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AS ARTES
ARTES
AS ARTES
AS ARTES
DO
DO COVER
COVER
DO COVER
DO COVER
Performance para além
da cópia e do original
HENRIQUE SAIDEL
COLEÇÃO
COLEÇÃO
COLEÇÃO
TRANSVERSÕES
COLEÇÃO
TRANSVERSÕES
TRANSVERSÕES
TRANSVERSÕES
A coleção Transversões pretende reunir e trazer a público obras
de jovens acadêmicos que se destacam ao mesmo tempo pelo
rigor conceitual e pelo desrespeito à excessiva pureza discipli-
nar das nossas instituições de pesquisa e ensino. “Transversão”
é um neologismo inspirado na ambiguidade do prefixo “trans”,
que indica tanto um movimento de “ir além” como de “ser atra-
vessado por”. A cultura, tal qual a conhecemos no Ocidente,
tem se pautado por diversas dicotomias hierárquicas de valores,
tais como ser x devir, mente x corpo, sujeito x objeto, mesmo x
outro, indivíduo x sociedade, homem x animal, masculino
x feminino etc. Essas dicotomias costumam se apresentar na
forma de “versões” ou de “inversões”. Chamamos de “versões” as
hierarquias mais tradicionais, aquelas que costumam privilegiar
o idêntico em detrimento do diferente. “Inversões”, por outro
lado, representam as diversas tentativas históricas de superar
essas hierarquias tradicionais pela reação ou reversão dos polos,
frequentemente sem questionar a dicotomia ou a hierarquia ine-
rentes a elas mesmas. Inversões carregam consigo o potencial
de desestabilização das hierarquias, mas comportam também o
risco de prolongá-las e até mesmo de aprofundá-las. A nosso
ver, o movimento pendular de versões e inversões, que carac-
teriza uma tendência do pensamento moderno e vanguardista,
determina previamente o horizonte da cultura, criando muitas
vezes dilemas existenciais, estéticos e políticos impossíveis de
serem resolvidos. A filosofia pop, alinhada às pesquisas contem-
porâneas, evita solucionar as tensões e impasses da atualidade
através de meras inversões ou de sínteses reconciliadoras. A filo-
sofia pop tem como projeto propor transversões das dicotomias e
das hierarquias, ou seja, estratégias de pensar/agir/sentir/ima-
ginar capazes de desconstruir, tanto na vida acadêmica quanto
na cotidiana, o caráter essencializante da noção de “disciplina”,
que continua a nortear, ainda que implicitamente, nossos dis-
cursos, nossas práticas e, principalmente, nossas instituições.
Nesse contexto, a coleção Transversões oferece um espaço de
liberdade para o pensamento que não apenas respeita a comple-
xidade, a diversidade e a pluralidade dos saberes, como também
se deixa atravessar ou hibridizar por essas diferenças, explo-
rando as fronteiras do popular e do erudito, do artístico e do
científico, do político e do tecnológico.
REFERÊNCIAS 329
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
Talvez a parte mais difícil de escrever, em um livro, seja o
começo. Afinal, como iniciar uma conversa? Como quebrar o gelo
entre duas pessoas que não se conhecem (ou será que a gente
já se conhece de algum lugar?)? Como apresentar uma pesquisa
que se desenrolou por tantos caminhos, recortados, agora, em
um sumário fechado? Talvez seja por isso que eu, curitibano
desconfiado, tenha começado este texto assim, de viés. E é dessa
maneira, meio sério, meio irônico, meio metalinguístico, que
convido você para conversar sobre um assunto que há tempos
me instiga.
Pois bem: este livro é a nova roupagem da pesquisa de dou-
torado que realizei no Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), entre 2012 e 2016, com orientação do professor Char-
les Feitosa1. E o assunto é o seguinte: a pesquisa trata de artistas
cover. Sim, o ponto de partida é o olhar para os artistas cover,
aqueles artistas que imitam/copiam/se parecem intencional-
mente com outros artistas. Uma imitação, uma cópia levada às
últimas consequências e que acaba por causar um curto-circuito
(de identidade, de autenticidade, de originalidade) tanto em
quem faz quanto em quem testemunha.
O universo da arte já está acostumado a uma multidão de
artistas que se esmeram em copiar outros artistas – famosos,
normalmente. Homenagem, tributo, elogio, ironia, deboche.
Graus do cover: da versão pessoal de músicas alheias à imitação
implacável de todo um ser-artista em ato. A reprodução obses-
siva de um modelo identificável. Reprodução de identidades e
identificações. No cover de último grau, a mímesis é levada ao
16 Transversões
foram e são tema de diversos programas de televisão, atestando
o interesse e a relevância de sua prática na cultura pop contem-
porânea. Alguns exemplos são os programas Covernation (MTV
Brasil), Máquina da Fama (SBT), Sosie! Or not sosie? (TF1) e Un
air de star (M6) – só para citar apenas alguns dos mais recentes,
dois no Brasil e dois na França, respectivamente. E há muito
mais além disso. O cover é sempre muito mais.
No circuito das artes visuais contemporâneas o cover pode
ser visto, também, como agente potencializador de certas ques-
tões caras aos tempos atuais. Para o curador Fernando Oliva,
responsável pela exposição COVER = reencenação + repetição,
realizada no MAM-SP, em 2008, o cover é ferramenta utilizada
sistematicamente pela arte contemporânea. O enfoque dado na
exposição foi a reencenação de obras e performances por outros
artistas, deslocando e reavivando, em novos contextos, as situa-
ções propostas pelas obras originais.
As artes do cover 17
Laura Lima, assume vivid astro focus (avaf), coletivo Abravana-
tion, Daragh Reeves, Jorgen Leth e Lars von Trier, dentre outros
– apresentaram diversas formas de reencenação onde a ironia é
uma das principais marcas. No mesmo caminho, o italiano Marco
Senaldi, em seu artigo “Cover Theory” (2006), demonstra como
a arte contemporânea pode ser vista como uma constante rein-
terpretação de obras, num continuum de apropriações e reapro-
priações, colagens e mixagens. Se a memória do original aparece
insistentemente, ela surge como memória reeditada, reformu-
lada e tendenciosa (como toda memória, aliás). A obra original
desvanece na atualidade da reencenação, do cover – convertido,
agora, em original. Metalinguagem prestidigitadora.
Importante é pensar sobre um dos aspectos do processo
deflagrado pelo cover, uma certa pulga que fica atrás da orelha
quando pensamos em um artista que copia outro com tama-
nha habilidade e comprometimento, a ponto de se confundir
com ele: quem é o cover? O cover é quem? Quem é o original?
Quem é a cópia? É possível mesmo sempre identificar e separar
original e cópia, numa relação de causalidade unidirecional? É,
de fato, relevante identificar e separar original e cópia? Afinal,
o que define a originalidade de uma obra ou de um artista?
Quem é o autor daquela obra e/ou daquela performance? Como
preservar a autoria de uma obra quando o próprio artista não é
(como ninguém o é, aliás) o único autor de si mesmo? E mais:
eu, enquanto artista, enquanto pessoa, sou, de fato, original?
Reverberando Foucault e Rolnik: se o próprio sujeito é fruto
difuso do constante atravessamento de fluxos determinados
pelas relações de poder, se toda noção de identidade demar-
18 Transversões
cada pelos limites dentro/fora não passa de anestesiamento e
enrijecimento da vibratibilidade e da porosidade do corpo, se
o Eu só pode ser tomado em relação ao Outro que também o
constitui, então qualquer busca por uma originalidade, por uma
autoria única, por uma propriedade identitária está fadada ao
insucesso, ou – ainda pior – a servir de instrumento de autoilu-
são e/ou manipulação das multiplicidades da subjetividade do
outro, artista ou não.
Falar sobre cover também evoca um outro tema recorrente na
arte: o duplo. A literatura do século XIX e XX é pródiga nesse
aspecto: O homem de areia, de Hoffmann; O médico e o monstro,
de Stevenson; A sombra, de Andersen; William Wilson, de Poe; O
retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde; O duplo, de Dostoiévski;
“O horla”, de Guy de Maupassant; Frankenstein, de Mary Shelley;
“O duplo” (em O livro dos seres imaginários), de Jorge Luis Bor-
ges; O homem duplicado, de José Saramago. O cinema também
não fica atrás: Blade Runner, de Ridley Scott; O exterminador
do futuro e Avatar, de James Cameron; Matrix, de Lana e Andy
Wachowski, dentre outros. Explorado abundantemente pela psi-
canálise, o duplo coloca-se como um outro de si mesmo, reflexo
no espelho, sombra, decalque. Sinistro: o duplo é um Outro que
não é nada além do Eu mesmo tornado estranho, duplicação mis-
teriosa que evidencia o desconhecido. Identidade e alteridade
são confundidas em um ser que não é nem interior nem exterior,
nem próximo nem distante, nem vivo nem morto (COUY, 2009).
O cover também é um duplo: um duplo do artista, um duplo do
criador, um duplo do original. Um duplo com vida e atuação pró-
prias. No entanto, traçar toda a relação entre o cover e o duplo
As artes do cover 19
é um trabalho que não caberia nesta pesquisa, ultrapassando
suas possibilidades e objetivos. Há que se fazer um recorte. E, no
recorte proposto, o cover assume-se como mais uma das mani-
festações do duplo – ao lado dos doppelgänger, dos sósias, dos
gêmeos, dos bonecos, dos autômatos, dos robôs, dos androides,
das máscaras, dos reflexos, das sombras e dos fantasmas. Uma
manifestação contemporânea do duplo, um duplo pop. O cover
é o duplo do pop.
A principal hipótese deste livro, portanto, é que a utilização
crítica e irônica do cover como estratégia de subjetivação e cria-
ção artística pode contribuir para a instauração de uma cena,
de uma performance expandida, presentificada, corporificada –
uma performance do cover, um cover performático, inscrito nos
corpos e nas relações de todos os seres envolvidos (humanos ou
não). O cover surge, então, como motor e combustível de uma
criação artística engajada na problematização de toda origina-
lidade monolítica, no esfacelamento das fronteiras entre bom
gosto e mau gosto, no questionamento identitário de si e dos
outros, como forma de atuação artística e política no mundo
contemporâneo. Eis a máquina do cover, autoimplosiva e pul-
sante tal qual o Hamletmáquina de Heiner Müller: covermáquina.
Nessa performance, não existiriam hierarquias entre origi-
nal/cópia, verdadeiro/falso, vivo/inanimado, presença/ausên-
cia. Na falta de um nome melhor, chamarei esta proposta de
cover performático, ou – como explicarei melhor mais tarde –
cover performático de si mesmo. A investigação em torno desta
hipótese pretende gerar propostas para artistas múltiplos que
criam/atuam/dirigem a cena, e também são criados/atuados/
20 Transversões
dirigidos por ela: pensamento e ação cênicos e performáticos
que não se encerram na dualidade criador/criatura.
O objetivo é, a partir da observação contextualizada de artis-
tas cover em ação (especialmente na música), extrair certos
conceitos e questões neles recorrentes, discuti-los e ampliá-los
com um olhar teórico transversal e transdisciplinar, para então
atentar para a sua ocorrência e sua potência dentro de obras
de performance art (ou de teatro performativo ou de dança ou
de qualquer outro híbrido monstruoso que dialogue com o con-
temporâneo). O intuito é gerar subsídios (teóricos, temáticos,
conceituais, de ação) para pesquisadores e criadores em arte que
tenham foco em questões de corporalidade, visualidade, identi-
dade e cultura pop.
Não há dúvidas: falar sobre cover é falar sobre cultura pop,
estando na cultura pop. E, para pensar sobre problemas pop,
nada melhor do que uma filosofia pop. Desenvolvida inicial-
mente por Charles Feitosa e outros pesquisadores da UNIRIO
e UFRJ, a filosofia pop empresta seu nome da obra de Gilles
Deleuze para, então, propor uma outra forma de refletir sobre
o mundo.
As artes do cover 21
“Pop” nada tinha a ver com a acepção corrente, que se aplica ao entrete-
nimento de caráter unidimensional, para consumo rápido e indolor. O que
estava em jogo era, acima de tudo, um agenciamento de motivos da cultura
de massa e da vida cotidiana para enriquecer as artes, colocando em xeque a
oposição entre as chamadas “alta” e “baixa” culturas. Revolver essa dicotomia
implica, por exemplo, a possibilidade de colocar na roda outros autores, assim
como outros temas, para além daqueles tidos como clássicos (FEITOSA, 2014).
22 Transversões
não tematizar e analisar o meu próprio trabalho como performer e
diretor de teatro, devo admitir que o meu olhar e a minha mão de
performer e encenador perpassa todo o texto. Performar a escrita,
encenar a pesquisa. O jogo é arriscado e as cartas estão lançadas.
Este trabalho aparece como uma continuidade (com algumas
rupturas) da minha trajetória como artista e pesquisador aca-
dêmico. Quando me solicitam uma pequena biografia, costumo
enviar isso: “Henrique Saidel é diretor de teatro, performer,
curador, professor, pesquisador e colecionador de brinquedos”.
Sou, antes de tudo, um artista. E, desde que comecei a fazer
teatro, venho nutrindo alguns interesses específicos que vêm
se transformando com o passar dos anos, seja em minhas cria-
ções teatrais e performáticas (com a Companhia Silenciosa2, com
outras parcerias ou de maneira solo), seja em minhas pesquisas
dentro do ambiente acadêmico: ironia, metalinguagem, cópia,
fake, simulacro, kitsch, verdadeiro, falso, vivo, inanimado, ero-
tismo, pornografia, diferença, masculinidades não normativas,
espaço público, cultura pop e política. Palavras soltas que aca-
bam por alinhavar e tecer uma rede pulsante de conexões con-
ceituais, estéticas e existenciais.
Falar sobre o cover, portanto, é também falar sobre mim. E
falar sobre mim é falar também sobre tudo aquilo que não é eu, é
falar sobre os outros, sobre os outros eus que me habitam. O cover
é o meu duplo, o meu outro. Eu sou o duplo do cover, o outro do
cover. Eu(s) e o(s) cover(s), juntos, escrevemos este livro.
Após esta breve apresentação, reitero o convite à leitura e
ao debate desta pesquisa. Que seja prazeroso e instigante para
você, assim como foi/é para mim. Boa leitura!
2. Grupo de teatro e afins formado por mim, Giorgia Conceição e Leonarda Glück, de 2002 a
2012, em Curitiba, Paraná.
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO UM
AS SUPERFÍCIES
CAPÍTULO UM DO COVER
AS SUPERFÍCIES
CAPÍTULO UM DO COVER
AS SUPERFÍCIES DO COVER
AS SUPERFÍCIES DO COVER
COVER: TERMINOLOGIAS E TRADUÇÕES
Laerte
As artes do cover 25
(uma pessoa) para impedi-la de se mover ou escapar. 7) Gravar ou executar uma
nova versão de (uma música) originalmente executada por outra pessoa. 8) (De
um animal macho, especialmente um garanhão) copular com (um animal fêmea).
9) Bridge: Jogar uma carta mais alta sobre (uma carta alta), em um truque; blefe.
26 Transversões
art designa o ramo das artes gráficas que cria tais produtos. Já na
música popular, cover version, cover music ou simplesmente cover, é
uma nova versão de uma música conhecida ou não, criada e gravada
anteriormente por outro artista. Cover artist é, assim, tanto o desig-
ner que cria capas de discos e outros produtos, quanto o músico que
interpreta canções compostas por outros artistas.
O cover surge ligado, também, a uma visualidade fugidia
que, ao mesmo tempo em que se mostra e se revela ao olhar,
também ilude esse olhar, invisibilizando algo que não quer ou
não pode ser visto, deslocando a atenção do olhar para aspectos
superficiais “coadjuvantes”. Uma espécie de isca, boi de pira-
nha, chamariz que garante a segurança daquilo que não quer ser
visto/apreendido. O objeto do cover pergunta: O que essa pele
esconde? O que está por baixo dela? O que está sendo protegido?
O que está sendo vestido (que corpo está sendo vestido)? O que
ou quem está sendo camuflado? A finalidade do cover indaga:
Por que proteger algo, para que esconder algo? De quem o cover
protege esse algo? E, afinal: realmente interessa saber o que ou
quem está por baixo do cover? Talvez sim, provavelmente não.
Os usos que se aproximam mais do objeto desta pesquisa são:
“Gravar ou executar uma nova versão (de uma música) origi-
nalmente executada por outra pessoa. […] Uma gravação ou
execução de uma canção previamente gravada por um outro
artista”. No universo da música, esta é a definição predominante
do termo cover (mesmo em português). Percebido isso, um pas-
seio contextual pela teoria musical se mostra necessário. Con-
tudo, como não se trata de uma pesquisa na área de música,
esse panorama será apenas introdutório. Por que usar a mesma
As artes do cover 27
palavra para falar de capa, cobertura, esconderijo, proteção, e
também de uma nova versão de uma música preexistente? O que
essa nova versão cobre ou esconde? O que ela protege? O que ela
mostra e o que ela invisibiliza? E por que ela faz isso?
É importante perceber que todos os usos da palavra cover
remetem, simultaneamente, a um certo tipo de presença e a
um certo tipo de ação, sendo que ambos se estabelecem a par-
tir de uma relação que pressupõe a existência de um outro e
sua consequente transformação. Há sempre algo materialmente
presente – seja um lugar, uma roupa, uma imagem, uma capa
de papel, uma apólice de seguro, uma quantia em dinheiro,
uma cobertura vegetal, uma canção – que intervém e modifica
o estado de outro algo igualmente presente – seja uma pessoa,
um livro, uma fuga, um pedaço de terra, uma dívida, uma can-
ção. E há sempre uma ação realizada a partir do outro e para o
outro – seja escondê-lo, camuflá-lo, protegê-lo, garantir a ele o
cumprimento de alguma promessa, suplantar uma aposta sua,
transformar e regravar uma canção sua – que também acaba
por modificá-lo. Fica implícita, assim, uma certa anterioridade,
uma cronologia linear que estabelece a existência prévia de um
objeto que será posteriormente acionado e transformado pela
ação do cover. Resta saber se essa cronologia tão previsível
e unidirecional é aplicável e necessária em todos os casos de
cover, especialmente os descritos e analisados neste trabalho.
Curioso é ver que, na terminologia inglesa, o cover musical
não se remete completamente ao que nós, no Brasil, chamamos
de cover. Em inglês, cover é toda e qualquer interpretação ou
regravação de uma música já criada e gravada por outra pessoa,
28 Transversões
bem como a ação de interpretar e regravar a tal música. Não
estão incluídas, aí, aquelas pessoas que imitam e personificam/
corporificam em si uma outra pessoa, ou melhor, as aparências
e os padrões de uma outra pessoa ou de outras pessoas. Um
cover artist musical não precisa se parecer com o artista que
cantou a mesma música antes dele: o cover do inglês não assume
uma visualidade e um comportamento específicos. O que está
em jogo, antes de tudo, é uma relação de autoria (coautoria, não
autoria) estritamente musical.
Afastando-se um pouco da ideia primeira de cobertura, o
termo anglófono que corresponde ao que chamamos, no Bra-
sil e neste livro, de artista cover, é o vocábulo impersonator.
Para o mesmo dicionário, o significado de impersonator é:
“Uma pessoa que finge ser outra pessoa por entretenimento
ou fraude”. Um impersonator pode ser um cover artist, mas não
necessariamente. Assim como um cover artist pode ser, eventu-
almente, um impersonator. Para além da atuação delimitada do
cover artist, o impersonator traz explicitamente a ideia de fin-
gimento, simulação, uma ação deliberada com fins específicos,
sejam eles artísticos e/ou fraudulentos. Uma simulação que
parte de uma visualidade encarnada, corporificada: este é o
ponto de virada do impersonator em relação ao cover, ao incluir
no jogo o seu próprio corpo, seus comportamentos e suas rela-
ções com outras pessoas. Um personificador (arriscando uma
tradução direta e não usual do termo) está menos interessado
na música do que no “jeito de ser”, na identidade reconhe-
cível – e reconhecida – da pessoa que ele imita. O imperso-
nator é, ele próprio, uma nova versão da pessoa tida como
As artes do cover 29
“original”, plasmando a corporalidade do outro em seu próprio
corpo. Atravessamentos de imagens e modos de ser que ultra-
passam questões musicais e inscrevem-se na carne e na iden-
tidade decalcada daquele que personifica, em si, o outro. Este
é o cover (no sentido brasileiro) que interessa nesta discussão.
O cover que se apropria do vocábulo cover para ir além dele:
despreocupado com traduções dicionarizadas, o cover brasileiro
não recusa seu berço musical, mas aceita em si outros verbos,
outras ações, outros corpos e materialidades.
Trata-se de uma ação performática que emerge – numa pri-
meira abordagem – da imitação, da mímesis, da cópia de um
outro preexistente. No entanto, essa relação de imitação e cópia
do impersonator é problemática, e não se permite reduzir ao
binômio original-cópia ou original-versão. Um exemplo disso é
uma derivação do mesmo termo: female impersonators, ou em
outras palavras, as drag queens – homens (e também mulhe-
res, etc.) que se apropriam performaticamente de características
tidas como femininas, em um contexto artístico ou de apresen-
tação pública. Quem a drag queen imita? O que a drag queen
imita? Um modelo cultural e socialmente reconhecido de femini-
lidade? É possível delimitar e identificar a origem desse modelo?
Nenhuma resposta é simples o suficiente, e qualquer tentativa
exige um mergulho e um estudo cuidadoso no universo drag –
drag queens, drag kings, crossdressers etc. –, atentando para
questões de gênero que abarcam um sem-número de situações,
vivências, sexualidades, performatividades, formas e modos de
existência3. Infelizmente, os limites metodológicos desta pes-
quisa não permitem tal aventura.
3. Para uma primeira aproximação com esse campo de discussão, indico alguns livros:
Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, de Judith Butler (2003);
Manifesto contrassexual, de Paul B. Preciado (2014); Teoria King Kong, de Virginie
Despentes (2016); Mother Camp: female impersonator in America, de Ester Newton (1979);
Drag: a history of female impersonation in performing arts, de Roger Baker (1995).
Continuo: se em inglês o termo correto para o artista cover
brasileiro é impersonator, em francês o termo utilizado é sosie. E
o perigo é cair em uma nova armadilha: a palavra sosie designa
tanto o que chamamos brasileiramente de cover, quanto o que
chamamos de sósia4 que o inglês, por sua vez, chama de lookalike).
O que determina a diferença é o contexto da frase, do raciocínio.
E, mesmo assim, a diferença não é assim tão óbvia. Em português,
utiliza-se a palavra sósia para fazer menção a duas pessoas que são
muito parecidas entre si e que não são irmãos gêmeos. No entanto,
tal similaridade não é intencional, ao menos não inicialmente:
alguém pode nascer ou tornar-se muito parecido com outra pes-
soa, mesmo sem conhecê-la, e mesmo sem querer que isso acon-
teça. Quando há intencionalidade no sósia, que trabalha para se
tornar cada vez mais parecido com alguma pessoa, ele ainda assim
não é chamado de cover, pois, por mais que seja muito parecido
visualmente, ele não necessariamente atua como tal, não assume
a atuação artística do imitado. Um cover de Elvis Presley não é
apenas parecido ou se veste como Elvis Presley, ele também canta
(ele performa) como Elvis Presley e talvez viva como Elvis Presley.
A língua francesa compreende essa diferença, mas opta
por não explicitá-la em duas palavras específicas. Para marcar
a separação entre um cover e um sósia, utiliza-se a expressão
sosie professionnel (sósia profissional), embora seja um termo
menos corriqueiro. O sosie do francês estabelece a intencio-
nalidade e o ofício como critérios de distinção, vinculados, de
um lado e de outro, ao fenômeno da semelhança perfeita. A
remuneração da atividade do sosie professionel, a partir de sua
atuação intencional e dedicadamente construída, aparece como
Cover. (câvar) s m+f (ingl) Diz-se do que tem semelhança com alguém ou
o copia de alguma forma: Apareceram covers de Madonna e Michel Jackson.
Adj Diz-se do indivíduo que é ou se faz sósia de alguém, geralmente para
alguma atividade profissional: Ouvi um Beatles cover interessante.
desfecho da peça, surpreendentemente, Anfitrião fica feliz em saber que sua esposa é
desejada por Zeus. O fruto do enlace carnal de Zeus e Alcmena é o herói Hércules. Fim da
peça. Com o sucesso da trama do espetáculo, retomada por Molière em 1668 na peça de
mesmo nome, o termo anfitrião passa a designar “aquele que recebe bem em casa”, e sósia
passa a designar uma “cópia humana perfeita”.
Para além do questionável esforço em incentivar uma pronún-
cia inglesa da palavra (“câvar”), é possível notar a mescla que
o cover brasileiro faz, invocando conceitos como semelhança,
cópia, referência, sósia e profissionalismo, dentro de um con-
texto prioritariamente musical. É possível usar a palavra cover
para designar uma reinterpretação ou regravação de uma música
de outrem, embora, nesse caso, sejam mais comum os termos
versão, regravação, interpretação. A palavra cover (música cover,
versão cover) fica mais atrelada àquelas versões/regravações
específicas que procuram ser fiéis aos arranjos “originais”. Em sua
pesquisa sobre os artistas cover da cena rock de Brasília, Paula
Oliveira estabelece: “Chamaremos de versão cover toda regrava-
ção de uma música composta anteriormente, que recebe ou não
arranjos diferenciados de outra banda ou artista, ou que tem sua
letra parodiada ou vertida para outra língua. […] Chamaremos
de cover toda execução, performance ou gravação de uma obra
em que se mantém a concepção original” (2011, p. 17 e 18).
Ao inserir-se no contexto musical e referir-se também às
reelaborações de canções, o cover brasileiro mantém o con-
texto do cover inglês, justificando a antropofagização do termo
e seu decorrente abrasileiramento fonético – “côver” ao invés
de “câvar”. Mas o cover brasileiro vai além e decide fagocitar
igualmente o impersonator: o cover é muito mais ligado àqueles
artistas que, em suas vidas, corpos e atuações, são semelhantes
e copiam mais ou menos profissionalmente outras pessoas – a
ponto de serem identificados não com seus nomes próprios, mas
com uma variação adjetiva do nome daquele que é copiado. O
foco principal desloca-se da música para a performance, para a
As artes do cover 33
ação física, para a visualidade, para o comportamento. Mais do
que um criador de novas versões de canções, o cover brasileiro
é um criador de novas versões de pessoas. É o encontro do cover
e do impersonator inglês com o sosie francês, ampliando os ter-
ritórios de existência desse ser cuja identidade não pertence
somente a si: uma identidade roubada, compartilhada e vivida
simultaneamente em diferentes corpos.
O cover brasileiro carrega a musicalidade e a técnica do cover
inglês, a semelhança corporificada do impersonator e a inten-
cionalidade e o profissionalismo do sosie. Normalmente, quando
alguém diz que viu um Roberto Carlos cover, imediatamente
pensa-se em alguém vestido com paletó azul ou branco, cabelo
comprido, andar hesitante, inclinando o pedestal do microfone,
dando uma risadinha específica enquanto distribui rosas verme-
lhas. Só depois de formada essa imagem é que o som cola-se nela
e, aí sim, temos o quadro completo. Antes de qualquer musica-
lidade, o cover é corpo, em toda sua materialidade e ação. Do
ponto de vista da musicologia, talvez a leitura desse fenômeno
seja diferente. No entanto, tratando-se de um olhar transversal
que tem seus pressupostos nas artes cênicas, a performance e a
atuação do cover são os principais pontos de análise.
34 Transversões
POR UMA CARTOGRAFIA DO COVER
Laerte
As artes do cover 35
materiais e comerciais. Luca Marconi, no artigo “Per una tipo-
logia e una storia delle cover” (2006), faz uma apresentação
geral e propõe uma classificação das possibilidades da prática
do cover – lembrando que, em italiano, a palavra cover é usada
com o mesmo sentido do inglês. Ou seja, nas próximas páginas,
a palavra cover surgirá mais com o sentido de música cover.
Logo de início, o autor vaticina aquele que é um dos con-
sensos entre os musicólogos: o termo cover é utilizado para
designar uma nova versão de uma gravação de música popular,
geralmente com o mesmo título de uma outra versão já exis-
tente. Estabelecido isso, é possível analisar o cover a partir de
dois parâmetros: 1) quanto ao contexto enunciativo: se é um
cover ao vivo; se é um cover através de um duplo, tendo como
suporte as mídias de reprodução fonográfica. E é esse último que
o autor privilegia em sua análise; 2) quanto ao tipo da versão
precedente: se é um cover por interpretante mnemônico, a partir
da lembrança de uma música já conhecida; se é um cover por
interpretante escrito, a partir de uma partitura; se é um cover por
um duplo, a partir de uma outra gravação já existente.
Marconi utiliza o termo réplica quase como um sinônimo para
versão ou cover. Réplica como cópia fiel, ser duplicado a partir de
um molde anterior e que não se confunde com o “original”. Ele
divide as diferentes formas de cover em várias categorias, extraí-
das de uma análise histórica da indústria fonográfica, em especial
nos Estados Unidos, dos anos 1920 aos dias atuais. A primeira
diz respeito às réplicas concorrentes em disponibilidade, surgi-
das entre 1920 e 1950, quando os registros em disco ainda eram
considerados inferiores às apresentações ao vivo: uma gravadora
36 Transversões
realiza uma nova versão que mantém os elementos da versão pre-
cedente – de outra gravadora, e que havia obtido sucesso com
um determinado tipo de público – e apresenta a sua versão a um
público similar sob sua influência. Uma nova versão que esconde,
que cobre a anterior. Um cover que mantém uma semelhança sig-
nificativa com seu modelo e eclipsa a versão precedente, tomando
o seu lugar (perante certas pessoas) e usufruindo do seu sucesso
já testado em outros grupos. As réplicas concorrentes em dispo-
nibilidade se esforçam para serem mais disponíveis e acessíveis
ao seu público cativo. Um público ávido por novidades, mas que
estava alheio ao sucesso da versão precedente. Não há ingenui-
dade: estratégias comerciais e de marketing dão a tônica do jogo
e determinam qual música será “coberta” pelo cover.
A segunda categoria contempla as réplicas concorrentes em
palatabilidade, desenvolvidas a partir de 1950: uma nova versão
que busca tornar a canção mais palatável e acessível estetica-
mente aos novos públicos e gostos. O reposicionamento, a des
e a recontextualização de uma canção através da alteração de
certos elementos é a característica da terceira categoria, que
inclui réplicas refuncionalizantes e réplicas reconfigurantes. O
principal exemplo da ação refuncionalizante expõe uma faceta
cruel e mal-intencionada do cover: o cover assume a função de
“embranquecer” a música negra, tornando-a mais aceitável e
legitimável, dentro de padrões culturais e comerciais historica-
mente racistas, dentre outros preconceitos: uma música cantada
por um negro, por mais que seja uma ótima música, não seria
aceita pela sociedade em geral (pelos “cidadãos de bem”), então
seria preciso fazer com que um branco a cantasse.
As artes do cover 37
Os casos mais clássicos são dos anos 1950, com Elvis Presley (o
branco que cantava músicas de negros) e outros artistas do início
do rock ‘n’ roll; mas é possível lembrar de outros casos, como o
das músicas de Bob Marley – que só foram consideradas relevan-
tes mundialmente depois de serem regravadas e divulgadas por Eric
Clapton e outros artistas brancos. O intuito desse cover é retirar a
canção (ou outro objeto artístico) de seu contexto inicial, filtrá-la
e recolocá-la, já comercialmente aceitável, em outro contexto mais
desejável. O cover como artifício de invisibilidade, como cobertura
que reafirma preconceitos e visões de mundo limitadas e limitantes,
como forma de usufruir de criações artísticas de outrem sem preci-
sar assumir as implicações sociais decorrentes da convivência direta
com esse outrem. O cover como apropriação cultural indevida.
Pode-se argumentar, em sentido oposto, que um exemplo
como as regravações de Eric Clapton das canções de Bob Mar-
ley mostra como esse cover pode tornar visível algo que estava
invisível. Isso também é verdade. No entanto, ao tornar visível
as canções do artista negro jamaicano, o artista branco europeu,
ao mesmo tempo em que o visibilizou para o resto do mundo,
também acabou por reforçar a ideia de que ele (Clapton), sim,
tinha o poder e o direito de tornar algo visível – escancarando,
paradoxalmente, um protagonismo compulsório e excludente
de difícil desconstrução (mesmo que as intenções do músico
britânico tenham sido boas). Por mais naïf que possa parecer,
nenhum cover é completamente inocente. E ele nos diz, como
quem não quer nada: aqui, ninguém é santo.
No mesmo raciocínio, chamam-se réplicas reconfigurantes
aquelas versões que substituem elementos de um gênero musi-
38 Transversões
cal por elementos de outro gênero, reconfigurando a canção
para inseri-la em um outro nicho de fruidores. Uma canção ini-
cialmente composta como um samba pode ser regravada como
um rock ou funk. Esse procedimento é comum nas criações e
recriações no universo da música (e da arte) popular, sendo um
dos principais geradores de versões e apropriações artísticas. Os
objetivos dessa tradução de um gênero para o outro podem ser
inúmeros, sendo o principal deles a satisfação de um novo nicho
de público que não teria (ou não desejaria ter) acesso àquela
obra, por conta de seu gênero e contexto iniciais.
A quarta categoria é ocupada pelas réplicas dialogantes, paró-
dias que mantém boa parte dos elementos da versão precedente,
mas alteram sua letra e “respondem” ao que foi dito pela versão
referida. A cobertura do cover se pretende mais transparente e não
esconde nem anula aquilo que está coberto, fazendo com que a
própria ideia de cobertura seja revista: em um diálogo onde todos
os interlocutores têm voz, torna-se mais difícil determinar quem
cobre quem, quem esconde quem, quem protege quem. O cover
como cópia que se assume como tal e, ao fazer isso, ganha status
de ser falante e igualmente protagonista de uma polifonia maior.
A referência explícita à versão precedente surge como exercício
metalinguístico que escancara o jogo de referências e ironiza o
próprio esforço em ser “original”. O cover como criatura que ques-
tiona e desafia o seu criador, como lugar de fala que legitima uma
autoria outra: um autoria não fixa, deslizante e cambiável.
Desenvolvendo-se com mais força a partir dos anos 1960,
com o revival da música folk norte-americana, a quinta cate-
goria inclui as réplicas divulgadoras. O folk revival surge com o
As artes do cover 39
intuito de resgatar valores de originalidade e autenticidade que,
na opinião de alguns artistas, estavam sendo perdidos com o
advento da cultura de massas. Para reafirmar os ideais do folk,
os artistas do folk revival reinterpretam canções do folk, com o
objetivo de divulgar as músicas e os valores ligados a estas. A
noção de homenagem e de divulgação de um artista visto como
importante e emblemático é um dos principais motores do cover.
Ao copiar a canção (e/ou outros elementos do artista modelo), o
cover presta sua homenagem ao ídolo e divulga sua obra. Cantar
músicas de Roberto Carlos é divulgar a obra de Roberto Carlos.
Ser o cover de Roberto Carlos é divulgar o próprio Roberto Carlos.
Na sexta categoria, aparece uma nova terminologia: metaco-
ver. Por metacover, entende-se as situações nas quais um artista
regrava canções criadas e gravadas anteriormente por ele mesmo,
com o objetivo de requalificar a obra e encaixá-la em novas rou-
pagens determinadas pela moda e pela indústria do momento.
Um cover de si mesmo que reelabora sua própria criação para
atender a novas exigências, pessoais ou externas, sejam elas
artísticas, sociais ou comerciais. Embora Marconi chame aten-
ção ao caráter mercadológico e oportunista do metacover, esse
procedimento de autorreferência e metalinguagem coloca a obra
em estado permanente de mudança e plasticidade. Uma cópia
que copia a si mesma e, ao copiar-se, reinventa-se. A reinvenção
pela repetição. Repetição que só se repete na medida em que se
torna diferente.
A sétima categoria é batizada de cover estereofônico e, assim
como as réplicas dialogantes, refere-se a novas versões criadas
justamente para serem comparadas às versões precedentes. Uma
40 Transversões
não existe (ou não importa) sem a outra. Representante do que
Marconi chama de pós-modernismo (a partir dos anos 1980), o
cover estereofônico estabelece diálogos com seus antecessores,
sem necessariamente “responder” de forma direta à letra da
versão anterior.
Encerrando a sua longa tipologia, Marconi fala de cover por
monomaníacos nostálgicos e remake do-it-yourself. Nessa última
categoria, os agentes não são tanto os artistas, mas sim os fãs
que se dedicam vivamente a colecionar e construir um mundo
próprio, formado por elementos que remetem aos artistas e
obras admirados; colecionismo que pesquisa e recolhe todo e
qualquer material que mencione o artista, numa tentativa de
aproximação extrema, de estar sempre e cada vez mais próximo
e íntimo do objeto de desejo. E, nesse momento, a teoria de
Marconi fala rápida e especificamente do objeto desta pesquisa
– bandas cover e bandas tributo. O autor diferencia bandas cover
e bandas tributo: enquanto as primeiras tocam versões cover de
vários artistas, as segundas dedicam-se exclusivamente a uma
banda ou artista específico. Não é à toa que a palavra tributo é
utilizada para designar pessoas ou grupos que se dedicam minu-
ciosamente a copiar um só artista – copiar, aqui, é homenagear,
reverenciar, consagrar algo que se ama, demonstrar toda a gra-
tidão que se sente por alguém, dar-se de presente para o ídolo.
O cover paga, com gosto, o tributo ao artista admirado. O cover
como dívida de gratidão, como retribuição pública àquele que se
considera digno de reverência. O cover como amor.
