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CULTURA SURDA E SEU EMBATE COM A CULTURA OUVINTE

Valdilson José Santos da Silva 1 - SEED


Edimara Alves Fagundes2 - SEED

Grupo de Trabalho – Diversidade e Inclusão


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Esse artigo é realizado por dois professores atuantes na Educação de Jovens e Adultos – EJA
e preocupados com a cultura surda, uma vez que essa instituição de ensino está cada vez mais
sendo requisitada por esse público, no intuito de atender as necessidades dos surdos no que
tange a vida escolar, buscaram pesquisadores que tratam deste tema e mostram as conquistas
e dificuldades existentes na sociedade para que essa comunidade seja aceita. Existe uma forte
discriminação na sociedade e também uma resistência no ambiente escolar para compreender
a cultura surda bem como seus direitos. O presente artigo está dividido em três partes, em um
primeiro momento destaca-se a cultura e a identidade surda, embasando-se no pensamento de
Strobel (2008), Santos (2006), Merserlian e Vitaliano (2009) e Cotrim (1999). A segunda
parte aborda sobre o desconhecimento da cultura surda e suas consequências na sociedade,
utilizando o pensamento de Strobel (2008) e Hall (2011) e descrição de fatos reais vivenciados
por surdos, e experiências vividas pelo autor do artigo como intérprete de Libras e reflexões
da autora como professora de alunos surdos. A última parte fala sobre a importância da
interação entre surdos e ouvintes utilizando como referencial teórico os estudos de Amaral
(1998) e Karnopp (2008). Nas considerações finais ressalta-se a importância da interação
entre surdos e ouvintes que pode promover a superação do preconceito e consequentemente
um melhor desempenho escolar.

Palavras-chave: Educação. Cultura surda. Ouvintes

Introdução

Os surdos vivem em dois mundos distintos, um da cultura surda e outro dos ouvintes,
essa dicotomia pode gerar um isolamento por parte dos surdos, uma vez que a maioria dos

1
Graduado em Pedagogia pela Universidade Norte do Paraná, Tradutor Intérprete do ensino médio e
fundamental para jovens e adultos na Secretaria de Estado de Educação do Paraná. E-mail:
valdilson.ignacio@gmail.com.
2
Mestra em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná – UTP. Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade
de Artes do Paraná. Professora do Estado do Paraná para jovens e adultos. E-mail:
edimarafagundes@hotmail.com.

