Você está na página 1de 328

VOLUME 9

DECOLONIALIDADE & EDUCAÇÃO:


ESPERANÇAR EM TEMPOS
DE PERPLEXIDADE

Rubens Lacerda de Sá
Pedro Jônatas da Silva Chaves
Conselho Editorial Pontes

Angela B. Kleiman
Unicamp – Campinas

Clarissa Menezes Jordão


UFPR – Curitiba

Edleise Mendes
UFBA – Salvador

Eliana Merlin Deganutti de Barros


UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná

Eni Puccinelli Orlandi


Unicamp – Campinas

José Carlos Paes de Almeida Filho


UnB – Brasília

Maria Luisa Ortiz Alvarez


UnB – Brasília

Suzete Silva
UEL – Londrina

Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva


UFMG – Belo Horizonte

Pontes Editores
Rua Francisco Otaviano, 789, Jd. Chapadão
Campinas, SP
13.070-056
+55 (19) 3252-6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

2022 – Brasil
Copyright © 2023: Dos organizadores e da Editora

Todos os direitos desta edição são reservados.


A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

TITULO DA OBRA: Decolonialidade & Educação:


esperançar em tempos de perplexidade
Organizadores: Rubens Lacerda de Sá
e Pedro Jônatas da Silva Chaves

Coordenação editorial: Pontes Editores


Coordenação da coleção: Conselho científico PPGESIA/Unifesp

Projeto Gráfico: Editorar Multimídia


Capa: Canva®
Revisão e Normatização do Conteúdo: Responsabilidade dos autores
Editoração e Diagramação: Editorar Multimídia
Universidade Federal de São Paulo
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Educação e
Saúde na Infância e na Adolescência

Reitor
Prof. Dr.Nelson Sass
Vice-Reitora
Profa. Dra. Raiane Patrícia Severino Assumpção

Diretor da EFLCH-Guarulhos
Prof. Dr. Bruno Konder Comparato
Vice-Diretora da EFLCH-Guarulhos
Profa. Dra. Sandra Regina Leite de Campos

Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência


Coordenadora Profa. Dra. Maria de Fátima Carvalho
Vice-Coordenadora Profa. Dra. Luciane de Fatima Bertini

Conselho Científico

Amália Neide Covic Luciane de Fatima Bertini


Universidade Federal de São Paulo, Brasil Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Cícera Aparecida Lima Malheiro Maria de Fátima Carvalho


Universidade Estadual Paulista, Brasil Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Cláudia Berlim de Mello Mariana Guedes Seccato


Universidade Federal de São Paulo, Brasil Universidade Estadual de Londrina, Brasil

Denise Maria de Carvalho Lopes Maria Sylvia de Souza Vitalle


Univ. Federal Rio Grande do Norte, Brasil Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Derlis Ortiz Coronel Nikolai Veresov


Universidad Nacional de Asunción, Paraguay Monash University, Austrália

Elizabeth dos Santos Braga Rubens Lacerda de Sá


Universidade de São Paulo, Brasil Instituto Federal de São Paulo, Brasil

Fernanda Miranda da Cruz Sueli Salles Fidalgo


Universidade Federal de São Paulo, Brasil Universidade Federal de São Paulo, Brasil

Laure Kloetzer Wanda Maria Junqueira de Aguiar


Université de Nêuchatel, Suíça Pontifícia Univ. Católica de São Paulo, Brasil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Decolonialidade & educação [livro eletrônico] :


esperançar em tempos de perplexidade /
organização Rubens Lacerda de Sá, Pedro
Jônatas da Silva Chaves. -- 1. ed. --
São Paulo : Universidade Federal de São Paulo :
Pontes Editores, 2023. -- (Educação e saúde ; 9)
PDF.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-87312-72-9

1. Educação 2. Decolonialidade I. Sá, Rubens


Lacerda de. II. Chaves, Pedro Jônatas da Silva.
III. Série.

23-143370 CDD-370.115
Índices para catálogo sistemático:

1. Decolonialidade : Educação intercultural :


Educação 370.115

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional
Para ver uma cópia desta licença, visite https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/legalcode.pt
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Se Wo Were Fi Na Wosankofa a Yenkyi
Rubens Lacerda de Sá............................................................................11

APRESENTAÇÃO
Decolonizar e Esperançar em Tempos de Perplexidade
Mariana Guedes Seccato........................................................................13

CAPÍTULO 1
Experiencias y Haceres Decolonizantes
Zulma Palermo • Ochy Curiel • Glauco Vaz Feijó.................................22

CAPÍTULO 2
Uma Educação Outra: A Decolonização de Escolas e Universidades
Francisco Uribam Xavier de Holanda....................................................55

CAPÍTULO 3
Por uma Tentativa Corazonante de Decolonizar o Decolonial
Henrique Rodrigues Leroy....................................................................67

CAPÍTULO 4
No Início Era o Verbo? Desafios da Opção Decolonial
Glauco Vaz Feijó • Viviane de Melo Resende.........................................93

CAPÍTULO 5
Un Diálogo Posible Sobre Interrogar laS PandemiaS
Catherine Walsh • Jorgelina Tallei.......................................................115

CAPÍTULO 6
Internacionalização das Universidades e Partilhas Decoloniais
Cloris Porto Torquato • Francisco Fogaça............................................151

CAPÍTULO 7
Década internacional das Línguas Indígenas
Maria Gorete Neto..............................................................................157
CAPÍTULO 8
Caminhos para o Bem Viver: Intelectuais Indígenas em Sala
Rosivânia dos Santos • José André Souza Silva.....................................175

CAPÍTULO 9
Nuestros Muertos Están Cada Día Más Vivos
Carlos David Larraondo Chauca.........................................................192

CAPÍTULO 10
Conferências Dançantes Movidas pela Interculturalidade Crítica
Emyle Daltro • Antonio Layton Souza Maia.......................................219

CAPÍTULO 11
Jekupyty Moheñoiha
Mary Liliana Martinez Caballero ........................................................245

CAPÍTULO 12
Práticas Decoloniais em Formação Continuada de Professores
Andreia Machado Castiglioni de Araújo..............................................261

CAPÍTULO 13
Ética Decolonial e Migração
Rubens Lacerda de Sá..........................................................................277

CAPÍTULO 14
Poéticas Decoloniais no Currículo em Ação
José Alex Soares Santos • Pedro Jônatas da Silva Chaves • David Silva de
Oliveira...............................................................................................309
PREFÁCIO

Se Wo Were Fi Na Wosankofa a Yenkyi1


Rubens Lacerda de Sá2

Sankofa em ganês significa san retornar, ko ir e


fa buscar. Esse ideograma africano é representado por
uma ave olhando para trás ou duas voltas justapostas
prefigurando um coração (Willis, 1998)3
Segundo Nascimento e Gá (2009), Abdias
Nascimento aprofundou o conceito desse provérbio
para “voltar ou retornar ao passado a fim de ressignificar
policyoptions®
o presente e construir o futuro” (p. 40)4.
A obra que lhes entregamos nasce de uma unidade de estudos bastante
exitosa e profícua no Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na
Infância e Adolescência (PPGESIA) da Escola de Filosofia, Ciências Humanas
e Letras (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) sob
minha regência.
Na ementa, eu convidei pesquisadores e interessados, do Brasil e do
exterior, para conversar sobre o desenho e a manutenção da estrutura da
pensée unique, tributária das filosofias cartesiana e kantiana. A meta nunca
foi a construção de fortalezas invioláveis para o combate às recolonialidades
contemporâneas, pois entendemos que a porosidade, a maleabilidade
e a elasticidade são imprescindíveis para que as ontologias, axiologias,
epistemologias e metodologias sejam banhadas por fontes e sentidos plurais
e possam servir de contraponto às imprecisões das certezas.

1 Não é errado voltar atrás pelo que esqueceste, tradução em The Spiritual Project at the University
of Denver
2 Universidade Federal de São Paulo, rubens.sa@unifesp.br
3 Willis, W. B. (1998). The adinkra dictionary: A visual primer on the language of adinkra.
PyramidComplex.
4 Nascimento, E. L., & Gá, L. C. (Orgs.) (2009). Andikra: Sabedoria em símbolos africanos. Editora
Pallas.
Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 11
Como fruto dessa reunião de pessoas empáticas ao longo de um
quadrimestre, surgiram discussões, debates e reflexões intensas e profundas,
que resultaram em um evento5 abrilhantado por todos os pensadores que
contribuíram para esta obra, além das quase seiscentas pessoas interessadas
na temática, que estiveram presentes na ocasião.
Por conseguinte, espero que as discussões ao longo desta obra nos
ajudem a pensar a opção decolonial através de diferentes lentes ópticas que
se ajustam à necessidade de mitigação das vicissitudes modernas. Esperamos
igualmente não fazer vistas grossas aos muitos pontos cegos da plataforma
decolonial para que possamos, reconhecendo-os, realinha-los. Então,
acompanhemos Abdias Nascimento e sankofa!
Hi’ãite pemoñe’ē vy’apópe! 6

5 Disponível no canal do Youtube do Grupo Interdisciplinar em Estudos de Linguagem em https://


youtu.be/giel
6 Tenhamos todos uma excelente leitura!, na língua Guarani do Paraguai.

12 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


APRESENTAÇÃO

Decolonizar e Esperançar em Tempos de Perplexidade


Mariana Guedes Seccato7

Relacionar educação com perspectivas decoloniais deveria ser condição


sine qua non para os que atuam em contexto educacional. No entanto, como
qualquer outro âmbito que constitui a sociedade, a esfera institucional
da educação muitas vezes reflete as ideologias que regem essa mesma
sociedade. Assim, em contextos em que hierarquias, modelos disciplinadores,
estereótipos que sempre vencem, tem-se a repetição de práticas opressoras.
Dessa forma, quando um educador, comprometido politicamente com seus
aprendentes, começa a refletir criticamente sobre sua prática pedagógica,
muitas inquietações e indagações se apresentam.
Isso postos, a presente obra representa educadores que alinhados ao
pensamento reflexivo e crítico, expõem por meio de relatos e reflexões,
sentimentos diversos, como o medo, a revolta, ousadia, rebeldia, tristeza e
alegria, compondo seres, ou docentes, que não abrem espaços para que o
conformismo e a acomodação se instalem.
Já no primeiro capítulo, por meio de uma conversa acadêmica,
Palermo, Curiel e Feijó iniciam as reflexões da presente obra em torno
da decolonialidade. O capítulo Experiencias y Haceres Decolonizantes
introduz o tema enfatizando o formato do texto. Conversar academicamente
significa, na maioria dos contextos educacionais e formais, a quebra de um
paradigma que distancia o conhecimento da sociedade, o indivíduo culto do
senso comum, as políticas educacionais das práticas docentes. No entanto, os
autores refletem sobre suas trajetórias combinando suas reflexões, atuações
sociais e profissionais em um texto carregado de experiências sensoriais
que nos permitem escutar as palavras narradas, os sentimentos vivenciados

7 Universidade Estadual de Londrina, mariseccato@gmail.com

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 13


e nos empatizar com as ações e reações dos acontecimentos relatados.
Os três autores, ao elucidarem suas experiências enquanto docentes, descrevem
sobre o processo de renúncia à vaidade acadêmica em prol da prática docente
que carrega consigo a educação responsiva dos pontos de vista cultural,
linguístico e social. Assim, temas como raça, classe social, sexualidade,
nacionalidade são tratados com termos decolonizadores em representações
de indivíduos, de mulheres indígenas, negras, imigrantes, homossexuais,
etc., que se formam politicamente, que investigam, que se posicionam,
que publicam e que agregam. Definitivamente, o texto resume a essência
da obra: universalidade, autonomia e agência.
No capítulo seguinte Uma Educação Outra: A Decolonização de
Escolas e Universidades, Holanda questiona paradigmas e estereótipos que
limitam e oprimem, posicionando-se por meio de um lema: ‘ser decolonial
é posicionar-se contra a corrente’. O autor discorre sobre o processo de
decolonização na educação, pontuando que nas escolas, a Pedagogia decolonial
não deve se resumir a uma metodologia ou técnica de ensino, mas a uma
prática de questionar os valores, os conteúdos e as formas que a civilização
moderna conta sua história. Para Holanda, é essencial trazer para as práticas
educativas, discursos, textos, imagens, que possam romper com os saberes
hierárquicos e opressores que reforçam a colonização racista, o capitalismo, o
machismo, a heterogenia da raça branca e o cristianismo. Assim, o combate à
doutrinação de epistemologias eurocêntricas inicia-se em uma decolonização
cognitiva. Os indivíduos precisam ter o direito de saber efetivamente como
processar e aplicar horizontes epistêmicos que representem todos, que criem
mecanismos de aceitação do outro, como ato político, como resistência
ao neoliberalismo.
O texto de Leroy, intitulado Por Uma Tentativa Corazonante de
Decolonizar o “Decolonial: A Decolonização das Linguagens Como
Lutas Anticoloniais ilustra poeticamente o que Holanda no capítulo
anterior elucida sobre a Pedagogia decolonial. Aqui, Leroy pauta-se pela
ideia de que ‘o anticolonial é luta’, para posicionar-se enquanto professor
das linguagens. Ao descrever seu lócus de enunciação enquanto professor
de português e formador de professores de língua em uma universidade

14 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


pública, sendo gay, mineiro e brasileiro, o autor declara sua luta contra o
racismo, o eurocentrismo e à mercadologia das linguagens. Leroy nos faz
viajar pela história ao resgatar semântica e epistemologicamente palavras
indígenas que tanto representam a luta desses povos em prol da verdade
e da essência de suas existências. O autor faz um percurso geográfico por
meio da linguagem, ultrapassando territórios brasileiros, suas fronteiras
com a Venezuela e os processos de legitimação linguística entre a França e a
ilha da Martinica que tanto representa o reforço xenofóbico e opressor que
todos os países colonizados sofrem por meio da hierarquização linguística,
que é tão violenta quanto os ataques racistas da colonialidade do ser.
Em meio a tantos outros exemplos literários, linguísticos e territoriais, Leroy
nos presenteia com esse texto que tenta corretamente decolonizar o decolonial,
por meio de diversas línguas e linguagens, que tanto representam, mas que
paradoxalmente são negligenciadas pelas forças opressoras. A língua deve
ser usada para desafiar, problematizar, decolonizar e ‘bagunçar lindamente
as colonialidades das linguagens...’.
No texto No Início Era o Verbo? Desafios da Opção Decolonial
Para Uma Nova Babilônia, Feijó e Resende traçam uma trajetória sobre
como o tema da decolonialidade é tratada no cenário acadêmico brasileiro.
Em um tom de crítica à expansão rápida da utilização do termo como
campo de pesquisas financiadas nas universidades brasileiras, os autores
ressaltam que, em alguns contextos, o tema é abordado de forma superficial,
esquecendo de suas raízes e banalizando seu aspecto de radicalidade na luta
contra os contextos opressores. Como exemplificação, os autores trazem a
crítica feminista-decolonial, principalmente no que tange ao esquecimento
de feministas racializadas e indígenas que desde os anos 70 aprofundam
a crítica feminista por meio de questões de dominação racial, sexista e
heteronormativas. Feijó e Resende também recorrem à crítica contracolonial,
chamando atenção às possibilidades revolucionárias dos estudos decoloniais
que, em dadas vezes não se dispõe a pensar criticamente e acaba, por fim,
em reforçar e disseminar pressupostos metodológicos e de conhecimento
completamente opressores. Por fim, os autores fazem uma relação entre os
limites da linguagem e os estudos do discurso para criticarem as contradições
do mundo acadêmico sobre como as tentativas de palavrear o mundo e de

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 15


mundanizar a palavra como aspectos de muitos contextos dos estudos do
discurso, que se esquecem que os limites impostos pela linguagem só existem
porque acreditamos que eles são intransponíveis e que o binarismo entre
linguagem e mundo oprimem e reforçam a visão ocidental sobre língua.
Em Un Diálogo Posible Sobre Interrogar LaS PandemiaS, Walsh
e Tallei protagonizam um diálogo dinâmico e interessante sobre o que elas
definem como pandemias. As autoras em meio a um momento pandêmico,
centrado na COVID, trazem à tona outros alastres opressores sustentados pelo
racismo sistêmico, o empobrecimento crescente, extrativismos sem trégua,
feminicídios, violência de gênero, heteropatriarcado, além de pandemias que
destoam aqueles que têm daqueles que são privados de acesso à educação e
à saúde. As autoras, assim como nos textos precedentes abordam a questão
de decolonização em âmbito educacional e clamam por uma academia que
comece a considerar e a abordar os atos de violência, repressão, indignação e
raiva, que elucidem episódios de injustiça e desigualdade. O calar não pode
continuar se configurando e se mascarando em linguagens racionais, educadas
e apropriadas ao ensino, mas devem associar-se ao sentir, ao pensar e ao dizer.
Assim, urge o sentipensar. As autoras também demonstram a importância
da educação comunitária como possibilidade decolonizante de estender os
gritos para que as instituições educadoras parem de reproduzir discursos
que cabem somente dentro de normas acadêmicas e que não representam
aqueles que destoam das homogeneidades.
Torquato e Fogaça por meio do texto Internacionalização das
Universidades, Produção e Partilha Decoloniais dos Conhecimentos
refletem sobre os desafios da internacionalização das universidades a partir
dos estudos decoloniais. Aludem a uma perspectiva decolonial que considere
os aspectos da modernidade e da colonialidade como construções locais,
situadas e contextualizadas. Dessa maneira, pensar na internacionalização
das universidades como algo global, inserido em um mercado regido por
concepções neoliberais, produz consequências como a unificação de sentidos
da língua inglesa em sua prevalência de tratamento como instrumento de
comunicação nos projetos de internacionalização liberal. Consequentemente,
programas que representam políticas de internacionalização de instituições

16 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


educacionais brasileiras, as colocam em posição subsidiárias em relação
às instituições no norte global, reforçando estereótipos opressores. Como
contraproposta, os autores pautam-se por possibilidades baseadas no
questionamento da divisão do conhecimento e vinculação ao multilinguismo
na produção e divulgação dos conhecimentos em âmbito acadêmico.
Em Década Internacional das Línguas Indígenas e Formação de
Professores Indígenas, Gorete Neto reflete sobre a instauração da Década
Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) e a formação de professores
indígenas para a reflexão sobre essas línguas nas licenciaturas interculturais.
A autora analisa a Década como uma oportunidade de conscientização
sobre a importância das línguas indígenas nos contextos educacionais.
Ao mesmo tempo, o texto declama a dificuldade em lidar com a formação de
docentes capacitados para que transitem em suas práticas, tendo as línguas
indígenas como instrumento de comunicação, afastando ainda mais, um
público excluído da possibilidade de se formar profissionalmente. Assim,
o texto aborda os desafios em reestruturar as licenciaturas interculturais em
prol de uma reorganização e proposição de disciplinas que tratem as línguas
indígenas e, além disso, elucidem a inconstância de apoio de programas
destinados a ajudar estudantes indígenas a se manterem nos cursos de
graduação. As dificuldades reforçam o abismo de oportunidades entre os
estudantes indígenas e os demais.
Santos e Silva no texto Caminhos Para o Bem Viver: Intelectuais
Indígenas em Sala, continuam a discussão sobre a inserção linguística e
cultural indígenas, porém no contexto do Ensino Médio brasileiro. Pontuam o
ensino de Português como uma forma de abordar a literatura indígena brasileira
contemporânea. Com o fito de gerar reflexões que embasem problematizações
sobre o currículo tradicionalmente homogêneo, os autores propõem uma
prática decolonial, objetivando oportunizar aos estudantes conhecerem
os povos originários, até então silenciados, renegados e desrespeitados.
Dessa maneira, o texto trata de questões legislativas sobre a presença da
temática indígena na Educação Básica e a formação inicial e continuada
dos docentes para exercerem uma prática consciente e comprometida com a
vida em sociedade. Talvez o fato mais interessante e que valida as discussões

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 17


teóricas abordadas durante o texto seja a apresentação de um relato de
prática pedagógica que nos permite vivenciar, enquanto leitores, os desafios
cotidianos de uma prática docente decolonizadora.
O texto Nuestros Muertos Están Cada Día Más Vivos’: Insistência
e Rememoração do(s) Corpo(s) em Contextos Totalitários Através dos
Textos de Pedro Lemebel, Néstor Perlongher e Las Yeguas del Apocalipsis,
redigido por Chauca retrata discursos totalitários e negacionistas como
produto da emergência de partidos políticos conservadores de extrema-direita,
que se aproximam do totalitarismo e que viabilizam a opressão, crimes,
torturas, massacres e mortes. O texto aborda a modernidade/colonialidade,
por meio de questionamentos de uma discursividade histórica que se apoia
em um poder que legitima narrativas hegemônicas. Assim, são analisados
excetos de textos e configurações das visões de escritores como Lemebel,
Perlongher e Apocalipsis com o intuito de intensificar um discurso contra-
político, que, segundo Chauca, clama por justiça. A memória das mortes,
suscita discursos que preconizam o corpo como suporte de expressão, de
memória política e de enfrentamento de regimes totalitários. Os escritores
são mencionados por Chauca como apropriadores de um narrar da História,
muitas vezes silenciado, e cingida de episódios de ameaças políticas totalitárias
e sentimentos de desamparo.
Daltro e Maia no texto Conferências Dançantes Movidas Pela
Interculturalidade Crítica tratam das conferências dançantes como
apresentações artísticas, em que o público é convidado a intervir,
transformando o evento em algo composto coletivamente. Segundo os
autores, esse tipo de evento ajuda a reconfigurar a noção hegemônica de
produção de conhecimento, já que a participação do público pressupõe
intervenções vinculadas aos conceitos de liberdade, que inexistem em
perspectivas neoliberais e capitalistas, pautadas por produções e vínculos
meramente individuais. Tratar de composições coletivas significa, para Daltro
e Maia, valorizar as diferenças, dar atenção ao outro, e pode representar uma
forma de superar a racionalidade individualista, a cultura competitiva e abrir
espaços de reconhecimentos aléns. As conferências dançantes possibilitam
a prática da interculturalidade crítica, que produzem discursividades que

18 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


ampliam as formas de mover, escutar e entender as diversidades, podendo
gerar episódios de resistência às forças opressoras.
O texto Jekupyty Moheñoiha: Experiencia Educativa Desde la
Democratización de la Tecnología redigido por Caballero, nos faz refletir
sobre a importância da tecnologia como possibilitadora do desenvolvimento
de habilidades de meninos, meninas, jovens e adultos que atuam em diversos
setores da sociedade. A autora apresenta um projeto desenvolvido no Paraguai
e pontua a democratização da tecnologia como auxílio no desenvolvimento
de competências e habilidades desde técnicas como o ensino de robótica até a
montagem de laboratórios de tecnologia e informação, criação e apresentação
de aplicativos, treinamento de professores relacionados à linguagem de
programação e seu uso na prática docente. A autora utiliza a expressão em
guarani Jekupyty Moheñoiha, que significa ‘semeando sonhos’ para fazer
uma alusão a um projeto educativo desenvolvido no país, que se pautava
pela formação de professores e concebe condições de inclusão digital para
estudantes em situações de vulnerabilidade social. A autora narra o sucesso
do projeto baseando sua análise em três contextos interessantes dentro do
processo como, a saber, democratização da tecnologia, autodeterminação
nacional e desenvolvimento de habilidades qualitativas. O tripé analisado
resume os aspectos legais, culturais e políticos para o desenvolvimento e
aplicação de projetos educacionais democráticos.
Em Práticas Decoloniais em Formação Continuada de Professoras/
es de Línguas, Araújo traz reflexões e possibilidades em (des/re)construir ações
de formação continuada para professores de língua inglesa dos municípios
brasileiros como políticas que consolidam todas as regulamentações e demandas
legais e práticas da profissão a fim de fortalecer ações formativas que colaborem
com as vivências dos professores e para potencializar as comunidades de
práticas. Por meio de análise de dados coletados e desenvolvidos em uma
pesquisa de um município, a autora elucida as comunidades de prática como
o compartilhamento de experiências, que em uma perspectiva decolonial,
pode relacionar-se ao entendimento da autonomia docente e de aprendizagem
experiencial docentes. Os dados revelaram que ações como dialogar, pesquisar,
produzir, praticar, observar, refletir, retomar, configuram a prática docente e

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 19


aprendizagem como um processo contínuo e que possibilita aos professores
o desenvolvimento de um olhar crítico apesar de limitações, como por
exemplo, o cenário pandêmico para a educação. Tais práticas, segundo
a autora, possibilitam reflexões coletivas mobilizadoras e que reforçam o
caráter da formação continuada como um ato de luta contra a opressão.
Ética Decolonial e Migração contempla as reflexões de Sá sobre
ética, decolonialidade e migração. O autor configura suas ideias no que ele
mesmo chama de colcha de retalhos. Enquanto leitores, temos a impressão
de percorrer obras de arte como da pintora portuguesa Graças Morais,
juntamente com as reflexões de Paulo Freire, Vygotsky, Foucault, Marx,
Kant, dentre outros, e estabelecendo uma dinâmica textual profunda em
prol da reflexão sobre a ética universal do ser humano. O autor traça um
cenário da história ressaltando o processo de colonização e de como a
exploração e a dominação político-administrativa e econômica das nações
pode ter impacto não somente na construção de barreiras geográficas como na
instauração de um movimento irreversível de opressão. Ao trazer considerações
decoloniais, Sá pauta-se em Freire para reforçar o papel na educação como
contraponto da ideologia dominante que exclui, é intolerante, estereotipa
e discrimina migrantes, minorizados racialmente, e qualquer grupo que
ameace a hierarquização social vigente.
O último capítulo da obra, Poéticas Decoloniais no Currículo em
Ação: Escrevivências Formativas no Campo da Docência, de Santos, Chaves
e Oliveira, ilustra a experiência vivida pelos autores com o Círculo de Leituras
Poéticas Decoloniais. Trata-se de um grupo de professores de um município
brasileiro, que discute questões coloniais dos países latino-americanos
emergidos em suas práticas. No entanto, esses educadores geralmente não
são preparados em suas formações iniciais ou continuadas para lidar com essas
concepções e carecem de arcabouço teórico e prático que possa ajuda-los a
enfrentar ações opressoras na educação. Durante os encontros, por meio das
leituras, os docentes se municiam de percepções e ações que eram registradas
no que chamavam de uma ação de escrevivência — escrita de nós. Dessa
maneira, o texto relata uma vivência desses professores que, por meio da força
e comprometimento com o outro, desenvolveram maneiras de desafiar os

20 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


formatos mais convencionais de pesquisa, formação e ensino, transformando
em possibilidade a decolonização nesses três contextos. A literatura decolonial
é descoberta por esse grupo como potente recurso na luta contra formas de
opressão, causadas pelo racismo, patriarcado, fundamentalismo religioso,
imperialismo, dominação econômica, dentre outros.
Os relatos, as referências teóricas e práticas apresentados nesta obra
transmitem uma mensagem de esperança sobre a compreensão da vida e
da existência humanas com amor e pautada pela busca de conhecimento.
É notável, nos textos aqui expostos, a consciência que esse amor não é
encontrado de uma hora para outra. Tudo isso demanda grande esforço,
competência, condições materiais e paciência que, segundo Paulo Freire,
pode se configurar em uma perspectiva realmente democrática e progressista
se o corpo docente não teme ultrapassar os seus limites. O meu profundo
agradecimento a esses educadores que, ao compor essa obra, nos deixam
como mensagem central de que somente nós podemos criar, ultrapassar ou
desfazer os limites.
Mariana Guedes Seccato
Votuporanga, SP em 10 de outubro de 2022

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 21


CAPÍTULO 1

Experiencias y Haceres Decolonizantes8


Zulma Palermo9
Ochy Curiel10
Glauco Vaz Feijó11

Preliminares
Nos gustaría empezar contando cómo llegamos a la escritura de estas
páginas. El texto es el resultado de la transcripción adaptada de una charla
que sostuvimos en el ámbito del Congreso Decolonialidad y Educación:
esperanzar en tiempos de incertidumbre, que ahora se vuelca en este libro.
Aceptamos con gusto la sugerencia de dar curso a una charla entre nosotres,
del mismo modo que la conversación sostenida entre Catherine Walsh y
Jorgelina Tallei (2022), quienes también alertaron acerca de la necesidad de
cambiar las formas de los debates académicos, pues muchas mantienen formas
coloniales. Poner así en cuestión el formato del experto, de la experta que
nos habla y les demás escuchamos para luego reproducir el saber qué nos es
enseñado. Al cuestionar ese formato, estamos poniendo en acto una práctica
decolonizante, como denominamos a nuestra participación. Por cierto, no
vamos decolonizar el mundo ni con la charla ni con el texto, pero estamos,

8 Zulma Palermo, Ochy Curiel y Glauco Vaz Feijó en el diálogo extendido Experiencias y haceres
decoloniales, propiciado por el Programa de Posgraduación en Educación y Salud de la Universidad
Federal de São Paulo el 4 de febrero de 2022 por medio de la realización del Congreso Decolonialidad
y Educación: Esperanzar en tiempos de perplejidades, coordinado por Rubens Lacerda de Sá, abierto a
todes que, a su vez, plantearon propuestas e inquietudes. Desde el espacio virtual llegan los aportes
de Alai Diniz, Henrique Rodrigues Leroy, Moyses Berndt, Hariagi Borba Nunes, Olga Saavedra,
Joselaine Pereira, Leila María Passos de Souza Becerra, Alessandra Bernardes Faria Campos y Carlo
David Larraondo Chauca.
9 Universidad Nacional de Salta, Argentina, zulmapalermo@gmail.com
10 Universidad Nacional de Colombia, Colombia, ochycuriel@gmail.com
11 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, glauco.feijo@ifb.edu.br

22 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


o mejor, como dijo Catherine Walsh (Walsh; Tallei 2022), sembrando
semillas, estamos sembrando las semillas que somos. También preferimos
hablar de experiencias y haceres decolonizantes y no decolonizados, pues
no se trata de algo acabado sino de un proceso dinámico en permanente
gestación. Por eso nuestra propuesta es buscar el diálogo entre colegas, entre
compañeres y quizás emprender una experiencia decolonizante. Lo que sigue
es resultado de esta experiencia.

Decolonialidades y sus Genealogías


Zulma Palermo se presenta como alguien que renunció a los títulos
y a las jerarquías académicas para ser una maestra, su primera titulación a
mediados del siglo XX. Esa elección que implicaba una resistencia (en ese
momento todavía poco consciente) a las imposiciones del sistema, se mantuvo
siempre y alimentó un posicionamiento que la llevó a ser expulsada de la
vida laboral por la dictadura militar argentina de los ’70, que la consideró
“subversiva”. Palermo entiende que estos datos biográficos son significativos
para comprender su lugar de enunciación y sus opciones políticas y académicas
que, en última instancia, son el sustento de este presente en el que, después
de tanto caminar, pueda atribuirse el lugar de quien sigue buscando las
libertades: libertad para pensar; libertad para ser, libertad para vivir.
Es desde ese lugar que, acordando con C. Walsh quien en la jornada
previa localizara sus palabras en el presente acosado por múltiples pandemias,
refiere un hecho lamentable que acontece en Argentina desde el día anterior,
con hasta ahora más de dos decenas de muertos y un centenar de personas
hospitalizadas por la ingesta de cocaína envenenada. Se trata de una situación
mínima en el contexto global y, sin embargo, demostrativa, en esa pequeña
escala, del estado de devastación al que la humanidad toda ha llegado en su
desprecio por la vida.
Esta deshumanidad (Walsh, 2014; Palermo, 2020) viene siendo
señalada por muchos de quienes, como nuestro compañero en la búsqueda,
el sociólogo Edgardo Lander (2014), vienen mostrando desde hace décadas
el problema de la depredación de la tierra, y como él muchos más, sin

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 23


reacción alguna de los poderes que lideran al planeta. No obstante, creemos
todavía posible, y por eso este encuentro, generar espacios fértiles en los
que fructifiquen semillas decolonizantes12. Para eso nos reunimos, para eso
nos congregamos. Nos congregamos en el sentido etimológico de la palabra,
buscando estar “con la grey”. En esta grey que estamos armando nos resultaría
óptimo poder conversar con la mayoría de quienes nos están acompañando
o acompañándose en este encuentro. No se trata de escuchar la palabra de
quienes ocupamos este lugar de privilegio en el que nos encontramos lxs
“invitados especiales”, con la exclusividad en el uso del micrófono y la cámara,
sino que con todes, en común, podamos dar forma a una comunidad en
la que puedan también hablar para compartir sus opiniones, experiencias e
inquietudes. Se trata de incorporar saberes para hacer posible, en común,
la generación de un “algo más”, compartiendo las experiencias, los saberes
que hemos asimilado en nuestras comunidades de pertenencia. Leila María
Passos de Souza Becerra responde y se abre al diálogo desde el foro, en el
entendimiento de que es imprescindible congregar a los muchos modos de
ser, vivir y convivir.
Por eso -sigue Palermo- propongo pensar los haceres que entendemos
se sustentan en lo que hoy se denomina opción decolonial, una entre todas
las existentes, como lo entiende Walter Mignolo (2014), sostenida por
nuestras búsquedas, poniendo en común lo que hemos sentido en nuestras
vidas en tanto sujetos impedidos de opción. ¿Cuándo nos dimos cuenta de
eso? ¿Cuándo y cómo hemos sentido el dolor de la herida colonial, como
la denomina Gloria Anzaldúa (2016)? Empecemos a buscar entre todes
un común, un común que nos permita compartir el dolor de la herida y
tratar de restañarla. Estamos laceradxs, sin duda, por esa matriz colonial de
poder patriarcal (Quijano, 2014) que nos abarca en todos los ámbitos de la
vida. Pero ¿cómo cada unx de nosotres se siente herido? También sabemos
que las heridas cicatrizan, pero cicatrizan y queda la marca, no desaparece.
La marca de la herida queda, se ve y se toca. Se toca en el cuerpo, se toca en
la mente, se toca en el corazón. ¿Cómo nos movemos para ir restañando esa

12 La idea de proceso en nuestra perspectiva es denominada “decolonizante” por María Eugenia


Borsani (2021).

24 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


herida hasta que sea solo una huella? Una huella que, sin embargo, siempre
nos va a recordar que estuvo ahí, que nos dolió mucho, pero que pudimos
curarla trabajando juntes, comunalmente. Metáfora que asume Alai Diniz
desde el foro, pues siente que la herida colonial afincada en la memoria sale
a la búsqueda de la imaginación y actúa.
En mi caso, sigue Palermo, desde hace mucho tiempo, desde las
primeras experiencias docentes como maestra en jardines de infantes
en los años ‘60 o fines de los ‘50, he venido practicando una forma de
comunicación, de contacto con todes aquelles que me/se eran entregados
en un aula. En éstas nos tocábamos y nos tocábamos de distintas maneras:
nos tocábamos con la canción; nos tocábamos en los saludos; nos tocábamos
en los temores; nos tocábamos en las inseguridades y en los encuentros.
En estos encuentros felices, y a veces breves, pasajeros, que se van dando en
las relaciones interpersonales.
Todo eso se fue intensificando con el correr de las experiencias, de
las lecturas, del tejido de los contactos con los libros, con las personas,
con las opciones. Obviamente mi primera opción política fue la adhesión
al latinoamericanismo sesentista, en tanto formo parte de esa generación,
junto con Dussel, junto con Arturo Roig, en el sentido en el que lo vivía la
Filosofía de la Liberación. No podría haber sido otra cosa. Nacida en zona
rural, en familia criolla, mirando en el margen despreciado a los indios
matacos al borde del río, no podía ser otra cosa que latinoamericanista.
Fue el comienzo de la búsqueda. La primera herida que me infringió la
diferencia colonial fue percibida ahí, pensando en esos matacos junto al río,
abandonados y despreciados por el núcleo criollo de la sociedad. No podía
ser otra cosa que latinoamericanista, opción que se fue retroalimentando
a medida que crecía en las búsquedas, incorporaba lecturas, se sostenían
los encuentros y también, obviamente, los desencuentros, en construcción
epistémica y política hasta que, a fines de los años 1990 se fue dando el
encuentro con otros y otras como Catherine Walsh; con Aníbal Quijano;
con mis compatriotas en el exilio: Walter Mignolo, Enrique Dussel y María
Lugones; con Edgardo Lander; con Fernando Coronil, tan prematuramente
desaparecido; con Santiago Castro-Gómez y con ellos, además de muches

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 25


más, aprender a generar nuevos saberes, los que en verdad para mí no eran
tan nuevos, porque ya venían amasados desde el viejo latinoamericanismo,
fundamental para la opción.
Enrique Dussel (2006, p.52) decía la importancia de conocer a los que
nos antecedieron en esta búsqueda, que “la única manera de poder crecer
desde la propia tradición es efectuar una crítica desde los supuestos de la
propia cultura”, revisando “sus textos constitutivos”. Es imperioso pensarnos
en nuestra propia genealogía: en cada lugar, en cada terruño, en cada país,
en cada región y desde ahí en el mundo. Pero siempre desde el propio lugar;
esta es mi experiencia, este es mi recorrido, este es mi aprendizaje (Palermo,
2014b). Jamás un aprendizaje solitario, siempre un andar “con”, tal como
sentipiensan muchos de los que abrazan esta línea de pensamiento y acción
como la concibe Walter Mignolo (2014) en acuerdo con Aníbal Quijano,
en tanto se trata de una opción entre muchas otras con una clara definición
epistémica, política y ética en pos del objetivo liberador que nos guía desde
el momento mismo en que este mundo tal como lo conocemos empezó
a ser inventado por otros, imponiendo el olvido de todo lo preexistente.
Así como Zulma Palermo, Ochy Curiel Pichardo plantea que unos
datos biográficos son importantes para expresar el lugar de enunciación
desde donde se habla. Pero no los títulos académicos, sino las experiencias
y prácticas decolonizantes. El feminismo negro es para Curiel una fuente
de conocimiento. Ochy Curiel viene, en primer lugar, de una experiencia
en el Caribe: nací y me crié en República Dominicana, donde comencé mi
formación política
El Caribe es muy importante, pues es aquí donde empieza la
modernidad colonial y luego se expande hacia toda la América (Queiroz,
2018; Maldonado, 2020). Eso no quiere decir que es automático nacer en
el Caribe y tener una consciencia de la colonialidad, pero, sigue Curiel, yo
la tuve. Y la tuve desde una construcción colectiva del aprendizaje desde
mi madre, mi abuela, mis tías, sobre todo de mujeres afrodescendientes,
que entendieron que había relaciones de poder, no solamente de género,
también de raza, de clase y luego de sexualidad y nacionalidad. En ese
sentido mi condición de caribeña, de afrodominicana, de lesbiana feminista,

26 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


de migrante, pues he migrado sobre todo al interior del continente, hacen
con que yo me construya un pensamiento que me es fundamental para
pensar lo decolonial.
Vengo de un feminismo antirracista que ha cuestionado la universalidad
del feminismo blanco que lo hizo racista, heterosexista y clasista, no sólo
en sus teorías, sino también en sus prácticas políticas. Vengo también del
feminismo autónomo, que cuestionó la lógica institucional y los impactos
de las políticas neocoloniales en los movimientos. Vengo del lesbianismo
feminista, que ha entendido que la heterosexualidad no es sencillamente
una expresión más de la sexualidad, si no que un régimen político que afecta
todo tipo de relación social, no solo las sexuales, imponiendo binarismos,
apropiando cuerpos no hegemónicos. Mi acción política también ha sido
antimilitarista y antinacionalista, y obviamente anticapitalista. Todo eso es
muy importante, porque es lo que configura, a propósito de la genealogía
mencionada por Zulma, lo que para muchas de nosotras va configurando
el feminismo decolonial.
No es sencillamente un concepto que nuestra maestra María Lugones
(2008) propuso, si no que nosotras recuperamos ciertas prácticas que ya
veníamos haciendo desde mucho tiempo desde esos feminismos críticos y
luego nos encontramos con ustedes en términos de cómo pensar la opción
decolonial. Pero la práctica, ya la veníamos haciendo. Eso es muy importante,
porque esa construcción colectiva hecha fundamentalmente por compañeras
afro, indígenas, mestizas, la mayoría sin privilegios de clase, es lo que va
configurando mi práctica política decolonial y anticolonial. Ese es mi punto de
partida y es clave para entender lo que pienso sobre lo que serían experiencias
y haceres decoloniales.
Recuerdo que hablando con Cathy, quien estaba aquí en Bogotá en
una conferencia, si mal no recuerdo en la Universidad Distrital, le decía
que lo “decolonial” estaba muy centrado en la epistemología. Yo creo que
la epistemología es importantísima, pero no es suficiente y no puede ser
suficiente. Es decir, ¿cómo crear un pensamiento decolonial a partir de otro
concepto, a partir de los desprendimientos que tenemos que tener de las
categorías coloniales? Algo que Zulma (Palermo, 2014) también ha trabajado.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 27


¿Cómo generar conocimientos de otro modo? (Escobar, 2003). Creo que
muchxs de lxs pensadorxs decoloniales hemos aportado bastante en este
sentido, e insisto creo que es muy importante para nuestros análisis, nuestras
propuestas pedagógicas y metodológicas, para pensar ese “otro mundo”.
No obstante, en esta conversación me gustaría presentar tres experiencias,
que se sitúan fuera de la academia, que según mi punto de vista son haceres
descolonizantes y lo son porque se hacen en colectivo, desde las comunidades
desde un accionar fuera de las instituciones coloniales.
La primera es la experiencia del Grupo Latinoamericano de Estudios,
Formación y Acción Feminista (GLEFAS)13, que es un tejido de activistas,
pensadoras, feministas críticas de Abya Yala que tienen, más o menos, esta
misma genealogía que les estoy contando. Nuestro propósito, desde hace
ya casi veinte años, es tener un pensamiento propio que articule una lucha
contra toda esta matriz de dominio, que imbrica el racismo, la explotación
económica, la heterosexualidad normativa, el militarismo, el despojo de
las políticas neocoloniales, etc. Con el tiempo hemos ido afinando lo que
es un pensamiento decolonial, que significa pensar-hacer y hacer-pensar.
Nuestra acción política es autónoma, es decir, no dependemos del
Estado ni de la cooperación internacional, y eso viene a ser parte de la
construcción del feminismo autónomo que hemos actuado. Hacemos
muchísimas cosas: formación política, investigaciones, posicionamientos
políticos, publicaciones (tenemos una editorial independiente que se llama
“en la frontera”) que buscan dar a conocer lo que hacemos nosotras, pero
también lo que hacen otrxs que comparten con nosotrxs posiciones políticas.
Todo lo que hace el GLEFAS es desde y con los movimientos sociales, tanto
de los que formamos parte, como otros con los cuales nos interesa construir
colectivamente. Es así que hacemos coaliciones, y no son solo movimientos
de mujeres o feministas, son movimientos que desde sujetos múltiples
se han opuesto a este sistema de muerte, además de crear otros mundos
diariamente. El hacer decolonial o decolonizante siempre lo concebimos
de forma colectiva y es una colectividad que se va creando a partir de una

13 http://glefas.org

28 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


cuestión que es clave para nosotras: la búsqueda de un proyecto de liberación
que implique a todxs lxs condenadxs del mundo en una lucha frente a la
matriz de opresión moderna/colonial.
Esa es una de las maneras del hacer. Obviamente que la formación
política, la investigación, las publicaciones, esas articulaciones, ese hacer,
tienen que ver con una apuesta decolonial.
Una de las acciones de la formación política del GLEFAS, y es la
segunda experiencia que quiero compartir, son las escuelas decoloniales
cimarronas que hacemos en este momento en República Dominicana con
jóvenes afrodescendientes de comunidades marginales. Nosotras creemos
efectivamente que tenemos un privilegio en términos de acceder a ciertos
conocimientos y queremos compartirlo. En estas escuelas, la metodología
que utilizamos es fundamentalmente mediante el arte y la creatividad. Y con
eso, a partir del cuerpo, se empieza a generar una serie de conversaciones,
de reflexiones, donde se trae la experiencia de la mayoría de las compañeras
y compañeres que están ahí al centro. Estas escuelas decoloniales han
generado nuevos grupos políticos, nuevos colectivos, y es maravilloso ver
los posicionamientos y acciones antirracistas y decoloniales que les jóvenes
van haciendo en sus comunidades, en los movimientos, en el país.
Empezamos en República Dominicana y en ese momento estamos
programando escuelas en Haití. Recuerden que esa Isla, de donde vengo, el
hecho de que hoy haya dos Estados nacionales, uno República Dominicana
y otro Haití, es producto de la colonización que nos partió en dos. Es parte
de nuestra herida colonial cuyos responsables principales fueron españoles y
franceses y luego los criollos de nuestros pueblos. Con ello lo que buscamos
es, cómo diría María Lugones (2011), reestructurar este lazo fracturado
de esa isla que ha sido tan afectada con base al antihaitianismo histórico,
expresión de la colonialidad contemporánea. En este sentido, una prioridad
para nosotras es volver a tejer ese lazo con Haití.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 29


La otra experiencia que me gustaría compartir con ustedes, es una
experiencia que yo inicié aquí (en Bogotá) con “La Tremenda Revoltosa”14,
una batucada de compañeras, una apuesta desde el arte, desde las calles, no
atendiendo solamente las “cuestiones de mujeres”, sino luchando contra el
despojo de las tierras, el heterosexismo, los efectos del conflicto armado en
Colombia, que está ligado al racismo estructural y a las jerarquías de clase.
Desde el arte hicimos una propuesta que para mí es muy decolonial y que,
además, descentra el tema de la escritura. Eso no quiere decir que no nos
interesa escribir, pero creo que hay que cuestionar que los conocimientos,
para ser validados tienen que ser por escrito, porque si no seguimos centrando
“lo decolonial” en el ámbito académico. La Tremenda Revoltosa, ha sido
un proyecto autónomo y autogestionario. Las decisiones y las formas en
las que actuamos, siempre es colectiva: las maneras de aprender la música,
la construcción de las consignas, nuestros posicionamientos, las decisiones
del colectivo. Y siempre estamos en coalición con otros movimientos sociales.

(Im)posibilidades de Haceres Decolonizantes desde la Universidad


Por último, sigue Curiel, quisiera decir cuál es la relación que yo tengo
con la academia. Doy clases en la Universidad Javeriana, he dado clases en
la Universidad Nacional aquí en Colombia. Considero que la universidad
es el lugar privilegiado de la colonialidad del saber, esto tiene una historia,
tiene una genealogía. La pregunta es si sería posible decolonizar la academia,
la universidad, ¿cuáles son las posibilidades y los límites? Particularmente,
creo, primero, que este espacio es un lugar de trabajo, además de colonialidad.
Yo siempre digo: yo doy clases en la universidad, yo no soy académica,
porque mi pensamiento viene precisamente de los movimientos sociales a
los cuales he pertenecido, ahí los he creado junto con otres, y que luego los
he llevado a la academia. Pero creo, que quienes tenemos la posición/opción
decolonial tenemos que hacer la disputa en ese lugar, como en cualquier otro.
Tenemos que llevar esos conocimientos que nosotres hemos llamado “otro”:
conocimientos indígenas, afros, decoloniales, antirracistas, anticapitalistas,
antinacionalistas, de disidencias sexuales, campesinos, para generar otros

14 https://www.youtube.com/batucadafeminista

30 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


referentes del conocimiento, que puedan ser validados, igual que aquellos
que se han legitimado desde el eurocentrismo.
Además de ello, creo que es nuestra responsabilidad generar
metodologías que conecten el aula con los procesos sociales. En Abya Yala,
hay muchas referencias de cómo la Universidad, la Escuela, ha establecido
una relación en términos pedagógicos y metodológicos con esos procesos
sociales que está llevando otros movimientos muchos más amplios frente
al racismo, frente al despojo, frente a la violencia con las mujeres, frente a
ese sistema de muerte.
Llega entonces la pregunta de Hariagi Borba Nunes​acerca de cuál
sea entonces el papel de la pesquisadora(o) cuando va a investigar y escribir
sobre su propia comunidad: ¿cuáles son los puntos que necesitaríamos para
desmantelar la idea sujeto/objeto colonial?
Creo clave -responde Ochy- hacer disputa (no sé si eso se llama
decolonizar, no estoy segura y no creo que sea así tampoco), hay que hacerlas;
es lo único que permite algún cambio, obviamente dentro de esas estructuras.
Una cuestión importante es transformar la relación objeto-sujeto. En general,
los pueblos indígenas, los pueblos afro, lxs campesinos, lxs disidentes sexuales,
las mujeres (sobre todo las empobrecidas) son los objetos de estudio de
aquellos y aquellas que tienen el privilegio del conocimiento, que se suma
a sus privilegios de raza y clase.
Por otro lado, he propuesto lo que he denominado como antropología
de la dominación (Curiel, 2013, 2014), de la hegemonía, que consiste en
etnografiar las élites y los sectores de poder. Tenemos que investigarlos como
objetos de estudio para entender sus responsabilidades concretas en el racismo
estructural, en el militarismo etc. Debemos conocer a fondo las prácticas de
esas élites, sus discursos, sus historias y sus conexiones con el poder histórico.
Para mí, esas dos cuestiones son claves para hacer investigación decolonial.
Además de ello, considero que nosotres, afros, indígenas, campesinos,
campesinas, tenemos que hacer nuestros propios procesos investigativos.
Ya está bueno que la gente blanca, con privilegios de clase, con privilegios de

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 31


conocimientos, nos estudien para “acumular” créditos académicos. Deben ser
investigaciones que contribuyan a nuestras luchas, a los proyectos políticos
que estamos construyendo, siempre en colectivo. Esas son prácticas y haceres
decoloniales que para mí son fundamentales.
Es lo que intentamos en nuestros haceres desde hace un par de décadas,
agrega Zulma, pero desde otro espacio de la diferencia, el que habitan les
sujetes blanques, criolles, europeizades. Es válida en ese sentido la aserción
del actual presidente argentino al manifestar en un momento, con total
convicción, que “los argentinos bajamos de los barcos”, porque esa es la
identificación mayoritaria de nuestra sociedad. Una identificación que nos
macula, que nos sella, porque, indudablemente, nuestras comunidades
originarias han sido diezmadas, sobre todo acá en el lugar que habito y
que me habita, el noroeste argentino, en límite con Bolivia, con Chile
y con Paraguay, en triple frontera. Dura y difícil frontera, permanentemente
invadida por los poderes del norte y marginada por el poder local, cualquiera
sea su signo político-partidario. Este lugar necesita demasiado empuje para
desprenderse de ese patrón; necesita demasiada fuerza, demasiado empeño.
Sin embargo, hay en los jóvenes, como vemos en este encuentro,
una maravillosa efervescencia que se manifiesta particularmente en las
universidades de frontera, con las que he venido conversando desde hace
un par de años: con las Universidades Federales de Pará, del Amazonas, de
Amapá, de la Integración Latinoamericana, que llevan adelante proyectos
en verdad insurgentes, tendidos a construir sociedades plurales.
En este lado de la cartografía, en las universidades nacionales argentinas
del Comahue, de San Salvador de Jujuy, de Córdoba, de Rosario de Santa
Fe15 -algunas veces con la muy activa acción de colegas de Brasil- abrimos
intersticios en las instituciones para un hacer sentipensante, un hacer
compartido socialmente con distintos sectores, intereses y localizaciones,
espacios a los que -con mi queridísimo amigo Adolfo Albán Achinte, de

15 Olga Saavedra aclara que la Universidad Nacional de Rosario, localizada físicamente en el corazón
de la pampa húmeda, es también fronteriza respecto de las universidades dominantes que construyen
hegemonía. Es por eso que hay grupos que operan desde el lugar.

32 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


la Universidad del Cauca en Colombia, venimos llamando comunalidades
creativas (Albán-Achinte 2018; Colectivo Pedagogías Decolonizantes 2021).
No se trata del sentido de “comunidad” cuya cohesión radica, en gran medida,
en una memoria compartida de larga duración que se propone un proyecto
de vida a largo plazo. La “comunalidad”, en este caso, es un espacio que se
construye entre quienes quieren/necesitan compartir memoria, experiencias
y propuestas en un tiempo y un lugar determinados. En esos espacios y en
ese tiempo algo acontece como efecto del encuentro en el intercambio de
memorias personales, en el tejido de su entramado conjunto que hace posible
la producción de algo nuevo y diverso, según los intereses específicos de cada
comunalidad: el texto de un ensayo, un poema, un mural, un tapiz… una
ley, decidores del sentipensar acontecido y por fuera de los protocolos en uso.
Se trata de haceres que se proponen disruptivos, en el entendimiento de
que la creatividad no está solo en la producción de “objetos estéticos” según
la convención canónica, sino en toda acción humana, cuando es humana
y no humanista o humanitaria, que irrumpen en el espacio institucional
como respuesta a su status quo. Haceres que hacen pensar, haceres que hacen
reflexionar para re-existir en esta era de muerte impulsada por la fuerza de
un poder global nunca antes experimentado.
Ahora bien, ¿cómo es posible concretarlo dentro del sistema?
¿Es posible operar dentro del aparato del Estado-Nación con algún efecto?
Creo que la existencia misma de este momento de encuentro lo está afirmando,
aunque se trate sólo de romper mínimamente el formato autoritario de las
jerarquías académicas, buscando una forma de hacer conocimiento-en-común,
pensándonos en nuestras experiencias lugarizadas en tanto sujetos, como
personas sentipensantes. Son pequeñas grandes cosas que se van articulando y
que nos permiten “darnos cuenta” de nuestra condición de sujetos sometidos
a la dominación. Ese darse cuenta es el paso imprescindible para avanzar en
la dirección liberadora. Por eso entendemos que conversando mientras se
pinta, se teje, se lee, se cocina, se baila… en común (tanto en un aula como
junto a un río o en la “plaza pública”) se va sembrando, se va abriendo una
huella que poco a poco da los frutos esperados.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 33


Cuando este “formato” se concreta en el espacio académico, una de
las primeras cuestiones acerca de las que se habla es la experiencia padecida
por los posgraduantes. Los estudiantes que están padeciendo el trauma de
escribir “la tesis” dentro de protocolos globalmente establecidos, con definidos
“marcos teóricos” y su correspondiente “metodología”, preestablecidos con
criterio mercantilista y crediticio, con el recurso a la “cita de autoridad” que
anula o sanciona todo posible gesto de pensamiento propio, hablan de esa
“herida” (Palermo, 2014a).
Estas apreciaciones generan inquietud y dan lugar a interrogantes como
el que se plantea desde el Grupo Interdisciplinar em Estudos de Linguagem
sobre “os perigos de apenas reconfigurar a desaprendizagem sobre a mesma
plataforma que nos banha. Não haveria uma diluição outra na radicalidade
de um projeto outro?”
Es claro que el riesgo es real -afirma Zulma- y lo constatamos cada vez,
pero lo que venimos haciendo con buenos efectos, es entrar por el resquicio
que deja el mismo sistema para actuar contrasistémicamente dejando que
explote el grito, la protesta, el desacuerdo que se expande: ya no es sólo
contra la forma de producción de conocimiento sino contra el poder del
patriarcado como sistema consuetudinario de dominación y control, que
alcanza a superar también la cuestión de género, epicentro del pensamiento
decolonial como sostienen María Lugones y Rita Segato16 y acerca del que
insiste acá Ochy.
Esos espacios son óptimos para la escucha del otro con el que se
empieza a vivir el desaprender, como enseña el movimiento zapatista.
Es necesario desaprender lo que nos enseñó el sistema escolar, familiar, social
en general. Desarticularlo para iniciar el camino del reaprendizaje, insisto,
con la comunidad, con los que diríamos literariamente, “los de abajo”, en
los intersticios, en las brechas, en los resquicios que deja abiertos el sistema
hegemónico.

16 Conversaciones personales sostenidas en distintos encuentros. Esas ideas se encuentran reiteradas


en sus escritos; entre ellos, Lugones, 2021 y Segato, 2016.

34 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Vengo denominando así a lo que Catherine llama “grieta”, preciosa
metáfora, graficada en la imagen visual; muy fuerte, un significante muy
fuerte; pero que no resulta fácilmente generalizable ya que en otros espacios
políticos y culturales tiene una carga negativa, como ocurre en mi país. Es la
grieta insalvable entre progresistas y neoliberales. Es la grieta en el discurso
político, en el discurso mediático, donde no hay grises, hay solo blanco y
negro en el combate, en la guerra por el poder entre esos dos sistemas, no
hay una alternativa. Por lo tanto, acá, en mi territorio, en mi lugar, y acá
aparece claramente de qué manera todo conocimiento está siempre lugarizado
por lo que, al mismo tiempo no se establecen “modelos” a ser reproducidos,
la grieta, la idea de grieta, funciona inversamente; no deja pensar que es un
espacio en el que pueda haber una siembra productiva.
No obstante, y análogamente, siempre he pensado en los lugares que el
sistema descuida como las brechas, los intersticios, los resquicios a través de
los cuales generar una resistencia que vaya transformando el orden instituido,
erosionando ese suelo de poder. Ahí pasan cosas, ahí pasan muchas cosas
y ahí es donde el semillero empieza a brotar. Donde muchas personas, no
todas, por cierto, pero sí muchas, empiezan a darse cuenta acerca de su lugar
de sometimiento en la estructura del poder y, desde allí, a avanzar hacia su
desprendimiento. Cuestionar ese lugar sentipensando es un acto creativo,
fertilizante que da lugar a la producción de un saber más compartido sin
que sea homogéneo. Por eso es posible entender el hacer docente como una
permanente gestión en creatividad.
El hacer decolonizante, por lo tanto, es algo que vamos construyendo
de manera constante y cotidianamente; no es algo acabado de una vez
y para siempre por eso no me resulta válido hablar de “lo decolonial”,
como una abstracción, como una teoría más, o una categoría de carácter
conceptual. No creo/deseo/puedo pensar esa expresión sino, al contrario,
que es imprescindible generar e ir haciendo prácticas, lenguajes, contactos,
intercambios decolonizantes. No llegar a algo que se llame “lo decolonial”,
porque en ese momento la opción muere, en ese momento se petrifica, como
pasa en general con las teorías en su seudocientificismo, según mi recorrido.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 35


Ochy trae para nuestro debate la cuestión de las posibilidades o
imposibilidades de actuación de la universidad en un hacer decolonial.
En la misma línea, Glauco Vaz Feijó nos cuenta que la cuestión le toca mucho,
le incomoda mucho, lo que lo lleva a un constante movimiento de estar
y de salir de la academia, cuando ya no consigue creer en posibilidades de
transformación desde dentro de la academia: yo confieso que la universidad,
por veces me agota, los rituales y jerarquías académicas me agotan, pero
también confieso que he podido vivir experiencias decolonizantes desde la
universidad y así que veo tanto las posibilidades cuánto las imposibilidades
del hacer decolonizante desde la universidad. Les voy a contar unas de esas
experiencias decolonizantes desde la universidad.
Una de esas experiencias fue justo con Adolfo Albán Achinte, a quien
conocí por intermedio de Zulma. Adolfo es sin duda una de las personas más
sensibles que yo pude conocer en el espacio académico. Yo pude participar
en Brasilia de la construcción colectiva de una de las “Comunalidades
Creativas”, de las cuales nos hablaba Zulma, y fue una experiencia realmente
bellísima y transformadora para las personas que participaron. Fue hecho
un mural para la Semana de Reflexiones sobre Negritud, Género y Raza que
reunió una veintena de artistas de las periferias de Brasilia, que se volvieron
el centro de un evento que era, al inicio, académico, pero que se tornó,
también debido a la Comunalidad Creativa, en algo que los movimientos
negros en Brasil llaman “aquilombamento”: un espacio de resistencia y
vivir colectivo en lo cual las luchas se fortalecen comunalmente, las heridas
son restañadas colectivamente, como lo dice Zulma, y la formación para la
acción política ocurre en el hacer común.
Traigo conmigo otras experiencias decolonizantes muy fuertes, que
las viví aún como estudiante de grado, y quizás por ellas seguí en la vida
académica. Como estudiante de grado, tuve el enorme gusto de ser alumno
de Felippe Serpa en la Universidad de Bahía. Serpa, que se fue muy joven,
fue rector de la Universidad Federal de Bahía y, al mismo tiempo, un crítico
ardoroso de la universidad como institución excluyente y colonial que es.
Serpa fue aclamado “Doctor” por su notorio saber, jamás tuvo un título
académico después del grado en Física (Serpa, 2004). Él llegó a la universidad

36 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


por medio de sus trabajos con las gentes, con los movimientos y, una vez en la
universidad, persiguió la construcción de lo que llamaba de comuniversidad
(Serpa, 2005).
Sin embargo, muchas veces, la lucha de Serpa por la comuniversidad
se parecía con la de un Quijote, las críticas que tejía a la academia eran muy
fuertes, muy deconstructivas. Me recuerdo de algo que él me dijo y que no
olvidaré jamás, me dijo: “Glauco, la universidad es muy perversa, la escuela
es muy perversa, porque mismo cuando ellas incluyen, ellas excluyen”.
El proceso de inclusión de la universidad es perverso, pues aquellx que se
incluye tiene que dejar de ser quien lo era antes para poder ser incluidx,
es decir, la persona que es incluida tiene que dejar de ser quien era, tiene
que abandonar los suyos y las suyas y dejar su grupo anterior, debilitando
así su grupo de pertenencia. Serpa se fue antes de las políticas de inclusión
de los gobiernos del Partido de los Trabajadores en Brasil, no sé lo que diría
de esas políticas.
Pero, además de todas las críticas, yo pude experienciar haceres
decolonizantes con Felippe Serpa desde la universidad que tenían una
característica en común entre ellos: los haceres no partían de la universidad,
eran haceres colaborativos en los cuales la universidad participaba siempre y
solamente cuando era demandada su participación por las gentes y por los
movimientos (Feijó, 2007). Desde ahí, creo que los haceres decolonizantes
desde la academia son posibles, desde que la universidad no se presente
como el liderazgo de esos haceres, como la proponente de esos haceres, pero
sí como partícipe, cuando es llamada a participar. Cuando la universidad
apoya haceres genuinamente decolonizantes en sus orígenes populares, en
las gentes y en los movimientos populares, puede ayudar a tejer experiencias
decolonizantes.
Desde mis experiencias, creo poder decir que sí, que hay experiencias
decolonizantes en la universidad, pero eso no nos libra del problema de las
estructuras coloniales de la universidad, persiste la cuestión de la universidad
que excluye hasta mismo cuando incluye. Las experiencias decolonizantes
en la universidad, me parece, suelen ser experiencias aisladas, la institución
mantiene su estructura colonial.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 37


Incluir o Transformar: Los Límites de Categorías

Liberales en Prácticas Decoloniales


Hay cuestiones aquí que nos remiten a ese problema y a otros de
los cuales aún no tratamos, pero seguro que vamos a tratar como, por
ejemplo, el papel de la creatividad y su relación con la resistencia. El lugar
de categorías centrales de la universidad liberal, algunas muy de moda, como
la interseccionalidad, por ejemplo, acerca de la que Leroy interroga “¿cómo
trabajar la cuestión de la interseccionalidad en la academia colonizadora?
Lelia Gonzales nos apoya mucho aquí (en Brasil) para aproximar las calles
y los movimientos sociales a la academia”.
Aprovecho el enlace de estas cuestiones para traer otro punto de
discusión, que también toca a la cuestión de la universidad, que es la relación
entre inclusión y transformación. ¿Cómo qué políticas inclusivas, que, por
veces, celebramos mucho, pueden también ser contraproducentes, o no?
Para Ochy todas estas cuestiones están articuladas entre ellas.
Empezando por reflexionar si realmente estamos socavando las bases cuando
estamos sobre la misma plataforma, podemos articular esta reflexión con la
cuestión de la inclusión propuesta por la universidad. Yo, sigue Curiel, creo,
particularmente, que una posición decolonial debería tender a devaluar la
universidad, aunque allí estemos compartiendo pensamiento decolonial:
Una manera de descentrar la universidad como ese lugar privilegiado de la
colonialidad del saber es haciendo otras prácticas de formación política de
creación de conocimiento fuera de ella.
Cuando yo traigo la experiencia de las escuelas decoloniales que
hacemos en República Dominicana y en Haití, nosotras estamos intentando
devaluar la universidad. Hay muchísimas prácticas en todo Abya Yala, donde
hay procesos educativos, pedagógicos, formativos, las cuales tenemos que
rescatar y que tienen que ser nuestros referentes principales, porque si no,
lo que va a pasar, o mejor, lo que está pasando ya, es que, por ejemplo,
mucha gente que se cree feminista decolonial está en la academia tragando
conceptos, citando autoras y autores, pero no tienen una práctica colectiva

38 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


decolonial que articule un proyecto de liberación. Eso es inclusión, es lo
que está de moda. Porque ahora mucha gente quiere hacer metodología
decolonial, pero no hay un elemento fundamental de la propuesta decolonial
que es la acción política colectiva, que realmente socave las bases de esta
plataforma donde está sustentada la colonialidad. Y la universidad es una
de esas bases, sabemos que lo es.
Por ejemplo, en la universidad en Brasil, por medio de las cuotas, se
abrió las puertas para que entren tres personas indígenas, cuatro personas afro,
para que se pueda decir que la universidad es diversa, que es multicultural.
Pero el racismo en Brasil está aumentando cada vez más. Así, ¿cuál es la
relación entre las cuotas en las universidades, si las bases, las opresiones
que generan las desigualdades en término de acceso siguen cada vez peores?
Yo creo que esta es una pregunta que tenemos que hacernos cuando estamos
en la universidad: ¿hasta dónde confiamos en estas instituciones para poder
llevar la propuesta decolonial?
Esto, por un lado, por otro, hacer conceptualizaciones, utilizar
categorías y análisis críticos en la universidad es importante. Con eso yo
estoy de acuerdo, es lo que trato de hacer en la universidad, pero sabemos
los límites. No creo que un estudiante, una estudiante pase cuatro años en el
grado, dos años en una maestría, aprenda los conceptos decoloniales y luego
va a salir decolonial, pero promover ese pensamiento decolonial es un paso
importante para motivar a la organización política fuera de la universidad.
El otro tema es la interseccionalidad. Hay que entender cuál fue la
propuesta de Kimberlé Crenshaw (1989) cuando ella la hizo. La propuesta
fue hecha en el marco liberal en el marco de lo derecho. Ciertamente
desde una justicia crítica en el marco del derecho. Y eso no es que esté mal,
pero hay varias cuestiones ahí. Ya lo he dicho muchas veces que soy una
cuestionadora de la interseccionalidad. La interseccionalidad no se pregunta,
cómo fue producida la “mujer negra”: la experiencia de ser mujer fue marcada
por la colonialidad, la experiencia de ser negra también, sobre todo por el
racismo. La interseccionalidad no me lleva a un proyecto de liberación.
Sencillamente lo que hace la interseccionalidad es incluir, en una lógica del

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 39


multiculturalismo, en ese caso de articular una serie de categorías analíticas.
Eso es también lo que hace la universidad.
Se puede tener un pensamiento crítico en la universidad y decir: “vamos
a hacer una investigación interseccional” y vas a decir, “el conflicto armado
colombiano está afectando fundamentalmente a mujeres negras e indígenas”.
Se puede decir, describir, analizar. Y eso es importante, sin embargo, eso no
necesariamente está develando el origen del conflicto armado en Colombia,
que tiene que ver con el racismo, que tiene que ver con el despojo, que
tiene que ver con la matriz moderna colonial. Ese es el problema de la
interseccionalidad, es un concepto, una categoría que ha cobrado tanta fuerza
en los últimos años que el Banco Mundial habla de la interseccionalidad;
el Fondo Monetario Internacional habla de interseccionalidad; las universidades
liberales hablan de interseccionalidad y la pregunta que tenemos que hacer
es: ¿porque hablan de interseccionalidad?
Sobre la relación entre creatividad y resistencia, yo no creo que la
creatividad por sí misma es resistencia. Para que lo sea, yo insisto, es necesario
que exista un proyecto político de liberación donde la creatividad, sea una
forma del hacer. Y tendríamos que preguntarnos lo que entendemos por
creatividad. La creatividad no se limita solamente al arte, todo el mundo está
creando todo el tiempo. Ahora, también la creatividad ha servido a la lógica
liberal, capitalista, racista. Veamos, por ejemplo, en el arte, cómo se sitúa hoy
el reggaeton, o del rap, o del hiphop. Habiendo sido una expresión popular
de gente racializada, hoy está en el mercado, porque el mercado, como diría
bell hooks (1996), devora el otro. Ese “otro” sigue siendo devorado por la
lógica capitalista, aunque yo pueda decir que muchísimos reggaetoneros son
creativos, como muchísima gente en el arte. Pero eso no basta para articular
creatividad y resistencia. No es una cuestión automática. No lo creo. Tiene
que haber un proyecto que busque la eliminación de los sistemas de poder y
que continúan hoy con la inferiorización, la deshumanización, que generan
asesinatos y violencias de muchos tipos.
Estamos señalando algunas formas de control propias de la colonialidad
del presente –opina Zulma- tanto en el orden epistémico como en el político
en tanto son inseparables, y compartiendo críticamente algunas de las

40 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


estrategias que, desde cada lugar, ensayamos para confrontarlas, con la
expectativa de que sean decolonizantes. Sólo tendremos algunas certezas
acerca de su efectividad a futuro pues se trata de largos procesos tanto en el
orden del pensamiento como de la acción ya que ésta es pluriversa según el
contexto en que se concreta y las formaciones sociales a las que responde.
En todos los casos, sin embargo, entiendo se van articulando muchas
maneras de creatividad, no actuada -insisto- como la producción de objetos
artísticos según lo entiende la Estética en tanto disciplina filosófica, sino como
potencialidad para la invención de haceres/pensares disruptivos del sistema.
Cuando en mi lugar –de fuerte arraigo colonial- nos movemos para pensar
y decir con voces y palabras otras lo que nos afecta socialmente, lo hacemos
compartiendo los espacios que, nacidos en barriadas periféricas, salen a “la
plaza pública” al grito de “vivas nos queremos” mientras reflexionamos juntes
dejando también en la escritura una huella (Colectivo Voces Brujas, 2019)17,
en un flujo que quisiéramos abarcara todas las formas del hacer académico.
Ahora bien, sabemos que estas acciones no modifican estructuralmente
al sistema universitario el que, sin embargo, en mi país, preserva los principios
de la Reforma de 1918 que proclamó a la universidad como sistema público
y gratuito y que, desde entonces, sostiene esos principios. Entiendo que –
frente al embate indudable de la universidad liberal que tiene a su cargo la
formación del “liderazgo político”- las acciones antisistémicas que puedan
gestarse dentro de ellas, resultan el único reducto para sostener la resistencia.
No es un dato menor que nunca haya sido necesario definir un “cupo” para
el ingreso de estudiantes no blancos.
Por otro lado, en nuestro caso, el ingreso a sus aulas de estudiantes
pertenecientes a comunidades aborígenes es muy reciente, no porque antes
se les hubiere negado el acceso sino por la situación de total marginalidad en
la que se encontraban, lo que empezó a modificarse cuando tuvieron acceso
a la alfabetización institucional con el sistema mal llamado “intercultural
bilingüe”. Lamentablemente es la idea de inclusión, en consonancia con
lo que antes manifestara Ochy, con la que también opera la Universidad

17 Capítulo incluido en un libro de próxima edición.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 41


de la que hablo (UNSa) pues no está preparada para incorporar las formas
de saber/pensar de las culturas otras en simetría reconociendo su validez
en paridad con el que imparte. Da forma, por el contrario, a espacios “de
contención” y “de nivelación”, “de inclusión” en consecutividad con lo que
se entiende por educación intercultural bilingüe- donde lo que se genera
es una verdadera “transculturación”. Esto es lo que advierte Moyses Berndt
cuando comenta que “conheçe indígena que, ao cursar a universidade, deixou
de lutar contra a colonização; hoje é defensor do sistema. A universidade fez,
na prática, incluir o indígena na sociedade (e integrá-lo a ela)” y el destaque
de Alai Diniz cuando señala la existencia del fetiche de la universidad que
incluye para excluir.
Es también significativa, en este orden, la diferencia que se advierte
en lo relativo a la transformación de las prácticas propias del género que
encuentran un mayor espacio de participación en paridad en todos los niveles
institucionales. De ese modo, en la universidad de la que hablo, mínimamente
-sobre todo en las Facultades vinculadas con las ciencias sociales y con las
humanidades se está buscando generar una disrupción en la idea de universo,
para empezar mínimamente a explorar la posibilidad de un pluriverso.
Es decir, que dejemos de ofrecer una universidad para empezar a ofrecer una
pluriversidad. En ese sentido, tal vez algún día se pueda llegar más allá de
una transformación de contenidos para cambiar las estructuras coloniales
que les son propias. Pero, insisto, yo me muevo en una sociedad blanca
mayoritariamente, mestiza sustitutivamente y europeizada culturalmente.
Es muy difícil operar acá de otro modo, es casi imposible.

La Decolonialidad Gana el Mundo: ¿Qué Hacer Ahora?


Creo que, sigue Glauco, así como interviene Carlo David Chauca,
lo que estamos debatiendo aquí entre nosotres en esta “congregación”,
son las armadillas, el peligro de cooptación y de vaciamiento de la opción
decolonial, por eso me acordé otra vez de Adolfo (Albán Achinte). En la
misma ocasión en que lo conocí y participé de una Comunalidad Creativa,
yo aún me iniciando teóricamente en la opción decolonial y Adolfo me llegó
con una deconstrucción muy fuerte, muy marcante. Él me dijo: “Glauco,

42 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


la decolonialidad es una plaga”. En el momento quizás de mi más grande
entusiasmo con el proyecto decolonial, aquello me dejó aturdido, porque
en el mismo momento me vino a la cabeza una cita de Hannah Arendt en
la cual ella habla de la superficialidad del malo y que a mí mucho me gusta:
„el mal es siempre extremo, pero nunca radical, no posee profundidad ni
demonicidad. Puede devastar el mundo entero justo porque es un hongo
que prolifera en la superficie. Profundo y radical es siempre el bien” (Arendt,
2010 [1963], p. 444, traducción propia).
No sabría decir la razón, pero yo vinculé esa cita con la metáfora de la
decolonialidad como una plaga. No veo algo de malo en la decolonialidad, para
nada, pero justo me preocupó la amenaza de la superficialidad, de la pérdida
de radicalidad, en el movimiento de rápida difusión de la decolonialidad.
Porque sabemos que las plagas se difunden muy rápidamente sobre todo por
no tener raíces profundas. Yo vivo desde entonces con esta amenaza y estoy
muy preocupado por ella. Porque como dije antes, yo vivo en el movimiento
pendular de entrar y salir de la universidad. En este momento estoy dentro de
la universidad, estamos todes, ese aquí es un espacio sobre todo académico.
Y, aunque preocupado, sigo viendo huecos, grietas, intersticios, como dijo
Zulma, espacios que posibilitan acciones políticas de transformación dentro
de la universidad. Creo que, como dijo Catherine ayer (Walsh y Tallei, 2022),
hay espacios para sembrar y que las semillas se vuelvan plantas fuertes con
raíces profundas y no superficiales como son las plagas.
El tema de las posibilidades decoloniales en la universidad, desde
la universidad, es muy intenso, porque muchos de nosotros, muchas de
nosotras estamos en la universidad y debido a trayectorias de vida específicas,
sólo estamos en la universidad y tenemos una intención genuina de ser
decoloniales. Yo estoy en lo mismo y comprendo, pero a mí me parece que
tenemos que contener nuestros deseos de hacer decolonialidades con “las
propias manos” desde la universidad y escuchar los sujetos decoloniales, que
producen conocimientos y haceres decoloniales desde hace mucho tiempo
y desde afuera de la universidad. La escucha, el silencio, echar mano del
privilegio del saber, es lo más decolonizante que podemos hacer desde el
saber académico, que puede producir conocimiento decolonizante, pero si

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 43


está al servicio y si parte de las gentes y de los movimientos decoloniales,
que lo son antes de las teorías decoloniales académicas. Los comentarios
que llegan aquí, las preguntas también, creo que reflejan esa cuestión con
mucha propiedad.
Siguiendo aún en la línea de los haceres decolonizantes dentro de
las instituciones, ampliando un poco más la discusión para más allá de las
instituciones académicas, me gustaría proponer una última discusión sobre
la colonialidad o la decolonialidade respecto a dos otras instituciones que
me parecen importantes en el debate. Una es la cuestión de la religión,
o mejor, de la religiosidad. Y esta cuestión lo traigo desde unas reflexiones
que están muy fuertes en Brasil, no sé cómo está en otras regiones de Abya
Yala, pero en Brasil hay en ese momento una euforia bastante grande, que a
mí también me tocó, sobre las posibilidades decolonizantes de las religiones
de matriz afro en el contexto educacional, dentro de las escuelas, como
prácticas pedagógicas y metodológicas (Rufino, 2019): ¿Qué podemos
aprender con estas religiosidades otras no hegemónicas en el contexto de
procesos y haceres pedagógicos que se pretenden decolonizantes?
La otra cuestión es la institución más grande, que abarca y, de cierta
forma, conduce todas las otras, que es el Estado moderno. Pensando también
en el dilema de la izquierda clásica: ¿Cómo nos relacionamos con el Estado
en el contexto de una propuesta decolonial? ¿Cómo resolvemos todas las
grandes cuestiones que nos afligen, todo ese sistema de muerte, si echamos
de lado el poderoso Leviatán? ¿Qué hacemos con el Leviatán?
Para Ochy, todo el proceso de creación de conocimiento decolonial,
que viene de la propia comunidad, tiene que contribuir a algo, el resultado
no puede ser solamente un crédito académico que unx tome para sí mismo
teniendo su comunidad como objeto de estudio (Curiel, 2014). La pregunta
es: ¿Para qué hacemos investigación? Puede parecer una pregunta tonta, pero
no lo es, al contrario, es fundamental. Un proyecto decolonial cimarrón,
como decimos en el Caribe, tendría que ser un proceso que permita revelar
cómo funcionan las lógicas del poder que queremos combatir en comunidad,
tiene que traer aportes a luchas concretas y no ser un proyecto narcisista
-una tendencia en los estudios culturales- de verse a sí mismo como algo

44 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


extraordinario fuera de las relaciones sociales. Toda investigación que sea parte
de mí historia, de mi genealogía, de mi comunidad, de mi lucha, tiene que
apuntar a contribuir a develar las lógicas de poder y también las resistencias
históricas que hemos tenido. Históricamente, desde el mismo momento de la
colonización, ha habido resistencias, ha habido transformaciones, ha habido
la creación de otros mundos posibles. Eso cambia la relación sujeto-objeto,
además son nuestros pueblos los que tienen que investigar las situaciones
que nos corresponden a nosotros y a nosotras.
El otro tema de la religiosidad es importantísimo, sobretodo
religiosidades de matriz africana o aquellas de pueblos originarios, pues
sabemos muy bien la centralidad y el papel del judeocristianismo en la
colonialidad y hay un imaginario institucional ligado a la religiosidad que
es racista y patriarcal. Colocar otras “cosmovisiones” de cómo se piensa la
espiritualidad es conveniente para una propuesta decolonial, sobre todo
aquellas espiritualidades que están siendo comunitarias, como el candomblé,
por ejemplo. Traer esas formas de espiritualidades, que son históricas y que
son de resistencia, nos ayuda a problematizar un poco más la espiritualidad.
Pero hay que decir que no todas las prácticas religiosas de matriz africana
son decoloniales. Hay también una reproducción del judeocristianismo
en sus maneras, en sus rituales, en sus relaciones sociales que tenemos que
problematizar. Solamente el hecho de que sea “candomblé” no es suficiente
para decir que ahí no hay relaciones de poder, que no hay colonialidad.
Sobre eso hay que hablar, visibilizar y problematizar.
El tema del Estado es clave. Cuando pensamos las sociedades como
totalidad, por esa herencia eurocéntrica, nos remite inmediatamente al
Estado-nación. Una acción decolonial tendría, primero, que comenzar
a problematizar esa totalidad, visibilizando que existen tantas sociedades
fuera o con poca relación con el Estado-nacional. Es importante historizar
el Estado, una institución jurídico-política de herencia europea y que es lo
que define un territorio, un país, una nacionalidad que ha creado “unos
Otros” con base a lógicas nacionalistas. Pienso que, así como tenemos que
descentrar la universidad, tenemos que descentrar el Estado-Nación.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 45


No es fácil, estamos cercados por eso, pero hay razones políticas:
las transformaciones sociales no se van a hacer desde el Estado. Yo, Ochy
Curiel, no hago política en el Estado, aunque, frente a la privatización de
la universidad, defiendo la universidad pública, pero sé que es un momento
estratégico de disputa frente a la privatización de la educación. Pero no creo
que es en el Estado que vamos hacer las transformaciones sociales, ni desde
el Estado se va a producir un proyecto de liberación. Sería contradictorio
con nuestra historia colonial y con un proyecto decolonial. Eso es un tema
que aún no hemos abordado debidamente. Las feministas autónomas han
aportado algunos elementos, aunque no con la palabra “decolonial”, que
hay que rescatarlos.
Estamos acá destacando algunas cuestiones de sumo interés para nosotres
–señala Zulma. Una es la banalización de la propuesta que gestara la crítica a
la modernidad desde la colonialidad (M/C). Como antes manifestara Ochy
en relación con el concepto de interseccionalidad, el uso hoy generalizado
por el discurso social –particularmente en el universo político y mediático-
del término “decolonial” no sólo lo ha vaciado de su sentido político y ético,
sino que lo ha pervertido. Lamentablemente también sucede en el espacio
académico con la proliferación de cursos, seminarios, posgrados, etc. en
los que el término se escucha como un calificativo “a la moda”, carente
de los valores de su gestación, es decir, como una forma de vida según lo
sentipensamos. Así lo advierte también Carlos David Larraondo Chauca al
manifestar que la propuesta “decolonialidad” está siendo capturada y vaciada
de sentido. Tal vez sea preferible en este momento dejar un poco de utilizar
el término y retomar otras denominaciones; retomarlas de nuestras mismas
comunidades, de la circulación de algunos usos normales en la sociedad.18
Es necesario abrirse más a la escucha del conjunto social.
Otra de las cuestiones a las que refieren Ochy y Glauco es la de la
religiosidad en tanto los sistemas de creencias de nuestras comunidades están
apropiados por la cultura dominante que folkloriza y mercantiliza los rituales,
visibles en nuestro espacio con la escenificación de los gestos de tributo a
la Pachamama en beneficio de la industria turística, una de las fuentes de

18 Algunos aportes interesantes en Camblong (2014). También en Torres Roggero (1988), entre otros.

46 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


recursos del Estado que, además, se han urbanizado. Sacadas esas prácticas
de su contexto puneño pierden valor ritual y quedan reducidas a espectáculo.
Aparece acá el Estado, otra cuestión que venimos abordando. Creo
que sabemos sobradamente cómo se han constituido nuestros estados-nación
bajo la égida del proyecto moderno en tanto estructura de poder (Quijano,
2020) y sabemos también el papel que jugó y juega la educación formal en
su consolidación y preservación, en particular la Universidad, según venimos
conversando. En nuestros días, afectados por la crisis global que nos afecta,
se advierte que esa estructura pretendidamente democrática está en franca
descomposición con el incremento de las diferencias entre poderosos y
oprimidos. Ante ello se han consolidado otras formas de organización como
las que se perfilan en las Constituciones de Bolivia y Ecuador, sustentadoras
de la conformación de Estados plurinacionales, todavía en lucha por
su concreción.
Decimos también que esta otra forma de organización de las sociedades
difícilmente pueda proyectarse dentro de esa estructura, a la vez que los
intentos revolucionarios concretados durante el siglo XX fracasaron. Entonces
pareciera que las posibles reversiones del sistema, un real pachakuti, sólo
pueden provenir desde fuera de sus instituciones; si esto es así, habría que
abandonar toda acción desde dentro de la institución universitaria, algo
como un “dejarse estar” según propugna algún discurso posmoderno.
Hay quienes pensamos que, para que exista una fuerza social que avance
contra el Estado moderno, es necesario, una vez más, actuar localmente, en
cada país, pues es necesario reconstruir las formas particulares en los que
cada uno de ellos lo ha gestado en sus guerras independentistas, en sus luchas
internas, en sus procesos organizativos hasta el presente. Simultáneamente,
intensificar la siembra decolonial también en los sujetos que se forman en
las universidades, los que pueden incidir en gran medida en la generación
de prospectivas. Es decir, dar curso a proyectos descentrados en simultaneidad y
complementariedad, insisto, para avanzar mancomunados en la construcción
de un mundo posible.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 47


Reflexiones Finales
Estamos aquí problematizando “lo decolonial”, tenemos intervenciones
en el mismo sentido, pero de mi lado, opina Glauco, yo debo decir que
me resiento de dejar de utilizar el término. La idea aún me seduce y aún
la veo muy potente, a pesar de todas las críticas que yo mismo hago, pero
las críticas son bienvenidas, son necesarias. Hay errores, hay tropiezos y
tenemos que hablar de ellos. Hay errores y críticas potentes, como es la
crítica del feminismo decolonial caribeño a la cuestión de género que marcó,
al proyecto modernidad/colonialidad.
No hace mucho, estuve en una conferencia con Mara Viveros Vigoya
(2021), en la cual ella, como siempre muy elegante, hacía una crítica muy
amable y muy cuidadosa a Aimé Césaire debido al hecho de Césaire jamás
reconoció en su trabajo la influencia que tuvo del feminismo negro caribeño,
la influencia que tuvieron, por ejemplo, las hermanas Nardal en su elaboración
de la idea de negritud.
Escuchando a Mara Viveros hablar, yo pensaba en lo mismo que
tocaba al proyecto modernidad/colonialidad. Tanto el proyecto modernidad/
colonialidad cuánto la crítica del feminismo decolonial son más recientes
y aún es posible reparar los daños de la cuestión de género en el proyecto
y creo que los daños se están reparando sobre todo por el feminismo negro
caribeño, que se autodenomina decolonial, que no abandonó el proyecto
decolonial con la crítica, además, como insisten también los miembros del
proyecto modernidad/colonialidad, lo decolonial no se confunde con ellos,
ellos hacen parte de la propuesta, pero no la crearon, no son sus gestores
y jamás se presentaron cómo si lo fueron. Aún vale la pena luchar por lo
decolonial.
Ante este “conflicto de las denominaciones”, Zulma se pregunta por el
sentido ya no solo de los usos nominativos sino, más allá, sobre el “conflicto
de las opciones”, cuando los intelectuales empezamos a confrontar a veces
competitivamente entre unas y otras tomas de posición. ¿Qué sentido tiene,
manifiesta, destinar esfuerzos a la sola disputa entre la definición por la
decolonialidad, la poscolonialidad, la contracolonialidad?