As bandas tributo são também algo a ser colecionado. Apre-
sentando-se como intermediárias entre os artistas “originais” e
As artes do cover 41
o público fanático, elas colecionam elementos e são, ao mesmo
tempo, objeto de coleção. Fazer parte de uma banda cover ou
ser um artista cover/impersonator/sosie é também uma forma
de colecionar em si mesmo elementos do artista admirado. Se
a última categoria de Marconi fala da ampla possibilidade que
qualquer pessoa tem de fazer, ela mesma, réplicas das obras
desejadas, então o ato de ser um artista cover é mais uma destas
possibilidades. Juntamente com práticas contemporâneas como
remixes, mashups, arranjos computadorizados, performances
em karaokês e outros procedimentos do-it-yourself da cultura
popular, o cover/impersonator/sosie também é tecnologia de
apropriação e criação. Tecnologia inscrita no corpo, na imagem
corporificada, na subjetividade de uma pessoa que acolhe e
repercute em si o objeto admirado.
A história da música popular brasileira é pródiga em casos
que podem ser considerados exemplos de cover. André Barcinski,
no livro Pavões misteriosos – 1974-1983: a explosão da música
pop no Brasil (2014), traça um panorama histórico da indús-
tria fonográfica em um período bastante interessante da música
feita no país. O primeiro momento onde a ideia de cover pode
ser constatada é o caso dos “ídolos fabricados”. Explicitando
a atuação contundente de produtores, empresários e de gran-
des gravadoras no cenário musical, Barcinski revela que vários
artistas brasileiros daquela época foram meticulosamente fabri-
cados pelas gravadoras antes de serem lançados no mercado,
como Sidney Magal, As Melindrosas, Gretchen etc. Além deles,
alguns grupos foram criados para serem versões brasileiras de
artistas estrangeiros de sucesso: “Em 1978, quando a inglesa
42 Transversões
Dee D. Jackson estourou no mundo todo com ‘Automatic Lover’,
a então produtora da gravadora RGE, Sônia Abreu, contratou
uma professora de ioga, Regina Shakti, para ser a Dee D. Jackson
brasileira. No clipe de ‘Automatic Lover’, a Dee D. Jackson ori-
ginal contracenava com um robô. Sônia mandou fazer um robô
igualzinho ao do clipe” (BARCINSKI, 2014, p. 114). E, o mais
curioso: a demanda por shows da Dee D. Jackson brasileira era
tanta que Abreu contratou mais duas sósias, acompanhadas por
outros dois robôs.
Outro exemplo de versão brasileira é o grupo Brazilian Genghis
Khan, cópia tropical do grupo alemão de disco music Dschinghis
Khan, que ficou famoso, em 1979, com músicas que louvavam o
imperador mongol. Como os custos para trazer o Dschinghis Khan
para o Brasil eram muito elevados, a gravadora RGE optou por
criar um grupo próprio, que os imitavam: “O Brazilian Genghis
Khan, liderado pelo bailarino argentino Jorge Danel, começou
com versões em português de hits do grupo alemão, mas logo
partiu para um repertório próprio e estourou com a música infan-
til ‘Comer, comer’ (‘Comer, comer / comer, comer… / é o melhor
para poder crescer’)” (BARCINSKI, 2014, p. 115).
Ao citar esses artistas, Barcinski reúne vários elementos
caros à discussão sobre o cover. Primeiro, ele fala de artistas
cover que se dedicam exclusivamente a copiar seus modelos
estrangeiros para agradar um público já conquistado pelos artis-
tas originais. Instados por seus produtores, esses artistas ado-
tam metodologias criativas baseadas na cópia, na reprodução de
características de outrem. Sem vergonha de se assumirem como
“secundários”, eles se beneficiam do fato de serem clones e se
As artes do cover 43
aproveitam do sucesso já consolidado de outras pessoas: “Desde
que Elvis Presley se tornara famoso, em meados dos anos 1950,
produtores perceberam o potencial do mercado adolescente e
inventaram inúmeros clones de artistas de sucesso. Para cada
Elvis e Beatles, havia centenas de cópias” (BARCINSKI, 2014, p.
116). Se um Elvis ganha uma quantidade X de reconhecimento
e dinheiro, então dez Elvis ganham 10 X de reconhecimento e
dinheiro. Há uma multiplicação dos clones, teleguiados por um
objetivo muito evidente: repetir uma fórmula já testada para
obter os mesmos resultados dela. O cover como falsidade ideoló-
gica, como um impostor que toma o lugar de outra pessoa e que,
tal qual o Mercúrio-Sósia de Plauto, age no lugar daquele que é
imitado. O cover como parasita que se infiltra nas redes de vali-
dação e fruição artística e se alimenta do sucesso preexistente
do hospedeiro.
Visto por esse ângulo, o cover é aquele que pula etapas, que
não cria sua obra desde o início, rejeitando os primeiros e hesi-
tantes passos que costumam caracterizar um processo de cria-
ção em gestação, e apega-se a uma obra já em andamento, já
experimentada e aceita pelo público. O cover como trapaceiro,
aquele que rouba no jogo. O cover como preguiça, como falta de
capacidade ou de vontade de se fazer algo novo e mais pessoal.
No entanto, não se pode negar que há uma inteligência no ato
de copiar. Para se copiar algo, é necessário escolher bem o que
será copiado, é preciso analisar o contexto e perceber qual o
melhor e mais proveitoso modelo: pouco se ganhará copiando
um modelo fraco ou que não obtenha sucesso. Depois disso, há
que se prestar atenção na artesania da cópia: exige-se esmero,
44 Transversões
cuidado e precisão na construção e na manutenção do duplo,
mantendo-se um bom nível de qualidade e rigor técnico. Assim,
o cover não pula etapas, mas possui as suas próprias etapas a
serem cumpridas. As vicissitudes do cover não são as mesmas do
“original”. O sucesso da Dee D. Jackson brasileira é uma soma
complexa do sucesso prévio da Dee D. Jackson original com a
qualidade técnica e performática específica da dupla Regina e
Sônia (e também das outras duas duplas contratadas). O sucesso
do Brazilian Genghis Khan não se resume à versão em português
das canções alemãs e mostra-se em outros atributos dali decor-
rentes, como na canção inédita “Comer, comer” (que se tornou
um clássico da cultura popular brasileira).
O caso da Dee D. Jackson brasileira chama atenção para mais
um ponto: não havia uma só Dee D. Jackson brasileira, mas pelo
menos três. E poderia haver mais, como uma linha de montagem,
uma produção em série de clones. A pergunta é: as duplas con-
tratadas por Sônia Abreu eram covers da Dee D. Jackson ou eram
covers da Dee D. Jackson brasileira? Seriam elas covers do cover?
Qual é o original da cópia da Dee D. Jackson brasileira? É possí-
vel, ainda, falar de um (e apenas um) original? Quem é o modelo
de quem? Cover do cover do cover do cover: não há limites para a
cópia, que se retroalimenta constantemente. Simulacro que pres-
cinde de original (ao menos, um certo tipo de original, estático e
fundador), as múltiplas Dee D. Jackson brasileiras são cópias da
Dee D. Jackson e, ao mesmo tempo, cópias de si mesmas.
A mesma lógica pode ser observada no fenômeno da dupla
brasileira Patati Patatá: criada pelo empresário Rinaldi Faria na
década de 1990, a dupla de palhaços ficou famosa por cantar
As artes do cover 45
músicas infantis e por suas roupas e cabelos coloridos, lançando
diversos discos e participando de inúmeros programas de TV.
Solicitada para centenas de shows simultâneos em todo o Brasil,
a dupla original há tempos não dá conta de cumprir todos os
pedidos (e ganhar todos os cachês). A solução encontrada pelo
empresário foi contratar e recrutar outros artistas para serem,
eles também, Patati Patatá. Treinadas e supervisionadas direta-
mente por Faria, as duplas-clones seguem um rigoroso padrão de
qualidade, reproduzindo nos mínimos detalhes a criação origi-
nal: utilizam as mesmas roupas e maquiagem, cantam (dublam)
as mesmas canções, dançam as mesmas coreografias, falam
com os mesmos trejeitos vocais, gesticulam da mesma maneira,
cobram o mesmo cachê. Patati Patatá tornou-se uma marca, uma
quase-franquia do entretenimento infantil.
Patati Patatá são um exemplo atualizado da serialização que
Walter Benjamin apontou no início do século XX: na época da
reprodutibilidade técnica, não é possível identificar um origi-
nal e suas cópias, pois todas as cópias são também originais; o
original é múltiplo e indubitavelmente presente em sua própria
reprodução. Qual é o Patati original? Qual é o Patatá cópia? É
impossível e desnecessário saber. Patati Patatá não são apenas
dois palhaços cantando em um palco, eles são uma multidão
de cantores multiplicados ad infinitum – nascidos na e para a
onipresença –, existindo e performando em palcos também mul-
tiplicados ad infinitum. A repetição empreendida pelos palha-
ços-clones não permite a localização tranquila de uma origem
unívoca – todos são, ao mesmo tempo, cópias e originais, imer-
sos em um processo irreversível de (auto)simulação.
46 Transversões
Pode-se arriscar dizer que a dupla original de Patati Patatá
seja aquela imaginada por Faria, a partir da qual são moldadas
e avaliadas as duplas-clones por ele empresariadas. Esse argu-
mento, de caráter platônico, pode ter a sua validade, mas não dá
conta de todos os desdobramentos da questão. Aquilo que está
na imaginação do empresário não é Patati Patatá, mas apenas
um pensamento, um projeto, que não existe fora de seu lugar
imaginado. O Patati Patatá que interessa é aquela dupla-multi-
dão que percorre o país e que atua, concretamente, diante de
espectadores igualmente palpáveis. O cover não é somente um
pensamento, uma intenção, ele é uma concretude que se choca
e brinca com o mundo, uma corporalidade que toca e é tocada
por todos os corpos (como o índio de Caetano Veloso, “em pleno
corpo físico, em todo sólido, todo gás e todo líquido”). Corpo-
-multidão, Patati Patatá é cover do cover do cover do cover. E se
o “si mesmo” da dupla só existe enquanto múltiplo, então Patati
Patatá é também cover de si mesmo que é cover de si mesmo que
é cover de si mesmo.
O viés mercadológico dos exemplos acima compõe o universo
do cover. Em menor ou maior grau, a preocupação com “ganhar
dinheiro com isso” sempre está no horizonte de quem faz ou é
cover. O cover como estratégia de marketing, como nicho de mer-
cado a ser preenchido e capitalizado por artistas e produtores.
Estratégia baseada na grande receptividade que os artistas cover
têm em diversos segmentos da sociedade: o cover só existe se
existir um público que o queira e que pague (bem ou mal) por ele.
Outro caso descrito por Barcinski é o dos “falsos gringos”.
Em uma época na qual cantores internacionais alcançavam um
As artes do cover 47
sucesso maior e mais rápido do que cantores nacionais, surgiram
diversos artistas brasileiros que fingiam ser estrangeiros, ado-
tando pseudônimos e cantando em inglês. Para o público e para
a imprensa, eles eram apresentados como autênticos artistas de
fora do país, que lançavam suas músicas aqui. O sucesso era
praticamente certo.
De todos os falsos gringos, o mais famoso foi o carioca Maurício Alberto Kai-
serman. […] No início da década de 1970, passou alguns anos estudando nos
Estados Unidos. Quando retornou ao Rio de Janeiro, tentou a carreira de can-
tor, lançando músicas em português com seu nome verdadeiro e, em inglês,
com o pseudônimo de Morris Albert. Em 1974, Albert lançou pela gravadora
Beverly o compacto de “Feelings”, uma balada romântica em inglês. […]
“Feelings” chegou ao sexto lugar na parada norte-americana, vendeu muito
na Europa e América Latina, foi cantada em shows por Frank Sinatra e gravada
por Nina Simone, Johnny Mathis e Ella Fitzgerald. […] Nos anos 1980, foi
acusado pelo compositor francês Loulou Gasté de ter plagiado a canção “Pour
toi”, lançada em 1957. O “gringo” brasileiro perdeu o processo (BARCINSKI,
2014, pp. 50-51).
48 Transversões
gua menor e de pouca credibilidade artística. Outro fator que
estimulava a gravação de músicas em inglês era o fato de que
canções estrangeiras não passavam pelo crivo do Departamento
de Censura do Regime Militar, evitando-se assim o risco de que
fossem proibidas e gerassem prejuízos às gravadoras.
Ambivalente e polêmico, o caso dos falsos gringos mostra
como, independente das suas motivações e objetivos, uma iden-
tidade pode ser fabricada. Dissimulação e simulação. Uma per-
formance “falsa” que cria artistas e obras reais. Para o público,
as canções eram efetivamente de artistas gringos: uma multi-
dão conheceu e fruiu suas canções, mas pouca gente conheceu
Maurício Alberto, quase ninguém sabe que Mark Davis e Uncle
Jack eram Fábio Jr., que Tony Stevens era Jessé, que Steven
MacLean era Hélio Costa Manso, que Michael Sullivan é Ivanilton
de Souza, que Dave D. Robinson era Dudu França. A falsidade
dos falsos gringos pode se aplicar à incompatibilidade de seus
nomes artísticos com os da carteira de identidade e também do
idioma das músicas com sua língua materna, mas não impede
que eles tenham existido de fato, enquanto gringos. Suas carrei-
ras estão aí para provar isso. O falso gringo é cover de um artista
inexistente que, ao ser copiado, passa a existir. Cobertura que
não cobre nada, o cover se cobre com roupagens e aparências
que não são de ninguém além dele mesmo.
Aproveitar o sucesso de artistas estrangeiros fazendo-se
passar por eles era prática comum na época: tal é a impostura
do pop, sempre criando e recriando, mandando às favas qual-
quer pretensão romântica de originalidade. Um exemplo des-
ses “impostores” é o cantor brasileiro Prini Lorez, lançado no
As artes do cover 49
mercado nacional pela RGE para se aproveitar do megassucesso
internacional do artista norte-americano Trini Lopez. Prini Lorez
cantava versões de todas as canções de Trini Lopez, gravando
discos extremamente similares, cuja única diferença perceptível
era o nome do cantor. Para cada lançamento de Trini Lopez nos
Estados Unidos, havia um lançamento de Prini Lorez no Brasil.
Pouco modesto, Prini costumava dizer que seus discos eram tão
bons quanto os de Trini. Muitas pessoas não sabiam que Trini e
Prini eram cantores diferentes – muito menos que Prini era uma
versão brasileira de Trini.
A confusão entre artistas nacionais e estrangeiros não é rari-
dade. Barcinski cita uma entrevista com Luiz Calanca, dono de
uma importante loja e gravadora paulistana, na qual o empre-
sário afirma que, na década de 1960, os discos estrangeiros
chegavam a demorar dois anos para serem lançados no Brasil.
Resultado: antes que o público brasileiro conhecesse as músi-
cas dos Beatles, por exemplo, a banda Renato & Seus Blue Caps
já fazia sucesso cantando versões em português das canções
dos meninos de Liverpool. E então, curiosamente, quando os
Beatles começaram a ser conhecidos por aqui, Calanca – e muita
gente além dele – achava que Renato & Seus Blue Caps eram os
originais e os Beatles eram os imitadores; assim como para a
juventude de Mafra, no interior de Santa Catarina (minha cidade
natal), os Beatles eram uma versão distante dos Atômicos5. A
temporalidade do cover não obedece integralmente às cronolo-
gias tradicionais. O cover subverte a linearidade dos aconteci-
mentos e instaura uma percepção peculiar que se volta priorita-
riamente para o presente, para aquilo que está acontecendo aqui
5. Ao longo da minha infância e adolescência, ouvi diversos relatos de minha mãe e suas
amigas sobre a popularidade e a originalidade dos Atômicos. E lembro-me que, tal qual
John e Paul, também o vocalista dos Atômicos, Odilon Herzer, era uma espécie de sex
symbol local, admirado e disputado pelas moças solteiras de Rio Negro, Mafra e outras
cidades. Coincidentemente, Odilon casou-se com uma prima do meu pai: o cover como
primo de terceiro grau, o cover como parente, como família que encontro no Natal.
e agora. Impostor debochado, o cover afirma que não importa
se os Beatles gravaram determinada canção antes de Renato &
Seus Blue Caps; o que importa é que, neste momento, para estas
pessoas, a tal canção é sim do grupo brasileiro.
Se um dos fatores que pode determinar a originalidade de
uma obra é o seu ineditismo, a sua anterioridade em relação a
eventuais cópias, então, na temporalidade brasileira dos anos
1960, os Beatles não eram assim tão originais. Irônico e bur-
lesco, o cover brinca com o conceito de ineditismo/anteriori-
dade e revela o quão relativa essa certeza pode ser. Como saber o
que veio antes? Talvez a resposta venha em forma de pergunta:
Para quem veio antes? O que veio antes para quem? Sempre
relativos e contextuais, o tempo e seus eventos não são iguais
para todos. Cada pessoa (ou grupo de pessoas) tem acesso a
determinadas informações em momentos e contextos diferen-
tes e cria para si uma cronologia específica, ordenando fatos,
informações, pensamentos, sensações e afetos num caleidoscó-
pio bastante particular. Se usarmos rigorosa e radicalmente o
critério da anterioridade e o aplicarmos ao caso mencionado por
Calanca, concluiremos (não sem um pequeno sorriso no canto da
boca) que os Beatles são covers britânicos de Renato & Seus Blue
Caps e também dos Atômicos. O cover como modelo do original.
O original como cópia do cover.
Não se trata de negar a História, mas de entender e acei-
tar seus lapsos, suas frestas escuras, seus pontos cegos, suas
subversões. O cover não é a-histórico – ele é, antes de tudo,
contextual: se ele emerge de uma certa linearidade e previsibi-
lidade, essa linearidade é mais problemática do que se poderia
As artes do cover 51
esperar, sendo determinada mais pelo olhar e pela subjetividade
do espectador do que pela narrativa jurídica dos fatos. É o espec-
tador, a partir do seu caleidoscópio de referências (que não são
determinadas apenas pela sua própria vontade), que define o
que é original e o que é cópia. Por um lado, o cover como algo
percebido, como algo ao qual se atribui valor a partir do olhar
do outro, do espectador. Por outro lado, o cover como discurso
de autopromoção de quem o faz, como disputa de poder e espaço
entre clones, engalfinhamento e puxada de tapete entre gêmeos
que querem ser considerados primogênitos.
Voraz e destemida, a indústria dos covers relatada em Pavões
misteriosos era capaz das mais mirabolantes estratégias, como
no caso de uma das mais profícuas bandas de estúdio brasilei-
ras, responsável pela gravação de cerca de cinquenta mil músi-
cas ao longo de vinte anos, e cujo nome não poderia ser mais
adequado: Os Carbonos. Capazes de imitar qualquer grupo ou
estilo musical e gravar versões assustadoramente semelhan-
tes às originais, Os Carbonos realizaram incontáveis discos de
covers, além de serem constantemente solicitados pelos mais
diversos artistas para tocarem em suas gravações – sendo que
muitas delas se tornaram grandes hits nacionais, como “Fee-
lings”, “Fuscão preto”, “Aonde a vaca vai o boi vai atrás” e “É o
amor”. Os Carbonos eram uma verdadeira máquina de covers e
contribuíram de forma contundente com as batalhas empreen-
didas entre as gravadoras pelo lançamento antecipado de suces-
sos. Assim como Renato & Seus Blue Caps, Os Carbonos faziam
versões antes que as músicas originais chegassem às lojas: “Raul
conta que os produtores subornavam os funcionários de outras
52 Transversões
gravadoras para mostrar ao grupo os acetatos (discos ‘modelo’,
que serviam de base para a prensagem de LPs) de futuros lan-
çamentos. Os Carbonos decoravam as músicas e corriam para
gravá-las no estúdio” (BARCINKSI, 2014, p. 143).
Trapaça, suborno, agilidade e qualidade técnica. Espiões a
serviço de sua majestade – a indústria fonográfica –, Os Carbo-
nos foram gênios da cópia, invisíveis e onipresentes, em uma
época na qual o pop se firmava como uma das grandes forças
culturais do país, através da multiplicação incessante de artistas
e obras. O grupo era formado pelos irmãos paulistanos Mario,
Beto e Raul Carezzato, que, antes de serem rebatizados pela gra-
vadora Beverly, chamavam-se Os Quentes. Detalhe inquietante:
Beto e Raul eram gêmeos não idênticos e eram sobrinhos dos
integrantes do grupo Os Trigêmeos Vocalistas (que fez sucesso
nas décadas de 1930 e 1940), formado também por dois gêmeos
e um irmão mais velho. O fantasma do gêmeo e do duplo sempre
ronda o cover. Duplos e múltiplos até em família, Os Carbonos
eram soldados de elite em uma batalha onde é difícil definir
quem é o vencedor. Batalha por mercado, lucro e aceitação de
um público ávido por novidades. O cover como campo de guerra,
como relação de poder.
É óbvio que, com as tecnologias atuais de gravação e distri-
buição, o acesso a músicas e obras é praticamente instantâneo,
via internet e outras mídias digitais. A velocidade de produção,
reprodução e fruição da obra artística é vertiginosamente maior
do que era nos anos 1960, fazendo com que o compartilhamento
de informações e obras aconteça de forma consistente e relati-
vamente independente de gravadoras e afins. Provavelmente, em
As artes do cover 53
2019, Os Carbonos não seriam tão eficientes em seu empreendi-
mento artístico-comercial. No entanto, se os tempos são outros,
são outras as estratégias. Neste início do século XXI, após o
fim do monopólio das grandes gravadoras, precisaríamos não de
um Os Carbonos, mas de um Os Digitais, um Os Torrents, um Os
Streamings, um Os Youtubers. Ou melhor: precisaríamos de uma
(e já temos) Banda Djavú, de uma aparelhagem de tecnobrega,
de um DJ Cremoso, de um Daft Kumbya ou de qualquer pessoa
com um computador ou um celular minimamente equipado e
conectado à internet.
Outros aspectos do cover são abordados na pesquisa de Paula
Agrello Nunes Oliveira, intitulada “Cover: performance e iden-
tidade na música popular de Brasília” (2011), que se dedica à
análise de grupos brasilienses que fazem cover dos Beatles na
capital federal. A base do argumento de Oliveira defende que o
ato de copiar um artista admirado é uma comum e eficaz meto-
dologia de aprendizagem para músicos em começo de carreira. A
imitação e a cópia aparecem como estratégias de aprendizagem,
de treinamento e enquadramento dentro de determinada técnica
ou linguagem. O cover surge como processo de formação, de
autoformação, a partir da apropriação e da releitura de algo tido
como modelo, referência externa de comportamento. Repetição
que repete o já existente, o cover assume seu caráter secundá-
rio, derivativo. O artista que copia o mestre com a intenção de,
um dia, ele mesmo se tornar um mestre. O cover como aprendiz,
como aluno que decora e repete a lição querendo tirar nota dez
na prova: se o meu professor é bom e reconhecido, então, repetir
e difundir sua obra me fará tão bom e reconhecido quanto ele.
54 Transversões
O artista cover coloca-se em uma relação de inferioridade e
reverência diante do artista imitado. Majestade digna de honras
e louros, o artista imitado é um ser modelar que dita a conduta
dos seus súditos – não por acaso, alguns dos artistas que mais
inspiram artistas cover são conhecidos como reis – Elvis Pres-
ley, Michael Jackson, Roberto Carlos – ou rainhas – Tina Turner,
Madonna, Britney Spears, Rita Lee. O rei é original, e o original
é rei. Cortesão malicioso, o cover incorpora em si o clichê do rei
que dança e canta. A voz do cover repete a voz do rei, o corpo
do cover repete o corpo do rei. E é justamente essa repetição no
corpo da corte que coroa o corpo do rei: não há rei sem súditos,
não há original sem cópias. O original valida o cover? Ou o cover
valida o original? Seria a monarquia do original – com suas des-
póticas dinastias – o regime de governo mais desejável para a
arte do cover e, por extensão, para a criação artística em geral?
Repetir para aprender(-se), repetir para tornar(-se). Oliveira
tenta redimir o cover através de sua função pedagógica, pro-
fissionalizante. Acusado de inferioridade por conta de sua não
originalidade, de sua dependência criativa a um outro artista,
o artista cover tenta se justificar, dizendo: “Não! Essa é ape-
nas uma etapa da minha carreira. Eu só estou treinando para,
um dia, também ser artista de verdade!”. Mas o cover pre-
cisa mesmo ser redimido? O cover precisa mesmo se justificar
perante uma pretensa acusação de lesa-originalidade? A quem
interessa tal redenção?
Apoiando-se em fórmulas já conhecidas e testadas, o cover
xeroca o bilhete premiado da loteria do sucesso e vai, todo con-
tente, resgatar o seu prêmio. Seguindo sua própria metodologia
As artes do cover 55
técnica e criativa, o cover é um golpista ávido por recompensas:
“No caso do músico que pratica o cover, representar permite que
ele assuma um papel que não o pertence, com glórias e fama de
outra pessoa” (OLIVEIRA, 2011, p. 62). Filhote de chupim cho-
cado e alimentado pelo tico-tico, o cover colhe frutos plantados
por outrem. Mas não um outrem qualquer: um outrem que, via
repetição, torna-se ele mesmo; e ele mesmo torna-se outrem.
Um outrem de si mesmo. Um outrem em si mesmo. A glória e a
fama do cover são a glória e a fama do artista imitado. Mas não
só. Há uma glória e uma fama específicas em ser cover e nin-
guém há de negar que, sim, existem alguns covers melhores do
que outros, covers mais famosos do que outros. Há uma compe-
tência no cover que pertence só a ele, e não ao artista original.
Mesmo derivado, decalcado, o cover é dono de si mesmo – um si
mesmo difuso e maleável, mas, ainda assim, um si mesmo.
As motivações comerciais para tal atitude não podem ser des-
prezadas, afinal, os ecos de sucesso dos quais o cover se apro-
veita garantem a sua sobrevivência não só em termos artísticos,
como também em termos financeiros. Mas por que o público
paga para ver um artista cover? Que atração é essa, que poder
é esse que lota casas de shows, festas e outros espaços para
a apresentação de um artista que imita outro artista? Oliveira
arrisca: “O cover desperta sentimentos de nostalgia, possibili-
tando que o público retorne por alguns instantes a um tempo
que já passou. Ele é capaz de reunir pessoas com gostos pare-
cidos em torno de um mesmo propósito. Estas se identificam e
fazem parte da mesma ‘tribo’, pois reconhecem e apreciam o
mesmo repertório” (2011, p. 53).
56 Transversões
A nostalgia de um tempo que já passou é elemento importante
na constituição do cover. Esse resgate temporal pode se referir
ao tempo do artista imitado (trazendo para o tempo presente
alguém que já morreu ou que já não atua mais daquela forma) e
pode se referir ao tempo do espectador (trazendo para o tempo
presente sensações de situações vividas por ele e que se relacio-
nam com uma determinada canção ou artista). A temporalidade
do cover se congela em um vetor que se dirige ao passado. No
entanto, o vetor é de mão dupla: ao remeter o espectador a um
certo passado, o cover traz todos para o presente, repaginando as
pessoas, as obras e as situações reconstituídas. Nostalgia é algo
que se sente no presente. A nostalgia do cover é, entretanto, uma
nostalgia coletiva, compartilhada por um número considerável
de pessoas. Chamado de “tribo” por Oliveira, esse grupo semi-ho-
mogêneo de pessoas se une em um ritual espontâneo que celebra
o já conhecido e também a própria nostalgia pelo já conhecido.
Nesse ritual, o cover oferece-se como oferenda, festejando uma
admiração extrema com os fãs presentes. O cover como elemento
gregário de uma sociabilidade emergida do compartilhamento de
gostos e prazeres estéticos. O cover como cumplicidade.
Ao repetir o já conhecido, o cover constrói e reitera identi-
dades. Ao renunciar à sua própria identidade como artista ori-
ginal, o cover permite que o espectador se identifique com ele
e com os outros fãs. O espectador que “gosta daquela música de
sucesso simplesmente porque a conhece” é aquele que deseja
sempre o mesmo, que deseja afirmar-se e reafirmar-se sempre
igual – enquanto integrante de algum grupo, enquanto sujeito
social – a partir de uma obra que também se afirma e se rea-
As artes do cover 57
firma. A conexão e a cumplicidade entre pares configura o pró-
prio sujeito (um sujeito coletivo), que repete a si mesmo. Se,
para Oliveira, o artista cover se constitui como artista profissio-
nal imitando outros artistas, o espectador do cover se constitui
como espectador profissional (como fã) imitando outros espec-
tadores – e imitando, muitas vezes, o próprio artista.
Saindo (agora sim!) do campo da música e entrando defini-
tivamente no território do cover/impersonator/sosie, o artigo
“Gentlemen Still Prefer Blondes: The Persistent Presence of
Marilyn Monroe Impersonators”, da pesquisadora norte-ameri-
cana Amanda Sue Konkle (2008), aponta aspectos bastante per-
tinentes. Para os covers de Marilyn Monroe, por exemplo, o foco
não é mais a música ou canções regravadas, mas toda a cons-
trução imagética e comportamental empreendida pelo artista
cover, personificando em si a performance da atriz/modelo/can-
tora norte-americana. Marilyn é uma das figuras mais copiadas
e reproduzidas mundo afora, e o público desse tipo de cover é
ainda mais amplo, não se restringindo a espetáculos de música,
mas sendo também encontrado em festas e eventos comemora-
tivos em geral, além de programas de rádio e televisão, campa-
nhas publicitárias e apresentações artísticas. Marilyn está para
sempre viva – e será sempre desejada – no imaginário ocidental;
nada mais natural que ela se materialize de vez em quando, para
saudar mais efusivamente os seus fãs.
Konkle também se pergunta qual seria o motivo para que
tantas pessoas procurem por uma Marilyn Monroe cover e sua
resposta não é muito diferente da ensaiada por Oliveira: ao con-
tratar um cover para seus eventos, as pessoas estariam trazendo
58 Transversões
o passado de volta à vida, para então poder tocá-lo e interagir
com ele diretamente. Essa interação se dá de forma coletiva,
comunitária, em um grupo previamente formado a partir dos
mesmos interesses. Novamente, o cover como elemento agrega-
dor e compartilhável. Como máquina do tempo, como ressur-
reição de um cadáver querido que insiste em não estar mais
presente. O cover como médium que recebe o espírito do origi-
nal, trazendo-o novamente ao mundo material, permitindo que
os vivos conversem com o desencarnado. Psicografia inscrita no
corpo do imitador, o cover é uma porta para o além: talvez aí
resida um dos motivos para o assombro que, por vezes, ele causa
em sua audiência. Nada mais sedutor e assustador do que um
artista cover que imita seu modelo com perfeição. A perfeição
da semelhança. A perfeição da repetição que repete o espírito
de um original-entidade. O cover como fé. O cover como religião.
Símbolo de uma certa feminilidade, de uma certa sexualidade
exacerbada e provocadora, Marilyn Monroe foi, ao mesmo tempo,
um produto da indústria cultural que difundia padrões de com-
portamento feminino (cabelo, roupas, aparência corporal, o ar
angelical e quase ingênuo, sua disponibilidade ao desejo mascu-
lino) e também uma ameaça à tradicional família cristã (a pos-
tura sedutora, sempre pronta para o sexo, a beleza quase pueril
que fascinava de crianças a adultos, sua vida como amante ofi-
cial). No entanto, contratar uma Marilyn Monroe cover é fazer
referência a todo esse contexto “perigoso”, mas de maneira con-
trolada, filtrada. Todas as ameaças que a Marilyn original pode-
ria oferecer se perdem na viagem temporal que o cover realiza.
Mantendo uma distância de segurança em relação ao modelo
As artes do cover 59
imitado, o cover é uma imagem estandartizada e homogeneizada
(como o leite Longa Vida) que protege o público dos possíveis
perigos do original. O cover como neutralização de efeitos inde-
sejáveis, como controle da imprevisibilidade do artista.
Um dos aspectos do artigo de Konkle é a percepção das várias
camadas performativas implicadas em um cover de Marilyn: “É
importante lembrar que a própria Monroe era uma performance:
do seu cabelo à sua voz, passando por sua caminhada. Os covers
de Monroe [Monroe impersonators], então, personificam a per-
formance de Monroe, ao invés de Monroe como pessoa” (KONKLE,
2008, p. 104). Marilyn Monroe nunca existiu. Melhor: Marilyn
Monroe sempre existiu, mas não como pessoa, e sim como per-
formance, como ação. Construção artística milimetricamente
calculada e ostentada em ações, poses e imagens: tudo nela
é falso, tudo nela é superfície, tudo nela é cobertura. Marilyn
existe para mostrar que o artifício é a própria substância da vida
– e da morte. Performance que perpassa as dimensões arte-vida,
arte-comércio, arte-política, Marilyn é roupa que cobre Norma
Jeane Baker. Mas é roupa-cobertura que não se contenta com os
primeiros contatos: Marilyn perfura e atravessa Norma Jeane,
conduzindo sua vida, precipitando sua morte, administrando
seu espólio. Os perigos da performance. Norma Jeane performa
Marilyn ou Marilyn performa Norma Jeane? Pouco importa. O
que importa é perceber que Marilyn Monroe é um palimpsesto
performático com infindáveis camadas, é um ser em ato(s), e só
assim pode ser visto como algo a ser imitado. Dessa forma, uma
Marilyn Monroe cover performa a performance-Marilyn, assim
como a própria Marilyn performava a si mesma.
60 Transversões
Se nem a própria Marilyn dos anos 1950 pode ser chamada
de “original”, de “autêntica”, então uma Marilyn Monroe cover
dos anos 2010 não pode ser chamada simplesmente de “cópia”.
Todas elas são igualmente cópias e originais. Marilyn – e todos
os seus covers – é simulacro que não aceita uma essência ori-
ginal e fundadora. Não há um modelo estático a ser copiado: o
que se copia é uma performance desde sempre vazia e errática
que se atualiza no corpo da performer, seja ela Norma Jeane ou
qualquer outra pessoa. Em outras palavras: uma Marilyn Monroe
cover é tão falsa e performática – e, portanto, real e presente –
quanto a Marilyn Monroe “original”. Não há hierarquia possível.
A hierarquia do cover é uma falsa hierarquia.
Ao copiar e reproduzir os elementos normalmente associados
a Marilyn, a Marilyn cover constrói uma corporalidade e uma
presença tão factíveis quanto as da Marilyn dos anos 1950. Sem-
pre repetida e sempre diferente, a performance da Marilyn cover
cria uma interação real com seus espectadores, que estão diante
de uma presença tão viva e verdadeira quanto eles próprios.
Se existe alguma autenticidade nessa performance, ela se dá
através da cópia, autorizando tal relação peculiar entre artista e
espectador. Assim como os falsos gringos citados por Barcinski, a
Marilyn cover é cópia de algo que, ao ser copiado, passa a existir.
Konkle diz que “Ao copiar os cabelos loiros de Monroe, vestidos
icônicos e a voz sussurrada, a performance do cover se parece
com ‘a coisa real’” (2008, p. 106). É possível ir mais além e dizer:
a performance do cover também é a “coisa real”.
Cada Marilyn cover é uma atualização singular da Marilyn de
Norma Jeane, uma aparição concreta de um ser que é todo ação,
As artes do cover 61
todo performance. O corpo do performer, da mesma maneira que
a própria ideia de cover, é sempre contextual. Ao corporificar
em si as imagens atribuídas a Marilyn Monroe, o performer cover
altera o contexto no qual essas imagens são vistas e apreen-
didas. Parafraseando Diana Taylor, Konkle afirma que o cover
– como toda performance que trabalha com repertórios compar-
tilhados de referências históricas (o que ela chama de “arquivo”)
– é memória corporificada.
Essa memória corporificada permite que o repertório compar-
tilhado coletivamente seja moldado pela singularidade do corpo
que o retoma. É a presença de um corpo portador e replicador de
memórias, que imprime suas próprias características naquilo que
é replicado. Cada Marilyn cover será diferente uma da outra, de
acordo com contextos pessoais, históricos e sociais – seus e de
seus espectadores. Cada performer cover é um performer único.
O cover cria novos contextos e proporciona ao “original” um
renascimento em um outro lugar, com uma outra corporalidade,
uma nova história e novos admiradores. O paradoxo do cover:
sempre repetido, o cover é sempre diferente. No cover, não há
repetição que não carregue, em si, uma diferença. Resta saber
que diferença é essa e de que forma ela se manifesta e opera.
62 Transversões
O COVER EM AÇÃO: ROBERTOS CARLOS
As artes do cover 63
São Paulo, sábado, 23h, bairro da Mooca. Em frente a um
salão de festas imponente, com colunas pseudogregas, um
manobrista estaciona os carros dos convidados. Vou até a
porta e falo para o segurança que sou da equipe do artista
Raul Nazário. Entro, subo as escadas até o salão e percebo
que cheguei no meio da festa: mulheres com vestidos longos
e brilhosos, alguns sapatos de salto abandonados num canto,
homens de terno e gravata, colarinhos afrouxados e gravatas
na cabeça, crianças com vestidinhos e terninhos correndo para
lá e para cá, música, conversas em voz alta, risadas, abraços
e tapinhas nas costas, mesas redondas com toalhas e flores
brancas. Ao fundo, uma pista de dança onde os mais animados
dançam ao som de um DJ que toca clássicos da disco music.
