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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

REITORA Sandra Regina Goulart Almeida


VICE-REITOR Alessandro Fernandes Moreira

EDITORA UFMG
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VICE-DIRETORA Camila Figueiredo

CONSELHO EDITORIAL
Flavio de Lemos Carsalade (presidente)
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Raquel Conceição Ferreira
Renato Assis Fernandes
Ricardo Hiroshi Caldeira Takahashi
Rita de Cássia Lucena Velloso
Rodrigo Patto Sá Motta
Weber Soares
BELO HORIZONTE, 2023
© 2023, A autora
© 2023, Editora UFMG
Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.

B743e Bosi, Isabela.


Elida Tessler: alguns envios de tempos e memórias / Isabela
Bosi. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2023.

130 p. : il. (Artes Visuais)


ISBN: 978-65-5858-101-7

1. Tessler, Elida, 1961- . 2. Artes. 3. Arte e literatura. 4. Tempo.


5. Memória. I.Título. II.Série.

CDD: 709.81
CDU: 7.01(81)

Elaborada por Vilma Carvalho de Souza – Bibliotecária – CRB-6/1390

COORDENAÇÃO EDITORIAL Michel Gannam


ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Souza
DIREITOS AUTORAIS Anne Caroline Silva
REVISÃO E NORMALIZAÇÃO DE TEXTOS Rachel Dimitri F. Salomão
PROJETO GRÁFICO DE MIOLO E CAPA Gustavo Piqueira / Casa Rex
COORDENAÇÃO GRÁFICA Fernando Freitas
FORMATAÇÃO Giovanni Barbosa
PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 – CAD II – Bloco III
Campus Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte-MG
Tel: + 55 31 3409-4650 – www.editoraufmg.com.br – editora@ufmg.br
S U M Á R I O

Prefácio
11 DOIS ARREMESSOS
MANOEL RICARDO DE LIMA

15 ABRIR A CONVERSA

17 TUDO COMEÇA COM UM ENVIO


20 LIMITE EXTREMO DO DIZER
25 COLEÇÃO DE ENVIOS
31 UM POEMA INFINITO
37 CIDADE EM ÓRBITA
42 HABITAR O TEMPO

49 DEMORAR UM POUCO MAIS


60 O MOVIMENTO DO TEMPO
66 MEMÓRIA DAS MÃOS
72 PINTURA REENCARNADA
76 RASTROS DE UMA VIDA
83 MARCAS DO TEMPO QUE PASSA

91 TODA FALA É INACABADA

95 CURRÍCULO ARTÍSTICO
DE ELIDA TESSLER

103 IMAGENS

117 NOTAS

127 REFERÊNCIAS
P R E F Á C I O

D O I S

A R R E M E S S O S
Há um princípio de imaginação que é uma repetição insuspeita nos
trabalhos de Elida Tessler: o gesto de desdobrar um fio da memória
entre vários passados dispersos e acionar no presente, entre despo-
jada e silenciosa, uma contenção fragmentada dessa mesma memória.
É isto que a faz tomar uma posição política diante do que faz, coisas
como “dar uma palavra” ou “doar um objeto”, num lance de dados que
jamais abolirá um lance de dados até a palavra respirar numa pequena
brecha de nudez e numa festa delicada, forte, expandida, plena de pe-
quenas histórias, vários embaraços e uma postura ética singular, como
o de sentar-se numa poltrona durante um evento e perder-se em voo
para retirar-se imóvel e calada do disse-me-disse da encenação ce-
lebratória de escritores famosos e afamados. Daí a sua disposição aos
objetos descartados, sem uso, e a uma palavra que sempre pode se
retirar porque só existe se levemente à escuta de algo que ainda pode
advir de alguma outridade minimamente comprometida com uma vida
impossível. Uma imagem que sempre aparece na desmedida de toda