48 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Para Joselaine Pereira los conceptos “contracolonial” y “anticolonial”
han sido más utilizados para referir a las prácticas, en contraposición a
lo decolonial que lamentablemente queda muy restringido a la teoría
académica. En esa dirección, Henrique Leroy recuerda una famosa cita de
Silvia Cusicanqui, quien dijo que “lo decolonial es moda, lo poscolonial es
deseo y lo anticolonial es lucha” (Federici y Cusicanqui, 2018).
Palermo entiende que esto seguramente obedece a la diseminación
prioritariamente académica de la propuesta ya que, desde su experiencia,
los matices entre una y otra posición dependen del lugar en que estamos
viviendo, en el que habitamos el problema, pero no se puede llevar eso a
una batalla académica donde los nombres y los posicionamientos no hacen
más que dañar la potencialidad de un avance. Tenemos la posibilidad de
ver el problema desde distintos lugares de enunciación, de ver la necesidad
de salirnos de ese lugar, para la gestión libertaria que propiciamos, proyecto
impostergable cuya concreción se demora en el terreno académico en este
tipo de disputas. Más aún cuando, como expresa Alessandra Bernardes Faria
Campos, “por aqui, no Brasil, cada vez mais forte uma lógica individualista
e competitiva nas universidades”.
Ochy, por su lado, entiende que el debate sobre lo decolonial y lo
anticolonial es muy importante. Es importante porque hay genealogías
distintas y las genealogías son importantes como dijimos al principio de
esta conversación. Ha habido muchas luchas, muchas propuestas desde
los movimientos anticoloniales, que son diversos, que no tienen tantos
protagonistas visibles como lo son Quijano, Mignolo etc. Y aquí nos
acordamos que la mayoría de los decoloniales son blancos y blanco mestizos
y eso nos es casual. ¿Por qué se sitúan un tipo de propuesta por encima de
otras? Eso no quiere decir que yo lo niego, por el contrario, asumo una
serie de categorías y análisis de la opción decolonial o proyecto decolonial
que me han aportado muchísimo y me asumo como feminista decolonial.
Lo que dijo Silvia Cusicanqui, y no solamente lo dijo Silvia, lo han dicho
compañeras que viene de otras genealogías: no hay solamente una genealogía
decolonial. Y eso es un reconocimiento a los aportes teóricos a las luchas
colectivas de esas otras genealogías. A veces nos complementamos, incluso

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 49


en los análisis en que utilizamos diferentes categorías. Pero sí es importante
que hablemos de eso, pues significa reconocer una genealogía que estuvo
mucho antes de la teoría decolonial.
Sin duda –añade Zulma- se trata de propuestas que responden a
distintas genealogías. Hay mucha tinta derramada que nos lo recuerda y que,
por eso mismo, resultan complementarias. Si la decolonialidad se reconoce
en las vertientes que emergieron en este lado del mundo en el legado que nos
llega desde Waman Poma de Ayala en el Taiwantinsuyo, la caribeña desde
más allá de Glissant y Fanon para engendrar la apuesta de Abya Yala y, a su
vez, la poscolonialidad arraiga en el sur de Europa con las herencias india y
africana, de hecho estas formulaciones se retroalimentan. No son para mí
opuestas sino complementarias, avanzando paralelamente hacia el lugar que
buscamos. Insisto en la necesidad de diálogo, de intercambio, sin dejar de
advertir y señalar las distancias y las diferencias. Buscamos discursivamente
el descentramiento y la pluriversalidad en todos los órdenes; hablamos de
pluricentrismo, de plurisaberes, de plurinaciones; pues entonces es necesario
sostener el diálogo entre esas distintas vertientes, todas ellas, reitero, en su
lugar y con sus memorias, creativas y constructivas. Por eso dejo con ustedes
el deseo de seguir avanzando en este camino de esperanza, en re-unión
complementaria, en el tejido de una trama abierta a participar activamente
en la concreción de “un mundo en el que quepan muchos mundos”.

Coda
En estas páginas hemos buscado testimoniar el decurso de nuestro
encuentro, en las que intentamos ser fieles al fluir de las ideas, las dudas y
las expectativas. Seguramente –como sabemos- la distancia insalvable entre
oralidad y escritura hace que los matices, las tonalidades, los gestos propios
del registro oral no puedan ser reproducidos por la letra. Conservamos en
lo posible el tono de la oralidad; en especial quisimos respetar el uso del
portuñol en su espontaneidad, como lengua fronteriza significante de una
las muchas maneras de concretar un funcionamiento intercultural como
propuesta. Seguramente se habrán perdido algunas voces en estas páginas,
voces con las que esperamos reencontrarnos a futuro.

50 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Referencias19
Albán-Achinte, Adolfo (2018). Prácticas creativas de re-existencia, Ediciones
del Signo. Colección El Desprendimiento.
Anzaldúa, Gloria (2016). La Frontera/Borderlands, Capitán Swing Libros.
Arendt, Hannah (2010 [1963]). Brief 133 von Arendt an Scholem, 20. Juli
1963. En M. L. Knott (Ed.). Der Briefwechsel. Hannah Arendt, Gershom
Scholem. Jüdischer Verlag.
Borsani, María Eugenia (2021). Rutas decoloniales. Ediciones del Signo.
Colección El Desprendimiento.
Cacopardo, Ana (2018). Historias debidas VIII: Silvia Rivera Cusicanqui.
Canal Encuentro. https://www.youtube.com/historiasdebidas
Camblong, Ana (2014). Habitar las fronteras. EDUNAM.
Crenshaw, Kimberlé (1989) Demarginalizing the Intersection of Race and
Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist
Theory, and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, 1(8),
139-167.
Colectivo Voces Brujas (2019). Construyendo saberes otros con voces de mujer.
Un hacer contraacadémico, Universidad Nacional de Salta. Inédito
Colectivo Pedagogías Decolonizantes (2021). Pedagogías insumisas,
insurgentes, conjeturales. Revista Otros Logos, 12(11), 179-212.
Curiel, Ochy (2013). La nación heterosexual. Análisis del discurso jurídico y el
régimen heterosexual desde la antropología de la dominación. Brecha Lésbica-
En la frontera.
Curiel, Ochy (2014). Construyendo metodologías feministas desde el
feminismo decolonial. En Irantzu Mendia Azkue, Marta Luxán, Matxalen
Legarreta, Gloria Guzmán, Iker Zirion & Jokin Azpiazu Carballo (Eds.),

19 A pedido foram mantidos os nomes completos das autorias nas referências

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 51


Otras formas de (re)conocer, (pp.45-60). Universidad del País Vasco-Hegoa,
Donosti.
Curiel, Ochy (2020). Un Golpe de Estado: La Sentencia 168-13, continuidades
y discontinuidades del racismo en República Dominicana. En la frontera.
Dussel, Enrique (2006). Transmodernidad e interculturalidad. En Filosofía
de la cultura y la liberación, UNAM.
Escobar, Arturo (2003) Mundos y conocimientos de otro modo: El programa
de investigación de modernidad/colonialidad latinoamericano, Universidad
Colegio Mayor de Cundinamarca. Tabula Rasa, 1, enero-diciembre, 51-86.
Federici, Silvia, & Cusicanqui, Silvia Rivera (2018, 14 de octubre). Diálogo.
XVIII Feria del libro Internacional del Libro. https://vimeo.com/335774684
Feijó, Glauco Vaz (2007) Projeto Paraguaçu: Resonanzen eines
Zwischenraumes. En J. Born (Ed.). Curt Unckel Nimuendajú: Ein Jenenser
als Pionier im brasilianischen Nord(Ost)en, ( pp. 301-310). Praesens.
hooks, bell (1996). Devorar al otro: Deseo y resistencia. Debate Feminista,
13, 17-38.
Lander, Edgardo (2014). Crisis civilizatoria, límites del planeta, asaltos a
la democracia y pueblos en resistencia. En M. E. Borsani & P. Quintero
(Ed.) Los desafíos decoloniales de nuestros días: pensar en colectivo, (pp.79-
122). EDUCO.
Lugones, María (2008). Colonialidad y género: Hacia un feminismo
descolonial. En Walter Mignolo (Ed.). Género y Descolonialidad. Ediciones
del Signo.
Lugones, María (2011). Hacia un feminismo decolonial. En Revista La
manzana de La Discordia, 6(2), 105-111.
Lugones, María (2021). Peregrinajes, Ediciones del Signo.
Maldonado-Torres, Nelson (2020). El Caribe, la colonialidad, y el giro
decolonial. Latin American Research Review, 55(3), 560–573.

52 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Mignolo, Walter (2014). Una concepción descolonial del mundo: Conversaciones
de Francisco Carballo con Walter Mignolo. Ediciones del Signo, El
Desprendimiento.
Nascimento, Aline Maia, Santana Junior, & Humberto M. (2019).
Epistemologias destoantes na encruzilhada: Saberes em confluência. Em
P. B. Melo (Ed.). Descolonizar o feminismo (pp. 66-79). Editora do IFB.
Palermo, Zulma (2020). ¿Habrá un después de Nuestramérica?. En Revista
La Biblioteca, dossier especial Las resquebrajaduras del presente: Virus,
neoliberalismo y humanidades, 536-364.
Palermo, Zulma (Ed.) (2014a). Para una Pedagogía Decolonial. Ediciones
del Signo.
Palermo Zulma (2014b). Pensamiento argentino y opción decolonial. Ediciones
del Signo, Colección El Desprendimiento.
Queiroz, Marcos (2018). Caribe, corazón de la modernidad. Cultura
Latinoamericana, 28(2), 234-250.
Quijano, Aníbal (2020). Estado-Nación ciudadanía y democracia. En
Cuestiones y horizontes: Antología esencial, (pp.675-669). Selección de Danilo
Assis Torres. CLACSO-UNMSM.
Quijano, Aníbal (2014). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América
Latina. En Z. Palermo y P. Quintero (Orgs.). Aníbal Quijano: Textos de
fundación, (pp 110-160) Ediciones del Signo, Colección El Desprendimiento.
Rufino, Luiz (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Mórula Editorial.
Santos, Antonio Bisbo (2018). Somos da terra. Piseagrama, 12, 44–51.
Segato, Rita (2016). La guerra contra las mujeres. Prometeo.
Serpa, Felippe (2004). Rascunho digital: Diálogos com Felippe Serpa. Edufba
Serpa, Luiz Felippe S. P. (2005). Constituição e funcionamento nas práticas
discursivas do Projeto Paraguaçu, [Dissertação de mestrado não publicada].
Universidade Federal da Bahia.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 53


Torres Roggero, Jorge (1988). La donosa barbarie. Alción Editora.
Walsh, Catherine, & Tallei, Jorgelina (2022, 03-04 de febrero). Sembrando
y floreciendo la decolonialidad en/como praxis. Congreso Decolonialidad
y Educación: esperanzar en tiempos de perplejidades, UNIFESP. www.
youtube.com/giel
Walsh, Catherine (2014), (Des)Humanidades. En Z. Palermo (Ed.). Des/
decolonizar la Universidad, (pp. 103-119). Ediciones del Signo, Colección
El Desprendimiento.
Vigoya, Mara Viveros (2021, June 29 –July 9). Améfrica Ladina y
decolonialidades: Una perspectiva crítica. International Forum on Global
South Studies. University of Tübingen, Germany. https://www.youtube.
com/amefrica

54 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 2

Uma Educação Outra: A Decolonização de Escolas


e Universidades
Francisco Uribam Xavier20 de Holanda21
Texto escrito e dedicado aos professores da rede municipal de ensino
da cidade de Itapipoca no Ceará em retribuição aos afetos e a
calorosa recepção que me concederam. Naquele encontro do dia
dos professores de 2021 nos permitimos outrar-se.

No pensamento decolonial o colonialismo e a colonialidade são


conceitos diferentes; são elementos constitutivos e constituintes do projeto
civilizador moderno. O colonialismo é o domínio político, administrativo,
militar e territorial por parte de estrangeiros, com o objetivo de obter
vantagens econômicas e rivalizar com a cultura local, tornando-a subalterna
na relação metrópole/colônia. A prática do colonialismo é antiga, bem
anterior à modernidade. O processo de ruptura com o colonialismo acontece
historicamente por meio de lutas por independência ou libertação nacional.
Com a modernidade, o rompimento da colonização por meio das
lutas por independência ou libertação nacional não tem significado ou
garantindo a emancipação, pois a dominação, a exploração e a subalternização
continuam por meio da colonialidade. Esta nasceu com a modernidade e
é parte constituinte dela. Não existe colonialidade sem modernidade e não
existe modernidade sem colonialidade.

20 Uribam Xavier gosta de café com tapioca e cuscuz, peixe frito ou no pirão, de frutas e verduras,
antes de ser hipertenso era chegado a uma buchada e a uma feijoada. Frequenta o espetinho do
Paraíba, no boêmio e universitário bairro do Benfica em Fortaleza, e no pré-carnaval segue o bloco
Luxo da Aldeia. É professor, ativista político decolonial e anti-imperialista, estuda e escreve para
puxar conversa e fazer arenga política.
21 Universidade Federal do Ceará, uribam@ufc.br

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 55


Aníbal Quijano cunhou a categoria colonialidade para se referir à
estrutura específica de dominação por meio da qual foram submetidas às
populações originarias da América a partir de 1492. Ao invadir esse continente
os colonizadores espanhóis estabeleceram com os povos originários uma
relação de poder fundada na superioridade étnica epistêmica dos primeiros
sobre os segundos. Não se tratava somente de submeter os povos indígenas
ao domínio militar e destruí-los pela força, mas de transformar sua alma,
de mudar radicalmente suas formas tradicionais de conhecer o mundo e
de conhecer a si mesmos, adotando, como próprio, o universo cognitivo
do colonizador.
Para Quijano (2014) a colonialidade consiste, em primeiro termo, numa
colonização do imaginário dos dominados, ou seja, atua na interioridade desse
imaginário. A repressão recaiu, antes de tudo, sobre os modos de conhecer,
de reproduzir conhecimento, e de produzir perspectivas, imagens de sistemas,
símbolos, modo de significação sobre os recursos, padrões e instrumentos de
expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual. Os colonizadores
impuseram aos colonizados, também, uma imagem justificada de seus próprios
padrões de produção de conhecimento e significados.
A colonialidade mudou radicalmente as estruturas cognitivas, afetivas
e volitivas dos dominados, ou seja, converteram-lhes em um ser a imagem
e semelhança do homem ocidental. Em síntese, colonialidade diz respeito
à violência epistêmica exercida pela modernidade sobre as outras formas
de produzir conhecimentos, práticas, instituições, organizações, imagens,
símbolos e modos de significação.
Decolonialidade ou descolonialidade é o reverso de colonialidade e
seu horizonte de ação aponta para o desmonte da estrutura da colonialidade
do poder, do eurocentrismo e da obediência epistêmica e política do projeto
civilizador moderno. Como esclarece Chaves (2021, p.176), o pensamento
decolonial “não é uma criação intelectual do fim do século XX, e sim
consiste em conhecimentos e práticas de resistência e insurgência contra o
colonialismo e a colonialidade que sempre existiram a partir do século XVI”.

56 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Para Valter Mignolo, a decolonialidade, como método e ponto de
partida para a investigação e o agir, tem como fundamento a decolonização do
saber, do ser e do poder. Isto implica na quebra dos processos que permitem
a racialização e a inferiorização, mecanismos que promovem a invisibilidade
das formas de conhecimentos e de vida dos seres humanos e territórios que
são vitimas da Modernidade/Colonialidade.
A decolonização do desenvolvimentismo e da economia política da
modernidade implica no desprendimento da epistemologia política moderna
efetivada e articulada pelo pensamento político da direita, do centro e da
esquerda; processo que implica na abertura para outras formas de pensar o
fazer e o organizar da ação política e a da vida econômica, ou seja, um agir
decolonizante, para usar uma expressão de Zulma Palermo. A decolonialidade
do desenvolvimentismo e da política implica numa aposta ética pluriversal na
qual a diversidade epistêmica, política e econômica tenham lugar e rompam
com a visão universal e única de mundo.

A Decolonização das Escolas


O processo de decolonização das escolas ou giro decolonial educacional
passa pelo processo de desvendamento do eurocentrismo presente nas teorias
da educação e do ensino nas escolas, que reproduzem, mesmo quando
propõem a ser um saber crítico, a colonialidade do saber, do ser e do poder.
Portanto, nesse processo, é necessário decolonizar o sistema categorial ou
conceitual da pedagogia, do currículo e da didática proposta pelas teorias
filosóficas da modernidade.
Para o pensamento decolonial o eurocentrismo não é um conceito
geográfico, trata-se do poder que a Europa adquiriu com a colonização da
América em 1492, poder que lhe permitiu tornar os seus valores e os seus
instrumentos de produção e reprodução de conhecimento e subjetividade,
que são particulares e localizados, como sendo universais. Assim, o projeto
civilizador moderno foi sendo imposto como ponto de partida e de chagada
para todos os povos do planeta através de um movimento de inferiorização
e subalternização de todas as demais civilizações, que foram classificadas,
a partir do conceito de raça, como povos atrasados e sem história. Já uma

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 57


visão eurocentrada é uma posição reproduzida e adaptada, por meio de
intelectuais ou instituições não europeias, da colonialidade do poder, do
saber e do ser do dominante como se fosse os seus e modelos a ser seguidos
como forma de desenvolvimento e superação do atraso.
Uma pedagogia decolonial não é uma técnica para instruir ou orientar
a aprendizagem ou melhorar a forma de ensinar, mas é uma interpelação para
o desprendimento em relação aos valores, conteúdos e pedagogias fundadas
nos valores da civilização moderna. É uma interpelação a uma abertura para
os saberes outros que foram invisibilizados, subalternizados, inferiorizados
hierarquicamente em relação aos saberes científicos modernos. Trata-se de
uma abertura para desaprender/aprender/reaprender outros saberes que
coexistem à margem do saber sistêmico da modernidade colonial racista,
capitalista, machista, branca e cristã. Nesse sentido, nos alerta Paulo Freire:
A tomada de consciência não é ainda a conscientização,
porque esta consiste no desenvolvimento crítico da tomada
de consciência. A conscientização implica, pois, que
ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade,
para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá
como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica. [...] quanto mais conscientização,
mais se desvela a realidade (1980, p. 20).

O processo educativo e formativo moderno é doutrinante, por meio


dele fomos e somos constantemente eurocentralizados, ou seja, recebemos e
reproduzimos de forma consciente e inconsciente modelos de conhecimentos
e de subjetividades do modo de ser, do saber e do poder dominante. Por
meio de um processo doutrinante e da imposição de modelos educativos
apresentados como objetivos, de validade universal e científica, as escolas e
universidade se constituem como instituições executoras de teorias e modelos
de educação disciplinador e reprodutor das necessidades de mão de obra
para o mercado de trabalho do sistema capitalista.
A decolonialidade ou giro decolonial educacional é um processo de
desprendimento da modernidade e, ao mesmo tempo, de decolonização
mental. Trata-se de um desafio que não tem modelo, não tem receita, nem

58 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


um único caminho. É um desafio que se constitui como ato de resistência que
nos exige aprender a caminhar pelas bordas, pensando a partir das fronteiras22.
Um saber que configura múltiplos processos educativos, uma educação
outra que decolonize nossos corpos, nossas mentes, nossas consciências,
nosso pensar, nosso fazer, nosso sentir e nosso jeito de viver com os outros
e no mundo.
Colocar-se nas bordas produzindo um pensamento de fronteira e
uma didática outra começa pela descentralização das teorias eurocêntricas
e eurocentradas do saber, do ser e do poder, começa, ao mesmo tempo,
pela valorização de outros horizontes epistêmicos. Decolonizar os processos
educativos significa, entre outras coisas, outra-se epistemologicamente,
ou seja, se abrir para a presença do outro com suas formas de conhecer e
com suas diferenças. Como afirma Paulo Freire na sua obra a Pedagogia da
Autonomia (1996, p. 20) a “presença que, reconhecendo a outra presença
como um não-eu se reconheço como se reconhece como si própria”.
De outra forma, outrar-se é, como diz Paulo Freire (1996, p. 46), “a outredade
do não eu, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu”.
Promover o giro decolonial na educação e outrar-se não é um ato de
aceitação gratuita do outro e nem de renuncia aos conflitos, mas um ato
político e epistemológico de resistência ao neoliberalismo como forma de
ser do sistema mundo colonial moderno a partir da década de 1970, porque
como nos dizem Pierre Dardot e Cristian Laval:
O neoliberalismo não destrói apenas regras, instituições,
direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais,
certas maneiras de viver, certas subjetividades. Em outras
palavras, com o neoliberalismo, o que está em jogo é nada mais
nada menos que a forma de nossa existência, isto é, a forma
como somos levado a nos comportar, a nos relacionar com

22 Pensamento fronteiriço faz referência aos projetos que têm como ponto em comum uma perspectiva
crítica da modernidade. Materializa-se nas formas de construção de novas narrativas históricas que
fazem emergir os atores e os momentos históricos que têm sido invisibilizados e negados pelas
epistemologias hegemônicas. Pensar a partir das margens ou da fronteira significa pensar a partir da
dor e do lugar dos oprimidos e explorados, ou seja, pensar a partir da ferida colonial dos quem são
classificados e tratados como inferiores por quem se considera superior.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 59


os outros e com nós mesmos. O neoliberalismo define certa
norma da vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em
todas as sociedades que seguem no caminho da modernidade
(2016, p.16).

Descolonizar a educação significa também reconhecer e incentivar que


os camponeses, os quilombolas, os povos originários, os negros, as mulheres,
os não heteronormativos venham para escolas não penas para aprender,
mas, também, para ensinar sobre os seus modos de vida e de produção
de saber. Diante desse desafio, é incoerente e contraproducente, que um
professor ou professora faça um discurso fundamentado sobre inclusão e
democracia, mas desenvolva uma relação preconceituosa com seus alunos
por causa de sua etnia, condição econômica, orientação sexual, filiação
religiosa, nacionalidade ou ideologia partidária. Daí, porque decolonizar
os processos educativos signifique outrar-se.
A colonialidade do ser, do saber e do poder produzem um modelo
educativo que é incapaz de outrar-se, de ser pluriversal e pluricultural. A
proposta educativa inclusiva eurocêntrica é multiculturalista. Logo, sem o
reconhecimento do pluriculturalismo dos saberes e das formas de ser dos
diferentes não podemos falar de educação intercultural. Se um município,
Estado ou país, por meio de seus gestores e suas políticas educacionais,
impõem os conteúdos curriculares e metodologias de ensino sem permitir
que professores e alunos incorporem adaptações, conteúdos outros e
contextualizações da realidade local não poderemos falar de interculturalidade.
Por isso, a decolonialidade da educação se inicia quando os saberes outros,
os saberes não oficializados pela matriz de saber moderna, passam a ter
validade e reconhecimento.
No padrão mundial de poder moderno o multiculturalismo é a
coexistência de várias culturas num mesmo território (bairro, cidade, região,
país) como forma de resistência à homogeneidade cultural, mas articulada em
torno da hegemonia dos valores eurocêntricos ou modernos. Nos projetos
multiculturais as diferenças (raciais, sexuais, religiosas, econômicas, regionais,
nacionais) são reconhecidas apenas enquanto compatíveis com as noções
de soberania, de cidadania, de democracia, de direitos de propriedade da

60 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


colonialidade do poder, do saber e do ser. Com o multiculturalismo a
modernidade abandona a identidade eurocêntrica como demarcação do outro
e passa a defender a visibilidade e o reconhecimento, ou seja, a produção
das diferenças como a nova maneira de reprodução da colonialidade nas
relações locais e globais de poder.
No pensamento decolonial o pluriculturalismo ou interculturalismo se
refere à interação de pessoas, culturas e sistemas de valores diferentes de forma
horizontal e sinérgica sem a pretensão de que um padrão de valores se torne
hegemônico e colonize outros, o que permite a pluriversalidade e a coexistência
de vários mundos. Um exemplo de multiculturalismos é a inclusão23 de
negros e negras nas novelas ou como apresentadores e comentadores dos
noticiários da Rede Globo de televisão, são incluídos para reproduzirem
a visão eurocêntrica do mundo e os interesses da classe dominante. Nesse
aspecto, é bem revelador o bordão adotado pela Rede Globo, em relação ao
papel que cabe aos seus apresentadores e comentadores de noticiários brancos
e negros, que diz: “quando estamos juntos tudo se encaixa”. Outro botão,
também utilizado pela mesma empresa de comunicação, “globo e você tudo
a ver”, no qual os seus interesses particulares aparecem como sendo idênticos
aos dos seus telespectadores, também tem um apelo multiculturalista.

A Decolonialidade das Universidades


O sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel (2016, p. 25), ao
refletir sobre a estrutura epistêmica do mundo moderno, afirma que “[...] a
interiorização dos conhecimentos produzidos por homens e mulheres de todo
o planeta, incluindo as mulheres ocidentais, tem dotado os homens ocidentais
do privilégio epistêmico de definir o que é verdade, o que é a realidade e
o que é melhor para os demais”. Uma explicação para sua constatação é o
fato de as universidades ocidentalizadas terem suas estruturas epistêmicas

23 A inclusão multiculturalista combate o preconceito, todavia não o racismo, que é estrutural.


Como diz Maldonado Torres, seguindo as pegadas de Frantz Fanon, o racismo não é preconceito,
não é apenas uma questão pessoal de rejeição a diferença, mas é ontológico, ele traça uma linha do
humano sobre a qual se situa a zona do ser (superioridade branca, cristã e eurocêntrica) abaixo da
qual se encontra a zona do não ser (inferioridade dos não brancos, não europeus, os outros).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 61


fundamentadas na produção teórica de homens brancos de cinco países:
França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. São desses países de
onde sai a quase totalidade da produção teórica que compõe o conteúdo
das disciplinas e dos projetos pedagógicos dos cursos das universidades
eurocentradas.
No Brasil, por muito tempo, preparar-se para enfrentar uma seleção de
mestrado em sociologia ou ciências sociais significava estudar e ter domínio do
chamado “três porquinhos”: Marx, Weber e Durkheim. Para Grosfoguel (2021,
p. 25), “[...] esse monopólio do conhecimento dos homens ocidentais tem
gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/sexista epistêmico,
desqualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos
imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema mundo”. Portanto, quando
falamos que o racismo e o sexismo são estruturais significa que eles têm uma
base epistêmica e se reproduzem por meio das instituições, mas não somente
das instituições educacionais, e sim por meio, também, das instituições do
Estado e do mercado, para as quais o complexo educacional prepara seus
agentes operadores na sociedade moderna.
O privilégio epistêmico do conhecimento eurocêntrico nas
universidades eurocentradas sobre o saber promovido por outros corpos
políticos e geopolíticos do conhecimento ao longo do tempo sedimentou um
comportamento de injustiça cognitiva que se manifesta pela desvalorização,
invisibilização, inferiorização, hierarquização e subalternização das
epistemologias não eurocêntricas, o que contribui para projetos de
desenvolvimento e políticas imperiais, coloniais e patriarcais de reprodução
do capital em todo o planeta, como é o neoextrativismo na América Latina.
Segundo Ramón Grosfoguel (2016, p. 27), “[...] o privilégio epistêmico
e a inferioridade epistêmica são dois lados da mesma moeda. A moeda
é chamada racismo/sexismo epistêmico, na qual uma face se considera
superior e a outra inferior”.
Ao levantar o seguinte questionamento: quais os processos históricos
que produziram as estruturas do conhecimento fundadas no racismo/sexismo
epistêmico?, Grosfoguel conclui, a partir de seus estudos, que as estruturas
do conhecimento nas universidades ocidentalizadas foram estruturadas em

62 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


um processo de longa duração, iniciado ao longo do século XVI, as quais
produziram quatro genocídios/epistemicídios: i) contra muçulmanos e
judeus, na conquista de Al-Andalus; ii) contra os povos originários, durante a
conquista das Américas em 1492; iii) contra os povos africanos, na conquista
da África, e na escravidão dos mesmos, nas Américas; iv) contra as mulheres
europeias queimadas vivas, quando acusadas de bruxaria pela “Santa
Inquisição Católica”. Todavia, ele defende o projeto de transmodernidade
proposto por Enrique Dussel como uma opção para superação das estruturas
eurocêntricas de conhecimento. Cito-o:
A transmodernidade é o reconhecimento da diversidade
epistêmica sem o relativismo epistêmico. O chamado por uma
pluralidade epistêmica, como uma oposição ao universalismo
epistêmico, não é equivalente a uma posição relativista.
Ao contrário, transmodernidade reconhece a necessidade
de um projeto global compartilhado contra o capitalismo,
o patriarcado, o imperialismo e o colonialismo. Mas ele rejeita
a universalidade das soluções, onde um define pelos outros
qual é a “solução”. Universalidade, na modernidade europeia,
significa “um define pelos outros”. A transmodernidade clama
por uma pluralidade de soluções, onde muitos decidem por
muitos. A partir de diferentes tradições epistemológicas e
culturais surgiram também respostas diferentes para os mesmos
problemas. O horizonte transmoderno tem como objetivo a
produção de conceitos, significados e filosofias plurais, bem
como um mundo plural (2016, p. 45).

A construção teórica e política de um projeto transmoderno, do tipo


transdisciplinar, para decolonização do modelo de conhecimento sedimentado
nas universidades da América Latina e, em particular, do Brasil, implica a
coexistência, no mesmo processo de formação, entre distintos elementos
pedagógicos dos saberes (dos povos originários, dos povos negros, dos
camponeses, dos pescadores, dos povos das florestas, da economia doméstica,
da construção civil, da arte popular, da medicina popular, etc.) e os saberes
universitários vigentes. Implica a construção de centros educacionais de
produção, reprodução e ampliação de usos dos saberes não eurocêntricos.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 63


Implica, ainda, o reconhecimento da validade desses saberes e da garantia
para que eles possam ser transmitidos em igualdade de condições, embora não
sejam equivalentes e nem sempre possam ser ensinados de forma disciplinar.
Como alerta José Carvalho e Juliana Flórez:
[...] a atitude de abertura que busca o projeto reconhece que os
saberes, às vezes, são irredutíveis, isso significa que os saberes
afros, indígenas, populares e modernos nem sempre têm um
equivalente exato nas disciplinas, suas lógicas não podem se
traduzir linearmente às lógicas modernas eurocêntricas, nem
podem se reduzir a uma de suas disciplinas. Pode ser que alguns
aspectos dos sistemas tradicionais, às vezes, sejam redutíveis
a alguma teoria eurocêntrica, mas muitos outros não serão.
O importante é não tomar a priori a possibilidade de equivalência,
de paralelismo entre ambos os tipos de saberes; tampouco partir
da suposição inversa, de que não há possibilidade de diálogo
científico (2014, p. 142, tradução nossa).

Para que seja feita uma opção decolonial, a universidade necessita


passar por transformações antissistêmicas e pluriversais, e não pelas mudanças
apontadas por gestores neoliberais e destacadas pelas corporações que atuam
na disputa pelo monopólio dos mercados globais. A universidade pública
deve ajudar a sociedade civil a pôr em justa dimensão o lugar do Estado e
das corporações na sociedade presente e futura, já que suas ações incidem
nas condições de nossa existência e do planeta (Holanda, 2021). Portanto,
o papel primordial da universidade é ético, sem prejuízo para a produção
de ciência e de tecnologia.
Para que seja efetivada a opção decolonial, a transformação da
universidade precisa estar relacionada à pergunta acerca de quais são as
necessidades da maioria das pessoas do nosso planeta, o qual está sendo afetado
por uma crise estrutural do capitalismo e pela crise do padrão civilizatório
da modernidade. Embora seja verdade que o padrão civilizatório moderno,
com o seu conhecimento científico e tecnológico, tenha criado um mundo
fantástico de possibilidades e de muitas facilidades, o mesmo conhecimento
tem colocado em risco a existência de todas as formas de vida e do planeta.

64 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Desenvolvido como suporte para o funcionamento da lógica do
capitalismo, o padrão de conhecimento moderno gerou uma sociedade
desigual, que exclui de seus benefícios e possibilidades fantásticas a maioria
da população, gerou um planeta de miseráveis e de práticas genocidas e se
tornou uma ameaça para a existência do próprio planeta. Para fazer uma
pausa nessa reflexão, lembramos Aníbal Quijano, que afirma que a luta pela
liberdade ou pela emancipação é uma luta epistêmica. Na luta política pela
definição da universidade, é crucial a participação de todos os segmentos
da comunidade acadêmica e de parte da sociedade.

Ser Decolonial É Posicionar-se Contra a Corrente


Posicionar-se contra a corrente não é sair defendendo a luta armada
como forma de tomar o poder, nem se omitir frente à vida política como ela
é, mas contribuir para a construção de uma rede plural de resistência e formas
de luta contra o projeto de modernidade e seus sistemas econômicos, seus
modos de dominação e exploração; em outras palavras: contra a colonialidade
do poder, da saber e do ser.
Posicionar-se contra a corrente significa uma desobediência epistêmica
ao eurocentrismo e ao imperialismo; significa se colocar de forma imediata
contra as condições de precariedade impostas à maioria dos trabalhadores e
das trabalhadoras do campo e da cidade, das populações negras e indígenas;
significa se colocar contra as condições insuportáveis em que vivem os sem-
teto e as pessoas em situação de rua, a comunidade LGBTQIA+, bem como
opor-se ao racismo estrutural que opera para distinguir quem pode ser ou não
humano; significa se colocar em defesa da natureza e contra o consumismo
e o extrativismo; significa lutar contra a necropolítica e o necropoder que
produzem mundos de mortes; significa lutar contra a colonialidade. Tudo
isso como horizonte primeiro de ação e reflexão, não como horizonte futuro
a justificar uma adesão ao sistema em nome do realismo político ou da
política do possível.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 65


Referências
Carvalho, J. J., & Flórez, J. (2014). Encuentro de saberes: Proyecto para
decolonizar el conocimiento universitário eurocéntrico. Nómadas, 41, 131-147.
Chaves, P. J. S. (2021). Didática, decolonialidade e epistemologias do Sul: Uma
proposta insurgente contra a neoliberalização do ensino escolar e universitário. CRV.
Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a
sociedade neoliberal. Boitempo.
Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática
educativa. Editora Paz e Terra.
Freire, P. (1980). Conscientização: Teoria e prática da libertação. Editora
Moraes.
Grosfoguel, R. (2020, 20 abr.). Coronavírus e a nova era do capitalismo sob
o comando do império chinês: Entrevista concedida à Ângela Figueiredo
(UFRB). Revista Afirmativa. https://revistaafirmativa.com.br/entrevista
Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: Racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/
epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, 31(1),
jan./abr.25-49.
Holanda, F. U. X. (2021). Crise civilizacional e pensamento decolonial: Puxando
conversa em tempos de pandemia. Dialética Editora.
Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina. Em E. Lander (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e
ciências sociais, perspectiva latino-americana. CLACSO.
Quijano, A. (2014). Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Em Z.
Palermo & P. Quitero (Orgs.). Aníbal Quijano: Textos de fundación. Ediciones
del Signo.

66 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 3

Por uma Tentativa Corazonante de Decolonizar o


“Decolonial”: A Decolonização das Linguagens como
Lutas Anticoloniais
Henrique Rodrigues Leroy24
“Qualquer termo pode ser bom ou ruim. Qualquer termo vira
cliché também. Qualquer termo é esvaziado de seu sentido com
a banalização. Então, falar “indígena”, “povos originários”,
“extra-ocidental”, falar qualquer termo, no fundo, como diz
o Roland Barthes, obriga a nos dizer uma coisa que não tem
nome.” (Maria Inês de Almeida, 2020)25 26

24 Universidade Federal de Minas Gerais, henriqueleroy25@gmail.com


25 Professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Maria Inês de Almeida é uma das nossas maiores indigenistas no campo das Letras. Ela criou o Acervo
Indígena da UFMG e é responsável pela publicação e edição de 130 obras literárias de autoria indígena,
que foram distribuídas em diversas escolas e terras indígenas do Brasil. Atualmente, atua como professora
visitante sênior na Universidade Federal do Acre (UFAC). Tive o privilégio de, no início dos anos
2000, ser aluno de graduação da profa. Maria Inês na UFMG. Ela me apresentou uma das últimas
obras de João Guimarães Rosa, “Tutameia – Terceiras Estórias”, publicada em 1967, meses antes do
encantamento de Rosa, em uma disciplina maravilhosa ministrada por várias professoras intitulada
Narrativas Contemporâneas. Maria Inês de Almeida é mãe da antropóloga Beatriz de Almeida Matos,
professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Beatriz é esposa do indigenista Bruno da Cunha
de Araújo Pereira, grande defensor da Floresta Amazônica e dos seus povos originários e um dedicado
servidor público federal da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Bruno Pereira e o jornalista
britânico Dominic Mark Phillips, também um grande defensor dos povos originários da Amazônia e
colaborador do jornal britânico The Guardian, foram vistos pela última vez no Vale do Javari, região
que abriga a terra indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas, em 07 e junho de 2022. Após
dias de busca, descobriu-se que Bruno e Dom foram brutalmente assassinados por pescadores ilegais
da região. Este texto, portanto, é uma homenagem às memórias de Bruno Pereira e de Dom Phillips,
uma homenagem aos povos indígenas da Amazônia e também uma homenagem à querida professora
Maria Inês de Almeida, sogra de Bruno Pereira e mãe de Beatriz de Almeida. Minha sincera e profunda
solidariedade a essa querida e amada família de indigenistas cujo amor pela Floresta Amazônica e seus
povos originários ultrapassam qualquer fronteira. E aqui, ecoa a mesma pergunta que, desde 2018,
também nos acompanha para o caso Marielle Franco e Anderson Gomes: “Quem mandou matar?”;

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 67


No pandêmico e sombrio ano de 2020, estava apresentando um
26

trabalho em um evento remoto sobre o tema da decolonialidade quando


a querida amiga e colega, Dóris Matos, professora doutora de Língua
Espanhola da Universidade Federal de Sergipe (UFS), apresentou-me a
seguinte indagação proferida pela líder indígena aymara e ativista anticolonial
Silvia Rivera Cusicanqui27: “O decolonial é moda, o pós-colonial é desejo e o
anticolonial é luta”28. Após ouvir essa interessante provocação, não pude mais
parar de me questionar e de sempre problematizar os meus textos falados e
escritos quando discorro sobre o tema “decolonial”. E não foi diferente com
o evento intitulado “Decolonialidade e Educação: esperançar em tempos de
perplexidade”, um encontro entre professores, pesquisadores e estudantes
realizado remotamente e organizado pela Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP) neste ano de 202229. Penso que este excerto proferido por

“Quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes?”; “Quem mandou matar Bruno Pereira
e Dom Phillips?”. Bruno, presente! Dom, presente! Marielle, presente! Anderson, presente!
26 Esse excerto foi retirado de uma fala intitulada “Índios: cantores de leitura”, realizada remotamente
em 2020, pela professora Maria Inês de Almeida a convite da Academia Mineira de Letras (AML).
Essa instituição mineira acaba de eleger o líder indígena, escritor e intelectual Aílton Krenak para
ocupar a cadeira de número 24, pertencente ao jornalista e escritor Eduardo Almeida Reis. A palestra
da profa. Maria Inês de Almeida pode ser acessada por meio deste link https://www.youtube.com/
cantoresdeleitura
27 Socióloga e ativista de origem aymara, a boliviana Silvia Rivera Cusicanqui tem problematizado as
categorizações terminológicas e, sobretudo, as categorias epistemológicas decoloniais em seus textos
falados e escritos. A partir das cosmovivências aymara e quéchua e da utopia Ch’ ixi, Cusicanqui
reinterpreta o tecido social andino, as realidades e as conjunturas latino-americanas por meio da
decolonização da mestiçagem, isto é, da construção das nossas subjetividades contraditórias na
permanente luta entre indígenas, negros e europeus. Por meio de uma sociologia das imagens,
ela busca a construção contemporânea de temporalidades, ancestralidades e epistemes outras,
desnaturalizando o multiculturalismo despolitizado, essencialista, historicista e fragmentado que
teatraliza as identidades dos povos subalternos. Para ela, as lutas anticoloniais são as verdadeiras
responsáveis pelas desnaturalizações de todas as construções advindas dos movimentos pós-coloniais
e decoloniais. Movimentos que, para ela, ainda garantem a permanência dos privilégios das elites.
28 Para mais informações sobre as problematizações terminológicas elencadas por Cusicanqui, leia
esta entrevista que ela concedeu em 2019 para o blogue “Agência de Notícias Anarquistas” em https://
noticiasanarquistas.noblogs.org
29 Este ensaio é resultado de minha participação na mesa intitulada, “Da Abya Yala ao centro”,
compartilhada com a Profa. Dra. Altaci Kokama, da Universidade de Brasília (UnB) e mediada pela Profa.
Dra. Leila Passos Bezerra, da Universidade Estadual do Ceará (UECE) no encontro “Decolonialidade
e Educação: Esperançar em tempos de perplexidade” (DEED). Ocorrido nos dias 02 e 03 de fevereiro

68 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Cusicanqui pauta uma discussão muito pertinente e necessária, pois nos faz
voltar para as nossas ações, práticas, práxis e, sobretudo, para nossas posturas
e atitudes decolonizadoras (Cadilhe & Leroy, 2020; Maldonado-Torres,
2019) no dia a dia, estejamos nós em nossas salas de aula ou fora delas.
Essa verdadeira provocação faz-nos voltar para corpos e mentes precursoras
e precursores daquele movimento ontológico-epistêmico-metodológico-
praxiológico que viria a se chamar, a partir de 2005, de Giro Decolonial30
(Maldonado-Torres, 2005). Giro epistêmico que foi incitado pela reunião,
no fim da última década do século XX, de inúmeros pensadores e pensadoras,
em sua maioria, advindos da Abya Yala31, que se preocuparam em ampliar e
problematizar o pensamento crítico latino-americano: o famigerado Grupo
Modernidade-Colonialidade (Escobar, 2003)32. Esse retorno às precursoras

de 2022, este evento foi realizado e organizado pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde
(PPGES) da Escola de Filosofia, Ciências Humanas e Letras (EFLCH) da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP). O evento contou com professores pesquisadores da Educação, dos Estudos
Decoloniais e Pós-Coloniais. Organizado pelo Prof. Dr. Rubens Lacerda de Sá, do Instituto Federal
de São Paulo (IFSP) e da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), o evento contou com a
presença de grandes referências dos Estudos Decoloniais e Pós-Coloniais, como as professoras doutoras
Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar, Jorgelina Tallei, da Universidade Federal
da Integração Latino-Americana (UNILA), Ochy Curiel, da Universidade Nacional da Colômbia,
Zulma Palermo, da Universidade Nacional de Salta, Argentina, e com os professores doutores Glauco
Vaz Feijó, do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Paulo Henrique Martins, da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) e Uribam Xavier, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
30 Giro Decolonial é uma expressão cunhada por Maldonado-Torres no ano de 2005, em um
encontro denominado Mapping Decolonial Turn, na Universidade de Berkeley, Estados Unidos.
O Giro Decolonial é considerado um movimento político, epistemológico, teórico e prático de
resistência à lógica moderna/colonial (Ballestrin, 2013).
31 Abya Yala que significa “terra de sangue vital” ou “terra em plena maturidade” era como os
indígenas Kuna que habitavam o que, hoje, reconhecemos como territórios pertencentes à Colômbia
e ao Panamá, chamavam a América Latina antes da invasão ibérica de 1492 (LEROY, 2021c).
32 Vale ressaltar aqui que o significante “decolonial” é questionado e problematizado por autores
que debruçam sobre o conceito “decolonial”, como Grosfoguel (2016). Esses pensadores alegam
que, muito antes da criação do Grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD), já
havia pensadores que se debruçavam sobre o decolonial, mesmo que o significante “decolonial” não
estivesse explícito em seus trabalhos. Para eles, já havia atitudes e posturas decoloniais, sobretudo,
por parte das oralidades, memórias, pensamentos e lutas de comunidades indígenas andinas, afro-
colombianas, afro-equatorianas e caribenhas.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 69


e aos precursores que já lutavam e resistiam frente aos colonialismos33 antes
da formação do chamado Giro Decolonial ou dos significantes “decolonial”
e/ou “decolonialidade” existirem, faz-nos lembrar, bem como sempre diz o
nosso txai34 Aílton Krenak, de que o futuro é ancestral35. Por essa razão, eu
gostaria de propor, de uma maneira amorosa, humanizadora e corazonante/
corazonada36, uma tentativa de problematizar o adjetivo “decolonial” que tem
chamado tanta atenção e que penso que, tal qual o conteúdo da nota sobre
esvaziamento de sentidos dos termos da professora Maria Inês de Almeida
que abre este texto, esse epíteto “decolonial” realmente está na moda, o que
me preocupa um pouco por estar sendo esvaziado do sentido que lhe conferiu
o Grupo MD no final do anos 1990: o “decolonial” deve estar atrelado às
desnaturalizações das práticas racistas, eurocentradas e mercadológicas, como
por exemplo, em nossas salas de aula ou nas infindáveis relações sociais do
nosso dia a dia e não deveria estar alijado das suas principais categorizações,

33 Entendo o colonialismo como um construto histórico que é caracterizado pelo domínio


administrativo-político-institucional das metrópoles sobre suas colônias. Por exemplo, Portugal
e suas colônias; Espanha e suas colônias. O colonialismo constitui a empresa colonial e, após os
processos de descolonização ou de independência político-institucional, o colonialismo se foi, mas
deixou inúmeras heranças às quais chamamos de colonialidades.
34 Segundo Neto (2020), txai significa, na língua dos Kashinawá, “mais que amigo, mais que irmão;
a metade de mim que existe em você e a metade de você que habita em mim”. Segundo ele, a palavra
txai também é uma maneira carinhosa de chamar a todos que aqueles que são aliados e amigos dos
povos da floresta. Txai também é o nome do vigésimo quinto álbum da carreira do cantor, compositor,
multiartista e “orixá” Milton Nascimento que em, 1990, fez uma expedição à Floresta Amazônica,
contando com participações especialíssimas em seu disco como a de Davi Kopenawa Yanomami,
um dos nossos personagens deste texto-ensaio. Esse disco também traz a faixa “A Terceira Margem
do Rio”, música de Milton Nascimento e letra de Caetano Veloso inspirada no conto homônimo
do nosso ilustre escritor cordisburguense João Guimarães Rosa. “A Terceira Margem do Rio” está
presente no livro “Primeiras Estórias”, lançado em 1962, e completa 60 anos neste ano de 2022 de
acordo com https://medium.com/txai
35 Para mais discussões sobre a importância de se citar ontologias e epistemologias corporificadas
que, há muito tempo, já experienciavam ativamente as lutas anticoloniais, confira Leroy (2021a, b, c).
36 O antropólogo e educador equatoriano Edgar Patricio Guerrero Arias (2010) cunhou este termo
translíngue “corazonar”, hibridizando o vocábulo “corazón” com o verbo “razonar”, “raciocinar”
em espanhol. “Corazonar” em português resultaria em algo como “coraçãozar” para propor uma
antropologia comprometida com a vida e com a decolonização do poder, do ser e do saber, visando
a uma outra perspectiva antropológica a partir da Abya Yala (Leroy, 2021c). Para mais discussões
sobre o corazonar, confira Guerrero Arias (2010) e Leroy (2022a).

70 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


sobretudo, dos construtos da colonialidade do poder (Quijano, 2005) e de
suas infindáveis dimensões37.
Quando trago as discussões decoloniais para as minhas aulas de
formação de professores de língua portuguesa adicional ou de língua
portuguesa materna no curso de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), tenho muita cautela ao me expressar, pois ainda vivemos
em um mundo colonial, colonizado ou colonializado38 (Veronelli, 2016).
Trazendo, uma vez mais o nosso txai Krenak para a conversa, o Brasil ainda
é um projeto colonial. Essa afirmação pode nos fazer pensar na segunda frase
expressa por Cusicanqui, a de que “o pós-colonial é desejo”, pois ainda não
atingimos o “-pós”39 por estarmos imersos na matriz colonial de poder com
todas as suas inúmeras dimensões até os dias de hoje.

37 A colonialidade do poder é a matriz colonial, moderna, capitalista e eurocêntrica que, estruturada


pela ideia socialmente construída de raça, naturalizou o poder, a violência e, sobretudo, o racismo
do colonizador nas diversas esferas e aspectos de nossas vidas. Essa colonialidade do poder está
constituída por diversas dimensões. À sua dimensão ontológica, damos o nome de colonialidade
do ser (Maldonado-Torres, 2007), a dimensão epistemológica é a colonialidade do saber (Lander,
2005; Cástro-Gomez, 2007), a dimensão linguajeira é a colonialidade das linguagens (Veronelli,
2016; Baptista, 2022), a dimensão dos gêneros é a colonialidade dos gêneros (Segato, 2012; Lugones,
2014; Mazzaro, 2022), a dimensão das sexualidades é a colonialidade das sexualidades (Pereira, 2015)
dentre diversas outras dimensões (Leroy, 2021c, p. 160).
38 Veronelli (2016) propõe as categorias de “colonializado” e “colonializador” no sentido de que,
apesar de os colonialismos terem se encerrado com as independências político-administrativas das
antigas colônias, as suas heranças advindas das colonialidades ainda persistem sob vários aspectos
das nossas vidas. Por isso, ao invés de falarmos “colonizado”, podemos falar “colonializado”, sendo
o radical “-colonia” uma referência direta às diversas dimensões das colonialidades que nos afligem
todos os dias.
39 O prefixo “-pós” do “pós-colonial” pode diferir do prefixo “-de” do “decolonial” em alguns
aspectos, como por exemplo, no que se refere aos marcos fundadores da Modernidade, aos lócus
de enunciação e às perspectivas de emancipação. Os estudos pós-coloniais apresentam como marco
fundador da Modernidade o século XVIII a partir de grandes eventos históricos como a Revolução
Industrial, o Iluminismo e a Revolução Francesa, enquanto que, para o movimento decolonial,
o marco fundador da modernidade é o ano de 1492, a partir das grandes navegações ibéricas, no
século XV. Com relação ao lócus de enunciação dos seus autores, eles partem de países colonizados
por ingleses e por franceses, o que corresponde às duas primeiras fases do pós-colonialismo (Ballestrin,
2017 apud Chaves, 2021). Referente às perspectivas de emancipação, os discursos pós-coloniais
ainda partem de dentro da Modernidade, no sentido de se basearem em epistemologias produzidas
a partir de dentro do Ocidente, tanto geográfico como ontológico-epistemológico e não a partir

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 71


Por isso, pensando na frase “o anticolonial é luta” da Cusicanqui,
trago para meus educandes40 algumas precursoras e precursores que eu
entendo serem pertencentes a uma luta anticolonial, sobretudo no plano das
linguagens, e que, de alguma maneira, estimularam e inspiraram o que hoje
chamamos de “decolonial”. Meu lócus de enunciação é de um professor de
língua portuguesa e formador de professores de línguas que é branco41, gay42,
mineiro43 e brasileiro e que está falando a partir do seu contexto de ensino-
aprendizagem em uma universidade pública brasileira. Essa é a razão destes
escritos serem “uma tentativa”44 de decolonizar a moda do “decolonial”45
por vias anticoloniais que problematizaram as desnaturalizações racistas,
eurocentradas e mercadológicas das linguagens antes da palavra “decolonial”

de epistemologias/sabedorias produzidas pelos povos subalternizados como os povos indígenas ou


originários ou os povos diversos das diásporas africanas.
40 Penso que a linguagem inclusiva deve ser utilizada para ampliarmos o contato com as diversidades
em um mundo que sempre foi diverso e heterogêneo. A questão aqui não é e nunca foi a de imposição
de uma linguagem específica. Por isso, defendo também a aprendizagem e o uso de uma linguagem
inclusiva e que nunca foi neutra ideologicamente e que essa modalidade de língua possa conviver
com outras variedades de linguagens, inclusive, com aquelas que são legitimadas pelo Estado e pelo
status quo.
41 No contexto brasileiro, sou, sempre fui e sempre serei lido como branco. Daí a importância de,
a partir do meu lugar de privilégio, responsabilizar-me eticamente como um ser humano, humanizado
e humanizador, professor, gay e branco no sentido de desnaturalizar práticas racistas, lgbtqia+fóbicas,
sexistas, xenófobas e contra qualquer natureza preconceituosa e discriminatória aonde quer que eu
vá ou esteja, seja em sala de aula ou em qualquer outro local.
42 Mesmo me reconhecendo como gay e, apesar de já ter sofrido e de ainda sofrer preconceitos sexuais
diversos advindos das colonialidades das sexualidades, tenho plena consciência dos meus privilégios
interseccionalizados como um homem gay cis e branco e de classe média no Brasil e, por isso, é meu
dever ético somar-me, alinhar-me e, sobretudo, aliar-me às diversas outras interseccionalidades de
raça, classe, gênero e de sexualidades contempladas na sigla LGBTQIA+.
43 O gentílico “mineiro” bem como os “300 anos de Minas Gerais” foram problematizados
decolonialmente em texto recente de Leroy (2021c).
44 Tomando como base a “opção decolonial” proposta por Palermo, Dulci, Leroy, Name (2019),
considero estes escritos como uma alternativa, dentre várias outras, de decolonizarmos a moda
“decolonial”. Se eu parto de uma opção ou de uma alternativa, eu não universalizo e, não universalizando,
eu não absolutizo essa alternativa como única opção, correndo o risco de ser lida como uma opção
impositiva e, por isso, colonizadora. Daí o cuidado que temos que tomar por estarmos imersos em
um mundo colonizado ou colonializado (Veronelli, 2016) nos afastando do risco de sermos taxados e
rotulados de coloniais mesmo estando envolvidos em práxis e estudos que se pretendem decoloniais.
45 Confira Grosfoguel (2016).

72 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


existir. Esta é uma tentativa de provincializar e de desuniversalizar as linguagens
colonizadoras. Esse raciocínio da desuniversalização ou provincialização das
colonialidades das linguagens tem origem na desuniversalização da invenção
falaciosa do romantismo alemão do século XVIII quando nos contaram e
ainda nos contam a respeito de uma diacronia unilinear Grécia-Roma-Europa,
como se a cultura grega fosse exclusivamente “europeia”, “ocidental” e o
centro da história mundial (Dussel, 2005). A construção da Europa Moderna
que conhecemos hoje ainda não existia antes de 1492 e estava longe de ser
o centro do mundo. Para isso, trago para esta corazonante problematização
Davi Kopenawa Yanomami, Frantz Fanon, Lélia Gonzalez, Gloria Anzaldúa,
bell hooks, Julie Dorrico e João Guimarães Rosa.46
Volto à frase do nosso txai Krenak e tento colocar em prática a sua
assertiva, a de que “o futuro é ancestral”47. E se o futuro é ancestral, a discussão
sobre linguagens também o é. Destacarei, a seguir, algumas contribuições
cujo foco principal é um outro olhar, um olhar ancestral e anticolonial sobre
o que entendemos por linguagens e possíveis maneiras de problematizá-las
e desnaturalizá-las por meio de lutas anticoloniais.
Assim, começo esta tentativa de decolonizar o significante “decolonial”,
sobretudo no que diz respeito ao que posteriormente foi denominado de
colonialidade das linguagens (Veronelli, 2016), chamando para esta “pele
de imagem”48 um habitante da fronteira entre Roraima (Brasil) e Venezuela,
na territorialidade (Hasbeart, 2003) dos Yanomami: o xamã, líder político
Yanomami, fundador e presidente da Associação Hutukara, entidade que

46 Duas mulheres negras (Lélia Gonzalez e bell hooks); duas mulheres indígenas (Gloria Anzaldúa e
Julie Dorrico); um homem indígena (Davi Kopenawa Yanomami); um homem negro (Frantz Fanon)
e um homem branco (João Guimarães Rosa).
47 Esta frase de Aílton Krenak “o futuro é ancestral” nos remete à palavra de tradição africana “Sankofa”,
que nos ideogramas adinkra é representada por um pássaro que voa para frente com a cabeça voltada
para trás, simbolizando que para caminharmos rumo ao futuro precisamos valorizar e sempre trazer
conosco nossas ancestralidades. Os autores que pensam as colonialidades das linguagens como,
Veronelli (2016) e Mignolo (2013) também se basearam em alguns autores indígenas e afro-latinos
para a construção de seus pensamentos. Exemplos concretos dessa afirmação são as fundamentações
de Mignolo em Gloria Anzaldúa (1987) para discorrer sobre o “pensamento fronteiriço o liminar”.
48 Para os Yanomami, a escrita é um “desenho de palavras”. Portanto, as páginas de um livro ou os
documentos escritos são, para eles, “peles de imagens” (Kopenawa & Albert, 2015).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 73


representa a maioria dos Yanomami do Brasil, o escritor e intelectual Davi
Kopenawa Yanomami. No primeiro capítulo do seu livro “A Queda do
céu: palavras de um xamã yanomami” (2010), escrito em parceria com o
antropólogo franco-marroquino Bruce Albert, capítulo denominado “Palavras
Dadas”, Kopenawa (2010) desconstrói a hierarquização das linguagens, nos
dizendo que as suas palavras pertencem à ancestralidade, ou seja, as palavras
que saem de sua boca não são suas, mas foram dadas pelos xapiri (espíritos)
ou pelos xamãs (líderes espirituais) ou por Omama (divindade Yanomami
que criou o mundo)49. Essa postura anticolonial não hierarquizadora das
linguagens oralizadas desnaturaliza o que o antropólogo colombiano Santiago
Castro-Gómez nos diz sobre a hybris do ponto zero. A hybris, na mitologia
grega, representa a arrogância e isso quer dizer que a racionalidade europeia
moderna, em toda a sua arrogância, considerou que todo o conhecimento
válido e legítimo advém de si própria ou de um “ponto zero” original e
universal. Nenhum conhecimento poderia vir de outro lugar que não
fosse da própria racionalidade eurocentrada. Assim, considerar as “palavras
dadas” de Omama e dos xapiri como discursos é desafiar um grafocentrismo
universal e eurocentrado por meio das oralizações ancestrais. Oralizações
que decolonizam as colonialidades das linguagens. No primeiro capítulo da
seção “Devir Outro”, intitulado “Desenhos de escrita”, Kopenawa (2015)
nos dá uma verdadeira aula sobre nomeações. Desconstruindo a linguística
colonial ou colonizadora eurocentrada e cartesiana que tudo nomeia, rotula
e classifica, as nomeações para os Yanomami não são impostas por uma
força hierarquizadora. As nomeações são ganhadas a partir de sonhos e de
diálogos espirituais e espiritualizados. Isso quer dizer que os nomes escolhem
os seres e não o contrário50. Kopenawa nos conta que seu nome chegou até
ele após a puberdade, quando ele já era um homem feito, e que após beber
o pó da árvore yãkoana hi, os espíritos vespas kopena que beberam o sangue
do corajoso guerreiro Arowe, trouxeram para Davi o nome Kopenawa, que

49 Para uma ilustração do mito da criação segundo os Yanomami, assistam ao documentário


“A Última Floresta” (2021), dirigido por Luiz Bolognesi, com participação de Davi Kopenawa
Yanomami.
50 Para uma interessante discussão sobre as perspectivas das linguagens para os Yanomami a partir
da obra “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”, confira Nascimento (2017).
significa força, coragem e bravura. Então, na cosmovivência yanomami, são
os nomes que nos escolhem e não o contrário. Nós não teríamos o poder
de nos nomearmos. Em um certo momento Kopenawa (2015) nos diz:
São palavras que os espíritos me deram em sonho e também
palavras que vieram a mim escutando as maledicências dos
brancos a nosso respeito. Estão enraizadas com firmeza no
fundo do meu peito. São essas as palavras que eu gostaria de
fazer ouvir, agora, com a ajuda de um branco que pode fazer
com que sejam escutadas por aqueles que não conhecem nossa
língua (Kopenawa & Albert, 2015, p. 74).

Vejam que interessante. A oralização dada a Kopenawa pelos seus


ancestrais ensinam a nós, brancos, toda uma cosmovivência outra que não
cabe dentro de uma racionalidade eurocentrada, racista e mercadológica. Esse
aprendizado decolonial advirá dessa oralização Yanomami, que é transformada
em desenhos de escrita por um antropólogo branco e franco-marroquino,
Bruce Albert, que vão compor centenas de peles de imagens. Originalmente,
esses desenhos de escrita foram grafados na “língua de fantasma”51 francesa
em 2010, e somente em 2015, por meio da tradutora brasileira Beatriz
Perrone-Moisés, esses ensinamentos ancestrais e oralizados nos alcançaram,
pois foram grafados em peles de imagens da “língua de fantasma” portuguesa.
Kopenawa nos ensina que os Yanomami não precisam de peles de imagens
para guardarem as suas palavras. Mais uma vez, o grafocentrismo colonizador
ou a colonialidade da linguagem são desconstruídos pelas oralizações
xamânicas Yanomami. As palavras ficam guardadas dentro deles mesmos,
o que caracteriza uma memória longa e forte. Em contrapartida, Kopenawa
(2015, p. 76) afirma que os brancos “só contemplam sem descanso as peles
de papel em que desenharam suas próprias palavras.” Por isso, segundo ele,
os brancos se encheriam de esquecimentos. Mais adiante, Kopenawa nos diz
que o sonho é a verdadeira escola para os Yanomami, onde eles aprendem
de verdade, onde eles aprendem a contemplar os cantos e as danças dos
espíritos xapiri; aqueles que lhes dão as palavras. Palavras que ficam gravadas

51 Segundo Kopenawa (2015), para os Yanomami, “língua de fantasma” é toda língua que não é
yanomami.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 75


e fixadas dentro deles mesmos e não em peles de imagens. Essa descrição
da instituição sonho como escola desconstrói e decoloniza a dimensão
epistemológica da matriz colonial de poder, que é a colonialidade do saber.
Saindo da fronteira entre Brasil e Venezuela, na territorialidade
Yanomami, e subindo um pouco mais no mapa, chegamos à ilha caribenha da
Martinica, ainda considerada um território ultramarino francês. Martinica é
terra do psiquiatra e filósofo Frantz Fanon, autor da obra “Pele negra, máscaras
brancas” (2020), originalmente publicada em 1952, cujo primeiro capítulo,
intitula-se, “O negro e a linguagem”. Neste capítulo, Fanon observa por
meio de suas análises que, quanto mais o cidadão martinicano incorporar52
a língua francesa da metrópole ou da cidade, mais branco ele será. Essa reflexão
e confronto com a linguagem, segundo Fanon (2020), é extensiva a todos
os colonizados. Essa lógica de dominação caracteriza uma colonialidade das
linguagens que também atravessa o martinicano do interior que não domina
as variedades linguístico-culturais da capital, mas quer, a qualquer custo,
aprender a pronunciá-las para serem aceitos ou para “serem mais” (Freire,
2013). Fanon nos diz que o negro que volta da metrópole cheio de si também
se transforma radicalmente. A língua crioula, que é veementemente proibida
pelas elites antilhanas, não tem status de língua legítima ou legitimada como
a língua do colonizador, isto é, a língua francesa. Como se fossem casos
clínicos psiquiátricos, Fanon (2020) se vale de vários exemplos de vivências
negras na França para “ajudar o negro a se libertar do arsenal complexo
que brotou do seio da situação colonial” (Fanon, 2020, p. 45). Fanon nos
conta que, certa vez, um professor negro de Lyon, chamado Louis-Thomas
Achille, se juntou a uma peregrinação de estudantes católicos brancos e
foi interpelado pelo padre que começou a falar com ele em petit-nègre,
uma língua intermediária entre o francês e as línguas étnicas africanas.
O conteúdo do diálogo era justamente um questionamento sobre a presença
do professor na peregrinação. O professor respondeu ao padre com muita
polidez na língua do colonizador, na língua francesa, e quem se constrangeu
com a situação desnecessária, racista e xenófoba foi o padre opressor e não o

52 Trago aqui o foco no corpo por meio do verbo incorporar no sentido de não separarmos corpo
e mente (bell hooks, 1994). Aprender a língua francesa também com o corpo e se gesticular e se
expressar com o corpo.

76 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


professor. Esse comportamento do padre, que reflete não somente a violência
da hierarquização linguística da colonialidade das linguagens, mas também
um agressivo ataque racista da colonialidade do ser, pois o professor Louis-
Thomas foi diminuído como ser humano em razão da infantilização jocosa
da linguagem, foi observado por Fanon em centenas de interações sociais,
envolvendo médicos e pacientes ou agentes de polícia e construtores em
canteiros de obras. E assim vai funcionando a psicologia do colonialismo.
Para Fanon (2020), quando na metrópole um branco fala em petit-nègre
com um negro, ele marca lugares de poder e de subalternização. Quando
um branco fala em petit-nègre com um negro, ele o desumaniza e apaga
toda uma biografia histórico-linguístico-cultural. A partir dessas violentas
manifestações das colonialidades do ser e das linguagens, Fanon (2020)
tenta, por meio de suas análises reflexivas, irônicas e problematizadoras,
provar ao mundo branco a existência de ricas e complexas humanizações
negras. Esse recorrente comportamento colonializador é resultado de uma
estrutura econômico-psicológica que Fanon (2020) desconstruirá mais à
frente em seu livro por meio da pedagogia da sociogenia, quando devemos
considerar também o contexto econômico-social de dependência no qual as
subjetividades colonizadas estão inseridas. A luta anticolonial de Fanon neste
capítulo é pela desalienação do negro nessa relação sociogênica-ontogênica-
psicológica entre o colonizado e o colonizador, sobretudo, no que se refere
às desnaturalizações de decolonização das colonialidades das linguagens.
Trago, agora, para estes escritos uma admiradora inconteste do filósofo
e psiquiatra martinicano-argelino Frantz Fanon: a nossa grande intérprete
da cultura brasileira – Lélia de Almeida Gonzalez! Em seu texto “Racismo
e sexismo na cultura brasileira” (1981), ela nos chama atenção para uma
interpretação das linguagens pelas lentes da psicanálise. Vale destacar que
essa face lacaniana de Lélia Gonzalez ainda é pouco abordada e explorada nos
estudos amplos e críticos das linguagens, sobretudo, quando a trazemos para
o campo ampliado e crítico da formação de professores de línguas estrangeiras
ou maternas. Neste texto, Gonzalez (1981) nos traz a seguinte passagem
do psicanalista Jacques-Alain Miller (1976a) sobre a teoria da alíngua. Isso
mesmo! Alíngua! Se jogarmos esse significante no Google, já desafiamos os

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 77


algoritmos colonializados de busca que já vão nos alertar: “você quis dizer
a língua”. Entretanto, a busca é pela “alíngua” mesmo. Segue a passagem:
O que começou com a descoberta de Freud foi uma outra
abordagem da linguagem, uma outra abordagem da língua,
cujo sentido só veio à luz com sua retomada por Lacan. Dizer
mais do que sabe, não se saber o que diz, dizer outra coisa que
não o que se diz, falar para não dizer nada, não são mais, no
campo freudiano, os defeitos da língua que justificam a criação
das línguas formais. Estas são propriedades inelimináveis e
positivas do ato de falar. Psicanálise lógica, uma se funda sobre
o que a outra elimina. A análise encontra seus bens nas latas de
lixo da lógica. Ou ainda: a análise desencadeia o que a lógica
domestica (Miller, 1976a, p. 17).

A ideia de Gonzalez (1981) dialoga intimamente com o argumento


apresentado por Fanon (2020) já exposto nestes escritos: a de que os negros
são infantilizados na linguagem porque são sempre falados ao invés de eles
próprios falarem. E é essa fala, ou alíngua, que sempre foi considerada
“lixo” pela lógica cartesiana da colonialidade do poder, do saber, do ser e
das linguagens que vai ser assumida neste importante e necessário texto de
Gonzalez (1981). Nas potentes palavras da própria Lélia Gonzalez, “... o lixo
vai falar, e numa boa” (Gonzalez, 1981, p. 78). E essa alíngua tem nome: ela
sem chama Pretuguês53! O Pretuguês que é (a)língua materna da mãe preta,
uma língua infantilizada e subalternizada da cultura brasileira e que vai nos
inserir no mundo do simbólico, dos significantes e dos significados. E é essa
língua materna e africanizada que vai “nomear o pai”. E quem seria o pai
dessa neurótica e infantilizada cultura brasileira? O europeu das “Oropa”;
o Makunaimã, divindade dos povos Macuxi que habitam a Tríplice Fronteira
entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa; ou o Macunaíma negro, indígena e
anti-herói de Mário de Andrade? Ou seriam todos eles pais desta nossa cultura?
Quais são as línguas representantes dessas culturas brasileiras? A língua

53 O Pretuguês (Gonzalez, 1981) são os falares cotidianos e africanizados das nossas línguas brasileiras
e que também é influenciado por falares indígenas. Leroy (2021c) aproxima o Pretuguês da variedade
mineira do português, o famigerado “mineirês”, em seu texto “Decolonialidade, pós-memória e Pretuguês
nos ‘300 anos de Minas Gerais’: pela visibilização e pelo respeito às histórias e paradigmas outros”.

78 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


portuguesa europeia ou as línguas pretuguesas africanizadas e jenipapizadas/
indigenizadas? A cultura ou as culturas brasileiras tem suas alínguas próprias.
Falemos um pouco sobre esse interessante termo psicanalítico lacaniano que
amalgama, de uma maneira subversiva, artigo e substantivo, formando um
decolonizante, decolonizador e, sobretudo, um anticolonial inédito viável54
(Freire, 2013) chamado alíngua. Em sua Tese de Doutorado, intitulada,
“(A)língua segundo o ponto de vista da psicanálise lacaniana”, Santos (2015)
nos diz que alíngua constrói e constitui a própria linguagem, sendo anterior
à linguagem e constituindo o que vem antes do enunciado ou materialização
da linguagem, ou seja, alíngua representa todo o potencial linguajeiro que
constitui o nosso inconsciente, mesmo que esse potencial não seja passível
de ser pronunciado, indo além de tudo aquilo que possa ser enunciado.
É essa alíngua pretuguesa que a mãe preta nos ensinou e nos ensina até os
dias de hoje que desafia as colonialidades das linguagens, do ser e do saber
e que transgride o status quo grafocêntrico, eurocentrado, homogeneizante
e hierarquizador. A alíngua é o próprio desvio vivo e orgânico55 do que
entendemos por gramática, o próprio termo “alíngua” que une artigo e
substantivo nos mostra que as classes gramaticais podem ser incompreensíveis
também. Alíngua nos possibilita a cometer erros e equívocos, pois ela está
viva e habita um mundo ainda muito colonializado.
Agora, chamo para ocupar o branco e vazio espaço destas “peles de
imagens” bell hooks56 (1994), Gloria Anzaldúa (1987, 2009) e Julie Dorrico
(2019). A luta anticolonial proposta por bell hooks por meio do construto
da “contralíngua” ou da língua contra-hegemônica e de Gloria Anzaldúa
(1987; 2009) por meio do “habitar, viver e amar entre línguas” ou por
intermédio do indígena e espiritualizado termo “falar em línguas” é muito

54 Leroy (2021a) aproxima os construtos freireanos e decoloniais. As situações-limites seriam as


colonialidades, o percebido-destacado seria a conscientização e a sensibilização para letramentos
decoloniais outros e o inédito viável seria as tentativas de decolonização.
55
56 O nome “bell hooks” em letras minúsculas é, segundo a própria escritora ativista, propositalmente
utilizado para que foquemos mais no conteúdo de sua obra e menos na sua figura como autora.
Nascida Gloria Jean Watkins, a alcunha “bell hooks” é uma homenagem à sua bisavó materna que
se chamava Bell Blair Hooks.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 79


necessária para pensarmos em estratégias de resistências anticoloniais frente
às inúmeras colonialidades nas quais estamos todos imersos. Quando bell
hooks (1994) nos diz que, “esta é a língua do opressor, mas preciso dela para
falar com você”, uma frase que a impactou muito e que ela leu no poema
“Queimar papel em vez de crianças” da poeta estadunidense Adrienne Rich,
hooks (1994) está nos convocando amorosamente para a luta anticolonial.
Ela sabe muito bem que não é a língua inglesa que a machuca, coloniza,
humilha e envergonha, mas o que os colonizadores e opressores fazem e já
fizeram com essa língua. Em uma certa passagem em seu capítulo “A língua:
ensinando novos mundos, novas palavras” ela cita Anzaldúa (1987) dizendo
que “se você realmente quiser me machucar, fale mal da minha língua”
(hooks, 1994, p.224). Essas feridas e esses machucados começarão a ser
tratados a partir da resistência que acontecerá dentro da própria língua do
colonizador e essa resistência tem um nome, que para bell hooks (1994) é a
“contralíngua”. A “contralíngua” é o espaço, a territorialidade da reinvenção
e da resistência. Uma criativa resistência que nos é contada por ela é aquela
provocada propositalmente pela rebelião sintática da língua inglesa que
era promovida nos cantos espiritualizados (spirituals) enquanto os negros
escravizados trabalhavam nas lavouras de algodão do sul estadunidense.
A “contralíngua” não separa mente e corpo. Ela, justamente, tenta curar as
feridas provocadas por essa separação moderna, racional, homogeneizadora,
hierarquizadora e cartesiana. Para hooks (1994), os povos subalternizados
serão resgatados através das experiências vividas na própria língua. Outra
resistência criativa da “contralíngua” está nas oralizações, falas e expressões
artísticas das comunidades negras estadunidenses que enxergavam e ainda
veem o uso “incorreto” das palavras como um “espírito de rebelião que
tomava posse da língua como local de resistência” (hooks, 1994, p. 227).
Esse espírito de rebelião e rebeldia sempre esteve ao lado da nossa
maravilhosa chicana, ativista indígena, lésbica e queer, feminista, escritora,
professora e teórica literária Gloria Evangelina Anzaldúa. A ideia espiritual
e espiritualizada de “falar em línguas” sempre foi lida por Anzaldúa como
uma maneira de (re)existência. Habitar, amar, lutar, viver” entre línguas
sempre foi o motor vivo que impulsionou toda a sua obra. Por meio da
visibilização do uso das diversas línguas e variedades faladas na notória e

80 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


estigmatizada fronteira entre México e Estados Unidos, Anzaldúa constrói
narrativas que conectam vivências pessoais, produção literária e teoria. Essas
narrativas podem ser encontradas em seu livro “Borderlands la frontera: the
new mestiza” publicado originalmente em 1987 e que traz um capítulo
muito caro para todos nós que estudamos as alínguas, as linguagens e as
línguas, denominado “Como domar uma língua selvagem”. Em uma seção
desse capítulo denominada “Terrorismo linguístico”, Anzaldúa (2009)
afirma veementemente e ironicamente que ela e as comunidades chicanas
fronteiriças falam “línguas órfãs”, sendo por isso, falantes deslenguadas e que
falam um espanhol “deficiente” e que advém de uma “aberração” mestiza
linguística. Segundo Anzaldúa (2009), ela e a comunidade são crucificadas
porque falam em línguas de fogo. E por que a luta de Gloria Anzaldúa é
anticolonial? Por que antes de se enxergar e de definir com um gentílico
nacionalista, como por exemplo, os mexicanos, os estadunidenses ou os
canadenses, ela se define como “raça”.
Nosotros los chicanos temos um pé em cada lado das fronteiras.
De um lado, somos constantemente expostos ao espanhol dos
mexicanos; do outro lado, escutamos a reclamação incessante
dos anglos para que esqueçamos nossa língua. Entre nós, não
dizemos nosotros los americanos, ou nosotros los españoles, ou
nosotros los hispânicos. Dizemos nosotros los mexicanos (por
mexicanos não queremos dizer “cidadãos do México”; não
estamos falando de uma identidade nacional, mas sim racial).
Nós distinguimos entre mexicanos del otro lado e mexicanos de
este lado. No fundo dos nossos corações, a gente acredita que
ser mexicano não tem nada a ver com o país em que a gente
vive. Ser mexicano é um estado da alma – não da mente,
nem da cidadania. Nem águia nem serpente, mas as duas.
E como o oceano, nenhum animal respeita fronteiras (Anzaldúa,
2009, p. 315).

Anzaldúa (2009) diz que ela não pode ter vergonha de existir e, por
isso, ela é a sua língua! Para ela, identidades étnica e linguística não se separam
assim como a indissociabilidade entre corpo e mente para bell hooks (1994)
e para o nosso corazonar (Guerrero Arias, 2010; Leroy, 2022) e sentipensar

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 81


(Fals Borda, 2003; Tallei, 2019). Se ela é a sua língua e suas línguas são várias
e transfronteiriças, ela quer ter a liberdade de transitar entre os vários idiomas
que fala e que vivencia. Essas línguas, assim como os animais, também não
respeitam fronteiras delimitadas colonialmente e violentamente. É por isso
que considero Glória Anzaldúa como uma das nossas principais precursoras
nos estudos das práticas translíngues (Canagarajah, 2013), mesmo antes
desse construto existir.57
Trago, agora, para essas “peles de imagens”, aquela que diz em seu
livro intitulado “Eu sou Macuxi e outras histórias” que não há fronteiras
para o pertencimento: Julie Dorrico (2019). Como nos ensinou Anzaldúa
(2009), também não há fronteiras linguístico-culturais para o pertencimento.
Indígena dos povos Macuxi, habitantes da Tríplice Fronteira entre Brasil,
Venezuela e Guiana Inglesa, Julie Dorrico cresceu às margens do Rio Madeira.
Ela conta que, foi por meio das travessias realizadas com a sua mãe e das
histórias oralizadas contadas pela sua bisavó, que ela se encontrou com
sua cultura Macuxi bem como com Makunaimã. Como diz o indígena
Daniel Munduruku no lindo prefácio desta obra, intitulado, “O caminho
de volta”, Julie Dorrico se esvaziou para ser preenchida pelas memórias e
pelo pertencimento. Sim! O mesmo Makunaimã que inspirou Mário de
Andrade a escrever o famoso livro “Macunaíma”. E Makunaimã, para os povos
Macuxi, é a divindade que tudo criou! E é quando Dorrico (2019) conta

57 Mais do que a presença de dois ou mais idiomas em uma mesma construção frasal, as práticas
translíngues (Canagarajah, 2013) visibilizam os sujeitos e suas histórias de vida quando falam e deixam
fluir todo o seu repertório linguístico-cultural. Exemplos de manifestações translíngues, resistentes e
de reinvenção das linguagens seriam o movimento literário fronteiriço liderado pelos poetas Douglas
Diegues, Fabián Severo, dentre outros, denominado “Portunhol Selvagem” (Pires-Santos, 2017), que
desafia as colonialidades das linguagens de uma maneira anticolonial. Os diversos textos literários
produzidos nas línguas guarani, yopará (guarani e espanhol), portuguesa, espanhola e inglesa, essa
manifestação artístico-literária presente, sobretudo na Tríplice Fronteira entre Paraguai, Argentina e
Brasil, em Foz do Iguaçu, ou nas fronteiras entre Brasil e Uruguai (na cidade de Artigas) ou Brasil e
Paraguai (cidades de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul e Pedro Juán Caballero, no Paraguai) ajudam
a desnaturalizar os estigmas e os preconceitos linguísticos sofridos por esses resistentes repertórios
linguístico-culturais, ajudam a problematizar a variedade formal da línguas indo-europeias e também
problematiza o ensino-aprendizagem dessas línguas em sala de aula. Outra luta linguístico-cultural e
anticolonial que não podemos deixar de destacar é a visbilização, cada vez mais frequente, da variedade
pajubá ou bajubá, língua criada e falada pelas comunidades LGBTQIA+, uma língua pretuguesa criada
na década de 1970 no Brasil, recebendo contribuições das línguas africanas de raízes iorubá e banto.

