedades tradicionais.
Neste sentido, o conceito de qualidade implicada aqui relaciona-se à possi-
bilidade de a educação contribuir para o desenvolvimento de uma socieda-
de pautada no bem-viver. Este conceito, advindo dos povos originários da
América (Suma Kawsay - do quéchua suma: bem, kawsay: viver), expressa o
modo de viver, organização social e econômica de suas culturas, que emer-
ge na contemporaneidade como alternativa ao conceito de desenvolvimen-
to e como possibilidade de transcendência ao capitalismo e socialismo. Visa
a construção de comunidades solidárias e abundantes, ligadas à terra, aos
ciclos naturais, à beleza e à espiritualidade. Foi integrado às constituições
do Equador em 2008 e Bolívia em 2009 (CHAMORRO, 2017).

Qualidade na educação básica

Na vasta pesquisa realizada em diversos países da América Latina,


buscando compreender as causas das desigualdades em educação, e os ele-
mentos mais impactantes na aprendizagem dos alunos Casassus (2007)
apresenta algumas conclusões importantes. A primeira delas é de que a
escola faz diferença na redução de processos de desigualdade gerados fora
dela. O autor avaliou as notas de alunos em provas de linguagem e mate-
mática e cruzou os resultados com diversos fatores, tais como: infraestru-
tura, mobiliário e recursos da escola, gestão, percepção dos atores a res-
peito do clima da escola, organização da sala de aula e pedagogia, tempo
de estudo dos pais, tempo de permanência destes com as crianças, entre
outras variantes. A pesquisa demonstrou pequenas desigualdades entre
os países da América Latina, mas grande desigualdade dentro dos países,
à exceção de Cuba, com notas muito superiores aos demais e menor desi-
gualdade entre as “melhores” e “piores” escolas. Os resultados encontra-
dos em Cuba, um país com baixo produto interno e renda per capita, mas
com alto nível sociocultural e alto rendimento nos testes, vai contra o senso
comum de que, para ter uma boa educação, é preciso que o país seja rico.

106
Os elementos indicados pelo autor com relação a aspectos que im-
pactam positivamente na aprendizagem e, dessa forma, são relevantes
para uma “escola bem-sucedida”, exponho a seguir. Não é possível fazer
uma escala precisa de quais elementos elencados impactam mais nos re-
sultados dos alunos, pois estão relacionados a uma série de variáveis, mas
os três primeiros se mostraram bastante relevantes, sendo que o primeiro
impacta mais nos resultados dos alunos do que todos os outros juntos:

1. O ambiente emocional é favorável à aprendizagem


2. Os docentes têm uma formação inicial pós-médio
3. Os docentes têm autonomia profissional e assumem a responsabilida-
de pelo êxito ou fracasso de seus alunos
4. Conta-se com prédios adequados
5. Dispõe-se de materiais didáticos e de uma quantidade de livros sufi-
cientes na biblioteca
6. Não há nenhum tipo de segregação
7. Os pais se envolvem com as atividades da comunidade escolar
8. Há autonomia na gestão
9. Há poucos alunos por professor na sala de aula
10. Pratica-se a avaliação de forma sistemática (CASASSUS, 2007, p. 151).

Esta evidência coloca a comunidade e as relações humanas como centro


do processo educacional. Um ambiente emocional favorável se cria quando
as relações humanas estão pautadas em princípios de cooperação, valorização
do outro, respeito, liberdade, disciplina, responsabilidade e suporte mútuo.
Estes e outros princípios criam um ambiente agradável de relacionamentos,
capaz de gerir conflitos e gerar resiliência aos desafios da vida. Quando as
relações são de competição, cobrança excessiva e individualismo, valores to-
mados como centrais e positivos no desenvolvimento humano pela sociedade
ocidental contemporânea, o clima que se cria é justamente o avesso.
Outro fenômeno sobre o qual quero refletir é que as escolas públicas
no Brasil têm historicamente perdido respaldo junto à população, em espe-
cial as escolas estaduais (pelo menos este é o caso do Rio Grande do Sul),
que têm sido consideradas pela opinião pública, genericamente, como sinô-
nimo de baixa qualidade em educação, em comparação ao ensino privado.
Esta percepção foi expressa em pesquisa realizada por mim recentemente,
onde os entrevistados apresentavam preocupações com a qualidade e se-
gurança das escolas públicas dos bairros onde moram (ANTUNES, 2018).
Ao mesmo tempo, foi dentro das escolas estaduais que surgiu um dos
mais expressivos movimentos de defesa da democracia e do direito social à

107
educação na história recente do Brasil a partir do movimento organizado
dos secundaristas que, no ano de 2016, ocuparam centenas de escolas em
todo o país. Assim, a percepção de qualidade expressa neste conflito parece
estar muito mais ligada à valorização da eficácia da escola em proporcionar
o desenvolvimento individual dos sujeitos, propiciando que sejam capazes
de pôr em prática seus projetos de vida e de carreira pessoal de manei-
ra isolada, negando a possibilidade da escola de fomentar um projeto de
amadurecimento social e comunitário pautado nas relações humanas e no
desenvolvimento coletivo. Esta situação é acompanhada pelos sistemas de
avaliação implementados, que costumam utilizar instrumentos de avaliação
individual, sem reconhecer uma potente inteligência coletiva que pode ser
criada com a articulação e aproximação dos grupos humanos.

Considerações finais

O investimento no resgate da comunidade (e de um clima educacional


favorável) na perspectiva de investimento na qualidade em educação, como
aponta Casassus, tem o potencial de proporcionar alto impacto no apren-
dizado de matemática e linguagem. Mas, para muito além disso, ser capaz
de formar comunidade é uma virada ontológica na sociedade ocidental con-
temporânea, pautada no materialismo, narcisismo e consumismo. Na sabe-
doria do povo Dagara, “a comunidade é o espírito da tribo; é onde as pessoas
se reúnem para realizar um objetivo específico, para ajudar os outros a rea-
lizarem o seu propósito e para cuidar uma das outras” (SOMÉ, 2007, p. 35).
Esta virada ou vuelco de retomar uma perspectiva de consciência
coletiva e pertencente de nosso local no Cosmos, aponta para a semeadura
de outro modo de viver, que integre a riqueza da sabedoria dos povos e da
natureza. Estas “novas” constelações reconhecem que indicadores como o
Produto Interno Bruto, ou a renda per capita, são insuficientes para indi-
car a beleza, abundância e sentido da vida, pois questiona concepções de
riqueza e pobreza dos indivíduos e comunidades centrada na renda e acu-
mulação de bens de consumo, possibilitando outros olhares que incluam o
acesso a bens necessários para a vida, a riqueza cultural, a abundância e a
convivência harmônica. Estas experiências seguem vivas e atuantes tanto
nos povos originários da América, como em diversos grupos e comuni-
dades em todo o mundo, que buscam instaurar suas relações a partir de
outras perspectivas, de afeto, comunhão e sentido.

108
Referências
ANTUNES, Diogo Silveira Heredia y. Da inovação em educação às escolas
emergentes: papel social, valores e estratégias para formação humana. 2018. 168
f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós Graduação em Edu-
cação, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
BASTINI, Mara Lúcia. Escola Alternativa: pedagogia da participação. Flo-
rianópolis: Cidade Futura, 2000.
CASASSUS, Juan. A escola e a desigualdade. 2ª Ed. Brasília: Líber livro edi-
tora, UNESCO, 2007.
CHAMORRO, Graciela. Bem Viver nos povos indígenas. CEBI Virtual. Dispo-
nível em: http://cebivirtual.com.br/ava/arquivos/FT1-M1.pdf. Acesso em:12
de dez de 2017.
DOURADO, L.F.; OLIVEIRA, J.F.; SANTOS, C.A. Políticas e gestão da educa-
ção básica no Brasil: limites e perspectivas. Educação & Sociedade, Campinas,
v. 28, n. 100, p. 921-946, 2007
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. 1ª ed. Buenos Aires: Biblios, 1999.
SOMÉ, Sobonfu. O Espírito da Intimidade: Ensinamentos ancestrais afri-
canos sobre maneiras de se relacionar.Trad.: Débora Weinberg. 2ª Ed. São
Paulo: Odysseus Editora, 2007.

109
referentes éticos mApucHe en lA investigAción
científicA: unA necesidAd urgente en contextos
interétnicos e interculturAles

Fernando Fuica-García1

Si negamos nuestras propias raíces, jamás podremos deve-


lar nuestro ser, nuestra identidad. Pero esto quiere decir, a
su vez, que no podemos inclinarnos a uno de los extremos
sin perjuicio de no comprendernos íntegramente: no somos
Occidente, pero somos ya de Occidente; ni somos puramente
indios, pero lo indígena está en nosotros, como lo negro, lo
mulato, lo zambo y lo mestizo (Cepeda, J., 2010).

Durante mucho tiempo el conocimiento científico occidental ha pri-


mado en la educación formal, y en forma especial en la educación que im-
parten las universidades. La primacía de la tecnociencia y la necesidad de
asumir la responsabilidad de sus consecuencias ha conducido a plantearse
el problema ético de la investigación científica. Esta manera unilateral de
concebir el pensamiento occidental nos ha llevado a escarbar la cuestión del
diálogo de saberes y el reconocimiento de los aspectos éticos de los saberes
indígenas. Lo que se busca a través de este proyecto dialógico es ver hasta
donde lograremos asumir una relación de verdadera simetría epistémica al
momento de hacer investigación. Para nosotros que vivimos en el Wallmapu
la cuestión central es saber cómo se hace conocimiento y cómo se estudian
las temáticas mapuche, partiendo de la base de la necesidad de profundizar la
investigación científica, pero también incorporando las motivaciones e inte-
reses que las propias comunidades disciplinarias planteen y releven.
En estos últimos años la UCT se ha abierto al desafío que plantea el
saber mapuche y se ha puesto a la escucha de lo que el mundo mapuche ha
ido elaborando acerca de su episteme y de su ontología. En el documento
Fijke mapu tuwünche (Catriquir, Panchillo, Marileo, Manquilef, y Quidel,
2015), elaborado por Kimches de la Universidad Católica de Temuco (en
adelante UCT), se indica que la formación mapunche busca la integra-
lidad en la formación personal, que incluye el conocimiento (un tipo de
kimün), habilidades y técnicas (saber hacer), valores, comportamientos y
modos de conocer. A esta integralidad en mapunzugun se le denomina
kimün, en cuanto que expresión máxima de ser che.

1 ffuica@uct.cl
111
El campo de la educación, o mapunche kimeltuwün, se orienta por
principios éticos que refiere al zapin zugu o cultivo de la persona; el pekan-
gekelay ta che, entendido como alguien que se dice ser persona, que no se
orienta por idea erráticas y/o descuidados en plantear su razonamiento y,
por último, en el kishu günewkelay ta che, donde el ser humano se rige por el
orden del mundo existente y no es conveniente transgredirlo, dado que al
hacerlo compromete el equilibrio de los demás (Catriquir y Durán, 2007).
En este enfoque cultural mapunche, el ser che implica regirse por el prin-
cipio valórico de la reciprocidad de la vida intra-societal mapunche, cuya
relación se da tanto a nivel interpersonal, intercomunitario y más allá de
ello, con la naturaleza y las fuerzas superiores.
A partir de lo anterior, se observa una necesidad de incorporar los
elementos sustantivos de la identidad y entender del pueblo mapuche en
los espacios de construcción de conocimiento formal. Desde la constitu-
ción del Comité de Ética de la Investigación (en adelante CEI) de la UCT,
cuyo objetivo es resguardar los estándares éticos de las investigaciones
científica, se responde a la necesidad de aplicar criterios como el de dis-
cernimiento y el de pertinencia en los proyectos presentados en contexto
intercultural. Esto es relevante, no solo porque responde a la Visión y
Misión de la UCT, sino porque atiende a la realidad geográfica y cultural
del contexto en el que se instala. En un CEI situado, la ausencia de este
tipo de referentes en la revisión y evaluación de los proyectos presenta-
dos, tensiona el contrastar los objetivos y metodologías propuestas, con
los valores y principios que sustenta la ética mapuche.
En la revisión realizada de distintos CEI de Chile, se constata la
ausencia de una reglamentación que haga explícita tanto los puntos de
referencia posibles que sustentan la cosmovisión mapuche, como la gene-
ración de alguna instancia de devolución objetiva de los resultados de las
investigaciones que recaen en los denominados “grupos estudiados”. Con
esto se recoge una antigua demanda de la comunidad mapuche a quienes
muchas veces se los ve sólo como objeto de investigación. Si se incorporan
como referentes éticos del marco teórico en los proyectos de los investiga-
dores, algunos de los principios éticos propios del mundo mapuche, como
por ejemplo: Kümeche, Kimche, Norche, Külfünche, sus resultados permiten
contribuir en la concreción del llamado Küme Mongen (el buen vivir) en la
sociedad mapuche y no-mapuche.
Cuando reflexionamos acerca de estos valores presentes en el mun-
do mapuche necesariamente nuestros planteamientos nos conducen a re-
pensar lo que se viene denominando como interculturalidad, lo primero
que aflora es la pregunta ¿Existe un pensamiento ético latinoamericano

112
que se inspire en la axiología indígena? ¿Hay una identidad ontológica o
epistemológica de la investigación que sea tributaria de autores nacidos
y formados en un contexto poscolonial y que sean críticos de la episte-
mología eurocéntrica? Sin duda que responder a las cuestiones anteriores
implica no sólo trascender la influencia, innegable, de la tradición greco
romana, o pensamiento occidental, sino que implica asumir en qué medida
es posible plantear otra reflexión que sea, a la vez, original y distinta de
lo planteado desde un euro centrismo epistémica que ha permeado por
décadas la formación intelectual y académica de los científicos.
No se trata de afirmar la tesitura de que pensadores y filósofos de
nuestra América construyan referentes identitarios desde un horizonte
puramente latinoamericano. En efecto, la sola pregunta de si existe algo
así como una “filosofía” o un pensamiento propio y original surgido desde
estas latitudes, es en sí mismo un horizonte de problematicidad. Es inne-
gable que las premisas fundantes han sido heredadas y remiten a la tra-
dición occidental, pero lo anterior no implica necesariamente desconocer
el profundo valor de los saberes indígenas, y que requerimos abrirnos a
unos espacios nuevos de convergencia y dialogicidad que reúna a la vez
una propuesta e interpretación que no desconoce la referencia iniciada en
la Grecia de Sócrates y Platón acerca del eidos y de la episteme, pero que al
mismo tiempo cuestiona la visión limitada de que en otras sociedades no
se haya encontrado formas profundas de saber. La crítica al colonialismo
eurocéntrico es que desconoce la existencia de una diversidad de saberes
y de cosmovisiones que existían previo a la llegada de los colonizadores,
y que nos aportan hasta hoy de una especificidad referencial y existencial
fundando elementos precisos de análisis de la realidad cósmica y humana
que no pueden ser descartados a priori.
Lo que la interculturalidad actual nos plantea en definitiva es abrir
un espacio de diálogo de saberes que, en sí mismo, supere toda posible
asimetría de primacía de un pensamiento sobre otro. En este contexto
que la filosofía de Kusch es un gran aporte a la reflexión de la América
profunda de una américa que nos abre a saberes y mundos de la bella
morenidad (Chihuailaf). Desde este pensar situado, tanto desde la epis-
temología hasta la antropología surge nuevas formas de interpelación
y de construcción de lo que se denomina “filosofía intercultural”. No
cabe duda que el pensador argentino se atreve a trascender la cosmovi-
sión impuesta desde los referentes histórico-filosóficos que han sido el
sustento tradicional de la formación y enseñanza en Filosofía, lo que lo
convierte en un punto de referencia indudable cuando planteamos un
pensamiento original desde el continente.

113
En todas las sociedades, tradicionales y modernas, hay prácticas que
involucran un conjunto amplio de actores sapienciales que interactúan
entre sí y con otros. Estas interacciones, a partir de valores, desarrollan
acciones, creencias, teorías y principios, idealmente en constante evalua-
ción (Olivé, 2009). Esto desafía el espacio de la ética y la investigación
científica, puesto que al incorporar la cosmovisión mapuche se atiende a
una epistemología descentralizada e intercultural.
Asimismo Gunther Dietz, Mateo Cortés y Laura Selenecoaut
(2011) señalan que en el contexto latinoamericano de la última década,
el discurso intercultural ha conseguido la apropiación de académicos
y políticos donde se constata un ‘giro poscolonial y/o descolonial’. Se
atiende cuidadosamente a la coexistencia de conocimientos, lenguas y
culturas de sociedades distintas, pero se sigue imponiendo unas sobre
otras, de forma evidente y avasalladora, manteniendo la asimetría, la
subalternación y “la matriz colonial de poder, [se]… hace legítima, y lo
que es peor, la reproduce permanentemente en su discurso de inclusión
o reconocimiento” (Quintriqueo, Quilaqueo, Lepe-Carrión, Riquelme,
Gutiérrez y Peña-Cortés, 2014, p. 24).
Romper con el discurso de inferiorización instalado desde la colo-
nialidad y que permita entender la importancia de los saberes mapuche, es
incorporar los conocimientos de aquellos a los que históricamente se les
ha desplazado y revalorar su cosmovisión, con la que cuenta y ha hereda-
do. Sin embargo, esto ha de hacerse no sólo con una intención de reivin-
dicación, al enmarcarles/nos en un lugar que los reconoce como “otros”
-puesto que ello sería mantener una diferenciación que segmenta y por
ende excluye-, sino como pueblos con cultura propia y con un patrimonio
(Quilaqueo, Quintriqueo y Cárdenas, 2005).

Referencias

CATRIQUIR, Desiderio y DURAN, Teresa (2007), “Kimeltuwün zugu: Modelo


educativo mapunche”, en Teresa Durán, Desiderio Catriquir & Arturo Hernán-
dez (Comps.), Patrimonio cultural mapunche. Derechos sociales y patrimo-
nio institucional mapunche. Universidad Católica de Temuco, Temuco, (3),
443-454.

CATRIQUIR, Desiderio, PANCHILLO, M. Teresa, MARILEO, Armando,


MANQUILEF, Florencio y QUIDEL, José (2015). Informe final comisión “Fi-
jke Mapu Tugûnche” Formación para la diversidad en contextos interétni-
cos e interculturales de la Universidad Católica de Temuco. Temuco: UCT.

114
CEPEDA, Juan. (2010). Ontología del estar: una aproximación a la obra de Ro-
dolfo Kusch. Análisis. Revista Colombiana de Humanidades, (77), 163-177.

DIETZ, Gunther; CORTÉS, Mateos; SELENECOAUT, Laura (2011). Inter-


culturalidad y educación intercultural en México. Un análisis de los discur-
sos nacionales e internacionales en su impacto en los modelos educativos
mexicanos. México: SEP-CGEIB

OLIVÉ, León (2009). Por una auténtica interculturalidad basada en el reconoci-


miento de la pluralidad epistemológica. Pluralismo epistemológico. p. 19-30.

QUINTRIQUEO, Segundo, QUILAQUEO, Daniel, LEPE-CARRIÓN, Patricio.


L., RIQUELME, Enrique, GUTIÉRREZ, Maritza & PEÑA-CORTÉS, Fernan-
do. (2014). Formación del profesorado en educación intercultural en América
Latina. El caso de Chile. Revista electrónica interuniversitaria de formación
del profesorado, 17(2), 201-217.

QUILAQUEO, Daniel, QUINTRIQUEO, Segundo y CÁRDENAS, Prosperino


(2005). Educación, curriculum e interculturalidad. Elementos sobre forma-
ción de profesores en contexto mapuche. Santiago de Chile: Facultad de Edu-
cación, Universidad Católica de Temuco, Frasis editores.

115
trAjetóriAs AmeríndiAs em seus itinerários de
escolArizAção: umA reflexão do pensAmento de rodolfo
KuscH com A educAção escolAr indígenA no rs
Francisco Moreira Alves1
Íris Pereira Guedes2
Jaqueline da Rosa Cunha3
Rafael Frizzo4

Y hay algo más. No existe en América un estilo unifor-


me de vida... Por un lado el índio detenta la estrutura de
un pensamiento de antigüedad milenária, y por el outro
la ciudadanía renueva cada diez años su modo de pensar
(KUSCH, 2007 p. 265).

Apresentação

O pensamento seminal de Rodolfo Kusch (1922-1979) ressoa uma


América que não é ensinada nas escolas, tampouco é noticiada ou está pre-
sente nos discursos de poder. Kusch é a antropologia da América que ainda
busca encontrar suas raízes, refletindo nas origens transfronteiriças a pai-
xão de uma escrita imersa pelo campo que só é compreendida quando ex-
perimentada e vivida. Este trabalho é uma singela reflexão do pensamento
ontológico, mestiço e profundo de Rodolfo Kusch, em diálogo as trajetórias
ameríndias em seus itinerários de escolarização no Sul do Brasil. Para tanto,
foi utilizado o método de revisão bibliográfica e o etnográfico.
Avanços e Desafios Propostos no Papel: da abertura constitucional
ao Decreto 6.861 de 2009, como garantir o direito aos Territórios Etnoe-
ducacionais?
A partir da Constituição Federal de 1988, em especial em seus arts.
231 e 232, e da internalização de Tratados e Convenções Internacionais

1 Professor indígena da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul - SEDUCRS.


2 Mestre em Direito. Atua no Núcleo de Assessoria Jurídica a Povos Indígenas e Comuni-
dades Remanescentes Quilombolas (SEMEAR/SAJU). Contato: irispguedes@gmail.com
3 Doutora em Letras. Professora efetiva no Instituto Federal do Rio Grande do Sul -
Campus Porto Alegre (IFRS). Contato: jaqueline.cunha@poa.ifrs.edu.br
4 Mestrando em Sociedade, Ambiente e Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Pesquisador associado ao Labora-
tório de Arqueologia e Etnologia (LAE/UFRGS). Contato: rafaeldaitapeva@gmail.com.
117
de Direitos Humanos, como é o caso da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, as demandas situadas no campo da educação e
do direito ao território dos povos indígenas passam a ganhar novos con-
tornos e respaldos. O Estado brasileiro toma para si a responsabilidade
de instituir mecanismos positivos e negativos de proteção aos direitos dos
indígenas perante a comunidade nacional e internacional. Em resposta a
esses compromissos, foi editado o Decreto 6.861/2009, regulamentado
pela Portaria 1062/2013, que institui o Programa Nacional dos Territó-
rios Etnoeducacionais - PNTEE, a qual expõe que:

os territórios etnoeducacionais serão espaços institucionais em que os en-


tes federados, as comunidades indígenas, as organizações indígenas e indi-
genistas e as instituições de ensino superior pactuam ações de promoção
da educação escolar indígena, efetivamente adequada às realidades sociais,
históricas, culturais, ambientais e linguísticas dos povos e comunidades
indígenas (Portaria 1062, 2013, parágrafo 2º)

O referido Decreto dispõe que a educação escolar indígena garanti-


rá a diversidade étnica (art. 2°), observando a territorialidade, respeitando
as necessidades, especificidades e a participação de cada povo. Neste sen-
tido, reconhece “às escolas indígenas a condição de escolas com normas
próprias e diretrizes curriculares específicas”, cabendo à União a respon-
sabilidade de prestar apoio técnico e financeiro na construção das escolas,
no fornecimento de alimentos e na formação inicial e continuada de pro-
fessores indígenas (art. 5°). Nas palavras de Gersem Baniwa:

se a escola indígena objetiva fortalecer a vida coletiva, então precisa con-


siderar no processo pedagógico e na organização administrativa o signi-
ficado e o valor intrínseco da relação orgânica dos povos indígenas com
os seus territórios. O território indígena não é apenas uma referência
essencial da identidade coletiva, mas é principalmente a base e a materia-
lidade da gestão do presente e do futuro do grupo (plano de vida indivi-
dual e do povo). A associação entre educação e território é considerada
como fundamental na medida em que é no território que as referências
culturais e sociais dadas pela geografia e pela história se estabelecem e
se reproduzem (BANIWA, 2010).

De acordo com Baniwa, para que a educação indígena seja exitosa


é necessário levar em consideração o modo de vida de cada Povo. Berga-
maschi e Sousa apontam para a existência de caminhos que possibilitam a
execução desse novo olhar:

118
Ao indicar possibilidades para a autonomia das escolas indígenas, pare-
ce aproximar-se um pouco mais dos sistemas de educação indígenas da
América Latina, no sentido de construir alternativas mais independentes
das mãos governamentais e criar sistemas de educação escolar autônomos
(BERGAMASCHI; SOUSA, 2015, p. 154).

Ainda, de acordo com as autoras, a garantia do direito à autonomia,


essencial aos povos indígenas, não se confunde com desonerar o Estado
brasileiro de suas responsabilidades pactuadas, para além de assistência
técnica e financeira.

Das Raízes da América Profunda ao Deslumbramento


Intelectual Eurocêntrico

No papel, as ideias funcionam muito bem, mas na prática, tanto De-


creto quanto Portaria ainda não têm operacionalidade integral. A esse
respeito, de acordo com o historiador Bruno Ferreira (2012, p. 12), per-
tencente ao povo Kaingang:

A escola foi forjada, e em boa dose ainda é, para transmitir conhecimentos,


e o faz a partir de preceitos e condições que estão longe de ser universais. A
ideia de que deve haver um modelo de ensino especializado para crianças,
materiais específicos e profissionais especializados e um espaço e tempo
para esse aprendizado são construções históricas que dizem respeito a uma
história particular, a ocidental. Ao transpor esse modelo às populações
com outras histórias e culturas, vemos que, por melhor que seja (se é que
dá pra dizer assim) a intenção e esforço, ele acontece como uma espécie de
resíduo: o de que essa escola está ligada a uma infância, cultura, conheci-
mento, aprendizado e disciplina típica da sociedade ocidental não indígena.

As percepções e palavras denunciam como as Instituições de Ensino,


em todos os níveis e modalidades, em pleno século XXI, ainda abordam
a temática sem levar em consideração, e em alguns casos desconhecendo
totalmente, a diferença entre a educação escolar indígena e a educação
indígena. Além disso, declara a não observância, por parte dos cursos de
Licenciaturas das Instituições de Ensino Superior, da necessidade espe-
cífica de materiais didáticos apropriados e, especialmente, de formação
pedagógica específica para professores indígenas e não indigenistas.
O olhar da formação oferecida pela Academia segue voltado para
a admiração e reverência ao externo, à Europa. O mesmo ocorre com as
fontes do Direito no Brasil. Conforme afirma Rodolfo Kusch (2007), é pre-
ciso “pensar e propor pensar sobre o ‘ser da América’ que comumente vive
119
épocas de crise; essa época, infelizmente, é uma constante da qual precisa-
mos nos livrar na forma de consciência do que se é e do que se passa aqui”.
É preciso avançarmos, como nos orienta Kusch, e fazermos a viagem que
nos leva às nossas raízes, uma viagem para dentro e para o fundo da nossa
América, a fim de colocarmos em prática e refletirmos sobre o discurso
bem escrito que nos guardam a Constituição Brasileira, os Decretos e as
Portarias deste país.

Dos Dados de Papel ao Papel das Pessoas:


uma escola indígena do RS

Nhü significa campo; Porã tudo aquilo que é bom, belo e bonito. Nhü
Porã é sentimento da palavra guarani que ressoa como memória viva na tem-
poralidade das paisagens de campos, florestas, montanhas, lagoas e mar no
litoral sul do Brasil. No presente etnográfico como Terra Indígena Mbyá-
-Guarani no município de Torres (RS), localiza-se às margens do KM7, da
BR-101, sendo exemplo de referência a galpões de madeira erguidos sobre
áreas indígenas adquiridas através de medidas compensatórias nas obras
de duplicação da rodovia, com investimentos públicos que não condizem
ao estado de conservação e a estrutura de suas instalações; e que refletem,
sobretudo, o descompasso da atenção que governos apresentam para a atual
situação da Educação Escolar Indígena no Estado do Rio Grande do Sul.
Como exemplo empírico de uma escola fundada por decreto esta-
dual no ano de 2002, os dados educacionais de Nhü Porã (INEP, 2018 apud
QEDU, 2018) permitem problematizar alguns dos horizontes que gesto-
res não indígenas - juruá – exercem sobre o chão dessas escolas. Ao ana-
lisar o acesso dos números de matrículas e das infraestruturas referentes
ao ano de 2018, para a Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental
(EEIEF) Nhü Porã, registram-se uma média de 11 alunos matriculados
na pré-escola, 25 alunos nos anos iniciais, entre o 1ª e 5ª ano, e 3 alunos
nos anos finais, entre 6º e 9º ano; sem registrar a presença constante de
crianças – enquanto número de matrícula – no atendimento da creche ou
na modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
De acordo com os mesmos registros, o público escolar não possui
acessibilidade adequada às dependências da escola referentes à inclusão
de portadores de deficiências. Seus sanitários, consequentemente, também
não possuem acessibilidade diferenciada. Mesmo possuindo cozinha am-
pla e refeitório para o preparo e oferecimento dos alimentos, a escola não
contém laboratório de informática, tampouco sala de ciências e biblioteca
como ambiente específico de leitura e estudo. Quadra de esportes inexiste,

120
como também espaços diferenciados para atendimentos especiais. Apenas
um computador é registrado para uso dos alunos, e dois para uso admi-
nistrativo, ambos com internet restrita. Na mesma sala da direção fica a
sala de trabalho dos professores – indígenas e não indígenas –, servindo
ao atendimento necessário das demandas especificas. Localizada numa re-
gião de abundancia de águas, seu abastecimento potável é por poço arte-
siano, alimentado por energia da rede pública, mas que têm como destino
final um inadequado esgotamento sem o registro de fossas. O lixo, segun-
do nos mesmos dados, é coletado periodicamente pela municipalidade.
Sob o olhar dos mais velhos e o entendimento pedagógico quase que
silencioso das mulheres, os empecilhos burocráticos oferecidos cotidiana-
mente pelos serviços estatais às escolas indígenas no Rio Grande do Sul,
observam entendimentos de completo desrespeito e que servem apenas
como mecanismos de desvalorização frente à autonomia das comunida-
des indígenas em seu entendimento espiritual e político do que entendem
como Educação. Quando a materialidade de recursos básicos para o fun-
cionamento mínimo de uma escola funcionar é escassa, quanta alegria nos
corações é necessária para transbordar o descaso com que cada criança
“matriculada” convive a cada dia, entre a pré-escola e as turmas de primei-
ro ao nono ano, na educação de jovens indígenas?

Considerações Finais

Através de seu legado, Kusch nos indaga a refletir sobre a inexistên-


cia de estilos uniformes de vida. Os povos indígenas, como detentores de
uma estrutura de pensamento milenar possuem seu próprio modo de ser,
estar e aprender. Direitos estes, que, em parte, são assegurados no plano
constitucional e infraconstitucional brasileiro. No entanto, percebe-se um
nítido distanciamento entre o que é posto no papel e a realidade das es-
colas indígenas. Dentre as problemáticas identificadas destacam-se a falta
de autonomia e de participação em certos espaços de gestão, os cortes de
investimentos na formação de professores indígenas e não indígenas e a
precariedade das estruturas oferecidas. A reprodução sistemática do saber
e fazer ocidental por parte do Estado pode ser refletida como fator limi-
tante ao avanço da proposta intercultural da etnoeducação.

121
Referências
BANIWA, Gersem. Territórios etnoeducacionais: um novo paradigma na
política educacional brasileira. [s.l.]: [s.n.], 2010. Disponível em: <http://
laced.etc.br/site/arquivos/Texto_Gersem_TEEs.pdf>.
BERGAMASCHI, Maria Aparecida; SOUSA, Fernanda Brabo. Territórios et-
noeducacionais: ressituando a educação escolar indígena no Brasil. Pro-Po-
sições [online]. 2015, vol.26, n.2, p.143-161.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
BRASIL. Decreto n.º 6.861 de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6861.htm>
FERREIRA, Bruno. Políticas públicas para uma educação escolar indígena
diferenciada. São Leopoldo: Oikos, 2012.
KUSCH, Rodolfo. El Pensamiento Indígena y Popular en América. In: Obras
Completas. Rosario: Fundación Ross, Tomo II, 2007.
INEP, 2018 apud QEDU. Sobre a Escola – Matrículas e Infraestrutura Nhu
Porã. Disponível em: <https://www.qedu.org.br/escola/263811-eeief-nhu-po-
ra/sobre>.

122
lA interculturAlidAd como sAber emergente y
trAnsversAl en lA educAción primAriA de lA
provinciA de córdobA, ArgentinA
Hebe Gargiulo1
Carlos Norry2

La interculturalidad es considerada un saber “transversal” dentro


del sistema educativo de la provincia de Córdoba entre otros 13 temas
y temáticas3. Desde la propuesta ministerial, los transversales suponen
la integración de diversos aprendizajes y contenidos que se consideran
emergentes, característicos de los escenarios actuales, y que por sus alcan-
ces, relevancia social y complejidad, requieren de un tratamiento integra-
do que permita desde los espacios educativos vincular temáticas, proble-
máticas y hechos sociales; de esta forma, se establece una relación directa
entre escuela y sociedad. Estos emergentes involucra la construcción de
prácticas y saberes complejos y relevantes, que vinculan diferentes espa-
cios curriculares y deben estar articulados en el Proyecto educativo ins-
titucional. Dada la particularidad de ser “transversales” a las diversas
áreas de conocimiento del curriculum, atraviesan también la vida escolar
y social. Según se postula en los documentos oficiales de la Secretaría de
Promoción de la Inclusión y Calidad Educativa (SPIyCE, 2016) la pre-
sencia de los transversales en el currículum “contribuye a la formación
integral de niños, adolescentes, jóvenes y adultos en los ámbitos del saber,
del hacer, del ser, del convivir y del emprender” (p.5) con el objetivo de dar
respuesta de forma crítica a las demandas, problemáticas y desafíos de la
sociedad en la que se hallan insertos.
Los contenidos transversales, diseñados en 2013, fueron a partir
de 2016 considerados emergentes en la educación, vinculándolos con el
concepto de emergencia en los sistemas complejos, como el proceso por

1 Mgtr. en Didáctica del Español como Lengua Extranjeras. Prof. en la Maestría en


Lenguajes e Interculturalidad, Facultad de Lenguas, Universidad Nacional de Córdoba,
Argentina.
2 Esp. en Recursos Humanos. Departamento de Administración, Facultad de Ciencias
Económicas, Universidad Nacional de Córdoba.
3 El trabajo se enmarca en el proyecto de investigación, categoría Formar, “Gestión esco-
lar e interculturalidad. Demandas de la comunidad educativa de escuelas municipales de Córdoba
ante el desafío de una población multicultural”, avalado y financiado por la Secretaría de
Ciencia y Técnica, Universidad Nacional de Córdoba 2018-2019.
123
el cual, a través de las interacciones entre los elementos individuales del
sistema, se producen resultados propios de las circunstancias y las carac-
terísticas de ese sistema producen; no es algo que pueda imponerse, sino
que necesita ser reconocido y entendido a partir de las situaciones propias
de cada época y de los contextos. Definir los transversales como saberes o
problemáticas emergentes es vincularlos con las actuales preocupaciones
y desafíos sociales, reconociendo la complejidad de la sociedad.
La interculturalidad, considerada como uno de los saberes emer-
gentes de la sociedad, se vincula en la propuesta ministerial a “pueblos
originarios, políticas lingüísticas, relaciones interétnicas, diálogo interreligio-
so, mediación intercultural, enseñanza de las religiones, entre otras” (p.2), pero
también se relaciona con otros transversales como derechos humanos y
convivencia, donde se explicita como temática la convivencia intercultural y
la cohesión social.
A partir del reconocimiento de la interculturalidad como uno de los
transversales en educación, nuestro interés se centra en indagar cómo se
trabaja el transversal “interculturalidad” en escuelas primarias y de nivel
inicial de la provincia de Córdoba, y qué se entiende por interculturali-
dad. En esta comunicación se informa de los resultados obtenidos en dos
instituciones seleccionadas de forma intencional, una escuela primaria y
una escuela de nivel inicial, insertas en barrios de con población migran-
te. A partir de entrevistas con directivos y docentes pudimos observar
dos diferentes modos de gestionar y accionar la interculturalidad en la
escuela. Mientras que en la escuela de nivel inicial, el posicionamiento de
los responsables de la gestión escolar perciben la interculturalidad desde
una perspectiva crítica (Turbino, 2005; Walsh 2010, 2012; Dietz, 2017) y
la enmarcan como parte del Proyecto Educativo Institucional (PEI), en
la escuela primaria se evidencian acciones vinculadas a la interculturali-
dad, desde una perspectiva relacional, generalmente diseñadas por insti-
tuciones externas que no forman parte de la comunidad educativa. De las
entrevistas se desprende asimismo diferencias conceptuales en cuanto a
al concepto de interculturalidad de quienes gestionan las instituciones,
hecho que tiene su correlato con las prácticas en cada una de ellas. Como
afirma Novaro (2016), “hay efectos muchas veces contradictorios y hasta
paradójicos de las políticas que se afirman inclusivas y de valoración de la
diversidad” (p.384).
En esta comunicación nos interesa dar cuenta de las acciones que
llevan a cabo cada una de las instituciones y cómo percibe la intercultu-
ralidad los responsables de la gestión educativa. A partir de esta primera
aproximación es nuestro interés ampliar la investigación a otros centros

124
educativos de forma que nos permita reconocer los sentidos de la inter-
culturalidad en la escuela con el fin, no solo de describir qué pasa, sino de
poder reconocer la interculturalidad como un emergente que interpele a
las instituciones y sus contextos.

Referencias
DIETZ, G. Interculturalidad. Una aproximación antropológica. En Perfiles
Educativos. Vol.39, N° 156, México abr./jun, (pp. 192-207), 2017.
NOVARO, G. ¿Desafíos interculturales o una interculturalidad desafiada? Expe-
riencias en escuelas con población migrante. En Temas de Educación, Vol. 21,
Núm. 2, p.381.390, 2016.
GOBIERNO DE CÓRDOBA - SPIyCE . Los transversales como dispositivos
de articulación de aprendizajes en la educación obligatoria y la modalidad.
Córdoba, Ministerio de Educación, Subsecretaria de Promoción de Igualdad y
Calidad Educativa, 2016.
TURBINO, Fidel. La interculturalidad crítica como proyecto ético-político.
Encuentro continental de educadores agustinos, Lima, enero 24-28, 2005.
http//oala.villanova.edu/ congresos/educación/lima-ponen-02.html.
WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. En Viaña,
Tapia y Walsh. Construyendo Interculturalidad Crítica. La Paz, Bolivia Institu-
to Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, p. 75-96, 2010.
WALSH, C. Interculturalidad crítica y (de)colonialidad. Ensayos desde Abya
Yala. Quito: Abya-Yala, 2012.

125
fAzeres educAtivos no estAr sendo
dA teKoá yvy poty
Jéferson Pereira Tanger1

Introdução

Estar com os Guarani, perceber e sentir suas manifestas diárias, en-


trar em diálogo com sua comunicação visual e corpórea, constituíram as
motivações iniciais para escrever sobre seus fazeres pedagógicos. O interes-
se, a afinidade e a curiosidade surgem já no contato inicial, mas é no fazer
educativo e na intensidade de seus pensamentos que busco o diálogo. Este
texto foi gerado como resultado de minhas aproximações com a cosmologia
e com o fazer educativo Guarani na aldeia Yvy Poty, localizada no bairro
de Douradilhos em Sertão Santana (RS), entre os anos de 2018 e 2019. A
princípio busco me aproximar dos Mbyá e de sua cosmologia, através da
percepção de três dimensões de seu pensamento no fazer diário: o dizer, a
reciprocidade e a temporalidade. Tendo como parâmetro duas noções filo-
sóficas presentes na obra de Rodolfo Kusch o “estar sendo” e o “acontecer”.
Na sequência apresento meu contato com a dinâmica comunicativa e edu-
cativa que se estabelece todas as manhãs a partir da roda de chimarrão. Em
seguida descreverei, de maneira breve, minhas percepções e as possíveis
relações entre os grafismos produzidos pelos Mbyá “mais jovens”, em ativi-
dades pedagógicas na aldeia e nas conversas ao amanhecer.

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida a partir da aproximação e do estar junto


dos Guarani nos espaços da Tekoá. Também realizei entrevista, conversas
e diálogos que buscaram a tradução de pessoas da aldeia sobre fenômenos
observados e vivenciados. Utilizei recursos áudios visuais como fotos e
vídeos. Concomitantemente realizei uma pesquisa bibliográfica. As visitas
à aldeia e as traduções foram registradas, através de uma densa descrição,
em meu caderno de campo. Este material escrito me serviu de inspiração
e para o registro de percepções relevante que foram fundamentais no mo-
mento da escrita.
1 Historiador, mestrando em Educação no PPGEDU da UFRGS, pela linha de pesqui-
sa: Educação, culturas e humanidades.
127
Resultados e discussões

As primeiras aproximações foram muito significativas para perce-


ber e sentir o modo de vida dos Mbyá. Caminhei com os Guarani e fiquei
atento à maneira como se comunicavam e as imagens geradas pelos mo-
vimentos cotidianos. Assisti e participei de atividades pedagogias onde os
indígenas expressaram seus saberes e maneiras de viver. As dimensões de
pensamento que me pus a focalizar me revelaram caminhos para sentir e
interagir com seus fazeres educativos. Percebi que o processo educativo
Guarani é indissociável em sua totalidade de pensamento, de vida, de de-
senvolvimento e da relação com a natureza (figura 1).

Figuras 1 e 2: Fazer pedagógico em contato com a natureza

Fonte: o autor (nov/2018)

128
Algumas imagens ficaram gravadas na minha memória: como o mo-
vimento dos corpos unidos de aproximadamente seis crianças, que rodea-
vam uma mulher adulta deitada no chão, por onde refletia a luminosidade
do sol. Seus corpos, em harmonia, estavam intimamente conectados à na-
tureza, pelo contato com a grama e pela energia emanada pelo astro. Em
outra oportunidade, como relatei em meu caderno de campo, avistei um
grupo de aproximadamente dez crianças e adolescentes que dialogavam
próximos a uma árvore. O som de suas vozes se confundia com o som do
silêncio que modelava a totalidade da comunicação e das percepções. Per-
cebi que se educavam e eram educados pela integralidade emanada pelas
almas, pela alternância de sons e silêncios e pela disposição dos grafismos
espalhados pelos espaços da aldeia. Mais tarde fui convidado a participar
de uma descida ao rio, localizado na parte baixa da aldeia. Ao caminhar
com os indígenas senti a reciprocidade e a temporalidade, em gestos e di-
zeres profundos, onde os Guarani se educam. A atividade na água é lúdica
e divertida (figura 02). Na volta, próximo à escola indígena, ao entardecer,
assisti à dança Guarani. Momentos criativos de retorno ao passado que se
faz presente e atualiza a cosmologia deste povo.

Figura 3: A dança circular e a relação com as dimensões de pensamento

Fonte: o autor (Nov/2018).

Quanto às dimensões de pensamento relacionadas ao acontecer edu-


cativo, como a dança e outras atividades cotidianas (figura 03), constatei
que presentificam o passado no estar sendo e moldam a educação milenar
Guarani, na integralidade sentipensada do cotidiano. Para Kusch:

Se trata del estar como algo anterior a ser y que tiene como significación
profunda el acontecer. En el estar se acontece, porque se esta en la expec-
tación de una possibilidad que se da en un ámbito pré- ontico, al margen
de cualquier necessidad de crear superestruturas a eso que acontece, antes,
por lo tanto, de la constituición de objetos (KUSCH, 1978, p. 227).
129
Para este autor o estar cotidiano dentro da cultura adquire profun-
do significado no acontecer. O momento vivido antecede a palavra expli-
cativa e gera saber antes das definições causualisticas, da racionalidade
como praticamos e entendemos. Os movimentos no estar acontecem de
maneira criativa e com uso da imaginação poética que constrói o presente.
Buscam assim, os elementos da educação individual e coletiva, bem como,
a criatividade e a força para viver o tempo que é um só. Desde as primeiras
aproximações senti que os Mbyá da Yvy Poty concedem bastante liberda-
de às crianças, nos espaços da aldeia. Fazendo com que se desenvolvam no
estar sendo consigo mesmo e com a coletividade nos acontecimentos vi-
vidos na reciprocidade, e também com a totalidade existencial de cuidado
mútuo. Na Tekoá Yvy Poty os indígenas se reúnem todas as manhãs em
um puxado de madeira, ao lado de uma casa grande (figura 04), onde vive
o cacique com sua família. Todos ficam no centro do diálogo onde falam
sobre política, temas que afetam a vida diária e sobre assuntos de sua cul-
tura. Neste espaço, onde as decisões são tomadas, também são revelados
os conteúdos dos sonhos e de acontecimentos, que evocam imagens do
passado compartilhado, no transcorrer da vida diária.

Figura 4: Casa Grande e as rodas de conversa matinais

Fonte: o autor (nov/2018).

Estes diálogos definem ações e decisões que gestam sabedorias re-


veladas. Ensinamentos que devem passar de geração a geração. Quan-
do alguém acaba de contar, de dizer, vai abrindo caminho para outro se
manifestar, com olhares e gestos. Então troca o conto, o dito sobre algo.
Geralmente uma história ou um mito que carrega e comunica um saber
atemporal, relacionado com os grafismos criados na escola e em outros
espaços, compondo um movimento de olhares e corpos que educam e são
educados pelo pensamento coletivizado. Para Kusch:

130
En segundo término dicha sobredeterminación señala la importancia que
el pensamento del grupo adquiere para comprender todo lo que se refiere
al mismo. Se trata de un pensamiento condicionado por el lugar, o sea que
hace referencia a un contexto firmemente estructurado mediante la inter-
sección de lo geográfico con lo cultural (2009, p. 253).

Este processo em sua totalidade educativa e integradora gera um


pensamento grupal que auxilia na compressão de situações que precisam
ser superadas, para promoverem o bem-estar do grupo. A dinâmica de diá-
logos ocorre no ritmo do acontecer, na relação com o território que ocupam
e com a espiritualidade tradicional, revelando saberes prazerosos e necessá-
rios. Constatei em conversas, em traduções feitas pelos Mbyá e em ativida-
des onde ajudei a produzir grafismos junto aos Guarani, que a simbologia
gráfica, espalhada pela mata e presente nas paredes da escola (figura 05),
comunica e educa. E também, que o processo pedagógico de desenhar e pin-
tar coletivamente tem o objetivo de atualizar a cosmologia e serve para que
o desenvolvimento e as características das crianças sejam observados. Sinto
que possuem um caráter educativo e celebrativo que convoca a reciprocida-
de de ações e pensamentos. A que está presente nestas imagens se relaciona
pedagogicamente com os saberes atualizados nas conversas diárias.

Figura 5: Pinturas educativas

Fonte: autor (nov/2018).

131
Percebi que a trilha, na parte alta da aldeia, é uma maneira de ensi-
nar e aprender para os Guarani desta Tekoá. Cada criança tem seu tempo
e suas reações respeitadas. Alguns nascem para praticar uma sabedoria,
outros para serem guerreiros e outros para serem professores, mas todos
devem praticar o modo de ser Guarani e devem ser respeitados. Constatei
que o comportamento durante as atividades são observados e expressam
as qualidades e as “fases de desenvolvimento”. Para os Guarani quando
alguma atividade importante é realizada na mata, como na produção des-
tes desenhos, as crianças que ficam afastadas ou assustadas estão mos-
trando respeito. Os que estão sentados e calmos demonstram coragem
para aprender e estão mais prontos para a lição daquela sabedoria, para a
apreensão imagética do mito. A trilha é como uma escola de desenvolvi-
mento. Lá é feito um trabalho educativo diário que está relacionado com
a escola da aldeia. Os traços e cores ativam o passado no presente através
da percepção de cada um. Ao mesmo tempo em que são observados ob-
servam. Sentem e pensam intuindo nesta totalidade de sensações e fazeres
gerados na reciprocidade.

Considerações finais

Portanto, pensar e vivenciar os fazeres educativos no estar sendo


Mbyá na Yvy Poty é um processo complexo que envolve sensibilidade,
percepções e disponibilidade de estar junto. Um exercício de atitudes e
pensamentos desprovido de concepções a priori. Procurei, através das di-
mensões de pensamento citadas, criar pontes de interlocução intercultu-
rais. A educação pela palavra coletiva e pela disposição gráfica, gerada em
atividades pedagógicas, emanam um saber no acontecer, que acredito pos-
sam nos revelar elementos para pensarmos uma pedagogia intercultural.

Referências
KUSCH, Rodolfo. Geocultura del Hombre Americano. Rosario-Provincia de
Santa Fé: Editorial Fundación Ross, 2009.
______. Esbozo de una Antropologia Filosófica Americana. Buenos Aires:
Ediciones Castañeda, 1978.

132
o “estAr sendo”
mbyA guArAni professor nA
construção dA educAção diferenciAdA no território do
litorAl norte do rio grAnde do sul
Josieli Silva1

Neste artigo apresento o diálogo entre os dados de pesquisa e con-


ceitos do pensamento de Rodolfo Kusch, como o “ser” e “estar”; “estar sen-
do” e “fagocitación”, dados que compõem a dissertação de Mestrado, apre-
sentada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. A pesquisa está baseada principalmente nas
vivências com as comunidades e rodas de conversa, enquanto assessoria
pedagógica e pesquisadora, principalmente nos encontros de Formação
Continuada entre os(as) indígenas professores(as), da 11ª Coordenadoria
Regional de Educação. Regional da Secretaria de Educação do Estado,
composta por 25 municípios, dentre esses sete com escolas indígenas e
nove Mbya professores contratados nos períodos de 2008 a 2017.
Os Mbya Guarani habitam o litoral do Rio Grande do Sul, estão
presentes em regiões do território paraguaio, boliviano, argentino e bra-
sileiro. Aqui no Brasil, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de
Janeiro, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Fazem parte do
grupo Tupi-Guarani e dividem-se em três subgrupos distintos: os Mbya,
Kaiowá e Nãndeva, segundo classificações linguísticas.
O trabalho tem como objetivo apontar alguns aspectos do “estar
sendo” Mbya professor nos movimentos político-pedagógicos realizados
como protagonistas na Educação Diferenciada em suas Aldeias. Conforme
perspectivas decoloniais fundamentadas em leituras realizadas nas obras
do filósofo Kusch e verificadas nos encontros de Formação Continuada
entre os indígenas professores.
Os encontros aqui mencionados aconteceram no período de 2016
a 2017, por demanda dos Mbya professores, visto que são contratos, sem
formação escolar específica, no intuito de pensar a construção de suas
escolas, muitas vezes no sentido literal da palavra. Esse movimento se dá
com a participação da comunidade, num grande círculo de conversas e
aconselhamentos dos anciãos e das lideranças indígenas.
Num pensar constante e cuidado minucioso, movem-se de forma cir-
cular e intercultural, transcendem expectativas das instituições governa-
mentais e fortalecem a educação tradicional e seus processos próprios de
1Mestra em Educação – PPGEDU/UFRGS. Professora da rede pública de Educação.
133
ensino-aprendizagem. Para compreender esse movimento, além das “vivên-
cias” nas aldeias, foram necessárias as leituras e os encontros acadêmicos.
O contato com pesquisadores do tema em questão e dos participan-
tes de pesquisa agregou significativos aprendizados para meu trabalho e
para a minha pesquisa. Dedico esse trabalho para narrar sobre a minha
aproximação com o pensamento de Kusch e apresentar as narrativas dos
Mbya professores sobre a educação diferenciada a partir do “estar sen-
do”. É importante ressaltar o papel dos(as) indígenas professores(as) na
interlocução entre a comunidade e o Estado, fortalecendo a educação tra-
dicional, estando a educação escolar integrada a esta cosmologia. Onde o
“estar” no mundo, os movimentos espirituais na constituição do sujeito
para a vida, tomam muito mais sentido do que a preparação para o “ser”
alguém ocidental, como é o esperado na educação ocidental e nos coloca
Kusch, em grande parte de sua obra.
Para tanto, a formação inicial e continuada específica para esses pro-
fissionais necessita ser o espaço de construção de políticas públicas em
educação; os(as) professores(as) indígenas são os principais agentes para a
construção dessas políticas, para uma educação escolar de qualidade, con-
forme as necessidades de cada comunidade e de acordo com o seu modo de
ser indígena e suas pedagogias próprias; é necessário proporcionar esses
momentos com recursos financeiros públicos e autonomia indígena, para
que esses possam definir a melhor forma de realização, quanto aos méto-
dos, aos locais, aos temas abordados, à dinâmica do tempo e à escolha de
convidados ou não.
Enfim, trabalhar e pesquisar a Educação Escolar Indígena exige
uma imersão nas Aldeias e aproximação à cosmologia, uma “escuta sensí-
vel”, além de bom senso na escolha de metodologias diferenciadas e espe-
cífica que permitam essa dinâmica.

Referências
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. Em: Obras Completas Tomo II. Editorial
Fundación Ross, 2009, p. 01-254.
KUSCH, Rodolfo. El Pensamiento Indígena y Popular en América. Em:
Obras Completas Tomo II. Editorial Fundación Ross, 2009, p. 255-546.
KUSCH, Rodolfo. Geocultura del Hombre Americano. Em: Obras Completas
Tomo III. Editorial Fundación Ross, 2009, p. 05-239.

134
educAção indígenA sob o ponto de vistA
de seus protAgonistAs

Juçara Benvenuti1
Maria Aparecida Bergamaschi2

Neste texto apresentamos o livro Educação Indígena sob o Ponto


de Vista de seus protagonistas que reúne trabalhos e produções do Curso
de Especialização em Educação Básica na Modalidade Educação de Jo-
vens e Adultos - PROEJA implementado pela Faculdade de Educação da
UFRGS3. Este curso articulou-se como uma proposta diferenciada para
indígenas e nasceu da constatação da distância entre a formação não indí-
gena e as necessidades de educação escolar diferenciada indígena, a qual
gerava incompreensões e conflitos centrados nas diferenças cosmológicas
de sociedades distintas.
O público que frequentou o curso de pós-graduação lato sensu – Espe-
cialização em PROEJA índígena foi constituído por estudantes Kaingang,
Guarani e Xokcleng, povos que constituem a população indígena no Rio
Grande do Sul, bem como lideranças, gestores e mediadores das políticas
de educação escolar e saúde indígena. Foi planejado visando à formação
de profissionais com capacidade para atuar na elaboração de estratégias e
na previsão de condições necessárias para processos de educação escolar
profissional e básica, específica e diferenciada, articulando aos saberes e
aos modos de vida da tradição indígena e os saberes da academia.
A concepção do curso seguiu, por um lado, o modelo geral dos cur-
sos de Especialização PROEJA e, por outro, abriu a possibilidade para
componentes curriculares – conteúdos e metodologia – que contemplas-
sem necessariamente os modos de vida e os saberes da tradição ameríndia,
em especial do povo Kaingang, pois foi o povo que esteve em maior núme-
ro no curso, e elegeu como premissa o diálogo dos conhecimentos e sabe-
res tradicionais indígenas e os conhecimentos e saberes acadêmicos. Nesta

1 Pós-Doutora em Educação pela UFRGS. Doutora em Letras/UFRGS. Professora de


EJA do Colégio de Aplicação/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Pós-Doutora em Educação pela UNICAMP. Doutora e Mestre em Educação,
Licenciada em História. Professora na Faculdade de Educação/Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
3 O livro foi organizado por três professoras da UFRGS: as duas que escrevem este texto
a professora Dra. Tania Beatriz Ivaszko Marques.
135
perspectiva, o formato desenhado para o curso estabeleceu módulos em
que as questões indígenas pudessem ser tratadas em suas especificidades,
com uma base curricular para favorecer a interlocução dos conhecimentos
– acadêmicos e tradicionais, buscando uma abordagem interdisciplinar;
tempos e espaços de trocas centralizando as questões indígenas. Para dar
conta desta articulação de saberes, foram planejadas aulas compartilha-
das, com educadores da tradição indígena e professores da universidade.
Em relação à organização da carga horária, o curso foi realizado
conforme a pedagogia da alternância4, sendo constituído por oito sema-
nas de estudos presenciais na Universidade com mais alguns encontros
organizados como seminários de pesquisa, com a duração de um dia, al-
ternados com períodos na comunidade de origem, cuja vivência fomenta
e alimenta a formação do estudante no que tange à história e à cultura de
seu povo, e em especial foram desafiados a pesquisar junto aos espaços
educativos de cada Terra Indígena.
Cada um dos módulos constituiu um movimento pedagógico visan-
do a colocar em prática a concepção que priorizou o diálogo com os sa-
beres e conhecimentos ameríndios. Portanto, inicialmente se propôs que
cada estudante fizesse uma imersão em sua história, individual e coletiva.
Ao mesmo tempo em que foi proposta a elaboração de um memorial, a fim
de registrar as histórias de vida e trajetórias educativas vinculadas às ex-
pressões simbólicas e às culturas indígenas, também foram desenvolvidos
estudos sobre os conhecimentos, saberes e formas educativas dos povos
indígenas na América, em termos mitológicos, históricos e etnográficos.
Ao final das aulas presenciais iniciaram os trabalhos de conclusão,
sendo incentivados temas que visavam a aproximar as propostas escolares
dos saberes e conhecimentos indígenas.
A docência compartilhada favoreceu o diálogo e as trocas, pois os
componentes curriculares foram ministrados por professores vinculados
à universidade5 e professores do povo Kaingang, ou seja, sábios e intelec-

4 A Pedagogia da Alternância é um processo de formação que acontece em espaços dife-


renciados e alternados. O primeiro é a comunidade de origem e o segundo, a academia,
em que o estudante partilha os diversos saberes que possui com outros atores e reflete
sobre eles a partir de propostas acadêmicas.
5 Participaram do curso professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
Educação, Antropologia e Letras e dois professores convidados, da Universidade Federal
de Pelotas e da Universidade de Santa Cruz do Sul, ambos com profundo conhecimento
dos modos de vida dos povos indígenas. Também participou de forma intensa e proposi-
tiva um antropólogo que é gestor do setor de Educação Indígena da Secretaria de Estado
da Educação do Rio Grande do Sul.
136
tuais indígenas. Entre estes, destacou-se a participação dos estudantes já
formados nas edições anteriores da Especialização PROEJA, mestrandos
dos Programas de Pós-Graduação em Educação e História da UFRGS,
bem como uma professora, mestre na área de legislação e direitos indíge-
nas, além de sábios da tradição Kaingang. Esse foi um dos aspectos mais
importantes do curso, que propiciou de forma mais intensa as interapren-
dizagens: assim como ocorria a formação dos alunos do curso, formava-se
um grupo de professores (da academia e das comunidades indígenas) por
meio da docência compartilhada.
Em muitas reuniões e encontros de planejamento e avaliação, o an-
damento do curso foi pensado conjuntamente, confluindo e confrontando
olhares acadêmicos e olhares da tradição ameríndia. A formação como um
todo teve caráter multidisciplinar, abrangendo as áreas de conhecimento
de ciências sociais, história, antropologia, psicologia, educação, letras e
direito, bem como conhecimentos tradicionais.
A experiência coloca algumas questões importantes para pensar a
formação de profissionais indígenas. O que podemos destacar que apren-
demos com o curso?
Em primeiro lugar, se, como os povos originários, almejamos uma es-
cola intercultural, situada na fronteira, na região que aproxima dois mundos,
dois modos de vida com fortes diferenças, mas com humanas identificações,
como formar professores indígenas apenas pelo viés da academia? Acredita-
mos que a primeira conquista diz respeito ao curso específico e diferenciado,
embora ainda com o predomínio de uma metodologia clássica, que, mesmo
reconhecendo os saberes da tradição ameríndia, dialogando com eles, valori-
zando a oralidade, tem a prática acadêmica centrada na escrita.
Em segundo lugar, a importância da docência compartilhada entre
professores indígenas e não indígenas, uma vez que ambos os segmentos
atuam mediando e intermediando saberes indígenas e acadêmicos, possi-
bilitando assim a dupla formação, visto que, ao partilhar o espaço da do-
cência, a aprendizagem é recíproca. E não podemos deixar de mencionar,
nessa prática, o reconhecimento, por parte da academia, dos saberes indí-
genas e de seus educadores, responsáveis pela continuidade ameríndia, de
seus saberes, de sua cultura.

O que podemos destacar que aprendemos com o livro?

Os trabalhos de conclusão transformados em artigos revelam as par-


cerias entre os estudantes indígenas e não indígenas, os docentes do curso,
e, sobretudo, o apoio de pesquisadores de outras instituições que trabalham

137
com a temática indígena e que se dispuseram a colaborar com esta produção
que, sem dúvida, constitui um marco histórico na educação brasileira.
Os 22 artigos apresentados nos permitem conhecer muitos costu-
mes, tradições, conhecimentos próprios e grande parte da cosmovisão dos
povos originários, nos permitindo uma aproximação com sua cultura, que,
como afirma Canclini (2007), são hoje os povos mais preparados para o
diálogo. Também vai ao encontro das ideias de Rodolfo Kusch (2009), que
afirma a continuidade de um passado americano no presente, a crença
em um pensamento indígena que permite o pensar desde América como
uma perspectiva para descolonizar. Diz o autor que não se trata de negar
o pensamento ocidental, mas de afirmar que há também um pensamento
local, um pensamento que decorre de uma geocultura. Portanto, se trata
de afirmar também saberes e conhecimentos originários que vigoram na
contemporaneidade, como os apresentados neste livro.
Importante ressaltar o cuidado que tivemos com os textos dos es-
critores. Para manter as características dos textos orais e não mudar a
significação atribuída ao texto, mantivemos sempre que possível as cons-
truções frasais originais. Então, é por cuidar de manter essa característi-
ca, que mesmo passando os textos por correção gramatical, mantêm-se
algumas repetições. Esse fato enfatiza a oralidade como o mais importante
meio de transmissão de saberes dos povos originários e enquadra a escola
como um recurso que agregaria os conhecimentos dos brancos, que dessa
forma agiria como um elemento facilitador do trânsito do indígena entre
as duas sociedades.
A escola, portanto, necessita ser pensada, administrada, organiza-
da pela comunidade em que está inserida, sustentada filosoficamente por
seus valores, mas a colaboração da sociedade envolvente é igualmente ne-
cessária. O diálogo intercultural é essencial para que isso se concretize,
apesar de parecer uma utopia.
O grande educador Paulo Freire ensina que o professor pode espe-
rar a concretização de seus sonhos utópicos, mas para que isso realmente
aconteça tem que desenvolver uma práxis libertadora, baseada no diálogo.
Para Freire, a educação que respeita “crenças, valores, sonhos, desejos,
aspirações, medos, ansiedades, vontades e possibilidade de saber, fragili-
dade e grandeza humanas” (FREIRE, 2000, p. 15) aponta para o conceito
do “inédito-viável” (FREIRE, 1976, p. 107) que compreende o germe das
transformações possíveis voltadas para um futuro mais humano e ético.
Ao mesmo tempo em que se apresentam os depoimentos dos pro-
fessores mostrando seus esforços em conciliar saberes teóricos e práticos,
ciência e vivência, fazemos questão de mostrar que não é necessário deixar

138
de lado um conhecimento ancestral para agregar um novo conhecimento
acadêmico. Isto nos coloca na situação de equilíbrio entre o coloquial e o
formal, entre a oralidade típica do povo indígena e a necessidade de regis-
tro escrito da academia.
Temos a valorização da fala dos mais velhos, dos sábios da aldeia,
depoimentos como: “a minha base educacional advém do universo indí-
gena, e o que aprendi na Universidade foi para adquirir somente o que
interessa para o meu povo”, estabelecendo a seguinte metáfora: adquirir
conhecimento é como pescar um peixe e comê-lo: “deveria comer somente
a carne e a espinha eu deixaria de lado”.

Referências

CANCLINI, Nestor García. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de


Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1976.

FREIRE, Ana Maria de Araújo. Utopia e democracia: os inéditos viáveis na edu-


cação cidadã. In AZEVEDO, Clóvis de; et al. (Org.). Utopia e democracia na
educação cidadã. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS/Secretaria
Municipal de Educação/Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2000.

KUSCH, Rodolfo. Obras completas. Córdoba, AR: Fundación A. Ross, 2009.

139
trAjetos dA práticA interculturAl no diálogo
com AgroecologistAs de mAquiné
Leonardo Castro Dorneles1

Sobre a mesa nua de canjerana repousam uma pequena cesta com


frutas e uma cumbuca de amendoim torrado. O breve e suave trajeto do
vapor do chimarrão toca o rosto cansado e curioso. As mãos doloridas
da lida agrícola apertam a cuia quente, aconchegante. São marcas de um
novo caminho, ainda desconhecido e permeado pela esperança de germi-
nar autonomia. O corpo inteiro mudou, dor e força se misturam durante
a permanência no Vale da Água Branca. Os sons dos diálogos sobre os
assuntos da pauta e a visão das anotações na ata da reunião dos agroe-
cologistas dos fundões da cidade de Maquiné são interrompidos pela fala
do Luciano: “Tem que colaborar com o grupo”. Esta frase marcou minha
primeira participação na reunião bimestral dos agricultores do grupo de
Maquiné pertencentes ao Organismo Participativo de Avaliação da Con-
formidade (OPAC Litoral Norte).

*****

As questões deste texto foram gestadas na caminhada entre o grupo


de agroecologia de Maquiné, e o Programa de Pós-Gradução da Faculda-
de de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e analisa-
rá alguns elementos da estruturação e desenvolvimento da busca de uma
prática intercultural. Trataremos de tecer breves considerações suscita-
das nos encontros que ocorreram nos últimos dois anos, relacionando-as
com as noções de estar e comunidade de Rodolfo Kusch.
Kusch, na obra Esboço de uma Antropologia Filosófica Americana
intui as noções de estar e de comunidade a partir do diálogo com pensa-
doras populares, trazendo uma perspectiva de escuta e reconhecimento da
fertilidade que carrega o pensamento popular americano. O autor desen-
volve sua crítica ao pensamento ocidental que separa sujeito pensante do
sujeito cultural, buscando uma essência determinada e fixa. Este pensa-
mento garante a segurança sobre suas convicções, tornando o mundo da
vida previsível e passível de dominação. Esta forma de pensar e proceder
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
141
é nomeada de ser, e separa sujeito pensante e sujeito cultural. O estar, ao
contrário, é dinâmico, pronto para movimentos vitais do cotidiano e aberto
às constantes mudanças que constituem o mundo da vida. Esta forma de
atuar possibilita o diálogo com outras culturas e a relação respeitosa com
a natureza. Segundo Carlos Cullen2, esse movimento é centrífugo, e um de
seus aspectos é não buscar desesperadamente o centro – como ocorre no
pensamento ocidental -, mas amplia suas relações e diálogos, e é uma ação
natural do homem americano. Há no homem americano uma incidência
originária, que vai do pão ao divino, e esta fome move o pensamento. Os
acertos fundantes ou símbolos são elementos de uma lógica lúdica, pois o
trajeto da indigência originária é constituído de acertos, ao contrário da
lógica de superação e necessidade do pensamento ocidental. Nesse senti-
do, os acertos fundantes são opostos aos conceitos fixos. O pensamento
popular americano é caracterizado pela contingência, impossibilitando o
desespero, já que não busca um fundamento sólido, seguro e igual a si
mesmo, ou essência. O pensamento americano é arraigado, gravita e pesa
no solo, portanto não separa home pensante e homem cultural, mas afir-
ma o contexto como elemento do próprio pensamento (informação ver-
bal)3. A partir da noção de estar, Kusch conceitua comunidade como “(...)
a reunião para encontrar através do diálogo o verbo que brinde o sentido,
o ver mais longe do Popul-Vuh.” (KUSCH, 1978, p. 96), e assim nos faz
pensar na profundidade que carrega essa noção quando nos aproximamos
do pensamento popular americano.
Entendo até o momento, que Kusch desenvolve uma prática intercul-
tural ao dialogar com seus interlocutores, reconhecendo nestes um pensa-
mento legítimo, potente e fértil. Ao criticar a abordagem convencional da
antropologia que diz, desde a cidade imperial, o que ocorre com o colono,
como reformação de um modelo desajustado, o autor propõe um cambio no
qual há de verificar como os colonos e indígenas participam e compõem o
humano. Kusch propõe uma fenomenologia do pensamento popular e pos-
tula que a plenitude do humano se dá também em uma aldeia quéchua, e
no subúrbio de Buenos Aires, e não somente na capital do império. Assim,
afirma a necessidade de “(...) assumir desde um princípio o pensamento po-
pular em toda sua profundidade como proposta para um pensar” (KUSCH,
1978, p. 102). A questão que surge neste trajeto do pensamento de Kusch
é: como instrumentar uma análise filosófica que supere a lógica imperial? E
a resposta é pensar o humano desde a profunda interioridade do problema,

2 Filósofo argentino estudioso da obra de Rodolfo Kusch.


3 Argumentos apresentados em palestra, na primeira jornada sobre Rodolfo Kusch, na
Universidade Nacional Três de Fevereiro, em julho de 2012.
142
e para isso é necessário “(...) recuperar o humano para que sirva de ponto
de partida” (KUSCH, 1978, p. 103), e descobrir o universal que se dá no
particular e empírico de um ritual. Trata-se de “(...) um descobrimento do
humano a partir de seu próprio acontecer” (KUSCH, 1978, p. 103).
Partindo das noções kuschianas apresentadas acima, e com a limi-
tação das linhas deste artigo e do pouco tempo de convívio com o grupo
– somente nas reuniões -, farei duas considerações acerca da busca da prá-
tica intercultural como participante do grupo de agroecologistas citado.
A primeira questão é o dilema vivido pelo grupo de expandir o be-
neficiamento dos alimentos certificados - orgânicos e, portanto, livres da
utilização de agrotóxicos - através de uma agroindústria, ou a permanência
de um trabalho restrito a família, com venda informal dos processados e do
alimento in natura. A primeira alternativa necessita de convívio intenso com
os componentes do grupo, uma maior burocracia, e mais tempo de trabalho,
e sobre tudo, uma maior proximidade com a perspectiva industrial. Nesse
aspecto noto a busca do grupo por uma ação que olhe para o futuro e te-
nha sentido no fazer cotidiano. Assim, entendo que a noção de comunidade
apresentada por Kusch vai ao encontro da dinâmica do grupo enquanto
busca, através do diálogo, de um sentido para o que fazem, pois há uma bus-
ca de ações que constituam um contexto que preserve e gere o sentido do
fazer agroecológico, e que traga melhorias para vida dos produtores.
A segunda reflexão é a aproximação de uma produção baseada na
agrofloresta que preserve o ganho necessário para o sustento. Nesse âmbito
podemos fazer uma analogia com o ser e o estar kuschianos. A agricultura
baseada nas noções europeias é marcada pelo plantio em canteiros com ter-
ra revirada, traços da monocultura, utilização de insumos adequados para
produção orgânica, marcado pela falta, e necessidade de nutrir a terra com
elementos externos. Esta se aproxima de elementos do ser. A agrofloresta,
baseada na abundância e diversidade de alimentos que são cultivados a par-
tir da imitação da mata, extrativismo e outros elementos que se aproximam
da noção de estar, sendo contextualizado, sobretudo por ser uma região de
mata atlântica e marcada pela sabedoria popular e indígena.
Assim, a prática intercultural em construção revela a necessidade
da escuta atenta, da convivência com antigos agricultores que narram
suas trajetórias de explorados, de trocas sobre as formas de comerciali-
zação dos produtos, bem como o fortalecimento de práticas quer rejeitam
e combatem a exploração dos agricultores e legitimam e reconhecem o
pensamento popular como portador de uma dignidade inviolável.

143
Referências
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de Una Antropologia Filosófica Americana. Bue-
nos Aires: Ediciones Castañeda, 1978.
______. América Profunda. Buenos Aires: Biblos, 1999.

144
A educAção dAs relAções etnicorrAciAis como método de
conHecer e vAlorizAr novAs formAs de conHecimento

Lucas Giacomini Pesce

A sociedade brasileira ao longo de seu percurso histórico foi molda-


da através de eventos que demarcaram profundamente a verticalidade das
relações de poder dentro das instituições sociais, orientando a criação de
um imaginário social que se expressa em uma realidade em que até os dias
atuais percebem-se traços muito bem demarcados da herança de um co-
lonialismo recente que ainda se reconhece na relação dos cidadãos desses
territórios marcados como subalternos com a própria identidade. É par-
tindo dessa percepção de um processo de colonialismo cultural que vários
autores europeus através das Ciências Sociais já se dedicaram a analisar
sobre as formas que essa dinâmica de colonização contínua se estabelece
na organização social dessas regiões. Dentre as teorias que foram con-
sagradas no decorrer dos anos se percebe que várias tratam das formas
como as relações institucionais sistematizam-se nesses países colonizados
como instrumentos de manutenção dessa dominância de classe, orientan-
do a vida e a percepção dos sujeitos sobre seus papeis na sociedade.
Logo no início do século XX na Europa já eram discutidas as in-
fluências das instituições que construíam o cotidiano das comunidades
em orientar os sujeitos de forma coletiva, como a justiça, a escola, a po-
lítica, pensadores como Antônio Gramsci (1975) já reconheciam a escola
como o principal instrumento de orientação de identidades, defendendo
em suas teorias como sendo impossível se separar a educação da política,
sendo nas escolas os terrenos mais férteis para a distribuição ideológica
por serem os locais já consagrados na cultura ocidental como legitimo
espaço de formação de conhecimento. As reflexões de Gramsci acerca da
estrutura e do papel da educação na sociedade refere-se muito mais ao
sistema de produção dominante do que necessariamente a um sistema de
imposição cultural, pois reconhece que a instrumentalização das institui-
ções é a priori afim de garantir a permanência dos interesses dominantes
dos poderosos do sistema capitalista. Uma análise mais focada no dialo-
go intercultural dentro das escolas é oferecida por Bourdieu (1970) em
seus estudos sobre a reprodução não apenas dos saberes dominantes, mas
dos costumes e gostos das camadas sociais mais altas como sendo ideais,
expondo a construção da verticalidade dentro do ambiente escolar mais

145
centrada nas dinâmicas da tradição, do estilo de vida, da origem de classe
social, da proximidade ou afastamento com os meios de produção e das
riquezas, segundo o autor essa é a principal função da instituição escolar
tradicional: garantir a manutenção dos interesses dominantes através da
sistematização institucional dos conhecimentos e costumes de forma hie-
rárquica, deixando claro para a sociedade o que seriam hábitos apropria-
dos para a civilidade e o que não seria digno de ser prestigiado. É a partir
dessa lógica que a sociologia compreende as construções das violências no
cotidiano da sociedade, como que esse sistema de verticalização orienta
o que se chama de ‘campo simbólico’ e resulta em cotidianas agressões a
indivíduos e a setores inteiros da comunidade.
Na formação da América Latina, mais especificamente do Brasil,
esse sistema de violência simbólica tem suas relações diretas com nosso
passado colonial, a sociedade brasileira vive uma realidade que denuncia
através das estatísticas atuais seus séculos de exploração escrava de in-
dígenas e negros, os índices de 2018 que apontam que a população mais
pobre do país e composta 78% de negros deflagra que a grande desigual-
dade brasileira está vinculada a origem racial, resultado dos processos de
violência iniciados no período das colonizações mas que perdura no ima-
ginário social até hoje devido a um sistema de colonização mais profundo,
uma colonização cultural que durante a história foi tão sistematizada em
nossa dinâmica social cotidiana que é esse sistema colonialista que até
hoje estrutura nossas instituições.
Em 2003 foi sancionada a lei 10.639 que estabelece a obrigatorie-
dade do ensino de ‘cultura e história africana’ dentro das disciplinas que
já fazem parte do currículo das escolas, mais tarde em 2008 essa lei foi
ampliada pela lei 11.645 que acrescentou ‘história e cultura indígena’ no
texto. Ao perceber as tendências eurocêntricas que são intrínsecas a ins-
tituição da escola tradicional a presença de uma lei que preveja a obriga-
toriedade do ensino dessas outras histórias que ao mesmo tempo que se
fazem tão presentes no cotidiano da sociedade são invisibilizadas quando
buscam ocupar esses espaços institucionais é importante para provocar
pelo menos o início de uma ruptura com as dinâmicas etnocêntricas dos
saberes reproduzidos nas escolas. Em meus estudos no curso de Ciên-
cias Sociais sobre as diretrizes curriculares nas escolas públicas de Porto
Alegre e nas atividades que exerço no Colégio de Aplicação da UFRGS
percebi que a obrigatoriedade imposta pela lei 11.645 ainda é insuficiente
para se desconstruir o distanciamento que se estabeleceu entre o universo
dos saberes escolares com os saberes dessas outras culturas dentro dos
moldes da escola padrão, ainda que tenha se dado mais espaço dentro das

146
salas de aula para discussão de assuntos que abordem a história africana
e cultura dos povos indígenas a escola tradicional ainda se mostra inca-
paz de apresentar esses conhecimentos de forma horizontal, pois todo o
processo de formação de conhecimento que se consagrou dentro dessas
instituições de ensino e que até hoje é o procurado e reproduzido é fun-
damentalmente eurocentrado, que encontra valor intelectual só naquilo
que dialoga diretamente com o método científico e fazendo com que essas
histórias que antes eram invisibilizadas dentro das escolas agora ocupem
algum espaço mas ainda exercendo um certo nível de inferioridade, como
se fossem menos aptas ao conhecimento, menos desenvolvidas em seus
pensamentos acerca da criação do saber e, portanto, acabaram por subme-
terem-se ao desenvolvimentismo do colonizador.
O desafio de quem tenta se inserir nessa dinâmica escolar com o
objetivo de promover a educação das relações etnicorraciais de forma
complexa e intercultural é justamente saber reconhecer e amenizar os
obstáculos do etnocentrismo que é presente a todo o momento dentro das
escolas. Em 2017 quando iniciei trabalhos com esses interesses no Colé-
gio de Aplicação juntamente com a professora Tanise Müller o primeiro
e mais evidente obstáculo que se percebeu foi a total ausência de repre-
sentatividade de outras culturas dentro da escola, pois o colégio, assim
como a grande maioria das escolas, apresenta um número extremamente
reduzido de estudantes negros e nenhum professor negro integra o corpo
docente do colégio. Buscando proporcionar uma aproximação que clara-
mente faltava no ambiente escolar recorremos ao projeto das saídas de
campo em parceria com a Tekoá Guarani Mbya Pindó Mirim de Itapuã,
com o quilombo do Areal da Baronesa, o Quilombo dos Alpes, o percurso
dos Territórios Negros em Porto Alegre, que foi extinto pela prefeitura
no início de 2017. A ideia de se deslocar até esses lugares não é apenas
para despertar um maior interesse nos alunos, também é importante para
reforçar a ideia de que devemos entender que não é apenas dentro de um
colégio que se constrói conhecimento, estando em contato com essas dife-
rentes realidades e enxergando empiricamente como essas culturas e tra-
dições permanecem vivas e presentes em nossa comunidade os estudantes
se afastam da percepção que é construída isolada dentro dos muros da
escola, aonde eles estudam de forma distante como se aquilo não perten-
cesse de fato a eles, enquanto através da valorização e do descobrimento
cada vez mais aprofundado dessas identidades podemos iniciar um traba-
lho de construção de uma educação intercultural que de fato represente
dentro do espaço escolar de forma horizontal as diferentes formas de ex-
pressão da diversidade humana. Além do deslocamento até esses locais

147
tradicionais fora do colégio também é muito importante buscar ocupar
cada vez mais o espaço escolar com essas referências culturais outrora
invisibilizadas, durante esses anos foi feito um trabalho com os alunos do
quarto ano dos anos iniciais que buscava também estudar as origens da
nossa identidade assim como as origens dos nossos conhecimentos, muito
foi questionado sobre o que seria ciência e o que seria mitologia, sempre
tendo como plano de fundo a educação das relações etnicorraciais. Em
diversas aulas foi discutido sobre o que um saber precisava atingir para
ser considerado ciência e foi através de exposições sobre as civilizações
Americanas do período pré-colonial, Incas, Astecas, Mayas, e reflexões
sobre mitologia indígena e africana que discutimos sobre as tecnologias e
saberes que esses povos tinham, os motivos de não sabermos mais sobre
as suas histórias, e porque nossa sociedade não enxerga os saberes dessas
culturas como científicos. Os estudantes do quarto ano construíram um
projeto de iniciação cientifica que busca exatamente analisar os conheci-
mentos dessas culturas que foram marginalizados pela história, mas que
de certa forma estão presentes em nossas vidas todos os dias, como a rela-
ção com a natureza, a alimentação, os olhares sobre os planetas e estrelas,
entre outras fontes de saber que já faziam parte da sociedade das Améri-
cas antes da chegada dos europeus.
Durante o desenvolvimento desse projeto pude perceber o quão en-
riquecedor poderia ser a descolonização do conhecimento como já estu-
dado pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano(1998) e também a descolo-
nização do currículo escolar, a partir do momento em que passamos a nos
relacionar com o conhecimento de forma menos etnocentrada se estabele-
ceu de forma quase que orgânica um espaço muito mais facilitador para a
interdisciplinaridade na abordagem dos assuntos, tanto durante as aulas
como nas produções feitas pelos estudantes, traçando paralelos entre his-
tória, religião, ciências, línguas, toda uma nova forma de se movimentar
os próprios saberes que talvez não tivesse sido tão bem aproveitada se
permanecêssemos nos métodos moldados pelo padrão de escola ocidental.
Esses movimentos iniciais de ruptura com os vínculos coloniais es-
tabelecidos com o norte são fundamentais para uma compreensão mais
aprofundada da realidade da América Latina, como foi estudado por Ro-
dolfo Kusch(2000) , ao perceber a necessidade de uma nova epistemologia,
uma visão do mundo a partir dos olhares latino-americanos, ou seja, uma
forma de se desestruturar a noção sistemática de saberes eurocentrados
reconhecendo-os como como inadequados para se refletir realmente sobre
o continente americano, fica como responsabilidade de quem objetiva a
construção cada vez maior do espaço das discussões da educação das rela-

148
ções etnicorraciais reformar gradualmente, com potencial revolucionário,
os espaços já legitimados pelas instituições ocidentais como territórios
de formação de conhecimento, abrindo os muros das escolas a serviço da
sociedade e de um futuro menos violento.

Referências
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1992.
GRAMSCI, A. Quaderni del carcere, Vol. 1, 1975.
KUSCH, R. Obras Completas. Tomo II. Córdoba, Argentina: Editorial Funda-
ción Ross, 2000.
QUIJANO, A. Colonialidad, Poder, Cultura y Conocimiento en América La-
tina. In: Anuario Mariateguiano, 1998.

149
Aprendiendo A HAcer investigAción juntos: los procesos
de trAnsmisión de prácticAs comunicAtivAs bilingües
guArAní-cAstellAno en unA escuelA de fAmiliA
AgrícolA de corrientes, ArgentinA
Lucrecia Zárate1
Tamara Alegre2

Introducción

El objetivo general de éste estudio es caracterizar sociolingüística-


mente la EFA “Ñande Roga” I-36 a partir de una investigación en colabo-
ración con estudiantes y profesores sobre la conformación de los reperto-
rios lingüísticos y las ideologías lingüísticas que organizan los procesos
de transmisión y las prácticas comunicativas bilingües en dicho contexto.
La Escuela de Familia Agrícola (EFA) Ñande Roga I-36 es una es-
cuela secundaria rural con un sistema de alternancia. Esto significa que
los estudiantes están durante una quincena en la escuela –modalidad de
internado- y una quincena en sus casas. La escuela está ubicada en la
Colonia San Antonio, tercera sección del Departamento de San Miguel,
sobre ruta nacional N° 118, a 160 kilómetros de la Capital correntina. En
1987 se funda como primera EFA de la provincia de Corrientes y desde
el año 2015 ofrece también una formación técnica agropecuaria que se
concreta en dos niveles: Ciclo Básico (1°, 2° 3°) y Ciclo Superior (4°, 5°,
6° y 7°). Actualmente recibe a 287 estudiantes entre 12 y 18 años de edad,
provenientes de las zonas rurales de los departamentos de San Miguel,
General Paz y Concepción del Yaguareté Corá.
Entre los estudios precedentes tenemos el de Gandulfo (2007) quien
plantea el discurso de la prohibición del guaraní como una ideología lin-
güística organizadora de los usos, sentidos y significaciones que los ha-
blantes atribuyen a las lenguas en detrimento del uso de la lengua nativa.
En cuanto a los referentes teóricos-conceptuales que sustentan el
estudio, coincidimos con Lüdi y Py (2009) respecto a una definición fun-
cional del bilingüismo, con la cual entendemos que cada individuo que en
forma habitual utilice dos (o más) lenguas y que sea capaz de cambiar de
una lengua a la otra sin mayor dificultad, es bilingüe o plurilingüe (Lüdi &

1 Profesora de Filosofía. Escuela de Familia Agrícola “Ñande Róga” I-36, del departa-
mento de San Miguel, Corrientes-Argentina.
2 Profesora en Ciencias de la Educación. Becaria doctoral UNNE-CONICET.
151
Py, 2003). También compartimos con estos autores la idea sobre las ven-
tajas de reemplazar la noción clásica de competencia por la de repertorio
lingüístico (Gumperz, 1972) ya que esta noción presupone la existencia de
un sujeto libre y activo que ha acumulado un repertorio de recursos y que
activa este repertorio de acuerdo a su necesidad, conocimiento o voluntad,
modificándolos o combinándolos, si resultara necesario.

Objetivos

En esta oportunidad, presentamos los primeros resultados sobre


los procesos de transmisión de las prácticas comunicativas bilingües
guaraní - castellano en las familias de los estudiantes. Ellos mismos
indagaron al interior de sus familias sobre los procesos de transmisión
intergeneracional de las prácticas comunicativas bilingües, focalizando
en la transmisión de generación en generación y en las situaciones ac-
tuales de intercambio bilingües.

Materiales y Métodos

En el año 2017 iniciamos el estudio entre 47 estudiantes y 3 profe-


sores del primer año. Ese año el trabajo de investigación se insertó como
parte de las actividades escolares de un taller denominado Plan de Bús-
queda. Este taller es considerado como una de las ocho herramientas me-
todológicas propias de la alternancia, y propone a los estudiantes realizar
una investigación que involucre a distintos actores de la vida comunitaria.
Se espera que a partir de este instrumento metodológico cada joven logre
un autoconocimiento y toma de conciencia sobre la realidad socio-comu-
nitaria próxima. (González y Costantini, 2011). En el caso del primer
año, el eje de indagación es “yo y mi familia”.
El estudio se desarrolla desde un enfoque etnográfico (Guber, 2001),
como etnografía en colaboración (Milstein, 2006; Gandulfo, 2015). Es una
metodología que nos permite generar espacios de formación en investi-
gación junto a los estudiantes, quiénes van constituyéndose en jóvenes
investigadores de su comunidad (Strathern, 1987).
En cuanto a las técnicas, consideramos la observación participante
y el registro in situ y a posteriori como instrumentos fundamentales para
dar cuenta de las prácticas de habla situadas.
En relación con el trabajo de campo realizado por los estudiantes y do-
centes, el mismo se acompañó con talleres de preparación, seguimiento y aná-
lisis. Podemos sintetizar la labor realizada en el 2017 de la siguiente manera:

152
• Junio y julio. Elaboramos los árboles genealógicos, una práctica
ya instalada del Plan de Búsqueda del primer año.
• Agosto. Elaboramos los árboles genealógicos lingüísticos y pri-
meros registros de observación de eventos comunicativos en las
casas.
• Septiembre. Elaboramos cuatro mapas según las zonas de resi-
dencia de las familias del primer año. Los estudiantes se ubican
geográficamente en el mapa de Corrientes. Realizamos la pues-
ta en común sobre los registros de observación de los eventos
comunicativos en las casas. Teniendo hechas estas actividades
– árboles, registros de observación y mapas según las zonas de
residencia- elaboramos un mapa sociolingüístico preliminar de
las familias del primer año.

Resultados

Los estudiantes junto a sus profesores y una investigadora en for-


mación, elaboraron árboles genealógicos lingüísticos correspondientes a
cada familia, realizaron los registros de observación sobre los eventos co-
municativos registrados en las casas y confeccionaron un mapa sociolin-
güístico preliminar con referencia a 41 familias localizadas en los depar-
tamentos de San Miguel, Concepción del Yaguareté Corá y General Paz.
Cuando los estudiantes presentan los registros de observación de
los eventos comunicativos ocurridos en las casas, presentan a algunas fa-
milias como “bilingües guaraní-castellano”, a otras que “hablan mezcla-
do”, “hablan más o menos guaraní”, “hablan más guaraní que castellano”,
“hablan más castellano que guaraní” o “sólo castellano”. En el momento
en que nos encontramos elaborando el mapa sociolingüístico nos dimos
cuenta que fue clave contar con esta actividad realizada para que cada
estudiante pueda identificar los repertorios lingüísticos de su familia y,
de esta manera, “categorizarse linguisticamente” en el mapa. Para esta
categorización los estudiantes señalaron los repertorios lingüísticos de
cada familia con colores distintos, e indicaron cuáles de las familias son
“bilingües guaraní-castellano”, “monolingües castellano” y “hablan más
castellano que guaraní”.

153
Figura 1. Mapa sociolingüístico preliminar correspondiente a las familias
del primer año de la EFA Ñande Roga, cohorte 2017.

Referencias

• 32 familias bilingües guaraní - castellano


• 2 familias que hablan más castellano que guaraní
• 7 familias monolingüe castellano
• EFA Ñande Roga I-36

En función de lo expuesto por cada grupo del primer año –cohorte


2017- y considerando la perspectiva de los jóvenes respecto a sus propias
familias, podemos decir que hay 32 familias bilingües guaraní-castellano;
2 familias que hablan más castellano que guaraní y 7 familias monolin-
gües castellano.
En cuanto a los hallazgos derivados de los registros de observación
de los eventos comunicativos, encontramos una heterogeneidad y diversi-
dad de situaciones donde el uso de las lenguas varía notoriamente.

Conclusiones

Los estudiantes presentaron en sus registros la multiplicidad de


formas en que puede darse un bilingüismo funcional (Lüdi y Py, 2003),

154
dónde el hablante va “activando” los recursos que tiene disponibles en su
repertorio comunicativo: más guaraní, más castellano, mezclado, bilingüe;
y como un “buen mbojere” dándole un orden en función de quiénes son
los interlocutores, los temas de conversación, los ámbitos y las actitudes
lingüísticas que se van interpretando en la interacción.
Las producciones sobre los eventos comunicativos nos muestran
una heterogeneidad de usos lingüísticos posibles, presentando un con-
tinuum entre una lengua y otra, entre el castellano y el guaraní o a la
inversa. En ese continuum, el uso de las lenguas se da en función de los
elementos que van constituyendo el evento comunicativo. Allí observa-
mos gradualidades, más – menos uso del castellano, más – menos uso del
guaraní, el “hablar bilingüe” en términos de los estudiantes.
De esta manera, los estudiantes fueron mostrando en cada actividad
aspectos del objeto de investigación que serían inaccesibles para “el inves-
tigador social” sin la metodología en colaboración.

Referencias
GANDULFO, C. “Entiendo pero no hablo”. El guaraní ´acorrentinado´ en
una escuela rural: usos y significaciones. Buenos Aires: Antropofagia, 2007.
GANDULFO, C. Itinerario de una Investigación Sociolingüística en Colabora-
ción con Niños y Maestros en un Contexto Bilingüe Guaraní-castellano en la
Provincia de Corrientes, Argentina. Archivos analíticos de políticas educati-
vas. Volumen 23: 95, 2015.
GANDULFO, C. “La prohíbición interpelada” transmisión intergeneracional
del Guaraní en un grupo familiar con cuatro generaciones en Corrientes, Ar-
gentina”. Revista de Estudios Paraguayos. Vol. XXXVI, Nº 1. Junio 2018.
GONZÁLEZ, I; COSTANTINI, A. El caso de la alternancia en la educación me-
dia rural En: Educación, ruralidad y territorio, Coordinadores Plencovich, M. y
Costantini, A. 1a ed. – Buenos Aires: Fundación Centro de Integración, Comuni-
cación, Cultura y Sociedad (CICCUS), 2011.
GUBER, R. La etnografía. Método, campo y reflexividad. Buenos Aires:
Norma, 2001.
GUMPERZ, J; HYMES, D. (eds.). Directions in Sociolinguistics: The Eth-
nography of Communication. London: Blackwell, 1986.
LÜDI, G; PY, B. “Ser o no ser… un hablante plurilingüe”, International Jour-
nal of Multilingualism Vol. 6, No. 2, May 2009, pp 154 167 Traducción por
Teresa Alarcón y María Isabel Rodríguez.

155
MILSTEIN, D. Y los Niños, ¿por qué no? Reflexiones sobre una experiencia de
trabajo con niños y niñas. En Avá Nº 9 En: Revista del Programa de Postgra-
do en Antropología Social, Universidad Nacional de Misiones, Agosto, 2006.
STRATHERN, M. “Los límites de la auto-antropología” en Jackson, An-
thony (ed.) Anthropology at Home, Tavistock Publications, London and
New York, 1987.

156
movimentos de fAgocitAção e de descolonizAção
nA escolA indígenA mbyá guArAni

Márcia Luísa Tomazzoni1

Amanhecemos o dia na escola abrindo as portas e janelas, de madei-


ra, construída pelas mãos da comunidade. Abrimos para entrar sol, secar
e aquecer os espaços que nos abrigam enquanto aprendemos uns com os
outros. A música é comum, alguma mãozinha pequena segura o celular de
onde sai o som. A fumaça se dissipa parecendo uma nuvem saindo da cozi-
nha onde o alimento é preparado no fogo de chão e onde é compartilhado
todas as manhãs o chimarrão, entre feixes de luminosidade e conversas em
Mbyá Guarani. A luz da escola é fraca, mas o pensamento é forte: não há
dia nublado que nos impeça de pensar. Organizamos as mesas e cadeiras,
limpamos um pouco – apenas o necessário; juntos, recebemos o dia como
mais uma oportunidade de descobrir os (nossos) mundos, enquanto ten-
tamos conhecer mais uns aos outros, nossas línguas, cotidianos, questões
e problemas que nos unem, pontos das nossas vidas que traçaram esse
caminho de encontro até aqui.

*****

O presente texto é fruto da pesquisa de mestrado em andamento


na área da Educação, cujo cenário de onde emergem as reflexões e com-
preensões sobre interculturalidade se configura a partir da convivência
na Escola Estadual Indígena Guajayvi, da etnia Mbyá Guarani, localizada
em Charqueadas, Rio Grande do Sul, onde sou educadora desde o início
do ano letivo de 2019. Somos dois educadores – eu e o Cacique Claudio
Acosta – e aproximadamente 20 educandos, em diversas etapas da esco-
larização formal, onde temos buscado construir uma escola diferenciada:
bilíngue, interdisciplinar e intercultural.
Embora esse cenário suscite reflexões de muitas ordens - como, por
exemplo, a interculturalidade na legislação que preconiza o bilinguismo
na escola indígena, sem, no entanto, verificarmos sua efetividade através
de materiais didáticos bilíngues ou formação diferenciada para os educa-

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do


Rio Grande do Sul, bolsista de pesquisa da CAPES.
157
dores não-indígenas -, todas apontam invariavelmente para o etnocentris-
mo arraigado na cultura ocidental-moderna que se espraia nos diversos
âmbitos da nossa sociedade. A escola indígena é atravessada por questões
que remontam a invasão das Américas, no contato/conflito entre euro-
peus e indígenas e as relações estabelecidas a partir desse fato, na forma
como lidamos como sociedade com as violências desse período e após ele,
especificamente, o que trato aqui, da violência da invisibilidade das sabe-
dorias indígenas – são muitas, cultivadas pelas mais de 300 etnias apenas
no Brasil –, da negação do pensamento indígena como autêntico e parte
constitutiva do pensamento americano.
Nesse sentido, a perspectiva que assumo como estratégia para des-
velar outras compreensões da história desse encontro entre culturas se
configura a partir da fagocitação, designação dada pelo filósofo argentino
Rodolfo Kusch para o processo vivido pelos indígenas como forma de ela-
boração das imposições da cultura ocidental-europeia, onde o estar – modo
existencial indígena – fagocita o ser – modo existencial ocidental -, reexis-
tindo com seus valores e sabedorias a esses mais de 500 anos de violências.
A leitura de Kusch sobre esse processo é a de que os indígenas fa-
gocitam (permanentemente) a cultura europeia, como forma de elaboração
do contato sistemático com a cultura ocidental, sem alterar o seu modo
próprio de estar no mundo, sua cosmovisão. Conforme Viçosa e Mene-
zes (2015), podemos compreender a fagocitação – de fagocitose - também
como processo pelo qual um organismo engloba e engole o corpo estra-
nho, digerindo-o e gerando energia para continuar a vida.
Imergindo na obra América Profunda (originalmente publicada em
1962), em que Kusch desenvolve os elementos centrais do seu pensamento
sobre a fagocitação, nos deparamos com uma densa discussão filosófica
entre ser ou ser alguém e estar ou estar aqui, como diferentes formas de
elaboração da existência humana diante do mundo e da vida, as quais são
confrontadas no encontro entre europeus e indígenas:

La intuición que bosquejo aquí oscila entre dos polos. Uno es el que lhama
el ser, o ser alguien, y que descubro en la actividad burguesa de la Europa
del silgo XVI y, el outro, el estar, o estar aquí, que considero una modali-
dad profunda de la cultura precolombina y que trato de sonsacar a la cró-
nica del indio Santa Cruz Pachacuti. Ambas son dos raíces profundas de
nuestra mente mestiza – de la que participamos blancos y pardos – y que
se da en la cultura, en la política, en la sociedad y en la psique de nuestro
ámbito (KUSCH, 2007, vol. 2, p. 5 e 6).