ISSN 2176-1396
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ouvintes parece não fazer esforço para comunicar-se e aproximar-se da cultura surda.
Consequentemente os surdos sentem-se discriminados e desvalorizados pelos ouvintes.
O autor deste artigo interessou-se pelo estudo da Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS, por um motivo pessoal, dos seus quatro irmãos, dois são surdos, na tentativa de
melhorar a comunicação entre eles, procurou estudar LIBRAS, seu primeiro contato com a
língua foi através da Quarta Igreja Batista do Rio de Janeiro em 1998. Nessa Igreja havia um
ministério com surdos, a partir do envolvimento com essa comunidade houve uma abertura
para o conhecimento da cultura surda.
Posteriormente seu conhecimento aprimorou-se através de uma amiga surda que
possibilitou a prática cotidiana com LIBRAS, assim o que em princípio tinha como objetivo
melhorar a interação e comunicação com os irmãos acabou tornando-se uma profissão. A
partir desse momento, houve um grande envolvimento com a cultura surda, através de
participação em Congressos, Palestras, Seminários, Associações e principalmente pelo
contato com a comunidade surda, uma vez que o aprendizado da LIBRAS ocorreu
principalmente em virtude das interações com os surdos.
Tal engajamento com a cultura surda acarretou no exercício informal de intérprete de
LIBRAS, fazendo mediações em caso de necessidade, como acompanhamento de surdos a
consultas médicas, audiências e na comunicação de um modo geral.
Após a graduação em Pedagogia, houve o envolvimento com o processo de ensino e
aprendizagem nas escolas do Estado do Paraná para ensino fundamental e médio. Assim, a
carreira profissional do autor está diretamente ligada com a vida pessoal e essa vinculada a
cultura surda.
A autora deste artigo atua como professora de arte de ensino fundamental e médio
desde 1996, o contato com a cultura surda no ambiente escolar ocorreu somente em 2014, ao
lecionar para uma aluna surda. Essa situação foi encarada como um desafio, pois surgiram
diversos questionamentos no sentido de modificar a prática pedagógica para atender as
necessidades da aluna.
Percebeu-se que o fato de ter um intérprete de LIBRAS na sala de aula acarreta em
certa comodidade por parte dos professores, que normalmente seguem o mesmo protocolo
para lecionar. Nesse caso, ocorreu ao contrário, o intérprete foi uma oportunidade para
frequentes trocas acerca da cultura surda, interações com a aluna e adaptações das aulas. Essa
busca por adentrar no mundo dos surdos, provocou diversas leituras e debates junto ao
intérprete, o que resultou na produção deste artigo.
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Grande parte da sociedade desconhece o que é a cultura surda, apenas sabem que os
surdos existem e se comunicam por meio de sinais, desse modo é possível afirmar que a
sociedade não se interessa por essa cultura. É sabido que a comunidade surda vem lutando
cada vez mais para conquistar seu espaço na sociedade. É um trabalho árduo que requer muito
esforço e perseverança e que também conta com ajuda de ouvintes e tradutores intérpretes de
Língua de Sinais.
Desta maneira, o presente artigo discute a despeito da cultura surda, uma vez que
existe uma identidade própria, uma especificidade dos seus processos culturais, que por vezes
gera uma dificuldade com a cultura ouvinte, pelo fato de serem julgados como deficientes ou
incapacitados.
A problemática da investigação se concentra no confronto gerado na relação entre a
cultura surda e a ouvinte, mostrando o distanciamento e as barreiras que impedem uma
relação mais interativa.
O artigo é composto de três partes, a primeira versa sobre a cultura de um modo geral
apropriando-se do pensamento de Santos (2006) e Cotrim (1999), em seguida aborda-se a
cultura surda através da pesquisadora surda Strobel (2008), cuja experiência de vida endossa
autenticidade ao tema.
A segunda parte mostra o quanto a sociedade desconhece a cultura surda, criando
barreiras que dificultam a interação e a valorização dessa comunidade. Utilizando os autores
Strobel (2008) e Hall (2011)
A terceira parte aponta caminhos possíveis para uma relação entre surdos e ouvintes,
considerando a interação uma ferramenta fundamental neste processo, Amaral (1998)
fundamenta essa discussão.

Cultura e Identidade Surda.

É comum que a cultura seja associada a fazeres e hábitos elitizados, por exemplo, ir ao
museu, ler livros, ouvir música clássica, apreciar balé. Conforme Santos (2006) a cultura
pensada a partir do senso comum, está muito associada ao estudo e a educação. Do mesmo
modo Cotrim (1999, p.14), afirma que “na linguagem cotidiana dizemos que um homem
frequenta boas escolas, leu bons livros e possui modos refinados é pessoa de cultura”.
A cultura sendo vista meramente como algo refinado se restringe a uma classe e
menospreza as demais, Santos (2006) coloca o conceito de cultura como uma totalidade,
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abrangendo a humanidade, seus diferentes povos e a multiplicidade dos grupos humanos.


