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QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES

UNIVERSIDADE AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES DO RAP PARA A


FEDERAL DE EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA
RONDÔNIA

Tarciso Pereira da Silva Júniori


Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
CENTRO
INTERDISCIPLINAR DE
ESTUDO E PESQUISA Sérgio Luiz de Souzaii
DO IMAGINÁRIO Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
SOCIAL

Cássio Alves Lusiii


Instituto Federal de Rondônia (IFRO)

RESUMO
Trata-se de um breve estudo sobre a questão identitária tratada na música “Soul
Quilomboclada” do grupo de rap Quilomboclada de Porto Velho-RO, o grupo
pertence ao Movimento hip hop de Rondônia, em 2005 lançou o CD “Correnteza”.
O discurso destes rappers trata sobre a construção e valorização das identidades
amazônicas. O Objetivo da investigação é a análise da letra da música principal da
banda sobre a ótica da negação da “branquitude” e do mito da “democracia racial”.
Para tanto faremos uso de teóricos importantes na elaboração do texto como Stuart
Hall, Gilberto Freyre e Kabengele Munanga. Em nossa metodologia utilizamos a
pesquisa bibliográfica e a análise de conteúdo da discografia dos grupos de rap,
Racionais MC’S (1992); (1993) e do grupo Quilomboclada (2005).
Palavras-chave: Quilomboclada; Educação; Identidade; Rap.

REVISTA LABIRINTO ABSTRACT


ANO XVII This is a brief study on the identity issue treated in the song "Quilomboclada Soul"
VOLUME 27 of the rap group Quilomboclada of Porto Velho-RO, the group belongs to the Hip
(JUL-DEZ) hop Movement of the Rondônia forest, in 2005 released the CD, Correnteza, "the
2017 rappers' discourse of the band deals with the affirmative construction and
P. 249-259.
valorization of the Amazonian identities. The objective of the investigation is to
analyze the lyrics of the band's main song about the "neglect of whiteness" and the
myth of "racial democracy". For both we will use established and important
theorists for the production of the text as Stuart Hall, Gilberto Freyre and Kabengele
Munanga. In our methodology we used the bibliographical research and content
analysis of the discography of rap groups, Racionais MC'S (1992); (1993) and
Quilomboclada (2005).
Keywords: Quilomboclada; Education; Identity; Rap.
QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES
DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
TARCISO PEREIRA DA SILVA JÚNIOR, SÉRGIO LUIZ DE SOUZA & CÁSSIO ALVES LUS

exploração econômica e aos problemas relativos


Introdução ao desrespeito diversidade cultural e aos
patrimônios histórico-culturais que constituem as
O rap (Rhyme And Poetry – ritmo e identidades dos povos amazônicos. Um exemplo
poesia) é a vertente musical do movimento hip é o movimento hip hop da floresta do Estado de
hop, nascida nos Estados Unidos na década de Rondônia (MHF-RO) que se designa como uma
1960. Além do rap, o hip hop conta com o representação cultural, social e política,
rapper (cantor, antigo MC - Mestre de orientada para a construção de uma sociedade
Cerimônia), os DJ´s (disc-jóqueis), a dança socialista e ecologicamente correta. Para Gomes
(break dance) e a pintura ou arte plástica (2014, p. 92), os rappers do MHF-RO estão “[...]
(grafite). O rap passou a ser uma metodologia ligados a militância política, a militância em
educacional utilizada como ferramenta para Organizações Não Governamentais (ONGs), e
dialogar com comunidades marginalizadas e causas indígenas e ambientais” e representam
exploradas sobre as dificuldades sofridas pelos uma peculiaridade da situação geográfica dessa
negros e demais grupos étnico-raciais nas região”.
periferias. O hip hop chegou ao Brasil através Nestas bases, para a concepção mais
250
dos bailes Black Power nos anos de 1970, em extensa dos problemas abordados pelas letras das
São Paulo e Rio de Janeiro, e ao longo do tempo músicas dos grupos de rap do movimento hip
tem como uma dimensão importante a postura hop de Rondônia, realizaremos um estudo sobre
político-cultural de luta contra o racismo. o grupo Quilomboclada e especificamente a letra
(MENDONÇA JÚNIOR, 2014). principal do CD Correnteza, “Soul
O gênero musical rap, na década de mil Quilomboclada”. No entanto, é necessário
novecentos e noventa (1990), espalhou-se pelo considerar a possibilidade da construção
mundo e está presente na Região Norte do afirmativa das identidades amazônicas que vai
Brasil, fazendo menções a uma realidade além da declaração de distinção entre o que são e
enormemente assinalada pela presença da o que não são as identidades amazônicas. É
floresta Amazônica. Produzido nas grandes preciso, assim, enxergar as identidades
capitais, como Belém, Manaus e Porto Velho, o amazônicas que se formaram dentro em um
rap desta região reconstrói informações das movimento de troca entre os referenciais
culturas locais e também faz críticas a problemas histórico-culturais dos diferentes grupos étnico-
peculiares da região, principalmente àqueles raciais e contingentes populacionais. Por isso,
vinculados ao aniquilamento da floresta pela podemos considerar que a partir das letras dos

