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SENHORAS DAS ENCRUZILHADAS: POÉTICAS DO CORPO EM

PERFORMANCES DE POMBAGIRAS
Tulani Pereira Da Silva (UERJ)*

RESUMO: Esta pesquisa parte do entendimento do corpo como poética política


e as corporalidades negras enquanto representatividade e resistência. Nossa
discussão se dedica às Pombagiras e as representações de feminino
corporificadas em seus movimentos, gestos e danças. Buscamos refletir sobre
a construção dos sentidos que circulam em suas performances, investigando
uma possível leitura para além dos estereótipos reducionistas já delineados
pelo imaginário social: sedutora, prostituta, perigosa e diabólica. Propomos a
hipótese de que elas apresentam elaborações de um feminino símbolo de
empoderamento, propositor de imagens fora do lugar-comum. Apoiamo-nos
metodologicamente na abordagem qualitativa, através da pesquisa etnográfica.
Desse modo, nos concentramos na observação participante de um terreiro de
Umbanda na cidade do Rio de Janeiro, nos atentando aos rituais que ali
decorrem. A análise dos dados se desdobra na leitura da Pombagira
caracterizada pela transgressão dos entendimentos dicotômicos e
desconstrução de estereótipos, confrontando elaborações de feminino
preconizadas pelos valores patriarcais.

PALAVRAS-CHAVE: Pombagira. Corporalidades negras. Dança. Religiões


Afro-Brasileiras. Relações Étnico-Raciais.

ABSTRACT: This research starts from the understanding of the body as


political poetics and the black corporealities as representativeness and
resistance. Our discussion is dedicated to Pombagiras and the representations
of women embodied in their movements, gestures and dances. We seek to
reflect on the construction of the meanings that circulate in their performances,
investigating a possible reading beyond the reductionist stereotypes already
outlined by the social imaginary: seductive, prostitute, dangerous and diabolical.
We propose the hypothesis that they present elaborations of a feminine symbol
of empowerment, proposer of images out of the commonplace. We rely
methodologically on the qualitative approach, through ethnographic research. In
this way, we focus on the participant observation of an Umbanda terreiro in the
city of Rio de Janeiro, paying attention to the rituals that take place there. The
analysis of the data unfolds in the reading of Pombagira, characterized by the
transgression of dichotomous understandings and deconstruction of
stereotypes, confronting the elaborations of women advocated by patriarchal
values.

KEYWORDS: Pombagira. Black corporealities. Dance. Afro-Brazilian religions.


Ethnic-Racial Relations.
Chegando na encruzilhada...

Ser mulher é sempre desafiador. A sociedade está repleta de sinais que


comunicam, nos mais subjetivos detalhes, que mulheres não podem ser/fazer
tudo o que quiserem. Anibal Quijano (2005) já destacara em seus escritos que
estamos inseridos em diversas relações políticas permeadas por colonialidades
de poder. E como se não bastasse ser mulher, tudo se torna bem mais
desafiador quando se é preto e/ou pobre num país historicamente explorado
por séculos, tendo sido um dos últimos a abolir a escravização de milhões de
africanos e afrodescendentes. O que dizer sobre tantas heranças coloniais que
perpetuam as violências cotidianas as quais estamos diariamente expostos?

A arte sempre foi um caminho potente para reverter processos de


opressão, bem como propor ao corpo autoconhecimento e o exercício do senso
crítico. Mais especificamente, saudamos o corpo e a dança, por defendermos a
ideia de que o ato de sentir/refletir sobre o mundo acontece no corpo.

Pensamos com esse mesmo corpo desde a ponta dos cabelos até a
ponta dos pés, aceitando que nossas ancestralidades se manifestam em
através do nosso mover, contando nossa história e trazendo nosso legado de
continuidade e resistência. Pois bem, cá estamos diante de uma sociedade que
se ergueu nas costas de pretos e indígenas e que defende o discurso de que
somos todos iguais, quando na verdade, sabemos bem que quando o assunto
em questão é igualdade de direitos e oportunidades, existe um abismo.