158
Ser e estar simbolizam duas estruturas existenciais, a primeira, pró-
pria do Ocidente, a segunda, própria do indígena. O ser como cosmovisão
que é fruto do projeto ocidental para a humanidade, calcada no advento da
técnica e, historicamente, representada pela Revolução Francesa, a Revo-
lução Industrial, o contexto urbano e a democracia. A Modernidade, cen-
trada nas ideias de ciência e de progresso, é um paradigma que engendra
o ser. Desse encontro, o estar, como fundo existencial muito mais antigo e
profundo, arraigado numa solução natural como resposta humana ao caos
do mundo2 – não numa resposta artificial, pela criação de outro mundo
-, estabelece o equilíbrio entre culturas: “Se trata de la absorción de las
pulcras cosas de Ocidente por las cosas de América, como a modo de equi-
líbrio y reintegración de lo humano en estas tierras” (KUSCH, 2007, v.2,
p. 18). É da fagocitação que surge o estar sendo como categoria existencial
na América, fruto da nossa hibridez, conjunção entre estar e ser3. A fagoci-
tação é, portanto, uma sabedoria, sabedoria da América, processo fruto de
uma lógica que admite a coexistência de opostos-complementares.
Dessa lógica que não admite a coexistência de opostos surge a nar-
rativa da “aculturação”: num olhar superficial, observamos os indígenas
utilizando objetos produzidos pela cultura ocidental, como televisões, te-
lefones celulares, geladeiras, alimentos industrializados; somado a isso,
o fato de que muitas etnias indígenas resguardam seus assuntos sobre
o sagrado – diferentemente de algumas religiões cristãs, não levantam
templos imponentes nem batem nas portas das casas buscando a conver-
são de outros -, o que é visível na superfície é uma suposta aculturação,
a perda dos costumes que são base da cultura, uma degeneração que só
pode, inevitavelmente, ser resolvida por uma política assimilacionista – de
integração do indígena à sociedade. A narrativa da aculturação também
é estratégia de controle e de dominação, como decisão política ocultar a
cosmovisão indígena - ao negá-la como outra forma legítima de viver o
mundo -, com o intuito de, justamente, negar a efetividade de direitos que
possam conferir garantia à preservação e reprodução das culturas indíge-
nas como, por exemplo, nas sucessivas políticas de governo que fragilizam
e dificultam a demarcação de terras indígenas.
A ideia expressa pela fagocitação em Kush é negada porque empo-
dera o pensamento indígena, empodera os indígenas, o pensamento do

2 Sobre o mero estar: “Lo visto hasta aquí es la solución natural frente a lo que llamamos
la ira divina, o sea lo que se da como mera naturaleza” (KUSCH, 2007, v.2, pág. 97).
3 Como fala Kusch: “Nuestra autenticidad no radica en lo que Occidente considera au-
téntico, sino en desenvolver la estructura inversa a dicha autenticidad, en la forma estar-
-siendo como única posibilidad.”(KUSCH, 2007, v.3, pág. 239).
159
Outro da Europa4 (no contexto de discussão da colonialidade na Améri-
ca). Empoderar o Outro significa, nesse contexto, reconhecer a sua sub-
jetividade, a subjetividade representada no pensamento e no seu modo
específico de viver. E isso já significa inverter a lógica da aculturação ou
assimilação - uma perspectiva de integração do Outro pela extirpação de
tudo o que não é espelho para a Europa -, e é pela interculturalidade com
os Guarani, como potência para a descolonização, que tenho encontrado
caminhos para perceber-sentir-compreender a América – e a escola indí-
gena - fora desse contexto de comparação:

Buscamos, assim, compreender os sentimentos produzidos no encontro com


os Guarani em suas Tekoá, encontro que evoca o passado que nos constituiu
e que produz a memória e a história do que somos, como americanos. E,
mesmo escondidos no interior de nossas instituições ocidentais, transparece
o desconforto, o incômodo de encontrar o outro, o índio que exala o “hedor”
de que fala Kusch, a sujeira que constrasta com a pretensa pureza europeia,
deparar com isso nos afeta e aflora o medo de assumir as marcas indígenas
que produziu nossas identidades americanas. Talvez isso explique a dificul-
dade do encontro, de dirigir o olhar sem julgamento, de não ver o que falta,
mas olhar o que é. (BERGAMASCHI; MENEZES, 2015, p. 53)

A trama entre essas duas cosmovisões vai sendo desenvolvida ao


longo de América Profunda e das demais obras de Kusch, como parte
constituinte da dimensão humana, social e ética do americano, partes
opostas-complementares que com-figuram a nossa mente mestiça.
Retornando à escola – se bem, de onde nunca saímos, pelo movi-
mento constante entre o ser representado na escola(ocidental) e o estar
indígena -, me vejo cotidianamente provocada a sentir, perceber e agir por
outras formas de compreensão, de organização, por outra forma de educa-
ção. Os traços da educação Guarani são muitos fortes, evidenciando cons-
tantemente características da sua cultura. Irmãos e irmãs demonstram
uma disposição natural para educar os menores: uma educação pelo cari-
nho, pela palavra, pela confiança. Mesmo quando não possuem o vínculo
familiar direto, meninos e meninas acompanham e ajudam na educação

4 A própria criação de um que é centro, referência como normal, natural, universal pro-
duz a categoria do outro. A América se constitui historicamente como o outro que provo-
ca horror ou seduz a Europa. Exemplo disto são os relatos antagônicos sobre a natureza
e as pessoas encontradas pelos Europeus ao chegarem nas Américas, compilados na obra
“La disputa del Nuovo mondo: Storia di uma polemica” (1955) de Antonello Gerbi. A
própria expressão “Novo mundo” evidencia o eurocentrismo que ignora a história mile-
nar dos povos das Américas.
160
dos mais novos, numa disposição carinhosa e cuidadosa, de preocupação
com o aprendizado do outro. Uma disposição que reverbera ancestralida-
de, uma ancestralidade que se faz presente porque os Guarani educam uns
aos outros nessa permanente atualização do passado. Presencio cotidiana-
mente um acompanhamento de perto feito pela comunidade: mães, pais e
avós, acompanham discreta e respeitosamente a rotina da escola, sem, no
entanto, deixar de mostrar que estão presentes, o que revela mais um dos
aspectos da sua resistência:

Estos pueblos no sólo superaron la prueba del periodo colonial, sino tam-
bién el de los embates de la asimilación e integración de tiempos más re-
cientes. Cómo lo lograron? Y hasta qué punto conseguirán mantener esa
alteridad e identidad diferente? Los pueblos indígenas han mantenido su
alteridad gracias a estrategias, de las cuales una es la acción pedagógica.
En otros términos: ha seguido habiendo en estos pueblos una educación
indígena que permite que el modo de ser y la cultura se reproduzcan en
las generaciones nuevas, pero también se encare com relativo éxito nuevas
situaciones. (MELIÀ, 1998, apud PAULA, 1999)

Essa capacidade de fagocitar que o estar indígena evoca toda vez que
se confronta com novas situações - embora todas partam de uma mesma
estrutura social colonialista de imposições a culturas que não se curvam
diante da força homogeneizadora – é expressa numa atitude profunda-
mente reflexiva.
É no contexto humano de convivência que tenho visto desvelar
meus próprios conceitos preconcebidos e juízos carregados de compara-
ção – engendrados pela mentalidade urbana e ocidental -, buscando um
caminho de descolonização, de visibilidade ao que foi negado/ocultado
como experiência humana singular e tão legítima quanto à experiência
europeia de estar no mundo. A experiência americana tem seu contexto
próprio, seus próprios paradigmas e conhecimentos, sua cosmologia, sua
filosofia – precisamos, como fala Kusch, apostar no nosso próprio cultivo,
reconhecendo a ancestralidade da semente que compartilhamos na Améri-
ca, indígenas e não-indígenas.

161
Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida; MENEZES, Ana Luísa Teixeira de. Edu-
cação ameríndia: a dança e a escola guarani. 2. Ed. Santa Cruz do Sul: EDU-
NISC. 2015.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas, pocket 1ª ed. Rosario: Fundácion A. Ross,
2007, v. 2.
______________. Obras completas, pocket 1ª ed. Rosario: Fundácion A. Ross,
2007, v. 3.
MENEZES, Ana Luísa Teixeira de; VIÇOSA, Raquel Maria de Oliviera. Esco-
la diferenciada guarani: entre o viver seminal e o viver ocidental. Holos, Ano
31, vol 8, 2015. Disponível em: <http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HO-
LOS/article/view/2430>. Acesso em 07 jun. 2019.
PAULA, Eunice Dias de. A interculturalidade no cotidiano de uma esco-
la indígena. Cadernos CEDES, Campinas, v. 19, n. 49, p. 76-91, Dec. 1999.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-32621999000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 10 jul. 2019.

162
estrAtegiAs politicAs pArA lA inclusion sociAl

María Candela Cedrón1

Este trabajo es un intento de hacer dialogar algunas nociones que


Rodolfo Kusch desarrolla en muchas de sus obras, (vinculadas a la pro-
ducción cultural, a la obra artística y a la constitución de las sujetas) a
partir de desarrollo de una experiencia de inclusión educativa, social y
laboral realizada desde una Política Pública Estatal realizada durante los
años 2011/2012 entre el Ministerio de Trabajo de la Nación y la Direc-
ción General de Escuelas de la Provincia de Buenos Aires, en su Dirección
de Educación de Adultos.
Este interés nació relacionando algunas preguntas que requirie-
ron construir algunas nociones especificas para desafiar las reflexiones y
construir posibles respuestas. El primer desafío para poder poner a dialo-
gar estas nociones, es el de asumir el conocimiento (o desconocimiento o
reconocimienos) de los universos culturales de las distintas sujetas que la
Escuela Argentina y la Bonaerense contiene en su espacio escolar, social
y educativo. Y en este sentido, además, identificar esas subjetividades que
la institución escolar no ha podido incluir, cuanto ha tenido que ver con
su subjetividad y cuanto con las condiciones socioeconómicas, culturales
para la exclusión educativa, en el tiempo dispuesto para ello. Sobre todo,
porque al habilitarse durante el gobierno kirchnerista, una novedosa po-
lítica pública de inclusión, estas sujetas vuelven a los establecimientos a
concluir sus estudios, de modo tal que ponen de manifiesto una valoriza-
ción del capital simbólico que la escuela secundaria les proveerá para la
utopía de la inclusión social y laboral. O simplemente querrán ser felices?
La educación y el trabajo son sin dudas prácticas culturantes, prác-
ticas en las cuales se valorizan las identidades culturales, los modos de
ser, de estar, de hacer, el Ñande Reco que el guaraní define. Los espacios
educativos estatales durante años, y sobre todo los que trabajan con niñas,
jóvenes y/o adultas empobrecidas, han desplazado esta posibilidad de ac-

1 Licenciada en Comunicación Social, con Orientación en Planificación de la Comuni-


cación Institucional y comunitaria, Titulo otorgado por la Facultad de Periodismo y
Comunicación Social de la Universidad Nacional de La Plata. Pertenencia Institucional:
Facultad de Periodismo y Comunicación Social de la Universidad Nacional de La Plata.
163
ceso al aprendizaje y valorización de la creatividad artística, priorizando
la racionalidad, la efectividad, y la mecanicidad por sobre la sensibilidad,
la afectividad, la creatividad. Desde hace algunas décadas se viene pro-
blematizando, desde Latinoamerica y Argentina, cuestionando ciertos
reduccionismos tales como el eurocentrismo y el economicentrismo , o
modelos de organización y desarrollo de las sociedades a partir de los
bienes materiales y relaciones empresariales capitalistas y occidentales.
Hablando del ámbito de la producción artística cultural, se volvió sólido
un modelo mercantil, de competencia, de repetición, de imposición y en
cierto modo dejó fuera otras posibilidades, especialmente la participación
del pueblo en la producción de su propio ser/estar cultural. Estos dos
reduccionismos fueron adaptados y profundizados para ejercer un control
social especialmente durante la última dictadura militar (y sus continui-
dades en periodos democráticos) que entre otros aspectos desarrolló como
política de Estado la censura (intelectual, artística y corporal) buscando
establecer un modelo de sociedad autoritaria, competitiva, estandarizada
y muy poco creativa. Así, los procesos de participación en el ámbito cultu-
ral, educativo y artístico fueron blanco de silenciamiento y es por esto que
consideramos que las acciones culturales (tanto en lo privado como en lo
público) sufrieron también la implementación de este modelo.
Desde hace años existen y resisten prácticas artísticas que propo-
nen otras formas de relación, donde cada persona es sujeta política, artís-
tica, con capacidad de crear y transformar su propia realidad. La propues-
ta que se llevó adelante durante al año 2011 pone en discusión algunas
concepciones en relación a los modelos pedagógicos de la educación de
adultos y de jóvenes/adultos dado que incorpora otro modo de acceso a la
educación y al mismo tiempo desnaturaliza las estéticas asumidas histó-
ricamente. El pensamiento lógico, los modos deductivos e inductivos del
conocimiento priman en las currículas educativas formales, y están ausen-
tes y silenciadas las formas del arte, otros modos de construcción del sa-
ber cosmogónicos e integrales. En la actualidad, no existen experiencias
en la educación formal de adultos en las cuales las prácticas artísticas sean
incorporadas como mediación pedagógica.
Pensar la creación artística como mediación pedagógica es consi-
derarla mucho más que como instrumento o medio para el aprendizaje
y construcción de conocimiento. Es también comprender en ellas, otros
modos de construcción del saber, las tramas sociales e históricas en las
que se inscriben, las experiencias sensibles, las memorias subjetivas y
colectivas que se entrelazan en la constitución de las propias identidades
y finalmente el reconocimiento de los sentidos en disputa. Es por eso que

164
creímos fundamental generar espacios de encuentro, intercambio y goce
donde la participación se propone para conocer, disfrutar y dialogar con
y desde propuestas artísticas culturales, en la posibilidad de crearse como
persona y como comunidad. Esto permitió, incipientemente, problemati-
zar, abrir y crear la propia identidad, de ser, estar y hacer en comunidad,
hacer memoria, y elegir hacia donde ir, cómo, con quienes. La propuesta
se dispuso a brindar espacios y proponer procesos educativos atentos a
habilitar modos de hacer (transformar) desde la diversidad, la expresión
y el intercambio artístico en el sentido creativo del hacer. La palabra, el
diálogo, la expresividad también generan desarrollo. La creatividad es un
saber hacer en el cotidiano, está presente en el modo de ser humano y ser
comunidad, es por lo que todas las áreas de la enseñanza deberían promo-
ver el desarrollo de la creatividad (el desarrollo de procesos autónomos
de exploración activa, de expresión personal, y búsquedas de estrategias
para el desarrollo). De este modo se apunta a la reflexión entre las alum-
nas jóvenes y adultas con los artistas no solo sobre la producción de las
obras compartidas sino también sobre las condiciones y modos específicos
y culturales de esta producción.
Cuando nos dispusimos a trabajar con la música, pensamos en dis-
poner de obras y de grupos de trabajadores que no sean los que las es-
tudiantes estuvieran habituados a escuchar en la radio, o por internet,
o … aquellos que se han logrado masivizar, es decir: tomando un rasgo
popular, ponerle valor por sobre otros y hacerlo identidad. Nos interesaba
la música porque nos permitía rescatar aquello que aunque sea en la me-
moria familiar o comunitaria, fuera de los medios o discográficas, pudiera
estar presente. Pensábamos en canciones con las que nos acunan, en las
que les escuchamos a las abuelas o a las tías, o a los hermanos mayores…
pero una memoria, un recuerdo que los una con el afecto de la raíz… la
raíz negada o silenciada. Volver a ponerle valor… de algún modo. En ese
preciso momento estábamos reconociendo lo negado, lo silenciado por el
estado (Escuela) y por el mercado (medios y discográficas). Sin expresarlo
de ese modo, elegíamos grupos y obras que de otro modo, no escucharían.
Supusimos que recuperar los modos cotidianos, negados, desvalori-
zados y disponerlos dentro de la Escuela, cambiar el lugar del Rito, una
práctica placentera y amorosa como es la música, el cantar, el disponerse
a la fiesta, podía de algún modo valorizar, y hacer que estas personas,
que fueron expulsadas del sistema educativo, y maltratadas por la socie-
dad, por no haberse podido sostener allí, puedan valorar esas prácticas, y
saberes y haceres propios. De esas familias, de esa comunidad. Pensar/
disputar el modo de conocimiento Occidental, racional, estático, para el

165
empleo no vital e ir hacia pensar el trabajo como tarea de transformación/
creación del mundo y de la vida, creación/producción que transforma a
las sujetas hacedoras, y a quienes participan del ritual en el cual estas
obras se disponen.
Tal vez por eso es que elegimos la música en un programa de inclu-
sión social y trabajo, porque de algún modo es aún un terreno fangoso, frá-
gil, movedizo, “simpático pero inútil”… salvo que lo convirtamos en mer-
cancía, rentable, generadora de ingresos y riquezas. Como monetarizar lo
sensible? Como monetarizar la memoria que ahí se despliega, los recuerdos
y afectos que se desparraman, en cada acorde que se ejecuta, que el ejecu-
tante dispone, y que el participante en la escucha atenta recupera de si?.
En relación al lugar de los trabajadores de la Docencia, disponen de
algún modo, de unos bienes, saberes valiosos. El conocimiento científico
que “otros” produjeron. Trabajan con libros de historia escritos por otros,
con conocimientos de física construidos por otros, con literatura escrita
por otros. Unos otros valiosos, y cuyas obras/objetos, son valiosos. Valio-
sos, tangibles, fácilmente inventariables. Y Además unos rituales valiosos,
en los cuales estos objetos se disponen, las aulas, los patios, la escuela mis-
ma. El titulo de Profesor. Tendríamos en términos de Kusch, unos obje-
tos tangibles, correspondientes al eje objetual. Unos productores de esos
conocimientos donde entraría a jugar el eje subjetivo, pero también un
eje ritual en le cual los actores concretos disponen una serie de acciones
para dar sentido a esos objetos y a esos sujetos en relación. Un ritual en el
que el amor, el compromiso, lo sensible hace trabajo, a la transformación,
a la creación, a la novedad vinculada a la tradición y la memoria. No se
monetariza esa disposición? Cuánto cuesta el afecto? Porque es útil? como
es el rito en el cual esa disposición afectiva actúa?. Es en el ritual donde
estos “objetos” adquieren sentidos, valor colectivo, y se comprenden en
una experiencia vital, supra individual porque en esa obra se condensa la
historia y el trabajo de muchas otras personas, memorias, costumbres y
biografías. Es una experiencia colectiva en tanto encuentro de unos otros
sentidos y actualiza aquellos dispuestos en las memorias, y re significado
en su nivel contextual.
En relación a las obras/producciones culturales dispuestas, ya no
como esencias, sino como relación, cada uno de estos episodios opera en
la tradición, se inserta en la tradición, pero al mismo tiempo tiene el ca-
rácter de novedad por los sentidos subjetivos dispuestos de su autor en
la producción de la obra y el encuentro con los sentidos contextuales. La
pregunta que aun late es ¿Cuál es el valor heurístico de esta experiencia
que incluye una totalidad dinámica y en expansión?
166
Referencias
Kush, R. La negación en el pensamiento popular. Buenos Aires: Las cuarenta,
2008.
Kush, R. América Profunda (Obras Completas Tomo II. Buenos Aires: Funda-
ción Ross), 2018.

167
re-existênciA indígenA nA ufrgs: movimentos do estAr
sendo indígenA universitário

Michele Barcelos Doebber1

O presente trabalho expõe reflexões geradas no estar junto aos indíge-


nas universitários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Trata-se de um estudo inspirado na etnografia, na cartografia e na pesquisa
colaborativa, evidenciando os contornos da presença indígena na UFRGS no
ir se fazendo da política de ação afirmativa com ingresso específico para esse
grupo. Assenta-se na convivência com indígenas no espaço acadêmico e em
algumas terras de origem. A partir dos temas que emergiram da escuta sen-
sível como postura metodológica e, ancorada na perspectiva da decoloniali-
dade e dos estudos de interculturalidade, apresento algumas contribuições
para pensar a relação universidade-coletivos indígenas na atualidade.
No estudo tomo a noção de re-existência (ALBÁN, 2012) para falar
das formas com que indígenas universitários recriam suas existências em
condições adversas, tentando a superação dessas condições ao apropriar-
-se do espaço acadêmico através de uma presença potente, de formas cria-
tivas de ser e estar, ancorada em relações de solidariedade com o coletivo.
As práticas de re-existência elaboradas por indígenas universitários serão
o mote deste texto.
Na busca por compreender como se expressa o estar indígena uni-
versitário na UFRGS, identifiquei que essa presença revela o predomínio
do “estar” que se encontra e se choca com a perspectiva do “ser alguém”
(KUSCH, 1999) na cidade e no ambiente universitário. Indígenas acadê-
micos deparam-se com um mundo ainda pouco conhecido, uma rotina que
exige um tempo-espaço objetivo e compartimentado, uma linguagem cul-
ta que se expressa na língua do colonizador e é centrada na escrita. Uma
sociedade marcada pelo afastamento da natureza, pela ordenação e limpe-
za, onde o conhecimento se expressa pela via do intelecto e da racionalida-
de, onde se incentiva a competição e o fazer constante, não podendo haver
espaços vazios e tempos livres.
De outro lado está a expressão da existência através de um tempo
circular vivido nos territórios indígenas, que respeita os ciclos e pulsações

1 Doutora em Educação. Atua como servidora técnica na Universidade Federal do Rio


Grande do Sul.
169
da vida, onde há espaço para o mero estar e a contemplação. Onde a in-
teração com a natureza é vital e fonte do conhecimento. Onde os saberes
são transmitidos oralmente de geração em geração por meio da escuta, do
exemplo, do fazer junto, agregando à inteligência racional a emocionali-
dade, o aprender com todo o corpo.
É no jogo entre essas diferentes racionalidades e emocionalidades que
o modo de estar indígena vai se apropriando dos modos de ser acadêmico.
Nos termos de Rodolfo Kusch: fagocita-o. Essa conexão entre o estar e o ser
conjuga as raízes culturais, cosmológicas, epistêmicas e afetivas do universo
Kaingang e Guarani com a lógica cartesiana, livresca, erudita da universi-
dade e, coexistindo, conformam o estar sendo indígena universitário.
Nesse contexto foi possível identificar algumas dimensões do estar
sendo indígena que tensionam a universidade. Experimentam o (des)en-
contro com as lógicas de ser e estar nesse espaço e apropriam-se do uni-
verso acadêmico, e, ao mesmo tempo, re-existem através de uma presença
disruptiva que se expressa na linguagem, nas diferentes temporalidades,
na lógica comunal, na re-existência epistêmica. Passo a explicitar algu-
mas dessas formas de re-existência identificadas na pesquisa.
Na escuta dos indígenas acadêmicos, compreendo que a linguagem tra-
zida para a universidade enquanto movimento, oralidade, riso, canto, gesto,
silêncio, escuta, corpo... encontra uma muralha que distancia, contém, imo-
biliza, desenraiza, se concentra no intelecto. Ao chegar nesse espaço, é como
se tivessem que despir-se de seus modos de expressão para se adequar à
linguagem acadêmica, à escrita e suas técnicas, à leitura excessiva, ao estudo
rotineiro, além de tudo que está envolvido nos aprendizados de ser um estu-
dante universitário: os modos de se comportar, de vestir, de movimentar-se.
Um dos importantes conflitos enfrentados pelos estudantes se relacio-
na com a falta de familiaridade com os discursos da academia. Como apon-
tam os/as estudantes, a linguagem acadêmica parece ser um idioma próprio,
muito ligado à linguagem científica, mas também a uma língua urbana e
culta, muitas vezes incompreendida pelos recém-chegados, especialmente
quando vindos de grupos sociais que têm na oralidade o cerne de expressão.
A linguagem acadêmica se manifesta em um forte comportamento grafocên-
trico, específico de nossa sociedade letrada. Além disso, tal idioma envolve
desde a indumentária às condutas, valores, normas e princípios de vida.
Dessa forma, vemos a colonialidade do poder atuando no interior da
universidade, naturalizando a dominação também no âmbito linguístico
na medida em que exige que a linguagem assuma um caráter impessoal,
separada da sua territorialidade, desarraigada, expressão de uma voz que
não é a própria.

170
Larrosa (2013) diz que assim como a língua é um dispositivo de
acolhida e pertencimento, também é um dispositivo de rechaço e exclusão.
Dialogando com o autor, ouso dizer que também pode ser um dispositivo
de re-existência, como nos mostram indígenas quando ocupam a universi-
dade, encontrando frestas para sua língua originária, conectando-se atra-
vés da língua do coração.
Outro aspecto bastante evidente no (des)encontro dos coletivos in-
dígenas com a universidade diz respeito às temporalidades. No encontro
entre as diferentes temporalidades, vemos que o tempo da universidade,
marcado pela linearidade, o enquadramento, a medição e fragmentação,
que pretende controlar a tudo e a todos, se sobrepõe à temporalidade vivi-
da pelos coletivos indígenas. Essa temporalidade hegemônica, conectada
a uma concepção ocidental de mundo, caracteriza-se pela velocidade, a
obsessão pela novidade, que lança o olhar para frente, no que deve ser,
sempre jogada para o futuro, numa ideia de progresso contínuo.
A monocultura do tempo linear, assim caracterizada por Santos
(2007), justamente por ser a produção de apenas uma cultura pautada por
rígidos parâmetros temporais, não acolhe outras manifestações de tempo-
ralidade, e, com isso, desperdiça o momento presente, o espaço do estar,
da pausa, da experiência. É preciso ter em vista que essa lógica é uma
entre tantas outras existentes e que, apesar de hegemônica, não é a mais
praticada tendo em vista a multiplicidade de manifestações existentes em
diferentes povos. Dorvalino Cardoso, intelectual Kaingang, expressa sua
compreensão de tempo da seguinte forma: “Para nós o passado também é
presente, e o futuro também. Mas a gente sabe que esse futuro, esse tempo
do futuro não é nosso, na verdade é de Deus, mas o passado pra nós é o
presente também” (Diário de Campo, 04.11.2015). Ao evidenciar a centra-
lidade no presente, no qual todos os tempos se fundem no aqui e agora,
também coloca no futuro a dimensão do imponderável, do incontrolável,
por isso é preciso confiá-lo a Deus.
Apesar de vermos a colonialidade do ser operando na universidade
através da organização e imposição do tempo linear, contrastando com a
natureza da própria vida, que é gestada em ciclos, indígenas universitários
mostram que o tempo ameríndio está relacionado com outros critérios,
que podem estar ligados aos sonhos, à intuição, ao clima, ao resguardo da
saúde, e, acima de tudo, pautado pela vontade. Desse modo, identifico que,
ao trazerem seus corpos insurgentes para a universidade, mesmo que em
um contexto opressor que os engole em muitas situações, também lutam
por manter suas temporalidades, criando estratégias de manutenção de
seus modos de existência, como expressão de re-existência.

171
A terceira forma de estar sendo na universidade que destaco diz
respeito à re-existência epistêmica. No contato com a universidade, in-
dígenas acadêmicos, mesmo que raramente dentro dos currículos ou em
aulas regulares, criam formas de expressão de seus conhecimentos: no
envolvimento em grupos de pesquisa, na elaboração dos trabalhos de con-
clusão de curso, na criação de espaços como os Encontros Nacionais de
Estudantes Indígenas, entre outros. Desse modo, apropriam-se da lingua-
gem e conhecimentos acadêmicos, fazendo com que estes dialoguem com
os seus, construindo conhecimentos fronteiriços. Esses conhecimentos de
re-existência se expressam muito conectados com o compromisso com os
coletivos de origem, gerando saberes pertinentes, a serviço da vida e da
manutenção dos povos.
Assentada na pesquisa e na vivência junto aos estudantes posso afir-
mar que uma das principais estratégias encontradas por eles para re-exis-
tir na universidade é estarem juntos, no coletivo, mantendo a dimensão
do comunitário através de práticas de solidariedade como um valor fun-
damental para ser conservada no contexto da universidade. “Eles chegam
em bando!”, é uma expressão bastante utilizada na instituição para descre-
ver os movimentos dos acadêmicos pelos espaços da universidade, onde
andam em pares, em grupos, carregando suas crianças consigo. Fenômeno
que perturba, desacomoda, porém povoa com humanidades outras esse es-
paço tão calcado pela competição, pelo ranqueamento, pelo produtivismo,
pelo consumo acadêmico, por relações utilitaristas de cada um por si.
No processo de construção da pesquisa, foi possível compreender
que o encontro dessas pessoas com a universidade irrompe como um acon-
tecimento, tanto na vida dos próprios indígenas, suas famílias e coletivos,
quanto para a instituição, que se vê desacomodada diante de tal presença.
A relação estabelecida entre esses diferentes atores ainda não se
expressa de forma simétrica e horizontal, configurando-se muito mais
como uma política fundada em uma visão de interculturalidade funcio-
nal (WALSH, 2012), que quer normalizar, diluir e incorporar o outro ao
mesmo, colaborando com os desenhos globais de poder, capital e mercado,
do que em uma perspectiva crítica de interculturalidade, calcada em um
projeto político de descolonização, transformação e criação de um modelo
de sociedade alternativo.
No encontro com esses coletivos, a universidade se depara com ou-
tros modos de estar, de se movimentar, de conhecer. Outras cores, cheiros
e jeitos que passam a habitar esse espaço e instauram desordem, com suas
presenças disruptivas, uma desordem que, conforme Balandier (1997),
torna-se criadora. Para Kusch (2012, p. 7), “las crisis dan siempre que pensar.

172
Son en el fondo fecundas porque siempre vislumbran un nuevo modo de concebir
lo que nos pasa. Irrumpe una nueva, o mejor, una muy antigua verdad”.
Nesse sentido, as dimensões de re-existência identificadas nesse es-
tudo, anunciam modos de estar sendo indígena universitário como um
odor exalado por esses povos que impregna a pulcra universidade. Para
Cullen (2013), o fedor da América, expresso em tudo o que não conhece-
mos, que não temos controle, que nos causa medo porque nos tira da segu-
rança, insiste e persiste. Esse odor é tudo que faz recordar nossas origens
autóctones e que nos faz lembrar quem somos e de onde viemos. O autor
afirma que “El hedor viene de abajo y de lo colectivo, es decir, del pueblo” e, por
isso, “se teme la fecunda unión ritual de los opuestos […] y se teme también que
acontezca lo imprevisible” (Idem, p. 80).
Esses movimentos, que trazem consigo imprevisibilidade e desor-
dem, têm gerado frestas que se fazem no encontro com os rígidos padrões
de ser da universidade. Tais fissuras, espaços de re-existência, permitem a
emergência do novo desde a re-conexão com o originário, parindo formas
antigas de conviver, aprender, compartilhar, estar e ser pessoa e coletivo,
formas essas que ensejam práticas pedagógicas outras na universidade.

173
Referências
ALBÁN, Adolfo Achinte. Epistemes “Otras”: ¿Epistemes Disruptivas? Revista
KULA: Antropólogos del Atlántico Sur, n. 6, p. 22-34, abr. 2012.
BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil,1997.
CULLEN, Carlos. El hedor de América insiste y persiste. Consideraciones tem-
pestivas e intempestivas y algunos aforismos desorientados, a propósito del tex-
to de Rodolfo Kusch “El hedor de América”, publicado en Dimensión en 1961. In:
TASAT, J. A.; PÉREZ, J. P. El hedor de América: reflexiones interdisciplinarias
a 50 años de la América Profunda de Rodolfo Kusch. Saénz Peña: Universidad
Nacional de Tres de Febrero; Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ediciones del
Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini, 2013.
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. Buenos Aires: Biblos, 1999.
KUSCH, Rodolfo. La negacióndel pensamiento popular. Rosario: Fundación
A. Ross, 2012.
LARROSA, Jorge. Uma lengua para la conversación. In: LARROSA, Jorge;
SKLIAR, Carlos (Coords.). Entre pedagogía y literatura. Buenos Aires: Miño
y Dávila, 2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a eman-
cipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.
WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y (de)colonialidad: ensayos
desde Abya Yala. Ediciones Cideci-Unitierra Chiapas, 2012.

174
por umA escolA interculturAl: repensAndo A iniciAção
científicA no currículo dos Anos iniciAis do
colégio de AplicAção dA ufrgs

Priscila de Souza Oliveira1


Tanise Müller Ramos2

Como professoras dos Anos Iniciais do Colégio de Aplicação da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, percebemos a presença do
preconceito e da discriminação no cotidiano escolar, onde as crianças, as-
sim como os adultos, reproduzem a cultura de seus grupos sociais e refor-
çam padrões estereotipados e preconceitos aprendidos nas suas vivências.
Postulamos em favor de ações que propiciem problematizar e desconstruir
esses estereótipos e preconceitos, construindo um trabalho que desenca-
deie a abertura para outras possibilidades de pensar e de agir.
Para além de nossas percepções e desconfortos sentidos enquanto
professoras de crianças em fase de alfabetização, somos guiadas por docu-
mentos legais, tais como a lei 11.645/2008, que alterou a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional ao tornar obrigatório o ensino de história
e cultura africana, afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras. Sendo
assim, visibilizamos a necessidade de uma escola potente para o diálogo
intercultural, fazendo emergir outras narrativas comumente negadas pela
História oficializada no currículo escolar, dentre as quais estão as histórias
e culturas dos povos originários e da diáspora, os povos indígenas e afri-
canos reduzidos à condição de escravizados no período colonial brasileiro.
Com o intuito de defender a necessidade de uma escola intercultu-
ral na contemporaneidade, pretendemos a seguir compartilhar práticas
pedagógicas inseridas nos projetos de Iniciação Científica com crianças
nos anos de 2018 e 2019 no Colégio de Aplicação da UFRGS. A Inicia-
ção Científica, que acontece uma vez por semana enquanto componente
curricular dos Anos Iniciais, tem como objetivo desenvolver projetos in-

1 Professora de Língua Espanhola e Respectivas Literaturas pela PUCRS, Professora de


Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela PUCRS, Especialista em Literatura
Brasileira pela PUCRS, Mestre em Teoria Literária pela PUCRS e Máster em TICs en
Educación pela USAL (Espanha). Professora Substituta do Departamento de Comunica-
ção do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: prisciladsoliveira@gmail.com
2 Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Departamento
de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: tanisemuller@yahoo.com.br
175
vestigativos com as turmas de alunos desde o primeiro ano do Ensino
Fundamental, incentivando a curiosidade e a busca pela construção do
conhecimento científico que tenha relevância social e que possa auxiliar
as crianças em seu processo próprio de desenvolvimento.
Nesta abordagem, precisamos compreender a Ciência em seu sentido
mais amplo, não restrita a determinadas áreas do conhecimento, mas sim
concebida enquanto possibilidade de construir conexões interdisciplinares,
questionando as grandes ancoragens teóricas consagradas pela escola e
pela academia em direção à abertura de espaço para a visibilidade daqueles
saberes até então marginalizados e/ou invisibilizados como conhecimentos
válidos. Defendemos, assim, Ciências no plural, que permitam aos estudan-
tes pensar sobre o que vivem, a partir de vivências orais, escritas, gráficas
e sensoriais, pressupondo a ampliação de seu olhar para o mundo ao seu
redor, desfazendo estereótipos e preconceitos. Ciências potentes para im-
primir um modo de pensar que possa contribuir para que as crianças sejam
propagadoras desses conhecimentos ao educar seus iguais.
Afirmamos nossas convicções a partir do pensamento de Rodolfo
Kusch (2000), ao abordar a necessidade de resgatar na América um estilo
de pensar profundo, fortemente conectado a um pensamento indígena e
popular, capaz de questionar e de romper com as lógicas eurocêntricas
que constituem o principal impedimento para compreender as histórias e
culturas que constituem nossas identidades enquanto latino-americanos.
Nosso intuito não é o de negar os conhecimentos erigidos pelas Ciên-
cias, porém buscamos ampliar os conhecimentos considerados válidos no
interior da escola, de forma a tornar os estudantes capazes de construir
saberes muito mais conectados com os múltiplos modos de ser e de viver
no Brasil como descendentes de povos indígenas e africanos fundamental-
mente, além dos povos europeus.
Sendo assim, em nossa experiência com o projeto de Iniciação Cien-
tífica no ano de 2018 em uma turma de terceiro ano do Ensino Funda-
mental, ao propor como disparador dos estudos da turma uma imersão à
aldeia mbyá guarani Pindó Mirim, situada no município de Viamão (RS),
percebemos a necessidade de “indagar a vida cotidiana”, como propõe
Kusch (2000), desconstruindo os esquemas únicos de pensamento com
os quais estamos apegados. Aquela turma de alunos tinha inicialmente
como objeto de estudo o céu e vinha explorando conteúdos tradicional-
mente escolares ao longo das aulas, tais como as teorias acerca da origem
do Universo e do Sistema Solar. Porém, ao deparar-se com a cosmovisão
guarani durante uma roda de conversa na aldeia na ocasião daquela saída
de campo, quando as lideranças falaram e contaram histórias, a turma per-

176
cebeu que as visões de mundo entre elas, crianças não-indígenas, e o povo
mbya eram diferentes e necessitavam de visibilidade e diálogo.
No momento em que uma aluna da turma se reportou ao cacique
mencionando o sol como uma estrela na perspectiva do olhar científico,
e o cacique por sua vez se referiu ao mesmo astro como uma entidade es-
piritual, a turma começou a trilhar caminhos diferentes ao voltar para a
escola. O deslocamento geográfico nos impulsionou ao deslocamento do
pensamento, desencadeando nosso projeto nomeado “Um olhar intercul-
tural para o mesmo céu”, em que tivemos a oportunidade de romper com a
lógica oficial escolar e acadêmica que enxerga o céu através das narrativas
científicas em direção a um modo de pensar mais plural e dialógico, pois
intercultural. Elementos presentes nas narrativas de matrizes indígenas
e africanas, assim, receberam visibilidade naquele projeto, ampliando nos-
sa forma de conceber a nós mesmos e as nossas relações. A pluralidade
de olhares, fossem eles astronômicos, históricos, culturais, mitológicos ou
religiosos foram constituindo um projeto interdisciplinar e antirracista,
ocupado em muito da educação das relações etnicorraciais entre os sujei-
tos que dele participaram.
Na sequência, em outra saída a campo que fizemos com a turma, já
no Quilombo dos Alpes situado em Porto Alegre (RS), pudemos perceber
o protagonismo negro na construção de nossa história enquanto mora-
dores desta cidade, rompendo com as narrativas tradicionais centradas
na saga dos povos europeus. Por meio da matriarca quilombola Janja, as
crianças ouviram histórias sobre um passado de escravidão e de resistên-
cia, cujos feitos perduram até hoje em nós. Ouviram a história da família
daquela senhora conhecedora de ervas, que precisou fugir de uma fazenda
em Charqueadas (RS) que usava a força de trabalho escrava de pessoas
advindas da África para se isolar no alto do morro do Morro da Glória,
em Porto Alegre (RS), constituindo aquilo que reconhecemos atualmente
como parte dos Territórios Negros da cidade. A história desta família,
assim, retrata nossa própria história enquanto sociedade que marginaliza
e discrimina, levando-nos a refletir sobre nossos privilégios, sobre o ra-
cismo nosso de cada dia, sobre a opressão e a falta de oportunidades a que
determinados segmentos da sociedade são submetidos.
Como sustenta Kusch (2000), não existe um estilo único e unifor-
me de vida em nossa América em uma análise profunda, embora sejamos
ensinados a assim pensar, o que termina por atingir nossas identidades
no sentido de um verdadeiro descolamento dos modos de ser e de pensar
indígenas e africanos. Nosso objetivo junto às crianças, assim, foi visibili-
zar outras possíveis histórias constituidoras daquilo que somos realmen-

177
te, problematizando pensamentos rigorosamente importados. Levamos o
estudo para o Salão UFRGS Jovem 2018, em que as crianças tiveram a
experiência de atuarem como comunicadores, tomando para si o dever
de apresentar seus estudos, suas vivências. Recebemos o prêmio destaque
durante cerimônia na Reitoria da Universidade e percebemos o quanto
nossas heranças culturais estão implicadas em nossos avanços científicos.
Neste viés, seguimos com o mesmo grupo de alunos em 2019, dando
sequência aos estudos do ano passado, agora com uma turma de quarto
ano do Ensino Fundamental. Nossa pesquisa de Iniciação Científica neste
ano se chama “Nós seguimos as pegadas dos nossos ancestrais” e, através
dela, buscamos narrativas familiares em suas conexões com movimentos
mais amplos, o que nos coloca em relação com a história dos povos origi-
nários, tradicionais e da diáspora. Assim, o estudo histórico, geográfico,
político, cultural, religioso, de nossos ancestrais nos leva a uma percepção
e reflexão acerca de quem somos nós, bem como de nossos processos cons-
tituidores enquanto sujeitos com determinados padrões, visões de mundo
e preconceitos. Ainda em fase de desenvolvimento, esse projeto tem le-
vado-nos à compreensão de que aquilo que fora erigido como Ciência na
escola e na universidade pode ser profundamente colocado em suspenso,
ao abrirmos a possibilidade de tratar os saberes historicamente margina-
lizados como conhecimentos válidos e constituidores daquilo que somos.
Como postula Nilma Lino Gomes (2008), estamos diante do desa-
fio de descolonizar os currículos escolares, dialogando com outros para-
digmas de conhecimento que podem promover uma inovação curricular,
promovendo rupturas epistemológicas e culturais. Faz-se necessário, pois,
agir de forma coletiva, refletindo sobre culturas negadas e/ou silenciadas
na escola, renovando o imaginário pedagógico através de uma lógica me-
nos livresca e mais apoiada na ação política que visibiliza lutas e protago-
nistas históricos marginalizados e relegados à condição de não-saber no
cotidiano da escola e dos currículos. O diálogo intercultural, assim, pode
consistir como estratégia de descolonização curricular, em que silêncios
são rompidos em direção à abertura à possibilidade de falar. Falar sobre
preconceitos, sobre privilégios, sobre igualdade e diferença, sobre raça e
etnia enquanto questões importantes para compreender a nós mesmos,
nossas relações e nossos modos de ser e estar no mundo. Acreditamos que
esta é uma atitude que provoca mudança profunda cultural e politicamen-
te em nosso pensar e agir dentro e fora da escola.

178
Referências
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei Federal n°
9.394/1996;
______. História e Cultura Africana, Afro-Brasileira e Indígena. Lei Federal
n°11.645/2008;
GOMES, Nilma Lino. Descolonizar os currículos: um desafio para as pesquisas
que articulem a diversidade étnico-racial e a formação de professores. In: Encon-
tro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 14, 2008, Porto Alegre. Anais
do XIV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Porto Alegre, 2008.
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Córdoba, Argentina: Editorial
Fundación Ross, 2000.

179
percebendo formAs de estAr: A sAlA de AulA
e As práticAs de envolvimento com o Ambiente

Sofia Robin Ávila da Silva1

O presente trabalho consiste no relato de uma experiência didática


que começou a ser desenvolvida no Coletivo de Educação Território Po-
pular2 e se desdobrou em uma proposta de projeto inter/transdisciplinar
que envolve a reflexão profunda sobre aspectos da colonialidade que atra-
vessam o currículo da escola tradicional, mas que ao mesmo tempo abrem
brechas para a exposição da ferida colonial e para discussão transforma-
dora das vivências e territórios. A converse se desenha ao redor do jogo
entre lidar com conteúdos rígidos e propor alternativas ao pensamento
hegemônico/homogeneizante. Tendo como princípio a ideia de que o pen-
samento decolonial não é apenas um paradigma teórico, mas também uma
postura e um modo de atuar (WALSH, 2013), elaboramos no Coletivo
tentativas de materializar o debate e plantar as sementes do questiona-
mento das estruturas sociais que nos balizam.
A proposta em si parte da necessidade de preencher um momento
da grade de horários que criamos para os estudantes que é o período ro-
tativo: um período na semana no qual duas ou mais disciplinas se reúnem
para elaborar um planejamento conjunto com temas afins que dialoguem
também com os tópicos necessários para realizar as provas no vestibular

1 Professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul atuante da E.E.I. E. M.


Anhetengua, compõe o Coletivo de Educação Território Popular, mestra em Estudos
Literários aplicados pelo Instituto de Letras da UFRGS, licenciada em Letras também
pela UFRGS.
2 O Coletivo de Educação Território Popular surge da união de vontades e sonhos de
diversos indivíduos envolvidos com distintas áreas dos saberes. Somos docentes em for-
mação, já formados(as), comunicadores(as) sociais, psicólogos(as), pedagogos(as), psi-
quiatras e advogados(as). Nosso principal objetivo é o de construir e fortalecer um es-
paço educacional de caráter acolhedor, plural e democrático, um Pré-Vestibular Popular
(PVP). Com a criação desse espaço, elaboramos práticas educacionais que possam vir a
contribuir para a emancipação dos sujeitos e pela democratização do Ensino Superior,
atuando junto a camadas populares de nossa sociedade. Texto retirado do site, disponí-
vel em: <https://www.territoriopopular.com/>. Acesso em agosto de 2019. No qual é
possível encontrar mais informações sobre o coletivo. Para acompanhar as atividades
realizadas pode-se acessar também: <https://pt-br.facebook.com/territoriopopular/>.
181
da UFRGS e do ENEM. Nessa ocasião, juntamos as disciplinas de Lite-
ratura, Biologia e Geografia para tratar dos Biomas brasileiros. A inten-
ção era congregar as descrissões do espaço físico e seus elementos (solo,
fauna, flora, relevo, etc.) com o que podemos experimentar de represen-
tações produzidas pelos grupos humanos que compõe os territórios. Para
compartilhar o que surgiu de cada momento relatarei um pouco o que foi
discutido em linhas gerais sobre cada Bioma. O relato se detém também
nos aspectos que dizem respeito à intersecção das áreas e no que fica mais
próximo dos aspectos culturais de cada região.
Primeiro, descrevemos que tipo de vegetação e quais animais ha-
bitavam cada bioma, em segundo lugar falamos um pouco de descrição
sobre o clima de cada região e, também na perspectiva da Geografia, qual
relevo caracterizava aquele bioma específico. Quando entrava a Literatura
e as manifestações culturais de cada região, a conversa ficava um pouco
mais diversa (manifestações de vários tipos, em vários suportes, grupos
étnicos diferentes, etc.), e ficava exposta a diversidade da própria natureza
e como são múltiplas as formas de habitar cada região. Então, percebemos
que assim como o que aparecia em termos de animais e plantas variava
drasticamente, os grupos humanos também se organizam de maneiras
diferentes em cada lugar, e notamos, por vezes, a dificuldade em catalogar
o que existe de mais típico em cada bioma e, em muitos casos, as represen-
tações que conhecemos da região são projeções feitas por outros grupos, o
que nem sempre dialoga com as formas de expressão produzidas a partir
de cada lugar. Dessa forma, o que tentamos evidenciar com essa atividade
foi que em cada lugar existe uma interação específica entre o que é huma-
no e o que é natureza, e que os grupos humanos integram as regiões assim
como os elementos naturais (às vezes de forma horizontal e respeitosa, às
vezes de forma predatória e destrutiva).
Um dos exemplos que se destacou nessa discussão foi o bioma da
Floresta Amazônica, sobre o qual se sabe muito pouco além do que cir-
cula no folclore ou na mitologia já bem pasteurizada que acessamos pelos
meios de comunicação e pela literatura canônica. Nos perguntamos: o que
sabemos sobre a Amazônia? e as respostas foram muito próximas, tanto
entre nós professores quanto entre os estudantes. Tínhamos a ideia de
que a Amazônia é essa floresta imensa que confunde as fronteiras do Bra-
sil e outros países, e também que lá habitam muitos povos indígenas, isso
tudo conflui para a ideia do senso comum. Quando partimos para a descri-
ção dos aspectos físicos, e vegetais já começaram a aparecer informações
novas, o que auxiliou na continuidade do debate, pois existe uma produção
específica dos povos que habitam a Amazônia que não condiz com esse cli-

182
ma de mistério instaurado pela literatura produzida no Modernismo, por
exemplo, que propõe uma Amazônia fascinante e ao mesmo tempo exó-
tica, selvagem e incompreensível em muitos aspectos. Para dinamizar es-
sas perspectivas, trouxemos exemplos de produções que geralmente têm
menos alcance e acabam por não fazer parte do nosso imaginário sobre
a região, por exemplo, as obras de arte de artistas indígenas. Como esse
universo é realmente diverso, escolhemos algumas que já compunham o
nosso repertório: a arte do povo Huni Kuin (representada por uma pintu-
ra de Bane Huni Kuin) e o filme “O Abraço da serpente” (que não é uma
produção feita inteiramente por indígenas, mas lida com essa perspectiva
das cosmologias que habitam a floresta e a sua relação com a colonização,
as fronteiras, as línguas etc.).
Outra parte dessa atividade que provocou um debate bastante rico
foi sobre o bioma da Mata Atlântica, que é um dos biomas mais importan-
tes do nosso país e, no entanto, é um dos mais devastados. Conversando,
percebemos alguns fatos: a Mata Atlântica cobria praticamente toda a fai-
xa litorânea do Brasil, a colonização do território brasileiro começa pelo
litoral e, justo nessa região, estão situados os maiores centros urbanos, e
também os polos de produção cultural mais reconhecidos (por exemplo,
São Paulo e Rio de Janeiro). Tais centros são responsáveis por muito do
que existe de produção editorial (de grande circulação), e também muitas
das representações que partem principalmente das capitais do sudeste,
não representam a natureza da região, mas sim outras paisagens do Bra-
sil, inclusive a floresta Amazônica.
O que também aparece é que a Mata Atlântica já quase não existe
mais, e por isso não encontramos mais grupos que representem a sua re-
lação com a natureza (e, a partir disso, se preocupem mais com a relação
com a cidade, por exemplo). No entanto, quando trouxemos um livro de
fotografias bastante recente (de 2015), produzido por um fotógrafo Gua-
rani Mbyá, Verá Poty, as imagens retratam outra realidade: a Floresta
bastante presente e viva; o povo Guarani Mbyá, que está lá há milhares
de anos, o que faz deles conhecedores de cada parte desse território; tudo
isso representado pelas lentes de um jovem Mbyá, numa produção con-
temporânea que traz elementos da tradição e também tecnologias con-
temporâneas para produzir arte. A Mata Atlântica, pelas fotografias e
palavras do fotógrafo, não é apenas um bioma em extinção, mas é a casa,
fonte de alimento, medicina e tudo mais que é necessário para a existência
do seu povo. Pelas fotografias acessamos outras possibilidades, não só de
conhecer mais sobre a Mata, mas também sobre a cultura e a vida do povo
Guarani Mbya do sul e do sudeste do Brasil.

183
O que ficou também costurando a aula temática foi a questão de
que a ordem imposta pelo sistema colonial impôs outras formas para a
vida dos povos originários de maneira a praticamente destituí-los de seus
meios de sobrevivência. O mundo do colonizador era baseado na perspec-
tiva de que um sujeito precisava ser alguém e ter posses (KUSCH, 2007), e
ainda agir no seu entorno numa tentativa incansável de controle das pes-
soas e da natureza ao redor. O ímpeto moderno, materializado na postura
do ser alguém, dá origem ao que hoje seria uma política do desenvolvimen-
to que, disfarçada de política pública, devasta os territórios impedindo que
as populações que vivem da terra possam “estar no más” (KUSCH, 2007).
Esta distinção entre o ser e o estar é bastante importante para com-
preender o que significou a chegada do colonizador nas Américas: o mun-
do do estar está completamente integrado com a natureza e seus ciclos,
não só no que diz respeito à sobrevivência e obtenção de condições mate-
riais para a vida (água, fogo, alimento, etc.), mas também por seu signifi-
cado cosmológico, sagrado. Faz parte do estar sendo, outra percepção do
tempo e dos elementos da natureza, se vive o tempo da contemplação e se
convive com a incompletude e movência das coisas (KUSCH, 2007). Em
oposição a isso, o mundo do ser cria formas para se afastar da natureza,
construindo um ambiente sintético, onde as coisas são processadas para
individualizar e hierarquizar os grupos humanos. Ailton Krenak3, em suas
falas, frequentemente, retorna a imagem da criança na sociedade não indí-
gena, que é quase sempre questionada sobre o que ela “quer ser” quando
crescer; para o escritor, essa pergunta é extremamente mal formulada,
pois destitui a criança de absolutamente tudo que ela é. Essa obsessão por
querer/ter é o que move o mundo o qual vive em função de seus projetos
fincados no horizonte, quase como hologramas para o futuro. Dessa for-
ma, os processos que se desdobram no caminho são menos importantes,
isso reflete a incapacidade de viver o presente.
É novamente a política do desenvolvimento que aparta as pessoas da
sua condição de pertencentes ao ambiente, num movimento antropocêntri-
co que se opõe ao que Ailton Krenak aponta como uma política de envol-
vimento, que seria justamente a compreensão de que fazemos parte de um
universo no qual as ações e reações estão estritamente conectadas, e qual-
quer movimento que nos coloque à parte disso pode gerar consequências.
O que nós vivemos na América foi de fato a experiência de um dese-
quilíbrio na “zona de contato”, pois a partir do momento em que o coloni-

3 Entrevista concedida ao Geledés- Instituto da mulher negra. Disponível em: <https://


www.geledes.org.br/perguntar-para-uma-crianca-o-que-ela-quer-ser-e-uma-ofensa-is-
so-e-apagar-o-que-ela-ja-e/>.
184
zador europeu chega e impõe as suas regras e modo de vida, está colocado
o conflito e aqueles que foram tomados de assalto ficam à mercê dessa
imposição4. Nas palavras de Pratt: “zonas de contato são espaços sociais
onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com
a outra frequentemente em relações extremamente assimétricas de domi-
nação e subordinação como o colonialismo ou escravagista e seus sucedâ-
neos praticados em todo mundo” (PRATT, 1999).
A convivência na zona de contato não tem exatamente a ver com
o que buscamos quando falamos do conceito de interculturalidade. Para
Catherine Walsh, a interculturalidade busca impulsionar ativamente pro-
cessos de intercâmbio que permitam construir espaços de encontro entre
seres, saberes, sentidos e práticas (WALSH, 2005). O que vivemos é o
conflito constante de estar entre culturas, mas não reconhecer as cultu-
ras implicadas na “zona de contato”. Cada passo dado na direção desse
reconhecimento faz parte da caminhada de desaprendizagem das formas
coloniais, o que se dá a partir de processos de reaprendizagem e de reu-
manização que acontecem vinculados a pedagogias decoloniais (WALSH,
2005). Tomamos o caráter pedagógico pelo seu aspecto praxístico, e pelo
seu uso estratégico como um catalisador de posturas e pensamentos e até
compreensões não só críticos, mas de caráter imperativo para o projeto
decolonial, respondendo ao que se apresenta como o sistema do monólogo
da razão moderna ocidental (WALSH, 2005, p. 31). Em termos práticos,
a ideia é transformar a “zona de contato” em espaços de encontro, nos
quais seja possível promover a interculturalidade crítica e desenvolver o
processo de desaprendizagem das formas coloniais e de reaprender a viver
no mundo mais humano reconhecendo as possibilidades de humanidades.
No que concerne espaços escolares (e espaços educativos formais,
no geral), cabe a nós que estamos implicados na relação de sala de aula
reconhecermos o quanto do colonial ainda se perpetua nas nossas esco-
lhas didáticas e nos nossos textos para então elaborar também por meio
das nossas produções e experiências didáticas, pensamentos que ajudem
a desfazer o que ainda se perpetua do discurso colonial pelas nossas prá-
ticas. Nesse sentido, só seremos intelectuais revolucionários se nos po-
sicionarmos como agentes e ativistas, e também mediadores (na medida
do possível) dessa relação intercultural. Portanto, vale atentar para os
“sobresentidos” para que não sejam um fim em si mesmos, e para que as

4 Ainda que saibamos que, na mesma medida em que houve violência colonial, houve
resistência por parte dos povos dominados, não se pode negar que a truculência do co-
lonizador foi a grande causadora de genocídios que, infelizmente seguem acontecendo,
nunca sem resposta daqueles que lutam para manter seu direito à terra.
185
pesquisas não estejam herméticas (blindadas pelas construções retóricas),
afastando discursos da prática e cristalizando comportamentos que não
geram transformação efetiva.
Dessa forma, enquanto estivermos atentos à potência que emana
dos encontros, sejam eles na escola, nos pré-vestibulares e pré-universitá-
rios, na academia ou na escola, acredito que seja possível construir um co-
tidiano mais “envolvido” com seu entorno, que proporcione participação
ativa (mesmo nas atitudes mais sutis) na desestabilização das estruturas
da colonialidade. Sem superstimar movimentos simples e nem subestimar
a criatividade e a possibilidade de trangressão, seguimos juntos percor-
rendo a trajetória registrada pela memória daqueles que vivem a larga
historia, como nos aponta Rodolfo Kusch.

Referências
KRENAK, Ailton; COHN, Sérgio (org.). Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas (Tomo III). Buenos Aires: Editorial Fun-
dación Ross, 2007.
PRATT, Mary Louise. PRATT, Mary Louise. A crítica na zona de contato:
nação e comunidade fora de foco. In: TRAVESSIA. Publicação do Programa de
Pós-Graduação em Literatura. Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil.
Nº 38, 1999.
WALSH, Catherine. Interculturalidad, conocimientos y decolonialidad.Sig-
no y Pensamiento, XXIV, 2005.
______. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-exis-
tir e re-viver. Educação intercultural na América Latina: entre concepções, ten-
sões e propostas. Rio de Janeiro, v. 7, p. 12-42, 2009.
______. Lo pedagógico y lo decolonial. Entretejiendo caminos. C. Walsh, Pe-
dagogías decoloniales. Quito: Abya-Yala, 2013.

186
A educAção dAs relAções etnicorrAciAis e o diálogo inter-
culturAl: fortAlecendo A necessidAde dAs leis 10.639/2003
e 11.645/2008 nA escolA contemporâneA brAsileirA

Tanise Müller Ramos1

Nas discussões atuais no campo da educação, assistimos a uma gran-


de abertura para reflexões e práticas em busca da implementação das leis
10.639/2003 e 11.645/2008, em que o diálogo intercultural vem-se colo-
cando como uma necessidade para a escola contemporânea, com vistas à
construção de um projeto de educação para as relações etnicorraciais.
Encontro afinidade nas produções da pesquisadora negra Nilma
Lino Gomes (2008), especialmente quando discorre sobre a descoloniza-
ção dos currículos escolares como um desafio e também como uma estra-
tégia para a abertura das culturas negadas e silenciadas historicamente na
escola. Segundo a autora, uma mudança profunda de paradigmas se impõe
hoje no campo da educação, necessitando do trabalho coletivo para um
processo de ruptura epistemológica e cultural.
Tal movimento faz da escola e do currículo territórios de ação po-
lítica, pois pressupõe a luta de povos cuja história e protagonistas duran-
te muito tempo estiveram invisibilizados. Implementar as leis 10.639 e
11.645, portanto, não significa a simples inserção de novos temas e con-
teúdos no cotidiano escolar, mas antes um processo continuo de desco-
lonização dos currículos, dos saberes e das práticas pedagógicas. Neste
sentido, o diálogo intercultural pode servir como estratégia para a des-
construção dos referenciais eurocêntricos que serviram de base em nosso
próprio processo de escolarização e formação enquanto professores.
Outra pesquisadora negra que em muito contribui para tais reflexões
é Petronilha Silva que, juntamente com os pesquisadores Evaldo Ribeiro
Oliveira e Danilo de Souza Morais, produziu um texto intitulado “As leis
10.639/03 e 11.465/08 se fazem necessárias?” (2008). Os autores argumen-
tam em favor destas leis para todos os brasileiros, primeiramente porque
uma grande parcela da população brasileira autodeclarou-se “negra”, “par-
da” e “indígena”, correspondendo a um total de mais de 50% dos brasileiros,
segundo o último censo do IBGE. Portanto, parece-nos que valorizar as
histórias e culturas negras e indígenas na escola é, antes de mais nada, reco-

1 Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Departamento


de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: tanisemuller@yahoo.com.br.
187
nhecer a ancestralidade étnica, racial e cultural que nos compõem enquanto
brasileiros. Significa identificarmo-nos como negros e indígenas e, talvez
assim, superarmos (ou revertermos) a situação de preconceito e desigualda-
de infringida historicamente a certos valores, saberes e modos de ser e viver
no Brasil. Significa, em outras palavras, pensar (ou sentir) de outro modo,
reconhecendo que “os jeitos de ser e viver e as visões de mundo de raízes
indígenas e africanas continuam vigorosos, assim como os de origens asiá-
ticas e europeias.” (SILVA et al, 2008, p. 33). Talvez estejamos vivendo um
tempo de reconhecer que nós mesmos somos compostos por diversidades
etnicorraciais, o que justifica uma educação intercultural.
À luz destes e de outros autores, como professora em exercício
atuando diariamente com crianças de 6 a 12 anos, várias são as reflexões
e estratégias que venho construindo na direção de uma educação das re-
lações etnicorraciais, na qual o diálogo intercultural ocupa um lugar es-
tratégico e potente. Trabalhando atualmente no Colégio de Aplicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul junto às turmas de Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, percebo que importantes experiências
vêm corroborando para este trabalho, fortalecendo a relevância das leis
aqui em questão, como também a necessidade de se pensar uma escola na
perspectiva do diálogo intercultural.
É relevante ter presente que a construção de uma proposta de edu-
cação das relações etnicorraciais no Brasil vem sendo criada e fortalecida
pela emergência de políticas públicas que visibilizam as diversidades no
contexto brasileiro no século XXI. Refiro-me a um conjunto de políticas
– leis, documentos, diretrizes, pareceres, resoluções – que, cada vez mais,
tem-se mostrado sensível à questão da diversidade, considerando (e con-
templando) seus múltiplos atravessamentos: etnicorracial, geracional, de
classe, de linguagem, de território, de gênero, entre outros. Dentre tais
políticas, estão inseridas as leis 10.639 e 11.645, postulando pela visibi-
lidade das histórias e culturas tradicionalmente negadas e silenciadas na
escola. O olhar para as diversidades, assim, parece inaugurar-se e refinar-
-se nesse início do século XXI no Brasil, abarcando múltiplos olhares para
as populações negras e indígenas, dentre tantas outras.
Tais políticas têm, em parte, sido as responsáveis por gerar na institui-
ção escolar um movimento de/pela ressignificação, em que os espaços, tempos
e linguagens historicamente privilegiadas na escola se veem questionadas e in-
dagadas, abrindo a possibilidade de criação de novos currículos, cada vez mais
atentos e sensíveis às diversidades presentes nas salas de aula. Posturas, lin-
guagens, discursos e conceitos etnocentrados e perpetuados na escola vivem
hoje um tempo de crise, pois problematizados quando se pensa na construção

188
de uma escola de qualidade, capaz de garantir o direito de todos à educação.
Assim, podemos pensar o diálogo intercultural como uma necessidade e uma
possibilidade de se ressignificar a organização da escola contemporânea, trans-
formando (e talvez reinventando) seus modos de conhecer, saber, sentir e viver.
Penso que as identidades negras e ameríndias, dentre tantas que
tradicionalmente eram tratadas pela escola como “outras”, “desviantes”,
“anormais”, hoje encontram a possibilidade de serem produzidas de modo
afirmativo na relação com os outros no interior da instituição escolar. As
diversidades nascem, assim, como a emergência de vozes que servem de
contraponto ao etnocentrismo presente na escola. O diálogo intercultu-
ral, portanto, coloca-se como uma forma de descolonizar o espaço escolar,
promovendo também a educação das relações etnicorraciais.
Eis o tempo em que está instaurado o “desafio dialógico”, para usar
as palavras do professor Reinaldo Fleuri (2009). Trata-se do diálogo ne-
cessário para se questionar o absolutismo e a insuficiência da epistemolo-
gia do pensamento único, fundada junto com a escola moderna no século
XVII. O que se coloca, portanto, é a emergência de uma perspectiva in-
tercultural, em que o diálogo entre culturas é condição para potenciali-
zar cada cultura em particular (FLEURI, 2009). Assim, as leis 10.639 e
11.645 institucionalizam o reconhecimento do diálogo intercultural na
escola, ao mesmo tempo em que incitam essa ação na tentativa de garantir
a todos os alunos condições de igualdade e de sucesso escolar.
Reconhecer as diversidades, desse modo, implica descolonizar tudo o
que historicamente fora erigido na escola: os saberes considerados válidos,
os ajustes espaço-temporais, a filosofia, as concepções, as metas e objetivos,
a epistemologia do conhecimento, dentre outros, no sentido de incluir deter-
minadas vozes antes desvalorizadas, descreditadas e marginalizadas no cur-
rículo escolar. Se o etnocentrismo se constitui na possibilidade de enxergar o
mundo apenas sob um prisma único, o diálogo intercultural cria a possibili-
dade de produzir um olhar caleidoscópio na escola, pois aberto à visibilidade
de diferentes formas de conhecer, sentir e viver. Talvez fosse o caso de “natu-
ralizar” na escola também os modos de ver, sentir e conhecer indígena e afro-
-brasileiro, produzindo nos sujeitos uma identificação com tais diversidades.
Um dos caminhos que se coloca para a educação intercultural pode
ser o de historicizar e contextualizar o pensamento científico que se co-
locou como um “etnossaber” na escola ocidental, criando canais de visibi-
lidade para um pensamento profundo latino, ameríndio e afroamericano,
inspirado nos estudos de Rodolfo Kusch (2000). Significa, portanto, inda-
gar a vida cotidiana, desapegando-se dos esquemas únicos europeus com
os quais estamos habituados a enxergar o mundo.

189
Seria o caso de valorizarmos mais o subjetivo e menos o científico?
Ou fazer do reconhecimento da diferença uma forma de ciência, como
inaugura Geertz (1986, p. 82): “Imaginar a diferença (o que não significa,
é claro, inventá-la, mas torná-la evidente) continua a ser uma ciência da
qual todos precisamos”. Estaríamos assim diante da emergência de uma
“ciência nômade”, como refere Gruzinski (2001), pois mestiça em termos
de consideração das diversidades em suas diferentes epistemologias. Nes-
ta direção, o reconhecimento de nossas próprias ancestralidades enquanto
plurais permitiria um maior diálogo entre aquilo que nos aproxima e di-
ferencia, como reflete o pesquisador indígena Daniel Munduruku (2002).
Parece que é isso que Kusch (2000) referiu ao defender a necessida-
de de uma “doutrina da contemplação” na América contemporânea. Isso
implica em uma postura acadêmica, intelectual e docente mais subjetiva,
regionalizada, comunitária, contemplativa, reflexiva, artística... Temos
muito o que ouvir e contemplar com as diversidades ameríndias e afroa-
mericanas para a constituição de uma cosmologia que faça do intercultu-
ral o modo de existência dentro da escola.

Referências
FLEURI, Reinaldo. Desafios epistemológicos e mediações interculturais nas re-
lações interétnicas. In: 32ª Reunião Anual da ANPED. Sessão Especial, 2009.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a Antropologia. [trad.Vera Ribeiro]. Rio
de Janeiro: Zahar, 1986.
GOMES, Nilma Lino. Descolonizar os currículos: um desafio para as pesquisas
que articulem a diversidade étnico-racial e a formação de professores. In: Encon-
tro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 14, 2008, Porto Alegre. Anais
do XIV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Porto Alegre, 2008.
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço [trad. Rosa Freire d’Aguiar].
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Tomo II. Córdoba, Argentina: Editorial
Fundación Ross, 2000.
MUNDURUKU, Daniel. Em busca de uma ancestralidade brasileira. In: Fazen-
do Escola. Secretaria Municipal de Educação de Alvorada. Volume 02, 2002, p.
40-42.
SILVA, Petronilha; OLIVEIRA, Evaldo; MORAIS, Danilo. As leis 10.639/03 e
11.645/08 se fazem necessárias? In: Presente: Revista da Educação. Ano XVI,
n.63, dez.2008, p. 32-33.

190
umA propostA interculturAl por meio
de sAberes quilombolAs

Vanda Aparecida Fávero Pino1


Ana Lúcia Liberato Tettamanzy2

Os saberes presentes na memória das comunidades quilombolas


oferecem um rico subsídio para o trabalho intercultural na escola e na
sociedade. Todavia, essas culturas são silenciadas ou pouco representa-
das no espaço escolar. Toda essa situação é resultado de um processo de
colonização perpetuado na sociedade pela violência e pelo desrespeito às
histórias e saberes desses povos. Nesse processo, as estratégias coloniza-
doras homogeneizaram grande parte dos espaços territoriais e culturais,
interferindo na diversidade sociocultural e ambiental. Além disso, heran-
ça desse processo, a disputa pela propriedade privada de terra é perene, o
que faz com que esses povos lutem permanentemente pela sobrevivência e
pelo pedaço de chão que lhes foi negado historicamente, situação que, em
diversos momentos, foi avalizada pelo Estado. Essa disputa faz com que os
grupos mais fortes rechacem qualquer tentativa de representação dessas
culturas e valorização de seus saberes pela sociedade envolvente.
Falando-se das escolas de educação básica da região norte do Rio
Grande do Sul, espaço geográfico em que se situa a presente pesquisa, ob-
serva-se que os jovens que ali estudam têm pouco ou nenhum conhecimento
da existência das narrativas que perfazem a história e a cultura afro-bra-
sileira na região. Muitas vezes nem têm o conhecimento de que existem
comunidades quilombolas na região. Já os jovens estudantes quilombolas,
quando matriculados em escolas de educação básica, são os mais prejudi-
cados nesse processo, pois suas culturas parecem invisíveis no espaço es-
colar, tendo unicamente que estudar as culturas que não representam sua
formação identitária. Silva (1995, p. 195) reflete que as narrativas contidas
no currículo escolar, representam os grupos sociais de forma diferente, pois

1 Técnica em Assuntos Educacionais do IFRS – Campus Sertão. Doutoranda do Programa


de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
linha de pesquisa Literatura e Escrita Criativa; e-mail: vanda.pino@sertao.ifrs.edu.br.
2 Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na área
de Literatura Brasileira. Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). e-mail: atettamanzy@terra.com.br
191
“enquanto as formas de vida e a cultura de alguns grupos são valorizadas e
instituídas como cânon, as de outros são desvalorizadas e proscritas”.
Toda essa situação ocorre no momento em que as instituições de en-
sino discutem estratégias de como trabalhar as culturas afro-brasileiras e
indígenas na escola. A culminância dessa discussão se dá com a implemen-
tação da Lei nº 10.639/2003 que estabelece que nos estabelecimentos de
ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obri-
gatório o estudo da história e cultura afro-brasileira. Embora o Brasil viva
um momento em que, os poucos direitos conquistados pelas populações
negras e indígenas voltem a ser questionados duramente, as lutas e con-
quistas do Movimento Negro resistem a esse cenário, mostrando forças
contra medidas que revestidas de “igualdade”, busquem um retorno a uma
realidade ainda mais desigual. Por isso, a manutenção e aperfeiçoamento
do ensino da história e cultura afro-brasileira deve permanecer sendo par-
te integrante do currículo nas instituições de educação básica, não apenas
por uma normativa curricular, mas pela importância e contribuição do
legado africano à formação identitária de nosso país.
Ao falarmos de cultura afro-brasileira devemos lembrar que práticas
relacionadas a oralidade cumprem um importante papel na sua manuten-
ção e ressignificação. Vale salientar que a cultura oral historicamente foi
a precursora das outras manifestações culturais. Nesse cenário as comu-
nidades quilombolas têm como forte característica a presença de práticas
culturais relacionadas à oralidade que podem ser conhecidas e trabalhadas
pela escola. Os narradores são os próprios moradores que no cotidiano
do quilombo significam e ressignificam narrativas por meio da audiência
de seus pares, interlocutores ativos. Dessa forma, é importante ter claro
que o ‘texto’ oral não existe sozinho. Faz-se necessária a performance do
contador. “Cada obra de literatura oral é realizada em sua performance
e – ponto relevante aqui – diante de uma audiência em particular. Cada
obra é diretamente influenciada e, portanto, moldada pela audiência, tanto
quanto pelo compositor” (FINNEGAN, 2016, p.72).
Visto a importância da oralidade para as comunidades tradicionais,
essa proposta visa debater o andamento de um projeto de doutorado3 que

3 Cabe elucidar que a estudante Vanda Aparecida Fávero Pino é aluna do Programa de
Pós-graduação em Letras, nível de Doutorado da UFRGS com ingresso Ingressante no
semestre 2017/2, sob a orientação da Professora Ana Lucia Liberato Tettamanzy. Tem
aproximação com as comunidades quilombolas da Arvinha e a Mormaça (Sertão/RS) em
razão de ter participado do processo de ingresso de pessoas pertencentes a essas comu-
nidades como estudantes de nível médio e superior no IFRS – Campus Sertão e, a partir
disso, passado a desenvolver projetos de ensino, pesquisa e extensão nesses espaços.
192
busca investigar em um acervo de narrativas orais de moradores das co-
munidades quilombolas Arvinha e Mormaça (Sertão/RS), a identificação de
saberes afro-brasileiros na região em que as comunidades estão situadas e,
com base nisso, construir oficinas e atividades didáticas que sirvam de apoio
para o ensino da cultura afro-brasileira na escola. Do mesmo modo, objeti-
va a elaboração, em conjunto com os comunitários, de um roteiro turístico
cultural sustentável com vistas à valorização do legado afro-brasileiro na
região, na perspectiva de um pedagogia cultural com base na educação das
relações étnico-raciais em um espaço não formal de ensino.
A busca pelas narrativas já foi realizada por um projeto institucional
do IFRS, o qual a autora coordenou no ano de 2018 e que continua em
atividades no ano de 2019 sob coordenação de outro servidor do IFRS. Na
oportunidade buscou-se junto a este projeto conversar com os moradores
e ouvi-los em suas memórias e vivências.
É importante salientar que o IFRS – Campus Sertão, conhecido na re-
gião como uma instituição de ensino que historicamente trabalhou com cur-
sos na área agrícola e agropecuária4, está situado em uma região de presença
quilombola. No município de Sertão, onde se localiza o Campus, situa-se em
seu espaço territorial duas comunidades pesquisadas. Tendo em conta tal
cenário, o IFRS, dentre outras observâncias, tem como missão promover
“a formação integral de cidadãos para enfrentar e superar desigualdades
sociais, econômicas, culturais e ambientais” (IFRS, 2019). Assim, obser-
va-se como condição fundamental dentro do IFRS – Campus Sertão, a
promoção de ações afirmativas que objetivem o ingresso, a permanência,
a conclusão com êxito nos cursos e a representação cultural de pessoas
pertencentes às comunidades quilombolas que circundam o Campus.
Dessa forma, especialmente desde um ingresso de maior vulto de es-
tudantes quilombolas a partir do ano de 2018 na instituição, começaram a
ser postos em prática projetos de ensino, pesquisa e extensão nas referidas
comunidades. É importante pontuar que um dos pressupostos metodológi-
cos do projeto em questão é que a equipe conte com bolsistas quilombolas
atuantes em todas as frentes do projeto (estudo teórico, trabalhos de campo,
realização de oficinas, etc), prerrogativa que julgamos fundamental para o de-
senvolvimento das atividades. Assim, organizou-se por meio do material de
áudio coletado a proposta de uma oficina que discuta a presença quilombola
na região e a importância dessa representatividade no espaço escolar. Os par-
ticipantes das oficinas têm a oportunidade de conhecer narrativas transcria-
das a partir da narração dos moradores e de performatizar essas narrativas.
4 Embora atualmente trabalhe também com outros cursos nas áreas da Educação, Infor-
mática e Técnicas Comerciais.
193
As oficinas começaram a ser ministradas em novembro de 2018 e já
atenderam centenas de alunos e profissionais da educação em instituições
de ensino. A equipe do projeto também já apresentou os resultados parciais
às próprias comunidades e participou de eventos temáticos e acadêmicos,
estando com uma agenda significativa de atividades. É válido lembrar que o
material organizado para as oficinas não se esgota, apenas perfaz um exem-
plo de como podem ser trabalhados os saberes quilombolas na escola. Dessa
forma, os arquivos de áudio e a transcriação de textos produzidos a partir
das narrativas ficam depositadas no Memorial do IFRS – Campus Sertão5
para consulta de pesquisadores e profissionais da educação. O próximo pas-
so do projeto visa discutir se é interesse da comunidade a proposta de um
roteiro cultural, em que os grupos possam conhecer os marcos históricos,
ouvir as histórias que perfazem as oficinas e refletir sobre a luta e atualidade
dos quilombos por meio do protagonismo dos moradores. As primeiras re-
uniões foram iniciadas e as comunidades estão abertas a construir o roteiro,
mas ainda cabem discussões e decisões. Para esse processo entendemos ser
importante a compreensão do “tempo” das comunidades na reflexão de um
projeto de tal responsabilidade. Nesse sentido, é com esse intuito que bus-
camos trazer os primeiros resultados da pesquisa e discutir a proposta do
roteiro nas VIII Jornadas o Pensamento de Rodolfo Kusch.
A partir da avaliação do trabalho realizado pelo projeto por meio
dos participantes das oficinas, é comum que estudantes, mesmo os que
estão no ensino superior, citarem que não sabiam da existência das comu-
nidades quilombolas na região antes da participação nas oficinas e ma-
nifestarem sua satisfação em relação às histórias que foram contadas e
performatizadas. Muitos estudantes do IFRS – Campus Sertão, com essa
participação, buscaram saber mais sobre os quilombos e envolveram-se
em atividades relacionadas a outros projetos desenvolvidos nas comuni-
dades. Também é avaliado como positivo pelos participantes das oficinas
e pelos comunitários o fato de as estudantes quilombolas participarem
ativamente do projeto, ministrando as oficinas, pesquisando e falando a
partir da realidade que vivem.

5 O Memorial do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do


Sul (IFRS)- Campus Sertão, criado oficialmente em dezembro de 2016, tem como missão
preservar, conservar e difundir a memória da instituição, potencializando a interação da
sociedade com a produção científica, técnica, tecnológica e cultural, além dos testemunhos
históricos de seus personagens. No ano de 2018, junto às ações do Memorial, foi organiza-
do o acervo histórico da instituição. Contando com documentação fotográfica, escrita, tri-
dimensional, bibliográfica, entre outros, há também a salvaguarda de fundos documentais
alusivos aos projetos de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidos no IFRS Campus Sertão.
194
As experiências do projeto nos fazem refletir como é imprescindível
para as instituições de ensino a descolonização do currículo por meio do
diálogo intercultural. O fim do racismo e dos preconceitos vários deve co-
meçar por deslocamentos epistêmicos que descolonizem o saber por meio
da voz de protagonistas negros, quilombolas e indígenas e que esses sejam
audíveis no espaço escolar. Desse modo, será possível construir uma epis-
temologia em que os saberes mencionados eclodam na sala de aula e se
disseminem nos locais de convívio dos discentes e na sociedade em geral.
Ao perceber essa necessidade, há que se ter em conta que de modo
nenhum isso acontecerá se não houver uma ruptura nos processos de si-
lenciamento reproduzidos historicamente pela escola. Por isso, dar voz,
espaço e importância, nas instituições de ensino e na sociedade como um
todo, aos saberes presentes nas comunidades quilombolas apresenta-se
como um passo fundamental para que essa virada epistêmica aconteça.

Referências
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008: Altera a Lei no 9.394, de 20
de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currí-
culo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF, 10 mar. 2008. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon. Prólogo: Giro decolo-
nial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago;
GROSFOGUEL, Ramon. El Giro Decolonial: reflexiones para uma diversidad
epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007. p.
09-23. Disponível em: <http://www.ram-wan.net/restrepo/decolonial/2-pro-
logo-giro%20decolonial.pdf>.
FEIJÓ, E. J. T. La transición para la tradición oral en la era digital. In: RET-
TENMAIER, M.; RÖSING, T. M. K. Lectura y Formación del Lector: estu-
dios en red. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012. p. 34-61.
FINNEGAN, Ruth. O significado da literatura em culturas orais. In: QUEI-
ROZ, Sônia. A tradição oral. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2016. p. 11-24.
INSTITUTO FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (IFRS). Plano de de-
senvolvimento institucional. 2019.
MATO, D. Interculturalidad, producción de conocimientos y práticas socieduca-
tivas. Revista Alceu: comunicação, cultura e política, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11,
p.120-138, jul. 2005.

195
ROMANELLI, O. História da educação no Brasil: (1930/1973). 34. ed. Petró-
polis, RJ: Vozes, 2009.
SILVA, T. T. Currículo e identidade social: territórios contestados. In: SILVA,
Tomaz Tadeu (Org.) Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos
culturais em educação. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 190 a 207.
PINO, V. A. F. Evasão e permanência de estudantes indígenas no IFRS -
Campus Sertão: os discursos que permeiam o processo. 2016. 139 f. Dissertação
(Mestrado em Letras). Universidade de Passo Fundo, 2016.
TETTAMANZY, A. L. L. SANTOS, C. M. dos (Orgs.) Lugares de fala, lugares
de escuta nas literaturas africanas, ameríndias e brasileira. Porto Alegre:
Zouk, 2018.
WALSH, C. Geopolíticas del conocimiento, interculturalidad y descolonializa-
ción. Boletín Icci-ary Rimay, Quito, v. 60, n. 6, p.1-2, mar. 2004. Mensal. Dis-
ponível em: <http://icci.nativeweb.org/boletin/60/walsh.html>.

196
um nosotros Colonial

a um nosotros nas
práticas e lutas
situadas
de

seção 3
“sou umA negrA ângelA, umA iyAlorixá”: vivênciAs de
umA mulHer negrA de terreiro no sul do brAsil

Dandara Rodrigues Dorneles1

O conjunto de saberes aprendido por meio de mitos, cantos, danças,


provérbios e diversas narrativas vivenciadas no cotidiano de um terreiro,
bem como a partir da religiosidade afro-brasileira, é responsável por possi-
bilitar e ensinar uma determinada sabedoria e compreensão de vida e de luta
aos iniciados. Vanda Machado (2013), ao estudar (em sua tese em educação)
as relações entre histórias de vida e o pensamento africano recriado pela
diáspora na comunidade de um terreiro, argumenta que as vivências nesses
lugares ensinam “um jeito próprio de ser e estar no mundo” (MACHADO,
2013, p. 92). O terreiro, como território étnico-cultural fundamentado em uma
matriz civilizatória africana, configura formas de existência e sociabilidade
de homens e mulheres negras a partir de uma ancestralidade.
No que concerne mais especificamente às mulheres negras, que ti-
veram papel fundamental na organização das comunidades-terreiro, bem
como na manutenção das tradições religiosas e culturais africanas no Bra-
sil, os terreiros ou terreiras são lugares onde essas mulheres re-existem (e,
portanto, resistem) com suas trajetórias históricas e políticas. São, inclu-
sive, lugares onde as mulheres negras inventam e reinventam formas de
luta contra as diferentes desigualdades sociais que experimentam no Brasil,
pois, como aponta Lélia Gonzalez (1981), intelectual ativista do feminismo
negro e uma das fundadoras do MNU (Movimento Negro Unificado), as
mulheres negras enfrentam tais desigualdades ao passo em que são aco-
metidas interseccionalmente pelo “processo de tríplice discriminação” por
raça, classe e gênero na sociedade brasileira (GONZALEZ, 1981, p. 42).
Nessa direção, o objetivo deste trabalho é apresentar uma trajetória
de sabedorias e lutas de uma mulher negra de terreiro do Rio Grande do
Sul (RS) – Brasil. Seguindo as pistas de Jurema Werneck (2016), reforço
o entendimento de que não há uma forma única de ser mulher negra, mas
que há, antes, uma diversidade de experiências socioculturais de mulheres
negras com suas “muitas formas de estar no mundo” (WERNECK, 2016,
p.13). Assim, busco retratar, ainda que brevemente, algumas vivências da

1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de


Educação da UFRGS. Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil.
199
Iyalorixá negra, Mãe Ângela (minha mãe de santo e tia biológica), visan-
do dialogar sobre modos de ser que são próprios, bem como re-existências
na construção, pertencimento e liderança de uma comunidade de matriz
civilizatória africana no sul do Brasil. Para tal, destaco a seguir algumas
descrições que fazem parte de uma pesquisa de inspiração etnográfica
apresentada na minha dissertação de mestrado2.

“Sou uma negra Ângela, uma Iyalorixá”

Nascida em Cachoeira do Sul. Família retrosa3. Minha bisa-


vó era afro e também foi escrava. Eu sou uma negra Ângela,
uma Iyalorixá (Mãe Ângela, nov. 2018).

Ângela, Mãe Ângela, Iyalorixá negra de 60 anos. Natural de Ca-


choeira do Sul, cidade situada no interior do estado do Rio Grande do Sul,
vive na periferia de Canoas (região metropolitana de Porto Alegre) há
pelo menos 30 anos. É mulher, esposa, mãe, avó e uma multiplicidade: é fi-
lha de Maria, que era filha de Rita e que, por sua vez, era filha de Afra, mas
conhecida como Nêga Mina. Afra, de acordo com a oralidade que perpassa
seus descendentes, era cativa. Assim, Mãe Ângela possui muitas histórias
e vivências a partir de sua matrilinearidade composta por mulheres ne-
gras, humildes, independentes, fortes, trabalhadoras e que muito lutaram
pelos seus e por uma vida digna na região central do estado gaúcho.
Lélia Gonzalez argumenta, fundada em algumas referências mar-
xistas, que, em um cenário onde a mulher negra brasileira é objeto de um
forte sistema de opressão histórico, “há que se colocar, dialeticamente,
as estratégias de que se utiliza para sobreviver e resistir numa formação
social capitalista e racista como a nossa” (GONZALEZ, 1981, p.49). Em
diálogo com essa autora, Helena Theodoro (2008), mestre em educação
e filósofa, pontua que, dentro de um sistema de exploração, as vivências
afro-religiosas foram e são uma das bases de apoio das mulheres negras,
chamando a atenção para esse fato que se engendra nas discussões sobre
cultura e identidade deste segmento.
Seguindo tal compreensão é possível dizer que Mãe Ângela, enquan-
to mulher negra gaúcha de axé, perpetua a religião que vem sendo mantida
de forma matrilinear na família, consolidando, assim, o fato de as constru-

2 DORNELES, D, R. Saberes, fazeres e educação na terreira: os Barquinhos de Ie-


manjá e os discursos ecológicos. Porto Alegre, 2019. Dissertação de Mestrado. Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Or. Luís Henrique Sacchi dos Santos.
3 Retrosa significaria ser relutante, demonstrar vontade própria.
200
ções das comunidades de terreiro, assim como o protagonismo afro-religio-
so no Brasil serem femininos (CARNEIRO; CURY, 1982). Ela vivencia a
religiosidade afro-brasileira desde a infância, quando sua mãe carnal, Dona
Maria, trabalhava4 com os pretos-velhos (Pai Juvino e Mãe Maria Conga)
e também com Iemanjá em domicílio, atendendo a familiares e conhecidos.
Em continuidade, Mãe Ângela aos 24 anos começou a trabalhar com Ogum
Beira-Mar, também recebendo-o em casa. Com 26 anos se iniciou na nação/
batuque e, depois, aos 37 anos, entre espadas e lanças, fundou a terreira pela
qual zela até hoje: o Centro Africano Ogum e Iansã.
Na Nação, a Iyalorixá é filha de Ogum e Iansã, na Umbanda traba-
lha com Ogum Beira-Mar, Iemanjá, Preto-velho Pai José, Oxóssi e Cos-
me Joãozinho, além de seus guardiões da Quimbanda. Assim, a partir da
religiosidade afro-brasileira, na qual as pessoas são dotadas de potências
e possibilidades, uma mulher pode suportar no seu corpo a manifestação
de diferentes entidades (masculinas, femininas, crianças, idosos) com dis-
tintas intensidades (mata, praia, rua). Tal como apontam Carneiro e Cury
(1982), em um estudo acerca da mulher no candomblé, as mulheres de ter-
reiro experimentam outras dimensões de existência a partir do culto aos
orixás, como a masculinidade e a senioridade, diferente das concepções
judaico-cristãs (CARNEIRO; CURY, 1982). Em suma, esses e os demais
aspectos aqui descritos fazem parte, de uma forma ou de outra, da sua
construção identitária, bem como implicam nas formas através das quais
aprendeu e ensina os modos outros de existência a suas filhas de santo.
Ainda, como apontam Carneiro e Cury (1982), “a liderança religiosa
dessas mulheres negras representa um fenômeno inusitado no seio de uma
sociedade evidentemente patriarcal e preconceituosa como a brasileira”
(p. 121). As formas como as comunidades afro-religiosas se estruturam
geram vivências que, em outros estratos sociais, são majoritariamente ne-
gadas às mulheres negras, tal como liderança, protagonismo, autoridade,
valor e prestígio. A vida social da mulher negra dentro de uma comunida-
de afro-religiosa se diferencia daquela que lhe é construída/oferecida fora
desses espaços, onde enfrentam maiores condições de desigualdade, pois,
como aponta Mãe Beata de Yemonjá (2008), se “ser mulher no mundo
contemporâneo é uma tripla jornada – que dirá ser mulher afro-brasileira,
religiosa e iyalorixá” (YEMONJÁ, 2008, p. 21). Dessa forma, os terreiros
que possuem a liderança e atuação do segmento negro feminino são locais
onde essas mulheres desempenham, para além de um “papel” religioso/

4 Na religião, o verbo trabalhar corresponde ao ato de incorporação de uma entidade,


no qual se trata de uma expressão êmica para designar a manifestação da divindade no
corpo do filho em rituais da umbanda e quimbanda.
201
cultural, suas potências políticas e sociais dentro da comunidade (CAR-
NEIRO; CURY, 1982; GONZALEZ, 1981).
Mãe Ângela, mulher negra, nascida e criada na simplicidade, auxilia
muitas pessoas em situação de vulnerabilidade social da própria vizinhan-
ça/comunidade onde a terreira se encontra. Ela vem organizando e desen-
volvendo projetos educacionais, atividades para as crianças, exposições de
trabalhos artesanais locais, ações de solidariedade com alimentação, além
de ser fundadora de um ponto de cultura5 e criadora de um time de futebol
feminino, entre outras ações. Mais do que isso, Mãe Ângela lidera uma
terreira, zela nossos orixás, vive e luta pela realidade do entorno e, den-
tre outras coisas, ensina suas filhas de santo a serem guerreiras. Em suas
palavras: mulher guerreira tropeça, mas não cai e sempre com a cabeça erguida.
De família retrosa, bisavó afro, vó cativa, com uma mãe biológica que
lhe ensinou a religiosidade, ela é a negra Ângela, uma Iyalorixá. Ela ecoa
as Vozes-mulheres que atravessam, como refere Evaristo (2017)6, a linha do
tempo, do porão de navio negreiro à liberdade. Assim, evocando Nunes
(2014), em seus estudos sobre Ser mulher, sul mulher, Mãe Ângela, com sua
perspicácia, garra e “movimento”7, é uma das mulheres do Sul, que são regi-
das por uma ancestralidade africana, que “fazem vento” (figura 1).
Assim, como Mãe Beata de Yemonjá (2008) menciona, as iyalorixás
possuem um legado de orientação, cuidado e acolhida a todos, um legado de
luta junto à sociedade (YEMONJÁ, 2008). São mulheres negras que lutam,
resistem, reinventam estratégias e educam cotidianamente através das suas
sabedorias, das suas vivências. Com suas multiplicidades vivem, pensam,
pertencem, lideram comunidades reconstruindo mundos e modos de estar
junto. Com suas específicas formas de ser e se compreender, bem como de
produzir conhecimento e existência, elas vivem e perpetuam a ancestralida-
de, a religiosidades e os legados afro-brasileiros do norte ao sul do Brasil.

5 Pontos de Cultura são projetos que foram financiados e apoiados institucionalmente


pelo Ministério da Cultura do Brasil. Visam à realização de ações de impacto sociocultu-
ral que desenvolvam e articulem atividades continuadas em comunidades.
6 Vozes-mulheres é um dos poemas de Conceição Evaristo publicado em “Poemas da re-
cordação e outros movimentos”. EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros mo-
vimentos. 3. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
7 Foi Nunes (2004) que, ao discutir sobre o movimento de mulheres negras quilombolas no
enfrentamento do racismo e sexismo na região sul do país, aponta, dentre outras coisas, a
expressão “nós [mulheres quilombolas] temos que fazer vento”, ouvida em campo. Tal ex-
pressão traria o sentido do movimento de mulheres negras para a emancipação e liberdade.
Na família biológica de Mãe Ângela “fazer vento” é usado para designar ações na busca de
objetivos que modificam estados atuais. Movimentos para a realização de conquistas.
202
Figura 1. Mãe Ângela em evento do Movimento Negro Unificado (MNU)
no Ponto de Cultura Santa Bárbara, Canoas (RS). 14/07/2018. Fotografia
de Margarida Matos (filha de santo).

203
Referências
CARNEIRO, S.; CURY, C. O poder feminino no culto aos orixás. In: NASCI-
MENTO, E. L. (org.). Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e
ambiente. 2008. 1 ed. São Paulo: Selo Negro, 1982. p. 117–143.
GONZALEZ, L. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem políti-
co-econômica. In: Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira
pessoa. 2018. 1 ed. UCPA União dos Coletivos Pan-Africanistas, 1981. p. 34–53.
MACHADO, V. Pele da cor da noite. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2013.
NUNES, G. H. L. Ser mulher, sul mulher: “a gente tem que sempre fazer vento!”
In: SILVA, J. DA; PEREIRA, A. M. (Eds.). O Movimento de Mulheres Negras:
escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no Brasil. 1a ed. Belo
Horizonte: Nandyala, 2014. p. 179–203.
THEODORO, H. Mulher negra, cultura e identidade. In: NASCIMENTO, E. L.
(org.). Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. 1. ed.
São Paulo: Selo Negro, 2008. p. 85–95.
WERNECK, J. Introdução. In: EVARISTO, C. Olhos d’água. 1. ed. Rio de Ja-
neiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 13–14.
YEMONJÁ, M. B. DE. Primeiras palavras. In: NASCIMENTO, E. L. (org.).
Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. 1. ed. São Pau-
lo: Selo Negro, 2008. p. 21–22.

204
lA utopíA del fundAmento: Aciertos fundAntes de lAs
cienciAs en occidente y lA construcción de lA figurA del
productor situAdo de conocimientos

Daniel Badagnani1

Sería una tarea borgiana hacer una epistemología no eurocentrada


antes de construir un conocimiento nostroamericano. Pensemos con De
Certeau (1996) en la metodología científica como una técnica, una estrate-
gia, un espacio que nos es dado. Sabemos que están en relación dialéctica
con teorías, tácticas y lugares con los que las comunidades tanto en el cen-
tro como en la periferia vienen practicando las ciencias, y en su andar van
configurando ese espacio, que se impone como mirada hegemónica. Lo que
De Certeau pensó en el centro, aquí en la periferia adquiere un matiz no
menor: el plano, la estrategia impuesta, corresponde a la mirada hegemó-
nica en el centro del sistema mundo, y está particularmente desencajada
de esas capas del palimpesto que están cubiertas y con la palabra negada.
La táctica es aquí fagocitación en el sentido que le da Kusch (1962), y las
prácticas científicas tienden entonces a resultar disfuncionales. Veremos
más adelante que la expresión concreta de ese desencaje es el extractivis-
mo intelectual en que consiste con frecuencia la práctica científica en la
periferia cuando es mera mímesis de la del centro. La pregunta es ¿Cómo
producir conocimientos pertinentes, sin desacoplarse de ese espacio hege-
mónico (pues no queremos quedar en desventaja indescontable respecto
del centro del sistema mundo) y al mismo tiempo adquirir unas epistemo-
logías propias, unos modos de conocer geosituados? No nos basta con la
mera resistencia de las tácticas, queremos producir estrategias contrahe-
gemónicas. Pero tenemos un cotidiano demandante: nuestros laboratorios
usan insumos y métodos del centro, necesitamos publicar de acuerdo a los
estándares del centro. La producción de saberes epistemológicos es igual-
mente demandante, pretender de todos nuestros investigadores ese doble
rol es claramente una propuesta condenada al fracaso.
En este punto resulta imprescindible salir de la mirada justificacio-
nista en que con frecuencia ha caído la epistemología hegemónica, que
pretende entender por qué “la ciencia” es un modo superior de conoci-
miento, sin problematizar esa presunta superioridad. Esa práctica hace

1 Instituto de Ciencias Polares, Recursos Naturales y Ambiente (ICPA), Universidad


Nacional de Tierra del Fuego (UNTDF), Fuegia Basket 251, 9410, Ushuaia, Argentina
205
casi imposible el cuestionamiento de las prácticas científicas, lo cual puede
no ser crítico allí donde esas prácticas resultan funcionales, pero en la
periferia donde esas prácticas están desencajadas resulta imperdonable.
Es imprescindible pues comprender que no hay un método que dé ga-
rantías de ningún tipo, sino más bien unas prácticas que cada generación
consagra, y que cambian con los años y las transformaciones sociales y
económicas. La epistemología ocurre a posteriori de la práctica científica,
al igual que la historia de la ciencia, de la cual suele servir como linea his-
toriográfica, y por lo tanto no puede ser nunca un fundamento, y en par-
ticular de ningún modo es una norma. Las prácticas científicas en la fron-
tera del conocimiento simplemente están ocurriendo. Busque el lector una
epistemología de la teoría de cuerdas o de la nanotecnología. Los cimien-
tos del conocimiento científico están en la cultura popular, así como los de
la epistemología están en las prácticas concretas de las ciencias (BADAG-
NANI Y KNOPOFF 2016). Más aún, los significados de la producción
científica son un campo de disputa que ocurre en el ágora: los medios, el
sistema educativo, las producciones culturales. En ese ámbito dinámico en
el que los científicos nos desenvolvemos como verdaderos militantes, en
un diálogo nada sencillo con educadores, periodistas, “policy-makers” y
disidentes científicos como los terraplanistas y los antivacunas, es donde
los productos de la ciencia (supuestamente papers y presentaciones en
congresos) son puestos en valor o disvalor, articulados con representacio-
nes más amplias, asimilados como posibilidades para la técnica, triunfos
del intelecto, sofisticaciones intrascendentes, etc. Lo que para un cientí-
fico individual o un grupo puede ser la lucha por presupuesto o mano de
obra para sus tareas, para la sociedad se vuelve significado, elecciones de
proyectos de vida, compromisos epistémicos (BADAGNANI y MONTES
DE OCA 2017, PETRUCCI, BADAGNANI y CAPPANNINI 2019).
La propuesta que queremos avanzar aquí se inspira en una situa-
ción análoga en la enseñanza, en la relación siempre en tensión entre las
prácticas docentes y el saber didáctico y cuya resolución propuesta es la
innovación sistemática (JIMÉNEZ y PETRUCCI, 2004) y consiste en la
adopción, por parte de los investigadores, de unas prácticas que generen
saber metodológico en acto, que a posteriori puedan ser sistematizadas
por epistemólogos. Existen instancias en las que los investigadores plani-
fican y las instituciones evalúan la investigación. Esas instancias deberían
aprovecharse para hacer un diagnóstico decolonial: ¿Cómo se manifiesta
en concreto el carácter periférico de nuestra investigación? ¿Compren-
demos los circuitos de apropiación de valor de nuestras producciones?
¿Podemos mitigar en algo nuestras dependencias del centro y fortalecer

206
a nuestros colegas periféricos? A partir de este diagnóstico, nuestro plan
para el siguiente ciclo deberá incluir propuestas concretas para aliviar
nuestra situación periférica. Propuestas pequeñas y realizables, que es-
tarán muy lejos de resolver la problemática. Lo importante es dar pasos,
avanzar. También es importante explicitar los instrumentos con los que
evaluaremos el éxito o no de nuestras propuestas. La evaluación será par-
te del diagnóstico en el siguiente ciclo. La instancia de sistematización
puede implementarse a nivel institucional como parte de la evaluación de
la actividad científica, y esa sistematización puede ayudar a diseñar los
formatos de los futuros proyectos y sus modos de evaluación.
No podemos saber a priori cuál sería el resultado de aplicar este
proceso de reflexión sistemática. Por lo pronto se trata de una forma con-
creta de responder a la demanda de los investigadores periféricos que to-
mamos contacto con estas temáticas y somos sensibles a ellas: todo muy
interesante, pero ¿Cómo se hace en concreto la ciencia decolonial? Nos
hemos propuesto recorrer ese camino en nuestra práctica concreta como
investigadores en Ushuaia (Tierra del Fuego, Argentina), habiendo pro-
ducido nuestras primeras reflexiones a priori en Badagnani (2018), y que
encuentran un correlato con los hallazgos de Albarracín (2012) para las
prácticas científicas en el Centro Austral de Investigaciones Científicas
(CONICET), ubicado en Ushuaia. Nuestra reflexión ocurrió en parale-
lo con nuestra formulación de un proyecto de investigación que articula
producción de modelos para la Física de Partículas, el análisis de imáge-
nes satelitales de Radar de Apertura Sintética, la simulación de corrien-
tes oceánicas, la simulación de la asimilación de cambios tecnológicos en
territorios inhomogeneos y estudios de Bioimpedancia, la producción de
software específico de dominio para el desarrollo de esos modelos jun-
tamente con el desarrollo de una metodología de gestión y planificación
de estos proyectos, así como la vinculación científica y tecnológica desde
las políticas públicas con los agentes relevantes del territorio, y el desar-
rollo de redes de conocimiento tendientes a su desarrollo. En la fase de
planificación se partió del diagnóstico de que quienes llevamos adelante
investigaciones de lo que suele llamarse “ciencias básicas” con alto con-
tenido de herramientas cuantitativas trabajamos en soledad, y decidimos
nuestro curso de acción a partir de la producción esperada y los recursos
disponibles. La primera se piensa en función de las revistas en las que
se espera poder publicar, los segundos ocurren en forma de subsidios a
partir de evaluaciones que consideran como parámetro las publicaciones
ya mencionadas. Cuando los subsidios son internacionales los recursos
suelen ser mayores, y claramente la planificación estratégica está fuera

207
de nuestras manos, pero incluso cuando los subsidios son locales, dado
que las publicaciones tienen lineas editoriales concordantes con los in-
tereses en el centro del sistema-mundo, indirectamente la planificación
estratégica está igualmente fuera de nuestras manos. El resultado neto
es un esquema extractivista, en el que recursos altamente formados con
financiación local producimos para y en función de intereses que no son
locales y que escasamente llegamos a comprender. El plan propuesto fue
dar continuidad a nuestras respectivas lineas, pero iniciando por un lado
un acompañamiento mutuo, y por otro un diálogo interdisciplinario con
el fin de lograr cooperaciones significativas. Esperamos que en el mediano
plazo esta cooperación nos permita apropiarnos localmente de parte del
valor intelectual de nuestras producciones. En el corto plazo, el beneficio
provendría de contar con los desarrollos de cada linea como recursos de
las restantes, desarrollando capacidades locales que sean transversales.
La comprensión del valor potencial de nuestras producciones y de su po-
sible relevancia para el territorio fueguino deberá servir como guía para
la planificación estratégica de nuestras propias actividades. Finalmente,
la reflexión sistemática nos permitirá hacer conscientes nuestras propias
prácticas y nuestras innovaciones metodológicas, permitiéndonos evaluar
su funcionalidad. Por último, este proceso nos puede permitir apropiarnos
subjetivamente de nuestras producciones, alejándonos paulatinamente de
la alienación que el mero acomodo acrítico a la situación dada tiende a
producir en el cientfico de la periferia.
Al momento de redactar este trabajo, el grupo que informalmente
hemos llamado “Sistemas Complejos” se encamina a cumplir los diez me-
ses. Se encuentran en ejecución un proyecto acreditado y financiado por
la Universidad Nacional de Tierra del Fuego que articula las lineas de
investigación ya mencionadas, y un proyecto de extensión también acre-
ditado y financiado por esa Universidad, que está iniciando un camino de
articulación con programas locales de formación continua de cuadros téc-
nicos para la industria. Consideramos cumplido un objetivo no menor: ya
no estamos solos y una incipiente comunidad ya se percibe claramente. La
colaboración en aspectos científicos y técnicos ya tiene lugar, en algunos
casos con gran vigor.

