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Corpo e poder no funk carioca

Letícia Laurindo de Bonfim1

Resumo: Este artigo investiga as relações entre corpo e poder nas músicas e
performances das cantoras de funk carioca sob a perspectiva feminista e pós-colonial.
No funk carioca atual, temas como corpo e sexualidade são centrais nas letras das
músicas e ganham uma importância particular com participação feminina. As funkeiras
expõem suas expectativas em relação ao sexo e à afetividade e respondem a uma série
de padrões convencionais, característicos da perspectiva masculina. No entanto, ao
abordarem esses assuntos em suas canções elas revelam o quanto questões como raça,
corpo e classe social estão associadas a configurações de poder estabelecidas com o
pensamento eurocentrado, com o colonialismo e a colonialidade, inscrevendo-as em
uma hierarquia específica que influi diretamente sobre as suas relações e possibilidades
amorosas.

Palavras-chave: Corpo; Poder; Feminismo; Pós-colonialismo.

Abstract: This paper investigates the relations between body and power in the songs
performed by carioca funk female singers from a feminist and post colconial
perspective. In funk carioca, subjects such as body and sexuality are central in songs
lyrics and acquire a particular importance with feminine inscription. The female funk
singers (or “funkeiras” ) expose there expectations on sex and affective relations and
responde to a series of conventional patterns characteristic from the male perspectives.
However, as female funk singers treat those subjets in their songs they reveal how much
questions of race, body and social class are associated to power configurations
stablished within the eurocentric thought, the colonialism and coloniality. Those power
configurations inscribe them in a specific hierarchy and determine their relationships
and affective possibilities.

Keywords: Body; Power; Feminism; Post-colonialism.

Funk e identidade cultural

Na década de 1960, na periferia do Rio de Janeiro, já se podia ouvir os rumores


daquilo que viria a ser o circuito ocupado nos anos 1970 pela soul music e, a partir da
década de 1980, pelo movimento funk. O samba, comumente associado às favelas
cariocas, deixava de ser a principal atração musical. As atividades relacionadas às
escolas de samba iniciavam-se em setembro e encerravam-se logo após o carnaval. No

