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LIBRAS

Comunidade, cultura
e identidade surda
Claudio Luciano Dusik

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Perceber a importância da cultura surda.


> Identificar o processo de construção da identidade surda.
> Comparar as diferenças entre a comunidade surda e a ouvinte.

Introdução
O tema deste capítulo tem como base, talvez de forma implícita, a interação
de sujeitos por meio da comunicação humana. De forma mais objetiva, trata-
-se da comunicação especificamente de um grupo mais restrito de sujeitos
(os surdos), apenas em termos de números, que se comunica de forma paralela
e diferente da usada por um grupo dominante (os ouvintes).
A comunicação é inerente à condição humana. É a comunicação entre os
indivíduos que permite a criação de uma sociedade. Sem comunicação, não
há transmissão de conhecimento ou partilha de emoções. Sem ela, há ape-
nas indivíduos isolados, que vivem unicamente dos seus instintos ou das
suas experiências individuais. Na comunicação, fazem parte da linguagem os
gestos, os sons, as expressões faciais e corporais, identificados e utilizados
para manifestar desejos, necessidades, opiniões e posicionamentos. No ser
humano, o desenvolvimento da linguagem permitiu-lhe expressar as suas ideias
e desenvolvê-las com as ideias dos outros. A partilha de informação permitiu-lhe
obter conhecimento e criar cultura. Entretanto, a comunicação e a linguagem
não se restringem ao ouvir e falar, nem tampouco a formas universais ou a uma
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mesma língua para todo o planeta. Ao contrário, as formas de comunicação,


os tipos de língua e de linguagem são diversos, como é a diversidade humana.
A humanidade não é uniforme nem homogênea. Embora a consciência
de humanidade global se amplie, com ela também se amplia a consciência
da diversidade como característica natural, a consciência de que o outro é
implacavelmente diferente, pois a diferença é o que existe, a igualdade é
inventada e a valorização das diferenças impulsiona o progresso humano.
Assim, em vez de se definirem comunidade, cultura e identidade, é o seu plural
que se define na espécie humana: comunidades, culturas e identidades. Como
grupo humano, o grupo de pessoas surdas também se caracteriza com suas
particularidades de comunidade, cultura e identidade. E cabe, ainda, esclarecer
a distinção entre surdos e pessoas com deficiência auditiva. O que difere
surdez de deficiência auditiva é a profundidade da perda da audição e o uso
da linguagem surda. As pessoas que têm perda profunda e não escutam nada
são surdas. Já as que sofreram uma perda leve ou moderada e têm parte da
audição são consideradas com deficiência auditiva. Aqui, portanto, vamos nos
limitar à abordagem sobre surdos.
Neste capítulo, vamos destacar, inicialmente, o conceito e a importância da
cultura surda como um modo de vida dos surdos. Ou seja, uma cultura própria,
que acolhe a participação social dos surdos entre eles e deles com os ouvintes.
Na sequência, vamos refletir sobre a identidade surda, que destaca a inserção
plena dos sujeitos surdos nas comunidades surdas. Ao final do capítulo, serão
abordadas as características da comunidade surda em relação à comunidade
ouvinte.

A cultura e a cultura surda


Os elementos que constituem o conceito de cultura são tão diversos que
dificultam uma definição única para ele, mas, em termos gerais, não é razoável
falar de cultura sem falar de troca, aspecto que caracteriza as culturas ao
redor do mundo. Cultura são as experiências, as vivências e uma identidade,
que é constituída pela forma como as pessoas se relacionam, se comunicam
e se transformam. Conforme Laraia (2016), cultura é o conjunto de artefa-
tos complexos que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei,
os costumes, a língua e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos
pelo ser humano como membro de um determinado grupo social. Ela se forma
por uma rede de compartilhamento de símbolos, significados e valores pelos
membros de um grupo ou sociedade. A cultura é também um mecanismo cumu-
lativo, porque as modificações trazidas por uma geração passam à geração
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seguinte. Ela perde e incorpora outros aspectos, numa forma de melhorar a