208
Referencias
ALBARRACÍN, D. Colaboraciones científicas internacionales en el extre-
mo sur. El caso del CADIC de Tierra del Fuego (Tesis de maestría. Bernal,
Universidad Nacional de Quilmes), 2012.
BADAGNANI, D. y KNOPOFF, P. Astronomía a ras del suelo: una didáctica
para la emancipación. V Jornadas El Pensamiento de Rodolfo Kusch, Mai-
mará, 2016.
BADAGNANI, D. y MONTES DE OCA, S. “Epistemología popular: apropia-
ción del sentido de la imaginación científica como fundamento de las ciencias na-
turales”. II Congreso Internacional Interdisciplinario de Pensamiento Crí-
tico: Pensar América en Diálogo / VI Jornadas El Pensamiento de Rodolfo
Kusch / Foro de Pensamiento Filosófico Colombia 2017. Bogotá, 2017.
BADAGNANI, D. Ciencia en la periferia: una propuesta de reflexión sistemática
para generar en acto una epistemología autónoma. V Jornadas “El Pensamien-
to de Rodolfo Kusch”, Caseros, 2018.
DE CERTEAU, M. La invención de lo cotidiano: artes de hacer (Vol. 1),
Mexico, Universidad Iberoamericana, 1996.
JIMÉNEZ, M. R., Petrucci, D. La innovación sistemática: un análisis continuo
de la práctica docente universitaria de ciencias. Revista Investigación en la
Escuela 52, Sevilla, pp. 79-89, 2004.
KUSCH, R. América Profunda, Buenos Aires, 1962.
PETRUCCI, D., DADAGNANI, D. y CAPPANNINI, O. Las didácticas de las
ciencias desde una perspectiva decolonial. V Jornadas de Enseñanza e Investi-
gación Educativa en el campo de las Ciencias Exactas y Naturales (Ensena-
da, 8 al 10 de mayo de 2019). 2019.

209
políticA enAméricA profundA: lA lecturA del peronismo
en “lA negAción en el pensAmiento populAr”

Domingo Ighina1

Rodolfo Kusch entendió por geocultura una categoría que apel-


maza la cultura con el espacio, y mediante la cual un grupo reviste de
sentido su lugar y construye un baluarte de su existencia, desde donde
dialoga con otras geoculturas. En todo caso la geocultura implica suje-
tos culturales siempre en construcción a partir de sus decisiones estra-
tégicas producidas desde una situacionalidad. Así, no habría una esencia,
una ontología nacional por ejemplo, o de otro modo un saber universal,
sino un conocimiento corruptor de lo imperial, en tanto ese saber se for-
ja en la experiencia de un grupo en un espacio que produce sentidos que
dan cuenta de su transformación. No se trata de un saber telúrico, sino
de un dinamismo no determinado por el devenir universalizante de occi-
dente. La geocultura es el espacio como lugar de conocimiento. Implica
la asunción de culturas surgidas por efecto de la experiencia imperial,
pero que no son meras replicantes en tanto surgen de la corrupción de
esta y, por defecto, buscan el amparo y el equilibrio frente al saber, el
poder y el ser de la colonialidad.
Epistemológicamente, cambiar el eje de discusión en torno a una
cultura o culturas nacionales o latinoamericanas, hacia otro eje que hable
de geoculturas americanas, exige considerar los contextos vitales y co-
tidianos donde el pensamiento y los rituales se dan de modo tal que los
sujetos americanos no occidentales, en tanto constructores del sentido del
espacio, se convierten en gestores de un saber dialogante que configurará
una imagen de sí situada, no ajena a la episteme imperial – que los atravie-
sa en tanto los margina o excluye -, pero no subalterna.

El concepto de unidad geocultural lleva incluso a cuestionar filosóficamente


la posibilidad de un saber absoluto al modo como lo propone el pensamiento
occidental. […] Si se logra fundar la observación de que todo pensamiento
es naturalmente grávido y tiene su suelo, cabría ver en qué medida dicha
gravidez crea distintas formas de pensamiento. Quizás se podría ampliar
entonces todo lo que se refiere a una antropología del pensamiento en el

1 Universidad Nacional de Córdoba


211
sentido de no establecer ad hoc un pensamiento así llamado universal, sino
de descubrir en la gravidez del pensar […] (KUSCH, 1078: 17)

La negación de la posibilidad de un saber universal, en tanto no pue-


de destruirse la condición de pensar geoculturalmente, supone una cor-
rosión de las ontologías nacionales basadas en la identidad entre nación
y progreso, tan comunes en América Latina. Una corrosión que por eso
mismo cuestiona los fundamentos políticos de la historia de occidente en
América y abre la brecha del reconocimiento de sujetos otros, marginados
o excluidos, heterogéneos en tanto geoculturales.
No interesa tanto la postulación por parte de Kusch, como de mu-
chos de los pensadores argentinos del siglo XX, de la existencia de un
pueblo homogéneo, sujeto de pensamiento alternativo al imperial, sino
más bien la asunción de la exterioridad de la episteme imperial en tanto
protagonista de una historia situada. Esa asunción, que por otra parte
surge desde la experiencia política de encontrar a esos sujetos en la casa
de gobierno, en la Plaza de Mayo, en los resultados electorales, en las
huelgas o en las resistencias contra los sistemas de dominación, encuentra
en la geocultura la fuente proteica para entender esos dos movimiento
que mencionamos, ahora en clave epistemológica: uno centrífugo, en tan-
to es la apertura para el reconocimiento sucesivo y simultáneo de los suje-
tos otros; centrípeto otro, en tanto disputa críticamente y con coherencia
la epistemología desplegada por el imperio. Esto último en un sentido
unificador: la corrupción del absoluto occidental: el progreso y sus instru-
mentos, la ciencia y la tecnología.
Así, el trabajo que se propone, indagará, desde los conceptos de
“entrancia” y “geocultura”, la importancia de “la negación” para com-
prender la vigencia de los movimientos políticos populares, especial-
mente del peronismo, como una constante de la historia en la pequeña
historia de las naciones. Se intentará entonces dar cuenta de la “finalidad
de subsistir” por parte de ese “subsuelo social”, descubriendo así un “ho-
rizonte menos colonial”

212
Referencias
IGHINA, Domingo. Fraternidad tiempo heterogéneo: sobre los límites de la
fraternidad en la modernidad latinoamericana, en CERVIÑO, Lucas (comp.):
Fraternidad e instituciones políticas. Propuestas para una mejor calidad
democrática, Buenos Aires, Ciudad Nueva, 2012.
KUSCH, Rodolfo. El pensamiento indígena y popular en América, Buenos
Aires, Hachette, 1977.
______. Indios, porteños y dioses, Buenos Aires, Secretaría de Cultura de la
Nación y Editorial Biblos, 1994.
______. La negación en el pensamiento popular, Buenos Aires, Las Cuaren-
ta, 2008.
PERÓN, Juan Domingo. Latinoamérica ahora o nunca, Buenos Aires, Edicio-
nes Argentinas, 1973.
______. Doctrina Peronista, Buenos Aires, CS Ediciones, 2005.
SCALABRINI ORTIZ, Raúl. Los ferrocarriles deben ser del pueblo argenti-
no, Rosario, Obras Completas, tomo IV, Editorial Fundación Ross, 2008.
TORRES ROGGERO, Jorge. Hipólito Yrigoyen: la red radiant, en Silabario. Re-
vista de Estudios y Ensayos Geoculturales, Córdoba, UNC, Nº 2, Año II, 1999.

213
A crise AmbientAl e As mediAções pedAgógicAs
como lócus de (des)coloniAlidAde

Eloisa de Souza Santos1


Michelle Mendes Ribeiro2

Introdução

A proposta deste texto é apresentar questões que indicam (i)


como o contexto das discussões ambientais se configura em lócus de co-
lonialidade e (ii) destacar a educação formal e não formal como campo de
mediações pedagógicas importante e propício para a superação do pen-
samento colonial reproduzido de modo oficial, através de atos do Estado
e seus agentes (BOURDIEU, 2014), ao mesmo tempo em que, de modo
transversal, (iii) evidencia a ética ambiental como dimensão indispensá-
vel para o desenvolvimento da docilidade, conexão e apego (ELALI &
CAVALCANTE, 2018) à nossa casa comum. Os procedimentos metodo-
lógicos se baseiam na leitura e discussão interdisciplinar dos diálogos
com autores da Psicologia Ambiental, Filosofia Ambiental, Educação
Ambiental, alicerçados no aporte teórico sobre colonialidade, coloniza-
ção e descolonização.

Colonialidade nas questões ambientais

As discussões ambientais envolvem ramificações que reverberam de


modo imbricado nas questões sociais, políticas e econômicas, refletindo
em injustiça social, acentuando a concentração de renda e mantendo as
desigualdades (ARRETCHE, 2015). “A história humana já conheceu vá-
rias crises, mas a assim chamada “civilização global” (...) jamais enfrentou
uma ameaça como a que está em curso” (DANOWISKI; VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, P. 20). Pensar o ambiente, dentro da realidade social na
qual estamos imersos, de modo consciente e livre (FREIRE, 2014) pres-
supõe a busca pelo equilíbrio e a harmonia entre os povos, seres bióticos e

1 Mestra em Ciências Ambientais e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade


Federal do Amazonas. Professora da Secretaria Municipal de Manaus – SEMED e da
Secretaria Estadual do Amazonas - SEDUC.
2 Mestranda em Educação na Universidade Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.
215
abióticos, bem como de respeito às tradições dos saberes e aos ecossiste-
mas, baseando-se na ética da prudência e na heurística do temor para que
os humanos e extra-humanos, desta e das próximas gerações, tenham um
habit digno para si e porque os seres que vivem, independentemente de
sua (des)humanidade, merecem viver (JONAS, 2015). De fato, como diz a
Carta da Terra em seu preâmbulo, precisamos “formar uma aliança global
para cuidar uns dos outros e da Terra ou arriscar a nossa própria destrui-
ção e a da diversidade da vida” (BOFF, 2012, p.4).
Contudo, a meta de efetivação de respeito entre todos e para com o
bem comum ainda paira apenas no campo inteligível, descolado do mundo
sensível. Considerando que os biomas não atuam sobre o planeta de modo
isolado, mas que há interdependências que contribuem para a qualidade
da vida global era de se esperar que o esforço e a responsabilidade am-
bientais fossem prioritariamente vindas do norte dito desenvolvido. No
entanto, como exemplo, é possível citar que países mais pobres investem
em conservação da vida selvagem muito mais que países ricos, segundo
pesquisa desenvolvida na Universidade Oxford (2017).
Outro exemplo passível de reflexão é a proposta de pagamento por
serviços ambientais que surge, em última análise, como monetização do
capital ecológico remanescente, sobretudo no hemisfério sul. Está dado
que os biomas e ecossistemas dos países do norte global não apresentam
grandes extensões preservadas ou conservadas, restando extrair dos ter-
ritórios do sul benefícios provenientes de áreas protegidas. Nisso persiste
o processo de colonialismo e colonialidade. Para compreender a distinção
entre os termos, Streck e Adams afirmam que

[...] em síntese, enquanto o colonialismo tem claras ligações geográficas e


históricas, a colonialidade atua como matriz subjacente ao poder colonial
que seguiu existindo após as independências políticas de nossos países e
que hoje se perpetua pelas variadas formas de dominação norte sobre o sul
(2014, p. 36).

Em consenso, o sociólogo peruano Aníbal Quirano (2002) afirma


que o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade. A racio-
nalidade que induz os povos do sul se reconhecer, erroneamente, como
inferiores, segue hegemônica, fruto do “proceso que implicó, de una parte, la
brutal concentración de los recursos del mundo, bajo el control y em benefício de la
reducida minoria europea de la espécie” (QUIJANO, 1992, p. 11). Tal proces-
so histórico repercute no espectro social, político, econômico, cultural e
ideológico, arraigado no processo de subjetivação, no qual a colonialidade
interfere na compreensão de mundo dos sujeitos (FREIRE, 2014).
216
Mediações pedagógicas e a superação da colonialidade

Qual deve ser, então, o ethos que nos permite conviver, vindos das
mais diferentes regiões da Terra, com suas diferenças e valores éticos?
Como é possível aos sujeitos a saída da menoridade, subserviente e servil,
para a maioridade que implique em coragem de fazer uso do seu próprio
entendimento que culmine na ousadia de conhecer (KANT, 2008) para
além do que está posto pela colonialidade? O esclarecimento exige liber-
dade, logo a educação deve persistir na meta de formar sujeitos livres,
reflexivos e não reflexos (FREIRE, 2018). É neste contexto que a prática
pedagógica pode suscitar mecanismos de ‘autodefesa’ das populações do
sul indicando alternativas de superação da colonialidade e promovendo a
transformação social.
No processo de mediação, entendida como relação entre o mediato
e o imediato para a chegada do conhecimento (ADAMS, 2018) “é central
a relação dialética entre a prática e a teoria, e a práxis, na relação com
mediações, implica nova postura diante da realidade e ação coerente com
um engajamento na luta pela transformação da realidade local, na relação
com o mais amplo contexto” (ADAMS et. al., 2017, p.11). O imediato per-
cebido e apreendido pelos sentidos e o mediato refletido pela razão/cons-
ciência redundam no processo de mediação que pode se dá tanto na esfera
da educação sistemática, como na assistemática de forma a culminar em
processos de descolonialidade.
Os problemas ambientais impactam diretamente na qualidade da
água, do ar, na mobilidade urbana, na ocupação irregular de terras, nos
produtos cultivados com agrotóxicos, no descarte de resíduos sólidos
em lixões ou aterros próximos às moradias de pessoas mais carentes,
resíduos que, por vezes, são provenientes de países do norte que des-
cartam os seus dejetos nos territórios do sul. Tais questões refletem
apenas impactos diretamente antropológicos, contudo, crimes como
o desmatamento, queimadas, contaminação das águas, proliferação de
vetores de doenças, enchentes, etc. atingem os humanos, mas também
o equilíbrio ecossistêmico que produz os serviços ambientais favorá-
veis à vida de todos. Há animais, cujo habitat foram totalmente ocupa-
dos pelo mercado imobiliário, correndo riscos iminente de extinção. A
questão ética que se impõe é: Os seres extra-humanos (HANS, 2015)
não têm direito a viver ou não possuem valor intrínseco? A proposta
não é radicalizar ao ponto de ter nos animais nenhuma possibilidade
de consumo, por exemplo, mas compreender que a palavra de ordem é
a busca por equilíbrio.

217
Tais questionamentos suscitam temas geradores (FREIRE, 2014)
importantes que, fazendo parte das vivências e do conhecimento prévio
dos educandos, são passíveis de problematização e reflexão que promovam
a superação das contradições e desigualdades, sobretudo daquelas decor-
rentes do processo de colonialidade presente nos discursos oriundos de
um currículo colonizado e de práticas reflexas e não refletidas (FREIRE,
2018) que reproduzem o olhar colonizador, limitando a possibilidade de
esclarecimento e a saída da menoridade dos sujeitos (KANT, 2008), inte-
grando-os e não adaptando-os aos cosmos de modo decolonial.

218
Referências
ADAMS, T.; STRECK, R. D.; MORETTI, C. Z. (Orgs.). Pesquisa-Educação:
Mediações para a transformação social. Curitiba: Appris Editora, 2017.
ADAMS, T. Reflexões sobre mediações pedagógicas, trabalho e tecnologias. Ca-
dernos de Pesquisa, v. 25, n. 1, pp. 179-193, 2018.
ARRETCHE, M. (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mu-
dou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora UNESP; CEM, 2015.
BOFF, L. A busca de um ethos planetário. Cadernos IHU Ideias, n. 169, 2012.
BOURDIEU, P. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.
CAVALCANTE, S.; ELALI. G. A. (Orgs.). Psicologia Ambiental: conceitos
para a leitura da relação pessoa-ambiente. Petrópolis: Vozes, 2018.
DANOWSKI, D.; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundos por vir? Ensaio so-
bre os medos e os fins. Florianópolis/São Paulo: Cultura e Barbárie/Instituto
Socioambiental, 2014.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro/São Paulo:
Paz e Terra, 2018.
JONAS. H. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civili-
zação tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2015.
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento? Brasília: Casa das
Musas, 2008.
QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Peru Indigena, v. 13,
n. 29. pp. 11-29, 1992.
STRECK, D. R.; ADAMS, T. Pesquisa participativa, emancipação e (des)co-
lonialidade. Curitiba: Editora CRV, 2014.
QUIJANO, A. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos,
Ano 17. n. 37, 2002.
UNIVERSIDADE OF OXFORD. Affluent countries contribute less to wil-
dlife conservation than the resto f the world. 2017. Disponível em: www.ox.ac.
uk/news/2017-05-04-affluent-countries-contribute-less-wildlife-conservation-
-rest-world.

219
A HistóriA, o legAdo e A importânciA dAs mulHeres nA
sAúde, nA AlimentAção e conquistAs sociAis

Franciéli Aline Conte1


Karen Villanova Lima2
Daisy Peres Godoy3
Johannes Doll4

Introdução

As mulheres desempenham papel fundamental no mundo desde


sua origem, negar a história de que mulheres, muito antes da dominação
masculina, criaram sociedades, se organizavam politicamente, econômi-
ca, culturalmente, é negar a história da evolução. A perpetuação da vida,
a alimentação, os saberes alimentares, a seleção milenar das sementes, a
cura através dos chás e ervas medicinais, o parto, e outras tantas formas
de sabedorias femininas que hoje se perdem em meio à dominação pa-
triarcal do conhecimento.
Nesse sentido, buscamos resgatar os saberes femininos na história
enquanto saberes populares e milenares no desenvolvimento do mundo
e discutir a temática por meio das ideias do pensador Rodolfo Kusch.
Conhecer e resgatar um pouco da história das mulheres, seus lega-
dos e lutas se faz necessário para não apenas mantermos a história viva,
mas também para aprendermos a ocupar espaços, produzir e perpetuar
nossos conhecimentos, nossas pesquisas, nossos legados. Este estudo
busca resgatar parte da história, do legado e das lutas realizadas pelas
mulheres desde os séculos passados, em relação ao cuidado, à alimenta-
ção e lutas.

1 Nutricionista, doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do


Sul, bolsista CAPES.
2 Educadora, mestranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Graduanda em Agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bolsista
FAPERGS.
4 Teólogo, pedagogo, gerontólogo, professor titular da Faculdade de Educação da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul
221
Metodologia

Este estudo discute algumas obras que trazem histórias do legado,


de trajetórias e lutas das mulheres sob diferentes perspectivas. O ensaio
aborda inicialmente o legado feminino sob uma perspectiva matriarcal,
em especial, sua importância para a história da medicina e da farmácia,
intitulada “As Mulheres, os chás, os cuidados e curas” e o lado obscuro da
história através da inquisição e perpetuação do patriarcado.
A segunda parte traz a importância das mulheres na perpetuação
da vida através da alimentação e perpetuação das sementes crioulas até
os dias atuais, através do tópico “Mulheres, sementes e alimentos”, e a
terceira parte, um pequeno resumo das histórias de resistência, luta e or-
ganização feminina através dos movimentos feministas e movimentos de
mulheres camponesas, intitulado “Mulheres e Lutas” que posteriormente
são discutidas sob a perspectiva do filósofo Rodolfo KUSCH, em especial
através da obra “El pensamiento indígena y popular en América”, (1999).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As mulheres, os chás, os cuidados e curas

As mulheres ao longo da história tiveram o importante papel de ali-


mentar, de cuidar das crianças, cuidar de enfermidades, dos partos, papeis
estes que lhes conferem hoje vários títulos. Segundo Ehrenreich e English
(1972), as mulheres

[...]sempre foram curandeiras. Elas foram as primeiras médicas e anato-


mistas da história ocidental. Eram também enfermeiras, conselheiras e
realizavam abortos. Foram as primeiras farmacêuticas com seus cultivos
de ervas medicinais, compartilhando os segredos dos seus usos. Durante
séculos, as mulheres foram médicas sem diploma

As autoras ao longo do livro “Witches, Midwives, & Nurses” mos-


tram que esse papel de protagonismo se apaga com a inquisição e com a
dominação masculina. As mulheres, segundo as autoras, “foram curan-
deiras autônomas e seus cuidados foram muitas vezes a única atenção
médica ao alcance dos pobres e das próprias mulheres” (Ehrenreich e
English (1972, p. 4), contudo, questões de poder e de política não per-
mitiram o avanço da medicina através dos trabalhos femininos. As mu-
lheres se preocupavam com o bem social, popular, o que em um sistema
capitalista não é comportado.
222
Segundo as autoras as bruxas “representavam uma ameaça polí-
tica, religiosa e sexual para a Igreja, tanto Católica como Protestante,
e também para o Estado” (p. 8). Essas mesmas mulheres camponesas,
chamadas de bruxas, que também eram analfabetas, sabiam curar, co-
nheciam sobre ginecologia, sobre métodos contraceptivos e abortivos.
Além disso, eram parteiras, o que impedia que um grande número de
mulheres procurasse serviços hospitalares que eram pagos, mas que as
“bruxas” faziam gratuitamente.
As mulheres “sábias, ou bruxas, possuíam múltiplos remédios expe-
rimentados durante anos e anos de uso. Muitos dos preparados de ervas
curativas descobertos por elas continuam sendo utilizados na farmacolo-
gia moderna” (Ehrenreich e English, 1972, p. 17-18). Contudo, a forma-
ção em medicina só foi possibilitada no século XIX.
Rodolfo Kusch, critica os saberes hegemônicos (saberes do norte), ao
passo que invisibilizam os povos do sul, os latinos, os indígenas, os povos
da Amazônia (mulheres e homens), ou seja, os saberes populares, anulados
da sociedade, desconsiderados na ciência e até enquanto conhecimento.
Saberes que ele resgata através de seus escritos, em especial “Obras Com-
pletas”, mencionando inclusive uma diferença entre saberes de salvação e
saberes de domínio (Kusch, 2000, p. 327).

Mulheres, Sementes e Alimentos

As mulheres sempre desempenharam o papel de alimentar e pro-


duzir alimentos, seja através da transformação, seja pelo cultivo de se-
mentes, preservação, cuidado de animais ou através da transmissão de
conhecimentos para as novas gerações, incluindo o uso de chás e plantas
medicinais (SILIPRANDI, 2012) cujas atividades muitas vezes não são
reconhecidas socialmente, em especial porque por não gerarem renda.
A produção, recuperação e melhoramento (natural/manual) das
sementes crioulas de verduras por exemplo, é um dos grandes legados
deixados e perpetuados principalmente pelas mulheres (NASCIMENTO,
ROCHA, MENDONÇA, 2017), cujos conhecimentos podem ser classifi-
cados como populares, e portanto, não são reconhecidos ou invisibilizados
pelas culturas hegemônicas, que mantém um modelo de produção oposto
a esse, rentável economicamente e monopolizado.
Segundo Nascimento, Rocha e Mendonça (2017), o desrespeito ou
substituição de um modelo ecológico de produção de alimentos “gerou
impactos ambientais negativos” enquanto que as mulheres camponesas
desempenham um papel de da “proteção ao meio ambiente, às florestas

223
nativas, perpetuação das sementes crioulas, biodiversidade, agricultura fa-
miliar, reforma agrária, direitos trabalhistas e o fim da exploração, opres-
são” (p. 232), assim como os povos indígenas. Sob outra ótica, autoras
como Chagas e Chagas (2017, 233) vê as mulheres como

[...] grandes promotoras de vida e saúde: elas geram a vida; geralmente,


seu cotidiano está marcado por tudo aquilo que se relaciona com saúde
(fazer comida, cuidado com a limpeza e higiene da casa, dos alimentos e
das roupas); o cuidado e manejo com os animais, o plantio e cuidado com
os produtos de subsistência, quando atuam no meio rural; a educação, cui-
dado e proteção das crianças, dos doentes, dos idosos.

Os alimentos produzidos e perpetuados ao longo das gerações, as-


sim como as próprias sementes são parte das culturas e simbolismos dos
povos (indígenas e amazônicos, latino-americanos e africanos), enquanto
que produção capitalista hegemoniza, padroniza e torna os alimentos em
produtos rentáveis e mundialmente distribuídos. Nas palavras de Kusch,
a “América sugere uma economia negra, cuja base tem que se instalar em
certos imprevisíveis imponderáveis”5 (KUSCH, 1999, p. 503), cuja trans-
formação de alimentos em mercadoria é irremissível, ao passo que não
pode ser compreendido a partir de uma ótica moderna, nem mesmo sem
conhecer a realidade e o modo de viver dos povos indígenas e classes po-
pulares segundo o autor.

Mulheres e lutas

Após uma história de mortandade, violência, opressão e boicote de


direitos às mulheres, através da organização das mulheres, em 1970, as
mulheres iniciam as primeiras mobilizações em prol de respeito e igualda-
de de gênero e concomitantemente a primeira fase do movimento feminis-
ta no Brasil, entre 1975 a 1979 (NASCIMENTO, ROCHA, MENDON-
ÇA, 2017). Entre 1979 e 1982 inicia-se a segunda fase do feminismo, que
tem como enfoque a violência contra as mulheres. Essas mobilizações vão
ocorrendo de modo organizado e também em nível mundial através de
convenções, segundo Nascimento, Rocha, Mendonça (2017).
Todos esses esforços foram realizados a duras penas por meio de
ocupações de ruas, fábricas, perseguições, atos públicos, greves, e conven-
ções retratam a necessidade das mulheres serem ouvidas, respeitas, não

5 Tradução livre: “América sugiere una economia negra, cuya base há de radicar en cier-
tos imponderables imprevisibiles” (KUSCH, 1999, p. 503)
224
violadas, violentadas ou mortas, cujas reinvindicações desde o direito ao
voto, até os dias atuais retratam uma realidade ainda presente e marcada
por machismo, misoginia, racismo, desigualdades que precisam cessar.
Esse processo ao longo de muitas décadas até os dias atuais ren-
deram frutos não apenas para mulheres urbanas e do campo, mas para a
sociedade, segundo Cisne (2015),

[...] por meio de políticas públicas reivindicadas historicamente pelas mu-


lheres, que possibilitem acesso à educação não sexista, à assistência social,
ao trabalho não precarizado, à saúde pública, à previdência social pública,
à terra, às sementes crioulas, à rede de proteção às vítimas de violência
(preconizada na Lei Maria da Penha) e a outros direitos, bem como por
meio de reformas estruturais, com destaque para a agrária e a tributária
(progressiva), acreditamos (CISNE, 2015, p. 130)

Kusch (1999) ao longo de suas investigações vai demonstrar que


tanto o pensamento indígena quanto o popular são formas distintas de
pensar a realidade, a sociedade e o mundo de modo diferente dos saberes
hegemônicos e, por isso, são vistos como ilógicos ou irracionais, primiti-
vos, míticos, místicas, esotéricos, mágicos, com a finalidade de deslegiti-
mar pensamentos populares, indígenas ou feministas latino-americanos.
Tal reflexão nos faz pensar o quanto estes podem ser “perigosos”
para o sistema capitalista, por isso a importância de deslegitima-los. Ao
passo que esses saberes e lutas são perpetuados ou mantidos, seja pelos
povos latinos, indígenas, populares ou pelas próprias mulheres/campe-
sinas/indígenas/negras/feministas, também provocam danos sobre as
construções hegemônicas, sobre a venda de serviços como alimentação,
saúde, sementes e demais sistemas capitalismo, incluindo a ciência.

Considerações finais

Os saberes populares, em especial o das mulheres, de um modo geral


(agricultoras, indígenas, negras) não podem ser ignorados porque trazem
histórias, memórias, culturas, e conhecimentos milenares utilizados até
hoje, ou mesmo aprimorados a partir deles e que passaram a ser vistos
como irrelevantes, míticos, ao ponto de ser desconsiderados e/ou inferio-
rizados pelos pensamentos dominantes, masculinos e patriarcais.

225
Referências
CISNE, M. Feminismo e liberdade no campo: a importância da organização
política para as mulheres rurais. In: Coletânea sobre estudos rurais e gê-
nero: Prêmio Margarida Alves. Brasília: Ministério do Desenvolvimento
Agrário, 2015.
CHAGAS, L.; CHAGAS, A. T. A posição da mulher em diferentes épocas e a
herança social do machismo no Brasil. Psicologia., 2017. Disponível em: http://
www.psicologia.pt/artigos/textos/A1095.pdf
EHRENREICH, B.; ENGLISH, D.; Witches, Midwives, & Nurses: a history
of women healers. Nova York: Contemporany Classics, 1972.
KUSCH, R. El piensamento indígena y popular en América. In: ______. Obras
Completas, Tomo II. Santa Fé/Argentina: Editorial Fundación Ross, 1999. Pp.
255-546.
KUSCH, R. El pensamiento indígena y popular en América. Rosario: Edito-
rial Fundación Ross, 2000.
NASCIMENTO, A. C.; ROCHA, R. G.; MENDONÇA, M. R. Movimentos con-
tra-hegemônicos: o papel da mulher na agricultura campesina. InterEspaço, v.
3, n. 10 pp. 214-233, 2017.
SILIPRANDI, E. A alimentação como um tema político das mulheres. ARIÚS:
Revista de Ciências Humanas e Artes, v. 18, n. 1, 2012.

226
reinventAr: ser y HAcer en el territorio:
presente, pAsAdo y futuro

Gabriela Aznares1
Rocío Belén Galvez2
Silvana Priscila Salzano3

Tejí sola mi tela,


sembré sola mi nabal ,
sola voy por leña al monte,
sola la veo arder en el lar.
Ni en la fuente ni en el prado,
Así muera yo con rabia,
él no ha de venir a levantarme,
él ya no me tumbara
¡Qué tristeza! El viento suena,
canta el grillo a su compás...
hierve el pote...más, caldo mío
solita te he de cenar.
Calla, tórtolas, tus arrullos
ganas de morir me dan;
calla, grillo, que si cantas
siento negra soledad.
Mi marido perdióse,
nadie sabe dónde va...
golondrina que pasaste
con él las olas del mar;
golondrina, vuela, vuela,
ven y dime dónde está4.

Así como Rosalía de Castro, muchas mujeres fueron anónimas en su


tiempo, en especial aquellas que quedaron solas para hacerse cargo tanto
de su familia como de la tierra. Mujeres sabias en su quehacer diario, mu-

1 Directiva de la ESS13.
2 Universidad Nacional de General Sarmiento.
3 Universidad Nacional de General Sarmiento.
4 Rosalía hace en este poema un homenaje a las mujeres de los emigrantes que son las
verdaderas heroínas por quedarse solas realizando las duras labores del campo y de la
casa en la más triste soledad, como auténticas viudas de maridos vivos.
227
jeres, “viudas de vivos y viudas de los muertos”. A ellas, la tierra no sólo
las salvó y suministró comida, sino que también fue el espacio donde sanar
a través de vínculos de reciprocidad.
Al evocar la tierra, ya sea cómo terreno, casa o estabilidad referimos
a un espacio donde se puede estar y ser, conjugar otros horizontes. La tier-
ra es acción y contemplación, orden y desorden, momento y movimiento.
Al encarar y proponer políticas y proyectos, la diversidad aparece
como una forma de hablar de la realidad, se presenta como un horizonte de
significaciones que nos permiten pensar en que las cosas pueden cambiar,
pueden ser mejores. Partiendo de una idea política, como actoras sociales,
y operando a través de una utopía que nos motiva a actuar, a movernos, a
transformarnos. La interculturalidad, la pluralidad de voces y perspecti-
vas nos permiten intercambios horizontales, simétricos y recíprocos.
Con estas perspectivas en la mira, nació la idea de una huerta es-
colar-barrial en San Miguel, Buenos Aires, Argentina. Este proyecto
nos invita a trabajar la tierra, pero no solo con el objeto de revindicar
la soberanía alimentaria, sino también, los vínculos, los conocimientos
e interacciones. Un constante proceso de construcción intercultural. Y
entendemos interculturalidad en armonía a la idea que plantea la in-
vestigadora Claudia Briones, como una “forma de relación basada en
intercambios horizontales, simétricos y recíprocos”. Ante una Pacha-
mama generosa por demás, sentimos la necesidad de generar “distintos
espacios, y revisar los arreglos y acuerdos sociales de convivencia más
amplios” (BRIONES: 2009, p. 47)
Dicho proyecto consiste en una huerta escolar-barrial-comunitaria.
Hace tres años, un grupo de mujeres empezamos a crear junto con los
estudiantes y vecinos del barrio un espacio verde, un pulmón en medio de
la ciudad. Decidimos cambiar lo que era un basural a cielo abierto por un
paraíso. Esto también es parte de la territorialidad, intervenir para trans-
formar el espacio donde convivimos, donde transitamos. La influencia de
la otredad conlleva una movilización de estructuras, invita a repensar lo
aprendido, a repensarnos con el otro.
Esto nos plantea qué tipo de relaciones sociales buscamos promover
y desde qué lugar lo hacemos, en una continua retroalimentación cultu-
ral. Desde una perspectiva kuscheana, intentamos ‘ver cómo, a partir de
la tiniebla, vislumbramos la posibilidad de la luz’. Nos asumimos como
partes de este “acto cultural” y comprendemos la educación como “el acto
de encuentro simbólico” por medio del cual fomentamos “la inseguridad
auténtica de sentir que el fundamento está, pero resbala entre las manos.”
(KUSCH: 1978, p. 137)

228
Por todo esto, habitar un espacio, un territorio, en armonía con el en-
torno y la biodiversidad que nos rodea, implica desafíos y antagonismos con
un sistema que prima la rentabilidad económica por sobre la rentabilidad
humana. Armonizar el estar siendo dentro de un espacio común, habilita un
horizonte de transformación emancipado. Volver lo contradictorio en equi-
librio, convertir oposición en complementariedad y disolver las diferencias
aparentemente irreductibles entre hombres y mujeres. Esto puede tomar
diversas formas, en nuestra labor, una comunidad de agricultores urbanos.
Nosotros nos reinventamos, intervenimos en nuestro presente, con nuestro
hacer diario en ese pequeño paraíso en medio de la ciudad, nuestra sinta-
xis reactualiza dinámicas y significados que vienen desde la antigüedad.
Reivindicar lo ancestral, la sabiduría de antaño es una forma de darle voz a
todas aquellas anónimas que trabajaron en lo mismo que nos y también, de
construir un presente a partir de un tiempo pasado.
El encuentro y reencuentro con la otredad en el espacio educativo,
contribuye a poner en juego al otro como sujeto, considerarlo como un ser
cargado de historias, subjetividades, ideas, cosmovisiones particulares. Pone
en evidencia la existencia de diferentes universos dentro del espacio áulico.
Pensarlos y pensarnos como sujetos, actores sociales, es asumir el compro-
miso de romper los moldes, ayudarles a romper estereotipos y prejuicios.
Presentar la otredad, la interculturalidad desde un lugar dialógico de un
modo que nos permita vivenciar y reconocer esas diversas formas de pensa-
miento y formas de vida coexistentes. Abrir horizontes para establecer un
plano de igualdad tanto en el espacio áulico como en el plano social.
América contiene la fuerza de la Pachamama. Habilitar ese contacto,
ese espacio de saberes propio de nuestro lugar, incorporar saberes ances-
trales en el espacio educativo y resignificar aquellos conocimientos des-
valorizados. Brindar herramientas que con el correr del tiempo se fueron
dejando de lado en el plano educativo. La enseñanza dentro de la natura-
leza siendo parte de la naturaleza, con sus factores climáticos, sus ciclos
lunares, sus procesos de espera y su satisfacción de cosecha. Así, habilita-
mos herramientas nuevas a las diferentes problemáticas ya instaladas en
los nuevos espacios áulicos.
Para llevar a cabo una enseñanza desde esta perspectiva, desde otro
lugar, entendemos la necesidad de educadores dispuestos a pensar una edu-
cación de la naturaleza sin prescindir de ella. A pensar la escuela como parte
activa del territorio y en relación con él. Como escribiera Paulo Freire:

La importancia de la relación entre las cosas, de los objetos entre sí, de las
palabras entre ellas en la composición de las frases y de éstas entre sí en la
estructura del texto. La importancia de las relaciones entre las personas,
229
de la manera como se unen-la agresividad, la amorosidad, la indiferencia,
el rechazo o la discriminación subrepticia o abierta-. Lo importante que
resultan, en suma, las relaciones entre educandos y educadoras, entre su-
jetos cognoscentes y objetos cognoscibles (FREIRE: 1993, p. 123).

Referencias
BRIONES, C. Hegemonía e interculturalidad. Poblaciones originarias y mi-
grantes: De que estamos hablando cuando hablamos de interculturalidad. Pro-
meteo, 2009.
DE CASTRO, R. Follas Novas: Las viudas de los vivos y las viudas de los muer-
tos. Madrid. España. Servilibro.
FREIRE, P. Cartas a quien pretende enseñar: novena carta. Buenos aires.
Argentina. Siglo Veintiuno, 2016.
KUSCH, R. Esbozo de una antropología filosófica americana. Castañeda, 1978.

230
rigobertA mencHú tum e A lutA pelos
direitos HumAnos nA guAtemAlA

Gabriela Metz Schmidt1


Isabel da Costa2
Lilian Machado Nunes 3

O presente trabalho tem por objetivo o estudo da vida da ativista


Rigoberta Menchú, mulher indígena do povo Quiché Maia, relacionando
suas vivências com o contexto histórico e educacional, principalmente da
população indígenas, da Guatemala. Busca-se, através deste, difundir suas
conquistas e como esse conjunto produz mudanças, reconstrói caminhos
e vivências, buscando promover respeito, pluralidade e interculturalidade.
Guatemala, da palavra indígena “Quauhtemallan”, do idioma náhualt,
que tem como um de seus significados “montanha que verte água”, está lo-
calizada na América Central e é o berço da civilização maia, uma cultura
com avançado conhecimento matemático, com profunda conexão com a
natureza e seus ciclos e grande diversidade linguística. É uma nação mar-
cada pela oposição entre os indígenas de origem maia, que representam
aproximadamente 40% da população (CIA, 2001), que exercem forte in-
fluência na cultura nacional, e a elite de origem espanhola, que controla a
produção econômica e o poder político no país. A exclusão dos povos ori-
ginários é um problema histórico-social e, consequentemente, estrutural.
Tendo como foco a educação, o Banco Mundial já trazia dados em 1996 de
que 80% da população indígena e rural era analfabeta e isso vem fortemen-
te tanto pela questão da diversidade linguística, visto que no país, além do
espanhol, são faladas 23 línguas indígenas (CIA, 2001), quanto pela ques-
tão econômica e social, considerando a situação de marginalização na qual
os povos indígenas vivem e a diferença histórica no acesso à educação para
meninos e meninas (BANCO MUNDIAL, 1996). Atualmente, estudos rea-
lizados pelo Banco Mundial revelaram que 52% da população guatemalte-
ca que vive em situação de pobreza, são indígenas. (Banco Mundial, 2019)
e que 12,31% da população é analfabeta (CONALFA, 2016).
Mesmo após se tornar independente da Espanha, em 1821, e dos
países vizinhos, em 1838, o país continuou a passar por épocas sangrentas,
principalmente para o povo maia. Em um breve período democrático, que
iniciou com a Revolução de Outubro, ocorrida em 1944, no qual houve um

231
investimento em reformas políticas que inovaram e auxiliaram o povo da
zona rural, da área trabalhista, da saúde, da educação e da economia, um
dos líderes da Revolução, Jacobo Arbenz, foi eleito presidente em 1950.
Em 1953, aprovou a Lei da Reforma Agrária, que propunha a expropria-
ção das terras não cultivadas para camponeses solicitantes, a industriali-
zação sob controle nacional e o fim da servidão no campo. Em um contex-
to de Guerra Fria, a ação foi considerada um projeto comunista e, devido
a uma conspiração norte-americana, em 1954, as forças conservadoras
triunfam com a justificativa de projeto anticomunista. Rigoberta nasce
em 1959, na Aldeia Chimel do povo Quiché Maia, no início de um longo
período de Ditaduras Militares, em um contexto pobre, em uma sociedade
excludente e racista. Filha de Juana Tum Kótoja e Vicente Menchú Pérez,
um membro ativo do Comité de Camponeses, ela viveu e sentiu na pele, já
cedo, as barreiras culturais, linguísticas e políticas.
Ajudando desde seus primeiros anos na agricultura familiar, viu o
país passar por um período de forte crescimento industrial com gran-
de investimento estrangeiro, além da diversificação e aumento da gera-
ção de produtos agrícolas. Esse último demandava uma disponibilida-
de maior de terras, questão que foi resolvida pelo Estado por meio de
compras forçadas, ocupações violentas e expropriações ilegais. Houve
um amplo crescimento econômico, em contrapartida, o setor camponês
sofreu grande empobrecimento, questão que afetou principalmente a po-
pulação indígena, visto que esta parcela da população tradicionalmente
possui os níveis de vida mais baixos do país e as piores condições de pro-
teção jurídica. Seu povo sofreu na Primeira Explosão Guerrilheira, onde
mais de 75.000 indígenas foram assassinados e 600 povoados destruídos;
no Massacre de Panzós, que durante uma concentração indígena pací-
fica, 102 camponeses foram mortos; na Política da Terra Queimada, em
que mais de 400 aldeias maias foram incendiadas, 2 mil pessoas foram
mortas e 1 milhão forçadas ao exílio; em uma constante invisibilização
do seu povo, da sua voz e das suas lutas.
Em 1979, ano em que um de seus irmãos foi preso, torturado e as-
sassinado, Rigoberta se filia ao Comitê da União de Camponeses (CUC),
organização que seu pai, assassinado no ano seguinte pelo Exército na
embaixada Espanhola, ajudou a criar depois de ter sido preso e torturado,
acusado de comunismo. Em um momento de auge dos movimentos so-
ciais, Rigoberta se destaca, principalmente, em uma greve organizada pela
CUC por melhores condições para trabalhadores agrícolas da costa do
Pacífico, em 1981, e por se aliar a Frente Popular, educando a população
camponesa indígena como ato de resistência à opressão militar. Ela acaba

232
por se exilar no México, no mesmo ano, em decorrência de ameaças, po-
rém permanece organizando movimentos de resistência à opressão e luta
pelos direitos dos povos indígenas.
No ano de 1992, coincidindo com os 500 anos da chegada de Co-
lombo à América, Rigoberta ganha o Nobel da Paz, em reconhecimento
a sua trajetória de dedicação e luta pela justiça social e pela reconciliação
etno-cultural. Em seu discurso na cerimônia de premiação, ela alegou di-
reitos históricos negados aos povos indígenas e denunciou a perseguição
sofrida desde a chegada dos europeus. Ressaltou a necessidade de paz e
desmilitarização na Guatemala, visando a busca pelos direitos de todos e
justiça social, respeito à natureza e igualdade para as mulheres. A entrega
do Nobel possibilitou a abertura da Fundação Rigoberta Menchú Tum,
programa que contribui para recuperar e enriquecer os valores humanos
para a construção de uma ética da Paz Mundial. A Fundação possui ati-
vidades e programas na área da educação, promovendo a construção de
uma educação com pertinência cultural e transformadora de relações so-
ciais harmoniosas, tendo como ponto de partida a pluralidade guatemal-
teca. Além disso, a fundação é responsável pela Iniciativa Indígena por la
Paz (IIP), rede de líderes e personalidades indígenas do mundo que tem
como objetivo estabelecer a comunicação entre diversos povos indígenas
do mundo e possibilitar investigações e pesquisas que fortaleçam o seu
reconhecimento e proteção.
Foi também nomeada Embaixadora da Boa Vontade da ONU para o
Ano Internacional dos Povos Indígenas na Conferência Mundial dos Di-
reitos Humanos de Viena, na Áustria e em 1996 foi nomeada Embaixado-
ra da UNESCO. Fundou o Winaq (em maia: “a totalidade do ser humano),
primeiro partido político indígena da Guatemala. Em 2007, foi candidata
à presidência em uma aliança ao partido de esquerda Encuentro por Gua-
temala. Apesar de não ganhar a eleição, incentivou diversos indígenas a
votarem e terem mais participação e interesse pela política.
Suas lutas são questões chave para que o direito à Educação, direito
garantido no artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
seja concedido a parcelas escamoteadas da população, para que essa edu-
cação promova a compreensão, a tolerância e a amizade entre as nações e
grupos étnicos ou religiosos. Afirmando movimentos, iluminando ques-
tões apagadas da história e promovendo a equidade. Atualmente o país
possui políticas de educação bilíngue intercultural (MINISTERIO DE
EDUCACIÓN, 2017).

233
Referências
BANCO MUNDIAL. Guatemala Panorama general. Disponível em: <ht-
tps://www.bancomundial.org/es/country/guatemala/overview>. Acesso em:
22 de agosto de 2019.
BANCO MUNDIAL. Prioridades y estrategias para la educación: examen
del Banco Mundial. Estados Unidos da América, 1996.
Central Intelligence Agency, World Factbook. Guatemala. Disponível em:
<https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/gt.ht-
ml#People>. Acesso em: 24 de agosto de 2019.
CONALFA. Anafalbetismo 2016. Disponível em: <http://www.conalfa.edu.
gt/>. Acesso em: 24 de agosto de 2019.
FUNDACIÓN RIGOBERTA MENCHÚ TUM. ¿Qué es la fundación Rigober-
ta Menchú Tum?. Disponível em: <http://www.frmt.org/es/informaciongene-
ral.html>. Acesso em: 23 de agosto de 2019.
MINISTERIO DE EDUCACIÓN. Anuario Estadístico de la Educación
2013. Guatemala, Centro America. Disponível em: <http://www.mineduc.
gob.gt/estadistica/2013/main.html>. Acesso em: 24 de agosto de 2019.
MINISTERIO DE EDUCACIÓN. Sistematización Conversatorio Nacional.
Disponível em: <http://www.mineduc.gob.gt/portal/documents/INFORME_
FINAL_DEL_CONVERSATORIO_NACIONAL_2017.pdf>. Acesso em: 24
de agosto de 2019.
NOBEL PRIZE. Rigoberta Menchú Tum – Biographical. Disponível em:
<https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1992/tum/biographical/>. Aces-
so em: 22 de maio de 2019.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/
Language.aspx?LangID=por>. Acesso em: 25 de agosto de 2019.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Lati-
na. Buenos Aires, CLACSO, 2005.
TORRES-RIVAS, Edelberto. Enciclopédia Latino Americana. Guatemala. Dis-
ponível em: <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/g/guatemala>. Acesso
em: 23 de maio de 2019.
Iniciativa Indígena por la Paz (IIP) <http://www.gloobal.net/iepala/gloobal/
fichas/ficha.php?entidad=Agentes&id=6037&opcion=descripcion>

234
territoriAlidAdes, interculturAlidAdes e As mulHeres dos
quilombos de são lourenço do sul-rs/brAsil

Graziela Rinaldi da Rosa1


Michaella Sant’ Anna2

O presente trabalho visa socializar algumas reflexões que têm


sido feitas na formação de professores(as), no curso de Licenciatura em
Educação do Campo, a partir do projeto de pesquisa “Mulheres Qui-
lombolas: Identidades, Vivências e Memórias” (2017-2019), que conta
com o apoio da FAPERGS e CNPq. Nesse sentido, buscamos aqui pen-
sar as territorialidades e interculturalidades invisibilizadas ainda em
nossa América3.
Assim, iremos apresentar os quilombos de São Lourenço do Sul,
e apresentar as Mulheres dos Quilombos que participaram das rodas de
diálogos e encontros da pesquisa, para refletirmos as invisibilidades e as
desigualdades ainda existentes nesses territórios de Quilombos.
A partir da escuta das narrativas, história oral (JOSSO, 2004) e vi-
vências de mulheres de povos tradicionais quilombolas, foram realizadas
filmagens e transcrições numa perspectiva qualitativa de construir uma
pesquisa “desde abajo y desde el Sur” (CARRILO, 2014), que busca nas
bases da Educação Popular, formas de conhecer e dialogar com essas mu-
lheres. Como nos ensina Korol (2007, p. 3):

1 Professora Adjunta do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Gran-


de/FURG. Atua no curso de Licenciatura em Educação do Campo, com o ensino de
Filosofia, Educação Popular, Práticas Educativas Escolares e Comunitárias, Pedagogia
do Campo e Elementos Filosóficos da Educação. Atualmente é responsável pela pesqui-
sa intitulada “Mulheres Quilombolas: Identidades, Vivências e Memórias” (2017-2019),
com apoio da FAPERGS e CNPq. Integrante do Núcleo de Estudos Feministas e de Gê-
nero- D’ Generus/UFPEL, e atua como responsável da Linha de Pesquisa: Relações de
gênero e feminismos na educação, no Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola – GESE.
E-mail: grazirinaldi@gmail.com
2 Estudante do Curso de Licenciatura em Educação do Campo/FURG-SLS; Bolsista do
Projeto de Pesquisa Mulheres Quilombolas: Identidades, Vivências e Memórias”. Inte-
grante do Coletivo Feminista Dandaras/FURG. Integrante do Movimento de Consci-
ência Negra de São Lourenço do Sul/K-Zumbi. E-mail: michaellasantanna@gmail.com
3 Sobre “Memória, territorialidade e experiências de educação escolar quilombola no
Brasil”, ler Souza; Nunes e Melo (2006).
235
Como feministas y educadoras populares, nos proponemos elaborar co-
lectivamente herramientas y caminos que apunten a la construcción de
relaciones sociales emancipatorias. Pensamos, imaginamos y proyectamos
una emancipación integral, múltiple, compleja, dialéctica, alegre, colorida,
diversa, ruidosa, desafiante, libertaria, ética, polifónica, insumisa, rebelde,
personal, colectiva, solidaria. Buscamos una emancipación que cuestione y
vaya quebrando las miradas, prácticas y representaciones sociales dicotó-
micas, opressivas [...].

O município de São Lourenço do Sul possui uma forte presença e


valorização da cultura pomerana e alemã. Localiza-se no Sul do estado do
Rio Grande do Sul, distante cerca de 200 km da capital Porto Alegre. A
principal fonte de economia de seus 44.935 habitantes (dados de 2014) é
a agricultura e turismo. Apesar de muito se valorizar a cultura e história
do povo tradicional pomerano, e essa cultura ser mais (re)conhecida e ter
mais visibilidade, esse território tem uma grande diversidade etnico-ra-
cial e uma forte presença do povo negro, e do movimento de consciência
negra, e conta com cinco quilombos reconhecidos e um quilombo em fase
de reconhecimento e reconstrução.
Por muitos anos a história dessas comunidades e destes povos vem
sendo ocultada, esquecida e renegada; no entanto também há uma gran-
de resistência, luta e trabalho para o reconhecimento do povo negro, e
sua significativa contribuição para a formação deste município. Como nos
conta a militante do movimento de consciência negra local, Vera Mace-
do4, os quilombos em São Lourenço do sul formaram-se primeiro da fuga
de alguns escravos que começam a aquilombar-se no município. Conforme
Ana Centeno, líder há cerca de quatro décadas do Movimento de Cons-
ciência Negra local, os quilombos dessa região se formam principalmente
a partir dos negros que, após a abolição da escravidão, não tendo para
onde ir, sem trabalho ou trabalhando por muito pouco, começam em áreas
distantes e isoladas a formar suas comunidades.
Os cinco quilombos reconhecidos são: (1) Rincão das Almas, (2) Co-
xilha Negra, (3) Torrão, (4) Monjolo e (5) Picada. Em fase de reconheci-
mento temos o Quilombo das Nascentes. CAPA (2010) apontou que a co-
munidade do Rincão das Almas está localizada no 5º distrito do Município
de São Lourenço do Sul (RS), composta por setenta famílias. Ocupa uma
extensão de 50 hectares de terra. A Coxilha Negra está no 6º distrito do
município de São Lourenço do Sul, agregando 30 famílias em 55 hectares
de terra, sendo 30 hectares com títulos. A comunidade quilombola Torrão

4 Conforme acervo da pesquisa e documentário “Mulheres Quilombolas” (2019).


236
está localizada no Canta Galo, 7º distrito do Município de São Lourenço
do Sul (RS), composta por 19 famílias que vivem em uma área de sete
hectares. O quilombo Monjolo está localizado em Campo Quevedos, 7º
distrito do município de São Lourenço do Sul (RS), agregando 25 famílias
em uma área de 30 hectares. A Comunidade quilombola Picada fica no
3º distrito de São Lourenço do Sul-RS, na localidade de Santa Tereza. É
composta por 17 famílias, que dividem uma área de 55 hectares.
As principais atividades destas comunidades são: a agricultura, tam-
bém plantam hortaliças, flores e chás e fazem artesanatos como, por exemplo,
no torrão a confecção de balaios, na Comunidade Coxilha Negra, a confecção
de bonecas negras5, que são vendidas para a complementação da renda.
Nas formações destes quilombos, bem como na luta pelo resgate da
cultura negra e também de seu reconhecimento, fica claro o protagonismo
feminino, porque desde os tempos que datam a formação dos quilombos,
as mulheres eram as líderes, as que cuidavam das sementes, quem fazia as
hortas para a alimentação da sua comunidade. Elas também trabalhavam
como benzedeiras, parteiras e tinham uma grande conexão com a nature-
za, sabendo curar as doenças das pessoas com remédios naturais caseiros.
Nesse sentido, vem das mulheres quilombolas os maiores saberes
populares do seu povo, e até hoje em dia é assim. São as mulheres que
procuram mais os direitos dos quilombos, como o acesso a políticas pú-
blicas. São quem mais estudam e são as grandes líderes comunitárias. As
mulheres negras quilombolas (re)existem e lutam por visibilidade e reco-
nhecimento, encontrando na Universidade Pública e Federal, mais espe-
cificamente a FURG a valorização dos saberes dos povos tradicionais e a
inserção dessas pessoas no ensino superior. A maioria dos/as quilombolas
que adentram no curso são mulheres, que vão começando a se reconhecer
como negras e quilombolas, que compartem os problemas enfrentados
pelas suas comunidades, e pesquisam, estudam soluções para as demandas
da comunidade, que muitas vezes são esquecidos pelas gestões municipais.
Uma Universidade que valoriza as histórias de vidas e sabedorias de mu-
lheres que vivem nos cinco Quilombos do Município de São Lourenço do
Sul (RS), e que aprendem a se auto-organizar em coletivos na medida em
que problematizam o que é ser mulher Quilombola, os problemas que têm
em comum, as dificuldades que enfrentam no cotidiano desses territórios.
Entendemos a (re)existência dessas estudantes no ato de reinven-
tar-se e recriar espaços coletivos de criação artesanal, inspirados em me-

5 Até a realização desse projeto de pesquisa ação-participante, a confecção das bonecas


era realizada por uma mulher quilombola, a bonequeira Adriana da Silva Ferreira, e a
partir das oficinas realizadas pelo projeto, outras mulheres passaram a confeccionar.
237
todologias de pesquisa participante (BRANDÃO, 2006), através da con-
fecção de bonecas negras que aconteceram em rodas de diálogos com as
mulheres que vivem nos Quilombos. Nesse sentido, são nas epistemolo-
gias feministas da América Latina, que buscamos nossas principais fontes,
como Hierro (1990); Ochoa (2008), Korol (2007), Lagarde (2005), Lugo-
nes (2014), Saffioti (2004 e 2013), Djamila Ribeiro (2018), entre outras.
Eli Bartra (2005), uma filósofa mexicana, tem trabalhado sobre mu-
lheres na arte popular. Seus estudos nos motivam a pensar a arte, ou mais
especificamente o trabalho artesanal de mulheres e o que podemos (re)co-
nhecer de saberes populares envolvidos no ato de confeccionar bonecas ne-
gras, especialmente quando essas são feitas pelas mãos de mulheres negras
quilombolas. Assim, entendemos o ato de tecer, costurar, e de confeccionar
as bonecas negras como um ato de rebeldia dessas mulheres, pois através da
confecção de bonecas as mulheres passam a se (re)conhecer como perten-
centes a um território. Nesse sentido, costurar contribui para romper com
os “cativeiros das mulheres”. A mexicana antropóloga Marcela Lagarde y
de los Ríos (2005) tem denunciado os espaços que nos aprisionam como
mulheres, e as relações de poder existente em nossas sociedades.

Por la condición política en que viven, las mujeres están sometidas al po-
der en los más diversos ámbitos de sus vidas y en distintos niveles. No
sostengo aqui que el poder es absoluto o unidireccional. Por el contrario,
la opresión de la mujer, y en concreto el poder patriarcal a que están so-
metidas las mujeres, implican que desde la opresión genérica ellas también
ejercem el poder (LAGARDE Y DE LOS RÍOS, 2015, p. 139).

Uma destas mulheres no curso de educação do campo que começa


a se reconhecer enquanto negra e quilombola, confeccionava bonecas ne-
gras porque achava importante as meninas negras se reconhecerem atra-
vés das bonecas já que a indústria na maioria das vezes só fabrica bonecas
brancas, e ela tem o sonho de levar este ensinamento a todas as mulheres
destes quilombos. Uma professora acredita que este sonho pode virar rea-
lidade e transforma ele em um projeto pesquisa, que valoriza os saberes
e da voz a estas mulheres e também contribui para o reconhecimento da
história negra do município a partir da confecção das bonecas negras.
A partir dessa pesquisa, foi construído um documentário6, onde as
mulheres contam os desafios, as dificuldades que elas têm enquanto ne-
gras e quilombolas, e denunciam várias situações que passaram e passam
durante sua vida. Entre as principais denúncias estão: a falta de visibili-

6 Para conhecer o documentário: https://www.youtube.com/watch?v=AH3HUliU5zk


238
dade no âmbito escolar, o fato de que quando se estuda a cultura negra,
lembra-se mais da época de escravidão; o sofrimento e a dificuldade das
mulheres em saírem dos quilombos para trabalharem, por não terem onde
deixar seus filhos e filhas; que enquanto mulheres negras, essas têm mais
dificuldade de se inserir no mercado de trabalho; exploração da mão de
obra, que é muito explorada pelos grandes produtores do município, que
querem pagar valores bem baixos por serviços prestados pelos quilom-
bolas; a falta da água. As mulheres reconhecem também que hoje os qui-
lombos estão sendo visitados e tendo mais visibilidades, que existiu mais
acesso às políticas públicas, como é o caso do próprio curso de educação do
campo, e que projetos como este traz um retorno para suas comunidades e
que elas precisam de projetos e pessoas que se comprometam com o povo.
O que é denunciado por essas mulheres mostra o descaso com a cul-
tura negra do município, e que na maioria das os negros não são citados
como uma grande parte da população e tampouco reconhecidos como um
dos povos que construiu essa cidade.
As mulheres denunciam a baixa inserção de mulheres negras no
mercado de trabalho, pois se empregam somente mulheres brancas e que
dominam a língua alemã ou pomerana. Elas denunciam a carência desses
temas serem abordados nas escolas, visto que os professores abordam a
escravidão de forma genérica, sem trabalhar a diversidade étnico-racial,
a cultura do povo negro, a capoeira, o artesanato, as religiões, músicas e
festividades.

Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues; SRECK, Danilo R. Pesquisa Participante: o
saber da partilha. Aparecida, São Paulo: ideias e Letras, 2006.
CAPA-CENTRO DE APOIO AO PEQUENO AGRICULTOR. Revelando os
Quilombos no Sul. Pelotas: CAPA, 2010.
CARRILO, Alfonso Torres. Hacer historia desde Abajo y desde el Sur. Co-
lômbia: Ediciones desde abajo. 2014.
BARTRA, Eli. Mujeres en arte popular. De promesas, traiciones, monstruos
y celebridades. Mujeres en el Arte Popular. Universidade Autónoma Metropo-
litana: México, 2005.
JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez, 2004.
HIERRO, Graciela. Ética y Feminismo. México: Universidad Nacional Autôno-
ma de México. 1990.
239
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Florianópolis: Revista
Estudos Feministas. Nº 22, setembro-dezembro, 2014, p. 935-952.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2004.
SAFFIOTI, Heleieth. A Mulher na Sociedade de Classes. Mito e realidade.
São Paulo: Expressão Popular, 2013.
OCHOA, Luz Maceira. El sueño y la práctica de sí. Pedagogía Feminista:
una propuesta. México: El Colégio de México, Centro de Estudios Sociológicos,
Programa Interdisciplinario de Estudios de la Mujer, 2008.
KOROL, Claudia (orgª). Hacia una pedagogia feminista. Géneros y educa-
ción popular. Cuadernos de Educación Popular. Editorial El Colectivo/América
Libre: Buenos Aires, 2007.
LAGARDE Y DE LOS RÍOS, Marcela. Los cautiverios de las mujeres: De
madresposas, monjas, presas, putas y locas. México: UNAM, 2005.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do Feminismo Negro? São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
SOUZA, Edileuza Penha de Souza; NUNES, Georgina H. Lima; MELO, Wil-
livane F. de. Memória, territorialidade e experiências de educação escolar
quilombola no Brasil. Pelotas: UFPEL, 2016.

240
A relAção dos povos guArAni e KAiowá com o
território: um cAminHo pArA A conservAção AmbientAl

Jhersyka da Rosa Cleve1

Introdução

A visão de mundo dos Guarani e Kaiowá é reproduzida pelas rela-


ções que envolvem a(s) sociedade(s) com a natureza. Estes sujeitos cons-
troem laços simbólicos com o território com uma diversidade de espacia-
lidades que possibilita a reprodução de diversos modos de viver.
Schaden (1974) salienta que os Guarani preferem se localizar em
regiões florestais com matas fechadas, evitando permanecer em locais
abertos para que atividades de caça e pesca possam ser desenvolvidas. As
relações que esses sujeitos possuem com o território é caracterizada na
ideia de Tekohá. A delimitação do Tekohá não ocorre a partir de limites
criados pelo homem não índio, como por exemplo, as cercas. O Tekohá
ocorre a partir de acidentes geográficos como morros, vales, rios e matas.
Assim sendo, percebe-se que o universo dos povos Guarani e Kaio-
wá difere-se do homem não índio. Tal diferença reflete nas concepções de
território, pois tais sujeitos compreendem a natureza como uma extensão
do seu ser. Nesse sentido, o território para os Guarani e Kaiowá é de ex-
trema importância, pois todo o modo de vida destes povos perpassa pelo
território. As lutas dos povos Guarani e Kaiowá são pelo território, pois
para estes sujeitos o território representa quem eles são.
Entendemos que para os Guarani e Kaiowá a terra diz sobre o cor-
po e sobre relações de parentesco, estes povos compreendem ser parte do
mundo como um todo. Para estes sujeitos, a terra, as pessoas, os alimentos
fazem parte de todo o conjunto.
Diante disso, o território assume importância no modo de vida dos
Guarani e Kaiowá, pois é a partir do território que podemos encontrar
caminhos que contribuam a conservação ambiental. Portanto, nosso obje-
tivo é aguçar o debate do território a partir das relações estabelecidas por
estes povos, pois muito temos a aprender com eles.

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados. Doutoranda em


Desenvolvimento e Meio Ambiente da UFS. Bolsista FAPITEC/SE.
241
Principais elementos

O território possui inúmeras abordagens e diante disso a impor-


tância em apresentar o que entendemos por território. Milton Santos
apresenta uma contribuição para a construção do conceito de território
em várias de suas obras. Aponta o território como recurso, entre “atores
hegemônicos”, e o território como abrigo, dos “atores hegemonizados”
(Santos et al., 2000, p. 12). Ainda assim:

O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas


de coisas superpostas. O território tem que ser entendido como território
usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade.
A identidade é o sentimento de pertencer aquilo que nos pertencem. O
território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas
materiais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2002, p. 10).

Rogério Haesbaert entende que o território não deve ser compreen-


dido apenas em sua dimensão física. Segundo o autor:

O território envolve sempre, ao mesmo tempo [...], uma dimensão simbó-


lica, cultural, por meio de uma identidade territorial atribuída pelos gru-
pos sociais, como forma de controle simbólico sobre o espaço onde vivem
(sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão
mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do
espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos (HAES-
BAERT, 1997, p. 42).

O simbólico é bastante presente quando se pensam os territórios


indígenas, em especial o território Guarani e Kaiowá, no qual é construído
tanto ou mais em bases simbólicas e sociais do que materiais.
Quando pensamos a ocupação tradicional dos povos indígenas sobre
um determinado território, entendemos que a categoria mais apropriada
para essa relação é “territorialidade”, sendo definida por Little (2002, p. 3)
como “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se
identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, converten-
do-se assim em seu território”. Ainda segundo o autor, a territorialidade hu-
mana possui múltiplas expressões, produzindo variados tipos de territórios.
Se todos os grupos humanos possuem condutas territoriais (LITT-
LE, 2002, p. 3; HAESBAERT, 2010, p. 339), conclui-se que as relações
colonialistas instituídas no Mato Grosso do Sul – não só ali – põem em
conflito diversas territorialidades, sendo que os grupos ruralistas hege-
mônicos tentam impor a sua territorialidade aos colonizados. Nesse cená-
242
rio é que se deu o processo de criação das Reservas Indígenas em Mato
Grosso do Sul no início do século XX.
Dessa forma, ao se falar em territorialidade indígena Paulo Celso
de Oliveira elenca alguns elementos importantes das relações que estes
sujeitos mantêm com seu território.

Os povos indígenas atribuem nomes aos lugares, aos rios, às plantas e aos
animais. Eles conhecem os mais diversos ecossistemas, classificam os lu-
gares para fins de moradia, realização de atividades econômicas e práticas
culturais, bem como para a preservação do meio ambiente (OLIVEIRA,
2006, p. 13).

Nesse sentido, o Tekohá assume grande importância, pois o Tekohá


ocorre a partir de acidentes geográficos como morros, vales, rios e matas.
Para conceituar o significado da palavra Tekohá, utilizaremos a definição
proposta por Almeida e Mura (2003) que exprimiram como:

Os Guaranis denominam os lugares que ocupam de tekoha, significando o


lugar físico - terra, mato, campo, águas, animais, plantas, remédios, etc. -
onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o estado de vida guarani. O tekoha
engloba a efetivação de relações sociais de grupos macrofamiliares que vi-
vem e se relacionam em um espaço físico determinado. Idealmente este es-
paço deve incluir, necessariamente, o ka’aguy (mato), elemento apreciado
e de grande importância na vida desses indígenas como fonte para coleta
de alimentos, matéria-prima para construção de casas, produção de uten-
sílios, lenha para fogo, remédios, etc. (ALMEIDA & MURA, 2003, apud
SANTANA JUNIOR, 2009).

Mota (2017, p. 64) compreende o significado do Tekohá como: “resis-


tência, uma resistência Guarani e Kaiowá que persistem em existir, que se rebelam
para garantir seus direitos étnicos, suas formas de pensar e agir, seus direitos à
vida, a continuarem a existir”.
Nesse sentido, o Tekoha é a forma como estes povos compreendem
o território, uma relação completamente distinta do homem não índio.
Compreender o território como uma extensão do seu ser e palco da vida,
contribui para uma relação harmoniosa com a natureza. Uma relação de
respeito e que abre o caminho para a conservação ambiental. Dessa forma,
a existência de grupos indígenas que mantêm relações harmoniosas com
a natureza, possuem enorme potencial que deve ser explorado e aprovei-
tado (ACOSTA, 2016).
Entendemos que sociedade não-indígena precisa compreender a
natureza como parte de si e em outros caminhos, necessitamos de um
243
desenvolvimento social, o qual deve ser pautado na economia, no homem
e na natureza, ambos dialogando e caminhando juntos. Nesse sentido, a
relação dos povos Guarani e Kaiowá com o território contribui para uma
nova história. Conforme salienta Mota (2017, p. 83):

O diálogo com os Guarani e Kaiowá tem permitido aprender e sermos


afetados por suas histórias e formas de pensar e agir no mundo, que requer
vivenciar e aprender com outras cosmovisões de mundo. Ainda, perceber
como o olhar de formiguinha, o que os diferentes e diversos povos estão
arquitetando na construção de outro mundo possível (MOTA, 2017, p.83).

Após essa sucinta explanação sobre a importância do território para


os povos Guarani e Kaiowá, torna-se necessário apresentar o cenário em
que os mesmos estão inseridos. Hoje, com o avanço do setor sucroalcoo-
leiro, o estado de Mato Grosso do Sul vem passando por uma intensa
substituição de áreas de cultivo de soja e atividade agropecuária para a
atividade sucroalcooleira, segundo dados do IBGE (2010, p. 31).
Essa expansão tem se dirigido principalmente às bacias hidrográ-
ficas do Ivinhema, Amambaí e Iguatemi, que abrange aos territórios tra-
dicionais Guarani e Kaiowa. Muitas transformações ocorreram a partir
desse modelo, gerando a atual situação de conflito que envolve as disputas
territoriais entre os indígenas e o agronegócio. É nesse contexto que po-
demos ver nitidamente dois projetos de sociedades, os povos Guarani e
Kaiowa divergem em muitos aspectos da territorialização do agronegócio
sucroalcooleiro.
Portanto, entendemos que território para os Guarani e Kaiowá pos-
sibilita um caminho para a conservação ambiental, pois a partir das re-
lações estabelecidas por estes povos o território assume um papel que
caminha em harmonia com a natureza.

Considerações

Nosso objetivo com este texto é contribuir para as discussões sobre


o território a partir dos povos Guarani e Kaiowá, pois entendemos que o
debate deve levar em consideração o olhar destes povos. Nesse sentido,
ao entendermos o território a partir do Tekoha teremos um território que
contribui para a conservação ambiental.

244
Referências
ACOSTA. A. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
Tradução de Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária/Elefante, 2016.
Almeida, R. F. T. De; Mura F. (2003). Povos indígenas do Brasil: Guarani,
Kaiowa e Ñandeva. Instituto Sócioambiental. 2003. Disponível em: https://
pib.socioambiental.org/pt/Povo:Guarani Acesso: em 01 de outubro de 2018.
HAESBAERT, R. Des-territorialização e identidade: a rede “gaúcha” no
Nordeste. Niterói: EDUF, 1997.
______. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiter-
ritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
LITTLE, Paul E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma
antropologia da territorialidade. Brasília: UnB, 2002. Série Antropologia n° 322.
MOTA, JGB. Os Guarani e Kaiowá e suas lutas pelo Tekoha: Os acampa-
mentos de retomadas e a conquista do Teko Porã (bem viver). Revista Nera
(UNESP), v. n.39, p. 13-38-38, 2017.
OLIVEIRA, Paulo C. de. Gestão territorial indígena. Dissertação (Mestrado
em Direito Econômico e Social). Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do
Paraná, 2006.
SAQUET, Marcos Aurélio. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, M. A.;
SPOSITO, E. S. (Org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e
conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 73-94. (Geografia em Movi-
mento).
SANTOS, M. et al. 2000. O papel ativo da Geografia : um manifesto. Floria-
nópolis : XII Encontro Nacional de Geógrafos.
__________. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São
Paulo: Edusp, 2002a.
SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura Guaraní. (3ª ed.) São Paulo:
E.P.U./ EDUSP, 1974, 200 p.

245
sentidos do trAbAlHo pArA os indígenAs
conforme A obrA de rodolfo KuscH

Juliana da Cruz Mülling1


Simone Valdete dos Santos2

O presente texto trata-se de uma parte dos resultados da pesquisa


que gerou a dissertação de mestrado intitulada Educação Profissional com
indígenas: possibilidades de corazonar e melhor viver, desenvolvida entre 2016
e 2018, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul. A parte da pesquisa aqui destaca-
da tem por objetivo tecer considerações acerca dos sentidos do trabalho.
Para tanto, em um primeiro momento será apresentada a pesquisa biblio-
gráfica que empregou referenciais descritores do trabalho no ocidente,
como Engels (1876) e Marx (2008). Na sequência, serão apresentadas
considerações sobre o estar ameríndio e suas implicações na construção
da significação do trabalho para os povos ameríndios, em oposição ao ser
ocidental, conforme KUSCH (1962; 1970; 1976).

Considerações sobre o entendimento do trabalho


da modernidade ao capitalismo

O desenvolvimento do trabalho tem repercutido na constituição dos


sujeitos desde as primeiras elaborações de instrumentos e utensílios dos
mais antigos povos ágrafos3. Segundo Engels (1876), a “mão não é apenas
o órgão do trabalho; é também produto dele”, sendo o próprio homem re-
sultado de suas ações sobre o meio. Para o autor, o trabalho é desenvolve-
dor dos órgãos do sentido, da linguagem e do ser social e das sociedades.

1 Professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio Grande do


Sul (IFRS) Campus Canoas. Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na linha de pesquisa
Políticas e Gestão de Processos Educacionais.
2 Professora Associada IV da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Doutora em Educação, integrante da linha de pesquisa Políticas e Gestão de Processos
Educacionais do Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS.
3 Povos que sem a elaboração da escrita transmitiram seus conhecimentos e cultura
através das gerações por meio da oralidade.
247
Em princípio, o esforço humano constitui-se como complementar
ao que é ofertado pela natureza, servindo indiretamente à subsistência e
relacionando-se a sistemas de deveres familiares, religiosos e culturais.
Nas sociedades ditas primitivas, não há excedentes nem acumulação, os
frutos da coleta são compartilhados para consumo e as eventuais sobras
são descartadas.
A dualidade entre ser humano e natureza é elaborada no surgimen-
to da agricultura, quando o ser humano passa a interferir sobre o meio
natural, não apenas o afetando, mas projetando-o. Essa afetação produzida
sobre a natureza, para Kusch (1962) culmina na busca por dominação do
meio para superação do medo do ser ocidental. Engels define como uma
condição do humano, como o que diferencia o ser humano do macaco pre-
decessor. O ser humano pertence à natureza, mas pelo trabalho a domina
e modifica, obrigando-a a lhe servir, gerando efeitos imediatos e conse-
quências remotas.
Engels reconhece as consequências desastrosas que podem ocorrer
pela intervenção humana na natureza, mas acredita que a observação des-
sas consequências poderá fazer estender sobre elas o domínio humano, es-
pecialmente através do desenvolvimento científico, de forma a superar os
dualismos entre homem e natureza, espírito e matéria. O aperfeiçoamen-
to e a complexificação das atividades transformam a estrutura social de
modo que “a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de obrigar mãos
alheias a realizar o trabalho projetado por ela” (Engels, 18764), diferen-
ciando-se os trabalhos intelectual e braçal. A capacidade de projetar obje-
tivos e estratégias para alcançá-los, para o autor, é a condição do humano.
A Revolução Industrial traz grande impacto para as atividades pro-
dutivas. Projeta-se no desenvolvimento tecnológico a facilitação da vida,
com abundância, paz e conforto, livre do fardo do trabalho pela automati-
zação. No entanto, na Modernidade, o trabalho é o que dá sentido à vida
do homem e essa projeção não se concretiza. Paralelamente à industriali-
zação das economias nacionais, o colonialismo cede lugar ao imperialismo
e suas multinacionais, mantendo a dependência econômica e subjetiva dos
países centrais. Há perda da autonomia do trabalhador em relação às suas
atividades, agora norteadas por seus empregadores, distinguindo-se tra-
balho e emprego/desemprego, marcado pelo assalariamento.

4 Recurso eletrônico - Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/


marx/1876/mes/macaco.htm>
248
O estar como base para as decisões relacionadas
à atividade produtiva

Para Kusch, a América Latina constitui-se pela presença de uma ci-


dadania civilizada que convive com as antigas heranças dos povos originá-
rios e preserva um sentimento de inferioridade conferido pela polaridade
entre o conhecimento técnico e científico e a falta absoluta de toda ciência.
Somos sujeitos que cumprem suas tarefas objetivas do mundo moderno,
embora permaneçamos como sujeitos sensíveis que pouco sabem do seu
próprio sentir e que atuam sob repressão deste sentir (1976, p. 41).
Em seu livro Geocultura do Homem Americano (1976), Kusch
narra o encontro de um grupo de universitários com um velho aymará.
Desta narrativa, descobre o estranhamento na lógica construída para
sanar as necessidades em relação à agricultura e pecuária, sendo produ-
zido o estranhamento entre os códigos organismos culturais5 ocidental
e indígena. São explicitados os caminhos da maquinaria, expressão da
inteligência racional dos objetos; e do rito, expressão do medo e da su-
jeição do homem ao mundo.
Segundo o autor, o fato de recorrermos às máquinas expressa nossa
busca pela superação do medo de habitar o mundo. Trocamos os rituais
por máquinas, tornando-nos mais práticos, numa busca de objetivação da
vida e negação do medo. Mas essa estratégia resulta na criação de novos
medos e conflitos. O utensílio e a maquinaria são, portanto, a expressão do
homem ocidental frente ao mundo. Quanto maiores e mais complicados
sejam, maior é a dimensão desse medo. O desejo de superação do medo
Kusch define como característica do ser ocidental, que o reprime e busca
superar sua condição animal com o uso dos utensílios para aproveitamen-
to e modificação do meio em que habita (1962, p. 149).
A estratégia que recorre aos objetos e máquinas, no entanto, não é
compartilhada por povos indígenas americanos, como os Aymarás, que
preservam uma forma de consciência mística, concebendo a realidade
como um acontecer do sagrado (KUSCH, 1976, p. 131). A semeadura e a
colheita para manutenção da vida não são vistas como meras atividades
produtivas, mas funções derivadas do mundo sagrado e que, por isso, de-
vem ser cumpridas. Suas formas de intervir sobre a realidade são concebi-
das de forma ritual, visando à manutenção da ordem cosmológica. Sob sua

5 O conceito de totalidade orgânica provém do romantismo alemão, que o autor conside-


ra interessante restituir para compreensão do contexto cultural da América do Sul. As
necessidades de um indivíduo devem ser compreendidas dentro de sua coerência cultu-
ral, considerando a tecnologia desenvolvida como um apêndice da cultura.
249
ótica, desde o passado, a colheita foi possível sem a intervenção mecânica
implantada como desenvolvimento.
O desenvolvimento – como movimento que parte de um estado de
coisas procurando chegar a outro, como meta – não pode ser manipula-
do externamente. Em uma cultura ritualizada e de fixidez, não se pode
efetuá-lo pela implantação de utensílios mecânicos. Kusch aponta que o
progresso tecnológico estratifica a vida cotidiana em estar melhor e estar
pior, sendo que as bases da produção tecnológica estão arraigadas no sa-
ber enciclopédico, constituído pela razão ocidental. Essa razão não com-
preende e desmerece o estar, fundamento da relação mágica e holística
preservada pelas comunidades indígenas.
O conceito de estar é fundamental para compreender como as dife-
rentes soluções adotadas frente às necessidades da vida ameríndia cotidia-
na são pautadas pela cultura. Kusch caracteriza o estar em oposição ao ser.
O segundo correspondente ao sujeito ocidental, dinâmico, que atua sobre
o mundo e o modifica, concebe o mundo como externo a si e o emprega
como recurso de sua existência. A cultura do ser cria a cidade como for-
ma de combater o medo e o caos, enquanto o quíchua permanece em sua
magia, conservando frente à natureza o velho jogo do medo ao habitar. A
cultura urbana, por sua vez, resolve o medo com uso da maquinaria, com
a criação de um mundo de objetos sobreposto à natureza, com agressão
e transformação do mundo. O estar é estático e mágico, todo o seu movi-
mento é interno, enquanto o ser ocidental é dinâmico e tecnológico.
A não adesão a atitudes de dominação do mundo, das forças da na-
tureza, mas de sujeição à vida e suas necessidades; o não acúmulo de bens
e a não geração de conforto individual provêm de uma concepção de que
a vida humana se insere no mundo e está sujeita ao seu caos – enquanto
hervidero espantoso6 –, e não o emprega [o mundo] como recurso para sua
existência. O mundo não foi preparado para servir à vida humana, mas a
vida humana faz parte deste hervidero espantoso que é o mundo (KUSCH,
1962, p. 116), e o homem deve aceitar e submeter-se aos seus aconteci-
mentos, à “maleza e a maíz”7, seguindo os processos de germinação da
vida no mundo. Esse pensamento germinal insere a vida humana no fluxo
de um cosmos ordenado pelo sagrado e, portanto, opõe-se a qualquer ne-
cessidade de ação transformativa sobre o mundo.

6 Local inóspito, caótico e fervilhante devido à ausência de Viracocha, divindade supre-


ma representante da totalidade, do cosmos e sua ordenação. Deus que incorpora e é elo
de ligação entre as dualidades macho e fêmea, bem e mal (KUSCH, 1962).
7 Maleza = bosque de arbustos muito espesso, matagal; abundância de ervas daninhas
que prejudicam as culturas. Maíz = milho. (DIAZ, Miguel. Dicionário Santillana).
250
A tecnologia e especialmente a propriedade privada da terra, a par-
tir da expansão do sistema capitalista, implementadas com base na ra-
cionalidade moderna do ser ocidental como aparatos para driblar o medo
da morte, não se enquadram originariamente no que está definido como
necessidade pelo pensamento ameríndio, mas programam como básicas
novas necessidades. Isso acarreta o que Kusch define como estar pior e
o que a sociedade ocidental define, por seus critérios, como pobreza. Há
permanência cultural por um lado, e, por outro, a alteração paulatina no
status de relacionamento dos indivíduos com as coisas, cujo valor passa de
sua materialidade para sua serventia.
Para Kusch, a tecnologia, assim como a ciência, é um apêndice da
cultura. Dessa forma, para analisar a técnica empregada para determinada
produção, precisamos considerar as pautas culturais que levaram a sua de-
manda de produção. La tecnología está entonces condicionada por el horizonte
cultural en donde se produce (1976, p. 96). A organização da cultura possui
uma dinâmica interna que se dá a partir das decisões tomadas por seus
membros, as quais representam a permanência e mutabilidade da cultu-
ra e apresentam como referência a própria cotidianidade (KUSCH, 1976,
p.146). O contato colonizador buscou implantar valores eurocêntricos, a
partir de uma visão da própria vida indígena como recurso para o ser oci-
dental. O contato intercultural, no entanto, deve subsidiar as decisões que
tragam afetação cultural nos reais interesses dos povos originários e em
seus projetos étnicos de bem viver (BANIWA, 2011).

Considerações finais

A racionalidade que condiciona a ciência e a tecnologia constitui


apenas uma parte dos mecanismos do pensar humano. Os rituais mágicos,
assim como as máquinas, são estratégias para habitar o mundo e possuem
sua própria coerência. Portanto, a adoção tecnológica ou ritual é também
atitude política frente à cultura. Dessa forma, considera-se a urgência e a
importância do reconhecimento das sistemáticas produtivas e existenciais
dos povos ameríndios, bem como seus projetos étnicos, como forma de
evitar a substituição do desenvolvimento indígena pelo ocidental e a con-
tinuidade do processo de colonização.

251
Referências
BANIWA, Gersem dos S. L. Educação para Manejo e Domesticação do
Mundo: entre a escola ideal e a escola real – Dilemas da Educação Indígena
do Alto Rio Negro. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, 2011.
DIAZ, Miguel. Dicionário Santillana para estudantes: espanhol-português,
português-espanhol. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 2014.
ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do ma-
caco em homem, 1876. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/
marx/1876/mes/macaco.htm> acesso em 18 de janeiro de 2018.
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. In: Obras Completas Tomo II. Rosario:
Editorial Fundação Ross, 1962.
______. El pensamiento indígena y popular en América. In: Obras Completas
Tomo II. Rosario: Editorial Fundação Ross, 1970.
______. Geocultura del hombre americano. In: Obras Completas Tomo II.
Rosario: Editorial Fundação Ross, 1976.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I. Tradução de
Reginaldo Sant’Anna. 26ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
MÜLLING, Juliana da Cruz. Educação profissional com indígenas: possibi-
lidades de corazonar e melhor viver. 2018. Dissertação (Mestrado em Educa-
ção) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

252
A terrA me disse: lições e sAberes tupi guArAni
sobre sustentAbilidAde

Karen Villanova Lima1

Para que que índio quer tanta terra? Pra quê? Pra simples-
mente preservar para um futuro, para o futuro. Para que um
dia as crianças possam saber o que é uma árvore, o que é um
remédio do mato porque muita gente não conhece. Se a gen-
te não tivesse aqui isso tudo aqui de praia seria, hoje, seria
prédios, casas e não teria mais vida, né? Não teria mais mato,
não teria mais nada, né? [...] (Guaciane, janeiro, 2019 - fala
presente no documentário - A Terra Me Disse).

O cenário atual do Brasil e do mundo é de desmatamento e consu-


mo desmedido dos “recursos naturais”. O modo de vida predominante na
sociedade líquido-moderna (Bauman, 2007; 2008; 2009) visa a busca por
uma felicidade que nunca chega e é almejada através do consumo de bens.
Ser feliz é, ao mesmo tempo uma obrigação individual e um projeto eter-
namente inacabado em um modelo de sociedade onde indivíduos substi-
tuem sua humanidade pelo papel de consumidor.
Na sociedade de consumidores, o cliente tem sempre razão, e a so-
ciedade em formato de empresa não mede esforços para manter o cliente
satisfeito, o que resulta em desmatamento, poluição e exclusão social dos
consumidores falhos (BAUMAN, 2007; 2008; 2009), aqueles e aquelas que
não seguem a lógica de consumo seja por qual motivo isto ocorra. Além dis-
so, este grupo de pessoas alienado da “empresa sociedade” não é bem-vindo
por fugir do padrão escolhido como aquele a ser seguido. Bauman (2007;
2008; 2009) menciona o conceito de enxame como substituto da comuni-
dade. Como bons consumidores, aqueles e aquelas imersos no modelo de
sociedade líquido-moderno seguem a tendência do momento. A tendência
aponta para direções e estas são o caminho a ser seguido, deixando para trás
o que houver de deixar para trás, traçando sempre novos começos.
A ideia de ter a chance de começar de novo pode ser compreendida e
atravessada por três questões: (1) começar de novo é realmente possível?
Considerando as pegadas ecológicas (BORUCKE et al., 2013) deixadas na
1 Educadora, Especialista em Psicopedagogia, Mestranda em Educação pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul.
253
natureza através das ações efetuadas sobre o meio-ambiente, seria real-
mente possível começar de novo? (2) qual o impacto de cada novo recome-
ço? Quando se trabalha com um projeto e este projeto enfrenta dificulda-
des, normalmente buscam-se soluções para estas dificuldades. Entretanto,
se a cada dificuldade deixa-se o projeto de lado e inicia-se um novo, para
onde irão os resíduos deste projeto inacabado? (3) “Começar de novo” tem
um custo. Qual seria o custo ambiental dessa série de novos começos, no-
vas tendências, novos enxames?
Quando se pensa no modo de vida da sociedade líquido-moderna,
pensa-se na inconstância, no culto à novidade e do consumo. E quais refle-
xões surgem quando o modo de vida indígena é trazido à pauta?
Neste trabalho, busca-se dar visibilidade ao modo de vida indígena,
o qual parece respeitar o passado, o presente e, o futuro, cada qual em seu
lugar e com seu valor. Um modo de vida respeitoso do tempo, do espaço,
da natureza e das pessoas cada qual em seu lugar e com seu valor. E, desta
forma, em sua constante-inconstância (CASTRO, 2002), indígenas buscam
preservar aquilo que o juruá - não indígena em Guarani - inebriado por sua
sede de consumo não mais ouve, vê ou considera relevante preservar.

Nós temos que aprender a escutar a coisa da terra e a coisa da natureza.


Vocês têm que aprender. Vocês têm que escutar. A pessoa não pode só estar
escutando coisas materiais, coisas terrestres. Você não pode só escutar isso,
não. E os animais, os pássaros, as aves, as caças, os animais todos e algum
barulho estranho que dá que já não é mais nem gente, já é um espírito, já
é troço ruim. Você tem que saber o que é aquele barulho. Você tem que sa-
ber. Agora não. Se você escuta uma barulheira, você não tá nem aí. Porque
você não sabe, você não escuta. (Mirim, Tupi Guarani, janeiro, 2019 - fala
presente no documentário A Terra Me Disse).

Escutar a natureza não significa aqui somente escutar o canto dos


pássaros ou passar o final de semana no esquadrinhamento de um sítio
comendo frutas repletas de aditivos químicos. Escutar a natureza signi-
fica escutar os sinais que têm sido muitas vezes ignorados por lideranças
políticas pautadas pelos interesses do mercado. Veiga (2010, p. 50) chama
atenção para o desenvolvimento da sociedade, a qual “terá pernas curtas
se a natureza for demasiadamente agredida pela expansão da economia”.
Dentro deste contexto, escutar a natureza significa estarmos atentos/as
para os desastres ecológicos e suas razões, especialmente suas origens. O
que leva uma cidade inteira a ser dizimada pela queda de uma barragem?
O que leva ao desmatamento da Amazônia? O que motiva o movimento
de dizimar a população indígena que busca cultivar seus costumes, sua
254
identidade e a floresta como fonte dos seus alimentos, dos seus modos de
vida e de sua espiritualidade? Seriam os interesses do mercado a origem
destas questões?
O planeta enfrenta ondas de calor, desastres ecológicos, além da
morte de diversas pessoas em nome de interesses pautados pelo consu-
mo. Indígenas são propagandeados como ameaças selvagens enquanto os
interesses do mercado e a busca pelo consumo intenso não parecem ser
vistos como ameaça.
Quando nos deparamos com os dados de preservação ambiental e os
pareamos com áreas indígenas, visualiza-se a importância da presença de
indígenas na preservação ambiental e no desenvolvimento sustentável, ou
seja, no futuro da humanidade:

As Terras Indígenas (TIs) na Amazônia brasileira cobrem uma fração sig-


nificativa da região (27% da área com florestas) e abrigam 173 etnias. Além
de serem fundamentais para a reprodução física e sociocultural dos povos
indígenas – é na Amazônia que se encontram 98% da área total de TIs
demarcadas do país –, são também áreas importantes para a conservação
da biodiversidade regional e global. Apesar destes evidentes e alardeados
benefícios prestados pelos TIs para o meio ambiente amazônico, o papel
destas para a mitigação da mudança do clima e equilíbrio climático da re-
gião ainda é pouco reconhecido (IPAM, 2015).

No que tange o “desenvolvimento sustentável”, conceito definido


no relatório “Nosso Futuro Comum” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE
MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991) como “aquele que
atende as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de
as gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”.
A partir deste conceito, pode-se afirmar que os indígenas, ou povos
originários, nas suas culturas baseadas na relação com a terra e a nature-
za (BERGAMASCHI, 2005; SIMPSON, 2017; HERRERO, 2018; SCH-
WEIG, 2018) promovem em seus modos de vida o que se convencionou
chamar de desenvolvimento sustentável. Os movimentos em prol da sus-
tentabilidade como a Carta da Terra (1992) defendem que para um mundo
sustentável há uma série de princípios a serem respeitados, subdivididos
em quatro categorias, sendo elas: (1) respeitar e cuidar da comunidade da
vida; (2) integridade ecológica; (3) justiça social e econômica e (4) demo-
cracia, não violência e paz.
Ao traçar um paralelo entre dados qualitativos sobre os modos de
vida dos povos originários (BERGAMASCHI, 2005; SIMPSON, 2017;
HERRERO, 2018; SCHWEIG, 2018) e o conceito de desenvolvimento
255
sustentável, pode-se afirmar que indígenas o praticam como tradição e
preservação dos seus meios de vida, os quais, apesar da vida na cidade,
também são os meios de vida de toda população mundial, pois sem a na-
tureza, geralmente referida pelo termo capitalista generalista “recurso
natural”, não há vida, como chama atenção Guaciane Tupi Guarani em
sua fala no documentário2 A Terra Me Disse, filmado e editado3 por Pedro
Medeiros, na terra indígena Piaçaguera, em Peruíbe, litoral de São Paulo,
na aldeia Tapirema, a qual, em estágio inicial de formação recebeu cinco
juruás para documentar seu processo de resistência, no início de um ano
marcado por diversos retrocessos em relação às políticas relacionadas aos
povos da floresta, à Amazônia, ao uso de agrotóxicos, e à outras políticas
em diversas camadas da sociedade brasileira.
A aldeia Tapirema é jovem como as gerações de kiringues - crianças
em Tupi Guarani - que trabalham o desenvolvimento sustentável inerente
ao seu modo de vida em movimentos de resistência a tudo que é contrário
ao bem-estar do planeta. Através da mostra deste documentário, preten-
de-se mostrar um pouco do pensamento Tupi Guarani em relação ao seu
modo de vida e às formas milenares de desenvolvimento sustentável prati-
cadas por estas pessoas, as quais buscam na natureza o caminho para suas
vidas e não a abstração dela, pois, trazendo o pensamento de Rodolfo Kusch:

El indígena conocerá la sementera, la enfermedad de la llama, el granizo


que se desata, pero la consecuencia de ese conocer es outra. Y esto mismo,
que se debe a un estilo propio de vida, lo lleva a no participar de la irrup-
ción en la realidad, ni a utilizar em primero plano, y a nivel de su sentido
de la vida, la voluntad (Kusch, 2000, p. 282).

