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Educação Popular:
epistemologias, diálogos e saberes
Volume I
1ª Edição
Foz do Iguaçu
2022
© 2022, CLAEC
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte
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licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).
PDF – EBOOK
Inclui Bibliografia.
ISBN 978-65-89284-31-4
DOI: 10.23899/9786589284314
CDU: 37
CDD: 37
Me. Bruno César Alves Marcelino Me. Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo
Diretor-Presidente Diretora Vice-Presidente
Editora CLAEC
Conselho Editorial
Prefácio
O povo é como um ancião que fala muito manso, muito suave e para poder
escutá-lo, tem que chegar muito, muito perto1...
Optei por trazer, nesse breve texto, três experiências que fizeram parte de minhas
vivências em que epistemologias, diálogos e saberes se escondem e se revelam, para
juntar minha voz às vozes das autoras e autores dessa belíssima obra que tenho o
privilégio de prefaciar.
1. Uma jovem professora, após contar uma história indígena para crianças com
idades entre cinco e seis anos, em uma escola do interior do Estado de São Paulo,
decidiu fazer uma inusual pergunta: “Então criançada, vocês acham que índio é gente?”
A estarrecedora resposta das crianças foi um retumbante e quase uníssono “não”! A
jovem professora ficou muito incomodada e socializou o ocorrido. Igualmente
incomodada, decidi partilhar sua história entre graduandas de um curso de Pedagogia,
do qual era docente. Nesse momento, tive a oportunidade de problematizar a situação,
uma vez que uma criança de seis anos, irmã de uma das alunas, estava presente em sala
de aula. Reproduzo de memória o diálogo que se seguiu:
1
Trecho retirado do texto de Raul Leis - As palavras são noivas que esperam - reportando-se à fala de
um camponês quando lhe perguntavam das razões da derrota do sandinismo nas eleições nicaraguenses
em 1990. (In: Pontual, Pedro; Ireland, Timothy (org.). Educação Popular na América Latina: diálogos e
perspectivas – Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2006).
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Prefácio
E esses não são os únicos valores coloniais que são impostos e ficam impregnados
em grande parte das pessoas, nos mais ínfimos gestos, desde a mais tenra idade. Mas a
realidade é dialética e, felizmente, encontramos brechas. É o que nos ensina a sabedoria
do camponês da citação acima: para poder entender nossa realidade, para escutar
nossas crianças, jovens, adultos e idosos, para compreender a nossa História, devemos
chegar perto, muito perto.
2
Como contraponto sugiro a leitura de um precioso livro intitulado “Vocês brancos não tem alma –
histórias de fronteiras”, de autoria de Jorge Pozzobon, publicado pela editora do Instituto Socioambiental
(ISA), originalmente no ano de 2002.
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Prefácio
- Não preciso de nada – tenho suficiente creme para os cabelos e minha sandália
ainda está boa, nunca se rompeu...
Essa fala desvela epistemologias outras que subjazem os territórios ocupados por
populações tradicionais. Quando Xandoca afirma que "não precisa de nada", ela
subverte a lógica do capitalismo - essa máquina mortífera, necrófila, movida à
frustração e que transforma necessidades em desejo. Ou em outras palavras, que
transforma mercadorias em fetiche. A menina interpela a racionalidade capitalista e
revela outra construção de seu ser no mundo, na qual o consumo é dispensável.
Isso não significa que a teoria é científica, é desimportante. Pelo contrário, revela
que é da própria concretude da vida que ela se constrói e para ela retorna. Com vistas
a refletir pontualmente sobre esses aprendizados, tomo empresto as palavras de Clarice
Lispector: “Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio
eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada”3.
Ao ter contato com essa obra organizada por Paulo Alfredo Schönardie -
companheiro do GT06 - e pelas colegas Claudete Beise Ulrich e Liria Ângela Andrioli,
fui tomada por uma incontida emoção. As rigorosas produções científicas, elaboradas
por tantos diferentes sujeitos (muitos deles também parceiros de longa data no GT06
da ANPEd), emergidas de pesquisas e ações emancipatórias pautadas em distintas
dimensões e direções, são prova cabal de que a Educação Popular está viva e pulsante
em nosso país e na América Latina.
E é essa Educação Popular que se renova a partir de novos dilemas, novos desafios
e, sobretudo, de novos atores, trazidos ao diálogo e convidados a partilhar saberes e
epistemologias. Desse substrato vêm nascendo práticas as mais plurais de luta contra
o que está posto, contra as mazelas sociais que estamos enfrentando nos momentos
atuais e contra as quais precisamos somar mais e mais esforços.
Essa importante publicação demonstra que não estamos sós, e que não são poucas
as pessoas que se mobilizam em torno da garantia de respeito e valorização das mais
distintas epistemologias que, rizomaticamente, insurgem no solo do Sul global. E, para
espraiá-las, nossas práticas se assentam incondicionalmente no diálogo e na partilha
de saberes.
Não estamos sozinhas, não estamos sozinhos! Que nossas canetas, escrevendo
livros, nos sirvam de arma potente de contraposição, e que juntas e juntos teçamos
novas e esperançosas manhãs, como nos sugere João Cabral de Melo Neto4:
3
Lispector, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
4
“Tecendo a manhã”. In: MELO, João Cabral de. A educação pela pedra. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Prefácio
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Educadora Popular, Doutora em Educação, Professora Colaboradora da Universidade Federal de São
Carlos – UFSCar e Coordenadora do GT de Educação Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Educação (Anped).
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação
Apresentação
Um caminho introdutório pela educação popular: epistemologias, diálogos e
saberes
A educação popular é uma concepção de educação. Sua pedagogia tem como
ponto de partida e chegada os sujeitos dos processos educativos, que participam dela
como protagonistas históricos e coletivos e que constroem autonomia em processo. A
efetiva vivência da educação popular traz consigo a “re-construção” da teoria, dos
sujeitos, do coletivo e, como consequência, da vida. Esta coletânea, em dois volumes,
tem por objetivo apresentar reflexões teóricas e práticas com base na educação popular
que, com suas epistemologias, dialoga com os saberes e as múltiplas lutas sociais.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação
Acreditamos que uma das contribuições desta coletânea pode estar no diálogo
construtivo, que dá voz protagonista às lutas coletivas de resistência e de reconstrução
da sociedade em um caminho que protagoniza os/as participantes como sujeitos de
sua história em construção. Assim, os capítulos procuram dar voz aos diferentes
matizes da educação popular, em uma sintonia dialogal que, por sua vez, “re-constrói”
as epistemologias da educação popular e não por último, pode ter a força de
potencializar uma sociedade em que todas as formas de vida possam ter as necessárias
condições vivenciais, pelas quais todas e todos nós lutamos.
Nos capítulos que seguem, a educação popular está em diálogo com diferentes
saberes. O encontro dialogal se realiza com paradigmas e métodos de produção de
conhecimento, com os fundamentos epistemológicos e sociais em suas mais diversas
matrizes, com as contribuições de Paulo Freire, com a sistematização de experiências,
com a formação humana integrada à vida material, com o trabalho, com o materialismo
histórico, com os movimentos e organizações sociais e com a sua percepção como
método possível. Ainda, com as concepções de mundo indígenas, com os povos
originários, com o buen vivir, com a decolonialidade, com a interculturalidade e a
multiculturalidade, com a tradição oral, com as culturas locais, com o renascer cultural,
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação
com as resistências territoriais, com a terra, com os movimentos de luta pela terra e
por direitos, com os saberes populares, com as classes populares e com a luta de
classes. Ademais, se expressa na atualidade, com os caminhos de superação e
resistência perante a sindemia aguçada pela pandemia vivida no cotidiano do tempo
presente. Mas, também, com a importância e contribuição da narrativa ancestral, com
a teologia, com a mística, com a política, com a libertação, com a luta das mulheres,
com a igualdade e justiça de gênero, com a educação do campo, com uma educação
popular do campo, com a educação ambiental, com o trabalho docente, com o discente,
com a etnomatemática, com a Universidade, com a escola, com o cotidiano, com a
cooperação e o cooperativismo, com a extensão rural, com a pedagogia da alternância,
enfim, com as educações e os dilemas dos mil povos – com a vida material e imaterial.
E todos esses matizes dialogam entre si, de forma multidimensional, complexa,
holística, evidenciando os saberes do coletivo, os saberes populares, oriundos do
diálogo entre o cotidiano histórico vivencial e as epistemologias.
É preciso ainda referir que os textos estão todos em sintonia com a concepção
pedagógica da educação popular, contudo, representam as posições dos autores e
autoras, e, por isso, às vezes contraditórios entre si. Essas contradições são respeitadas
pelo diálogo do coletivo, essência da educação popular. Como obra coletiva, os
capítulos apresentam também o atual estágio de elaboração teórica de cada
individualidade com as suas vivências e complexidades próprias.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Apresentação
estudam a educação popular como um método possível, ou seja, como um caminho para
a construção da autonomia. Contrapõe a educação popular aos ditamos da sociedade
capitalista, percebendo-a como método de aprendizagem por meio dos movimentos
sociais. Percebem que como método, se apresenta na forma de um saber sistematizado,
como uma prática refletida na construção e reconstrução de conhecimentos, pela
tríade ação-reflexão-ação.
Do diálogo entre o não indígena Marcos José de Aquino Pereira e dos indígenas
dos povos Pankararu e Tariana Geovane Diógenes da Silva, Guanilce Falcão Soares e
Pedro Manoel da Silva Santos é escrito o texto “Diálogos decoloniais, interculturais e
entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos estudantes indígenas da
UFSCar”. Trazem a semana dos estudantes indígenas como espaço de educação popular
que permite o diálogo intercultural dos povos originários entre si e destes com os não
indígenas. Percebem o evento vivenciado em práxis como um espaço de resistência,
possível com a mediação de tecnologias informacionais em um contexto de pandemia
e, nessa tessitura, se percebem como insurgência decolonial e intercultural,
contribuindo com a valorização dos conhecimentos dos povos indígenas e reforçando
as identidades dos povos originários no ambiente universitário.
Com o texto “A narrativa como memória de experiências”, Aline Praça Bernar traz
as narrativas como episódios do passado ressignificados no presente. Diferencia o
tempo cronológico do tempo da narrativa. Apresenta o diálogo da narrativa com a
experiência, percebendo a narrativa como memória de experiências, exemplificando a
partir de mulheres narradoras de suas próprias histórias de vida, marcadas pela
negação da alfabetização. E na pesquisa com as mulheres infere a pesquisa narrativa
como metodologia possível.
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Apresentação
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Apresentação
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Apresentação
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Apresentação
O último capítulo do livro é escrito por Arlete Maria Pinheiro Schubert e Carlos
Rodrigues Brandão, intitulado “Educações e dilemas na terra dos mil povos”. A partir de
pesquisa com o povo Tupinikim e da escuta dos demais povos indígenas, expressam os
desafios dos processos educativos indígenas em seus movimentos das lutas territoriais.
Ponderam os movimentos educativos que emergem do confronto com os projetos
desenvolvimentistas. Nessa conjuntura, percebem ontologias e epistemologias
emergidas dos movimentos em sua originalidade de interações entre coletivos
humanos e não humanos, baseados em uma memória ancestral mítica e histórica que,
por sua vez, colocam novos desafios aos processos populares de educação.
Com as educações dos mil povos, abre-se ainda mais o diálogo da educação
popular com o passado, o presente e o futuro. Instaura-se o pensamento indagante, de
jamais concluir. Estamos diante de uma multiplicidade de práticas educativas genuínas,
ainda muitas vezes não percebidas, mas que tem em comum uma essência de
movimento com a presença da historicidade de sujeitos e coletivos, que com suas
interações pacíficas, dialogais, reconstroem a educação e a história. Nós somos parte
desse processo. Os capítulos estão nesse diálogo. E, lançamos o convite ao leitor, à
leitora para participar dialogicamente.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
experiências
DOI: 10.23899/9786589284314.1
Quando falamos em educação popular, referimo-nos a uma educação que deve ser
sempre compreendida em função dos espaços e contextos históricos em que se realiza.
Por isso não podemos falar da “educação popular” como um processo único,
homogêneo ou uniforme; é sempre melhor falar de processos de educação popular, que
correspondem a momentos particulares, a contextos particulares e a desafios
particulares, e são promovidos por protagonistas específicos que têm sua história, seu
ambiente, suas motivações, suas condições e suas disposições.
*
Educador Popular e sociólogo. Doutor em educação. Diretor do CEP Alforja na Costa Rica. Presidente
honorário do CEAAL, Conselho de Educação Popular de América Latina e o Caribe.
E-mail: oscar@cepalforja.org
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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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DOI: 10.23899/9786589284314.1
Por exemplo, no século XIX, quando se discutia a educação popular, ela era
entendida como instrução pública baseada na noção de que a educação não deveria ser
um privilégio restritivo, como era para os nobres da Colônia, mas deveria ser um direito
de toda a população; desde então encontramos já no termo “educação popular” uma
aspiração democrática. Da mesma forma, quando no início do século XX o movimento
estudantil latino-americano questionou o elitismo do ensino superior e criou as
universidades populares e a extensão universitária, e quando o movimento operário
abriu suas escolas de formação, bibliotecas populares e círculos de cultura, estava
exercendo uma proposta democrática e uma pressão democratizante. Quando a
Revolução Cubana realizou a Campanha Nacional de Alfabetização, que pagou uma
dívida com a maioria do povo; e quando o governo Allende, no Chile, na década de 1970,
propôs a Escola Nacional Única como parte do programa de governo da Unidade
Popular, e foram criados os Comitês de Unidade Popular nos bairros e cordões
industriais, destinados a espaços de organização e formação política; e quando a
Revolução Sandinista na Nicarágua na década dos oitenta afirmou a ideia de que toda
educação no país – formal, não formal, informal; da pré-escola à educação de adultos –
deveria ser uma educação popular, eles estavam, em todos os casos, argumentando que
esses processos estavam vinculados a propostas democráticas que fortalecem o poder
do povo, as capacidades do povo, a participação do povo. Também, quando no México
o movimento zapatista na década de 1990 se levanta em insurgência e cria processos
de valorização da identidade de raízes indígenas para formar uma nova cultura política
democrática, pela qual as Juntas de Bom Governo, como órgãos autônomos, eram
regidas pelo princípio de “governar obedecendo”, e falam em construir um mundo
“onde cabem todos os mundos”, é para apresentar aquela aspiração democratizante que
sempre acompanha qualquer processo de educação popular (JARA, 2018a).
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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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Não há ensino sem discência, os dois se explicam e seus sujeitos, apesar das
diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro.
Quem ensina aprende ensinando e quem aprende ensina aprendendo [...]
ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades de sua
produção ou construção (FREIRE, 1997, p. 25-47).
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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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Se educar não é transferir conteúdos, mas criar condições para produzir, para
construir conhecimentos transformadores, então a questão chave é como criar
condições para um processo de aprendizagem e reflexão crítica que fortaleça as
capacidades de análise, comunicação e sensibilidade diante das problemáticas e assim
entender e trabalhar no que está acontecendo ao nosso redor. O lugar em que
colocamos, então, os métodos, técnicas e procedimentos dos processos educativos está
no caminho da busca de coerência com aquele sentido ético, político e pedagógico do
trabalho educativo cotidiano.
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Paradigma e métodos de produção de conhecimento na educação popular freireana: a contribuição da sistematização de
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Isso também aconteceu com uma abordagem muito comum ao trabalho de Freire.
