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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, doutoranda em História Social, bolsista CNPq.
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Apesar do título do filme fazer referência às divindades iorubás (nação ketu), o panteão congo-angola
está presente na narrativa, confluindo encontros interétnicos e de povos tradicionais (incluindo povos
indígenas) próprios de afrodiásporas afro-brasileiro-caribenhas.
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Artigos definidos que denotam a binariedade de gêneros são suprimidos neste artigo sempre que não
comprometerem a inteligibilidade do texto (Cf. CERVERA & FRANCO, 2006).
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Uma relação integrativa do corpo com o território, com outros seres humanos e
também com a terra, os animais, os minerais, os vegetais permeia a cosmovisão
afrodiaspórico-caribenha-brasileira, recompõe a unidade natureza e cultura (Sodré,
2015, p. 207; Figueiredo & Araújo, 2013, p. 40). Corpo humano é santuário: no
conjunto de procedimentos cosmogônicos do grupo, no rito, o corpo encontra a sua
totalidade tornando-se ao mesmo tempo sujeito e objeto. A força (o axé, o moyo, o
gunzo) torna possível a atividade e o corpo, como a palavra, é um “objeto ativo”. Assim
se definem os objetos compostos de um amálgama de elementos heteróclitos (animais,
vegetais, minerais). O transe ou a incorporação seria uma ponte entre o individual e o
coletivo, entre o mito e o aqui e agora histórico (Sodré, 2015, p. 210). Desta análise é
possível depreender os princípios de comunitarismo, de “sou porque somos” de que fala
o provérbio bantu, em referência a povos extra-iorubás3 que protagonizam
manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras e afro-caribenhas.
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Caminhos decoloniais demandam críticas à postura nagocêntrica que partiu de parcela d
intelectualidade acadêmico-euro-iluminista nas Américas.
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Mas se os ensinamentos que a menina Lili obtém por meio da iniciação não
podem ser acessados pelos livros, como lidar com os desafios pelos quais passa o
candomblé nas últimas décadas, com tantas trocas simbólicas travadas entre a tradição
oral e os conhecimentos livrescos? Da perspectiva de Reginaldo Prandi, estaria em
curso um processo de transformação do candomblé de religião étnica de transmissão
oral em religião universal em razão da perda de sentido de mecanismos de aprendizado
oral e de transmissão da memória coletiva uma vez que a importância da palavra escrita
na sociedade extra-terreiro se impõe (Prandi, 2005, p. 34).
Assim como as reflexões realizadas por Prandi, entende-se aqui que não se
podem perder de vista dinâmicas e lutas de terreiros que contestam a perda de espaço da
vivência e da tradição oral para a imposição da cultura letrada – caso do Inzo Tumbansi,
em Itapacerica da Serra, que em 02 de abril realizou a 5ª edição de suas Conversas de
Terreiro com o tema “Redes sociais e tradições africanas: contribuição ou destruição?”.
A Conversa de Terreiro em questão reuniu pesquisadoras(es) e candomblecistas que
discutiram o uso de diferentes mídias (incluindo publicações impressas e novas mídias)
e concluiu que, desde o surgimento do candomblé no século XIX, o uso da escrita fez
parte da religião. O sentido da tradição oral no candomblé aqui abordado está para além
da questão da manutenção do segredo de que fala Prandi. Está relacionado
principalmente ao fortalecimento, manutenção e transmissão de força vital, o que
implica em presença física, não podendo ser feito à distância ou virtualmente
(lembrando que o som – que contém vibração – é condutor de axé que possibilita o
dinamismo da existência, cujo tempo se ordena no ritmo, como em sistemas gêge-nagô,
citados por Sodré, ou congo-angola).
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Distinguindo tradição oral de oralidade: a segunda como integrante da primeira, que inclui
gestualidade, corporalidade e linguagens extra-oralidades racionalizadas.
