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Organizadores

Paulo Alfredo Schönardie


Claudete Beise Ulrich
Liria Ângela Andrioli

Educação Popular:
epistemologias, diálogos e saberes

Volume I

1ª Edição
Foz do Iguaçu
2022
© 2022, CLAEC

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte
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licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

Diagramação: Valéria Lago Luzardo


Capa: Gloriana Solís Alpízar
Revisão: Os autores
ISBN 978-65-89284-31-4
Disponível em: https://doi.org/10.23899/9786589284314

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S371 Schönardie, Paulo Alfredo


Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes (Volume I) /
Paulo Alfredo Schönardie, Claudete Beise Ulrich, Liria Ângela Andrioli
(Organizadores). 1. ed. Foz do Iguaçu: CLAEC e-Books, 2022. 153 p.

PDF – EBOOK

Inclui Bibliografia.

ISBN 978-65-89284-31-4

DOI: 10.23899/9786589284314

1. Educação Popular. 2. Pedagogia. 3. Saberes. I. Título.

CDU: 37
CDD: 37

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seus respectivos autores, incluindo a adequação técnica e linguística.
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Universidade de Cuiabá, Brasil Universidad Andina Simón Bolivar, Equador
Sumário
Prefácio 5
Valéria Oliveira de Vasconcelos
Apresentação 10
Paulo Alfredo Schönardie, Claudete Beise Ulrich, Liria Ângela Andrioli
Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular
freireana: a contribuição da sistematização de experiências 18
Oscar Jara H.
A educação popular como método de aprendizagem por meio dos
movimentos sociais 30
Liria Ângela Andrioli, Ronaldo Darós, Walter Frantz
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos
originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar 41
Marcos José de Aquino Pereira, Geovane Diógenes da Silva, Guanilce Falcão Soares,
Pedro Manoel da Silva Santos
A narrativa como memória de experiências 59
Aline Bernar
O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da
organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das Cobras 71
Nadia Teresinha da Mota Franco, Viviane Kellen Vygte Barão,
Elizandra Fygsanh Freitas
O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares 82
Renato Simões Moreira, Yaçanã Torres do Amaral Sant’Anna
População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da Covid-19 97
Jocelaine de Oliveira, Amanda Gollo Bertollo, Adriana Remião Luzardo,
Zuleide Maria Ignácio
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista
de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico educativo na luta pela terra 109
Paulo Alfredo Schönardie, Claudete Beise Ulrich
A teologia da libertação e a mística do MST: a luta que transcende a terra 125
Régis Clemente da Costa
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da
educação popular 139
Guilherme Sousa Machado, Tiago Zanquêta de Souza, Gercina Santana Novais
Posfácio 151
Coletivo da ASSESOAR
Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio

Prefácio
O povo é como um ancião que fala muito manso, muito suave e para poder
escutá-lo, tem que chegar muito, muito perto1...

Como integrante do Grupo de Trabalho – GT de Educação Popular da Associação


Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Educação (Anped) há mais de 20 anos, tenho
tido a oportunidade de escutar, ler e partilhar muitas experiências que têm essa práxis
como sendeiro, alicerce e horizonte.

Optei por trazer, nesse breve texto, três experiências que fizeram parte de minhas
vivências em que epistemologias, diálogos e saberes se escondem e se revelam, para
juntar minha voz às vozes das autoras e autores dessa belíssima obra que tenho o
privilégio de prefaciar.

1. Uma jovem professora, após contar uma história indígena para crianças com
idades entre cinco e seis anos, em uma escola do interior do Estado de São Paulo,
decidiu fazer uma inusual pergunta: “Então criançada, vocês acham que índio é gente?”
A estarrecedora resposta das crianças foi um retumbante e quase uníssono “não”! A
jovem professora ficou muito incomodada e socializou o ocorrido. Igualmente
incomodada, decidi partilhar sua história entre graduandas de um curso de Pedagogia,
do qual era docente. Nesse momento, tive a oportunidade de problematizar a situação,
uma vez que uma criança de seis anos, irmã de uma das alunas, estava presente em sala
de aula. Reproduzo de memória o diálogo que se seguiu:

- Raíssa, índio é gente?


- Não! [Respondeu a criança, com muita naturalidade e doçura – o que causou
um choque nas alunas presentes]
- Porque não?
- Porque eles andam pelados?
- É? Que mais?
- Porque eles não comem o mesmo que a gente.
- É? Que mais?
- Porque eles não falam como a gente.
- É? Que mais?

1
Trecho retirado do texto de Raul Leis - As palavras são noivas que esperam - reportando-se à fala de
um camponês quando lhe perguntavam das razões da derrota do sandinismo nas eleições nicaraguenses
em 1990. (In: Pontual, Pedro; Ireland, Timothy (org.). Educação Popular na América Latina: diálogos e
perspectivas – Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2006).

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio

- Ah, acho que é só...


- Então, eu, quando vou tomar banho, fico pelada. Você também?
- Sim! [Assentiu com certo rubor nas faces]
- E nós deixamos de ser gente por causa disso?
- Não!
- Então, eu gosto de bacalhau, você gosta?
- Bléh! Não!
- Nós gostamos de comer coisas diferentes, não é? E deixamos de ser gente por
causa disso?
- Não!
- Então, tem um pessoal aí que fala: “I am Valéria, you are Raíssa”, não tem?
[A menina ficou um tanto em dúvida e foi ajudada pela irmã – “os americanos”]
- Ah, tem sim!
- Nós falamos diferente deles, não é? E deixamos de ser gente por causa disso?
- Não! [Depois de um breve silêncio completou] - É, eu acho que me enganei...

O conteúdo da fecunda conversa nos leva a questionar porque crianças tão


pequenas reproduzem pensamentos coloniais de maneira tão enfática e natural? Como
e onde aprendem/aprenderam isso? Apesar de não ser possível aqui uma reflexão mais
aprofundada, minha hipótese é que, por conta de a invisibilização dos nossos povos
originários ser tão presente no cotidiano de nossas escolas, de nossos livros, de nossos
filmes e programas de televisão, de nossos lares, de nossas vidas – principalmente
daqueles e daquelas que vivem em ambientes urbanos e mais distanciados dos
territórios populações nativas – as crianças acabam por reproduzir uma das maiores
falácias inventadas pelos invasores/colonizadores: que os indígenas não têm alma, não
são gente2!

E esses não são os únicos valores coloniais que são impostos e ficam impregnados
em grande parte das pessoas, nos mais ínfimos gestos, desde a mais tenra idade. Mas a
realidade é dialética e, felizmente, encontramos brechas. É o que nos ensina a sabedoria
do camponês da citação acima: para poder entender nossa realidade, para escutar
nossas crianças, jovens, adultos e idosos, para compreender a nossa História, devemos
chegar perto, muito perto.

E acercar-se, acercar, estar perto, fazer-se presente, aproximar, aproximar-se,


afetar-se, afetar, são ações que atravessam profundamente as práxis da Educação
Popular, reproduzidas na boniteza e amorosidade do cuidado. Como nos ensina Carlos
Brandão, a Educação Popular nos move “em direção à” para contribuir para que,
solidária e coletivamente, possamos ir “além de”. E chegar perto é condição inconteste.

2
Como contraponto sugiro a leitura de um precioso livro intitulado “Vocês brancos não tem alma –
histórias de fronteiras”, de autoria de Jorge Pozzobon, publicado pela editora do Instituto Socioambiental
(ISA), originalmente no ano de 2002.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio

2. Na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio/PA, ouvi coincidentemente outra


Raíssa (também com seis anos à época), contando sobre um diálogo entre Xandoca (sua
irmã, de 12 anos) que cotidianamente auxiliava o pai nas mais diversas tarefas, mesmo
naquelas muitas vezes destinadas a meninos. Para expressar sua gratidão, o pai resolveu
presenteá-la e pediu que ela escolhesse algo para comprar do Regatão que visitava a
comunidade - com seu barco lotado de inutilidades somadas a algumas utilidades.
Xandoca contestou:

- Não preciso de nada – tenho suficiente creme para os cabelos e minha sandália
ainda está boa, nunca se rompeu...

Essa fala desvela epistemologias outras que subjazem os territórios ocupados por
populações tradicionais. Quando Xandoca afirma que "não precisa de nada", ela
subverte a lógica do capitalismo - essa máquina mortífera, necrófila, movida à
frustração e que transforma necessidades em desejo. Ou em outras palavras, que
transforma mercadorias em fetiche. A menina interpela a racionalidade capitalista e
revela outra construção de seu ser no mundo, na qual o consumo é dispensável.

Atualmente, talvez mais do que nunca, estas populações encontram-se ameaçadas


pela voracidade predatória do capital e do Estado, e uma das estratégias dessa
necropolítica é silenciar suas vozes e ocultar suas práticas de conservação, de
preservação da natureza, de reciprocidades de saberes, e também de vidas e de afetos.

3. Dois estudantes de Mestrado em Educação, pesquisadores em formação,


buscaram perscrutar “os saberes que emanam da morte” ao entrevistarem dois coveiros
e uma coveira sobre o que aprendiam e ensinavam em sua profissão. Findo o exercício
de investigação, a explanação dos resultados foi realizada entre colegas da disciplina
sob minha responsabilidade, partindo de questionamentos sobre de quem eram as
frases trazidas para o debate. Cinco referenciais teóricos foram indicados em tarjetas
coloridas; a tarjeta de cor branca se reportaria à/aos coveira/os. Com um painel
multicolor desvelou-se de onde emergiram, majoritariamente, as epistemes que nos
auxiliam a apreender formas de lidar com os problemas mais cotidianos: das próprias
falas das pessoas entrevistadas.

Isso não significa que a teoria é científica, é desimportante. Pelo contrário, revela
que é da própria concretude da vida que ela se constrói e para ela retorna. Com vistas
a refletir pontualmente sobre esses aprendizados, tomo empresto as palavras de Clarice
Lispector: “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando

7
Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio

eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada”3.

Ao ter contato com essa obra organizada por Paulo Alfredo Schönardie -
companheiro do GT06 - e pelas colegas Claudete Beise Ulrich e Liria Ângela Andrioli,
fui tomada por uma incontida emoção. As rigorosas produções científicas, elaboradas
por tantos diferentes sujeitos (muitos deles também parceiros de longa data no GT06
da ANPEd), emergidas de pesquisas e ações emancipatórias pautadas em distintas
dimensões e direções, são prova cabal de que a Educação Popular está viva e pulsante
em nosso país e na América Latina.

E é essa Educação Popular que se renova a partir de novos dilemas, novos desafios
e, sobretudo, de novos atores, trazidos ao diálogo e convidados a partilhar saberes e
epistemologias. Desse substrato vêm nascendo práticas as mais plurais de luta contra
o que está posto, contra as mazelas sociais que estamos enfrentando nos momentos
atuais e contra as quais precisamos somar mais e mais esforços.

À Universidade, às escolas, aos movimentos sociais, à sociedade em movimento,


urge a continuidade e ampliação na construção de alternativas para o enfrentamento e
luta contra toda a forma de opressão. E os autores e autoras dessa obra, com suas vozes
e interações, com suas parcerias e investigações, com suas descobertas, denúncias e
anúncios junto às pessoas oprimidas, marginalizadas e subalternizadas, com as
populações indígenas, as populações tradicionais, na escola ou fora dela, trazem luz e
esperança nesses tempos e espaços em que a justiça social está em profundo risco.

Essa importante publicação demonstra que não estamos sós, e que não são poucas
as pessoas que se mobilizam em torno da garantia de respeito e valorização das mais
distintas epistemologias que, rizomaticamente, insurgem no solo do Sul global. E, para
espraiá-las, nossas práticas se assentam incondicionalmente no diálogo e na partilha
de saberes.

Não estamos sozinhas, não estamos sozinhos! Que nossas canetas, escrevendo
livros, nos sirvam de arma potente de contraposição, e que juntas e juntos teçamos
novas e esperançosas manhãs, como nos sugere João Cabral de Melo Neto4:

“Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo

3
Lispector, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
4
“Tecendo a manhã”. In: MELO, João Cabral de. A educação pela pedra. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio

que apanhe o grito de um galo antes


e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos”.

Valéria Oliveira de Vasconcelos5


São Carlos/SP
Inverno de 2022

5
Educadora Popular, Doutora em Educação, Professora Colaboradora da Universidade Federal de São
Carlos – UFSCar e Coordenadora do GT de Educação Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Educação (Anped).

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

Apresentação
Um caminho introdutório pela educação popular: epistemologias, diálogos e
saberes
A educação popular é uma concepção de educação. Sua pedagogia tem como
ponto de partida e chegada os sujeitos dos processos educativos, que participam dela
como protagonistas históricos e coletivos e que constroem autonomia em processo. A
efetiva vivência da educação popular traz consigo a “re-construção” da teoria, dos
sujeitos, do coletivo e, como consequência, da vida. Esta coletânea, em dois volumes,
tem por objetivo apresentar reflexões teóricas e práticas com base na educação popular
que, com suas epistemologias, dialoga com os saberes e as múltiplas lutas sociais.

Como concepção de educação, como proposta pedagógica e metodológica, a


educação popular traz consigo uma epistemologia, que é construída e reconstruída
organicamente. Uma epistemologia aberta ao diálogo, às múltiplas relações e
manifestações sociais. Pode-se e deve-se, em sua organicidade, concebê-la, assim, em
uma multiplicidade dialogal de epistemologias. A educação popular é uma concepção
de educação, possuindo, assim, linhas teóricas gerais, que são dadas pela participação
da humanidade como protagonista, como construtora individual e coletiva de
autonomia em processo. Por esse seu viés central, se percebe que ela está solidamente
embasada. E esta solidez demarca a educação popular também como integrante de uma
concepção de mundo, de sociedade e não por último de um modo de produção; se
apresenta como um paradigma emancipatório comprometido com o mundo da vida e
suas múltiplas interfaces. Está assim intimamente ligada às e é proveniente das
realidades sociais de uma maioria da população excluída. A educação, pela via da
concepção e práxis pedagógica da educação popular passa a se transformar
organicamente em processo de construção de subjetividades individuais e coletivas
pela via da autonomia em processo, consequentemente de caminho para a inclusão
econômica, social, ambiental e nos campos mais diversos do mundo vivencial. Propõe
ainda a superação do bancarismo pedagógico, seja na escola, seja fora dos muros
escolares, percepção do trabalho para além da produção de mais valia e,
consequentemente, a superação da exploração do ser humano pelo homem, da injustiça
de gênero, da exploração da natureza, busca pelo bem viver, enfim, pela vida em todas
as suas formas que são, assim, constituintes e integrantes dos processos de educação
popular.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

O ser humano passa a ser constantemente um desafiador pelo caminho da


educação popular. Ele é sempre discente e docente simultaneamente, seja na escola,
seja no cotidiano vivencial. Mulheres e homens são, assim, aprendentes e ensinantes,
mas, atentos à rigorosidade epistemológica que exige o protagonismo orgânico de
todos/as os/as participantes dos processos educativos, em todos os momentos da
vida, em um ambiente pedagógico em que a autonomia individual e coletiva seja
construída em processo.

O diálogo é elemento fundamental na educação popular. O diálogo com o ‘igual’ e


com o diferente. Nesse diálogo que a concepção pedagógica da educação popular é
construída e reconstruída. Pelo diálogo com o diferente, a educação popular procura
interfaces com outras concepções de mundo, com outros modos de produção e
reprodução da vida, mas não como enfrentamento e, sim, fiel à sua concepção
pedagógica e teórica, com amorosidade, aberta ao acolhimento ético. O diálogo com o
‘igual’, pode se dar com concepções pedagógicas e lutas sociais que possuem arcabouço
epistemológico comum com a educação popular e que, por vezes, se reconstroem pelo
arcabouço teórico da educação popular, assim como contribuem com a epistemologia
da educação popular. No diálogo com o ‘igual’ que não deixa de ser diferente, com suas
individualidades e coletividades. que procuramos agregar os esforços aqui
apresentados.

Acreditamos que uma das contribuições desta coletânea pode estar no diálogo
construtivo, que dá voz protagonista às lutas coletivas de resistência e de reconstrução
da sociedade em um caminho que protagoniza os/as participantes como sujeitos de
sua história em construção. Assim, os capítulos procuram dar voz aos diferentes
matizes da educação popular, em uma sintonia dialogal que, por sua vez, “re-constrói”
as epistemologias da educação popular e não por último, pode ter a força de
potencializar uma sociedade em que todas as formas de vida possam ter as necessárias
condições vivenciais, pelas quais todas e todos nós lutamos.

Nos capítulos que seguem, a educação popular está em diálogo com diferentes
saberes. O encontro dialogal se realiza com paradigmas e métodos de produção de
conhecimento, com os fundamentos epistemológicos e sociais em suas mais diversas
matrizes, com as contribuições de Paulo Freire, com a sistematização de experiências,
com a formação humana integrada à vida material, com o trabalho, com o materialismo
histórico, com os movimentos e organizações sociais e com a sua percepção como
método possível. Ainda, com as concepções de mundo indígenas, com os povos
originários, com o buen vivir, com a decolonialidade, com a interculturalidade e a
multiculturalidade, com a tradição oral, com as culturas locais, com o renascer cultural,

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

com as resistências territoriais, com a terra, com os movimentos de luta pela terra e
por direitos, com os saberes populares, com as classes populares e com a luta de
classes. Ademais, se expressa na atualidade, com os caminhos de superação e
resistência perante a sindemia aguçada pela pandemia vivida no cotidiano do tempo
presente. Mas, também, com a importância e contribuição da narrativa ancestral, com
a teologia, com a mística, com a política, com a libertação, com a luta das mulheres,
com a igualdade e justiça de gênero, com a educação do campo, com uma educação
popular do campo, com a educação ambiental, com o trabalho docente, com o discente,
com a etnomatemática, com a Universidade, com a escola, com o cotidiano, com a
cooperação e o cooperativismo, com a extensão rural, com a pedagogia da alternância,
enfim, com as educações e os dilemas dos mil povos – com a vida material e imaterial.
E todos esses matizes dialogam entre si, de forma multidimensional, complexa,
holística, evidenciando os saberes do coletivo, os saberes populares, oriundos do
diálogo entre o cotidiano histórico vivencial e as epistemologias.

É preciso ainda referir que os textos estão todos em sintonia com a concepção
pedagógica da educação popular, contudo, representam as posições dos autores e
autoras, e, por isso, às vezes contraditórios entre si. Essas contradições são respeitadas
pelo diálogo do coletivo, essência da educação popular. Como obra coletiva, os
capítulos apresentam também o atual estágio de elaboração teórica de cada
individualidade com as suas vivências e complexidades próprias.

O educador popular e sociólogo peruano/costarriquenho Oscar Jara traz a sua


contribuição no primeiro capítulo do primeiro volume do livro, intitulado “Paradigma e
métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição
da sistematização de experiências”. Jara apresenta os processos de educação popular
muito para além de um método e de técnicas. Para ele, a educação popular é uma
filosofia, é um paradigma ético, político e pedagógico emancipatório. Percebe esse
paradigma centrado na solidariedade, que se expressa no sentido ético da vida, na
construção política de outras relações de poder, fundamentando e orientando a
pedagogia como processo dialógico, crítico, horizontal e transformador, em que os
sujeitos construam uma sociedade com relações democráticas em todos os campos e
níveis da vida social. A partir desta fundamentação epistemológica primeira da
educação popular, apresenta métodos, técnicas e procedimentos libertadores,
percebendo a sistematização de experiências como uma forma particular de produzir
conhecimento pelo paradigma da educação popular.

No texto “A educação popular como método de aprendizagem por meio dos


movimentos sociais”, Liria Ângela Andrioli, Ronaldo César Darós e Walter Frantz

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

estudam a educação popular como um método possível, ou seja, como um caminho para
a construção da autonomia. Contrapõe a educação popular aos ditamos da sociedade
capitalista, percebendo-a como método de aprendizagem por meio dos movimentos
sociais. Percebem que como método, se apresenta na forma de um saber sistematizado,
como uma prática refletida na construção e reconstrução de conhecimentos, pela
tríade ação-reflexão-ação.

Do diálogo entre o não indígena Marcos José de Aquino Pereira e dos indígenas
dos povos Pankararu e Tariana Geovane Diógenes da Silva, Guanilce Falcão Soares e
Pedro Manoel da Silva Santos é escrito o texto “Diálogos decoloniais, interculturais e
entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos estudantes indígenas da
UFSCar”. Trazem a semana dos estudantes indígenas como espaço de educação popular
que permite o diálogo intercultural dos povos originários entre si e destes com os não
indígenas. Percebem o evento vivenciado em práxis como um espaço de resistência,
possível com a mediação de tecnologias informacionais em um contexto de pandemia
e, nessa tessitura, se percebem como insurgência decolonial e intercultural,
contribuindo com a valorização dos conhecimentos dos povos indígenas e reforçando
as identidades dos povos originários no ambiente universitário.

Com o texto “A narrativa como memória de experiências”, Aline Praça Bernar traz
as narrativas como episódios do passado ressignificados no presente. Diferencia o
tempo cronológico do tempo da narrativa. Apresenta o diálogo da narrativa com a
experiência, percebendo a narrativa como memória de experiências, exemplificando a
partir de mulheres narradoras de suas próprias histórias de vida, marcadas pela
negação da alfabetização. E na pesquisa com as mulheres infere a pesquisa narrativa
como metodologia possível.

Em uma análise da vivência da Juventude Indígena Goj Ki Pyn, a professora Nádia


Teresinha da Mota Franco, juntamente com as estudantes indígenas da etnia Kaingang
Viviane Kellen Vygte Barão e Elizandra Fygsanh Freitas percebem e registram um
renascer cultural Kaingang com o texto “O renascer cultural como expressão da
educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
Cobras”. As autoras enfatizam que a Terra Indígena Rio da Cobras está marcada pela
intervenção do Estado em sua tradição cultural. Contudo, com a mudança de
orientação legal, se está superando a fase da assimilação em direção ao respeito à
diferença cultural. E essa nova conjuntura contribui para a organização do Coletivo da
Juventude Indígena Goj Ki Pyn, que revitaliza a cultura e os conhecimentos Kaingang a
partir da oralidade, esta, por sua vez, base para a multiplicação dos saberes tradicionais.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

A resistência perante o aguçar abissal da exclusão provindo das medidas drásticas


de contenção do contexto pandêmico é abordada por Renato Simões Moreira e Yaçanã
Torres do Amaral Sant’Anna a partir do ensino básico público com a elaboração “O
contexto pandêmico e as astúcias das classes populares”. Autor e autora analisam
experiência vivencial de uma rede pública municipal da Baixada Fluminense, no estado
do Rio de Janeiro, partindo da estratégia desenvolvida pela Secretaria de Educação na
implementação de um modelo de ensino remoto com vistas a permitir o acesso à escola
aos estudantes sem acesso regular à internet. Utilizando o paradigma indiciário e os
quotidianos densos buscam os rastros que conduziram às táticas desenvolvidas no
cotidiano da educação pública, percebendo que, mesmo durante a pandemia as classes
populares mantiveram o desejo de ter a garantia do acesso contínuo à escola e em um
contexto adverso pela busca primeira da sobrevivência.

O saber da ancestralidade indígena em diálogo com a ciência no combate à


pandemia é a essência do estudo da representante do povo Kaingang Jocelaine de
Oliveira juntamente com suas coautoras Amanda Gollo Bertollo, Adriana Remião
Luzardo e Zuleide Maria Ignácio no texto intitulado “População indígena e seus saberes
tradicionais no enfrentamento da covid-19”. Mostram o cenário epidêmico-biológico
como desafiador para os povos indígenas, sendo estes drasticamente afetados.
Contextualizam a história dos povos indígenas pelas políticas de saúde para os
indígenas no Brasil, culminando com a premência pandêmica. Em uma análise mais
aprofundada demonstram que os saberes tradicionais indígenas estão associados com
a história e a ancestralidade de cada povo e que benzimentos, rituais e uso de plantas
medicinais foram reavivados no combate à covid-19.

Paulo Alfredo Schönardie e Claudete Beise Ulrich, com o texto intitulado “A


educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee
Sölle: um aprendizado teológico educativo na luta pela terra”, tem como propósito
central apresentar os aspectos da teologia política, mística e feminista de Dorothee
Sölle e suas relações com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a
educação popular. Apresentam Sölle como uma teóloga comprometida com os desafios
sociais e políticos de seu tempo histórico. Neste comprometimento humanizador Sölle
segue caminho junto com o movimento de luta pela terra, consequentemente de luta
por direitos, tomando posição, ressignificando assim, a teologia, a mística e a luta
feminista como processos educativos populares em práxis.

A historicidade da Teologia da Libertação em diálogo com a mística do MST,


transcendendo a luta pela terra, é trazida por Regis Clemente da Costa no texto “A
Teologia da Libertação e a mística no MST: a luta que transcende a terra”. O autor apoia

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

suas pesquisas em fontes documentais do MST e da Igreja Católica e em estudos


teóricos com a teorização Gramsciana em uma de suas bases. Infere que a Teologia da
libertação contribui para a vivência e a prática da mística do MST com vistas a luta pela
terra e à transformação social.

O primeiro volume é encerrado com o texto “Estudo do estado de conhecimento:


o ‘ser professor/a’ na perspectiva da educação popular”, de autoria de Guilherme Sousa
Machado, Tiago Zanquêta de Souza e Gercina Santana Novais, que partem do
referencial freireano problematizador e libertador, objetivando analisar o perfil e as
funções do/a educador/a popular vinculado/a à escola. Apontam que educadores e
educadoras com perfil formativo e de práxis da educação popular, problematizam os
contextos escolares em que atuam, ou seja, comprometem-se com práticas culturais
de autonomia e libertação. Por fim, evidenciam que a educação popular é vivenciada em
todos os espaços educativos, também na escola.

A “Educação popular e sua relação com a formação humana integrada à vida


material: elementos ontológicos e epistemológicos” é tecida por Joaquim Gonçalves da
Costa no capítulo de abertura do segundo volume da obra. O autor traz um exame
analítico de aproximação da educação popular com a perspectiva materialista da
história. Tece interrelacionar a educação popular com a formação humana integrada à
produção e reprodução da existência e vida material das classes populares. Nessa
tessitura aponta elementos e princípios ontológicos e epistemológicos que dão
identidade à educação popular como fundamento para o político-pedagógico e este
visto como potencialidade utópica, a partir de um projeto de devir histórico dos sujeitos
que vivem do trabalho.

Com o texto “A pedagogia freiriana: uma reflexão materialista sobre a realidade


vivida como ponto de partida das ações pedagógicas”, Jóyce Nürnberg propõe explicitar
momentos de organização das ações pedagógicas na pedagogia freireana, bem como
evidenciar alguns pressupostos materialistas presentes na obra Pedagogia do
Oprimido. Percebe que por esse caminho o ponto de partida das ações pedagógicas se
dá pela problematização, visando superar relações opressoras e a consciência ingênua.

A importância da mística na experiência de vida das mulheres agricultoras é


evidenciada por Lira Ângela Andrioli e Walter Frantz no texto “A mística na experiência
de vida das mulheres agricultoras”. A mística é apresentada como elemento
fortalecedor e impulsionador da luta das mulheres agricultoras. Pela mística percebem
o inédito viável, e, consequentemente, de mudança de vida. A mística é entendida como
uma expressão coletiva de transcendência e em sua manifestação traz consigo a
resistência.

15
Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

A presença dos sujeitos do campo e indígenas na universidade é trazida por


Cristiano Augusto Durat, Marciane Maria Mendes e Solange Todero Von Onçay no texto
intitulado “A presença indígena na universidade sob a perspectiva da educação
popular”. Destacam a inclusão dos sujeitos da educação do campo, mais
especificamente indígenas na educação superior o que, por sua vez, modifica o próprio
território do ensino superior. São novos sujeitos políticos que trazem seus percursos a
partir de princípios epistemológicos da educação popular.

Antônio Inácio Andrioli aproxima diálogos entre a educação popular e a educação


ambiental no capítulo intitulado “A epistemologia da educação popular em diálogo com
a educação ambiental”. Percebe a relação entre produção de valor e necessidades
humanas como fundamental para a sustentabilidade ambiental. Esta, como
contraditória no modo de produção capitalista. Nessa tessitura, cria diálogo entre a
educação popular e o materialismo histórico e dialético. E, na perspectiva de uma
educação ambiental popular, visualiza dimensão política de unificar sujeitos atingidos
por tecnologias de caráter destrutivo da natureza, podendo daí emergir um novo
processo de construção de consciência.

Perceber um possível diálogo entre a etnomatemática e a educação libertadora é


o que propõe Emilly Vicente de Freitas e Janine Moreira com o texto “Etnomatemática
e educação libertadora: um possível diálogo”. Partem da educação matemática que no
Brasil possui histórico crítico-problematizador. Aproximam epistemologicamente os
pensadores brasileiros, o educador popular Paulo Freire e o etnomatemático Ubiratan
D’Ambrósio. Em sua análise, percebem confluências entre os pensamentos de Freire e
D’Ambrósio no que se refere à prática crítica e à constituição do ser humano histórico
e cultural, derivando-se daí epistemologias semelhantes, que podem se reforçar
mutuamente.

A cooperação é destaque na abordagem “Os meandros do cooperativismo e da


educação popular: divisando o Programa de Cooperativismo nas Escolas (PCE) nas
Regiões Fronteira Noroeste e Missões do Estado do Rio Grande do Sul”, realizada por
Celso Gabatz e Rosângela Angelin. A partir de uma abordagem crítico-reflexiva,
analisam as experiências de cooperativismo nas escolas pelo olhar da educação popular.
Percebem o PCE como contribuição na construção dos sujeitos escolares, como
contribuição crítica e reflexiva, com base nas vivências e dificuldades de grupos sociais
de pertença, com seus problemas e suas relações.

O pesquisador Paulo Alfredo Schönardie, com o capítulo intitulado “A educação


popular do campo como essência de uma extensão rural dialógica”, complexifica as
práticas de extensão rural a partir dos conceitos de educação popular do campo,

16
Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação

campesinato, paradigmas agrários, prática de Tschajanow e do pensamento de Freire,


indicando caminhos de busca por um modelo de extensão rural enraizado na
perspectiva pedagógica da educação popular do campo. Percebe o processo educativo
da extensão rural pelo modelo dialógico, libertador, pelo protagonismo do campesinato.
Observa conclusivamente que praticando a extensão rural pela pedagogia popular do
campo, a condição camponesa se afirma.

O último capítulo do livro é escrito por Arlete Maria Pinheiro Schubert e Carlos
Rodrigues Brandão, intitulado “Educações e dilemas na terra dos mil povos”. A partir de
pesquisa com o povo Tupinikim e da escuta dos demais povos indígenas, expressam os
desafios dos processos educativos indígenas em seus movimentos das lutas territoriais.
Ponderam os movimentos educativos que emergem do confronto com os projetos
desenvolvimentistas. Nessa conjuntura, percebem ontologias e epistemologias
emergidas dos movimentos em sua originalidade de interações entre coletivos
humanos e não humanos, baseados em uma memória ancestral mítica e histórica que,
por sua vez, colocam novos desafios aos processos populares de educação.

Com as educações dos mil povos, abre-se ainda mais o diálogo da educação
popular com o passado, o presente e o futuro. Instaura-se o pensamento indagante, de
jamais concluir. Estamos diante de uma multiplicidade de práticas educativas genuínas,
ainda muitas vezes não percebidas, mas que tem em comum uma essência de
movimento com a presença da historicidade de sujeitos e coletivos, que com suas
interações pacíficas, dialogais, reconstroem a educação e a história. Nós somos parte
desse processo. Os capítulos estão nesse diálogo. E, lançamos o convite ao leitor, à
leitora para participar dialogicamente.

Paulo Alfredo Schönardie – Três de Maio/RS


Claudete Beise Ulrich – Vitória/ES
Liria Ângela Andrioli – Laranjeiras do Sul/PR
No inverno de 2022.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
experiências
DOI: 10.23899/9786589284314.1

Paradigma e métodos de produção de


conhecimento na educação popular freireana:
a contribuição da sistematização de
experiências
Oscar Jara H.*

Educação popular e paradigmas emancipatórios


Hoje, poderíamos dizer que em todos os países da América Latina encontramos
experiências que dizem ser “educação popular”. A generalização a que este conceito foi
elevado, expressa, por um lado, quão importante tem sido, nos últimos trinta ou
quarenta anos, a irrupção de diferentes modalidades educativas que têm procurado ser
uma alternativa às concepções e formas educativas dominantes, caracterizadas como
autoritárias, verticalizadas, sem relação com problemas específicos, centradas no papel
monólogo do educador, memorista e transmissora de conteúdos pré-estabelecidos. No
entanto, e por outro lado, a ampla divulgação da "educação popular" levou muitas vezes
a despojá-la de seu significado profundamente crítico; invisibilizar seus fundamentos
epistemológicos, éticos, políticos e pedagógicos; e, reduzi-la simplesmente à
implementação de técnicas e métodos novos ou participativos. Por isso, parece-nos
importante, recuperando a experiência da nossa prática em múltiplos espaços
educativos não formais e formais, propor um olhar aprofundado que contribua para a
superação dessa visão superficial.

Quando falamos em educação popular, referimo-nos a uma educação que deve ser
sempre compreendida em função dos espaços e contextos históricos em que se realiza.
Por isso não podemos falar da “educação popular” como um processo único,
homogêneo ou uniforme; é sempre melhor falar de processos de educação popular, que
correspondem a momentos particulares, a contextos particulares e a desafios
particulares, e são promovidos por protagonistas específicos que têm sua história, seu
ambiente, suas motivações, suas condições e suas disposições.

*
Educador Popular e sociólogo. Doutor em educação. Diretor do CEP Alforja na Costa Rica. Presidente
honorário do CEAAL, Conselho de Educação Popular de América Latina e o Caribe.
E-mail: oscar@cepalforja.org

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
experiências
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Devemos entender o que significa promover processos de educação popular em


cada momento histórico. A história da educação popular na América Latina pode nos
ensinar muito, não para repeti-la, mas para nos inspirar para o futuro diante dos
desafios que vivemos hoje. Todos os processos de educação popular em nosso
continente sempre estiveram vinculados a movimentos e processos organizativos de
participação social e política comprometidos com a aspiração de gerar ou ampliar
espaços para a construção da democracia.

Por exemplo, no século XIX, quando se discutia a educação popular, ela era
entendida como instrução pública baseada na noção de que a educação não deveria ser
um privilégio restritivo, como era para os nobres da Colônia, mas deveria ser um direito
de toda a população; desde então encontramos já no termo “educação popular” uma
aspiração democrática. Da mesma forma, quando no início do século XX o movimento
estudantil latino-americano questionou o elitismo do ensino superior e criou as
universidades populares e a extensão universitária, e quando o movimento operário
abriu suas escolas de formação, bibliotecas populares e círculos de cultura, estava
exercendo uma proposta democrática e uma pressão democratizante. Quando a
Revolução Cubana realizou a Campanha Nacional de Alfabetização, que pagou uma
dívida com a maioria do povo; e quando o governo Allende, no Chile, na década de 1970,
propôs a Escola Nacional Única como parte do programa de governo da Unidade
Popular, e foram criados os Comitês de Unidade Popular nos bairros e cordões
industriais, destinados a espaços de organização e formação política; e quando a
Revolução Sandinista na Nicarágua na década dos oitenta afirmou a ideia de que toda
educação no país – formal, não formal, informal; da pré-escola à educação de adultos –
deveria ser uma educação popular, eles estavam, em todos os casos, argumentando que
esses processos estavam vinculados a propostas democráticas que fortalecem o poder
do povo, as capacidades do povo, a participação do povo. Também, quando no México
o movimento zapatista na década de 1990 se levanta em insurgência e cria processos
de valorização da identidade de raízes indígenas para formar uma nova cultura política
democrática, pela qual as Juntas de Bom Governo, como órgãos autônomos, eram
regidas pelo princípio de “governar obedecendo”, e falam em construir um mundo
“onde cabem todos os mundos”, é para apresentar aquela aspiração democratizante que
sempre acompanha qualquer processo de educação popular (JARA, 2018a).

Essa consideração histórica de seu significado profundamente democratizante, é


importante para entender que a educação popular, compreendida historicamente, não
é apenas um método, nem responde ao uso de certas técnicas, mas consiste em

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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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processos baseados em um paradigma filosófico emancipatório que tem características


epistemológicas, éticas, políticas e componentes pedagógicos.

Esse paradigma emancipatório, baseado na solidariedade, nas pessoas como


sujeitos criativos da história, afirma-se no sentido ético de cuidar da vida para
promover a construção política de relações de poder justas, equitativas e respeitosas
das diversidades. Esse compromisso político, por sua vez, fundamenta e orienta uma
pedagogia que, como processo dialógico, crítico, horizontal e transformador, possibilita
a criação de espaços e sujeitos que construam uma sociedade democrática por meio do
exercício das relações democráticas em todos os campos e níveis de atuação na vida
social, como espaços prefigurativos nos quais podemos mostrar e nos mostram que é
possível viver de uma forma muito diferente daquela que nos é imposta por um sistema
excludente, injusto, discriminatório e desigual.

Os processos de educação e organização popular possibilitam, assim, desaprender


as relações de poder autoritárias, verticais, patriarcais e segregadoras em que fomos
formados, bem como explorar outras formas de exercício do poder solidárias,
sinérgicas, promotoras do coletivo, respeitadoras das diversidades, e que se enraízam
na afirmação do cuidado com a vida e na defesa de todos os direitos de todas as pessoas
ao longo da vida, bem como na defesa dos direitos da natureza que fazemos parte.

Os processos de educação popular devem se tornar espaços de criação de afeto,


cuidado mútuo, geração de confiança e cumplicidade, valorizando as características de
cada pessoa em sua particularidade. Espaços em que transitam não só a mente, ideias
e argumentos, mas também todo o nosso corpo com as nossas emoções, sensibilidades,
sensualidades, esforços, medos e frustrações. Espaços nos quais a esperança e os
sonhos compartilhados se manifestam vividamente. Espaços de gestação e exercício da
criatividade, em que todas as linguagens e formas de expressão têm espaço para se
desdobrar livremente.

Por isso, afirmamos com Freire (2012, p. 55-56) que

[...] qualquer prática educativa, libertadora, que valorize o exercício da vontade,


decisão, resistência, escolha, o papel das emoções, sentimentos, desejos, limites,
a importância da consciência na história, o sentido ético da presença humana
no mundo, a compreensão da história como possibilidade e nunca mais como
determinação, é substancialmente esperançosa e, por isso mesmo, gera
esperança.

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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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Paulo Freire e uma educação libertadora


Tornar realidade uma proposta educativa inspirada no pensamento de Paulo
Freire, que seja libertadora e em que não se transmita conteúdo, mas se desenvolva a
capacidade de produzir conhecimento; uma educação libertadora que consolide as
capacidades das pessoas como sujeitos comprometidos com uma história de
transformação, implica uma formação integral em que os processos pedagógicos
aumentam todas as nossas faculdades. Seria uma contradição realizar processos
educativos autoritários, impositivos ou doutrinários para alcançar processos de
convivência verdadeiramente humana e de participação democrática. Daí vem a crítica
à educação “bancária” por vertical, rígida e mecanizada (FREIRE, 1970). Daqui surge a
proposta de uma educação problematizadora, dialógica e horizontal, que articula a
prática com a teoria; que promova o pensamento crítico, a ecologia de saberes
(SANTOS, 2017) e a vocação de humanização; e, portanto, que desenvolva as
capacidades humanas transformadoras para que nos tornemos Sujeitos da História.