1
Mestranda em Literatura Brasileira pelo programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa
Catarina.
decorrer do ano, a movimentação da população jovem dos morros era em torno de
bailes, alguns deles realizados nas quadras das escolas de samba da Portela e do Império
Serrano, nos finais de semana.
Embalados por um híbrido de samba e rock os jovens divertiam-se, embora de
acordo com Filó, figura fundamental do movimento black, ainda estivesse por surgir
uma atividade que tivesse mais “a cara” da juventudade das periferias cariocas. E tão
logo ele percebeu que a mobilização desses jovens aconteceria através da música black.
Mas foi do outro lado da cidade, na Rádio Tamoio, onde o DJ Big Boy ajudou a lançar
James Brown, que surgiu a ideia de fazer bailes com um repertório da soul music,
realizado no Canecão, posteriormente foi popularizado e empurrado para a periferia.
(ESSINGER, 2005, p. 15-16)
O samba, portanto, deixava de ser a principal atividade cultural da juventude
carioca, uma vez que se buscava uma indentidade através da música negra norte-
americana. Ao longo do século XX, o samba foi apropriado por vários gêneros
musicais, o que resultou num processo constante de hibridização cultural e musical.
Eleito como símbolo nacional, ele representou o reconhecimento da cultura negra como
elemento primordial da cultura brasileira. Assim, a mestiçagem se inscrevia como
marca de brasilidade a ser valorizada, sobretudo após a publicação de Casa Grande &
Senzala, de Gilberto Freire, em 1933. (VIANNA, 2007, p. 31-32)
No entanto, o reconhecimento do samba, especialmente a intervenção estatal no
que diz respeito à organização das escolas de samba, bem como a sua consolidação
como maior festa popular brasileira, levou-o a um afastamento da realidade social da
qual ele é originário. No recém lançado livro Do samba ao funk do Jorjão, Spirito Santo
aponta um processo de comercialização do carnaval no qual o lucro passou a prevalecer
sobre as vontades de agentes sociais das favelas cariocas envolvidos com as escolas de
samba. Consolidou-se nesse meio diversas práticas que desmotivaram a população das
periferias e que culminaram em reações em favor da tradição do samba. (SPIRITO
SANTO, 2011, p. 349)
A escola de samba, inicialmente propícia a se configurar como espaço de
harmonia entre as classes sociais, quanto mais se inseria na cultura de massa, mais
inadequada se tornava, aos olhos da comunidade, ao legítimo exercício do samba. Desse
processo resultou o descomprometimento de agentes sociais com as escolas de samba.
Mestres de bateria trocavam de escola constantemente, diretores de escola de samba
enriqueciam de maneira ilícita e passistas da comunidade eram substituídas por
mulheres que pudessem pagar pela sua própria fantasia de carnaval. Paralelamente a
isso, jovens da comunidade negra buscavam no balanço da soul music uma identidade.
(SPIRITO SANTO, 2011, p. 358)
Ao que parece, o apelo sensorial da música de tradição africana dos norte-
americanos e também a relação com uma história de escravidão, tiveram papel
determinante para a identificação dos jovens cariocas com a música black oriunda dos
Estados Unidos. Identificados com gêneros como rap, hip hop e funk, conhecidos pelos
estudos sociológicos e antropológicos como pertencentes às tradições afrodiaspóricas,
os jovens cariocas passaram a empenhar-se no resgate da dignidade da população
afrodescendente, atualmente situada nos grandes centros urbanos à margem da
sociedade, através da música negra norte-americana. Para Márcia Amorim, que
investigou num recente trabalho os discursos associados às mulheres funkeiras, o funk
carioca menospreza e debocha da organização social imposta, sobretudo no que diz
respeito à sexualidade. (AMORIM, 2013, p. 30)
No momento em que surgiu como gênero, no final da década de 1980, e passou
a ser composto em português, a proposta evidenciada nas letras de funk era denunciar o
mito da harmonia social e racial bem como expor o cotidiano das favelas. No início da
década de 1990, o funk trazia elementos do rap em suas composições, que tinham por
título “Rap da felicidade”, “Rap do brasileiro” etc. Posteriormente, a violência retratada
em algumas músicas foi tomada pela mídia como apologia ao crime. Esse fato
associado à violência praticada nos bailes e ao arrastão, em 1992, na praia de Ipanema,
desencadeou a propagação de um discurso que relacionava o funk à violência, o que
culminou na interdição dos bailes. Esses discursos disseminados pela mídia orientaram
a produção dos MCs, que expunham em suas letras temáticas como a paz e a união entre
as galeras. (MARTNS, 2011, p. 68)
Depois de um período longe da mídia, nos anos 2000, o funk ganhava novos
contornos, a temática sexual passa a ser abordada em grande parte das letras. A
participação feminina no movimento é fundamental e muda o rumo do gênero. Essa
década também traz mudanças importantes no que diz respeito à estrutura musical do
funk, ele incorpora ritmos brasileiros através do “tamborzão”, denominado pelo DJ
Malboro como um quase samba e considerado por Mr. Catra como um samba
eletrônico. (MIZRAHI, 2010, p. 101) É interessante notar que o gênero inicialmente
identificado com a música negra norte-americana, passa, ao longo dos anos, a
incorporar elementos da música e da cultura brasileira, sendo também uma forma de
hibridização das tradições de matriz africana e do samba, que depois de ser apropriado
por todas as classes sociais, precisou ser “renovado” para ter uma proximidade
identitária com os jovens das favelas cariocas.