vivência das novas gerações e acrescentar novos elementos. Sendo assim,
a cultura está sempre em transformação, motivada, em grande parte dos
casos, pela troca entre diferentes povos e gerações.
Na constituição da cultura, a privação do sentido da audição de nenhuma
forma inviabiliza a interação linguística, a participação social ou a produção
cultural. Os surdos, como grupo social, têm uma cultura própria, que acolhe sua
participação social como um modo de vida entre eles e deles com os ouvintes.
A cultura surda, suas manifestações e sua ampla propagação buscam ampliar
os direitos de inclusão dos surdos na sociedade geral (IFPB, 2018a, 2018b).
A cultura surda engloba possibilidades e elementos próprios da vida dos
sujeitos que se reconhecem como surdos, abrangendo não apenas aspectos
mais corriqueiros da vida de cada um, mas também o grupo social que cons-
tituem. A privação do sentido da audição abriu possibilidades alternativas
para a sua atuação no mundo, na interação linguística, na participação social
e na produção cultural (IFPB, 2018a, 2018b).
Vygotsky (1997), um dos principais estudiosos do pensamento e da lingua-
gem como funções psicológicas superiores, diz que os princípios do desen-
volvimento são os mesmos para todos; contudo, o que define o destino da
pessoa não é a deficiência em si, mas suas consequências sociais, já que uma
pessoa com necessidades especiais não é uma pessoa menos desenvolvida,
mas uma pessoa que se desenvolve de outra maneira.
Portanto, muito mais do que observar as limitações, devem-se obser-
var questões que perpassam o olhar sobre a pessoa surda. Assim, a busca
de alternativas para atender a essas expectativas sociais é, muitas vezes,
encarada como um fator motivador para o sujeito com necessidades especiais.
Isso é o que o autor chama “compensação”, ou seja, o que era um “defeito” de
ordem orgânica passa a ser um estímulo na busca pela superação. O sujeito
procura formas diferentes ou outros meios para realizar atividades da vida
cotidiana (VYGOTSKY, 1997).
Nesse sentido, Vygotsky e Luria (1993, p. 226) pontuam que:

[...] não podemos olhar um defeito como algo estático e permanente. Ele põe em
ação e organiza grande número de dispositivos que não só podem enfraquecer
o impacto do defeito, como por vezes até mesmo compensá-lo. Um defeito pode
funcionar como poderoso estímulo no sentido da reorganização cultural da perso-
nalidade, [...] só precisa saber como descobrir as possibilidades de compensação
e como fazer uso delas.
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Assim, os recursos de comunicação de cada pessoa ou grupo são cons-


truídos de forma totalmente personalizada e levam em consideração várias
características que atendem às suas necessidades. Ao se aproximar da reali-
dade surda, pela vivência e pelo estudo, descobre-se que ela abrange um rico,
complexo e instigante conjunto de elementos culturais caracterizados pelas
formas alternativas de produção e interação dessas pessoas, enriquecidas
nas comunidades surdas e, infelizmente, ainda pouco conhecidas entre os
ouvintes.
Witchs e Lopes (2018) e IFPB (2018a, 2018b) descrevem alguns elemen-
tos que fazem parte da cultura surda, chamados de “marcadores culturais”.
A seguir, apresentamos cada um deles.

„ Visualidade: a vivência surda é visual. A visão é o principal sentido de


contato com o mundo, de apreensão e significação das informações com
variáveis de movimento, de espaço e de comunicação de base visual.
„ O olhar, não apenas como um sentido: o olhar é um marcador que
permite a contemplação de um modo de vida de diferentes formas,
o cuidado de uns sobre os outros, o interesse pelas coisas particulares,
o interpretar e ser de outra forma.
„ Linguístico: as línguas de sinais, de características visuoespaciais,
são as línguas naturais para as pessoas surdas. A língua de sinais é
tão complexa quanto qualquer outra. Não se trata de uma versão em
sinais de uma língua oral, como o português, nem de simples gestos ou
mímica, embora estes possam ser usados quando ainda não se sabe
a língua de sinais, mas trata-se de um sistema complexo, com regras
próprias. Na necessidade de tradução entre a língua oral e a de sinais,
isso é realizado por um intérprete.
„ Família: ligada ao nascimento de filhos surdos em lares ouvintes e de
filhos ouvintes em lares surdos, ou mesmo de filhos surdos em lares
surdos. Nesse âmbito, muitas questões ligadas à aceitação, à super-
proteção, à concepção sobre a surdez são discutidas. Inicialmente,
a linguagem oral não é a mais importante na comunicação de qualquer
criança com sua família; o contato depende mais da sensibilidade, que
se traduz em um toque, uma expressão de felicidade ou de tristeza.
No caso da deficiência auditiva ou da surdez, os pais não devem se
desesperar, mas, sim, aprender como participar da educação de sua
criança.
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„ Comunidade surda: composta por surdos e por ouvintes militantes da


causa, como professores, familiares, intérpretes, amigos, entre outros.
„ Imagem de luta: travada constantemente, marca a diferença surda,
alimentada por muitos surdos porque, com ela, conseguem estabelecer
a tensão que possibilitará a demarcação das diferenças e de uma iden-
tidade surda. Configura-se como uma bandeira, uma causa pela qual os
surdos, na condição de grupo, lutam para conquistar um lugar social.
„ Associações e organizações: centros cuja importância se manifesta,
por exemplo, na possibilidade de o surdo interagir com outras pessoas
surdas, o que favorece a construção da sua identidade, a possibilidade
de aprender a língua de sinais, as lutas sociais do segmento por vezes
abraçadas nessas organizações, etc.
„ Identidade surda: corresponde a um sentir-se surdo em relação ao
outro ouvinte e em normalidade na condição de surdo em relação ao
outro surdo.
„ Literatura surda: arte que abarca produções literárias em língua de
sinais e produzidas por pessoas surdas.
„ Artes visuais: englobam o teatro surdo e as artes plásticas.
„ Criações e transformações materiais: exemplificadas pelas soluções
alternativas para as pessoas surdas, como campainhas luminosas;
sistemas de alerta táctil-visual; telefones adaptados, como os tele-
communications device for the deaf (TDDs) e os telefones com teclado
teletipo (TTY); dispositivos de vibração (relógios, celulares, etc.) que
substituem o despertador; celulares com mensagens escritas e chama-
das por vibração; softwares de reconhecimento de voz e de conversão
de texto em voz; livros, textos e dicionários em Libras; e sistema de
legendas (closed caption/subtitles).

