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ISSN: 2238-1112

Para citar esse documento:


PETRONÍLIO, João Paulo; BIRIBA, Raissa Conrado. Ancestralidade como território
cíclico de identidades contemporâneas na dança. Anais do 6º Congresso Científico
Nacional de Pesquisadores em Dança – 2ª Edição Virtual. Salvador: Associação
Nacional de Pesquisadores em Dança – Editora ANDA, 2021. p. 2835-2845.

www.portalanda.org.br

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ISSN: 2238-1112

Ancestralidade como território cíclico de identidades


contemporâneas na dança

João Paulo Petronílio (UFBA)


Raissa Conrado Biriba (UFBA)

Dança e Diáspora Negra: poéticas políticas, modos de saber e epistemes outras

Resumo: A diáspora transatlântica negra africana no Brasil, através de relações


cruzas e conflitos com as culturas originárias e europeias, produziu uma gama de
complexidades sígnicas, simbólicas, culturais, filosóficas, econômicas, entre outras
no território brasileiro. Diante das trocas e recuos proporcionados pelo
acontecimento da diáspora, os modos de vida africanos foram ciclicamente
atualizados sob conceções e imposições socioculturais já existentes na terra
nomeada Brasil. Por suas complexidades, tais relações produziram novos pontos de
identificações que explicitam a experiência da diáspora transatlântica e suas
continuidades - reveladas nos modos de vida que dizem sobre os povos originários
(indígenas), africanos e suas descendências (negros brasileiros), europeus
(colonizadores) e suas atualizações. Neste sentido, percebemos o fenômeno que
alcança esses novos modos de vida sob a perspectiva das identidades culturais e
seus desdobramentos, propondo relacionarmo-nos com a conceituação do que
chamamos identidades contemporâneas na dança. Ao compreendê-las no espaço-
tempo do agora - a partir dos movimentos que formam tais identidades e das
identidades que constituem tais movimentos - nossa discussão considera as
identidades como território plural, movediço. No entanto, atávico à ideia de
ancestralidade: território cíclico de trânsito entre tempos, que se revela no corpo e se
move por/entre anterioridades no acontecimento constante do agora.

Palavras-chave: IDENTIDADES CONTEMPORÂNEAS. ANCESTRALIDADE.


DANÇAS. AFRODIÁSPORA.

Abstract: The African black transatlantic diaspora in Brazil, through cross-


relationships and conflicts with original and European cultures, produced a range of
signic, symbolic, cultural, philosophical, economic complexities, among others in the
Brazilian territory. Faced with the exchanges and setbacks provided by the diaspora
event, African ways of life were cyclically updated under existing sociocultural
conceptions and impositions in the land named Brazil. Due to their complexities, such
relationships have produced new points of identification that explain the experience
of the transatlantic diaspora and its continuities - revealed in the ways of life they say
about native (indigenous), Africans and their descendants (Brazilian blacks),
Europeans (colonizers) and its updates. In this sense, we perceive the phenomenon
that reaches these new ways of life from the perspective of cultural identities and
their consequences, proposing to relate to the conceptualization of what we call
contemporary identities in dance. By understanding them in the space-time of the
now - from the movements that form such identities and the identities that constitute
such movements - our discussion considers identities as a plural, shifting territory.
However, atavistic to the idea of ancestry: cyclical territory of transit between times,
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which reveals itself in the body and moves through/between antecedents in the
constant happening of now.

Keywords: CONTEMPORARY IDENTITIES. ANCESTRALITY. DANCES.


APHRODIASPORA.

