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Um debate sobre reconhecimento e distribuição:

Djonga, A Quadrilha e o Hip-Hop

Nome do estudante: Luca Amaral Machado

Referências ao diálogo: O texto tem como referência a aula sobre o debate de


Nancy Fraser e Judith Butler, e utiliza de maneira bem atravessada a aula sobre o livro
Crítica da Razão Negra de Achille Mbembe
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Introdução

Neste texto irei analisar o Rapper Djonga, sua produtora A Quadrilha, e o


movimento cultural hip-hop através do debate de Fraser e Butler sobre Reconhecimento
e Distribuição. Para isso, obviamente, utilizarei dos textos: Meramente Cultural de
Judith Butler e Heterossexismo, falso reconhecimento e capitalismo: uma resposta a
Judith Butler de Nancy Fraser. Como apoio utilizarei do artigo O heterossexismo é
meramente cultural? Judith Butler e Nancy Fraser em diálogo de Aléxia Bretas e o
artigo A nova condição do rap: de cultura de rua à São Paulo Fashion Week de Daniela
Vieira dos Santos. Desta analise pretendo compreender os limites do reconhecimento do
movimento cultural hip-hop, suas características a partir deste debate e suas atuações
empíricas em relação às questões que o atravessam, está última a partir de Djonga e sua
produtora.

O texto segue 4 partes antes da conclusão: a primeira delas eu apresento os


sujeitos da minha análise, Djonga e A Quadrilha; na segunda parte, através do artigo de
Daniela Vieira dos Santos, apresento o contexto social e econômico o qual Djonga e a
sua produtora se situam; na terceira parte apresento o debate entre Judith Butler e Nancy
Fraser, e seleciono o que de todo o debate pode ser interessante para minha análise; na
última parte apresento minha análise e seus desdobramentos.

Minhas escolhas foram tomadas a partir de um interesse particular a esse rapper.


Suas discussões e importância na cena brasileira de rap são os pontos que mais me
atraem. Em relação ao debate das autoras parti de uma certa curiosidade no potencial
que suas teorias poderiam ter em cessar algumas de minhas questões sobre esse rapper e
o próprio movimento cultural hip-hop.

Djonga e A Quadrilha

Gustavo Pereira Marques, mais conhecido como Djonga, nasceu na zona leste de
Belo Horizonte. Através do movimento cultural hip-hop, mais precisamente do rap,
Djonga produziu um extenso repertório musical. Em 7 anos lançou 7 álbuns e diversos
singles, por meio dos quais expressa e reflete as contradições vividas por um sujeito
negro, masculino e marginalizado no Brasil. Uma figura importantíssima no cenário
social de Belo Horizonte e, hoje, na cena de rap no Brasil, com reconhecimento
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Internacional (turnês nos Estados Unidos e Europa, além de indicações a premiações


Internacionais). O sujeito da nova geração do rap que mais tem proximidade com a
vanguarda do rap no Brasil (Mano Brown, Dexter...).

Foi em 2021 que Djonga criou o selo musical independente ‘’A Quadrilha’’, uma
produtora em seu bairro de origem, ‘’São Lucas’’. Todos os funcionários da produtora
são familiares e/ou amigos do artista, em sua grande maioria mulheres negras. É da
preocupação de Djonga e sua equipe tornar Belo Horizonte um polo de produção
cultural tal qual São Paulo e Rio de Janeiro, sem perder de vista as opressões que
atravessam a realidade social (gênero, raça, classe, território...) para isso foram tomadas
algumas decisões: como fortalecer a cena musical de Belo Horizonte, apoiando artistas
mineiros, possibilitando-os visibilidade, e financiamento, além de focar suas
contratações de serviços a empresas e pessoas da capital de Minas Gerais. Atualmente, a
produtora conta com artistas em ascensão, a somatória dos ouvintes de todos os artistas
é de quase 6 milhões de ouvintes mensais no Spotify. Foi responsável pela explosão de
sucesso de Marina Sena, que conta com 5 milhões de ouvintes mensais no Spotify, e
que atualmente já não faz parte da ‘’A Quadrilha’’. Em quase dois anos de história ela
se posiciona como uma das maiores produtoras musicais do Brasil.

