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CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

RELATÓRIO FINAL DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA


“O rap artificado de Kanye West, Kendrick Lamar, Baco Exu do Blues e Criolo:
dimensões socioculturais, artísticas e políticas de um fazer musical
contemporâneo.”

Discente: Ícaro Abade Maranhão


Orientadora: Prof° Dr° Carla Delgado Souza

Londrina – PR

2020
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O rap artificado de Kanye West, Kendrick Lamar, Baco Exu do Blues e Criolo:

dimensões socioculturais, artísticas e políticas de um fazer musical

contemporâneo 1

Ícaro Abade Maranhão2

Resumo: Este artigo versa sobre a produção musical de quatro rappers


contemporâneos, os estadunidenses Kanye West e Kendrick Lamar e os brasileiros
Baco Exu do Blues e Criolo. A partir da constatação de que a poética musical desses
quatro artistas possui diferenças em relação ao que podemos considerar como rap
tradicional (sobretudo no que tange à existência de diálogos intersemióticos com
referências artísticas para além do universo hip hop), a investigação se debruçou em
entender se havia um processo de artificação do rap desses músicos, a partir dos
referenciais teóricos de Roberta Shapiro e Pierre Bourdieu. Percebeu-se que o
processo de artificação em curso, para a promoção de um “novo rap” é um evento
contemporâneo, que ocorre simultaneamente nos Estados Unidos da América (berço
do rap e do hip hop) e no Brasil, tendo como elemento central de suas pautas a
experiência étnica de jovens negros no continente americano vista a partir da
discussões sobre a arte do atlântico negro.
Palavras chave: rap, artificação, experiência étnica, negritude, arte negra.

INTRODUÇÃO:

Analisando as produções musicais e as trajetórias artísticas dos rappers


contemporâneos: Kanye West, Kendrick Lamar, Baco Exu do Blues e Criolo, a
motivação inicial para o desenvolvimento desta pesquisa se baseou primeiramente na
constatação de que esses quatro artistas estavam fazendo um rap diferente, na
medida que utilizavam novos referenciais artísticos para a produção de suas poéticas
musicais. Embora eles estejam vinculados ao mundo do rap, a maneira como essa
vinculação ocorre não é a mesma preconizada pelos rappers que os antecederam e
abriram caminho para o gênero tanto em meios restritos de produção musical, como
poderiam ser chamados os espaços tradicionais desse fazer musical, como até
mesmo no próprio mercado da música. Ao mesmo tempo que os sujeitos sociais acima

1
Artigo final de iniciação científica com bolsa do “Programa Institucional de Apoio à Inclusão Social, Pesquisa e
Extensão Universitária – PIBIS 2019 – Fundação Araucária” referente à pesquisa “O fenômeno da intersecção
musical e artística: um estudo de áreas e casos”, desenvolvido no bojo do projeto “As subjetividades e os processos
de subjetivação na vida social: um entendimento da agência como parte integrante da análise antropológica”,
coordenado pela Profa. Dra. Carla Delgado de Souza.
2
Estudante do curso de ciências sociais, na UEL. Membro do LAVIS – Laboratório de Antropologia Visual e Sonora
da UEL. E-mail para contato: icaroabade1@hotmail.com.
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elencados bebem nessas fontes tradicionais do rap, eles tiveram em suas formações
outras referências artísticas que também os ajudaram a constituir seus gostos, o que
provavelmente foi determinante para o fato deles buscarem ampliar seus repertórios
poéticos, bem como a reconfigurarem suas carreiras musicais. Nesse sentido, é
importante ressaltar como novas subjetividades também foram configuradas nesse
processo, dando margem à construção de um ethos artístico na condução das
carreiras desses rappers que se veem, antes de tudo, como artistas e profissionais da
música. Na fala de Criolo:

"É justamente por, por receber dessa manjedoura artística que, que é uma
mistura do que você escuta no seu bairro, do que os seus pais apresentam pra você, e
sobretudo dessa arte maravilhosa chamada rap. E acho que foi o conjunto dessas
coisas que, que foram me dando situação pra, pra experimentar outras coisas, mas não
é que é um lance de vou experimentar outras coisas agora, isso sempre foi presente,
sempre esteve presente.” [...].3

Além de dar margem para pensar o enfoque na ação do sujeito enquanto


agência de socialização num espaço social responsável por se constituir como
“manjedoura artística”, como descreve o rapper, a reflexão posta por sua fala ressalta
também ao surgimento do rap e do hip hop, onde, em fronteiras culturais que se
cruzaram a partir das culturas de sujeitos subalternizados, interligou as comunidades
jamaicanas, latinas e afro-americanas da cidade de Nova Iorque nos Estados Unidos
da América como uma rede comunicacional de periferia para periferia.