É em nome do sangue, suor e lágrimas derramados e enaltecimento das


vozes de nossos ancestrais que produzimos este artigo. É em reverência à
irreverência de Exu que louvamos os bons caminhos que nos trouxeram até
aqui. É em nome das senhoras das encruzilhadas, as Pombagiras, que
multiplicamos este axé de matripotência para nos reconhecermos e
libertarmos. Saravá!

Introdução

Observando os processos de dominação sobre os modos de vida afro-


diaspóricos articulados às violências e tensões sobrepostas em corpos de
mulheres (principalmente mulheres negras), nossa pesquisa urge por amplificar
vozes silenciadas pelo patriarcado – branco, machista, ocidental e cristão.
Valemo-nos aqui da palavra ioruba ẹgbẹ (comunidade), visando um discurso
acolhedor das diversas narrativas e lugares de fala – importantes na
compreensão das práticas artísticas constituídas pelo povo afro-diaspórico – e,
portanto, na defesa de uma luta coletiva/antirracista. Nesse sentido, nossos
estudos seguem esse senso. Além disso, concordamos que o protagonismo
feminino é significativo e determinante quando a questão versa sobre os
espaços e práticas permeados pela memória, ancestralidade do povo preto e
seu legado de continuidade. Dessa maneira, enaltecemos a perpetuação de
nossa cultura por meio das mãos de grandes matriarcas e suas maneiras
plurais de (re)existência.

Nosso debate se debruça sobre performances de Pombagiras e as


representações de feminino que se presentificam através do movimento e
consequentemente da dança (SILVA, 2017). Não pretendemos essencializar a
Pombagira, entretanto, nossa gira evoca as Pombagiras com a hipótese de que
tais entidades nos propõem elaborações de um feminino representante do
poder feminino, de um corpo emancipador. Trabalhamos com a noção de uma
performance advinda de heranças afro-diaspóricas retratadas através de
mulheres caracterizadas pela força, coragem e liberdade – em outras palavras
que sugerem uma confrontação dos princípios do patriarcado.

Para nossa construção, nos apoiamos metodologicamente na


abordagem qualitativa, onde encontramos caminhos abertos por viés da
pesquisa etnográfica. Para tal, adotamos a observação participante para
compreensão dos contextos que compõem os saberes ancestrais, o
reconhecimento das experiências práticas e narrativas dos sujeitos. Sendo
assim, a pesquisa teve continuidade através da observação participante de
uma comunidade de terreiro de Umbanda, localizada em Bangu na cidade do
Rio de Janeiro, onde nos atentamos aos rituais realizados em cultos de
Pombagiras e as práticas que ali decorrem. Nossa principal questão é a
encruzilhada: lugar de reverência para os povos de axé, dos acontecimentos e
(des)encontros. Interessa-nos o corpo como um todo e seu profundo diálogo
com o espaço ritual e também o extra cotidiano.
Nossa leitura se volta aos olhares, aromas, gestos, cantos, objetos,
narrativas, contações, rezas, encantamentos, texturas, enfeites, roupas,
batuques, transes, formas, cores e toda poética que conecta todos esses
elementos à dança – gerando um alargamento de significados. Levamos em
conta também o levantamento bibliográfico sobre os seguintes temas: relações
étnico-raciais, corpo/dança, ancestralidade afro-diaspórica e etnografia.
Dirigimo-nos à análise dos dados através de registros feitos em caderno de
campo, considerando corpo e dança dando relevância à qualidade dos gestos,
imagens corporais, frases coreográficas e padrões de movimentos realizados
pelas entidades incorporadas em médiuns durante as práticas rito-litúrgicas.

