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LÍNGUA

BRASILEIRA DE
SINAIS

Fernanda Cristina Falkoski


A prática de Libras
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deverá apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer que a pessoa surda se constitui e interage com o mundo


por meio da experiência visual.
 Descrever a experiência visual dos surdos a partir de uma perspectiva
sociocultural e linguística.
 Identificar a influência da linguagem visioespacial no desenvolvimento
cognitivo da criança surda.

Introdução
Neste capítulo, você refletirá acerca de como as experiências visuais são
fundamentais para a pessoa com surdez e como auxiliam na comunicação
e na aprendizagem. Ouvintes são tão acostumados a viver no mundo
barulhento que nem percebem a importância que isso tem em seu dia
a dia. Por exemplo, ouvir música e ao mesmo tempo realizar outra tarefa
é algo muito comum. Já para o surdo, ir ao teatro ou ao cinema e conse-
guir acompanhar a fala e as ações que acontecem ao mesmo tempo é
muito difícil. É preciso fazer escolhas, ou olhar para o intérprete, quando
tiver, ou tentar apenas acompanhar os movimentos e, assim, buscar a
compreensão do que está acontecendo.
Em alguns dias não estamos bem, de saúde ou porque algo aconte-
ceu, e, ao chegar ao trabalho ou à escola, por exemplo, optamos por ficar
mais quietos e esperar que ninguém perceba. Entretanto, quando tem
uma pessoa com surdez por perto, isso se torna praticamente impossível,
pois a primeira pergunta que surge é: o que você tem? Está tão triste
hoje. Para as pessoas com surdez, nossas expressões faciais e corporais,
na maioria das vezes, dizem mais do que qualquer palavra ou sinal. Por
isso, quando passamos a conviver mais com surdos, precisamos nos
atentar a esses simples detalhes, que, na verdade, fazem muita diferença.
Para o surdo, no entanto, isso também precisa ser aprendido, assim
como para os ouvintes que ingressam na comunidade surda. Por isso,
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quanto mais cedo a criança surda estiver em contato com a língua de


sinais, conhecer e vivenciar experiências com surdos, tanto na escola
quanto na sociedade no geral, maiores serão as possibilidades de de-
senvolver sua identidade surda

Experiências visuais: formas de interagir


e se constituir com o outro
A diferença é algo positivo, pois somos todos diferentes e, ao mesmo tempo,
nos constituímos por meio dessas diferenças. Olhar a surdez por esse viés
favorece a compreensão de que os sujeitos surdos se diferenciam dos ouvintes,
sim, talvez pela comunicação, pelo modo de agir ou simplesmente pelo modo
de ver o mundo, mas eles não deixam de ser seres humanos como qualquer
outro. “Entender a surdez e os surdos a partir da diferença significa uma in-
versão do olhar da exclusão pelo isolamento no mundo do silêncio, passando
a entender a surdez como uma experiência e uma representação visual [...]”
(GIORDANI, 2012, p. 66).
A comunidade ouvinte tem seus costumes e hábitos permeados por expe-
riências auditivas, já a comunidade surda, por meio de experiências visuais.
Ambas se compõem de artefatos culturais muito parecidos, diferenciados, em
sua maioria, pela forma de expressão e recepção das informações.
Por exemplo, para o ouvinte, o sentido da música está na melodia que
acompanha a letra, e, sem isso, torna-se difícil compreendê-la. Já para o surdo
o que passará essa “melodia” será a forma de sinalizar, o movimento corporal
e a composição de sinais do intérprete é que possibilitarão que a emoção
seja ou não sentida pelo surdo. Cada ritmo precisa ser sinalizado com um
movimento corporal diferenciado, por exemplo, quando for pagode, o corpo
precisa se movimentar da forma como a melodia é percebida pelo ouvinte.
Assim acontece com cada estilo musical, por isso nem todo profissional se
dispõe a traduzir uma música, pois precisa mergulhar e se apropriar daquele
ritmo para conseguir repassar. Quando isso não acontece, se torna apenas
uma simples sinalização, e não uma música em Libras.
No caso das histórias, quando narradas oralmente, a fala das persona-
gens, a mudança de uma para outra, a organização da história e o gênero são
percebidos pela entonação de quem lê ou conta. O ouvinte percebe quando
não há um preparo prévio ou quando a pessoa que narra a história não o faz
com destreza. Quando elas são narradas ou contadas por meio da língua de
sinais, esses aspectos são passados por meio do corpo. Inicialmente, é feita a
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organização da história no espaço, ou seja, os elementos que a compõe vão