Essa experiência particular de mundo que dita as coordenadas desse fazer


musical específico, desembarcou no Brasil em meados dos anos 1980 e passou a ser
difundida na grande São Paulo. O grupo de rap paulistano Racionais MC’s, por
exemplo, se constituiu como uma das primeiras referências nacionais do rap. Tendo
ingressado rapidamente no mercado da música, com o lançamento de seu primeiro
álbum apenas quatro anos depois de sua fundação, em 1989, o grupo ficou conhecido
pela forma com que moldou múltiplas conexões de agências periféricas no cenário
paulista, influenciando e criando condições para o surgimento e a consolidação do rap
em outras periferias do país.

De acordo com a antropóloga Rita Morelli (2008), o campo da música popular


brasileira estava se tornando mais plural e mais jovem antes mesmo do avanço do

3
Transcrição feita pelos autores da entrevista Criolo em entrevista à Marília Gabriela, 31/05/2015,
min.3:35. Transcrição feita pelo autor Ver na íntegra em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Dj0l2deqNpk&list=PLXlcYSvRp18JtLibbcYj3Y6W13yL5YTk2&ind
ex=10&t=243s> Acesso em 29.jun.2020.
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rap. Isso ocorreu porque desde os anos 1980 houve uma consolidação do mercado
interno da música popular brasileira, propiciada pela massificação do consumo de LP
(disco de vinil) gravados por bandas de rock cariocas e paulistas, uma vez que esse
gênero, o BRock, se infiltrava nas grandes capitais e falava de perto sobre as
experiências urbanas e cosmopolitas dos jovens de classe média moradores das
grandes cidades, o que foi de fato importante para consolidar o consumo dessas
músicas entre esse público. Com isso, Morelli argumenta que o campo e o mercado
da MPB foi ficando “mais jovem” e mais massivo ao apelo e ao engajamento no
processo político que acompanhava o país na época, fazendo-o na linguagem musical
das massas pubescentes.

O ingresso do rap como ator social nesse campo, possibilitou uma ampliação
das músicas com temas caros à juventude, abarcando as experiências juvenis de
sujeitos negros e periféricos, também moradores das grandes capitais brasileiras.
Esse movimento pôde ser visto no alcance que os álbuns do grupo Racionais MC’s
obtiveram, pois, embora inicialmente o grupo fosse conhecido apenas na cena
paulista, local de seu surgimento, ele conseguiu alavancar um maior sucesso a partir
do percurso traçado com as músicas presentes em seus três primeiros álbuns de
estúdio: “Raio X do Brasil” (1993), “Sobrevivendo no Inferno” (1997) e “Nada como um
Dia após o Outro Dia” (2002).

É possível argumentar que a própria história do Racionais MC’s está ligada em


partes ao movimento de absorção do rap pelo mercado musical brasileiro, a partir do
momento em que o grupo teve o auge do consumo de seus trabalhos acompanhado
pela eclosão que o rap passou a ter na indústria cultural local no decorrer do processo
que abrangeu afinco o trabalho do MC no mercado fonográfico. Como elencado
anteriormente, as músicas iniciais do gênero – que surgiram a partir das festas
germinadas por volta dos anos 1970 no Bronx e em meados dos anos 1980 nas
periferias da cidade de São Paulo – não tinham a pretensão de serem entendidas e
apreciadas por um grande público enquanto arte, categoria esta que só viria a ser
reconhecida para o hip hop tempos depois. O propósito desse fazer musical era
balizado pelas denúncias das condições de vida de jovens negros periféricos. Logo,
eram cantados temas como o racismo, a violência e a exploração a que esses sujeitos
eram submetidos, bem como os seus próprios desejos e anseios por uma sociedade
menos desigual.
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Todavia, à medida em que o rap adentrava na indústria fonográfica, havia uma


grande transformação no que tange às funções e papeis desempenhados pelos
Mestres de Cerimônia, uma vez que a música que faziam passou a habitar estúdios
de gravação e serem ouvidas pelas mídias musicais variadas, sendo que a forma
tradicional de realização desse fazer musical – via a organização de festas e batalhas
de rimas – passou a ser considerada como mais uma alternativa possível de se
praticar e exercer essa cultura. O antropólogo e músico Ricardo Teperman (2015)
trata dessa construção histórica ao descrever que:

“Se hoje a figura do MC parece evidente, os próprios rimadores não


conseguiam imaginar como uma prática de improviso que tinha como objetivo animar
bailes desembocaria em letras fixas e um jeito de cantar que podia ser registrado em
disco. E muito menos que viria a ser amplamente difundido, gerando milhares de
dólares em direitos autorais.” (TEPERMAN, 2015, p.24).

Esse processo culminou numa transformação efetiva da posição do MC em


rapper, ao circunscrever através das mutações do gênero suas incursões além dos
espaços de socialização desses sujeitos sociais. Com isso, as alterações de parte
desse fazer musical começou assim que ele foi cooptado pelo mercado fonográfico e
continua ocorrendo ainda hoje.

Primeiramente foi averiguado a tentativa de dissociar o rap enquanto um


gênero musical do universo mais amplo do hip hop, de forma que não
necessariamente a contracultura periférica que a gesta é referenciada
completamente. Além disso, há um movimento em prol de um refinamento estilístico
do rap, de maneira a incorporar outros ritmos e mesmo outras referências para as
composições das músicas e das produções midiáticas que a envolvem. Dessa forma,
estudar a configuração desse fazer musical do hip hop contemporâneo, por meio da
produção de rappers artistas como Kanye West, Kendrick Lamar, Criolo e Baco Exu
do Blues, permite entender as dinâmicas simbólicas e concretas desse processo, que
envolve uma série de mudanças e transfigurações, não apenas no que tange ao
audível e ao estético, mas também às dinâmicas sociais e às próprias constituições
dessas personas artísticas. Este processo foi chamado de artificação pela socióloga
Roberta Shapiro (2007).

Nesse sentido concorda-se com Shapiro quando a autora afirma que:

“A atribuição da nova categoria (arte) é acompanhada por uma transfiguração das


pessoas, dos objetos, das representações e da ação. O processo é, ao mesmo tempo,
simbólico e prático, discursivo e concreto. Trata-se de requalificar as coisas e de enobrecê-las:
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o objeto torna-se arte; o produtor torna-se artista; a fabricação, criação; os observadores,


público, etc. As renomeações ligadas à artificação indicam também mudanças concretas, como
a mudança do conteúdo e da forma de uma atividade, a transformação das qualidades físicas
das pessoas, a reconstrução das coisas, a importação de novos objetos e a reestruturação dos
dispositivos organizacionais. Trata-se, pois, de outra coisa, diferente de uma simples
legitimação. O conjunto desses processos – materiais e imateriais – conduz ao deslocamento
da fronteira entre arte e não-arte, bem como à construção de novos mundos sociais, povoados
por entidades inéditas, cada vez mais numerosas”. (SHAPIRO, 2007, p. 137).

Dito isso, a proposta permitiu perceber como se configura o rap/hip hop nesse
contexto em que ele se encontra em vias de artificação por meio do estudo de um
fenômeno que vem sendo observado nos rappers artistas mais contemporâneos, isto
é, a utilização por esses sujeitos de misturas rítmicas e melódicas que, em suas
músicas, abrem um franco diálogo entre o fazer musical tradicional do rap/hip hop com
outros gêneros e influências musicais. Acredita-se que a necessidade em ir além do
que convencionalmente se chama e atribui ao rap e ao hip hop enquanto gênero
estritamente musical, pode denotar condições próprias em que os trabalhos dos
rappers artistas acontecem na atualidade. Vale considerar que, no campo da música
popular, o conhecimento de técnicas musicais distintas tende a ser entendido como
uma prova de conhecimento intrínseco ao metier artístico, fato que contribui para a
construção de um rap/hip hop artificado. Com isso, alguns rappers artistas tem
investido nesse tipo de produção interseccional, resultando na ascensão de novos
caminhos e status sociais antes inalcançáveis para aqueles que moldavam suas
carreiras exclusivamente no eixo rap/hip-hop na indústria da música.

