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Copyright © 2024 LETTI GARCIA

Entre Mentiras e Verdades


(Série Entre Amores: Família Volkiov – Livro 03)

Capa e Diagramação:
Letti Garcia

Revisão e Betagem:
Nathalia Franco e Lais Prado

Todos os direitos reservados.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, lugares e acontecimentos descritos são


produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas
e acontecimentos reais é mera coincidência. Este livro ou qualquer parte
dele não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização
expressa, por escrito, da autora, exceto pelo uso de citações breves em
resenhas ou avaliações críticas.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei n° 9.610/98 e


punido pelo artigo 184 do código penal.

1° Edição | Criado no Brasil.


Para você, leitora, que esperou.
Para Lais e Nathalia, que sempre acreditaram.
E para todas as "Anas", que gostariam de esquecer.
sinopse
“O amor nascido da mentira, sobrevive ao poder da verdade?”

ANDREI VOLKIOV é conhecido como o escudo da


multimilionária família Volkiov, um advogado invicto que não mede
esforços em nome da justiça. Porém, em sua vida pessoal as coisas são
diferentes e o sonho de ser pai parece cada vez mais distante. Com o
emocional abalado e o fim de um relacionamento fadado ao fracasso, ele
assume a responsabilidade por uma desconhecida que mexe com o seu
coração assim que eles se encontram pela primeira vez.
ANASTASIA SEROVA precisa de ajuda. Após fugir das garras de
um marido violento, ela encontra apoio nos braços de um homem que nem
imagina estar abrigando uma mulher grávida. No entanto, as mentiras a
respeito de sua verdadeira identidade a levam por um caminho perigoso
quando o monstro que a machucou decide reivindicar seu direito à
paternidade do bebê, colocando ela e o seu salvador em lados opostos.
O que nenhum dos dois imagina, é que as consequências da rede
insana de mentiras em que eles se envolvem tendem a ser irreversíveis, e
que talvez nem o tempo seja suficiente para dar uma segunda chance ao
amor quando ele nasce e morre rápido demais.

Livro não recomendado para menores de 18 anos. Apresenta conteúdo


sexual, consumo e dependência de bebidas alcoólicas, palavras de baixo
calão e gatilhos de violência, relacionamento abusivo físico e
psicológico, gaslighting e aborto.
índice
notas da autora
prólogo
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epílogo
agradecimentos
notas da autora
Olá, querida leitora.
Primeiramente, quero agradecer se você, assim como eu, estava
ansiosa por essa história. Prometo não me prolongar nas notas iniciais, mas
elas são necessárias para esclarecer dois pontos importantes para a sua
experiência de leitura.
Como se sabe, a história da série “Entre Amores: Família Volkiov”
se passa na Rússia e, portanto, muitos aspectos culturais e sociais se
diferem da nossa conjuntura. Neste livro, o personagem Andrei é um
advogado, e um dos acontecimentos que você vai encontrar ao longo da
narrativa passa por questões legislativas, que estão relacionadas aos
processos de divórcio e de paternidade. Quero dizer que exaustivas
pesquisas foram feitas em cima do tema, e que a forma como esse evento se
desenrola na história, embora muito diferente do que aconteceria em outros
países, está em concordância com a legislação do país onde a história
acontece (pelo menos, até a data em que as pesquisas foram realizadas,
entre os anos de 2019 e 2020).
Ainda assim, valho-me do uso da liberdade poética para quaisquer
desencontros com a realidade, uma vez que esta é uma história fictícia e não
deve ser utilizada como referência.
O segundo ponto diz respeito aos nomes e apelidos da protagonista.
Na Rússia, o nome “Anastasia” possui vários apelidos, dentre eles “Nastya”
e “Stasya”. O diminutivo “Ana” não é popularizado, sendo considerado um
nome próprio e, inclusive, grafado de maneira muito diferente. No corpo do
texto, isso é explicado, mas para evitar eventuais confusões, achei
importante mencionar.
No mais, desejo uma ótima leitura! Que a história de amor entre
Anastasia e Andrei conquiste o seu coração, assim como conquistou o meu.
Com amor, Letti Garcia.
prólogo
Três meses à frente.

Andrei
Meu corpo inteiro dói, as juntas das minhas mãos rangem sempre que
flexiono os dedos, e o indicador esquerdo não responde aos meus
comandos, continua retorcido em um ângulo estranho. Não é uma sensação
agradável... Merda, está bem longe de ser agradável. Dói como o inferno!
Respirar também não é nada bom, queima e arde. O sabor ferroso na minha
boca escorre para dentro da garganta a cada inspiração, desencadeando um
desejo desumano de vomitar.
E ainda tem o cheiro.
O cheiro.
Não se assemelha a nada que minha memória olfativa já tenha
registrado antes. Arriscaria dizer que se parece, mesmo que suavemente,
com odor de metal enferrujado, arame farpado umedecido pela chuva. Mas
é mais forte, mais definitivo, uma fragrância pungente de podridão no
perfume utilizado pelo anjo da morte depois de ceifar uma vida.
E está impregnado em mim, nos meus braços, no pescoço pegajoso,
nas minhas vestes encharcadas com o líquido viscoso. Está dentro,
serpenteando no interior dos meus olhos, arranhando músculos e pele para
se alojar entre as fendas. Depois de hoje, não importa que o tempo passe,
que os dias continuem acontecendo e os meses se tornem anos, jamais
esquecerei como é sentir o aroma do medo, o bafo quente e pútrido do
desespero invadindo as minhas narinas.
Invadindo a minha alma.
A poça ao redor dos meus joelhos continua aumentando, e a
escuridão transforma o vermelho pegajoso em um tom profano enquanto
meu corpo tremula sobre o mar crescente de sangue.
Há um som quebrando o silêncio, ecoando como um dueto de
soluços e gritos estrangulados, meu próprio lamento sem controle ou
harmonia. Queria poder gritar mais forte, chorar alto o suficiente para calar
o berro do meu coração, mas não me restam forças para lutar contra essa
agonia excruciante que amplifica o meu sofrimento.
E eu tento, como um louco, tento; golpeando o chão com o punho
direito, canalizando a dor em um castigo físico. Só preciso que a dor vá
embora, não a suporto, não consigo mais lidar com ela. Preciso que pare.
Que isso acabe.
Que não seja verdade.
Mas não adianta, nada é suficiente. Os socos perdem a potência à
medida que meu corpo enfraquece, subjugado pela exaustão. Minhas
lágrimas se esgotam, o choro sendo substituído por grunhidos de
indignação. Começo a me arrastar na direção em que suponho estar a saída,
necessitado de colocar a maior distância possível entre mim e este pedaço
do inferno, no entanto, os espasmos tornam meus movimentos lentos.
Arfando, tento ficar de pé, mas minhas pernas cedem sobre o piso
molhado e cambaleio de volta ao chão, tombando com um baque aquoso.
Prendo a respiração, forçando a vista na grande sala fechada. Meus olhos
vertiginosos pouco enxergam no breu, exceto pela pequena fresta entre as
madeiras pregadas na janela, que deixa entrar um feixe fraco da luz lunar.
O dia se foi.
Procuro manter a calma, contando o passar vagaroso dos segundos
mentalmente. Não olhe para trás, ordeno a mim mesmo em silêncio, focado
no trajeto adiante.
Não olhe para trás.
Forço meus joelhos, piscando freneticamente para afastar a náusea
que os movimentos bruscos evocam, e dessa vez consigo me sustentar com
a coluna curvada para frente.
Uma pequena torrente de fluidos espessos escorre pelos meus braços
até a ponta dos dedos, pingando pausadamente no chão. Encaro minhas
palmas manchadas, as mangas da camisa outrora brancas agora ensopadas,
e tento visualizar a mim mesmo, parado no meio do escuro com o corpo
banhado de sangue.
Dou um passo, depois outro, arrastando-me com muito esforço, até
finalmente fechar o punho na maçaneta da porta, marcando minhas
impressões no metal e na parede ao lado do batente quando me apoio para
não cair de novo.
Preciso encontrar os meus irmãos, eu preciso deles agora como
jamais qualquer um deles precisou de mim.
Pensar neles traz lágrimas aos meus olhos de imediato, enquanto
abro a porta e atravesso até o cômodo seguinte, relembrando quando fiz o
caminho contrário sem imaginar o que me aguardava. Continuo tremendo,
meu corpo desgovernado não responde ao meu desejo de ficar calmo, então
sigo em frente mesmo parecendo um mero fantasma.
É assim que eu me sinto: um fantasma, o despojo de uma guerra
perdida.
Como posso ter chegado a esse ponto? Como? Eu fiz tudo certo, não
queria que ninguém sofresse, muito menos ela. Principalmente ela! Minha
princesa perdida. Vai dar tudo certo, foram as minhas palavras exatas. Tive
a audácia de prometer uma mentira assim.
Vai dar tudo certo.
Não aconteceu.
No último cômodo, as luzes azuis e vermelhas vindas do exterior,
que deveriam me trazer alívio, somam em meu infinito desespero. Elas
brilham, tremulando nas paredes brancas, formando sombras que me
remetem às labaredas do inferno. Depois que eu sair, não haverá mais volta.
Mergulharei em uma realidade ainda mais devastadora.
Um mundo sem Anastasia.
Um mundo vazio, onde não vale a pena sonhar, ou sorrir, ou viver.
— Esta é sua vida agora — digo a mim mesmo com dificuldade,
uma espécie de ordem para continuar firme, embora minha voz soe
embargada e rouca pelo choro silencioso que já me fugiu do controle
novamente.
Obrigo meu corpo a continuar adiante, em frente, sempre em frente,
até abrir a última barreira entre mim e a verdade brutal. Escancaro a porta e
o conjunto de flashes e gritos atordoam meus pensamentos, agredindo olhos
e ouvidos com tanta violência que desmorono diante da algazarra de
policiais empunhando armas e jornalistas munidos de câmeras e
equipamentos de reportagem.
A dor não cessa, pelo contrário. É só isso o que me resta, é só ela
que existe, eternamente. Abraço meu corpo enquanto uma grande confusão
tem início. Escuto as vozes, pessoas discutindo, gatilhos sendo preparados,
mas não sou capaz de assimilar o que dizem, o que significam. E nem
desejo descobrir.
Contudo, minha atenção recai sobre um par de amedrontadores
olhos verdes. Roman tenta furar o bloqueio, o rosto vermelho de tanto
gritar, seus lábios desenhando o meu nome inúmeras vezes. Um grupo de
policiais impede a sua passagem.
Inclino-me para frente, desejando chegar até ele, esperançoso de que
meus irmãos sejam capazes de fazer o tempo regredir, ou que suas forças
sejam suficientes para sustentar os efeitos colaterais da minha queda. Não
posso mais defendê-los, não sou capaz de proteger ninguém. Não sou o
escudo, não sou um rei, nem invencível.
Eu perdi, e fiz isso da pior maneira, no pior momento possível.
Com a mulher da minha vida.
Não fui capaz de defendê-la.
Eu perdi.
— É o meu irmão, porra!!! — Roman grita, lutando contra os
homens que o mantém em cárcere.
Em outros tempos, eu o repreenderia. Esse tipo de atitude pode
colocá-lo atrás das grades, e seu acúmulo de infrações torna cada vez mais
complicado advogar em sua defesa. Mas é assim que Roman funciona, e é
assim que eu o amo.
— Deixem ele passar! — ruge um sujeito ao seu lado que demoro a
reconhecer como sendo Dimitrio. Sua aparência magra e cansada de dois
anos atrás agora se transformou em robustez, e o cabelo está maior do que
me lembrava. Mas é ele sem sombra de dúvidas.
O que está fazendo aqui?
Os policiais atendem ao seu comando quando mostra algum objeto
que não consigo enxergar, mas deve ser algo relativo ao seu envolvimento
com a Interpol. Roman sobe as escadas correndo, o rosto lívido e punhos
fechados com força. Abre os braços, levando as mãos à cabeça, só então
registrando a bagunça de sangue e hematomas que me tornei.
Ele não sabe como ou onde tocar, mas se coloca de joelhos diante de
mim. Pavor e raiva distorcem suas feições, e pela primeira vez me ocorre
que esse tipo de revolta não combina com Roman, mesmo que lhe seja tão
habitual. Gosto mais quando faz suas brincadeiras inconvenientes, suas
provocações e o sorriso debochado.
Sinto falta deles.
Muita.
— VLAD! — berra, olhando para trás. Tento focar a visão, mas está
tudo confuso, escuro. Identifico paramédicos se preparando, homens
uniformizados desviando do meu corpo para invadir a residência. Ele tenta
de novo: — VLADIMIR! Porra Andrei, o que você fez? O que merda você
fez?
Nego, balançando a cabeça. Coloco a mão bem em cima do peito,
rogando para que entenda meu gesto mudo como um indicativo do meu
sofrimento. Veja, é aqui onde mais dói, tento dizer-lhe, mas nada sai da
minha boca além de outro soluço.
Duas sombras se agigantam sobre Roman. De um lado, Vladimir
com olhos diabólicos e perturbadores, do outro, Ivan com irrefreável pavor
diante da cena, o sangue dela ainda fresco em suas roupas, mas está tudo
turvo, não conseguirei me manter acordado por muito mais tempo.
— Esse sangue... é seu? — pergunta o presidente, dando passagem
para três profissionais que sobem as escadas carregando uma maca aberta.
É meu?
Talvez.
Não, acho que não.
Não tenho certeza.
Provavelmente sim.
O grupo faz um semicírculo ao meu redor, entreolham-se com
hesitação. Há chances de eu estar pior do que supunha. Mas não consigo
falar, minha voz não sai. E eu forço, grunhindo e tossindo até ser acometido
pela ânsia e pender para trás, deitando-me aos pés dos meus irmãos.
— Eu... perdi. — Consigo dizer, a voz ruidosa e baixa. — Eu a perdi
— repito, perdendo as forças, desistindo, enquanto os três conversam entre
si, dizendo coisas sem sentido sobre resolver tudo.
Eu a perdi
Eu as perdi.
Ana.
Anastasia.
Princesa.
— Vamos dar um jeito nisso, irmão — Ivan promete, aflito,
escondendo o desespero que raramente deixa explodir. Ele também está
sofrendo.
Fecho os olhos assim que uma máscara é colocada sobre o meu
rosto. Verdadeiramente exausto. Não quero ver a esperança e o alívio em
seus olhos, a real felicidade por terem reencontrado o irmão vivo.
Estão errados.
Não me reconheço.
Eles ainda não entenderam, não fazem ideia do que aconteceu lá
dentro. Não têm como saber. E por mais que ouçam e vejam e tentem
imaginar, talvez, ainda assim, jamais percebam.
Arrancaram tudo de mim, e o que restou está morto.
Andrei Volkiov está morto.
1
Andrei
POUCAS COISAS ME trazem tanto prazer quanto apreciar as curvas de
uma mulher nua adormecida sobre lençóis brancos. Um fetiche
absurdamente específico, é verdade, mas que, para um homem como eu,
admirador da beleza humana, das feições e sentimentos que manifestamos,
torna-se sagrado.
Desvio meus olhos de onde Evgenia repousa, submersa em um sono
profundo. Levanto-me da poltrona no canto do quarto e procuro minhas
roupas, encontrando apenas a cueca preta jogada sobre o divã. Depois de
vesti-la, caminho até o aparador de vidro e escolho uma elegante garrafa de
vodca, servindo-me com um copo cheio.
Retorno para perto da cama, sorvendo o líquido devagar para que
meu organismo desperte do estupor. Passa das seis da manhã, continuo
fadado a noites de insônia e tormento. Analiso a nudez de Evgenia,
satisfeito com o belíssimo quadro composto pelo excesso de pele exposta,
os joelhos ligeiramente afastados.
É uma mulher linda, não há como negar. O contraste dos cabelos
pretos, lisos e compridos sobre o branco dos tecidos ao seu redor torna a
vista ainda mais excitante.
— Seria tão fácil se eu apenas me apaixonasse por você — sussurro
comigo mesmo, a voz baixa para que não a desperte.
Porém, não sinto nada além de desejo orgânico ao analisar a mulher
com quem tenho vivido há mais de um ano. Mesmo a respeitando e
prezando pelo seu bem-estar durante nossos momentos de intimidade,
continua sendo apenas uma mulher.
Não a mulher. Não única. Poderia ser qualquer outra sobre o
colchão macio agora, minha admiração seria a mesma: com igual deslumbre
visual, mas sem aquele algo mais que tanto almejo.
Sem uma gota de amor sequer.
E eu tentei. Com todas as minhas forças, tentei amá-la. Todos os
minutos de todos os malditos dias, coloquei Evgenia no topo das minhas
prioridades tentando compensar minha ausência quando ela mais precisou.
Eu tentei.
Eu falhei.
E, agora, não tenho certeza de quanto tempo mais conseguirei
continuar neste relacionamento fadado ao fracasso, condenando nós dois a
uma vida infeliz.
— Não conseguiu dormir outra vez? — A voz sonolenta de Evgenia
me surpreende. Ela se encolhe, vira-se de lado e cobre parte das costelas,
quebrando o fluxo dos meus pensamentos.
Será que me ouviu?
— Acabei de acordar — minto, não querendo despertar sua
preocupação.
Tudo com Evgenia é sempre muito... exagerado. E não estou
inclinado a mais um de seus delírios sem cabimento.
— Vai para a empresa? — sonda, buscando meu olhar. Essa
pergunta nunca termina bem.
Antes de responder, arrasto os pés até a porta que dá acesso à
varanda, abrindo as cortinas para que a luz do sol ilumine o ambiente. É
possível ver a ponta do Leningradskaya se sobressaindo na floresta de
concreto do lado de fora. O enorme arranha-céu ainda brilha forte apesar do
amanhecer, com todas as suas luzes ainda acesas, e não deixo de lamentar.
Sentirei falta da vista.
— Vou para o abrigo. — Não entro em detalhes, pegando uma
toalha dentro do closet.
— Outra vez? — reclama, sentando-se com o lençol preso entre os
dedos na altura dos seios. A pele de porcelana ganha uma pincelada de
dourado por causa da claridade matutina.
Fingindo indiferença para que não se irrite por motivo nenhum e tire
conclusões sobre coisas sem sentido, dou de ombros distraidamente.
— Precisamos de uma nova professora de música. — Escolho um
conjunto social e o deixo sobre a cama. — Lara ligou ontem e...
Evgenia me interrompe, fazendo soar um barulho ríspido com a
garganta.
— Lara, claro — ironiza, rolando os olhos para cima.
Respiro fundo, desejando não ser duro com ela, mas odeio a forma
desrespeitosa como sempre se refere à minha família e, principalmente, à
Lara, distorcendo nossa relação fraterna para qualquer desconfiança
infundada que sua mente fértil cultive.
— Não vamos começar outra vez — peço, sem alterar o volume da
minha voz. — Já falei, pode vir comigo se quiser. Minhas cunhadas são
ótimas pessoas, tenho certeza de que teriam se dado bem se você
permitisse.
Agora é tarde.
— Elas me odeiam, assim como a sua mãe. E você sempre fica do
lado delas! — Arrastando-se para fora da cama com movimentos bruscos,
ela luta contra os lençóis enroscados em seu corpo enquanto pragueja.
— Não estou de lado nenhum.
É verdade que minha mãe jamais aprovou nossa relação, algo muito
estranho considerando que seu maior objetivo de vida sempre foi casar os
filhos. Não posso negar que isso me chateou muito por algum tempo,
principalmente depois do que passamos. Às vezes, sinto como se fosse
morrer com tudo engasgado na minha garganta, uma bola de
arrependimentos e sonhos interrompidos que ameaçam me estrangular todas
as noites.
Não aguento mais essa sensação.
— É isso o que diz, mas sempre quando ela chama, você vai
correndo. — Não preciso de um nome para saber de quem está falando. Sua
implicância com Lara é de longe um dos argumentos mais absurdos que já
escutei na vida. — Qual é o problema dela? Seu irmão não está dando
conta?
Porra!
Fecho os olhos e massageio a ponte sobre o nariz, uma dorzinha
despontando na minha cabeça. Eu tentava argumentar nas primeiras vezes,
porém, com o tempo fui aprendendo a me moldar ao redor das emoções
afloradas de Evgenia para evitar seus gritos e ameaças.
Dissimulo meus sentimentos, escondendo qualquer fagulha de
revolta gerada por suas palavras. Ao invés de gritar de volta, ou tentar me
defender da acusação camuflada a respeito da minha cunhada, levanto
minhas mãos e envolvo seu rosto com as palmas.
O toque amável faz seus ombros tensos relaxarem.
— Lara é uma irmã para mim — digo, calmo, porém firme,
fazendo-a se encolher. — Não fale dela, não dessa forma. Estou cansado da
sua implicância infantil e injusta.
Surpresa, ela abre a boca, enchendo os pulmões para rebater, mas
me afasto depressa, seguindo para o banheiro.
Seus passos me acompanham de perto, como já era previsto.
Não é muito difícil descobrir como lidar com as pessoas, contanto
que a gente aprenda o mínimo sobre suas mentes. Quais os seus sonhos,
segredos e desejos, quantos medos possuem e o que almejam conquistar.
É assim que eu funciono e o motivo pelo qual consegui conviver
com Evgenia por tanto tempo. Tudo faz parte de um livro que pode ser lido
e interpretado: o timbre da voz, as expressões faciais, os movimentos das
mãos e até mesmo a velocidade com que falamos e sorrimos.
Aprendi a medir cada nuance do corpo humano para sobreviver na
selva de leis e tribunais, mas não percebi o momento exato em que essas
habilidades passaram a interferir também na minha vida pessoal.
Ligo o chuveiro e retiro minha única peça de roupa. Evgenia fica
parada me observando, enquanto o vapor da água embaça o vidro que nos
separa. Seu olhar recai sobre meu corpo despido com ganância e confusão.
Está nervosa... Não, ansiosa. Não é tola, conhece bem demais com
quem está lidando para não desconfiar que por trás da minha calma e
controle há muita frustração acumulada. Frustração, sim, porque eu
realmente queria que déssemos certo, que ela fosse a mulher da minha vida.
— Sabe como eu me sinto sobre outras mulheres, da minha
insegurança quando se trata de você — ela argumenta com a voz
embargada. Meus sentidos alertam para a encenação já tão familiar, mas
não consigo ser insensível a ponto de ignorar seu choro, seja ele legítimo ou
não.
— Não podemos mais continuar com isso, Genny. Eu não consigo.
Minhas palavras a afetam, ouço seu arfar estrangulado, um breve
soluço antes de invadir o chuveiro junto comigo, agarrando-se ao meu
pescoço e se debulhando em lágrimas incessantes.
— Não diga isso — pede, segurando meus ombros freneticamente,
desesperada. — Me desculpa, eu só tenho você, Andrei. Não posso te
perder também, não pode fazer isso comigo, não pode me abandonar!
Evgenia fica na ponta dos pés, exigindo um beijo que concedo para
acalmá-la. Ainda tenho um imenso carinho por ela, mas é o remorso que
sempre me faz ceder.
Não me deixe.
Não me abandone.
Não faça isso comigo.
Palavras e mais palavras.
Amparo seu corpo entre os braços, desejando, rogando para que
alguma faísca acenda em meu coração, implorando silenciosamente que o
mundo desapareça e apenas ela importe, que se torne a razão da minha
existência.
Mas nada acontece.
Nada acontece.
— Sinto muito — sussurro em seu ouvido.
Empurro seus ombros com cuidado, mas ela não cede. Não seria tão
fácil, nunca foi. Vejo-a cair de joelhos na minha frente, cravando uma das
mãos na minha perna esquerda e alcançando meu membro com a outra.
Unhas compridas penetram a carne da minha coxa enquanto nossos corpos
são lavados pela água quente.
Evgenia me estimula, sabe como fazer, os pontos certos, a
velocidade perfeita. Chamas ardem em seus olhos assim que meu corpo
reage, os dedos se comprimindo mais ao meu redor. Olhando de cima,
consigo uma visão privilegiada do cabelo grudado nas costas, escorrendo
até a base da coluna, o rosto frágil e esperançoso me implorando para não
renegar o seu corpo.
— Eu vou melhorar — promete sem parar com o ir e vir da mão
escorregadia. — Não consigo viver sem você, não pode me tirar isso
também. Desculpe, eu me exaltei, não vai acontecer de novo, eu prometo.
Promessas, promessas.
Estou cansado delas.
Acariciando mais lentamente, Evgenia aguarda para saber se
pretendo continuar discutindo. Ela desliza por toda a minha extensão
enquanto encara a ponta com olhos gulosos, passeando a língua sobre os
lábios rosados e pequenos como um coração.
Fecho os meus olhos e jogo a cabeça para trás, recebendo a água
tórrida no rosto. Há muito o sexo deixou de ter o mesmo poder de persuasão
e convencimento que antes, mas Evgenia está presa demais no mundinho de
dependência que criou em torno de mim para perceber.
— Isso não muda nada — digo, sendo sincero. A indignação que
cruza seu semblante se desfaz assim que lhe dou a próxima ordem,
segurando um punhado de seus cabelos pela raiz e impulsionando os
quadris para frente. — Faça.
Ela não espera um segundo comando e tão logo substitui a mão pela
boca, abrindo os lábios em um círculo largo para me engolir ao máximo,
esticando-se em um esforço muito prazeroso enquanto balança a cabeça
para frente e para trás.
Não tento resistir, quero que ela sinta o que minhas palavras não são
capazes de transmitir, por mais que eu diga claramente que não somos mais
os mesmos, ou que o caminho que estamos trilhando não terá um bom
desfecho.
Isso não muda nada.
Arrancando dela um lamento que se mistura a um gemido lânguido,
ofereço o que mais necessita enquanto ainda posso estar presente. Ainda
somos nós, e ela ainda é a minha mulher.
A cada estocada, cada passeio que sua língua faz em toda a minha
pele rígida, espero por aquele milagre inesperado que nos levará em uma
viagem de volta no tempo.
Que fará dela a pessoa mais importante e especial em meu coração.
Que me fará amá-la incondicionalmente.
Mas nada acontece.
Nada.

***

Apesar de tudo, tenho sido um péssimo melhor amigo.