Freire pensou nessa educação libertadora precisamente como um processo de


autolibertação e autocriação, não como uma série de ações pelas quais algumas pessoas
“libertam” outras de suas cadeias de dominação. Libertador no sentido de possibilitar
condições e disposições que nos libertem dos laços que nos impedem de ser pessoas.
Libertador de todas as nossas capacidades humanas de imaginação, criação,
relacionamento e transformação. Liberando o potencial de produzir ações e
conhecimentos individuais e coletivos. Uma educação que nos liberta na medida em
que nos descobrimos como sujeitos da história através do diálogo horizontal e crítico
entre educadoras, educadores, estudantes, e em que todas as pessoas possam ensinar
e aprender.

Não há ensino sem discência, os dois se explicam e seus sujeitos, apesar das
diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro.
Quem ensina aprende ensinando e quem aprende ensina aprendendo [...]
ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades de sua
produção ou construção (FREIRE, 1997, p. 25-47).

As contribuições de Freire nos fazem ver que as propostas de ser sujeito de


transformação social e de ser sujeito de processos educativos criativos estão
intimamente relacionadas. Se nos formarmos como pessoas críticas e criativas, isso se
expressará em formas de participação social crítica e criativa. Na filosofia educacional
de Freire (que muitas vezes se tentou reduzir a um método de alfabetização), a

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educação é concebida como um processo ético-político-pedagógico: constrói poder,


mas não autoritário e verticalizado, mas democrático e sinérgico que, como as chamas
das velas, cresce mais quanto mais é compartilhado. Por isso, tal educação é uma
prática libertadora que possibilita, sinergicamente, criar espaços de liberdade para
sonhar com outras realidades possíveis e, portanto, promover uma práxis esperançosa
e comprometida com a convicção de que é possível mudar a história, porque ela não é
predeterminada.

Por isso, a ação pedagógica libertadora é sempre um desafio criativo, um


compromisso que se posiciona, uma projeção de longo prazo que implica compromisso.

Uma das primeiras tarefas da pedagogia crítica radical libertadora [...] é


trabalhar contra a força da ideologia fatalista dominante, que encoraja a
imobilidade dos oprimidos e sua acomodação a uma realidade injusta, necessária
para o movimento dos dominadores. É defender uma prática docente em que o
ensino rigoroso dos conteúdos nunca é implementado de forma fria, mecânica
e falsamente neutra (FREIRE, 2012, p. 51).

Se educar não é transferir conteúdos, mas criar condições para produzir, para
construir conhecimentos transformadores, então a questão chave é como criar
condições para um processo de aprendizagem e reflexão crítica que fortaleça as
capacidades de análise, comunicação e sensibilidade diante das problemáticas e assim
entender e trabalhar no que está acontecendo ao nosso redor. O lugar em que
colocamos, então, os métodos, técnicas e procedimentos dos processos educativos está
no caminho da busca de coerência com aquele sentido ético, político e pedagógico do
trabalho educativo cotidiano.

Do exposto, conclui-se que o trabalho docente deve ser sempre criativo e


desafiador, comprometido com a responsabilidade com a tarefa de ensinar, para gerar
e construir aprendizagens. É uma tarefa de ensino entendida como paixão e aventura
criativa, não como uma rotina burocrática de cumprimento de tarefas pré-
estabelecidas. É, portanto, um ensino transformador, mas mais ainda, é um ensino para
a transformação, para gerar capacidades de transformação.

O educador que se diz igual aos alunos, ou é demagógico ou mentiroso, ou


incompetente [...] A questão é se o ato de ensinar termina em si mesmo ou se,
ao contrário, o ato de ensinar é apenas um momento fundamental da
aprendizagem (FREIRE apud TORRES, 1988, p. 88).

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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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Essa perspectiva se opõe radicalmente àquela que comumente marca as


preocupações de muitos professores e professoras, de muitos educadores populares,
que trabalham no ambiente escolar formal, em contextos não formais ou fora dos
espaços educativos: a de buscar ferramentas, técnicas e métodos com etapas bem
definidas e estruturadas, e diretrizes prontas para serem aplicadas e, assim, atender aos
requisitos de uma “boa prática educativa”. Eles querem algo que já esteja “pronto para
aquecer e servir”, não algo que exija o esforço criativo de se inspirar para cozinhar1.

Isso também aconteceu com uma abordagem muito comum ao trabalho de Freire.
Durante muito tempo, e até agora, fala-se do “método Paulo Freire” como se fosse sua
única ou principal contribuição, vinculando-o ao método psicossocial de alfabetização
e reduzindo a contribuição pedagógica de Freire a esse método. É claro que Paulo Freire
têm contribuições metodológicas fundamentais. É claro que sua proposta metodológica
de alfabetização constituiu uma revolução em relação aos métodos então utilizados,
mas é apenas uma pequena parte de suas contribuições. E suas contribuições
metodológicas são apenas uma consequência de suas contribuições filosóficas, da
epistemologia dialética e libertadora que caracteriza sua pedagogia.

Professores e estudantes: a aventura de desafiar e ser desafiado


Uma das principais contribuições críticas de Freire para a pedagogia, que nos
obriga a repensar toda a lógica do processo ensino-aprendizagem, gira em torno da
afirmação de que não é possível transferir conhecimentos de uma pessoa para outra em
uma direção, visão em que se baseia toda a concepção bancária de educação. E não é
possível porque a transmissão unilateral de informações, que depois são memorizadas
e repetidas, não constitui um fato educativo nem realmente produz conhecimento.
Também não é possível, porque toda aprendizagem é um processo ativo em que as
pessoas acessam novas informações sempre a partir das informações e categorias
mentais que já possuem, e desenvolvendo processos de identificação, associação,
simbolização, generalização, reafirmação ou negação – o velho e o Novo.

1
No capítulo 1 da Pedagogia da autonomia (1997, p. 23-24), Freire utiliza o exemplo da cozinha como
processo de construção do conhecimento a partir da prática, da mesma forma, do sujeito que cozinha:
“O ato de cozinhar, por exemplo, supõe algum conhecimento sobre o uso do fogão, como acendê-lo,
como ajustar a chama para mais ou menos, como lidar com certos riscos de incêndio mesmo remotos,
como harmonizar os diferentes condimentos em um saboroso e atraente. A prática de cozinhar prepara
o noviço, ratificando alguns desses conhecimentos, retificando outros e capacitando-os a se tornarem
cozinheiros”.

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É por isso que uma educação transformadora deve conceber a aprendizagem


como uma tarefa criativa, na qual o conhecimento é construído e reconstruído, mas,
principalmente, em que nos fazemos e nos refazemos como pessoas, como sujeitos
integrais, não apenas capazes de pensar, mas também sentir, fazer, sonhar, imaginar,
transformar. Assim, ensinar não pode se reduzir a simplesmente lidar com conteúdos,
mas implica realizar todo um rico e complexo processo no qual são produzidas as
condições para que aprendamos criticamente. Diz Freire (1997, p. 28): “Essas condições
implicam ou exigem a presença de educadores e aprendizes criativos, instigadores,
inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes [...] educador, igualmente
sujeito ao processo”.

Gerar condições para uma aprendizagem crítica supõe um compromisso integral


do educador e da educadora com todo um processo de capacitação, para o qual requer
a disposição de assumir o risco de compartilhar buscas e questionamentos, não apenas
afirmações ou negações; reconhecer que não têm todas as respostas; e estimular o
senso crítico de busca, de inquietude, de inconformismo: “O educador democrático não
pode negar-se o dever de reforçar, em sua prática docente, a capacidade crítica do
aluno, sua curiosidade, sua recusa” (FREIRE, 1997, p. 27).

Consequentemente, o papel de um educador democrático é concebido como o de


um desafiador(a), não o de um “facilitador(a)”2. Esta última noção, muito comum na
América Latina, talvez tenha sua origem na busca de uma alternativa à imagem
excessivamente diretiva do professor e destaca seu papel de animador de um grupo.
Tal tentativa muitas vezes sai pela culatra ao mostrar aos educadores e educadoras que
não colocam em jogo suas próprias abordagens e posições; que estão fora do grupo e
de seus compromissos, pois se dedicam apenas a “facilitar” o processo; ou, pior ainda,
que estão acima do grupo, pois já dominam o assunto e sua complexidade, então agora
se dedicam simplesmente a fazer com que ele seja assimilado “facilmente” por outras
pessoas.

Pensar em nós mesmos como desafiantes, desafiadoras ou desafiadores, supõe nos


colocarmos como atores do processo, ou seja, como sujeitos ativos e comprometidos
com as pessoas com quem trabalhamos, com seu contexto, seus dilemas, suas opções
e suas alternativas. Por isso, talvez o primeiro desafio seja do próprio grupo: são eles e
elas que nos desafiam com suas perguntas; com seus interesses (ou seu desinteresse);
com seus conhecimentos, afirmações e negações sobre os conteúdos a serem

2
Vários anos antes, Freire já havia apontado sua crítica à ideia do “facilitador”, tão comumente usada na
América do Norte naquela época, e que vem se difundindo; ver Torres (1988, p. 88).

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trabalhados; com sua percepção de nós em relação ao nosso papel, nossas capacidades
ou nossos comportamentos; com as suas expectativas, as suas palavras ou os seus
silêncios… A sua mera presença num espaço educativo já significa um desafio para nós.

Sentir-se desafiado pelos estudantes com quem trabalhamos e pela situação que
enfrentamos para conhecer e transformar é, talvez, a primeira atitude democrática que
podemos cultivar para gerar condições e disposições de aprendizagem; para, nas
palavras de Freire, “criar as possibilidades” de produção e construção do conhecimento.
Entre tais condições e disposições, estão, saber que não sabemos absolutamente tudo
sobre os conteúdos a serem tratados; que o grupo tenha seus saberes, suas dúvidas e
suas demandas; que os tempos mudam e colocam problemas novos e sem precedentes,
mas também que podemos enfrentar esse desafio porque nos preparamos o melhor
possível; que temos critérios, ferramentas e procedimentos para abordar de forma
criativa e crítica qualquer assunto em questão. Em suma, trata-se de nos colocarmos
em uma atitude dialógica de educadores-educandos.

A partir daí podemos, então, desafiar o grupo e cada pessoa com quem nos
comprometemos, oferecendo perguntas, propostas metodológicas e materiais de apoio
para incorporar mais elementos de informação e novas perspectivas; questionando
suas afirmações e negações; gerando debate em torno de suas percepções; fornecer
novos conteúdos do nosso domínio do assunto; ajudar a sintetizar ideias; conduzir um
processo de reflexão que se torna progressivamente mais complexo e profundo;
incentivando a capacidade crítica, a busca, a investigação e a construção de
aprendizagens individuais e coletivas das quais também nos beneficiamos. Assim, cada
desafio que colocarmos de nossa parte gerará uma resposta, que se tornará, numa
espiral dialética, um novo desafio para nós, educadores, educadoras, desafiantes, enfim,
aprendizes.

Trata-se, então, de assumir essa visão como um desafio à nossa busca de coerência
ético-política e pedagógica com a qual buscamos nos constituir como seres humanos
com consciência planetária e que optam por cuidar da vida neste momento da história.
Por isso, nos colocamos em um paradigma de construção do conhecimento oposto ao
paradigma racional, mercantilista, autoritário, reprodutivista, vertical, patriarcal e
dominante. Essa visão holística, solidária, crítica, criativa e propositiva deve alimentar,
em nosso cotidiano de trabalho, a implementação de traços característicos de uma
educação popular transformadora. Tais características devem se manifestar tanto no
campo das políticas educacionais quanto nas formas de organização de programas e
projetos educacionais alternativos e populares, colocando em prática propostas

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pedagógicas que norteiem consistentemente os métodos, técnicas e procedimentos


que vamos utilizar.

A sistematização de experiências: reflexão crítica de, sobre e para nossas


práticas

Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática [...] O saber que


inquestionavelmente produz a prática docente espontânea ou quase
espontânea, "desarmada", é um saber ingênuo, um saber feito a partir da
experiência, que carece do rigor metódico que caracteriza a epistemologia da
curiosidade do sujeito [...] Por isso, o momento fundamental na formação
permanente dos professores é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando
criticamente sobre a prática de hoje ou de ontem que a próxima pode ser
melhorada (FREIRE, 1997, p. 39-40).

E no quadro de toda a argumentação anterior, e para pensar em contributos


metodológicos que nos ajudem a alcançar a referida coerência, devemos valorar a
importância dessas palavras de Paulo Freire, que nos chama a fazer constantemente
uma reflexão crítica sobre nossa própria prática, analisá-la autocriticamente, tirar
lições dela, considerando que os educadores têm em sua própria prática a fonte
principal de sua formação permanente. Educadoras e educadores populares, estamos
em processo de formação o tempo todo. Nós nunca terminamos de treinar. E
precisamente o que nos ajuda a nos formar para promover uma prática
permanentemente inovadora e criativa é a reflexão crítica sobre as práticas, a partir das
práticas e para as práticas. Assim, cada vez mais, a sistematização de experiências vem
sendo assumida como fator fundamental nos processos de educação popular, como
esforço para produzir aprendizagens significativas que nos impeçam de passividade,
conformismo e rotina, e nos capacite a enriquecer teorias e novas práticas.

A sistematização das experiências é entendida como

[...] aquela interpretação crítica de uma ou várias experiências que, a partir de


sua ordenação e reconstrução, descobre ou explicita a lógica e o significado do
processo vivido nelas: os vários fatores que intervieram, como se relacionaram
entre si e por que o fizeram. [...] A Sistematização de Experiências produz
conhecimentos e aprendizagens significativos que permitem apropriar-se
criticamente das experiências vividas (seus saberes e sentimentos),
compreendê-las teoricamente e orientá-las para o futuro com uma perspectiva
transformadora (JARA, 2018b, p. 61).

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A sistematização de experiências (não a sistematização de informações, que


significa organizar, classificar, catalogar, tabular um conjunto disperso de dados ou
informações) é uma interpretação crítica de um processo vivido. Não é, nunca pode ser,
um exercício formal, pesado, chato, rígido, puramente racional, mas sim uma aventura
criativa e questionadora que pode mover o chão de nossos sentimentos e pensamentos
e nossa posição nos processos em que participamos na cotidianeidade. A
sistematização das experiências nos toca, nos impacta, nos motiva, nos provoca e nos
deixa pensando... das práticas, das razões e emoções nelas contidas, dos significados
explícitos e implícitos que as nutrem, dos dilemas e definições que enfrentamos
diariamente no trabalho educativo. Dessa forma, torna-se parte de um compromisso
pessoal, ético, social e político que não pode mais ser visto apenas como mais uma
atividade, nem como uma série de tarefas a serem cumpridas. Todo projeto educativo
e organizacional gera processos inesperados e imprevistos que, por sua vez, nos fazem
viver experiências inusitadas, cheias de ações, situações, sensações e emoções, graças
às relações que estabelecemos com aquelas pessoas com quem estamos construindo
de forma cúmplice, e talvez sem perceber, um processo que faz parte de uma história
que nos ultrapassa e, ao mesmo tempo, nos define, nos faz ser.

Assim, sistematizar experiências vivas, vitais, revitalizantes, significa a


oportunidade de refazer as voltas e reviravoltas do caminho percorrido, de relembrar
as vozes ouvidas e as que passaram despercebidas, de rever as ações planejadas e
executadas, e os imprevistos que nos surpreenderam, e assim por diante, e assim
chegar a compreender a lógica, a trama de opções e decisões que marcaram nossa
jornada. Nos distanciamos para olhar um pouco mais longe o que vivenciamos e depois
nos aproximamos para identificar o que não víamos quando estávamos no bulício da
viagem e assim reconhecer, talvez pela primeira vez, o mundo panorâmico do caminho
percorrido com uma visão de processo que não era possível ter no calor da marcha dos
acontecimentos.

Por isso, a sistematização das experiências nos proporciona narrativas inéditas;


revela descobertas que estavam escondidas na trama complicada da vida cotidiana;
coloca questões, afirmações, pistas de busca e proposições que surgem dessa leitura
dialógica em que fazemos falar a experiência e ela, por sua vez, nos questiona. Na
sistematização das experiências formulamos categorias, usamos as que tínhamos e
muitas vezes temos que criar novas, porque a realidade ultrapassa os referenciais
iniciais; utilizamos propostas metodológicas de leitura cronológica e interpretativa das
experiências; descobrimos os limites e possibilidades dos métodos, técnicas e

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experiências
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procedimentos que estávamos utilizando ou enriquecidos com novas ferramentas, bem


como nossas formas de organizar processos e atividades. Os métodos, técnicas e
procedimentos são aplicados de forma flexível dependendo do momento, dos
participantes, do contexto, do conteúdo, do tempo disponível, entre outros fatores,
mas, em qualquer caso, devem ser coerentes com a proposta ética, política e
pedagógica que lhes dá significado.

Na sistematização das experiências exercitamos também formas de escrita nas


quais devemos tomar decisões de substância, de forma, de delimitação de conteúdos;
aprendemos a diferenciar recorrências de ocorrências, o anedótico do substantivo. Por
isso, no decorrer do processo de sistematização também estamos delineando os
produtos comunicativos com os quais daremos a conhecer não apenas o que aconteceu
na experiência, mas, sobretudo, por que aconteceu o que aconteceu, o que aprendemos
com isso e o que pensar o que devemos fazer no futuro. Porque se a sistematização de
experiências significa um exercício e um processo de apropriação do passado vivido, só
o é se contribuir para nos apropriarmos do futuro que queremos construir.

A sistematização das experiências, como processo investigativo e produtor de


conhecimento e aprendizagem, possibilita o diálogo crítico, o encontro com outras
pessoas e seus saberes, sentimentos e possibilidades de ação. Portanto, está vinculado
aos propósitos de outras modalidades colaborativas de geração de conhecimento,
como avaliação iluminativa, avaliação de processos, pesquisa-ação participativa,
mapeamento e cartografia coletiva, monitoramento participativo e outros esforços
semelhantes.

No fundo de tudo isso, emerge o mais importante: o papel das pessoas como
protagonistas do processo vivido, suas trajetórias e contribuições, suas conquistas e
limitações. Com esses elementos identificamos que tipo de protagonismo foi gerado
nas experiências educativas e determinamos se nossos projetos-processos-
experiências geraram capacidades de liderança nas pessoas e grupos sociais com os
quais trabalhamos ou que se concentraram exclusivamente em nossas ações. Em suma,
desvendar os mistérios ocultos nas nossas práticas, os aprendizados significativos e as
lições aprendidas não nos deixa indiferentes... Alguém disse uma vez que depois de
sistematizar uma experiência “não somos mais as mesmas pessoas”, e o fato é que a
sistematização de experiências é um exercício teórico e metodológico, mas só tem valor
na medida em que é expressão de uma abordagem epistemológica e de uma proposta
ética, política e pedagógica com duplo caráter transformador: da prática e de nós que
somos protagonistas dela. Mais uma vez, o método é definido a partir do paradigma que
lhe dá sentido.

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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
experiências
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A educação popular como método de aprendizagem por meio dos movimentos sociais
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A educação popular como método de


aprendizagem por meio dos movimentos
sociais1
Liria Ângela Andrioli*
Ronaldo Darós**
Walter Frantz***

Introdução
No modelo de organização da nossa sociedade, a educação ocupa um lugar de
destaque estratégico. Isto não significa necessariamente algo positivo, visto que ela foi
originalmente pensada para a manutenção do sistema comandado pelo capital e a ele
tende a se manter fiel quando a sua práxis não traz o protagonismo das camadas
populares. A educação tradicional, da forma como foi pensada, não possui o foco nos
movimentos populares, na diversidade de indivíduos, pensamentos e identidades. Dito
de outro modo, ela não foi concebida para incluir e, com isso, tende a ser um espaço
reprodutor de desigualdades que investe no individualismo e na competitividade, ao
mesmo tempo em que naturaliza a pobreza provocada pela desigualdade social.

Esta realidade inevitavelmente repete a tendência histórica de conceber a


educação como ferramenta para o fornecimento de mão de obra ao trabalho. Vítima da
pressão de interesses corporativos e políticos, ela acaba por moldar-se ao sistema
dominante. Nesse espaço, a criticidade, a liberdade e a criação, não interessam a essa
visão utilitarista.

Contemplar o público que historicamente foi marginalizado na sociedade é uma


tarefa essencial para romper o ciclo de dominação do capital. A educação não é capaz

1
Este texto traz um recorte da Tese de Doutorado defendido por Liria Ângela Andrioli.
*
Doutora em Educação nas Ciências pela Unijuí. Professora da UFFS Campus Laranjeiras do Sul/PR.
E-mail: liria.andrioli@uffs.edu.br
**
Doutorando em Desenvolvimento Regional na UTFPR. Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí.
Licenciado em Pedagogia pela PUC/RS.
E-mail: ronaldo.daros@uffs.edu.br
***
Doutor em Ciências Educativas pela Westfälische-Wilhelms Universität Münster (Alemanha).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, da Unijuí.
E-mail: wfrantz@unijui.edu.br

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A educação popular como método de aprendizagem por meio dos movimentos sociais
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de colaborar com isso se não oportunizar a revisão e aplicação de suas práticas de


acordo com os interesses das classes populares. A aproximação com os movimentos
populares tenciona a aprender a lidar com os direitos coletivos. “Os movimentos sociais
trazem os rostos coletivos das vítimas dessas desigualdades históricas. Reagem a tantos
mecanismos de ocultamento. Trazem sua consciência, identidades coletivas” (ARROYO,
2014, p. 233). Por si só a educação não consolida o capital, mas é uma importante força
para romper com essa dominação. A Educação Popular, ao priorizar a interação entre
os sujeitos e o foco na coletividade, oferece condições para que as camadas populares
estejam preparadas a interferir na realidade para modificá-la.

A partir disso, propomos a reflexão sobre a Educação Popular como método, ou


seja, um caminho para a construção da autonomia. Por meio do processo da prática
social e cultural e a reflexão da experiência é que cunhamos um método a partir da
Educação Popular.

Conjuntura e trajetória da Educação Popular


O desenvolvimento de nosso país foi, ao longo dos últimos tempos,
eminentemente pautado pela dimensão econômica. Isso acarretou muitas mudanças na
sociedade que, de acordo com Paludo (2001), passou a vivenciar três fases nesse
processo: mudança para um modelo de vida mais urbano do que agrário, afirmação da
sociedade urbano-industrial e consolidação do projeto de modernidade que teve seu
advento com o regime militar. Essas mudanças somente contribuíram para o aumento
da desigualdade social entre a população brasileira, na qual a instrução era cada vez
mais valorizada.

Nesse cenário, enfatizava-se o desejo de que a educação, e tão somente ela, fosse
dar conta de resolver o problema social, pois para o projeto de modernidade ela
representava ser a grande viabilizadora da formação dos cidadãos e cidadãs. Diante
dessas condições, o(a) oprimido(a), sem a devida consciência de seu estado, aproxima-
se de uma situação de conformidade social. Há de se considerar também, que até os
anos 1960, o Projeto do Campo Democrático e Popular2 tinha a Educação Popular e a
Educação do Popular como sinônimas por terem os mesmos objetivos e princípios.

2
Segundo Paludo (2001, p. 46) o “Campo Democrático Popular” representou “a articulação e congregação
de forças políticas e culturais com capacidade de intervenção política e organizativa. [...] Além disso, o
Campo Democrático Popular se orienta pela autonomia dos diferentes sujeitos sociais – Partido, Estado,
Movimento – pelo rompimento de relações hierárquicas entre direção e base, pelas formas de
participação direta do popular na reflexão, decisão, execução e controle das deliberações, enfatiza o
caráter pedagógico das relações, apontando claramente para traços culturais inovadores”.

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A partir da instituição do Projeto de Modernidade3, essas concepções acabaram


por se distanciar e a Educação do Popular passou a ser efetivada como uma prática para
manter e fomentar as relações que o modo de produção em questão requeria, servindo-
o e acompanhando-o. Nesse contexto, como espaço de exercício contrário à
hegemonia, cujo domínio supunha a aceitação de todos os pressupostos que fundam a
ordem, desconsiderando os interesses particulares, aos poucos, a concepção de
educação aliada à prática social ganhou espaço, visando à emancipação das classes
menos favorecidas da sociedade.

Sua prática, entretanto, gerou constante tensão com a sociedade que possuía seus
esforços em torno do capital, pois seus ideais apresentam elevado grau de
contrariedade. Assim, a história da Educação Popular no Brasil passou a distinguir
Educação do Popular de Educação Popular. Essa última surgiu como uma necessidade
frente à construção de uma sociedade democrática em nosso país, vinculada às práticas
educativas emancipatórias, realizadas junto às classes populares. “A origem da
concepção de Educação Popular, dessa forma, decorre do modo de produção da vida
em sociedade no capitalismo, na América Latina e também no Brasil” (PALUDO, 2012, p.
281). Suas raízes, contudo, têm a ver com contextos mundiais de enfrentamento ao
capital.

A Educação Popular apresenta-se, assim, como uma prática social e que envolve
culturas. Geralmente está mais próxima das camadas populares e se constitui nas
experiências e cotidianos dos movimentos sociais. Não há, assim, uma definição única
para a Educação Popular, já que sua concepção está atrelada a experiências de vida.
Considera a realidade e o ser humano como um todo, em permanente construção e
reconstrução, reinventa-se constantemente na e a partir das práticas. Torres (2007)
sustenta que a Educação Popular se caracteriza por elementos constitutivos: a) propõe
uma realidade crítica da ordem social vigente; b) tem em si uma intencionalidade
política emancipadora; c) contribui para com os setores dominados e protagoniza
mudanças sociais; d) proporciona a construção e a utilização de metodologias
educativas dialógicas, participativas e ativas.

Paulo Freire é uma das referências dessa proposta pedagógica. Ele afirma que a
educação é política, ou seja, não é neutra. Ela é política porque se contrapõe às lógicas
do mercado capitalista. A educação, assim como se apresenta sendo um caminho para
a autonomia, também pode vir a ser um instrumento de reprodução de valores na
sociedade. O educador Paulo Freire (2001) cunha o termo “conscientização”, que para

3
Tem a ver com o processo de industrialização e de urbanização em nosso país. Esse projeto teve sérias
consequências aos agricultores(as) e o acesso à educação.

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ele é uma forma de (des)velar a realidade para melhor conhecê-la e transformá-la.


Conhecer a realidade significa refletir acerca da real situação hegemônica em que nos
encontramos a partir do sistema capitalista.

A sociedade atrelada a uma lógica capitalista nos faz crer que existe um
pensamento fragmentado que naturaliza as condições sociais e faz com que incentive
os seres humanos à individualidade e à competitividade. Santos (2010, p. 44) nos auxilia
a compreender essa questão ao conceituar a globalização como fábula, estando imersa
em um mundo que nos faz crer em um pensamento único e universal que vai
conduzindo as nossas ações na sociedade em que vivemos.

É a partir dessa generalização e dessa coisificação da ideologia que, de um lado,


se multiplicam as percepções fragmentadas e, de outro, pode estabelecer-se um
discurso único do ‘mundo’, com implicações na produção econômica e nas
visões da história contemporânea, na cultura de massa e no mercado global.

A globalização possibilita, desse modo, que haja um desemprego crescente e o


aumento do número de pobres (pobreza é tratada com naturalidade). É explícita, nessa
visão, que há uma centralidade em torno da questão financeira em detrimento da
relação com o ser humano como um todo, com ideais propagados por grandes
empresas e pela mídia. Nesse modo de pensar facilmente aceitamos como natural a
divisão de classes sociais, e que há aqueles e aquelas detentoras de muito dinheiro e
outros(as) que têm pouco. O que interessa, nesse contexto, são as condições
econômicas que tenho, na instância individual, para satisfazer as minhas necessidades
ostentando para os(as) outros(as) a minha condição social.

A consequência desse comportamento é um individualismo crescente que


simplesmente coisifica e classifica como inferior o(a) outro(a). A relação social é
mantida por um pensamento dominador, prevalecem prioritariamente os valores de
poder e de injustiça social. O aspecto dialógico é negado e inexiste. Segundo Santos
(2010, p. 46-47):

Os individualismos arrebatadores e possessivos: individualismos na vida


econômica (a maneira como as empresas batalham umas com as outras);
individualismos na ordem da política (a maneira como os partidos
frequentemente abandonam a idéia de política para se tornarem simplesmente
eleitoreiros); individualismos na ordem do território (as cidades brigando uma
com as outras, as regiões reclamando soluções particularistas). Também na
ordem social e individual são individualismos arrebatadores e possessivos, que
acabam por constituir o outro como coisa.

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A coisificação humana é por si só uma forma de opressão. Opressão social,


simbólica, de gênero, de classe e assim por diante são as consequências do sistema
desigual, que prima pela competitividade e pela individualidade. Como, entretanto,
podem ser criados meios de denúncia e modificação da cultura dominante instalada em
nossa sociedade? Por que contrapor o princípio da lucratividade e da competitividade?
Não seria mais cômodo permanecer como se está, mesmo que se esteja em um patamar
de desfavorecimento a outrem? Como essas concepções podem ser ressignificadas?
Nos dias atuais, quais são os desafios que essas concepções buscam concretizar?

A Educação Popular contrapõe-se à lógica capitalista da competição e da


globalização na medida em que tem como propósito lutar por um mundo mais justo e
igualitário, incluindo o ser humano e fazendo-o ser sujeito e protagonista da realidade
social, criticizando-a. A Educação Popular sustenta-se em valores como dignidade e
justiça social, primando pela dimensão integral do ser humano. Conforme Mejía (2012,
p. 64):

Os educadores populares assumem esta como uma concepção educativa que


tem suas práticas, conceitualizações, pedagogias e metodologias, mediante as
quais fazem vigente sua proposta de indignação ética frente ao capitalismo atual
e fazem uma proposta de emancipação e de transformação desta sociedade para
construir uma mais humana e justa a partir dos processos educativos, mediante
os quais realizam seu trabalho na sociedade.

De acordo com Paludo (2001), três grandes desafios parecem ser mais urgentes
para os sujeitos envolvidos nas práticas educativas, sob a concepção de Educação
Popular. O primeiro é o de superar resistências e de intensificar as trocas de
experiências para, a partir desse movimento, ir construindo identificações gerais,
sólidas e consensuadas em nível referencial, buscando fundamentar a própria
concepção, sua vinculação com o projeto de futuro em constituição e qualificando as
suas práticas. O segundo desafio é estabelecer novas formas de lutas, para conseguir
que essa discussão seja feita pela sociedade para uma reflexão sobre qual projeto de
educação e de civilização encaminhar. O terceiro é aprofundar o significado da
educação, de como efetivá-lo nos processos educativos cotidianos para a construção
dos projetos alternativos de desenvolvimento.

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Educação Popular como um caminho de construção da autonomia


Em contraponto à globalização e na luta por uma sociedade mais justa e igualitária,
encontra-se a Educação Popular. Direcionada para os interesses das camadas
populares, ela pode ser entendida como um método que se fundamenta em uma
pedagogia para a vida. Por ser uma prática social e cultural, a Educação Popular,
vinculada às lutas dos movimentos sociais, pode se constituir como um caminho de
construção da autonomia, já que possui uma intencionalidade emancipadora.

A Educação Popular constitui-se a partir das experiências de vida dos(das)


participantes, fortalecendo o saber individual e coletivo sem necessariamente estar
presa às amarras e aos ditames da globalização para com as relações sociais e humanas.
Desse modo, na Educação Popular, conforme Torres (2013), falamos de paradigmas
emancipadores. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que fizemos uma leitura
crítica da realidade, também nos posicionamos politicamente frente a isso e também
pelo viés da prática social que culmina com os ideais de transformação da sociedade.
Falar em construção da autonomia supõe reconhecer o potencial emancipatório das
práticas e também do conhecimento gerado a partir da reflexão sobre ela.

Torres (2013) nos auxilia a compreender essa questão ao discorrer sobre critérios
pedagógicos para formar pensamentos e subjetividades emancipadoras. Em primeiro
lugar, é necessário ter curiosidade epistêmica e atitude problematizadora; em segundo,
é posicionar-se criticamente diante da realidade; em terceiro lugar, é apreender o
mundo de forma crítica, considerando a possibilidade de transformação; em quarto, é
ter presente que possuímos uma herança cultural e social que, muitas vezes, impede a
ação crítica; em quinto, é pensar, criticamente, em um esforço de ler o mundo por conta
própria; em sexto, é refletir em torno de um pensar que envolve os sujeitos como um
todo; em sétimo lugar, Torres sugere que a formação do pensamento crítico e de
subjetividades acontece por meio de experiências coletivas; em oitavo, é destacada a
reflexividade, ou seja, é ter uma atitude autocrítica diante das nossas ações; e por fim,
é a necessidade de buscar uma coerência entre o pensar e o atuar, em uma relação
permanente entre a teoria e a prática.

Ao nos referirmos a subjetividades emancipadoras, estamos nos referindo à


categoria sujeito, que criticiza e, a partir de sua ação individual e coletiva, busca a
transformação social. Maria da Glória Gohn (2013, p. 33) discorre acerca do sujeito,
ressaltando que esse conceito

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[...] confere protagonismo e ativismo aos indivíduos e grupos sociais,


transformam-nos de atores sociais, políticos e culturais em agentes conscientes
de seu tempo, de sua história, de sua identidade, de seu papel como ser humano,
político, social.

Vale ressaltar que a constituição dos sujeitos se dá na e a partir das relações


sociais, na interação com outros sujeitos. Isso implica dizer que, em função das relações
estabelecidas em seu mundo, o sujeito também cria cultura. Nesse sentido,
concordamos com Freire (2001, p. 43) ao discorrer que:

[...] o homem se cultiva e cria a cultura no ato de estabelecer relações, no ato de


responder aos desafios que lhe apresenta a natureza, como também, ao mesmo
tempo, de criticar, de incorporar a seu próprio ser e de traduzir por uma ação
criadora a aquisição da experiência humana feita pelos homens que o rodeiam
ou que o precederam.

Ao possibilitar uma relação social e cultural também está envolta uma relação
dialógica, conforme preconiza Freire (2005, p. 192), uma relação entre “eu e tu”.

O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe


também que, constituído por um tu – um não-eu –, esse tu que o constitui se
constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu
passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois
eu.

É por essa perspectiva que entra novamente em cena o conceito de coletivo, já que
as relações são estabelecidas por um “nós”. Seres humanos diferentes, mas não
desiguais passam a se constituir como sujeitos, protagonistas das lutas por uma
sociedade mais justa. A Educação Popular se apresenta como um viés utópico, levando
em consideração um compromisso histórico. A possibilidade de utopia está amparada
em um inédito-viável, ou, então, em um sonho possível de ser realizado. Para Freire
(2001, p. 32), “[...] o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a
dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura
desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante”.

É imprescindível, entretanto, levar em consideração que a utopia implica a


conscientização. Conforme Freire (2001, p. 33, grifos do autor), “[...] a conscientização
é o olhar mais crítico da realidade, que a des-vela para conhecê-la e para conhecer os
mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante”. À

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medida que tivermos alcançado a conscientização, estaremos mais aptos e preparados


para denunciar formas de opressão, ou, então, de anunciar possibilidades utópicas de
um outro mundo possível. É a minha ação-reflexão acerca do mundo que possibilitam
a conscientização em um movimento contínuo de ação-reflexão, reflexão da ação, ação
a partir da reflexão. Freire caracteriza isso como sendo a práxis humana e que sem ela
não se constitui um sujeito conscientizado. A práxis educativa é “ser mais”. Isso significa
dizer que o(a) inferior não se vê mais como inferior e há uma insubordinação à opressão.
O conceito de "ser mais" se aproxima da liberdade porque acaba com a subordinação.
O sujeito, então, passa a ser autônomo e não mais objeto, ao ser sujeito na relação com
outro sujeito, torna-se livre e emancipado. Ser livre significa ser mais humano.

Interferir na realidade para modificá-la é um dos pressupostos da Educação


Popular. A partir do método problematizador da realidade social – ver, julgar e agir –
pode-se avançar na concretização de uma nova realidade baseada em princípios de
reciprocidade e igualdade. É a partir da denúncia de situações opressoras que
começamos a modificar a sociedade. Milton Santos (2010, p. 20) nos desafia a pensar na
“emergência de uma nova história”. Ter utopia é pensar além dos condicionamentos
sociais e culturais, é posicionar-se frente às estruturas de dominação e de globalização,
é colocar o "ser" acima do "ter", é embasar-se em princípios de cooperação, em vez da
competição. O desafio, de acordo com Milton Santos, pode ser na direção da

[...] obtenção de uma visão sistêmica, isto é, a possibilidade de enxergar as


situações e as causas atuantes como conjuntos e de localizá-los como um todo,
mostrando sua interdependência, [...] permitindo entender como cada lugar,
mas também cada coisa, cada pessoa, cada relação dependem do mundo. [...] o
que inclui uma apreciação filosófica da nossa própria situação ante a
comunidade, a nação, o planeta, com uma nova apreciação de nosso papel como
pessoa. É desse modo que, até mesmo a partir da noção do que é ser um
consumidor, poderemos alcançar a ideia de homem integral e de cidadão
(SANTOS, 2010, p. 169).

É fundamental nessa perspectiva romper padrões estabelecidos e trabalhar na


perspectiva da multiplicidade das relações humanas. De acordo com Boaventura de
Sousa Santos (2007), “[...] necessitamos construir a emancipação a partir de uma nova
relação entre o respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento da diferença.” (p.
62, grifo do autor). Desse modo e em contraponto às imposições econômicas, urge
constituirmos uma pedagogia que esteja a serviço da vida e este deve ser um dos
desafios centrais da Educação Popular. Por isso, concordamos com Frantz (2001, p. 14)
quando afirma que:

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Movimentos sociais, associações, cooperativas ou outras práticas sociais,


podem constituir-se em lugares sociais privilegiados para a reconstrução do
coletivo, dos laços sociais rompidos, de reconhecimento e identificação social
dos indivíduos.

A Educação Popular, considerando sua origem em meio às lutas e movimentos


sociais, tem essa grande diferenciação da educação formal, por exemplo. É por meio
das suas práticas e da educação não formal que constituem-se relações contra-
hegemônicas à ordem social vigente. É esse o papel transformador da Educação
Popular, em que o ponto de partida é compreender a realidade social para transformá-
la. Por intermédio da Educação Popular ainda há tempos de esperança, valores e
atitudes podem ser ressignificados. A possibilidade de pensar o ser humano como um
todo por si só já é uma forma de inclusão social.

Considerações finais
A Educação Popular como método se afirma pelo seu papel transformador de
sociedade. Infere-se na realidade, para modificá-la. Implica valores e princípios em
todo o seu processo de prática social. Utilizando-se desse método, os sujeitos da
pesquisa também produzem conhecimento, ou seja, partem de sua realidade, de suas
experiências de vida para produzir conhecimento. Refletir sobre a ação, em um
movimento dialético entre teoria e prática também se constitui como uma forma de
aprendizagem, de realização de uma pesquisa. Há ainda a preocupação em dar o
retorno da pesquisa realizada na comunidade, propiciando a reflexão da ação.

O método articula, assim, diferentes tipos de conhecimentos, maneiras de fazer e


de idear com vistas a transformações pessoais e coletivas, sempre imersas em um
contexto social e cultural. De acordo com Streck (2015, p.14):

A educação popular tem se revelado um campo de experimentação e inovação


metodológica não apenas em termos de ensino, mas também de pesquisa. Na
medida em que fizer do seu trabalho investigativo tema de reflexão,
sistematizando experiências e buscando o diálogo teórico com interlocutores
de diferentes lugares epistêmicos, políticos e culturais, poderá consolidar-se
como um campo específico referenciado numa prática com características
próprias e também, desde aí, contribuir para o direcionamento e o
fortalecimento da área da educação em geral.