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVII, VOL. 27 (JUL-DEZ), N. 1, 2017, P. 249-259.
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rappers do Quilomboclada, seja possível movimento cultural, coloca em pauta questões


perceber e reinventar referenciais identitários polêmicas como racismo, discriminação, miséria
relevantes para parte dos jovens portovelhenses a nas periferias, drogas, violência policial etc.,
partir de reinterpretações de identidades presentes no dia a dia das populações
amazônicas. marginalizadas. Os elementos fundamentais do
O importante neste artigo é ressaltar que rap, por exemplo, são decodificados como
na letra da música “Soul Quilomboclada” reinterpretações de práticas culturais de
produzida pelo grupo no ano de 2005 no seu ascendência africana, ligadas a música e a
primeiro CD, intitulado “Correnteza”, os tradição oral do canto falado, por exemplo.
discursos são construídos em torno de denúncia Assuntos referentes à etnicidade estão quase
das situações de opressão e exploração étnico- sempre presentes nas letras de rap criadas pelos
racial, social e ambiental, da exclusão econômica jovens (ANDRADE, 1996).
e consequente condição de miséria e abandono A relação entre o rap e a escola formal,
de parte importante de populações amazônicas. entre outras dimensões, é marcada por conflitos e
No entanto, é relevante para a compreensão mais contradições, pois a maioria dos rappers
ampla dessa letra e objeto de nossa investigação, descreve a escola em suas letras como um lugar
251
o “rap’ensar” as identidades amazônicas e a sem atrativos e desacreditado, embora parte dos
discussão sobre a enunciação das sujeitos reconheça a educação como um
particularidades da concepção de homem importante caminho a seguir e, desta forma,
amazônico proposta pelos rappers do grupo colocam a escola como um espaço social que
Quilomboclada. precisa ser espaço de fortalecimento para
transformações sociais. Na música “O homem na
Educação e Identidades Amazônicas estrada”, do grupo de rap Racionais MC’s, o
rapper Mano Brow vai direto ao tema ao
O movimento hip hop pode ser definido
retratar, através da música, a realidade social
como uma prática educativa informal produzida
vivida pelos afro-brasileiros:
pelos jovens pobres, composto principalmente
por negros, em Porto Velho e em grande parte do Empapuçado ele sai, vai dar um rolê/ Não
acredita no que vê, não daquela maneira/
Brasil. O rap, por sua vez, é a expressão que crianças, gatos, cachorros disputam palmo a
palmo/ seu café da manhã na lateral da feira/
mais difunde o movimento cultural, Molecada sem futuro, eu já consigo ver/ Só
vão na escola pra comer, apenas nada mais/
principalmente nas mídias hegemônicas e nas Como é que vão aprender sem incentivo de
mídias alternativas, não ligadas ao grande alguém/ Sem orgulho e sem respeito/ Sem
saúde e sem paz. (RACIONAIS MC’S,
capital. Neste sentido, este gênero musical e 1993).