82 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


sobre seu esvaziamento no poema “Eu sou macuxi, filha de Makunaima”,
que ela se rebela também contra as colonialidades das linguagens por meio
da luta anticolonial. Ela também nos revela que é por meio de um objeto
utilizado por não-indígenas, o livro, que ela ocupará seu lugar de autoria
tão caro e importante para uma indígena como ela em um mundo ainda
tão cruel. Assim ela diz:
... Um dia minha mãe decidiu me criar mulher. E criou, lá na
década de 1990, bem certinho. Decidiu, porém, que minha
língua não seria nem o macuxi, como de minha ancestral,
nem o inglês dos britânicos, mas o português. Eu não quis
não. Então resolvi criar a minha própria. Como não posso
fugir do verbo que me formou, juntei mais duas línguas para
contar uma história: o inglexi e o macuxês porque é certo que
meu mundo - o mundo – precisa ser criado todos os dias. E é
transformando minhas palavras que apresento minha voz nas
páginas adiante (Dorrico, 2019, p. 21).

E foi transformando suas palavras, estejam elas nas modalidades orais


ou escritas das línguas, que todos as ontologias e vivências apresentadas
aqui neste texto foram se descortinando e se mostrando rebeldes por uma
causa muito justa e necessária: a desnaturalização dos discursos racistas e
das opressões de toda a natureza que são veiculadas pelas línguas, sobretudo,
pelas colonialidades das linguagens. Afinal, as línguas que falamos também
carregam as heranças colonialistas, advindas da colonialidade do poder e de
todas as suas dimensões constitutivas. Razão pela qual as lutas anticoloniais
sempre foram prioridades para os povos subalternizados, mesmo antes das
categorias analíticas do Giro Decolonial existirem.
Por fim, trazemos para estes escritos que se pretendem anticoloniais
a importância que tem um autor mineiro da cidade de Cordisburgo, que
significa “o lugar do coração”, um dos maiores escritores mundiais, que,
conseguiu visibilizar um Brasil que fala em detrimento de um Brasil que
escreve, desafiando e derrubando, assim, as fronteiras existentes entre as
colonialidades acadêmicas e grafocêntricas: João Guimarães Rosa. Leroy
(2018; 2021a) analisa, pelo viés das linguagens, o caráter anticolonial/

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 83


decolonial e translíngue da obra-prima Grande Sertão: veredas (2019),
publicado pela primeira vez em 1956. De acordo com Leroy (2018; 2021a),
a obra seria decolonial por algumas razões: primeiro, por ser narrado, do
início ao fim, por uma figura do Sertão mineiro, um sertanejo chamado
Riobaldo, que pode representar as vozes de muitos sujeitos dos rincões
deste genuíno, racializado e estigmatizado Brasil com “S”, resgatando suas
subjetividades e vivências. Segundo, como sabemos que as linguagens
grafocentradas de um romance pode também obedecer à lógica moderno-
colonial da racionalidade estruturadora e estruturada da matriz colonial de
poder, a obra “Grande Sertão: veredas” também faz uma inversão linguajeira
e transgride as normas estilísticas do que é considerado como uma tradição
literária ocidentalocêntrica. Um exemplo disso é o uso de uma linguagem-
denúncia transgressora que transita do que é considerado mais rústico e
popular ao mais erudito e sofisticado, sendo essa linguagem proferida,
o tempo todo, pelo jagunço sertanejo Riobaldo, sem nos olvidarmos também
de que o “monólogo”58 é direcionado a um douto citadino que anota,
incessantemente, tudo o que é falado pelo sertanejo. A obra é translíngue,
segundo Leroy (2021a), porque, durante todo o romance, existe uma denúncia
explícita de uma língua portuguesa eurocentrada que não contempla uma
alíngua brasileira, não conseguindo, nem mesmo, nomear as ricas realidades
e territorialidades dos sertões mineiro, goiano e baiano descritos na obra.
A língua rosiana, sua amante e companheira, está em estado gasoso, está
volátil, viva e em constante trânsito e transformação. O poliglota e translíngue
escritor cordisburguense, falante de várias línguas estrangeiras, de acordo
com Couto (2019), renova o mundo porque renova a língua, sendo esta
língua escrita como uma língua anterior a todas as outras línguas. Seria essa
(língua)gem rosiana a alíngua pretuguesa? Seria um mineirês africanizado
e jenipapizado com exemplos bem específicos de nomes de figuras como
“Fulorêncio” – um personagem jagunço do romance, que juntamente ao

58 Digo “monólogo”, entre aspas, porque o personagem Riobaldo é o narrador de toda a história e
somente interage com um interlocutor que não aparece em momento algum. E tudo é contado sob
o seu ponto de vista. Isso faz parecer que ele está falando para si próprio. E também está. Entretanto,
como se estivesse em um consultório psicanalítico, ele é ouvido durante todo o tempo por um
personagem interlocutor da cidade e letrado que não fala no texto, mas ele está presente por meio
de uma escuta muito atenta.

84 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


seu amigo, também jagunço Fancho-Bode, se desentendem com Diadorim?
Na descrição do personagem feita por Riobaldo, tudo indica que Fulorêncio
é um homem negro, podendo assim presumirmos que tal personagem possa
pertencer a alguma comunidade quilombola do sertão mineiro, baiano
ou goiano onde a variedade sertaneja da língua portuguesa certamente é
influenciada por diversas línguas africanas de origem banto ou iorubá. Assim,
pode-se dizer que “Fulorêncio” vem do nome “Florêncio” e, como as línguas
de origem banto, como a língua Quimbundo, não possuem os encontros
consonantais ou dígrafos “fla”, “fle”, “fli”, “flo”; “flu”, (Pessoa de Castro,
2011) o nome do personagem “Florêncio” acaba virando “Fulorêncio” na
alíngua pretuguesa e anticolonial rosiana. “E mesmo, por gracejo cordial,
o Fulorêncio me perguntou: - Mano Velho, me compra o que eu sonhei hoje?”
(Rosa, 2019, p. 120) Podemos dizer que o caráter anticolonial/decolonial
da obra soma-se ao aspecto translíngue quando João Guimarães Rosa, esse
etnógrafo do ser tão, do “ser mais” freiriano, também percorre o ser tão
baiano em busca do “dialeto do Rio Urucuia” na cidade de Santa Maria da
Vitória para registrar falares racializados de um povo ribeirinho também
racializado. Os falares de um povo que confunde qualquer linguista cartesiano
e positivista, uma vez que o falar próprio desse povo, isolado geograficamente
e esquecido por razões históricas, contempla a prosa barranqueira do Rio São
Francisco, envolvendo peculiaridades do português seiscentista e influências
da língua espanhola como “entonces”, “dispois”, “di vera”, “quede” no sentido
de “onde está” ou do espanhol arcaico “qué es de?” e que também dialoga
com o mineirês apretuguesado e jenipapizado.
Assim, finalizando estes escritos nestas “peles de imagens” e que,
possivelmente, serão publicadas em um livro, segundo Dorrico (2019),
um objeto não-indígena, gostaria de retomar algumas ideias propostas pela
professora Maria Inês de Almeida em sua fala de 2020 intitulada “Índios:
cantores de leitura”, proferida remotamente na Academia Mineira de Letras.
Almeida (2020) associa o canto indígena a uma ciência dos povos originários.
Uma ciência que é construída por mitos, por poéticas que nascem a partir
das paisagens da floresta. O canto indígena para Almeida (2020) representa
uma língua incessantemente falada e oralizada e que é capaz de unir grupos
étnicos, animais e plantas. Os cantores indígenas, segundo Almeida (2020),

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 85


registram a memória de uma língua perdida. Quando os indígenas cantam,
eles trazem a memória de toda uma mata desmatada, das espécies que já foram
extintas e dos seus ancestrais que já habitaram esta terra. A professora diz
que os Maxakali cantam nas línguas mais antigas. Os cantos e seus cantores
podem recuperar toda uma floresta. Almeida (2020) ainda nos presenteia
com informações fundamentais quando diz que os livros indígenas são
escritos por espíritos das florestas, sendo o indígena, apenas um escriba de
seus ancestrais, tecendo assim uma serpente cósmica ou um fio que não tem
fim e que é cíclico e está em constante transformação. E essa eterna cópia
ancestral feita pelos escritores indígenas vira canto, que por sua vez, vira
literatura indígena contemporânea.
Lembremo-nos de que o objetivo principal deste texto foi o de tentar
decolonizar o “decolonial” de uma maneira corazonante ou também poderia
dizer, de uma maneira cantante. O corazonar advindo das cosmovivências
indígenas e amáuticas andinas chegou até nós por meio de escritos de um
cantautor. O antropólogo equatoriano Edgar Patricio Guerrero Arias canta
as suas epistemologias, sendo um autor que canta, um teórico que sente e
ama as suas teorias. As teorias surgem de pessoas e pessoas possuem corações
e mentes. Portanto, as teorias são cantadas e pensadas. Por isso, as teorias
podem ser cantadas e sentipensadas. As teorias também têm coração ou podem
ser corazonadas a partir do momento que trazemos para as visibilidades dos
nossos textos, falas e aulas os corpos, os sentimentos e os corações de quem
as produziu ou das ontologias que estão por trás delas.
Assim, chegamos às lutas anticoloniais propostas pela importante
provocação de Cusicanqui (2019). As lutas anticoloniais podem ser caminhos
interessantes para decolonizarmos as colonialidades das linguagens, começando
pelo adjetivo que está muito em voga ou na moda do mundo acadêmico e
extra-acadêmico, o famoso epíteto “decolonial”. Sim! Dependendo da nossa
falta de leitura, preparo e estudos, o “decolonial” pode sim se transformar
em “colonial”. E podemos cair em armadilhas discursivas muito sofisticadas
quando universalizamos os nossos discursos. Por isso, o “decolonial” é
uma opção (Palermo, Dulci, Leroy & Name, 2019) não podendo nunca
ser considerado “a” opção. Por isso, este texto trouxe algumas tentativas

86 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


concretas de decolonizar o “decolonial” por meio de diversas “alínguas”:
a das oralizações ou das palavras dadas yanomamis, às línguas crioulas
martinicanas e caribenhas, às variedades do pretuguês, às contralínguas, às
línguas fronteiriças e à linguagem rosiana. A alíngua desafia, desnaturaliza,
problematiza, decoloniza e bagunça lindamente as colonialidades das
linguagens, dando um verdadeiro nó em seus cartesianismos e positivismos
estanques e fossilizados. A alíngua é cantante, é corazonante e também é
sentipensante porque ela não separa mente de coração, razão de emoção e a
cabeça do corpo. Ela representa os “afetos que restam enigmáticos” (Lacan,
1972/1973, (2008) p. 149). A “alíngua” pode ser um verdadeiro “esperançar
em tempos de perplexidade”.
Há algo que excede a Língua. É por isso que Lacan nesse
momento se aproxima da poesia. Pois a ela mais do que outras
formas da linguagem evidencia que esta é composta por alíngua.
A Língua para o poeta é sempre esse algo futuro que um dia
vai se dar, demonstra assim sua incompletude. Na sincronia
atual da Língua, faltam palavras, e sempre faltará. É por isso
que o poeta se atreve a inventá-las. Mas também nela há algo
do passado que ficou depositado nos aluviões da linguagem.
Um exemplo dessa característica da alíngua é extraída de uma
entrevista10 do cantor e compositor Zé Ramalho. O compositor
afirma que palavra “Avôhai”, título de uma canção sua, lhe veio
quase que sussurrada. A explicação que o próprio compositor
dá é de que antes dos dois anos de idade seu avô lhe pegou
para criar. Vinte anos depois, quando cria e se depara com essa
palavra, explica-a como uma junção de avô + pai, pois seu avô
teria exercido o papel das duas pessoas ao lhe tomar para criar.
Esse significante é único para Zé Ramalho e só este lhe pode
dar uma significação (Santos, 2015, p. 96).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 87


Referências
Almeida, M. I. (2020). Índios: Cantores de leitura. Palestra on-line. Academia
Mineira de Letras em https://www.youtube.com/cantoresdeleitura
Anzaldúa, G. (1987). Borderlands/La Frontera: The new mestiza. Spinsters/
Aunt Lute.
Anzaldúa, G. (2009). Como domar uma língua selvagem. Cadernos de Letras
da UFF, Dossiê: Difusão da língua portuguesa, 39, 297-309.
Ballestrin, L. (2017). Modernidade/Colonialidade sem “Imperialidade”?
O Elo Perdido do Giro Decolonial. DADOS – Revista de Ciências Sociais,
60(2), 505-540.
Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira
de Ciência Política, 11, 89-117.
Baptista, L. (2022). Colonialidade da Linguagem. Em C. Landulfo &
D. Matos (Org.). Suleando conceitos em linguagens: Decolonialidades e
epistemologias outras, (1ed., v. 1, pp. 51-58). Pontes Editores.
Cadilhe, A. & Leroy, H. R. (2020). A formação de professores de língua e
decolonialidade: O estágio supervisionado como espaço de (re)existências.
Calidoscópio, 2(18), 01-21.
Canagarajah, A. S. (2013). Translingual practice: Global English and
cosmopolitan relations. Routledge.
Castro-Gómez, S. (2007). Decolonizar la universidad: La hybris del punto
cero y el diálogo de saberes. Em S. Castro-Gómez & R. Grosfoguel (Org.).
El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica mas allá del
capitalismo global, (pp. 79-92). Siglo del Hombre.
Chaves, P. J. (2021). Didática, decolonialidade e epistemologias do Sul: Uma
proposta insurgente contra a neoliberalização do ensino escolar e universitário.
CRV.

88 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Couto, M. (2019, 12 abr.). Palavra encantada. Estado de Minas, Caderno
Pensar. Sesc Palladium.
Cusicanqui, S. R. (2019). Temos que produzir pensamento a partir do cotidiano.
Entrevista. Agência de Notícias Anarquistas. https://noticiasanarquistas.
noblogs.org
Dorrico, J. (2019). Eu sou Macuxi e outras histórias. Editora Caos & Letras.
Dussel, E. (2005). Europa, modernidade e eurocentrismo. Em E. Lander
(Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas
latino-americanas, (pp. 24-32). Colección Sur Sur, Clacso.
Escobar, A. (2003). Mundos y conocimientos de otro modo: el programa
de investigación modernidad/colonialidad latinoamericano. Tábula Rasa,
1, 58-86.
Fals Borda, O. (2003). Ante la crisis del país: Ideacción para el cambio. El
Áncora Editores, Panamericana Editorial.
Fanon, F. (2020). Pele negra, máscaras brancas. Ubu Editora.
Freire, P. (2013). Pedagogia do oprimido. Paz e Terra.
Gonzalez, L. (1981). Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências
Sociais Hoje, Anpocs.
GrosfogueL, R. (2016). Del ‘extractivismo económico’ al ‘extractivismo
epistémico’ y al ‘extractivismo Ontológico’: Una forma destructiva de conocer,
ser y estar en el mundo. Tábula Rasa, 24, 123-143.
Guerrero Arias, P. (2010). Corazonar: Una antropología comprometida con
la vida. Assunção: Fondec.
Haesbart, R. (2003). Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim
Gaúcho de Geografia, 29, 11-24.
hooks, b. (1994). Teaching to transgress: Education as the practice of freedom.
Routledge.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 89


Kopenawa, D. & Albert, B. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã
Yanomami. Companhia das Letras.
Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.
Lacan, J. ([1972/73], 2008). O seminário livro 20: Mais, ainda. Jorge Zahar.
Lander, E. (2005). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais,
perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur, Clacso.
Leroy, H. R. (2018). Dos sertões para as fronteiras e das fronteiras para os sertões:
As (in)visibilidades das identidades performativas nas práticas translíngues,
transculturais e decoloniais no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa
Adicional da UNILA, [Tese de doutorado não publicada]. Universidade
Estadual do Oeste do Paraná.
Leroy, H. R. (2021a). Dos sertões para as fronteiras e das fronteiras para os
sertões: Por uma travessia translíngue e decolonial no ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa Adicional. EDUNILA.
Leroy, H. R. (2021b). Decolonialidade, pós-memória e pretuguês nos
‘300 anos de Minas Gerais’: Pela visibilização e pelo respeito às histórias e
paradigmas outros. Em É. A. Caetano (Org.). Pós-memória e decolonialidade
no ensino de línguas no Brasil: As origens do status quo, (1ed., v. 1, pp. 155-
178) Pedro e João Editores.
Leroy, H. R. (2021c). Decolonizar a sala de aula de PLA por meio de
portfólios autorreflexivos: Práxis em desconstrução. Em É. A. Caetano (Org.).
Pós-memória e decolonialidade no ensino de línguas no Brasil: As origens do
status quo, (1ed., v. 1, pp. 131-151) Pedro e João Editores.
Leroy, H. R. (2022). Corazonar. Em C. Landulfo & D. Matos (Org.).
Suleando conceitos em linguagens: Decolonialidades e epistemologias outras,
(1ed., v. 1, pp. 83-90). Pontes Editores.
Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos
Feministas, 22(3), 935-952.

90 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Maldonado-Torres, N. (2007). Sobre la colonialidad del ser: Contribuciones
al desarrollo de un concepto. Em S. Castro-Gómez & R. Grosfoguel (Orgs.).
El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistêmica más allá del
capitalismo global, (pp. 127-168). Siglo del Hombre Editores.
Maldonado-Torres, N. (2019). Analítica da colonialidade e da decolonialidade:
Algumas dimensões básicas. Em J. Bernardino-Costa, N. Maldonado-Torres
& R. Grosfoguel (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico, (pp.
27-54). Autêntica.
Mazzaro, D. (2022). Colonialidade de gênero. Em C. Landulfo & D. Matos
(Org.). Suleando conceitos em linguagens: Decolonialidades e epistemologias
outras, (1ed., v. 1, pp. 43 - 49). Pontes Editores.
Miller, J. A. (1976). Teoria da Alíngua.
Nascimento, A. M. (2017). A queda do céu: Elementos para a descentralização
epistemológica dos estudos da linguagem desde visões indígenas. Em Zolin-
Vesz, F. (Org.). Linguagens e descolonialidades: Práticas linguajeiras e produção
de (des)colonialidades no mundo contemporâneo, (pp. 55-78). Pontes Editores.
Neto, A. (2020). Txai, de Milton Nascimento: Um sopro de vida em meio ao
ódio. https://medium.com/txai
Palermo, Z., Dulci, T. M. S., Leroy, H. R., & Name, L. (2019). Zulma
Palermo: A opção decolonial como um lugar-outro de pensamento, entrevista
a Tereza Spyer, Henrique Leroy e Leo Name). Epistemologias do Sul, 3, 44-56.
Pereira, P. P. G. (2015). Queer decolonial: Quando as teorias viajam. Revista
Contemporânea, 5(2), 411-437.
Pessoa de Castro, Y. (2011). Marcas de africania no português brasileiro.
Africanias.
Pires-Santos, M. E. P. (2017). ‘Portunhol selvagem’: Translinguagens em
cenário translíngue/transcultural de fronteira. Gragoatá, 22(42), 523-539.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 91


Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.
Em E. Lander (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais,
perspectivas latino-americanas, (pp. 107-130). Colección Sur Sur, Clacso.
Rosa, J. G. (2019). Grande Sertão: Veredas, (22 ed.) Companhia das Letras.
Santos, H. L. (2015). (A)língua segundo o ponto de vista da psicanálise
lacaniana, [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade Federal
Fluminense.
Segato, R. L. (2012). Gênero e colonialidade: Em busca de chaves de
leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES (on-
line) Epistemologias Feministas: Ao encontro da crítica radical, 18, 106-131.
Tallei, J. I. (2019). Pensando una pedagogía de frontera desde la ciudad de
Foz de Iguazú, Brasil. Revista MERCOSUR de Políticas Sociales, 1(3), 156-164.
Veronelli, G. A. (2016). Sobre la colonialidad del lenguaje. Universitas
Humanística, 81, jan-jun, 33-58.

92 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 4

No Início Era o Verbo? Desafios da Opção Decolonial para


uma Nova Babilônia59
Glauco Vaz Feijó60
Viviane de Melo Resende61

Introdução
A assim batizada opção decolonial (Palermo, 2013) surgiu no cenário
acadêmico há pouco mais de duas décadas e, nas palavras de um de seus
teóricos mais sensíveis62, se espalhou como uma “praga” pelos mais distintos
campos das humanidades. O projeto, liderado por intelectuais latino-
americanos/as, tem se imposto em centros de pesquisa em todo o mundo,
tanto no Sul quanto no Norte global. Também se impôs na agenda de
financiamentos e não há poucos programas e centros de pesquisa do Norte
global com títulos como “Estudos do Sul Global”.
Ainda que capitaneado por intelectuais latino-americanos/as, foram
centros de pesquisa do Norte global, mais precisamente nos EUA, nos quais
atuavam jovens pesquisadores/as decoloniais, que parecem ter ajudado no
impulso inicial do projeto decolonial. De lá, do Norte colonial e imperial,
a potente crítica decolonial, assim denominada, ganhou primeiro as terras
além do Rio Grande, sobretudo as antigas colônias espanholas, para chegar
à ex-colônia portuguesa apenas depois de já ter invadido também o velho
continente. Não é a primeira, nem será, parece, infelizmente, a última vez
que em terras brasileiras uma corrente quente só seja sentida após girar

59 Versão revisada e ampliada de texto publicado anteriormente em inglês (ver Feijó & Resende, 2020).
60 Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília, glauco.feijo@ifb.edu.br
61 Universidade de Brasília, resende.v.melo@gmail.com
62 A observação foi feita em uma conversa informal e, por isso, optamos por não nomear o autor.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 93


pelo Mediterrâneo e fazer o retorno no Mar Báltico, misturando-se com as
correntes geladas mais próximas do ártico.
Não parece fora de lugar lamentar, mais uma vez, estarmos nós, na
linha de frente da investigação social no Brasil, sempre a olhar para o Norte,
dando as costas para os vizinhos do Sul. Quem frequentou, no Brasil, cursos
de graduação em Ciências Sociais nas décadas de 1980 e 1990 sabe bem
que Quijano, Dussel ou Fals Bodas não eram nomes que poderiam ser
encontrados facilmente nas ementas das disciplinas obrigatórias a visitar.
Isso sem falar nas feministas decoloniais - por exemplo, Lélia Gonzales, hoje
incontornável, aparecia, então, apenas em breves menções. A situação hoje
mudou, mas a mudança ocorreu apenas na última década, e é bem-vinda.
Há cerca de cinco anos, os primeiros congressos sobre decolonialidade
no Brasil eram vistos como oportunidades únicas nas universidades brasileiras,
como foi a iniciativa pioneira do departamento de sociologia da Universidade
de Brasília, que trouxe para o Brasil, pela primeira vez, intelectuais homens
latino-americanos, que estavam sendo lidos como fundadores do pensamento
decolonial, e algumas poucas mulheres, que ainda hoje pouco aparecem como
estrelas nos congressos. Um colóquio e uma publicação realizados em 2016
são resultados desse pioneirismo da Universidade de Brasília (Bernardino-
Costa & Grosfoguel, 2016). No campo específico dos estudos de linguagem,
o Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade também realizou colóquios
e ciclos de estudos de corte decolonial desde 2017, trazendo novo fôlego aos
estudos críticos do discurso realizados na Universidade de Brasília.
Em 2013, Luciana Ballestrin publicou um texto de apresentação dos
Estudos Decoloniais para o público brasileiro. Nele, a autora faz um relato
do projeto Modernidade/Colonialidade, alçado ao lugar mítico de origem
dos Estudos Decoloniais, e inclui um levantamento de quem seriam os
principais autores e autoras da nova e potente corrente de investigação:
nove homens latino-americanos, dois dos quais radicados no EUA, e um
português, uma mulher latino-americana, e uma mulher estadunidense
radicada no Equador, além de um importante pensador estadunidense,
cuja teoria do Sistema-Mundo foi alçada à condição de substrato teórico do

94 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


pensamento decolonial juntamente com a Filosofia da Libertação de Dussel
e Colonialidade do Poder de Quijano (Ballestrin, 2013).
Para se ter uma ideia da velocidade da “expansão dos Estudos Decoloniais”
e das questões que envolvem seu espraiamento pelo mundo, podemos fazer
uma comparação com os Estudos Culturais, tendência acadêmica anterior
que capitalizou a esperança de transformação revolucionária na produção
de conhecimento acadêmico. Nomeados no final da década de 1960,
os Estudos Culturais conquistaram o mundo nas três décadas posteriores,
impondo-se, por exemplo, na América Latina apenas durante a década
de 1990, imediatamente antes do avanço dos Estudos Decoloniais, e nos
EUA cerca de uma década mais cedo. Segundo a narrativa de um de seus
principais autores, o predomínio de homens também marcou a trajetória dos
Estudos Culturais, acarretando críticas e movimentos de ruptura internos
que culminaram na publicação Women take issues, em 1978, quando os
Estudos Culturais já ditavam agendas de pesquisa no Norte (Hall, 1992).

A Crítica Feminista-Decolonial
Da mesma forma que a expansão dos Estudos Culturais e o aumento
volumoso das fontes de financiamento trouxeram reflexões sobre o
esvaziamento de seu potencial revolucionário, também a disseminação
da opção decolonial trouxe em seu rastro as primeiras críticas, o que está
implícito na caracterização, retomada no início deste ensaio, da expansão
da opção decolonial como uma “praga”, que se espalha pela superfície, não
deixando raízes profundas, correndo o risco, assim, de perder sua radicalidade.
No entanto, também como nos Estudos Culturais, não foram apenas
a disseminação e institucionalização da opção decolonial os objetos das
primeiras críticas, nem essas críticas foram as mais importantes. As reflexões
iniciais sobre as imbricações entre gênero e raça foram foco de crítica de
autoras que viriam a propor um feminismo decolonial. A própria gestação
dos Estudos Decoloniais, dominada por intelectuais homens, foi criticada
por intelectuais militantes, especialmente dos movimentos feministas
caribenhos. Alguns dos intelectuais homens do projeto Modernidade/

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 95


Colonialidade eram tomados como “porta-vozes” da decolonialidade e,
ainda que involuntariamente, poderiam estar repetindo um padrão de
opressão machista, que, por meio do monopólio da fala, contribui para o
silenciamento de vários movimentos decoloniais liderados por mulheres
negras e indígenas em diferentes locais da América Latina. Esse é o tom, por
exemplo, da crítica feita pela intelectual e ativista dominicana Ochy Curiel,
já em 2007, às tendências elitistas e androcêntricas de correntes de estudos
subalternos, incluindo aí autores centrais tanto do projeto Modernidade/
Colonialidade quanto das bases teóricas do Estudos Decoloniais.
Ni Fanon ni Césaire abordaron categorías como sexo y sexualidad.
Tampoco lo hacen los contemporáneos latinoamericanos que
escriben sobre estos temas (Mignolo, Quijano, Dussel). Si bien
sitúan la raza como criterio de clasificación de poblaciones que
determina posiciones en la división sexual del trabajo, solo
mencionan de paso su relación con el sexo y la sexualidad,
además de no referirse a los aportes de muchas feministas en
la creación de este pensamiento (Curiel, 2007, 93).

Curiel segue argumentando que, mesmo sem utilizar o termo


colonialidade, feministas racializadas já vinham, desde os anos 1970,
aprofundado a crítica feminista a partir da compreensão das imbricações
dos diversos sistemas de dominação racial, classista, sexista e heteronormativo.
Contudo, mesmo que a contribuição dessas feministas racializadas
afrodescendentes e indígenas não fosse negada, seus nomes não apareciam
nas referências bibliográficas das recentes reflexões decoloniais, operando o
silenciamento pela estratégia discursiva do não dito.
No mesmo tom e sentido, Mara Viveros Vigoya (2021), de forma
muito elegante, remete-se à invisibilização de feministas negras pelos teóricos
homens da decolonialidade ao lembrar que Aimé Césaire aceitou, sem muito
constrangimento, o título de paternidade do movimento da negritude, sem
nunca ter feito menção explícita e clara sobre suas dívidas com intelectuais e
ativistas mulheres negras que participaram da construção as bases políticas
e conceituais dos movimentos da negritude, como foram, por exemplo,
as irmãs Jeanne e Paulette Nardal, que exerceram notória influência nas

96 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


concepções político-conceituais de Césaire. Sua homenagem às irmãs Nardal
como prefeito de Fort-de-France ao dar o nome delas a uma praça é vista por
Vigoya como uma reparação, mas o reconhecimento intelectual, este nunca
foi feito. Semelhante à negritude de Césaire, o movimento modernidade/
colonialidade foi nascido com o pecado original de invisibilização das
questões de gênero em suas reflexões centrais.
Mais radical é a crítica de Silvia Rivera Cusicanqui, que aponta a
construção de “um pequeno império dentro do império” (Rivera Cusicanqui,
2010, 58). Ela extrapola a crítica do silenciamento para denunciar a apropriação
de ideias suas, especialmente nas análises que propõe do “mundo ao revés”,
de Waman Poma, e a respeito do colonialismo interno e da epistemologia
da história oral.
O ano de 2007 parece ser um marco de início da reflexão mais centrada
no gênero dentro do sistema moderno/colonial. Apesar de a crítica de
Curiel (2007), o texto geralmente mais citado como início dessa crítica é
o diálogo proposto por María Lugones com a colonialidade do poder de
Quijano (Lugones, 2007), que ela estende depois ao conceito de diferença
colonial de Mignolo e de colonialidade do ser de Maldonado-Torres, que
fundamentam a sua ideia de colonialidade de gênero e suas propostas para
a construção de um feminismo decolonial (Lugones, 2014).
Lugones parte da ideia de colonialidade do poder, mas propõe superar
uma visão que ela considera estreita da construção moderno/colonial sobre a
dimensão de gênero baseada no controle patriarcal do sexo e de suas fontes
e recursos, visão que seria partilhada por Quijano (Lugones, 2007, 189-90).
Em outros textos, Lugones tece considerações sobre a construção de
um feminismo decolonial, sustentando tanto sua filiação quanto sua crítica a
Quijano feita em 2007. Apoiando-se na colonialidade do ser e na diferença
colonial, propõe a ideia da colonialidade de gênero, definida como
exercícios de poder concretos, intrincadamente relacionados,
alguns corpo a corpo, alguns legalistas, alguns dentro de uma
sala onde as mulheres indígenas fêmeas-bestiais-não-civilizadas
são obrigadas a tecer dia e noite, outros no confessionário.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 97


As diferenças na concretude e na complexidade do poder
sempre circulando não são compreendidas como níveis de
generalidade; a subjetividade corporificada e o institucional
são igualmente concretos (Lugones, 2014, p. 948).

Seguindo a crítica de Lugones, Curiel propõe refletir sobre a necessidade


de se aprofundar em práticas, pedagogias, políticas e metodologias que
impeçam que a opção decolonial se restrinja à crítica epistemológica.
Curiel se pergunta “até que ponto reproduzimos a colonialidade do poder,
do saber e do ser quando a raça, a classe, a sexualidade são convertidas
somente em categorias analíticas” (Curiel, 2019, 45). Ela propõe como
caminho a construção de uma metodologia feminista colonial que parta do
reconhecimento e legitimação de “saberes subalternizados outros”. Curiel
adverte, contudo, que esse reconhecimento e legitimação:
Não podem ser insumos para limpar culpas epistemológicas,
tampouco trata-se somente de citar feministas negras, indígenas
e empobrecidas para dar um toque crítico à pesquisa e ao
conhecimento e aos pensamentos que são construídos. Trata-se
de identificar conceitos, categorias, teorias que surgem a partir
de experiências subalternizadas, que são geralmente produzidas
coletivamente, que têm a possibilidade de generalizar sem
universalizar, de explicar diferentes realidades para romper o
imaginário de que esses conhecimentos são locais, individuais
e sem possibilidade de serem comunicados (Curiel, 2019, 46).

A separação entre conhecimento científico - produzido em instituições


acadêmicas - e conhecimento tradicional, ou popular, ou prático - produzido
por pessoas vivendo suas vidas e enfrentando suas rotinas - impõe um poderoso
desafio para se lograr a proposta de Curiel de se construírem categorias e
conceitos desde conhecimentos subalternizados. Isso porque somos adestradas
nas universidades a reconhecer legitimidade de construção epistemológica
apenas a domínios muito restritos da ampla gama do conhecimento humano.
A construção, nesse caso como em muitos outros, pressupõe o esforço prévio
e atento da desconstrução.

98 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Outra proeminente teórica e ativista dominicana, Yuderkys Espinosa
Miñoso segue a proposta de Curiel e de Lugones de descolonização do
feminismo a partir da compreensão do feminismo branco europeu como parte
da colonialidade. Ela também sustenta a necessidade de aprofundamento
da crítica decolonial para além de um exercício puramente epistemológico.
Para tanto, busca, por meio de aportes dos feminismos racializados negros
e indígenas, a radicalidade da crítica e da práxis decolonial. Mesmo
compartilhando da crítica e reconhecendo as ausências iniciais dos Estudos
Decoloniais sobre as questões de gênero, Espinosa aposta no potencial da
opção decolonial para “avançar em uma epistemologia contra-hegemônica
atenta ao eurocentrismo, ao racismo e à colonialidade” (Espinosa Miñoso,
2014, 7). Enfatiza, contudo, que isso só pode ser logrado na prática
quando não se perdem de vista relações entre epistemologias, ontologias e
metodologias. Segundo ela:
Si bien para el abordaje recurro a la producción filosófica
contemporánea y específicamente a los aportes de la crítica
descolonial, lo que me anima no son objetivos meramente
teóricos - si es que algo como esto existiera- sino urgentemente
prácticos. Lo hago desde la convicción que toda acción se
fundamenta en interpretaciones del mundo que a la vez son
prescriptivas de mundo. Siendo así, estoy interesada en develar
aquello que ha sostenido nuestras prácticas feministas y aquello
a lo que nuestras prácticas políticas contribuye. El mundo al
que con nuestro accionar estamos haciendo posible (Espinosa
Miñoso, 2019, 2009).

Espinosa Miñoso também nos aponta a relevância da linguagem,


e portanto de estudos discursivos, no campo da crítica feminista decolonial,
sustentando as relações gerativas entre as interpretações das coisas do mundo
e as possibilidades de ação política no mundo. Nesta publicação mais recente,
Espinosa Miñoso reafirma seus laços com a opção decolonial e suas bases
teóricas fundadas em autores como Quijano e Santiago Castro-Gomes, e vai
além, incluindo em sua proposta metodológica uma genealogia da experiência,
retomando autores enquadrados nos cânones das teorias críticas coloniais, como
Michael Foucault. Ela considera que, se o aporte genealógico foucaultiano

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 99


pode servir a uma crítica anti-iluminista no contexto da colonialidade, talvez
ele possa servir também para ajudar a revelar os compromissos do feminismo
europeu com a colonialidade, sendo, contudo, necessário estar sempre atenta
às implicações que o uso do método genealógico poderia ter sobre a crítica
radical antirracista e decolonial (Espinosa Miñoso, 2019).

A Crítica Contracolonial
Outras críticas mais recentes à opção decolonial são mais céticas
em relação às possibilidades revolucionárias dos Estudos Decoloniais e não
parecem estar dispostas a fazer qualquer concessão a qualquer pensamento
crítico dentro dos marcos da colonialidade. Para essas críticas mais recentes,
os Estudos Decoloniais não podem ser revolucionários, pois partilham
da mesma epistemologia colonial, dividindo com esta seus pressupostos
metodológicos de produção do conhecimento. Apenas uma epistemologia
outra, radicalmente distinta, seria então capaz de produzir a radicalidade
necessária para romper com a colonialidade.
Uma dessas novas correntes tem se apresentado como contracolonial
e não como decolonial, pois, segundo um de seus pensadores, só poderia
descolonizar quem colonizou, e então às pessoas colonizadas resta a opção da
contracolonialidade e não da decolonialidade. Nascimento e Santana Júnior
mencionam essa fala do contracolonialista Nego Bispo, para argumentar que
podemos compreender que ser decolonial é ser colonial, pois
combater o conhecimento que se pretende universal com
a mesma epistemologia é atestar a sua superioridade, sua
hegemonia. É também reverenciar essa forma de conhecimento
certificado, sintético (Nascimento & Santana Junior, 2019,
p. 69).

Contudo, embora aparentemente de ruptura, mesmo a incipiente e


forte crítica contracolonial não chega a romper com pressupostos centrais
da decolonialidade. Aparentemente busca também uma superação, nesse
caso a superação de um conhecimento sintético por um conhecimento
orgânico. Seu chamado por epistemologias outras, centradas em filosofias

100 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


de civilizações afro-pindorâmicas, não soa estranho à crítica fundada na
ideia de colonialidade do saber e tão pouco se distancia muito do apelo por
epistemologias do Sul, que faz parte da opção decolonial, notadamente nos
potentes textos de Ramose (2010, 2018), mas também na crítica sempre
ácida de Cusicanqui (2010, 2018).
As críticas aos Estudos Decoloniais são coetâneas à sua disseminação.
Não há, no entanto, nas críticas, negação da relevância da decolonialidade
e de suas teses centrais sobre a colonialidade do ser, do saber e do poder.
Em geral, o que as críticas apontam é a necessidade (ou a (im)possibilidade,
a depender da natureza da crítica) de superar alguns aspectos da colonialidade
dentro da própria opção decolonial ligada ao referido projeto, pois este traria
em si algumas contradições da própria colonialidade.
Por outro lado, se assumirmos que a colonialidade é constitutiva
do presente, está em suas entranhas, teremos de admitir que toda crítica,
toda desconstrução e todo rompimento terá de partir dessas contradições,
pois não há outra forma de superá-las. Também aqui os estudos críticos
do discurso potencializam a compreensão por situar a intertextualidade e
a interdiscursividade como aspectos inevitáveis de todo discurso, incluídas
as teorias. Uma prática teórica crítica assumidamente interdiscursiva terá
de pressupor os limites da crítica oriunda apenas da academia, e como
decorrência orientar-se pela necessidade de construir parcerias mais profundas.
Para Santos:
No dia em que as universidades aprenderem que elas não sabem,
no dia em que as universidades toparem aprender as línguas
indígenas – em vez de ensinar –, no dia em que as universidades
toparem aprender a arquitetura indígena e toparem aprender
para que servem as plantas da caatinga, no dia em que eles se
dispuserem a aprender conosco como aprendemos um dia com
eles, aí teremos uma confluência. Uma confluência entre os
saberes. Um processo de equilíbrio entre as civilizações diversas
desse lugar. Uma contracolonização (Santos, 2018, p. 51)

Elísio Macamo (2021) indica a angustiante possibilidade de ser o


silêncio, talvez, a única saída das armadilhas da colonialidade, uma vez que a

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 101


linguagem seria a arma do colonizador e ao usá-la, talvez o colonizado tenha
que abandonar seus próprios registros para que possa ser entendido. Voltamos,
aqui, ao dilema do intelectual forjado nas estruturas do conhecimento das
universidades ocidentalizadas. Contudo, o próprio Macamo, em texto
anterior ainda não publicado (Macamo, 2012), aponta para a possiblidade
da fala, reconhecendo que talvez não caiba ao intelectual das universidades
ocidentalizadas do Sul Global o lugar de fala do colonizado. Talvez então o
silêncio se imponha como saída decolonial para o intelectual nesse contexto,
abrindo espaço para outras vozes colonizadas que percebam o mundo e as
relações coloniais em outros termos, não acadêmicos, e que, possivelmente,
possam construir outras saídas para suas amarras.
Cabe lembrar, com Grosfoguel (2016), que a estrutura do conhecimento
das universidades ocidentalizadas foi e continua sendo um dos pilares do
projeto colonial e não é razoável acreditar que intelectuais colonizados, forjados
por essa mesma universidade, estariam imunes ao peso da colonialidade.
Suspeitar o contrário parece mais plausível: o conhecimento produzido
pela universidade, também no Sul Global, é fortemente influenciado pelas
estruturas de dominação da colonialidade do saber e do ser. Intelectuais em
contextos coloniais poderiam então reconhecer esse dilema e refletir sobre a
estratégia do silêncio, mas de um silêncio ativo, que sede espaço para outras
vozes, um silêncio estratégico associado à escuta atenta.
Talvez seja hora, sim, do silêncio, mas do silêncio de quem não parou
para escutar nos últimos trezentos anos, do silêncio da escuta fundamental
para a construção de um diálogo que nos una. Ao ser colonizado é urgente
falar, pois sua fala talvez seja a única possibilidade de redenção também
do colonizador, para relembrar ideias freireanas. Após três séculos, talvez a
fala polifônica do ser colonizado e o silêncio do colonizador seja o único
diálogo possível, talvez seja o início de qualquer possibilidade de retomada
do diálogo, rompido há cinco séculos justamente pela instrumentalização
da linguagem.
Lembrando que a colonialidade não é uma geografia, mas sim uma
relação de hierarquias epistemológicas, ontológicas e de poder, o colonizador
aqui é aquele que, de alguma forma, ocupou e se beneficiou de posições

102 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


de privilégio em decorrência da colonialidade moderna. Isso inclui, claro,
a nós: membros da universidade colonial ocidentalizada.
Sobre isso, Resende (2021) discutiu o espaço paradoxal da academia
latino-americana: um espaço subalterno na geopolítica do conhecimento
acadêmico, em seu paradoxo quando consideramos as posições que ocupamos
em nossos contextos locais. Sentar em uma cadeira universitária nos permite
acessar e exercer poder simbólico significativo, e então devemos nos questionar
sobre esse lugar de onde falamos e como o pertencimento institucional nos
coloca de saída em interlocuções com outros atores.

Os Limites da Linguagem e a Crítica a Partir dos Estudos do


Discurso
Embora as críticas iniciais ao projeto decolonial muitas vezes remetam
às questões sobre sua expansão e sobre o tratamento inicial dado à questão
de gênero, outras questões potentes vêm surgindo com seu espraiamento por
diferentes disciplinas. Essas críticas provocam mais reflexões no interior do
movimento que ainda desponta como uma luz revolucionária no conservador
campo de produção de conhecimento acadêmico.
As reflexões do grupo reunido em torno do Projeto Decolonial Future e
mais especificamente o seu texto “The ontological differences between wording
and worlding the world” (Mika et al., 2020) é um excelente exemplo, em todos
os sentidos, da abertura de outra frente de questões que a opção decolonial
terá que enfrentar se conseguir manter sua intenção revolucionária inicial e
não for engolida por projetos individuais vinculados a agências de fomento
e programas de pós-graduação; um desafio, aliás, bastante difícil de superar
no campo acadêmico. O texto de Mika et al. não serve apenas para nos
brindar com suas próprias reflexões, mas também para nos levar a outras
que, em grande parte, orientam a redação deste nosso ensaio.
O filósofo vienense Ludwig Wittgenstein se tornou um dos grandes
nomes da filosofia no século XX por alguns motivos, dentre eles, sem ordem
de importância, estão os fatos de: 1) ser austríaco, portanto europeu; 2) ser

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 103


homem; 3) ser branco; 4) escrever em um dos cinco idiomas da colonização do
saber; e também de 5) ter se tornado referência no que ficou conhecido como
“virada linguística”, o reconhecimento do peso da linguagem na conformação
do mundo que tanto marcou as construção do conhecimento ocidental nas
ciências humanas no século XX. A frase mais citada de Wittgenstein dá a
exata noção desse movimento de virada: “os limites da minha língua são
os limites do meu mundo”.
No interior da universidade ocidentalizada, se não abandonamos essa
poderosa premissa (e não parece haver intenção de abandoná-la, mesmo
nas críticas mais aguçadas), encontramo-nos em uma espécie de aporia,
quando pretendemos de alguma forma contribuir para os processos de
decolonialidade do saber ora em marcha: se os limites da linguagem são os
limites para a ação, seria então possível uma crítica decolonial efetiva no
interior da universidade, que historicamente se consolidou como estrutura
da colonialidade do saber?
Refletindo sobre questão semelhante, Mika et al. (2020) propõem
uma divisão entre duas orientações distintas sobre a linguagem: uma que
considera a linguagem como a entidade que constitui o mundo (wording
the world) e a outra que considera a língua como mais uma entidade que
constitui e é constituída por outras entidades do mundo (worlding the world).
Argumentam que a primeira, vinculada à modernidade-colonialidade, reduz o
ser às práticas discursivas, palavreando o mundo. Na visão moderno-colonial,
o conhecimento é percebido com a base da prática e da existência, reduzindo
o ser ao saber, e o saber à produção de sentido. A segunda, baseada na Filosofia
da Linguagem Maori, manifesta o ser como constitutivo de um mundo
mundanizado, em que a linguagem é uma entidade interconectada a outras.
A filosofia da linguagem Maori, argumentam, ao distinguir ser e saber,
admite novas conexões entre linguagem, conhecimento e ser, conexões
diferentes do que pode ser imaginado na gramática da modernidade. E se
perguntam: será possível escrever sobre algo que está fora dessa gramática?
Para as autoras, a partir de uma perspectiva discursiva, os Estudos
Decoloniais estariam presos à visão constituída pela colonialidade, que entende

104 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


a linguagem como uma entidade que constitui o mundo à medida que o
representa (wording the world). A única opção que teria sido desenvolvida até
agora, pelos Estudos Decoloniais entre outras perspectivas críticas, seria explicar
o mundo, para, a partir da explicação e da compreensão do funcionamento
das coisas do mundo, e, portanto, a partir da linguagem, transformá-lo. Assim,
os Estudos Decoloniais seriam caudatários e aprisionados, eles próprios, em
uma cosmovisão fundada e fundadora da colonialidade.
Como contraponto e exemplo de outra visão da relação entre a
linguagem e o mundo, as autoras nos oferecem uma interpretação sensível
da percepção da linguagem, dentro da cosmovisão dos povos Maori, que
entendem a palavra como uma entidade entre outras, que se conformam a
si e ao mundo (worlding the world). Segundo elas, entre os Maori, a língua
e o ser humano são duas entidades em uma relação de convivência não
hierárquica, o que ilustraria um paradigma de uma linguagem que, em vez
de redigir o mundo, faz parte, ela mesma, do mundo. A língua me fala,
quando falo a língua; a língua me permite ser na língua, e ser a língua.
E a língua se afeta pelas coisas do mundo ao mesmo passo em que as afeta.
O exemplo da visão de mundo Maori serve a Mika et al. (2020) como
contraponto e âncora para conduzirem uma reflexão fundamental sobre
os limites revolucionários dos Estudos Decoloniais como um todo e, mais
especificamente, como opção revolucionária para os Estudos de Discurso.
O questionamento é feito, de maneira instigante, ao próprio texto, quando
as autoras assumem o paradoxo de ter, como única opção para apresentar
uma visão de mundo fundada no worlding the world, o caminho da palavra,
quer dizer, o caminho de wording the world, o único que é possível trilhar
na produção acadêmica do conhecimento. É justamente nesse paradoxo
que localizamos as encruzilhadas da opção decolonial, em torno da qual se
guiam aqui nossas reflexões, sempre abertas e inacabadas.
Há muitas contradições (algumas óbvias, outras nem tanto) nos
movimentos acadêmicos que querem se revolucionar, especialmente quando
assumem que a academia é uma parte estruturante das desigualdades e
injustiças que precisam ser superadas. Voltando à nossa comparação inicial,
não foi diferente com os Estudos Culturais, mas parece ser ainda mais forte

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 105


nos Estudos Decoloniais, que declaram a universidade como uma engrenagem
central no processo da colonialidade do conhecimento e, portanto, também
da colonialidade do ser e do poder. Como superar essa contradição fundadora
parece ser a pergunta que provoca uma resposta.
O paradoxo que trazem Mika et al. é angustiante, e exatamente por
essa razão parece nos colocar em uma aporia, uma armadilha da qual não
podemos escapar. As questões colocadas nos incomodam porque abrem muitas
outras, incluindo a questão de se as perguntas que trazem são as melhores
ou as mais urgentes a serem feitas, e por que acreditamos que respondê-las
no âmbito da pesquisa acadêmica possa ser de alguma forma relevante.
Os estudos críticos do discurso se pretendem capazes de sustentar
explanação crítica de problemas sociais particulares com base no uso da
linguagem justamente graças ao tipo especial de relação que a linguagem
mantém com outros elementos sociais - com o mundo além da linguagem;
com as subjetividades engendradas não só na linguagem, mas também nas
corporeidades e sua mobilidade constitutiva; com as relações entre pessoas
e das pessoas com as entidades não humanas que as rodeiam. Entender a
linguagem ao mesmo tempo como parte do mundo social e resultado do
mundo social é o que torna esse esforço complexo, e o discurso um objeto
fugidio. A crítica de Mika et al. é perturbadora não pelo que aponta da
natureza dos estudos discursivos - já que palavrear o mundo e mundanizar
a palavra são aspectos da linguagem reconhecidos nesse campo - mas pelo
que sugere de nosso lugar como seres humanos nessa complexidade.
Gostamos da ilusão de sermos nós a palavrear o mundo e de sermos
nós a mundanizar a palavra, mas muitos povos tradicionais - como os Maori,
no exemplo apontado, mas também os Krén (Krenak, 2019), os Yanomami
(Kopenawa, 2015) e diversos outros povos (Munduruku, 2008) que vivem
no território hoje conhecido como Brasil - nos chamam atenção para nossa
ilusória centralidade, e para o tanto que perdemos em possibilidades de
compreensão e de imaginação e de criação quando nos pomos no centro -
“à imagem e semelhança”. Nos custa entender que o mundo também palavreia
e mundaniza, porque acreditamos que no início era o verbo.

106 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Falando da construção de um possível sistema filosófico africano,
Chimakonam (2019, 2021) propõe que a lógica que fundamenta o sistema
filosófico ocidental é binária e se constrói sobre uma dicotomia que hierarquiza
duas entidades colocadas em oposição. O binarismo hierárquico, que é a
base dessa filosofia, não pode ser a base de sistemas filosóficos decoloniais.
Chimakonam nos conta, por exemplo, que a lógica de uma filosofia africana
é trivalente, o que permite a comunhão de opostos. Ela é contextualizada
e, sobretudo, relacional. Assim, uma ontologia derivada dessa lógica não se
pergunta sobre o que é o ser, como faz a ontologia ocidental, mas sim sobre
como os seres se relacionam. O binarismo da lógica que embasa o sistema
filosófico ocidental está também na base da proposição wittgensteiniana sobre
a relação hierárquica entre linguagem e mundo, sendo este determinado por
aquela, enquanto que em outras lógicas não ocidentais a relacionalidade e
a possibilidade de comunhão ganham centralidade. Nesse caso, o ponto de
partida filosófico não é o Ser essência, mas o Ser relação.
Se a linguagem impõe limites, e acreditamos que ela os impõe, tais
limites não são nem intransponíveis para todo o sempre, nem justificativas
naturais para a negação do que não se compreende. Os limites da linguagem
e da tradução só são limites para a humanidade dentro da lógica colonial.
A possibilidade de não nos compreendermos por inteiro não pode ser usada
como prova da impossibilidade de compartilharmos o mesmo mundo, pois
não há nenhuma relação entre as duas coisas. Não compreendemos a quase
totalidade dos processos, entidades e relações nas quais estamos envolvidos
cotidianamente, mas isso não nos impede de ser parte (compartilhar) desses
mesmos processos, entidades e relações.
A busca da compreensão completa e da tradução perfeita faz sentido
nos quadros da colonialidade, nos quadros da decolonialidade cada ser e cada
grupo é uma parte do todo e carrega o todo em si, mas ninguém sozinho é
o todo e nenhuma parte do todo é igual a outra, cada uma é inteligível em
si mesma e dentro do todo, mas nunca em comparação com outra parte
do todo. A decolonialidade, em vez de aumentar a precisão da tradução,
tem papel de pluralizar as línguas e seus usos, libertar a linguagem de sua
servidão em relação ao conhecimento e à dominação e de construir uma
nova Babilônia.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 107


Possíveis Caminhos
Não há nada na colonialidade que possa ser usado na ruptura decolonial?
A colonialidade seria um processo histórico sem contradições e arestas capazes
de causar sua própria ruína? Um yin sem yang? Um movimento nascido na
colonialidade não seria capaz de romper com ela? Toda e qualquer formação
histórica não carrega em si o germe de sua própria superação? Ou seria essa
mais uma das imagens centrais da colonialidade que fizeram do mundo
seu espelho?
Devemos realmente esperar proposições revolucionárias que não
tenham seus próprios paradoxos? Se estamos sempre esperando por uma
nova ortodoxia, não devemos nos questionar quais seriam as vantagens e
questões de uma nova ortodoxia?
Ou, já em termos decoloniais, não se trata de assumir os desafios
da modernidade euroamericana a partir da exterioridade, da alteridade,
de outros lugares que tragam soluções novas que incorporem e superem
a modernidade em outros termos? (Dussel, 2016). Ou, ainda, em termos
contracoloniais, nos apoiando nas palavras de um de seus pensadores mais
reverenciados, não seria necessário “transformar as armas dos inimigos
em defesa, para não transformarmos a nossa defesa em arma. Porque se
transformarmos nossa defesa em uma arma, só saberemos como atacar.
E quem só sabe atacar perde”? (Santos, 2018).
Em suma, parece que estamos mesmo em uma encruzilhada e,
a partir daqui, temos que decidir por onde seguir. Dos caminhos possíveis,
as críticas parecem apontar para ao menos dois deles, um sugere que a única
radicalidade possível deve passar pela negação de tudo que de alguma forma se
relacione com a colonialidade. Como metodologia e como epistemologia, esse
caminho nos leva necessariamente à negação dos princípios da contradição
e da totalidade, presentes em grande parte da filosofia e da arte vinculadas
ao mundo moderno e, portanto, colonial, presentes sobretudo nas filosofias
e artes críticas. Seguir por esse caminho parece nos conduzir a termos de
inventar uma nova hybris do ponto zero, ou novas e diversas hybris de múltiplos
pontos zero, caso a intenção pluriversal seja alcançada.

108 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Esse é o caminho para o qual apontam as críticas que pretendem se
desvincular dos Estudos Decoloniais, sem que, contudo, consigam trilhá-
lo, pois este é um caminho da redação do mundo (wording the world), que
foi pavimentado pelas epistemologias da colonialidade, como tão bem
nos mostram Mika et al. Esse caminho parece nos conduzir, então, a um
labirinto, do qual não poderíamos sair lançando mão da ajuda de Ariadne.
Haveríamos de encontrar novas saídas.
Outro caminho é o de não renunciar a nada que nos for útil para
superar a colonialidade, nem mesmo às armas colonialistas. Esse caminho
poderia nos levar, por exemplo, a não renunciar ao princípio da contradição e à
percepção da transitoriedade presentes em toda formação histórica, incluindo
a colonialidade. Esse caminho é o que parece seguir o feminismo decolonial,
que, por meio de sua crítica radical, desafiou e superou as proposições iniciais
da decolonialidade em seus próprios termos, sem renunciar aos fundamentos
da crítica decolonial, incorporando-a aos feminismos racializados. Não é
também um caminho estranho à crítica contracolonialista, que também
aponta para a necessidade de nos apropriarmos das armas coloniais,
capturando, com um rabo de arraia, tanto o relâmpago de Zeus quanto a
ainda necessária crítica marxista ao capitalismo, mas superando ambas com
as experiências decoloniais (ou contracoloniais) que se acumulam desde
que surgiu a empreitada colonial e se formou o sistema-mundo moderno.
Insistimos que não se pode sair do presente com armas do futuro, pois
as armas do futuro ainda não foram criadas. É o presente e suas contradições
que nos fornecem material para a construção do futuro, mesmo que a
meta seja a superação desse mesmo presente. Retomando, como exemplo,
a possibilidade de a Universidade participar dos processos da decolonialidade,
acreditamos que os pressupostos para essa participação são os mesmos que
servem para o colonizador: escuta, humildade, reflexões internas e apoio
das falas, sem tentativas de catalogação e de novas taxonomias.
Enfim, o conhecimento acadêmico tem lugar na construção do projeto
decolonial e tem armas importantes para a luta, mas não é seu líder, não
dita as pautas, não é o criador de uma nova linguagem, nem o tradutor de
epistemologias outras. Não estamos falando de um novo esperanto, de um novo

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 109


projeto fundado na univocidade dos seres como requisito para a comunhão.
É justamente o contrário disso, trata-se de compartilhar polivalências.
Há quase duas décadas, Jean Godefroy Bidima introduziu um dossiê
com artigos que se propunham refletir sobre um paradigma da Travessia
que pudesse superar um paradigma da identidade sobre o qual se apoiavam
as filosofias africanas de então. Ele propôs que a travessia deveria se dar a
partir da conjugação de possibilidades históricas objetivas dadas, e de novas
subjetividades que empurram sujeitos históricos para outros lugares. Por
isso, sustentou que no cruzamento entre objetividade e subjetividade é que
algo novo poderia surgir (Bidima, 2002: 12). Para Bidima, a Travessia se
fundamenta na emersão do que é especificamente humano na experiência
do mundo, conforme proposição de Ernst Bloch, apropriada por Bidima
na citação que segue.
A experiência do mundo (experimentum mundi) significa que o mundo
é testado pelo pensamento como o pensamento é testado pelo mundo.
Para o pensamento, o livro da experiência do mundo está aberto a todos.
Acontece que para os discursos filosóficos africanos é exigido que provem
sua originalidade, sua pureza, seu estágio adâmico, no qual eles não teriam
sido contaminados por nada. (...) um discurso filosófico africano que citar
um filósofo europeu, por exemplo, não seria autêntico, seria um reflexo
desajeitado do que já foi bem dito. (...). Esta abordagem restringe o escopo
da experiência do filósofo africano. Se se aceita que o filósofo africano
compartilha da mesma humanidade que os outros, as experiências dos
outros podem lhe ser úteis e, sobretudo, os livros do mundo também estão
abertos a ele (...). A experiência é viagem, travessia e translação, razão pela
qual uma grande parte da filosofia africana atual rompe com esse fardo da
prova e com a obsessão da pureza para se relacionar com a experiência do
mundo (Bidima, 2002, pp. 13-14. Tradução nossa).
A Travessia que Bidima propõe para as filosofias africanas da
contemporaneidade nos ajuda a pensar também a necessária travessia da
colonialidade rumo a um mundo descolonizado. Não é muito difícil nos
lembrarmos da Poética da Relação de Glissant (2017) ou da Transmodernidade
de Dussel (2016) quando usamos a Travessia de Bidima para pensar a

110 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


decolonialidade. Não seria a Transmodernidade de Dussel a emersão do que
é especificamente humano a partir das experiências coloniais e decoloniais
do mundo? Não seria a Transmodernidade uma flecha tupinambá ou uma
lança mapuche a cortar o tecido da modernidade, partindo de experiências
não modernas que arrastam consigo o que nelas grudou da modernidade
rumo a um mundo outro?
As perguntas postas nos apontam caminhos possíveis, e são muitas as
perguntas que desafiam e desafiarão a opção decolonial. Talvez mais urgente
seja encontrar as perguntas mais acertadas, cujas respostas possam manter
o projeto decolonial como uma opção revolucionária, como mais uma
entidade entre outras capazes, talvez em comunhão, talvez em confluência,
de nos guiar para outro mundo, porque o que parece mais provável é que
um mundo decolonizado não poderá ser o mesmo mundo que já foi o
mundo da colonialidade.

Referências
Ballestrin, L. (2013). América Latina e giro decolonial. Revista Brasileira de
Ciência Política, 11, 89-117. https://doi.org/33522013000200004
Bernardino-Costa, J., & Grosfoguel, R. (Eds.)(2016). Dossiê
Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado, 31(1). https://doi.
org/69922016000100002
Bidima, J.G. (2002). Introduction. De la traversée: Raconter des expériences,
partager le sens. Rue Descartes, 36(2), 7-18. https:// doi.org/10.3917/
rdes.036.0007
Chimakonam, J. O. (2019). Ezumezu: A system of logic for African philosophy
and studies. Springer.
Chimakonam, J. O. (2021). Contemporary trajectory of African philosophy:
The importance of decolonizing system-building. Seminário Internacional
Diálogos Brasil-Sudão, Instituto Federal de Brasília & Universidade Federal
de São Paulo.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 111


Curiel, O. (2007). Crítica poscolonial desde las prácticas políticas del
feminismo antirracista. Nómadas, 26, 92-101. http://nomadas.ucentral.
edu.co/nomadas
Curiel, O. (2019). Construindo metodologias feministas desde o feminismo
decolonial. Em P. B. Melo (Ed.). Descolonizar o feminismo, (pp. 32-51).
Editora do IFB.
Dussel, E. (2016). Transmodernidade e interculturalidade: Interpretação a
partir da filosofia da libertação. Sociedade e Estado, 31(1), 51-73.
Espinosa Miñoso, Y. (2014). Una crítica descolonial a la epistemología
feminista crítica. El Cotidiano, 184, 7-12. https://www.redalyc.org
Espinosa Miñoso, Y. (2019). Hacer genealogía de la experiencia: El método
hacia una crítica a la colonialidad de la razón feminista desde la experiencia
histórica en América Latina. Revista Direito e Práxis, 10(3), 2007-2032.
https://doi.org/43881
Feijó, G. V., & Resende, V. M. (2020). Pathways and crossroads of the
decolonial option: Challenging Marx and Zeus with a rabo de arraia.
Language, Discourse & Society, 8,1(15), 57-67. https://www.language-and-
society.org/pathways-and-crossroads
Glissant, E. (2017). La poética de la relación. Univ. Nac. de Quilmes, Editorial
Bernal.
Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: Racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/
epistemicídios do longo século XVI. Sociedade e Estado, 31(1), 25-49.
https://doi.org/69922016000100003
Hall, S. (1992). Cultural Studies and its Theoretical Legacies. In L. Grossberg,
N. Cary & P. Treichler (Eds.). Cultural Studies, (pp. 277-294). Routledge.
Kopenawa, D. (2015). A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami.
Companhia das Letras.

112 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.
Lugones, M. (2007). Heterosexualism and the colonial/modern gender
system. Hypatia, 22(1), 186-209. http://www.jstor.org/stable/4640051
Lugones, M. (2014). Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos
Feministas, 22(3), 935-952. https://periodicos.ufsc.br/article/36755
Macamo, E. (2012). O pós-colonial ante portas: Algumas notas de rodapé.
Inédito.
Macamo, E. (2021). Estudos sobre a África na Alemanha e na Suíça. Seminário
Internacional Diálogos Brasil-Sudão, Instituto Federal de Brasília &
Universidade Federal de São Paulo.
Mika, C. et al. (2020). The ontological differences between wording and
worlding the world, Language, Discourse & Society, 8, 1(15), 17-32.
Munduruku, D. (2008). Outras tantas histórias indígenas de origem das coisas
e do universo. Global.
Nascimento, A. M., & Santana Junior, H. M. (2019). Epistemologias
destoantes na encruzilhada: Saberes em confluência. Em P. B. Melo (Ed.).
Descolonizar o feminismo, (pp. 66-79). Editora do IFB.
Palermo, Z. (2013). Desobediencia epistémica y opción decolonial. Cadernos
de Estudos Culturais, 5(9), 237-255. https:/desobediencia-epistemica
Ramose, M. (2010). Globalização e Ubuntu. Em Santos, B. S., & Meneses,
M. P. (Eds.). Epistemologias do Sul. Almedina.
Ramose, M. (2018). Keynote speech in Panel 2 ‘Thinking the contemporary’.
Em International Conference Imagining the future. Knowledges, experiences,
alternatives, University of Coimbra, Centre for Social Studies.
Resende, V. M. (2021, June 7–10). The paradoxical space: Global South
academics between subordination and arrogance, Thematic Panel “Decolonising,
unsettling and rebuilding sociolinguistics”, Sociolinguistics Symposium 23.
University of Hong Kong.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 113


Rivera Cusicanqui, S. (2010). Ch’ixinakax utxiwa: Una reflexión sobre prácticas
y discursos descolonizadores. Tinta Limón Ediciones.
Rivera Cusicanqui, S. (2018). Un mundo ch’ixi es posible: Ensayos desde un
presente en crisis. Tinta Limón.
Santos, A. B. (2018). Somos da terra. Piseagrama, 12, 44-51, https://
piseagrama.org
Vigoya, M. V. (2021, June 29-July 9). “Améfrica Ladina” y decolonialidades:
Una perspectiva crítica. International Forum on Global South Studies.
University of Tübingen, Germany.

114 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 5

Un Diálogo Posible Sobre Interrogar laS PandemiaS


Catherine Walsh63
Jorgelina Tallei64

Catherine, ¿Cómo se Grita Hoy la Pandemia en Ecuador? ¿Y Cómo


Ese Grito Puede Ecoar o Resonar en América Latina?
Obrigada querida Jorgelina pela conversa e pergunta. Aquí en Ecuador,
como en todo Abya Yala/América Latina hoy, estamos viviendo no solo una
pandemia, sino PANDEMIAS en las cuales COVID juega un papel útil,
estratégico y central. Me refiero a las pandemias de racismo sistémico, de
empobrecimiento creciente racializado y feminizado, de extractivismos sin
tregua, de despojo, de feminicidios, violencia de género, heteropatriarcado,
y también me refiero a las pandemias con respecto al acceso –o no acceso–
a la educación y salud. Mi argumento es que COVID no es “la pandemia”
en singular, sino una pandemia de complicidad que ha venido agudizando
y facilitando las pandemias en plural, encaminando el exterminio de ciertos
sectores considerados “no útiles” y hasta obstáculos para el sistema de capital
y poder global… Para mí, las pandemias apuntan hoy una des-existencia
dirigida: racializada, feminizada, territorializada e intergeneracional (es
decir, de mayoras y mayores y también de la juventud). Por eso digo que
los gritos tienen rostro, cuerpo, territorio, género y color. Eso queda muy
claro en Ecuador.
Pienso en el derrame grande de petróleo hace pocos días en la Amazonía,
en el mismo sector y el mismo río donde sucedió otro derrame de más de

63 Universidade Andina Simón Bolívar, Ecuador, catherine.walsh@uasb.edu.ec


64 Universidade Federal da Integração Latino-Americana, jorgelina.tallei@unila.edu.br

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 115


150.000 barriles en abril 2020; … la demanda que las 150 comunidades
indígenas gravemente afectadas hicieron hace dos años sigue sin respuesta y
resolución. La contaminación del agua, del suelo, del bosque está matando
todos los seres vivos, y con el libre acceso de las compañías, el COVID
complementa la matanza. SE GRITA PANDEMIAS, SE GRITA DES-
EXISTENCIA, SE GRITA VIDA!
Pienso en el crecimiento en estos últimos dos años de feminicidios,
transcidios, de las violencias de género, de la trata de niñas y, a la vez,
la tendencia en muchas universidades del país, incluyendo la mía, de re-
establecer el orden masculino conservador, eliminando programas de estudio
considerados “demasiados políticos”, ejerciendo el control docente, de la
cátedra, del acceso a la universidad, culpando, a la vez, la “crisis” provocada
por COVID.
Pienso en el nuevo control de grupos narcodelectivos y de carteles
trans-nacionalizados incluyendo en los cuarteles (prisiones), las calles urbanas,
los territorios ancestrales afros e indígenas, y también en las esferas estatales.
Y pienso en el reclutamiento de la juventud, de esos miles de jóvenes y
niñxs abandonadxs por un sistema educativo cada vez más elite, blanco,
blanqueado, y “limpiado”, una limpia facilitada, sin duda, por la pandemia
de COVID. SE GRITA NO SOLO POR LA CANTIDAD DE ESCUELAS
CERRADAS O EL RETORNO A CLASES PRESENCIALES, SINO,
Y MAS CRITICAMENTE, POR la necesidad de PROCESOS
EDUCATIVOS ENRAIZADOS EN LAS REALIDADES VIVIDAS
Y LA VIDA, … EDUCACIONES MUY OTRAS, NO LIGADOS AL
SISTEMA GLOBAL DE COLONIALIDAD Y CAPITAL.65
Los gritos no son, o no solo son, chillidos; son como zumbidos y
murmullos que suenan desde la gente, los barrios, la Madre Tierra y las
comunidades, zumbidos que están empezando hacer eco y resonar.
Puedo seguir, pero te pregunto a ti, Jorgelina, sobre cómo se relaciona
todo eso con Brasil, cómo se grita allá la(s) pandemia(s?

65 Dejamos la letra en mayúscula intencionalmente para mostrar nuestros gritos.

116 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


En Brasil los procesos de pandemias se juegan en el mismo sentido
que comentas, Catherine, especialmente en estos tiempos que vivimos
diferentes criseS, y déjame gritarlo en plural porque ella nos atraviesa desde
diferentes lados. Por un lado, desde el racismo, ayer (01 de febrero de 2022)
un joven negro congolés fue muerto en un quiosco del centro de Rio de
Janeiro, en un acto cobarde de extrema violencia. Los discursos de odio
se propagan tanto como las fake news en pantallas virtuales pero también
en lo cotidiano. Una crisis económica que elevó los índices de hambre a
patamares absurdos por los cuales hace décadas que Brasil no atravesaba.
Este grito se eleva a la educación, con cortes presupuestarios a la ciencia y
la tecnología, en un país donde se repite, por una población desgorvenada,
que “é só uma gripezinha”, “vacinas para que”. Gritamos vida desde nuestro
lugar de (re) existencia y ecoamos en tu gripo, Caterinhe.

¿Es Posible Gritar Descolonizando a Partir de la Educación?


Los gritos de que hablo son de rabia e indignación, son gritos compartidos
y colectivos, …en contra de las nuevas mutaciones y configuraciones de la
colonialidad y su proyecto de violencia-despojo-guerra-muerte, y para la
existencia y vida de otro modo. Gritar ante esta realidad, conectándonos por
y con los gritos, es, para mí, parte del trabajo de descolonización. Entonces,
¿cómo pensar, querida amiga, eso de gritar descolonizando a partir de la
educación?
Pienso desde los contextos de la educación superior. La academia nos
enseña a NO GRITAR, a callarnos ante la violencia, represión, opresión, la
indignación y rabia, la injusticia y desigualdad.
….Hay un lenguaje académico: racional, educado, apropiado para la
enseñanza, aprendizaje, lectura y escritura. Un lenguaje –de hecho, Euro-
masculino y colonial- que no nace del cuerpo, sino que viene de la cabeza,
desmembrándonos y, a la vez, los procesos y prácticas de pensar, decir y sentir.
…Allí la importancia de la palabra que nació en comunidades
campesinas ribereñas en Colombia, y repetida durante años por el sociólogo

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 117


Fals Borda: sentipensar, una palabra que se podría extender al acto de gritar:
gritar sentipensando/sentipensar gritando.
Hace muchos años uno de las autoridades de mi universidad, me
acusó –así gritándome- que yo estaba enseñando mis estudiantes a gritar.
…Antes no había reclamos sobre el racismo y sexismo, dijo él, ni
tampoco sobre el Eurocentrismo epistémico docente e institucional.
…Mis gritos, según él, se convirtieron en problema para la institución,
reconocida en ese tiempo como la más progresista del Ecuador.
…Claro, mi respuesta que les estudiantes no necesitaban a mí
a “enseñarles” sobre racismo, sexismo, acoso sexual y la geopolítica de
conocimiento porque lo vivían día a día; esta respuesta mía solo producía
más furia y coraje en él.
…Pero, no fue el grito por sí que le molestaba sino su clamor
sonoro compartido y colectivo que expandía caminando y convocando en
su resonar…
También pienso en el contexto de la educación comunitaria. Como
parte de la política del gobierno “progresista” de Rafael Correa, 10,000
escuelas comunitarias fueron cerradas en 2016. El argumento era que la
educación comunitaria es por sí inferior, atrasada, no moderna. La llamada
“revolución educativa” pretendía reemplazar las escuelas comunitarias con
nuevas Unidades Educativas del Milenio, escuelas grandes y modernas donde
entraban mil o más estudiantes, muchas veces muy lejos de las comunidades.
Allí con un currículo estandarizado y la instrucción en español (y no en
las lenguas propias), el gobierno ofrecía llevar a los y las estudiantes al
nuevo milenio para así olvidar el pasado. A parecer, el plan fue, además,
a debilitar la organización comunitaria y su ligazón histórica con la escuela
de la comunidad. Así empezaron sonar los gritos en contra de esta política
sin duda colonial. Sin embargo, ha sido en esos últimos dos años que los
gritos han venido tomando más fuerza en un resonar descolonizador y
descolonizante, empujando y motivando la reinvención de procesos de
educación en comunidad.

118 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Allí está Jorgelina, la posibilidad descolonizante/descolonizador
de gritar… Gritos que se entretejen en contra de la colonialidad que las
instituciones educativas siguen reproduciendo, y por y para una otra educación,
gritos q hacen ver cómo la “norma” académica con su racionalidad ha sido
y sigue siendo profundamente colonial…
… gritos que reclamen y gritos que nos junten en un otro hacer…

¿Cuéntame Cómo Veas Eso en tu Experiencia y Práctica Educativa


en Brasil?
Desde mi experiencia, querida Catherine, o mejor desde mi lugar
de estudio veo que fue y es posible gritar desde las tachaduras de las leyes.
Llamo tachaduras a las leyes que nos sacaron a partir de entender la escuela
desde un padrón homogéneo y único, o desde una base “común” curricular
única. Cómo es posible pensarse desde una base “única” “común” en un
país tan inmenso y diverso como Brasil. Entonces, Catherine, pienso que
es posible gritar en los movimientos sociales que se crean a partir de las
grietas como bien tú lo describes. En ese sentido, en Brasil se ha creado el
movimiento Fica Espanhol, desde mi área y lugar de trabajo lo veo como
un movimiento entre las grietas que grita para que las leyes se rescriban
desde pensar las lenguas en y desde su territorio como política pública que
se centra en la pluriculturalidad y el multilingüismo.

¿Cuál es la Asociación Entre Esta Norma y la Colonialidad?


Hay mucho que decir al respecto a la pregunta Jorgelina; aquí y por
asuntos de tiempo, ofrecería unas reflexiones breves no más.
Pienso en el binario que la modernidad/colonialidad impuso e hizo
del HOMBRE (es decir, Hombre blanco, letrado, heterosexual) sobre
Naturaleza, haciendo la asociación entre: naturaleza-mujer, naturaleza-
indígena, naturaleza-africana/o; todo “lo salvaje” que tenía –y tiene- que
ser controlado, civilizado, pacificado.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 119


¿No es esta misma noción la que dio base a “la ciencia”, la lógica y el
conocimiento racional .. .y su lugar de enseñanza que es la UNIversidad?
Pongo énfasis en eso de “UNI”.
Hace tiempo Edgardo Lander lo dijo muy claro: LA CIENCIA y EL
CONOCIMIENTO tienen género y tiene color: Masculino y blanco. Eso
es parte de lo que entendemos por la colonialidad del saber, un patrón de
poder que sigue reproduciendo la noción que EL CONOCIMIENTO y
LA CIENCIA se construyen en el norte, no en el sur, y principalmente en
inglés, pero también en francés y alemán.
Como bien sabemos, LA CIENCIA y EL CONOCIMIENTO tienen
complicidad directa con el mantenimiento y fortalecimiento del poder de
capital global. Creo que eso queda muy evidente en esos tiempos de COVID.
Hace algunos años atrás, empecé decir que las universidades en América
Latina huelen mal. Huelen mal y, a la vez, duelen por, entre otras razones, sus
complicidades con el sistema, su distanciamiento de las realidades sociales,
y sus crecientes deshumanidades que pretenden eliminar el pensamiento
crítico, los estudios sociales, humanos, de género y sexualidades, como
también las áreas de pensamiento y conocimiento africanos, afrodiaspóricos,
y de los pueblos originarios. Hoy en Ecuador, como en todo América del
Sur, las universidades se arraigan en el conocimiento global, “universal”,
el camino profesionalizante y el no pensar.66
Allí están nuevamente los gritos.
En una charla que di hace un par de años, una estudiante me dijo
que el grito de la mujer se interpreta como señal de histeria y por eso, sería
mejor callarme, callarnos; ser racional. Similarmente, en un seminario con
estudiantes doctorales de una Universidad del Caribe Colombiano, un par
de estudiantes comentaban que mi escritura les asusta

66 Al respecto, ver mi texto del 2020, “Universidades, seres, saberes y (geo)poder(es) en Ecuador
y América del Sur”, Revista lusófona de educação, 48. https://revistas.ulusofona.pt/rleducacao/758

120 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


¿Cómo es posible escribir gritando me preguntaron, y dentro de una
academia que se sustenta en el puntaje de publicación en revistas indexadas,
en un lenguaje limpio, distante, racional y des-personalizado?
Creo que ustedes en Brasil conocen muy bien lo que estoy diciendo,
no cierto Jorgelina?: Por eso el grito, lo gritos, el zumbido colectivo: ¡“FORA
BOLSONARO”!
Es cierto, mi querida colega, aquí gritamos y en especial las mujeres
lo hicimos con el movimiento “ele não” de forma a ecoar otros movimientos
que luego se sumaron. Yo creo, querida Catherine, que la mayoría de las
mujeres no formamos parte del electorado de este actual proyecto político,
sino más bien que lo gritamos desde nuestras raíces. Y este gripo de FUERA
BOLSONARO está muy asociado a la norma y la colonialidad, puesto
que en si mismo la figura de Bolsonaro expresa todo lo normativo desde
una casta privilegiada y que siempre ocupó lugares de privilegiado en este
inmenso país, una clase que tiene color y que no es del pueblo brasileño,
sino el de una élite fascista que se ubica en ese lugar y disfruta de ver el
sufrimiento de su propio pueblo y que le incomoda cuando la universidad
se pinta de pueblo.
Desde mi lugar de profesora de lenguas, también lo puedo pensar
en las gramáticas y normas que rigen en las escuelas con salas llenas de
estudiantes inmigrantes en sus diversas lenguas y culturas, escuchando a
directores o gestores decir una y otra vez que no se debe hablar así porque
no es lo correcto. Así, gritemos juntas, que vivan las lenguas híbridas y
mezcladas, la lengua es viva, es libre.

¿Cómo Esperanzar en su Sentido Freireano a Partir de las Grietas


de la Academia?
Como sabes Jorgelina, Paulo Freire fue mi maestro y amigo.
Trabajábamos juntos en los años 80. En las celebraciones del año pasado
de sus 100 años, hice muchas reflexiones, especialmente en Brasil, en torno a

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 121


mi pensar con y más allá de él. Siempre regreso a eso, que tú dices Jorgelina,
a su sentido esperanzador.
Para Paulo, la esperanza está íntimamente ligada a la existencia, la lucha,
la indignación y la tenacidad. Recuerdo muy bien a la respuesta de Paulo,
hace muchos años atrás, a la pregunta sobre: cómo enfrentar la desesperanza
imperante, ….pregunta que no podría ser más relevante hoy. Dijo él:
“El único camino es volver a re-encontrar razones de la esperanza en la desesperanza.
Reconstruir la esperanza.”67
La realidad actual produce desesperanza, también individualismo,
aislamiento, desmovilización. Es como si estuviera frente a nosotrxs un muro
de concreto… un muro-sistema totalizador. Como no podemos derrumbarlo,
pensamos que no hay nada que hacer. ¿Pero q sucede si hacemos una grieta
en él? La grieta no va a eliminar el muro, pero si va a abrir una fisura, una
pequeña esperanza de posibilidad.
Así pregunto: ¿qué implicaría pensar la educación hoy, incluyendo
la academia, no desde su totalidad institucionalizada, sino desde las grietas
presentes y crecientes? ¿Cuáles son las grietas que hacemos, abrimos,
mantenemos en las universidades a pesar de –y desafiando– su colonialidad
institucionalizada, sus violencias y deshumanidades? …Grietas de pensamiento
y conocimiento, de acción reflexiva y pensamiento accional… grietas que
abren hacia otras miradas, otros horizontes, otras formas compartidas y
colectivas de hacer academia… de reconstruir esperanzas.
El doctorado que coordino en Quito es una grieta. A lo largo de sus
más de 20 años, la Universidad ha tratada de parcharla, eliminarla, pero
como sucede con muchas grietas, se va extendiéndose, conectándose con
otras grietas, traspasando y yendo más allá de este territorio e institución.
Con sus cinco generaciones andando por Abya Yala, haciendo más grietas y
entretejiendo las grietas presentes entre sí, no requiere la institución llamada
UNIversidad. De hecho, la grieta niega la institucionalización, la que pretende
incorporarla dentro del mismo muro-sistema que procura fisurar.

