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FESTA E MORTE - um olhar sobre redes educativas e rituais fúnebres

afrodescendentes

RESUMO

O presente trabalho pretende olhar para as redes educativas estabelecidas


por afro-descendentes em ambientes religiosos ou não. Essas redes, invisibilizadas
através dos espaços e tempos, são tecidas nas ruas, praças e escolas, ainda que esses
corpos sofram tentativas de silenciamento e domesticação. Até em momentos
extremos, como os rituais fúnebres, a festa dos corpos se manifesta, revelando
processos culturais que envolvem intensamente sentidos que, muitas vezes, não se
manifestam com toda sua potência na escola. Cheiros, texturas, cores, sabores,
sons, movimentos de encantamento do cotidiano estão presentes nos rituais de
Axexê e nas brincadeiras do Gurufim, nos fazendo perceber que não há limite para
a poesia, quando democratizamos a produção de conhecimentos.

Palavras chave: Redes educativas, Corpo, Festa, Morte


FESTA E MORTE - um olhar sobre redes educativas e rituais fúnebres
afrodescendentes

Lucio Sanfilippo e Elaine Marcelina

APRESENTAÇÃO

As práticas religiosas de matrizes africanas, como o candomblé e a umbanda,


são manifestações que constituem extrema importância na história, na cultura brasileira.
Dizemos isso para que, ainda na apresentação deste trabalho, dissolva-se qualquer ideia
de que estejamos defendendo alguma possibilidade de ensino religioso na escola ou
predominância de uma forma religiosa sobre outra. O Estado é laico e concordamos
com essa postura. Acontece que a religiosidade para o povo negro sequestrado de
várias regiões do continente africano, segundo alguns autores, é estratégia de
sobrevivência, resistência e sofisticação de processos de recriação de realidades,
portanto, dado imprescindível para qualquer tentativa de compreender o universo
afrodescendente na diáspora.

Para um melhor entendimento, tomemos o livro A Galinha d’Angola: Iniciação e


Identidade na Cultura Afro-Brasileira. Lá, há a ideia de que houve três formas de o
negro não aceitar a escravidão a que foi submetido: o banzo, o quilombo e a
religiosidade (VOGEL, MELLO, BARROS, 1993). As duas primeiras – espécie de
introspecção e depressão profundas; e fuga, revolta, embate –, segundo os autores,
levaram à morte em massa. Já na última, com a disposição de perdurar, desenvolveram-
se processos rebuscados de negociação cultural no culto, desde a reorganização do
panteão até a adaptação culinária e ritual, passando pela língua e costumes tão plurais
quanto singulares. Sendo a religiosidade uma das formas de sobrevivência e resistência
de muitos povos negros sequestrados, conhecer alguns desses processos de recriação de
padrões é conhecer a história dos africanos e afrodescendentes e cumprir a Lei
10639/03. Além, é claro, de acessar complexas redes de produção de conhecimento em
que todos os sentidos estão intensamente envolvidos.
Sabemos que existe um paradigma de conhecimento, fruto do colonialismo, que
despreza aqueles saberes que não caibam em sua lógica. Assim, desprezam
experiências importantes às quais pretendemos dar mais visibilidade e trazer para uma
reflexão educacional. Como nos chama atenção Santos: “Em primeiro lugar, a
experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a
tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo
lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada.” (SANTOS, 2008, p. 94).

Tomando como verdades apenas aquelas que satisfazem seus projetos de


continuidade e de dominação, produzem como inexistência ou como algo menor tudo
aquilo que não conseguem compreender. Trazer as realidades, os paradigmas de
saberes que os negros africanos escravizados negociaram, transformaram,
redimensionaram na diáspora e, principalmente, no caso do Brasil, é maneira de
valorizar sua trajetória de lutas e enriquecer as possibilidades pedagógicas com belezas,
riquezas e festa. Levando em consideração que essas experiências e saberes ainda estão
em grande parte distantes das universidades e escolas, pensamos que apresentar
universos que enriqueçam as realidades dos educadores seja de grande importância.

