Você está na página 1de 12

REFLEXÕES FEMINISTAS E O RAP DAS LÉSBICAS NEGRAS LATINO-AMERICANAS

Ariana Mara da Silva1


Laila Rosa2

Resumo: A partir da análise das músicas da Mc Luana Hansen do Brasil, Rebeca Lane da
Guatemala, Miss Bolívia da Argentina e Krudas Cubensi de Cuba, raperas lésbicas negras latino-
americanas, a intenção desse trabalho é discutir temas acerca da decolonialidade. O aparato teórico
utilizado é o feminismo decolonial com o fim de considerar como a poética lésbica negra contribui
com as discussões sobre gênero, raça e sexualidade em uma sociedade machista, racista
heteronormativa, eurocentrada e colonial. Contém aqui também algumas notas sobre
etnomusicologia para pensar o Rap no âmbito da música popular enquanto texto social, onde a
música não se dissocia da conduta humana, tendo uma ampla força comunicadora e marcada pela
forte interação entre música, letras e condição sócio-emocional. Considerar essas raperas enquanto
identidades marcadas por estereótipos de gênero, raça e orientação sexual permite a reflexão sobre
como as intersecções podem produzir resistência, conhecimento, arte e promover a difusão de temas
feministas dentro e fora do Movimento Hip Hop.

Palavras chave: decolonialidade, feminismos, lésbicas, negras, raperas.

Nesse artigo pretendo discutir o feminismo decolonial a partir de mulheres lésbicas negras
raperas da América Latina. A limitação do espaço por parte do evento no qual ele será apresentado,
doze páginas, me fez decidir por um recorte mais delimitado que o objetivado anteriormente. Ao
invés de trabalhar com as quatro raperas previstas inicialmente, utilizarei aqui apenas duas, mas a
discussão não fica prejudicada justamente porque esse trabalho é parte de um esquema mais amplo
que está sendo desenvolvido no meu projeto de mestrado intitulado Raperas Sudacas: a poética
lésbica negra na América Latina, em andamento da Universidade Federal da Bahia no Programa de
Pós Graduação do Núcleo em Estudos Disciplinares sobre a Mulher – PPGNEIM, e há outros
artigos em andamento onde também realizo parte do apresentado aqui.
Utilizando a etnomusicologia como um dos meus aportes teóricos, creio que não há como
realizar as discussões aqui propostas sem a presença das músicas feitas por lésbicas negras, por isso
diminuir a quantidade de músicas para essa exposição, nesse caso, contribui para melhorar a
qualidade do debate aqui exposto. De qualquer forma, mantenho os nomes das outras duas raperas
no texto, com o objetivo de visibilizar vozes que foram silenciadas por muito tempo.

1
Mestranda no Programa de Pós Graduação do Núcleo em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo da Universidade Federal da Bahia – PPGNEIM/UFBA - ariannacortes@hotmail.com
2
Coordenadora do Programa de Pós Graduação da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia
(PPGEMUS/UFBA) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher (PPGNEIM) da mesma
universidade - lailarosamusica@gmail.com.

1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
[...] para entender os efeitos da música sobre uma audiência é necessário entender
de que maneira as performances afetam tanto os performers quanto a audiência. De
fato música é mais que física. Essa citação pode ser considerada uma das primeiras
justificativas para o estudo etnográfico da música na cultura. Se quisermos entender
os “efeitos dos sons no coração humano” devemos estar preparados para retraçar
com os ouvintes os “costumes, reflexões e miríades de circunstâncias” que dotam a
música de seus efeitos. (SEEGER, 2008, p. 244)