Pergunto-me no que tenho sido bom, na verdade.
Já faz algum tempo que não visito minha família. Tenho evitado a
empresa e lidado com questões relacionadas ao trabalho remotamente.
Posso contar nos dedos das mãos quantas vezes me encontrei com meus
irmãos nas últimas semanas.
Mas Lara é alguém que não consigo evitar por muito tempo.
— Algum problema? — pergunto para minha cunhada e melhor
amiga assim que entro na diretoria do abrigo, percebendo uma ruguinha
incomum de preocupação entre as suas sobrancelhas.
Ela abre um grande sorriso ao me ver. Um sorriso que eu não
mereço, mas Lara tem um coração bom demais para me encurralar a
respeito de minhas ausências.
— Se alguém escutar você falando assim, vai pensar que eu só
chamo você quando estou com problemas. Quem faz isso é a Serena.
Por instinto, meus olhos percorrem todo o escritório até a mesa em
que Serena deveria estar trabalhando, mas lembro-me que minha outra
cunhada prefere estar no meio das pessoas, lidando diretamente com cada
um que recebemos no abrigo. Foi por isso que Lara a escolheu: pela
capacidade de se colocar ao lado dos outros.
As duas são mulheres incríveis, meus irmãos são homens de muita
sorte.
— Não é como se vocês duas fossem muito diferentes quando o
assunto é se meterem em confusão. Lembra quando fugiu de nós e quase
levou um tiro?
— Vocês, homens Volkiov, se apegam demais ao passado. — Ela dá
de ombros, como se não fosse nada demais. — E todo mundo sabe que a
Serena me ganha de longe. Eu pelo menos não caí de uma ponte.
Sinto minhas entranhas se contorcerem. A verdade é que ambas já
estiveram perto da morte mais vezes do que gosto de contar.
— Como estão as crianças? — Sento-me na poltrona em frente à sua
mesa.
Se ela percebe a mudança abrupta de assunto ou no tom da minha
voz, não transparece.
— Iago não desgruda dos bebês por nada no mundo e sua mãe
continua babando em todos eles. Acho que nunca a vi tão feliz.
Desvio meus olhos para baixo ao pensar nos meus sobrinhos.
— Uma casa cheia de crianças é tudo o que ela sempre sonhou.
Lara estica o braço sobre a mesa e segura minha mão com uma
ternura dolorosa.
— Deveria aparecer na mansão, Andrei, eles sentem a sua falta.
Todos nós sentimos. Estou preocupada com você.
— Não precisa, eu estou bem — minto, forçando um sorriso. —
Prometo reservar um tempo para ver as crianças. — Outra mentira. —
Agora, vamos ao que interessa, posso saber por que me chamou? Espero
que não tenha se metido em nada ilegal, ou Ivan vai me matar.
Ela me encara em silêncio, um dilema crepitando em seu olhar, mas
decide não insistir no assunto.
— Pois bem, não fique se achando demais. — Ela pestaneja, soando
displicente e autoritária. — Mas preciso da sua ajuda com um... problema.
— Jura? — Contenho uma risada, mas não consigo disfarçar meu
tom irônico.
Lara revira os olhos, fazendo uma careta em seguida.
— Convencido — resmunga, ajeitando-se melhor na cadeira, com
os cotovelos apoiados sobre a mesa. — A verdade é que... — Lara hesita,
um simples detalhe que me faz ficar alerta. Ela é muito fácil de decifrar e,
se o assunto a preocupa, então deve ser realmente importante.
— Está tendo problemas com a equipe de advogados que designei
no meu lugar? Tenho certeza de que eles conseguem resolver qualquer
questão jurídica do abrigo, mas não me importo em assumir a
responsabilidade se você quiser.
— Não precisa, eles são ótimos. — Colocando-se de pé, Lara
contorna a mesa e se acomoda ao meu lado. — Quando eu decidi fundar o
abrigo, você me ajudou mesmo com o mundo desabando em cima da sua
cabeça. A Corporação Volkiov não estava passando por um momento
promissor e você era o único que podia resolver a situação.
— Não é verdade, o Vladimir...
— Ele é o presidente. Foi o responsável por reerguer a empresa em
um tempo humanamente questionável. Vladimir é brilhante, mas ele não
teria conseguido sem a sua ajuda. Você teve que lidar sozinho com todos os
processos e contratos rompidos, além de ter evitado a prisão dele no caso do
desabamento.
— É o meu trabalho proteger a nossa família.
— Mas não deve ter sido fácil conciliar o trabalho na empresa com a
fundação do abrigo. Sinto muito ter exigido tanto de você naquela época.
Acaricio seu rosto e sorrio para tranquilizá-la.
— Você é minha irmãzinha, Lara, não existe nada no mundo que eu
não faria pela sua felicidade. Eu sei o que o abrigo significa para você. Ver
como transformou seu pior pesadelo em um lugar bom, onde as pessoas se
sentem seguras contra a fome e a violência, me enche de orgulho. Seja lá o
que está tentando me pedir, eu aguento.
Depois de aquiescer com a cabeça e respirar fundo, ela então diz:
— Você se lembra da minha amiga Dema, certo?
— Claro, ela foi morar em Sochi junto com Alexander no ano
passado.
— Isso mesmo. Antes de partir, ela me disse que tinha uma prima
musicista e a recomendou para o cargo de professora de música aqui no
abrigo, mas quando fizemos o convite, ela recusou, então contratamos outra
pessoa no lugar.
— O professor Ivanov — recordo-me. — Ele foi o responsável pela
decoração de ano novo do abrigo.
— Sim, ele é um amor, mas precisará se afastar em breve por causa
da idade e me pediu que começasse a procurar um substituto. Como eu
ainda tinha o contato da prima de Dema, decidi fazer uma nova tentativa. —
Identifico uma vibração tensa em seu tom de voz que não me deixa nada
feliz. — Conversamos ontem por um breve minuto. Ela tem um jeito doce e
é muito educada. Até pareceu interessada, mas disse que não podia aceitar
no momento.
— Podemos anunciar a vaga se não quiser terceirizar a contratação.
Serena é mais do que apta a fazer as entrevistas, mas eu não me importo em
ajudar.
— Não, eu ainda não quero desistir dela. — Lara junta as mãos na
frente do corpo em uma clara posição de súplica. — Então preciso que me
faça um grande, grande, grande favor!
Suspiro, preparando-me para um problema dos grandes.
— Por que eu tenho a impressão de que não vou gostar nem um
pouco desse pedido? — questiono, afrouxando o nó da minha gravata,
subitamente acalorado. O outono em Moscou é a porta de entrada para o
inverno. As chuvas rigorosas exigem ternos mais pesados e, em alguns
casos, casacos grossos e quentes.
Lara, muito bem agasalhada com um bonito conjunto social azul-
marinho, crispa os lábios antes de prosseguir.
— Passei o seu número para ela — confessa para o meu tormento.
— Talvez, se conversassem um pouco...
— Lara! — repreendo-a. — Não conheço a mulher, como poderia
ajudar?
— Eu sinto muito, sei que estou cruzando um limite e odeio
envolver você em dramas desnecessários depois de tudo o que fez por mim,
mas não existe ninguém com um poder de persuasão tão grande quanto o
seu. Eu só... — Ela fecha os olhos e solta um suspiro melancólico. — Não
consigo tirá-la da minha cabeça.
Embora eu não entenda o que está acontecendo, não sou capaz de
ver sua aflição sem me sentir preocupado.
— Como assim? — pergunto ternamente.
— Uma vez Dema me contou que essa prima e o marido vivem uma
relação complicada, que já o viu passar dos limites uma vez, embora não
tenha entrado em detalhes. Talvez eu esteja exagerando, mas eu gostaria
que ela ao menos soubesse que tem uma opção se precisar.
Uma suposição horrenda e óbvia nasce na minha mente.
— Ele é perigoso? Ela corre algum risco?
O arfar de Lara responde meus questionamentos. Aperto meus olhos
com força para não ver o seu semblante devastado. Faz sentido que não
tenha conseguido esquecer essa mulher mesmo após tantos meses. Lara,
mais do que ninguém, sabe como é a dor de ser maltratada dentro de sua
própria casa, de se sentir sozinha e desamparada. Ela está bem e protegida
no coração da nossa família agora, mas eu acho que algumas cicatrizes em
sua alma jamais desaparecerão.
— É bem provável que eu esteja me preocupando sem necessidade
— diz em uma falha tentativa de parecer inabalada. — Confio mais no seu
julgamento do que no meu. Depois que falar com ela, vai entender o que eu
quero dizer.
Tento imaginar uma mulher sem rosto em algum canto da Rússia,
alguém que não conheço e cujos olhos jamais cruzaram com os meus.
Geralmente, para ajudar um cliente, preciso me encontrar com ele para
desvendar sua mente, e só então escolher as estratégias adequadas de como
conduzir cada caso.
Mas dessa vez não sei nada sobre nada.
— Vou ajudar, é claro. — Abrando a minha voz a fim de minimizar
sua preocupação. Em horas assim, sou grato ao sangue frio que corre em
minhas veias, caso contrário, não conseguiria fingir que uma mulher
sofrendo nas mãos de um covarde não me deixa perturbado pra caralho. —
Vamos aguardar, o primeiro movimento precisa ser dela para que não se
sinta pressionada ou julgada. Você fez bem em passar o meu número.
— E se ela não ligar?
— Então eu ligarei — garanto. — E continuarei ligando e enviando
mensagens até ter certeza de que ela não corre nenhum risco. Como ela se
chama?
— Ana... — Lara franze o cenho. — Ana Serova? Tenho quase
certeza, Dema sempre a chamava de Annushka. Se quiser, posso conseguir
mais algumas informações sobre ela com a minha amiga.
Guardo o nome em minha mente.
— Não se preocupe, eu vou cuidar de tudo — prometo. — É melhor
não criarmos um alarde sobre isso por enquanto.
Lara se inclina sobre mim e me envolve em um abraço familiar e
cheio de afeto. Também a seguro em meus braços, dizendo a mim mesmo
que vai ser bom pensar em outra coisa que não seja o fim iminente do meu
relacionamento.
Evgenia acha que desisti após o seu desempenho no banheiro, mas
aquilo só serviu para comprovar o que eu já suspeitava: o sonho de ter a
minha própria família está morto. Não posso fazer ninguém feliz enquanto
não aceitar esse fato.
Eu preciso aceitar. E logo.
2
Anastasia
INSPIRO COM OS olhos fechados, prendendo a respiração e desligando
meus outros sentidos para aguçar a audição. A melodia paira no ambiente,
flutuando diante de mim como uma presença viva, uma companhia
amigável que faz carícias gentis na minha alma.
Identifico todas as notas à medida que o pianista solitário avança,
dedilhando as teclas mais rapidamente para mergulhar outra vez em uma
sequência de agudos suaves. É lindo, e por um momento parece que estou
sozinha, isolada em um espaço deserto e particular onde tudo o que existe
somos eu e a música.
Eu e a música.
— O que está fazendo? — A voz ligeiramente irritadiça de Yerik me
faz abrir os olhos, sobressaltada com a imersão interrompida.
Minha visão se ajusta à claridade do ambiente, e a cacofonia de
vozes sobressaindo ao som do piano levam para longe aquele breve
momento de paz, trazendo-me para a realidade, e logo percebo que fiz outra
vez.
Droga, Ana, sua cabeça de vento!
Perdi a noção do tempo e do espaço por causa da música — algo
que acontece com frequência — bem no meio de um almoço importante.
Para piorar, inconscientemente posicionei os braços como se estivesse
realmente tocando, com a cabeça inclinada para o meu violino imaginário.
Que vergonha...
Yerik deve estar uma fera.
Antes de erguer os olhos para meu marido, aliso meu vestido para
ter certeza de que continua impecável. Não é elegante, cheio de brilhos ou
estampas, como a maioria das outras convidadas está usando, já que Yerik
sempre reclama que eles parecem vulgares demais e não combinam comigo,
mas se ajusta ao meu corpo, abraçando todas as minhas curvas, com uma
fenda estreita e casta na perna direita que termina de compor a beleza
simples e natural do tecido preto.
Não há nenhum sinal da gravidez ainda. Claro que não, os testes
foram precoces. Vai demorar algum tempo até que a barriga comece a
crescer um pouco. Dois meses? Três? O que Yerik vai achar disso? Estou
ansiosa para contar, mas hoje ele parece particularmente irritado com
alguma coisa.
Devo esperar?
Devo fazer uma surpresa?
Devo agradá-lo primeiro?
Não sei, nunca sei.
— Apreciando a música — explico, sorrindo como se não tivesse
percebido a rudeza em seu tom de voz. — Já terminou de cumprimentar
seus amigos?
Yerik olha para os lados, confere se não há ninguém ouvindo nossa
conversa, depois se inclina e coloca uma taça de vinho na minha mão
enquanto encosta seus lábios nos meus, sem jamais fechar seus frios olhos
verdes.
O beijo quase me deixa esperançosa de que seu humor ruim tenha
sido impressão da minha parte, mas as palavras seguintes, sussurradas
contra a minha boca, exterminam essa hipótese.
— Querida, não faça coisas estranhas. O que as pessoas vão pensar?
— Sinto muito — murmuro, envergonhada. — Eu estava distraída.
— Então não se distraia — sibila entre os dentes cerrados. Ele me
ajuda a ficar de pé e segura minha cintura com força. — Não é tão difícil
assim. Agora que a refeição já foi servida, podemos ir embora, só preciso
cumprimentar mais algumas pessoas. Encontrei outra mesa para nós, perto
da saída, você pode me esperar lá enquanto isso.
Eu o acompanho em silêncio, com a cabeça baixa. Inúmeras
questões sobre seu comportamento passam pela minha mente. Eu fiz algo
de errado além de divagar um pouco? Será que fui grosseira com alguém?
Disse alguma coisa inconveniente?
No meio do caminho, enquanto não encontro as respostas para as
minhas dúvidas, somos interceptados por dois homens que aparentam ter
aproximadamente a idade de Yerik, ambos vestidos com ternos. Seus olhos
têm a mesma cor azul-esverdeada, então suponho que sejam irmãos ou
parentes bem próximos.
O que me deixa tensa, no entanto, é que não se dirigem ao meu
marido. Ambos têm a atenção focada em mim, cenhos franzidos,
curiosidade e admiração brilhando em suas pupilas gêmeas.
Não, de novo não.
— Nos conhecemos de algum lugar? — pergunta o primeiro, com a
mão estendida.
Yerik pressiona a minha cintura com ainda mais intensidade,
fazendo-me conter um gemido, mas oferece uma expressão amigável aos
rapazes.
— Eu... — gaguejo, sem saber como responder. Não é a primeira
vez que alguém me reconhece, mesmo depois de anos. Nunca consigo
encontrar as palavras certas e agir com naturalidade. Era tão fácil antes. —
Desculpe, temo que não.
Recuso educadamente o cumprimento, deixando o clima
desconfortável. O rapaz deixa o braço cair lentamente. Yerik faz um ruído
com a garganta, uma espécie de risada masculina estranha, e escorrega sua
mão possessiva até o meu quadril.
— Perdoe meu irmão, senhor Baranov — diz o mais alto dos
homens, constrangido. — Eu disse a ele que era rude perguntar, mas o
idiota colocou na cabeça que sua mulher se parece muito com...
— Anastasia Serova — completa o outro, empolgado, confirmando
minhas suspeitas. — É você, não é? Eu tenho certeza que sim! Você é
inconfundível, assistimos à sua apresentação no Bolshoi...
— Ela não toca mais — Yerik responde no meu lugar,
interrompendo deliberadamente o relato. — Diga a eles, querida — induz.
Não sei se é a tensão crescente do meu marido, ou as lembranças da
minha última apresentação como violinista solo em um lugar tão imperioso,
mas as palavras ficam presas na minha garganta. Amplio meu sorriso para
que pareça mais gentil e não como alguém prestes a vomitar.
— Mesmo? — prossegue o desconhecido diante da minha mudez.
Yerik deve conhecer seus nomes, mas duvido que pretenda nos apresentar.
— Ouvi boatos de que estava na Alemanha.
Claro que sim. É o que a maioria das pessoas pensa, já que desisti
dos palcos e da minha carreira como musicista para continuar ao lado de
Yerik, aqui em São Petersburgo, na mesma época em que o convite para
tocar na Orquestra Filarmônica de Berlim foi divulgado.
Só havia uma coisa que eu desejava mais do que viver da minha
música, um sonho que agora cresce dentro de mim. Yerik prometeu que
teríamos a nossa família contanto que eu continuasse na Rússia, e eu não
podia simplesmente virar as costas para o homem com quem havia jurado
passar o resto da minha vida. Não queria também.
Não quero, corrijo o pensamento leviano. Ainda não quero.
O que diabos estou pensando?
— Sinto muito — murmuro, sentindo-me patética, sem nada
inteligente para acrescentar.
Aliás, tenho me sentido assim há muito tempo. Cada vez menor,
cada vez menos importante. Cada vez... menos.
— Temos que ir agora — Yerik diz, desprezando as expressões
atônitas dos dois quando seguimos nosso caminho.
Somos acompanhados por olhares curiosos de outros convidados,
alguns menos amigáveis que outros.
Não estão acostumados a mim. Mesmo quando eu estava no auge da
minha carreira, os olhares controversos sempre foram uma constante. Zayn
diz que o mesmo acontece com ele por seus grandes e expressivos olhos
mediterrâneos, mas devo admitir que não é a mesma coisa.
— Fique sentada — ordena depois de me acomodar em uma cadeira
distante. — Acho que pelo menos isso você consegue fazer direito.
— Yerik... — chamo, mas ele volta a me censurar com um grunhido
reprovador antes de me dar as costas e sair batendo os pés.
Não consigo evitar voltar para minhas indagações em busca de algo
que justifique seu ressentimento de mim. Era para ser um dia feliz. Ele
ainda não sabe que os testes do laboratório chegaram e a cada minuto me
sinto menos confiante para revelar hoje. Não sei o que será de nós se sua
reação não for positiva.
Coloco o vinho sobre a mesa, junto com a pequena bolsa de mão, e
me ajeito na cadeira. Não posso beber, mas não quero fazer desfeita para o
anfitrião da festa e receber outra advertência de Yerik, então finjo bebericar
o líquido.
Ao meu redor, pessoas se distribuem em mesas elegantes, divididas
em pequenos grupos. Não é uma festa grande, apenas um almoço formal
demais para uma tarde tão agradável, quando o sol conseguiu vencer o
clima baixo da estação. Eu daria qualquer coisa para estar em casa, com
meus fones de ouvido e um bom livro nas mãos.
Percebo que estou acariciando a barriga inconscientemente e, apesar
de gostar da sensação, de saber que há uma vida pequenina dentro de mim,
obrigo meus dedos a se afastarem do ventre. Pare de fazer coisas estranhas,
Anastasia!
Assim que apoio os braços em cima da mesa, meu celular começa a
vibrar dentro da bolsa prateada. Consigo pegar o aparelho antes que chame
muita atenção, e quando vejo o número na tela do celular — um número
que, por qualquer motivo, acabou ficando gravado em minha memória —
meu coração começa a bater mais rápido, golpeando meu peito por dentro.
Ele nunca ligou, é a primeira vez. Não podia ter escolhido um
momento pior?
Percorro o ambiente com o olhar, com medo que Yerik esteja por
perto e veja a ligação, mas ele continua parado alguns metros à frente,
distraído com um grupo animado de homens bem mais velhos. Parece estar
alheio ao que estou fazendo, sorri para todos, jogando charme com uma
vivacidade rara enquanto passa as mãos nos cabelos loiros.
Mesmo assim, ignoro a chamada o mais rápido possível.
Não quero que a gente brigue outra vez, sobretudo hoje. No entanto,
uma mensagem chega em seguida e acabo lendo sem querer.
“Continuarei ligando.”
Apago a mensagem depressa, tentando disfarçar o peso da culpa em
minha consciência.
Por que esse homem desconhecido é tão insistente? Nós nem nos
conhecemos! Já recusei a proposta de visitar o abrigo em Moscou e, ainda
assim, ele continuou enviando mensagens diárias na última semana. Se
continuar assim, serei obrigada a bloquear o seu número.
Algo que eu já deveria ter feito. Eu farei… em breve. Sim, eu farei.
Se Yerik suspeitar que tenho recebido mensagens e ligações de outro
homem... prefiro nem imaginar.
— Quem era? — Yerik pergunta, quase fazendo o meu espírito
saltar para fora do corpo.
Ele se aproxima por trás. Sua mão encontra meu ombro e minha
pele se arrepia embaixo da palma gelada. Sinto-me acuada diante do olhar
investigativo, que queima meu rosto ao se inclinar sobre mim.
Como chegou aqui tão rápido?
— Dema — minto, engolindo em seco. — Está com saudades.
Yerik estreita os olhos, estudando meu comportamento suspeito.
Forço um sorriso para mostrar que não precisa se preocupar, e a sensação
esmagadora de estar fazendo algo errado infla em meu coração. Suspirando,
ele tamborila a ponta dos dedos no côncavo da minha clavícula.
— Ela é uma vadia, não gosto que fiquem conversando demais —
cospe as palavras com desdém. — Não é uma boa companhia para você, já
conversamos sobre isso.
Abaixo a cabeça, escondendo meu incômodo. Minha mente entra
em conflito sobre o que responder. O que ele espera que eu diga? Não gosto
que fale assim da minha prima, mas sei que contestar só nos levaria a uma
sequência de discussões sem fim, e prometi que evitaria debater com ele
sobre coisas que discordamos.
— Não sei por que está tão nervoso, mas poderia ser menos
ofensivo? — peço cuidadosamente, levantando-me da cadeira. Diante de
Yerik, coloco uma mão em seu peito e levo a outra até o rosto dele,
determinada a acalmar sua fúria. — Não vale a pena brigarmos por algo tão
bobo, não acha?
Devagar, as rugas entre suas sobrancelhas suavizam, e ele se rende
um pouquinho à minha investida. Segura minha mão perto da boca e beija
todos os quatro ossinhos na parte de cima.
— Claro, Nastya, desculpe. — O apelido conforta meu coração.
Dura pouco, porém. — Eu só estou tentando proteger você, querida. Todo
mundo sabe que ela deu um belo golpe da barriga no marido e não quero
que você vire alvo de rumores assim.
Ele me pressiona entre os braços em um abraço rústico. Yerik é um
sujeito alto e robusto, tipicamente russo com seu físico cheio de ângulos e
músculos. Sua inconstância me confunde, hora amoroso e protetor, hora
hostil e violento.
Nós dois sabemos qual é a verdadeira razão por trás do seu repúdio
à minha prima. No ano passado, durante a festa de aniversário do meu
irmão mais velho, ela presenciou uma de nossas discussões no jardim da
casa dos meus pais, e a cena não era nem um pouco favorável para ele, que
tinha acabado de erguer a mão para me acertar após um de seus costumeiros
excessos de ciúmes.
Paciência não é uma virtude que represente bem o meu marido.
Mas ele prometeu que seria diferente.
Ele prometeu.
Muitas vezes.
Tudo bem, nós teremos um filho agora. Certamente será bom para
nós. Contanto que eu não o deixe irritado, Yerik costuma ser um bom
companheiro, então só preciso ser mais cuidadosa.
Devo isso a ele. Todo mundo tem direito a uma ou duas chances. Ou
três.
Ou várias.
Ele está tentando.
Como posso enfrentá-lo quando sou a única sendo desonesta?
— Algum problema?
— Nenhum — minto rápido demais. — Podemos ir agora?
Finjo não reparar em sua feição desconfiada e abro um grande
sorriso. Felizmente, ele se dá por satisfeito e concorda. Mas eu sei que sua
reação seria bem diferente se ele soubesse que o verdadeiro dono daquela
ligação deseja me levar para outra cidade.
E que uma pequena parte de mim, uma parte insignificante, ingênua
e descuidada, não acha a ideia tão absurda.