Durante muito tempo, e até agora, fala-se do “método Paulo Freire” como se fosse sua
única ou principal contribuição, vinculando-o ao método psicossocial de alfabetização
e reduzindo a contribuição pedagógica de Freire a esse método. É claro que Paulo Freire
têm contribuições metodológicas fundamentais. É claro que sua proposta metodológica
de alfabetização constituiu uma revolução em relação aos métodos então utilizados,
mas é apenas uma pequena parte de suas contribuições. E suas contribuições
metodológicas são apenas uma consequência de suas contribuições filosóficas, da
epistemologia dialética e libertadora que caracteriza sua pedagogia.
1
No capítulo 1 da Pedagogia da autonomia (1997, p. 23-24), Freire utiliza o exemplo da cozinha como
processo de construção do conhecimento a partir da prática, da mesma forma, do sujeito que cozinha:
“O ato de cozinhar, por exemplo, supõe algum conhecimento sobre o uso do fogão, como acendê-lo,
como ajustar a chama para mais ou menos, como lidar com certos riscos de incêndio mesmo remotos,
como harmonizar os diferentes condimentos em um saboroso e atraente. A prática de cozinhar prepara
o noviço, ratificando alguns desses conhecimentos, retificando outros e capacitando-os a se tornarem
cozinheiros”.
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2
Vários anos antes, Freire já havia apontado sua crítica à ideia do “facilitador”, tão comumente usada na
América do Norte naquela época, e que vem se difundindo; ver Torres (1988, p. 88).
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trabalhados; com sua percepção de nós em relação ao nosso papel, nossas capacidades
ou nossos comportamentos; com as suas expectativas, as suas palavras ou os seus
silêncios… A sua mera presença num espaço educativo já significa um desafio para nós.
Sentir-se desafiado pelos estudantes com quem trabalhamos e pela situação que
enfrentamos para conhecer e transformar é, talvez, a primeira atitude democrática que
podemos cultivar para gerar condições e disposições de aprendizagem; para, nas
palavras de Freire, “criar as possibilidades” de produção e construção do conhecimento.
Entre tais condições e disposições, estão, saber que não sabemos absolutamente tudo
sobre os conteúdos a serem tratados; que o grupo tenha seus saberes, suas dúvidas e
suas demandas; que os tempos mudam e colocam problemas novos e sem precedentes,
mas também que podemos enfrentar esse desafio porque nos preparamos o melhor
possível; que temos critérios, ferramentas e procedimentos para abordar de forma
criativa e crítica qualquer assunto em questão. Em suma, trata-se de nos colocarmos
em uma atitude dialógica de educadores-educandos.
A partir daí podemos, então, desafiar o grupo e cada pessoa com quem nos
comprometemos, oferecendo perguntas, propostas metodológicas e materiais de apoio
para incorporar mais elementos de informação e novas perspectivas; questionando
suas afirmações e negações; gerando debate em torno de suas percepções; fornecer
novos conteúdos do nosso domínio do assunto; ajudar a sintetizar ideias; conduzir um
processo de reflexão que se torna progressivamente mais complexo e profundo;
incentivando a capacidade crítica, a busca, a investigação e a construção de
aprendizagens individuais e coletivas das quais também nos beneficiamos. Assim, cada
desafio que colocarmos de nossa parte gerará uma resposta, que se tornará, numa
espiral dialética, um novo desafio para nós, educadores, educadoras, desafiantes, enfim,
aprendizes.
Trata-se, então, de assumir essa visão como um desafio à nossa busca de coerência
ético-política e pedagógica com a qual buscamos nos constituir como seres humanos
com consciência planetária e que optam por cuidar da vida neste momento da história.
Por isso, nos colocamos em um paradigma de construção do conhecimento oposto ao
paradigma racional, mercantilista, autoritário, reprodutivista, vertical, patriarcal e
dominante. Essa visão holística, solidária, crítica, criativa e propositiva deve alimentar,
em nosso cotidiano de trabalho, a implementação de traços característicos de uma
educação popular transformadora. Tais características devem se manifestar tanto no
campo das políticas educacionais quanto nas formas de organização de programas e
projetos educacionais alternativos e populares, colocando em prática propostas
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No fundo de tudo isso, emerge o mais importante: o papel das pessoas como
protagonistas do processo vivido, suas trajetórias e contribuições, suas conquistas e
limitações. Com esses elementos identificamos que tipo de protagonismo foi gerado
nas experiências educativas e determinamos se nossos projetos-processos-
experiências geraram capacidades de liderança nas pessoas e grupos sociais com os
quais trabalhamos ou que se concentraram exclusivamente em nossas ações. Em suma,
desvendar os mistérios ocultos nas nossas práticas, os aprendizados significativos e as
lições aprendidas não nos deixa indiferentes... Alguém disse uma vez que depois de
sistematizar uma experiência “não somos mais as mesmas pessoas”, e o fato é que a
sistematização de experiências é um exercício teórico e metodológico, mas só tem valor
na medida em que é expressão de uma abordagem epistemológica e de uma proposta
ética, política e pedagógica com duplo caráter transformador: da prática e de nós que
somos protagonistas dela. Mais uma vez, o método é definido a partir do paradigma que
lhe dá sentido.
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Referências
FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. Montevideo: Tierra Nueva, 1970.
FREIRE, P. Pedagogía de la autonomía. Saberes necesarios para la práctica educativa. México: Siglo
Veintiuno Editores, 1997.
FREIRE, P. Pedagogía de la indignación. Cartas pedagógicas en un mundo revuelto. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno Editores Argentina, 2012.
JARA, O. La educación popular latinoamericana. Historia y claves éticas, políticas y pedagógicas. San
José, Costa Rica: Consejo de Educación Popular de América Latina y el Caribe, Centro de Estudios y
Publicaciones Alforja y ALBOAN, 2018a.
JARA, O. La sistematización de experiencias. Práctica y teoría para otros mundos posibles. Bogotá:
Centro Internacional de Educación y Desarrollo Humano, 2018b.
SANTOS, B. de S. Justicia entre saberes. Epistemologías del sur contra el epistemicidio. Madrid:
Morata, 2017.
TORRES, R. M. Educación popular. Un encuentro con Paulo Freire. Lima: Tarea, 1988.
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Introdução
No modelo de organização da nossa sociedade, a educação ocupa um lugar de
destaque estratégico. Isto não significa necessariamente algo positivo, visto que ela foi
originalmente pensada para a manutenção do sistema comandado pelo capital e a ele
tende a se manter fiel quando a sua práxis não traz o protagonismo das camadas
populares. A educação tradicional, da forma como foi pensada, não possui o foco nos
movimentos populares, na diversidade de indivíduos, pensamentos e identidades. Dito
de outro modo, ela não foi concebida para incluir e, com isso, tende a ser um espaço
reprodutor de desigualdades que investe no individualismo e na competitividade, ao
mesmo tempo em que naturaliza a pobreza provocada pela desigualdade social.
1
Este texto traz um recorte da Tese de Doutorado defendido por Liria Ângela Andrioli.
*
Doutora em Educação nas Ciências pela Unijuí. Professora da UFFS Campus Laranjeiras do Sul/PR.
E-mail: liria.andrioli@uffs.edu.br
**
Doutorando em Desenvolvimento Regional na UTFPR. Mestre em Educação nas Ciências pela Unijuí.
Licenciado em Pedagogia pela PUC/RS.
E-mail: ronaldo.daros@uffs.edu.br
***
Doutor em Ciências Educativas pela Westfälische-Wilhelms Universität Münster (Alemanha).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências, da Unijuí.
E-mail: wfrantz@unijui.edu.br
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Nesse cenário, enfatizava-se o desejo de que a educação, e tão somente ela, fosse
dar conta de resolver o problema social, pois para o projeto de modernidade ela
representava ser a grande viabilizadora da formação dos cidadãos e cidadãs. Diante
dessas condições, o(a) oprimido(a), sem a devida consciência de seu estado, aproxima-
se de uma situação de conformidade social. Há de se considerar também, que até os
anos 1960, o Projeto do Campo Democrático e Popular2 tinha a Educação Popular e a
Educação do Popular como sinônimas por terem os mesmos objetivos e princípios.
2
Segundo Paludo (2001, p. 46) o “Campo Democrático Popular” representou “a articulação e congregação
de forças políticas e culturais com capacidade de intervenção política e organizativa. [...] Além disso, o
Campo Democrático Popular se orienta pela autonomia dos diferentes sujeitos sociais – Partido, Estado,
Movimento – pelo rompimento de relações hierárquicas entre direção e base, pelas formas de
participação direta do popular na reflexão, decisão, execução e controle das deliberações, enfatiza o
caráter pedagógico das relações, apontando claramente para traços culturais inovadores”.
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Sua prática, entretanto, gerou constante tensão com a sociedade que possuía seus
esforços em torno do capital, pois seus ideais apresentam elevado grau de
contrariedade. Assim, a história da Educação Popular no Brasil passou a distinguir
Educação do Popular de Educação Popular. Essa última surgiu como uma necessidade
frente à construção de uma sociedade democrática em nosso país, vinculada às práticas
educativas emancipatórias, realizadas junto às classes populares. “A origem da
concepção de Educação Popular, dessa forma, decorre do modo de produção da vida
em sociedade no capitalismo, na América Latina e também no Brasil” (PALUDO, 2012, p.
281). Suas raízes, contudo, têm a ver com contextos mundiais de enfrentamento ao
capital.
A Educação Popular apresenta-se, assim, como uma prática social e que envolve
culturas. Geralmente está mais próxima das camadas populares e se constitui nas
experiências e cotidianos dos movimentos sociais. Não há, assim, uma definição única
para a Educação Popular, já que sua concepção está atrelada a experiências de vida.
Considera a realidade e o ser humano como um todo, em permanente construção e
reconstrução, reinventa-se constantemente na e a partir das práticas. Torres (2007)
sustenta que a Educação Popular se caracteriza por elementos constitutivos: a) propõe
uma realidade crítica da ordem social vigente; b) tem em si uma intencionalidade
política emancipadora; c) contribui para com os setores dominados e protagoniza
mudanças sociais; d) proporciona a construção e a utilização de metodologias
educativas dialógicas, participativas e ativas.
Paulo Freire é uma das referências dessa proposta pedagógica. Ele afirma que a
educação é política, ou seja, não é neutra. Ela é política porque se contrapõe às lógicas
do mercado capitalista. A educação, assim como se apresenta sendo um caminho para
a autonomia, também pode vir a ser um instrumento de reprodução de valores na
sociedade. O educador Paulo Freire (2001) cunha o termo “conscientização”, que para
3
Tem a ver com o processo de industrialização e de urbanização em nosso país. Esse projeto teve sérias
consequências aos agricultores(as) e o acesso à educação.
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A sociedade atrelada a uma lógica capitalista nos faz crer que existe um
pensamento fragmentado que naturaliza as condições sociais e faz com que incentive
os seres humanos à individualidade e à competitividade. Santos (2010, p. 44) nos auxilia
a compreender essa questão ao conceituar a globalização como fábula, estando imersa
em um mundo que nos faz crer em um pensamento único e universal que vai
conduzindo as nossas ações na sociedade em que vivemos.
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De acordo com Paludo (2001), três grandes desafios parecem ser mais urgentes
para os sujeitos envolvidos nas práticas educativas, sob a concepção de Educação
Popular. O primeiro é o de superar resistências e de intensificar as trocas de
experiências para, a partir desse movimento, ir construindo identificações gerais,
sólidas e consensuadas em nível referencial, buscando fundamentar a própria
concepção, sua vinculação com o projeto de futuro em constituição e qualificando as
suas práticas. O segundo desafio é estabelecer novas formas de lutas, para conseguir
que essa discussão seja feita pela sociedade para uma reflexão sobre qual projeto de
educação e de civilização encaminhar. O terceiro é aprofundar o significado da
educação, de como efetivá-lo nos processos educativos cotidianos para a construção
dos projetos alternativos de desenvolvimento.
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Torres (2013) nos auxilia a compreender essa questão ao discorrer sobre critérios
pedagógicos para formar pensamentos e subjetividades emancipadoras. Em primeiro
lugar, é necessário ter curiosidade epistêmica e atitude problematizadora; em segundo,
é posicionar-se criticamente diante da realidade; em terceiro lugar, é apreender o
mundo de forma crítica, considerando a possibilidade de transformação; em quarto, é
ter presente que possuímos uma herança cultural e social que, muitas vezes, impede a
ação crítica; em quinto, é pensar, criticamente, em um esforço de ler o mundo por conta
própria; em sexto, é refletir em torno de um pensar que envolve os sujeitos como um
todo; em sétimo lugar, Torres sugere que a formação do pensamento crítico e de
subjetividades acontece por meio de experiências coletivas; em oitavo, é destacada a
reflexividade, ou seja, é ter uma atitude autocrítica diante das nossas ações; e por fim,
é a necessidade de buscar uma coerência entre o pensar e o atuar, em uma relação
permanente entre a teoria e a prática.
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Ao possibilitar uma relação social e cultural também está envolta uma relação
dialógica, conforme preconiza Freire (2005, p. 192), uma relação entre “eu e tu”.
É por essa perspectiva que entra novamente em cena o conceito de coletivo, já que
as relações são estabelecidas por um “nós”. Seres humanos diferentes, mas não
desiguais passam a se constituir como sujeitos, protagonistas das lutas por uma
sociedade mais justa. A Educação Popular se apresenta como um viés utópico, levando
em consideração um compromisso histórico. A possibilidade de utopia está amparada
em um inédito-viável, ou, então, em um sonho possível de ser realizado. Para Freire
(2001, p. 32), “[...] o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a
dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura
desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante”.
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Considerações finais
A Educação Popular como método se afirma pelo seu papel transformador de
sociedade. Infere-se na realidade, para modificá-la. Implica valores e princípios em
todo o seu processo de prática social. Utilizando-se desse método, os sujeitos da
pesquisa também produzem conhecimento, ou seja, partem de sua realidade, de suas
experiências de vida para produzir conhecimento. Refletir sobre a ação, em um
movimento dialético entre teoria e prática também se constitui como uma forma de
aprendizagem, de realização de uma pesquisa. Há ainda a preocupação em dar o
retorno da pesquisa realizada na comunidade, propiciando a reflexão da ação.
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2013.
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Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
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Introdução
A diversidade de povos indígenas presente no território atualmente denominado
como brasileiro, outrora de diferentes povos originários e com distintos nomes, é
gigantesca. O Instituto Socioambiental (ISA, 2021) indica, com base no Censo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, que existem mais de 305
povos indígenas no país. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) é uma das
universidades brasileiras com a maior diversidade de povos indígenas atualmente
(SILVA; SOUZA; PALOMINO, 2020). Desde o ano de 2008, com a realização de seu
primeiro Vestibular Indígena, estudantes indígenas de mais de 46 etnias diferentes
estão ou estiveram vivendo no município de São Carlos para estudar (SILVA; SOUZA;
PALOMINO, 2020). Nesse campus, segundo levantamento interno da Pró-Reitoria de
Assuntos Comunitários e Estudantis (ProACE) da UFSCar1, 196 estudantes indígenas, de
um total de 273 em todos os campi da UFSCar, encontram-se, neste ano, em formação
*
Doutorando em Educação, UFSCar.
E-mail: marcosaquino@estudante.ufscar.br
**
Estudante indígena do povo Pankararu, Graduando em Letras, UFSCar.
E-mail: gegepankararu@gmail.com
***
Estudante indígena do povo Tariana, Graduanda em Educação Física, UFSCar.