Nosso referencial teórico é assentado nas elucidações sobre a


construção sócio-histórica dos cultos afro-brasileiros em Ortiz (1978), a
chegança e imagens das Pombagiras em Meyer (1993), Augras (2000) e
Mourão (2012). Nos debates sobre os estudos da performance e performance
afro-brasileira, atentamo-nos à escrita de Schechner (2003; 2012), Ligiéro
(2012) e Taylor (2013). E por fim, no que tange às questões sobre Pombagiras,
suas representações e a pesquisa etnográfica, bem como as reflexões sobre
corpo e movimento, contamos com as considerações de Motta (2006), Barros
(2015) e Ferretti (2013).

Como se trata de uma etnografia ainda em curso, apresentamos


algumas considerações iniciais da pesquisa a partir da observação de uma
cerimônia realizada em junho de 2019, porém levando em conta que a casa é
acompanhada pela pesquisadora como visitante desde 2016.

Quem são as Pombagiras?

“A minha casa não tem porta, nem janela


O que é bom, o vento traz, o que é ruim, o vento leva
Ôh ô, Ôh ô, a dona da casa chegou.”
(Ponto cantado de Pombagira. Domínio popular)

Diversos autores se dedicaram a discutir sobre as Pombagiras,


definindo-as como as entidades femininas presentes em cultos afro-brasileiros,
especialmente a Umbanda, e que atuam como mensageiras entre o mundo dos
Orixás e a terra (MOURÃO, 2015; LIGIÉRO; DANDARA, 2013; SILVA, 2015).
Há um destaque importante nesse debate, pois muito comumente as
Pombagiras são comparadas a uma polaridade feminina de Exu. Apesar de
possuírem características semelhantes, Exu para o nosso contexto diaspórico,
se apresenta diferente de Ésù. O primeiro refere-se às entidades masculinas
da Umbanda, que junto às Pombagiras, habitam nas encruzilhadas, estradas e
caminhos e trabalham como intermediários entre os humanos e os Orixás. Já o
segundo, trata-se da divindade do panteão iorubano, considerado o Orixá do
movimento, da comunicação e também senhor dos caminhos e encruzilhadas,
reverenciado em África e em diversos cultos afro-brasileiros, principalmente
nos candomblés de origem nagô.

Trazendo para nós um pouco da contextualização sobre as senhoras


das encruzilhadas, destacamos inicialmente que o termo Pombagira nos
mostra relações com a cultura congo-angola. Encontramos em Mpambu Njila
ou Pambu Njila (divindade Bantu do fogo e das encruzilhadas) essa
aproximação, e que através das corruptelas e modificações linguísticas, mais
tarde emprestam nome e fama às Pombagiras. Não somente esta divindade,
mas também outras do panteão Bantu como Aluvaiá, Vangira, Bombogira (e
suas variantes Bombojira, Bombongira e Bambojira) e Nzila, se encontram
ligados à questão da fertilidade, sexualidade, comunicação, segurança,
caminhos, estradas e encruzilhadas.

Alguns pesquisadores já apontam (LIGIÉRO; DANDARA, 2013; SILVA,


2015;) para a convergência dessas características dos deuses Bantus com o
culto a outras divindades das encruzilhadas, como Ésù (Orixá iorubano)
anteriormente citado, e Legba/Elegbara (Vodun daomeano), por exemplo,
ambos sendo cultuados em solo brasileiro por similaridade de características.
Observamos nesta interação de divindades oriundas de diferentes nações um
mecanismo de sobrevivência às violências promovidas pela
colonização/escravidão. Para além da terminologia, Pombagiras remetem
sempre a um tema socialmente problemático por se tratar de figuras polêmicas
do nosso cenário brasileiro colonizado, culturalmente machista e racista. Para
início de conversa, nos valemos aqui do entendimento de que as Pombagiras
são espíritos de mulheres que já tiveram suas trajetórias no mundo dos
viventes e hoje, consideradas entidades, são grandes conselheiras, protetoras
dos marginalizados e, sobretudo das mulheres, de quem cuidam dos caminhos
e ajudam a driblar das armadilhas da vida (BARROS, 2015).

