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Resumo: Este artigo investiga as relações entre corpo e poder nas músicas e
performances das cantoras de funk carioca sob a perspectiva feminista e pós-colonial.
No funk carioca atual, temas como corpo e sexualidade são centrais nas letras das
músicas e ganham uma importância particular com participação feminina. As funkeiras
expõem suas expectativas em relação ao sexo e à afetividade e respondem a uma série
de padrões convencionais, característicos da perspectiva masculina. No entanto, ao
abordarem esses assuntos em suas canções elas revelam o quanto questões como raça,
corpo e classe social estão associadas a configurações de poder estabelecidas com o
pensamento eurocentrado, com o colonialismo e a colonialidade, inscrevendo-as em
uma hierarquia específica que influi diretamente sobre as suas relações e possibilidades
amorosas.
Abstract: This paper investigates the relations between body and power in the songs
performed by carioca funk female singers from a feminist and post colconial
perspective. In funk carioca, subjects such as body and sexuality are central in songs
lyrics and acquire a particular importance with feminine inscription. The female funk
singers (or “funkeiras” ) expose there expectations on sex and affective relations and
responde to a series of conventional patterns characteristic from the male perspectives.
However, as female funk singers treat those subjets in their songs they reveal how much
questions of race, body and social class are associated to power configurations
stablished within the eurocentric thought, the colonialism and coloniality. Those power
configurations inscribe them in a specific hierarchy and determine their relationships
and affective possibilities.
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Mestranda em Literatura Brasileira pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa
Catarina.
decorrer do ano, a movimentação da população jovem dos morros era em torno de
bailes, alguns deles realizados nas quadras das escolas de samba da Portela e do Império
Serrano, nos finais de semana.
Embalados por um híbrido de samba e rock os jovens divertiam-se, embora de
acordo com Filó, figura fundamental do movimento black, ainda estivesse por surgir
uma atividade que tivesse mais “a cara” da juventudade das periferias cariocas. E tão
logo ele percebeu que a mobilização desses jovens aconteceria através da música black.
Mas foi do outro lado da cidade, na Rádio Tamoio, onde o DJ Big Boy ajudou a lançar
James Brown, que surgiu a ideia de fazer bailes com um repertório da soul music,
realizado no Canecão, posteriormente foi popularizado e empurrado para a periferia.
(ESSINGER, 2005, p. 15-16)
O samba, portanto, deixava de ser a principal atividade cultural da juventude
carioca, uma vez que se buscava uma indentidade através da música negra norte-
americana. Ao longo do século XX, o samba foi apropriado por vários gêneros
musicais, o que resultou num processo constante de hibridização cultural e musical.
Eleito como símbolo nacional, ele representou o reconhecimento da cultura negra como
elemento primordial da cultura brasileira. Assim, a mestiçagem se inscrevia como
marca de brasilidade a ser valorizada, sobretudo após a publicação de Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freire, em 1933. (VIANNA, 2007, p. 31-32)
No entanto, o reconhecimento do samba, especialmente a intervenção estatal no
que diz respeito à organização das escolas de samba, bem como a sua consolidação
como maior festa popular brasileira, levou-o a um afastamento da realidade social da
qual ele é originário. No recém lançado livro Do samba ao funk do Jorjão, Spirito Santo
aponta um processo de comercialização do carnaval no qual o lucro passou a prevalecer
sobre as vontades de agentes sociais das favelas cariocas envolvidos com as escolas de
samba. Consolidou-se nesse meio diversas práticas que desmotivaram a população das
periferias e que culminaram em reações em favor da tradição do samba. (SPIRITO
SANTO, 2011, p. 349)
A escola de samba, inicialmente propícia a se configurar como espaço de
harmonia entre as classes sociais, quanto mais se inseria na cultura de massa, mais
inadequada se tornava, aos olhos da comunidade, ao legítimo exercício do samba. Desse
processo resultou o descomprometimento de agentes sociais com as escolas de samba.
Mestres de bateria trocavam de escola constantemente, diretores de escola de samba
enriqueciam de maneira ilícita e passistas da comunidade eram substituídas por
mulheres que pudessem pagar pela sua própria fantasia de carnaval. Paralelamente a
isso, jovens da comunidade negra buscavam no balanço da soul music uma identidade.