E-mail: guanilce@estudante.ufscar.br
****
Estudante indígena do povo Pankararu, Graduando em Pedagogia, UFSCar.
E-mail: pedromanoelpg@gmail.com
1
Obtivemos este dado através do Pró-Reitor de Assuntos Comunitários e Estudantis, Djalma Ribeiro
Junior, que gentilmente nos informou que esse levantamento foi realizado em 09/03/2021, indicando a
presença de 13 indígenas estudantes no campus de Araras; 16 no campus de Lagoa do Sino; 48 no campus
de Sorocaba; 196 no campus de São Carlos, pertencentes a 36 povos indígenas diferentes.
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Com o intuito de delimitar um período de tempo para que essas trocas culturais e
de conhecimentos tradicionais e científicos fossem potencializadas, nasceu, sob a
coordenação do CCI e por demanda dos/as próprios/as estudantes indígenas, no ano
de 2015, a I Semana dos Estudantes Indígenas da UFSCar. À época, estes estudantes
solicitaram que houvesse, na universidade, um momento/espaço de diálogo entre
os/as indígenas estudantes de diversas regiões e povos do território atualmente
denominado Brasil, assim como com a comunidade não-indígena. Desde então, a
Semana dos Estudantes Indígenas (SEI) da UFSCar realizou-se anualmente de forma
presencial, até que em 2020, devido à pandemia e ao necessário isolamento social,
apresentou-se o desafio de realizá-la remotamente.
Alguns meses após a sua realização, em uma roda de conversa que integra a
pesquisa de doutorado2 que está sendo produzida em conjunto com o CCI, os/as
estudantes indígenas expressaram o desejo e a necessidade de escreverem artigos
científicos para, ao mesmo tempo registrar e divulgar as ações do coletivo e os
conhecimentos de seus povos, já que muitos deles valorizam mais a tradição oral, mais
características dos povos indígenas, diferentemente da cultura ocidental. Surgiu assim
a ideia da escrita coletiva deste artigo, entre três estudantes indígenas da graduação da
2
Pesquisa intitulada “Processos Educativos do Centro de Culturas Indígenas: indiagem, acolhimento,
desafio e conquista na Universidade Federal de São Carlos”, conduzida entre 2019 e 2022, por Marcos
José de Aquino Pereira, com a participação dos autores e da autora deste texto e de outros/as
membros/as do CCI, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Waldenez de Oliveira, na linha de pesquisa
“Práticas Sociais e Processos Educativos”, no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da
UFSCar.
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UFSCar sendo dois do povo Pankararu e uma do povo Tariana, e um pesquisador não
indígena, doutorando pelo PPGE da UFSCar, tendo como temática a VI SEI, discutindo-
a sob as perspectivas decoloniais.
Consideramos ser essa uma ação de educação popular, entendendo que, como
“concepção da educação, a educação popular é uma das mais belas contribuições da
América Latina ao pensamento pedagógico universal” (GADOTTI, 2017, p. 24) em que
um dos seus princípios tem sido a criação de uma nova epistemologia baseada no
respeito aos conhecimentos populares, na qual a “[...] diversidade é a marca desse
movimento de educação social, popular, cidadã, cívica, comunitária. Trata-se de uma
rica diversidade que precisa ser compreendida, respeitada e valorizada” (GADOTTI,
2012, p. 11) o que se relaciona à luta dos/as estudantes indígenas para que os
conhecimentos e epistemologias dos povos originários dos quais fazem parte sejam
preservados e reconhecidos, contribuindo para uma educação que participe da
construção de outras realidades possíveis.
O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque,
se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos
ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje
estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.
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São questões urgentes para agora e também para o futuro, que exigem profundas
reflexões, sobre a nossa relação com a natureza e entre nós, que foram exacerbadas
pela pandemia, mas já explicitadas pelos impactos ambientais e sociais do atual modelo
civilizatório.
Dessa forma podemos pensar em diversas propostas para uma sociedade além da
Modernidade e da Colonialidade, como a da Transmodernidade, de Enrique Dussel
(2016), a Ecologia dos Saberes, de Boaventura Santos (2009) e a da Interculturalidade,
de Catherine Walsh (2005), que nos permitam buscar alternativas, que se demonstrem
historicamente sustentáveis, e nisso podemos encontrar diversas perspectivas,
epistemologias, cosmovisões e formas de se viver milenarmente construídas e vividas
pelos povos originários3 do ora denominado americano, outrora Abya Yala, como o
3
Utilizamos ao longo do texto os termos povos originários e povos indígenas como sinônimos, pois
partimos das formas narrativas das pessoas autoras e das fontes consultadas, no que encontramos essa
variação. Também usamos Estudantes Indígenas, porque é dessa forma que é usual para os/as
membros/as do CCI. Temos consciência das discussões e debates sobre o uso deste ou daquele termo
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Bem-Viver (MAMANI, 2010; ACOSTA, 2016), muitas das quais foram e têm sido
invisibilizadas, subalternizadas e eliminadas, através do sistemático genocídio e
epistemicídio, desses povos e de seus conhecimentos:
[...] o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um
epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de
conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho
porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos (SANTOS, 1999,
p. 283).
para nos referirmos a esses conceitos (vide: Almeida [2020], Doebber [2017] e Lopes [2015]), mas
consideramos que não seria algo pertinente aos objetivos deste artigo entrar nesta temática.
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deu historicamente, e ainda se dá de forma violenta, tanto com o uso da força e das
armas, quanto por meios mais sutis, como a sua invisibilização e subalternização.
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Perspectivas do Sul, do Outro, dos povos que foram subjugados, mas que
resistiram, como as do Bem-Viver (MAMANI, 2010; ACOSTA, 2016) que rompem com a
lógica eurocêntrica/antropocêntrica, entendendo o ser humano em unidade com a
natureza, como afirma Krenak (2019, p. 10) em uma perspectiva de que tudo é natureza,
inclusive a humanidade: “fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a
Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade.
Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O
cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza”.
Percurso metodológico
Este estudo surgiu da percepção dos autores e da autora da necessidade de se
refletir criticamente sobre a importância da VI SEI, partindo das memórias de suas
vivências na organização e participação no evento e por isso optamos pela metodologia
de relato de experiência, que consiste em:
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Utilizamos como técnica a escrita coletiva, com espaço para o diálogo, a escuta e
o debate de ideias e de opiniões, com o uso de recursos tecnológicos para a
comunicação entre as pessoas autoras, devido à realidade da pandemia, realizando uma
recordação individual de nossas memórias sobre nossas experiências no evento,
selecionando o que consideramos mais relevante relacionado à realidade atual,
desenvolvendo a escrita narrativa e em seguida procedendo a nossa análise crítica,
buscando relacionar essa parte narrativa à fundamentação teórica por nós
desenvolvida, chegando assim às nossas considerações, que entendemos, devem
manter um caráter de abertura à outras possíveis interpretações, representando tão
somente as nossas reflexões e visões enquanto algumas das pessoas que participaram
da organização e realização do evento.
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e participantes através de perguntas via chat, que eram lidas pelos/as mediadores
estudantes indígenas, o que se repetiu em todas as noites.
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Nossas considerações
Diante de um cenário pandêmico mundial, em que sobressaem-se as contradições
e a insustentabilidade do modelo civilizatório sustentado pela Modernidade e pela
Colonialidade, cabe aqueles/as que resistiram e resistem historicamente a esse
modelo, superando genocídios e epistemicídios, os povos indígenas, continuarem
reafirmando as suas identidades, os seus conhecimentos e os seus modos de vida, frutos
de outras cosmovisões e epistemologias, que não dicotomizam os seres humanos e a
natureza, pautando-se por relações diferentes entre si e com os demais seres vivos e
partindo de uma percepção mais ampla que não limita o saber à racionalidade e a ação
à utilidade, que remete às perspectivas do Bem-Viver.
Evento esse em que foram abordados tópicos de várias questões direcionadas para
a temática indígena. Reflexões, críticas, soluções, metas, objetivos para o
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Assim, como propõe a Ecologia dos Saberes, a SEI propicia o diálogo entre os
conhecimentos acadêmicos e os conhecimentos tradicionais, possibilitando o
fortalecimento de ambos na formação do/a estudante indígena. O diálogo entre esses
conhecimentos é fundamental para os/as profissionais indígenas egressos da UFSCar,
que atuarão em suas respectivas comunidades, assim como contribui para a formação
de todos/as os/as profissionais formados/as pela Universidade na medida que os/as
educa para reconhecerem e respeitarem a diversidade cultural brasileira a partir da
presença dos/as estudantes indígenas na universidade.
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Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
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Diálogos decoloniais, interculturais e entre epistemologias dos povos originários: a VI Semana dos Estudantes Indígenas da
UFSCar
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A narrativa como memória de experiências
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A citação que trago para abrir este artigo é uma frase de uma das mulheres a quem
a escolarização foi negada com cuja narrativa dialogo na minha pesquisa doutoral.
Trata-se de uma senhora de quase 80 anos que passou a vida toda guardando o desejo
de aprender a ler e a escrever, tendo conseguido realizá-lo só na terceira idade.
*
Doutora e Mestre em Educação pela UFF - Universidade Federal Fluminense - Linha de Pesquisa:
Estudos do Cotidiano da Educação Popular. Licenciada em Letras - Português/Inglês pela UERJ/FFP.
E-mail: alinepbernar@gmail.com
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A narrativa como memória de experiências
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na disposição dos livros de sua biblioteca, de acordo com seu amigo íntimo, Scholem,
e, principalmente, em seus textos de caráter mosaico, segundo Hannah Arendt (1991),
na obra “Homens em Tempos Sombrios”. O que o inspirava, conforme anotações e
cartas enviadas aos seus amigos mais próximos, era o movimento surrealista, capaz de
ver riquezas na efemeridade, naquilo que está desacreditado ou desiludido. Outra
questão importante é trazida em “Rua de Sentido Único e infância em Berlim por volta
de 1900”, publicada por Ernest Rowolthlt, em Berlim, em forma de folheto. Segundo o
próprio Benjamin (1992), essa obra pretendia ser um tipo de livro diferente dos
habituais. A obra em questão traz vários pequenos textos fragmentados, sem pretensão
cronológica e organizados sem uma ordem preestabelecida. Feita de pequenos textos,
exibiria o que se costumava reconhecer no estilo benjaminiano: seu gosto pelas
miniaturas. Mas pergunto-me: o que esse gosto particular de miniaturizar de Walter
Benjamin teria em relação aos apontamentos sobre memórias ou reminiscências
(trazidas da memória em esquecimento)? Quando busco os possíveis significados desse
verbo, encontro: miniaturizar é reduzir, é tornar portátil ou útil, mas também pode
significar “ocultar”. E, quando ligo os significados à vida e obra de Benjamin, indago que
outra maneira – senão em miniaturas – seria mais adequada para um refugiado,
estrangeiro ou viajante carregar seus pertences, incluindo suas memórias? O gosto pelo
que é pequeno (em termos espaciais) pode fazer lembrar o mundo infantil, mas também
me faz pensar no que ele mesmo chamou de “mundo pequeno”, quando nomeou a Paris
dos surrealistas.
Segundo Sontag (1992), pouco antes de sua morte, Benjamin planejava um ensaio
sobre a miniaturação. Ao que tudo indicava, seria uma continuação de um velho plano
de escrever sobre “A Nova Melusina”, conto de Goethe, que tem por tema a história de
um homem que se enamora por uma mulher que, na realidade, é uma pessoa diminuta,
mas a quem, temporariamente, foi concedido o tamanho normal: sem o saber, o homem
transporta uma caixa que contém o reino em miniatura de que ela é princesa. No conto
de Goethe, o mundo está reduzido a algo que bem poderia ser colecionável, um objeto,
uma caixa que simboliza o mundo (em miniatura) da tal princesa.
Quando penso um mundo reduzido, penso no livro como espaço diegético para
personagens e narradores (do gênero narrativo escrito), mas penso também no espaço
deixado para que o leitor possa adentrar e ocupar seu lugar com a sua interpretação,
que é sempre única ou singular. Quando Benjamin pensa no formato da obra “Rua de
Sentido Único e infância em Berlim por volta de 1900” não pretende, ainda segundo
Sontag (1992), que esta seja apenas um livro com vários fragmentos do mundo, mas sim
um “pequeno mundo”. Observo que a expressão feita com o adjetivo “pequeno” antes
do substantivo “mundo”, adquire o contexto desejado pelo autor, pois não inferioriza o
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“mundo”, apenas diz que é circunscrito, reduzido e, até se quiser, especial. Entretanto,
se o adjetivo “pequeno” viesse após o substantivo “mundo”, a expressão que utiliza as
mesmas palavras ganha outra conotação, podendo ser associada ao que se configura
como menor ou mesquinho.
Para Walter Benjamin (1992), o livro era uma miniaturação do mundo que é
habitado1 pelo leitor. E é só dessa forma, entrando no livro (no que chama de “pequeno
mundo”), que é possível encontrar significado nos acontecimentos do passado,
acontecimentos que, na sua concepção, são “eufemisticamente conhecidos por
experiência” (Idem, p. 24).
Aqui vejo surgir a complexa, mas não menos interessante, questão da experiência2.
Mas, antes de percorrer os caminhos de qualquer outra análise, tento pensar, junto com
a frase de Benjamin (1992), nas narrativas com as quais trabalho em minha tese. São
narrativas orais que trazem acontecimentos do passado, que voltam ao período da
infância em que o desejo pela escolarização tinha força, mas não uma força suficiente
para vencer todos os interditos impostos às mulheres. Entretanto, ao tocar na
possibilidade de encontrar significado nos acontecimentos do passado, Benjamin os
define como um “eufemismo” que se conhece com o nome de experiência.
Para tentar entender melhor o que Benjamin (1992) escreveu, penso antes na figura
de linguagem usada por ele para definir o termo experiência. A figura eufemismo nada
mais é que a tentativa de minimizar ou suavizar um termo, situação ou expressão que
possa, talvez, chocar o interlocutor. Experiência seria, então, para Benjamin (1992), a
suavização de algo equivalente a “acontecimentos do passado”. Talvez tenha sido assim
definido por ser um conceito impreciso ou ainda porque a palavra experiência possa
também apontar para algo associado à experimentação, que pode mudar de acordo com
o pensamento de cada autor. São hipóteses apenas, mas, a partir delas, caminho para
uma questão que, neste momento, coloca-se diante de mim: Benjamin (1992) diz que a
experiência é um eufemismo, uma suavização para “acontecimentos passados”. Pode
ser que o autor tenha usado a palavra experiência por ser mais abrangente e menos
específica do que “acontecimentos”; mas preciso de mais, preciso relacionar
experiência com a narrativa, já que esta se situa no cerne da minha pesquisa e que
também pode conter acontecimentos passados. Penso em mais uma hipótese. Embora
apareça em forma de pergunta, é apenas mais uma tentativa de entender um conceito
1
Penso no texto de Martin Heidegger: “Poeticamente o homem habita”, mesmo tendo lido, na introdução
de Susan Sontag para a obra “Rua de Sentido Único e infância em Berlim por volta de 1900”, que Walter
Benjamin desprezava Heidegger.
2
Faço opção por grifar o conceito em itálico para distingui-lo da palavra.
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tão complexo: seria, a narrativa, o local da experiência por excelência, assim como o
poema é o local do encontro?
O poético, digamos, seria aquilo que desejas aprender, mas do outro, graças ao
outro e sob ditado, de cor. Não é isso já o poema, quando uma garantia é dada,
um evento que vem, no momento em que a travessia da estrada chamada
tradução se torna tão improvável quanto um acidente, contudo intensamente
sonhada, solicitada nesse ponto em que o que promete deixa sempre a desejar?