***

As ruas de São Petersburgo são melancólicas, mas eu não sei


explicar o que, exatamente, me faz pensar assim sempre que observo a
cidade. Enquanto o carro sacoleja, acompanhando as margens geladas do
Rio Neva, imagino uma sinfonia que combina com a beleza depressiva do
cenário — talvez Tchaikovsky, Chanson Triste para piano, opus 40, No. 2.
Yerik não disse uma palavra desde que saímos do restaurante e seu
silêncio pode significar qualquer coisa. O couro dos bancos está
impregnado com o seu cheiro e me sinto muito consciente de sua presença
ao meu lado.
Pode ser um bom momento para falar sobre a gravidez.
Quando estou prestes a me virar em sua direção, Yerik se antecipa e
coloca o braço sobre meus ombros, iniciando uma sequência de beijos no
meu pescoço.
Tudo bem, é um bom sinal.
— Yerik, nós precisamos conversar — digo, torcendo para não
gaguejar.
Ele não responde. Sua respiração soa voraz contra o meu ouvido
quando desliza seus lábios sobre a pele sensível do meu rosto. Estranho seu
comportamento, mas repito a mim mesma que estou sendo paranoica.
Tento me desvencilhar para retribuir suas carícias, mas Yerik enterra
os dedos no meu ombro e chupa com força a curva sinuosa da minha nuca.
Pega de surpresa pela investida ousada, não consigo me opor quando sua
mão livre envolve meu pescoço disparando um alerta para todo o meu
corpo.
Tem alguma coisa errada.
— Que merda você estava pensando, Anastasia? — rosna,
comprimindo os dedos.
A cabine do motorista está fechada e o carro continua avançando.
Acho que não devemos estar longe de casa agora.
— Yerik? — Seguro sua mão, tentando abrandar o aperto.
— Queria me envergonhar vestida assim? — Ele ri ironicamente.
Viro um pouco o rosto, fixando os olhos nos dele, que me encaram com
superioridade e repreensão.
— Cla-claro q-que não! — Meu peito arde em busca de oxigênio.
Procuro o ventre com as mãos e meus olhos se enchem de lágrimas. —
Pensei que fosse gostar.
Violentamente, ele me empurra contra a porta fechada e minha
cabeça se choca no vidro da janela. A dor lancinante me deixa zonza, mas
ao menos consigo respirar.
— Gostar de ver a minha mulher vestida como uma prostituta? — O
carro perde velocidade até parar. Já estamos dentro do estacionamento do
prédio onde fica o apartamento de Yerik. Nossa casa. — Claro! Por que
não? Já é isso o que todos pensam, não é mesmo? Que me casei com uma
vagabunda! Que diferença faz?
— Ouça o que está dizendo — clamo, enxergando pouco através do
choro.
— Vamos.
Ele abre a porta e me empurra para fora. Tropeço sobre os saltos,
mas sou amparada por seus braços, que me mantêm cativa. Não com zelo e
proteção, somente com sua raiva cega.
Yerik me arrasta até os elevadores e soca o botão do nosso andar.
Ele é muito maior, mais forte e rápido, além de estar descontrolado. Resistir
não é uma opção. Eu só preciso aguentar. Com sorte, ele vai voltar ao
normal a tempo de perceber o erro que está cometendo.
Não era para ser assim.
Não era.
Onde foi que eu errei? Era apenas o vestido esse tempo todo?
— Está me machucando.
— Foda-se! — grita, cada vez mais histérico. Enfia a mão na parte
interna do meu cotovelo e torce meu braço como se eu fosse uma criança.
— Estou cansado de repetir as mesmas merdas e você se fazer de burra.
Sempre fica toda meiga quando algum babaca te reconhece!
Ainda isso?
— O que? Meu Deus! Eu praticamente não troquei dez palavras
com eles! — protesto, sentindo a torrente salgada molhar o meu rosto.
Assim que as portas se abrem, três pessoas passam por nós e
desviam os olhos, ignorando a cena humilhante de Yerik me arrastando pelo
corredor.
Ele praticamente me joga dentro do apartamento antes de bater a
porta e se afastar, andando de um lado para o outro como uma fera
selvagem. Só pode ser um pesadelo, daqueles horríveis em que a gente está
caindo, e caindo, mas sempre despertamos antes da queda final. Com a
diferença de que não posso despertar.
— Você me chamou para te fazer companhia, Yerik. — Abraço meu
próprio corpo, soluçando. Sem muitas opções, não desisto de colocar algum
juízo em sua cabeça. — E prometeu que não me machucaria de novo, disse
que iria se controlar.
Ele retira a gravata, depois o paletó, joga tudo sobre o sofá da sala
de estar sem se preocupar com os sapatos. Nosso apartamento não é nada
tradicional, mas o convenci a manter o piso de madeira após o casamento.
Não me orgulho de admitir, mas é bem fácil conseguir coisas de alguém
como Yerik, porque homens como ele estão sempre tentando abafar as
merdas que fazem com presentes caros.
— Você não parava de choramingar na minha cabeça, dizendo que
estava cansada de ficar presa dentro de casa. — Aponta um dedo acusatório
na minha direção. — Eu fiz isso por você, e é assim que me agradece? Acha
que eu gosto de brigar com você? Que me sinto bem vendo a minha esposa
chorar?
Piscando para cessar o choro, retiro as sandálias e revivo os últimos
meses por trás da névoa dos meus pensamentos, todas as nossas brigas e
reconciliações. Quantas vezes eu pedi desculpas? Devo presumir que a
culpa é minha? Simples assim? É só eu me desculpar uma vez mais e tudo
ficará bem?
Estou tão cansada.
— Yerik — eu o chamo. Não sou capaz de olhar em seu rosto sem
me sentir diminuída, exausta e burra. — Vamos nos trocar, eu não quero
brigar e você tem um compromisso daqui a pouco, não é?
Arrasto os pés pelo chão e coloco uma distância considerável entre
nós. Eu só preciso me deitar por um momento e chorar sozinha. Tenho que
pensar no meu bebê agora.
Meu bebê.
Sinto um gosto amargo na boca. Somos casados e ele concordou
com o procedimento, merece saber que estou grávida. No entanto, minhas
mãos não param de tremer e estou surpresa que minhas pernas ainda não
tenham cedido ao pânico e me feito cair de joelhos. Tocar no assunto não é
mais uma opção.
— Tudo bem. — Yerik me alcança e, por conta da minha distração,
seus braços rodeiam meu corpo pelas costas sem encontrar resistência. —
Eu não quero ouvir mais nada sobre essa merda — diz no meu ouvindo. —
Vamos só recomeçar.
O quê?
No corredor escuro, ele me coloca contra a parede e começa a
descer o zíper do meu vestido, esfregando a virilha na base da minha
coluna. Sinto o contorno de sua rigidez quando faz movimentos
pornográficos com os quadris e uma vertigem quase me faz desmaiar.
— Não, Yerik. — Tento me afastar, choramingando. — Já chega.
— Eu fico louco quando outros caras olham para o que me pertence.
— Ele usa as pernas para afastar meus joelhos. — E porra! Não pode me
culpar por sentir ciúmes.
A fenda em meu vestido facilita sua investida e ele enfia a mão por
baixo do tecido. Seu toque vai direto para o centro do meu corpo e eu entro
em desespero. Não o quero dentro de mim agora. Ele nem mesmo sabe
sobre o bebê. E se for bruto demais? Violento? E se nos machucar?
— Não — repito, mas Yerik não se move, pelo contrário, beija,
chupa e lambe a parte exposta das minhas costas. — Eu não quero Yerik,
me deixe descansar, por favor. — Odeio como minha voz soa mendicante
aos ouvidos.
Medo líquido corre por minhas veias quando o ouço desafivelar o
cinto. Sinto o sabor ácido da bile subindo pela minha garganta e me debato
em busca de liberdade. Minha resistência o deixa mais determinado, mais
duro e histérico, e não tenho dúvidas do que vai acontecer comigo. Eu me
debato, igualmente em transe, e um dos meus movimentos bruscos acaba
acertando seu rosto.
Yerik cambaleia para trás com a mão no rosto, praguejando uma
sequência de xingamentos ferinos.
Ai, meu Deus! Eu bati nele.
Yerik está sangrando.
Minha mente faz um giro desordeiro e meu coração há muito deixou
de bater dentro do ritmo. Ele encara as próprias mãos ensanguentadas e seu
rosto se retorce em uma expressão quase demoníaca de ódio.
— Mas que porra! — berra, limpando o nariz com a manga da
camisa. — Então agora eu não posso comer a minha própria mulher? — Ele
soca a parede com força ao lado da minha cabeça e eu me encolho. Seus
olhos geralmente brilhantes estão tempestivos e sombrios como o próprio
inferno. — Pra que eu tenho você, então?
Girando sobre os calcanhares, ele sai pisando duro.
— Eu não queria... — Paro no meio da frase.
Eu não queria ter machucado você?
Eu não queria que me tocasse daquela forma?
Minhas palavras se transformam em outro lamento choroso.
Dividida entre ir atrás dele ou me esconder no quarto, não tenho tempo para
pensar direito quando ouço o barulho de algo se espatifando contra a
parede.
O que eu fui fazer?
Corro de volta para a sala e desvio dos cacos espalhados no meio do
caminho, restos de um abajur. Chego bem a tempo de vê-lo chutar a mesa
de centro, cuja superfície de vidro explode em milhares de pedacinhos.
— Vai chorar? — pergunta desdenhosamente. Seu rosto é uma tela
vermelha de puro rancor e suas narinas se dilatam a cada respiração feroz.
— É só isso o que você sabe fazer? Chorar e chorar?
Não sei de onde tiro forças para responder em um sussurro quase
inaudível:
— Se está tão infeliz, então vamos terminar tudo.
Se olhares matassem, eu estaria morta agora. Yerik me encara como
se planejasse arrancar meus membros e dar de comer a leões selvagens.
Recuo lentamente quando começa a se aproximar. Não confio nele no
momento. No entanto, meu vestido justo e desarrumado não favorece a
minha fuga, e ele logo consegue me alcançar. Seu agarre é uma prensa de
ferro em meu pulso.
— Terminar? — Gargalha. — Acha que vai ser fácil assim? Que
depois de dois anos é só virar as costas e ir embora? Depois de tudo o que
eu fiz por você, é isso o que pretende me dar em troca? Você é minha
mulher, está ouvindo?
— Yerik... — imploro.
— Nenhum outro homem vai querer você, Anastasia. Olhe para si
mesma. Usada, sozinha, arruinada, e pior... — Seu rosto está a centímetros
do meu. — Grávida.
Ele marca seu ponto e eu paro de lutar.
Meus braços doem. Não vai demorar para que os hematomas
apareçam. Na última vez que Yerik me machucou, ele prometeu que não
aconteceria de novo. Ele sempre promete que será a última vez. E eu
sempre acredito, sempre lhe dou uma nova chance, e agora ele tem uma
carta: meu filho, meu bebê, meu sonho.
Burra, burra, burra.
— Como você sabe?
— Tão inocente, minha doce Nastya. Pensou que eu não fosse
descobrir? Que eu não me manteria informado? Você não pode me deixar,
apenas pare logo de chorar e vamos acabar com essa discussão sem sentido.
Ele tenta me levar para o quarto, mas agora sou eu a usar toda a
minha força para fincar os pés no chão.
Isso... O que eu faço?
— Não, eu não vou — decido, devastada. — Era para ter sido uma
revelação especial e esse tempo todo você estava fingindo não saber? E
ainda se acha no direito de usar o meu próprio filho contra mim, mesmo
sabendo o quanto batalhei para engravidar? Isso é tão cruel, Yerik. — Nego
com a cabeça, encarando o chão. — Você quebrou a sua promessa, eu
preciso de um tempo para pensar.
— Um tempo?
A mão de Yerik sobe depressa, não compreendo o que está fazendo
até sentir o vento no rosto pouco antes do golpe. Sua palma aberta atinge a
minha bochecha direita, e toda minha boca é preenchida com o sabor
ferroso do sangue enquanto perco o equilíbrio e caio para o lado.
Não é a dor que me faz chorar, não de verdade. É o medo.
Medo dele.
— Droga, Anastasia! — Yerik se ajoelha na minha frente, olhos
arregalados, mãos hesitantes, surpreso consigo mesmo. — Está vendo o que
me fez fazer?
Não.
Está tudo errado. Tem que estar. Não consigo pensar direito, a dor
em meu rosto me impede de manter a calma. Olho para o homem de rosto
lívido ao meu lado, mas não o reconheço, não encontro em seus olhos o
conforto e a segurança de outrora. O calor da nossa paixão foi transformado
em cinzas e essas também foram varridas para um limbo inalcançável.
É impossível para nós, percebo com muito pesar, talvez mais tarde
do que deveria. Sei que também tenho culpa, que eu poderia ter me
esforçado mais. Eu acho. Se eu fosse menos distraída, mais empenhada.
Mas estou grávida agora e ele acabou de me bater, mesmo sabendo disso.
De repente, sou preenchida por uma necessidade sobre-humana de
proteger essa criança. E se ele tentar me bater outra vez e acabar
prejudicando a gestação? E se, no futuro, Yerik explodir assim contra o
próprio filho?
Filho...
Ele sequer tem o mínimo necessário para ser um pai decente?
Deus, o que foi que fiz?
— Me solte! Me solte, Yerik! — Com o rosto pulsando, toda coberta
de sangue e lágrimas, não permito que volte a me prender, levanto-me com
dificuldade e caminho tropegamente em direção ao quarto.
— Desculpe querida, eu não sei o que aconteceu. — Ouço-o dizer às
minhas costas. Não paro, não cedo. — Me desculpe, Nastya. Eu não queria
ter feito isso, jamais machucaria você dessa forma. Não sei o que me deu. E
o bebê... Por favor...
Bato a porta assim que entro em nosso quarto e giro a chave duas
vezes. Ergo uma barreira para que sua voz não me alcance, colocando as
mãos sobre os ouvidos. Não aguento mais ouvir suas palavras. Palavras,
palavras e mais palavras. Yerik tem uma habilidade ímpar de me convencer
com elas, de me reduzir a alguém sem desejos, sem sonhos. Ele sabe que
me tem nas mãos.
Caio sobre o colchão e me afogo em meu próprio choro. Estou
sozinha, e é muito difícil lutar quando se tem apenas a solidão como aliada.
Se eu esticar a minha mão agora, haverá alguém para segurá-la?
***