67 En Paulo Freire, El grito manso, México: Siglo XXI, 2004, 56.

122 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Como bien sabemos, la grieta, como el grito, no es por sí la solución.
Es parte de la labor decolonial, descolonizante, descolonizadora, una labor
que nunca termina porque la colonialidad sigue en su continua configuración,
mutación y reconfiguración.
El sentido esperanzador, mi querida Jorgelina, está en las grietas
presentes y crecientes, y en lo que podría suceder cuando estas grietas –allá,
acá, y de todo Abya Yala- empiezan interconectarse y entretejer, debilitando
el muro que es la colonialidad, hasta tal punto que, tal vez, se empieza caer.
Creo, querida Catherine, que aquí en Brasil se crearon hacia finales
de 2009 dos gritos potentes, como la creación de la Universidad Federal
da Integración Latinoamericana (UNILA) y la Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) son grietas que se
abrieron a partir de entender un Proyecto que se pensará desde el margen,
desde las fronteras. Ambas tienen como propuesta la integración de los
pueblos y saberes, así como la internalización de la educación superior desde
la cooperación solidaria. Ambas son una grieta potente, y creo que tenemos
que pensar que las grietas son construidas por las personas que creen en
un Proyecto esperanzador, en el sentido también freiriano de esperanzar.
La propuesta decolonial está en nosotres , la construimos nosotres desde
nuestras propias margenes y fronteras. Me gusta mucho y siempre retomo
lo que comentas de UNIversidad para PLUriversidad, porque es un espacio
que se abre para los diversos saberes plurales y diversos que aunque, a veces,
pensamos que no aparecen o que terminan siendo invisibilizados desde el
sistema capitalista y patriarcal, están ahí fisurando la grieta, siempre. Y ese
es nuestro grito, el de la fisura constante que cuestiona el sistema.

¿De Qué se Trata la Pedagogía del Sembrar?


Para mí, las grietas son espacios de siembra, espacios para pedagogías
de sembrar y cultivar formas muy otras de pensar, saber, conocer, sentir, hacer
y también vivir. …espacios donde existen y persisten muchos semilleros.
No estoy pensando la pedagogía de manera instrumental, como la
didáctica o los métodos de transmitir conocimiento. Más bien, las pedagogías

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 123


para mí, y en conversación con Paulo, son procesos y prácticas sociopolíticas,
metodologías esenciales, fundamentadas en las realidades de las personas, sus
subjetividades, historias y luchas sociales, culturales, políticas, epistémicas
y de existencia. No tienen instructivo ni manual. Tampoco son de autoría
e invención individual.
Se construyen en contexto, en minka (trabajo colectivo) y en el hacer
praxístico, incluyendo y especialmente en las acciones de agrietar, sembrar
y re-sembrar.
En el AfroPacifico colombo-ecuatoriano, Juan García Salazar y Abuelo
Zenón hablan de las pedagogías de siembra cultural: “de volver a ser donde
no habíamos sido de volver a ser personas después de la deshumanización,
las políticas de negación, exclusión …sembrar y cultivar la memoria colectiva
… sembrar y cultivar vida.”68 Recuerdo la urgencia con que han venido
hablando las y los zapatistas, de ir haciendo semilleros, juntando semillas en
un proceso compartido y colectivo –cruzando geografías- de pensar y analizar
cómo es el sistema hoy y cómo se va reconfigurándose, para así saber qué
y cómo sembrar, siendo la siembra y cultivación parte misma de la lucha.
Pienso en el semillero kurdo de “Jinelogi”, una ciencia social pensada
y construida desde las mujeres de Kurdistan para sembrar y cultivar una
sociedad radicalmente distinta69
Y escucho las palabras hecho gritos en muchas partes de esta Nuestra
América, Abya Yala, territorio indo-afro-mestizo del sur… Gritos y gritas ante
la violencia-despojo-guerra-muerte: “Somos semillas” griten, gritamos, algo
que también gritaba Marielle Franco. Semillas que crecen y empiezan florecer.

O Que Você Pensa Jorgelina? Quais São os Gritos?


Ecoar em teu grito, querida amiga, pois somos sementes, gritamos
para libertar-nos de um sistema machista que nos violenta desde suas

68 Ver Juan García Salazar y Catherine Walsh, 2017, Pensar sembrando/sembrar pensando con el Abuelo
Zenón, Universidad Andina Simón Bolívar y Ediciones Abya-Yala.
69 Ver https://jineoloji.org/es

124 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


palavras e atos. Queria deixar para nos um gripo que afirmamos em três
conceitos fortes: AUTOCONHECIMENTO, AUTOCONFIANÇA E
AUTOGESTÃO, conceitos para pensar o feminismo desde a luta de classes.
Para semear semenando.
Gritemos e gritamos juntas para e por Abya Yala.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 125


CAPÍTULO 6

Internacionalização das Universidades, Produção e


Partilha Decoloniais dos Conhecimentos
Cloris Porto Torquato70
Francisco Fogaça71

Nossa proposta neste texto é refletir sobre o que entendemos como


alguns desafios da internacionalização das universidades a partir da lente
dos estudos decoloniais. Nesse sentido, entendemos que as delimitações de
disciplinas, áreas e campos correspondem ao fatiamento do conhecimento
nas universidades, o que é próprio da Modernidade/Colonialidade (Castro-
Gómez, 2007; Grosfoguel, 2016a). Próprias também da Modernidade/
Colonialidade são, por um lado, a negação dos conhecimentos dos
sujeitos colonizados e, por outro lado, a usurpação desses conhecimentos,
invisibilizando quem os produz e atribuindo-os aos grupos colonizadores/
dominantes. Outro aspecto da Modernidade/Colonialidade é a construção
de políticas linguísticas que priorizam as línguas coloniais modernas (inglês,
alemão, francês, italiano, espanhol, português) (Mignolo, 2003; 2008)
e tendem a silenciar a diversidade linguística, especialmente as línguas dos
sujeitos colonizados. O enfrentamento do fatiamento, da negação e/ou da
usurpação dos conhecimentos, com a produção da Decolonialidade, implica
que as Instituições de Ensino Superior revejam os valores atribuídos aos
diferentes conhecimentos produzidos pelos distintos grupos sociais, o que
aponta para a presença e legitimidade das vozes e línguas desses sujeitos no
contexto acadêmico. Dessa forma, um dos aspectos que enfatizamos como
desafio da internacionalização numa perspectiva decolonial diz respeito ao
multilinguismo relacionado à produção e partilha do conhecimento e à
internacionalização. Salientamos que compreendemos que, numa perspectiva

70 Universidade Estadual de Ponta Grossa e Universidade Federal do Paraná, clorisporto@gmail.com


71 Universidade Federal do Paraná, fcfogaca@gmail.com

126 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


decolonial, as respostas à Modernidade/Colonialidade são construídas
localmente, não são universais, mas situadas e contextualizadas. Assim,
os apontamentos que fazemos aqui não pretendem ser respostas fixas ou
generalizantes, mas indicações de aspectos a serem levados em consideração
na construção de processos de internacionalização em perspectiva decolonial.
Pretendemos refletir sobre a internacionalização das universidades no
contexto atual, caracterizado pela globalização, frequentemente vivenciada
no seu aspecto socioeconômico neoliberal e, portanto, pela inserção das
universidades no mercado global de prestação de serviços72 (Castro-Gómez,
2007), considerando a produção de conhecimento como um serviço e
considerando seu valor no mercado. Segundo Castro-Gómez (2007), uma
vez que vivemos na sociedade do conhecimento, as universidades ingressaram
(ou foram inseridas) neste mercado global especialmente como prestadoras de
serviços para a sociedade do conhecimento e da informação. Nesse contexto,
as línguas também são vistas como parte do mercado global e são valoradas
nesse mercado (Heller & McElhinny, 2017, p. 233).
Para desenvolvermos nossa reflexão, dividimos o texto da seguinte
forma: Introdução, na qual apresentamos o objetivo deste artigo e os
subtópicos “Internacionalização, a língua inglesa e a lógica neoliberal” e
“Produção e partilha decoloniais de conhecimento e a internacionalização das
universidades”, que tratam, respectivamente, da prevalência da língua inglesa
nos projetos de internacionalização neoliberal e dos desafios de implementar
uma proposta decolonial de internacionalização e do diálogo Sul-Sul.

Internacionalização, a Língua Inglesa e a Lógica Neoliberal


Esta subseção busca refletir sobre a internacionalização das instituições
de ensino superior no Brasil e, posteriormente, pensar a relação entre

72 Nesse sentido, as orientações da CAPES para aceleração da Internacionalização apontam que o


“amadurecimento institucional em internacionalização” implica o amadurecimento “das atividades
de pesquisa, disponibilização dos serviços educacionais e ligações comunitárias das instituições.”
(Diretoria de Relações Internacionais, 2020, p. 5). Entendemos que este documento assinala o caráter
de prestação de serviços e o insere no mercado global.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 127


internacionalização e língua inglesa a partir da experiência situada em uma
Instituição de Ensino Superior pública federal no Sul do Brasil.
Predominantemente, as universidades deixaram de ter a função da
formação para a humanização (Castro-Gómez, 2007), ainda que tal formação
fosse caracterizada pelo projeto humanizador civilizatório (Maldonado-
Torres, 2008; Grosfoguel, 2016a, 2016b), para se tornarem prestadoras
de serviços. Além disso, as universidades cada vez menos têm produzido
conhecimento para o desenvolvimento dos Estados nacionais (Laus, 2012),
como predominou entre o século XVI e meados do século XX. Ao longo do
séc. XX, as universidades foram se adaptando às transformações decorrentes
da intensificação da globalização econômica.
É importante ressaltar que o ensino superior no Brasil foi o mais tardio
na América Latina73, e as universidades brasileiras se desenvolveram já em
meio a esse processo de internacionalização do ensino superior, tendo também
cumprido importante papel na construção da identidade nacional brasileira.
A internacionalização, no nosso atual contexto, visa articular o projeto
de desenvolvimento econômico nacional ao acesso ao desenvolvimento
tecnológico mundial74 (Diretoria de Relações Internacionais, 2020), de
modo que internacionalizar se configura como uma estratégia de inserção
no mercado global de serviços, sobretudo voltados à tecnologia.
Há inúmeros conceitos de internacionalização das universidades. Há,
na verdade, pouco em comum nas várias definições de internacionalização
do ensino superior. Predomina, nos estudos e orientações oficiais sobre
internacionalização das universidades no Brasil a referência a conceitos

73 Na América Latina, ainda no século XVI, foram criadas universidades no Peru, na Bolívia, no
México, na Argentina e na Colômbia. No Brasil, as primeiras instituições de ensino superior são
do século XIX, posteriores à vinda da família real. As universidades brasileiras mais antigas são a
Universidade Federal do Amazonas, de 1909, e a Universidade Federal do Paraná, de 1912. Ver a
Enciclopédia Latinoamericana http://latinoamericana.wiki.br/universidades
74 Embora este seja o projeto enunciado pela CAPES, o que se observa de fato é a produção da
dependência do país à tecnologia desenvolvida internacionalmente. Cada vez mais se observa o
desinvestimento nas universidades públicas e na produção de pesquisa, com cortes drásticos nos
financiamentos de pesquisa (Ver, por exemplo, https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-
band/ultimas/corte-no-orcamento-ameca-pesquisas-16453681

128 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


e estudos produzidos no Norte Global75. O que vários estudos realizados
sobre experiências de internacionalização no Brasil têm mostrado é que
a internacionalização das universidades tem passado de uma visão de
solidariedade à mercantilização da educação superior. Castro (2011) expõe
que duas principais perspectivas de internacionalização têm predominado:
[a] visão da solidariedade, defendida pela UNESCO, na qual
se evidencia uma dimensão mais progressista de justiça e
equidade social, e a tendência defendida pela Organização
Mundial do Comércio (OMC), que vê na internacionalização
a possibilidade de mercantilização da educação. Os estudos
evidenciam que apesar da defesa pela ética e solidariedade entre
as nações no campo educacional ser a tônica das principais
diretrizes dos documentos da UNESCO (1998 e 2009), a ideia
de internacionalização que tem se sobressaído, tem privilegiado
o campo econômico e a ótica da competitividade entre as
nações (Castro, 2011, p. 1).

Ainda que sejam realizadas parcerias institucionais, mesmo a solidariedade


parece estar relacionada à lógica econômica, em que os conhecimentos
produzidos concorrem com instituições e empresas prestadoras de serviços.
A produção de conhecimentos volta-se especialmente para tecnologias (como
produção de energia renovável e alternativas ao petróleo), dentre as quais
tecnologias de comunicação. Nesse mesmo sentido apontam Silva e Mari
(2017), que também assinalam a mudança de função social das universidades e,

75 Não por acaso as orientações para aceleração da internacionalização da pós-graduação, produzidas


pela CAPES, tomam como referência “as lições aprendidas com o primeiro Relatório do Programa
Institucional de Internacionalização da CAPES – PrInt”, “as orientações de mentoria do Projeto
‘Laboratório de Internacionalização’ do American Council of Education (uma parceria recente
entre a DRI e Comissão Fulbright para três instituições brasileiras), bem como as perspectivas de
internacionalização resultantes da colaboração institucional dos principais parceiros Alemanha,
Estados Unidos, França e Reino Unido (em ordem alfabética).” (Diretoria de Relações Internacionais,
2020). Todas essas referências são do Norte Global. Como não é nosso objetivo discutir os vários
conceitos de internacionalização das universidades no Brasil, nos limitamos a sugerir a leitura dos
textos de Silva e Mari (2017), Castro (2011), Martinez (2017), Silva (2016), Guth (2020). Nosso
principal diálogo é com as orientações da CAPES, que têm servido de referência para IES públicas
federais e estaduais e privadas no Brasil.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 129


consequentemente, a mudança nos valores que orientam a internacionalização
do ensino superior:
É possível perceber a priorização das áreas de conhecimento
tecnológico, ou seja, os conhecimentos voltados para a produção
e reprodução de aparatos tecnológicos, os quais são altamente
lucrativos para os setores empresariais. Esse dado pode ser
comprovado, dentre outros meios, pela predominância das
bolsas de intercâmbio do CsF [Ciências sem Fronteiras] nas áreas
tecnológicas. Os conhecimentos voltados para a compreensão
do mundo e dos problemas da sociedade têm sido relegados
a segundo e terceiro planos. Além disso, a transferência de
conhecimentos, tecnologias e produtos dos países desenvolvidos
para os mais pobres alimenta o mercado e impõe a hegemonia
do poder dos países centrais (p.43).
(…) a educação de nível superior, que cresceu fortemente
a partir da segunda metade do século passado em busca da
satisfação das necessidades sociais, é cobrada a responder às
crescentes demandas de competitividade econômica e aos
interesses empresariais. Esta referida modalidade de ensino passa
a ser conduzida pelas pressões e regras do campo econômico,
incorporando os ideais impostos pelo GATS [Acordo Geral
sobre o Comércio de Serviços], pela OMC [Organização
Mundial do Comércio] e pelo BM [Banco Mundial] (p. 46).

Esses autores ainda nos auxiliam a compreender que vários dos processos
de internacionalização das universidades brasileiras estão orientados pela lógica
econômica global neoliberal. Nesse contexto, os conhecimentos produzidos
nas ciências sociais e humanidades, que predominantemente se voltam a
compreender o mundo e as demandas sociais, são muitas vezes marginalizados.
Nos editais de financiamento de pesquisa em colaboração internacional,
os autores dos projetos para a produção desses tipos de conhecimentos
disputam76 com autores de projetos voltados às tecnologias ou às ciências

76 A própria lógica de concorrência para fomento à pesquisa já se enquadra na lógica neoliberal de


distribuição de financiamento. A atribuição do financiamento baseia-se não apenas na relevância
da pesquisa proposta, mas, sobretudo, na produtividade (quantidade e qualidade de publicações,

130 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


biológicas. Nesse sentido, na lógica estrutural das universidades e, portanto,
das pesquisas no Brasil, projetos de pesquisa em colaboração internacional
relacionados aos estudos de linguagem e de literaturas disputam financiamento
com outras áreas e campos do saber, tanto dentro das humanidades e ciências
sociais quanto com ciências biológicas e exatas.
As propostas de internacionalização das agências de fomento no Brasil
podem ser caracterizadas, sobretudo, nesta perspectiva econômica neoliberal,
pois entendem que a produção de conhecimentos acadêmicos deve responder
à demanda por conhecimentos “úteis” e devem contribuir para a competição
no mercado global de fornecimento de informações e conhecimentos.
O mercado global, por sua vez, é orientado para o Norte Global. Um olhar
para os editais das agências de fomento nos leva a visualizar tal cenário. Dos
editais abertos no site da Capes, dois são para de cooperação internacional
com os Estados Unidos: “Programa CAPES/PURDUE de doutorado em
agricultura - Agriculture PhD Fellows Program77” e “Programa CAPES/
Fulbright de English Teaching Assistant (ETA) para Projetos Institucionais78”.
O segundo se destaca pelo fato de se voltar para o ensino de língua inglesa
nas instituições de ensino superior no Brasil. Nesse sentido, o ensino da
língua inglesa é partilhado especialmente com falantes nativos norte-
americanos. Em sentido semelhante, temos o resultado do Programa de
Desenvolvimento Profissional para Professores de Língua Inglesa nos EUA
(PDPI), que leva professores brasileiros para serem formados nos Estados
Unidos. Dos resultados de editais neste ano de 2019, destacamos o “Programa

especialmente) dos Programas de Pós-graduação e dos pesquisadores e nas possibilidades de retorno das
pesquisas em termos quantitativos, de produções acadêmicas e/ou de desenvolvimento tecnológico, com
destaque para produção de patentes de produtos e com especial valorização para aqueles produzidos
em cooperação com universidades estrangeiras.
77 Disponível no site do MEC, em https://www.gov.br/programa-capes-purdue-de-doutorado-em-
agricultura
78 Disponível no site do MEC, em https://www.gov.br/capes/programa-de-assistente-de-ensino-
de-lingua-inglesa

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 131


de Desenvolvimento de Profissionais da Educação Básica na Irlanda”79 e o
“Programa de Iniciativa de Pesquisa Colaborativa (PIPC) – CAPES-DFG”80.
Esses programas apontam para uma política de internacionalização
que coloca as instituições educacionais brasileiras como subsidiárias de
instituições do Norte Global, reforçando a geopolítica do conhecimento
assentada sobre relações econômicas e culturais, que dividem o mundo
entre: a) aqueles que produzem conhecimento e b) aqueles que consomem
os conhecimentos produzidos pelos primeiros (Mollis, 2017). Essa lógica, já
apontada pelos autores que se associam à rede Modernidade/Colonialidade/
Decolonialidade, teve início ainda no período colonial e permanece na
geopolítica de produção e circulação de conhecimento. Nesse sentido, embora
os documentos dos programas de pesquisa anunciem pesquisa colaborativa,
as instituições brasileiras parecem se configurar como aquelas que consomem
os conhecimentos produzidos no Norte ou que os reafirmam. Esse mesmo
processo pôde ser observado no Programa Ciências sem Fronteiras81 (CsF) em

79 Um programa voltado para a formação de membros de equipes administrativas e pedagógicas


(direção, supervisão, coordenação) de escolas e colégios públicos ou privados da educação básica
brasileira no Mary Immaculate College, em Limerick, Irlanda. Semelhante a este Programa, a Capes
tem o “Programa de Desenvolvimento Profissional de Professores da Educação Básica no Canadá”,
parceria firmada entre a Capes e o Colleges and Institutes Canadá, para formação de profissionais
(docentes e equipes administrativas e pedagógicas).
80 Parceria entre IES e pesquisadores brasileiros e IES e pesquisadores alemães, com a “mobilidade de
professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação entre as universidades alemãs e as instituições
de ensino superior brasileiras”. As áreas contempladas são Engenharia, Química e Direito. Semelhante
a este, a Capes também anunciou os resultados do Programa de Bolsas para Pesquisa CAPES/
HUMBOLDT, que também visam a cooperação entre instituições e pesquisadores brasileiros e alemães.
81 Conforme o website do Programa, http://cienciasemfronteiras.gov.br “Ciência sem Fronteiras é um
programa que busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia,
da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional.
A iniciativa é fruto de esforço conjunto dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)
e do Ministério da Educação (MEC), por meio de suas respectivas instituições de fomento – CNPq
e Capes –, e Secretarias de Ensino Superior e de Ensino Tecnológico do MEC. O projeto prevê a
utilização de até 101 mil bolsas em quatro anos para promover intercâmbio, de forma que alunos de
graduação e pós-graduação façam estágio no exterior com a finalidade de manter contato com sistemas
educacionais competitivos em relação à tecnologia e inovação. Além disso, busca atrair pesquisadores
do exterior que queiram se fixar no Brasil ou estabelecer parcerias com os pesquisadores brasileiros
nas áreas prioritárias definidas no Programa, bem como criar oportunidade para que pesquisadores
de empresas recebam treinamento especializado no exterior”.

132 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


que predominantemente estudantes brasileiros eram enviados a universidades
do Norte Global para aprender sobre a produção tecnológica lá desenvolvida
e trazer esse saber para o Brasil. O CsF voltava-se para áreas definidas como
prioritárias, excluindo as humanidades. Além disso, o Programa previu o
ensino de inglês aos alunos brasileiros para que pudessem acompanhar
os cursos no exterior, o Inglês sem Fronteiras. Numa fase posterior,
o Programa incluiu também outras línguas, passando a chamar-se Idiomas
sem Fronteiras. Nesse cenário se insere a questão linguística nos processos
de internacionalização, como assinalam as orientações para aceleração da
internacionalização dos programas de pós-graduação produzidas pela CAPES.
De acordo com o documento oficial, a construção avançada do processo
de internacionalização implica “definir os parceiros estratégicos, construir
as bases de uma política linguística, estabelecer programas de interesse e
utilidade mútuos e incorporar padrões que avançam a simples mobilidade
acadêmica, inserindo a instituição no contexto internacional.” (Direção de
Relações Internacionais, 2020, pp. 5 e 6). Nessas orientações, a política
linguística é entendida como parte do processo de internacionalizar a IES e
concebida como parte da “adequação da infraestrutura, com escritório para
o acolhimento de estrangeiros e preparação de brasileiros para mobilidade,
laboratórios de línguas dedicados às características da internacionalização
institucional, a sinalização e comunicação visual bilíngue e disciplinas
em língua estrangeira com temas globais, bem como a adequação de
currículos.” (Idem, pp. 9-10). Nesse sentido, as línguas passam a se configurar
também como serviço a ser prestado pela instituição. As línguas, como
assinalam Heller e McElhinny (2017), passam a ser vistas como “processo e
produto do trabalho” (p. 233). No contexto da produção e mercantilização
de conhecimento, as línguas integram o mercado dos conhecimentos no
qual as universidades se inserem.
Esta subseção também busca estabelecer uma relação entre a utilização
da língua inglesa e a internacionalização de instituições de ensino superior
(IES) no Brasil dentro da lógica neoliberal. Utilizamos como exemplo a
universidade na qual trabalhamos, e que está fazendo esforços no sentido
de se internacionalizar. Esse processo passa pelo preparo de professores para

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 133


o ensino de suas disciplinas ministradas em língua inglesa, em um conceito
conhecido como EMI - Ensino por Meio do Inglês.82
O EMI se refere ao uso da língua inglesa para ministrar aulas em
conteúdos diversos, em contextos nos quais o inglês não seja a língua falada
majoritariamente (Dearden & Macaro, 2016). O EMI é a forma utilizada
por muitas universidades , em vários países para levar suas instituições ao
processo de internacionalização, com a crença de que a língua inglesa seja o
passaporte para o acesso a publicações acadêmico-científicas e ao mercado
globalizado. O crescimento do EMI é considerado um fenômeno global,
embora ainda seja mais dominante no setor privado (em relação ao público)
(Dearden, 2014).
Outras nomenclaturas são utilizadas para referir-se ao uso da língua
inglesa para ministrar conteúdos em instituições de ensino, mas o EMI
parece ser o que prevalece no contexto do ensino superior, enquanto que
CLIL (content and language integrated learning) é a metodologia mais usada
em escolas bilíngues de ensino fundamental e médio, pelo foco que é dado
tanto no conteúdo a ser estudado quanto no desenvolvimento linguístico
(aprendizagem de inglês). No contexto universitário, no entanto, o foco é
maior no conteúdo das disciplinas em si, e não no aprendizado da língua.
A instituição onde trabalhamos teve a preocupação de iniciar a
preparação de seus professores para o processo de internacionalização,
tendo como pressuposto que para isso teriam que ministrar aulas e cursos
em inglês. Assim, em 2016 a Universidade de Oxford foi chamada para
dar um treinamento de EMI em nossa instituição para que tal preparação
ocorresse. Foram abertas 20 vagas para professores interessados no curso;
inscreveram-se professores das mais diversas áreas (Agronomia, Biologia,
Física, Direito, Letras, Engenharia, Química, entre outros). Tal treinamento
incluiu microteaching, discussões e comentários em relação a essas miniaulas,
apresentações, e discussões metodológicas. A proposta do curso era treinar
professores a dar aulas em inglês, fazendo com que as mesmas fossem mais
interativas, participativas, e que a falta de conhecimento linguístico de

82 Em inglês, English as a Medium of Instruction.

134 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


alunos e professores fosse minimizado – as atividades do curso incluíam
ensinar os professores a trabalhar com atividades em grupos, pares, a dialogar
mais com seus alunos, a preparar com antecedência o vocabulário que
poderia dificultar o aprendizado dos conteúdos. O pressuposto é o de que
procedendo dessa forma os alunos poderiam expor mais suas dúvidas em
relação ao vocabulário técnico em língua inglesa e teriam também maior
possibilidade de interagir com seus colegas e praticar o idioma. Assim,
mesmo que o propósito de uma aula dada em inglês não fosse o de ensinar
a língua, conhecer tais técnicas facilitaria o trabalho do professor ao lidar
com dificuldades linguísticas de seus alunos.
Após o curso, muitos dos participantes iniciaram turmas ministradas
em EMI, algumas dadas de forma intensiva no período de férias. Tais
disciplinas foram acompanhadas pelo coordenador local do curso de Oxford
para verificar o impacto que o curso teve nessas novas turmas, em especial
turmas do curso de Agronomia, o que envolveu observação de tais aulas
e entrevistas com professores e com os alunos. Verificou-se que, de fato,
houve maior interatividade entre alunos e professores, resultando em aulas
mais dinâmicas. Nesse sentido, podemos dizer que o curso proposto pela
Universidade de Oxford foi bem sucedido. Verificou-se que didática do
professor e sua preparação para o ensino por meio da língua inglesa contavam
mais do que seu conhecimento linguístico, contradizendo o mito de que para
dar aulas em inglês o professor teria que ter um nível linguístico avançado
nesse idioma (Martinez; Fogaça; Figueiredo, 2017).
A questão que se coloca aqui não é se o EMI pode ou não ser usado
no contexto brasileiro, ou se pode ou não atingir o objetivo de ensinar
conteúdos para alunos brasileiros. Não se trata tampouco de buscarmos
ou não experiências bem sucedidas de EMI em outras partes do mundo
(especialmente nos países do Norte), ou o nosso próprio caminho em relação
a esse fenômeno, como expõe Martinez (2015), “[o] Brasil historicamente
tende a olhar com admiração para “o norte” e seus produtos de exportação”.
Este autor enfatiza ainda que precisamos
olhar novamente nessa direção (embora não exclusivamente),
mas não em admiração, não em busca de respostas. O EMI

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 135


no Brasil não deveria seguir nenhum modelo, mas aquele
que suas muitas instituições decidam ser o melhor. De forma
alguma o Brasil deveria olhar para a Europa ou qualquer
outro lugar em busca de modelos de como o EMI deveria se
desenvolver localmente83

Há outra questão, no entanto, que antecede a essa da busca pelo


melhor modelo de EMI no Brasil: a “naturalização” do uso da língua inglesa
como componente essencial do processo de internacionalização de uma
instituição de ensino superior. Se por um lado entendemos a importância
do inglês na dimensão global, pensamos que não se trata apenas da escolha
do melhor modelo ou da melhor forma de implantarmos o EMI em nosso
país, mas de problematizarmos a perspectiva monolíngue e monocultural
que essa proposta traz consigo. Por que não adotarmos outras línguas como
meio de instrução em vez de somente EMI? Ressaltamos que não se trata de
negar a relevância da língua inglesa no meio acadêmico, mas de pensarmos
em uma internacionalização que dialogue com parceiros das mais diversas
línguas e culturas não somente em inglês, ou seja, de pensarmos em uma
proposta realmente multi/transcultural.
Para Castro-Gómez (2007), a universidade não pode mais dividir os
saberes de modo analítico, considerando a realidade de forma compartimentada
e fragmentada. Nesse sentido, considera que seja necessário um avanço na
concepção de uma universidade que integre os conhecimentos. Da mesma
forma, entende que tal concepção carrega consigo um movimento em
direção à transculturalidade, na qual “diferentes formas de produção de
conhecimentos possam conviver sem que sejam submetidos à hegemonia
única da episteme da ciência ocidental” (Castro-Gómez, 2007, p. 86). Desse
modo, entendemos que faz sentido, em uma perspectiva decolonial de
internacionalização, que as diferentes línguas sejam integradas e colaborem
para que a internacionalização ocorra – não somente as diversas línguas

83 Brazil has historically tended to look towards “the North” and its many exports in admiration.
This chapter has encouraged looking again in that direction (though not exclusively), but not in
admiration, nor for answers. EMI in Brazil should not follow any model but the one it (and the
many institutions within it) decides is best for itself. By no means should Brazil look towards Europe
or anywhere else for models of how EMI should grow domestically.

136 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


coloniais oferecidas na instituição, como também as línguas indígenas
faladas em nosso continente.
Contudo, se tomarmos como exemplo os números de alunos
internacionais de mobilidade acadêmica em nossa instituição nos últimos
dois anos, veremos que a grande maioria não vem de países de língua inglesa.
São dados como estes (figura 1) que nos fazem questionar se outros idiomas,
além do inglês (que, aliás, aparece como idioma de apenas 3 alunos), não
deveriam ter maior relevância nos esforços de internacionalização da instituição.
Figura 1 – Alunos internacionais de mobilidade acadêmica em 2018-2019

França 42
Alemanha 31
Japão 24
México 18
Espanha 7
Colômbia 6
Coreia 3
EUA 3
Bélgica 2
Chile 2
Argentina 1
Croácia 1
Hungria 1
Suécia 1
Uruguai 1
Total de alunos 143
Fonte: Agência UFPR Internacional (AUI)

Não foi possível obter dados referentes aos alunos de nossa instituição
que vão para universidades em outros países, mas o coordenador de mobilidade
acadêmica de nossa universidade nos relatou que a maioria dos alunos vão
para universidades situadas em países onde o espanhol é a língua dominante.
Considerando a origem dos estudantes internacionais acolhidos em nossa

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 137


instituição e o destino dos nossos estudantes brasileiros, cabe assinalar
o não predomínio da língua inglesa, embora tenhamos consciência da
predominância dessa língua no mercado global do conhecimento, com a hiper
centralidade da língua inglesa nas publicações científicas84 (Hamel, 2013).
Nesse contexto de mobilidade estudantil, é relevante observarmos
que o Plano Institucional da Internacionalização (2018-2022)85 de nossa
IES estabelece que “as ações e políticas estratégicas de internacionalização”
devem ser “estruturadas em torno das dimensões institucionais da cooperação
internacional, da mobilidade acadêmica e das políticas linguísticas” (p. 4).
Em relação a essas políticas, esse mesmo Plano determina que “a UFPR adota
a visão do multilinguismo e multiculturalismo, incentivando o aprendizado
de idiomas vistos como estratégicos para o desenvolvimento científico e
acadêmico, favorecendo assim o processo de interlocução com os parceiros
internacionais” (p. 12). Entretanto, no mesmo documento, é definido que
“Dentre as ações básicas desta Coordenação [de Políticas Linguísticas] consta
o incentivo e apoio ao desenvolvimento de competências linguísticas
para a produção e publicação, em inglês, de textos científicos e de
apresentações acadêmicas em eventos internacionais.” (p. 12), apontando
para o reconhecimento da hiper centralidade da língua inglesa. Essa mesma
centralidade é reafirmada no conjunto de ações de políticas linguísticas a
serem implementadas para a internacionalização da instituição: “Transformar
a cultura docente universitária, ampliando o percentual de docentes
qualificados para a oferta de disciplinas em inglês por meio de ações
como o English as Medium of Instruction (EMI);”, de modo que o
EMI é uma política linguística da universidade, assim como o Idioma sem
Fronteira (IsF), programa oferecido a estudantes que queiram se preparar

84 Hamel (2013) afirma: “En el transcurso del siglo XX, la comunidad científica internacional ha
pasado de un modelo plurilingüe restringido pero bastante horizontal y equilibrado entre tres idiomas,
a saber, el alemán, inglés y francés, a un modelo vertical, caracterizado por la posición hegemónica
de inglés. En 2000 nos encontramos con que el 82% de las publicaciones en las ciencias sociales y
las humanidades y el 90-95% de las publicaciones llamadas ciencias naturales aparecieron en inglés,
que es hoy en día la única lengua híper-central1 y globalizada. Para 2012 esta concentración se ha
agudizado aún y, en el caso del alemán, ha desaparecido prácticamente el discurso científico escrito
en revistas en ciencias naturales” (p. 322).
85 Disponível em http://www.prppg.ufpr.br/plano_institucional_de_internacionalizacao_ufpr

138 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


para uma experiência internacional 86. Em relação a este último, é importante
assinalar a proposta de “Ampliar a oferta gratuita do programa Idiomas sem
Fronteiras (IsF), visando a preparação para o exame TOEFL (discentes e
docentes);” (p. 13), de forma que o foco principal permanece sendo a língua
inglesa, reforçada pela proposta de “Ampliar o escopo do programa Inglês
para Fins Acadêmicos (IFA), criado em 2017 e voltado para atender a alunos
e professores;” (p. 13). Assim, o que ocorre é que a língua inglesa assumiu
o papel de língua hegemônica na instituição, concentrando os esforços
dirigidos à internacionalização.
Nesse sentido, assume destaque o Curso de Escrita Acadêmica ofertado
pela Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PRPPG) de nossa universidade,
com objetivo de preparar professores e acadêmicos em geral, para a publicação
de textos científicos em língua inglesa. No curso de 2021, cerca de 1000
alunos estavam inscritos na disciplina. Obviamente, a procura pelo curso
não se deve apenas a uma política linguística da universidade; a comunidade
acadêmica se sente motivada a realizar o curso e a universidade atende a
um desejo de seus acadêmicos (alunos e professores). Mas, novamente,
existe um esforço institucional de atender a essa demanda, enquanto que
as demais línguas não recebem o mesmo tratamento, no entendimento do
coordenador de mobilidade acadêmica87.
Podemos supor que os alunos saibam inglês e possam estudar em nossa
universidade interagindo na língua inglesa (ou em português, possivelmente).
Ainda assim, os dados que obtemos não parecem justificar os esforços
no sentido de oferecer aulas que utilizem exclusivamente o EMI. Essa

86 O site da AUI traz o seguinte texto: “Promovido pelo Ministério da Educação (MEC) através da
Secretaria de Educação Superior (SESu) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), o principal objetivo do Programa Idiomas sem Fronteiras é incentivar o aprendizado
das diversas línguas oferecidas, além de propiciar uma mudança abrangente e estruturante no ensino
de idiomas estrangeiros nas universidades do País. O programa Idiomas sem Fronteiras, tendo seu
início no Inglês sem Fronteiras, foi elaborado com o objetivo de proporcionar oportunidades de
acesso à universidades de outros países. Neste sentido, essas ações também atendem a comunidades
universitárias brasileiras enquanto aumentam o número de professores e alunos estrangeiros em seus
campi”. Disponível em https://internacional.ufpr.br/portal/isf-idiomas-sem-fronteiras/
87 Estas informações foram obtidas por meio de uma entrevista semiestruturada com o coordenador
de mobilidade acadêmica da instituição.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 139


problematização passa pelo entendimento de internacionalização em nosso
contexto, pelas relações que queremos manter com instituições de ensino
do exterior, por quais alunos pretendemos receber, e para onde iriam nossos
alunos de mobilidade acadêmica. Há nessa proposta de EMI a ideia implícita
de que o intercâmbio cultural e acadêmico se daria com países de língua
inglesa (o que de fato não vem acontecendo), especialmente para os países
do Norte, em busca de conhecimento e de intercâmbio científico, uma
herança do colonialismo. O sentido de internacionalização, assim, sugere uma
continuidade do processo de colonização, agora travestido de globalização,
tendo a língua inglesa um papel instrumental como facilitadora desse processo.
O colonialismo pode ter passado, mas a colonialidade continua
(Maldonado-Torres, 2008), em um mundo cada vez mais neoliberal. Nas
palavras de Juliana Martinez (2016, p. 19), referindo-se à relação entre
neoliberalismo e colonialidade:
Ao mesmo tempo em que colonialidade e neoliberalismo se
constituem como processos histórico-sociais distintos, um não
existiria sem o outro, portanto, a globalização pode ser entendida
como a continuação da colonização. A contemporaneidade das
sociedades democráticas funciona em meio à manutenção
de hierarquias histórico-sociais e de relações desiguais de
poder entre as mais diversas línguas, culturas, povos, saberes,
nações, etc., ou seja, a globalização não alterou a lógica de
superioridade/inferioridade e o neoliberalismo, ou capitalismo
global, acirrou a lacuna entre pobres e ricos (Castro-Gómez
& Grosfoguel, 2007; Santos, 2016).

A relação entre o neoliberalismo e a colonialidade é importante, na


medida em que certas definições relacionadas ao conceito de internacionalização
são tomadas acriticamente por muitos autores. Jane Knight (2003), uma das
autoras que mais escreve sobre o tema, se refere à internacionalização como
“um processo de integração internacional, intercultural, ou dimensão global
ao propósito, funções ou oferta de cursos e programas no ensino superior”
(p. 2). A autora afirma que os termos “internacional, intercultural e dimensão
global são intencionalmente usados como uma tríade” (p.3) – a noção de

140 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


internacionalização referindo-se às relações entre nações, culturas e países;
a de interculturalidade à diversidade de culturas que existem nos países,
comunidades e nas instituições; e a dimensão global ao âmbito mundial. Tais
termos, segundo ela, são complementares e devem ser pensados de forma
conjunta. No entanto, tais conceitos não são problematizados e aprofundados,
considerando-se a complexidade de relações de poder que se estabelecem
entre os países e forças político-econômicas que igualmente impactam a
internacionalização e as relações interculturais no mundo globalizado --
sobretudo na época em que vivemos, na qual existe uma forte tendência
dos países do Norte Global de estabelecerem políticas neoliberais em seus
países e entre parceiros comerciais, como no caso do Brasil.
Globalização não é sinônimo de neoliberalismo, certamente, sendo um
fenômeno muito mais amplo. No entanto, o fato de que os países ocidentais
tenham substituído o Keynesianismo (o discurso liberal tradicional) pelo
neoliberalismo como o discurso econômico hegemônico nos colocou em
um paradigma mercantilista de globalização, com foco na liberdade de
comércio e livre circulação do capital através das fronteiras dos países. Em um
sentido mais abrangente (não restrito ao neoliberalismo), no entanto, seria
uma consequência de avanços tecnológicos e científicos que aproximaram
diferentes partes do mundo, encurtando distâncias, e influenciaram a
informação, as comunicações e a mobilidade das pessoas no mundo. Embora
sejam coisas diferentes, certamente as tecnologias facilitaram esse processo
econômico neoliberal, sendo o neoliberalismo em si uma das dimensões da
globalização (Olssen & Peters, 2005).
Na educação pública superior, e na educação de forma geral,
o neoliberalismo implica o desinvestimento por parte do Estado em
instituições públicas e o estímulo à privatização, ou, ao menos, à participação
de capital privado nas universidades88. Um dos maiores objetivos das reformas

88 Um exemplo é o Future-se, projeto do atual governo federal. “O Future-se busca o fortalecimento


da autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais. Essas ações
serão desenvolvidas por meio de parcerias com organizações sociais. O programa se divide em três eixos”.
Disponível em http://portal.mec.gov.br/perguntas-e-respostas-do-future-se-programa-de-autonomia-
financeira-do-ensino-superior Esses três eixos são gestão, governança e empreendedorismo, eixos que
são comuns ao universo dos negócios, da economia. Incentivam-se a parceria das universidades com

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 141


neoliberais nas IES é o de instaurar relações de competição e meritocracia
como forma de aumentar a produtividade, prestação de contas e de controle,
o que supostamente aumentaria também a qualidade da educação (Olsen;
Peters, 2005). Além disso, o conhecimento disciplinar passa a ser avaliado
segundo seu valor econômico e prático: as ciências aplicadas e tecnologias
de informação e comunicação tendo seu status hierárquico mais elevado,
enquanto que as artes e humanidades em geral são áreas desprestigiadas.
Quando diferentes áreas de conhecimento são vistas dessa forma utilitária
e diretamente relacionadas ao mercado e às empresas financiadoras da
educação superior (e de pesquisas), o sentido da construção do conhecimento
em si se perde, juntamente com seus valores heurísticos, epistemológicos e
ontológicos (Patrick, 2013).
Em relação à internacionalização de grande parte das IES brasileiras,
podemos observar que a mesma lógica hierárquica se estabelece entre as
diferentes universidades do Sul e do Norte Global, estas últimas sendo
as mais prestigiadas e fornecedoras dos conhecimentos que contam para
o mercado neoliberal, e que, portanto, deveriam ser alvo de parcerias de
internacionalização e de intercâmbio com nossas instituições do Sul, como
observa Martinez (2017, p. 81).
Um dos aspectos que me intriga quando se fala em
internacionalização da Educação Superior aqui no Brasil é a
ideia de que há um problema a ser resolvido e que suas soluções
estão visivelmente disponíveis. Trata-se, normalmente, de
apontar aquilo que determinada universidade não tem, não faz,
não sabe; e que, portanto, a impede de se tornar uma instituição
internacional ou de se beneficiar das possibilidades que surgem

empresas e a entrada de capital privado na gestão e financiamento das instituições do ensino superior.
A pesquisa é relacionada à tecnologia e à criação ou à relação com empresas. A internacionalização
segue essa lógica, enfatizando “pesquisa aplicada”, o que aponta para pesquisa como uma resposta às
demandas tecnológicas e empresariais. Além disto, a internacionalização se volta para inserção, no
contexto acadêmico brasileiro, de profissionais com formação em instituições internacionais “com
alto desempenho”, marcando novamente a perspectiva empresarial e econômica do programa e,
portanto, da internacionalização, no âmbito desse programa. Assim como o Ciência sem Fronteiras,
o Future-se deixa de fora as humanidades e as ciências sócias, o que aponta para a exclusão dos
estudos das linguagens e das literaturas.

142 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


do cenário global da educação na contemporaneidade. É uma
lógica pautada em causa e consequência, em que apenas a
identificação de suas deficiências, tanto as administrativas e de
gerenciamento quanto de infraestrutura e de recursos humanos,
bastaria para resolver seus problemas e/ou supostos entraves.

Como já indicamos anteriormente, tais práticas legitimam as


instituições do Norte como sendo hierarquicamente superiores e fornecedoras
de conhecimento e tecnologia, às quais nossas instituições devem recorrer para
resolver seus problemas, para subir no ranking das melhores universidades
e possam também, eventualmente, ao conquistarem maior poder simbólico
(Bourdieu, 1989), exportar conhecimento.

Produção e Partilha Decoloniais de Conhecimento e a


Internacionalização das Universidades
Nesta subseção, buscamos refletir sobre os desafios de desenvolver
a internacionalização numa perspectiva decolonial. O enfrentamento à
lógica econômica neoliberal e à dependência do Norte Global liga-se ao
questionamento da divisão do conhecimento e vincula-se também ao
multilinguismo na produção e partilha decoloniais do conhecimento.
Na subseção anterior, refletimos sobre a vinculação de grande parte das
universidades brasileiras à lógica neoliberal do mercado global científico, que
se baseia na geopolítica do conhecimento, com as universidades do Norte se
configurando como produtoras do conhecimento e as universidades do Sul
como consumidoras e subsidiárias desse conhecimento. Entendemos que
esse vínculo se dá porque, como afirmam Lander (2000) e Castro-Gómez
(2007), a maior parte das universidades na América Latina têm reproduzido e
reforçado os modelos hegemônicos do Norte, com um olhar colonial sobre o
mundo. Dessa perspectiva não escapa a maioria das universidades brasileiras,
dos setores de Ciências Humanas, nos quais estão predominantemente
inseridos os cursos de Letras.
Concordamos com Castro-Gómez (2007), para quem a saída é
decolonizar as universidades na América Latina, o que para nós implica

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 143


também decolonizar os processos de internacionalização. Perguntando-se
sobre o que significa essa decolonização das universidades, o autor responde
que é necessário compreender em que consiste o olhar colonial sobre o
mundo (Lander, 2000). Segundo Castro-Gómez (2007), esse olhar colonial
implica um modelo de produção de conhecimento que se produziu a partir
da modernidade ocidental. A esse modelo epistemológico o autor denomina
“hybris do ponto zero”, que implica tanto um pensamento disciplinar
como a organização arbórea das estruturas acadêmicas. Para o autor,
o fatiamento do conhecimento nas disciplinas e a estrutura das universidades
indicam a inscrição da universidade na “estrutura triangular da colonialidade:
colonialidade do ser, colonialidade do poder e colonialidade do saber”
(Castro-Gómez, 2007, p. 80).
A “hybris do ponto zero”, de que fala o autor, se configura como o projeto
humano de construir conhecimento a partir de um ponto de observação que
permite observar o todo, mas não permite que quem observa seja observado.
Essa é, segundo o autor, a proposta de construir conhecimento a partir de um
ponto de observação não-observável. Esse modelo epistemológico configura-se
como um modelo analítico abstrato (de origem matemática), que se assenta
sobre a separação entre ser humano e natureza e a decomposição analítica
da natureza para dominá-la. Antes, ser humano e natureza formavam um
todo orgânico, e ser humano e conhecimento “formavam parte de um todo
interrelacionado” (Castro-Gómez, 2007, p. 82). A partir da separação,
se instaura não apenas um modelo epistemológico, mas também um novo
modelo ontológico.
Esse modelo analítico, por sua vez, está ligado à “organização arbórea”
da estrutura da universidade pelo modelo disciplinar, uma vez que cada
disciplina se ocupa de uma fatia/parte da realidade, que deve ser decomposta/
fragmentada para ser conhecida. As disciplinas traçam fronteiras umas em
relação às outras, recortando para si um espaço/uma fatia do conhecimento.
Um modo de construir essas fronteiras e delimitar as partes que lhe cabem
no universo do conhecimento é inventar as origens da disciplina e estabelecer
os autores canônicos. “Os cânones são dispositivos de poder que servem

144 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


para ‘fixar’ os conhecimentos em certos lugares, fazendo-os facilmente
identificáveis e manipuláveis” (Ibidem, p. 84).
Segundo Castro-Gómez (2007), ainda que a universidade esteja baseada
na colonialidade, é possível identificar que “estão sendo incorporados novos
paradigmas de pensamento e organização que poderiam contribuir para
romper” (p. 80) o modelo epistemológico da Colonialidade/Modernidade.
Para o autor, a transdisciplinaridade89 e o pensamento complexo contribuem
para esse rompimento, uma vez que possibilitam a construção de “pontes
para um diálogo transcultural de saberes” (p. 80). A transdisciplinaridade
viabilizaria essa ponte por tratar a realidade de modo articulado, superando
as fronteiras teóricas e metodológicas, e não de modo fragmentado ou
compartimentado. Para o autor, uma universidade que levasse a sério
a transdisciplinaridade possibilitaria o diálogo transcultural de saberes,
caminhando para uma universidade transcultural. O autor explica que
esse diálogo transcultural de saberes implica sair da hybris do ponto zero –
possibilitando que o observador também seja observado e posicionando-se
em relação à produção do conhecimento – e implica também confrontar a
hierarquia entre conhecimentos. Implica, sobretudo, posicionar-se contra
a separação entre ser humano e natureza e ser humano e conhecimento.
Os conhecimentos produzidos na academia não são superiores aos demais
conhecimentos produzidos em outros contextos e por outros atores sociais.
Assim, “todos os conhecimentos ligados a tradições ancestrais, vinculados
à corporalidade, aos sentidos e à organicidade do mundo, enfim, aqueles
que do ponto zero eram vistos como ‘pré-história da ciência’, começam a
ganhar legitimidade e podem ser tidos como pares iguais num diálogo de
saberes” (Castro-Gómez, 2007, p. 89).

89 Autoras como Signorini (1998) e Cavalcanti (1998) vêm apontando para a necessidade de pesquisas
transdisciplinares, e Moita Lopes (2006) tem apontado para a posição indisciplinar. Esses autores
contribuem para produção de estudos de linguagem orientados para a desobediência epistemológica.
A II Jornada Internacional de Linguística Aplicada Crítica, realizada em julho de 2019 em Brasília,
teve como tema “Perspectivas Decoloniais na Linguística Aplicada Crítica”. Entretanto, parece haver
aí uma certa fixidez disciplinar e de áreas, uma vez que propõe a “disseminação de pesquisas recentes
no campo da Linguagem, pelas comunidades acadêmicas de Letras, Linguística e Educação”.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 145


Nesse sentido, entendemos ser necessário considerar essas outras
epistemologias e construir espaços para que esses outros conhecimentos
sejam partilhados na pesquisa. Como muitos desses conhecimentos são
produzidos em línguas que historicamente foram marginalizadas e silenciadas,
ouvir e partilhar esses saberes implica que a decolonização das universidades
e dos projetos de internacionalização seja construída como multilíngue e,
frequentemente, heterodiscursiva e translíngue.
As concepções de linguagem e de multilinguismo que mobilizamos
estão relacionadas ao heterodiscurso90 (Bakhtin, 2015) e ao translinguismo
(Guzula, McKinney & Tyler, 2016; Blackledge & Creese, 2010; Blackledge,
Creese & Hu, 2015), uma vez que se voltam para como os sujeitos e os
grupos estão mobilizando os recursos linguísticos e semióticos de que
dispõem nas práticas linguísticas, mobilizando diferentes vozes sociais
(posições valorativas distintas), recursos semióticos (por exemplo, palavras,
sons, musicalidades, imagens e gestos), registros sociais e línguas nomeadas
distintamente91. Assim como Guzula, McKinney e Tyler (2016) e Blackledge
e Creese (2010), nos alinhamos à ruptura epistemológica que vê a linguagem
e, portanto, o multilinguismo, como conjuntos de recursos sócio-cultural-
política-historicamente situados, que compõem repertórios multissemióticos
para a produção de sentidos, que os sujeitos e os grupos colocam em ação
nas práticas discursivas. Entendemos que esses recursos e repertórios são
diferentemente avaliados e valorados nos grupos e nas práticas (McKinney
et al., 2015) e que seu uso é constituído por relações de poder.
Partindo desta perspectiva, uma vez que os conhecimentos são
produzidos nos distintos grupos, os quais mobilizam diferentes recursos

90 Em língua inglesa, a tradução do termo russo usado por Bakhtin tem sido heteroglossia. Em
língua portuguesa, a tradução mais recente é heterodiscurso.
91 Nessa perspectiva, reconhecemos que historicamente, por questões de poder e em diálogo com as
construções dos estados-nacionais, foram construídas fronteiras entre os recursos linguísticos e foram
construídas unidades linguísticas discretas, nomeadas como línguas distintas. As construções das
línguas nacionais envolveram/envolvem processos políticos de delimitação de fronteiras linguísticas e
de higienização das línguas, marcadas por ideologias linguísticas de padronização e de hierarquização
linguística. Sugerimos ver a respeito da noção de “invenção das línguas” Makoni e Meinhof (2006) e
sobre a ideologia da padronização ver Milroy (2011). Sugerimos também a leitura de Bakhtin (2015).

146 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


e repertórios, o diálogo dos saberes e a decolonização das universidades
implicam o multilinguismo e não apenas o uso da língua inglesa, como
assinalamos anteriormente. O multilinguismo caracteriza distintos contextos
socioculturais nos quais estão inseridas as universidades, especialmente no
eixo Sul-Sul, caracterizado pela imposição das línguas europeias coloniais
modernas e pelo silenciamento (quando não o apagamento extinção) das
línguas locais.
Na perspectiva dos estudos decoloniais, a geopolítica do saber e,
consequentemente, das línguas tem suas origens, como assinala Mignolo
(2003, 2008, 2011, 2015, 2017) na colonialidade do saber, que instituiu as
línguas europeias coloniais modernas - inglês, espanhol, francês, português,
alemão e italiano - como línguas do saber. Isso se deve ao propósito e à ação
colonial de classificar como inferiores às línguas que não fossem, no período
colonial, o latim, o grego e estas seis coloniais modernas. As demais línguas
seriam incapazes e inadequadas para a sistematização do conhecimento e para
o pensamento racional. Por sua vez, todo conhecimento produzido em outras
línguas seria não racional, não sistematizado nem sistemático e, portanto,
inferior. O que se poderia formular nas línguas não coloniais era cultura e
folclore, mas não conhecimento válido para a ciência, para a academia.
Nos contextos acadêmicos, historicamente, à colonialidade do saber
foram associados projetos nacionalistas, o que resultou na adoção das línguas
coloniais nas construções dos estados-nações no Sul global. Essa associação
contribuiu para a consolidação de ideologias de monolinguismo na América
Latina de modo geral e, sobretudo, no Brasil. Assim, além do silenciamento
das línguas indígenas, frequentemente observamos a marginalização das
línguas de imigrantes.
Embora o Brasil seja um país multilíngue (Cavalcanti, 1999; Oliveira,
1999), nas universidades, assim como na sociedade de modo mais amolo,
predomina a ideologia do monolinguismo, segundo a qual no Brasil se
fala apenas português. São frequentemente desconsideradas as línguas
indígenas, de fronteiras e de imigrantes como línguas de produção e
partilha do conhecimento acadêmico. No projeto de internacionalização
das universidades brasileiras, à ideologia monolíngue brasileira soma-se a

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 147


ideologia linguística hegemônica que instituiu a língua inglesa como língua
de comunicação internacional, como destacamos no subtópico anterior,
exemplificando com a política linguística da IES na qual atuamos.
Por outro lado, o que temos observado em distintas universidades da
África do Sul e da Índia, por exemplo. é uma revisão desta perspectiva, de
modo que, nos contextos acadêmicos, línguas africanas e indianas têm sido
utilizadas para produzir conhecimento, e temos observado a produção de
textos acadêmicos multilíngues e translíngues. Apesar disso, a circulação/
partilha desses conhecimentos é feita predominantemente em língua inglesa,
uma vez que os periódicos acadêmicos, tanto de circulação nacional na
África do Sul e na Índia quanto internacionais, são publicados nessa língua.
Vale destacar que esses dois países foram subjugados pelo sistema colonial
britânico, o que possibilitou que a língua inglesa fosse língua oficial em ambos
os países. Porém, distintamente do Brasil, nesses países o multilinguismo é
oficialmente reconhecido e valorizado, de modo que na África do Sul são
oficiais 12 línguas (isizulu, isixhosa, afrikaans, inglês, sepedi, tswana, sotho,
tsonga, siiswazi, venda, isindebele e a língua sul-africana de sinais) e na Índia
são oficiais 23 línguas, sendo duas oficiais da administração federal (inglês e
hindi). No contexto acadêmico indiano, predomina a utilização da língua
inglesa, mas tem havido um uso crescente de hindi. Nas universidades da
África do Sul, também predomina a língua inglesa, mas afrikaans, isizulu e
isixhosa também estão presentes na produção de conhecimento.
Partindo de uma perspectiva decolonial, nos interrogamos
conjuntamente pelas línguas excluídas no projeto de colonialidade do saber
e pelos conhecimentos também excluídos. Como assinalado anteriormente,
os conhecimentos não orientados para e pelo princípio da racionalidade
moderna/colonial foram também excluídos do espaço acadêmico científico.
Esses conhecimentos entraram/entram na academia quando apropriados
e dominados nas línguas modernas coloniais e sistematizados ao modo
científico racional. Marcos Terena, em palestra proferida na Universidade
de Brasília quando dos 500 anos de Brasil, apontou para o que ele chamou
de “usurpação do saber”, a apropriação indevida dos conhecimentos
indígenas (especialmente sobre a natureza). O saber usurpado é recoberto

148 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


pelo discurso científico e legitimado, enquanto que os conhecimentos
indígenas permanecem marginalizados, deslegitimados, sendo tratados como
mito, folclore e curandeirismo. As literaturas e artes indígenas são objeto de
estudo nas academias brasileiras, mas raramente ocupam os espaços como
arte e literatura que são.
A perspectiva decolonial - ao propor-se como fronteiriça - busca
epistemologias disruptivas, que nos permitam outras formas de conhecimento,
e propõe o diálogo entre os saberes cientificamente construídos e outras
epistemes. Nesse sentido, vale ressaltar que essas epistemes podem não estar
tão distantes quanto imaginamos, como assinala Albán Achinte (2012):
Las epistemologías fronterizas no se ubican en lugares
distantes de nuestras cotidianidades, sino en la cercanía del
pensamiento indio, afro, de mestizos empobrecidos, mujeres,
gays, lesbianas, personas con capacidades diferentes y jóvenes
como alteridades de la razón instrumental que cada día nos
asalta desparpajadamente sin tener conciencia de ello en un
occidente que continua en su proceso globalizador (Albán,
2006). Tal vez “no tendremos necesidad de inventarnos
nada ‘nuevo’ sino reconocer, revitalizar y potenciar todo ese
mundo que en el imaginario de muchos opera aún como
‘exotismo’, ‘saberes’ ‘haceres’ y ‘folklore’” (Albán, 2006: 71).
Con todo, “en el horizonte de una mestización como discurso
homogenizánte y que nos empuja hacia el blanqueamiento del
pensamiento, el mundo negro o afro tiene un escenario inmenso
para desentrañar” (Albán, 2006: 71); como por ejemplo, la
oralidad, escenario de construcciones diversas y de infinitos
saberes (p. 26).

Ao propormos a decolonialidade da interncionalização das IES não


nos limitamos ao multilinguismo no contexto acadêmico, mas nos voltamos,
sobretudo, às epistemes historicamente marginalizadas, deslegitimadas
e aos conhecimentos que possibilitam formas críticas de pensamento,
não universalizantes nem universalistas. Esses conhecimentos podem ser
produzidos e narrados em diferentes línguas. São histórias que podem ser
contadas em muitas línguas, mas que, em função do poder atribuído às línguas

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 149


coloniais, são traduzidos e/ou produzidos nessas línguas. Temos no horizonte
não apenas a diversidade de saberes academicamente/sistematicamente
produzidos, mas também aqueles conhecimentos em outros processos de
produção que “não científicos” e construídos em diferentes línguas.
A partir de Terena (2000), gostaríamos de ressaltar um aspecto central
da decolonização das universidades e da internacionalização do ensino
superior: a necessidade de reflexão permanente sobre a produção e a partilha
de conhecimentos de modo a fortemente evitar e se afastar da “usurpação do
saber”. Esse conceito de “usurpação de saber”, de Terena, pode ser aproximado
do conceito de “extrativismo epistemológico”, desenvolvido por Grosfoguel
(2016) a partir do conceito de “extrativismo cognitivo”, formulado pela
indígena canadense Leanne Betasamosake Simpson. A definição de Grosfoguel
(2016) se aproxima da definição feita por Terena.
El «extractivismo» intelectual, cognitivo o epistémico trata
de una mentalidad que no busca el diálogo que conlleva la
conversación horizontal, de igual a igual entre los pueblos
ni el entender los conocimientos indígenas en sus propios
términos, sino que busca extraer ideas como se extraen materias
primas para colonizarlas por medio de subsumirlas al interior
de los parámetros de la cultura y la episteme occidental.
El «extractivismo epistémico» expolia ideas (sean científicas o
ambientalistas) de las comunidades indígenas, sacándolas de
los contextos en que fueron producidos para despolitizarlas y
resignificarlas desde lógicas occidentalo-céntricas. El objetivo
del «extractivismo epistémico» es el saqueo de ideas para
mercadearlas y transformarlas en capital económico o para
apropiárselas dentro de la maquinaria académica occidental
con el fin de ganar capital simbólico (Grosfoguel, 2016, pp.
132-133).

A usurpação ou expoliação das ideias e dos conhecimentos é um risco


que se corre quando se busca acessar epistemes outras. Por isso, o acesso e
o diálogo com essas outras epistemologias configuram-se como um desafio
para pesquisadores e universidades que se voltam para a decolonização das
universidades e da internacionalização.

150 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Considerações Finais
Os desafios de pensar os multilinguismos, os distintos processos de
internacionalização das universidades e a produção e partilha de conhecimento
na perspectiva decolonial estão intimamente relacionados ao projeto
decolonial de ir além da resistência à colonialidade/modernidade. Como
assinala Catherine Walsh (2006), a decolonização se propõe a contribuir
para criar “condições radicalmente diferentes de existência, conhecimento
e poder que poderiam contribuir para a criação de sociedades justas” (p.
170). Nesse sentido, a perspectiva decolonial na qual nos colocamos busca
contribuir para a re-existência de distintas subjetividades. Partilhamos com
Albán Achinte a concepção de re-existência:
Concibo la re-existencia como los dispositivos que las
comunidades crean y desarrollan para inventarse cotidianamente
la vida y poder de esta manera confrontar la realidad establecida
por el proyecto hegemónico que desde la colonia hasta nuestros
días ha inferiorizado, silenciado y visibilizado negativamente
la existencia de las comunidades afrodescendientes. La re-
existencia apunta a descentrar las lógicas establecidas para
buscar en las profundidades de las culturas —en este caso
indígenas y afrodescendientes— las claves de formas
organizativas, de producción, alimentarias, rituales y estéticas
que permitan dignificar la vida y re-inventarla para permanecer
transformándose. La re-existencia apunta a lo que el líder
comunitario, cooperativo y sindical Héctor Daniel Useche Berón
“Pájaro”, asesinado en 1986 en el Municipio de Bugalagrande
en el centro del Valle del Cauca, Colombia, alguna vez planteó:
“¿Qué nos vamos a inventar hoy para seguir viviendo?” (p. 455).

Desta forma, buscamos contribuir para que a universidade/academia,


especialmente nos tempos de crises, tensões e do aprofundamento das
exclusões que temos vivido no Brasil, possa desempenhar seu papel social
na construção de uma sociedade justa. Os conhecimentos necessários à re-
existência são complexos, e acessá-los demanda confrontar a lógica disciplinar,
assumindo uma perspectiva transdiciplinar, dialogar com conhecimentos
outros, viabilizar que o multilinguismo no qual esses conhecimentos são

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 151


produzidos constitua o fazer acadêmico. A partir da reexistência da/na
produção e partilha de conhecimentos na universidade, entendemos que esta
reexistência pode produzir desdobramentos significativos para a construção
de uma perspectiva decolonial da internacionalização das universidades.

Referências
Achinte, A. A. (2012). Epistemes otras”:¿Epistemes disruptivas? Revista
Kula, 6, 22.
Achinte, A. A. (2013). Pedagogías de la re-existencia: Artistas indígenas
y afrocolombianos. Em C. Walsh (Ed.). Pedagogías decoloniales: Prácticas
insurgentes de resistir,(re) existir y (re) vivir, (pp. 443-468), Editora Abya-Yala.
Assis Silva, W., & Mari, C. L. (2017). Internacionalização e ensino superior:
História e tendências atuais. Revista de Políticas Públicas e Segurança
Social, 1(1), 36-53.
Bakhtin, M. (2015). Teoria do romance I: A estilística. Editora, 34.
Blackledge, A., Creese, A., & Hu, R. (2015). Voice and social relations in
a city market. Working Papers in Translanguaging and Translation, 2, 1-118.
Blackledge, A., & Creese, A. (2010). Multilingualism: A critical perspective.
Bloomsbury.
Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Difel.
Castro, A. M. D. A. (2011). Da ótica da solidariedade à lógica do mercado:
As estratégias de internacionalização do ensino superior. Simpósio Brasileiro
de Política e Administração da Educação, 25.
Castro-Gómez, S. (2007). Decolonizar la universidad: La hybris del punto
cero y el diálogo de saberes. Em R. Grosfoguel & S. Castro-Gómez (Eds.).
El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del
capitalismo global, (pp. 79-91). Siglo del Hombre Editores.

152 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Cavalcanti, M. C. (1999). Estudos sobre educação bilíngüe e escolarização
em contextos de minorias linguísticas no Brasil. DELTA: Documentação de
Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, 15, 385-417.
Cavalcanti, M. C., & Signorini, I. (1998). Linguística Aplicada e
transdisciplinaridade. Mercado de Letras.
Dearden, J. (2014). English as a medium of instruction-a growing global
phenomenon. British Council.
Dearden, J., & Macaro, E. (2016). Higher education teachers’ attitudes
towards English medium instruction: A three-country comparison. Studies
in second language learning and teaching, 6(3), 455-486.
Diretoria de Relações Internacionais (2020). Guia para Aceleração da
Internacionalização Institucional: Pós-Graduação Stricto Sensu. CAPES.
Grosfoguel, R. (2016a). Caos sistémico, crisis civilizatoria y proyectos
descoloniales: Pensar más allá del proceso civilizatorio de la modernidad/
colonialidad. Tabula rasa, 25, 153-174.
Grosfoguel, R. (2016b). Del extractivismo económico al extractivismo
epistémico y extractivismo ontológico: Una forma destructiva de conocer,
ser y estar en el mundo. Tabula Rasa, 24,123-143.
Guth, A. (2020). O PrInt/UFPR em uma encruzilhada de discursos em
políticas linguísticas, internacionalização e decolonialidade, [Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal do Paraná]. Repositório UFPR https://hdl.
handle.net/1884/69741
Guzula, X., McKinney, C., & Tyler, R. (2016). Languaging-for-learning:
Legitimising translanguaging and enabling multimodal practices in third
spaces. Southern African Linguistics and Applied Language Studies, 34(3),
211-226.
Hamel, R. E. (2013). El campo de las ciencias y la educación superior entre
el monopolio del inglés y el plurilingüismo: Elementos para una política del
lenguaje en América Latina. Trabalhos em Linguística Aplicada, 52, 321-384.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 153


Heller, M., & McElhinny, B. (2017). Language, capitalism, colonialism:
Toward a critical history. University of Toronto Press.
Knight, J. (2003). Updated definition of internationalization. International
higher education, 33.
Lander, E. (2000). Ciencias Sociales: Saberes coloniales y eurocéntricos. Clacso.
Laus, S. P. (2012) A internacionalização da educação superior: Um estudo
de caso da Universidade Federal de Santa Catarina. [Tese de Doutorado,
Universidade Federal da Bahia]. Repositório Institucional da UFBA https://
repositorio.ufba.br/bitstream/ri/17270/1/Laus
Makoni, S., & Mashiri, P. (2006). Critical historiography: Does language
planning in Africa need a construct of language as part of its theoretical
apparatus?. In Disinventing and reconstituting languages (pp. 62-89).
Multilingual Matters.
Maldonado-Torres, N. (2008). La descolonización y el giro des-colonial. Tabula
Rasa, 9, 61-72.
Martinez, J. Z. (2017). Entre fios, pistas e rastros: Os sentidos emaranhados da
internacionalização da educação superior, [Tese de Doutorado não publicada].
Universidade de São Paulo
Martinez, R., Fogaça, F.C., & Figueiredo, E. H. D. (2017). Implementing
effective English Medium Instruction (EMI) in universities: A matter of pedagogy
or proficiency? Apresentação realizada no Congresso AILA, Rio de Janeiro.
Martínez, R. (2016). English as a Medium of Instruction (EMI) in Brazilian
higher education: Challenges and opportunities. English in Brazil: Views,
policies and programs. EDUEL.
McKinney, C., Carrim, H., Marshall, A., & Layton, L. (2015). What
counts as language in South African schooling?: Monoglossic ideologies
and children’s participation. AILA Review, 28(1), 103-126.

154 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Mignolo, W. (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o
significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF–Dossiê:
Literatura, língua e identidade, 34, 287-324.
Mignolo, W. (2017). Desafios decolonais hoje. Revista Epistemologias do
Sul, 1(1), 12-32.
Mignolo, W. (2003) Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, saberes
subalternos e pensamento liminar. Editora UFMG.
Mignolo, W. (2011). Epistemic disobedience and the decolonial option:
A manifesto. Transmodernity, 1(2), 3-23.
Mignolo, W. (2015) Pensamento decolonial, desprendimiento y apertura.
Em W. Mignolo (Org.), Habitar la frontera: Sentir y pensar la decolonialidad.
CIDOB.
Milroy, J. (2011). Ideologias linguísticas e as consequências da
padronização: Políticas da norma e conflitos linguísticos. Parábola.
Moita-Lopes, L. P. (2006). Uma linguística aplicada mestiça e ideológica:
Interrogando o campo como linguista aplicado. Em L. P. Moita-Lopes
(Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar, (pp. 13-44). Parábola.
Morin, E. (2000). Saberes globais e saberes locais: O olhar transdisciplinar.
UnB/Editora Garamond.
Oliveira, G. M. (2010). Brasileiro fala português: Monolinguismo e
preconceito lingüístico. Linguasagem, 11(1).
Olssen, M., & Peters, M. A. (2005). Neoliberalism, higher education and the
knowledge economy: From the free market to knowledge capitalism. Journal
of education policy, 20(3), 313-345.
Patrick, F. (2013). Neoliberalism, the knowledge economy, and the learner:
Challenging the inevitability of the commodified self as an outcome of
education. International Scholarly Research Notices.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 155


Santos, B. D. S. (2016). Master Class: Epistemologias do Sul: Desafios
teóricos e metodológicos, lecture as part of the ALICE project. www.youtube.
com/epistemologias
Signorini, I. (1998). Do residual ao múltiplo e ao complexo: O objeto da
pesquisa em Linguística Aplicada. Em Cavalcanti, M. C., & Signorini, I.
(1998). Linguística Aplicada e transdisciplinaridade, (pp. 99-110). Mercado
de Letras.
Silva, W. D. A. (2016). Internacionalização e conhecimento: Análise do programa
Capes-Brafagri na Universidade Federal de Viçosa sob a ótica de estudantes-
participantes no biênio 2013-2014, [Dissertação de Mestrado não publicada].
Universidade Federal de Viçosa

156 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 7

‘Década Internacional das Línguas Indígenas’ e


Formação de Professores Indígenas
Maria Gorete Neto92

Introdução
A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, através da
Resolução A/RES/74/135 (UNESCO, 2020), o período de 2022-2032
como a Década Internacional das Línguas Indígenas (doravante IDIL
2022-2032) e solicitou à UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura) a coordenação e centralização das
atividades. Essa discussão iniciou-se em 2016, quando a Assembleia Geral
da ONU proclamou o ano de 2019 como o Ano Internacional das Línguas
Indígenas, que culminou com a proposição da Década. A iniciativa tem por
objetivo chamar a atenção para a situação crítica na qual se encontram as
línguas indígenas ao redor do mundo e para a urgência de ações efetivas,
tanto em nível nacional como em nível internacional, para a promoção,
preservação e revitalização destas línguas.
Um plano de ação global vem sendo construído com a participação
de representantes dos povos indígenas, organizações da sociedade civil,
representantes das universidades, pesquisadores, dentre outros. O protagonismo
indígena na construção e implementação deste plano tem sido veementemente
pleiteado pelos povos indígenas.
Neste sentido, os participantes do “Evento de Alto Nível intitulado
Construyendo un Decenio de Acciones para las Lenguas Indígenas”, realizado
na cidade do México, em fevereiro de 2020, elaboraram o documento
‘Declaración de Los Pinos [Chapoltepek] — Construyendo un Decenio de

92 Universidade Federal de Minas Gerais, mariagorete_neto@yahoo.com.br

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 157


Acciones para las Lenguas Indígenas’ que recomenda princípios, orientações
estratégicas e procedimentos a serem adotados na construção do plano global
para a década. Deste documento, norteador da IDIL 2022-2032, sai o lema
“Nada para nós sem nós”, reivindicando a centralidade e protagonismo
indígenas, em todos os assuntos de seu interesse na Década:
“Centralidade dos povos indígenas – “Nada para nós sem nós”,
segundo o princípio da livre determinação; o direito de utilizar,
desenvolver, revitalizar e transmitir às gerações futuras, de forma
oral e escrita, línguas que espelhem as ideias e os valores dos
povos indígenas, suas identidades e sistemas de conhecimentos
e culturas tradicionais; a igualdade no trato com as línguas
indígenas em relação a outras línguas; e a participação efetiva e
inclusiva de todos os povos indígenas na consulta, planejamento
e execução de processos baseados em direito à consulta livre,
prévia e informada desde o começo de toda a iniciativa de
desenvolvimento, assim como o reconhecimento das barreiras e
os problemas específicos que as mulheres indígenas enfrentam,
cujas identidades, tradições culturais e formas de organização
social melhoram e fortalecem as comunidades em que vivem.”
(Declaração de Los Pinos, 2020, p. 4, tradução livre)93

Com base nesse princípio e para dar viabilidade à construção do plano


global de ações para a Década, foram criados grupos de trabalho (GT) como:
GT UNESCO – que congrega os GTs do mundo todo, e GT América Latina
e Caribe, com três representantes indígenas da América Latina, dentre eles,
a única mulher indígena, a professora e pesquisadora brasileira Dra. Altaci
Rubim Kokama. Sob a coordenação da professora Altaci, no Brasil, foi

93 Centralidad de los pueblos indígenas — “Nada para nosotros sin nosotros”, según el principio
de la libre determinación; el derecho a utilizar, desarrollar, revitalizar y transmitir a las generaciones
futuras, de forma oral y escrita, lenguas que reflejen las ideas y los valores de los pueblos indígenas, sus
identidades y sistemas de conocimientos y culturas tradicionales; la igualdad de trato de las lenguas
indígenas con respecto a otras lenguas; y la participación efectiva e inclusiva de los pueblos indígenas
en la consulta, la planificación y la ejecución de procesos basados en su derecho al consentimiento libre,
previo e informado desde el comienzo de toda iniciativa de desarrollo, así como el reconocimiento
de las barreras y los problemas específicos que encuentran las mujeres indígenas, cuya identidad,
tradiciones culturales y formas de organización social mejoran y fortalecen las comunidades en que
viven. (Declaración de Los Pinos, 2020, p. 4)

158 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


criado o GT Nacional, desmembrado em três outros grupos de trabalho, a
saber, GT Línguas Indígenas, GT Português Indígena, do qual sou membro,
e GT Línguas de Sinais Indígenas. Importante enfatizar que todos os GTs são
coordenados por intelectuais indígenas, com apoio de aliados não indígenas
de universidades e organizações indigenistas.
A primeira grande tarefa dos GTs foi elaborar um plano de ação
para a Década, com o intuito de atender o contexto indígena brasileiro.
O texto final, entendido sempre como ‘em construção’, foi fruto de inúmeras
reuniões em que se discutiu coletivamente quais seriam as demandas dos
povos indígenas bem como a proposição de estratégias de atendimento a
essas demandas. Todo o processo foi realizado em 2021, no formato remoto,
devido à pandemia COVID 19, o que aumentou o desafio de elaboração
desse documento, haja vista que em muitas comunidades indígenas o acesso
à internet é precário. Posteriormente, esse plano foi traduzido para a língua
inglesa e enviado para a UNESCO, para compor o plano global. Infelizmente,
as línguas oficiais da UNESCO são línguas majoritárias como, por exemplo,
Inglês, Espanhol, Francês, e, até este momento, não há línguas indígenas
sendo utilizadas. Isso implica em um esforço ainda maior dos povos indígenas
para participar efetivamente das decisões, em especial no GT UNESCO,
por causa da barreira da língua.
Como preparo ao início da Década, ainda em 2021, uma segunda tarefa
organizada pela coordenação dos GTs foram os encontros regionais: Norte,
Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. O objetivo foi apresentar e discutir
com os povos indígenas de cada região o plano enviado à UNESCO. Também
esses encontros foram em formato remoto, mas ainda assim obtiveram boa
adesão dos povos indígenas dessas localidades. Nos regionais, espera-se que
cada povo se apodere do documento e faça as sugestões para alteração e/ou
incorporação de demandas.
Além dessas ações locais, foi realizada uma pesquisa online lançada
pelo site da UNESCO com o intuito de atingir o maior número de pessoas
nessa fase de preparo para as ações da Década. Conforme informações do
site, a pesquisa foi formulada considerando as orientações da Declaração
de Los Pinos e as contribuições do Grupo Ad Hoc para a preparação do

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 159


plano de ação global, podendo ser respondida nas línguas inglesa, francesa
e espanhola. Como referido, há uma grande aposta na Década, como um
dos momentos mais importantes até agora para conscientizar a população
global para a luta pelas línguas indígenas:
A IDIL2022-2032 é uma oportunidade única para aumentar
a conscientização sobre a importância das línguas indígenas
para o desenvolvimento sustentável, a construção da paz e
reconciliação em nossas sociedades, assim como para mobilizar
todos os recursos e todos os interessados para apoiar e promover
as línguas indígenas no mundo. (UNESCO, ‘Seja parte
estratégica do planejamento’, 24 nov 20, tradução livre)94

É com o intuito de aproveitar essa oportunidade e de contribuir


nas discussões em andamento, que esse artigo se propõe a refletir sobre a
formação dos professores indígenas em contexto de licenciaturas indígenas,
tendo em vista a IDIL 2022-2032. Na formação dos docentes indígenas,
a reflexão teoricamente informada sobre as línguas faladas pelos povos
indígenas bem como sobre as estratégias de ensino e produção de materiais
nessas línguas deve ser considerada central, principalmente pela relevância
das escolas indígenas na promoção, conservação e revitalização linguística.
A discussão será realizada com foco no curso de licenciatura em Formação
Intercultural para Educadores Indígenas (doravante FIEI), da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, onde atuo há mais de
dez anos como professora da área de Linguagens.

A Formação de Professores Indígenas e a Reflexão Sobre as


Línguas Faladas pelos Povos Indígenas
A Declaração de Los Pinos enfatiza a educação inclusiva e de qualidade,
bilíngue, multilíngue e em língua materna como um dos pilares na promoção
e fortalecimento das línguas indígenas:

94 The IDIL2022-2032 is a unique opportunity to raise awareness of the importance of indigenous


languages for sustainable development, peace-building and reconciliation in our societies, as well
as to mobilize stakeholders and resources around the world to support and promote indigenous
languages worldwide. (UNESCO, ‘Be a part of strategic planning’, 24 nov 20)

160 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


garantir uma educação inclusiva e equitativa de qualidade,
incluída a educação bilingue, multilíngue e em língua materna,
e promover oportunidades de aprendizagem permanente para os
educandos e usuários das línguas indígenas em todas as idades,
gêneros e capacidades, assim como proporcionar formação,
reconhecimento da competência linguística e oportunidades
de emprego para os docentes de línguas indígenas na formação
inicial e para os tradutores e intérpretes, e proporcionar-lhes
formação e materiais de aprendizagem adequados. (Declaração
de Los Pinos, 2020, p. 5; tradução livre)95

Para que haja uma educação escolar indígena voltada aos anseios dos
povos indígenas é necessária a formação docente indígena de qualidade.
Em se tratando da atuação indígena para o fortalecimento de suas línguas
e das expectativas levantadas pela IDIL 2022-2032, não se pode partir do
pressuposto que qualquer professor indígena esteja apto a discutir propostas
de políticas linguísticas e políticas de ensino que envolvam as línguas faladas
pelo seu povo. É necessário que este professor esteja preparado, na teoria e
na prática, para essa tarefa.
Em termos de regramento, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988) garante aos povos indígenas o uso de suas línguas originárias e seus
métodos próprios de ensino aprendizagem, além do uso da língua portuguesa:
“Art. 210 § 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de
suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”.
O uso das línguas originárias é um dos princípios fundantes da
educação escolar indígena que deve ser diferenciada, específica, bilingue e
intercultural, conforme reconhecido pela LDB - Lei de Diretrizes e Bases

95 Garantizar una educación inclusiva y equitativa de calidad, incluida la educación bilingüe,


multilingüe y en la lengua materna, y promover oportunidades de aprendizaje permanente para
los educandos y usuarios de lenguas indígenas de todas las edades, géneros y capacidades, así como
proporcionar formación, reconocimiento de la competencia lingüística y oportunidades de empleo
a los docentes de lenguas indígenas en la formación previa al empleo/inicial o en el empleo y a
los traductores e intérpretes, y proporcionarles formación y materiales de aprendizaje adecuados;
(Declaracion de Los Pinos, p. 5)

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 161


(BRASIL, 1996). A LDB também informa ser atribuição do Estado garantir
que esses princípios sejam efetivados e recomenda a formação, em serviço,
de professores indígenas em nível superior.
O Conselho Nacional de Educação (CNE), através da Resolução 03/99
(BRASIL, 1999), criou a categoria escola indígena e reforçou a necessidade
de formação de professores indígenas. Esta resolução estabelece como deve
ser a escola indígena e dá autonomia aos povos indígenas para que construam
suas escolas de acordo com os interesses de suas comunidades. A Resolução
determina também que, para atuar na escola indígena, os professores sejam
prioritariamente indígenas e enfatiza a formação específica e em serviço para
a atuação nestas unidades, com a recomendação de que estes profissionais
também se formem em nível superior.
Essas orientações são reforçadas nas DCNEI – Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Indígena (BRASIL, 2012), e ratificadas
nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores
Indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio (BRASIL,
2015) que, além de sublinhar o estabelecido na legislação pregressa, indica
o conhecimento das línguas originárias como condição essencial ao perfil
do professor indígena. Por isso, a formação dos docentes indígenas deve se
atentar para reflexão, em sentido amplo, sobre as línguas indígenas:
Art. 7º Em atenção aos perfis profissionais e políticos requeridos
pelos povos indígenas, os cursos destinados à formação inicial
e continuada de professores indígenas devem prepará-los para:
[…]
II - conhecimento e utilização da respectiva língua indígena
nos processos de ensino e aprendizagem;
[...]
III - realização de pesquisas com vistas à revitalização das práticas
linguísticas e culturais de suas comunidades, de acordo com a
situação sociolinguística e sociocultural de cada comunidade
e povo indígena;

162 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


[...]
VII - construção de materiais didáticos e pedagógicos
multilíngues, bilíngues e monolíngues, em diferentes formatos
e modalidades;

A tarefa de formar professores, em nível superior, tem sido atribuição dos


mais de vinte cursos de licenciatura indígena atualmente em funcionamento
no território brasileiro: “21 IES (14 universidades federais, 5 universidades
estaduais e 2 institutos federais de educação, ciência e tecnologia), ofertando
25 cursos, em 16 estados da federação.” (Nascimento, 2017, p. 64). No caso
do curso FIEI, em funcionamento desde 2009, a formação com enfoque
intercultural tem sido ofertada em quatro habilitações: ‘Ciências Sociais e
Humanidades’, ‘Matemática’, ‘Ciências da Vida e da Natureza’, ‘Línguas,
Artes e Literatura’. Com o intuito de garantir a formação docente em
serviço, o curso funciona com etapas intensivas na universidade e etapas
intermediárias nas aldeias, quando os estudantes indígenas realizam suas
pesquisas, atuam nas escolas e tomam parte das demais atividades da aldeia.
O curso tem intensa participação das lideranças e sábios indígenas
no colegiado e no Conselho Consultivo Indígena, composto por nove
lideranças, representantes de todas as etnias do FIEI. Essas duas instâncias,
juntamente com o Núcleo Docente Estruturante, discutem e decidem todo
o ordenamento e ações do curso.
A realidade sociolinguística do curso FIEI é rica e complexa. Há
estudantes indígenas oriundos de povos que falam o português como primeira
língua, caso dos Pataxó, Xakriabá, Pataxó Hãhãhãe e que estão imbuídos na
busca de projetos de reavivamento/revitalização das suas línguas ancestrais. Por
outro lado, há povos que falam suas línguas originárias como primeira língua,
os Guarani e os Maxakali, que procuram fortalecer suas línguas ao mesmo
tempo em que procuram aperfeiçoar a língua portuguesa. Nesse cenário,
são também observadas as variedades de português indígena – o português
apropriado e falado por indígenas, que apresenta características específicas na
estrutura, no léxico, na organização dos textos orais e escritos, características
essas que variam de povo para povo (cf. Gorete Neto, 2021; 2018).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 163


O currículo do curso tem como centralidade o território e a realidade
indígenas. É condição para colar grau no FIEI, o desenvolvimento, ao longo
do curso e sob a supervisão de um docente, de uma pesquisa que esteja
relacionada a alguma demanda vinda do território indígena – o Percurso
Acadêmico. Temáticas diversas vem sendo investigadas, também diversos
têm sido os produtos oriundos dessas pesquisas: catálogos, filmes, podcasts,
materiais didáticos, dentre outros, mostrando a vivacidade e relevância da
investigação realizada por indígenas.
No entanto, em relação às línguas faladas no FIEI, há inúmeros
desafios a serem enfrentados, apesar de o curso incentivar o uso das línguas
indígenas nas aldeias e na universidade – em seminários e palestras com sábios
e lideranças indígenas; através da possibilidade de escrita dos percursos nas
línguas indígenas, entre outros. Há que se considerar que, independentemente
da habilitação, qualquer professor indígena pode ser solicitado por sua
comunidade a discutir as línguas indígenas em seu território, o que aumenta
a responsabilidade das licenciaturas indígenas em formar nesse aspecto.
Ao examinar-se o Projeto Pedagógico do curso (FIEI, 2009), já nos
objetivos do curso e no perfil do egresso não se encontram menção às
línguas indígenas e nem à necessidade de este docente estar preparado para
lidar com as línguas indígenas, ainda que se preveja que devam atender
as escolas indígenas específicas, diferenciadas e bilíngues (Gorete Neto,
2018, p. 1349). No que se refere ao conjunto de disciplinas ofertadas para
todas as habilitações, há uma lacuna importante na oferta de disciplinas
que tematizem as línguas indígenas, seu estudo, seu ensino. Apenas uma
disciplina aborda a questão do uso da linguagem – Leitura e Produção de
Textos Acadêmicos. Ainda assim, o enfoque é a apropriação do português
acadêmico e não as línguas faladas pelos povos indígenas.
Essas constatações indicam que a IDIL 2022-2032 configura-se
em enorme desafio para cursos de licenciatura indígena, como o FIEI.
A Declaração de Los Pinos é enfática na recomendação de que o ensino das
línguas deve ser realizado em todos os níveis, incluindo o superior:

164 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Promoção do uso público e do ensino aprendizagem das
línguas indígenas, faladas pelos povos indígenas, em todos
os níveis. Deve-se promover a aprendizagem e ensino das
línguas indígenas na escola, na primeira infância e em outros
ambientes de aprendizagem, através da educação não formal,
com a utilização das pedagogias indígenas. Deve-se promover a
educação intercultural bilíngue em todos os níveis educacionais,
não somente nas etapas iniciais, mas também no ensino superior
e aprendizagem permanente, incluídos o ensino e a formação
técnica e professional. (Declaração de Los Pinos, 2020, p. 11)96

Há também o indicativo de que as línguas indígenas podem e devem ser


ensinadas em contextos não formais de educação, com ênfase nas pedagogias
indígenas. Isso não diminui a responsabilidade do professor indígena, que
certamente será acionado para atuar nesse ensino ou para propor estratégias
de ensino. Aumenta, portanto, a necessidade de formação nas licenciaturas
indígenas para a reflexão e o ensino de línguas indígenas com o intuito de
melhor contribuir para o ensino de línguas em contextos informais de educação.