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Vida Para Consumo: a transformação das pessoas em
mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

2 A idealização e produção deste documentário foram feitas pelas mulheres e homens da


aldeia Tapirema e por Andreza Poitena e Josimas Ramos através dos coletivos Vivência
na Aldeia e Cultive Resistência de Peruíbe/SP.
3 A produção do documentário contou também com a participação de Ernani Silveira de
Natal/RN e making of pela autora deste trabalho.
256
BORUCKE, Michael et al. Accounting for demand and supply of the biosphere’s
regenerative capacity: The National Footprint Accounts’ underlying methodol-
ogy and framework. Ecological Indicators, [s.l.], v. 24, p.518-533, jan. 2013.
Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.ecolind.2012.08.005
CARTA DA TERRA, 1992, Disponível em: <http://cartadelatierra.org/in-
vent/images/uploads/echarter_portuguese.pdf> Acesso em: 21 mai. 2019.
COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMEN-
TO. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: FGV, 1991.
HERRERO, Marina Marcela. Um olhar sobre o envelhecer em uma aldeia indí-
gena. Mais 60: estudos sobre o envelhecimento, São Paulo: Sesc São Paulo, v.
29, n. 72, pp.86-97, 2018.
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e: Enquanto o encanto perma-
nece!: Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. 2005. 273
f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Programa de Pós-graduação em Edu-
cação, Ufrgs, Porto Alegre, 2005.
IPAM. Terras Indígenas na Amazônia Brasileira: reservas de carbono e bar-
reiras ao desmatamento. 2015. 14p.
KUSCH, Rodolfo. El pensamiento indígena y popular en América. Rosario:
Editorial Fundación Ross. 2000.
SCHWEIG, Ana Letícia Meira. A educação pela terra: professores kaingang,
territorialidades e políticas estatais. 2018. 207 f. Dissertação (Mestrado) -
Curso de Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Instituto de Fi-
losofia e Ciências Humanas, Ufrgs, Porto Alegre, 2018
SIMPSON, Leanne Betasamosake. As We Have Always Done: Indigenous
Freedom Through Radical Resistance. Minneapolis: University of Minne-
sota Press, 2017.
VEIGA, José Eli da. Cidades Imaginárias – o Brasil é menos urbano do que
se calcula. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A Inconstância da Alma Selvagem e
Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

257
AlternAtivA decoloniAl de mundo

Laura Cristina Reyes1

La alternativa o propuesta decolonial de mundo surge a partir del


problema que acarrea el reordenamiento del mundo moderno/colonial,
expuesto por Walter Mignolo («América Latina» y el primer reordena-
miento del mundo moderno/colonial, 2005), quien demuestra las con-
secuencias negativas que este reordenamiento ha traído para el mundo,
problema que por consiguiente nos sugiere pensar otra propuesta de or-
denamiento del mundo desde otra perspectiva. En el intento por respon-
der a este problema planteado por Mignolo, las siguientes líneas buscaran
ofrecer una propuesta de orden del mundo desde una perspectiva decolo-
nial a partir de la sabiduría ancestral y sugiriendo que esta sea escuchada
como posible solución al problema de ordenamiento del mundo.
Al encontrar un título como “el primer reordenamiento del mun-
do moderno/ colonial” nos remitimos a la cuestión del ordenamiento del
mundo que por consiguiente implica preguntarnos ¿qué es el mundo? Y
¿cómo me relaciono con él? Evidenciamos entonces dos posibles formas
de ver el mundo a partir de un problema geopolítico, a saber, la coloniza-
ción, estas posibles visiones son la visión de mundo moderno colonial y
la visión decolonial del mundo a las que este ensayo buscará aproximarse.
Empecemos por la visión del mundo desde la mirada decolonial,
para la cual me valdré de la perspectiva del filósofo argentino Rodolfo
kusch, quien nos acercará a una concepción ancestral de este concepto.
El mundo en relación con la realidad es ese “otro” al que se enfrenta el
hombre, la circunstancia en la que se encuentra arrojado en medio de dos
elementos contrarios que pueden jugar a su favor o en su contra como por
ejemplo la escasez y la abundancia, es aquello que lo amenaza pero a la
vez le da su sustento. Pero no se trata solamente de dos elementos antagó-
nicos, estos serían más bien los ingredientes (que pueden ser entendidos
como caos y orden, abundancia y escasez, etc) para la creación de mundo,
estos al relacionarse dan un sentido a aquello que antes era inhabitable.
En cambio cuando nos situamos desde la perspectiva moderno/colo-
nial, tomando como referencia a Bolívar Echeverría (Definición de la mo-

1 Facultad de Filosofía, Universidad Libre de Bogotá.


259
dernidad , 2010, pág. 21), encontramos ya un antecedente determinante en
la modernidad, esto es la asimilación de la “neo-técnica” en ciertos sectores
de Europa, pues al encontrar en la neo-técnica una herramienta clave para
el capitalismo y al ser aprovechada solamente con ese fin, el mundo, o como
también diría Bolívar Echeverría “lo otro, lo extrahumano” (2010, pág. 22) no
puede ser visto más que como recurso clave para este fin capitalista. Por otra
parte, si queremos situarnos desde la perspectiva de Kusch encontramos en
Europa una cultura con carácter creador, que se evidencia con la “neo-técni-
ca” descrita por Bolívar Echeverría basada en la utilización de herramientas,
en la teoría y la técnica para la creación del mundo, que Kusch dirá que es
la “creación de un nuevo mundo, un mundo artificial” el cual vendría siendo “la
ciudad” que al afrontar y superar esa realidad crea una nueva realidad.

La relación con el mundo

Respecto a la pregunta de la introducción ¿Cómo me relaciono con el


mundo? Fue preciso acercarnos al concepto de mundo, puesto que la relación
con el mundo parece estar determinada por la manera en que vemos a este, y
la relación hombre-mundo estará orientada por la forma en la que el hombre
enfrenta esa realidad. Aunque los anteriores conceptos de mundo son dife-
rentes vemos un elemento en común entre ellas, a saber, el sentimiento de
“miedo” al encontrarse ambas en una situación dual de vida y muerte, al en-
contrarse en un caos que Kusch menciona también como “hervidero espantoso”,
y es precisamente la forma de enfrentar este sentimiento la que las diferencia.
Kusch en América profunda describe dos culturas que se manifiestan
de forma opuesta y por ende su forma de relacionarse con el mundo es di-
ferente, las cuales denomina “cultura dinámica” y “cultura estática”, la pri-
mera que es característicamente creadora, crea hacia afuera, exterioriza,
interviene el mundo para crear uno nuevo, “un mundo artificial” que sería
el equivalente a la ciudad, es evidente que se trata de la reacción moderno
colonial, que como ya vimos considera el mundo como un recurso clave
para la economía capitalista, enfrenta la realidad o mundo agrediéndolo, y
además lo supera creando un nuevo mundo, a saber la ciudad. Entendien-
do el mundo como la relación entre caos-orden, se sigue que la respuesta
a ese miedo que lleva consigo el caos (escasez, muerte, oscuridad, etc) es la
solución de este mediante la creación de la ciudad, el “moderno/colonial”
se refugia en la ciudad, encuentra amparo en “el mundo artificial”.
Por el contrario, la “cultura estática” característicamente “mantiene”,
no ha superado el mundo primario, sino que el hombre desde esta posición
se mantiene inmerso en el juego de estos dos elementos (caos-orden), que

260
en lugar de la superación del mismo, busca la conciliación del hombre con el
mundo, conciliación que implica una “iluminación” o una preparación, que
en este caso solo se logra mediante el fortalecimiento interno, que Kusch
(Tomo II, 2007) diría “Siguiendo el antiguo mecanismo de todo mito, según el
cual esta aflora en ese margen en donde el inconsciente pasa sus signos a la cons-
ciencia y ésta domina a aquél mediante los ritos.”, se puede notar entonces desde
la cultura estática una reacción de concentración en aquello que puede ser
problemático, como en este caso es el inconsciente y que además encuentra
solución a partir de la aceptación de “lo otro”, puesto que en tanto que es
consciente del mismo y lo fortalece a través del consciente consigue de al-
guna manera una mediación entre estos opuestos. En esta posición por lo
tanto el mundo no es reemplazable, porque precisamente es la cultura que
mantiene el juego antagónico del mundo y busca la conciliación de los ele-
mentos contrarios, la reacción desde este ángulo frente al mundo encuentra
la solución y amparo en “la intimidad”, en el interior.

Propuesta de ordenamiento del mundo desde el ángulo decolonial

En el capítulo ya mencionado del libro La idea de América Latina eviden-


ciamos el carácter particular del “moderno/colonial” de unificación, expansión,
dominio, clasificación e incluso negación o rechazo ejercida contra “lo otro”(lo
que es diferente a lo propio), comportamientos que apuntan a un problema de
relación con “lo otro”, muy vinculado o enteramente vinculado con el concepto
de mundo, puesto que mientras en una cultura evidenciamos el “mantener” lo
otro, y que es característicamente carente de agresividad para atacar el mundo
lo que impide evidenciar una exteriorización física, y que mantiene una inten-
ción de conciliación entre elementos opuestos, en la otra cultura evidenciamos
una respuesta de “reemplazo” de lo otro y un apartamiento o el olvido de uno
de los elementos que componen el mundo, que siguiendo lo dicho anteriormen-
te seria el florecimiento interior, desequilibrio que por consiguiente devino en
colonización de “lo otro”. Desde el punto de vista decolonial este desequilibrio
acarrea un gran problema, esto es que puesto que no hay una conciliación de
dos elementos diferentes, sino que uno predomina sobre otro, no es posible la
creación de mundo, pues como vimos anteriormente es necesaria una relación
de los opuestos para que este sea habitable o para que este se torne humano.

Conciliación de los elementos diferentes

Kusch nos describe una cultura ancestral en la cual el hombre no


solamente se encuentra “yecto” entre fuerzas antagónicas sino que además

261
encuentra una solución a este problema de “estar al filo de la vida y la muer-
te”. Kusch nos muestra una cultura que no concibe el mundo sin la dualidad,
y esto se ve representado en el dios Inca Viracocha descrito por Kusch, ca-
racterizado por cinco signos que son; La sabiduría o enseñanza, La riqueza
o abundancia, Tunupa o posibilidad de relación del dios con el mundo, La
dualidad (es varón y mujer) y por último el circulo que es la realización,
el fruto. Encontramos en el dios los elementos que deben ser conciliados
con el caos, es decir el dios es la oposición del mundo, Pero Kush agrega
algo importante a este problema cuando dice; “Pero parece que la oposición
es más bien cosa del mundo y no de viracocha. Este une a los opuestos, mientras
que el mundo los separa.” (Kusch, 2007) Pero en este caso Kusch dice mun-
do refiriéndose al caos, por lo tanto el mayor problema para aquel que se
encuentra en esta postura no es el cómo supero aquello que me amenaza o
aquello que es diferente a lo propio, puesto que es necesario para la creación
del mundo, sino cómo pueden encontrarse para que sea posible el mundo
y además para mantenerlo. En el relato contado por Kusch este encuentro
entre caos y orden desata una lucha en la cual, el orden representado por el
héroe Tunupa enviado por Viracocha logra salvarse gracias a la sabiduría
que posee por ser hijo de Viracocha y por consiguiente restaura el orden,
aunque este orden sea fugaz por su constante tensión con el caos, lo que
implica un mantenerse en una constante lucha de unión de las fuerzas, en la
que el hombre “yecto” hace posible el mundo a través de la conjuración del
caos mediante el rito (como símbolo divino).
Si nos preguntáramos qué aporta la postura decolonial a este pro-
blema a propósito del ordenamiento del mundo, la respuesta seria la im-
portancia que tiene la dualidad, la presencia de elementos diferentes para
poder crear mundo, que si predomina un solo elemento no es posible un
mundo habitable y por ende se está más cerca de las escasez y todo lo re-
lacionado con este como la muerte, la oscuridad, etc.

Referencias
ECHEVERRÍA, B. Definición de la modernidad. En: ___Modernidad y blan-
quitud . Ciudad de Mexico: Ediciones Era, 2010. P.13-33.
KUSCH, R. Obras Completas. Tomo II Córdoba: Editorial Fundación Ross, 2007.
MIGNOLO, W. América Latina y el primer reordenamiento del mundo mo-
derno/colonial. En.: ______. La ideia de América Latina. Barcelona: Gedisa,
2005. Pp.75-116.

262
rodolfo KuscH: lA culturA como HerrAmientA
pArA unA filosofíA situAdA

Nicolás Evaristo Saltapé1

A continuación se transcribe la frase que cierra el prólogo a La ne-


gación en el pensamiento popular [1975]. Nos interesa recuperar esta re-
flexión porque llama la atención su sentido considerando el contexto del
año 1975. Por entonces eran álgidas las tensiones por instaurar un nuevo
orden político. Se alimentaban definiciones extremas: se vislumbraba la
posibilidad de la revolución, al tiempo que se planificaba la eliminación de
los movimientos nacional-populares en plena reorganización.

Se trata de descubrir un nuevo horizonte humano, menos colonial, más


auténtico y más americano. ¿Para qué? Pues para que desde aquí recién
pensemos la necesidad o falta de necesidad de las revoluciones, o quizá un
mundo auténtico donde una revolución podría ser inútil por estar ya dados
todos nosotros desde siempre en ella, pero en toda su profundidad y con
toda nuestra plenitud americana (KUSCH, 2008, p. 16).

Contextualizando, diremos que en esa coyuntura la política tenía


una potencia simbólica quizás inédita, neurálgica en la configuración del
sentido del mundo. Además, como prueba la Revolución Cubana, pasada
la segunda mitad del siglo XX, la salida revolucionaria era una alternativa
a la hegemonía en crisis de los grandes relatos históricos. Si al análisis
incorporamos la colonialidad del mundo, percibimos que la lucha antiim-
perialista tiene en las décadas de los ´60 y ´70 un lugar importantísimo.
Situación internacional pero sin dudas determinante en territorio nacio-
nal, a la que debemos sumarle la singularidad propia que en Argentina
representó el peronismo, que en el año 1975 veía desaparecer físicamente a
su conductor. Aquél que supo proclamar, desde el exilio, la justa y afama-
da “hora de los pueblos” (PERÓN, 1968).
En esta situación histórico-política, Kusch abogó por un replantea-
miento de la profundidad y plenitud americanas. Lo que supuso, para él,
el replanteamiento de nuestro horizonte de comprensión occidental. Re-
planteamiento en el que incluso la revolución es puesta en tela de juicio,

1 Licenciando en Filosofía. FaHCE-UNLP.


263
al remitirla a su condición de posibilidad: su historicidad. Como dice el
propio autor:

Se trata de que nos coloquemos antes del hecho de que haya historia. En
otras palabras, de recobrar el escenario en que vivimos, en donde no caben
las abstracciones y en donde, en cambio, se posibilita la historia misma.
En ese escenario recién habré de averiguar si tiene sentido de que la haya
(KUSCH, 2008, p. 84).

Rodolfo Kusch reclamó, entonces, una indagación filosófica acerca


del ente en América, suponiendo encontrar una sabiduría americana que
donar a la humanidad toda.

[…] nosotros no sabemos nada de nosotros mismos. No nos dijeron nun-


ca qué somos como entes culturales. No sabemos siquiera en qué consiste
la cultura […] al margen de esta sociedad de consumo en que vivimos,
donde incluso se consume la fe en Cristo, o el desarrollo o la cultura misma
(KUSCH, 1976, p. 73).

Ni centrado en la intervención política, como otras fuentes de la


literatura nacional, ni ajeno a ella, el planteamiento kuscheano reflexiona
en este ámbito desde una polisemia que, entre otras operaciones, contra-
pone una acepción moderna de la política: entendida como praxis o proce-
so de realización de la esencia humana, a una comunitaria: que se presenta
como forma de vida o afirmación ética.
A la acepción moderna y occidental de praxis2 le corresponde una
operación de localización que la inscribe en una totalidad: la totalidad
de la cultura americana. En este sentido, en GHA se plantea la necesidad
de rehabilitar el concepto de cultura en América, sino es como entidad
biológica, al menos como “como un código que brinda al individuo una

2 Acepción que se define, en términos epistemológicos, a partir de una racionalidad


dialéctico-negativa. “EL MUNDO MODERNO ESTÁ MONTADO SOBRE UNA LÍ-
NEA DE SATISFACCIONES que se inicia en la Europa de los siglos XIV y XV y que
seguramente no terminará sino en un lejano planeta” (Kusch, 1976: 48) Comprendida de
este modo, la política se identifica con el pensamiento del ser occidental, un pensamiento
dinámico, que procura la transformación de la realidad a los fines de la satisfacción del
deseo y constituye su mundo basado en una lógica del placer como consumisión. “Quizás
en ninguna cultura como la occidental se asocia la vida en tal forma con el placer de vivir.
Vivir consiste en participar activamente de la “fiesta del mundo”, o sea, de los objetos.
Para eso fueron creados. El patio de objetos sirve precisamente para dar una solidez de
cosa a la vida, para convertirla en una máquina de placer” (KUSCH, 2012, p. 172).
264
coherencia de sentido en su existir” (Kusch, 1976: 79). En esencia, la ra-
zón de ser de una cultura es que un pueblo esgrima, con sus símbolos, una
estrategia para vivir (KUSCH, 1976, p. 104).
De esta manera, si seguimos el camino trazado por Kusch, al plantear
la pregunta por la política arribamos a la necesidad de considerar su rela-
ción con la cultura. O, mejor: remitiendo la política a su condición histórica,
su historicidad, nos topamos con el índice de determinación de la cultura. A
este respecto, el autor afirma: “La razón profunda de ser de cualquier cul-
tura, es la de poder brindar a su integrante un horizonte simbólico que me
posibilita la realización de mi proyecto existencial” (KUSCH, 2008, p. 58).
Evidentemente, cada cultura concreta una valoración (o una inter-
pretación) de la naturaleza, la historia, el mundo y sus fundamentos, esto
es, de la totalidad3, y en esa medida brinda un horizonte de comprensión
para la acción. En este sentido, la cultura permite nuestra entrada en el
mundo. Pero estas definiciones son incompletas si buscamos caracterizar
la categoría del argentino. Para el autor:

El concepto de cultura comprende una totalidad. Todo es cultura en el


sentido de que el individuo no termina con su piel […] A su vez, el modo
de ser de una cultura no se comprende totalmente a nivel consciente. […]
De modo que la cultura implica la búsqueda del ser y por la otra la resgi-
nación a estar (KUSCH, 1976, p. 114).

De este modo, aparece ante nosotrxs la dimensión del estar, que se di-
ferencia en Kusch de la dimensión de ser y muestra que el pensamiento euro-
peo del ser alguien, del poder-ser del existente, que es la dimensión en la que
la decisión del agente configura el mundo «en consideración a» su proyecto,
no puede dar cuenta de la totalidad de la cultura. Que junto a la producción
de esencias como proceso de transformación del mundo, hay otra dimensión
que apunta a algo así como la sobrevida del organismo cultural. Pero que, en
referencia al existente, es el estar de cara a la pregunta por lo condicionante
en el sentido de estar ahí existiendo, ósea del puro hecho de darse (KUSCH,
2008. p. 92) o de la pura posibilidad de ser (KUSCH, 2008, p. 85).
3 De acuerdo a esta consideración la idea de cultura como totalidad puede ser y ha sido
asociada a las ideas de una cosmovisión o concepción del mundo [weltanschuung], del
“mundo de la vida” (lebenswelt) husserliano o de la “vida histórica” hermenéutica -de allí
que, líneas más arriba, hablásemos de historicismo-; también podría asociársela a una
metafísica en el sentido del olvido heideggeriano, para pensar un humanismo cultural-
mente determinado, en este sentido, sería ésta una metafísica a la que le va en su esencia
una compresión culturalmente determinada del ser. Creemos que en un sentido muy
similar habla Maturo (2007) de un “humanismo culturalmente determinado”.
265
En este escenario, una cultura se convierte en “una estrategia para
vivir en un lugar y en un tiempo […] una política para vivir” (KUSCH,
1976, p. 104)

Una cultura tiene en su esencia su razón de ser en algo que es muy profun-
do, y que consiste en una estrategia para vivir, que un pueblo esgrime con
los signos de su cultura (KUSCH, 1976, p. 104).

“Una cultura no es una totalidad rígida, sino que comprende además una
estrategia para vivir. Una producción literaria, un ritual mágico, o una má-
quina son formas de estrategias para habitar mejor el mundo” (KUSCH,
1976, p. 98)

Igualmente, es “la universalidad de estar caído en el suelo”:

“Detrás de toda cultura está siempre el suelo […] Y ese suelo así enuncia-
do, que no es ni cosa, ni se toca, pero que pesa, es la única respuesta cuando
uno se hace la pregunta por la cultura. Él simboliza el margen de arraigo
que toda cultura debe tener. Es por eso que uno pertenece a una cultura y
recurre a ella en los momentos críticos para arraigarse y sentir que está
con una parte de su ser prendido al suelo. No hay otra universalidad que
esta condición de estar caído en el suelo” (KUSCH, 1976, p. 74)

La caída de que nos habla Kusch es distinta de aquella propuesta


por la fenomenología europea, de hecho quizás sea inversa. Si aquella re-
fiere al ámbito del proyecto, ésta a su condición de posibilidad: el mero
estar o el estar yecto. Al que podemos describir, sin temor a errar, pues
Kusch quisiera que vayamos más allá de la verdad: como afectividad, como
habitualidad, como interioridad de las cosas sagradas.

Como acontecer, la instalación es la intimidad del estar. Éste representa el


compromiso con el ámbito, con el suelo, el “refugio elemental”: allí se equi-
libra el fasto y lo nefasto y lo humano accede a lo genuino. Allí se conforma
el modo de vivir colectivo e individual: se crece.

En este sentido, la cultura surge del existir mismo

Visto el fenómeno de la cultura a las luces de la fenomenología, se advierte


que aquélla tiene razón de ser porque cubre la indigencia original de care-
cer de signos para habitar el mundo. El sentido profundo de la cultura está
en que ésta puebla de signos y símbolos el mundo. Y que este poblamiento
es para lograr un domicilio en el mundo a los efectos de no estar demasia-
do desnudo y desválido en él (KUSCH, 1976, p. 117).
266
De allí que la decisión cultural implique asumir la necesidad de re-
cobrar la dignidad de la cultura americana. La dignidad se enreda siempre
con una ética (Kusch, 1976: 117), por lo que debemos recuperar nuestras
pautas culturales y asumir nuestra decisión cultural como una ética. Esta
no es sino una enseñanza del pensamiento popular que apunta a un “saber
de salvación”, encarando “su posibilidad de ser dándole una dimensión
ética. Como si se cumpliera la fórmula de estar para ser” (KUSCH, 2008,
p. 121) De este modo, la política en su acepción de proyecto, se sitúa en la
obra de Kusch en un contexto más general: el contexto de la vida (KUS-
CH, 1976, p. 153 y ss).
Finalmente, hay un sentido eminente del estar, que se desprende de
esta concepción de la cultura como suelo, del que nos gustaría hacernos
eco para caracterizar nuestro enfoque. Kusch afirma que “cultura supone
[…] un suelo en que obligadamente se habita. Y habitar un lugar significa
que no se puede ser indiferente ante lo que aquí ocurre” (KUSCH, 1976, p.
115) Nuestra propuesta es tomar como punto de partida esta reflexión en
torno a la política que desprendemos de la letra del autor. Punto de par-
tida acerca del cual él mismo afirma que “ha de ser político en un sentido
profundo como algo que consiste en despertar un ethos” (KUSCH, 1976,
p. 105). Creemos que este camino, que sólo es posible sobre nuestra per-
tenencia a una comunidad, es aquel que nos permitirá consolidar un saber
filosófico fundamentado sobre el “buen vivir” de nuestros pueblos.

Se trata de preceder una consideración científica con una consideración


política y ésta vertebrada filosóficamente. ¿Por qué? Pues porque el punto
de vista filosófico forzosamente tiene que encontrar con esta voluntad de
gobernar nuestra propia polis, de salvarla a los efectos de que nuestra co-
munidad sobreviva en el futuro (KUSCH, 1976, p. 107).

Referencias
AZCUY, E. (comp.). Kusch y el pensar desde América. Buenos Aires: García
Cambeiro, 1989.
BORDAS DE ROJAS PAZ, N. Filosofía a la intemperie. Kusch: ontología
desde América. Buenos Aires: Biblos, 1997.
DESCOMBES, V. Lo mismo y lo otro. Cuarenta y cinco años de filosofía
francesa (1933-1978). Madrid: Cátedra, 1988.
HEIDEGGER, M. Los problemas fundamentales de la fenomenología. Tra-
ducción y prólogo de García Norro. Madrid: Editorial Trotta, 2000.

267
HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. Traducción por Jorge Eduardo Rivera. Ma-
drid: Trotta, 2004 [1927].
KUSCH, R. Geocultura del hombre americano. Buenos Aires: Fernando Gar-
cía Cambeiro, 1976.
KUSCH, R. La negación en el pensamiento popular. Buenos Aires: Las Cua-
renta, 2008.
KUSCH, R. América Profunda. Buenos Aires: Biblos, 2012.
LEVI-STRAUSS, C. Antropología estructural. Traducción de Eliseo Verón.
Buenos Aires: Eudeba, 1980.
MATURA, G. Fenomenología y hermenéutica: desde la transmodernidad lati-
noamericana en Utopía y Praxis Latinoamericana. Vol. 12, núm. 37. Maracai-
bo: Universidad de Zulia, 2007.
PAFUNDI, C. N. Rodolfo Kusch. Esbozo de una dialéctica de la subjetivi-
dad. Buenos Aires: FILO: UBA, 2003.
PERÓN, J. D. La hora de los pueblos. Buenos Aires: Fabro, 2012.
SCANNONE, J.C. Sabiduría popular, símbolo y filosofía. Buenos Aires: Gua-
dalupe, 1984.

Abreviaciones
GHA: Geocultura del hombre americano.
AP: América Profunda
LNPP: La negación en el pensamiento popular.

268
o pátio de objetos sintéticos do coloniAlismo:
AproximAções entre rodolfo KuscH e
Antônio bispo dos sAntos

Nidiane Saldanha Perdomo1

O pensamento de Rodolfo Kusch sobre a América como um “pátio


de objetos” traz aspectos amplos e atuais que podem ser aplicados para
analisar o caminho equivocado que a sociedade da mercadoria está ingres-
sando. O mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos trata do mesmo
tema quando relaciona as “confluências e as transfluências” para observar
o fenômeno da transformação do orgânico em sintético que ocorre no
nosso tempo. Os dois autores tratam das consequências da colonização
no modo de vida da América (Kusch) e especificamente do Brasil (Dos
Santos) e de como as transformações causadas por esses processos atuam
sobre a “cosmovisão” e o “estar no mundo” dessas populações.
A teoria de Kusch (2007) aborda a criação das cidades como a con-
tribuição do homem ao trabalho divino de construir o mundo. Nas cidades
da europa do séc XVI e XVII se forma uma moralidade própria, que pro-
picia o nascimento da máquina. Segundo o autor, o modo de vida na cidade
recria o mundo com uma ordem em que não há espaço para a imoralidade,
na relação que se estabelece entre moral versus trabalho. Se tudo na cidade
é trabalho, o espaço do imoral, que faz parte do homem, se torna um vazio
que é preenchido com a máquina. A máquina e o que ela produz preen-
chem esse vazio e “quizá por eso se convierten en el primordial objeto de
vida” (KUSCH, 2007, p. 141).
Os objetos seriam, de acordo com a teoria, a forma concreta do im-
pulso para o mal, sublimado e sem lugar senão a conversão em coisa, em
algo que não constitui parte da vida, que a completa, mas sem integrá-la.
A sociedade também se modifica, passando a ser apenas “un conglome-
rado de individuos convertidos en objetos y que deben acatar la ley o el
reglamento policial, igual que en la fábrica. El juez y el policía son los
ingenieros de la sociedad civil, o mejor dicho, los sacerdotes demoníacos
de un mundo muerto” (KUSCH, 2007, p. 142). Para o autor, isso significa
o fim da “salvación interior”, já que a única liberdade permitida na cidade
é exercida ao votar ou comercializar. Essa delegação de parte do homem

1 Estudante de graduação em Letras Português/ Espanhol pela UFRGS. Integrante do


grupo de pesquisa Letras e Vozes Anticoloniais.
269
ao “campo dos objetos” representa a cultura moderna e sua “traducción
simple de la vida a la mecánica” (KUSCH, 2007, p. 142)
Para Antônio Bispo esse processo se dá através da confluência - “a
lei que rege a relação de convivência entre os elementos da natureza e
nos ensina que nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual” e
da transfluência - “que rege as relações de transformação dos elementos
da natureza e nos ensina que nem tudo que se mistura se ajunta” (DOS
SANTOS, 2015, p. 89) e a partir dessas leis se estabelece a relação entre
“realidade e aparência, ou seja, entre o que é orgânico e o que é sintético”.
Essa passagem é produto da diferença cultural entre o colonizador
monoteísta e os povos denominados afro-pindorâmicos, de crença politeísta.
Essa designação engloba os diversos povos de origem africana que foram
trazidos para escravização e os povos originários do Brasil, que na língua
tupi se chamava Pindorama. O conceito parte de um princípio contra-co-
lonizador, já que os esses povos foram chamados de índios pelos europeus.
Segundo Bispo, o colonizador replica no colonizado a desterritoria-
lização e desnaturalização, porque sua crença religiosa provém de que ele
próprio foi “desterritorializado ao ouvir do seu Deus que as ervas eram
espinhosas e daninhas, que para se alimentarem tinham que comer do
suor do próprio corpo, ou seja transformar os elementos da natureza em
produtos manufaturados e/ou sintéticos.” (DOS SANTOS, 2015, p. 96)
Para o colonizador, as artificialidades são parte da sua cultura e re-
ligião. Esse também seria o motivo pelo qual esse povo

desterritorializado, antinatural, eternamente castigado e aterrorizado pelo


seu Deus, sentisse a necessidade de se reterritorializar em um território
sintético. Para tanto, se espraiaram pelo mundo afora com o intuito de
invadir os territórios dos povos pagãos politeístas e descaracterizá-los
através dos processos de faturamento, para a satisfação das suas artificiali-
dades (DOS SANTOS, 2015, p. 96).

Segundo Dos Santos, esse impulso caiu sobre os povos afro-pin-


dorâmicos, que interagem de modo diverso com suas divindades e com
a natureza. Mantendo uma “relação respeitosa, orgânica, e biointerativa
com todos os elementos vitais” (DOS SANTOS, 2015, p. 90), esses povos
compreendem que “sem a terra, a água, o ar e o fogo não haverá condi-
ções sequer para pensarmos em outros meios”. Tendo sua fonte natural de
vida, com entendimento de que sua terra é sagrada, não precisam invadir
outros territórios e nem submeter outros povos através do trabalho.
Para Kusch, essa “creación de una segunda naturaleza” é a “conse-
cuencia patológica de la prohibición del mal” (2007, p. 144). O homem se
270
perde da sua condição de ser biológico, e substitui a parte demoníaca que
lhe constitui (agora proibida) pela forma dos objetos. A cidade, lugar que
não comporta os aspectos da vida humana, se transforma no “patio de los
objetos”, onde são postas as coisas que são criadas para estar confortável
neste mundo. Deste modo,

el hombre pierde la prolongación umbilical con la piedra y el árbol. Ha


creado algo que suple el árbol, pero que no es árbol. Como simple sujeto
lógico que examina objetos e los crea, quiere ser un hombre puro, pero no
es más que medio hombre porque ha perdido su raíz vital y entonces suple
la ira de dios por su propia ira (KUSCH, 2007, p. 146).

Frente ao massacre da cultura natural causado pela opressão da


cultura sintética, ou dos objetos, podemos pensar que não há nenhuma
possibilidade de recuperação da vida orgânica em nosso tempo. De acordo
com os autores, outras formas de interação podem se relacionar com a
natureza de modo menos artificial. Segundo Kusch, o machado de pedra
e a máquina a vapor, na sua diferença, ainda são igualmente formas de
“relação entre o homem e o mundo”. A diferença, para o autor, está na
vinculação entre essa relação e os homens, no modo como cada forma isola
o homem da natureza:

Casi toda la revolución técnica europea va orientada a reemplazar el mun-


do escamoteado. Los objetos creados reemplazan a la naturaleza. La téc-
nica es un poco la creación del árbol dentro de la ciudad, es el traslado del
mar y del espacio-demonio al ámbito de las calles. Y ello ocurre así porque
en el encierro de la ciudad había que reiniciar el arduo trabajo de adaptar
la vida (KUSCH, 2007, p. 149).

Essa diferenciação nos permite um ponto de retorno, a um estágio


onde os objetos fazem parte da vida sem que para isso as pessoas sejam
transformadas em objetos. Esse processo também é descrito por Antônio
Bispo, como “reedição da natureza”. Para o autor, a ideia de reciclagem
está superada porque não temos mais capacidade de reutilizar tudo o que
produzimos. O autor propõe que se adote a “biointeração”, que implica
rever a necessidade de transformar o orgânico em sintético, utilizando
materiais naturais e com a consciência de que os recursos são finitos, supe-
rando o desenvolvimentismo colonizador. Segundo Bispo, “a vida é mais
simples do que parece, desde que as nossas condições de vivenciá-la não
estejam movidas pelos sentimentos de manufaturamento e sintetização”
(DOS SANTOS, 2015, p. 100).

271
É necessário mais que pequenas atitudes de cuidado com o ambiente
para modificar a realidade material de nossa sociedade. Como nos
mostram as teorias abordadas, a forma de vida que reifica os objetos e
prima pelo sintético é mais que uma consequência do sistema econômico,
é também um aspecto significativo da herança do colonialismo no Brasil
e na América.

Referências
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas. Rosario: Fundación A. Ross, 2007. [v. 2].
DOS SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos: modos e significa-
ções. Brasília: INCT, 2015.

272
lA esclAvitud culturAl de AméricA lAtinA
A pArtir de lA colonizAción

Rayane Ancelmo Leal1

El objetivo de ese artículo es proponer, a través de pesquisa teóri-


ca bibliográfica, una reflexión sobre la formación histórica y cultural de
América Latina a partir de un breve análisis sobre la esclavitud indígena.
En una pesquisa a partir de la filosofía latino americana con foco principal
en las obras: Un tratado sobre la esclavitud de Alonso Sandoval, Coloni-
zación y evangelio de Joseph Hoffner, Libertad y justicia para los pueblos
de América de Frey Bartolomé de Las Casas y demás obras pertinentes
a la temática propuesta. Una vez elucidada la esclavitud cultural latinoa-
mericana y sus marcas en ese continente, se abrirán las puertas para que
se pueda tener una perspectiva más amplia sobre nuestra propia historia,
cultura, costumbres, religiosidad y pensamiento. Ese artículo se organi-
zará en dos partes.
La introducción que abordará un breve histórico de la esclavitud
indígena en América, luego, en la segunda parte será abordada el cambio
cultural a partir de la esclavitud y la problemática de identidad latinoa-
mericana como consecuencia de las marcas de una colonización blanca,
cristiana y doctrinante.
Bartolomé de Las Casas hizo un registro detallado sobre la historia
de la colonización sob un mirar más próximo de los nativos de esta tierra.
Criticado por algunos por haber hecho un relato muchas veces interpre-
tado con cierto tono de exagero, pero siendo fiel a las atrocidades pre-
senciadas por él y realizadas por los españoles frente al poder de dominio
y esclavitud. Fueron guerras, males-tratos, catequización, imposición de
una lengua, esclavitud, enfermedades y aproximadamente más de 70 mil-
lones de amerindios muertos.
Lo que se puede afirmar, es que esa es la historia de América, esa
será la base para buscar entender la formación cultural de nuestro pueblo.
A partir del relato de Bartolomé de las Casas sobre la historia de la
colonización hispánica, queda claro que tal hecho histórico ha dejado mar-
cas profundas en nuestra América. Tales marcas, permean la cultura, el arte,

1 Mestranda em Filosofia pelo PPG de Filosofia PUCRS. Bolsista Cnpq- Pesquisa: Pen-
samiento auténtico latinoamericano en Leopoldo Zea.
273
las costumbres, el pensamiento, la religiosidad y sobretodo la identidad la-
tinoamericana. El despoblamiento fue más allá de los territorios. Hubo un
despoblamiento cultural y del pensamiento. Sacaron el alma del pueblo y de
la tierra, justificados por sus verdades absolutas, blancas y cristianas.
Según Ianni (1993, p. 12), aunque los países de América Latina sean
independientes uno del otro, existe algo que los unifica: su geografía, su
historia de colonización y su sociedad. Una sociedad marcada por la falta
de estabilidad política, por sus luchas sociales y un débil desarrollo econó-
mico. Esos factores son influyentes para la marca negativa de la identidad
cultural de un pueblo. Pero, en este trabajo iremos fijarnos principalmente
en la historia común de colonización y esclavitud.
Es importante acordarse que los hechos históricos están relacionados
con la manera como el pueblo se reconoce culturalmente y generan distintas
interpretaciones para otras naciones y para el propio pueblo latinoamericano:

Esas interpretaciones son distintas, a veces complementares, a veces di-


vergentes. Pero es posible reconocer que ellas registran algunos aspectos
importantes de la problemática latino-americana. Muestran como Améri-
ca Latina piensa y es constituida. (IANNI, 1993, p.12)

Nuestra colonización está marcada por la violenta destruición de


los amerindios y también de sus expresiones culturales. Los coloniza-
dores portugueses y españoles no querían solamente explorar el mundo
nuevo, pero también dominarlo imponiendo su cultura, pensamiento y re-
ligiosidad. Así lo hicieron.
El proceso histórico de la colonización generó la mezcla de dos
mundos. A partir de ahí, como afirma Pacheco (2008, p. 20), el pueblo lati-
no americano pasó a integrarse en el contexto internacional:

La construcción de América Latina, a partir de su dicho ingreso a la histo-


ria universal, puede ser considerada también un período de formación del
hombre latino-americano, teniendo en vista que los elementos coloniales
que, posteriormente, serán criticados por la filosofía latinoamericana en la
tentativa de forjar la originalidad del horizonte cultural de América Latina y
de su sociedad, contribuyeron en esta época para la creación de una entidad.

Después de la mezcla de razas y del dominio sobre el pueblo aquí


existente, empezó una América Colonia, donde los españoles ocupaban
la parte más alta de la pirámide social y los indígenas, negros y también
mestizos ocupaban la parte más baja, alimentando los procesos producti-
vos esclavos que enriquecían los colonizadores.

274
Motivados por el repudio a ese sistema exploratorio y autoritario,
mestizos y mulatos empezaron una lucha de resistencia, pero, debido a la
gran variedad de razas, clases e intereses, las reivindicaciones que, a veces,
eran internas, no llegaban a los españoles.
La crisis económica que España estaba pasando en Europa abrió es-
pacio para innúmeras demandas y guerras de independencia en América
Latina que duraron quince años. Durante las guerras estaba claro lo que
querían las clases sociales: Libertad.
El legado de esas guerras fue la independencia y consecuente for-
mación de más países dentro de la América Española. Las independencias
fueron desplegándose entre 1809 y 1821, con el apoyo del gobierno de Es-
tados Unidos que creía ser esta una buena oportunidad de libre comercio.
Por eso, América Latina aún sigue buscando su identidad, intentan-
do superar años del encubrimiento de su cultura e historia y de las marcas
negativas del imperialismo norteamericano:

La búsqueda de identidad de esta nuestra región. Una identidad puesta


en crisis por la ruptura política con las metrópolis iberas, en especial con
España y frente al amago de la América al otro lado del Río Bravo, los Es-
tados Unidos. La identidad de pueblos que sentían como marca infamante
lo que habían recibido, obligados a renunciar a lo que eran para poder ser
otros que ellos mismos. ¿Indios y mestizos o españoles? ¿Americanos o
Europeos? (ZEA, 1986, p. 6).

La búsqueda de identidad sigue hasta hoy, pues aún el pueblo lati-


noamericano no se siente perteneciente a este lugar que es suyo. Los años
de colonización, exploración y esclavitud abrieron puertas que aún no
fueron cerradas, como, por ejemplo, la necesidad de dominio.
Eso, está muy próximo de una esclavitud cultural que persiste, es
decir, que en esta tierra hay dificultad de expresar independencia de pen-
samientos, costumbres, religión, entre otros. Nuestro mirar aún sigue co-
lonizado. ¿Independientes? ¡Ni tanto!
Los años de dominio, hicieron con que se normalizasen ritos y per-
cepciones que no eran esencialmente nuestras, y a partir de esta norma-
lización se empezó a seguir padrones que fueron impuestos como marcas
de salvación de nuestras almas y nuestra tierra.
Y así empezó a nacer una nueva cultura en Latinoamérica, no más
auténtica de los nativos, pero constituida por la mezcla y sobre todo por el
silenciamiento de las voces de los que fueron diezmados.
En la región de Higuey, tenía una líder llamada Higuanama, ahorcada
y muerta por los colonizadores, así como toda su tribu y con ella su cultura,
275
ritos, costumbres, historia. En toda América cada tribu tenía su doctrina es-
piritual, celebraban la naturaleza y sus dioses. El cristianismo de los coloni-
zadores llega en América como una de las formas de dominio y encubrimien-
to del otro, es decir, se empieza a catequizar y propagar una solo religión,
un solo Dios a quien obedecer. Un Dios blanco, limpio, puro, justo, que los
entregaría el reino del cielo a partir de su devoción y catequización. Un dios
lejano, eurocéntrico, que les pone a la periferia, que les apunta como perdidos
y pecadores, pero dignos de salvación a partir de la fe y de la servidumbre.
Según Hoffner (1906, p. 81) El destino de los esclavos fue esencialmen-
te determinado por la religión, cultura y economía del pueblo dominante.
El distanciamiento cultural, económico, social entre eses dos mun-
dos, Europa y América, sirvió de justificativa para que los españoles do-
minasen y esclavizasen los indios, pues entendían ser natural la condición
de esclavos de ese pueblo, pues no comprendían, tampoco respetaban lo
diferente modo de vivir de ellos, teniendo siempre como marco padrón el
europeo, el centro del mundo.

Esta la razón por que existen hombres de menos valor, para con los cuales
se debe usar de coacción y violencia. Son esclavos natos. Los espíritus su-
periores son llamados por la naturaleza para puestos de comando. Los
retardados (con cuerpos robustos) parecen destinados para servir (…) To-
más prosigue: esa característica de inferioridad se encuentra sobre todo
entre los pueblos primitivos, los cuales falta tanto escritura, como derecho
escrito. Por eso viven o vegetan rumbo a la imbecilidad y a costumbres
animalescos (HOFFNER, Joseph. 1906, p. 78).

Esas afirmaciones que se repitieron por siglos, están por debajo de


las camadas de nuestra formación histórica, nuestro desarrollo está basa-
do en afirmativas negativas en relación a nuestra gente, nuestras expre-
siones, nuestros comportamientos. La esclavitud y dominación es física y
práctica, pero sin duda es también del alma, del campo subjetivo donde
permea la estructura cultural de un determinado pueblo.
La destruición generó creación. Pero, ¿de qué? ¿De qué estamos/
somos constituidos al final? ¿Estamos libres los latinoamericanos?
El ansia por libertad y por identidad persiste en nuestro continente,
se hace necesario pensar no más lo que somos, pero lo que (no) somos, y a
partir de la negación buscar alcanzar nuestra propia identidad cultural y
del pensamiento. Libre y autentico.

El centro se impuso sobre la periferia desde hace cinco siglos. Pero ¿hasta
cuándo?

276
¿No habrá llegado a su fin la preponderancia geopolítica del centro?
¿Podemos vislumbrar un proceso de liberación creciente del hombre de la
periferia? (DUSSEL, Enrique 1977 p.15)

Referencias
DONGHI, Tulio Halperin. História da América Latina. Petrópolis: Paz e Ter-
ra, 1975.
DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação. México. Editorial Edicol, 1977.
HOFFNER, Joseph, Bispo de Munster 1906. Colonialismo e evangelho. Ética
do colonialismo espanhol no século de ouro. SP- Ed. Universidade de São
Paulo, 1973.
IANNI, Octavio. O labirinto latino americano. São Paulo: Vozes, 1993.
LAS CASAS, BARTOLOMEU DE, 1484-1566. Liberdade e justiça para os
povos da América: oito tratados impressos em Sevilha em1552. São Paulo:
PAULUS, 2010.
MANCILLA, Roberto Olivares. Capítulo IX Una aproximación a la práctica pe-
dagógica de la filosofía latinoamericana In: FLORES, Alberto Vivar; FRANK,
Willames (Org). Problemas do pensamento filosófico na América Latina.
Editora PHILLOS. Goiânia-GO Disponível em: http://www.editoraphillos.com
pdf>. Acesso em: 11 abril.2018
PACHECO, Silvestre Eustáquio Rossi. A construção da Comunidade Latino-
-Americana de Nações no marco de fundamento da Identidade Regional
de Nuestra América. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós
Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2008.
Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_Pacheco-
SE_1.pdf>. Acesso em: 12 jul.2019.
ZEA, Leopoldo. La latinidad y su sentido en América Latina. Universidad
Nacional Autónoma de México. México: Coordinación de Bibliotecas, 1986.

277
concepções sobre o processo de colonizAção dAs
AméricAs à luz dA teoriA de rodolfo KuscH

Ricardo Francelino da Silva1


Alonso Bezerra de Carvalho2

O processo de construção de Nação, ou do espírito de Nação, per-


passa variados motes éticos, estéticos, políticos e sociais. A palavra “Na-
ção” nos remete a pertencimento, àquilo que nos torna nós e não apenas
eu, ao fator ou fatores que permitem a um determinado povo, em um mo-
mento especifico de sua história se unir em torno de um ideal ou de ideais
compartilhados e dignos de se preservar. A história da América é marcada
por um processo de colonização que transformou a realidade do novo/
antigo continente.
No caso do processo que ficou conhecido na história como “Con-
quista da América”, um fator primordial marcou esse processo. Não fora a
superioridade bélica ou destreza marcial que possibilitou o invasor euro-
peu lograr êxito em sua empreitada, mas sim, o acirramento das divergên-
cias políticas e sociais existentes entre os próprios povos aqui presentes.
Como nos afirma Todorov (1991), a superioridade numérica e conheci-
mento da terra, dariam vantagem insuperável ao nativo, mas a vileza e a
inescrupulidade dos aventureiros mercantilistas lhes permitiram enganar
por tempo suficiente os povos nativos desse continente, para que as doen-
ças trazidas pelo europeu, para as quais os cidadãos daqui não possuíam
imunidade, dizimassem quase 1/5 da população mundial do século XVI.
Todorov (1991) estimou que habitavam o continente cerca de 80 milhões
de pessoas, cerca de 1/5 da população mundial estimada para o período
em 400 milhões.
Conta-nos Tzvetan Todorov (1991) que milhões de pessoas foram
mortas por doenças trazidas pelo colonizador. Mais que as guerras e a
escravidão imposta a diversos povos ameríndios, as doenças trazidas pelo

1 Doutorando em Educação, UNESP/Marília, Mestre em Psicologia, pela UNESP/As-


sis, Graduado em História e Pedagogia pela UNESP/Assis. Faculdade de Filosofia e
Ciências – UNESP, Marília-SP. E-mail: ricardo.francelino@unesp.br
2 Livre docente pela UNESP/Assis, Doutor em Filosofia da Educação pela USP. Profes-
sor do Departamento de Educação da UNESP, Campus de Assis e do PPG em Educação
da UNESP, Campus de Marília. E-mail: alonso.carvalho@unesp.br
279
estrangeiro devastaram as populações das Américas. Tenochtitlán, capi-
tal Asteca, possuía tamanha grandiosidade, em sua estrutura e organiza-
ção, tamanho e importância que fora comparada a Constantinopla e Roma
pelos invasores.
A construção da idéia de inferioridade, de subdesenvolvimento, pro-
pagadas pelo colonizador espanhol e português fez parte de um processo
de criação de uma superestrutura ideológica. A invasão das novas terras
não seria, senão, um ato de bondade, conduzido pelos céus, para civilizar e
propagar o reino de Deus aos perdidos, movimento percebido na história
universal com as Cruzadas dos povos europeus à Jerusalém, no período da
Idade Média.
As civilizações nativas, consideradas primitivas e inferiores pelos
invasores europeus, demonstraram um grau de desenvolvimento e técnica
surpreendente. Aprenderam a cultivar inúmeras plantas desconhecidas
no restante do mundo. O milho cultivado no Peru, Bolívia e principalmen-
te México possuía variedade de espécies e diversificadas formas de proces-
samento. Estudos arqueológicos dataram amostras de milho encontradas
em abrigos rochosos na região originalmente habitada pelos Zapotecas,
vale de Oaxaca, de 4.500 anos antes de Cristo, o que dataria as amostras
dessa região ao surgimento da escrita cuneiforme pelos sumérios antigos.
Amostras de feijão e abóbora encontradas nessa região datam de cerca de
10.000 mil anos atrás, o que comprova que o homem pré-histórico Zapo-
teca já fazia uso desses alimentos (KENT FLANNERY3, 1985). Batata,
mandioca, tomate, cacau, feijão eram cultivados pelos mais variados gru-
pos étnicos presentes no continente invadido. Os Íncas desenvolveram
técnica de plantio em regiões montanhosas que revolucionou a agricultu-
ra no mundo. Até a descoberta dos terraços Íncas, a agricultura era reali-
zada em planícies. Os Maias possuíam um sistema numérico vigesimal de-
senvolvido, conhecimentos de matemática, engenharia e astronomia que
intrigaram os “colonizadores”.
Os povos que aqui habitavam a terra na chegada dos europeus já
estavam há milênios, para ser mais exato a quase 30 mil anos, como de-
monstram pesquisas em arqueologia (CLASTRES, 2004, p. 65). Existem
registros de que os Maias iniciaram o processo de unificação antes do
período de Cristo.
O processo de aculturação e de negação do outro posto em prática
pelos invasores europeus alicerçou-se sobre a ideia de inferioridade dos

3 Prehistory and Human Ecology of the Valley of Oaxaca, Mexico – Estudo dirigido
por Kent Vaughn Flannery, em cooperação com demais colegas da Universidade de Mi-
chigan, entre 1966 a 1980.
280
povos do novo continente. Esta ideia faz parte de um processo maior e
intencional denunciado por Marx (1989) na formação da superestrutura
ideológica e política que dá sustentáculo ao capital para expropriar e sub-
jugar o homem. Nesse quesito István Mészáros (2011) nos adverte, a su-
perestrutura de organização e conduta social, dos mecanismos coercitivos
do Estado, opera como mecanismo de controle um “usurpador a serviço
dos usurpadores da riqueza social” (p. 99). A história é contada, salvo ex-
ceções raras, pelos vencedores e sempre pelo ponto de vista de quem de-
tém os meios de comunicação e veiculação da informação. Existe um pro-
vérbio moçambicano que diz: “até que os leões tenham os seus próprios
historiadores, as histórias da caça continuarão glorificando o caçador”.
O movimento de desconstrução desse processo de aculturação e de
expropriação da cultura dos povos subjugados perpassa pela necessidade
de reescrita da história, mas não por aqueles que venceram, mas sim pelos
atores que foram privados de voz e de expressão em nome do desenvol-
vimento. O frei Bartolomeu4 de las Casas e outros escritores do perío-
do colonial registraram algumas das atrocidades realizadas em nome da
“descoberta do novo mundo”.
O processo de conquista reflete o movimento realizado para criar
uma realidade paralela que negue a cultura do outro, vista como inferior
e apregoe o chamado “desenvolvimento”. Os escritos de Rodolfo Kusch,
contribuem de maneira fecunda para o acirramento do debate e conse-
quente processo de desconstrução histórico-cultural, chamado por Kusch
“de-colonialismo” para, a partir desse movimento, direcionarmos para o
centro das pesquisas as riquezas técnicas, científicas e culturais produzi-
das pelas civilizações pré-colombianas.
Kusch retoma o debate fenomenológico na distinção do ser-alguém
e do mero-estar. O europeu aqui chegou e se deparou com uma filosofia
de vida e de “estar” no mundo que era incompatível com os interesses co-
loniais. Propõe a história da América do período das invasões até a atuali-
dade como a história menor das Américas em detrimento de uma história
maior, com início na pré-história e reforça a importância de resgate das
heranças nativistas para o processo de de-colonização. Sobre essa relação
entre o ser e o estar o autor esboçou que

hay como un desgarramiento ontológico entre mi estar y el ser. Por eso


descubrimos siempre que somos anteriores al ser de otros. Por eso cree-
mos estar no más, y vemos al occidental que no está, sino que siempre

4 LAS CASAS, F. B.O paraíso destruído: a sangrenta história da conquista da América


Espanhola. Tradução de Heraldo Barbuy. Porto Alegre. L&PM. 2011. p.176
281
es. (...) Y eso ocurre porque nos sentimos en el puro estar, y tenemos que
optar por ser y convertir lo que es en un simple papel a asumir frente a la
realidad, sin que seamos realmente. Por eso nuestro papel para ser aplasta
nuestra posibilidad de vivir (KUSCH, 2008, p. 99).

A busca das origens e raízes apontadas pelo pensador argentino se-


ria um dos caminhos possíveis para retomada das “rédeas da história”,
retomada do lugar do cidadão verdadeiramente americano como prota-
gonista de sua história e responsável pela sociedade em que vive. A ética
do nós, “ubuntu” da filosofia africana, seria o caminho para a construção
de uma epistemologia da convivência, do “estar” em contraponto ao “ser”.
A história é sempre escrita por vencedores e nesse processo controi-
-se verdades como mecanismo de manutenção da superestrutura de do-
minação, inicialmente posta em prática pelo invasor europeu e continuada
por seus decendentes. A fábula da inferioridade bélica, do atraso científico,
da inferioridade cultural foram os meios para o processo de expropriação.
Foram descobertas evidências da manipulação da agricultura na planície
do México de 8 mil anos antes de cristo. A base da alimentação europeia,
pelo menos uma porção considerável dela advém das culturas descobertas
nas Américas (milho, batata, cacau, feijão, foram levados ao restante do
globo por tecnologias desenvolvidas pelos povos ameríndios, bioecnologia
avançada para o período). Conhecimentos em astronomia, matemática até
superiores aos presentes na Europa do período. Na atualidade sabe-se que
não fora a superioridade bélica que permitiu ao invasor lograr êxito na
invasão, mas sim a falta de defesas naturais, de imunidade para as doenças
trazidas pelos europeus.
Para superar o processo de aviltamento da lógica do capital e do
domínio intelectualista, Kusch irá propor uma geocultura, uma cultura
localizada no tempo e no espaço. Uma proposta de pensamento que fosse
condicionado pelo lugar, em suas interações culturais e sociais, “un pensa-
miento condicionado por el lugar, o sea que hace referencia a un contexto
firmemente estructurado mediante la intersección de lo geográfico con
lo cultural” (KUSCH, 2012b, p. 75). Por este viés, esse pensador buscou
evidenciar a cultura e a tradição nativa americana, dando voz a um dos
espectros da cultura que ficará encoberto pelo discurso e cultura dos do-
minadores. Kusch denuncia em Geocultura del Hombre Americano um medo
que o americano tem de assumir sua posição como agente da história, o
que ele denominou de “medo de sermos nós mesmos”, diante da barbárie
histórica, política e social ocorrida. Forjou-se um estereótipo negativo do
nativo, do que fora subjugado, uma amarra produzida pelos ditames da
cultura. A história dos vencidos nunca é exaltada nos livros de história, e
282
Kusch propõe a denúncia desse movimento ideológico como forma de des-
nudar a cultura heterônoma, exógena ao americano. O pensador denuncia
a audácia da filosofia universal de propor um pensamento des-situado,
desvinculado de um lugar e um tempo, de técnicas particulares de conhe-
cer que se propõem a explicar toda e qualquer realidade.
Para Rodolfo Kusch (1976), “a filosofia é o discurso de uma cultura
que encontra seu sujeito”. A produção filosófica, ética, estética e políti-
ca do sujeito verdadeiramente americano foi negada em subserviência ao
discurso hegemônico, a ética hegemônica e a cultura que pertence aos
sujeitos vitoriosos. Contudo, Kusch nos conclama a realizarmos o cami-
nho inverso e desenterrarmos o pensamento negado como possibilidade
de sustentação, não de uma nova ética, mas sim de uma ética já existente,
e por que não dizer resistente e uma cultura verdadeiramente americana.
Cabe-nos dar voz aos pensadores que realizaram essa proposta reflexiva,
na contra-mão do discurso hegemônico.
Para Kusch os europeus diante da diferença buscam a igualdade,
o nativo americano diante da diferença busca a convivência. Não há nos
principios éticos, filosóficos do natívo a necessidade de extermínio da di-
ferença. A convivência é possível, pois juntos somos mais fortes.

Referências
CAMBEIRO, F. G. Rodolfo Kusch – Geocultura Del Hombre Americano.
Colección Estúdios Latinoamericanos. Buenos Aires, 2012.
CLASTRES, Pierre.. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia
política. São Paulo: Cosac & Naify. 2004
FLANNERY, Kent V. Guila Naquitz: Archaic Foraging and Early Agricul-
ture in Oaxaca, Mexico. Academic Press, New York, 1985.
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. Buenos Aires: Biblos, 1999.
______. Esbozo de una antropología filosófica americana. Rosario: Fund.
Ross, 2012.
______. La negación en el pensamiento popular. Buenos Aires: Las cuaren-
ta, 2008.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Ed.
Mandacaru, 1989.

283
MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1999.
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência II - A dialéti-
ca da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Pau-
lo: Ed. Martins Fontes, 1991.

284
AntiguAs y nuevAs AfectAciones de los AcHé

Sebastián Castiñeira1
Lilian Morinigo2
Sara Quintana3

Los padecimientos que sufrieron los pueblos originarios de nuestro


continente americano han sido numerosos a lo largo de la historia y aún
hoy lo siguen siendo. De modos diversos se han afectado los modos de
vida tradicionales provocando en muchos casos cambios y transformacio-
nes innegables. Sin duda, el pueblo Aché no ha sido, ni es hoy en día, una
excepción respecto a esto. Ahora bien, lo que nos interesa aquí, es señalar
las diversas formas en que los Aché fueron y son afectados y cómo ello
incide en la expresión de sus subjetividades y en sus cosmovisiones. Para
ello es necesario realizar una breve reseña histórica de estas afectaciones
y luego comparar con las que tienen lugar en la actualidad. Para nuestro
primer objetivo tomamos, sobre todo, los datos brindados por Bartomeu
Meliá, Luigi Miraglia y Mark y Christine Münzel.
La comparación con la época contemporánea la haremos en base a
los encuentros recientes con las comunidades en sus territorios y otros
textos que abordan nuestra temática. Visibilizar estos tipos de proble-
máticas puede llevar a tomar dimensión de la diversidad de las culturas y
de la complejidad de sus relaciones (casi siempre asimétricas) y, con ello,
comprender un poco más el mundo que habitamos.
En los últimos 70 años muchas comunidades indígenas del Para-
guay, se han desplazado de sus territorios ancestrales hacia zonas urba-
nizadas por cuestiones de necesidad laborales y económicas dadas por el
avasallamiento de la cultura occidental sobre las culturas originarias.
Paraguay ha desconocido prácticamente la existencia de pueblos y
por lo tanto no ha incorporado conscientemente muchos de sus valores, ni
siquiera los relativos a la ecología en la que son maestros (MELIÁ, 2007).
Se observan fenómenos símiles en todos los países de América Latina, la
relación entre los Estados y los pueblos originarios es compleja y difícil.

1 Universidad Nacional de Tres de Febrero.


2 Universidad Nacional de Tres de Febrero.
3 Universidad Nacional de Tres de Febrero.
285
Estas aporías no son coyunturales o dependientes de gestiones públicas
más bien son un fenómeno estructural que se relaciona íntimamente con
la naturaleza de los aparatos estatales (ZANARDI, 2008).
Como la mayoría de las poblaciones originaria de América, los Aché
sufrieron un proceso de devastación tanto de su cultura como de sus ter-
ritorios a mano de los “colonizadores”, despojados de sus tierras ances-
trales, territorios de armonía ecológica, a causa de la compra venta de
tierras generando una acumulación de latifundios (MELIÁ, 2012).
En los años ´60, el gobierno del dictador Alfredo Stroessner con la
política de expansión de carreteras y el avance del sector agro-ganadero
cedió a colonos y paraguayos miles de hectáreas y con ellas también les
vendió a los indígenas que las poblaban, arrinconando a los últimos Aché
no contactados de los bosques de Canindeyú, hacia la región oriental.
Para los nuevos dueños de las fincas, los Aché comenzaron a ser un
problema, ya que la comunidad seguía con su mismo modo de vida ancestral,
atacando en ocasiones el ganado (para alimentarse) y entrando en las propie-
dades. A finales de los años ´60 se había extendido entre los nuevos colonos
que se establecieron en la zona, la práctica de organizar cacerías: donde los
Aché fueron víctimas de una limpieza étnica (MELIÁ e MUNZEL, 1978).
La relación entre las personas y los animales es fundamental para la
cosmovisión de los Aché. Esta cultura, desarrolló un complejo animístico,
vinculado a su vez con la regulación del espacio, de la caza y pesca donde
cada especie posee una deidad que las organiza.
Comen de la caza con la conciencia de que al comer uno incorpora
también las capacidades específicas del animal; esto supone el conocimien-
to o la habilidad para realizar cualquier actividad (cazar, tocar un instru-
mento, sanar, etc.) proviene de un ser superior que les otorga conocimien-
to y poder a través del animal.
La reencarnación está directamente vinculada a la relación entre la
persona y la naturaleza ya que el alma del Aché vuelve al monte cuando
muere. La caza, por lo tanto, implicaba la base de su sistema de creencias
y su medio de subsistencia.
El concepto de territorio, para los Aché hace referencia a una con-
cepción autónoma de desarrollo que tiene como punto de partida la propia
cultura, las formas tradicionales de producción y organización social, es
decir una relación íntima entre la naturaleza y el ser humano. La tierra,
más que sustento, significa la relación con la naturaleza y con los procesos
sociales y económicos.
En la actualidad los profundos cambios que han experimentado los
Aché en sus formas de relación desde el fin del período nómada, han de-

286
rivado también de su nueva forma de vida. Apartir de su sedentarización,
la pérdida de territorios ancestrales ha afectado la idea del hombre Aché
como cazador y recolector, no así su identificación con la naturaleza. Se
debe tener en cuenta que si bien las referencias se expresan en términos
generales, existen diferencias entre cada comunidad respecto a sus prác-
ticas culturales.
El monocultivo de la soja si bien sigue trayendo consecuencias nega-
tivas en la reducción de los territorios ancestrales y en la salud de los inte-
grantes de las comunidades, (a consecuencia del uso de los agrotóxicos), la
mayoría de las comunidades obtienen recursos económicos de la producción
de soja o del alquiler de sus tierras para la producción de la misma.
Las afectaciones y cambios del pueblo Aché no deberían ser toma-
das sólo como acciones sufridas de forma meramente pasiva por los Aché
sino que las mismas conllevan a diversos modos de transformación, resig-
nificación y apropiación.

Referencias
BARTOMEU, Melià. et al. La agonía de los Aché-Guayaki; historia y cantos.
Centro de Estudios Antropológicos de la Universidad Católica. Asunción, 1973.
BURRI, Stefanie. Grupos Mbyá en interacción con la sociedad nacional. Suple-
mento Antropológico, Vol. XXXIII Nº 1-2, 1998.=
CADOGAN, León. Apuntes de la toponimia hispano guaraní. Asunción, 1959.
CADOGAN, León. Hiña anga, Kuñambía toguerosyry katupyry o kuarasy
che renonerã, 1962.
CADOGAN, León. Ayvu-Rapyta. Textos míticos de los Mbya-Guaraní del
Guairá. Asunción: Fundación León Cadogan, CEADUC, CEPAG, 1997 [1959].
CASTIÑEIRA, Sebastian. Don y reciprocidad. De Bartomeu Melià a la filo-
sofía contemporánea SB Editorial. Argentina, 2017.
CHAMORRO, Graciela. Teología Guaraní. Ediciones Abya-Yala. Quito, Ecua-
dor, 2004.
CHASE SARDI, Miguel; SUSNIK, Branislava. Los indios del Paraguay. Edi-
torial Mapfre. Madrid, 1995.
CHASE SARDI, Miguel; ZANARDINI, José. Textos Míticos de los Indíge-
nas del Paraguay. Biblioteca Paraguaya de Antropología, Vol. 30. CEADUC,
Asunción, Paraguay, 2006.

287
D`ANGELO HERNÁNDEZ, Ovidio. Autorrealización personal y espiritua-
lidad en las condiciones complejas de la sociedad contemporánea, CIPS,
Centro de Investigaciones Psicológicas y Sociológicas, La Habana, 2003.
DÍAZ-AMBRONA MORENO, Isaac. Cómo influye el OPY en la construc-
ción de la identidad Mbya. Centro de Estudios Antropológicos de la Universi-
dad Católica (CEADUD). Vol. 81. Asunción – Paraguay, 2011.
FOGEL, Ramón. Los pueblos Guaraní en la formación de la Nación Para-
guaya. CERI, FONDEC, 2010.
FRANCO DOMANICZKY, Mariana; Imaz, Gladys. Angaité – KOAHLVOK-
Las Voces de un Pueblo. Centro de Estudios Antropológicos de la Universidad
Católica (CEADUC), Biblioteca Paraguaya de Antropología, Vol. 54. Asunción,
Paraguay, 2006.
FRITZ, Miguel. La mitología Nivaclé. En: Suplemento Antropológico, Vol.
XXXI Nº 1-2, 1996.
GRÜNBERG, Friedl Paz, 1986, Indígenas – naturaleza – proyectos,
1999/2003.
GUERRERO ARIAS, Patricio. La cultura. Estrategias conceptuales para en-
tender la identidad, la diversidad, la alteridad y la diferencia. Ediciones
Abya-Yala. Ecuador, 2002.
KUSCH, Rodolfo. El pensamiento indígena y popular en América. Buenos
Aires. Ediciones ACHETTE, 1977.
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. Buenos Aires. Editorial BONUM. Ar-
gentina, 1986.
MARTÍNEZ SARASOLA, Carlos. Nuestros paisanos los indios, 1a ed, Bue-
nos Aires, Del Nuevo Extremo, 2011.
MELIÁ, Bartomeu, Paraguay identidades, sustituciones y transformacio-
nes. Asunción, 2007.
MELIÁ, B; MUNZEL. Ratones y Jaguares. In ROA BASTOS, A. (ed.), Las
Culturas condenadas, México, 1978.
MELIÁ, Bartomeu. La agonía de los Aché-Guayakí: historia y cantos. Asun-
ción, 1973.
MELIÁ, Bartomeu. “Hacia una tercera lengua en el Paraguay” y “bibliografía
sobre el ‘bilingüismo’ del Paraguay”, en Estudios Paraguayos II, 2. Asunción,
1974.

288
MELIÁ, Bartomeu. La lengua guaraní del Paraguay: historia, sociedad y
literatura. Madrid. Mapfre, 1992.
MELIÁ, Bartomeu. El Guaraní conquistado y reducido. (Tercera Edición),
Asunción, 1993.
MELIÁ, Bartomeu. Ñe’ẽ renda y ñande paĩ tavyterã ñande paraguáipe. Pedro
Juan Caballero, Paraguay, 1993.
MELIÁ, Bartomeu. Pasado, presente y futuro de la lengua guaraní. Univer-
sidad Católica Centro de Estudios Antropológicos del Paraguay, 2010.
MIRAGLIA, Luigi. Caza, recolección y agricultura entre los indígenas del
Paraguay. 1973.
ORTIZ ZANDOVAL, Luis. Concentración Agraria y Conservación Social.
2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspec-
tivismo amerindio. Mana 2(2):115-144, 1996.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. From the enemy point of view. Human-
ity and divinity in an Amazonian society. Chicago: University of Chicago
Press, 1992.
ZANARDINI, José; BIEDERMANN, Walter. Los indígenas del Paraguay,
Itaipú Binacional, Asunción, 2006.
ZANARDINI, José. Los pueblos indígenas del Paraguay. Editorial El Lector.
Asunción, 2010.

289
mujeres mApucHe y polifoníA de lA conflictividAd
interculturAl en el ngulumApu

Solange Cárcamo-Landero1

El objetivo de esta ponencia es contribuir al reconocimiento de las


memorias de conflictividad intercultural de las mujeres mapuche como
aspecto constitutivo de las prácticas de resistencia cultural que se des-
pliegan, actualmente, en el Ngulumapu (territorio mapuche ancestral
actualmente adscrito al territorio chileno). Si bien existen investigacio-
nes preliminares sobre esta temática, se hace necesario profundizar en
la expresión de las subjetividades de las mujeres mapuche; dado que el
análisis científico social se ha centrado en los grandes relatos del con-
flicto chileno-mapuche y ha dejado de lado la heterogeneidad de las his-
torias de vida de hombres y mujeres (NAHUELPAN, 2013). Al respec-
to, tienen vigencia las palabras de Rodolfo Kusch (2007 [1973], p.554)
cuando señala:

[…] si transformamos el conocer en comprender todo cambia. Cuando se


comprende se sacrifica todo respaldo científico. Comprender supone sa-
crificar al sujeto que comprende, e implica ser absorbido o condicionado
por el sujeto comprendido, [que] pone sus pautas a mí como observador.

En efecto, comprender la complejidad de las situaciones conflictivas


significa trabajar con narrativas autobiográficas. En este sentido, se pro-
pone un cruce analítico entre memorias y narrativas desde los enfoques
descolonial, interseccional y hermenéutico. Desde estos enfoques se ana-
liza un corpus conformado por textos de autoría de mujeres mapuche que
versan sobre la conflictividad intercultural y la violencia social; que dan
cuenta del pensamiento político emergente de las mujeres mapuches; y
que develan la heterogeneidad de las experiencias cotidianas en distintos
espacios territoriales del Ngulumapu. Algunas fuentes relevantes, en este
sentido, son testimonios de sobrevivientes (CANÍO Y POZO, 2013) y tex-
1 Doctora en Ciencias Humanas, mención discurso y cultura (Universidad Austral de
Chile). Académica de la Universidad Católica de Temuco. Integrante del Núcleo de In-
vestigación de Estudios Interétnicos e Interculturales de la UC Temuco. Investigadora
del Programa de investigación interdisciplinar sobre memorias de conflictividad de mu-
jeres mapuche en La Araucanía (UC Temuco). E-mail: scarcamo@uct.cl
291
tos que entrecruzan memoria oral y construcción narrativa de las historias
de vida (LLAMUNAO VEGA, 2016). En este análisis se acude al concepto
de “zonas grises de la memoria mapuche” (NAHUELPAN, 2013); concepto
que permite desafiar los discursos establecidos al enfocarse en las interaccio-
nes sociales e intersubjetivas que configuran experiencias de sufrimiento
social en condiciones de exclusión social y violencia colonial.
En el Chile actual, distintas voces de mujeres mapuche y mujeres
blancas-mestizas se articulan para luchar por el reconocimiento de la iden-
tidad cultural, de género y clase. Se trata de una lucha por la liberación del
Pueblo Mapuche desde perspectivas que cuestionan el concepto universal
de mujer y, en consecuencia, las relaciones de poder entre mujeres ubicadas
en distintas posiciones de clase y etnia. No obstante, esta perspectiva de
lucha se encuentra atravesada por una serie de contradicciones relacionadas
con el colonialismo internalizado y la dificultad de conciliar derechos co-
lectivos e individuales en una sociedad capitalista, colonialista y patriarcal.
Así, el conflicto intercultural entre el Estado de Chile y el Pueblo
Mapuche comienza a verse como un entramado que involucra una diversi-
dad de sujetos individuales y colectivos que encarnan diversos propósitos.
Particularmente, las mujeres mapuche hablando – y dialogando con las
mujeres blancas-mestizas – están contribuyendo a densificar las interpre-
taciones de “el conflicto intercultural” y, con ello, develan la polifonía de
la conflictividad intercultural en torno al Ngulumapu. En efecto, ellas ex-
presan su pensamiento y sentimiento frente a situaciones de sufrimiento
social con “lenguajes de ruptura” (SEGATO, 2016) que iluminan la com-
plejidad de una amplia gama de situaciones conflictivas.
Esta polifonía de la conflictividad intercultural habla, principalmente, de
la politización de la vida cotidiana por parte de las mujeres mapuche; lo que per-
mite una mirada constructiva de la conflictividad como aspecto constituyente de
la vida humana. Desde el sentido común, suele hacerse una interpretación
negativa de “el conflicto”, lo que ha impedido conocer y reconocer la vio-
lencia intercultural que se ha desplegado históricamente entre personas
mapuche y no mapuche. Esta interpretación negativa opera silenciado a
distintos actores sociales; lo que contribuyen, aún más, a confundir la con-
flictividad con la violencia. Transformar esta mirada sesgada del conflicto
implica trabajar con las memorias orales silenciadas.
En este contexto, se consideran las memorias de conflictividad inter-
cultural como aspecto constituyente de las prácticas de resistencia cultural. Las
memorias son un “bien cultural”, un dispositivo político que permite
transmitir historias de subalternidad y que gatilla procesos complejos de
transformación sociocultural e identitaria. En la práctica, lo anterior se ha

292
expresado en las demandas y reivindicaciones del movimiento social ma-
puche que permanentemente se reconstruye desde memorias de despojo,
violencia, injusticias y discriminación, por una parte, y desde memorias
de comunalidad, reciprocidad, resistencia y prácticas culturales, por otra
(COMUNIDAD DE HISTORIA MAPUCHE, 2012).
Según lo planteado, esta ponencia toma como ejemplos la escritura-
-autoría de Margarita Calfío Montalva (2012, 2016) y de Margarita Canío
Llanquinao (CANÍO, 2018; CANÍO Y POZO, 2013), entre otras, para dia-
logar con algunas claves existenciales que Rodolfo Kusch (2007 [1973],
p. 563) propone, especialmente, “el puro hecho de darse, de estar ahí exis-
tiendo” como trasfondo para respetar la “voluntad de ser” del Otro y de la
Otra que, en este caso, se traduce en reconocer a las mujeres mapuche y
sus luchas a partir de “sus propias lógicas de negación”.
La conclusión plantea que las memorias de conflictividad intercul-
tural de mujeres mapuche constituyen procesos político-epistémicos de li-
beración. La oralidad y la escritura de mujeres mapuches aportan nuevas
interpretaciones de la conflictividad intercultural en el Ngulumapu que
contribuyen a una mejor comprensión de dimensiones específicas que con-
forman la problemática intercultural. Sus narrativas se orientan a la recons-
trucción de las memorias de violencia social desde una perspectiva históri-
ca, relacional y constructiva de la conflictividad intercultural. Ello permite
el despliegue a través del tiempo de prácticas de resistencia cultural indivi-
duales y colectivas, cuyo carácter situado abre sus propias vías de expresión.

Referencias
CALFÍO, M. Cuerpos marcados. Comunidades en construcción. En M. Painemal
y A. Álvarez (Coords.), Mujeres y pueblos originarios. Luchas y resistencias
hacia la descolonización Santiago: Pehuén y Centro de Estudios Intercultu-
rales e Indígenas. 2016. pp. 33-38.
CALFÍO, M. Peküyen. En Comunidad de Historia Mapuche. Ta iñ fijke xipa
rakizuameluwün. Historia, colonialismo y resistencia desde el país Mapu-
che Temuco: Ediciones Comunidad de Historia Mapuche. 2012. pp. 279-296.
COMUNIDAD DE HISTORIA MAPUCHE. Ta iñ fijke xipa rakizuamelu-
wün. Historia, colonialismo y resistencia desde el país Mapuche. Temuco:
Ediciones Comunidad de Historia Mapuche. 2012.
CANÍO, M. Entre gülkantun, gülam y nütram en la memoria de Elba Llancao
Naín. En CANÌO, M., VILLEGAS, L. PALACIOS, GARRIDO, M. y CONTRE-
RAS, R. Territorio y memoria. Testimonio y legado de cuatro descendien-
tes de Pascual Coña Temuco: Ediciones UCT, 2018. Pp. 16-42.
293
CANÍO, M.; VILLEGAS, L.; PALACIOS, L.; GARRIDO, M.; y CONTRERAS,
R. Territorio y memoria. Testimonio y legado de cuatro descendientes de
Pascual Coña. Temuco: Ediciones Universidad Católica de Temuco. 2018.
CANÍO, M. Y POZO, G. (Eds.) Historia y conocimiento oral mapuche. So-
brevivientes de la “Campaña del desierto” y “Ocupación de la Araucanía”
(1899-1926). Santiago de Chile: Lom Ediciones. 2013.
CÁRCAMO-LANDERO, S. Lenguaje de contrastes sutiles: el sentido herme-
néutico de las ciencias humanas según Charles Taylor. Revista Alpha, 41. Osor-
no: Universidad de Los Lagos. pp. 269-281.2015.
CÁRCAMO-LANDERO, S. La acción social como proyecto intersubjetivo cul-
turalmente situado. Revista ALPHA, 30, pp. 27-40, 2010.
CÁRCAMO-LANDERO, S. La antropología literaria: Lenguaje intercultural de
las Ciencias Humanas. Estudios Filológicos, 42, pp. 7-23, 2007.
ERPEL, A. (Comp.) Mujeres en defensa de territorios. Reflexiones feminis-
tas frente al extractivismo. Santiago de Chile: Fundación Heinrich Böll Stif-
tung, Regional Cono Sur. 2018.
KUSCH, R. Una lógica de la negación para comprender América. Obras
completas, Tomo II. Rosario: Fundación Ross. 2007 [1973].
______. La negación en el pensamiento popular. Obras completas, Tomo II.
Rosario: Fundación Ross. 2007 [1975].
LLAMUNAO, C. Re-presentación de las mujeres en el relato testimonial Katrilef
de Graciela Huinao. Documentos Lingüísticos y Literarios, 34, 67-79. 2016.
MARIMAN, P.; NAHUELQUIR, F.; MILLALEN, J.; CALFÍO, M. Y LEVIL,
R. ¡Allkütunge, wingka! Ensayos sobre historia mapuche. Temuco: Ediciones
Comunidad de Historia Mapuche. 2019.
NAHUELPAN, H. Las ‘zonas grises’ de las historias mapuche. Colonialismo in-
ternalizado, marginalidad y políticas de la memoria. Revista de Historia Social
y de las Mentalidades, 17 (1), 9-31. 2013.
PAINEMAL, M. ÁLVAREZ, A. (Comps.) Mujeres y pueblos originarios. Lu-
chas y resistencias hacia la descolonización. Santiago de Chile: Pehuén edi-
tores y CIIR. 2016.
SEGATO, R. Prólogo. En PAINEMAL, M. y ÁLVAREZ, A.(Comps.), Mujeres
y pueblos originarios. Luchas y resistencias hacia la descolonización San-
tiago de Chile: Pehuén editores y CIIR. 2016. pp. 13-15.

294
AndilA KAingáng: A trAjetóriA dA liberdAde

Susana Andréa Inácio Belfort1

“A Palavra da Mulher é sagrada como a terra”2


Cacique Aniceto Xavante

A presente reflexão pretende no contexto de enfrentamentos e re-


sistências dos Povos Indígenas, em face do reconhecimento dos direitos à
diferença, territorialidade, saúde, educação, meio ambiente, entre outros,
destacar a luta da liderança indígena Andila Kaingáng, também conhecida
por Andila Nĩvygsãnh, cuja trajetória é marcada pelo protagonismo no
movimento indígena nacional junto ao qual exerceu militância desde seus
17 anos (quando ainda frequentava o Curso de Formação de Monitores
Bilíngües Kaingáng do RS, no início da década de 70), em prol da educa-
ção escolar do Povo Indígena Kaingáng.
Considerando que o movimento indígena constitui um reflexo das
reivindicações dos Povos Indígenas em momentos históricos diversos,
abrangendo contextos mais ou menos amplos (internacional, nacional,
regional e local), no âmbito do qual é possível visibilizar lutas e resistên-
cias atreladas ao reconhecimento dos direitos indígenas é, neste contexto,
que lideranças indígenas se destacam e assumem diversas frentes, como a
demarcação de terras, saúde, educação, meio ambiente, mobilizando e arti-
culando seus coletivos indígenas. Neste sentido que se pretende apresen-
tar momentos da trajetória de Andila Kaingáng (a trajetória da liberdade
como ela mesma já intitulou em artigo de sua autoria!), mulher, educadora
e liderança indígena Kaingáng com uma visão muito além do seu tempo
e que sempre apostou na educação como caminho para revitalização e
valorização da cultura Kaingáng, enquanto fator indispensável ao fortale-
cimento da identidade das atuais e futuras gerações Kaingáng.
Andila Kaingáng nasceu na Terra Indígena Carreteiro, Município de
Água Santa/RS (terra natal de sua mãe, Joana Caetano), filha do Cacique

1 Doutoranda em Educação, PPGEDU/UFRGS. Bolsista CAPES.


2 Frase proferida pelo Cacique Aniceto Xavante na Conferência de Mulher Indígena e
Meio-Ambiente, promovida pelo Grumin (REDE GRUMIN DE MULHERES INDÍ-
GENAS) em 1991.
295
Manoel Inácio, o qual descende do Cacique Nonoai. Começou seus estudos
na sua terra indígena e após, já na adolescência (quando se desloca com sua
família para a Terra Indígena Ligeiro, atualmente no Município de Char-
rua/RS), o chefe de posto e funcionário da FUNAI, chamou seu pai Manoel
Inácio e lhe deu “ordem” para que Andila fosse enviada a um colégio interno
na Terra Indígena Guarita (Município de Tenente Portela/RS), onde daria
continuidade aos seus estudos (BELFORT, 2002, p. 124).
Tratava-se do Centro de Treinamento Profissional Clara Camarão
(CTPCC), escola de formação de “monitores”3 bilíngues, experiência pro-
movida junto aos Kaingáng do RS entre as décadas de 70 e 80, a partir
da parceria entre FUNAI e SIL (Summer Institute of Linguistic), mar-
cando a formação dos primeiros monitores indígenas bilíngues do Brasil,
numa iniciativa pioneira junto ao Povo Kaingáng. Na época, a política
governamental propunha-se à integração forçada dos Povos Indígenas à
sociedade nacional e a aniquilação das línguas indígenas pelo processo
de aportuguesamento das mesmas foi uma estratégia adotada pelo SIL,
enquanto uma das agências de maior influência para o estabelecimento do
bilinguismo de transição na América Latina. A implantação do CTPCC
também contou com parceria da Igreja Evangélica de Confissão Luterana
do Brasil (IECLB), sendo que na primeira turma se formaram 19 jovens
indígenas (em nível de 1º Grau), entre eles Andila.
Em 1973 a Funai mediante portaria conjunta, promoveu a contra-
tação de todos os monitores bilíngues que passaram a atuar em comu-
nidades indígenas localizadas no PR, SC e RS. Assim, Andila começou
trabalhar na Aldeia Pinhalzinho, situada na Terra Indígena Nonoai, norte
do RS. Posteriormente os monitores bilíngues perceberam que não era
esta escola que precisavam, que esta escola que tinham assimilado em sua
formação estava “nos despindo de nossa cultura, e não era isso que quería-
mos” (BELFORT, 2002, p. 127).
Fato marcante na trajetória da “guerreira Kaingáng” é que em 07
de junho de 1975 envia uma Carta ao Presidente da República, Ernesto
Geisel, intitulada “Desespero do meu povo”4 na qual enfatiza a esperança
de que os agricultores saíssem das terras reservadas aos indígenas no Rio
Grande do Sul. A FUNAI havia concedido um prazo para que os colonos
se retirassem da Terra Indígena Guarita, que era dia 31 de julho de 1975.

3 Posteriormente os “monitores” bilíngues formados pelo CTPCC, foram reconhecidos


como “professores” bilíngues.
4 A Carta da professora Andila Kaingáng, publicada pelo Jornal Folha da Manhã na data
de 12 de agosto de 1975 (pág. 20/21) constitui um documento histórico e jurídico que
marca a luta dos Kaingáng pelo seu território tradicional.
296
Expirado o prazo, os colonos não se retiraram, Andila envia uma cópia
da carta ao jornal Folha da Manhã e pediu que fosse publicada na ínte-
gra, o que se deu no dia 12 de agosto de 1975, com os seguintes dizeres
que estampavam o jornal: A ÍNDIA CANGANGUE ESCREVEU AO
PRESIDENTE PEDINDO SOCORRO. As palavras de Andila Kaingáng,
embora expressem a problemática vivenciada naquele momento histórico
acerca da necessidade de garantia dos territórios tradicionais como condi-
ção vital à reprodução física e cultural dos Kaingáng, ainda ecoam e alcan-
çam nosso tempo, evidenciando de forma inequívoca que não fazem parte
do passado, mas deu uma realidade muito presente nas lutas e resistências
dos Povos Indígenas em face do reconhecimento e garantia de suas terras,
como se pode ler a seguir:

[…] A invasão de nossas terras para o vosso povo tem significado sim-
plesmente um problema jurídico, ou como queiram chamá-lo, para o meu
povo não, são problemas que nós caingangues sentimos como feridas que
nos atormentam no mais alto dos sentimentos, fazendo-nos diminuídos,
oprimidos e transformando as nossas noites e vigílias na esperança de ver
ao amanhecer nossas terras desocupadas pelos brancos e, no entardecer,
mais um dia de desilusão, iniciando-se uma nova esperança... pois a cada
dia que passa sentimos o nosso sangue cada vez mais espesso e nossas
veias cada vez mais finas, quando então, muitos dos nossos encontram con-
formismo no terrível vício do alcoolismo […] (A ÍNDIA, 1975. p. 20-21).

Na época Andila foi ameaçada de demissão pela Funai se continuas-


se divulgando a intrusão de agricultores em terras indígenas Kaingáng,
quando então disse que preferia ser demitida a se calar diante da situação,
argumentando que não morreria de fome por deixar de servidora da Fu-
nai, uma vez que não havia nascido servidora, assim comonão havia mor-
rido de fome antes de ser contratada. Que não deixaria de ficar ao lado do
seu povo! (Comunicação Oral)5.
Posteriormente Andila dá continuidade à sua formação concluindo
o 2º Grau em 1989 e sua graduação em Ciências Sociais no 3º Grau Indí-
gena da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT)6, em 2006,
formando-se na primeira turma. Neste período de sua trajetória, Andila
procurou registrar sua luta na educação escolar indígena com os profes-

5 Informação obtida por meio de comunicação oral, promovida entre autora e Andila
Kaingáng, na data de 22 de julho de 2019, na Terra Indígena Serrinha/RS.
6 Primeiro curso de graduação em Educação Específica para Povos Indígenas na Amé-
rica Latina, tendo colado grau 198 Professores Indígenas pertencentes a 36 Povos Indí-
genas do Brasil, em Junho/2006.
297
sores Kaingáng, já consolidada tanto por sua experiência como professora
bilíngue em comunidades Kaingáng, como por sua militância no movi-
mento indígena. Embora tenha trabalhado 35 anos na Funai (atualmente
é aposentada) não deixou de militar a favor dos interesses dos Povos Indí-
genas: sempre defendeu a ideia de que os interesses da Funai nem sempre
se coadunam aos interesses dos Povos Indígenas, pelo contrário, muitas
vezes são totalmente antagônicos e no confronto de interesses, ela ficaria
do lado dos indígenas! Tão marcante sua atuação no movimento indígena,
especialmente junto aos professores indígenas Kaingáng no RS, que em
1999 foi cedida pela Funai a fim de assessorar a Organização Indígena
APBKG – Associação dos Professores Bilíngües Kaingáng e Guarani do
RS, na qual assumiu a presidência por duas gestões (04 Anos), contribuin-
do para os debates e reivindicações dos Kaingáng na implementação de
políticas públicas voltadas à educação escolar indígena.
A experiência de atuação na Organização Indígena APBKG trouxe
novas perspectivas de enfrentamento das demandas nas comunidades indí-
genas, muito diferente da vivenciada no órgão indigenista, enquanto insti-
tuição governamental. Como resultado dessa incursão pelo terceiro setor,
Andila, logo após sua aposentadoria, articula a criação da Organização In-
dígena Instituto Kaingáng (INKA), fundada em 2002, instituição na qual
a “guerreira Kaingáng”, encontrou a oportunidade de dar continuidade ao
seu trabalho em educação Kaingáng em parceria com profissionais, lideran-
ças e comunidades indígenas, sem mais sofrer a ingerência estatal.
Neste momento, Andila Kaingáng já se encontrava residindo na
Terra Indígena Serrinha, com sua família desde 2000, participando da
retomada deste território tradicional expropriado dos Kaingáng ainda no
século XIX:

A história da Terra Indígena Serrinha (localizada junto aos municípios


de Ronda Alta, Três Palmeiras, Engenho Velho e Constantina na região
norte do Rio Grande do Sul), registra a perda deste território tradicional,
a recente retomada, em 1996 e, ainda, o desafio da luta pela revitalização
de sua cultura em um território ambientalmente modificado e degradado
pelas frentes extrativas e agropastoris que se apropriaram dessas terras
(BELFORT, 2011, p. 87).

Andila Kaingáng participou do movimento de retomada do territó-


rio tradicional de Serrinha, auxiliando o Cacique Antônio Mig Claudino,
casado com sua irmã, Odila Inácio. Em Serrinha, junto com suas irmãs
Odila Claudino, Alzira Candinho e Ângela Braga, Andila promoveu a pri-
meira reunião com os Caciques Antonio Mig Claudino - Terra Indígena
298
Serrinha e Orestes Nascimento – Terra Indígena Nonoai), apresentando
o interesse em constituir o Instituto Kaingáng – INKA7, uma Organiza-
ção Indígena por intermédio da qual poderiam se articular politicamente
e, junto às instâncias governamentais e setor privado, buscar alternativas
e contribuições às questões indígenas, por intermédio de aprovação de
projetos que auxiliassem na melhoria de vida das comunidades Kaingáng.
Com apoio de lideranças indígenas, Andila Kaingáng busca parce-
rias para aprovação de projetos pelo Instituto Kaingáng, principalmente
direcionados à educação e cultura. Em 2005 aprovou o projeto Ponto de
Cultura “Kanhgág Jãre”8, junto ao Ministério da Cultura, constituindo o
primeiro projeto de Ponto de Cultura implementado em uma Terra In-
dígena no Brasil (na Terra Indígena Serrinha), sob a responsabilidade
de uma organização indígena gerida por mulheres indígenas, voltado ao
fortalecimento e valorização da cultura do Povo Kaingáng.
A influência já conquistada por Andila Kaingáng, em razão da atua-
ção na educação escolar indígena e movimento indígena, contribuiu para
o reconhecimento do trabalho desenvolvido no contexto da Organização
Indígena Instituto Kaingáng (com 17 anos de atuação), sobretudo na im-
plementação do projeto Ponto de Cultura “Kanhgág Jãre”, que tornou-se
uma referência no fomento, revitalização e valorização da educação e cul-
tura Kaingáng, junto a escolas indígenas e não-indígenas da região, uni-
versidades e sociedade envolvente.
Assim, se num olhar mais superficial sobre a sociedade Kaingáng
“muito da política indígena tem sido diretamente associada às figuras de
liderança do cacique, do kujá (xamã) e de outros homens politicamente
legitimados, o que dizer sobre aquelas mulheres que tem se tornado refe-
rências importantes para a constituição de coletivos Kaingáng?” Cinthia
Creatini da Rocha traduz neste questionamento o protagonismo exercido
pela mulher Kaingáng, cuja influência se exerce mesmo entre as lideran-
ças masculinas sem, no entanto, diretamente participar da estrutura de
poder no contexto de sua organização social. Assim é a trajetória de vida
de Andila, a “guerreira” Kaingáng!

Inh my há ti!9

7 Embora o INKA não seja constituído somente por mulheres, desde sua fundação a ges-
tão sempre foi exercida por mulheres em reconhecimento ao seu protagonismo.
8 Em Kaingáng “Kanhgág Jãre” significa “Raiz Kaingáng”.
9 “Muito obrigado”, na língua Kaingáng.
299
Referências
A ÍNDIA Caigangue escreveu ao presidente pedindo socorro. Folha da Manhã.
Porto Alegre, 12 de agosto de 1975. p. 20-21.
BELFORT, Andila Inácio. A trajetória da liberdade. In: Cadernos de Educa-
ção Escolar Indígena. 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: UNEMAT, v.1, n.1,
2002, p.123-130.
BELFORT, Susana Andréa Inácio. Conhecimento tradicional indígena: re-
vitalização de expressões culturais do povo Kaingáng da Terra Indígena
Serrinha/RS e da Aldeia Condá/SC. 169 f. Dissertação (Mestrado em Direito)
– Coordenação de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2011.
ROCHA, Cinthia Creatini da. “Agência feminina na sociopolítica Kaingang”.
SACCHI, Ângela; GRAMKOW, Maria (orgs.) In: Gênero e povos indígenas:
coletânea de textos produzidos para o Fazendo Gênero 9 e para a 27ª. Re-
união Brasileira de Antropologia. Rio de Janeiro, Brasília: Museu do Índio/
GIZ/FUNAI, , 2012.p.116-127.

300
el sentido de una obra no se
agota Con el autor, sino Con el
pueblo que la absorbe

seção 4
o bárbaro na
o monstruoso, o

América profunda
dual, o amorfo e
A circum-nAvegAção de cArolinA como decoloniAlidAde

Alice Soares1

O Timor-Leste tornou-se independente de Portugal em 28 de no-


vembro de 1975, mas em dezembro, do mesmo ano, foi invadido pelas
tropas do general Suharto, que declarava que o território era província
da Indonésia. Apesar do massacre sofrido, a população timorense seguiu
lutando até 1999, quando receberam apoio das Nações Unidas, oficiali-
zando a restauração da independência do país em 20 de fevereiro de 2002.
No romance O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação (2013),
o escritor timorense Luís Cardoso aborda essa guerra civil, de mais de
vinte anos, que devastou o país. À semelhança do percurso diaspórico do
autor, radicado em Portugal, suas personagens mergulham em memórias,
perdas e conflitos herdados da colonização e do processo de resistência:

Adotou depois o nome de Sakunar. Este nunca ria […] Como se quisesse
reencarnar a figura de Malisera, de quem se dizia ser filho bastardo […]
Só a revolução lhe poderia devolver o que julgava ser seu. Só com a vio-
lência. A violência revolucionária. Oposta à outra pela qual os legítimos
proprietários foram desapossados. Movia-o apenas o instinto de vingança
(CARDOSO, 2013, p. 48 e 49).

Sobreviver era uma forma de resistência. Assim o fizeram todos que se


renderam (CARDOSO, 2013, p.196).

Nesse contexto decolonial, Cardoso sugere a recuperação de sabe-


res locais através da figura do par de sandálias que inicialmente não cabia
nos pés da dona, Carolina. Conforme a personagem caminha, as sandálias
se encaixam e com isso consolida sua cosmovivência, em que a percepção
do mundo e o relacionar-se com o mesmo representam os dois lados da
mesma moeda (LENKERSDORF, 1998) - elas acompanham Carolina e as
narrativas das personagens, que se imbricam às vivências e descobertas
da jovem:

1 Graduanda de Licenciatura em Letras – Língua Portuguesa e Literatura da Língua


Portuguesa, na UFRGS. Bolsista CNPQ – Programa Institucional de Bolsas de Inicia-
ção Científica (PIBIC). E-mail: alicesoares13@hotmail.com
303
Aquelas sandálias eram especiais precisamente por causa do tamanho.
Contava cada dia da sua vida, um atrás do outro, o tempo que faltava para
que os pés se ajustassem ao tamanho exato das sandálias. (CARDOSO,
2013, p.23)
– Como me reconheceu?!
...
– As sandálias, Carolina, as sandálias
apontando para os pés dela onde umas sandálias de couro continuavam
luzidias apesar da terra e do pó que lhe enegreciam as unhas dos dedos
(CARDOSO, 2013, p. 220)

A atitude decolonial se intensifica com a configuração do sentipensar


(ESCOBAR, 2015) na complementaridade entre a sandália do lado esquer-
do, que representa o coração, e a irmã gêmea do outro lado, que hospeda a
sensatez: “[...] Lembra-me que sem ela não existo. Ninguém compra ape-
nas uma sandália. Aos pares, foi assim que nos fizeram, uma a imagem da
outra (CARDOSO, 2013, p. 9). Dessa forma, junto com suas sandálias, Ca-
rolina constrói seu conhecimento, sentindo e compreendendo sua existên-
cia, a partir das experiências vividas com e por outras personagens com as
quais se relaciona. Segue um trecho da obra (diálogo/reflexões da sandália
do lado esquerdo) onde pode-se perceber o contraste entre o pensamento
eurocêntrico – que vê o mundo repleto de dualidades antagônicas, como:
sentir versus pensar, masculino versus feminino etc. E o pensamento seminal,
que consiste em encontrar uma superação de uma oposição irremediável,
quase sempre colocando a unidade conciliatória em um plano transcendente
(KUSCH, 2012) – o plano “metafísico” das sandálias:

– Feminina?
uma dúvida que gostaria de ver esclarecida pela minha irmã. Cujas apre-
ciações são muito rigorosas. Nunca me disse de que gênero faço parte. Por
enquanto tenho-me sentido bem na pele de uma sandália
– As sandálias não têm sexo. Têm inclinações.
uma revelação que em vez de me deixar perplexa, liberta-me de certas fo-
bias. Por exemplo, o medo do abismo ou de não saber a que lado pertenço.
Inclino-me para a leviandade. (CARDOSO, 2013, p. 167)

Nesse andar-existindo de Carolina, com o qual apreende o mundo


através de um compartilhamento de sentir e pensar entre diversas perso-
nagens, destacam-se duas personagens principais: avó Aurora e Pigafet-
ta. A primeira, porque conecta Carolina às tradições do seu povo, da sua
terra, possibilitando, assim, um recomeço no seu país, pois sente-se per-
tencente àquele lugar. A segunda, ao contrário, aparece em total ruptura
304
com as memórias de seus ancestrais timorenses, sendo uma personagem
que se reconhece a partir das perdas e violências vivenciadas no período
pós-colonial, assim, busca sua identidade num antepassado europeu, rene-
gando o seu país:

[...] Para sua surpresa, leu a inscrição por cima da laje. Dizia Aqui Jaz
António Pigafetta...
– Quem é esse?
perguntou Carolina ao ver o sacristão defalecido...
– O meu antepassado
disse Carolina lendo as palavras nos lábios do sacristão. (CARDOSO,
2013, p.165)
– Vou-me embora
disse Carolina entre soluços. Mas para onde?
Não tinha para onde ir. Lembrou-se de que havia sempre Manumera para
onde regressar. A avó Aurora para a receber (CARDOSO, 2013, p. 218).

A ideia de completar a circum-navegação apresentada desde o título


da obra dialoga com a lógica do giro decolonial, que propõe epistemes de
fronteira. Nelas o conhecimento está encarnado em sujeitos atravessa-
dos por contradições sociais, vinculados a lutas concretas e enraizados em
pontos específicos de observação (CASTRO-GÓMEZ e GROSFOGUEL,
2007). Nesse sentido também, Carolina (de família rica, que perde todos
os bens, e teve que fugir de seu país) e Pigafetta (de família pobre, que o
coloca num orfanato, para ter mais chance de sobreviver, pois como era al-
bino, passaria por um mestiço), são os principais representantes, na obra,
dessas estórias entrelaçadas, desses sujeitos mesclados, que se definem
pela possibilidade do coexistir das diferenças, na busca por caminhos oblí-
quos para administrar seus conflitos:

Pigafetta disse um dia que os que fizeram a circum-navegação e que tive-


ram a sorte de voltar a Europa já não eram os mesmos que partiram…
Carolina esperava regressar... O futuro logo se verá. Esperava reencon-
trar a avó Aurora, que provavelmente continuaria sentada na cadeira de
rotang, ainda à espera do velho major que foi para tasi-balu (CARDOSO,
2013, p. 210).