Consideramos que, nesse universo negro da diáspora, a festa guarda referências


importantes de processos culturais e redes educativas estabelecidas nos tempos e
espaços. Interessam-nos, principalmente, as histórias, as memórias, os anseios, as
críticas, as necessidades, as formas de viver das comunidades manifestadas nas danças,
cantos, culinária, cheiros, cores, sabores, música, lendas, mitos, artes, enfim, as culturas
das comunidades nessas festas. Em um universo de incomensuráveis possibilidades,
vamos perceber como até em momentos extremos, como a morte, a celebração se faz
importante.

FESTA E EDUCAÇÃO

Pensamos que na festa – e em tudo o que ela representa -, estão envolvidas ricas
redes educativas (Alves, 2012), e não seria diferente no tocante aos ambientes formais
de ensino como escolas e universidades. A festa traz um pouco do movimento das ruas
e praças que pode desestabilizar os tempos e espaços que costumam valorizar saberes
outros, alicerçados que são pela ciência e filosofia tradicionais.

Boaventura de Souza Santos chama atenção para as limitações dessa ciência e


dessa filosofia ao não valorizarem devidamente as tão ricas produções pelo mundo
afora. Como vimos, Santos (p.94, 2008) chamou atenção para as experiências de
mundo desperdiçadas. Ele propõe, para combatermos esse desperdício, uma
racionalidade cosmopolita que precisa expandir o presente e contrair o futuro. E aponta
caminhos: “para expandir o presente, proponho uma Sociologia das Ausências; para
contrair o futuro, uma Sociologia das Emergências”. (SANTOS, p.95, 2008).

A Sociologia das Ausências, em curtas palavras, permitiria enxergar


experiências tornadas invisíveis pela ciência moderna. Pelas palavras de Oliveira
(2008) podemos entender: “um método sociológico que permite (des)cobrir existências
invisibilizadas pelo cientificismo moderno, que se permitiu considerar inexistente ou
negligenciável tudo aquilo que não se encaixava no seu modelo de racionalidade.”
(p.66)

Convencemo-nos mais a cada dia de que os complexos culturais dos universos


das culturas negras, incluindo aí os religiosos da diáspora, são algumas dessas
experiências educacionais desperdiçadas, invisibilizadas pelas lógicas hegemônicas de
que nos falam Santos e Oliveira. Sentimos em suas manifestações o movimento de
corpos que atuam na subversão dessa ordem que insiste em rotulá-lo como inexistente.

O corpo e suas memórias culturais emergem, preenchem os espaços e tempos e


nos convidam a perceber com ele realidades às vezes muito diferentes do que
costumamos ver no dia a dia. O movimento do corpo que festeja nos candomblés traz
um elemento afetivo e lúdico importante para o dia a dia da educação, estabelecendo
uma espécie de rede de encantamentos. Para que a festa aconteça, é preciso que haja
canto, dança, percussão, comida, ornamentação, uma movimentação onde panos, cores,
cheiros, texturas se integram com as pessoas, tendo essa festa como motivação.
Corpo Cultural

Corpo cultural, segundo Jorge Sabino e Raul Lody é “um corpo que, antes de
tudo, retrata um lugar, um tempo histórico, atividades, profissões, religiosidade,
ludismo, rituais de sociabilidade e formas de comunicação.”. (SABINO, LODY, p. 15,
2011). Apropriamo-nos desse conceito, para tentar entender os complexos culturais
festivos e as suas manifestações enunciadas a partir do elemento corporal. Porque é
festa, é dança, é música, é ritmo, é toque, é história etc., caminha com esse corpo e por
intermédio dele, um corpo negro que se movimenta festivamente, reinventando-se pelos
espaços e tempos, revelando e desvelando memórias toda vez em que se expressa. Um
corpo que é alma, porque vive música, dança, ritmo, tempo e espaço, como escreveu
Muniz Sodré: “(...) música não se separa de dança, corpo não está longe da alma, a boca
não está suprimida do espaço onde se acha o ouvido.” (SODRÉ, 2007, p. 61).