Pistas para a Reflexão Sobre as Línguas nas Licenciaturas Indígenas


com Vistas à IDIL 2022-2032
Apesar da boa vontade dos envolvidos na formação do docente indígena,
em especial no curso FIEI, alguns aspectos podem ser aperfeiçoados na busca
da reflexão sobre as línguas faladas pelos povos indígenas bem como sobre
as estratégias de promoção, revitalização e ensino dessas línguas.
Um desses aspectos é abrir espaço no currículo para disciplinas que
tratem especificamente das línguas faladas pelos povos indígenas e que
instrumentalizem os professores tanto para compreender as próprias línguas

96 Promoción del uso público y de la enseñanza y el aprendizaje de las lenguas indígenas, expresadas
por los pueblos indígenas, a todos los niveles. Debería promoverse el aprendizaje y la enseñanza de las
lenguas indígenas en las escuelas, los entornos de la primera infancia y otros entornos de aprendizaje,
mediante la educación no formal y el aprendizaje informal, y deberían incluirse pedagogías indígenas.
Debería promoverse la educación intercultural bilingüe en todos los niveles educativos, no solo en
las etapas iniciales, sino también en la enseñanza superior y el aprendizaje permanente, incluida la
enseñanza y la formación técnica y profesional. (Declaración de Los Pinos, 2020, p. 11)

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 165


como para ensiná-las. É importante que os docentes tenham conhecimentos de
áreas da Linguística tais como fonética, fonologia, morfossintaxe, semântica,
dentre outros, com o intuito de serem capazes de fazer análises linguísticas
consistentes de suas línguas, como informa D’Angelis (2012). Igualmente
importante que conheçam os aportes da Linguística Aplicada que apresenta
profundas reflexões sobre o uso das línguas, dentro e fora da sala de aula,
além de discutir a construção de materiais e estratégias de ensino de línguas.
As disciplinas devem contemplar as línguas que são faladas pelos povos
indígenas do curso, sejam as línguas ancestrais ou as variedades indígenas
do português. Além disso, tais disciplinas devem favorecer o olhar crítico do
professor indígena para a oralidade, a escrita, o grafocentrismo (centralidade
da escrita no mundo ocidental), dentre outros.
D’Angelis (2012, p. 144) assevera que a formação de professores
indígenas para atuação em escolas indígenas deve ter pelo menos quatro
pilares. O primeiro seria a ‘capacitação em língua materna’:
implica numa reflexão sobre a língua que permita ao professor
interpretar as produções linguísticas de seus alunos (quer orais,
quer escritas) dentro de uma concepção adequada de linguagem,
capaz de lidar com variação dialetal, com mudança linguística
e com o papel ativo do falante na elaboração de hipóteses sobre
sua própria fala (D’Angelis, 2012, p. 144).

O segundo pilar é a ‘capacitação em língua portuguesa’:


[...] significa, em primeiro lugar, uma compreensão da realidade
sociolinguística brasileira, com suas variantes dialetais e de
classe, e o esclarecimento de noções distintas como norma culta
ou padrão, norma canônica ou gramática e norma escrita, que
são frequentemente confundidas e entendidas como sinônimos
[...]. Além disso, a capacitação em língua portuguesa deve
desenvolver as habilidades dos professores em formação, na
leitura e expressão (oral e escrita) desta língua (D’Angelis,
2012, p. 145).

Em terceiro lugar, é necessária a ‘capacitação em ensino de línguas’ uma


vez que, de acordo com D’Angelis (2012, p. 145), “para ensinar línguas, não

166 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


basta ser falante delas”. Para o autor, é ainda “fundamental levar o aluno/
professor a reconhecer as diferenças entre ensino de primeira língua e ensino
de segunda línguas e as diferentes metodologias empregadas nesses casos.”
(p. 146). Por fim, a ‘capacitação em bilinguismo e ensino bilíngue’ refere-se a
compreensão dos contextos sociais bilingues, e, em particular,
a compreensão das causas históricas e sociais da realidade
bilingue das comunidades [...] e das particularidades das
situações bilingues em que uma língua de prestígio social
de longa tradição oral e prática escrita defronta-se com uma
língua minoritária de longa tradição oral e prática escrita muito
recente. […] impõe-se tematizar aí, também as noções de
política e planejamento linguístico (D’Angelis, 2012, p. 146).

Considerando esses quatro pilares e a proposta de reestruturação da


oferta de disciplinas no curso FIEI, abre-se a exigência de contratação de
professores universitários que tenham conhecimentos suficientes das línguas
indígenas para poderem ensiná-las. Se forem professores indígenas, ainda
muito poucos nas universidades, tanto melhor.
Outro aspecto é garantir a presença de intérpretes e tradutores para
os povos falantes de português como segunda língua. A um só tempo, esta
ação possibilita garantir mais conforto a esses falantes e melhor acesso aos
conhecimentos universitários, para além de melhorar a troca de saberes entre
povos indígenas e universidade.
Por fim, há que ser considerada também a necessidade de uma escuta
mais apurada dos povos indígenas, de seus sábios e intelectuais, principalmente
em relação aos pressupostos teóricos utilizados para tratar das realidades
indígenas. Um exemplo é o debate em torno do conceito ‘língua’, uma
noção polissêmica, imprecisa e eurocentrada, que ainda norteia boa parte das
pesquisas sobre linguagem, como já problematizaram César & Cavalcanti
(2007), Gorete Neto (2018).
Para ilustrar essa polissemia, três definições de língua serão apresentadas
em linhas gerais. Em primeiro lugar, Saussure (1970) definiu língua como
sistema estruturado de signos, imutável, homogêneo, formal, abstrato,

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 167


depositado na mente do falante – e distinguiu ‘língua’ de ‘fala’ – ato individual,
variável, associada a fatores externos. Somente a primeira é adequada para a
pesquisa Linguística, consoante os estudos saussureanos. Chomsky (1978,
1998), por sua vez, diz que língua é um sistema de princípios radicados na
mente humana. Em comum com a teoria saussureana, está a supressão do
contexto de uso das línguas nas investigações linguísticas. Por último, Bakhtin
(1997, 1979) afirma que língua é discurso, é heterogênea, historicamente
situada, afetada pelos contextos de uso e pelas relações de poder e não se
resume a sistemas abstratos.
César & Cavalcanti (2007) refletem que concepções essencializadas
de língua prejudicam o trabalho com línguas consideradas minoritárias,
tais como as indígenas, uma vez que tais definições operam a favor da
colonialidade (Quijano, 1992), contribuindo para invisibilizar diferenças
e para reduzir uma multiplicidade de usos linguísticos sob o termo ‘língua’.
Os intelectuais indígenas também questionam esses pressupostos e
chamam a atenção para as implicações que o uso essencializado do termo
língua tem para os povos indígenas. Segundo o pesquisador e professor
Uilding Braz, do povo Pataxó:
[...] na visão de muitos linguistas a língua Pataxó não seria
considerada como língua Pataxó uma vez que usa elementos
morfossintáticos da língua portuguesa. Felizmente, nós, apesar
de sermos alvos de críticas e de contradições por muitos dos/
das linguistas, insistimos em querer algo nosso não apenas
por causa do outro como dizem, mas por motivo de termos
o compromisso e respeito com nós mesmos, com nossos
ancestrais, anciãos e com nosso povo, não é o caso de pensar
em uma língua “pura” visto que a língua está em constante
relação com outras, ocorrendo assim o empréstimo linguístico
e com relação à língua Pataxó o empréstimo é valorizado (Braz,
2016, p. 37).

O trecho acima é uma resposta a vários pesquisadores que diziam


que esse povo não fala mais sua língua. Esta crítica também se estendia
ao programa de revitalização linguística conduzido pelo povo Pataxó que

168 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


através da pesquisa das palavras escondidas nas memórias dos mais velhos,
juntamente com o empréstimo de palavras da língua portuguesa, facultou
o reavivamento da língua Pataxó. Braz (2016) descreve esse processo em seu
percurso acadêmico, mostrando que seu povo não só fala a língua originária,
mas que a ressignificou.
Os pesquisadores das universidades, apoiados em conceitos enrijecidos,
desconsideram a violência sistemática e o silenciamento pelo qual passam os
povos indígenas, desde a invasão portuguesa, e assim contribuem para que
este silenciamento continue. Não se atentam também para o fato de que a
afirmativa ‘um povo não fala mais sua língua’ pode ser utilizada por anti-
indígenas, contra os direitos indígenas, haja vista que muitos afirmam que
se o indígena não fala a língua, não é índio e, portanto, não tem direito à
terra. Logo, a utilização de conceitos para lidar com as realidades indígenas
não pode ser feita de maneira desavisada.
Braz (2016) propõe assim uma nova definição de língua, mais
condizente com a realidade Pataxó, a partir da metáfora da árvore que foi
podada, mas que, por ter raízes profundas, rebrota:
Desta forma, assim como nossos avós têm experiência
multiplicada, a árvore nova poderia até estar fina, mas ela
teria sua base forte, e é dessa forma que imaginamos a nossa
língua. Uma língua que não é isolada, uma língua cortada,
onde fomos obrigados a não falar e por consequência disso
até fomos chamados de povo sem língua. Mas, hoje podemos
dizer que nossa língua está emergindo dos nossos anciãos.
E como a árvore nova não é a mesma árvore velha, a nossa
língua também não é e nem seria (Braz, 2016, p. 38).

A acepção acima permite compreender a realidade complexa de uso


das línguas pelos povos indígenas. Torna possível refletir sobre a língua de
maneira historicamente situada e, sobretudo, visibiliza a resistência dos
povos indígenas que vêm agindo criativamente para promover e reavivar
suas línguas ancestrais.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 169


Tudo isso precisa ser discutido com os povos indígenas nos cursos
de formação docente. Conforme apresentado, os cursos de licenciaturas
indígenas, em especial o FIEI, precisarão investir na readequação do currículo,
das disciplinas, na contratação de docentes indígenas e não indígenas capazes
de refletir sobre as línguas em uso pelos povos indígenas. Será necessário
também uma disposição ao diálogo, ao questionamento das certezas teóricas
e pedagógicas, para abrir espaço ao ponto de vista indígena. A IDIL 2022-
2032 é um bom pretexto para que esse debate ocorra.

Considerações Finais
Neste texto, procurei refletir sobre a instauração da Década Internacional
das Línguas Indígenas (2022-2032) e a formação de professores indígenas para a
reflexão sobre as línguas indígenas, no contexto das licenciaturas interculturais.
Se por um lado a Década configura-se em grande oportunidade de conscientizar
indígenas e não indígenas para a importância das línguas indígenas, por outro
lado, ela acentua os desafios da formação do docente indígena para a reflexão
teórico-prática sobre as línguas faladas pelos povos indígenas.
Dentre os desafios estão a reestruturação das licenciaturas interculturais,
a reorganização e proposição de disciplinas que tratem da questão do uso
das línguas pelos povos indígenas, a contratação de docentes indígenas e não
indígenas que tenham conhecimentos sobre as línguas indígenas, sobre as
teorias linguísticas, sobre os processos de ensino aprendizagem e que estejam
atentos à realidade sociolinguística de cada povo.
Mais ainda desafiante é que a universidade ouça os intelectuais e
sábios indígenas quando questionam conceitos cristalizados com os quais a
academia lida, nomeia e define as realidades indígenas. Estratégias de escuta
precisam ser criadas, junto com os povos indígenas, de maneira horizontal,
e isso causa desconforto e resistência em muitos acadêmicos. Todos esses
desafios serão melhor enfrentados com a presença indígena na universidade,
na graduação, na pós graduação e na docência. Esta presença indígena ativa
precisa ser buscada e garantida.

170 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


No entanto, não se pode esquecer que a chegada e a permanência de
estudantes indígenas nas universidades – uma grande conquista do movimento
indígena - estão sob constante ameaça. Esse tem sido, por exemplo, um
momento de ataque às universidades federais e, em especial, os cursos de
licenciaturas interculturais vêm enfrentando enormes dificuldades para
continuarem em funcionamento, desde 2016.
Um dos problemas é a descontinuidade do financiamento das
licenciaturas indígenas, como o FIEI. Até meados de 2017, ainda havia
recursos destinados à formação docente indígena que foram minguando
até sua extinção no governo bolsonarista, claramente contrário aos direitos
dos povos indígenas, como vêm denunciando várias organizações indígenas,
dentre elas, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). A falta de
financiamento impede a ida dos docentes aos territórios indígenas para realizar
as etapas intermediárias, impactando fortemente a proposta pedagógica do
curso. Outro impacto negativo desse corte de verbas é o impedimento da
vinda de lideranças e sábios indígenas para contribuir nas etapas intensivas e
para participarem das reuniões colegiadas, momentos em que são decididos
os caminhos que o curso deve trilhar e momentos em que circulam as
línguas indígenas faladas por eles. Sem a participação das lideranças e dos
sábios, um pilar fundamental do curso – a relação com o território – fica
seriamente comprometido.
Outro problema grave é a descontinuidade do programa de Bolsa
Permanência97. Por cerca de dois anos o governo federal não abriu inscrição
para bolsas. Em 2022, vagas foram abertas, mas em número insuficiente para
atender todos os estudantes que têm direito à bolsa. Estima-se que de cada dez
estudantes que têm direito à bolsa, apenas quatro conseguem o benefício98.
Sem esse auxílio financeiro, é impossível que os estudantes indígenas custeiem

97 “O Programa de Bolsa Permanência instituído em 2013 tem por finalidade minimizar as


desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir para permanência e diplomação dos estudantes
de graduação em situação de vulnerabilidade socioeconômica das instituições federais de ensino
superior”. Informações do site do MEC http://sisbp.mec.gov.br
98 Ver mais em https://apublica.org/mec-de-bolsonaro-nega-bolsa-permanencia-a-indigenas-e-
quilombolas/

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 171


a viagem de seus territórios até a universidade, a alimentação, a moradia,
os materiais didáticos e outras despesas durante suas estadias nas etapas
intensivas. É necessário compreender que utilização da bolsa não opera com a
lógica não indígena, ocidental e individualista, de uso do dinheiro. Em geral,
a bolsa custeia também despesas familiares dos estudantes indígenas que, em
boa parte, chegam à universidade com famílias constituídas. Inclusive alguns
membros das famílias acompanham os estudantes indígenas na universidade.
Sem os povos indígenas na universidade não existe a possibilidade de
discutir a formação do professor indígena em nível superior. Certamente isso
impacta a promoção das línguas indígenas e o trabalho a ser desenvolvido
durante a IDIL 2022-2032.
Por fim, em tempos de tão grandes ataques aos direitos dos povos
indígenas, é preciso relembrar que a demarcação das terras indígenas é
condição essencial para que o direito ao uso das línguas indígenas se concretize.
Sem a terra não existe saúde, não existe educação, não existe vida. É no
território indígena que as línguas circulam, são criadas, reinventadas e
ressignificadas. Desta forma, a construção da Década Internacional das
Línguas Indígenas enseja discussões em diferentes campos, como o da
formação do docente indígena, mas, sobretudo, impulsiona o compromisso
com a luta pelos direitos indígenas, principalmente o direito à terra.

Referências
Bakhtin, M. (1997). Estética da criação verbal, (2ª ed., M. E. G. G. Pereira,
Trad.). Martins Fontes.
Bakhtin, M. (1979). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Hucitec
Brasil (2015) Resolução nº 1, de 7 de janeiro de 2015, Institui Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de
Educação Superior e de Ensino Médio e dá outras providências.
Brasil (2012) Resolução nº 5, de 22 de junho de 2012, Define Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica.

172 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Brasil (1999) Resolução CEB nº 3, de 10 de novembro de 1999, Fixa
Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras
providências.
Brasil (1996) Lei de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394/96, de 20 de dezembro
de 1996. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm
Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. http://www.
planalto.gov.br/constituicao
Braz, U. C. (2016). O ensino de língua patxôhã na escola indígena Pataxó
Barra Velha: Uma proposta de material didático específico, [Trabalho de
Conclusão de Curso, Universidade Federal de Minas Gerais]. Repositório
UFMG https://www.biblio.fae.ufmg.br/monografias
César, A. L. S., & Cavalcanti, M. C. (2007). Do singular para o multifacetado:
O conceito de língua como caleidoscópio. Em M. C. Cavalcanti & S. M.
Bortoni-Ricardo (Orgs.) Transculturalidade, linguagem e educação, (pp. 45-
66). Mercado de Letras.
Chomsky, N. (1978). Aspectos da teoria da sintaxe, (2ed. J. A. Meireles &
E. P. Reposo, Trad.). Armênio Amado.
Chomsky, N. (1998) Linguagem e mente: Pensamentos atuais sobre antigos
problemas, (L. Lobato, Trad.). Editora Universidade de Brasília
D’Angelis, W. R. (2012) Propostas para a formação de professores indígenas
no Sul do Brasil. Em D’Angelis, W. (Org.). Aprisionando sonhos: A educação
escolar indígena no Brasil, (pp. 137-151). Curt Nimuendajú.
DECLARACIÓN de los Pinos [CHAPOLTEPEK], Construyendo un
Decenio de Acciones para las Lenguas Indígenas (2020). Documento final
del Evento de Alto Nivel titulado “Construyendo un Decenio de Acciones para
las Lenguas Indígenas” con motivo de la clausura del Año Internacional
de las Lenguas Indígenas, 27 y 28 de febrero de 2020 Ciudad de México
(México), https://unesdoc.unesco.org/374030spa

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 173


Formação Intercultural para Educadores Indígenas. (2009). Projeto Político
Pedagógico, Colegiado FIEI em Belo Horizonte.
Gorete Neto, M. (2018) Línguas em conflito em cursos de licenciatura
intercultural indígena. Trabalhos em Linguística Aplicada, 57(3), 1339-1363.
Gorete Neto, M. (2021) As línguas faladas pelos povos indígenas: O caso
da língua portuguesa. Em Costa, P. L. (Org.) Educação d.C: O papel das
mulheres nesse desafio, (pp. 89-99). PARIMPAR.
Nascimento, R. G. (2017). Educação superior de professores indígenas
no Brasil: Avanços e desafios do Programa de Licenciaturas Interculturais
Indígenas. Revista Educación Superior y Sociedad, 20, 49-75.
Quijano, A. (1992). Colonialidad y Modernidad-racionalidad. Em H. Bonillo
(Org.). Los conquistados, (pp. 437-449). Tercer Mundo Ediciones, FLACSO.
Saussure, F. (1970). Curso de Linguística Geral. Editora Cultrix.
UNESCO (2020, 24 nov 20). Be a part of strategic planning. https://en.unesco.
org/news
UNESCO (2020), Resolution adopted by the General Assembly on 18 December
2019, A/RES/74/135, 2020. https://undocs.org/en/A/RES/74/135

174 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 8

Caminhos para o Bem Viver: Intelectuais Indígenas


em Sala
Rosivânia dos Santos99
José André Souza Silva100

Introdução
Este texto pretende discutir sobre a inserção de intelectuais indígenas
nas salas de aula do Ensino Médio, com ênfase na disciplina de Língua
Portuguesa, avaliando de que forma a literatura indígena brasileira
contemporânea101 contribui para a formação dos estudantes. Uma vez
que o currículo escolar se mostra tradicionalmente homogêneo, levar aos
educandos perspectivas indígenas de conhecimentos, sejam elas literárias
ou teóricas, é uma prática pautada na decolonialidade dos saberes. Assim,
objetiva-se trazer novas cosmovisões à escola, oportunizando aos estudantes
conhecer as epistemes dos povos originários, que foram (e são) silenciadas,
negadas e desrespeitadas por tantos anos.
De início, foram traçadas algumas reflexões sobre a presença da temática
indígena na Educação Básica, tomando como mote a afamada Lei nº 11.645,
no que corresponde ao ensino de histórias e culturas indígenas do Brasil. No
cenário educacional, a importância dessa lei é gigante, mas, ainda assim, certos
desafios se impõem para um real alcance dos seus objetivos. Afinal, a sociedade
brasileira não indígena pouco conhece sobre os povos originários deste país,
e a escola, costumeiramente, contribui para a manutenção desse cenário.

99 Universidade Federal de Sergipe, generorose@hotmail.com


100 Centro Universitário AGES, 1andresouzasilva@gmail.com
101 Neste texto, o termo “literatura indígena” tem uma conotação ampla, mas limitada às publicações
em formato de livro. Não se restringe, assim, às publicações estritamente “literárias”, embora sejam
essas as mais recorrentes. Ainda assim, nem sempre é fácil traçar fronteiras rígidas de classificação
para obras dessa autoria, uma vez que o hibridismo textual é uma de suas marcas recorrentes.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 175


Após isso, de maneira mais específica, deu-se enfoque à obra Caminhos para
a cultura do bem viver (2020a), de Ailton Krenak, num relato de prática
pedagógica que discutiu sobre as principais ideias veiculadas por esse livro, sua
recepção pelos alunos, bem como acerca da importância de obras como essa à
formação escolar. Por meio da análise das respostas dos educandos ao roteiro
de leitura proposto, notamos que houve uma excelente compreensão dos
principais pontos da obra em questão. Mesmo sendo esse um pequeno
recorte do que acontece numa sala de aula, cremos na sua importância,
principalmente no que diz respeito à proposta da inclusão de pensadores
indígenas no âmbito escolar, perspectiva advogada aqui.
Como professores, temos total ciência do nosso papel na formação
dos nossos discentes. Dessa maneira, esta produção parte de uma atitude
comprometida que não vislumbra uma prática educacional dissociada da
vida em sociedade. Afinal, neste tempo, bem sabemos da importância de
esperançar, pois há muito que se construir.

A Temática Indígena na Educação Básica


A Lei nº 11.645, que trata da obrigatoriedade do ensino de história
e cultura afro-brasileira e indígena, é de 2008. Nesses mais de 10 anos
transcorridos, podemos notar mudanças graduais ocasionadas por tal ação
legislativa, principalmente por estarmos inseridos no âmbito educacional.
Mas, de igual modo, é possível afirmar que muita coisa ainda deve ser feita
para alcançarmos seus reais objetivos, que são muitos se considerarmos a
complexidade da questão.
Detendo-se na temática indígena, que é o foco deste texto, visualizamos
o seguinte cenário: a sociedade brasileira pouco sabe sobre as populações
autóctones deste país, quase sempre vistas como “civilizações” do passado, da
época do “Descobrimento”. E a escola, no que diz respeito ao seu papel de
modificar essa realidade, muitas vezes atua como agente de manutenção de
estereótipos, infelizmente. Mas há, no Brasil, 305 povos indígenas, falantes
de mais de uma centena de línguas. Essas informações com certeza causam e
causarão muita surpresa a muitas pessoas, mas não deviam, já que são parte

176 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


da nossa nacionalidade. Assim, “diversidade” é um termo superapropriado
para tal parcela populacional. Nesse contexto, Silva e Costa, em Histórias e
culturas indígenas na Educação Básica, dizem-nos o seguinte:
O ensino das histórias e das culturas das populações indígenas
[...], deve, pois, transversalizar os conteúdos já abordados
em disciplinas como História, Artes e Literatura. Espera-
se que com essa medida – além de outras – seja revertido,
paulatinamente, um quadro sombrio de desconhecimento a
respeito da presença de sociedades que há muito vivem nos
atuais territórios americano e brasileiro e que sobreviveram
física e culturalmente através dos tempos, lutando, inclusive,
contra o próprio extermínio (Silva & Costa, 2018, p. 67).

Mas no terreno da Educação Básica, as maiores menções aos indígenas


do Brasil parecem se maximizar no tão famoso e controverso Dia do Índio.
Usualmente, “celebra-se” essa data de forma bem fantasiosa: ornamentar-se
de “índio”, fazer dancinhas e emitir grunhidos seria uma forma de render
homenagens a esse grupo tão espetacularizado. Nesse cenário, parece ser
difícil vislumbrar uma conscientização acerca da realidade desses povos,
seja ela cultural, linguística, política, social e ambiental. Assim, mantém-se
uma mentalidade em que, como nos lembra a escritora Márcia Kambeba,
quando se fala em povos indígenas, a ideia que vem à mente
é a de povos sem roupa, vivendo em área de mata, numa
relação com os animais, caçando, pescando e coletando frutos,
morando em casas de palha e madeira com fogo no interior
para espantar insetos e aquecer do frio. Essa imagem ainda é
presente nas práticas escolares e transmitidas às crianças pelos
livros didáticos (Kambeba, 2020, p. 42).

Pensando nas aulas de Língua Portuguesa do Ensino Médio, podemos


afirmar de forma assertiva que quase sempre as referências dos professores e
dos alunos sobre esse tema são os romances indianistas de José de Alencar,
os poemas de Gonçalves Dias e o irreverente Macunaíma, de Mário de
Andrade. É pela perspectiva presente no cânone literário, majoritariamente
composto por figuras de outras épocas, quase sempre homens brancos, que

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 177


é apresentada a “realidade” dos indígenas brasileiros, ou melhor, aquilo que
os autores indigenistas e indianistas entendiam por indígena. De antemão,
asseverar que as referências correntes no cenário educacional brasileiro estão
majoritariamente ligadas à ideia de “índio”, conceito bastante homogêneo
e reducionista, não se configura como uma novidade. Contudo, como
postulam Cagneti e Pauli, em Trilhas literárias indígenas para a sala de aula,
um novo quadro está se pincelando: multicolorido, com muitas
vozes, cada uma com seus tons. Nessa teia das histórias, quem
entra em cena são os indígenas. E eles também estão transitando
nos espaços ocidentalizados, para se apropriarem da técnica
da escrita e de seus procedimentos e, assim, mostrarem em
sua “escritura” os protagonistas de uma realidade muito deles
(Cagneti & Pauli, 2015, p. 13).

Porém se esse novo cenário está sendo delineado, se há uso das diversas
formas de escrituras existentes na sociedade pelos indígenas, onde estão essas
vozes na Educação Básica? Como enfatiza a pesquisadora Maria Inês de
Almeida (2009), em Desocidentada: experiência literária em terra indígena, os
indígenas querem falar por si próprios. Ora, eles já fazem isso. É necessário,
então, que a escola acolha, escute e partilhe essas falas. Contrariamente,
a realidade mantém-se pautada numa perspectiva unilateral, pouco afeita à
diversidade de epistemes.
Ainda refletindo sobre esse quadro multifacetado, vemos que desde
1980, quando veio a público Antes o mundo não existia: Mitologia dos antigos
Desana-Kêhíripõrã, de Umusï Pãrõkumu (Firmiano Arantes Lana) e seu
filho Tõrãmü Këhíri (Luiz Gomes Lana), considerada a primeira obra de
literatura indígena brasileira, o número de publicações de autoria indígena
vem aumentando exponencialmente, bem como recebendo notoriedade. Tal
fato, em parte, deve-se à implementação da referida lei. Mas ainda assim,
também é notável que poucas dessas obras transitam nas salas de aulas
deste país. Muitos professores e alunos, inclusive, podem ficar surpresos
ao ouvirem falar em autoria indígena, talvez até dizendo “E índio escreve?
Pensava que eles mal falavam português!”. Ciente de todas as dificuldades

178 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


e da complexidade da questão, esse cenário impõe a nós, professores, certa
ação no que diz respeito à mudança desse cenário.
Em Cartas para o Bem Viver, coletânea organizada por Suzane Lima
Costa e Rafael Xucuru-Kariri, encontramos o relato-carta de Joseli dos Reis
Querino, também professora de Língua Portuguesa, que possui afinidade
com o nosso pensamento:
Assim espero que, apesar das dificuldades próprias desse
encontro de vozes, esta carta tenha servido, em alguma medida,
para acionar reflexões em mim e em vocês sobre os modos
como nos constituímos enquanto sujeitos, entendendo que
pensar numa ideia de Bem Viver na condição de professora
de língua é propor metodologias que me libertem e libertem
os meus alunos das amarras de uma língua que na maioria
das vezes nos reprime mais do que nos liberta. E agora pauso
essa conversa, acionando essa fala de Krenak, a mim muito
simbólica, na certeza de que ela me dá energia para continuar
rasurando meus espaços de militância, as salas de aula da escola
pública, como uma professora de língua portuguesa [...] que
não vai se calar enquanto tiver a força subversiva e criativa para
despencar agarrada aos meus alunos em paraquedas coloridos
[...] (Querino, 2021, p. 223).

Realmente, em consonância com as ideias dessa educadora, consideramos


como essencial essa busca por novas metodologias com teor libertador, bem
como essa atitude ativista do professor no que concerne à busca constante de
transformação, por exemplo, do cenário educacional. Daniel Munduruku
(2012), escritor indígena com mais de 50 livros publicados, enfatiza a
importância da educação da mente, um processo recorrente nas culturas
indígenas do Brasil. Analogamente, cremos ser possível transpor esse conceito
para o campo escolar no que diz respeito à reformulação do pensamento
que se tem, hoje, sobre as populações originárias brasileiras. Afinal, em
O caráter educativo do Movimento Indígena brasileiro (1970-1990), o referido
escritor assevera o seguinte:

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 179


estas imagens que empobreciam as experiências dos povos
indígenas - o índio era sempre visto como atrasado, selvagem,
canibal, pobre, e, também, como empecilho para o progresso
nacional -- foram sendo paulatinamente “arrancados” do
imaginário brasileiro para dar lugar a outras imagens mais
próximas da verdadeira humanidade indígena (Munduruku,
2012, p. 223).

Embora o espectro traçado acima revele mudanças, diversas


experiências empobrecedoras ainda devem ser desfeitas ou reformuladas.
Mas como lograr êxito numa empreitada como essa sem trazer vozes de
intelectuais indígenas para as salas de aula? Esse talvez seja o ponto fulcral
da questão. Na posição de professores, compreendemos que pensadores
indígenas -- e aqui damos amplitude a esse termo -- têm primazia para
viabilizar as mudanças ensejadas, pois são fontes privilegiadas para a escuta.
A título de exemplo, podemos citar alguns nomes que vêm ganhando
destaque nacional e internacionalmente: Graça Graúna, Auritha Tabajara102,
Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, Yaguarê Yamã, Davi Kopenawa Yanomami,
Márcia Kambeba, Julie Dorrico, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Tiago
Hakiy, Lia Minapoty, Kaká Werá, Edson Kayapó, Fernanda Vieira, Cristino
Wapichana, Ytanajé Cardoso e Aline Pachamama.
Há tempos que o Movimento Indígena do Brasil, de várias formas,
vem educando a sociedade sobre suas realidades, acentuadamente plurais, e
revelando novas epistemologias. Pela autoria indígena, somos apresentados a
novos mundos, como pontua a escritora e pesquisadora Graça Graúna: “[...]
a literatura indígena contemporânea vem se preservando na auto-história
de autores e autoras e na recepção de um publico-leitor diferenciado, isto é,
uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e
prosas autóctones.” (Graúna, 2013, p. 15). Dessa forma, é hora de amplificar
esse projeto tomando como cerne o campo educacional, tradicionalmente
pouco afeito à diversidade, mas que muito tem a ganhar com essa proposta.
Uma das maneiras que consideramos mais propícias para isso é levar os

102 As obras dessa autora, considerada a primeira cordelista indígena, farão parte do acervo da Library
of Congress, maior biblioteca do mundo, localizada nos Estados Unidos.

180 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


autores indígenas para serem lidos em sala de aula, como veremos adiante
no relato de experiência.

Caminhos Para o Bem Viver: Um Relato de Prática Pedagógica


Elegemos as palavras de Ailton Krenak, recheadas de Bem Viver,
presentes numa carta destinada “Para quem quer cantar e dançar para o
céu” para dar mote a este relato de prática pedagógica:
Escrever esta carta, neste momento crítico das humanidades
ou das pluralidades, como gosto mais de dizer, me fez desejar
dançar para o céu, me fez querer a vida nessa plenitude e me
fez, também, convidar você que está lendo estas palavras agora
para cantar junto, para chamar a primavera, para vivermos
juntos e bem (Krenak, 2020b, p. 20).

O ano letivo de 2021 foi permeado por diversos desafios no que se refere
à modalidade de ensino remoto: não há espaço suficiente aqui para listá-los.
Felizmente, isso não foi um empecilho para levar textos de autores indígenas
para as “salas de aula” virtuais. Como há um ativismo muito potente desses
escritores nas redes sociais, isso facilitou a inserção desses escritos, muitas
vezes associados a vídeos de participação deles em programas de tevê ou em
canais do YouTube. Essa estratégia, por exemplo, foi utilizada para estudar
os textos de Ailton Krenak, aproveitando a sua participação no programa
Roda Viva, da TV Cultura, no dia dezenove de abril de 2021.
Aos estudantes do Ensino Médio do Colégio Estadual Castro Alves,
Adustina-BA, cidade interiorana, foi indicado que fizessem a leitura do livro
Caminhos para a cultura do Bem Viver (2020a), de Ailton Krenak103. Essa
escolha não foi aleatória: em tempos como estes, pensamos que o contato por
parte dos estudantes com pensamentos como esses pode ser revolucionário,
abrindo suas mentes a novas possibilidades de compreensão da realidade.
Assim, os alunos do 1º e 2º ano, na disciplina de Língua Portuguesa, deveriam
responder algumas questões norteadoras sobre a leitura, já aos estudantes do

103 A atividade apresentada foi realizada no ambiente virtual Google Classroom.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 181


3º ano, na disciplina de Redação, foi proposto que fizessem uma produção
textual tendo por base as mesmas perguntas.
A obra mencionada, um e-book, é fruto da participação do escritor
na Semana do Bem Viver da Escola Parque do Rio de Janeiro, em 2020.
Nesse evento, Ailton Krenak, uma grande voz da atualidade, falou sobre o
Bem Viver, conceito tão importante nestes tempos. O livro está dividido
nos seguintes minicapítulos: “Conexão”, “A origem do Bem Viver”, “O que
não é o Bem Viver”, “Rios voadores”, “Ideia de Natureza”, “Terra como
organismo vivo”, “Educação e Bem Viver”, “Pandemia”, “Ser Krenak”
e “Nossos ancestrais”. Por suas palavras, somos apresentados a noção de
Bem Viver, intimamente associada a temas como vida, natureza, educação,
ancestralidade, pandemia, etc. Ademais, embora essa publicação possa ser
considerada teórica, percebemos um alto teor poética em diversos trechos do
livro, como este: “Assim como a floresta amazônica produz vapor, oxigênio,
água e essa maravilha que é a chuva, que viaja para cá pelos rios voadores,
a ideia do Buen Vivir também voou de lá dos Andes para cá.” (Krenak,
2020a, p. 11). Comprova-se, assim, o caráter híbrido recorrente na autoria
indígena, como mencionado acima.
Diversas respostas e textos produzidos pelos alunos nos chamaram
bastante atenção, sendo, então, responsáveis pelo surgimento deste relato, já
que foi por meio da leitura deles que percebemos a relevância de compartilhar
com professores e pesquisadores os resultados do trabalho com autoria
indígena em sala de aula, mesmo que remotamente. As vinte questões que
direcionaram a leitura da obra foram as seguintes:
1. O que você entendeu por “conexão”?
2. Qual a origem da ideia do Bem Viver?
3. Qual o significado da expressão “Sumak Kawsai”?
4. O que é sustentabilidade?
5. O que é bem-estar?
6. Qual a diferença entre Bem Viver e bem-estar?
7. “Nós não somos alguém que age de fora. Nós somos corpos que
estão dentro dessa biosfera do Planeta Terra”. Explique essa fala
de Ailton Krenak.

182 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


8. O que é cosmovisão?
9. Explique o porquê de a Terra ser considerada um organismo vivo?
10. Qual a relação entre educação e Bem Viver? (escreva um parágrafo
de 8 linhas resumindo esse capítulo).
11. “Vocês não me escutam, não é? Eu vou desligar alguns de vocês
para ver se vocês entendem o que estou falando.”. De acordo com
o capítulo “Pandemia”, o que podemos aprender de importante
para o planeta, em decorrência do que vivemos com a deflagração
do Coronavírus?
12. O que representam os rios e as montanhas para o povo Krenak?
Como podemos compreender essa relação com o modo de tratar
a natureza?
13. Explique o que são ancestrais.
14. Qual o objetivo dos ritos de passagem?
15. Faça uma lista de palavras desconhecidas presentes nessa obra e
pesquise os significados.
16. Retire uma citação que mais chamou sua atenção.
17. Pesquise outros autores que falam de Bem viver e liste-os aqui.
18. Faça uma lista das obras de Ailton Krenak.
19. Explique por que é urgente ler as suas obras.
20. Do que você aprendeu, o que você ensinaria às crianças que vivem
em seu entorno?
Essas indagações foram elaboradas a fim de orientar a leitura, permitindo
aos estudantes que fosse possível extrair o máximo de entendimento e
conhecimento, dentro de algumas limitações, pois se sabe que os tópicos
abordados não esgotam toda a sabedoria que Ailton Krenak compartilha
neste livro. Não se configuram, assim, como perguntas limitadoras, mas
sim como direcionamentos para uma melhor compreensão da obra. Além
disso, propunha-se também aguçar a curiosidade dos estudantes em relação
a outras publicações desse escritor, criando possibilidades para que eles
busquem outras leituras, como se percebe na questão dezoito.
Para explanar o modo como os estudantes recepcionaram o livro
Caminhos para a cultura do Bem Viver (2020a), faremos a análise de algumas

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 183


respostas dadas pelos alunos, traçando sempre associações com as ideias
delineadas nesse livro.
Uma das abordagens centrais feitas por Krenak refere-se à diferença
entre Bem Viver e bem-estar, como fica um pouco evidente no título do
livro. Ao ser questionado a respeito de tal distinção, o aluno A104, estudante
do 1º ano, responde que “A diferença entre o bem viver e o bem-estar está
ligado ao fato de que o bem viver defende viver bem em harmonia com a
natureza, já o bem-estar significa viver bem sem se preocupar com a natureza”.
É possível verificar que o leitor compreende com facilidade a diferenciação
dada pelo escritor, enfatizando que é a forma da relação humano-natureza
que traça as distinções entre tais termos. Uma compreensão aguçada da
questão também é notória neste trecho do texto da aluna B, do 3º ano:
[...] o Bem-estar e o Bem Viver não são a mesma coisa. No
primeiro, observa-se a ideia de que para o bem estar humano o
indivíduo pode consumir a Terra. Já no segundo o ser humano
está subordinado a uma ecologia planetária, assim como outros
seres ele está dentro dessa ecologia como um elemento de
equilíbrio e regular, ou seja, são todos corpos da biosfera do
Planeta Terra. Logo, o ser humano é alguém que não pode agir
de fora, fingindo estar tudo bem ou fechar os olhos para os
vastos problemas ambientais que estão destruindo o habitat,
explorando excessivamente os recursos oferecidos pela Mãe Terra.

Sendo a temática ambiental muito presente na literatura indígena,


trazer essas leituras para a sala de aula permite aos estudantes refletirem sobre
questões caras para a sobrevivência da humanidade e do planeta. Dessa forma,
o dilema posto é este: “Não é você incidir sobre o corpo da Terra, mas é
você estar equalizado com o corpo da Terra [...]” (Krenak, 2020a, p. 13-14).
A resposta transcrita acima comprova isso, principalmente quando
é mencionado, pela aluna, o problema causado pelo “fechar dos olhos” às
questões à nossa volta. Desta forma, é possível trazer para o debate, por

104 Por questões éticas, resolvemos não mencionar os nomes dos alunos. Dessa maneira, ao citá-los
neste texto, faremos referência usando uma letra do alfabeto para cada estudante diferente.

184 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


exemplo, o racismo ambiental, desenvolver melhor esse conceito, mostrando
aos estudantes que há outro tipo de racismo tão violento quanto o já
conhecido, e se não o colocarmos entre nossas pautas principais, estaremos
fadados à extinção, pois, como assevera a ativista Txai Suruí (2021), a Terra
não pode mais esperar por ações que deverão ser desenvolvidas somente no
futuro. É necessário que se faça algo urgente, como garantir que as leis de
proteção ambiental sejam respeitadas rigorosamente e que novas políticas
públicas sejam efetivadas. Essa ideia está intimamente associada com o
pensamento de Ailton Krenak, que não à toa publicou, em 2019, uma obra
intitulada Ideias para adiar o fim do mundo.
Ao ser chamada a pensar sobre a relação existente entre educação e
Bem Viver, tema bastante profícuo, pois tem a ver com este relato, a aluna
C, do 2º ano, pondera que:
Desde novos somos inseridos na escola, ali fazemos amigos,
construímos laços e aprendemos coisas importantes, mas
a escola nem sempre aborda assuntos que realmente são
importantes. Somos ensinados a estudar incansavelmente a
fim de obter um futuro brilhante, no entanto, nem sempre
ensinam como viver bem e o que fazer para mudar essa realidade
que vivemos. É quase impossível pensar em um bom futuro
quando o nosso presente não anda bem, ainda mais quando é
o nosso planeta que está em jogo. Precisamos ser ensinados a
cuidar, a formar cidadãos conscientes e cuidadosos, a proteger
e lutar pelo nosso lar.

Observa-se uma reflexão madura e profunda que demonstra


comprometimento com o planeta, com o ser humano e com o próprio futuro.
A aluna reconhece o papel socializador da escola, mas aponta as complexidades
desse processo. Há uma crítica explícita aos conteúdos ensinados, destacando
o fato de que nem sempre são os mais importantes para se ter um futuro
mais “promissor”, indo ainda mais fundo: como garantir um futuro se não
cuidamos do nosso lar, que é a Terra? À escola não caberia o trato dessas
questões? Logo, o processo de educação “deve” estar comprometido, para
além de tantas frentes, com ensinar às pessoas os caminhos do Bem Viver,

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 185


desconstruindo ou reformulando a ideia de consumismo e de acumulação
de capital embutida no conceito de “bem-estar”. Nesse contexto, o autor é
enfático ao dizer que “[...] os educadores vão ter que ocupar um outro lugar,
diferente do que eles ocuparam nesta sociedade predatória e de consumo
que chegamos até agora” (Krenak, 2020a, p. 19).
O aluno D, também do 2º ano, faz uma análise semelhante à supracitada:
“A ideia principal trazida na obra é a de que a educação necessita ir além para
poder ajudar a criar e construir seres humanos para uma Terra viva, pois a
pessoa humana é realmente uma construção e precisa ser habilitada.”. Ou seja,
a escola não pode ficar presa a uma grade curricular que aprisiona os estudantes
aos conteúdos considerados por um grupo de pessoas como “clássicos” e
deixar de abordar nas salas de aulas, por exemplo, as epistemologias dos
povos originários, que refletem sobre questões de suma importância para a
construção de um sujeito que respeita, cuida e defende a Terra: não se ver
como proprietário da Terra, mas como seu próprio filho, mais um dos entes
deste sistema ecológico. Assim, a pluralidade de ideias deve transitar nas
salas de aula. Podemos complementar a fala desse estudante afirmando que
a humanidade precisa ser habilitada a viver em conexão com os outros seres
vivos e não vivos também, deixando de lado o ego dotado de superioridade.
Ademais, ao ser convidado a refletir sobre o significado do trecho
“Nós não somos alguém que age de fora. Nós somos corpos que estão dentro
dessa biosfera do Planeta Terra.” (Krenak, 2020a, p. 13), presente na obra
estudada, o aluno E explica que o trecho faz uma referência a nós seres
humanos, que somos uma pequena parte de um todo, ou seja, somos parte
da Terra. Sendo assim, nossos feitos na Terra terão consequências, boas ou
ruins. Isso irá depender das nossas escolhas.
Reiteramos que há um amadurecimento nas reflexões feitas
pelo estudante, demonstrando que a leitura do texto em questão, bem
compreendida, o leva a pensar sobre as consequências dos nossos atos sobre
este planeta. O próprio Ailton Krenak traça esse espectro quando assevera que
se “[...] a gente continuar agora, depois desse caos que a pandemia causou
no mundo, embalando de novo, [...] nós vamos transformar esses lugares
maravilhosos em lugares predados, onde nem vamos conseguir respirar

186 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


depois.” (Krenak, 2020a, p. 22). Essa não é uma questão de vingança ou
castigo, pois somos a própria Terra, ou seja, o mal que praticamos contra
ela, estamos praticando contra nós próprios.
Outro ponto abordado por Krenak que requer menção diz respeito
ao modo como os povos indígenas tratam os rios e as montanhas, isto é,
como tais indivíduos inter-relacionam-se com a natureza: “[...] a experiência
de ser para nós implica uma filiação com diferentes potências da vida aqui
na Terra.” (Krenak, 2020a, p. 25). A aluna F, do 2º ano, explica o seguinte:
Para esses povos os rios é como se fosse o avô deles. Como
podemos perceber que os rios e as montanhas para eles é
como se fosse gente mesmo, eles conversavam, tinha aquela
intimidade. Quando o rio inundava tudo, eles iam lá perguntar
o porquê, e assim, o rio respondia qual era o motivo.

A resposta da estudante deixa evidente que ela compreendeu a


simbologia do rio e das montanhas para os Krenak, entes com os quais os
indígenas traçam uma relação pautada em intensa conexão. Nesse ínterim,
vale destacar que o escritor Ailton Krenak é coautor de uma petição para
declarar os rios São Francisco e Doce como entidades de direito. Tal ação
representa a manifestação de uma concepção de mundo recorrentemente
apresentada na literatura indígena. A respeito disso, é interessante mencionar
o livro Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel
Munduruku, que, embora faça menção a um ser humano, o avô do escritor,
também trabalha com uma simbologia pautada na profunda conexão com
os elementos da natureza. Assim, percebemos que os Munduruku também
mantêm uma estreita relação com o meio ambiente.
A penúltima questão teve como objetivo levar o leitor a pensar sobre
a importância de ler os textos de Ailton Krenak, ou melhor, de conhecer a
literatura indígena brasileira contemporânea. Para a aluna G,
As obras de Ailton Krenak trazem ensinamentos fantásticos
sobre o Planeta e sobre os seres humanos, por isso, é de suma
importância que mais pessoas conheçam e entendam sobre
os assuntos abordados por ele em suas obras, além disso,

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 187


o autor faz o uso de uma linguagem clara e significativa. Tendo
como argumento a obra em questão, o aprendizado obtido
por mim foi imensurável e gratificante, os assuntos retratados
possuem ideias e ensinamentos fixos, tornando possível obter
vastos conhecimentos e percepções sobre a importância do
cuidado para com a Terra.

Essa opinião e as demais já apresentadas nesse texto evidenciam que


houve uma recepção muito positiva da autoria indígena em sala de aula,
contribuindo para a circulação dessas obras na escola – talvez o nosso maior
desejo. Afinal, cremos ser essencial e necessário propiciar o máximo de contato
possível dos estudantes com publicações como essa, pois isso mostra que há
muitas leituras instigantes que não estão contempladas pelo cânone, aquilo
que eles estão acostumados a ver nos livros didáticos. Ademais, aponta-se que
para pensar, discutir e lutar por questões climática no Brasil, uma estratégia
seria tomar os pensamentos dos escritores indígenas como subsídios, pois
há muito tempo eles vêm defendendo o direito das florestas permanecerem
em pé e, também, defendendo os seus territórios com suas próprias vidas.
A última questão tinha como propósito pensar a leitura desse livro
como uma tarefa política, pedagógica, social e ambiental, assim, indagamos:
“Do que você aprendeu, o que você ensinaria às crianças que vivem em seu
entorno?”. Cremos que com essa pergunta seria possível mensurar, ainda
que relativamente, o grau de importância dada às ideias de Ailton Krenak
presentes nessa obra.
Entre tantas respostas que apresentaram uma postura comprometida,
destacamos a resposta da aluna H, ao nos falar que “[...] mesmo com o
tempo difícil da atualidade é possível invocar a cura e sonhar um futuro de
vida. Além do que devemos saber conviver com a Mãe Terra, dedicando-lhe
respeito, amor e profundo zelo porque ela é única.”. Nota-se, por exemplo,
que a resposta dessa aluna já traz em si a ideia de Bem Viver, pois pauta-se
num sentimento de conexão com esse organismo vivo que é a Terra. Afinal,
“O Bem Viver pode ser a difícil experiência de manter um equilíbrio entre o
que nós podemos obter da vida, da natureza, e o que nós podemos devolver.”
(Krenak, 2020a, p. 8-9).

188 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Percebe-se também, por meio da reflexão feita pela aluna H, que a
leitura, além de evocar a ideia de que todos somos responsáveis e devemos
fazer alguma coisa para proteger este planeta, também gera um sentimento
de esperança, de que é possível confiar em um “futuro”105, desde que no
presente tenhamos atitudes de amor e cuidado para com a geradora de vida
que é a Terra. Ou seja, é preciso dar a devida importância à nossa casa comum.
Com base nas respostas apresentadas e nas reflexões tecidas, é possível
entrever que essa leitura representou, para boa parte dos nossos alunos,
mais que uma mera atividade escolar que visa atribuir uma nota para fins
de aprovação, um fazer por fazer. Houve uma devida compreensão, fato
depreendido pela habilidade apresentada por eles de ir além das ideias
trabalhadas pelo autor, ao traçarem paralelos com as suas vivências.

Considerações Finais
A escola, dentre tantas funções, possui a tarefa extremamente importante
de ensinar aos educandos que não existe uma história única: há outras histórias
tão importantes quanto as legitimadas, contadas de outras formas, por outros
povos, sem se furtar de explicar os motivos de essas outras histórias serem
silenciadas ou deslegitimadas. Acreditamos, assim, que levar a literatura
indígena para a escola contribui para a formação de sujeitos políticos que
respeitam e toleram as diversidades. Ou seja, pessoas que possam valorizar
o diverso, tendo uma convivência harmoniosa com as diferentes culturas.
Este relato, fruto do trabalho nas salas de aula de uma escola pública
estadual do interior da Bahia, toma a temática indígena como cerne e
pretende ser um exemplo das tantas experiências possíveis nesse campo.
Novamente, reiteramos a complexidade da questão. Mesmo assim, cremos
ser necessário intervir de alguma forma nessa situação, pois já está bastante
comprovado que as histórias e culturas indígenas não estão devidamente
presentes na Educação Básica. Quando estão, elas aparecem costumeiramente
rodeadas de estereótipos. Dessa forma, nos parece essencial, nessa empreitada

105 As aspas foram utilizadas aqui a fim de sinalizar que para as culturas indígenas há o passado,
que são as memórias ancestrais e o presente.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 189


transformadora, que haja presença de intelectuais e escritos indígenas na
escola, uma postura de cunho decolonial que contribui demasiadamente
para a descoberta dos diversos brasis existentes no Brasil.
Trazemos à baila, agora, os seguintes versos de Eliane Potiguara,
uma das mais importantes escritoras indígenas, profundamente dotados de
esperança e intimamente relacionados com as nossas intenções ao produzir
este trabalho:
[…]
Nós, povos indígenas,
Queremos brilhar no cenário da História
Resgatar nossa memória
E ver os frutos de nosso país, sendo divididos
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e “desplazados”
Como nós.
(Potiguara, 2018, p. 115)

Referências
Almeida, M. I. (2009). Desocidentada: Experiência literária em terra indígena.
Editora UFMG.
Cagneti, S. S., & Pauli, A. (2015). Trilhas literárias indígenas: Para a sala
de aula. Editora Autêntica.
Graúna, G. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea
no Brasil. Editora Mazza.
Kambeba, M. W. (2020). Saberes da floresta. Editora Jandaíra.
Krenak, A. (2020a). Caminhos para a cultura do Bem Viver. Cultura do
Bem Viver.
Krenak, A. (2020b). De Ailton Krenak para quem quer cantar e dançar para
o céu. Em Cartas para o Bem Viver, (pp. 20-22). Boto-Cor-Rosa Livros, Arte
e Café, ParaLeLo13S.

190 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Munduruku, D. (2012). O caráter educativo do movimento indígena brasileiro,
1970-1990. Edições Paulinas.
Munduruku, D. (2021). Daniel Munduruku discursa na Câmara dos
Deputados. https://www.youtube.com/camaradeputados
Potiguara, E. (2018). Metade cara, metade máscara. Grumin Edições.
Querino, J. R. (2020). De Joseli dos Reis Querino para os professores de
língua portuguesa. Em Cartas para o Bem Viver, (pp. 217-223). Boto-Cor-
de-Rosa Livros, Arte e Café, ParaLeLo13S.
Silva, G. J., & Costa, A. M. R. F. M. (2018). Histórias e culturas indígenas
na educação básica. Editora Autêntica.
Suruí, T. (2021, 29 de novembro). Roda Viva, Txai Suruí e Almir Suruí.
https://www.youtube.com/rodaviva

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 191


CAPÍTULO 9

“Nuestros Muertos Están Cada Día Más Vivos”:


Insistência e Rememoração do(s) Corpo(s) em Contextos
Totalitários Através dos Textos de Pedro Lemebel, Néstor
Perlongher e las Yeguas del Apocalipsis
Carlos David Larraondo Chauca106

Irrompendo o Espaço da Memória: Tensões e (Contra)discursos


da Ditadura em Contextos Neoliberais
Na última década o cenário político latino-americano vem sendo palco
de uma série de discursos negacionistas produto da emergência de partidos
políticos conservadores de extrema-direita (Severo, 2020) que flertam com
o totalitarismo e, sistematicamente, usam do esquecimento como artifício
narrativo para rescrever/encobertar acontecimentos nefastos de crimes de
lesa humanidade —desaparecimento de corpos, torturas e mortes— dos
períodos ditatoriais. Discursos de poder que devem ser entendidos como um
projeto político em andamento, produtor de efeitos de verdade,107 cujo afã
de alimentar o triunfalismo dos “vencedores da história” e dar-lhes anistia

106 Universidade Federal do Acre, carlos_david180@hotmail.com


107 Penso a partir de Michel Foucault, que o “efeito de verdade” que os discursos produzem está
relacionado com as formas de subjetivação. Assim, a verdade, não é objetiva, é historicamente
produzida nos moldes do domínio dos objetos e dos tipos de saber, determinado por um regime de
autorização discursiva, datado, que faz com que certos enunciados, dentro de um recorte espaço/
temporal, sejam considerados como verdadeiros. Para Foucault a verdade é “o conjunto de regras
segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de
poder” (Foucault, 2008, p. 13).

192 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


fere e aviva nosso “dever de memória”108, nosso compromisso ético de fazer
justiça aos nossos mortos.
Bolsonaro no Brasil109, Contreras no Chile110, Macri na Argentina111,
são alguns exemplos de figuras políticas que usaram/usam das mídias
massivas como dispositivos de subjetivação, construindo narrativas falaciosas
para encobertar as violências históricas de governos totalitários que, nos
contornos geopolíticos latino-americanos, se entendem como estruturantes
da modernidade/colonialidade.112 A partir desse contexto e as tensões que
suscita a discursividade histórica— entendendo que o “fazer história” se apoia
em um poder político que legitima narrativas hegemónicas (Certeau, 2017)
e, dentro dos sistemas sociais, o discurso é o veículo de poder e o objeto de
desejo (Foucault, 1999) — me vejo provocado a ir ao encontro de narrativas
que se neguem a esquecer e assumam a denúncia de uma necropolítica de
extermínio dentro dos regimes totalitários da/na “América-latina”.
Tal intenção a identifico na produção escrita e performática de escritores
como Pedro Lemebel, Francisco Casas e Néstor Perlongher que, no âmbito
da “cultura hispano-americana”, tecem narrativas que podem ser consideradas
contra-hegemônicas, pois irrompem a linearidade do discurso Histórico e

108 Sebastien Ledoux (2009) propõe que o “dever da memória” se vincula às políticas da memória
e ao imperativo do não-esquecimento nos contextos da contemporaneidade, dando protagonismo
às vozes das vítimas do discurso atual, como forma de reparação e justiça histórica.
109 O eleito presidente do Brasil em 2019, negou reiteradamente a existência da ditadura e de
práticas de tortura nos governos militares, conforme reportagem Folha de São Paulo, de 27/03/
2019. https://www1.folha.uol.com.br/poder
110 O ex-general e ex-chefe da Dirección Nacional de Inteligência Chilena (DINA), em diversas
entrevistas, chegou a afirmar que jamais houve ditadura no Brasil, no Chile e na Argentina, inclusive,
defendeu que no período do governo militar do Pinochet, não houve desaparecimento de corpos,
nem práticas de torturas, tal como demostra a reportagem da CNN Chile. https://www.cnnchile.
com/pais/manuel-contreras
111 O ex-presidente argentino, gerou polemica ao relativizar os assassinatos cometidos no período
da ditadura argentina, cujos dados são resultado de pesquisas e registros da Conadep (Comisión
Nacional de Desaparición de Personas), tal como informa a reportagem de El País-Argentina. https://
elpais.com/argentina/1470936255_170858
112 Se entende a modernidade/colonialidade como a sistematização da estrutura colonial do poder
nos contextos contemporâneos da globalização (Dussel, 2005).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 193


contribuem com a (re)escrita da história desde o ponto de vista dos vencidos,
uma demanda urgente e de atualidade pois,
se revisionistas neofacistas estão galgando o poder hoje é porque
também não soubemos nos aparelhar politicamente com uma
história estruturada, de modo forte o suficiente. O revisionismo
fascista que quer glorificar ditaduras e torturadores exige uma
resposta que se dá, ante de mais nada, no campo da guerra das
imagens, para usar uma expressão do cineasta Harun Farocki.
Benjamin afirmou há oitenta anos que estávamos perdendo essa
batalha. Cabe a nós reverter este estado de coisas (Seligmann-
Silva, 2020, p. 25).

Na passagem, a afirmação de Seligmann-Silva articula-se,


especificamente, à sexta tese de Walter Benjamin proposta em Sobre o conceito
de História, na qual, manifesta sua oposição à tradição historicista pois entende
que “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele
de fato foi’. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no
momento de um perigo’” (Benjamin, 2012, p. 243). Essa reflexão implica
em problematizar a história como a ciência dos “fatos” e atentar nosso olhar
às imagens que se resgatam desse passado historicizado, entendendo sua
configuração no espaço/tempo e, principalmente, os discursos que permitem
suas constelações de sentidos dentro de um panorama ideológico.
Desse modo, se assumimos que a realidade não pode ser capturada
pela língua(gem), assumimos que a História se escreve sob um conjunto de
discursos que permite que certas narrativas emerjam à uma exterioridade
produzindo efeitos de verdade em escala global, alimentando uma tradição
que constrói uma linha interrupta de sucessos organizados pelo discurso
dominante, na qual outras históricas, outras narrativas, outras existências, fora
da linearidade da historiografia oficial, são irremediavelmente suprimidas.
Nesse sentido, Seligmann-Silva reaviva a urgência benjaminiana de convidar
os mortos para a mesa (Benjamin, 2012) para que sua lembrança irrompa o
espaço da memória e sua rememoração ajude a desmascarar as tramas que
constroem a tradição dos vencedores, pois o “dom de despertar no passado
as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de

194 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse
inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, 2012, p. 244).
Atravessado por essas provocações manifesto minha afinidade com
discursos-outros, discursos justiceiros, que tensionem e enfrentem, mediante
o embate no campo da língua(gem), as narrativas negacionistas e neofascistas
sobre a ditadura, trazendo outro repertorio de “imagens” à baila, permeado
pela sensibilidade de corpos que, dentro das relações socias de poder, foram
historicamente invisibilizados, corpos discentes que desafiam o regime de
autorização discursiva que a modernidade estabelece e assumem, dentro das
suas propostas de escrita e de performance, o pacto ético com a história dos
“vencidos”, com a memória das vítimas inegáveis dos regimes autoritários.
Refiro-me à Pedro Lemebel, que junto com Francisco Casas formaram o
coletivo artístico Las yeguas del apocalipsis,113 e a Nestor Perlongher. Escritores
engajados politicamente que vivenciaram na carnalidade as inseguranças
e as violências da ditadura— Lemebel e Casas no Chile e Perlongher na
Argentina— e usaram da escrita e da performance como meio para denunciar
as atrocidades cometidas pelos regimes militares em seus países.
Militante e artista performático, Lemebel evidência em sua produção
escrita e intervenções artísticas, junto ao coletivo Las yeguas del apocalipsis, a
reconstrução de uma memória nacional a partir de uma sensibilidade marica
(homossexual e marginal) que resgata da não-história corpos produzidos como
ausentes nas grandes narrativas oficiais: homossexuais, transexuais, mulheres,
coletivos marginalizados como as “torcidas organizadas” e, enfaticamente,
os corpos torturados e desaparecidos no contexto da ditadura militar e da
chamada “transición democrática” chilena. Para Lemebel é importante
pensar em uma reconstrução da sociedade chilena pós-ditadura permeada
pela memória das vítimas desse regime, mas vê o processo da transição para
democracia como uma artimanha neoliberal que estabelece uma política de
esquecimento que ameaça constantemente a liberdade coletiva. O escritor é
consciente que as ditaduras ressurgem constantemente “en las paredes cada

113 Grupo performático formado por Pedro Lemebel e Francisco Casa, que utilizava o travestismo, a
fotografia, o vídeo e instalações públicas, como suportes combativos contra os discursos institucionais
da ditadura na década de 1980.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 195


cierto tiempo, como esas manchas en los muros revenidos que pintan con
su propaganda de país rico y feliz” e que o esquecimento e a impunidade
propiciam esse ressurgimento, no Chile por exemplo, afirma: “Aqui no
hubo juicio a Pinochet, se hizo una pactada transición y los torturadores
victimarios andan sueltos” (Lemebel, 2013, np.). Nesse contexto, tal como
afirma Juan Poblete (2018), as crônicas lemebelianas são uma alternativa ao
poder-saber da ditadura e suas sequelas na “pátria livre”, um gesto literário
de importante efeito político-cultural pois, é uma escrita que resgata uma
densidade histórica desconsiderada e ressignifica os espaços114 públicos e
privados neutralizados pelo discurso neoliberal.
No que diz respeito à escrita-política de Néstor Perlongher é possível
demarcar que essa se atravessa pela necessidade de intervir os espaços da
memória argentina com a teimosia de nomear e registrar as marcas da violência
militar no contexto da modernidade. Na proposta do poeta e ensaísta, o
corpo, principalmente o corpo marginalizado, ganha relevância temática e
se manifesta nos resíduos que indicam sua existência (suor, lágrimas, sêmen,
fezes) “como si la palabra y los flujos fueran lo mismo, constancia simbólica
o supuración biológica que comprueban que ese cuerpo existió” (Iriarte,
2012, p. 01). A sua insistência de demarcar a presença/ausência dos corpos,
me permite tecer um fio de afinidade com a escrita lemebeliana, em vista
que, ambas propostas se negam à naturalização do corpo desaparecido nos
contextos da ditadura e pós-ditadura militar. Embora, a crítica literária se
debruça na possível categorização disciplinaria da sua produção escrita,
interessa compreender que a nível de discurso, a escrita perlongheriana
(poemas, ensaios, romance, crônicas) se inscreve na leitura/tradução de um
contexto político violento que o impele a escrever de forma crua.
Assim, provocado pelo exposto e pensando a narrativa literária como
possibilidade de reconstrução da História, me proponho a tecer reflexões
sobre narrativa e memória de Walter Benjamin (2012; 2020), o conceito
de necropolítica de Achille Mbembe (2018) e as reflexões de Jean Franco
(2016) sobre a modernidade, com o intuído de articular tais conceito aos

114 Me refiro a espaços físicos, mentais, políticos e/ou afetivos.

196 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


três textos escolhidos para análise, a saber: “El informe Rettig (o recado de
amor al oído insobornable de la memoria)” de Pedro Lemebel (1998), as
performances “Tu dolor dice minado/Homenaje a Sebastián Acevedo” de
Las Yeguas del Apocalipsis (1991; 1993) e o poema “Cadáveres” de Néstor
Perlongher (1997). Textos que permitem exercitar uma memória política
de denúncia contra as violências exercidas nos governos ditatoriais da/na
“América-Latina”, delatando o regime de terror que instauram nos corpos
que consideram e constroem como inimigos.

A Ditadura nos Contextos da Modernidade/Colonialidade


Me interessa neste apartado resgatar narrativas que permitam entender
as tensões e dimensões políticas da emergência dos textos de Lemebel e
Perlongher, assim, como as intervenções performáticas nos espaços públicos
realizadas pelo coletivo Las Yeguas del Apocalipsis entre as década de 1980
e 1990. Tal recorte histórico corresponde ao estabelecimento de governos
ditatórias na “América Latina”. Na minha proposta de leitura as políticas
coercitivas do corpo nos períodos ditatórias são alcances e manifestações
da matriz colonial do poder na contemporaneidade, conceito proposto
por Anibal Quijano (2002) desde o ponto de vista de uma heterarquia do
poder que entrelaça, em rede, diferentes formas simbólicas de dominação.
Isto é, a matriz colonial do poder— estabelecida nos processo coloniais do
século XVI— corresponde simultaneamente à privatização e exploração das
terras e dos corpos, ao controle da autoridade, do gênero e da sexualidade,
das subjetividades e ao controle da natureza e seus recursos (Mignolo,
2010). Uma ordem de domínio, que no contexto do capitalismo global, se
entende como processos “complejos, heterogéneos y múltiples, com diferentes
temporalidades, dentro de un solo sistema-mundo de larga duración” (Castro-
Gómez; Grosfoguel, 2007, p. 18).
Isto posto, é importante salientar que a matriz a colonial do poder, tal
como afirma Enrique Dussel (2005) é constitutiva da modernidade115 e se

115 De acordo com Dussel (2005) são os processos colonizatórios no século XVI que inauguram a
modernidade concomitante à invasão do Abya-Yala (território hoje denominado América). Segundo
o filosofo, a colonização trouxe como consequência para a Europa o desenvolvimento técnico-

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 197


estabelece, nevralgicamente, por uma dicotomia que determina uma fronteira
ontológica definidora, em um panorama histórico global, das relações de
poder social: a dicotomia civilizado-bárbaro ou civilizado-selvagem. No
contexto da modernidade esse bárbaro ou selvagem é um motivo histórico,
é a invenção de um corpo que o discurso hegemônico considera inimigo
e perigoso. É aquele que se opõe ao processo civilizatório, o obstáculo da
modernização e, por esse motivo, toda violência coercitiva, inclusive o
assassinato, é justificada e requerida.
Transporto essa lógica para compreender o surgimento de governos
ditatoriais no Chile e na Argentina na década de 1980 e a sistematização da
violência e do terror nos corpos sob torturas e assassinatos como forma de
controle e domínio do poder estatal, é importante pensar que esse contexto
corresponde à hegemonia político-econômica dos Estados Unidos no padrão
de poder mundial que a partir do século XX demanda a implantação do
desenvolvimentismo nos territórios da “América-Latina”, projeto cuja meta
era eliminar grupos e movimentos que mostravam oposição a esse sistema
global. Tal como afirma Jean Franco:
Cuando los movimientos insurgentes y guerrilleros de las
décadas de 1960 y 1970 lo desafiaron, el ejército, que ya
era poderoso, tomó el control de lo que llamó la ‘guerra al
comunismo’, recurrió al terror extremo, y cubrió por completo la
represión no solo de los militares sino también de sus supuestos
partidarios. Aunque las medidas represoras fingían sofisticación,
la picana eléctrica y los cables con cargas eléctricas fueron
los únicos instrumentos modernos. Ejecuciones y entierros
simulados, repetidas golpizas, colgarlos de tal forma que los
pies apenas toquen el piso, el submarino, son todas prácticas
antiquísimas (Franco, 2016, p.18).

Os mecanismos de controle que Franco resgata transformaram-se em


métodos de manutenção de poder, disciplinamento, coerção e extermínios dos

instrumental que repercute geopoliticamente mediante a filosofia da ilustração e inaugura nos


território invadidos da “América” um ciclo de violência (i)racional cuja práxis se justifica (inclusive
na contemporaneidade) pelo discurso do desenvolvimento e do progresso.

198 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


corpos que os regimes militares consideravam como inimigos, categorizando-
os como terroristas ou comunistas, adjetivos que nessa conjuntura política
eram usados, inclusive, como sinônimos. Vale ressaltar que, por volta da
década de 1980, mais de dois terços da população latino-americana vivia
sob o regime militar (Prado, 1996) uma reposta às diversas mobilizações
de roupagem popular avivadas pelo “triunfo” da revolução Cubana que
provocou o clima de instabilidade e conflito na maior parte dos territórios
“latino-americanos”. Para Claude Lefort (2004), a resposta esperada para lidar
com as discrepâncias ideológicas nos limites geopolíticos de um território é a
implantação do totalitarismo, seja esse em sua variante socialista ou fascista,
um regime de coerção generalizada e minuciosa, que tem em sua fundação
a representação de um “corpo uno” homogêneo que requer a produção
incessante de um corpo-outro, diferente, inimigo.
Ainda que elaborada desde uma perspectiva distinta de leitura, a partir
da biopolítica foucaultiana, Achille Mbembe proporciona uma reflexão similar
para compreender a dinâmica de exclusão radical dos corpos produzidos
como outros dentro de um contexto de regime de poder: o conceito de
necropolítica, ou política da morte, que relaciona com a manutenção
da soberania. Para Mbembe “a modernidade esteve na origem de vários
conceitos de soberania- e, portanto, da biopolítica” (Mbembe, 2018, p.08)
e se estabelece tanto por processos de “autoinstituição” e “autolimitação”.
No entanto, a soberania em seus desdobramentos de sentido, não apenas
induz a uma luta pela autonomia em base a razão, mas pode trazer como
consequência “a instrumentalização generalizada da existência humana e a
destruição material de corpos humanos e populações” (Mbembe, 2018, p. 10),
tal como acontece no “estado de exceção” característico das ditaduras. Assim,
para o filosofo a soberania não se sustenta apenas por uma instrumentalização
da vida, mas pela racionalização da morte ou destruição dos “corpos-outros”,
uma morte legitimada no discurso do Estado. Portanto, é o estado que se
compromete a civilizar os modos de matar pois,
a percepção da existência do Outro como um atentado contra
minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto,
cuja eliminação biofísica reforçaria meu potencial de vida e

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 199


segurança, é este, penso eu um dos muitos imaginários de
soberanias característicos tanto da primeira quanto da última
modernidade (Mbembe, 2018, p. 20).

Dessa forma, os governos ditatórias produzem os corpos-outros,


inimigos, que ameaçam seus projetos políticos e sua noção de soberania.
No contexto “latino-americano”, enfaticamente no Chile e na Argentina da
década de 1980, o coletivo antagônico ao “corpo-uno” militar e catalogado
como subversivo era composto, em sua maioria, por professores, jovens
estudantes e atuantes nas mobilizações de reivindicações sociais, comumente
afiliados a partidos de esquerda e com afinidade ao marxismo e, por considerar
que esses tinham facilidade de estabelecer relações no âmago da população,
alguns coletivos das classes trabalhadoras, principalmente mineiros e
trabalhadores rurais, também eram considerados suspeitos de serem “inimigos
internos” da nação. Dessarte, o “comunista” se configurou em alteridade
ao “corpo-estado” militar. Em estudo que compara o estabelecimento do
regime militar e as estratégias repressivas da ditadura no Chile e na Argentina,
Melisa Slatman, afirma que:
El golpe de Estado en Chile se produjo contra un gobierno que
había proclamado que se encontraba instrumentando una “vía
al socialismo”. Lo precedió un intenso proceso de movilización,
contestación y polarización social. El golpe de Estado buscó
poner fin a esos procesos. […] La dictadura chilena pasó de un
esquema de detención en grandes campos de concentración,
fusilamientos y del internamiento de las figuras principales
del depuesto gobierno de la Unidad Popular, a un modelo
de represión clandestino instrumentado por un organismo
creado para tal fin. En el caso argentino, la dictadura también
vino a obturar un largo proceso de movilización social. Sin
embargo, la estrategia represiva utilizada fue planificada con
antelación y comenzó a ser implementada antes del golpe
de Estado. Un dato no desdeñable, en este sentido, es que a
comienzos de noviembre de 1975, casi cinco meses antes del
golpe, Argentina suscribió al acuerdo de cooperación represiva
más letal que haya existido en la región: la Operación Cóndor.
Siguiendo la periodización regional que se desarrolló antes,

200 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


esto quiere decir que Argentina se incorporó en la dinámica
represiva regional antes del golpe de Estado. El golpe de Estado,
en este sentido, fue el momento de pasaje a la etapa madura
del modelo represivo argentino (Slatman, 2016, pp. 12-13).

Mediante o estudo de Slatman entendo que os sistemas de repressão


tanto na Argentina quanto no Chile, não obstante obedecerem a contextos
políticos particulares, se articulam a uma lógica de coerção do corpo-outro
marginalizado no discurso dominante, considerado inimigo da soberania,
uma manifestação da estrutura colonial do poder, na qual os governos
autoritários contemporâneos replicam, recriam e legitimam os mecanismos
de repressão estruturantes da modernidade/colonialidade, onde o terror e
a violência é mascarada por um discurso salvacionista. Dentro do cenário
referido, a normalização dos corpos é requerida, é necessário homogeneizar
a nação para manter controle da população, é necessário o extermínio
sacrificial do “inimigo” na marcha para o progresso e para a construção da
identidade nacional.
Ainda, no contexto pós-ditadura, tais estruturas se mantem e se
perpetuam nas políticas de esquecimento das violências e do terror instaurados
na ditadura, assim como, na naturalização do desaparecimento dos corpos.
No panorama chileno, trabalhos como os de Carlos Ossa (2006), Tomas
Moulian (1997) e Oscar Godoy (1999) delatam que a transição à democracia,
de fato, nunca foi concretizada, o que houve foi uma serie de pactos com as
mídias locais que ajudaram a instaurar uma forma de esquecimento com o
fim de construir uma outra memória nacional, afastada do imaginário das
práticas de terror do governo ditador, uma cumplicidade silenciosa, uma
obsessão pelo esquecimento, táticas de apaziguamento, tal como afirma
Moulian, já que “la estabilidad, se dijo, tiene que ser comprada por el silencio”
(Moulian 1997, p. 33). Portanto, ante esses mecanismos de esquecimento e
silenciamento impostos pelas políticas da modernidade, a nossa resposta deve
manifestar-se mediante o exercício ativo de uma memória política que se
negue a esquecer e resgate narrativas que escancarem os crimes cometidos pelas
políticas da morte na ditadura com o intuito de dar voz e fazer ressonância
às interpelações daqueles que, ainda hoje, reclamam seus mortos.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 201


A Memória como Ato Político
Considero que exercitar uma memória política contra o esquecimento
dos crimes cometidos pelos governos ditatoriais na “Américas-Latina”, avivar
as discussões das violências e o terror institucionalizado nesses períodos e
refletir sobre o alcance e a perpetuação das políticas da morte instituídas
na modernidade, é uma demanda de atualidade, uma urgência e deve ser
uma preocupação constante para (re)configurar o presente. Tal demanda
se traduz mediante uma consciência e luta política no campo do discurso,
da memória e dos afetos que propicia rupturas com as grandes narrativas
triunfalistas que para Benjamin colocam em evidência a empatia da História
com o vencedor pois,
os que num momento dado dominam são os herdeiros de
todos os que venceram antes. A empatia do vencedor beneficia
sempre, portanto, esses dominadores [...] Todos os que até agora
venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores
de hoje conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão
prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo
triunfal, como de praxe. Eles são chamados de bens culturais
(Benjamin, 2020, p. 244).