Alguns apontamentos sobre a Umbanda com referência no espiritismo


kardecista afirmam que as Pombagiras fazem parte do grupo seleto de
espíritos que tiveram uma vida repleta de atitudes morais consideradas
inadequadas. Tal desajuste se deu pelo uso inconsequente de álcool, drogas,
fumo, sexo, entre outras condutas desaprovadas pelo plano astral superior
como roubar, matar, prostituir-se, etc. Os prazeres do corpo, mais uma vez,
são evidenciados como condutas excessivas, imorais e não aceitas. Tais
entendimentos derivam ainda de uma visão eurocêntrica de corpo, de
comportamento e de crescimento espiritual individual e/ou coletivo,
hierarquizando os espíritos atuantes na Umbanda.

Acontece que existe, de forma implícita, a tomada da meritocracia como


caminho para o alcance da evolução. Ou seja, trata-se do fazer por onde para
merecer o crescimento espiritual, visto que a evolução é uma perspectiva
dominante no espiritismo. Para além das influências do espiritismo na
construção do culto de Umbanda (ORTIZ, 1978), destacamos que é nessa
condição de espírito errante que está disposto a evoluir que se assenta o
discurso sobre as Pombagiras (MOURÃO, 2012), trazendo como referência a
leitura de que são mulheres mundanas na busca por sua “redenção” através da
caridade aos necessitados (espíritos encarnados).

A propagação desse discurso de almas devedoras retrata os


desdobramentos da colonização, perpetuando construções ideológicas
amparadas na bipartição do mundo em bem e mal. Se corpos negros até hoje
não são livres por uma estrutura social racista os oprime, o que dizer a respeito
das nossas práticas artísticas, culturais e religiosas negras? Apontam o
comportamento das Pombagiras (e de Exus também) como sendo
contrastantes com o das entidades de outras linhas da Umbanda como os
caboclos e pretos velhos, por exemplo, que caracterizam a linha da direita, e
sublinham os “catiços”1 – os impuros, donos dos excessos – sendo o menos

1
Apelido correspondente a Exus e Pombagiras na Umbanda, enfatizando que são entidades e
não divindades. Utiliza-se esse nome para se diferir de Orixás, Inquices e Voduns, divindades
evoluídos de todos, na linha da esquerda. Essa divisão tênue entre linha da
direita e da esquerda, resultado da herança judaico-cristã fundamentada em
dicotomias, revela as Pombagiras ligadas também ao culto da Quimbanda,
correspondendo às baixas vibrações. A Quimbanda assim seria comparada à
prática da magia associada ao mal, segundo os rótulos empreendidos à
racionalização do mundo dos espíritos e da teoria da evolução. “A quimbanda
se apresenta, portanto, como a dimensão oposta da umbanda, ela é sua
imagem invertida; tudo que se passa no reino das luzes tem seu equivalente
negativo no reino das trevas” (ORTIZ, 1978, p. 81).

Muito facilmente, a leitura do mundo negro a partir de olhos brancos vem


cada vez mais sendo naturalizada e no que tange à questão do nosso debate,
as ancestralidades africanas e afro-diaspóricas se encontram em condição
historicamente atravessadas pela perseguição e violência. Se o mundo
ocidental branco e cristão defende uma moralidade castradora do corpo, onde
sexo e prazer são um tabu, logo as Pombagiras são o próprio demônio de
saias. Apesar do Diabo não fazer parte da família, ainda assim diversos pontos
cantados exaltam as Pombagiras e descrevem de forma irreverente essa
faceta “diabólica” que as premissas cristãs enxergam nelas: “Santo Antônio
pequenino, amansador de burro brabo. Quem mexer com Pombagira, tá
mexendo com o Diabo.” (Ponto cantado de Exus e Pombagiras. Domínio
público). Quando exaltamos o empoderamento feminino através das
Pombagiras, em outras palavras, estamos falando da imagem de uma mulher
independente e corajosa, sexualmente livre e bem resolvida, e que acima de
tudo, é detentora das próprias escolhas, evidenciando a ameaça que elas
representam ao sistema misógino que reprime e controla as mulheres.