Corpo e poder na voz feminina do funk carioca

A participação feminina no funk carioca acontecia inicialmente através da


dança. As mulheres participavam dos bailes como dançarinas nas pistas e nos palcos,
onde acompanhavam os cantores e os DJs. A primeira cantora e compositora expressiva
no funk carioca surgiu no início dos anos 2000. Tatiana Lourenço dos Santos, nascida
em 1979, na Cidade de Deus, conhecida como Tati Quebra-Barraco, mudou o rumo do
funk carioca ao responder as perspectivas masculinas em relação à mulher através da
música, lugar tradicionalmente masculino até a recente década de 1960.
A projeção alcançada por Tati Quebra-Barraco se deve, em grande medida, ao
quadro específico no qual a MC se inscreve, ela não corresponde aos padrões de beleza
instituídos socialmente, fala de sexo sem qualquer pudor em suas músicas, mas, acima
de tudo, subverte o papel socialmente esperado para uma mulher subalternizada. Assim,
ao falarmos de padrão de beleza, expressão do desejo e da sexualidade de uma mulher
subalternizada, negra ou mestiça, o corpo se torna um elemento central com suas marcas
étnicas, sociais, culturais e sexuais e que estão atreladas, em nossa cultura, às relações
de poder e ao pensamento patriarcal e colonial.
A discussão sobre como o corpo mestiço é constituído em nossa cultura passa
pela casa grande e pela senzala, espaço onde se dá o encontro entre o senhor e a escrava,
submetida ao poder e ao desejo sexual do homem branco. O corpo, através do sexo,
torna-se mediador das relações hierárquicas estabelecidas nesse contexto, permite o
abrandamento de castigos aplicados pelo senhor e ainda dão a possibilidade de ascenção
social da mulher. Essa relação estabelecida entre senhor e escrava no Brasil colonial
está associada ao discurso de enaltecimento da multa, presente, sobretudo, na poesia
romântica e no cancioneiro popular brasileiro. No entanto, ele representa uma forma de
mascarar o poder patriarcal e colonial em uma sociedade fortemente hierarquizada.
Tati Quebra-Barraco assume através da sua música um discurso que expressa
tensões étnicas resultantes dessas relações e que estão evidenciadas atualmente na
divisão de classes sociais no Brasil. Ela conquistou espaço na mídia com a música “Sou
feia, mas tô na moda”, que expõe em sua letra muitas das questões das quais trataremos.
Nesta música ela conta que ficou três meses sem quebrar o barraco (transar), mas apesar
de feia, tem dinheiro para estar na moda e para pagar o motel para os homens:

Eta lelê, eta lelê / Eta lelê, eta lelê / Eta lelê, eta lelê / Eta lelê, eta lelê
/ Eu fiquei três meses sem quebrar o barraco / Sou feia, mas tô na
moda / Tô podendo pagar motel pros homens / Isso é que é mais
importante / Quebra meu barraco.