Inclusive, no capítulo 17, “A circum-navegação”, essas personagens


completam seus movimentos existenciais de retorno: Carolina para o Ti-
mor-Leste e Pigafetta para Portugal:

305
– Estou de volta
gritou Carolina quando desceu da microlete e correu em direção a casa da
avó Aurora. (CARDOSO, 2013, p. 231)
Um diário local, em língua portuguesa, editou uma manchete com o título
No ano e que se prepara a independência de Timor-Leste, Pigafetta completou
a circum-navegação. Um regresso após cinco séculos. Não os seus restos
mortais. Como seria de esperar. Mas em carne e osso.

Assim, as sandálias, que dão título ao primeiro capítulo romance,


“Prenda”, pois foram um presente do pai para Carolina, ocupam papel
fundamental na obra, nas inferências nas estórias narradas, bem como,
acompanhando toda a trajetória de Carolina, que acessa o passado para
compreender seu lugar no mundo e no futuro do país independente. Ou
seja, elas participam de um processo de transformação do conhecer em
compreender, pois compreender a existência de um sujeito é captar o me-
canismo central de todo existir (KUSCH, 2012).

Referências
CARDOSO, Luís. O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação.
Lisboa: Sextante Editora, 2013.
CASTRO-GÓMEZ Santiago e GROSFOGUEL Ramón (eds.). El giro decolo-
nial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo
global. Bogotá: Iesco-Pensar-Siglo del Hombre Editores, 2007.
LENKERSDORF, Carlos. Cosmovisiones. Distrito Federal: Universidad Na-
cional Autónoma de México, 1998.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o signifi-
cado de identidade em política. Trad. Angela Lopes Norte. Cadernos de Letras
UFF – Dossiê: Literatura, Língua e Identidade, nº 34, 2008.
KUSCH, Rodolfo. El pensamiento indígena y popular em América y la nega-
ción del pensamiento popular. Rosario: Fundación A. Ross, 2012.

306
os indígenAs e seu cAminHAr pelo interior do nosso
estAdo: memóriAs e nArrAtivAs presentes
no ser e estAr do futuro

Ana Isabel Santos1

Introdução

Na pequena cidade de Itacurubi,no interior do Rio Grande do Sul,


distante da capital a 511,5 km, a história da origem do seu próprio nome
parece ter sido silenciada. Se nos reportarmos à origem desta palavra en-
contraremos os seguintes dados: Itacurubi2 em tupi guarani é dividido
assim: ita = pedra; curuba = caroço.
Já por seu nome pode-se identificar quem foram de fato os primeiros
moradores do lugar ou mesmo a presença indígena ali. Porém pouco se
sabe e a história acabou sendo silenciada.
Os mais antigos relatam a história da pequena aldeia que ali se ins-
talou em meados de 1903, ano de nascimento de Bernardina Prestes de
Melo. Uma das muitas pessoas que habitaram a comunidade indígena ins-
talada no local, nome forte que ficou famoso em toda a região por seu
poder de cura.
Na pequena comunidade que se instalou onde moravam os “bu-
gres”, ela fazia as vezes de pajé, já que possuía o dom de curar. Mulher
forte, temida, muitas vezes conceituada por “bruxa”. Este fato era bas-
tante comum na época, especialmente em relação às mulheres. A ela re-
corriam as mulheres para terem seus filhos, pois também era parteira
famosa na região. Preparava chás e emplastos que proporcionavam cura e
alívio nas dores dos viajantes que passavam por aquele local.
Anos mais tarde, mais especificamente em 1929, com o nascimento
do seu último filho Benvindo Prestes de Melo3, e o marido cego, toma o
resto dos seus filhos, que eram 7, e vai embora para Santiago, em busca
de melhores oportunidades e educação escolar para os mesmos, já que no
pequeno vilarejo não existiam tais condições.

1 Mestra em Educação – UFRGS. E-mail: anamelo23@yahoo.com.br


2 Fonte: dicionário Tupi-Guarani, Prof. Silveira Bueno, São Paulo, 1984, 3° edição, pá-
gina 157.
3 Filho de Bernardina Prestes de Melo. Um dos descendentes que contam esta história.
307
Lá em Santiago, encontra fama por ser “curandeira” e muitas pessoas
passam a procurá-la. Cidades vizinhas são atravessadas por pessoas que vão
a seu encontro: Jaguari, São Borja, São Vicente, São Pedro entre tantas.
Porém o que aconteceu com as pessoas que moravam agrupadas em
Itacurubi? Aquela família conceituada como “um par separado ou outro
grupo de parentes adultos que cooperam na vida econômica e na criação dos
filhos e residem em comum” (LEVIS STRAUSS et al., 1980, p. 48) dissipou-
-se. Foi separada, fragmentada, pois perdeu a sua líder, a referência maior.
Todos os que ali permaneceram não conseguiram mais ali ficar. O
fogo que era aceso diariamente apagou-se. Dessa forma “o fogo torna-se
então o símbolo e o centro deste lar” (LEVISS STRAUSS et al., 1980, p. 62).
Ao procurar os registros desta história que se perdeu, tudo o que
se sabe são os relatos dos mais antigos da cidade. A FUNAI (Fundação
Nacional do Índio) reconhece o nome indígena de origem do lugar, bem
como a presença dos mesmos no passado da cidade, mas não consegue
identificar quem realmente eram, a qual etnia pertenciam, qual o número
exato, pois precisa de um estudo mais aprofundado.
Como uma descendente destes indígenas, sinto que não posso e não
devo esquecer este passado, que faz parte do “ser alguém”, um dos concei-
tos abordados por Rodolfo Kusch, onde o mesmo nos coloca que devemos
“tomar consciência de que algo me impede de ser totalmente ocidental,
ainda que me proponha”(KUSCH, 2007, p. 180).

Desenvolvimento

Para a realização desta escrita, parto primeiramente do con-


ceito de etnografia urbana de Magnani (2002), onde o autor nos colo-
ca a importância de olhar de perto e de dentro, a relevância de cami-
nhar, transitar pela cidade, buscando pistas, marcas deixadas pelos
que cruzaram antes de nós, além de conhecer os atores sociais que
participaram do episódio que será pesquisado. Esse será o maior desa-
fio, pois existem hoje somente descendentes destes indígenas. A maio-
ria velhos já, mas que devem ser encontrados e ouvidos com silêncio
e respeito ao contarem as suas memórias.
Devo ressaltar que “é o que caracteriza o enfoque da antropologia
urbana, diferenciando-a da abordagem de outras disciplinas e até mesmo
de outras opções no interior da antropologia” (MAGNANI, 2002, p. 18).
Para mencionar este espaço geográfico mais especificamente, busco
aporte teórico em Kusch (1976) onde o autor nos coloca que o espaço geo-
gráfico está sempre habitado pelo pensamento de um grupo. Muitos anos

308
se passaram desde que os “bugres” foram embora da cidade, mas deixaram
ali as suas marcas.
O nome da cidade é um dos muitos mistérios que foram silenciados.
Sendo um nome indígena, como foi negada a passagem destes povos in-
dígenas pelo local? Devo ressaltar ainda que segundo Kusch (1976) geo-
grafia e cultura confirmam uma identidade cultural. Cultura essa que foi
negada, esquecida, mas que fez parte da cidade.
E a família originária de Levis Strauss (1980) deve ser apresentada.
Os primeiros indígenas que ali se reuniram. Como era a vida dentro desta
comunidade? Quantos eram ao todo? Eram todos de fato parentes? Tudo
deve ser abordado e registrado, pois daqui se espalharam e formaram no-
vos núcleos familiares em diferentes espaços que agora precisam ser ma-
peados e recuperados.
Esses são somente os conceitos iniciais, pois os mesmos serão am-
pliados bem como surgirão demais referenciais teóricos ao longo da pes-
quisa. Mas já demonstram o marco que irá orientar o caminho inicial a ser
perseguido ao longo dos registros destas memórias e narrativas.

Algumas considerações...

Como uma escrita indígena precisa antes de tudo de sensibilidade,


tomo ainda o conceito de poiesis de Kusch (1976), para assim tentar dar
conta do imaginário e simbólico que transita dentro do mundo indígena.
Na escrita procurarei trazer a poesia, o conto e a metáfora como re-
presentação das vivências que foram registradas e por mim absorvidas ao
longo do caminho, ressaltando ainda que “lo poético, o sea la poiesis, o sea
la creación, podría reactualizar el horizonte simbólico del indígena, y por
conseguinte reintegrar la totalidade de su existir” (KUSCH, 1976, p. 168).
Assim como surgem tecidos de algodão, linho, lã natural, entre ou-
tros e que precisam ser devidamente processados em fibras até se trans-
formar em linhas ou fios, que mais tarde irão cobrir nossos corpos em
roupas, buscarei então analisar os discursos, as falas escritas ou oralizadas
no primeiro momento, tentando “explorar ao máximo os materiais, na
medida em que eles são também uma construção histórica, política; na
medida em que as palavras são também construções; na medida em que a
linguagem também é constituída de práticas” (FISCHER, 2001, p. 199).
Dentro dessa perspectiva de estudo, organizarei os materiais pro-
duzidos conforme estudado em Foucault (1986), onde é imprescindível
separar os materiais coletados de acordo com quatro elementos fundan-
tes: 1) a referência, ou o assunto que está sendo abordado neste momen-

309
to de fala; 2) o entrevistado, que no momento está respondendo à per-
gunta formulada e ocupando o lugar de discursar; 3) o campo que vou
associar, de qual local está se falando, se menciona alguma área de estudo ou
atuação; e, 4) o material utilizado, se esta voz foi gravada, escrita, se foi repeti-
do o mesmo assunto durante várias etapas da conversa, como estava o entre-
vistado durante o processo, seus modos, seus comportamentos, seus gestos.
Devo estar disposta a escuta. Escutando até mesmo os meus silên-
cios. Como um observador que procura antes de tudo respostas. Procurar
resgatar memórias e oralidades. E ao final colocar tudo no papel. História
que precisa antes de tudo ser recontada.

Referências
FISCHER, R.M.B. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de
Pesquisa. Riode Janeiro: Forense Universitária, 2012.
FOUCAULT. M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 2012.
GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar. Rio de Janeiro: Record, 1997.

KUSCH, Rodolfo. Geocultura do Homem Latino Americano, 1976.


______. Obras completas. Tomo II. Buenos Aires: Editorial Fundación Ross, 2007.
LEVI-STRAUSS, KATHELEN GOUCH, MELFORD SPIRO. A família: ori-
gem e evolução.Editorial Villa Marta. Porto Alegre. Coleção Rosa dos Ventos.
Volume 1, 1980.
MAGNANI, J.G. De perto e de dentro: notas de uma etnografia urbana. Re-
vista Brasileira de Ciências Sociais. v.17, n.49. p.11-29, 2002.

310
o pensAmento decoloniAl e As poéticAs orAis:
sArAus e slAms

Ana Paula Freitas dos Santos1

Introdução

Minha voz no texto também é de espectadora de um movimento


poético que vem crescendo nos últimos cinco anos na cidade de Porto Ale-
gre. A história desse fenômeno literário-cultural produz um novo olhar
sobre o que seria considerado literatura e o que seria reconhecido como
poesia, além dos múltiplos possíveis sentidos que o movimento causa no
público-ouvinte e na influência narrativa em minha escrita como poeta.
Precisamos pensar primeiramente, em diferentes conceitos de cul-
tura e arte. Conceitos decoloniais contrários à imposição colonial do que
seja a cultura e a arte em geral produzida pela civilização ocidental. Como
diz Adolfo Colombres no prólogo de seu livro Sobre la Cultura y el Arte
Popular (2007), cultura e arte numa relação de complementação à nature-
za, diferente da oposição natureza versus cultura:

[…] la cultura y el arte popular, es decir, los creados por el pueblo, por las
clases bajas o subalternas. Por extensión, suele llamarse también arte po-
pular al desarrollado por miembros de otros estratos sociales que adoptan,
consolidan y reelaboran los puntos de vista del pueblo, deseando servir a
sus intereses de clase y al desarrollo de su conciencia y valores. Cuando
Bertold Brecht afirma que un arte, para definirse como popular, debe ser
comprensible para las amplias masas y tomar y enriquecer sus formas de
expresión, se está refiriendo sin duda a un arte para el pueblo, que será po-
sitivo si refuerza a su cultura y negativo en la medida en que la sustituya,
subrogándose y expropiando la palabra a las clases bajas (COLOMBRES,
2007, p. 7).

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras na UFRGS na Área de Es-


tudos da Literatura linha de Estudos Literários Aplicados: Ensino, com pesquisa em
Representação da Mulher Negra na Literatura: diáspora, gênero e descolonização na
sala de aula. É professora de Literatura Brasileira na Educação Básica e poeta. E-mail:
ana.flordolacio@gmail.com
311
Poéticas orais

O sarau Sopapo Poético acontece há seis anos em Porto Alegre, Rio


Grande do Sul. Além da oposição centro versus periferia, o que marca o sa-
rau é a negritude, tema que está presente na maioria dos saraus periféricos
e slams pela composição dos protagonistas e do público de maioria negra.
A especulação imobiliária no pós-abolição “empurrou” a população negra
para as periferias, favelas e morros da cidade. O sarau não é central nem pe-
riférico territorialmente, mas é negro por conta do protagonismo da poesia
negra. Nesse sarau essa é a regra: só poderá ir ao centro da roda quem ler
um poema de autoria negra, que pode ser de um poeta negro ou autoral.
A oralidade é uma das características da Literatura Negra, lite-
ratura de autoria negra que exalta a negritude de forma positiva, con-
trária à narrativa da literatura tradicional brasileira que ora coloca o
negro sempre no cenário da escravidão, ora nos estereótipos racistas da
sociedade contemporânea.
Na cosmovisão africana, a palavra também é sagrada, transmitida
oralmente de geração pra geração, seus ritos e cerimônias sagrados e se-
cretos foram preservados na memória, de boca pra ouvido, de mestre para
discípulo. Os saberes africanos resistiram à travessia dos tumbeiros, ao
cativeiro da escravidão, e hoje se mantêm vivos nos terreiros, nas rodas de
samba, capoeira e poesia negras.

O pensamento decolonial

As poéticas orais das cosmovisões indígenas e africanas resistiram


no Brasil há séculos de cultura e arte eurocêntricas impostas pelo colo-
nizador português. O epistemicídio dos saberes tradicionais, o desapare-
cimento das línguas indígenas, a proibição das línguas africanas em ter-
ritório brasileiro, a diáspora interna que separou grupos linguísticos e
culturais, a perseguição às manifestações religiosas e o catequismo que
sentenciou a presença ou não de almas nesses povos, não foram suficientes
para apagar a força da palavra.
A palavra está presente nos saraus periféricos e nos slams, como
uma força ancestral que brota dos territórios que recriam as rodas ances-
trais de partilha e comunhão. As rachaduras e rupturas que as poéticas
orais produzem no status quo literário criam contranarrativas que batem
de frente com o perigo da história única da literatura. Estamos vivencian-
do um processo de decolonialidade do ser e do saber americano:

312
Pedagogías que animan el pensar desde y con genealogías, racionalidades,
conocimientos, prácticas y sistemas civilizatorios y de vivir distintos. Pe-
dagogías que incitan posibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer, pen-
sar, mirar, escuchar y saber de otro modo, pedagogías enrumbadas hacia y
ancladas en procesos y proyectos de carácter, horizonte e intento decolo-
nial (WALSH, 2013, p. 28).

Lugares de fala e lugares de escuta

Slam é uma competição de poesia autoral que acontece em espaços


públicos na maioria das vezes, com jurados escolhidos na hora e entre o
público presente, os quais durante um período de tempo cronometrado pre-
cisam avaliar as produções dos slammers/poetas que versam, entre tantos
temas, sobre os anseios de mudança da sociedade, pautas de lutas dos movi-
mentos sociais, e defesa das liberdades individuais na contemporaneidade.
A voz é o meio de expressão do slammer, que pode dizer o poema de
memória ou ler o que já está escrito. O corpo faz parte da performance,
onde é proibido o uso de adereços ou objetos. O olhar é direcionado para
o círculo de pessoas que se formam em volta do poeta. É a poesia aconte-
cendo no encontro entre a obra e o leitor (leitor de mundo, citando Paulo
Freire), transmitida por esse slammer que deseja vencer a competição, mas
que também se satisfaz e se realiza na escuta da sua fala.

O silêncio é uma prece!

Na introdução ao pensamento do filósofo Gunter Rodolfo Kush nos


deparamos com uma “América Profunda” (2007), título da obra que faz
parte das epistemologias do sul, da América Latina, em oposição ao pen-
samento do norte ocidental. Kush faz um apanhado dos conceitos ilumi-
nistas e humanistas da razão científica eurocêntrica para explanar que o
pensamento americano fez uma “fagocitação” dessa imposição cultural e o
envolveu com o seu “sentir” numa ação decolonial.

Indudablemente, la fagocitación así tomada, como hecho universal, se pro-


duce en un terreno invisible, en aquella zona que Simmel coloca por debajo
del umbral de la consciencia histórica, ahí donde se disuelve la historia
consciente, diríamos la pequeña historia, y donde reaparece la gran histo-
ria, en ese puro plano del instinto. La fagocitación no es consciente sino
que opera más bien en la inconsciencia social, al margen de lo que oficial-
mente se piensa de la cultura y de la civilización (KUSH, 20017, p. 197).

313
Conclusão

Tanto os saraus periféricos quanto os slams, trabalham com a luz da


palavra. Palavra que ilumina existências e que dá à luz a si mesma. Essa
luz vem do fogo interno. Vem do calor humano, como se todos juntos fi-
zessem uma fogueira no meio da roda. Fogueira que incendeia a mentira e
lapida a verdade. Queremos saber a verdade. E se for com lirismo, melhor.
Por isso, as poéticas orais se constroem na presença. Na presença do
corpo. Na audição da voz, na força da palavra. Não bastam essas palavras
escritas aqui. Não bastam os poemas nos livros e fanzines. É preciso estar
presente numa roda de slam ou num sarau periférico. É preciso olhar no
olho do outro. Chorar ou rir juntos. Em comunhão.

Referências
COLOMBRES, Adolfo. Sobre la cultura y el arte popular. 2ª edição. Buenos
Aires: Del Sol, 2007.
CUTI (Luiz Silva). Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
KI-ZERBO, Joseph. A tradição viva. História Geral da África, I: Metodologia
e pré-história da África, 2ª edição, Brasilia: UNESCO, 2010.
KUSCH, Rodolfo. America profunda. [Obras Completas: pocket] 1ª ed.Rosa-
rio: Fundación A. Ross, 2007. v.2. p. 179- 254.
SERRARIA, Richard; SILVA, Liliam Ramos. As narrativas do tambor como prá-
ticas decoloniais. Revista Iluminuras, v. 20, n. 50, p. 279-297, 2019.
SILVA, A. F. Melodias e Rimas. Revista Marie Claire, nº 340, p. 60/61, 2019.
WALSH, Catherine (org). Pedagogías decoloniales. Prácticas insurgentes de
resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68..
FONTOURA, Pamela, SALOM, Julio, TETTAMANZY, Ana Lúcia. Sopapo
Poético: sarau de poesia negra no extremo sul do Brasil. Revista de estudos de
literatura brasileira contemporânea, n. 49, 2016.
LIMA, Juliana Domingos. O que são slams e como eles estão popularizando a
poesia. Nexo, 2016.
PRZYBYLSKI, Mauren Pavão. A voz da poesia periférica por ela mesma: uma
conversa com Sandro Sussuarana, do Sarau da Onça. Revista Boitatá, 2019.

314
em buscA dA terceirA mArgem: nAs fronteirAs
dA AméricA profundA

Daniela Severo de Souza Scheifler1

Introdução

Ao ler “Vocês brancos não têm alma”, um livro de contos de rela-


tos de fronteira de Jorge Pozzobon, nota-se um profundo contato/relação
com o sagrado e com a natureza que o escritor traz através da relação com
os seus personagens autóctones. Sagrado esse que vem sendo rompido
sistematicamente pela colonização branca e europeia. Aqui temos um es-
critor branco, Jorge Pozzobon, um antropólogo e pesquisador brasileiro,
nascido numa região de fronteira com o Uruguai, que conviveu com os
índios Makus e sobre os quais escreveu sua tese de doutorado, além de
muitos artigos e também o livro que aqui trabalharemos. O livro mostra
também esse choque que o antropólogo sofre ao conhecer os Makus, um
certo incômodo que Kusch (2007) descreveria como o fedor da América. O
fedor seria o cheiro da terra, da comida, do suor do corpo, a natureza sem
a assepsia do homem branco ocidental. Kusch diz:

En ese sentido la mística que se puede recoger aqui ha de ser hedienta,


pero no sólo porque se la encuentra en hediento mendigo del Cuzco, o
en el pobre índio Salcamayhua, sino porque el hedor se da aqui como un
retorno a la interioridade, como quien se asoma al hediento inconsciente
para empezar todo de nuevo (KUSH, 2007, p. 253)

No livro, “Vocês brancos não tem alma”, inicialmente Pozzobon


queria trabalhar com os índios Tukanos, os quais já conhecia minima-
mente e com os quais já sabia se comunicar.

Os Tukanos da região do alto rio Tiquiê já tinham convívio com missio-


nários desde os anos 1960. Frequentaram a escola primária e receberam a
catequese, de modo que era fácil conversar com eles, tirar informações ou
acertar serviços-tudo que um antropólogo como eu precisava. Não era o
caso dos Yuhup e outros índios da nação Maku (POZZOBON, 2002, p. 21).

1 E-mail: danischeifler@gmail.com
315
Porém, ao longo do livro, no capítulo chamado de Iniciação, Pozzo-
bon relata seu primeiro contato com os índios Makus e a desconstrução
que sofreu ao entrar em contato com o modo de vida simples deles que,
inicialmente, o antropólogo via como sinal de atraso com relação aos ín-
dios Tukanos. Sobre isso Fanon (1980), vai questionar o valor normativo
de certas culturas o qual é decretado unilateralmente por definições que
são, segundo ele, egocentristas e sociocentristas:

Podemos dizer que existem certas constelações de instituições, vividas por


homens determinados, no quadro de áreas geográficas precisas que num
dado momento sofreram o assalto directo e brutal de esquemas culturais
diferentes. O desenvolvimento técnico, geralmente elevado, do grupo so-
cial assim aparecido autoriza-o a instalar uma dominação organizada. O
empreendimento da desculturação apresenta-se como o negativo de um
trabalho, mais gigantesco de escravização econômica e mesmo biológica
(FANON, 1980, p. 35).

Objetivos

O presente trabalho visa mostrar como o modo de vida do Makus,


mais afastado da civilização branca do que o dos Tukanos, se tornou mais
interessante e, consequentemente, objeto de estudo para o antropólogo
Jorge Pozzobon. O presente estudo também vai elucidar a relação dos
Makus com o sagrado, com a natureza e com os animais. Os Makus tam-
bém causam em Pozzobon, incialmente, uma ojeriza que Kush (2007) des-
creveu como o fedor da América, dessa América Profunda da qual ele fala.
Os Tukanos descritos acima são índios que já possuem intenso contato
com o branco colonizador e, por isso mesmo, são considerados mais de-
senvolvidos, espertos e fáceis de lidar. Já os Makus:

Caçadores seminômades, os Makus são avessos à vida sedentária. Vagam


no interior da floresta, longe dos rios navegáveis, estabelecendo-se tempo-
rariamente em aldeias de difícil acesso. A maioria nem fala a nossa língua
(POZZOBON, 2002, p. 21).

Metodologia

Através da análise da obra “Vocês brancos não têm alma” de Poz-


zobon (2013), o presente estudo, junto ao referencial teórico escolhido,
mostrará a desconstrução que o antropólogo sofre ao se deixar fagocitar
pela América Profunda de Kush. A análise também se estende ao modo

316
como os Makus se relacionam com o com o sagrado e com a natureza. Os
Makus temem o trovão, atribuem esse fenômeno da natureza a Boraró,
temem a natureza que eles não controlam, por isso se relacionam com ela
de modo a respeitá-la profundamente, de modo sagrado. Os sonhos e os
antepassados funcionam como parte atuante da vida e da morte:

Sonho verdadeiro. O boto é o símbolo do meu clã, os Buhuari Mahsa, quer


dizer, Gente Aparecida. Você descobriu isso sozinho no sonho, porque
você está morrendo. Por isso você foi até a casa do meu avô procurar uma
alma, procurar uma vida. Vocês brancos não têm alma. Quando morrem,
vão para o nada, enquanto a gente vai pra casa do nosso avô, a casa do
nosso clã. Você foi até lá para achar uma alma, uma vida, porque sua vida
tá se apagando. Agora eu vou te curar em nome do meu avô, que também
é meu próprio nome. O teu nome não é mais Jorge. O teu nome é ... (não
posso revelar). Agora você pertence ao meu povo. Agora, sim, eu sei qual
é a reza que eu tenho que soprar para livrar você do veneno do Boraró
(POZZOBON, 2013, p. 55).

Boraró envenena Jorge em sonho porque ele desperdiçou, ainda que


sem querer, a caça do macaco. E, em sonho também como vimos acima,
chegam as mensagens que levam à cura do envenenamento. Por último, a
análise se estende também ao mostrar as consequências funestas do colo-
nialismo sobre o modo de vida dos povos indígenas, como por exemplo os
índios escravizados a troco de quase nada.

Conclusão

No livro “Vocês brancos não têm alma” assistimos a uma desordem


provocada pela má ação do homem, pelo desrespeito às ordens naturais,
que acontece de modo acidental. O estudo mostra como a lógica ociden-
tal branca não opera em meio à floresta e nem mesmo na relação com os
animais e com os Makus. Através do acidente podemos trabalhar com a
concepção de sagrado e com a relação que os Makus estabelecem com
a natureza e o sobrenatural também. O estudo mostra também como o
colonialismo rompe com esse sagrado e com as relações que os indígenas
estabelecem com a natureza e o sobrenatural. A sede do colonizador é sem
fim. Termino este meu resumo expandido com as palavras e com a refle-
xão de Ailton Krenak na entrevista chamada “Alianças afetivas”:

Eu percebi muito cedo que esse mundo que a gente chama de mundo dos
brancos, que pode ser o Ocidente, imprime marcas no mundo, abre rotas, e
essas rotas são movidas por um interesse de saquear o roteiro. É um roteiro
317
que vai saqueando o caminho. Ele não semeia no caminho, ele só colhe. Ele sa-
queia o caminho. Percebi isso muito cedo. Há trinta, quarenta anos, eu já tinha
esse entendimento sensível, as relações que eram estabelecidas nesse caminho,
nesse trajeto, não tinham investimento para que durassem. Eram todos casa-
mentos temporários, casamentos de circunstâncias (KRENAK, 2016, p. 171).

No livro de Pozzobon vemos essas alianças que, no geral, se dão de


forma assimétrica, se dão pelo saque. Os brancos se impõem com os seus
conhecimentos técnicos ou mesmo com produtos industrializados e fazem
trocas desiguais, como no caso dos índios que são escravizados em troca
de cachaça e remédios. Ao mesmo tempo que assistimos, ao ler essa obra,
a barbárie toda cometida pelos povos ocidentais, vemos também modos
muito simples e inteligentes de vida. Vidas que respeitam o solo onde vi-
vem, o tomam como sagrado e se relacionam com ele de igual para igual.
Se não mudarmos, a época do homem será o tempo de sua própria extin-
ção para parafrasear aqui Machado, 2018.

Referências
FANON, Franz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1980.
KUSH, Rodolfo. América Profunda. Rosário: Fundación A. Ross, 2007.
POZZOBON, Jorge. Vocês brancos não têm alma: Histórias de Fronteira. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Beco do Azougue; São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.
Entrevista com Ailton Krenak, por Pedro Cesarino. As alianças afetivas, 2106.
MACHADO, Ricardo. Fascismo, a política oficial do Antropoceno. Entrevis-
ta com Marco Antônio Valentim. 31 de outubro de 2018.

318
os filHos dA terrA semeAndo pAlAvrAs:
A cosmovisão indígenA e o pensAmento seminAl em
yvyrupA - A terrA umA só

Diego Bonatti1
Ana Lúcia Liberato Tettamanzy2

Um dos pontos em comum entre as diversas culturas dos povos da


Terra é o fato de eles fazerem menção às suas origens por meio de mitos
que narram a criação de suas sociedades a partir da ação de divindades.
Nessa perspectiva, os mitos não só passaram a explicar a gênese do mun-
do e da vida humana, como também a organizar o pensamento e a relação
das sociedades com espaço que habitam, e com o sobrenatural.
Dentre a multiplicidade de mitos originários, alguns se tornaram
mais conhecidos e eternizados ao longo dos tempos, outros ainda merecem
uma maior análise e difusão, devido à autenticidade e olhar sensível com que
desvelam a realidade. Um desses mitos é o da perspectiva Tupi-Guarani,
que narra a criação do mundo à medida que coloca seres humanos, animais,
plantas e divindades num sistema de interação e cosmovivência.
Yvyrupa – A terra uma só faz parte da Coleção Mundo Indígena e foi
publicada em 2017 por Timóteo da Silva Verá Tupã Popygua, indígena
Guarani Mbya, que narra o mito originário Tupi-Guarani por meio do
texto em prosa. Na leitura da obra, a partir da relação criada entre di-
vindades, plantas, animais e seres humanos, destacam-se dois aspectos: a
expressão de uma cosmovisão indígena, e da gênese da obra pautada em
um pensamento de ordem seminal.
Assim, já no início da narrativa, acompanhada uma perspectiva pa-
ralela ao relato oral, percebe-se a gênese a partir da noite originária, sen-
do que nada existia, nem a Terra, nem o Sol e nem a Lua, apenas o “oceano
primitivo” (Popygua, 2017, p. 13). Em seguida, a partir de “uma luz infi-
nita” (p. 15), surge Nhamandu Tenondegua, o “primeiro pai divino” (p. 15).
Embora não houvesse sol, “Nhamandu, o detentor da aurora, iluminava a
noite originária com a luz do próprio coração” (p. 17). Nesse momento, o
pai primeiro ainda não havia criado a Terra, Yvy tenonde.
Essa divindade é responsável por criar, também, as três origens di-
vinas: “ayu porá rapyta, a origem das belas palavras, mborai, o canto divino,

1 Mestrando em Letras – UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: diego.bonatti@bol.com.br


2 Doutora em Letras. Docente na UFRGS.
319
emborayu miri, o amor infinito” (p. 18). Depois da criação desses elementos,
a divindade suprema cria os outros deuses com quem iria dividir essas
“fontes divinas de sabedoria infinita.” (p. 18). Por esse ângulo, outra im-
portante ação de Nhamandu foi a de criar:

[...]Yvy tenonde, a primeira Terra. Através de sua sabedoria divina, gerou


teĩnhiru pindovy, cinco palmeiras azuis. A primeira, no futuro centro da
Terra, Yvy mbyeretã. A segunda, na morada de Karai, pai da chama. A ter-
ceira, na morada de Tup㸠pai do ar fresco e do trovão. A quarta, na origem
do vento bom, Yvytu porá, no tempo novo, Ara pyau. A quinta, na origem
do vento frio, Yvytu ro’y, no tempo originário, Ara ymã. Assim, Nhaman-
du Tenondegua criou teĩnhiru pindovy, cinco palmeiras azuis (POPYGUA,
2017, p. 24).

Enquanto elo entre o mundo espiritual e o mundo dos homens, as


palmeiras deixam de ser apenas vegetação, para tornarem-se a morada
das divindades e a representação do divino nos cinco cantos da Terra – o
centro é também uma direção e uma forma de localização para o indígena.
Observar a existência de cinco direções elementares, o centro, onde o Sol
se põe, onde o Sol nasce, o lugar dos ventos bons e o lugar dos ventos
originários, frios, faz com que o indígena caracterize a natureza não como
objeto, mas como fenômenos a acontecer, sendo que o efeito, positivo ou
negativo, é o que irá caracterizá-lo, e não sua essência. Por outro lado, eles
realizam a reinvenção do espaço a partir de uma visão própria, expressão
única da Comovisão desse grupo étnico.
Conforme Lenkersdorf (1998), a cosmovisão é um dispositivo usado
pelos povos indígenas para ver a realidade e agir sobre ela a partir de uma
determinada perspectiva, manifestando uma nova forma de conhecimen-
to. A intersubjetividade proposta pela visão indígena permite o entendi-
mento da realidade com base no animismo, isto é, entender a existência en-
quanto ato de estar em relação a outras formas de vida. Essa perspectiva
propõe a concepção da vida como um sistema vivo e autorregulável, sendo
que todos os sujeitos que participam da comunidade devem contribuir
para sua preservação (LENKERSDORF, 1998).
Assim, a mística indígena, ao observar seu entorno como obra e
processo divino, revela a sabedoria desses sujeitos que, integrados ao am-
biente, manifestam uma forma de existir diferente da sociedade Ocidental.
Os povos originários desenvolvem modos de ação e pensamento situa-
dos na terra, convivendo pacificamente e respeitando as demais formas de
vida que fazem parte do sistema. Sobre essa forma de agência sobre e com o
mundo, Escobar (2016) desenvolve a ideia de “ontologias relacionais”, isto
320
é, que “[...] las cosas y seres solo existen en relación con otros, y no tienen
una vida propia” (ESCOBAR, 2016, p. 18).
Por conseguinte, ser indígena é estabelecer relações de coexistência
e de harmonia para com a natureza e os demais seres vivos, assumir a
posição de guardiões da vida em seu estado original. Ser indígena, então,
é estar na natureza, isto é, compartilhar de seu universo, seu cosmos, com
as demais culturas e formas de vida da Terra. Pertencer a este território
é, portanto, proteger e gestar a Terra.
Um outro importante aspecto que deve ser destacado quando obser-
vada a relação dos Guarani Mbya com a palavra é o significado único que
ela assume para sua cultura. Para eles, a palavra é algo intrínseco da vida,
tanto que, no mito, a divindade Nhamandu é fonte de sabedoria e de onde
“nascem as belas palavras, ayu rapyta. Ele é o dono da palavra” (p. 17). À
vista disso, numa caminhada em que saem do centro da Terra, Yvy mbyte
em “direção ao sol poente para chegar à margem do mar, [...] em cada
lugar que chegavam davam um nome” (p. 39). Eles passam pela Ytajekupe
- Cordilheira dos Andes, a muralha de pedra, pela Yvyjuky, a Terra feita
de sal, chegando a yvyku‘ixĩrenda, o deserto, a morada da Terra branca.
Depois, encontraram tataryku, o fogo líquido, continuando a caminhada,
chegaram ao extremo sul da América, que chamaram de “mymba reta, ypo,
guyra, morada de animais e aves marinhas” (p. 40). Após, alcançaram “o
lugar do sol poente, consagraram o lugar onde pisaram e encontraram a
beira do Mar”, o oceano Pacífico, o qual nomearam Para yvytu ro’y, a ori-
gem do frio. Por fim, atingiram a Yyupa, a Lagos dos Patos, atravessando
a Serra do Mar, até que finalmente chegaram à Para ore retarã ypykuery, a
beira do Oceano Atlântico, onde nasce o sol.
Neste percurso de descoberta e gênese da América do Sul a partir das
palavras, os indígenas Guarani levavam sementes consigo e as espalhavam
por onde passavam. A viagem os faz descobrir, também, as araucárias, as
taquaras, as plantas medicinais, as árvores frutíferas e os rios. Com o tem-
po, “continuaram a realizar suas longas caminhadas, levando, trazendo e
plantando diversas sementes e criações de Nhanderu” (p. 48) para povoar a
Terra. Dessa forma, “adquiriram e transmitiram aos seus descendentes uma
vasta sabedoria milenar sobre as florestas que formam a Mata Atlântica
para enriquecer Yvyrupa, nosso território tradicional” (p. 48).
Finalizar a narração do mito lembrando a transmissão de conhe-
cimentos pelo relato oral é um fato importante para entender a cultura
Guarani. A palavra, nesse contexto, desempenha um papel elementar, haja
vista que, ao nomear as coisas do mundo, carrega o pensamento e per-
petua a continuidade de existência deste povo. Tal perspectiva pode ser

321
assinalada quando da narração do percurso em direção à “Terra do sol
nascente”. Nesse trajeto, à medida que descobrem novos espaços e esco-
lhem palavras para nomeá-los, espalham sementes, fazem a Terra brotar
e se tornar um lugar sagrado onde homens-animais-divindades possam
habitar. Essa semeadura não é somente física, mas simbólica: ao perpetuar
a vida por meio da semeadura, eles permitem que a palavra-semente ga-
nhe vida, nasça, cresça, dê frutos e dê continuidade ao eterno processo de
existir. A semente, nessa perspectiva, é mais do que portadora da planta
em potência: ela é a própria vida, porque leva, dentro de si, a gênese do
pensamento do povo.
Conforme Kusch (2007), o Pensamento Seminal explica o modo exis-
tir indígena, caracterizado pelo estar, muito mais do que ser. De acordo com
Kusch, a sabedoria indígena opera com base no equilíbrio entre ordem e
caos, apresentando, assim, um ritmo de vida único, e que os permite oscilar
entre os planos transcendental e físico, ou seja, habitar um espaço hetero-
gêneo, em que o sobrenatural é cotidiano, e a quebra desta ordem é que é
incomum. Assim, esta forma de pensar não só se apresenta inédita, como se
firma enquanto prática de fagocitação do branco pelo indígena, em outras
palavras, o indígena age com base na aculturação, a inversão do modo de
existir baseado no ser imposto pelo Ocidente, para o mero estar, uma forma
de permanecer sobre a Terra com base em princípios residuais, de práticas
ancestrais de convivência pacífica com o meio ambiente (Kusch, 2007).
Pensar a vida enquanto semente revela duas peculiaridades da gê-
nese do espaço para o Guarani. A primeira é de que, ao lançar sementes
ao solo, ele fecunda a Terra e torna-a algo vivo e sagrado, já que as divin-
dades se fazem presente em tudo que os rodeia. A segunda diz respeito
à gênese do espaço pela fecundação com palavras. O movimento circular
que os levou do centro da Terra (Paraguai), passando pelos Andes, até
chegar ao extremo Sul, e finalmente à margem do Oceano Atlântico, fez
com que os Guarani, por onde passassem, atribuíssem nomes para cada
espaço. Nomear a Terra a partir de características geolocalizadas como
“vento bom ou frio”, “lugar onde o sol nasce e se põe” é semear a Terra
com palavras e fazer da língua um instrumento de conexão do cosmos
interno com o externo.
Conforme Kusch (2007), em “El pensamiento indígena e popular en
América”, quando discute a questão de Limite, observa que os esquemas
de classificação, para os indígenas, opera a partir de percepções de afeto,
o que, portanto, constitui uma forma de conhecimento. O antropólogo
argentino explica que a relação eu-outro pelos indígenas envolve um pro-
cesso de percepção dos objetos que passa pelo intelecto e pela abstração,

322
recebendo as imagens de estereótipos e arquétipos que são exteriorizados
sob a forma de afeição ao encontrar o outro, ou a coisa. Esse processo é
uma cadeia aberta e de duplo sentido: ao mesmo tempo a saída de percep-
ções ocorre de forma diferente, por observar o sentimento que determina-
da circunstância causava no sujeito, e não seu pensamento racional frente
à questão, também a internalização de estímulos é singular. O indígena
olha para a realidade e significa-a de forma que o outro não seja alguém
exógeno, mas sim parte de um sistema em que os dois coabitam e existem
em relação. Assim sendo, o limite de percepção do indígena é o não limite.
A posição de mediação desempenhada pelo afeto na gestação da Terra
ilustra uma relação construída pela interdependência entre eu-outro-Ter-
ra, existindo senão em relação e constituindo um universo plural.
No mito de criação da Terra na perspectiva Tupi-Guarani em
Yvyrupa – A terra uma só, a reprodução da vida pelo humano acontece, além
do sexo, por aquilo de mais sagrado e que melhor traduz sua maneira de
entender este mundo: por meio das palavras. A palavra, para os Guarani
Mbya, significa, também, alma. Então, tudo que tem palavra, isto é, nome,
possui alma, vida. Portanto, conforme circula pelo território, o indígena
não apenas fertiliza a Terra com sementes, mas também com palavras. À
medida que se move circularmente, o Gurani reproduz o modo de pen-
sar transmitido pela semente: nascer, crescer, morrer e retornar ao solo,
reiniciando o ciclo da vida. A sabedoria trazida pelo Pensamento Seminal
de Kusch (2007) permite aos Guarani-Mbya uma inovação na maneira
de existir, que os faz pensar a partir da Terra e se ver enquanto parte
dela. Assim, em Yvyrupa - A terra uma só, o mito indígena faz com que os
filhos da terra, a partir da semeadura de palavras, construam o território
a partir de uma a cosmovisão própria e de uma estrutura de pensamento
seminal, quer dizer, circular.

323
Referências
ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la Tierra: Las Luchas Territoriales y la
Dimensión Ontológica de las Epistemologías del Sur. AIBR - Revista de An-
tropología Iberoamericana, v. 11, n.1,p. 11-32, Jan – Abr, 2016. Disponível em:
http://www.aibr.org/antropologia/netesp/numeros/1101/110102.pdf
KUSCH, Rodolfo. Obras completas – pocket.1 ed. Rosário: Fundación A. Ross,
2007. [V. 2]
LENKERSDORF, Carlos. Cosmovisiones. Cidade do México: Universidad Na-
cional Autónoma de México: Centro de Investigaciones Interdisciplinarias de
Ciencias y Humanidades, 1998.
POPYGUA, Timóteo da Silva Verá Tupã. Yvyrupa – A Terra Uma Só.1 ed. São
Paulo: Editora Hedra, 2017.

324
feminismo negro: pensAndo o lugAr dA mulHer
e do protAgonismo negro nA literAturA
de conceição evAristo

Elen Karla Sousa da Silva1


Daniel Conte2

Esta investigação discute a condição da mulher negra e do negro na


literatura de Conceição Evaristo. A partir da leitura do livro Insubmissas
Lágrimas de Mulheres (2011), de sua autoria, constata-se como o cotidiano
feminino negro no Brasil pode revelar a vivência e a histórias de mulheres
negras com base em outros lugares de fala.
Desse modo, objetiva-se entender por que temos que pensar no fe-
minismo negro, se o feminismo é uma pauta que abrange todas as mu-
lheres? Isso ocorre por um processo de socialização de pessoas negras e
pessoas brancas, sobretudo de mulheres negras e mulheres brancas, e do
lugar que essas mulheres vão ocupar, não só nas relações sociais, mas tam-
bém no modo de produção. Se pensarmos na cultura pop que atualmente é
o maior veículo que determina as ideias do feminismo entre juventude, as
maiores porta-vozes desses pensamentos feministas são mulheres brancas
e jovens, de classe média alta ou até daquilo que chamamos de burguesia,
que são os pequenos grupos que controlam os grandes meios de produ-
ção. Essas mulheres, logicamente, vão levar os seus pontos de vista das
suas experiências às mulheres negras que moram na periferia. São elas
que vão nos países pobres que têm pouco acesso não só à escolarização
como também ao consumo e à produção dessa cultura, e que visibilizam e
refletem sobre as questões, as semanas e as vivências que essas mulheres
encontram no seu dia a dia. Essa é a principal questão para poder pensar
o porquê do feminismo negro.
Muitas intelectuais vão dizer que feminismo negro está ligado es-
sencialmente a uma questão de método, não sendo só uma questão de raça,
mas uma questão de método. Mas como assim uma questão de método?
Método porque pressupõe que parte de uma realidade diferente, portanto
precisa de estratégias diferentes para entender essa realidade. Parte de

1 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Bolsista do CNPq. E-mail: elenuema@gmail.com
2 Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africanas pela UFRGS. Professor
e Pesquisador da Universidade Feevale. PQ-CNPq.
325
um lugar de subalternidade historicamente colocado para as mulheres ne-
gras no processo de reconfiguração no pós-escravidão no nosso país, por
exemplo. Também se pode pensar isso sobre outros países onde houve
escravidão negra: qual é o lugar destinado à mulher negra? É o lugar que
ela sempre ocupou, o local do trabalho para o trabalho, com uma vida para
o trabalho. São essas experiências marcadas pelo trabalho, por essa rotina,
que vão determinar essa forma de ser e estar no mundo.
O processo de construção de identidade do corpo negro, não só da
mulher negra mas o corpo negro no Brasil, é marcado por uma hiper-
sexualização e por uma anulação pelo extermínio permanente, pela vio-
lência permanente. Esse corpo não pertence à mulher negra, pertence à
sociedade, pertence ao estado, pertence a uma série de esferas que não a
ela, então isso muda muito a forma de enfrentamento da realidade. Antes
de lutar pelo “meu corpo minhas regras”, as mulheres negras lutam pela
vida, pelo direito à vida.
Pensar o feminismo negro é também pensar uma forma de entender
essa realidade e elaborar estratégias específicas para analisar e enfrentar
essa condição, porque mais do que ser uma construção teórica sobre a
realidade, o feminismo também precisa ser e sempre foi e continua sendo
uma estratégia de enfrentamento à realidade para superar a opressão, ex-
ploração e as condições de miséria que as mulheres viviam, as mulheres
brancas, na sua grande maioria, viviam no comércio no começo do século
passado e que as mulheres negras ainda vivem no século atual.
“Da língua cortada, digo tudo, amasso o silêncio e no farfalhar do
meio som solto o grito do grito do grito e encontro a fala anterior, aquela
que emudecida, conservou a voz e os sentidos nos labirintos da lembran-
ça” (EVARISTO, 2008, p. 50). Esses versos carregam a força da literatura
de Conceição Evaristo, vencedora do prêmio Jabuti. A mineira traz a an-
cestralidade em seus textos e a força da mulher negra como produtora de
saber e de conhecimento.
Conforme Evaristo, uma obra de ficção em determinados textos
pode ser uma autoficção. O peso da biografia de Conceição Evaristo em
sua obra é muito marcado. Ela afirma que não há como escrever sem ser
contaminada pela sua condição de mulher negra na sociedade brasileira,
e assevera que não consegue desvencilhar a autora da cidadã. Ser cidadã
negra tem um peso e é claro que isso contamina a sua obra. Consciente-
mente ela escolhe escrever a partir da sua condição, da sua experiência
de mulher negra na sociedade brasileira, então evidentemente a sua bio-
grafia pessoal interfere na obra. Isso também não significa que tudo que
a autora escreve tenha vivido particularmente. Sobre isso ela afirma que

326
teria que ser uma pessoa de mil facetas para poder encarnar todas as per-
sonagens que queria descrever.
Ao passar para um exercício de leitura, Conceição Evaristo situa o
seu princípio desde a escola primária, com os próprios livros didáticos e
paradidáticos que ela leu. Leu o que pôde acessar na época e, ironicamen-
te, Evaristo diz que foi leitora de Monteiro Lobato. Durante a juventude,
leu também Lúcia Casasanta, Luzia Machado Brandão, Alaíde Lisboa de
Oliveira, Henriqueta Lisboa de Oliveira, as poesias de Olavo Bilac. Logo,
sua referência de leitura na infância e em grande parte da juventude é de
uma literatura que já estava canonizada naquele tempo. Como se lia Ma-
chado de Assis sem nunca pensar que era negro, sua referência de autores
negros vai se dar a partir do movimento social negro e, nesse sentido,
afirma-se que a pauta do movimento social negro é muito mais dinâmica
do que a pauta acadêmica.
A autora teve contato com o texto de Lima Barreto e Cruz e Sousa
a partir do movimento social negro. Já a literatura de Carolina Maria de
Jesus ela leu a partir de movimento católico Juventude Operária Católi-
ca (JOC), isso ainda nos anos 1960. Ademais, Evaristo teve contato com
Lélia Gonzalez dentro do movimento social e sem sombra de dúvida essa
intelectual negra marcou o movimento social negro. Do mesmo modo
como Beatriz Nascimento, Helena Teodoro, Neusa Santos com famoso
livro Tornar-se negro. Cada vez mais Evaristo foi se aprofundando, até o
projeto mesmo de escrita quando ela encontra escritores negros como o
grupo quilombhoje: Cuti, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Márcio Bar-
bosa, o Grupo Negrice do Rio de Janeiro, que depois por um tempo se
transformou no coletivo de escritores negros. Nessa época, uma pessoa
do coletivo de escritoras negras era Elisa Lucinda, e Salgado Maranhão
era também um autor do coletivo. É notório que ela foi encontrando com
esses escritores e conhece as escrituras negras. O seu projeto de escri-
ta para trazer essa ambiência negra também vai se fortalecendo, vai ga-
nhando corpo através das discussões que se empreendiam. Assim, o que
se pode afirmar é que essa autoria negra é marcada ou por pessoas que
estão diretamente dentro do movimento social negro ou por escritores
e escritoras que são formadas a partir do discurso do movimento negro,
elas contaminadas por esse discurso. Ressaltamos que a pauta acadêmica
é mais lenta ou menos aberta para descobrir determinados textos, pois há
uma tendência de trabalhar com os textos de escritores canônicos.
Isto posto, intenciona-se pesquisar a representação da mulher ne-
gra e do seu protagonismo no texto de Conceição Evaristo, com base nas
questões de gênero, discriminação, opressão, silenciamento e representa-

327
ção. Assim, a pesquisa reúne os seguintes aportes teóricos: Spivak (2010),
Dalcastagnè (2005), Ribeiro (2017), Berth (2018), hooks (2018), Hollanda
(1994), Perrot (2005), entre outros (as).

Referências
DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâ-
neo: 1990-2004. Estudos de literatura brasileira contemporânea. Brasília, n.
26, p. 13-71, jul./dez. 2005.
EVARISTO, Conceição. Poemas de recordação e outros movimentos. 2. ed.
Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
______. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (Org.) Tendências e impasses: o feminis-
mo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio
de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2018.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo:
EDUSC, 2005.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? - 1ª Edição - São
Paulo: Companhia das Letras, 2018.
______. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2017.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra
R. Goulart Almeida; Marcos Feitosa; André Feitosa. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2010.

328
poesiA, AncestrAlidAde e (r)existênciA em águAs dA
cAbAçA, de elizAndrA souzA

Francine Vargas1

Nos últimos anos, a literatura contemporânea testemunhou o surgi-


mento de produções elaboradas por vozes postas à margem de um projeto
hegemônico de nação. Essas narrativas, presentes na literatura marginal-
-periférica, ressignificam o imaginário nacional e, conforme afirma Homi
Bhabha (1998), apresentam um discurso performático, pois desestabilizam
o significado de povo como homogêneo, trazendo a memória esquecida e
apontando para diferença cultural. Ademais, elas geram o deslocamento
da perspectiva centralizadora, pois rasuram o discurso dominante e im-
pulsionam esses indivíduos a ocuparem o seu lugar de fala. Desta forma,
eles tornam-se agentes ativos de sua tradição, das suas experiências his-
tóricas e do seu discurso.
Esses escritores não inovam necessariamente na temática, mas sim
no locus da enunciação. Aquilo que era dito pela ótica de quem ocupa uma
posição privilegiada na sociedade passou a ser enunciado por aqueles que
vivenciam aquilo que na narram. Essas produções dialogam com a verten-
te do ultrarrealismo ou realismo feroz (CANDIDO, 1987), pois o escritor
“agride” o leitor não somente pelo tema que escolhe, mas também pelos
recursos estilísticos que utiliza. A estrutura das obras remete à realidade
dos autores, pois há uma incorporação, no produto literário, das marcas
linguísticas e estéticas pertencentes à comunidade periférica e às suas ma-
nifestações culturais. Nesse sentido, percebe-se uma indissociável ligação
dos textos com a realidade, trazendo para a literatura o social como um
fator da sua própria construção artística (CANDIDO, 1980).
Contudo, apesar de trazer inovação, a literatura marginal-periférica
apresenta um “velho” problema: o protagonismo exclusivamente masculi-
no. As mulheres, mesmo participando de saraus e da agenda cultural, não
publicam seus textos com a mesma frequência que os homens e poucas
fazem parte da organização e liderança dos projetos. As primeiras publi-
cações, que marcaram a ascensão dessa literatura, exemplificam a ques-
tão. A revista Caros Amigos/Literatura Marginal, organizada pelo escritor
e articulador cultural Ferréz, tinha o intuito de divulgar os textos dos

1 Mestranda em Estudos de Literatura – UFRGS. E-mail: franvargassd@gmail.com.


329
novos escritores. Nos anos de 2001, 2002 e 2004, foram lançados os três
atos da revista, sendo que, no primeiro, não houve nenhuma participação
feminina. No segundo ato, cinco mulheres publicaram e no terceiro apenas
quatro. Portanto, dos 54 autores que tiveram sua carreira impulsionada
pelo periódico, somente 9 eram mulheres, estabelecendo um percentual
81% menor de participação feminina (BALBINO, 2016).

Gráfico 1: Publicações de 2000 a 20152

Fonte: Elaborado pelo autora, 2019.

No ano de 2009, é perceptível um aumento significativo no número


de textos de autoria feminina em circulação. Esse crescimento é o resul-
tado do surgimento de coletivos femininos que buscam emancipar e visi-
bilizar a produção artísticas dessas mulheres que ocupam “as margens da
margem”. Diante desse contexto, a escritora Elizandra Souza se destaca,
pois ela acompanhou todo o desenvolvimento da literatura marginal-peri-
férica de uma forma efetiva, sendo uma das poucas mulheres a participar
da revista Caros Amigos/Literatura Marginal. Além disso, ao constatar a
falta de visibilidade feminina, e escritora criou o coletivo Mjiba para, entre
outras ações, publicar livros de mulheres negras.
Assim, através da Elizandra Souza, percebe-se que a literatura se
2 O gráfico 1 foi elaborado com base nos dados presentes na pesquisa Pelas Margens da
jornalista Jéssica Balbino (2016).
330
transformou em uma ferramenta de (r)existência e também em um ele-
mento capaz de romper com a colonialidade do ser e do saber (ACHINTE,
2009; QUIJANO, 2000). Nas produções da escritora, a poesia põe em evi-
dência a pluralidade presente no cenário contemporâneo e também atua
como um mecanismo de autorepresentação e ressignificação do feminino.
Desta forma, os estereótipos enraizados na sociedade começam a ser des-
contruídos e a produção artística ganha contornos diferentes do projeto
moderno eurocêntrico que coloca o “outro” em uma posição exotizada
(ACHINTE, 2009). Portanto, a presente proposta busca analisar cinco
poemas - “Fertilidade”, “Poema Novo”, “Estribeiras do Mundo”, “À Nossa
Maneira” e “Preservando Heranças” - contidos no livro Águas da Cabaça
(2012) nos quais o fazer artístico busca fortalecer a identidade feminina
e visibilizar narrativas historicamente excluídas. Além disso, Elizandra
Souza confronta o discurso dominante ao problematizar questões relacio-
nadas à cultura e ancestralidade africana.
Portanto, serão utilizados os estudos de Angela Davis (2016) e bell
hooks (2014) referentes aos problemas historicamente enfrentados pelas
mulheres negras e sobre os desdobramentos da união entre racismo e ma-
chismo. Por conseguinte, as pesquisas da filósofa Djamila Ribeiro (2017;
2018) acerca do feminismo negro e do lugar de fala também embasarão a
análise, assim como a obra de Paul Gilroy (2017) sobre a valorização da
diáspora e da africanidade como um instrumento de resistência.

Referências
ACHINTE, Adolfo Alban. Artistas indígenas y afrocolombianos: entre las
memorias y las cosmovisiones. Estéticas de la re-existencia. In: MIGNOLO,
W.; PALERMO, Z. (Org.) Arte y estética en la encrucijada descolonial. Bue-
nos Aires: Ediciones del Signo, 2009.
BALBINO, Jéssica. Pelas margens: vozes femininas na literatura. 358f. Dis-
sertação (Mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: A educação pela noite e outros
ensaios. São Paulo: Ática, 1987.
COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação so-
ciológica do pensamento feminista negro. Trad. Juliana de Castro Galvão. Re-
vista Sociedade e Estado. v.31. n.1. jan-abr, 2016. Disponível em http://www.
scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf

331
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. Edi-
tora 34, 2017.
HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher: Mulheres negras e feminismo. Rio de
Janeiro: Plataforma Gueto, 2014.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
______. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.
SOUZA, Elizandra. Águas da Cabaça. São Paulo: Edição Independente, 2012.
TENNINA, Lucía. Cuidado com os poetas: literatura e periferia na cidade de São
Paulo. Zouk, 2017.
______. La mujer negra periférica en la literatura brasileña contemporânea. Re-
vista Internacional de Culturas y Literaturas. n. 15, Universidad de Sevilla,
2014. Disponível em https://idus.us.es/xmlui/handle/11441/61798

332
becos dA memóriA: umA Análise contrA-coloniAl sobre o
território nA escritA de conceição evAristo

Ivana Amorim da Silva1

Por meio de uma perspectiva contra-colonial (Bispo, 2015), este tra-


balho busca analisar acepções do conceito de território utilizando a lite-
ratura como uma ferramenta de representação das relações sociais que
ocorrem em determinada territorialidade. Assim, questões geográficas,
políticas, sociais e culturais relacionadas à terra são estudadas a partir do
romance Becos da Memória (2013), da autora brasileira Conceição Evaris-
to, tanto pela temática de disputa territorial presente na obra quanto pela
escrevivência assumida por Evaristo acerca do seu fazer literário.
Para desenvolver o estudo da obra e do território - este tanto ficcional
quanto real -, utilizou-se a voz do mestre Antônio Bispo, líder quilombola
que faz parte da disciplina Encontro de Saberes na Universidade de Brasí-
lia (UnB). Em seu texto Colonização, Quilombos: modos e significados (2015),
Bispo afirma que os processos colonizadores brasileiros se constituem, den-
tre diversos outros fatores, pelo antagonismo entre as culturas europeias
colonizadoras (aqui, portuguesas) e os modos de vida dos indígenas nativos
e dos africanos diaspóricos. Dito isso, é fato que a forma de considerar o
espaço geográfico demonstra essa diferença, já que os dominadores enxer-
gam a terra em sua totalidade como capital e poder, enquanto os afro-pin-
dorâmicos (termo utilizado por Bispo para tratar dos povos originários do
Brasil) demonstram, ao longo da história, maior cuidado pelo meio e maior
valorização pelas relações culturais que nele se constituem.
Nesse contexto, a literatura faz-se um espaço importante para a re-
presentação da importância da territorialidade para um povo. A partir
dessa análise, Edward Said, intelectual palestino, constrói, no livro Cultu-
ra e Imperialismo (2011), uma retomada histórica dos efeitos do imperialis-
mo no âmbito literário e social, demonstrando que a divisão binária entre
centro e periferia, civilização e barbárie, poder e miséria, superioridade e
inferioridade e entre dominação e subalternização continuam existindo

1 Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e


mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras na mesma universidade, na área
de Pós-colonialismo e Identidades, sob orientação da professora doutora Ana Lúcia Li-
berato Tettamanzy. E-mail: ivanaamorim.96@hotmail.com
333
nas relações atuais, porque a divisão do capital, da geografia e do trabalho
se perpetuam através da violência colonial vigente, por meio da qual as
grandes potências colocam em detrimento os povos latinos e orientais (ou
seja, todos aqueles que não se assemelham ao padrão europeu). Dessa ma-
neira, ele conclui que a terra é, infelizmente, sempre o foco dessas disputas
pelo simples fato de que o pensamento imperialista não acabou, mas sim
foi ressignificado ao longo dos séculos. Assim, atesta que

Estão em jogo territórios e possessões, geografia e poder. Tudo na história


humana tem suas raízes na terra, o que significa que devemos pensar sobre
a habitação, mas significa também que as pessoas pensaram em ter mais
territórios, e portanto precisaram fazer algo em relação aos habitantes na-
tivos (p. 27).

Tão vasto e, ao mesmo tempo, tão detalhado é o imperialismo como expe-


riência de dimensões culturais cruciais que devemos falar em territórios
que se sobrepõem, em histórias que se entrelaçam, comuns a homens e
mulheres, brancos e não brancos, moradores da metrópole e das periferias,
passados, presentes e futuros; esses territórios e histórias só podem ser
vistos da perspectiva da história humana secular em sua totalidade (p. 87).

Por fim, o autor constata que as produções culturais exprimem essa


relação, pois contém, de certa forma, traços autorais de seus produtores,
como marcas de seu lugar de origem, de sua classe social, de sua etnia, de
seu gênero etc. Em Becos da memória (2013), os personagens são uma re-
presentação dos sujeitos que sofrem não só com a histórica diáspora afri-
cana para o Brasil, mas também com a diáspora urbana que ocorre cons-
tantemente nas cidades, que “empurra” determinados grupos para mais
perto das margens e que força, com opressão, essas linhas fronteiriças.
Essa temática se constitui com bastante verossimilhança com o contexto
brasileiro porque a autora Conceição Evaristo se propõe a fazer o que
ela chama de escrevivência, conceito que acabou sendo incorporado com
popularidade nos estudos literários atuais. Quando explica seu posicio-
namento, Evaristo diz (referindo-se não só a sua escrita, mas a de outras
mulheres negras) que

A nossa “escrevivência” conta as nossas histórias a partir das nossas pers-


pectivas, é uma escrita que se dá colada à nossa vivência, seja particular
ou coletiva, justamente para acordar os da Casa Grande. [A escrevivên-
cia] seria escrever a escrita dessa vivência de mulher negra na sociedade
brasileira. Eu acho muito difícil a subjetividade de qualquer escritor ou
escritora não contaminar a sua escrita. De certa forma, todos fazem uma

334
escrevivência, a partir da escolha temática, do vocabulário que se usa, do
enredo a partir de suas vivências e opções. A minha escrevivência e a es-
crevivência de autoria de mulheres negras se dá contaminada pela nossa
condição de mulher negra na sociedade brasileira. Toda minha escrita é
contaminada por essa condição. É isso que formata e sustenta o que estou
chamando de escrevivência (EVARISTO, 2017, s.p.).

Portanto, a literatura de Evaristo diverge do cânone produzido ao


longo da História da Literatura, uma vez que a autora não busca estabe-
lecer um ideal de nação em sua escrita, mas sim constrói uma crítica ao
panorama brasileiro de racismo, de desigualdade e de silenciamento, o
qual é pautado pela raça, como afirma o sociólogo peruano Aníbal Quijano
(2005) no texto Colonialidad del poder, Eurocentrismo y América Latina. Em
suas obras, ela fortalece a visão contra-colonial acerca do país, mesmo que
com um tom poético extremamente ligado à cultura oral. Assim, suas nar-
rativas estabelecem nitidamente uma figura que narra com proximidade
as questões que tangem os mais pobres, as mulheres negras e os sujeitos
periféricos nos centros urbanos.
Para Eduardo de Assis Duarte (2013), estudioso da obra da escrito-
ra, na orelha do livro em questão,

Em Becos da memória, novamente mergulhamos na favela - para a autora,


uma encarnação contemporânea da senzala - e nas histórias de sofrimento
e resistência. A favela não tem nome, nem referências geográficas precisas,
fato que amplia seu simbolismo. Seus moradores sentem a todo instante as
rédeas curtas da precária liberdade que a vida lhes deu: dinheiro, comida,
água, tudo mingua por entre becos e pessoas condenadas a desaparecer.
Eles ocupam um território urbano para o qual, inexplicavelmente, não há
Lei de Usocapião. E estão sendo despejados pelos tratores dos pretensos
donos (DUARTE, 2013, s. p.).

Percebe-se, nesse ínterim, que a atualização de senzala para favela


na contemporaneidade é analisada por Conceição com maestria, afinal ela
demonstra, por meio da linguagem e das temáticas, que existe um motivo
por trás dos trânsitos geográficos forçados - seja na deportação de indi-
víduos fronteiriços a nível mundial, seja na violência das disputas que ge-
ram o genocídio indígena por suas terras de direito, seja na gentrificação
urbana que “faveliza” os mais pobres - e que ele tem ligação direta com o
passado colonial que constituiu a história dos povos americanos.
Diante desse processo, a memória de uma ferida ainda aberta re-
percute na geografia, mais especificamente no território, que é alvo de
disputa constante desde os saqueamentos imperiais. Isso fica explícito no
335
trecho de Becos da Memória (2013) que diz que, numa mescla de narrado-
res memorialísticos (Conceição e Maria-Nova),

A cada família que saía, era uma confirmação de que chegaria nossa vez.
Ofereciam duas opções ao morador: um pouco de material, tábuas e alguns
tijolos para que ele construísse outro barracão num lugar qualquer ou
uma indenização simbólica, um pouco de dinheiro. (...) Uma quantia tão
irrisória, que acabava sendo gasta ali mesmo (EVARISTO, 2013, p. 102)

Nessa passagem, é possível enxergar (como afirmou Said) as marcas


literárias da memória do autor, transpassadas, nesse caso, para a narrado-
ra - que se mistura, no texto, com a própria Conceição Evaristo. Maria-
-Nova, apesar da pouca idade, apresenta-nos os problemas de sua comu-
nidade com muita lucidez. A menina via, nessas alternativas desonestas
oferecidas pelos ricos empreiteiros e pelo Estado, uma óbvia falta de con-
sideração com os sujeitos pobres, o que denuncia a separação bem opres-
sora entre um “nós” e um “eles” criada pelo discurso imperialista. Nenhum
morador sabia, exatamente, o que os tratores e homens fariam com seus
terrenos, com seus barracos, com suas vidas. Segundo a personagem

dava a impressão de que nem eles sabiam direito porque estavam erradi-
cando a favela. Diziam que era para construir um hospital ou uma com-
panhia de gás, um grande clube, talvez. As famílias estavam mudando há
um ano, mas tempo antes, já havia a ameaça de tudo que iria acontecer.
(...) Não se sabia se os pretensos donos seriam de uma companhia par-
ticular ou se gente do governo. Vinha o medo. (...) Em época de eleição,
apareciam por lá candidatos a votos e juravam que fariam alguma coisa
por nós. (...) Às vezes ganhavam, quando isto acontecia, a nossa situa-
ção era a mesma, nós éramos os que não ganhavam nunca (EVARISTO,
2013, p. 163 e 165).

Nesse viés, a crítica de Maria-Nova muito se assemelha a de Antô-


nio Bispo (2015). Para ele, independentemente da corrente política com a
qual o Brasil se filia ao longo da história - esquerda ou direita -, segue-se
repetindo os mesmos erros quando se trata de territorialidade e de ques-
tões de raça. Assim, Bispo (2015) afirma que a violência simbólica e literal
contra os afro-pindorâmicos seguiu sendo a mesma, afinal o genocídio do
povo negro e indígena continua sendo feito sob as terras sem que nenhu-
ma intervenção ocorra. Para ele,

o termo Quilombo caiu em desuso, (...). Porém, a criminalização e a violên-


cia contra essas comunidades permaneceram, tendo como alvo seus modos

336
de vida, suas expressões culturais e seus territórios, isto é, as suas formas
de resistência e de auto-organização comunitária contra colonial (p. 26).

Por conseguinte, pesquisar questões como o território, principal-


mente fazendo uso da literatura, pode ser uma forma de resistir aos ataques
neocolonialistas. Sob esse viés, a voz de Conceição reconstrói parâmetros
para os estudos literários, pois é “forjada a ferro e fogo” (EVARISTO,
2013, p. 108), tornando-se essencial para demonstrar as questões de terri-
torialidade. Constata-se que a conceitualização do termo território é mes-
mo complicada, porque envolve vidas, dentro ou fora da ficção, complexas,
marcadas por questões sociais expressivas e determinantes relacionadas
a raízes e a cosmovisões. Nesse sentido, entender o que o território signi-
fica para uma determinada comunidade (ainda que em um romance) é de
extrema importância para o entendimento verdadeiro dessa disputa num
país colonizado. Diante disso, a escrevivência de Evaristo e a obra Becos da
memória são muito relevantes para a temática e para as lutas acerca dela.

Referências
BISPO, Antônio. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília:
Universidade de Brasília, 2015.
DUARTE, E. A. [Orelha do livro]. In: Becos da memória. 2ª edição. Florianó-
polis: Ed. Mulheres, 2013.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 2ª edição. Florianópolis: Ed. Mu-
lheres, 2013.
______. Conceição Evaristo: ‘minha escrita é contaminada pela condição de
mulher negra’. Nexo Jornal. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/
entrevista/2017/05/26/Concei%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-%E2%80%98mi-
nha-escrita-%C3%A9-contaminada-pela-condi%C3%A7%C3%A3o-de-mulher-
-negra%E2%80%99.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In.:
LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber - Eurocentrismo e Ciên-
cias Sociais - Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011.

337
el discurso público y lA nArrAtivA de sAcerdotes
indígenAs mApucHe, en lA región de lA ArAucAníA: unA
mirAdA en perspectivA HermenéuticA interculturAl

Jorge Araya Anabalón1

El análisis hermenéutico intercultural de la identidad en Chile y


Latinoamérica no puede escapar al sustrato religioso. Es en este sentido
que se busca una mirada de verdad dialógica con respecto a los discursos
y narrativas de sacerdotes católicos (indígenas) mapuches, en la región
de la Araucanía. Así, sus relatos y discursos se interpretarán desde la
conflictividad de su experiencia de vida, por los hechos históricos sufridos
desde la dominación del Estado chileno sobre el Pueblo Mapuche y la
pérdida de su territorio. Desde esta mirada, los aportes de Rodolfo Kusch,
en la escucha y la narrativa de los saberes indígenas, complementado con
la hermenéutica de Hans-Georg Gadamer, dan forma a la comprensión
de los discursos y narrativas de estas experiencias, que muestran la falta de
reconocimiento y las injusticias sufridas por los mapuche.
En esta línea, la interpretación de los relatos de los sacerdotes ma-
puches nos permiten comprender la exclusión, el despojo de sus tierras,
la negación de la identidad mapuche, en relación a prejuicios (posiciones
positivas o negativas) en un determinado contexto que, en este caso, está
marcado por relaciones interétnicas atravesadas por una conflictividad y
violencia histórica. La precomprensión de los discursos y narrativa de sacer-
dotes indígenas y las mediaciones en juego, constituyen un acto de com-
prensión que mira al pasado ancestral como riqueza cultural y de verdad
de la “Otra razón” negada; pero teniendo en el presente, al sujeto-autor,
que genera, una fusión de horizontes desde la distancia temporal del sentido.
Es muy importante el relato de los sacerdotes indígenas, cuando ca-
racterizan las imágenes y relaciones interétnica que se han dado entre chi-
lenos y mapuches en diferentes periodos históricos y que han tenido como
resultado la discriminación de esta etnia y su exclusión de la vida política y
cultural de la sociedad chilena. De este modo, dar cuenta de estos testimo-
nios y relatos, sobre la falta de reconocimiento o falso reconocimiento y la
discriminación que se revela, resulta un imperativo ético-moral, dado que
aún hoy persisten dichas imágenes y actitudes, que no permiten valorar la

1 Doctor en Filosofía por la Universidad de Valencia, España. Académico de la Univer-


sidad de La Frontera de Temuco, Chile. E-mail: jorge.araya@ufrontera.cl
339
dignidad del pueblo mapuche e impiden su reconocimiento. Así, se configu-
ra un espacio de búsqueda de la verdad intercultural en el diálogo con otros
saberes que, necesariamente, no son los nuestros y, por ello, permiten construir
un horizonte intercultural común, más allá del sentido clásico.
Desde una perspectiva histórica, el problema que afecta a la socie-
dad mapuche actual tiene como hito el año 1881, con el último levanta-
miento de los mapuche y su derrota militar definitiva frente al Estado de
Chile. El poeta Pablo Neruda (1974, p. 16) refleja en parte el drama de los
mapuches cuando dice:

Si Temuco era la avanzada de la vida chilena en los territorios del sur de


Chile, esto significaba una larga historia de sangre. Al empuje de los con-
quistadores españoles, después de trecientos años de lucha, los araucanos
se replegaron hacia aquellas regiones frías. Pero los chilenos continuaron
lo que se llamó “la pacificación de la Araucanía”, es decir, la continuación de
una guerra a sangre y fuego, para desposeer a nuestros compatriotas de sus
tierras. Contra los indios todas las armas se usaron con generosidad: el dis-
paro de carabina, el incendio de sus chozas, y luego, en forma más paternal,
se empleó la ley y el alcohol. El abogado se hizo también especialista en el
despojo de sus campos, el juez los condenó cuando protestaron, el sacerdote
los amenazó con el fuego eterno. Y, por fin, el aguardiente consumó el ani-
quilamiento de una raza soberbia cuyas proezas, valentía y belleza, dejó gra-
badas en estrofas de hierro y de jaspe don Alonso de Ercilla en su Araucana.

Otro aspecto son los relatos de sacerdotes mapuche, que han tra-
bajado con su pueblo en la evangelización e inculturalización desde una
institución como la iglesia católica, a partir de una vocación religiosa; lo
que resulta extremadamente valiosos, dado el papel que ha ocupado por
siglo dicha institución en América, con todos sus errores y aciertos. En
este sentido, los discursos de los sacerdotes mapuches, también establecen
un dialogo intercultural, que en alguna forma permiten generar las con-
diciones para que el sujeto moral tenga siempre la posibilidad de someter
a crítica su vida y sus acciones, con una actitud reflexiva y de sospecha
frente a las tradiciones que la están constituyendo. De tal forma que le
permita construir críticamente un nuevo espacio, que se sitúa en forma
distinta no-tradicional para rearticular el encuentro con el “otro”.
En consecuencia el reconocimiento es el principio fundamental de una
ética intercultural donde la dignidad humana es un valor atribuido a cada
persona y no puede ser sustituido por otros valores teniendo las caracterís-
ticas de ser intersubjetivo, donde el sujeto es superado por el otro y por los
otros, haciéndose la sociedad más humana e inclusiva (ARAYA, 2009, 2010).

340
En síntesis, los relatos de los sacerdotes mapuches, tocan diferentes
aspectos de las relaciones conflictivas entre Mapuches y chilenos, y dan
cuenta de una realidad que debe ser transformada, por las injusticias y
exclusiones que se producen y el sufrimiento que, finalmente, tiene como
resultado la violencia y el odio. Así, la comprensión y reflexión que nos
dejan los distintos relatos es que para acoger los saberes y razones, las
formas de pensar y ver la realidad según la visón mapuche, es necesario
un principio vinculante que establezca un proceso de construcción de vo-
luntades y criterios de simetría, que cambie el discurso de dominación que
produce una comunicación distorsionada. Así, la aceptación de diferentes
miradas culturales permitirá recomponer el diálogo, que es una poten-
cialidad que desarrollan los individuos autónomos y autoreflexivos. Este
punto, es un principio que sustenta la justicia intercultural, que exige que
las personas pertenecientes a diferentes culturas, sean consideradas como
seres dotados de competencia comunicativa, y capacidad de autonomía,
en otras palabras, se necesita de una ética intercultural (ARAYA, 2010).
Por consiguiente, una reflexión filosófica intercultural parte de una com-
prensión dialógica de las culturas, lo que significa aprender nuevos códi-
gos culturales reconociendo la presencia de otras tradiciones culturales y
prácticas sociales distintas a las propias.
Uno de los obstáculos principales para una ciudadanía intercultural,
en el caso de Chile, está representado por la ausencia de reconocimiento
jurídico-político del pueblo mapuche y la implementación de políticas cul-
turales de asimilación y segregación por medio del aparato estatal, con el
objetivo de justificar la homogeneidad sociocultural del Estado Nacional.
De este modo, se construye una identidad instrumental que excluye la
diferencia interna en beneficio de una nación homogénea en el ámbito
lingüístico, racial y religioso. En la actualidad el Estado-nación de Chile,
aunque ha perdido su posición monopolista a causa de la globalización y
de ciertas leyes de tolerancia, sigue ejerciendo regulación sobre las mino-
rías por medio de la educación, la economía, la salud y la religión.

Referências
ARAYA, J. Ética intercultural y reconocimiento dialógico. Una mirada a la dig-
nidad del otro: Conflicto entre el estado de Chile-Pueblo Mapuche. Revista chi-
lena de Derecho y Ciencia Política, 1 (1) 61-78. 2010.
______. Una mirada Filosófica acerca de la justicia intercultural. En S. Cárcamo
(Ed.) Justicia social y diversidad: Articulación desde una perspectiva intercul-
tural (pp. 67-79). Temuco, Chile: Ediciones Universidad Católica de Temuco. 2009.
341
BEUCHOT, M. Interculturalidad y derechos humanos. México: Siglo XXI/
UNAM. 2005.
______. Tratado de hermenéutica analógica. México: Facultad de Filosofía y
Letras de la UNAM. 1997.
CARRASCO, I. Literatura de contacto interétnico. Estudios Filológicos, 27,
107-112. 1992.
______. Etnoliteratura mapuche y literatura chilena: relaciones. Actas de Len-
gua y Literatura Mapuche, 4, 19-27. 1990.
CURIVIL PAILLAVIR. La fuerza de la religión de la tierra. Una herencia de
nuestros antepasados. Santiago de Chile: Ediciones U. Católica C. Silva Henrí-
quez. 2007.
DE VALLESCAR, D. Cultura, multiculturalismo e interculturalidad. Hacia
una racionalidad intercultural. Madrid: Perpetuo Socorro. 2000.
FORNET-BETANCOURT, R. Estudios de filosofía latinoamericana. Méxi-
co: UNAM. 1992.
______. La pregunta por la filosofía latinoamericana como problema filosófico.
Diálogo Filosófico, 5, 52-71. 1990.
KUSCH, R. Una lógica de la negación para comprender América. [Obras
completas, Tomo II]. Rosario: Fundación Ross. 2007 [1973].
______. La negación en el pensamiento popular. [Obras completas, Tomo
II]. Rosario: Fundación Ross. 2007 [1975].
NERUDA, P. Confieso que he vivido. Memorias. Barcelona: Editorial Seix
Barral S.A. 1974.
RAMA, A. Transculturación narrativa en América Latina. México: Ed. Siglo
XXI, 3ª ed. 1987.
RICOEUR, P. La lectura del tiempo pasado: memoria y olvido. Madrid: Uni-
versidad Autónoma Madrid. 1999.
______. Configuración del tiempo en el relato histórico. Tiempo y narración.
Tomo I. Ediciones cristiandad. 1987.

342
As nArrAtivAs do tAmbor como práticAs decoloniAis

Liliam Ramos da Silva1


Richard Serraria

O desafio crescente de se repensar a educação dentro de uma pers-


pectiva exclusiva de caráter ocidental oportuniza o ingresso de novas
epistemologias em espaços tradicionalmente conservadores como é o caso
das universidades latino-americanas. Sejam as fundadas em regiões ainda
em situação colonial ou aquelas instauradas quando o positivismo regia o
rumo do pensamento ocidental, durante muitos anos as universidades dis-
seminaram o conhecimento racional e científico como único e verdadei-
ro, rechaçando práticas e conhecimentos tradicionais de outros povos que
não aqueles que se encontravam no espaço europeu. Atualmente, teóricos
e intelectuais vêm pensando em formas outras de produzir e divulgar o
conhecimento de modo a contemplar o diálogo epistêmico, respeitando as
verdades e as ciências de cada povo e cultura, articulando formas práticas
de aplicação de tais conhecimentos no âmbito acadêmico.
Na América Latina, vivemos em uma tentativa de redefinição coti-
diana como sujeitos em luta pelo direito à vida e pela legitimidade de nos-
sas formas de aprender e pensar. Catherine Walsh, em sua reflexão sobre
as Pedagogías Decoloniales (2013), dá o tom da conversa principalmente a
partir do século XXI, onde a crise civilizatória ocidental em conjunto com
o sistema econômico capitalista, mais a crise da colonialidade do poder,
criam rachaduras e rupturas na ordem e nos padrões de poder. Embo-
ra em estado de “vigília epistêmica”, é possível desenvolver estratégias
permanentes de contranarrativas na perspectiva de nos reinscrevermos
teórica e politicamente com base em agendas de reinvenção de nós mes-
mos: os caminhos que evocam a memória longa apresentam estratégias,
práticas e metodologias/pedagogias de luta, de rebeldia, de cimarronaje/
aquilombamento, de insurgências na organização que povos originários e
diaspóricos empregaram para resistir, transgredir e subverter a domina-
ção para seguir sendo, sentindo, fazendo, pensando e vivendo decolonial-
mente apesar do poder colonial. Tratam-se, portanto, de

1 Professora em Instituição de Ensino Superior - UFRGS.


E-mail: liliamramos@gmail.com
343
pedagogías que animan el pensar desde y con genealogías, racionalidades,
conocimientos, prácticas y sistemas civilizatorios y de vivir distintos. Pe-
dagogías que incitan posibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer, pen-
sar, mirar, escuchar y saber de otro modo, pedagogías enrumbadas hacia y
ancladas en procesos y proyectos de carácter, horizonte e intento decolo-
nial (WALSH, 2013, p. 28).

O discurso decolonial surge como processo de re-humanização fren-


te às estruturas materiais e simbólicas que assediam a humanidade dos
seres humanos e promove um (des)aprender daquilo que foi imposto e
assumido para voltar a reconstituir o ser. A pedagogia decolonial é um
discurso sobre a colonialidade e a (des)colonialidade do ser conectada ao
fazer: não basta que os discursos circulem na academia, é necessário que
docentes desenvolvam práticas como pedagogias que fazem questionar e
desafiar a razão única da modernidade ocidental e do poder colonial que
ainda se mantém presente.
Com a reserva de vagas de direito para cotistas étnico-raciais, obri-
gatória no Brasil desde 2012, quando o Superior Tribunal Federal decidiu
que as cotas são constitucionais e totalmente necessárias como reparação
da violência da colonização e, por consequência, da escravidão, que privou
sujeitos de ocuparem espaços de produção de conhecimento, a academia
precisa se reinventar para atender às demandas de alunos cotistas por
histórias e saberes outros. Para Walsh (2013), movimentos de reapren-
dizagens sobre as relações humanas permitem que sujeitos se localizem
pedagogicamente com suas reinserções e formas de pertencimento. Expe-
riências fundamentadas em conversas, no fazer coletivo e na aprendiza-
gem entre pares promovem a troca de conhecimento fazendo da universi-
dade um lugar plural e democrático de fato.
Recuperar a memória coletiva a partir do resgate da ancestralidade e
a reafirmação do que a tradição ensina é uma das características do pensa-
mento decolonial. Nesse sentido, apresentaremos duas práticas decoloniais
desenvolvidas na/fora da universidade: a oficina de contação de histórias
O mito de Mackandal cuja proposta é uma das ações práticas do grupo de
pesquisa Vozes negras no romance hispano-americano e a Pedagogia do Sopapo,
prática derivada de pesquisa de doutorado sobre o tambor sopapo. Tratam-
-se de narrativas do tambor como produção de conhecimento da cultura
negra na América Latina levadas para a comunidade externa à universidade
e que possibilitam a construção de metodologias produzidas nos contextos
de luta, de marginalização, de resistência e (re)existência.
Em seu artigo Decolonizar la universidad, Restrepo (2018) identifica
três planos pelos quais é possível vislumbrar a colonização da universi-
344
dade: o primeiro, seguindo a linha de pensamento de Foucault, diz que
a universidade está colonizada pelos sistemas científicos e pelo conheci-
mento em sua pretensão de sistematicidade e de verdade; o segundo, na
perspectiva da modernidade/colonialidade, atesta que a universidade é o
dispositivo privilegiado da colonialidade do saber, com o qual se natura-
liza seu eurocentrismo; o terceiro dá ênfase em como o estabelecimento
universitário se encontra inscrito em uma geopolítica do conhecimento
articulada como um aspecto do sistema mundo:

En la universidad han sido historicamente dominantes los sistemas cien-


tíficos y, en general, los conocimientos expertos. En consecuencia, los co-
nocimientos eruditos y los saberes sometidos han estado fuera de lugar. De
ahí que solo pueden ser considerados en el ámbito universitario cuando
aparecen como “objetos” de estudio para una disciplina, cuando son disec-
cionados, objetivizados e incorporados por conocimientos expertos dentro
de protocolos académicos estabelecidos. La universidad ha sido coloniza-
da por los sistemas científicos y por sus conocimientos expertos. Y lo ha
sido desde hace ya tanto tiempo que la reproducción de estos sistemas
y conocimientos pareciera definir en gran parte a la universidad misma
(RESTREPO, 2018, p. 10-11).

A partir dessas constatações, o antropólogo colombiano propõe três


estratégias para decolonizar a universidade: a intervenção genealógica, o
pensamento decolonial e a provincialização da Europa. No caso da inter-
venção genealógica, trata-se de repensar os conhecimentos disseminados
através do espaço universitário e que foram assumidos como políticas da
verdade, sepultando conhecimentos outros classificados como inferiores e
subalternos, saberes “menores”, portanto. Permitir condições de diálogo
e abertura aos saberes inferiorizados é uma proposta de decolonização, o
que ocorre, por exemplo, na disciplina LET02162 – Literatura afro-lati-
no-americana, ofertada pelo Departamento de Línguas Modernas desde
2018 de forma eletiva e aberta a alunos de todas as áreas da universidade
e que disponibiliza, ainda, vagas via extensão para interessados externos
à comunidade universitária. Sob regência da pesquisadora Liliam Ramos,
a disciplina apresenta um panorama da autoria negra latino-americana. A
disciplina conta também com a participação do cancionista Richard Ser-
raria que apresenta o tambor sopapo em uma perspectiva pedagógica, ins-
trumento que assume o papel de griô na transmissão da história do povo
negro sul-rio-grandense.
Mackandal e Sopapo, Vodu e Batuque, orixás e tambor. Assim rea-
firmam-se práticas de resistência negra perante tentativas de destruição

345
e escamoteação, presentes no período colonial e vigentes em boa medida
ainda hoje em formas reinventadas de violência racial. Tratam-se de pe-
dagogias questionadoras e desafiantes da razão ocidental moderna que
retornam à ancestralidade negra para construir novos conhecimentos.
Pretendemos, através das pedagogias decoloniais descritas neste artigo,
enfrentar o racismo que legitima relações dominadoras europeias, instau-
rando práticas contra-hegemônicas que possibilitam o cruzamento de vo-
zes na constituição cultural latino-americana.
Esta explanação se justifica nas VIII Jornadas O Pensamento de
Rodolfo Kush na medida em que, se estivesse vivo, o filósofo da América
profunda teria satisfação em perceber a mudança – ainda que gradual –
nos currículos das universidades, cujos professores comprometidos com
a proposta decolonial aceitam as transformações culturais que aceitam
novas formas de pensar e de dialogar sobre os saberes pluriculturais que
vêm chegando timidamente ao espaço acadêmico.

346
Referências
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Pau-
lo: 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-
-Asiáticos, 2001.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
LAROCHE, Maximilien. Verbete Mackandal. In: BERND, Zilá. Dicionário de
figuras e mitos literários das Américas: DFMLA. Porto Alegre: Tomo Edito-
rial/Editora da Universidade, 2007. p. 387-394.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo
Negro, 2004.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. N-1 Edições, 2018.
MAESTRI FILHO, Mário. Quilombos e quilombolas em terras gaúchas.
Porto Alegre: Escola superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Caxias do
Sul: Universidade de Caxias do sul, 1979.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina.
Clacso. 2005.
RESTREPO, Eduardo. Decolonizar la universidad. In: BARBOSA, Jorge L. e
PEREIRA, Lewis. Investigación Cualitativa Emergente: reflexiones y casos.
Sincelejo (Colômbia): CECAR, 2018.
WALSH, Catherine. Lo pedagógico y lo decolonial. Entretejiendo caminhos. In:
WALSH, Catherine (org). Pedagogías decoloniales. Prácticas insurgentes de
resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68.
______. Interculturalidad, conocimientos y decolonialidad. In: Espacios, tempos
y sujetos de la multi(inter)culturalidad. Revista Signo y Pensamiento, v.24,
n.46, 2005. p.39-50.

347
A AncestrAlidAde em sAlA de AulA: livros
e documentários Ameríndios como recursos didáticos

Luana Barth Gomes1


Cledes Antonio Casagrande2

Introdução

O presente trabalho aborda o uso de diferentes recursos didáticos


em sala de aula como opções para trabalhar a temática indígena. No con-
texto atual, observa-se que os povos ameríndios estão se evidenciando,
reivindicando pelo seu espaço e pelo seu protagonismo no que se refere a
falar sobre as suas culturas, narrativas e tradições. Em contraponto, tam-
bém há outra questão importante provocada pela cultura ocidental atra-
vés de representações, falas, artefatos culturais e midiáticos que tornam o
indígena contemporâneo invisível aos olhos da sociedade, já que os retrata
como seres do passado, reproduzindo velhos estereótipos.
Na escola ainda há livros didáticos reprodutores de imagens e de
textos que denigrem ou inferiorizam os povos indígenas, os tratando
como seres do passado. Porém, alguns movimentos vêm sendo feitos na
direção de retratar mais fielmente a temática indígena.
O objetivo central desse trabalho é realizar um levantamento de
materiais (livros e documentários) que retratem a temática ameríndia de
forma a subsidiar melhor os educadores e as escolas, visando a promoção
de uma abordagem que evidencie o protagonismo indígena e que promova
a identificação do educando com sua ancestralidade.

Metodologia

Esta pesquisa possui caráter qualitativo, centrado na análise docu-


mental. A abordagem qualitativa permite a análise das produções biblio-

1 Doutoranda em Educação pela Universidade La Salle/Canoas com bolsa CAPES/


PROSUC. Mestre em Educação e Pedagoga pela UFRGS. Professora dos anos iniciais
de uma escola privada de Porto Alegre. E-mail: luanabarth@yahoo.com.br
2 Doutor em Educação pela PUCRS. Professor do PPG em Educação da Universidade
La Salle. E-mail: cledescasagrande@gmail.com
349
gráficas e audiovisuais e a evidenciação de sua importância no planejamento
das atividades voltadas à sala de aula. Conforme Chizzotti (2003, p. 222):

Diferentes tradições de pesquisa invocam o título qualitativo, partilhando


o pressuposto básico de que a investigação dos fenômenos humanos, sem-
pre saturados de razão, liberdade e vontade, estão possuídos de caracterís-
ticas específicas: criam e atribuem significados às coisas e às pessoas nas
interações sociais e estas podem ser descritas e analisadas [...].

De acordo com Cellard (2008, p. 298) “[...] a pesquisa documental


exige, desde o início, um esforço firme e inventivo, quanto ao reconheci-
mento dos depósitos de arquivos ou das fontes potenciais de informação,
e isto não apenas em função do objeto de pesquisa, mas também em fun-
ção do questionamento”. A intenção é sugerir recursos didáticos voltados
para o ensino da temática indígena para que sirvam como aportes para o
trabalho em sala de aula.
Para a realização desse estudo, foram selecionados recursos didáti-
cos que abordam a temática indígena. Houve um levantamento indicando
cinco obras de literatura infanto-juvenil de autoria ameríndia e dois ví-
deos do projeto “Vídeo nas Aldeias”, com o intuito de servirem como base
para o planejamento dos educadores e para fundamentarem a discussão
sobre os povos originários da América em sala de aula.

O fedor de Kusch e as narrativas indígenas

O autor Rodolfo Kusch (2007) discute alguns conceitos em sua


obra “América Profunda”, onde aborda o choque cultural entre os pen-
samentos ocidental e indígena. O autor fala que se trata de uma aversão
irremediável que cria marcadamente a diferença entre a suposta pure-
za por nossa parte (enquanto não indígenas) e um fedor tácito de todo
americano (enquanto indígenas). Na verdade, o fedor entra em todos os
nossos juízos sobre a América, de tal modo que sempre vemos a América
com um rosto sujo que deve ser lavado para afirmar nossa convicção e
nossa segurança.
Outros conceitos que são abordados por Kusch (2007) envolvem o
estar aí e o ser alguém. O estar aí associa-se aos ameríndios, é estático, en-
volve a contemplação, o dispor-se ao incerto. Já o ser alguém se refere aos
ocidentais, é dinâmico, afeta o mundo, relaciona-se com a supressão da ira
divina e a criação do mundo material.
Há um movimento por maior protagonismo na transmissão de co-
nhecimentos sobre as culturas e narrativas indígenas por parte dos povos
350
ameríndios, que através do uso das palavras vem reivindicando e ganhan-
do seu espaço no cenário da literatura brasileira. Dar a palavra aos indí-
genas (estar aí) incomoda, pois mexe com o que até então foi dado pelos
ocidentais (ser alguém) referente à imagem, às histórias e aos costumes dos
povos originários. Esse movimento traz à tona o que estaria até então à
margem, fora dos muros da cidade.
O fedor que acompanha a literatura indígena, se opõe a pureza, inco-
moda, traz inquietações. Kusch (2007, p. 253) fala que o fedor se dá como
um retorno à interioridade, como quem se assume ao fedorento incons-
ciente para começar tudo de novo.
Nossa ancestralidade ameríndia ressurge a partir do movimento
proposto pelo fedor, ou seja, é a partir desse voltar-se para dentro das cul-
turas formadoras de nosso país que conseguimos perceber os elementos
que nos constituem. É o mero estar com sua contemplação que desvela a
sabedoria dos nossos antepassados indígenas.

Protagonismo indígena: saberes indígenas


e os diferentes recursos didáticos

Atualmente presenciam-se diversos movimentos, entre eles está o


protagonismo ameríndio. Segundo Bergamaschi (2010, p. 165) um dos
aspectos mais interessantes é:

[...] a voz dos próprios indígenas contando sua história e seu modo de
vida. As publicações produzidas hoje por intelectuais e professores indíge-
nas oferecem possibilidades singulares para estudo na escola e a relativa
quantidade de publicações de escritores indígenas no Brasil, produzidas na
atualidade por dezenas de etnias.

Houve aumento das produções literárias escritas pelos próprios in-


dígenas nos últimos anos, momento em que as diferentes etnias tomaram
para si o dever de apresentar e representar suas comunidades. Muitos
autores ameríndios reivindicaram o papel de transmitir suas histórias e
culturas, falando a partir de um olhar que vem de dentro de seus povos.
A exemplo disso, Daniel Munduruku nos traz diversas narrativas
e crônicas sobre suas experiências dentro e fora da aldeia, suas obras são
vencedoras de vários prêmios, inspiram e encantam muitas crianças e jo-
vens. Esse autor traz como contribuição várias obras, como: “Memórias
de Índio: Uma Quase Autobiografia” e “O Banquete dos Deuses: Conversa
sobre a Origem e a Cultura Brasileira”.

351
Também há a escritora Eliane Potiguara, que é poeta, professora,
ativista e empreendedora. Fundou a Rede Grumin de Mulheres Indíge-
nas. É autora de várias obras, entre elas são “A Cura da Terra” e “Metade
Cara, Metade Máscara”.
Por fim, trago Aílton Krenak, que é jornalista, produtor gráfico e
líder indígena. Foi alfabetizado aos 18 anos. A partir da década de 80,
passou a dedicar-se exclusivamente à articulação do movimento indíge-
na no Brasil. É autor de diversos livros, entre eles “Ideias para adiar o
fim do mundo”.
As obras desses e de outros escritores ameríndios vêm sendo uti-
lizadas nas escolas, retratando de forma mais fiel o tema e apresentando
a realidade e as narrativas dos diversos povos indígenas existentes no
Brasil.
Há um projeto brasileiro importante no reconhecimento e na pro-
moção da autoria indígena que é o “Vídeo nas Aldeias”3. Existente desde
1986, este dedica-se à formação de cineastas indígenas e a produção
e difusão de seus filmes. Entre as produções, há o documentário “Mo-
koi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada” (2008) retrata
o dia-a-dia de no contexto atual duas comunidades Mbyá Guarani no
Rio Grande do Sul: a Tekoá Anhetenguá (Aldeia Verdadeira) e a Tekoá
Koenjú (Aldeia Arvorecer).
Já o documentário “Tava, a casa de pedra” (2012) traz o registro e a
interpretação das memórias e das narrativas Mbyá Guarani acerca das
Reduções Jesuíticas, traçando um panorama entre três países: Brasil, Pa-
raguai e Argentina.
Os diferentes recursos didáticos apresentados nessa seção, carre-
gam consigo a identidade do indígena, seus costumes e suas formas de
vida. Além disso, trazem algo mais: o fato de as narrativas serem contadas
a partir da voz dos protagonistas dessa história.

Considerações finais

Nos últimos anos, houve avanço na produção de recursos didáticos


educacionais mais condizentes à temática indígena. Porém, ainda é ne-
cessário que tenha maior investimento do educador em sua formação, no
planejamento e na organização de atividades para além das datas come-
morativas, para que o ensino da temática indígena supere as referências
distorcidas e as representações estereotipadas.
3 As informações sobre o projeto “Vídeo nas Aldeias” foram retiradas do site: http://
videonasaldeias.org.br/loja/sobre/ (acesso em 21/04/2019).
352
É fundamental trazer as vozes ancestrais dos ameríndios para dentro
das salas de aula não indígenas. O protagonismo indígena traz consigo
essa premissa de reivindicar para si a fala e a reprodução de suas histórias
e culturas, partindo da oralidade e chegando às narrativas escritas.
Não se pode negar que há um choque de concepções entre as cul-
turas indígena e ocidental, entre o estar aí e o ser alguém, entre o fedor e a
pureza. Kusch (2007, p. 315) nos traz que “evidentemente estamos equivo-
cados en Sudamérica, creemos que debemos despojarnos del folk, cuando,
en verdad, hay que hacer lo contrario, es preciso asumir lo indígena, eso
es autenticidad y, ¿quién es tan valiente como para asumirla? Realmente,
muy pocos”.
Por mais que possamos esconder ou renegar nossa descendência ame-
ríndia, ela reaparece para nós lembrando-nos essa origem. Contemplando
esses ensinamentos, encantamentos e as trocas entre as culturas, a escola
se torna então um espaço que cultiva a ancestralidade de seus educandos.