sendo distribuídos no espaço, à frente de quem sinaliza. A partir disso, toda a
história vai se construindo, e, para demonstrar quando um ou outro personagem
está falando, o posicionamento é usado, o que se dá por um leve movimento de
corpo; em relação à entonação, ela ocorre por meio da intensidade dos sinais
e do uso das expressões faciais e corporais.
Outro exemplo são os jogos, para os quais existem diferentes modalidades:
olímpiada, copa do mundo, competições em cada modalidade esportiva, entre
outros, pensando nos ouvintes. A comunidade surda normalmente organiza
uma olímpiada escolar ou olímpiada de surdos, a primeira organizada entre
escolas e instituições de ensino que atendam surdos, já a segunda conhecida
como Surdolimpíadas. Elas ocorrem a cada 3 anos em um país diferente,
sendo importante destacar que são diferentes modalidades disputadas e que o
Brasil vem se destacando ano após ano; agora também têm sido organizadas
no Brasil, entre os estados. Muito se discute o motivo de fazer separado de
outras pessoas com deficiência, porém, quando se pensa na principal diferença
do surdo para os ouvintes, aí começa a fazer sentido: a língua. Principalmente
se pensar na organização das regras e instruções que são feitas por meio da
língua de sinais: não seria justo e fácil que, em um jogo entre surdos e ouvintes,
o primeiro grupo recebesse dicas e orientações auditivas durante todo o jogo,
e o segundo grupo, não. Ao falar desse tópico, torna-se necessário fazer uma
ressalva quanto à divulgação esportiva, visto que dificilmente os noticiários
trazem notícias ou a cobertura desses encontros de pessoas surdas, pois ainda
se dá pouca importância para esses eventos, mesmo sendo de conhecimento
da sociedade a existência de uma comunidade surda.

Acesse o link a seguir para ler mais sobre as Surdolimpíadas.

https://qrgo.page.link/ChrQM

Observar esses aspectos consiste em olhar para a diferença, perceber que não
são músicas, histórias ou jogos diferentes, mas sim a forma como acontecem
e são organizados. Em algumas situações, é possível contar com a tradução
e a interpretação sem grandes prejuízos, já em outras, não. Esse fator precisa
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ser levado em consideração, pois nem sempre a diferença se resolve apenas


com a presença de um intérprete. É diferente um surdo assistir a uma peça de
teatro com personagens sinalizando e assistir a mesma peça com intérprete.
No primeiro caso, se olhar para a fala-sinalização, perderá a ação, e vice-versa.
Além dessas diferenças, outra que se destaca muito é a língua utilizada
pela comunidade. De acordo com Giordani (2012, p. 71), “A comunidade de
surdos se identifica essencialmente pela língua que usa [...]”, essa língua é
que auxiliará, juntamente com outros aspectos culturais, na construção da
identidade surda. No caso do Brasil, usa-se a Língua Brasileira de Sinais,
também conhecida como Libras. Todavia, deve-se deixar claro que cada país
tem a sua língua, porém todas seguem basicamente os mesmos princípios
quanto à sua composição de fonologia, morfologia e sintaxe.
O ser humano não nasce sabendo e dominando os conhecimentos necessá-
rios para viver em sociedade, esses conhecimentos precisam ser ensinados e
aprendidos. As possibilidades de aprendizagem e de ensino estão disponíveis
para todas as pessoas? Sim, a possibilidade de aprender sempre está disponível.
No entanto, elas nem sempre são proporcionadas, principalmente, para a criança
com deficiência. Muitas vezes, julga-se que algumas pessoas não podem ou
não conseguem aprender. Segundo Mazzotta e D’antino (2011, p. 379):