IDENTIFICANDO AS AGÊNCIAS E AS SUBJETIVIDADES PARA UM NOVO RAP:

Como já afirmado anteriormente, a emergência do rap como mercadoria do


mercado da música fez com que esse fazer musical passasse por vários
constrangimentos sociais advindos justamente das tensões que ele resguarda em
relação a própria lógica mercadológica. Essas tensões, vale reafirmar, não são
advindas do contexto contemporâneo com a existência de um “novo rap” artificado,
mas surgiram já nos anos 1980 (nos Estados Unidos) e 1990 (no Brasil), quando a
cooptação do rap pela indústria cultural começou.

Tanto no caso estadunidense, como no Brasil, o rap se inseriu em um campo da


música popular que está em vias de fragmentação, isto é, em um campo que, diferente
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do campo social clássico, já não se encontra estruturado com caminhos unívocos de


prestígio social e nem instâncias únicas de consagração. A falta de uma estrutura fixa
comum a todas as manifestações do campo da música popular, que seja capaz de
delimitar a boa música e os bons artistas, fez com que houvesse uma pulverização de
padrões musicais, bem como de suas produções, marketings e instâncias de
consagração. Em outras palavras, tanto em termos estéticos quanto em questões
políticas, o que é capaz de definir um bom samba, por exemplo, se difere radicalmente
do que delimita um bom rap em torno das subjetividades dos agentes sociais.

No caso do rap, a importância do grupo Racionais MC’s para a conformação dos


ditames do que pode ser considerado um bom rap é visível. O grupo construiu sua
carreira e sua poética de forma a trazer para o mercado da música elementos caros
ao rap tradicionalmente feito nas periferias paulistanas, como 1- o fato de que grande
parte de suas letras e de seus discursos rítmicos serem baseados por meio de rimas
sob o “bum-clap”, batida responsável por identificar o estilo como clássico, e 2- a
ênfase de que o rap deve servir para difundir o conhecimento, isto é, deve exprimir a
experiência social vivenciada pelos sujeitos sociais subalternizados. Destarte, por
mais que tenha ocorrido uma transfiguração simbólica dos MC’s em rappers, o gênero
continuava focado em ser uma dinâmica potente de comunicação das vivências da
subalternidade, operando um papel fundamental em ações de denúncia racial e de
busca por melhores inserções sociais. Um exemplo dessa vivência pode ser
averiguada neste trecho da letra de “Negro Drama”, canção lançada em 2002, no
álbum “Nada como um dia após outro dia”: “Negro drama/ Eu sei quem trama/ E quem
‘tá comigo/ O trauma que eu carrego/ Pra não ser mais um preto fodido/ O drama da
cadeia e favela/ Túmulo, sangue/ Sirene, choros e vela”.

A comunicação de experiências negras subalternas forneceu o engrandecimento


de um gênero de rap já mercadológico, mas que dialogava de perto com as práticas
tradicionais desse modelo sonoro, o que, por sua vez, permitiu que o crescimento de
atividades artísticas, enquanto produções musicais do gênero, por lançamento de
álbuns e assentamento de um público que consumisse esse produto. Com isso,
revela-se uma transformação simbólica naquilo que os rappers galgaram ao agrupar
constantemente esse conhecimento como elemento de impulsão de seus trabalhos
para dentro da indústria cultural e da música. Mas, o que podemos aferir sobre esse
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rap que vem sendo desenvolvido tanto nos Estados Unidos da América quanto no
Brasil no século XXI?

O autor, cineasta e professor americano Mk Asante (2008) acredita que vivemos o


momento da geração pós-hip-hop, especialmente no que diz respeito às criações
musicais e midiáticas que tem ganhado visibilidade na contemporaneidade. De acordo
com sua reflexão, uma nova forma de produção musical atrelada ao hip-hop surgiu, e
ela foi alavancada sobretudo por um refinamento das linguagens artísticas e
midiáticas das quais os atuais rappers são protagonistas. Assim, o rap produzido na
atualidade traria uma marca de nascença ligada ao movimento de contracultura vindo
dos Estados Unidos, onde, no Brasil, parece estar ligado à relação comunicacional
marginal, sendo que, no entanto, ele não estaria mais totalmente restrito a ela. Além
de narrativas musicais mais refinadas e mais bem produzidas, os rappers
contemporâneos seriam dotados de um ethos diferente dos antigos: trata-se da
emergência de novas subjetividades do rap/hip hop e, com isso, de novas agências
dos rappers ao articularem em suas produções elementos que vão além das bases
tradicionais do rap.