Assim, assume-se esse corpo como um lugar de produção de conhecimento,


independentemente dos lugares e dos tempos em que age, com características próprias
de tessitura de saberes. Apreciemos o que Caputo escreveu a respeito dos terreiros
religiosos:

“Entendo os terreiros como espaços de circulação de conhecimentos,


de saberes, de aprendizagens. No cotidiano das casas de Orixás e nas casas de
Egun, se aprende e se ensina com as ervas, as comidas, a confecção das
contas, as músicas, as oferendas votivas, as cores, os cheiros, as danças, os
panos, as artes, as roupas, os artefatos, a vida, a morte. Tudo aprende e tudo
ensina. Acredito que esses conhecimentos e saberes que circulam nos
terreiros precisam ser ainda mais conhecidos, divulgados, defendidos e
partilhados porque são capazes de ‘questionar, desnaturalizar e
desestabilizar’ essa realidade monocultural e por vezes obscurantista da
sociedade e da escola”. (CAPUTO, p.257, 2012)

O corpo cultural que guarda, cria e recria memórias ancestrais pode e deve
subverter essas ordens. Simas (2016) sugere que a ordem de domesticação dos corpos
seja um projeto colonial que deve ser combatido pelos discursos do corpo:

“O projeto de normatização da vida na cidade encarada como


empresa pressupõe, para que seja bem sucedido, estratégias de
desencantamento do mundo e aprofundamento da colonização dos corpos. É
o corpo, afinal, que sempre ameaçou, mais do que as palavras, de forma mais
contundente o projeto colonizador fundamentado na catequese, no trabalho
forçado, na submissão da mulher e na preparação dos homens para a
virilidade expressa na cultura do estupro e da violência: o corpo convertido, o
corpo escravizado, o corpo domesticado e o corpo poderoso. Todos eles
doentes.

Para combater um projeto que necessita do adoecimento das gentes,


regado a muita água benta e caixas de tranquilizantes, só nos resta fazer o
simples: tudo. A vida terá que ser reinventada no vazio, que pode ser o do
desânimo mas pode ser também o da criação do sincopado. Discursos não
verbalizados, burladores das cultas gramáticas, terão cada vez mais que se
manifestar a partir dos corpos que transitam na desafiadora negação da morte,
como são os corpos-cavalos das canjiras de santo e giras de lei.” (SIMAS,
10/06/2016).

A citação longa de Simas se justifica porque fomenta um debate amplo a


respeito de demandas, infelizmente ainda atuais, como a cultura do estupro e da
violência, intolerância religiosa – que renderiam uma pesquisa inteira - e a
domesticação dos corpos, trazendo para as reflexões acadêmicas todo um encantamento
dos terreiros e suas realidades.

Lembremos que, sequestrados de sua terra natal, esses corpos negros têm
resistido ao longo dos espaços e tempos da afro-diáspora, negociando nas frestas do
poder hegemônico e recriando a festa que preserva, cria e recria suas histórias em meio
à mazela do cativeiro. Assim, como bem escreveu Simas, “nós somos herdeiros dos
homens que bateram tambor na fresta e criaram a subversão pela festa” (p. 37, 2014).

Com as frestas e festas religiosas dos terreiros e das comunidades pelos espaços
e tempos, é possível contemplar o encantamento de outros universos educativos,
livrando da invisibilidade, sobretudo aos olhos científicos hegemônicos, culturas negras
de belezas e riquezas incomensuráveis. Entendemos também que, com essa
experiência, é possível ampliar a reflexão educacional aos padrões estabelecidos nos
ambientes formais de ensino, a partir de práticas, pensamentos, lutas, resistências,
negociações e recriações de populações inteiras sequestradas de diferentes nações
africanas.
AS FESTAS FÚNEBRES

O universo das manifestações de matrizes africanas é festivo por excelência.