Partir da realidade de uma experiência e dialogar teoricamente com diferentes


interlocutores e interlocutoras a partir e acerca de uma prática social é uma forma de

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método. Gamboa chama a atenção que, na pesquisa, é importante levar em


consideração que a realidade é o objeto da pesquisa e os(as) investigados(as) são os
sujeitos. “A realidade é um ponto de partida e serve como elemento mediador entre os
sujeitos.” (GAMBOA, 2012, p. 45). Ao fazer a mediação com os sujeitos faz-se também a
mediação com o mundo. Os sujeitos se encontram em uma realidade e por meio de uma
relação dialógica e crítica a transformam.

O método se apresenta, assim, como um saber sistematizado, uma prática social e


cultural refletida em sua ação e que expressa a construção de um conhecimento que
está sempre em reconstrução a partir da tríade ação-reflexão-ação. É na expressão da
experiência de vida, do cotidiano e de suas ações coletivas em movimentos e
organizações sociais que a Educação Popular como método se constitui, gerando e
oportunizando processos de emancipação.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular como método de aprendizagem por meio dos movimentos sociais
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40
Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

Diálogos decoloniais, interculturais e entre


epistemologias dos povos originários: a VI
Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar
Marcos José de Aquino Pereira*
Geovane Diógenes da Silva**
Guanilce Falcão Soares***
Pedro Manoel da Silva Santos****

Introdução
A diversidade de povos indígenas presente no território atualmente denominado
como brasileiro, outrora de diferentes povos originários e com distintos nomes, é
gigantesca. O Instituto Socioambiental (ISA, 2021) indica, com base no Censo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, que existem mais de 305
povos indígenas no país. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) é uma das
universidades brasileiras com a maior diversidade de povos indígenas atualmente
(SILVA; SOUZA; PALOMINO, 2020). Desde o ano de 2008, com a realização de seu
primeiro Vestibular Indígena, estudantes indígenas de mais de 46 etnias diferentes
estão ou estiveram vivendo no município de São Carlos para estudar (SILVA; SOUZA;
PALOMINO, 2020). Nesse campus, segundo levantamento interno da Pró-Reitoria de
Assuntos Comunitários e Estudantis (ProACE) da UFSCar1, 196 estudantes indígenas, de
um total de 273 em todos os campi da UFSCar, encontram-se, neste ano, em formação

*
Doutorando em Educação, UFSCar.
E-mail: marcosaquino@estudante.ufscar.br
**
Estudante indígena do povo Pankararu, Graduando em Letras, UFSCar.
E-mail: gegepankararu@gmail.com
***
Estudante indígena do povo Tariana, Graduanda em Educação Física, UFSCar.
E-mail: guanilce@estudante.ufscar.br
****
Estudante indígena do povo Pankararu, Graduando em Pedagogia, UFSCar.
E-mail: pedromanoelpg@gmail.com
1
Obtivemos este dado através do Pró-Reitor de Assuntos Comunitários e Estudantis, Djalma Ribeiro
Junior, que gentilmente nos informou que esse levantamento foi realizado em 09/03/2021, indicando a
presença de 13 indígenas estudantes no campus de Araras; 16 no campus de Lagoa do Sino; 48 no campus
de Sorocaba; 196 no campus de São Carlos, pertencentes a 36 povos indígenas diferentes.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

e, em casos de estudantes com famílias, boa parte dos seus/suas companheiros/as e


filhos/as os/as acompanham nesta etapa, como temos observado.

A presença indígena, na UFSCar e na cidade de São Carlos, vem se tornando cada


vez mais importante e perceptível em diversos âmbitos, seja nas ações promovidas pelo
coletivo Centro de Culturas Indígenas (CCI) da UFSCar, como palestras nas escolas
públicas e privadas do município e da região, em rodas de conversa e eventos no SESC
São Carlos e no SESC Sorocaba, nas Cerimônias de Colação de Grau, em eventos
nacionais e internacionais, como o Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI),
que nasceu na UFSCar em 2013, e segue para a sua IX edição no ano de 2021, já tendo
circulado, ano a ano, por todas as regiões do país; seja nas atividades promovidas pelos
grupos do Programa de Educação Tutorial (PET) Indígena: “Ações em Saúde” e
“Conexões Saberes Indígenas”; nos Grupos de Pesquisa; nos Projetos de Extensão e nos
Programas de Pós-Graduação.

Com o intuito de delimitar um período de tempo para que essas trocas culturais e
de conhecimentos tradicionais e científicos fossem potencializadas, nasceu, sob a
coordenação do CCI e por demanda dos/as próprios/as estudantes indígenas, no ano
de 2015, a I Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar. À época, estes estudantes
solicitaram que houvesse, na universidade, um momento/espaço de diálogo entre
os/as indígenas estudantes de diversas regiões e povos do território atualmente
denominado Brasil, assim como com a comunidade não-indígena. Desde então, a
Semana dos Estudantes Indígenas (SEI) da UFSCar realizou-se anualmente de forma
presencial, até que em 2020, devido à pandemia e ao necessário isolamento social,
apresentou-se o desafio de realizá-la remotamente.

Alguns meses após a sua realização, em uma roda de conversa que integra a
pesquisa de doutorado2 que está sendo produzida em conjunto com o CCI, os/as
estudantes indígenas expressaram o desejo e a necessidade de escreverem artigos
científicos para, ao mesmo tempo registrar e divulgar as ações do coletivo e os
conhecimentos de seus povos, já que muitos deles valorizam mais a tradição oral, mais
características dos povos indígenas, diferentemente da cultura ocidental. Surgiu assim
a ideia da escrita coletiva deste artigo, entre três estudantes indígenas da graduação da

2
Pesquisa intitulada “Processos Educativos do Centro de Culturas Indígenas: indiagem, acolhimento,
desafio e conquista na Universidade Federal de São Carlos”, conduzida entre 2019 e 2022, por Marcos
José de Aquino Pereira, com a participação dos autores e da autora deste texto e de outros/as
membros/as do CCI, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Waldenez de Oliveira, na linha de pesquisa
“Práticas Sociais e Processos Educativos”, no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da
UFSCar.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

UFSCar sendo dois do povo Pankararu e uma do povo Tariana, e um pesquisador não
indígena, doutorando pelo PPGE da UFSCar, tendo como temática a VI SEI, discutindo-
a sob as perspectivas decoloniais.

Consideramos ser essa uma ação de educação popular, entendendo que, como
“concepção da educação, a educação popular é uma das mais belas contribuições da
América Latina ao pensamento pedagógico universal” (GADOTTI, 2017, p. 24) em que
um dos seus princípios tem sido a criação de uma nova epistemologia baseada no
respeito aos conhecimentos populares, na qual a “[...] diversidade é a marca desse
movimento de educação social, popular, cidadã, cívica, comunitária. Trata-se de uma
rica diversidade que precisa ser compreendida, respeitada e valorizada” (GADOTTI,
2012, p. 11) o que se relaciona à luta dos/as estudantes indígenas para que os
conhecimentos e epistemologias dos povos originários dos quais fazem parte sejam
preservados e reconhecidos, contribuindo para uma educação que participe da
construção de outras realidades possíveis.

O modelo civilizatório pautado na Colonialidade e na Modernidade


confrontado com a realidade da pandemia
Com a pandemia causada pelo Covid-19 a insustentabilidade da forma de vida
humana desenvolvida na Modernidade, sob a perspectiva da Colonialidade, se manifesta
de forma ainda mais evidente, como nos alerta Airton Krenak (2019, p. 23):

O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque,
se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos
ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje
estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.

Percebemos que as diversas ações tomadas no combate à pandemia, como o


isolamento social, o uso de máscaras e álcool gel, a vacinação, são medidas necessárias
para amenizar a situação, salvar vidas e não causar o colapso dos sistemas de saúde
pelo mundo, mas insuficientes para solucionar o problema definitivamente, já que
foram anos de desmatamento dos habitats de diversas espécies, com a conversão do
uso da terra (REUTER, 2016; FRUTOS et al., 2020; FRUTOS; GAVOTTE; DEVAUX, 2021) e
a antropização de ambientes naturais, fatores de contato humano com seres patógenos
(AFELT et al., 2018), gerando surtos de diversas doenças infecciosas humanas e a
emergência de novos patógenos (IPBES, 2018).

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
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Vemos que as consequências da pandemia têm impactando de forma mais forte


aqueles/as que já se encontravam à margem antes, os/as que estão “[...] a sul da
quarentena” (SANTOS, 2020, s.p.), como diz Boaventura Santos, em sua obra “A cruel
pedagogia do vírus” (2020, s.p.), incluindo as mulheres, os/as trabalhadores/as
informais, as populações de rua, os/as moradores das periferias, imigrantes e
refugiados/as, deficientes, idosos/as, e tantos/as outros/as, em que destaquemos, em
nosso país, as populações indígenas, tanto as que vivem em aldeias quanto aqueles/as
que vivem em áreas urbanas, com diversas dificuldades em acessar a vacinação.

São questões urgentes para agora e também para o futuro, que exigem profundas
reflexões, sobre a nossa relação com a natureza e entre nós, que foram exacerbadas
pela pandemia, mas já explicitadas pelos impactos ambientais e sociais do atual modelo
civilizatório.

Outras perspectivas e outras epistemologias para uma nova realidade:


Decolonialidade, Ecologia dos Saberes, Interculturalidade e Bem-Viver como
resistência ao epistemicídio sofrido pelos povos originários
Segundo Boaventura Santos, são esses momentos de despertar que se apresentam
como propícios às mudanças, como no pós-pandemia:

A pandemia e a quarentena estão a revelar que são possíveis alternativas, que as


sociedades se adaptam a novos modos de viver quando tal é necessário e sentido
como correspondendo ao bem comum. Esta situação torna-se propícia a que se
pense em alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver
nestes primeiros anos do século XXI (SANTOS, 2020, s.p.).

Dessa forma podemos pensar em diversas propostas para uma sociedade além da
Modernidade e da Colonialidade, como a da Transmodernidade, de Enrique Dussel
(2016), a Ecologia dos Saberes, de Boaventura Santos (2009) e a da Interculturalidade,
de Catherine Walsh (2005), que nos permitam buscar alternativas, que se demonstrem
historicamente sustentáveis, e nisso podemos encontrar diversas perspectivas,
epistemologias, cosmovisões e formas de se viver milenarmente construídas e vividas
pelos povos originários3 do ora denominado americano, outrora Abya Yala, como o

3
Utilizamos ao longo do texto os termos povos originários e povos indígenas como sinônimos, pois
partimos das formas narrativas das pessoas autoras e das fontes consultadas, no que encontramos essa
variação. Também usamos Estudantes Indígenas, porque é dessa forma que é usual para os/as
membros/as do CCI. Temos consciência das discussões e debates sobre o uso deste ou daquele termo

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
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DOI: 10.23899/9786589284314.3

Bem-Viver (MAMANI, 2010; ACOSTA, 2016), muitas das quais foram e têm sido
invisibilizadas, subalternizadas e eliminadas, através do sistemático genocídio e
epistemicídio, desses povos e de seus conhecimentos:

[...] o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um
epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de
conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho
porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos (SANTOS, 1999,
p. 283).

A valorização das epistemologias eurocêntricas pautadas no discurso


científico/racional em detrimento das epistemologias dos povos conquistados é uma
das estratégias da Colonialidade, preservada pela Modernidade, para promover e
manter a dominação sobre esses povos (DUSSEL, 1993).

Habermas, ao debater a ideologia de fundo na Modernidade, que promove uma


fetichização da ciência, criando uma consciência tecnocrática, apresenta a perspectiva
de dicotomização entre racionalidade e as cosmovisões tradicionais, ao comentar a
visão de Max Weber, sobre o processo de racionalização na sociedade capitalista:

A «racionalização» progressiva da sociedade institucionaliza o progresso


científico e técnico. Na medida em que a técnica e a ciência perdem as esferas
institucionais da sociedade e transformam assim as próprias instituições,
desmoronam-se as antigas legitimações. A secularização e o
«desencantamento» das cosmovisões orientadoras da ação, da tradição cultural
no seu conjunto, é o reverso de uma «racionalidade» crescente da ação social
(HABERMAS, 1994, p. 45-46).

Segundo ele: “A eficácia peculiar desta ideologia reside em dissociar a


autocompreensão da sociedade do sistema de referência da ação comunicativa e dos
conceitos da interação simbolicamente mediada, e em subtítulo por um modelo
científico” (HABERMAS, 1994, p. 74), de forma que essa substituição, ao ser promovida
pela Modernidade, definindo as epistemologias e os conhecimentos dos povos
originários, como desprovidos de racionalidade e cientificidade, e portanto, inválidos e
inferiores aos europeus, devendo ser desconsiderados ou mesmo obliterados, o que se

para nos referirmos a esses conceitos (vide: Almeida [2020], Doebber [2017] e Lopes [2015]), mas
consideramos que não seria algo pertinente aos objetivos deste artigo entrar nesta temática.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
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deu historicamente, e ainda se dá de forma violenta, tanto com o uso da força e das
armas, quanto por meios mais sutis, como a sua invisibilização e subalternização.

Estará na base do Mito da Modernidade a autoafirmação de que a cultura europeia


é superior e como consequência que as demais culturas são inferiores (DUSSEL, 1993),
consistindo assim “[...] em vitimar o inocente (o Outro) declarando-o causa culpável de
sua própria vitimização e atribuindo-se ao sujeito moderno plena inocência com
respeito ao ato sacrifical” (DUSSEL, 1993, p. 75-76), do que se deriva que a “[...]
Modernidade, como mito, justificará sempre a violência civilizatória” (DUSSEL, 1993, p.
84).

Essas visões das epistemologias hegemônicas eurocêntricas, permeadas pela


Colonialidade e pela Modernidade, dicotomizam natureza e ser humano, indivíduo e
sociedade, ciência e espiritualidade, sempre em uma perspectiva dualista. As
epistemologias e cosmovisões dos povos originários do continente americano, em seu
caráter relacional, se apresentam como alternativas a isso (ESCOBAR, 2011).

Dussel (2005, p. 31) propõe uma nova perspectiva, a da Transmodernidade, na qual


ocorra uma “[...] co-realização de solidariedade, que chamamos de analéptica, de:
Centro/Periferia, Mulher/Homem, diversas raças, diversas etnias, diversas classes,
Humanidade/Terra, Cultura Ocidental/Culturas do mundo periférico ex-colonial,
etc.”.

Boaventura Santos, concebe a Ecologia dos Saberes como o reconhecimento da


pluralidade de conhecimentos heterogêneos, em que a ciência moderna é um deles,
que se colcam “[...] em interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem
comprometer a sua autonomia, entendendo que o conhecimento é interconhecimento”
(2009, p. 44-45), dando “consistência epistemológica ao pensamento pluralista e
propositivo” (SANTOS, 2009, p. 47), na qual cruzem-se os conhecimentos, sem que haja
uma unidade dos mesmos ou uma hierarquia entre eles, inclusive entendendo o
conhecimento científico como um deles, buscando, a utopia do interconhecimento, que
consiste em aprender os outros conhecimentos sem esquecer dos próprios,
promovendo a interação e interdependência entre os saberes científicos e não
científicos, com a recuperação e a necessária valorização desses para que se igualem
ao status daqueles (SANTOS, 2009), de forma que:

A nova epistemologia e a nova psicologia anunciadas e testemunhadas pela


utopia assentam na arqueologia virtual presente. Trata-se de uma arqueologia
virtual porque só interessa escavar sobre o que não foi feito e, porque não foi

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
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feito, ou seja, porque é que as alternativas deixaram de o ser (SANTOS, 1999, p.


279-280).

Perspectivas do Sul, do Outro, dos povos que foram subjugados, mas que
resistiram, como as do Bem-Viver (MAMANI, 2010; ACOSTA, 2016) que rompem com a
lógica eurocêntrica/antropocêntrica, entendendo o ser humano em unidade com a
natureza, como afirma Krenak (2019, p. 10) em uma perspectiva de que tudo é natureza,
inclusive a humanidade: “fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a
Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade.
Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O
cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”.

O Bem-Viver é um conceito derivado dos termos suma qamaña (Aymara) e sumak


kawsay (Quéchua), que seriam traduzidos com maior fidelidade ao seu significado
original, por Viver em Plenitude (MAMANI, 2010), presente entre diversos povos
originários do continente americano, fruto de suas cosmovisões (CONTRERAS
BASPINEIRO, 2016), referindo-se a suas formas de viver, refletidas em suas práticas
comunitárias de respeito, harmonia e equilíbrio com a todos os seres, em um
entendimento de que todas as vidas estão interconectadas, interdependentes e inter-
relacionadas (MAMANI, 2010), que exige uma outra ética, que contemple relações mais
afetivas e solidárias e não utilitaristas e individualistas, e sob uma outra lógica, a da
Interculturalidade.

Segundo Catherine Walsh, o conceito de Interculturalidade refere-se a um


processo dinâmico e permanente de relações, de comunicação e aprendizagem
ocorrido entre culturas diferentes, em condições de respeito, de legitimidade mútua,
de simetria e de igualdade (WALSH, 2005), sendo a sua realização em si, um processo
de Decolonialidade, uma forma de insurgência, com os objetivos de desafiar e derrubar
as estruturas sociais, políticas e epistemológicas da Colonialidade, em um projeto de
existência, de vida (WALSH, 2007).

Percurso metodológico
Este estudo surgiu da percepção dos autores e da autora da necessidade de se
refletir criticamente sobre a importância da VI SEI, partindo das memórias de suas
vivências na organização e participação no evento e por isso optamos pela metodologia
de relato de experiência, que consiste em:

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

[...] uma modalidade de cultivo de conhecimento no território da pesquisa


qualitativa, concebida na reinscrição e na elaboração ativada através de
trabalhos da memória, em que o sujeito cognoscente implicado foi afetado e
construiu seus direcionamentos de pesquisa ao longo de diferentes tempos. Isso
posto, conjugará seu acervo associativo agindo processualmente, tanto em
concomitância com o evento, como trazendo o produto processado pelas
elaborações e em suas concatenações, e, finalmente, apresentará algumas das
suas compreensões a respeito do vivido (DALTRO; FARIA, 2019, p. 229).

Seguimos a inspiração fenomenológica, através da perspectiva de ir “às coisas


mesmas” (GARNICA, 1997, p. 116) que remete à perspectiva dos povos originários de que
a natureza “ensina a olharmos as coisas como elas são e não como gostaríamos que
fossem” (MUNDURUKU, 2019, p. 36), de forma que, buscamos um desvelamento que
parta de visões de quem iniciou o evento, e dessas visões ao serem relembradas e
compartilhadas, ensejem o debate, que possibilite a identificação de unidades de
significado, a construção de categorias, de forma que as “generalidades resultantes
dessa análise iluminam uma perspectiva do fenômeno, dado seu caráter perspectival”
(GARNICA, 1997, p. 117), possa ser refletido através da intersubjetividade entre os/as
sujeitos/as envolvidos/as (GONÇALVES JUNIOR et al., 2021).

Utilizamos como técnica a escrita coletiva, com espaço para o diálogo, a escuta e
o debate de ideias e de opiniões, com o uso de recursos tecnológicos para a
comunicação entre as pessoas autoras, devido à realidade da pandemia, realizando uma
recordação individual de nossas memórias sobre nossas experiências no evento,
selecionando o que consideramos mais relevante relacionado à realidade atual,
desenvolvendo a escrita narrativa e em seguida procedendo a nossa análise crítica,
buscando relacionar essa parte narrativa à fundamentação teórica por nós
desenvolvida, chegando assim às nossas considerações, que entendemos, devem
manter um caráter de abertura à outras possíveis interpretações, representando tão
somente as nossas reflexões e visões enquanto algumas das pessoas que participaram
da organização e realização do evento.

Buscamos registrar com um maior detalhamento aquilo que foi apresentado e


debatido pelos/as palestrantes durante o evento, com o objetivo, ao mesmo tempo, de
gerar o registro desse conteúdo para reflexão e utilização de futuros/as membros/as
do CCI e divulgar as ideias e conceitos ali explicitados, de uma forma mais ampla, para
outros/as indígenas e não indígenas.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

Vozes da interculturalidade, da decolonialidade e das epistemologias dos


povos originários na VI SEI
A Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar é realizada a cada ano como forma
de demarcar o território dentro da universidade, no sentido de reafirmar os valores
étnicos e culturais das diversas culturas presentes neste espaço. Organizada pelo
Centro de Culturas Indígenas, em parceria com a Pró-Reitoria de Graduação (ProGrad),
Coordenadoria de Acompanhamento Acadêmico e Pedagógico para Estudantes
(CAAPE) e Secretaria Geral de Ações Afirmativas Diversidade e Equidade (SAADE).

Em sua primeira edição, em 2015, abordou o tema “Indígenas – Reconstruindo a


história do Brasil”. Em 2016, na II SEI, o tema central foi “Indígenas - O outro lado da
História”, dando continuidade temática ao primeiro evento, com discussões ainda mais
aprofundadas em relação à organização cultural dos povos indígenas. Em 2017, na III
SEI, o tema foi “Você sabe o que eu sei?”, abrangendo ainda mais os conhecimentos e
discussões acerca da cultura e identidade dos povos indígenas. No ano de 2018, na IV
SEI, houve a necessidade de fazer um paralelo entre os conhecimentos adquirido na
aldeia com a vivência na Universidade, abordando como tema geral “Acadêmicos
Indígenas: Propondo diálogo entre ciência e conhecimento tradicional”, trazendo uma
visão de mundo para que as pessoas pudessem conhecer como funciona a organização
cultural dos povos indígenas em meio ao conhecimento tradicional passado de geração
em geração. No próximo evento, em 2019, na realização da V SEI, foi pensado pelo CCI
que seria importante apresentar uma temática que realizasse um histórico das lutas e
conquistas dos/as estudantes indígenas na UFSCar e para isso foi escolhido como tema
geral “12 anos da presença indígena na UFSCar: Vivência, resistência e conquistas”.

Devido à pandemia causada pelo COVID-19, tornou-se inviável que o evento


ocorresse em 2020 de forma presencial. Surgiu assim o debate dentro do CCI sobre
como proceder diante dessa situação.

Após diversas conversas concluímos que seria de grande importância a realização


do evento, mesmo que de forma virtual, pois já se tornara um espaço conquistado e não
deveríamos abrir mão dele, especialmente com todas as dificuldades causadas aos/às
estudantes indígenas pela pandemia, com muitos tendo voltado às suas aldeias, e com
as reduzidas oportunidades de encontro, causados por essa realidade, ficando muito
forte o entendimento de que a realização desta semana de encontros era em si uma
ação de resistência.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

Tornava-se um ponto chave a utilização de recursos tecnológicos de comunicação


para viabilizar a VI SEI, no que foi solicitado o apoio do doutorando que está realizando
a pesquisa junto com o CCI, um dos autores deste artigo e, que sugeriu a utilização da
plataforma Stream Yard, permitindo a transmissão através da página de Facebook do
coletivo.

Tendo a coordenação dos/as estudantes indígenas, pessoas autoras deste artigo,


e de outros/as membros/as do CCI, foram realizadas reuniões de preparação e
organização do evento que contaram com a participação da professora doutora Thais
Juliana Palomino e Rubens Roberto da Palma Durães, representantes da Coordenadoria
de Acompanhamento Acadêmico e Pedagógico para Estudantes (CAAPE, da
ProGrad/UFSCar), foi elaborado o projeto, contendo definição de temas, datas,
horários e palestrantes, definição das funções de cada um/a, foram produzidos
materiais para divulgação, convites para palestrantes, formulários on-line de inscrição
e registro de presença em cada noite do evento.

Definiu-se que a temática deste ano seria relacionada à realidade da pandemia,


tendo a educação e a saúde como eixos condutores, da primeira e da segunda noite do
evento, respectivamente, sendo a terceira noite reservada às lideranças indígenas.
Também foram incluídas apresentação dos Programas de Educação Tutorial (PET)
Indígenas da UFSCar, “Conexões Saberes Indígenas” e “Ações em Saúde”, e um
momento cultural com apresentação musical.

Em toda essa organização houve a preocupação de garantir a diversidade de povos


indígenas e regiões do Brasil representadas pelos/as palestrantes e também facilitar o
acesso dos/as estudantes indígenas, inclusive com a solicitação aos setores
responsáveis da universidade do envio de chips de celulares com crédito para o acesso
à rede 4G, o que infelizmente não ocorreu a tempo do evento.

Assim, a VI Semana do Estudante Indígena foi realizada entre os dias 2 e 4 de


dezembro de 2020, com atividades no período noturno, tendo como temática “Os
reflexos da pandemia por COVID-19 no contexto da educação e saúde dos povos
indígenas”, contando com 224 inscritos, dos quais 121 se declararam como indígenas
(54%), pertencentes a 26 povos indígenas diferentes (Gráfico 1), de todas as regiões do
país, em sua maioria estudantes universitários, de 35 cursos diferentes.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
DOI: 10.23899/9786589284314.3

Gráfico 1. Distribuição de participantes indígenas por povo a que pertencem

Fonte: Elaborado pelos autores e pela autora (2021).

Na primeira noite do evento as temáticas abordadas pelos/as palestrantes foram


sobre as dificuldades de acessibilidade dos/as estudantes indígenas diante da
pandemia causada por Covid-19, com a estudante indígena do curso de Pedagogia da
UFSCar, Claudiana Baré, do povo Baré, do Amazonas, contando suas vivências e de
suas/as colegas nesse período. Em seguida, a mesa temática trouxe as questões de
gênero na educação indígena, com a educadora, pesquisadora e mestre em
antropologia pela UFPE, Elisa Urbano Ramos, do povo Pankararu, de Pernambuco,
discutindo a mulher indígena, o feminismo comunitário e o movimento LGBTQIA+.
Como último palestrante da noite, o pedagogo e mestre em Linguística pelo Museu
Nacional/UFRJ, Jocelino Tupinikim, do povo Tupinikim, do Espírito Santo, falou sobre
a educação escolar indígena e sobre os desafios e as realizações no ensino da língua
materna em sua comunidade, no Centro Cultural Tupinikim Ka'arondarapé.

Também houve a apresentação de membros/as do PET “Conexões Saberes


Indígenas” abordando as ações desse programa, destacando sua atuação no apoio
aos/às estudantes indígenas, especialmente nos campos de pesquisa e ensino,
contribuindo em suas lutas pela conquista e manutenção de espaços na universidade,
em busca de uma maior valorização das aprendizagens interculturais, ampliando assim
a percepção da presença indígena nos campi. Foi buscada a interação entre palestrantes

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e participantes através de perguntas via chat, que eram lidas pelos/as mediadores
estudantes indígenas, o que se repetiu em todas as noites.

Imagem 1. Cartazes de divulgação da VI SEI:

Fonte: Acervo do CCI (2020).

Na segunda noite foram palestrantes 3 profissionais da saúde indígenas, a


enfermeira graduada pela UFSCar, Ariele Gomes Botelho, do povo Terena do Mato
Grosso, a gestora em saúde, graduada pela UnB, Jennifer Benedito de Oliveira Pêgo, do
povo Tupinikim do Espírito Santo, e o médico Ornaldo Senna, do povo Kaxinawá, do
Acre, compartilhando as suas experiências e vivências, em sua atuação e contribuições
no combate ao Covid-19, em suas comunidades, e quais conhecimentos e práticas da
medicina tradicional indígena têm contribuído para a prevenção, o tratamento e
combatem a circulação do vírus nas aldeias. Os palestrantes desta noite foram
compostos por indígenas de 3 Estados do Brasil, que em suas falas destacaram a
importância da valorização dos conhecimentos ancestrais e da promoção do diálogo
intercultural, garantindo a diversidade e troca de conhecimentos entre as comunidades
indígenas e dessas com a sociedade não indígena.

Também houve a apresentação de membros/as do PET Indígena “Ações em


Saúde” que abordaram os seus objetivos ligados a melhoria da saúde nas comunidades
e ao reconhecimento e valorização das práticas tradicionais indígenas em saúde, e

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contaram suas vivências nas diversas atividades realizadas na universidade e junto à


comunidade são carlense, nos anos anteriores.

E em sua última noite de evento palestraram 2 lideranças indígenas, o cacique Ary


Bastos, do povo Pankará, do Estado de Pernambuco, e o cacique Delmir Tikuna, do povo
Tikuna, do Amazonas, que trouxeram as realidades de suas comunidades, destacando
dificuldades e desafios enfrentados durante a pandemia.

O cacique Ary abordou como a realidade da pandemia impactou na vida de seu


povo, na realização de rituais pelos pajés, no uso da tecnologia para comunicação e
conscientização das comunidades, nos cuidados para preservar a saúde e a vida dos/as
mais idosos/as, ressaltando a importância da espiritualidade de cada povo, destacando
a relevância, nesse momento, da manutenção da organização e mobilização das
lideranças indígenas na luta política por seus direitos. Falou de sua visão sobre a
necessidade de se encontrar um equilíbrio na relação entre os conhecimentos
tradicionais e a ciência não indígena, como saberes complementares entre si, dando
como exemplos, no combate à pandemia, o uso de plantas medicinais pela medicina
tradicional indígena e a expectativa pelas vacinas desenvolvidas pela medicina não
indígena. Também apresentou a sua perspectiva para o pós-pandemia, dizendo que
acredita que o novo vírus trouxe diversas lições, especialmente sobre o que cada um
faz com a sua vida, a relação com os outros e principalmente com a natureza, e acredita
que haverá muitas mudanças na forma como as pessoas enxergam essas questões,
entendendo que os conhecimentos e maneiras de viver, presentes nas culturas
indígenas, serão fundamentais na construção deste mundo do futuro.

O cacique Delmir trouxe a triste notícia da morte de seu vice cacique, em


decorrência de complicações causadas pelo novo Coronavírus, informando que
muitos/as indígenas de sua comunidade também foram contaminados/as, sendo que
ele próprio e a sua família ficaram doentes, e com o uso de práticas da cultura
tradicional se curaram. Referiu-se, em sua fala, à busca de seu povo por uma vida
autônoma, utilizando seus conhecimentos ancestrais e também os conhecimentos não
indígenas para o bem-estar da comunidade. Contou sobre os preconceitos que os/as
indígenas vivenciam quando visitam a cidade de Manaus. Também destacou a
importância dos/as estudantes indígenas nas universidades brasileiras, que trazem
conhecimentos diferentes para os seus povos. Ao final de sua fala recebeu as
condolências do cacique Ary, que reafirmou que os diferentes povos indígenas, mesmo
distantes geograficamente, estão sempre juntos, dividindo suas angústias e tentando se
ajudar mutuamente, como parentes.

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E para o encerramento da noite e do evento o artista indígena cantor e


compositor, mestre e doutorando em música pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA), Anderson Cleomar, do povo Pankararu, de Pernambuco, que apresentou um
repertório com composições suas, no seu entendimento da música como forma de
ativismo, com letras de inspiração em temáticas indígenas que abordaram questões da
Decolonialidade, da cultura ancestral, da relação com a natureza e do Bem-Viver, que
receberam diversos elogios, comentários e agradecimentos dos/as participantes,
através do chat.

Imagem 2. Alguns momentos da I Semana do Estudante Indígena.

Fonte: Acervo do CCI (2020).

Na análise dessas nossas memórias do evento, após debatermos sobre as unidades


de significado presentes em nossa narrativa, identificamos: forma de demarcar o
território da presença indígena dentro da universidade; um espaço conquistado para

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afirmação da identidade indígena, busca de uma maior valorização das aprendizagens


interculturais, dos conhecimentos, cosmovisões e epistemologias indígenas,
combatendo o preconceito contra as culturas indígenas e os/as estudantes indígenas;
espaço para diálogo entre conhecimentos indígenas e não indígenas; promoção do
discurso decolonial e intercultural pelas vozes indígenas na diversidade de povos ali
representados; percepção das diferenças nas visões e realidades de cada povo,
evidenciadas pela forma como se relacionaram com a pandemia, e ao mesmo tempo a
unidade de serem indígenas, entendendo-se todos/as como parentes; referência a
perspectivas e a modos de vida com outra relação entre as pessoas e a natureza e a
noção de que isso servirá como base para a construção do futuro indígena e não
indígena. Isso nos remeteu às categorias: Resistência dos Conhecimentos, Cosmovisões
e Epistemologias Indígenas; Decolonialidade; Interculturalidade; Presença Indígena;
Bem-Viver; Diversidade/Unidade da Identidade Indígena.

Nossas considerações
Diante de um cenário pandêmico mundial, em que sobressaem-se as contradições
e a insustentabilidade do modelo civilizatório sustentado pela Modernidade e pela
Colonialidade, cabe aqueles/as que resistiram e resistem historicamente a esse
modelo, superando genocídios e epistemicídios, os povos indígenas, continuarem
reafirmando as suas identidades, os seus conhecimentos e os seus modos de vida, frutos
de outras cosmovisões e epistemologias, que não dicotomizam os seres humanos e a
natureza, pautando-se por relações diferentes entre si e com os demais seres vivos e
partindo de uma percepção mais ampla que não limita o saber à racionalidade e a ação
à utilidade, que remete às perspectivas do Bem-Viver.

Essa resistência também é realizada, quando, diante dos desafios e dificuldades


dessa mesma pandemia, tivemos que nos adaptar, enquanto estudantes indígenas e
pesquisador, a um formato muito diferente do que estávamos acostumados/as, e nos
lançarmos a promoção de uma insurgência, ao propormos uma Semana dos Estudantes
Indígenas totalmente remota, com o uso de tecnologias de comunicação, abarcando
palestrantes indígenas e participantes indígenas e não indígenas de todo o território
nacional, que acompanharam, de suas aldeias, cidades, universidades, 3 noites de
debates permeados pela Interculturalidade e pela Decolonialidade, demonstrando-se,
o espaço virtual, como um promissor campo para as lutas em busca da ampliação da
presença indígena.

Evento esse em que foram abordados tópicos de várias questões direcionadas para
a temática indígena. Reflexões, críticas, soluções, metas, objetivos para o

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fortalecimento da presença indígena na universidade e nas sociedades indígenas e não


indígenas. Ali foi promovida a troca de conhecimentos, experiências de estudantes
indígenas, graduandos/as e egressos/as e também não indígenas, em que procuramos
desmistificar a imagem preconceituosa, que infelizmente ainda se tem do universitário
indígena, dentro dos espaços acadêmicos. Foi um espaço aberto, abordando temas
diversos, sobre política, identidade, língua materna, questões de gênero, saúde e
educação da diversidade dos povos indígenas ali presentes. Também foi um momento
de muitas reflexões entre os/as estudantes indígenas, trazendo suas experiências,
desafios, dificuldades e expectativas, temas sobre a questão da permanência, saúde
mental, da formação dos/as estudantes indígenas, em tempos de pandemia.

Nossa percepção é que a SEI, enquanto ação de educação popular anual do


coletivo CCI, é um dos espaços conquistados na UFSCar que mais oferece oportunidade
dos/as estudantes indígenas manifestarem e conhecerem mutuamente as suas
culturas e compartilharem suas vivências dentro do convívio universitário, o que
contribui para sua reafirmação pessoal de identidade indígena, sua permanência e
também para a afirmação da presença indígena nos campi e para a sociedade.

Assim, como propõe a Ecologia dos Saberes, a SEI propicia o diálogo entre os
conhecimentos acadêmicos e os conhecimentos tradicionais, possibilitando o
fortalecimento de ambos na formação do/a estudante indígena. O diálogo entre esses
conhecimentos é fundamental para os/as profissionais indígenas egressos da UFSCar,
que atuarão em suas respectivas comunidades, assim como contribui para a formação
de todos/as os/as profissionais formados/as pela Universidade na medida que os/as
educa para reconhecerem e respeitarem a diversidade cultural brasileira a partir da
presença dos/as estudantes indígenas na universidade.

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A narrativa como memória de experiências
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A narrativa como memória de experiências


Aline Bernar*

Eu sempre trabalhei na roça e chegava a chorar quando via alguém lendo e


escrevendo (DONA MARIA DE FÁTIMA).

A citação que trago para abrir este artigo é uma frase de uma das mulheres a quem
a escolarização foi negada com cuja narrativa dialogo na minha pesquisa doutoral.
Trata-se de uma senhora de quase 80 anos que passou a vida toda guardando o desejo
de aprender a ler e a escrever, tendo conseguido realizá-lo só na terceira idade.

Tratei do tema da alfabetização na terceira idade em minha dissertação de


mestrado em Educação. Entretanto, o tema não ficou ali restrito, tendo se desdobrado
em outros modos de ver e de narrar. Por essa razão, abro o texto com um trecho de
uma narrativa de memória de Dona Maria de Fátima.

A narrativa dessa senhora traz a recordação de um episódio do passado, mas que


não permaneceu no passado. Esse episódio, que a acompanhou durante toda uma vida,
move-me a pensar melhor o que se chama o tempo da narrativa. Que tempo seria esse
que extrapola os liames do próprio discurso? Que tempo mais curioso esse que
pertence ao passado, mas que não fica por lá? Tempo que insiste em seguir, como se
não tivesse limite ou não pertencesse a um determinado evento localizado no passado.

Os teóricos da literatura fazem uma distinção que julgam ser importante no


exercício de análise literária: o tempo cronológico versus o tempo da narrativa. O tempo
cronológico é o tempo do relógio, da linearidade, dos fatos ordenados, do início, meio
e fim nas devidas posições. Já o tempo da narrativa dispõe de outras maneiras de ser
notado. Esse tempo especial pode ter seu início pelo meio (in media res) ou pelo fim (in
ultima res). Isso é possível porque um narrador pode começar a sua história de qualquer
ponto da narrativa, do meio da história ou do fim da história, voltando depois ao início,
ao fazer um grande flashback.

Ao falar disso, é importante trazer Walter Benjamim (1992) cuja falta de


ordenamento não se observa apenas nas suas reminiscências, mas certamente também

*
Doutora e Mestre em Educação pela UFF - Universidade Federal Fluminense - Linha de Pesquisa:
Estudos do Cotidiano da Educação Popular. Licenciada em Letras - Português/Inglês pela UERJ/FFP.
E-mail: alinepbernar@gmail.com

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A narrativa como memória de experiências
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na disposição dos livros de sua biblioteca, de acordo com seu amigo íntimo, Scholem,
e, principalmente, em seus textos de caráter mosaico, segundo Hannah Arendt (1991),
na obra “Homens em Tempos Sombrios”. O que o inspirava, conforme anotações e
cartas enviadas aos seus amigos mais próximos, era o movimento surrealista, capaz de
ver riquezas na efemeridade, naquilo que está desacreditado ou desiludido. Outra
questão importante é trazida em “Rua de Sentido Único e infância em Berlim por volta
de 1900”, publicada por Ernest Rowolthlt, em Berlim, em forma de folheto. Segundo o
próprio Benjamin (1992), essa obra pretendia ser um tipo de livro diferente dos
habituais. A obra em questão traz vários pequenos textos fragmentados, sem pretensão
cronológica e organizados sem uma ordem preestabelecida. Feita de pequenos textos,
exibiria o que se costumava reconhecer no estilo benjaminiano: seu gosto pelas
miniaturas. Mas pergunto-me: o que esse gosto particular de miniaturizar de Walter
Benjamin teria em relação aos apontamentos sobre memórias ou reminiscências
(trazidas da memória em esquecimento)? Quando busco os possíveis significados desse
verbo, encontro: miniaturizar é reduzir, é tornar portátil ou útil, mas também pode
significar “ocultar”. E, quando ligo os significados à vida e obra de Benjamin, indago que
outra maneira – senão em miniaturas – seria mais adequada para um refugiado,
estrangeiro ou viajante carregar seus pertences, incluindo suas memórias? O gosto pelo
que é pequeno (em termos espaciais) pode fazer lembrar o mundo infantil, mas também
me faz pensar no que ele mesmo chamou de “mundo pequeno”, quando nomeou a Paris
dos surrealistas.

