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Todas as famílias infelizes se parecem


Volume reúne obra mais controversa de Lev Tolstói e duas novelas inéditas de sua mulher,
Sófia Tolstaia

Leda Cartum
(br/autores/leda-cartum) 01jan2023 08h51 (03jan2023 15h48)

Sófia Tolstaia e Lev Tolstói Museu Estatal Lev Tolstói

Tolstói & Tolstaia


Lev Tolstói e Sófia Tolstaia
Trad. Irineu Franco Perpetuo
Carambaia • 448 pp • R$ 139,90

Em certa passagem de Anna Kariênina, um grupo de crianças sai para colher cogumelos na orla da floresta,
acompanhado de Serguei Ivánovitch e de Várienka. Ele é viúvo e muito mais velho do que ela, mas é evidente
para os dois que estão apaixonados um pelo outro. Ela espera o momento em que ele enfim fará a proposta.
Tudo está perfeitamente arranjado para isso: Serguei Ivánovitch já provou para si mesmo que ela é a mulher
ideal, Várienka está convencida de que o ama; as crianças brincam ao longe, faz-se um silêncio denso entre
os dois — A“agora ou nunca,
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e tecnologias explicar-se”. Mas
como eles caminham,
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continuam (https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2020/04/termos-e-condicoes-de-uso-
calados. A pergunta que sai da boca dela, contra a sua vontade, é sobre cogumelos; OK ele, também
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contra a vontade, responde sobre cogumelos. A hora passa e eles perdem o momento: “Compreenderam que
o assunto estava encerrado, que aquilo que deveria ser dito não o seria”. O pedido não é feito, os pretendentes
não chegam a ficar noivos.

Sempre achei essa passagem especialmente melancólica: simplesmente por vergonha, excesso de zelo ou
etiqueta, um casal que tem tudo para se unir acaba por nunca se casar. Mas, depois de ler as três novelas
reunidas em Tolstói e Tolstaia (Carambaia), lembrei desse trecho e passei a pensá-lo de outro jeito. Ele pode
ser lido também com uma sensação de alívio: se o casamento não se consuma, fica a promessa de uma
felicidade possível — que, como não se realiza, também não chega a murchar.

No volume, com ótima tradução de Irineu Franco Perpetuo, está a novela mais controversa de Lev Tolstói,
“Sonata Kreutzer” — escrita mais de dez anos depois de Anna Kariênina —, e as duas únicas novelas escritas
pela esposa do escritor, Sófia Andrêievna Tolstaia, “De quem é a culpa?” e “Canção sem palavras” — inéditas
em português. Tudo gira em torno de casamentos infelizes: uniões de homens mais velhos, cheios de
experiência, com mulheres bem novas, cheias de expectativas e de uma “inocência infantil”. Essa é, aliás, a
história do próprio casal Tolstói: em 1862, quando se casaram, ele tinha 32 anos, uma filha ilegítima e já era
um escritor conhecido; ela tinha 18 e pouca ou nenhuma experiência de vida fora do círculo familiar.

Histórias de um casamento
“Sonata Kreutzer”, novela de 1889, quando Tolstói já tinha renegado seus trabalhos anteriores e aberto mão
dos direitos autorais, é a história de um casamento que termina em assassinato. Durante uma longa viagem
de trem, sob o ritmo repetitivo da locomotiva, o sombrio personagem Pózdnychev, tomando um chá
fortíssimo e fumando um cigarro atrás do outro, faz um manifesto contra o matrimônio e até mesmo contra o
ato sexual: se as relações começam bonitas e apaixonadas, já na lua de mel vem a desilusão: “É
desconfortável, vergonhoso, asqueroso, penoso e, principalmente, tedioso, impossível de tão tedioso!”