Encaro as quinze chamadas não atendidas na tela do celular. Yerik


não desiste. Bateu na porta para se desculpar novamente antes de voltar
para o banco, mas não tive forças para levantar da cama. Todos os meus
ossos estão doloridos.
Ele já mandou dezenas de mensagens dizendo que vai me
compensar, implorando pelo meu perdão, arrependido por ter passado de
todos os limites.
De novo.
De novo.
Até quando?
Eu fiz um bom trabalho garantindo que a reputação de Yerik não
fosse manchada pela verdade. Meus irmãos nunca desconfiaram do melhor
amigo. Acho que, na realidade, se sentiram aliviados quando nos casamos,
já que nossa relação nunca mais foi a mesma depois do acidente. Qualquer
coisa era melhor do que a nossa casa, certo?
Nossos pais... não, nem pensar, eles não podem saber de jeito
nenhum.
Além do mais, eu não saberia o que dizer. Como contar. Não me
sinto pronta para explicar em detalhes aquilo que nem eu entendo, afinal,
também tenho a minha parcela de culpa, como ele faz questão de me
lembrar.
E se nós conversássemos com mais calma, com as mentes
descansadas, quem sabe... esteja mesmo arrependido?
Quem sabe...
O celular vibra sobre o colchão e meus pensamentos frouxos se
dissipam. Recrimino-me pelo momento de fraqueza e olho para a tela, mas
não é o nome de Yerik que encontro.
É um número de Moscou.
O número dele.
Andrei Volkiov outra vez.
Cancelo a chamada e me encolho na cama. Continuo vestida com a
mesma roupa do almoço, mal me movimentei alguns centímetros, mas o sol
da tarde já começa a desaparecer no horizonte. Em breve meu marido estará
de volta.
O quarto foi todo projetado segundo o meu gosto. Yerik fez questão
de contratar uma especialista e me instruiu a escolher todos os detalhes. Na
época, eu o achei muito generoso, mas agora parece-me que ajudei a
construir o meu próprio mausoléu.
Outra chamada se inicia.
Ele não desiste?
Em seu primeiro contato, ao invés de me oferecer um emprego
como sua cunhada fez, ele me convidou, para "visitar o abrigo sem
compromisso", em suas palavras exatas. Na mensagem, dirigiu-se a mim
como "senhorita Ana Serova", o sobrenome dos meus pais, meu sobrenome
antes do casamento. Não "Anastasia Leonidova Baranova", esposa do
banqueiro Yerik Baranov, e nem "Anastasia Serova", a ex-violinista
fracassada.
Apenas… Ana.
Poucas pessoas me chamam de "Ana" na Rússia. Costumava ser um
apelido corriqueiro durante meus anos de estudo na Europa por se tratar de
um diminutivo bastante ocidental, então não me é estranho, mas assumo
que esse senhor Volkiov desconheça o meu verdadeiro nome. Ele com
certeza não faz ideia de quem eu sou.
Não que eu saiba muita coisa sobre ele também, apenas que seu
sobrenome faz parte da elite russa. No ramo dos empreendimentos
imobiliários, eles são reis.
Alcanço o celular ao mesmo tempo que ele para de vibrar. Não ouso
olhar para o espelho que fica na parede oposta à cama, pois sei como devo
estar parecendo: um olho tricolor do tamanho de uma bola de tênis, a boca
inchada com um corte bem evidente no lábio inferior, além dos vários
pequenos cortes nos braços e pernas devido à queda — só percebi depois
que havia caído em cima dos restos daquele abajur.
Yerik fez isso.
O silêncio se prolonga no quarto. Ouço apenas meu coração
pulsando nos ouvidos e meus dedos se movem sozinhos, retornando a
ligação. Ele atende no primeiro toque.
— Olá Ana.
Ana.
Tão invasivo.
— Eu... — gaguejo com a voz rouca de tanto chorar. Espero que ele
não perceba. — Gostaria de falar com o senhor Volkiov.
O homem do outro lado da linha arqueja audivelmente ao ouvir
minha voz.
— Ana, existem muitos senhores Volkiov no mundo, com qual deles
você gostaria de conversar? — Sua voz grave ecoa dentro do meu ouvido
com suavidade, um tom diferente que jamais escutei na voz de qualquer
pessoa, sobretudo de um homem. É confiante e forte, definitiva e
acolhedora, e sua respiração me faz imaginar um sorriso. É definitivamente
a voz de alguém que está sorrindo, como isso é possível? — Você já sabe,
mas eu me chamo Andrei Volkiov e espero que seja este o nome que
procura, pois estou à espera da sua ligação há dias.
Ele estava esperando?
Sento-me no colchão e solto um curto gemido de dor. É justamente a
dor que acende uma luz na minha cabeça, um alerta vermelho de perigo.
Estou no quarto do suposto homem que será o pai do meu filho, meu
marido, conversando com um desconhecido. Será que fiquei louca de vez?
O que eu estou fazendo? É por isso que a gente sempre acaba brigando. Eu
o irrito.
Você é gentil demais, Anastasia.
Não faça coisas esquisitas, Anastasia.
Quer que as pessoas pensem que me casei com uma vagabunda?
— Eu...
— Não desligue — pede, adiantando-se à minha intenção de
encerrar a chamada. A força sutil de confiança em sua voz me faz vacilar.
— Por favor, não desligue. Não precisa dizer nada, pode ficar em silêncio,
apenas não desligue.
— Por quê? — sussurro, fragilizada com a imensa carga de carinho
que ele emprega em suas palavras, no tom seguro de cada sílaba, sem
perder a suavidade.
Seu jeito de falar me lembra uma composição musical com poucas
notas, tocada por apenas um instrumento, e cheia de significados
escondidos.
— Porque eu acho que você precisa de companhia e, bem, eu
também preciso. Então, não desligue. — Ele abaixa a voz ao volume de um
sussurro. — Diga que não vai desligar, Ana.
— Não vou — respondo de imediato, induzida por seu senso de
lógica.
Sua risada de alívio reverbera, nasalada e distante, e meus olhos são
inundados por lágrimas. Fazia muito, muito tempo que eu não conversava
assim com alguém, sem ressalvas, sem pensar muito antes de responder.
Sem sentir medo.
— Prefere o silêncio ou estou livre para falar?
Penso a respeito e decido:
— Tudo bem conversarmos.
— Que bom. — Ele se anima. — Sobre o que você quer falar?
Não sou boa nessa coisa de conversar, meio que desaprendi a
socializar, eu acho, mas já que concordei, não posso voltar atrás. Faço a
primeira pergunta que me vem à mente:
— Por que você precisa de companhia?
— Respondo se você responder.
Que esperto. Mudo de assunto na mesma hora.
— Por que você quer tanto que eu visite o seu abrigo?
— Na verdade, o abrigo pertence à minha cunhada. Sou um mero
voluntário. E, se você conhecer o lugar, tenho certeza de que vai se
apaixonar à primeira vista e aceitará trabalhar como nossa professora de
música.
Sorrio.
— Deve haver centenas de professores de música muito mais
acessíveis do que eu em Moscou, sabia?
— Você pode se mudar.
— Não é tão simples.
— Tem certeza? Basta você dizer sim, e eu cuidarei de todo o resto.
Lembro-me das palavras proféticas de Yerik, dizendo-me que não
posso me livrar dele com tanta facilidade. Mas... e se ele estiver errado?
Andrei Volkiov pode ser a minha grande chance? A mão que segura
a minha de volta?
Olho para baixo e acaricio minha barriga. Sei que meu pequeno
milagre não é maior do que um grãozinho, mas eu o sinto em toda a minha
existência. Sou a única que pode protegê-lo e, enquanto ele estiver dentro
de mim, tenho que me proteger também.
— Por que você faria isso por mim?
Ele faz uma pausa antes de responder:
— É uma boa pergunta. Meus irmãos diriam que é porque sou um
maldito intrometido. Eu também não sei, talvez seja por isso. Acho que não
consigo ignorar uma garota em apuros. Faz algum sentido? — Nessa
última parte, ele se interrompe e faz aquele mesmo som que me parece o de
um sorriso. — Mas você virá, não é mesmo, Ana? Você definitivamente tem
que vir.
3
Anastasia
NÃO POSSO VOLTAR atrás. Não hoje. Não agora. Nunca.
Termino de fechar a mala e limpo minhas mãos suadas na calça
jeans, sem acreditar muito no que estou fazendo. Meu Deus, eu só posso
estar louca!
Enxugo meu rosto com a manga da camisa e fungo uma última vez,
trincando os dentes para afastar o choro. Raramente consigo lidar com
situações de estresse como uma pessoa normal, sempre acabo chorando por
menor que seja o motivo.
Deixo a mala perto da cama e saio do quarto para conferir se a
governanta realmente ainda não chegou. Yerik saiu antes do Sol nascer
porque tinha uma reunião importante em Frunzenskaya, e os seguranças
nunca entram no apartamento quando ele não está presente.
Se eu sair agora, ninguém vai saber.
Mas, se eu sair agora, não vai ter volta. Yerik me odiará para
sempre, e ele tem se esforçado para conseguir o meu perdão. Não voltou a
me bater, nem a gritar comigo. Tem sido paciente, atencioso, e chegou a
chorar quando me recusei a dormir com ele na primeira noite após a nossa
discussão.
Quando me bateu.
Minhas pernas param no meio do caminho e eu odeio todas as partes
de mim que ousam hesitar. Sinto-me fraca, burra e indefesa. Estou me
apegando a uma esperança incerta, regida por alguém que não conheço. Ele
vai cumprir sua promessa quando souber que estou a caminho, certo?
Andrei Volkiov prometeu que me ajudaria, com sua voz enigmática,
cheia de cortesia e autoridade, como se meus problemas fossem da sua
conta. Ele prometeu e fez parecer simples. Então, por que eu não consigo
me mover? Por que estou pensando tanto ao invés de juntar minhas coisas e
partir de uma vez?
Medo.
Medo da pessoa que eu precisarei reencontrar dentro de mim para
sobreviver em um mundo que não seja regido por Yerik. Medo de que ele
cumpra suas ameaças ou esteja certo sobre a minha inexperiência de vida.
Medo de estar cometendo um erro.
Porém, um elo foi rompido e todas as marcas que carrego em meu
corpo, sejam elas recentes ou cicatrizadas há meses, são lembretes vivos de
que preciso tentar — meu corpo é o templo de uma vida agora. Recuso-me
a encarar meu reflexo há dias, seja no espelho ou na prata polida dos
talheres, para não enxergar a tristeza e a vergonha flutuando dentro dos
meus olhos fundos.
Parada no meio do corredor, lembro-me da forma como Yerik me
imprensou contra a parede, a repulsa que me atingiu ao sentir o toque
agressivo sobre mim. Não consigo me desapegar do nojo, do pavor que me
fez reagir ao pensar na violência com que poderia ter se forçado em mim se
quisesse.
Não seria a primeira vez.
— Você consegue, Anastasia — digo baixinho para mim mesma.
Na ponta dos pés, como uma criança, caminho até a sala, confiro
todos os cômodos pela milésima vez e aproveito para pedir um táxi pelo
meu celular. Não posso correr o risco de ligar na recepção.
Deixo a bolsa sobre uma poltrona perto da saída antes de retornar
em busca das malas, contudo, ao entrar no quarto, ouço o destravamento
eletrônico da porta principal e corro para enfiá-las debaixo da cama. Droga,
droga, droga. Jogo o lençol pelas bordas do colchão e volto, um pouco
ofegante, para a sala de estar.
— Nastya?
Contenho um grito de surpresa ao escutar a voz de Yerik. Está
sentado em uma poltrona de descanso, com uma perna apoiada sobre a
outra e braços cruzados. As cortinas fechadas deixam o ambiente sombrio,
tornam seus traços menos decifráveis. Seus olhos estão fixos em um ponto
aleatório do chão, desfocados, como se acometidos por um pensamento que
precisa de toda a sua atenção.
Sua presença rompe a rede que mantinha o pânico preso em um
canto inacessível do meu coração, que passa a retumbar com pancadas
frenéticas. Gostaria que essa sensação não fosse tão familiar, que não
passasse de um efeito colateral do que fez comigo recentemente, mas não é
o caso. Faz muito tempo que Yerik me causa esse tipo de sentimento, uma
mistura indefinida de ansiedade e pavor.
Abro um grande sorriso.
— Querido, aconteceu alguma coisa? Voltou cedo.
Yerik me olha de cima à baixo. Torno-me mais consciente das
roupas que estou usando: botas, calça jeans e uma blusa de mangas longas.
— Vai a algum lugar? — questiona, ignorando a minha pergunta.
— Eu... — Tento responder, agarrando-me à primeira desculpa
esfarrapada que me vem à mente. — Preciso comprar vitaminas na
farmácia, queria aproveitar para caminhar um pouco. A médica disse que
faz bem ao bebê.
Yerik não acredita. Cada filamento em meu corpo grita isso quando
ele se levanta e começa a se aproximar, pairando sobre mim como uma
muralha.
— E como está o meu filho? — pergunta com o tom brando,
cauteloso. Quase pulo ao sentir seu toque no meu rosto, afastando meus
cachos rebeldes com delicadeza. — Já comeu alguma coisa?
— Não sinto fome. — Minhas palavras soam trêmulas e débeis.
Gostaria que a ausência da fome fosse um sintoma normal da
gravidez, mas não é o caso. Apenas não sinto vontade de comer, nem de ler
ou tocar, não sinto nada além de estupor e confusão. Geralmente, forço uma
ou outra coisa para dentro do estômago por causa do bebê, que precisa de
nutrientes, de uma mãe saudável e forte que em nada se parece comigo no
momento.
— Nastya, até quando pretende continuar com isso? — Yerik volta a
falar, menos carinhoso. — Já pedi desculpas, o que mais você espera que eu
faça?
Respiro fundo antes de levantar o rosto e encarar seus olhos céticos.
Um elegante casaco cinzento pende em seus ombros, encobrindo o blazer
de botão único por baixo. Yerik preza por sua imagem e sempre se veste
bem para o trabalho. Não entendo o que o trouxe de volta tão rápido, e
gostaria de não confirmar minhas suspeitas.
— Está tudo bem — minto. — Só um pouco cansada.
A expressão de Yerik se mantém, olhos gélidos e perspicazes
analisam minhas palavras, pesando-as. Acalme-se Anastasia, não tem como
ele saber, não tem.
Dando-se por vencido, Yerik também sorri e me abraça. Impeço que
um suspiro de alívio me escape e retribuo o gesto, contando os segundos
para sua partida.
— Pensando bem, acho que vou me deitar um pouco — resmungo,
genuinamente nauseada. — Você não deveria estar em Frunzenskaya? —
insisto, preciso saber, o táxi deve chegar a qualquer momento.
Oh, Deus, mas o que eu estou fazendo?
— Nastya — Yerik diz, empurrando um pouquinho meus ombros
—, tem alguma coisa que você queira me contar?
Meus olhos se arregalam, as lágrimas pairam nas bordas e viro meu
rosto para que não veja. Não é possível que ele saiba, ou sequer desconfie
de alguma coisa. Fui cautelosa, pensei em todos os detalhes.
Controlo a minha respiração e fecho as mãos em uma tentativa inútil
de camuflar o meu medo.
— Não — respondo. — Por que a pergunta?
Silêncio.
A sala parece encolher ao nosso redor, o oxigênio tem sabor de
enxofre, queimando as paredes do meu pulmão a cada respiração. Percebo
que estou com as duas mãos sobre o ventre, mas o conforto que busco em
meu bebê não vem com facilidade, pelo contrário, é por ele que meu receio
só cresce.
— Por nada — Yerik diz, despreocupado. Ao perceber que não vai
dizer mais nada, aceno com a cabeça e começo a me distanciar. Porém, após
cinco passos, ele torna a me segurar pelas laterais do corpo. — Nastya, não
vai beijar o seu marido?
Giro sobre os pés e pisco sem parar, falhando em manter a calma.
Devo estar ficando paranoica. Toda essa situação está me matando.
— Claro.
Não preciso me erguer muito, pois Yerik se curva para frente, e é
exatamente quando se apodera dos meus lábios, invadindo a minha boca
com sua ganância possessiva, que eu percebo: ele sabe.
Está fazendo isso para me aterrorizar. Mexendo com a minha
cabeça, desafiando-me, espreitando sua inocente presa.
Ele sabe.
Não sei em que momento as lágrimas começam a cair, mas só as
sinto molhando minha face quando Yerik acaricia minha bochecha com o
polegar.
Suas mãos caem pelas laterais do meu corpo, apertam meus quadris,
e ele afunda o nariz na curva do meu pescoço, cheirando a minha pele que
tanto dizia amar no começo do nosso relacionamento. Em outro tempo,
talvez me jogasse sobre a mesa e faria amor comigo por horas, até que a
exaustão nos vencesse. Mas há muito o prazer se tornou um momento
estranho, com muitas exigências da parte dele.
Não me lembro como é a sensação de ser desejada com fervor, de
ter o corpo contemplado. Sinto falta do carinho mútuo, mas também da
intensidade.
Com a mão, explora o tecido grosso da minha calça, e seu aperto é
firme e feroz à medida que vai descendo até a minha bunda, fazendo
pressão bruta com os dedos, castigando a minha mente com suas palavras e
toques, sem ligar que eu esteja chorando.
— Mentirosa — sussurra no meu ouvido, arrancando de mim um
arquejo do mais profundo terror.
Tudo acontece mais depressa do que sou capaz de processar. Yerik
me arrasta para o quarto, segurando meu braço em um aperto firme e
doloroso.
— Yerik, o que você vai fazer? — lamento, tentando me soltar. Ele
me repreende com os olhos, deixando vir à tona seus verdadeiros
sentimentos de repúdio. — Yerik, por favor...
Ao entrarmos no quarto, ele me joga sobre a cama e se ajoelha,
puxando a mala pesada sem a mínima dificuldade. O ar me falta em largas
escalas por causa do choro, e o pânico se alimenta das minhas forças
enquanto ele abre o zíper da mala e começa a espalhar minhas roupas por
todos os cantos.
Como descobriu?
Como?
Não satisfeito, ele desconta sua ira em objetos do quarto, obrigando-
me a assistir enquanto quebra quadros, móveis e espelhos.
Nunca o vi tão descontrolado.
— Eu entendo — diz, ofegante, andando de um lado para o
outro. — Não precisa se desculpar. Qualquer pessoa no seu lugar ficaria
confusa depois do que aconteceu, mas você não pode simplesmente ir
embora, porra!
Agarrando meus cabelos, Yerik me obriga a virar o rosto para um
canto do quarto, apontando o dedo na direção da cortina, onde eu a vejo,
pequena, camuflada atrás do tecido translúcido...
— Colocou câmeras na casa? — pergunto, apavorada. Ele não
apenas descobriu, mas sempre soube, desde o começo. O que mais ele viu?
— Você enlouqueceu?
— Foi para o seu próprio bem! — grita, empurrando-me contra o
colchão. — Eu sabia que uma hora ou outra, você tentaria fazer uma
besteira.
Luto para escapar dele, mas Yerik sobe em cima mim, com as
pernas em ambos os lados do meu corpo e uma mão firme ao redor do meu
pescoço, apertando, comprimindo, e o que enxergo dentro dos seus olhos
faz minha alma gritar.
É a primeira vez que temo pela minha vida.
Ele vai me matar.
Não consigo respirar direito, porém, ao invés de tentar arrancar suas
mãos de mim, coloco as minhas sobre a barriga, chorando copiosamente.
Eu sinto muito, bebê, a culpa é toda minha.
— Não — sussurro.
Ele pisca, confuso.
— O que disse? — pergunta aos grunhidos.
— N-não vou ficar, Yerik. — Fecho os olhos para não ver sua
expressão se tornar ainda mais monstruosa. — Não p-posso mais continuar
ao seu lado. E-eu... — Minha voz falha, mais uma vez silenciada por seu
aperto cruel.
— Você é minha mulher — rosna a centímetros do meu rosto. —
Seu lugar é ao meu lado. Casais brigam o tempo todo, é assim que
casamentos funcionam.
— Você me ameaçou, você me bateu. — Empurro e dou socos em
seu peito, mas é como lutar com uma muralha, ele não se move.
— Porque você não faz porra nenhuma direito! — grita, empurrando
a mão mais forte. Minha vista começa a desbotar, vertiginosa. Eu vou
morrer, sei que vou. — Não venha colocar a culpa em mim agora. Se você
ao menos escutasse o que eu digo, se comportaria como uma mulher casada
e não como uma vagabunda burra. Você é a única culpada. Diga, com quem
esteve falando todos os dias pelo celular? Seu amante? Está dando pra
outro, Anastasia? É isso?
— Não seja louco. — Minhas palavras soam enroladas, roucas,
baixas demais.
— Vadia. — Yerik me chacoalha e sinto que não tenho muito tempo
restante. — Qual era o seu plano? Você não tem ninguém. Nós dois
sabemos que a sua família é um lixo. Eu resgatei você de uma vida
miserável. Acha que seus pais vão aceitar que seu projetinho de maior
sucesso seja arruinado? — Ele joga a cabeça para trás e gargalha. — Seus
irmãos me idolatram! Eu os livrei do fardo que era proteger você.
Tento responder, mas não me restam forças. Se eu perder a
consciência agora, será o meu fim.
— Deixe-me contar o que vai acontecer, Anastasia. Esse filho é
meu. Nós somos casados e eu, como o bom marido que sou, aceitei o seu
procedimento na clínica. Ele pode não ter o meu sangue, mas carregará o
meu nome. E quando ele nascer, você não vai ter tempo nem para segurá-lo
nos braços. Sua única alternativa será voltar correndo para casa, para mim,
se quiser ficar com ele. Então nos poupe o trabalho e aprenda a se
comportar como uma boa menina.
Meus braços caem para os lados, moles, exaustos.
Então é isso? Acabou? Ele ganhou?
Não.
Yerik fez de mim a sua fonte inesgotável de pequenos furtos e
roubou todos os meus pedacinhos: o meu coração, o meu corpo, todos os
meus sonhos, a minha música, carreira, a minha voz e até a minha alma.
Ser uma boa mãe é tudo o que me resta.
Ele não pode ficar com a minha parte mais importante.
Estico a mão inconscientemente, buscando qualquer coisa em que
me agarrar. Meus dedos se fecham ao redor de algum objeto e não penso
duas vezes antes de golpear a sua cabeça, meio sem rumo, torcendo para ser
forte o suficiente.
Yerik cai de lado com as mãos na cabeça, de onde vejo sangue
jorrar, manchando suas roupas e os lençóis da cama. Rolo para o outro lado
e solto a luminária ensanguentada, tossindo e convulsionando com a ânsia
que revolve meu estômago. Mas não espero que meu organismo se ajuste.
Cambaleando, fujo aos tropeços enquanto a voz de Yerik retumba atrás de
mim:
— Filha da puta! Volte agora mesmo, Anastasia!
Mas eu não paro.
Não dessa vez.
Antes de chegar à saída, vejo a bolsa que deixei sobre a poltrona e a
agarro, correndo para fora do apartamento até o elevador. Aperto o botão