Trata-se da festa de casamento de Murilo e Thaís. Um pouco
deslocado, aguardo ao lado da caixa de som até que, enfim,
ele chega. O DJ anuncia, ao microfone, a atração principal da
noite, uma grande surpresa para os noivos. Sim, é ele: o rei. O
Rei Roberto Carlos. Vindo da mesma escada por onde eu subira,
ele adentra o salão, passa por entre as mesas, retribui alguns
acenos e chega ao microfone colocado em um pedestal devi-
damente regulado. Ele veste calças e paletó brancos, camiseta
branca, correntinha de ouro no pescoço, sapatos brancos. Seus
cabelos longos e ondulados caem até os ombros. Posicionado
em seu palco improvisado, ele começa a cantar “Emoções”. É
ele: Roberto Carlos, o Cover. Nas mesas, alguns convidados se
animam e se aproximam do cantor. Uma pequena plateia se
forma em frente ao rei e dança de braços dados, cantando
todas as músicas. Roberto canta por cerca de uma hora, pas-
64 Transversões
sando por clássicos de todas as fases de sua carreira, acompa-
nhado por uma base eletrônica estilo karaokê (operada pelo
único técnico de sua equipe). Em determinado momento, ele
chama os noivos, deseja que sejam felizes na nova vida e con-
vida Murilo para cantar “Como é grande o meu amor por você”
junto com ele, dedicando a canção a Thaís. Várias pessoas se
emocionam. Durante o show, no entanto, alguns momentos
de tensão: repetidas vezes, dois convidados mais alcoolizados
tiram o microfone do rei e puxam-no para si, para cantarem
juntos. A reação de Roberto é firme e tranquila: sem contrariar
os inoportunos, consegue recuperar o microfone e continuar
a apresentação, como se nada tivesse acontecido. O sorriso e
a simpatia jamais se abalam. Muitos convidados querem tirar
fotos com o Rei, homens, mulheres e crianças em uma infi-
nidade de selfies e fotos com flash – todos tocam, abraçam
e beijam o rosto disponível de Roberto. Porém, nem todos
se entusiasmam com a presença ilustre: muitos permanecem
em suas mesas, bebendo uísque e caipirinha de morango. A
cada início de música, gritos de satisfação ecoam pela pista
de dança, acompanhados de um coro que nem sempre sabe a
letra de cor. Ao final, Roberto distribui rosas vermelhas e vai
embora, escada abaixo. Algumas pessoas aplaudem, e a maio-
ria simplesmente continua a festa, dançando ao som do DJ que
retomou a pista. Eu atravesso o salão apressadamente – sem
me despedir dos noivos – e sigo o Rei até o estacionamento. É
hora de fazer a nossa entrevista.
Algumas semanas antes, eu telefonara para um número
de contato do artista Raul Nazário e, após conversar rapi-
As artes do cover 65
damente com uma mulher, explicando-lhe que gostaria de
agendar uma entrevista, uma voz tremendamente familiar
falou comigo. Ao ouvir as primeiras frases vindas do outro
lado da linha, fiquei paralisado: sim, eu estava falando com
Roberto Carlos. Após alguns segundos de confusão mental,
lembrei que eu estava falando não com o Rei, mas com o seu
cover. Timbre, entonação, volume, pausas, respirações, risa-
das, gírias: tudo naquela voz me fazia visualizar o cantor de
Cachoeiro do Itapemirim. Mas afinal, por que eu e todas as
pessoas que ouviram a gravação de sua voz, em meu celular,
ficamos tão chocados e assombrados? Por que a semelhança
assusta tanto? A voz de Raul-Roberto enchia a todos com
um misto de surpresa, incômodo, atração e admiração. E foi
com essa voz que Raul Nazário, um dos mais famosos covers
de Roberto Carlos no Brasil, sugeriu que a entrevista fosse
realizada após uma de suas apresentações. Eu não poderia ter
conhecido Murilo e Thaís de melhor maneira.
Raul, músico evangélico há quase quarenta anos, iniciou
sua carreira como cover em 2001, logo após a queda das torres
gêmeas do World Trade Center. Após trabalhar durante vários
anos em rádios em Porto Alegre e São Paulo, Raul estava desem-
pregado e preocupado com o futuro financeiro de sua família.
Havia recebido, inclusive, propostas para entrar para o tráfico de
drogas, no Rio de Janeiro. Foi quando um repórter da Rede Globo
o viu na rua e, dizendo-lhe que possuía uma aparência que lem-
brava muito a de Roberto Carlos, convenceu-o a participar de um
concurso informal de imitadores e sósias realizado pelo repórter
de rua Evaristo Costa. Chegando lá, foi informado que o concurso
66 Transversões
já havia acabado, mas permitiram que ele cantasse uma música
de Roberto Carlos, ao vivo, no telejornal do momento. A partir
dessa primeira aparição pública como imitador de Roberto, Raul
conheceu agentes e começou a receber diversos convites. E foi
esse entusiasmo, essa demanda por mais e mais aparições, que
mostrou a Raul que seria muito melhor ser cover de Roberto
Carlos do que traficante de drogas. Desde então, a atuação como
cover do Rei tomou toda a sua carreira musical, com shows fre-
quentes, garantindo o sustento da sua família e participações
em programas de TV.
O início de carreira dos covers aqui entrevistados apresenta
certas coincidências: um artista que já possui uma admiração
antiga e consistente pelo Rei é convencido por outras pessoas
de que é realmente parecido (física, visual e musicalmente)
com Roberto e vê nessa proximidade uma chance de ganhar
dinheiro e emplacar uma atuação musical profissional – o
senso de oportunidade do cover. E aí, um elemento crucial
para o surgimento e a permanência do cover: a identificação,
o estímulo e a validação por parte de um agente externo, a
partir do olhar do outro. É o Outro que institui o cover. Mas
quem é esse Outro?
No fenômeno do cover, o Outro pode emergir de, ao menos,
três formas. A primeira: o Outro como o público que vê, con-
trata e paga pelos serviços do artista cover; como as pessoas que
identificam naquele artista uma semelhança inusual com uma
personalidade de sucesso e estimulam o uso profissional dessa
semelhança. A segunda: o Outro como o artista imitado, como o
modelo externo a ser copiado e incorporado pelo artista cover; o
As artes do cover 67
Outro como o “original”. A terceira: o Outro como o próprio artista
cover, como um “si mesmo” borrado, como uma identidade desli-
zante que assume para si características atribuídas a uma outra
pessoa; um Outro que não é nem o público, nem Roberto Carlos,
mas o Raul que, por sua vez, já não é mais apenas Raul, e sim
Raul-Roberto. A alteridade é determinante no cotidiano do artista
cover – de sua tomada de consciência à sua potencialização como
postura de vida. Se, para Raul Nazário, o Outro (o primeiro outro)
foi o repórter da Globo e a própria mídia, para Carlos Evanney o
Outro foi seu colega de trabalho no Teatro Municipal do Rio e os
agentes da indústria fonográfica carioca.
Rio de Janeiro, quarta-feira, 15h, Cinelândia. O lugar esco-
lhido para a entrevista é o tradicional Bar Amarelinho, cenário
de tantos encontros e desencontros na história da capital do
Império. Ainda sem almoçar, peço um sanduíche de churrasco
com queijo e um suco de laranja com gelo. E então, ele chega
(ele sempre chega). Camiseta azul, calça branca, sapatos bran-
cos, óculos escuros. Cabelos alisados com chapinha e tingidos de
preto, comprimento mediano (estilo mullet). É ele: Carlos Evan-
ney, o cover oficial do Roberto Carlos. Ele também pede um suco
de laranja, sem gelo. A conversa é mais longa, passando por
vários assuntos e episódios da vida de Evanney. Vindo do inte-
rior da Bahia para tentar a carreira artística no Rio de Janeiro,
na década de 1970, Evanney trabalhou como pintor artístico e de
publicidade e como cenógrafo (na TV Globo, no Teatro Municipal
do Rio, em escolas de samba) antes de se dedicar integralmente
à música, em 2000. Fã desde criança de Roberto Carlos, gra-
vou diversos discos e realizou pequenos shows a partir de 1978,
68 Transversões
cantando músicas próprias e de diversos outros artistas. Mas,
quando cantava Roberto Carlos, tudo mudava: a paixão falava
mais alto e o fanatismo por Roberto garantia uma atuação ainda
mais acalorada. Incentivado por colegas do Teatro Municipal e
por empresários de gravadoras locais – que consideravam-no exí-
mio imitador da voz e do estilo musical do Rei –, dedicou-se
também a cantar e gravar discos apenas com músicas de Roberto
Carlos. Mas foi apenas em 2000 que decidiu viver exclusivamente
de música. Acompanhado de um pequeno aparelho de som por-
tátil, instalou-se no Largo da Carioca e começou a divulgar seu
trabalho para os transeuntes, assumindo de vez a vocação de
cover de Roberto: “No início, todo mundo virava a cara, man-
dava baixar o som, a polícia quebrava meus CDs. Mas foi lá na
Carioca, que me fez ser exatamente o que eu sou hoje. Os vinte
e poucos anos pra trás ajudaram a ser o que eu sou, mas não
fizeram ser o que eu sou. O que determinou foi esse período que
eu fiquei no Largo da Carioca.” (EVANNEY, 2016). Foi o centro do
Rio de Janeiro que fez de Evanney não só um artista cover, mas
o “cover oficial do Roberto Carlos” – título proclamado e outor-
gado pela mídia, que cada vez mais o chamava para entrevistas,
reportagens em telejornais e programas de auditório.
A mídia como o Outro do cover. O cover como produto da
mídia, que constrói e divulga os seus escolhidos. O cover como
arte urbana, nascido da urbe e para a urbe, articulando elemen-
tos que dificilmente teriam tanta potência fora desse contexto
geográfico e cultural. Toda cidade de médio ou grande porte tem
seus artistas cover. O kit básico da urbanidade brasileira (piada
velha): uma igreja, uma praça, um bar, uma prefeitura, uma
As artes do cover 69
delegacia, uma casa de prostituição, um cemitério, uma Lojas
Pernambucanas e... um artista cover. O artista cover nasce da
e para a cultura pop, com toda a sua capilarização espontânea
que não necessita de nenhum aval erudito ou institucional. E,
mesmo que ela possa estabelecer conexões com elementos de
outras realidades e topografias, não há nada mais urbano do
que a cultura pop. Uma nasceu para a outra, uma sustenta a
outra: a arquitetura e a multidão do pop. O antropólogo ita-
liano radicado no Brasil Massimo Canevacci fala das metrópoles
comunicacionais, conglomerados urbanos contemporâneos que
se sustentam prioritariamente a partir da intensa comunicação
entre seus habitantes. As metrópoles comunicacionais acolhem
e se alimentam da cultura pop, confundindo-se com ela, e criam
o ambiente perfeito para a performance do artista cover. O pop
dá a tônica do cotidiano cultural das cidades brasileiras. Cidades
como São Paulo, Rio de Janeiro e...
Curitiba, sexta-feira, 17h, Boca Maldita. Chego ao Edifício
Tijucas, um dos mais emblemáticos prédios da capital parana-
ense, no coração do centro da cidade, reduto de diversas tradições
curitibanas – das conservadoras rodas de discussão sobre política
a apartamentos dedicados à prostituição, passando por alfaiata-
rias, cafés, escritórios comerciais e ateliês de arte –, abrigando
artistas, jornalistas, intelectuais, prostitutas, cidadãos “de bem”
e certas celebridades locais da ex-capital ecológica. Subo até o
vigésimo nono andar para encontrar uma dessas celebridades:
Luiz Carlos Chacon de Oliveira, o Chacon Jr. Ele me recebe em
seu apartamento e me mostra uma das mais belas vistas pano-
râmicas de Curitiba. É ali, no topo da cidade, que vive o Roberto
70 Transversões
Carlos curitibano. Chacon usa camisa de jeans escuro sobre uma
camiseta branca, calças jeans e tênis branco. Seus cabelos são
grisalhos, cortados ao estilo mullet adotado há anos por Roberto
Carlos. Nascido em Mallet, no interior do Paraná, Chacon gosta
de contar histórias da sua vida em detalhes, citando nomes,
endereços e datas. É dessa forma que ele conta que, em 1973,
diversas pessoas começaram a dizer o quanto ele era parecido
com Roberto Carlos. De volta a Curitiba, Chacon decidiu investir
na carreira de imitador de Roberto. Comprou paletó e outras
roupas características e começou a atuar em programas de audi-
tório de TVs locais, em teatros e circos. Desde então, construiu
sua fama como “Roberto Carlos curitibano”, mantendo em para-
lelo o seu emprego como funcionário público do Ministério do
Trabalho. Figura quase folclórica no imaginário da cidade por
sua onipresença inusitada nas ruas e estabelecimentos da capi-
tal, Chacon é cover semiprofissional e não garante seu sustento
financeiro com essa atividade.
Não é só o diletantismo que difere o Roberto Carlos curiti-
bano de seus colegas paulistanos e cariocas: ao contrário do que
se esperaria de um artista cover que imita um cantor, Chacon
não canta. Argumentando que somente o próprio Rei pode can-
tar suas músicas, ele apenas dubla. Ironicamente, ao fazer isso,
ele mantém, em suas apresentações, um elemento que o liga
diretamente ao “original”, que é trazido à cena via playback.
A submissão e a reverência do artista cover em relação ao seu
modelo pode ser tão grande que ele não se permite sequer copiá-
-lo integralmente, conservando-o em uma espécie de sacralidade,
de aura que não pode ser totalmente tocada ou profanada. Ser fã
As artes do cover 71
parece ser um dos pré-requisitos básicos para o artista cover, que
encontra a sua maneira peculiar de prestar homenagem, valori-
zar e divulgar o ídolo. A atuação de Chacon não ousa tocar em
aspectos musicais e se baseia muito mais na semelhança física e
gestual. A corporalidade e a visualidade garantem a existência e
a presença do cover, sendo suficientes para convencer os espec-
tadores de que se trata, sim, de um Roberto Carlos. Se o estímulo
inicial da sua carreira foi justamente a identificação – por parte
de outrem – de uma gestualidade e um “jeito” parecidos com os
do Rei, então não deixa de ser coerente que Chacon privilegie a
sua gestualidade, o seu comportamento calculado e performado.
Uma performance muda, mas eficiente.
A decisão de entrevistar três covers de Roberto Carlos – três
Robertos Carlos – não foi fortuita. Roberto Carlos é uma das figu-
ras mais conhecidas e admiradas da música popular brasileira, e
é, junto com Raul Seixas e Silvio Santos, o artista nacional com
o maior número de covers. Se o cover é quase sempre um fã do
artista imitado, então Roberto Carlos tem milhões de covers em
potencial. Ídolo de gerações, ninguém possui tantos imitadores
quanto o Rei: quem nunca imitou a sua risadinha típica para logo
soltar um “são tantas emoções...”? Quem nunca teve um amigo ou
um parente que, mais animado em uma festa ou karaokê, cantou
imitando sua voz e seus trejeitos de ombro? O Rei está por toda a
parte e, mesmo se não é reverenciado por todos, por todos é reco-
nhecido – resultado de décadas de criações musicais antológicas,
shows e programas de TV e estratégias de marketing e vendas.
No entanto, para se tornar um artista “original” infinitamente
copiado, uma personalidade “modelo” constantemente imitada
72 Transversões
de norte a sul do Brasil, não basta ser famoso. A majestade
não se conquista à toa. O reinado de Roberto Carlos, com seu
séquito de súditos-cover, mostra que, para um artista possuir
seu próprio exército de covers, é necessário cumprir ao menos
quatro exigências – em um esboço para uma teoria do cover.
Primeira exigência: ser conhecido por uma quantidade conside-
rável de pessoas; pois são elas que vão reconhecer a referência
exposta pelo artista cover, elas são o Outro que valida o cover,
requisitando-o e pagando por ele; um artista que faz cover de
alguém completamente desconhecido dificilmente terá público.
Segunda exigência: ser admirado e desejado por uma quantidade
considerável de pessoas; pois, normalmente, o público quer ver
o cover de alguém que ele já gosta previamente; é o desejo de
ver o seu ídolo de perto que move o espectador em direção ao
artista cover. Terceira exigência: ser relativamente inacessível;
não fazer muitos shows ou cobrar muito caro pelos shows ou
estar muito longe ou estar morto; sem muita opção, o público
acaba se contentando com o contato com os covers. Quarta
exigência: ser imitável; possuir características físicas, visuais
e comportamentais que sejam facilmente reproduzíveis e reco-
nhecíveis no corpo e na performance de outrem; cultivar, em
suas obras e em si mesmo, um estilo marcante, com elementos
ostensivos e previsíveis, de fácil identificação e memorização,
para que o artista cover possa reproduzi-los em sua performance
e ser reconhecido por seu público. Roberto Carlos cumpre à risca
todos esses requisitos. Poucos artistas no Brasil são tão conheci-
dos, tão admirados e desejados, tão inacessíveis e tão imitáveis.
Resultado: uma multidão de Robertos toma conta do país.
As artes do cover 73
Raul Nazário, Carlos Evanney e Chacon Jr. são representantes
dessa classe de artistas que pode ser encontrada em qualquer
metrópole brasileira. Se Roberto Carlos está íntima e afetiva-
mente ligado à cultura pop nacional, os seus covers também
se conectam fortemente com suas realidades locais. Não é por
acaso que os lugares escolhidos pelos próprios artistas para a
realização das entrevistas são tão emblemáticos dentro do con-
texto histórico-social em que vivem: uma festa de casamento no
tradicional bairro ítalo-paulistano da Mooca; o Bar Amarelinho,
ponto turístico símbolo da boemia do centro do Rio de Janeiro;
uma residência no alto do Edifício Tijucas, microuniverso da
beleza e do conservadorismo da sociedade curitibana, encravado
na sempre agitada Boca Maldita. Entrevistar esses artistas é che-
gar mais perto do cover e interagir com ele, é apertar a mão do
cover, é dar voz ao cover e ouvir o que ele tem a dizer – de si,
de seu trabalho, do Rei, e da sua vida como Rei-cover. É buscar
entender como se constrói e atua um cover à brasileira.
A vida de Roberto Carlos cover é uma vida agitada. Raul Nazá-
rio tem uma lista extensa de participações em programas de
diversos canais de televisão, como Rede Globo (SPTV, Caldeirão
do Huck, Mais Você, Minha Nada Mole Vida), SBT (Máquina da
Fama, Gente que Brilha, Domingo Legal, Charme), Record (Tudo é
Possível, Show do Tom), Rede TV (Hebe, Pânico na TV, Amaury Jr.,
Você na TV) e MTV (Dia do Rock). Além disso, realiza shows em
São Paulo e outras cidades, geralmente em festas de casamento,
aniversários, confraternizações e eventos corporativos. Em seus
shows, Raul canta canções clássicas de todas as fases do Rei
e, dependendo do orçamento do contratante, pode ser acompa-
74 Transversões
nhado por uma banda, apenas um músico ou utilizar uma base
eletrônica pré-gravada.
Carlos Evanney há tempos não se apresenta mais no Largo
da Carioca, e faz shows por todo o Brasil. Assim como Nazário, o
tamanho e as especificidades técnicas das apresentações variam
de acordo com o contratante. Evanney também já desfilou duas
vezes em escolas de samba cariocas, representando Roberto Carlos
– Beija-Flor, em 2011, e Grande Rio, em 2016. Mas o cover oficial
do Rei vai mais além e propõe não só a presença de um artista
e algumas canções, mas todo um espetáculo cover: se o grande
empreendimento de Roberto Carlos é o show Emoções em alto-mar,
realizado a bordo de um cruzeiro pela costa brasileira, a grande
aposta de Evanney é o show Emoções no mar da Guanabara.
Tem o passeio do barco, que é aquele barco que eu tenho. Aqui na Marina da
Glória, na Baía de Guanabara. É um projeto que eu faço há oito anos: projeto
Emoções no mar da Guanabara. O Roberto tem o projeto Emoções em alto-mar,
eu tenho o projeto Emoções no mar da Guanabara. E o Roberto conhece esse
trabalho. O barco para em frente à casa do Roberto Carlos. E ali eu começo o
show. Sempre que ele pode, ele aparece na janela do apartamento dele, para
acenar, mandar um beijo para todo mundo. Mas o barco é um sucesso, viu,
bicho? Já vou para o vigésimo terceiro! (EVANNEY, 2016).
As artes do cover 75
dia bem-intencionada do cruzeiro oficial, o show cover proposto
por Evanney explicita o que o cover faz de melhor: oferecer
ao público uma versão acessível de uma obra que não está ao
alcance de todos. Se um fã de Roberto Carlos não pode pagar por
um passeio oceânico em um navio de bandeira internacional,
ele pode muito bem pagar pelo ingresso de um show proporcio-
nalmente equivalente, com quase as mesmas músicas, quase a
mesma maresia, quase a mesma água salgada, quase as mesmas
rosas vermelhas, quase o mesmo cantor. O cover é um grande
e festivo quase. O cover quase é – e, quase sendo, é. O cover
assume uma certa precariedade, uma certa modéstia de recur-
sos (técnicos, financeiros, artísticos etc.) e apresenta-se como
opção viável, como alternativa àqueles que ficaram de fora do
mundo encastelado do original. O cover é generoso e receptivo.
O cover aceita a todos que o aceitam, e a todos se oferece.
E mais: se, para Jorge Luis Borges (2007), o Quixote de Pierre
Ménard é superior ao Quixote de Cervantes por conter em si
não só todas as mesmas palavras, frases e pontuações do texto
cervantino (nem uma letra a mais, nenhuma a menos), mas
também toda a história da humanidade que existiu entre um e
outro, incluindo nesse arcabouço a própria publicação do clás-
sico espanhol em 1605 e todos os seus desdobramentos, então
é possível dizer que o show no barco de Evanney é, de certa
forma, superior ao show no navio de Roberto Carlos. Afinal, a
apresentação de Evanney inclui, além de todas as canções e
rosas vermelhas clássicas, a vista da casa do Rei e um eventual
aceno real em direção à plateia – coisa que não acontece no
cruzeiro de Roberto. A assimetria do cover: Roberto Carlos está
76 Transversões
presente na obra de Evanney, mas Evanney não está presente na
obra de Roberto Carlos. Modéstias à parte, Emoções no mar da
Guanabara é mais completo do que Emoções em alto-mar: quem
embarca no cruzeiro vê apenas um Roberto Carlos, quem passeia
no barco de Evanney vê dois.
A cópia ultrapassa o original, pois contém o original em si e
vai além dele. O cover não se contenta com a simples repetição,
com a ingênua ficção de uma presença simulada. O cover perfura
a ficção (autoficção?) e expõe, metalinguístico e irônico, que
ele, de fato, não é o original, e que é justamente essa a sua
graça. O trunfo do cover não é ser como o original, mas ser com
o original. Eles coexistem, convivem e se olham, frente a frente.
Um não existe sem o outro, um não pode ser percebido e fruído
sem o outro, corpos e presenças e performances que persistem
lado a lado, cada um com suas idiossincrasias.
Essa existência simultânea do cover com o original abre cami-
nho para uma outra questão recorrente nas análises tradicionais
sobre o cover: a ideia de sucesso e fracasso. É comum considerar
um artista cover como um artista fracassado, que não foi capaz
de criar nem obras, nem uma carreira, nem mesmo uma iden-
tidade próprias. Em um mundo onde ideais românticos como
originalidade e ineditismo ainda são valores dominantes, a cópia
e a imitação são vistas como símbolo do fracasso de alguém que
queria e poderia ser autêntico, mas que não o conseguiu, e se
viu forçado a reproduzir a obra de outro artista. O cover como
loser, como fracassado, o cover como demérito, como vergonha
alheia. Da mesma forma, diversos artistas são acusados, pejo-
rativamente, de terem se tornados “covers de si mesmos”, ao
As artes do cover 77
repetirem incessantemente fórmulas de sucesso de suas próprias
carreiras. Critica-se a repetição fácil em busca de um sucesso já
alcançado no passado, ativando reações já conhecidas e favorá-
veis no público, ao invés do arriscar-se em canções e propostas
novas. Repetição como preguiça, muleta, álibi para escapar das
incertezas do novo. O cover como fiasco, vexame autoral, insufi-
ciência criativa, fracasso artístico.
O cover guarda sempre algo de melancólico, de triste. O quase
do cover é uma quase alegria, um quase sucesso e – na visão
de algumas pessoas – uma quase arte. Uma quase alegria que
pode ser vista como uma quase tristeza, um quase fracasso. A
melancolia de algo que queria ser e não o é. A tristeza da queda
e do eterno esforço de alguém que nunca será mais do que um
quase. A melancolia de alguém que insiste e se mantém fiel ao
seu projeto mimético-performático tido como pueril e insosso.
O cover como Sísifo, sempre carregando a sua pesada pedra-per-
formance em direção ao alto da montanha-arte-verdadeira para,
ao chegar no cume-originalidade, ver sua pedra escapar-lhe das
mãos e rolar montanha abaixo, obrigando-o a recomeçar o seu
trabalho – um trabalho para sempre fadado ao fracasso e à repe-
tição do fracasso. A melancolia e a tristeza da mediocridade – o
cover como aquele que está sempre no nível médio, morno, nem
bom nem ruim, indiferente e dispensável, café com leite das
Artes. O cover como Antonio Salieri, o autointitulado “padroeiro
da mediocridade” no filme Amadeus, de Milos Forman (1984):
após uma vida inteira dedicada à inveja e à tentativa malo-
grada de superação da genialidade de Mozart, Salieri absolve a
mediocridade do padre que ouve a sua confissão e de todos os
78 Transversões
outros pacientes do hospício onde está internado; assumindo-se
como o mais exemplar dos medíocres, Salieri absolve todos eles
de sua própria mediocridade, abençoando-os; uma benção que
absolve também, e principalmente, a si mesmo. A mediocridade
é o maior dos fracassos.
No entanto, se se desloca o foco da necessidade do inedi-
tismo, da obsessão pela novidade e pela genialidade, percebe-se
que nem tudo no cover é fracasso. O que configura o sucesso
de um artista? Como mensurar o sucesso de um artista? Antes
de tudo, sucesso e fracasso são valores ligados ao horizonte
de expectativas (estéticas, sociais, políticas, afetivas), aplica-
dos a determinado objeto ou situação artística – por parte dos
espectadores, dos críticos, das instituições, dos financiadores,
dos próprios artistas e de quem mais participar desse circuito
–, e, por isso mesmo, são completamente relativos, contextu-
ais. Ter sucesso é cumprir com certas expectativas; fracassar é
frustrar essas mesmas expectativas. Assim, para aqueles que
sempre esperam de seus artistas uma sequência de canções iné-
ditas ou comportamentos imprevisíveis e individualizados, o
artista cover será sempre um fracassado. Mas não é dentro desse
horizonte de expectativas que o cover opera. Os parâmetros e
os objetivos do cover são outros. Se um “artista de sucesso”
é aquele que conquistou o reconhecimento da grande maioria
de seus pares, do público e da crítica e que conseguiu ganhar
dinheiro suficiente com esse reconhecimento, então o artista
cover pode muito bem ser um grande sucesso. O sucesso do
cover é o sucesso da cópia, uma cópia que se assume como cópia
e, ao fazer isso, inaugura um específico horizonte de expec-
As artes do cover 79
tativas. A originalidade da cópia, criativa e criadora de suas
próprias regras e razões de ser.
Oliveira (2011), em sua defesa do cover, indica a pedagogia
profissionalizante e o poder gregário e identitário do cover como
parâmetros para uma possível mensuração de sucesso. Nesse
raciocínio, um artista cover que atinge um satisfatório grau de
técnica musical e consegue agregar em torno de si uma consi-
derável quantidade de espectadores e admiradores, é um artista
que atingiu o sucesso. Para Konkle (2008), uma das funções
do cover é corporificar em si uma memória coletiva, ativando
uma performance que traria o passado para o presente e o tor-
naria acessível, disponível às interações com o público atual.
Um artista cover de sucesso, portanto, é aquele que instaura e
mantém esse estado performático agudo, aquele que consegue
estabelecer com sua audiência uma relação viva, trazendo para
os corpos ali presentes as memórias e sensações decorrentes de
tal fissura afetivo-temporal.
Uma leitura possível do fenômeno do cover pode afirmar, tam-
bém, que um cover de sucesso seria aquele que cria uma ilusão
radical em seus espectadores: a ilusão de que eles estão diante,
de fato, do artista “original”. Como o ator no teatro naturalista,
o artista cover constrói uma atuação com tal precisão e eloquên-
cia que incita a alucinação (PAVIS, 1999) no espectador, que
esquece que está diante de um ator que interpreta. Na visão dos
espectadores, em cena, não estaria mais Raul/Evanney/Chacon,
mas tão somente Roberto Carlos. O cúmulo da ilusão, paroxismo
da ficção. O sucesso do cover é o sucesso da ficção, do truque,
da ilusão. O sucesso do cover é o sucesso da semelhança, da
80 Transversões
verossimilhança. O sucesso do cover é o sucesso da mímesis. O
cover aparece, então, como disparador de uma certa alucinação
coletiva – dele e do público.
A reação carinhosa e calorosa do público – nos shows e nas
ruas – é o principal elemento apontado pelos artistas cover, em
seu discurso sobre o próprio sucesso. Um público que, a des-
peito da possível alucinação ficcional proporcionada pelo cover,
admira o artista que ali está: Raul, Evanney, Chacon. O duplo
fanatismo do cover: quem é fã de um cover, é fã tanto do artista
imitado quanto do imitador. Por extensão, o sucesso do cover é
um duplo sucesso: sucesso do artista imitado, sucesso do artista
imitador. Por mais que seja, em certa medida, decorrente do
sucesso prévio do artista imitado, o sucesso do artista cover é
um sucesso que só a ele pertence. Só o cover é responsável pelo
sucesso da mímesis que realiza em si. E mesmo que o carinho
do público seja um carinho com endereçamento duplo – para o
imitador e para o artista imitado –, ele acaba chegando em um
único destinatário: o artista cover. É fato que essa duplicidade
do carinho e da admiração do público não é redutível ao senti-
mento idólatra em relação ao artista original; esse carinho e essa
admiração são conscientes da própria ambivalência e regozijam-
-se na multiplicação efusiva proporcionada pelo cover.
Bem-sucedido ou fracassado, o cover dá a cara a tapa, jogando
seu corpo no mundo e recebendo de chofre as reações da plateia.
Um corpo que surge em cena e, ciente de seu contexto, constrói
sua própria performance, com suas especificidades. Bem mais
singelas que os longos shows de Nazário ou os épicos eventos
marítimos de Evanney, as apresentações de Chacon Jr. são como
As artes do cover 81
flashes, como irrupções instantâneas de espetacularidade em
meio a um evento maior. Chacon não faz shows completos, de
cerca de uma hora. Ele faz “aparições” em shows de terceiros:
82 Transversões
mais do que isso. Findo o frisson, esvai-se também a performance
e o artista se retira com dignidade. Mais do que a hora de entrar,
Chacon sabe muito bem a hora de sair.
Seja em um barco, em um palco ou em uma festa de casa-
mento, presenciar uma apresentação de Roberto Carlos cover sus-
cita uma pergunta matreira que, ao ser endereçada aos três artis-
tas, recebeu respostas intrigantes: “Ali, naquela hora, naquele
palco, quem está se apresentando? Quem está ali? Roberto Carlos
ou Nazário/Evanney/Chacon?”. A resposta poderia ser rápida:
assim como é óbvio que Roberto Carlos está em seu apartamento
na Urca ou em um navio no Atlântico, é também óbvio que quem
está ali é, portanto, Nazário/Evanney/Chacon. No entanto, as coi-
sas não são tão simples. Da mesma forma que Marilyn Monroe não
é apenas uma pessoa, mas sobretudo uma performance, Roberto
Carlos também é um ato performático que pode, de certa forma,
ser retomado e acionado em outros lugares, por outros artistas.
A tarefa de especificar e delimitar a localização geográfica e sub-
jetiva da performance-Roberto torna-se complexa e fugidia. Se
a resposta rápida afirma que quem está ali é Nazário/Evanney/
Chacon, então convém observar o que eles próprios têm a dizer:
As artes do cover 83
É o artista Chacon fazendo o Roberto Carlos. Porque eu acho que tem que ser
a sério. Ainda mais com um cara que nem ele... […] É, eu encarno mesmo.
Se me chamarem “Chacon!”, eu não respondo. Pra respeitar o público que
tá lá pra me ver. Eu tenho que fazer certo. Eu tenho que ser um baita de um
profissional nessa hora. […] O perigo do cover, do cara que é parecido, é
estar na rua pensando “Eu sou o Roberto Carlos, eu sou o Roberto Carlos”.
Tem um cara lá em São Paulo, que ele está 24 horas por dia como Roberto
Carlos. Eu não. Se eu estou na rua e alguém diz “Oi, Chacon! Tudo bem?”, eu
respondo “Tudo bem!”. Se diz “Oi, Roberto! Tudo bem?”, eu respondo “Tudo
bem!”. Mas eu tenho que ser o Chacon. Mas, agora, no palco, artisticamente,
aí é outra coisa. Aí, um dia antes, eu já começo a incorporar! Eu incorporo!
(CHACON JR., 2015).
Ah... É o Roberto. O Evanney... Eu acho que o Evanney... Eu acho que não sei
te dizer qual é o horário do Evanney. Porque deve ter um horário... Que eu não
sei. Deve ter um horário que é o Evanney. Agora, qual é esse horário? Eu acho
que é quando me tiram do sério. Eu acho que quando me tiram do sério, aí
entra o Evanney. Para brigar, eu deixo o Rei fora... Porque o resto do tempo, o
tempo todo... Por outro lado, também, o que é que acontece? Eu sou assim!
Entende? Eu já sou assim. Então, isso não me incomoda (EVANNEY, 2016).
84 Transversões
profissional (segundo Chacon). A terceira nuance embaralha as
duas anteriores e dá conta da confusão identitária que o cover
pode promover: 3) quem está ali é o Roberto e o artista, posto
que não é mais possível identificar o limite entre um e outro
(segundo Evanney).
A partir dessas falas, é possível afirmar que a presença de
Roberto Carlos no palco de um show cover é, antes de tudo,
um efeito de presença – sustentado pela proposição do artista
cover em incorporar/personificar o Rei e também pela disposi-
ção do público em aceitar e referendar tal proposição. Em suma:
Roberto está e não está ali. Se o corpo físico do filho de Lady
Laura não está naquele palco, também não se pode negar que
a imagem Roberto Carlos – ou melhor, a performance-Roberto –
esteja presente e agindo em toda a sua majestade. Afinal, o que
é ser Roberto Carlos? Quem é, de fato, Roberto Carlos? Apenas
Roberto Carlos pode ser Roberto Carlos? Reverenciador e petu-
lante, o cover parece dizer que não. Não só Roberto Carlos pode
ser Roberto Carlos, assim como não só Charles Chaplin pode ser
Carlitos. Roberto Carlos é uma cobertura que cobre quem dele se
aproxima: tal qual Marilyn Monroe, todo Roberto Carlos é cover,
inclusive o próprio Roberto Carlos.
Talvez cientes e mesmo com receio desses deslizamentos
performáticos e subjetivos que um efeito de presença avassa-
lador pode gerar, tanto Nazário quanto Chacon se esforçam em
separar o que seria sua atuação nos palcos daquilo que seria
sua vida cotidiana. Nazário fala de uma “margem de segu-
rança”, que garantiria uma distância entre ele e Roberto Car-
los. A aproximação excessiva com o Rei é vista como nociva
As artes do cover 85
pelos dois artistas cover, que encaram sua performance como
trabalho/profissão, como ação com começo, meio e fim bem
delimitados. A presença de Roberto Carlos estaria circunscrita
às apresentações no palco, sem se misturar com a vida coti-
diana de seu imitador. Preocupado com a preservação de sua
própria identidade, Nazário cita a sua grande admiração pelo
ídolo da Jovem Guarda, mas é bastante enfático em afastar-
-se do rótulo de fanático. Chacon é mais maleável e, apesar
de acreditar-se desvinculado do Rei e ser “sempre o Chacon”,
aceita tranquilamente ser chamado de Roberto, quando está
andando na rua.
Curioso é notar que, apesar de todas essas ressalvas, de todo
esse cuidado em identificar o que é Roberto Carlos e o que é Raul
ou Chacon, essa distância não é assim tão evidente, tampouco
segura. Além de terem traços faciais bastante parecidos com os
de Roberto Carlos, Chacon e Nazário, quando estão “de folga”,
gostam de vestir roupas que o Rei também usaria: calças e cami-
sas jeans, camisetas brancas ou azuis, nada de marrom, cortes
de cabelo estilo pigmalião ou mullet. Segundo eles mesmos, esse
sempre foi o seu gosto para roupas e cabelos, mesmo antes de se
tornarem covers profissionais. Coincidência? Ou influência mar-
cada de um artista sobre o comportamento cotidiano de seus
fãs? Quase todos os artistas covers possuem uma admiração pré-
via pelos artistas que vão imitar. E, como boa parte dos fãs, já
haviam absorvido em si diversos elementos que se relacionam
com o artista objeto de admiração. Todo fã é um protocover ou
mesmo um semicover. Qual é a margem de segurança entre o fã,
o cover e o ídolo?
86 Transversões
Nazário também tem uma outra característica que torna
ainda mais precária essa distância de segurança: a voz. Ouvir
Raul Nazário falando é como ouvir Roberto Carlos falando. Ao
ser indagado se realiza algum tipo de preparação vocal ou uti-
liza alguma técnica para deixar sua voz mais parecida com a de
Roberto, Nazário afirma que a sua voz sempre foi essa, talvez um
pouco menos anasalada. No entanto, não há como conversar com
Raul sem se sentir, por alguns instantes, ouvindo a voz do Rei.
Qualquer conversa corriqueira com Raul é refém dessa sensação
e exige de seus interlocutores um alto poder de concentração
para lembrar, a todo momento, que aquela voz é a voz de Raul
e não a de Roberto. Mesmo que Chacon e Raul não queiram ou
afirmem o contrário, depois de tantos anos dedicados à arte do
cover, suas vidas cotidianas estão completamente atravessadas
e tomadas pela performance-Roberto, seja em aspectos faciais,
vocais, de vestuário, comportamentais e relacionais. A maldição
do cover: nenhuma distância é segura o suficiente para aplacar
o redemoinho (des)identitário no qual estão todos mergulhados.
Assim como o pop, o cover não poupa ninguém.