353
Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos Indígenas e Ensino de História: a
Lei Nº 11.645/2008 como caminho para a interculturalidade. In: BARROSO,
Vera Lucia Maciel et al. (org.). Ensino de História: desafios contemporâneos.
Porto Alegre: Est: Exclamação: ANPUH, 2010, p. 151- 166.
CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J. et al. A pesquisa quali-
tativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008.
CHIZZOTTI, Antonio. A Pesquisa Qualitativa em Ciências Humanas e Sociais:
Evolução e Desafios. In: Revista Portuguesa de Educação, v. 16, n. 2, pp. 221-
236, 2003.
KRENAK, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2019.
KUSCH, Rodolfo. Obras Completas: Tomo II. Rosário: Fundación A. Ross, 2007.
______. Obras Completas: Tomo IV. Rosário: Fundación A. Ross, 2007.
MOKOI TEKOÁ PETEI JEGUATÁ – DUAS ALDEIAS, UMA CAMI-
NHADA. Direção: Ariel Duarte Ortega, Germano Beñites e Jorge Ramos
Morínico. Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2008. Coleção Cineastas Indígenas
Mbyá Guarani. DVD (63 minutos). Disponível em https://vimeo.com/on-
demand/duasaldeias
MUNDURUKU, Daniel. Memórias de índio: uma quase autobiografia. Porto
Alegre: Edelbra, 2016.
______. O Banquete dos Deuses: conversa sobre a origem e a cultura brasilei-
ra. São Paulo: Global, 2009.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.
______. A Cura da Terra. São Paulo: Editora do Brasil, 2015.
TAVA, A CASA DE PEDRA. Direção: Ariel Duarte Ortega, Vicent Carelli,
Patrícia Ferreira (Keretxu), Ernesto Ignácio de Carvalho. Olinda: Vídeo
nas Aldeias, 2012. Coleção Cineastas Indígenas Mbyá Guarani. DVD (78 minu-
tos). Disponível em https://vimeo.com/ondemand/tavacasadepedra

354
A músicA nA AméricA lAtinA como AntAgonismo
Ao mercAdo culturAl

Maicon Dorigatti1

Culturalmente, a dependência da América Latina de dispositivos


estrangeiros, vindos dos grandes centros, é histórica. A partir da coloni-
zação das Américas, foram trazidos e impostos inúmeros elementos cul-
turais que, aqui somados, em conjunto com o processo de estruturação e
de organização de uma sociedade, fizeram parte da construção cultural
local, principalmente pelas influências endógenas, marcadamente nas
características europeias e advindas da exploração escravocrata, mono-
cultora e latifundiária.
Não apenas como expressão artística e cultural, mas como escape e
resistência perante modelos opressores e normativos, frutos da dominação,
de uma hegemonia do poder e de dispositivos de controle de uma indústria
cultural, a arte se promove/destaca a embater tais relações de soberania e
controle. Por esse motivo, é subvertida e utilizada como ferramenta de ma-
nutenção e propagação de um pensamento acrítico e superficial, pela manu-
tenção do status quo e a maquinação das populações pelo mercado cultural.
Se as artes externam uma contraposição quanto à visão e leitura do
mundo, é possível que dela se aproprie sua essência por modelos norma-
lizadores, sendo passível de reflexão a maneira como essas práticas foram
instigadas em suas leituras do mundo e interação com outras culturas.
As perpetuações dos modelos de poder ocidentais, advindos da do-
minação eurocêntrica e estadunidense, fizeram com que artistas, grupos e
coletivos culturais sofressem com um processo de desintegração. A alea-
toriedade e engodo da realidade imposta por uma mídia de massa regula-
da por grupos de interesse internacionais e hegemônicos locais, com fins
de manipulação e distração de uma população acrítica.
A arte é transformada em fetiche, pelo consumo e entretenimento
das massas. A dimensão normativa da indústria cultural produz objetifi-
cação e opacidade. A publicidade, o marketing e as ferramentas de geren-
ciamento mercadológico se confundem técnica e economicamente com os

1 Licenciado em Música, Mestrando em Educação PPGEdu. Universidade de Caxias


do Sul (UCS). Integrante do Grupo de Pesquisa GPFORMA Serra. Bolsista CAPES/
PROSUC. E-mail: dorigatti.maicon@gmail.com
355
produtos gerados a partir da concepção do objeto artístico. São processos
já instaurados e reguladores do comportamento dos indivíduos - como
procedem e a partir do que procedem. A manipulação e a distração dos
veículos midiáticos são triunfantes, sua influência sobre o corpo o e pen-
samento - pensamentos neoliberais que mantém o discurso vigente do
mercado cultural (TREVISAN e ROSA, 2018, p. 432).
Conforme Kusch (2007), a perspectiva cultural latino-americana
está dividida em dois grandes polos. De um lado está a sociedade capita-
lista envolvida em um sistema estruturado hierarquicamente por modelos
de mercado e uma internacionalização cultural. Do outro estão grupos
que preservam suas raízes e carregam com ressentimento um folclorismo
exacerbado. Nesse composto, “[...] están los intelectuales y los artistas
que no saben cómo buscar su propia voz en la inmensidad de influencias,
y que concluyen por no crear nada” (KUSCH, 2007, p. 98).
Nosso conceito de cultura é algo exterior, concebido pelo ocidenta-
lismo eurocêntrico. A razão de ser e estar, “su manera de comer, su forma
de pensar, sus costumbres, su relegión, o incluso su falta de religión [...]
y es curioso cómo nosotros, como classe media, no nos sentimos muy
comprometidos com ninguna clase de cultura” (KUSCH, 2007, p. 99). Isso
ocorre porque nossa principal atividade social não é cultural, mas econô-
mica. Como sociedade de consumo, tudo se finda em adquirir, e a própria
cultura se torna consumo: livros, quadros, discos, filmes etc.
Kusch (2007) fala que o conceito do belo foi utilizado pela burguesia
para permitir que a arte se transformasse em objeto de consumo, de am-
biência e adorno. “La burguesia crea museos, salas de concierto, o habla de
eternidad y universalidad sencillamente para ratificar que arte es materia
de consumo y no de creación” (KUSCH, 2007, p. 101).
Sendo um sistema operante dependente do mercado, qualquer fim
artístico que não vise a participação econômica é intentado apagar-se.
Prefere-se uma representação hegemônica e “universal” da cultura, que
faça parte dos padrões do mercado, do que sua representatividade identi-
tária. “Evidentemente la burguesia teme ver su propia miseria y la cultura
revoluciona la máscara que se ha colocado” (KUSCH, 2007, p. 105).
Embora a América Latina tenha sofrido com a arbitrariedade de
países soberanos, suas manifestações culturais se constituíram e se man-
tiveram tanto num aspecto de preservação de suas práticas, quanto pela
ressignificação de elementos migrados, esses muitas vezes se utilizando
de abordagens de contracultura em suas performances.
Dentre as expressões culturais presentes na América Latina, aqui
focando na música, se identifica inúmeras manifestações artísticas em suas

356
tradições, retratando um universo extremamente rico de saberes, habili-
dades e conhecimentos populares.
Ao mesmo tempo, enquanto região influenciada pelos processos
prevalentes e numa perspectiva de globalização apresenta expressões que
como em todo o mundo, refletem o impasse entre linguagens artísticas que
manifestam a cultura de um povo e são assimiladas por ele como tal, e uma
música de difusão internacional que não tem necessariamente uma preocu-
pação com a estética de uma região ou povo específico (NEVES, 1981).
No processo de desenvolvimento ocorrido na música europeia, ao
passar de cada século os sistemas técnicos, estéticos e etnomusicológicos
se sucederam de forma quase natural, baseados em ampla literatura teó-
rica, textos e tratados, em que cada inovação correspondeu a uma neces-
sidade, cada característica valeu a uma época, em mais de dez séculos de
registro histórico não existem mistérios ou acidentes, se não um enrique-
cimento gradual e um maior conhecimento do mundo (CARPENTIER,
1983, p. 7). Dessemelhante, a música na América Latina não se baseia num
processo tão ordenado de construção. Devoto (1983, p. 21 e 22) expõe que,

cuatro capas que, si no llegan macánicamente a determinarla, por lo menos


condicionan la expresión musical latinoamericana: un primer elemento in-
dígena, sobre el que se implanta el aporte de los conquistadores y coloni-
zadores hispánicos; um tercer elemento, africano, que fue llegando durante
la Colonia, y un elemento europeo (incluso hispánico) que se agrega desde
que las nuevas nacionalidades abren sus puertas a la inmigración.

Estes processos que influenciaram as expressões latino-americanas,


pelos seus aspectos não elitistas e distantes de um ambiente tido como
acadêmico/erudito, caracterizaram os fundamentos das artes populares.
Diferente de uma arte erudita que necessita de uma validação, a assinatura
de um artista reconhecido por seus pares, pela crítica e pelas instituições
artísticas, a arte popular produzida fora do circuito oficial por indivíduos
que não dialogam diretamente com questões da história da arte, nem do
mercado da arte, costumam ter raízes étnicas ou regionais e surgir de for-
ma espontânea no seio das comunidades. Estas representações populares
dialogam de forma diversa com as expressões culturais latino-america-
nas. São práticas relacionadas a uma rica pluralidade cultural e muitas
vezes vão contra a normatividade operante eurocêntrica e estadunidense.
Devoto (1983, p. 33) destaca a diversidade existente nestes contextos lati-
no-americanos em que, “la expresión musical latinoamericana cuenta com
un potencial de singular riqueza por beneficiar de tradiciones diferentes:
además de todo lo producido por América [...] todo lo producido por
357
Europa le pertenece, y es [...] legítimo para los latinoamericanos emplear
técnicas y estéticas”.
Pela pluralidade que lhe é característica e que lhe confere uma his-
tória ao mesmo tempo infeliz e cerceada, mas também rica em represen-
tatividade, as práticas musicais populares têm o poder de expressar o que
de melhor representa a América Latina: uma cultura expressiva, criativa,
representativa e crítica.
Pensar nessas práticas culturais faz com que se reflita sobre sua
continuidade, processos que se constituem e sobrepõem, conflituando ou
não com o mercado cultural e as expressões tidas como identitárias locais.
O grupo que faz uma música tida como originária latino-americana, tem
em sua constituição muitas relações derivadas da colonização e mantidas
ou ressignificadas contemporaneamente. Isso não faz com que esta música
possua necessariamente um caráter ativista ou político como aspecto de
resistência às hegemonias, mas se pressupõe que já seja um tipo de anta-
gonismo num aspecto de preservação cultural perante as relações domi-
nantes da indústria fonográfica2. Kusch (2007, p. 105) escreve que

una cultura americana no ha de consistir en ver alguna vez un cuadro


y decir que ese cuadro es americano. Lo americano no es una cosa. Es
simplesmente la consecuencia de una profunda decisión por lo americano
entendido como un despiadado aquí y ahora y, por onde, como un enfren-
tamiento absoluto consigo mismo. La cultura americana es ante todo un
modo: el modo de sacrificarse por América (KUSCH, 2007, p. 105).

A arte como coisificação, tratada como algo quantitativo – visto a


estrutura do mercado que lida e expõe números para justificar o que é
“sucesso” –, não representa o que de fato pode constituir o fazer artístico,
suas características, peculiaridades e virtuosismos. Sua expressão e repre-
sentação advêm de práticas e saberes sociais, e é somente após isso que a
indústria se apropria para seus fins corporativos.
Essa criticidade faz parte da visão do artista que não faz arte para
consumo. Que entende que a arte ultrapassa o conceito da obra e se es-
tende ao todo, que ela é a expressão de sua ânsia e inquietude em fazê-la.
A diligência parte de fazer com que essa visão encontre entendimento em
outras instâncias, que possibilite uma consciência latino-americana que
valorize sua produção e os aspectos que estão a ela associados, e o quanto

2 A indústria fonográfica é formada por empresas especializadas na produção de artistas


e distribuição de músicas, relevando aspectos de mercado que visam principalmente o
lucro, tratando a música como investimento e capital.
358
independente ela pode ser do mercado cultural normatizado e vigente, em
seu próprio meio sociocultural. Essa ampliação da visão e da experiência
artística ecoa e reflete na esfera dos saberes populares e acadêmicos.

Referências
CARPENTIER, Alejo. América Latina en la confluencia de coordenadas histó-
ricas y su repercusión en la música. In: ARETZ, Isabel. América Latina en su
música. 3. ed. México: Siglo Veintiuno, 1983. p. 7-19.
DEVOTO, Daniel. Expresiones musicales: sus relaciones y alcance en las clases
sociales. In: ARETZ, Isabel. América Latina en su música. 3. ed. Mexico: Siglo
Veintiuno, 1983. p. 20-34.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas. Tomo III. Rosário-Ar.: Editorial Funda-
ción Ross, 2007.
NEVES, J, M. Música Contemporânea Brasileira. 2. ed. São Paulo: Ricordi
Brasileira, 1981.
TREVISAN, Amarildo Luiz; ROSA, Geraldo Antônio da. Indústria cultural,
biopolítica e educação. Pro-posições, Campinas, v. 29, n. 3, p.423-442, 2018.

359
pontos de contAto entre o pensAmento
de rodolfo KuscH e o Animismo nA literAturA

Marcos Lampert Varnieri1

O presente texto estabelece pontos de contato entre as ideias de Ro-


dolfo Kusch sobre o pensamento indígena americano e a teoria animista
aplicada aos estudos literários. Os estudos decoloniais e pós-coloniais têm
enfatizado a necessidade de se retomar modelos epistêmicos próprios às
culturas que sofreram a dominação colonial. Aníbal Quijano (1992, p. 14)
afirma que

durante el mismo período en que se consolidaba la dominación colo-


nial europea, se fue constituyendo el complejo cultural conocido como
la racionalidade/modemidad europea, el cual fue establecido como un
paradigma universal de conocimiento y de relación entre la humanidad
y el resto del mundo.

Por ação desse paradigma de pretensa universalidade, os saberes e


modos de vida dos povos subjugados foram sufocados ora de forma direta
por perseguições ora de forma indireta por menosprezo. Seguindo uma
perspectiva decolonial, cabe retomar as contribuições de Rodolfo Kusch
quanto a valorização do pensamento indígena americano, em especial, a
visão ontológica das culturas incaicas. Segundo Viveiros Espinosa (2016,
p. 218), o pensamento kuscheano se dá

presentando y yuxtaponiendo problemas de corte ontológico, axiológico,


político e identitario en el marco del cuestionamiento fundamental res-
pecto de un pensamiento filosófico propiamente americano. Kusch es un
librepensador que vuelve a lo americano desde la tradición europea en una
relación de diálogo y tensión con ella.

Pelo potencial reflexivo do exposto por Kusch, podem-se tratar ques-


tões existenciais e identitárias do ser/estar americano, principalmente, pela
presença da cosmovisão indígena sob a forma de pensamento seminal. A
noção de seminal remete à semente, logo ao que cresce a partir da terra.

1 Doutorando em Letras na linha de pesquisa Pós-colonialismo e Identidades pela Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: marcoslampert@yahoo.com
361
Eis aí um ponto de contato com as teorias animistas, cuja moderna acepção
enfatiza o viver relacional de diferentes seres humanos ou não humanos
(HARVEY, 2015). O conceito de vida estabelece o contato entre as duas
posições teóricas. Lane (2012, p. 4) utiliza o termo “lógica da vida” para no-
mear a interação que supera o dualismo entre coisas e seres vivos ou ainda
entre objetos e sujeitos, uma dualidade cara ao pensar científico ocidental.
Nos estudos literários, antropológicos e religiosos atuais, desenvol-
ve-se um conjunto de teorias que pretende pensar um aspecto negligen-
ciado nas narrativas tanto de culturas africanas quanto de culturas ame-
ricanas. Sob a rubrica de animismo, retoma-se um complexo de noções
próprias a tais culturas, ao mesmo tempo que se intenciona retificar o uso
colonial de tal termo pela antropologia do século XIX. Harvey (2015)
sublinha que o “novo animismo” considera animados os seres que con-
vivem em uma comunidade expandida que envolve fenômenos naturais,
acidentes geológicos, animais, plantas, entidades espirituais e humanos,
sem um nível hierárquico entre esses diversos entes. Há uma capacidade
comunicativa de uns com os outros, observadas certas práticas rituais.
Quanto ao aspecto histórico das teorias animistas, há de se mencio-
nar o animismo proposto por Edward Tylor em 1871, o qual qualificava
a crença em seres espirituais como própria das raças inferiores e de povos
com baixo nível cultural. Uma das intenções do antropólogo britânico era
a de encontram um fundamento para a religiosidade ou, em seus termos,
uma definição mínima para a religião2 (TYLOR, 2016, p. 424). Sua pro-
posta foi debatida por diferentes autores como Émile Durkheim, Sigmund
Freud, James Frazer, o que atesta o interesse de diversas disciplinas pelo
termo. Também Jean Piaget o utilizou para explicar uma das caracterís-
ticas do pensamento infantil. O termo passou a ser sempre desvalorizado
por estar ligado aos ditos “inferiores” ou à infantilidade do pensar. Após
um período de popularidade na teoria antropológica, a noção caiu em de-
suso, dando lugar ao totemismo proposto por Durkheim.
Nos estudos pós-coloniais de língua inglesa o termo foi retomado
por autores como Caroline Rooney e Harry Garuba. Garuba (2012) de-
fende um “reencantamento” do mundo em oposição ao que foi chama-
do pela sociologia weberiana de desencantamento, processo de retirada
dos elementos mágicos do pensar por ação do desenvolvimento científico.
Para o autor, é um materialismo animista a teoria capaz de assimilar os
avanços técnicos e econômicos próprios da modernidade em um saber que
supera a hierarquia ora vigente entre ciência e magia. As obras literárias
citadas por Garuba, nas quais o animismo está presente, incluem autores
2 [...] a minimum definition of Religion […] (TYLOR, 2016, p. 424).
362
como Wole Soyinka, Ben Okri, Gabriel García Márquez e Salman Rush-
die. Para a interpretação desses autores, Garuba emprega o conceito de
“realismo animista”, em contraponto ao afamado realismo mágico, pois
afirma: “O ponto que tento destacar é que as práticas linguísticas e repre-
sentacionais implícitas em uma concepção animista de mundo são muito
maiores em dimensão e em âmbito do que o conceito de realismo mágico
poderia possivelmente descrever” (GARUBA, 2012, p. 246). A identifica-
ção e a retomada de noções animistas condizem com o modo de conce-
ber o mundo próprio a diferentes culturas, em especial às autóctones das
Américas e da África. De modo similar, Rooney (2006) identifica na obra
de Amos Tutuola a presença de espíritos, de forças, de seres estranhos, de
mortos que ainda vivem, bem como de transformações de personagens
humanos em animais, borrando a linha de definição das espécies proposta
pelo entendimento científico. O animismo para a autora funciona como
um termo necessário para confrontar a visão eurocentrada sobre a Áfri-
ca. A ocidentalização dos países africanos causou a detração de toda a
religiosidade local tanto por força da cristandade em expansão quanto
pelo cientificismo técnico. As contribuições críticas de ambos os autores,
Rooney e Garuba, permitem retomar o conceito de animismo aplicado ao
literário, mas também ao político na medida em que o anímico conserva
uma cosmovisão localizada.
Nos estudos de Kusch, há a valorização do saber indígena próprio
às culturas quíchua e aimará. Em suas pesquisas pelos territórios andinos,
Kusch encontrou relatos passíveis de serem compreendidos por uma teo-
ria animista contemporânea. Quanto a noção de alma, Kusch afirma que

a esto se refiere la senora Valda de Jaimes Freyne cuando menciona la


doctrina aymara sobre el alma. Segun ella, el indígena concibe un alma
propiamente dicha, (jachcha ajayu), un ánimo (jiska ajayu) que va quedan-
do prendida de todas las cosas y que de esta manera se gasta, y finalmente
un kamasa o sombra, o también llamado coraje que generalmente está
representada por un animal (KUSCH, 2007, p. 295-6).

A investigação de cunho êmico proposta por Kusch (2007, p. 299)


traz também os termos quíchua ucurunanchic e hahuarunanchic e os termos
aimará manqhue haquessa e alakha haquessa, ressaltando a diferença entre
um homem interior e um homem exterior, oposição que é interpretada
como a dualidade alma e corpo respectivamente.
Tomar como fonte de proposições teóricas o pensamento indígena
caracteriza o que Kusch chama de “hedor” ou fedor. Esse fedor emana do
popular, do que comumente era tido como irracional, pobre e sujo. Relati-
363
vo ao fedor está ainda uma forma de saber do “como” ou das modalidades.
Sua contraparte é a limpeza ou a “pulcritud” associada ao pensar racional
e causal do modo ocidental europeu de considerar o real. Novamente as
indagações kuscheanas se inscrevem no que hoje é denominado como de-
colonialidade. O recurso às fontes orais reafirma o seu compromisso com
o saber popular reconhecido em seu trabalho de campo. O relato do conta-
to com a família Halcón em Oruro (KUSCH, 2007, p. 274) é emblemático,
pois explicita a diferença de perspectiva entre a técnica ocidental, repre-
sentada por uma bomba hidráulica como solução de desenvolvimento, e
o ritual de invocação de chuva, próprio do saber local. Considerar uma
crítica do conhecimento ocidental não pode prescindir de perspectivas até
então tidas como errôneas ou supersticiosas.
Na trilha proposta por Kusch, Lane (2012) afirma que o animismo
andino considera todo o mundo como vivo e inter-relacionado. No entan-
to, alguns aspectos do mundo possuem maior vitalidade do que outros. O
termo camac, cujo significado é “animar”, é manifesto nos oráculos profe-
ridos pelas huacas. Uma huaca é mais forte quanto mais possui camac. A ca-
pacidade comunicativa de uma huaca é interpretada por um intermediário
chamado camasca. Quanto às huacas, afirma ainda o autor:

Huaca is a complex term that denotes a spirit or deity revealed as an ob-


ject, feature, or happening such as mummy bundles, trees, and naturally
occurring free standing rocks or outcrops, as well as mountains, hills, ri-
vers, springs, and literally all manner of physical manifestations, inclu-
ding rain, hail, lightning, thunder, and wind (LANE, 2012, p. 5)3.

Pelo exposto, depreende-se que nos Andes tanto seres naturais


quanto seres vivos, ainda que não mais fisicamente viventes, integram
uma comunidade de seres passíveis de comunicações. Tanto era assim, que
as múmias de governantes falecidos ainda eram capazes de influir na polí-
tica dos viventes. Segundo Rostworowski (1999), as múmias reais conser-
vavam criados, terras e direitos tais quais possuíssem em vida.
A retomada do conceito de animismo permite reafirmar uma posi-
ção decolonial, uma vez que ressignifica uma noção empregada na própria
teorização dominadora. O anímico está no ritual dos povos originais, pois

3 Huaca é um termo complexo que denota um espírito ou divindade revelado como um


objeto, uma característica ou um acontecimento, como grupos de múmias, árvores e
rochas naturais ou afloramentos, bem como montanhas, colinas, rios, nascentes e lite-
ralmente todos os tipos de manifestações físicas, incluindo chuva, granizo, relâmpago,
trovão e vento. (tradução nossa).
364
a divisão entre coisas e seres vivos não é rígida como no cientificismo oci-
dental. Tal como exposto pelos teóricos citados, é a criação literária o locus
no qual esse entendimento expandido do real foi primeiramente retoma-
do. Uma teoria animista do literário é um dos caminhos teóricos de reafir-
mação de epistemes não submissas a lógicas de pretensa universalização.

Referências
GARUBA, H. Explorações no realismo animista: notas sobre a leitura e a escrita
da literatura, cultura e sociedade africana. Tradução de Elisângela da Silva Ta-
rouco. Nonada Letras em Revista, ano 15, n. 19, pp. 235- 256, 2012.
HARVEY, G. (Org.). The handbook of contemporary animism. London:
Routledge, 2015.
KUSCH, R. Obras completas: Volume II. Córdoba: Editorial Ross, 2007.
LANE, K. Inca. In: Insoll, T. (Org.) The Oxford Handbook of the Archaeol-
ogy of Ritual and Religion. Oxford: Oxford University Press, 2012. Pp. 1-19.
QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad/racionalidade. Perú Indígena, Lima,
v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992.
ROONEY, C. African literature, animism and politics. London: Routledge, 2006.
ROSTWOROWSKI, M. Historia del Tahuantinsuyu. Lima: IEP/Promperú, 1999.
TYLOR, E. B. Primitive Culture Volume II. Mineola: Dover Publications, 2016.
VIVEROS ESPINOSA, A. Enfoques sobre la filosofía de Rodolfo Rusch: el mé-
todo, lo popular y el indígena como horizontes de pregunta en la filosofía ame-
ricana. Alpha: Revista de Artes, Letras y Filosofía, n. 42, p. 214-232, 2016.

365
memóriAs de um insurgente guArAni mbyA
no litorAl norte do rio grAnde do sul:
biogrAfiA AutorizAdA pArA juruA

Maria Cristina Schefer1


André Benites2

Nesse cenário, em que a periferia das periferias tem sido destinada


aos mais diferentes consumidores falhos (SCHEFER, 2015), cabe a com-
preensão de como emerge um líder indígena. Neste estudo, apresenta-se a
história de André Benites, autodidata na Língua Portuguesa, “engenheiro
nato”, que domina as construções tradicionais, sem abrir mão de tecnolo-
gias de jurua que possam servir aos tempos atuais para melhoria de vida
dos Guarani Mbya. Indígena que já percorreu boa parte do território
do Litoral Norte do Rio Grande do Sul e que não cansa de difundir suas
ideias sobre o modo de ser que vislumbra para as gerações presentes e
futuras no tekoha.
A luta indígena pelo direito existencial é secular, há mais 500 anos,
os conflitos fundiários destroem o bem viver/nhandereko no tekoha. As vio-
lências são estatisticamente negadas, segundo Prézia (2017), os indígenas
são vítimas do maior evento genocida do ocidente, na Modernidade, que
ceifou 70 milhões de vidas e cerca de 700 línguas.
Vale dizer que, depois da colonização portuguesa, os indígenas fo-
ram sujeitos a diferentes modos de vida impostos por imigrantes euro-
peus, que assumiram as rédeas do progresso no território brasileiro. Os
indígenas foram subestimados, invisibilizados em sua contribuição dolo-
rosa para a construção da nação desejada pelos estrangeiros. Seus pensa-
mentos, suas subjetividades não interessavam ao projeto de sociedade em
pauta, de matriz europeia, que os imigrantes queriam replicar. Para Kusch
(1999, p. 127), os europeus eram os profetas do medo, “les inquietaba el
estar aquí en América y, por sobre todo, porque querían estar comprome-
tidos con la dinámica europea, cueste lo que cueste”.
A espoliação cultural dos povos tradicionais teve uma nova roupa-
gem, durante a Ditadura Militar (no ínterim de mais ou menos 30 anos)
entre 1964 e 1985, em meio a tutela estatal, quando, segundo Catafesto

1 Professora Adjunta na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul. Fomento:


FAPERGS e CNPq. E-mail: mariacrisdomar@gmail.com
2 Liderança indígena Guarani Mbya do Litoral Norte do Rio Grande do Sul.
367
(2016, p. 59), “se tornou uma prática remover [...] indígenas para o in-
terior das reservas e áreas demarcadas no norte do Estado [...] foram
reprimidos e jogados pela força policial para longe de suas terras”.
Desse modo, verifica-se que a violência simbólica (BOURDIEU,
1989) substituiu institucionalmente, naquele período, a violência física
aos povos tradicionais, acompanhando a tendência mundial, pós grandes
guerras, de respeito aos direitos humanos, referendado em muitos acordos
internacionais. Para Catafesto (2016, p. 60 e 61),

com a Constituição Federal de 1988 que a situação jurídica dos indígenas,


enquanto relativamente capazes, foi substituída pelo critério da autode-
terminação, reconhecendo, desde então, que as comunidades autóctones
possuem o direto de seguirem suas pautas culturais específicas, cabendo
aos órgãos do Poder Público atender suas demandas próprias e diferencia-
das. (...) A década de 1990 foi marcada pelo ressurgimento da mobilidade
indígena, mecanismo cultural de origem pré-colonial que sempre permitiu
aos ameríndios buscarem os recursos naturais conforme sua maturação
sazonal. Diversos acampamentos indígenas foram recriados nas beiras das
estradas federais, nas rótulas de acesso às cidades e em vilas dentro do
perímetro urbano.

A reconquista do direito de ir e vir outorgada pela Constituição Ci-


dadã não foi suficiente para o reconhecimento social dos indígenas. O afas-
tamento étnico acirrou os estranhamentos, falta de empatia e um imagi-
nário povoado de maledicências, e desvalorização de saberes tradicionais,
mantém a fronteira do isolamento social entre indígenas e não indígenas.
Além disso, durante as décadas de reclusão (mantidos como “espécimes”
em reservas florestais) toda uma arquitetura fundiária foi sendo erguida,
e os indígenas não estavam presentes nessa partilha.
Com 40 anos de idade, já avô, André Benites narra neste estudo os
modos de fuga e de resiliência que vivenciou com seus familiares e que o
fizeram ser o que é, pois segundo reflete: “cada um nasce para ser alguma
coisa” (Diário de Campo: jan. 2019).
Em suma, trata-se do trato acadêmico de uma “história de vida” que
emerge na região litorânea como força iconográfica, e que costuma dizer,
“a gente não quer a praia de Capão da Canoa, jurua não precisa ter medo, a gente
quer ficar aqui na mata, perto do rio, não do mar” (Diário de Campo: julh.
2019). A história de vida “procura superar o subjetivismo impressionista
e formular o estatuto epistemológico [...] para trabalhar os trajetos pes-
soais no contexto das relações pessoais e definir-se como relatos práticos
das relações sociais (CHIZZOTTI, 1991, p. 96).

368
Como instrumento básico foi realizada uma entrevista narrativa, di-
vidida em temáticas combinadas previamente com o participante. Nesse
sentido, cabe ressaltar que partiu da liderança indígena a busca por alguém
(não indígena) que pudesse “escrever num livro a história Guarani que eu sei
contar aqui no Litoral!” (Diário de Campo/ fala exploratória: nov. 2018).
A entrevista áudio-gravada (foi dividida em temas) e transcrita.
Com orientação do participante, os depoimentos foram ilustrados com
imagens e fotografias. Essa prática, segundo Guran (2011) permite a
complementação textual, um modo de evitar que haja dúvidas no diálogo
entre escritor e leitor, tanto que nas margens das ilustrações podem ser
incluídos pequenas explicações.
Como esta pesquisa está registrando, há uma epistemologia valoro-
sa nas falas desse insurgente indígena, consolidada sem a intervenção do
sistema escolar convencional. Tanto que uma das bandeiras levantada e
edificada pelo indígena, com a ajuda de apoiadores indigenistas, foi a bio-
construção de uma escola autônoma, a qual deverá “responder ao imagi-
nário do estado” de ensino, mas ensinar, com maior ênfase, o currículo das
“vivências” que os Guarani Mbya precisam para não perderem a tradição.
Trata-se de uma experiência de “inovação institucional” (VENÂNCIO,
2012) ou étnico-institucional (SCHEFER, 2018).
Cabendo, desse modo, ponderar sobre a existência de outro modo de
aprender e de ensinar valores e práticas para viver bem em comunidade
(BAUMAN, 2003), a qual perpassa por questões étnicas. Conhecimen-
tos ancestrais, artesanais, que têm garantido a sobrevivência indígena em
meio às relações periféricas (SCHEFER, 2015) do presente.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
______. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
______. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.
CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo:
Cortez, 1991.
GURAN, Milton. Considerações sobre a constituição do corpus fotográfico em
uma pesquisa antropológica. Discursos Fotográficos, v. 7, n. 10, p. 77-106, 2011.
369
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. Buenos Aires: Biblos, 1999.
MINAYO, Maria Cecília de S. O desafio da pesquisa social. In: ______. (Org.).
Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
PREZIA, Benedito. História da resistência indígena: 500 anos de história.
São Paulo: Expressão Popular, 2017.
SANTOS, Milton. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Editora da USP, 2008.
SCHEFER, Maria Cristina. Na periferia das periferias: o não-lugar escolar
e a Pedagogia do Destino. 2015 (191 f.) Tese (Doutorado em Educação). São
Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, 2015.
SOUZA, José Otávio Catafesto de. Indígenas no Rio Grande do Sul: breve relato
sobre grupos humanos autóctones no sul do Brasil. In: Da África aos indígenas
do Brasil: caminhos para o estudo de História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena. UFRGS, 2016.
VENÂNCIO, José Carlos. Historicismo, ciência e poder de classificação. Refle-
xões em torno da problemática da democracia em África e em Angola. In: Revis-
ta Angolana de Sociologia, v. 10, 2012.

370
nArrAtivAs e memóriAs de mulHeres
negrAs em suAs escriturAs

Naíra Corrêa Daubermann1

Pesquiso sobre as práticas de escrita ordinárias como um espaço


possível para a produção identitária, na medida em que, sem as expecta-
tivas de leitores imediatos, mulheres negras puderam e podem confiar ao
papel seus sentimentos, aflições e vivências pessoais. Destaco as protago-
nistas de minha pesquisa: cinco mulheres negras, sendo duas quilombolas,
gaúchas, nascidas entre as décadas 1940 e 19702. O estudo visa inventariar
suas escrituras, isto é, o conjunto de gestos em torno de suas práticas
de escrita: local em que escrevem, tempo, temas, materialidades, relações
sociais destacadas nos registros. O recorte temporal foi pensado para pro-
blematizar também as repercussões do acesso ou não à escola pública por
parte da população negra, como decorrência do processo de expansão da
escolarização nas décadas de 1960 e 1970.
Utilizo a expressão “práticas de escrita ordinárias”, que define o
olhar que dirijo às práticas cotidianas relacionadas à cultura escrita, tais
como anotar tarefas do dia a dia, elaborar uma lista de compras, registrar
em uma agenda telefônica, escrever bilhetes, transcrever receitas culiná-
rias, escrever em um álbum, colecionar letras de músicas, trocar corres-
pondências, entre outras. Em geral, estes gestos são realizados para uso
pessoal, sem a intenção de torná-los “públicos”, razão pela qual podem
desfrutar de certa espontaneidade no momento em que acontece. Espe-
cialmente por serem registros despretensiosos de publicização, as escri-
turas de mulheres negras e quilombolas podem atuar como um elemento
importante para re-conhecer suas trajetórias e exercícios de identidade,
suas sabedorias advindas das relações sociais, suas lutas e narrativas sobre
o pertencimento comunitário e territorial.

1 Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus


de Marília, atualmente é aluna de mestrado no Programa de Pós-graduação em Edu-
cação (PPGEDU) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha
História, Memória e Educação. E-mail: naira.daubermann@gmail.com
2 Uma nasceu na década de 1970, uma na década de 1950, duas na década de 1960, uma
na década de 1970.
371
Muitas pesquisas sobre correspondências, diários pessoais e outros
documentos elaborados no espaço privado tiveram atenção de pesquisado-
res a partir da década de 1980 no Brasil, segundo Angela de Castro Gomes
(2004). Contudo, primeiro deram visibilidade à produção realizada por in-
telectuais, políticos, escritores, artistas – majoritariamente homens. Encon-
tram-se quase invisibilizadas as escritas realizadas pelas pessoas comuns,
ainda menos visíveis são aquelas realizadas por mulheres, e mais distante
às que se referem às mulheres negras e quilombolas. Na Europa, segundo
Antonio Castillo Gómez (2003), as primeiras inquietudes sobre a conserva-
ção de escrituras de pessoas comuns ocorreram apenas nos anos 1960-1970.
Vê-se, portanto, quão recente é o olhar da pesquisa acadêmica às escrituras
das camadas populares.
Em texto de 1998, Philippe Lejeune afirma (2014, p. 31) que, por mui-
to tempo, escrever e publicar autobiografias foi, “e ainda continua sendo, em
grande medida, um privilegio reservado aos membros das classes dominan-
tes”. Na mesma direção, Gómez (2003, p. 248) destaca que, olhar para as
escrituras das camadas populares é uma forma de ampliar o conhecimento
histórico sobre outras formas de vida e sobre outras possibilidades de narrar
o vivido, e no que tange à perspectiva antropológica, há nestes escritos uma
janela que permite olhar para eventos diários, costumes, ritos e sentimentos.
Gómez (2003, p. 241) argumenta que indivíduos das camadas popu-
lares podem ter intenção de criar memória e quando o fazem, geralmente,
é primeiro em torno da família e, depois, da comunidade de pertencimen-
to. Por outro lado, há de se considerar as reflexões de Thomson (1997):
se por vezes falar e escrever são atos terapêuticos, outras vezes, esquecer
(silenciar) é que permite viver. Logo, a contribuição da pesquisa reside
em observar e refletir sobre as manifestações de cinco mulheres negras
no que tange ao desejo e possibilidades de escrita de si. Em um diálogo
com Rodolfo Kusch, pode-se olhar para as práticas das mulheres e o modo
como comunicam sobre suas relações, como uma disposição pessoal em
produzir vidas autênticas, diferenciadoras do que poderia ser dito na his-
tória escrita pelos europeus na América Latina (SANTOS, 2019, p. 75).
As cinco mulheres que aceitaram participar desta pesquisa, sendo
duas delas quilombolas, puderam exercer um papel sobre o tempo presente
e o tempo passado. A partir de suas práticas escreventes, o arquivo desta
pesquisa é composto por documentos eleitos por elas, e só se constituiu pela
existência de uma relação de confiança com a pesquisadora. Constatei que
há uma seleção, explícita ou não, do que mostrar e o que ocultar. Portanto,
configura-se também um novo espaço de produção de suas biografias no
que tange à história a ser lida no futuro. Durante o período de maio de 2018

372
a maio de 2019, as mulheres confiaram-me os seguintes documentos, que
constituem as materialidades de suas práticas de escrita ordinárias:

Quadro 1 – Breve descrição dos temas das escreventes negras e quilombolas

Pseudôni- Idade Cidade de Tipos de Temas


mos Nascimento suporte
(RS)
Joana 78 anos Capivari do Folhas avul- Quem sou eu? 2018.
Sul sas, com e
sem pauta Contos e poesias. 2018.

Liliane 68 anos Porto Alegre Cinco cader- Cadernos: “para registros das
nos brochu- ajudas do Alto”
ras pequeno,
um caderno Agenda: organização da vida
espiral pe- laboral, saúde, finanças, famí-
quenos e uma lia, receitas, relações.
agenda
Todos da década de 1990.
Mariana 61 anos Caçapava do Duas agen- Duas agendas: indicação de
Sul das e um versículos bíblicos lidos, dias
caderno bro- de jejum e dias de culto. Uma
chura do ano 2015 e outra 2017.

Caderno: letras de músicas,


do ano 1972.
Natalina 54 anos São Lepoldo Três agendas Reflexões sobre a Bíblia; ano-
e um caderno tações de participação em
espiral peq. cursos e seminários – religio-
sos e também de Políticas Pú-
Seis cadernos blicas; De 2000 a 2015.
de espiral,
grandes
Débora 45 anos Piratini Quatro ca- Três cadernos de receitas:
dernos espi- dois sem data e um deles
rais grandes com o acróstico “Liberdade”:
2011; um caderno de questio-
nário: 1985.

Elaborado pela autora.

373
Walty, Fonseca e Cury (2000, p. 42) em análise acerca do processo
de escrita e leitura, registram: “Nos atos de escrever e ler ativam-se visões
de mundo, vivências, leituras e escritas anteriores, que interferem, condi-
cionam, particularizam a leitura e os textos”. Há, portanto, uma íntima
relação entre as práticas de leitura e escritura. Durante o desenvolvimen-
to desta pesquisa, pautada em conversas prévias informais com cada uma
das mulheres, pude compreender diferentes tempos e momentos da relação
delas com a leitura e a escrita. Para Joana, destaca-se o registro motiva-
do pelo outro, pelo pedido do neto para que escrevesse suas vivências na
comunidade quilombola. Para Liliane, Mariana e Natalina, as práticas de
escrita estão relacionadas às leituras espirituais, onde buscaram conforto
para momentos de vida mais turbulentos. Mariana trouxe a materialidade
mais antiga desta pesquisa: seu caderno de música de juventude. Para Dé-
bora, o conjunto confiado à pesquisa relaciona-se diretamente à sua ativi-
dade laboral exercida por mais tempo, a de cozinheira, e destaca-se o afeto
que tem por seu caderno de questionário, da época do colégio, que vem so-
brevivendo ao tempo e às mudanças de residência há trinta e quatro anos.
Assim, esta pesquisa propicia pensar as relações das escreventes com seu
processo de alfabetização – heterogêneo –, as suas memórias da escola, a
forma como utilizam o código escrito, os gestos que alimentam a sua pro-
dução manuscrita, que se faz acompanhada de uma relação com a leitura.
Cabe lembrar que existe um longo processo histórico que possibili-
tou, inicialmente na Europa ocidental, a partir do século XVIII a expan-
são das relações privadas das pessoas com a prática de leitura, abrindo
caminho para a prática da escrita privada e da escrita de si. O processo
de alfabetização tampouco foi homogêneo e coube às camadas populares
e às mulheres pobres o último momento. No Brasil, pode-se afirmar que
somente com expansão do acesso à escola pública na segunda metade do
século XX foi possível às camadas populares o domínio da cultura escrita
– tão importante nas sociedades gráficas para oportunidades de trabalho
e relacionamentos. Assim, pesquisar as práticas de escrita ordinárias das
mulheres negras configura também a possibilidade de refletir sobre o mo-
mento histórico em que elas o realizam, sendo relevante perguntar como
e quando o fazem e que significado elas dão às suas escrituras.
Para Gomes (2004), a intenção de produzir uma memória de si e dos
familiares acerca da vida em outro tempo pode ser lida como uma busca
por “dotar o mundo que os rodeia de significados especiais, relacionados
com suas próprias vidas [...]” (GOMES, 2004, p. 11). Ao mesmo tempo,
ao confiar ao papel suas vivências, seus registros tornam-se testemunhos
sobre suas relações sociais, aproximando-se da assertiva de Arfuch (2010,

374
p. 141) de que a narrativa individual envolve uma trama de lembranças de
outros – parentes, descendentes, conhecidos –, tornando possível, assim,
que ao falar de si, seja possível mirar o contexto socio-histórico e cultural
em que está inserido e refletir sobre o espaço da coletividade. Esta relação
com o outro está intrinsecamente relacionada ao reconhecimento de sua
identidade, como analisam Shons e Grigoleto (2008, p. 407): “Ao escrever
sobre si, o sujeito escreve também sobre o outro, que o determina na sua
construção identitária”.
Aqui finalizo, visando enfatizar a importância de pesquisar sobre
as narrativas que as mulheres negras e quilombolas produzem sobre si, e
também sobre as suas relações sociais e comunitárias.

Referências
ARFUCH, Leonor. A vida como narração. In: ______. O espaço biográfico:
Dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
GOMES, Angela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo.
In: ______. (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
GÓMEZ, Antonio Castillo. Das mãos ao arquivo. A propósito das escritas das
pessoas comuns. Florianópolis: PerCursos, v.4, nº1, julho de 2003. p 223 – 250.
SANTOS, Gustavo Alvarenga Oliveira. Contribuição do pensamento de Rodolfo
Kusch para o desenvolvimento de uma psicologia existencial latino-americana.
Phenomenological Studies, Revista da Abordagem Gestáltica, XXV, 2019.
Pp. 73-82.
SCHONS, Carme Regina & GRIGOLETTO, Evandra. Escrita de si, memória e
alteridade: uma análise em contraponto. 1ª JIED – Jornada Internacional de
Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008.
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória. Questões sobre a relação entre
a História Oral e as memórias. Proj. História (15), São Paulo, abril 1997.
WALTY, Ivete Lara Camargo; FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Ma-
ria Zilda Ferreira. Palavra e imagem: leituras cruzadas. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2000.

375
de nuestrA AméricA A lA AméricA profundA: un diálogo
entre josé mArtí y rodolfo KuscH

Olga Lucia Reyes Ramírez1


Diana Carolina Gamboa Gamba2

[...] El vino, de plátano; y si sale agrio, ¡es nuestro vino!


(MARTÍ, 1992, p. 136)

Esta breve reflexión surge entre cafés y noches hablando de nuestro


ser Americano, en el encuentro de corazones de profesoras que palpitan
al ritmo de las palabras de dos autores de distintas épocas: José Martí y
Rodolfo Kusch. Aunque este texto no se amarra a ninguna investigación
ni a ninguna tesis, surge del sentipensar conjunto, del deseo por com-
prender, de intentar establecer un diálogo entre estos dos pensadores que
admiramos y que han alimentado nuestra vida, nuestro hacer pedagógico
y nuestro camino académico.
Para establecer esta conversación, hemos elegido el ensayo de
“Nuestra América” (1891) de Martí, y algunas de las ideas expuestas en el
libro “América profunda” (1962) de Kusch. Nos interesa navegar entre las
maneras en que estos autores, en sus correspondientes obras, se detienen
a pensar e intentar comprender lo que nos hace ser americanos: nuestra
identidad mestiza.

Contextos en diálogo

Pensar a América fue uno de los propósitos de José Martí. Según


sus propias ideas, pensar era la mejor forma de servirle a una tierra
atravesada por luchas independentistas e identitarias. Nuestra Améri-
ca, ensayo referente del modernismo latinoamericano, nace de la pluma

1 Licenciada en Psicopedagogía, Magíster en educación de la Universidad Pedagógica Na-


cional y Doctora en Educación de la Universidad Federal Rio Grande do Sul. Docente de
la Licenciatura en Pedagogía Infantil de la Universidad Nacional Abierta y a Distancia-U-
NAD-. Investigadora adscrita al grupo de investigación Infancias, educación y diversidad.
2 Licenciada en Humanidades y Magíster en Comunicación-Educación. Docente de la
Universidad Distrital y Universidad Nacional Abierta y a DIstancia-UNAD-. Investiga-
dora adscrita al grupo de investigación Infancias, educación y diversidad.
377
martiana en un contexto de pugnas por la tierra -1891-, época en donde
Cuba, su país, y Haití, eran dos de las últimas naciones del continente en
disputa por su independencia.
Revolucionario con sus acciones y plasmados pensamientos, Martí,
con Nuestra América, fue precursor de la renovación estética y concep-
tual de las letras de nuestro continente. Una apuesta literaria que encarnó
las ideas martianas que se empezaron a forjar desde su adolescencia, y que
reflejaban un anhelo por el reconocimiento de las raíces, por la necesidad
de un espíritu crítico, por darle protagonismo político a las mujeres, a los
niños y en general al hombre americano; por la búsqueda de armonía en-
tre las diferentes formas de ver el mundo que co-existían en el continente,
por la defensa de los saberes y prácticas de los oprimidos, en especial, de
los campesinos e indígenas.
Por su parte, la tarea que se propuso Rodolfo Kusch fue compren-
der el pensamiento Americano y dar cuenta del mismo desde sus propias
bases. Por ello, este autor toma distancia de las reflexiones nacidas en la
filosofía occidental y se sienta a conversar con el corazón y la montaña
Americana, latente en la voz de los pueblos indígenas del norte de Ar-
gentina, Perú y Bolivia. En su búsqueda, dialoga y se nutre de la obra de
varios pensadores latinoamericanos y vuelve constantemente sobre las
crónicas de Juan de Santa Cruz Pachacuti.
Su pregunta es por la identidad y la existencia americana, que se
ve cuestionada y puesta en desequilibrio, debido a procesos acelerados de
industrialización y “modernización” del continente, a lo largo del siglo
XX. Frente a estas transformación vertiginosa, las formas de vivir lo
americano, se enfrentan a profundos cambios sociales, culturales y econó-
micos que a la vez que ponen en evidencia nuestra diversidad y distancia
del mundo occidental, nos arrojan hacia unos modos de comportamiento
importados, pero que son fagocitados por el mestizaje de nuestras tierras.
Viveros (2016, p. 218) afirma que “...Kusch parece deambular entre un
mestizaje cultural en una perspectiva ontológica y una lectura subalterna,
ulteriormente, identificada con lo popular y lo indígena, que funcionan
como plataformas para el cuestionamiento identitario latinoamericano”.
Los contextos de Martí y de Kush, aunque distantes en el tiempo,
evidenciaban luchas, formas de vida y necesidades en común de los habi-
tantes de esta América colonizada. Nuestra América surge en un contexto
en donde, a pesar de las guerras y victorias independentistas, la colonia
se mantenía a través de prácticas de gobierno, usando instrumentos de
intimidación como constante, para oprimir al pueblo. Esto, se veía acom-
pañado por la intervención del “Gigante de siete leguas”: las prácticas

378
imperialistas de Estados Unidos empezaban a ser una amenaza para la
independencia recién lograda en muchas naciones, para las formas de go-
bernarlas y para la identidad de los pueblos.
Por su parte, América Profunda se piensa, se escribe y se publica en
un continente que estaba preparando golpes de estado contra gobiernos de-
mocráticos. Las tierras de Sudamérica enfrentaban un contexto polarizado,
de militarización y una atmósfera de violencia como vehículo para construir
el Estado. Los diversos modos de autoritarismo emergente, atentaban con-
tra los derechos humanos, contra las prácticas culturales, contra los saberes
propios, contra los propósitos modernizadores que guiaban la consolida-
ción de los gobiernos, etc. A su vez, y como respuesta a la injusticia e ine-
quidad, se levantaban sueños revolucionarios y movimientos sociales que
matizaban y tensionaban los contextos latinoamericanos.
Como se ve, son más de 70 años los que separan la publicación de
Nuestra América de la América profunda. Podría pensarse, a priori, que
los contextos, las luchas y necesidades que enmarcaron cada época fueron
muy diferentes. Pero no puede negarse que nuestro continente se ha visto
afectado por problemas que han sobrevivido al paso de los siglos. La ne-
cesidad de luchar por justicia, libertad, respeto a la diversidad y la equidad
han trascendido; las luchas identitarias se han mantenido y diversificado;
la defensa de los derechos humanos de los ataques de gobiernos opresores
e imperialistas es una constante; el colonialismo cultural que niega las
prácticas culturales de la diversidad americana es permanente. Seguimos
viviendo y sobreviviendo a la larga noche de los 500 años.
Y en este cúmulo de adversidades, en este “hervidero espantoso”,
hay algo que nos cohesiona y es la conciencia plena de que “...algo nos im-
pide ser totalmente occidentales aunque nos los propongamos” (KUSCH,
1962, p. 180). Nos une nuestra raiz mestiza, germinada en la diversidad,
en el encuentro de opuestos, nacida de la violencia, de los sobrevivientes
del exterminio, de la compra de modelos importados, que se encuentran
con nuestros modos profundos de estar en el mundo. Diría Kusch “Amé-
rica es un mundo de opuestos rotundos y evidentes. El indio se ve a sí
mismo frente al comunismo, y el rico frente al pobre y la mujer honorable
frente a la prostituta. Siempre se trata de una realidad escindida.” (Op.cit.,
p. 223). Martí lo retrataría de la siguiente forma:

Éramos una máscara, con los calzones de Inglaterra, el chaleco parisiense,


el chaquetón de Norteamérica y la montera de España. El indio, mudo, nos
daba vueltas alrededor, y se iba al monte, a la cumbre del monte, a bautizar
a sus hijos. El negro, oteado, cantaba en la noche la música de su corazón,
solo y desconocido, entre las olas y las fieras. El campesino, el creador,
379
se revolvía, ciego de indignación, contra la ciudad desdeñosa, contra su
criatura. Éramos charreteras y togas, en países que venían al mundo con la
alpargata en los pies y la vincha en la cabeza. (1992, p.134)

Y antes de que vivir solo en el miedo, también existe la posibilidad


de esperanza. Pues como Kusch lo afirma:

No puede haber inmutabilidad ahí donde hay opuestos y éstos se disputen


el dominio del mundo que vemos. No puede haber inmutabilidad donde
hay ricos y pobres, blancos y negros, democráticos y totalitarios, y más
allá, ya en un orden metafísico, donde hay día y noche, dios y diablo, cielo y
tierra. Es natural y sabio decir que uno reemplazará al otro y éste a aquél
hasta el fin de los tiempos (1962, p, 241).

Los opuestos son los que permiten la germinación de la semilla,


son los que hacen de la vida una realidad en el mundo y los que hacen de
nuestra américa la tierra de la promesa, de la fecundidad, de la incerteza,
de la desgracia, del ensueño. Esa identidad mestiza, que tejemos anidados
en las raíces de la tierra y en el encuentro con las contradicciones que
vivimos, es la que nos permiten geo-referenciarnos como habitantes de
una América profunda, de nuestra América. América, a los ojos de estos
autores que nos convocan, es semilla y tierra, promesa y realidad, posibi-
lidad y camino:

¡Porque ya suena el himno unánime; la generación actual lleva a cuestas,


por el camino abonado por los padres sublimes, la América trabajadora; del
Bravo a Magallanes, sentado en el lomo del cóndor, regó el Gran Semí, por
las naciones románticas del continente y por las islas dolorosas del mar, la
semilla de la América nueva! (Martí, 1992, p. 140).

Y “Por que lo que es semilla, llegará a ser fruto” (KUSCH, 1962, p. 223).

Reflexiones finales

La identidad mestiza que nos une y nos distancia, aparece en las


líneas de estos dos pensadores, con ritmos y tiempos propios de sus épo-
cas, pero que en esta diversidad americana, continúan vigentes y son hoy
en día tan necesarios como en otrora. Como diría el poeta cubano en su
exaltación de la identidad universal del hombre: “El alma emana, igual y
eterna, de los cuerpos diversos en forma y en color (...)” (MARTÍ, 1992,
p.138). Somos contradicción y a la vez diálogo; y como canta una famosa
agrupación de música colombiana: “(...) Mezclados, somos mezclados (...)
380
la misma historia con otro sabor (...) venimos de todos lados (...) Con baile,
ritmo y mucho color (...)3.
Se aproximan, también, en la búsqueda por comprender al hombre
americano: Martí, desde los sueños de libertad; Kusch, desde las formas
en que vive, siente y piensa. Sin embargo, para ambos es claro que eso
que nos hace ser americanos - aunque vestidos de diferentes maneras y a
veces refundido en los disfraces traídos de otras latitudes- se encuentra
enraizado en la cultura, en los indios, en los campesinos, en los negros y
en lo popular.
Desde estos textos, podemos decir que las reflexiones propuestas
por José Martí y Rodolfo Kusch encarnan dos miradas que co-existen ali-
mentando la naturaleza y la identidad de lo que somos y no somos. Martí
retrata el sueño de la libertad, la justicia y la educación; Kusch se detiene
en todo aquello que nos hace ser americanos, y a su vez, en lo que nos
impide llegar a ser completamente europeos, pulcros, ordenados. Ambos
coinciden que para que América sea, se fortalezca y germine, la fuerza vi-
tal debe surgir de los hombres que la habitamos: negros, mestizos e indios
para Kusch y hombres naturales para Martí.

Referências
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. [Obras completas. Tomo I]. Primera
edición 1953. Editorial Fundación Ross. Rosario Argentina, 2007.
MARTÍ, José. Obras Completas. La Habana, Cuba: Editorial Ciencias Sociales,
1992.
RODRÍGUEZ, Pedro. De todas partes. Perfiles de José Martí. La Habana,
Cuba: Centro de Estudios Martianos, 2012.
VIVEROS, Alejandro. Enfoques sobre la filosofía de Rodolfo Kusch. El método,
lo popular y el indígena como horizontes de pregunta en la filosofía americana.
Revista Alfa. Número 42. Julio de 2016. Disponible en https://scielo.conicyt.
cl/pdf/alpha/n42/art_14.pdf

3 Fragmento tomado de la canción Internacionales, de autoría de la agrupación Bomba


Estéreo. Colombia, 2017.
381
“etnomídiA indígenA, por umA demArcAção
comunicAcionAl, já!”: o território de identidAdes,
informAção e resistênciA dA rádio yAndê

Raquel Gomes Carneiro1

Neste texto, abordamos aspectos integrantes de uma travessia in-


vestigativa de Mestrado acerca de como os sujeitos comunicacionais in-
dígenas, fundadores da Rádio Yandê, autointitulada “a primeira webradio
indígena do Brasil”2, tecem seus processos e fluxos etnocomunicacionais,
reconfigurando suas identidades étnicas ao elaborar e fomentar um ter-
ritório comunicacional de informação e resistência por meio da etnomí-
dia indígena.
O conceito, para o fundador da Rádio Yandê, Anápuáka Muniz Tupi-
nambá Hã hã hãe (2017), compreende o fazer comunicacional exclusivo de
sujeitos comunicacionais indígenas ao se apropriarem de linguagens ar-
tísticas, literárias, audiovisuais e multimidiáticas para a produção de suas
próprias narrativas, construções que diferem daquelas realizadas por não-
-indígenas em mídias massivas, posicionados em locais históricos, sociais,
políticos, culturais, econômicos, emocionais divergentes de enunciação.
É um comunicar que considera a diversidade cultural flexível e mutável
de cada etnia, ultrapassando fronteiras geográficas e culturais. Possibi-
lita assim, uma nova mirada dos processos etnocomunicacionais que se
constituem, desde a relação com o público às novas estruturas de formatos
jornalísticos pautados pelos conhecimentos étnicos, como nos coloca a
jornalista cofundadora da Yandê, Renata Tupinambá:

1 Doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos


sob orientação do prof. Dr. Alberto Efendy Maldonado de La Torre, na área de concen-
tração Processos Midiáticos - Cultura, Cidadania e Tecnologia da Comunicação. Bolsista
CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa Processocom, integrante da Rede AMLAT.
E-mail: raquel.gomes.carneiro@gmail.com.
2 A Rádio Yandê surge em novembro de 2013, da parceria entre o ativista e comunica-
dor Anápuáka Muniz Tupinambá Hã hã hãe, a jornalista Renata Tupinambá e o artista
visual e designer Denilson Baniwa. Eles se conheceram em reuniões dos movimentos
indígenas no Rio de Janeiro, cidade onde residem e sede da webradio. O trio se autode-
nomina indígena em contexto urbano, o que significa que nasceram ou vieram morar na
cidade durante a infância e adolescência, mas continuam cultivando vínculos culturais e
sociais com a sua comunidade étnica, localizadas respectivamente na Bahia, Mato Grosso
e Amazonas. Disponível em http://radioyande.com/. Acesso em 30 de julho de 2019.
383
[...] Etnomídia é uma ferramenta de empoderamento cultural e étnico,
por meio da convergência de várias mídias dentro de uma visão etno. Por
isso o uso deste prefixo. [...] podendo ser executada por diferentes iden-
tidades étnicas e culturais. A apropriação dos meios de comunicar tornou
possível aos povos serem seus próprios interlocutores [...] (MACHADO
TUPINAMBÁ, 2016).

Dessa maneira, a programação de 24h respeita e valoriza a orali-


dade, ao preservar narrativas e a pertinência das temáticas, que perpas-
sam de tradições e cosmologias às questões políticas, sociais, de direitos
humanos e de cidadania de cada etnia. Para desfazer estereótipos e pre-
conceitos ocasionados pela falta de informação especializada pela mídia
não indígena, a produção do conteúdo musical e informacional, o ouvinte
tem a possibilidade de escutar, de áudios com tratamentos profissionais às
sonoridades veiculadas sem efeitos ou edições forjadas, encaminhadas via
redes como WhatsApp. É possível viajar até a ambiência de uma aldeia, por
exemplo, e escutar conselhos de um pajé em sua língua originária junto ao
canto dos pássaros na mata. A centralidade da voz humana, fundamental
para os povos indígenas e resguardada pela Rádio Yandê, reorganiza todos
os outros sons contidos em cantos, histórias, mitos e assim, vai tecendo
enlaces e elaborando uma linearidade que para Chion (2011) não é algo
que emoldura temporalidades, mas as faz fluir.
Na prática, os movimentos de escuta e de diálogo para a pro-
dução e veiculação de informações, observando as tão distintas orali-
dades, culturas e conhecimentos étnicos indígenas acontece, segundo
Anápuáka Tupinambá Hã hã hãe (2018), por causa de um desejo em
comum: o de existir. Isto porque necessitam ser vistos, reconhecidos
e não possuem mais nada a perder. Dessa forma, não participar de ini-
ciativas multimidiáticas é querer excluir a sua própria possibilidade de
comunicação com o mundo:

[...] Quando você coloca terras digitais, quando você cria esse ambiente
de construção, onde o outro é responsável por algo que é dele, ele vai dizer
que é dele: “é minha rádio”. Então, quando todos assumem que a Rádio
Yandê é deles, vão colaborar, vão construir, vão dar opinião, vão criticar e
a gente vai ouvir e vai respeitar isso tudo! E aí, a diversidade étnica apare-
ce. O conceito etnomidiático, ele se aflora! Ele só se demonstra! Ele sai de
linhas mal escritas, redigidas, tortas, pra ficar mais tortas, mas mais bem
redigidas e com formatos, com biomas, com identidades. Essas palavras
simplesmente passam de ser mais palavras e de conceitos, para se trans-
formarem em seres [...] (MUNIZ, TUPINAMBÁ HÃ HÃ HÃE, 2018).

384
A realidade múltipla latino-americana com seus ricos modos de vidas
ameríndios e afro-americanos foi reduzida, como nos lembra Maldonado
(2011), a termos pejorativos como “bagunça”, “atraso” e aos anacronis-
mos sociais medidos por parâmetros de vida estadunidense, compreen-
dida como o que há de mais moderno. Essa ocidentalização, não apenas
nos invade como é internalizada como único parâmetro possível para a
construção do nosso pensamento, como nos traz Kusch (1978). No entan-
to, o filósofo argentino coloca que o pensamento popular nos aponta para
outra forma de ser, algo que nos exige procedimentos e metodologias que
reconheçam esses saberes como pensamentos autênticos. Para isso, diria
Martín Barbero (1988), é preciso romper com a imposição de uma simu-
lação de modernidade tecnológica, condição empurrada por países ricos
que forçam a tarefa de aplicá-la e consumi-la. Na prática, significa quebrar
com as mesmas concepções de ciência, de estudo científico e de sua função
na sociedade engendradas por um modelo funcionalista de matrizes verti-
cais e unidirecionais, que seguem vivas e sobre as quais se pensa a história
e a dominação de modo racional, oculto e justificado.
A comunicação acontece no cosmos, nos rios, nas montanhas e
quando a despersonalizamos, considerando apenas como atributo exclu-
sivo dos seres humanos, esses lugares se tornam não apenas resíduos da
atividade industrial e extrativista. Para Ailton Krenak (2019) é como se
assinássemos o divórcio de interação e integração com a nossa Mãe Terra
que aos poucos nos deixa órfãos de suas sabedorias. É preciso adentrar,
como argumenta Kusch (1978), no solo e nos símbolos para resgatar o
vínculo com o absoluto. Aventurar-se, pois, pela psicosfera humana, vol-
tando à consciência natural, para a compreensão dos sintomas do mundo
e de como o espírito do ser humano nos comunica. A comunicação, não
como cérebro e sistema central de um organismo cuja a função é a so-
brevivência, mas a comunicação como alma-palavra, que na cosmovisão
Mbyá Guarani, é ação em carne viva e se concretiza no desafio diário de
“el saber escuchar la palabra, el saber hacer escuchar la palabra, el saber
hacer fluir la palabra, el saber decir la palabra” (MAIDANA, 1993, p. 218).
Se claras estão “as carências das elites ineficientes, medíocres e ig-
norantes que nos governam”, do mesmo modo não podemos mais fechar
os olhos para as “formas de vida comunitária que conservam formas cola-
borativas, tribais, ritualísticas e de solidariedade como elementos centrais
de sua vida cotidiana e produtiva” (MALDONADO, 2011, p. 4). A partir
de culturas com suas cosmovisões, cosmologias, sabedorias ancestrais mi-
lenares, podemos pensar a etnomídia indígena como território de comuni-
cação alter/nativa, escrita desta maneira por Torrico Villanueva (2016),

385
para sublinhar o poder de alteridade do cidadão nativo frente à comuni-
cação, com a possibilidade de (re)construir um outro nativo, considerando
não apenas a dimensão geográfica, mas refletindo esta ambiência sobre as
circunstâncias a partir das quais se elabora o pensar (KUSCH, 1978).
A etnomídia indígena proposta pela Rádio Yandê busca uma comu-
nicação mais humana, social, comunitária, inclusiva e democratizante, na
promoção do diálogo e da escuta de seres, espíritos, valores, saberes e nar-
rativas de culturas ancestrais. Constatamos um veículo multimidiático de
resistência que luta contra os processos hegemônicos de exclusão social
(SOUSA SANTOS, 2006), uma alter/nativa aos modos dominantes de
desenvolvimento e de conhecimento, ao agregar linguagens dos meios,
dos códigos, das percepções, do reconhecimento dos meios de enunciação
do popular e do étnico.

Referências
CHION, Michel. Audiovisão. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2011.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed. - São Paulo; Com-
panhia das Letras, 2019.
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una Antropología Filosófica Americana. Bue-
nos Aires: Ediciones Castañeda, 1978.
MAIDANA, Elena. Claroscuros de un devenir. In: ALMIRÓN, M. A.; ABINZA-
NO, R. C.; OKADA, C. T.; KOWALSKI, A. E;. In: Después de la piel: 500 años de
confusión entre desigualdad y diferencia. Dossier de la revista CON-TEXTOS.
Departamento de Antropologia Social da Facultad de Humanidades y Ciencias
Sociales – Universidad Nacional de Misiones Argentina, 1993, pp. 217-225.
MACHADO TUPINAMBÁ, Renata. Etnomídia, uma ferramenta para a co-
municação dos povos originários. Texto escrito para a publicação online Bra-
sil De Fato em 11 de agosto de 2016. Disponível em https://www.brasildefato.
com.br/2016/08/11/etnomidia-por-uma-comunicacao-dos-povos-originarios/
MALDONADO, Alberto Efendy. Pesquisa em Comunicação: trilhas históricas,
contextualização, pesquisa empírica e pesquisa teórica. In:______. Metodolo-
gias de pesquisa em comunicação: olhares, trilhas e processos. 2. ed. Porto
Alegre: Sulina, 2011.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Retos a la investigación de comunicación en América
Latina. In: ______. Procesos de comunicación y matrices de cultura / Itinera-
rios para salir de la razón dualista. Barcelona: Gustavo Gili, 1988, pp.82-97.

386
MUNIZ TUPINAMBÁ HÃ HÃ HÃE, Anápuáka. Entrevista concedida a Ra-
quel Gomes Carneiro. Rio de Janeiro, 20 mai. 2018.
______. “Mídia de massa não funciona para propagar comunicação indí-
gena”: um dos fundadores e coordenadores da Rádio Yandê, fala sobre as tec-
nologias de comunicação indígena, da pintura corporal à produção audiovisual,
durante o evento Mekukradjá - Círculo de Saberes, ocorrido no Itaú Cultural.
São Paulo, 6 de out. 2017. Disponível em https://soundcloud.com/itaucultural/
anapuaka-tupinamba
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma epistemologia do Sul. In: A gramá-
tica do tempo: para uma nova cultura política [Para um novo senso comum.
A ciência, a o direito e a política na transição paradigmática. Volume 4]. Porto:
Edições Afrontamento, 2006.
TORRICO VILLANUEVA, Erick R. Hacia la Comunicación decolonial. Se-
rie Integrar. Volumen Nº2. Sucre, Bolivia: Universidad Andina Simón Bolívar
(UASB), 2016.

387
quAndo o nArrAdor se cAlA e fAz-se urgente ouvir
o “outro”, enquAnto ele existe: “cedo-lHe pois, muito
contente, A pAlAvrA (ou A fAlA?... e A voz?...)...”

Renata de Oliveira Klipel 1

A obra de Ruy Duarte de Carvalho se constitui pela diferença, pela


mistura, pela multiplicidade e, consequentemente, pelo estranhamento.
Sua escrita acaba por refletir a formação diversificada do autor que, nasci-
do em Portugal, nacionalizou-se angolano, foi poeta, antropólogo, artista
plástico e cineasta. Este trabalho propõe uma análise do fazer literário
de Ruy Duarte como forma de reconhecimento de diferentes modos de
existir; tendo como objeto de estudo o livro As paisagens propícias (2005),
segundo volume da trilogia Os Filhos de Próspero.
É perceptível, na obra de Ruy Duarte, uma quebra com os pactos de
leitura convencionais: enquanto numa autobiografia, o leitor pressupõe
que tudo que é narrado pelo autor foi por ele vivido; numa ficção, não há
essa pretensão. Ruy Duarte propõe uma ficção (é o que está escrito na
capa do livro), mas que é assumidamente repleta de dados autobiográfi-
cos, colocados de uma forma que não se sobressaia a sua verificabilidade
para com a realidade. Transforma sua vivência com os povos pastoris do
deserto do Namibe em acervo referencial para sua construção narrativa.
Para tratar desta escrita que se confunde entre ficção e relato etno-
gráfico, tomei como apoio a tese de Diana Klinger, Escritas de si, escritas do
outro: auto-ficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea.
Klinger apresenta como uma característica da narrativa contemporânea,
a particularidade de ela se construir numa ambivalência entre a ficção e
a não-ficção. Aspecto muito explorado por Ruy Duarte, como vemos na
citação: “Mas este, assim, será também o diário de quem? Do narrador,
talvez sem dúvida, mas também daquele que tem o nome na entrada do
livro” (CARVALHO, 2005b, p. 12).
O aspecto autobiográfico é bastante importante na escrita etnográ-
fica pós-moderna. Klinger assinala que a antropologia pós-moderna, as-
sim como a literatura, é marcada pelo retorno do autor, pois passa a haver
uma autorreflexão do pesquisador, que questiona sobre si para melhor en-

1 Graduada pela Sorbonne Université em Langues, Littératures et Civilisations étrangères


et régionales, no percurso “Portugais” (2016). Licenciada em Letras - Português/Francês
pela UFRGS (2018). Email: renataklipel@gmail.com
389
tender o outro. Citando Klinger, “deixando ao lado qualquer pretensão de
objetividade e de neutralidade científicas, os textos da antropologia pós-
-moderna narram experiências subjetivas de choque cultural” (KLINGER,
2006, p. 13). Há uma mudança nas definições de sujeito e objeto, pois se
percebe que a pesquisa antropológica lida, além da subjetividade do obje-
to, com a subjetividade do antropólogo. Deste modo, o antropólogo busca
desenvolver interpretações ao seu modo por meio do trabalho de campo.
Narram-se experiências, não verdades incontestáveis.
A posição de Ruy Duarte é estritamente pós-moderna quanto à sua
forma de relato etnográfico. Afinal, o escritor abre um amplo espaço para
se colocar como personagem e expor a sua subjetividade quanto à expe-
riência de estudo. Colocando reflexões pessoais, metalinguísticas, políti-
cas e sociais, a partir desta vivência, evidenciadas no trecho a seguir:

E diz mais e não resisto em alinhar, a alinhavar, porque por mais ficção que
isto tudo também tenda a ser, ou venha a ser, ou queira ser, não sou capaz,
constato uma vez mais, de me impor o exercício para mim contra-natura,
de tentar articular só anedotas capazes talvez de cativar toda a gente... (de
qualquer maneira o que estou a ordenar não é para publicar assim, estou
só a arrumar) (CARVALHO, 2005b, p. 159).

Portanto, a escrita de si, em Ruy Duarte, está relacionada ao intuito


de se fazer uma escrita do outro. Neste processo de escrita de si, acaba
por tornar-se personagem de si próprio; o que demonstra uma coerência
com a forma de pesquisa etnográfica pós-moderna. Ruy Duarte se inseriu
entre os pastores, tendo vivido com eles durante um período significativo,
como consta na sua autobiografia. É compreensível que ele se coloque não
apenas como antropólogo ou autor, mas também como um observador
que partilha da vivência daqueles que narra, integrando-se, além do espa-
ço real, também ao espaço narrativo.
Contar uma experiência vivida não é algo inédito na literatura con-
temporânea, contudo, a escrita de Ruy Duarte não é menos surpreendente
por causa disso. Sua ficção é carregada de uma escrita que desacomoda o
leitor de muitas formas: uma aparente indefinição de gênero literário, re-
ferências diversas e por vezes confusas a outros textos, além de fazer uso
de uma linguagem densa e profunda, com a intenção de desterritorializar
o leitor, de colocá-lo numa outra perspectiva de mundo. Como afirma Isa-
belita Crosariol, “experiências sociais silenciadas pelo poder são expostas,
com o intuito de expandir aquilo que se conhece sobre o presente e o
passado angolano, e aumentar as possibilidades de experimentação social
no futuro” (CROSARIOL, p. 13). Sua escrita tem o propósito de mobilizar
390
o leitor, seja pelo seu conteúdo como pela sua forma, desautomatizando
seu olhar a partir de todos os recursos que cabem ao autor. As constantes
reflexões metalinguísticas sobre as funções das instâncias narrativas tam-
bém acabam por servir como provocação ao leitor, que é estimulado a se
questionar sobre aquilo que lê. Essa sensação de dúvida é também desen-
volvida ao trazer fatos históricos à sua ficção, muitas vezes obrigando uma
pausa para o esclarecimento do intertexto durante a leitura. Compreen-
de-se que a descolonização da palavra e do pensamento passa diretamente
pela forma de narrar.
As paisagens propícias inicia com uma reflexão metalinguística, em
que fica clara a presença do autor para além do narrador:

Que autor, de facto, não terá sonhado escrever um livro que seja quem for
o venha a abrir numa hora qualquer para encontrar aí uma cumplicidade
que talvez nem sempre lhe tenha assistido ao longo do seu próprio destino,
ou uma ou duas páginas que as possa sentir escritas não só para si mas
também por si mesmo? (CARVALHO, 2005b, p. 11).

Este questionamento sobre a finalidade da sua escrita perpassa todo


o livro e está em conformidade com a ambição de se fazer uma literatura
propriamente angolana e para angolanos. Contudo, fica evidente também
que a angolanidade encontrada pelo escritor se faz para, e busca se fazer por,
aqueles que não têm a mundividência ocidental, não correspondendo com o
ideal de estado-nação espelhado em Luanda. Sua escrita é um meio de pos-
sibilitar aos Kuvale uma identidade angolana e de questionar a folclorização
dos seus saberes e do seu modo de vida nômade. Percebe-se no trecho a
seguir a consciência da dificuldade de se construir uma identidade angolana
e a possível manipulação do discurso em favor de interesses externos:

Severo [...] sabia que não era bem assim, nem ia ser simples assim o que
estava para dar-se em Angola, a exaltar a cor local de solidariedades mar-
ginais e de circunstância e a pôr isso a cozinhar no caldeirão nacionalista.
Eram coisas que andavam, afinal, a ser recuperadas, também, pela cozinha
do império (CARVALHO, 2005b, p. 75).

Voltando à questão do papel desempenhado pelo narrador no livro,


há um “progressivo deslocamento da voz narrativa principal do ‘eu’ para
o ‘tu’”, como aponta Sonia Miceli (MICELI, 2011, p. 7), já que o narrador
passa a ser cada vez mais o destinatário de narrações e menos produtor
delas. É curioso pensar que essa transmissão mimetiza, de certa forma,
a dinâmica narrativa do próprio romance, pois Ruy Duarte coloca seu

391
“eu” no narrador, que por sua vez vai se colocar em personagem, como
receptor de e-mails de Severo, para, afinal, passar seu papel de narrador
ao próprio emissor das narrações, Severo; transcrevendo simplesmente as
suas palavras, marcadas pelo itálico.
Se em Os papéis do inglês, o narrador, um etnógrafo, utiliza do pre-
texto de escrever cartas a uma interlocutora para passar seu conheci-
mento sobre o sul de Angola; em As paisagens propícias este narrador irá
articular “a estória verdadeira, neste caso a viagem, vivida como ficção”
(CARVALHO, 2005b, p. 13) e “um caderno onde já antes registou o que
alguém que tinha coisas para revelar contou àquele que irá narrar-lhe a
estória agora” (CARVALHO, 2005b, p. 12). O narrador tem, portanto, a
função de organizar as narrações de Severo, e de elaborar um livro, que é
apresentado como inacabado, estando em processo de confecção, processo
este do qual o leitor participa:

O que o narrador tem aqui a fazer, [...] é para dar a essa sucessão de frases,
ideias, lembranças, observações, comentários, exegeses, uma ordem, para
seu governo, que depois dê para achar uma maneira qualquer de tornar
isto publicável. Umas vezes transcrevendo, outras reportando-se aos con-
teúdos que o texto fornece para ir entrelaçando os fios com que fabrique,
acrescente, enrole, aumente o cordão da narrativa, o fio da narração que
está a ver se tece, se acontece (CARVALHO, 2005b, p. 140).

Esta confluência de registros é uma estratégia narrativa muito usa-


da por Ruy Duarte, pois ela possibilita trazer ao texto uma multiplicidade
de vozes distintas para compô-lo, o que reflete a sua experiência como
cineasta e antropólogo – áreas em que ele explorou esta técnica de dar
espaço para a voz do outro. Além disso, a consciência de se representar
em certos momentos a oralidade na escrita faz com que o autor possa
desenvolver certos recursos gráficos como o uso do itálico e dos pontos
finais que preencham parte da página para marcar o silêncio, a reflexão, a
respiração, como o próprio narrador explica:

Premir a tecla que imprime o ponto até achar que se deteve o justo tempo
que lhe convém para inscrever respirações da fala [...] debitar palavras
mas ao jeito da maneira da fala [...] fazer intervir na escrita esses silên-
cios que acomodam a fala... imobilizam, agitam ou encapelam a cama de
silêncios que a expressão aciona, singrando sintaxes [...] (CARVALHO,
2005b, p. 227).

Portanto, as concepções de narrador, personagem e escritor são com-


pletamente misturadas e confundidas. Essa quebra de forma e de estética,
392
mas também de conteúdo, é um convite à desvinculação do pensamento
ocidental. Duarte se mostra extremamente consciente da renovação do
colonialismo em neocolonialismo e globalização e ao valorizar esses po-
vos pastoris deixados à margem da História, o autor traz reflexões sobre
as consequências do colonialismo na sociedade angolana. Esta crítica à
ocidentalização pode ser vista no seguinte trecho de As paisagens propícias:

[...] o presente africano num processo de expansão ocidental que a desco-


lonização não interrompe, apenas adequa [...] e de que a expressão política
mais imediata será a de que os mais apetrechados em técnicas, em tecnologias,
e tanto no que diz respeito aos de dentro como aos de fora, impõem as suas
dinâmicas, as das suas vantagens, a todos [...] (CARVALHO, 2005b, p. 326).

Assim, podemos identificar, na sua escrita, uma proposta de des-


colonização do saber e do poder, pois impulsiona um “desacomodamen-
to” dentro do pensamento ocidentalizado que já está difusamente na-
turalizado em muitas sociedades. Demonstra profunda consciência das
consequências do processo de ocidentalização, trazendo reflexões crí-
ticas que não se limitam ao território angolano ou africano; pois põem
em causa todo um modo de viver que tem como base resquícios da
mentalidade colonialista.

Referências
BASTO, Maria-Benedita. “Danse de l’histoire, écritures mobiles: enjeux contem-
porains dans les littératures de l’Angola et du Mozambique”. L’Afrique au-
jourd’hui: lettres et cultures. Paris: Revue de littérature comparée, edição: Ou-
tubro – Dezembro de 2011.
CARVALHO, Ruy Duarte. As paisagens propícias. Lisboa: Cotovia, 2005b.
______. Uma espécie de habilidade autobiográfica. Lisboa: Jornal de Letras,
2005a. Republicado em Buala (site): Cultura Africana Contemporânea. Coord.
Marta Lança, 2010. Disponível em http://www.buala.org/pt/ruy-duarte-de-
-carvalho/uma-especie-de-habilidade-autobiografica
______. Os papéis do inglês, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CROSARIOL, Isabelita. Discurso sobre o discurso: uma reflexão sobre a
obra Os papéis do inglês. Disponível em http://dlcv.fflch.usp.br/sites/dlcv.ffl-
ch.usp.br/files/02_6.pdf

393
KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: auto-ficção e etnogra-
fia na narrativa latino-americana contemporânea. 2006. Disponível em http://
www.poscritica.uneb.br/wp-content/uploads/2014/08/DIANA-KLINGER-
-ESCRITAS-DE-SI.pdf
MICELI, Sonia. Contar para vivê-lo, viver para cumpri-lo: Autocolocação e
construção do livro na trilogia ficcional de Ruy Duarte de Carvalho. 2011. Dispo-
nível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3635/1/ulfl088723_tm.pdf

394
yvyrupA: sem penA nem cocAr, umA perspectivA
sobre o mito fundAdor e A cosmovisão
guArAni mbyá

Suelen dos Santos Villanova1

Mitos são narrativas criadas pelos povos, talvez com a intenção de


explicar a criação do mundo e dar sentido à vida. As mitologias podem
conter histórias de deuses e dos antepassados, refletindo verdades profun-
das para os seres humanos. Ao tentar explicar como tudo começou e como
a Terra e os seres foram criados, surge os mitos cosmogônicos – a palavra
kósmos vem do grego – visão do universo/mundo. Além de explicar o sur-
gimento da Terra, a cosmogonia pretende explicar sobre o Sol, a Lua, o
surgimento de animais, sujeitos e outros seres. Algumas dessas histórias
falam de um universo que no inicio estava escuro, ou que um ser sagrado
criou a Terra e deu início a vida, como na visão judaico-cristã.
Não existem narrativas apenas cosmogônicas ou etnológica, o mito
que abordaremos aqui é poético, místico, faz pensar na relação entre o
real e o imaginário, a natureza e o sobrenatural, o humano e o “divino”. A
maioria das populações originárias acredita na criação do universo e por
tudo que existe nele em contato com entidades sobrenaturais ou espiri-
tuais, através de visões e rituais. Como sabemos, para os colonizadores,
esses povos teriam apenas dois destinos ao pensarem desta forma: a con-
versão à crença do colonizador ou o extermínio.
Livros podem ser queimados, povos podem ser dizimados, as lín-
guas podem desaparecer, mas quando uma história é contada oralmente,
ela vive. Alguém que ouviu a história conta para outra pessoa, que a pas-
sa adiante, até que em algum dia possa ser redigida. O ato de recontar a
história é uma forma de manter viva a tradição e própria história, mesmo
que a história tenha modificações e esteja fragmentada. Os descendentes
dos povos mantém na memória a riqueza de sua cultura e ancestralidade.
Os mitos são, em sua grande maioria, histórias de deuses, semideu-
ses (filhos de seres imortais com os mortais), e de criaturas sobrenatu-
rais, que, às vezes, podem ser consideradas antepassados de cada povo.
Boa parte das mitologias conta grandes feitos de seus heróis: fundadores
de cidades, grandes guerreiros e defensores nas épocas de guerra. Em

1 Mestranda no Programa de Pós- Graduação em Letras, na área de Pós-colonialismo e


Identidades, na UFRGS. E-mail: suelen.villanova@acad.pucrs.br.
395
algumas dessas narrativas, os heróis são tão poderosos que agem como
deuses, dando vida às criaturas, embora tais contos tragam elementos de
cosmogonia, são também mitos heroicos, que falam das figuras míticas
que trazem instruções sobre a vida.
A partir de vários mitos heroicos, Campbell (2007) descreve a jor-
nada do herói ou monomito, como um gênero universal que inclui um
percurso comum, uma série de desafios a serem enfrentados por cada pro-
tagonista até atingir o objetivo final da história – derrotar inimigos, salvar
a amada, ensinar e proteger seu povo, alcançar riqueza ou felicidade.
Campbell (2007) estudou e comparou a mitologia de várias épocas,
deste modo pode entender o que há em comum nas religiões, lendas, fol-
clores e mitos do ocidente e do oriente. Todas as histórias e seus heróis
possuem uma variação de uma única história. E as mitologias têm a mes-
ma sequência de etapas que acontecem e são realizadas pelos heróis, sur-
gindo assim o monomito.
Há dois conceitos sobre o monomito que Campbell (2007) utiliza
baseados nos estudos de Jung, que contribui para os estudos do mito com
sua teoria dos arquétipos, do inconsciente coletivo e dos símbolos arqué-
tipos. Em que os arquétipos são recorrentes dos sonhos e nas narrativas
das variadas épocas e sociedades. O inconsciente coletivo é nome dado ao
suposto local de origem dos arquétipos.
As histórias ancestrais ou mitos fundadores dos povos originários,
contam sobre os espaços importantes, ensinam como cultivar plantas,
criar os animais, como construir, como viver em comunidade e a relação
com a Terra, o arquétipo coletivo se entrelaça com os ritos, com a tradição
e com a língua. O saber está ligado ao território, e assim, podemos nomear
esta relação como ontologia relacional.
Carlos Lenkersdorf (2003) explica em Otra Lengua, Otra Cultura,
Otro Derecho - El ejemplo de los Maya-Tojolabales que os comportamentos e
a língua de um povo se manifestam nas estruturas do inconsciente, e a pró-
pria língua é uma cosmovisão do que se vê. Diferentes línguas, diferentes
visões. Não basta nascer na comunidade, o sujeito deve pertencer e fazer
parte da comunidade para entender o mecanismo e o funcionamento da
organização cultural e linguística da comunidade. A língua é a forma mais
profunda de acessar o saber, e quando desaparece perde a forma do mundo.
O teórico Arturo Escobar (2016), em seu artigo intitulado “Senti-
pensar con la Tierra: Las Luchas Territoriales y la Dimensión Ontológica
de las Epistemologías del Sur”, afirma que os seres, os cânticos, a poesia
e os contos, existem a partir da relação com os territórios. A ontologia
relacional é agir sobre o mundo e o seu modo de ser. É a defesa dos terri-

396
tórios e da diversidade cultural. A territorialidade e a ancestralidade é o
que conecta o ser humano ao sagrado. Segundo o autor, a ancestralidade
surge da memória viva que orienta visionar um futuro, e que os povos
originários vivem em comunidade, compartilham a terra e por isso estão
em defesa dos territórios.
Os conceitos de ontologia relacional e ontologia política que são
desenvolvidos por Escobar (2016), servem para revelar os estudos sobre
as Epistemologias do Sul, e olhar para os saberes periféricos, estigmati-
zados e subalternos – e é o sentir/pensar a Terra, que Escobar (2016)
trabalha em seu texto. Esses saberes contribuem de modo alternativo nos
problemas da atualidade a partir da diferença que as culturas têm. Mas
essa relação vai além da perspectiva, passando pelas trocas, chegando até
uma fagocitação que Rodolfo Kusch (2007) alude em América Profunda,
sugerindo uma conjunção de ser/estar, de existir a partir da relação.
O livro Yvyrupa retrata os fundamentos da criação do mundo. Con-
forme a literatura oral do povo Guarani, e narra os pensamentos e sabe-
res, com uma escrita poética, constituem conexões entre o significado do
mito e a cosmovisão. Assim como na tradição judaico-cristã, descrito na
bíblia “sagrada”, que no princípio tudo era escuro, além da ciência que
explicou o surgimento do mundo, o povo Guarani Mbyá, a partir de sua
cosmologia, também faz sua analogia e acredita que não havia vidas antes
do surgimento da luz e do pai da criação - Nhamandu Tenondegua. E com
sabedoria e amor infinito Nhamandu criou seu assento divino, com cocar
de plumas, com orvalho das flores e surgiu o colibri, o pássaro que voou
no meio da noite e que alimentou o pai da criação.
Nhamandu criou as três origens divinas: a origem das palavras, o
canto divino, o amor infinito, portanto cria a linguagem, o canto dos ritos
e o amor por tudo, é essa a ontologia relacional, que Escobar (2016) diz
que acontece na relação das coisas e dos seres, e só têm definição com o
contato – momento e estado: “Da sabedoria de Nhamandu, da sua chama
e da sua neblina divina, nascem as belas palavras, ayu rapyta. Ele é o dono
da palavra” (POPYGUA, 2017, p. 17).
Os guaranis têm a sabedoria sobre não ocuparem o mundo e sim
habitá-lo. A ancestralidade e os territórios fazem parte da memória viva e
que garantirá o futuro desses povos. Sobre o mito apresentado em Yvyru-
pa está associado ao território e à ancestralidade guarani. Timóteo Verá
Tupã (2017, p. 55 e 56), na fala final do livro, após a apresentação do mito,
acrescenta sobre a importância dos territórios:

397
Nhanderu criou a Terra para que possamos todos viver nela. Apesar de os
Guarani viverem na amplidão e sem fronteiras, desde os anos 1970, muito
tempo depois do desaparecimento das bandeiras e dos bandeirantes, no
Estado de São Paulo, onde cresci, os Guarani Mbya se viram novamente
obrigados a lutar pela defesa de seu território e reconhecimento de suas
Terras, visando à demarcação das aldeias.

A luta pela terra é para que esses povos possam garantir o futuro
das crianças e de suas comunidades, afinal de contas foram os juruá (não
indígenas) que destruíram seus territórios, e por isso a escolha de Popy-
gua (2017) ao trazer a história do mito fundador Guarani. É só lendo e
escutando o que esses povos têm a dizer que saberemos, na prática, que os
territórios e o saber podem desparecer junto com eles, assim como muitas
etnias e línguas que já desapareceram.
Para explicar parte do título deste trabalho “Sem pena nem cocar”, é
uma referência aos estereótipos que muitas pessoas ainda carregam, acre-
ditando que os indígenas vivem com cocar, nus e pintados da cabeça aos
pés. Afinal, índio não pode ter celular? E “branco” – não indígena - não
pode o quê então? É de extrema importância a literatura indígena para
combater a desinformação e servir de resistência aos povos originários.

398
Referências
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira
de Ciência Política, n. 11. Brasília, maio-agosto de 2013, pp. 89-117. Disponível
em http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n11/04
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral.
São Paulo: Pensamento, 2007.
CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón. Prólogo. Giro de-
colonial, teoría crítica y pensamiento heterárquico. CASTRO-GÓMEZ, San-
tiago; GROSFOGUEL, Ramón (Coords.). El giro decolonial. Reflexiones
para uma diversidade epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá:
Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios So-
ciales Contemporáneos y Pontifi cia Universidad Javeriana, Instituto Pensar,
2007. Disponível em http://www.ram-wan.net/restrepo/decolonial/2-prolo-
go-giro%20decolonial.pdf
ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la Tierra: Las Luchas Territoriales y la
Dimensión Ontológica de las Epistemologías del Sur. Revista de Antropología
Iberoamericana, v. 11, n.1, enero - abril 2016.
LENKERSDORF, Carlos. Otra lengua, otra cultura, otro derecho. El ejem-
plo de los maya-tojolabales. IN: ORDÓÑEZ, José Emilio Rolando Cifuen-
tes. El derecho a la lengua de los pueblos indígenas. XI Jornadas Lascasianas.
UNAM: México, 2003.
KUSCH, Rodolfo. América Profunda. [Obras completas – Tomo II]. Rosario:
Fundación A. Ross, 2007.
POPYGUA, Timóteo da Silva Verá Tupã. YVYRUPA - A Terra Uma Só. He-
dra: São Paulo, 2017.
WALSH, Catherine. Geopolíticas del conocimiento, interculturalidad y descolo-
nialización. Boletín ICCI-ARY Rimay, Año 6, n. 60, Marzo del 2004. Disponí-
vel em http://icci.nativeweb.org/boletin/60/walsh.html

399
es saber,
saber es pensar siendo
ViVir

reflexões em
torno das trevas
que acercam
o saber lúcido

seção 5
A sAúde bucAl e do ser numA perspectivA interculturAl
nA educAção escolArizAdA guArAni mbyA de pindo mirim

Adriana Rosa Marques1


Leo Anderson Meira Martins

Introdução

A Terra Indígena de Pindo Mirim situa-se na Estrada do Gravatá,


539, na Colônia de Itapuã. Atualmente, a comunidade é composta por 18
famílias num total de 85 integrantes. As terras, demarcadas pela FUNAI,
foram doadas pelo Estado para os Indígenas Guarani Mbya (os Guarani
fazem parte da família dos Tupi Guarani, do tronco lingüístico Tupi). A
comunidade foi fundada em 10 de setembro no ano de 2000 e é organizada
e representada atualmente pelo cacique Arnildo Vera e demais lideranças.
A Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Nhamandu
Nhemopu’ã (Despertar do Divino Sol) iniciou suas atividades no dia 12 de
agosto de 2011, com suas 40h aulas semanais em dois turnos (manhã e tar-
de). Por se tratar de uma escola bilíngue, conta com professores indígenas
e não indígenas, onde os educandos se alfabetizam em Guarani, sua língua
materna, e em Português. Na educação comunitária, o ensino e a aprendi-
zagem são processos contínuos, dinâmicos e coletivos, envolvendo todos os
integrantes da aldeia nos diversos espaços e tempos. Conforme Mamani
(2010), é uma educação cíclica, na qual cada participante assume, em dado
momento, um determinado papel, de forma rotativa, que contribui para a
expressão das capacidades de cada pessoa e para a valorização das poten-
cialidades de todos, bem como do trabalho coletivo. Por ser uma instituição
estatal, este espaço nos proporciona um diálogo mais direto com a política
externa, com setores e com autoridades governamentais, facilitando a le-
gitimidade dos direitos garantidos pela Constituição Federal, na prática de
uma Educação Escolar Indígena com uma Pedagogia Diferenciada (Projeto
Político Pedagógico da Escola Nhamandu Nhemopu’ã).
Uma vez que a cultura indígena está cada vez mais em contato com
a cultura ocidental e todos os seus costumes, o consumo de açúcares e
alimentos industrializados pelos indígenas vem aumentando, acarretan-

1 Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde,


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
403
do no comprometimento da saúde bucal devido ao aumento da incidência
de tártaros, gengivites, infecções, cáries, e extrações dentárias, além de
outras complicações na saúde integral do ser, que na cultura tradicio-
nal indígena Guarani Mbya, está diretamente atrelada à espiritualidade.
Portanto, o presente trabalho tem como objetivo discutir e avaliar a re-
levância de se desenvolver um projeto escolar indígena que contemple
a prevenção em saúde bucal a partir da cultura e da realidade do povo
Mbya, levantando hipóteses e construções conceituais sobre o tema que
sejam significativas e eficientes para atender as necessidades e as deman-
das apresentadas pela aldeia.

Metodologia

Para apresentar e desenvolver o projeto para a comunidade, foram


realizados Grupos Focais que, segundo Morgan (1997), é uma técnica de
pesquisa em que a coleta de dados ocorre por meio das interações grupais
ao se discutir um tópico especial sugerido pelo pesquisador. Como técnica,
os grupos focais ocupam uma posição intermediária entre a observação
participante e as entrevistas em profundidade.
Para apresentar conceitos que seriam discutidos no projeto, foi cria-
do um Mapa Mental com os estudantes da escola Indígena Nhamandu
Nhemopu’ã. De acordo com Cavalcanti (1998), o desenvolvimento do
mapa mental no ensino sistematizado objetiva avaliar o nível da cons-
ciência espacial dos alunos; ou seja, entender como compreendem o lugar
que vivem. Nesse sentido, a partir de mapas mentais, pode-se conhecer os
valores previamente desenvolvidos pelos alunos e avaliar a imagem que
eles têm do seu lugar.
Além da criação do Mapa Mental, foram estabelecidas práticas
pedagógicas voltadas para a saúde bucal na educação escolarizada indí-
gena por meio da promoção de escovações diárias, de tratamentos para
evidenciação de placa bacteriana, da construção de cartazes, textos, tea-
tros, e de novos mapas mentais bilíngües sobre a saúde bucal a partir da
interculturalidade entre o conhecimento tradicional Guarani e o conhe-
cimento Ocidental.

Resultados e discussão

O primeiro grupo focal foi realizado para averiguar se projeto seria


pertinente ou não na avaliação dos membros da comunidade Indígena de
Pindo Mirim. Assim, foi apresentada ao grupo, a seguinte questão: Com

404
todas as mudanças alimentares atuais devido a introdução de outros alimentos
na dieta da aldeia, é relevante desenvolver um projeto sobre a prevenção e ações
na saúde bucal dos estudantes? A partir deste primeiro encontro onde con-
versarem entre si, os karaí (Pajé/xamã) da aldeia e as outras lideranças,
como o Agente de Saúde Indígena (AIS), Agente Indígena de Saneamento
(AISAN), professores Guarani, professora não indígena, Cacique e comu-
nidade, aceitaram a implementação do presente projeto. Uma vez aprova-
do o projeto, os alunos da Escola Nhamandu Nhemopu’ã construíram um
Mapa Mental bilíngue, ou seja, em português e guarani, com alguns con-
ceitos relacionados com a saúde bucal [Figura 1]. Neste mapa, foi possí-
vel perceber que as crianças estabeleceram alguns conceitos que envolvem
ou afetam a saúde (Texa’i) diretamente - como, por exemplo, o ato de “to-
mar banho”, de “cuidar dos dentes”, de se alimentar e de “tomar água” - e
conceitos que envolvem o tratamento de doenças, como o de “remédio” e
de “médico”. Ficou evidente, também, que as crianças associam ao con-
ceito de saúde, práticas que envolvem a si próprio, a natureza (“saúde do
espaço onde se vive”), a espiritualidade (“casa de reza”) e a família. Nesse
sentido, os Guarani, assim como outros povos ameríndios, possuem uma
sabedoria milenar tradicional de cura que vem acompanhando as gerações
através do Nhemonguetá (aconselhamentos) compartilhados e repassados
pelos mais velhos, assim como o Karai (Pajé/xamã), considerados sábios
dentro da cultura Mbya. Suas práticas religiosas relacionadas a espiritua-
lidade acontecem na Opy (casa de reza e cerimônias), local que realizam
suas conexões com as divindades. Para os Guarani, Deus é Nhanderu e a
saúde do Ser está diretamente conectada com o sagrado; portanto eles uti-
lizam seus conhecimentos medicinais tradicionais de cura para as doen-
ças do corpo e da alma. Conforme Ferreira (2007), os sistemas médicos
tradicionais indígenas estão inseridos em contextos étnicos particulares,
onde os saberes e práticas que promovem a saúde por prevenir e curar
doenças estão associados à religião, à política, à economia, à arte, entre
outros aspectos. Vale ressaltar que os costumes tradicionais Guarani não
se restringem ao passado, mas sim à identidade do grupo, que é neces-
sariamente dinâmica e composta por elementos próprios, permitindo a
caracterização étnica.