O contexto social e econômico

‘’A Quadrilha’’ nasce em um momento muito específico da história do


movimento cultural hip-hop, o momento da nova condição do rap (SANTOS, 2022).
Conceito elaborado pela Socióloga Daniela Vieira dos Santos. No seu artigo A nova
condição do rap: de cultura de rua à São Paulo Fashion Week, Santos irá por meio de
dois estudos de caso traçar uma análise da cena atual do rap, a partir do olhar as
transformações simbólicas e sociais desta prática artística. Uma análise que prioriza a
compreensão das relações e diálogos entre os constituintes do rap e a indústria cultural.

A socióloga discorre sobre como a partir de 2010 o rap sofre uma grande
transformação, a expressão artística até então reduzida a um gênero musical, que havia
sido apropriado pela indústria cultural, o que produziu artistas que não tinham contato
com o movimento cultural hip-hop, passa a se expressar para além da música. Os
encontros com um público mais amplo aumentam, e o rap ganha reconhecimento. Deixa
de circular somente em espaços vinculados a ideia de cultura de rua e/ou periférica.
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Santos considera essa nova condição da cena brasileira de rap como uma
ampliação do processo de legitimação do rap, tendo em vista este reconhecimento
crescente em espaços consagrados como a universidade e espaços culturais (SESC,
livrarias...). Ela percebe toda uma transformação na percepção social do rap,

Portanto, se antes sinônimo de “mau gosto”, “violência”, “marginalização”,


além de um importante sinalizador de classe social, o rap passa a ser ouvido,
no tempo presente, por uma parcela maior de jovens universitários de classe
média, além de adentrar em espaços já consolidados. (abid, p.8)

Essas transformações históricas para a autora acontecem a partir das políticas de


inclusão social, que impactaram a vivência nas periferias nas últimas décadas, os
debates sobre as políticas de ações afirmativas, e a expansão da internet.

Essa nova postura desnaturaliza estereótipos racistas e demonstra o quanto os


aspectos que informam a cultura hip-hop não podem ser essencializados. A
cultura, em sentido amplo, é um processo social, histórico, permeado por
mudanças e contradições. As práticas e formas culturais, entendidas como
sistemas de significações, em que “uma dada ordem social é comunicada,
reproduzida, vivenciada e estudada’’ (WILLIAMS, 1992, p.13), revelam as
relações sociais presentes na obra. (abid, p.9)

A autora nos adverte ainda a importância de não deixar o conceito, a nova


condição do rap, padronizar tudo que acontece na cena, reenterra como cada sujeito tem
suas especificidades dentro dessa nova condição, e como partem de linguagens e
referenciais musicais diversos. Seu conceito ‘’explicita as tensões colocadas por rappers
que aspiram prestígio artístico semelhante aos artistas do mainstream da música popular
brasileira já consagrada’’ (abid, p.10-11)

Através do MC, Emicida, ela demonstra como não só a percepção da sociedade e


da indústria cultural mudou como a própria percepção dos rappers frente ao seu próprio
trabalho. Emicida entende seu projeto artístico como prática artística, não
necessariamente vinculado a uma essência militante, ‘’...indo além dos limites
historicamente colocados ao artista negro e periférico’’ (abid, p.10).

O fenômeno em curso corporifica a possibilidade de reexistir em espaços


distintos, delineando um estilo de vida no mercado de bens simbólicos e
econômicos para além da música. Todavia, para que o rap como tema
pudesse se desvincular da fonografia ele precisou que esta forma estivesse já
consolidada na indústria cultural, circulando em público amplo e
diversificado. Diante disso, a periferia se estiliza como marca. Marca
comercial orientada pela lógica do neoliberalismo, cujos impactos são
objetivos e subjetivos, mas, igualmente, marca de possibilidades de
superação e utopia de um outro devir negro não marcado apenas pela
narrativa das violências e vulnerabilidades. (abid, p.18)
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A fim de demonstrar o reconhecimento crescente desses artistas, e do rap de uma


maneira geral, ela conta como artistas de maior renome, que circulam pelo mainstream,
assumem posições públicas sobre assuntos polêmicos e políticos, ‘’a sua audiência,
ampla, deseja ouvir o que eles têm a dizer, as suas denúncias, a sua trajetória, as suas
visões de mundo’’ (abid, p.13). O rap é encarado a partir de outro status social e
simbólico, com um reconhecimento nunca atingido.