Na condição de grupo social, como são reconhecidos hoje, os surdos podem


ser considerados parte dos movimentos de tantos outros grupos humanos
que buscam a inversão do estigma de uma identidade que foi historicamente
reduzida a pessoas incapazes. Aristóteles, por exemplo, na Idade Antiga,
proferia que quem não podia ouvir não tinha linguagem nem pensamento e
que, de todos os sentidos, a audição era o que contribuía para a inteligência
e o conhecimento; portanto, os nascidos surdos eram insensatos e natural-
mente incapazes de razão. Entendimentos como esse mostram a dimensão
da representação que a sociedade tem sobre determinados grupos e à qual
a pessoa com deficiência esteve sujeita em meio aos vários aspectos do
entendimento social diante do seu “estar no mundo”, havendo períodos que
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vão da perplexidade e do misticismo até os encaminhamentos meramente


assistencialistas. Para que o passado não perdure no presente, é necessário
compreender que o conceito de inclusão que se busca hoje é vinculado ao
seu oposto, ou seja, ao conceito de exclusão que se busca com muito esforço
combater. Torna-se possível entender que a história, que deveria ser passado,
ainda se faz presente nas representações de mundo de hoje e no modo como
os seres humanos se relacionam para produzir e reproduzir a vida. Sendo assim,
a compreensão das políticas de inclusão social surge em oposição ao conceito
de exclusão (CARMO, 1991; IFPB, 2021; STROBEL, 2009; WITCHS; LOPES, 2018).

Aspectos históricos sobre a surdez


De acordo com o pensamento de Aristóteles, no século XVI as famílias nobres
de surdos começaram a ter iniciativas para ensiná-los a falar e a escrever,
pois tinham preocupações relacionadas com a herança dos títulos e dos bens.
Alguns educadores famosos nesse período foram Ponce de León e Juan Pablo
Bonnet. No século XVIII, a educação para surdos começa a se caracterizar
por duas vertentes educacionais completamente antagônicas: o oralismo
puro, filosofia que valoriza apenas a oralização, difundida principalmente por
Samuel Heinicke e Alexander Graham Bell; e a comunicação por sinais, que foi
adotada na educação de surdos por Abade Charles Michael de L’Epée. Assim,
diante das reivindicações em relação ao uso da língua de sinais e o desblo-
queio dessa língua no campo educacional como condições de possibilidade,
os surdos passaram a destacar suas diferenças culturais e linguísticas para
tomar posição entre outras identidades (IFPB, 2021; WITCHS; LOPES, 2018).

Abade Charles Michael de L’Epée (1712–1789) aprendeu a comunicação


por sinais que os surdos pobres de Paris utilizavam para se comunicar
uns com os outros. Então, L’Epée adotou a comunicação por sinais para a educação
e fundou em sua casa aquela que viria a se tornar a primeira escola pública
para surdos. O sucesso na instrução dos surdos a partir daí foi extraordinário,
e o método se expandiu para fora da França. Os surdos puderam ter instrução,
revelar seus talentos e exercer diferentes profissões. Foi o período áureo na
história do povo surdo, identificado como o período de “revelação cultural”.
Os surdos, antes não vistos como pessoas, privados de seus direitos, andarilhos,
passaram a ter condições reais de educação, de acesso ao conhecimento, de
desenvolver seus talentos e ocupar posições socialmente valorizadas (IFPB, 2021).
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Apesar da crescente revelação de uma cultura surda, surgiu um longo


período de isolamento cultural dos surdos, cujos resquícios históricos per-
duram até hoje no entendimento capacitista e excludente em alguns âmbitos
educacionais. Por iniciativa e influência do professor oralista Graham Bell,
crescia o movimento que afirmava que os surdos deveriam ser instruídos
apenas por meio do oralismo puro. Então, em 1880 esse preceito foi mun-
dialmente oficializado no Congresso Internacional de Educadores, em Milão,
ordenando-se que, nas escolas para surdos, o uso de sinais fosse reprimido
até mesmo com punições. Entretanto, isso não impediu os surdos de usar os
sinais quando estavam fora dos olhares ouvintes, escondidos nos banheiros,
às costas dos professores, nos dormitórios e até por debaixo das carteiras,
e começou uma árdua jornada dos povos surdos de não permitir a extinção
de sua cultura e suas línguas, havendo maior união das associações de surdos
(IFPB, 2021; STROBEL, 2009).
Até a primeira metade do século XX, não havia condições epistêmicas para
dizer sobre uma cultura surda; tal noção não estava na ordem do discurso.
Além disso, a língua de sinais — artefato primordial que dá sustento à noção
dessa cultura — ainda não tinha legitimidade ou reconhecimento linguís-
tico (WITCHS; LOPES, 2018). Porém, estudos foram mostrando que os sinais
utilizados pelos surdos são na verdade uma língua, indo ao contraponto do
entendimento do oralismo puro que imperava nas escolas para surdos. Foram
surgindo, então, novas filosofias, como a comunicação total e o bilinguismo,
descritos a seguir (IFPB, 2021).