Desse modo a cultura não é algo limitado que pode ser associado a um só grupo, ela faz parte
de todos os povos independente da crença, hábitos, atitudes e nível social. Corroborando com
este pensamento Cotrim (1999, p.15) afirma que “A cultura pode ser considerada, portanto,
como amplo conjunto de conceitos, de símbolos de valores e atitudes que modelam uma
sociedade. Ou seja, a cultura engloba o que pensamos, fazemos e temos enquanto membros de
um grupo social”.
Entretanto numa mesma população há diferentes grupos sociais, com hábitos, atitudes
e valores múltiplos. Podendo ocorrer discriminação em virtude das diferenças. Como exemplo
duas pessoas que nasceram no mesmo país, moram na mesma cidade, vivem no mesmo bairro
e estudam na mesma instituição, podem em diversos momentos divergir.
Do mesmo modo ocorre entre a cultura surda e a ouvinte, pois a forma de
comunicação entre essas culturas são diferentes, gerando um embate injusto, pois a maioria
ouvinte acaba se sobressaindo na cultura geral, Strobel (2008) cita o exemplo de uma ouvinte
que se sente estranha diante de uma festa para surdos, vendo que a forma de comunicação era
tão diferente, que acabou constrangida por não compreender a língua de sinais.
Esse exemplo demonstra o que ocorre frequentemente com os surdos mediante a
comunicação com os ouvintes, pois os ouvintes em sua maioria desconhecem as necessidades
dos surdos e ao mesmo tempo atribuem a essa cultura um “defeito” algo que precisa ser
reparado, ao comparar o nascimento de crianças entre surdos e ouvintes Strobel (2008, p. 23)
afirma,

[...] o nascimento de uma criança surda é uma catástrofe porque estão acostumados
com o padrão “normalizador” para interagir à vida social e também desconhecem o
“mundo dos surdos”. Por outro lado, na maioria das vezes, o povo surdo acolhe o
nascimento de cada criança surda como uma dádiva preciosa e não agem como os
pais ouvintes que sofrem exageradamente o desapontamento inicial de gerarem seus
filhos surdos, isto é evidenciado nas várias gerações de famílias com todos os
membros surdos da família.

O termo “cultura” possui significados variados, dentro de seu conceito geral, portanto
na área da surdez, a palavra cultura representa para os surdos uma afirmação de sua
identidade, nesse sentido a forma de se comunicar está imbuída de uma especificidade – a
língua de sinais, onde se centraliza o seu espaço linguístico. Acaba que, a língua de sinais
torna-se uma marca subjetiva.
A Cultura surda possui suas especificidades como qualquer outra cultura. A esse
respeito Strobel (2008, p. 37) utiliza o conceito de “artefatos”, que “[...] não se refere apenas a
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materialismos culturais, mas àquilo que na cultura constitui produções do sujeito que tem seu
próprio modo de ser, ver, entender e transformar o mundo”.
Um dos artefatos é a questão visual, para os surdos a experiência visual faz parte de
sua cultura, a percepção visual amplia e favorece a interação com o mundo a sua volta. Como
são pessoas extremante visuais, o ambiente faz diferença, dependendo da situação em que se
encontram, não são favoráveis a lugares escuros. Strobel (2008) relata uma situação visual
que experienciou em determinada circunstância.

[...] meu namorado ouvinte me disse que iria fazer uma surpresa pra mim pelo meu
aniversário; falou que iria me levar a um restaurante bem romântico. Fomos a um
restaurante escolhido por ele, era um ambiente escuro com velas e flores no meio da
mesa, fiquei constrangida porque eu não conseguia acompanhar a leitura labial do
que ele me falava por causa da falta de iluminação, pela fumaça de vela que
desfocava a imagem do rosto dele, que era negro, e para piorar, havia um homem no
canto do restaurante tocando musicas que, sem poder escutar, me irritava e me fazia
perder a concentração por causa dos movimentos dos dedos repetidos de vai-e-vem
com seu violino. Meu namorado percebeu o equivoco e resolvemos ir a uma
pizzaria! Strobel (2008, p. 38)

Levar um surdo em um ambiente escuro sem nenhuma iluminação é uma forma de


desrespeito ou uma agressão contra eles porque são pessoas visuais. Pois como o sujeito surdo
não possui a audição consequentemente há a ausência do som. Por isso que as percepções
visuais se tornam bastante amplas, faz uma ligação com as expressões faciais e corporais.
Strobel (2008) cita outros tipos de artefatos encontrados na cultura surda como: artefato
cultural familiar, artefato cultural linguístico, artefato literatura surda, artefato vida social e
esportiva entre outros.
Os artefatos ao mesmo tempo em que são fixos, podem se alterar dependendo da
circunstância, cultura ou tempo histórico. Fazendo uma relação da identidade surda com a
concepção de identidade de Hall (2011) que considera a identidade algo em constante
mobilidade e que

É definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades


diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de
um “eu” coerente. Dentro de um nós há identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Hall (2011, p. 13)

Existe uma identidade surda, ela se configura de diferentes modos, Perlin (2006, p.
138), a primeira doutora surda do país, assegura que, “As identidades surdas são
multifacetadas, fragmentadas, em constantes mudanças; jamais se encontra uma identidade
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mestre, um foco. Os surdos passam a serem surdos através da experiência visual, de adquirir
certo jeito de ser surdo”.
A identidade surda se revela múltipla porque não existe somente uma cultura, em cada
região há uma peculiaridade que revela o modo de ser das pessoas. No caso do Intérprete de
Língua de Sinais e do professor, torna-se fundamental aproximar-se de cada contexto para
perceber a identidade de cada grupo e de cada aluno.
A pesquisadora surda Strobel (2008) declara que a cultura surda tem o seu jeito de
compreender o mundo a sua volta com sua percepção visual, essa pratica auxilia na definição
das identidades surdas. Isso torna ampla a língua, as crenças, os costumes e os hábitos da
comunidade surda. O conceito geral leva a entender que os surdos têm a sua cultura própria.
Existe uma luta por parte da comunidade surda para que sua cultura seja incluída, no
contexto social. Strobel (2008) afirma que muitos surdos só descobrem sua cultura
tardiamente, na fase adulta, a maioria deles são filhos de pais ouvintes que dificultam o
processo de descoberta de sua identidade. O que confirma o quanto os ouvintes precisam
conhecer e valorizar a cultura surda, pois além de impedirem que os surdos se reconheçam e
convivam entre si, também creem que seu modo de interagir com o mundo ocorra da mesma
forma que os ouvintes.
A desvalorização da cultura surda está endossada pela própria legislação, pois somente
em 2002 houve o reconhecimento da LIBRAS como uma língua, através da lei nº 10.436/24
de abril de 2002. E apenas em 2005 é lançado o decreto 5.626 de 22 de dezembro que cria
normas para inserção da LIBRAS no contexto educacional e na sociedade.
Em virtude do atraso da lei os surdos eram vistos pela sociedade como “deficientes e
incapazes” para atuarem no meio social. Em decorrência da lei de 2002 percebeu-se que
muitos surdos iniciaram seu processo de escolarização, embora tardiamente, porém a lei os
amparou oferecendo profissionais capacitados para mediar a comunicação no contexto
escolar.
Após o reconhecimento da LIBRAS como língua é que iniciaram os cursos de
capacitação para os profissionais da educação, inclusão da disciplina de LIBRAS nos cursos
de licenciatura e acompanhamento do intérprete nas escolas públicas para os surdos.
Mas, além disso, houve o reconhecimento de uma cultura e identidade surda,
proporcionado tardiamente a partir de 2002, porém atualmente percebe-se um crescimento
constante de pesquisadores, professores, intérpretes atuando nesta área de conhecimento. Isso
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revela o quanto os surdos estão sendo valorizados e respeitados a partir da sua cultura e
identidade.