repetidamente e solto um suspiro aliviado quando as portas se abrem. Jogo-
me dentro dele e escolho o andar do térreo, chorando e tremendo e arfando.
A dor em meu pescoço se estende às minhas clavículas como se as mãos
dele ainda estivessem ali, me estrangulando.
Ao chegar à recepção, pessoas me olham assustadas, mas não
adianta implorar por ajuda. Não aqui. Só paro de correr quando saio do
edifício e sinto o vento gelado da estação castigar o meu rosto. Vou precisar
de ao menos um casaco térmico. Preciso ir para o aeroporto, eu preciso...
Oh céus, não consigo pensar direito.
Identifico um táxi estacionado na frente do prédio e praticamente
me jogo no banco traseiro, batendo a porta com força.
— Pulkovo — digo, referindo-me ao aeroporto de São Petersburgo.
O motorista, um sujeito de meia-idade com muitas rugas e cabeça
calva, faz uma careta reprovadora ao me olhar pelo retrovisor.
— A senhora tem dinheiro para pagar? — questiona, ríspido, apesar
do meu estado deplorável.
Confirmo que sim e reviro a minha bolsa em busca da carteira e do
celular, as únicas coisas materiais que me restaram. Não tenho mais nada. O
que eu vou fazer?
O carro começa a se movimentar. Olho para trás o tempo todo, com
medo de estar sendo perseguida. Chorando baixinho, vasculho minha lista
de contatos, leio os poucos nomes um após o outro e chego à inevitável
conclusão de que Yerik estava certo: eu estou sozinha. Ele se certificou de
me isolar do mundo. Não me resta ninguém e minha família não pode saber.
Pulo no banco quando meu celular vibra em minhas mãos,
anunciando o recebimento de uma nova mensagem. Não preciso ler o nome
do remetente para saber de quem se trata.
"Eu vou encontrar você, Nastya."
Abafo um soluço com a palma da mão. Yerik nunca vai me deixar
em paz — nem a mim, e nem ao meu filho. Tenho que fazer o que for
preciso para nos manter em segurança agora.
Apago a mensagem e disco o único número que me resta. Preciso de
um lugar que Yerik não conheça. Alguém que não faça parte das nossas
vidas, em quem eu possa confiar até decidir o que fazer.
Ele disse que me ajudaria.
— Sim, Ana? — Andrei atende antes do segundo toque e, como
sempre, sua voz controlada e metódica derrubam as minhas defesas. Tem
algo em seu tom que causa a mesma sensação de conforto que uma sonata
ou um concerto de cordas, e todas as vezes me pego imaginando sua
aparência.
— Andrei, eu... — Dessa vez, não tento esconder o choro. — Eu
estou indo para Moscou.
4
Andrei
O QUARTO É branco e bem iluminado. As arestas das paredes são quase
impossíveis de serem percebidas, e até os interruptores se escondem no
cenário imaculado. Eu queria que se parecesse com um pedaço do céu, mas
nunca me disseram que as cores não fazem distinção entre o bem e o mal.
O inferno pode ser branco também.
Se fecho os olhos, consigo imaginar a disposição dos móveis que
nós nunca chegamos a comprar. O berço estaria no canto esquerdo, distante
da janela que oferece a vista mais bonita do jardim. Perto do alambrado
haveria uma poltrona grande e confortável para que pudéssemos nos sentar
durante as manhãs ensolaradas de verão. Seria um quarto maravilhoso em
comparação com este cômodo vazio e assombrado.
Vazio e assombrado, é exatamente assim que me sinto.
Já faz dois anos que Evgenia perdeu nosso primeiro filho — ou
filha, jamais chegamos a descobrir.
Dois anos.
Cento e quatro semanas.
Setecentos e trinta dias.
E ainda dói.
Por que ainda dói?
Apego-me ao copo que tenho em mãos, no líquido transparente pela
metade e na minha garganta ressequida clamando por mais um gole. Foram
quantos? Três? Quatro? Provavelmente mais, considerando que já sinto
uma leve lentidão na forma como o meu corpo conduz cada movimento, a
mente enevoada com dúvidas e lembranças que me deixam irritado.
Levo a bebida até os lábios, permitindo que aquele sabor íntimo de
álcool deslize para dentro da minha boca e leve uma corrente de prazer e
saciedade por todo o meu sistema nervoso. Mas a sensação vai embora tão
logo o drinque chega ao fim, deixando-me sozinho com um copo vazio.
— Meio vazio, hein? — digo para ninguém em particular, rindo em
seguida ao lembrar daquela metáfora sem sentido sobre copos meio cheios
ou vazios e pontos de vista.
Besteira!
Ergo a mão sem mirar em um ponto específico e atiro o copo com
força contra a parede. O barulho do vidro ao se estilhaçar em pedaços
minúsculos ecoa pelo cômodo, repetindo-se algumas vezes antes de me
condenar outra vez ao silêncio.
— Meio quebrado agora — murmuro.
É claro que isso não ajuda em nada a me sentir melhor,
principalmente ao perceber que a mancha triste escorrendo pela parede se
parece com o deslizar deprimente de lágrimas.
— Até quando pretende ficar aí? — A voz de Evgenia me
surpreende, com o tom ríspido e choroso, fungando pelo nariz. — Diga
alguma coisa, Andrei.
Vejam só, penso ironicamente, sentindo o gosto do álcool ser
substituído por um amargor pungente, Andrei Volkiov também faz as
mulheres chorarem.
Ainda está vestida com as roupas de dormir, mesmo que não tenha
se deitado nem por um minuto ao longo de toda a madrugada. Também não
me dei ao trabalho de retirar o terno que usei para trabalhar no dia anterior,
não tive tempo.
Evgenia não entra no cômodo, fica parada no batente, com seu
longo cabelo negro escorrendo sobre os ombros.
— Você não me deu outra escolha.
Desvio dela e seu olhar enraivecido e saio do quarto, caminhando
com cuidado para não pisar nos cacos de vidro. Sinto o cansaço empurrar
meus ombros para baixo, os olhos clamando para sucumbirem à solidão e
ao silêncio de uma longa noite de sono profundo, mas não me lembro como
é a sensação de deitar a cabeça em um travesseiro e dormir sem ser
atormentado.
— Não pode fazer isso — diz ela pela milésima vez, seguindo-me
de perto sem a mesma cautela para desviar dos estilhaços que estão
espalhados por todo o nosso apartamento. Restos do que um dia foram
quadros, vasos e espelhos. — Você não está pensando direito.
— Exatamente, é esse o problema! — Na sala, o cenário é ainda
pior, mas não me abalo. Olho para ela e sinto uma pontada de culpa ao ver
seu rosto avermelhado de tanto gritar e chorar. — Se eu tivesse pensado
direito, já teria ido embora há muito tempo. Olhe para nós! Olhe bem ao
nosso redor. — Abro os braços, na esperança de que ela perceba como seu
comportamento ultrapassou todos os limites. Não queria gritar, mas já não
consigo controlar a minha indignação. — Nada no nosso relacionamento é
bom ou normal.
— Está dizendo que a culpa é minha? — Ela cruza os braços magros
na frente do corpo trêmulo de pura raiva.
Eu poderia acalmá-la se quisesse, bastaria um toque carinhoso e um
beijo suave. Pior do que isso, sei como controlá-la, conheço as palavras
certas para dizer em seu ouvido que a fariam recuar, o tom correto para que
toda a revolta que queima em suas veias se transformasse em desejo e
rendição. É assim que a minha mente funciona: fazendo cálculos de ação e
reação, efeito e causa, controle e rendição.
Sim, eu poderia seguir pelo caminho fácil, mas as coisas
dificilmente são fáceis para Andrei Volkiov de qualquer forma. Não é a
primeira vez, e não será a última.
— Ninguém é culpado. — Volto a abaixar o volume da minha
voz. — Mas eu não consigo mais continuar fingindo que estamos bem,
quando claramente não estamos. Não suporto as brigas, Genny, nem as suas
crises de ciúmes sem nenhum fundamento.
— Sem fundamento? — grita, apoiando as mãos na cintura fina. —
Eu ouvi vocês dois conversando! Escutei seu tom carinhoso. Me diga, quem
é a vagabunda?!
Abro a boca para responder, mas as palavras não saem, pois não
tenho uma resposta plausível. Não sei quem ela é, como é, onde vive. Não
sei absolutamente nada sobre Ana, a mulher com quem estive conversando
mais cedo e cujo choro continua ecoando na minha cabeça.
Porra! Não estava preparado para ouvir aqueles soluços baixos, a
voz macia pedindo pela minha ajuda, a maneira inocente como disse o meu
nome e o fez soar como se fosse a sua única esperança no mundo.
Como é possível me sentir responsável por alguém que nem
conheço?
Não faz nenhuma merda de sentido e isso me dilacera por dentro,
porque a minha mulher está agora diante de mim, chorando
desesperadamente também, por mim, e não sinto nada além de cansaço.
— Alguém que precisa de ajuda — explico sem entrar em detalhes,
já que não faria diferença. Não é por causa de Ana que Evgenia quebrou
todo o nosso apartamento, e sim porque eu finalmente fiz as malas.
— Santo Andrei! — berra, rindo e chorando com histeria. — Sabe
qual é o seu problema? Você gosta disso: da sensação de ajudar e salvar as
pessoas. Gosta de ser bajulado e enaltecido como um herói, da fama de bom
moço. Mas, quer saber a verdade? Você não passa de uma farsa!
Suas palavras não me ferem e ela sabe muito bem disso. Não me
lembro quando foi a última vez que me senti ultrajado por uma ofensa,
sobretudo uma tão verídica.
— Não vou me defender, Genny. — Coloco as mãos nos bolsos da
calça, imaginando se minha aparência está tão deplorável quanto suponho.
— É quem eu sou, é meu trabalho ser assim. O que você espera? Um
pedido de desculpas? Posso lhe dar um se é isso o que deseja.
— Quero que fique comigo — clama, fungando.
Seus pés traçam um caminho na minha direção, e meus olhos
registram todos os seus passos curtos, premeditando as intenções por trás da
mansidão repentina. Ela para e ergue o rosto redondo, entreabrindo a boca
para respirar em meio ao seu humor desordeiro. Nossa diferença de altura
se torna mais evidente por estar descalça, e a camisola transparente
intensifica a aparência sensual de suas curvas — sua arma preferida de
persuasão contra mim.
Enxergo seus seios sob o tecido, os montes pequenos e perfeitos, tão
visíveis quanto as tiras finas da calcinha branca. É claro que suas formas tão
femininas mexem comigo, com o vício pelo prazer físico que se tornou o
único elo entre nós.
Sexo.
Sórdido.
Sem sair do lugar, direciono a ela um olhar de aviso que a faz
hesitar.
— Não vai acontecer — digo sem rodeios, olhando no fundo dos
seus olhos para que compreenda.
— Eu sei do que você gosta — insiste, corajosa e determinada,
exterminando o restante do curto espaço entre nós. Seu corpo encosta no
meu, ela fica na ponta dos pés para que nossos quadris se alinhem, e
começa uma dança lenta, indo de um lado para o outro, roçando em mim,
na tentativa de que meu corpo responda. — De como você gosta. Eu amo
você, Andrei. Nós somos bons juntos, não destrua o que temos.
Evgenia segura um dos meus pulsos e conduz minha mão pela
lateral do seu corpo. Ela força minha palma contra um de seus seios,
oferecendo a pele macia para que eu explore sem qualquer pudor. Por
breves segundos, deixo-me levar pelo falso sentimento de paz que o prazer
desencadeia, principalmente quando leva minha outra mão até o próprio
pescoço e geme baixinho com os olhos fechados.
Agarro sua mandíbula com força, sinto os efeitos desenfreados no
meu corpo, a pressão do meu membro se avolumando dentro da calça
apertada, enquanto fantasio com a ideia de colocá-la de joelhos sobre o sofá
e fodê-la até minha mente nublar.
Seria fácil.
Porém, além do desejo louco de me esconder em uma foda intensa,
outro sentimento ganha forma sempre que me deixo levar pela sua sedução:
a tristeza, e se tem uma coisa que mulher nenhuma merece, é se tornar o
objeto depressivo de um homem que não nutre mais nenhum sentimento por
ela.
Roubo o controle de volta e passo os dois braços ao redor de seus
ombros. É com muito pesar que agradeço mentalmente quando ela não vai
contra o meu abraço traidor. Sei que não tem como fazer isso ser menos
doloroso para ela, então vou direto ao ponto, sussurrando em seu ouvido:
— Não vou comer você, querida. — Sua primeira reação é tentar se
afastar, mas a mantenho cativa por mais um instante. É minha única chance
de ser escutado. — Você não entende, Genny? Essa coisa que nós temos de
bom, a gente pode conseguir em qualquer lugar, com qualquer pessoa. —
Beijo o topo da sua cabeça com os olhos fechados. Mesmo ciente da minha
decisão, da escolha que fiz, machuca ter que me despedir assim. Pra
caralho. — Eu preciso de mais.
Ela se debate, empurrando meu peito, e, ao se ver livre, ergue a mão
com todo ódio canalizado nos dedos longos. Penso em resistir, bastaria um
passo para trás e talvez ela não me alcançasse, mas ofereço meu rosto de
bom grado, pensando que talvez seja melhor assim, talvez seja apenas
natural que eu sempre saia ferido.
O golpe não faz nada além de arder.
— Odeio você! — grita, retornando às lágrimas, mas suas próximas
palavras me pegam desprevenido: — Odeio! Odeio! Odeio! Vá embora,
Andrei, me abandonar é o que você faz de melhor.
— Você não...
— Não estou sendo justa? — Ela agarra uma almofada do chão e a
atira contra mim. — Estou mentindo? Por acaso você estava ao meu lado
quando eu precisei de você? Quando eu perdi o nosso filho? Não! Sua
família era mais importante do que a sua mulher grávida. Se estivesse
comigo, talvez a gente tivesse tido uma chance. Nós seriamos felizes. A
culpa é sua!
Outro tapa seria melhor. Uma surra seria melhor. Não preciso que
ela diga o que repito para mim todos os dias. Escutar uma verdade dolorosa
sendo dita em voz alta, é como observar o algoz segurando a foice na
jugular do culpado, brincando com os medos e arrependimentos alheios.
A culpa é minha.
— Sim — respondo o mais firme que consigo. — E eu vou me
arrepender disso pelo resto da minha vida.
— Seu arrependimento não vai trazer nosso filho de volta —
continua perversamente. — Ele está morto.
Anos de autocontrole frente aos piores juízes do mundo me
impedem de desmoronar diante dela. Sinto aquele frio calculista subir pela
minha espinha, congelando cada centímetro do meu corpo e impedindo que
as lágrimas se formem nos meus olhos. Sinto os tremores gargalhando nos
meus ossos, hienas com dentes afiados mastigando meus músculos, mas
nada disso importa. Não vou abrir as comportas do meu coração para que
ela enxergue a minha dor.
Por mais que dentro de mim tudo tenha sido devastado ao longo dos
últimos dois anos, fecho-me no casulo do advogado implacável que todos
conhecem. É hora de colocar um ponto final em nossa história.
— Arrependimentos não ressuscitam os mortos — digo, maldizendo
minha própria voz. — É por isso que ele não pôde salvar a nossa união
também. Nosso amor está morto, e nada do que fizermos ou dissermos um
para o outro vai mudar isso.
É o ápice.
Ela avança, aos berros, e dessa vez a contenho, segurando seus
pulsos para que não me agrida. Estou cansado. Tão cansado. Tão cansado.
Tão cansado. Procuro ter cuidado para que ela não se machuque,
segurando-a pelo menor tempo possível antes de soltar, mas Evgenia não
desiste.
— Eu te odeio! — grita sem parar, estapeando meu peito sem
ordenação. — Hipócrita! Babaca! Você não é tão bom quanto pensa!
Como última opção, giro ao redor dela e agarro seu corpo por trás,
erguendo-a do chão, com medo de que acabe ferindo a si mesma. Ela
esperneia e joga a cabeça para trás.
— Não vai me acertar outra vez. — Carrego Evgenia até o sofá,
todo revirado por seu ataque de fúria durante a noite, e a solto sobre a
superfície macia do assento. — Nós acabamos aqui, chega!
Evgenia esconde o rosto nas mãos, chorando com os gritos mais
descontrolados que já ouvi. Não sei o quanto é encenação, o quanto é
verdade, acabei me perdendo na exaustão. Não consigo parar de pensar que
está certa, que consegue ver e julgar o homem que realmente me tornei:
uma farsa.
— Um dia... — ela sibila, desfazendo-se em lágrimas grossas e
soluços altos. Seus olhos pequenos faíscam quando aponta o indicador para
o meu rosto. — Um dia, Andrei Volkiov, você encontrará alguém que não
vai conseguir salvar, e eu espero estar por perto para assistir a sua queda
quando esse momento chegar.
Olho para ela, reprimindo uma pequena fagulha de dúvida que me
compele a desistir da decisão de ir embora. Nossa sala está um caos, roupas
e objetos quebrados, exatamente como nós dois. Quebrados.
Não vejo por que arrumar minha mala outra vez. Ela vai apenas se
aproveitar desse tempo para recomeçar a briga e não vou aguentar isso por
mais tempo. Viro-me e saio, deixando tudo para trás.
Minhas roupas.
Nossos móveis.
O apartamento.
Uma mulher que não consegui amar o bastante.
E o sonho de ter uma família.
— Adeus, Genny.
5
Andrei
SOCO O VOLANTE do carro.
Uma. Duas. Três vezes.
Dez. Quinze. Vinte.
Meu pulso começa a doer. Quero chorar. Quero sentir ainda mais
dor, pois acima da mágoa e da incerteza, há um alívio vergonhoso. Eu não
deveria sentir a merda de um alívio!
Confiro as horas no painel do carro. É cedo, o começo de um dia
péssimo. Ainda bem que meus irmãos já se acostumaram com o meu
distanciamento, ou eu teria problemas para explicar por que ainda não
apareci na empresa. Bem, também não posso aparecer assim no trabalho.
Além das vestes amarrotadas, ainda saí sem a minha gravata, e o cheiro do
álcool não vai me deixar sem um banho ou um litro de perfume.
Não sei para onde ir. Como ir. Sinto-me perdido, sem um lugar que
eu realmente queira estar, sem destino ou objetivos, perdido no deserto com
quilômetros e mais quilômetros de areia quente por todos os lados.
Ouço a melodia padrão do meu celular, que vibra sobre o banco do
passageiro. Não me dou ao trabalho de atender. Claro que é Evgenia. A
música para e recomeça, tornando-se mais e mais irritante, pois ela não vai
desistir. Então, pego o aparelho, pronto para desligar, até que leio o nome na
tela.
Ah, não, porra!
Merda.
Merda!
Esqueci completamente que o avião chegaria agora.
Quando vou atender, ela desiste. Espero para ver se tentará outra
vez, mas não o faz, cabendo a mim retornar o contato. Gostaria de ligar para
ouvir sua voz, mas não confio em como a minha vai soar se nos falarmos,
então digito apenas uma mensagem.
"Ana?"
Deixo o celular sobre o colo enquanto manobro para fora do
estacionamento. Devo demorar mais de uma hora para chegar, já que
preciso pelo menos escovar os dentes em algum lugar e parecer
minimamente apresentável antes de me encontrar com ela, ao invés de um
mendigo que não prega os olhos há quase três noites.
Não existe momento pior para nos conhecermos. Eu não esperava
que as coisas com Evgenia fossem progredir tão negativamente. Quer dizer,
eu sabia que seria ruim, mas subestimei suas habilidades de fazer
escândalos monumentais. Pelo menos, com a chegada de Ana, poderei me
distrair da realidade vergonhosa que é a minha vida.
Lidar com o problema dos outros é algo que sei fazer muito bem.
"Sim?"
Franzo o cenho para a resposta, mantendo um olho na rua enquanto
dirijo. Odeio ter dispensado todos os meus motoristas, em momentos assim
eles fazem muita falta. Vladimir sempre me alerta sobre a necessidade de
mantermos pelo menos um segurança por perto, talvez ele esteja certo.
Mas, como assim, "sim"? Ela deveria responder algo como "estou
esperando há mais de meia hora, venha logo".
Pensando bem, não acho que com aquela voz contida, doce e
educada, seja do seu feitio se irritar por um simples atraso.
Um simples atraso de quase uma hora.
Merda!
Escrevo outra mensagem ao parar em um sinal.
"Diga-me que está em Moscou."
Envio.
Tento acelerar, mas o trânsito ao redor da Komsomolskaya não é dos
melhores. A praça não está lotada como costuma ficar durante a noite, por
causa da iluminação, mas ainda há pessoas suficientes para me obrigar a
avançar em uma ridícula velocidade de vinte por hora.
"Eu estou em Moscou =)."
Meu Deus! Isso é sério? Uma carinha feliz? Pensei que apenas
Serena usasse esse tipo de coisa para conversar comigo.
Eu gosto. Não deveria, mas me deixa estranhamente curioso.
Torno a digitar.
"Estou a caminho, sinto muito pela demora."
Acelero entre os carros sempre que encontro um cruzamento vazio,
mas diminuo a velocidade ao escutar o celular vibrando com mais uma
mensagem dela.
"Não se preocupe, pude assistir a uma apresentação ao vivo de um
arranjo de Berlioz, nem vi o tempo passar.”
Há sempre um artista em todos os lugares mais movimentados de
Moscou. Benditos sejam os artistas independentes, e, especificamente,
aqueles que se apresentam em aeroportos. Talvez ela só esteja sendo
educada, mas escrevo uma resposta descontraída.
"Então agradeça a Berlioz por mim."
Sinto a tensão deixar meu corpo aos poucos. Conversar com alguém
é bom. O calor do outono, junto com a brisa suave que espalha todas as
folhas secas da estação pela cidade, fazem com que eu não pense demais no
que Evgenia pode estar fazendo agora, ou no que farei da minha vida daqui
em diante.
Acabo deixando a sugestão de um sorriso vagar pela minha boca
quando leio sua próxima mensagem.
"Sinto muito, ele morreu há mais de cem anos."
Por diversão, respondo "meus pêsames" e fico no aguardo do seu
retorno. Porém, cinco minutos se passam sem que ela diga qualquer coisa e
começo a me sentir patético pela brincadeira. Talvez ela me ache um grande
idiota agora, ou, no mínimo, meio burro. Claro que eu sei quem é Berlioz.
Não tenho aptidão para música, mas gosto de me considerar um bom
ouvinte de clássicos.
Por precaução, acrescento:
"Ana? Eu só estava brincando."
Dessa vez, a resposta chega rápido.
"Eu estava rindo."
Rindo.
Ela estava rindo.
Por algum motivo, isso me faz sorrir.

***

O aeroporto de Vnukovo não poderia estar mais cheio.