405
Figura 1: Mapa mental construído com os alunos da Escola Nhamandu
Nhemopu’ã

Após a construção do Mapa Mental, foi realizado o segundo grupo


focal com as lideranças, a comunidade e a equipe de saúde indígena, ini-
ciando uma parceria com o odontologista, que trouxe um aporte clínico
com suas avaliações, diagnósticos e participação nos grupos de prevenção.
Nesta aproximação, foi realizada enquanto práticas pedagógicas, a apre-
sentação de filmes sobre a realidade de outras etnias indígenas e suas ex-
periências com a saúde bucal, modo de vida e novas idéias para os próxi-
mos encontros. Este tipo de prática foi muito produtiva, além de respeitar
e corroborar com o modo de educação tradicional Guarani, que no qual
é desenvolvido sempre no coletivo entre todas as idades, desta forma os
participantes trouxeram sugestões como de entrevistas com a comunida-
de, teatros, vídeo sobre a vida na aldeia Pindo Mirim e sua relação com a
saúde bucal e do Ser.
No terceiro grupo focal realizado, foram convidadas as mães dos
alunos da escola que, segundo o Agente de Saúde Indígena da Comuni-
dade, estão ligadas diretamente às questões de higiene de suas famílias.
Estavam presentes os professores da escola Nhamandu Nhemopu’ã, as

406
xejary’i (avós), mães, estudantes e alguns pais, o que foi muito produtivo já
que não se esperava a presença dos mesmos. Durante a conversa, bilíngue,
a comunidade trouxe a necessidade de ter um “escovódromo” nas depen-
dências da escola para que a instalação de pias adaptáveis conforme faixa
etária, as escovações e o armazenamento das escovas aconteçam de forma
mais higiênica e eficaz. Os membros da comunidade pontuaram o quanto
está sendo válido o projeto tanto para saúde bucal quanto para discutir a
importância de uma alimentação com menos açúcares e alimentos indus-
trializados, promovendo a consciência de quanto a família é importante
também nesse papel de orientação aos filhos e demais da comunidade.
A educação tradicional indígena pode ser considerada como o pro-
cesso no qual os mais velhos, que já possuem em sua memória pessoal
e as taxonomias culturais, tentam transmitir os saberes aos mais novos,
inserindo-os nesse saber local e próprio. Essa educação se dá prioritaria-
mente pela transmissão oral (ITURRA, s.d). Tendo em vista que o projeto
presente visa educação escolar, de membros jovens, é relevante ressaltar
a importância da participação dos membros mais velhos da comunidade
no desenvolvimento das práticas propostas frente a inevitável interação
existente entre a cultura indígena e ocidental.

Considerações finais

O projeto continua em andamento - faz parte de uma dissertação de


mestrado - e já apresenta resultados positivos em relação aos estudantes
da Escola Nhamandu Nhemopu’ã, que estão desenvolvendo conhecimento
sobre as doenças bucais e o hábito da escovação, que se faz diário na esco-
la. As ações - como grupos, registros, filmes e fotos - são desenvolvidas a
partir das ideias e das necessidades do público-alvo, modificando-as e ou
adaptando-as para a realidade cultural e costumes étnicos tradicionais. O
próximo ponto a ser discutido com os envolvidos é a qualidade da esco-
vação, propondo que esta aconteça também em casa com seus familiares.
A partir do tema central sobre a saúde bucal, o projeto abrangerá outras
questões importantes relacionada à saúde integral do ser, como a alimen-
tação saudável tradicional, dentro de um contexto ainda maior, que para
os Guarani Mbya, é como uma bússola: sua espiritualidade.

407
Referências
CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção de conheci-
mentos. Campinas: Papirus, 1998.
FERREIRA, Luciane O. Limites e possibilidades da articulação entre as medici-
nas tradicionais indígenas e o sistema oficial de saúde”. In: FERREIRA, Luciane
O.; OSÓRIO, P. S. (Orgs.). Anais da I Reunião de Monitoramento. Brasília: Pro-
jeto Vigisus II/Funasa, 2007. Pp. 166-174
MAMANI, Fernando Huanacuni. Vivir bien/buen vivir: filosofía, políticas,
estrategias y experiencias regionales andinas. Lima: Coordinadora Andina
de Organizaciones Indigenas, Morgan, D. L. Focus group as qualitative research
(2nd ed.). Thousand Oaks, California: Sage, 1997.

408
por umA educAção situAdA: reflexões A pArtir
de rodolfo KuscH

Alonso Bezerra de Carvalho1

A antropologia filosófica de Rodolfo Kusch procura indicar outros


caminhos tanto na crítica à razão ocidental quanto no processo de com-
preensão e diagnóstico da cultura latino-americana. Articulando essas
duas posturas intelectuais e investigativas, ele procura mapear, de fato,
o que é histórica e culturalmente específico dos povos que habitam esse
outro lado do mundo. Kusch busca, entre outros objetivos, destacar a pre-
sença de um pensamento novo, arraigado nas manifestações da cultura
popular e americana. Se a marca do Ocidente é universalizar os seus va-
lores, suas crenças e pensamentos, talvez pudéssemos nos exercitar no
sentido de demarcar o que nos é específico, sobretudo a partir do lugar
que “estamos sendo”, que é o continente latino-americano.
Se o pensamento racionalista de influência europeia dominou a ins-
tauração e interpretação de nossa cultura, trata-se de desconstruir essa es-
trutura lógica que se colocava como superior, em detrimento das culturas
autóctones e indígenas americanas. Na base das reflexões kuschianas está a
ideia de que a racionalidade ocidental se centraria no ser, no ente, na coisa,
enquanto a racionalidade indígena se fundaria no estar, no domicílio, no
habitat. Adotando modos de observação próprios da ciência antropológica,
foi a campo aprofundar suas intuições no sentido de se pensar e extrair uma
filosofia autenticamente americana. Segundo Kusch, a experiência america-
na havia gerado uma situação ontológica e epistemológica única, que ele a
caracterizava como um predomínio do “estar” sobre o “ser”.
O pensamento racionalista europeu ao negar o pensamento ameri-
cano transforma-o em um objeto sem vida e sem história, restando-nos
construir um movimento de resistência e de autoafirmação, na busca da
emancipação dos discursos e práticas que nos impedem de expressar nos-
sa própria cultura de maneira integrada e autônoma.

1 Professor Livre-Docente da UNESP, Doutor em Filosofia da Educação pela USP.


Atualmente é docente do Departamento de Educação da Unesp/Assis e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da Unesp/Marília. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa
em Ética, Educação e Sociedade (GEPEES/CNPq). Agência de Financiamento: CNPq/
Edital Universal. E-mail: alonso.carvalho@unesp.br.
409
Para Rodolfo Kusch o medo que sentimos e experimentamos de ser
nós mesmos é resultado do medo inicial em pensar sobre quem somos nós.
Isso deriva, segundo ele, de uma dificuldade, para dizer o mínimo, em pos-
suirmos a nossa própria técnica para pensar, ou melhor, para filosofar. “El
estancamiento del filosofar entre nosotros, la imposibilidad de adelantar,
o empreender un filosofar, se debe seguramente como suele decirse a una
ausencia de técnica para ello” (KUSCH, 2000, p. 9).
O pensar popular, característica marcante do pensamento america-
no, não requer uma técnica ou uma lógica que nos levaria a um saber que
dissesse o como as coisas são. Pretendendo captar o “quê” das coisas, no
pensamento americano o fundamental é o sentido, o conteúdo e não a for-
ma, como tem feito o pensar o europeu. “Volviendo al filosofar, el proble-
ma intrínseco de esta actividad no es de mera técnica, o sea del cómo, sino
tambiém de un algo que se constituye [...] el pensamento culto invierte la
dirección, en vez de apuntar al algo del decir, apunta el cómo” (KUSCH,
2000, p. 10). Kusch crê que é necessário um equilíbrio entre conteúdo e
forma, de tal maneira que possamos desfetichizar a técnica e uma lógica
que promete o progresso como consequência e que tem marcado, inclusi-
ve, a educação burguesa, ao fundamentar o ensino na ideia do progredir e
do avançar, ou seja, em uma concepção de razão que considera tudo passí-
vel de ser dominado, controlado e previsto.

Se enfrenta al caos para encontrar lo previsto. Y para garantizar esto se


usan técnicas. Con esto se mata el tiempo, porque se sustrae la posibilidad
de la novedad. Se perde el miedo a que lo que aparezca sea otra cosa. De
ahí nuestra educación. Se educa a los jóvenes para pre-ver, ver antes, saber
ya lo que se da, y así detener el tiempo, evitar el engorro del sacrifício
(KUSCH, 2000, p. 12).

Segundo Kusch, o que temos visto na América é um grande desní-


vel entre o que este continente era e o que o Ocidente trouxe. De um lado,
o inferior, o inútil e, de outro, o superior e o útil, que tem como objetivo o
progredir, o ascender, o ser alguém, não importa a que custo e a que preço.

Ser alguién implica el afán de serlo y ese deseo se identifica, en este con-
texto, con el progreso, con la sustitución de los frutos por (la acumulación
de) simples cosas, con la obsesión de sumar objetos. Así, la perfección del
ser, em última instancia, implica tener [...] El individuo busca la perfec-
ción y ésta se identifica com um afán de progresso infinito relacionado con
los objetos, um progreso que implica la negación del viejo deseo de mínima
que simplemente pretendia conservar la vida, comprometido con el mero
estar (CULLEN, 2003, p. 53).
410
Influenciados por essa visão europeia, não suportamos o medo e o
estar, pois isso nos angustia, diferentemente do indígena, que ao sentir
medo recorria aos bruxos em busca de ajuda. Para eles, assumir nossa di-
mensão humana é viver a nível da terra e enfrentar nossos temores. Para
nós, isso não é suficiente, pois queremos tudo claro, esclarecido e passível
de ser compreendido pela razão. É como se houvesse um imperialismo da
racionalidade que, na verdade, revela a nossa fraqueza e impotência frente
à totalidade daquilo que deveríamos pensar. Somos incapazes de simbo-
lizar ao pensarmos em termos ocidentais, pois queremos reduzir tudo a
uma relação de causa e efeito.

[...] Ni lo que llamamos cultura nos brinda un saber total [...] Cultura
cotidianamente, supone un saber de libros y de datos igual que en caso de
la ciencia. El mejor ejemplo es la librería. Entrarnos en ella y siempre sen-
timos nuestra inferioridade frente a tanto saber volcado en el objeto libro.
Seguimos viviendo la enciclopedia científica a nível de cultura. Se piensa
que esse saber acumulativo que se da en la enseñanza y que se cristaliza
em la librería es una ventaja del siglo [...] Lo que en el siglo XX se llama
cultura, se reduce entonces a un simple fetichismo (KUSCH, 2000, p. 22).

Diante desse quadro, podemos constatar em nossa sociedade ame-


ricana uma dupla polaridade: de um lado, o “estar no más” e, de outro, o
“ser alguién”, conforme expressões kuschianas. Ou seja, vivemos uma rara
mescla de um não saber da vida íntima ou cotidiana e um saber enciclopé-
dico e acadêmico.

As paixões humanas e o “estar sendo” americano

A ideia de estar no mundo e nada mais (“estar no más”, “estar siendo”)


seja como uma característica da cultura americana, seja como uma crítica
à razão ocidental, como propõe Kusch, nos leva a regressar à história da
própria filosofia, com a hipervalorização da razão esclarecida em detri-
mento de outras dimensões humanas, como a dimensão passional.
Na perspectiva kuschiana, podemos pensar que a postura de não
levar em conta as paixões humanas e o sentimento de medo como um
contraponto ou outro lado da razão ou do ser, é desconsiderar um esta-
do original que precisa ser olhado em sua singularidade e profundidade.
Segundo Kusch, americanizar a filosofia é fazer uma reflexão sobre o con-
teúdo da própria consciência, em que o sujeito não pode ir mais além de
sua vivência, pois é um sujeito fusionado no mundo. Para tanto, temos que
considerar o solo que habitamos, que é o lugar que sustenta a vida e é seu
411
apoio espiritual. A cultura tem que ter uma margem de arraigo, ser consi-
derada como situada em um espaço geográfico. É do solo que emerge toda
uma cultura e toda uma maneira de ser, de pensar, de agir e de falar, enfim,
um ethos. Por isso a ideia de uma geocultura do homem latinoamericano.

Detrás de toda cultura está siempre el suelo [...] Y ese suelo así enunciado,
que no es ni cosa, ni si toca, pero que pesa, es la única respuesta cuando
uno se hace la pregunta por la cultura. Él simboliza el margen de arraigo
que toda cultura debe tener [...] No hay outra universalidad que esta con-
dición de estar caído en el suelo, aunque se trate del altiplano o de la selva.
De ahí el arraigo y, peor que eso, la necesidad de ese arraigo, porque, si no,
no tiene sentido la vida (KUSCH, 2000, p. 109-110).

Portanto, o solo, as paixões, o medo, os sentimentos, o aqui e o agora


de nossa vida, são as características centrais para se pensar e compreender
a singularidade da cultura latino-americana. É o “estar sendo” como es-
trutura existencial e como decisão cultural. Diferente do “ser” que define
e que faz referência à essência, o “estar” assinala e aponta a condição, o
modo exterior de tudo aquilo que existe (ente), sem preocupação com uma
interioridade.
Segundo Kusch, o horizonte simbólico americano destaca o predo-
mínio do estar sem mais, do “estar sendo”, o que implica mais do que aqui-
lo que é enunciado ou dito pelo ser; é um viver puro, é estar domiciliado e
“prendido a un suelo que se da como inalienable” (KUSCH, 2000, p. 238).
Ao desconsiderarmos isso revelamos a nossa própria inautencidade.

Nuestra autenticidad no radica en lo que Occidente considera autêntico,


sino em desenvolver al estrutura inversa a dicha autenticidade, en la forma
“estar siendo” como única possibilidad [...] Sólo el reconocimiento de este
último dará nuestra autenticidad (KUSCH, 2000, p. 239).

Isso quer dizer, explica Kusch, que nas culturas ocidentais, e que é
bem manifesto na América, o ser se sobrepôs ao estar conquistando-o. Po-
rém, a trajetória do estar se confunde com o caos de um mundo que angús-
tia, de um “mundo que é assim” e que deve ser contemplado e vivido, não
no sentido de um progresso e de explicações científicas, simplesmente.
Se de um lado, o mundo do ser europeu aparentemente resolveu
o problema da hostilidade e do medo que o mundo oferece, por meio da
teoria e da técnica, por outro lado, o mundo do estar americano não supõe
uma superação da realidade, mas faz uma invocação a ela, colocando-a e
colocando-se frente a ela. Enquanto o Ocidente cria a ciência e a educação

412
para se contrapor e enfrentar o medo – diríamos, as paixões -, o indígena
se mantém em sua “magia”, em seus rituais, conservando a realidade do
mundo, limitando-se a interagir com a natureza, retirando dela o melhor
proveito, mas com um profundo respeito.

Considerações finais

É inspirado nessas reflexões que talvez seja necessário assumirmos


uma maneira de pensar e de agir, inclusive no campo da educação, a partir
daquilo que foi negado pela positividade ocidental. O que se tem ensinado
nas escolas é uma visão da América distante daquele mundo vivido por
seus primeiros habitantes e que foi ao longo do tempo destruído e des-
considerado, pois está fundada em um pensamento totalizador e em uma
superestrutura idêntica para todos os sujeitos, suprimindo as diferenças.
“Es la América que lucha en contra de la borradura de lo humano y del
sujeto dador de sentido y símbolos” (CHELINI, 2012, p. 5).
Neste sentido, edificar um novo pensar e um novo agir, inclusive
pedagógico, talvez seja necessário para nos contrapor aos impulsos indi-
vidualistas do eu moderno, de matriz cartesiana, e refletir sobre um nós que
não seja metafísico e nem abstrato, mas arraigado em suas origens, situa-
do na terra e em suas raízes. Isso significa dar um passo atrás, voltar a um
estado embrionário que, como uma semente que cresce, possa dar frutos,
enfim, uma semente que germina sem determinismos e que se comprome-
te com o mundo a partir de um “estar sendo”.

La cultura significa lo mismo que cultivo. Pero no sabemos qué cultivar.


No sabemos donde está la semilla. Será preciso voltear a quien la está pi-
sando. Pero pensemos también que esa semilla está em nosotros. Es lo que
me quiso decir aquel brujo de Tiahuanaco. Ucamau mundajja, “el mundo
asi es”. La semilla está de este lado del mundo. Realmente um brujo indí-
gena sabe de estas cosas mucho más que nosotros. Nosotros sólo sabemos
alfabetizar. Es un papel muy pobre. Tendríamos que decidirnos por el bru-
jo indígena. Hagámoslo por América (KUSCH, 2000, p. 111).

Isto significa valorizar e retomar o tema das paixões, do medo, dos


gestos culturais que na América são bastante manifestos, o que seria uma
oportunidade para expressarmos e edificarmos novas instituições e práti-
cas que garantam um ethos americano, que considera o povo como fonte e
riqueza de um novo núcleo existencial.

413
Referências
CHELINI, M. E. J. Kusch y la posibilidad de un nuevo pensar desde el “estar”
americano. Faia, v. 1, n. 1, 2012.
CULLEN, C. Rodolfo Kusch: esbozo de una dialéctica de la subjetividade.
Buenos Aires: UBA, 2003.
KUSCH, R. Geocultura del hombre americano. [Obras completas – Tomo
III]. Rosário: Editorial Fundación Ross, 2000.
TASAT, J. A. & BONFIM, C. (Coords.). Pensar América: pensadores latinoa-
mericanos en diálogos. Caseros/Salvador: UNTREF/UFBA, 2015.

414
educAção trAdicionAl: re-existenciA de modo
de ser guArAni?

Beatriz Garcia Lucio1

Tive meu primeiro contato com o tema ao iniciar uma bolsa de


monitoria com a professora Maria Aparecida Bergamaschi. As conver-
sas com ela, a leitura de textos sobre a cultura e a educação Guarani e
as visitas às Tekoa2 possibilitaram ver, de forma cuidadosa e sensível, a
riqueza de todo o conhecimento e sabedoria, tanto da educação, quanto
do modo de ser Guarani. Também refleti sobre as potencialidades da
incorporação desses conhecimentos em minha atuação como estudante e
profissional da educação. Ao pensar sobre o desenvolvimento da criança
e o próprio espaço escolar durante as pesquisas com a temática da in-
serção das crianças Guarani em escolas (sejam elas escolas tradicionais
ou as chamadas escolas nas aldeias), notei que o simples fato de viver na
aldeia era entendido como a escola da criança Guarani. Procurei com-
preender, a partir disso, no que constitui o chamado Nhande reko (modo
de ser Guarani), qual o papel da educação tradicional nesse processo e,
principalmente, qual a importância da educação tradicional para a exis-
tência e re-existência da vida Guarani.
Ao longo dos estudos que realizei, percebi que seria preciso o co-
nhecimento da cosmologia Guarani para o melhor entendimento deste
modo de ser e estar no mundo. Considerando cosmologia como a “imagem
de mundo que uma sociedade produz para orientar-se nos conhecimentos
e para situar o lugar do ser humano no conjunto de seres” (BOFF, apud
BERGAMASCHI 2005), temos como essencial sua compreensão para que
seja possível o estudo e o conhecimento de qualquer outra sociedade na
qual não estamos inseridos. Além disso, também é preciso compreender
que a “cosmologia indígena é dada pela ordem divina” (KUSCH, 2000), no
caso Guarani, pelo xamanismo.
Segundo Bergamaschi (2005), “as práticas xamânicas, constituem
a realidade numa complexa interação”, considerando real outras dimen-
sões de mundo, o pre-sentimento, a intuição e a fé. Nessa concepção, não

1 Graduanda no Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


2 Locais de vida coletiva, onde se pratica o modo de ser Guarani (Teko- modo de ser,
a- onde se pratica).
415
há diferença entre a natureza, a cultura e as coisas. Tudo compartilha da
concepção de humanidade, pois tudo tem uma origem humana comum.
Todos os elementos, humanos e não humanos, devem estar em harmonia
para que o Guarani esteja espiritualmente bem.
Ainda de acordo com Bergamaschi (2005), no xamanismo “o saber e
os ritos mantém uma estreita relação, uma vez que é por meio dos rituais
que o saber é revelado”, sendo sua figura uma fonte essencial de conheci-
mento de toda a comunidade Guarani, pois essa vê na revelação uma das
principais formas de aprendizagem. Assim, temos na Opy (casa de rezas) e
nos rituais, um símbolo da educação tradicional, uma vez que, ambos es-
paços permitem a transmissão do saber e do modo de ser específico dessa
comunidade. A Opy, dentro das aldeias, é o lugar da cerimônia e do ritual,
mas também de cuidado e harmonia social, “onde a comunidade se encon-
tra para manter-se como todo” (idem). Nota-se aqui a importância dos ri-
tuais para o fundamento da identidade do grupo e para a possibilidade das
pessoas se perceberem como coletividade. Para além disso, são cerimônias
periódicas que marcam e constituem o tempo da aldeia.
Os Guraranis têm a natureza como grande inspiradora da educação.
Como colocado anteriormente, a pessoa, a natureza e a cultura são uma
totalidade inseparável e, ao mesmo tempo que aprendem a se relacionar
com cada elemento, aprendem também a respeitá-los como um todo, com-
preendendo os potenciais e os limites dessa relação. Por exemplo, assim
como a natureza é cíclica, entendem que as pessoas também são, portanto,
cada ciclo da vida é respeitado, reconhecido e ritualizado na e pela comu-
nidade Guarani. Outro exemplo é a relação das crianças com o fogo: desde
pequenas, aprendem, através da interação direta, a lidar com ele.
Na cultura Guarani, o ser humano é formado pela angue (essência
de vida), pela ã (alma telúrica) e pelo ñe’e (espírito). A angue e a ã são
herdadas dos pais e ñe’e é transmitido pelos deuses. Existe ainda uma
diferenciação entre a alma sagrada/divina (ayvukue) e a alma animal/te-
lúrica (asygusa), responsável pelas paixões mundanas. A sensibilidade é o
fio primordial na concepção da pessoa Guarani. Entende-se que a emoção
e o sentimento, assim como os órgãos sensoriais (ouvido e coração) são as
bases da aprendizagem, e, portanto, devem ser permanentemente estimu-
lados. Na concepção ocidental a emoção é malvista e tida como irraciona-
lidade, para os indígenas, a coerência interna é dada pelo afetivo, sendo o
coração um sinônimo de inteligência. Para Kusch (2000), “el coracion há
sido desde antiguo el, organo que, a la vez, ve e siente. Tiene el valor de
um regulador intuitivo de juicio”. Aqui entende-se juízo como algo que é
ao mesmo tempo racional e irracional.

416
Na dinâmica das Tekoa todos são, em certa medida, professores. Os
adultos têm, frente a educação das crianças, uma atitude muito mais pas-
siva contemplativa do que ativa, uma vez que acreditam que a educação
está na cultura de forma integral. Estão ali como observadores, acompa-
nhando as crianças em suas atividades específicas, olhando com cuidado
as atitudes próprias de cada criança, para além do julgamento moral do
que é certo e errado, vendo como esta é e se movimenta no mundo. É in-
teressante ressaltar a perspectiva de não criar expectativas no modo de
agir da criança.
Para os Guarani, os ensinamentos têm relação intrínseca com o
idioma que os produziu, pois sem a palavra não há o existir Guarani. Por
isso, a palavra é uma marca importante da educação tradicional, ela “se
reveste de sabedoria e se materializa em conselhos” (BERGAMASCHI,
2005). Ao invés da repressão, usam a persuasão (realizada através da fala)
como instrumento de educação, sendo persuasão entendida para além de
uma forma de convencimento, um mecanismo de resolução de conflitos,
de ensinamentos, aconselhamento e transmissão de valores tradicionais.
Entende-se as situações de conflito como espaços de aprendizagem para
lidar com as próprias emoções e seus limites. Nas relações, a delicadeza
das palavras e dos gestos é muitas vezes mais forte do que a própria pro-
núncia da palavra, essa delicadeza é um dos fatores que contribui para a
notável tranquilidade dos ambientes e das relações.
Tendo a autonomia como preceito, as crianças são respeitadas como
sujeito de sua própria educação, sendo levadas a observar tudo à sua volta,
pois terão em algum momento que fazer por si mesmas. Por isso, em mui-
tas comunidades as crianças são as únicas que podem circular por todos
os espaços da aldeia. Dentro dessa perspectiva, elas têm poder de escolha
na seleção do que se quer aprender e, com dizem autoras que estudam a
educação Guarani, “é visível o esforço que as crianças fazem para apren-
der, muito maior que a iniciativa dos adultos de ensinar”. São elas que
buscam o conhecimento, predominando a concepção de nunca antecipar
a resposta, mas esperar o momento da pergunta. A não intervenção do
adulto parece ser o que cria a curiosidade nas crianças (...) “talvez essa seja
uma explicação para a esperteza, agilidade e presteza que demonstram os
Guaranis para aprender”.
Outro processo constantemente incentivado na educação tradicio-
nal é o imitar. Por isso é tão importante a convivência entre crianças de
diferentes idades, pois os aprendizados se dão através da observação, ex-
perimentação e, mais tarde, através da imitação dos gestos e das tarefas. A
criança deve ir “buscando assemelhar-se ao outro e a partir daí construir

417
um comportamento próprio”. Dentro das Tekoa, as crianças estão sempre
juntas, cuidando e ensinando umas às outras. Isso pude também observar
nas visitas que realizei às aldeias Guarani Yvy Poty e Jatai’ty durante o
primeiro semestre de 2019.
Do lado de fora das aldeias, vivemos em uma sociedade que entende
a criança como um “vir a ser”, tendo a infância como uma fase incompleta
da vida. Reservamos a elas espaços próprios, como parquinhos, creches, na
tentativa de separá-las dos espaços tidos como “adultos”. Nas escolas, re-
tiramos a autonomia das mesmas frente a própria educação, apresentando
um conhecimento unicamente ocidental, quase que exclusivamente racio-
nal e científico. Fragmentamos esse conhecimento e o parcelamos, acredi-
tando que exista uma etapa adequada para o aprendizado de cada parcela.
Retiramos das crianças a possibilidade de escolha do que, do quando e de
onde aprender, retirando-as de seus lugares de sujeitos sociais e colocan-
do-as como objetos passivos de educação.
Os Guaranis têm a escola como uma porta aberta para o mundo não
indígena, entendem que esta precisa estar aberta para que a criança possa
conhecer esse mundo, sendo sua escolha quando e como frequentar esse
espaço. Ao deixarem para a criança essa escolha, além de contribuir para
a autonomia, tornam esse espaço um ambiente suave, leve e tranquilo,
sendo um ambiente complementar de aprendizagem.
Entende-se que o conhecimento essencial se dá no cotidiano da al-
deia, na convivência com as outras crianças, na escuta atenta aos mais
velhos e na observação da natureza, pois a escola é toda a vida Guarani.
Enxerga-se que o educar na cultura é integral, sendo “educar em todas
as coisas [...] aprender no estar ai, ao dar-se ao mundo”. Segundo Kusch
(2000), o saber indígena se refere “exclusivamente al hecho puro de vivir”.
E talvez resida aqui a possibilidade de existir e re-existir deste povo tam-
bém por meio da educação tradicional.
A educação tradicional se apresenta, portanto, como pressuposto
para a existência e re-existência do modo de ser Guarani, pois é através
dela que são passados os costumes, valores e sabedorias que permitem as
novas gerações vivenciarem o nhande reko. Essa reprodução carrega em si
uma decisão, individual e coletiva, da continuidade indígena na América
(KUSCH, 2000). Sendo assim, a educação é uma forma de resistência, uma
vez que é responsável pela possibilidade do povo Guarani manter-se a si,
sua língua e seus costumes.
Por outro lado, ao permitirem a entrada de escolas nas aldeias, o
povo Guarani busca formas de re-existir, à medida que permite conscien-
temente re-elaborar a vida em condições adversas (BARCELOS), não dei-

418
xando de lado a educação tradicional, mas agregando a ela outra forma
de educação, cada vez mais presentes e necessárias para a existência no
mundo moderno. Como me escreveu a professora Cida, “resistência que se
dá por meio da re-existência que busca espaços para germinar seu modo de ser”.

Referências
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e. Enquanto o encanto per-
manece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. (Tese).
Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal do Rio Gran-
des do Sul, 2005.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas, Tomo II. Provincia de Santa Fé, AR: Edi-
torial Fundación Ross, 2000.
TASSINARI, Antonella. Concepções indígenas de infância no Brasil. Tellus,
Campo Grande - MG, ano 2007, v. 7, n. 13, p. 11-25, 1 out. 2007.

419
educAção escolAr indígenA: refletindo
com o pensAmento de rodolfo KuscH

Beatriz Osorio Stumpf1

Introdução

Desenvolvo, através desse texto2, reflexões sobre cultura indígena,


interculturalidade e Educação Escolar Indígena, a partir do pensamen-
to do filósofo argentino Rodolfo Kusch, junto a observações, diálogos e
percepções provenientes de experiências com a Licenciatura Intercultural
Indígena da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Em janeiro de 2019, tive a oportunidade de vivenciar alguns proces-
sos artísticos, científicos e pedagógicos com indígenas da etnia Assurini
do Tocantins, na aldeia Trocará, município de Tucuruí, no Pará. Como
professora e pesquisadora3, ministrei a disciplina “Interculturalidade
na Educação Escolar Indígena” dessa licenciatura. Na ocasião também
acompanhei atividades das outras disciplinas que estavam sendo ofereci-
das: “Saberes indígenas e estudos de biologia” e “Cultura corporal e povos
indígenas”. No final da etapa, realizamos um encontro com apresentações
dos trabalhos desenvolvidos nas três áreas, o qual proporcionou trocas
de conhecimentos e sugestões mútuas entre os/as participantes. Essas
vivências possibilitaram um conjunto de reflexões, algumas das quais são
trazidas nessa narrativa, tendo como base o pensamento de Kusch, cuja
obra apresenta grande relevância para essas compreensões em função do
seu importante e profundo estudo sobre o pensamento ameríndio, a partir
da investigação com indígenas Quechua no Peru.
Começo o texto com uma contextualização sobre as atividades vi-
venciadas e observadas, com seus métodos e trabalhos produzidos, consti-
tuindo uma caracterização que serve de base para as reflexões posteriores.
Na seção seguinte, desenvolvo reflexões que integram observações e diá-

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universida-


de de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista PROSUC / CAPES – Modalidade 1.
2 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
3 Trabalho de campo integrado ao desenvolvimento de Tese de Doutorado no PPGEDU
da UNISC, Linha de Pesquisa Aprendizagem, Tecnologias e Linguagem em Educação.
421
logos realizados na aldeia, com ideias trazidas da obra de Rodolfo Kusch.
Finalizo o texto com algumas considerações gerais sobre pesquisa, Edu-
cação Escolar Indígena e formação de professores.

Contextualização

Na forma como ministrei a disciplina “Interculturalidade na Edu-


cação Escolar Indígena”, optei por trabalhar no sentido da visualização e
construção de espaços, materiais, métodos e planejamentos interculturais,
conforme concepções Assurini sobre interculturalidade e educação inter-
cultural, de forma reflexiva e em diálogo com outros/as autores/as que
abordam essa temática. Entre as produções da disciplina, destaco a elabo-
ração do Calendário Socionatural e do Levantamento Socioambiental do
território Assurini do Trocará.
O Calendário Socionatural constitui um dos instrumentos pedagó-
gicos que fazem parte do Método Indutivo Intercultural (MII). Conforme
Maxin e Silva (2016), o MII se refere a uma proposta educacional orga-
nizada pelo antropólogo e linguista Jorge Gaschê e seus colaboradores,
na Amazônia Peruana, a qual está consolidada no México e também sub-
sidia trabalhos no Brasil, nas Licenciaturas Indígenas da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal de Rorai-
ma (UFRR). A concepção se fundamenta na reflexão sobre as atividades
territoriais cotidianas de cada povo indígena, vistas como produtoras de
conhecimentos e aprendizagens.
Um grupo de participantes da disciplina desenvolveu esse calen-
dário na Terra Indígena Assuriní do Trocará, com auxílio de colegas e
membros da comunidade. O trabalho foi apresentado na forma do desenho
de um cocar, em que cada pena representa um mês do ano, mostrando as
características do clima, vegetação, comportamento animal e atividades
comunitárias que ocorrem no período. Em cada parte do cocar foi dese-
nhado um conjunto de elementos da natureza e de situações comunitárias,
com grande riqueza de detalhes, mostrando movimentos e possibilitando
a visualização ou a imaginação das pessoas em suas atividades cotidianas.
Outra equipe da disciplina se dedicou ao processo de construção de
Levantamento Socioambiental da Terra Indígena Assuriní do Trocará,
com inspiração no modelo do Levantamento Socioambiental da Terra In-
dígena Waiwai, material produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Com esse trabalho foram desenvolvidos os seguintes temas: infraestrutu-
ra e acesso, recursos financeiros, recursos naturais, roças, venda de produ-
tos da roça e da floresta, pressões e ameaças, saúde e saneamento básico.

422
Foram elaborados textos sintéticos com as principais informações coleta-
das, ilustrados com desenhos representando cada temática. Também foi
construído um mapa do território Assuriní do Trocará, com a localização
dos rios e igarapés e de cada comunidade. Esse processo de construção
proporcionou um repertório de conhecimentos sobre o território da etnia
Assuriní do Tocantins, abrangendo dimensões ambientais, sociais, econô-
micas, culturais, da saúde e da educação, oferecendo potencialidades de
articulação com conteúdos escolares de diversas áreas. Além disso, propi-
ciou memórias e compreensões importantes sobre a história e a situação
atual da aldeia, com reflexões sobre as transformações ocorridas, as prin-
cipais ameaças atuais do território e as demandas comunitárias.
Através da disciplina “Saberes indígenas e estudos de biologia”, fo-
ram desenvolvidas pesquisas com elaboração de roteiros e realização de
entrevistas na comunidade, sobre temas diversos da tradição Assurini.
As pesquisas originaram a produção de materiais pedagógicos para a es-
cola, como cartazes e cartilhas, com informações na língua portuguesa
e na língua assurini. Os conhecimentos foram ilustrados com desenhos
detalhados, representando plantas medicinais, frutos, peixes, artesanatos,
alimentos e pinturas corporais.
Ao longo da disciplina “Cultura corporal e povos indígenas”, foram
desenvolvidos trabalhos de pesquisa sobre as manifestações corporais da
etnia Assurini do Tocantins e seus significados, incluindo danças, esportes
e brincadeiras, através de entrevistas com pessoas mais velhas da aldeia.
Esses trabalhos incluíram uma atividade com apresentação de danças
na escola, formando dois grupos que ensaiaram com turmas de alunos
as músicas Arytinga Se’engara e Wyracakawa. Foram realizadas pinturas
corporais nas crianças, específicas para cada dança, utilizando urucum. O
evento contou com a participação de dois idosos da comunidade, os quais
fizeram demonstrações das danças, orientando os movimentos e cantan-
do junto com as crianças. Após a apresentação, houve uma fala de alguns
professores e do cacique, enfatizando sobre a importância da língua, das
danças, das músicas e da pintura corporal. Essa disciplina também pro-
porcionou a organização de um encontro cultural, no período da noite,
com a presença de grande parte da comunidade, incluindo apresentações
de danças e músicas, discursos e confraternização.
No evento final de apresentações dos trabalhos, foram expostos de-
senhos representando as danças, as pinturas corporais e os animais que as
danças simbolizam, acompanhados pelas letras das músicas, em assurini
e em português. Foi explicado que as letras das músicas, as melodias e os
passos das danças, com seus significados, são recebidos em sonhos pelo

423
Pajé. Nas danças apresentadas, as pessoas representavam animais, com
seus gestos e sons, e com pinturas corporais específicas.

Reflexões

As construções e apresentações das três disciplinas mostraram uma


articulação entre diversas linguagens artísticas, como músicas, danças,
pinturas corporais e artesanatos, sendo todas representadas através dos
desenhos, representando elementos da natureza, mitos, símbolos, mo-
dos de vida, relações comunitárias e com o ambiente. Esse conjunto de
linguagens revela uma expressão identitária em que todas as dimensões
humanas estão integradas, envolvendo conjuntamente aspectos mentais,
físicos, emocionais, relacionais e intuitivos. A imagem recebida em sonho
pelo Pajé se transforma em corpos que dançam, ornamentados e pintados
com materiais naturais, representando animais ou outros elementos da
natureza, proporcionando conexões espirituais. Destaca-se a importância
do simbólico, como um modo de conexão com a natureza local.
Kusch (2009) destaca, na cultura indígena, essa relevância do sim-
bólico, que possibilita o acesso a saberes referentes a uma totalidade
que não pode ser alcançada com um pensamento puramente racional,
explicativo, fundamentado nas causas. Os símbolos, presentes nos mitos,
nos sonhos e nas metáforas, conectam com arquétipos da dimensão es-
piritual, trazendo significados importantes que oferecem o sentido mais
profundo da cultura. O autor esclarece que no pensamento ameríndio
há um predomínio do sentir sobre o ver, pois a realidade é sentida a
nível afetivo antes de ser vista. Este registro da realidade através do
sentimento traz a forte presença da afetividade, que para o pensamento
ocidental tem um tom pejorativo.
O simbolismo e o sentimento se manifestam através da arte, no seu
conjunto de manifestações. A arte indígena possui um papel essencial na
manifestação da espiritualidade e do sentimento, de forma estética, sim-
bólica e metafórica, proporcionando expressões afetivas e transmitindo
mensagens. Ao longo das disciplinas, a arte se manifestou também na for-
ma de um elo que conecta as diversas áreas de conhecimento, bem como
diferentes culturas, constituindo elemento fundamental para registros e
expressões de saberes indígenas. As ilustrações dos trabalhos desenvolvi-
dos mostraram o desenho como importante instrumento de representa-
ção de diversos tipos de conhecimentos e significados, integrando arte e
ciência e revelando sua grande relevância e potencialidade para a educa-
ção escolar indígena.

424
Ao longo das atividades, apresentações, diálogos e materiais produ-
zidos, fui observando vários tipos de conexões entre aspectos da sociedade
que costumam ser vistos de forma separada pelo pensamento ocidental,
como ambiente, cultura, arte, política, espiritualidade, educação e saúde.
Para Kusch (2009, p. 102), a cultura indígena está em função do sentimen-
to de totalidade, o qual se expressa de forma ritualizada, no aqui e agora.
Por trás de toda a cultura está sempre o solo, como um lastro, no sentido
de ter os pés no chão, na forma de um apoio espiritual. A cultura simboliza
uma raiz, sem a qual a vida não tem sentido. Na escola Assurini, esse sen-
timento de totalidade se manifesta em uma prática interdisciplinar, com
estratégias de integração entre diferentes áreas e formas de conhecimen-
to, e na relação dos saberes com o território e com a vida comunitária,
como pode ser observado em depoimentos de estudantes da Licenciatura,
como os que seguem:

Wakamuwia Assurini enfatizou que para trabalhar a interculturalidade


na escola é necessária a criação de metodologias, produção de materiais
pedagógicos, realização de eventos, oficinas culturais, passeios na aldeia
e brincadeiras com as crianças, cabendo aos professores criar estratégias
de participação. A matemática, por exemplo, pode ser trabalhada na prá-
tica, com frutas, sementes e outros elementos da natureza, usando mais
os espaços da aldeia, tirando os alunos da sala de aula. A geografia pode
estar relacionada com o território, fazendo ligações com o cotidiano da
comunidade.

Imuinawa Assurini também ressaltou a importância da interculturalidade


no ensino prático, trazendo o conjunto de atividades ligadas à roça como
exemplo de potencial de pesquisa e prática de temas interculturais, en-
volvendo o preparo da área, o plantio, a colheita e a comercialização de
produtos, trabalhando conhecimentos e valores indígenas e ocidentais.
Iwitoarawia Assurini reconheceu que é mais fácil trabalhar a partir da
própria realidade, pois as crianças aprendem mais facilmente, conseguin-
do compreender e participar mais. A prática faz a criança se desenvolver,
através da criatividade, expandindo seus conhecimentos, com o uso dos
recursos da comunidade, desenhando e escrevendo na própria língua. É
possível demonstrar na prática quase qualquer tema, levando no rio, na
mata, fazendo pesquisa, identificando plantas para remédios e frutas para
alimentação. É interessante envolver toda a comunidade, crianças, jovens,
adultos e velhos, em encontros comunitários.

425
Considerações finais

As memórias de minhas vivências com o povo Assurini, junto à lei-


tura da obra de Rodolfo Kusch, me levam a questionar sobre os impactos
negativos de abordagens convencionais para escolas e cursos de formação
de professores/as indígenas, com direcionamentos para conteúdos, méto-
dos e sistemas de avaliação ocidentais, priorizando a capacidade racional,
de modo desconectado da emoção, da intuição e do cotidiano das aldeias,
com suas artes, línguas e mitos.
Povos indígenas em geral mostram a relevância da espiritualidade,
da arte, do simbolismo e do sentimento na sua educação tradicional, a
qual não está separada de todas as outras dimensões de seu modo de vida
comunitário, como a saúde, a organização social e a relação com o ambien-
te. No entanto, apesar do seu direito, arduamente conquistado, de uma
Educação Escolar diferenciada, na prática ainda existem muitas dificul-
dades na concretização de escolas que mantenham efetivamente trabalhos
integrativos entre os saberes tradicionais indígenas e os conhecimentos
ocidentais necessários em nossa sociedade.
No caso da etnia Assurini do Tocantins, foi relatado que muitos jo-
vens não possuem mais conhecimentos sobre elementos importantes de
sua cultura, como mitos, danças, músicas, pinturas corporais e a própria
língua. Portanto, destaco a importância do trabalho de pesquisa que está
sendo trazido por essa licenciatura, em que os/as participantes atuam
como pesquisadores/as, realizando entrevistas com os mais velhos e re-
gistrando através de textos, ilustrados com desenhos, elaborando mate-
riais pedagógicos e constituindo a investigação como método de ensino e
de aprendizagem.
Finalizo ressaltando a relevância da formação de professores indíge-
nas como campo de investigação e de produção de materiais pedagógicos,
de modo a valorizar a autoria indígena e a contribuir para a revitalização
de importantes conhecimentos ameríndios.

Referências
KUSCH, R. Obras completas. Rosário: Fundación A. Ross, 2009, v. 2, 3 e 4.
REPETTO, Maxin; SILVA, Lucilene Julia da. Experiências inovadoras na for-
mação de professores indígenas a partir do Método Indutivo Intercultural no
Brasil. Tellus, Campo Grande, v. 16, n 30, p. 39-60, jan/jun. 2016.

426
educAção dAs relAções étnico-rAciAis e educAção pArA
mAnejo do mundo: pedAgogiAs emergentes nA AméricA

Carla Beatriz Meinerz1

O trabalho aproxima os conceitos de Educação para as Relações


Étnico-Raciais (ERER), na qualidade de política pública, e de Educação
para o Manejo do Mundo (LUCIANO, 2013), compreendendo-os como
pedagogias emergentes a partir dos saberes construídos na lutas sociais
por emancipação na América. Empresta o conceitos de movimentos so-
ciais educadores e de pedagogias das emergências, de Nilma Lino Go-
mes (2017). Tais pedagogias emergem do protagonismo dos movimentos
sociais em ações vinculadas ao campo da educação, produzindo projetos,
currículos e políticas educacionais. Por movimentos sociais expressa-se
tanto as organizações civis assim reconhecidas quanto as pessoas em mo-
vimento e articulação por causas emancipatórias.
A ERER, aqui compreendida na qualidade de projeto para a socie-
dade brasileira, assumido como política de Estado no ano de 2003, é um
exemplo dessa forma de pensar a pedagogia. Trata-se de uma política
germinada genuinamente em solo brasileiro, na perspectiva da amefrica-
nidade (GONZALEZ, 1988). Foi concretizada, como marco legal, através
da história de lutas e conquistas do Movimento Negro. Enquanto projeto,
atinge toda a sociedade e não se resume às políticas públicas curriculares,
pois pressupõe mudanças nas práticas socioculturais cotidianas. Tais mu-
danças objetivam erradicar o racismo das estruturas pessoais e sociais em
suas práticas usuais. A busca de novos modos de agir e de viver é premissa
que a diferencia, pois pressupõe que educa-se nas e para as relações, para
o bem viver, numa perspectiva multidimensional. Ao mesmo tempo, essa
proposição desestabiliza os modos de educar predominantes nos projetos
hegemônicos, brancos e eurocentradas.
A pedagogia moderna resulta de uma ciência e de um ideário insti-
tucional educativo pautado numa epistemologia própria, não a única, mas
a hegemônica até o momento. Noções como centralidade na cognição,
progresso de aprendizagens, aprendizagens sistematizadas pela ciência,

1 Doutora em Educação. Docente do Departamento de Ensino e Currículo e do Progra-


ma de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
427
resultam em práticas sociais capazes de engendrar uma determinada cul-
tura escolar com saberes específicos. A escola é uma das instituições que
mais incorpora os processos regulatórios próprios da modernidade euro-
peia. No caso brasileiro, como lócus da sociedade, a escola tende a repro-
duzir institucionalmente o racismo. Em nosso país, ao mesmo tempo que
a escola pública resulta de lutas de movimentos sociais para que os grupos
populares a acessem, a permanência dos mesmos no mundo escolar tende
a recriar uma colonialidade do saber e do poder, marcada pela tensão so-
ciorracial e racista.
O processo de emancipação e superação sociorracial (GOMES,
2017) está posto na ERER, na qualidade de resultado de lutas sociais. É
preciso destacar que muitos brasileiros, organizados em movimentos
de pertencimentos étnico-raciais diversos, como os negros e indígenas,
construíram esse processo de reivindicações e lutas, constituintes de posições
e políticas públicas recentes do país. Esse processo deve ser observado em
consonância com movimentos internacionais de acordos, conferências e
posicionamentos diplomáticos relativos a temáticas como o racismo e a
intolerância, interferindo na nossa prática de educadores e compromissos
de cidadãos. Destaca-se a Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Durban, África
do Sul, 2001. Dessas lutas decorrem o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, em 2003, assim como as Diretrizes Curricula-
res Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, em 2004.
A Educação para o Manejo do Mundo, proposta pelo intelectual
Baniwa (Gersem José dos Santos Luciano), propõe a escola como uma
ferramenta estratégica para o conhecimento do mundo branco. Para o
pensador, há um percurso entre a educação para aprender o mundo dos
não indígenas, a educação para perpetuar a tradição e aquela que preten-
de uma interculturalidade. Tal caminho faz a passagem de uma noção da
educação como domesticação do que não se conhece para uma ideia de
manejo, ou seja, do saber fazer, saber lidar com do mundo, o que pressu-
põem saber relacionar-se com todos os seres. Gersem Baniwa, através de
suas práticas de militância e convivência intercultural, etnografa os povos
do Alto Rio Negro, em sua relação com a escola e o mundo não indígena,
lembrando o Guaman Poma de Ayala narrado por Rodolfo Kusch.
As Ciências Humanas, em geral, e a área da Educação, em específico,
foram tensionadas epistemologicamente e pedagogicamente pelas pautas
do Movimento Negro e Indígena. A presente aproximação de pedago-
gias emergentes se alinha ao objetivo de “reconhecer e tornar credíveis

428
os saberes produzidos, articulados e sistematizados pelo Movimento Ne-
gro para a prática e para o pensamento educacional” (GOMES, 2017, p.
137 e 138). Dialoga com a perspectiva da interculturalidade crítica e da
decolonialidade (WALSH, 2013), na medida em que destaca o papel do
diálogo com os movimentos sociais para a descolonização dos currículos
(GOMES, 2012) de história.
Busca respostas parciais dentro do referencial teórico acerca das es-
pecificidades do racismo no Brasil, num contexto de estruturas socioeco-
nômicas de dominância, marcadas pela extrema desigualdade social pró-
pria do desenvolvimento das sociedades capitalistas. Tais estruturas em
dominância são interseccionadas pela chave de leitura do racismo como
central na concretização das relações de poder na sociedade. Em outras
palavras, no caso brasileiro, o racismo estrutura as relações de poder nas
práticas sociais vividas no cotidiano. Segundo Fanon (1969),

o surgimento do racismo não é fundamentalmente determinante. O ra-


cismo não é um todo, mas o elemento mais visível, mais cotidiano, para
dizermos tudo, em certos momentos, mais grosseiro de uma estrutura
dada (p. 35).

A ERER e a Educação para o Manejo do Mundo são como pos-


sibilidades numa encruzilhada, pontos de encontro e pretensões de ca-
minhos que pressupõem a subversão da palavra política e o direito ao
auto pronunciamento. Rompem com tradições hegemônicas no campo
da produção de saberes e fazeres na educação. O enfrentamento de difi-
culdades na implementação das mesmas, na qualidade de políticas públi-
cas, fundamentadas em manifestações de racismo institucional, já pode
ser observado em práticas de investigação acadêmica ou de fiscalização
civil e governamental.

429
Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP n. 003/2004 de 10
de março de 2004. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 maio 2004.
FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana. Lisboa: Livraria Sá da Cos-
ta, 1969.
GOMES, Nilma Lino. O movimento Negro Educador: saberes construídos
nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
______. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Cur-
rículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, 2012.
GONZALES, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo
Brasileiro, n. 92/93, pp. 69-82 (jan./jun.), 1988.
LUCIANO, Gersem José dos Santos. Educação para manejo do mundo: entre
a escola ideal e a escola real no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Editora Con-
tracapa; Laced, 2013
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação.
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xe-
nofobia e Intolerância Correlata. Durban, África do Sul, 2001.
WALSH, Catherine. Introducción. Lo pedagógico y lodecolonial: Entretejiendo
caminhos. In: ______. Pedagogias Decoloniales: Prácticas insurgentes de
resistir, (re) existir y (re) vivir. Tomo I. Serie Pensamiento Decolonial. Quito,
Ecuador, noviembre 2013. Pp. 23-68.

430
método KuscH: lA voluntAd entre el estAr y el
“ser”-ego: el cAmino del estAr-siendo pArA un nuevo
pensAmiento AbyA yAlense (“AmericAno”)
[rodolfo KuscH filósofo de lA liberAción]
Carlos Francisco Bauer1

Después de la Revolución Inglesa adviene la Revolución Francesa


y contiguo sucede la Revolución Fundamental llevada a cabo por Kant y
el idealismo alemán. En lo epistemológico acontece el primer manifiesto
racionalista con el Discurso del Método de R. Descartes, el primer mani-
fiesto empírico con el Novum Organum de F. Bacon, conjuntamente con
el empirismo de Hume, corrientes que serán compactadas en la arqui-
tectónica epistemológica kantiana como el gran decreto que fundamenta
al idealismo alemán consumado para su posterior desarrollo sistemático.
Este decreto sella el acceso al en-sí. Determina que ya no hay mas accesi-
bilidad a ese en sí, es decir, ya no hay un puente que una a la voluntad con
el en sí. Por lo tanto, desde este decreto se establece que ya no es posible
volver a la mirada ingenua de los clásicos, a este respecto se refiere al caso
específico de los griegos y medievales. Pero esta visión extenderá sus pre-
juicios al resto de la diversidad cultural tachándolas de ingenuas, míticas,
supersticiosas, etc. Se trata del eurocentrismo en su esencia, el que viene
siendo construido desde 1492.
Desde este particular ángulo de visión arquitectónica, se va abar-
cando no solo a lo griego y medieval, sino a todo el globo cultural. Por
ello todo conocimiento y cultura que no sea arquitectónica, racionalista,
empirista, etc., no tendrá conciencia de sí, será prelógica, precientífica,
mágica, mística, bárbara, incivilizada, salvaje, etc. Nos referiremos solo
a Rodolfo Kusch entre los varios autores que han desbaratado esta Revo-
lución Fundamental del naciente idealismo alemán. Desde esta perspec-
tiva es que el trabajo de este autor cobra una importancia capital. Kusch
es uno de los filósofos argentinos que con mayor radicalidad lleva a
cabo un asalto a esa Revolución Fundamental. Su camino transita entre
un sinuoso ontologismo y una escarpada interculturalidad. Diciendo
y demostrando que es posible, desde este presente, volver a esta mirada
“supuestamente ingenua” y “antigua”, para su caso aborigen y america-
na, para saber quiénes somos y para aprender a conocernos nuevamente.

1 UNILA. carlosfrancisco120@yahoo.com.ar
431
No se trata de una mera vuelta al pasado, sino de una actualización de
lo profundo de América. Esta es una condición sine qua non para pro-
yectarnos en el futuro, o mejor, para poder vivir armoniosamente (buen
vivir), integrándose en la naturaleza en lugar de destruirla, ya que nos
desintegramos con esa destrucción.
Recorreremos la obra de Kusch a fin de mostrar su camino hacia
(método) el estar y el estar-siendo. Pensamos que el autor nos propone
un método o como dijimos un camino hacia una parte profunda de nuestra
realidad nuestro-americana. Se trata de un elemento profundo de nuestra
realidad, pero no el único y señalarlo de esta manera hace parte de la pro-
puesta metodológica que aquí presento para llamar la atención sobre la
apertura a otros elementos profundos constitutivos de nuestra y vuestra
América2, develándonos otras claves de nuestras particularidades y que
por lo tanto deberemos seguir indagando, de acuerdo a las respuestas que
aun buscamos y precisamos. Solo dejaré las ventanas abiertas pero no
desarrollaré estos otros elementos porque excederían los límites de este
escrito. Por todo esto proponemos este título en nuestro trabajo con el
sentido de establecer un atajo por ciertos ramales principales. Las poste-
riores citas relacionadas que recorreremos de acuerdo al develamiento de
este aspecto de la realidad (Estar/Estar-siendo), es para que los mismos
sean vislumbrados con mayor afinidad, proximidad y apertura de vincula-
ción con otros elementos fundamentales de nuestra realidad histórica que
he tratado en otros trabajos y que abordaré en escritos posteriores.

2 Véase Bauer, Carlos: La huella de Haití entre el latinoamericocentrismo y la historia univer-


sal. Otro camino para descolonizar nuestra historia, cultura y estado. Notas para un proceso de
liberación permanente. Editorial UNC, Córdoba, 2016.
432
Referencias
BAUER, Carlos: La huella de Haití entre el latinoamericocentrismo y la his-
toria universal. Otro camino para descolonizar nuestra historia, cultura y
estado. Notas para un proceso de liberación permanente. Córdoba, Editorial
UNC, 2016.
BAUER, Carlos: Anápolis. Comunidad inclusiva, ecológica, económica, plu-
ricultural. Un proyecto ético-político para la construcción de una institu-
cionalidad analéctica o un modelo factible de integración social y preser-
vación de la vida. Córdoba, UNC, 2016.
BAUER, Carlos: El vuelo del colibrí. Goiania, Editorial Phillos, 2019.
CULLEN, Carlos: La América Profunda busca su sujeto. De cómo entiende
la filosofía Rodolfo Kusch https://www.academia.edu/7823098/La_Am%-
C3%A9rica_Profunda_busca_su_sujeto_De_c%C3%B3mo_entiende_la_filoso-
f%C3%ADa_Rodolfo_Kusch
DÍAZ FERRERO, Irene: Sentido y tensión. La polaridad en la antropología
de Rodolfo Kusch. Tesis de Licenciatura cedida por la autora, S/F.
DUSSEL, E.: Ética de la Liberación en la Edad de la Globalización y de la
Exclusión. Madrid, Editorial Trotta, 2006.
DUSSEL, E.: Política de la liberación. Historia mundial y crítica. Volumen
1. Madrid, Editorial Trotta, 2007.
EINISMAN, Carlos G.: “Reflexiones en torno a lo geocultural”, Cuartas Jorna-
das del Pensamiento Filosófico Argentino “La obra de Rodolfo Kusch”, Ho-
menaje a los 10 años de su muerte, 2 al 4 de Noviembre, Buenos Aires, 1989.
KUSCH, R. G.: Obras completas. Tomo I. Rosario, Editorial Ross, 2000.
KUSCH, R. G.: Obras completas. Tomo II. Rosario, Editorial Ross, 2000.
KUSCH, R. G.: Obras completas. Tomo III. Rosario, Editorial Ross, 2000.
KUSCH, R. G.: Obras completas. Tomo IV. Rosario, Editorial Ross, 2000.
KUSCH, R. G.: Anotaciones sobre el Popol-Vuh y los Cronistas, S/D.
LANGÓN, Mauricio: “Anotaciones para la filosofía en la liberación, desde Kus-
ch”, Cuartas Jornadas del Pensamiento Filosófico Argentino “La obra de
Rodolfo Kusch”, Homenaje a los 10 años de su muerte, 2 al 4 de Noviembre,
Buenos Aires, 1989.

433
céu, mAr, terrA, corAção... sopremos ventos do sul

Cidara Loguercio Souza1


Ana Maria Netto Machado2

Neste trabalho selecionamos uma crônica e quatro pequenos en-


saios criados por uma das autoras quando preparava sua dissertação de
mestrado para compor novos sentidos. Alguns daqueles foram costura-
dos na dissertação3 no início de alguns dos capítulos. A pesquisa, que
enfocou diálogos interculturais realizados por pessoas Mbyá-Guarani e
pessoas não-indígenas (do meio universitário), dentre as quais a própria
pesquisadora, fez brotar tais retalhos, num estilo um tanto provocativo
para o contexto acadêmico. Aqui alinhavamos esses excertos num tecido
novo, de maneira curta e rápida, como dardo ou flecha (poética): a força
dos ventos do sul. Potência que queremos capaz de operar mudanças não
apenas na mente (à moda eurocêntrica que aprendemos ao longo de nos-
sa alienada formação), mas mente adentro, ou mente afora, atravessando
nossas escritas e também nossos treinados corpos, o coração... afetar,
fazer sentir. Decolonialmente.

Primeiro era o Céu... Era?

1 Licenciada em Educação Física (UFRGS), Bacharela em Museologia (UFRGS), [qua-


se] Mestra em Educação (UFRGS); Técnica em Assuntos Educacionais no Museu da
UFRGS.
2 Doutora em Ciências da Linguagem (Université Paris X), Doutora em Educação
(UFRGS). Integrante da Université International Terre Citoyenne – UiTC.
3 A pesquisa de Mestrado Tecendo diálogos interculturais entre Tekoá e Universi-
dade: experiências de formação na perspectiva da ecologia de saberes foi elaborada
por Cidara Loguercio Souza, sob orientação da Profa. Maria Elly Herz Genro, no âmbito
do PPGEDU/UFRGS. Nela foram enfocados diálogos interculturais realizados por
pessoas Mbyá-Guarani e pessoas não-indígenas, proponentes de uma ação educativa que
se desenvolve em dois espaços prioritários: o Tekoá Pindó Mirim, Terra Indígena Guara-
ni de Itapuã, em Viamão, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em
Porto Alegre.
435
Destituímos deus(es) para crer nA Ciência e nO Método
Instituímos liturgias para manter o temor ao mistério de algo superior a
nós.
Construímos templos acadêmicos para cumprir os ritos e os rituais que
nos consagram.
Quanto mais hipertrofiamos a mente, mais aniquilamos o corpo. Des-
perdiçamos experiências. Desprezamos vivências. Soterramos intuições.
Desmobilizamos as percepções.
Tudo para cumprir a meta de tornarmo-nos intelectos descorpóreos,
sem movimento autônomo.
Intelectos sem corpo permanecem em estado de inércia, para mais se hi-
pertrofiarem.
Submetem-se às forças que incidem sobre eles para que se desloquem.
Ou apenas vagam. Mas não vagam à toa. Crédito à Ciência.
Ciência: causa e consequência do progresso derradeiro dO Conhecimento
dA Humanidade. Humanidade: este ente uni-equívoco, inequivocadamen-
te intelecto descorpóreo, que a inspirada separação entre natureza e cul-
tura nos fez admitir como “natural”.
(Será desprovido de intelecto o corpo que não alcançou O derradeiro Co-
nhecimento dA Humanidade?)
Pela neutralidade da Ciência e pelo rigor do Método,
os intelectos descorpóreos não vagam a esmo. Atraídos pela força do nor-
te, orbitam em torno do sistema econômico, encaixados nas relações de
poder que garantem os deslocamentos evoluídos e racionais da periferia.
Incidem no mesmo sentido e direção as forças da Epistemologia e do Mé-
todo que lhes servem.
A resultante dessas forças é a infinita órbita do sistema natural dA Huma-
nidade do mundo. Assim, os intelectos descorpóreos estão absolutamente
inseridos nessa trajetória evoluída, racional e ordenada, ao redor do norte
ocidental. Quanto progresso dA Humanidade!
Graças a Deus, temos Ciência! Graças a Deus?!!!
436
Depois da primeira missa, do primeiro índio
abatido e do primeiro pelourinho...

O Brasil deixou de ser Colônia, para ser a parte mais importante do


império português, a parte que abrigava a família real e, portanto, seus de-
sígnios sobre todo o império, inclusive sobre Portugal. O Brasil passou a
ser, então, a “sede do poder metropolitano”. É curioso pensar que deste lado
do Atlântico nós mandávamos em Portugal. Mas não nos enganemos! Ain-
da não foi dessa vez que o Brasil deixou de ser colônia (alguma vez deixará
de ser?). E não eram os brasileiros que mandavam em Portugal. Aliás, nem
brasileiros existiam. Eles se consideravam portugueses. Os que seguiram
mandando em Portugal e nas colônias eram basicamente os mesmos. Os
que seguiram sendo mandados em Portugal, no Brasil e nas demais colônias
também. Os que reprimiam uns a mando dos outros continuavam sendo
principalmente o Exército e a Marinha, que compunham a base repressiva
da metrópole portuguesa no Brasil. Com a mudança da corte, eles só fica-
ram mais perto da metrópole. Com a corte estabelecida aqui, o Brasil ex-
perimentou toda a construção do aparato relativo à estruturação do Estado
Nacional antes de ser Estado e antes de ser Nação. Muito criativo! Um des-
ses aparatos diz respeito à educação na (da/para a?) colônia. O ensino supe-
rior no Brasil surgiu oficialmente depois que a família real veio pegar uns
ares tropicais, fugindo de Napoleão. Contudo, vejam vocês, o ensino supe-
rior implantado aqui seguia o chamado “modelo napoleônico”. Mas isso foi
só pra despistar. Napoleão era esperto, mas D. João era mais (disso ninguém
suspeitava!). Quem mandava mesmo na Coroa portuguesa, que mandava
no Brasil, era a Inglaterra. Quando a família real portuguesa voltou para a
Europa, os que ficaram descobriram que não eram tão portugueses assim e
ficaram meio magoados. Depois de experimentar conviver com as estrutu-
ras da corte, foi difícil simplesmente voltar a ser Colônia e nada mais, né?
Daí houve uma solução genial. O Brasil teve sua independência de Portugal
declarada por um monarca português. Significativo, não? Mas, em compen-
sação, a república brasileira foi proclamada por um militar monarquista, um
legítimo “amigo do Rei”. Quanto engenho e arte! Nossos mitos fundantes
são um pouco complexos... ou confusos mesmo! E isso que nem chegamos às
contradições da era Vargas (ali é que a porca torce o rabo). Só nesse período
é que vai se consolidar a universidade brasileira, tal como conhecemos hoje.
Mas essa já é outra história.

Quando nos dispomos ao diálogo, como nos posicionamos?


Ou “Teorias de Retaguarda”

437
O processo de diálogo, na relação com alteridades, é também (ou pode ser)
um processo de autoconhecimento, ou melhor, de auto-re-conhecimento
da colonialidade que nos constitui.
Mas isso exige humildade.

Como nos movimentamos quando nos “dispomos” a caminhar com alte-


ridades?
Caminhamos à sua frente, atrás ou em sentido contrário (como em um
duelo)?
Ou caminhamos ao seu lado? (E como podemos ter certeza disso?)
Em qualquer situação, como nos posicionamos?
Para onde ambos viramos as costas? Para onde direcionamos o rosto?
Para o sul? Para o norte? Para o ocidente? Para o oriente?
Para a terra? Para o céu? Para o mar?
Sabemos guiar nossos passos e nossas palavras pelo ritmo em que pulsa
o coração?
Em outras palavras, quando nos posicionamos na vanguarda na relação
com alteridades,
para onde viramos as costas?

Aprendendo a caminhar com pessoas Mbyá-Guarani


Para que eu tenha capacidade de caminhar com os Mbyá-Guarani é neces-
sário aprender a me (re)conectar. É preciso estar mais atenta, concentra-
da, (com)viver com alegria;
e aprender a movimentar meu corpo no ritmo dessa conexão.
Nessa caminhada, desejo que o fogo não se apague
e que eu leve no peito mais do que o cheiro da madeira em chamas.
Espero desenvolver a sensibilidade para a escuta, o olhar e a prática do
silêncio necessário
a cada passo. Desejo entender meu lugar no conjunto dos seres do mundo.
Assim, talvez um dia eu possa honrar essa disposição solidária, essa pa-
ciência
que as pessoas Mbyá-Guarani com quem convivi e convivo têm me dedi-
cado.

Transdisciplinaridade, Transversalidade, Transculturalidade ou Fluidez?


Na terra em que mar não bate, não bate meu coração!
(Beira-mar, de Gilberto Gil e Caetano Veloso)

438
Sinto-me fluida como a água do mar, tão vital para mim. Mas a flui-
dez não tem espaço neste mundo, na selva de pedra em que vivo. Tive meu
ser fluido congelado para me solidificar e caber em caixinhas. Para isso,
fui colocada em uma forma, tal como a que produz cubinhos de gelo. Es-
friada pelo ambiente em que me encontro, congelei e comecei a caber nos
quadradinhos. Talvez seja por isso que não goste do frio. Agora percebo
que sempre que aqueço (por dentro ou por fora) eu me derreto um pouqui-
nho e atravesso os casulos da forma, misturando experiências, percepções,
sentimentos e reflexões. Às vezes, experimento até mesmo o prazer de me
derramar da forma. Mas é por pouco tempo. O ambiente gélido me segura
de novo. Então, fico confusa e insegura, porque as experiências, percep-
ções, sentimentos e reflexões, da maneira misturada que se apresentam
agora, não cabem nos quadradinhos. Sinto-me deslocada, fora de lugar.
Fico, assim, espremida entre as paredes dos quadrados que me rejeitam e
o frio, que me congela e paralisa. Desfluidificando-me.

Pedido de perdão (só pra não sermos rejeitadas... é de mentirinha...)

Instruem os cânones acadêmicos que há que justificar, pedir licença,


explicar, concluir, mesmo sendo admitido que a vida, a poesia, o sofrimen-
to e a alegria continuam e se derramam como água que flui e não pode
ser contida completamente por ordem nenhuma. Rebeldia, ousadia, somar
os sopros de vida aos sopros dos ventos do sul aproximaram as duas au-
toras, que em espaço acadêmico encontraram alguma difusa sintonia. De
muitos diálogos não sistemáticos e conversas informais de vez em quando
nasceu a intenção de soprar juntas ventos do sul com entusiasmo. Este é
um, talvez não exatamente o primeiro, mas o primeiro que formalmente
assinamos juntas. O primeiro a anunciar uma desejada ventania...

Referências
CUNHA, Luiz Antônio. A Universidade Temporã: o ensino superior, da Colô-
nia à Era Vargas. São Paulo: Editora UNESP, 2007.
D’OLNE CAMPOS, Márcio. SURear, NORTEar y ORIENTar: puntos de vis-
ta desde los hemisferios, la hegemonía y los indígenas. In: Prácticas otras de
conocimiento(s). Entre crisis, entre guerras (Tomo II), Chiapas, México, 2015.
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro. A origem do mito da moder-
nidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1993.
439
FALS BORDA, Orlando. Una sociología sentipensante para América Latina.
México, D. F. : Siglo XXI Editores ; Buenos Aires : CLACSO, 2015.
LANDER, Edgardo. (Org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000.
LARROSA, Jorge. O ensaio e a escrita acadêmica. In: Educação & Realidade.
Porto Alegre v.28, n.2, p. 5-155, jul.ldez. 2003.
LUCIANO, Gersem José dos Santos. Educação para manejo e domesticação
do mundo entre a escola ideal e a escola real: os dilemas da educação escolar
indígena no Alto Rio Negro. 2011. 368 f. Tese (Doutorado em Antropologia)-
-UnB, Brasília, 2011.
MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia Maria. Por uma razão decolonial: desafios ético-
-político-epistemológicos à cosmovisão moderna. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1,
pp. 66-80, jan.-abr. 2014.
MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado
de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, n. 34, p. 287-324, 2008.
MUNDURUKU, Daniel. O Caráter educativo do Movimento Indígena Bra-
sileiro (1970-1990). 01. ed. São Paulo: Editora Paulnas, 2012. 230p .
OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. O que é uma educação decolonial? Nuevaméri-
ca, Buenos Aires, v. 149, p. 35-39, 2016.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-
-GÓMEZ, Santiago e GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.). El giro decolonial.
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo glo-
bal. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar/Universidad Central-IES-
CO/Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 127-167.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do tempo: para uma nova cultu-
ra política. São Paulo: Cortez, 2010. (Coleção Para um novo senso comum, v. 4).
STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Es-
tudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 442-464, abr. 2018. Disponível em: <http://
dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464> Acesso em: out. 2018.
WALSH, Catherine. Introdución - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad.
In: ______. (Org.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones
latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala, 2005.

440
pensAr, com rodolfo KuscH, A educAção como escutA

Cláudio Roberto Brocanelli1

O texto que agora apresento foi construído a partir de dois momen-


tos importantes, para mim, de leitura e de escuta. É como aqueles momen-
tos de surpresa, de algo inesperado que pode nos dar muito que pensar, na
forma de acolhimento de tudo o que nos é exposto no presente.
Primeiramente, uma aula sobre o pensador Rodolfo Kusch realiza-
da aos 14 de maio de 2017, com o Professor José Alejandro Tasat, na
Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho – Campus de
Marília/SP (Unesp/FFC). Esse foi, para todos nós que participamos da
aula, um momento propício e precípuo para pensar outras questões antes
não pensadas, especialmente aquelas relacionadas à educação oficial e as
possibilidades de vida e educação que se dá a cada momento de nossa vida,
de forma mais próxima à humanidade cotidiana, à realidade concreta e, ao
que diria Kusch, ao homem nu. O desafio maior a todos nós, educadores,
é enxergar, verdadeiramente, o homem em sua realidade nua e crua. Da
mesma forma, ver nos espaços educativos, formais e informais, o ser aí,
a pessoa com todo o seu ser e suas raízes no meio em que está inserido.
Comparativamente, os espaços informais são mais coerentes com o ser
humano, apesar de muitas pessoas não saberem educar seus próprios fi-
lhos no momento importante e inicial de vida, pois se prendem às imposi-
ções e representações sociais estranhas, exteriores e estrangeiras.
Depois, em leitura curiosa, encontrei uma entrevista realizada por
Alejo Luna que perguntava para Elizabeth Lanata de Kusch a respeito de
suas experiências de vida com Kusch e de lembranças de seus feitos e es-
critos. Com essa entrevista, pude perceber alguns detalhes mais próximos
do cotidiano de Kusch, especialmente registrando uma ideia importante
para seu pensamento e para quem deseja pensar com ele: o ser aí, em
seu ‘estar’ como compromisso com suas próprias raízes. Para todo aquele
que tem experiências a partir de uma vida mais simples, regada de explo-
rações capitalistas que o desvincula da realidade concreta e verdadeira,
precisa retomar a vida e fazer uma revisão do que viveu anteriormente e

1 Filósofo e Doutor em Educação. Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita


Filho – Campus de Marília/SP – Faculdade de Filosofia e Ciências – Unesp/FFC.
441
em que medida se pode intervir, agora, na própria vida a fim de verificar
suas raízes, ainda que destroçadas. Penso ser isso uma das sinalizações que
o pensamento de Kusch pode nos dar e inquietar; neste momento, espe-
cialmente, para que pensemos a escola e a educação que nela é oferecida.
Então, precisamos voltar às raízes a fim de retomar o compromisso do
homem em seu sentido mais pleno.
Com isso, quero iniciar a discussão, apresentando, a partir das duas
experiências anteriores, o que nos oferece Kusch, para, ao final, voltar a
tratar de questões voltadas à educação que, ao meu ver, no Brasil, pre-
cisam ser amplamente consideradas para que efetivamente se valorize a
vida de nossos alunos: as crianças, os jovens e os adultos.
Conforme nos apresenta José Tasat, em aula, a produção teórico-fi-
losófica do pensador argentino Rodolfo Kusch (1922-1979) advém de um
interesse patrimonial e cultural pelo âmbito nacional e latino-americano.
Sua obra vem sendo revisitada também no plano internacional por inte-
lectuais vinculados às teorias da decolonialidade e da filosofia intercultu-
ral. Portanto, a atualização das problemáticas abordadas em seus traba-
lhos traz consigo a importância não apenas do valor histórico da obra de
Rodolfo Kusch, mas, especialmente, a necessidade de proteger e de rea-
tivar a memória de sua potência questionadora da filosofia ocidental em
prol da construção de categorias próprias que permitam a elaboração de
um pensamento americano, popular e de emancipação. Esta preocupação é
fundamental para que os intelectuais brasileiros e latino-americanos con-
siderem ainda mais os pensamentos daqui, antes ou concomitantemente
às considerações dos pensamentos estrangeiros. Assim, resgatar os au-
tores de nossas terras é um trabalho fundamental para o pensamento e a
cultura filosóficos em nossos tempos.
Em seu pensamento, é possível verificar as diferenças entre as pes-
soas e suas realidades locais e até mesmo nacionais, considerando cada
cultura e sua formação anterior a qualquer tipo de invasão cultural. A
Filosofia de Kusch considera o princípio de identidade com os pares, com
os iguais; no entanto, não somos profundamente iguais como se A fosse
igual a A. Há, por seu lado, o princípio de contradição, pois A não pode
ser igual a B, confirmando que somos todos nós contraditórios. Ainda, há
o princípio de exclusão, pois A não pode ser igual a A ao mesmo tempo.
Assim, é afirmar que há outras formas de pensar a vida que não se restrin-
ge àquela que está definida a todos, como sociedade que impõe um pensa-
mento, uma representação, uma única forma de vida. Portanto, torna-se
oportuno propor um ‘Pensar em movimento’ em cada ação que realizamos
em nosso cotidiano. Isso pode se dar no carro, na rua, caminhando e em

442
qualquer situação que se queira. Como num momento de encontro com os
amigos, no ritual de um bar... O que acontece com aquele que passa? Qual
minha ligação e relação com ele? O que poderia nos aproximar? Penso que
aqui podemos considerar todo aquele que passa por nós. Há, todos os dias,
pessoas passando por nossa vida. E, aqui, devo dizer que nessa forma de
visitar o outro que passa, ainda que apenas vendo, já somos tocados e cha-
mados a verificar todas as diferenças existentes entre nós, especialmente
quando vemos os explorados, desvalidos, marginalizados e sem o alcance
de uma forma de vida que seja, ao menos, digna de ser vivida, pois a vida
estrangeira o tomou por completo, tirando-lhe de suas raízes.
Kusch teve uma formação filosófica muito forte, consistente e abran-
gente. Era um estudioso da Filosofia e dela se ocupava como campo para
construir conceitos. Se pode considerar que os filósofos, de maneira geral,
pensam a partir da contemplação. Kusch pensa a partir de uma realidade
próxima e própria, mesmo que seu pensamento tenha também uma cons-
trução filosófica de origem grega. Por sua vez, quer valorizar a cultura
local. Seu método é o da ‘escuta’. Todos estamos dentro ou diante de uma
paisagem, um lugar, uma cultura que podem ser vistos, apreciados, escu-
tados. Então, pergunta-se: aprende-se para saber muito e ter informações,
ou aprende-se para poder inscrever a própria vida na paisagem? Acaso
não se aprende apenas para viver? A paisagem é o símbolo mais profundo
no qual nos firmamos de pé e como se fosse uma espécie de escrita onde
cada um habita. Daí a alma como nosso lugar (paisagem) mais profundo.
A intenção aqui, com o pensador, é trazer a crítica no sentido de
não aceitar o que está já cristalizado na sociedade. Do ponto de vista filo-
sófico, Descartes diz: Penso, logo existo. Por sua vez, Kusch diz: Existo,
logo penso. Então, é sumamente fundante pensar a existência de si, de
forma arraigada, situada, realizada. Pensar o epistemicídio: o que afirma e
exige que não há outras formas de conhecer senão pelo formato imposto.
Recriar a vida de outra forma, diante de um cotidiano único e próprio.
Em América Profunda Kusch indica a América como dicotomias: ‘hedor’ e
‘pulcritud’, sempre demonstrando uma dualidade. O fedor somente existe
porque existe o cheiroso. O sujo e o limpo. Habitamos um capitalismo
que não necessita de pessoas boas e bem formadas, mas de consumidores,
bem como uma busca de distanciamento da dor. A ideia disseminada é que
quanto mais longe da dor se está, mais vida há. Eis o erro capitalista.
O discurso filosófico tem um único sujeito: o ser. A filosofia é o
discurso de uma cultura que encontra o sujeito e esta deve ser sua tarefa
em todos os lugares, valorizando o seu próprio. Assim, buscar e conside-
rar pensamentos excluídos. Formas de cultura e de pensamentos negados

443
pela cultura hegemônica. Portanto, é fundamental ter em conta cada indi-
víduo, cada pessoa, seu contexto e sua formação, dentro de uma cultura e
tudo o que daí consegue expressar seu próprio ser. Comumente ouvimos
relatos de pensamentos que não são nossos, mas pertencentes ao exterior,
estrangeiro e distante de nossa realidade verdadeiramente constituída.
Kusch busca o pensamento indígena americano; pensamentos localizados,
arraigados, os quais iniciaram o povo.
Por sua vez, cada língua tem sua forma de expressar e carrega con-
sigo um pensamento; muitas vezes, dependendo de sua localidade, reali-
dade e política, pode ser soberana ou subestimada e subserviente. Então,
carece haver entre nós uma espécie de diálogo que encontre o saber situa-
do como forma de superar o modo de enunciação cristalizado como único
na América latina, ensinado a nós desde a infância. Pensar cada terreno
(solo) onde se vive.
Precisamos animar-nos a escutar o outro (na educação também).
Justamente essa intenção de Kusch está presente em suas obras, insti-
gando o pensar sobre a realidade a partir da América. Sem deixar seus
autores inspiradores de lado, seu pensamento se aprofunda em realidades
próximas e verdadeiramente destas terras, com os indígenas. O ser como
sujeito que observa tudo ao seu redor e verifica cada situação de vida; aqui
não com a intenção de dominar o outro, mas como sendo parte integrante
desta realidade daqui, instaurando-se o estar como um compromisso dian-
te da realidade em que se vive, não mais diferenciando sujeito de objeto.
Conforme afirma Elisabeth:

‘Estar’ es estar en conformidad con lo que nos rodea, ya no diferenciamos


‘sujeto’ de ‘objeto’, somos todos parte de algo, parte de una comunidad, de
la naturaleza, parte de este mundo. No es una actitud de frío análisis sino
de «soy parte de esto». Y como parte tengo un compromiso. Diría que eso
es fundamental en el pensamiento de Kusch. (LUNA, Entrevista).

Seguindo esta indicação, como se dá nosso compromisso hoje?


Consideramos uma igualdade entre nós, em todas as nossas ativida-
des? Ou privilegiamos uma soberania nas relações? Se é fundamental
o estar como compromisso, então, há algo que ser alterado em nossos
ambientes, todos eles, especialmente na escola. A educação ocidental
tem promovido o processo de socialização das novas gerações para sua
adaptação, conformidade e sujeição a um conjunto de legados culturais e
normativos. Nesse contexto é importante pensar desde a América, con-
siderar o que cada um tem de riquezas de vida, cultura e pensamento.
Para Kusch é importante que cada um tenha seu conceito, pensamento e
444
acerto profundamente acreditado. Uma convicção do que pensa e defen-
de: o acerto fundante (fundamental).
Para que isso ocorra, precisamos ver a escola e a educação como
lugar de denúncia, anúncio, resistência e aposta na vida como escuta...
pois queremos outro lugar; mas, da mesma forma, não dispomos de nosso
lugar como professores (salário) para viver em outro lugar, sem o ganha
pão. Essa é a angústia do homem... viver sem viver profundamente, ou
seja, sobreviver. E a angústia do educador ou professor, pois que sobrevive
no ambiente da escola, produzindo obrigações, antes de viver a si mesmo
e sua cultura, antes de ‘estar’, é apenas sendo. O campo da educação é e
deve ser um campo da resistência, então. Uma espécie de conciliação entre
o que se obriga e o que se dá na vida (no cotidiano). ‘Se trata de descobrir
um novo horizonte humano, menos colonial, mais autêntico e mais ame-
ricano’ (KUSCH). Pensar uma responsabilidade social da educação. Qual
a referência em sala de aula e na escola? O professor? O que se passa com
a pessoa (ali) que pensa? Pensa como eu, ainda que não as mesmas coisas?
O que significa um rosto? Denúncia? No homem americano, sempre seu
pensamento está situado. O seu pensamento o situa. Deve fazer-se... Olhar
o lugar. Seu lugar. O que acontece aí? Daí saem suas inquietações, que
pode ser por meio de poesias e outros escritos... Pensar no sentido de uma
vida arraigada. Assim, vida que está sendo. Seguir o esquema SER = >
ESTAR = > ACONTECER. O hábito, o cotidiano têm sua importância,
sua raiz. Kusch diz: o pensar está vinculado ao tema do emocional.

445
Referências
LUNA, A. Entrevista realizada com Elizabeth Lanata de Kusch. http://tiem-
po.infonews.com/nota/111052/la-biblioteca-de-rodolfo-kusch-est-a-a-disposi-
cion-de-quien-quiera-consul-tarla. Acesso em 20 de junho de 2019.
KUSCH, R. Geocultura del hombre americano. Buenos Aires, 1976.
TASAT, J. A. Aula sobre Rodolfo Kusch oferecida no curso de Pós-Gradua-
ção em Educação. Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho.
Faculdade de Filosofia e Ciências. Unesp/Marília/SP. Maio de 2019.

446
temporAlidAde mbyá-guArAni no museu: umA experiênciA
de curAdoriA compArtilHAdA A pArtir
de diálogos interculturAis

Daniela Mei Lipp Nissinen1


Iandora de Melo Quadrado2
Victória Santos Deckmann3

O modo de viver dos Mbyá-Guarani e a forma como estes vivenciam


o tempo esta temporalidade Mbyá-Guarani no museu: uma experiência de
curadoria compartilhada a partir de diálogos interculturais estreitamente
ligado aos ciclos naturais e à espiritualidade. As estações do ano pautam
as atividades produtivas e cotidianas: o ara pyau (tempo novo) é marcado
pelo período da primavera-verão e rege o tempo do plantio e colheita,
época em que também ocorre o nhemongaraí (cerimônia de batismo) na
Opy (casa de reza), já o ara ymã (tempo velho) entre o outono-inverno
marca um tempo de maior recolhimento, menos frequência à casa de reza,
e maior dedicação ao artesanato.
Tais marcas culturais são muitas vezes invisibilizadas pelos discursos
oficiais que desconsideram as falas provenientes dos povos indígenas. Em
decorrência de um projeto de curadoria museológica, tivemos uma apro-
ximação com a cultura Mbyá-Guarani, a partir de diálogos interculturais.
Nesse ponto, cabe esclarecer as motivações e passos que se seguiram.
Como discentes do curso de Museologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) temos como um dos produtos a ser desenvol-
vido ao longo do curso uma exposição museológica, a partir de uma cura-
doria compartilhada. Nossa turma optou por abordar a temática do Tempo,
1 Discente do Curso de Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FABICO/UFRGS).
Contato: danielamei97@gmail.com
2 Historiadora (UNILASALLE), especialista em História do Brasil Contemporâneo
(FAPA) e discente do Curso de Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comu-
nicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FABICO/UFRGS). Bolsista
do Programa de Iniciação Científica BIC/UFRGS pelo projeto “O campo dos museus
brasileiro: uma História dos Museus a partir da atuação de seus agentes”.
Contato: iandoramelo@gmail.com
3 Discente do Curso de Museologia da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FABICO/UFRGS).
Contato: vic1996@gmail.com
447
no intuito de problematizar sua relação com o Trabalho e a Produtividade,
cujo resultado foi a concepção de uma exposição curricular intitulada Tic-
-Tac: nas cordas do tempo. Assim, como contraponto ao tempo linear, próprio
da nossa sociedade urbana-industrial contemporânea propusemos abordar
outras formas de vivenciar o mesmo espaço-tempo regido pelo relógio, tra-
zendo à tona a cosmovisão indígena dos Mbyá-Guarani.
Nesse contexto se deu nosso primeiro contato com a Tekoá Jataí’ty,
quando então fomos apresentados a liderança local Jaime Vherá Guyrá, ca-
cique da comunidade, situada na zona Sul de Porto Alegre, em uma região
denominada Cantagalo. Nosso primeiro encontro ocorreu em dezembro de
2018, estiveram presentes a maioria da turma e a professora responsável
pela disciplina, a partir daí se estabeleceram as primeiras conversas. Expo-
mos a proposta do grupo, de abordar a temporalidade dos Mbyá-Guara-
ni, partindo da fala da comunidade, procurando ao máximo deixar claro a
importância de que a narrativa fosse protagonizada pelos próprios Mbyá-
-Guarani. A proposta foi acolhida pelo Jaime Vherá e nesta mesma ocasião
recebemos o convite para participar da formatura dos alunos da Escola de
Ensino Fundamental Karaí Arandu que funciona dentro da comunidade. As-
sim, com a sutileza e simplicidade que marcam as ações do líder da Jataí’ty
começaram a se estreitar os laços e os diálogos com essa comunidade.
Por questões de proximidade e interesse pelo tema ficamos nós três,
de um modo quase que natural, responsáveis por dar continuidade aos
encontros e partilhas de saberes. Os encontros seguintes foram muito im-
portantes e significativos no intuito de colocar em prática nosso propó-
sito de construção de uma narrativa expográfica verdadeiramente com-
partilhada, que promovesse o protagonismo da fala dos Mbyá-Guarani,
a partir da voz do cacique Jaime Vherá. Assim, em um desses contatos
dialogamos com o Jaime Vherá sobre como estávamos pensando os ele-
mentos expográficos, os objetos, enfim, a narrativa a ser contada sobre a
temporalidade e a cosmovisão Mbyá-Guarani. Foram momentos de muita
escuta, que nos proporcionaram tomar as melhores decisões para “dar
vida” ao núcleo Mbyá-Guarani na exposição. As conversas possibilitaram
uma proximidade com a língua guarani, na medida em que íamos toman-
do conhecimento dos elementos sagrados, como a kaá (erva mate), avaxi
ete’i (milho guarani), o petỹ (tabaco), além de saberes sobre os sons de
animais encontrados na aldeia, considerados marcadores de tempo.
Durante o percurso de aproximação e diálogos as aprendizagens fo-
ram muitas. Vale destacar a possibilidade de experienciar o tempo segun-
do a perspectiva Guarani, mesmo que de modo breve e parcial. Desde os
primeiros contatos, um olhar mais atento revelou a quem estivesse aberto

448
a sentir, que o tempo na aldeia era outro, mais calmo, pautado pelos sons,
pela atmosfera presente, de quietude, de respeito. É difícil transpor para a
escrita as sensações e os significados aprendidos nesses espaços de tempo,
marcados pela desaceleração do nosso ritmo de vida.
Já bem próximo da data de abertura da exposição tivemos mais um
encontro com o Jaime Vherá a fim de mostrar os textos curatoriais cons-
truídos pela turma a partir das falas dele. Para nós foi um momento tenso,
de ouvir dele se tínhamos captado os significados de suas falas sobre a
cosmologia Mbyá-Guarani, sobre seu calendário, suas vivências. Sempre
muito acolhedor, o cacique Jaime Vherá fez pequenos apontamentos, o que
foi imprescindível para dar mais força e protagonismo indígena sobre a
narrativa exposta e assim pudemos seguir adiante. Para a composição do
núcleo indígena tínhamos encomendado cestos inacabados, para transmi-
tir a ideia de um tempo processual e cíclico, ideia que havia previamente
sido exposta e aprovada pelo Jaime Vherá. Também nesse dia buscamos
a encomenda de taquaras que seriam usadas para compor as paisagens
sonoras presentes na exposição, através de pequenas caixas de som embu-
tidas no alto das taquaras de onde sairiam sons de bugio, cigarra e coruja.
Essas conversas foram essenciais para potencializar, não somente
a narrativa expográfica, mas principalmente para aprofundar as apren-
dizagens sobre a cultura dos Mbyá-Guarani. Por exemplo, quando Jaime
Vherá nos questionou se já tínhamos o milho para expor, e ao responder
que sim, ele nos mostrou espigas provenientes de sementes crioulas e nos
ofertou generosamente para que usássemos na exposição. São pequenos
gestos como este, carregados de significados e simbologias, que nos per-
mitiram compreender a importância da fala e principalmente da escuta,
através de laços que foram se construindo e se estreitando ao longo do
processo. Essa pequena mudança, do tipo de milho exposto, potencializou
a narrativa, trazendo à tona a guarda de um patrimônio material e ima-
terial por parte desse povo, que reverberou no discurso expográfico, e o
mais importante, tendo partido da fala de um agente desse discurso, foi
possível promover ainda mais a sua autorepresentação.
Outro momento marcante e significativo nessa curadoria compar-
tilhada foi ter a presença do cacique Jaime Vherá e sua família na noite
de abertura da exposição, quando também tiveram a possibilidade de
mostrar e vender seu artesanato. Os contatos ainda seguem, no sentido
de dar continuidade a esse processo de fazer emergir a história, os sabe-
res e os patrimônios provenientes desses povos. Uma vez estabelecidos
os laços, acreditamos ser de suma importância mantê-los vivos e cada
vez mais fortes.

449
Nesse sentido, é importante colocar que a Museologia, em especial a
Sociomuseologia, tem muito a contribuir para dar visibilidade e voz as nar-
rativas dos povos indígenas que têm sido sistematicamente negligenciados
na constituição das memórias oficiais. Cabe a nós dar continuidade nesses
processos de aproximações e projetos compartilhados que buscam dar voz
e protagonismo a esses agentes, rompendo com os discursos hegemônicos
e colonizados que desconsideram e invisibilizam esses povos no presente.

Referências
BAPTISTA, Jean et. al. Práticas comunitárias e educativas em memória e
museologia social. Rio Grande : Ed. da FURG, 2013.
CURY, Marília Xavier (org.) Direitos indígenas no Museu: novos procedi-
mentos para uma nova política: a gestão de acervos em discussão. São Pau-
lo: Secretaria da Cultura: ACAM Portinari: Museu de Arqueologia e Etnologia
da Universidade de São Paulo, 2016.
CANCLINI, Néstor García. O patrimônio cultural e a construção imaginária
nacional. Revista do IPHAN. n. 23. 1994. p. 95-115.
ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LE GOFF, Jacques. Calendário. In: ______. História e memória: Campinas. Ed.
Unicamp. 1990. Pp. 485-530.
SANTOS, Gustavo Alvarenga Oliveira. Contribuição do pensamento de Rodolfo
Kusch para o desenvolvimento de uma psicologia existencial latino-americana.
Revista da Abordagem Gestáltica, pp. 73-82, 2009.
SEVERINO-FILHO, J. Marcadores de Tempo Indígenas: Educação ambien-
tal e etnomatemática. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) - Uni-
versidade do Estado de Mato Grosso. 2010. . Disponível em: <https://slidex.
tips/download/marcadores-de-tempo-indigenas-educaao-ambiental-e-etnoma-
tematica>

450
“los desconocidos de siempre tAmbién existen”

Gabriela Alejandra Insua Alves de Oliveira1

Para este ensayo he elegido como eje temático “Filosofías del Sur y
procesos de liberación” pues para poder pensarnos como sujetos LIBRES
de toda imposición de pensamientos hegemónicos y dominantes debemos
DESCOLONIZAR LA FILOSOFIA. Tenemos la posibilidad de pensar-
nos en un marco de las diversas cosmovisiones para recuperar una Filo-
sofía que nos permita encontrar un fondo común de la experiencia Hu-
mana y así poder cuestionar e interpelar y a la vez hacernos las grandes
preguntas filosóficas sobre quienes podemos pensar y que pensar. Estas
dos preguntas van juntas. De aquí surgirá la experiencia dialógica entre
el pensamiento de Rodolfo Kusch y el pensamiento indígena, la negación
de la cultura y pensamiento africano, en definitiva, el campo del pensa-
miento cultural que surge de los sujetos que buscan su identidad y ser
visibilizados por medio de acciones sociales emancipadoras. He aquí pen-
sar un reencuentro con la FILOSOFIA POSTERGADA. De esta manera
poder abordar la filosofía y el filosofar como el campo donde se dirimen
tensiones dando paso a otros modos de existencia y de convivencia que
permitan celebrar las diferencias y de esta manera cuestionar la realidad
y los conceptos ya construidos para poder De construirlos. Ir hacia una
de construcción verdadera abandonando la negación del pensamiento in-
dígena, afrodescendiente y popular para dar paso a la diversidad y los
particularismos enmarcados en una verdadera inclusión social, basada en
la convicción ideológica que son los pueblos americanos y sus culturas
ancestrales, la filosofía del estar siendo.
Comenzaremos reflexionando a partir de Rodolfo Kusch quien bus-
ca provocar en su interlocutor la necesidad casi imperiosa de revisar las
viejas categorías en la que fuimos formados y contrastarlas con ese mismo
“real” que es lo americano. Aquí vemos que Kusch produce un corte epis-
temológico profundo con la cultura europea moderna superpuesta desde
el S XV a ese ser originario de América. Pero no solo se produce en Amé-
rica negando nuestro pensamiento autóctono sino también se produce una

1 Licenciada en Ciencias de la Educacion (UNTREF). Profesora de Filosofia y Ciencias


de la Educacion . Colegio 19 Ciudad Autonoma de Buenoa Aires.
451
negación de toda la cultura popular por medio de la cultura hegemónica
noreuropea. El ejemplo más claro acontece con el pensamiento africano
que existe, aunque se lo ignore o se lo desconozca. Siguiendo un artículo
publicado en julio de 2015 el historiador y antropólogo senegalés Cheikh
Anta Diop publico una tesis doctoral afirmando que el antiguo Egipto
había sido una cultura negra y también que Egipto había sido la cuna de
la civilización occidental. Diop aseguro que la Filosofía nació en Egipto,
fruto de los viajes a esa tierra que llevaron a cabo pensadores como Tales
de Mileto, Aristóteles, Pitágoras o Platón, que se formaron en Heliópolis,
Ermoúpolis, Menfis o Tebas los centros del saber egipcio e incluso tam-
bién afirma en su tesis doctoral que hay base para hablar de un origen de
la Filosofía en Etiopia. Esto es la muestra cabal de lo poco que conocemos
de nuestra cultura y nuestro pensamiento, pues no debemos olvidar que la
cultura no es una actividad del tiempo libre, es lo que nos hace libres todo
el tiempo y por ello es tan importante que los pueblos sean hacedores de
cultura. Y lo que ha sucedido es (re) conducirnos hacia ese lugar único de
visión de mundo, negando primero y anulando luego las subjetividades,
para ir hacia ese lugar único al que (re) conocemos como la única civili-
zación que es occidente. Para luego verter buenas capas de negación en
torno al constatado hecho de que los africanos han elaborado (antes y
después) sistemas de pensamiento complejos y dignos de ser escuchados,
tenidos en cuenta y estudiados. Esta negación y su consecuente anulación
es producto de la creencia colonialista que mantenía que el negro no podía
crear Filosofía alguna debido a su mente pre-lógica y que fue la antesala
de la negación de su existencia. En este sentido para Senghor, poeta e in-
telectual, ex presidente de la Republica de Senegal, exhorta sobre el valor
de la filosofía negro-africana afirmando que: “Ahí donde la razón discur-
siva, la razón visual del blanco se detiene en las apariencias del objeto, la
razón intuitiva del negro va más allá de lo visible, va más allá de la señal
para captar el sentido” (PÉREZ, 2013). Entonces podemos inferir que
desde la visión eurocéntrica no existe actividad filosófica fuera del tipo o
método occidental de filosofar tan sustentado en el razonamiento lógico.
Podríamos partir con el debate acerca del origen de la filosofía,
cuando hablamos sobre su comienzo en Grecia, pensar que la Filosofía
no se inicia nunca, sino que re-comienza. Pero ese recomienzo nos sirve
como modo de análisis para comprender que les ha servido como única
cultura de la humanidad y parece adecuado partir de aquí para romper
la visión occidental que se apropia del inicio de esa actividad inherente a
todo ser humano; la de reflexionar sobre la existencia humana en busca de
las respuestas a partir de las grandes preguntas filosóficas existenciarias

452
que se han dado con el humano mismo. Y también estas preguntas se han
hecho en África, en América, en Asia y tantos lugares como culturas han
existido y siguen existiendo.
¿Podemos hablar entonces de una filosofía africana? Si, por supuesto
aun cuando escuchamos sobre África afirmaciones que no existe. En-
tonces la aplicación africana a la filosofía se torna de nuevo en una
categoría inexistente desde una visión occidental del mismo modo
que con el indio. La negación que lo torna inexistente.
En torno a esto que he expuesto aparecen muchas discusiones pos-
teriores, algunas de las cuales nos llegan hoy. Entre ellas afloro la cuestión
de la filosofía implícita. Esto se traduce en ver si las condiciones lingüís-
ticas y culturales de una filosofía pueden ser explicadas por los conceptos
filosóficos de una cultura diferente. Podríamos traducir esta afirmación
pensando si: ¿es posible por medio de los conceptos occidentales poder
explicar este pensamiento implícito? Entonces esta reflexión nos conduce
a una pregunta de mayor rigor: ¿Existe una filosofía africana o una filoso-
fía en África? Esta respuesta es difícil de dar, pero lo cierto es que algunos
filósofos africanos eluden el folclorismo para destacar, como los antropó-
logos han centrado su atención en las cosmovisiones populares de África
y las han elevado al estatus de filosofía continental.
En otros lugares mejor situados cuando se quiere conocer su filosofía
no se recurre a campesinos, ancianos o sacerdotes fetichistas para la inda-
gación filosófica sino se recurre a pensadores concretos en lo posible en
persona. Se infiere que el pensamiento tradicional africano deberá primero
compararse con el pensamiento popular occidental. Por lo menos para em-
pezar a rescatar el pensamiento africano genuino. Y solo así buscar el Ser
en su expresión más profunda. Teniendo en cuenta que lo que se denomina
pensamiento africano moderno no es otra cosa que ideas importadas de
la filosofía occidental y de escasa africanización. Y nada han aportado al
conocimiento de las sociedades africanas, justamente porque sabían más de
Aristóteles y de Marx que de sus propios pensadores africanos.
Sin duda, el pensamiento africano existe a pesar de que lo desco-
nozcamos o se lo pretenda invisibilizar. De hecho, son pocos los investi-
gadores occidentales que se interesan por esta filosofía, a pesar de su im-
portancia. Pero, ¿y en el continente africano? Tampoco parece que tenga
un peso demasiado importante la “filosofía” como tal, a pesar de la cada
vez más abundante aparición de escritos de esta índole, sí en cambio las
enseñanzas y la sabiduría del pensamiento tradicional. Kwasi Wiredu,
filósofo africano, incide sobre la necesidad de superar el hablar sobre fi-
losofía africana y su existencia para pasar a elaborarla, lo que enlaza con

453
la cuestión de si en el momento actual la reflexión filosófica tiene el lugar
que se merece y es pertinente que ocupe en el continente africano siempre
que sea propia, independiente y genuina.
Nkogo Ondo otro filosofo importante ecuatoguineano de la actuali-
dad afirma que una de las causas del empobrecimiento económico y social
de África radica en la previa depauperación de las mentes africanas, a las
que se ha condenado exclusivamente a tratar de sobrevivir. Sin sus filóso-
fos y pensadores, sin sus intelectuales, sin sus mantenedores y transfor-
madores de sus culturas primigenias, África se debate hoy en la agonía,
cuando en realidad no es sino el continente de la vida y de la esperanza.
Si queremos que progrese, África debe recuperar, en primer lugar, su dig-
nidad. Y esa dignificación pasa, necesariamente, por la recuperación de
sus culturas, por la revitalización de su ser interior.
En la misma línea de análisis tomando como ejemplo al continente
africano tenemos a nuestra América Profunda de Rodolfo Kusch.
El objetivo de este trabajo es pensar con Rodolfo Kusch y reconocer
el lugar de su pensamiento. No cabe duda alguna que pensar con el autor
implica en un sentido muy amplio dejarlo hablar, porque así se podrá ver
lo central para nosotros que es su Filosofía, que nos permitirá indagar,
volver a preguntar por esta cuestión ontológica sobre el ser americano.
Intentaremos priorizar sus particularidades respondiendo a las in-
fluencias que mantuvo con diferentes filósofos europeos en busca de una
apertura hacia sus propios horizontes de la pregunta.
Su Filosofía nos enmarca en un estilo que va encontrando diferentes
formas de explicarse y ejemplificarse provocando en el lector la curio-
sidad frente a los problemas de índole ontológico, axiológico, político e
identitario, en un contexto propiamente interpelador y de un cuestiona-
miento fundamental respecto de un pensamiento filosófico propiamente
americano como así también la conexión de estos conceptos con la coyun-
tura actual de América.
Pero lo admirable de Kusch es que vuelve a lo autóctono desde la
tradición europea en una relación de dialogo y de tensión a la vez con
ella. Y es aquí donde debemos detenernos para poder comprender desde
donde se parte para no negar la realidad que fuimos conquistados y esa
parte de la Historia con sus consecuencias que debemos comprender y
no podemos excluirla.
Para abordar este tema introduciremos los conceptos de pulcritud
y hedor como así también encontrar en esta relación el miedo a ser ame-
ricanos. Para Kusch, como seres occidentales que somos, tenemos el co-
nocimiento piel para afuera, y eso nos permite asegurarnos de lo exterior

454
que nos acosa, aunque surge así una gran paradoja: ¿Que sucede piel para
adentro? Y es aquí donde aparece el miedo de mostrar la verdad. Porque
esto significa abandonar la búsqueda de fundamentos y el porqué de la
existencia, dejando emerger una conciencia que nos dice que somos muy
poco y que nuestra verdadera condición es la de “estar no más” compar-
tiéndonos en un mundo donde los dioses sirven de aliento ante esa miseria
que nos constituye, el puro miedo. Y lo más importante es que nos cons-
tituimos en misterio al no saber nada de nosotros mismos. Es el miedo al
estar en silencio y contemplando lo exclusivamente americano, sabiéndo-
nos que somos producto del enciclopedismo europeo y el temor a que ese
fundamento seguro se rompa ante la conciencia que nos dice que somos
indígenas. Ante esta cobardía nos queda creer en el suelo, símbolo del
arraigo, y aceptar una transformación cultural que implica incluir nuevas
formas de pensar la cultura y dejar de lado esa escisión que niega y oculta
la verdad de la América Profunda.
Vamos a analizar la negación de lo indígena y popular a partir de
dos conceptos opuestos pero que de ningún modo se excluyen: el hedor
y la pulcritud. Entendiendo el primero, como aquello que nos diferencia
desde la posición occidental, de lo eurocéntrico con lo exclusivamente
americano. Es el ambiente seguro de las ciudades en tanto que caracteri-
za al medio urbano con sus clases medias, observando que propicia a su
vez cierta seguridad y comodidad, evitando todo contacto con su opuesto.
Mientras el pulcro recorre las calles de algún pueblito del altiplano, los
adjetivos que se hacen presentes para describir ese ambiente son: ma-
loliente, andrajoso, sucio, hediento, incomodo, molesto. Y seguidamente
viene la comparación de la ciudad, por vivir en ella con todas las comodi-
dades y confort.
Entonces se nos viene la pregunta: si esto es la pulcritud, ¿Que es
el hedor? El hedor es un signo que no logramos entender, pero que se ex-
presa. Podríamos explicarlo como un estado emocional de aversión irre-
mediable, afirma Kusch. Un sentimiento especial, que en vano tratamos de
disimular. Es la inseguridad que se manifiesta cuando vemos a alguien que
viene caminando y no sabemos si se acerca una tormenta imprevista, ese
paisaje desolador imposible de abarcar con nuestros ojos, es el cansancio
físico al recorrer las calles en subida hasta sentir el ahogo que nos produ-
ce la altura, es la gente mendiga que tal vez le damos la limosna, aunque
sepamos que ya no cumple ninguna finalidad, pues viven en la indigencia
producto de la negación y el olvido. Es el silencio del indio, al querer
uno descolocar con preguntas ansiosas. Todo esto descripto por Kusch
es lo que siente la persona que vive con ese afán de pulcritud. Y para re-

455
sumir lo dicho hasta aquí, podemos afirmar que el hedor es todo lo que
acosa desde afuera que viene a irrumpir la seguridad del ciudadano. Es
ese sentimiento de inseguridad ante el afuera que resulta extraño. Es el
miedo a la pérdida del fundamento que se construyó desde occidente. Esa
seguridad que se vuelve insegura ante el extrañamiento. Nos hallamos
como sumergidos en otro mundo, que resulta misterioso, incognoscible e
incómodo. Del que queremos huir, pero a la vez transitarlo. Y nos acosa
tal inseguridad al punto de hacernos sentir incomodos. Esto es el senti-
miento que tiene la persona en su afán de pulcritud y seguridad propia del
ciudadano. Y que, en el fondo, ante ese mundo exterior de caos y hedor, su
sentir es una gran angustia ante la imposibilidad de explicación y ante lo
extraño a él/ella que pone en riesgo su zona de confort. Kusch nos invita
a pensar otro modo de existencia y de convivencia a través de su Filosofía
del estar como salida de la postergación y negación de América que, en el
juicio sobre el hedor y la pulcritud, se halla implícito el afán de encubrir
una ira que nadie quiere ver. Este antagonismo que parece ser trágico e
irreconciliable para Kusch no lo es y tiene una salida como una especie
de dialéctica no al estilo hegeliana sino como mediadora, en un sentido
abierto y que el autor llama FAGOCITACION.
Para concluir Kusch define este proceso como un proceso incons-
ciente donde se da una absorción de las pulcras cosas de occidente por las
cosas de América.
Citando al autor y para finalizar en introducción a América, en
América Profunda dirá:

La fagocitación se da por el hecho mismo de haber calificado como hedien-


tas las cosas de América. Y eso se debe a una especie de verdad universal
que expresa que todo lo que se da en estado puro es falso y debe ser conta-
minado por su opuesto. Es la razón por la cual la vida termina en muerte,
lo blanco en lo negro y el día en la noche. Y eso ya es sabiduría, y más
aún, SABIDURIA DE AMERICA (KUSCH, 2007, p. 29).