Algumas considerações sobre o conceito de performance

Nossa perspectiva de análise se pauta na observação participante, pois


entendemos a necessidade do convívio com as performances de Pombagiras
no espaço ritual. Portanto, por performance, nos vale o conceito de Richard
Shechner (2003; 2012) que denota o comportamento duplamente exercido,

africanas. Em algumas casas, utiliza-se também o termo “povo de rua” e em alguns casos,
adeptos de cultos afro-brasileiros se negam a aderir ao uso do termo catiço, por conotação
pejorativa em relação a essas entidades.
considerando as mais diversas atividades cotidianas realizadas através do
preparo e repetição como performance.

Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e


adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou
cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente
exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as
pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar.
(SCHECHNER, 2003, p. 27)

Muito mais do que um conceito, o autor propõe uma episteme capaz de


observar o corpo e suas potências expressivas e comunicantes. Dessa forma,
ele complementa ressaltando a importância dos rituais, compondo um cenário
rico de sentidos e um ponto de conexão com a performance.

Rituais são uma forma de as pessoas se lembrarem. Rituais são


memórias em ação, codificadas em ações. Rituais ajudam pessoas (e
animais) a lidar com transições difíceis, relações ambivalentes,
hierarquias e desejos que problematizam, excedem ou violam as
normas da vida diária. (SCHECHNER, 2012, p. 49-50).

Nos múltiplos contextos sociais e culturais, toda ação do corpo está


inserida de acordo com sua conjuntura, assim como toda produção humana se
desenvolve a partir das possibilidades do corpo e de sua interação com o meio.
O homem aprende a manipular recursos, desenvolve técnicas e produz
conhecimentos. É neste sentido que a performance vem aplicar estudo a essas
práticas. Mais a frente, destacamos e concordamos com a autora Diana Taylor
quando ela dá um caráter mais político ao tema (que até então têm se
observado tal questão sendo responsavelmente aprofundada por diferentes
pesquisadores), debatendo sobre a potência da memória como caminho para a
permanência das culturas.

Os debates sobre o caráter efêmero da performance são,


evidentemente, profundamente políticos. De quem são as memórias,
tradições, reivindicações à história que desaparecem se falta às
práticas performáticas o poder de permanência para transmitir
conhecimento vital? (TAYLOR, 2013, p. 30)

Essa colocação que a autora traz não só acrescenta uma nova


perspectiva, como também coloca a performance em evidência como solo fértil
para a manutenção de práticas e usos de grupos sociais e apontando-os como
protagonistas desses mecanismos de resistência. Mais uma vez, o corpo
ganha lugar de destaque nas nossas conversas, sobretudo tratando-se da
performance de Pombagiras , onde a vivência se dá no corpo e a experiência
se constrói de forma coletiva, espontânea e significativa, resgatando memórias
ancestrais femininas e possibilitando continuidades.

A performance afro-brasileira

É necessário, sobretudo, reconhecer o protagonismo dos fazeres


oriundos de corpos negros para superar o sufocamento da opressão branca,
dando lugar a novos olhares e pensamentos sobre este próprio corpo. Neste
sentido, aderimos também às contribuições do filósofo Renato Noguera que
afirma:

A filosofia afroperspectivista define o pensamento como movimento


de ideias corporificadas, porque só é possível pensar através do
corpo. Este, por sua vez, usa drible e coreografias como elementos
que produzem conceitos e argumentam. (NOGUERA, 2014, p. 174)