Reconhecimento X Distribuição

O debate sobre reconhecimento é amplo, um dos exemplos disso é a grande


discussão sobre reconhecimento versus distribuição de Judith Butler e Nancy Fraser de
1997. Que teve iniciou-se através da publicação do artigo Meramente Cultural de
Butler, um texto onde a autora discorre sobre esta discussão a partir, principalmente, da
crítica ao livro Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsocialist”
Condition de Fraser, em seguida Fraser a responde com um artigo titulado de
Heterossexismo, falso reconhecimento e capitalismo: uma resposta a Judith Butler.
Penso que a proposição das autoras caminha na direção de refletir sobre os novos
movimento sociais e suas relações com o capitalismo contemporâneo, tendo como
horizonte a superação deste sistema econômico e social.

Para apresentar1 o debate e defender o raciocínio de que as ideias de Butler e


Fraser podem ser aproximadas, me apoio no artigo O heterossexismo é meramente
cultural? Judith Butler e Nancy Fraser em diálogo da Filósofa Aléxia Bretas (2017).
Bretas comenta a importância da reascensão deste debate por elas através das
‘’...persistentes discordâncias sobre os modos pelos quais as configurações culturais
reforçam e/ou desestabilizam as bases econômicas do capitalismo como modo de
produção e reprodução das condições de vida.’’ (BRETAS, 2017, p.228). Ela ainda
comenta que ambas partem de um ponto em comum: ‘’a firme convicção de ambas
quanto ao esgotamento das políticas de representação centradas exclusivamente na

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A ideia neste momento não é esgotar toda as discussões possíveis a partir dos textos, até porque
neste trabalho não teria espaço, mas apresentar as aproximações necessárias para os movimentos os quais
farei logo em seguida. Para uma compreensão mais ampla de toda essa discussão recomendo a leitura do
artigo de Aléxia Freitas (2017).
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valorização das identidades culturais.’’ (abid, p.229) Mas que ‘’...boa parte do confronto
teórico entre Butler e Fraser radica-se precisamente na compreensão da própria natureza
do capitalismo contemporâneo, incidindo diretamente sobre a viabilidade dos modos
pelos quais ele poderia vir a ser superado.’’ (abid, p.239)

Butler ao invés de buscar ou pressupor uma identidade sexual ideal, busca


referências indenitárias na esfera política, aquela que ela observa como produtora de
identidades, a partir da prática cotidiana, das instituições e dos discursos, cujo conteúdo
surge via lugares múltiplos e difusos. ‘’Chamando atenção para as práticas de
ocultamento, subalternização e abjeção implícitas nos processos mesmos de produção,
classificação e reconhecimento de um tal sujeito...’’(abid, p.230) Nesse sentido a autora
percebe:

O modelo compulsório de troca sexual reproduz não apenas a sexualidade


limitada pela reprodução, mas também uma noção naturalizada de “sexo”
para a qual o papel relevante na reprodução é central. Na medida em que os
sexos naturalizados funcionam para assegurar a díade heterossexual como a
estrutura sagrada da sexualidade, eles continuam a subscrever os direitos
legais, econômicos e de parentesco, bem como aquelas práticas que
delimitam o que será uma pessoa socialmente reconhecível. Insistir que as
formas sociais da sexualidade não apenas excedem, como ainda confundem
os arranjos heterossexuais de parentesco, bem como a reprodução, é também
argumentar que aquilo que pode ser qualificado como uma pessoa e um sexo
será radicalmente alterado – um argumento que não é meramente cultural,
mas que confirma o lugar da regulação sexual como um modo de produzir o
sujeito. (BUTLER, 2016[1997], p.246)

O olhar de Butler é pautado por várias de suas preocupações, o que instiga analises
como essa anteriormente descrita, porém uma delas, e talvez a mais importante para ela
nesse artigo (meramente cultural), é a defesa de que não deve-se caracterizar o
movimento queer como somente a esfera cultural, ou de caráter pouco rigoroso. Sua
reflexão assume ‘’tanto o “gênero” quanto a “sexualidade” tornam-se parte da “vida
material” não apenas pelo modo que atendem à divisão sexual do trabalho, mas,
principalmente, pelo fato de o gênero normativo ser indissociável da reprodução da
família heterossexual.’’ (BRETAS, 2017, p.239)