Multidões não costumam me incomodar, mas hoje o universo parece
disposto a colocar o maior número possível de pessoas na minha frente.
Enquanto tento me esgueirar pelos corredores, vejo painéis eletrônicos com
informações sobre os horários de voos e instruções de como chegar às áreas
de embarque e desembarque. Mas não tenho tempo para enfrentar as filas
abarrotadas.
Um verdadeiro inferno.
Pelo menos, consegui completar o trajeto de quase uma hora em
tempo recorde. A estranha mortificação que vestiu meus pensamentos com
uma fina camada de imprudência fez com que o meu pé afundasse no
acelerador. A velocidade e o vento gelado, contudo, não conseguiram
apaziguar o aperto em meu peito.
Sou um advogado, meu cérebro sabe como se adaptar a qualquer
situação, ou deveria saber. Depois de fazer tantos planos para um futuro que
não vai mais se concretizar, o sentimento de imprevisibilidade parece uma
novidade para mim. Talvez isso explique a minha ansiedade claustrofóbica
para encontrar Ana de uma vez: no momento, ela é a minha âncora de
sanidade. Qualquer coisa para esquecer o fim do meu casamento, ou
namoro, ou sei lá como nomear o que eu e Evgenia fingíamos ser.
Mas, lá no fundo, não posso negar minha curiosidade. Eu quero
conhecer a dona da voz macia e misteriosa que chorou no meu ouvido.
Mais do que isso, quero ajudar essa mulher, céus! Desde a primeira vez que
nos falamos, ou melhor, desde quando Lara deu a entender que Ana talvez
estivesse sofrendo nas mãos de algum canalha, não consigo tirá-la da
cabeça, e tudo só piorou após os soluços mais sensíveis e indefesos e
sinceros que já escutei de uma mulher.
Naquele segundo, eu soube que estava perdido.
Evgenia me disse muitas coisas sem sentido, mas no meio de todas
as suas acusações ferinas, uma estava correta: eu realmente gosto da
sensação de ajudar os outros, foi este um dos principais motivos que me
atraíram para a advocacia, e que me trouxe a má fama de ser o mais
intrometido dentre os meus irmãos.
É mesmo tão ruim tentar compensar as minhas falhas empenhando-
me para ser bom em todo o resto?
Argh! Agora não é hora de ficar divagando sobre a credibilidade do
meu senso ético.
Esquivo-me do fluxo de pessoas arrastando malas de rodinhas ou
carregando bolsas de mão. Desisto da escada rolante e subo os degraus de
uma escada comum quase vazia até o andar superior do aeroporto.
No meio do caminho, pego meu celular. Ana me mandou uma
mensagem descrevendo sua localização, mas preciso resolver outra coisa
primeiro. Acesso minha lista de contatos até encontrar o número da única
pessoa que pode me ajudar agora. Não posso simplesmente levar Ana para
um hotel e deixá-la sozinha por sabe-se lá quanto tempo.
Eu prometi que a ajudaria.
— Andrei! — minha mãe grita depois de atender. Pressiono o
celular com força no ouvido, pois é difícil escutar alguma coisa junto com a
algazarra de vozes e anúncios de voos ecoando pelos alto-falantes. — Onde
você está? Isso é um aeroporto?
— Sim eu... — Tento explicar, mas ela me interrompe.
— Oh meu Deus, é um aeroporto! Meu filho, você está indo embora
do país? Vai nos abandonar como o seu irmão fez? Ivan! Ivan! — Sua voz
se torna distante, ela continua gritando o nome do meu irmão, até que ouço
os dois conversando. — Veja o péssimo exemplo que deu para o seu irmão
caçula. Ele disse que está indo embora para viver sozinho em Nova Iorque!
Igualzinho você fez!
— Não é nada disso — resmungo.
— O que? Mãe, isso não faz nenhum sentido — meu irmão diz, mas
não consigo compreender muito bem o que fala em seguida, algo sobre a
empresa.
Escuto o choro de uma criança por perto, pode ser a pequena Tatiana
ou Kolya, os dois sempre ficam agitados quando estão separados. Luna
continua quietinha demais, mesmo depois que começou a balbuciar frases
inteiras. Sua preferida é "andar de moto", por causa de Roman. Foi ele
quem ensinou, óbvio. Meus sobrinhos são as crianças mais lindas que
existem no mundo, sinto falta de estar com eles o tempo todo. Sem que eu
percebesse, meu mundo se fechou ao redor de Evgenia e eu me deixei
afastar das pessoas que mais amo.
Checo meu relógio no pulso, cada vez mais nervoso. Já estou
atrasado demais para ter essa conversa louca com a minha mãe.
— Andrei querido, fique onde está, o motorista vai buscar você —
ela avisa, fungando com um choro falso.
— Mãe? Preciso de um favor — explico antes que vá atrás de outra
pessoa. — Não estou indo embora, mas preciso de um lugar para ficar por
uns dias, aqui mesmo em Moscou.
Há um silêncio no outro lado da linha, identifico sons abafados de
passos, uma porta sendo fechada. Quando volta a falar, minha mãe está
sussurrando com euforia, como se dividíssemos um segredo empolgante.
— O que aconteceu com o seu apartamento?
Droga! Dona Tatiana e seu sexto sentido beira à bruxaria.
— É complicado.
— Oh! — ela berra, fazendo-me afastar o telefone do rosto. —
Minhas preces foram ouvidas! Você e aquela víbora peçonhenta
terminaram? Nunca perdi as esperanças!
Suspiro, cansado demais para entrar no assunto. Quanto mais eu lhe
der informações, mais tempo vou demorar para me encontrar com Ana.
Paro na frente de um grande mapa do aeroporto e vou passando os olhos
por ele enquanto conversamos.
— Mãe, eu só quero saber se aquele apartamento em Arbat está
vazio. Estou ajudando uma pessoa e preciso de um lugar para ficar.
— Uma pessoa? — Ela se interessa, cheia de suposições. — Uma
mulher? Eu a conheço? Por isso seu casinho com a víbora acabou,
querido? Olha, mesmo detestando a... Qual é mesmo o nome dela? Bom,
isso não vem ao caso, claro, e eu também não me importo. Mas, ouça,
mesmo não gostando nem um pouco dela, traição não é uma coisa que eu
aprove. É muito horrível da minha parte estar dividida sobre o fim do seu
relacionamento, mas estar mais feliz do que decepcionada pela sua
traição?
— Isso é sério? — pergunto, exasperado. Minha mãe sabe como ser
intensa e insistente. Ela acha que me engana com seu falatório, mas já
conheço suas estratégias de nos tirar toda a paciência até que comecemos a
soltar as verdades. — Claro que não traí ninguém, eu jamais faria isso! Não
foi assim que me criou, mãe.
— Claro, claro, meu filho. Você está certo. Sabe como é, uma
mulher da minha idade, com a mente cansada, nem sempre pensa com
clareza. — E lá vem sua segunda estratégia preferida: apelar para a idade,
mesmo com sua aparência jovial e a ótima saúde. — Então, é ou não é uma
mulher?
— O apartamento está, ou não, vazio? — pergunto, contra-
argumentando. Minha mãe bufa, ressentida, e acabo sorrindo, porque somos
dois teimosos.
Volto a caminhar, dando-lhe tempo para decidir ou não responder,
mas ela acaba cedendo.
— Sim, está! Vazio e limpo. Mas você precisará comprar
mantimentos dependendo de quantos dias estiver pensando em ficar por lá.
Dois, três? Uma semana? Você está se mudando?
— Obrigado, mãe — solto uma risada, sabendo que estou
sentenciado a um interrogatório com direito a técnicas de tortura quando
nos encontrarmos.
— Querido, venha para casa — ela diz, fazendo meu riso ceder ao
ressentimento. — As crianças sentem a sua falta. Eu também. Lara está
preocupada com você.
Paro de andar e fecho os olhos por um segundo. Como eu posso
explicar que mesmo amando meus sobrinhos com toda a força do meu
coração, os sorrisinhos ingênuos, os primeiros passos vacilantes, e os
balbucios cheios de babas e dentinhos mínimos me fazem lembrar tudo o
que eu jamais poderei viver com o meu próprio filho?
— Preciso ir agora, sinto muito. Até mais, mãe. — Desligo o
telefone antes que ela tenha a chance de falar e busco outra vez as
instruções de Ana sobre onde encontrá-la.
Sou obrigado a enfrentar a lentidão de uma escada rolante após
confirmar o caminho com um funcionário. Minha única pista é sua
localização aproximada e as descrições da roupa que está usando, o que me
leva a olhar por mais tempo que o necessário para as mulheres em busca de
blusas brancas e botas vermelhas.
Botas vermelhas...
São elas que enxergo primeiro, de longe. Pequenas botas vermelhas
nos pés de uma mulher sozinha, sentada à mesa mais isolada de uma
doceria. À medida que me aproximo, o restante do mundo vai perdendo a
cor, desbotando como as fuligens cinzentas e desinteressantes de um
incêndio, e meus olhos se tornam cativos da beleza ofuscante daquela que
suponho ser Ana.
Sem que eu consiga conter, vejo-me caminhando mais devagar em
um impulso incontrolável de contemplar seus traços delicados, os ombros
tensos enquanto seus dedos magros dedilham a superfície lisa da mesinha
redonda. Primeiro, penso que se trata de impaciência pelo longo tempo de
espera, mas um olhar mais atencioso evidencia os fones em seu ouvido,
uma quase imperceptível agitação em seu corpo, balançando de um lado
paro o outro, e eu não me lembro de alguma vez ter assistido uma ação tão
pura. Ela está tocando.
Parece-me um sacrilégio interromper o momento. No entanto, ao
reduzir nossa distância a poucos passos, meus olhos clínicos se arregalam
frente às marcas que profanam seu rosto e o pescoço fino, carimbado com
os dedos malditos de alguém.
Então é verdade, merda!
Fecho meus olhos e sou levado em uma viagem no tempo de
péssimas lembranças: minha melhor amiga, minha cunhada, uma irmã,
chorando embaixo de um chuveiro gelado, destruída, e em como falhei com
ela todos os dias até que Ivan, meu irmão, a salvasse do inferno.
Faz tanto tempo, anos, mas eu nunca consegui esquecer, e ver os
hematomas de Ana faz com que todos os meus instintos protetores se
fortaleçam muito mais rápido.
É oficial, eu estou uma bagunça.
— Ana? — chamo, estranhando o nome próprio pessoalmente,
informal demais para alguém que mal conheço. Ela não reage, absorta na
música. Tento novamente, dessa vez mais alto: — Ana?
Os olhos amendoados se abrem devagar. Seus cílios são curtos e
escuros, moldados ao redor de pupilas castanhas, variegadas como pedras
de jaspe. Ela pisca preguiçosamente, os dedos perdem velocidade, e mesmo
estando diante de mim, demora a se manifestar, como alguém despertando
de um sono profundo.
— Oh! — exclama, sobressaltando-se. Ela se coloca de pé, as
botinhas vermelhas são baixas e presumo que toda sua pequenez não some
mais do que um metro e sessenta, ou menos. — D-desculpe! — gagueja. —
Me desculpe, eu estava… — Ela se cala com uma careta de dor.
Merda, não tenho sangue frio o bastante para ficar indiferente ao
quão machucada está. Ou melhor, não tenho uma gota sequer!
— Está tudo bem — digo, tentando oferecer algum conforto. Não a
toco, nem me aproximo além do necessário, mas escondo meus punhos
fechados dentro dos bolsos e forço um sorriso. — Estou feliz por finalmente
conhecer você de verdade.
Não menciono seus ferimentos, pois isso a afastaria, mas esconder o
quanto me sinto atordoado com eles não é algo que eu consiga fazer em um
período de tempo tão curto. Está estampado no meu rosto, tenho certeza. E
sei que minha reação a ela não passou despercebida por seus olhos doces,
que estão sutilmente arregalados. Mesmo assim, não sinto nenhuma vontade
de disfarçar.
Eu deveria disfarçar.
— Senhor Volkiov? — pergunta, incerta, olhando-me de cima a
baixo. Precisei comprar um casaco e cachecol no meio do caminho, pois
minhas roupas amarrotadas não foram suficientes para bloquear o frio, e
duvido que ela, com essa blusinha simples de lã, não esteja congelando. —
Pensei que você fosse mais... — Ela hesita, baixando o olhar. — Velho.
— Mesmo? — Sorrio. — Bom, obrigado?
— Com todo respeito! — acrescenta ao se dar conta do que disse.
— Quer dizer, ser velho não é um problema, então claro que não seria uma
ofensa. Mas você é mais jovem do que eu pensei que seria, e
definitivamente mais alto. — Quanto mais ela fala, mais a voz se torna
aguda. — Será que podemos começar de novo? Acho que arruinei nossa
apresentação. Eu tinha algo planejado, como "olá, obrigada por ajudar uma
desconhecida desesperada que não tem ideia do que fazer com a própria
vida", mas acabei me distraindo. É algo que eu faço com mais frequência do
que eu gostaria...
De repente, ela funga, seus olhos brilham como pequenas estrelas
desesperadas. Duas gotas lhe escapam, escorrendo para os lábios trêmulos.
Como eu não vi as lágrimas chegando? Geralmente, consigo perceber as
alterações de humor das pessoas.
Ela passa os dedos no rosto, limpando as trilhas úmidas em suas
bochechas.
— O que está sentindo? — pergunto, controlado, segurando seu
cotovelo. — É melhor eu levar você até um hospital.
— Não, não! — Ela se desespera, olhando nos meus olhos. — Estou
bem, mesmo. Não ligue para isso, eu não consigo controlar. Sou uma
chorona incorrigível, não é nada demais. — Piscando, Ana volta a sorrir de
forma dissimulada e, inferno, não consigo ter certeza da veracidade por trás
desse sorriso. — Desculpa.
— Tem certeza? — insisto, sem conseguir desviar os olhos do nariz
redondo e avermelhado. Ela confirma, balançando a cabeça. — Muito bem.
Mas, se sentir qualquer coisa, tem que me falar.
Ana concorda, descendo seu olhar para a minha mão, que continua
ao redor do seu braço fino. Pestanejo antes de soltar, mas acabo cedendo. A
proximidade me permite encarar outra vez os cinco hematomas manchando
seu pescoço frágil, e mesmo sabendo que não devo insistir para que se
consulte com um médico, é tudo em que consigo pensar.
É melhor pensar nisso do que imaginar a pessoa que fez isso com
ela, o momento em que tudo aconteceu e o medo que deve ter sentido.
Retiro meu cachecol e passo sobre a cabeça de Ana, buscando sua
aprovação com o olhar. Ela confirma timidamente e o rodeio duas vezes em
seu pescoço. Fica grande demais, comprido, mas ela aperta o tecido macio
sem se importar com tais detalhes. Uma palavra me vem à mente ao vê-la
encolhida, magra e pequena no meio do tecido grosso.
Fofa.
— Sua bagagem? — Procuro por malas perto da mesa, mas há
somente uma bolsa comum pendurada em seu ombro esquerdo.
Ela nega, em silêncio.
Porra!
Fazemos todo o caminho de volta, passando pelas escadas rolantes e
o mar de gente apressada. Algumas pessoas nos olham, poucas encaram
Ana por mais do que cinco segundos. Ela não percebe o descaso, ou finge
muito bem. Para mim, é impossível não desenvolver um pouco de raiva
com relação ao mundo.
Ela caminha ao meu lado, quietinha e com os olhos sempre baixos,
fixos no chão. Suprimo a vontade de tocar os seus ombros e prometer que
tudo vai ficar bem. Como posso sequer cogitar a ideia de prometer uma
coisa dessas? Não sou o melhor exemplo de vida equilibrada no momento.
— Andrei — diz assim que saímos do aeroporto. Por sorte,
estacionei o carro próximo da entrada, então ela não precisará suportar o
frio por muito mais tempo, e não quero constrangê-la oferecendo o meu
próprio casaco, mesmo sendo a minha vontade. — Obrigada por não
perguntar. — Ela abraça o próprio corpo. Percebendo minha expressão
confusa, explica: — Quem fez isso.
Foco em olhar para frente, desativando as travas do carro ao nos
aproximarmos o suficiente. Ana caminha para a porta do passageiro e entra
depressa, graças a Deus. Não é uma época muito calorosa para se passear
sem roupas térmicas em Moscou. Acomodo-me ao volante, ligando o
aquecedor antes de dar partida.
Seguimos pela rodovia de Kiyevskoye, um trajeto rápido até Arbat,
mas não tão gracioso. Ana encosta a cabeça no vidro embaçado do carro,
observando as árvores desfolhadas à direita, que se estendem por muitos
metros antes de as primeiras edificações começarem a surgir.
— Eu sei quem fez isso — digo com cautela, apertando o volante.
Os efeitos de toda aquela bebedeira já passaram há muito, mas falar sobre
esse sujeito, quem quer que seja, me deixa bêbado de raiva. Não a olho,
mas sinto sua tensão emanando em ondas. — Algum homem com quem
estava morando em São Petersburgo.
Ela se vira para frente, enrolando-se toda nas pontas soltas do
cachecol. Não é muito fácil manter os olhos fixos na estrada.
— Ele não sabe que estou em Moscou — diz, confirmando minha
suposição.
Tenho medo de pressionar demais, então escolho muito bem a
minha próxima pergunta.
— Acha que, se ele souber, pode vir atrás de você?
— Ele virá — afirma, a voz oscilando e as duas mãos fechadas
sobre a barriga. — Por isso não quero que ninguém saiba onde estou.
— Sabe que eu sou advogado, certo? Se precisar de...
Ela se agita no banco, visivelmente incomodada, e me amaldiçoo
por não segurar a merda da língua. Para onde foi a minha cautela e por que
não estou conseguindo pensar em nada além da vontade de colocar esse
filho da puta atrás das grades?
Só pode ser o sono, e a vodca, e toda aquela merda com Evgenia.
— Não posso levar isso adiante — sussurra com os olhos cheios de
lágrimas. — Não posso. Meus pais são... — Ela para de falar e me encara,
obrigando-me a desviar os olhos da avenida por poucos segundos. — Não
faria bem algum, por favor.
Se eu não estivesse dirigindo, talvez conseguisse ficar horas
encarando seus olhos lacrimosos, a pele tão destacada contra o tecido claro
das suas roupas, o brilho bonito do sol refletindo em seu rosto, e os cabelos
um tanto desordenados e longos, com grandes cachos que chegam até a
cintura.
Um elogio à sua beleza sobe até a ponta da minha língua, mas o
engulo de volta, confuso com todas as reações em um momento tão
inoportuno para nós dois.
— Não precisa — digo, confortando-a e voltando a prestar atenção
em nosso trajeto. — Você está segura agora — prometo, e, na minha mente,
ouço os sussurros de Evgenia me acusando de gostar disso: de ser o herói.
Eu realmente gosto.
E hoje, por qualquer razão, sinto que mais do que gostar, é algo que
eu quero ser. Se não por mim, pela mulher perdida e quebrada ao meu lado.
6
Andrei
ASSIM QUE ABRO a porta do apartamento, Ana solta um suspiro atrás de
mim, e eu me amaldiçoo pela milésima vez por continuar tão consciente de
suas reações, como se ela precisasse de supervisão constante.
Ainda estou em choque. Não esperava vê-la tão machucada. E
quanto mais vejo, mais irritado eu me sinto.
Por trás da mácula corrompendo sua aparência, ela tem uma beleza
que se destaca, delicada e única na mesma medida. Ana chama a atenção,
não apenas pela forma hipnotizante como a luz diurna abraça a escala de
tons escuros e dourados em sua pele, mas pelos olhos gentis e expressivos,
sua postura elegante, o caminhar de uma dama.
Sem mencionar sua voz, tem algo ali que não sei descrever.
Ela entra com passos hesitantes, seus olhos brilhando sobre o
volumoso piano de cauda no centro da sala, protegido por uma tapeçaria
azul-celeste, que repousa sobre a madeira mogno-avermelhada do
instrumento.
— É um Fazioli? — Boquiaberta, vira-se para mim com uma
animação renovada que me pega desprevenido.
Seus humores são imprevisíveis, não estou acostumado. Mas ter o
vislumbre de um sorriso genuíno em seu rosto é uma experiência boa.
— Fazi... Quem? — Fecho a porta e retiro meus sapatos. Deixo o
casaco em um cabideiro antigo ao lado da porta, aliviado que o aquecedor
já esteja ligado. Ela me acompanha e também se desfaz das próprias botas
vermelhas. Todo o processo parece constrangedor para nós dois.
O apartamento é modesto em comparação com as outras
propriedades da minha família, mas há certo charme em sua simplicidade
que o torna aconchegante. Está realmente limpo, como minha mãe disse. Os
móveis são escuros e requintados, e a decoração é familiar e tradicional,
com muitos quadros pendurados em uma das paredes e uma prateleira
próxima às janelas, sobre a qual é possível ver algumas Matrioskas
enfileiradas.
— O piano — diz, endireitando-se. Meus olhos são atraídos para
seus pés descalços sobre o carpete e no quanto tudo nela parece tão frágil e
pequeno. — É mesmo um piano Fazioli! Uma marca italiana, são os meus
preferidos. É seu? Você sabe tocar?
Sorrio diante da pergunta, caminhando até o piano para encorajá-la a
se mover, já que parece congelada perto da porta. Felizmente funciona, e ela
me segue muito contente.
— Não, nunca fui muito hábil com instrumentos musicais —
confesso, retirando o tecido de cima dele. — Está aí desde sempre, eu acho.
Este apartamento pertencia aos meus pais, mas está vazio desde quando se
mudaram para a mansão da minha família, e agora eu vou... — Paro de falar
antes de entrar em detalhes sobre a minha situação, ela não precisa saber
sobre o caos que é a minha vida, e não me sinto à vontade para falar sobre
Evgenia. Nem com ela, nem com ninguém. — Estou passando alguns dias
aqui enquanto resolvo algumas pendências com o meu próprio apartamento.
Não me lembro de alguma vez ter visto meus pais tocando qualquer
coisa. Minha mãe com certeza não teria paciência para aprender e meu pai
era um homem ocupado demais, o que me leva à conclusão mais óbvia e
menos humilde: decoração.
Ana só tem olhos para o piano, passeia ao redor dele e levanta a
tampa com facilidade mesmo parecendo pesada. Analisa o emaranhado de
cordas no interior com certo encanto, em um transe fascinante. Assim como
aconteceu no aeroporto, decido não interromper, mas ela retira o cachecol
do pescoço e toda a minha concentração se esvai como fumaça.
A mancha em sua maçã do rosto não está tão evidente quanto os
hematomas no pescoço, o que me faz supor que tenham acontecido em dias
diferentes. Preciso virar as costas para evitar que um rosnado acabe
escapando da minha garganta, mas duvido que não tenha notado minha
reação nada discreta.
Aja naturalmente, aja naturalmente!
— Vão sumir em breve, uma semana, no máximo. — A voz dela
soa gentil atrás de mim. Fecho os olhos e me recrimino com uma dezena de
adjetivos nem um pouco íntegros.
Ao me virar, assumo uma expressão moderada, sem transparecer
toda a perturbação que suas feridas invocam dentro de mim.
— E você sabe disso porque não é a primeira vez que acontece —
concluo para que não precise dizer.
— Deve me achar uma tola. — Apesar da voz triste, ela sorri, o que
não faz muito sentido para mim. Será que vai chorar outra vez? — Eu
pretendia fugir em segredo, mas ele foi mais esperto, como sempre.
Ele descobriu e por isso bateu nela, porra.
Não tenho nenhuma estrutura para conversar sobre esse filho da
puta sem submetê-la a um interrogatório completo sobre ele — nome,
idade, endereço, profissão e cada maldito detalhe que me leve exatamente
até o seu paradeiro — e não posso fazer isso sem causar a Ana um
sofrimento precoce.
Em teoria, não é da minha conta também.
Preciso ir devagar.
Acalme-se.
— Posso ver? — peço, focando no que importa. Ela coloca a mão
sobre as marcas, protegendo-se do meu pedido invasivo, mas não volto
atrás, não consigo. — Por favor, Ana, se me deixar ao menos dar uma
olhada, vou ficar mais tranquilo sobre não levar você até um médico.
Não dou a ela muito tempo para pensar e arrisco uma aproximação.
Ana faz o contrário do que imagino de novo. Ao invés de repelir meu toque,
não pensa muito antes de fechar os olhos e inclinar a cabeça, expondo o
rosto e a região do pescoço, onde as manchas são mais severas.
Chego mais perto e a examino nos mínimos detalhes, agradecendo
que não possa ver minha expressão de puro horror. Sinto algo se comprimir
no meu peito, uma mão com dedos ásperos sobre o meu coração. Quando
toco seu rosto com o meu polegar, ela se encolhe — de dor ou medo, não
sei dizer.
Minha visão precisa enxerga além, encontrando um corte em
processo de cicatrização no cantinho direito de seu lábio inferior, uma
cicatriz mais antiga escondida no supercílio, entre os fios castanhos da
sobrancelha. Quantas vezes ela já passou por isso antes?
Ser tão bonita é um agravante para que eu me demore admirando a
curva arrebitada em seu nariz, as clavículas aparecendo sob a gola da blusa.
Pergunto-me se há mais lesões em seu corpo, nos lugares onde meus olhos
estão proibidos de acessar, e tal dúvida deixa minha boca seca. A que outros
tipos de agressões ela foi submetida? O que mais teve que aguentar? O que
mais ele fez com ela?
Quero saber e não quero ao mesmo tempo, porque, sinceramente,
existe um limite do que eu posso suportar sem tomar uma atitude.
— Está muito ruim? — pergunta, abrindo os olhos e me tornando
consciente do quanto estamos próximos. Vejo minha imagem refletida em
suas íris, a carência espelhando nossos olhares.
Recuo depressa.
— Vai mesmo sumir em alguns dias — digo, rouco e com a visão
embaçada. Eu preciso me controlar. Que merda está acontecendo comigo?
— Vem, vou mostrar o restante do apartamento.
Ana suspira, tão feliz quanto eu por mudarmos de assunto. Ela me
acompanha por todos os cômodos, fazendo comentários esporádicos sobre a
decoração. Os armários nos dois únicos quartos estão cheios com roupas de
cama e toalhas, mas não encontro nenhuma peça de roupa masculina ou
feminina para que possamos nos trocar. Se ela notou que eu também não
trouxe malas comigo, preferiu não falar nada.
— É por pouco tempo — diz, parando na frente do menor quarto.
Como não sei a que se refere, fico em silêncio. — Sendo franca, não tenho
ideia de como anda a minha situação financeira. — Ela torce as mãos e
evita meus olhos. — Eu nunca precisei me preocupar com esse tipo de
coisa. Mas eu prometo arrumar outro lugar assim que possível.
Não permito que continue falando coisas sem sentido.
— Você não vai embora — digo, encarando-a seriamente. Devo
estar parecendo um idiota controlador como meus irmãos mais velhos. —
Não precisa ir — insisto, menos taxativo.
Ana troca o peso do corpo entre uma perna e outra, as ondas escuras
de seus cabelos emolduram seu rosto de traços pungentes, e me vejo com
vontade de tocá-las.
— Está me dizendo para morar aqui? — murmura. — Com você?
Não sei, eu não quero causar problemas.
A mera possibilidade de que renegue minha ajuda faz minha mente
entrar em um frenesi de preocupações. Coloco a prudência de lado e opto
por uma abordagem mais rigorosa.
— Então, nós temos um problema, de fato. — Escuto minhas
palavras persuasivas, porém verdadeiras, e gosto de como ela estremece e
levanta o rosto para me encarar. — Você veio para Moscou sob os meus
cuidados, Ana, com a promessa de que eu cuidaria de tudo.
— Você já está fazendo muito — sussurra.
— Nem a metade. Sei que as coisas parecem complicadas, que está
assustada e com medo, e que confiar em um desconhecido é de longe um
dos piores cenários possíveis no momento. Mas você é minha
responsabilidade agora, e nada do que disser vai mudar isso. Podemos
passar o dia inteiro discutindo neste corredor, ou você pode aceitar o
inevitável e me deixar cumprir com a minha obrigação.
Seus olhos se enchem de lágrimas, mas nenhuma delas foge de seu
controle. Sinto-me incomodado, pois uma parte de mim tem vontade de
secar seu choro e entender o que se passa em sua mente. São lágrimas de
tristeza? De alegria? Ou ambos em igual medida?
— Não posso ficar aqui para sempre — explica seu ponto, ainda na
defensiva, mas o sorriso tímido que vem em seguida me tranquiliza. —
Minha família não vai ficar de braços cruzados por muito tempo depois que
souberem que não estou mais em São Petersburgo, mas não quero que me
vejam assim.
— Você fica pelo tempo que for preciso — proponho, trincando os
dentes para não protestar. Ela pretende esconder o que houve. — No
mínimo até estar recuperada para visitar o abrigo e decidir se aceita o
emprego. Até se sentir segura. — Ela pondera, incerteza se sobressaindo
em sua feição, então jogo uma última cartada: — Se preferir, eu posso ficar
em outro lugar.
— Não. — Ana dá um passo à frente, negando com a cabeça. —
Não é isso, você está sendo ótimo de verdade. — Ela pausa sua fala,
baixando a voz ao volume de um murmúrio. — Eu não gosto de ficar
sozinha.
Quer saber? Dane-se.
Seguro seu queixo, invadindo seu espaço pessoal e jogando para o
alto toda a merda sobre regras morais. Ela arregala os olhos, entreabrindo
os lábios e puxando um arquejo. Por mais que eu tente entender suas
emoções e falhe miseravelmente, ainda busco algum resquício de medo em
seu rosto, qualquer pista que me lembre de ser prudente, porém, não
encontro.
Ela parece aliviada, inclusive.
— Não está mais sozinha, Ana — digo, em alto e bom som,
amparando o rosto delicado com minhas mãos. — Tente dormir um pouco,
vou pedir alguma coisa para o almoço.
Ela movimenta a cabeça para cima e para baixo, uma concordância
que beira à obediência. Não é uma reação que eu particularmente aprove,
mas vai ter que servir por enquanto. O importante é mantê-la a salvo,
comigo.
— Obrigada — ela diz, hesitante. — Você deveria descansar
também.
Sorrindo, arqueio uma sobrancelha.
— Está tão na cara assim a minha miséria?
— Acho que um miserável reconhece o outro. — Ana faz uma
careta engraçada e acrescenta em seguida: — Com todo respeito.
Juntos, nós dois soltamos risadas breves. Ela nem imagina o quão
certa é sua observação. Eu sou um miserável. Tento encontrar uma desculpa
para continuar segurando seu rosto, que se encaixa perfeitamente em
minhas palmas, como se feito para estar ali, sob meu cuidado, mas não
encontro nada convincente e sou forçado a me afastar. Minhas mãos sentem
sua falta na mesma hora.
— Certo, vou dormir um pouco também — minto, limpando a
garganta com um pigarro seco — e depois nós comemos juntos.
Ela aquiesce, olha de mim para o quarto, como se ainda tivesse mais
a dizer, e eu, como um idiota, me vejo inclinando para frente, ansioso para
estender o momento, mas ela por fim se despede com um aceno
constrangido. Antes de fechar a porta, repete em um murmúrio melódico
que flutua até meus ouvidos tal qual uma carícia:
— Obrigada.
Eu que deveria estar agradecendo.
De esguelha, olho para o meu quarto e ignoro a enorme cama vazia
nem um pouco convidativa. Retorno para a sala e vou direto para a estante
onde restam alguns vinhos ainda fechados. Não sou o maior apreciador da
bebida, mas por hora vai ter que servir.
Reviro a cozinha em busca de um abridor e, assim que me livro da
rolha, sento-me no sofá da sala com a garrafa aberta em uma das mãos.
Rendo-me ao álcool na esperança de que ele traga o sono, me amorteça,
mesmo que por uma ou duas horas. Conforme os goles aumentam, cresce a
minha curiosidade sobre a mulher com quem agora estou dividindo o
mesmo teto.
Minha… Como eu disse antes? Responsabilidade?
Ana chegou como um grande farol, piscando com sua luz fraca no
meio de um mar tempestivo para me livrar da deriva. Ao invés de afundar e
me afogar como supus que aconteceria, estou nadando com fortes braçadas
na direção dela, sedento para descobrir quem é o responsável por roubar o
seu brilho.
Sim, ela é minha responsabilidade agora, e odeio cada fibra do meu
corpo que gosta da sensação de ser o seu porto seguro, porque eu sei que a
estou usando para me esconder.
Pode ser culpa do álcool.
Pode ser o sono.
Pode ser que a insanidade finalmente tenha me alcançado.
Qualquer que seja a explicação sobre esses sentimentos que Ana me
desperta, preciso ser cuidadoso para não causar mais sofrimento a alguém
que já teve a sua cota de maus tratos para uma vida inteira.
7
Oito anos de idade.