Introdução

A diáspora transatlântica demarcou o trânsito das migrações planetárias,


incidindo na formação e conjuntura das Américas, que tiveram seus territórios
invadidos pela colonização. Imbuída por um processo de sequestro, tráfico e
escravização de pessoas do continente africano, a diáspora transatlântica
transformou uma complexidade de processos socioculturais, etnicoraciais e
simbólicos, que se revelam no corpo afrodiaspórico, indígena e quilombola e podem
ser compreendidos na relação com suas identidades. No caso do Brasil, as
identidades formadas pela condição de um corpo transatlântico se configuraram por
uma dinâmica de cruzo (RUFINO, 2019) entre África-Brasil, a qual simboliza uma
estratégia de desvio das imposições branco-europeias colonizatórias e o
consequente encontro entre os diversos povos africanos e indígenas brasileiros.
Neste sentido, os fazeres e expressões que emergem dessas culturas se
multiplicaram em especificidades e movimentos culturais na terra nomeada Brasil.
Autores como Hall (2018), Gilroy (2007), Mbembe (2019), dentre outros,
consideram que a diáspora deve ser compreendida na perspectiva dos trânsitos e
deslocamentos que proporcionaram as múltiplas insurgências culturais identitárias
no espaço-tempo globalizado. Portanto, pode-se dizer que os desdobramentos
identitários que brotam da experiência da diáspora são resultados práticos e
inconclusos das sociedades em constante transformação, em que se exercitam
memórias, fazeres e filosofias atravessadas por um tempo cronológico que não é
somente passado, nem presente, mas se estabelece como território cruzo dos
tempos: gerando novos e constantes impulsos que anunciam novos futuros.
Identificamos que os impulsos geradores de tais transformações
identitárias em movimento estão ancorados ao que se pode compreender por
ancestralidade, na medida em que as dinâmicas proporcionadas pelo cruzo
afrodiaspórico possuem forte relação com a ideia de trânsito entre tempos. Neste

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sentido, aquilo que se revela no corpo, se move por/entre anterioridades no


acontecimento constante do agora, enquanto um exercício prático da ancestralidade.
Se é no corpo que se estabelecem as possibilidades de resistência,
continuidade e transformação, o trânsito ancestral se configura como um território
palpável de acionamento das memórias e significações do existir. Para tanto,
fazemos referência aos estudos de Oliveira (2007, p.103), quando nos explica que:
“O corpo não é simplesmente fonte de todo movimento e ação. O corpo, com efeito,
é um acontecimento que inaugura a existência”. Logo, as identidades culturais se
tornam reflexos das reinvenções nos modos de ser e existir das comunidades
negras, indígenas, quilombolas, cuja condição de deslocamento instaurada no corpo
transatlântico diaspórico é atualizada pelos ciclos da ancestralidade.
De forma breve, exemplificamos nossa abordagem propondo
compreender o transe ancestral - este, que acontece no momento da incorporação
das divindades espirituais no corpo - como um território que aciona e reverbera os
múltiplos aspectos que versam sobre o ser negro na sociedade atual. Movido pelo
fenômeno do transe, é o corpo que acontece no agora que aconchega/incorpora as
memórias ancestrais de outros tempos, propondo, por meio da temporalidade “do
hoje”, a atualização das perspectivas sociais, culturais e filosóficas que se dão nele
próprio e dizem também sobre as anterioridades que constituem a ancestralidade,
revelando seu caráter inacabado e contínuo.
Pode-se perceber aí, pontos de identificação entre os saberes e filosofias
ancestrais e os modos de vida globalizados das comunidades transatlânticas,
expressos nas suas manifestações culturais e artísticas – especificamente na dança,
a qual nos interessa tratar nesta discussão. Para tanto, nossa abordagem possui
referências nos estudos de Oliveira (2007), Martins (2020), Rufino (2019), Conrado
& Conceição (2020), dentre outros, os quais nos auxiliam a compreender a ideia de
Corpo e Ancestralidade na perspectiva de cruzo com o que chamamos identidades
contemporâneas na dança. A ideia de diáspora nos serve como suporte, quando a
reconhecemos no âmbito da heterogeneidade e diversidade do ser negro, indígena e
quilombola, considerando que a complexidade dos seus modos de vida e suas
práticas revelam “uma concepção de “identidade” que vive com e através da
diferença, e não apesar dela”. (HALL, 2018, p.97)
Nosso interesse em propor a temática da ancestralidade como território
cíclico de identidades contemporâneas na dança se revela naquilo que nos diz Maria 2837
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Bethânia em um trecho da sua canção Não mexe comigo: “não começa, não
termina, é nunca, é sempre…”. Este é o movimento que precisamos experienciar
para compreender as dinâmicas identitárias da contemporaneidade. De outro modo,
a forma como as populações negras, indígenas e quilombolas se organizaram para
resistir às opressões e às tentativas de apagamento impostas pelas estruturas
raciais no processo colonizatório – as quais permanecem até os dias atuais –
revelam o que aqui chamamos de identidades contemporâneas na dança: um modo
de conceber e transformar o mundo totalmente desviado daquele que foi/é
legitimado e operacionalizado pela colonialidade.