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Em nossa discussão, o pensamento de


A realidade narrada sobre os jovens
Stuart Hall (2002, p. 97) se mostra importante,
negros nesse fragmento musical, mostra uma
pois este autor expõe alguns pontos sobre a
realidade adversa enfrentada por estes. São
identidade cultural no processo que denomina de
poetas que narram seu dia a dia, suas histórias de
“modernidade tardia”, exibindo uma afirmativa
vida e suas origens, fato que a escola formal
de que as identidades modernas estão sendo
evita tratar em sua dinâmica e organização
descentradas, decompondo as identidades
curricular. O sistema educacional implantado no
pessoais, agitando a ideia que temos de nós
Brasil se apresenta distante da valorização das
mesmos como sujeitos unificados e causando
formas diversas de produção de conhecimento,
uma “crise de identidade”. A apresentação de um
assim se constitui em bases etnocêntricas, e
sujeito pós-moderno, com uma identidade
como um modelo de educação excludente que
constituída e transformada sucessivamente em
não se encontra com as variados modelos de
relação à natureza, pela qual é imaginado nos
saberes populares do cotidiano. (BRANDÃO,
sistemas culturais que o circundam, mostra a
2005, p.10).
obrigação de adaptação deste sujeito em uma
Trabalhamos com o conceito de educação
sociedade que influi e é influenciada pela
252
defendido por Brandão (2005, p.10), ao assumir
globalização. Neste movimento o sujeito é
que “a educação é, como outras construções
percebido soltando-se de seus apoios estáveis nas
sociais, fração do modo de vida dos grupos
memórias e nas estruturas, deslocando as
sociais que criam e recriam, entre tantas outras
identidades culturais nacionais. Hall (2002)
invenções de sua cultura, em sua sociedade”.
ainda mostra o efeito crítico e contorcionista da
Percebemos a grande diferença entre a educação
globalização nas identidades centralizadas e
escolar e a praticada do lado de fora dos muros
terminadas de uma cultura nacional. Esse efeito
da escola. O movimento hip hop e o rap são um
legitimamente plural modifica as identidades
exemplo disto, as bancas (núcleos a partir dos
implantadas, tornando-as menos fixas, plurais,
quais os jovens do movimento se organizam),
mais políticas e diferentes.
batalhas e bailes preenchem um cotidiano que
A globalização não parece estar produzindo
muitas vezes poderia ser tedioso e sem sentido nem o triunfo do global nem a persistência,
em sua velha forma nacionalista, do local.
para os jovens desse movimento cultural, com
Os deslocamentos ou os desvios da
informações e conhecimentos, com globalização mostram-se, afinal, mais
variados e mais contraditórios do que
fundamentação de referências bibliográficas sugerem seus protagonistas ou seus
oponentes. (HALL, 2002, p.97).
excluídas pela educação escolar formal.

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DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
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Desta maneira, podemos apontar que em identidades presentes num determinado


contexto social. No processo de
paralelo à convergência rumo à homogeneização normalização, a identidade hegemônica
recebe os atributos de superioridade e
e globalização, há também um encanto com a positividade possíveis, em relação aos quais
as demais identidades são avaliadas sempre
diferença e com a mercantilização da etnia e da a partir de uma falta, daquilo que elas não
cultura. Surge, assim, em diferenciação ao são em relação ao padrão hegemônico
instituído. (SOUZA, 2010, p. 89).
movimento homogeneizante global, um novo
interesse pelo local, originando novas Esta ordem social autoritária tem gerado

identidades globais e novas identidades locais e invisibilidade social e excluído diferentes grupos

as realidades amazônicas fazem parte deste na Amazônia. Desta forma, as sociedades

processo. campesinas amazônicas têm sido muitas vezes

Atualmente, a Amazônia idealizada tratadas como invisíveis pela bibliografia. Outros

homogeneamente dentro da Modernidade se elementos, como o tratamento dúbio da ideologia

revela a cada momento mais diferente, particular, racial brasileira com analogia às populações

dinâmica e difusa. Como confirma Castro mestiças, a naturalização ideológica, a-

(2010), o processo de integração do território historicidade que qualifica a maior parte dos

estimulou as comunidades (reais e/ou virtuais) a textos antropológicos sobre as populações 253

questionamentos identitários, expondo diferenças amazônicas e, por fim, a marginalização da

culturais que coabitam no mesmo espaço. É economia dos “povos da floresta” em

nesse contexto que as populações amazônicas comparação ao desenvolvimento econômico

buscam afirmação de suas identidades. Mas é nacional, tem cooperado para o não

lógico que o reconhecimento das diferenças reconhecimento dos camponeses. Gilberto Freire