(DERRIDA, 2003, p. 6-7).
Derrida também discorre sobre a questão da experiência, dizendo ser ela outra
palavra para viagem, ou uma “incursão aleatória num trajeto”.
[...] o poema pode enrolar-se em bola, mas fá-lo ainda para voltar os seus signos
agudos para fora. Ele pode, sem dúvida, refletir a língua ou dizer a poesia, mas
nunca se refere a si mesmo, nunca se move por si como estes engenhos
portadores da morte. A sua ocorrência interrompe sempre, ou desvia, o saber
absoluto, o ser junto de si na autotelia. Este demônio do coração jamais se
congrega, antes se perde (delírio ou mania), expõem-se à sorte, preferiria
deixar-se despedaçar por aquilo que sobre ele avança (DERRIDA, 2003, p. 10).
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Para entender melhor o que vem a ser o conceito de experiência e ver se ela ocorre
nas narrativas trabalhadas, parto das palavras de Walter Benjamin (1992), mas encontro
outros pensadores e teóricos pelo caminho que também oferecem suas concepções à
análise. O professor de Filosofia da Universidade de Verona, Giorgio Agamben (2014),
por exemplo, ao pensar sobre a pobreza em experiência comunicável, trazida por
Walter Benjamin (1992), reflete sobre sua destruição:
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[...] em sua busca pela certeza, a ciência moderna abole esta separação e faz da
experiência o lugar – o ‘método’, isto é, o caminho – do conhecimento. Mas, para
fazer isto, deve proceder a uma refundição da experiência e a uma reforma da
inteligência, desapropriando-as primeiramente de seus sujeitos e colocando em
seu lugar um único novo sujeito (AGAMBEN, 2014, p. 28).
O que Agamben está dizendo é que experiência e ciência, que até então se referiam
a dois sujeitos distintos, agora se reúnem em um sujeito único, dando origem ao ego
cogito cartesiano, ou seja, à consciência. O sujeito que une experiência (nous) e
conhecimento (psyché) é apresentado hoje como uma substância (eu substantivado),
mas diferente da substância material, a quem é atribuído tudo que caracteriza a
psicologia tradicional e, inclusivamente, a sensação.
Walter Benjamin, no texto “O Narrador” (1992), vai explicar que a arte de narrar
está em extinção porque as pessoas perderam sua capacidade de trocar experiências.
Explica ainda que ele não está falando de qualquer troca de experiência, mas da
experiência que “anda de boca em boca”, fonte na qual os narradores da tradição oral
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Essa sabedoria de que Benjamin (1992) fala está ligada à tradição oral, não aos livros
escritos. A tradição oral, bem como seus narradores, ao dividir suas histórias, trazia, de
forma inerente, o compartilhamento de experiências individuais ou coletivas. O próprio
momento da narração, que configura um momento de criação, está também
relacionado a essa troca com os demais, com os ouvintes que dividem aquele espaço e
tempo da narrativa com outros. No momento da narrativa, cada um, à sua maneira,
levará consigo a experiência ou sabedoria compartilhada que mais se aproximar das
suas necessidades e com elas terá oportunidade de recontar, em outro momento e
local, a “mesma” história que nunca será a mesma.
Sendo atemporal, a narrativa não perde nunca sua atualidade e pode perpassar
várias gerações diferentes, trazendo ainda sua contribuição para as dúvidas ou mazelas
inerentes à essência do sujeito. Essa narrativa, chamada de artesanal por Benjamin
(1992), é uma espécie de mergulho na experiência do narrador que a vive como ofício.
Esse ofício não é apenas o dom de narrar, mas também de ouvir e de recontar. Nas
rodas de contações de histórias que temos notícia da tradição oral, o ouvinte estava
com as mãos ocupadas, tecendo, costurando ou mesmo limpando as ferramentas de
trabalho para o dia seguinte. Assim, esse “esquecer de si”, ocupado com as mãos, fazia
do dom de ouvir o dom de narrar.
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A figura da personagem Xehrazade é conhecida por narrar uma longa história para
adiar a sua morte. Com as suas narrativas, as mulheres desta pesquisa também adiavam
não a morte física, literal, mas, sobretudo, a morte de um projeto, de um sonho de um
objetivo de vida: a alfabetização. Narrando suas histórias de uma infância impedida de
escolarização, elas mantinham vivo seu desejo e acendiam em suas memórias a faísca
que renovava sempre o fogo da sua realização. “O adulto, ao narrar uma experiência,
alivia seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar
para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início” (BENJAMIN, 2009, p. 101).
É vivendo que o sujeito desenha os contornos de sua história pessoal. Mas essa
história pessoal ou a narrativa que se constrói em uma vida não se constroem sozinhas.
Em uma dada história pessoal, habitam outras tantas histórias, ouvidas, lidas ou
vivenciadas. Nas histórias de vida, não existe a voz de um único sujeito, pois, assim como
as histórias que se cruzam e se multiplicam em muitas outras, as vozes também se
encontram e se embaralham em um coro bilateral que confunde, por exemplo, a noção
de autoria.
O que é de fato meu e o que pertence ao Outro? Venho aprendendo a pensar sobre
essas questões. Venho aprendendo também que, em algumas situações, é difícil
discernir, pois o sujeito, em sua constituição, está indiferenciado com os muitos outros
que existem ou existiram em sua vida.
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O passado de qualquer sujeito fica sempre no passado. Este não sai de seu lugar e
invade o presente conforme se pensa quando se fala de memórias ou lembranças. As
pessoas costumam romantizar e dizer que, ao usarem a memória, revivem os fatos
passados tal qual eles ocorreram há anos, com o que, de fato, preciso discordar, vez que
a lembrança desses fatos nunca ocorre da mesma maneira e seu produto não pode ser
verossímil nem mesmo para aquele que conta. A cada oportunidade que se tem de
relembrar um evento, de recontar uma situação, é possível que alguns detalhes sejam
omitidos ou acrescidos. Penso em irmãos criados juntos que apresentam registros de
memórias totalmente diferentes da mesma infância. Seus pontos de vista, suas
percepções e emoções são apenas alguns dos fatores que contribuem para que essa
diferença exista. Quem de fato está certo? Eles nunca saberão.
Contudo, penso também nas vezes em que o sujeito conta e reconta a sua própria
história de vida. A cada vez uma nova história se apresenta, um novo contexto ou
emoção se configura. Não estou simplesmente dizendo que o sujeito burla suas
lembranças propositalmente, estou pensando nas vezes em que se acredita seriamente
na veracidade dos fatos independentemente da opinião alheia e ainda quando nem se
percebe a alteração dos detalhes.
Por que isso acontece? Isso acontece porque a memória não é rígida, não é nítida,
não é linear, não é cronológica ou racional. Pelo contrário, seus aspectos mais
recorrentes me levam a crer que esse material, tão dúbio quanto efêmero, não pode ser
manipulado, ele é livre para ir e vir de onde estivermos para qualquer lugar do passado.
Nas narrativas trabalhadas ainda no mestrado, notei que as mulheres que ali
contam parte de sua história de vida, vão, inevitavelmente, de onde estão, da terceira
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idade, para uma fase específica do passado: a infância ligada à negação da escolarização.
Elas não apontam importância nem comentam com tanta energia sobre nenhum outro
acontecimento ou fase da infância, apenas sobre a fase de uma possível escolarização
que não ocorreu.
Foi assim que me deparei no mestrado com a pesquisa (com) e com a conversa
como uma metodologia possível e válida não apenas dentro da Educação. Mas,
diferentemente do que pensava, desta vez, não poderia trabalhar com nenhuma das
duas. Assim, nas aulas de Memória e Narrativa, fui percebendo que precisava de outra
metodologia para realizar a pesquisa a que me propunha.
Peguei tudo o que tinha e voltei a analisar. De fato, eu não estava mais em campo,
não teria encontros quinzenais com as mulheres idosas com as quais pesquisei. Dessa
forma, eu não mais poderia pesquisar (com) elas. O que tinha eram recortes das
conversas em que a questão da infância sem escola saltava aos olhos. Precisava definir
o que me levou novamente a buscar essas narrativas, definir melhor o meu problema
de pesquisa, bem como a questão que norteava a minha reflexão, além de fazer uma
revisão da literatura a ser utilizada.
De porte do que tinha para pesquisar, fui conhecer uma nova metodologia de
pesquisa: a pesquisa narrativa. Precisava começar pelas narrativas que iriam apontar os
caminhos para os quais eu levaria os teóricos para com eles dialogar. Contudo, não
pretendia fazer um trabalho de análise do discurso. Eu queria, na verdade, voltar a
encontrar com aquelas mulheres idosas, nem que fosse dentro de suas narrativas ou no
caminho trilhado por suas memórias. Então, busquei conhecer mais da metodologia a
ser empregada e, em um dos textos estudados, encontrei as vozes de Guilherme Prado
e Liana Serodio:
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Referências
AGAMBEN, G. Infância e História – Destruição da experiência e origem da história. Tradução:
Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios. Tradução: Ana Luísa Faria. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
BENJAMIN, W. Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900. Tradução: Isabel
Almerinda de Sousa. Lisboa: Relógio d’ Água, 1992.
BENJAMIN, W. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução: Maria Luz Moita. Lisboa: Relógio
d’Água, 1992.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas II – Rua de Mão Única. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Brasiliense, 2000.
DERRIDA, J. Che cos’ èla poesia? Tradução: Osvaldo Manuel Silvestre. Coimbra: Angelus Novus Editora,
2003.
SONTAG, S. “Sob o signo de Saturno”. In: BENJAMIN, W. Rua de Sentido Único e Infância em Berlim
por volta de 1900. Tradução: Isabel Almerinda de Sousa. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.
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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
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Introdução
O exercício das manifestações culturais é protegido pela Constituição Federal do
Brasil e por textos internacionais de defesa dos direitos dos indígenas. Mas nem sempre
foi assim: até a promulgação do novo texto constitucional brasileiro, em 1988, o
entendimento legal era no sentido da assimilação, o que corresponde a dizer que os
indígenas deveriam ser assimilados pela sociedade hegemônica até desaparecerem.
Nesta linha de pensamento eles iriam minguar pouco a pouco até que não existissem
mais.
*
Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, especialista em Direito Civil e
Processual Civil, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professora da Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS) desde janeiro de 2011 e membro do Centro de Referência em Direitos Humanos
Marcelino Chiarello (CRDH-UFFS).
E-mail: nadiatmfranco@gmail.com
**
Licenciada em Educação do Campo-Ciências Sociais e Humanas pela UFFS, pós-graduanda em Gestão
Escolar Indígena pela Universidade Estadual de Maringá, mestranda em Agroecologia e Desenvolvimento
Rural Sustentável pela UFFS e coordenadora local do coletivo da juventude indígena Goj Ki Pyn.
E-mail: kellenvygte@gmail.com
***
Licenciada em Educação do Campo-Ciências Sociais e Humanas pela UFFS, pós-graduanda em Gestão
Escolar Indígena pela Universidade Estadual de Maringá, mestranda em Educação pela Universidade do
Centro-oeste do Paraná e coordenadora local do coletivo da juventude indígena Goj Ki Pyn.
E-mail: elizandrafyg@gmail.com
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O renascer cultural como expressão da educação que brota do seio da organização social Kaingang da Terra Indígena Rio das
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os indígenas que melhor saberão o que lhes é conveniente e o que é consoante ao seu
modo de viver.
Como se pôde ver, a organização social indígena, a sua cultura e as suas tradições
são reconhecidas pelos textos legais supra, e, apontam como obrigação dos Estados as
iniciativas neste sentido, assim como a apoiar as que surjam no interior das
comunidades indígenas.
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ferramentas são usadas para fortalecer e registrar a sua cultura para as gerações do
futuro, para que no presente como no porvir, a sua identidade, os seus desafios e as
suas lutas sejam acompanhadas pelas próprias comunidades.
Na TIRC é corrente o uso destes recursos. Esta terra indígena é a maior do Estado
do Paraná e abrange parte dos municípios de Nova Laranjeiras e de Espigão Alto do
Iguaçu, contando com a extensão de 18.681 hectares e abrigando 1.143 famílias. Duas
etnias convivem nesse território, a Guarani e a Kaingang, estando a primeira, numa
região menor, mais a oeste da área, com cerca de 450 habitantes 1, e, a segunda com
2.225 habitantes (IBGE, 2010), ocupando o restante do território. As línguas Guarani
M’Byá e Kaingang estão bem preservadas, com quase a totalidade da população falante
nas línguas maternas.
Segundo Mota (2008, p. 25), um dos critérios para perceber a diversidade étnica
dos indígenas no território brasileiro é a diferença entre as suas línguas maternas, que
não são poucas. Pelo censo de 2010, há no Brasil 305 etnias e 274 línguas indígenas2. Há
que se destacar que o número de etnias e de línguas faladas no Brasil já foi muito maior.
Antes da chegada dos colonizadores, existiam cerca de 5 milhões de indígenas,
divididos em 1.400 povos e falando cerca de 1.200 línguas. No início do século XX,
especialmente durante o período de atuação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
muitos povos foram proibidos de falar a sua língua materna, dentre eles, os Kaingang.
Os impulsos para a manutenção da língua têm vindo dos mais velhos, chamados
em língua kaingang de kófas que exerceram um papel fundamental para que houvesse
a preservação do seu idioma. Se, na atualidade a língua é falada pelas crianças e jovens
significa que na retaguarda estavam os kófas incentivando e cobrando de seus filhos
para que ensinassem o kaingang desde cedo, e, que reforçassem sempre que a língua
indígena kaingang falada era um dos elementos principais de reconhecimento da
identidade Kaingang. O contato com o português ocorre somente a partir dos cinco
anos de idade, na escola.
1
Esse dado é baseado em informação das lideranças locais, pois o IBGE (2010) não pesquisou.
2
Disponível em: http://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-falada.
Acesso em: 18 mar. 2022.
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As intervenções por melhor intencionadas que sejam, tais como ações das
organizações não governamentais e das políticas públicas impactam na forma de viver
dos indígenas e por conseguinte atuam modificando o seu modo de viver. Não se
defende aqui que as organizações não governamentais ou o Estado se abstenham de
agir favoravelmente aos povos e às comunidades indígenas. Mas, se entende que ao
fazê-lo devem obter o consentimento da organização social indígena, conforme sua
estrutura interna determina, de modo que a ação se dê de acordo com a vontade
genuína daquele povo ou comunidade. Quanto ao Estado, essa conduta é obrigatória no
Brasil desde a adoção da Convenção 169 da OIT, em 2004. O artigo 6º, alínea “a”, da
Convenção determina que os povos tem de ser consultados mediante procedimentos
apropriados, através de suas instituições representativas sempre que sejam previstas
medidas legislativas ou administrativas que tenham o potencial de afetá-los.
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Nessa construção foi estabelecido que havia a necessidade de colaborar para que
os jovens se mantivessem com uma mentalidade aberta e mais crítica. Um dos projetos
em funcionamento do Coletivo da Juventude Indígena Goj Ki Pyn é a horta orgânica.
Esta serve para ensinar como produzir alimentos saudáveis, de forma orgânica, de
modo que não degrade a floresta e que seja sustentável.
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Além dos cantos e danças praticados pelos jovens kaingang voltou a ser praticado
o ritual do rirunh que é realizado no sábado de aleluia, antes do amanhecer, às 4 horas.