Nas ruas ou nos templos religiosos, as celebrações em que bebidas, comidas, batuques,
cores, cheiros, danças são uma constante. Feijoada, roda de jongo, capoeira, samba,
coco, tambor de crioula, ciranda, cortejos de congada e maracatu são apenas alguns
exemplos de manifestações populares festivas. No rico leque de expressões religiosas,
se considerarmos apenas os candomblés – religião brasileira criada a partir de diversos
referenciais culturais dos negros sequestrados de diversas etnias, como iorubás, fons e
bantos –, podemos citar diversas festas. Quem nunca ouviu falar no presente de
Iemanjá? Nesse universo iorubá do culto, também chamado Ketu, temos as Águas de
Oxalá, a Fogueira de Xangô, o Olubajé, as festas de Ogum, Oxóssi, Ossain, Exu1 e
tantas outras.

Estas festas celebram as divindades, revivem e recriam suas histórias


mitológicas e encantadas por intermédio de danças, cantos, toques de atabaques, panos,
cores, comidas, sabores, cheiros. As comunidades exercem sofisticadas e coletivas
atividades corporais que redimensionam memórias que produzem laços afetivos e
identitários, onde lutas e modos de viver apresentam-se rica e variadamente, sob
diferentes nuances. Até em momentos extremos, como a morte, os corpos celebram
vidas e lembranças.

É assim, por exemplo, nos ritos de candomblé chamados de Axexê. Vejamos o


que Prandi nos diz sobre isso:

O termo axexê, que designa os ritos funerários do candomblé de nações


iorubás e fon-iorubás, é provavelmente uma corruptela da palavra ajèjé. [...]
O axexê que se realiza no candomblé brasileiro pode ser pensado como um
grande ebó, com a oferenda, entre outras coisas, de carne sacrificial ao
espírito do morto, e no qual se juntam seus objetos rituais. (PRANDI, 2005,
p. 59).

1
Exu, Oxalá, Xangô, Ossain, Oxóssi, Iemanjá. Ogum são Orixás, divindades iorubanas distribuídas por
estados/nações africanos e cultuados em terreiros ou roças de candomblés no Brasil e outros países das
Américas.
Podemos dizer que Axexê é um ritual fúnebre realizado quando da morte de um
membro importante do terreiro de candomblé, como um babalorixá ou ialorixá2.
Tomemos como exemplo, o Axexê de Mãe Regina de Iemanjá, do Axé Ilê Yamim,
também conhecida como Mãe Regina de Bamboxê.

Neste caso, trata-se do funeral da mais importante liderança do terreiro, a


Ialorixá, que com sua morte sai do Ayê (mundo dos vivos) e passa para o Orun (mundo
dos mortos) através do rito de passagem entre estes mundos. Para os adeptos, a Ialorixá
Regina não está morta, mas passa, então, a ser um ancestral ou egun, conforme afirma
Reginaldo Prandi (2000):

Para os iorubas, existe um mundo em que vivem os homens em contato com


a natureza, o nosso mundo dos vivos, que eles chamam de aiê, e um mundo
sobrenatural, onde estão os orixás, outras divindades e espíritos para onde
vão os que morrem, mundo que eles chamam de orum. (PRANDI, 2005)

Prandi, em seu Mitologia dos Orixás, narra como teria surgido o axexê:

Vivia em terras de Queto um caçador chamado Odulecê.


Era o líder de todos os caçadores.
Ele tomou por sua filha uma menina nascida em Irá, que por seus
modos espertos e ligeiros foi conhecida por Oiá.
Oiá tornou-se logo a predileta do velho caçador,
Conquistando um lugar de destaque entre aquele povo.
Mas um dia a morte levou Odulecê, deixando Oiá muito triste.
A jovem pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo.
Reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê
E enrolou-os num pano.
Também preparou todas as iguarias de que ele tanto gostava.
Dançou e cantou por sete dias,
Espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto,
Fazendo com que se reunissem no local todos os caçadores da terra.
Na sétima noite, acompanhada dos caçadores,
Oiá embrenhou-se mata a dentro e depositou ao pé de uma árvore
sagrada
Os pertences de Odulecê.
Nesse instante, o pássaro agbé partiu num voo sagrado.