O parágrafo citado logo acima justifica o porquê da etnomusicologia ser tão importante para
esse trabalho. Ao invés de privilegiar um produto – composição, execução de uma música - ou
processos – contextos de ensino aprendizagem, etnográficos, musicais – importa aqui pensar os
sujeitos elaboradores desses produtos e processos a partir dos recortes de gênero, raça, sexualidade,
geração, dentre outros (ROSA, 2010). A etnomusicologia enquanto metodologia dialoga de forma
bastante interessante com outra perspectiva teórica utilizada para elaborar esse trabalho, o
feminismo decolonial antirracista.
O feminismo decolonial é, antes de tudo, uma aposta epistêmica. Sua genealogia de
pensamento advém das margens e tem como atrizes as feministas, as mulheres, as lésbicas e as
pessoas racializadas como um todo, ou seja, intelectuais e ativistas com o objetivo de desmantelar a
matriz das múltiplas opressões (ESPINOSA, 2014) instauradas na América Latina a partir do
advento do colonialismo3. Após o término das administrações coloniais as relações de poder foram
atualizadas e processos que deveriam ter sido apagados, assimilados ou superados pela
modernidade continuaram a ser produzidos e reproduzidos, transformando as formas de dominações
coloniais, criadas pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial e pelas culturas
coloniais, em um padrão histórico e mundial de poder, a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005;
BALLESTRIN, 2013a).
A raça então se converte em um instrumento chave de dominação e controle entrelaçando
quatro eixos dessa dominação (QUIJANO, 2005): 1) a própria colonialidade do poder, que
estabelece um sistema de classificação social baseado em critérios raciais e sexuais, sendo as
identidades masculinas brancas superiores a quaisquer outras; 2) colonialidade do saber, colocando
o pensamento científico europeu, a razão colonial, como única forma de racionalidade epistêmica a
ser considerada; 3) colonialidade do ser, que implica na inferiorização, subalternização e
desumanização de quem se encontra fora da racionalidade formal, na qual negros e indígenas são

3
Cabe uma diferenciação entre colonialismo, “operado e reproduzido junto à constituição de outros processos
históricos, tais como capitalismo, racismo, imperialismo, ocidentalismo e epistemicídio” (BALLESTRIN, 2013b) e
colonialidade, a contemporização do colonialismo.

2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
colocados como bárbaros na relação razão/racionalidade e humanidade; e 4) colonialidade da
natureza, que descarta o mágico, o espiritual e o social frente a um modelo de sociedade moderna
racional e com raízes euro-americanas e cristãs (QUIJANO, 2005; WALSH, 2008, 136-139). Isso é
o que a partir de uma aproximação com o feminismo decolonial Maria Lugones (2008) vai
denominar como “sistema mundo moderno colonial de gênero”.
A dominação racista, machista, classista e heterocentrada da Europa insere a América Latina
nesse contexto de colonialidade convertendo-a em uma das partes do sistema mundo moderno
colonial de gênero. Essa inserção não ocorre sem resistências. Apesar de bem definidas as
estratégias religiosas, culturais e sociais da dominação os europeus tiveram que lidar desde o início
com religiões de matrizes africanas e indígenas que originaram o que conhecemos como o
candomblé, a santería e a jurema, por exemplo, responsáveis também por preservar grande parte das
culturas afros e indígenas latino-americanas. Os quilombos, mocambos, palenques, maronages e
marroon communities se espalharam por todas as Américas enquanto resistência ao trabalho
forçado e a imposição dos moldes de vida europeus. As relações, mesmo dentro do modelo
escravista, eram negociadas pra nenhuma grande revolta colocar em risco o projeto de dominação
europeu.
Assim como a atualização do colonialismo culminou na colonialidade, as formas de
resistência também sofreram atualizações, longe de pensar essa movimentação enquanto evolução,
as maneiras mais antigas de resistência ainda se encontram preservadas por toda a América Latina,
como os terreiros e as comunidades quilombolas ou palenqueras. Considero como uma dessas
atualizações de resistência o Movimento Hip Hop, com suas constantes disputas das narrativas
contando histórias através da oralidade, como diria Ana Maria Gonçalves
Eu acredito que se a gente for pensar, por exemplo, em Rap, Hip Hop, nessas formas de
manifestações artísticas que nasceram à margem do que a gente poderia chamar de uma
cultura erudita, dita erudita ou dita de elite, talvez seja um pouco de uma retomada dessa
questão dos Griôs4 né?! Eu vejo esses rappers como Griôs, sabe?! Como detentores de uma
história de uma comunidade, e de um local onde eles vivem, de um povo onde eles vivem,
que não se sentiram representados por uma...que seja dentro da música, que seja dentro da
literatura e acharam essas novas formas de apresentação ou de representação artística que
tem muito mais a ver com um público ao qual a literatura impressa né, e principalmente
essa impressa literatura disgrada [sic] e meio canônica né, não atinge (GONÇALVES,
2016).