étnicas se realiza a partir da exclusão e da (1998, p. 80) ao falar da serventia do escravo

opressão que se traduz na produção ideológica africano para os engenhos de açúcar do nordeste

de uma identidade “normalizada”, a identidade brasileiro cita que, “logo se mostrariam

eurocentrada, que serve de modelo para as incapazes os indígenas molengas e inconstantes”.

demais. Neste caminho, aqueles não encaixados Este é um exemplo de como, a invisibilidade

neste padrão de identidade normalizador ficam a sócio-política das populações indígenas e

margem do processo produtivo, cultural, social caboclas tem sido uma barreira para a sua

que, nas palavras de Souza (2010, p. 89), importância como legítimas herdeiras das

constitui-se “uma ordem social autoritária”. florestas em que residem.


Assim, conceituar a identidade cabocla,
A normalização ocorre quando se elege uma
no contexto da globalização e apresentada numa
identidade como parâmetro para avaliar,
classificar e hierarquizar todas as outras

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVII, VOL. 27 (JUL-DEZ), N. 1, 2017, P. 249-259.
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DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
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visão de autovalorização, mostra como a qualificar o “campesinato amazônico”, ou “os


desigualdade e a naturalização dos contextos povos da floresta”, deve ser respeitada a auto
socioculturais limita possibilidades de percebê-la declaração do indivíduo: caboclo, ribeirinho,
a partir de uma unidade identitária. Por isso a beiradeiro, indígena, quilombola, seringueiro,
constituição da identidade cabocla tem lugar catador de castanha, entre outras identidades.
mais nas externalidades, desde o sistema Porém todas possuem um ponto em comum a
econômico mercantilista até as modificações da floresta Amazônica, neste sentido, o mais
economia global do que nas sequências locais, sensato é pensar em termos de “identidades
em comparação às populações indígenas. Pois os Amazônicas”.
caboclos, não têm um passado colonial de
vitórias para chamar, sentem-se afastados dos SOUL QUILOMBOCLADA
centros de poder e estão colocados em um
contexto de mutações históricas atuais no Na língua dos povos bantos, “quilombo”
domínio dos sistemas político-econômicos significava povoação, capital, união, no Brasil,
mundiais. Têm seguimentos e tendências, assim teve por significado local de refúgio dos
como descontinuidades e desacordos, e o que escravizados no Brasil. Em uma junção do termo
254
diferencia essas sociedades é a aptidão de quilombo com caboclada, de caboclo, que é o
agenciar e procurar chances no presente. resultado da fusão entre o branco e o índio,
Finalmente, devemos esclarecer e surgiu o nome da banda, Quilomboclada. Da
desmistificar as diversas pressuposições mistura de ritmos, das influências tão absurdas
generalistas edificadas sobre as sociedades quanto originais brotaram um som distinto,
caboclas. Não há uma cultura cabocla, mas digno de suas raízes “beiradeiras”, de onde se
diversas culturas, histórias e identidades, e o seu gera a inspiração de seus integrantes. A batida
reducionismo pode sugerir um prejuízo do mais que vem do boi-bumbá e dos batuques dos
importante aspecto no diagnóstico destes sujeitos terreiros, as guitarras do rock, os discursos do
sociais: a sua variedade. De tal modo, a rap e do hip hop, com a polirritmia do samba de
visibilidade dos caboclos deve acontecer roda, é tudo embaralhado, numa harmonia que
precisamente pelo reconhecimento da sua ultrapassa os limites da concepção, é algo que
heterogeneidade sociocultural. É muito procura uma química particular para descobrir a
importante definir as populações da Amazônia combinação da perfeita harmonia. Como a
pelas particularidades amazônicas, tendo em introdução da letra da música do próprio grupo
vista a multiplicidade de nomenclatura para “Soul Quilomboclada”, do CD intitulado

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QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES
DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
TARCISO PEREIRA DA SILVA JÚNIOR, SÉRGIO LUIZ DE SOUZA & CÁSSIO ALVES LUS