„ Comunicação total: essa concepção nasceu nos Estados Unidos, nos


anos 1960, e chegou ao Brasil nos anos 1980. Ela propõe o uso simultâneo
de diversos recursos para a comunicação com os surdos, abrangendo
a oralização, a sinalização e o uso de sinais para tentar uma corres-
pondência com a língua oral.
„ Bilinguismo: essa concepção surgiu na Suécia, em 1970, e chegou ao
Brasil em 1990. Nesse modelo, a língua de sinais e a língua oral são
usadas em momentos distintos, e não há tentativa de fazer a língua de
sinais corresponder à língua oral. A língua de instrução para as pessoas
surdas é a língua de sinais, considerada sua língua materna; e a língua
oral do país é ensinada na modalidade escrita, sendo a participação
do intérprete muito importante.
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O mesmo Congresso Internacional de Educadores, que havia abolido o uso


de língua de sinais como língua para instrução dos surdos, aprovou, cem anos
depois, o bilinguismo como sua única forma de instrução.

O Brasil tem duas línguas oficiais: a língua portuguesa e a Libras.


A Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, oficializa e reconhece a Libras
como meio legal de comunicação (BRASIL, 2002). O Decreto nº 5.626, de 22 de
dezembro de 2005, entre outras providências, regulamenta o ensino bilíngue
e a formação de professores, de instrutores, de tradutores e de intérprete de
Libras (BRASIL, 2005).

Nesta seção, abordamos a cultura surda e a importância do uso de lín-


gua de sinais. Considera-se importante, entretanto, destacar o cuidado em
não reduzir a diferença cultural surda ao uso da língua de sinais, visto que,
construindo cultura, as histórias apresentadas pelos surdos enfatizam e
reforçam suas lutas pela legitimação e pelo reconhecimento da identidade e
da cultura surda. Também é importante destacar a expressividade linguística e
a diversidade de temas encontrados nessas produções de diferentes tipos de
artefatos da cultura surda (literatura, teatro, vida social e esportiva, histórias,
artes plásticas, musicalidade em sinais, movimentos políticos, associação de
surdos, etc.), que possibilitam a promoção dessa cultura nas comunidades
surdas e em ambientes escolares. Na próxima seção, serão enfatizados os
elementos que compõem uma cultura e que são compartilhados com a so-
ciedade, criando-se, assim, uma identidade cultural.

Identidade sociocultural e a
identidade surda
A identidade social e cultural é uma percepção subjetiva que faz com que
o sujeito se identifique com algum grupo social que tenha elementos e ca-
racterísticas de seu interesse, querendo, assim, ser parte daquele contexto.
As transformações sociais advindas da modernidade produzem profundos
efeitos na maneira como o indivíduo entende a si mesmo e é entendido social-
mente. Dessa forma, a identidade sociocultural é o resultado da intersecção
entre a história da pessoa, o seu contexto histórico, cultural e social e os seus
projetos de vida (CIAMPA, 1987; DUBAR, 1997; HALL, 2006).
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Isso porque o homem só se torna humano com a presença do outro.


Segundo a teoria sociointeracionista de Vygotsky (1991), o desenvolvimento
humano só se constitui com o papel preponderante das relações sociais
nesse processo, em que o social e o cultural constituem duas categorias
fundamentais, uma vez que a existência social humana pressupõe a pas-
sagem da ordem natural (homem biológico) para a ordem cultural (homem
social). Dessa forma, a identidade para si não se separa da identidade para
o outro, pois a primeira é correlata à segunda: reconhece-se pelo olhar do
outro (DUBAR, 1997).
O ser humano, tão logo nasce, vê-se envolvido em um mundo social.
É justamente por encontrar-se nesse entorno humanizado e, portanto,
cultural e histórico que o bebê humano pode sobreviver. Assim, todo tra-
balho do desenvolvimento consiste em converter o sujeito biológico em
sujeito humano, que aprende a se comunicar, que aprende a fazer escolhas,
que aprende coisas concretas e abstratas, que aprende regras, que aprende
a sentir, a querer e a planejar (VYGOTSKY, 1991).
Dessa forma, é por meio do outro que o sujeito se reconhece. O que está
no centro do processo de constituição identitária é, portanto, a identificação
ou não identificação com as atribuições que são sempre do outro, visto que
esse processo só é possível no âmbito da socialização. No mecanismo de
comparação social, a pessoa faz comparação dela com outros indivíduos e de
seu grupo com outros, fazendo com que se aproxime daqueles que tenham
características que considera semelhantes às suas, agregando uma dimen-
são motivacional, por se sentirem valorizadas, mantendo uma autoestima
positiva. Portanto, a identidade é a articulação entre igualdade e diferença
(CIAMPA, 1987).
Quanto às identidades surdas, elas se referem aos modos de pessoas
surdas compreenderem a surdez e a si próprias no contexto social, relacio-
nando sua história e o contexto histórico da surdez, formulando concepções
que impactam sua postura e seu comportamento. As pessoas surdas têm
em comum muitas características, que vão além da especificidade biológica
e abarcam experiências sociais, que marcam o processo de constituição
identitária (IFPB, 2018a, 2018b).
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As experiências de vida narradas por surdos de todo o mundo apresentam