Identificando essas agências e subjetividades como novas e recentes, esta


dualidade entre um rap mais tradicional para outro de novo tipo, com maior
complexidade sonora, referido por alguns como “novo rap” ou “pós-rap”, pode ser
apercebida nos rappers-artistas norte-americanos Kanye West e Kendrick Lamar,
assim como, nos brasileiros Baco Exu do Blues e Criolo, a partir de algumas de suas
produções até então lançadas, vistas através desses dois grandes polos de consumo
do rap que é o Brasil e os Estados Unidos. Pois, como afirma MK Asante (2008), o
pós-hip hop não significa a morte do gênero rap, mas o nascimento de um novo
movimento que é impulsionado por uma mudança de paradigma.

Kanye West, é considerado um dos pioneiros a utilizar uma poética híbrida de


hip hop e outros gêneros musicais. No início dos anos 2000, West produziu alguns de
seus shows e realizou performances em conjunto com grupos que usualmente não
dialogavam com o universo do hip hop: teve músicas arranjadas para orquestras de
cordas e colaborou com bandas como Daft Punk (música eletrônica) e ColdPlay (rock
alternativo). Com isso, West fez de tudo para se afastar dos estereótipos dos rappers
da época e se lançar com álbuns que marcaram sua expansão artística, aparecendo
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hoje em dia como uma grande referência para a cena do rap contemporâneo, ao forjar
esse processo de artificação de maneira muito intensa através de um diálogo
extremamente melódico. Em seu primeiro álbum, “The College Dropout” (2004),
produzido por ele mesmo, ele descarta a persona de gangster então muito vigente no
hip hop por volta do início dos anos 2000. As letras do artista sobre os temas do álbum
regem em torno de preocupação com a família, religião, autoconsciência e lutas
pessoais cotidianas, consagrando o projeto como um grande sucesso comercial e de
críticas positivas que ganhou vários prêmios, incluindo um Grammy Awards para
melhor Álbum de Rap na quadragésima sétima edição da premiação, conhecida por
ser uma das mais importantes da indústria da música norte-americana. Este disco, é
importante por demarcar a assinatura artística de West como um rapper de estilo
melódico e de inserção de samples de soul music, feitio esse, que pode ter parecido
um tanto quanto inovador incialmente, mas que é exacerbado em seu segundo álbum
de estúdio, “Late Registration”, lançado em 30 de agosto de 2005.

Com este segundo projeto, Kanye utilizou estilos de produção e instrumentos


não normalmente associados ao hip-hop, além de também incluir outros métodos de
sample com orquestras de corda. As músicas que melhor expressam esse saber-fazer
são os singles “Diamonds from Sierra Leone”, “Gold Digger” com Jamie Fox e “Herad
‘Em Say” com Adam Levine. O artista mesclou as melodias intrínsecas da seção de
corda com as batidas do hip hop para a fundação do seu rap, isso fez com que ele
realizasse shows ao vivo onde se concentravam a figura do rapper (ele),
acompanhado por uma orquestra.4 A orquestra, símbolo de erudição musical, está ao
fundo do palco acompanhando o rapper, revelando uma imagem estética e simbólica
que constrói uma noção subjetiva de artificação em quem consome essas produções.
Ou seja, embora seja evidente que Kanye West constrói esse procedimento de
artificação de maneira mais coesa, indo além na construção musical, não é tanto que
ele recorre a uma linguagem mais “sofisticada”, ou a questão de inserção de poemas
e de trabalhos com literatura – ou outras áreas da arte –, com o é o caso dos três
demais rappers evidenciados: Baco Exu do Blues, Kendrick Lamar e Criolo.