Carlos Evanney é o único que assume explicitamente que nem
ele próprio é capaz de distinguir quem é Evanney e quem é
Roberto. Polido, prefere reservar a Evanney apenas os momentos
de descontrole emocional ou de fúria – somente Evanney briga,
enquanto Roberto mantém-se sereno, ocupando a maior parte
das situações. Em um segundo momento, Evanney afirma – não
sem antes relatar todo o seu fascínio por Roberto Carlos, desde
os seis anos de idade – que ele é mesmo assim, parecido em tudo
com o compositor de Emoções. Então, não há para ele nenhum
As artes do cover 87
incômodo em assumir-se como Roberto, em admitir que a iden-
tidade-Evanney está plasmada com a performance-Roberto. Ver-
são peculiar da história de Jeckyll e Hyde, Roberto e Evanney
são duas (ou mais) faces da mesma pessoa, habitando o mesmo
corpo e revelando-se de acordo com as situações e demandas
artísticas e sociais.
É importante, contudo, ao ver e analisar um artista cover,
evitar psicologizações e patologizações fáceis – o senso comum
gosta de acusar o cover de perda doentia de identidade, de enfer-
midade psicológica decorrente de uma espécie de disforia identi-
tária. Tal acusação, embora não seja completamente equivocada,
esquece-se de um ponto bastante relevante em seu julgamento:
a opinião e a subjetividade (enunciada ou não) do próprio artista
cover em questão. Evanney pode ter sido o mais explícito, mas
nenhum dos artistas entrevistados fez menção a qualquer incô-
modo psicológico ou interpessoal em não possuir uma identidade
“original” e exclusiva. Pelo contrário: todos eles se sentem muito
honrados e agradecidos por serem ou terem se tornado parecidos
com Roberto Carlos (alguém tão ilustre e tão amado por eles
e por todos). Consideram essa semelhança, inclusive, como um
presente de Deus, uma dádiva que lhes permite serem artistas
bem sucedidos. O sucesso do cover também é, nessa perspectiva,
um atributo divino, operando o milagre da semelhança. O cover
como desígnio divino, destino, missão na Terra. Se há alguma
patologia nisso, é uma patologia que não diz respeito apenas ao
cover, mas a toda uma sociedade que crê, de diferentes formas,
no além. Mais um paradoxo do cover: ancorado em uma presença
e uma fisicalidade inescapáveis, ele também se realiza no trans-
88 Transversões
cendente, na epifania que o liga a forças e entidades que extra-
polam o plano terreno. O cover profana uma sacralidade que ele
mesmo constrói e defende, para sempre ambivalente e esquizo.
Seria possível um cover sem transcendência?
Um olhar sensível e pungente sobre o perigo do cover – o
da perda total de identidade – é lançado pelo diretor argentino
Armando Bo, no filme O último Elvis (2013). Na periferia de
Buenos Aires, Carlos Gutiérrez é um empregado na indústria de
lava-roupas que, à noite, faz apresentações como cover de Elvis
Presley. A despeito da simplicidade e da baixa remuneração de
seus shows, Carlos não se contenta em ser Elvis apenas nos pal-
cos. Carlos é Elvis 24 horas por dia, em cena e fora dela: insiste
em chamar Alejandra, a ex-mulher, de Priscilla; batizou a filha
como Lisa Marie; em casa, come apenas sanduíches de banana
com pasta de amendoim; só assiste vídeos e ouve músicas de
Elvis Presley. Em uma das cenas, ao tentar receber seu cachê
na agência que gerencia sua pobre carreira, ouve da recepcio-
nista a pergunta: “Nome?”. A resposta é óbvia: “Elvis Presley”.
A moça continua a entrevista, irritada: “Local de nascimento?”.
Indignado com tamanha ignorância, Carlos grita: “Memphis!”.
Não é mais possível separar Carlos de Elvis, completamente mes-
clados em uma única e monótona vida em um bairro perdido da
América do Sul. Carlos não é apenas Carlos (talvez nunca tenha
sido), Carlos é Elvis.
Melancólico porém obstinado, Carlos-Elvis tem um plano.
Com dificuldade, ao longo dos anos, ele junta uma grande quan-
tia de dinheiro e compra uma passagem para Memphis, para
conhecer Graceland. Meca dos fãs de Elvis, Graceland é objeto de
As artes do cover 89
culto e destino de peregrinação de milhares de pessoas, desde
a morte trágica do Rei do Rock. Nada mais previsível do que
atrair, também, artistas cover como Gutiérrez. No entanto, o
objetivo de Carlos-Elvis não é apenas conhecer a casa onde Elvis
viveu até seus últimos dias. Chegando lá, Carlos-Elvis faz todo o
roteiro turístico tradicional, mas, aproveitando um descuido dos
seguranças da casa, entra sorrateiramente na área interditada ao
público – trata-se da parte privativa da ex-residência. Com um
ar grave e determinado, após tocar algumas notas no piano onde
Elvis executava suas canções, Carlos-Elvis entra em um pequeno
banheiro, o mesmo onde The Pelvis foi encontrado morto em
16 de agosto de 1977, vítima de uma arritmia cardíaca causada
pelo uso abusivo de medicamentos. Carlos-Elvis senta-se no vaso
sanitário, abre sua mochila, tira dela um frasco com comprimi-
dos e engole todas as pílulas, de uma só vez. Carlos não é apenas
Carlos, Carlos é Elvis.
A radicalidade do cover diz que não basta atuar e viver como
Elvis, é preciso também morrer como Elvis. A crueldade de uma
coerência que ultrapassa qualquer prudência, que ignora qual-
quer limite de autopreservação. O maior perigo do cover – e
também sua maior beleza – é a morte: a morte de uma identi-
dade, a morte física e subjetiva de uma pessoa que não é uma
só, mas várias; uma morte múltipla, tão plausível quanto assus-
tadora. Uma mímesis elevada à enésima potência, rechaçando a
frágil distinção entre arte e vida, entre Eu e Outro, entre vida
e morte. Melancolia e a tristeza que emergem não do fracasso,
mas justamente do sucesso do cover: não pode haver cover mais
bem-sucedido do que aquele que, portador de uma semelhança
90 Transversões
absoluta, morre como seu ídolo morreu. Como sobreviver à seme-
lhança do cover? É possível sobreviver à crueldade do cover? Ao
morrer como Elvis, ao morrer com Elvis, Carlos é Elvis. Artista da
mímesis, Carlos-Elvis não cria nenhuma ilusão, nenhum truque,
nenhuma interpretação – Carlos-Elvis é performer em todo seu
fulgor, um performer que vai para além da estética e encontra,
na sua morte, o auge da sua arte e da sua vida. A história de
Carlos pode ser ficção, cinema, faz de conta, mas o perigo do
cover é real e ronda todos aqueles que se propõem a performá-
-lo. O cover é trágico. Chacon, Raul e mesmo Evanney, todos eles
sabem disso.
Durante as entrevistas, insisti um pouco mais na questão
da semelhança e da imitação, e lancei duas perguntas: “Você
é parecido com Roberto Carlos, ou o Roberto Carlos é parecido
com você?” e “você imita o Roberto Carlos. E se alguém fosse
imitar você, o que imitaria?”. Modestos e corteses, como bons
súditos devem ser, todos afirmam que eles é que são parecidos
com Roberto Carlos e não o contrário. Os três artistas reforçam
uma linearidade e uma hierarquia subjetivante que os situa em
um nível inferior ao ocupado pela majestade-divindade-original.
O destino (Deus, a biologia, a cultura, o Outro) quis que eles
fossem semelhantes ao Rei, que fossem feitos à Sua imagem
e semelhança. E se esse vetor não fosse assim tão unidirecio-
nal? Poderia Roberto Carlos ser o cover de Raul Nazário? Poderia
Roberto Carlos ser imitador de Evanney? Poderia o cover sobrevi-
ver a uma inversão tão brutal? A cópia, por acaso, teria medo de
perder o seu original? Ou essa afirmação (“Eu que sou parecido
com ele, não ele comigo”) estaria muito mais ligada a uma estra-
As artes do cover 91
tégia de legitimação artística, a uma espécie de autopromoção
do ato de imitar? O cover não é bobo, conhece suas fragilidades
e reluta em relativizar as suas certezas.
As respostas à segunda pergunta são surpreendentes pela
sinceridade. Chacon (2015): “Acho que tinha que ser o Roberto
Carlos... Não tenho ideia para essa resposta... Se alguém me imi-
tasse, ia imitar o quê? Ele ia fazer uma brincadeira. Ele ia dizer:
‘Olha, eu sou o Chacon, não sou o Roberto Carlos’. Ele ia imitar
eu imitando o Roberto Carlos, do jeitão dele”. Nazário (2016):
“Rapaz, seria uma honra para mim! Eu tenho uns amigos que,
por brincadeira, imitam a minha voz, os meus trejeitos. No fim,
fica tudo parecido com o Roberto Carlos! [risos] Aí é brabo, né?
Mas, oficialmente, não tem nenhum cover meu, não”. Evanney
(2016): “Ia ser igual a mim! E ia ser igual ao Roberto! E não
podia mudar... Pelo menos, em frente ao público, tinha que ter
as mesmas ideias, o mesmo linguajar. Tudo do mesmo jeito. Não
podia ser diferente. Pelo menos, no palco, não”.
O cover do cover imita quem? Para os artistas, imitar Chacon,
Nazário ou Evanney é, no final das contas, imitar Roberto Carlos.
Como se eles não fossem nada mais do que a própria imagem
refletida do cantor capixaba, como se fossem corpos-sinônimos
em um verbete dedicado ao ídolo. Como se se tratassem de cor-
pos transparentes, neutros, o imitador que os imitasse iria atra-
vessá-los até chegar ao Rei. A substância do artista cover, do cor-
po-cover é, nesse sentido, a própria mímesis incorporada: nada
sobra além dela, nada é relevante ou notável além dela, é ela
que define o corpo e a subjetividade do artista, é ela que torna
o artista visível e palpável. A órbita do cover gira em torno de
92 Transversões
Roberto Carlos, Rei-Sol que se repete em todos os corpos gerados
a partir da sua serialização. Roberto Carlos é o proprietário dos
seus covers e determina o que deles pode surgir: nada mais além
dele mesmo. Imitar o imitador seria, portanto, imitar o imitado,
uma vez mais. (Será?). O cover como sinônimo, corpo-sinônimo,
performance-sinônimo. Precisaríamos de um dicionário?
No entanto, a mímesis do cover não se contenta com pouco
e, ao repetir-se e retornar no imitador do imitador, inspira a
dúvida: o cover, ao ser imitado, transforma-se em original? Se
sim, Chacon, Nazário e Evanney seriam autorizados a não mais
serem vistos como cópias, como produtos de segunda mão, mas
sim como plenos seres originais, dignos de todos os privilégios
comumente negados às cópias. A cópia, ao ser copiada, ressurge
como original. Ou seja, é a cópia que cria o original, e não o con-
trário. O cover do cover embaralha o jogo e arrebenta a órbita
tranquila ao redor do Rei-Sol: mais do que uma elipse, trata-se
de uma espiral. O cover do cover explicita que não há fixidez
alguma na relação original/cópia; relação esta que, ao sofrer tal
relativização, sucumbe em sua própria falta de relevância.
E sim, todos eles já se encontraram pessoalmente com
Roberto Carlos, o “original”. Da mesma forma que é notória a
intransigência de Roberto com biografias (como no caso do livro
Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar de Araújo, proibido
após processo judicial movido pelos empresários do Rei) e usos
comerciais do seu nome (como no caso do corretor de imóveis
Roberto Carlos Vieira, impedido pela Justiça de utilizar o pró-
prio nome na divulgação da sua imobiliária, após alegação de
que a marca Roberto Carlos pertence exclusivamente ao cantor),
As artes do cover 93
também é notória a sua simpatia para com seus covers. Sempre
que encontra algum cover em seus shows, faz questão de cum-
primentá-lo e ser fotografado ao seu lado – fotos que são ampla-
mente exibidas e divulgadas pelos covers, como um troféu, um
selo de aprovação e qualidade conferido ao seu trabalho. Afinal,
se até o Roberto gosta dos covers, por que os seus fãs não have-
riam de gostar? Chacon afirma que já foi chamado publicamente
de “irmãozinho” por Roberto e que conheceu Lady Laura – que
teria passado a mão em seu rosto e dito “Meu Deus, até a pele é
parecida com a do meu filho!” (CHACON, 2015). Nazário encon-
trou o Rei no cruzeiro do projeto Emoções em alto-mar, não sem
alguma dificuldade imposta pela equipe de produção do show.
Após algumas tentativas, foi recebido por Roberto no camarim,
cantou trechos de canções, tirou fotos e agradeceu a oportu-
nidade de ser Roberto Carlos cover dizendo: “Muito obrigado!
Porque cantando as suas músicas, eu levo o feijão para den-
tro de casa!”. E Roberto teria respondido: “Oh, meu filho. Deus
te abençoe!” (NAZÁRIO, 2016). Já Evanney garante que possui
uma relação mais próxima com o cantor, tendo encontrado-o
diversas vezes, incluindo os acenos vindos da varanda de seu
apartamento, durante os shows do projeto Emoções no mar da
Guanabara. Evanney conta que, sempre que o encontra, Roberto
o elogia, abraçando-o e brincando com ele (EVANNEY, 2016).
Embora não se saiba de uma opinião oficial de Roberto Carlos
sobre o assunto, para ele, essa legião de covers funciona como
materialização do seu sucesso como artista pop. Se algumas
das exigências para alguém ser considerado modelo para artis-
tas cover é ser conhecido, admirado e desejado por uma grande
94 Transversões
quantidade de pessoas, então o fato de existirem um sem-nú-
mero de covers de Roberto Carlos só atesta o quão famoso e que-
rido ele é. Isso sem contar o intensivo trabalho de divulgação
e promoção que o cover faz para o seu modelo, gratuitamente.
Possuir o seu próprio séquito de covers é privilégio para poucos.
Ser copiado é, mais do que uma afronta ou prejuízo, um elogio e
uma confirmação de que sua obra e sua presença são desejadas
por muitas pessoas. Surpreendente seria se Roberto não per-
mitisse a existência de Roberto Carlos covers ou se os tratasse
mal. Mas Roberto é inteligente e sabe como ninguém cultivar e
manter uma imagem de sucesso e bom-mocismo durante décadas
– o que inclui o bom relacionamento com aqueles que querem
ser como ele, que querem ser ele, que querem ser covers e espa-
lhar suas músicas e sua performance mundo afora. O cover como
estratégia de marketing, como garoto-propaganda de alguém
que é, também, ele mesmo.
As artes do cover 95
Dee D. Jackson
96 Transversões
Brazilian Genghis Khan
As artes do cover 97
Morris Albert
98 Transversões
Os Carbonos. Foto: Oswaldo Micheloni. Arte: João Delbucio Neto
As artes do cover 99
Raul Nazário. Foto: Dulce Tyler
100 Transversões
Carlos Evanney. Foto: Dinha Henriques
102 Transversões
Chacon Jr. Foto: Marco Charneski / Jornal Tribuna do Paraná
meme
106 Transversões
igualmente ágeis, velozes e facetados. Tal “distração” não deve ser
vista pejorativamente: não se trata de uma negação da percepção
tradicional, mas uma maneira diversa e recontextualizada de se
relacionar com a arte e com as representações do mundo.
Importante é frisar um dos aspectos da reprodutibilidade téc-
nica apontados por Benjamin, na nota 09 do seu ensaio: “No caso
do cinema, diferentemente das obras literárias ou da pintura, a
reprodutibilidade técnica do produto não constitui uma condição
externa a que se recorre com o objetivo de difundi-lo ampla-
mente. A reprodutibilidade técnica do filme se baseia diretamente
na sua técnica de produção. Ela não apenas permite de modo
mais direto a difusão maciça do filme, mas a impõe” (BENJAMIN,
2012, p. 35). A reprodução não é um elemento estranho à obra: a
reprodução é a obra, a obra só existe ao ser reproduzida.
Benjamin continua: “A obra de arte reproduzida torna-se cada
vez mais a reprodução de uma obra de arte elaborada para ser
reproduzida. A chapa fotográfica, por exemplo, permite grande
número de cópias, e não faz sentido indagar a respeito da auten-
ticidade de cópias” (2012, p. 16). Se a vontade de reprodução
faz parte da criação mesma da obra, se a obra já nasce sob o
signo da reprodução, então a obra é a sua própria reprodução
desdobrada. Ambas são a mesma coisa, deslegitimando qualquer
pretensão de autenticidade. As cópias impressas – ou visualiza-
das na tela de um computador ou de um celular – de uma foto-
grafia são a própria fotografia, elas não são outra coisa senão a
própria obra existindo em toda sua multiplicação.
Tal qual uma série de reproduções fotográficas, a dupla Patati
Patatá existe unicamente enquanto série performática. Elabo-
6. É ainda possível questionar tal relação e apontar um novo critério, que diferenciaria a
cópia reproduzida (exemplificada pela dupla Patati Patatá) da cópia do cover: a primeira
seria uma cópia industrial, maquínica, objetiva e impessoal; a segunda seria uma cópia
artesanal, imprecisa, subjetiva e personalizada. Nesse raciocínio, Patati e Patatá não
seriam exatamente covers. Ou melhor: haveria uma espécie de gradação entre as cópias,
por sua natureza, sua metodologia de produção e sua materialidade: da artesania de um
Roberto Carlos cover até a industrialidade de um Patati Patatá. No entanto, mesmo que
outro lado, há uma variação desse processo: performances que
não são pensadas para serem reproduzidas, mas que o são; e,
ao serem reproduzidas, são ressignificadas e ganham uma nova
camada de existência. Um Roberto Carlos, por exemplo, pode não
agir de determinada maneira porque pensa em ser reproduzido;
mas não se pode negar que a performance-Roberto, em 2019,
existe plenamente não só no cantor capixaba, mas em todos os
seus covers. O cover já tomou conta do processo e determina
aquilo que é/será considerado próprio do Rei. Não é mais pos-
sível pensar em um Roberto Carlos único: mesmo que ele não
deseje assim, Roberto Carlos é uma multidão, é um sem-número
de aparições e corpos vestidos de paletó branco, cantando com
voz anasalada e distribuindo rosas vermelhas.
Uma obra de performance art como Imponderabilia, de Marina
Abramovic e Ulay, foi tantas vezes reproduzida e realizada mundo
afora, que sua existência enquanto obra de arte não se restringe
à galeria italiana onde foi realizada pela primeira vez. Impondera-
bilia, agora, é isso: toda vez em que um homem e uma mulher se
colocam nus no batente de uma porta, forçando as outras pessoas
a tocarem seus corpos ao passar pelo vão entre eles, a perfor-
mance acontece. Tal é a cronologia distópica do cover: o “autor”
(Marina Abramovic, Ulay, Roberto Carlos) pode até ter iniciado
a série, em algum momento, mas agora ela não mais depende
apenas dele, confundindo-se com ele, atravessando-o, girando os
ponteiros do relógio criativo no sentido anti-horário – ou derre-
tendo os ponteiros, à la Salvador Dali. Em uma suposição não con-
firmável, é possível imaginar que o próprio Roberto Carlos adote
ações criadas e difundidas por algum de seus covers; ou mesmo
tal gradação seja mesmo possível, ela não é forte o bastante para inviabilizar a relação
Patati Patatá/cover, muito menos a relação cover/reprodutibilidade técnica. Pelo
contrário: ela continua a afirmar que tanto Evanney quanto a dupla de palhaços são
cópias, são covers – diferentes tipos de cover, mas, ainda assim, covers.
que, antes de compor uma canção ou tomar alguma atitude inusi-
tada, avalie como tal ação impactará a série performática da qual
ele faz parte. O cover, muitas vezes, (re)cria seu próprio original,
ambos igualmente reproduzidos e reproduzíveis.
No texto de Benjamin, o conceito de autenticidade tem des-
taque, na medida em que o filósofo afirma que não há autenti-
cidade na reprodutibilidade técnica e em nenhuma outra forma
de reprodutibilidade. A reprodução aniquila a autenticidade e,
por consequência, aquilo que é chamado de aura. É certo que a
busca pelo autêntico, pela autenticidade, sempre ronda a cria-
ção artística, direta ou indiretamente. Mesmo depois de tan-
tas desconstruções vividas no conturbado século XX, o senso
comum ainda costuma eleger a autenticidade como um valor
a ser enaltecido. Benjamin diz que a autenticidade de algo é a
essência daquilo que é transmissível desde a origem, sua per-
manência física, seu testemunho histórico – permanência que
se esvai com a reprodução técnica: “Só se perde isso, mas isso é
justamente a autoridade da coisa. Aquilo que desaparece nessas
circunstâncias pode ser compreendido sob o conceito de aura”
(BENJAMIN, 2012, p. 13).
Se a autenticidade ancora-se na ideia de origem, então, de
fato, a reprodução é inimiga do autêntico. Pois aquilo que surge
na e para a reprodução renuncia àquela noção de origem como
ponto zero, como início autônomo e sem passado. Essa autenti-
cidade que se pretende original é, na era da reprodutibilidade,
uma ilusão, um falso atributo. No entanto, mesmo admitindo-se
que a reprodutibilidade técnica desmorona os ideais de origina-
lidade, soa um pouco fatalista a afirmação de que ela também
110 Transversões
impede o testemunho histórico – afinal, o testemunho histórico
não diz respeito apenas à tradição, mas também às vicissitudes
do contemporâneo –, entendendo o “contemporâneo” de acordo
com as colocações de Giorgio Agamben (2009).
A substituição de uma existência única por uma existência
serial não deve ser entendida como algo unidirecional (um vetor
original – cópias). A serialidade da reprodução é uma serialidade
que não se contenta em ser linear. Ela espalha-se em múltiplas
direções, preenchendo espaços e possibilidades, condicionada
por inúmeros fatores e contextos singulares. Assim, talvez o
termo serialização não seja completamente o mais adequado, e
sim multiplicação, contaminação. A contaminação do cover. E o
principal poder da multiplicação e da contaminação empreen-
dida pela reprodução é a capacidade de sempre atualizar a
obra, de sempre situá-la no tempo presente, juntamente com
o tempo do “receptor”. Evidentemente, um dos perigos de um
excesso de presentificação é a alienação frente a certos contex-
tos anteriores, é interditar qualquer tentativa de genealogia, é
supor que algo possa ser entendido justamente como “original”,
“primeiro”, “inédito”, posto que não possui passado. Mas, se o
perigo da alienação ronda, ele não é determinante: a atualização
propiciada pela reprodução também liberta a obra do peso imo-
bilizante da tradição e estimula relações mais diretas, francas e
vívidas. Paradoxos da atualização da reprodução.
A relação que se estabelece entre obra e fruidor é sempre uma
relação atualizada, renovada a partir da ampliação da acessibi-
lidade à obra. Uma obra reproduzível e/ou reproduzida é uma
obra mais facilmente acessável. A reprodução aproxima a obra
112 Transversões
Não há mais distância entre um e outro: um é o outro. O artista
cover abole toda distância entre si e a obra, supera “o caráter
único das coisas”, e torna-se, ele mesmo, a sua própria repro-
dução. A singularidade do artista cover é a multiplicidade e a
contaminação da reprodução.
Tal combinação entre temporalidades e espacialidades pecu-
liares causa o “desaparecimento da aura”. Conceito tão contro-
verso quanto central no ensaio de Benjamin, a aura pode ser
definida esquematicamente como “a aparição única de algo lon-
gínquo, por mais perto que esteja” (BENJAMIN, 2012, p. 34). A
aura é aquilo que garante o caráter único das coisas. É aquilo
que reveste e investe a obra de uma unicidade inconfundível e
hipervalorizada, e que a coloca em um lugar especial, distante
da vida ordinária dos seres e objetos cotidianos. A recepção e
a valoração de uma obra de arte oscilaria entre dois polos: seu
valor de culto e seu valor de exposição. Inicialmente, os obje-
tos artísticos seriam mais ligados aos rituais e seu valor estaria
ligado às funções exercidas dentro do ritual. O objeto utilizado
em um ritual possui um acentuado valor de culto e, por isso
mesmo, pouco importa se ele é visto ou acessível. O valor de culto
não pressupõe a acessibilidade da obra por parte da maioria das
pessoas. Quanto mais distante e inacessível o objeto, maior valor
de culto ele possui. Essa força – espiritual, contextual, social,
convencionada e elitista –, que garante uma distância simbólica
intransponível mesmo em situações de proximidade física, é o
que Benjamin chama de aura.
Ao contrário, quando uma obra sai de seus altares e ganha as
esferas públicas e mundanas, o que cresce é o seu valor de expo-
114 Transversões
poder da aura é utilizado para sedimentar os gostos e manipular
as massas, a partir da figura de seres supostamente mais ele-
vados, guias semiproféticos de uma multidão acrítica que tudo
aceita. A celebridade, artística ou política, investida de uma
aura que soube sobreviver à reprodução técnica e se alimentar
de um novo tipo de ritual midiatizado, é capaz de influenciar
uma infinidade de seguidores, mais ou menos cientes de sua
posição nessa relação neoaurática.
O fenômeno do cover não deixa de estar vinculado a esse
resgate enviesado da aura. No capítulo anterior, surgiram quatro
exigências que um artista deve cumprir para acionar a máquina
de reprodução do cover: 1) ser conhecido por uma quantidade
considerável de pessoas; 2) ser admirado e desejado por uma
quantidade considerável de pessoas; 3) ser relativamente ina-
cessível; 4) ser facilmente imitável. Exigências devidamente
cumpridas por Roberto Carlos e por diversas outras celebridades
e estrelas do cinema, da música e de outras artes. O artista cove-
rizável perfeito é, em certa medida, a estrela cultuada apontada
por Benjamin, ostentando toda a sua aura cambaleante, mas
sedutora. Marilyn Monroe, Elvis Presley, Charlie Chaplin/Carli-
tos, Marlene Dietrich, Hugh Jackman, Raul Seixas, Silvio Santos,
Beatles, Michael Jackson, Claude François, Janis Joplin, Rainha
Elizabeth, Barack Obama, Lula, Dita Von Teese, Marina Abramo-
vic. O cover alimenta-se dos resquícios de aura que a celebridade
insiste em invocar e a usa como combustível para a sua máquina
de reprodução. Covermáquina.
Mais um paradoxo para o currículo do cover: ele pode ser con-
siderado o culto apaixonado de uma celebridade artística, rea-
116 Transversões
Castro (2008) – e também um controverso exemplo de desdo-
bramento artístico. Para isso, vale a pena ver como o circuito do
tecnobrega costuma se organizar:
118 Transversões
Considerado um dos “pais” do tecnobrega, o compositor
Tonny Brasil vai além e afirma que a própria produção de CDs já
é obsoleta: as músicas são mais facilmente compartilhadas por
e-mail ou outro canal na internet, dispensando a existência do
disco físico. E sites como o Brega Pop disponibilizam músicas de
tecnobrega gratuitamente. Em termos benjaminianos, se não há
o trinômio originalidade/autenticidade/inacessibilidade, não há
aura: o tecnobrega paraense é, portanto, a concretização para-
digmática do fim da aura.
O terceiro aspecto diz respeito às metodologias criativas. A
grande maioria das músicas são versões eletrônicas de sucessos
nacionais e internacionais: toda e qualquer música de sucesso é
imediatamente utilizada como base para uma nova versão, que
guarda maior ou menor similaridade com a canção precedente.
Mudam-se a letra (no tecnobrega, quase sempre, as letras falam
de amor e desilusões amorosas) e a velocidade, e mantém-se
o ritmo e a melodia, garantindo a referencialidade. De acordo
com a tipologia de Marconi (2006), quase todas as bandas de
tecnobrega são, à sua maneira, bandas cover. Antropofágico, o
cover tecnobrega é atento e devora tudo o que está à sua volta,
apropriando-se de qualquer sonoridade que o interesse, sem ver-
gonha de ser feliz. Sempre reproduzido, sempre atualizado, o
tecnobrega é cover que cria sua própria singularidade a partir do
Outro, a partir da deglutição antropofágica de diversos Outros,
devidamente remixados e incorporados7.
Um dos mais curiosos desdobramentos do tecnobrega extra-
pola as fronteiras paraenses e chega na Bahia. Trata-se do caso
da Banda Djavú. A trajetória da Djavú, sua origem, integrantes,
120 Transversões
típico e extremado de banda cover. Trata-se de uma banda que
não só toca novas versões de canções de outrem, como toma o
lugar de outra banda. Ou melhor: uma banda que toma o lugar
de toda uma cena. Tal é o grau da impostura da Djavú, cover que,
em certos contextos, se sobrepõe ao original. Mesmo que não
admita o plágio e se considere como uma legítima divulgadora
do tecnobrega paraense (com um “tempero baiano”, segundo
seu material de divulgação), a Banda Djavú faz jus ao seu nome
e canta o já cantado, dança o já dançado, cria o já criado, é o
já sido. Wikipédia: “O déjà-vu [“já visto”, em tradução direta]
é a sensação de já se ter testemunhado ou já vivido uma situa-
ção presente, acompanhada de uma sensação de irrealidade, de
estranheza. Essa impressão afeta cerca de 70% das pessoas”. O
déjà-vu faz parte do dia a dia de sete em cada dez pessoas, mer-
gulhando mais da metade da população humana em um universo
efêmero de irrealidade e estranheza. Não poderia haver nome
mais apropriado e autoirônico para a banda de Capim Grosso,
irreal e estranha, que roda o país apresentando sua sonoridade,
sua visualidade e sua corporalidade já vividas, já sentidas, já
visitadas. E o gran finale: a grafia tortuosamente abrasileirada –
déjà-vu transforma-se em djavú – coroa a antropofagia maliciosa
dos impostores do tecnobrega.
E não é só isso! A impostura e a ousadia da Banda Djavú tem
outro importante desdobramento: durante os primeiros anos
da década de 2010, existia não apenas uma Banda Djavú, mas
duas. Ambas eram baianas de Capim Grosso. Ambas eram acom-
panhadas por um DJ Portugal, que vestia figurino estilizado de
Pedro Álvares Cabral. Ambas tocavam as mesmas músicas, com
122 Transversões
muitas vezes, confundiu-se) com a batalha entre duas bandas
que eram, para além de tudo, a mesma banda. Em entrevista
ao programa de televisão Profissão Repórter, exibido em 10 de
maio de 2011, Geandson deu o tom da contenda: “Não há espaço
para duas bandas iguais no Brasil. A não ser que essa banda seja
uma banda cover e não queira se passar pela original”. Em 2016,
Nádila investe em sua carreira solo e DJ Juninho Portugal divide
novamente os palcos com Geandson (agora chamado de Galã) e
Reny Santos (a Diva, que, junto com o Galã, forma o par melo-
dramático clássico): refeita e repetida, a Banda Djavú faz ques-
tão de estampar o selo de “original” em toda a sua divulgação
e continua a percorrer o país, a partir de sua sede paulistana.
Pobre Geandson, pobre Juninho, pois o rodopio e a força do
cover não podem ser contidos: por todos os cantos, proliferam-
-se bandas como De Javú do Brasil, Djavú Furacão, Pancadão do
Djavú, DJ Javú, D JJavú, e outras tantas que fazem da Djavú
uma banda não somente reprodutora (do tecnobrega de Belém),
mas também uma banda completamente reproduzível e reprodu-
zida, multiplicada em série, a despeito de sua própria vontade.
A Banda Djavú é cover do cover do tecnobrega de Belém e,
ao mesmo tempo, cover de si mesma. Espiral que gira e, girando,
embala os corpos que dançam ao som das batidas do tecnobrega.
Curioso é perceber, também, como a questão da originalidade,
da autoria e dos direitos intelectuais sobre uma obra de arte é
tão importante justamente para artistas que têm como metodo-
logia criativa a apropriação e a recriação de músicas preexisten-
tes e têm como principal forma de divulgação a pirataria consen-
tida de CDs e DVDs. A série de paradoxos do cover não para de
124 Transversões
A SEDUÇÃO DO COVER É A SEDUÇÃO DO KITSCH
Marco Beltrametti
Elas reagem como se fosse o show do Roberto. É verdade! Acho que é uma rea-
lização pra essas pessoas, que não podem ver o Roberto. E que também já são
meus fãs... São fãs do Roberto e passaram a ser fãs meus também. E se realizam,
curtem a cada música, cantam junto. […] Pessoas que não conhecem o Roberto
Carlos pessoalmente... E aí se realizam, vêm me abraçar, me beijar, tirar uma
foto. Hoje eu sou cover do Roberto Carlos, há quinze anos. Foi coisa de Deus.
Eu acho que Deus estava dizendo a todo momento “Você tem que ser cover do
126 Transversões
Roberto! Você tem que ser cover do Roberto! Porque Roberto não dá conta mais,
sozinho, de ir em todos os lugares. Roberto já não pode ir mais em determinados
lugares. E é você que tem que ir representar ele!” (EVANNEY, 2016).
128 Transversões
A tarefa do kitsch é rejeitar a distância exacerbada que a arte ins-
tituída costuma ter em relação ao gosto médio da população e ofere-
cer obras e artistas que possam estar ao alcance da mão, convivendo
em harmonia com todos os outros elementos do dia a dia. Assim como
para Konkle (2008) a Marilyn Monroe cover aproxima a Marilyn do
público atual, atenuando toda e qualquer característica “perigosa” da
loira dos anos 1950, o kitsch também filtra certos elementos polêmi-
cos da arte e permite uma fruição mais tranquila e despretensiosa. Se
não é possível a presença da Mona Lisa de Da Vinci em todas as salas
de jantar, então a reprodução de uma foto da Mona Lisa, impressa
industrialmente em uma caneca de porcelana, torna tudo muito mais
viável e palatável – e todos podem ter a sua própria Mona Lisa, mais
prática, barata e completamente substituível.
Da mesma forma, o cover também aproxima as pessoas de
obras e artistas antes inacessíveis. O artista cover é como a
caneca de porcelana com a imagem da Mona Lisa: você pode
tê-la por perto sempre que quiser, você pode ver, tocar, achar
bonita, pode até se emocionar com a beleza da imagem, você
pode lavar para usar de novo e, se quebrar, pode arranjar outra
igual. A imagem na caneca não é a Mona Lisa, mas está em seu
lugar, e, naquele contexto e com aquelas pessoas, cumpre quase
a mesma função estética. Tal qual o cover, o kitsch também é
um grande e eloquente quase. Um quase que é capaz de ir mais
além: se o show de Evanney é mais completo que o show de
Roberto Carlos por conter dois Robertos, a caneca da Mona Lisa
é mais polivalente que a própria Mona Lisa, pois, além de tudo,
ainda pode servir como recipiente de café. Lembrando também
que, tanto para o kitsch quanto para o cover, o objetivo é um só:
130 Transversões
de música”, a neve na árvore de Natal feita com bolinhas de
algodão, as imagens de santos católicos moldadas em resina ou
impressas com tinta furta-cor brilhante, um vaso cheio de flores
de plástico coloridas, um cantor que parece ser e canta como
outro cantor. O cover é kitsch na medida em que, imerso em sua
precariedade assumida e festiva, finge ser aquilo que não é. O
kitsch é cover na medida em que substitui um objeto impossível
por uma versão mais acessível, nem que para isso precise se
contentar com um “genérico”.
No romance A insustentável leveza do ser (1985), Milan
Kundera discorre sobre o kitsch em países sob a influência
soviética, durante a Guerra Fria, e o define como a negação
total da merda, como o afastamento – ao menos, do campo
visual – de todo e qualquer aspecto inaceitável da condição
humana (como a morte) e a consequente promoção de um
ambiente perfeito, livre de rasuras, impurezas e questiona-
mentos. Uma espécie de ditadura do meio-termo, uma ode à
assepsia e à vida eterna – mesmo que seja uma vida inanimada.
Coloridas flores de plástico que não morrem, lustrosas frutas
de vidro que não apodrecem, suculentas fotos de pratos de
comida e sorridentes selfies em lugares paradisíacos, animados
políticos que defendem os valores da família tradicional hete-
ronormativa, acessíveis Robertos que cantam e dão autógrafos
e aceitam participar de singelas festas de casamento: o kitsch
guarda em si uma perfeição estéril que garante a sua própria
sobrevivência cotidiana e a daqueles que se relacionam com
ele. E nessa perfeita esterilidade vem embutido o aviso: não
questione aquilo que te afasta da morte e te faz sobreviver. A
132 Transversões
Essa duplicidade gera dois tipos de kitsch: o kitsch nostálgico
(que pesquisadores brasileiros como Lidia Santos, Lauro Caval-
canti e Dinah Guimaraens chamam de kitsch mau ou passivo),
ainda atrelado e desejoso de uma reconstituição integral de um
passado original perdido ou a histérica aspiração por uma ascen-
são a níveis culturais “superiores”; e o kitsch melancólico (que
se relaciona com o kitsch bom ou criativo), já ciente da ausência
de uma essência ou origem a ser restaurada, restando apenas
o festivo rodopio da cópia, e a criatividade de sua apropriação
antropofágica. Uma postura e uma arte kitsch podem, então,
servir como espécie de anestésico ético e estético, como fuga
ou negação do caráter questionador e incômodo da arte, como
estratégia de (auto)alienação em relação aos meios de produção
e fruição artística. Mas, ao mesmo tempo, uma postura e uma
arte kitsch também podem, via ironia e humor, rir de tudo isso,
apropriando-se sistemática e sarcasticamente desses elementos,
conscientes de que tudo não passa de uma grande brincadeira –
e uma problematização, um desafio – com padrões estéticos nor-
mativos. Possibilidades díspares, mas não excludentes: há que se
escolher qual delas priorizar.