Através da roupa e do status a funkeira procura construir uma imagem mais


sedutora e que poderá lhe proporcionar sucesso em suas investidas sexuais e afetivas.
Embora algumas características do seu corpo a deixem em um lugar desprivilegiado no
que diz respeito ao desejo e à sexualidade, adornos apropriados pelo seu corpo, ou o
fato de estar na moda, constituem-se como marcas de poder. Essa preocupação com a
imagem está associada à busca da construção de uma identidade que lhe traga
reconhecimento social. Por um lado, o fato de estar na moda é bem aceito, por mostrar
um sujeito ativo em uma sociedade capitalista, mas por outro, essa máscara, no sentido
em que fala Fanon, não é suficiente para apagar as marcas de um corpo racializado.
(FANON, 2008)
A análise de Fanon a respeito do impacto psicológico sobre os sujeitos
submetidos ao pensamento difundido pelo colonialismo aponta para a ideia de que em
nossa cultura só há um lugar para o negro, a margem. E a transgressão dessa condição
se dará através de um destino branco, seja pela miscigenação e pelos casamentos inter-
raciais, seja pelo uso de máscaras brancas. Portanto, a adoção de valores culturais e
intelectuais europeus seria o caminho para a ascenção, para o acesso ao poder que lhes é
negado. No funk carioca está expresso através de muitas letras de música o desejo pela
obtenção de bens materiais, o que está associado não apenas ao status social mas
também ao sucesso afetivo e sexual.
Mas se por um lado, no caso de Tati Quebra-Barraco, a preocupação em adornar
o corpo revela uma compensação pelo o fato de que ela não corresponde a um padrão
desejável, tanto físico quanto social, paradoxalmente, em outros casos, o corpo mestiço
é propositalmente exposto. O corpo mestiço, curvilíneo, formado com a contribuição do
biotiopo da mulher africana, é alvo de desejo e se estabelece como um padrão físico
adotado inclusive por mulheres brancas. Esse corpo se mostra através das roupas de
marca usada pelas funkeiras, como diz Tati Quebra-Barraco na música Calça da Gang:
Calça da Gang toda a mulher quer, uns R$ pra deixar a bunda em pé.
/ só a galera / Popozuda, popozuda, popozuda, popozuda, popozuda,
popozuda, popozuda. / Me chama de cachorra que eu faço AU AU,
me chama de gatinha que eu faço miau. /Calça da Gang toda a mulher
quer / me chama de cachorra que eu faço AU AU, me chama de
gatinha que eu faço miau / Calça da Gang toda a mulher quer /
Popozuda loira rebola a sua bundinha, o baile todo tá te olhando e
geral perdendo a linha / Popozuda loira rebola a sua bundinha, o baile
todo tá te olhando e geral perdendo a linha / Calça da Gang toda a
mulher quer, uns R$ 200 pra deixar a bunda em pé.