Outra questão fundamental é a crítica de Butler sobre a redução do foco da


política a representação. Para a autora esse movimento dificulta o rompimento com
dinâmicas de dominação que se expressam na formação de identidades, muito pelo
contrário reitera-as. Com outras palavras, as políticas identitárias, seja qualquer uma,
mas nesse caso a feminista, não devem se reduzir a identidade do sujeito que a
compõem, pois esse mesmo sujeito constrói sua identidade a partir da vida social que
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está repleta de afirmações sobre ele mesmo (BRETAS, 2017). Sua proposta é ‘’um
olhar transversal, em especial, sobre os estudos feministas e LGBTs’’ (abid, p.233) Pois
na visão da filósofa certamente ninguém se reduz a uma única identidade, e nem a
conceitos identitários inertes. Gênero e sexualidade são diversos e se constituem a partir
da interação com uma pluralidade de contextos e de expressões identitárias construídas
discursivamente como: raça, classe, étnico, e regional. Para a autora não existem
culturas inertes, são processos. Portanto, estão a todo momento mudando e se
constituindo. São nas trocas simbólicas que as identidades se tornam como são, o
movimento de se identificar e a organização de uma cultura ocorrem simultaneamente, a
todo momento, sujeitos compartilham intersubjetivamente performances, discursos...

Ambas as questões levantas por mim e elaboradas por Butler tendem a demonstrar
um novo olhar2 sobre os novos movimentos sociais, seus funcionamentos e
características.

Novas formações políticas não se colocam em uma relação analógica umas


com as outras, como se fossem entidades discretas e diferenciadas. Elas
constituem campos de politização sobrepostos, mutuamente determinantes e
convergentes. Com efeito, os momentos mais promissores são aqueles nos
quais um movimento social vem a encontrar sua condição de possibilidade
em um outro. Aqui a diferença não corresponde simplesmente às diferenças
externas entre movimentos, entendidas como aquilo que os diferencia uns dos
outros, mas, antes, à autodiferença do movimento em si, uma ruptura
constitutiva que torna os movimentos possíveis em fundamentos não
identitários, que instala um certo conflito mobilizador como base da
politização... mas a diferença é a condição de possibilidade da identidade ou,
antes, seu limite constitutivo: o que torna sua articulação possível é, ao
mesmo tempo, aquilo que torna qualquer articulação final ou fechada
impossível. (BUTLER, 2016[1997], p.235)

Já Fraser analisa os novos movimentos sociais de outra forma, e mais


especificamente nessa discussão o movimento LGBT, a partir da noção cunhada por ela
de falso reconhecimento:

...o falso reconhecimento constitui uma injustiça fundamental, seja


acompanhada por má distribuição ou não. E este ponto tem consequências
políticas. Não é necessário mostrar que uma dada instância de falso
reconhecimento traz com ela má distribuição a fim de certificar a
reivindicação de corrigi-la como uma demanda genuína por justiça social.
Este ponto é válido para o falso reconhecimento de caráter heterossexista, o
qual envolve a institucionalização de interpretações e normas sexuais que
negam a paridade de participação a gays e lésbicas. Oponentes do
heterossexismo não precisam se esforçar para traduzir reivindicações de
danos de status ligados à sexualidade em reivindicações de privação de classe

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Um novo olhar tendo em vista o ano de publicação dessas ideias pela autora. Após 1997 outras
reflexões foram feitas, mas até então Butler era uma das intelectuais que fugiam dos consensos
acadêmicos da época.
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para justificá-las. Tampouco precisam mostrar que suas lutas ameaçam a


ordem capitalista para provar que são justas. (FRASER, 2017[1997], p.280)