(SPIRITO SANTO, 2011, p. 358)
Ao que parece, o apelo sensorial da música de tradição africana dos norte-
americanos e também a relação com uma história de escravidão, tiveram papel
determinante para a identificação dos jovens cariocas com a música black oriunda dos
Estados Unidos. Identificados com gêneros como rap, hip hop e funk, conhecidos pelos
estudos sociológicos e antropológicos como pertencentes às tradições afrodiaspóricas,
os jovens cariocas passaram a empenhar-se no resgate da dignidade da população
afrodescendente, atualmente situada nos grandes centros urbanos à margem da
sociedade, através da música negra norte-americana. Para Márcia Amorim, que
investigou num recente trabalho os discursos associados às mulheres funkeiras, o funk
carioca menospreza e debocha da organização social imposta, sobretudo no que diz
respeito à sexualidade. (AMORIM, 2013, p. 30)
No momento em que surgiu como gênero, no final da década de 1980, e passou
a ser composto em português, a proposta evidenciada nas letras de funk era denunciar o
mito da harmonia social e racial bem como expor o cotidiano das favelas. No início da
década de 1990, o funk trazia elementos do rap em suas composições, que tinham por
título “Rap da felicidade”, “Rap do brasileiro” etc. Posteriormente, a violência retratada
em algumas músicas foi tomada pela mídia como apologia ao crime. Esse fato
associado à violência praticada nos bailes e ao arrastão, em 1992, na praia de Ipanema,
desencadeou a propagação de um discurso que relacionava o funk à violência, o que
culminou na interdição dos bailes. Esses discursos disseminados pela mídia orientaram
a produção dos MCs, que expunham em suas letras temáticas como a paz e a união entre
as galeras. (MARTNS, 2011, p. 68)
Depois de um período longe da mídia, nos anos 2000, o funk ganhava novos
contornos, a temática sexual passa a ser abordada em grande parte das letras. A
participação feminina no movimento é fundamental e muda o rumo do gênero. Essa
década também traz mudanças importantes no que diz respeito à estrutura musical do
funk, ele incorpora ritmos brasileiros através do “tamborzão”, denominado pelo DJ
Malboro como um quase samba e considerado por Mr. Catra como um samba
eletrônico. (MIZRAHI, 2010, p. 101) É interessante notar que o gênero inicialmente
identificado com a música negra norte-americana, passa, ao longo dos anos, a
incorporar elementos da música e da cultura brasileira, sendo também uma forma de
hibridização das tradições de matriz africana e do samba, que depois de ser apropriado
por todas as classes sociais, precisou ser “renovado” para ter uma proximidade
identitária com os jovens das favelas cariocas.
Eta lelê, eta lelê / Eta lelê, eta lelê / Eta lelê, eta lelê / Eta lelê, eta lelê
/ Eu fiquei três meses sem quebrar o barraco / Sou feia, mas tô na
moda / Tô podendo pagar motel pros homens / Isso é que é mais
importante / Quebra meu barraco.
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Comentários sobre Mulher Filé, vídeo veiculado no youtube:
a) nescau17- gostosa pra caralho mas tem uma cara de vagabunda vei.. só presta pra fuder mesmo, que
nem o cara lá falou. b) new2order – Delícia de mulher, mas é muito vadia, só serve pra trepar gostoso. Ela
deve ser tão burra quando uma porta kkkkk. c) ravenaotaku – que escroto, mais uma puta pra manchar a
reputação das brasileiras. (AMORIM, 2009, p. 124)
homens exercem sobre o corpo feminino, eles não desejam namoradas ou esposas que
tenham uma postura liberal em relação ao corpo e ao sexo. (AMORIM, 2009, p. 124)
Para as funkeiras, esse comportamento em relação ao sexo representa um novo
modo de assumir uma posição sedutora e dominadora sobre o homem. Em geral, a
mulher representada nas canções e nas performances do funk carioca seduz, domina o
parceiro por sua beleza, pela representação assumida (auxiliada pela vestimenta) e pela
dança executada no palco. É através do corpo, do artifício e da sedução que se configura
a relação de poder entre esses homens e mulheres. Nesse contexto, a funkeira é livre
para dizer o que espera do sexo, do seu parceiro, para desafiar a sua virilidade numa
espécie de jogo sexual.
No entanto, ao se comportar como deseja, em relação ao sexo, a funkeira
também se comporta como os homens e como a sociedade capitalista deseja, uma vez
que o erotismo e a nudez são apropriados por um mercado lucrativo. Para Tati Quebra-
Barraco, toda essa representação da mulher funkeira não passa de uma brincadeira com
a condição de objeto delegada à mulher e também de uma crítica à hipocrisia da
sociedade a respeito do sexo. (AMORIM, 2009, p. 144) De fato, funkeiras como
Valesca Popozuda se apresentam em seus shows como objeto do desejo sexual
masculino, inclusive abordando homens na plateia e lhes perguntando: “Você quer me
comer? Você quer me comer de quatro?”3 E a resposta é nenhuma, intimidados eles
riem.
Bibliografia
ESSINGER, Silvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.
3
Performance da Valesca Popozuda em show realizado em Florianópolis.
GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu. Campinas, v. 14, 2000.
LOURO, Guacira Lopes (org). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
RICH, Adrienne. Notas para uma política da localização. In: MACEDO, Ana Gabriela
(org). Gênero, desejo e identidade. Lisboa: Cotovia, 2002.