Isabelle Barbéris sublinha uma postura ativa do kitsch,
que não deixa de lado toda sua ambivalência: “Para Moles, o
objeto kitsch é tal como o ato do consumo o produz. Ele não
é produzido para ser consumido; é o consumo que o produz e
o amplifica” (BARBÉRIS, 2012b, p. 197). Seja nostálgico, seja
melancólico, o kitsch reserva um papel importante àquele que
escolhe consumi-lo, àquele que o deseja e o possui. A existência
do kitsch se dá pela ação do Outro: não basta ser produzido
134 Transversões
semiologia de Moles (2007), o kitsch pode ser caracterizado a
partir de alguns princípios: princípio de inadequação, sempre
deslocando forma de função, ignorando proporções realistas de
representações, operando inusitadas relações entre objetos ou
partes de objetos; princípio de acumulação ou frenesi, explo-
dindo em vistosos empilhamentos de um sem-número de objetos
em reduzidíssimos espaços; princípio de percepção sinestésica,
promovendo um assalto simultâneo a todos os sentidos, num
único golpe; princípio do meio-termo, garantindo a máxima, ou
melhor, a média satisfação de todos, sem ousadias demais nem
de menos, sem provocações inoportunas, num flerte perigoso
com a unanimidade alienada; princípio de conforto, a aceitação
de uma harmonia complacente e rosa, reflexo do meio-termo que
coloca tudo a uma distância inofensiva e agradável. O inventário
também passa por uma tipologia das principais características
visuais e relacionais, tanto dos objetos unitários (o emprego
ostensivo de curvas acentuadas, a quase necessidade de orna-
mentações rebuscadas e superfícies repletas de adornos, a utili-
zação de cores puras e contrastantes e o uso de materiais disfar-
çados que fingem ser outro, geralmente mais nobre) quanto dos
grupos de objetos (critérios de empilhamento, heterogeneidade,
antifuncionalidade e sedimentação).
Dentre esses aspectos, dois são especialmente importantes
para a discussão do cover: o princípio do meio-termo e o disfarce
dos materiais. O princípio do meio-termo oferece uma lente,
um filtro que enquadra e apara as ousadias extremadas da arte,
limando qualquer transcendência excepcional e trazendo-a para
o mundo ordinário. O objetivo dessa temperatura para sempre
136 Transversões
mente aquilo que há de mais instigante na cultura kitsch, que
é a abolição (ou, ao menos, o embaralhamento) das noções pre-
conceituosas de alta cultura e baixa cultura, bom gosto e mau
gosto – dualismos e maniqueísmos que não passam de constru-
ções discursivas a serviço dos poderes instaurados. Ao absol-
ver o kitsch por permitir às pessoas a ascensão depurativa à
“sensação” da elite, em oposição à “sentimentalidade” das mas-
sas, Moles reafirma uma vez mais o sistema ocidental de classes
sociais, econômicas e estéticas que justifica, ao longo da histó-
ria, um sem-número de injustiças e violências entre os indiví-
duos que as compõem. O kitsch precisa ser absolvido de quê?
Ora, o kitsch não precisa de absolvição: ele já é, por si só, digno
de existência plena. Plena de exageros e hipérboles, de cores e
superfícies. Plena de vida, mesmo que seja uma vida-cópia digi-
talmente modificada e exposta num singelo porta-retrato pink.
O segundo aspecto pinçado da tabela de Moles é o uso de
materiais que fingem ser outros. Mímesis que gera novos seres
dotados de características próprias e não apenas sombras esmae-
cidas de um original antigo. O truque, o disfarce, a imitação,
a cópia gerando a ilusão – e, num mesmo lance, a desilusão
potencialmente esclarecedora – de um mundo que é todo cheio
de superficialidade, efeito de substância. A brincadeira nada
inocente de ser o que não se é. Mas, ao ser o que não se é,
aquele que não é não passaria também a ser? Pergunta retórica
que expõe a existência concreta de uma cópia multiplicada em
corpos de plástico.
Principal parque do centro de Curitiba, o Passeio Público é
um bom exemplo da falsidade ideológica do kitsch. Inaugurado
8. Desde 2016, Curitiba ganhou notoriedade por sediar a Operação Lava Jato, da Polícia e
da Justiça Federal. Em gravação telefônica grampeada pela PF e vazada pelo então juiz
Sergio Moro para a imprensa, o ex-presidente Lula referiu-se com preocupação a uma
certa República de Curitiba (analogia com a República do Galeão, episódio político-
policial que antecedeu o suicídio de Getúlio Vargas); a partir disso, diversos movimentos
paranaenses de direita passaram a adotar a alcunha como título “oficial” do movimento
anti-PT. Nesse contexto, nada é mais kitsch – no sentido mau e triste do termo – do
um estudo à parte, dedicado às suas reproduções (muitas vezes,
indoor) de monumentos, construções e paisagens de outras cida-
des do mundo. Um ligeiro episódio (ocorrido comigo) ilustra uma
singela conexão entre a capital paranaense e a principal cidade
de Nevada: em 2008, quando eu estava dirigindo e criando o
cenário do espetáculo teatral Jesus vem de Hannover, da Compa-
nhia Silenciosa, procurei na internet por imagens de Veneza para
as projeções em vídeo que seriam feitas no ciclorama do teatro.
Após uma longa pesquisa, eu e a equipe escolhemos a fotografia
que mais dava conta, visualmente, do imaginário que tínhamos
da cidade italiana. Não sem surpresa, verifiquei que a imagem
escolhida era de um hotel em Las Vegas. A Veneza de Las Vegas
era muito mais fotogênica e convincente do que a Veneza da
Itália. E, durante a temporada do espetáculo, realizada no Teatro
Novelas Curitibanas, ninguém desconfiou que não se tratava de
uma foto “original” da paisagem da capital do Vêneto.
Da mesma forma, na China, também é possível encontrar
esse tipo de arquitetura – uma “copiarquitetura”. Tal empreendi-
mento imobiliário e turístico é marca de algumas cidades chine-
sas, como Wuqing (que possui centenas de casas, ruas e canais
em estilo toscano, incluindo uma réplica do Coliseu de Roma),
Tianducheng (também conhecida como Pequena Paris, por ter
sido projetada para abrigar 110 mil habitantes em casas de estilo
francês, rodeando uma Torre Eiffel com as mesmas dimensões
da homônima parisiense), Thames Town (ou Pequena Londres,
com suas casas e igrejas em estilo Tudor, e um falso rio Tâmisa),
e Huaxi (que possui um pot-pourri de réplicas arquitetônicas:
Sydney Opera House, Arco do Triunfo, Praça da Paz Celestial,
que as camisetas e adesivos de carro onde se pode ver a foto do juiz Moro e a frase
“República de Curitiba. Aqui, bandido não se cria”.
Muralha da China etc.). Las Vegas, Wuqing, Tianducheng, Tha-
mes Town, Huaxi, Curitiba: cidades-kitsch, cidades-cover.
A plasticidade e a maleabilidade do kitsch é a plasticidade e
a maleabilidade do cover. O kitsch está no lugar de algo que não
está ali, criando e ocupando espaços e materialidades peculia-
res, instaurando presenças inusitadas que emergem de ausências
escancaradas. Rei dos disfarces, o kitsch sempre finge ser algo
que não é, e essa é a sua única e sincera forma de ser. O ser do
kitsch é um não ser. E, não sendo, o kitsch é. Fingidor, imitador,
impostor: adjetivos do kitsch que podem ser atribuídos, tam-
bém, ao cover. O kitsch, tal qual o cover/impersonator/sosie,
vale-se de uma semelhança (ou possibilidade de semelhança,
efeito de semelhança) e incorpora/personifica em si a aparência
e os traquejos do Outro – não sem alguma variação, não sem
alguma diferença, uma diferença adoçada e purpurinada.
As flores de plástico estão para a planta viva assim como
Roberto Carlos cover está para o ídolo da Jovem Guarda: os
primeiros inspiram-se, reproduzem e substituem os segundos,
multiplicando-se indefinidamente e ignorando a degenerescên-
cia da morte, suprindo demandas que os modelos “naturais”
não podem alcançar. A flor de plástico é uma flor cover, uma
flor falsa que se apresenta no lugar da flor que é imitada e é
capaz de existir e ser observada em situações nas quais uma flor
natural não suportaria (ou suportaria pouquíssimo tempo, antes
de morrer). Os Titãs já nos alertaram que as flores de plástico
não morrem: as flores de plástico enfrentam e vencem a morte,
ultrapassando as limitadas possibilidades de uma flor natural;
pelo menos, no quesito sobrevivência e perenidade. Ao não per-
140 Transversões
tencer ao instável mundo vegetal – e sim ao controlável mundo
dos polímeros –, a flor de plástico é autorizada a transitar e per-
manecer no mundo dos vivos, na sociedade humana que deseja
ter sempre uma flor (não importa qual) no campo de visão. O
plástico tem passaporte diplomático que o permite atravessar
qualquer fronteira e instalar-se em um novo país; ou melhor, o
plástico tem um passaporte diplomático falso e adaptável, que
lhe dá o nome e a identidade que desejar e que o permite atra-
vessar fronteiras e instalar-se em um novo país. Imortal, a flor
de plástico/flor cover está lá onde a flor natural não pode estar,
levando a beleza da flor – uma beleza marcada pela precarie-
dade, mas, ainda assim, uma beleza – para olhos que, talvez,
não poderiam fitar de perto uma flor orgânica. Assim também
é o cover, segundo Evanney: “Eu acho que Deus estava dizendo
a todo momento ‘Você tem que ser cover do Roberto! Porque
Roberto não dá conta mais, sozinho, de ir em todos os lugares.
Roberto já não pode ir mais em determinados lugares. E você que
tem que ir representar ele!’” (EVANNEY, 2016).
Roberto Carlos é a flor que está sujeita à morte, ao desapare-
cimento e à incapacidade humana de estar em todos os lugares
que desejaria ou onde é solicitado. Evanney e os outros covers
são as flores de plástico que garantem a imortalidade e a pre-
sença simultânea e sobre-humana do Rei. Atendendo aos pedi-
dos dos consumidores e dos fabricantes, a flor de plástico repre-
senta e substitui a flor; da mesma forma, atendendo aos pedidos
dos fãs, Evanney representa e substitui Roberto Carlos. Graças a
isso, Roberto Carlos está a salvo da morte, a perfomance-Roberto
está a salvo da morte, conservada e atualizada na plasticidade
142 Transversões
joga com os padrões do que se espera de algo “chique” ou da
“elite”, esbaldando-se na exposição das convenções empoladas
da alta cultura. Depois do plástico, nenhum material tem mais a
exclusividade sobre a própria aparência e as próprias caracterís-
ticas formais e simbólicas: tudo pode ser copiado e reproduzido
por um objeto de plástico. Depois da reprodução em série – e
sua vitória sobre a aura –, nenhum corpo ou subjetividade tem
mais o direito de se querer original: toda performance artística
pode ser coverizada, toda subjetividade aí implicada pode ser
atualizada e recontextualizada no corpo de outrem, todo corpo e
subjetividade pode se descobrir (alegrando-se com isso, ou não)
como cover de alguém.
Dentro desse panorama, não é difícil perceber que a sedução
do kitsch é uma sedução que age não apenas individualmente;
a sedução do kitsch é prioritariamente coletiva, compartilhada,
estabelecendo conexões entre pessoas de mesmo gosto ou visão
de mundo, criando uma comunidade, uma cumplicidade baseada
na emotividade dos prazeres imediatos. Para Kundera,
O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira
lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima
diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de
crianças correndo no gramado! Somente essa segunda lágrima faz com que o
kitsch seja o kitsch. A fraternidade entre todos os homens não poderá nunca
ter outra base senão o kitsch (1985, p. 253).
144 Transversões
pertencimento, contra a solidão da vida urbana – pertencimento
nascido na serialidade e que funciona como um quase antídoto
contra essa mesma serialidade. Essa é a sedução do cover: uma
sedução kitsch que conduz todos os seus admiradores para um
mundo de harmonia e júbilo, uma sedução que promete (e cum-
pre) distribuir felicidade para todos aqueles que a aceitam.
O desejo de pertencer a uma comunidade, a um grupo frater-
nal que inclui boa parte da humanidade, num êxtase coletivo
que reverbera uma débil esperança em uma “essência humana”,
pode ser visto como um último esforço de unidade, de totalidade
e, numa ótica pouco otimista, de totalitarismo. É por isso que
Kundera vincula o kitsch ao autoritarismo político dos regimes
soviéticos: um governo das aparências, promotor de uma iden-
tidade nacional una e que aniquilaria qualquer outra possibili-
dade de relação com o mundo. A acusação de Kundera não se
restringiria apenas aos regimes comunistas, como bem aponta
a pesquisadora Suely Rolnik, em seu artigo Geopolítica da cafe-
tinagem (2002), ao analisar as (micro)políticas identitárias do
sistema capitalista, em suas versões fordista e pós-fordista/neo-
liberal. Os perigos do kitsch: a fixação de uma identidade plas-
tificada e vendida em lojas de departamentos; o silenciamento
de quaisquer conflitos ou divergências (a negação do Outro); o
anestesiamento das sensações e dos afetos, impedidos de revol-
tar-se ou transgredir o contentamento conquistado; a negação
de tudo aquilo que não é produtor imediato de felicidade e satis-
fação; a aversão à experimentação e aos riscos criativos da arte
e da vida. O kitsch, assim como o cover, é trágico. Contudo, se
esses são perigos reais do kitsch, eles não devem ser motivo para
146 Transversões
de visão de mundo está implicada nessa condenação do kitsch?
Excluir o kitsch do campo da Arte (aquela com A maiúsculo)
não seria uma atitude autoritária e redutora, rejeitando todo um
campo de sensibilidade específico e heterogêneo, compartilhado
por inúmeras pessoas? A cópia seria algo tão ruim assim? Negar
o kitsch é negar as potencialidades de uma sensibilidade esté-
tica que opera com regras próprias e que pouco se importa com
os comentários depreciativos emitidos pelos legisladores da arte.
É inútil negar a força do kitsch, onipresente na sociedade
brasileira, latino-americana, europeizada, ocidental: mais inte-
ressante é assumir as superficialidades que a todos envolvem,
dialogar com elas, dobrá-las, fraturá-las, para criar nelas/com
elas/a partir delas uma arte-vida pulsante e inclusiva. Mais inte-
ressante é propor e vislumbrar modos de existência e de criação
artística que se pintem com as cores brilhantes do kitsch, sem
deixar de lado um olhar crítico e autocrítico sobre si, sobre a
arte e sobre o mundo.
Barbéris cita alguns artistas europeus como exemplos da emer-
gência do kitsch enquanto teatro, provocativo e autoirônico:
Frank Castorf, Thomas Ostermeier, Romeo Castellucci, Car-
melo Bene, Fassbinder, Thomas Bernhard. A lista poderia ser
ampliada, citando outros nomes mais próximos desta pesquisa:
Jeff Koons, Nelson Leirner, Cindy Sherman, Paul MacCarthy,
Jake e Dinos Chapman, Bill Viola, Orlan, La Pocha Nostra, Nadia
Granados, Rocio Boliver aka La Congelada de Uva, Anja Carr,
La Ribot, El Periférico de Objetos, Emílio García Wehbi, Mark
Jenkins, Phillippe Quesne, Ricci/Forte, Pandemonia, Julie Atlas
Muz, Mat Fraser, Dirty Martini, Bambi The Mermaid, Tigger,
148 Transversões
MÍMESIS E SIMULACRO
André Dahmer
150 Transversões
reza ou Realidade, e é tomado como sinônimo de Verdade. A
filosofia platônica funda-se na noção de que a natureza/reali-
dade não é da ordem do visível, do palpável, mas encontra-se
preservada no mundo das ideias, um além-mundo que contém
todas as características, possibilidades e potencialidades das
coisas concretas; uma espécie de receituário, de catálogo oni-
presente de modelos originais que fundamentam, determinam
e legitimam todas as reproduções mundanas, já realizadas ou
ainda à espera de efetuação.
O original é, portanto, da ordem do genérico, da generali-
dade. A cama original não é a primeira cama a ser construída
pela humanidade, mas sim a ideia de cama (a essência da
cama, atemporal, a-histórica), que está para além de qual-
quer cama específica possível, contendo todas elas. A gene-
ralidade do original faz com que nenhum objeto ou ação ou
fenômeno concreto possa ser considerado original pois, uma
vez materializado, o original/modelo abandona sua genera-
lidade metafísica e torna-se apenas imagem. O verdadeiro
original faz parte de todas as imagens dele derivadas, mas,
por isso mesmo, não pode ser nenhuma delas em particular.
A convicção em um original metafísico e a certeza de que a
verdade é acessível e reguladora fazem parte da crença grega
em uma natureza estática ou, ao menos, de movimentos pre-
visíveis, sempre igual a si mesma.
E se o original só pode estar nesse além-mundo pré-dado
das generalidades, quem é o autor do original? É o próprio
Platão que responde: Deus. Qualquer originalidade só pode
ser creditada a um ser (ou seres) igualmente original, pri-
152 Transversões
entanto, essa reaparição é defeituosa e enganosa. Ao deslo-
car-se do original e tentar apresentar-se como ser autônomo,
a cópia confessa sua própria indignidade, advinda do fato de
não passar de mera aparência, mera simulação parcial e limi-
tada do original, da verdade.
Imitar é reavivar o Mesmo sem, contudo, ser capaz de con-
servar o que nele há de melhor: a sua generalidade. Imita todo
aquele que cria e constrói algo, pois toda criação já está dada,
de antemão, no mundo das ideias. É na República, série de
livros que esmiúçam as características de uma cidade ideal,
bem governada e habitada exclusivamente por cidadãos jus-
tos e corretos, que Platão apresenta essas convicções e deli-
neia a sua concepção de mímesis – para então tipificá-la e
considerá-la logicamente inadequada ao seu projeto utópico.
O vetor ideia–objeto–representação artística é estabelecido,
numa escala decrescente de valor. Platão, porém, é cuidadoso
ao separar, de um lado, o artesão que materializa o objeto e, do
outro lado, o artista que imita a aparência do objeto ou mesmo
de outra pessoa. Se o marceneiro que fabrica a cama já a faz
deslocada em relação à realidade (a cama original), o artista
imita a cama concreta, já copiada, e não a cama real original.
A mímesis artística está, portanto, triplamente afastada do ori-
ginal, apresentando somente um espectro mentiroso e ilusório
da realidade, instando aquele que a vê a ter a falsa sensação de
ver uma cama de fato.
A arte é uma imitação má porque não guarda nenhuma
proximidade relevante com o original metafísico: uma cama
pintada em um quadro não serve para deitar, um rei inter-
154 Transversões
pode ser uma ação política radical e desestabilizadora, em diver-
sas instâncias, dentro e fora da arte. Pelo bem da educação,
da correção do intelecto, e da retidão do caráter dos cidadãos
honestos, os artistas são declarados personae non gratae. Qual-
quer semelhança com práticas administrativas pouco sensíveis
aos meandros e vicissitudes da arte executadas pelos governos
atuais (não só no Brasil), em sua crença ferrenha no progresso
tecnocrático e no controle ideológico disfarçado de seus gover-
nados, não é mera coincidência.
A arte só é redimida por outro filósofo grego que encontra
argumentos para que a atividade mimética seja considerada útil
e digna de existência dentro de uma sociedade sadia: Aristóteles.
A utilidade na educação e promoção de um cidadão (mulheres,
escravos e estrangeiros não estão aí incluídos, lembre-se) cor-
reto e justo, com emoções harmonizadas e intelecto aprumado,
continua sendo o critério de julgamento e, agora, aceitação da
arte. É impossível pensar arte sem mímesis: a arte é a imitação
da natureza. Assim como Moles faz com o kitsch e Oliveira faz
com o cover, Aristóteles tenta redimir a arte ao conferir-lhe uma
utilidade prática, objetiva. No entanto, precisaria a arte de tal
redenção? Seria mesmo interessante condicionar a validade e a
importância da arte a um objetivo final concreto e verificável?
O ato de imitar é visto por Aristóteles como algo inato e
que não pode nem deve ser desprezado. Analisando a poesia em
forma de epopeia e de tragédia, Aristóteles confirma que “O imi-
tar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes,
pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende
as primeiras noções) e os homens se comprazem no imitado”
156 Transversões
Contudo, a imitação que renuncia à reprodução do mundo já
dado e reconhecível e dedica-se ao processo criativo caracterís-
tico da natureza, em seus movimentos “inéditos”, ainda con-
serva intacta a relação linear e causal entre original e cópia. A
mímesis aristotélica tem, a partir disso, duas funções: imitar a
natureza; e completar e melhorar a natureza. Ações que se rela-
cionam, respectivamente, com os conceitos de natura naturata
e natura naturans. A primeira está mais próxima da concepção
pejorativa de Platão. A segunda inaugura um novo horizonte
de possibilidades poéticas e analíticas, que se desdobram num
sem-número de proposições e criações artísticas.
Resta pensar o que significa “suprir um certo defeito da natu-
reza”. Como atribuir valores (positivos, negativos) a fenômenos
da natureza? O que caracteriza um “defeito” a ser artisticamente
corrigido? A natureza só pode ser completada da forma que ela
mesma, se assim o quisesse, completar-se-ia. É como dar com
uma mão e tirar com a outra. Tal concepção apenas desloca o
foco da mímesis e ainda a mantém cativa da ordem do Mesmo, de
uma natureza vista e desejada como sempre igual a si mesma. A
natureza, dada ou em processo, ainda exerce a sua primazia. Ela
ainda é o original copiado pela arte. O “como se fosse” garante
a representação e a hierarquia. O cover, por sua vez, ao flertar e
parodiar ironicamente o original, escapa da simples repetição do
Mesmo (via semelhança) imposta à imitação e, ao mesmo tempo,
não parece desejar uma correção da natureza como se fosse a
própria a fazê-lo. Que natureza, exatamente, o cover copia?
Que natureza, exatamente, o cover completa? Existe, pois, uma
natureza do cover? Natura coverata. Natura coverans.
160 Transversões
natura naturans, ainda se mantém atrelada e dependente da
natureza, original primeiro e último da ação artística. Ora, para
Deleuze, a natureza orgânica não está mais em jogo, pois a arte
não é mais sua deficitária, seu duplo: a referência a uma natu-
reza externa ou a uma organicidade intrínseca (originais mode-
lares e processuais) não é mais possível nem desejada.
O próprio termo mímesis adquire, então, uma conotação
negativa, enrijecedora, pois supõe uma continuidade, uma nar-
ratividade, uma filiação patriarcal que, a partir do domínio da
representação, reafirma a ligação cronológica entre original e
cópia, referente e referido, entre o fundamento, o objeto da
pretensão e o pretendente (DELEUZE, 2000). E essa filiação está
diretamente relacionada à construção e à manutenção de um
sujeito supostamente fixo e unitário, acorrentado pelas atribui-
ções estáveis da identidade: construção que constitui o principal
alvo da crítica deleuzeana (COSTA-LIMA, 1999, p. 307).
Mas a condenação da mímesis feita por Deleuze não se apro-
xima da de Platão, pelo contrário. Platão rejeita a mímesis por
ela criar uma cópia afastada do modelo original, fornecendo uma
imagem degradada e falsa da ideia perfeita. Deleuze, por sua
vez, critica a mímesis justamente por ela pressupor, a princí-
pio, a existência de um modelo original a ser copiado, seja um
objeto dado, seja uma metodologia de criação. É o figurativismo
e a organicidade, com suas implicações políticas e subjetivan-
tes, que são combatidos na filosofia deleuzeana. A mímesis car-
rega essa marca por insistir no binômio original-cópia, por mais
problematizado que se apresente, funcionando sempre a partir
de um referente externo a ser representado. Deleuze clama por
10. O simulacro é também estudado e analisado por outro autor francês: Jean Baudrillard.
Baudrillard retoma o tema do simulacro em diversos livros e artigos como O sistema dos
objetos (2009) e A arte da desaparição (1997), dentre outros. Para a linha de raciocínio
desta pesquisa, contudo, considero mais pertinentes as colocações de Deleuze.
um nome – simulacro – e um lugar muito claro no ordenamento
racional do caos empreendido por Platão – o mais inferior e
desprezível dos degraus, o mais abaixo e afastado da superiori-
dade da verdade, do modelo. O simulacro, imagem desvirtuada
e mergulhada na dessemelhança, é apartado das cópias-ícones
(imagens secundárias nascidas e portadoras da semelhança).
Projeto político que estabelece a existência e a hierarquia
do original e da cópia, o platonismo (e o neoplatonismo) é o
principal responsável pelo advento e manutenção do reinado
do Mesmo e da Semelhança (MADARASZ, 2005). Nada nem nin-
guém que não seja sempre igual a si mesmo pode ser conside-
rado digno de respeito e existência. Não há, aí, espaço para
a diferença. O simulacro expõe, portanto, a arbitrariedade e
a violência de uma estratégia de constituição de mundos, de
subjetividades e de corpos baseada na fixidez da identidade.
Se o projeto moralista de Platão é instituir a distinção cópia-
-simulacro, para então banir o simulacro, o projeto de Deleuze
é enfrentar esse esquema, propondo uma outra maneira de ser
no/o mundo: “O simulacro é construído sobre uma disparidade,
sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. Eis por
que não podemos nem mesmo defini-lo com relação ao modelo
que se impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual deriva a seme-
lhança das cópias. Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se
de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma
dessemelhança interiorizada” (DELEUZE, 2015, p. 263).
A dessemelhança do simulacro é altamente inflamável, instá-
vel. Como a carta do Louco no tarô, como o Louco nas histórias
da Turma da Mônica, o simulacro é todo potencialidade, imprevi-
164 Transversões
fortalecendo os pressupostos de uma filosofia da diferença, na
qual o simulacro tem papel de destaque.
166 Transversões
efeito de identidade – que não é em nada inferior a uma seme-
lhança ou a uma identidade tidas como originais e verdadeiras:
a simulação é válida por si só, dotada de existência e vida pró-
prias. (O senso comum, muitas vezes, utiliza o termo “simula-
cro” de forma pejorativa e decadente, como sinônimo de algo
mau, cópia mal-intencionada e oportunista, vazia de sentido.
O que se propõe, aqui, é uma visão mais irônica e subversiva
– autoirônica e autossubversiva – do simulacro, escapando de
valorações baseadas em verdades absolutas e estáticas sobre ori-
gens e originalidades.)
Sob esses aspectos, o cover parece ser avesso ao simulacro.
Afinal, não seria o cover a cópia (quase) perfeita de um outro
artista que lhe serve como modelo? Não seria a semelhança um
valor fundamental do cover, dependente de uma identificação
direta e mensurável com o original? Não seria o cover o elo-
gio do Mesmo, que se repete enquanto Mesmo? Ao reproduzir e
ser reproduzido, o cover não seria um agente especial do plato-
nismo, reafirmando as hierarquias identitárias por ele enalteci-
das? Eis uma resposta possível: sim e não. Sim, porque, de fato,
os artistas cover e seus espectadores, em geral, estão imbuídos
da crença de que há um artista-original autêntico que cria e
vive por si, e há artistas-cópias secundários que copiam e vivem
numa espécie de parasitismo de identidade. Não, porque há
nesse processo certas frestas, interstícios, fissuras onde é possí-
vel flagrar o giro galopante do simulacro em torno de si mesmo,
encontrar as diferenças naquilo que se repete, entender que
nem tudo ali é simplesmente semelhante, e que essa semelhança
não é tão direta e fácil quanto parece. E entre o sim e o não, há
168 Transversões
o veneno que corrói a crença em uma semelhança universal e
imutável – semelhança do Mesmo, semelhança da Lei.
Da mesma maneira, a semelhança do cover é uma semelhança
simulada. O cover simula ser e, ao simular, é. O cover é simu-
lacro que repete algo (um artista, uma ação, um modo de ser)
que também é igualmente simulado – a linearidade do cover é
uma falsa linearidade. Ou melhor: a linearidade do cover é uma
linearidade sem fim, sem fundo, que se perde (ou se encontra)
na sua falta de origem. Máscara sob máscara sob máscara. Per-
formance sobre performance sobre performance. O que o cover
repete é a diferença inscrita tanto no artista copiado quanto
nele mesmo: o cover é repetição e diferença. O artista copiado
é, ele próprio, sujeito que repete e que contém em si toda sua
potência de repetição. A repetição do cover é uma repetição
invertida, tal como descrita por Deleuze: “Não acrescentar uma
segunda e uma terceira vez à primeira, mas elevar a primeira vez
à ‘enésima’ potência. Como diz Péguy, não é a festa da Federação
que comemora ou representa a tomada da Bastilha; é a tomada
da Bastilha que festeja e repete de antemão todas as Federações;
ou, ainda, é a primeira ninfeia de Monet que repete todas as
outras” (2006, p. 20).
O que parecia ser uma simples semelhança mostra-se muito
mais sorrateiro: Roberto Carlos repete, de antemão, todas as
apresentações de Evanney no barco na baía de Guanabara, e
também o show de Nazário no casamento de Murilo e Thaís, e
também a dublagem de Chacon em um evento corporativo qual-
quer. Isso não quer dizer que Roberto Carlos é o criador-pai-ori-
ginal dos seus covers-filhos-cópias, mas sim que ele também
11. Entre 2013 e 2014, fui contemplado com uma bolsa CAPES/Cofecub (programa de
cooperação internacional entre universidades do Brasil e da França) para viver na capital
francesa e realizar estágio de doutorado sanduíche no Departamento de Filosofia da
Université Paris 8 – Vincennes-Saint-Denis.
a Torre Eiffel, pois ela está sempre acessível a nossas mãos e
olhos. Quando cheguei pela primeira vez em Paris, fui logo visi-
tar a Torre. E quando a vi de perto, meu primeiro e espontâ-
neo pensamento foi: “Uau! Ela é exatamente como a miniatura
que eu tenho em casa! Só que muito maior!”. De certa forma,
para mim, naquele momento, a Torre Eiffel de Paris era como
uma cópia gigante da pequena torre de plástico, metal e LED
que eu deixara no Brasil. Obviamente, nada substitui o contato
visual e tátil com o gigantesco monumento parisiense, mas, para
alguém que sempre viveu na “periferia” (com grandes aspas,
dada a arbitrariedade implícita na relação centro-periferia), a
Torre Eiffel original é o objeto kitsch na estante da sala de estar.
A pequena Torre Eiffel, simulacro irônico que roubou para si o
status de “verdadeira”, está para sempre ao meu alcance e não
deve nada para sua gêmea francesa superdesenvolvida.
A despeito de toda evocação do Mesmo e da Semelhança que
o cover pode suscitar, o que mais interessa a esta pesquisa é
aquilo que se esconde em suas dobras: sob a influência (con-
ceitual, criativa, política) do simulacro, o que se busca aqui é
a presença de uma imagem (uma corporalidade, uma subjetivi-
dade, uma ação) errática e dionisiacamente subversiva, que não
respeita a autoridade de um pretenso pai-original e se entrega
aos fluxos e às delícias – e também aos perigos e amarguras – do
Outro. Para isso, não basta olhar para aqueles que se auto inti-
tulam cover. É preciso perceber como essas questões aparecem
tanto em artistas cover tradicionais, quanto em artistas e obras
ditas de “arte contemporânea”. As redes do cover espalham-se
por toda parte e podem acionar processos de criação que operam
172 Transversões
REMIX, REMAKE, PLÁGIO E OUTRAS AUTORIAS
André Dahmer
13. Chama atenção como a língua francesa, idioma materno de Barthes, assume a tradição
de ligar autoria com paternidade, fixando uma precedência falocêntrica e patriarcal: a
tradução direta para o termo autoria é paternité.
teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um
espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contes-
tam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto
é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”
(BARTHES, 2004, p. 04).
O gesto do autor nunca é um gesto original, e existe na
medida em que é cópia e recombinação de outros gestos ante-
riores. Nenhuma fala, nenhuma escrita é original, primeira:
todo ato é um ato segundo, criado a partir da reelaboração
de elementos já existentes – elementos pertencentes a um
vasto dicionário, mas também elementos ainda por diciona-
rizar e outros que jamais serão dicionarizados. E, quando
se fala em ato segundo, não se está em busca de um ato
primeiro, pois não o há: todos os atos são segundos, eterna-
mente repetidos. O escritor/scriptor (e pode-se estender isso
a todo artista) é aquele que mistura as escritas, as combina
e as contraria, valendo-se delas sem delas depender. O artista
é um compositor que rearranja influências plurais, que cria a
partir da cópia (das cópias) e, copiando, cria uma nova obra
– que, por sua vez, fará parte do dicionário da linguagem e
da arte e também será copiada. Da mesma forma que este
livro é composto a partir de citações, paráfrases, inspirações,
influências e relações estabelecidas com pessoas que pes-
quisaram e escreveram antes de mim, com artistas que cria-
ram e realizaram antes de mim, com situações e contextos
que aconteceram antes de mim. Ao mesmo tempo, toda essa
anterioridade é plasmada e atualizada no momento da escrita
deste livro, fazendo com que todos esses elementos existam
um autor é lançá-lo aos ventos loucos da criação, aos fluxos do devir-artista, é deixá-lo
livre para recriar, entendendo a recriação como um ato de criação, em si. A repetição da
criação artística é a repetição da diferença, que retorna eternamente diferente.
15. Salvatti diz que “cronologicamente, a acepção de plágio no seu sentido moderno (já
que ele aparece como termo na Antiguidade Clássica, a palavra vem do grego, plágios,
‘trapaceiro’) coincide com a ascensão da burguesia ao poder, com as Revoluções
Francesa e Industrial, e com a hegemonia dos valores estéticos burgueses com o
outras obras; se não é o autor que cria a obra, mas ela que se
cria em relação a si mesma e a outras obras; se a função-autor
pode ser exercida por mais de uma pessoa simultaneamente;
então como delimitar de forma inequívoca o direito à proprie-
dade individual de uma criação intelectual? Como esperar que
uma lei seja capaz de conter os fluxos que correm e conectam
os sujeitos que criam/fruem arte? A reação a esse cerceamento
existe, e é forte. Para citar uma dessas reações, Salvatti men-
ciona o copyleft – trocadilho desenvolvido por Richard Stallman,
na década de 1980, que torce o conceito de copyright: “Left
significa ‘esquerda’ e Right, ‘direita’. Seria, então, um ‘esquerdo
autoral’, ou os direitos autorais de esquerda. Também, left é
o passado de leave, ‘deixar’. Copyleft é, portanto, uma cópia
consentida, autorizada (com a autoridade/autoria cedida), de
esquerda, antiproprietária. O copyleft facilita o compartilha-
mento, como no lema do site rizoma.net, ‘o uso substituindo a
propriedade’” (SALVATTI, 2004, p. 22).
O copyleft utiliza-se irônica e subversivamente da auto-
ridade atribuída ao autor, implodindo-a. O autor autoriza
aquilo que sempre esteve autorizado: o acesso, o uso, a apro-
priação, a multiplicação, a cópia, a reprodução, a recriação,
o compartilhamento. O copyleft sabe aquilo que sempre se
soube: que, na arte e na criação intelectual, não há origina-
lidade, autenticidade, nem indivíduo isolado, não há proprie-
dade exclusiva e excludente. Ao abdicar da lógica do comér-
cio e do lucro, o copyleft propõe uma nova organização, uma
nova relação entre os sujeitos múltiplos implicados nas redes
de criação. Organização que privilegia o livre e não moneta-
Romantismo. Era coerente que uma classe que não tinha a secularidade da aristocracia
não fixasse nos ‘modelos canônicos’ (vale dizer no seu passado de classe) o valor
estético preponderante. Ao invés, há a sobrevalorização do indivíduo criador, do gênio,
do original, do autêntico, do Autor maiúsculo, criador de uma Arte também maiúscula.
Essa valorização revela uma implicação ideológica bastante clara: a propriedade
(o capital, os meios de produção) é a tônica se comparada à tradição (feudal,
aristocrática)” (SALVATTI, 2004, p. 19).
rizado trânsito de ideias, intuições, conhecimentos, modos
de existência, técnicas e materiais; procurando escapar de
possíveis cooptações de suas ações por parte do sistema de
propriedade privada.
Guardados os devidos contextos, o cover seria uma espé-
cie de copyleft autoproclamado, que se apropria da perfor-
mance de um artista, replicando-a e recriando-a em si, em
seu corpo, em sua subjetividade, para então compartilhá-la
com outras pessoas. Mesmo não ignorando a forte relação
mercadológica muitas vezes implícita no cover, os direitos
autorais por ele evocados são embaralhados e reelaborados,
tensionando certezas e propondo deslizamentos que a lei é
capaz de conter. A semelhança do cover seria como a nota
furtiva e espirituosa do copyleft (“all rights reversed”): man-
tém-se a referência, indica-se a procedência e o contexto,
mas facilita-se o acesso e a aproximação, permite-se a apro-
priação e a releitura, expõem-se os processos de (re)criação,
devolve-se o artista/a obra ao mundo.
A plagiocombinação proposta por Tom Zé e retomada por
Salvatti é uma dentre muitas estratégias de criação artística
que atentam contra o reinado arbitrário da originalidade. Pois,
se o primado do autor uno já foi desconstruído há décadas em
certos círculos acadêmicos e artísticos, ele ainda resiste, vigo-
roso, em diversas outras trincheiras. Autenticidade, originali-
dade e gênio ainda são valores correntes no mundo da arte,
valores que boa parte da arte contemporânea esmera-se em
questionar. Ao lado da plagiocombinação – que tudo copia e
tudo transforma, via recombinação –, a paródia, o pastiche,
180 Transversões
forma, o cover é uma obra e um artista refeitos, remake per-
formático que não se confunde com a repetição característica
de um espetáculo teatral em temporada. Como todo remake,
ao se refazer, o cover se faz. Criação que carrega tatuada na
pele toda repetição, palimpsesto que acumula e agrega toda
a história, o cover-remake debocha de uma originalidade que,
desavisada, poderia querer se impor.