4
O termo Griô é um abrasileiramento do termo Griot definido como o arcabouço do universo da tradição oral africana.
“O termo tem origem nos músicos genealogistas, poetas e comunicadores sociais, mediadores da transmissão oral,
bibliotecas vivas de todas as histórias, os saberes e fazeres da tradição, sábios da tradição oral que representam
nações, famílias e grupos de um universo cultural fundado na oralidade, onde o livro não tem papel social prioritário, e
guardam a história e as ciências das comunidades, das regiões e do país” (LEI GRIÔ NACIONAL, s/d). Vide
bibliografia.

3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
O Movimento Hip Hop, nascido nos bairros negros das grandes cidades estadunidenses nas
décadas de 1960 e 1970, constitui uma resposta à violência urbana a qual foram submetidas às
populações afrodescendentes e latinas (MOASSAB, 2011; MATIAS-RODRIGUES e ARAUJO
MENESES, 2014). O movimento se tornou uma forma de contestação das desigualdades sociais e
se espalhou “pelas periferias do mundo, numa relação estreita e essencial com cada lugar no qual se
desenvolveu” (MOASSAB, 2011, p. 48). O tom de protesto do Movimento Hip Hop, que tem como
seus elementos o grafite, o DJ, o break, o Rap e a contestação política, o colocou em embate direto
com os grandes veículos da mídia e com a polícia, sendo muitas vezes representado como violento e
não como um instrumento de contestação dos problemas sociais. Esses elementos do Hip Hop e as
respostas a eles é o que podemos chamar de performance, ou seja, um drama social onde os
participantes não só fazem coisas, mas mostram os feitos para uma audiência (ROSA, 2010). Mais
que isso, o Movimento Hip Hop se encaixa no conceito de performance cultural, uma perspectiva
mais ampla onde se contempla desde etnografias com as falas dos sujeitos até ações simbólicas por
eles praticadas. Para Rosa (2010, p.3) a performance cultural
Leva em conta também as relações destes sujeitos com o cotidiano que, por sua vez, estão
relacionadas não somente ao uso da linguagem, mas sobretudo a outros tipos não verbais
de comunicação que se fazem fortemente presentes na vida social.

No interior dessa relação dialética entre performance cultural e cotidiano, a partir dos anos
1980 emerge, também nos Estados Unidos, o Gangsta Rap, inicialmente marcado pelas letras duras
e forte denúncia contra violência policial. Esse foi o estilo absorvido comercialmente e
transformado em produto midiático por rappers como 50Cent, Jay-Z e Eminem que cantavam e
cantam uma estética da violência. Com a ampliação de canais tipo MTV pelo mundo, o Rap
comercial, vinculado à sociedade de consumo e desvinculado do Movimento Hip Hop, marcado por
letras sexistas, consumistas e individualistas, ganha espaço se transformando no Rap conhecido
pelos grandes públicos (MOASSAB, 2011). A dominação colonial é muitas vezes combatida pelo
Movimento Hip Hop quando se trata do preconceito de classes e do racismo, mas esse mesmo
movimento, muitas vezes, “silencia e invisibiliza mulheres e homossexuais, as primeiras retratadas
quase sempre como objeto sexual e os segundos como patologias do comportamento desviante”
(MOASSAB, 2011, p.232).
As mulheres, negras ou brancas, geralmente retratadas nas letras de Rap como “objetos de
adorno” por seus atributos físicos em uma sociedade androcêntrica recebem tratamentos diferentes
também no Hip Hop, onde a mulher negra é mais vulgarizada e desvalorizada que a branca

4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
(MOASSAB, inédito, p.4). As mulheres ainda são retratadas como loucas, barraqueiras, traidoras,
interesseiras e controladoras, nas letras misóginas de alguns rappers, que muitas vezes mais
parecem incentivos à violência e ao estupro do que uma maneira de fazer arte contestatória. Santos
(2011) aponta que o poder de fala e de denominar a significação das coisas historicamente foi
designado aos homens brancos e heterossexuais e, apesar da singularidade da música frente a outras
expressões o privilégio da produção e construção de discursos também é dos homens.
O compositor e locutor geralmente é masculino, a mulher se apresenta como objeto de sua
atenção, amor e desejo. E até mesmo nas últimas décadas onde as mulheres passaram a
atuar em espaços sociais, onde até então a sua presença não seria bem vista, como na
música, o discurso e a perspectiva masculina ainda prevalecem, a mulher ainda representa o
objeto de desejo, raramente está na posição de sujeito. Exemplo disto são as interpretes que
não alteram o gênero das letras em suas performances ou gravam músicas com teor
ofensivo às mulheres (SANTOS, 2011, p.4).