características, com semelhanças e diferenças, em torno da percepção indi-
vidual e coletiva sobre a surdez, e essas experiências são produzidas a partir
da interação com o outro, o ouvinte. É preciso reconhecer que a experiência
de ser surdo é diversa da experiência de ser ouvinte, e tais diferenças se
concretizam das mais variadas formas e relações. A identificação pessoal é
marcada pela vivência coletiva, entre o surdo e o ouvinte e entre o surdo e
outro surdo (CEARÁ, 2013).
A identidade surda é heterogênea, havendo desde os surdos que se apro-
priam da cultura surda, valorizam e militam pelos direitos da sua coletividade
específica, posicionando-se politicamente em favor dos direitos dos surdos,
até os que, de maneira contrária, se comportam de forma a tentar se apropriar
da cultura ouvinte e vivenciá-la no seu modo de participar do meio. Esse fato
se refere ao próprio processo comum de formações identitárias que, para
Dubar (1997), se constitui em um movimento de tensão permanente entre os
atos de atribuição (que correspondem ao que os outros dizem ao sujeito) e os
atos de pertença (em que o sujeito se identifica com as atribuições recebidas
e adere às identidades atribuídas). Ao passo que a atribuição corresponde à
identidade para o outro, a pertença indica a identidade para si, e o movimento
de tensão se caracteriza justamente pela oposição entre o que esperam
que o sujeito assuma e seja e o desejo do próprio sujeito em ser e assumir
determinadas identidades.
Hall (2006) diz que o sujeito pós-moderno se caracteriza pela mudança,
pela diferença e pela inconstância, mantendo sua identidade aberta; e que
se, de um lado, essa visão é incômoda pelo seu caráter de imprevisibilidade,
de outro, é positiva por desestabilizar identidades do passado e abrir-se à
possibilidade de desenvolvimento de novos sujeitos. A identificação vem
do outro, mas pode ser recusada para se criar outra. De qualquer forma,
a identificação utiliza categorias socialmente disponíveis (DUBAR, 1997).
Desse modo, a construção da identidade da pessoa surda é influenciada
por fatores diferentes, como o contexto familiar, a inclusão ou rejeição, os
discursos sociais sobre surdez, o contato ou a falta dele com comunidades
surdas, entre outros.
Há pelo menos sete tipos de identidade manifestos por diferentes pessoas
surdas. Esses tipos são apresentados na Figura 1.
Comunidade, cultura e identidade surda 11

Surda

Intermediária Híbrida

Diáspora Flutuante

De transição Embaçada

Figura 1. Tipos de identidades surdas.

Como mostra a Figura 1, os tipos de identidades surdas são as seguintes:


surda, híbrida, flutuante, embaçada, de transição, diáspora e intermediária.
A seguir, descrevemos cada uma dessas formações identitárias (CEARÁ, 2013;
IFPB, 2018a, 2018b; PERLIN, 2011).

„ Surda, ou política: é percebida nos surdos que utilizam a comunicação


visual como meio de expressão. Surgida dentro dos movimentos surdos,
trata-se de uma identidade política que busca os direitos relativos ao
povo surdo.
„ Híbrida: é encontrada nos sujeitos que nasceram ouvintes e com surdez
adquirida. São sujeitos que aprenderam inicialmente a estar e participar
do meio e construir o pensamento como ouvintes, utilizando também
uma língua oral para se comunicar, e que passaram a estar imersas no
contexto da surdez, como pessoas surdas. Tais pessoas têm a língua
oral e também a comunicação visual como língua de expressão.
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„ Flutuante: característica de pessoas que não foram inseridas em al-


guma comunidade surda. Essas pessoas costumam ter dificuldades
de se reconhecer/se aceitar como surdas e buscam sua referência na
cultura ouvinte.
„ Embaçada, ou incompleta: são surdos que não aprenderam nem a língua
portuguesa nem a Libras, o que torna a comunicação um obstáculo
para eles — tanto com ouvintes quanto com surdos. Na falta do por-
tuguês e da Libras, eles acabam se comunicando em mímicas, sendo
as expressões que usam, por vezes, incompreensíveis.
„ De transição: é percebida nos surdos que estão em fase de transição
para outra identidade, a identidade surda. Esses sujeitos nunca tiveram
contato com outros surdos, convivendo somente com ouvintes, e,
ao conhecer outros surdos, se reconhecem como tal.
„ Diáspora: é observada nos sujeitos surdos que têm sua identidade
surda, mas que estão de passagem de um país para outro, de uma
região para outra, de um estado para outro ou de um grupo surdo para
outro, estabelecendo, assim, contato com surdos de outras origens
e que se comunicam com uma língua de sinais que é distinta da sua.
Dessa forma, tais sujeitos adquirem maior bagagem cultural para seu
repertório.
„ Intermediária: são surdos oralizados, que falam e entendem bem a
língua portuguesa e que podem pertencer tanto à comunidade ouvinte
quanto à comunidade surda, pois também sabem sinalizar com a Libras.