No dia anterior ao ritual são coletadas as ervas medicinais nas matas do território
indígena e preparadas. Servem para fortalecer o indígena, para dar-lhe agilidade,
cabelos fortalecidos e boa saúde.
Considerações finais
A partir do respaldo legal da Constituição Federal de 1988 aos indígenas, para
continuarem a ser indígenas, se destacou uma série de textos legais internacionais que
corroboram o direito ao uso da língua, a ter a própria cultura, rituais e tradições. Assim
foi pinçado da Constituição Federal do Brasil de 1988 os artigos 210, 215 e 231 que tratam
respectivamente da utilização da língua materna no ensino fundamental; da garantia
aos direitos culturais, crenças e tradições; e, do direito a usufruir as terras que
tradicionalmente ocupam, o que lhes confere a tranquilidade necessária para se
desenvolver culturalmente e em todos os demais aspectos da vida. Além da
Constituição, se expôs o conteúdo protetivo à ter a própria cultura da Convenção Nº
169 da OIT e das Declarações das Nações Unidas e Americana sobre os direitos dos
povos indígenas.
O amparo legal veio a respaldar a ação dos indígenas da TIRC através do coletivo
que criaram, cujo mote é resgatar os cânticos, as danças, os rituais e outros saberes
tradicionais dos Kaingang. Se toma da etnogênese para explicar esse fenômeno.
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Referências
CUNHA. M. C. da. Índio do Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
MOTA, L. T.; ASSIS, V. S. de. Populações indígenas no Brasil: histórias, culturas e relações
interculturais. 21. ed. Maringá: Eduem, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 05 de outubro de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 mar. 2022.
BRASIL. Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm. Acesso em 18 de março de 2022.
Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_
sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf. Acesso em: 18 mar. 2022.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares
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Introdução
*
Doutorando em Educação (UFF), Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas
(FEBF/UERJ, 2016), Especialista em Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa (UGF, 2009), Graduado
em Letras: Português e Literatura (UCB, 2003). Atua na educação pública fluminense desde 2005.
E-mail: renatosimoesmoreira@hotmail.com.br
**
Mestranda em Educação (UFF), Graduada em Pedagogia (UERJ, 2018). Iniciação Científica no grupo de
pesquisa: Currículo, Cultura e Diferença (CNPq), coordenado pela Profª. Drª. Elizabeth Macedo.
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Avaliação, Educação Popular e Escola Pública
(GEPAEP), coordenado pela Profª. Drª. Maria Teresa Esteban. Bolsista do CNPq – Brasil.
E-mail: yacana_torres@yahoo.com.br
1
Trata-se da figura do professor especialista, licenciado para ministrar uma disciplina nos anos finais do
Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e no ensino médio.
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O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares
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lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha” (CERTEAU, 2020, p. 94)
— desenvolvidas pelas/os estudantes para lidar com as prescrições educativas que lhes
foram impostas num período de grandes privações, quando, muitas vezes, não só não
contavam com condições materiais ideais para o estudo remoto — como um espaço
silencioso em casa, acesso a computadores, impressoras e livros, e, eventualmente,
dispor do privilégio de ter um adulto que os ajudasse — como também, em não poucas
ocasiões, colaboraram com sua força de trabalho para ajudar a suprir o sustento de suas
famílias. Muitas/os alunas/os do 9º ano, por exemplo, trabalharam em atividades
informais, em seus bairros, ou desempenharam funções em suas próprias casas,
fazendo trabalho doméstico e/ou cuidando de irmãs/ãos menores.
Metodologia
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dia, tornar “alguém”, como se ninguém fossem antes de lá chegarem. Como já nos
testemunhou Miguel Arroyo (2013, p. 104), “[...] que professor(a) não se descobriu
repetindo este mesmo discurso para seus alunos indisciplinados e desatentos? ‘Não
querem estudar, não estudem e vão ver o que vão fazer na vida sem estudo’”.
Movendo-se por tal território, espacial e social, que lhe é determinado por outrem,
os sujeitos populares servem-se dessa manha dos oprimidos2 (FREIRE; FAUNDEZ, 2021)
para convertê-lo em um lugar “identitário, relacional e histórico” (AUGÉ, 2012, p. 73),
tendo em mente que “a ordem organizacional da escola não é nunca totalmente
homóloga da ordem da instituição escolar” (SARMENTO, 2003, p. 93) — ou seja, o jogo
de contradições percebido no interior da escola pública demonstra que as classes
populares ali inseridas não se conformam apenas aos objetivos preconizados pela escola
enquanto instituição, o que estabelece a educação pública e popular como um campo
de disputas.
Como o caçador primevo, que “[...] aprendeu a fazer operações mentais complexas
com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou de uma clareira cheia de
ciladas” (GINZBURG, 1989, p. 151), servimo-nos do paradigma indiciário na busca pelos
rastros que nos conduziriam às estratégias e táticas desenvolvidas neste momento
histórico. Tal paradigma auxilia-nos a ler o que se manifesta não apenas nos ditos e no
evidente, mas — talvez, principalmente — naquilo que se insinua sutilmente nos
silêncios eloquentes e nas ausências que denunciam, nos iluminando com seus opacos.
2
Formas de resistência com as quais as classes populares “se defendem das arrancadas agressivas das
classes dominantes e até também da situação ambiental insatisfatória em que vivem, e às vezes apenas
sobrevivem em decorrência da exploração de classe” (FREIRE; FAUNDEZ, 2021, p. 80).
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Esse espaço de disputa e seus conflitos e contradições fazem parte do que muito
se nomeou na imprensa “antigo normal” ou, simplesmente, “normalidade”, que abarca
o conjunto de rotinas que definiam o cotidiano antes do advento do coronavírus e da
pandemia que causaria. A normalidade — suas idas e vindas, seus movimentos
centrífugos e heteróclitos que dávamos como perpetuamente garantidos — sofre uma
considerável transformação com a necessária imposição do isolamento social. Como
muitas instituições, as escolas precisaram se adaptar às contingências do momento: o
prédio, referência da instituição escolar, a que todos acorríamos em nossa atarefada
rotina de ensino-estudo, precisou ser fechado. Mais especificamente, suas atividades
foram paralisadas em março de 2020 para que se analisasse a situação e seus riscos
para a população. Com o passar de dias e semanas, subitamente nos vimos cruzando
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um rio cuja dilatada largura não nos permitia ver a outra margem, e nosso “antigo
normal” ficara para trás...
Sendo assim, a Secretaria não optou por usar plataformas on-line, como muitos
outros atores fizeram, mas sim imprimir apostilas, possibilitando a todas/os o
acompanhamento das atividades propostas. Ainda assim, grupos de WhatsApp foram
criados para que, em eventuais possibilidades de acesso, as/os alunas/os tivessem
contato direto com suas/seus professoras/es3.
Tais apostilas eram distribuídas duas vezes por semana, inicialmente, com
devolução após quinze dias. O material também poderia ser baixado, em formato PDF,
diretamente de um site mantido pela prefeitura. Poucas/os alunas/os optaram por essa
possibilidade, embora tenha havido casos pontuais. A frequência discente era
contabilizada com base na retirada das apostilas — nos raros casos de impressão das
atividades em casa, contabilizava-se a frequência com sua entrega.
3
Durante o período de ensino remoto, as/os educadoras/es mantinham contato com as/os poucas/os
alunas/os de suas turmas que, eventualmente, tivessem acesso de alguma forma à internet, para sanar
dúvidas ou oferecer material extra de apoio — material este também fornecido pela SEMED —, na forma
de vídeos explicativos, links para o YouTube ou podcasts. Infelizmente, a precariedade dos pacotes de
dados disponíveis às famílias, muitas vezes, levava as/os estudantes a solicitarem explicações via texto,
no próprio WhatsApp, ou por arquivos leves de áudio, que não comprometessem excessivamente os
parcos bytes de que dispunham.
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No início, as apostilas eram retiradas com certa regularidade, pois havia também
a distribuição de cestas básicas às famílias da/os alunas/os, chamadas pela gestão
municipal de “Kits alimentação”. Mas, em outubro do mesmo ano, tal distribuição
cessou, e a procura por apostilas começou a declinar. Esse foi um primeiro indício que
mais tarde seria confirmado, de que a urgência alimentar se sobrepunha às
possibilidades de empenho nas atividades escolares.
4
Consideravam-se apenas as respostas às questões propostas, e não sua condição de acerto ou “erro” —
conceito aberto a discussões múltiplas e variadas que, contudo, não cabem neste espaço.
5
A escola fornecia às/aos responsáveis um relatório descritivo do desempenho escolar das/os
estudantes; não havia boletim com notas ou conceitos. Contudo, a avaliação escolar a que recorriam
muitas/os docentes ainda apresentava fartamente exemplos de práticas classificatórias, em que se
percebiam notas e conceitos em exames de cunho tradicional — resultado de uma prática avaliativa
profundamente enraizada em nosso aparato escolar, mas que não cabe discutirmos neste momento.
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pela mídia hegemônica e seus canais de comunicação como o “novo normal”. Ele
envolveria o respeito às normas sanitárias de isolamento social para contenção do vírus
e se referiria à mudança de rotina imposta por elas, como o fechamento — mesmo que
temporário — de alguns estabelecimentos, a restrição da circulação de pessoas e a
instituição de home office para muitos profissionais. Contudo, uma larga fatia da
população simplesmente não seria admitida ao “novo normal”, como uma parte
significativa das classes populares, submetida a relações trabalhistas altamente
precarizadas, com vínculos empregatícios pautados pela informalidade, notadamente
no setor de serviços, quando não atuante como “empreendedora de si mesma”,
empregando sua força de trabalho na qualidade de trabalhador/a autônomo/a —
microempreendedor/a individual, sem notável reserva de capital, ou, muitas vezes,
associada/o a aplicativos de entrega ou como motorista.
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Essa manha, que na superfície sugere desinteresse por assuntos escolares, traz
indícios mais profundos que podem demonstrar que as/os alunas/os desejavam,
apesar de tantos escolhos, manter o vínculo com a escola, mesmo vivendo uma situação
tão delicada.
Como resultado dos boatos, numa tentativa de sobreviver, lutar e resistir, ainda
que de forma tortuosa aos olhares da educação hegemônica, dentro do entendimento
trazido pelas palavras de Catherine Walsh (2017, p. 68), “[...] resistir no para destruir,
sino para construir, digo yo”, chegou à escola um sem-número de apostilas assinadas e
6
A grafia da palavra “estória” é um aportuguesamento do anglicismo story, e diz respeito exclusivamente
a narrativas ficcionais.
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As/os professoras/es comentavam em conselhos de classe e com as/os próprias/os alunas/os, nos
grupos de WhatsApp, de forma bem humorada, sobre o “bonde da cola” — referência à grande quantidade
de alunas/os que apresentava respostas absolutamente idênticas às questões propostas nas apostilas.
8
Termo fartamente utilizado por Paulo Freire, ele faz menção, em sua boniteza, ao ofício da/o docente
e da/o aluna/o.
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Las grietas dan luz a esperanzas pequeñas. Pienso en la flor que apareció de un
día al otro en una pequeña rendija de las gradas exteriores de piedra y cemento
de mi casa, o en las dos hojas verdes que brotaron ante mis ojos desde el asfalto
de una vereda en plena ciudad. Las grietas que pienso revelan la irrupción, el
comienzo, la emergencia, la posibilidad y también la existencia de lo muy otro
que hace vida a pesar de — y agrietando — las condiciones mismas de su
negación.
9
Conforme já enunciado, em muitas ocasiões, a escassez de papel levava a coordenação a alocar duas
páginas em uma só folha. Isso reduzia consideravelmente o tamanho da fonte, dificultando a leitura
das/os alunas/os. Mapas e charges, algumas vezes, tornavam-se quase incompreensíveis. A maior parte
das/os professoras/es passou, então, a dispor menos texto e utilizar fontes e imagens maiores, para que,
mesmo depois de reduzidas, pudessem ser compreensíveis.
10
As apostilas devolvidas se convertiam em horas-aula, com o objetivo de alcançar a meta preconizada
pela Lei Nacional de Diretrizes e Bases (LDBN), de oitocentas horas anuais. Cada atividade diária de uma
disciplina equivaleria a quatro horas-aula. Cada apostila continha atividades de duas disciplinas por dia.
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Este índice foi instituído em 2007, e segundo Talita Soares, Denilson Soares e
Wagner Santos (2021), é referência para o repasse e a distribuição de verbas públicas.
Destarte, está afinado com a ideia de orientação das políticas públicas, em busca do
monitoramento da qualidade e do desenvolvimento curricular. Essa qualidade —
balizada pela pedagogia do exame e pela performatividade — é reduzida ao que a/o
estudante apresenta nos exames estandardizados. Daí a preocupação da gestão
municipal quanto ao Ideb, uma vez que o rendimento das/os estudantes do ano
terminal do Ensino Fundamental II teria apresentado um acentuado decréscimo, como
comprovavam as correções dos simulados12. É sintomática a influência de um exame de
larga escala sobre o processo decisório acerca dos rumos da educação, mesmo se
tratando de uma situação tão atípica quanto o retorno de alunas/os à escola durante
uma pandemia.
11
O retorno presencial das/os alunas/os deu-se em setembro de 2021, mas com as turmas divididas em
dois grupos — semana A e semana B —, para que o distanciamento entre as/os estudantes fosse
garantido. Contudo, haja vista os baixos rendimentos nos simulados, os alunos do 9º ano, apenas,
abandonariam esse esquema de revezamento entre grupos, retornando todos a partir de novembro para
que melhor se preparassem para a aplicação da Prova Brasil — a própria SEMED, inclusive, fornecia aos
professores de Matemática e Português material de apoio para a preparação, chamado “Prepara SAEB”.
12
A coordenadora pedagógica da escola pesquisada comentava como o desempenho nos simulados de
Matemática e Português decaiu — em toda a rede — durante o período pandêmico, acendendo um alerta
na SEMED. Tal queda poderia ser o prenúncio de uma queda do próprio Ideb, fonte de estigmas diversos
para as redes periféricas de educação, em virtude de seu desempenho, considerado “fraco” (ainda que
pouco se discutam, na mídia hegemônica, as causas de tal desempenho para além do discurso de
culpabilização).
13
O uso do verbo “mirar”, aqui, explora seus variados coloridos semânticos — tanto funciona como
sinônimo de “olhar” como também nos sugere os sentidos de “espreitar” ou “dirigir a pontaria para um
alvo” (no caso, os indícios mais sutis que o campo nos forneceu).
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Dessa forma, como muito bem nos lembra Regina Leite Garcia (2003, p. 195),
Quem vê para além dos números, e assim chega ao cotidiano onde os pobres
continuam vítimas da má distribuição de renda, vê mais. Vê no cotidiano das
vidas de sujeitos encarnados as consequências da fome, da doença, do
desemprego, da miséria.
O problema é que o cotidiano é a hora da verdade. É ali que os grandes projetos,
as grandes explicações, as grandes sínteses, as grandes narrativas e as grandes
certezas são confirmadas ou negadas, e o que complica ainda mais é que às vezes
a mesma certeza que num momento é confirmada, no momento seguinte, é
negada. É ali, no cotidiano, que sujeitos encarnados lutam, sofrem, são
explorados, subalternizados, resistem, usam astúcias para se defender das
estratégias dos poderosos, se organizam para sobreviver, e assim vivem, lutam,
sobrevivem e, como todos os mortais, um dia morrem.
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As/os docentes atuaram nesse período com o pragmatismo que lhes foi possível.
