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Curitiba – PR
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A arte surda faz parte da cultura surda e busca revelar o que somos como
grupo cultural, quais são as nossas dificuldades, nossos sentimentos, nossos
desejos:
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Existem muitos artistas surdos que produzem sua arte, seja ela pinturas,
esculturas, desenhos, fotografias, ilustrações expressando o histórico de
discriminações sofridas pelo povo surdo, por exemplo. Há pinturas e esculturas
lindas que os artistas surdos realizam representando a língua de sinais, as
opressões ouvintistas, o castigo nas mãos, as proibições vivenciadas por não poder
sinalizar, além de cenas após a aprovação da língua oral como única forma de
comunicação no Congresso de Milão, que obrigava os surdos a prática do oralismo,
com as mãos amarradas para evitar a sinalização, o implante coclear, entre outras
violências.
A arte surda sempre foi utilizada para tratar da discussão sobre o
ouvintismo/audismo, práticas sociais que trazem representações sobre os surdos,
com base em referências ouvintes. Em outras palavras, a busca pela normalização
dos surdos, em uma forma de colonialismo pela imposição da língua oral:
“plantadas”. Onde estão os “olhos” da imagem? Nós, surdos, ouvimos com os olhos
e eles não estão representados na figura. Sem a visão, os surdos estão cegos, não
se despertam para a luta. Por fim, a cor de fundo remete à escuridão, mas os tons
claros no centro, na posição das mãos, podem representar a esperança da força e
da solidariedade. Nós, surdos, vemos, temos a voz de nossas mãos e os nossos
olhos têm acesso ao mundo ou ao saber, apesar da opressão do ouvintismo:
Figura 3 – Audism
28 Usa em língua de sinais ASL – Amenican Sign Language (Língua de Sinais Americana).
29 Disponível em: http://www.nancyrourke.com/paintings/deaf/audism.jpg. Acesso em: 18 jul. 2019.
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Sendo assim, muitos artistas plásticos surdos exploram essa temática como
forma de expressão e de denúncia do processo de opressão e de submissão à
normalidade ouvinte. Diversas obras mostram a pintura do surdo e suas
experiências, mas o ouvinte, às vezes, tem dificuldade em entender a arte, pois não
possui a mesma vivência.
Vale ressaltar que os surdos também sofreram castigos físicos: batiam nas
mãos e as amarravam em suas costas33. Eles eram obrigados a oralizar e a
pronunciar palavras e frases para ter sua intenção comunicativa atendida. A
expressão por gestos era ridicularizada e comparada a animais, como macacos, por
exemplo. Os aparelhos auditivos foram, então, incorporando tecnologias cada vez
mais sofisticadas e eram aliados aos treinamentos repetitivos e cansativos em frente
ao espelho. Por dentro, os corpos surdos gritavam pedidos de socorro, até chegar à
loucura, para desmascarar o ouvintismo e revelar a verdade surda, como explica
Foucault (2014, p. 19):
33Padden e Humphries (1988 apud GESSER, 2009, p. 25), mostram que as escolas, em sua grande
maioria, “proibiam o uso da língua de sinais para a comunicação entre os surdos, forçando-os a falar
e fazer leitura labial. Quando desobedeciam, eram castigados fisicamente, e tinham as mãos
amarradas dentro das salas de aulas”.
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Fonte: Shaffter36.
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Assim, na figura 10, temos a obra The Hand Heart Tree (A árvore do
coração nas mãos), de Rourke, que traz a reflexão do coletivo surdo, que precisa
permanecer reunido para se fortalecer e resistir à opressão e à submissão, ao poder
e à colonização ouvintista. A árvore da cultura surda cria raízes fortes na língua de
sinais, cultivada como o coração da nossa cultura e resistência.
Recentemente, um fato ocorrido no país buscou provocar a reflexão das
pessoas sobre esse “mundo surdo” em que a língua brasileira de sinais tem
centralidade. Trata-se do tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) 2017, intitulada “Desafios para a formação educacional de surdos no
Brasil”40, que chocou o Brasil e foi alvo de muitas manifestações preconceituosas,
pois a maioria dos candidatos não fazia ideia do que significa uma “educação para
surdos”. Para desenvolver o tema, sem preconceito, seria necessário o
conhecimento do discurso socioantropológico da surdez, da compreensão do
conceito de cultura e comunidade surda, das vitórias e das conquistas do movimento
surdo nos últimos anos.
Como a produção acadêmica dos Estudos Surdos em Educação ainda está
muito restrita a poucos espaços, pudemos constatar as inúmeras manifestações e
críticas negativas decorrentes de candidatos que jamais refletiram sobre a
experiência de ser surdo e sua diferença cultural. Observamos que, assim como no
racismo, o poder ouvintista ainda é predominante, apesar da luta histórica do
movimento negro, por anos, há manifestações de ódio e exclusão na sociedade. O
ouvintismo ainda está presente, de forma velada ou explícita, em manifestações
sociais em que falar e ouvir são a norma:
A obra Deaf Culture: Global Deaf Connect (Cultura Surda: conexão global
para Surdo), da artista Rourke (2011), retrata a existência de uma cultura surda
mundial que identifica surdos negros, índios, japoneses, brancos, conectados em
diversos países pelo sinal “UNIÃO”, demonstrando a língua de sinais como um elo
entre cada surdo e a sua língua visual, mesmo que cada país tenha uma língua de
sinais própria.
