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TRAJETÓRIA NA ARTE AFRO BRASILEIRA:

CAMINHOS PELO JONGO DITO RIBEIRO.

Julia Monteiro

A arte afro-brasileira enfrentou durante séculos e ainda enfrenta perseguições,


invisibilidade, e violências fruto do racismo que assola nossos povos. Mesmo
com toda adversidade ela se sustentou e mantém viva suas cores, corpos,
movimentos, raízes, ritmos, danças. Neste Artigo escrevo sobre minha
trajetória na manifestação artística afro brasileira jongo. Buscando suas
características e composições. .

Inicialmente é preciso dizer que o reconhecimento da minha negritude foi a


força motriz para voltar atrás e buscar minhas raízes- Sankofa. Segundo
DOMINGUES

negritude passou a ser um conceito dinâmico, o qual tem um caráter


político, ideológico e cultural. No terreno político, negritude serve de
subsídio para a ação do movimento negro organizado. No campo ideológico,
negritude pode ser entendida como processo de aquisição de uma
consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a tendência de
valorização de toda manifestação cultural de matriz africana (2005, p. 25)

Partindo dessa noção de negritude, que traço meu reencontro com arte
afro-brasileira. Recordo do episódio que ainda na infância, comecei me
reconhecer como negra, era sexta feira, como de costume, fui no terreiro de
umbanda branca, que participava, conversar com a Vó Catarina(entidade preta
velha), que eu estava chateada porque na escola , as outras crianças ficavam
me “xingando” de preta, quando ela me respondeu que preta não era
xingamento, que deferia ter orgulho da minha cor, e quando alguém me
chamasse de preta era para responder que eu era preta e meia. Esse episódio
foi marcante para tomada de consciência da minha negritude, é claro que o fato
de ser filha de um pai negro, e uma mãe branca, sempre convivi com a
valorização do negro e com vivências de racismo, principalmente com o susto
que as pessoas levavam quando minha mãe me apresentava.
Outro ponto para iniciar essa trajetória é compreender os valores civilizatórios
afro-brasileiros, TRINDADE apresentou os seguintes valores:

Axé ENERGIA VITAL- tudo que é vivo e que existe, tem axé, tem energia
vital.

ORALIDADE: Nossa expressão oral, nossa fala é carregada de sentido, de


marcas de nossa existência.

CIRCULARIDADE – a roda tem um significado muito grande, é um valor


civilizatório afro-brasileiro, pois aponta para o movimento, a circularidade, a
renovação, o processo, a coletividade

CORPOREIDADE – o corpo é muito importante, na medida em que com ele


vivemos, existimos, somos no mundo. Um povo que foi arrancado da África
e trazido para o Brasil só com seu corpo, aprendeu a valorizá-lo como um
patrimônio muito importante.

MUSICALIDADE – A música é um dos aspectos afro-brasileiros mais


emblemáticos. Um povo que não vive sem dançar, sem cantar, sem sorrir e
que constitui a brasilidade com a marca do gosto pelo som, pelo batuque,
pela música, pela dança.

LUDICIDADE – A ludicidade, a alegria, o gosto pelo riso pela diversão, a


celebração da vida. Se não fôssemos um povo que afirma cotidianamente a
vida, um povo que quer e deseja viver, estaríamos mortos, mortos em vida,
sem cultura, sem manifestações culturais genuínas, sem axé.

COOPERATIVIDADE - A cultura negra, a cultura afro-brasileira, é cultura do


plural, do coletivo, da cooperação. Não sobreviveríamos se não tivéssemos
a capacidade da cooperação, do compartilhar, de se ocupar com o outro.
(2008, p.33-35)

Complementando esses valores temos também os apresentados pelo projeto


a cor da cultura:
MEMÓRIA- Para despertar o sentimento de afro-brasilidade e, sobretudo, de
orgulho ao exibi-la, é necessário mexer no eixo do racismo e da memória: o
racismo como algo a ser enfrentado e a memória para que a presença
africana que habita em nós possa emergir livremente.