Situações de segregação, marginalização ou exclusão, de quem quer que


seja, concretizam atitudes que se configuram como violência simbólica. [...]
Historicamente, as pessoas que apresentam diferenças muito acentuadas em
relação à maioria das pessoas constituem-se alvo das mais diversas estratégias
de violência simbólica. Um dos segmentos populacionais reiteradamente
colocados nessa posição tem sido o composto de pessoas com deficiências
físicas, mentais, sensoriais ou múltiplas, além daquelas que apresentam outros
transtornos de desenvolvimento.

As pessoas com surdez já passaram por diferentes momentos ao longo


dos tempos, e aos poucos estão construindo e conquistando o seu espaço na
sociedade, porém essa não é uma tarefa fácil, pois exige dedicação, paciência
e muita compreensão. Entretanto, também exige que as pessoas em geral se
coloquem no lugar do surdo, desenvolvam a empatia, o respeito ao próximo.
Toda pessoa tem direito a aprender, mas é fundamental ter alguém que ensine,
e esse papel precisa ser desempenhado pela sociedade.
Segundo Kraemer (2012, p. 84), “São as diversas condições sociais, econô-
micas, culturais, tecnológicas que interferem na constituição de cada indivíduo.
A partir de suas interações e das condições que possibilitam essas interações,
cada sujeito internaliza formas específicas de se relacionar com os outros,
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com o meio e com ele próprio [...]”. No entanto, para que isso aconteça, a
sociedade precisa estar disposta a se tornar mais acessível e mais inclusiva
verdadeiramente, não apenas dizendo que existem escolas inclusivas ou que
existe acessibilidade para algumas situações e pessoas. Precisamos construir,
ou melhor, tornar, a sociedade de todos, para todos. Quantas vezes se encontra
alguém que saiba a língua de sinais ou um intérprete em qualquer lugar? Todos
os serviços estão disponíveis à comunidade em geral? Uma consulta médica,
uma sessão de cinema, uma instituição bancária, entre outras, têm meios para
atender à comunidade surda? Independentemente de ser uma pessoa que não
precise de adequações ou uma que precise, aqui, nesse caso, esse preparo seria
por meio do uso da língua de sinais.
Até mesmo em escolas e instituições que oferecem cursos na área e que se
dizem preparadas para atender à diferença, na verdade, não estão. Poderiam
ser relatadas diversas histórias de surdos em relação a esses espaços, mas
penso ser importante apenas destacar que, ao mesmo tempo que estamos
evoluindo, com novas descobertas, novas tecnologias, estamos deixando de
lado o mais importante: o ser humano que precisa da proximidade, do contato
visual, do olho no olho para receber e expressar informações, sentimentos,
emoções ou desejos. Foram criados diversos aplicativos que visam ao de-
senvolvimento tecnológico da comunicação, mas as pessoas esquecem que
a comunicação precisa ser feita entre pessoas, não por meio de aparelhos,
mas sim pessoalmente.
Um aplicativo, por exemplo, não usa expressão facial ou corporal ao dar um
sinal. Pensando na prática, o sinal de “triste” não é composto apenas por uma
configuração de mão, articulação ou ponto de contato. Ele necessariamente
precisa da expressão fácil de tristeza e da expressão corporal de encolhimento,
ou seja, o sinal, para ter seu sentido compreendido, necessita de todos esses
parâmetros.

Língua de sinais: artefato cultural e social


O uso da língua de sinais parte do pressuposto da interação visual, ou seja,
os sinais são produzidos e recebidos de forma visual ou tátil, no caso de
quem, além de não ouvir, também não enxerga, conhecidos como pessoas
com surdocegueira. Por vezes, o ouvinte não se dá conta de aspectos simples
na comunicação, mas que fazem toda a diferença para a pessoa surda, como
a forma de sinalizar, a composição da frase e dos personagens no espaço, a
vestimenta e os acessórios utilizados durante a fala.
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O termo fala é utilizado tanto na modalidade oral quanto na sinalizada, pois quem
sinaliza também fala, porém de outra forma.