Olorum, que tudo via,


Emocionou-se com o gesto de Oiá-Iansã
E deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos
Em sua viagem para o Orum.
Transformou Odulecê em orixá
E Oiá na mãe dos espaços sagrados.
A partir de então, todo aquele que morre
Tem seu espírito levado ao Orum por Oiá.
Antes porém deve ser homenageado por seus entes queridos, numa
festa com comidas, canto e dança.

2
Babalorixá, pai do Orixá e Ialorixá, mãe do Orixá, são os chefes de culto, conhecidos como pai e mãe de
santo do terreiro.
3
Nascia, assim, o ritual do axexê. (PRANDI, 2001, p. 310 e 311)

Como podemos perceber, a despedida do ente querido se dá por meio de danças


e cantos, comidas de que o morto gostava, e seus pertences. Com a Ialorixá Regina de
Bamboxê não foi diferente.

Durante uma semana, tocou-se, cantou-se e dançou-se para ela e para os


ancestrais da comunidade. O terreiro bebeu, comeu e se despediu festivamente da
grande matriarca. O ritual fúnebre foi marcado por grandes emoções, segundo os
membros da casa, pois em sua passagem para o orun, mundo dos mortos, quem
responde agora é seu egun – espírito – ou ancestral, e durante todo o axexê lhe foi
perguntado, através do jogo de búzios feito por seu sobrinho carnal Pai Air, qual seria o
destino que Iemanjá reservara para todos do Axé Ilê Yamim. Assim, também por
intermédio do oráculo, seria definido o destino da casa, o herdeiro do axé e como toda a
comunidade do terreiro deveria agir dali por diante.

Após os 7 dias de axexê pós morte da Ialorixá, a casa ficou fechada, reabrindo
com um novo axexê – o axexê de um ano – quando o jogo de búzios definiu
efetivamente os herdeiros da liderança da comunidade. Depois desse ano fechado para
cumprir o luto, o Axé Ilê Yamim foi reaberto, já sob a administração da Ialorixá Lina de
Oxumarê, ao lado do seu filho carnal Pai George de Xangô. Todos os filhos da casa
sabem da determinação de Ifá, o oráculo, pois muitos estiveram presentes no evento.

O Axé reabriu suas portas no final de 2010, dando continuidade ao sistema do


terreiro tal como era anteriormente. Os ritos anuais da casa foram cumpridos seguindo
os odus da casa: nesse período, eram as Águas de Oxalá, depois Ogum, Oxossi e
Ossain, depois as Yabás.

A festa nos candomblés só fica interrompida na roça em tempos de luto. Afora


isso, todos os ritos são frequentemente regados a muito toque, canto e dança, bebida,
cafés da manhã fartos, almoço, e muitas histórias, lembranças e memórias corporais
ancestrais compartilhadas em comunidade.

*Professora e pesquisadora do IPN (Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos), Mestre em História
Social.
3
PRANDI, Reginaldo: Segredo dos Orixás (Mito narrado por Mãe Stella, Ialorixá do Axé Opô Afonjá,
mito que resume bem a ideia do axexê como cerimônia de homenagem ao morto. 2005, p. 59.
A morte, para os afrodescendentes, também possui características lúdicas fora
dos candomblés. Vejamos o que nos diz Simas sobre o Gurufim:

‘Tem um tradição muito forte, sobretudo entre os descendentes de


africanos, os bantos fazem isso muito, que é a turma que vinha daquela
região do Congo-Angola, África central, e é o que essas comunidades
chamava de gurufim. O gurufim é aquele velório que é uma celebração, que
é uma festa, em que literalmente você bebe o difunto. Então, na história do
Rio de Janeiro, sobretudo na população afrodescendente, a tradição do
gurufim, a tradição da festa, a tradição da bebida, a tradição do canto, pra
você louvar o morto, ela é uma tradição muito famosa. Você pega a história
de grandes sambistas a dona Lygia Santos e a Marilia Barboza têm um livro
sobre Paulo da Portela que começa com o gurufim do Paulo da Portela, como
é que foi aquele gurufim, todo mundo cantando, todo mundo sambando...
então é uma concepção da despedida que é bem distinta daquela concepção
ocidental que é mais pesada, pranteada. O gurufim é uma grande festa.”
(SIMAS, http://m.cbn.globoradio.globo.com/media/audio/78739/mistura-de-
enterro-seguido-de-festa-tem-uma-tradic.htm, 2017).