Por uma noção de ancestralidade

Iniciamos nossa discussão propondo pensarmos a ancestralidade como a


existência do próprio corpo. Como já mencionado, é necessário compreendê-la na
perspectiva do trânsito da memória em sua anterioridade, cuja sua materialização no
corpo encantado pelas ritualidades e filosofias diaspóricas a revela enquanto
“conceito e prática ao mesmo tempo” (OLIVEIRA, 2007, p.246). Conforme aponta
Oliveira (ibdem), a ancestralidade atua como ideia e motor expressivo da ação na
efemeridade do espaço-tempo. Entendida na perspectiva das suas ritualidades,
propomos concebê-la, também, enquanto potência renovável de fixação dos saberes
e memórias nos alicerces das filosofias encantadas. Assim, a ancestralidade se
revela como “um tempo difuso e um espaço diluído” (Ibdem, p.245), pois, no nosso
entendimento, ancora memórias que impulsionam o corpo em constante devir.
É por isso que não podemos perder o passado de vista quando falamos
em ancestralidade, já que o mesmo é com/partilhado constantemente no transe dos
fazeres coletivos e continuados, que se atualizam no cotidiano. Apesar de sabermos
que o tempo ancestral não é cronológico, o mesmo acontece no momento presente
– fato que nos remete a pensar a ancestralidade como aquilo que dá sentido à
existência. Nas palavras de Oliveira (2007, p.246): “O tempo ancestral é de um
universal ungido na trama do espaço. Ou seja, é um universal que se lança universal
porque alça o contexto (estampas) como condição e potência do existir.”
Ao acionar memórias no presente, a ancestralidade nos permite
transbordar outros sentidos do existir, em trânsito com aquilo que poderá ser. Indo
mais além, tal corporificação de cruzo entre tempos é percebida no corpo: nas
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estampas (OLIVEIRA, 2007) identitárias do agora. Neste sentido, aquilo que


expressa o corpo se torna a materialização da ancestralidade no presente,
reverberando ciclos entre passado e futuro, ao criar um sem número de identidades
que irão “estampar” (ibdem) as matrizes da existência.
Embasamo-nos nos estudos de Martins (2003), quando aprofunda as
concepções de corpo em performance no tempo espiralar da ancestralidade, cujo a
autora nos relembra que: “A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração,
matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os ventos, desvestidos
de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação”
(MARTINS, 2003, p.106). Aqui, o tempo da ancestralidade se revela no exercício
prático da existência coletiva e dá forma às mobilizações sociais carregadas de
identidades: reflexos das filosofias e saberes acionados nas/pelas/com/entre
ritualidades africanas, indígenas e quilombolas. Nesta direção, as identidades se
apresentam como novas formas de acionar ancestralidades coletivas no corpo, em
diálogo com o devir das sociedades contemporâneas globalizadas.
A dimensão de corpo que propomos corrobora com a perspectiva de
Rufino (2019, p.131), quando considera que esse “transcende os limites do emprego
usado pela lógica ocidental”. Na sua relação com a espiritualidade, o corpo
diaspórico não se restringe à sua materialidade física, pois expressa o cruzo das
culturas ancestrais diaspóricas na sua potência e caminho (ibdem). Nessa relação,
corpo é “tudo que o corpo dá” (PASTINHA apud RUFINO, 2019, p.131), revelando a
potência do seu movimento e transformação.
Trazendo como exemplo as danças negras contemporâneas enquanto
movimentos artísticos insurgentes nas comunidades negras, o potencial de
transformação e mobilização de suas existências políticas, revela o exercício prático
da ancestralidade como seu acionador. Seus fazeres dizem sobre as múltiplas
identidades culturais que versam o negro em suas negruras, e nos fazem refletir
sobre outras organizações que movimentam urgências e revelam o agora. Ao
recriarem formas de vida que partem de outro tempo-espaço, mas continuam em um
movimento constante de liberdade que propõe novas identificações, não seria por
exemplo, o movimento dos Blocos Afros de Salvador ou mesmo do Pagode Baiano,
organizações que tem seu lugar de feitura nas urgências estéticas, políticas e
performáticas que se cruzam no território da ancestralidade como atualizações do
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Danças negras contemporâneas: ancestralidade em movimento