Sob a cobrança de fidelidade ao programa, agora condicionado à Base Nacional
Curricular Comum (BNCC)14, muitas/os educadores tiveram uma rotina de trabalho
subitamente transformada e mesmo intensificada — não bastava produzir as apostilas;
era preciso verificá-las uma a uma, diferente das atividades rotineiras de sala de aula.
Também era necessário registrar sua verificação da forma adequada num controle que
seria partilhado com outras/os educadores. Além disso, o trabalho não obedecia ao
ritmo individual do/a professor/a, uma vez que docentes que compartilhavam a
mesma turma dependiam do término das atividades de verificação de suas/seus
colegas para ter acesso às apostilas.
Considerações finais
14
O município, outrora, contava com sua própria pré-orientação curricular, baseada nos antigos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e elaborada em encontros de professores da rede, chamados
Centros de Estudos Pedagógicos (CEPs). Tais pré-orientações foram simplesmente trocadas pela BNCC,
sem discussão aprofundada com as/os professoras/es da rede.
15
Conforme já ilustrado, essa aposta tática também se prestava a responder demandas impostas pela
situação de precariedade a que uma pequena rede municipal está exposta. Não raro, a qualidade gráfica
das apostilas impressas era comprometida pelo esgotamento do toner das impressoras ou pela
compressão de material para economia de papel — não eram raras as ocasiões em que uma apostila era
devolvida com anotações da/o aluna/o reclamando da legibilidade do material (“Está muito claro”, “O
mapa é muito pequeno”, “Não consegui ler”, etc.).
16
Verbo não vernáculo em português, mas que contém a mesma raiz de “desiderato” — desejo, aspiração
—; logo, sinônimo de desejar, querer, aspirar.
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Referências
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2012.
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em busca de novos sentidos. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 51-82.
BARROS, M. de. O livro das ignorãças. 16. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2009.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
ESTEBAN, M. T. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In: GARCIA, R. L. (Org.). Método:
Pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 199-212.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.
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O contexto pandêmico e as astúcias das classes populares
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FREIRE, P.; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. 11. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra,
2021.
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GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Schwarcz, 1989.
SARMENTO, M. J. Quotidianos densos — a pesquisa sociológica dos contextos de acção educativa. In:
GARCIA, R. L. (Org.). Método; métodos; contramétodo. São Paulo: Cortez, 2003. p. 91-110.
SOARES, T. E. A.; SOARES, D. J. M.; SANTOS, W. Sistema de avaliação da educação básica: revisão
sistemática da literatura. Estudos em Avaliação Educacional, v. 32, e07839, 2021. Disponível em:
http://educa.fcc.org.br/pdf/eae/v32/1984-932X-eae-32-e07839.pdf. Acesso em: 28 fev. 2022.
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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Introdução
A COVID-19 (do inglês: Coronavírus Disease 2019), causada pelo vírus SARS-CoV-
2 (do inglês: severe acute respiratory syndrome coronavirus 2), desencadeou um
cenário inesperado no campo epidêmico-biológico, mas também no que tange às
políticas sociais de cuidados e atenção à saúde dos povos indígenas. De acordo com a
Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) (2020), até novembro de 2020 mais de
41 mil indígenas foram contaminados pelo SARS-CoV-2, o que afetou diretamente mais
de 305 povos que vivem no Brasil.
*
Enfermeira Graduada pela Universidade Federal da Fronteira Sul -UFFS.
E-mail: jocelaine320@gmail.com
**
Enfermeira Graduada pela Universidade Federal da Fronteira Sul -UFFS.
E-mail: amandagollo@gmail.com
***
Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: luzardoar@gmail.com
****
Doutora em Ciências da Saúde pela Universidade do Extremo Sul Catarinense.
E-mail: zuleideignacio@gmail.com
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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comunidades. Limitar os danos causados pelo coronavírus exige uma atenção maior as
DNTs e as desigualdades socioeconômicas.
A COVID-19 não envolve apenas um vírus que agride o organismo. Revela também
as alterações de ordem social e sua interação e influência nociva ao corpo. Desse modo,
quem sofre com doenças crônicas, etilismo, tabagismo ou outras doenças, vivencia e
enfrenta a COVID-19 de um jeito diferente ao entrar em contato com ela. Os
transtornos psiquiátricos, como a ansiedade, entre outros, vão determinar se a pessoa
irá acatar as medidas terapêuticas ou preventivas recomendadas (STEPKE, 2020).
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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Diante disso, como uma possível tentativa de amenizar os efeitos causados pela
COVID-19, os povos indígenas estão realizando algumas ações terapêuticas para conter
o avanço da COVID-19 ou amenizar o efeito do vírus em seus corpos.
Dessa forma, este estudo teve como objetivo contextualizar a história dos povos
indígenas e suas repercussões na atualidade, as políticas de saúde para os povos
indígenas no Brasil e a população indígena diante do cenário pandêmico.
A revisão narrativa tem um caráter mais aberto, mais livre, menos determinado e
específico. Não necessita de critérios estruturados, rígidos, sendo que a seleção dos
estudos pode ser mais arbitrária do autor (CORDEIRO et al., 2007).
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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museus e afins. Além disso, também é observada a falta do indígena nos espaços de
poder público e de gestão pública, fazendo com que seja um povo silenciado (BONIWA;
TUXÁ; TERENA, 2020).
Por muito tempo as práticas tradicionais indígenas foram utilizadas como a única
forma de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças nas comunidades indígenas.
Essa era a maneira de suprir a falta de serviços de saúde nesses territórios. Apesar das
práticas e saberes em saúde serem diferentes, elas não podem ser desconsideradas em
relação à medicina ocidental, devendo compor qualquer trabalho em saúde que envolva
povos de cultura diferenciada (MENDES; ROSÁRIO, 2020).
Os pajés são conhecidos nas comunidades indígenas por possuírem o dom da cura
e ter conexão e mediação direta entre os encantados e os humanos. De modo geral, os
pajés trabalham com a incorporação dessas entidades durante as sessões de cura por
meio de um roteiro que envolve cantos, uso de chocalhos, rezas, defumações e ingestão
de bebidas específicas, com a finalidade de retirar a doença do corpo enfermo (VAZ
FILHO et al., 2016). A figura do pajé apresenta uma função de grande importância, que
abrange um vasto campo do mundo espiritual. Ele não só realiza cura como também
previne a comunidade de males, localiza objetos furtados, identifica feiticeiros, etc. Ele
pode também pedir ajuda de outro pajé da mesma comunidade ou de fora, dependendo
do caso (JUNQUEIRA, 2004).
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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De acordo com Brasil (2002), a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos
Indígenas (PNASPI) reconhece os indígenas e suas especificidades étnicas e culturais,
bem como seus direitos territoriais e de saúde. Esta proposta foi regulamentada pelo
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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Decreto n.º 3.156, de 27 de agosto de 1999, que dispõe sobre as condições de assistência
à saúde dos povos indígenas. A implementação dessa política requer a adoção de um
modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços, voltados para a
proteção, promoção e recuperação da saúde, garantindo a cidadania aos povos
indígenas. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é a área do ministério da
saúde que tem a responsabilidade de coordenar a PNASPI, sendo que o processo de
gestão do SASI no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) também fica sob sua
responsabilidade. A criação da SESAI em 2010 foi uma reivindicação dos próprios
indígenas com o objetivo de reformulação da gestão da saúde indígena no país (BRASIL,
2019).
Outro passo importante para os povos indígenas foi a lei Arouca, instituída em
1999, em decorrência de movimentos indigenistas. O nome da lei é em homenagem ao
sanitarista Sérgio Arouca que contribuiu de forma relevante para a contemplação da
saúde aos povos indígenas. A lei Arouca foi criada com o propósito de oferecer atenção
diferenciada, considerando a pluralidade e particularidades culturais que compreende
e abrange os povos indígenas. Na sequência foi elaborado o Subsistema de Atenção à
Saúde Indígena (SASI/SUS) que busca garantir a qualidade e a equidade da assistência
prestada à população indígena (SCHWEICKARDT; SILVA; AHMADPOUR, 2020).
Diante das lutas que os povos indígenas enfrentam para ter acesso à saúde
diferenciada, é notável os grandes avanços ocorridos ao longo do tempo. Entretanto,
esses avanços obtidos podem ter sido abalados com o aparecimento do SARS-CoV-2,
causador de tanta desordem na rotina e vida social dos indivíduos do mundo todo.
Para auxiliar os povos indígena neste período de pandemia foi sancionada a lei nº
14.021, de julho de 2020, que criou o Plano Emergencial para o enfrentamento da
COVID-19 em Territórios Indígenas, o qual estabelece medidas de vigilância sanitária e
epidemiológica, visando diminuir o contágio em terras indígenas. Além disso, dispõe
sobre ações que garantam que essa população receba alimentação básica para esse
período, e que os indígenas isolados ou que recentemente tiveram contato
mantenham-se em segurança neste período catastrófico (BRASIL, 2020).
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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A pandemia causada pelo novo coronavírus, que trouxe grandes impactos em nível
mundial e para comunidades específicas, é considerada um fato ou fenômeno social
total, o qual se manifesta como um amplo problema em diversas dimensões, sendo elas:
habitação, educação, economia, religião, legislação, moralidade, estética e ciência.
Contudo, sabe-se que em alguns segmentos sociais pontuais e específicos são notórias
as conformações próprias que esse problema conduz. Um exemplo importante é o caso
dos povos indígenas que têm sido diretamente impactados pela pandemia (SANTOS;
PONTES; COIMBRA, 2020).
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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Outra recomendação que implicou na saúde mental dos indígenas foi a realização
do isolamento domiciliar para os casos positivos de coronavírus. Para os indígenas o
compartilhamento de substâncias corporais, alimentos e objetos fazem parte da forma
de convivência e sociabilidade (PEREIRA et al., 2021).
O cenário enfrentado pelos indígenas retrata a atual situação dos povos indígenas
brasileiros, lutando diretamente contra uma doença trazida do mundo exterior,
favorecendo a desassistência pelo governo. No entanto, o indígena enxerga nessa
dificuldade, uma oportunidade de usar de sua singularidade para mostrar o
conhecimento ancestral relacionado à cura de doenças por meio do conhecimento
medicinal repassado pelas gerações anteriores (AURORA et al., 2020).
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População indígena e seus saberes tradicionais no enfrentamento da COVID-19
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conhecimentos são realizados de acordo com a experiência adquirida com tempo, pelo
seu uso e pelo reconhecimento de seus benefícios, podendo-se afirmar que eles
funcionam e ajudam na melhoria do estado de saúde, seja física ou espiritual. Os saberes
tradicionais que acompanham os povos indígenas merecem ser reconhecidos e
valorizados, visto que são elementos próprios da cultura de um povo que cultua e
procura manter viva suas tradições, memórias e legado de sua ancestralidade.
Considerações finais
De acordo com os referenciais teóricos encontrados, a contextualização da
história dos povos indígenas no Brasil indica um cenário de luta pela garantia dos seus
direitos. O uso de saberes tradicionais é consequência de um conhecimento natural,
passado através de gerações. Com a chegada da pandemia de COVID-19 os indígenas
foram atingidos por essa doença e recorreram aos conhecimentos tradicionais para o
enfrentamento desse momento de crise sanitária. Para conter o avanço da COVID-19
ou amenizar o efeito do vírus em seus corpos, foram praticados benzimentos, rituais e
uso de plantas medicinais baseados em práticas empíricas e enfatizada por sua grande
valia como um recurso de saúde para os indígenas.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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Introdução
A educação popular pode dialogar, em processo de práxis, com os mais diferentes
movimentos da sociedade. E sua vivência está efetivamente em tessitura com as mais
amplas lutas dos movimentos sociais. Lutas, muitas vezes, pela efetivação de direitos
elementares, tais como o acesso à espaços geográficos de produção de soberania
alimentar. Os movimentos da luta pela terra representam uma das realidades de busca
pela vida. Ao mesmo tempo os sujeitos que vivenciam em processo, reconstroem sua
práxis, consequentemente o campo teórico pelo qual tecem suas relações
experienciais. A educação popular pode estar assim também no campo teológico. E
efetivamente está na construção e reconstrução de uma teologia política, mística e
*
Pós-Doutor em Educação pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
Unijuí; Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universität Hamburg – UHH, Alemanha, com
revalidação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp; Mestre em
Educação nas Ciências, área História e Licenciado em História pela Unijuí. Atua como Coordenador do
Polo Universitário Federal de Três de Maio/RS – PUFTM e é professor no ensino público. Integra o GT
Educação Popular da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação – Anped. É
pesquisador nos grupos: Estudos de Educação Popular, Movimentos e Organizações Sociais –
Geep/Unijuí/CNPq; e, Religião, Gênero e Violências: Direitos Humanos – Regevi/FUV/CNPq.
E-mail: pschonardie@gmail.com
**
Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes; Pós-doutora em
História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Doutora, Mestra e Graduada em Teologia:
área de concentração religião e educação pela EST; Licenciada em Pedagogia pela Universidade do
Estado de Santa Catarina – Udesc. Professora na Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências da
Religião na Faculdade Unida de Vitória – FUV. Coordena os Grupos de Pesquisa Religião, Gênero,
Violências: Direitos Humanos – Regebi/FUV/CNPq e da Cátedra de Teologia Pública e Estudos da
Religião Ver. João Dias de Araújo (CNPq) da FUV e é pesquisadora no grupo Culturas, Parcerias e Educação
do Campo – Ufes/CNPq.
E-mail: claudete@fuv.edu.br
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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Segundo Ulrich e Brakemeier (2017, p. 12-13), todo o sistema sócio religioso que se
beneficiava da pobreza é profundamente questionado e criticado a partir da teologia da
justificação por graça e fé. Podemos dizer que a teologia do movimento da reforma
afirmou os pobres como sujeitos de direitos, libertando-os das obras de caridade. As
obras de caridade, que se faziam em benefício dos pobres, tinham somente o objetivo
de aliviar a própria consciência e de garantir um lugar no céu. O movimento da reforma,
realizado por homens e mulheres, afirma a necessidade de mudanças radicais na
sociedade, na política, na economia e na ética religiosa. Desloca-se o foco teológico: de
ações voltadas para alcançar o céu, através do sistema das indulgências, volta-se para
a realidade social das pessoas, dos/as pobres e dos/as necessitados/as.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
A educação popular em diálogo com a teologia política, mística e feminista de Dorothee Sölle: um aprendizado teológico
educativo na luta pela terra
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(WIRTH, 2019). De uma forma bastante ampla, Engels destaca que os movimentos
reformadores queriam que “[...] a igualdade dos filhos (sic) de Deus deveria traduzir-se
pela igualdade dos cidadãos (sic) e até pela dos seus bens” (ENGELS, 1975, p. 4). São
reivindicações que expressam basicamente as necessidades dos/as camponeses/as na
luta por direitos em seu tempo histórico.
Desta forma, também Dorothee Sölle desenvolveu sua reflexão teológica de forma
radical, profética e incondicional (WIND, 2013, p. 6). Ela frequentemente lembrava em
suas palestras e escritos a inspiradora teóloga mística Teresa de Ávila: “Deus não tem
outras mãos, a não a ser as nossas” (SÖLLE, 2014, p. 361). As suas palavras representam
um desafio, um convite para a atuação social. Perceber e ouvir o “grito silencioso” dos
oprimidos e excluídos em nosso mundo, significa se tornar um/a com eles/as (SÖLLE,
2014, p. 361). Ela praticava uma teologia em que, por um lado, via a origem da fé no
engajamento político e por outro lado, tinha neste engajamento político a base para a
sua vida. Ela organizava sua ação cotidiana, a partir das necessidades políticas dos
excluídos sociais (SCHÖNARDIE, 2014, p. 87). Ainda de acordo com a percepção de
Schönardie, esse seu movimento de fé e ação política fez dela uma revolucionária, ao
mesmo tempo em que indicava novos caminhos para os grupos sociais envolvidos em
resistência e para a própria Igreja como instituição (SCHÖNARDIE, 2014, p. 87).