11
essa circunstância engendrada, em giro, por seu pensamento, é a do
arremesso; o que implica além da ideia de lance, lançar, o sentido ines-
gotável da intenção.
Este livro que se tem aqui, agora, Elida Tessler: alguns envios de
tempos e memórias, é a projeção do que se “re-expõe”, como escrita e
leitura, de um encontro praticamente encantado entre o arremesso pro-
vocado pelos trabalhos de Elida Tessler e a tessitura vagarosa do texto
de Isabela Bosi. Se a possibilidade do encontro tem a ver, primeiro, com
uma sugestão de choque, alarga-se depois exatamente no inexato que é
toda e qualquer intenção até um jogo de sentidos com outros significa-
dos, como descobrimento ou confluência de rios, o que, por sua vez, abre
um tanto de questões e perspectivas que são muito caras a Isabela nesse
espaçamento do gesto de ler o arremesso de Elida: envio e tempo, grafia
e coleção, poema e endereçamento, cor e espessura, começo e termo,
escorrimento e reverberação, palavra e fala infinita.
A partir disso que toma por conceitos ou expressões de início, Isabela
Bosi dedica-se, com esmero e toda a fúria do pensamento, imersa numa
espiral de delicadezas, a um passeio por uma série de trabalhos de Elida
percorrendo, ao mesmo tempo, cada conceito muito mais como se fos-
sem maneiras táteis de tocar o que escolheu para pensar junto, pensar
COM, e correr as mãos na dimensão erótica mais serena do corpo. Isto
é ler. Repare-se que a cada parte desse texto temos uma atenção delibe-
rada, com precisão e instante de agulha, a essa dimensão do quanto ler
é também penetração viscosa e porosidade, amálgama e desidentifica-
ção. Desse modo ela persegue coisas como Carta ao pai, Doador, Você
me dá a sua palavra?, Ist Orbita e 365 numa estrutura-estruturante do
“envio”; e, em seguida, numa deriva e modulação do “tempo”, O tempo
passa, Manicure, Inda, Claviculário e Falas inacabadas.
Talvez, ou certamente, o que se tem com este livro de Isabela Bosi
é uma primeira leitura crítica mais arguta e empenhada, com demora e
espera, acerca do trabalho de Elida Tessler. Um livro que resulta de uma
pesquisa que resulta também, e aí está o ponto, de um estudo incorpo-
rado à ineficácia das condições atribuídas àquele que estuda e que, mais
ainda, se põe a estudar uma invenção fabuladora, como a de Elida, que
se faz e se refaz em meio ao que não serve para os prismas assertivos
da indústria, da fábrica e da mercadoria. E nem mesmo àquilo que o

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sistema e o circuito da arte tomam como apropriação ou como sujeição:
uma dilação de egos ou uma necessidade de presença de quem se con-
sidera “artista” para dar-se à venda, pôr-se à venda, estar à venda etc.
Essa rara impressão, a do estudo, que no caso deste livro é tam-
bém uma rarefação de respeito, sem deixar de impor a mão o perigo
de pousar sobre a lama ou de enfiar-se nela, de vez, é uma tentativa
de Isabela Bosi de ir ao limite do encontro com o pensamento e o tra-
balho de Elida e ajustar-se ali, como diferimento, numa suspeição
que lhe possibilite também um arremesso, desde lance e lançar-se até,
tal como Elida, a algum sentido inesgotável para a intenção. O que se
percebe, de pronto, é um esforço de Isabela para mover-se pelos per-
cursos de leitura praticados por Elida que é, por sua vez, uma leitora
em estado de devoração vagarosa e incomum, para desmontar toda a
dívida e apreender toda a dádiva do que é ler, como é ler, quando é ler,
onde é ler etc. Assim é que Isabela, de outro modo, se metamorfoseia
numa leitora em estado de devoração vagarosa, quase em voz alta, para
cumprir sua tarefa crítica na radical inferência da “entrega”: doar-se,
tocar com a sua a pessoa de outrem, como já indicara Walt Whitman, e
construir a relevância do seu pensamento que, se surge desse encontro
com o mundo ao redor de Elida, já parecia fazer morada deflagrada
em seu corpo, pensamento e tomadas de posição. Isabela propõe, pri-
meiro como pesquisadora e estudiosa, depois, num seu pequeno lance
de dados, entre começo e recomeço, indicar o quanto esse convívio
ético lhe reposiciona em processo como escritora, poeta, desenhadora
de mundos e fabuladora de objetos em desuso.
O arremesso então, nesse nem lá nem cá, se constitui como um
móbil entre a visita e a quem cabe o gesto da hospitalidade que, num
vice-versa de um plano de impossíveis, possibilita frequentar o fluxo
poroso do corpo que trabalha em toda a sua dimensão de entrega e de
acolhimento. Isabela vai a Porto Alegre conhecer Elida de perto, andar
pela cidade, tomar um-dois-ou-três cafés, deixar-se contaminar por
um tempo que só é possível se a conversa existir, sem regra ou norma,
sem conformação ou pressa: “Quanto tempo dura o processo de oxi-
dação de uma lata de ferro ou de um pedaço de cobre em contato con-
tínuo com a água?”. A esperança que mora em perguntas arejadas e
inteligentes como essa, por exemplo, que Isabela faz a Elida ou se faz,