Anastasia
DE OLHOS FECHADOS, respiro fundo enquanto ergo o braço, depois
prendo o ar nos pulmões pouco antes de encostar o arco nas cordas com
delicadeza. O mundo fica vazio, como sempre acontece quando estou
tocando, e toda a superfície é engolida pelo silêncio, que tinge de branco o
grande buraco de nada que resta ao meu redor.
Somos apenas eu e o meu violino agora.
A primeira nota ressoa de forma limpa e precisa, ecoando por
quilômetros em todas as direções enquanto expiro devagar, minha
respiração em sincronia com o instrumento. Imagino a nota solitária na
minha frente, grande e dançante, em uma partitura imaginária cujas linhas
se amontoam ao meu redor como as barras de ferro em uma cela. Ainda
não está perfeito. Tenho que praticar mais.
Repito o processo, ele é bem simples.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
Repito o processo.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
Repito o processo.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
Repito o processo.
Inspirar. Arco nas…
— Anastasia?
Não, agora não.
...arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
— Ana? — Reconheço a voz de Akira, meu irmão, mas não posso
parar agora. Tenho que manter a mente focada no violino. É só o que
importa.
Repito o processo.
— O que há de errado com ela? — Zayn, nosso irmão mais velho,
pergunta.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
— Talvez esteja quebrada — Akira supõe. Os dois estão bem
próximos de mim, sei pelo volume de suas vozes.
— Ela não é um brinquedo, seu idiota. Quer dizer, pessoas não
quebram, quebram?
Repito o processo.
— Não desse jeito, eu acho. Talvez ela tenha caído de uma árvore e
batido a cabeça?
— Ela não pode sair de casa, lembra? Se ela se machucasse, acho
que Yekaterina teria um ataque e colocaria nós três de castigo pelo resto da
vida.
Sim, não posso ferir minhas preciosas mãos. Todo mundo sabe
disso.
Concentre-se, Anastasia!
Repito o processo.
— Não é justo! — Akira protesta em seu rompante diário de
rebeldia. Meu irmão nunca aprendeu a ter o mesmo refinamento de Zayn e
por isso sempre acaba sendo punido por nossos pais. — Ela fica o dia todo
trancada estudando essa porcaria, não pode fazer coisas legais com a gente,
não pode correr, não pode subir em lugares altos, não pode dormir tarde,
nem brincar de se esconder ou de pular corda. Yekaterina e Leonid a tratam
como se fosse uma prisioneira, mas ela só tem oito anos.
— E nós só temos onze — Zayn argumenta, ironicamente, em um
timbre bem maduro. — Não tem nada que a gente possa fazer.
Acelero a velocidade das repetições, sinto o suor se acumulando
mais e mais na minha testa e o foco começa a se distanciar no meu mundo
tingido de branco. Ao invés de continuar treinando a minha empunhadura,
agarro-me a um último fio de concentração antes que meus irmãos me
interrompam e deslizo para dentro de uma melodia completa.
Os dois se calam enquanto eu toco.
Toco de verdade.
A música flui através dos meus ouvidos e meus dedos dançam,
traçando cada nota, antecipando-as com a maestria exigida em um
capriccio. Não preciso olhar para o violino, eu o sinto pulsar, vívido, sob o
domínio dos meus dedos. Ele conversa comigo enquanto toco, guiando-me
por La Cadenza, de Henryk Wieniawski.
Como o próprio nome já diz, não se trata apenas de uma obra
musical, é um desenho feito com pincéis de acordes livres. É uma
experiência. Eu me fundo com a música ao mergulhar na cadência de notas
em uma técnica que clama pelos sentimentos de seu intérprete. Meu corpo
expõe todas as minhas emoções mais secretas, deixando-me vulnerável
como uma amadora.
Qualquer avaliador vai perceber há centenas de quilômetros que na
verdade a menina prodígio é um talento triste.
Finalizo minha performance com um vibrato, mas mantenho o
violino em meu ombro, o rosto colado na queixeira, enquanto minha
respiração volta ao normal. Ofegante e suada, repasso todos os meus
movimentos na cabeça, tendo a certeza de que não errei nenhuma vez. Não
errar é bom, mas ainda não é o bastante.
Minhas pálpebras se movem e eu abandono aquele lugar vazio e
silencioso da minha mente, retornando para a realidade do grandioso
estúdio residencial onde passo a maior parte dos meus dias. Minha prisão,
como Akira gosta de chamar.
A torre da Rapunzel.
O lugar foi projetado para mim e eu deveria me sentir especial por
isso. Crianças educadas ficam felizes quando ganham presentes dos pais. É
o que dizem. Não tenho certeza. Yekaterina e Leonid não são como os
outros pais, então eu acho que nunca saberei a menos que tenha minha
própria família algum dia.
Olho para baixo e vejo meus irmãos sentados um ao lado do outro,
no chão. Eles sempre fazem isso quando conseguem despistar os
funcionários e se esgueirar para dentro do estúdio, não importa quantas
vezes eu diga para usarem as cadeiras. Suspiro, meus braços pendem ao
lado do corpo, arco e violino firmes nas minhas mãos.
— Isso foi um pouco… — Zayn coça a nuca e desvia o rosto para o
lado. Ambos têm a mesma idade, mas ele continua sendo o mais alto de nós
três. Com as pernas cruzadas, parece-me um tanto desengonçado.
— Mórbido — Akira completa, recebendo de Zayn um tapa bem
dado na parte de trás da cabeça. — Ai! Por que fez isso? Eu só disse a
verdade.
— Quer deixar ela triste? — Zayn sussurra, arregalando seus olhos
grandes e redondos.
Akira o despreza com uma careta e volta sua atenção para mim.
— Até quando vai ficar presa aqui dentro? Vimos quando seus
professores foram embora. — Ele olha para o relógio em seu pulso. — Há
três horas.
Akira é uma criança magra de temperamento ruim. Sua pele clara
possui marcas de cicatrizes que ganhou ao longo dos anos, fazendo suas
peripécias irresponsáveis que sempre terminavam com ele ferido de alguma
forma. Teve uma vez que tentou pular a cerca do jardim, se enroscou em
uma vinha e caiu em cima de um arbusto espinhento. Ele levou sete pontos
no joelho direito e três no cotovelo. Nunca vi tanto sangue na minha vida.
Akira não chorou. Sinto inveja das cicatrizes dele. Queria saber
como é a sensação de escalar a cerca do jardim.
— A competição nacional termina amanhã e eu tenho que treinar até
o último segundo para ficar em primeiro lugar — explico o óbvio.
Sento-me junto com os dois, com as pernas dobradas de lado por
causa do vestido. Deixo o violino em cima do colo com cuidado. É
importante usar roupas semelhantes às que vestirei na apresentação oficial
durante os ensaios para ter certeza de que não ficarei desconfortável
enquanto toco. Meu vestido é especialmente macio e leve, liso e sem
nenhum adorno que possa me pinicar.
Eu gosto. É simples e não chama muita atenção. Meus pais dizem
que eu já sou chamativa o suficiente por causa da minha aparência.
— Escutamos os professores conversando com os nossos pa… —
Zayn se engasga. Já faz algum tempo que vem se recusando a chamar
aqueles dois como "mamãe" e "papai". Akira é bem melhor nisso. — Com
Yekaterina e Leonid. Eles disseram que a sua apresentação estava perfeita e
que nenhuma outra criança vai ter chances contra você na competição.
— Os professores não entendem. Eles não conseguem mais me
acompanhar. — Passo o indicador pelas cordas do violino e abaixo o rosto.
Eu não deveria desqualificar meus professores, mas é a verdade. O que
chamam de perfeição não é mais o suficiente para os meus ouvidos. — Não
me importo de treinar sozinha.
Akira se levanta com um pulo silencioso e estende a mão para mim.
Procuro por Zayn, curiosa pela iniciativa repentina de nosso irmão
bagunceiro, e recebo dele um balançar positivo com a cabeça. Ainda
desconfiada, deixo que Akira me levante. Ele coloca as duas mãos em meus
ombros e fixa seus lindos olhos oblíquos e dissimulados nos meus.
— Você sabe que dia é hoje?
Ah, então é sobre isso que eles querem conversar. Eu devia ter
imaginado.
— É claro que sim — respondo, indiferente. — Mamãe disse que
era melhor não comemorarmos o meu aniversário por causa da competição
e eu acho que ela está certa. É melhor evitar distrações na véspera de uma
apresentação.
— Você já está falando igualzinho a ela. — Akira pressiona meus
ombros com mais força. — Viemos até aqui porque queremos comemorar
com você. Só nós três.
Penso um pouco. Não seria tão ruim fazer algo com meus irmãos.
Eles são os melhores irmãos do mundo inteiro, mesmo que eu não tenha
com o que comparar. Minhas melhores lembranças são ao lado dos dois, e é
justamente por isso que eu nego.
— Vocês vão acabar se metendo em problemas se formos pegos, não
podemos. Lembram o que aconteceu da última vez? Tivemos que passar as
férias inteiras separados só porque fui jogar videogame escondida na sala de
jogos ao invés de ensaiar. Mamãe me disse para ir direto para o quarto
quando acabasse de repassar a música.
— Mamãe é uma vaca! — Akira reclama, e não sei o que me deixa
mais chocada: ele chamar Yekaterina de mamãe ou de vaca.
Na falta do que responder, Zayn se aproxima e repreende nosso
irmão com um olhar duro. Depois, ele se coloca ao meu lado e diz, com
mais calma:
— Ninguém vai saber, eu prometo.
Uma promessa de Zayn é bastante coisa. Se ele diz que ninguém vai
saber, eu acredito. Mas, ainda assim, parece-me arriscado demais. Será que
vale a pena? Não é como se comemorar o meu aniversário fosse algo
importante. A gente nunca comemora aniversários, a menos que nossos pais
precisem limpar seus nomes de alguma polêmica. Aí eles dão uma festa.
Esse ano, mamãe acha que mostrar que eu amo mais a música do que o meu
aniversário vai ser bom para a minha imagem.
— Não sei, Zayn. Se eu não ganhar o primeiro lugar amanhã,
mamãe disse que me enviaria para estudar na Europa. Não quero ficar longe
de vocês de novo.
É solitário quando não os tenho por perto. Quer dizer, mais solitário
que o normal.
Akira estala a língua.
— Eu comprei um bolo, tá legal? E ele é cor-de-rosa, então você
meio que deveria vir com a gente logo, porque escondemos a caixa no
gazebo do jardim, e algum gato perdido pode encontrar e comer tudo, ou até
um esquilo.
Não há gatos ou esquilos na propriedade Serov, nossos pais
detestam animais de qualquer natureza, mas sinto uma onda de animação ao
pensar no bolo. Um bolo cor-de-rosa!
— Akira, era surpresa — Zayn reclama. — Você não sabe calar a
boca?
Akira encolhe os ombros e olha para mim.
— O que importa? Se ela não vier, não vai ter surpresa.
— Um bolo? — pergunto, mais interessada neste assunto do que nos
dois se alfinetando. — Como? Quando? Com que dinheiro?
— Ele roubou a carteira do Leonid na sexta-feira — Zayn o dedura.
Arregalo os olhos para o meu irmão, que não parece nem um pouco
arrependido.
— Roubou o papai? Ficou louco?
— Eu não precisaria roubar se ele não fosse um imbecil. Eu sei que
faço merda, e que mereço meus castigos, mas você é uma boa filha. É a
estrela da família! Pagar por um maldito bolo é mínimo que ele deveria
fazer. — Akira coloca as mãos atrás do pescoço, uma pose despreocupada.
— Ele nem percebeu, estava ocupado demais trancado no quarto de
hóspedes com a governanta.
Os dois trocam um longo olhar que não sei interpretar. Odeio
quando me deixam de fora. Mas o papai faz isso às vezes, ele e a senhorita
Asimova se dão muito bem e adoram conversar juntos no quarto. Quer
dizer, eu acho que eles se dão bem, mas já ouvi ela fazer alguns barulhos
estranhos lá dentro, então não sei dizer. Papai nos avisou para nunca
atrapalhar os dois e nós obedecemos, como sempre. Não é esperto
desobedecer o nosso pai.
Mas não gosto de imaginar meu irmão roubando, e menos ainda o
que nossos pais farão com ele se descobrirem. Ainda tenho pesadelos com o
som dos seus gritos da vez em que apanhou por xingar o papai de um nome
horrível no meio de uma festa, então precisamos nos livrar daquele bolo o
quanto antes.
Olho para o violino e engulo seco.
— Tudo bem, mas não podemos demorar.
Zayn abre um grande sorriso enquanto eu corro para guardar meu
instrumento. Mesmo sem querer, começo a ficar ansiosa. A gente não tem
muitas oportunidades de brincar sem supervisão. Não vai ser o fim do
mundo passear no jardim e comer bolo escondido. Não é como se algo
fosse acontecer.
Quando os dois estão comigo, é sempre divertido, caótico e intenso.
Zayn e Akira são como Caprice, op. 1, no. 24, de Paganini.
E eu os amo exatamente assim.
8
Andrei
JÁ FAZ UM ano desde que Vladimir abriu um buraco bem no meio da
empresa, trazendo à tona a verdade sobre um desabamento ocorrido vários
anos antes, e que culminou na morte de inúmeras pessoas. Tive que fazer o
impossível para que meu irmão saísse ileso de todos os processos, coisas
das quais não me orgulho, mas também não me arrependo.
Uma verdade impopular sobre mim? Meu senso ético, tão aclamado
e exaltado, vai até um certo limite. E este limite é a minha família. Não há
nada que eu não faça pelas pessoas que amo.
Foi o mesmo quando Ivan se envolveu com Lara e tivemos que
interromper nossos investimentos com a empresa da família dela, que tinha
um mundo de projetos ilícitos nas costas. Ou quando Roman decidiu que
era uma boa ideia atirar no pai da nossa cunhada. Não importa o tamanho
da sujeira, eu estou sempre lá, pronto para limpar tudo.
Considerando que existe um passado criminoso na história do
sobrenome Volkiov, envolvendo cassinos ilegais e parentes desconhecidos
— de acordo com minha mãe —, talvez mentir e esconder segredos seja um
lance de família. Talvez esteja no meu sangue.
Escuto passos no corredor e saio do meu transe. Faz quatro…?
Confiro o relógio em meu pulso. Cinco horas que estou sentado na mesma
posição, absorto em minha mente conturbada que se nega a desligar. Nada
muito diferente do habitual, exceto que agora eu moro com alguém que
acorda todos os dias às cinco da manhã para tocar piano. Nossos vizinhos
nos odeiam e terei que pagar algumas multas ao sindicato por causa do
barulho, mas Ana acha que temos paredes acústicas e não tenho coragem de
contar a verdade. Não quando tocar é a única coisa que afasta as sombras de
seu olhar.
Depois de duas semanas, não consegui descobrir muita coisa sobre
ela, mas chegamos a um equilíbrio interessante de convivência, no qual
compartilhamos o café da manhã todos os dias e conversamos sobre
banalidades durante o jantar. Gosto da nossa rotina, sua presença me dá um
pouco de tranquilidade e sinto que a cada dia Ana e eu nos tornamos mais
próximos.
Assim que os passos dela se distanciam, eu me levanto e caminho
até o espelho acoplado em uma das paredes. É um objeto bonito de formato
circular, com ornamentos dourados nas bordas, seu único defeito é o reflexo
que me encara de volta com olhos escuros e pesados, aquele semblante
faminto de quem precisa de um descanso. Meu organismo se acostumou a
relaxar apenas com álcool ou sexo, de preferência, juntos. Mas tenho feito o
possível para me contentar só com o primeiro item.
O possível não tem sido o suficiente.
Meu celular vibra sobre o colchão da cama e olho de relance para a
tela. Outra chamada de Evgenia que ignoro. Ela começou a enviar
mensagens e mais mensagens no dia da separação e não parou mais. Até
tentei ler algumas no começo, preocupado com seu bem estar. As primeiras
foram mais controladas, com pedidos educados de "vamos
conversar" e "não consigo viver sem você". Ao perceber que eu não
responderia, ela voltou ao seu estado normal de "você vai pagar por tudo o
que está fazendo comigo".
Se não fosse por Ana, eu provavelmente já teria cedido à suas
ameaças e voltado para casa.
Ana.
Deixo o celular para trás e decido conferir o que está fazendo. Ao
abrir a porta, a resposta chega depressa: ouço a primeira nota reverberar
pelo apartamento, alta, limpa e melódica. Outras vêm em seguida, mais
rápidas e ferozes.
Seduzido pelo som, caminho silenciosamente até a sala, onde a
encontro sentada na frente do piano. Está vestida com um roupão azul duas
vezes maior do que ela e é a merda da coisa mais sensual que eu já vi,
mesmo sem expor nem um centímetro de pele, com um laço marcante na
cintura. Seus cabelos estão molhados, os caracóis pesando sobre os ombros.
Ela para de atacar as teclas e respira fundo, como se estivesse se
preparando. Ao retornar, seus movimentos produzem uma melodia familiar,
muito mais sensível e tocante. É suave e delicada, assim como ela, e me
deixa paralisado, cativado pela música e todas as sensações que envolvem a
imagem diante dos meus olhos.
Há um tom de tristeza, mas também de liberdade.
Inexplicável.
Contra a luz que entra pelas janelas, ela se parece com um anjo e eu
perco a noção do tempo, parado entre o corredor e a sala, apenas
contemplando o som e a beleza. Seu corpo oscila de um lado para o outro,
acompanhando a música como se fosse parte fundamental dela. Quando a
última tecla finda, ecoando baixinho, não consigo ficar em silêncio.
— Linda — digo, minha voz soando grave e profunda. Ana se
sobressalta no banco e olha para trás. Estou me referindo única e
exclusivamente a ela, mas disfarço: — A música é mesmo muito bonita.
— Chopin. — Sorrindo, Ana coloca uma mecha de cabelo atrás da
orelha. — Noturno, Opus nove, número dois, em Mi Bemol Maior.
— Chopin? — Meu tom de voz deixa claro que não sou um
especialista.
— Se disser que não conhece Chopin, sinto que seremos obrigados a
colocar um fim em nossa relação, infelizmente — diz de modo trágico,
brincando.
Quase pergunto a qual relação ela se refere, mas me contenho.
— Não será preciso, conheço Chopin, e eu sabia que a música não
me era estranha no momento em que ouvi, mas esse nome complexo? Eu
não saberia repetir nem se minha vida dependesse disso, senhorita pianista.
— Claro que não sou uma pianista! — Ana gargalha, seus ombros
chacoalham livremente de maneira adorável.
Chego mais perto e meus olhos traidores voam para seu colo
exposto em busca de marcas. Mesmo que todos os hematomas tenham
desaparecido há dias, não consigo parar com o hábito. Sinto uma onda de
alívio ao vislumbrar a pele lisa e curada, mas outra sensação me invade
assim que vejo o roupão frouxo sobre seu corpo, a fenda entre os seios se
pronunciando no decote desleixado do roupão.
Calor.
E fome.
— E por que não? — pergunto, focando em seu rosto.
Ana retira uma mão das teclas monocromáticas e a ergue na minha
direção, com a palma aberta, mostrando todos os cinco dedinhos como se
eles explicassem tudo. Continuo sem entender, aproximo-me dela,
inclinando para frente, em busca de alguma deformidade nas juntas, mas
nunca uma mão me pareceu tão perfeita.
— Mãos pequenas, dedos curtos — explica, sorrindo gentilmente da
minha completa ignorância com o meio musical.
Levo minha própria mão à dela, encaixando as duas no espaço entre
nós. Meus dedos são muito maiores e mais grosseiros.
— São mesmo pequenas — sussurro, hipnotizado, medindo as
diferenças. Sinto um aperto repentino no peito, algo parecido com
preocupação e medo. Ela é toda delicada demais.
— Não é uma regra ter mãos grandes para se tornar um profissional
— segue explicando, sem notar o quanto seu toque mexe comigo —, mas
facilita bastante. Aprendi a tocar piano, flauta e violino quando era criança,
mas desisti da flauta por volta dos dez anos. Segui com o piano
como hobby porque gostava muito do som, e o violino se tornou a minha
paixão.
— Violinista, então. — Recolho minha mão antes que ela note
minha expressão sombria. Ana confirma, e uma rápida onda de tristeza faz
seu sorriso vacilar. Posso estar vendo coisas. — Está com fome?
Ela nega, pressionando uma ou outra tecla do piano.
— Não conseguiu dormir de novo? — pergunta, perspicaz, mas não
me deixa responder. — Posso tocar uma música de ninar se quiser. —
Mesmo ciente de que se trata de uma brincadeira, fico ansioso para vê-la
tocando para mim.
— Eu adoraria ouvir.
Há um momento desconfortável em que nossos olhos se conectam.
Tento ler seu semblante, escutar seus pensamentos, calcular o que as
profundezas das pupilas marrons escondem, mas é inútil. Ana está dentro de
uma muralha e eu sou o soldado solitário acampado na frente de seus
portões.
Toque para mim, peço em silêncio, enrijecendo o corpo cheio de
expectativa. Magicamente, ela acata, dando início a uma música suave e
calma como o ninar de uma criança. Pergunto-me se é assim que se
expressa, se as suas emoções estão presentes na sonância, e se o frenesi de
alívio, expectativa e felicidade que penso identificar entre as notas são
reflexos do que está sentindo.
Gostaria que fosse, porque é incrível de se ouvir. Na verdade, tudo
nela é incrível. Eu poderia assisti-la tocando para sempre.
São as mãos pequenas de dedos curtos mais lindas que eu já vi.
9
Anastasia
A RISADINHA IRÔNICA de Andrei me traz de volta à realidade. Desvio
o rosto ao mesmo tempo em que termina de fechar o último botão de sua
camisa. Ele pega o paletó que estava pousado sobre a poltrona, vestindo em
seguida, e finjo um interesse repentino em meus próprios pés.
— Não olhe demais, Anastasia — repreendo-me baixinho,
brincando com a barra do meu vestido. Felizmente, está calor o bastante
para que uma meia-calça me proteja do vento fresco lá fora.
Andrei está perfeito em um terno azul de costura inglesa que destaca
seus ombros largos e a extensão rígida de suas costas. Mas ele poderia se
vestir com um saco de batatas que o impacto de sua beleza não seria
afetado.
— Disse alguma coisa? — pergunta, segurando a risada. Ele passa a
gravata sobre a cabeça e inicia o nó com agilidade, mas volta-se na minha
direção em busca da resposta.
— Absolutamente não — digo depressa, negando com a cabeça.
Pela maneira como seu sorriso aumenta de tamanho, tenho certeza
que está me provocando. Ele faz isso com grande frequência agora que nos
tornamos mais próximos — o quão próximos, eu não sei como medir, mas
já não somos mais os dois completos estranhos do primeiro dia, que mal
conseguiam disfarçar a própria miséria.
— O vestido ficou ótimo em você. — Ele olha de relance na minha
direção, o sorriso ainda presente, mas sua voz assume um tom grave ao
completar: — Está muito bonita.
Sinto meu rosto acender como uma tocha. Não estou acostumada
com elogios. Quando Yerik elogiava minhas roupas, era um sinal que eu
deveria trocá-las.
— Obrigada — murmuro enquanto o observo passar a gravata por
trás do pescoço.
— Quem comprou tem um ótimo gosto, não acha?
Sou obrigada a sorrir. De alguma forma, ele sabe como me deixar
confortável em um piscar de olhos.
— Está tentando ganhar um elogio, senhor Volkiov?
Ele faz um gesto casual com os ombros, porém, sua expressão é de
um predador cuja presa acaba de cair em sua armadilha de palavras.
— Sou um homem carente, preciso de bajulação para validar os
meus sentimentos.
Não aguento segurar a risada. Andrei tem o talento de fazer até suas
brincadeiras parecerem argumentos sérios. Deve ser coisa de advogado.
Tivemos um pequeno embate na primeira semana por causa das
roupas. Como não pude trazer nada comigo, ele se ofereceu para comprar
tudo o que eu precisasse, e é claro que recusei. No entanto, Andrei sabe
como ser convincente e venceu todas as minhas justificativas, afinal, eu
realmente não podia ficar andando nua pelo apartamento, mas quando eu
disse que não conseguiria gastar o dinheiro dele mesmo assim, que seria
muito constrangedor, ele próprio saiu e só apareceu três horas depois
carregando uma infinidade de sacolas lotadas com roupas caríssimas — e só
então eu pude compreender a extensão da sua fortuna.
Talvez seja tão ou mais rico que meus pais.
— Sim — digo ao perceber que ele espera uma resposta —, você
tem muito bom gosto, eu amei. Obrigada mais uma vez, vou pagar por tudo
assim que…
— Claro, claro. — Ele nem tenta disfarçar a interrupção certeira. —
Não se preocupe com isso. O importante agora é pensar em você e no seu
futuro.
— Futuro? — experimento a palavra, mas ela tem um sabor
agridoce. Se Andrei soubesse o que o futuro tem guardado para mim, não
sei se estaria sendo tão otimista.
Ele para o que está fazendo e me encara. Sua atenção rouba o meu
fôlego. Ainda não me acostumei com seu olhar poderoso, distinto,
enigmático, existe um conflito permanente transbordando de suas órbitas,
um desejo profano de enxergar mais do que a visão comum alcança. Ele não
tenta esconder.
Eu diria, inclusive, que gosta quando percebo suas tentativas de me
desvendar. Gosta de ser reconhecido.
Andrei admitiu a plenos pulmões que pretende se manter ao meu
lado pelo tempo que achar necessário, mas, às vezes, eu me sinto despida
diante dele, completamente nua, física e emocionalmente invadida por sua
personalidade imperturbável e controlada a uma profundidade que Yerik
jamais conseguiu alcançar.
O problema é que nada disso me incomoda. Estou bem com ele, um
homem que até o mês passado era desconhecido para mim. Mais do que
bem, sinto-me viva como nunca antes. Ele tem um rosto bonito, um jeito de
príncipe encantado e um corpo másculo, definido e robusto, mas seu olhar é
o mais intenso que já encontrei em uma pessoa, naturalmente sedutor e
desconcertante, alguém que não apenas vê as pessoas, mas as enxerga.
Que me enxerga.
— Não precisa ficar assustada. — Ele caminha até mim, terminando
de arrumar as abotoaduras do paletó. Segura meu queixo com uma
intimidade cautelosa que tranquiliza meus instintos auto protetivos antes
que eu sequer pense em recuar. — É só uma visita. Você conhece o lugar, as
crianças, conversa com algumas pessoas e vai se familiarizando. Não
precisamos formalizar a sua contratação até estar cem por cento segura de
que é isso o que deseja fazer.
Seu dedo indicador faz uma pequena carícia na minha bochecha, no
lugar em que antes estava o hematoma causado por Yerik. Pode ser que a
minha imaginação ingênua esteja inventando coisas, mas uma sombra
agressiva recobre seu semblante pacífico antes de se afastar, deixando-me
confusa.
Temos convivido como duas pessoas isoladas do mundo em uma
ilusão segura onde eu não preciso ter medo. Ele faz questão de me ouvir
tocando piano antes do nosso café da manhã, e de noite, depois de chegar
do trabalho, conversamos sobre as banalidades do dia a dia. Vez ou outra,
Andrei faz algum comentário sobre seus irmãos e cunhadas, mas nunca fala
sobre si mesmo, não revela seus pensamentos ou quais tormentos esconde
em seu coração.
Quem é este homem e o que aconteceu com ele para se fechar dessa
forma?
Eu quero saber.
Desejo saber.
— Você tem uma incrível capacidade de sempre dizer a coisa certa
no momento certo, sabia? — digo, elogiando-o com sinceridade, e minha
recompensa vem em seguida na forma de um sorriso matador.
Deus! Quando ele sorri, é difícil até de respirar.
— É o meu trabalho. — Bem humorado, olha o relógio em seu
pulso. — Inclusive, eu e a minha incrível capacidade de dizer a coisa certa
gostaríamos de informar que vamos nos atrasar se não sairmos neste exato
minuto.
Automaticamente, o rosto de Yerik irritado me vem à mente,
dizendo: "Você é lerda, Anastasia. Vamos nos atrasar por sua causa", mas
Andrei não parece nervoso, nem decepcionado e seu tom também não me
assusta. Eles não são iguais, preciso me lembrar o tempo todo, assombrada
com o fantasma do meu marido que insiste em me aterrorizar.
Ainda assim, apresso-me para segui-lo até a saída.
— Atrasar? — murmuro, esperando-o trancar a porta. — Mas, você
acabou de dizer que é só uma visita.
Ele guarda a chave no bolso da calça e, em um movimento natural,
pousa uma mão protetora e gentil em minha lombar. Dessa vez, porém, meu
corpo reage por conta própria e meus músculos se enrijecem, uma sensação
de estranhamento cruza a tênue linha da minha consciência e eu estremeço
da cabeça aos pés.
— Desculpe. — Andrei recolhe o braço de imediato e se afasta de
mim com um semblante preocupado. — Fiz sem perceber.
Procuro me acalmar rapidamente. Meu corpo às vezes esquece que
não é mais uma propriedade e que não preciso temer o toque de outras
pessoas. Não serei mais punida por conceder a outro homem permissão para
um gesto tão simples. Mesmo envergonhada por minha reação, nego com a
cabeça e me explico:
— Não tem problema. Só fui pega de surpresa. Eu não… eu
nunca… — Sinto minha garganta se fechando. — Ainda estou me
acostumando. Faz muito tempo que ninguém se aproxima tanto. Ninguém
além… — Engulo o nome de Yerik em seco. — Você sabe, eu sinto muito.
Preparo-me para ser chamada de louca ou coisa parecida, mas
Andrei volta a se aproximar e inclina o rosto para me olhar de perto. As
sombras que de vez em quando ameaçam dominar seu rosto angelical,
gozam da liberdade como se ele não quisesse escondê-las de mim agora.
— Eu entendo — diz em um tom que não sei definir se é calmo ou
zangado. Ele faz uma pausa e olha para as minhas mãos, que mantenho
fechadas na frente do corpo. — Posso tentar outra vez?
Meu cérebro dá uma cambalhota com seu pedido e fico na dúvida se
entendi direito. Ele quer me tocar de novo? Por quê?
— Por quê? — ecoo a dúvida que paira em minha mente.
— Porque eu quero. — Ele não hesita, sua postura transmite toda a
potência e veracidade de suas palavras. — E porque não gosto da ideia de
alguém que te feriu tendo exclusividade em uma parte tão pura de você.
Sinto meus olhos arderem. Andrei ergue um dos braços, um convite
para me encaixar naquele espaço particular ao seu lado. Procuro motivos
para rejeitar seu pedido, outra indicação do meu organismo que se oponha
ao contato, entretanto, por mais que os julgamentos fantasmagóricos de
Yerik continuem à espreita, chego à conclusão de que preciso ser mais
corajosa. Um passo de cada vez, certo?
— Tudo bem — sussurro, mas tampouco saio do lugar. Andrei
solta uma de suas risadinhas misteriosas e assume a liderança, abraçando-
me de lado.
A mão dele retorna para um ponto específico das minhas costas,
pairando na base da minha coluna por um longo minuto.
— Podemos ir agora? — pergunta. Graças às nossas posições, sinto
sua respiração fazendo cócegas no meu cabelo. Aquiesço em resposta, toda
sem jeito, mas inegavelmente confortável.
Com um leve empurrão, ele nos guia até os elevadores, mas não se
afasta ao entrarmos no cubículo apertado e seus dedos também não deixam
de me segurar contra ele. Quando as portas voltam a se abrir, fico
imaginando quando vai me soltar, mas Andrei se mantém irredutível em seu
propósito. Seus dedos deslizam com naturalidade até se acomodarem na
minha cintura, deixando meu corpo alerta e ansioso.
Bloqueio a voz de Yerik assim que ela ameaça me recriminar e me
concentro em outras coisas, como o formato de nossas sombras refletidas
no chão, ou no cheiro almiscarado de sua loção pós-barba. Andrei está
sendo gentil, só isso. Não é nada demais, não significa nada.
— Você disse que vamos nos atrasar — eu lembro quando o vejo
conferir o relógio novamente, em uma tentativa de preencher o silêncio. —
Não sabia que tínhamos hora marcada.
— Eu quis dizer que vamos nos atrasar para um excelente café no
caminho — explica, charmoso. — Não sei você, mas estou morrendo de
fome.
— Depois de beber tanto, era de se esperar que estivesse com
fome — digo sem pensar muito bem, fazendo referência ao que aconteceu
na noite anterior. Arrependo-me quando seus músculos ficam tensos, seu
semblante endurecido ao olhar para baixo, para mim.
— Estou acostumado — diz, estreitando os olhos. — Por acaso, eu
não disse nada estranho, disse?
— Claro que não. — Dou de ombros, abaixando o rosto e forçando
uma risada. Por sorte, chegamos ao carro e somos obrigados a nos afastar,
mas isso não me impede de recordar cada detalhe do que aconteceu de
verdade.
Do que ele disse.
Acordei no meio da noite sedenta por um pouco de água. Estava
nauseada por causa da gravidez, sonolenta pelo despertar repentino, e não
me importei em vestir um robe ao sair do quarto usando nada mais do que
uma camisola de seda cor-de-rosa, um item inusitado e constrangedor
dentre todos os que Andrei comprou para mim.
Eu estava vergonhosamente imaginando se a peça foi escolhida por
ele, se seu gosto por roupas femininas é mesmo tão indecente, quando ouvi
seu arfar no centro da cozinha escura. Andrei estava sozinho, encostado
contra a ilha de mármore com o peito despido, usando nada mais do que
uma calça cinzenta de elástico, os músculos do abdômen formando um
caminho pecaminoso rumo ao cós rebaixado.
Ele é grande, mas naquele momento me senti minúscula diante de
seus olhos ardentes, queimando no centro da escuridão. Apesar das sombras
recobrindo parcialmente seus traços rijos, meu olhar já havia se acostumado
com o breu o bastante para perceber sua expressão de surpresa varrendo
todo o meu corpo.
Em sua mão esquerda, havia um copo pela metade, na direita, uma
garrafa já quase vazia.
— Não consegue dormir? — perguntei, tentando agir normalmente.
— Quase nunca. — Sua voz soava rouca, um pouco arrastada e
lenta. — Não sem um pouco disso aqui. — Ele ergueu o copo, rindo com
um tom de desgosto, e depois levou o líquido à boca, virando todo o
conteúdo com goles exagerados e sonoros.
Naquele momento, eu quis chorar. Não por medo como seria com
Yerik. Não por temer que sua embriaguez representasse algum perigo a
mim. Mas sim porque eu entendi que há uma luta dentro de Andrei que
ninguém é capaz de enxergar. Aquela talvez tenha sido uma das raras vezes
em que se permitiu baixar suas defesas.
— Deveria procurar outros meios, esse não faz bem para a sua saúde
— sugeri, preocupada.
Andrei voltou a sorrir amargamente, enchendo seu copo até quase
transbordar. Ele deixou a garrafa aberta para trás, sobre o balcão de
mármore, vindo na minha direção com um caminhar audacioso e
determinado. Parou diante de mim, o cheiro do álcool era pungente, mas
não estava forte o bastante para ocultar seu perfume masculino, a fragrância
sofisticada com notas florais e cítricas.
Ele não fez nada além de me olhar, mas eu senti sua inspeção como
uma carícia sôfrega que fez todo o meu corpo estremecer. Os hormônios da
gravidez tiveram sua parcela de culpa quando fechei os olhos e me perdi na
sensação gostosa de ser o alvo de sua atenção.
— Infelizmente, a outra coisa que me ajuda a dormir um pouco, eu
não posso ter no momento — disse, misterioso.
Minhas pálpebras se abriram a tempo de ver Andrei se inclinar sobre
mim, os olhos dilatados por causa de toda aquela bebida alcoólica. Cada
centímetro da minha pele se arrepiou quando seu rosto parou a centímetros
do meu, sua respiração se misturando com a minha.
— E o que seria? — sussurrei, guiada pelo choque.
Andrei tornou a sorrir, como se não esperasse a minha pergunta.
— Uma mulher — respondeu, umedecendo os lábios com a língua
— na minha cama. Boa noite, Ana.
E, tão inesperadamente como veio, Andrei e seu copo de vodca me
deixaram, sozinha e com um monte de ideias erradas germinando na minha
cabeça pelo resto da noite.
Entro no carro e fecho a porta, procurando controlar a queimação no
meu rosto. No meu corpo todo. Expurgo da minha mente a lembrança —
ou, pelo menos, tento — antes que ele perceba e volte a me questionar.
Andrei se acomoda no banco do motorista e confere o celular, dando
partida em seguida. Não toca mais no assunto, ao invés disso, aproveita
para me explicar mais detalhes sobre o trabalho que suas cunhadas
executam na associação e o que esperam de mim como professora de
música, caso eu aceite o trabalho.
Finjo prestar atenção, mas um pedacinho de mim continua preso
naquela madrugada. Em seu olhar devastado, na forma como se agarrava ao
copo como se sua vida dependesse daquilo. No modo como enxerguei um
pouco de ousadia em seu olhar sobre mim.
Na minha reação boba.
É claro que ele não se lembraria, estava bêbado. Tenho certeza de
que nem mesmo sabia quem eu era no centro daquela cozinha.
Sou uma fugitiva. Estou grávida e ele nem mesmo sabe. Céus! Tem
uma criança crescendo dentro de mim, meu bebê, e Andrei jamais olharia
na minha direção se soubesse a verdade.