Entendemos Dorothee Sölle como uma teóloga ativa e que não se calou em seu tempo
histórico. Ela se engajou profeticamente pelas causas sociais, pelos/as pobres e
explorados/as sendo, juntamente com Jürgen Moltmann e Johan Baptist Metz, uma
protagonista da teologia política1.
1
“Apesar de diferenças em suas elaborações teológicas tanto Metz, como Moltmann e Sölle convergem
em duas posições: a teologia política é considerada uma hermenêutica e a teologia política é uma crítica
à Igreja e à própria teologia. A crítica à Igreja e à teologia centraliza-se, em especial, na privatização da
fé cristã. É criticado o alheamento da Igreja e de seus seguidores com relação aos problemas que atingem
a sociedade como um todo” (SATHLER-ROSA, 2014, p. 17).
2
É fato que o movimento da Reforma Protestante protagonizada por Lutero tinha fortes ligações com
os/as camponeses/as. A sociedade da época era ainda predominantemente camponesa. Mas também é
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preciso registrar que essas ligações não eram pacíficas. Para garantir seu pensamento reformador Lutero
foi direcionado a se aliar a determinados grupos (príncipes/nobres) que também possuíam em suas
fileiras camponesas e camponeses. Já a relação com os camponeses aliados a grupos contrários não foi
das melhores. Consequentemente os conflitos surgidos para garantir a efetivação da reforma vitimaram
muitos/as, e como a sociedade era basicamente camponesa, obviamente a maior quantidade de vítimas
foi de camponeses e camponesas. As posições de Lutero, mesmo que historicamente localizadas, são
contraditórias e também raivosas, necessitando de uma profunda análise crítica. Neste sentido,
recomendamos a leitura LUTERO, M. Exortação à paz: resposta aos doze artigos do campesinato da
Suábia 1525. In: LUTERO, M. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996.
v. 6, p. 304-329. Vejam o texto adendo ao anterior indicado, extremamente agressivo em relação aos
camponeses LUTERO, M. Exortação à paz: resposta aos doze artigos do campesinato da Suábia 1525.
Adendo: contra as hordas salteadoras e assassinas dos camponeses 1525. In: LUTERO, M. Obras
selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996. v. 6, p. 330-336.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
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relação com os processos de reforma da Igreja, estes vivenciados a partir dos contextos
sociais e dos processos educativos que realimentam a tessitura social.
Embora Sölle não tenha realizado o seu doutorado em teologia, a maioria de suas
publicações tratam de questões teológicas. Ela não ocupou uma cadeira de teologia na
Alemanha, mas foi professora de teologia sistemática no Union Theological Seminary
(Seminário Teológico Unido), em Nova York, entre 1972 e 1987. Ela como cristã entendeu
que a confissão religiosa e a consciência política são inseparáveis. Dorothee Sölle se
tornou conhecida por um grande público através de seu envolvimento nos movimentos
pela paz, suas aparições/palestras nos dias da igreja na Alemanha ou das leituras de
suas próprias poesias em lugares públicos. Ela esteve envolvida em inúmeras iniciativas
políticas e ecumênicas e foi co-iniciadora das Orações Políticas da Noite, que
ocorreram em Colônia, entre 1968 e 1972. Sölle se casou, em um segundo casamento,
com o professor de educação religiosa da Universidade de Hamburgo, Fulbert
Steffensky. O casal viveu em Hamburgo por muitos anos. Dorothee Sölle morreu em 27
de abril de 2003, em Göppingen, em uma viagem de trabalho.
113
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A justiça é o caminho para Deus, o qual nós podemos encontrar. Ela (a justiça) é
a vontade de Deus. É por causa dela que a Bíblia fala tão incessantemente dos
pobres, e que a riqueza que acumulamos entre nós e os pobres bloqueia Deus e
também obstrui o caminho para Deus. Deus tem algo a ver com a ordem
econômica? A Bíblia diz: sim, e ela assume o lado dos mais pobres (Tradução livre
de Claudete Beise Ulrich) (SÖLLE, 1991, p. 52)3.
Dorothee Sölle se reporta a luta de Chico Mendes pelo cuidado da floresta e o seu
assassinato. E assim se refere a uma mística da morte dos mártires: “um outro elemento,
que transparece da mística da morte, é uma estranha liberdade, que tudo transforma,
ao que denominamos morte. [...] é o que Pedro Casaldáliga diz quando se reporta ‘ficar
nu’” (SÖLLE, 2014, p. 376). A morte/o assassinato dos que lutam pela igualdade social, o
3
Gerechtigkeit ist der Weg zu Gott, den wir finden können. Sie ist der Wille Gottes. Ihretwegen spricht
die Bibel so unaufhörlich von den Armen und meint, dass der Reichtum, den wir zwischen uns und den
Armen aufhäufen, uns auch Gott verstellt und den Weg zu Gott verbaut. Hat Gott denn etwas mit der
Wirtschaftsordnung zu tun? Die Bibel meint: ja, und sie ergreift die Partei der Ärmsten (SÖLLE, 1991, p.
52).
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cuidado da terra e da floresta, desnuda o sistema que explora, violenta e mata. Segundo
a teóloga:
Há pessoas que não apenas ouvem os gritos silenciosos de Deus, mas também
os tornam audíveis como a música do mundo que ainda hoje preenche o cosmos
e a alma. (Tradução livre de Claudete Beise Ulrich) (SÖLLE, 2014, p. 389)4.
Politicamente, ela esteve engajada nos movimentos pela paz, contra a construção
de usinas nucleares, feminista e nas lutas dos movimentos ecológicos. Além de ter sido
uma teóloga política, mística, foi feminista (SÖLLE, 1991, p. 76). Ela disse:
[...] não falo sobre algo que Deus poderia evitar ou abolir. Se falamos da dor de
Deus, então temos uma outra idéia (sic) de Deus que a puramente masculina.
Então, Deus é a nossa mãe que chora pelo que fazemos uns aos outros e aos
nossos irmãos, aos animais e às plantas. Deus nos consola como o faz uma mãe:
ela não consegue tirar a dor como num passe de mágica (se bem que também
isso pode acontecer!), mas ela nos segura no colo até conseguirmos levantar
outra vez e até que tenhamos novas forças. Deus não poderia nos consolar, se
Ela não estivesse ligada a nós na dor, se Ela não tivesse essa capacidade
maravilhosa e rara de sentir a dor de alguém em seu próprio corpo. Sofrer com,
estar aí com (SÖLLE, 1999, p. 63).
Suas posições teológicas em favor da justiça social lhe valeram muitas resistências
dentro e fora da Igreja. Seu engajamento social foi, entretanto, impulsionador de sua
teologia política e libertadora, e esta por sua vez, contribui significativamente para
manter a Reforma Protestante em movimento, na construção da liberdade democrática.
Construção e continuidade da teologia política podem ser observadas no contexto
educativo social, especialmente pela luta pela terra.
4
Es gibt Menschen, die das stille Geschrei, das Gott ist, nicht nur hören, sondern es auch hörbar machen
als die Musik der Welt, die den Kosmos und die Seele auch heute erfüllt (SÖLLE, 2014, p. 389).
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regra (FEDER, 1973, p. 77). Para a maioria da população isso significa viver às margens.
“Às margens das fazendas, às margens dos direitos mais elementares, às margens da
sociedade” (SCHÖNARDIE, 2014, p. 88). Na prática, a pobreza, seja no campo, seja nas
favelas urbanas.
A partir dos anos 1960 essa problemática foi agravada. Com a modernização
capitalista da agricultura houve significativo aumento da concentração das terras. Essa
modernização conservadora do campo apresentou também profundas mudanças no
processo produtivo, entre outras, a mecanização, com a qual mais camponeses e
camponesas perderam seu trabalho nas fazendas, que, aliás, já era precário. Para
Schönardie (2013, p. 203), isso trouxe consigo mudanças profundas para a agricultura
brasileira. A favelização e a concentração de acampados à beira das rodovias foi
agravada. É sabido também que a indústria brasileira não estava configurada para
absorver a mão-de-obra dos/as ‘sobrantes’ do campo.
Essa difícil realidade dos seres humanos foi cada vez mais percebida por setores
progressivos da Igreja. Teólogos e teólogas comprometidos/as com a necessidade
social, especialmente com a precária situação de camponesas e camponeses,
desenvolveram a teologia da libertação. Na prática, organizaram as Comunidades
Eclesiais de Base, que consistiam em pequenos grupos de pessoas, em suas realidades,
e que discutiam, a partir de valores cristãos, a sua realidade social, os seus problemas.
Central na teologia da libertação era assim perceber a alienação à que estavam
aprisionados e se libertar desta alienação. Pode-se afirmar que as Comunidades
Eclesiais de Base constituíram assim um processo educativo genuíno. De acordo com
Maria Clara Bingemer (2017, p. 63)
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Sölle nos ensinou que não basta apenas entender a realidade social, mas é
necessário denunciar as estruturas de morte e, convida/impulsiona a atuar nos
movimentos para uma transformação. Para ela deve haver algo mais, e este algo mais é
o fato de que após entender a realidade e sair da condição de oprimido (FREIRE, 1987),
também a ação teológica precisa objetivar mudança no mundo e no caso dos Sem Terra,
na ação destes em direção à conquista da terra e direitos. Assim Sölle constituiu a sua
práxis social, que se mostra na sua teologia política, mística e feminista.
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A inspiração cristã se explicita pela tese freiriana de que homens e mulheres são
vocacionados para a liberdade, núcleo central do Evangelho. A inconclusão
humana, a dimensão dialógica e relacional da existência e a perspectiva dos
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Algumas considerações
Acumulamos e vivenciamos cinco séculos de reformas protestantes, e afirmando
esta continuidade histórica, reconhecemos que reformadores e reformadoras
contribuíram com o ideário que buscava transformações da sociedade. É dentro deste
contexto que Dorothee Sölle avança com sua teologia política, mística, feminista, crítica
e libertadora percebida aqui como uma forma de reformar o
pensamento/conhecimento e a ação teológica em um processo educativo popular, na
práxis da educação popular.
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Este espaço de ação política passa a ser educativo na medida em que é vivenciado
de forma consciente e ao mesmo tempo pela práxis, configurando processos de
educação popular. Os ensinamentos de Sölle são desta forma, multiplicados,
contribuindo por um lado para fortalecer os movimentos sociais e ao mesmo tempo em
que vivenciados, a partir da mística e de novas relações entre homens e mulheres,
apontam para a construção de uma sociedade igualitária e justa. Mas é fundamental
perceber que Sölle construiu sua teoria através da prática social de vida dos seres
humanos e de sua própria base vivencial. Ela própria, em primeiro lugar viveu a
realidade. Neste sentido, ela nos convida, assim, a fazer o mesmo. Agir teologicamente
pela perspectiva da teologia política, mística, feminista e libertadora significa assumir
como cristão e cristã, o apoio e a real intervenção para a melhora das condições de vida
dos/as oprimidos/as, excluídos/as. E em uma sociedade, com um modo de produção
excludente, como a que vivemos, isso é revolucionário. Ter essa coragem é
efetivamente transformador.
Dorothee Sölle, através dos seus escritos, continua a nos dizer que a teologia não
é neutra. A teologia tem lado: o lado dos/as pobres, espoliados pelo capital, que quer
se apropriar do cristianismo. Por isso, toda denúncia é necessária em relação ao
Critofascismo tão presente em nossos dias. É necessário ouvir o grito de todos e todas
que sofrem violência, exploração e morte, mas também o grito daqueles/as que se
erguem corajosamente contra o sistema que destrói, violenta e mata. Ouçamos os
clamores da natureza e dos seres humanos que estão nas margens. Ouvir é passo para
reconhecer. Reconhecer é passo para agir. Temos nossas mãos para agir neste mundo.
E o compromisso com a vida é a ação consciente, carregada de um projeto político-
pedagógico-educativo-popular.
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[...] gritando palavras de ordem, como ‘dom Hélder vive, viva dom Hélder. [...] a
bandeira do MST [foi colocada] sobre seu caixão, como reconhecimento da
importância que teve e tem dom Hélder para a história brasileira (JORNAL, 1999,
p. 17).
Introdução
A trajetória da Igreja Católica no Brasil, na segunda metade do século XX, é
marcada por sua atuação junto às causas sociais. Essa atuação visava, principalmente,
organizar as pessoas vítimas da exploração capitalista, em seus contextos de vida e de
trabalho, com vistas à transformação social, à luz dos princípios e valores cristãos.
*
Doutor e mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Bacharel em
Ciências da Religião, licenciado em Filosofia e Pedagogia. Professor Adjunto na Universidade Federal da
Fronteira Sul, campus Laranjeiras do Sul, PR. Pesquisador do Grupo de Pesquisa História, intelectuais e
educação no Brasil e no contexto internacional (GEPHIED).
E-mail: rclementecosta@yahoo.com.br
1
Neste artigo utilizamos o termo Sem Terra, sem hífen, tal como o MST.
2
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Bispos e Prelados
da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizado em Goiânia
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Libertação. As ações da Igreja Católica se inseriam num contexto em que a prática era
elemento fundamental, pois acreditava-se que a transformação da realidade viria por
meio das ações e não somente da fé. A fé, no entanto, se tornava elemento importante
no fortalecimento da luta. As contribuições da Igreja Católica, por meio dos religiosos
ligados à Teologia da Libertação, estão presentes também na mística vivenciada no
MST.
Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo discutir as relações entre a Teologia
da Libertação e a mística no MST, buscando evidenciar as suas contribuições para a luta
pela terra e para a transformação social. Para isso, abordaremos primeiramente as
influências da Igreja Católica no nascimento do MST e, em seguida, as contribuições da
Teologia da Libertação para a mística presente no Movimento e no processo de luta
pela terra e por transformação social.
(GO). Foi fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores
rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia (HISTÓRICO, 2010); (POLETTO; CANUTO, 2002).
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Na esteira das ações da igreja voltadas às questões sociais, no início do século XX,
é fundada a Ação Católica no Brasil3. Porém, é a partir da segunda metade desse século,
que há uma guinada na atuação da igreja com vistas à transformação social. Como
marco desse processo, estão: a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o
Concílio Vaticano II (1962-1965), as Conferências de Medelín (1968) e de Puebla (1979) e
a formulação da Teologia da Libertação.
3
A Ação Católica Brasileira (ACB) é oficialmente instituída com os Mandamentos dos Bispos do Brasil, de
9 de junho de 1935. (AÇÃO, 2022).
127
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entre fé e pobreza, evangelho e justiça social”, do lado protestante (BOFF; BOFF, 1986,
p. 97).
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[...] o Primeiro Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com a
participação de 92 pessoas: sem-terra, sindicalistas, agentes de pastoral e
assessores. O evento representou, antes de mais nada, uma vitória. Após várias
conquistas de terras e da caminhada em direção à unificação e formalização das
ações das lutas camponesas, os sem- terra fundavam sua organização
(FERNANDES, 2001, p. 79)
O MST nasce no momento em que o país vivia sob a ditadura militar (1964-1985) e
tem suas raízes nos movimentos de luta pela terra que o antecederam.