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Enquanto que para ocidentais o tempo é uma variação contínua, dimensão que
tem realidade própria, independente dos fatos, de tal modo que são os fatos que se
justapõem à escala do tempo - o tempo é o da precisão, que objetiva o cálculo, viabiliza
a projeção e fundamenta a racionalidade, tempo da ciência histórica e da modernidade,
para africanos tradicionais, tempo é uma composição dos eventos que já aconteceram ou
que estão para acontecer imediatamente (Ibidem, pp. 31-32). Citando Wole Soyinka, o
sociólogo aprofunda a noção de tempo cíclico africano, expandindo da compreensão
religiosa (quando se pensa em candomblé) para a cosmovisão: “o pensamento
tradicional opera não uma sucessão linear de tempo, mas uma realidade cíclica”
(Soyinka apud Prandi, 2005, p. 30). O tempo cíclico seria então o tempo da natureza,
tempo da memória, que não se perde, mas se repõe. O tempo da história, em
contrapartida, é o tempo irreversível, um tempo que não se liga nem à eternidade, nem
ao eterno retorno. O tempo do mito e o tempo da memória descrevem um mesmo
movimento de reposição: sai do presente, vai para o passado e volta para o presente -
não há futuro.
Na noção de tempo cíclico, nada é novidade. É sempre o passado que lança luz
sobre o presente e o futuro imediato. Conhecer o passado é deter as fórmulas de controle
dos acontecimentos da vida dos viventes, como analisado no filme O Tempo dos
Orixás, de Eliciana Nascimento. O passado mítico é narrado por odus do oráculo de ifá.
Cada odu corresponde a um conjunto de mitos e o babalaô 5 cumpre com o papel de
guardião do passado e decifrador do presente (Ibidem, p. 41).
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O autor discorre sobre o desaparecimento da figura do babalaô no candomblé e do papel de pais e
mães-de-santo incluírem o que, antes, seria função de tal sacerdote de origem iorubá.
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Este último refere-se ao gentílico que, em Cuba, designa negros iorubás ou nagôs (LOPES, 2004, p.
398).
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não se isola da vida, mas processo que se realiza a partir de dentro, participativamente.
A importância dos ritos de passagem está preservada nas religiões afrodiaspóricas: cada
etapa corresponde ao compromisso com novas obrigações e ao alcance de novos
privilégios. Tudo está condicionado àquilo que o iniciado realmente é capaz de fazer.
Nunca se aprende tudo. Em sociedades afeitas aos ritos, atribuições profissionais que
passam de pai e mãe para filho(a), reafirmam que vida é repetição e respeito ao
conhecimento dos que chegaram antes, contrapondo-se à noção de aprendizado escolar,
pela qual a efetivação de aquisição do conhecimento tem que se dar de forma rápida,
racional e impessoal: o saber é premido pelo tempo do calendário. Na escola de
perspectiva euro-ocidental, há a tendência de que a figura de mestres e mestras –
depositários(as) da cultura viva – se esvaia (Ibidem, p. 42-43).
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Estágio subsequente ao de “noviça” (iniciada) na hierarquia de filhas(os)-de-santo rodantes, como é
chamado quem “vira no santo” no candomblé.
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Força energética relacionada à passagem entre o mundo dos vivos e dos mortos, aos ventos e
tempestades.
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Afroepistemologia musicosmodançante
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Kitembo/Ndembwa/Tempo é o nkisse (divindade bantu) que rege a atmosfera, as estações e o tempo
cronológico entre os povos bantu.
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na vida real”, que tem como objeto de conhecimento “a própria relação social – o
relacionamento do homem com seus pares e com a natureza” (Sodré, 1998, p. 44).
Referências Bibliográficas
CERVERA, Julia P; FRANCO, Paki V. Manual para uso não sexista da linguagem.
UNIFEM/REPEM (Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina),
2006. Disponível em:
http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/publicacoes/outros-artigos-e-
publicacoes/manual-para-o-uso-nao-sexista-da-linguagem. Acesso em: 13 marc. 2016.
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Em referência à árvore que em África subsaariana representa ancestralidade e que foi utilizada com
fins coloniais de apagar as origens de povos africanos. Segundo Lopes (2003, p. 94), o termo é oriundo
do aportuguesamento do quimbundo mbondo, baobá.
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KUBIK, Géhard. Música e Dança na África a Sul do Sahara. In: Cultural Atlas of
Africa, Oxford, 1981, pp. 90-93. Tradução e digitalização de Domingos Morais em
1997.
LOPES. Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro, Pallas, 2003.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de janeiro: Mauad Editora, 1998.