Em 2011, a revista seLecT – Arte, Design, Cultura Contem-
porânea e Tecnologia dedicou seu primeiro número ao tema da
originalidade (“Abaixo a originalidade!”). Uma das matérias é
uma entrevista com o criador do site de armazenamento e com-
partilhamento UbuWeb e professor da Universidade da Pensilvâ-
nia, Kenneth Goldsmith. Ácido e provocativo, Goldsmith atua na
área da literatura e defende uma pedagogia da não criatividade.
O pesquisador ministra um curso de escrita não criativa, cuja
descrição, utilizada como peça de divulgação, revela alguns pon-
tos de problematização:
Está claro que noções há muito consensuais sobre criatividade estão sob
ataque, desgastadas pelo compartilhamento de arquivos, a cultura midiá-
tica, a mixagem generalizada e a replicação digital. Como a escrita reage
a esse novo ambiente? Este workshop vai enfrentar esse desafio, empre-
gando estratégias de apropriação, replicação, plágio, pirataria, mixagem,
saque, como métodos de composição. No percurso, vamos traçar a rica
história das falsificações, fraudes, truques, avatares e simulações em todas
as artes, com ênfase particular para como elas empregam a linguagem.
Veremos como as noções modernistas de acaso, procedimento, repetição
e a estética do tédio se combinam com a cultura pop para usurpar ideias
182 Transversões
ginalidade, da cópia, do simulacro, da apropriação, da antropo-
fagia, do remix. A cultura do remix. Extrapolando o campo da
música, o remix espraia-se por todas as linguagens artísticas
e surge como um dos paradigmas contemporâneos de criação.
Wikipédia: “No processo de armazenamento de áudio, mixagem
é a atividade pela qual uma multitude de fontes sonoras é com-
binada em um ou mais canais. As fontes podem ter sido gravadas
ao vivo ou em estúdio e podem ser de diferentes instrumentos,
vozes, seções de orquestra, locutores ou ruídos de plateia16”.
A heterogeneidade é a marca da mixagem, que combina em
um único canal diferentes fontes sonoras. Mixar é combinar ele-
mentos díspares, é compor a partir das assimetrias e manipular
tecnicamente certas características dos materiais utilizados, adi-
cionando efeitos, reformulando as fontes em um novo produto.
Remixar, portanto, é acrescentar mais uma camada composi-
tiva (ou várias camadas) no processo de criação: reelaborar o já
elaborado, recombinar o já combinado. Remixar uma canção é
alterar a sua batida, é transformá-la e adequá-la a outro estilo
musical, é criar a partir da recriação. Pode-se ir ainda mais longe
e afirmar: a prática do remix não é exclusividade da contem-
poraneidade e perpassa toda a história da arte – toda criação
artística sempre foi e será baseada no ato de remixar.
Nesse contexto, o termo mashup também é pertinente: “Um
mashup é uma canção ou composição criada a partir da mis-
tura de duas ou mais canções preexistentes, normalmente pela
transposição do vocal de uma canção em cima do instrumental
de outra, de forma a se combinarem” (GEOGHEGAN, M.; KLASS,
D., 2005, p. 45). O mashup é mais específico e evidente em sua
184 Transversões
a autoria sobre o próprio corpo, sobre a própria subjetividade?
Como questionar a originalidade da pessoa que performa, ali,
compartilhando o mesmo tempo/espaço com os espectadores?
Como remixar a si mesmo e os outros corpos/subjetividades
que ali estão?
Talvez o cover seja uma das chaves para enfrentar essas per-
guntas. O cover é a não originalidade corporificada, inscrita no
corpo e na subjetividade do artista e daqueles que o acompa-
nham. O cover é um mashup de identidades, de comportamentos
e ações artísticas que se interpenetram e constituem um novo
ser. O cover é a testemunha perfeita da morte do autor (ou
seria ele o próprio assassino?), expondo toda a multiplicidade
de vozes que o compõem. Afinal, quem é o autor do espetáculo
Emoções no mar da Guanabara? Roberto Carlos? Carlos Evanney?
Os dois? (Quem terá certeza de que se trata, em última instân-
cia, de apenas dois?) No cover, é a linguagem que performa: a
linguagem performa o performer, a performance cria o perfor-
mer. A relação criador/criatura é subvertida na espirituosidade
do cover. Resta perceber como a arte contemporânea opera o
remix do cover, sendo o cover. O cover como arte instituída e
catalogada como tal: provocações de uma pesquisa onde tal hie-
rarquia (arte/não arte) não existe.
Laerte
186 Transversões
últimas décadas, em diferentes estudos e teorias na antropolo-
gia, sociologia, psicologia, psiquiatria, linguística, pedagogia,
comunicação, filosofia, e nas artes.
Eis algumas perguntas clichê sobre a identidade do cover:
como pode uma pessoa não ter identidade própria? Como
pode uma pessoa assumir a identidade de outra pessoa? Como
pode uma pessoa não ser ela mesma? Isso não seria uma
patologia, um desvio psicológico, um caso de tratamento
psiquiátrico? Perguntas que revelam uma desconfiança, um
curto-circuito interpretativo naquilo que normalmente se
entende como “a identidade de uma pessoa”. Esfinge do pop,
o cover ruge: decifra-me ou te devoro. E a pergunta-desafio
é: quem sou eu? Não há resposta simples para o desafio do
cover. E a pena pela hesitação não é a morte, mas a aceitação
de que não há um único “eu” a ser nominado e que não há
nome suficiente para tantos “eus”. O cover dá medo. Se há
alguma identidade no cover, ela não é uma identidade rígida
e categorizável. É uma identidade que desliza, sabonete nas
mãos, sempre escapando e indo mais para lá. O artista cover
é aquele que desafia: eu posso ser quem eu quiser, ou quem
meu fenótipo quiser, ou quem o Outro quiser; eu posso ser
inclusive eu mesmo, eu posso ser inclusive você. Simulacro
de gente, o cover é aparência e superfície que se dobram e
constituem um eu múltiplo, que é e não é, que é não sendo.
A identidade do cover é a identidade do paradoxo.
E o paradoxo da identidade do cover diz: eu não estou aqui
para facilitar, eu estou aqui para confundir, enganar e rir da
confusão e do engano que as pessoas se infligem em situações-
188 Transversões
audição para covers de Adele. A cantora (sob o pseudônimo
Jenny) convive e conversa por longos minutos com suas fãs/
concorrentes, diz que não sabe se conseguirá cantar, comenta o
desempenho das outras candidatas, tudo sem ser reconhecida.
Quando chega sua vez de cantar, finge errar a entrada da música
e pede para tentar de novo, causando piedade e apreensão nas
outras Adeles. Somente ao longo da canção, quando revela sua
voz cantada, Adele é reconhecida pelas Adeles covers, que ficam
bastante emocionadas.
Nas três situações, há uma espécie de apagamento (ou apa-
gão) de identidade: Carlitos não é mais Carlitos, Raul Seixas não
é mais Raul, Adele não é mais Adele. Ou melhor: Chaplin não é
Carlitos o suficiente para convencer os jurados, Raul não é o Raul
que se espera ver em um show de Raul, Adele não é mais Adele
do que as outras Adeles que disputam uma audição. Não basta
ser Carlitos, Raul ou Adele. É preciso parecer e ser reconhecido
como Carlitos, Raul ou Adele. A identidade, aqui, aparece muito
mais como um reconhecimento, uma autorização, um certificado
outorgado por outras pessoas, do que como algo inerente à pes-
soa que, em tese, possui determinada identidade. Se ser alguém
não basta para ser identificado como alguém, então a identidade
não basta para que se seja alguém. A identidade surge como
algo externo, elaborado e imposto de fora para dentro, com o
intuito de satisfazer as expectativas de outrem. Antes de ser
algo que se define e se realiza livremente, a identidade (esta
identidade) aparece como algo que determina um fechamento e
uma ameaça: você é assim, então seja assim, para sempre assim.
A Identidade é a materialização a fórceps do Mesmo. Ora, nunca
190 Transversões
ou incapaz, mas de poroso, aberto, receptivo. Porosidade que per-
mite trocas constantes com as forças e os fluxos do mundo que
tudo percorrem; abertura ao Outro, aceitando que as sensações
inundem o sujeito e se tornem parte dele; receptividade ativa
que acolhe o que vem, sem se esquecer do que já está e do que
fica. A vibratibilidade do corpo estimula o sujeito a pensar/criar
constantemente para dar conta de sensações ainda não mapea-
das/nomeadas por sua história e sua cognição. A plasticidade de
um processo de subjetivação que se permite desterritorializar-se.
Uma das características principais do corpo vibrátil é, portanto,
nesse torvelinho de afetações, a não fixação da identidade – que
permanece sempre inconclusa, mutável, reconfigurável.
Rolnik afirma que a não rigidez identitária acaba impedindo
(ou, pelo menos, minimizando) ações preventivas e previsí-
veis de controle, seja por parte do Estado, do mercado, da reli-
gião etc.: é muito mais fácil e eficiente manipular algo que se
conhece bem, algo que é sempre igual, estável e contabilizável;
ao contrário, se o objeto a ser dominado muda constantemente
de forma, como aprisioná-lo? Assim, é interesse das estruturas
de poder anular essa capacidade metamórfica da subjetividade –
de uma subjetividade flexível. Até o início dos anos 1960, de uma
maneira geral, o regime fordista disciplinar procurou anestesiar
a vibratibilidade dos corpos, promovendo a ideia de identidade –
uma imagem perfeitamente imutável de nós mesmos e dos outros
–, incapaz de experimentar novas possibilidades de existência.
As ordens políticas governamentais, os sistemas educacionais,
as morais religiosas, as organizações do trabalho assalariado (e
suas extensões punitivas, como a polícia, a medicina, as prisões,
192 Transversões
a alienação do trabalho e da consciência histórica – é tam-
bém a alienação da própria subjetividade, da capacidade de se
permitir vulnerável, de desconstituir e reconstituir territórios
singulares de existência, alienação do corpo em relação a si e
aos outros, submetido desde a base ao controle estatal e, prin-
cipalmente, de mercado.
Imerso na cultura pop de mercado, o cover pode servir como
estratégia de produção, venda e propagação dessas identidades-
-mercadoria: “Compre (ou seja) você mesmo o seu próprio ídolo!
Compre (ou tenha) você mesmo toda essa incrível, badalada e
celebrada vida artística! Compre (ou veja) a apresentação de
alguém que igualmente comprou (em consignação) a identidade
do seu ídolo!” Os perigos identitários do cover – quando se acre-
dita, de fato, em uma identidade do cover – são aqueles perigos,
já citados, do kitsch: a fixação de uma identidade plastificada e
vendida em lojas de departamentos; o silenciamento de quais-
quer conflitos ou divergências (a negação do Outro); o aneste-
siamento das sensações e dos afetos, impedidos de revoltar-se
ou transgredir o contentamento conquistado; a negação de tudo
aquilo que não é produtor imediato de felicidade e satisfação; a
aversão à experimentação e aos riscos criativos da arte e da vida.
A cafetinagem do cover, o cover cafetinado. A máquina do cover
acionada não só para reafirmar a existência e a beleza das iden-
tidades, como também para fornecer tais identidades-território
a quem puder pagar. O cover como fornecedor, como traficante
legalizado de identidades-entorpecente. O cover como serviço
delivery do Mesmo. O cover a serviço do controle de subjetivida-
des do sistema capitalista. Mas, o cover se resume a isso?
194 Transversões
e o mesmo jingle do irmão eleito. E mais: os dois andam juntos
pelas ruas, distribuindo seus panfletos. Boa parte da população
só se dá conta de que são dois Professores Galdinos quando os
jornais noticiam que o Ministério Público havia ingressado com
um processo no TRE contra os dois irmãos, por falsidade ideoló-
gica e indução do eleitor ao erro. O Professor Galdino de 2016 é
cover do Professor Galdino de sempre. E o Professor Galdino de
sempre estava colado (em imagens e em ações) com o Profes-
sor Galdino de 2016. Professor Galdino tornou-se uma espécie
de cover de si mesmo, duplicado e revigorado em sua tentativa
de multiplicação identitária e estelionato eleitoral. O caso do
Professor Galdino mostra que o cover não está a salvo das possí-
veis desonestidades do Mesmo, nem de nenhuma outra conduta
reprovável. O cover não salva ninguém, nem a si mesmo. Há que
se ter cuidado com o Mesmo do cover. Há que se ter cuidado com
o cover do Mesmo.
Talvez a “salvação” do cover (dentro do projeto artístico e
existencial desta pesquisa), talvez o que garanta a sua capaci-
dade de escapar do sistema de controle que por vezes o coopta,
seja justamente o paradoxo da sua (não) identidade: o cover
é simulacro e, como simulacro, tem em si o poder de repetir-
-se não como Mesmo, mas como Diferença. A política do cover
como uma política da Diferença – uma política antiplatônica.
A arte do cover como arte do simulacro, que subverte as fron-
teiras pré-fabricadas da identidade que tentam se impor. Para
Rolnik, uma ação política da arte pode ser atuar enfaticamente
nas micropolíticas de subjetivação, combatendo as raízes que
nutrem os sistemas de dominação macropolíticos. Importante,
196 Transversões
como catalisador multifacetado de subjetividades potentes, de
identidades flutuantes que assumem o risco da desterritoriali-
zação como força motriz de ação.
Um caminho para a efetivação dessa estética da existência,
que perpassa os diversos planos da subjetivação, inclusive os
convulsos e inconclusos processos de criação cênica, performá-
tica, pode ser o conceito de cuidado de si. Práticas cotidianas de
singularização desenvolvidas pela cultura greco-romana clássica
que Foucault retoma não como nostalgia restauradora, mas como
sinal de que é possível uma abordagem existencial diversa da
moral e da renúncia de si judaico-cristã vigente na sociedade
ocidental e dos arroubos violentos do poder – abordagem que
deve ser empreendida por cada um, num trabalho cuidadoso e
paciente sobre si. Rotina de liberdade, abertura do eu para o
outro, “técnicas do trabalho sobre si mesmo como lugar de uma
experiência, de ensaios de existir” (FILHO, 2007).
Os intrincados processos de subjetivação evidenciados pelo
cover reverberam não só naquela arte tradicionalmente chamada
de arte cover, mas também em outras esferas. O sujeito cover é
o sujeito constituído na reapropriação, na cópia e na mímesis
radical do outro e de si mesmo; sujeito que aceita em si toda
alteridade, abocanhada e deglutida em um sem fim de emba-
tes e f(r)icções criativas. A identidade e a arte do cover é uma
identidade e uma arte outra, da outra, na outra e para a outra.
Nesse contexto, pensar o conceito de antropofagia na cultura e
na arte contemporânea brasileiras também pode ser um perti-
nente detonador de reflexões e criações artísticas, contaminadas
pelo cover – um cover tupiniquim, sangue nos olhos, portador
17. Viveiros de Castro ressalta que: “Como é de praxe na bibliografia etnológica, emprego o
etnônimo ‘Tupinambá’ para designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos séculos XVI
e XVII: Tupinambá propriamente ditos, Tupiniquim, Tamoio, Tupinaé, Caeté etc., que falavam
uma mesma língua e participavam da mesma cultura” (CASTRO, 2011, p. 186). Para o também
antropólogo Carlos Fausto, “Tupi-guarani é a designação de uma família linguística e dos
grupos que falam línguas dessa família. No século XVI, eles dominavam toda a faixa litorânea,
a bacia dos rios Paraná-Paraguai e, provavelmente, outras áreas do interior” (2011, p. 163).
na mesma impressionante velocidade. Citado por Castro (2011,
pp. 183-184), padre Antônio Vieira compara estátuas feitas de
mármore (material duro e resistente, difícil de esculpir, mas que,
uma vez modelado, conserva íntegra e constante a nova forma)
com estátuas feitas de murta (fáceis e simples de moldar, mas
que perdiam rapidamente a forma, com o crescimento das folhas
e dos galhos, necessitando infindáveis reparos). Vieira, então,
compara os índios com as estátuas de murta: aparentemente
receptivos, mas incapazes (ou indesejosos) de manterem-se
fixos na forma desejada, sempre instáveis, sempre inconstantes.
A incontrolável rebeldia vegetal da murta, ou melhor, da
floresta que abrigava os nativos, dava o tom da relação que
os Tupinambá estabeleciam com os primeiros exploradores. Tal
comportamento não foi – e ainda hoje não é, completamente
– compreensível para o pensamento eurocêntrico tradicional,
mais afeito às virtudes do mármore, em sua firmeza plástica e
identitária. Eis o enigma da murta, que o mármore é incapaz de
decifrar: uma identidade que se entende não como uma fronteira
a ser defendida, mas como um complexo de relações e transa-
ções no qual o sujeito está comprometido. Afinal, “o que muda
quando o sujeito da ‘história’ não é mais ocidental? Como se
apresentam as narrativas de contato, resistência ou assimilação
do ponto de vista de grupos para os quais é a troca, não a iden-
tidade, o valor fundamental a ser afirmado?” (CLIFFORD apud
CASTRO, 2011, p. 196).
Aceitar e mesmo querer o que o outro tem a oferecer, absor-
vê-lo e internalizá-lo sem pudores, para em seguida deixá-lo
para trás, desapegando-se de qualquer perenidade pretendida
200 Transversões
nambá, o ritual antropofágico incluía a captura em combate,
a preparação, a morte e a devoração do corpo do inimigo
pelos integrantes da aldeia. O prisioneiro capturado em com-
bate era trazido para a tribo, onde era introduzido no coti-
diano da aldeia, recebendo diversos privilégios, permanecendo
ali semanas e até meses, num aparente estado de segurança
e bem-estar. No entanto, ele mesmo sabia que seu destino
estava traçado: terminado o período de adaptação e sociali-
zação dentro da tribo, o prisioneiro passava por um processo
de reinimização, no qual era novamente amarrado, apedrejado,
insultado, culminando em um diálogo ritualizado com o seu
captor e matador, onde ambos relembravam sua condição de
inimigos e invocavam toda sua linhagem de guerreiros mata-
dores e mortos, devoradores e devorados. Somente após esse
diálogo, que justificava e exortava a sequência passada e futura
de combates entre as tribos, é que o índio que havia capturado
o prisioneiro desferia o golpe mortal na cabeça inimiga. Então,
o corpo era assado ou cozido e repartido entre todos da aldeia.
O executor, que era o único a não comer a carne conquistada,
tomava para si o nome do inimigo, somando-o aos seus outros
nomes também provenientes de antigos embates. Isolado dos
demais, o executor recebia do executado, em sonho, o novo
nome, um novo canto e uma nova dança, que eram mostrados
para toda a tribo.
Assim também é com o cover: em seus rituais pessoais e per-
formáticos, o artista cover come simbolicamente o artista “origi-
nal”, apropriando-se daquele corpo, daquele ser, daquele nome
que, a partir de agora, faz parte indissociável de si. Assim como
202 Transversões
No ritual antropofágico descrito pela antropologia, o objetivo
do ato de comer carne humana – não qualquer carne, mas aquela
carne específica – não era garantir a nutrição dos devoradores.
Era, antes de tudo, um complexo ritual de apropriação da alteri-
dade imanente naquele corpo – uma alteridade desejável e pode-
rosa, capaz de saciar provisoriamente a incompletude da condição
humana do antropófago –, fazendo do ato factível da devoração
do corpo do adversário um ato simbólico de geração de novas
fontes de força e de vida, frisando que seu objetivo “não é a
produção de alimentos, mas de pessoas” (FAUSTO, 2011, p. 167).
Viveiros de Castro conclui a descrição analítica que faz da
antropofagia Tupinambá do século XVI chamando a atenção
para um aspecto importante para o pensamento contemporâ-
neo e brasileiro sobre o assunto: “Por fim, o rito canibal era
uma encenação carnavalesca de ferocidade, um devir-outro que
revelava o impulso motor da sociedade tupinambá – ao absor-
ver o inimigo, o corpo social tornava-se, no rito, determinado
pelo inimigo, constituído por este” (2011, p. 257). Encenação
carnavalesca. Essa pode ser uma das chaves para a atualização
poética empreendida por Oswald de Andrade e desdobrada em
parte significativa da produção artística de fins do século XX e
início do XXI. Olhar o carnaval como potencialidade e efetivação
de uma socialização feroz e orgiástica, geradora de processos de
subjetivação e criação artística singulares. Misto de manifesta-
ção festiva pontual com prática microssocial de constituição do
eu, o carnaval mostra-se como campo de observação e análise.
Olho rapidamente para o que Mikhail Bakhtin (1993) fala
sobre o carnaval medieval. Característico dos países da Europa
204 Transversões
(BAKHTIN, 1993, p. 07). O carnaval está fortemente relacionado
ao corpo e seus limites. E é a partir da reflexão sobre esse corpo
carnavalesco, iminentemente antropofágico em sua abertura e
fusão com outros corpos e com o mundo, que se coloca uma
forma mais alargada de se compreender a força do carnaval.
Um dos aspectos destacados por Suely Rolnik, no livro Car-
tografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo
(2006), é a utilização do termo carnavalismo, ao invés de carna-
valização, de Bakhtin, cunhado justamente para fugir da carga
epistemológica da análise do teórico russo, principalmente em
relação à noção de inversão: para Rolnik, o carnaval não é mera-
mente uma inversão das normas e valores vigentes, um retrato
em negativo dos comportamentos e das hierarquias oficiais. Tam-
pouco constitui uma “válvula de escape” que transgride para ali-
viar, periodicamente, a tensão gerada pela obediência cotidiana às
regras instituídas, que retornam depois com igual ou maior força.
E se a inversão não figura como procedimento base, o seu reverso
decorrente – a regeneração/restauração – também desaparece.
Entender que o carnaval opera apenas baseado numa relação
de negação, de oposição direta com o corpus oficial algema e
confunde as duas situações: o carnaval não teria vida própria,
seria eternamente dependente das regras oficiais, pois estaria
fundado na mesma lógica do status quo – afinal, quando algo
é simplesmente invertido, mantém sua natureza e sua estru-
tura interna; virar algo “de cabeça para baixo” ainda conserva
a noção e a própria existência da cabeça (uma cabeça, mesmo
invertida, continua sendo uma cabeça), que pode, a qualquer
momento, ser desvirada. O carnavalismo, contudo, faz com que
206 Transversões
que toma para si os mais heterogêneos elementos, reprocessan-
do-os, recombinando-os, atualizando-os na vibração dos corpos.
O caráter arcaico da antropofagia é definido, segundo Rolnik,
por três sentimentos: a) sentimento órfico – uma espécie de sen-
timento religioso sem transcendência ou um ateísmo com Deus,
onde “Deus” é o outro, o limite, o tabu, a desterritorialização;
b) sentimento lúdico – que vê na desterritorialização não uma
negatividade, mas a potencialidade positiva da criação de mun-
dos; c) sentimento cordial, que é a “capacidade de constatar em
si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro, constatá-lo
em seu corpo vibrátil, sempre vivo, sempre atualizado. Como
‘homem cordial’, aquele que vibra invisível, ele sabe que não é
senão efeito dessas inscrições do outro em seu corpo” (ROLNIK,
2006a, p. 203).
A antropofagia, em sua autenticidade desterritorializadora e
reterritorializadora, instaura no espírito carnavalesco/carnava-
lista a lógica da eterna renovação, aceitando o finito ilimitado,
ou seja, o devir, o intenso e ininterrupto fluxo de configurações
outras, estados provisórios que se alternam num rodopio sem
começo e sem fim. O carnavalismo antropofágico influencia e
se deixa influenciar, afeta e é afetado – legítima estratégia de
subjetivação e criatividade, que ultrapassa em muito o conceito
simplista de inversão. E é a partir de seu contexto histórico e
social, então, no início do século XX, que Oswald de Andrade vai
propor a antropofagia como palavra-senha para a liberação de
toda essa força criativa, palavra máquina de guerra deleuziana
que autoriza e expande aquilo que sempre esteve latente em
nós, brasileiros, artistas ou não.
18. Nesse sentido, é bom não esquecer que este livro foi escrito por uma pessoa que
gozou/goza de diversos privilégios: eu, Henrique Saidel, tenho 38 anos (completados
em 2019), sou homem, branco, cisgênero, heterossexual, nascido no Sul do país,
de formação católica e, apesar de não ser rico, nunca passei grandes dificuldades
financeiras. Este é o meu lugar de fala – ou, como diz a artista Michelle Mattiuzzi,
meu lugar de falha –, que tento sempre colocar em contexto e perspectiva, buscando
desconstruir padrões autocentrados de pensamento e comportamento que,
para a criação e a manutenção horizontal de zonas coletivas de
pertencimento, representatividade e protagonismo; para o esta-
belecimento de novos equilíbrios nas relações de poder vigentes.
No contexto político (macro e micro) atual, falar de identidade
nem sempre é falar do Mesmo platônico que a tudo enrijece: as
identidades enaltecidas por esses movimentos de luta são (em
maior ou menor grau) identidades coletivas, marcadas pela poro-
sidade e pela constante ressignificação; são estratégias cotidia-
nas de batalha, máquinas de guerra que operam em prol não das
estaticidades manipuláveis, mas das visibilidades emancipató-
rias. A não identidade antropofágica do cover, delineada aqui,
não se opõe a esses movimentos identitários – ela oferece (ou
pretende oferecer) mais uma forma de resistência às imposições
do poder, de afirmação de mais arejadas configurações políticas,
artísticas e existenciais.
inevitavelmente, possuo. Tenho consciência de que os discursos veiculados por este livro
podem, em algum momento, não se adequar às demandas desses movimentos, soando
um pouco desconectados e alienados da realidade. Falo sobre cover e sobre arte (e sobre
todo o resto) sempre deste lugar-corpo-território que habito (“a pele que habito”).
Espero, entretanto, que as conexões para além dele existam, e que sejam muitas.
Aparelhagem Crocodilo. Belém, Pará. Foto: Bruna Brandão
210 Transversões
Aparelhagem Superpop. Belém, Pará. Foto: Bruna Brandão
212 Transversões
Banda Djavú com Galã e DJ Juninho Portugal
214 Transversões
The Venetian Resort, em Las Vegas. Foto: Michelle Maria
216 Transversões
Revista seLecT nº01. Abaixo a Originalidade. Foto: Paulo Vainer
Rafael Sica
220 Transversões
tudo que eu faço / Sou a cópia fiel da minha imagem. / Gosto muito de ser
igual a mim / Ser o gêmeo do eu original / Eu mesmo meu próprio persona-
gem... / Sou um cover que imito até o meu autógrafo. / Diferente de tantos
de norte a sul / Covers de Roberto ou de Elvis, Michael Jackson, Beatles e
Raul. / Cover / Eu sou um cover / Gosto de ser assim / Cover / Eu sou um
cover / Cover, cover de mim (CARLOS, 2009).
222 Transversões
da tensão e da energia criativa surgida desses paradoxos que
emerge a arte do cover de si mesmo. A arte de ser aquele que
copia e aquele que é copiado, ao mesmo tempo. A arte de ser
conjugado em primeira e segunda e terceira pessoa, do singu-
lar e do plural. A arte de assumir-se como simulacro que sem-
pre retorna e que se expõe como superfície que se dobra e se
desdobra. Quando original e cópia se confundem num mesmo
corpo – ou: quando um mesmo corpo revela-se como original e
cópia –, a reencenação irônica do cover surge como estratégia
performática de subjetivação, como estratégia subjetivante de
performance. Ironia que provoca: o cover me copia ou eu copio
o cover? Eu crio o cover ou o cover me cria? Corporificação radi-
cal do enigma do original. Como ser a cópia fiel da própria ima-
gem, quando a imagem é constantemente desterritorializada e
reterritorializada? Como criar algo que me cria? Eu sou, de fato,
o original? Na arte do cover, isso pouco importa.
E quando falo em cover de si mesmo, não estou me referindo
às reprimendas que fãs e críticos fazem a determinados artis-
tas, no sentido pejorativo de perda de criatividade e de reutili-
zação preguiçosa de clichês e fórmulas criadas por eles mesmos
no auge de suas carreiras. São comuns matérias em revistas,
jornais e blogs que esbravejam títulos como “Com 1h30 de
atraso, Guns N’ Roses faz cover de si mesmo em show morno
em SP”, ou “Coverdale e o cover de si mesmo”, ou “Lollapa-
looza 2016: Albert Hammond Jr. faz cover de si mesmo e pouco
impressiona em Interlagos”, sempre entendendo o “cover de
si mesmo” como sinônimo de repetição tediosa das próprias
músicas e estilo, de fraude criativa, de fim de carreira. O cover
224 Transversões
não se defende dos fluxos que o atravessam, surgindo e desapa-
recendo incessantemente” (2009, pp. 04-05).
Presença como um estado alterado de consciência e (rel)ação
no mundo, como fruto de um trabalho sobre si que mobiliza todo
o ser-artista e as redes de afecções por ele corporificadas. Pre-
sença como uma relação específica instaurada entre performer
e espectador, e entre ambos e o mundo. O cover de si mesmo é
aquele se deixa atravessar e tomar pela multidão que o habita:
corpo-multidão que se metamorfoseia num caleidoscópio de
infinitudes existenciais e poéticas, retornando a si mesmo na
diferença do instante (QUILICI, 2010). Um eu que materializa e
evidencia em si o outro que o constitui e, inversa e ironicamente,
aponta no outro o eu que lá está. Eus e outros. Num só corpo,
vazado, lugar de passagem de identidades que se perdem e se
reencontram furtivamente nas forças do devir-performance. Ao
repetir a si mesmo, o cover escancara o que sempre esteve ali:
um “si mesmo” plural, uma multi-identidade que não se ancora
na esquizofrenia, mas na liberdade das subjetividades nômades.
Neste ponto, adentra-se mais claramente aquilo que, dentro
dos estudos da performance, convencionou-se chamar de arte
da performance. As fronteiras entre o cover tradicional, o cover
de si mesmo e o cover na arte da performance não são está-
veis e demarcadas: são antes lugares de contato e de passagem,
de contaminação e miscigenação que fazem com que a própria
noção de fronteira seja questionada. Estabelecendo um recorte
ao cover de si mesmo, localizo-o na fronteira entre a arte da per-
formance e as artes cênicas: aquela onde os limites entre reali-
dade e ficção se esfumaçam e ganham novos (in)contornos. Para
226 Transversões
paradoxos estéticos, identitários, autorais, miméticos, sociais e
relacionais do cover retornam e são retrabalhados.
O cover de si mesmo é uma ação performática (sem medo
da redundância) irônica que abandona a ideia de originalidade
para viver uma vida própria. Uma performance que não nega
sua condição periférica, esbanja-se em sua “fome de cópias” e ri
abertamente de si mesma. Uma performance que assume toda a
sua superficialidade e sua falta de compromisso hierárquico com
qualquer tipo de “original”. Se há profundidade, é uma profun-
didade formada pelas dobras temporárias da superfície, em um
jogo de superposições e deslizamentos. Uma performance kitsch
(um kitsch autocrítico), purpurinada e sedutora. Uma perfor-
mance do simulacro que, em seu rodopio louco, transforma as
subjetividades e os afetos dos artistas e não artistas envolvidos.
Copiar e copiar a si mesmo são ações imbricadas no próprio
conceito de performance, em seu sentido mais alargado. Carlos
Eduardo Monroy Guerrero (2014), na dissertação “Pensamento
em Re-formance (imitações, pastiches, picaretagens e outros
truques do artista)”, retoma as pesquisas de Richard Schechner
para relembrar que toda performance é considerada um com-
portamento restaurado (ou, em algumas traduções, reencenado),
uma repetição de comportamentos e ações já realizados por outra
pessoa, em algum momento anterior – sublinhando que, na teo-
ria de Schechner, influenciada pela antropologia, a performance
abrange não só a esfera artística, mas também outras áreas do
comportamento humano, como rituais religiosos, cerimônias,
esportes e outros jogos, e mesmo política e protocolos judiciais;
ações que são realizadas diante de e para uma determinada
228 Transversões
uma resposta única: “O artista se constitui como uma construção
fictícia dele mesmo, feita a partir da imitação dos outros? Ou
é ele imitação incessante de si mesmo feita a partir do que se
espera dele no contingente histórico? Ou é ele uma pretensão do
que ele próprio imagina ser?” (2014, Chapéu/Cartaz #4).
Esse é o ponto: o artista que imita a si mesmo e, ao fazê-lo,
constitui-se como sujeito e como artista, em conexão com o seu
contexto social, profissional e afetivo. Sua obra é marcada por
uma espiral de cópias de cópias de cópias, por uma construção
nada inocente de materialidades e sentidos. Sua identidade é
(re)produzida e simulada. E isso não implica uma visão pejora-
tiva: a simulação do simulacro é a força criativa que viabiliza a
vida e a arte do artista e de seu público. Se tal processo de cons-
tituição e reconstituição do sujeito-artista e de sua obra pode
ser estendido, de certa forma, a toda cena artística, o cover per-
formático evidencia poeticamente esse processo e faz dele a sua
pedra de toque. O cover de si mesmo expõe-se como resultado
inacabado e provisório de uma estratégia criativa pouco afeita a
totalizações fáceis: uma espécie de work in progress de si mesmo
– utilizando a expressão proposta por Renato Cohen (1997) –,
sempre em processo, sempre desejando e mantendo-se aberto às
transformações que o contato com o outro proporciona. O tra-
balho do performer sobre si próprio, em sua constante criação e
esfacelamento de identidades, em sua relação curiosa e convul-
siva com o outro que sou eu, já que “eu é um outro”.
Que corpo-cover-performer é esse? O que move um corpo-cover-
-performer? O que atua, o que aciona um corpo-cover-performer?
Uma frase de Peter Pál Pelbart (2000) fornece algumas pistas: “Não
230 Transversões
Querer a força festiva e epifânica da arte requer assumir o
caráter obscuro e intempestivo que ela também carrega. Riscos
de uma prática existencial radical. Expor-se à instabilidade, à
incerteza, ao não conhecido, e saber (não sabendo) como atra-
vessar esse campo que tudo atravessa sem se perder no deses-
pero e no escapismo tanto da passividade quanto da reatividade.
E como saber como agir, sem saber exatamente como agir (um
não saber que age), já que o saber que se mostra forte mui-
tas vezes não passa de autoengano? “Como ter a força de estar
à altura de sua própria fraqueza, ao invés de permanecer na
fraqueza de cultivar apenas a força?” (PELBART, 2007, p. 63).
Enfrentar essas questões criativas e metodológicas é tarefa do
performer, enquanto sujeito poético que se constitui nas fres-
tas do poder, corpo-fluxo que resiste nas metamorfoses do eu.
Conjuntos de posturas e ações que inscrevem o performer num
território onde ética e estética se fundem.
Ao fazer de si um locus dilatado de ressignificações de iden-
tidades, o cover performático arrisca-se nos corredores buliçosos
dos supermercados de subjetividades – subjetividades prêt-à-
-porter (ROLNIK, 2006) –, arrisca-se a se perder na apologia e
na reprodução alienada de tipos e fórmulas da indústria cultu-
ral e da sociedade de consumo. O perigo de se tornar um mero
divulgador de produtos e práticas inócuas, imagens mortiças
de deleites apaziguadores, convalidando as regras dos jogos de
poder e dominação vigentes em seu próprio discurso ressentido.
O perigo e a tragédia do cover. Perigo tão iminente quanto o que
amedrontava o matador Tupinambá, dentro do ritual antropofá-
gico. Único a não comer a carne repartida entre todos, ele iso-
232 Transversões
Erasmo tenha apenas indicado um caminho. O que importa não
é saber se Erasmo é ou não é, de fato, um cover de si mesmo. O
que importa é comer Erasmo (como Adriana Calcanhotto comeu
Caetano – e comemos com ela), o que importa é abocanhar e
deglutir a charada do tremendão e transformá-la em motor e
combustível de criação, fruição e análise artística, imbricados
na máquina do cover. Covermáquina. O que importa é sermos
quem somos e quem não somos e quem passaremos a ser. O
que importa é tensionar a corda do cover para ver até onde ela
aguenta e, aí sim, entendê-la e entendermo-nos enquanto per-
formers, artistas, sujeitos.
Anya Liftig e Marina Abramovic. The Anxiety of Influence / The Artist is Present
234 Transversões
integrantes atua por um ou dois semestres no projeto. Até 2016,
suas criações e apresentações foram circunscritas ao universo aca-
dêmico, vinculadas à estrutura e ao espaço físico da universidade.
O Dança Cover propõe a imitação, a cópia e a reapresentação de
coreografias de artistas consagrados. A partir dos interesses prévios
dos participantes e da condução de Spanghero, alguns emblemáti-
cos criadores e bailarinos foram coverizados: Jérôme Bel, Susanne
Linke, Pina Bausch, Trisha Brown, Cyd Charisse, Ana Botafogo, Luz
del Fuego etc. Nomes que, dentro do circuito da arte contemporâ-
nea, preenchem as quatro exigências do artista coverizável. Mesmo
que relativamente desconhecidos do público brasileiro não especia-
lizado, são artistas que se destacam e são reconhecidos dentro do
seu nicho, da sua comunidade: a potencialidade do artista coveri-
zável é sempre uma potencialidade contextual, específica de um ou
mais grupos de pessoas, em determinado momento ou recorte his-
tórico. Não há cover universal. O que há são covers que nascem de e
para contextos porosos, mas delimitados, respondendo às demandas
e vicissitudes daquelas situações. A escolha de artistas vinculados
prioritariamente à arte moderna e contemporânea faz com que o
raio de alcance dos covers empreendidos pelo Dança Cover seja rela-
tivamente reduzido, dialogando de forma mais eficaz com pessoas
diretamente envolvidas nesse tipo de produção artística.
No processo de estudo e reprodução dos artistas escolhidos,
textos, fotografias e vídeos são as fontes de pesquisa que embasam
o trabalho de cópia, tornando-se “originais”: o registro, o vestígio
deixado pela obra torna-se, ele mesmo, um modelo a ser copiado.