Segundo Sontag (1992), pouco antes de sua morte, Benjamin planejava um ensaio
sobre a miniaturação. Ao que tudo indicava, seria uma continuação de um velho plano
de escrever sobre “A Nova Melusina”, conto de Goethe, que tem por tema a história de
um homem que se enamora por uma mulher que, na realidade, é uma pessoa diminuta,
mas a quem, temporariamente, foi concedido o tamanho normal: sem o saber, o homem
transporta uma caixa que contém o reino em miniatura de que ela é princesa. No conto
de Goethe, o mundo está reduzido a algo que bem poderia ser colecionável, um objeto,
uma caixa que simboliza o mundo (em miniatura) da tal princesa.

Quando penso um mundo reduzido, penso no livro como espaço diegético para
personagens e narradores (do gênero narrativo escrito), mas penso também no espaço
deixado para que o leitor possa adentrar e ocupar seu lugar com a sua interpretação,
que é sempre única ou singular. Quando Benjamin pensa no formato da obra “Rua de
Sentido Único e infância em Berlim por volta de 1900” não pretende, ainda segundo
Sontag (1992), que esta seja apenas um livro com vários fragmentos do mundo, mas sim
um “pequeno mundo”. Observo que a expressão feita com o adjetivo “pequeno” antes
do substantivo “mundo”, adquire o contexto desejado pelo autor, pois não inferioriza o

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A narrativa como memória de experiências
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“mundo”, apenas diz que é circunscrito, reduzido e, até se quiser, especial. Entretanto,
se o adjetivo “pequeno” viesse após o substantivo “mundo”, a expressão que utiliza as
mesmas palavras ganha outra conotação, podendo ser associada ao que se configura
como menor ou mesquinho.

Para Walter Benjamin (1992), o livro era uma miniaturação do mundo que é
habitado1 pelo leitor. E é só dessa forma, entrando no livro (no que chama de “pequeno
mundo”), que é possível encontrar significado nos acontecimentos do passado,
acontecimentos que, na sua concepção, são “eufemisticamente conhecidos por
experiência” (Idem, p. 24).

Aqui vejo surgir a complexa, mas não menos interessante, questão da experiência2.
Mas, antes de percorrer os caminhos de qualquer outra análise, tento pensar, junto com
a frase de Benjamin (1992), nas narrativas com as quais trabalho em minha tese. São
narrativas orais que trazem acontecimentos do passado, que voltam ao período da
infância em que o desejo pela escolarização tinha força, mas não uma força suficiente
para vencer todos os interditos impostos às mulheres. Entretanto, ao tocar na
possibilidade de encontrar significado nos acontecimentos do passado, Benjamin os
define como um “eufemismo” que se conhece com o nome de experiência.

Para tentar entender melhor o que Benjamin (1992) escreveu, penso antes na figura
de linguagem usada por ele para definir o termo experiência. A figura eufemismo nada
mais é que a tentativa de minimizar ou suavizar um termo, situação ou expressão que
possa, talvez, chocar o interlocutor. Experiência seria, então, para Benjamin (1992), a
suavização de algo equivalente a “acontecimentos do passado”. Talvez tenha sido assim
definido por ser um conceito impreciso ou ainda porque a palavra experiência possa
também apontar para algo associado à experimentação, que pode mudar de acordo com
o pensamento de cada autor. São hipóteses apenas, mas, a partir delas, caminho para
uma questão que, neste momento, coloca-se diante de mim: Benjamin (1992) diz que a
experiência é um eufemismo, uma suavização para “acontecimentos passados”. Pode
ser que o autor tenha usado a palavra experiência por ser mais abrangente e menos
específica do que “acontecimentos”; mas preciso de mais, preciso relacionar
experiência com a narrativa, já que esta se situa no cerne da minha pesquisa e que
também pode conter acontecimentos passados. Penso em mais uma hipótese. Embora
apareça em forma de pergunta, é apenas mais uma tentativa de entender um conceito

1
Penso no texto de Martin Heidegger: “Poeticamente o homem habita”, mesmo tendo lido, na introdução
de Susan Sontag para a obra “Rua de Sentido Único e infância em Berlim por volta de 1900”, que Walter
Benjamin desprezava Heidegger.
2
Faço opção por grifar o conceito em itálico para distingui-lo da palavra.

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A narrativa como memória de experiências
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tão complexo: seria, a narrativa, o local da experiência por excelência, assim como o
poema é o local do encontro?

Assim como Benjamin (1992) e outros teóricos problematizam o conceito de


experiência e, consequentemente, a escassez do trabalho narrativo, Jacques Derrida
(2003) também pensa e faz pensar no poema como local do encontro com o outro. Se
eu puder seguir esse raciocínio, posso pensar a narrativa como local da experiência e
também como local do encontro do narrador consigo mesmo. Assim como um poeta
que, segundo Paul Celan (2001), deixa parte de si no papel em que escreve seu poema e
se lança ao desconhecido, a um encontro com o Outro, a um possível e provável leitor,
a narrativa também parte, também vai a caminho, vai ao encontro, provavelmente, de
um “si mesmo” transfigurado pelo papel do Outro.

O poético, digamos, seria aquilo que desejas aprender, mas do outro, graças ao
outro e sob ditado, de cor. Não é isso já o poema, quando uma garantia é dada,
um evento que vem, no momento em que a travessia da estrada chamada
tradução se torna tão improvável quanto um acidente, contudo intensamente
sonhada, solicitada nesse ponto em que o que promete deixa sempre a desejar?
(DERRIDA, 2003, p. 6-7).

Derrida também discorre sobre a questão da experiência, dizendo ser ela outra
palavra para viagem, ou uma “incursão aleatória num trajeto”.

Assinala que o poema é um evento, inesperado, mas desejado, que se expõe e se


protege. Ele cria a metáfora do ouriço enrolado em bola na beira de uma estrada que,
ao pressentir o perigo, tenta se proteger, mas seus espinhos eriçados o expõem ao
acidente: ele cega-se quando enrolado em bola, voltado para o Outro e para si ao
mesmo tempo. Assim, protegendo-se do Outro fora dele, ele também acertaria o Outro
dentro dele, tão desconhecido e estrangeiro como o primeiro. Assim,

[...] o poema pode enrolar-se em bola, mas fá-lo ainda para voltar os seus signos
agudos para fora. Ele pode, sem dúvida, refletir a língua ou dizer a poesia, mas
nunca se refere a si mesmo, nunca se move por si como estes engenhos
portadores da morte. A sua ocorrência interrompe sempre, ou desvia, o saber
absoluto, o ser junto de si na autotelia. Este demônio do coração jamais se
congrega, antes se perde (delírio ou mania), expõem-se à sorte, preferiria
deixar-se despedaçar por aquilo que sobre ele avança (DERRIDA, 2003, p. 10).

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Para entender melhor o que vem a ser o conceito de experiência e ver se ela ocorre
nas narrativas trabalhadas, parto das palavras de Walter Benjamin (1992), mas encontro
outros pensadores e teóricos pelo caminho que também oferecem suas concepções à
análise. O professor de Filosofia da Universidade de Verona, Giorgio Agamben (2014),
por exemplo, ao pensar sobre a pobreza em experiência comunicável, trazida por
Walter Benjamin (1992), reflete sobre sua destruição:

Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que


ela não é mais algo que ainda nos seja dado a fazer. Pois, assim como foi privado
de sua biografia, o homem contemporâneo foi expropriado de sua experiência:
aliás, a incapacidade de fazer e transmitir experiências talvez seja um dos poucos
dados certos de que disponha sobre si mesmo (AGAMBEN, 2014, p. 21).

Agamben (2014), assim como Benjamin (1992), acredita na ausência de capacidade


narrativa. Para Benjamin, a guerra foi uma responsável muito importante, pois os
homens voltavam emudecidos. Contudo, para Agamben, o homem moderno, muitas das
vezes, não deseja ter a experiência e foge dela. Dessa forma, não precisa de uma
catástrofe como uma guerra, porque o homem estaria, segundo ele, “expropriado de
sua experiência”. Os eventos nunca se tornariam experiências porque tudo é vivido de
forma efêmera e superficial, quase nada hoje teria elementos traduzíveis em
experiência. Para ele, os gêneros do discurso, a máxima e o provérbio, por exemplo,
praticamente não existem mais. Agora é a vez de o slogan mostrar que ali não é o lugar
a procurar pela experiência.

A princípio, ao estudar o conceito de experiência para a tese, pensava que ele se


relacionasse diretamente ao aspecto narrativo das histórias de vida com as quais eu
trabalhava. Não necessariamente na volta ao passado para recordar os fatos vividos,
mas na confecção da própria história com as reminiscências de muitos sentimentos e
emoções misturadas, com os silêncios, com os espaços vazios e com as criações
improvisadas na hora ou decoradas. Assim, achava eu ter exemplos do conceito de
experiência com as narrativas orais outrora produzidas pelas mulheres diante de mim.
Mesmo no papel, esperava encontrar, nas palavras e nas frases, mas também nas
entrelinhas, aquilo que não é visível no papel, mas que se experimenta ao criar e ao
ouvir.

Entretanto, ao reler a leitura de Agamben (2014) sobre a obra de Benjamin, percebi


que o que Agamben chama de “expropriação da experiência” já estava implícito no
projeto da ciência moderna. Esta nasce desconfiada em relação à experiência e, ao
enumerar os pensadores, suas teses e projetos, é notório que, quando se fala em ciência

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A narrativa como memória de experiências
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moderna, não se fala de confiança, mas de dúvida. Se a experiência ocorresse


espontaneamente, ela seria chamada de “acaso”, se fosse buscada, ela se chamaria de
“experimento”.

Neste último estava o melhor meio de comprovação científica quantitativo. Mas o


mais grave é que o experimento retira a experiência de dentro do homem e a lança aos
instrumentos e números. O experimento é frio, independe de sentimentos e emoções
e busca uma certeza, sendo esta incompatível, por sua natureza, com a busca pela
certeza e pela verdade. Citado por Agamben, Montaigne, que definia a matéria da
experiência pouco voltada à ciência, teria dito que: “sobre a experiência não é possível
fundar nenhum juízo constante (MONTAIGNE apud AGAMBEN, 2014, p. 26).

Ao pensar no conhecimento separado da experiência, vejo que, em seus escritos,


Agamben recorre a Aristóteles, Montaigne e Platão e pensa junto deles para dizer que
ambos sempre foram assim:

O conhecimento não possuía nem mesmo um sujeito no sentido moderno de um


“ego”, mas, ao contrário, era o próprio indivíduo o “sub-jectum” no qual o
intelecto agente, único e separado, realizava o conhecimento (AGAMBEN, 2014,
p. 26).

O conceito de experiência apresenta diversas leituras e interpretações. Assim, pela


própria disputa entre os autores, inclusive os seguidores do pensamento aristotélico,
não se mostram simples tais interpretações. Isso porque a separação do conhecimento
da experiência vai bem mais além. Tendo o intelecto representado como inteligência
(nous), e a experiência representada pela alma (psyché), diziam, desde a era medieval,
que o intelecto não era uma faculdade da alma. Embora se encontrassem totalmente
divorciados, segundo o pensamento de Aristóteles, eles se comunicariam apenas para
realizar o conhecimento. Nesse sentido, a experiência chamada de tradicional
considera o limite que separa os dois lados.

O inteligível e o sensível, o humano e o divino, o uno e o múltiplo apontavam já o


saber humano como um pátheimáthos, que é um aprender que se dá somente através
ou após um tipo de sofrimento. Julgo essa consideração importante, se puder
considerar que o aprender que passa pela escola ou mesmo em outros locais - sem
generalizar nem particularizar nenhum lado -, vem, sim, carregado de sofrimento. A
vida escolar é recheada de ritos pelos quais os estudantes precisam passar, contudo,
nem todos esses rituais escolares valorizam ou engrandecem o estudante. Tais rituais
podem mais ridicularizar, expor, silenciar etc. do que o contrário.

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Esses rituais que estou chamando de escolares, na verdade, são da mesma


natureza que os outros rituais de passagem que todas as culturas possuem. São de
passagem porque é como se o estudante passasse por um túnel mágico que faria aquele
que entra no ritual sair como um ser diferente. A criança do primeiro dia de aula sairá
da escola como um estudante de fato. A criança que, ao chegar ao final do 1º ano, é
agora uma criança que sabe ler, isto é, alfabetizada. Sei que nem sempre sabe de fato
ler, mas o ritual da antiga festa da “entrega do livro” diz que sim, que ela sabe, da mesma
forma como o doutorando que espera sair de sua defesa de tese como um doutor.
Assim,

[...] em sua busca pela certeza, a ciência moderna abole esta separação e faz da
experiência o lugar – o ‘método’, isto é, o caminho – do conhecimento. Mas, para
fazer isto, deve proceder a uma refundição da experiência e a uma reforma da
inteligência, desapropriando-as primeiramente de seus sujeitos e colocando em
seu lugar um único novo sujeito (AGAMBEN, 2014, p. 28).

O que Agamben está dizendo é que experiência e ciência, que até então se referiam
a dois sujeitos distintos, agora se reúnem em um sujeito único, dando origem ao ego
cogito cartesiano, ou seja, à consciência. O sujeito que une experiência (nous) e
conhecimento (psyché) é apresentado hoje como uma substância (eu substantivado),
mas diferente da substância material, a quem é atribuído tudo que caracteriza a
psicologia tradicional e, inclusivamente, a sensação.

Se a finalidade da experiência era conduzir o homem à maturidade é porque, antes,


ela tinha um caráter finito, algo que se podia ter e fazer. Entretanto, quando essa
experiência está referida ao sujeito da ciência, ela move-se ao contrário e adquire um
caráter infinito, algo que se pode fazer, mas nunca ter. Significa que o velho sujeito da
experiência não existe mais. Em seu lugar, existem dois sujeitos: o do conhecimento,
que pode apenas fazer experiências, e o sujeito da experiência, que pode tê-la, sem
jamais fazê-la. Para Agamben (2014), os personagens de Cervantes, Dom Quixote e
Sancho Pança personificariam os dois tipos de sujeito: o do conhecimento e o da
experiência, respectivamente. “É a experiência, que temos oportunidade de adquirir
quase diariamente, que nos determina a distância e o ângulo de visão. Ela diz-nos que
a arte de narrar está em extinção” (BENJAMIN, 1992, p. 27-28).

Walter Benjamin, no texto “O Narrador” (1992), vai explicar que a arte de narrar
está em extinção porque as pessoas perderam sua capacidade de trocar experiências.
Explica ainda que ele não está falando de qualquer troca de experiência, mas da
experiência que “anda de boca em boca”, fonte na qual os narradores da tradição oral

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vão beber. A essência da narrativa, para Benjamin (1992), é a utilitária, moralizante, de


dar conselhos ou orientações aos seus ouvintes. O narrador da tradição oral, ao contar
suas histórias, teria nelas sempre um ensinamento a dividir. Hoje, porém, esse tipo de
prática que comunica, aconselha ou troca experiências está morrendo. A explicação
que Benjamin oferece é que, para pedir um conselho, em seu sentido mais amplo, é
preciso, antes de qualquer coisa, saber narrar a sua própria história. Ao solicitar uma
orientação, instrução ou conselho, é preciso que o narrador saiba contextualizar a sua
narrativa, expor abertamente a sua situação crítica para, aí sim, abrir-se ao recebimento
do que configura o conselho: a sabedoria. “O narrador vai colher aquilo que narra à
experiência, seja própria ou relatada. E transforma-se por vezes em experiência
daqueles que ouvem sua história” (BENJAMIN, 1992, p. 32).

Essa sabedoria de que Benjamin (1992) fala está ligada à tradição oral, não aos livros
escritos. A tradição oral, bem como seus narradores, ao dividir suas histórias, trazia, de
forma inerente, o compartilhamento de experiências individuais ou coletivas. O próprio
momento da narração, que configura um momento de criação, está também
relacionado a essa troca com os demais, com os ouvintes que dividem aquele espaço e
tempo da narrativa com outros. No momento da narrativa, cada um, à sua maneira,
levará consigo a experiência ou sabedoria compartilhada que mais se aproximar das
suas necessidades e com elas terá oportunidade de recontar, em outro momento e
local, a “mesma” história que nunca será a mesma.

Sendo atemporal, a narrativa não perde nunca sua atualidade e pode perpassar
várias gerações diferentes, trazendo ainda sua contribuição para as dúvidas ou mazelas
inerentes à essência do sujeito. Essa narrativa, chamada de artesanal por Benjamin
(1992), é uma espécie de mergulho na experiência do narrador que a vive como ofício.
Esse ofício não é apenas o dom de narrar, mas também de ouvir e de recontar. Nas
rodas de contações de histórias que temos notícia da tradição oral, o ouvinte estava
com as mãos ocupadas, tecendo, costurando ou mesmo limpando as ferramentas de
trabalho para o dia seguinte. Assim, esse “esquecer de si”, ocupado com as mãos, fazia
do dom de ouvir o dom de narrar.

Entretanto, depois de vasculhar sobre a noção de experiência, sem deixar de


pensar nas narrativas que configuram o motivo de estudo de minha tese, vou ao
encontro de mulheres, musas narradoras de suas próprias histórias. Como analfabetas,
só podiam contar com a memória. Como crianças pobres e impedidas de escolarização,
só encontravam prazer com autonomia na fantasia ou imaginação.

Segundo Agamben (2014), a função mediadora da imaginação na época medieval


traz uma homologia entre fantasia e experiência. Depois, com o nascimento da ciência

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moderna, a função da fantasia é assumida pelo novo sujeito do conhecimento: o ego


cogito. Entretanto, cogitare significou, antes, o discurso da fantasia que o ato da
inteligência. Dessa forma, por ser a fantasia, no passado, uma coincidência entre
subjetivo e objetivo, ela tinha lugar. Mas, quando passou a configurar o subjetivo, o
mágico, a alienação, foi expropriada, excluída da experiência autêntica, era,
praticamente, um outro nome para a ciência que surgia.

Ao pensar na experiência como fantasia, penso também em “nomes” ou termos que


estão quase sempre associados às experiências narrativas, orais ou escritas. Se
Mnemosine era a deusa da memória, a Reminiscência é a musa da épica, pois transmite
os acontecimentos de geração em geração. Assim, a Recordação vem como musa do
romance e a Memória, musa da narrativa. Benjamin (1992) menciona essas musas épicas
que a figura do narrador personifica. Dessa forma, trago para a roda uma personificação
pensada por mim: se o autor fala que, em cada narrador, habita uma Xehrazade, então
é exatamente essa figura que as mulheres cujas narrativas dividiram comigo
personificam.

A figura da personagem Xehrazade é conhecida por narrar uma longa história para
adiar a sua morte. Com as suas narrativas, as mulheres desta pesquisa também adiavam
não a morte física, literal, mas, sobretudo, a morte de um projeto, de um sonho de um
objetivo de vida: a alfabetização. Narrando suas histórias de uma infância impedida de
escolarização, elas mantinham vivo seu desejo e acendiam em suas memórias a faísca
que renovava sempre o fogo da sua realização. “O adulto, ao narrar uma experiência,
alivia seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar
para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início” (BENJAMIN, 2009, p. 101).

É vivendo que o sujeito desenha os contornos de sua história pessoal. Mas essa
história pessoal ou a narrativa que se constrói em uma vida não se constroem sozinhas.
Em uma dada história pessoal, habitam outras tantas histórias, ouvidas, lidas ou
vivenciadas. Nas histórias de vida, não existe a voz de um único sujeito, pois, assim como
as histórias que se cruzam e se multiplicam em muitas outras, as vozes também se
encontram e se embaralham em um coro bilateral que confunde, por exemplo, a noção
de autoria.

O que é de fato meu e o que pertence ao Outro? Venho aprendendo a pensar sobre
essas questões. Venho aprendendo também que, em algumas situações, é difícil
discernir, pois o sujeito, em sua constituição, está indiferenciado com os muitos outros
que existem ou existiram em sua vida.

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É justamente por esse inevitável embaralhamento de histórias de vida e de vozes


que opto, em minha tese, pela pesquisa-narrativa como metodologia mais apropriada
para trabalhar as narrativas trazidas nas falas de mulheres idosas que retornam pela
memória ao período infantil e contam sobre a sua infância sem escolarização. Sei que a
metodologia consiste no caminho que se opta por percorrer, mas que, como qualquer
outro caminho, demanda que eu saiba de onde parto e para aonde pretendo ir. Parto de
narrativas orais transcritas, colhidas antes da realização da pesquisa doutoral, mas que
possuem elementos que não puderam ser trabalhados na dissertação de mestrado. Vou
das narrativas do presente para “acontecimentos passados” ou experiências, segundo
Benjamin (1992), vividas no passado. Entretanto, a construção dessas narrativas, que se
deu no presente, recupera indícios ou vagas lembranças do passado, mas não traz o
período passado para o presente, ou melhor, não traz a infância dessas mulheres para
seu momento presente, a velhice.

O passado de qualquer sujeito fica sempre no passado. Este não sai de seu lugar e
invade o presente conforme se pensa quando se fala de memórias ou lembranças. As
pessoas costumam romantizar e dizer que, ao usarem a memória, revivem os fatos
passados tal qual eles ocorreram há anos, com o que, de fato, preciso discordar, vez que
a lembrança desses fatos nunca ocorre da mesma maneira e seu produto não pode ser
verossímil nem mesmo para aquele que conta. A cada oportunidade que se tem de
relembrar um evento, de recontar uma situação, é possível que alguns detalhes sejam
omitidos ou acrescidos. Penso em irmãos criados juntos que apresentam registros de
memórias totalmente diferentes da mesma infância. Seus pontos de vista, suas
percepções e emoções são apenas alguns dos fatores que contribuem para que essa
diferença exista. Quem de fato está certo? Eles nunca saberão.

Contudo, penso também nas vezes em que o sujeito conta e reconta a sua própria
história de vida. A cada vez uma nova história se apresenta, um novo contexto ou
emoção se configura. Não estou simplesmente dizendo que o sujeito burla suas
lembranças propositalmente, estou pensando nas vezes em que se acredita seriamente
na veracidade dos fatos independentemente da opinião alheia e ainda quando nem se
percebe a alteração dos detalhes.

Por que isso acontece? Isso acontece porque a memória não é rígida, não é nítida,
não é linear, não é cronológica ou racional. Pelo contrário, seus aspectos mais
recorrentes me levam a crer que esse material, tão dúbio quanto efêmero, não pode ser
manipulado, ele é livre para ir e vir de onde estivermos para qualquer lugar do passado.

Nas narrativas trabalhadas ainda no mestrado, notei que as mulheres que ali
contam parte de sua história de vida, vão, inevitavelmente, de onde estão, da terceira

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A narrativa como memória de experiências
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idade, para uma fase específica do passado: a infância ligada à negação da escolarização.
Elas não apontam importância nem comentam com tanta energia sobre nenhum outro
acontecimento ou fase da infância, apenas sobre a fase de uma possível escolarização
que não ocorreu.

Foi assim que me deparei no mestrado com a pesquisa (com) e com a conversa
como uma metodologia possível e válida não apenas dentro da Educação. Mas,
diferentemente do que pensava, desta vez, não poderia trabalhar com nenhuma das
duas. Assim, nas aulas de Memória e Narrativa, fui percebendo que precisava de outra
metodologia para realizar a pesquisa a que me propunha.

Peguei tudo o que tinha e voltei a analisar. De fato, eu não estava mais em campo,
não teria encontros quinzenais com as mulheres idosas com as quais pesquisei. Dessa
forma, eu não mais poderia pesquisar (com) elas. O que tinha eram recortes das
conversas em que a questão da infância sem escola saltava aos olhos. Precisava definir
o que me levou novamente a buscar essas narrativas, definir melhor o meu problema
de pesquisa, bem como a questão que norteava a minha reflexão, além de fazer uma
revisão da literatura a ser utilizada.

De porte do que tinha para pesquisar, fui conhecer uma nova metodologia de
pesquisa: a pesquisa narrativa. Precisava começar pelas narrativas que iriam apontar os
caminhos para os quais eu levaria os teóricos para com eles dialogar. Contudo, não
pretendia fazer um trabalho de análise do discurso. Eu queria, na verdade, voltar a
encontrar com aquelas mulheres idosas, nem que fosse dentro de suas narrativas ou no
caminho trilhado por suas memórias. Então, busquei conhecer mais da metodologia a
ser empregada e, em um dos textos estudados, encontrei as vozes de Guilherme Prado
e Liana Serodio:

A pesquisa narrativa, para ser o que entendemos como metodologia narrativa de


pesquisa em Educação, exige que o pesquisador se coloque como participante
da pesquisa, de maneira subjetiva, implicada e nada neutra, com seus atos
responsivos ao que vier, inclusive conflitos (PRADO; SERODIO, 2015, p. 101).

Assim, fui estudando e percebendo que a pesquisa narrativa se realiza em vários


campos do conhecimento e pude verificar que a potência da narrativa como produtora
de saberes estava sendo trabalhada pelo mundo afora. Então, decidi que partiria das
narrativas de que dispunha para trabalhar as questões que ainda ecoavam dentro de
mim. Assim, pude compreender que não precisaria fazer propriamente uma análise do
discurso, como se faz na área de Linguística, pois existia a possibilidade de fazer “a

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A narrativa como memória de experiências
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análise narrativas das narrativas”, ou seja, “a produção de uma narrativa em que as


narrativas depois de analisadas possam se conformar numa certa realidade narrativa”
(PRADO; SERODIO, 2015, p. 105).

Referências
AGAMBEN, G. Infância e História – Destruição da experiência e origem da história. Tradução:
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios. Tradução: Ana Luísa Faria. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

BENJAMIN, W. Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900. Tradução: Isabel
Almerinda de Sousa. Lisboa: Relógio d’ Água, 1992.

BENJAMIN, W. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução: Maria Luz Moita. Lisboa: Relógio
d’Água, 1992.

BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o Brinquedo e a Educação. Tradução: Marcus Vinicius


Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2009.

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II – Rua de Mão Única. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Brasiliense, 2000.

CELAN, P. O Meridiano e Outros textos. Lisboa: Cotovia, 2001.

DERRIDA, J. Che cos’ èla poesia? Tradução: Osvaldo Manuel Silvestre. Coimbra: Angelus Novus Editora,
2003.

HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.

PRADO, G. do V. T.; SERODIO, L. Metodologia Narrativa de Pesquisa em Educação na Perspectiva do


Gênero Discursivo Bakhtiniano. In: PRADO, G., SERODIO, L., PROENÇA, H.; RODRIGUES, N. (Orgs.)
Metodologia Narrativa de Pesquisa em Educação – uma perspectiva bakhtiniana. São Carlos: Pedro &
João editores, 2015.

SONTAG, S. “Sob o signo de Saturno”. In: BENJAMIN, W. Rua de Sentido Único e Infância em Berlim
por volta de 1900. Tradução: Isabel Almerinda de Sousa. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.

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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
Cobras
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O renascer cultural como expressão da


educação que brota do seio da organização
social Kaingang da Terra Indígena Rio das
Cobras
Nadia Teresinha da Mota Franco*
Viviane Kellen Vygte Barão**
Elizandra Fygsanh Freitas ***

Introdução
O exercício das manifestações culturais é protegido pela Constituição Federal do
Brasil e por textos internacionais de defesa dos direitos dos indígenas. Mas nem sempre
foi assim: até a promulgação do novo texto constitucional brasileiro, em 1988, o
entendimento legal era no sentido da assimilação, o que corresponde a dizer que os
indígenas deveriam ser assimilados pela sociedade hegemônica até desaparecerem.
Nesta linha de pensamento eles iriam minguar pouco a pouco até que não existissem
mais.

A Constituição Brasileira foi pioneira na América Latina em defender os direitos


dos indígenas. Como consequência do texto constitucional brasileiro a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação incluiu direitos aos indígenas. Depois da Constituição Brasileira

*
Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, especialista em Direito Civil e
Processual Civil, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professora da Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS) desde janeiro de 2011 e membro do Centro de Referência em Direitos Humanos
Marcelino Chiarello (CRDH-UFFS).
E-mail: nadiatmfranco@gmail.com
**
Licenciada em Educação do Campo-Ciências Sociais e Humanas pela UFFS, pós-graduanda em Gestão
Escolar Indígena pela Universidade Estadual de Maringá, mestranda em Agroecologia e Desenvolvimento
Rural Sustentável pela UFFS e coordenadora local do coletivo da juventude indígena Goj Ki Pyn.
E-mail: kellenvygte@gmail.com
***
Licenciada em Educação do Campo-Ciências Sociais e Humanas pela UFFS, pós-graduanda em Gestão
Escolar Indígena pela Universidade Estadual de Maringá, mestranda em Educação pela Universidade do
Centro-oeste do Paraná e coordenadora local do coletivo da juventude indígena Goj Ki Pyn.
E-mail: elizandrafyg@gmail.com

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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
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verificou-se importantes modificações nos textos constitucionais da Bolívia e do


Equador, dentre outros países. A Constituição da Bolívia, de 2009, contempla em 80 dos
411 artigos os interesses dos indígenas. O Equador reconheceu em âmbito
constitucional, em 2008, os direitos aos povos indígenas e à natureza.

O Brasil adotou relevantes instrumentos jurídicos internacionais que defendem o


ser e o existir dos povos indígenas. Dentre estes se destaca neste trabalho a Convenção
Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Declaração das Nações Unidas
sobre os direitos dos povos indígenas e a Declaração Americana sobre os direitos dos
povos indígenas. Todos contemplando o direito aos povos de ter uma cultura e língua
próprias, dentre outros direitos sociais e culturais.

Expõe-se sobre a etnogênese que explica a mutação constante das organizações


sociais indígenas e dos povos indígenas. Na esteira do fenômeno da perda da cultura se
apresenta a experiência dos jovens da Terra Indígena Rio das Cobras que compõem o
Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki Pyn e seu caráter pedagógico. Na sequência se
expõe o trabalho que desenvolvem dentro da comunidade pela revitalização dos
símbolos, rituais, cantos e danças tradicionais.

O respaldo jurídico para o fortalecimento da autonomia, identidade, cultura


e educação próprios para as organizações sociais indígenas
As organizações sociais indígenas se estabelecem a partir da história, da cultura,
das tradições e dos valores das comunidades. Tratam-se de unidades de poder que são
criadas dentro das comunidades indígenas e que refletem a hierarquização entre seus
membros, que definem como se deve processar a educação, a saúde, a segurança
interna e a forma de relação que se dará entre seus membros e os elementos exógenos
à comunidade, tais como como os agentes do Estado, organizações não
governamentais, igrejas, pesquisadores, turistas e outros.

O reconhecimento legal da organização social indígena se deu em 1988 através da


Constituição da República Federativa do Brasil, que no artigo 231 previu o
reconhecimento não somente à organização social, mas dos costumes, línguas, crenças
e tradições aos indígenas. Este reconhecimento de direitos de natureza imaterial veio
acompanhado, no mesmo artigo, de outros, como os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam. Tem-se que a partir deste marco legal os indígenas
passaram a ter o direito de serem indígenas.

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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
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Antes da Carta Magna de 1988 vigia no Brasil o entendimento pela assimilação, ou


seja, os indígenas seriam tais até que fossem integrados “[…] progressiva e
harmoniosamente, à comunhão nacional”, conforme disposição do artigo 1º, do Estatuto
do Índio (Lei 6001, de 19 de dezembro de 1973). Nesta linha de atuação o Estado
brasileiro tomava os indígenas por seres que deveriam ser tutelados e paulatinamente
preparados para se incorporar na cultura e na economia predominantes no Estado. As
políticas públicas seguiam essa diretriz. Claro que isso representava uma intervenção
estatal, legal e institucionalizada, que interferia fortemente no desenvolvimento
cultural e em todas as formas de desenvolvimento dos coletivos indígenas.

Não somente a Constituição revogou tacitamente os dispositivos desta lei, como


foram aprovados regramentos nacionais, e, adotados instrumentos legais
internacionais de envergadura que fortalecem a organização social indígena e os seus
componentes estruturantes internos. Tem-se que estes componentes são a fruição do
território, o uso da língua indígena, a autonomia política, o direito próprio, a cultura e
a educação indígena, dos quais se destaca neste trabalho os dois últimos.

O artigo 210 da Constituição Federal, em seu parágrafo 2º, determinou como


obrigação do Estado a ministração do ensino fundamental regular na língua materna e
a utilização de processos próprios de aprendizagem. Neste trabalho se trará a utilização
de processos próprios de aprendizagem, não institucionalizado, mas complementar ao
ensino formal, que é a oralidade dos ensinamentos feitos pelos anciãos. Para fortalecer
o exercício dos direitos culturais, o artigo 215 da Constituição prevê o seu pleno
exercício e o Estado se compromete a incentivar e difundir as suas manifestações.

Na esteira da Constituição de 1988 veio a Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional (Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996) corroborando o comando
constitucional no sentido de que os indígenas passaram a ter o direito de manter a sua
forma de viver e dentro desta a receber educação condizente com suas tradições e a
ter valorizada a transmissão oral do conhecimento tradicional. No artigo 78 desta lei
consta o direito ao ensino bilíngue e intercultural aos povos indígenas com o objetivo
de proporcionar a recuperação de suas memórias históricas e a reafirmação de suas
identidades étnicas.

Para estabelecer os programas de educação intercultural as comunidades


indígenas deverão ser ouvidas previamente à sua implantação, conforme o caput do
artigo 79. Estes programas, como refere o parágrafo 2º do mesmo artigo, devem
perseguir, dentre outros, o objetivo de “fortalecer as práticas socioculturais e a língua
materna de cada comunidade indígena”. Tal dispositivo é consoante a ideia de que são

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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
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os indígenas que melhor saberão o que lhes é conveniente e o que é consoante ao seu
modo de viver.

No âmbito dos textos internacionais tem-se a importante Convenção Nº 169 da


Organização Internacional do Trabalho. Este texto prevê a proteção à integridade dos
povos (art. 2º, item 1); a salvaguarda das instituições, dos bens e das culturas dos povos
indígenas (art. 4º, item 1); o resguardo, ao aplicar os dispositivos da Convenção, quanto
aos valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais dos próprios povos, bem
como das instituições desses povos (art. 5º, alíneas “a” e “b”); a proteção, ao aplicar as
regras da Convenção, às culturas e valores espirituais existentes na relação que os
povos têm com as terras que tradicionalmente ocupam.

Toma-se também para amparar o direito à revitalização da cultura dos indígenas


da Terra Indígena Rio das Cobras (TIRC) a Declaração das Nações Unidas sobre os
direitos dos povos indígenas, aprovada em 13 de setembro de 2007. Esta Declaração
enuncia os direitos à não assimilação forçada ou a destruição de sua cultura (art. 8, item
1); a praticar e revitalizar as tradições e costumes, assim como manter, proteger e
desenvolver as manifestações passadas, presentes e futuras de suas culturas nas formas
de desenhos, cerimônias, tecnologias, artes visuais e interpretativas e literaturas (art.
11, item 1); e, de determinar a sua própria identidade ou composição segundo os seus
costumes e tradições.

Traz-se, também, ratificando o legítimo direito à fortalecer a própria cultura, a


Declaração Americana sobre os direitos dos povos indígenas, aprovada em 15 de junho
de 2016. Destaca-se o direito à ter respeitado o caráter pluricultural e multilíngue dos
povos indígenas (art. II); à “[…] sua própria identidade e integridade cultural e a seu
patrimônio cultural, tangível e intangível, inclusive o histórico e ancestral, bem como à
proteção, preservação, manutenção e desenvolvimento desse patrimônio cultural […]”,
com vistas à transmissão para as futuras gerações (art. XIII, item 1).

Como se pôde ver, a organização social indígena, a sua cultura e as suas tradições
são reconhecidas pelos textos legais supra, e, apontam como obrigação dos Estados as
iniciativas neste sentido, assim como a apoiar as que surjam no interior das
comunidades indígenas.

A etnogênese e a dinâmica das mudanças nas organizações sociais


indígenas
Os indígenas continuam a sê-lo por mais que estejam acessando os recursos que
a tecnologia atual permite, tais como celulares, computadores e internet, pois essas

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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
Cobras
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ferramentas são usadas para fortalecer e registrar a sua cultura para as gerações do
futuro, para que no presente como no porvir, a sua identidade, os seus desafios e as
suas lutas sejam acompanhadas pelas próprias comunidades.

Na TIRC é corrente o uso destes recursos. Esta terra indígena é a maior do Estado
do Paraná e abrange parte dos municípios de Nova Laranjeiras e de Espigão Alto do
Iguaçu, contando com a extensão de 18.681 hectares e abrigando 1.143 famílias. Duas
etnias convivem nesse território, a Guarani e a Kaingang, estando a primeira, numa
região menor, mais a oeste da área, com cerca de 450 habitantes 1, e, a segunda com
2.225 habitantes (IBGE, 2010), ocupando o restante do território. As línguas Guarani
M’Byá e Kaingang estão bem preservadas, com quase a totalidade da população falante
nas línguas maternas.

Segundo Mota (2008, p. 25), um dos critérios para perceber a diversidade étnica
dos indígenas no território brasileiro é a diferença entre as suas línguas maternas, que
não são poucas. Pelo censo de 2010, há no Brasil 305 etnias e 274 línguas indígenas2. Há
que se destacar que o número de etnias e de línguas faladas no Brasil já foi muito maior.
Antes da chegada dos colonizadores, existiam cerca de 5 milhões de indígenas,
divididos em 1.400 povos e falando cerca de 1.200 línguas. No início do século XX,
especialmente durante o período de atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
muitos povos foram proibidos de falar a sua língua materna, dentre eles, os Kaingang.

Os Kaingang tiveram interferências em sua trajetória que fragilizaram o exercício


de suas práticas culturais e religiosas tradicionais. O uso continuado da língua tem
representado uma forma de resistência ao processo de colonização e de aculturação
aos modelos não indígenas.

Os impulsos para a manutenção da língua têm vindo dos mais velhos, chamados
em língua kaingang de kófas que exerceram um papel fundamental para que houvesse
a preservação do seu idioma. Se, na atualidade a língua é falada pelas crianças e jovens
significa que na retaguarda estavam os kófas incentivando e cobrando de seus filhos
para que ensinassem o kaingang desde cedo, e, que reforçassem sempre que a língua
indígena kaingang falada era um dos elementos principais de reconhecimento da
identidade Kaingang. O contato com o português ocorre somente a partir dos cinco
anos de idade, na escola.

1
Esse dado é baseado em informação das lideranças locais, pois o IBGE (2010) não pesquisou.
2
Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-falada.
Acesso em: 18 mar. 2022.

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A partir do incentivo dos kófas e a realização de eventos entre alguns parentes de


outras terras indígenas localizadas no Estado do Paraná, surgiu a ideia da revitalização
da cultura kaingang incluindo as danças, cânticos e rituais. Este movimento dos
Kaingang da TIRC é explicado pela etnogênese.

A etnogênese é fruto da colaboração entre a história e a antropologia. Refere


Fontanella (2020, p. 20) que “[…] enquanto historiadores aprenderam a considerar com
mais afinco o caráter relativo das categorias e a construção das identidades coletivas,
os antropólogos passaram a prestar mais atenção na historicidade das configurações
sociais”. Os novos arranjos nos costumes e na cultura das organizações sociais
indígenas, suas reestruturações no tempo e no espaço são, pois, explicados pela
etnogênese.

As organizações sociais indígenas são dinâmicas e estão em constante mutação.