Esse “ir mais além” do rapper abre um caminho temporal e simbólico no


mercado e na cena do rap, sobretudo porque Kanye é o mais velho e com mais

4
Ver em: <https://www.youtube.com/watch?v=I3KOywRHKgg>. Acesso em 29.jun.2020.
10

produções até então entre os outros três. Os demais se abrem para estilos, ritmos e
poéticas vinde de África, ou seja, para essa ideia de africanidade existente nas
Américas, como modo de troca cultural e música hibrida ilustrando aquilo que Paul
Gilroy (1993) conceitualiza como o atlântico negro. De acordo com o autor, o papel
dos significados externos em torno da negritude, aqui entendidos como as novas
produções em vias de artificação e as novas subjetividades que vem sendo galgadas,
tornaram-se importante na elaboração de uma cultura conectiva (1993:174) que passa
a atrair cada vez mais novos rappers a se juntarem àquilo que pode ser entendido
como “ethos de um novo rap”. Essa reflexão ajuda a pensar um sistema circulatório
que passa atribuir um lugar central às músicas e produções desses rappers-artistas
que informam e ao mesmo tempo registram as lutas negras de maneiras diferentes
dentro da sociedade contemporânea, articulando condições para tal do mesmo modo
analisado pelo autor na Grã-Bretanha sobre as lutas negras diaspóricas na Europa.
Isso, a partir do momento em que essas condições deslocadas, “as trilhas sonoras
dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma nova metafísica da
negritude elaborada e instituída [...]” (Gilroy 1993:175).

É observável, portanto, que a partir do momento em que Kanye West passou a


elencar em seus trabalhos samples de músicas soul, gospel e jazz5, ele se aproximou
simbolicamente de uma narrativa evidenciada pelo atlântico negro onde o fenômeno
passou a ser cada vez mais autêntico em torno da formas culturais negras e de suas
práticas artísticas como domínio autônomo. Assim, do mesmo modo, parece fazer
Kendrick Lamar com o jazz em seus álbuns como, “Good Kid, M.A.A.D City” (2012),
“Untitle Unmastered” (2016) e “Damn” (2017).

Com esses discos, Kendrick se consagrou na indústria como um dos maiores


rappers da atualidade, sua música single “Alright” ficou em primeiro lugar dentre as
200 melhores músicas da década de 2010 listada pela publicação diária online
“Pitchfork Media”6. Além de ser consagrada pela indústria, seu coro se tornou um grito
de guerra de manifestante nos Estados Unidos, carregado de uma mensagem contra
o racismo, o refrão “We gon’g be alright”, que pode ser traduzido por: “vamos ficar

5
Para perceber esse trabalho de maneira estridente, ouvir “Jesus is King” (2019). Ouvir em:
<https://www.youtube.com/watch?v=T58tRXzjC7c&list=OLAK5uy_nG0R7GxWTXwhsxxi_cwx8QwZe0
QI1tED8> Acesso em 29.jun.2020.
6
Ver em: <https://pitchfork.com/features/lists-and-guides/the-200-best-songs-of-the-2010s/> Acesso
em 29.jun.2020.
11

bem!”, foi cantado e utilizado por diversas pessoas como emblema de resistência das
pessoas negras contra opressão nos EUA. Essa expressão autêntica de uma
resistência racial pode ser averiguada em semelhança com aquilo que Paul Gilroy
(1993) destacou como a autenticidade para qual os exemplos de política racial podem
ter e atribuir para as massas presentes nas Américas diaspóricas. Para o autor, o
problema que essas origens culturais invocadas fora de África adquirem ganham um
significado maior à medida em que a cultura de massa vai apanhando novas bases
tecnológicas e a música negra se torna um fenômeno global. Disso, é importante
pensar que: “Aqui, a ideia da comunidade racial como uma família tem sido invocada
e utilizada como meio para significar a conexão e a continuidade experiencial, que é
por toda parte refutada pelas realidades profanas da vida negra em meio aos detritos
da desindustrialização.” (GILROY, 1993, p.204).”

Neste caso, o fato de as populações negras utilizarem a música de Kendrick


como um canto emblemático de resistência, destaca esse interior no discurso político
negro que o Gilroy (1993) aponta como o surgimento de uma modalidade distinta de
nacionalismo e essencialismo racial que faz parte de um caráter híbrido das culturas
do atlântico negro. A autenticidade é um mecanismo essencial para racializar as tantas
formas de músicas presentes no trabalho de Kendrick, e, também, nos dos demais
rappers-artistas, consagrando o que o autor reconhece como um notável marketing
de massas, onde as sucessivas formas culturais populares negras servem de
assinatura neonacionalista, ou seja, como ícone de força, resistência e integração.