Distante espacial e temporalmente das obras e dos artistas que
deseja copiar, o cover do Dança Cover não copia diretamente a
236 Transversões
(cinestésica) e vivenciada no momento mesmo do ensaio e da
apresentação. Um segundo aspecto pedagógico salientado por
Maíra é a abordagem histórica que o Dança Cover proporciona:
trata-se de uma forma de estudar a história da dança. A cópia
a serviço da investigação e da compreensão da história, não
como fato isolado no passado, mas como ato atualizado na carne
daqueles que se propõem a assim trabalhar. A história reence-
nada, revivida em um ambiente propício a análises e reformu-
lações críticas. O cover como prática pedagógica que contribui
para a formação técnica e sensível de novos artistas.
Há, no entanto, um elemento formal que diferencia as apre-
sentações do Dança Cover das apresentações de covers tradicio-
nais, em sua relação com os espectadores. Preocupado com a
explicitação de suas referências, o cover do Dança Cover nunca
dança sozinho. Ele está sempre acompanhado pela imagem do
artista coverizado: em cena, os espectadores veem não apenas
os bailarinos que dançam ao vivo, mas também o vídeo da core-
ografia copiada, projetado ao lado ou acima dos performers. O
fantasma do original se materializa em forma de videoprojeção e
faz-se presente em cena. Didaticamente intrometida, a imagem
gravada do artista coverizado surge como modelo a ser confron-
tado, como fiel da balança que afere se a cópia está bem feita
ou não: jogo dos sete erros, o cover do Dança Cover permanece
refém não só da memória, mas também do registro visual do seu
original. O objetivo é mostrar e incorporar no trabalho o ponto
de partida do processo de criação, evocando a presença autoex-
plicativa do original. O vídeo como dispositivo metalinguístico
que rasga a cena e lembra o espectador que tudo ali é um grande
238 Transversões
cena, há uma segunda projeção do mesmo vídeo, visível somente
aos bailarinos e que lhes serve de guia para a realização da core-
ografia-cópia. Uma espécie de vídeo-ponto. Os preparativos dos
ensaios não esgotam as possibilidades técnicas da cópia e não
garantem uma precisão prévia dos movimentos: o performer
coloca-se em um certo estado de fragilidade, de incompetência
intencional frente ao original. O cover do Dança Cover não é
um cover profissional: ele é, antes de tudo, como um cantor de
videokê. Amador, o cover-videokê do Dança Cover sobe ao palco
improvisado e, de frente para o televisor que disponibiliza a base
musical e exibe a letra da canção escolhida, canta/dança do seu
jeito a canção/coreografia do seu ídolo.
O preciosismo do movimento exato fica em segundo plano,
sobrepujado pelo ludismo e pela expressividade kitsch do
videokê. Para além da escolha curiosa do repertório, o canto
(ou a dança) do videokê é kitsch porque, ao mesmo tempo
em que expõe festivamente certas competências e, principal-
mente, certas incompetências dos que se aventuram no palco,
também aproxima emotivamente todos os participantes, num
ímpeto gregário que forma um grupo unido em torno do com-
partilhamento de referências, experiências, prazeres e insuces-
sos. Ímpeto gregário que convida e abre o microfone a todos os
presentes. Spanghero:
Porque quando a gente copiar 100%, não interessa mais a nós. O que interessa
é a gente copiar em tempo real. Isso é uma chave importante do projeto.
Claro, a gente treina e ensaia, a gente não chega lá como a primeira vez que a
gente está fazendo. Mas, quando a gente sente que já está fazendo aquilo com
240 Transversões
Em contrapartida, ao partir sempre para um próximo e um
próximo artista a ser coverizado, o performer do Dança Cover
acaba por não se permitir ser habitado mais demoradamente
pelo outro: comparado ao cover tradicional, que dedica toda sua
vida e subjetividade para tornar-se o simulacro de si e do outro,
o cover do Dança Cover é um tanto apressado e impaciente, pas-
sando mais rapidamente por diferentes outros, sem se dedicar
exaustivamente aos detalhes. O Dança Cover faz uma espécie de
passeio turístico – mais panorâmico e iluminado, menos espe-
cializado e underground – pelos caminhos do cover, aprovei-
tando as delícias dos cartões-postais: instantaneidade e ligeireza
que não são menos importantes que abordagens mais demoradas
e detalhistas. A opção de Spanghero por evitar o 100% da cópia
torna seu trabalho mais ágil e descomprometido, no bom e no
mau sentido, e dá conta de uma proposta artístico-pedagógica
que encontra no cover certos elementos metodológicos para a
formação de bailarinos e performers mais conscientes de suas
próprias referências, de suas conexões múltiplas com obras e
artistas que ajudam a formar a sua singularidade criativa.
Procedimentos como cópia, imitação, citação, paródia, refe-
rencialidade, intertextualidade, metalinguagem – junto com con-
ceitos como memória, registro, arquivo, repertório – são comuns
no campo da dança. Na dança contemporânea brasileira, é possí-
vel apontar o trabalho de Cristian Duarte, marcado pela ironia e
elaboradas citações a outros artistas. Em seu espetáculo The Hot
One Hundred Choeographers (2011), Duarte cria um solo a partir
de uma lista autobiográfica de cem importantes nomes da dança
mundial que o influenciaram, materializados em uma coreogra-
242 Transversões
o Dança Cover de Spanghero um cover do Cover de Wiering e van
den Broek? Ou, tal qual o trio Evanney-Nazário-Chacon, ambos
os projetos fazem parte igualmente da constelação de covers que
se esmeram em homenagear, divulgar e experimentar-ser seus
ídolos? Aqui, o cover de si mesmo coveriza elementos-chave que
constituem o “si mesmo” do artista, ou seja, os outros artistas
que o influenciaram e o moldaram dentro dos cânones precários
da arte contemporânea19. Dançar a si mesmo, através da dança
do outro. Copiar a si mesmo, através da cópia do outro. Ser a si
mesmo, sendo o outro.
Alguns aspectos do projeto Cover holandês, junto com outros
artistas e teóricos que tangenciam as questões do cover, são
abordados pela professora da Universidade de Utrecht Maaike
Bleeker, no artigo “(Un)Covering Artistic Thought Unfolding”
(2012). Analisando os espetáculos Urheben Aufheben, de Martin
Nachbar (reencenação de Affectos Humanos, de Dore Hoyer), I
Live, de Daniel Almgren-Recen (a partir da peça Live, de Hans
van Manen), e Les Sylphides, de Nicole Beutler (versão da coreo-
grafia homônima de Michel Fokine), Bleeker utiliza o termo
cover para designar um tipo específico de reperformance e de
reencenação (de re-enactment – expressão anglófona utilizada
para se referir à reencenação ou re-realização de performances)
ligado ao campo da arte, indicando uma abordagem analítica
similar àquela aqui empreendida. A pesquisadora defende que o
ato de reencenar certas peças, reperformar certas performances,
é uma maneira crítica e criativa de colocar-se no lugar do artista
que criou a obra, confrontando passado e presente: “A ‘ideia’
do cover e do ato de coverizar [covering], eu quero argumentar,
19. Aumentando a lista de exemplos, em 2018, os franceses Elsa Michaud e Gabriel Gauthier
apresentaram o espetáculo COVER na Ménagerie de Verre, importante espaço dedicado à
dança contemporânea, em Paris.
destaca como o re-enactment é uma atualização de uma obra
do passado, a partir de uma posição no presente. […] O cover,
pode-se argumentar, é uma atualização diferente da ideia artís-
tica que o original expressa. Essa ideia, às vezes, é transformada
no processo” (BLEEKER, 2012, p. 15).
O cover como ato de pensamento, de repensamento. Repensar
o já pensado como forma de invenção de um novo pensamento.
Reperformar é, portanto, repensar. Um pensamento no corpo,
experienciado no corpo, corporificado, embodied. O performer-
-cover coloca-se no lugar do outro (um outro do passado, mas não
só), buscando vislumbrar e entender as lógicas internas daquele
pensamento (um pensamento em ação), a partir do seu próprio
olhar reterritorializado. O cover como empatia, como exercício de
deslocamento em direção ao outro, vivenciando, compreendendo
e aceitando as vicissitudes do outro. Empatia urgente e necessá-
ria para uma arte que se pretende consciente de si e do mundo,
uma arte conectada e aberta aos atravessamentos do existir –
procurando fugir dos encastelamentos do eu-uno e aventurar-se
nos descaminhos do eu-multidão. O cover reatualiza um passado
escolhido, evocando partes de uma memória que, a princípio,
não pertencia ao reperformer. Atualização que transforma: ao
ressurgir no presente, a obra não é mais a mesma obra, e sim um
nova e reelaborada obra, nascida do e para o novo contexto, no e
para os novos corpos e sensibilidades. No processo do cover, algo
sempre se perde. Mas sempre se ganha algo. A máquina do cover
é implacável, cruel e, por isso mesmo, criadora.
Nesse raciocínio, o original ainda é uma entidade importante
e imprescindível, mesmo que de forma indireta. Ele permanece
244 Transversões
através do retrabalho feito sobre ele, como uma matéria-prima
utilizada e remodelada no processo da reperformance. A per-
manência do original é uma permanência teimosa, como um
porta-retrato amarelado dentro da cristaleira, sempre atento,
sempre contemplativo e contemplável. Uma permanência vinda
do passado, podendo ser um passado recente, recentíssimo: uma
performance realizada há poucas horas já pertence ao passado e
pode ser reperformada segundo esses parâmetros.
No entanto, mesmo concordando com a análise de Bleeker,
mesmo admitindo a presença estratégica da memória de um
original, o que interessa ao cover performático de si é menos
a evocação de um passado e mais a proposição/instauração de
um presente bastante particular. É, junto com Cristian Duarte,
vasculhar as lacunas e as indeterminações do processo da cópia
e da reencenação. É jogar com a memória, é torcer e zombar da
memória, é construir memórias novas, é corporificar memórias
que não estão mais no passado (nunca estiveram), e sim no
tempo presente. É habitar o não saber do corpo-memória que
sabe, é desdenhar do original sendo original, é profanar alegre-
mente o original. O cover como profanação. Entendendo profa-
nação como o processo descrito por Giorgio Agamben (2007):
dessacralizar o sagrado, trazendo-o para o convívio dos mortais;
aproximar da vida das pessoas comuns aquilo que estava dis-
tante e inatingível, antes reservado somente aos deuses e aos
seus sacerdotes (sejam eles quais forem); restituir à vida ordiná-
ria aquilo que tinha sido destacado dela e ascendido à condição
de extraordinário. O cover como profanação da Memória, da Arte
e do Eu. Profanação da Aura, da Originalidade e da Identidade.
246 Transversões
desdobra no/do trabalho original. A obra cover opera uma sele-
ção e um rearranjo de elementos já presentes na obra de refe-
rência mas que, por algum motivo, merecem novos enfoques. O
cover como uma espécie de anticover, uma anticobertura: refazer
para remover crostas e camadas que escondiam sentidos ignora-
dos ou subestimados, para lançar novos e frescos olhares, para
revelar, iluminar, compreender, solucionar ou abrir ainda mais
as questões, para divulgar e compartilhar esses velhos/novos
elementos. Um trabalho árduo e forçosamente criativo sobre o
trabalho de origem, um debruçar-se sobre o original-monumento
para transformá-lo em original-abismo (abismo de rosas?) que
convida ao salto. E não são apenas os elementos formais da
obra que são deglutidos e regurgitados: é o próprio pensamento
artístico mais amplo e genérico invocado e materializado pela
obra que é colocado em questão. Posicionamentos estéticos, éti-
cos e políticos são objeto de análise e des/reconstrução. A obra
e todas as suas implicações e desdobramentos são virados do
avesso, expondo suas entranhas – transformadas em pele, pelos,
mucosas e outras superfícies – para os espectadores.
É bem possível que alguns dos exemplos analisados aqui não
atinjam tal grau de sofisticação e não apresentem todas essas
características suficientemente desenvolvidas, a um só tempo.
Mas é justamente a intencionalidade (e suas estratégias de ação)
colocada nesse processo que mais interessa a esta pesquisa; é o
acionar da máquina do cover (mesmo que, por vezes, seus meca-
nismos necessitem de reparos e correções de engenharia) que
faz com que essa discussão tenha relevância. É nesse sentido
que a prática do cover ganha pertinência não só como técnica
248 Transversões
borando a opinião de Bleeker –, uma das tantas possibilidades de
trabalho sobre o passado e o futuro da performance.
Falar sobre reperformances é mexer em uma questão um
tanto polêmica dentro da teoria da arte da performance. É ques-
tionar, na prática, algumas certezas que pareciam insuperáveis:
questiona-se a unicidade e a irrepetibilidade da ação perfor-
mática. Uma performance nunca pode ser repetida, dizia-se. A
reperformance vem e diz o contrário. E é justamente Marina
Abramovic – a mesma que, do alto do seu lugar de destaque
midiático e institucional, sempre defendeu a irrepetibilidade da
performance – quem vai propor, pela primeira vez, a reperfor-
mance de trabalhos seus e de outros artistas. Na obra Seven
Easy Pieces, realizada em 2005 no Museu Guggenheim de Nova
York, Abramovic propôs o re-enactment de cinco performances já
famosas – Body Pressure, de Bruce Nauman (1974); Seedbed, de
Vito Acconci (1972); Action Pants: Genital Panic, de Valie Export
(1969); The Conditionning, first action of Selfportraits, de Gina
Pane (1973); e How to explain pictures to a dead hare (1965), de
Joseph Beuys – além de duas de sua própria autoria. Estava con-
cedida, pois, a autorização-benção [contém ironia] não só para
a realização como para a validação crítica dos re-enactments.
Nicolas Fourgeaud, em artigo publicado na edição temática
Remake Reprise Répétition da revista Marges – Revue d’art con-
temporain, afirma que, com Seven Easy Pieces, Abramovic passa
a tratar a performance como uma obra dotada de uma notação
verbal e/ou uma espécie de partitura que a torna suscetível de
ser executada diversas vezes sem prejuízo à ideia inicial, desde
que respeitadas as indicações fixadas pelo autor. Analisando
250 Transversões
Interessante é a observação que Fourgeaud faz sobre a
característica epistemológica do re-enactment de Abramovic.
Ao repetir, reencenar, reperformar, o que se advoga é, no fim
das contas, a certeza de que somente através da experiên-
cia direta – entre performer e espectador, entre espectador e
performance, entre performer e obra – é que é possível com-
preender a arte da performance. Somente no instante pre-
sente, atravessando aqui e agora os corpos e sensibilidades
dos envolvidos, é que se pode admitir que o fenômeno per-
formático exista em toda a sua plenitude. O cover (segundo a
nomenclatura de Bleeker) seria responsável por presentificar
o passado da performance, resgatando elementos já vividos e
propondo uma nova e atualizada relação entre os seus agentes.
No entanto, é importante ressaltar que nenhum resgate his-
tórico pode ser considerado neutro ou direto. Antes de tudo,
o re-enactment problematiza a própria história enquanto ele-
mento dado, enquanto memória impessoal e objetiva, revol-
vendo suas pretensas estaticidades.
O re-enactment não diz respeito somente ao passado. Ele per-
tence ao presente e o presente a ele pertence. Se o re-enactment
é instrumento a serviço da história, ele o é na medida em que
opera sobre os vestígios de uma memória coletiva, corporifi-
cando-os no presente, transformando-os em presente: qualquer
semelhança com o que Diana Taylor fala sobre a arte da perfor-
mance e, por extensão, com o que Amanda Konkle fala sobre a
Marilyn Monroe cover, não é mera coincidência. E, ao corpori-
ficar a memória, o re-enactment cria memória, história e seus
próprios vestígios. O re-enactment, assim como o cover, não é
252 Transversões
UFJF, e coordenado pela professora Priscilla de Paula. O tema
escolhido para a primeira edição do evento? Reperformance. Já
interessado no tema do cover e sua relação com as reperfor-
mances, decidi me inscrever na chamada aberta para artistas
e pesquisadores, que deveriam seguir as seguintes exigências,
expressas no regulamento: “Os projetos deverão, incondicional-
mente, basear-se em releituras de performances historicamente
emblemáticas nas artes plásticas e artes sonoras contemporâ-
neas. […] As propostas de releitura podem ser apresentadas em
formatos e linguagens diversos desde que se baseiem em per-
formances historicamente relevantes”. A partir deste estímulo e
querendo participar ativamente do evento junto com os demais
reperformers, propus uma reperformance da já clássica Impon-
derabilia, de Ulay e Marina Abramovic: durante a performance,
realizada em 1977, na Galleria Communale d’Arte Moderna em
Bolonha, os dois artistas ficavam de pé, completamente nus,
um de frente para o outro, na entrada da exposição. Deixavam
apenas uma estreita passagem que poderia ser usada apenas
por uma pessoa de cada vez, pressionando-se contra os corpos,
obrigando a todos a um momento de certa intimidade física.
As imagens fotográficas, relatos, comentários e, principalmente,
a minha pseudomemória – uma memória não vivida, adquirida
quase por osmose, formada a partir da minha relação com esses
elementos de registro – da performance setentista foi o ponto de
partida para o trabalho.
Obviamente, a minha reperformance, batizada de Imponde-
rabilia – lutka na naduvavanje version (Imponderabilia – versão
com boneca inflável, em tradução livre e um tanto irresponsá-
254 Transversões
é substituída por uma das portas internas da Casa de Cultura
da UFJF. Uma porta cover, de uma galeria cover, em uma ins-
tituição cover, em uma cidade cover. Poderia o cover ir tão
longe assim? Durante 60 minutos, eu e minha parceira Brit-
ney recepcionamos o público: nas laterais da porta de passa-
gem, nos posicionamos em pé, nus, um de frente para o outro,
estreitando o espaço para a passagem das pessoas. Dois perfor-
mers: um de carne e osso (eu) e outro de látex e ar (Britney,
uma boneca inflável de sex shop20). Eu-Ulay? Britney-Marina?
Nós nos parecemos – cor do cabelo, cor da pele, maquiagem,
nudez. A boneca é fixada na porta com fita adesiva. Tal qual
Marina e Ulay, nós nos encaramos, fleumática e intimamente. A
ação consiste, como era de se esperar, em permanecer no local
durante todo o tempo de entrada e saída dos espectadores do
recinto, fazendo com que todos, ao passarem pela porta, aca-
bem por tocar os corpos dos performers. Minha maquiagem –
mamilos e genitália pintados com pasta d’água pink, da mesma
cor dos mamilos e genitália de plástico de Britney – mancha
a roupa e a pele dos que passam. Vestígios cor-de-rosa de um
toque e uma fricção sorrateiros, espalhando cor pelos corpos,
peles e roupas de todos.
Uma única reperformance pode instaurar diversas camadas
onde o cover atua. Uma só ação, múltiplos covers, espalhados e
invencíveis como erva daninha: Juiz de Fora é cover de Bolonha
(e também de Nova York e da internet); a Casa de Cultura da
UFJF é cover da Galleria Communale d’Arte Moderna (e também
do MoMA e do Second Life); a porta brasileira é cover da porta
italiana (e também da porta norte-americana e da porta vir-
20. Britney foi uma das minhas primeiras bonecas infláveis, comprada para o espetáculo Los
juegos provechosos (incríveis réplicas de dinossauros robotizados em tamanho natural),
da Companhia Silenciosa, com minha direção, estreado em 2008, na Mostra Cena Breve
Curitiba. Na ocasião, foram comprados dois bonecos, um masculino e um feminino. O
boneco masculino já veio com um nome próprio, impresso na caixa: Justin. Para não deixar
a sua companheira de látex sem nome, o grupo batizou-a de Britney, em homenagem
a Britney Spears, ex-namorada do cantor Justin Timberlake. Justin e Britney me
tual); eu sou cover de Ulay (e também do jovem que performou
em 2010 e do avatar-cover de Franco Mattes); Britney é cover de
Marina (e também da jovem que performou em 2010 e do ava-
tar-cover de Eva Mattes); o público do I FAC é cover do público
de 1977 (e também dos visitantes nova-iorquinos e dos avatares-
-covers que interagiram com a dupla Mattes).
E, novamente, não é só isso. Não contente com as camadas de
cover enumeradas, Britney vai mais além do que qualquer outro
performer ao performar não apenas a ação de Marina/jovem/
Eva-avatar, mas também ao performar a sua própria (ausência
de) vida. Britney é boneca de látex, produzida industrialmente
e em série, e está ali, concreta e inflada com ar e alma, obje-
to-fetiche inanimado que vive tão somente enquanto artista,
enquanto performer. Britney é um ser humano cover. Britney é
cover de ser humano, que é cover de mulher (nesse caso, o que
se espera de uma mulher sexy, sob a ótica sexista e machista
de um fabricante anônimo de brinquedos sexuais, materializa-
ção de um certo imaginário de nossa sociedade patriarcal), que
é cover de Marina/jovem/Eva-avatar, que são covers entre si e
de si mesmas. Esta é a performance de todo boneco inflável –
seja na arte, seja na vida, seja no atraente e cruel (no sentido
artaudiano) mundo do erotismo: ser cover de gente, simulacro
de gente. Ser cover de carne-pele-pelo-mucosa, através da per-
formance sutil de sua carne-ar-pele-plástico-pelo-tinta-muco-
sa-kitsch. Um cover nunca é apenas um cover – um cover é a
simulação radical de todo um universo de vida que zomba de si
e da morte; um simulacro de vida que não é outra coisa senão a
própria vida21.
acompanharam em diversos trabalhos, até a sua morte ritual na performance Minha vida:
esse grande Comic Sans negrito fúcsia, em junho de 2013, no Teatro Novelas Curitibanas.
21. Desde 2008, realizei diversas peças de teatro e performances com bonecas e bonecos
infláveis de sexshop, explorando diferentes formas de atuação e interação: Los juegos
provechosos (incríveis réplicas de dinossauros robotizados em tamanho natural) (2008);
Burlescas (2009); Dilaceração com sangue doce (2009/2014/2015); Cicciolina’s Breakfast
(2011/2012/2014); Minha vida: esse grande Comic Sans negrito fúcsia (2013/2018);
As inúmeras reperformances de Imponderabilia mostram que,
sempre que duas pessoas se postarem nuas no batente de uma
porta, exigindo que as demais pessoas toquem seus corpos ao
atravessar a dita porta, em um contexto propício à recepção
artística (e, em um segundo momento, com pessoas que possam
reconhecer a referência a Ulay e Abramovic), a performance vai
acontecer. Reprodução benjaminiana que garante a perpetuação
da ação artística em qualquer lugar e em qualquer tempo e dilui
a proeminência vivencial do evento de 1977. Imponderabilia não
é mais apenas aquela ação única e irrepetível realizada em Bolo-
nha e que teria sido copiada tantas e tantas vezes por artistas
cover mundo afora. Imponderabilia é, isso sim, o conjunto hori-
zontal e heterogêneo de todas as performances e reperforman-
ces nas quais dois performers executam aquela ação; sendo que
não faz mais sentido conceder privilégios artísticos (de auten-
cidade, de validade) a algo que aconteceu há mais de trinta
anos, em detrimento de algo que acontece agora, no presente
(e também depois, nos tempos presentes que virão), diante de
nós e em nós.
De certa maneira, é possível arriscar que a reperformance
vale-se, nesse sentido, daquilo que Eleonora Fabião chama de
programa performativo: “O programa performativo é o enun-
ciado da performance: um conjunto de ações e regras previa-
mente estipuladas e claramente articuladas a ser cumprido
pelo artista, pelo público ou por ambos sem ensaio prévio. Por
exemplo: ‘empurrar um bloco de gelo pela Cidade do México
até seu derretimento completo’” (FABIÃO, 2011, p. 240). O
programa performativo é o motor conceitual e tático, o gati-
Eu, Neto Machado, agora mostro o que não está aqui (2013); E não é só isso! (2017); La
barca (2018); além de outros pequenos experimentos.
lho propulsor da ação da performance, que se desenrola livre-
mente a partir de seus enquadramentos. Então, o que a reper-
formance retoma e repete não é a performance vivenciada em
si (aqueles fatos e afetos singulares que aconteceram naquela
ocasião), mas sim o programa performativo enunciado pela
performance de referência.
Em uma análise ulterior, postar-se em dupla, nu, em uma
porta etc., pode ser visto como o programa performativo de
Imponderabilia – programa que é retomado tranquilamente por
quem quer que seja, inclusive pela própria Abramovic. E, se é
o programa que determina e define as características básicas e
mesmo o nome da performance, então, cada vez que o programa
é acionado, tem-se diante de si aquela determinada performance.
Cada vez que o programa performativo criado por Ulay e Marina
(mais uma vez, é necessário lembrar que o termo/conceito de
programa performativo surgiu mais recentemente, e nunca foi
utilizado diretamente pela dupla de artistas) é invocado e exe-
cutado – não importa quando nem onde, não importa por quem
–, Imponderabilia acontece. Em outras palavras: sob esse ponto
de vista, todo re-enactment de Imponderabilia, todo cover de
Imponderabilia é, em última instância, a própria Imponderabilia
acontecendo, sempre repetida, sempre diferente.
Uma retificação é necessária: importa, sim, quando e onde a
ação é reperformada; importa, sim, por quem e para quem ela
é reperformada. Cada situação é uma situação, cada corpo é um
corpo, cada espectador é um espectador, cada relação instaurada
é uma relação singular. O cover – já foi dito –, assim como toda a
arte, é contextual, determinado por e determinante das relações
258 Transversões
(de linguagem, de afetos, de poder) que se instauram no tempo
presente, a partir de suas ligações com o passado e com outros
presentes. É por isso que, mesmo repetindo o programa, mesmo
repetindo a ação, o que emerge no cover e na reperformance é a
diferença, materializada nos fluxos de energia e na presença do
instante. O programa performativo repetido pela reperformance
permite que qualquer pessoa (humana ou não humana) possa
refazer determinada obra; da mesma forma, as características
singulares e contextuais dessa “qualquer pessoa” importam, e
muito, nesse processo.
Nesse caminho, a artista e pesquisadora Tania Alice, no artigo
“O re-enactment como prática artística e pedagógica no Brasil”
(2011), chama atenção para um aspecto importante do re-enact-
ment: “Da mesma forma que o site specific anunciava, nos anos
sessenta, um alargamento das fronteiras da arte para além do
edifício de preservação institucional, o ‘time specific’ [do re-e-
nactment] se dá a partir de uma concepção de tempo pós-mo-
derna, que Nicolas Bourriaud, em Radicant, qualifica de ‘estética
da precariedade’” (2011, p. 03).
A recriação que a reperformance propõe não pretende insti-
tuir um monumento perene, estático, um busto em bronze eri-
gido em homenagem ao performer ou à obra original. O que ela
ressalta, pelo contrário, é justamente a precariedade, a efeme-
ridade da arte, da performance. O impermanente, o que muda,
o que difere. Uma memória do corpo, no corpo, através da pre-
sença – e dos efeitos de presença – dos corpos-sujeitos em (rel)
ação. Realizar uma reperformance é ocupar não só um espaço
específico (o espaço da performance, o espaço relacional entre
260 Transversões
atualização me move em direção às minhas próprias inquieta-
ções artísticas?” (ALICE, 2011, p. 04).
Escolher quem deve ser coverizado é sempre uma decisão
importante, que mobiliza tanto o artista/obra eleito, quanto – e
principalmente – aquele que o escolhe. É o antropófago que esco-
lhe o seu inimigo/refeição, sabendo que o processo antropofá-
gico vai marcar indelevelmente os dois (e toda a tribo) pelo resto
da vida. Pois comer e ser comido são ações e estados igualmente
cruciais. Ser cover e ser coverizado, também. Ao contrário do
que possa parecer em um primeiro olhar, o cover não se rende a
uma passividade sem foco, sem desejo. O cover é ativo e obsti-
nado, desejante, responsável por suas próprias escolhas, ciente
dos riscos e implicações que a sua performance traz para si e para
os outros. O cover questiona a si mesmo, assim como questiona
aquele que quer/pode/deve coverizar. Um questionamento per-
formático que pode inspirar reflexões e amadurecimentos artísti-
cos, dentro e fora dos circuitos da arte e da arte-educação.
Paula Oliveira, em Brasília, empenhou-se em demonstrar
a importância didática do cover para os músicos em início de
carreira se desenvolverem tecnicamente. Maíra Spanghero, em
Salvador, faz do Dança Cover (que não é outra coisa senão um
re-enacment voltado a temas da dança) um método de estudo
do movimento, além de propor um dispositivo eficaz de empatia
com o público. Tania Alice, no Rio de Janeiro, com seus alunos-
-reperformers, gerou obras de arte que incitaram relações for-
tes com seu público e reflexões acadêmicas compartilhadas em
diversos suportes. Exemplos não exaustivos (poderiam ser cita-
dos vários outros mais) da pertinência do cover/re-enactment
262 Transversões
O FAKE E O IMPOSTOR: CLAYMARA BORGES & HEURICO FIDÉLIS
Fernando Gonsales
264 Transversões
Heurico atuavam naquilo que poderia ser chamado de “vida real” – a
cidade e seus eventos, as instituições de arte, as rodas de amigos,
a imprensa tradicional, a rádio e o comércio local, etc. O palco de
Claymara e Heurico era o próprio Rio de Janeiro e as demais cidades
que visitaram. Ficção que perfura a fronteira entre arte e vida, plas-
mando-se no tecido cotidiano da urbe. Uma vida real, onde a ficção
e o entretenimento têm um onipresente papel.
Mas nenhuma fama sustenta-se sem trabalho e obstinação. Se
o passado de glória da dupla tinha sido inteiramente inventado e
era apresentado com uma desfaçatez inquebrantável, o presente
de sucesso era, de fato, real. Assim como dinheiro gera dinheiro,
sucesso também gera sucesso. Mergulhados de cabeça no circuito
autoalimentado do mundo do entretenimento, Claymara e Heu-
rico viram seu sucesso “de mentira” transformar-se em sucesso
“de verdade”. Nos quase seis anos de atuação ostensiva da dupla,
entre 1991 e 1996, não faltaram aparições, ações e reverberações
em diversos nichos da cultura pop. Figurinhas fáceis nos círcu-
los artísticos do eixo Rio-São Paulo, Claymara Borges e Heurico
Fidélis alcançaram muito mais sucesso do que inúmeros artistas
“autênticos”. Sua agenda de trabalho era tão intensa (acompa-
nhada, muitas vezes, de consideráveis cachês), que é impossível
ousar afirmar que eles não eram “de verdade”. Como dizer que
Claymara e Heurico não existiam, que não eram reais? Afinal, o
que é ser real? Apoiada por uma rede de amigos e simpatizantes,
a dupla realizou shows, exposições, desfiles de moda, lançou uma
grife de roupas e acessórios, participou de programas de televi-
são e rádio, cantou e vendeu seus produtos em eventos de moda
e feiras agropecuárias, abriu uma loja em Niterói, dentre outras
266 Transversões
Ecoando as críticas e ironias da pop art de Andy Warhol,
Lucília e Alexandre criaram uma obra performática que explicita
e questiona o modus operandi da indústria cultural capitalista
(em suas matizes brasileiras), habitando e atuando dentro da
própria estrutura que pretendiam problematizar. O mundo das
celebridades, da fama fácil, das taças de prosecco, dos flashes
e das revistas de fofoca, dos tecidos e esmaltes cintilantes e
dos rostos escondidos pela maquiagem, das roupas e joias de
grife, da compra e venda de sonhos e desejos, da transformação
de tudo e todos em mercadoria a ser negociada, do business,
do show business. Claymara e Heurico debocham de tudo isso,
sendo tudo isso.
268 Transversões
característica do que é hipócrita; falsidade, hipocrisia, fingi-
mento. 4 p. ana. afetação de importância, bazófia, paparrotada.
5 presunção, vaidade exagerada; imposturia. 6 p. met. tira de
pano preso ao anzol como isca para peixe; engodo.” (HOUAISS;
VILLAR, 2001, p. 1583).
Claymara e Heurico são impostores. Mas a quem eles que-
rem ou conseguem enganar? Qual é a fraude que eles cometem?
Que peixe eles querem pescar com o seu pano preso no anzol?
A impostura surge como estratégia criativa e performática que
coloca em xeque o domínio da Identidade, do Verdadeiro, do
Previsível, do Mesmo. O impostor é o algoz do Mesmo: simulacro
de identidade, simulacro de gente que embaralha a certeza e a
esperança em um mundo imutável e domesticável. O impostor
desafia a verdade criando uma nova verdade. Uma performance
da impostura pode ser uma performance irônica e subversiva,
que brinca com os estilhaços da identidade, criando novas iden-
tidades, para mostrar que não há identidade una possível, para
dizer que toda identidade é mera construção mais ou menos
consciente e que, por isso mesmo, pode ser recriada e revivida. É
bom lembrar, entretanto, que toda impostura é ambivalente (ou
multivalente): nem sempre seus dotes iconoclásticos são utili-
zados de forma libertária ou ética. Assim como a ironia e outros
métodos de desconstrução, a impostura pode servir aos mais
variados propósitos, dos mais aos menos elogiáveis.
É possível relacionar a prática da impostura com aquilo que
Fabio Salvatti aponta como uma das formas de ativismo político
contemporâneo: o prank. Salvatti define que “um prank é um
golpe, um trote, um chiste, ainda que sua tradução se perca
270 Transversões
Engenheiros do Hawaii, olheiro da seleção, campeão de jiu-jítsu,
repórter da MTV, produtor do Domingão do Faustão, líder do PCC
etc. Mas sua mentira mais emblemática foi se passar por Henrique
Constantino, filho do dono da Gol Linhas Aéreas, no Recifolia, em
Recife, em 2001. Durante quatro dias, “Marcelo foi paparicado por
ricos e famosos (ele garante ter transado com duas celebridades),
entrevistado por Amaury Jr., fotografado para colunas sociais.
De quebra, pilotou um helicóptero e um jato particular cedidos
por empresários que se tornaram íntimos do executivo da Gol em
questão de minutos. Foi preso no Rio de Janeiro pela Polícia Fede-
ral, depois de transportar no tal jatinho os globais Marcos Frota,
Carolina Dieckmann e Ricardo Macchi” (CALIL, 2011).
Marcelo é impostor inveterado, sempre se aproveitando da
credulidade e da ambição das pessoas que se aproximavam dele
com o intuito de também tirar proveito da suposta amizade. Diz
ele, em uma entrevista: “Nunca tirei nada forçado de ninguém.
Muito pelo contrário, todos me ofereciam tudo. Então, não me
considero um criminoso. Me considero, sim, uma pessoa com
grande poder de persuasão, apenas isso” (ROCHA apud MAIA
JUNIOR, 2011). Casos como o de Marcelo não são raros. O que
chama a atenção, contudo, é aquilo que o impostor alega em
prol de sua inocência: ele não forçou ninguém a nada, foram
as próprias pessoas que foram até ele e validaram a identida-
de-prank que ele lhes apresentava gentilmente. A atribuição da
identidade – e de todo o valor que ela pode ter – parte do outro,
em sua vontade de catalogação e referencialização. Ao menor
indício de identidade (uma frase como “Olá, eu sou o filho do
dono da Gol”, por exemplo), fixa-se apressadamente a tal iden-
272 Transversões
tos e informações. No universo da internet e das redes sociais,
um fake é muitas vezes um perfil falso, um avatar fingidor, um
robô (um bot) que esconde ou altera a “verdadeira identidade”
de seu criador-usuário de carne e osso, simulando uma identi-
dade sem referência concreta no mundo “real”. Como o impostor,
o fake é aquele que finge ser o que não é, para obter algum tipo
de benefício: seja para manter a segurança do anonimato, seja
para atender certas expectativas que ele precisa cumprir para ser
aceito e/ou admirado por outrem, seja para fraudar algum pro-
cedimento legal-econômico-político-jornalístico-etc., seja para
piratear e sabotar sistemas instaurados de poder e legitimação.
O fake é, portanto, uma das manifestações possíveis do simula-
cro, enquanto cópia que não copia nada além de si mesma.
Claymara e Heurico são fakes na medida em que escondem
a “verdadeira identidade” de Lucília e Alexandre, simulando
uma vida especialmente criada para ser e agir dentro das engre-
nagens do pop. São fakes porque aceitam as regras do jogo e
se esforçam por materializar ironicamente em si essas regras.
Assim, Claymara e Heurico são covers de todos os artistas/ído-
los fabricados ao longo da história. Não de um artista ou dupla
de artistas específicos, mas de todos aqueles que “se venderam”
à máquina do pop, daqueles que desejaram e/ou conseguiram
ter seus quinze minutos de fama. Artífices e artefatos da repro-
dutibilidade técnica, Claymara e Heurico são como reproduções
múltiplas que desconhecem um original: eles não são ninguém,
pois são todo mundo. O cover performático surge como corpo-
rificação enviesada e crítica de um certo imaginário de sucesso
e (não) originalidade; como aparição concreta de um estranho
274 Transversões
gem pelos EUA na década de 1970, passando por Flórida, Texas,
Califórnia e cidades como Nova York, Las Vegas e Nova Orleans.
Ao analisar sua visita à Lyndon B. Johnson Library, na qual
se depara com uma reconstrução (uma “reencenação”) mili-
métrica do gabinete do ex-presidente, Eco sublinha algumas
características importantes do fake: “Para falar de coisas que se
pretende conotar como verdadeiras, essas coisas devem pare-
cer verdadeiras. O ‘todo verdadeiro’ identifica-se como o ‘todo
falso’. A irrealidade absoluta se oferece como presença real. No
gabinete reconstruído, a ambição é fornecer um ‘signo’ que
se faça esquecer enquanto tal: o signo aspira a ser a coisa, e
a abolir a diferença do remeter, a mecânica da substituição”
(ECO, 1984, p. 13).