Como podemos perceber, o velório fora das casas de candomblé também é


festivo. Feito normalmente na casa do falecido, o gurufim atravessa a noite à base de
comida e bebida, música e brincadeiras de diversas naturezas. No livro sobre Paulo da
Portela, de que acima nos fala Simas, Silva e Maciel (1979) trazem várias definições e
narram várias dessas brincadeiras contadas por grandes sambistas.

Mestre Alvaiade, tradicional compositor da Portela, à época com 68 anos, diz às


autoras que no gurufim “tem várias brincadeiras (...) as pessoas se reúnem em torno
daquele corpo, na casa do morto, conversando, para passar a hora e aguardar o funeral”.
(SILVA, MACIEL, 1979, p. 27). Tia Doca, a grande e já falecida pastora da Velha
Guarda da Portela, na época com 40 anos, explica detalhadamente uma dessas
brincadeiras:

“’Gurufim’ é o seguinte: cada elemento que está participando do


‘gurufim’ é um peixe – um é baleia, outro é sardinha, outro é corvina etc..
Todo mundo, então fica – Gurufim, gurufim, passou por aqui: manjou
sardinha. Aquele que é sardinha, responde: - sardinha não manja, que é que
manja? Garoupa. Então, ‘a garoupa’ responde: garoupa não manja, que é que
manja? Baleia. Assim, vão falando o nome de todos os peixes. O indivíduo
que estiver distraído e não responder, leva bolo” (SILVA, MACIEL, 1979, p.
27).
A festa, a música, a dança, a bebida, a comida, a brincadeira parecem mesmo
tirar o peso que os funerais têm na cultura ocidental herdada da Europa. Podemos
mesmo perceber uma certa leveza na definição, trazida pelas mesmas autoras, de uma
criança do Morro do Borel, de 10 anos de idade: “Gurufim é a festa que a gente faz
quando morre alguém no morro”. Ela parece mesmo complementar o que disse Seu
Aníbal Silva, compositor do Salgueiro, com 60 anos, na época: “Gurufim é o velório
sem capela, em casa mesmo, com saudade e risada, lembrança e cachaça e muitas
brincadeiras. Faz a morte não ficar tão feia.”. (SILVA, MACIEL, 1979, p. 27).

As autoras concluem:

a) gurufim é corruptela de golfinho;


b) o golfinho era um peixe participante da comitiva de acompanhamento
dos mortos, que atravessavam o mar para alcançar o outro mundo,
segundo crença egípcia;
c) muitos negros escravos brasileiros foram trazidos do Sudão, região
limítrofe com o Egito;
d) a ideia do golginho ligada à morte faz parte, então, do folclore africano;
e) o negro da América prosseguiu, em nossas terras, o culto a seus mortos;
f) aqui, por uma série de fatores sócio-econômicos, preservou-se em
comunidades proletárias, ditas favelas;
g) pelo contato, seus hábitos religiosos se difundiram pelos outros grupos
étnicos que povoaram as mesmas áreas;
h) logo, acha-se explicado o fenômeno gurufim nos grupos proletários do
Rio de Janeiro e São Paulo, não pela consciência de sua origem e
evolução, mas pela presença do peixe em todas as brincadeiras que
acompanham as referidas cerimônias do velório. SILVA, MACIEL,
1979, p; 29)

A maneira festiva com que a população descendente de africanos lida com a


morte, seja nos ambientes religiosos ou nos morros e comunidades, renderia pesquisas
riquíssimas. Neste artigo, nem falamos, por exemplo, dos cultos a eguns em Itaparica e
no Rio de Janeiro, das sociedades como a Nossa Senhora da Boa Morte e tantas outra
manifestações, e já nos deparamos com riquezas simbólicas rituais incomensuráveis.
Quem sabe quanto ainda nos podem surpreender essas culturas?
CONSIDERAÇÕES