Faz-se necessário mencionar um grupo que tem começado a aparecer mais


na sociedade e que, de certa maneira, muitas vezes faz parte da comunidade
surda: as pessoas com surdocegueira — principalmente quando nascem surdas
e vão perdendo a visão com o passar dos anos.
Existem dois movimentos distintos, aqueles que se consideram pessoas
com surdocegueira e aqueles que se consideram surdos com baixa visão.
Dessa forma, é preciso compreender que a forma de comunicação se aproxima
muito da comunidade surda, porém, nesses dois casos, ou a pessoa fará uso
da língua de sinais tátil, ou da língua de sinais em campo reduzido. Contudo,
da mesma forma, os parâmetros da língua devem ser respeitados e seguidos
para que haja sua correta compreensão.
De acordo com Paixão e Alves (2018, p. 48), “A visão de que a comuni-
dade surda é uma minoria linguística é muito importante porque interfere no
modo de lidar com a surdez, sobretudo, na educação e no modo de interagir
com o surdo. Por outro lado, demonstra um modo de constituir-se surdo [...]”.
Hoje, no Brasil, pode-se dizer que ainda são poucos os ouvintes usuários
da Libras, embora tenham sido criados cursos envolvendo o aprendizado
da língua. Todavia, as dificuldades persistem, pois situações como ir a
um médico ou a uma loja acabam tornando difícil a vida da pessoa com
surdez, devido ao fato de esta depender sempre de um intérprete ou fami-
liar que saiba a língua e possa fazer a mediação, o que faz haver sempre a
dependência de alguém.
Com o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como forma de
comunicação da comunidade surda, muitos foram os avanços conquistados. A
inserção da disciplina nos cursos de formação de professores e de fonoaudio-
logia, a oferta e o aumento de procura por cursos na área também são indícios
de uma preocupação. Paixão e Alves (2018) ainda abordam o aspecto positivo
da difusão da língua de sinais e, consequentemente, os espaços ocupados
por surdos que antes eram destinados apenas a ouvintes. Hoje, por exemplo,
se ouve falar de surdos na faculdade, no mestrado e no doutorado, inclusive
ocupando cargos de mais destaque, não só de empacotador de mercado ou na
produção de empresas, como somente acontecia.
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A sociedade tem muito a evoluir ainda, pois, em espaços básicos de saúde


e educação, na maioria das vezes, não há a garantia de comunicação ou,
então, recursos visuais que possibilitem a compreensão por parte da pessoa
surda. Pense no momento da consulta médica, aquela em que você já se sente
constrangido só de precisar falar com alguém sobre o seu problema, e ainda
precisa ter uma segunda pessoa que possa sinalizar ou explicar o que você
está sentindo ou o que está acontecendo, de modo que se tornam momentos
desconfortáveis para todos os envolvidos, não só para o surdo.
Além da sinalização, a Libras possui uma forma de ser escrita, o sistema
SignWriting. Esse sistema é pouco utilizado dentro da comunidade surda,
devido à sua complexidade, pois faz-se necessário desenhar o sinal com toda
a sua composição: configuração de mão, ponto de articulação e movimento,
deixando de lado as expressões facial e corporal apenas. No entanto, segundo
Paixão e Alves (2018, p. 48), esse sistema poderia ser utilizado “[...] para o
letramento do surdo, uma vez que, é um sistema de fácil aprendizagem pelo
surdo e que o letramento amplia o desenvolvimento do pensamento [...]”. En-
tretanto, ele se torna mais demorado do que a escrita por meio do português,
o que faz a maioria dos surdos optar por não utilizá-lo.
Nessa linha é que as escolas bilíngues surgem: para garantir o aprendizado
da língua de sinais como primeira língua e do português escrito como segunda.
No entanto, não é bem assim que tem acontecido, uma vez que, mesmo tendo
uma proposta bilíngue, a maioria das instituições acaba não a colocando na
prática, e, quando o surdo chega em locais que precisa também dominar o
português escrito, acaba não dando conta.
Existem muitas discussões a respeito do local mais adequado para os surdos
estudaram: escola inclusiva ou escola especial bilíngue. A partir de vários
estudos, tem-se apontado os benefícios de a criança estudar na escola onde
sua língua esteja em evidência em todos os espaços e momentos enquanto
estiver formando seu desenvolvimento inicial.
Pensar na escola inclusiva é, além de garantir a presença de um intérprete
ou professor bilíngue em sala de aula durante todos os momentos, favore-
cer o aprendizado da língua de sinais pelos alunos da turma, professores,
funcionários e, quando possível, estendê-la a todos os alunos da escola. Pro-
fessores que reclamam da não participação de seus alunos surdos nas aulas,
professores que dizem que surdo só se interessa pelo que quer e não aceita
o que ouvintes dizem não compreendem que a falta de comunicação, a falta
de fluência em Libras por todos os envolvidos possa ocasionar, sim, a falta
de interesse. O aluno surdo não consegue participar de todos os momentos
da escola “sozinho”, pois, para interagir com seus colegas ou outros alunos
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e com seu professor, ele precisa de alguém que conheça a língua e possa
fazer a mediação sempre. Segundo Thoma (2012, p. 97):