Pensar que os indígenas devem ser como eram na época pré-colombiana, e que, se
mudam isto, devem ser desqualificados como indígenas, no dizer de Cunha (2012, p. 11)
é uma “armadilha”. Refere a autora (2012, p. 11) que “[…] as sociedades sem Estado se
tornaram, na teoria ocidental, sociedades ‘primitivas’ condenadas a uma eterna
infância”. Vê-las como sociedades que pararam no tempo é um equívoco. A mudança
cultural que se estabelece no tempo não desnatura o vínculo identitário. Refere a autora
que “[...] em suma, traços culturais poderão variar no tempo e no espaço, como de fato
variam, sem que isso afete a identidade do grupo” (CUNHA, 2012, p. 108).

As intervenções por melhor intencionadas que sejam, tais como ações das
organizações não governamentais e das políticas públicas impactam na forma de viver
dos indígenas e por conseguinte atuam modificando o seu modo de viver. Não se
defende aqui que as organizações não governamentais ou o Estado se abstenham de
agir favoravelmente aos povos e às comunidades indígenas. Mas, se entende que ao
fazê-lo devem obter o consentimento da organização social indígena, conforme sua
estrutura interna determina, de modo que a ação se dê de acordo com a vontade
genuína daquele povo ou comunidade. Quanto ao Estado, essa conduta é obrigatória no
Brasil desde a adoção da Convenção 169 da OIT, em 2004. O artigo 6º, alínea “a”, da
Convenção determina que os povos tem de ser consultados mediante procedimentos
apropriados, através de suas instituições representativas sempre que sejam previstas
medidas legislativas ou administrativas que tenham o potencial de afetá-los.

Portanto, a movimentação que ocorre dentro das organizações sociais indígenas,


como é o caso da iniciativa dos jovens da Terra Indígena Rio das Cobras, no sentido de
resgatarem seus traços culturais, ritos e outros elementos que eles julgam importantes,

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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
Cobras
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é legal e legítima, como se fundamentou acima pelos instrumentos jurídicos


comentados e pelo processo explicado pela etnogênese.

O nascimento do Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki Pyn e seu caráter


pedagógico
Em 2013, no Colégio Estadual Rural Indígena Rio das Cobras, da TIRC, foi criado
um grupo cultural por dois professores de língua materna Kaingang: Danusa Kórig
Bernardo e Darci Fógte Bernardo. No começo o grupo cultural não tinha nome
específico e era composto apenas por estudantes da escola e era fechado para a
comunidade.

Entretanto, a partir de 2018, na TIRC, os jovens da Organização da Juventude


Indígena Kaingang Nen Ga da Terra Indígena Apucaraninha – PR chegaram para fazer
intercâmbio cultural com os alunos do Colégio Estadual Rural Indígena Rio das Cobras.
Os representantes da Organização da Juventude Indígena Kaingang Nen Ga fizeram
muitas exposições sobre a cultura Kaingang e a necessidade do seu fortalecimento.

Neste evento ocorreram também oficinas de pinturas corporais (grafismos


indígenas Kaingang) e de rituais com danças e cânticos apresentados pelos visitantes.
Entusiasmados, no decorrer do intercâmbio, os alunos e jovens da comunidade da TIRC
decidiram fazer uma apresentação cultural abrindo espaço para todos da comunidade.

Depois deste evento os jovens entenderam e se conscientizaram sobre a


importância de trabalhar no sentido de fortalecer a cultura Kaingang e de consolidar
um coletivo, partindo da escola e abrindo espaço para todos os jovens Kaingang, de toda
a TIRC. Assim foi criado e nomeado o Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki Pyn.

Desde então, os jovens do Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki Pyn foram se


tornando mais fortes na atuação em prol da cultura Kaingang. Nesse sentido, o coletivo
estabeleceu três objetivos: 1) resgate dos conhecimentos no uso das plantas medicinais;
dos rituais; dos cânticos Kaingang; das histórias antigas; da alimentação típica
Kaingang; e das pinturas corporais (grafismos Kaingang) com a principais marcas Kamẽ
e Kanhru; 2) a luta para continuar mantendo a língua Kaingang; 3) preparar a juventude
para que saiba se organizar e atuar dentro do Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki
Pyn, entendendo-o como um movimento indígena dentro da TIRC; um movimento
preparado para atuar em atos de manifestação na defesa dos direitos indígenas local,
regional e nacional; enfim, preparado para defender seu povo diante das várias ameaças
e efetivos retrocessos com relação aos direitos dos indígenas.

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Nessa construção foi estabelecido que havia a necessidade de colaborar para que
os jovens se mantivessem com uma mentalidade aberta e mais crítica. Um dos projetos
em funcionamento do Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki Pyn é a horta orgânica.
Esta serve para ensinar como produzir alimentos saudáveis, de forma orgânica, de
modo que não degrade a floresta e que seja sustentável.

A educação pela revitalização dos símbolos, rituais e danças pelo Coletivo


da Juventude Indígena Goj Ki Pyn
Com a revitalização dos cantos e danças indígenas a juventude da TIRC toma a
frente na mobilização para fortalecer a cultura kaingang. Mas, ressalta-se que os jovens
foram aos anciãos para obter as informações das tradições. Estes, lhes transmitiram
oralmente tudo o de que precisavam para prosseguir no trabalho.

Expressam as letras das suas músicas a importância da natureza e tudo o que há


nela. Os cantos fazem também referência às pinturas tradicionais, que são pintados nos
rostos dos componentes do grupo. Estas marcas eram muito usadas nos rituais e nas
guerras que aconteciam no passado.

As marcas tradicionais kamẽ e kanhru em português significam a marca comprida


e a marca redonda e ambas têm relação com a natureza. Exemplo disso é que o kamẽ é
a lua e o kanhru é o sol. Um dos aspectos fundamentais da sua organização social é o
dualismo, representado pela divisão nas metades exogâmicas Kamẽ e Kanhru. Segundo
Veiga (2009, p. 105), “[...] essa relação básica de oposição e complementaridade está
presente no cotidiano das relações sociais Kaingang e ganha especial destaque nos
momentos de cerimônias fúnebres e dos ritos relacionados aos mortos”. A seguir se
apresentará dois dos cantos indígenas do Coletivo da Juventude Indígena Kaingang Goj
Ki Pỹn da TIRC.

Canto sobre sermos raízes da terra


Ga jãre ag vẽ (2X)
Tag ki ẽg nỹtĩ gé (2X)
Kronh ke tũg nĩ régre (2X)
Vãsãn mãn jé régre (2X)
Ẽg tỹ genh ke vẽ (2X)
Somos raízes dessa terra (2X)
Estamos aqui (2X)
Não se canse parente (2X)
Vamos resistir parente (2X)
É assim que será (2X)

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Figura 1 – C.J.I. Goj Ki Pyn – 23/07/21

Canto sobre a união


Ẽg kã ũ kyvenh kutẽ kamẽg nῖ (2X)
Tỹ ẽg tóg kanhgág pir nỹtῖ (2X)
Régre ki kãrã mi, ki kãrã mi (2X)
Rá ror karã mi, ki kãrã mi (2X)
Rá téj kãrã mi, ki kãrã mi (2X)
Não deixe derramarem o nosso sangue (2X)
Agora somos um único povo indígena (2X)
Pode entrar parente (2X)
Marca redonda pode entrar (2X)
Marca cumprida pode entrar (2X)

Figura 2 – C.J.I.Goj Ki Pyn - 02/04/21

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As músicas tornam possível o reviver da cultura kaingang, que se transforma em


algo do presente através da organização da juventude indígena.

Além dos cantos e danças praticados pelos jovens kaingang voltou a ser praticado
o ritual do rirunh que é realizado no sábado de aleluia, antes do amanhecer, às 4 horas.
No dia anterior ao ritual são coletadas as ervas medicinais nas matas do território
indígena e preparadas. Servem para fortalecer o indígena, para dar-lhe agilidade,
cabelos fortalecidos e boa saúde.

O ritual do rirunh é um banho que acontece na madrugada do dia de aleluia. Os


grupos de famílias acordam os seus filhos e os convidam a pular nos rios antes do cantar
dos pássaros. Quando estão nos rios os indígenas pedem a mesma força que o rio tem,
passando as pedras nos corpos e pedindo a mesma força que ela apresenta. Voltando
para as suas casas, entoam seus cantos em volta da fogueira. Terminados os cânticos e
danças pegam as ervas medicinais e passam nos seus corpos. Esta infusão deve
permanecer nos corpos o dia inteiro para que seja absorvida a energia das ervas.

Considerações finais
A partir do respaldo legal da Constituição Federal de 1988 aos indígenas, para
continuarem a ser indígenas, se destacou uma série de textos legais internacionais que
corroboram o direito ao uso da língua, a ter a própria cultura, rituais e tradições. Assim
foi pinçado da Constituição Federal do Brasil de 1988 os artigos 210, 215 e 231 que tratam
respectivamente da utilização da língua materna no ensino fundamental; da garantia
aos direitos culturais, crenças e tradições; e, do direito a usufruir as terras que
tradicionalmente ocupam, o que lhes confere a tranquilidade necessária para se
desenvolver culturalmente e em todos os demais aspectos da vida. Além da
Constituição, se expôs o conteúdo protetivo à ter a própria cultura da Convenção Nº
169 da OIT e das Declarações das Nações Unidas e Americana sobre os direitos dos
povos indígenas.

O amparo legal veio a respaldar a ação dos indígenas da TIRC através do coletivo
que criaram, cujo mote é resgatar os cânticos, as danças, os rituais e outros saberes
tradicionais dos Kaingang. Se toma da etnogênese para explicar esse fenômeno.

Se destaca na iniciativa deste grupo, que se autodenominou de Coletivo da


Juventude Indígena Goj Ki Pyn, o caráter pedagógico, visto que dentre os seus objetivos
constou, além da revitalização cultural tradicional, preparar o jovem kaingang para a
luta por seus direitos em âmbito local, regional e nacional.

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Cobras
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Referências
CUNHA. M. C. da. Índio do Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

FONTANELLA, L. G. O conceito de etnogênese: o dinamismo histórico das identidades coletivas.


Revista História, Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 20, n. 1, p. 19–35, jan./abr. 2020.

MOTA, L. T.; ASSIS, V. S. de. Populações indígenas no Brasil: histórias, culturas e relações
interculturais. 21. ed. Maringá: Eduem, 2008.

VEIGA, J. Aspectos fundamentais da cultura Kaingang. Campinas: Curt Nimuendajú, 2006.

Instrumentos Jurídicos Nacionais - Brasil

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 05 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 mar. 2022.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 18 mar.
2022.

BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm. Acesso em 18 de março de 2022.

Instrumentos Jurídicos Internacionais

Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em:


https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%
Adgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf. Acesso
em: 18 mar. 2022.

Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_
sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 18 mar. 2022.

Declaração Americana sobre os direitos dos povos indígenas. Disponível em:


https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em: 18 mar. 2022.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares
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O contexto pandêmico e as astúcias das


classes populares
Renato Simões Moreira*
Yaçanã Torres do Amaral Sant’Anna**

Introdução

Nas minhas memórias enterradas


Vão achar muitas conchas ressoando...
Manoel de Barros

A presente pesquisa baseia-se em uma reconstrução — eventos que ressoam da


concha da memória e são ordenados de modo a tecer uma “ordem de sentido
intersubjectivamente comunicável” (SARMENTO, 2003, p. 93). Tomando a experiência
de um dos pesquisadores, docente I de Língua Portuguesa 1 do Ensino Fundamental II
em uma escola integral de período integral, em uma rede pública municipal da Baixada
Fluminense — região periférica do estado do Rio de Janeiro —, durante o período
pandêmico, a saber, entre março de 2020 e dezembro de 2021, analisaram-se os efeitos
das estratégias desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Educação (SEMED) para
implementar um modelo de ensino remoto, com vistas a atender as necessidades de
um corpo discente que, via de regra, não gozava sequer de acesso regular à internet,
fosse fixa ou móvel em suas diferentes modalidades de contratação.

Em contrapartida, observam-se, também, as táticas — tomadas aqui no sentido


certauniano atribuído ao vocábulo: a arte do fraco, que “deve jogar com o terreno que

*
Doutorando em Educação (UFF), Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas
(FEBF/UERJ, 2016), Especialista em Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa (UGF, 2009), Graduado
em Letras: Português e Literatura (UCB, 2003). Atua na educação pública fluminense desde 2005.
E-mail: renatosimoesmoreira@hotmail.com.br
**
Mestranda em Educação (UFF), Graduada em Pedagogia (UERJ, 2018). Iniciação Científica no grupo de
pesquisa: Currículo, Cultura e Diferença (CNPq), coordenado pela Profª. Drª. Elizabeth Macedo.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Avaliação, Educação Popular e Escola Pública
(GEPAEP), coordenado pela Profª. Drª. Maria Teresa Esteban. Bolsista do CNPq – Brasil.
E-mail: yacana_torres@yahoo.com.br
1
Trata-se da figura do professor especialista, licenciado para ministrar uma disciplina nos anos finais do
Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e no ensino médio.

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O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares
DOI: 10.23899/9786589284314.6

lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha” (CERTEAU, 2020, p. 94)
— desenvolvidas pelas/os estudantes para lidar com as prescrições educativas que lhes
foram impostas num período de grandes privações, quando, muitas vezes, não só não
contavam com condições materiais ideais para o estudo remoto — como um espaço
silencioso em casa, acesso a computadores, impressoras e livros, e, eventualmente,
dispor do privilégio de ter um adulto que os ajudasse — como também, em não poucas
ocasiões, colaboraram com sua força de trabalho para ajudar a suprir o sustento de suas
famílias. Muitas/os alunas/os do 9º ano, por exemplo, trabalharam em atividades
informais, em seus bairros, ou desempenharam funções em suas próprias casas,
fazendo trabalho doméstico e/ou cuidando de irmãs/ãos menores.

O texto também procura abordar as ações táticas adotadas pelas/os docentes,


com o objetivo de obter das/os alunas/os, em tão precárias condições de ensino-
aprendizagem, algum nível de responsividade.

Metodologia

Há certas frases que iluminam pelo opaco.


Manoel de Barros

A abordagem dos dados produzidos partiu do princípio de um cenário de análise


em que se percebia, em condições pré-pandêmicas, certa inclinação a uma educação
hegemônica de viés notadamente neoliberal — mas em graus variados de adesão e com
inevitáveis contradições —, cuja prova maior de “qualidade” — tomada aqui entre aspas
por reconhecermos se tratar de um vocábulo polissêmico, cujo significado encontra-se
em permanente disputa — apoia-se no conceito de performatividade, que Stephen Ball
(2002, p. 4) define como “[...] uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação que
se serve de críticas, comparações e exposições como meio de controlo, atrito e
mudança”. Os desempenhos obtidos expõem “medidas” de produtividade e mostras de
“qualidade” — geralmente traduzida em índices que ganham grande projeção midiática,
como o índice de desenvolvimento da educação brasileira (Ideb), por exemplo.

As práticas performativas, calcadas numa pedagogia do exame — que segundo


Ángel Díaz Barriga (2000, p. 62) é “[...] uma pedagogia articulada em função da simples
certificação, descuidando notoriamente dos problemas de formação, processos
cognitivos e aprendizagem” —, fazem parecer que o objetivo da educação formal é,
simplificadamente, a promoção ao fim do ano letivo. Assim, a escola seria meramente o
lugar do credenciamento, o espaço a que as crianças iriam para que se pudessem, um

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O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares
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dia, tornar “alguém”, como se ninguém fossem antes de lá chegarem. Como já nos
testemunhou Miguel Arroyo (2013, p. 104), “[...] que professor(a) não se descobriu
repetindo este mesmo discurso para seus alunos indisciplinados e desatentos? ‘Não
querem estudar, não estudem e vão ver o que vão fazer na vida sem estudo’”.

A performatividade definiria as linhas do que se chama, aqui, ação estratégica, que


é “[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir
do momento que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade,
uma instituição científica) pode ser isolado” (CERTEAU, 2020, p. 93). A estratégia
pertence àquelas/es que controlam majoritariamente as regras do jogo, cabendo aos
sujeitos populares da educação pública — docentes ou discentes — o recurso da tática:
a guerrilha que se esgueira à visão do poder proprietário. “A tática não tem por lugar
senão o do outro” (ibidem, p. 94).

Movendo-se por tal território, espacial e social, que lhe é determinado por outrem,
os sujeitos populares servem-se dessa manha dos oprimidos2 (FREIRE; FAUNDEZ, 2021)
para convertê-lo em um lugar “identitário, relacional e histórico” (AUGÉ, 2012, p. 73),
tendo em mente que “a ordem organizacional da escola não é nunca totalmente
homóloga da ordem da instituição escolar” (SARMENTO, 2003, p. 93) — ou seja, o jogo
de contradições percebido no interior da escola pública demonstra que as classes
populares ali inseridas não se conformam apenas aos objetivos preconizados pela escola
enquanto instituição, o que estabelece a educação pública e popular como um campo
de disputas.

Como o caçador primevo, que “[...] aprendeu a fazer operações mentais complexas
com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou de uma clareira cheia de
ciladas” (GINZBURG, 1989, p. 151), servimo-nos do paradigma indiciário na busca pelos
rastros que nos conduziriam às estratégias e táticas desenvolvidas neste momento
histórico. Tal paradigma auxilia-nos a ler o que se manifesta não apenas nos ditos e no
evidente, mas — talvez, principalmente — naquilo que se insinua sutilmente nos
silêncios eloquentes e nas ausências que denunciam, nos iluminando com seus opacos.

2
Formas de resistência com as quais as classes populares “se defendem das arrancadas agressivas das
classes dominantes e até também da situação ambiental insatisfatória em que vivem, e às vezes apenas
sobrevivem em decorrência da exploração de classe” (FREIRE; FAUNDEZ, 2021, p. 80).

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A ruptura do “antigo normal” — o cotidiano escolar e a Covid-19

Estas águas não tem lado de lá.


Manoel de Barros

Conforme ilustrado acima, o cotidiano escolar é um espaço de disputas em que


diferentes interesses e visões de sociedade se digladiam, em movimentos de avanços,
recuos e concessões. De acordo com Althusser, a escola seria um instrumento de
inculcação ideológica das elites, a conformar a estratificação social e manter os
privilégios da classe hegemônica:

Acredito que o aparelho ideológico do Estado que foi colocado em posição


dominante nas formações capitalistas maduras, como resultado de uma violenta
luta de classes política e ideológica contra o antigo Aparelho Ideológico de
Estado dominante é o Aparelho Ideológico Escolar (ALTHUSSER apud CARNOY,
2005, p. 126, grifos no original).

Contudo, não apenas os interesses hegemônicos se colocam no espaço escolar —


conforme Sarmento (2003) já colocara, há um espaço de ação que se apresenta na
interseção (ou hiato?) entre a organização da escola — considerando as individualidades
e grupos que ali coabitam e se manifestam — e a instituição escolar e seus objetivos
como aparelho de reprodução de uma determinada ordem social e das relações de
domínio e alienação que ela demanda. “Descobre-se aqui, nesta descontinuidade, a
possibilidade da ruptura, a vocação da diferença, a fonte da contracorrente, ou a
construção dissonante de um espaço autônomo” (SARMENTO, 2003, p. 93)

Esse espaço de disputa e seus conflitos e contradições fazem parte do que muito
se nomeou na imprensa “antigo normal” ou, simplesmente, “normalidade”, que abarca
o conjunto de rotinas que definiam o cotidiano antes do advento do coronavírus e da
pandemia que causaria. A normalidade — suas idas e vindas, seus movimentos
centrífugos e heteróclitos que dávamos como perpetuamente garantidos — sofre uma
considerável transformação com a necessária imposição do isolamento social. Como
muitas instituições, as escolas precisaram se adaptar às contingências do momento: o
prédio, referência da instituição escolar, a que todos acorríamos em nossa atarefada
rotina de ensino-estudo, precisou ser fechado. Mais especificamente, suas atividades
foram paralisadas em março de 2020 para que se analisasse a situação e seus riscos
para a população. Com o passar de dias e semanas, subitamente nos vimos cruzando

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um rio cuja dilatada largura não nos permitia ver a outra margem, e nosso “antigo
normal” ficara para trás...

As escolas voltariam à carga somente em agosto, após um levantamento sobre as


condições das/os alunas/os para acompanharem o ensino remoto. Percebeu-se que a
vastíssima maioria das/os estudantes não tinha acesso regular nem estável à internet,
contando com muitas vezes com planos pré-pagos que recebiam créditos de quando
em quando, e muitas/os sequer possuíam computadores ou notebooks em suas casas,
nem smartphones próprios — havia casos em que um mesmo aparelho telefônico era
partilhado entre todos os membros da família, disponível apenas quando a/o
responsável pelas crianças retornava de sua jornada diária de trabalho.

Sendo assim, a Secretaria não optou por usar plataformas on-line, como muitos
outros atores fizeram, mas sim imprimir apostilas, possibilitando a todas/os o
acompanhamento das atividades propostas. Ainda assim, grupos de WhatsApp foram
criados para que, em eventuais possibilidades de acesso, as/os alunas/os tivessem
contato direto com suas/seus professoras/es3.

Tais apostilas eram distribuídas duas vezes por semana, inicialmente, com
devolução após quinze dias. O material também poderia ser baixado, em formato PDF,
diretamente de um site mantido pela prefeitura. Poucas/os alunas/os optaram por essa
possibilidade, embora tenha havido casos pontuais. A frequência discente era
contabilizada com base na retirada das apostilas — nos raros casos de impressão das
atividades em casa, contabilizava-se a frequência com sua entrega.

As/os educadoras/es ainda compareciam regularmente às escolas para efetuar


sua correção, obedecendo, contudo, a uma escala de serviço para manter o
distanciamento social. Infelizmente, na escola pesquisada, a escassez de papel para
impressão das apostilas impedia que o material fosse retirado da escola, pela/o
docente, para correção — era comum que duas páginas fossem impressas em uma só
folha, o que muitas vezes fazia com que disciplinas distintas compartilhassem uma
mesma impressão, obrigando as/os docentes a se revezarem na atividade de correção
(“Alguém aí está corrigindo a 801? Acabei de terminar a 602, se alguém quiser...”).

3
Durante o período de ensino remoto, as/os educadoras/es mantinham contato com as/os poucas/os
alunas/os de suas turmas que, eventualmente, tivessem acesso de alguma forma à internet, para sanar
dúvidas ou oferecer material extra de apoio — material este também fornecido pela SEMED —, na forma
de vídeos explicativos, links para o YouTube ou podcasts. Infelizmente, a precariedade dos pacotes de
dados disponíveis às famílias, muitas vezes, levava as/os estudantes a solicitarem explicações via texto,
no próprio WhatsApp, ou por arquivos leves de áudio, que não comprometessem excessivamente os
parcos bytes de que dispunham.

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Havia um controle bastante meticuloso, partilhado entre professoras/es e


coordenação, acerca da devolução das apostilas, principalmente considerando a
realização — ou não — das atividades propostas. Era comum o uso de um código
alfabético para indicar as condições de devolução do material: A (atividades
respondidas), B (atividades parcialmente respondidas)4 e C (atividades não
respondidas).

A escola em que acompanhamos a experiência já não fazia menção — ao menos


oficialmente5 — a conceitos ou notas para mensurar a aprendizagem de seus alunos;
contudo, a orientação do município foi, para toda a rede, de não classificar alunos por
rendimento durante esse período. Não haveria, então, qualquer sanção pela não
devolução das apostilas ou de sua devolução em branco, por exemplo.

No início, as apostilas eram retiradas com certa regularidade, pois havia também
a distribuição de cestas básicas às famílias da/os alunas/os, chamadas pela gestão
municipal de “Kits alimentação”. Mas, em outubro do mesmo ano, tal distribuição
cessou, e a procura por apostilas começou a declinar. Esse foi um primeiro indício que
mais tarde seria confirmado, de que a urgência alimentar se sobrepunha às
possibilidades de empenho nas atividades escolares.

As tentativas de contato com as famílias apresentavam resultados irregulares.


Neste primeiro momento, os indícios nos sugeriam que a necessidade das cestas
básicas era a principal motivação a conduzir alunos e familiares à escola. A manutenção
das condições materiais de sobrevivência era urgente — as apostilas estariam em
segundo plano.

Manhas da sobrevivência discente — táticas contra o “novo normal”

Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.


Manoel de Barros

A desigual situação a que as classes populares foram expostas, durante os


momentos mais graves da pandemia, foi invisibilizada pelo que largamente se nomeou

4
Consideravam-se apenas as respostas às questões propostas, e não sua condição de acerto ou “erro” —
conceito aberto a discussões múltiplas e variadas que, contudo, não cabem neste espaço.
5
A escola fornecia às/aos responsáveis um relatório descritivo do desempenho escolar das/os
estudantes; não havia boletim com notas ou conceitos. Contudo, a avaliação escolar a que recorriam
muitas/os docentes ainda apresentava fartamente exemplos de práticas classificatórias, em que se
percebiam notas e conceitos em exames de cunho tradicional — resultado de uma prática avaliativa
profundamente enraizada em nosso aparato escolar, mas que não cabe discutirmos neste momento.

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pela mídia hegemônica e seus canais de comunicação como o “novo normal”. Ele
envolveria o respeito às normas sanitárias de isolamento social para contenção do vírus
e se referiria à mudança de rotina imposta por elas, como o fechamento — mesmo que
temporário — de alguns estabelecimentos, a restrição da circulação de pessoas e a
instituição de home office para muitos profissionais. Contudo, uma larga fatia da
população simplesmente não seria admitida ao “novo normal”, como uma parte
significativa das classes populares, submetida a relações trabalhistas altamente
precarizadas, com vínculos empregatícios pautados pela informalidade, notadamente
no setor de serviços, quando não atuante como “empreendedora de si mesma”,
empregando sua força de trabalho na qualidade de trabalhador/a autônomo/a —
microempreendedor/a individual, sem notável reserva de capital, ou, muitas vezes,
associada/o a aplicativos de entrega ou como motorista.

Durante a vigência do “novo normal”, em que as/os representantes do Estado —


com notável destaque para o governo federal — ofereceram pouco ou nenhum suporte
às/aos cidadãs/ãos menos favorecidas/os, e durante o qual muitas/os responsáveis
perderam seu emprego — em não poucas ocasiões, sem qualquer nível de seguridade
social, pelas condições já expostas —, as escolas estavam fechadas, negando a garantia
de ao menos duas refeições diárias, e muitas/os jovens se viram obrigadas/os a
colaborar com o sustento da família, da forma que pudessem: trabalhando em
ocupações informais diversas — sem remuneração pré-estabelecida, comumente
apenas a féria do dia trabalhado, submetida a algum tipo de medida de produtividade
(horas trabalhadas, entregas feitas, produtos vendidos, etc.) ou ajudando nos afazeres
de casa. Uma apostila entregue em branco é mais que uma atividade não feita, quando,
conhecedores do contexto histórico em que nos inserimos, lemos os indícios que se
nos oferecem para além da superfície do óbvio e percebemos que as ausências e os
silêncios também “falam”.

Pensar nas/os alunas/os que ocupam majoritariamente as escolas públicas,


mormente municipais, é pensar na reflexão de Esteban (2003, p. 200) sobre os “[...]
sujeitos que habitam as margens da sociedade, sujeitos tratados na dinâmica social
como insignificantes, sujeitos invisibilizados pela ciência. Sujeitos que dão vida à escola
pública e nela fracassam, ou criam muitos problemas…”. As manhas caracterizadas a
seguir foram táticas de sobrevivência escolar desenvolvidas por esses sujeitos, para
conseguirem manter-se à tona nas águas revoltas que a pandemia impôs às escolas.

Na rede a que pertence a escola analisada, alunas/os da educação de jovens e


adultos (EJA) — cujo período letivo é semestral, e não anual — “descobriram” antes
das/os demais estudantes, que bastava retirar as apostilas para garantir a promoção, e

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logo divulgaram tal informação entre colegas e parentes da educação regular — um


verdadeiro exercício de desaprender o que lhes ensinou toda uma vida de práticas
performativas, de acordo com as quais valia na escola apenas o que era feito, e feito
com “acerto”. Houve, após isso, quem comparecesse muito pouco à escola, recolhendo
diversas apostilas de uma só vez, mas apenas para garantir a frequência necessária para
promoção.

Essa manha, que na superfície sugere desinteresse por assuntos escolares, traz
indícios mais profundos que podem demonstrar que as/os alunas/os desejavam,
apesar de tantos escolhos, manter o vínculo com a escola, mesmo vivendo uma situação
tão delicada.

A vulnerabilidade social, característica das classes populares presente em grande


parte das/os alunas/os matriculadas/os nas redes públicas de ensino —
principalmente nas redes municipais de regiões pobres e periféricas, como a que
observamos —, exige dos sujeitos menos favorecidos — mais que de quaisquer outros —
o exercício de uma potência criadora, uma vez que, conforme nos escrevera Paulo
Freire (1987, p. 38), “[...] só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta,
impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os
outros. Busca esperançosa também”. As/os alunas/os buscaram táticas para fugir aos
fantasmas do abandono de matrícula e da reprovação e as partilharam entre si,
demonstrando saberes outros para dar conta da demanda das apostilas.

Entretanto, essa manha tática apresentaria uma transformação em meados do mês


de novembro: algumas histórias — ou estórias6? — rezavam que quem não devolvesse
as apostilas seria desligada/o, impedida/o de renovar matrícula ou não seria elegível
para o programa vindouro de concessão de cartões-alimentação. Boatos infundados,
todos eles, que provocaram uma ebulição de interações que, nas palavras de Esteban
(2003, p. 202), demonstrariam mais uma vez que “[...] a escola é a própria teoria do caos
em realização”. As interações múltiplas, nas quais os sujeitos da escola estão imersos,
são muitas vezes imprevisíveis e completamente incontroláveis.

Como resultado dos boatos, numa tentativa de sobreviver, lutar e resistir, ainda
que de forma tortuosa aos olhares da educação hegemônica, dentro do entendimento
trazido pelas palavras de Catherine Walsh (2017, p. 68), “[...] resistir no para destruir,
sino para construir, digo yo”, chegou à escola um sem-número de apostilas assinadas e

6
A grafia da palavra “estória” é um aportuguesamento do anglicismo story, e diz respeito exclusivamente
a narrativas ficcionais.

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entregues em branco, ou com respostas copiadas de outras/os colegas, fiéis mesmo


aos desvios ortográficos e gramaticais do material fonte7.

A ação das/os alunas/os, definitivamente, não era a esperada pela Secretaria de


Educação do município em questão, que, se esquivando à falta de aparelhos e conexão
para o acesso à internet, passou a imprimir as apostilas como o recurso mais abrangente
possível. Mas, essa opção permitiu que o vínculo com a instituição escolar fosse
mantido, para que em um momento futuro, quando a pandemia estivesse finalmente
controlada, e a fome não fosse a lente pela qual estudantes estavam vendo suas vidas,
pudessem enfim retornar ao porto seguro de suas escolas, sem problemas com a
matrícula.

Em outras redes, a opção pelas plataformas digitais excluiu não poucas/os


alunas/os, cujas possibilidades de conexão eram baixíssimas. Uma grande e estruturada
rede municipal fluminense, por exemplo, que fez uso da ferramenta digital Microsoft
Teams, disponibilizava atividades que deveriam ser impressas, respondidas e
digitalizadas para devolução e correção. No município que ora analisamos, esse modelo
de ensino remoto resultaria em uma evasão altíssima e não menor reprovação de
alunas/os.

Manhas da atuação docente — táticas de um que-fazer8 possível

Maior que o infinito é a encomenda.


Manoel de Barros

As/os profissionais de educação, mesmo antes de agosto de 2020, já estavam


trabalhando na produção de material didático, que devia se antecipar ao menos quinze
dias à data de entrega às/aos alunas/os — o período era necessário para que a gestão
e a coordenação pudessem editar os documentos, obedecendo a um calendário que
distribuía disciplinas por dias da semana e a eventuais contingências impostas por falta
de material, como toner e papel. E seguiram trabalhando na correção das apostilas, na
produção de mais materiais didáticos e nas estratégias para manter contato com as
famílias, com o objetivo de não perder alunas/os.

7
As/os professoras/es comentavam em conselhos de classe e com as/os próprias/os alunas/os, nos
grupos de WhatsApp, de forma bem humorada, sobre o “bonde da cola” — referência à grande quantidade
de alunas/os que apresentava respostas absolutamente idênticas às questões propostas nas apostilas.
8
Termo fartamente utilizado por Paulo Freire, ele faz menção, em sua boniteza, ao ofício da/o docente
e da/o aluna/o.

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Após o mês de novembro, frente à grande quantidade de apostilas entregues em


branco, muitas/os professoras/es passaram a apostar taticamente em uma exposição
mais sumária, compartimentando pequenas quantidades de conteúdo, e em questões
objetivas, mais rápidas de se corrigir e convidativas de se realizar. Embora isso sugira
um aligeiramento superficial das possibilidades de aprendizagem, mirava um alvo mais
importante: o engajamento possível à/ao aluna/o, a despeito de suas condições
adversas de estudo9.

Os professores encontraram frestas para continuar seu trabalho, pensando como


sugere Walsh (2017, p. 82-83):

Las grietas dan luz a esperanzas pequeñas. Pienso en la flor que apareció de un
día al otro en una pequeña rendija de las gradas exteriores de piedra y cemento
de mi casa, o en las dos hojas verdes que brotaron ante mis ojos desde el asfalto
de una vereda en plena ciudad. Las grietas que pienso revelan la irrupción, el
comienzo, la emergencia, la posibilidad y también la existencia de lo muy otro
que hace vida a pesar de — y agrietando — las condiciones mismas de su
negación.

As atividades de 2020 adentraram o mês de janeiro de 2021, com correção de


apostilas entregues tardiamente, elaboração de relatórios e fechamento de diários. As
demandas pareciam se multiplicar, conforme o atribulado ano letivo se encaminhava
para o fim.

Paralelamente às atividades propostas pela própria escola, a rede municipal


dispunha às/aos alunas/os o chamado “movimento em rede” — apostilas com conteúdo
interdisciplinar, cujas atividades equivaleriam a sábados letivos, para complementar a
carga-horária contabilizada a partir da realização de apostilas 10 —, cujo tema orientador
abordava assuntos como saúde, cidadania e ética, por exemplo, e “simulados”, que nada
mais eram que avaliações de larga escala aplicadas a todas/os as/os alunas/os da rede,
para criar um monitoramento de seu desempenho.

9
Conforme já enunciado, em muitas ocasiões, a escassez de papel levava a coordenação a alocar duas
páginas em uma só folha. Isso reduzia consideravelmente o tamanho da fonte, dificultando a leitura
das/os alunas/os. Mapas e charges, algumas vezes, tornavam-se quase incompreensíveis. A maior parte
das/os professoras/es passou, então, a dispor menos texto e utilizar fontes e imagens maiores, para que,
mesmo depois de reduzidas, pudessem ser compreensíveis.
10
As apostilas devolvidas se convertiam em horas-aula, com o objetivo de alcançar a meta preconizada
pela Lei Nacional de Diretrizes e Bases (LDBN), de oitocentas horas anuais. Cada atividade diária de uma
disciplina equivaleria a quatro horas-aula. Cada apostila continha atividades de duas disciplinas por dia.

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Tais simulados já existiam em período pré-Covid, e apenas passaram a ser


realizados remotamente. Embora os simulados pareçam um instrumento de coleta de
dados para avaliação de somenos importância, na escola observada podem ter motivado
o retorno de todas/os as/os alunas/os do nono ano em regime presencial, sem
revezamento semanal de turmas11, por conta da realização da Prova Brasil, integrante
do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), responsável pela determinação do
Ideb.

Este índice foi instituído em 2007, e segundo Talita Soares, Denilson Soares e
Wagner Santos (2021), é referência para o repasse e a distribuição de verbas públicas.
Destarte, está afinado com a ideia de orientação das políticas públicas, em busca do
monitoramento da qualidade e do desenvolvimento curricular. Essa qualidade —
balizada pela pedagogia do exame e pela performatividade — é reduzida ao que a/o
estudante apresenta nos exames estandardizados. Daí a preocupação da gestão
municipal quanto ao Ideb, uma vez que o rendimento das/os estudantes do ano
terminal do Ensino Fundamental II teria apresentado um acentuado decréscimo, como
comprovavam as correções dos simulados12. É sintomática a influência de um exame de
larga escala sobre o processo decisório acerca dos rumos da educação, mesmo se
tratando de uma situação tão atípica quanto o retorno de alunas/os à escola durante
uma pandemia.

Mirando13 além da superfície

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis.


Manoel de Barros

11
O retorno presencial das/os alunas/os deu-se em setembro de 2021, mas com as turmas divididas em
dois grupos — semana A e semana B —, para que o distanciamento entre as/os estudantes fosse
garantido. Contudo, haja vista os baixos rendimentos nos simulados, os alunos do 9º ano, apenas,
abandonariam esse esquema de revezamento entre grupos, retornando todos a partir de novembro para
que melhor se preparassem para a aplicação da Prova Brasil — a própria SEMED, inclusive, fornecia aos
professores de Matemática e Português material de apoio para a preparação, chamado “Prepara SAEB”.
12
A coordenadora pedagógica da escola pesquisada comentava como o desempenho nos simulados de
Matemática e Português decaiu — em toda a rede — durante o período pandêmico, acendendo um alerta
na SEMED. Tal queda poderia ser o prenúncio de uma queda do próprio Ideb, fonte de estigmas diversos
para as redes periféricas de educação, em virtude de seu desempenho, considerado “fraco” (ainda que
pouco se discutam, na mídia hegemônica, as causas de tal desempenho para além do discurso de
culpabilização).
13
O uso do verbo “mirar”, aqui, explora seus variados coloridos semânticos — tanto funciona como
sinônimo de “olhar” como também nos sugere os sentidos de “espreitar” ou “dirigir a pontaria para um
alvo” (no caso, os indícios mais sutis que o campo nos forneceu).

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É importante problematizar, para além do óbvio, como tais estudantes puderam


se relacionar com a escola. Sem o kit alimentação, problemas outros se impunham a
elas/es, como vimos, embora as táticas adotadas sugiram seu interesse em manter o
vínculo com a instituição escolar. Há uma razão fria e objetiva que nos apresenta
estudantes que, de forma bastante irregular, entre o não fazer e o copiar, tiveram um
desempenho insuficiente, quanto à proposição de atividades escolares que lhes fora
imposta. Contudo, julgamos nós, essa razão também nos é insuficiente para abarcar
toda a opacidade iluminadora da questão que se nos apresenta.

Manterem-se informadas/os sobre as regras de promoção adotadas pelo


município foi fundamental. Muitas/os alunas/os não contaram com suporte algum
para estudar em casa, e outras/os tantos precisaram trabalhar, dentro ou fora de seu
lar, conforme já mencionado, para ajudar suas famílias, que viviam situações dramáticas.
Não nos sentimos seguros para afirmar que tais estudantes consideraram as apostilas
um problema sem importância; pelo contrário: indícios outros, sutis mas importantes,
antes nos sugerem que, se assim fosse, sequer se dariam ao trabalho de retirá-las nas
escolas.

Devolvê-las em branco ou simplesmente com respostas copiadas de colegas nos


sugere que era importante que mantivessem ativo um vínculo com a escola, ainda que
demandas emergentes, como a manutenção de sua própria subsistência, se colocassem.
Suas necessidades básicas exigiam soluções imediatas, e as táticas adotadas
garantiriam que a escola ainda as/os estaria esperando, quando a pandemia
eventualmente passasse.