Sabemos que as redes educativas se estabelecem pelos tempos e espaços e que


os muros da escola não estabelecem limites para elas. A interação entre os seres
humanos tem produzido saberes que o poder, nas suas mais variadas e disseminadas
ações, acaba privilegiando em detrimento de outros, através dos espaços e tempos. Os
saberes negros produzidos nessas redes na diáspora são exemplos desses conhecimentos
negligenciados, pouco aproveitados e desperdiçados, como nos alertou Santos (2010).

Com este pequeno artigo, pudemos conhecer um pouco mais desses processos
culturais que nos revelam corpos sagrados e suas memórias ancestrais. Festivamente, a
vida e a morte se recriam, transbordando e subvertendo o poder que tenta disciplinar os
corpos. Ao se reinventarem constantemente, os afro-brasileiros nos têm mostrado como
driblar a domesticação dos corpos, produzindo belezas e realidades, exercendo sua
vocação para a celebração.

Cantando, dançando, tocando instrumentos, cozinhando, comendo, bebendo,


costurando, as culturas populares de matrizes africanas nos têm feito notar como
perdemos oportunidades de tecer afetos e produzir conhecimentos quando aprisionamos
nossos corpos nas carteiras das escolas. Afastados dos cheiros, das texturas, dos
sabores, das cores em processos que cerceiam movimentos e sentires, corpos não
rendem tudo o que podem, enfraquecem, são castrados.

Na medida em que percebemos a potência desse corpo que festeja, seja nas ruas,
nas praças, nos ambientes mais formais de educação como universidades e escolas,
abrimos um leque de possibilidades de processos de aprendizagem-ensino que pode
revolucionar a maneira como temos enxergado a educação e encantar o cotidiano. Mas
os poderes que agem em várias instâncias da vida não têm interesse em uma educação
encantada.

Como a maioria da população brasileira é predominantemente formada por


descendentes de negros e indígenas, sua natureza é festiva. Festiva, porque como já
dissemos, enxerga o corpo como templo de tessitura de afetos e saberes; porque
aproveita os sentidos e os movimentos que fazem para reinventar as realidades. Quando
o cotidiano escolar privilegia atividades em que o corpo é tolhido de grande parte de seu
potencial criativo, forçamos esse corpo a se adaptar a realidades que não fazem parte de
suas memórias corporais, de sua ancestralidade. E isso se estende às avaliações que
peneiram nossos jovens na porta das universidades, quando por intermédio de seleções
predominantemente teóricas que reproduzem essas práticas hegemônicas, deixamos de
fora do ensino superior esses corpos.

Neste sentido, o aprisionamento do corpo pode ser considerado


antidemocrático, já que escolhe um tipo de conhecimento a ser medido que exclui os
sentidos e os movimentos que são parte inerente às redes educativas tecidas pela
maioria da população brasileira em seus mais variados cotidianos. Mas isso é tema para
outro artigo.

O que quisemos com este texto, é dizer que até na hora da morte, a festa está
presente, o corpo não se cala, os sentires não cessam. Os que ficam celebram a saudade
cantando, dançando, bebendo, enfeitando, brincando, tocando, comendo, encantando
esse momento extremo. Podemos notar esse encantamento no mito da invenção do
axexê por Iansã, onde os negros conseguem encher de poesia um ritual fúnebre, sem
limites. Os que vão, por intermédio de seus pertences, suas comidas favoritas, suas
histórias, suas lembranças, ficam vivos nas memórias que o festejam, vivendo, assim,
nos corpos que criam e recriam poesias e felicidades pelos tempos e espaços.

REFERÊNCIAS

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros: e como a escola se relaciona com
crianças de candomblé. 1ª edição. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. 2. Ed. Belo Horizonte:
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________________. Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.
SABINO, Jorge; LODY, Raul. Danças de Matriz Africana: antropologia do movimento.
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