Trago essa provocação benjaminiana tendo em vista a necessidade de


compreender o passado como uma categoria do presente, entendimento que
possibilita um olhar crítico, desconfiado, ante os sentidos naturalizados pelo
exercício do poder e do domínio da enunciação que nos ajuda, tal como
propõe o historiador, a ir à procura de uma redenção no “futuro”. De acordo
com Benjamin, esse seria o trabalho do materialista histórico, àquele que
observa com distanciamento, que vê nos bens culturais, nos patrimônios
imateriais, discursivos, que constroem as noções da soberania, a sombra
do horror, já que: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse
simultaneamente um documento da barbárie [...] tampouco o é o processo
de transmissão em que foi passado adiante” (Benjamin, 2020, p. 245).
Tais reflexões as penso articuladas às políticas de esquecimento que
emergem nos contextos da pós-ditadura, essa produção incessante de um
tabu histórico que se nega a desencobrir os cadáveres que sustentam o peso da

202 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


democracia neoliberal. Ainda, se bem podemos considerar, a partir da reflexão
foucaultiana sobre a impossibilidade de uma objetividade histórica proposta
inicialmente por Nietzche, que o passado é uma demanda do presente e
não pode ser recuperado/alcançado integralmente nem pela veneração de
monumentos históricos: signos da barbárie que sustentam a linearidade
da historiografia. Nem pela procura da justiça, pois essa estaria baseada na
verdades dos “homens do presente” (Foucault, 1997). Também é necessário
considerar que, no campo do embate do discurso, nos é imperativo ir à procura
daquilo que Benjamin denomina como uma “história a contrapelo”, ou seja,
narrativas que alimentem uma memória marginal, que imploda a linearidade
sucessiva das narrativas gloriosas do progresso e do desenvolvimento e que
coloquem em manifesto a sua inconformidade com o poder.
À vista disso, a memória na perspectiva benjaminiana apenas pode
ser entendida como parte da experiência humana da/na modernidade e se
manifesta, naqueles que estabelecem laços honestos com a história, a través
de um apelo que resgatam do “passado” e o fazem ressoar no presente.
A rememoração como “ação” possui um aspecto ético que foge de uma
racionalidade socialmente construída, pois emerge como uma força atuante
que, inclusive, coloca em risco de vida a existência daquele que salva do
“passado” outras imagens que desordenam o continuum da história, porquanto,
são as lembranças perdidas, resgatadas dos espaços da não-história, que nos
possibilitam tecer discursos contra-hegemônicos e descontinuar a História
única dos vencedores/opressores. Na proposta benjaminiana o ato de lembrar
provoca a renovação no “instante do perigo” onde se codificam, criticamente,
os signos visíveis inerentes às construções sociais, pois o tempo da lembrança
é o presente. Aqui se retoma a instigação metodológica do materialismo
histórico pois, a partir dessa proposta, é possível desenvolver uma memória-
outra mediante a interpretação que se fazem das imagens preservadas pela
sensibilidade do narrador do presente, aquele comprometido com a história
dos vencidos. Para Benjamin “uma imagem é aquilo em que o então e o
agora se encontram em uma constelação como o flash de um relâmpago”
(Benjamin, 1989, p. 50 apud Santos 2012, p. 140). Assim, o materialismo
histórico pode ser entendido como o estudo de imagens concretas, não casuais

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 203


ou estruturais, mas uma leitura simbólica dos fragmentos da totalidade da
história, que se tornam legíveis em um determinado momento.
Destarte, me interessa destacar que o exercício da memória política que
menciono como possibilidade de práxis contra a tentativa do apagamento das
violências cometidas nos regimes totalitário no discurso político neoliberal,
não vai à procura de capturar o sentido de uma verdade incontestável. Antes
busca trazer à exterioridade narrativas-outras de escritores que assumem a
subjetividade como proposta para tecer uma história dos afetos, uma fissura
que provoca um avivar da consciência ou como menciona Benjamim (2006)
um despertar da faísca do passado que devêm na revolução do presente.
Essa memória-outra é popular e por isso perigosa, uma alternativa à razão
que fabrica e conserva patrimônios culturais, uma prática que agudiza a
discussão dos mecanismos de opressão e silenciamento, que obscurece a
transparência das verdades instituídas e consolidadas pois, a construção de
uma memória oficial se dá a partir do esquecimento de outras memorias
que são consideradas marginais e subterrâneas.
É desde o subterrâneo que Lemebel, Casas e Perlongher revisitam
a História nacional dentro de uma proposta estética que toma para si a
construção de uma outra narrativa e a produção de uma cultura, também,
“a contrapelo” atravessada pelo signo da marginalidade (social e sexual) que
assumem. Se tal como afirma Anibal Quijano (1999), o discurso imperante
cerceia a autonomia das culturas dominadas e inibe a produção de imagens,
símbolos e manifestações próprias da suas subjetividades. Lemebel, Casas
e Perlongher escancaram as feridas coloniais e os despejos que a “demos-
gracia”116 neoliberal esconde baixo a bandeira da nova nação, mediante
uma escrita desinibida e desobediente com uma finalidade que me parece
explicita: exumar os corpos dos desaparecidos e outorgar-lhes uma sepultura
digna no discurso da história nacional.

116 Uma maneira irônica que Lemebel usa para se referir à democracia pós-ditadura na crônica
“La esquina es mi corazón” (2008). Com o neologismo o escritor trabalha a ideia de que o discurso
neoliberal da transição entrega a democracia como se fosse um cavalo de tróia para a população ao
mesmo tempo que mantem as estruturas políticas militares da ditadura.

204 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


A Exumação do Corpo Desaparecido
É importante destacar que as reflexões benjaminianas sobre narrativa
e memória emergem dentro de um contexto político de ascensão do
totalitarismo na Europa. Em tais reflexões aponta a crise da incapacidade
de transmitir experiências, em vista do silencio que o trauma da guerra
provoca, enfatizando que memória e experiência são indissociáveis e o ato
de narrar é um exercício constante da memória, uma contra-política da
modernidade, já que, se entende como um ato de resistência pois, revela o
que a historiografia oficial oculta. Nesse sentido, identifico a Lemebel como
narrador benjaminiano, na medida em que, tece sua escrita com os fios de
uma memória dissidente demarcada desde o marginal e o subterrâneo. Suas
narrativas são narrativas da descontinuidade, provocam pontos de ruptura
no tecido da historiografia oficial mediante discursos que confrontam as
políticas de esquecimento que os governos autoritários produzem.
Na crónica “El informe Rettig (o recado de amor al oído insobornable
de la memoria)” Lemebel realiza uma intervenção textual a partir de um
documento oficial elaborado e publicado pelo governo do Chile pós-ditadura
em 1991 que leva o mesmo nome “Informe Rettig”, no qual foram registrados
os nomes das 40.000 vítimas afetadas pelo regime militar de Pinochet
(entre torturados, exiliados, desparecidos, assassinados e familiares). Esse
documento, segundo Ronald Cuenca (2015), faz parte do modelo de justiça
restaurativa que o governo adotou no contexto da “transição democrática”
e que Graciela Rubio (2013) interpreta como uma medida superficial e
insuficiente para ressarcir às vítimas do período, um documento produto
de uma política de consensos que deixou impune os algozes da ditadura e
instaurou os modos “oficiais” de recordar essas nefastas décadas da história
chilena.
Entendo que Lemebel parte desse documento com a intensão de dar
outras densidades históricas ao registro das violências da ditadura militar,
exercitando uma política dos afetos que resgata, também, os registros do
imaginário familiar desse contexto: episódios de capturas, de invasões
domiciliares, interrogatórios abusivos, silenciamentos, ameaças, entre outras

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 205


agressões cuja constância está demarcada mediante o uso da conjunção
aditiva que inicia a crônica:
Y fueron tantas patadas, tanto amor descerrajado por la violencia
de los allanamientos. Tantas veces nos preguntaron por ellos,
una y otra vez, como si nos devolvieran la pregunta, como
haciéndose los lesos, como haciendo risa, como si no supieran
el sitio exacto donde los hicieron desaparecer. Donde juraron
por el honor sucio de la patria que nunca revelarían el secreto.
Nunca dirían en qué lugar de la pampa, en qué pliegue de la
cordillera, en qué oleaje verde extraviaron sus pálidos huesos
(Lemebel, 1998, p. 102).

A fórmula serve para extrapolar os limites narrativos do texto em


relação ao espaço/tempo narrado e tomar para si os fios da história com
os quais (des)tecerá a partir da memória individual/coletiva do “vencido”
a trama do registro oficial, acrescentado outros fios que se entretecem ao
apelo das vozes dos familiares das vítimas do regime, aqui o “então e o agora”
se encontram e produzem uma imagem nítida no imaginário familiar do
desaparecido: a angustia e ânsia que o desconhecimento do paradeiro do
filho, do neto, do esposo, do irmão, do companheiro provoca. Um estado
de suspense constante que se agrava com a ironia com a qual os agentes
da ordem pública contestam às suas interpelações. Nesse sentido, o uso da
primeira pessoa do plural que o escritor assume é um artificio discursivo que
indica os modos como esses sentimentos também o atravessam e afloram no
exercício de rememoração que o impele a denunciar os abusos cometidos pelos
aparatos oficiais do estado, além de salientar seu posicionamento político,
seu lugar na História. No relato lemebeliano se destaca a instrumentalização
do desaparecimento dos corpos como marca presente de um autoritarismo
escarnecedor, dissimulado e bem articulado, cujo sigilo sistemático denuncia a
perpetuação de um estado de silêncio ante o reclamo dos corpos desaparecidos
durante a ditadura e que remanesce no contexto da “transição democrática”
chilena que não chegou a se concretizar.
Com sensibilidade e crítica aguçada, Lemebel transcreve a insistência
das mães que reclamam ante os agentes do Estado informações sobre a

206 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


localização de seus filhos e recebem como resposta a burla que ironiza suas
dores e as afoga em uma burocracia que traduz a prepotência do autoritarismo
frente ao menosprezo da vida:
Por eso, a la larga, después de tanto traquetear la pena por los
tribunales militares, Ministerio de justicia, oficinas y ventanillas
de juzgado, donde nos decían: otra vez estas viejas com su
cuento de los detenidos desaparecidos, donde nos hacían
esperar horas tramitando la misma respuesta, el mismo: señora,
olvídese, señora, abúrrase, que no hay ninguna novedad. Deben
estar fuera del país, se arrancaron con otros terroristas (Lemebel,
1998, p. 102).

As artimanhas do poder se transcrevem nos efeitos de verdade


que o discurso oficial provoca, associando os presos políticos e os corpos
desaparecidos à marginalidade sob a categoria de terroristas, entendendo-
os como corpos potencialmente perigosos, o outro-diferente que precisa
ser exterminado em prol da soberania nacional. Tal como explica Achille
Mbembe (2018), os limites da soberania se estabelecem pela decisão de matar
ou deixar viver, e nessa tensão, os Estados se comprometem a “civilizar”
e “racionalizar” os modos de matar corpos que ele mesmo produz como
inimigos, assim, “É a morte do outro, sua presença física como um cadáver,
que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar
o sentimento de segurança do sobrevivente” (Mbembe, 2018, p. 41).
Na crônica essas dimensões se encontram em forma de denúncia
e o ato de rememorar os corpos é um ato de resistência que se contrapõe
ao regime de autorização discursiva da modernidade e aos estereótipos
dos “corpos inimigos” que os governos ditatoriais produzem, uma prática
desobediente que se exercita no cotidiano, fortalecendo uma memória coletiva
que presentifica o corpo desaparecido e que é feita em voz feminina: a voz
da mãe, que Lemebel incorpora em sua performance escrita assumindo
seu devir-mulher117 como tática para desarticular o discurso falocêntrico

117 Em entrevista a Andrés Gómez Lemebel afirma: “[…] tengo un devenir mujer y lo dejo transitar en
mi escritura. Le doy el espacio que le niega la sociedad, sobre todo a los personajes más estigmatizados
de la homosexualidad, como los travestis” (Lemebel, 1997, p. 44).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 207


da História, atravessando-o com a potência feminina do afeto materno/
travesti, uma maternidade abjeta que embala em seus braços os corpos
ausentes a fim de fortificar, no coletivo, as vidas enlaças pela dor e pela
injustiça. Lemebel expõe:
Por eso, para que la ola turbia de la depresión no nos hiciera
desertar, tuvimos que aprender a sobrevivir llevando de
la mano a nuestros Juanes, Marías, Anselmos, Cármenes,
Luchos y Rosas. Tuvimos que cogerlos de sus manos crispadas
y apechugar con su frágil carga, caminando el presente por el
salar amargo de su búsqueda. No podíamos dejarlos descalzos,
con ese frío, a toda intemperie bajo la lluvia tiritando.
No podíamos dejarlos solos, tan muertos en esa tierra de
nadie, en ese piedral baldío, destrozados bajo la tierra de esa
ninguna parte. No podíamos dejarlos detenidos, amarrados,
bajo el planchón de ese cielo metálico. En ese silencio, en
esa hora, en ese minuto infinito con las balas quemando.
Con sus bellas bocas abiertas en una pregunta sorda, en una
pregunta clavada en el verdugo que apunta. No podíamos
dejar esos ojos queridos tan huertanos. Quizás aterrados bajo
la oscuridad de la venda. Tal vez temblorosos, como niños
encandilados que entran por primera vez a un cine, y en la
oscuridad tropiezan, y en el minuto final buscan una mano en
el vacío para sujetarse. No pudimos dejarlos allí tan muertos,
tan borrados, tan quemados como una foto que se evapora al
sol Como un retrato que se hace eterno lavado por la lluvia
de su despedida (Lemebel, 1998, p. 102-103).

A potência da escrita lemebeliana se manifesta no ato de dar nomes


aos desaparecidos, de exumar seus corpos do incógnito, do anonimato,
desenterrá-los do não-lugar e trazê-los para o aqui e agora, cuidá-los com
amor materno, construindo a maternidade como um espaço de possibilidade
para confrontar o poder. Esse ideário maternal, como imaginário desde o qual
se critica a violência da ditadura militar (que inevitavelmente se associa ao
espaço hetero-patriarcal), colapsa com as significâncias de uma maternidade
convencional que subalterniza o feminino, ao contrário, a imagem da mãe
se projeta como a principal antagonista do poder da ditadura, a que resiste,

208 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


a que se enfrenta ao regime autoritário e ao pacto de silêncio dos agentes do
estado, marchando, gritando, tomando o espaço público, reivindicando seus
cadáveres pois, tal como a mãe/travesti indica, esses não podem ser deixados
assim “tão mortos, tão apagados” da história, entregues ao esquecimento.
Desse modo, a figura materna no acervo discursivo lemebeliano exercita o
“dever de memória” que mobiliza e alimenta a interpelação histórica dessas
vozes, isso se manifesta na necessidade de lembrar minuciosamente cada
rosto, cada gesto do familiar desaparecido, não apenas como “lembrança e
homenagem, mas também em termos de efeitos concretos nos domínios
políticos e justiça (Heymann, 2007, p. 20) com a intenção de restaurar os
vínculos familiares e/ou comunitários interrompidos pela ditadura, tal como
indica no fragmento:
Tuvimos que rearmar noche a noche sus rostros, sus bromas, sus
gestos, sus tics nerviosos, sus enojos, sus risas. Nos obligamos
a soñarlos porfiadamente, a recordar una y otra vez su manera
de caminar, su especial forma de golpear la puerta o de sentarse
cansados cuando llegaban de la calle, el trabajo, la universidad
o el liceo. Nos obligamos a soñarlos, como quien dibuja el
rostro amado en el aire de un paisaje invisible. Como quien
regresa a la niñez y se esfuerza por rearmar continuamente un
rompecabezas, un puzzle facial desbaratado en la última pieza
por el golpetazo de la balacera. […] Por eso es que aprendimos
a sobrevivir bailando la triste cueca de Chile con nuestros
muertos. Los llevamos a todas partes como un cálido sol de
sombra en el corazón. Con nosotros viven y van plateando
lunares nuestras canas rebeldes. Ellos son invitados de honor en
nuestra mesa, y con nosotros ríen y con nosotros cantan y bailan
y comen y ven tele. Y también apuntan a los culpables cuando
aparecen en la pantalla hablando de amnistía y reconciliación.
Nuestros muertos están cada día más vivos, cada día más
jóvenes, cada día más frescos, como si rejuvenecieran siempre
en un eco subterráneo que los canta, en una canción de amor
que los renace, en un temblor de abrazos y sudor de manos,
donde no se seca la humedad Porfiada de su recuerdo (Lemebel,
1998, p.103).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 209


Se tal como propõe Benjamin (2020) os documentos da cultura são
documentos da barbárie, penso que os símbolos que compõem os itinerários
da cultura nacional guardam os registros da violência e da apropriação da
cultura popular pelo discurso oficial do Estado. Identifico que é a partir
desses símbolos que Lemebel realiza suas intervenções textuais/performáticas
tomando-os para si, reapropriando-se deles e ressignificando seus sentidos
nos espaços da memória afetiva que produz. No fragmento acima, Lemebel
faz menção a um dos símbolos nacionais chilenos, a cueca, uma dança
performada por casais (homem e mulher) nas comemorações e festividades
cívico militares do Chile, que tem sua origem na zamacueca uma dança
de “índios, zambos y chuchumecos” (Garrido, 1976) e que foi adotada
pelo governo ditador, mediante o decreto no 23, como símbolo mais puro
da “identidade nacional” chilena (Carreño, 2013). Na voz feminina que
personifica o coletivo das mães dos desaparecidos, o escritor se apropria
desse “bem cultural”, porém a partir de um outro espaço de significação,
não faz referência à cueca militar instituída pelas políticas totalitárias da
ditadura, senão faz referência à chamada cueca sola: a cueca que se dança
com os mortos, que surge como resposta aos crimes da ditadura, na qual a
figura feminina (a esposa, a mãe, a filha, a irmã) dança sozinha, como forma
de protesto e como ato que denuncia a falta do parceiro (conjugue, filho,
pai, irmão), ressaltando a ausência do desaparecido e exigindo resposta ao
questionamento constante dos familiares: Onde eles estão? Tal como propõe
Cesar Barros, a performance da cueca sola é uma dança que
se sitúa como pregunta utilizando todas las estrategias que la
resistencia va utilizando a lo largo de la dictadura: movimiento
colectivo, imagen, rostro, fisura. Es importante decir que la
actuación del grupo comienza siempre, tal como cualquier
intervención pública de las mujeres de la Agrupación, con
su presentación. Es decir, generalmente: “mi nombre es…,
soy hermana o hija o esposa de…, detenido desaparecido en
tal lugar y tal día”. Las mujeres, como decía, suelen llevar la
fotografía de su familiar desaparecido en el pecho cuando
cantan, tocan o bailan (Barros, 2017).

210 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


A reapropriação desse “bem cultural” produz uma imagem poderosa que
escancara os crimes de lesa humanidade cometidos na ditadura pinochetista
e demanda uma restituição por parte do Estado. Tal imagem também
aparece em uma das performances de Las yeguas del apocalipsis intitulada “La
conquista de América” realizada no dia 12 de outubro de 1989 na sede da
Comisión Chilena de Derechos Humanos. Na descrição do site oficial “Yeguas
del Apocalipsis”, a performance é apresentada como uma “ação” realizada
por Pedro Lemebel e Francisco Casas na qual, ambos, vestindo calças pretas,
descalços e de torso desnudo estão, inicialmente, sentados em um banco
disposto no hall do prédio dessa instituição e escutando por meio de um
gravador e fones de ouvido os nomes dos detidos e desaparecidos registrados
pela Comissão de Direitos Humanos. Logo, os artistas ficam em pé, e
performam a cueca sola sobre um mapa da América do Sul desenhado em um
lenço branco estendido no chão. Sobre o lenço estão espalhados pedaços de
vidros de garrafas Coca-Cola quebradas. A intenção da performance segundo
o site é fazer um paralelo entre os processos da colonização da “América”
no século XVI e o apoio que o imperialismo norte-americano ofereceu aos
regimes militares latino-americanos no século XX.118 Interpreto que na
performance se explicita que a matriz colonial do poder se mantém atuante
nos contextos contemporâneos e é estruturante dos regimes totalitários
característicos das ditaduras militares. Desse modo, a performance denuncia
a sistematização das mortes nesses regimes e vai além, pois, ao dançarem
sobre os vidros quebrados com os pés descalços no mapa branco da América
do Sul, as yeguas119 vão tingindo a brancura do perímetro, desenhado com
seu sangue os possíveis locais onde os corpos desaparecidos podem estar
enterrados clandestinamente, como se a cada passo da cueca as mães, que
Lemebel e Casas incorporam, fossem marcando a localização de um cadáver
e desenterrando-o de um lugar incógnito.
A partir dessa performance traço uma afinidade com as intenções que
podem ser interpretadas no poema “Cadáveres” de Néstor Perlongher, no
qual, o eu-poético perambula pelas geografias argentinas/latino-americanas

118 Informações coletadas do site Yeguas del apocalipsis, http://www.yeguasdelapocalipsis.cl


119 Abreviatura de Las Yeguas del Apocalipsis.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 211


e vai desenterrando, no seu trânsito, os cadáveres encobertados e disfarçados
na paisagem urbana e nas ações cotidianas. O poeta se refere aos corpos
desaparecidos pela ditadura cuja localização é incerta e por esse motivo podem
estar em qualquer lugar, podem ser achados em qualquer gesto e relembrados
a qualquer momento. O poema parte como uma urgência politica que insiste
incansavelmente em preencher os espaços da memória com a ausência do
corpo desaparecido tal como se aprecia nos fragmentos selecionados:
Bajo las matas/En los pajonales/Sobre los puentes/En los
canales/Hay Cadáveres
En la trilla de un tren que nunca se detiene/En la estela de
un barco que naufraga/En una olilla, que se desvanece/ En
los muelles los apeaderos los trampolines los malecones/ Hay
Cadáveres;
En las redes de los pescadores/En el tropiezo de los cangrejales/
En la del pelo que se toma/Con un prendedorcito descolgado/
Hay Cadáveres;
En lo preciso de esta ausencia/En lo que raya esa palabra/En su
divina presencia/ Comandante, en su raya/ Hay Cadáveres […]
Se ven, se los despanza divisantes flotando en el pantano:/ en
la colilla de los pantalones que se enchastran, símilmente;/
en el ribete de la cola del tapado de seda de la novia, que no
se casa/ porque su novio ha/…………….!/ Hay Cadáveres
(Perlongher, 1997, pp. 111-113).

Assim como na performance das yeguas que vão evidenciando no


mapa da “América do Sul” os possíveis lugares onde jazem os cadáveres
desaparecidos pela ditadura. No poema de Perlongher cada estrofe finaliza
com essa certeza: Hay cadáveres! Os cadáveres estão aí, à espreita, esperando
por justiça, esperando ser exumados, estão em todos os lugares da cidade,
nos gestos cotidianos, nas grandes festividades, nas tarefas laborais, nos
textos literários, nos documentos históricos, nos discursos políticos. De tal
modo, Perlongher enfrenta a censura da ditadura usando do próprio silêncio
como ferramenta para comunicar. Essa tática é identificável nos espaços

212 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


em branco que usa mediante reticências, que no não-dizer presentificam a
ausência dos corpos, e convidam/provocam ao leitor a completar as frases
e preencher também os espaços em branco da História.
Nos textos mencionados o paradoxo é um recurso importante que
intensifica o discurso (contra)político, interpelante, que clama por justiça.
A presença do corpo é demarcada pela sua ausência, é esta ausência que
convida a trazer “os mortos para a mesa” como propõe Benjamin, dever que
exercita a memória política em contraposição ao esquecimento sistemático
da ditadura e à necropolítica da modernidade. Avivar a lembrança dos
mortos e presentifica-los insistentemente é um imperativo e uma demanda
da atualidade. Pois tal como indica Lemebel na crónica “El Informe Rettig”,
anteriormente mencionada,
nuestros muertos están cada día más vivos, cada día más jóvenes,
cada día más frescos, como si rejuvenecieran siempre em un
eco subterráneo que los canta, en uma canción de amor que
los renace, en un temblor de abrazos y sudor de manos, donde
se seca la humedad porfiada de su recuerdo” (Lemebel, 1998,
p. 103).

Tal insistência também é identificada na performance das yeguas


intitulada “Homenaje a Sebastian Acevedo” realizada na Universidad de
Concepción Chile, no prédio da faculdade de jornalismo. A data escolhida para
a performance foi o dia 1 de dezembro de 1991, nessa data se celebra o dia
mundial da luta contra a AIDS. Lemebel e Casas a convite da universidade
planeiam a performance como homenagem a Sebastián Acevedo, um
trabalhador das minas cujos filhos foram detidos e desaparecidos pelos
agentes da policia secreta chilena a serviço do governo militar. Sebastian
Acevedo requeria da polícia informações sobre seus filhos, mas os agentes
do estado se negavam reiteradamente a brindar qualquer informação sobre
a situação e o paradeiro deles. Assim, em um ato extremo de indignação
e desespero, no dia 11 de novembro de 1983, frente à Plaza de Armas da
cidade de Concepción-Chile, Sebastian banhou-se em parafina e gasolina e
ateou fogo assim mesmo ante o olhar incrédulo dos transeuntes, dias depois

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 213


faleceu a consequência das queimaduras. As yeguas resgatam essa poderosa
imagem e a presentificam em sua performance, para isso, Lemebel e Casas
utilizaram materiais relacionados ao garimpo como cal e carvão. Na instalação
da performance eles cobrem seus corpos despidos com cal viva e se deitam
no chão formando uma linha vertical que alude à forma geográfica do Chile.
Na sala caixas de som repetiam reiteradamente os números do documento
de identidade dos artistas e os nomes de várias cidades do Chile.120 Entendo
que a intenção da performance é reconstruir a geografia nacional do Chile
usando o corpo homossexual como ferramenta discursiva que reclama o
descaso do Estado no combate ao HIV, irrompendo o espaço político e da
identidade nacional hetero-patriarcal a partir de um imaginário marica.
As yeguas colocam o corpo em cena para preencher a lacuna dos corpos
desaparecidos dos filhos de Sebastian, rememorando a atitude drástica
que o mineiro tomou ante o descaço e o silêncio das autoridades, pois em
determinado momento o corpo dos artistas estará cercado por fogo.
Por fim, é possível perceber nos textos escolhidos, que as performances
corporais e textuais de Lemebel, Casas e Perlongher se constituem pelo ato de
exumar cotidianamente os corpos desaparecidos, desenterrando-os do não-
lugar da história, manchando com sua lembrança a cartografia neoliberal de
um Chile da transição que, tal com o afirma Carlos Ossa (2006), instaurou,
ajudado pelos meios de comunicação e seus discursos eufêmicos que se
negam a discutir os crimes de lesa humanidade cometidos nesse regime, um
modo de esquecimento para constituir uma memória nacional que minimiza
as consecuencias da ditadura e que entende os registros das torturas e dos
desaparecimentos como pertencentes a um passado superado e distante dessa
“nova nação” em construção. Um mecanismo que pode ser identificado nos
governos liberais nos países da América Latina, em vista que, tal como indica
Jean Franco (2016), a modernidade produz espaços geopolíticos nos quais
a crueldade é permitida em nome da seguridade do Estado.

120 Informações coletadas do site http://www.yeguasdelapocalipsis.cl

214 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Considerações Finais
Nos textos mencionados, os discursos se entretecem aos signos das
marginalidades sexuais e sociais dos escritores/performers, neles, o corpo e
sua ausência é uma (inter)textualidade que comunica, é o corpo que produz
sentidos como suporte de expressão, que exercita a memória (contra)política,
que se enfrenta ao regime totalitário e que preenche as ausências dos corpos
“desaparecidos” no discurso neoliberal da modernidade. Os escritores se
apropriam do narrar da História e reincorporam em seu discurso a experiência
de um corpo ameaçado pelas políticas totalitárias, potencializando sua
denúncia histórica mediante o sentimento de desamparo produzido pelas
violências institucionais e se negam, reiteradamente, a esquecer, isso mediados
por um processo de imaginação-invenção permeado de afeto. Desse modo,
em sua escrita e performance, revisitam espaços públicos e privados usados
pela ditadura militar, ressignificando esses espaços e convertendo-os em
espaços onde é possível exercitar uma memória política de denúncia contra
as violências exercidas nos governos ditatoriais da/na “América-Latina”,
alinhados às políticas de extermínio da/na modernidade que instauram
seus regimes de terror e violência nos corpos que considera inimigos. Por
esse motivo, dentro de um contexto em que afloram discursos políticos
extremistas que buscam relativizar, apaziguar ou apagar os crimes cometidos
pelas ditaduras da/na “Latino-América” textos como os de Lemebel, Casas
e Perlongher nos ajudam a lembrar dos “nosso” mortos, e mantê-los vivos
na nossa memória, repetir seus nomes e reclamar/lutar pela sua dignidade.

Referências
Barros, C. (2017). Desaparición, danza, insistencia: Variaciones de La
cueca sola. Anais do evento trans-in-corporados: Construindo redes para a
internacionalização da pesquisa em dança. Universidade Federal de Campinas.
Benjamin, W. (1996). Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura
e história da cultura, (7ª ed., S. P. Rouanet, Trad.). Brasiliense.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 215


Benjamin, W. (2012). Sobre o conceito da história. Em W. Benjamin (Org.).
Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura,
(8ª ed., S. P. Rouanet, Trad.). Brasiliense.
Benjamin. (2020). Sobre o conceito de História, (1ª ed.). Alameda.
Castro-Gómez, S., & Grosfoguel, R. (Org.). (2007). El giro decolonial:
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global.
Siglo del Hombre Editores.
Carreño, R. (2013). Avenida Independencia: Literatura, música e ideas de
Chile disidente. Cuarto Propio.
Certeau, M. (2017). A escrita da história, (3ª ed). Forense.
Cuenca, R. (2015). El concepto de justicia transicional a nivel internacional
y sus diferencias y semejanzas con otros modelos de justicia. Verbum, 10(10),
49-62.
Dussel, E. (2005). Europa, Modernidade e Eurocentrismo. Em E. Lander
(Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais, latino-
americanas. CLACSO.
Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: A história da violência nas prisões. Vozes.
Foucault, M. (1997). Nietzsche: La genealogía, la historia. Pre-textos.
Foucault, M. (2008). Microfísica do poder. Graal.
Franco, J. (2016). Una modernidad cruel. FCE.
Garrido, P. (1976). Biografía de la cueca. Editorial Nascimento.
Godoy, O. (1999). La transición chilena a democracia: Pactada. Estúdios
Públicos, 74.
Heymann, L. (2007). O devoir de mémoire na França contemporânea: Entre
memória, história, legislação e direitos. Em A. C. Gomes (Org.). Direitos e
cidadania: Memória, política e cultura, (pp. 15-43). FGV.

216 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Iriarte, I. (2012). Néstor Perlongher: Entre la poesía y la antropología. VIII
Congreso Internacional de Teoría y Crítica Literaria Orbis Tertius.
Ledoux, S. (2009). Pour une généalogie du “devoir de mémoire” en France.
Centre Alberto Benveniste.
Lefort, C. (2004). La incertidumbre democrática: Ensayos sobre lo político.
Antrophos.
Lemebel, P. (1997). Pedro Lemebel, escritor y artista visual: Es necesario liberar
algunas perversiones, entrevistado por Andrés Gómez. La Tercera.
Lemebel, P. (1998). De perlas y cicatrices: Crónicas radiales. LOM Ediciones.
Lemebel, P. (2008). La Esquina es mi corazón. Seix Barral Biblioteca Breve.
Lemebel, P. (2013). Pedro Lemebel, el escritor esquivo, entrevista a J. Better.
Heraldo.
Mbembe, A. (2018). Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção,
política da morte. n-1 Edições.
Mignolo, W. (2010). Desobediencia epistémica: Retórica de la modernidad,
lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Del Signo.
Moulian, T. (1997). Chile actual, anatomía de un mito. LOM Ediciones.
Ossa, C. (2006). El jardín de las máscaras. En N. Richard (Org.). Políticas
y estéticas de la memória, (2ª ed). Editorial Cuarto Próprio.
Prado, L. (1996). História Contemporânea da América Latina: 1930-1960.
Ed. UFRGS.
Perlongher, N. Poemas Completos (1980-1992). Seix Barral Biblioteca Breve.
Poblete, J. (2018). La escritura de Pedro Lemebel como proyecto cultural y
político: Crónica, ciudadanía y literatura bajo el neoliberalismo. Cuarto Propio.
Quijano, A. (1999). Colonialidad del poder, cultura y conocimiento en
América Latina. Em Pensar (en) los intersticios. Editorial Javeriano.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 217


Quijano, A. (2002). Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos
rumos, 37, 4-28.
Rubio, G. (2013). Memoria, ciudadanía y lo público en la elaboración
del pasado reciente en la experiencia chilena. Memoria y sociedad, 17(35),
164-183.
Santos, M. (2012). Memória coletiva e teória social. Annablume.
Seligmann-Silva, M. (2020). Apresentação: Sobre o Conceito de História
em Walter Benjamin. Em W. Benjamin (Org.). Sobre o conceito de História,
(1ª ed). Alameda.
Severo, D. (2020). Impactos da ascensão dos movimentos de extrema-direita
sobre os Direitos Humanos no contexto do Brasil: Uma proposta de matriz
de análise. Revista Eletrônica Interações Sociais, 4(1), jan.-jun., 14-29.
Slatman, M. (2016). Dictaduras de seguridad nacional en Chile y Argentina.
Estudio comparativo y relacional de sus estrategias represivas. Aletheia, 7(13).

218 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 10

Conferências Dançantes Movidas pela Interculturalidade


Crítica
Emyle Daltro121
Antonio Layton Souza Maia122

Durante 2021, o Coletivo Areia: pesquisa artística e criação em/com


dança123, vinculado aos cursos de Graduação em Dança da Universidade
Federal do Ceará, realizou quatro conferências dançantes, a princípio tendo
como participantes e conferencistas somente os integrantes do referido
grupo de pesquisa. As conferências foram realizadas em formato remoto,
iniciando um processo de experimentação e investigação artística movido
pela “interculturalidade crítica” (Walsh, 2009).
Compreendemos como “conferência dançante” a apresentação realizada
por uma pessoa ou grupo, em que o público é convidado a intervir livremente
durante a apresentação, tornando a conferência um processo de composição
coletiva, uma vez que o público é convidado a improvisar a partir de como
é afetado pela fala da/o/e conferencista, e a própria fala do/a/e conferencista
é modificada pelas intervenções do público. Ainda que utilizemos o termo
“dançante”, a proposta é que as conferências não se limitem à linguagem e
aos modos de composição específicos da Dança, mas que possam se valer de
sonoridades, visualidades, falas poéticas, de modo a deslocar – fazer dançar
– os territórios e modos de produção das linguagens artísticas.

121 Universidade Federal do Ceará, emyledaltro@ufc.br


122 Universidade Federal do Ceará, antnlayton@gmail.com
123 Grupo de pesquisa cadastrado no CNPq. Desenvolve trabalhos em parceria com o Observatório
e Laboratório de Pesquisa Artística: performance, criação e cultura contemporânea na América Latina
- OLPA (UFMT).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 219


Para Catherine Walsh, a interculturalidade crítica tem um significado
fortemente ligado a um projeto social, cultural, educacional, político, ético e
epistêmico em direção à decolonialidade que pode nos conduzir a um mundo
mais justo. Nesse sentido, trabalha na construção de um pensamento crítico
“outro” que parte das experiências e histórias marcadas pela colonialidade
e que recusam a universalidade abstrata. Boaventura de Sousa Santos
(2008) e Aníbal Quijano (1992) apresentam essa universalidade abstrata
(descontextualizada e a-histórica) como uma das principais características da
racionalidade ocidental hegemônica que, articulada às noções de civilização
e progresso que dominaram o contexto europeu entre os séculos XV e XX
enquanto ideais de modernização e desenvolvimento, sustentou as relações
coloniais/colonialistas perpetradas pela Europa com as Américas, África,
Oriente Médio e Ásia. Entendemos a colonialidade como uma lógica de
dominação, inferiorização, subalternização e exploração constituinte do
modelo capitalista, fundada em uma classificação racial e étnica da população
do planeta. Tal padrão ou lógica estruturou o sistema colonial e sobrevive
até os dias de hoje.
De acordo com Ochy Curiel, Aníbal Quijano evidencia diversos
aspectos para explicar os efeitos da colonialidade, tais como:
[...] a racialização de certos grupos (africanos ou indígenas) que
deu lugar a classificações sociais entre superiores/dominantes/
europeus e inferiores/dominados/não-europeus; a naturalização
do controle euro-centrado de territórios e de seus recursos,
dando lugar a uma colonialidade de articulação política e
geográfica; uma relação colonial com base no capital-trabalho
que dá lugar a classes sociais diferenciadas, racializadas e
distribuídas pelo planeta. Para Quijano, a colonialidade do
poder também tem tido impacto nas relações intersubjetivas e
culturais: a produção do conhecimento e de meios de expressão
foi colonizada, impondo-se uma hegemonia eurocentrada.
Igualmente, destaca o corpo como espaço onde se exerce
a dominação e exploração e as relações de gênero que se
impuseram a partir dessa visão: liberdade sexual dos homens,
fidelidade das mulheres, prostituição não paga, esquemas

220 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


familiares burgueses, tudo isso fundado na classificação racial
(Quijano, 2007 apud Curiel, 2019, p. 234).

Curiel propõe ampliar o debate sobre a colonialidade recuperando


algumas das propostas de feministas racializadas, as quais foram colocadas
em ação a partir dos anos de 1960 e instiga-nos a pensar que “descolonizar
então implica entender a complexidade de relações e subordinações que se
exercem sobre aqueles/as considerados ‘outros’”. (Curiel, 2019, p. 243).
Importante pontuar que, desde o enfoque decolonial, como escrevem
Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel,
[...] o capitalismo global contemporâneo ressignifica, em
um formato pós-moderno, as exclusões provocadas pelas
hierarquias epistêmicas, espirituais, raciais/étnicas e de gênero/
sexualidade implantadas pela modernidade. Deste modo, as
estruturas de longa duração formadas durante os séculos XVI
e XVII continuam desempenhando um papel importante
no presente [...] Como resultado, o mundo de começos do
século XXI necessita uma decolonialidade que complemente a
descolonização levada a cabo nos séculos XIX e XX. Ao contrário
dessa descolonização, a decolonialidade é um processo de
ressignificação a longo prazo que não se pode reduzir a um
acontecimento jurídico-político.124 (2007, p.14 e 17, grifos e
tradução nossa).

Nesse contexto e de uma maneira ampla, Walsh propõe a


interculturalidade crítica como ferramenta pedagógica que:
[...] questiona continuamente a racialização, subalternização,
inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras

124 Texto original: “[...] el capitalismo global contemporáneo resignifica, en un formato posmoderno,
lãs exclusiones provocadas por las jerarquías epistémicas, espirituales,raciales/étnicas y de género/
sexualidad desplegadas por la modernidad. De este modo, las estructuras de larga duración formadas
durante los siglos XVI y XVII continúan jugando un rol importante en el presente [...] Como
resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una decolonialidad que complemente
la descolonización llevada a cabo en los siglos XIX y XX. Al contrario de esa descolonialización,
la decolonialidad es un proceso de resignificación a largo plazo, que no se puede reducir a un
acontecimiento jurídico-político.”

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 221


diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e
criação de compreensões e condições que não só articulam
e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade,
dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que – ao mesmo
tempo – alentam a criação de modos “outros” – de pensar, ser,
estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras.
A interculturalidade crítica e a decolonialidade, nesse sentido, são
projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente
e pedagogicamente, alentando forças, iniciativas e perspectivas
éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular
e construir (Walsh, 2009, p. 25).

Walsh contrapõe a interculturalidade crítica ao multiculturalismo


neoliberal, o que ela chama de “interculturalidade funcional”:
O enfoque e a prática que se desprende da interculturalidade
crítica não é funcional para o modelo de sociedade vigente,
mas um sério questionador dele. Enquanto a interculturalidade
funcional assume a diversidade cultural como eixo central,
apontando seu reconhecimento e inclusão dentro da sociedade
e do Estado nacionais (uni nacionais por prática e concepção) e
deixando de fora os dispositivos e padrões de poder institucional-
estrutural – que mantêm a desigualdade –, a interculturalidade
crítica parte do problema do poder, seu padrão de racialização
e da diferença (colonial, não simplesmente cultural) que foi
construída em função disso. O interculturalismo funcional
responde e é parte dos interesses e necessidades das instituições
sociais; a interculturalidade crítica, pelo contrário, é uma
construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica
submissão e subalternização (Walsh, 2009, pp. 21-22).

Nesse movimento, que também é de produção de conhecimentos e


realidades “outras”, o discurso falado e escrito têm sido ferramenta poderosa
de afirmação e valorização da diferença, seja ela étnico-racial, de gênero,
sexualidade etc. O cenário atual é composto de muitas disputas narrativas
e os discursos que constituem as criações artísticas e pedagógicas também
persistem em encontrar seus lugares, suas reverberações, conexões e (re)
invenções. Discursos se imbricam com produção de conhecimento. Nas

222 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


artes, os conhecimentos são produzidos e acionados de modo diferenciado
do positivismo científico/acadêmico, logo, os discursos produzidos por
nós, artistas-pesquisadores/as, também se diferem. Aliás, a ideia do que
seja considerado um/a/e artista e do que pode vir a ser considerado um/a/e
artista (por quem, para quem, com quem, quando) também está em disputa,
assim como a formação de artistas-pesquisadores-docentes na academia e a
potencialização de suas ações dentro e fora das instituições de ensino superior.
Nessa direção, propusemos a realização de conferências dançantes –
compostas por textos escritos e falados, além de outros materiais – como
experimentação movida pela/com a interculturalidade crítica. Nessa proposta,
a improvisação em dança surgiu como importante aliada, provocando
questionamentos, reflexões e produção de discurso oral e escrito. Com a
experimentação e investigação que ocorreram com essas quatro primeiras
conferências dançantes, surgiu o seguinte problema: Como a improvisação
em dança pode atuar com a fala e a escrita, fazendo com que acionemos
diferentes modos de escuta e atenção, gerando processos de aprendizagem,
pesquisa e criação artística diferenciados de modelos hegemônicos e que se
abrem à diferenciação continuadamente?

Improvisação em Dança Nas/Com as Conferências Dançantes


A improvisação em dança é bastante praticada no âmbito da dança
cênica contemporânea. Laurence Louppe nos lembra que a improvisação na
dança contemporânea abrange diversas configurações, podendo se apresentar
simultaneamente como “uma matriz da obra, uma técnica de formação e
também um meio de investigação da matéria e do próprio bailarino, do
potencial produtivo de cada um e do ‘campo potencial’ no ateliê de dança
e na comunidade que lhe dá vida” (2012, p. 234).
A improvisação na dança contemporânea herda muito de pensamentos,
práticas, princípios, conceitos que a vanguarda artística nos Estados Unidos
defendeu e colocou em ação nas décadas de 1960 e 70, quando a dança
produzida nesse contexto ficou conhecida como dança pós-moderna.
Na esteira de Sally Banes (1999), destacamos alguns aspectos desse movimento

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 223


de vanguarda, ocorridos especificamente em 1963, no Greenwich Village
de Nova York, que nos são caros para conduzirmos nossas práticas de dança
no tempo presente.
Banes (Ibid.) nos lembra que artistas de vanguarda adotaram elementos
da arte e da performance afro-americanas, incluindo a improvisação e a fusão
das artes costumeiramente consideradas separadas na tradição euro-americana.
Da improvisação, sobretudo, os artistas de vanguarda se
apoderaram como um poderoso símbolo de liberdade. Outras
tradições de improvisação estavam disponíveis na cultura.
Por exemplo, da Costa Oeste a San Francisco Mime Troupe
praticava técnicas de commedia dell’arte, e as descrições de
Yvonne Rainer das suas técnicas de livre associação lembram
métodos surrealistas. Era, porém, a tradição afro-americana,
particularmente a manifesta no jazz, que a vanguarda apreciava.
O próprio jazz se empenhava em renovar sua prática central
de improvisação. LeRoi Jones escreveu sobre a nova vanguarda
do “free jazz” como um movimento para a libertação dessa
música das concepções comerciais e das convenções formais.
[...] Para Jones, esses métodos libertadores implicam – e talvez
mesmo produzam – uma radical mudança existencial. Esta,
por sua vez, alimenta a mudança social (Banes, 1999, p. 210-
211, grifos no original).

Banes escreve que a tradição afro-americana da improvisação musical


foi traduzida para o teatro, a dança e para outras práticas dos artistas da
vanguarda branca e evidencia o ano de 1963, no Greenwich Village, como
um período de fluxo em que pessoas negras foram atraídas para o mundo
da arte, “em que o mundo da arte se abriu tanto para a integração racial
como para a influência cultural afro-americana, e em que negros e brancos
apresentaram temas de integração e de libertação” (Banes, 1999, p. 213).
Porém, os jogos de poder, os processos de captura forjados pela corrente
dominante do sistema capitalista vigente não contemplaram as mudanças
estruturais, constituídas intrinsecamente por questões raciais, reivindicadas
pelos/as artistas racializados/as, que então seguiram por caminhos separados
dos artistas brancos.

224 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


O que muda aqui e agora em relação a essa improvisação como
prática libertadora da dança pós-moderna dos idos anos de 1960?
Parece-nos diferente porque as perguntas que fazemos pretendem situar
melhor os atores/as envolvidos/as, exemplo: a improvisação liberta quem?
Do quê? Como? Quando? Nossas práticas de improvisação são movidas
com a consciência de que a liberdade pode ser entendida e acionada como
um processo em construção, coletiva e continuada, para que mais modos
de vida possam se beneficiar com ela. Nossa improvisação se torna outra
à medida em que percebemos uma série de apropriações que foram e são
realizadas sem ampla consciência histórica, sem compreender na carne a
colonialidade e seus elementos constitutivos devastadores como o racismo,
o sexismo, as desigualdades sociais, a classificação e hierarquização de pessoas
e de modos de vida, fortalecendo a exploração, dominação, acumulação
desmedida de capital e poder nas mãos de um grupo de “humanos muito-
humanos”, como escreve Ailton Krenak (2019, p. 70), que insiste em
continuar a apostar no jogo do capitalismo globalizado do qual muitos de
nós não quer participar. O que muda com nossa improvisação é a prática
de deslocar a dança de um contexto multicultural neoliberal para forjá-la
com um contexto intercultural crítico.
Investigamos, desse modo, com as conferências dançantes, como
compor com, dançando com, pensando com, con-vivendo, de maneira que
nos conheçamos e nos beneficiemos com diferentes processos de criação, os
quais podem mover modos “outros” de organização individuais e coletivos.
Nossa improvisação em dança procura nos libertar de uma série de ideias
cristalizadas sobre nós mesmos; sobre como podemos viver juntos; sobre
o sistema capitalista como modelo persistente de relações econômicas,
financeiras, movendo globalmente políticas, sociedades, leis, visões de
mundo; sobre nossas relações com o mundo e com os outros seres que o
compartilham conosco.
Para além da dança cênica contemporânea, o improviso enquanto
uma relação não-programática, não pré-estabelecida com o movimento, isto
é, a expressão de um movimento não previamente coreografado, também
está presente em várias danças tradicionais e populares, como, por exemplo,

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 225


a umbigada e o cavalo-marinho, no Brasil, tornando essas danças um
acontecimento que se dá no encontro entre dançarinos, músicos e público
durante a performance, demandando atenção e escuta dos participantes.
Nesse sentido, podemos forjar a improvisação em dança como experimentação
de modos de dançar que surgem do encontro e da habilidade de con-viver,
de nos relacionarmos uns com os outros, celebrando nossas diferenças.
É essa concepção de improvisação em dança que está sendo agenciada com
as conferências dançantes.
Em dança, os movimentos surgem do corpo, criam corpo, agem o/no
corpo. Movimentos prendem e liberam falas, as quais prendem e liberam
movimentos. Dançar com a fala de outra pessoa, enquanto a escutamos
e falar enquanto dançamos ativam modos diferentes de escuta, presença
e aprendizagem.
Corriqueiramente, entendemos conferências como reuniões de pessoas
em que as palavras faladas e escritas demandam uma compreensão e raciocínio
lógico circunscritos em uma racionalidade eurocentrada. Quando acrescentamos
o termo dançante à ideia de conferência, propomos que os assuntos discutidos
nessas reuniões nos convidem a dançar, instaurando a produção de discurso
tecido com modos diversos de improvisar em e com dança.
Nas tradições rituais afro-brasileiras, onde o corpo é compreendido
e valorizado como ambiente de conhecimento e memória, a dança desse
corpo inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilos. Nesse
contexto, segundo Leda Maria Martins:
O corpo em performance restaura, expressa e, simultaneamente,
produz esse conhecimento, grafado na memória do gesto.
Performar, nesse sentido, significa inscrever, repetir transcriando,
revisando, e representa “uma forma de conhecimento
potencialmente alternativa e contestatória” (Joseph Roach,
1995) (Martins, 2020, p. 109).

O que Martins chama de “inscrever, repetir transcriando, revisando” e


o que é associado a um modo de conhecer alternativo e contestatório parece-
nos dialogar com uma improvisação em dança afrodiaspórica, que sabe se

226 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


mover criticamente em meios multiculturais que operam homogeineizando
e apagando diferenças.
Nesse sentido, Laís Salgueiro Garcez (2013), em sua pesquisa acerca
do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife, aponta que:
[...] um dos níveis de análise do universo do Maracatu é o
seu caráter afro diaspórico onde suas linguagens ultrapassam
qualquer saber dicotomizado e constituem saberes corporificados
por repertórios gestuais oriundos de experiências pré-objetivas
(dimensão perceptiva) que são orquestradas pelo habitus
(dimensão prática). Estas dimensões aparecem nas ações
corporais cotidianas para a construção do carnaval e nos laços
sociais que compartilham uma sensibilidade à estrutura do
Maracatu, que interliga as linguagens da dança, do toque e
do canto a partir do improviso e da pergunta e resposta entre
elas (Garcez, 2013, p. 112, grifos no original).

No Maracatu, portanto, a improvisação se entretece com os saberes


corporificados, constituindo uma prática plural que não se restringe às
especificidades de linguagens artísticas e que, com efeito, evidencia-se inclusive
na sociabilidade dos brincantes. Interessa-nos, desse modo, estudar e praticar
esses entendimentos e modos de improvisar em/com dança que não separam
criação e convivência – modos presentes nas culturas populares/tradicionais
do Brasil.
Em cada conferência realizada durante o ano de 2021, um integrante
do Coletivo Areia ficou responsável por apresentar algum de seus interesses de
pesquisa através de textos, imagens, sonoridades, cuidando para que os outros
participantes pudessem intervir livremente em sua apresentação. Participamos
de cada apresentação improvisando com sons, movimentos, falas e outras
coisas que nos pareciam compor com o que estávamos escutando e vendo. Para
tanto, funcionamentos da atenção afeitos à improvisação e à criação foram
experimentados, de modo a fabularmos uma atenção cartográfica (KASTRUP,
2009), isto é, ao mesmo tempo flutuante, não buscando selecionar as coisas a
priori; concentrada, porque não é dispersa; e aberta, ou seja, desfocada, sem
um foco fixo. A partir de cada conferência, estivemos atentos ao aparecer das

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 227


coisas, produzindo essas experimentações coletivas, mediadas por aparatos
digitais disponíveis a cada um de nós em nossas casas, que se concentraram
mais na produção de uma presença afetiva e nos jogos de improvisação e
composição que cada conferência possibilitou, e menos em uma política de
atenção que exige um desvanecimento do corpo e do movimento em prol
de uma compreensão racionalista e funcionalista do discurso.
Nesse processo inicial da pesquisa que teceu as quatro conferências
dançantes, a improvisação em dança figurou também como procedimento
de criação de corpos/espaços, temporalidades, falas, sons, imagens que
possibilitaram desdobrar relações entre materialidades/socialidades que
requisitaram mais ajustes, (re)conexões, escolhas, ou seja, processos coletivos de
problematização e (re)composição dos assuntos abordados em cada conferência.
Terminada cada conferência, todos/as nós, participantes, gravamos
áudios, bem como produzimos outros materiais – desenhos, vídeos curtos,
fotografias etc. – enquanto reverberações da vivência conjunta e depositamos
em uma pasta compartilhada no drive do coletivo. Tais materiais foram
revisitados pelos integrantes do Coletivo Areia e, no encontro que se seguia
na semana posterior, instigaram reflexões e partilhas favorecedoras de
desdobramentos dos temas abordados em cada conferência. Nesses encontros
e conversas, evidenciamos a centralidade de vivências, conhecimentos e
movimentos “outros” (Walsh, 2009) nos processos de composição das
conferências dançantes.

As Conferências Dançantes
A primeira conferência foi proposta por Iury Natasha Oliveira –
graduanda do bacharelado em Dança na UFC, assistente social, mestra
em Serviço Social e Direitos Sociais – e apresentou uma análise da vídeo-
performance Aiku’è (R-existo) de Zahy Guajajara125, por meio de texto escrito

125 Mulher indígena, multiartista, nascida na aldeia Colônia, na reserva indígena Cana Brava, no
Maranhão. Filha da pajé Elzira e de Seu Quinca, mestiço. Do povo Tenetehara-Guajajara, tem o
Ze’eng eté, dialeto do tronco tupi-guarani, como sua primeira língua. Em 2010, mudou-se para o
Rio de Janeiro, onde tornou-se atriz e ativista. Na cidade, ela foi uma das líderes da aldeia Maracanã,

228 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


e falado, com uso de sonoridades percutidas, gestos, pouca luz e da inserção
de trechos do filme Noir Blue, de Ana Pi126. Com múltiplas vozes e imagens,
Iury implicou sua condição de mulher branca, nordestina, assistente social e
artista-pesquisadora em dança em formação com as produções artísticas dessas
duas mulheres, respectivamente indígena e afro-diaspórica, num movimento
de solidariedade, combatendo visões etnocentristas e racistas que reduziram
pessoas e culturas não-ocidentais a objetos de estudo marginais e exóticos.
A partir desta conferência, discutimos os modos como nos implicamos em
nossos interesses de pesquisa e os modos pelos quais eles nos implicam.
A conferência proposta por Iury – a primeira – foi um
espaço de descoberta para entendermos como a proposta
das conferências funcionaria. Havíamos conversado sobre
alguns eixos que orientariam nossas conferências – livre
interferência, improvisação como procedimento, apostar
em poéticas interartísticas –, mas o modo de realização e a
poética da apresentação ficaram a cargo de cada conferencista.
Fiquei surpreendido como rapidamente acessei um estado de
presença e atenção que me eram bastante familiares em rodas
de improvisação – o acesso ter se dado através de uma tela de
computador, mediado por um aplicativo de videoconferências,
corroborou para essa sensação de surpresa. Iury apresentou
partes do seu projeto de TCC, intercalando e relacionando o
texto com vídeos e sonoridades que ela produziu a partir de
tambores e apitos... Esse agenciamento de sentidos – do sentido
dos vídeos e dos sons e texto dela com os meus sentidos, com
a minha visão, com a minha audição – produziu em mim
uma atenção que não se fixou no significado das palavras
ditas por Iury; eu vivenciei esta conferência sendo afetado
pela materialidade das imagens, dos sons, dos movimentos

ocupada de 2006 a 2013 por indígenas que reivindicavam a revitalização e o reconhecimento


histórico do prédio onde havia sido o Museu do Índio.” https://dasartes.com.br/zahy-guajajara A
vídeo-performance Aiku’è (R-existo) está disponível em https://www.youtube.com/aiku’è
126 Coreógrafa e artista da imagem, pesquisadora em danças urbanas, dançarina extemporânea e
pedagoga. Sua prática está situada entre noções de trânsito, deslocamento, pertencimento, sobreposição,
memória, cores e gestos comuns (tradução livre deste trecho, disponível no site da artista https://
anazpi.com/ O filme Noir Blue está disponível em https://anazpi.com/noirblue-doc/

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 229


que meus colegas do Coletivo Areia compartilhavam através
de suas telas. A intensidade disso tomou tal amplitude que, no
fim da conferência, eu não lembrava exatamente do caminho
que o texto da Iury tomou – eu lembrava de alguns trechos,
termos e conceitos que ela mencionou, mas eu não lembrava
dos percursos argumentativos e de qualquer conclusão a que
o texto chegou. O que me afetou e o que restou em mim
foi justamente o modo como essas palavras e imagens me
tocaram sensivelmente, sem um encadeamento pré-definido.
A minha atenção vagou pela apresentação da Iury, atendo-se
não ao significado do discurso falado, mas atado a uma vontade
compositiva de estar junto, de fazer e se fazer junto. A minha
atenção vagou com Iury e nossos corpos foram vagas. Ao fim
de sua conferência, ficamos em silêncio por alguns minutos
sem saber o que dizer e como dizer. Iury foi a primeira a sair
da videoconferência naquele dia e, assim, através de um acordo
acertado sem palavras, ficou decidido que conversaríamos sobre
cada conferência somente na semana seguinte.127

A segunda conferência abordou a vivência de Érica Vieira com o


Maracatu da Associação Solidariedade e Arte (Solar) de Fortaleza, CE.
Érica, que é dançarina, brincante, estudante do curso de Licenciatura em
Dança da UFC, nos pediu que conservássemos uma atenção mais focada
em sua fala e no que ela lia. Leu um texto em que relatou suas vivências
como rainha do Maracatu Solar, bem como trechos de um projeto que está
desenvolvendo a partir de conversas/entrevistas com brincantes do Maracatu
Cearense, atuantes na cidade. O Maracatu é uma expressão afro-diaspórica
brasileira que ganha contornos singulares no Estado do Ceará e resiste como
permanência de tradições culturais atreladas a diversas famílias vinculadas
a diferentes regiões de Fortaleza. O Maracatu Solar, localizado no bairro
Benfica, se apresenta anualmente no carnaval de rua da cidade.

127 Depoimento de Antonio Layton, co-autor deste texto, integrante do Coletivo Areia e participante
no processo de composição das quatro conferências dançantes propostas por integrantes desse grupo
de pesquisa.

230 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Como o texto escrito e o relato da Érica são encarnados, isto é,
produzidos com as suas vivências, de onde emergem sentidos, questionamentos
e reflexões, a impressão que compartilhamos é que mesmo com sua indicação
de que mantivéssemos uma atenção focada, nossos corpos foram inteiramente
envolvidos nessa escuta, com todos os sentidos despertos, instaurando
uma atenção aberta, flutuante e concentrada, favorecedoras de presenças
disponíveis para improvisar, para criar. Além de trechos do projeto e de
seus relatos de experiências junto ao Maracatu Solar, Érica apresentou
também uma performance em vídeo que realizou com o artista e brincante
Gil Rodriguês, o que trouxe mais uma camada poética para a conferência.
Percebi que estava compondo com a Érica quando me peguei
tentando perceber como as dinâmicas e velocidades da voz dela
afetavam meu corpo, minha escuta, minha presença. Como a
Érica descreveu ações e cenas que ela e Gil propõem no projeto,
essas imagens também afetaram meu estado de presença, de
modo que minha imaginação compôs com a fala da Érica em
tempo real. Assim também ocorreu quando ela exibiu um
trabalho em vídeo de autoria dela com Gil Rodriguês, no qual
ambos estão em cena. No vídeo, há uma transformação desses
dois corpos, o que também senti em mim. Primeiramente,
os dois se apresentam vestidos de modo simples, com poucas
peças de roupas, corpos cotidianos que são constituídos de
muitas memórias e que vão se tornando corpos brincantes,
à medida que adereços da rainha e do rei do Maracatu cearense
aparecem magicamente ou encantadamente neles, enquanto
os dois dançam ao som de um maracatu.128
Érica também apresentou um projeto durante sua conferência
– um projeto de pesquisa artística que pretendia enviar para
um edital de fomento. Assim como Iury, também apresentou
vídeo, mas fez de uma maneira bastante diferente. De partida,
ela pediu que mantivéssemos uma atenção mais focada e
lógica, de modo a entendermos as proposições do seu projeto.

128 Depoimento de Emyle Daltro, co-autora deste texto, integrante do Coletivo Areia e participante
no processo de composição das quatro conferências dançantes propostas por integrantes desse grupo
de pesquisa.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 231


A relação corporal com a conferência da Érica estava muito
mais presente em sua fala, em suas vivências com o maracatu –
algo evidente não apenas nos materiais que compartilhou, mas
principalmente em sua gesticulação, na entonação de sua voz
– do que exatamente nas intervenções que poderíamos realizar
através de nossas telas. É pertinente comparar a construção
da atenção e da partilha do espaço nas conferências de Iury
e Érica; se com Iury, nossas intervenções reorganizaram sua
apresentação, fazendo com que ela demorasse mais em algum
trecho do texto, ou mantivesse um vídeo em específico em
exibição (nesse caso, portanto, o espaço de composição da
apresentação era compartilhado com todes), com Érica,
a atenção se construiu a partir do modo como ela apresentou seu
texto e compartilhou conosco suas vivências, produzindo um
espaço de partilha de saberes ancestrais e populares. Algumas
pessoas do Coletivo – eu incluso – sentiram necessidade
de compartilhar suas memórias e vivências com saberes
tradicionais, transformando a conferência de Érica não numa
discussão sobre as qualidades e limites do seu projeto, mas em
um espaço de troca e convivência sem distinções entre saberes.
Ainda que a atenção aqui tenha sido vivenciada de um modo
mais tradicional e lógico, Érica produziu uma roda virtual em
que trocamos vivências, interesses, saberes, lembrando-nos que
o brincante não precisa ser convertido em artista, porque o
jogo em si possui sua própria consistência, sua legitimidade e
verdade específicas.129

A terceira conferência abordou a relação entre identidade, memória e


História. A partir do trabalho com máquinas de escrever do artista goiano
Hal Wildson, e de trechos de textos de Jacques Derrida e Mário de Andrade,
Antonio Layton – professor, improvisador e doutorando em Artes Visuais –
propôs uma videoarte acompanhada de um texto lido por ele que exploravam
os modos como a História (hegemônica) do Brasil se articula a um processo
de esvaziamento de identidades e pertencimentos étnico-raciais.

129 Depoimento de Antonio Layton.

232 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Na conferência proposta por Layton, lembro-me que as pontas
dos meus dedos das mãos foram bastante acionadas. Com
elas, pontuei uma folha de papel em branco, usando tinta
aquarela. Essa conferência me remeteu à dureza das máquinas,
que me fez sentir a dureza humana. Carimbei o papel com
as pontas dos meus dedos. Num dado momento, as pontas
dos dedos requisitaram minhas mãos por inteiro, então,
a dureza e precisão dos movimentos das pontas dos dedos
deram lugar para uma ação de amassar, como amassar barro
para esculpir coisas. Lembrei que, a todo momento, algo está
sendo criado no mundo, no cosmos, acho que me conectei
provisoriamente com esse processo continuado de criação.
As cores preta, vermelha e branca presentes em letras, papel e
imagens que compuseram essa conferência mobilizaram minha
visão e meu tato: preto, vermelho e branco como cores de
peles, pertencimentos, identidades étnico-raciais. Comecei a
rebolar muito a pelve. Movimentos circulares contínuos foram
realizados pela bacia com velocidade cada vez mais rápida.
As mãos que pousavam sobre as pontas dos ossos ilíacos
soltaram-se do corpo e começaram a realizar movimentos
que pareciam com um tocar de tambor.130

A quarta conferência foi proposta por Juliane Queiroz, mestra e


doutoranda em Educação e graduanda da licenciatura em Dança da UFC,
com registros fotográficos das memórias de seu processo formativo/educativo
escolar. A partir de uma linha da vida, Juliane compartilhou com o coletivo
momentos marcantes e acontecimentos que definiram seu interesse na
articulação entre Dança e Educação.
Com a conferência da Juliane improvisei sentada, atenta
à história de vida que estava sendo compartilhada. Num
primeiro momento, eu trouxe para a frente da câmera do
meu notebook uma foto em que um bailarino jovem, negro
está com as duas mãos na cabeça. Era como se essa imagem
falasse do que as palavras da Juliane me faziam sentir. Sentia
um misto de desespero – em relação ao modo serializado, linear,

130 Depoimento de Emyle Daltro.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 233


hierarquizado, repleto de separações e classificações como se
estrutura a educação escolarizada no Brasil –, mas também
de alívio, por conseguir me ver frente a frente, debatendo-me
com essa realidade, e ainda assim conseguir dançar e perceber
que as crianças, adolescentes e jovens, ainda assim, resistem e
encontram formas de exercitar sua liberdade na e com a escola.
A conferência da Juliane me remeteu ao esperançar de Paulo
Freire (1992), à pedagogia da esperança, uma esperança ativa
que pode mover transformações coletivas, quando desorganiza
padrões “imutáveis”, abrindo espaço para novas organizações.
Nesta improvisação, me peguei a roer minhas unhas das mãos;
a boca e as pontas dos dedos em plano detalhe. Depois,
o osso da clavícula ficou em foco, coloquei pressão nessa
região da clavícula, pescoço, garganta, osso esterno; os ombros
moveram-se para frente e um espaço se abriu entre o pescoço
e a clavícula. Veio-me a pergunta: como complexificar nossas
memórias escolares por meio da interculturalidade crítica?
Como descolonizar nossa linha do tempo, nossa linha da
vida escolar?131
A conferência proposta pela Ju foi a última deste primeiro
ciclo de conferências e respondeu para mim uma questão que
esteve comigo desde o início do processo e que chegamos a
discutir em um encontro do coletivo: como cultivar uma
atenção flutuante, afeita à composição e, ao mesmo tempo,
compreender, entender discursivamente aquilo que os
convidados partilhariam conosco? Ju apresentou uma Linha
do Tempo em que reuniu imagens e vídeos que escorreram
desde sua primeira infância até experiências suas mais recentes
com a docência, e nos deixou livres para intervir como
quiséssemos. Nesta conferência, ficou muito presente para
mim a importância e preciosidade daquilo que está sendo dito/
narrado durante a conferência – uma vida! – e, por conta disso,
minhas intervenções foram muito mais cuidadosas, tentando
intervir sonoramente o mínimo possível – para entender a
narrativa que ela estava partilhando conosco –, focando mais

131 Idem.

234 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


em propor alguns movimentos com as mãos, alguns jogos de
câmera imaginados a partir do texto que ela lia. Passei boa
parte desta conferência sentado em frente ao computador,
interessado nas imagens e vídeos, ou deitado no chão, com a
câmera ligada, e experimentando movimentos com as pernas,
sem me importar se meus movimentos estavam enquadrados
ou não. Nesta conferência, vivi um outro modo de atenção,
algo que para mim foi muito elucidativo dentro do processo
das Conferências Dançantes. Eu improviso há alguns anos
e, durante este tempo, fui percebendo que sempre que eu
propunha algo dentro de uma roda de improvisação, minha
atenção se dividia em duas: uma parte continuava atenta ao
que estava acontecendo ao meu redor e a aquilo que os outros
improvisadores propunham, mas a maior parte da minha
atenção – ou talvez seria melhor dizer aqui “a maior intensidade
da minha atenção” – se fechava em mim mesmo, focada no
desenho do meu movimento, ao modo como meu corpo se
posicionava no espaço em relação aos outros improvisadores
e ao público. Eu não chegava a me desconectar do ao-redor,
mas eu passava a atentar menos para o que estava acontecendo
naquele momento. Durante esta conferência, imbuído por essa
sensação de preciosidade das palavras e histórias que estavam
sendo partilhadas ali, minha atenção não se fechou em mim.
Ela se manteve aberta e confiada às imagens e palavras da Ju,
enquanto que minhas proposições e relações que eu movia com
o espaço e com a câmera e a tela, ficaram em segundo plano.
Essa experiência apareceu para mim como um outro modo
de improvisar – mais solto, menos afeito a si e à consciência e
mais concentrado no espaço, na atmosfera que uma conferência
dançante pode produzir singularmente. Trata-se de buscar
sempre um equilíbrio entre a consciência que busca agarrar
as palavras com as mãos para apreendê-las e a pele que roça
as palavras, sons e imagens, desalinhando-as.132

Entendemos que cada uma dessas quatro conferências dançantes se


constituiu como um acontecimento artístico, na medida que, em tempo

132 Depoimento de Antonio Layton.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 235


real, os assuntos apresentados eram compostos e recompostos poeticamente,
colocando em ação presenças que intervinham modificando os textos
escritos com movimentos dos corpos, sonoridades produzidas, imagens e
questionamentos gerados com o que víamos e ouvíamos. Com as conferências,
dançamos exercitando a liberdade de ser corpo, de criar com o corpo
possibilidades de nos conhecermos, de percebermos as tantas diferenças e
também as conexões que nos unem.

Pistas do Método da Cartografia e a Pesquisa Artística com


as Conferências Dançantes
Apostamos no método da cartografia (Passos Kastrup et al., 2009,
2016) para conduzir nossa pesquisa com as conferências dançantes. Kastrup
nos apresenta a cartografia como “um método formulado por Gilles Deleuze
e Félix Guattari (1995) que visa acompanhar um processo, e não representar
um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar um processo de
produção” (2009, p. 32).
Como cartógrafos, seguimos principalmente duas pistas: a pista da
atenção, “o funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo” (Kastrup,
2009, pp. 32-51), e a pista da formação – “a formação do cartógrafo é o
mundo: corporificação e afetabilidade” (Pozzana, 2016, pp. 42-65).
A pista da atenção nos convoca a considerar que na tessitura de
conhecimento por meio de um método dessa natureza há um modo de
funcionamento da atenção que “[...] foi em parte descrito por S. Freud
(1912/1969) com o conceito de atenção flutuante e por H. Bergson
(1897/1990) com o conceito de reconhecimento atento” (Kastrup, 2009,
p. 32). Kastrup recorre a esses dois conceitos, mas também a referências
provenientes do campo das ciências cognitivas contemporâneas, com o
objetivo de analisar a etapa inicial de uma pesquisa, quando ocorre uma real
produção, uma efetuação do que já estava no campo, mas de modo virtual,
ou seja, uma produção de dados que deixam de ser virtuais e se atualizam
com um processo de criação e diferenciação. Em nosso caso, o campo da
pesquisa é constituído pelas próprias conferências dançantes e por cada

236 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


um de nós que as compusemos – e que fomos com elas compostos – com
os interesses de pesquisa que foram apresentados e (re)inventados durante
cada conferência.
A pista da formação do cartógrafo nos conduz a aprender por
corporificação e afetabilidade. Esse aprendizado se faz “sempre por inscrição
corporal, e não apenas por adesão teórica. Isso não significa que não haja
um aporte teórico que acompanhe a produção do corpo na formação do
cartógrafo” (Pozzana, 2016, p. 42). Tal aporte teórico está articulado ao
trabalho de Francisco Varela – para quem o conhecimento é fruto de práticas
que não apartam o corpo das ações de reflexão, produzindo saberes com
as coisas e não sobre elas – e à coemergência entre conhecer, agir e criar.
De acordo com Pozzana, “uma formação é acompanhada por processos de
corporificação feitos por práticas compostas por afetos em trânsito” (2016,
p. 49). Com isso, passamos a conhecer um processo de aprendizagem no
plano dos afetos, que acompanha os efeitos das práticas que tecem a pesquisa.
Nesse caminho, experimentamos modos de nos tornar sensíveis aos efeitos
do campo em nós, artistas-pesquisadores, e aos efeitos de nossa presença-
intervenção no campo, a partir também dos registros que fizemos durante
e após as conferências dançantes, o que tornou cada uma delas um processo
de composição coletivo.
Confiamos que essas pistas podem potencializar conexões e possibilitar
o cultivo do respeito – olhar horizontalmente para o outro, levando-o
seriamente em consideração –, o que consideramos de suma importância
para desestabilizar hierarquias de valor ainda operantes e mesmo resistentes
em nossas relações.
Importante pontuar que vimos delinear nesta etapa inicial da pesquisa
um processo que torna ainda mais críticos e complexos os estudos e práticas
de improvisação e criação em dança, educação e vida, por meio da imbricação
da Pesquisa Artística com a interculturalidade crítica e a decolonialidade.
Sobre a Pesquisa Artística, Susana Tambutti escreve que, ao seguirem
os passos das viradas intelectuais que ocorreram desde meados do século

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 237


XX, Kathleen Coessens, Darla Crispin e Anne Douglas, em seu texto The
Artistic Turn:
[...] usam o conceito de “virada artística” para se referirem
ao questionamento do lugar do artista e de sua prática na
sociedade contemporânea. Os lugares que a virada artística
procura investigar e iluminar são os das práticas artísticas e os
do conhecimento que lhes é próprio (2010, p. 15). A noção
de “virada” seria circunscrita aqui à mudança de perspectiva
dos efeitos cognitivos da experiência estética para o modo de
produção de conhecimento que emergiu durante o processo,
que não apenas guia essas práticas, mas é constitutivo delas.
(Tambutti & Ferreira, 2020, pp. 266-267).

A prática artística como pesquisa, ou Pesquisa Artística133, é uma área


em desenvolvimento que, ao nosso ver – abrangendo com esse verbo todos
os sentidos do corpo –, pode ser entretecida com diferentes perspectivas,
abordagens e métodos, tanto por conta da heterogeneidade dos elementos e
dos ritmos/fluxos já em jogo na prática artística, como apontou Cecília Salles
(2008), como pelo trânsito instável que artistas-pesquisadores/as inseridos/as/
es em espaços universitários devem produzir entre prática artística, pesquisa
acadêmica e sociedade, de modo a serem reconhecidos duplamente como
artistas e pesquisadores (Basbaum, 2006; Moraza, 2018).
A Pesquisa Artística tem a prática artística como agência134 da pesquisa
conduzida por artistas-pesquisadores, os quais vivenciam e investigam, ao
mesmo tempo, sua experiência artística e as condições em que ela se dá.

133 Neste sentido, a Pesquisa Artística se singulariza em relação à pesquisa em Artes, uma vez que esta
abrange também investigações que tomam o objeto ou processo artístico a partir de metodologias e
estratégias próprias da Estética, Semiótica, Sociologia, Antropologia etc. Na Pesquisa Artística, a prática
artística, marcada pela processualidade em detrimento de um projeto pré-estabelecido, é compreendida
como procedimento que constitui a investigação realizada pelo/a artista-pesquisador/a que examina sua
própria prática artística.
134 O termo agência, seguindo os passos de Donna Haraway e Bruno Latour, aparece com o sentido
de “associação de humanos e não/humanos agindo, modificando e sendo modificados em relações
mediadoras” (Daltro, 2014, p. 15).

238 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Para Luca Chiantore, na pesquisa artística, a qual ele também chama de
“Investigación EN las artes”:
[...] a investigação é a própria geradora do produto artístico,
sem haver, portanto, qualquer separação entre aquele que gera
o produto artístico e aquele que o estuda. O aspecto mais
importante é que a prática aqui torna-se necessariamente
experimental [...], uma vez que não faria sentido que fosse
uma realidade predefinida [...]135 (2020, p. 70, tradução nossa).

O que Chiantore defende como investigação artística “implica uma


produção de conhecimento através de métodos e processos próprios da
prática artística”136 (2020, p. 65, tradução nossa), gerando experiências que
não teriam existido sem a investigação realizada.
Na Pesquisa Artística, o conhecimento é adquirido através da própria
experiência artística da qual ele não pode ser separado, sendo assim sensual,
corporificado, conhecimento encarnado, engajado e situado (Haraway, 1995).
A afetabilidade, a experiência enquanto vivência e o estado de presença são de
suma importância para o ato da pesquisa enquanto prática artística, e, nesse
sentido, evidenciam sua própria dinâmica epistemológica, isto é, os modos
como a prática se torna possibilidade de saber, possibilidade de produzir
conhecimento. Com as conferências dançantes, percebemos que os saberes e a
investigação artística se potencializam não somente com a troca de informações
e referências, mas principalmente com o deslocamento de perspectivas –
pontos de vista e de escuta. Se a investigação científica se construiu ao redor
de cisões entre sujeito e objeto, fenômeno e contexto (Santos, 2008; Moraza,
2018), a pesquisa artística “[...] contêm a capacidade de articulação e de
síntese, integrando subjetividade, cultura e natureza”137 (Moraza, 2018,

135 Texto original: “[...] la investigación es la propia generadora del producto artístico, sin que haya,
por tanto, separación alguna entre quien genera el producto artístico y quien lo estudia. El aspecto
más importante es que la prátctica se vuelve aquí necesariamente experimental [...], ya que no tendría
sentido que se tratara de una realidad definida de antemano [...]”.
136 Texto original: “La investigación artística es artística en la medida en que conlleva una producción
de conocimiento a través de métodos y procesos propios de la práctica artística [...]” (grifo no original).
137 Texto original: “Si la ciencia obtiene su poder de la escisión y la separación de variables, el arte
contiene la capacidad de articulación y de síntesis, integrando subjetividad, cultura y naturaleza...”.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 239


p. 29, tradução nossa). Nessa direção, Ricardo Basbaum (2006) aponta
que o artista-pesquisador deve estar atento não somente às ferramentas
conceituais que desenvolve em seu laboratório/ateliê, mas principalmente aos
modos como essas ferramentas e dispositivos estabelecem entrelaçamentos e
trânsito com o ambiente (universitário, artístico, social). A Pesquisa Artística,
portanto, não pretende estabelecer – de partida e objetivamente – ferramentas
ou análises mais avançadas para o fenômeno artístico, mas produzir outros
modos de engajamento, isto é, outras possibilidades de articulação entre
meios, materiais e discursos heterogêneos, entendendo a prática artística
enquanto ecossistema, enquanto zona de fluxo entre diferenças, agências
e subjetividades. Desse modo, o impacto da pesquisa artística como um
paradigma de investigação:
[...] libera novas formas de poder: poder para re-politizar os
artistas e seu trabalho dentro de culturas de conhecimento
compartilhado; e poder de encontrar dentro da própria arte
o meio de transferir a ênfase da mercadoria e da propriedade
para o processo – uma transformação que afeta não apenas
as próprias artes, mas também a sociedade de forma mais
ampla138 (Coessens, Crispin & Douglas, 2009, pp. 12-13,
tradução nossa).

Poder que se fortalece no acolhimento e encontro com diferentes


concepções de arte, de improvisação em dança, bem como com diversos
modos de produção de discursos, conhecimentos e aprendizagem em/com
processos de criação artística, por meio de relações de respeito e valorização
de diferenças. Propomo-nos a continuar e desdobrar essa pesquisa em
2022, com convidadas/os/es – que não se apresentarão somente como
conferencistas, mas como parceiras/os/es de criação – que atuam dentro e
fora da Universidade Federal do Ceará, possibilitando a tessitura de novas
redes de relações.

138 Texto original: “Its impact releases new forms of power: power to re-politicize artists and their
work within cultures of shared knowledge; and power to find within art itself the means of transferring
emphasis from commodity and ownership to process – a transformation that will affect not only the
arts themselves but also society more widely.”

240 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Algumas Considerações
Compreendemos como “conferência dançante” a apresentação realizada
por uma pessoa ou grupo, em que o público é convidado a intervir livremente
durante a apresentação, tornando a conferência um processo de composição
coletiva, uma vez que o público é convidado a improvisar a partir de como
é afetado pela fala da/o/e conferencista, e a própria fala do/a/e conferencista
é modificada pelas intervenções do público.
A noção de conferência dançante nos interessa por vários motivos:
porque aproxima público e conferencista numa produção coletiva de
linguagem, o que nos remete a modos de fazer de poéticas afro-brasileiras e
indígenas, reconfigurando o lugar de conferencistas e espectadores; porque
reconfigura a noção hegemônica de conhecimento e de como produzi-lo,
pois subvertemos, por exemplo, regimes de atenção que primam pelo foco,
pelo pensamento objetivo, pela lógica cartesiana e utilitarista e apostamos
nos funcionamentos de uma atenção aberta, flutuante e concentrada;
porque possibilita a intervenção do público durante a apresentação de
cada conferencista permitindo-nos compor modalidades de intervenção
pautadas na coletividade e na convivência, em vez da noção de intervenção
vinculada ao conceito de liberdade caro ao neoliberalismo e ao capitalismo,
caracterizado pelo exercício da vontade estritamente individual; porque
interessa-nos a improvisação instantânea em dança e no discurso que se tece
com movimentos corporais, imagens, sonoridades, falas desconexas, falas
poéticas, canções etc., além das palavras escritas previamente preparadas e
que são lidas ou servem de base para o/a/e conferencista. Apostamos que
a interculturalidade crítica (Walsh, 2009), que move o projeto, pode nos
conduzir a um mundo mais justo, onde possa haver espaço e tempo para
que mais coletivos criadores emerjam.
As conferências dançantes possibilitaram a prática da interculturalidade
crítica, movida pela composição e apresentação de discursividades tecidas
com improvisação em dança. Discursividades que, caracterizadas pelo trânsito
de saberes, acionaram diferentes modos de atenção, escuta e presenças como
estratégias de conhecimento de si com o “outro”. Conhecimento que se

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 241


contrapõe à dominação e à exploração, instaurando processos de invenção
de corpo(s), arte(s) e mundo(s) forjados com pesquisa e criação coletiva.
Proposta que consideramos uma urgência do tempo presente, no qual é preciso
uma atenção cuidadosa às relações humanas cada vez mais individualistas,
polarizadas, enrijecidas, competitivas e, muitas vezes, violentas no que tange
à convivência com a diferença cultural – entre humanos –, mas também
com a diferença entre “espécies”, entre modos de vida humanos e não/
humanos. Essa diferença, a qual no Brasil e nas Américas também é marcada
pela diferença colonial (Walsh, 2009), valorizou/valoriza um modo de vida
“ocidental” – que se impõe sobre os outros – em detrimento de outros.
Ao nos movermos vivenciando composições coletivas, colaborativas,
de maneira atenciosa ao outro, levando-o seriamente em consideração,
sem inferiorizações ou diluições, valorizando a diferença para podermos
viver com, pensar com, “dançar com” (Milioli, 2012), acreditamos estar
no caminho para superarmos a colonialidade presente na racionalidade
individualista, competitiva, abrindo espaços e tempos para a instauração
de racionalidades “outras”.

Referências
Bannes, S. (1999). Greenwich Village 1963: Avant-garde, performance e o
corpo efervescente, (M. Gama, Trad.). Rocco.
Basbaum, R. (2006). Artista como pesquisador. Concinnitas, 1(9), 70-76.
Castro-Gómez, S., & Grosfoguel, R. (Orgs.)(2007). El giro decolonial:
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global.
Siglo del Hombre Editores.
Chiantore, L. (2020). Retos y oportunidades en la investigación artística
en música clássica. Quodlibet, 74(2), 55-86. https://doi.org/10.37536/
quodlibet.2020.74.775
Coessens, K., Crispin, D., & Douglas, A. (2009). The Artistic Turn: A manifesto.
Orpheus Research Centre in Music Series. Leuven University Press.

242 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Curiel, O. (2007). Critica pós-colonial desde las prácticas políticas del
feminismo antirracista. Nómadas, 26, 92-101.
Curiel, O., & Generoso, L. M. A. (2019). Crítica pós-colonial a partir das
práticas políticas do feminismo antirracista. Revista de Teoria da História,
22(2), 231–245.
Daltro, E. (2014). Corporrelacionalidades e coletivo na composição e aprendizagem
inventivas em dança, [Tese de Doutorado, Universidade de Brasília].
Repositório da UnB https://repositorio.unb.br/EmylePompeudeBarrosDaltro
Garcez, L. S. (2013). Os movimentos do Maracatu Estrela Brilhante de Recife:
Os “trabalhos” de uma “nação diferente”, [Dissertação de mestrado, Universidade
Federal Fluminense]. Repositório da UFF, http://ppgantropologia.sites.uff.
br/Maracatu-Estrela
Haraway, D. (1995) Saberes Localizados: A questão da ciência para o
feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 07-41.
Kastrup, V. (2009). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo.
Em E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.). Pistas do método da cartografia:
Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, (pp. 32-51). Sulina.
Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo, (1ª ed.). Companhia
das Letras.
Louppe, L. (2012). Poética da dança contemporânea, (1ª ed., R. Costa,
Trad.). Orfeu Negro.
Martins, L. (2020). Performances da oralitura: Corpo, lugar da memória.
Em J. Bryan-Wilson, & O. Ardui (Orgs.). Histórias da dança: Antologia,
(v. 2, pp. 94-112). MASP.
Milioli, D. (2012). Dançando com não/humanos: Processos sociotécnicos em
dança contemporânea como experimentos em pesquisa, [Dissertação de Mestrado,
Universidade Federal de Mato Grosso]. Repositório UFMT, https://ri.ufmt.
br/Milioli

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 243


Moraza, J. L. (2018). Aporías de la investigación (tras, sobre, so, sin, según,
por, para, hasta, hacia, desde, de, contra, con, cabe, bajo, ante, en) arte: Notas
sobre el saber. i2ADS.
Pozzana, L. (2016). A formação do cartógrafo é o mundo: Corporificação
e afetabilidade. Em E. Passos, V. Kastrup, & S. Tedesco (Orgs.). Pistas
do método da cartografia: A experiência da pesquisa e o plano comum, (v. 2,
pp. 42-65). Sulina.
Quijano, A. (1992). Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena,
13(29), 11-20.
Quijano, A. (2010). Colonialidade do poder e classificação social. Em B.
Sousa Santos, & M. P. Meneses (Orgs). Epistemologias do Sul, (pp. 84-130).
Editora Cortez.
Salles, C. A. (2008). Redes da criação: Construção da obra de arte, (2ª ed.).
Horizonte.
Santos, B. S. (2008). Um discurso sobre as ciências, (5ª ed.). Editora Cortez.
Tambutti, S., & Ferreira, R. S. (2020). Cena e página: Criar pesquisando é
produzir novas experiências. PÓS: Revista do PPG em Artes da EBA/UFMG,
10(20), 255–281.
Walsh, C. (2009). Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: In-surgir,
re-existir e re-viver. Em V. M. Candau (Org.). Educação intercultural na
América Latina: Entre concepções, tensões e propostas, (pp. 12-43). 7 Letras.