É nesse sentido que a autora defende que o fundamento do heterossexismo econômico


são as relações de reconhecimento, ‘’...um padrão institucionalizado que constrói a
heterossexualidade como normativa e a homossexualidade como desviante, deste modo,
negando a paridade participativa a gays, lésbicas e transgêneros.’’ (BRETAS, 2017,
p.241) Bretas afirma que a partir da argumentação da autora, havendo mudanças
concretas a essas relações, constituição de reconhecimento genuíno, a questão com má
distribuição cessaria. É por esse motivo que a autora discorda da hipótese queer
elaborada por Butler. Para uma maior compreensão desta argumentação é importante
definir o que Fraser compreende como falso reconhecimento:

...a autora pretende mostrar que o falso reconhecimento não significa, pura e
simplesmente, ser desrespeitado, menosprezado ou desvalorizado nas atitudes
conscientes ou mentais de outros. Antes, é ter negado o status de “parceiro
integral” nas interações sociais, sendo, portanto, impedido de “participar
como um igual na vida social” – não em consequência de uma má
distribuição de recursos, senão como resultado de “padrões
institucionalizados” de interpretação e avaliação, os quais levam à
consideração de alguém como digno ou indigno de respeito ou estima – nas
leis, nas políticas de bem-estar social, na medicina ou na cultura pop, por
exemplo. (abid, p.240)

A autora tem uma forma própria de caracterizar os novos movimentos sociais a


partir de sua reflexão sobre falso reconhecimento. São duas as distinções: a primeira
delas são os ‘’tipos puros’’ ou ‘’ideais’’, coletividades atravessadas por um tipo de
injustiça social prevalecente, falso reconhecimento ou má distribuição; a segunda são as
‘’coletividades bivalentes’’, aquelas as quais ambas a injustiças sociais têm caráter
determinante, como exemplo Bretas pontua as opressões de gênero e raça (BRETAS,
2017). Ainda encaminha dois tipos de soluções a serem contemplados pelas
coletividades:

...(1) os afirmativos, geralmente defendidos por “multiculturalistas


mainstream”, os quais atuam no sentido de mitigar seus sintomas mais
pungentes, através, por exemplo, de ações afirmativas; e (2) os
transformativos, os quais agem de modo a desestabilizar as próprias
estruturas gerativas de tais assimetrias originárias como (a) no caso do
socialismo, ao solapar as bases do capitalismo como modo de produção
hegemônico, agindo, portanto, como um remédio transformativo em
condições de combater as injustiças de má distribuição; e (b) no caso da
política queer, em que a própria heteronormatividade é impugnada em suas
raízes, atuando, pois, como um remédio transformativo apto a corrigir as
injustiças de falso reconhecimento, “ostensivamente e no longo prazo”. (abid,
p.235)
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Fica claro a partir dessa apresentação as divergências políticas das autoras, suas
diferentes percepções sobre

‘’como exatamente colocar em prática um certo projeto comum de reflexão e


de luta contra as diversas formas de injustiças sociais, seja devido ao falso
reconhecimento das identidades culturais, à má distribuição de recursos e
bens econômicos, ou ao vínculo indelével mantido entre o heterossexismo, a
reprodução de corpos gendrados (gendered) e o modo de produção
capitalista.’’

De qualquer forma, ambas as noções de atuação, estão contidas dentro do espectro


progressista, dentro da esquerda.

Tendo em vista esse debate e as posições das autoras, entendo Butler em 1997
como uma intelectual que propõem uma análise aos novos movimentos sociais que não
necessariamente se expressava na vida social, me parece muito mais um projeto de
futuro, e nesse sentido talvez Butler tenha influenciado a realidade social com seu
trabalho, pois me parece que sua explicação sobre as articulações dessas coletividades
se expressam atualmente. Porém, a historicização materialista de Fraser me parece mais
frutífera para superação das relações de opressão, considerando que a autora se
aproxima com mais ênfase explicativa das relações entre os fundamentos do capitalismo
contemporâneo (neoliberalismo) e os novos movimentos sociais.

Judith Butler, Nancy Fraser, e o Movimento cultural hip-hop

É nesse sentido que utilizo das noções de reconhecimento e distribuição,


discutidos pelas autoras, para analisar o movimento cultural hip-hop, o Rapper Djonga e
sua produtora A Quadrilha.