13
está ativa também a quem deseja entrar nesse envio de tempo e memó-
ria para uma conversa e tudo o que nela é contraponto, dissensus e linha
trágica. Este livro de Isabela Bosi, até agora o seu golpe mais refinado,
é uma aderência e uma testemunha do que ainda pode existir na rapidez
tão lenta do tempo que passa, que é, por sua vez, o golpe mais refinado
do trabalho de Elida Tessler.
Manoel Ricardo de Lima

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A B R I R A

C O N V E R S A
O que fazer com as coisas? Para onde vão as coisas? Qual o destino das coisas? Muitas
coisas. Poucas coisas. Listar as coisas. Olhar para as coisas. Se conhecer nas coisas, a
partir delas, através delas.
Elida Tessler

O escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu texto “Utopia de um ho-


mem que está cansado”, publicado em O livro de areia (2009), traça
um diálogo entre dois personagens: um que se chama Eudoro Acevedo,
escritor de contos fantásticos; e outro, a quem lhe chamam alguém,
que habita o futuro. Eudoro é de 1897, mas conversa com alguém em
uma espécie de viagem no tempo, de visita a outro século no qual já
não existem cidades, bibliotecas ou museus; em que a terra retornou
ao latim, onde, do passado, restam apenas alguns nomes e tornou-se
impossível evadir-se do aqui e do agora.1 Enquanto come uvas, flocos
de milho e uma fruta que, para Eudoro, se parece com figo, alguém
lhe diz: “Nas escolas nos ensinam a dúvida e a arte do esquecimento.
Antes de tudo o esquecimento de coisas pessoais e locais”.2 Borges, no
conto fantástico, pinta esse futuro em que todos se dedicam a esque-
cer (e esquecem) do passado. Já não há importância em reter vestígios,
guardar restos. A imagem trazida por ele é de um futuro que se desvela

15
neste tempo presente, este nosso agora, no qual as coisas perdem suas
funções e, rapidamente, tornam-se obsoletas, viram lixo. O passado já
não nos serve – e o importante é o servir.
É justamente na contramão desse presente-futuro trazido por Bor-
ges que a artista Elida Tessler cria seus trabalhos. Atenta ao mais ordi-
nário e descartável do cotidiano, ela recupera objetos gastos, muitas
vezes já sem uso – inúteis para suas funções pré-estabelecidas, mas
impregnados de memória – e os dispõe em suas instalações. Esse movi-
mento parte, quase sempre, de um gesto de envio – espontâneo ou não
– que gera, muitas vezes, uma correspondência entre a artista e seu in-
terlocutor. Seu interesse, ao contrário das pessoas do tempo de alguém,
é por rastros que constituem novas marcas, desconhecidas trilhas.
A primeira exposição individual de Elida, em 1988, intitulada Dese-
nhos, reuniu doze desenhos seus, frutos do exercício diário de observar
a escova de cabelos, como se, tomada pela necessidade de entrar nessa
escova desgastada, desenhá-la fosse um modo de se permitir observar
o tempo nesse e desse objeto, deslocando-o do cotidiano para o campo
da arte – nessa que segue sendo sua principal motivação artística.
Diante desse estímulo, como forma de resistir ao tempo volúvel
e sem passado de alguém, este livro se constitui. Mais do que refletir
sobre a obra de Elida, a intenção, aqui, é tecer uma conversa com seus
trabalhos, criando pontos de contato e ressonâncias com o pensamento
de outros artistas, filósofos, poetas, no desejo de estender seu gesto de
envio – que se faz nos, com e aos tempos e nas, com e às memórias, suas
e de seus interlocutores. Este livro é, ainda, fruto de meus encontros
com Elida – nossos próprios envios e falas inacabadas –, desde outu-
bro de 2015, que me permitem enxergar seus trabalhos mais de perto,
com todo o corpo, na tentativa de criar uma conversa que se amplie na
construção de uma (outra) fala inacabada.