Desconstruir os estereótipos misóginos e violentos ostentados em letras de Rap, que fazem


ponte direta com o eurocentrismo androheteronormativo vigente nas representações sobre a
América Latina desde o período colonial, é também “radicalizar a crítica ao universalismo”
(ESPINOSA, 2014) do ser mulher, assim como as feministas decoloniais antirracistas fazem na
produção teórica, como continuidade da movimentação anteriormente iniciada pelo feminismo
negro e pelas feministas afrodescendentes e indígenas latino-americanas, mostrando “con su crítica
a la teoría clásica la forma como estas teorías no sirven para interpretar la realidad y la opresión de
las mujeres racializadas y cuyos orígenes son provenientes de territorios colonizados”
(ESPINOSA, 2014, p.8).
Se assumir como mulher negra lésbica e latino-americana é ter consciência do quanto é
preciso resistir em uma sociedade estruturada a partir do patriarcado, que elegeu a identidade
masculina, branca e heterossexual como modelo a ser seguido, sendo o poder e a alteridade
protagonistas no processo de construção da identidade. Isso reflete diretamente nas músicas
compostas pela raperas lésbicas negras da América Latina. Como exemplo, cito inicialmente a
rapera brasileira Luana Hansen com a música Flor de Mulher, gravada no ano de 2012.
A música começa com uma introdução de cordas, provavelmente violinos e violas, e uma
batida de surdo marcando tempo no final de cada compasso, uma melodia angustiante e ansiosa ao
mesmo tempo. Na cabeça do terceiro compasso surge a voz da Luana, grave e pausadamente
narrando dados sobre a violência contra mulheres no Brasil: “a cada duas horas, uma mulher é
assassinada no país”. Como que tomando ar, uma pequena pausa antes de descarregar a primeira
parte da letra em um só fôlego.

5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Mulher, no topo da estatística/32 anos uma pobre vítima/ Vivendo num sistema machista e
patriarcal/ onde se espancar uma mulher é natural/ A dona do lar, a dupla jornada/Sempre
oprimida, desvalorizada/ Até quando eu vou passar despercebida/ a cada 5 minutos uma
mulher é agredida/ E você pensa que isso é um absurdo, a cada hora duas mulheres sofrem
abuso/ Sai pra trabalhar, pra quê?/ Pra ser encochada por um Zé feito você que diz:/ - eu
não consegui me controlar/ olha o tamanho da roupa que ela usa rapá?!/ A culpada, em
todos os lugares,/ Violentada, por gestos, palavras, e olhares/Alvo do mais puro
preconceito/ Já que tá ruim, ela que não fez direito!/ Objeto de satisfação do prazer/
Desapropriada da opção do querer/ Agredida em sua própria residência/ Julgada sempre
pela aparência/ Numa situação histórica e permanente/ A sociedade que se faz indiferente/
Questão cultural, força corporal/ Visão moral, pressão mental/ Levante sua voz e me diz
qualé que é/ É embaçado ou não é... Ser mulher?!

Nessa primeira parte a compositora e rapera demonstra uma preocupação específica,