O movimento cultural hip-hop tem crescido absurdamente nos últimos anos,


carrega um dos maiores gêneros musicais do mundo, o rap. Tem ganhado uma grande
evidência em todas as esferas sociais, isso não significa que todas ouçam e consumam
sistematicamente, mas o rap tem atravessado a vida cotidiana de grande parte da
população mundial. Os seus agentes, os rappers, testemunham suas vivências através
das letras. Pensando nas articulações entre movimentos sociais proposta por Butler,
percebo que o movimento cultural hip-hop se potencializou a partir das trocas
simbólicas constantes que acontecem na vida social, os novos movimentos sociais têm
impactado as reflexões e percepções sobre as opressões (classe, raça, gênero,
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território...). E os rappers em sua maioria apropriam-se da sua relação intima com o hip-
hop, constantemente produzindo uma visão crítica da realidade e mantendo uma relação
firme entre a formação intelectual e a experiência comunitária (PINHO, 2001). São nas
letras de rap que as articulações entre os movimentos sociais são presentes. Sem dúvida
diversas músicas ainda reproduzem discursos que afirmam relações de poder, ao mesmo
tempo, é frequente a circulação e a discussão dos debates políticos propostos pelos
outros movimentos sociais na cena do rap. As repercussões são várias, como a música
Sulicídio do Baco Exu do Blues, onde ele discute questões ligadas a distribuição e
reconhecimento do povo nordestino, ou uma recente música lançada pela Ebony que
provoca grandes rappers da cena sobre diversos assuntos desde branqueamento a
questões de gênero.

Os novos movimentos sociais têm tencionado os limites dos discursos,


mutualmente se afetam. O movimento cultural hip-hop de maneira geral me parece um
lugar para discussões democráticas, amplas e dinâmicas. Defendo essa ideia, pois quem
não segue minimante o que está sendo discutido é cobrado, uma grande parte das
pessoas simpatizantes com o movimento, aqueles que acompanham sistematicamente,
não deixam passar discursos opressivos. O que se deixa ou não passar é volátil, o que
me parece os conduzir são os debates propostos pelos outros movimentos sociais e
como eles são discutidos na esfera pública, assim, certos assuntos tem sido abordados
nas letras de rap com mais ou menos frequência e aprofundamento. É importante deixa
claro que isso não significa que ele não tem pensado por si só sobre essas questões, o
movimento cultural hip-hop tem uma forma específica de pensar sobre as questões
sociais e de como transmiti-la, mas existem certos aprofundamentos que somente os
movimentos sociais que tratam especificamente de cada questão social irão chegar.
Essas trocas simbólicas acontecem com certa organicidade, algumas discussões são
profundamente refletidas pelo rap, outras já não, mas são tencionadas pelos outros
movimentos sociais.

Algo que Butler chama a atenção é ‘’culpar os novos movimentos sociais por sua
vitalidade, como alguns fizeram, é precisamente recusar-se a entender que qualquer
futuro para a esquerda será construído com base em movimentos que levam à
participação popular...’’ (BUTLER, 2016[1997], p.236). Não me parece banal a
amplitude que o movimento cultural hip-hop tem tomado. Puxando essa reflexão da
autora, penso como este movimento tem papel fundamental na esfera política atual,
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como Daniela traz em seu artigo anteriormente apresentado, alguns dos grandes nomes
da cena brasileira de rap têm alcançado lugares dentro do debate público de grande
evidência, as pessoas querem ouvi-los, e como isso tem impactado as pessoas que os
acompanham. No final de 2017, Mano Brown foi entrevistado pela revista trip do site
uol, na entrevista ele conta um encontro com a mãe de um fã, um jovem branco. A mãe
contava a Brown sobre como seu filho cantava rap, e andava revoltado, que qualquer
coisa que ele via sobre racismo ele brigava, não deixava passar. Brown disse a mãe do
garoto que deveria ter orgulho dele e não reclamar do seu comportamento, que era um
branco lutando contra racismo. Atualmente esse relato pode parecer banal tendo em
vista a grande discussão sobre antirracismo, mas na época essa entrevista suscitou um
grande debate sobre a luta antirracista. O movimento cultural hip-hop é uma instituição
reflexiva, e transmissora dos debates contemporâneos, com uma forma específica de
pensar sobre as coisas e de como transmiti-la. Os novos movimentos sociais
potencializam os debates discutidos dentro do movimento,

Tenho apresentado até o momento o movimento cultural hip-hop como um


produtor de impacto social, porém pensando nas reflexões propostas por Fraser, como
suas relações de reconhecimento se expressam? E essa conquista de reconhecimento se
dão por qual forma? Poderíamos afirmar que se trata de um falso reconhecimento? Em
seguida irei percorrerei essas questões a luz de Fraser, pensando e articulando com meus
exemplos empíricos, Djonga e A Quadrilha.