Dessa forma, como muito bem nos lembra Regina Leite Garcia (2003, p. 195),

Quem vê para além dos números, e assim chega ao cotidiano onde os pobres
continuam vítimas da má distribuição de renda, vê mais. Vê no cotidiano das
vidas de sujeitos encarnados as consequências da fome, da doença, do
desemprego, da miséria.
O problema é que o cotidiano é a hora da verdade. É ali que os grandes projetos,
as grandes explicações, as grandes sínteses, as grandes narrativas e as grandes
certezas são confirmadas ou negadas, e o que complica ainda mais é que às vezes
a mesma certeza que num momento é confirmada, no momento seguinte, é
negada. É ali, no cotidiano, que sujeitos encarnados lutam, sofrem, são
explorados, subalternizados, resistem, usam astúcias para se defender das
estratégias dos poderosos, se organizam para sobreviver, e assim vivem, lutam,
sobrevivem e, como todos os mortais, um dia morrem.

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As/os docentes atuaram nesse período com o pragmatismo que lhes foi possível.
Sob a cobrança de fidelidade ao programa, agora condicionado à Base Nacional
Curricular Comum (BNCC)14, muitas/os educadores tiveram uma rotina de trabalho
subitamente transformada e mesmo intensificada — não bastava produzir as apostilas;
era preciso verificá-las uma a uma, diferente das atividades rotineiras de sala de aula.
Também era necessário registrar sua verificação da forma adequada num controle que
seria partilhado com outras/os educadores. Além disso, o trabalho não obedecia ao
ritmo individual do/a professor/a, uma vez que docentes que compartilhavam a
mesma turma dependiam do término das atividades de verificação de suas/seus
colegas para ter acesso às apostilas.

O influxo das apostilas em branco trouxe um novo desafio às/aos educadores.


Superando a frustração natural que isso provocou em muitas/os profissionais, novas
táticas foram adotadas. A redução do conteúdo, o aumento da fonte e das imagens e
mesmo a adoção de questões objetivas foram ajustes considerados necessários para
manter o interesse do alunado nas apostilas, na tentativa de reduzir as entregas em
branco15.

Considerações finais

Do meu destino eu mesmo desidero16.


Manoel de Barros

A escola observada na Baixada Fluminense trouxe à tona o recrudescimento de


uma realidade com que muitas/os outras/os jovens, em regiões geográficas distintas
— mas socialmente semelhantes —, se depararam durante a pandemia: a necessidade
de equilibrar estudos e trabalho na corda bamba da sobrevivência.

14
O município, outrora, contava com sua própria pré-orientação curricular, baseada nos antigos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e elaborada em encontros de professores da rede, chamados
Centros de Estudos Pedagógicos (CEPs). Tais pré-orientações foram simplesmente trocadas pela BNCC,
sem discussão aprofundada com as/os professoras/es da rede.
15
Conforme já ilustrado, essa aposta tática também se prestava a responder demandas impostas pela
situação de precariedade a que uma pequena rede municipal está exposta. Não raro, a qualidade gráfica
das apostilas impressas era comprometida pelo esgotamento do toner das impressoras ou pela
compressão de material para economia de papel — não eram raras as ocasiões em que uma apostila era
devolvida com anotações da/o aluna/o reclamando da legibilidade do material (“Está muito claro”, “O
mapa é muito pequeno”, “Não consegui ler”, etc.).
16
Verbo não vernáculo em português, mas que contém a mesma raiz de “desiderato” — desejo, aspiração
—; logo, sinônimo de desejar, querer, aspirar.

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O relato fez transparecer o desejo dessas/es jovens de ter garantida a


permanência na escola, sua matrícula ativa, sua presença contada, embora os meios
para que isso acontecesse divergissem eventualmente das expectativas docentes de um
bom processo de ensino-aprendizagem. A própria Secretaria Municipal de Educação
lançou mão dos recursos que lhe eram possíveis — sempre visando ao atendimento do
máximo possível de estudantes —, e talvez obtivesse melhores êxitos, se o fornecimento
das cestas básicas não tivesse sido interrompido pela prefeitura em 2020. Em 2021, com
a concessão do cartão-alimentação, os problemas de frequência (mesmo no período
remoto, que foi até o mês de agosto) foram consideravelmente menores.

De um ponto de vista meramente performativo, não seria absurdo afirmar que a


estratégia implementada pela SEMED foi um fracasso, considerando-se o volume de
apostilas não entregues ou entregues em branco, mas os indícios que ora temos
perseguido apontam para um coletivo de sujeitos das classes populares — alunas/os e
educadoras/es — que, dadas as circunstâncias, “desideraram” acerca do próprio
destino e não abandonaram as possibilidades de vínculo com a escola pública,
capturando astuciosamente “[...] no voo as possibilidades oferecidas por um instante”
(CERTEAU, 2020, p. 95).

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População indígena e seus saberes


tradicionais no enfrentamento da COVID-19
Jocelaine de Oliveira*
Amanda Gollo Bertollo**
Adriana Remião Luzardo***
Zuleide Maria Ignácio****

Introdução
A COVID-19 (do inglês: Coronavírus Disease 2019), causada pelo vírus SARS-CoV-
2 (do inglês: severe acute respiratory syndrome coronavirus 2), desencadeou um
cenário inesperado no campo epidêmico-biológico, mas também no que tange às
políticas sociais de cuidados e atenção à saúde dos povos indígenas. De acordo com a
Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) (2020), até novembro de 2020 mais de
41 mil indígenas foram contaminados pelo SARS-CoV-2, o que afetou diretamente mais
de 305 povos que vivem no Brasil.

Segundo Horton (2020), à medida que os casos aumentam é necessário


compreender que está sendo enfrentado o fato de uma maneira muito estreita, tendo
em vista que as intervenções estão voltadas em interromper as linhas de transmissão
viral para controlar a propagação do vírus. Mas a COVID-19 não é tão simples assim,
pois duas categorias da doença estão agindo em conjunto em determinadas populações,
sendo a infecção pelo coronavírus e uma série de doenças não transmissíveis (DNTs).
Essas doenças em conjunto revelam os padrões de desigualdade bem implantados pela
sociedade sobre alguns grupos menos favorecidos. A COVID-19 não é uma pandemia, e
sim uma sindemia, que exige uma abordagem mais delicada para proteger a saúde das

*
Enfermeira Graduada pela Universidade Federal da Fronteira Sul -UFFS.
E-mail: jocelaine320@gmail.com
**
Enfermeira Graduada pela Universidade Federal da Fronteira Sul -UFFS.
E-mail: amandagollo@gmail.com
***
Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: luzardoar@gmail.com
****
Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade do Extremo Sul Catarinense.
E-mail: zuleideignacio@gmail.com

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comunidades. Limitar os danos causados pelo coronavírus exige uma atenção maior as
DNTs e as desigualdades socioeconômicas.

A COVID-19 não envolve apenas um vírus que agride o organismo. Revela também
as alterações de ordem social e sua interação e influência nociva ao corpo. Desse modo,
quem sofre com doenças crônicas, etilismo, tabagismo ou outras doenças, vivencia e
enfrenta a COVID-19 de um jeito diferente ao entrar em contato com ela. Os
transtornos psiquiátricos, como a ansiedade, entre outros, vão determinar se a pessoa
irá acatar as medidas terapêuticas ou preventivas recomendadas (STEPKE, 2020).

As catástrofes interferem na existência ou continuidade dos povos indígenas em


nosso país, e a COVID-19 é um dos fatores que tem aumentado significativamente esse
cenário de genocídio. No Brasil, os povos indígenas e as comunidades tradicionais
ficaram em maior vulnerabilidade diante da COVID-19. O contágio pela doença ocorre
na maioria das vezes pelo contato com indivíduos não indígenas, sendo esse um dos
motivos que deixa os indígenas propensos a contrair a doença, uma vez que indígenas
que vivem isolados possuem uma alta propensão de adoecimento, pelo fato de
possuírem imunidade mais enfraquecida para enfrentar os patógenos externos. A
contaminação de uma pessoa pode dizimar uma comunidade inteira. Outro fator que
contribui para a rápida disseminação da doença é a condição de possuírem um modo
de viver diferente, como sua cultura, rituais, rezas, danças, entre outros costumes,
possibilitando com que vejam o mundo com uma percepção distinta. A vulnerabilidade
relacionada à saúde indígena também é agravada pelo fato de que, ao necessitarem de
atendimentos de alta complexidade, podem ficar desassistidos pela distância entre as
comunidades e os serviços de atendimento hospitalar localizados em cidades vizinhas
(AYRES, 2020).

Outra condição relevante que contribui para a vulnerabilidade dos indígenas


envolve a falta de oferta de medidas sanitárias em muitas reservas. A inexistência de
banheiro ou sanitário dificulta o isolamento de pessoas infectadas e interfere na
realização dos cuidados básicos de higiene pessoal, tornando maior o risco de
contaminação. Outra situação que colabora para o contágio é o grande número de
pessoas em moradias pequenas, favorecendo o descumprimento das medidas
preventivas recomendadas (AZEVEDO, 2020).

Como estratégia de manter o vírus distante, algumas práticas terapêuticas vêm


sendo realizadas para fortalecer seus corpos, comunidades e territórios. Nessa batalha
contra a doença que ameaça seu povo, reconhece-se que o conhecimento tradicional
pode ser uma arma que pode auxiliar nessa luta (MONDARDO, 2020).

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Diante disso, como uma possível tentativa de amenizar os efeitos causados pela
COVID-19, os povos indígenas estão realizando algumas ações terapêuticas para conter
o avanço da COVID-19 ou amenizar o efeito do vírus em seus corpos.

Dessa forma, este estudo teve como objetivo contextualizar a história dos povos
indígenas e suas repercussões na atualidade, as políticas de saúde para os povos
indígenas no Brasil e a população indígena diante do cenário pandêmico.

Foi realizado um estudo de revisão narrativa da literatura, com análise descritiva


e qualitativa, em que se buscou avaliar trabalhos relevantes para a área em questão, por
meio da busca de artigos científicos em bases de dados.

A revisão narrativa tem um caráter mais aberto, mais livre, menos determinado e
específico. Não necessita de critérios estruturados, rígidos, sendo que a seleção dos
estudos pode ser mais arbitrária do autor (CORDEIRO et al., 2007).

Apesar de a revisão narrativa não exigir um rigor metodológico na pesquisa das


produções, com critérios de inclusão ou exclusão, optou-se por buscar estudos em
bases de dados com frequente veiculação de trabalhos que tratam da temática abordada
neste estudo. Assim, utilizaram-se as bases SciELO, Web of Science e Google acadêmico
que, pelos textos disponíveis, possibilitaram a efetivação do objetivo projetado para esta
investigação.

As buscas foram realizadas entre os meses de outubro a dezembro de 2021 e a


análise e discussão dos resultados encontrados foram elaboradas entre os meses de
janeiro e março de 2022.

A história dos povos indígenas e suas repercussões na atualidade


Atualmente a população indígena no Brasil perfaz um total de 817.963 mil pessoas,
formadas em 305 etnias, falantes de 274 línguas distintas, de acordo com o censo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 (IBGE, 2012). Contudo,
historicamente, os povos indígenas convivem em circunstâncias que os excluem,
marginalizam e discriminam seu modo de viver, favorecendo e expondo a maiores
vulnerabilidades e maior agravamento frente a algum problema de saúde (COIMBRA
JUNIOR; SANTOS, 2000).

Ao perceber o histórico dos povos indígenas, observa-se uma retórica de muita


luta e resistência. Com isso, também é possível notar que os povos indígenas são
pessoas com autonomia anulada e negligenciada, com reduzido poder de visibilidade
nos espaços institucionais de produção de memória, como por exemplo universidades,

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museus e afins. Além disso, também é observada a falta do indígena nos espaços de
poder público e de gestão pública, fazendo com que seja um povo silenciado (BONIWA;
TUXÁ; TERENA, 2020).

A história dos indígenas no Brasil envolve muitas problemáticas quanto ao acesso


e uso da terra, um povo marcado pela violência e desigualdade. A ocupação e exploração
do solo brasileiro são importantes para as transformações que os povos originários
passam no decorrer dos anos. Com isso, é imprescindível reconhecer todo o
conhecimento e sabedoria sobre a terra que os indígenas possuem (SILVA, 2018).

Por muito tempo as práticas tradicionais indígenas foram utilizadas como a única
forma de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças nas comunidades indígenas.
Essa era a maneira de suprir a falta de serviços de saúde nesses territórios. Apesar das
práticas e saberes em saúde serem diferentes, elas não podem ser desconsideradas em
relação à medicina ocidental, devendo compor qualquer trabalho em saúde que envolva
povos de cultura diferenciada (MENDES; ROSÁRIO, 2020).

A partir do histórico e amplo conhecimento popular pelos povos tradicionais, as


plantas medicinais estão cada vez mais sendo alvos de estudos científicos. A atividade
de espécies vegetais no aumento da resistência imunológica encontra-se amparada em
uma variedade de estudos científicos com diferentes modelos experimentais, sendo a
propriedade imunoestimulante atribuída pelos seus diferentes compostos, como
flavonóides, taninos, polissacarídeos, saponinas e alcalóides, que se encontram nas
diversas partes das plantas (MARQUES et al., 2015).

As plantas medicinais são utilizadas na prevenção e combate de doenças e em


rituais espirituais de prevenção, cura e redução de sofrimentos causados pela reclusão
e impossibilidade de praticarem algumas de suas culturas (ALBUQUERQUE, 2012).

Os pajés são conhecidos nas comunidades indígenas por possuírem o dom da cura
e ter conexão e mediação direta entre os encantados e os humanos. De modo geral, os
pajés trabalham com a incorporação dessas entidades durante as sessões de cura por
meio de um roteiro que envolve cantos, uso de chocalhos, rezas, defumações e ingestão
de bebidas específicas, com a finalidade de retirar a doença do corpo enfermo (VAZ
FILHO et al., 2016). A figura do pajé apresenta uma função de grande importância, que
abrange um vasto campo do mundo espiritual. Ele não só realiza cura como também
previne a comunidade de males, localiza objetos furtados, identifica feiticeiros, etc. Ele
pode também pedir ajuda de outro pajé da mesma comunidade ou de fora, dependendo
do caso (JUNQUEIRA, 2004).

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Tradicionalmente, os povos indígenas vêm resistindo a processos que os


inferiorizam e desrespeitam o seu modo de ser e viver. Ao longo dos 500 anos, os
indígenas, assim nomeados pelos não indígenas, vem tentando expressar sua
verdadeira identidade, decidindo sobre seu futuro e buscando seu lugar na sociedade.
Após a invasão dos territórios indígenas que hoje se chama Brasil, existe uma tendência
de apagar ou desconsiderar a diversidade que aqui permeava. Uma das formas de
cometer o genocídio dos povos indígenas é a utilização desapropriada da palavra
“indígena” que pode por vezes desconsiderar as mais de 274 línguas maternas faladas e
os 305 povos espalhados pelo nosso país (GUAJAJARA; SANTOS, 2020).

Segundo Aurora et al. (2020), existem diferentes formas de praticar o genocídio


indígena, quando se trata de acesso à saúde, a violência social e a falta de compreensão
sobre a diversidade dos povos indígenas que somam mais de 800 mil existentes em
nosso país. Frente a isso, os profissionais de saúde encontram dificuldades de
comunicação com os indígenas.

As políticas de saúde para os povos indígenas no Brasil


A partir de movimentos e lutas do povo brasileiro, a constituição federal de 1988
foi uma conquista alcançada pela população. Os direitos dos povos indígenas foram
garantidos a partir dessa constituição, reconhecendo as especificidades culturais,
firmando o compromisso do estado para garantir a saúde como direito de todos e dever
do estado, em todo território brasileiro (SCHWEICKARDT; SILVA; AHMADPOUR, 2020).

Para facilitar as condições de saúde da população indígena que vive em terras


aldeadas, foram implantados em 1999 os Distritos Sanitários Especiais Indígenas
(DSEIs), constituindo uma rede interconectada de serviços de saúde que fornece
cuidados de atenção primária à saúde, apropriados às necessidades sanitárias
essenciais para a conservação da saúde dessa população. Alguns serviços prestados
pelos DSEIs são voltados para prevenção de doenças, tais como vacinação e
saneamento básico. Os Polos Base (PB) apresentam outro nível de complexidade, o qual
busca melhorar a assistência a esses povos. Os PB são constituídos por uma unidade de
saúde que conta com profissionais de saúde, os quais sistematizam os serviços a serem
prestados, visando garantir atendimento eficiente e resolutivo para as demandas
apresentadas, adotando maneiras simples e com menores custos (GARNELO; PONTES,
2012).

De acordo com Brasil (2002), a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas (PNASPI) reconhece os indígenas e suas especificidades étnicas e culturais,
bem como seus direitos territoriais e de saúde. Esta proposta foi regulamentada pelo

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Decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999, que dispõe sobre as condições de assistência
à saúde dos povos indígenas. A implementação dessa política requer a adoção de um
modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços, voltados para a
proteção, promoção e recuperação da saúde, garantindo a cidadania aos povos
indígenas. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é a área do ministério da
saúde que tem a responsabilidade de coordenar a PNASPI, sendo que o processo de
gestão do SASI no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) também fica sob sua
responsabilidade. A criação da SESAI em 2010 foi uma reivindicação dos próprios
indígenas com o objetivo de reformulação da gestão da saúde indígena no país (BRASIL,
2019).

Outro passo importante para os povos indígenas foi a lei Arouca, instituída em
1999, em decorrência de movimentos indigenistas. O nome da lei é em homenagem ao
sanitarista Sérgio Arouca que contribuiu de forma relevante para a contemplação da
saúde aos povos indígenas. A lei Arouca foi criada com o propósito de oferecer atenção
diferenciada, considerando a pluralidade e particularidades culturais que compreende
e abrange os povos indígenas. Na sequência foi elaborado o Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena (SASI/SUS) que busca garantir a qualidade e a equidade da assistência
prestada à população indígena (SCHWEICKARDT; SILVA; AHMADPOUR, 2020).

Diante das lutas que os povos indígenas enfrentam para ter acesso à saúde
diferenciada, é notável os grandes avanços ocorridos ao longo do tempo. Entretanto,
esses avanços obtidos podem ter sido abalados com o aparecimento do SARS-CoV-2,
causador de tanta desordem na rotina e vida social dos indivíduos do mundo todo.

A COVID-19, sendo um “fato social total” intensifica as tensões voltadas para o


estado na implementação de novas políticas públicas voltadas aos povos indígenas. Isso
ocorreu neste cenário devido ao fato dos grandes impactos na modalidade de
resistência e enfrentamento do movimento indígena, tendo em vista a violência, a falta
de moradia e alimentação, e a dificuldade de realizar rituais funerários que eram
tradicionais dos povos indígenas (SANTOS; PONTES; COIMBRA, 2020).

Para auxiliar os povos indígena neste período de pandemia foi sancionada a lei nº
14.021, de julho de 2020, que criou o Plano Emergencial para o enfrentamento da
COVID-19 em Territórios Indígenas, o qual estabelece medidas de vigilância sanitária e
epidemiológica, visando diminuir o contágio em terras indígenas. Além disso, dispõe
sobre ações que garantam que essa população receba alimentação básica para esse
período, e que os indígenas isolados ou que recentemente tiveram contato
mantenham-se em segurança neste período catastrófico (BRASIL, 2020).

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O objetivo do Plano Emergencial é garantir que os indígenas tenham acesso aos


materiais e serviços necessários para manutenção da saúde e prevenir o contágio e
espalhamento do novo coronavírus, assim como tratar e recuperar a saúde dos
indígenas contaminados (BRASIL, 2020).

A população indígena no cenário pandêmico


Pandemia é o termo epidemiológico que indica vários surtos concomitantes,
disseminando-se em várias partes do mundo. Entretanto os surtos não são iguais em
cada um que está infectado, podendo agir de forma distinta em cada pessoa, com
intensidade e agravos diferentes. A gravidade dos surtos pandêmicos também está
fortemente relacionada com as condições socioeconômicas, culturais, ambientais,
coletivas ou individuais. Uma pandemia pode se tornar um fenômeno de escala global,
como é o caso da COVID-19, que em menos de 3 meses, disseminou-se em 210 países,
causando o adoecimento das pessoas e levando ao aumento da mortalidade (MATTA et
al., 2021).

A pandemia causada pelo novo coronavírus, que trouxe grandes impactos em nível
mundial e para comunidades específicas, é considerada um fato ou fenômeno social
total, o qual se manifesta como um amplo problema em diversas dimensões, sendo elas:
habitação, educação, economia, religião, legislação, moralidade, estética e ciência.
Contudo, sabe-se que em alguns segmentos sociais pontuais e específicos são notórias
as conformações próprias que esse problema conduz. Um exemplo importante é o caso
dos povos indígenas que têm sido diretamente impactados pela pandemia (SANTOS;
PONTES; COIMBRA, 2020).

Sabe-se que os povos indígenas possuem maior suscetibilidade na contaminação


por vírus respiratórios. Desde os primórdios, antes do contato com outros povos e
culturas na conquista das Américas, existem registros de grandes impactos
populacionais e socioculturais causados pelas epidemias recorrentes trazidas pelos
europeus. A invasão de terras indígenas por colonizadores acarretou em enormes
perdas e aniquilamento de culturas a partir de vírus, inserção de alimentos prejudiciais
(como bebidas destiladas), e imposição na mudança de cultura e modos de viver da
população indígena (EL KADRI, 2021).

É reconhecida a fragilidade dos povos indígenas diante das infecções respiratórias,


particularidades culturais e do seu modo de viver diferenciado. Os determinantes
sociais impactam negativamente na saúde, como a falta de condições básicas de
saneamento e abastecimento de água, educação deficitária, baixo acesso a habitações
dignas e carência de acesso a projetos para geração de renda, falta de segurança pública

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e estímulo para a produção de modos de subsistência, esporte e lazer e


desconhecimento de políticas públicas para os povos indígenas tem como
consequência agravos nas condições de saúde dessa população (MORO et al., 2020).

Com alertas veiculados pelos meios de comunicação, de que a propagação do SARS


CoV-2 se alastrava em reservas indígenas, algumas comunidades utilizaram de algumas
estratégias, como uso de chás e banhos com ervas medicinais para preparar o corpo
contra o vírus. Outra estratégia foi a de proibir a saída dos indígenas para as cidades
próximas e algumas barreiras físicas também foram criadas na entrada das
comunidades para evitar o contato com não indígenas que poderiam estar
contaminados (EL KADRI, 2021).

No contexto em que a COVID-19 se encontra, há registros de 59657 casos


confirmados e 1209 mortes por COVID-19, afetando 163 povos indígenas do Brasil até o
dia 01 de outubro de 2020. O número de casos confirmados e óbitos indígenas
representa os dados informados pela SESAI e analisados pelo Comitê Nacional de Vida
e Memória Indígena (APIB, 2021).

Algumas recomendações de saúde implicaram em impasses éticos interculturais


que tendem a aumentar o sofrimento psíquico nas comunidades indígenas frente à
pandemia de COVID-19, na medida que comprometeram a realização de algumas
práticas. Uma delas se refere ao manejo de cadáveres das pessoas que vieram a óbito
em consequência da pandemia, impedindo os indígenas de praticar rituais de luto,
considerado indispensável para o equilíbrio psicossocial e espiritual do seu universo
(PEREIRA et al., 2021).

Outra recomendação que implicou na saúde mental dos indígenas foi a realização
do isolamento domiciliar para os casos positivos de coronavírus. Para os indígenas o
compartilhamento de substâncias corporais, alimentos e objetos fazem parte da forma
de convivência e sociabilidade (PEREIRA et al., 2021).

O cenário enfrentado pelos indígenas retrata a atual situação dos povos indígenas
brasileiros, lutando diretamente contra uma doença trazida do mundo exterior,
favorecendo a desassistência pelo governo. No entanto, o indígena enxerga nessa
dificuldade, uma oportunidade de usar de sua singularidade para mostrar o
conhecimento ancestral relacionado à cura de doenças por meio do conhecimento
medicinal repassado pelas gerações anteriores (AURORA et al., 2020).

Os saberes tradicionais utilizados pelos povos indígenas envolvem o contato com


as plantas medicinais, os rituais, as rezas e os benzimentos, considerando a importância
de cada um deles para manter viva a cultura e o modo de viver indígena. Todos esses

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conhecimentos são realizados de acordo com a experiência adquirida com tempo, pelo
seu uso e pelo reconhecimento de seus benefícios, podendo-se afirmar que eles
funcionam e ajudam na melhoria do estado de saúde, seja física ou espiritual. Os saberes
tradicionais que acompanham os povos indígenas merecem ser reconhecidos e
valorizados, visto que são elementos próprios da cultura de um povo que cultua e
procura manter viva suas tradições, memórias e legado de sua ancestralidade.

Considerando o exposto, os serviços de saúde prestados aos indígenas exigem,


acima de tudo, o respeito e a compreensão quanto ao estilo de vida dos mesmos,
garantindo uma conexão entre os cuidados de enfermagem e os métodos naturais
utilizados nas comunidades indígenas, como o uso das raízes e plantas nativas do seu
território (VIANA et al., 2020).

Considerações finais
De acordo com os referenciais teóricos encontrados, a contextualização da
história dos povos indígenas no Brasil indica um cenário de luta pela garantia dos seus
direitos. O uso de saberes tradicionais é consequência de um conhecimento natural,
passado através de gerações. Com a chegada da pandemia de COVID-19 os indígenas
foram atingidos por essa doença e recorreram aos conhecimentos tradicionais para o
enfrentamento desse momento de crise sanitária. Para conter o avanço da COVID-19
ou amenizar o efeito do vírus em seus corpos, foram praticados benzimentos, rituais e
uso de plantas medicinais baseados em práticas empíricas e enfatizada por sua grande
valia como um recurso de saúde para os indígenas.

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A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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A educação popular em diálogo com a


teologia política, mística e feminista de
Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
Paulo Alfredo Schönardie*
Claudete Beise Ulrich**

Introdução
A educação popular pode dialogar, em processo de práxis, com os mais diferentes
movimentos da sociedade. E sua vivência está efetivamente em tessitura com as mais
amplas lutas dos movimentos sociais. Lutas, muitas vezes, pela efetivação de direitos
elementares, tais como o acesso à espaços geográficos de produção de soberania
alimentar. Os movimentos da luta pela terra representam uma das realidades de busca
pela vida. Ao mesmo tempo os sujeitos que vivenciam em processo, reconstroem sua
práxis, consequentemente o campo teórico pelo qual tecem suas relações
experienciais. A educação popular pode estar assim também no campo teológico. E
efetivamente está na construção e reconstrução de uma teologia política, mística e

*
Pós-Doutor em Educação pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
Unijuí; Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universität Hamburg – UHH, Alemanha, com
revalidação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp; Mestre em
Educação nas Ciências, área História e Licenciado em História pela Unijuí. Atua como Coordenador do
Polo Universitário Federal de Três de Maio/RS – PUFTM e é professor no ensino público. Integra o GT
Educação Popular da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação – Anped. É
pesquisador nos grupos: Estudos de Educação Popular, Movimentos e Organizações Sociais –
Geep/Unijuí/CNPq; e, Religião, Gênero e Violências: Direitos Humanos – Regevi/FUV/CNPq.
E-mail: pschonardie@gmail.com
**
Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes; Pós-doutora em
História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Doutora, Mestra e Graduada em Teologia:
área de concentração religião e educação pela EST; Licenciada em Pedagogia pela Universidade do
Estado de Santa Catarina – Udesc. Professora na Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências da
Religião na Faculdade Unida de Vitória – FUV. Coordena os Grupos de Pesquisa Religião, Gênero,
Violências: Direitos Humanos – Regebi/FUV/CNPq e da Cátedra de Teologia Pública e Estudos da
Religião Ver. João Dias de Araújo (CNPq) da FUV e é pesquisadora no grupo Culturas, Parcerias e Educação
do Campo – Ufes/CNPq.
E-mail: claudete@fuv.edu.br

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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feminista, protagonizada pela teóloga Dorothee Sölle. Ela ressignificou a si e a teologia


em suas experiências com a luta latino-americana pela terra. Caminhar pelos
entrelaçamentos de Dorothee Sölle, da educação popular, da teologia política, mística
e feminista e, da luta pela terra protagonizada pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) é o que propomos desenvolver aqui. A práxis de Sölle na
reconstrução teológica a partir do movimento social tem em sua base uma matriz
educativa popular de efetiva vivência de autonomia em processo.

O protesto e a ação de mulheres e homens, embasadas e embasados em valores


cristãos, perante as injustiças sociais de suas épocas, lançaram e continuam lançando
centelhas de resistência, muitas vezes às margens do possível. De acordo com Edla
Eggert (2003), construindo uma teologia das margens. Entendemos que, desta forma,
se amplia a envergadura político contextual da teologia, em uma realidade social na
maioria das vezes adversa, por isso mesmo, fazendo parte de um movimento histórico
e atual de constante reforma e transformação. A reflexão teológica não é neutra e
sempre necessita estar situada historicamente.

Neste sentido, o acontecimento histórico protagonizado por Martinho Lutero, em


1517, ao questionar injustiças em seu tempo, pregando as 95 teses para serem debatidas
por sua comunidade em Wittenberg na Alemanha, é sem dúvida um dos grandes marcos
de uma reforma da práxis religiosa.

Segundo Ulrich e Brakemeier (2017, p. 12-13), todo o sistema sócio religioso que se
beneficiava da pobreza é profundamente questionado e criticado a partir da teologia da
justificação por graça e fé. Podemos dizer que a teologia do movimento da reforma
afirmou os pobres como sujeitos de direitos, libertando-os das obras de caridade. As
obras de caridade, que se faziam em benefício dos pobres, tinham somente o objetivo
de aliviar a própria consciência e de garantir um lugar no céu. O movimento da reforma,
realizado por homens e mulheres, afirma a necessidade de mudanças radicais na
sociedade, na política, na economia e na ética religiosa. Desloca-se o foco teológico: de
ações voltadas para alcançar o céu, através do sistema das indulgências, volta-se para
a realidade social das pessoas, dos/as pobres e dos/as necessitados/as.

Importante apontar objetivamente que, o protesto e ação de Lutero não é um


acontecimento isolado. É oriundo da conjuntura histórica e da situação de premência
vivida por grande parte da população em sua época. Por isso mesmo, o início do século
XVI foi um período de profícuos questionamentos, embasados em valores cristãos, a
partir das muitas margens, como também atesta Friedrich Engels, quando historiciza
os movimentos protestantes reformadores de Martinho Lutero e Thomas Müntzer

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
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(WIRTH, 2019). De uma forma bastante ampla, Engels destaca que os movimentos
reformadores queriam que “[...] a igualdade dos filhos (sic) de Deus deveria traduzir-se
pela igualdade dos cidadãos (sic) e até pela dos seus bens” (ENGELS, 1975, p. 4). São
reivindicações que expressam basicamente as necessidades dos/as camponeses/as na
luta por direitos em seu tempo histórico.

Com cinco séculos percorridos desde a conjuntura inicial das reformas


protestantes, seus adeptos foram crescendo, mas os problemas sociais não foram
extintos. Em diferentes situações inclusive, se agravaram. Obviamente que a sociedade
se manteve em movimento nos diferentes períodos históricos. Da mesma forma, o
ideário e a prática da reforma cristã também continuaram se movimentando e se
transformando.

Desta forma, também Dorothee Sölle desenvolveu sua reflexão teológica de forma
radical, profética e incondicional (WIND, 2013, p. 6). Ela frequentemente lembrava em
suas palestras e escritos a inspiradora teóloga mística Teresa de Ávila: “Deus não tem
outras mãos, a não a ser as nossas” (SÖLLE, 2014, p. 361). As suas palavras representam
um desafio, um convite para a atuação social. Perceber e ouvir o “grito silencioso” dos
oprimidos e excluídos em nosso mundo, significa se tornar um/a com eles/as (SÖLLE,
2014, p. 361). Ela praticava uma teologia em que, por um lado, via a origem da fé no
engajamento político e por outro lado, tinha neste engajamento político a base para a
sua vida. Ela organizava sua ação cotidiana, a partir das necessidades políticas dos
excluídos sociais (SCHÖNARDIE, 2014, p. 87). Ainda de acordo com a percepção de
Schönardie, esse seu movimento de fé e ação política fez dela uma revolucionária, ao
mesmo tempo em que indicava novos caminhos para os grupos sociais envolvidos em
resistência e para a própria Igreja como instituição (SCHÖNARDIE, 2014, p. 87).
Entendemos Dorothee Sölle como uma teóloga ativa e que não se calou em seu tempo
histórico. Ela se engajou profeticamente pelas causas sociais, pelos/as pobres e
explorados/as sendo, juntamente com Jürgen Moltmann e Johan Baptist Metz, uma
protagonista da teologia política1.

Os movimentos reformadores como os de Lutero2, de Müntzer, entre outros,


tinham forte ligação com a difícil realidade do campesinato. Em sua base estava a

1
“Apesar de diferenças em suas elaborações teológicas tanto Metz, como Moltmann e Sölle convergem
em duas posições: a teologia política é considerada uma hermenêutica e a teologia política é uma crítica
à Igreja e à própria teologia. A crítica à Igreja e à teologia centraliza-se, em especial, na privatização da
fé cristã. É criticado o alheamento da Igreja e de seus seguidores com relação aos problemas que atingem
a sociedade como um todo” (SATHLER-ROSA, 2014, p. 17).
2
É fato que o movimento da Reforma Protestante protagonizada por Lutero tinha fortes ligações com
os/as camponeses/as. A sociedade da época era ainda predominantemente camponesa. Mas também é

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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questão da terra, como já é percebido na afirmação de Engels acima apresentada, em


que vê a terra como um bem a ser partilhado. Da mesma forma, Dorothee Sölle,
construiu sua prática e teoria teológica a partir da luta pela terra protagonizada por
camponesas e camponeses, numa conjuntura em que estes e estas se organizam no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Neste sentido, a teóloga, a
partir dos anos de 1970, se aproximou da teologia da libertação. Helmuth Renders (2008,
p. 280) afirma: “Sölle substituiu a descrição da sua teologia como teologia política pela
designação Teologia de Libertação ao redor de 1975”.

Dorothee Sölle se encontra, em nosso entender, na continuidade daquelas e


daqueles que buscaram transformações sociais e políticas, a partir de uma reflexão
contextual e crítica da fé cristã. Ela é uma das mulheres teólogas místicas do movimento
da reforma contemporânea (ULRICH; DALFERTH, 2017). Apresentamos, na sequência
alguns aspectos da biografia de vida de Dorothee Sölle, o seu entrelaçamento reflexivo
com os movimentos sociais e consequentemente com o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, ou seja, apresentamos a sociedade em que as lutas e reformas se dão
histórica e hodiernamente.

A realidade de vida e a consequente vivência da fé cristã se apresentam como um


processo de educação popular pela práxis. Como Freire (1987, p. 53) nos ensinou, a
práxis se “[...] constitui a razão nova da consciência oprimida”. Tem-se por um lado uma
construção educativa, e por outro, a difusão das vivências pelo mesmo processo
educativo popular. Assim, se faz mister também tematizar a teologia política/da
libertação como processo educativo popular que, por sua vez dá vida e continuidade
histórica ao movimento da reforma que busca no tempo presente, transformações. Por
fim, retomaremos a perspectiva da teologia política/da libertação de Sölle em sua

preciso registrar que essas ligações não eram pacíficas. Para garantir seu pensamento reformador Lutero
foi direcionado a se aliar a determinados grupos (príncipes/nobres) que também possuíam em suas
fileiras camponesas e camponeses. Já a relação com os camponeses aliados a grupos contrários não foi
das melhores. Consequentemente os conflitos surgidos para garantir a efetivação da reforma vitimaram
muitos/as, e como a sociedade era basicamente camponesa, obviamente a maior quantidade de vítimas
foi de camponeses e camponesas. As posições de Lutero, mesmo que historicamente localizadas, são
contraditórias e também raivosas, necessitando de uma profunda análise crítica. Neste sentido,
recomendamos a leitura LUTERO, M. Exortação à paz: resposta aos doze artigos do campesinato da
Suábia 1525. In: LUTERO, M. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996.
v. 6, p. 304-329. Vejam o texto adendo ao anterior indicado, extremamente agressivo em relação aos
camponeses LUTERO, M. Exortação à paz: resposta aos doze artigos do campesinato da Suábia 1525.
Adendo: contra as hordas salteadoras e assassinas dos camponeses 1525. In: LUTERO, M. Obras
selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996. v. 6, p. 330-336.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
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relação com os processos de reforma da Igreja, estes vivenciados a partir dos contextos
sociais e dos processos educativos que realimentam a tessitura social.

Dorothee Sölle: alguns aspectos biográficos


Dorothee Sölle nasceu em 30 de setembro de 1929, em Köln (Colônia) e faleceu em
27 de abril de 2003 em Göppingen, na Alemanha (HAMBURGER, 2020). Ela foi
professora, escritora, pesquisadora, palestrante, teóloga, luterana. Quando terminou o
colegial (ensino médio), estudou inicialmente filosofia e filologia clássica em Colônia.
Mudou de curso e se dedicou aos estudos da Teologia Protestante e Estudos Alemães
em Freiburg e Göttingen, e obteve o seu título de doutora em filosofia, em 1954. De 1954
a 1960, Sölle foi professora de uma escola secundária para meninas em Colônia-
Mülheim. Trabalhou como freelancer para rádio e várias revistas. Em 1962, tornou-se
assistente no Instituto Filosófico da Universidade Técnica de Rheinisch-Westfälische
em Aachen e, em 1964, atuou como orientadora no serviço universitário estudantil no
Instituto Germânico da Universidade de Colônia. Também realizou nesta Universidade,
a sua habilitação para atuar como professora universitária. Na tese para habilitação, ela
trabalhou a relação entre teologia e poesia, terminando-a, em 1971.

Embora Sölle não tenha realizado o seu doutorado em teologia, a maioria de suas
publicações tratam de questões teológicas. Ela não ocupou uma cadeira de teologia na
Alemanha, mas foi professora de teologia sistemática no Union Theological Seminary
(Seminário Teológico Unido), em Nova York, entre 1972 e 1987. Ela como cristã entendeu
que a confissão religiosa e a consciência política são inseparáveis. Dorothee Sölle se
tornou conhecida por um grande público através de seu envolvimento nos movimentos
pela paz, suas aparições/palestras nos dias da igreja na Alemanha ou das leituras de
suas próprias poesias em lugares públicos. Ela esteve envolvida em inúmeras iniciativas
políticas e ecumênicas e foi co-iniciadora das Orações Políticas da Noite, que
ocorreram em Colônia, entre 1968 e 1972. Sölle se casou, em um segundo casamento,
com o professor de educação religiosa da Universidade de Hamburgo, Fulbert
Steffensky. O casal viveu em Hamburgo por muitos anos. Dorothee Sölle morreu em 27
de abril de 2003, em Göppingen, em uma viagem de trabalho.

Em Hamburgo, foi construída em sua homenagem militante a “Casa Dorothee


Sölle”, um local para formações, educação política e social, palestras, conferências,
músicas, poesias. Nesta casa, encontra-se em uma das paredes, a seguinte citação de
Sölle, que foi publicada em 1991, na revista Junge Kirche:

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A justiça é o caminho para Deus, o qual nós podemos encontrar. Ela (a justiça) é
a vontade de Deus. É por causa dela que a Bíblia fala tão incessantemente dos
pobres, e que a riqueza que acumulamos entre nós e os pobres bloqueia Deus e
também obstrui o caminho para Deus. Deus tem algo a ver com a ordem
econômica? A Bíblia diz: sim, e ela assume o lado dos mais pobres (Tradução livre
de Claudete Beise Ulrich) (SÖLLE, 1991, p. 52)3.