Denotamos que apesar das notáveis reflexões realizadas pelos


autores citados sobre o campo da performance, nos é de grande notoriedade
analisar o tema em questão a partir de uma perspectiva afro-referenciada. Nas
comunidades de terreiro, é através deste corpo que o legado de saberes será
transmitido através da oralidade, do canto, da dança. Obviamente, a
performance afro-brasileira se valerá, entre tantos aspectos, dessa dimensão
de corpo. Por que as práticas performativas afro-brasileiras se valem de tanta
riqueza artística expressada no corpo, que mistura sagrado e profano, num
curto tempo-espaço? Para aprofundarmos um pouco mais essa questão,
trataremos do conceito de motrizes culturais para compreender esta
complexidade.
O conceito de motrizes culturais será empregado para definir um
conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para
recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto
chamamos de práticas performativas, e se refere à combinação de
elementos como dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre
outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas
manifestações no mundo afro-brasileiro. (LIGIÉRO, 2011, p. 107)

Aderindo à perspectiva de Ligiéro através do conceito de motrizes


culturais, podemos notar, nas mais diversas práticas performativas afro-
brasileiras, que o performer corporifica sua história, memória e ancestralidade.
Em se tratando de performance, a autora Sandra Haydée Petit (2015), enfatiza
a dança como canal de comunicação desse protagonismo do corpo no
mergulho à ancestralidade afro-diaspórica. “Dançar, na perspectiva
afroancestral aqui tratada, remete a uma visão circular do mundo, na qual início
e fim se encontram em eterna renovação” (PETIT, 2015, p. 72). Há de se
ressaltar que a questão das performances afro-brasileiras, assim como em
tantas outras performances negras, possui a incrível característica de agregar a
brincadeira e o ritual em suas práticas, de forma que atuem conjugadas. Entre
as questões discutidas sobre as práticas performativas afro-brasileiras,
propomos um grande relevo ao emprego dos elementos canto, dança e
música. Em se tratando destes três aspectos, Ligiéro (2011) informa que esta
tríade (cantar-dançar-batucar), expressão originalmente criada pelo filósofo e
pesquisador congolês Fu-Kiau2, contempla as características da performance
afro-brasileira.

Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo,


acrescido do uso do canto como algo simultâneo e percebido como
uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca, um
dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das
performances da diáspora africana nas Américas – não é possível
existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo
é aplicável às performances afro-brasileiras. (LIGIÉRO, 2011, p. 108-
109)

Ao refletir sobre o argumento de Ligiéro, entendemos que este trio


funciona como uma unidade indissociável, que atua de maneira conjunta e/ou
transversal, onde a dança, a música e o canto se interligam, se misturam, se
aglutinam. A seguir, discutiremos um pouco mais sobre como esses elementos
e principalmente a dança se conectam, construindo sentidos.

O corpo Pombagiresco e as representações de um corpo-mulher

Trazendo à tona a fala da pesquisadora Inaicyra Falcão (2015),


destacamos a importância e necessidade que cada vez mais pesquisas no
âmbito acadêmico tratem da ancestralidade negra a partir do prisma do corpo,
e não só estejam limitadas às abordagens de cunho antropológico, mas que
também se estendam à arte e a dança.

Dispomo-nos aqui a relatar algumas imagens de movimentos realizados


por Pombagiras em suas danças quando incorporadas em seus médiuns, e
2
Ver FU-KIAU in THOMPSON, Robert Farris. Face of Gods (1993) e Kongo gesture (2003).
Indicações coletadas na obra de Ligiéro (2011).
que foram observados durante um ritual de Exus e Pombagiras na comunidade
de terreiro Tenda Espírita São Miguel Arcanjo, localizada no bairro Bangu, zona
oeste do Rio de Janeiro. Nosso destaque se dá através da análise das
qualidades de movimento e da composição dos gestos, que constroem
sentidos diversos para elucidações outras de mulher a partir das performances
de Pombagiras.