A Socióloga Daniela Vieira busca por meio de seu artigo pensar, de maneira
deliberada ou não, as relações de reconhecimento deste movimento. Santos (2022)
argumenta:

O fenômeno em curso corporifica a possibilidade de reexistir em espaços


distintos, delineando um estilo de vida no mercado de bens simbólicos e
econômicos para além da música. Todavia, para que o rap como tema
pudesse se desvincular da fonografia ele precisou que esta forma estivesse já
consolidada na indústria cultural, circulando em público amplo e
diversificado. Diante disso, a periferia se estiliza como marca. Marca
comercial orientada pela lógica do neoliberalismo, cujos impactos são
objetivos e subjetivos, mas, igualmente, marca de possibilidades de
superação e utopia de um outro devir negro não marcado apenas pela
narrativa das violências e vulnerabilidades. (SANTOS, 2022, p.18)

Ela demonstra como a nova condição do rap tem se materializado como um caminho
ambíguo de aumento de reconhecimento, novas formas de reexistir nos espaços
diversos, a consolidação de um estilo de vida, uma marca que vai além do gênero
musical, uma nova cara às relações com o mercado de bens simbólicos e econômicos,
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possibilidades de superação e utopia, porém uma busca de reconhecimento marcada


pelo neoliberalismo com impactos objetivos e subjetivos.

O movimento cultural hip-hop é o que Fraser chamaria de ‘’tipo puro’’ quando se


trata das próprias questões ligadas ao movimento. A busca pelo reconhecimento como
movimento artístico que teoricamente, e concordando com Fraser, traria uma
distribuição econômica equitativa, porém, como se trata de um movimento
afrodisporico, a questão racial se torna um eixo fundamental, por consequência
histórica, considerando a reflexão que o autor Achille Mbembe faz em seu livro Crítica
da Razão Negra, ‘’o nascimento do sujeito racial -e, portanto, do negro -está ligado à
história do capitalismo.’’ (MBEMBE, 2018, p.309) Pensar as questões raciais com
profundidade é questionar o capitalismo, são questões imbricadas. E é nesse sentido que
o movimento cultural hip-hop também se caracteriza como uma coletividade bivalente,
ambas as buscas por justiça social são fundamentais, com o mesmo grau de importância,
reconhecimento e distribuição. Djonga e sua produtora, A Quadrilha, são um exemplo
da relação empírica com esse raciocínio. Ambos têm dois objetivos, os ligados a esfera
artística, e aos ligados as questões políticas. Em função das questões políticas Djonga,
propôs uma produtora que pensem em questões de representação - ela é inteira
composta por funcionários negros e em sua maioria mulheres negras, todos são ou de
seu bairro, ou de sua família -, reforçando a economia local e familiar, todas as
movimentações micropolíticas que juntas se expressam na noção de resgate.

Esse disco é sobre resgate


Pra que não haja mais resquício
Na sua mente que te faça esquecer
Que você é o dono do agora, mas o antes é mais
importante que isso (DJONGA, 2019)

Djonga vê sua produtora e seu trabalho artístico como um resgate de tudo aquilo que lhe
foi tirado, não so dele, mas de todos os quais ele se identifica, ligadas principalmente as
questões raciais, de gênero e de classe, dando atenção tanto ao reconhecimento quanto a
distribuição.