Desconhecimento da cultura surda na sociedade

A cultura surda em nossa sociedade é vista de modo inferiorizado em virtude do


preconceito criado e transmitido de geração em geração,

A história dos surdos e a origem da exclusão podem ser contadas a partir de


diversos recortes da história da humanidade. Na literatura mundial, os registros são
os mais variados e vão desde o sacrifício até a escravização de surdos, considerados
inferiores. Em outras sociedades, os surdos ficavam restritos a seus lares, por
vergonha da família, tal situação perdura em algumas casas até hoje. Garcêz (2006,
p. 2-3)

O preconceito e desvalorização dos surdos na sociedade vêm de longa data, “Até


meados do século XVI surdos denominados surdo-mudos, eram considerados ineducáveis e,
consequentemente, deixados a margem como inúteis a coletividade.” (DIAS, 2006, p. 28). Em
virtude disso “[...] enfrentavam o preconceito, a piedade, o descrédito, e até mesmo a
denominação de loucos.” (MERSERLIAN; VITALIANO, 2009, p. 2).
Mesmo diante desta visão preconceituosa em relação aos surdos, houveram pessoas
que de certo modo perceberam suas necessidades, dentre elas pode-se citar o trabalho do
abade Charles Michel L’Epee, cria um asilo para surdos em 1870 em Paris, conforme
Merserlian e Vitaliano (2009, p. 3), “para o abade o essencial na educação de surdos era a
possibilidade que possuíam em aprender a ler e a escrever por meio da língua de sinais [...].”
Em 1880 no Congresso de Milão houve grande debate sobre o ensino e aprendizado da
comunidade surda no contexto escolar e no ambiente familiar. O congresso gerou uma
revolução a ponto de eliminarem a língua de sinais, sendo substituída pela oralização, essa
decisão foi imposta pelos ouvintes e acabou reforçando a exclusão dos surdos na sociedade,
pois provocou um grande isolamento entre eles.
A exclusão dos surdos na sociedade ocorreu porque muitos não tinham o entendimento
de sua língua e interesse em aprendê-la, a proibição do uso da língua de sinais pode ser
considerada pontual, mas seus efeitos repercutem até hoje, pois ainda ocorre a exclusão.
Os surdos são vistos como deficientes e incapazes, sendo comparados muitas vezes
como inúteis, que não contribuem com a sociedade. Strobel (2008) relata um fato que
presenciou juntamente com seus alunos do curso de Letras Libras,
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[...] eu junto de um grupo de alunos surdos que passaram no vestibular para Letras
Libras, fomos conversar com uma assistente social para vermos o alojamento para
eles, elucidei para ela que sou doutoranda e eles são os alunos da graduação e
finalizei explicando o motivo por estar lá, a assistente social pegou o papel para
fazer o cadastro e perguntou para nós: “vocês sabem ler?”, abismada expliquei
novamente que sou doutoranda e eles tem a graduação, ela repetiu a pergunta...
Irritei-me: Pensa que somos analfabetos? (STROBEL, 2008, p. 23).

É dessa forma que grande parte da sociedade vê a pessoa surda, que não sabe ler e
escrever, ou seja, como se fossem todos analfabetos. Ignorando o fato de que todas as
pessoas, independente da capacidade física ou intelectual têm direito ao acesso a educação.
Strobel (2008) relata mais um caso de indignação, dessa vez não foi em ambiente
universitário, quando um jovem visita um consultório médico,

Um sujeito surdo foi à consulta médica, o médico fez a pergunta para escrever a
história de vida dele: “qual grau de sua instrução?” O paciente surdo respondeu que
estava fazendo mestrado, o médico articulou abismado: “você? Mestrado?” Como se
não acreditasse na resposta. (STROBEL, 2008, p. 24).