As manifestações culturais e artísticas negras - tais como as danças dos


Blocos Afros de Salvador, o pagode baiano, os sambas do Rio de Janeiro, as
Congadas das Minas Gerais, entre outros - são organizações sociais que garantiram
que pudéssemos encontrar hoje, pontos de identificações produzidos entre sambas,
cantigas e reivindicação de vida. Enquanto práticas de (re)existência, recontam de
maneira autônoma as urgências do hoje, recriando o território cíclico da
ancestralidade nos fazeres das suas danças.
A exemplo dos Blocos Afros de Salvador, as pesquisadoras Conrado &
Conceição (2020), no artigo intitulado “Dança e Música de Blocos Afro: fundamentos
de uma poética e política negra”, nos dizem que as ritualidades que permeiam tal
manifestação artístico-político-cultural:

são fontes subjetivas do legado dos ancestrais africanos ressignificado no


contexto da comunidade baiana, reafirmando uma identidade cultural negra.
Além disso, a manutenção dessas ritualidades nessas agremiações de
música e dança afro fortalece os valores, sabedorias e conhecimentos que
implicam no sentido de ser negro e as ações do movimento negro
emancipatório. (CONRADO; CONCEIÇÃO, 2020, p.106)

Tais expressões corporais se instauram na contemporaneidade como


continuidades de outros movimentos que dançaram identidades e recriações de
mundos em outros tempos, e seguem construindo saberes e práticas de
emancipação e existência. Neste sentido, as danças negras são “difusoras de uma
poética política cantada, tocada, dançada e vestida, que definem conceitos,
epistemologias e formas singulares de ação e expansão do combate [...] a eliminar
os traumas gerados pelo recalcamento cultural.” (Ibdem, p.104)
Assim como os Blocos Afro, outros movimentos da atualidade, tais como
o do Pagode Baiano, possuem a ancestralidade como território cíclico de expressão
poética e política, conforme nos relatam Santos & Conrado (2020), quando
consideram que: “O pagode baiano é, sobretudo, questionamento, experiência
coletiva e memória corporal ancestral, que pauta a representatividade negra nos
espaços, o empoderamento e a difusão de conhecimento e cultura negra por meio
da música e da dança.” (SANTOS; CONRADO, 2020, p.141)
Os autores consideram que apesar do pagode baiano ser visto apenas
pelo olhar pejorativo das letras musicais e danças que depreciam a mulher - fruto do
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racismo estrutural imanente nas dinâmicas do capitalismo hegemônico globalizado -


o mesmo nasce “sob fortes influências de ritmos africanos como o lundu, o maxixe e
também o samba” (Ibdem, p.133-134) - ao qual nos atentamos para a sua estrutura
musical percussiva, em que se pode encontrar de maneira muito explícita pontos de
identificações sonoras que dizem sobre os desdobramentos dos ritmos primários
africanos.
Ainda em 1957, o radialista brasileiro Paulo Roberto narra sobre uma
base de atabaques na introdução do disco “Obaluyé!” da Orquestra Afro-Brasileira,
ressaltando a territorialidade identitária que o ritmo binário exerce sobre toda arte
musical brasileira e, consequentemente, toda dança constituída nesse país. Em
suas palavras:

Este ritmo binário, que é o alicerce principal de quase todos os ritmos da


canção popular do Brasil, veio importado de longe. Das placas ardentes da
África, onde o sol queimou a pele dos homens até carbonizá-la em negro. O
compasso, tão simples que reproduz em tom grave as batidas do próprio
coração, atravessou o Atlântico sob a bandeira dos navios negreiros,
servindo para marcar o andamento de melopeias que vinham dos porões
em vozes gemidas e magoadas. (ROBERTO apud ALBUQUERQUE, 2016,
p.1)

Nesse sentido, tal marco identitário pode ser percebido no cerne das
cadeias de notas musicais que constituem movimentos artísticos africanos e
afrobrasileiros, como o jazz, o frevo, o maracatu, os afoxés, dentre outros. No caso
do pagode baiano enquanto “um ritmo popular, negro, e periférico” (SANTOS;
CONRADO, 2020, p.131), os autores ressaltam a importância de fomentar a sua
visibilidade nesse contexto, uma vez que foi negada por vários anos.
Mencionamos tais práticas culturais por compreendermos que não são
movimentos isolados ou independentes. Propomos como reflexão que as estruturas
que formam os fazeres citados e outros, são formas de continuidades ancestrais
atravessadas por posicionamentos estéticos, políticos e poéticos produzidos pela
contemporaneidade. Ao pensarmos nas manifestações culturais como o funk, o
pagode, o rap e outros, queremos dizer que tais danças são formas de expressão
política galgadas na ancestralidade, que se congregam nas identidades culturais da
pessoa negra. Esta, provida de “múltiplas identificações, o que envolve a ideia de
interseccionalidade e diversidade, pautados em um processo de tomada de
consciência do sujeito interpenetrado às visões de mundo e de lugar” (CONRADO;
CONCEIÇÃO, 2020, p.104). 2841
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Ciclos contemporâneos das identidades