Uma vez que essas subjetividades são acessadas e manipuladas, é possível


falar em um tipo de ethos artístico sendo criado e desenvolvido, assim como Mk.
Asante (2008) indica, e, dessa mesma forma, aquilo chamado por Pierre Bordieu de
habitus é incorporado numa estrutura agenciada pelos rappers. A maneira pela qual
essas subjetividades são incorporadas no campo sociocultural do rap/hip hop
contemporâneo, revelam as disposições e hábitos dos indivíduos postos num espaço
social coexistindo com diversas outras formas de produção do rap, mas que aqui é
averiguado através do referencial teórico de Roberta Shapiro pelo processo em curso
da artificação, e que poderia da mesma maneira ser entendido também nos termos
do capital cultural da teoria bourdiana.
12

No que pode ser averiguado em conjunto dos outros dois rappers brasileiros, é
sobretudo uma abertura para se consagrar a partir de ritmos tradicionais e melodias
de outros ritmos musicais já consagrados em seus ambientes de origem. Melhor
dizendo, mudam os ritmos, mas permanece uma musicalidade afro. No Brasil, onde o
nascimento do hip hop se deu de maneira diferenciada da que ocorreu nos EUA, os
ritmos como samba, funk e MPB entram com mais força efetivando um alargamento
do que seriam os ritmos consagrados dentro da cultura popular, como aquele do
campo social segmentado nos termos de Rita Morelli (2008). Um outro artista
considerado parte desse processo de intersecção de diferentes ritmos é o rapper
Criolo que, em seu álbum “Nó na orelha (2011)”, mistura o rap com elementos do
afrobeat, reggae, samba e brega, num ethos criativo que resultou, três anos depois,
no álbum “Convoque seu Buda” (2014), onde o artista vai ainda mais além com um
rap aberto ao lírico e a rirmos afrodiaspóricos brasileiros, como é possível perceber
pelas faixas “Convoque seu Buda”, que dentre um rap se faz ao mesmo tempo pop
pelo canto e batidas, “Fermento pra massa”, que se destaca por ser inteiramente um
samba dentro de um disco supostamente de um artista apenas de rap, e “Pé de
Breque”, que se incluí no leque de variedades do álbum como uma música reggae.

De maneira semelhante, os álbuns “Esú” (2017) e “Bluesman” (2018), do rapper


Baco Exu do Blues, dialogam de perto com a postura artística adotada por Criolo e
pelos rappers estadunidenses aqui citados, justamente por buscar a construção de
uma poética baseada no hip hop, mas que, ao mesmo tempo, extrapola suas
fronteiras. Para isso, ele combina elementos musicais com referências da pintura, do
cinema, da fotografia e da literatura. Com isso, ele busca conferir originalidade à sua
produção, ao mesmo passo em que continua tratando de temas clássicos do hip hop,
como o combate ao racismo em tempos em que os jovens negros destes movimentos
podem ser protagonistas de seus próprios processos educativos. Estes álbuns, foram
responsável por assentá-lo ao cenário do hip hop e no mercado da música nacional
como um artista promissor, pela maneira em que é articulado o tema da racialidade
através do contexto social brasileiro. As faixas “En Tu Mira”, “Esú”, “Me Desculpa Jay-
Z”, “Kanye West da Bahia” e “Girassóis de Vang Gogh” integram os gêneros que Baco
trabalha, como samba-rap, funk, blues e MPB, ratificando um rap onde ele não tem
receio de incluir uma vocalidade que soe como um canto em ritmo mais lento e
prosaico, fato não tão habitual para o hip hop.
13

Criolo e Baco Exu do Blues são dois rappers que, em reconhecimento, querem
consagrar o gênero do rap a partir de um diálogo de perto com referências da MPB,
onde, no Brasil, é o caminho percorrido por esses agentes para se consagrarem não
só como rappers, mas também como artistas. Ou seja, quando o samba e os ritmos
populares entram, eles fazem uma abertura para aquilo que seria uma legitimação em
torno de expressa ser parte de um lugar da “Música Popular Brasileira”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Compreender a formação dos processos artísticos nos agrupamentos sociais


dentro daquilo que, embora revele um grande campo de discussão científica sobre o
período chamado de “pós-moderno”, se referindo aos anos finais do que seria o século
XX e o início do século XXI, pode descrever detalhadamente a maneira pela qual os
objetos sociais passam por transformações e interpretações estéticas no campo da
arte.