244 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 11

Jekupyty Moheñoiha: Experiencia Educativa Desde


la Democratización de la Tecnología
Mary Liliana Martinez Caballero 139

Introducción
La democratización de la tecnología en los contextos actuales se
abre camino como una oportunidad de participación para la socialización
de la ciencia y la tecnología. El Paraguay, busca reconstruir esa política
nacional considerando como principal desafío la mayor inversión en aspectos
relacionados a la innovación y búsqueda del impulso necesario en temas
de producción científica y tecnológica atendidos desde la realidad nacional
como puente de desarrollo que responda a las necesidades propias del país.
Mientras que esa actualización avanza de manera sigilosa, la inclusión en
términos digitales es muy exigua, en especial, en los contextos socioeconómicos
más desfavorecidos, aumenta la brecha digital y la desigualdad que genera
una problemática en términos de acceso al conocimiento.
En consecuencia, es fundamental establecer nuevos espacios de
participación entre los diferentes sectores y desplegar una agenda de
investigación, desarrollo e innovación tecnológica (I+D+i) que responda
a la política y a necesidades sectoriales, socioeconómicas y ambientales del
país (CONACYT, 2017).
El proceso de reflexión de este escrito se presenta a partir de las ideas
propuestas por Enrique Dussel (2014):

139 Universidad Nacional de Asunción, Paraguay, lilianadoc24@gmail.com

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 245


La ciencia y la tecnología son ciertamente una mediación
esencial para el desarrollo y la riqueza de un país, no solo
cuantitativamente, sino cualitativa, pero deberían estar
orientadas no con criterios meramente universales y abstractos
de las potencias científicas y tecnológicas que han dominado
la situación en el mundo moderno en los últimos cinco siglos.
La ciencia y la tecnología no tienen un valor abstracto, sino
deben concentrarse en las exigencias de un país o de una región
(…) pensar más seriamente en la responsabilidad de la ciencia
y la tecnología para el desarrollo cualitativo de la vida concreta
de nuestra población (p. 493).

Este argumento expone la necesidad de proponer experiencias concretas


y contextualizadas que tengan una significatividad para la población del
país, desde una visión descolonizadora y más crítica de la realidad a través
de la ciencia y la tecnología.
En tal sentido, se plantea como objetivo de este artículo, la descripción
de la experiencia desarrollada por Jekupyty Moheñoiha como iniciativa
educativa en el ámbito de la inclusión digital, que se abre camino desde la
perspectiva de la decolonización, a través de los diversos proyectos e iniciativas
de formación abordados desde la democratización de la tecnología, en los
que se considera los avances tecnológicos universales atendidos desde el
contexto real como mediadores de desarrollo nacional.
Los métodos utilizados para este escrito, fueron el análisis y síntesis a
modo de ofrecer una aproximación lógica la sobre el impacto de la experiencia
presentados a través del desarrollo de tres ejes: la democratización de la
tecnología, la autodeterminación nacional y el desarrollo de habilidades
cualitativas de la población de niños, niñas, jóvenes y adultos de diferentes
sectores de la sociedad beneficiarios de manera directa e indirecta de la
puesta en marcha de la experiencia. El estudio responde al tipo bibliográfico
documental con un nivel de profundidad descriptiva y retrospectivo con
relación al tiempo.
En materia de referencial teórico se ha considerado fundamentalmente
las ideas propuestas Dussel y otros autores que han puntualizado las opiniones

246 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


claves sobre estas temáticas, se consideraron además los documentos físicos
y digitales como proyectos, informes, resoluciones, dictámenes, así como
el análisis de los canales de acceso público a la información (página web y
redes sociales).

Análisis del Contenido y Comentario

Ciencia y Tecnología en Paraguay: Contextualización


Paraguay “posee en su mayoría población joven, ya que una de
cada cuatro personas tiene entre 15 a 29 años de edad. De acuerdo a las
proyecciones, esta franja etaria irá progresivamente en aumento. Uno de los
desafíos más importantes para el sector radica en las dificultades de inserción
en el mercado laboral” (STP, 2014, p. 35).
Ante esta realidad que presentan las estadísticas e indicadores de ciencia
y tecnología se encuentra aún como tarea pendiente el fortalecimiento
de los programas, planes y proyectos de orientación tecnológica para la
generación de fuentes de trabajo, en especial, para la población de sectores
más desfavorecidos.
La reciente incorporación de un marco normativo de apoyo a este sector
se ha hecho posible a través del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología,
cuya misión es la estimulación y promoción de la investigación cientifica
mediante la generación y transferencia de conocimientos.
A pesar del fuerte impulso público en Paraguay, con la
implementación reciente del programa PROCIENCIA, la baja
inversión nacional en actividades de CTI (referida a la intensidad
del gasto con relación al PIB y en comparación con países
del continente), la capacidades reducidas en las universidades
e institutos locales para generar y transferir conocimiento y
tecnología; y la baja disponibilidad de capital humano avanzado,
siguen repercutiendo en un bajo desempeño en producción
científica y tecnológica (CONACYT, 2017, p. 9).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 247


Ese escaso desempeño en el diseño e implementación de los diversos
programas, planes y proyectos enfocados a la inclusión de las Tecnologías
de la información y comunicación concibe avances aún muy incipientes en
gran parte de los países categorizados como subdesarrollados, al respecto
Lugo & Ithurburo (2019) mencionan que:
La democratización del acceso a las TIC por parte de amplios
sectores de la población escolar aún está pendiente e interpela a
los países acerca del sentido de estas iniciativas. Especialmente,
se reconoce la necesidad de revisar las iniciativas TIC en el
campo de la educación y poner en valor las políticas digitales
para lograr cambios profundos que contribuyan a lograr mejores
aprendizajes (p. 4).

Si bien en el Paraguay, se ha logrado un avance en materia de inversión,


aún sigue pendiente el compromiso de la apropiación y de la autodeterminación
nacional que permita el fortalecimiento de esa democratización tecnológica
como respuesta positiva a las exigencias del país. Al respecto, Dussel menciona
“la ciencia y la tecnología no tienen un valor abstracto, sino que deben
concretarse en las exigencias de un país o de una región” (UNASUR, 2014,
p. 32).

Educación e Investigación: Aspectos Legales


La Constitución Nacional de la República del Paraguay, promulgada
en el año 1992: en el capítulo VII, artículo 73 refiere que “toda persona tiene
derecho a la educación integral y permanente, que como sistema y proceso
se realiza en el contexto de la cultura de la comunidad” (Pettit, 2007). En
ese sentido, se resalta la importancia del desarrollo pleno de la personalidad
así como la erradicación del analfabetismo donde se posibilite la oportuna
capacitación para él.
De igual forma, la Ley 1264/2008 General de Educación, en su artículo
tercero extiende que “el Estado garantizará el derecho de aprender y la igualdad
de oportunidades de acceder a los conocimiento y a los beneficios de la cultura
humanística, de la ciencia y de la tecnología, sin discriminación alguna”.

248 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Asimismo, la Ley Nº 4995, De la Educación Superior aprobada en el
año 2013, refiere Art. 65 que los programas de capacitación tendrán como
finalidad “la actualización permanente con los avances de la ciencia, de la
tecnología y, en general, de los conocimientos, que cambian y modifican
cada vez más rápidamente los paradigmas”.
Afianzando los aspectos legales de inclusión de la ciencia y la tecnología,
la Ley Nº 4.758/2012 “Que crea el Fondo Nacional de Inversión Pública y
Desarrollo y el fondo para la Excelencia de la Educación y la Investigación
en su artículo.12 puntualiza:
El Fondo para la Excelencia de la Educación e Investigación
tendrá como objetivo financiar, prioritariamente, (…)
programas de incorporación de TIC en el sistema educativo,
coo herramienta de uso pedagógico que pone al alcance de
estudiantes y docentes recursos para el acceso y generación de
conocimientos para el mejoramiento de los proceso educativos,
de la competitividad y productividad, en este marco, conforme
a las características del contexto, nivel/modalidad educativa se
financiarán proyectos (…) de incorporación de las TIC, con
los requisitos y servicios conexos directamente relacionadas a
la aplicación del mismo.

De este modo, las diferentes legislaciones resaltan la importancia del


derecho a la educación y la necesaria democratización de la tecnología como
ejes de promoción de la ciencia y la tecnología para el desarrollo nacional
de un país a partir de sus propias potencialidades.

Jekupyty Moheñoiha como experiencia educativa.


La expresión Jekupyty Moheñoiha es la asociación de dos palabras
en Guaraní, uno de los idiomas oficiales del Paraguay, cuyo significado en
castellano refiere a la frase “sembrando sueños” al principio, fue concebido
como un proyecto educativo fruto de una experiencia de formación de un
docente innovador que concibió ideales de inclusión digital para estudiantes
de contextos vulnerables, anhelos que pudo compartir con otros colegas que
cooperaron para hacer realidad esa visión educativa.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 249


Debido al impacto en términos educativos generados por la propuesta
en el contexto local y nacional, ha motivado el afianzamiento de esa visión
a objetivos más amplios, situación que ha demandado la constitución de
una organización sin fines de lucro cuyo objetivo principal es la inclusión
digital de niños, niñas, jóvenes y adultos de diferentes sectores de la sociedad
(Jekupyty.org, 2017).
A continuación, se presenta un análisis a partir de tres ejes:
democratización de la tecnología, autodeterminación nacional y desarrollo
de habilidades cualitativas, esquema que ayudará a una mejor comprensión
del desarrollo de la experiencia.

Democratización de la Tecnología
La democratización de la tecnología es abordada en este estudio desde
la perspectiva de accesibilidad inclusiva, pues “trata de poner tecnologías al
alcance de todos” (Manterola, 2019). En estos términos, a continuación, se
describen algunas acciones realizadas entre los años 2017-2021 a través de
un recorrido histórico que presenta las principales actividades realizadas de
manera breve pero significativa que permita observar los principales avances
en términos de inclusión.
Los datos mencionados más adelante han sido extraídos de las diversas
documentaciones analizadas (proyectos, informes, documentos digitales
y canales de acceso público a la información) y se presentan desde dos
ámbitos: los proyectos desarrollados y la participación en eventos de carácter
tecnológico.
Con relación a los proyectos desarrollados, se citan a continuación
en sucesión cronológica para una mejor contextualización:
Entre los años 2017 y 2019 se inició la experiencia con el
proyecto denominado “Programación Computacional para el
Desarrollo de Competencias Básicas Enseñanza de lenguaje de
programación” dirigido a niños y niñas de una institución de
la ciudad de Caaguazú (5º departamento), de la República del
Paraguay, la misma tuvo una duración de tres años, el objetivo

250 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


general refería al desarrollo de competencias en la utilización
de las nuevas tecnologías de la información y comunicación,
a través de la incorporación del lenguaje de programación en
el proceso de enseñanza aprendizaje.

La misma, estuvo orientado a estudiantes de 9 a 11 años, dividido en


tres fases principales, la primera: la utilización del lenguaje de programación
visual (2017), la segunda, la programación de dispositivos robóticos didácticos
(2018) y la tercera, la utilización de hardware libre (2019). La estrategia de
ejecución se basó principalmente en el voluntariado, para lo cual, se recurrió
a estudiantes universitarios de universidades públicas y privadas, para la
enseñanza. La estrategia didáctica se basó principalmente en los talleres
desarrollados en los laboratorios equipados solidariamente para el efecto. Con
relación al alcance en términos numéricos, se involucraron alrededor de 400
personas entre los que se encuentran los niños y adolescentes, voluntarios
informáticos, docentes, coordinadores y directivos.
Es importante mencionar que en el año 2019, el proyecto
amplía sus objetivos de vinculación social y se expande a
otro departamento del Paraguay, Misiones, específicamente
en el distrito de Yabebyry, con el apoyo de las autoridades
municipales, posibilitando el, desarrollo del Proyecto de
Programación Jekupyty a través de los mismos objetivos
propuestos en el proyecto inicial pero con una población
beneficiara de una zona geográfica diferente.
Durante los años 2019 y 2020 se llevó adelante la Tecnicatura
en STEAM, desarrollado conjuntamente con el Instituto de
Formación Docente de la ciudad de Coronel Oviedo-Paraguay,
fueron beneficiarios docentes de los distritos de Yabebyry,
Panchito López, Ayolas, Coronel Oviedo, Yhu y Caaguazú,
curso basado en la metodología en Ciencias, Tecnologías,
Ingeniería, Artes y Matemáticas que busca el desarrollo de
competencias en el ámbito de la iniciación científica. El curso
tuvo una carga horaria de 700 hs., con sesiones presenciales
y a distancia, cuyo currículum se desarrolló a través de
módulos específicos sobre Metodología STEAM, Desarrollo

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 251


del pensamiento computacional, Movimiento Maker en el
aula y Proyectos integrados.
Asimismo, en el 2019 se consolida la Primera Feria Tecnológica,
actividad realizada en el Centro Cultural departamental
de la ciudad de Caaguazú, con la participación de toda la
comunidad educativa y sociedad con el objetivo de presentar
de los resultados del proyecto Programación Computacional
para el Desarrollo de Competencias Básicas Enseñanza de
lenguaje de programación. En el mismo año también se realiza
el Lanzamiento de la Radio Jekupyty.
A inicios del 2020 se desarrolla la Colonia de Vacaciones
Robotics, espacio en la cual los participantes tuvieron la
oportunidad de desarrollar habilidades de inclusión digital
dirigida a niños, niñas y adolescentes.
Así también durante el 2020 y parte del 2021 se lleva adelante
el Proyecto de Optimización y consolidación del uso de las
tecnologías de la información y comunicación en Pandemia:
Producción de Materiales audiovisuales para el fortalecimiento
pedagógico en el departamento de Caaguazú, llevado a cabo
conjuntamente con el Gobierno Departamental, dirigido
a los docentes del departamento, dirigido a docentes de
todos los niveles del departamento, desarrollado a través dela
plataforma virtual y cuyo objetivo principal fue la instalación
de competencias digitales en la formación del educando para la
generación de materiales audiovisuales con estándares de calidad
y su utilización en la enseñanza de acuerdo a las características
de las diferentes zonas del departamento en sinergia al plan
estratégico departamental, de la misma han participado más
de 1000 docentes.
Se menciona además que en el 2021 se ha desarrollado el
Gerenciamiento y provisión de una página web y plataforma
educativa a una Institución de Formación Docente, así como
la Capacitación a los docentes sobre el uso de la Plataforma
Moodle. En ese mismo año se inicia el Curso de Domótica,
dirigido a jóvenes que deseen ampliar sus conocimientos sobre

252 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


el tema, se desarrolla a través de talleres intensivos con una
duración de 8 sesiones prácticas.

Con relación a los eventos de carácter tecnológico desarrollados a


nivel nacional, el año 2019 se caracterizó por espacios de participación de
los estudiantes que ha posibilitado el fortalecimiento de las habilidades
relacionados a la inclusión digital.
El Flisol Paraguay, desarrollado en el Centro cultural
departamental de Caaguazú, fue un evento de difusión de
software libre, cuyo objetivo fue la de promover su uso dando
a conocer su alcance, avances y desarrollo, en dicha actividad,
los estudiantes compartieron los avances desarrolladas dentro
del marco del proyecto Jekupyty que responden a esa temática.
Ese mismo año se llevó a cabo el Tigo Campus Party Paraguay,
Evento Tecnológico desarrollado en el Centro de Convenciones
de la Conmebol, en Asunción, cuya temática se desarrolló a
través de stands temáticos, durante el cual se han presentado
las principales acciones que el Proyecto Jekupyty lleva adelante
en las instituciones beneficiarias de los departamentos de
Misiones y Caaguazú.
De la misma manera, la Expo Educación sobre Innovación
Educativa, desarrollado en Asunción, capital del Paraguay,
encuentro donde se realizaron actividades educativas para
admirar el potencial de ingenio a través de competencias
tecnológicas y donde se resalta que los estudiantes han
demostrado sus habilidades en el ámbito de la robótica,
obteniendo el segundo lugar en esa competencia a nivel
nacional, logro muy importante que confirma las posibilidades
generadas por la inclusión digital.
En la Feria internacional del Libro y Fiesta Educativa, realizada
en la entidad binacional Yasyreta, distrito de Ayolas en
Misiones, Paraguay. En la misma participaron estudiantes de
las instituciones de Yabebyry y Panchito López. El objetivo de
la actividad fue la demostración de las habilidades adquiridas
en lenguaje de programación.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 253


Cabe destacar que cada una de las actividades mencionadas ha
sido planteada a partir de esquema inicial en la que se ha considerado la
combinación operativa de un marco teórico, así como las metodologías y
técnicas que han formalizado el proceso para el desarrollo de cada una de
las actividades.
En otros términos, se considera que estas experiencias propuestas por
Jekupyty Moheñoiha tienen características similares al Modelo General de
diseño propuesto por Dussel (1992, p. 71):
Se trata de un modelo general de proceso de diseño cuando el
él se incluyen objetivos particulares, las técnicas particulares
para implementar la realización material de sus productos
(…) por su carácter general sus planteamientos son válidos
para todas las disciplinas del diseño y en ellos se fundamenta
la acción particular de cada una.

Autodeterminación Nacional
“La política científica y tecnológica debe estar determinada por la
autodeterminación nacional, tanto para evaluar los proyectos e incentivarlos
con dicho criterio de autodeterminación nacional y, además, a éstos también
evaluarlos con criterios particulares, concretos y no pretendidamente
universales” (Dussel, 2014, p. 493). Desde esta perspectiva, esta iniciativa
educativa ha sido evaluada de manera constante, tanto desde sus participantes
como de otros sectores de sociales y educativos del contexto nacional.
Resultado de estos procesos, actualmente, esta experiencia educativa
es considerado como uno de los planes con mayores índices de logros
atendiendo la inclusión digital nacional observada desde la capacidad de
producción local, fruto de un esfuerzo continuo sumamente enriquecedor,
que en líneas siguientes describe tres aspectos: Declaraciones, Resoluciones
y dictámenes recibidos; participación en diversos medios de difusión de la
información y la producción científica.
Con relación a las declaraciones, resoluciones y dictamen de interés,
a continuación, se presenta una síntesis de las deferencias recibidas con

254 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


el ánimo de exponer el impacto que puede generar la autodeterminación
nacional concebidas desde una democratización oportuna de la tecnología,
los datos mencionados más adelante han sido extraídos de las diversas
documentaciones analizadas:
Declaración N° 30/2018 del Congreso Nacional Honorable
Cámara de Diputados de la Nación Paraguaya que “Declara
de Interés Educativo, el Plan Piloto de enseñanza de la
programación computacional para el desarrollo de competencias
básicas denominado Jekypyty Moheñoiha”.
Resolución N° 925/2018 de la Junta Municipal de la ciudad
de Caaguazú que declara de “Declarar de Interés Municipal, el
Plan Piloto de enseñanza de la programación computacional
para el desarrollo de competencias básicas denominado
Jekypyty Moheñoiha.
Resolución N°430/2018 del Consejo Nacional de Ciencia y
Tecnología (CONACYT) que “Declara de Interés Tecnológico
el Plan Piloto de enseñanza de la programación computacional
para el desarrollo de competencias básicas denominado Jekypyty
Moheñoiha implementado por la Escuela Básica N° 3515
Sagrado Corazón de Jesús de la ciudad de Caaguazú”.
Resolución N° 18/2019 de la Comisión permanente de la
Junta Departamental del quinto Departamento de Caaguazú
resuelve “Declarar de Interés Departamental, el Plan Piloto de
enseñanza de la programación computacional para el desarrollo
de competencias básicas denominado Jekypyty Moheñoiha”.
Resolución N° 161/2019 de la Agencia Espacial del Paraguay,
por la cual “Declara de Interés científico, espacial y educativo el
Proyecto Piloto de enseñanza de la Programación computacional
para el desarrollo de competencias básicas, denominado Jekypyty
Moheñoiha por su enfoque integral e innovador de enseñanza,
ejecutado en los departamentos de Caaguazú y Misiones.
Dictamen N° 44/2020 de la Gobernación del 5° Departamento
de Caaguazú por la cual “Declara de Interés Educativo

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 255


Departamental el Proyecto de Optimización y consolidación
del uso de las tecnologías de la información y comunicación
en Pandemia: Producción de Materiales audiovisuales para el
fortalecimiento pedagógico en el departamento de Caaguazú.

Asimismo, resulta interesante mencionar que los diferentes actores


esta experiencia educativa, han demostrado sus habilidades a través de la
participación en diferentes medios de difusión de la información, a fin de
compartir la iniciativa e incentivar a otros sectores a sumarse al proceso de
democratización de la tecnología, a continuación, se menciona un sumario
de algunas experiencias de participación, datos extraídos de espacios web
de Jekupyty Moheñoiha:
Programación Radial “Hora Pico” (2019) emitido por una
emisora nacional, en la que se destacó la participación de los
estudiantes en la Expo Educación sobre Innovación Educativa.
Programa televisivo “Visión Steam Paraguay”, emitido por una
cadena de multimedios a nivel nacional, donde se presentó los
principales resultados de la experiencia Jekupyty Moheñoiha”
(2020).
Programación Radial “Impacto Caaguazú” (2020) emitido por
una emisora local, en la que se presentó los principales proyectos
que viene desarrollando durante el año y las proyecciones a
futuro, en calidad de entrevistados.
Programa televisivo “La Lupa”, emitido por una cadena de
multimedios a nivel nacional, donde se presentó los principales
resultados de la experiencia del proyecto de Enseñanza de la
programación y la Tecnicatura STEAM, desarrollado en el
distrito de Yabebyry, departamento de Misiones, en Paraguay
(2020).
Conferencia de prensa para el Lanzamiento del Proyecto de
Optimización y consolidación del uso de las tecnologías en
pandemia, organizado por la Secretaria de Educación del
Gobierno Departamental del Caaguazú (2020) en calidad de
representante del equipo elaborador del proyecto.

256 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Primer Seminario de Educación Híbrida (2021), organizado
por la Gobernación Departamental del Caaguazú, evento
en el cual se presentaron algunas experiencias de enseñanza
STEAM en los contextos de aula y Formación Docente en
calidad de disertante.

Otro aspecto resultante de esta experiencia es la publicación de un


artículo científico a nivel internacional, lo que “para la organización es de
vital importancia el desarrollo de conocimientos científicos en el ámbito
del enfoque STEAM, y estos estudios contribuyen para la incorporación de
dichos modelos en los contextos académicos, y seguir sumando al crecimiento
científico del sector educativo (Ortiz, 2020).
La Presentación del Artículo científico CanSat Pico-satellite
building workshop as an effective tool for STEAM education,
a case study” presentada de manera virtual en la ASEE-
Washington-EUA (2020), es el Primer paper relacionado a la
experiencia educativa ejecutada en el contexto de la Tecnicatura
en STEAM, la misma fue posible mediante un trabajo
cooperativo entre Jekypyty Moheñoiha, la Agencia Espacial
del Paraguay y la Facultad de Ingeniería de la Universidad
Nacional de Asunción.
La firma del Convenio de colaboración Interinstitucional con
la Agencia Espacial del Paraguay para trabajos en conjunto en
proyectos relacionados al STEAM (2020).

El desarrollo de habilidades
La inclusión digital posibilita el desarrollo de múltiples habilidades,
esta experiencia educativa ha asumido el compromiso en el desarrollo de
habilidades cualitativas que se consideran transversales, a través de cada
una de las acciones propuestas, en consonancia a las ideas propuestas por
Dussel (2014) “pensar más seriamente en la responsabilidad de la ciencia
y la tecnología para el desarrollo cualitativo de la vida concreta de nuestra
población” (p. 493).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 257


Entre las habilidades cualitativas, “es importante destacar que a través de
estas experiencias de democratización de la tecnología se logran capacidades
como la empatía, el trabajo colaborativo, el aprendizaje a través del error,
la imaginación y la creatividad, la emoción y diversión y crear tecnología”
(Gill, 2020, pp. 58-59).
A partir del pensamiento computacional, se incentiva el desarrollo
de técnicas de resolución de problemas, la comunicación, el razonamiento
lógico, el trabajo en equipo, la negociación y otras más que se generan a
partir de la interacción de las diversas actividades.
La solidaridad ha sido un aspecto clave para llevar a delante cada
una de las propuestas de Jekupyty Moheñoiha, en especial se materializó
en el equipamiento de un laboratorio de informática puesto en marcha a
partir de la donación del equipamiento necesario para ese fin. Así como el
voluntariado y el trabajo colaborativo como motor principal de ejecución
de cada uno de los proyectos y eventos.
La creatividad demostrada en las distintas actividades desarrollas han
contribuido de manera armoniosa al desarrollo de esta capacidad (visita a
lugares emblemáticos de la ciudad y del país la participación en exposiciones
tecnológicas, concursos).

Consideraciones Finales
En conclusión, se menciona el aporte vital de esta experiencia en el
desarrollo de habilidades de la población de niños, niñas, jóvenes y adultos
de diferentes sectores de la sociedad a partir del desarrollo de la ciencia y la
tecnología, observadas desde la democratización de la tecnología.
Jekupyty Moheñoiha ha desarrollado una diversidad de competencias,
desde las capacidades técnicas la enseñanza de la robótica, el montaje de
laboratorio de informática, la presentación de aplicaciones creadas por los
estudiantes, la capacitación a docentes sobre aspectos relacionados al lenguaje
de programación y su utilización didáctica.

258 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Con su ampliación, se extendió a otras ciudades y otras instituciones
con la instalación de un laboratorio para el desarrollo de la informática
creativa, la formación docente desde la Tecnicatura en STEAM, plataformas
virtuales para la capacitación docente, la participación en concursos de
robótica a nivel local y nacional (Tigo Campus Party, Expo Educación 2019)
así como las alianzas estratégicas con instituciones y la proyección de la
habilitación de un bachillerato técnico con énfasis en robótica. (Ortíz, 2018).
Se sugiere a futuros investigadores el abordaje de manera más puntual
sobre cada uno de los proyectos desarrollados, así como las perspectivas de
replicabilidad en otros contextos regionales de formación.

Referencias
Arévalos, J. (2017). Jekupyty Moheñoiha. Obtenido de jekupyty.org
BACCN (2021, 28 de diciembre). Ley General de Educación. Biblioteca y
Archivo Central del Congreso Nacional.
CONACYT (2017). Política Nacional de Ciencia, Tecnología e Innovación:
Paraguay 2017-2030. Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, https://
www.conacyt.gov.py
CONACYT (2018, 07 de septiembre). Resolución n° 430/2018: Declaración
de Interés Tecnológico. Jekupyty Moheñoiha.
Congreso Nacional Honorable Cámara de Diputados (19 de septiembre de
2018). Declaración n° 30. Asunción, Paraguay.
Dictamen n° 44/2020 (2020, 23 de julio). Declaración de Interés Educativo
Departamental. Caaguazú, Paraguay.
Dussel, E. (1992). Introducción a la cuestión de un modelo general del
proceso de diseño. En M. Gutiérrez, J. Antuñano , E. Dussel, F. Danel, &
A. Toca, (Eds.). Contra un diseño dependiente, (pp. 17-54). México.
Dussel, E. (2014). Hacia la liberación científica y tecnológica. ESPA.
Gill, P. (2020). Cómo construir un mundo mejor con la educación. Revista
Telos, 114.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 259


Jekupyty Moheñoiha (s.f.). Pagina Oficial del Facebook, facebook.com/
jekupyty
Jekupyty (2017, 11 sept.). Donde nace la solidaridad. https://jekupyty.org/
solidaridad
Ley n° 4.758 (2012, 25 sept.). Que crea el Fondo Nacional de Inversión Pública
y Desarrollo (FONACIDE) y el Fondo para la Excelencia de la Educación y
la Investigación.
Lugo, M., & Ithurburo, V. (2019). Políticas digitales en América Latina:
Tecnologías para fortalecer la educación de calidad. Revista Iberoamericana
de Educación, 79(1), 11-31.
Manterola, I. (2019). Tecnología en perspectiva Latinoamericana. ITUSER.
Miguel, H. (2016). Perspectivas en ciencia y tecnología en sociedad: De las
herramientas a los riesgos. Tecnología & Sociedad, 25(53).
Ortíz, D. (2018, 11 de Nov.). Jekupyty Moheñoiha. https://jekupyty.org/
blog/page/2/
Ortiz, D. (2019, 01 de Feb). Proyecto de Mejoramiento Educativo Jekupyty
Moheñoiha: La programación computacional para el desarrollo de competencias
básicas. Caaguazú.
Ortiz, D. (2020, 06 de jul). JEKUPYTY/AEP/FIUNA presentan Artículo
científico en la ASEE – Washington – EUA, https://jekupyty.org/asee-
washington-eua
Pettit, H. A. (2007). Constitución de la República del Paraguay. Marber.
STP (2014). Plan Nacional de Desarrollo Paraguay 2030. Secretaria Técnica
de Planificación y Desarrollo Económico y Social.
UNASUR (2014, ago.). La ciencia y la tecnología en el proyecto de
autodeterminación nacional. En E. Dussel, & H. Editores (Ed.). Ciencia,
tecnología, innovación e industrialización en América del Sur: Hacia una
estrategia regional, (pp. 27-33). Quito.

260 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 12

Práticas Decoloniais em Formação Continuada de


Professoras/es de Línguas
Andreia Machado Castiglioni de Araújo140

Introdução
Cada dia mais vemos a necessidade em dialogar sobre currículo escolar,
suas (des)construções e (re)definições, como um assunto que nunca cessa e
sempre está em transformação. Especialmente nos últimos dois anos, diante
de um contexto pandêmico, percebeu-se a relevância de uma concepção bem
fundamentada e que respeitasse tanto a realidade local quanto a pluralidade
do altero.
Ora, quebrar paradigmas e seguir caminhos outros prevaleceu (ou tem
prevalecido) às normas ditadas pelo status quo, como uma roupa que não
cai mais bem já tem tempo e os olhos começaram a reparar intensivamente.
O objetivo desse estudo é apresentar uma discussão teórica relacionada
à perspectiva decolonial na formação de professoras/es de línguas e na
experienciação de comunidades de práticas nos encontros formativos
(presenciais e/ou virtuais) em Feira de Santana.
Durante esses movimentos, evidenciamos particularidades nas práticas
pedagógicas experienciais durante as ACs Formativas e o Laboratório
formativo, entre os anos 2018 e 2021, com o grupo de docentes de Língua
Inglesa da Rede Pública Municipal de Feira de Santana, em atuação nos
Anos Finais do Ensino Fundamental.
Adentraremos nas concepções basilares para esses momentos formativos,
os quais estão apoiados na perspectiva decolonial (Ballestrin, 2013; Pardo,

140 Secretaria de Educação de Feira de Santana, deacast@gmail.com

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 261


2019; Walsh, 2019), na pedagogia da autonomia (Freire, 1996), na formação
de professores de línguas (Alves & Siqueira, 2018, 2020; Giménez et al, 2015;
Johnson & Golombek, 2016), na aprendizagem experiencial (Kolb, 1984;
Pimentel, 2007), e nas discussões sobre o desenvolvimento de comunidade
de práticas (Calvo, 2017; Fogaça & Halu, 2017), bem como sustentado no
Caderno de Língua Inglesa da Proposta curricular de Feira de Santana que
encontra-se no prelo, em vias de publicação.
Quanto ao percurso metodológico utilizado nesse estudo foi a pesquisa
bibliográfica, de cunho descritivo e analítico, na tentativa de aprofundar
o entendimento sobre o fenômeno vivenciado nesses encontros e ampliar
as discussões de formação continuada para professoras/es de línguas na
educação básica com enfoque no currículo vivido.
Com a análise dos dados, foi possível constatar um crescente
engajamento docente para o desenvolvimento da sua formação profissional
continuada, nas possibilidades de partilha de materiais didático-pedagógicos
autorais, além da necessidade em consolidar a formação continuada docente
como política pública municipal.

Perspectiva Decolonial na Formação de Professoras/es de


Línguas
Quando pensamos sobre a formação de professoras/es, logo nos vem à
mente um ambiente de aprendizagens que servirão de base ou aprimoramento
para sua atuação profissional em sala de aula. À medida que o tempo vai
girando e a sociedade se movimentando, diferentes meios de aprendizagem
vão sendo agregados a essa perspectiva, bem como novas possibilidades vão
sendo descortinadas com outros estudos, pesquisas, experienciações, etc.
Trazendo como pano de fundo a concepção de posicionamento crítico
e autonomia docente de Paulo Freire (1996), refletimos sobre o encontro
formativo enquanto um espaço de troca de experiências e de ampliação
do conhecimento em prol do desenvolvimento em diálogo com temáticas
emergentes, em movimento concomitante do local para global, com diversas
trajetórias curriculares que se atravessam e entrecruzam.

262 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Freire (1996) convida-nos a repensar a formação docente, nesse
caso em especial a formação continuada, além de direcionar à reflexão
metodologias/abordagens e materiais/instrumentos para o processo de ensino
e aprendizagem ao perpassar pela reflexão e ação contínua. Esse processo
de ação, reflexão e ação (Freire, 1996) adentra caminhos de uma formação
coletiva e com enfoque na colaboratividade, utilizando a troca com os pares
como um dos esteios para o aprimoramento da prática pedagógica em sala
de aula.
Nesse sentido, torna-se relevante um olhar acurado sobre a relação
teoria-prática, até porque “É pensando criticamente a prática de ontem que
se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à
reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com
a prática”. (Freire, 1996, p. 18). O próprio espaço formativo oportuniza a
ampliação de repertório, tanto teórico quanto metodológico, em contínuo
processo de diálogo com a prática vivenciada na escola. E essa continuidade,
como sugere Freire (1996), impulsiona uma mudança na “práxis pedagógica”
do professor, diante de sua autonomia em pesquisar, em aprimorar seu
conhecimento, em intervir didático-pedagogicamente nos cenários educativos
que perpassa, e na contínua busca, crítica e reflexivamente, por possibilidades
e/ou estratégias para seus desafios cotidianos e mudanças no seu contexto ao
romper com posturas cristalizadas, especialmente no ensino-aprendizagem
de línguas.
Nesse sentido, o professor-formador tem um papel significativo nesse
processo, visto que essas ampliações e transposições frente às aprendizagens
podem estar sugeridas na organização/planejamento da formação (através
de perguntas inquietantes, mediação participativa e/ou textos que suscitem
a discussão) ou surgir no grupo conforme algumas conexões e hiperlinks
entre os próprios pares (co-construção de diálogos/discursos conforme suas
leituras). Como trazem Johnson & Golombek (2016),
Traçando o desenvolvimento do professor como é no processo
de formação em/ através das variadas atividades do estágio,
podemos ver a interdependência entre o envolvimento dos
professores em diferentes tipos de pensamento sobre o ensino

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 263


e fornecendo múltiplas oportunidades para decretar instrução,
bem como os tipos de mediação que pode emergir nessas
variadas práticas culturais de formação de professores (Johnson
& Golombek, 2016, p. 160)141

Essas expressões que emergem dos encontros formativos apresentam


possibilidades outras para dirimir os desafios do cotidiano e oportunizam
ampliações de pensamento e/ou reflexões em um viés decolonial (Ballestrin,
2013; Pardo, 2019; Walsh, 2019). Segundo Ballestrin (2013), o termo
chamado ‘giro decolonial’, cunhado por Maldonado-Torres (2005), apresenta
um circuito de ampla discussão sobre a decolonialidade e “significa o
movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico,
à lógica da modernidade/colonialidade” (Ballestrin, 2013, p. 105).
O pensamento decolonial tem atravessado os muros da escola e das
salas de aula, ainda que em algumas realidades aconteça pelas ‘grietas’
(Walsh, 2019), enquanto pensamento fronteiriço, a fim de ocupar espaços
historicamente negados, antagônico à subalternização e propositivo à prática
política crítica do conhecimento em diálogo.
Quanto ao ensino de línguas, em nosso caso a língua inglesa, essa
questão se torna mais relevante, em vista à urgência do posicionamento
questionador à hegemonia geopolítica do conhecimento, rompendo a
perspectiva eurocêntrica/estadunidense e expandindo a liberdade de interação
entre os povos para língua(s) franca(s). Para Walsh (2019),
a interculturalidade aponta e representa processos de construção
de um conhecimento outro, de uma prática política outra, de
um poder social (e estatal) outro e de uma sociedade outra;
uma outra forma de pensamento relacionada com e contra
a modernidade/colonialidade, e um paradigma outro, que
é pensado por meio da práxis política (Walsh, 2019, p. 9).

141 Versão original: “By tracing teacher development as it is in the process of formation in/through
the varied activities of the internship, we are able to see the interdependence between engaging
teachers in different kinds of thinking about teaching and providing multiple opportunities to enact
instruction, as well as the kinds of mediation that can emerge in these varied cultural practices of
teacher education” (Johnson & Golombek, 2016, p. 160).

264 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Em congruência, Pardo (2019) acentua que o acesso ao conhecimento
por parte do docente em constante formação, em especial no entendimento
das diferentes teorias, metodologias e abordagens de ensino de línguas,
oportuniza o desenvolvimento de uma consciência política e embasamento
na sua atuação profissional, trazendo-o segurança nas transgressões do
currículo vivido, respeitando seu contexto e respectivas singularidades
(corpos, culturas, linguagens, leituras de mundo). Ainda para ele, “alguns
caminhos para a decolonialidade no ensino de línguas no Brasil e para a
construção do conhecimento corporificado passam necessariamente por
um posicionamento crítico em relação aos objetivos do ensino do idioma”
(Pardo, 2019, p. 219).
Nessa direção, pensar o ensino de línguas que amplie olhares em
relação ao currículo e aos materiais didático-pedagógicos para suporte das
aprendizagens, descortina a viabilidade da diversidade e dos movimentos
contra-hegemônicos. No entanto, faz-se primordial o desenvolvimento
formativo, evitando que se os docentes “não tiverem uma alternativa
conceitual, estímulos e resoluções para contrapor-se às normas centrais da
língua, não haverá base suficiente para a ação” (Seidhofer, 2011 apud Alves
& Siqueira, 2018, p. 174).
A base para a compreensão do Inglês como língua franca (ILF) nessa
ótica é do “uso do inglês em situações interculturais onde falantes com
diferentes backgrounds linguístico-culturais compartilham o inglês como
língua comum de comunicação e como um recurso linguístico dinâmico e
coconstruído” (Gimenez et al, 2015, p. 597), respeitando a pluralidade e a
heterogeneidade de saberes e interações comunicativas.
Ainda, seguindo essa perspectiva, ressoa a decolonialidade no processo
de ensino e aprendizagem de línguas, aqui em foco a língua inglesa,
por meio do entendimento e reconhecimento das injustiças e
do quão contraditórias são as soluções universais apresentadas
pelas diferentes formas de colonialidade, o indivíduo tem a
oportunidade de se constituir como ser único e se perceber
imerso em uma lógica que precisa e pode ser ressignificada
(Alves & Siqueira, 2020; p.179).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 265


Assim, pensar a formação continuada docente como espaço de
investigações e trocas entre os pares em diversos cenários educativos
potencializa seu desenvolvimento profissional e a ecologia de saberes
decoloniais, como veremos a seguir com as experienciações preliminares
das formações no município de Feira de Santana (BA).

Construções Preliminares de Experienciações Formativas


O município de Feira de Santana, na Bahia, através Departamento de
Ensino da Secretaria de Educação de Feira de Santana (Seduc-Fsa), dispõe de
um Grupo de Currículo do Ensino Fundamental (conhecido como Gcef ),
o qual é composto por docentes, responsáveis pela coordenação específica e
formação para cada disciplina da Matriz curricular vigente (RESOLUÇÃO
nº 02/2014), em conexão com coordenações modalidades e temáticas como
Educação Especial, Educação Quilombola e Educação Ambiental.
As ações do Gcef foram iniciadas em 2010, com a organização,
a elaboração e o acompanhamento da Proposta Curricular do Ensino
Fundamental da Rede Pública Municipal de Educação de Feira de
Santana, além de fomentar debates pedagógicos acerca do currículo escolar.
Em 2018, foram iniciados encontros de desenvolvimento profissional com
professoras/es de escolas públicas municipais chamados de “AC formativa”
(Atividade Complementar no âmbito escolar), voltados para reflexões e
diálogos propostos ao trabalho pedagógico de cada componente curricular,
regulamentados pelos seguintes documentos oficiais: Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional nº 9394/1996 (art. 62, §I e art. 62-A, parágrafo
único), Plano Nacional de educação (meta 16), lei municipal nº 01/1994
e portarias municipais nº 09/2017 e nº 05/2018. As ACs formativas foram
mantidas em 2020, mesmo com contexto pandêmico, só que em uma versão
virtual. No entanto, em 2021, com a retomada pedagógica e o retorno às
aulas semipresenciais, essa ação formativa ficou pausada.
As ACs Formativas tinham como objetivo, em 2018, a construção
coletivo-colaborativa dos Cadernos de Objetivos de Aprendizagem (COA)
com alicerce na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Com o grupo

266 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


de Língua Inglesa, em específico, também foi desenvolvido um Laboratório
formativo voltado para as Tecnologias Digitais na Educação, com apresentação
do software livre “Ardora” (criação de atividades e jogos autorais para uso
na lousa digital das escolas da Rede, apresentando seu “uso interativo e
multifacetado” (Araujo, 2018), dentre outras partilhas como “Prezi” e um
portal local (desenvolvido pelo Núcleo de Tecnologia (Nutec/Seduc). Assim,
foram possibilitadas a autoria docente constituída em espaços de formação
continuada bem como respectiva autonomia e curadoria da informação,
de modo a oportunizar a partilha desses materiais didático-pedagógicos142
entre os pares para uso efetivo em sala de aula.
Em 2019, com a finalização dos COAs, foi possível focar na organização
do planejamento pedagógico, contemplando esse documento local
(específico para cada componente curricular) e as modalidades organizativas,
concomitante à finalização143 da escrita da Proposta Curricular de algumas
coordenações específicas, como é o caso de Língua inglesa. Também houve
a retomada do Laboratório formativo com a socialização de experiências e
metodologias vivenciadas no Programa de Desenvolvimento para Professor
de Língua Inglesa (PDPI/2019), através do jogo virtual autoral “Kahoot!”,
como também vivências com “Storytelling”, de forma interventiva na
Feira do Livro/Festival Literário e Cultural de Feira de Santana (FLIFS),
e aprofundamento do conhecimento teórico-prático relacionado com uma
professora especialista nessa área. Ainda, uso da plataforma de design gráfico
“Canva”, garantindo o registro de um relato de experiência a ser partilhado
em evento local (I Encontro Docente de Currículo Escolar do 6º ao 9º
ano/Endoce: Relatos de Experiências e Tessituras curriculares). Salientamos
algumas das temáticas e materiais desenvolvidos: mobilização sobre “Human

142 Seguem alguns exemplos dessas produções: worksheets (atividades contextualizadas e multimodais),
softwares de autoria, sequências didáticas, projetos interdisciplinares, trabalho com temáticas
transversalizadas, jogos autorais e/ou gratuitos, músicas com atividades e/ou roteiros orientadores,
cartazes expositivos autorais, textos (livros teóricos/literaturas e diversos gêneros textuais, como
poemas, contos, histórias em quadrinhos, narrativas, contos de fadas, contação de histórias, textos
teatrais, etc.).
143 Nesse momento, o Caderno de Língua Inglesa na Proposta Curricular passou por alinhamento
da concepção basilar através da leitura crítica dos respectivos capítulos pelos docentes, com base nas
escutas formativas e dados relevantes da própria Rede.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 267


Rights” e “Feminism” (vídeos sobre direitos humanos e feminismo, leitura
de trechos do livro de Chimamanda Adichie, roda de conversa sobre termos
e reflexões das perspectivas socioculturais/minorias), projetos temáticos
(diálogos sobre a influência da Língua Inglesa na cultura brasileira, produções
autobiográficas e movimento maker com jogos e cozinha experimental),
construção de projetos interdisciplinares (maquetes com parâmetros métricos
e intervenção de estudantes de Arquitetura convidados), conteúdo trabalhado
em classe), etc.
E em 2020, foram desenvolvidas temáticas sinalizadas nas escutas do
ano anterior para aprofundamentos nos encontros, os quais precisaram sofrer
ajustes por conta da pandemia e da necessidade de distanciamento social
a fim de dar continuidade à formação coletiva-colaborativa, considerando
essa nova realidade. Diante do convite à (re)pensar caminhos possíveis nos
cenários educativos voltados para a ação-reflexão-ação no exercício de uma
pedagogia da autonomia (Freire, 1996), foram desenvolvidas as seguintes
ações: discussão sobre “Pensamento decolonial e aspectos socio emocionais
na escola: experiências e perspectivas curriculares” (Jornada pedagógica),
concepção dos Cadernos da Proposta Curricular local, rodas de conversa
com temáticas sugeridas pelas/os professoras/es ao olhar a educação como
compromisso político (“Intolerância Religiosa no mês da mulher negra latina
e caribenha”; “Por uma educação antirracista”; e “Direitos humanos: corpos,
cores e vozes na escola”), laboratórios formativos para a produção de material
didático-pedagógico, realização de outro evento local (II Endoce: “Currículo,
Pesquisa e Trajetórias: Experiências em movimento”) e participação da FLIFS
virtual, com a organização de mesas e oficinas (produção de materiais digitais,
contação de histórias em inglês/português, letramentos sobre a mulher
negra intelectual, influência digital, etc.). A participação significativa de
professoras/es registrada em comentários no chat, visualizações e listas de
presença corroboraram com a promoção de reflexões sobre a prática docente,
destacando o contexto local e as vivências promovidas pelas formações nos
anos anteriores (Melo & Araujo, 2020).
Já em 2021, com a retomada pedagógica e o retorno semipresencial
às escolas, as formações foram suspensas e ficamos em diálogo apenas pelas

268 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


mídias digitais, dirimindo dúvidas quanto ao momento vivenciado de
elaboração de atividades impressas, tutoriais de usos de tecnologias digitai
na educação, suporte ao currículo essencial com videoaulas e transmissão
na tv aberta, além do acompanhamento individual das escolas dos Anos
finais do ensino fundamental da Rede.
Essas experienciações formativas configuram a nossa concepção de
formação continuada, agregado ao posicionamento da/o professora/r enquanto
pesquisador na sua autonomia em busca do conhecimento, da aprendizagem
na dimensão social e da reflexão crítica sobre teoria-prática (Freire, 1996).
Dessa forma, consolida-se a perspectiva de intelectual transformadora/r
(Giroux, 1997) constituída/o em espaços de desenvolvimento profissional
e formação continuada, como também o ressignificar dos processos de
ensino-aprendizagem vivenciados em sua sala de aula, numa perspectiva
intercultural, decolonial e do inglês como língua franca. Por ser um ambiente
que propicie a ampliação da consciência crítica e política da/o professora/r, há
o desenvolvimento da colaboratividade, do intercâmbio e da produção autoral
para expansão/consolidação do inglês como língua franca em distanciamento
de estereótipos etnocêntricos e aproximação aos aspectos decoloniais.
Semelhante a esse posicionamento, temos a aprendizagem experiencial
(Kolb, 1984; Pimentel, 2007), como percurso permanente de aprendizagem
para o desenvolvimento profissional, ao suscitar reflexões sobre a Proposta
curricular local, ampliação crítico-reflexiva de concepções teórico-práticas,
perspectiva intercultural e de língua franca (Alves & Siqueira, 2018, 2020;
Giménez et al, 2015; Johnson & Golombek, 2016) e na partilha de interfaces
digitais. Para Kolb (1984), a apropriação dos saberes advindos de experiências
vivenciadas em um processo dialético, necessita de movimentos contínuos
de ação e reflexão, semelhante aos preceitos de Freire (1996).
O ciclo de aprendizagem experimental (Kolb, 1984) delineia-se em
quatro estágios do processo cognitivo: 1. CONCRETE EXPERIENCE
(que significa experiência concreta, na qual uma nova situação é encontrada
e se faz necessária essa experiência); 2. REFLECTIVE OBSERVATION
(observação reflexiva, ou seja, há a compreensão dessa nova experiência para
refletir sobre possíveis trajetórias, observando suas realidades); 3. ABSTRACT

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 269


CONCEPTUALISATION (conceitualização resumida, na qual uma nova
ideia nasce ou é modificada para a aprendizagem com essa experiência); 4.
ACTIVE EXPERIMENTATION (experimentação ativa para desenvolver
estratégias e alcançar resultados, podendo gerar novas experiências em um
movimento cíclico e contínuo de aprendizagens) (Kolb, 1984; Pimentel,
2007). Assim, os momentos de experienciação possibilitarão o estabelecimento
de relações entre prática e teoria, com vias à promoção da formação e do
desenvolvimento profissional. Essa ampliação de repertório está ligada às
experiências concretas, aos conceitos reorientados e ao processo dialético
de aprendizagem, ao extrair conhecimento significativo e integrados nas
próprias experiências (Kolb, 1984; Pimentel, 2007).
Finalmente, também encontramos congruência com as discussões
sobre comunidade de práticas (Calvo, 2017; Fogaça & Halu, 2017), as
quais veremos em mais detalhes a seguir.

Desenvolvimento de Comunidades de Práticas nos Encontros


Formativos
Tanto a formação continuada de professoras/es, quanto a pedagogia
da autonomia (Freire, 1996) e as aprendizagens experienciais (Kolb, 1984;
Pimentel, 2007) são consonantes com as comunidades de prática (Calvo,
2017; Fogaça & Halu, 2017) e as vivências apresentadas nos encontros
formativos da Rede pública municipal de educação de Feira de Santana.
Refletir sobre comunidade de prática nos remete à agrupamento de
pessoas imbuídas a acessar os saberes, de formas variadas, em desenvolvimento
de situações/ações ligadas à ação, à prática de algo. Calvo (2017) sinaliza em
seus estudos para a ‘parceria de aprendizagem’ e a partilha de uma prática
comum e de utilidade para as/os envolvidas/os com um propósito particular.
(Calvo, 2017, pp. 187, 188)
Ainda em Calvo (2017), encontramos uma descrição com base em
Wenger, McDermott e Snyder (2002 apud Calvo, 2017, p. 198) em que
“uma comunidade de prática é um grupo de pessoas que interage, aprende

270 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


junto, cria relações e, no processo, desenvolve um sentido de pertencimento
e comprometimento mútuo.” Afirmativo a esse entendimento, para Fogaça
e Halu (2017), a formação de professores de línguas pode ser vista “como
práticas contextualizadas, que surgem de processos de interação social em
comunidades culturais onde tais práticas ocorrem (a escola, a comunidade,
o bairro etc.)” (Fogaça & Halu, 2017, p. 428). Eles trazem como exemplo
o Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE144), enquanto política
pública estadual paranaense regulamentada pela Lei Complementar nº
130/2010, para aproximação entre os docentes de instituições de ensino
superior e a escola básica na orientação de atividades teórico-práticas para
difusão de conhecimento e propostas de projetos a serem desenvolvidos em
sala de aula. (Fogaça & Halu, 2017, p. 430).
Desse modo, o ponto crucial para configuração da comunidade de
prática é a colaboração, tanto para seu início quanto para sua continuidade,
visto que o desejo pela partilha com o outro e a construção de pilares
que agreguem à concepção local precisam estar inerentes aos encontros
vivenciados. Claro que essa diversidade necessita respeitar a singularidade
dos docentes e seus contextos, até porquê mesmo estando em uma mesma
cidade, cada escola e cada sala de aula apresenta peculiaridades de sua
realidade. Porém o que não pode faltar é essa noção de pertencimento de
comunidade, ainda que com diferenças e especificidades nas relações sociais
estabelecidas durante os encontros formativos.
Por fim, as interações vivenciadas entre docentes com variados níveis de
experiência em sala de aula, respectivos níveis de estudo formal e/ou informal,
além dos diferentes formatos de engajamento nas formações e partilhas com
os pares, só enriquecem esse movimento de comunidades de prática, por
conta da pluralidade apresentada nas suas colocações, percepções, ideias e
caminhos. Nossa comunidade de prática tem uma quantidade média de 45
participantes, formada pela heterogeneidade de professoras/es municipais
e estagiários, com idades de 18 a 65 anos, que lecionam nos anos finais do
Ensino Fundamental das escolas públicas municipais de Feira de Santana,

144 Para maiores informações, favor acessar o link https://professor.escoladigital.pr.gov.br/pde

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 271


interagindo oficialmente em encontros mensais (ACs formativas) e livremente
pelas redes sociais (grupos do whatsapp, facebook, Instagram, youtube, etc.),
ora espontaneamente, ora intencional, como também ora institucionalizado,
ora não (com base na descrição de Calvo, 2017, pp. 197, 198).

Percurso Metodológico e Resultados Obtidos


Para esse estudo, a metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica,
de cunho descritivo e analítico, com intuito de aprofundar o entendimento
sobre as vivências e experienciações desses encontros formativos na rede
pública municipal de Feira de Santana e ampliar as reflexões sobre a formação
continuada para professoras/es de línguas na educação básica.
Sabemos que cada estudo postula um método que melhor alicerça sua
concepção inicial, seu desenvolvimento e posterior interpretação dos dados
produzidos, sem deixar de apresentar um olhar interpretativo e concatenado
aos resultados apresentados.
Quanto à abordagem qualitativa, aqui por hora adotada, ela tem por
característica apresentar descrições detalhadas, imbuída de interpretação
própria, e em busca de discorrer suas fundamentações e valores simbólicos
(Gil, 2002; Goldenberg, 2004). Ainda, há a tentativa em manter “um rigor
outro” (Macedo, 2009), em um desenvolvimento a partir de uma compreensão
verticalizada dos fenômenos averiguados (Gil, 2002; Goldenberg, 2004),
ao iluminar minúcias através de uma integração contextual.
Buscou-se também caminhos teóricos para embasar as práticas e
experiências vivenciadas nos encontros formativos, relacionando à concepção
de formação continuada, em uma perspectiva decolonial, do entendimento de
autonomia docente, de aprendizagem experiencial e comunidades de prática.
Ao analisar essas ações formativas, entre 2018 e 2021, percebeu-se
que esses movimentos de dialogar, pesquisar, produzir, pôr em prática,
observar, refletir, retomar, ajustar e pôr em prática mais uma vez, como
processo contínuo, envolvia a/o professora/r na pesquisa teórico-prática
e no seu olhar crítico-reflexivo. Foi também constatado que apesar das

272 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


limitações do cenário pandêmico, houve êxito na continuidade dos encontros
formativos, ainda que no formato virtual (pouco habitual ao grupo), seja
pelas participações, seja pela manutenção no diálogo com as/os colegas por
meio de mídias digitais.
Quanto aos dados coletados em nossos instrumentos de participação
e avaliação desses encontros formativos, temos como resultados que a média
de participantes do grupo de Língua inglesa foi de 30 pessoas, sendo a maior
parte de professoras/es efetivos. Ressaltamos a urgência por reflexões mais
aprofundadas sobre as diferentes vozes e corpos constitutivos do cenário
educativo, em um viés decolonial e conectado ao currículo vivido no chão
da escola, de modo crítico, contextualizado, interdisciplinar e politizado.
Portanto, esses momentos fortaleceram o entendimento das
comunidades de prática enquanto rede de aprendizagem e partilha de
saberes, com abertura para escuta e participação ativa das/os professoras/
es nas reflexões coletivas mobilizadoras, reforçado pelo caráter de formação
continuada. Reconhecemos ausências e lacunas nessas ações, que podem
ser investigadas com suas minúcias futuramente.

Conclusões, Reflexões e Possibilidades em (Des/re)construção


Diante do exposto nesse estudo, entendemos que as ações de formação
continuada para desenvolvimento profissional dos docentes precisam ser
consolidadas como política pública municipal, tendo salvaguardados
regulamentação oficial específica, carga horária, aporte financeiro, plano
de ações flexível às demandas e disponibilidade de materiais teórico-práticos
para experienciação. No que se refere especificamente aos professoras/es
de língua inglesa, percebemos a relevância de formações a nível global,
para contato e partilha com docentes de outros países e culturas, em uma
perspectiva decolonial e de inglês como língua franca.
Percebemos o quanto o fortalecimento dos canais de escuta foi
diferencial nessas ações formativas, visto que a/o professora/r se visualizava
enquanto ser partícipe da formação, colaborando com suas vivências e
potencializando as comunidades de prática entre os pares.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 273


Também reconhecemos que o contexto pandêmico, apesar de gerar
desconforto e apresentar lacunas, possibilitou caminhos distintos e desafiadores
para refletirmos sobre educação, currículo escolar e temáticas emergentes
sinalizadas nos encontros. Precisamos, destarte, ampliar esse canal de acesso ao
conhecimento, enriquecido de discussões que atravessam a atual conjuntura
e nos fazem buscar as mudanças, nem que seja aos poucos, pelas ‘grietas’.

Referências
Araujo, A. M. C. (2018). Memórias literárias na lousa digital: Tecendo
novos rumos para o ensino-aprendizagem de leitura-escrita na escola pública,
[Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Feira de Santana].
Repositório UEFS, http://tede2.uefs.br:8080
Alves, P. C. R., & Siqueira, D. S. P. (2018). A visão de professores formadores
sobre o ensino de Inglês como Língua Franca. Revista Cenas Educacionais,
1(2), 172-192.
Alves, P. C. R., & Siqueira, D. S. P. (2020). A perspectiva do inglês como
língua franca como agente de decolonialidade no Ensino de Língua Inglesa.
Revista Digital UEFS, 21 (2), 169-181.
Brasil (2017). Base Nacional Comum Curricular: Educação Infantil e Ensino
Fundamental. MEC/Secretaria de Educação Básica.
Brasil (1996). Lei nº 9.394. Diretrizes e bases da Educação Nacional.
Brasil (2014). Planejando a Próxima Década: Conhecendo as 20 Metas do
Plano Nacional de Educação. Ministério da Educação.
Feira de Santana (2018). Caderno de Objetivos de Aprendizagem de Língua
Inglesa. Secretaria de Educação de Feira de Santana.
Feira de Santana (2021). Concepção de laboratório formativo como alicerce
nas práticas pedagógicas em ACs Formativas de Língua Inglesa. I Encontro
Docente sobre Currículo Escolar (ENDOCE). Secretaria de Educação de
Feira de Santana.

274 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Feira de Santana (1994). Lei municipal nº 01, https://leismunicipais.com.
br/a1
Feira de Santana (2018). Portaria n° 05, https://diariooficial.feiradesantana.
ba.gov.br
Feira de Santana (2017) Portaria nº 09, http://www.diariooficial.
feiradesantana.ba.gov.br
Feira de Santana (2014) Resolução nº 02, http://www.feiradesantana.ba.gov.br
Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática
educativa. Paz e Terra.
Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa. Atlas.
Giménez, T. et al. (2015). Inglês como língua franca: Desenvolvimentos
recentes. Revista Brasileira de Linguistica Aplicada, 15(3), 593-619.
Giroux, H. A. (1997). Os professores como intelectuais: Rumo a uma pedagogia
crítica da aprendizagem. Artes Médicas.
Goldenberg, M. (2004). A arte de pesquisar: Como fazer pesquisa qualitativa
em Ciências Sociais, (8ª ed.). Record
Kolb, D. (1984). Experiential learning. Englewood Cliffs, Prenctice Hall.
Macedo, R. S. (2009). Um rigor outro sobre a qualidade na pesquisa qualitativa:
Educação e ciências humanas. EDUFBA.
Melo, T. M. Q., & Araujo, A. M. C. (2021). Formação continuada em
tempos de pandemia: Experiências vividas na Rede Pública Municipal de
Educação de Feira de Santana. Em Coletânea Profissão Docente na Educação
Básica: formação de professores/as na educação básica, (1 ed.). Brazil Publishing.
Pardo, F. S. (2019). Decolonialidade e ensino de línguas: Perspectivas e
desafios para a construção do conhecimento corporificado no cenário político
atual. Revista Letras Raras, 8(3), 200-221, http://dx.doi.org/10.35572/rlr.
v8i3.1422

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 275


Pimentel, A. (2007). A teoria da aprendizagem experiencial como alicerce
de estudos sobre desenvolvimento profissional. Revista Empreendedorismo e
Gestão de Pequenas Empresas, 6(1), 101-127, dx.doi.org/10.14211/regepe.
v6i1.353
Walsh, C. (2019). Interculturalidade e decolonialidade do poder: Um
pensamento e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista
Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, 5(1),
6-39.

276 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 13

Ética Decolonial e Migração


Rubens Lacerda de Sá145

Abrindo o Bate-Papo
Vencido o desafio proposto para a redação da primeira versão146
deste ensaio, penso que já é possível pensar um pouco sobre o conteúdo
que abordei na ocasião. No título da unidade de estudo que ministrei147
na universidade em 2021 e que resultou no evento que deu origem a este
livro, propus que pensássemos a plataforma decolonial sob uma perspectiva
esperançadora apesar dos tempos de perplexidade em que vivemos. Recupero
essa categoria para nossos tempos a partir das ponderações feitas por René
Armand Dreifuss em meados dos anos 90 (Dreifuss, 1996).
Igualmente acompanho Hannah Arendt quando ela diz que nossos
tempos são, na verdade, sombrios, ou seja, situações-limite nas relações
humanas e que precisam ser denunciadas. Ela pensa nessa categoria a partir
de suas vivências sob o regime nazista e seu entendimento das crises da
modernidade e do fenômeno totalitário que presenciamos se desenrolando no
horizonte de muitos regimes mundiais (Arendt, 2008). Há ainda o cansaço
da sociedade contemporânea que nos adoece (Han, 2015; Sá, 2017a).
Mais recentemente, durante uma estada em Portugal como docente
visitante em uma universidade no norte daquele país, entrei em contato com
o trabalho artístico da pintora portuguesa Graças Morais, que na exposição

145 Universidade Federal de São Paulo, rubens.sa@unifesp.br


146 Versão revisada e ampliada da publicada na Práxis Educacional, https://doi.org/10.22481/
praxisedu.v17i47.8739
147 Epistemologicamente redijo este texto na primeira do singular por entender que quaisquer
proposições para concepção de conhecimento são construídas e orientadas subjetiva e ontologicamente
(Sá, 2021).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 277


Inquietações148 nos ensina sobre a categoria transumância que se desenrola
em tempos de transiência. Transumância guarda relação com um processo
de animalização do ser-humano, um processo contínuo de degradação
da condição que nos constitui, de nossa humanidade. A dinâmica social
da atualidade é desenhada em torno da efemeridade e, portanto, estamos
em estado de constante transiência, i.e. movimentação, rompimento de
fronteiras, ressignificações.
Infelizmente, essa lógica psicossocialmente adoecedora prescinde de
dignificação ontológica, pois opera para nos despojar, enquanto ser-no-mundo,
de nossa subjetividade e do direito à coletividade que, ao fim e ao cabo, produz
desmemoriamento. Essa deslembrança reside em uma plataforma de operação
colonialista e patriarcal agudizada pelo capitalismo, que objetiva que nos
tornemos transumanados e transientes em um não-ser. Em outros termos,
isso tem contribuído à manutenção do colonialismo-patriarcal-capitalista que
se camufla sob o mito da modernidade qual máquina opressora.
Portanto, penso que é oportuno revisitar este texto como mais um
recurso para entender as transumâncias, as transiências, os apagamentos,
os desmemoriamentos, a racialização e a invisibilidade de corpos e, por
fim, a produção de não-existências ontológicas a que somos reiteradamente
submetidos na contemporaneidade. O que trago à baila neste ensaio é um tema
muito caro aos migrantes mundo afora. No entanto, penso ser providencial
e necessário continuar abordando tais questões visando à possibilidade de
atenuar dores e sofrimentos dessa categoria social. Embora considere que a
opção decolonial tenha pontos cegos e lacunas, e.g. metodológicas, entendo
que esta seja um caminho para pensar na reversão de toda a arquitetura
promotora do não-ser-no-mundo.
Trago o filósofo Paulo Freire para a roda de conversa neste ensaio.
Embora reconheça que a Pedagogia do Oprimido fosse o texto freireano mais
óbvio por ser a opressão, por imposição, frequentemente uma condição
quase que sine qua non dos migrantes, optei por pensar nesse grupo como
um, dentre muitos, que buscam a emancipação e a autonomia como uma

148 Exposição “Inquietações”, de Graça Morais em https://www.youtube.com/inquietacoes

278 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


condição para o ser e estar no mundo. Partindo, então, desse pressuposto
foi possível também alinhar a categoria ética e a proposta decolonial a esse
grupo e banhá-los no pensamento de Paulo Freire.
Tenho absoluta ciência de possíveis e eventuais deslizes, e até desvios,
conceituais e taxonômicos da filosofia freireana, mas se os faço, asseguro
que é com total ingenuidade e nunca com a intenção de desqualificar ou
macular a proposta do patrono da educação brasileira. É por essa razão que
este ensaio enseja um início de um diálogo, certamente muito profícuo, com
meus leitores, meus parceiros mais experientes — para referenciar Vygotsky
(1984). Ademais, por e ao assumir essa dinâmica textual, submeto este
ensaio, na acepção de Foucault (1969), ao escrutínio do leitor.
Mwen swete ou yon lekti ekselan!

Comecemos Falando de Ética


Farei referência neste texto à Ética, bem como à Decolonialidade e à
Migração, como categorias e não como conceitos. A razão para essa escolha
lexical é por pensar no vocábulo conceito como algo mais provavelmente
finito, teorizado, acabado e que conta com um começo, um meio e um fim.
Por outro lado, pensar em categorias me remete a algo fluido e maleável em
um esforço de apreender e compreender a dinamicidade da sociedade e da
vida social marcada por seus aspectos mais singulares.
Adiro a esse constructo a partir do empréstimo da percepção
marxista de que a realidade é opaca e que os discursos que a sustentam
precisam ser desvelados. Para Marx (2008), a sociedade é contraditória e
com contradições que são produzidas no tecido societal. Por conseguinte,
é papel das categorias partirem do plano real, do pensamento, para explicitar
e desvelar as contradições produzidas na sociedade evitando, desse modo,
que essas se tornem promotoras de desumanidades. Entretanto, isso não é
possível somente com foco na descrição da realidade, com o contentar-se
apenas em perceber a superficialidade de sua aparência.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 279


Na propositura crítica de Marx (2011) a compreensão da sociedade
por meio de categorias mais simples e fluidas é necessária porque essas
formam parte do todo social que é complexo e multifacetado mas, ao mesmo
tempo, vinculado à realidade produtora de sentidos e significados espaço-
temporais diferentes. São tais categorias que permitirão o entendimento
das convergências e divergências das atividades humanas e sua percepção
de si e do mundo.
É nesse ponto que estabeleço a relação com a Ética. Podemos pensar
em diferentes perspectivas éticas como, por exemplo, as tradicionais e as
emergentes (Egido, 2020). As primeiras abarcam, dentre outras, a microética,
a procedimental, a formal e a burocrática. A segunda inclui a macroética,
a em prática, a social e a emancipatória. Ambas as perspectivas têm como
objetivo o estabelecimento de fronteiras que contribuam para o bem-viver
e a feliz existência em comunidade, pois se orientam por valores, conduta
e princípios em comum (Krenak, 2020).
Não é minha pretensão exaurir todas as nomenclaturas, classificações,
aplicações, etc. desse campo de conhecimento. Tampouco tenho a intenção de
trazer à roda de conversa todos os que se ocuparam do tema ao longo da história
da humanidade. Partindo de uma escolha pessoal, gostaria de estabelecer uma
breve linha do tempo de como a Ética, enquanto campo de saber, transitou
pela história e assumiu diferentes nuances até a filosofia freireana.
Na filosofia clássica, Sócrates entendia que ser socialmente ético
implicava na aderência a costumes, valores e obrigações universais fundadas
na razão e que regeriam a conduta geral tendo a felicidade como um fim
das ações humanas. Valendo-se da maiêutica, ele já prenunciava que o ser
ético era algo que poderia ser flexível e mutável visando ao viver juntos.
Propunha que o autoconhecimento, a aversão ao caos e à desordem e a
submissão seria o primado do agir ético, que deveria favorecer o coletivo
em detrimento do individual.
Platão transcende seu antecessor por desvincular a ética da realidade
empírica, bem como das relações e comportamento humano em favor do
mundo inteligível e utópico e da busca da perfeição que, muitas vezes,

280 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


escapam ao controle do ser humano. Por conta disso, sua proposta de ética
pautava-se pelo individualismo e razoabilidade na tomada de decisões.
Recomendava a suspeição de julgamentos vinculados a uma ética universal,
pois ele concebia que os seres humanos possuem um código moral eterno e
inscrito em si mesmo e que valida suas ações individuais. Assim, ele entendia
que uma vez alcançada a felicidade pessoal e plena, o indivíduo refletiria
isso no ambiente social que, por sua vez, se tornaria inevitavelmente ético.
Aristóteles, por seu turno, empenhou-se pelo equilíbrio entre uma
proposta ética e outra. Na percepção aristotélica, a ética deveria ser realista e
empirista em contrapartida à uma visão idealista, pois o material e o espiritual
deveriam conjugar-se para o alcance da felicidade, da bondade, etc. Para
ele, esse esforço em busca da virtuosidade e do bem de todos os homens
era uma ação prática vinculada à escala humana. Portanto, a ética deveria
ser um hábito e uma prática constante das virtudes individuais e coletivas
que, com base na razão, nos valores, na moralidade e leis compartilhadas e
estabelecidas, regeriam as condutas e a organização social.
Nosella (2008, p. 257) considera que ao pensarmos em ética a partir
da filosofia clássica, logo a associamos à moral. Entretanto, não podemos
deixar escapar que Ética, do grego éthos, é um ramo da filosofia que se
relaciona com valores e responsabilidades sociais e, portanto, com o modo
de ser no mundo, ao passo que, moral, vincula-se aos hábitos, costumes
e normas de conduta sociais, ou seja, com o modo de estar no mundo.
Para Kant (1995) o foco da conduta ética deve aderir com mais força à
moral, do latim mores, que se relaciona mais à ação e à pratica baseadas na
razão e na experiência pessoal ao propiciar ao ser humano autonomia para
criar suas próprias normas de conduta. Kant (1999, p. 20) diz que “a razão
manda como se deve agir” e, por conseguinte, o homem deve substituir a
autoridade imposta pela autoridade da razão individual como guia do seu
viver. A racionalidade cognitiva pode ser ética e produtiva tornando o homem
livre para estabelecer seus próprios critérios de alteridade para distinguir ou
mesmo depreciar seu próximo. Com base nessa linha de raciocínio, Kant
conceitua o imperativo categórico, ou seja, o homem age do modo como
melhor lhe convém e trabalha para que sua regra se transforme na lei geral.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 281


Até aqui destaquei que a Ética, enquanto um somado de saberes,
baseia-se em um conjunto de direitos e deveres individuais ou coletivos que
se relacionam em essência mais à razão. Como contraponto e para seguir com
nosso bate-papo, trago à baila o pensamento ético de Emmanuel Levinas e
sua proposta para a Ética do outro149. Por conta de sua experiência pessoal e
histórica, enquanto descendente de judeus, Levinas (2008) relata que viveu
e sentiu na pele os horrores do holocausto, que foram o ápice de trinta anos
de movimentos totalitários de direita e de esquerda, de genocídios e de duas
guerras mundiais. Tais eventos marcaram a história humana com barbáries,
sofrimento e dor, que sempre encontravam guarida na razão para explicar
as atrocidades.
A percepção de Hannah Arendt (1989, 1999) sobre o totalitarismo
e a banalidade do mal, ambas a partir de sua experiência com o regime
nazista, coincide com a de Levinas, e nos ajuda a ampliar o entendimento
da proposta levinasiana. Para Hannah Arendt, o totalitarismo despoja o ser
humano da premissa filosófica clássica, a saber, o ato de pensar e racionalizar
suas ações. E, ao desenhar seu conceito sobre como o mal é banalizado a
partir da superfície das relações sociais, Arendt (1999) usa o exemplo da
postura de alguns líderes judeus e outros, a exemplo de Martin Heiddegger,
que em certa medida contribuíram para os esforços genocidas nazistas.
No entanto, é como espectadora do julgamento de Adolf Eichmann,
reconhecido burocrata do regime nazista, que ela percebe que, ao abdicar
de sua capacidade de pensar, qual premissa do que nos constitui como
humanos, Eichmann trata de justificar suas atrocidades alegando ser mero
cumpridor de ordens superiores e, como burocrata, apenas buscava ascensão
profissional. Ética, no sentido clássico e lato do termo, não era uma opção
nem uma preocupação para Eichmann, pois ser ético pressupõe o ato de
pensar, uma capacidade que ele havia abdicado e, por conseguinte, não
poderia ser julgado nem condenado já que esse pensar não lhe cabia exceto
aos seus superiores.

149 Difiro do Outro lacaniano (1973), mais abstrato, e que se refere a um lugar, a linguagem, ao
inconsciente, etc.

282 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Em oposição à ética kantiana (e descartiana embora não a tenha
trazido à roda de conversa!) cuja centralidade residia na razão individual,
soberana e autônoma para explicar e justificar as ações humanas, Levinas
propõe a compreensão da ética à luz do outro com quem mantenho uma
relação de alteridade enquanto o considero como meu semelhante. Do latim
alteritas que significa ser o outro, a propositura de Levinas faz sentido porque
a manutenção da relação de alteridade com meu semelhante é fundamental
para que eu me coloque no lugar desse outro, meu alter ego, possibilitando que
eu demonstre empatia, entenda e sinta suas dores e angústias, seja acolhedor,
compassivo, etc. Mais ainda, ser ético no sentido levinasiano faz com que
eu extrapole nessa relação de alteridade e me sinta responsável pelo outro
ao ponto de passar a considerá-lo como alguém superior em relação a mim.
Por fim, mas nunca como menos importante, trago Paulo Freire
com sua proposta filosófica de uma ética universal do ser humano para
juntar-se a nossa conversa sobre o tema. Penso que Levinas avançou muito
ao desvincular sua Ética daqueles que eu trouxe nesse texto, a saber, alguns
filósofos clássicos, Kant e, por esbarro, René Descartes (2013). No entanto,
minha compreensão alinha-se à de J. J. Zitkoski (2020) quando penso que
Paulo Freire avançou ainda mais e em outras e diferentes direções ao desenhar
caminhos éticos que visem ao benefício ad aequitas e alterem coletivamente
os modos de ser e estar no mundo.
Freire (2020) inicia sua argumentação salientando que sua proposta não
guarda relações com uma ética vexatória e calcada em atos de perversidade
sobretudo para com os minorizados. Ele reforça que “é preciso deixar claro
que a ética de que falo não é a ética menor, restrita, do mercado, que se
curva obediente aos interesses do lucro” (p. 17). Tal ética menor funda-se no
pragmatismo político que contribui para o estabelecimento e manutenção
de ideologias fatalistas que atrofiam milhões de seres humanos. Faz isso por
promover de modo reiterado práticas de verticalização de interesses que
sustentam atos de perversidade e que aprofundam diferenças.
Essa ética menor denunciada por Paulo Freire é, na verdade, uma
expressão de “malvadez da ética” e “transgressão da ética” (p. 19) inclusive
em termos morais. O filósofo ressalta que esse projeto ideológico esconde-se

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 283


na globalização neoliberal que é, por natureza, excludente e desvalorizadora
de pessoas. Em palavras de Freire (2020, p. 21), essa “ideologia fatalista,
imobilizante, anima o discurso neoliberal [que] anda solto no mundo
[e que] com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que
nada podemos contra a realidade social”.
Após discorrer sobre essa ética menor a ser transgredida, Paulo Freire
apresenta sua proposta de instauração da ética universal do ser humano. Seu
objetivo é incentivar a reflexão que visa à horizontalidade das relações humanas
que compõem o tecido societal. Em sua palavras, ele diz que “quando falo,
porém, da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto
marca da natureza humana enquanto algo absolutamente indispensável à
convivência humana” (2020, p. 19). Essa proposta visa à responsabilidade
coletiva que possibilitará que essa convivência seja marcadamente humanizada,
humanizadora, democrática, crítica e progressista.
Ética universal do ser humano, para Paulo Freire, é pois um constructo
que faz parte de um processo social, cultural, político, geográfico, econômico,
histórico, etc. que vai sendo construído e se desenvolvendo enquanto expressão
da própria natureza humana que tem inerente em si uma “vocação ontológica
para o Ser Mais” e que não é em absoluto “um a priori da História” (p. 19)
sem tornar-se, contudo, ingênuo e idealista. Essa ética não coaduna com
modismos universalizantes e que relativizam a ética promotora do bem viver
coletivo (Krenak, 2020; Cusicanqui, 2021).
Em outras palavras, Freire (2020) nos convida a gentificar-se,
a gostar de ser gente, gente que se posiciona contra toda e qualquer forma
de desgentificação ou de esvaziamento do ser humano, a gostar de ser
gente que “se insere e não é apenas objeto, mas também sujeito [e ator
protagonista!] da história”, pois entende que sua “presença no mundo não
se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se
compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo
social, cultural e historicamente” (p. 53).
Como últimas palavras sobre essa temática, posso asseverar que a
proposta para Ética de Paulo Freire converge com o que teoriza Enrique

284 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Dussel em sua Ética da libertação (1993; 1994) e o resgate ao sumak kawsay,
conceito de origem kíchwa que nos convida a pensar em uma ruptura
civilizatória visto que vivemos em tempos distópicos, transumanados e
calcados no extrativismo epistêmico, econômico e de subjetividades, (Acosta,
2016). Não é meu objetivo discorrer sobre esses pensadores e seus convites
à filosofia, mas apenas sugerir ao leitor outras possibilidades de leituras que
complementem o que estou ensaiando neste texto.
Mas, voltando a Dussel (1992), este ressalta em sua teoria que há
um esforço para opacar a realidade (resgato Marx aqui!) e, por conseguinte,
velar e encobrir o sofrimento do outro com o fito de negar, inferiorizar,
descivilizar, barbarizar e inumanizar os semelhantes para, em derradeira
instância, subjugá-los e explorá-los através de relações de poder assimétricas
e opressivas (encaixe-se aqui o repertório bibliográfico foucaultiano!). Em
sua proposta, Dussel nos instiga à reflexão sobre as tratativas entre eu e o
outro quais sujeitos que compõem o cenário social visando ao debate de
questões relacionadas à exclusão social.
Por conseguinte, Emmanuel Levinas e Enrique Dussel conversam
com Paulo Freire e juntos se opõem à racionalidade ética e individualista
que se exime da responsabilidade pelo outro. Conjeturo que em uma mesa
de bate-papo, os três assinariam o que Freire poetiza nas duas últimas frases
que concluem a obra de referência a este texto: “Não nego a competência,
por outro lado, de certos arrogantes, mas lamento neles a ausência de
simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria gente melhor.
Gente mais gente.” (2020, p. 143).