Ao trazermos a ideia de identidades contemporâneas ancoradas à uma


concepção de ancestralidade enquanto condição de existência do corpo
transatlântico, ressaltamos o pensamento de Mbembe (2019, p.85) que nos revela
“uma certa ilusão ocidental segundo a qual o sujeito só existe num retorno circular e
permanente a si mesmo, a uma singularidade essencial e inesgotável.” Ao contrário,
o autor nos direciona a compreender que “o retorno a si só é possível no
intermediário, [...] na coconstituição” (ibdem). Refere-se também à possibilidade de
pensar as identidades a partir de uma política do semelhante, cujo reconhecimento
do outro e da sua diferença se torna fundamental.
Tal perspectiva nos interessa, quando a relacionamos com os
desdobramentos identitários que podem ser percebidos nas danças negras, em que
a potência das identidades culturais se torna latente enquanto possibilidade de
mobilização e mudança política das comunidades. Aqui, salientamos a fala de
Conrado & Conceição (2020, p. 104-105), ao se referirem a uma concepção de
identidade cultural da pessoa negra:

Pode-se dizer que a ideia de uma identidade cultural negra em uma cidade
como Salvador-Bahia emerge de um processo contínuo de busca pela
liberdade e direitos em que o corpo negro, como lugar de manifesto, carrega
as histórias e simbologias que dão significado à sua existência. Esta, que
não é autossuficiente, na medida em que o poder das organizações que
constituem o Movimento Negro, compreende a necessidade da relação com
outros corpos [...]. (CONRADO; CONCEIÇÃO, 2020, p.104-105)

De outro modo, Gilroy (2007) afirma que a temática das identidades ressoou
uma rota de lutas, mas também de incertezas no âmbito da pesquisa acadêmica
contemporânea, justamente por se tratar de um campo movediço, em que os
discursos homogeneizantes são constantemente estimulados pelas dinâmicas da
globalização capitalista hegemônica - arraigada às estruturas racistas da
colonização. Mesmo assim, o autor considera que: “A identidade veio para
proporcionar uma espécie de âncora em meio às águas turbulentas” (ibdem, p.133),
seja dos padrões instaurados pela globalização ou pela própria ideia de
desterritorialização do planeta, proporcionada pelo acontecimento da diáspora.
Neste sentido, o autor considera que “a diáspora é uma ideia especialmente
valiosa” (ibdem, p.151), pois problematiza qualquer limite imposto por uma mecânica
cultural enraizada. É aqui que o território cíclico da ancestralidade nos é palpável, 2842
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quando se torna fazer encantado no corpo em qualquer espaço-tempo. Mas, que


necessita ser acionado no presente, como um exercício do constante devir.