Diante dos elementos que constituem o conceito de cultura, que são tão
diversos e fazem parte das formações identitárias, é importante lembrar que
vários estereótipos historicamente traçados e distorcidos sobre os surdos po-
dem dificultar o processo de aceitação da identidade surda e da representação
da surdez. Esses estereótipos têm reforçado preconceitos e discriminações
em torno da diferença cultural e linguística, e estão presentes de formas
explícitas e implícitas. Observa-se que o coletivo de pessoas surdas, como é
característico das coletividades humanas, é heterogêneo, sendo necessário
compreender e respeitar essa diversidade, sem desrespeitar o direito de a
pessoa assumir o posicionamento que considere melhor diante dos tipos
de identidade manifestos por diferentes pessoas surdas. Entretanto, é de
fundamental importância oportunizar, principalmente na infância da criança
surda, o contato com outras pessoas surdas, o que permitirá que ela possa se
apropriar de formas de vida e artefatos que facilitem a sua vida e a comuni-
cação com os demais. Independentemente da identidade e da cultura com as
Comunidade, cultura e identidade surda 13

quais um surdo possa identificar-se, o senso de mudança para a construção


de uma sociedade inclusiva, o respeito à diversidade humana e a empatia são
fundamentais para impactar positivamente a vida em comunidade.
Nesta seção, descrevemos a identidade surda como modo de as pessoas
compreenderem a surdez e a si próprias no contexto social. Na próxima seção,
serão destacadas as características da comunidade surda em relação à comu-
nidade ouvinte, com vistas à inserção plena dos sujeitos surdos na sociedade.

A comunidade surda e a sociedade inclusiva


A sociedade compõe um grupo amplo, e muitas vezes abstrato, de pessoas
que compartilham culturas, sendo formada por uma teia de relações sociais.
A comunidade, por sua vez, é um grupo limitado de pessoas que apresentam
semelhanças, coexistem e se relacionam em prol de interesses e objetivos
comuns. Uma sociedade se compõe de comunidades.
No paradigma da sociedade inclusiva, os sujeitos em comunidade buscam
sua socialização, que é a ação ou efeito de desenvolver, nos indivíduos de
uma comunidade, o sentimento coletivo, o espírito de solidariedade social
e de cooperação (HOUAISS, 2001). Objetivando a socialização, a comunidade
surda, portanto, refere-se às pessoas surdas, aos familiares dos surdos, aos
tradutores e intérpretes da Libras e às demais pessoas que trabalham ou
socializam com pessoas surdas. O desconhecimento da maioria da popula-
ção acerca de algumas particularidades relacionadas aos surdos, à surdez
e à língua de sinais faz com que essa parcela minoritária da população seja,
muitas vezes, excluída (IFPB, 2018a, 2018b).
Dessa forma, a comunidade surda abrange todas as pessoas que de al-
guma forma utilizam a comunicação visual como meio de expressão (língua
de sinais), apresentam características culturais e formas de estar no mundo
baseadas na visualidade e defendem e militam pelo direito de ser diferente
e de vivenciar a cultura surda. Essas pessoas partilham sua concepção e
suas experiências com outros surdos e participam de espaços de encontro
entre pessoas surdas, como grupos e associações. Trata-se de um posicio-
namento político ante a surdez, que vai muito além do encontro de pessoas
com as mesmas características biológicas. Não há, na comunidade surda,
uma concepção inferior de surdez ou de uma superioridade da perspectiva
ouvinte, mas, sim, a busca de aceitação e valorização das diferenças e do que
é pertinente à cultura surda (IFPB, 2018a, 2018b).
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Ser surdo ou ouvinte, ou ter diferentes tipos e graus de surdez não fazem
com que os indivíduos se diferenciem na comunidade surda — eles se igualam
como comunidade pela apreensão do mundo de forma visual e por comparti-
lharem a língua de sinais. Conforme Strobel (2009), os sujeitos surdos não se
diferenciam uns dos outros de acordo com o grau de surdez; o importante é o
pertencimento ao grupo usando língua de sinais e cultura surda, que ajudam
a definir suas identidades surdas.
Cabe enfatizar, então, que a comunidade surda não se forma pela perspec-
tiva clínica-terapêutica ou pela classificação médica das deficiências auditivas.
Essa comunidade se forma pelas variáveis da dimensão social, tais como:

[...] o tipo de experiência educativa dos sujeitos, a qualidade das interações comuni-
cativas e sociais em que participam desde tenra idade, a natureza da representação
social da surdez de uma determinada sociedade e a língua de sinais na família e na
comunidade de ouvintes em que vive a criança (ALPENDRE; AZEVEDO, 2008, p. 6).