As roupas desejadas por mulheres que integram o movimento funk acentuam as


curvas, dão volume ao bumbum, comprimem o abdomem, contribuem para dar ao corpo
contornos mais expressivos, de acordo com um padrão físico convencionado. As
dançarinas de funk correspondem a esse padrão não por acaso, no palco o corpo delas e
seus atributos físicos ficam sobrevalorizados com os movimentos realizados através da
dança, são repetitivos e rápidos e objetivam valorizar o bumbum. No palco elas são a
própria expressão do erotismo, o que as leva a um comportamento comum, são ousadas
e desinibidas, representam simbolicamente a “cachorra” a “Tchutchuca”. (AMORIM,
2009, p. 91-94)
As performances dessas mulheres têm sido avaliadas muitas vezes como
negativas, como um retrocesso em relação aos direitos conquistados pelas mulheres
através de movimentos feministas. Por outro lado, o propósito das funkeiras é responder
aos homens com base na vivência sexual e afetiva no contexto social em que elas estão
situadas. No documentário Sou Feia, Mas tô na Moda, realizado por Denise Garcia, a
funkeira Valesca Popozuda revela que a partir de sua experiência foi levada a mudar o
seu comportamento em relação aos homens, pois percebeu que não adiantava ser uma
boa esposa nem ter todos os atributos sexuais desejáveis, pois os homens se mantinham
infiéis e abandonavam as suas mulheres da mesma forma.
Embora algumas dessas mulheres não se considerem feministas, a postura
adotada por essas mulheres interessa aos estudos de gênero especialmente quando
associados à raça e a questões pós-coloniais. O percurso do feminismo, inicialmente
voltado para a opressão patriarcal sofrida por mulheres brancas de países desenvolvidos,
tem esboçado um novo caminho em direção aos países colonizados e à opressão de raça
e de classe sofrida por mulheres herdeiras do sistema patriarcal e colonial. O feminismo
tem mudado sua abordagem ao longo dos anos também numa tentativa de superar
limitações teóricas acerca da noção de corpo e das configurações de poder.
Elizabeth grosz aponta que, num primeiro momento, o feminismo ainda
circunscrito aos limites da opressão patriarcal sofrida por mulheres brancas, tinha como
principal questão a abordagem sobre os limites a serem superados em relação ao corpo
feminino. Nesse aspecto reside a principal crítica a esse feminismo. Apropriando-se
acriticamente de muitos dos pressupostos da filosofia ocidental referentes ao papel do
corpo na vida social, política, cultural, psíquica e sexual, a teoria feminista caiu num
determinismo biológico no qual a mulher só poderia superar a sua condição através da
negação da maternidade e das características que as inscreviam nesse lugar da
feminilidade. (GROSZ, 2000, p. 47)
A hostilidade econtrada nesse período feminista explica-se uma vez que o
pensamento patriarcal, apoiado nas noções de corpo difundidas pela filosofia ocidental,
depreciavam o corpo feminino e a sua natureza particular. Assim, menstrução, gravidez,
ciclos hormonais etc., eram vistos como uma limitação ao acesso de direitos e
privilégios concedidos aos homens.
A segunda categoria do feminismo, na qual estão incluídas feministas como
Julia Kristeva e Nancy Chodorow, ligadas ao marxismo e à psicanálise, preocupa-se
com a noção de construção social da subjetividade. As construtivistas sociais abordam o
corpo e a sexualidade como construídos social e culturalmente. Oponentes do primeiro
grupo feminista no que diz respeito ao determinismo biológico, essas feministas
acreditam que para a emancipação da mulher as mudanças necessárias estão no campo
da subjetividade, das construções sociais em torno do corpo feminino. Em outras
palavras, não seria a biologia em si a responsável pela opressão feminina, mas sim o
modo pelo qual o corpo é representado na sociedade.
Em oposição às duas categorias citadas anteriormente, o terceiro grupo,
integrado por teóricas como Helene Cixous e Gaytari Spivak, defende que o corpo deve
ser estudado não como biológico ou como um objeto a-histórico. (GROSZ, 2000, p. 75)
Estas feministas estão preocupadas com o corpo representado de formas específicas em
culturas específicas. O corpo é visto como significante e significado, mas também como
objeto de coerção social e de trocas sociais e econômicas, como político, social e
cultural. Nesse aspecto, tornam-se importantes relatos e vivências de mulheres de países
em desenvolvimento, oprimidas também por relações de poder estabelecidas através do
colonialismo.
Nesse contexto situa-se teóricas como Adrienne Rich, preocupada com a
localização do corpo e suas diferentes representações de poder em contextos
específicos. Para essa teórica o reconhecimento de marcas do corpo seja ele branco,
judeu, feminino, corresponde também à consciência das suas possibilidades de
mobilidade, ou seja, significa o reconhecimento de quais espaços esse corpo poderá
percorrer e a quais lugares ele não terá acesso por evidenciar suas características
identitárias, raciais etc., questões da maior relevância também quando se trata de corpos
mestiços ou negros, hierarquizados dentro de um sistema de poder específico. (RICH,
2002, p. 20)
No que diz respeito aos estudos sobre sexualiade, Parker observa a sua evolução
nos campos da antropologia social e em algumas disciplinas das ciências sociais desde
1980. Ele aponta que a necessidade de estudar a sexualidade tem crescido em
decorrência de movimentos políticos feministas e da preocupação com a saúde
reprodutiva e sexual. Parker discorre sobre a vasta produção vinculada ao
construtivismo social, que tem associado cada vez mais a sexualidade às questões de
poder numa tentativa de ultrapassar os limites teóricos das abordagens culturais sobre a
sexualidade, articulando o construtivismo social com a economia política. (PARKER,
2001)
Mais recentemente, a literatura a respeito da sexualidade reconhece os impactos
do colonialismo e do neo-colonialismo em contextos de poder nos quais as sexualidades
são moldadas. Esses estudos ressaltam que as noções de sexualidade e desejo estão
atreladas a uma mentalidade colonialista, o que em alguma medida se relaciona com a
busca de status associado ao poder de sedução. Em outras palavras, as pessoas que não
correspondem a um tipo físico e social específico estariam em desvantagem na corrida
afetiva e sexual, o que explica, por exemplo, a necessidade de estar na moda, de se
mostrar ativo dentro do sistema capitalista.
Por outro lado, a representação das funkeiras que correspondem ao padrão de
beleza específico da mulher mestiça, que assumem suas preferências sexuais e estão
disponíveis sexualmente, acabam por se tornar objeto de desejo sexual, mas não são
levadas para outro lugar além da cama. Isso porque a beleza, a disponibilidade sexual e
a sua atitude em relação ao sexo acaba por romper a possibilidade de controle dos seus
corpos2. E como a masculinidade também é regulada também pelo controle que os