Correnteza (2005) canta: “De um lugar muito beiradeiro, do negro, do índio, daqueles que
distante/ Vem surgindo a caboclada/ No estilo sempre foram discriminados, excluídos e
viajante/ Na bagagem a pancada/ Demarcando marginalizados. É uma tentativa de luta dos
território/ Fé em deus e pé no chão/ Se o passado povos amazônicos, eles levantam uma bandeira
não foi justo/Vai virar revolução”. Como o de luta para que a nova geração se orgulhe de sua
Rapper do grupo, “Boca”, diz em favor da condição étnica e cultural e o erguimento de sua
caboclada das injustiças do passado vai ocorrer à autoestima através da música local se
revolução, a revolução que ele fala é a revolução identificando como pertencente à Amazônia.
dos caboclos, é o reconhecimento do caboclo Em 2005 o Quilomboclada lançou o seu
como dono do seu próprio destino e construtor primeiro CD intitulado “Correnteza”. O CD foi
de sua história. um projeto em parceria com a Prefeitura de Porto
O grupo Quilomboclada é um grupo de Velho através da Fundação Iaripuna. Teve o
rap formado por Samuel, Mc Radar e Boca objetivo de divulgar e fortalecer o movimento
(vocais), Mestre Xoroquinho, Tino (percussão), cultural na capital, o nome do CD resumiu o
Laureano (bateria), Flamarion (guitarra), Foca momento cultural da cidade, de inquietação,
(baixo), DJ Vilson (Pick-ups e base), Flávio como a correnteza do rio Madeira. As músicas
255
(roudie) e Fábio Simões (produção). O do CD “Correnteza” de 2005, “Soul
Quilomboclada procura comunicar a Quilomboclada”, “Beiradeiro”, “Bate cabeça
musicalidade afro-indígena, em sua gama de Caboclo” e “Valha” são importantes para a
influências, com um rosto urbano, na linguagem discussão em pauta nesse trabalho, mas iremos
do hip hop, tendo como prioridade a valorização nos limitar em analisar a letra da música “Soul
da cultura beiradeira e dos povos da floresta na Quilomboclada”, discutiremos os pontos
linguagem própria da região. É um som eclético, referentes à questão da construção das
a partir do qual se procura fazer uma música identidades amazônicas.
valorizando a identidade da juventude amazônica O Soul no duplo sentido, no sentido de
de Rondônia e outros espaços amazônicos. ser e também no sentido de pertencer ao
Os integrantes do grupo dizem fazer um movimento a Soul Music e Quilomboclada como
som local, mas com uma visão do futuro e a já foi apontado. Na música “Soul
expectativa de que ele seja universal. As letras Quilomboclada”, o grupo define seu perfil de
das músicas têm cunho político social possível combate à cultura “dominante” e contra a
de ser percebido facilmente, mas principalmente opressão aos “povos da floresta”, na primeira
pensam em fortalecer a autoestima do povo parte da letra da música o rapper Samuel cita