denunciar opressões diárias as quais as mulheres são submetidas. É uma narrativa de como o
sistema mundo moderno colonial de gênero violenta mulheres jovens todos os dias através da
agressão física, da dupla jornada de trabalho, da invisibilização das causas que atingem mulheres
especificamente, dos abusos sexuais diários até na hora de ir para o trabalho e da culpabilização da
vítima. A rapera narra ainda os julgamentos morais a que as mulheres são submetidas em uma
cultura baseada em princípios machistas e patriarcais, utilizando inclusive da força para impor como
as mulheres devem se portar, sendo a raiz desse comportamento “histórica e permanente”. Luana
denuncia ainda o fato de essa mesma sociedade moralista ser indiferente às agressões que mulheres
sofrem dentro de casa.
Entra então o refrão, são duas vozes cantando agora. Uma aguda e outra grave, Drika
Ferreira e Luana Hansen, respectivamente. O refrão com uma voz mais aguda que a da rimadora é
um formato bastante utilizado no Rap, é o ápice de toda dramaticidade da música e chama atenção
para a mensagem que está sendo difundida através da letra. “Sim eu sou mulher estou pronta pra
lutar/ Sim eu sou mulher e vou sempre avançar/ Sim eu sou mulher ninguém vai me parar/ Ninguém
vai me parar!”
O refrão surge na música enquanto uma virada triunfal das mulheres. É uma narrativa sobre
luta, onde nada poderia parar as conquistas das mulheres na sociedade, um enfrentamento as
situações diárias de opressão as quais são submetidas, conforme foi narrado na primeira parte da
música. O refrão é a conjunção entre a primeira e a segunda parte da música, mas já em uma
perspectiva empoderadora dessas mulheres, reforçada na segunda parte da música.
No seu jardim nasceu a flor desobediente/ Enquanto ela existir vai ser diferente/
Destruindo e criando/ Saltando barreiras/ A faraó, a verdadeira/ Valente imperatriz,
revolucionária/ A pioneira, nunca retardatária!/ Símbolo da mais pura ousadia/ A
venenosa, erva daninha/ Líder nata maestrina/ Mulher Ipanema, heroína/ No grito e no
ferro/ Que nunca se entrega/ Quebrando o tabu/ Destruindo as regras/ Autêntica,
polêmica, combatente/ Coloca a mulher sempre a frente/ Enigmática, apoiada pela fé/
Decidida, sabe sempre o que quer/ Estrategista, de uma mente brilhante/ Forte, corajosa,

6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
cativante/ Guerreira, campeã, atrevida/ Na luta diária pra ser reconhecida/ A dona do seu
corpo,imponente/ De ampla visão,independente/ A favor da liberdade eliminando o
preconceito/ Inteligente, merecedora de respeito/ A trabalhadora, a chefe de família/ A
produtora, a feminista./ Levante a sua voz e me diz qualé que é/ É embaçado ou não é... Ser
mulher?

Nesse trecho há o olhar empoderador de uma mulher sobre todas as outras mulheres. Não
são mulheres iguais, mas sim uma diversidade delas, com ocupações e características distintas,
negando completamente tanto a universalidade do ser mulher como as estereotipias constantes nas
narrativas dos rappers. Aparecem e são afirmadas aqui, as “flores desobedientes” que destroem as
barreiras e obstáculos impostos pelo sistema patriarcal.
Tanto no meio, entre o refrão e a segunda parte, como no final da música, Luana declama
um trecho evidenciando o poder prenunciador dessa música: “a raiz é o espelho do que eu digo e a
semente espalha tudo o que é dito”.
Um segundo exemplo a ser citado aqui são as cubanas Krudas Cubensi. A dupla,
anteriormente era trio, é uma referência quando o assunto é Rap de mulheres e/ou de lésbicas e/ou
de negras na América Latina. A música Mi cuerpo es mio gravada em 2014 começa com um fundo
eletrônico enquanto as cantoras questionam e respondem “Whose bodies? Our bodies! Whose
rights?Our rights!” enunciando não somente a luta por direitos, mas também quem tem o direito de
falar sobre os corpos, nós mulheres, negras e LGBTs. Em seguida, junto com o fundo eletrônico é
possível ouvir batidas de um tempo de bateria marcando o tempo da música e a voz das raperas
com um coro confirma o questionamento anteriormente feito em inglês, agora em espanhol
“¿Cuerpos de quienes? ¡De nosotras(es)! ¿Derechos de quienes? ¡De nosotras(es)! ¿Decisiones de
quienes? ¡De nosotras(es)!”.
É importante ressaltar que as Krudas utilizam frequentemente o espanhol alternando com o
inglês e algumas palavras mesclando os dois idiomas. Isso por serem também migrantes cubanas
vivendo entre Estados Unidos e Cuba, sendo o público delas formado por latino-americanos
vivendo nos Estados Unidos e estadunidenses. Essa reflexão sobre o lugar, pensando aqui em
território, de atuação das Krudas Cubensi dialoga com as reflexões de Paul Gilroy (2001) e Stuart
Hall (2003) sobre a diáspora africana e o Atlântico Negro, este último definido como as estruturas
transnacionais criadas na modernidade que deram origem a uma rede de comunicação global
marcada por fluxos e trocas culturais onde as populações negras da diáspora africana formaram uma
cultura que não é africana, caribenha, americana ou britânica.
É uma cultura de caráter híbrido que não está circunscrita ás fronteiras nacionais ou étnicas
(GILROY, 2001). Apesar do foco das análises destes autores não ser a América Latina, a região se