Já na esfera artística, aquela que estou relacionando com as questões do próprio


movimento como constitutivo de um gênero musical, as relações com o mercado, e de
reconhecimento com o mesmo. Como já foi dito antes, essa produtora é uma das
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maiores da cena de rap brasileira, e disputa o cenário com outras grandes produtoras
internacionais, nacionais, independentes ou não, o que não me parece banal. Um
reconhecimento no mercado que traz um grande impacto na distribuição local de renda
àqueles os quais a constitui. Porém, é uma situação complexa, ela tem conquistado uma
grande atenção pública a partir de sua atuação, que se deve a luta construída pelo
movimento cultual hip-hop durante toda sua existência, mas também a relação do
mesmo com as lógicas neoliberais, uma mudança na atenção do mercado, e uma
valorização desse gênero musical extremamente rentável. Essa é uma situação social
cheia de contradições, sua produtora está situada em um lugar muito desfavorável neste
jogo, uma produtora independente formada por sujeitos majoritariamente
marginalizados, ter chegado a esse nível de reconhecimento e estar disputando espaços
com essas grandes outras produtoras, demonstra a efetividade política da produtora e do
seu fundador Djonga. Apropriando-se de Fraser (2017[1997]), essas ações políticas e
artísticas carregam caráter ‘’afirmativo’’ e ‘’transformador’’, refletem calmarias nos
sintomas mais evidentes e desestabilizam as bases do sistema capitalista.

Conclusão

Os discursos e ações políticas encontrados por Djonga e sua produtora para lidar
com essas contradições da vida social contemporânea tem efeito real no reconhecimento
e distribuição daqueles que a compõem. E esse tipo de enfrentamento é recorrente com
outros rappers e suas produtoras, como a própria Laboratório Fantasma analisada por
Santos (2022), é importante levar em conta que cada um desses sujeitos apresentam
formas diferentes de lidar com essas questões, mas carregam similaridades. Porém,
ainda sim esse reconhecimento não é pleno, trata-se de um ‘’falso reconhecimento’’, se
fosse pleno, tendo em vista as ideias de Fraser, o movimento cultural hip-hop já teria
superado suas questões de distribuição e estão longe disso, nele outras questões além
das artísticas são imbricadas e dificultam essa luta. Ainda, sim, o movimento cultural
hip-hop constitui sua luta cotidianamente tentando resolver as questões sociais, mesmo
as que só dizem ao seu respeito, na forma como demonstra um grande potencial de
produção de intelectuais orgânicos, que refletem em comunhão com os debates
públicos, e dos novos movimentos sociais, além de ter um grande potencial de difusão
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de informação, o movimento cultural hip-hop tem conquistado acima de tudo mentes e


corações, fortalecendo o corpo político progressista.

Referências Bibliográficas

Bretas, A. C. O heterossexismo é meramente cultural? Judith Butler e Nancy


Fraser em diálogo. Ideias, 8(1), 227–246. 2017.

Butler, Judith. Meramente cultural. Ideias, Campinas, SP, v.7, n.2, p. 227-248, jul/dez.
2016.

Fraser, Nancy. Heterossexismo, falso reconhecimento e capitalismo: uma resposta a


Judith Butler. Ideias, Campinas, SP, v. 8, n. 1, pp. 277-294, jan/jan. 2017.

MBEMBE, Achille. Introdução e Epílogo. In: Crítica da Razão Negra. Tradução de


Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. 320p.

SANTOS, D. V. A nova condição do rap: De cultura de rua à São Paulo Fashion Week.
Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 27, n. esp. 1, e022005, abr. 2022.

Url: https://www.youtube.com/watch?v=uxQt3Dw7H54, 04 fev. 2023, último acesso


em: 28 dez. 2023.

Url: https://rapgol.com.br/a-quadrilha-djonga/, jun. 2021, último acesso em: 28 dez.


2023.

Url: https://quadrilh.com/sobre/, último acesso em: 28 dez. 2023.

Url: https://www.youtube.com/watch?v=wGRQSOw7zfM, 11 jun. 2021, último acesso


em: 28 dez. 2023.
15

Url: https://oglobo.globo.com/fotogalerias/noticia/2023/11/16/voce-sabe-o-que-e-uma-
diss-ebony-viraliza-provocando-rappers-brasileiros-como-filipe-ret-l7nnon-e-djonga-
em-musica-or-entenda-a-trend.ghtml, 16 nov. 2023, último acesso em: 28 dez. 2023.

Url: https://www.youtube.com/watch?v=LjUiDoQEb9o, 15 dez. 2017, último acesso


em: 28 dez. 2023.

Url: https://www.youtube.com/watch?v=vItmJnY-waY, 13 mar. 2019, último acesso


em: 28 dez. 2023.

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