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QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES
DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
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quem é o inimigo, mesmo que de forma amigável dos contatos raciais entre brancos,
subentendida. Vejamos: negros e índios no Brasil. O “mito da democracia
racial”, baseia-se no argumento de que “a
Conheço gente fina/ Se suja se alimpa/ Na
fuga de um passado de esquina/ Na luta pela miscigenação corrigiu a distância social que de
vida se supera faz o clima/ adrenalina da
pura/ música de rua/ Agulha de costura na outro modo se teria conservado enorme entre
boca de pagar sapo/ Pra ser irmão tem que se
mais que chegado/ E nessa guerra somos casa-grande e senzala” (FREYRE, 1998, p. 36).
todos aliados/ Pequenos soldados/ de
pensamento blindado/ Ligados, sintonizados/ Contraditoriamente, embora entenda uma relação
Na quantia de “malungos’ por metro
hierárquica de superioridade na relação sexual,
quadrado/ Espaço aéreo fechado pro
inimigo/ Se eu abrir mão de você renego a ou melhor, no “estupro colonial” atenuado por
Cristo/ Se, só o seu corpo vale mais do que
você tem no bolso/ Sua alma caboclo vale Freyre (1998) como uma “confraternização”,
mais do que o mundo todo.
(QUILOMBOCLADA, 2005). esta seria a tecla para a edificação político-
ideológica do mito da “democracia racial”.
A transcrição da letra da primeira parte
Como já dito, trata-se de “um processo de
da música “Soul Quilomboclada”, é uma
hegemonia racial que contribuiu para estruturar a
declaração de guerra do Quilomboclada contra a
desigualdade racial no país, negar sua existência
“branquitude”, contra aspectos angustiantes que
dentro da complexa ideologia da democracia
256
os grupos dominantes representam para estas
racial e criar as precondições de sua
populações: a opressão e a discriminação de
perpetuação” (HANCHARD, 2001).
classe e étnico-racial, como os “escuros”, as
A letra da música “Soul Quilomboclada”
“minorias” étnicas da Amazônia, que na verdade
vem exatamente para denunciar essa tentativa
são a maioria que economicamente pouco
dos grupos dominantes, através dos argumentos
possui. Populações divididas pela ideologia do
de mestiçagem com o discurso do “mito da
branqueamento, defendida por intelectuais e
democracia racial”, de embranquecer
cientistas brasileiros no início do século XX e
culturalmente os contingentes populacionais
propagada pelo próprio Estado. Foi criado o
distintos do padrão etnocentrado claro. Processo
“mito da democracia racial”, “o Brasil é um país
que vem junto com a negação dos seus direitos
de clima tropical onde as raças se misturam
de cidadãos e lhes deixando à margem do
naturalmente e não há preconceito racial”,
processo produtivo.
(RACIONAIS, 1992).
Como alternativa de resistência o grupo
A “mestiçagem” em Freyre (1998) é o
traz a proposta de construção positiva e
elemento principal da colonização e da formação
autovalorização das “identidades amazônicas”.
cultural brasileira. Seu reflexo na atualidade,
Como já foi apontado acima, na primeira parte
conforme a teoria “freyriana”, seria o ambiente

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVII, VOL. 27 (JUL-DEZ), N. 1, 2017, P. 249-259.
QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES
DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
TARCISO PEREIRA DA SILVA JÚNIOR, SÉRGIO LUIZ DE SOUZA & CÁSSIO ALVES LUS

da letra da música “Soul Quilomboclada” na República permaneceram algumas de suas


(2005); “Se eu abrir mão de você renego a bases como orientações dos grupos hegemônicos
Cristo/ Se, só o seu corpo vale mais do que você do Brasil. Pautados por uma percepção racista,
tem no bolso/ Sua alma caboclo vale mais do que os grupos políticos e intelectuais hegemônicos
o mundo todo”. É nesse clima de valorização mantiveram um olhar estereotipado em relação
identitária do caboclo que o Quilomboclada nega ás populações negras, indígenas e aos demais
o embraquecimento, se posicionando como escuros e esta lógica é que se faz presente
pretensa vanguarda dos oprimidos da floresta também em Rondônia e à qual jovens rappers
amazônica. têm se insurgido, em busca de construir
Na segunda parte da letra da música alternativas de sociabilidade e produção de
“Soul Quilomboclada”, o grupo se apresenta e se referências socioculturais e políticas.
auto define, deixando exposto quem eles Desta maneira, percebemos o grupo de
representam, o rapper “Samuel”, dar uma rap Quilomboclada, em suas produções em geral
entonação na voz, digno dos grandes nomes do e em sua letra “Soul Quilomboclada”, como
rap nacional, a letra contagia e convida a expressão deste movimento de negação da
juventude amazônica a se rebelar contra o invisibilidade social e da marginalização à
257
sistema de opressão e se orgulhar de suas procura de outras bases identitárias para suas
características étnico-raciais e multiculturais. relações com o mundo nesta região amazônica.
Observe a transcrição da segunda parte da letra
da música “Soul Quilomboclada” (2005): Considerações Finais