O jornal G1Paraná, noticiou em 2007, um grande equívoco na cidade de Londrina PR


em que um jovem surdo foi preso por engano. Houve um mal entendido por conta de um
cliente que dizia que um rapaz saiu da loja armado e por pouco não realizou um assalto. A
confusão começou logo que o dono da loja acionou a polícia. Ao ser localizado pela polícia,
por pouco não ocorreu uma tragédia, pois os policiais ao verem o rapaz desobedecer a ordem
de parar quase atiraram.
Logo após ser detido pelos policiais o jovem surdo foi levado para a delegacia, onde
ficou preso por 13 dias. Esse equívoco ocorreu porque o jovem surdo ao utilizar a língua de
sinais para se comunicar, não foi compreendido pelas pessoas da loja, desse modo, resolveu
mostrar a carteira que estava em sua cintura, neste momento as pessoas que ali estavam
pensaram que fosse um assalto.
Desta forma percebe-se que o desconhecimento da língua de sinais ocasiona esse tipo
de constrangimento com a pessoa surda. Na cidade de Cuiabá no Estado de Mato Grosso
aconteceu um fato marcante e indignante, envolvendo mais um surdo inocente.
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O jovem Ademar Silva de Oliveira, de 19 anos, foi morto por policiais militares,
durante uma abordagem, no final da tarde desta terça-feira (7), na Avenida
República do Líbano, próxima a Rodoviária de Cuiabá. Surdo, o rapaz não teria
ouvido a ordem para parar e acabou baleado no tórax por um dos policiais e morreu
no local. O crime ocorreu por volta das 17 horas. Segundo os policiais do 10º
Batalhão que atenderam a ocorrência, havia a informação de que um rapaz estava
armado e ameaçando os moradores. Com Ademar, os policiais encontraram uma
faca, que ele carregava na cintura. Vizinhos e familiares de Ademar estavam
revoltados com o que consideraram "trapalhada" dos policiais. Na delegacia, o pai
do rapaz, Ademar de Oliveira, 55 [anos], foi incisivo ao se queixar dos policiais,
considerando que a atitude deles é de profissionais “despreparados” para atender
ocorrências. Ele explicou que o filho fica em casa, quase não sai. Hoje, Ademar
pulou o muro e saiu para a rua e não estava armado [...]. (MÍDIA NEWS, 2014).

Esses exemplos reforçam a estranheza que a sociedade tem em relação aos surdos,
julgando-os incapazes de estudar, constituir família, ter uma vida autônoma e alcançar seus
objetivos.
O desrespeito com relação a cultura surda é imenso, isso se confirma cotidianamente,
não somente pelos exemplos citados, mas também na falta de atendimento adequado a esse
público, não há legenda em língua de sinais nos programas televisivos, não há legenda no
cinema nacional, nos espaços de atendimento ao grande público não há interpretes de libras,
enfim esse descaso ocorre em diversas instituições.
A legislação brasileira, através da lei nº 10.436/24 de abril de 2002 e do decreto nº
5.626 de 22 de dezembro de 2005 prevê acessibilidade para os surdos em locais públicos,
grande parte desses locais não está cumprindo o que a lei determina. Isso gera
desentendimentos e reforça o quanto a sociedade é organizada a partir da cultura ouvinte.