Tratando-se de uma pesquisa ainda em andamento, nos atentamos a


descrever esses movimentos, elaborando junto aos teóricos que nos apoiam à
construção de hipóteses sobre possíveis representações desses corpos que
narram histórias e dançam memória ancestral. Também valorizamos as
narrativas dos membros da casa de Umbanda pesquisada, tendo grande peso
para com a fala dos mais velhos, pois em uma religião de transmissão oral,
devemos considerar que o contar histórias é extremamente singular para
compreensão dos contextos. O ritual observado, popularmente chamado de
gira foi realizado em junho de 2019 em festividade a Exus e Pombagiras. Junho
é um mês muito simbólico para os umbandistas, pois no dia 13 de junho, dia de
Santo Antônio, também é condecorado em reverência ao “povo de rua” por
conta do sincretismo religioso.

Sérgio Ferretti (2013) destaca que o sincretismo pode se agregar a


múltiplos sentidos em relação aos aspectos de cultos diversos e está
comumente associado à confluência, cruzamento, hibridação e equivalência.
Repensando a questão do sincretismo, propomos uma reflexão necessária a
ser feita no sentido de desconstruir a visão romantizada de sincretismo
enquanto equivalência harmônica entre santos católicos e Orixás e/ou
entidades, visto que os cultos de matriz africana são demarcados pela
perseguição e violência. Durante a gira, percebemos que o ambiente estava
decorado com predominância nas cores vermelha e preta, reconfigurando o
espaço-tempo do aqui e agora em cenário de um passado mítico. O bar dos
malandros e a mesa das grandes cortesãs de cabaré foi reconstruído, repleto
de bebidas, fumo e petiscos para apreciação das entidades e seus convidados.
Os tambores, compostos num conjunto de três atabaques e diversos
ogans3 que se revezavam para cantar e tocar ficam dispostos próximo ao altar
que chamam de congá. À medida que os toques iniciam, as entidades
começam a se manifestar nos médiuns. As Pombagiras não fazem distinção
entre homens ou mulheres, podendo “baixar”4 em qualquer um deles.
Destacamos cinco principais ações que englobam dois movimentos5 ou mais, e
que são recorrentemente realizados por Pombagiras, descritos a seguir:

Chegada: chamamos assim porque percebemos que acontece no


momento em que elas anunciam sua chegada no terreiro. Elas se lançam ao
chão na base de joelho, e em conjunto, gestualmente gargalham e/ou
combinam com requebros de quadril/ombros, que descreveremos a seguir;

Requebros de ombros e/ou quadris: é literalmente mover os quadris e/ou


ombros de forma sincopada e contínua. Movimentar os quadris, na cultura afro-
diaspórica, é sobretudo, dinamizar energia sexual. Tendo em vista a repressão
cultural a respeito do baixo corporal (ROCHA, 2012), este processo de
demonização dos quadris, traz uma conotação hipersexualizada ao corpo
feminino como algo obsceno e impuro. E é justamente por isso que as
Pombagiras insistem nessa movimentação, por pura desobediência.

Cumprimento: as Pombagiras geralmente curvam o tronco para frente,


com os joelhos levemente flexionados e apoiam as mãos nas pernas.
Observamos que muitas Pombagiras realizavam isso em frente aos atabaques
e ao congá como forma de saudação e reverência. Em outros momentos,
fazem isso antes de cumprimentarem alguma outra entidade ou consulente,
seguido de uma gargalhada e/ou abraço na pessoa a quem se dirigem.

3
Ogan ou ogã é o sacerdote masculino que não entra em transe e que recebe a função de
convocar as entidades/divindades a se manifestarem nos médiuns de incorporação. Isto, na
Umbanda, é feito através dos toques e do canto.
4
Expressão muito comum das comunidades de terreiro usada como sinônimo de entrar em
transe. Também se utiliza as expressões “virar no santo”, “rodar”, “incorporar”.
5
Os movimentos e gestos das Pombagiras descritos neste trabalho estão referenciados no
Sistema Universal da Dança (SUD), criado pela professora Helenita Sá Earp. Para saber mais
sobre a SUD, ver Motta (2006).
Afronto: nomeamos desta forma por se tratar de quando inclinam a
cabeça e coluna para trás, realizando um cambré6, encarando com ousadia a
quem a observa na direção oposta. A Pombagira da mãe de santo do terreiro
sempre repetia esta ação lançando os cabelos para os atabaques, seguido de
requebros de quadril.