Vamos Seguir a Conversa Falando de Decolonialidade


Falar em decolonialidade e alinhá-la ao pensamento de Paulo Freire é
um exercício prazeroso e instrutivo, pois a episteme freireana se contrapõe à
separação ontológica entre anthropos e humanitas. O primeiro, anthropos, é
mais genérico, talvez nem tão humano e, portanto, passível de dominação,
ao passo que o segundo, humanitas, sinaliza para o plenamente humano.
Desse modo, a necessidade desse pensamento decolonial remonta a sua

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 285


história; história essa que nos faz “escrever gritando [e] gritando escrever”
em palavras de Catherine Walsh (2019, p. 93), por causa dos “sentimentos
de frustração, indignação, raiva, dor e horror” diante de tantas atrocidades
que presenciamos hoje.
Para falar da história dessas atrocidades perpetradas pela vigente
estrutura colonialista-capitalista-patriarcal, ouso um esforço de resenhar
o belíssimo tratado de Ramón Grosfoguel (2016). Ao discorrer sobre a
necessidade do desenho do pensamento decolonial, esse sociólogo porto-
riquenho destaca que a história do processo de colonização foi marcada
por genocídios, a saber, contra os judeus e muçulmanos, contra os povos
indígenas do continente americano seguido pelos aborígenes na Ásia, contra
os africanos aprisionados e depois escravizados e, por fim, contra as mulheres.
Enrique Dussel (2008) mostra com sua filosofia que a proposta
cartesiana foi a força motriz para justificar as atrocidades da colonização.
O cartesiano cogito ergo sum que traduzido literalmente quer dizer “penso,
logo sou” ou, mais popularmente, “penso, logo existo” é fruto da ideia que
soberaniza a racionalidade do homem, ou seja, o ego cogito, na produção de
conhecimento e, portanto, assume um lugar ontológico que se sobrepõe a
qualquer divindade. Essa egopolítica universalista e idolátrica do pensamento
ocidental branco-fálico transforma o ego conquiro na própria essência e
condição para a existência do ego cogito. Em outras palavras, a lógica da
pretensa divindade racional do homem cartesiano faz com que ele se creia
o soberano universal e, portanto, sinta-se na obrigação de conquistar outras
terras e povos a fim de que, na sua arrogante divindade, possa purificar
ontológica e epistemologicamente os não-puros. Esse movimento origina o
ego extermino qual resultado de qualquer ato de insurgência a essa egopolítica.
Os judeus e muçulmanos foram os primeiros alvos dessa proposta
cartesiana a partir do séc. XII, pois foram expulsos de suas terras pelo
Estado espanhol em favor dessa egopolítica genocida dos hábitos, costumes,
cultura, memória, saberes e espiritualidade promotora de discriminação
religiosa e antissemita. Assim, a matriz colonizadora operava com a destruição
da espiritualidade e dos conhecimentos dos povos conquistados. Isso faz

286 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


muito sentido quando revistamos a construção da dinâmica do pensamento
filosófico cartesiano.
O movimento seguinte dos imperialistas ibéricos assume novos
contornos e discursos após a criação desse, “sistema-mundo-moderno-
colonial”, aponta Grosfoguel (2016, p. 35). A episteme que começa a
dominar o cenário colonizador à época inclui não somente a questão dos
saberes e da espiritualidade, mas também passa pela determinação de raça,
pelo ser ou não ser gente-humano no sentido freireano. Maldonado-Torres
(2008, p. 217) conta que com a definição de Cristovão Colombo dos
habitantes originários das Américas como sendo gente sin secta, “a referência
aos indígenas como sujeitos sem religião os remove da categoria humana…
como sujeitos não completamente humanos no mundo”.
Parte da origem dessa linha de pensamento remonta à explicação
aristotélica do homem em suas relações metafísicas matéria-forma e potência-
ato. Nessa plataforma, a concepção aristotélica defende a noção biológica
de espécies fixas e, portanto, circunscritas a sua potencialidade como algo
hierarquicamente inalterável. Os gente sin secta de Colombo são os aristotélicos
sem alma noética, ou seja, aquela capaz de fazer ciência e filosofia e, por
conseguinte, de pensar. Estão hierarquicamente presos nessa condição
inalterável e, portanto, podem ser tratados como ferramentas aos com alma
(Aristóteles, 1999, pp. 26, 27).
Sendo assim, essa lógica racista de argumentação apropriada pelos
colonizadores espanhóis, que seria reapropriada por outros, e.g. portugueses,
ingleses, franceses, holandeses, etc., ensejou a discussão quanto a se os
povos originários, considerados bárbaros a serem cristianizados, possuem
ou não uma alma. Compreender isso, para os espanhóis, determinaria se
os indígenas deste lado do oceano eram ou não humanos. Isso implicaria
na decisão quanto a se eles poderiam ou não ser escravizados sem que isso
fosse constituído em um pecado contra Deus.
Em termos mais amplos, o debate deveria decidir que se os indígenas
não tivessem a alma noética aristotélica e fossem incapazes de pensar em
alinhamento à racionalidade ocidentalizada, não seriam considerados

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 287


humanos e, assim, o colonizador poderia escravizá-los e tratá-los como
animais em sua atividade extrativista colonial. Esse debate culminou no
julgamento de Valladollid em 1552 que, segundo Grosfoguel (2016),
“a monarquia imperialista espanhola decidiu que os ‘índios’ possuíam alma
[e] que era um pecado, aos olhos de Deus, escravizá-los”. Desse modo, esse
entendimento possibilitou oficialmente a liberação dos indígenas do jugo
da escravização pelos colonizadores.
Munidos dessa compreensão, os colonizados partem para o continente
africano em busca da gente sin secta com o fito de escravizá-los e, assim,
movimentar a maquinaria de exploração extrativista colonial. Na África,
repetem o mesmo processo de racialização iniciado com os indígenas do lado de
cá do Atlântico. Todavia, do lado de lá do oceano há o acréscimo do elemento
cor à essa lógica consolidada em Valladollid. Esse elemento pigmentoso já,
por si só, sugere um desalinhamento à alma noética aristotélica que nutre a
racionalidade ocidentalizada colonialista, extrativista, branco-fálica.
Destarte, já ficando sem muitas alternativas de mão-de-obra escravizada,
não lhes custa muito trabalho aos colonizadores declararem os negros africanos
como gente sin secta, isto é, selvagens sem alma, portanto, subumanos
ou, melhor ainda, não-humanos. Desta forma, os colonizadores estavam
justificados, aos olhos de Deus, de escravizar os africanos. Falando do ápice
dessa lógica cartesiana genocida do ego cogito, ego conquiro e ego extermino,
Grosfoguel (2016, p. 41) afirma que a “velha discriminação antissemita
medieval emaranhou-se ao novo imaginário racial moderno” originando o
“antissemitismo racial” e desencadeando uma onda de sequestros e crimes
contra o povo africano.
Na Europa, essa mesma dinâmica e lógica genocida foi aplicada às
mulheres cujos saberes eram considerados uma ameaça à “estratégia de
consolidação do patriarcado centrado na cristandade” sendo necessário,
assim, que tais mulheres detentoras de uma sabedoria que era exclusiva dos
homens fossem “queimadas vivas, acusadas de bruxaria, nos primórdios da
Modernidade, nos séculos XVI e XVII” (Grosfoguel, 2016, p. 42).

288 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


À luz do que sintetizei, esses povos — judeus, muçulmanos, indígenas,
africanos, mulheres — e tantos outros ao longo da história da colonização
foram (e ainda são!) considerados inferiores, não-gente, subumanos, embora
façam parte da estrutura social que continua sendo, segundo Maldonado-
Torres (2008), racista e sexista. Com esse resumo histórico em mente, penso
que é proveitoso estabelecer uma diferença entre colonização e colonialismo
e sua história até o surgimento, ou a percepção, da colonialidade e os
movimentos de descolonialidade e decolonialidade que os contrapõe.
Inicialmente, vale ressaltar que colonização se refere a um processo,
ato ou efeito de ocupação de um território para além das fronteiras nacionais
originárias que tem como objetivo a exploração econômica e a dominação
político-administrativa tornada possível através do “epistemicídio massivo
[cuja] destruição desarmou as sociedades [coloniais], tornando-as incapazes
de representar o mundo como seu e nos seus próprios termos” (Sousa
Santos, 2021, p. 27). Os principais impérios colonizadores foram Espanha,
Portugal, Holanda, França e Reino Unido e, embora atualmente nenhum
país reconheça abertamente a posse e o controle político-administrativo
sobre territórios além de suas fronteiras geográficas como sendo uma colônia,
ainda há muitos resquícios no mundo contemporâneo dessa antiga prática
epistemicida e genocida.
Há um certo consenso entre alguns estudiosos do tema, e.g. Strang
(1991), Hobsbawm (1995), Mignolo (2011), Rothermund (2015) e Jansen
& Osterhammel (2017), ao apontar as mudanças ocasionadas pelo fim da
guerra-fria e a queda do muro de Berlim como um dos marcos do fim do
colonialismo histórico. Mignolo (2011) reforça que essa mudança é irreversível
porque há um movimento centrífugo de desocidentalização e decolonização
do pensamento moderno que impulsa um esforço de desvinculação dessa
matriz de poder colonialista. Nas décadas após a segunda guerra mundial,
dezenas de nações na Ásia, África, Caribe, etc. consolidaram seu protagonismo
ao reformatar e reestruturar a geopolítica mundial ainda que esse colapso
contemporâneo da supremacia colonial não tenha sido pacífico na maioria
dos casos.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 289


Não obstante ao (suposto-quase?!) fim do colonialismo histórico,
enquanto sistema de dominação político-administrativa européia para a
exploração de riquezas, essa classe dominante segue em sua insistência no
universalismo nortecêntrico e traz à baila um novo modo de colonização ou
“apenas a substituição de um tipo de colonialismo [o histórico] por outros
(colonialismo interno, neocolonialismo, imperialismo, racismo, xenofobia,
etc.)” (Sousa Santos, 2021, p. 27).
Aníbal Quijano (1991, 1993, 2002, 2010) sociólogo peruano, nomeia
esse processo de colonialidade de poder. Essa nova matriz, qual herança
da colonização e do colonialismo, insiste em reafirmar seu poder através
dos processos de dominação de raça e racialização social tal qual pensou
Descartes. Edgardo Lander (2005), Nelson Maldonado-Torres (2006), Ramón
Grosfoguel (2008), Walter Mignolo (2010), e outros, discorrem sobre essa
matriz que se desmembra em inúmeras dimensões, e.g. epistemológicas,
colonialidade do saber, e ontológicas, do ser, etc.
Por outro lado, Boaventura de Sousa Santos (2021), entende que
não é necessário o desenho de uma nova categoria de pensamento social,
pois “aquilo que Aníbal Quijano (2005) chama de colonialidade é, em
verdade, a continuação do colonialismo por outros meios” (p. 27). Para
Sousa Santos, pensar em outra categoria analítica pode fazer-nos incorrer
no perigo de reduzir o colonialismo a um passado histórico já superado. Isso
seria um equívoco porque o colonialismo ainda está aí, do lado de lá e do
lado de cá do Atlântico. Ainda vigoram “sociabilidades coloniais baseadas
na inferioridade étnico-cultural e ontológica do outro [e que] continuam
a ser o instrumento fundamental para a expansão e o reforço das opressões
geradas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado”.
Eu entendo que tanto a argumentação de Aníbal Quijano quanto a de
Boaventura de Sousa Santos são relevantes, ainda que se situem em marcos
ligeiramente diferentes na linha do tempo da história das colonizações.
O argumento de Sousa Santos serve de alerta para o cuidado com as reduções
quanto a um passado que ainda insiste em estar aí, não haverá um presente,
e muito menos um futuro, enquanto o passado colonialista continuar
vigente. Por outro lado, o sufixo -dade, usado por Aníbal Quijano, formam

290 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


substantivos abstratos que indicam a predominância e reiteram a força da raiz
substantiva como, por exemplo, atual-atualidade ou objetivo-objetividade,
etc. Portanto, entendo eu, que Quijano está tentado reforçar que a colônia
e o colonial ainda está aí, é reforçado, é predominante, sua força é reiterada.
Logo, não há uma redução de um passado ainda vigente. Penso que ambas as
linhas de raciocínio, a de Quijano e a de Sousa Santos, são complementares
e querem nos alertar para a continuação da violência opressora colonial.
Por conseguinte, é imperioso que seja operada uma estratégia para
desmonte dessa dinâmica colonial. Inicialmente, a estratégia de luta contra
o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, foi teorizada como descolonial
mas, depois foi assumida por alguns como decolonial. Catherine Walsh
(2009), assevera que a supressão do “s”, em descolonial, representou
uma mudança na sistematização da proposta, pois a ideia não é desfazer,
desconstruir, desmantelar, desconsiderar ou tentar reverter a herança, as marcas
e o momento colonial como se conseguíssemos afundar, metaforicamente
falando, as caravelas do colonizador. O pensamento decolonial sugere uma
tomada de posição a favor da identificação, visibilização, transgressão e
reconstrução, por meio de alternativas locais, da lógica colonial agora expressa
pelas colonialidades quijanianas.
Essa é exatamente a lente utilizada por Paulo Freire. Ao falar da
autonomia, ele está preocupado com todos aqueles que são historicamente
invisibilizados, minorizados, subalternizados, silenciados, oprimidos e alijados
do processo histórico e social por forças hegemônicas. Paulo Freire (2020,
p. 16) está falando dos que são submetidos à conversão para a condição de
“esfarrapados do mundo, condenados da Terra e excluídos” do ser-estar ética
e dignamente no mundo. Tais ações desumanizadoras convertem corpos e
mentes em sujeitos amorfos para serem subjugados, violados e eliminados
em casos de insurgência. Freire alude ao mesmo processo de genocídio
ontológico e epistemológico ensejado pela lógica cartesiana. Ele fala da
ausência de humanidade para “os que queimam igrejas de negros porque,
certamente, negros não têm alma. Negros não rezam. Com sua negritude,
os negros sujam a branquitude das orações” (2020, p. 37) em alusão ao
julgamento de Valladolid que já abordei neste ensaio.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 291


Na obra que trago à roda para nossa conversa, Freire (2020,
p. 42) retoma a questão ética e, ao meu ver, ressalta que a ausência de um
pensamento decolonial implica em perpétua exclusão histórica porque,
em seu argumento, o filósofo reforça que a “assunção de nós mesmos não
significa a exclusão dos outros. É a outredade do não eu, ou do tu, que me
faz assumir a radicalidade de meu eu”. Deste modo, entendo que ao levar
em consideração o outro pelas vias do movimento decolonial implica em
assumir a história em nossas mãos. Implica em valorizar as diferentes formas
de saber e conhecer, de viver, de existir. Implica na reconstrução de alternativas
orientadas axiológica, ontológica, metodológica e epistemologicamente.
Em outras palavras, ecoando Freire (2020, p. 53), ser e estar na sociedade
implica em “gostar de ser gente”, pois “minha presença no mundo não é a
de quem a ele se adapta, mas de quem se insere. É a posição de quem luta
para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história”.
Alinhando o pensamento decolonial freireano ao mito da modernidade
alertado por Enrique Dussel (1992), não se pode perder de vista que a
dinâmica social da pretensa modernidade nada mais é do que a “violência
em estado bruto”, mencionada por Frantz Fanon (1961, p. 47). O discurso
que se propala é que o sofrimento e a barbárie a que são submetidos os
oprimidos é um preço necessário a ser pago para que haja modernização.
O sujeito-objeto colonialista é, segundo Dussel (1992, p. 86) a “causa
culpável de sua própria” condição e, assim, atribui-se ao “sujeito moderno,
plena inocência em relação ao ato de vitimar” aquele considerado inferior e
subdesenvolvido. Esse argumento abre, então, caminho para o pensamento
assistencialista e a lógica do salvador branco.
Por isso que Freire (2020, p. 78) alerta sobre os perigos dessa linha
de pensamento e diz que “políticas assistencialistas anestesiam a consciência
oprimida e prorroga, sine die, a necessária mudança da sociedade” e, pior ainda,
impõem de forma arrogante certas categorias de “saber como verdadeiros”
(p. 79). Por conseguinte, a não aderência a esse mito da modernidade,
enquanto contraponto ao pensamento decolonial, impede que o sofrimento
do outro seja justificado pelo discurso assistencialista e de salvação de muitos
incautos e indefesos ao transformar os vitimados em culpados e os agressores
em redentores.

292 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


É preciso decolonizar essa teoria! Em suas palavras, Paulo Freire (2020,
p. 77) diz que é preciso “desafiar os grupos populares para que percebam,
em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua
situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é destino certo
ou vontade de Deus, que não se pode mudar”.
Embora o interesse da classe dominante seja pela inibição do pensamento
decolonial, Freire (2020, pp. 96, 97) aponta para a Educação como uma
ferramenta para “intervir no esforço de reprodução da ideologia dominante”
e no seu papel como “desmascaradora [dessa] ideologia”. A Educação pode
decolonizar propondo reforma e reestruturação do pensamento e da visão
do entorno social do alunado. Entretanto, Freire também alerta contra
a Educação “imobilizadora e ocultadora de verdades” que age contra a
proposta decolonial e a favor do mito da modernidade. Para tanto, diz ele
que é preciso mudar a “estrutura do pensamento” que se crê o “único certo
e irrepreensível”, que não escuta “quem pensa e elabora seu discurso de
outra maneira” (p. 118).
O pensamento decolonial advoga em favor da diversidade, da
horizontalidade, da polinização de saberes, do preocupação ética e ontológica,
da desmarginalização da periferia, da aceitação das muitas cosmovisões
sociais e da rejeição tácita à sanção da ignorância de quem quer que seja,
para referenciar Gayatri Chakravorty Spivak (1985). As ideologias que
operam na sociedade contemporânea têm o poder e por objetivo ocultar
o esforço decolonial valendo-se das colonialidades, suas ferramentas e seu
modus operandi para docilizar sujeitos, corpos e mentes. Freire (2020,
p. 123) alerta que tais ideologias nos acometem de uma “miopia que nos
dificulta a percepção clara e nítida da penumbra”, que nos impede de ver
e ler a realidade. Essa miopia neoliberal promove verdades distorcidas tais
como o discurso de que é inútil o esforço decolonial já que vivemos “um
destino que não se pode evitar”, e.g. “a robustez da riqueza de uns poucos
e a verticalização da pobreza e a miséria de milhões” (p. 125).
Entendo que ainda há muito, muito a ser dito sobre decolonialidade
e o pensamento de Paulo Freire. Estou ciente de que a referência freireana
neste ensaio apenas pincela o que o filósofo vislumbra em sua obra sobre

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 293


a temática desta seção. Estou certo de que em muitos outros textos de
sua vasta bibliografia e pedagogias, e.g. do oprimido, da tolerância, da
esperança, da pergunta, da libertação, etc., Paulo Freire contribui muito
para o pensamento decolonial, emancipatório e ético. No entanto, estou
satisfeito com que abordei até aqui e espero ter contribuído ao meu leitor
para novas possibilidades de freirear, de bonitezar a vida e nosso entorno!

Chegou o Momento de Tratar de Migração


Preciso iniciar esse bate-papo resgatando em Freire (2020, p. 16) os
“esfarrapados do mundo, condenados da Terra e excluídos” que se adequa
à categoria migrantes150. Esses sujeitos são negativa e invariavelmente
considerados ignorantes, mal-sucedidos e incapazes. Porém, o movimento
freireano de busca pela humanidade nos ajuda a perceber que a opressão
a que são submetidos os migrantes não corresponde ao seu destino final.
O processo de desumanização dessa população é historicamente construído
e encoberto sob um manto de hospitalidade.
Hospitalidade essa que se consubstancia, de fato, na hostipitalidade
derridiana, bem como no unheimlich e heimlich freudiano, ou seja, um
movimento pendular e dialético de estranheza, hostilidade, familiaridade e
acolhimento que, ao fim e ao cabo, são apenas uma escusa para a inferiorização
da cultura e dos saberes dos migrantes, bem como para sua invisibilização e
subalternização até que seja possível expurgá-los do local de acolhida já que
são, na verdade, inimigos dos que se pretendem anfitriões151.
Uma combinação de dados152 da UN Refugee Agency (UNHCR),
La oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados
(ACNUR), do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), do

150 Minha opção pelo vocábulo migrante está em alinhamento com o pensamento de Abdelmalek
Sayad (2000) que ao falar sobre a circularidade nas migrações ressalta que toda i-migração é ao
mesmo tempo e-migração.
151 Recomendo Sá (2016; 2020a) para uma discussão mais ampla e aprofundada da condição dos
migrantes.
152 www.unhcr.org; www.acnur.org; https://www.migrante.org.br; http://obmigra.mte.gov.br/index.
php/relatorio-anual; www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/imigracao

294 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Observatório das Migrações Internacionais (ObMigra), da Polícia Federal
do Brasil (PF), etc. podem nos ajudar a entender o fluxo migratório na
atualidade153. Os dados mais recentes apontam para 3,6% da população
mundial em condição de migração, ou seja, 281 milhões de migrantes
internacionais. Essa cifra representa um acréscimo de 4,5% em relação ao ano
de 2019, que indica 11 milhões de migrantes a mais. Desse quantitativo, 48%
são mulheres com suas crianças e que têm como principais destinos os países
que lhes possa oferecer melhores condições de trabalho e de sobrevivência.
Estados Unidos e Alemanha são os destinos que respondem por 1/4 desse
fluxo migratório internacional.
O Brasil registrou nos últimos vinte anos um fluxo de 1.5 milhão
de migrantes vindos de mais de 200 países. Porém, a América Latina e a
África são os destaques e, dentre esses, o maior número de migrantes são da
Venezuela, Haiti e Bolívia. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (2019)154 apenas 4,1% dos municípios brasileiros possuem
serviços de apoio aos migrantes. Outro triste dado é que do universo de 5.570
municípios do país, em apenas 58 deles existem abrigos para acolhimento
de migrantes, somente 75 têm algum mecanismo público de apoio voltado
aos migrantes, não mais que 48 municípios, em 11 estados, disponibilizam
cursos de Português brasileiro para essa população. Os serviços públicos em
outras línguas é oferecido somente em 25 municípios distribuídos em 12
estados, porém nenhum desses, em qualquer capital do Sudeste, embora
São Paulo e Rio de Janeiro figurem entre as principais portas de entrada ao
país por meio de seus aeroportos.
É possível perceber como a diversificação do fluxo migratório
é constantemente redesenhada na contemporaneidade. Trata-se de um
movimento que acontece com muita velocidade e de modo fluido e complexo,
pois esses deslocamentos afetam a vida não só dos migrantes e daqueles
parentes e amigos que ficam em suas terras de origem mas, também, daqueles

153 Agradeço a Lineth Hiordana Ugarte Bustamante pela cessão do embrião desses dados durante a
palestra Saúde mental, interculturalidade e migração oferecida no Instituto Educação sem Fronteiras
em 01 de maio de 2021.
154 Estatística divulgada em 25/09/2019 e disponível para acesso em https://censo2021.ibge.gov.br

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 295


que os acolhem. No caso dos migrantes, eles veem o local de destino como
o seu eldorado, a realização de sonhos que, em sua maioria, passam apenas
por questões envolvendo condições de trabalho e sobrevivência (Sá &
Nogueira, 2022).
Gostaria de exemplificar a situação dos migrantes trazendo à roda
de conversa com Paulo Freire a situação dos migrantes bolivianos em São
Paulo. Já abordei esse tema em diferentes momentos, e.g. Sá (2014, 2016,
2017b, 2018, 2020b), e sob enfoques variados. A Bolívia foi um país
cuja trajetória à independência foi marcada por inúmeros obstáculos que
envolviam instabilidade política e fragmentação étnica, social, geográfica,
além da pobreza. No entanto, a Bolívia tem sido notada na vitrine mundial
por conta da recente reconfiguração do país ao colocar em xeque o projeto
neoliberal, o surgimento e politização de movimentos sociais indígenas,
as mobilizações e lutas populares e os giros que têm redirecionado questões
político-econômicas e de inclusão social.
Embora a Bolívia tenha emergido de uma condição de marginalidade
no cenário mundial, ainda possui marcas bem latentes dos muitos processos
migratórios de saída experienciados pelo povo boliviano. Seu destino inclui
tanto países do norte global, e.g. Estados Unidos e Espanha, como países
do hemisfério sul, e.g. Argentina, Chile e Brasil. Visto que em muitos casos
os migrantes bolivianos encontram-se em situação de indocumentação nos
países que os acolhem não é possível estimar com exatidão o contigente real.
No Brasil, estima-se que sejam uns 250 mil migrantes bolivianos e, em sua
maioria, estejam na cidade de São Paulo e seu entorno. A principal razão
para sua vinda para cá está relacionada a questões econômicas.
Esse fluxo migratório produz muitos efeitos. Figuram, por exemplo,
implicações éticas relacionadas com a relação que se estabelece entre os
brasileiros e os bolivianos. Há igualmente questões que envolvem uma
lógica colonialista e um esforço decolonial já que ambos os povos sejam do
Sul. Assim, tentarei alinhar alguns dados extraídos de narrativas escritas e
visuais de uma pesquisa com migrantes bolivianos, Sá (2016; 2018), com
excertos do pensamento freireano.

296 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Trago tais imagens, pois ecoo Cusicanqui (2015) e Peter Burke (2017,
pp. 124, 125) quando ele diz que as narrativas visuais enriquecem textos
escritos que “ficariam muito empobrecidos se a historiografia fosse obrigada
a se basear apenas neles”. Por conseguinte, acredito que as narrativas visuais
nos permitem ler as entrelinhas de histórias individuais e coletivas e nos
permitem entender significados ocultos e ausências uma vez que “comunicam
rápida e claramente os detalhes de processos complexos” que seriam mais
morosos e vagos se baseados apenas em textos.
Paulo Freire (2020, p. 75) diz que “ninguém pode estar no mundo,
com o mundo e com os outros de forma neutra. A acomodação em mim
é apenas caminho para inserção, que implica decisão, escolha, intervenção
na realidade”. Trago um exemplo disso.

Imagem 1 – Narrativas de Juan

Fonte: Sá (2016)

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 297


Usei essa citação de Freire para ilustrar como a estereotipagem,
o preconceito e a discriminação podem impedir os migrantes bolivianos
de serem inseridos na sociedade que os acolhe. Juan optou por escrever um
pequeno texto explicando o que sentia em relação à migração. No texto,
ele descreve que seu processo de adaptação ocorre inclusive em relação
aos preconceitos quando diz “uno se va acostumbrando”, mas reforça que
“la identidad llevo en la sangre de boliviano”. Na narrativa imagética, Juan
indica esse movimento de ambiguidade que o migrante vive. Por um lado,
ficar em sua terra e não ter que se adaptar a “nuevos costumbres del nuevo
país”, mas, por outro lado, a decisão de migrar a outro lugar em busca de
melhores condições de vida. Por isso que diante de situações como essas que,
para Paulo Freire (2020, p. 75), o agir eticamente exige dos brasileiros “não
estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas”; é preciso “decisão,
escolha, intervenção na realidade” para ser hospitaleiro, ipso facto.
A narrativa seguinte é de Carolina que sente saudade de sua terra
por causa das frustrações que vive no Brasil. Freire (2020, p. 77) diz que se
os anfitriões, quiserem mudar sentimentos como o de Carolina, é preciso
entender que “a mudança implica a dialetização entre a denúncia da situação
desumanizante e o anúncio de sua superação”.

Imagem 2 – Narrativas de Carolina

Fonte: Sá (2016)

Para Carolina sua estada no Brasil a empobrece, pois “salí de casa con
zapato y volvi con chinelo”. Trata-se de um sentimento despertado por causa

298 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


de sua condição de migrante e das experiências vividas. Espero que o Brasil,
como país acolhedor, corrija esse curso em benefício desses migrantes que para
Freire (2020, p. 77) estão entre “a população espoliada e sofrida”. Carolina,
em sua narrativa visual, faz com que eu me lembre de Rancière (1996,
p. 37) que, embora falasse dos plebeus da antiguidade, aplico ao migrante
que, como Carolina, “não fala, não tem nome (…) não tem inscrição
simbólica” na sociedade; não está incluído, apenas “distribui seu corpo na
visibilidade e invisibilidade e põem em concordância os modos de ser, os
modos de fazer e os modos do dizer que convém” à sociedade que os recebe.
Vinculada a essa ideia, Paulo Freire, mais adiante nessa obra, trata do
estabelecimento da divisão entre os do lado de cá e os do lado de lá155 e, em
seguida, discorre sobre as implicações dessa relação. Penso que a narrativa
de Jose pode ser útil para ilustrar esse derradeiro ponto que apresento.

Imagem 3 – Narrativas de Jose

155 Ao longo deste ensaio usei os advérbios de lugar “cá” e “lá” nas locuções adverbiais “lado de cá e
lado de lá” muitas vezes porque essa estrutura sintática faz com que eu me remeta ao rap denúncia “Da
ponte pra cá” do grupo Racionais MC’s. Nesta canção, eles usam uma metáfora de elevado sentido
poético da ponte para mostrar que esta serve de inspiração para exaltar os que estão na periferia e
que não lhes deve ser privado o direito de trafegar entre cá e lá. Vale a pena conhecer a letra dessa
canção, além da discografia do grupo em https://www.racionaisoficial.com.br

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 299


Fonte: Sá (2016)

Freire (2020, p. 80) alerta que “importante ter sempre claro que
faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da
responsabilidade por sua atuação”. Em outras palavras, os dominantes,
de cá, querem fazer crer os dominados, de lá, que qualquer coisa que saia
errado em seu processo de migração é culpa dos de lá e nunca dos de cá,
i.e., é responsabilidade e culpa dos migrantes e não do país anfitrião que os
acolhe. Em Sá (2016, pp. 221, 222) declarei que Jose ficou profundamente
decepcionado porque “o seu ‘jeito de ser’ boliviano havia sido afetado pelo
jeito do Brasil” e ele não se dava conta disso até viajar de férias à Bolívia e ser
confrontado pelo demais familiares. Sentia-se constrangido porque “apesar de
ter o idioma, não falava e se expressava como seus tios e primos”. Foi acusado
de ser de lá, do Brasil, e seus familiares de cá, da Bolívia. No entanto, quando
estava no Brasil não sentia de cá porque era insistente violentamente lembrado
que era de lá. Por fim, Jose conclui que “sou estrangeiro no país que moro
e no país que nasci”, ou seja, ele se sente duplamente excluído socialmente.
Esse sentimento de exclusão, de culpabilização, de falha é refletido
em sua narrativa visual em que ele tenta unir as bandeiras do Brasil e da
Bolívia em um esforço para criar um país que o acolha, de fato. Freire (2020,
p. 81) diz que essa condição coloca esses migrantes no grupo de “legiões
de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade
do sistema social em que vivem, mas na sua incompetência”. No caso de
Jose é triste ver que ele se sente culpado por esse não pertencimento a lugar
algum. De fato, como assevera Freire (2020, p. 129), a própria condição

300 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


de migrante impõe “um poder de persuasão indiscutível [que] anestesia a
mente [e] distorce a percepção dos fatos e acontecimentos”.
No Brasil, foi aprovada em 24 de maio de 2017 a Lei nº 13.445 que
passou ser nomeada de Lei de Migração cujo objetivo é assegurar aos migrantes
a gentificação freireana, o acesso a condição de ser humano ético e socialmente
incluído na sociedade acolhedora. Paulo Freire reforça a importância e a
necessidade de buscarmos a superação de todos os tipos de intolerância,
estereotipagem, preconceito, discriminação, etc. visto que essas ações fazem
parte do processo neoliberal de desumanização, de degentificação. No caso
dos migrantes, é preciso conhecer, aprender e ensinar coletivamente para e
com a diversidade do bem-viver. Estou certo de que isso é possível no Brasil
e no mundo já que vivemos um intensificado e imprevisível fluxo migratório
que deve nos instigar a paulo-freirear, a bonitezar a relação com o outro.

Vou Ficando por Aqui


Reconheço que a obra de Paulo Freire que uso como referência para
esse texto não trata especificamente da condição do migrante, nem de
decolonialidade ou diretamente de ética. Igualmente, reconheço que posso
ser acusado de ter criado uma colcha de retalhos com o pensamento freireano
ao retirar algumas de suas ideias do contexto original e usá-las de modo
irrestrito neste ensaio. Sim, foi isso mesmo que fiz!
No entanto, se o fiz foi porque esse filósofo não amarra seu pensamento
a ninguém ou a alguma corrente única. Sua filosofia é feita pela vida, da
vida e para vida e, por conseguinte, pode banhar diferentes espaços a fim de
eliminar a aridez. Ora, se o próprio Paulo Freire deixou fluir seu pensamento,
eu não posso me arrogar a aprisioná-lo.
Antes de enviar a versão final desse texto pedi a um literato, amigo e
parceiro, Moisés Carlos de Amorim, que desse uma olhadela no meu ensaio.
Ele gentilmente o fez e ao falar do que escrevi sobre Ética sugeriu que eu
incluísse o pensamento de Mikhail Bakhtin na roda, pois esse filósofo da
linguagem russo pensa a Ética tal como Levinas e Freire. Eu concordo com
o Moisés, mas me faltariam páginas para esse bate-papo que, certamente,

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 301


seria muito produtivo. Meu amigo também sugeriu que eu fizesse uma
reflexão crítica sobre os opostos freireanos gentificação e degentificação
acerca da modernidade colonial em contraponto “ao projeto de exploração,
inferiorização e desumanização de negros, indígenas, mulheres, etc.” (palavras
do Moisés!). Também concordo com a observação desse amigo querido,
mas novamente me falta o fôlego para essa empreitada neste ensaio. Quiçá
possamos estabelecer a meta de um texto futuro escrito a quatro mãos com
reflexões a partir da Linguística e da Literatura.
Bem, encerro este ensaio com gratidão pelo convite original feito
pela querida Ester Figueiredo para redigi-lo e enviá-lo à Revista Práxis
Educacional. Gratidão também pelo incentivo de outra querida e parça na
estrada acadêmica, a Mariana Seccato e, por fim, com o olhar parceiro do
Moisés Amorim. É igualmente justo pagar tributo à leitura atenta e crítica
de dois orientandos que mostraram, com suas pesquisas sobre o suicídio e
decolonialidade, a que vieram: Isabel Mecias e Vitor Elói dos Santos. Assim,
encerro com a tranquilidade e a sensação de ter crescido epistemológica, mas
principalmente ontologicamente ao pensar mais no outro em nossa relação
de alteridade, em valorizar mais a pluralidade e localidade de saberes, em
refletir mais no ser e estar no mundo sem demarcações de diferenças. Como
diz Freire, com o desejo de ser gente mais gente!
Despeço-me dos meus leitores com um poema bem freireano, ¿Qué
pasaría…?, e que sintetiza muito bem toda a discussão que ensejei neste
ensaio. Espero que gostem!

302 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


¿Qué pasaría…?
¿Qué pasaría si un día ¿Qué pasaría si el grito
despertamos dándonos de un continente fuese
cuenta de que somos mayoría? el grito de todos los continentes?

¿Qué pasaría si de pronto ¿Qué pasaría si pusiésemos


una injusticia, sólo una, el cuerpo en vez de lamentarnos?
es repudiada por todos,
todos los que somos, todos, ¿Qué pasaría si rompemos
no unos, no algunos, sino todos? las fronteras y avanzamos
y avanzamos y avanzamos?
¿Qué pasaría si en vez de
seguir divididos nos ¿Qué pasaría si quemamos
multiplicamos, nos sumamos todas las banderas para
y restamos al enemigo que tener sólo una, la nuestra,
interrumpe nuestro paso? la de todos, o mejor
ninguna porque no la necesitamos?
¿Qué pasaría si nos
organizáramos y al mismo ¿Qué pasaría si de pronto
tiempo enfrentáramos dejamos de ser patriotas para
sin armas, en silencio, ser humanos?
en multitudes, en millones de
miradas la cara de los No sé... me pregunto yo:
opresores, sin vivas,
sin aplausos, sin sonrisas, ¿Qué pasaría…?
sin palmadas en los hombros,
sin cánticos partidistas?

¿Qué pasaría si yo pidiese


por ti que estás tan lejos,
y tú por mí que estoy tan lejos,
y ambos por
los otros que están muy
lejos y los otros por Mario Benedetti
nosotros aunque estemos lejos? Poeta uruguaio

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 303


Referências
Acosta, A. (2016). O bem viver: Uma oportunidade para imaginar outros
mundos, (1ª ed.). Autonomia Literária.
Arendt, H. (2008). Homens em tempos sombrios, (D. Bottmann, Trad.). Cia
das Letras.
Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo, (R. Raposo, Trad.). Cia das Letras.
Arendt, H. (1999). Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade
do mal, (J. R. Siqueira, Trad.). Cia das Letras.
Aristóteles (1999). Vida e obra. Editora Nova Cultural.
Burke, P. (2017).Testemunha ocular: O uso de imagens como evidência histórica,
(V. M. X. Santos, Trad.). Editora Unesp.
Cusicanqui, S. R. (2015). Sociología de la imagen: Ensayos, (1ª ed.). Tinta
Limón.
Cusicanqui, S. R. (2021). Ch’ixinakax utxiwa: Uma reflexão sobre práticas
e discursos descolonizadores. n-1 Edições.
Descartes, R. (2013). Discours de la méthode. Cambridge University Press.
Dussel, E. (1992). 1492: El encubrimiento del outro hacia el origen del mito
de la modernidad. Nueva Utopia.
Dussel, E. (1993). O encobrimento do outro: A origem do mito da modernidade,
(J. A. Clasen, Trad.). Editora Vozes.
Dussel, E. (1994). Ética de la liberación: Ética do discurso e filosofia da
libertação. Unisinos.
Dussel, E. (2008). Anti-meditaciones cartesianas: Sobre el origen del anti-
discurso filosófico de la modernidad. Tabula Rasa, 9, 153-197.
Dreifuss, R. A. (1996). A época das perplexidades: Mundialização, globalização
e planetarização — novos desafios. Editora Vozes.

304 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Egido, A. A. (2020). Ética em pesquisa em estudos da linguagem: Notas
introdutórias. Palestra, Curso de Letras, Instituto Federal de São Paulo.
Fanon, F. (1961). Les damnés de la terre. Maspero.
Foucault, M. (1969). L’archéologie du savoir. Éditions Gallimard.
Freire, P. (2020). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à pratica
educativa, (66ª ed.). Paz e Terra.
Grosfoguel, R. (2008). Para descolonizar os estudos de economia política
e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira
e colonialidade global, [I. M. Ferreira, Trad.]. Revista Crítica de Ciências
Sociais, 80(março), 115-147.
Grosfoguel, R. (2016). A estrutura do conhecimento nas universidades
ocidentalizadas: Racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/
epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, 31(1), jan/
abr, 24-49.
Han, B. C. (2015). Sociedade do cansaço, (E. P. Giachini, Trad.). Editora Vozes
Hobsbawm, E. (1995). Era dos extremos: O breve século XX. Cia das Letras.
Jansen, J. C., & Osterhammel, J. (2017). Decolonization: A short history.
Princeton University Press.
Kant, I. (1999). La metafísica de las costumbres, (3ª ed.). Tecnos.
Kant, I. (1995). Fundamentação da metafísica dos costumes. Edições 70.
Krenak, A. (2020). Caminhos para a cultura do bem viver. Cultura do Bem
Viver.
Lacan, J. (1973). Le séminaire, livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de
la psychanalyse. Éditions du Seuil.
Lander, E. (Org.)(2005). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e Ciências
Sociais, perspectivas latino-americanas. Clacso.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 305


Levinas, E. (2008). Totalidade e infinito, (J. P. Ribeiro, Trad.). Edições 70.
Nosella, P. ( 2008) Ética e pesquisa. Educ. Soc., 29(102), 255-273.
Maldonado-Torres, N. (2006). La topología del ser y la geopolítica del
saber: Modernidad, imperio, colonialidad. Em W. Mignolo, F. Schiwy &
N. Maldonado-Torres. (Orgs.). Des-colonialidad del ser y del saber, (pp. 63-
130). Del Signo.
Maldonado-Torres, N. (2008). Religion, conquête et race dans la fondation
du monde modern/colonial. Em M. Mestiri, R. Grosfoguel & Y. Soum
(Eds.). Islamophobie dans le monde moderne. IIIT.
Marx, K. (2008). O capital: Crítica da economia política, (R. Sant’Ana,
Trad.). Ed. Civilização Brasileira,.
Marx, K. (2011). Grundrisse, (M. Duayer & N. Schneider, Trad.). Boitempo.
Mignolo, W. (2010). Desobediencia epistémica: Retórica de la modernidad,
lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Del Signo.
Mignolo, W. (2011). The darker side of western modernity: Global futures,
decolonial options. Duke University Press.
Quijano, A. (1991). Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Revista del
Instituto Indigenista Peruano, 13(29) 11-29.
Quijano, A. (1993). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América
Latina. Em E. Lander (Org.). La colonialidad del saber: Eurocentrismo y
Ciencias Sociales, (pp. 201-246). Clacso.
Quijano, A. (2002). Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos
Rumos, 17(37), 4-28.
Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.
Clacso.
Quijano, A. (2010). Colonialidade do poder e classificação social. Em B.
Sousa Santos, & M. P. Meneses (Orgs.). Epistemologias do Sul, (pp. 84-130),
Editora Cortez.

306 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Rancière, J. (1996). O Desentendimento, (A. L. Lopes, Trad.). Editora 34.
Rothermund, D. (2015). Memories of post-imperial nations: The aftermath
of decolonization, 1945–2013. Cambridge University Press.
Sá, R. L. (2014). Imigração hispano-americana em São Paulo, (des)construção
identitária e inclusão dos (in)visíveis: Um olhar da Linguística Sistêmico-
Funcional. Em III Workshop Systemic Across Languages (SAL), Universidade
de Brasília.
Sá, R. L. (2016). Imigração boliviana em mares paulistanos dantes navegados:
Inclusão dos (in)visíveis e (des)construção identitária. Novas Ed. Acadêmicas.
Sá, R. L. (2017a). Sociedade do cansaço. ArReDia, 6(11), 86-90. https://
doi.org/10.30612/arredia.v6i11.6441
Sá, R. L. (2017b). Imigrantes hispano-americanos, (inter)culturalidade
crítica e língua portuguesa. Rev. Est. Acad. Letras, 10(1), 63-73. https://doi.
org/10.30681/real.v10i1.1826
Sá, R. L. (2018). Imigrantes bolivianos em São Paulo e (des)construção de
sua identidade (bi)nacional: Análise sob a ótica do sistema de avaliatividade.
Revista Diálogos, 6(3), 192-216.
Sá, R. L. (2020a). Internacionalização, hospitalidade e ideologia: Por um
protocolo de acesso, acolhimento e acompanhamento, [Tese de Doutorado,
Universidade Estadual de Campinas]. Repositório da UNICAMP, https://
hdl.handle.net/20.500.12733/1638773
Sá, R. L. (2020b). Rasura migratórias: Por uma gramática de inclusão, [Relatório
de Estágio Pós-doutoral não publicado]. Universidade Federal de São Paulo.
Sá, R. L. (2021). Grounded Theory em diálogo transdisciplinar com os
Estudos de Linguagem. Em F. J. O. Paiva & E. D. Silva (Orgs.). Estudos
da Linguagem: Interfaces na linguística, semiótica e literatura em perspectiva,
(pp. 11-32). Pedro & João Editores.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 307


Sá, R. L., & Nogueira, D. J. A. (2022). El Dorado boliviano em São Paulo:
A distância entre o sonho e a realidade. Revista Temática, 18(5), 16-32.
https://doi.org/10.22478/62885
Sayad, A. (2000). O retorno: Elemento constitutivo da condição do migrante.
Travessia, 13(número especial), 7-32.
Sousa Santos, B. (2021). O fim do império cognitivo: A afirmação das
epistemologias do Sul, (1ª ed., 2ª reimp.). Editora Autêntica.
Spivak, G. C. (1985). Subaltern studies: Deconstructing historiography.
Em R. Guha & G. C. Spivak (Eds.). Selected subaltern studies, (pp. 3-32).
Oxford University Press.
Strang, D. (1991). Global patterns of decolonization, 1500–1987.
International Studies Quarterly, 35, 429-454.
Vygotsky, L. S. (1984). A formação social da mente. Martins Fontes.
Walsh, C. (2009). Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales
de nuestra época. Ediciones Abya-Yala.
Walsh, C. (2019). Gritos e gretas e semeaduras de vida: Entreteceres do
pedagógico e do colonial. Em S. R. M. Souza & L. C. Santos (Orgs.).
Entre-linhas: Educação, fenomenologia e insurgência popular, (pp. 93-120).
EDUFBA.
ZitkoskI, J. J. (2020). Reflexões sobre ética na perspectiva de Paulo Freire.
Em A. A. Fávero, J. Paviani & R. Rajobac (Orgs.). Vínculos filosóficos:
Homenagem a Luiz Carlos Bombassaro, (pp. 649-658). Educs.

308 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


CAPÍTULO 14

Poéticas Decoloniais no Currículo em Ação:


Escrevivências Formativas no Campo da Docência
José Alex Soares Santos156
Pedro Jônatas da Silva Chaves157
David Silva de Oliveira158

Introdução
A escrevivência aqui proposta foi constituída a seis mãos e corresponde
a uma experiência vivida pelos autores com o grupo de leitura intitulado
Poéticas Decoloniais, no período de novembro de 2021 a junho de 2022.
O grupo fruto da iniciativa de técnicos da Secretaria Municipal de Educação,
no município de Itapipoca, Ceará, vislumbrou despertar o interesse e o gosto
pela leitura de obras literárias fora do cânone europeizado, concomitante ao
fomento de uma perspectiva formativa, a partir de um ambiente permanente de
discussão entre docentes e pesquisadores/as. Este ambiente, teleologicamente,
visou incentivar a pesquisa, a reflexão e a escrita sobre as questões que gravitam
na órbita do conceito de decolonialidade, do pensamento afrodiaspórico, das
cosmovisões indígenas e a perspectiva dos oprimidos de uma forma geral.
Tais intenções pretendiam instigar os participantes (professores das redes
municipal e estadual de ensino, pesquisadores/as e demais interessados/as)
a ter contato com uma literatura muitas vezes silenciada, ausente e negada
nos currículos oficiais de qualquer nível de escolarização, nos cursos de
formação docente e outras experiências formativas.

156 Universidade Estadual do Ceará, jose.santos@uece.br


157 Universidade Estadual do Ceará, pedrojonataschaves@gmail.com
158 Secretaria Municipal de Educação de Itapipoca, davids.olivra@gmail.com

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 309


Adotando como referência reflexiva tais premissas, nosso objetivo com
a presente análise parte da compreensão dos aspectos contributivos para
(des)ver e (des)ler o cotidiano de nossas práticas pedagógicas e o mundo da
colonialidade-modernidade, suscitados pelas leituras propostas e as partilhas
destas nos encontros mensais do Grupo de Leitura Poéticas Decoloniais, sejam
os presenciais ou remotos. Para tanto, recorremos à abordagem metodológica
da observação participante, concepção de pesquisa em que “o observador
é parte dos eventos que estão sendo pesquisados”, permitindo assim a
observação de comportamentos, atitudes, opiniões e sentimentos de todos
os envolvidos com as práticas observadas (Vianna, 2007, p. 50). Articulada
com a observação participante tem-se a montagem de uma escrevivência -
perspectiva desenvolvida por Conceição Evaristo (2020), que reúne elementos
para uma “escrita de nós”. Uma escrita sobre a nossa própria experiência
com o mundo e as questões que afetam nossas subjetividades no cotidiano
das relações socioculturais, afetivas, estéticas e formativas.
Com esse itinerário, o trabalho foi delineado por três percursos.
No primeiro deles temos uma panorâmica contextualizada do surgimento do
grupo, da estrutura constitutiva do projeto e a metodologia como aspectos
candentes para a proposição de um currículo em ação, na perspectiva de
Sacristán (2000), isto é, como confluências de experiências e uma arquitetura
da práxis.
No segundo percurso sobrevoamos as concepções teóricas que compõem
a constelação conceitual da decolonialidade, bem como o significado do
conhecimento de tais concepções para a formação docente e sua atuação
na desconstrução da hegemonia cultural do epistemicídio brancocêntrico
da colonialidade-modernidade.
Por fim, no terceiro momento da caminhada elaboramos uma síntese
de nossa escrevivência tendo como ponto de partida as atividades que
constituíram o movimento dialético e estético do Grupo de Leitura Poéticas
Decoloniais. A experiência sentida com a leitura dos autores e das autoras
escolhidas, os ensinamentos e aprendizagens que tais leituras, articuladas
com os encontros mensais do grupo proporcionaram na nossa sensibilização
política, ética e cultural para (des)ler práticas, valores hegemônicos e opressores

310 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


e (des)ver o sistema-mundo do capitalismo e seus padrões dominantes,
excludentes e presos ao “universalismo abstrato”.

Tecendo Fios de uma Costura Decolonial para a Formação


Docente: Ontologia do Grupo de Leitura Poéticas Decoloniais
O Grupo de Leitura Poéticas Decoloniais foi inicialmente pensado
como espaço formativo para docentes e pesquisadores/as. Com tal intuito,
emerge a partir do interesse em comum pela literatura e discussão das teorias
pós-coloniais e decoloniais. A gênese do grupo, bem como sua nomeação
expressa a ligação íntima com o campo literário. Por influxo desses interesses
as Poéticas Decoloniais partiram de obras que permitissem o diálogo com as
áreas da Educação, Sociologia, Filosofia e Artes, dentre outras possibilidades,
através do pensamento decolonial.
Foram escolhidas, além das obras a serem lidas e partilhadas, outros textos
a comporem o acervo do grupo de leitura. Tal conjunto de obras composto
por artigos, ensaios e coletâneas foi organizado em tópicos de acordo com
cada rodada de conversas e compartilhado através de salas de estudo virtuais
com os participantes do grupo de leitura. Assim, o mês de novembro em que
se deu andamento às atividades do círculo, a referência temática que orientou
a circularidade de saberes e práticas denominou-se Quilombos. Neste mês a
obra escolhida foi Torto Arado (2019), de Itamar Vieira Júnior, acompanhada
dos textos de Grada Kilomba (Memórias da Plantação, 2019) e Antônio Bispo
dos Santos (Colonização, Quilombos, 2015).
Dezembro foi o mês da Escrevivência, método de escrita de Conceição
Evaristo. Seguindo com a Decolonialidade latino-americana, conhecemos
a obra de Eduardo Galeano e o giro-decolonial do Grupo Modernidade/
Colonialidade (M/C). O Feminismo Negro esteve presente com a literatura
de Chimamanda Adichie e o Abril Indígena contou com a obra cordelística
de Auritha Tabajara, acompanhada do texto de Aílton Krenak (A vida não é
útil, 2020). Por fim, os símbolos nacionais estiveram presentes na condução
de Triste Fim de Policarpo Quaresma, obra de Lima Barreto que finaliza o
primeiro ciclo de encontros do grupo de leitura.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 311


O início das atividades em novembro de 2021 se deu em virtude do
Festival Balaio Negro, evento anual que ocorre nos municípios de Itapipoca,
Uruburetama e Tururu, no Estado do Ceará, e que teve por objetivo discutir
as relações étnico-raciais durante o mês da Consciência Negra. A vinculação
do grupo de leitura ao festival apresentou intenções de ordem estética e
política ao deslocar as literaturas fora do cânone literário para o centro dos
diálogos do grupo. O significado político pode ser traduzido no que tais
literaturas representam, ou seja, outros povos, culturas e comunidades.
O que pode ser observado pela presença das literaturas das mulheres negras,
dos povos indígenas e dos países colonizados, de grupos sociais muitas vezes
silenciados e ausentes da perspectiva cultural e literária hegemônica, imposta
pela colonização europeia.
Quando a gente tem acesso a esse conteúdo, a gente sente
que existe uma preocupação não apenas de reparar, mas
simplesmente de afirmar e colocar que existe, que é legal,
é propício, que é importante [...]. E isso é um dos focos
motivadores maior, que é o interesse pelo conteúdo, estar de
fato se apropriando de algo que até então parecia que nem
existia (PARTICIPANTE 1 - P1)159

Diante do exposto cabe observar que a construção do cânone literário


não se resume aos elementos estéticos de um texto, à sua “qualidade literária”,
mas está também fundamentada “em um processo de exclusões” (Jacomel,
2008, p. 112) na medida em que seleciona obras, estabelece as referências
clássicas de uma época, delimita os autores consagrados. Nesse processo de
seleção e exclusão há elementos históricos, sociais, culturais e estéticos que
permeiam o cânone civilizatório, os quais são apontados na reflexão que segue:
Ao olharmos para as obras canônicas da literatura ocidental
percebemos de imediato a exclusão de diversos grupos sociais,
étnicos e sexuais do cânone literário. Entre as obras-primas

159 No desenvolvimento da pesquisa foram coletados depoimentos dos/as participantes do Grupo


de Leitura Poéticas Decoloniais. Por um acordo com esses participantes ficou acertado que suas
identidades não seriam reveladas no texto do artigo, no entanto ao referendar trechos de suas falas
serão adotadas as seguintes indicações: Participante 1 - P1, Participante 2 - P2, Participante 3 - P3.
A escolha da numeração se deu pela ordem em que os depoimentos foram sendo gravados.

312 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


que compõem o acervo literário da chamada “civilização” não
estão representadas outras culturas (isto é, africanas, asiáticas,
indígenas, muçulmanas), pois o cânon com que usualmente
lidamos está centrado no Ocidente e foi erigido no Ocidente,
[...] está impregnado dos pilares básicos que sustentam o edifício
do saber ocidental, tais como o patriarcalismo, o arianismo,
a moral cristã (Reis, 1992, p. 72).

Na tentativa de romper com as exclusões promovidas pelo cânone


literário do ocidente “civilizado”, na noite de abertura do grupo de leitura
Poéticas Decoloniais realizou-se a projeção do curta-metragem Corpo Catimbó
(Viana Júnior & Pai Mesquita de Ogum, 2019), registro performático de
corpos ancestrais e encantados, de erês, caboclos, pretos velhos e outras
entidades ritualísticas ausentes dos contextos escolares, dos livros didáticos
e dos currículos. Após a projeção, aconteceu uma roda de conversa com o
artista e idealizador da obra, Viana Júnior. Esse diálogo teve como cerne,
desconstruir ideias formatadas pela invenção do “outro” subalternizado pela
herança colonizadora.
Com o início das atividades do grupo identificamos que o público era
composto, principalmente, por professoras e professores da rede municipal
de educação de Itapipoca. No entanto, quando a natureza dos encontros se
alterou do presencial para a via remota houve a participação de educadores/as
de outras partes do país. Isso porque depois de algumas dificuldades com uma
participação ampliada no formato presencial, a coordenação do grupo refez
suas estratégias e mudou o formato presencial para o remoto. Essa alteração
dividiu opiniões, sendo que parte dos/as participantes considerava que o
formato presencial era mais produtivo para a formação, enquanto outros
acreditavam que a via remota abria a possibilidade de encurtar distâncias e
facilitava a participação de pessoas de cidades e Estados distintos, algo que
o presencial não permitia.
Os encontros foram mediados a partir de uma “circularidade de
saberes” (Borges et al, 2012), prática que pressupõe o diálogo, a troca,
o compartilhamento de experiências. Essa perspectiva metodológica traz
à baila uma experiência pedagógica que costumeiramente não é adotada

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 313


em outros grupos de leitura, mas que se tornou um diferencial substantivo
para a formação docente e motivou os/as participantes a refletirem sobre
a própria prática, constituindo-se em um exercício da práxis e da reflexão
na ação como nos ensinou Paulo Freire (2014). A substantividade de tal
método se consubstancia em um dos depoimentos coletados no decorrer
da observação participante, quando se fala sobre a escolha das obras e o
significado dos debates para repensar a prática docente.
Para mim as escolhas foram excelentes, eu gostei muito de
todos eles (os livros indicados para leitura). O debate chega a
ser melhor ainda porque começo a ouvir o que a outra pessoa
pensa. Os outros têm outras percepções. E aí o diferencial é
que aqui, o ciclo de leitura, tem uma proposta mais pedagógica,
isso para mim foi muito diferente, algo que eu estranhei.
Porque em todos os outros grupos têm o mediador, mas o
mediador só vai direcionar algumas perguntas semelhantes a
uma aula. [...] Essa parte de apresentar alguns aspectos sobre
a obra, falar sobre o contexto histórico, falar sobre a narrativa,
isso eu gostei muito. Só que para mim foi surpresa [...]. Esse
debate depois... nós estávamos falando sobre alguns livros,
aí de repente, assim, tínhamos que voltar para sala de aula.
Tínhamos que sair daquele assunto ali do livro e pensar na
realidade de sala de aula.
[…] O que eu achei mais interessante foi o debate. [...]
O debate ali entre os professores para mim foi mais enriquecedor.
Ouvir a experiência do outro... tinha a presença de gestores
também no debate, eles começavam a falar dos problemas, sobre
as questões do ambiente escolar. Isso servia para eu entender,
pensar sobre minha própria prática (PARTICIPANTE 2 - P2).

A dinâmica formativa dos diálogos, dos debates proporcionados


pelos encontros do grupo Poéticas Decoloniais, tônica da metodologia que
instiga a reflexão-ação-reflexão sobre a prática pedagógica e sobre estar no
mundo, semelhante ao que P2 comenta, também aparece no depoimento
de P3, que destaca a ampliação da percepção sobre as leituras propostas
ao ter oportunidade de ouvir os colegas de grupo emitirem suas posições
reflexivas sobre a narrativa que constitui as obras lidas.

314 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Esses livros, assim, nos convidam a fazer uma viagem no tempo
para a gente conhecer outra realidade e, assim, uma realidade
que também não é tão distante da gente. Então, eu me remeti
àquela questão do interior, do sertão, aí a gente vive aquela
história. (Referência feita ao conteúdo de “Torto Arado” de
Itamar Vieira). É muito interessante, você fica vivendo aqueles
momentos, porque lhe tira do lugar que você está. E o melhor
é poder compartilhar, como eu falei, me senti como os meus
alunos sentiam, poder compartilhar com outras pessoas, ouvir
outros argumentos, outras coisas que as pessoas pensaram
diferente de mim, que aí: “há isso realmente aconteceu...”.
Isso realmente é uma experiência maravilhosa.
[…] Quando eu ouço os colegas falando, quando eu paro
para ouvir, a gente percebe que não sabe de tudo, né, a gente
não consegue abarcar o todo, a gente precisa ouvir o outro,
porque o outro tem uma visão diferente da minha, então é
muito bom poder ouvir o outro... Tem coisas que... às vezes
o pensamento da gente é limitado, então, eu gosto muito de
aprender, quando eu vejo uma pessoa falando sobre algo que
eu não tinha percebido ainda, eu acho isso muito enriquecedor
para o nosso conhecimento, nosso currículo, nosso trabalho,
eu acho muito válido (PARTICIPANTE 3 - P3).

Os trechos dos depoimentos, aqui referendados, demonstram que o


diálogo sobre os temas que atravessam a literatura decolonial se constituí
em um tecido metodológico e formativo para uma (des)leitura do mundo
moderno pautado pela colonialidade e uma (des)visão dos valores instituídos e
instituintes de preconceitos, negações de saberes outros que não o “civilizado”,
os quais são silenciados/ausentes dos currículos oficiais e sinalizam para a
urgência que uma desconstrução decolonizadora na perspectiva do currículo
em ação, o que exige uma reinvenção e atitudes insurgentes da práxis docente
no cotidiano da escola. Para uma visualização da decolonialidade com maior
amplitude trataremos na próxima seção de apresentar uma panorâmica
sobre como se constituiu suas raízes epistemológicas e como esta cruza com
a formação docente.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 315


Constelação Teórico-Conceitual da Decolonialidade: da
Origem Epistemológica ao Encontro com a Docência
Na tentativa de articular a estrutura organizativa e metodológica do
projeto com o arcabouço teórico que giram no círculo orbital da temática
em discussão, adiantamos que a utilização do termo composto Poéticas
Decoloniais que nomeou e deu identidade ao grupo fora uma tentativa de
indicar que o Círculo não se propunha a ser um espaço de crítica literária
ou de leitura de obras acadêmicas, mas um ambiente de manifestação
de experiências, de formação estética, de pensamentos, de sentimentos e
emoções por meio da apreciação de textos que não fazem parte do cânone
literário ocidental. Tais textos se conectam com o reconhecimento de grupos
sociais esquecidos como indígenas, negros/as, camponeses/as, mulheres,
moradores/as das periferias urbanas e outros/as, publicações entendidas
aqui como decoloniais.
A partir dessa compreensão inferimos que a decolonialidade é
atravessada por teorias e práticas plurais que se apresentam como alternativas
válidas, isto é, ética e crítica, de resistências e insurgências frente aos projetos
imperialistas que buscam formas de colonizar territórios e de interferir nos
países chamados subdesenvolvidos.
As iniciativas decoloniais surgem desde o início do período colonial,
tendo como marco inicial o ano de 1492, marco histórico da chegada da
frota colonizadora de Cristóvão Colombo, na atual Bahamas, com o objetivo
de dominar e explorar. Estes aspectos históricos são considerados por Dussel
(1993) como referência para o começo do mito da Modernidade, caracterizado,
dentre outras coisas, pela proposição europeia de uma história mundial
que a constitui como centro e as demais culturas como periféricas. Para os
colonizadores recém-chegados, as pessoas da Abya Yala160 eram os “ninguéns”
e o ambiente nas colônias era marcado pelo caos (Galeno, 2002).
A ideia eurocentrada de civilização, isto é, hábitos culturais de si mesmo,
passa a ser a solução para tornar cada ninguém “alguém inferior”, ou seja, há

160 Expressão do povo Kuna que significa terra madura/terra viva, utilizada como sinônimo de América.

316 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


estágios de civilidade a serem alcançados. Ao mesmo tempo a modernidade é
apresentada como uma solução para o caos nas colônias. De modo geral um
dos objetivos da modernidade na prática era eclipsar as culturas locais, tornar
o modo de vida do colonizador como padrão sine qua non para a vivência
em sociedade. Tal empresa é realizada pela propagação do modo de vida
europeu, sobretudo pela religião, língua, História e literatura, perpetuado
por estruturas coloniais como as instituições políticas (Estado-nação),
religiosas (Igrejas e congêneres) e educacionais (escolas e universidades).
Logo as barbáries do colonialismo foram justificadas pela necessidade de
“civilizar” os colonizados e modernizar as colônias.
Para Quijano161 (2005) mesmo com o término do colonialismo,
após a independência política dos países colonizados a Europa continuou
sua dominação por meio da colonialidade, matriz de dominação também
iniciada com a colonização, responsável por criar a ideia de raça (identidades)
como índios/as, negros/as, mestiços/as, entre outros/as, o que naturalizou
os papéis sociais e a divisão do trabalho (padrão econômico) no interior dos
territórios colonizados, conservada sobretudo pela burguesia nativa e/ou a
classe dominante local. Assim, tanto colonialismo e colonialidade podem
ser sinônimos de europeização.
Quijano, juntamente com Immanuel Wallerstein162, Enrique Dussel163,
Walter Mignolo164 e outros, formaram em 1998 o Grupo Modernidade/
Colonialidade (M/C), uma rede heterogênea de pesquisa, cuja obra mais
importante denomina-se A colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências
sociais: perspectivas latino-americanas, organizada por Lander (2005).
Posteriormente, esse ajuntamento de pesquisadores, chamado de Grupo

161 Nascido no Peru, tendo publicado diversos capítulos de livros e artigos em revistas.
162 Nascido nos Estados Unidos, tendo como principal obra destacada aqui “O sistema mundial
moderno”, v. I, II e III.
163 Nascido na Argentina, tendo como principais obras destacadas aqui “1492: o encobrimento do
Outro: a origem do mito da modernidade” de 1992 e “Ética da Libertação” de 1998.
164 Nascido na Argentina, tendo como principal obra destacada aqui “Histórias locais/projetos
globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar” de 2000.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 317


M/C, passou a ser mencionado pelo tripé Modernidade/Colonialidade/
Decolonialidade, isto é, Grupo M/C/D.
Inicialmente o Grupo M/C utilizava o termo descolonial - ou
descolonização ou, ainda, descolonialidade - como uma herança da influência
das teorias pós-coloniais. A terminologia decolonial - ou decolonização ou,
ainda, decolonialidade -, substituindo o termo descolonial, foi aderida após
a sugestão de Catherine Walsh165, pesquisadora integrada ao Grupo nos anos
2000, a qual foi influenciada pela Conferência de Bandung166. Por isso, é tão
comum perceber a utilização do termo descolonial nos primeiros escritos
e decolonial nos textos mais recentes. Ainda, há autores, como Boaventura
Santos, que preferem continuar utilizando o termo descolonial. Outros,
como Cusicanqui, utilizam a expressão anticolonial.
Não se sabe se o Grupo M/C/D permanece, aparentemente não,
mesmo assim é necessário destacar que o pensamento decolonial está para
além da produção deste, ou seja, muitos/as autores/as da decolonialidade,
como teóricos/as e ativistas, estão refletindo de forma heterogênea sobre o
tema e agindo de forma decolonial, mesmo que não utilizem esses termos
e seus congêneres. Além disso, dentro do prórprio Grupo M/C/D há
divergências entre seus integrantes, como o caso do diálogo com os pensadores
modernos e pós-modernos eurocentrados, onde alguns decoloniais são
mais abertos e outros são mais fechados para esse diálogo, mostrando que o
pensamento decolonial não é único. De todo modo, é preciso enfatizar que
a decolonialidade não pode ser reduzida às produções do Grupo M/C/D.
A crítica decolonial é importante para pensarmos a formação de
professores porque ainda hoje há frentes que buscam programar as instituições
educativas para fortalecerem o paradigma da colonialidade no interior
da sociedade. Logo, se a propagação do modo de vida colonizador do
europeu também é realizada pelo cânon literário eurocêntrico, fundamentados

165 Nascida nos Estados Unidos, tendo como principal obra destacada aqui “Pedagogías decoloniales:
prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir” de 2013.
166 Encontro ocorrido em 1955, onde reuniu 29 países da Ásia e África na cidade de Bandung,
localizada na ilha de Java, na Indonésia, para pensar formas de resistência ao imperialismo bipolar
que marcava o período da Guerra Fria.

318 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


no paradigma da razão ocidental, passa a ser indispensável uma luta de
desconstrução de séculos de dominação do conhecimento. Por exemplo,
no currículo de um curso de Licenciatura em Letras-Português de uma
universidade pública cearense podem ser encontradas as seguintes disciplinas:
Literatura Portuguesa I, II, III e IV; Literatura Brasileira I, II, III e IV;
Literatura Africana de Língua Portuguesa [disciplina única]; e Latim I e II.
Aparentemente, mesmo sendo um curso voltado para a Língua
Portuguesa, há ausência da literatura latino-americana de língua espanhola.
E isso faz falta porque talvez a herança colonial seja trabalhada com mais
persistência pelos autores latino-americanos de língua espanhola e por
causa que o português brasileiro não pode ser estudado de forma isolada,
inclusive das línguas indígenas como o tupi-guarani. Isso não acontece
porque houve uma imposição de elementos culturais pelos colonizadores
ibéricos, resultando uma monocultura predadora da coexistência pluricultural.
De fato, no desencontro colonial houve vencedores e vencidos.
Neste cenário, a educação é vista como uma mola propulsora para
fins ideológicos. Por este motivo, ao invés de neutra, a educação é política.
Seguindo esse viés podemos citar Freire (2014, p. 108), quando sugere que
“a educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador.
Ela é política”. Em outras palavras, a educação não pode ser apática diante
da injustiça e da opressão, visto que assim contribuiria para o fortalecimento
da ideologia dominante.
Cabe aqui explicar que recusar a neutralidade não significa transformar
a educação em um partido político, a ingenuidade é que precisa ser
transformada em consciência política, quer dizer, disposição para lutar a
favor dos injustiçados e explorados. Deste modo, como afirma Freire (1997,
p. 54), a tarefa do professor “não se esgota no ensino da matemática, da
geografia, da sintaxe, da história. Implicando a seriedade e a competência
com que ensinemos esses conteúdos, nossa tarefa exige o nosso compromisso
e engajamento em favor da superação das injustiças sociais”.
Ante o exposto, passa a ser necessário uma educação para o
inconformismo, ao mesmo tempo mergulhada na tradição de luta contra a

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 319


lógica colonial ainda vigente. A finalidade deve ser a proposição de projetos
alternativos de humanidade, de sociedade, de mundo e, consequentemente,
de educação. E há uma forte tradição crítica decolonial, como o pensamento
freireano, a qual foi e é capaz de influenciar movimentos contra hegemônicos
em várias instâncias da sociedade brasileira. Cabe a cada professor, na esteira
da educação como um ato político, além de reconhecer as diversas situações
de opressão, contribuir para que os/as estudantes tenham uma formação
potencializada pela práxis libertadora. Práxis esta, marcada pela disposição para
lutar a favor dos injustiçados/as e explorados/as. Dando sequência ao mosaico
reflexivo que a experiência com a literatura decolonial nos permitiu passaremos
para o ponto da reflexão que sobressaem as escrevivências articuladas com a
(des)leitura do cotidiano e das práticas pedagógicas e a (des)visão do sistema
mundo do capital instituído pela modernidade-colonialidade.

Entrelaçando Experiências para (Des)Ler o Cotidiano e


(Des)Ver a Modernidade-Colonialidade
Em nossas andanças pelas veredas e encruzilhadas da docência nos
encontramos por vezes em meio a um entrelaçado de experiências formativas
que nos conduzem a metamorfoses surpreendentes e significativas. Estas
experiências nos motivam a (des)ler nossas práticas educativas, a (des)aprender
conceitos, a (des)construir valores, como paráfrases da “traquinagem da
imaginação” do poeta Manoel de Barros que nos ensina a “desver o mundo”
em seu poema “Menino do Mato”.
A (des)visão sugerida pelo poeta, acompanhou a nossa (des)leitura
da colonialidade-modernidade e de formas curriculares hegemônicas que
orientam a docência e suas práticas pedagógicas e silenciam grupos oprimidos,
principalmente, pretos/as, indígenas, mulheres, LGBTQIAP+, moradores/
as das periferias urbanas, camponeses/as entre outros.
O ponto de partida desse movimento se situa na dinâmica das leituras
individuais e nos encontros coletivos desenhados na arquitetura metodológica
do grupo de leitura Poéticas Decoloniais. Esse processo na ação permitiu aos/às
participantes do grupo o conhecimento da tradição de resistências dos povos

320 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


originários e pretos, sua sabedoria popular, a potência da ancestralidade e
da relação com a terra como “ecologia dos saberes”, que para Ailton Krenak
(2019, p. 14) “deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar
nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como
comunidade” e podermos existir numa terra cheia de sentido - plataforma
para partilhar coletivamente diversas cosmovisões. Ideias que o autor nos
sugere para “adiar o fim do mundo”.
Ao considerar como legítima a premissa de que para problematizar
a decolonialidade tornam-se candentes reflexões sobre o conhecimento
construído e em formação, a reflexividade possibilitada pelas vivências
com o corpus de leituras experimentadas no grupo Poéticas Decoloniais, nos
permitiu ampliar horizontes e conhecer mais de perto epistemologias que
se insurgem para questionar a modernidade-colonialidade como sistema
hegemônico de dominação.
Ao se contrapor a tal hegemonia as leituras decoloniais nos
aproximaram do pensamento afrodiaspórico e dos saberes dos povos
indígenas, historicamente silenciados nas escolas e nas universidades.
O contato com a literatura decolonial foi um chamado para a desconstrução
e o refazimento de posturas políticas, éticas, estéticas e pedagógicas em
nossos fazeres cotidianos, que por vezes negam as opressões e desconhecem
as lutas dos povos subalternizados para sua afirmação humana, bem como
étnico-cultural que permite esses “condenados da terra” desenvolverem
práticas de libertação e assumirem a condição de argonautas da nau da sua
própria história.
Essas leituras fazem parte de uma insurgência transformadora da
perspectiva hegemônica da cultura imposta pela colonização brancocêntrica
europeizada como deixa evidente a fala de P2:
Eu acho que as leituras decoloniais servem para romper com
esse pensamento hegemônico, essas ideias colonialistas, essas
ideias racistas. Então, isso me ajudou muito, as leituras me
ajudaram... mas alguns livros eu já tinha lido... Alguns livros
semelhantes que tratavam desse assunto (PARTICIPANTE
2 - P2).

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 321


Seguindo a linha do corpo-político conhecimento, a abertura das
atividades de Poéticas Decoloniais, foi movimentada pela energia que envolve
a performance de Corpo Catimbó que numa emanação de corporeidade
encantada de ancestralidade, acompanhada pela sabedoria dos orixás, nos
ensinou a tolerância e o bailar da redefinição de práticas e valores sejam
éticos e/ou estéticos, de mãos dadas com a diversidade cultural e os saberes
afrodiaspóricos de uma vivência carregada de encantamentos e que se
comunica com o sagrado e o profano em um mesmo espiral de sonoridade,
fumaça e luz. Nos evoca para passagens e insurgências sobre a capa sombria
da modernidade-colonialidade-eurocentrizada-cristianizada que nos cobriu
por muito tempo e, ainda, tenta nos cobrir no tempo presente.
Somado a essa narrativa corpórea e as cosmovisões ancestrais em que
foi possível vivenciarmos a desconstrução do “universalismo abstrato” e a
construção de um “universalismo concreto”, sobressaem os ensinamentos
e aprendizagens com as leituras de Torto Arado e a escrita realista de Itamar
Vieira Júnior (2019), a qual nos fez viajar pela geografia do mundo rural,
nos mistérios que envolvem seus personagens entre dores, crenças e lutas pela
sobrevivência, bem como insurgências feministas, a defesa da ancestralidade e
outras manifestações de resistência contra as opressões; de Olhos d’água, obra
de Conceição Evaristo (2021) que nos coloca diante de um caleidoscópio
temático de escrevivências, colorido pelos espelhos da oralidade, da memória,
da morte, da esperança, do gozo, da tragédia social, do tráfico de drogas,
da prostituição, da homoafetividade, do suicídio, da violência urbana, das
desigualdades sociais, etc.
Situado nessa mesma linha de conhecimento e aprendizagens que
nos encaminham para sentir o aroma da democracia plurirracial, o contato
com Hibisco Roxo, obra da autora Chimamanda Ngozi Adichie (2011),
abriu espaço para percebermos, por meio de uma viagem pelos caminhos da
colonialidade brancocêntrica e cristianizada na África, a empresa devastadora
dessa máquina trituradora de formas culturais vivas e milenares, de tradições
e experiências coletivas de povos nativos, mas também, compreendermos
a força, a coragem dos corpos insurgentes que resistiram e resistem a tal
empresa predatória que promove o epistemicídio e o genocídio.

322 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Tais momentos entrelaçados com a visão de Eduardo Galeano (2010)
sobre o contexto de invasão genocida sofrida pelos povos do território latino-
americano, ampliou e reforçou os questionamentos sobre os silenciamentos
feitos pelas escolas, o currículo e os cursos de formação de professores e
professoras, ao se pensar na negação da história, da cultura, dos saberes
constituídos pelos povos e grupos que foram subalternizados por processos
de exploração da força de trabalho, dominação política, econômica, cultural e
opressão estética, a partir da expropriação feita pelo sistema-mundo capitalista
de produção e hegemonização da cultura imposta pela colonialidade-
modernidade, patrocinadas pelas invasões imperialistas.
No contexto nacional, nos encontramos com o Triste fim de Policarpo
Quaresma e a mentalidade crítica e bem-humorada de Lima Barreto (2019)
sobre o projeto colonial brasileiro e sua associação à autocracia estatal, ao
militarismo parasita, ao latifúndio, ao racismo estrutural e as desigualdades
de classes. Um projeto genocida e escravocrata que exterminou diversas
nações indígenas, utilizando-se da força para enterrar suas culturas, bem
como, levou à morte milhares de pretos e pretas forçados/as a sair de seus
territórios de origem para terem seus corpos triturados pelo escravismo. Para
além desses fatores, a herança de exclusão social, opressões e resistências que
esse processo nos legou, a qual foi traduzida com maestria em uma poética
da imagem em movimento, na obra cinematográfica Rio 40 Graus (Nelson
Pereira dos Santos, 1955).
Esse mosaico de leituras tão fecundas para a formação docente e o
exercício da prática em sala de aula e outros ambientes pedagógicos, permitiu
a modificação de percursos formativos, a reinvenção de metodologias e
alterações nos próprios espaços de atuação profissional. Tais mudanças vão
de encontro ao que observa Sacristán (2000) sobre o currículo em ação ou
na ação, ao mencionar que
mudando as tarefas modificamos os microambientes de
aprendizagem e as experiências possíveis dentro deles. Esse é
o sentido de analisar a estrutura da prática que um currículo
tem de acordo com as condições nas quais se desenvolve,
fundamentando a posição de que um currículo na realidade

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 323


não pode ser entendido à margem das condições nas quais seu
desenvolvimento ocorre, pois é necessário analisá-lo moldado
em atividades práticas. (Sacristán, 2000, p. 218).

Uma primeira metamorfose dentro desse processo foi a virada


metodológica que o contato com a obra Olhos d’água (Evaristo, 2021)
desencadeou no componente curricular – Educação de Jovens Adultos
(EJA) – do curso de Licenciatura de Pedagogia da Faculdade de Educação
de Itapipoca (FACEDI), local de atuação de um dos participantes do grupo
de leitura. O conhecimento da obra possibilitou a sugestiva atividade de
uma escrevivência, na qual a turma de EJA conseguiu articular sua trajetória
sociocultural com o ato de ler o mundo, em um diálogo insurgente mediado
pelas ideias de Conceição Evaristo e Paulo Freire.
O resultado da atividade foi a produção de textos encharcados de
experiências de vida e que colocaram em movimento vozes, até então,
silenciadas nos recônditos da memória. Somado a isso a realização de vídeos
curtos na forma de depoimentos dos estudantes sobre a experiência com
a leitura dos contos que compõem a referida obra de Conceição Evaristo.
Em três dos cinco vídeos realizados, as/os estudantes optaram por
comentar o conto denominado Maria, por tratar de uma realidade muito
próxima da vivida pelas próprias estudantes do curso de Licenciatura em
Pedagogia da FACEDI, as quais têm uma vida marcada pelo trabalho
doméstico, a condição de mãe pobre e negra, que precisa ser compartilhada
com o trabalho fora do lar e o estudo no turno noturno. Uma vida de sacrifício,
de exclusão e exploração que é quase invisibilizada pelas desigualdades de
classes, pelo machismo e pelo racismo estrutural, heranças sombrias do
modelo de colonialidade-modernidade que permeia a vida das mulheres
pobres, principalmente as de cor preta neste país.
O legado do grupo de leituras Poéticas Decoloniais nos possibilitou
reinventar algumas de nossas práticas e fazermos uma imersão em outros
saberes que foram se fortalecendo nas partilhas, nos diálogos que compunham
os debates dos encontros presenciais e remotos, mediados pela leitura atenta
das obras. A iniciativa considerada um avanço no campo do currículo na ação

324 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


e na formação continuada de professores/as da rede municipal de Itapipoca-
Ce, ainda é pequena diante da magnitude dos desafios que a perspectiva
decolonial nos coloca como educadores/as. É uma semente que ainda precisa
crescer e se fortalecer como árvore frondosa, a qual deve multiplicar seus
frutos nos espaços das relações sociais de formação e escolarização.

Considerações Decoloniais
A pretensão deste texto foi refletir sobre uma experiência vivida pelos
autores com o Círculo de Leitura Poéticas Decoloniais, no período de
novembro de 2021 a junho de 2022. O objetivo do Grupo foi provocar
os participantes, composto sobretudo por professores e professoras da rede
municipal de educação de Itapipoca, no Estado do Ceará, por meio de uma
literatura engajada em questões que emergiram da ferida colonial nos países
latino-americanos, fortemente ausente e negada nos cursos de formação
de professores, o que exige respostas teóricas e práticas plurais que sejam
alternativas válidas frente ao projeto eurocêntrico de civilização responsável
por criar e fortalecer as constantes contradições existentes no continente.
Como mencionado, nosso objetivo com a presente análise partiu da
compreensão dos aspectos contributivos para (des)ver e (des)ler o cotidiano
de nossas práticas pedagógicas e o mundo da colonialidade-modernidade,
suscitados pelas leituras propostas e as partilhas destas nos encontros mensais,
sejam os presenciais ou remotos. Para tanto, recorremos à abordagem
metodológica da observação participante articulada com a montagem de
uma escrevivência, que reúne elementos para uma “escrita de nós”.
Assim, vemos como necessário desafiar as formas mais convencionais
de pesquisa, de formação e de ensino, especialmente porque decolonizar
essas três dimensões ainda é uma tarefa por fazer. A vivência no grupo
evidenciou a certeza de que essa literatura decolonial - poética, ética,
estética e política - possui uma potência capaz de influenciar docentes em
seus trabalhos como artesões de conhecimentos e de práticas pedagógicas
outras. Consequentemente, a formação de estudantes copartícipes de outros
modos de ser e estar em sociedade, visto que, além de saber o que é certo

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 325


e justo é preciso agir na realidade de forma dialética com o objetivo de
superar as diversas formas de opressão causadas pelo colonialismo e pela
colonialidade, tais como o racismo, o patriarcado, o fundamentalismo
religioso, o imperialismo, a dominação econômica etc.
Nosso desejo é que formas plurais de pensar e conceber o mundo
floresçam, especialmente por parte das vítimas da lógica excludente do
eurocentrismo, responsável pela negação e dominação do outro. E esse
movimento começa pela valorização de uma literatura de confronto e uma
prática libertadora localizada para além do pensamento centrado no eixo euro-
estadunidense. Neste sentido, parece inequívoco as contribuições do Círculo
de Leitura Poéticas Decoloniais para potencializar práticas e experiências
estéticas e formativas em que possamos (des)ver as estruturas hegemônicas de
dominação e (des)ler o mundo do capitalismo e suas imposições predatórias
e ameaçadoras da própria existência mediadas pela incontrolabilidade de
sua ordem sociometabólica na busca por lucros.

REFERÊNCIAS
Adichie, C. N. (2011). Hibisco roxo, (J. Romeu, Trad.). Companhia das Letras.
Barreto, L. (2017). Triste fim de Policarpo Quaresma, (2 ed.). Edições Câmara.
Borges, L. P. C., Ferreira, Y. S., & Fontoura, H. A. (2012). A circularidade
de saberes na formação docente: Para quem e por que pesquisamos? Revista
Teias, 14, 211-221.
Corpo Catimbó. (2019). Direção dramatúrgica, B. Abras & C. Costa.
Produção, L. Matos, https://www.youtube.com/CorpoCatimbó
Dussel, E. (1993). 1492: O encobrimento do outro: a origem do mito da
modernidade. Editora Vozes.
Evaristo, C. (2020). A escrevivência e seus subtextos. Em C. L. Duarte &
I. R. Nunes (Orgs.). Escrevivência - a escrita de nós: Reflexões sobre a obra de
Conceição Evaristo. Mina Comunicação e Arte.

326 | Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade


Evaristo, C. (2021). Olhos d’água, (1 ed.,15 reimp.) Fundação Biblioteca
Nacional.
Freire, P. (2014). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática
educativa, (46 ed.). Paz e Terra.
Freire, P. (1997). Professora sim, tia não: Cartas a quem ousa ensinar. Olhos
D’Água
Galeano, E. (2002). O livro dos abraços, (9 ed., E. Nepomuceno, Trad.).
L&PM.
Galeano, E. (2010). As veias abertas da América Latina. L&PM.
Jacomel, M. C. W. (2008). Relações de poder e a literatura brasileira. Revista
Grifos, 25, 109-121.
Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.
Lander, E. (Org.)(2005). A colonialidade do saber eurocentrismo e ciências
sociais: Perspectivas latino-americanas. CLACSO.
Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina. Em E. Lander (Org.)(2005). A colonialidade do saber eurocentrismo
e ciências sociais: Perspectivas latino-americanas, (pp. 117-142). Colección
Sur Sur, CLACSO.
Reis, R. (1992). Cânon. Em J. L. Jobim (Org.). Palavras de crítica: Tendências
e conceitos no estudo da literatura, (pp. 65-92) Imago.
Rio 40 graus (1955). Direção, Nelson Nelson Pereira dos Santos. Columbia
Pictures do Brasil. Filme (100 min).
Sacristán, J. G. (2000). O currículo: Uma reflexão sobre a prática, (3 ed., E.
F. F. Rosa, Trad.). ArtMed.
Vianna, H. M. (2007). Pesquisa em educação: A observação. Liber Livro.
Vieira Junior, I.(2019). Torto arado. Todavia.

Decolonialidade & Educação: esperançar em tempos de perplexidade | 327

Você também pode gostar