Interação entre surdos e ouvintes

As situações humilhantes e constrangedoras há que muitos surdos se submetem,


relatadas no tópico anterior desse artigo evidenciam o quanto os ouvintes desconhecem o
mundo dos surdos.
Porém, diversas ações têm contribuído para o desenvolvimento da interação entre
surdos e ouvintes. A Lei nº 7.853/89 no artigo 1º assegura a interação social das pessoas com
deficiência, mas a sociedade não está preparada para o cumprimento da lei.
A escola tem sido um espaço extremamente importante nesse processo, a partir do
momento em que os surdos começaram a frequentar as escolas regulares. Com a
regulamentação da Lei 10.436 e do Decreto 5.626, oficialmente os intérpretes adentram o
espaço escolar, facilitando assim, a interação entre surdos e ouvintes. A tendência é que haja
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mais ouvintes de diferentes áreas do conhecimento interessados por LIBRAS, assim cria-se
uma ponte entre surdos e ouvintes. Facilitando a interação dos surdos na sociedade.
Ao escrever sobre diferenças e preconceitos no ambiente escolar, Amaral (1998)
utiliza a metáfora da ponte movediça com o castelo para explicar a interação entre as pessoas.
A ponte movediça possibilita o trânsito entre a cidade e o castelo. É possível associar o surdo
ao castelo e os ouvintes as pontes movediças, desse modo os ouvintes utilizam a ponte
movediça para chegar até os surdos, a ponte é um instrumento que liga os ouvintes aos surdos
fazendo essa interação entre eles.
Mas atravessar essa ponte é uma escolha, depende do interesse de cada pessoa. Amaral
(1998) assegura que, a ponte movediça é a possibilidade de encontro, porém esse encontro
depende da disponibilidade de cada um. Quando se constrói uma ponte, ela quebra a barreira
existente entre os ouvintes e a comunidade surda, criando envolvimento e despertando
interesse pela cultura surda e também pela Língua de Sinais.
Outra situação que vem ganhando destaque é a inclusão e a interação dos surdos no
mercado de trabalho, por intermédio da Lei nº 8.213/91 que garante uma porcentagem de
vagas para pessoas com deficiência, nas empresas que possuem acima de 100 funcionários.
Os surdos são prioritários nas escolhas porque as empresas precisam cumprir a legislação.
A inclusão das pessoas surdas nas empresas faz com que haja alteração da rotina. Para
que os funcionários surdos interajam com os ouvintes no ambiente de trabalho, as empresas
devem oferecer um curso de capacitação de LIBRAS para os funcionários, nesse momento
cria-se uma ponte que vai quebrar a barreira da comunicação. Desse modo, há uma interação
não somente no campo linguístico, pois os ouvintes convivem com a cultura surda.
Quando ocorre a interatividade entre os dois grupos não há barreiras, há um grande
empenho para conhecer, valorizar e respeitar a cultura surda. Cria-se um laço de
comunicação, a comunidade surda dispõe-se a ajudar e interagir com os ouvintes, a entender
não só sua língua como também todo trajeto de sua história. Assim, assimilam o quão é
importante essa interação com a sociedade.
Os surdos vêm lutando há anos para eliminar a barreira da comunicação usando a
LIBRAS e tentar incluir na sociedade todas as suas atividades, independente da cultura,
língua ou outra especificidade. Na Escola Barão de Melgaço na cidade de Cuiabá no Estado
de Mato Grosso tem uma instrutora surda contratada pelo Estado que realiza o trabalho de
inclusão e interação com os alunos surdos, ouvintes, professores e funcionários daquela
unidade.
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Nessa escola de Cuiabá, os primeiros trabalhos a serem feitos foram de


conscientização e o curso de LIBRAS. A inclusão precisa começar pela conscientização das
pessoas, pois é a partir dela que se criam pontes. Para tanto, este trabalho gera momentos de
estudo, reflexões e trocas de experiências.
As mudanças devem ocorrer além da sala de aula, todo o espaço escolar precisa sofrer
mudanças, como na hora do intervalo, na ida ao banheiro, na entrada e saída da escola, para
que os alunos incluídos possam ser vistos como indivíduos repletos de potencial, merecendo
um ambiente em que possam desenvolver suas aprendizagens e interações.
A Escola Barão de Melgaço oferece o curso para a comunidade local, as aulas são
realizadas três vezes por semana, além disso, a instrutora surda entra na sala de aula na hora
atividade de cada professor e ministra a disciplina de LIBRAS para os alunos ouvintes, dessa
forma toda comunidade escolar está rompendo com o bloqueio de comunicação entre surdos e
ouvintes, criando uma consonância entre as duas comunidades.
A inclusão das crianças surdas no contexto escolar têm preocupado muitos professores
tanto no que se refere ao aprendizado quanto na interação dessas crianças. Um exemplo são os
livros didáticos, esses não são adaptados para as crianças surdas. O auxílio do intérprete na
sala de aula facilita a mediação, mas os materiais didáticos podem ser elaborados pensando
nas necessidades dos surdos.
Atualmente é possível encontrar alguns materiais adaptados em língua de sinais, esse
trabalho foi realizado com a ajuda de alguns intérpretes, no artigo Literatura Surda do autor
Kornopp (2008) conta que,