ANCESTRALIDADE

RELIGIOSIDADe- Para a nação afro-descendente, religiosidade é mais do


que religião: é um exercício permanente de respeito à vida e doação ao
próximo (2006, p.30-31)

Comunidade Jongueira Dito Ribeiro - Campinas-SP

Na adolescência e início da juventude, acompanhando minha irmã numa festa,


o Segundo Arraial Afro Junino da comunidade Jongo Dito Ribeiro tive contato
como o Jongo, manifestação afro-brasileira presente do sudeste do país, nas
serras de Minas, Rio de Janeiro e São Paulo. O jongo ou caxambú é um
patrimônio imaterial cultural brasileiro para MARTINS:

A prática do jongo consiste em uma manifestação cultural em que três


elementos são essenciais: os pontos, a dança e os tambores. Os pontos
concentram todos os saberes do jongo e, ao misturar metáforas e dialetos
da língua banto, possibilitaram uma comunicação entre os negros
escravizados, numa expressão de origem mista, persistente até aos dias
atuais. A dança, ao animar as rodas de jongo, torna-se um desafio à parte
entre o casal que dança ou ao dançarino que se insere num passo solto no
meio da roda. Os tambores, que são fabricados, na maioria das
comunidades, ainda de modo artesanal, carregam em si um “grande
significado” de vínculo com os ancestrais.(2012, p.3)

Jongo assim como outras manifestações artísticas afro-brasileiras, seguem os


princípios da ​Circularidade pois o jongo é em roda, que dança girando, na
comunidade Dito Ribeiro da qual participo desde 2006, no início do jongo todos
dão as mão e repetem: “Eu seguro sua mão na minha para que juntos
possamos fazer aquilo que eu não posso fazer sozinha.”

Essa frase já revela outro valor que é o ​Comunistarismo sendo o jongo uma
prática de comunidades quilombolas e só acontece se houver no mínimo umas
dez pessoas, três tocando, duas dançando, o coro e pessoas que fica na roda
formando o círculo. Segundo Silva “A arte religiosa afro brasileira é
eminentemente uma arte conceitual que exprime valores coletivos(...)”(2008,
p,99)

A musicalidade é fundamental sendo o jongo regido por 3 tambus e entoados


chamadas de pontos. Tem um ponto que diz: ​“ Sou a pele de um tambor, sou a
pele de um tambor, mas eu sei que sou a pele de um tambor, e lalelaelaeee.”

A ludicidade ​está também nos pontos “O caxambú era uma oportunidade de se


cultivar o comentário irônico, frequentemente cínico, acerca da sociedade
dentro da qual os escravos constituíam um segmento importante, dentro desse
contexto, os jongos eram canções de protesto, reprimidas, mas de
resistência.”(MARTINS,2012, p.3)
A ​Ancestralidade é o elo entre o passado, presente e o futuro, pois essa
brincadeira faz parte de uma tradição, em que os antepassados são
referenciados no canto e na saudações dos tambores.

A ​corporeidade pois o corpo é o suporte, e o responsável pela brincadeira,


Silva ao fala da importância do corpo na arte afro brasileira como central “ pois
é nele que se localizam as encruzilhadas entre o indivíduo e o coletivo, a
cultura e a natureza, o sagrado e o humano.” (2008, p.100)

A ​memória é valor que perpassa por todos os outros, pois costura eles na
brincadeira do jongo, se a prática existe é porque ainda está viva na memória
dos jongueiros. Alessandra Ribeiro liderança da comunidade Dito Ribeiro e
também Doutora Urbanista expõe a importância do mais velho para essa
memória:

Os mais velhos têm um papel importantíssimo nesta trama de lembranças e


memórias, que formam uma rede entre grupos e comunidades, já que, como
moradores da cidade de Campinas, presenciaram amplamente as
transformações do tempo e com elas guardam suas lembranças que se
abrem em caixas de memórias.(2008, p.5)