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T U D O

C O M E Ç A C O M

U M E N V I O
Um grande pensador é sempre um pouco um grande correio.
Jacques Derrida

Durante uma conversa em seu ateliê, em agosto de 2016, Elida me mos-


tra caixas de madeira, onde guarda algumas de suas obras e outros ob-
jetos – ainda à espera. Ela, então, diz: “As pessoas estão sempre me
entregando coisas.” Praticamente toda sua obra1 nasce das coisas que
recebe, esses envios. Quase sempre, objetos velhos, gastos, já sem uso,
que deixam seus papéis ordinários para se tornarem, também, poesia
– pensando a ideia de poesia como aquilo que não pode ser suprimido,
como propõe Jean-Luc Nancy, ao dizer que

Não é possível não contar com a poesia. Ou: é preciso contar com a po-
esia. É preciso contar com ela em tudo o que fazemos e pensamos dever
fazer, pelo discurso, pelo pensamento, em prosa e na <arte> em geral. (…)
Podemos suprimir o <poético>, o <poema> e o <poeta> sem muitos danos
(talvez). Mas com <a poesia>, em todo o indeterminado do seu sentido, e
apesar de toda essa indeterminação, nada se pode fazer. Ela está lá, e está
lá mesmo quando a recusamos, suspeitamos dela, quando a detestamos.2

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É essa poesia, que está lá mesmo quando a recusamos, quando
não a suportamos, que Elida enxerga nos objetos do cotidiano, e que
produz em sua obra a partir deles, com eles. Talvez, cientes disso, as
pessoas estejam sempre lhe entregando coisas, como no desejo de que
seus objetos – também suas memórias – possam ter outros destinos.
Tudo começa, portanto, com um envio. Palavra que, do latim inviare
– in: “em, sobre”; via: “caminho, estrada” –, indica um colocar-se a ca-
minho. Algo que vai, que não cessa de ir, de seguir, de ser – ainda que
nunca chegue efetivamente a ninguém ou a lugar algum. Podemos pen-
sar esse envio, antes, como promessa de um sentido, como propõe George
Steiner, em O silêncio dos livros.3 O autor fala da promessa de um sentido
entre escritor e leitor, no texto escrito, mas o mesmo se estabelece na
relação entre remetente e destinatário, entre artista visual e espectador,
portanto, entre Elida e seus interlocutores – que estão sempre lhe en-
viando algo e aos quais ela está sempre se endereçando.
Esse envio que pode ou não se realizar, pode ou não chegar, assi-
nala o verificar-se de um contingente,4 carregando o peso da própria
(im)possibilidade, sempre promessa, acidente, um lance de dados. As-
sim, podemos ler a obra de Elida como (re)envios de tempos e memó-
rias, lançados a partir do gesto de retirar objetos de seus confinamentos
e dispará-los novamente, com e a partir da palavra – sempre a palavra.
Alguns de seus trabalhos extrapolam os possíveis limites da relação
entre imagem e palavra, trazendo o próprio livro como objeto de in-
tervenção artística, ainda que alterado ou recriado, e pondo a palavra
como centro do processo criativo, como nos trabalhos O homem sem
qualidades caça palavras (2007) e Vous êtes ici (2009).
No primeiro, partindo do livro O homem sem qualidades, de Ro-
bert Musil, Elida decidiu que, durante a leitura do romance inacabado
de Musil, ela cobriria com caneta todos os adjetivos do livro, trans-
crevendo-os em outro papel. Ao final, ela desloca 5.360 palavras do
livro, embaralhando-as em 134 caça-palavras. Essas telas, de 90cm
por 130cm, são distribuídas nas paredes da instalação, convocando os
visitantes a buscarem esses adjetivos – caçarem as palavras. O livro lido
por Elida, com todos os adjetivos rasurados, também é disposto na ins-
talação e intitulado pela artista de O homem sem qualidades, mesmo5 – no
qual o homem de Musil perde, literalmente, suas qualidades (Imagem 1).