Sófia Tolstaia escreve uma resposta explícita à novela


de seu marido, ‘Sonata Kreutzer’

Ele explica, usando como exemplo a própria história, como as relações entre os casais se tornam cada vez
mais hostis, chegando ao ponto “em que já não era a divergência a produzir hostilidade, mas a hostilidade a
produzir divergência”. Entre momentos dogmáticos e moralistas, há também passagens que o aproximam de
textos feministas, em que a condição da mulher — considerada pela sociedade um “instrumento de prazer” —
é comparada à dos escravos.

Pózdnychev conta como matou a esposa em um momento de ciúme doentio. Ele desconfiava que ela o traía
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músico — e, assim como o casamento, a música também é considerada por ele uma “coisa terrível”,
(https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2020/04/termos-e-condicoes-de-uso-
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que a esposa teria um amante (o que faz essa novela lembrar Otelo, de Shakespeare e Dom Casmurro, de
Machado de Assis), ele se deixa levar pela “plena loucura” e acaba com a vida dela.

O mais horrível era que eu reconhecia em mim o direito pleno e indubitável sobre o corpo dela, como se fosse o meu
corpo, e junto com isso sentia que não podia dominar aquele corpo, que ele não era meu e ela podia dispor dele como
quisesse, e queria dispor dele não como eu queria.

Sófia Tolstaia, em “De quem é a culpa?”, escreve uma resposta explícita à novela do marido. Aqui,
acompanhamos de perto a perspectiva de uma mulher, Anna, e a história de seu casamento com um homem
experiente. Da admiração por ele e o deslumbramento com uma vida possível, a menina rapidamente se
frustra. Ela fica cada vez mais abatida por perceber que não é a única para o marido, que ele já teve muitas
antes dela e que mesmo o matrimônio não o impede de se interessar por todas as que chamam sua atenção.
A relação, que durante o noivado era apaixonada e calorosa, não demora a ganhar um ar de indiferença,
cheia de “alfinetadas em lugares especialmente doloridos”. “Será que apenas nisso está a vocação feminina”,
ela pensa, “passar, de um corpo a serviço de uma criança de peito, ao corpo a serviço do marido? […] Onde
estou eu?”

Anna acaba por se aproximar de um antigo amigo do marido. Mesmo que a conexão entre eles seja sobretudo
espiritual e não se torne carnal em nenhum momento (ou exatamente por isso), os dois se amam, pura e
verdadeiramente. Ela sente uma “repartição interna em sua alma”, mas aos poucos entende que não pode ser
considerada culpada: foi a ausência do marido que a afastou de si mesma e de tudo a que ela aspirava.

Se acontece de uma mulher casada amar outro homem, o culpado é quase sempre o marido; ele não soube satisfazer as
exigências poéticas manifestadas por uma natureza feminina jovem, pura, e destruiu-as, dando em troca apenas o
lado rude do matrimônio.

Essa novela também termina com o assassinato da esposa pelo marido enlouquecido de ciúmes.

Uma pequena rachadura


As novelas de Sófia Tolstaia, tanto “De quem é a culpa?” quanto “Canção sem palavras” — outro texto sobre
uma mulher que encontra consolo em um segundo homem, fora do casamento —, foram publicadas
postumamente e só vieram a público recentemente: a primeira em 1994 e a segunda em 2010. Até então,
estavam escondidas no meio de seus diários e manuscritos. Já a “Sonata Kreutzer” foi publicada na época, em
1889, mas censurada pelo tsar. Quando traduzida para o inglês, foi considerada de “caráter indecente” e teve
sua distribuição barrada nos Estados Unidos. Émile Zola chegou a dizer, sobre o texto: “É um pesadelo […]
que nasceu de uma imaginação doente. [Tolstói tem] uma pequena rachadura na cabeça”.