Durante sua vida atuou como palestrante, escritora, militante professora e


pesquisadora em diversas instituições e universidades, tanto na Alemanha, quanto nos
Estados Unidos. No entanto, em sua terra natal, Alemanha, obteve reconhecimento
acadêmico apenas em seus últimos anos, o que creditamos às suas posições político-
sociais bastante revolucionárias para a época. Em 1994, recebeu o título de doutora
honoris causa da Universidade de Hamburgo, na Alemanha.

Para a construção de suas reflexões, houve contribuição significativa do que


Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses nomearam posteriormente de
epistemologias do sul (SANTOS; MENESES, 2010, p. 12). Sölle conheceu pessoalmente
realidades como a do antigo Vietnam do Norte, no início dos anos 1970; já nos anos 1980,
esteve na Nicarágua a convite do Movimento Sandinista; fez várias incursões pela
América Latina e teve significativo contato com o MST brasileiro, este que será
analisado mais adiante e que representou muito para o desenvolvimento da mudança
na sua denominação teológica: teologia política para teologia da libertação (BOFF;
BOFF, 2010). No entanto, é necessário afirmar que as diferentes formas da mística vivida
por homens e mulheres na história teve grande influência no seu pensamento, como já
citado, destaca-se a mística e teóloga Teresa de Ávila (SÖLLE, 2014, p. 122). Ela também
cita no seu livro Mystik und Widerstand, teólogos e escritores latino-americanos e
brasileiros como João Cabral de Melo Neto, Leonardo Boff, Helder Câmara, Pedro
Casaldáliga, Ernesto Cardenal, apontando para a mística da teologia da libertação
(SÖLLE, 2014).

Dorothee Sölle se reporta a luta de Chico Mendes pelo cuidado da floresta e o seu
assassinato. E assim se refere a uma mística da morte dos mártires: “um outro elemento,
que transparece da mística da morte, é uma estranha liberdade, que tudo transforma,
ao que denominamos morte. [...] é o que Pedro Casaldáliga diz quando se reporta ‘ficar
nu’” (SÖLLE, 2014, p. 376). A morte/o assassinato dos que lutam pela igualdade social, o

3
Gerechtigkeit ist der Weg zu Gott, den wir finden können. Sie ist der Wille Gottes. Ihretwegen spricht
die Bibel so unaufhörlich von den Armen und meint, dass der Reichtum, den wir zwischen uns und den
Armen aufhäufen, uns auch Gott verstellt und den Weg zu Gott verbaut. Hat Gott denn etwas mit der
Wirtschaftsordnung zu tun? Die Bibel meint: ja, und sie ergreift die Partei der Ärmsten (SÖLLE, 1991, p.
52).

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A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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cuidado da terra e da floresta, desnuda o sistema que explora, violenta e mata. Segundo
a teóloga:

Há pessoas que não apenas ouvem os gritos silenciosos de Deus, mas também
os tornam audíveis como a música do mundo que ainda hoje preenche o cosmos
e a alma. (Tradução livre de Claudete Beise Ulrich) (SÖLLE, 2014, p. 389)4.

Sölle é reconhecida mundialmente como uma das mais destacadas e ao mesmo


tempo controversas teólogas protestantes, podendo-se afirmar, ser ela representante
de um outro protestantismo, em que, com seus textos teológicos e poesias procura ligar
a perspectiva teológica ao cotidiano, às experiências de vida, e de forma especial à luta
contra o sofrimento, a pobreza, a discriminação, a opressão. A sua teologia atenta
sempre de novo aos gritos e clamores dos sofridos e das injustiças em nosso mundo,
que também, simbolicamente, são os gritos e as dores de Deus.

Politicamente, ela esteve engajada nos movimentos pela paz, contra a construção
de usinas nucleares, feminista e nas lutas dos movimentos ecológicos. Além de ter sido
uma teóloga política, mística, foi feminista (SÖLLE, 1991, p. 76). Ela disse:

[...] não falo sobre algo que Deus poderia evitar ou abolir. Se falamos da dor de
Deus, então temos uma outra idéia (sic) de Deus que a puramente masculina.
Então, Deus é a nossa mãe que chora pelo que fazemos uns aos outros e aos
nossos irmãos, aos animais e às plantas. Deus nos consola como o faz uma mãe:
ela não consegue tirar a dor como num passe de mágica (se bem que também
isso pode acontecer!), mas ela nos segura no colo até conseguirmos levantar
outra vez e até que tenhamos novas forças. Deus não poderia nos consolar, se
Ela não estivesse ligada a nós na dor, se Ela não tivesse essa capacidade
maravilhosa e rara de sentir a dor de alguém em seu próprio corpo. Sofrer com,
estar aí com (SÖLLE, 1999, p. 63).

Suas posições teológicas em favor da justiça social lhe valeram muitas resistências
dentro e fora da Igreja. Seu engajamento social foi, entretanto, impulsionador de sua
teologia política e libertadora, e esta por sua vez, contribui significativamente para
manter a Reforma Protestante em movimento, na construção da liberdade democrática.
Construção e continuidade da teologia política podem ser observadas no contexto
educativo social, especialmente pela luta pela terra.

4
Es gibt Menschen, die das stille Geschrei, das Gott ist, nicht nur hören, sondern es auch hörbar machen
als die Musik der Welt, die den Kosmos und die Seele auch heute erfüllt (SÖLLE, 2014, p. 389).

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O contexto social: a terra, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra


e Dorothee Sölle
A teologia política e libertadora de Dorothee Sölle foi decisivamente influenciada
pelos excluídos sociais, dentre eles os trabalhadores rurais sem terra e especialmente
pela luta e a mística do MST (SÖLLE, 2014, p. 376). Ela desenvolveu muito de sua teoria
a partir do contato com movimentos socais e ao mesmo tempo essa teoria, a teologia
política, da libertação e mística, é hodiernamente instrumento concreto da luta
político-social pela terra no Brasil. Para entender o entrelaçamento e o
desenvolvimento da obra de Sölle com a luta pela terra e o MST é mister lançar um
olhar histórico sobre a história agrária da terra e consequentemente sobre a
constituição do MST.

A disparidade em relação à propriedade e ao uso das terras é histórica. Nas


sociedades antigas, aos poucos foram se constituindo clãs, que pela força e pela ligação
parental, se apropriavam de imensas extensões de terras. E dentro desses clãs, possuir
propriedade seguia uma explícita hierarquia. Desde a antiguidade, assim, se
constituíram os proprietários e os trabalhadores, à época, em sua maioria escravizados.

A estrutura fundiária atual tem ainda muito de suas origens da passagem do


Mundo Romano para a Idade Média. Os poderosos da Roma Antiga ruíram o império ao
tornarem absoluto o poder sobre suas terras e sobre as pessoas ligadas a essas terras.
Importante saber que, em boa parte da Europa, mesmo com o passar dos séculos, os
títulos de nobreza e a propriedade dos nobres não foi extinta, ou seja, sua descendência
ainda tem em mãos significativa área geográfica, na maioria das vezes, as melhores
paragens. E mais que isso, a sociedade latino-americana e brasileira é basicamente
oriunda da cultura europeia-ocidental, reproduzindo também a disparidade fundiária e
a consequente continuidade da histórica exclusão camponesa.

A concentração das terras é assim, um problema histórico na América Latina e


especialmente no Brasil. Desde o sistema colonial, as maiores extensões e as terras mais
produtivas pertencem apenas a alguns poucos grandes fazendeiros. Terra não pertence
para aqueles que nela trabalham (SCHÖNARDIE, 2013, p. 134). Para Argemiro Jacob
Brum (1988, p. 52), a terra serviu historicamente “[...] de base de poder para uns poucos
senhores sobre milhares e milhões de escravos, parceiros, meeiros, arrendatários e
posseiros Sem Terra”. De acordo com Caio Prado Junior (1949, p. 52), há por um lado as
grandes plantações, com riqueza, prosperidade e grande atividade econômica e por
outro, o não atendimento à necessidade mais básica da grande maioria da população –
a fome. Na prática, solo de qualidade nas mãos dos camponeses é a exceção e não a

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regra (FEDER, 1973, p. 77). Para a maioria da população isso significa viver às margens.
“Às margens das fazendas, às margens dos direitos mais elementares, às margens da
sociedade” (SCHÖNARDIE, 2014, p. 88). Na prática, a pobreza, seja no campo, seja nas
favelas urbanas.

A partir dos anos 1960 essa problemática foi agravada. Com a modernização
capitalista da agricultura houve significativo aumento da concentração das terras. Essa
modernização conservadora do campo apresentou também profundas mudanças no
processo produtivo, entre outras, a mecanização, com a qual mais camponeses e
camponesas perderam seu trabalho nas fazendas, que, aliás, já era precário. Para
Schönardie (2013, p. 203), isso trouxe consigo mudanças profundas para a agricultura
brasileira. A favelização e a concentração de acampados à beira das rodovias foi
agravada. É sabido também que a indústria brasileira não estava configurada para
absorver a mão-de-obra dos/as ‘sobrantes’ do campo.

Essa difícil realidade dos seres humanos foi cada vez mais percebida por setores
progressivos da Igreja. Teólogos e teólogas comprometidos/as com a necessidade
social, especialmente com a precária situação de camponesas e camponeses,
desenvolveram a teologia da libertação. Na prática, organizaram as Comunidades
Eclesiais de Base, que consistiam em pequenos grupos de pessoas, em suas realidades,
e que discutiam, a partir de valores cristãos, a sua realidade social, os seus problemas.
Central na teologia da libertação era assim perceber a alienação à que estavam
aprisionados e se libertar desta alienação. Pode-se afirmar que as Comunidades
Eclesiais de Base constituíram assim um processo educativo genuíno. De acordo com
Maria Clara Bingemer (2017, p. 63)

[...] os teólogos da libertação mais renomados enfatizaram a tremenda


interpelação que a existência da pobreza, concebida deste modo, representa
para a humanidade, situando esse problema no centro do pensamento teológico.
Eles se esforçaram para descobrir as causas da pobreza e os meios para
combatê-la. Eles promoveram a criação de Comunidades Eclesiais de Base que,
por meio da leitura da Bíblia, ajudaram os pobres a ver sua situação mais
nitidamente e a tomar as decisões necessárias para transformá-la.

A Igreja começou a se perceber como Igreja dos pobres. As Comunidades Eclesiais


de Base foram oficialmente reconhecidas e apoiadas com a constituição da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), entre vários outros movimentos (BOFF; BOFF, 2010, p. 102). O
contexto educativo construído, acreditamos ter levado a teologia da libertação ao seu

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objetivo, ou seja, a libertação do ideário, para, com autonomia, os sujeitos agirem em


sua história.

A organização dos camponeses e das camponesas Sem Terra foi uma


consequência, o que entendemos ir além da teologia da libertação. Neste momento,
começou a ação política, que logo se materializou no MST e nas suas ações. A Igreja e
seus representantes, contudo, sempre continuaram presentes, tanto que a cruz e sua
simbologia sempre acompanharam os Sem Terra em suas ações.

Nessa conjuntura em que Sölle se insere, reconstrói sua reflexão e ao mesmo


tempo contribui com o movimento de luta do MST. Além da teologia da libertação,
necessitamos falar em teologia política e mística com a qual, e pelo exemplo da luta pela
terra, se vai em busca de objetivos palpáveis, ou seja, a cidadania, o direito à vida dos/as
que estão às margens. E isto que Sölle percebe de forma primordial, adaptando a
linguagem teológica à luta social concreta, reformando esta linguagem pelo contexto
de necessidade humana real. Ela percebe a força da mística do Movimento dos Sem
Terra (SÖLLE, 2014, p. 376), o que também Walter Marschner reflete, dizendo

[...] a redescoberta da experiência mística pelos movimentos sociais traz um


potencial revelador: ela mostra nosso papel no topo da sociedade: nosso
consumo, nosso modo de vida nos faz inimigos da terra, uma sociedade global
onde 1 terço vive às expensas de 2/3 da humanidade. Por isso somos inimigos
do céu sobre nós e inimigos de nós mesmos. A mística nestes tempos só pode
ser de resistência, senão não é. A atitude mística hoje é capaz de proclamar uma
outra realidade, é capaz de dizer... “um outro mundo é possível” (MARSCHNER,
2008, p. 9-10).

Sölle nos ensinou que não basta apenas entender a realidade social, mas é
necessário denunciar as estruturas de morte e, convida/impulsiona a atuar nos
movimentos para uma transformação. Para ela deve haver algo mais, e este algo mais é
o fato de que após entender a realidade e sair da condição de oprimido (FREIRE, 1987),
também a ação teológica precisa objetivar mudança no mundo e no caso dos Sem Terra,
na ação destes em direção à conquista da terra e direitos. Assim Sölle constituiu a sua
práxis social, que se mostra na sua teologia política, mística e feminista.

Ela também criou o termo "Christus fascismus" (cristofascismo). Um conceito que


aponta para a aliança entre o cristianismo, o nacionalismo e o capitalismo que andam
de mãos dadas com a exploração e a destruição da natureza, de grupos humanos
minoritários e impõe somente uma forma de pensar e viver. Em sua análise, Sölle

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identifica três elementos-chave que sustentam seu conceito de “cristofascismo”: 1. a


cimentação da teologia cristã com a ideologia capitalista e o nacionalismo (incluindo a
superioridade moral), 2. uma ética de trabalho e 3. papéis familiares tradicionais que
policiam as mulheres em particular. Inerentes a esses elementos estão as manifestações
de nacionalismo, militarismo e racismo por parte da liderança governamental e também
entre os cristãos. Neste sistema cristofascista, a imprensa livre é ofuscada pela censura
e a segurança nacional é mantida como doutrina sagrada. Temas de justiça e
solidariedade são negligenciados (SÖLLE, 1987, p. 158-167). Ela denuncia o uso
ideológico do cristianismo a favor do capitalismo explorador da terra que se afirma no
sistema patriarcal (SÖLLE, 1991, p. 76), racista, sexista, militar e que não respeita a
diversidade e por isso violenta e mata as populações não brancas, as mulheres, a
natureza. Ela denuncia a construção patriarcal do mundo, que se coloca contra a
criação, o tecido da vida (SÖLLE, 1991, p. 76).

Da mesma maneira, ela construiu o instrumentário teórico para a concreta ação


na luta pela terra, ela também aplicou sua teoria na luta político-social no movimento
ecológico e para as conquistas no movimento feminista. Ao fazer isso ela está sendo
revolucionária, colocando-se dentro do movimento contínuo da Reforma Protestante.
A “Igreja e a teologia passam a ser mais que a ‘palavra’ que liberta da alienação, passam
a ser instrumento concreto da luta por melhorias sociais” (STRECK et al., 2014, p. 90). A
teologia política, mística, feminista traz consigo o processo da práxis educativa popular.

A teologia política, mística, feminista como processo educativo popular


Quando as pessoas, pela sua ação, como nas organizações e movimentos, dentre
os quais os da luta pela terra, se tornam protagonistas, sujeitos de sua história, elas
vivenciam um processo educativo privilegiado de práxis em seu contexto social. A
educação popular é uma concepção de educação latino-americana. Ela “é uma prática
educativa e uma proposta pedagógica que se situa dentro e diante dos conflitos
históricos das sociedades latino-americanas” (STRECK et al., 2014, p. 21). Em sua fase de
desenvolvimento mais recente traz consigo “a presença da teologia [...] especialmente
da vertente social cristã, [que] se percebe por meio do pensamento de Paulo Freire”
(STRECK et al., 2014, p. 71). Antes de mais nada, integra aspectos éticos, políticos e
filosóficos que contribuem para a teologia da libertação.

A inspiração cristã se explicita pela tese freiriana de que homens e mulheres são
vocacionados para a liberdade, núcleo central do Evangelho. A inconclusão
humana, a dimensão dialógica e relacional da existência e a perspectiva dos

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oprimidos, marcantes em Freire e que encontram fundamentos no texto bíblico,


são princípios assumidos pela educação popular (STRECK et al., 2014, p. 71).

Assim como a perspectiva da teologia política e feminista de Sölle reconhece e tem


seu ponto de partida nos sujeitos oprimidos em sua luta pela libertação. É preciso em
primeiro lugar, reconhecer os/as oprimidos/as para perceber que eles/as em seu
processo de libertação, que é educativo, constroem protagonismo histórico. Neste
reconhecimento está situada a vocação da educação popular como forma de resistência
(BRANDÃO, 2013, p. 12), como a resistência transformadora, vivenciada pelos Sem Terra.
A numerosa existência de oprimidos, de acordo com Freire e a luta destes em
comunhão com vistas a sair da opressão (FREIRE, 1987, p. 29-32), faz com que a
educação popular e o seu entrelaçamento com teólogas e teólogos comprometidos
politicamente, emerja “como um movimento de trabalho político com as classes
populares através da educação” (BRANDÃO, 2006, p. 75). A concepção pedagógica
popular tem, desta maneira, profundas raízes na sua “alta sensibilidade aos contextos
políticos, sociais e culturais” (TORRES, 2013, p. 19), estando objetiva a intencionalidade
política emancipadora (TORRES, 2008, p. 13). Nela, está presente um processo de
libertação via conscientização política (STRECK et al., 2014, p. 32), o que pela teologia
política, feminista, crítica e libertadora de Sölle se dá pela ação política e mística
embasada pelos valores do Evangelho, isto é, a proclamação da vida. Essa teologia
política/libertadora vivenciada por Sölle está em consonância com o núcleo da
educação popular. Este se dá

[...] a partir de uma crítica indignada da ordem social dominante e a partir da


identificação com visões de futuro alternativas, busca contribuir para a
constituição de diversos setores subalternos como sujeitos de transformação,
incidindo em diferentes âmbitos de sua subjetividade, mediante estratégias
pedagógicas dialogais, problematizadoras, criativas e participativas (TORRES,
2013, p. 19).

A educação popular é assim, protagonizada pelos oprimidos, que em sua ação, se


libertam a partir das muitas margens (EGGERT, 2013), constituindo territórios de
resistência (STRECK, 2010, p. 301), em que ‘outros sujeitos’ (ARROYO, 2014), ou seja, Sem
Terra, Mulheres, Negras/os, Quilombolas, Indígenas, Pomeranas/os entre outros
grupos assumam sua condição, transformando o sofrimento em
entendimento/conhecimento, resistência e ação transformadora (PULEO, 2012, p. 46-
47). A educação popular é assim “uma prática educativa que se propõe a ser

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diferenciada, isto é, compromissada com os interesses e a emancipação das classes


subalternas (PALUDO, 2001, p. 82). Por ela se buscam a constituição de sujeitos
populares “capazes de serem os construtores de sua própria história de libertação”
(PALUDO, 2001, p. 99). Conceição Paludo destaca a estreita relação entre o político e o
pedagógico na educação popular para a emancipação humana (PALUDO, 2015, p. 220).
E é isto que Sölle percebe pela palavra do Evangelho, por isso se pode afirmar que sua
interpretação pela ação, pela tomada de posição, é libertadora e emancipadora.
Portanto, o Evangelho proclamado necessita se tornar ação de cuidado da terra e das
pessoas que nela vivem e trabalham.

A práxis, a ação e a reflexão, características do ser humano, estão assim, na base


da educação popular e ao mesmo tempo da teologia política, mística e feminista. O
humano, “atuando, transforma; transformando, cria uma realidade que, por sua vez,
‘envolvendo-o’, condiciona sua forma de atuar” (FREIRE, 1992, p. 28). Sölle insere a
teologia política, que ela foi assumindo como mística, feminista e libertadora na
perspectiva emancipadora e respeitadora, da terra, da natureza, em seus escritos e
poesias. Aqui se encontram também pontos de relação com o desenvolvimento do
movimento social do MST.

Algumas considerações
Acumulamos e vivenciamos cinco séculos de reformas protestantes, e afirmando
esta continuidade histórica, reconhecemos que reformadores e reformadoras
contribuíram com o ideário que buscava transformações da sociedade. É dentro deste
contexto que Dorothee Sölle avança com sua teologia política, mística, feminista, crítica
e libertadora percebida aqui como uma forma de reformar o
pensamento/conhecimento e a ação teológica em um processo educativo popular, na
práxis da educação popular.

As mudanças tendem a vir de contextos sociais adversos, contextos de premência


humana. Assim como na época de Lutero e de Müntzer, a conjuntura histórica e
presente da problemática fundiária esfacela em brumas grande parcela da população,
sobretudo a rural. E a reação a esta difícil realidade é base para o pensamento teológico
e para os valores cristãos. A partir dessa realidade, já compreendida no movimento, que
Sölle, embasada na teologia, propõe a ação política, construindo um arcabouço em que
prega teologicamente caminhos sociais construtivos em que os sujeitos das margens de
forma autônoma reconstroem suas vidas. Ela denunciou o cristianismo usado para
fortalecer o sistema capitalista destruidor da natureza e de populações pobres.

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Este espaço de ação política passa a ser educativo na medida em que é vivenciado
de forma consciente e ao mesmo tempo pela práxis, configurando processos de
educação popular. Os ensinamentos de Sölle são desta forma, multiplicados,
contribuindo por um lado para fortalecer os movimentos sociais e ao mesmo tempo em
que vivenciados, a partir da mística e de novas relações entre homens e mulheres,
apontam para a construção de uma sociedade igualitária e justa. Mas é fundamental
perceber que Sölle construiu sua teoria através da prática social de vida dos seres
humanos e de sua própria base vivencial. Ela própria, em primeiro lugar viveu a
realidade. Neste sentido, ela nos convida, assim, a fazer o mesmo. Agir teologicamente
pela perspectiva da teologia política, mística, feminista e libertadora significa assumir
como cristão e cristã, o apoio e a real intervenção para a melhora das condições de vida
dos/as oprimidos/as, excluídos/as. E em uma sociedade, com um modo de produção
excludente, como a que vivemos, isso é revolucionário. Ter essa coragem é
efetivamente transformador.

Dorothee Sölle, através dos seus escritos, continua a nos dizer que a teologia não
é neutra. A teologia tem lado: o lado dos/as pobres, espoliados pelo capital, que quer
se apropriar do cristianismo. Por isso, toda denúncia é necessária em relação ao
Critofascismo tão presente em nossos dias. É necessário ouvir o grito de todos e todas
que sofrem violência, exploração e morte, mas também o grito daqueles/as que se
erguem corajosamente contra o sistema que destrói, violenta e mata. Ouçamos os
clamores da natureza e dos seres humanos que estão nas margens. Ouvir é passo para
reconhecer. Reconhecer é passo para agir. Temos nossas mãos para agir neste mundo.
E o compromisso com a vida é a ação consciente, carregada de um projeto político-
pedagógico-educativo-popular.

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A teologia da libertação e a mística do MST: a


luta que transcende a terra
Régis Clemente da Costa*

[...] gritando palavras de ordem, como ‘dom Hélder vive, viva dom Hélder. [...] a
bandeira do MST [foi colocada] sobre seu caixão, como reconhecimento da
importância que teve e tem dom Hélder para a história brasileira (JORNAL, 1999,
p. 17).

Introdução
A trajetória da Igreja Católica no Brasil, na segunda metade do século XX, é
marcada por sua atuação junto às causas sociais. Essa atuação visava, principalmente,
organizar as pessoas vítimas da exploração capitalista, em seus contextos de vida e de
trabalho, com vistas à transformação social, à luz dos princípios e valores cristãos.

A Igreja Católica, juntamente com outras igrejas cristãs, elabora a Teologia da


Libertação, como uma nova forma de se fazer teologia, buscando responder a
problemas econômicos e sociais.

No que se refere à Igreja Católica no Brasil, podemos destacar o papel exercido


por ela na criação da Ação Católica, na Ação Popular (AP), no Movimento de Educação
de Base (MEB), ao longo do século XX, mais precisamente a partir de1950. Nesse
contexto, está também a inserção da igreja junto aos trabalhadores na luta pela terra
que desencadeou a fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra1
(MST), no ano de 1984.

No processo luta pela terra e da fundação do MST, a presença da igreja se dava, e


ainda hoje se dá, principalmente por meio da CPT2, das CEBs e da Teologia da

*
Doutor e mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Bacharel em
Ciências da Religião, licenciado em Filosofia e Pedagogia. Professor Adjunto na Universidade Federal da
Fronteira Sul, campus Laranjeiras do Sul, PR. Pesquisador do Grupo de Pesquisa História, intelectuais e
educação no Brasil e no contexto internacional (GEPHIED).
E-mail: rclementecosta@yahoo.com.br
1
Neste artigo utilizamos o termo Sem Terra, sem hífen, tal como o MST.
2
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Bispos e Prelados
da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizado em Goiânia

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Libertação. As ações da Igreja Católica se inseriam num contexto em que a prática era
elemento fundamental, pois acreditava-se que a transformação da realidade viria por
meio das ações e não somente da fé. A fé, no entanto, se tornava elemento importante
no fortalecimento da luta. As contribuições da Igreja Católica, por meio dos religiosos
ligados à Teologia da Libertação, estão presentes também na mística vivenciada no
MST.

Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo discutir as relações entre a Teologia
da Libertação e a mística no MST, buscando evidenciar as suas contribuições para a luta
pela terra e para a transformação social. Para isso, abordaremos primeiramente as
influências da Igreja Católica no nascimento do MST e, em seguida, as contribuições da
Teologia da Libertação para a mística presente no Movimento e no processo de luta
pela terra e por transformação social.

As discussões que sustentam esse artigo estão amparadas em pesquisa


bibliográfica e documental. As fontes pesquisadas são documentos, jornais e revistas do
MST e da Igreja Católica, assim como obras sobre a Teologia da Libertação.

Consideramos fecundo discutir essas temáticas com base no aporte teórico de


Antonio Gramsci, no que diz respeito à modificação do ambiente cultural a partir da
ação do intelectual orgânico como organizador da cultura (GRAMSCI, 2001). A
perspectiva de Gramsci é de que o intelectual está inserido na concepção de um projeto
de sociedade e na sua execução, objetivando a transformação social.

A modificação do ambiente cultural, a que se refere Gramsci, se relaciona às


práticas culturais que são produzidas e se voltam à compreensão da realidade. Ele
fundamenta que a construção de um projeto societário se dará a partir da cultura,
entendida como uma função prática e como concepção do mundo (COSTA, 2018).

Nesse sentido, faz-se necessário, a partir da filosofia da práxis, que se construa


uma nova cultura, de maneira a dar outro significado à verdade, uma vez que ela é
revolucionária. Essa nova cultura a que se refere Gramsci, está ligada à realidade, às
necessidades e aos interesses dos trabalhadores e só será possível por meio da ação dos
intelectuais orgânicos que as classes subalternas tenham criado, assevera Costa (2018).

As formulações teóricas de Gramsci se justificam nesse estudo, pois os sujeitos


engajados na luta do MST são partícipes da construção de um projeto de sociedade e
de sua execução, orgânicos à classe que pertencem. Nesse contexto, tem, na mística, a

(GO). Foi fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores
rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia (HISTÓRICO, 2010); (POLETTO; CANUTO, 2002).

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força que move e alimenta o desejo da permanência e da continuidade na luta, atuando


nas causas que transcendem a conquista da terra.

A Igreja Católica e o nascimento do MST


A Igreja Católica no Brasil tem contribuições importantes no nascimento do MST,
no ano de 1984. Esse contexto, envolvendo parte da igreja no Brasil e na América Latina,
está relacionado às mudanças na forma da igreja atuar junto à sociedade.

Essas mudanças ocorreram, principalmente, a partir da publicação da Carta


Encíclica Rerum Novarum, em 1891, pelo papa Leão XIII. Por meio dessa encíclica, a
Igreja Católica se posiciona sobre as condições do operariado na Europa. Dentre outras
questões, a encíclica defende a propriedade privada, nega as soluções apresentadas
pelo socialismo e aponta a caridade e a colaboração como forma de se alcançar as
mudanças sociais e prevê o direito dos operários a se organizarem em associações
(CARTA, 2020).

Essa encíclica é publicada no contexto em que o partido comunista estava


presente em vários países europeus. A Rerum Novarum, nesse sentido, é também uma
reação da Igreja Católica à adesão dos trabalhadores às ideias e as ações oriundas das
correntes de pensamento ligadas a Karl Marx.

Na esteira das ações da igreja voltadas às questões sociais, no início do século XX,
é fundada a Ação Católica no Brasil3. Porém, é a partir da segunda metade desse século,
que há uma guinada na atuação da igreja com vistas à transformação social. Como
marco desse processo, estão: a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o
Concílio Vaticano II (1962-1965), as Conferências de Medelín (1968) e de Puebla (1979) e
a formulação da Teologia da Libertação.

No que se refere à Teologia da Libertação, Clodovis Boff e Leonardo Boff (1986)


afirmam que ela não é exclusiva de teólogos católicos. Os principais teólogos que
estiveram presentes na formulação dessa teologia são “Gustavo Gutiérrez, Segundo
Galilea, Juan Luís Segundo, Lúcio Gera e outros” (BOFF; BOFF, 1986, p. 97) do lado
católico e “Emílio Castro, Júlio de Santa Ana, Ruben Alves e José Míguez Bonino que
começaram, mediante frequentes encontros, a aprofundar as reflexões sobre a relação

3
A Ação Católica Brasileira (ACB) é oficialmente instituída com os Mandamentos dos Bispos do Brasil, de
9 de junho de 1935. (AÇÃO, 2022).

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entre fé e pobreza, evangelho e justiça social”, do lado protestante (BOFF; BOFF, 1986,
p. 97).

A Teologia da Libertação é a expressão de um movimento que surgiu antes desses


escritos teológicos, segundo Michel Löwi (2016). Nesse movimento, estavam envolvidos
padres, ordens religiosas, bispos, movimentos religiosos laicos, Ação Católica, CEBs,
organizações populares. “Sem a existência desse movimento social não poderíamos
entender fenômenos sociais e históricos de tal importância como a emergência do novo
movimento operário no Brasil e o surgimento da revolução na América Central” (LÖWI,
2016, p. 74).

Do lado católico, os teólogos baseavam-se nas reflexões oriundas do Concílio


Vaticano II (1962-1965), que havia proporcionado maior abertura da Igreja Católica às
questões sociais, bem como à atualização teológica e sua aplicação pastoral por uma
igreja renovada. Tais práticas ganharam corpo no contexto de desigualdade social na
América Latina.

Em março de 1964, aconteceu um encontro de teólogos Latino- Americanos em


Petrópolis e Gustavo Gutiérrez apresentou a Teologia como reflexão crítica sobre a
práxis comprometida dos cristãos. A partir daí, surgem, cada vez mais, reflexões a
respeito dessa nova Teologia, com dois encontros realizados na cidade de Bogotá, na
Colômbia, nos anos de 1970 e 1971 (BOFF; BOFF, 1986).

Conforme a definição de Schlesinger e Porto (1995, p. 2492), sobre o significado da


Teologia da Libertação, podemos observar que ela

[...] supõe uma leitura socioanalítica da realidade que detecte as causas


geradoras de dependência e de dominação. A luz da fé cristã denuncia o pecado
estrutural e social anunciando as mediações necessárias para encarar a
libertação de Jesus Cristo.

Ainda sobre a definição da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez afirma que

Libertação exprime, em primeiro lugar, as aspirações das classes sociais e dos


povos oprimidos, e sublinha o aspecto conflituoso do processo econômico,
social e político que os opõe às classes opressoras e aos povos opulentos [...] A
conquista paulatina de uma liberdade real e criadora leva a uma permanente
revolução cultural, à construção de um homem novo, a uma sociedade
qualitativamente diferente (GUTIERREZ, 1975, p. 75).

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O caminho trilhado pela Teologia da Libertação levava em conta o evangelho e as


condições de vida do povo latino-americano e, nesse momento, esse caminho já estava
definido, como relatam Boff e Boff (1986, p. 98). “Estava aberto o caminho para uma
teologia feita a partir da periferia e articulada com as questões desta periferia que
representavam e continuam representando, ainda, um imenso desafio à missão
evangelizadora das Igrejas”.

Os meios encontrados pela Teologia da Libertação para colocar em prática suas


ações transformadoras foi através da articulação e organização do povo historicamente
explorado, onde a mesma se via envolvida em duas faces, “a das angústias por causa da
fome, enfermidades, analfabetismo, miséria, injustiças (Puebla 26) e a das esperanças
por libertação, participação e comunhão (Puebla 24)” (BOFF; BOFF, 1979, p. 12).

A Teologia da Libertação surge com a participação direta de teólogos da Igreja


Católica e dá novo rosto à igreja no Brasil com a perspectiva libertadora e,
consequentemente, contrária às formas de dominação e exclusão que outrora
defendera. Para realizar tal proposta, a Teologia da Libertação em sua ação motivou a
organização e articulação do povo, principalmente por meio dos movimentos sociais,
dentre eles, o MST.

Na Igreja Católica, a influência da Teologia da Libertação nos movimentos sociais


e, nesse caso, o MST, se constituiu através das CEBs e da CPT. Em Stedile e Fernandes
(1999, p. 20) podemos observar que

[...] foi a aplicação da Teologia da Libertação na prática, que trouxe uma


contribuição importante para a luta dos camponeses pelo prisma ideológico. Os
padres, agentes de pastorais, religiosos e pastores discutiam com os
camponeses a necessidade de eles se organizarem. A Igreja parou de fazer um
trabalho messiânico e de dizer ao camponês: ‘Espera que tu terás terra no céu’.
Pelo contrário, passou a dizer: ‘Tu precisas te organizar para lutar e resolver os
teus problemas aqui na Terra’.

Nesse período da trajetória da Igreja Católica no Brasil, ela está inserida na


sociedade a fim de promover não somente as ações de cunho espiritual, mas também
social. Muitos religiosos pertencentes à Igreja Católica se inseriram na luta dos
camponeses e participavam diretamente das resistências em favor da reforma agrária,
como Dom Pedro Casaldáliga, no Mato Grosso; Dom José Gomes, em Santa Catarina;
Dom Tomás Balduíno, em Goiás (FERNANDES, 2001, p. 44).

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Nesse contexto de lutas e resistências, a Igreja Católica teve papel fundamental,


pois além de dar suporte, animava e organizava os camponeses e, com isso, muitas
forças emanaram do meio do povo camponês, fazendo frente ao latifúndio.

Quando decisivamente se oficializou o nascimento do MST, em janeiro de 1984, os


trabalhadores estavam reunidos no Primeiro Encontro Nacional dos Sem Terra, no
Centro Diocesano de Formação na cidade de Cascavel, PR. Nesse encontro, é fundado
oficialmente o MST.

[...] o Primeiro Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com a
participação de 92 pessoas: sem-terra, sindicalistas, agentes de pastoral e
assessores. O evento representou, antes de mais nada, uma vitória. Após várias
conquistas de terras e da caminhada em direção à unificação e formalização das
ações das lutas camponesas, os sem- terra fundavam sua organização
(FERNANDES, 2001, p. 79)

O MST nasce no momento em que o país vivia sob a ditadura militar (1964-1985) e
tem suas raízes nos movimentos de luta pela terra que o antecederam.

No início da década de 80, as experiências com ocupações de terras nos estados


do Sul, São Paulo e Mato Grosso do Sul reuniram os trabalhadores que iniciaram
o processo de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A
construção do Movimento se constituiu na interação com outras instituições,
especialmente a Igreja Católica, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Aprendendo com a história da formação camponesa, na sua caminhada, o MST
construiu o seu espaço político, garantindo a sua autonomia, uma das diferenças
com outros movimentos que o precederam (FERNANDES, 2001, p. 47).

É de se notar o elemento histórico do MST, no qual está embutida a história da


luta camponesa brasileira. Em Fernandes (2001, p. 50), podemos observar que essa
gestação vai de “1979 a 1984, reuniu e articulou as primeiras experiências de ocupação
de terra, bem como as reuniões e os encontros que proporcionaram, em 1984, o
nascimento do MST”.

A gestação do MST tinha como objetivo ser um movimento nacional. Nesse


sentido, as lutas são articuladas por todo o país inaugurando um novo período de lutas
camponesas no Brasil (FERNANDES, 2001).

Nesse processo, novamente se evidencia o papel desempenhado pela Igreja


Católica no nascimento do MST e na sua organização em nível nacional, devido a sua

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presença nas diversas regiões do país. O destaque à atuação da Igreja Católica e a


articulação das lutas do MST em nível nacional são destacadas também por Caldart
(2000).

Como já apontado, a atuação da Igreja Católica junto aos movimentos sociais e,


nesse caso, o MST se dava por meio da CPT, das CEBs, com base nas formulações
oriundas da Teologia da Libertação. Esse apontamento é importante no sentido de
apresentar o que se propunha a Teologia da Libertação: fazer a ligação do evangelho
com a vida concreta do povo, em vista da sua libertação.

A Teologia da Libertação e a Mística no MST


Como podemos constatar, a Igreja Católica e Teologia da Libertação marcam
significativamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com seus
princípios e objetivos referentes à religiosidade e à fé do povo. As práticas religiosas, no
entanto, ganharam novo significado com a leitura feita por essa corrente teológica.

Para Boff e Boff (1979, p. 11-12) a Teologia da Libertação nasce da mística do pobre

No fundamento da Teologia da Libertação se encontra uma mística: o encontro


com o senhor no pobre que hoje é toda uma classe de marginalizados e
explorados de nossa sociedade caracterizada por um capitalismo dependente,
associado e excludente.

A partir desta afirmação dos irmãos Boff, constata-se, mais incisivamente, o ponto
de partida para nossa análise sobre a mística no MST, somada à presença marcante da
Teologia da Libertação no Movimento.

Segundo Leonardo Boff, a mística é adjetivo de mistério, porém mais envolvido no


âmbito religioso de mística. Ele define alguns sentidos para a mística como:
antropológico-existencial, o sentido religioso, o sentido cristão e o sentido sócio-
político, abordado de maneira ampliada em Boff (1998).

Em relação ao sentido sócio-político da mística, Peloso (1998, p. 9) afirma que a


mística é a “alma da esquerda” que produz a garra necessária para combater as
injustiças e a disposição para empenhar-se, desde já, na concretização histórica de
nossos sonhos”. Destaca, ainda, o compromisso político das pessoas que tomam a
história na mão e passam da motivação à rebeldia e se organizam, sem aprisionarem-
se às estruturas (PELOSO, 1998).

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Não obstante, a mística está diretamente vinculada à esperança, à utopia e à


libertação. É força que move e alimenta o desejo da continuidade na luta. Seu significado
simbólico transcende a luta pela terra e se imbui de uma razão maior, que é a
transformação social.

Leonardo Boff (1998, p. 38), ainda em referência à mística afirma que


[...] não há militância sem paixão e mística, pouco importa a natureza da causa,
seja religiosa, humanista ou política. O militante vive no mundo das excelências
e dos valores em funções dos quais vale gastar tempo, arrostar riscos e
empenhar a própria vida. Aqui se trata não de ter ideias, mas de viver convicções.
São estas que mudam as práticas e estas transformam as relações sociais.

Os elementos relatados por Boff alimentam as lutas e colaboram na superação dos


desafios, das dificuldades encontradas nessas mesmas lutas.

Para o Movimento, a mística é um dos elementos de destaque, no contexto da luta


pela terra e está diretamente vinculada à esperança, à utopia e à libertação. A mística é
também “a razão da persistência” (MST, 2001, p. 227). Ainda, de acordo com o MST, a
mística “para os Sem Terra é mais do que uma palavra ou um conceito. É uma condição
de vida que se estrutura através das relações entre pessoas e as coisas no mundo
material. Entre ideias e utopia no mundo ideal” (MST, 2001, p. 227).

Na perspectiva apresentada por Boff, o MST mantém a conotação de mistério dado


à mística. Tal mistério é o que envolve “por exemplo a persistência na luta por longos
anos. Embora se tenha alcançado o que é preciso para viver, continua-se lutando sem
perder nunca a motivação” (MST, 2001, p. 227).

Definido o sentido de mística, voltamos à questão das influências da Teologia da


Libertação na mística do MST.