7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
encontra inserida nesse Atlântico Negro, pois as transformações ocorridas no mundo, a partir do
colonialismo europeu, ocorreram também e por causa desse espaço geográfico.
Por muito tempo a musica negra foi utilizada por artistas para difundir mensagens políticas,
movimentação que recebe bastante destaque a partir da década de 1960 com o movimento pelos
Direitos Civis nos Estados Unidos e, juntamente com imagens de negros africanos e não africanos,
foi uma maneira de difundir a negritude enquanto identidade política antirracista. Assim, a cultura
negra chega além de fronteiras nacionais ajudando a população de ascendência africana se organizar
e enfrentar a exclusão social e a violência racial (GILROY, 2001; SAUNDERS, 2012). A música,
portanto é um espaço de prática política e crítica, contrastando com as revistas acadêmicas, cafés e
outros espaços geralmente dominados pela elite burguesa, é onde os excluídos têm a oportunidade
de abordar suas necessidades com facilidade de acesso, um espaço democrático. Identidades negras
e ideologias de libertação são transmitidas através da música e imagens acompanham as gravações e
aparecem em camisetas e grafites (SAUNDERS, 2012).
Essas imagens possuem códigos educacionais e afetivos que as artistas direcionam explicita
ou implicitamente aos membros da diáspora africana, são ferramentas para facilitar a formação
dessa identidade negra e diaspórica. O capitalismo, e me permito aqui a atualização do termo para
sistema mundo moderno colonial de gênero, criou uma situação em que as comunidades
afrodescendentes nascidas nas democracias ocidentais têm negados os direitos da cidadania
ocidental por não serem definidas como ocidentais, a música negra passa a desafiar essa realidade
(GILROY, 2001; SAUNDERS, 2012), nesse caso agregando questões relacionadas também ao
gênero e a sexualidade, como é relatado na segunda parte da música.
Krudas Cubensi one more time representing/ womyn and queer people choices!/
K.R.U.D.A.S/ Saquen sus rosarios de nuestros ovarios (2x)/ Saquen su doctrina de nuestra
vagina (2x)/ Ni amo, ni estado, ni partido, ni marido (4x)/ Que tu lo sabe' haceres So' no te
desesperes/ Que en este juego siempre ganamos las mujeres/ Que tu lo sabe' hacer So' no
te desesperes/ Que mi crudeza es la que la gente quiere.

No trecho transcrito acima, a dupla se coloca como representante das escolhas das mulheres
e de pessoas queer5. É uma manifestação contra todo o aparato colonial - a cristandade, o
patriarcado, o Estado, o patrão – ao mesmo tempo uma ode ao poder das mulheres, uma visão da
mulher empoderada na sociedade. Na batida eletrônica são adicionados diversos elementos e a

5
Queer no inglês carrega a noção de desviante. O termo inicialmente era utilizado como ofensa a gays, lésbicas,
transexuais e travestis, mas foi ressignificado a partir da década de 1990 com o lançamento do livro “Problemas de
Gênero” de Judith Butler. Queer vem justamente questionar as noções essencialistas do masculino, do feminino e do
desejo. É a teoria que empodera corpos subalternos, não assimilando as noções vigentes de gênero, mas empoderando
esses corpos nas margens para que ocupem todos os espaços. Ver: PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual. São
Paulo: N1 edições, 2015.

8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
música soa bastante alegre como uma libertação do mal que atingia as mulheres, como quem diz:
agora unidas nossas forças se somam e ganharemos esse jogo.
Que las femina no somos solo pa' vernos bonitas/ pa' seguirte la corre no, calladita, no/
Aquí estamos las Krudas con el micro en mano,/ representando a las primas oye, tú./ En
esta vida tenemos gran importância/ Nuestro lugar defenderemos con elegância/ Más que
ustedes conocemos la discriminación/ Somos clase humilde, somos color/ Además somos
mujeres, necesitamos amor/ Conocemos el sudor, disfrutamos nuestro olor/ ¡Tenemos tan
buen saboor!