Qualquer semelhança entre o “todo falso” (chamado de Falso
Absoluto em outros trechos do livro) e o kitsch não é mera coin-
cidência. A reencenação do fake é a reencenação do kitsch, que
se desdobra na reencenação do cover. Na buliçosa realidade do
fake-kitsch-cover, não basta – ou nem é necessário – ser verda-
deiro, é preciso parecer ser verdadeiro. A aparência, a superfície,
é a realidade do fake. Afinal, o “plano maligno” do fake é destro-
nar o verdadeiro, tornando-se, ele próprio, o verdadeiro. O fake
não é outra coisa, o fake é a coisa. Assim como o simulacro e o
cover, o fake é. Mais adiante, Eco faz uma leitura dos prodígios
tecnológicos e dos efeitos mirabolantes da Disneylândia, compa-
rando a biosfera de metal e plástico do parque de diversões com
a biosfera “real” da natureza: “A Disneylândia não só produz
ilusão, mas – ao confessá-la – estimula seu desejo: um crocodilo
verdadeiro também se encontra no jardim zoológico, e quase
276 Transversões
reçam em veículos da mídia tradicional e em pronunciamentos
de políticos, empresários etc. Como a boa e velha fofoca, as fake
news correm na boca do povo, telefone sem fio maldoso e fuxi-
queiro que difunde informações inventadas ou presumidas e
sem nenhum compromisso com a realidade factível e verificável.
Para os consumidores de fake news, não importa se a informa-
ção recebida e encaminhada é verdadeira: basta que ela pareça
ser verdadeira, que ela seja verossímil e, principalmente, que se
encaixe na opinião prévia de quem a recebe/repassa, corrobo-
rando visões de mundo já prontas e desinteressadas em qualquer
tipo de reflexão ou (auto)crítica. As fake news sussuram: uma
mentira (ou uma inverdade) que valida e reforça a minha opinião
(e a minha identidade) é muito melhor do que uma informação
verdadeira que questiona as minhas convicções e tensiona o que
eu penso de mim mesmo e do mundo. Obviamente, o consumidor
de fake news – e o termo consumidor não é utilizado à toa, posto
que o que se estabelece é uma relação capitalística de oferta
e demanda de informações fictícias e aprazíveis – não admite
que consome fake news: inquirido, ele alega que as notícias que
recebe e aceita são verdadeiras, e que todas as outras notícias
que rechaça são, elas sim, falsas. Torção mal-intencionada da
afirmação de que a verdade é relativa, a atual onda mundial de
fake news expõe, também, as entranhas das disputas de poder
(econômico, governamental) baseadas nas disputas das subjeti-
vidades de todos e de cada um.
O fenômeno submidiático que culminou nas eleições de
Donald Trump, nos Estados Unidos, em 2016, e de Jair Bolso-
naro, no Brasil, em 2018, mostra como as fake news podem ser
278 Transversões
sua sonoridade, seu comportamento são escandalosos, cheios de
pose, brilho e diversão. E, assim, não é à toa que a vida de
Claymara e Heurico era, por vezes, muito mais interessante que
a vida de Lucília e Alexandre.
LUCÍLIA: Mas, de uma certa forma, a gente foi se divertindo muito com isso.
A gente só pensava nisso. Para a gente viver sendo eles, não custaria. Depen-
dendo da demanda de trabalho, e ter que estar nos eventos como performers,
a gente faria eles tranquilamente. Porque eu mesma que escrevia os textos,
e ficava fabricando as coisas, o tempo todo. Então, tua cabeça fica meio
assim... Não custa nada você viver para isso.
HENRIQUE: Porque eles não eram personagens de palco, né? Eles tinham toda
uma vida...
LUCÍLIA: Todo um universo! Tem onde eles nasceram, onde se conheceram,
quem eram os pais... A gente criou tudo isso.
ALEXANDRE: É como ela falou sobre a demanda. Quando a gente ia em algum
lugar, até preferia ir de Claymara e Heurico! Era muito mais divertido!
LUCÍLIA: Era muito mais divertido estar como eles do que como a gente! Por que
a gente vira isso [aponta para si mesma], fica chato... (ASSIS; DACOSTA, 2016).
280 Transversões
é Gislaine que é Claymara. Alexandre é Douglas que é Heurico.
Ou seria ao contrário?
Convidados por programadores culturais para retomar o
projeto Claymara Borges e Heurico Fidélis, Lucília e Alexan-
dre ponderaram e concluíram que não fazia mais sentido res-
suscitar a dupla brega. Afinal, todos os quatro já tinham
envelhecido e seguido as suas vidas: Alexandre continuou
seus projetos de música e artes visuais; Lucília atuou como
dramaturga, roteirista e atriz. Já Claymara e Heurico haviam
sumido completamente, fugindo do assédio dos fãs, buscando
uma vida fora dos holofotes – há a teoria, inclusive, de que
fizeram diversas cirurgias plásticas faciais para não serem
mais reconhecidos na rua, fazendo com que pudessem ser
confundidos com qualquer um, e não mais com eles mes-
mos. Essa teoria é apresentada por Douglas e Gislaine em seu
show, fazendo com que qualquer pessoa na plateia possa ser
Claymara ou Heurico disfarçados. Estariam Claymara e Heu-
rico entre nós, sem que saibamos? Estariam eles lendo este
livro, no conforto do anonimato?
Uma vez que a dupla fake-original não está mais acessí-
vel no show business, entra em cena a dupla fake-cover: ideia
proposta por Lucília para resolver o impasse do convite para
a volta do Casal Vinte do brega noventista. (A existência de
algo fake-original já é, por si só, digna de nota. O fake-original
torce e frustra a linearidade entre original e cópia, imitador
e imitado, realidade e ilusão. O fake-original é o corolário da
ausência e da impossibilidade de um original fundante. O fake-
-cover é a redundância que cintila em toda sua irrealidade e
282 Transversões
LUCÍLIA: Eu até tentei que a Gislaine tivesse uma voz pior, mas não fui fundo
nisso. A ideia era que a gente [referindo-se a Gislaine e Douglas] era tão
semelhante, que a gente perseguiu tanto aquela semelhança... Mas e agora,
como eles [referindo-se a Claymara e Heurico] estão? Você pode ser ele. Eu já
estou mais parecida com eles do que eles mesmos. E eles podem ser qualquer
um. Eles podem ter feito mudança de semblante, fizeram plásticas para poder
andar tranquilamente no meio do povo. Cansaram do ônus... Então, a gente
ficou mais dentro dessa história: de que nós éramos eles, mas quem eram eles?
Cadê eles? Eles não eram mais eles mesmos. Esse era o nosso bordão: “Eles
não são eles mesmos. E você também não será o mesmo depois de assisti-los!”
ALEXANDRE: O Douglas, por exemplo, era muito mais animado do que o Heu-
rico. Ele era mais alegre. O Heurico era mais fechado. Tinha algumas diferen-
ças, mas não era nada muito grande. Eram mais jovens, também. Mais ani-
mados. […] Porque o cover tem uma imaginação, ali, quando ele faz o cover.
A própria Gislaine e o Douglas, eles eram imaginativos ali. Eles não estavam
só homenageando e cantando igualzinho. A gente não estava preocupado em
cantar igualzinho, no nosso caso, a nós mesmos. É claro que o cover normal
vai querer cantar igualzinho, mas ele vai criar! Isso é que é incrível. Os covers
criam! (ASSIS; DACOSTA, 2016).
LUCÍLIA: Eu até tentei que a Gislaine tivesse uma voz pior, mas não fui fundo
nisso. A ideia era que a gente [referindo-se a Gislaine e Douglas] era tão
semelhante, que a gente perseguiu tanto aquela semelhança... Mas e agora,
como eles [referindo-se a Claymara e Heurico] estão? Você pode ser ele. Eu já
estou mais parecida com eles do que eles mesmos. E eles podem ser qualquer
um. Eles podem ter feito mudança de semblante, fizeram plásticas para poder
andar tranquilamente no meio do povo. Cansaram do ônus... Então, a gente
ficou mais dentro dessa história: de que nós éramos eles, mas quem eram eles?
Cadê eles? Eles não eram mais eles mesmos. Esse era o nosso bordão: “Eles
não são eles mesmos. E você também não será o mesmo depois de assisti-los!”
ALEXANDRE: O Douglas, por exemplo, era muito mais animado do que o Heu-
rico. Ele era mais alegre. O Heurico era mais fechado. Tinha algumas diferen-
ças, mas não era nada muito grande. Eram mais jovens, também. Mais ani-
mados. […] Porque o cover tem uma imaginação, ali, quando ele faz o cover.
A própria Gislaine e o Douglas, eles eram imaginativos ali. Eles não estavam
só homenageando e cantando igualzinho. A gente não estava preocupado em
cantar igualzinho, no nosso caso, a nós mesmos. É claro que o cover normal
vai querer cantar igualzinho, mas ele vai criar! Isso é que é incrível. Os covers
criam! (ASSIS; DACOSTA, 2016).
22. O adjetivo multividuais remete ao conceito de multivíduo, proposto por Massimo Canevacci.
Em entrevista ao jornal Beiro do Rio, da Universidade Federal do Pará, o antropólogo diz:
“O conceito de multivíduo modifica o conceito clássico de indivíduo – palavra de origem
latina que, por sua vez, traduz a palavra grega ‘atomom’, cujo significado é ‘indivisível’. O
multivíduo é um sujeito divisível, plural, fluido. Ubíquo. Um mesmo sujeito pode ter uma
multiplicidade de identidades, de ‘eus’ e, assim, multividuar a sua subjetividade” (CANEVACCI,
2016). Nesse sentido, é possível afirmar que o cover é um multivíduo explícito.
A liberdade do cover performático. Uma liberdade crítica
que aponta para si mesma e, assim, aponta para o outro. E sua
liberdade baseia-se em uma rigorosa observação: observar a si
mesmo, observar o outro em si, observar a si no outro, observar
a si como outro. Observar-se para criar-se. O cover performático
mostra ao mundo que todos e qualquer um também podem se
observar e mergulhar nesse turbilhão, gozando das intensida-
des e das possibilidades do ser e do não ser. Claymara Borges e
Heurico Fidélis, Douglas e Gislaine, Lucília de Assis e Alexandre
Dacosta, todos eles são os anfitriões desse festim.
286 Transversões
É com esse mote que o artista mineiro Ricardo Alvarenga inicia
o relato sobre a sua obra Jesus 3:30 pm, performance realizada
de 28 de junho de 2012 a 28 de junho de 2013. Habituado com
o apelido pseudorreligioso, Alvarenga decide aceitar o óbvio: se
tantas pessoas o veem como Jesus Cristo e se Jesus Cristo é esse
ser idealizado e visualizado por essas mesmas pessoas, então
deve haver, de fato, algo de Jesus Cristo em sua figura, em seu
corpo. Algo de Jesus Cristo ou o próprio Jesus Cristo. Mas o que
fazer com essa constatação? Como lidar com a presença de algo
ou alguém que se cola como uma sombra em um corpo-ima-
gem que não lhe pertence? Como dialogar com esse inusitado
interlocutor? Como tensionar e problematizar esse nome, essa
identidade imposta pelos outros, sem necessariamente refutá-
-la? Como ser alguém que não é você, mas que todos dizem que
é você? Como ser alguém que não é você, sendo você? (Quem é
você, afinal?) Como aproveitar as vantagens desse curto-circuito
identitário, dessa dupla personalidade postiça?
Assim como todo artista atento ao seu contexto, ao seu lugar no
mundo e aos atravessamentos que o conduzem pela vida, Alvarenga
faz disso um estopim para sua arte: se os caminhos sinuosos da
imagem e da semelhança o levaram até Jesus Cristo, é esse encontro
semitranscendental que serve de base e fio condutor para uma nova
criação artística. É o artista que incorpora em si e em sua obra as
questões que o instigam na vida. Mas não se trata de uma criação
qualquer, uma performance qualquer: se a nomeação (“Ei, Jesus!”)
acompanha Ricardo cotidianamente ao longo da vida, então ele vai
perseguir a nomeação no mesmo ritmo e intensidade (“Sim, eu sou
Jesus”). Uma performance da (auto) perseguição.
288 Transversões
sem exceção. Não importa onde, não importa em que situação. Como
um funcionário que bate cartão, Alvarenga segue pontualmente suas
obrigações. Ricardo pode estar em casa, na rua, em uma praça, na
fila do banco, no supermercado, no avião, na sala de aula apresen-
tando um trabalho acadêmico, em uma festa religiosa, na praia, em
uma igreja, em uma procissão, na casa de amigos, em um banheiro
químico, em um cemitério. O lugar e a situação podem ser planeja-
dos ou surgidos ao acaso, montados ou apropriados, intencionais ou
inesperados. O que importa é seguir a regra e manter o jogo. Por isso,
ele sempre sai de casa com sua mochila, contendo a roupa de Jesus,
um pequeno tripé e uma máquina fotográfica simples. Compromisso
firmado e cumprido: uma ética que conduz o trabalho e garante sua
realização. Uma ética de performer, uma ética de artista. Um artista
que hesita, mas que não se deixa cair, que investe e dobra a aposta no
próprio trabalho, que resiste e persiste. O programa performativo de
Jesus 3:30 pm aciona um corpo-Jesus que sempre esteve ali. Um cor-
po-Jesus que provoca reações e relações bastante particulares, tanto
no performer quanto naqueles que o testemunham. Influenciado
pelos escritos de Eleonora Fabião, o programa performativo proposto
por Alvarenga busca esses acionamentos.
Programas são meios para criar corpo e relações entre corpos. Programas
criam corpos naqueles que os performam e naqueles que são afetados pela
performance. Programas anunciam que corpos são sistemas relacionais aber-
tos, altamente suscetíveis e cambiantes. A biopolítica dos programas perfor-
mativos visa a gerar corpos que ultrapassam em muito os limites da pele do
artista. Se o performer investiga a potência dramatúrgica do corpo, é para
disseminar reflexão e experimentação sobre a corporeidade do mundo, das
290 Transversões
um posicionamento e um reposicionamento de todas as pessoas
que participam do momento no qual Ele aparece e permanece.
Ao longo de um ano, foram realizadas 365 ações, em 365 situa-
ções e contextos diferentes, e produzidas mais de 700 fotografias.
Uma vez por semana, Ricardo selecionava uma fotografia, dava-lhe
um título e publicava-a em seu perfil no Facebook. Um acervo
virtual e aberto de mais de 60 imagens, acompanhando a trajetó-
ria de Jesus-Alvarenga-Ricardo-Cristo. Jesus 3:30 pm aconteceu,
então, em pelo menos dois suportes: um deles, o plano concreto
das ações presenciais, onde era possível ver e mesmo falar/tocar
o performer em ação, testemunhando as ações do artista desde os
preparativos até a realização da fotografia, passando pelas suas
interações com o espaço e os habitantes do espaço; o outro, o
plano virtual das redes sociais, onde era possível ver a fotografia
final, já tratada, editada e intitulada e perceber a linha condutora
e o desenvolvimento geral do trabalho. O primeiro plano/suporte
aconteceu nas cidades de Salvador e praias próximas dali, Jequié,
Teresina, São Luís, Goiânia e Uberlândia. O segundo plano/suporte
aconteceu e ainda acontece em qualquer lugar onde exista um
aparelho conectado à internet, com acesso ao Facebook.
Há ainda outro desdobramento/suporte do trabalho: em mea-
dos de 2013, Ricardo foi convidado para ocupar, junto com Alex
Oliveira, três outdoors em Vitória da Conquista, Bahia. A dupla
de artistas criou a intervenção A Paixão de Cristo: um tríptico
composto por duas imagens de Ricardo-Cristo nas águas do mar,
ladeando um outdoor onde se vê Jesus-Alvarenga beijando apai-
xonadamente um homem. Ironia, provocação, blasfêmia, dessa-
cralização, direitos humanos – abandonando, por um momento,
292 Transversões
o cover não quer ser verdadeiro, ele quer parecer verdadeiro. O
que interessa ao cover de Alvarenga é antes toda a iconografia
que se construiu ao longo dos séculos e acabou por convencionar
e divulgar uma imagem específica de como seria Jesus Cristo. O
modelo do Jesus-cover não é nada além da imagem que a tradição
cristã (católica apostólica romana, em especial) tratou de fixar.
O original do Jesus-cover não é Jesus, mas sim a imagem-Jesus
reverenciada no rito e no imaginário católico. O cover como mate-
rialização da tradição, jogo com a tradição. O cover como corpo-
rificação de uma iconografia festejada e vivenciada no cotidiano.
A construção desse corpo-imagem passa pela criação, con-
fecção e uso do figurino. Tal qual a Marilyn-cover esmera-se
em portar roupas características da loira do cinema, tal qual os
Robertos-cover investem pesado em compor guarda-roupas com
peças unicamente brancas e azuis, assim também o Jesus-cover
possui a sua túnica e o seu manto. Se comumente o figurino
é o elemento que ajuda a definir as características pessoais da
personagem – gênero, idade, grupo social, localização e contexto
histórico, posicionamento político, dentre outras –, indicando
os traços principais da identidade da personagem, então a roupa
do cover é um de seus mais destacados componentes23. Não é
à toa que a palavra inglesa cover se relaciona à ideia de vesti-
menta, de cobertura que protege/esconde o corpo. O cover veste
e é vestido. O cover é roupa que envolve e modifica aquele que
o veste. O cover como roupa, vestimenta, figurino que investe
o seu portador da(s) identidade(s) que o carrega. Uma identi-
dade de tecido, costurada por mãos nada inocentes, cobrindo/
escondendo/protegendo/modificando as peles e as subjetivida-
294 Transversões
foi, de certa forma, muito volumoso. Colocar aquela roupa me dá volume. Eu
não posso negar que isso afeta, afeta meus sentidos, minha percepção, minha
existência naquele momento (ALVARENGA, 2016).
E então eu fui para o cemitério, com Paulinha e mais um cara. Com muito medo
do que poderia acontecer. E eu fiquei andando calmamente lá. Duas senhoras
me seguiram o tempo todo. Eu estava indo embora, e uma delas tocou no meu
ombro, já no portão de saída. Ela falou: “Você está indo embora?”. Eu falei:
“Estou”. E ela: “Não vá embora agora. Venha proferir algumas palavras para
a gente”. Eu respondi para ela: “Eu vim aqui só de passagem. Não vim para
falar nada”. Ela insistiu: “Eu sinto que você está preparado para falar para a
gente!”. E eu: “Sim. Mas realmente eu vim só de passagem. Não vim para falar
nada”. Ela olhou no meu olho e disse: “Eu entendo”. Aí conversamos mais um
pouco, ela apresentou a irmã dela, e agradecia muito. Eu comecei a ficar muito
incomodado, pensando: “Ela realmente está acreditando que está conversando
com Jesus...”. E começou a me dar uma crise ética... Eu pensei: “Vou pergun-
tar o nome dela. Se ela perguntar o meu nome, eu vou dizer que é Ricardo”.
Eu perguntei: “Qual é o seu nome?” Ela olhou bem dentro do meu olho, e
falou: “Jesus. Maria de Jesus”. Eu disse: “Ok... Eu aceito” (ALVARENGA, 2016).
296 Transversões
Esse e outros casos similares mostram como o cover pode desper-
tar sentimentos contundentes nas pessoas que com ele têm contato.
O Jesus-cover de Alvarenga é um Jesus-kitsch que seduz e cativa,
oferecendo proximidade e acessibilidade, promovendo encontros
que seriam impossíveis caso a única opção fosse esperar a volta
do filho de Deus à Terra. Um Jesus-kitsch que retorna antes do dia
do Juízo Final – uma espécie de apocalipse de plástico, de fim dos
tempos com glitter dourado –, permitindo uma convivência muito
mais amena e sem os rigores e sofrimentos exigidos no último livro
da Bíblia. Se o cover corporifica uma memória e uma expectativa
coletivas, trata-se de um memória e uma expectativa editadas e
reelaboradas para se comunicar com aqueles que o desejam.
Ao profanar a figura de Jesus Cristo, Ricardo Alvarenga evidencia
toda a ficcionalidade que o personagem mítico carrega. Na perfor-
mance de Alvarenga, Cristo deixa de ser o ser divino da Santíssima
Trindade e passa a ser apenas mais um personagem de literatura dra-
mática ou história em quadrinhos. Ao descer dos céus, Jesus assume-
-se como ícone pop mundano e permite-se copiar e reproduzir, trans-
formando fiéis em fãs e a si mesmo em superstar. Uma vez explícita
a ficção-Jesus, abre-se para ela o vasto mundo do pop. Ao vestir-se
de Jesus, ao comportar-se como Jesus, ao tratá-lo como personagem
de ficção, Alvarenga faz não só um cover, mas um cosplay de Cristo.
Jesus-cosplay, Alvarenga-cosplayer. Se há pessoas que fazem
cosplay de Darth Vader, Wolverine, Mulher-Gato, Pequena Sereia,
Batman, Mulher-Maravilha, Asterix, Harry Potter, Cavaleiros do
Zodíaco (e de uma infinidade de outros personagens), por que não
haveria alguém para fazer cosplay de Jesus Cristo? O cosplay pode
ser entendido, grosso modo, como um cover não de uma pessoa
298 Transversões
No texto de abertura do livro Cena cosplay: comunicação, con-
sumo, memória nas culturas juvenis, Mônica Rebecca Ferrari Nunes
chama atenção para o caráter subversivo do cosplay, entendendo-o
como estratégia contemporânea de subjetivação: “O cosplay, com-
preendido como metonímia das narrativas hegemônicas, mangás,
animês, entre outras, reinventa a narrativa original no corpo dos
jovens por meio das materialidades consumidas; em consequência, o
cosplay configura um processo de uso, apropriação e ressignificação
de enredos e personagens, em qualquer situação, da recriação das
histórias, como na categoria ‘play livre’, já comentada – presente em
muitos eventos –, à confecção do indumento” (NUNES, 2015, p. 45).
Separados no berço, o cosplay e o cover são práticas irmãs que
têm na precariedade e na antropofagia sua principal marca estética:
criação de imagem, de comportamento, de sujeitos. Cópia autodi-
data de algo que nunca existiu no mundo concreto não ficcional, o
cosplay é cópia da cópia, cover do cover. Copiar, imitar, construir,
confeccionar, interpretar, simular, vivenciar: palavras-chave de uma
arte que devora e é devorada na frenética velocidade do pop. Cover
e cosplay são produtos bastardos da mídia e do entretenimento:
ninguém melhor do que eles, portanto, para compreender os seus
meandros e propor novas configurações subjetivantes.
Encerro esta análise lembrando que Ricardo Alvarenga não é
o primeiro e, provavelmente, não será o último a encarnar Cristo,
a acreditar (mesmo que de viés e criticamente) que é, de fato, o
filho de Deus. A máquina de reprodução do cover é implacável e
incansável, e os Jesus-cover multiplicam-se infinitamente. Uma
multidão de Cristos pulula em todo canto, fazendo com que não
seja mais possível saber quem seria a “verdadeira” reencarnação
Após praticar o Ato Libertário em Belém do Pará que culminou com o nas-
cimento da SOUST, obediente à ordem de seu PAI, SENHOR e DEUS, INRI
CRISTO oficializou a instituição da Nova Ordem Revolucionária no 2º Cartório
de Registro de Títulos e Documentos de Curitiba, em 20/04/1982, assesso-
rado juridicamente pelo advogado Dr. Edson Centanini. A SOUST constitui-se,
portanto, na formalização do Reino de DEUS sobre a Terra, na formação de
“um só rebanho e um só pastor” (João 10:16). E já nos estatutos de fundação
estava previsto que a sede da SOUST deveria ser transferida para a capital
24. Quatro figuras inusitadas que habitam há décadas o Centro da capital paranaense: Plá é um músico
que veste apenas roupas de algodão cru e sandálias de couro e canta suas composições próprias
de protesto, com seu violão monocórdico, ao mesmo tempo em que estende um grande tecido no
chão para expor e vender suas poesias, desenhos e biscoitos artesanais; Oil Man é um homem com
seus 40 e tantos anos, cabelos presos em um pequeno rabo-de-cavalo, que caminha calmamente
empurrando a sua bicicleta com as mãos, vestindo apenas uma pequena sunga e um par de tênis,
com o corpo todo coberto com óleo de bronzear, em qualquer época do ano, mesmo no rigoroso
federal, Brasília, que é a Nova Jerusalém do Apocalipse c.21. Depois de apro-
ximadamente dois meses em Belém, chegou o momento de voltar a Curitiba
a fim de estabelecer a sede provisória da SOUST, onde INRI CRISTO iria per-
manecer até o ano 2006. Justo por haver sido a cidade onde viveu o maior
período de sua vida profana, e também por ser a segunda capital mais alta
do Brasil, era necessário que INRI permanecesse o longo período da reprova-
ção que o esperava na capital paranaense, cumprindo-se o que está previsto
em Lucas c.17 v.25 a 35, no que concerne à segunda vinda de Cristo: “Mas
primeiro é necessário que ele sofra muito e seja rejeitado por esta geração.
Assim como foi nos tempos de Noé, assim será também quando vier o Filho do
Homem”. Ao chegar em Curitiba, já acompanhado de sua primeira discípula,
Abeverê, INRI estabeleceu-se no bairro Alto Boqueirão, recebendo o aviso de
seu PAI e SENHOR de que ali seria um grande laboratório onde iria estudar
em cobaias vivas a verdadeira sociologia, que não se aprende nos livros ou
nas academias terrestres, necessário para o cumprimento de sua missão. INRI
foi amado por alguns, incompreendido por muitos. Na condição de apátrida,
INRI experimentou na carne as vicissitudes de viver no século dos corações
duros. […] INRI recebeu a ordem de seu PAI de que deveria permanecer em
Curitiba até que o povo daquela cidade não o chamasse por outro nome a não
ser INRI CRISTO, e quando isso acontecesse, era o sinal de que seu tempo ali
havia se cumprido. […] Quem divulgar esta mensagem será agraciado com
bênçãos do céu (Trecho do texto “Belém-Curitiba-Brasília”, que integra a
biografia de INRI Cristo e o histórico da SOUST, no site oficial da Ordem).
Não deixa de ser curioso que Curitiba, com toda a sua empáfia
pseudoeuropeia e sua espetacularidade kitsch, seja justamente a
cidade escolhida por Deus para que seu Filho sofra as provações
e as rejeições do período preparatório para a grande chegada à
inverno da cidade; Gilda foi uma travesti barbada, corpulenta, carnavalista e em situação de rua,
que fez sucesso na década de 70 e início da de 80, ao obrigar as pessoas que passavam por ela
a pagar um pedágio (“Cinco cruzeiros ou um beijo na boca!”); e a “mulher da borboleta 13” é
uma divulgadora que se posta em pontos estratégicos do calçadão da Rua XV de Novembro para
anunciar apostas do jogo do bicho e outros produtos, com sua potente e melódica voz.
25. Inri é acrônimo de Iesvs Natsarenus Rex Ivdaeorvm, inscrição encontrada na placa colocada na
cruz onde foi pregado Jesus. Em latim, a frase quer dizer “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”.
Nova Jerusalém. Até Deus, via Inri Cristo, conhece a reputação
e o modus operandi da terra do pinhão – cidade sorriso, capital
ecológica, capital social, capital cultural, cidade modelo, capital
anticorrupção, República de Curitiba, para citar apenas algumas
das denominações que a prefeitura e o marketing curitibanos
tentaram e/ou conseguiram emplacar – e reconhece que, se seu
Filho superar e sobreviver a Curitiba, superará e sobreviverá a
qualquer coisa. De Curitiba para o mundo: a capital dos covers26
é também a capital da SOUST. Junto com Chacon Junior (cover
dublador de Roberto Carlos) e o Oil Man (que também atua como
cover de Elvis Presley, acompanhado por uma banda de músicos
profissionais), Inri Cristo forma a Santíssima Trindade do cover
curitibano. Cada cidade tem as divindades que merece.
Cover semisagrado de Jesus, Inri Cristo é, assim como o
Jesus de Alvarenga, cópia e corporificação de todo um imaginá-
rio acerca da figura do messias cristão. Barba e cabelos longos,
túnica branca, manto vermelho, sandálias e uma coroa de corda
branca trançada substituindo a coroa de espinhos da paixão.
Tudo na imagem de Inri lembra o Cristo do Santo Sudário e
das milhares de representações pictóricas realizadas a partir dos
séculos IV e V. A gestualidade cerimoniosa e o sotaque forte na
fala (sua maneira particular de começar uma prece ou benção
com o jargão “Oh Pai! Oh, inefável Pai!” já se tornou famosa)
também ajudam a conferir a Inri uma referencialidade e uma
ligação fácil entre si e aquilo que se entende normalmente por
Jesus Cristo. Obviamente, Inri não se considera um cover de
Jesus, mas sim o próprio Jesus: Inri não é um artista, Inri é um
líder espiritual. E, na doutrina da SOUST, o seu líder máximo
26. Ouvi informalmente de diversas pessoas que Curitiba é a capital dos covers, por possuir
muitas e importantes bandas cover, sobretudo de rock.
não é um representante do Filho de Deus, mas sim o Filho de
Deus vivo e encarnado. Tanto é que, na ocasião da renúncia do
Papa Bento XVI, em fevereiro de 2013, Inri lançou um vídeo na
internet dando uma bombástica explicação: o antigo cardeal
Joseph Ratzinger renunciara ao posto de Papa porque havia
descoberto que Jesus já havia voltado e vivia na Terra, sob o
nome de Inri Cristo. Sendo o Papa um representante de Cristo
no plano terreno, não faria mais sentido que ele, Ratzinger,
continuasse a representar alguém que já estava ali, em carne e
osso. Por isso a sua renúncia.
E mesmo que, hipoteticamente, esta pesquisa aceitasse que
Inri é a reencarnação de Jesus Cristo e, por consequência, do
Deus todo-poderoso cristão, mesmo assim ele continuaria a ser
um Jesus cover: ao voltar à Terra, Jesus volta imitando a imagem
que foi elaborada para representá-lo ao longo da história, Jesus
volta imitando aquilo que a tradição manda que se espere dele,
Jesus volta imitando a si mesmo enquanto representação – Jesus
volta não apenas como cover, mas como cover de si mesmo.
Para a teoria do cover, contudo, não importa se Inri é mesmo
ou não o deus cristão vivo: o simulacro que faz o cover emer-
gir e resistir ignora as presunções compulsórias de um Original
fundador, seja ele um artista-modelo, seja uma obra artística
de referência, seja ele Deus Pai. O cover performático é laico.
No entanto, o cover performado por Inri e por Alvarenga diz
que, a despeito da sua laicidade irônica, o cover é também a
incorporação do sagrado, de um certo sagrado que não é mais
que aparência, exterioridade, plasticidade. O cover como encar-
nação, como transubstanciação (como a hóstia sagrada dos cató-
304 Transversões
os valores e a doutrina da SOUST. Onipresença e onipotência
divina: Inri Cristo não é apenas cover de Jesus Cristo, ele é
também cover de toda e qualquer celebridade pop que possa
ser deglutida e utilizada em prol de seus objetivos maiores. A
fome antropofágica do cover é insaciável, devorando sistemati-
camente tudo o que possa tornar-lhe mais forte, mais conectado
com seu público, mais aberto ao mundo.
Se Alvarenga devora Jesus Cristo, Inri também devora o Filho
de Deus que devora o pop que a tudo devora. Seria Alvarenga
um Inri Cristo cover? Ou, ao contrário: Inri seria um Alvarenga
cover? Seja qual for a sequência desse banquete, ambos (Inri e
Ricardo) devoram também aquelas identidades-3x4 que diziam
ser suas identidades originais (Ricardo Alvarenga Ribeiro?
Álvaro Theiss?), tornando-se igualmente covers de si mesmos.
O cover de Alvarenga inscreve-se intencional e metodologica-
mente dentro do campo da arte, ao passo que o cover de Inri
inscreve-se no campo da vida terrena, via cultura pop, e da
vida eterna – no campo da espiritualidade e da transcendência.
Diferentes aparições do cover, diferentes manifestações da per-
formance e do simulacro que instauram o cover e o fazem existir
em toda a sua potência.
306 Transversões
Dança Cover #2 We are Trisha Brown. Foto: Maíra Spanghero
308 Transversões
Henrique Saidel. Imponderabilia – lutka na naduvavanje version
310 Transversões
Lucília de Assis e Alexandre Dacosta. Claymara Borges e Heurico Fidélis. Foto: Wilton Montenegro
312 Transversões
Lucília de Assis e Alexandre Dacosta. Claymara Borges e Heurico Fidélis. Foto: Carlos Moure
314 Transversões
Ricardo Alvarenga. Jesus 3:30pm. Jesus Born. Foto: Daniel Lisboa
316 Transversões
Ricardo Alvarenga. Jesus 3:30pm. Ao Senhor do Bonfim
318 Transversões
E-mail recebido da Assessoria de Relações Públicas da SOUST
322 Transversões
a falta de amor: onde não há amor, não há cover – o artista
cover é aquele que ama (ama demais) a ponto de fundir-se e
perder-se no objeto do seu desejo, é aquele cujo amor e dedi-
cação são tão grandes e resplandecentes que conformam toda
a sua vida e suas atitudes, todo o seu eu, em uma miríade de
identidades. O cover é a cópia ultrapotencializada pelo amor; o
não cover seria, portanto, a cópia sem amor, impessoal, indus-
trial, e desimportante.
Pensar o não cover, o fora do cover, o além do cover pode
contribuir para tornar mais nítidas as faces e as atribuições
do cover. No entanto, a metodologia aqui adotada escolheu
empenhar-se no ser do cover, e não no seu não ser. Proposita-
damente, afirmou-se que o cover é isso, que o cover é aquilo,
que o cover apenas é. Tudo é cover? Provavelmente, não. E
pesquisas que tentem vislumbrar esse não ser são mais do que
bem-vindas. Mas, neste momento, acredito ser mais potente
pensar em tudo o que o cover é e/ou pode ser e em tudo que
é e/ou pode ser cover. A abertura, a inclusão, a hifenização
como metodologia de análise, questionamento e criação: o
cover como um grande hífen que justapõe e soma/multiplica
as suas possibilidades, explicitando-as. A positividade do cover.
O ser/estar conjugado do cover.
Ao olhar e refletir sobre as várias faces do cover – seus
perigos, suas delícias –, espero ter conseguido apresentar de
forma mais ou menos inteligível os resultados parciais dessa
convivência. Espero, também, ter contribuído para uma
reflexão mais expandida sobre a cena, sobre as artes da per-
formance, sobre o trabalho do ator-performer, sobre as rela-
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e seus atores-robôs que atuam em espetáculos teatrais clássi-
cos junto de atores “humanos”; Dalia Chauveau e sua Agence
de Clonage virtual que fabrica pessoas-cover de acordo com
o gosto do freguês; Emilio García Wehbi e o Proyecto Filocte-
tes, no qual confecciona bonecos ultrarrealistas sem rosto e
os instala em ruas e calçadas da cidade, transeuntes-covers
caídos, escorados, escondidos, em situações de risco físico
e moral; os irmãos Jake e Dinos Chapman e suas bonecas
monstruosas, duplicadas e adulteradas; Paul McCarthy e suas
máscaras paródicas e performáticas que criam cenas impac-
tantes, muitas vezes sanguinárias; além, evidentemente, do
universo provocativo e lacrador das drag queens e kings.
Da mesma maneira, pode ser interessante voltar as lentes
do cover para a reflexão sobre o meu próprio trabalho como
performer e diretor de teatro. Especialmente para obras já
realizadas, como Dilaceração com sangue doce (2009-2016),
na qual assassino com requintes sádicos e sanguinolentos um
boneco inflável masculino de sex shop, matando um ser huma-
no-cover que jamais esteve vivo; La barca (2018), desdobra-
mento de Dilaceração, número burlesco no qual, depois de um
despretensioso striptease, também assassino e esquartejo um
boneco inflável masculino, dentro do qual saem/vazam deze-
nas de cabeças de bonecas de plástico; Cicciolina’s Breakfast
(2011-2015), onde me torno um cover de mim mesmo ao vestir
diversas máscaras de látex confeccionadas a partir do molde da
minha cabeça/rosto, interagindo com objetos e situações que
revelam/escondem meu corpo e minha identidade; e Eu, Neto
Machado, agora mostro o que não está aqui (2013), ocasião na
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mato de livreto/cordel, que tentam fazer frente às vicissitu-
des e às obscuridades do contemporâneo e que me ajudaram a
entender que sim, nós podemos agir, e que sim, uma pesquisa
sobre o cover (assim como todo trabalho de investigação, refle-
xão, produção, divulgação e vivência artística e social) pode
e deve existir. Permito-me, neste momento, compartilhar com
você dois pequenos trechos desses textos – A hora da micropo-
lítica, de Suely Rolnik, e Quando as ruas queimam: manifesto
pela emergência, de Vladmir Safatle –, sem medo de ser piegas,
sem medo de ser feliz.
O que conduz o desejo nesse processo é uma bússola ética: sua agulha
aponta em direção àquilo que permitirá criar um corpo no qual se concretize
o que a vida está demandando para retomar sua pulsação. Em outras pala-
vras, o lugar onde se situa a agulha dessa bússola é o da potência do vivo
que as ações do desejo buscarão expandir para ampliar nossa capacidade de
existir. O que a micropolítica ativa visa é, pois, à conservação da potência
do vivo, que se realiza num incessante processo de construção da realidade
(ROLNIK, 2016, p. 15).
O que nos falta é rigor. Sim, rigor: a mais estranha de todas as paixões, esta
que queima e constrói. Nenhuma verdadeira construção se ergueu sem essa
impressionante crueldade de artista que se volta contra si mesmo até produzir
dos seus próprios desejos a plasticidade do que faz nascer de si toda forma.
Só a verdadeira disciplina, esta que não é repressão ou submissão da minha
vontade à vontade de um outro, mas que é trabalho sobre si, que é produção
de uma revolução na sensibilidade, salva. Uma disciplina de artista. É ela que
falta à nossa política (SAFATLE, 2016, p. 29).
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REFERÊNCIAS
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TEXTOS
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Augusto Erthal
ISBN: 978-85-9582-049-4
CDU 78.01 CDD 780