456
Referencias
QUINCOCES, Sonia Fernandéz. El pensamiento africano existe, aunque lo ig-
noremos o lo desconozcamos . Afribuku – Cultura africana contemporánea.
2015. Disponível em: http://www.afribuku.com/pensamiento-africa-filosofia/
KUSCH, Rodolfo, América Profunda Editorial Bilbos, 1999, Buenos Aires, R.
Argentina.
KUSCH, Rodolfo. El Pensamiento Indígena y Popular en América. En: ______.
Obras Completas, Tomo 2, 2007, Rosario, Fundación Ross.
KUSCH, Rodolfo. Esbozo de una antropología filosófica americana, Ed. Cas-
tañedas, Buenos Aires, 1978.
KUSCH, Rodolfo. Geocultura del hombre americano. En: ______. Obras com-
pletas, tomo 3, Rosario, Fundación Ross, 2007.
PÈREZ, Maria Elene Diez. Historiaculturalcivilizada.blogspot.com/2013/08/
blog-post.html. 2013.

457
AwA vAnA: grAfismo yAwAnAwA e o xAmAnismo feminino

Josiane Abrunhosa da Silva Ulrich1

O trabalho a ser apresentado faz parte da pesquisa que desenvolvo


no Programa de Doutorado em Antropologia da Universidade Federal de
Pelotas (UFPEL), cujo tema versa sobre o xamanismo realizado pelas mu-
lheres Yawanawa e as conexões com neoxamanismo praticado nos centros
urbanos no Brasil, com ênfase nas denominadas medicinas da floresta. Os
Yawanawa são um grupo étnico pertencente ao tronco linguístico Pano.
São conhecidos como o povo da queixada (porco do mato), onde yawa =
queixada e nawa = povo (PÉREZ GIL, 1999; CARID NAVEIRA, 1999).
Na atualidade os Yawanawa vivem na Terra Indígena do Rio Gregório,
localizada no Estado do Acre (Amazônia Ocidental), onde estão localiza-
das oito aldeias da etnia Yawanawa.
A partir da pesquisa de campo realizada entre janeiro-fevereiro
de 2019, junto ao grupo étnico referido, busco refletir sobre os kenes2e
o xamanismo feminino exercido pela atual geração de mulheres xamãs,
especialmente, as que são reconhecidas pela denominação de pajés. Con-
siderando que tradicionalmente no xamanismo Yawanawa o domínio
masculino imperava e que o envolvimento das mulheres nas aldeias e nas
cerimonias realizadas em centros urbanos, com as práticas xamânicas é
relativamente recente. Visto que o processo de iniciação Hushahu e Pu-
tanny, conhecidas Pajés e as primeiras mulheres iniciadas no xamanismo
Yawanawa não completou duas décadas. E, ao que tudo indica a entrada
das mulheres no xamanismo Yawanawa tem provocado transformações
nos processos de iniciação e aprendizagem, nos rituais e nas interrelações
com os não indígenas. Muitas destas mudanças são expressas nos cantos,
na corporeidade e na reativação dos kenes Yawanawa.
Em praticamente todas as aldeias Yawanawa encontramos adultos,
jovens e crianças com o rosto pintado com os kenes sem necessariamente

1 Mestre em Antropologia Social (PPGAS-UFRGS). Doutoranda no PPG de Antropo-


logia Social da Ufpel. Professora na Universidade de Santa Cruz do Sul- Unisc
2 Grafismos tradicionais dos povos indígenas que são desenhados/ pintados nos corpos
e faces. Os kenes também estão presentes em diversos artefatos da arte Yawanawa (pul-
seiras, colares, roupas cerimoniais, etc.)
459
ter acontecido uma cerimônia seja de celebração ou cura. Nas cerimonias
com o consumo de uni (ayahuasca) os kenes são valorizados. Os Yawa-
nawa argumentam que eles oferecem uma proteção para os yuxyns
(forças vitais, espíritos). Els Lagrou (2018), ao analisar as relações entre
imagem e som na experiencia do xamanismo dos Huni Kuin,, outra etnia
do grupo linguístico Pano, associado a utilização do nixi pae (ayahuasca),
menciona que os kene que cobrem os corpos de certos seres humanos, de
animais e artefatos apontam para sua relação e capacidade transformacio-
nal Huni Kuin “de forma a revelar propriedades xamanísticas” (LAGRAU,
2018, p. 21). Retenho aqui a capacidade ou potencialidade transforma-
cional presente em práticas xamânicas, que a autora menciona, como um
dos fios condutores analíticos que permitem por analogia refletir sobre
o xamanismo praticado pelas mulheres Pajés Yawanawa. Mesmo iden-
tificando que a transformação seja um aspecto recorrente na literatura
etnológica que aborda o tema do xamanismo em sociedades ameríndias, a
sua atualização é instigante para refletir sobre os processos de transfor-
mação em curso entre as mulheres Yawanawa. Além das pinturas corpo-
rais o grafismo está presente na arte de confecção das miçangas que são
produzidas pelas mulheres, constituindo-se em fonte de renda em todas as
aldeias. A expressão utilizada para os colares, pulseiras, brincos e tiaras é
rautihu, que significa aquilo que é belo e enfeita - Arte Yawanawa. Nos co-
lares, pulseiras, brincos e tiaras encontramos inúmeras figurações e com-
posições gráficas com as asas das borboletas. A Awa Vana, muitas vezes é
desenhada em uma composição, com o corpo da serpente.
Na análise efetuada procuro compreender o atual grafismo indígena
praticado nas aldeias e como estão relacionados com as mudanças trans-
corridas a partir do momento em que as mulheres começam a participar
das cerimonias de uni e passam atuar como xamãs/pajés. Os kene têm con-
tribuído para a visibilidade Yawanawa no âmbito transnacional; o que não
significa que sejam exclusivos das mulheres. São repassados nos aprendi-
zados, principalmente, entre as mulheres e valorizados em todas as ceri-
monias de uni, fotografados e difundidos pelos que tem acesso à internet.
No xamanismo Yawanawa muitas das técnicas de cura estão asso-
ciadas ao uso de plantas ou substâncias alucinógenas como a uni ou o
Hume/ Nawe (rapé Yawanawa). Ambas utilizadas com diversos fins cura-
tivos e em processos de iniciação xamânica, além do uso no cotidiano pelo
Yawanawa como é o caso do rapé. Destaco a centralidade do xamanismo
que está associado a uni entre os Yawanawa e outros grupos Pano e as
suas inúmeras interrelações com processos de transformação de experien-
ciar uma alteridade diversa propiciada pelo seu consumo. Os especialistas

460
nas práticas xamânicas, especialmente, os Pajés no período de resguardo
com a utilização contínua da uni ou de outras medicinas da floresta con-
seguem se comunicar com os yuxyn. Estes transmitem conhecimentos que
são aprimorados com o tempo. No caso, específico dos kene, os quais são
atualmente reproduzidos nas aldeias por jovens e adultos é de conheci-
mento de todos Yawanawa a influência que Hushahu, exerceu para reno-
vação e popularização deles.
Um dos recortes analíticos efetuados, por intermédio dos dados do
trabalho de pesquisa sinalizados neste resumo e no trabalho a ser apre-
sentado nos remetem a análise dos kenes que tem como simbologia no gra-
fismo as borboletas (asas, o corpo das borboletas ou outras composições
gráficas relacionadas as borboletas) que contenham por analogia, aspec-
tos transformacionais a serem explorados e relacionados com o universo
de formação do xamanismo feminino. Nesse sentido, procuro explorar as
correlações analíticas dos dados etnográficos com a revisão bibliográfica
efetuada. Entre as referências teóricas duas aproximações são aqui refe-
ridas e problematizadas ao longo do trabalho. A abordagem desenvolvida
no âmbito da etnologia ameríndia pela antropóloga Els Lagrou (2009).
Ao mencionar que no universo ameríndio a onipresença da figura da ana-
conda ou jiboia primordial presente nos diversos motivos decorativos usa-
dos na pintura corporal, na pintura das panelas, no trançado dos cestos
e na tecelagem de tecidos indica “que se trata de algo mais do que uma
simbologia idiossincrática de uma cultura particular, trata-se de um dado
transcultural amazônico, um símbolo-chave da região” (LAGROU, 2009,
p. 76). Referência oportuna e inspiradora tendo em vista que a autora
mostra que nas relações com os mitos dos Wayana a cobra tem uma dupla
identidade uma aquática, onde é a cobra-grande, e outra terrestre onde é a
larva de borboleta, animal com essência predatória semelhante à da cobra
e que depois da transformação, essas larvas assumem belas cores e voam
(LAGROU, 2009, p. 77). No recente contexto de revalorização dos kenes,
dos sites (cantos tradicionais Yawanawa) e de sua visibilidade na formação
de novas gerações de mulheres pajés cabe inferir uma possivel releitura
dos kenes e de suas simbologias.
De outra forma destaco no texto a experiencia vivenciada em campo
na ocasião, em que todo meu corpo e a face foram pintados com tintura
extraída do jenipapo. Refiro tal vivencia como paradigmática para refletir
sobre xamanismo a partir da teoria do perspectivismo desenvolvida por
Eduardo Viveiros de Castro (2004) que problematiza a dualidade natu-
reza-cultura, defendendo a ideia de que a humanidade é uma questão de
perspectiva. Para o autor o mundo é habitado por diferentes espécies de

461
sujeitos e pessoas, humanos e não humanos que o apreendem (assimilam/
captam) segundo pontos de vistas distintos (VIVEIROS DE CASTRO,
2004). O que significa que é possível perceber as relações entre humanos
e não humanos a partir de um campo relacional onde a natureza passa a
ser concebida entre diferentes perspectivas provocando a superação de
modelos explicativos dicotômicos (naturalistas ou culturalistas) pela com-
preensão das relações entre sociedade e natureza (VIVEIROS DE CAS-
TRO, 2004). O que pode ser constatado, particularmente, nos estudos do
xamanismo na Amazônia. O kene escolhido para a pintura do meu rosto
foi uma das expressões gráficas da cobra jiboia, a cabeça da jiboia (Runu
Mapu). No período em que a pintura permaneceu na minha face foi possi-
vel observar alguns dos aspectos transformacionais relacionados a pintu-
ra no universo cosmológico vivenciado. Pois existia uma intencionalidade
manifesta da pintura conduzir a transformação da pessoa e de vivenciar
a alteridade. Portanto, a experiencia de campo propiciou indagações as
quais busco explorar. Por exemplo: ao “tornar-se outro”, pela vivência da
alteridade estamos falando de uma mudança de perspectiva propiciada pe-
los kenes? Quais os significados desta mudança de perspectiva nas práticas
xamânicas de cura?

Referências
CARID NAVEIRA, Miguel. Yawanawa: da guerra à festa. Dissertação de Mes-
trado. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina. 1999
LAGROU, Els. Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. Belo
Horizonte: C/Arte, 2009.
______. Anaconda-becoming: Huni Kuin image-songs, na Amerindian relational
aesthetics. Horizontes Antropológicos, v. 24 n. 51, pp. 17-49, 2018.
PÉREZ GIL, Laura. Pelos caminhos de Yuve: cura, poder e conhecimento
no xamanismo yawanawa. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: Universi-
dade Federal de Santa Catarina,1999
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na
América indígena. In: O que nos faz pensar. Cadernos do Departamento de
Filosofia da Puc-Rio.n.18, 2004.

462
invisibilizAção ou fronteirAs dAs diferençAs: situAções
perceptivistAs A pArtir do mbyá reKó
ou fugAs ontocosmoecológicAs

Leonardo de O. Guaragni1

Étant entendu que parler,


c’est exister absolument pour l’autre.
Frantz Fanon

No trabalho aqui resumido enfatizarei certas afirmações sobre o co-


lonialismo e suas diversas facetas de violência às diferenças colonizadas.
Tendo em vista o tema do encontro, o pensamento de Rodolfo Kusch, pro-
curo tomar seu trabalho América profunda enquanto foco de algumas espe-
culações, em específico o que identifica ser a “dimensión política del hedor
de América”, a incoerência disjuntiva entre o pensamento metropolitado e
citadino e os aportes indígenas presentes no continente americano.
Isso significa ter em conta os pressupostos críticos de uma análise
da mestiçagem enquanto um fator decolonial, ou seja, de que a invisibili-
zação dos nativos americanos se deu enquanto uma negação de seu “fedor”
ao mesmo tempo que às suas culturas num todo – línguas, ritos, mitos, etc.
Torna-se possível tal abordagem com a finalidade de estabelecer
parâmetros com o trabalhado por outros autores. Sendo esses linhas dife-
rentes, mas não tão constrastantes assim, identifico que a análise realiza-
da das considerações culturais sobre a etnia Mbyá-Guarani traga à tona
múltiplas possibilidades de concatenar o tema, no dizer que suas práticas
de vida evidenciam muito do que Kusch apontou sobre Viracocha, o deus
inca, e que abordarei aqui sob o viés do Mbyá Rekó, seu modo de viver.
A partir do ponto de vista de Frederick Turner, por exemplo, ex-
ploro o que ficou evidente como sendo a situação colonialista sob uma
história mítica de violências perpretadas desde séculos antes das grandes
navegações. Aquilo que é exposto como uma “ideia de colonialidade do po-
der”, ou seja, uma continuidade dos processos históricos do colonialismo,
torna-se uma sequência de acontecimentos e fatos violentos que a análise
de Kusch identifica como o Deus dessa nação exploradora ditando leis, e o

1 Graduando em Ciências Sociais pela UFRGS. Graduado em Filosofia pela Unisinos.


Bolsista voluntário, pela PROPESQ-UFRGS, vinculado ao Laboratório de Arqueologia
e Etnologia (LAE).
463
contraponto da “ira de dios”, das definições deíticas dos nativos americanos
e de seus modos de viver embasados em culturas particulares.

Que sabemos de lo que es falso y de lo que es cierto? Solo era importante


que lloviera, que no granizara o que no aparecieran los hapiñuñus. El resto
no importa y puede ser falso o cierto. Por otra parte, las cosas que se ven
y se tocan, el mundo propiamente dicho, tiene una evidencia muy clara
(KUSCH, 1999, p. 36).

Quero enfatizar aqui a presença indígena – a ideia de suas percep-


ções imediatas como identificando um mundo que não é falso ou certo,
porém que desloca o foco até às consequências de uma prática indígena: no
caso aqui trabalhado, do Mbyá Rekó, ressalto o que fica afirmado do ras-
trear perceptos dos Mbyá-Guarani (CATAFESTO DE SOUZA, 2017),
naquilo que explora onde estão as percepções do Mbyá Rekó.
Trago ainda as contribuições de Kusch no que diz respeito às iden-
tificações étnicas provindas da contradição entre nativos americanos e
colonialistas das metrópoles europeias. O que fica ainda mais evidente se
tomarmos em conta a tese da invisibilidade étnica colocada por Catafesto
de Souza em Aos “fantasmas das brenhas”:

Esperava encontrar menos marcas corporais da ascendência aborígene do


que foi possível observar quando iniciados os levantamentos de campo.
Isso passou a ser considerado, nesta pesquisa, como um dos indicativos de
provável manutenção de fronteiras étnicas, como se existisse algum nível
da prática social de endogamia por parte dos descendentes missioneiros
(CATAFESTO DE SOUZA, 1998, p. 83).

Essa abordagem fronteiriça aplica a desinvibilização como pressu-


posto de uma antropologia engajada em processar as interferências do
colonialismo como um velamento de diferenças, nisso que agora – a par-
tir das desconstruções transnacionais e de múltiplas identidades – é a
autoidentificação étnica como potência decolonial, ou seja, que as fugas
ontocosmoecológicas, como aplicado no título, tenham como finalidade a
afirmação étnica daqueles até então à invisibilidade.
Traçando problemáticas linguísticas, pode-se colocar toda a ques-
tão sob situações até aqui trabalhadas por autores como o epigráfico Fa-
non, além do Wittgenstein das Investigações filosóficas – sobre um foras-
teiro numa terra desconhecida, falando da língua dos nativos, afirma que
“terá que adivinhar o significado [...], e o fará às vezes corretamente,
às vezes erroneamente” (WITTGESTEIN, IF: § 32, 2014) – e Artaud,

464
que no texto O pesa-nervos afirma: “Toda a escritura é uma porcaria”
(ARTAUD, 1995, p. 139).
Procurarei situações etnográficas observadas e escutadas por mim
pra que dê exemplificações do que colo aqui como teoria. Essa proble-
mática linguística é sempre observada no contato interétnico, em espe-
cial quando indígenas são chamados a discursar em ambientes juruá, dos
brancos – das cidades, disso que Kusch contrasta ao “hedor de América”.
Sempre que é começada uma fala indígena em ambiente juruá há
críticas evidentes ao distanciamento linguístico e à impossibilidade de
uma fala complexa aos moldes do Mbyá Rekó, ou seja, que discursem
sobre suas vidas em suas línguas. Qualquer tradução, tendo como finalidade
a identificação de modos de vida a pessoas de outras culturas, redunda
numa dificuldade, talvez ainda uma ambiguidade até o impossível, se ti-
vermos em vista o acima colocado por Wittgenstein.
Porém, como vimos do trecho de Kusch anteriormente citado, não
é uma questão evidente de certo ou errado: a prática é o principal, e sa-
bemos, das experiências etnográficas particulares e compartilhadas, que
quando se está interagindo os significados estão presentes – a própria
prática é o significado das coisas, no fazer os significados vêm à tona, e as
percepções compartilhadas explicitam o contato interétnico como possi-
bilidade de fugas fronteiriças das diferenças.

465
Referências
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.
CATAFESTO DE SOUZA, José Otávio. Aos “fantasmas das brenhas”: Et-
nografia, invisibilidade e etnicidade de alteridades originárias no sul do
Brasil (Rio Grande do Sul). Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 1998.
______. Rastrear perceptos dos Mbyá-Guarani na etnografia de caminhada
do Mburuvixá José Cirilo Pires Morinico: Cosmopolítica transnacional,
pós-colonial e historicidade originária na região platina do III milênio.
Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 295-335, jul./dez. 2017.
CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia
política. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
CRAPANZANO, Vincent. Horizontes imaginativos e o aquém e além. Revista
de Antropología. São Paulo: USP, v. 48, pp. 363-384, 2005.
FANON, Frantz. Peau noire, masques blancs. Paris: Éditions du Seuil, 1962.
FAUSTO, Carlos. Inimigos fiéis: História, guerra e xamanismo na Amazô-
nia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas, Tomo II. Editorial Fundación Ross, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
PIERRI, Daniel Calazans. O perecível e o imperecível: reflexões guarani
Mbyá sobre a existência. São Paulo: Elefante, 2018.
TURNER, Frederick. O espírito ocidental contra a natureza: mito, história
e as terras selvagens. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar Ed., 1986.
______. O Nativo Relativo. Mana, v. 8, n. 1, pp. 113-148, 2002.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2014.

466
reflexões político-sociológicAs: no cenário
brAsileiro contemporâneo

Liliana Ferreira1
Vinicius da Silva2

O presente estudo busca trazer luz a discussão sobre o envolvimento


popular na política, discutindo a utilização da redes sócias e da internet para
propagar informação e assim convencer o eleitor de que sua proposta seja a
mais vantajosa ao cidadão, desse modo se sugere como alternativa a peda-
gogia de rua, como forma de trazer autonomia ao cidadão, mais vulnerável
e por vezes excluindo da sociedade, desse modo propiciando uma reflexão
mobilizadora com mais consciência coletivas, democráticas justa e solidaria,
além do fortalecimento político dos movimentos sociais, a insurgência das
ONGs, associações comunitárias e projetos socioeducativos, além da defesa
da escola como espaço de crítica e transformação social para tanto se utili-
zará do método dedutivo- analítico, pesquisa bibliográfico.
A informação sempre foi uma preocupação de todo o ser humano, com
a proliferação das tecnologias, esse fato se tornou mais premente, com o sur-
gimento no Brasil das redes sociais, a interação ficou muito mais fácil e dinâ-
mica, bem como as informações se propagaram, de uma forma muito célere.
No decorrer da campanha eleitoral, foi tomando conta da nação bra-
sileira, um onda conservacionista, onde o politicamente correta, deixou de
ser a tônica do projetos, e no final veio a um governo com visão, menos
voltada para educação e investimentos em pesquisa.
Desde os primórdios dos tempos, quando a população se insurge
contra seus governantes, quer seja por não concordar com ele, ou para
exigir melhores condições a população, ou direitos fundamentas, se pas-
sou pela organização popular e civil, na atualidade brasileira, se observa
que após o resultado do pleito de 2018, surge novamente a força do levan-
te popular, por meio da educação.

1 Graduanda do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do


Sul- UFRGS-RS (Polo Regional de Educação de Sobradinho).
E-mail: liliferreirabilhan@gmail.com
2 Especialista em Direito Constitucional; Graduado pelo Curso de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande Do Sul - UFRGS - RS (Polo Regional de Educação
de Sobradinho- RS). E-mail: viniciusdsp@hotmail.com
467
Desse modo nesse presente estudo se busca, compreender as ori-
gens e seus pressupostos da educação popular e da pedagogia social, como
forma de resistir a nova onda conservadora, que se vislumbra no cenário
brasileiro vindouro, além de forma de conscientizar a população dos seus
direitos e deveres para com a sociedade.
As campanhas governamentais tem sido “maquiavélicas”, isso se
deve pelo fato de, na maioria das vezes, desproverem da falta de conheci-
mento da uma arte da população, prometendo-lhes inúmeras vantagens,
demonstrando ser a melhor opção de voto, e por fim, quando eleitos, de-
monstram que não possuem sequer algum interesse em trazer algum be-
nefício para a população.
As novas “ambições” que nos norteiam, inclui-se a busca por mais jus-
tiça, por igualdade entre todos os indivíduos de uma nação, direitos a edu-
cação, a saúde, a moradia própria e a todos as necessidades de cada cidadão.
O uso das mídias para propaganda política, o expor propostas de
governo, muitas vezes apenas para chamar a atenção de indivíduos sem
se quer pensar no tal benefício prometido. Isso pode até não influenciar
aquele cidadão que já tem uma posição política, mas assegura em grande
parte a “aprovação” daquele cidadão que ainda encontra-se indeciso quan-
to a quem irá votar. Segundo Ferreira (2011, p. 06),

na eleição presidencial de 2008, nos Estados Unidos, a internet teve uma


aceitação e participação massiva na campanha do atual presidente Barack
Obama, sendo uma das maiores novidades da disputa, consistindo no modo
que eram aplicadas as comunicações online nas funções de uma campanha
política. Aqui no Brasil, seu uso, em campanhas, está crescendo conside-
ravelmente e foi um importante meio de comunicação na eleição de 2010.

Porém, muitas vezes a falta de conhecimento, e da quebra do “mito”,


nos levam a seguir o que a internet expõe.
Nos últimos anos temos visto diversas manifestações sociais articula-
das e mobilizadas pela web. No primeiro semestre de 2011 assistimos uma
série de revoltas no Norte da África e no Oriente Médio das populações
contra os modelos de governos existentes que ficou conhecida como a “Pri-
mavera Árabe”. Uma alternativa à proliferação do conhecimento na socie-
dade e o pensamento político talvez seja a pedagogia de rua, esta relação
entre a sociedade e a educação, por fim resgata crianças e adolescentes que
não tem condições de ter um acesso à educação básica. O educador entra
não somente para uma educação cognitiva, mas também para uma educação
de aspecto social, influenciando de maneira pedagógica e psicológica, essas
crianças e adolescentes a superarem os problemas do dia a dia.
468
Assim leciona Albertassi (2010, p. 05), que a “(im)possiblidade de
inclusão que o objetivo da pedagogia social é o desenvolvimento humano
intermediado pela prática educativa sendo seus destinatários os indiví-
duos ou grupos em situações de conflito social”. Ademais, “esses trabalhos
surgiram com a finalidade de melhorar as diferenças de classes sociais,
despertando o interesse e resgatar a autoestima destes grupos” os tornan-
do mais autônomos e consciente. Sendo este programa de “desrualização
pautado em uma educação libertadora, onde procura de forma dialógica,
compreender o mundo em que essas crianças e adolescente se encontram,
partindo de temas geradores, sendo um dos principais eixos norteadores
para as práticas pedagógicas”.
Na visão de Albertassi (2010, p. 05), que “não propõem apenas técni-
cas para se alfabetizar ou para se especializar, para conseguir qualificação
profissional ou pensamento crítico, e sim, os métodos de educação dialógi-
ca nos trazem a intimidade da sociedade, à razão de ser de cada objeto de
estudo”. Partindo da reflexão e do “diálogo crítico sobre um texto ou um
momento da sociedade, tentamos penetrá-lo, desvendá-lo, ver as razões pe-
las quais ele é como é, o contexto político em que ele está inserido”. Assim
a pedagogia social de rua faz a provocação “ao grupo considerado excluído,
a se inserir em sua sociedade”, indo além “fazendo com que o grupo por si
só conheça sua realidade e busque por meio de uma consciência mais crítica,
o despertar e o reconstruir de sua identidade, acreditar e descobrir suas
potencialidades promovendo seu crescimento como cidadãos que possuem
direitos e deveres para com sua sociedade” (ALBERTASSI, 2010, p. 5).
Dessa forma “dentro da atmosfera pedagógica, cresce o interesse de
pedagogos resgatarem os considerados marginalizados - não por própria
culpa, mas sim por uma imposição social de desigualdades - das ruas que
são o espaço de sobrevivência dos mesmos”. Sendo que com essa “nova
oportunidade do pedagogo de trabalhar em espaços não escolares”, assim
a, “pedagogia social de rua, que tem como objetivo descentralizar esses
grupos excluídos da sociedade da rua, direcionando-os para outra reali-
dade por meio de práticas pedagógicas que visão a construção de pensa-
mentos mais críticos e que tragam uma melhor perspectiva de vida para
os mesmo”. Tocando, “ao pedagogo social, juntar-se a essas comunidades,
proporcionando-lhes uma visão mais global, buscando inserir a realidade
vivida em novas propostas por meio de uma pedagogia libertadora e dialó-
gica, tornando e transformando esses indivíduos em verdadeiros cidadãos
conhecedores de seus direitos e deveres” (ALBERTASSI, 2010, p. 08).
Assim, na lição de Brandão (1983, p. 47), “o que justifica a Educação
Popular é o fato de que o povo, no processo de luta pela transformação po-

469
pular, social, precisa elaborar o seu próprio saber”. Ademais, “estamos em
presença de atividades de educação popular quando, independentemente
do nome que levem, se está vinculando a aquisição de um saber (que pode
ser muito particular ou específico) com um projeto social transformador”
(BRANDÃO, 1983, p. 47).
Dessa forma, segundo versa Brandão (1983, p. 47), a educação “é
popular quando, enfrentando a distribuição desigual de saberes, incorpora
um saber como ferramenta de libertação nas mãos do povo”. Fazendo seu
objeto de alavanca social e de pertencimento, como forma de auto elevação
e autonomia perante o sistema pré-estabelecido.
Assim, conforme os primeiros escritos de Paulo Freire, a educação
popular, uma forma de “prática cultural para a liberdade”, constituindo,
“um movimento revolucionário de educadores surgia contra a educação
institucionalizada e constituída oficialmente, seja como sistema escolar
seriado, seja como educação não-formal de adultos. Emergia como pro-
posta de re-escrever a prática pedagógica do ato de ensinar-e-aprender”,
fazendo “repensar o sentido político do lugar da educação” no contexto
social (BRANDÃO, 1983, p. 48).
Assim diante do exposto nota se uma grande necessidade do cida-
dão de classe mais humilde, tem de ter sua autonomia na sociedade, a sen-
sação de pertencimento, de compreender os por quês das coisas, ou seja,
por meio da pedagogia social e da educação popular, vai lhe dando, uma
grande consciência de seu papel na sociedade bem como do seu valor em
quanto cidadão diante do conhecimento do seu poder de voto e escolha.
Essa discussão implica, ainda, no questionamento do papel da edu-
cação na produção das desigualdades nos ambientes educativos, proble-
matizando questões caras à educação, como seu papel emancipador, entre
outros. Nesta perspectiva percebe-se que o papel emancipador do indiví-
duo está relacionado a educação e é o que leva o indivíduo atuar plena-
mente como ser humano na sociedade moderna.
Ademais, segundo leciona Berlotto (2009, p. 10), que “os indivíduos
se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos ou-
tros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como
seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades”. Sendo que,
“por isso, partimos da ideia de que a identidade social de um indivíduo
está associada ao conjunto de vinculações de um sistema social.” Assim “é
a identidade social que permite ao indivíduo localizar-se e ser localizado
socialmente” (BERLOTTO, 2009, p. 10).
Sendo esse o papel da pedagogia social e da educação popular, tra-
zer ao seio da nossa sociedade os indivíduos excluídos, fora do contexto

470
escolar formal, utilizando das mais variadas formas de ensinar, arte, cine-
ma, música e por aí vai. Vislumbra-se sua condição de ser humano com
direitos e deveres, proporcionando-lhe autonomia enquanto integrante da
sociedade, bem como conferindo-lhe melhor condição de escolher seus
representantes no parlamento brasileiro.
Agora quando fora de períodos eleitoral, pode e deve utilizar-se das
manifestações e mobilizações populares, sendo que a democracia exige a
participação permanente e ativa do povo. É o que faz da democracia o que
ela realmente é.

Referências
ALBERTASSI, Thainá. Pedagogia social de rua. Disponível em:<https://do-
cplayer.com.br/16229085-Pedagogia-social-de-rua.html> Acesso em: 11 de ju-
lho de 2019.
BERLATTO, Odir. A construção da identidade social. Disponível em: < ojs.
fsg.br/index.php/direito/article/view/242/ 210 > Acesso em: 12 julho 2019.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação popular. Disponível em:
< http://ifibe.edu.br/arq/201509112220031556922168.pdf> Acesso em: 09
abril 2019.
FERREIRA, Suzana Andrade. A internet como meio de comunicação polí-
tica e construção de imagem no Brasil democrático. Disponível em<http://
www.compolitica.org/home/wp-content/uploads/2011/03/Suzana-de-Andra-
de-Ferreira.pdf > Acesso em: 8 de julho de 2019.

471
A despolArizAção entre o HumAno e A nAturezA e o
encontro com o sensível nA educAção com os indígenAs:
sincronicidAde e espirituAlidAde

Maria Cristina Graeff Wernz1


Onorio Isaías de Moura2
Ana Luísa Teixeira de Menezes3

O trabalho tem como proposta colocar em pauta movimentos que


caminham para a racionalidade aberta, que apontam para a conjunção en-
tre a razão e o sensível (MAFFESOLI, 1998), compreendendo que pes-
quisar - e viver - consiste no passo irremediável do branco ao negro, do
dia à noite, da alegria à tristeza, da cultura à barbárie, da maldade à bon-
dade (KUSCH,1994). Trata-se de observar este passo além - e atrás - que
remete a movimentos sincrônicos, da ordem da razão sensível, que aproxi-
ma pesquisador indígena e pesquisadoras não indígenas, para tratar, entre
outros temas, da espiritualidade, que permeia reflexões e ações de pesqui-
sa conjunta no âmbito da educação, a partir da academia.
Refletir sobre a vida, e em recorte especial sobre a educação, a partir
da evocação de uma razão sensível, permite a redescoberta do mundo con-
temporâneo (PIMENTEL, 2014; MAFFESOLI, 1998). O encontro de uma
racionalidade plural, sutil, através da convergência com a cultura, a arte e
a cosmologia indígena, pode colocar em diálogo o microcosmo e o macro-
cosmo, fazendo surgir a força interna dos fenômenos. As “ideias-força” que
animam determinados fenômenos, fazem emergir o vínculo existente entre
o simbólico, a imaginação e a intuição, próprias da condição humana.
O psicanalista Carl Gustav Jung (2005) apresenta a sincronicida-
de como “...a simultaneidade de um estado psíquico com um ou vários
acontecimentos que aparecem como paralelos significativos de um estado
subjetivo momentâneo e, em certas circunstâncias, também vice-versa” (p.
19). A partir do conceito, e considerando as várias “coincidências signifi-
cativas” que foram e são constantes neste processo da pesquisa, observa-
mos que eventos acontecem sem uma causa aparente e são fundamentais
para a investigação em si mesma. Há, neste processo, uma relatividade do
tempo e do espaço, que se comportam elasticamente em relação à psiquê.

1 Doutoranda em Educação. PPGEDU/UNISC


2 Mestrando em Educação. PPGEDU/UNISC
3 Pós-doutora em Educação. PPGEDU/UNISC
473
Em sintonia com a fala de Jung, o sociólogo francês Michel Maffes-
soli (1998) chama atenção para o fato de que a modernidade traz visões
fragmentadas, como por exemplo, a sociológica, a psicológica, a econô-
mica, entre outras. E que é preciso atentar também para uma perspectiva
que implique

uma tomada de posição cosmológica e antropológica, isto é, concernente


a mecanismos de correspondências, de analogias, de secretas sincronici-
dades (...) a natureza e a cultura entram em interação, o microcosmo e o
macrocosmo respondem um ao outro, e, no interior do mundo social, cada
qual, segundo seus títulos e suas qualidades, encontra seu lugar na sinfonia
humana. É para perceber tal organicidade, transgressora da unidimensio-
nalidade moderna, que necessitamos de uma multiplicidade de “razões”
sutis, capazes de perceber, ao mesmo tempo, a força interna de cada fenô-
meno e sua necessária conjunção (p. 79-80).

Jung e Maffesoli nos convidam a viver, para além do tempo linear e


permeado de causas e respectivos efeitos, um tempo mítico, colocando em
perspectiva uma outra lógica, operando em um outro “corte epistemoló-
gico”. Tais movimentos remetem a uma lógica do instante, tributária do
acaso, que emerge de uma maneira inesperada, podendo ter sua percepção
dificultada a partir de uma lógica linear, de um “causalismo unívoco”, caso
não haja abertura para uma nova percepção dos fenômenos pesquisados.
Nesta perspectiva, procuramos ouvir a palavra de intelectuais indí-
genas, vinculados ao pensamento e à linguagem mitológica, considerando
o fato de tê-los como protagonistas dos projetos, no planejamento, nas
ações de pesquisa e extensão e, em especial, nas reflexões acerca do que foi
e está sendo produzido. Além de colaboradores de pesquisa, os indígenas
têm contribuído a pensar sobre o humano, a produção de conhecimentos
e as metodologias de ensino e aprendizagem na educação. Kusch (1994)
nos lembra que nossa distância para os indígenas é bastante grande: o
indígena está com um pé no solo e outro no sagrado; o não indígena está
com um pé no cimento e outro no vazio (p. 95). Desta forma, a presença
indígena no processo de pesquisa nos aproxima da dimensão da razão
sensível e xamânica. O xamanismo nos aproxima de uma educação que
inclui o inconsciente, as imagens e a natureza, fazendo-nos ultrapassar o
rompimento e a polarização entre o humano e a natureza, entre a objeti-
vidade e subjetividade.
Com as ações de pesquisa e extensão, procuramos romper com a
forma objetiva que a academia trata a educação, buscando refletir sobre o
que nos faz essencialmente humanos. Dorvalino Cardoso, intelectual in-
474
dígena, nos provoca a refletir sobre o conceito de educação. Assim define:
“é quando tu segues uma filosofia, um critério de vida. Os nossos sábios
Pajés tem o compromisso de nos passar este ensinamento. A educação tem
o compromisso de nos tornarmos humanos” (CARDOSO, 2017, p. 14).
Mas o que é ser humano? Kusch também questiona, provocando a
pensar o que nos separa uns dos outros, e da outra parte de nós mesmos:

¿Péro que és ser humano? ¿Consiste realmente en estar a medias enun


lugar muylímpido e nada más? ¿O un ser humano también és el que tira un
cabo a lanoche, a la sociedade, a la fé, para ver si consigue juntar-se con sua
outra parte, la que perdió al cruzar alguna fronteira? ¿Si sólo queremos
viver, entonces por qué nos separan em dos bandos: por un lado lossucios
y por el outro loslimpios? (KUSCH, 1994, pág. 76).

Dona Iracema Nascimento, kujá4, conselheira e liderança Kaingang


reconhecida na luta pelos direitos indígenas, conta sobre sua missão no
mundo aos antropólogos Herbert Walter Hermann e Clémentine Maré-
chal (2017). E, ao contar, chama a atenção para a importância dos sonhos,
das curas, das rezas, dos cantos e dos conhecimentos ensinados aos fóg5.
Pondera sobre seu papel frente à Universidade como um exercício de con-
vivência com outra forma de estar no mundo, levando o espaço acadêmico
a refletir sobre seu mundo que é uma prolongação da vida, que é “vivente
como ele” (KUSCH, 1994). A kujá carrega na pele e no coração a sabedoria
do povo Kaingang, cuja marca mitológica remete à complementaridade, à
convivência entre os diferentes, num movimento de conjunção de opostos.
Dessa forma, destacamos também que quando se trata de educação
para os povos indígenas, comparando com a educação reconhecida pela aca-
demia, é bem diferente da compreensão de educação dos indígenas, consi-
derando que esta educação ultrapassa as limitações impostas pelo estado e
também as suas metodologias. Para os indígenas Kaingang, a educação está
no modo de vida, vivido no dia a dia, em convivência com os mais velhos e o
Kujã, numa forma de convívio harmônica e em reciprocidade com a natureza.
4 Dona Iracema Nascimento explica: “Os kujá são os médicos Kanhgág que pegam os
remédios da floresta. Eles sabem cuidar muito bem dos corpos, eles podem saber fazer
os partos, curar as pessoas doentes com remédios do mato e também eles sabem sonhar.
Eles podem se comunicar com os mortos e com outros kujá nos seus sonhos. Esses so-
nhos são muito importantes para nós Kanhgág, porque é como um meio de comunicação.
Podemos ficar sabendo de eventos antes que eles aconteçam. Os fóg costumam chamar
os kujá de xamã ou pajé, mas eu prefiro dizer kujá porque é o nome especifico dos Kanh-
gág.” (NASCIMENTO; HERMANN, MARÉCHAL; PADILHA, 2017, p. 341)
5 Pessoa não indígena.
475
Os nossos mais velhos (kofã) e também o Kujã têm um papel funda-
mental na educação, como uma forma de manter em equilíbrio nas suas
comunidades, preparando cada pessoa de forma individual ou coletiva, na
formação de pessoa como ser, apontando qual o seu papel perante seu
povo, na sua comunidade, no mundo. Essa educação, além de estar sendo
um aprendizado na vivência do dia a dia, em diversos segmentos, para
uma formação humana, o corpo e a mente, considera o aspecto espiritual,
que deve estar em harmonia e reciprocidade com o mundo.
Com isso, os rituais de cura, sonhos, visões, as relações comunicacio-
nais com a natureza, com os animais, percepções dos fenômenos e sinais
do cosmos, e outros mundos, como a relação comunicacional dos mortos e
vivos, são fundamentais para preparação e a formação de um ser, levando
em conta as mitologias, cosmologias, para contribuir em diversos fatores
e segmentos, respeitando toda uma história cultural de um povo.
Esta forma de como se leva a vida, ou de estar no mundo, na sua
grande maioria não é reconhecida e muitas vezes não é aceita na acade-
mia, pois entendemos que esta invisibilidade está enraizada na educação
colonizadora do ocidente, também conhecida como dominadora.
Essa idéia de ver o mundo com outros olhares e filosofias desco-
nhecidas vem emergindo na academia, com os pesquisadores indígenas
e não indígenas, pois nesse movimento de estar junto entre indígenas e
não indígenas, compartilhando novos saberes, num movimento de com-
plementariedade, nos espaços acadêmicos, rompe com a visão tradicional
colonizadora, mostrando um olhar mais complexo, dentro de uma filoso-
fia que caminha na compreensão de ser humano, na sua essencialidade.
Ao propor uma reflexão sobre educação, associada a aspectos pouco
considerados no âmbito acadêmico, tais como a sincronicidade e a espi-
ritualidade, a partir de ponderações de intelectuais indígenas e não in-
dígenas, queremos colocar em pauta princípios educativos que ampliem
o cuidado único com o intelecto, que tratem de elementos estruturantes
da relação do homem com o cosmos. Trata-se, aqui, de uma socialidade
(re)nascente, que se contrapõe a um racionalismo abstrato. É a conjunção
homem-natureza, na qual a vivência retoma uma importância negada pela
modernidade. É, em suma, o estar no mundo, a vida.

476
Referências
CARDOSO. Dorvalino Refej. Kanhgág Jykre Kar - filosofia e educação kanh-
gág e a oralidade: uma abertura de caminhos. (Dissertação). PPG em Educa-
ção. Porto Alegre: UFRGS, 2017.
HERMANN, H. W. ; NASCIMENTO, I. G. R. ; MARECHAL, C. I. ; PADILHA,
A. K. N. Minha missão no mundo. Espaço Ameríndio, v. 11, pp. 336-364, 2017.
JUNG, Carl Gustav. Sincronicidade. Petrópolis: Vozes, 2005.
KUSCH, Rodolfo. Indios, porteños y dioses. Buenos Aires: Biblo/Secretaria de
Cultura de la Nación, 1994.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.
PIMENTEL, Álamo. Prefácio. In: FEITOSA, Débora Alves; DORNELES, Mal-
vina; BERGAMASCHI, Maria Aparecida (Orgs.). O Sensível e a Sensibilidade
na Pesquisa em Educação. Bahia: Ed. UFRB, 2014.

477
mAnifestAciones del espíritu ecológico KuscHiAno en
colombiA: consultAs populAres como AproximAción
A los sAberes AmericAnos

Maria Fernanda Masmela1


Carlos Andrés Rincón Arias2

Las consultas populares, son un mecanismo de participación elec-


toral en el cual se convoca al pueblo para que decida acerca de algún as-
pecto de gran importancia, mecanismo resultante de las luchas plebeyas
de occidente, pero que los pueblos latinoamericanos han adoptado como
un mecanismo de defensa del territorio por la vida, la montaña, el río. A
Colombia llegan con la promulgación de la Nueva Constitución de 1991,
reforma que es lograda gracias a dos propuestas claves, la presión de los
movimientos sociales rurales y urbanos hacia el Gobierno, y la voluntad
política de los sectores que ostentaban el poder, por lograr una apertura
económica que atraería capitales extranjeros al país.
Esta reforma constitucional permitió la conformación de un Estado
Social de Derecho, donde por primera vez se visibilizaron étnico-cultural
y políticamente los derechos de las comunidades indígenas y afrocolom-
bianas; paralelo a ello se configuró una economía de corte neoliberal cuyo
objetivo fue impulsar el “desarrollo” del país, abriéndose campo en el área
de la minería “debido a las exigencias de la globalización y del mercado
internacional, que produjo que se empezarán a otorgar licitaciones, en
suelos que fueron considerados como improductivos” (Dietz, 2018, p.95).
Esto produjo una serie de tensiones entre las comunidades, no solo indí-
genas y afrodescendientes, sino que también campesinas y del casco urba-
no frente a la relación con sus territorios.
Este panorama permite analizar una premisa que ha estado instala-
da en este proceso y es el tipo de demanda que han exigido las consultas
populares, las cuales han buscado en esencia la preservación del paisa-
je, en especial de las montañas y los ríos ante los riesgos extractivistas.
Esta movilización ha desplazado exigencias históricas como el desarrollo
económico, la defensa de los derechos humanos, la justicia o la igualdad
social; Y no porque sean temas que pierdan relevancia, sino que se ubi-
can aparentemente en una parte de un modelo simbólico complementario,

1 Centro de Educación para el Desarrollo UNIMINUTO S.P Bogotá, Colombia.


2 Centro de Educación para el Desarrollo UNIMINUTO S.P Bogotá, Colombia.
479
donde la dimensión de lo humano es una entidad en relación con otras y
el reconocimiento de lo no-humano como agente de vida y significado.
Lo que se logra ver es que a medida que se expanden las áreas de
posible explotación minera, aumenta el conflicto y las protestas; para el
año 2019 según el Atlas de Justicia Ambiental (EJ Atlas) se presentan
más de 50 conflictos relacionados con la minería, donde una de las estra-
tegias de movilización más efectiva han sido las consultas populares en
defensa del territorio por la vida, donde el resultado de estas en la gran
mayoría fue que más del 90% de los asistentes votaran en contra de pro-
yectos miner-energeticos.
Según la investigación que se está llevando a cabo por el Semillero
Territorios y Territorialidades en Resistencia del CED, UNIMINUTO
-del que los autores hacemos parte- 17 de las 57 consultas populares
realizadas fueron aprobadas y/o ganadas, y han sido llevadas a cabo en
municipios con un alto potencial minero, lo que empezó a generar presión
de las multinacionales sobre el Gobierno Nacional dando como resultado
que para el año 2018 con la Sentencia Unificada 095 de la Corte Constitu-
cional se decretará que las consultas populares no podían prohibir activi-
dades mineras desconociendo sus efectos vinculantes.
Este proceso que se viene dando en Colombia desborda los efectos
políticos propios y muestra uno mucho más complejo, donde la cuestión
vital y los procesos de identificación territorial derivan en modelos de
lazos sociales donde los seres y fenómenos que se distinguen de la acción
humana también hacen parte. Como ejemplo icónico, está la experien-
cia de defensa territorial del municipio de Cajamarca Tolima, contra el
proyecto minero de “La Colosa” promovido por la multinacional Anglo
Gold Ashanti para el año 2013. Donde la demanda principal de la consulta
popular era la no transformación del paisaje por actividades mineras y la
preservación de la montaña “como un espacio de germinación que posibi-
lita la existencia simbólica y material” (Alfonso, 2010, p.141)
Estas “nuevas” sociabilidades híbridas entre lo humano y lo vegetal
serían lo que en la filosofía del latinoamericano Rodolfo Kusch se podría
denominar “espíritu ecológico americano” el cual está arraigado al suelo y a
la vida. El suelo entendido “como una extensión compleja de la totalidad es-
pacio-temporal, inseparable e indivisible que se expresa geográfica, geomé-
trica, corporal y espiritualmente en los territorios” (Alfonso, 2010, p. 142)
De modo que, la tesis central del presente texto tiene como objetivo
enunciar las manifestaciones de ese “espíritu ecológico americano” en el
proceso socio territorial de las consultas populares en Colombia por la
defensa de la vida. Centrando la atención en los siguientes tres tópicos.

480
Relación naturaleza-cultura: en este tópico se menciona la rela-
ción naturaleza-cultura que ha sido planteada por occidente en ontologías
dualistas, como lo expone Philippe Descola no para profundizar en los
binarismos que se proponen frente a esa relación sino para superarlos tal
y como lo propone Kusch (2007, p. 39) al afirmar que “la oposición misma
es mera ficción, (...) al unir los opuestos rebaja la categoría de ambos, en
que los opuestos nada valen”.
Una respuesta inconsciente para superar esta dicotomía parece con-
figurarse en las narrativas de los movimientos sociales que promueven las
consultas populares, ya que al ser un mecanismo de participación resultante
de las luchas plebeyas de occidente, frente al pensamiento ecológico-cósmi-
co en donde el territorio se configura como un hábitat vital, logra expresar
las formas americanas y mestizas del estar siendo aquí y ahora, en el vaivén
de la inconsciencia social y la conciencia (Kusch 2007 p. 49)
¡SI a la Vida no a la Mina! ¡El agua vale más que el oro! Son arengas
vertebrales de la movilización, donde al posicionar al río y la montaña
como centro de èstas se pervierte, resuena y des-coloca esta cosmogonía
de “dos planos” de occidente, sobre una ontología más propia donde se
privilegia la noción del territorio desde la atribución a èste como ancestro
y pariente próximo; es aquí donde la vida se presenta como una exigencia
sempiterna para defender los territorios denotando la categoría del “estar
en la tierra”
Tránsitos hacia una nueva noción del territorio: el hecho de que
la movilización de las consultas populares en más de 57 municipios se
centrará en la preservación de las montañas, los ríos y ecosistemas estra-
tégicos también podría leerse como la comprensión de otras nociones de
territorios que exceden los patrones convencionales. Tres dimensiones
menciona Haesbaert (1997) al referirse a la categoría de territorio; la pri-
mera es la dimensión política, para expresar las relaciones de poder allí
presentes, la segunda es la simbolico-cultural, la cual prioriza la experien-
cia subjetiva y la tercera es la dimensión económica donde el territorio se
entiende como fuente de recursos.
Respecto a esto, lo que vemos en el fenómeno de las consultas popu-
lares en Colombia es la presencia de las tres dimensiones antes descritas,
sin embargo con una peculiaridad y es que aparece la vida como eje arti-
culador. Un territorio que empieza a vincularse a partir de la vida y que
va más allá de las relaciones de poder, muestra una noción distinta del
territorio. Este entendimiento ecológico hace que cada entidad humana o
no humana ocupe un lugar ontológico en las relaciones territoriales, don-
de la ambientalización de las luchas en América han comenzado a superar

481
las relaciones utilitaristas-mercantilistas del territorio para dar prioridad
a las relaciones entre comunidades respecto al suelo y a la vida.
Lo celebrativo y lo popular: Los carnavales por la vida, el agua
y/o la tierra, son parte fundamental en las consultas populares, ya que
hacen parte de una estrategia de visibilización de lo otro. En muchos de
estos festivales dentro de lo celebrativo popular es característico la re-
presentación con el cuerpo, carteles o máscaras, las características de las
entidades no humanas presentes en el paisaje: él loro, la guacamaya, la
montaña, a fin de entender lo vital como prioridad. Los carnavales y las
fiestas giran en torno a la necesidad de enunciar la vida desde la materia-
lidad y su carga espiritual, tal como lo expone Cosci (2008), retomando
a Kusch, al referirse al rito y al gesto dentro de un exceso ontológico no
asimilable desde la lógica occidental.
Es por eso que este último tópico, conecta el paisaje material con las
expresiones culturales, entendidas aquí como acciones cargadas de senti-
do simbólico para las comunidades, permitiendo así la defensa de la vida
de la montaña. En ese sentido Kusch (2012, p. 14) propone que la cultura
es “el baluarte simbólico en el cual uno se refugia para defender la signi-
ficación de su existencia”. Para este caso, las fiestas y celebraciones como
muestras culturales, posibilitaron la defensa de la existencia y significan-
cia, de otras vidas, otras realidades que cargan de significado ancestral-
-cosmológico las relaciones entre la naturaleza y la cultura.

Conclusión

El tipo de demanda dentro de las consultas populares y el despla-


zamiento de otras exigencias, devela aparentemente la presencia del espí-
ritu ecológico arraigado al suelo y a la vida. Esta situación de insertar lo
ecológico-cósmico en la agenda de lo político da pistas a un camino para
la superación de las relaciones dicotómicas entre naturaleza y cultura. La
hibridación simbólico-expresiva e instrumental-funcional del territorio,
hace que los opuestos se ubiquen en un mismo nivel y en un realidad uni-
formada como lo propone Kusch, que se dinamiza por un pensamiento se-
minal donde las entidades humanas y no humanas confluyen en un ritmo
de germinación y fecundación en un paisaje particular.

482
Referencias
ALFONSO, H. Una filosofía ecológica en Rodolfo Kusch. Análisis. Re-
vista Colombiana de Humanidades, n. 77, pp. 137-152, 2010.
ATLAS DE JUSTICIA AMBIENTAL (EJAtlas). Recuperado de: ht-
tps://ejatlas.org/country/colombia
COSCI, D. Palabra grande, él lenguaje y el símbolo en él pensamiento de
Rodolfo Kusch, 2008.
DIETZ, K. Consultas populares mineras en Colombia: Condiciones de
su realización y significados políticos. El caso de La Colosa. Colombia
internacional, n. 93, pp. 93-117, 2018.
HAESBAERT, R. Del mito de la desterritorialización a la multiterritoria-
lidad. Revista Cultura y Representaciones sociales, 2013.
KUSCH, R. Obras completas tomo I. Dialéctica del continente mes-
tizo. Argentina: Editorial Fundación Ross, 2007.
KUSCH, R. Esbozo de una Antropología Filosófica Americana. Edi-
ciones Castañeda, 2012.

483
del pAcHAKuti Al pAcHAKutxA: sAber tenebroso,
espirituAlidAd y literAturA en el
estAr-sentir-pensAr-viAjAr de rodolfo KuscH

Ramiro Huanca Soto1

Del pachakuti al pachakutxa: el vuelco de la pacha y el ajayu

El presente texto articula las experiencias y cosmo-convivencias de


estar-sentir-pensar-viajar de Rodolfo Kusch a través del recorrido de sus
obras completas (2007). En ese transcurso, se articula la noción de pa-
chakuti, término quechua-aymara reflexionado en la obra de Kusch y que
“significa el vuelco o trueque del pacha”. El pacha, en este sentido sería
el orden relacional envolvente que articula las energías de la naturaleza
y el cosmos. De otro lado, el pachakutxa se traduce como el retorno del
cuerpo y subjetividad al tiempo y espacio en proceso de trascendencia
espiritual con conciencia milenaria.
El Pachakutxa es la dimensión profunda existencial que opera a ni-
vel del retorno subjetivo o del ajayu al gran tiempo y espacio de los ciclos
andinos y a la conversación con las dimensiones mágicas y míticas de la
sabia episteme india. Kusch no usa este término pero desde una lectura
aymara, en su obra se da esa experiencia. Digamos que pachakutxa nom-
bra la experiencia y vivencia ontológica existencial y relacional de Kusch.

Kusch: crítica al conocimiento eurocéntrico

En este marco es importante ver que Kusch propone distanciarse de los


legados coloniales del conocimiento para reconstituir una idea de intelectual
sustentada en el suelo cultural americano. Su propia práctica intelectual y
experiencia vivencial con indígenas y sujetos populares constituyen una tra-
yectoria del desprendimiento y el vuelco2. Ahora bien, si el desprendimiento
es el punto de partida que conduce al vuelco epistémico descolonial, “apor-
tando los conocimientos adquiridos por otras epistemologías, otros principios

1 Es yungueño-aymara de Bolivia, chaski de Abya Yala/Tawantinsuyu y Doctor en Es-


tudios Culturales Latinoamericanos y docente-investigador de la Universidad Mayor de
San Andrés.
2 Véase El pensamiento indígena y popular en América y específicamente el capítulo VI “La
teoría del vuelco” (1970).
485
de conocer y de entender, y por tanto, otras economías, otras políticas, otras
éticas, entonces la Nueva comunicación intercultural debe ser interpretada
como una nueva comunicación inter-epistémica” (Mignolo, 2008: 6).
En esta lógica de la “comunicación interepistémica”, “desprenderse
presupone (la guía) moverse hacia una geopolítica y una corpopolítica” del
conocimiento, entendida ésta no como “pienso, luego existo” sino que “se
es donde uno piensa” (Idem. p. 6). Desde las palabras de Mignolo, hay que
tomar en cuenta que Rodolfo Kusch es de clase media blanca, marginal de
Alemania y de familia migrante. Su lugar de origen es Occidente, pero su
lugar de pensamiento es americano o específicamente indígena-popular3.
Entre el origen enunciado y el lugar migrante de enunciación Kusch
asume el vuelco descolonial sobre su propia persona. En primer lugar, Kusch
parte de la idea de no saber lo que es: “yo mismo no sé lo que soy” (p. 28). Esta
confesión de parte conlleva el dilema de lo que el denomina como sectores
medios o de clase media. Existe, por tanto, una 1ra. persona del plural que in-
terpela de manera frontal. Desde Mignolo, a propósito de Quijano, podríamos
decir que es el “nosotros” ubicado en la analítica, es decir, el nosotros que des-
de la perspectiva de la colonialidad, interpela el carácter epistémico-colonial
de la modernidad. Ese nosotros, en tanto clase media, establece una zona de
frontera entre su identidad de clase y la identidad otra, es decir, la identidad
indígena aymara, cuando pregunta: “Evidentemente entre Cota y nosotros
hay una relación mediatizada por una distancia cultural. Son dos distintas
culturas que se enfrentan…(p. 131); “Y es curioso cómo nosotros como clase
media, no nos sentimos muy comprometidos con ninguna clase de cultura”
(p.68); “¿Y qué distancia hay entre nosotros y el brujo?” (p.45); “es que somos
débiles frente a la totalidad de lo que deberíamos pensar” (p. 13); “la idea cons-
tituye la base de nuestra cultura occidental” (p. 81).
Kusch se ubica en el nosotros de la clase media, pero su ubicuidad se
caracteriza por una postura crítica que evidencia una distancia y una relación:
el abismo cultural y la ajenitud respecto a la identidad indígena. En todo caso
Kusch se mueve del lugar de clase para habitar la frontera que le permite ver
la manera cómo esa clase está determinada por los instrumentos imperiales:
el conocimiento y los intelectuales, la cultura y la educación. Desde ese lu-
gar, Kusch habla siempre binarizando los mundos, resaltando las limitacio-
nes de uno y estableciendo las posibilidades epistémicas del otro. Ese “noso-

3 Asumimos en el trabajo el término “Americano”, por respeto a Kusch, pese a que sabe-
mos que es un nombre colonial. Y lo asumimos desde su propia convicción: “…hay una
comunidad de destino de América en la cual entran todas las capas sociales. Es lo que constituye
el estilo de vida americano. ¿Podremos encuadrarlo en un término filosófico que sea realmente
propio? (Kusch, 1977: 249).
486
tros” permanentemente constituyen el mundo de miedo; y el brujo, indígena,
aymara o lo popular constituyen no sólo el mundo sin miedo y distinto a la
racionalidad moderna/colonial, sino un mundo desde la frontera. Esta pala-
bra debe comprenderse en el contexto de lo que significa el conocimiento y
la comprensión desde la diferencia colonial. En todo caso, Kusch habla desde
una zona epistémica de pensamiento fronterizo (Mignolo: 2003: 64)
Por lo dicho, Kusch establece el desprendimiento de su clase4, “sien-
do” desde la frontera, borrando lo que “es” (clase media blanca colonizada),
e inaugurando las condiciones para dar el Pachakuti o vuelco decolonial.
Aquí, en este “salto al revés”, se da el Pachakuti epistémico, pues Kusch se
transforma plenamente y asume el lugar y la identidad del mundo otro. Es
cuando Kusch duda del estereotipo fundamental sobre nuestra geocultura5.
Es el momento en que deja el “nosotros” colonial, su clase occi-
dentalizada, y localiza un locus pleno de enunciación en un nosotros sin
miedo: “Y he aquí nuestra paradoja existencial. Nuestra autenticidad no
radica en lo que Occidente considera auténtico, sino en desenvolver la es-
tructura inversa a dicha autenticidad, en la forma del ‘estar siendo’ como
una única posibilidad. Se trata de otra forma de esencialización a partir de
un horizonte propio. Sólo el reconocimiento de este último dará nuestra
autenticidad” (p. 157-158).

El tejido lingüístico quechua-aymara de Kusch

El sentido de pertenencia al mundo aymara o indígena además del


uso de categorías aymaras y quechuas, que denominamos el tejido lin-
güístico de Kusch, le permite ver en perspectiva crítica a Occidente, es de-
cir distanciarse plenamente y construir el “horizonte propio”. Occidente
ajenizado, inauténtico y desautorizado para una esencialidad propia, sólo
podía darse desde dos posibilidades paralelas, en mundos distintos y para-
lelos: crítica y suicidio epistémico de su mundo-clase y apropiación exis-
tencial e intersubjetiva del “estar siendo”6 en pachakutxa de los indígenas.

4 Paulo Freire dice que para que un intelectual se comprometa con los oprimi-
dos, debe cometer un “suicidio de clase”, negar las lógicas opresoras de su clase.
Kusch va más allá, podríamos decir: suicidio epistémico de clase.
5 “Nuestra aparente inferioridad sudamericana” (p. 34)
6 El sentido de apropiación lo entendemos desde Arturo Escobar; lo existencial es dis-
tinto al planteamiento de Heidegger sobre el ser en cuanto éste es el despliegue tras-
cendente de sí mismo. Así, lo existencial intersubjetivo da cuenta no sólo del diálogo y
comprensión desde el mundo del otro sino a la ontología relacional o relacionalidad del
pluriverso de mundos (Escobar 2014).
487
Este vuelco consumado, del pachakuti al pachakutxa, en tanto tene-
mos a un Kusch transformado y localizado en un nosotros decolonial, re-
dondea su capacidad de comprender la realidad desde una sabia episteme
otra y de afirmar la plenitud de la comunicación intercultural e interepis-
témica desde la corpo-política del cuerpo y espiritualidad. En este sentido
y desde una zona fronteriza, es la sabia episteme de Kusch que establece
la re-conexión sobre un suelo mítico e historizado por comunidades indí-
genas, dioses, cosmos y naturaleza.

Espiritualidad, saber tenebroso, literatura


y geopolíticas de conocimiento

Es aquí donde entra en acción la noción de saber tenebroso en re-


lación a la espiritualidad relacional a comunidades indígenas, dioses, cos-
mos y naturaleza. El saber tenebroso para Kusch es “la semilla puesta por
la divinidad en el centro del cuerpo…el equilibrio no sólo del individuo
sino también del universo…; el discípulo cuyo corazón estaba formado
sabía de las cosas del cielo y la tierra, lo verdadero y lo falso, y cómo uno
se convertía en otro. Sabía en suma el margen de tinieblas que rodea al
saber lúcido. Sabiduría era entonces un saber lúcido y un saber tenebro-
so. Como si se abarcara toda la montaña: su parte iluminada y su parte
oscura” (2007, 573). Este punto de partida tendrá continuidad con sus
lugares de enunciación desde Tiwanaku, Virakocha, el Coricancha del in-
dio Santa Cruz Pachakuti relacionando diversas palabras aymaras como
Pacha, Amawta, Pachayachachic, hanan-pacha, cay-pacha y uku-pacha,
entre otros términos. Se trata de articular diversos textos de Kusch y la
manera cómo estas conceptualizaciones del quechua aymara constituyen
una sabia-epistémica7 tensionantes y configurantes de su proposición, el
“saber tenebroso”, como alternativa y complementariedad crítica al saber
luminoso de la modernidad. Este “saber tenebroso” también provoca a
redefinir la relación que se establece con la espiritualidad, es decir con las
formas de enacción de las energías dulces y el jugo mágico de la natura-
leza en el conocimiento.
Finalmente se plantea una relación entre el “saber tenebroso”, la

7 Acudimos al debate propuesto por Patricio Guerrero en su libro La chakana del corazo-
nar (2018) en el sentido de epistemologizar las sabidurías o nutrir las epistemologías de
sabidurías. Compartimos la idea de nutrir de sabidurías las epistemologías. Al igual que
Kusch, Guerrero plantea establecer su propia especificidad a las sabidurías sin subordi-
narlas al logos y episteme modernos. Por ello la noción de sabia-episteme, pues se trata
de relievar las sabidurías y luego relacionar a la episteme.
488
espiritualidad y el tejido lingüístico de Kusch con la literatura y el saber
científico dominante y la manera cómo hoy en día los aportes de Kusch
son relevantes para comprender la crisis climática, las geopolíticas de co-
nocimiento y el saber literario en las universidades públicas y en las uni-
versidades indígenas de Abya Yala/América Latina.

Referencias
ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desar-
rollo, territorio y diferencia. Medellín: UNAULA, 2014.
FREIRE, Paulo. La pedagogía del oprimido. México: Siglo XXI, 1999.
GUERRERO, Patricio. La chakana del corazonar. Quito: Abya Yala, 2018.
HUANCA SOTO, Ramiro. Tanttapit Arunaka. Palabras juntadas. Ensayos
sobre polifonía política y literatura. La Paz: THOA, 2017.
KUSCH, Rodolfo. Geocultura del hombre americano. Argentina: Fernando
García Gambeiro, 1976.
KUSCH, Rodolfo. El pensamiento indígena y popular en América. Argentina:
Hachette,1977.
KUSCH, Rodolfo. Obras completas. Tomos I, II, III, IV. Córdoba: Fundación
Ross, 2007.
MIGNOLO, Walter. La opciòn descolonial. Revista Letral, n. 1, 2008
MIGNOLO, Walter. El desprendimiento: Retórica de la modernidad, lógi-
ca de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Caracas, julio 27.
s/d. 2008.
MIGNOLO, Walter. Historias locales / Diseños globales. Colonialidad, co-
nocimientos y pensamiento fronterizo. Madrid: Akal, 2003.
QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en América
Latina. Pensar en los intersticios. Teoría y práctica de la crítica poscolo-
nial. Bogotá: Instituto Pensar, 1999.
WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedad. Luchas (de)colo-
niales de nuestra época. Quito: UASB/Abya Yala, 2009.
YAMPARA, Simón. El ayllu y la territorialidad en Los Andes. Una aproxi-
mación a Chambi Grande. La Paz: Q’aman Pacha CADA, 2001.

489
povos originários dA nossA AméricA: Autores do sul que
vAlorizArAm A presençA e culturA indígenAs

Stela Macedo Lima1


Ana Maria Netto Machado2
Vanice dos Santos3

Este trabalho resulta de pesquisa de mestrado concluída que tem


como título “Pensadores latino-americanos e suas contribuições para a
educação em perspectiva descolonial” (2018). Neste texto abordamos um
dos inúmeros aspectos trabalhados na dissertação: as populações originá-
rias da América do Sul. É, entretanto, interessante descrever rapidamente
o espectro da pesquisa, para situar o recorte aqui considerado.
A investigação partiu de uma obra que consideramos pioneira e
muito relevante para a Educação brasileira e para a identidade da Améri-
ca Latina, uma vez que nosso país, historicamente, tem tido muita dificul-
dade em considerar-se pertencente ao continente, identificando-se muito
mais com Europa do que com seus ‘hermanos’ hispano-americanos.
José Martí, importante intelectual cubano, idealizador da ideia
de Nuestra América, falava em duas Américas, referindo-se à América
do Sul e à América Central, explicitamente fazendo, de alguma for-
ma, coincidir América do Sul com hispano-América. Na obra Nuestra
América (2011) não faz qualquer menção ao Brasil. Encontramos nesta
e em outras constatações na literatura pertinente um isolamento4 im-

1 Mestre em Educação pela Universidade do Planalto Catarinense – UNIPLAC.


2 Doutora em Ciências da Linguagem pela Université Paris X e Doutora em Educação
pela UFRGS. Université International Terre Citoyenne - UiTC
3 Doutora em Educação pela UNISINOS. Universidade do Planalto Catarinense.
4 Na obra do uruguaio Alberto Methol Ferré, El Uruguay como problema (2017), o autor
levanta uma hipótese surpreendente que poderia explicar essa posição de alguma forma
excêntrica ou desencaixada do Brasil com relação ao conjunto de países do continente. Ele
fala no “inferno verde”, referindo-se à Amazônia (que por sinal em agosto de 2019, quando
escrevemos este resumo, está mais vermelha do que verde, em função das queimadas que
a devoram). Ele refere que essa enorme depressão da floresta no meio do continente fun-
cionaria como barreira para aproximação entre os povos dos diferentes países. É uma ideia
chocante e dá o que pensar, sobretudo se consideramos que foi escrita em 1967, quando da
primeira edição da obra. É importante registrar que esta obra não faz parte das referências
da dissertação que inspira este trabalho, mas é uma contribuição/descoberta posterior.
491
portante do nosso país com relação aos vizinhos que compartilham o
mesmo continente.
A obra em questão na dissertação é uma coletânea de 459 pági-
nas, organizada por Danilo Streck, intitulada Fontes da Pedagogia Latino-
-Americana: uma antologia (2010). Nela são apresentados 26 autores que
escreveram suas obras ou atuaram ao longo dos últimos 200 anos, apro-
ximadamente. Oito são brasileiros, dentre os quais duas são mulheres.
Apresentemos seus nomes: Nísia Floresta (1810 - 1885, Brasil), Manuel
Bomfim (1868 - 1932, Brasil), Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945,
Brasil). Anísio Teixeira (1900 - 1971, Brasil), Florestan Fernandes (1920
- 1995, Brasil), Paulo Freire (1921 - 1997, Brasil), Darcy Ribeiro (1922
- 1977, Brasil) e Chico Mendes (1944 - 1988, Brasil). Obras e feitos dos
quatro últimos são bastante conhecidos no meio acadêmico. Mas muito
pouco mencionados são os quatro primeiros.
O livro instiga o leitor a querer saber mais sobre os autores e suas
obras. Gera-se também a necessidade de uma dimensão política da educa-
ção que vários dos autores considerados propuseram como fundamental
para a difusão do pensamento nascido no território. Os 26 autores são
tratados individualmente, trazendo vida e obra de forma sintética e in-
cluído um texto original do autor biografado. Nosso trabalho de pesquisa
foi cruzar elementos entre os autores, destacar convergências, distinções,
eventualmente antagonismos e dar visibilidade às dimensões trabalhadas
por conjuntos de autores.
O aspecto escolhido para este trabalho foi tratado como um subcapí-
tulo do capítulo quarto: Perspectivas de reconhecimento e inclusão de segmentos
da população marginalizada e movimentos sociais na américa latina. O tópico
que apresentaremos no evento refere-se às populações indígenas e deno-
mina-se: Reconhecimento e defesa dos povos indígenas.
Nove dos 26 autores trazidos por Streck e seus colaboradores de-
dicaram sua energia (ou parte de seu tempo) às populações ou causas in-
dígenas, às vezes exclusivamente ou conjuntamente com outros aspectos
que descobriremos na apresentação durante o evento. Dentre os brasi-
leiros, quatro trabalharam pelo reconhecimento e defesa indígena: Nísia
Floresta, Manoel Bomfim, Darcy Ribeiro e Chico Mendes.
Neste breve resumo tecemos algumas considerações de cunho mais
geral da problemática, anunciando os autores cujo ideário, obras ou ações se
ocuparam das populações originárias de Latino-América que, no contexto
de Streck, incluiu alguns autores de Centro América e até do México. Breve-
mente seguem os autores a serem debatidos, por ordem cronológica. No re-
sumo são apenas anunciados e a exploração será detalhada na apresentação.

492
Simón Rodrígues, que foi tutor (professor) do ‘libertador’ Simón Bo-
lívar, em 1826 desenvolveu um projeto educativo para jovens indígenas.
Na Argentina, Domingo Faustino Sarmiento, quem estabeleceu a
Educação Pública para todos em seu país, preocupou-se com a população
indígena. Porém, no sentido oposto à sua valorização. Ao contrário, ele se
opunha à miscigenação, promovendo a imigração europeia e a urbaniza-
ção. Censurando e discriminando as populações do campo.
O brasileiro Manoel Bomfim foi um defensor dos indígenas e revela
em seus escritos que eles não foram nada passivos, como muitos livros o
retratam. José Vasconcelos praticou uma convicção antinorteamericana, a
defesa do índio e das populações marginalizadas. Gabriela Mistral, escri-
tora chilena mundialmente conhecida, foi a primeira personalidade latino-
-americana a receber o prêmio Nobel de Literatura, em 1945. Aludia, em
seus textos, a mestiçagem, bem como a necessidade de reconhecimento do
índio na sociedade da época, pois ela sabia muito bem o que era a discrimi-
nação e suas consequências. Alinhou-se a Vasconcelos com relação à causa
indígena, quando esteve no México.
Elizardo Pérez instalou escolas em meio aos campesinos e indíge-
nas. O peruano José Carlos Mariátegui defendeu o socialismo e levou para
o debate público a problemática agrária indígena. No Brasil, Darcy Ribei-
ro exerceu a defesa de negros e indígenas bem como de populações mar-
ginalizadas em geral. Na defesa dos povos da floresta tivemos o grande
líder, seringueiro, Chico Mendes, assassinado durante sua luta e por causa
dela, deixando memória como importante e premiada liderança brasilei-
ra. Por fim o enigmático Subcomandante Marcos, do movimento para a
liberação chamado, do movimento Zapatista também lutou pela defesa das
mulheres, dos indígenas e das classes marginalizadas.
São alguns autores destacados a partir do trabalho de Streck, que
chama a atenção para o conjunto e nos permite aprofundar. Trata-se de
estudos que podemos considerar “silenciados” em nome da hegemonia
eurocêntrica ainda vigente.
Investir no estudo e difusão das obras e atuação destes líderes do
continente é relevante para compensar a secular influência europeia em
nossas mentes e instituições. Fruto de nossa mente colonizada, da “colo-
nização epistêmica e subjetiva”, como refere Walter Mignolo (2010), urge
que mudemos este rumo eurocêntrico da formação humana que profes-
samos em todos os níveis educacionais, que vem aumentando dia a dia,
apesar das raras exceções.
Assim, atribuir a importância ao conhecimento de nossa própria his-
tória territorial poderá fortalecer nossa cidadania, o que nos vincula ao

493
movimento e teorias descoloniais e decoloniais. Uma guinada continental
é um movimento necessário para nós brasileiros, que tendemos a olhar
para o mar... em busca da idealizada Europa.
Percebe-se a grande distância entre índios e brancos em toda a Amé-
rica Latina; no Brasil essa temática é colocada de forma bem fragmentada,
como consta no livro “A temática indígena na escola”, de Aracy Lopes da
Silva e Luís Donisete Benzi Grupioni:

Não há canais regulares e institucionalizados de comunicação e conheci-


mento acumulado até agora sobre populações indígenas pelos não-índios é
fragmentado e parcial: apenas metade dos povos indígenas que habitam hoje
o país foram objeto de estudos básicos por parte de etnólogos e linguistas e,
das mais de 170 línguas indígenas faladas no Brasil, apenas 10 % possuem
descrições completas. Junte-se a isto o fato de que boa parte da bibliografia
existente não está publicada, permanecendo restrita ao uso de especialistas e
estudiosos nas universidades (SILVA; GRUPIONI, 2004, p. 17).

O respeito à diferença indígena é explorado de maneira bastante di-


ferente em cada região ou país do território latino-americano. A presença
indígena pode ser majoritária ou minoria, conforme a região. No Brasil,
esta população ocupa apenas 13,8%, sendo que a extensão territorial do
país é de 851.196.500 hectares, ou 8.511.965 km². A maior parte destes
territórios TIS, ou terras indígenas estão concentrados na Amazônia Le-
gal, e o restante em estados como Mato Grosso do Sul, Goiás e nas re-
giões Nordeste, Sudeste e Sul.
Nos países andinos a situação é outra, com muito maior presença
indígena e expressiva produção econômica e cultural. Conforme Borges e
Borges (2009, p. 03), “No Brasil apenas 0,4% dos habitantes se reconhe-
cem como indígena, na Bolívia são 55%, no Peru são cerca de 50%, no
Equador aproximadamente 30% e no México perfazem em torno de 55%
da população”. Recente informação veiculada por redes sociais destaca
justamente os feitos de um país interior como a Bolívia que, recentemente,
se assumiu constitucionalmente como um Estado Plurinacional, reconhe-
cendo a pluralidade de etnias originárias. O mencionado material difun-
dido por redes sociais se refere ao Presidente Evo Morales e às recentes
conquistas da Bolívia:

Un ‘indio’, izquierdista, seguramente guerrillero, castrochavista, ha gene-


rado el más grande desarrollo de un país suramericano en toda la historia
del continente; Evo Morales acaba de inaugurar el Tren bala de Cocha-
bamba, único en Suramérica. Bolivia es el país con el PIB más alto de toda

494
la región, el país con el menor índice de desempleo, con una proyección
futurista al estilo europeo. Bolivia no tiene deudas con países extranjeros,
por el contrario presta dinero a otros países, las universidades son gratui-
tas, van mejorando el nivel de educación en los bolivianos y bolivianas; la
inseguridad en Bolivia desapareció, la indigencia y la desprotección infan-
til se acabó...Bolivia es el país suramericano con el mayor desarrollo del
continente y lo dirige un ‘indio’, castrochavista, basando su economía en
ideas sociales y de izquierda.

Concluímos com este cenário de otimismo em tempos sombrios para


nosso país e boa parte do continente. A esperança talvez possa ser espe-
rada do exemplo do coração do continente, exposto acima. Conhecer os
autores e examinar a produção continental se configura como uma dívida
histórica, no sentido da integração entre o Brasil e seus países vizinhos.
Aí a relevância e originalidade deste trabalho.

Referências
LIMA, Stela Macedo. Pensadores latino-americanos e suas contribuições
para a educação em perspectiva descolonial. 2018. 142. f. Dissertação (Mes-
trado em Educação) – Universidade do Planalto Catarinense, Lages, 2018. Dis-
ponível em: https://data.uniplaclages.edu.br/mestrado_educacao/dissertacoes/
e08e5847ce91ef17814ccfa76e418c64.pdf. Acesso em: 18 jul. 2019.
MARTI, José. Nuestra América. Brasília: UNB, 2011.
MIGNOLO, Walter. Desobediencia Epistémica: retórica de la Modernidad,
Lógica de la Colonialidad y Gramática de la Descolonialidad. Buenos Aires:
Ediciones del Signo, 2010. Disponível em: https://antropologiadeoutraforma.
files.wordpress.com/2013/04/mignolo-walter-desobediencia-epistc3a9mica-
-buenos-aires-ediciones-del-signo-2010.pdf. Acesso em: 23 ago. 2019.
SILVA, Aracy da Lopes; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Introdução: Educa-
ção e diversidade. In. A Temática Indigena na escola. São Paulo: Global, 2004.
STRECK, Danilo R. Fontes da Pedagogia Latino-Americana. Belo Horizon-
te: Autêntica, 2010.

495
lA dis-torsión del deseo de conocer entre lA levedAd
del eros (ser Alguien) y lA grAvidez
del suelo (estAr-siendo)

Walter Omar Fernández1

Como también se dice que Tales, mientras estudiaba los astros y miraba
hacia arriba, cayó en un pozo, y que una bonita y graciosa criada tracia se
burló de que quisiera conocer las cosas del cielo y no advirtiera las que
tenía junto a sus pies (DK 11 A 9, Los Filósofos presocráticos, Ed. Gredos,
fr. 10).

La situación pedagógica concreta que motiva este trabajo la he vi-


vido (y a veces padecido) personalmente en ejercicio de mi rol docente
en Escuelas secundarias y técnicas (públicas y privadas), y también Pro-
fesorados de Buenos Aires (CABA y GBA). La problemática de la lla-
mada crisis/malestar en la educación y el así llamado “fracaso escolar”
presentan en este contexto características particulares y paradójicas: ge-
neralmente los estudiantes y sus padres tienen la expectativa de que les
resultará deseable, viable e incluso sencillo a los alumnos de una escuela
técnica alcanzar un nivel suficiente de saberes al egreso que los capaciten
adecuadamente para un ingreso rápido al mundo del trabajo: así esperan
egresar sabiendo “hacer cosas concretas”, “hallar una salida laboral”, “po-
der ocuparse”, “encontrar soluciones económicas” y mediante estos ca-
minos llegar a “ser alguien”, pero a pesar de todas estas expectativas en
la mayoría de los casos los estudiantes muestran durante el curso de su
proceso educativo un gran desinterés, apatía, anomia e incluso rechazo al
aprendizaje y a la Institución educativa, tanto en las clases de aula como
en los talleres y laboratorios; esto se traduce en problemas disciplinarios,
agresividad verbal o física hacia otros alumnos o docentes y muy variadas
conductas disfuncionales como ser: bajo rendimiento, numerosas materias
desaprobadas, problemas disciplinarios, bajas calificaciones, así como ele-
vados índices de ausentismo, repitencia y deserción.
1 Ingeniero en Electrónica (U.T.N.), Profesor en Disciplinas Industriales (I.N.S.P.T.),
estudiante avanzado de grado del Profesorado de Filosofía (U.B.A.) con aprox. 85 % de
materias aprobadas, docente en ejercicio en el Profesorado del I.E.S. 2 “Mariano Acosta”
en las asignaturas “Electrónica” y “Filosofía de la tecnología”
497
En los casos concretos en que viví esta situación en la escuela, en su
mayoría los alumnos eran de un nivel socio-económico bajo y medio-bajo
(pero no siempre, a veces en las escuelas de clase media o alta la situación
es semejante), muchas veces provenían de hogares en el Gran Buenos Ai-
res, mayoritariamente eran hijos de obreros, de inmigrantes extranjeros o
de pequeños comerciantes. Con frecuencia viajaban bastante tiempo y les
insumía un esfuerzo considerable trasladarse desde sus hogares en el gran
Buenos Aires hasta la escuela.
En este escrito intentaré explicar kuscheanamente esta “paradoja” o
“contradicción pragmática” entre las expectativas previas y las conductas
concretas de estos grupos de alumnos y en consecuencia el pobre resulta-
do educativo que (se dice) brindan las Escuelas.
“Todos los hombres, por naturaleza, desean conocer”, reza el famoso dic-
tum aristotélico (Aristóteles, 1986, 980a). El enunciado inicial del Libro I
de Metafísica opera al modo de un “a-priori” el cual opera como “condición
abstracta y universal de posibilidad” para todo conocimiento, pero ello
no significa que efectivamente todos actualicen esta potencia de conocer.
¿ Dónde estará la razón por la cual en algunos este deseo se presenta
con fuerza y en otros es muy débil o agonizante ? Según Platón el Eros
en tanto fuerza semi-divina que impulsa la elevación del alma (nous) “se
encuentra en el término medio entre la sabiduría y la ignorancia”. Pero sucede
en nuestra época “posmoderna” que los objetos deseables se nos muestran
cada vez en mayor número y en obscena desnudez, en una rápida y fugaz
sucesión, en cambio incesante y así la intensidad del deseo se desvanece
con la ilusión incesantemente renovada de la inmediata posesión. El Eros
se dispersa y lo que gana en amplitud lo pierde en intensidad. Idéntica si-
tuación se produce actualmente de modo abrumador en el campo de la in-
formática y las tecnologías de la (in)comunicación: se vive en un estado de
permanente “conexión” e hiper-comunicación pero se pierde por lo mismo
la posibilidad de construir sentidos y se atrofia la imaginación. De esto re-
sulta una seria confusión: considerar la mera obtención y acumulación de
datos como si esto fuese equivalente a adquirir algún conocimiento: así los
“tecno-docentes” se ahorran explicaciones con el recurso de pedirle a sus
alumnos que el tema lo “investiguen en Internet y presenten un informe”.
En este proceso suele estar ausente el pensamiento, por ser éstos pro-
cesos mecánicos: así no se accede a conocimiento alguno. El pensamiento
es necesario para alcanzar hermenéuticamente el conocimiento. Se puede
señalar una gran desadaptación entre este modo posmoderno de acceso
privilegiado a la verdad y al conocimiento, a través del arte y la retórica,
respecto del paradigma científico positivista de las currículas diseñadas y

498
legitimadas por expertos que aún responden a un tipo de racionalidad ilus-
trada. En esta desadaptación de “temples epocales” creo que se encuentra
una de las causas del debilitamiento del deseo en relación al conocimiento
en la educación actual. En síntesis, la posmodernidad con sus modos alie-
nantes de fragmentación cognitiva y de dispersión informativa debilita el
“deseo de conocer” al modo en que se lo solía entender hasta la modernidad.
Sin embargo, el pensamiento de Rodolfo Kusch nos puede dar otra
clave explicativa, si la hay, para comprender desde un enfoque situado en
Nuestra América Profunda este mismo fenómeno, aquí donde el es y el no
es siguen jugando su eterno juego:

En lo más profundo, asumiendo toda la globalidad del lugar filosófico, la


explicación, si la hay, deberá darse en otro horizonte, quizá en un ámbito
donde el es no sea exclusivo, donde si se quiere también se piensa la nada,
o peor donde el es y el no es, como quería Nagarjuna, serían simultáneos, o
simplemente, lo que sería lo mismo, algo que hace a lo dado que está y que
no se logra determinar (KUSCH, 1978, p. 110).

Nosotros estamos viviendo (o estamos siendo) en ciudades globalizadas


con nuestra cultura y nuestra historia de países dependientes del tercer
mundo. Para Kusch es necesario atenernos a la gravidez del pensamiento,
ello será esencial para hacer posible una filosofía que nos sea propia en-
marcada en nuestro horizonte simbólico, que se construya y se piense des-
de nuestro estar-siendo . Nuestra filosofía y nuestra pedagogía si quieren
ser tales no pueden pasar por alto esta diferencia geocultural, no se pueden
limitar a meramente repetir la filosofía producida en el primer mundo,
no puede solo ser una “filosofía rumiante” que se contente con ingerir y
digerir teorías y conceptos producidos en el centro hegemónico y luego
regurgitarlas para aplicarlas mecánicamente como si todo ello pudiese ser
válido sin más en nuestra concreta ubicación periférica. Atenernos a la
gravidez del pensamiento, en nuestro suelo americano, será esencial para
hacer posible una filosofía (y una pedagogía, una política, una economía, y
un largo etcétera) que nos sea propia, que brote desde nuestra geocultura
y esté enmarcada en nuestro horizonte simbólico, que se construya y se
piense desde nuestro estar-siendo (Kusch, 2000) y que no sea solamente
una mecánica asimilación y repetición de doctrinas a la moda elaboradas
para nuestro consumo y reproducidas para acrecentar nuestra erudición
y justificar nuestras actividades profesionales y académicas.

Quizás lo propio de la filosofía entre nosotros ha de ser, ya no su en-


señanza misma, sino advertir en qué medida se deforma a causa de la

499
gravidez local. La misma imperfección del filosofar hace a la filosofía
americana. En el defecto en suma habrá de darse la verdad, o en otras
palabras, nuestra verdad siempre deforma lo que se pretende instituir
formalmente (KUSCH, 1978, p. 259).

Estas consideraciones impactan fuertemente también en el asunto


del “deseo de conocer” en la educación. ¿Conocer es meramente asimilar
conceptos filosóficos, teóricos, prácticos (útiles), científicos y técnicos ? ¿
Qué relación puede establecerse entre el conocer y el “saber vivir sin más”
propio de América ? Dice Kusch en Indios, porteños y dioses hablando del
modo educativo indígena:

¿Se aprende para saber mucho o se aprende para poder inscribir


la propia vida en el paisaje? ¿Acaso no se aprende sólo para vivir?
¿Y por que insistir en enseñar algo mas que eso que llevamos en lo más
hondo del alma eso que se da como lago o como pampa afuera? Los
amautas enseñaban a sus alumnos las cosas de su tierra y sus creencias
mediante cordeles, a los cuales agregaban nudos: eran los quipus. Cada
nudo equivalía a una palabra muestra o a una idea. Cada nudo correspon-
día a una cosa. Por un lado había un signo, por el otro un trozo de vida
que le correspondía: Vida y signo iban de la mano. Era una virtud de las
antiguas culturas. Pero en el siglo XX hacemos al revés: aprendemos los
signos, técnicas, ciencias, pero no sabemos con exactitud a qué aspecto
de nuestra vida corresponden (KUSCH, 2007, p. 192).

Cuántas veces se trata de “hacerles entrar en la cabeza” a los


alumnos un sinnúmero de tópicos (incluso del orden del “saber hacer”)
que les resultan totalmente irrelevantes en relación a su “saber vivir”
cotidiano. Su desinterés seguramente depende de esta percepción, al
advertir ellos esta profunda “desadaptación” con que el sistema preten-
de “educarlos”. Los jóvenes provenientes del Gran Buenos Aires traen
consigo una gran impronta cultural (por tradición familiar y prove-
niencia geográfico-social) de modos del “estar siendo”, por lo cual su ac-
titud “distante” respecto al conocimiento técnico-científico no se debe
solamente a una “falta de deseo de conocer” (valorado esto negativa-
mente) sino a una reacción de oposición a los modos de enseñanza tan
disociados de su vida cotidiana concreta. Por este motivo las frecuentes
actitudes de rechazo y las disfuncionalidades en el aprendizaje a las
que me refería al comienzo (apatía, anomia, indisciplina, bajas califi-
caciones, repitencia, deserción, etc.) también conllevan un importante
aspecto positivo: constituyen una resistencia cultural frente a los modos
alienantes del sistema educativo.
500
También Carlos Cullen nos enseña en este mismo sentido al refe-
rirse a la relación entre el deseo de conocer y la mediación cultural que lo
condiciona y lo “deforma”:

Suponer que la relación con el conocimiento es “natural”, que todos los


hombres por naturaleza desean saber, no debe encubrir, sin embargo, que
ese “deseo” es, en realidad, el resultado de un proceso de formación cultu-
ral, donde la propiedad de los medios de producción y el control del poder
en las prácticas sociales han desempeñado un rol determinante. Por eso, no
es lo mismo conectarse “naturalmente” con el deseo de saber, que hacerlo
“públicamente” (CULLEN, 1997, p. 144-145).

Es claro que la subjetividades a las que se pretende educar son real-


mente muy diferentes del sujeto que la educación moderna presupone con
su tipo de racionalidad pura, abstracta e invariante, con su pretendida
escisión cuerpo-mente, su condición “individual-atómica” previa a toda
comunitariedad y su preeminencia gnoseológica. Los sujetos “concretos”
y “mestizos” están afectados por la “deformación” que a su pensamiento
les imprime su Geocultura y por la gravidez del suelo en el que habitan y
su existencia se desenvuelve en el estar-siendo, no son pulcros. Son sujetos
“impuros, concretos y periféricos” y están afectados (deformados diría Kus-
ch) por su condición periférica y subalterna con respecto a los centros del
poder y del saber de donde provienen la legitimación de los contenidos
y los métodos pedagógicos: ellos son los indios, los mestizos, los pobres,
los criollos, los inmigrantes, las personas pertenecientes a las culturas y
clases sociales oprimidas y alienadas en lo económico y degradadas en lo
social, subordinadas y marginadas, las víctimas o “la Otredad” (Levinas).
El paradigma educativo moderno y “bancario” (Freire) pretende
formarlos como sujetos útiles para la tecno-ciencia y como (re)producto-
res de conocimiento racional y metódico, como agentes productivos en la
economía de libre mercado poseedores de una ética individualista, enfo-
cados en la búsqueda del progreso y lucro material así también hacerlos
capaces de ejercer la virtud ciudadana al modo europeo, pero este modelo
educativo está profundamente desadaptado y es profundamente inadecuado
con respecto a las principales expectativas y a las necesidades concre-
tas y urgentes de los sujetos reales a quienes va destinada la educación.
Por todo ello se genera el choque y la resistencia y esto se manifiesta
frecuentemente en el conocido “malestar” o “fracaso” en la educación de
nuestros países.
Por ello se puede concluir con Kusch en que el universal deseo de
conocer (Aristóteles) se ve afectado (dis-torsionado) por un juego de ten-
501
siones entre el Eros por un lado que impulsaría al pensamiento (logos)
hacia las alturas universales y abstractas posibilitando la actividad teórica
racional y por otro lado la gravidez del suelo que con su horizonte simbóli-
co-cultural retiene y deforma al humano en su estancia concreta del “saber
vivir sin más” en el modo del “estar-siendo”, donde el conocer solo tendrá
sentido y relevancia si se traduce como un conocer para vivir.

Referencias
ARISTÓTELES. Libro I (Alpha) en Metafísica. Buenos Aires: Sudamericana,
1986.
CULLEN, C. Las relaciones del docente con el conocimiento. In: ______. Crítica
de las razones de educar. Buenos Aires: Paidós, 1997
KUSCH, R. Esbozo de una antropología filosófica americana. Buenos Aires:
Fernando García Cambeiro Editor, 1978.
KUSCH, R. Indios, porteños y dioses. In: ______. Obras Completas, Tomo I.,
Rosario, Editorial Fundación Ross, 2007.

502

Você também pode gostar