A terceira parte da música é uma rima rápida, alegre e cadenciada, sem ter a letra em mãos é
quase impossível identificar o que estão cantando. De qualquer maneira, é onde as Krudas reiteram
seu papel enquanto representante das mulheres, pois têm a voz nesse discurso, têm o “micro en
mano”. Relatam a grande importância das mulheres, não mais caladas e para serem vistas como
bonitas, mas advindas das classes baixas e sendo de cor sabem tanto o valor do suor que desfrutam
do odor advindo dele. A última frase desse trecho é uma referência lésbica ao ato de uma mulher
praticar sexo oral em outra mulher, dito em tom engraçado, mas com o objetivo de causar um efeito
bastante sério.
A quarta parte da música chega com o mesmo tom animado da terceira com repetição de
algumas frases, com algumas misturas de idiomas e outras frases em inglês.

No somos mickie, ni chic-ie, ni richie/ Criadoras diferentes pa' tu psyche (2x)/ Afro latina
americana caribeña/ Orgullo de mi gente y de mi cuerpo dueña (4x)/ My body is mine Mi
cuerpo es mio/ Que tu lo sabe' haceres/ So' no te desesperes/ Que en este juego siempre
ganamos las mujeres/ Que tu lo sabe' haceres So' no te desesperes/ Que mi crudeza es la
que la gente quiere/ Desde inmemorables épocas tuvimos grandes hazañas/ Negras
heroínas, blancas, chinas,/ todas chamanas, indias hermanas/ Luchando por un mejor
mañana/ por que tengas comida en tu mesa, sol y tu cama/ Aquí estamos las cubanas
haciendo lo que se nos dé la gana/ ¿cómo es? Ya tu sabe' que es 2014 pa' que goce .../ Afro
latina americana caribeña/ Orgullo de mi gente y de mi cuerpo dueña (4x)/ Mi cuerpo es
mío Mi cuerpo es mío.

Fica explicito nessa parte o fato da mulher afro-latina americana e caribenha ser dona de seu
corpo e orgulho de seu povo, mulheres que sabem fazer e não precisam se desesperar por isso. Mas
não somente essas, as negras, as brancas, as chinesas, as indígenas desde tempos são mulheres
heroínas lutando por melhores condições vida e pelo direito ao próprio corpo, realizando diversas
façanhas para alcançar esses objetivos.
Através desses dois exemplos quis demonstrar aqui como as raperas lésbicas negras latino-
americanas se inserem no Movimento Hip Hop com discursos muito diferentes dos rappers.
Enquanto eles, por diversas vezes, difundem ideias muito próximas a colonialidade do poder,
utilizando estereótipos machistas e sexistas, elas estão produzindo arte e resistência

9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
desuniversalizando o ser mulher destacando uma grande diversidade delas de maneira empoderada
e não em posições subalternas. Como diria Luiza Bairros (1995), não há como tratar as mulheres
enquanto uma identidade única porque a experiência de ser mulher se dá de maneira histórica e
socialmente determinada. Além disso, foram as feministas negras, lésbicas e de cor que entenderam
desde cedo a “interconexión profunda entre estructuras de dominación, en particular la relación
entre la mirada androcéntrica, el racismo, la modernidad y la colonialidad” (ESPINOSA,
2014,p.11).
Essas raperas não apenas cantam, mas também compõem essas músicas, segundo Glória
Anzaldúa um posicionamento que requer coragem e empoderamento pois,
Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, a força
de uma mulher sob uma opressão tripla ou quádrupla. Porém neste ato reside nossa
sobrevivência, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é
temida. (ANZALDUA, 2000, p. 234)

O próprio fato das Krudas utilizarem hora o espanhol, ora o inglês, ora os dois em palavras
não inscritas no cânone da linguagem hegemônica, rompe com a ideia eurocêntrica em forma e
conteúdo, contemplando outras vozes, representadas por essas raperas, como aparece em algumas
partes das músicas, falando “em línguas, como os proscritos e os loucos” (ANZALDUA, 2005,
p.232).
Raperas como Luana Hansen, Krudas Cubensi, Rebeca Lane e Miss Bolívia enquanto
identidades marcadas pelos estereótipos de gênero, raça e orientação sexual possibilitam reflexões
acerca de como as intersecções podem produzir resistência, conhecimento, arte e promover a
difusão de questões feministas dentro do Movimento Hip Hop.