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Um tempo depois, após uma segunda leitura, ela encontrou um
total de 30.301 adjetivos, ou seja, 24.941 a mais do que na primeira vez.
Ela decide, então, expor sua própria distração, essa ausência de domí-
nio total sobre a obra, colocando ao lado de O homem sem qualidades,
mesmo um segundo exemplar do livro, intitulado O homem sem quali-
dades, mesmo assim, com os novos adjetivos encontrados na segunda e
na terceira leitura, agora, apagados com corretivo na cor branca.
O trabalho Vous êtes ici passa por um processo similar, partindo
também de um livro, nesse caso, Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust. A artista estabeleceu o período de um ano, em que esteve em
Paris, realizando seu pós-doutorado, para ler o romance e marcar todas
as palavras temps encontradas no livro. Para isso, elaborou um carimbo
com a inscrição Vous êtes ici, equivalente à do sistema de transporte
urbano parisiense, utilizado nos mapas da cidade (Imagem 2).
A artista acaba por transformar o livro em uma espécie de mapa
e o tempo (temps) em uma espécie de lugar, como quem decide tor-
nar o tempo visível e, assim, recuperá-lo conceitualmente. Sua busca,
também, é situar o leitor (e situar-se) diante da leitura de um livro –
processo similar ao que propõe Valère Novarina, em Teatro dos ouvidos,
no qual se traça um percurso mais próximo de uma perda do que de
um ganho: “O leitor vem perder ali alguma coisa, não conhecer nem
reconhecer nem adquirir. Ele vem se perder ali, se perder. Perder o
sentido. Perder seus sentidos”.6 Ao invés de assumir ou mesmo reforçar
essa perda inerente à leitura, Elida insiste na demarcação de um mapa
(im)possível, traçado como em busca de um refúgio.
Como objeto de instalação, ela dispõe seu livro de Proust, aberto
e carimbado, convidando o espectador-leitor a folhear as páginas e
deparar-se com esse tempo-lugar que é também a própria palavra, a
literatura. Na obra de Elida, a palavra é sempre dissociada de sua fun-
cionalidade, apresentando-se não só como coisa, mas como aquilo que
chama a coisa, como propõe Novarina:

se a palavra sabe mais que a imagem, é porque ela não é nem a coisa, nem
o reflexo da coisa, mas o que a chama, o que risca no ar sua ausência, o
que diz no ar sua falta, o que deseja que ela seja. A palavra diz à coisa que
ela está faltando e a chama – e, ao chamá-la, ela mantém reunidos num
mesmo sopro seu ser e seu desaparecimento.7
19
As palavras, para Novarina e Elida, não mostram nem dão lugar
às coisas, mas as partem e as derrubam o tempo inteiro de seus espaços
pré-estabelecidos. Mais do que objetos de manipulação, as palavras são
“trajetos, sopros, campos de ausência”.8 A literatura como esse campo
de ausências, permeado por palavras-sopro, é o solo de onde emerge
grande parte da criação artística de Elida.
No entanto, diante de sua extensa obra, com mais de três décadas
de produção, proponho um recorte aqui. Em vez de aprofundar a análise
de seus trabalhos com livros, os quais pontuo acima, com apenas dois
exemplos, optei por me aproximar de suas obras elaboradas a partir de
objetos, ou mesmo objetos-palavras, que lhe são enviados. Nesse pro-
cesso, Elida assume um corpo-correio: alguém que, recebendo, reenvia
o que lhe chega, já transformado em outra coisa – mesmo quando nada
é, de fato, modificado no objeto original. Um envio-reenvio de memó-
rias e tempos, na busca por uma troca de palavras, por tocar o outro,
por um encontro.

L I M I T E E X T R E M O D O D I Z E R

Dirijo-me a você, um pouco como se me enviasse.


Jacques Derrida

E se Franz Kafka tivesse morado na Rua Henrique Dias, no bairro Bom


Fim, em Porto Alegre, menino magro, de poucas palavras, usando fa-
tiota e gravata, como fabula Moacyr Scliar, em A guerra no Bom Fim?
Um Kafka que seria, então, vizinho de Elida, morador da mesma quadra
onde ela nasceu, perto da sinagoga. Ampliando essa fábula, podemos
pensar nos dois vivendo a mesma época, crescendo juntos, compar-
tilhando o tempo e as calçadas do Bom Fim, bairro que, anos antes,
acolhera tantos judeus, como antepassados da artista – que, “como ou-
tros judeus, estavam cansados da miséria”.9 Quem sabe, assim, Elida
teria acompanhado Franz durante a escrita de sua enorme carta ao pai
(nunca enviada, mas atentamente lida por ela) e, encorajada pela ini-
ciativa do franzino Kafka, teria, então, iniciado a escrita de sua própria
carta ao pai?