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Para Boff e Boff (1979, p. 11-12) a Teologia da Libertação nasce da mística do pobre
A partir desta afirmação dos irmãos Boff, constata-se, mais incisivamente, o ponto
de partida para nossa análise sobre a mística no MST, somada à presença marcante da
Teologia da Libertação no Movimento.
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O bispo católico Dom Tomás Balduíno, que exerceu a presidência da CPT nacional,
citando Gutiérrez, afirma que a teologia é uma sistematização, um ato segundo. “O ato
primeiro é aquilo que o povo realiza: o crer, o agir. O ato segundo é tomar este crer e
esta ação refletindo, comparando com o pluralismo da nossa sociedade, com as
diferenças, com as diversidades, com as alteridades” (COSTA, 2003, p. 74).
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O aprendizado através da experiência com as igrejas deu cada vez mais qualidade
às ações do MST, inclusive no que diz respeito à relação com o transcendente, com o
divino, com o místico. Com a religiosidade, essa experiência de lutas anteriores levou
ao crescimento e amadurecimento de tais ações. Stedile e Fernandes (1999) afirmam
existirem dúvidas para alguns sobre a participação de militantes de esquerda em
atividades religiosas, como a missa católica. “Como é que nós, que somos de esquerda,
vamos sempre à missa? Ao contrário, a nossa base usa a fé religiosa que tem para
alimentar a sua luta, que é uma luta de esquerda, que é uma luta contra o Estado e
contra o capital” (STEDILE; FERNANDES, 1999, p. 131),
Nesse mesmo sentido, Morissawa (2001) salienta que a mística para o MST foi
influenciada pela Teologia da Libertação, no entanto, a forma como se vivencia é
própria do Movimento.
Nessa perspectiva, a mística também está inserida no ideário das lutas socialistas,
em que o Movimento realça o desejo de que a prática da mística envolva todos os
militantes e que ela
A partir dessa afirmação podemos observar que o sentido dado à mística extrapola
o religioso e se insere nos processos de luta em vista à transformação social e à
efetivação de outro projeto de sociedade.
Segundo Fernandes (2001, p. 189), para o MST, a mística tomou-se “um ato cultural,
em que os sem-terra trabalham diversas formas de linguagem para representarem suas
lutas e esperanças. É espaço/tempo de confraternização, de aprendizagem e, portanto,
de construção de conhecimento e da consciência da luta”.
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[...] tem uma dimensão educativa muito importante: para os militantes mais
antigos, ajuda a cultivar os valores e a memória simbólica que os mantêm a
caminho; para as novas gerações ou para um cada sem-terra que entra no
Movimento, ajuda na disposição pessoal de entrar no processo de vivenciar as
ações de forma mais humana e plena, sendo uma espécie de ritual de acolhida,
que faz as pessoas se sentirem parte do Movimento, mesmo antes de conhecer
toda sua dinâmica. Cultivar a mística é parte fundamental do que entendemos
por formação humana (MST, 2001, p. 29).
A mística no MST envolve tanto os seus integrantes, como também, aqueles que
comungam da mesma causa, como o caso de Dom Hélder Câmara, falecido em 1999. Na
ocasião do seu sepultamento, o bispo Dom Marcelo Carvalheira, destacou a opção de
Dom Hélder pela Teologia da Libertação. Num ato religioso marcado pela presença de
grande número de pessoas se gritava palavras de ordem, como “‘dom Hélder vive, viva
dom Hélder’. [...] e a bandeira do MST colocada sobre o caixão, como reconhecimento
da importância que teve e tem dom Hélder para a história brasileira” (JORNAL, 1999, p.
17).
Outro bispo católico com grande contribuição da mística e na luta do MST é Pedro
Casaldáliga. Esse bispo, falando aos integrantes do Movimento sobre a questão de
ocupar ou não as terras, afirma que
A própria igreja, nós bispos, padres, às vezes temos faltado nesse particular
achando que a propriedade privada é um direito sacratíssimo que deve ser
respeitado a toda custa, que ninguém pode pisar na propriedade privada de
ninguém. Vejam bem: quando a propriedade privada, priva outras pessoas de
viver, priva outras pessoas de comer, priva outras pessoas da paz e da liberdade,
ela é um roubo (COSTA, 2003).
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caso de Dom Hélder, Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, Irmã Alberta4,
dentre outros.
A gente fica agradecido no sentido de reconhecer alguma coisa feita, mas o que
eu vejo desta atitude é um certo consenso de todos que ali estão ou dos
promotores daquele assentamento numa linha libertadora, numa reforma
agrária popular, constitucional, massiva. É a linha que a gente tem. Então o
nome, muitas vezes, é a causa que está por trás, porque eu amo, porque eu me
identifico com vários companheiros e companheiras que estão na luta e eles dão
uma contribuição muito grande no processo de transformação de mudança no
nosso país, sobretudo na direção do campo (COSTA, 2003).
Considerações finais
Essa discussão privilegiou a contextualização das contribuições da Igreja Católica
no nascimento do MST, e da Teologia da Libertação na mística do Movimento.
É possível inferir que a contribuição da Igreja Católica nas causas sociais acontece
de maneira mais direta, após segunda metade do Século XX, com a guinada nas ações e
práticas, com críticas ao sistema capitalista, com vistas à transformação social. Esse
processo ocorre por meio da Ação Católica, Ação Popular, MEB, criação das CEBs, com
o Concílio Vaticano II, as Conferências Episcopais de Medelín e Puebla, a formulação da
Teologia da Libertação, a CPT, entre outras. Com essa nova postura, a Igreja Católica
no Brasil e na América Latina, em grande parte, rompe com seu passado de conivência
e contribuição com o projeto colonizador e dominador português.
O contexto mais amplo das ações de parte da Igreja Católica, a partir de 1950, era
buscar meios de promover a transformação social, desenvolvendo ações para além
4
Religiosa Orionita, de origem italiana, nasceu em 1921. Chegou ao Brasil em 1971. A partir de 1997, se
instala na capital paulista. Atuou junto ao MST, CPT e aos moradores de rua. Foi homenageada pelo MST
ao batizar o Assentamento próximo à Rodovia Anhanguera, em São Paulo, com o seu nome. Faleceu no
dia 30/12/ 2018, aos 97 anos (AOS 97 ANOS, 2018).
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O MST nasce no ano de 1984 como resultado das ações das Igrejas Cristãs, mais
especificamente da Igreja Católica. O Movimento nasce também das várias lutas
protagonizadas pelos camponeses no Brasil, tendo na mística, a força para seguir na
caminhada. A mística no MST tem as contribuições da Teologia da Libertação e é
evidenciada quando observamos que a luta não se restringe à conquista da terra, mas
também, perpassa o cotidiano das pessoas, reforçando a esperança e sendo fonte de
força na caminhada rumo à transformação social.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.
Introdução
Este artigo é fruto de uma pesquisa de Iniciação Científica referente ao projeto de
intitulado “O professor na perspectiva da Educação Popular”, vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba e à REDECENTRO – Rede de
Pesquisadores(as) sobre o Professor na Região Centro-Oeste/Brasil. Tal projeto contou
com bolsa de apoio à pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq – 2018/2020) e tomou por objeto de estudo o/a educador/a
popular que atua no contexto escolar na condição de professor/a.
*
Graduando de Psicologia pela Universidade de Uberaba. Foi aluno de Iniciação Científica com bolsa
CNPq (2018-2020).
E-mail: guilhermesousamachado@hotmail.com.br
**
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) e do Programa de Pós-
Graduação em Educação: formação docente para a Educação Básica - Mestrado Profissional, ambos da
Universidade de Uberaba. Líder do Grupo de Pesquisa Formação Docente, Direito de Aprender e Práticas
Pedagógicas (FORDAPP).
E-mail: tiago.zanqueta@uniube.br
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Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: formação docente para a Educação Básica
- Mestrado Profissional, ambos da Universidade de Uberaba. Líder do Grupo de Pesquisa Formação
Docente, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas (FORDAPP).
E-mail: gercina.novais@uniube.br
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.
A questão de estudo que orientou a pesquisa foi: qual é o perfil e as funções do/a
educador/a popular, considerando as condições de seu trabalho na escola, uma vez
que esse perfil está diretamente ligado a intervenções socioeducativas realizadas por
elas/es e que vai configurar aspectos de docência?
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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.
Metodologia da pesquisa
Para a realização da pesquisa, o procedimento metodológico adotado foi o estudo
do Estado do Conhecimento, que no entendimento de Morosini (2015, p. 102), “[...] é
identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção
científica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo,
congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica”.
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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.
Educação Dissertações: 19
64 29
Popular Teses:10
Educador Popular +
1 1 Dissertação 1
Professor
Educador Popular +
1 1 Dissertação 1
Professor + formação
Total 37
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DOI: 10.23899/9786589284314.
Procedimentos de coleta/produção de
Métodos Técnicas de Pesquisa
dados
Materialismo Histórico-
Documental Entrevista
dialético
Hermenêutica Bibliográfica Grupo focal
Método dialógico
Pesquisa-ação Questionário
problematizador
Observação
Relatos orais
participante
Estudo de caso Diário de campo
Etnográfica
Pesquisa de campo
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Houve diversas citações de Freire nos trabalhos analisados, um autor que preza
muito pelo diálogo, o que, nesse sentido, pode justificar a adoção de técnicas e
procedimentos de coleta/produção de dados que implicam a participação de outras
pessoas, o envolvimento com elas. Trata-se de primar pelo diálogo como possibilidade
de produzir e não coletar dados, como um
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O “ser professor/a”, na acepção mais genuína, é ser capaz de fazer o/a outro/a
aprender, desenvolver-se criticamente, o que, por consequência, permite concluir que
todo/a professor/a é, por função, educador/a, um intelectual dirigente, orgânico, que
não é neutro, como propõe Celso Vasconcellos (2001).
1
Para a leitura flutuante, foi utilizada uma ficha de análise disponibilizada pela Rede de Pesquisadores
sobre o Professor da Região Centro-Oeste (REDECENTRO), a que o projeto que dá origem a este artigo
faz vínculo.
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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
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Não se trata mais de estudar simplesmente para poder garantir o seu lugarzinho
no bonde da História; trata-se, isto sim, de estudar a fim de ganhar competência
e ajudar a mudar o rumo desse bonde, ou seja, ajudar a construir uma sociedade
onde haja lugar para todos!
O/A professor/a “que sabe”, não pode ficar indiferente, porque ser
comprometido/a, engajar-se, ser ético, primar pela transformação, faz parte da sua
competência como professor/a. E, se tudo está em transformação e o que permanece
é a mudança, somente os oprimidos e as oprimidas podem fazer as mudanças
estruturais na história. Entretanto, não quer dizer que as fazem sempre. Aliás, na
maioria das vezes, não as fazem, porque leem o mundo com os olhos de seus opressores
e opressoras. Fazem a transformação social e, no limite, a revolução, quando se livram
do olhar, das lentes opressoras, isto é, quando se conscientizam e se libertam da
alienação, que é ler o mundo com os olhos de outrem, passando a lê-lo com as próprias
categorias de oprimido/a.
É preciso, por outro lado, reinsistir em que não se pense que a prática educativa
vivida com afetividade e alegria, prescinda da formação científica séria e da
clareza política dos educadores ou educadoras. A prática educativa é tudo isso:
afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço da mudança
ou, lamentavelmente, da permanência do hoje (FREIRE, 1997, p. 31).
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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
DOI: 10.23899/9786589284314.
Considerações finais
Por meio da realização do estudo do estado do conhecimento acerca do objeto
investigado é possível concluir que no seu sentido estrito, o/a educador/a popular tem
uma origem, um local de nascimento, uma trajetória própria, em suma, uma história
que lhe confere uma identidade singular que o distingue dos/as demais educadores/as.
Nasceu no universo da Educação Popular, como uma criação originária da América
Latina e, mais especificamente, do Brasil. Como concepção da educação, a Educação
Popular é uma das mais belas contribuições da América Latina ao pensamento
pedagógico universal.
E, no seu sentido amplo, por educador/a popular entende-se aquele/a que, por
meio de sua ação educacional, na condição de mediador/a do processo de produção
do conhecimento, se dirige às camadas sociais, portanto ao povo, primando pela
transformação de projetos de nação, em defesa de uma educação laica, de qualidade
social, democrática, gratuita, para todos e todas. De fato, a educação não tem finalidade
em si mesma, porque ela é sempre meio para a formulação, implantação e
implementação de projetos sociais.
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Estudo do estado de conhecimento: o “ser professor/a” na perspectiva da educação popular
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Referências
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução de Luís Antero Reta e Augusto Pinheiro. Lisboa: Edições 70,
1979.
BLOOM, B. S. et al. Taxonomy of educational objectives. New York: David Mckay, v.1, 1956.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. 18. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1997.
RICHARDSON, R. J. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
VASCONCELLOS, C. Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como Sujeito de Transformação.
São Paulo: Libertad, 2001.
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Educação Popular: epistemologias, diálogos e saberes
Posfácio
Posfácio
Uma das tantas esperanças que o povo brasileiro nos dá é que no seio dele são
forjados homens e mulheres que carregaram consigo as sementes da educação popular
e que tanto semearam nos nossos corações e mentes, como Marielle Franco, Valmir
Mota, Nilce de Souza Magalhães, Antônio Tavares, Giovana Deodoro Kaingang, Valdir
Pereira Duarte, Bruno Pereira, Pedro Paulino Guajajara, entre tantos. A desesperança, é
que estes lutadores partiram. Viraram estrelas, foram fazer companhia para nhanderu,
ou para os encantados. Certamente estão vivos, como Paulo Freire está após 100 anos.
Quem parte em defesa da vida nunca morrerá. Todos estes lutadores estavam convictos
que é a partir do conhecimento o caminho para a libertação. Em palavras mais simples
e talvez mais ríspidas: se a educação popular é um ato de amor e por isso um ato de
coragem para mudar a nossa realidade, querer a transformação da nossa sociedade pela
raiz nos coloca em um alto grau de risco de vida.
1
O conceito de Autonomia, defendido pela ASSESOAR, carrega um sentido político no qual não cabe a
ideia de isolamento e despolitização. Confronta-se com a tradição hierárquica e subordinante,
sustentada principalmente nas estruturas da Família, do Estado através de suas instituições e da Igreja.
Desta posição deriva o método de, primeiro, trabalhar para que novas organizações e movimentos
surjam, instituam-se e posicionem-se a partir de suas especificidades, uma existência que é sempre
relação e compromisso social e político. A autonomia implica num projeto político amplo de
descentralização do exercício do poder; em esforçar-se para constituir espaços de interlocução e estudo
dos diferentes atores do campo popular, numa análise constante dos processos socioeconômicos e
políticos locais e globais, fazendo as lutas de classe necessárias e avançando na construção, proposição
e garantia de políticas de Estado favoráveis à maioria da população. Esta dinâmica negociada no campo
de classe só se efetivará se o conceito de autonomia política estiver originalmente implicado na produção
contra ideológica, no enfrentamento das classes sociais próprias do Capitalismo.
2
Projeto Político e Pedagógico do Cep – Centro de Educação Popular. Assesoar. 2011.
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Educação popular3
3
Poesia feita por Airton Luis Freire. Agricultor Familiar de Ampére/PR. Membro da Direção Executiva da
ASSESOAR.
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Posfácio
Tecnologias ecológicas
Sementes de adubos verdes
Empoderando os agricultores
Ensinando e aprendendo em rede.
Coletivo da ASSESOAR
Inverno de 2022.
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Editora CLAEC
2022