Referências
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v.8, n.1, p.229-236, 2000.

BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos Revisitados. Estudos Feministas, v.3, n.2, 1995, p. 458-463.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. In: Revista Brasileira de Ciência
Política. Brasília, n.11, p.89-117, 2013.

____________________. Para transcender a colonialidade. Depoiment. 04/11/2013. São Leopoldo,


RS: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. Entrevista concedida a Luciano Gallas e Ricardo
Machado.

10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ESPINOSA-MIÑOSO, Yuderkys. Una crítica descolonial a la epistemología feminista crítica. El
Cotidiano, n.184, p. 7-12, mar./abr. 2014.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Trad. MOREIRA, Cid K.
Ed. 34, Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2001.

GONÇALVES, Ana Maria. Entrevistas – Ana Maria Gonçalves. Rio de Janeiro - RJ, 21 ago. 2016.
Entrevista concedida a Vinicius Portella. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=OVBdt6aFT1Q. Acesso em: 10 mai. 2017.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

LEI GRIÔ NACIONAL. O que é Griô? Disponível em: < http://www.leigrionacional.org.br/o-que-


e-grio/>. Acesso em: 25 mai. 2015.

LUGONES, María. Colonialidad y Género: hacia un feminismo descolonial. In: Género y


Descolonialidad. MIGNOLO, Walter (ORG). Buenos Aires: Del signo, 2008.

MATIAS-RODRIGUES, M.N.; ARAÚJO-MENEZES, J. Jovens mulheres: reflexões


sobrejuventude e gênero a partir do Movimento Hip Hop. In: Revista Latinoamericana de Ciencias
Sociales, Niñez y Juventud, 12 (2), pp. 703-715, 2014.

MOASSAB, Andreia. Brasil periferia(s): a comunicação insurgente do hip-hop. São Paulo: EDUC,
2011.

__________________. As mulheres, as brasileiras e as batalhas simbólicas. (inédito)

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo(Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Buenos Aires,p. 227-278, 2005.

ROSA, Laila. Pode performance ser no feminino?. In: ICTUS – Periódico do PPGMUS/UFBA.
Salvador, v.11, n.2, pp. 1-14, 2010.

SANTOS, Giselle dos Anjos. As representações sociais sobre as mulheres negras na música. [S.I.:
s.n.], 2011.

SAUNDERS, Tanya L. Black thoughts, black activism: Cuban underground hip-hop and afro-latino
countercultures of modernity.In: Latin American Perspectives, issue 183, v. 39, n.02, pp.42-60,
mar. 2012.

WALSH, Catherine. Interculturalidad, Plurinacionalidad y Decolonialidad: las insurgencias


político-epistémicas de refundar el Estado (2008). In: Tabula Rasa. Bogotá, n.09, p.131-152, 2008.

Discografia

CUBENSI, Krudas. Mi cuerpo es mio. In: Poderosxs. Austin: Krudas Cubensi, 2014. 1CD.

11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
HANSEN, Luana. Flor de mulher. In: Luana Hansen. São Paulo: Hansen Studios, 2012. 1CD.

Feminist Reflections and the Rap of Latin American Black Lesbians

Abstract: From the analysis of Mc Luana Hansen's from Brazil, Rebeca Lane from Guatemala,
Miss Bolivia from Argentina and Krudas Cubensi from Cuba songs, latin american black lesbian
rappers, the intention of this work is to discuss topics about decoloniality. The theoretical apparatus
used is decolonial feminism in order to consider how black lesbian poetry contributes to discussions
about gender, race and sexuality in a machist, racist, heteronormative, eurocentric and colonial
society. It contains also some notes on ethnomusicology to think Rap in the scope of popular music
as a social text, where music does not dissociate itself from human conduct, having a broad
communicating force and marked by the strong interaction between music, lyrics and socio-
emotional condition. Considering these rappers as identities marked by stereotypes of gender, race
and sexual orientation allows reflection on how intersections can produce resistance, knowledge,
and art, and promote the diffusion of feminist themes within and outside the Hip Hop Movement.
Keywords: lesbians; blacks, rappers, Latin America; decolonial.

12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Você também pode gostar