20
Ainda que grande parte disso seja mero devaneio, Elida de fato leu
a carta de Kafka, nesse livro póstumo intitulado Carta ao pai, e, tomada
por essa escrita violenta, foi inspirada a escrever também sua carta a
seu pai. Para isso, porém, não usaria caneta ou papel, mas o próprio
corpo da máquina de escrever de seu pai, escolhida por ela como he-
rança, dentre outros objetos deixados por ele, após a morte. Em 2007,
a antiga Olivetti passou a ocupar a biblioteca da casa de Elida, fazendo
parte de seu cotidiano. Ao receber o convite da Galeria Bolsa de Arte de
Porto Alegre, no final de 2014, para elaborar uma nova exposição, ela
decidiu que faria algo com sua herança.
Diante desse desejo, e com o objeto em mãos, o desafio primeiro:
por onde começar? – ou, recuperando do livro Ao farol, de Virginia
Woolf: “Era essa a questão; em que ponto fazer o primeiro traço?”.10
Para a pintora Lily, personagem do romance de Woolf, o primeiro traço
se torna imediatamente complexo na hora da execução, ainda que
pareça simples na ideia. “Mas deve-se correr o risco; dar o primeiro
traço”, conclui o narrador de Woolf, quando Lily, impelida para a frente
e ao mesmo tempo contida, dá a primeira pincelada em seu quadro.11
Elida assume esse risco após desmontar a máquina de seu pai,
desmembrá-la, sujando-se nessa violência – a busca pela palavra.
Deixa-se levar pelo gesto infantil de desmontar um brinquedo, querer
ver como é por dentro, como funciona, do que é feito – gesto que seria
também uma forma de desarmar e pôr do avesso o que nos é dado como
pronto. Elida desmonta a máquina, pedaço por pedaço, inicialmente,
para criação de um outro trabalho, intitulado O tempo passa (do qual
falarei na segunda parte deste livro), mas, à medida que ia pondo uma
peça ao lado da outra sobre a mesa branca, ela percebeu que estava se
formando, ali, a escrita de uma carta. Tomada por essa percepção, ela
retorna ao livro Carta ao pai, de Kafka, concluindo que havia iniciado,
sem perceber, a sua carta ao pai, composta por 617 peças presas à su-
perfície de uma mesa de ferro branca por 1500 ímãs (Imagem 3).
Elida elabora, então, um trabalho homônimo ao livro de Kafka,
remetendo-se ao próprio pai como uma despedida impossível, que não
pôde nem poderia acontecer, na escrita que é também uma forma de
se vingar da perda.12 A própria escrita constituída pelo corpo dessa má-
quina que, mesmo fragmentada, ainda escreve. Ela se remete ao pai

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numa escrita fragmentada, feita em muitos pedaços, sempre por vir –
há tanto por dizer que dizer se torna impossível –, que assume a própria
potência como fracasso. Não me aprofundarei, aqui, na ideia de escrita
como fracasso, mas é importante lembrar que esse pensamento está em
muitos poetas e filósofos, como Roland Barthes, para quem, na escrita,
estamos sempre fadados ao fracasso, e “malogramos sempre ao falar do
que amamos”.13 Maurice Blanchot também defende essa ideia, de outra
forma, em O livro por vir, ao dizer: “saber que as coisas que vou escrever
não me farão nunca ser amado por aquele que amo, saber que a escri-
tura não compensa nada, não sublima nada, que ela está precisamente
aí onde você não está – é o começo da escritura”.14
Carta ao pai assume o fracasso dessa escrita, que não corrige nem
resolve nada, feita com os pedaços do corpo dessa máquina, ecoando
um silêncio que é também grito – um dos (g)ritos de passagem de
Elida –, sua vingança contra a perda. Se ela nunca grita, como revela
em uma de nossas conversas, seu trabalho é a forma que encontrou de
inventar algum grito possível, como nessa carta, na qual, em meio a
várias pecinhas pequenas – quase um sussurro –, vemos a carcaça da
máquina invadir o centro do texto. É também um grito, em maiúsculas,
que ecoa dentro dessa escrita fracassada (Imagem 4).
Elida buscou um material que correspondesse a uma grande folha
de papel de carta, sem muitas emendas e com espessura fina, que não
diminuísse a potência dos ímãs colocados sob ela. O material usado, en-
contrado no comércio pela sigla PS – esse um post scriptum possível –,
é composto por um produto à base de poliestireno, com uma espessura
fina. Elida precisou fazer somente uma emenda, quase imperceptível,
com as peças dispostas sobre ela. A medida da mesa (216 x 279 cm) foi
determinada pela escala 1:10 do papel de carta convencional.15
A máquina foi desmontada em seu ateliê, que ela gosta de cha-
mar de escritório, esse lugar onde se escreve como atividade criativa,
um pensamento que se escreve, se inscreve e se excreve com palavras
fracassadas, que começam no impossível, como diz José Angel Valente,
para quem a palavra poética começa no “limite extremo em que se faz
impossível o dizer”.16 Palavra essa que não tem lugar, a não ser o deserto
– esse não lugar:

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