A comunidade surda alinha-se aos movimentos sociais da pessoa com


deficiência apenas no sentido de que as deficiências não podem ser negadas,
mas precisam ser afirmadas, não como uma tragédia ou defeito, e sim como
parte da identidade dos que as vivem. Isso não objetiva atenuar as dificuldades
que são vividas por essas pessoas, atender às suas necessidades ou realizar
ajustes que devem ser promovidos pelo meio, mas afirmar a sua identidade
e as suas potencialidades.
A inclusão social é definida por Sassaki (2006, p. 13) como:

[...] o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sis-
temas sociais gerais, pessoas com deficiência, e simultaneamente estas se pre-
param para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então,
um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam,
em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação
de oportunidades para todos.

Dentre os mecanismos comunitários de inclusão social e equiparação


de oportunidades para todos, a educação escolar mostra-se como porta de
entrada para o sentimento de pertencer. As escolas são instituições impor-
tantes para a ampliação do acesso aos bens culturais, materiais e imateriais,
e para romper com o isolamento cultural a que estão submetidos diversos
segmentos sociais. Na comunidade surda não é diferente. A escola tem o
mesmo encargo de instruir e socializar as crianças e os adolescentes e, como
uma instituição, tem por objetivo manter de pé a máquina social e até mesmo
Comunidade, cultura e identidade surda 15

produzi-la, sendo um sistema de normas que estruturam um grupo social de


forma a produzir e reproduzir as relações sociais (LAPASSADE, 1977).
A definição da educação como promotora do “pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”, conforme o Art. 205 da Constituição Federal de 1988, intensifica a
dimensão do quanto as perdas nas aprendizagens e na qualidade do ensino
podem representar para o desenvolvimento econômico, social e cultural das
pessoas e das localidades (BRASIL, 1988, documento on-line). Isso acontece
na medida em que determinados estudantes que não se moldam ao tipo de
estrutura escolar vigente são excluídos dos processos de aprendizagem,
reforçando que a escola se constituiu como mais uma forma de divisão social,
gerando em diversos alunos a noção de que o espaço educacional no qual
estão inseridos não lhes pertence (KUENZER, 2005).
Justamente esse sentimento de não pertencer ao espaço educacional,
diante do tipo de estrutura escolar oralista vigente, é que tem motivado
lutas constantes do povo surdo e das comunidades surdas, em trajetórias
históricas em defesa das escolas bilíngues para surdos. A história faz emer-
gir as memórias das experiências do “ser surdo”, especialmente os corpos
amordaçados por políticas institucionais, os embates no campo dos sistemas
opressivos educacionais, as lutas por identidade e por significados culturais.
O desafio é construir uma nova história cultural, registrando as lutas pela
identidade surda, pela construção da identidade cultural, pelo reconhecimento
da língua de sinais, pela emancipação dos sujeitos surdos de todas as formas
de opressão e pelo seu livre e espontâneo desenvolvimento, bem como pela
pedagogia surda presente no povo surdo (CAMPELLO; REZENDE, 2014).
Entretanto, a história de lutas do movimento surdo brasileiro ainda tem
um longo caminho a percorrer para o reconhecimento da cultura surda e
linguística, de forma real e sem demagogia. O Brasil, principalmente com a
realização da Conferência Nacional da Educação (Conae), em 2010, começou
a enfrentar retrocessos com atravessamentos produzidos por uma política
pública educacional que não atendeu e não atende às imperativas demandas
linguísticas e culturais surdas. O governo da época, por meio do Ministério
da Educação (MEC), realizava iminentes ameaças de fechamento das escolas
bilíngues, sob as justificativas de que elas reforçavam a organização de escolas
segregadas com base na diferenciação pela deficiência e de que contrariavam
a concepção ideológica do governo acerca do que entendiam como educação
inclusiva, que insistia em colocar crianças surdas junto com as ouvintes, sem
haver um compartilhamento linguístico entre elas, exceto no contraturno da
16 Comunidade, cultura e identidade surda

escolarização, na sala de atendimento educacional especializado (CAMPELLO;


REZENDE, 2014).
Como exemplo desse retrocesso, podemos destacar um comunicado do
MEC sobre o fechamento do Colégio de Aplicação do Instituto Nacional de
Educação de Surdos à Revista da Federação Nacional de Educação e Integração
dos Surdos (Feneis). Quando perguntada sobre a importância das escolas de
surdos para a valorização da cultura e das identidades surdas, a diretora de
políticas de educação especial Martinha Claret respondeu o seguinte:

[...] do ponto de vista da educação inclusiva, o MEC não acredita que a condição
sensorial institua uma cultura. As pessoas surdas estão na comunidade, na socie-
dade e compõem a cultura brasileira. Nós entendemos que não existe cultura surda
e que esse é um princípio segregacionista. As pessoas não podem ser agrupadas
nas escolas de surdos porque são surdas. Elas são diversas. Precisamos valorizar
a diversidade humana (FENEIS..., 2010, p. 23).