Eu me apresento, sou negro e caboclo/ Afro- O presente trabalho é fruto do esforço de


indígena daqueles bem loucos/ Se você gosta
de tudo que é pouco/ Eu e você somos revisões bibliográficas sobre a questão racial no
apenas o oposto/ Já caí, já chorei, sofri/ Pelo
meu corpo tenho as marcas de Caim/ Eu sigo Brasil é discutida a partir das letras de rap de
em frente/ Minha aldeia é diferente/ O meu
povo é consciente/Por que sabe a dor da
vários grupos no Brasil e no mundo. O interesse
gente/ Já quebramos a corrente que você me pelo assunto surgiu a partir das participações de
colocou/ Paulo Freire me ensinou, no
passado ele lutou/ Hoje eu sei a diferença do bailes e festa da cultura hip hop em Rondônia. O
oprimido e o opressor.
(QUILOMBOCLADA, 2005). artigo foi produzido com as leituras e por horas
de escuta atentas às músicas e letras elaboradas
Processos de desigualdade, pautados em
pelos rappers. A atenção empreendida para
violências e desconsideração da diversidade
compreender as mensagens transmitidas, o
étnico-racial se desenvolveram desde a
próprio estilo de vida dos jovens do movimento
escravidão no Brasil e no período pós-abolição,

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVII, VOL. 27 (JUL-DEZ), N. 1, 2017, P. 249-259.
QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES
DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
TARCISO PEREIRA DA SILVA JÚNIOR, SÉRGIO LUIZ DE SOUZA & CÁSSIO ALVES LUS

hip hop da floresta de Porto Velho – RO, HALL, stuart. A Identidade cultural na pós-
divulgadores de uma consciência ecológica modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
preocupada com a floresta amazônica e com as HANCHARD, M. Orfeu e o Poder:
populações que tiram dali seu sustendo, uma Movimento Negro no Rio e São Paulo, 1945-
consciência solidária, em defesa dos oprimidos e 1988. RJ. Ed UERJ, 2001.
marginalizados pelo sistema capitalista. O estudo MENDONÇA JÚNIOR. FRANCISCO
buscou ser uma introdução às pesquisas sobre os CARLOS GUERRA DE. HIP HOP Como
significados e a importância do rap como projeto Identidade Cultural Negra e Periférica. A
educativo e nas discussões étnico-raciais na Aversão de Rappers Brasileiros à Rede Globo.
Amazônia. 2014. Pag. 194. Dissertação de Mestrado em
Comunicação e Jornalismo. Faculdade de Letras
REFERÊNCIAS da Universidade de Coimbra.
MUNANGA, K. Rediscutindo a Mestiçagem
ANDRADE, Elaine Nunes. Movimento negro no Brasil: identidade nacional versus
juvenil: um estudo de caso sobre os rappers identidade negra. 2ª ed. Belo Horizonte:
de São Bernardo dos Campos. 1996. Autêntica, 2004.
258
Dissertação (mestrado em Educação) - QUILOMBOCLADA. Soul Quilomboclada.
Faculdade de Educação, Universidade de São Correnteza, 2005.
Paulo, 1996. RACIONAIS MC’S. Racistas Otários.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Holocausto, 1992.
educação. São Paulo: Brasiliense, 2005. RACIONAIS MC’S. O homem na estrada.
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identitárias na Amazônia Brasileira. Belém, SOUZA, Sérgio Luiz de. Fluxos da Alteridade:
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QUILOMBOCLADA RAP’ENSANDO AS IDENTIDADES AMAZÔNICAS: AS CONTRIBUIÇÕES
DO RAP PARA A EDUCAÇÃO INFORMAL NA AMAZÔNIA,
TARCISO PEREIRA DA SILVA JÚNIOR, SÉRGIO LUIZ DE SOUZA & CÁSSIO ALVES LUS

i
Graduado em História e Segurança Pública (UNIR);
Mestrando em História e Estudos Culturais pela
Universidade Federal de Rondônia (UNIR). E-mail:
historiadorpsi@hotmail.com
ii
Doutor em Sociologia pela UNESP; Professor Adjunto
no Departamento de Ciências Sociais, junto a
Universidade Federal de Rondônia (UNIR) - Campus
Porto Velho, também atua como Professor do programa de
Mestrado em História e Estudos Culturais da UNIR -
Campus Porto Velho. E-mail: sergiosouza@unir.br
iii
Graduado em Ciências Sociais (UNIR); Mestrando em
História e Estudos Culturais pela Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). E-mail: cassio.lus@ifro.edu.br

Recebido em: 15/10/2017.

Aprovado em: 17/11/2017.


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Publicado em: 30/01/2018.

REVISTA LABIRINTO, PORTO VELHO (RO), ANO XVII, VOL. 27 (JUL-DEZ), N. 1, 2017, P. 249-259.

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