Parte dessa nova interpretação particular em olhar o social, se revelou com o


pensamento de Pierre Bordieu sobre as teorias da ação e do espaço simbólico como
perceptíveis do conjunto de posições sociais que, através de bens e práticas
possíveis, manipulavam as formas de agir como habituais. Com isso, percebendo
esses enfoques nos princípios dos espaços sociais, ao buscar os elementos
subjetivos que geram disposições de agir e de estar no mundo como essenciais para
compreender que as convenções dos sujeitos sociais tem potencial de modificar a
estrutura, revelando uma ação que as modificam, essa pesquisa envolveu como cerne
os processos de subjetivação das diversas agências sociais em constate alteridade
do movimento do hip-hop.

Dentro disso, os nichos nos quais as atividades artísticas serão consumidas


expressam a existência de uma multiplicidade de instancias de reconhecimento e
regulamentação do que pode ser lido como arte dentro das dimensões socioculturais
e políticas. Ao se debruçar sobre as referências indispensáveis de crenças e valores
agrupadas socialmente dentro do rap percebe-se os aspectos artísticos sendo
operados analogamente à mercantilização, ao passo que o gênero nos EUA se
apresenta como um dos ritmos mais escutados e consumidos, transformando um
14

objeto fruto de uma dialética cultural, onde diferentes configurações preenchem as


categorias de arte advindas de suas raízes culturais, em um trabalho, de acordo com
aquilo que Roberta Shapiro (2008) define, cada vez mais artificado.

Pensar a artificação enquanto a transformação da não-arte em arte, sobre as


dinâmicas agenciadas por esses novos rappers implica algo além dessa mudança
simbólica sobre o que é arte, consiste um deslocamento de hierarquias e legitimidades
que passam a transfigurar socialmente como um corpo de objetivo amplo o
encadeamento subjetivo que alguns rappers-artistas passam a realizar em suas obras
com diálogos a outras categorias de arte, como fotografia, audiovisual, literatura,
dança – e até de conexões com outros ritmos de música fora do gênero rap.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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generation. EUA: St Martin’s Griff Edition, 2008.
GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo:
ed. 34/ Rio de Janeiro: UCAM, 2012.
MORELLI, Rita de C. L. “O campo da MPB e o mercado moderno de música no Brasil:
do nacional-popular à segmentação contemporânea”. ArtCultura, Uberlândia, vol. 10, n. 16,
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ORTNER, Sherry. “Teoria na antropologia desde os anos 60”. Mana, vol. 17, n. 2,
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SHAPIRO, Roberta. “O que é artificação?”: Sociedade e Estado, vol. 22, n. 1, p. 135-
151, 2007.
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MATERIAL AUDIOVISUAL:

CRIOLO. Convoque Seu Buda. Brasil: Oloko Records, 2014. CD.


CRIOLO. Espiral de Ilusão. Brasil: Oloko Records, 2017. CD.
CRIOLO. Nó na Orelha. Brasil: Oloko Records, 2011. CD.
15

EXU DO BLUES, Baco. Bluesman. Brasil: Selo EAEO Records, 2018. CD.
EXU DO BLUES, Baco. Esú. Brasil: 999, 2017. CD.
LAMAR, Kendrick. DAMN. EUA: Top Dawg, Interscope, 2017. CD.
LAMAR, Kendrick. Good Kid, M.A.A.D City. EUA: Top Dawg, Aftermath, Interscope,
2012. CD.
LAMAR, Kendrick. Untitled Unmastered. EUA: Top Dawg, Aftermath, Interscope, 2016.
CD.
MC’s, Racionais. Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Brasil: Boogie Naipe, 2002.
CD.
MC’s, Racionais. Sobrevivendo no Inferno. Brasil: Cosa Nostra Fonográfica, 1997. CD.
RAP Gourmet e a Geração Pós-Hip-Hop | Bluesman, This is America, Kanye West,
Death Grips... . João da Mata. Youtube. 26 jan. 2019. 8min41s. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=pTVTxA-KTq4>. Acesso em 19 abr. 2019.
WEST, Kanye. Jesus is King. EUA: G.O.O.D. Music, Def Jam, 2019. CD.
WEST, Kanye. Late Registration. EUA: Roc-A-Fella, Def Jam, 2006. CD.
WEST, Kanye. The College Dropout. EUA: Roc-A-Fella, Def Jam, 2005. CD.

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