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Comentários sobre Mulher Filé, vídeo veiculado no youtube:
a) nescau17- gostosa pra caralho mas tem uma cara de vagabunda vei.. só presta pra fuder mesmo, que
nem o cara lá falou. b) new2order – Delícia de mulher, mas é muito vadia, só serve pra trepar gostoso. Ela
deve ser tão burra quando uma porta kkkkk. c) ravenaotaku – que escroto, mais uma puta pra manchar a
reputação das brasileiras. (AMORIM, 2009, p. 124)
homens exercem sobre o corpo feminino, eles não desejam namoradas ou esposas que
tenham uma postura liberal em relação ao corpo e ao sexo. (AMORIM, 2009, p. 124)
Para as funkeiras, esse comportamento em relação ao sexo representa um novo
modo de assumir uma posição sedutora e dominadora sobre o homem. Em geral, a
mulher representada nas canções e nas performances do funk carioca seduz, domina o
parceiro por sua beleza, pela representação assumida (auxiliada pela vestimenta) e pela
dança executada no palco. É através do corpo, do artifício e da sedução que se configura
a relação de poder entre esses homens e mulheres. Nesse contexto, a funkeira é livre
para dizer o que espera do sexo, do seu parceiro, para desafiar a sua virilidade numa
espécie de jogo sexual.
No entanto, ao se comportar como deseja, em relação ao sexo, a funkeira
também se comporta como os homens e como a sociedade capitalista deseja, uma vez
que o erotismo e a nudez são apropriados por um mercado lucrativo. Para Tati Quebra-
Barraco, toda essa representação da mulher funkeira não passa de uma brincadeira com
a condição de objeto delegada à mulher e também de uma crítica à hipocrisia da
sociedade a respeito do sexo. (AMORIM, 2009, p. 144) De fato, funkeiras como
Valesca Popozuda se apresentam em seus shows como objeto do desejo sexual
masculino, inclusive abordando homens na plateia e lhes perguntando: “Você quer me
comer? Você quer me comer de quatro?”3 E a resposta é nenhuma, intimidados eles
riem.

Bibliografia

AMORIM, Márcia Fonseca. O discurso da e sobre a mulher no funk brasileiro de


cunho erótico: uma proposta de análise do universo sexual feminino. 2009. 188f. Tese
(Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. Disponível em: <
> Acesso em: 11 jan. 2013.

ESSINGER, Silvio. Batidão: uma história do funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.

FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREIRE, Gilberto. Características gerais da colonização portuguesa no Brasil:


formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. In: FREIRE, Gilberto. Casa
Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992.

3
Performance da Valesca Popozuda em show realizado em Florianópolis.
GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu. Campinas, v. 14, 2000.

LOURO, Guacira Lopes (org). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

MIZRAHI, Mylene. Estética funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra.


2010. 268f. Tese (Doutorado)-Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2010. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~ppgsa/doutorado_teses.html >. Acesso
em: 15 set. 2011.

RICH, Adrienne. Notas para uma política da localização. In: MACEDO, Ana Gabriela
(org). Gênero, desejo e identidade. Lisboa: Cotovia, 2002.

SPIRITO SANTO. Do samba ao funk do Jorjão. Petrópolis, KBR, 2011.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 2002.

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