Alguns dos materiais existentes em Libras são os que traduzem os textos clássicos
da literatura universal e/ou brasileira para a Libras. A editora “Arara Azul”
disponibiliza a coleção “Clássicos da Literatura em CD-R em Libras/Português”, em
que uma equipe de tradutores faz a tradução de uma língua para outra. Os clássicos
traduzidos são para crianças: Alice no País das Maravilhas (Lewis Carroll), As
aventuras de Pinóquio (Carlo Collodi), A história de Aladim e a lâmpada
maravilhosa (autor desconhecido). Há também obras para jovens e adultos das
literaturas de língua portuguesa, por exemplo, Iracema (José de Alencar), O velho da
horta (Gil Vicente), e os contos de Machado de Assis: O Alienista, O Caso da Vara,
A Missa do Galo, A cartomante, O Relógio de Ouro2. (KORNOPP, 2008, p. 9-10)

Os materiais foram adaptados para LIBRAS, com tecnologia para atender a


comunidade surda, isso viabiliza o acesso às várias informações dentro e fora do contexto
escolar, facilitando o conhecimento que antes era destinado somente aos ouvintes.
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A língua de sinais pode ser considerada a estrutura da ponte, pois ela está sendo a
facilitadora do contato com a cultura surda. Freeman, Carbin e Boese apud Strobel (2008, p,
77) reforçam

[...] que a língua de sinais está abrindo seu espaço na sociedade pela mídia e com
isso surgem mais intérpretes de língua de sinais e atores surdos em comercias e
programas de televisão: “[...] os noticiários são interpretados, candidatos a
presidência aprendem alguns sinais, pessoas que usam sinais são mostradas na
televisão nos programas para adultos e crianças [...]”.

A interação estimula e provoca a junção de surdos e ouvintes, que corresponde com o


resultado da comunicação em LIBRAS que se estabelece entre eles, é uma ponte movediça
que foi e está sendo construída com um trabalho árduo pela comunidade surda.

Considerações Finais

O desconhecimento da cultura surda principalmente pelos ouvintes ocasiona uma


limitação na atuação do surdo na sociedade, desse modo o espaço escolar pode contribuir na
valorização e importância da cultura surda na sociedade. A relação entre surdos e ouvintes no
ambiente escolar, de um modo geral ainda é restrita, apesar dos esforços, vê-se que o
conhecimento da LIBRAS por parte de professores ouvintes ainda é escasso.
Assim é possível afirmar que a cultura surda permanece sendo negada, havendo uma
intenção permanente de sobreposição por parte da cultura ouvinte, isso se mostra tanto na
comunicação quanto no modo de como se referir aos surdos.
Os surdos são pessoas que tem os mesmos direitos, os mesmos sentimentos, os
mesmos receios, os mesmos sonhos, assim como todos, não há motivos para serem
subestimados ou isolados da sociedade. A quebra da barreira entre surdos e ouvintes trará
benefícios diversos, pois a interação entre essas comunidades ampliará o conhecimento de
mundo.
Um questionamento que pode ser lançado a partir do estudo sobre a identidade de Hall
(2011) é sobre sua constante mudança. Então por que em nossa cultura se enraizou o
preconceito em relação aos surdos? Criou-se um contrassenso, algo que é mutável, fixou-se
um padrão. É passada a hora de estabelecer mudanças, as identidades são móveis, se
deslocam, então a visão sobre a comunidade surda precisa urgente de mudanças, de novos
padrões.
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A cultura surda vem conquistando seu espaço a cada dia, uma vez que seus membros
sejam eles ouvintes ou não têm se organizado de maneira a comunicar para a sociedade que
suas necessidades devem ser atendidas e suas peculiaridades devem ser respeitadas, pois não é
a quantidade, mas sim a qualidade das pessoas que estão comprometidas com a comunidade
que irá fazer diferença.
Os novos padrões dependem prioritariamente da comunidade ouvinte, pois os surdos
há muito tempo lutam por um espaço, por valorização e compreensão. A ponte movediça está
construída, porém a interação de fato só se consolidará quando os ouvintes se dispuserem a
passá-la.

REFERÊNCIAS

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