De acordo com Silva e Fagundes (2015, p. 26.210), grande parte da
sociedade desconhece o que é a cultura surda e seu multiculturalismo. A cultura
surda, segundo Skliar (1999), aproxima os surdos de outras lutas de grupos
minoritários, como a questão da problematização da raça, do gênero, da
sexualidade:
Portanto, o “ser surdo” tem sido utilizado por vários autores surdos, como
Perlin, como uma categoria que visa a substituir a gasta “surdez”, que estaria em
uma esfera clínica, já estereotipada. Nas palavras da pesquisadora surda:
A autora surda Patrícia Rezende (2010) escreveu sua tese sobre o conceito
surdo ao povo surdo:
Ainda assim, a vida social do surdo é muito difícil em meio a uma sociedade
ouvinte, acarretando atitudes, comportamentos e identidades diversas: orgulho de
ser surdo, preconceito sobre si e comportamento ouvintista, o uso de Libras ou o uso
da oralização.
ouvinte que sabe a língua, em uma ação de fortalecer a cultura e comunidade surda.
A luta do surdo por um reconhecimento linguístico, por uma comunicação efetiva em
sua língua, um momento em que o ouvinte que a conhece se une aos surdos
visando o fortalecimento e a consolidação da cultura desse povo.
A história da nossa língua de sinais começou com a história da educação do
surdo em nossa Nação. Em 1857, E. Huet veio ao Brasil a convite do imperador D.
Pedro II, para fundar a primeira escola para surdos no país, chamada na época
de Imperial Instituto de Surdos Mudos.
Desde então, nos séculos XX e XXI, a luta de nós, surdos, para mantermos
a língua de sinais viva oportunizou a discussão das escolas bilíngues para surdos e
criou-se a Lei de Libras n.º 10.436/2002. O Brasil é muito grande e diverso, tendo
poucas escolas bilíngues para nossa comunidade. Para tanto, a política nacional de
inclusão (BRASIL, 2008) foi um passo interessante, pois incentivou a organização de
escolas inclusivas onde os surdos aprendem com ouvintes, com apoio de tradutor/a
e intérprete de língua de sinais (TILS) na sala de aula.
Mas, a cada ano, as poucas unidades educacionais de surdos estão
fechando as suas portas, em decorrência dessa política. Visto que a escola inclusiva
favorece o audismo, o bullying e o preconceito em sala de aula, porque os demais
alunos desconhecem a língua de sinais e sua importância para os surdos. Como
ocorreu no meu caso, a família alimenta o desejo de normalidade de seu filho e,
assim, o matricula em uma escola regular, para aparentar essa normalidade, de
modo que seu filho seja normal perante a sociedade, ou seja, igual aos outros
estudantes. A busca pela normalização passa, ainda, pela fonoaudiologia, pela
terapia de fala, mas nunca pela procura de um curso de Libras. Pais e mães de
filhos surdos acreditam que a Libras é desvalorizada socialmente e inferior, não a
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maior ou acesso à informação, pois há muitas escolas que não estão apropriadas
para receber as crianças surdas. Como dito, anteriormente, existem poucas escolas
bilíngues, considerando o fato que, em muitas cidades, não há uma escola que
possa atender aos surdos por meio dessa perspectiva. Todavia, o sujeito acabará
criando uma forma de comunicação e uma maneira de entender o mundo ao seu
redor.
No ano de 2011, o Ministério da Educação (MEC) apresentou a proposta de
fechar o Instituto Nacional Educação do Surdo (INES), em razão da política de
inclusão. As autoras e ativistas surdas, Patrícia Rezende e Ana Regina Campello,
ambas doutoras em educação, apontam a importante e marcante atuação do
movimento surdo na história, que resistiu para que o INES não fosse fechado.
lugares do mundo. A artista explica que tentou retratar a criança surda representada
no chão da sala de estar (diante da TV?), como um cãozinho de estimação da
família ouvinte, que está sentada no sofá com mãos e pernas cruzadas – a
comunicação em sinais não é aceita, os rostos estão borrados em uma referência à
dificuldade da leitura labial pelos surdos. Não há comunicação. Não há interação.
Além disso, a mesa da sala está pintada como uma espécie de grade que separa os
dois mundos, incomunicáveis.
Para mim, a pintura remeteu a uma lembrança de minha infância: as
inúmeras visitas de parentes que me olhavam e me viam como a menina quietinha
surda. Tios, primos, avós conversando animadamente e eu sempre sentada em
frente à televisão, como único meio de passar o tempo ou o tédio. Alguns deles,
raramente, vinham conversar comigo. Outros só se aproximavam para avisar que a
comida estava pronta, que era hora de ir embora ou para dar um cumprimento
rápido. Permaneciam à distância, seja por não saber como conversar ou pela
impaciência de explicar repetidas vezes palavras simples, que eu não compreendia.
O ouvintismo na família pode se expressar sob várias formas: não saber como tratar
e relegar ao abandono, a negação, não aceitando a diferença e até impondo a
norma ouvinte como modelo ou a superproteção, com apego exagerado ao filho
surdo, com medo de expor a criança à difícil vida fora de casa:
44 Utilizamos “língua natural” na acepção linguística, como as línguas criadas e faladas em situação
de interações humanas, em oposição às línguas artificiais criadas para fins específicos. O caráter
histórico (e não-inato) das línguas de sinais é inegável. Ao se referir à língua de sinais como a língua
natural dos surdos, referimo-nos ao sistema linguístico de modalidade visual-espacial utilizado como
meio de comunicação no encontro surdo-surdo (FERNANDES, 2003).