As escolas têm sido apontadas como o lugar onde as comunidades emergem,


e muitos as defendem como sendo de crucial importância para uma educação
bilíngue que reconheça a surdez como diferença linguística e cultural, pois
é no encontro com outros surdos que as crianças surdas se percebem como
diferentes e não como deficientes e inferiores. Quando isoladas e convivendo
apenas com ouvintes, essas crianças tendem a se olhar e a se narrar de modo
negativo, como sujeitos incompletos, deficitários, inferiores.

Conviver com seus pares, com aqueles que compartilham da mesma forma
de pensar, que usam a mesma língua, que têm costumes muito parecidos é
o que empodera o surdo e lhe dá status de integrante e participante de uma
comunidade, da sociedade, e não de apenas ser mais um, de alguém que
compartilha de um mesmo espaço e que segue todas as regras e convenções
de pessoas que não compreendem seu jeito de ser e agir.
O surdo acaba desenvolvendo e aprendendo diferentes formas de interagir
com o outro: usando mímica, gestos, desenhos e escrita conseguem entender e
se fazer entender. Quando o aluno surdo quer permanecer em escola e espaços
de ouvintes, ele se esforça, porém quando quer permanecer com os seus, acaba
por frequentar apenas escolas especiais de surdos, clubes ou associações onde
a sua língua é respeitada e tem o status de língua materna.

Acesse o link a seguir para ler o artigo “Forma de vida surda e seus marcadores culturais”,
de Witchs e Lopes (2018).

https://qrgo.page.link/vvs3R

Influências da linguagem visual para o


desenvolvimento cognitivo da criança com surdez
A aquisição da linguagem e, consequentemente, o desenvolvimento da língua
de sinais serão possíveis para a criança que for exposta a situações e ambientes
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onde esses aspectos estejam em evidência. A linguagem visual exerce uma


forte influência no desenvolvimento cognitivo da criança. Inicialmente, isso
se dá por meio do desenho:

[...] a atividade do desenho nos primeiros anos da infância não deveria ser
apenas mero passatempo. É importante que, em um determinado momento,
os primeiros traços da criança comecem a fazer sentido e trazer algum sig-
nificado, e é aí que entra o papel do adulto, da fala e da mediação. O desenho
infantil passa a ser significativo pelo ato de nomear (ZERBATO; LACERDA,
2015, p. 429).