Leia também: Obra-prima de nossa história cultural conta como autores e leitores dos tempos do Estado Novo se
miraram no espelho da literatura russa (https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/critica-literaria/tolstoi-da-
silva-gorki-do-nascimento)

Sófia chegou a ir pessoalmente até o tsar Alexandre 3o para pedir permissão de incluir essa novela entre os
volumes da obra completa de Tolstói — e a obteve. Ao mesmo tempo, sabe-se que ela mesma detestava a
novela do marido: muitos associavam a história contada ali ao casamento deles, e isso a irritava
profundamente. “A ‘Sonata Kreutzer’ é falsa em tudo o que tem a ver com as experiências de uma jovem
A Folha
mulher”, ela utilizaem
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Suasemelhantes,
dedicaçãocomo em, explicado em nossafazer
mesmo assim, Política
comde que a novela fosse publicada
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revela muito sobre essa relação
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recopiar Guerra e paz seis ou sete vezes. Mas, principalmente nos últimos anos do casamento, as brigas entre
os dois, várias vezes em público, escandalosas e até perigosas, eram conhecidas por todos que frequentavam
Iásnaia Poliana, a propriedade rural dos Tolstói.

É difícil ler essas novelas e a partir delas chegar a alguma conclusão sobre o casamento. É também difícil não
reconhecer algo do que lemos ali. Por mais que nossa época seja outra e que estejamos longe da Rússia, muito
do que é retratado nesses textos ressoa no que vivemos até hoje nas relações amorosas e sexuais. Podemos
falar da violência contra a mulher e dos feminicídios, que seguem acontecendo (o Brasil é um dos países com
o maior índice de homicídios femininos no mundo), ou das violências diárias e nem sempre explícitas do que
hoje chamamos de machismo estrutural, mas nem precisamos chegar até aí: qualquer um que já esteve
casado vai se reconhecer em algumas passagens que retratam a solidão acompanhada ou o amor que se
converte em ódio sem explicação aparente.

Na edição da Carambaia há também o posfácio de Tolstói a “Sonata Kreutzer”, escrito depois de o autor
receber inúmeras cartas cobrando explicações em relação à novela. Ali, ele sistematiza suas opiniões a
respeito do matrimônio, endossando as prescrições que seu personagem vocifera no trem. Além de ser contra
o sexo fora do casamento, ele prega a abstinência sexual até mesmo entre os cônjuges.

Mas nem o próprio Tolstói parece estar completamente de acordo consigo mesmo: ele está pensando, e o
mais interessante de acompanhar os pensamentos de pessoas inteligentes não é encará-los como definitivos,
mas perceber como eles se definem apenas para em seguida perder novamente a forma. Estamos ainda em
um momento anterior à psicanálise; as percepções sobre si mesmo e o outro, sobre as relações, começavam a
ser mapeadas em sua complexidade, seus tantos níveis e contradições. Nos textos críticos do volume, de
Mário Luiz Frungillo e do próprio Irineu Franco Perpetuo, vemos como essas questões atravessam a obra de
Tolstói do começo ao fim, e nunca se resolvem ou se esgotam — ao contrário, ao longo da vida do autor elas
parecem se tornar cada vez mais insolúveis: “[…] das brechas dessa incoerência emerge um confronto crítico
de Tolstói com suas próprias ideias, como se ele espreitasse nelas o perigo de uma explosão de
irracionalidade assassina”, diz Frungillo.

Qualquer um que já esteve casado vai se reconhecer


em passagens que retratam a solidão acompanhada

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Talvez, do ponto de vista
do velho Tolstói, a frase célebre que abre Anna Kariênina tenha que ser invertida. Se, como diz o personagem
de “Sonata Kreutzer”, “99% dos cônjuges vivem no mesmo inferno”, então todas as famílias infelizes é que se
parecem; são as famílias felizes que, para serem realmente felizes, precisam inventar um casamento à sua
maneira.

Leia também: Entre textos de fantasia e com preocupação social, coletânea traz contos de nomes como Tolstói,
Turguêniev, Tchékhov e Catarina 2ª (https://www.quatrocincoum.com.br/br/entrevistas/literatura-
infantojuvenil/russia-para-os-jovens)

Veja todo o conteúdo da edição #65 (br/current_new/65)

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