O Axé e a religiosidade são os fundamentos que mantém o jongo, pois o


religioso e a brincadeira se misturam, na roda pode haver cantos de demandas,
referência às entidades sagradas como os Orixás. Tem um ponto que diz: ​“eu
nasci pra jonguear, sou uma filhinha de Yemanjá, balançando balançando eu
vou, eu sou as ondas do mar.” ​Tem um outro ponto que saúda a senhora dos
ventos: Vento, ventou sopro de felicidade, senhora Yansã da giro de Liberdade,
seu eu fosse só jongueira e cantava noite e dia, mas como sou filha de santo,
também canto a minha guia. ​Podemos observar que a jongueira que canta
esse ponto afirma sua religiosidade. Para além Alessandra Ribeiro coloca essa
íntima relação entre a religiosidade e o jongo:

É nessa atmosfera que a Comunidade Jongo Dito Ribeiro renasce às suas


antigas tradições quase esquecidas e, em homenagem ao ancestral
Benedito Ribeiro, retoma sua tradição do Jongo. Firma-se como
comunidade através de rituais aprendidos pelos ensinamentos dos
jongueiros velhos e pela família Dito Ribeiro, que transita em outros
universos religiosos e culturais. Fundamental na manutenção e vivência do
jongo é fomentar a rede de lembranças e memórias culturais e de tradição
que permeiam a Comunidade Jongo Dito Ribeiro.(2012, p.4)

Essa ideia de Alessandra dialoga com Vagner Silva ao dizer:


​A ideia religiosidade não se “objetiva” na peça artística e nem esta é uma
mera “função” do religioso. São antes linguagem diferentes que expressam
planos complementares de significados de significados, ou seja, são fatos
sociais estético-religiosos. Por isso insiste-se em que essa arte, apesar de
influência da arte ocidental, dificilmente pode ser entendida como “arte pela
arte”.(2008, p.99)

Longe de ser arte pela arte, a comunidade Jongo Dito Ribeiro é um exemplo da
arte protesto, resistência e de luta. Essa comunidade nos últimos anos com
muita luta conseguiu ocupar um casarão para ser sua sede, construindo um
espaço de educação ambiental e cultura afro, o elo de articulação e
organização social foi o Jongo.

A experiência em curso da Comunidade Jongo Dito Ribeiro e sua inserção


na gestão e fomento da cultura negra, identidade e produção junto à Casa
de Cultura Fazenda Roseira provoca e nos leva a refletir sobre a prática do
jongo e sua articulação para outros “terreiros”, além do espaço da prática.
Essas experiências difusas junto a uma série de acertos, trocas e
mediações de cunhos políticos, para além da preservação da manifestação
do jongo, promoveram e promovem mudanças profundas que colocam a
comunidade em uma ampla rede de diálogos e possibilidades. (2012, p,10)

Por fim, meu caminho pelo Jongo, atravessa séculos de resistência e se revela
como arma de afirmação e de luta através da arte, no movimento da dança e
no canto aos ancestrais, no toque do tambu, valorizando a identidade negra e
articulando com as diferentes esferas da vida um saber e fazer artístico político.

REFERÊNCIA

BRANDÃO, Ana Paula (Coordenação).​A cor da cultura. Saberes e fazeres​,


v.3 : modos de interagir - Rio de Janeiro :, 2006, 152p. : il. color.

DOMINGUES, Petrônio. ​Movimento Da Negritude: Uma Breve


Reconstrução Histórica. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina,
v. 10, n.1, 2005, p. 25-40.
MARTINS. Alessandra Ribeiro. ​O jongo da Casa Grande​. In: Anais do IV
Seminário Internacional Políticas Culturais.​ Rio de Janeiro: Fundação Casa de
Rui Barbosa, 2012.

SILVA, Vagner Gonçalves da. ​Arte religiosa Afro-brasileira: as múltiplas


estéticas da devoção brasileira. ​Debates do NER, Porto Alegre, ano 9, n. 13,
p. 97-113, jan/jun. 2008

TRINDADE, Azoilda Loretto da. ​Valores Civilizatórios Afro-Brasileiros Na


Educação Infantil.​ Revista Salto para o Futuro, 2008.

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