Esse discurso era totalmente em linha contrária aos entendimentos cien-


tíficos, sobretudo aos estudos culturais e aos estudos da área da linguística.
Isso provocou uma mobilização sem precedentes para a inclusão das escolas
bilíngues para surdos no Plano Nacional de Educação (PNE), inclusive com
apoio internacional.
O órgão da sociedade civil internacional de diversos segmentos das pessoas
com deficiência International Disability Alliance (IDA), a principal articuladora
social responsável pela realização da Convenção Internacional das Pessoas
com Deficiência, no âmbito das Nações Unidas manifestou, na Reunião da
Cúpula do Conselho Econômico e Social (Ecosoc), realizada em julho de 2011,
o seguinte texto para a Revisão Ministerial Anual, que trata da educação
bilíngue de surdos:

As crianças surdas precisam ser incluídas primeiramente através da língua e da


cultura mais apropriada antes de serem incluídas nas diferentes áreas da vida
em estágios posteriores, por exemplo, no ensino médio e superior, bem como na
vida profissional. O apoio dos pares é necessário (ONU, 2011, documento on-line).

Entre as proposições e comprovações científicas, a pesquisa intitulada


“Programa de avaliação nacional do desenvolvimento da linguagem do surdo
brasileiro” divulgou que, em escolas bilíngues (escolas especiais que ensinam
em Libras e português), os estudantes surdos aprendem mais e melhor do
que em escolas monolíngues (escolas comuns que ensinam apenas em portu-
guês). Nos resultados, evidenciou-se que competências como decodificação e
reconhecimento de palavras, compreensão de leitura de textos, vocabulário
Comunidade, cultura e identidade surda 17

em Libras, entre outras, foram significativamente superiores em escolas


bilíngues em comparação com escolas comuns (CAPOVILLA, 2011).
A comunidade surda conquistou, então, ainda que não na totalidade das
propostas, a valorização da Libras e que se incluísse no relatório do PNE:

Garantir a oferta de educação bilíngue, em língua brasileira de sinais (Libras) como


primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua,
aos alunos surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em
escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do Decreto
nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção Sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção do sistema braille de
leitura para cegos e surdocegos (BRASIL, 2010, documento on-line).

Na Conae, no ano de 2010, os especialistas presentes pontuaram a necessi-


dade de um documento nacional que orientasse uma base comum do currículo
escolar. No mesmo ano, surgiram as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais
para a Educação Básica, e em 2018 foi homologada a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), que tem caráter normativo e define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desen-
volver ao longo das etapas e modalidades da educação básica (BRASIL, 2018).
Entretanto, diante da BNCC, diferentes profissionais da educação cons-
troem diferentes olhares sobre ela perante a educação para surdos. Pesquisas
como a de Pereira (2021), por exemplo, demonstram que a BNCC não contempla
a alfabetização das crianças surdas, ou seja, não traz distinções das diferenças
inerentes ao aprendizado da escrita pela criança surda e preconiza o uso da
oralidade como prática cotidiana e como base para a alfabetização. Já pes-
quisas como a de Melo, Santos e Fronza (2020) referem que a BNCC considera
a língua em uso, mas oportuniza ao aprendente surdo situações de interações
comunicativas que viabilizem o aprendizado partindo de várias formas de
manifestação da linguagem, sejam elas verbais (oral, escrita ou sinalizada),
sonora, corporal, visual ou, mais recentemente, digital.
De qualquer forma, um currículo escolar inclusivo deve garantir a oferta
de educação bilíngue, em Libras como primeira língua (L1) e na modalidade
escrita da língua portuguesa como segunda língua (L2), e de maneira alguma
documentos normativos serão suficientes para produzir qualquer trans-
formação educacional se não houver o comprometimento, a disposição,
a convicção e o reconhecimento dos sujeitos sobre comunidades, culturas e
identidades surdas.
18 Comunidade, cultura e identidade surda

Neste capítulo, você pôde perceber a surdez como parte da diversidade


humana, que precisa ser reconhecida como uma entre as múltiplas formas de
ser e estar no mundo. Como dizem Perlin e Strobel (2014), anular o passado
imerso na obrigação de serem ouvintes e requerer um novo presente se
mostrou como artefato cultural para os surdos. Diante disso, surgem novos
feitos e novas interpretações no cotidiano. Nesse sentido, outros caminhos
merecem ser trazidos à tona, com lutas de significação, quais sejam: a busca
por educação bilíngue, por políticas para a língua de sinais no Brasil, pela
abertura das portas das universidades, por posições de igualdade, por ter
intérpretes de língua de sinais e por serem válidos os direitos do povo surdo.

Referências
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Leituras recomendadas
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SMITH, D. D. Introdução à educação especial: ensinar em tempos de inclusão. Porto
Alegre: Artmed, 2008.

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