Enquanto desenha, o mediador vai estabelecendo uma comunicação


com a criança com surdez. Normalmente, após uma história infantil,
brincadeira ou jogo pedagógico, esse momento, que é tido como lazer e
divertimento, pode proporcionar situações ricas de aprendizagens, e não
somente da língua.
Paixão e Alves (2018) apontam que a língua de sinais se torna um im-
portante instrumento de interação para o desenvolvimento humano, sendo
necessário dispor de diferentes espaços nos quais ela possa ser adquirida e
aperfeiçoada pelo sujeito, principalmente a criança. O primeiro lugar para esse
desenvolvimento seria a família, porém sabe-se que a maioria das crianças
surdas nasce em famílias de pais ouvintes que não dominam a Libras, o que
pode vir a prejudicar muito essas crianças.
Em famílias de ouvintes com filhos surdos, um aspecto que pode favorecer
muito a comunicação e a interação é o uso das expressões faciais e corporais,
pois, mesmo sem dominar a língua, elas estão disponíveis. Algumas vezes
associadas a gestos ou mímicas, essas expressões vão construindo o que
chamamos de sinais caseiros. Muitas crianças chegam à escola com essa
forma de comunicação inicial, que será aperfeiçoada e transformada em
uma comunicação formal, possivelmente realizada por meio da língua de
sinais. Todavia, destaca-se a importância de já ter vivenciado essas primeiras
experiências, que são a base para uma comunicação futura, da mesma forma
como acontece com a criança ouvinte, que tem seus primeiros contatos com
a língua em casa. Quando a criança entra na escola, essa língua será melhor
desenvolvida e aprendida.
Segundo Paixão e Alves (2018, p. 51), “A instituição educacional é um
espaço de formação humana e sociocultural para os indivíduos que dela
participam quando propicia espaços de respeito e promoção de identidade
e cultura dos grupos aos quais atende [...]”. Escolas onde se tenha um
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currículo bilíngue são fundamentais para essas crianças. Contudo, se