Considerações finais

Ao tratarmos a ancestralidade como território cíclico de identidades


contemporâneas na dança, compreendemos não apenas a sua relação com o
espaço/tempo do ritual, mas com a ideia de trânsito que propõe a perspectiva da
diáspora. Deste modo, as expressões artístico-político-culturais que emergem do
corpo transatlântico revelam os movimentos constantes das transformações sociais
possibilitadas pela condição de (re)existência das comunidades diaspóricas em
tempos perversos do capitalismo global pós-colonizatório.
Como já dito anteriormente, tais expressões artísticas constroem uma
história contra-hegemônica, cujos corpos diversos, sobretudo os corpos negros,
indígenas, quilombolas - mas também o das mulheres, dos homossexuais, das
pessoas trans, das pessoas com deficiência, dentre outros - congregam identidades
contemporâneas para o exercício da liberdade. Ao expressarem discursos
libertadores por meio de suas poéticas, a complexidade dos aspectos simbólicos,
políticos, étnicos, socioculturais e artísticos presentes nessas danças são capazes
de provocar transformações na estrutura sociopolítica e econômica do território
local/global, as quais necessitamos constantemente nos atentar.
Neste sentido, as dinâmicas do mercado global hegemônico atuam nos
seus modos de organização social, levando-os a atingirem proporções que se
tornam evidentes no campo artístico, quando nos atentamos, por exemplo, para as
tentativas de apagamento das Manifestações Culturais Populares, em detrimento da
especulação do capital e da imposição de discursos ideológicos por meio de
produtos culturais massivos e suas reverberações nas culturas locais. Aqui, nos
referimos ao exemplo dos olhares pejorativos sobre o pagode baiano, ou sobre as
danças de Blocos Afro, quando consideradas apenas sob um viés estético,
invisibilizando todo o fundamento ancestral e político que conduz esse movimento.
Tal fato nos alerta para a necessidade de pensar as identidades
contemporâneas como uma forma de desvio às imposições da colonialidade,
pautada em uma visão branco-europeia do sujeito individualizado. Por isso, a
concepção de ancestralidade nos impulsiona a compreender a (re)existência desses
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corpos diversos em constante luta por um novo futuro, sem perder de vista quais são
as lógicas e mecanismos de manutenção das ideologias discriminatórias e
hegemônicas que interferem nas suas dinâmicas de vida. Isso porque, do mesmo
modo em que percebemos uma massa cultural da sociedade dedicada à produção
de estéticas culturais em consonância com um pensamento diaspórico globalizado,
as ideologias e representações que ecoam das dinâmicas do capitalismo global
hegemônico também contribuem para a reconfiguração dessas expressões culturais,
seus apagamentos e suas transformações.
Esse campo de relação entre a ancestralidade e a dança no espaço-
tempo contemporâneo abriu portas para que pudéssemos afirmar hoje, valores
contra-hegemônicos e decoloniais, os quais respeitam a diversidade de corpos e
etnias, seus saberes dançados e ancestrais. Por meio de suas expressões políticas,
como forma de combate às práticas de discriminação das chamadas “diferenças”, tal
perspectiva nos aponta um espaço de diálogo entre as sociedades globalizadas e
uma concepção de ancestralidade que ecoa na continuidade dessas lutas –
mobilizando fronteiras para a transgressão das desigualdades vigentes nas
sociedades atuais.

João Paulo Petronílio


UFBA
E-mail: joaopaulopetronilio7@gmail.com
Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Dança da Universidade
Federal da Bahia. Bacharel e Licenciado em Dança pela Universidade Federal de
Viçosa. Integrante do GIRA - Grupo de pesquisa em culturas indígenas, repertórios
afro-brasileiros e populares da Escola de Dança da UFBA com coordenação dos
Doutores Amélia Conrado e Fernando Ferraz.

Raissa Conrado Biriba


UFBA
E-mail: raissabiriba@gmail.com
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal
da Bahia (PPGDança/UFBA). Mestra pelo Programa Multidisciplinar de Pós-
Graduação em Cultura e Sociedade (Poscultura/IHAC-UFBA). Integrante do GIRA -
grupo de pesquisa em culturas indígenas, repertórios afro-brasileiros e populares da
Escola de Dança da UFBA.
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Amélia Vitória de Souza Conrado


UFBA
ameliaconrado@ufba.br
Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Especialista
em Coreografia pela Escola de Dança da UFBA. Professora Associada da Escola de
Dança da UFBA. Membro do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Dança
(PPGDança) e Mestrado Profissional em Dança (PRODAN). Líder do GIRA - Grupo
de Pesquisa em culturas indígenas, repertórios afro-brasileiros e populares (CNPQ)

Fernando Marques Camargo Ferraz


UFBA
fernandoferraz@hotmail.com
Professor da Escola de Dança da UFBA. Doutor e Mestre em Artes pelo IA/Unesp,
Bacharel Licenciado em História pela FFLCH-USP. Professor do Programa de Pós-
Graduação em Dança da UFBA e do Mestrado Profissional em Dança PRODAN-
UFBA, membro do Grupo GIRA: Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas,
repertórios Afrobrasileiros e Populares.

Referências:

ALBUQUERQUE, Gabriel. Dor, alegria e fé: novos álbuns sobre a diáspora africana.
Jornal do Commercio, 2016. Disponível em:
https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2016/08/21/dor-alegria-e-fe-
novos-albuns-sobre-a-diaspora-africana-249462.php. Acesso em: 10/07/2021.
CONRADO, Amélia Vitória de Souza; CONCEIÇÃO, Sueli Santos. Dança e Música
de Blocos Afro: fundamentos de uma poética e política negra. IN: Revista Dança,
Salvador, v. 5, n. 1 p. 100-109, jul./dez. 2020.
GILROY, Paul. Identidade, pertencimento e a crítica da similitude pura. IN: Entre
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MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada.
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RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial,
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Negra: poéticas políticas, modos de saber e epistemes outras. 1ed. Salvador:
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ANDA, 2020, v. 6, p. 130-145.

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