Giros: realizam voltas contínuas em torno do seu próprio eixo, exibindo


suas saias longas, cigarros, taças de bebida. Os giros são os movimentos mais
evidentes das Pombagiras. Girar, para nosso olhar atento, a princípio evidencia
a própria satisfação das Pombagiras em dançar e seduzir, resgatando um
passado mítico de prazer.

Neste artigo não pretendemos aprofundar os significados desses


movimentos, pois ainda necessitamos investigar mais detalhadamente as
conexões que este repertório apresenta. Ainda na proposta de contribuir um
pouco mais na questão da análise da performance das Pombagiras,
destacamos um importante gesto que se destaca e perpassa por todas as
outras ações descritas anteriormente: as mãos na cintura. Este gesto aparece
em todas as outras ações (antes, durante ou depois).

Figura 1 – Escultura de Pombagira


Fonte: http://imagensprofeta.com.br/imagens.php?product_id=166.

Comparando este gestual das Pombagiras com iconografia afro-


referenciada, observamos a mesma disposição corporal em uma escultura
Bantu de origem do Congo, conhecida como Nkondi, cuja postura em que se

6
Terminologia do balé clássico, escrito na língua francesa. Representa a curvatura que se
realiza com a coluna para trás.
apresenta é conhecida por Pakalala. Este termo é usado para designar uma
postura que traduz o estado alerta, pronto para atacar ou defender, o que em
outras palavras nos leva a constatar que as mesmas características são
percebidas na performance das Pombagiras.

Pakalala, o estado de alerta.


Fonte:
https://www.philamuseum.org/doc_downloads/education/ex_resources/AfricanArtAfricanVoices.
pdf.

Mãos posicionadas sobre as ancas, corpo firme, rosto e olhar


imponentes denunciam a prontidão para qualquer acontecimento. Comparar
estas duas iconografias nos permite concluir que as Pombagiras, não estão
apenas brincando de seduzir. Elas de fato são a livre expressão da potência da
mulher que sabe o que quer, aonde quer chegar, e principalmente, o que
precisa fazer para conseguir.

Considerações finais:

Analisar a totalidade dos modos de fazer ou investigar os processos da


performance afro-brasileira. Ainda que nos voltássemos a um incansável
registro, seria o corpo e somente o corpo, aquele capaz de integrar a
complexidade dos significados inerentes às corporalidades das Pombagiras.

Está posto e convencido para nós de que a escrita não alcança a


experiência estética do aqui e agora, como nas vivências que o ritual
proporciona. A análise dos dados se desdobra na leitura da Pombagira
caracterizada pela desobediência dos entendimentos dicotômicos e na
desconstrução de estereótipos, visto que suas danças estão ligadas a gestos
para além do lugar da sedução, da sexualização e da marginalidade, mas que
também representam estado de alerta, ataque ou defesa. Outrora, confrontam
elaborações de feminino preconizadas pelos valores patriarcais, apresentando
atributos como irreverência, coragem, liberdade e ousadia.

Portanto, conclui-se que a Pombagira é aquela que está disposta a


contestar seu entorno, tanto e de tal forma, que pode até mesmo provocar
contradições entre nossas próprias convicções. Dotada de um caráter
polivalente, se torna a representante de um corpo potencialmente questionador
e político, capaz de produzir saberes e epistemologias próprias.

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* Doutoranda em Artes (UERJ), mestra em Relações Étnico-Raciais (CEFET-


RJ), especialista em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação (IFRJ) e
licenciada em Dança (UFRJ). Atua como artista, educadora e pesquisadora nas
áreas de Performance, Relações Étnico-Raciais, Gênero, Cultura Popular,
Religiões Afro-Brasileiras. Contato: tulani.ps@gmail.com.

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