O bispo católico Dom Tomás Balduíno, que exerceu a presidência da CPT nacional,
citando Gutiérrez, afirma que a teologia é uma sistematização, um ato segundo. “O ato
primeiro é aquilo que o povo realiza: o crer, o agir. O ato segundo é tomar este crer e
esta ação refletindo, comparando com o pluralismo da nossa sociedade, com as
diferenças, com as diversidades, com as alteridades” (COSTA, 2003, p. 74).

No Caderno de Formação n° 27 do MST (1998), evidencia-se a relação ecumênica


da Teologia da Libertação no MST: “Desenvolvemos uma mística vinculada à prática [...]
influenciados, em especial, pelo trabalho pastoral das Igrejas Católicas e Luterana e pela
experiência acumulada pelas organizações que nos antecederam” (MST, 1998, p. 5).

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A mística no MST teve a influência da Teologia da Libertação, no entanto, ela se


liga à realidade mais concreta do povo. Ela dispensa os rituais historicamente
elaborados como as liturgias católicas ou evangélicas pela formalidade que possuem.

O aprendizado através da experiência com as igrejas deu cada vez mais qualidade
às ações do MST, inclusive no que diz respeito à relação com o transcendente, com o
divino, com o místico. Com a religiosidade, essa experiência de lutas anteriores levou
ao crescimento e amadurecimento de tais ações. Stedile e Fernandes (1999) afirmam
existirem dúvidas para alguns sobre a participação de militantes de esquerda em
atividades religiosas, como a missa católica. “Como é que nós, que somos de esquerda,
vamos sempre à missa? Ao contrário, a nossa base usa a fé religiosa que tem para
alimentar a sua luta, que é uma luta de esquerda, que é uma luta contra o Estado e
contra o capital” (STEDILE; FERNANDES, 1999, p. 131),

Nesse mesmo sentido, Morissawa (2001) salienta que a mística para o MST foi
influenciada pela Teologia da Libertação, no entanto, a forma como se vivencia é
própria do Movimento.

É importante destacar, além da influência da Teologia da Libertação, a


identificação de conceitos da concepção de Karl Marx, quando se referem ao
proletariado. Outras questões de ordem econômica, política e social são analisadas pelo
MST sob a ótica do pensamento de Marx.

Nessa perspectiva, a mística também está inserida no ideário das lutas socialistas,
em que o Movimento realça o desejo de que a prática da mística envolva todos os
militantes e que ela

[...] seja exercida em todos os setores, instâncias, escolas, cooperativas,


acampamentos e assentamentos. Da mesma forma, queremos que ela seja
exercitada por outras organizações que têm os mesmos ideais e propósito de
construir uma sociedade socialista (MST, 1998, p. 5).

A partir dessa afirmação podemos observar que o sentido dado à mística extrapola
o religioso e se insere nos processos de luta em vista à transformação social e à
efetivação de outro projeto de sociedade.

Segundo Fernandes (2001, p. 189), para o MST, a mística tomou-se “um ato cultural,
em que os sem-terra trabalham diversas formas de linguagem para representarem suas
lutas e esperanças. É espaço/tempo de confraternização, de aprendizagem e, portanto,
de construção de conhecimento e da consciência da luta”.

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Abordando a temática em Algumas lições de pedagogia, o Boletim de Educação do


MST, refere-se à mística como sendo a alma dos lutadores do povo e ainda que no MST
ela

[...] tem uma dimensão educativa muito importante: para os militantes mais
antigos, ajuda a cultivar os valores e a memória simbólica que os mantêm a
caminho; para as novas gerações ou para um cada sem-terra que entra no
Movimento, ajuda na disposição pessoal de entrar no processo de vivenciar as
ações de forma mais humana e plena, sendo uma espécie de ritual de acolhida,
que faz as pessoas se sentirem parte do Movimento, mesmo antes de conhecer
toda sua dinâmica. Cultivar a mística é parte fundamental do que entendemos
por formação humana (MST, 2001, p. 29).

Nesse contexto, a mística se apresenta no MST como colaboradora na formação


humana, no resgate da história da luta, e no fortalecimento da identidade dos
integrantes e militantes do Movimento.

A mística no MST envolve tanto os seus integrantes, como também, aqueles que
comungam da mesma causa, como o caso de Dom Hélder Câmara, falecido em 1999. Na
ocasião do seu sepultamento, o bispo Dom Marcelo Carvalheira, destacou a opção de
Dom Hélder pela Teologia da Libertação. Num ato religioso marcado pela presença de
grande número de pessoas se gritava palavras de ordem, como “‘dom Hélder vive, viva
dom Hélder’. [...] e a bandeira do MST colocada sobre o caixão, como reconhecimento
da importância que teve e tem dom Hélder para a história brasileira” (JORNAL, 1999, p.
17).

Outro bispo católico com grande contribuição da mística e na luta do MST é Pedro
Casaldáliga. Esse bispo, falando aos integrantes do Movimento sobre a questão de
ocupar ou não as terras, afirma que

A própria igreja, nós bispos, padres, às vezes temos faltado nesse particular
achando que a propriedade privada é um direito sacratíssimo que deve ser
respeitado a toda custa, que ninguém pode pisar na propriedade privada de
ninguém. Vejam bem: quando a propriedade privada, priva outras pessoas de
viver, priva outras pessoas de comer, priva outras pessoas da paz e da liberdade,
ela é um roubo (COSTA, 2003).

A contribuição e a luta pela reforma agrária no Brasil envolvendo bispos e demais


religiosos ligados Igreja Católica é reconhecida pelo MST. Algumas dessas lideranças
religiosas receberam como homenagem e memória o nome de Assentamentos, como o

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caso de Dom Hélder, Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, Irmã Alberta4,
dentre outros.

Dom Tomás, na ocasião em que foi homenageado, dando nome ao Assentamento,


destaca

A gente fica agradecido no sentido de reconhecer alguma coisa feita, mas o que
eu vejo desta atitude é um certo consenso de todos que ali estão ou dos
promotores daquele assentamento numa linha libertadora, numa reforma
agrária popular, constitucional, massiva. É a linha que a gente tem. Então o
nome, muitas vezes, é a causa que está por trás, porque eu amo, porque eu me
identifico com vários companheiros e companheiras que estão na luta e eles dão
uma contribuição muito grande no processo de transformação de mudança no
nosso país, sobretudo na direção do campo (COSTA, 2003).

A ação do MST em reconhecer aqueles que estiveram inseridos diretamente na


luta pela terra e pela transformação social é parte da memória das lutas, ao mesmo
tempo em que é parte da mística, no sentido do reconhecimento das trajetórias
militantes. A mística, portanto, é a força motivadora, o combustível que mantém a
vontade de lutar e a coragem de avançar rumo à transformação social.

Considerações finais
Essa discussão privilegiou a contextualização das contribuições da Igreja Católica
no nascimento do MST, e da Teologia da Libertação na mística do Movimento.

É possível inferir que a contribuição da Igreja Católica nas causas sociais acontece
de maneira mais direta, após segunda metade do Século XX, com a guinada nas ações e
práticas, com críticas ao sistema capitalista, com vistas à transformação social. Esse
processo ocorre por meio da Ação Católica, Ação Popular, MEB, criação das CEBs, com
o Concílio Vaticano II, as Conferências Episcopais de Medelín e Puebla, a formulação da
Teologia da Libertação, a CPT, entre outras. Com essa nova postura, a Igreja Católica
no Brasil e na América Latina, em grande parte, rompe com seu passado de conivência
e contribuição com o projeto colonizador e dominador português.

O contexto mais amplo das ações de parte da Igreja Católica, a partir de 1950, era
buscar meios de promover a transformação social, desenvolvendo ações para além

4
Religiosa Orionita, de origem italiana, nasceu em 1921. Chegou ao Brasil em 1971. A partir de 1997, se
instala na capital paulista. Atuou junto ao MST, CPT e aos moradores de rua. Foi homenageada pelo MST
ao batizar o Assentamento próximo à Rodovia Anhanguera, em São Paulo, com o seu nome. Faleceu no
dia 30/12/ 2018, aos 97 anos (AOS 97 ANOS, 2018).

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daquelas de cunho meramente espiritual. Não se tratava de negar os valores cristãos e


a fé do povo, mas sim, de colocar esses valores a serviço da transformação social. Nesse
contexto, religiosos católicos e protestantes, formulam uma nova teologia que
respondesse a essa nova postura. Portanto, é dessa realidade que nasce a Teologia da
Libertação.

O MST nasce no ano de 1984 como resultado das ações das Igrejas Cristãs, mais
especificamente da Igreja Católica. O Movimento nasce também das várias lutas
protagonizadas pelos camponeses no Brasil, tendo na mística, a força para seguir na
caminhada. A mística no MST tem as contribuições da Teologia da Libertação e é
evidenciada quando observamos que a luta não se restringe à conquista da terra, mas
também, perpassa o cotidiano das pessoas, reforçando a esperança e sendo fonte de
força na caminhada rumo à transformação social.

Nesse sentido, é possível afirmar que a mística no Movimento se insere numa


compreensão mais ampla de cultura, de processo de formação da consciência social, de
modo a contribuir para as relações cotidianas dos trabalhadores e na construção do
projeto de sociedade que desejam efetivar.

Retomando o conceito gramsciano de intelectual orgânico e organizador da


cultura, é possível observar que a definição de mística difundida pelos formuladores da
Teologia da Libertação e vivenciada no MST contribui, sobremaneira, para a ação
concreta dos trabalhadores ligados ao Movimento seja na elaboração do projeto de
sociedade que desejam construir, seja na efetivação desse projeto. Na perspectiva de
Gramsci (2001), o intelectual orgânico, responsável pela elaboração e execução de um
projeto societário precisa estar vinculado a uma concepção de mundo, ou seja, à
construção de uma mudança que é cultural, como aponta Costa (2019).

A mística, tal qual vivenciada no Movimento, contribui para o fortalecimento do


sentido da luta, para a vinculação dos trabalhadores na concepção de mundo e nas
ações que buscam a conquista e a permanência na terra e, também, nas lutas pela
superação da exploração capitalista, com vistas à transformação social.

Referências
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A teologia da libertação e a mística do MST: a luta que transcende a terra
DOI: 10.23899/9786589284314.9

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.

Estudo do estado de conhecimento: o “ser


professor/a” na perspectiva da educação
popular
Guilherme Sousa Machado*
Tiago Zanquêta de Souza**
Gercina Santana Novais***

Introdução
Este artigo é fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica referente ao projeto de
intitulado “O professor na perspectiva da Educação Popular”, vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba e à REDECENTRO – Rede de
Pesquisadores(as) sobre o Professor na Região Centro-Oeste/Brasil. Tal projeto contou
com bolsa de apoio à pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq – 2018/2020) e tomou por objeto de estudo o/a educador/a
popular que atua no contexto escolar na condição de professor/a.

Os/As pedagogos/as inscritos no universo da Pedagogia Crítica – com um forte


viés materialista-dialético – chamavam de “Educação Popular” a que faziam nos
movimentos e nas organizações sociais, considerando aquela desenvolvida por
outros/as educadores/as, especialmente pelos/as que trabalhavam na escola, como
“burguesa”, “não-popular” e, até mesmo, como “antipopular” (ROMÃO; GADOTTI, 2007).

No Brasil, a Educação Popular passou, nitidamente, por cinco fases: Popular


Nacional-Desenvolvimentista (1954-1963); Popular da Resistência (1964-1985); Popular

*
Graduando de Psicologia pela Universidade de Uberaba. Foi aluno de Iniciação Científica com bolsa
CNPq (2018-2020).
E-mail: guilhermesousamachado@hotmail.com.br
**
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) e do Programa de Pós-
Graduação em Educação: formação docente para a Educação Básica - Mestrado Profissional, ambos da
Universidade de Uberaba. Líder do Grupo de Pesquisa Formação Docente, Direito de Aprender e Práticas
Pedagógicas (FORDAPP).
E-mail: tiago.zanqueta@uniube.br
***
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: formação docente para a Educação Básica
- Mestrado Profissional, ambos da Universidade de Uberaba. Líder do Grupo de Pesquisa Formação
Docente, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas (FORDAPP).
E-mail: gercina.novais@uniube.br

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.

Ambígua (1986-1999); Eutanásia Pedagógica (1999-2002); Popular Cidadã (2003-2010)


(ROMÃO; GADOTTI, 2007), que constitui uma história muito rica, na qual estão
envolvidos/as numerosos/as educadores/as, inúmeros movimentos sociais e
populares, sem falar no próprio Estado. Ela está ligada a todo um movimento que busca,
por um lado, a extensão da educação escolar para todos/as e, por outro, a formação
social, política e profissional, sobretudo, de jovens e de adultos/as excluídos/as da
escola regular na idade própria. Desse modo, de antemão, conseguimos afirmar que
o/a educador/a popular é, então, aquele/a que tem por fim a realização dessa
Educação, onde quer que desenvolva seu trabalho e sob quaisquer condições.

Isso se deve, em grande parte, à atuação internacional de um dos seus mais


importantes representantes: Paulo Freire. Ele deixou, por onde passou, as sementes de
uma concepção popular emancipadora da educação. Essas sementes floresceram em
numerosos grupos e organizações, unindo conscientização e organização popular
(ROMÃO; GADOTTI, 2007).

Quanto ao papel do/a educador/a popular que atua no contexto escolar,


entende-se ainda a necessidade de melhor conhecê-lo, defini-lo e identificá-lo, a fim
de desenhar o perfil e caracterizar suas funções, considerando-se para isso, as
condições de seu trabalho, uma vez que esse perfil está diretamente ligado a
intervenções socioeducativas realizadas por elas/es e que vai configurar aspectos de
docência. Nisso consiste pensar o “ser professor/a” na perspectiva da Educação
Popular, o que implica, necessariamente, a compreensão do que se concebe como
educador popular, uma vez que profissionalmente é também entendido, quando em
atividade escolar, como um/uma professor/a.

A questão de estudo que orientou a pesquisa foi: qual é o perfil e as funções do/a
educador/a popular, considerando as condições de seu trabalho na escola, uma vez
que esse perfil está diretamente ligado a intervenções socioeducativas realizadas por
elas/es e que vai configurar aspectos de docência?

Para respondê-la, foi traçado o seguinte objetivo: identificar e analisar o perfil e as


funções do/a educador/a popular, especialmente vinculado/a à escola, valendo-se
para isso, do estudo do Estado do Conhecimento, conforme veremos adiante.

Assim, o artigo está organizado da seguinte maneira: primeiramente,


apresentamos a metodologia que subsidiou a realização da pesquisa. Em seguida,
apresentamos o referencial teórico que a sustentou para, por último, trazermos os
resultados das análises empreendidas.

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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
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Metodologia da pesquisa
Para a realização da pesquisa, o procedimento metodológico adotado foi o estudo
do Estado do Conhecimento, que no entendimento de Morosini (2015, p. 102), “[...] é
identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção
científica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo,
congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica”.

Segundo Morosini (2015) o Estado de Conhecimento possibilita uma visão ampla e


atual dos movimentos da pesquisa ligados ao objeto da investigação que pretendemos
desenvolver. Permite-nos entrar em contato com os movimentos atuais acerca do
objeto de investigação, oferecendo-nos uma noção abrangente do nível de interesse
acadêmico e direcionando, com mais exatidão, para itens a serem explorados – reforço
de resultados encontrados ou criação de novos ângulos para o tema de estudo –
abrindo, assim, inúmeras oportunidades de enriquecimento do estudo. Nesse sentido,
a construção do Estado de Conhecimento fornece um mapeamento das ideias já
existentes, dando-nos segurança sobre fontes de estudo, apontando subtemas
passíveis de maior exploração ou, até mesmo, fazendo-nos compreender silêncios
significativos a respeito do tema em tela.

Os procedimentos adotados durante a execução metodológica foram:


levantamento bibliográfico por meio da seleção de teses e dissertações veiculadas à
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), dos últimos 4 anos (entre
2015-2018); leitura e discussão sobre a produção científica encontrada; constituição do
corpus de análise a partir dos trabalhos selecionados segundo os critérios propostos na
ficha de análise. A partir da constituição do corpus analítico, as fases seguintes
envolveram: leitura flutuante do corpus, conforme propõe Bardin (1979); realização das
análises, inspirados na análise de conteúdo (BARDIN, 1979); e produção textual.

Nesta pesquisa, o Estado de Conhecimento é útil para compreendermos, tomando


as produções alvo de investigação, o perfil e as funções do/a educador/a popular, uma
vez que este/a promove intervenções socioeducativas também em contextos
escolares.

O que revela o estudo do estado do conhecimento


São apresentados, nesta subseção, os resultados do levantamento bibliográfico
realizado, bem como as análises dos trabalhos selecionados, considerando-se os
parâmetros: verbos que compuseram os objetivos de tais trabalhos; e métodos e
procedimentos de pesquisa que foram utilizados. Estes dois parâmetros nos foram úteis

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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
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para caracterizar melhor o corpus investigado. Na sequência, trazemos a discussão


acerca do perfil identitário e das funções do “ser professor/a” na perspectiva da
Educação Popular.

A base de dados utilizada para a realização do levantamento bibliográfico foi a


Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Os trabalhos recuperados
que foram selecionados perfazem o recorte temporal entre 2015 e 2018, ou seja,
considerou-se o intervalo correspondente ao período mais recente à época de
realização da pesquisa, conforme quadro 1.

Quadro 1 – Levantamento de dissertações e teses na plataforma BDTD

Nº. de trabalhos Tipos de trabalhos Total de trabalhos


Descritores utilizados
recuperados selecionados selecionados
Dissertações: 5
Educador Popular 22 6
Teses: 1

Educação Dissertações: 19
64 29
Popular Teses:10

Educador Popular +
1 1 Dissertação 1
Professor
Educador Popular +
1 1 Dissertação 1
Professor + formação
Total 37

Fonte: Elaboração do autor (2018).

O descritor “Educador Popular” foi pesquisado em separado e associado ao


descritor “Professor”. Os trabalhos foram selecionados considerando-se os títulos das
dissertações e teses, em primeiro momento. Na sequência, partiu-se para a leitura dos
resumos que constavam da presença do descritor de busca e, no terceiro momento,
partiu-se para a identificação do descritor nas palavras-chaves. Quando se fez a busca
associada entre os descritores “Educador Popular”, “Professor e Formação”,
considerou-se a busca a partir da presença dos descritores no título, no resumo e nas
palavras-chaves.

Quanto aos objetivos das pesquisas


Utilizamos a taxonomia de Bloom et al. (1956) para analisar os objetivos das
dissertações e teses levantadas, conforme a figura 1. Os verbos em sua predominância

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utilizados como objetivo estão enquadrados nas categorias: Compreensão, 27 trabalhos;


Análise, 29 trabalhos. Enquadrados nas categorias: Síntese, estão 12 trabalhos; e
conhecimento, 11, de um total de 36 trabalhos. Na categoria Avaliação, foram
encontrados 2 trabalhos, apenas. Não foram encontrados trabalhos cujos objetivos
estivessem atrelados à categoria Aplicação.

Figura 1 – Categorias verbais segundo Bloom

Fonte: Adaptado de Bloom et al. (1956).

No geral, conforme se observa no quadro 3, os trabalhos que constituem o corpus


investigado optaram por objetivos que se concentram na categoria “conhecimento”,
cuja finalidade, segundo Bloom et al. (1956) é a de trazer os conhecimentos à
consciência, como possibilidade de significar a quantidade de informações ou fatos
específicos que são elaborados/contados/rememorados.

Quadro 3 – Verbos utilizados como objetivos nas produções analisadas, organizados de


acordo com a taxonomia de Bloom

Conhecimento Compreensão Aplicação Análise Síntese Avaliação


Conhecer Identificar Investigar Criar Avaliar
Marcar Traduzir Analisar Propor Selecionar
Apontar Compreender Constituir
Registrar Descrever Formular
Definir Explicar Compor
Esclarecer Articular

Fonte: Elaboração do autor (2018).

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Concentra-se também na categoria “compreensão”, que prima pelo entendimento


da informação ou fato, que busca os significados e os utiliza em diferentes contextos.
E, por último, concentra-se ainda na categoria “síntese”, como possibilidade de
combinar partes não organizadas para dar a ideia/compor uma totalidade.

Quanto aos métodos, tipos e procedimentos de pesquisa


Os métodos encontrados nos trabalhos analisados foram: Materialismo Histórico-
dialético, Hermenêutica e Método Dialógico problematizador. As técnicas de pesquisa
encontradas foram: etnográfica, documental, bibliográfica, estudo de caso, pesquisa-
ação, pesquisa de campo, observação ou pesquisa participante. E, os procedimentos de
coleta de dados foram: entrevistas, questionário, relatos orais de memória, diários de
campo, conforme se vê no quadro 4.

Quadro 4 – Métodos, tipos de pesquisa e procedimentos de coletas de dados


encontrados nas teses e dissertações analisadas

Procedimentos de coleta/produção de
Métodos Técnicas de Pesquisa
dados
Materialismo Histórico-
Documental Entrevista
dialético
Hermenêutica Bibliográfica Grupo focal
Método dialógico
Pesquisa-ação Questionário
problematizador
Observação
Relatos orais
participante
Estudo de caso Diário de campo
Etnográfica
Pesquisa de campo

Fonte: Elaboração do autor (2018).

Dentre os instrumentos de coleta de dados, o mais comumente utilizado foi a


entrevista (semiestruturada, individual, coletiva, roteiro temático, narrativa), que
esteve presente em 22 trabalhos analisados.

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O termo entrevista é construído a partir de duas palavras, entre e vista. Vista


refere-se ao ato de ver, ter preocupação com algo. Entre indica a relação de
lugar ou estado no espaço que separa duas pessoas ou coisas. Portanto, o termo
entrevista refere-se ao ato de perceber realizado entre duas pessoas
(RICHARDSON, 1999, p. 207).

Houve diversas citações de Freire nos trabalhos analisados, um autor que preza
muito pelo diálogo, o que, nesse sentido, pode justificar a adoção de técnicas e
procedimentos de coleta/produção de dados que implicam a participação de outras
pessoas, o envolvimento com elas. Trata-se de primar pelo diálogo como possibilidade
de produzir e não coletar dados, como um

[...] encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. Se ao


dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo
impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado
enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial (FREIRE, 1987,
p. 42).

O diálogo, portanto, deve ser assumido, também, como prática metodológica,


como possibilidade de permitir a convivência e esta, por sua vez, ampliar as
possibilidades de ocorrência do diálogo. O “ser professor/a”, nessa perspectiva, é
atravessado por esta prática, que deve estar provida de amorosidade, respeito, ética.
Assim, passamos, na próxima sessão, ao estudo do perfil e das funções do ser
professor/a na perspectiva da Educação Popular.

Quanto ao perfil e as funções do “ser professor/a” na perspectiva da Educação Popular


A análise dos trabalhos recuperados na BDTD permitiu entender e compreender
o perfil e as funções do/a educador/a popular, especialmente daquele/a que atua nos
espaços escolares. Resumidamente, o perfil do/a educador/a popular/a está atrelado
a um ensino que leva a uma análise crítica da realidade para transformá-la, rompendo
com a relação opressor/oprimido, ou ainda, com as relações autoritárias e arbitrárias
tão presentes na educação que se concebe como bancária. A respeito da relação
professor/a-aluno/a, o perfil desses/as profissionais aponta a presença da
dialogicidade, cujo/a professor/a é entendido/a como desafiador/a da aprendizagem
e que ambos, professor/a e aluno/a sejam protagonistas da produção do conhecimento
escolar.

Observa-se, nos trabalhos analisados, que o perfil e as funções do “ser


professor/a”, na perspectiva da Educação Popular, despontam para o que mostra o

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quadro 5. Esse quadro representa a síntese analítica e sistematizada dos dados do


inventário descritivo que foi elaborado durante a constituição do corpus da pesquisa,
quando da realização da leitura flutuante1.

Quadro 5 – O perfil e as funções do “ser professor/a” identificados nos trabalhos


analisados, na perspectiva da Educação Popular

Perfil e funções do/a educador/a – o ser professor/a


É mediador do processo de construção do conhecimento e, para isso, problematiza a realidade
social, comprometendo-se com ela e valorizando práticas culturais para a autonomia
Adjacentes a este perfil, tem-se:
1. Faz uso da rigorosidade metódica
2. É acolhedor, dialógico, de escuta atenta
3. Compreende e vive a práxis
4. Tem a capacidade de despertar a autonomia e a capacidade crítico-reflexiva
5. Valoriza a linguagem e o conhecimento prévio do outro
6. Relaciona-se fraternalmente e age eticamente
7. Assume-se progressista, compromissado politicamente

Fonte: Elaboração do autor (2018).

Para compreendermos o perfil e as funções do “ser professor/a”, é preciso


problematizar o dilema “ser educador/a” e “se professor/a” que perseguiu toda a
pesquisa. Nossas reflexões nos permitiram reconhecer que esse dilema perde sua
relevância ao se encarar a formação do/a educador/a para além do âmbito pedagógico
ou individualista, para situá-lo na perspectiva de uma proposta e de uma teoria
pedagógica que incorpore o caráter político da prática pedagógica e sua dependência
da práxis social global, em que se dá a luta hegemônica das classes.

O “ser professor/a”, na acepção mais genuína, é ser capaz de fazer o/a outro/a
aprender, desenvolver-se criticamente, o que, por consequência, permite concluir que
todo/a professor/a é, por função, educador/a, um intelectual dirigente, orgânico, que
não é neutro, como propõe Celso Vasconcellos (2001).

Vasconcellos (2001, p.97) insiste na necessidade de o/a professor/a “ganhar” o


aluno para a indispensável mudança que deve ocorrer:

1
Para a leitura flutuante, foi utilizada uma ficha de análise disponibilizada pela Rede de Pesquisadores
sobre o Professor da Região Centro-Oeste (REDECENTRO), a que o projeto que dá origem a este artigo
faz vínculo.

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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
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Não se trata mais de estudar simplesmente para poder garantir o seu lugarzinho
no bonde da História; trata-se, isto sim, de estudar a fim de ganhar competência
e ajudar a mudar o rumo desse bonde, ou seja, ajudar a construir uma sociedade
onde haja lugar para todos!

O/A professor/a “que sabe”, não pode ficar indiferente, porque ser
comprometido/a, engajar-se, ser ético, primar pela transformação, faz parte da sua
competência como professor/a. E, se tudo está em transformação e o que permanece
é a mudança, somente os oprimidos e as oprimidas podem fazer as mudanças
estruturais na história. Entretanto, não quer dizer que as fazem sempre. Aliás, na
maioria das vezes, não as fazem, porque leem o mundo com os olhos de seus opressores
e opressoras. Fazem a transformação social e, no limite, a revolução, quando se livram
do olhar, das lentes opressoras, isto é, quando se conscientizam e se libertam da
alienação, que é ler o mundo com os olhos de outrem, passando a lê-lo com as próprias
categorias de oprimido/a.

O “ser professor/a” na visão de Freire (1997) é, em primeiro lugar, ser um/a


educador/a coordenador da prática educativa, que visa a transformação da educação
tradicional, tão comum na atualidade, caracterizada pela irreflexão e pela falta de
criticidade política. É pensar educação como política. É refletida na consciência da
inconclusão eterna do ser, na abertura da possibilidade de aprendizagem em união, em
que um aprendendo, ensina e o outro ensinando, aprende. Faz-se necessário, nessa
prática, que não falte o rigor que busca a disciplina intelectual, desde que não esteja
ligado à falta de afeto ou caracterizado por uma experiência fria e sem alma.

É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática educativa
vivida com afetividade e alegria, prescinda da formação científica séria e da
clareza política dos educadores ou educadoras. A prática educativa é tudo isso:
afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança
ou, lamentavelmente, da permanência do hoje (FREIRE, 1997, p. 31).

Numa perspectiva crítica, para que a efetiva aprendizagem aconteça, é necessário


a construção de sujeitos socialmente questionadores e não passivos em relação a
construção de conhecimento. A educação transforma as pessoas e essas, por
conseguinte mudam o mundo. Para Paulo Freire (1987), ensinar não é fazer
transferência de conhecimento, mas sim, oferecer condições para que ocorra a

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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
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construção desse conhecimento, garantindo a autonomia no processo de ensino e


aprendizagem.

Com Freire (1997), é possível anunciar a necessidade da reflexão crítica sobre a


prática para que essa se torne epistemológica. É necessário que o distanciamento da
teoria e a prática seja estreitado. Tomar consciência das falhas práticas e teóricas faz
com que a ingenuidade se torne rigorosidade na medida em que o “aprender errando”
se torna “aprender refletindo criticamente sobre o erro”. Estar “aberto” para mudanças
faz-se indispensável nesse processo contínuo se não possivelmente infindável.

Não se pode desprezar que a pesquisa está diretamente relacionada ao ensino e


serve para conhecer o novo e junto com esse, anunciá-lo. É útil para transformar a
criticidade ingênua em epistemológica. Assim, a crítica praticada pelo senso-comum
(criticidade ingênua) pode vir a se tornar epistemológica mudando sua qualidade, mas
não sua essência. Tolher a curiosidade do educando por parte da ação do/a
educador/a é, por consequência, se auto tolher. Essa curiosidade silenciadora e tóxica
corrompe o pensar. Sem a curiosidade que inquieta, que move, que insere o indivíduo
na busca pelo saber, não há aprendizagem ou ensino. No entanto, uma curiosidade
domesticada faz parte de uma concepção bancária, em que apenas se grava e não se
apreende o real significado daquilo que está memorizado e sendo reproduzido. Quanto
mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “rigoriza”, tanto mais
epistemológica vai se tornando (FREIRE, 1997).

Por último, é preciso recuperar o sentido da expressão Freiriana de que a discência


não existe sem a docência reciprocamente, ou seja, não se trata de uma educação
elaborada e produzida para, mas com o/a educando/a, num intenso processo
dialógico. O/A educador/a é, assim, aquele/a que se põe ao diálogo, que inclui, que
preza por esse na sua prática, que trabalha em comunhão.

Desde a perspectiva dialógica de Freire (1987), o/a educador/a popular não se


constitui, por um lado, em um transmissor de informações descontextualizadas da
realidade dos sujeitos com quem atua. Mas também não se reduz a um facilitador de
aprendizagens, como várias perspectivas pedagógicas de cunho não-diretivo
propuseram historicamente. Entre um extremo e outro, Freire (1987) compreende que
o/a educador/a é um sujeito indispensável ao diálogo, uma vez que, se o recusasse
como princípio e método, conduziria ao “diálogo de um só”, ou seja, apenas a palavra
dos/as educandos/as seria proferida, muito provavelmente desprovida da leitura
crítica, da reflexão que, articulada à ação, torna-se práxis (FREIRE, 1987).

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.

Desponta nos trabalhos analisados, o perfil d/a educador/a popular como


mediador/a do processo pedagógico, que não se restringe a transmitir e até ensinar
ou, por outro lado, a facilitar aprendizagens ou informações. Nos trabalhos, seu perfil
define-se entre essas duas funções, em torno das quais se construiu o debate sobre
os/as educadores/as e a Educação, ao longo do tempo. Assim, pensar a perspectiva da
mediação no campo da Educação Popular requer o protagonismo dos/as
educadores/as na constituição de uma práxis pedagógica específica, com
intencionalidade política e princípios éticos e estéticos, políticos e pedagógicos
próprios, definidos a partir do fortalecimento das classes populares como sujeitos de
produção e comunicação de saberes próprios, autênticos, objetivando a transformação
sociocultural.

Assim, as variadas experiências em Educação Popular, especialmente na escola,


conforme se verifica nos trabalhos analisados, vem se afirmando e contribuindo para a
formação de um/uma educador/a cujo perfil é condicionado, não apenas pelo contexto
educativo em que se debruça, escolar ou não escolar, mas também pelos princípios que
orientam a epistemologia assumida. Dessa forma, educandos/as e educadores/as
formam-se mutuamente, ao longo do processo educativo, ou melhor, “[...] já não se
pode afirmar que alguém liberta alguém, ou que alguém se liberta sozinho, mas os
homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 130).

Considerações finais
Por meio da realização do estudo do estado do conhecimento acerca do objeto
investigado é possível concluir que no seu sentido estrito, o/a educador/a popular tem
uma origem, um local de nascimento, uma trajetória própria, em suma, uma história
que lhe confere uma identidade singular que o distingue dos/as demais educadores/as.
Nasceu no universo da Educação Popular, como uma criação originária da América
Latina e, mais especificamente, do Brasil. Como concepção da educação, a Educação
Popular é uma das mais belas contribuições da América Latina ao pensamento
pedagógico universal.

E, no seu sentido amplo, por educador/a popular entende-se aquele/a que, por
meio de sua ação educacional, na condição de mediador/a do processo de produção
do conhecimento, se dirige às camadas sociais, portanto ao povo, primando pela
transformação de projetos de nação, em defesa de uma educação laica, de qualidade
social, democrática, gratuita, para todos e todas. De fato, a educação não tem finalidade
em si mesma, porque ela é sempre meio para a formulação, implantação e
implementação de projetos sociais.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.

Por último, é possível considerar que a Educação Popular, como prática


educacional e como teoria pedagógica, disseminou-se sempre voltada para a defesa dos
direitos e interesses populares e levada a cabo por educadoras/es engajadas/os na
resistência às mais variadas formas de opressão, considerando-se também, os
contextos escolares de produção sistematizada do conhecimento que se coloca como
emancipador e transformador da realidade opressora e excludente.

Referências
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reta e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70,
1979.

BLOOM, B. S. et al. Taxonomy of educational objectives. New York: David Mckay, v.1, 1956.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. 18. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1997.

MOROSINI, M. C. Estado de Conhecimento e questões do campo científico. Educação, Santa Maria, v.


40, n. 1, p. 101-116, jan./abr. 2015.

RICHARDSON, R. J. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1999.

ROMÃO, J. E.; GADOTTI, M. Educação de adultos: cenários, perspectivas e formação do educador.


Brasília: Liber Livro, 2007.

VASCONCELLOS, C. Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como Sujeito de Transformação.
São Paulo: Libertad, 2001.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Posfácio

Posfácio
Uma das tantas esperanças que o povo brasileiro nos dá é que no seio dele são
forjados homens e mulheres que carregaram consigo as sementes da educação popular
e que tanto semearam nos nossos corações e mentes, como Marielle Franco, Valmir
Mota, Nilce de Souza Magalhães, Antônio Tavares, Giovana Deodoro Kaingang, Valdir
Pereira Duarte, Bruno Pereira, Pedro Paulino Guajajara, entre tantos. A desesperança, é
que estes lutadores partiram. Viraram estrelas, foram fazer companhia para nhanderu,
ou para os encantados. Certamente estão vivos, como Paulo Freire está após 100 anos.
Quem parte em defesa da vida nunca morrerá. Todos estes lutadores estavam convictos
que é a partir do conhecimento o caminho para a libertação. Em palavras mais simples
e talvez mais ríspidas: se a educação popular é um ato de amor e por isso um ato de
coragem para mudar a nossa realidade, querer a transformação da nossa sociedade pela
raiz nos coloca em um alto grau de risco de vida.

Historicamente, a Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural


ASSESOAR compreendeu que o conhecimento capaz de gerar melhorias na vida e
autonomia política1 é aquele dinamizado por processos continuados de reflexão coletiva
a partir das lutas do povo. Este conhecimento precisa ser planejado e acompanhado de
forma sistemática e permanente, dialogando com outras modalidades que a
humanidade construiu2.

A ASSESOAR enquanto associação de agricultoras e agricultores familiares e


camponeses/as, compreende que a construção de um projeto de sociedade justa e
solidária exige um permanente diálogo e tencionamento mútuo, entre o conhecimento
produzido pela academia (escolas e universidades) e o conhecimento produzido a partir
dos agricultores e agricultoras e de suas organizações. Portanto, compreende-se como
decisivo um permanente diálogo entre o conhecimento popular e a academia.

1
O conceito de Autonomia, defendido pela ASSESOAR, carrega um sentido político no qual não cabe a
ideia de isolamento e despolitização. Confronta-se com a tradição hierárquica e subordinante,
sustentada principalmente nas estruturas da Família, do Estado através de suas instituições e da Igreja.
Desta posição deriva o método de, primeiro, trabalhar para que novas organizações e movimentos
surjam, instituam-se e posicionem-se a partir de suas especificidades, uma existência que é sempre
relação e compromisso social e político. A autonomia implica num projeto político amplo de
descentralização do exercício do poder; em esforçar-se para constituir espaços de interlocução e estudo
dos diferentes atores do campo popular, numa análise constante dos processos socioeconômicos e
políticos locais e globais, fazendo as lutas de classe necessárias e avançando na construção, proposição
e garantia de políticas de Estado favoráveis à maioria da população. Esta dinâmica negociada no campo
de classe só se efetivará se o conceito de autonomia política estiver originalmente implicado na produção
contra ideológica, no enfrentamento das classes sociais próprias do Capitalismo.
2
Projeto Político e Pedagógico do Cep – Centro de Educação Popular. Assesoar. 2011.

151
Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Posfácio

A reflexão sobre o fazer social concreto (produtivo, organizativo, lúdico, de


gênero, estudo, político, etc) é condição para o avanço e a recriação do conhecimento
e dos movimentos sociais populares e organizações. Este fazer social, se refletido,
torna-se a maneira de integrar conhecimento e prática (práxis), como condição, para
que coletivos e indivíduos sejam capazes de criar e dar rumo à história.

A ASSESOAR nasce no bojo da colonização do sudoeste paranaense. As famílias


que aqui já habitavam e as que vieram morar, sejam italianas, alemães, negras, caboclas,
indígenas, ou seja, brasileiras, tinham entre si vários ensinamentos populares tais como:
enterrar espiga de milho no dia de São João para ver a melhor época de plantio, cortar
madeira no mato para construção e uso de ferramenta somente nos meses do ano que
não tivesse a letra "r" e na lua minguante, castração somente na lua cheia para não dar
sangueira (hemorragia), também entre as mulheres eram trocadas receitas dos tempos
da vovó, vários tipos de chás e muitas plantas medicinais eram cultivadas e trocadas
entre as famílias, fermento caseiro entre outros saberes. O tempo passou, o território
foi se transformando e práticas que se demonstraram importantes foram sendo
substituídas, mas a ASSESOAR por meio de suas ações, continua resgatando iniciativas
que possuam uma perspectiva de vida digna no sudoeste do Paraná.

Com muita estima a ASSESOAR agradece o convite de se fazer presente nessa


Coletânea de Textos “Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes” aqui
apresentada, pois nos faz reacender essa chama de que essa vocação brasileira para o
diálogo libertador é pulsante, trazido nos textos e suas reflexões, bem como
proposições, a partir dos autores e autoras e suas temáticas, demonstrando uma
riqueza de debates e de urgências que a educação popular enquanto uma concepção
que tece as diferentes maneiras de construir conhecimento a partir da realidade
proporciona para os sujeitos de direitos que somos nós.

Educação popular3

Na educação popular o povo é o sujeito


De geração em geração
Ensinamentos do sertão
Guardados dentro do peito.

Conversando com os vizinhos


Sobre época de plantio
Em várzea não plantar perto da barranca
Pois na época da cheia

3
Poesia feita por Airton Luis Freire. Agricultor Familiar de Ampére/PR. Membro da Direção Executiva da
ASSESOAR.

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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Posfácio

Transborda a água do rio.

Tecnologias ecológicas
Sementes de adubos verdes
Empoderando os agricultores
Ensinando e aprendendo em rede.

Isso que aqui foi exposto


Aconteceu na trajetória
Foram ações da ASSESOAR
Ao longo da sua história.

Coletivo da ASSESOAR
Inverno de 2022.

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Editora CLAEC

2022

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