esse ensino for proporcionado aos outros alunos e funcionários da escola,
também favorecerá as relações sociais dessa pessoa com o ambiente no
qual está inserida.
Pensar no trabalho pedagógico do professor em sala de aula, tendo ou
não a presença de intérprete ou professor bilíngue, torna necessário buscar
diferentes recursos e materiais que possam facilitar o processo de aprendiza-
gem. Focar em aspectos visuais e concretos proporciona aulas interessantes,
mas não somente para os surdos, e sim para todos os alunos. O uso de vídeos
para a explicação de conteúdos, imagens reais e desenhos, maquetes, enfim,
diferentes formas de representação. De acordo com vários estudos, esses
recursos e metodologias diferenciados favorecem a aprendizagem não apenas
dos alunos surdos, mas de todos que terão acesso.
Pode-se pensar no uso de método de experiência de diferentes situações:
receitas culinárias, brincadeiras, passeios ou situações, sempre com registro.
O uso de histórias também é um importante facilitador desse processo. É
necessário propiciar ao aluno que ele seja o protagonista da sua aprendi-
zagem, que ele possa ajudar a conduzir as aprendizagens necessárias para
cada momento. O profissional da educação precisa estar atento a tudo o que
acontece em sala de aula, observar, anotar e refletir são ações básicas de
qualquer professor, mas, quando se trabalha com crianças que necessitam
de mais recursos, isso se torna fundamental. A partir dos erros e acertos é
possível planejar e pensar quais seriam os passos necessários para um maior
avanço e desenvolvimento do sujeito.
Uma turma que tenha um aluno surdo com certeza terá momentos de
aprendizagens mais significativas do que as outras turmas, pois a necessidade
de buscar recursos visuais não favorece apenas o ensino de quem não escuta,
mas sim de todo e qualquer aluno.
Um exemplo que poderia ser pensado para o ensino do sistema solar:
o professor utiliza, além da sua explicação falada, vídeos, imagens e até
mesmo uma representação por meio de maquete desse sistema solar, com
sua composição espacial, suas especificidades, o que faz todos os seus alunos
abstraírem e compreenderem o conceito de forma mais rápida e concreta. Por
vezes, esquecemos da importância do concreto e do visual.
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Algumas considerações
Refletir sobre tudo o que acabou de ser apresentado pode favorecer ao professor
uma mudança de visão, de postura, não apenas como profissional, mas como
ser humano. Trocar conhecimentos e aprendizagens na diferença é isso, é
aprender com o que o outro tem a oferecer, é usar outra língua, diferentes
recursos e ir cada vez mais se aperfeiçoando. A língua de sinais exerce um
papel crucial para a pessoa com surdez e a comunidade surda, não apenas por
ser o principal meio de comunicação, mas também por dar conta de diferentes
aspectos que não são possíveis de outra maneira.
As experiências visuais são fundamentais para as pessoas com surdez,
pois possibilitam a interação com a comunidade ouvinte e seus pares.
Quantas vezes já nos comunicamos por meio de mímica, gestos ou desenhos,
quando não sabíamos a língua de sinais e precisávamos nos comunicar com
um surdo? Quantas vezes essa também não foi a única opção encontrada
por falantes de línguas orais? Contudo, costumamos não dar importância,
não dar bola, pois pensa-se que a Libras seja uma língua sem status, sem
reconhecimento, o que está totalmente errado. Ela vem, aos poucos, se
constituindo enquanto forma de comunicação do surdo e vem conquistando
seu espaço na sociedade.
Existem diferentes leis que dão conta, no papel, da garantia de direitos,
porém, na prática, isso nem sempre acontece, o que precisa mudar. Quando
um programa de televisão que deveria ter intérprete não tem, está descum-
prindo uma lei de acessibilidade existente. No momento em que as escolas
não contam com profissionais qualificados e com formação específica para
atender os alunos surdos, está deixando de seguir os documentos legais. Esses
são apenas dois exemplos, mas poderiam ser dados tantos outros, devido a
tantas falhas que encontramos no sistema e que muitas vezes poderiam ser
evitadas se as pessoas exercessem a função de se colocar no lugar do outro.
Se eu estivesse nessa situação, como eu agiria? O que eu pensaria? O que
faria? Será que eu gostaria de estar em locais onde eu não compreendo o
que é dito e comentado, sendo que minha língua é reconhecida como minha
forma de expressão?
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Quando, em uma sala de aula com 27 ouvintes e 2 surdos, o intérprete falta e não tem
ninguém com formação que possa desempenhar a função, os alunos permanecem uma
manhã ou tarde toda sem compreender nada do que é dito em sala de aula. O professor
está explicando um conteúdo muito importante que será assunto da prova, mas ele não
preparou nenhum recurso visual, pois conta apenas com a tradução do intérprete. Num
primeiro momento, ele se apavora, tem vontade de sair correndo, pois não sabe o que fazer.
Há duas situações:
1. Aquele professor que buscará formas de passar seu conteúdo de modo que todos
os alunos consigam apreender as informações: pode usar de desenhos no quadro,
pode fazer com que os alunos surdos sentem próximos de ouvintes que saibam de-
senhar ou fazer esquemas que tornem o registro do conteúdo com poucas palavras.
2. Aquele professor que pensará “bom, vou fazer o quê, não é problema meu que o
profissional tenha faltado, não sou eu quem não escuta. Então vou seguir dando mi-
nha aula, falando normalmente e fazendo tudo como se estivesse num dia normal”.
Com certeza, nesses dois casos, os alunos que seriam prejudicados são da segunda
situação, pois o professor não se colocou no lugar deles e nem buscou formas de
fazer aquele momento rico de aprendizagens. Já no primeiro caso toda a turma sairia
ganhando, pois os alunos, apenas pelo fato de vivenciarem a preocupação do professor,
teriam a possibilidade de mudar sua postura, aprendendo pelo exemplo dado.

Que essas reflexes possibilitem outras tantas que se fazem necessárias, bem
como possam desencadear uma mudança inicialmente interna e, posteriormente, na
sociedade em geral, com cada um fazendo a sua parte e participando da sua forma.

GIORDANI, L. F. Educação de surdos: práticas de letramento e significação. In: LOPES,


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Leituras recomendadas
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