***

Quando Andrei disse que o abrigo tinha sido uma residência no


passado, não passou pela minha cabeça que fosse se tratar de uma
propriedade extremamente dispendiosa. Tento não parecer tão surpresa
enquanto caminhamos pelos corredores imponentes, passeando por
cômodos ricamente adaptados para atender as necessidades das crianças.
Andrei ostenta um sorriso amplo enquanto me apresenta todos os
espaços, os quais tento guardar na memória com cuidado — o refeitório, o
corredor onde ficam os dormitórios femininos, depois os masculinos, as
salas de artes, música e dança e o caminho para a área externa.
— Serena disse que estão estudando a possibilidade de aproveitar
uma parte do jardim para construir uma estufa — ele conta com os olhos
brilhantes, cheios de orgulho. — E o anexo foi reformado recentemente.
Como muitos dos jovens que chegam aqui têm algum envolvimento com o
mundo da criminalidade, é bem comum que apareçam com ferimentos de
brigas, então precisávamos de uma enfermaria.
— Eu não imaginava que fizessem um trabalho tão completo.
— A ideia inicial era oferecer apenas refeições e pernoites —
explica, mais uma vez me puxando para perto, os cinco dedos muito bem
acomodados na minha cintura. — Temos um projeto de cunho social em um
clube que foi construído no distrito onde Serena cresceu, mas o objetivo
dele é voltado para a transformação local, já que se trata de uma região
menos favorecida. É preciso bem mais do que gerar empregos para que as
pessoas sejam capazes de mudar suas realidades de vida, então Lara nos
ofereceu uma sociedade. Hoje em dia conseguimos mapear as famílias que
precisam de ajuda e depois as encaminhamos para este lugar.
— Então sua cunhada é a dona do abrigo?
— Sim, Lara é a fundadora, mas ela também é nossa secretária
presidencial e uma espécie de milagreira, precisamos dela na empresa,
então é Serena quem toma conta de tudo por aqui em termos de
gerenciamento. Ela tem se saído muito bem e entende mais do que nós
sobre a realidade dessas pessoas, mas há uma equipe cuidando da parte
pedagógica e outra da administrativa.
Duas mulheres uniformizadas passam por nós e cumprimentam
Andrei com sorrisos abobalhados. Não é por menos, seu jeito educado e
galante, e o modo despretensioso com que transforma qualquer frase em
algo bem íntimo, são impossíveis de ignorar. Não sei se ele faz de
propósito, mas todos os seus sorrisos e olhares transbordam sedução e
reviram uma parte bem específica no baixo ventre feminino, inclusive no
meu baixo ventre grávido e cheio de necessidades amplificadas por
hormônios.
— Você disse que mapeiam as famílias mais necessitadas — digo
assim que elas se afastam. — Então quer dizer que não comportam apenas
crianças?
Ele indica o caminho até uma escadaria, os degraus estreitos o
obrigam a ficar logo atrás de mim e me torno ainda mais consciente da
palma acomodada no meu quadril enquanto responde minha pergunta.
— Nós priorizamos as famílias com crianças, mas há uma ala
destinada para adolescentes e outra para os adultos. As refeições acontecem
todas no mesmo horário e as aulas de pintura, dança e música são divididas
por idades também. Você poderá montar sua própria escala e horários.
Olho por cima do ombro e sorrio.
— Caso eu aceite o emprego.
Ele devolve meu sorriso com um ainda maior.
— Caso você aceite o emprego.
Ele me induz a girar no último degrau, nivelando nossos olhares. Há
um som distante de vozes animadas, um coro infantil ecoando em uma das
salinhas lá embaixo, mas meus ouvidos só parecem se importar com o som
baixo da respiração de Andrei.
Talvez seja o descompasso do meu coração, batendo forte e rápido
dentro do peito, talvez sejam os meus pulmões que insistem em prender o
oxigênio por muito mais tempo toda vez que Andrei se aproxima de mim,
mas assim que nossos olhos se conectam e sua pupila dilatada desce para os
meus lábios, minha visão é tragada para o centro de um buraco negro. Tudo
ao nosso redor se torna confuso e uma onda de escuridão abraça a minha
mente.
— Ana? — Andrei me segura firme contra ele, levando-me até a
segurança do segundo andar. Ele me conduz até a primeira porta aberta,
fechando-a assim que entramos no cômodo. — O que está sentindo? — Há
uma nota de desespero em sua voz, seus braços rígidos me amparam
enquanto a vertigem dissipa sem pressa.
Meu cérebro repete uma mesma palavra sucessivamente: gravidez,
gravidez, gravidez!
— Foi só uma tontura — balbucio, segurando a frente do seu terno
caríssimo com os punhos fechados. — Me desculpe.
— Não peça desculpas por um mal-estar! Quer me matar do
coração? O que foi isso? O que você tem?
Um bebê!
Mordo os lábios, cogitando contar a ele toda a verdade, que estou
grávida e que essa criança é o principal motivo que me fez fugir de Yerik,
mas me detenho no último segundo. Medo e um pouco de vergonha formam
uma bolha na minha garganta, impedindo as palavras de saírem.
E se ele se arrepender de ter me ajudado? E se disser que não posso
esconder meu bebê para sempre? E se me mandar embora, de volta para
São Petersburgo?
— Já passou, não foi nada demais — digo, torcendo para soar
convincente, mas a ruga entre as suas sobrancelhas demonstra que não
acredita.
Fico presa em seu olhar investigativo, que se concentra em meus
olhos, tentando decidir se acredita ou não na minha mentira. Sinto meu
estômago se revirar em culpa e medo quando ele exala com evidente
frustração, mas seja qual for seu dilema interno, é esquecido assim nos
tornamos conscientes de nossas posições.
Eu em seus braços.
Ele ao redor de mim.
— Acho que estou muito perto de novo — pontua, falando baixo. O
ar ao nosso redor parece se condensar, sua voz segura e metódica faz meu
corpo entrar em contradição.
Não quero mais que mantenha distância.
Mas eu deveria querer.
— Acho que sim — balbucio, estagnada.
Ele segura meu rosto e me surpreendo com a velocidade que meu
corpo aceita seu carinho, mesmo minha mente sussurrando repreensões.
Seus dedos traçam uma linha invisível em minha bochecha e não me
recordo de já ter concedido tamanha liberdade a outro homem que não fosse
meu marido. Faz quanto tempo desde a última vez que senti o calor de outro
ser humano?
— Queria que confiasse em mim — diz, seu olhar vago revelando a
mente distante. — Mas eu sei que ainda é cedo.
Eu não confio em ninguém no momento. Menos ainda em mim. Não
sou uma pessoa confiável, sou uma mentirosa tentando sobreviver.
Estamos sozinhos, exatamente como aconteceu no meio da noite, no
entanto, não há nenhuma gota de álcool em seu organismo agora para
justificar suas ações, e é este pensamento que me faz arquejar quando sinto
seu polegar deslizando sobre a minha boca.
— Andrei, o que está fazendo?
Não quero ser o tipo de pessoa exagerada que enxerga segundas
intenções em tudo e todos, também não quero colocar Andrei em uma
balança para pesar cada uma de suas ações comigo. Eu desaprendi a viver
como alguém normal e livre de receios e não sei o jeito certo de paquerar,
mas eu acho que é exatamente isso o que ele está fazendo.
Flertando.
— Não tenho ideia — confessa. Ele amplia o sorriso enquanto nega,
balançando a cabeça para os lados com movimentos mínimos. — Adoro
quando fica divagando sozinha assim, sabia? Pensando e pensando e
pensando. Você é tão…
O restante de sua frase é abafado pelo baque alto da porta sendo
aberta e fechada logo em seguida. Nos afastamos em um pulo, como se
tivéssemos sido pegos no flagra fazendo algo de errado. Ele se recompõe
com uma facilidade assustadora, voltando a dissimular um sorriso que —
agora percebo — lhe é tristemente natural.
Desviamos nossos olhares em sincronia, reparando na pessoa que
acaba de chegar. É uma mulher magnífica, com cabelos escuros que
abraçam seus ombros magros e escorrem pela cintura abaixo. Ela olha de
mim para Andrei com grandes olhos pretos, parecendo agitada e um pouco
ofegante.
É linda, mas o bebê em seus braços detém toda a minha atenção.
Ele se parece muito — muito mesmo — com Andrei. Até as
ondinhas em seus cabelos se assemelham aos fios rebeldes que ele tem na
nuca. Não fossem os olhos azuis e vibrantes, arregalados tal como os da
mulher, eu poderia jurar que são pai e filho.
Ah, droga.
Talvez seja mesmo filho dele, não é mesmo? Por que não?
Droga, droga, droga.
Ele tem um filho!
Meu Deus, ele tem um filho.
Não sei o que me deixa mais perturbada: perceber que tenho
reparado tanto em Andrei a ponto de saber qual o formato dos fios de
cabelo em sua nuca, ou essa criança extremamente fofa sorrindo na minha
direção.
Filho.
Dele.
Talvez.
Muito provavelmente.
— Oi, querida — diz a mulher para mim. — Tudo bem? Pode
segurar, por favor? — Ela estende o bebê e praticamente o joga em meus
braços, apertando a bochecha dele enquanto continua falando em um único
fôlego: — Escute, daqui exatos sessenta segundos um homem maravilhoso,
alto e forte, de olhos azuis e gato como o diabo, vai entrar por aquela porta
bufando e rosnando como um cão raivoso. Não tenha medo, é inofensivo.
Quase. Bom, tenha em mente que ele não vai morder você, eu prometo!
Normalmente eu diria para não confiar nas minhas promessas, não sou boa
com elas, mas, dessa vez, pode confiar. Só dessa vez.
Confusa, tento me concentrar na criança, que é a coisinha mais
bonitinha do mundo, com cabelos muito escuros e um sorriso travesso. Seus
olhos oceânicos me encaram cheios de curiosidade, e a mão pequena vem
direto para os botões grandes do meu vestido.
A mulher corre para uma segunda porta do cômodo, que percebo
tardiamente se tratar de um escritório, já que estava ocupada demais me
deixando levar pela ousadia de um certo advogado que tem o péssimo
hábito de acabar com a minha noção de tempo e espaço. É o que acontece
quando a gente começa a se encantar por pais bonitos e solteiros por aí.
Quer dizer, ele é solteiro, não é?
Ah, não, Anastasia! Era só o que faltava, se envolver com um
homem comprometido.
Envolver?
O que? Não tem ninguém se envolvendo!
Solto uma risada nervosa que atrai a atenção de Andrei. Ele me
encara, erguendo a sobrancelha, os cantos dos lábios retesados na tentativa
de suprimir um sorriso.
— A questão é — a mulher volta a falar, salvando-me do olhar
curioso de Andrei. — Diga que não me viu e não faz a menor ideia de onde
estou. Combinado? Obrigada. — Ao abrir a porta, ela para e lança um olhar
ameaçador para ele. — Não me entregue!
Assim que ela desaparece, a outra porta se abre, revelando um
homem que imediatamente associo como sendo um dos irmãos de Andrei.
Os dois são cópias quase perfeitas um do outro, da altura intimidante ao
desenho anguloso nos rostos bonitos. Ele é mais velho, seus traços são mais
rígidos, e, pela forma como parece prestes a assassinar alguém, diria que se
encaixa nas características descritas pela mulher.
Chego a me sentir desconcertada na presença dos dois, que ocupam
toda a sala só com a força de suas aparências divinas. Eles são lindos,
impressionantes, e poderiam estar na capa de qualquer revista como
modelos, mas é impossível não se amedrontar. O poder que emana deles
não está ali em vão, é um aviso de que estão acostumados a observar o
mundo de cima.
— Onde ela está? — pergunta, olhando para Andrei. O bebê reage
ao som estrondoso da sua voz, esticando os braços gordinhos para o
homem, que relaxa na mesma hora e o pega em seu colo.
— Aconteceu alguma coisa? — Andrei pergunta ao irmão,
aproximando-se de mim.
— Ela quer me matar — explica, caminhando pelo escritório. Ele
vai até uma das duas mesas que há no cômodo e se inclina para olhar
embaixo. — Se encontrá-la, diga para colocar veneno na minha comida, por
favor? Assim eu vou morrer bem mais rápido. — O menininho em seus
braços solta uma sequência de resmungos e risadas com os movimentos
bruscos do homem. — Você ri, não é? Sua mãe não tem o menor juízo, meu
filho.
— Filho? — digo no calor do momento. — Eu pensei que... —
Volto-me para Andrei, que tem os olhos intrusivos sobre mim. Seguro a
minha língua, de repente arrependida por ter aberto a boca. — Nada não.
— Esse é Vladimir, meu irmão. — Andrei nos apresenta, ainda meio
desconfiado. — E meu sobrinho, Kolya.
Sobrinho.
So-bri-nho.
— É você a nova professora de música? — Vladimir pergunta,
balançando o corpo de um lado para o outro. Há certa discrepância em ver
um homenzarrão forte, com cara de poucos amigos e vestido com um terno
elegante, embalando uma criança super fofa.
Não respondo à sua pergunta, esperando que Andrei se antecipe e
explique a minha situação, mas ele não o faz. Um sabor amargo me vem à
boca. Inconscientemente, ainda não estou livre de Yerik. Ao lado dele, eu
tinha medo de dizer coisas que o desagradassem e deixava que falasse por
mim.
Ele continua comigo, como uma sombra.
— Sim — digo, antes que o silêncio se torne constrangedor. — Quer
dizer, provavelmente. Andrei me trouxe primeiro para conhecer o abrigo.
— Ele trouxe você? — Vladimir olha para o irmão de um jeito
estranho. — Interessante. Espero que a visita tenha sido do seu agrado e que
aceite a vaga. Lara vai gostar de saber que tem uma coisa a menos para
resolver. Com tantas responsabilidades, ela tem um hábito terrível de se
sobrecarregar.
Sinto-me intimada a não recusar o emprego. Vladimir, diferente de
Andrei, é mais duro em suas palavras e não tenta me persuadir. É mais
como uma ordem.
Escuto Andrei rindo ao meu lado.
— É tudo muito impressionante — consigo dizer sem gaguejar. —
Então eu não tenho intenção de recusar. O projeto é maravilhoso e, pelo
pouco que Andrei me falou sobre a sua cunhada, pude ver como o carinho
que sente por ela é especial. Deve ser uma mulher incrível e não vejo a hora
de conhecê-la pessoalmente.
Andrei respira fundo. Um misto de surpresa e orgulho envolve seu
olhar e eu sinto — absurdamente — saudades dele, daquela mão firme
acomodada na minha cintura como se fosse seu lugar de direito. Saudades
de um homem que está tão próximo de mim que bastaria eu me inclinar um
pouco para sentir o seu toque.
Mas não tenho coragem.
— Que ótimo. Lara realmente é uma mulher sem precedentes, uma
verdadeira heroína viciada em trabalho. — Vladimir franze o cenho na
direção da porta por onde a mulher passou para se esconder. — Agora eu
realmente preciso ir. Uma pena não ter encontrado sua mãe, meu filho. O
que vamos fazer com ela, hein? — Ele vira a orelha para o bebê, fingindo
escutar. — O que? Ah, sim. Cancelar a viagem para a ilha no próximo final
de semana? Mas que ótima ideia!
— Você não seria louco! — Ela grita, entregando seu esconderijo,
mas não vem ao nosso encontro.
— Ah, eu seria, sim! — Ele esbraveja, voltando a se irritar. — Ou
você já esqueceu com quem se casou? — Dessa vez, ela não responde, mas
conseguimos ouvir sua risada. Ele suspira, encarando a porta
profundamente, talvez cogitando derrubá-la ou algo do tipo. — Nós ainda
vamos ter essa conversa, em casa, está me ouvindo? Não pense que vai se
livrar tão fácil!
— Amo você, lembre-se disso! — ela grita, inesperadamente,
deixando-me confusa. Pensei que estivessem brigando. — Adios, Kolya.
— Amo você também, Corazón. — Vladimir revira os olhos e se
afasta com passos largos até a porta de saída do escritório, levando o bebê
Nikolai consigo. Ao passar por Andrei, pergunta: — Já se encontrou com
Ivan?
— Não o vejo há alguns dias, por quê? — Andrei cruza os braços,
franzindo o cenho.
Vladimir pisca vagarosamente, encarando o irmão, e uma rápida
mudança em sua expressão o deixa com o semblante sardônico. Um longo
minuto se passa enquanto ele pensa no que dizer. Por fim, recorre a um
sorriso perverso e responde:
— Boa sorte.
Vladimir sai antes que Andrei possa questionar o significado
daquelas palavras, mas noto seu desconforto com a saída estratégica do
outro. Continua encarando a porta, até que sua cunhada enfim reaparece,
passando a cabeça por uma fresta entreaberta na porta.
— Ele já foi? — indaga, olhando ao redor.
— Sim, acabou de sair — digo, atordoada.
— Serena, nós queremos saber o que foi isso? — Andrei se volta
para a cunhada, e imagino escutar uma suave alteração em seu tom de voz,
uma ou duas notas mais roucas, porém, um telefone sobre a mesa começa a
tocar.
Olhamos os três ao mesmo tempo para o aparelho, mas ninguém se
prontifica a atender.
— É o Roman — Serena diz de maneira lamentosa, batendo os
cílios.
— O que você fez de tão grave para perturbar o Vladimir e o Roman
ao mesmo tempo? — Agora eu tenho certeza de que Andrei está
preocupado, seu semblante controlado se torna um pouco mais sombrio,
deixando-o ainda mais parecido com o irmão.
Parecido com o mesmo Andrei que me abordou no meio da
madrugada, mais perspicaz e infinitamente audacioso.
— Uma tatuagem, um morceguinho lindo em um lugar que o seu
irmão gosta muito. — Serena coloca as mãos fechadas na cintura,
empinando o nariz. — E o Roman resolveu ficar do lado do meu marido,
dizendo que eu não deveria ter ido sozinha ao estúdio, porque é perigoso e
toda aquela bobagem. — Ela aponta o dedo indicador para Andrei,
balançando-o no ar. — Pare de me julgar.
— Eu não disse nada.
Ele não parece nada feliz com o que acaba de ouvir.
— Mas está pensando! — Serena resmunga. — Na verdade, vocês
são todos iguais, sabia? — Ela desiste de argumentar com Andrei e se
concentra em mim, apontando para o telefone insistente. — Pode atender?
Não confio nele para me acobertar. Diga que não estou.
Concordo com seu pedido apenas por não ter coragem de negar.
Andrei não faz nenhuma objeção quando me aproximo do aparelho e o
retiro do gancho, trazendo-o até meu ouvido.
— Sim? — atendo, receosa.
— Quem é? — A voz masculina chega aos meus ouvidos, parecida
com um rosnado. Sei que Roman também é irmão de Andrei, mas, a julgar
pela rispidez, eu diria que está tão insatisfeito quanto Vladimir.
— Ana — respondo, sentindo os olhos atentos de Andrei fixos em
mim, escutando tudo o que digo.
Há uma pequena mudança em sua postura, um leve inclinar de
pescoço que faz cada cantinho da minha pele se sentir observado.
— Ana, quem? — questiona Roman com impaciência. Uma música
alta abafa sua voz, uma cacofonia frenética de heavy metal que fere meus
ouvidos.
— Anas... — atrapalho-me. — Só Ana está bom.
— Tudo bem, Ana só Ana, por acaso você pode passar o telefone
para a louca da minha cunhada? A senhora Serena Volkiova? — Ele fala
alto por cima da música barulhenta. — Espera um momento, não estou
escutando porra nenhuma. — O som perde intensidade, sua voz distante
ecoa através do telefone, conversando com alguém em italiano.
Brigando com alguém, para ser exata. Tenho a certeza de escutar as
palavras cazzo e stronzo sendo gritadas para outra pessoa. — Pronto, onde
estávamos?
Serena nega veemente com a cabeça o tempo todo, fazendo sinais
com as mãos de que devo insistir na mentira.
Andrei para diante de mim, as mãos perdidas dentro dos bolsos. Está
sério, concentrado na conversa que estou tendo com seu irmão, como se
desejasse escutar o que ele está me dizendo no outro lado da linha apenas
com a força do seu olhar.
— Ela está indisponível, sinto muito, gostaria de deixar algum
recado? — Roman fica em silêncio. Não fosse sua respiração compassada,
eu encerraria a ligação. — Senhor Volkiov?
— Desculpe. — Ele solta uma risada arrogante — É que sua voz é
maravilhosa, alguém já lhe disse isso? — Surpresa com a mudança de
assunto, sinto o ardor do constrangimento caminhar sorrateiramente pela
minha pele, queimando minhas clavículas e o alto das minhas bochechas.
Em um reflexo, busco por Andrei com o meu olhar. Ele se inclina para
frente com as pálpebras semicerradas, atento à minha reação. — Você não é
nossa funcionária, é? Porque, nesse caso, eu teria que retirar o que acabei
de dizer, já que meu irmão advogado arrancaria as minhas bolas. Ele é
todo certinho, metido a salvador da pátria, mas odeia quando eu sou
processado e sabe ser um belo filho da puta quando quer.
— Ele não é nada disso — digo, meio indignada. — E não sou uma
funcionária de vocês por enquanto.
Sinto o telefone ser puxado da minha mão.
— Roman, o que você quer saber? — Andrei diz, irritado, escutando
o irmão. — Não é da sua conta. Sabe com o que deveria se preocupar? As
negociações em Florença, como elas estão? — Sua pergunta faz Serena
engasgar-se com uma gargalhada. — Não, não. Inclusive, foi bom você ter
ligado, precisaremos que fique por aí mais uma ou duas semanas. — Outra
pausa, mais longa. — Mas a Itália é um país adorável, você logo se
acostuma. — Andrei afasta o telefone do ouvido e encara o aparelho. —
Desligou, será alguma coisa que eu disse?
— Você é perverso, Andrei Volkiov. Um anjo, mas perverso! —
Serena meneia a cabeça negativamente, mas não disfarça o alívio em se
livrar do cunhado. Ela dá a volta na mesa e se joga na cadeira. — O Roman
odeia a Itália com toda a força do coração — explica para mim.
— Eu amo Florença — comento. — Uma vez Zayn e eu fomos
visitar a Vivoli, na Piazza della Signoria, e eu acho que nunca experimentei
um gelato tão saboroso na vida.
Dizer o nome do meu irmão faz meu coração doer um pouquinho. A
lembrança é antiga, de um tempo em que nossos pais ainda não tinham
injetado tanto veneno nas veias de Zayn. Akira foi proibido de viajar
conosco naquele ano depois de ser expulso da escola por incendiar a sala do
diretor, mas conseguimos nos divertir um pouco apesar das saudades dele.
Depois do que aconteceu no meu aniversário de oito anos, nunca
mais fomos os mesmos, mas eu ainda os amo. Odeio saber que Yerik já
deve ter contado a eles sobre o meu desaparecimento e duvido que tenha
incluído a parte em que me bateu.
Todas as vezes que me bateu.
É melhor assim, de qualquer forma. Sou um fardo que os dois
tiveram que carregar por tempo demais. Quanto menos souberem, melhor.
Andrei faz uma expressão esquisita, o sorriso morrendo em seu
rosto. Ele vira de costas, afastando-se para recolocar o aparelho sobre a
mesa, bate o gancho contra a base do telefone e, pela primeira vez desde
que deixamos o apartamento, evita meu olhar.
Eu disse algo de errado?
Algo estranho?
— Andrei, antes que eu me esqueça... — Serena começa a revirar
papéis e pastas sobre a mesa. — Um homem esteve procurando por você
três vezes essa semana. Rapaz bonito, cara de bonzinho, pinta de
milionário. Bem bonitão. — Ela se levanta e vai até a outra mesa do
escritório, maior e mais organizada. — A Lara anotou o nome dele em
algum lugar. Ele disse que ajudou a empresa durante aquela crise, sabe?
Parece que é seu amigo ou qualquer coisa assim. Estudaram juntos, pelo
que entendi. Falando em Lara, já encontrou com o Ivan? Ele não está nem
um pouco feliz com você.
— E por quê? — Andrei pergunta, olhando-a de soslaio enquanto
seus dedos dedilham a madeira da mesa.
— Lara está preocupada. Você anda esquisito, sabe disso, né? E,
qualquer coisa que deixe ela minimamente aflita, vai deixar o seu irmão
puto. Todos nós sabemos que o Ivan puto é uma coisa quase insuportável de
lidar, porque, além de teimoso — Serena se curva para explorar as gavetas
próximas ao chão — ele também não tem lá muito juízo e vai ligar um
grande foda-se para o bom senso. Resumindo, você está ferrado.
— Vou conversar com ela depois. — Andrei suspira, apoiando as
costas na mesa. Cruza os braços sobre o peito e assiste a busca da cunhada.
— Achei! — Serena grita, balançando um pedaço de papel no alto e
entregando-o para Andrei em seguida. — É esse o homem.
Ele lê o que está escrito na folha, suas sobrancelhas se juntam como
sempre acontece quando algo o deixa intrigado.
Serena volta para sua mesa enquanto Andrei vem até mim. Meu
corpo fica tenso, em alerta, minha mente fervilhando com uma repetição
desenfreada de todas as minhas ações. Tento rever cada um dos meus
passos desde que chegamos para ter certeza de que eu não disse nada que
pudesse incomodá-lo.
Eu devo ter feito algo...
— Ana, preciso fazer uma ligação, pode me esperar aqui? —
pergunta, tocando meu queixo sem se importar com Serena, no que ela pode
pensar.
Concordo, atordoada. Ele está bravo ou não? Jurava que o havia
irritado antes, mas deve ter sido coisa da minha cabeça fantasiosa. Andrei
faz um aceno para Serena e sai do escritório, com o celular a caminho do
ouvido.
— Estão saindo? — ela pergunta assim que Andrei fecha a porta.
— O que? — Pega de surpresa, minha voz não exprime muita
convicção quando respondo: — Não, nós não somos assim.
Um casal.
— Tudo bem, pode me contar, eu sou ótima em guardar segredos
por um ou dois dias.
— Sinto muito, mas é verdade. Não temos esse tipo de relação.
— Que pena. Tatiana ia gostar de saber que ele e aquela mulher não
estão mais juntos. Quer dizer, imagino que não, já que, bem, você está aqui
etcetera. Você tem sorte de eu não ser a minha sogra, aí sim vocês dois
estariam ferrados.
Então, há alguém.
Talvez seja por ela que Andrei está sofrendo tanto. Claro que um
homem como ele teria uma pessoa importante em sua vida. Será que ela
sabe que estamos morando juntos? Andrei nunca a mencionou, mas ele
também não me deve satisfações.
E eu aqui, como uma boba, pensando que ele estava me provocando.
Flertando comigo! Que vergonha.
— Andrei tem sido muito bom para mim, mas somos apenas amigos
— esclareço, não querendo colocar Andrei em um grande mal-entendido.
Afinal, não existe nada entre nós, e nunca vai existir.
Ele escolhe justo este momento para retornar, mas não consigo
encará-lo. Sinto um ardor na garganta, uma vontade repentina de chorar que
não entendo.
— Você tem namorado? — Serena pergunta de supetão. Arregalo os
olhos com tanto espanto que sinto medo de saltarem para fora do meu rosto.
— E-eu… — gaguejo, envergonhada, pensando no que responder,
em como explicar a confusão que minha vida se tornou.
— Estamos indo agora, Serena. — Andrei faz o impensável e se
coloca ao meu lado, os dedos firmes me puxando para perto dele. Eu me
deixo levar, porque, sinceramente, prefiro que me salve a encarar o
interrogatório de sua cunhada. — Ana já tem muito em que pensar.
— Tudo bem, o que eu perdi? — Serena estrala os dedos, chamando
nossa atenção. — Olha só, tem muito apelo sexual rolando nessa sala. Isso
não está me fazendo muito bem, já que eu e meu marido lindamente irritado
só nos veremos de noite e estou começando a ficar com inveja de vocês
dois. Então podem ir embora, eu realmente preciso dormir um pouco. —
Serena se sobressalta, rindo alto. — Trabalhar! Eu quis dizer que preciso
trabalhar um pouco.
— Não é nada disso — tento explicar. — Andrei, me ajude.
Ele me ignora, balança a mão para a cunhada, que já está distraída
com o notebook aberto sobre sua mesa.
— Não vai adiantar, é tarde demais, ela não vai ouvir mais nada.
Ele me guia para fora do escritório e retornamos para o corredor
vazio, cujo chão é revestido com uma bonita tapeçaria de cores neutras.
Conto mais quatro portas fechadas à frente, mas não perco meu tempo
reparando nos detalhes. Aliás, não consigo fazer isso quando tenho um
homem enigmático e imprevisível ao meu lado.
Não reparo em nada além dele.
— E você não se incomoda? Ela vai pensar que nós dois... — Dou
alguns passos em direção à escada, mas Andrei é mais rápido e se coloca na
minha frente, um muro esguio de músculos bem distribuídos sob o terno
charmoso. — Temos alguma coisa.
— Que tipo de coisa? — Lá está seu sorriso matador de neurônios,
uma fusão perfeita entre inocência e indecência.
Não consigo acompanhar, é como se ele tivesse duas
personalidades: aquela que todos conhecem e admiram, regada a carisma e
educação, e outra um tanto perversa e sorrateira.
— Você sabe que tipo de coisa — murmuro, tentando me manter
firme.
— Eu sei? — Ele dá um passo para mais perto, obrigando-me a
recuar dois.
— Pode parar de responder minhas perguntas com outras perguntas?
— peço, começando a esquecer como funciona todo o processo de
respiração.
— Força do hábito, isso incomoda você?
Outro passo.
Continuo recuando, ele continua avançando.
O que deu nele?
— Está implicando comigo — concluo, minhas costas batem na
parede, a consciência de que estou encurralada golpeia o interior da minha
cabeça.
Andrei, ao contrário, não para de sorrir e não vejo nada de inocente
nos lábios grandes, nos dentes perfeitos e no olhar transbordando satisfação.
Não apenas implicando, mas me testando, provocando-me e
enlouquecendo.
— Sim, estou — confessa, soando sincero e sem um pingo de
remorso na voz. — Em minha defesa, implicar com você é fascinante. —
Ele apoia o antebraço sobre a minha cabeça, fazendo seu rosto ficar muito
perto do meu, atraindo meus olhos para os dele, meu corpo para o seu. —
Não consigo entender você, suas ações, seus pensamentos.
— Por que você gosta de adivinhar o que as pessoas estão
pensando? — sussurro, encarando-o, mas seus olhos estão perdidos dos
meus, interessados nos meus lábios enquanto falo.
Ele tem alguém, digo a mim mesma em pensamentos, só está
brincando comigo, não confunda as coisas, Anastasia.
— Não é questão de querer. Estudei ciência comportamental para
aperfeiçoar o meu desempenho nos tribunais, minha capacidade de
argumentação. Não é uma ciência precisa na maior parte do tempo, no
entanto, com ela eu consigo fazer suposições quase certeiras. Mas, em você
eu não consigo — faz uma pausa, seus olhos brilham — entrar. E eu quero
demais. Você está fechada para o mundo, com toda a razão, mas sou um
homem paciente. — Ele encosta a ponta de seu dedo indicador na minha
testa. — E não costumo desistir. Um dia ainda vou descobrir o que esconde
aqui dentro.
— Não restou muito para ver — lamento, apreciando seu carinho, a
maneira como não se priva de fazer o que deseja, o fato de eu não me sentir
acuada ou julgada perto dele. No dia que ele souber, será o nosso fim. O fim
de seja lá o que estamos fazendo. — E no que você está pensando?
Nela?
O corpo de Andrei fica tenso, eu sinto os braços se retesarem, a
respiração mais pesada. Ele se afasta alguns centímetros, poucos, mas
suficiente para que seu calor me abandone. Nébula densa envolve seus
olhos, o citrino se transformando em preto.
Eu estava certa, alguma coisa o deixou irritado, mas ele é um mestre
na arte de dissimular a verdade.
— Florença — diz, severo, o nome da cidade soando mais como
uma blasfêmia.
Inclino o rosto, pensando.
— Como assim? — pergunto. — Também não gosta da Itália como
seu irmão?
Andrei arqueia as sobrancelhas.
— Você não faz ideia? — Nego, confusa e curiosa. Minha resposta,
por alguma razão, o faz suspirar. Ele segura minha mão, entrelaça nossos
dedos e sorri. — Não importa agora, vamos apenas voltar para casa.
10
Anastasia
VOLTO PARA O prédio depois de dar uma volta inteira no quarteirão.
Sozinha. Ainda estou me acostumando a sair sem Andrei, não posso
continuar me escondendo para sempre. De pouco em pouco, preciso agarrar
a minha liberdade com as minhas próprias mãos. Mas não é tão simples.
Quando estou ao lado dele, eu me sinto segura, protegida de um mundo
assustador.
Ele é confortável e aconchegante, como um agasalho no inverno, e
eu gosto da sensação de andar ao seu lado, conversar com ele ou
simplesmente ouvir seus passos ecoando pela casa no meio da madrugada.
Desde a nossa visita ao abrigo, alguma coisa mudou.
Às vezes, Andrei se comporta como se quisesse me fazer uma
pergunta, outras, sou eu quem preciso me controlar para não tocar naquele
assunto — sua mulher.
Mesmo sem querer, por causa do que Serena me contou, acabei
prestando ainda mais atenção nele nos últimos dias, e percebi que recebe
ligações com frequência, principalmente no meio da noite. Várias vezes já o
vi recusando essas ligações sem atender nenhuma, mas não posso fazer isso
comigo, criar um tipo de esperança só porque ele me estendeu a mão
quando eu não tinha mais ninguém.
No fim, somos parecidos.
O elevador está quase se fechando quando escuto um grito que
afasta meus devaneios.
— Por favor, espere! — Instintivamente, seguro uma das portas a
tempo, e uma mulher carregando uma pilha de caixas entra depressa. —
Obrigada, você salvou a minha vida — ela diz com dificuldade, ofegando
com todo o peso em seus braços. — Pode apertar o número oito?
— Claro. — Faço como ela pede e seleciono seu andar primeiro, um
abaixo do meu, e o elevador começa a se mover. Olhando de soslaio, vejo
que as caixas são grandes e sinto pena da mulher, uma jovem de cabelos
curtos e loiros que aparenta não ter mais do que a minha idade. — Quer
ajuda com isso?
Ela sorri para mim e diz em uma voz culposa:
— Não quero abusar da sua boa vontade.
— Não me importo. — Sorrio de volta e me prontifico a pegar as
duas caixas de cima. Como eu suspeitava, são bem pesadas, não sei como
ela aguentou carregar tantas sozinha.
— Obrigada. — Suspira de alívio. — Meu noivo deveria estar me
ajudando hoje, mas ele teve que lidar com alguns imprevistos. Nos
mudamos na semana passada e eu ainda não consegui colocar tudo em
ordem. Mas não estou reclamando, ele é apenas um homem muito ocupado.
Na maior parte do tempo eu juro que faz todas as minhas vontades.
Ela é bem falante, ao contrário de mim, que não sei como manter
uma conversa longa e casual com uma vizinha.
— Humm, que bom.
Felizmente, ela não se importa com minha falta de articulação. Falar
sozinha com pessoas desconhecidas é uma habilidade que preciso trabalhar,
não posso depender de Andrei para sempre. Desde a nossa visita ao abrigo,
ele tem andado estranho e distante, então não posso descartar a
possibilidade de que esteja se cansando de mim, mesmo que nossa amizade
tenha se tornado muito preciosa. No fim das contas, eu sou um incômodo.
— E você? — ela pergunta, despertando-me dos pensamentos
deprimentes. — Mora aqui há muito tempo?
Nego com a cabeça.
— Não muito, pouco mais de um mês.
— Mesmo? — Ela ergue as sobrancelhas. — E você vive sozinha?
— Ah, bem… — Dizer que vivo com um amigo pode soar estranho,
mas inventar uma desculpa também é arriscado. Não quero gerar uma
situação complicada para Andrei no futuro. — Estou morando com uma
pessoa.
— Um namorado? — ela deduz por conta própria, animada com a
conclusão. Não espera que eu explique e continua falando. — Então, temos
mais uma coisa em comum. Desculpe ser tão intrometida, mas eu espero
que a gente possa se dar bem, já que somos quase vizinhas.
Olhando com mais atenção, ela é uma mulher que exala felicidade, o
completo oposto de mim. Seu corte de cabelo moderno na altura dos
ombros e o casaco de veludo amarelo dão a ela uma aparência jovial e
despreocupada. Uma simples garota apaixonada, vivendo uma vida normal,
sem precisar se esconder de ninguém.
Não me orgulho de admitir, mas eu a invejo um pouco.
— Claro — digo por educação, sem muitas expectativas. Seria bom
ter uma amiga, porém, em algum momento, serei obrigada a encarar a
realidade e me despedir de Andrei e nosso apartamento.
O apartamento dele, corrijo-me.
As portas do elevador abrem no andar da mulher e eu a acompanho
em silêncio. Por sorte, não precisamos andar muito para chegar ao destino.
Ela se atrapalha com as chaves, mas consegue destrancar a porta
eventualmente.
— Pode colocar em cima daquela mesa, por favor? — pede,
saltitando para dentro.
No entanto, continuo parada. Não me sinto confortável entrando na
casa de alguém que acabei de conhecer e cujo nome ainda não me foi
apresentado. Ela para no centro de sua sala simples e quase vazia, exceto
por um sofá com design antigo, uma mesa de centro e algumas caixas
empilhadas em um canto, e me olha com uma expressão confusa.
— Ah, os sapatos… — digo, agarrando-me à primeira desculpa que
consigo pensar.
— Não tem problema, pode entrar à vontade. Como eu disse, ainda
falta muito para organizar.
Olho para trás, imaginando o quão ruim seria se eu deixasse suas
coisas na porta e saísse correndo, mas sei que estou exagerando. Se Andrei
estivesse aqui, ele daria risada da minha completa falta de confiança.
Acabo cedendo.
— Com licença, então.
Desajeitada, entro na sala de estar. Ela se desfaz de suas caixas e eu
a imito, colocando as duas sobre a mesa.
— Obrigada pela ajuda — diz, massageando os braços. — Eu até
ofereceria um café ou um chá, mas ainda não desempacotamos os
eletrodomésticos. — Suspirando, ela coloca as mãos nos quadris. — Eu sei
o que está pensando: como uma pessoa que se mudou há uma semana ainda
não tem uma casa minimamente habitável? Tenho que admitir, não sou uma
pessoa exemplar em termos domésticos, mas nunca imaginei que mudanças
dessem tanto trabalho.
Eu não estava pensando nada do tipo, afinal, não é uma questão que
eu tenha propriedade para julgar. Por ter crescido em uma família rica,
coisas banais como mudanças, limpeza e outras tarefas da casa sempre
foram delegadas aos funcionários dos meus pais.
— Você não precisa se incomodar — digo, sorrindo, agradecida por
sua consideração. — Também não posso demorar.
Andrei deve chegar a qualquer momento e ele ficará preocupado se
não me encontrar.
— Então, eu fico te devendo um jantar, o que acha disso? Quer
dizer, assim que eu tiver uma cozinha decente. Posso não ser uma boa dona
de casa, mas garanto que minha comida é ótima.
A resposta padrão sobe ligeira pela minha garganta: preciso
consultar meu marido primeiro. Mordo a minha língua com força. Não há
ninguém a quem pedir permissão. Não mais. E ela soa tão empolgada que
não consigo recusar.
— Eu adoraria…
— Ah! — Ela se sobressalta e corre até mim, agarrando minhas
duas mãos com um grande sorriso. Mesmo envergonhada e perdida com seu
excesso de energia, tento retribuir. — Esqueci de me apresentar e também
não perguntei o seu nome. Eu me chamo Yuliya, mas meus amigos me
chamam de Liya.
Contrariando meu pensamento inicial de não me envolver ou fazer
amizades, eu me pego dizendo:
— Pode me chamar de… Ana.

***

Não quero decepcionar Andrei, mas é inútil cultivar desejos


levianos sobre algo que é inevitável. No momento em que ele souber a
verdade, eu provavelmente serei descartada, afinal, é o que eu mereço. Não
importa o quanto seu olhar pareça cheio de simpatia e zelo na minha
presença, toda vez que o imagino sendo repugnante à ideia de me ter por
perto por causa da minha condição, sinto vontade de chorar.
Mas eu tenho que contar.
— Esse seu hábito de se perder em pensamentos é, ao mesmo
tempo, fascinante e preocupante.
Olho para trás bem a tempo de ver Andrei se aproximando com um
sorriso. Ele deixa sua maleta sobre o sofá no meio do caminho e se junta a
mim perto do piano, local em que estou sentada a mais de meia hora,
incapaz de apertar uma única tecla.
Ainda não me acostumei com sua beleza, e imagino se um dia serei
capaz de olhar para ele sem ficar impressionada com a robustez de seu
corpo, o rosto másculo de traços sofisticados que pode tanto expressar a paz
quanto o tormento de sua mente, e aquelas grandes mãos de dedos longos
cujo toque ficou gravado na minha memória como um carimbo feito de
ferro e fogo.
Tudo nele parece… certo.
— Sinto muito, eu estava distraída, não escutei você chegando.
Em um movimento natural, Andrei se inclina e beija a minha testa.
Está aí mais uma coisa com a qual estou tentando me acostumar: ele gosta
de contato físico. Às vezes, eu me sinto estranha e me encolho, um reflexo
automático marcado na minha alma, outras vezes, como agora, eu me
inclino na direção dele, querendo mais — algo que sempre faz seu rosto
inteiro se iluminar de satisfação.
— Por isso eu disse que fico preocupado. Se fossem ladrões
invadindo a casa, era bem capaz de roubarem todos os móveis sem você
perceber. — Não sei dizer se está brincando ou me advertindo. — Ou, pior,
poderiam roubar você.
— Pelo menos, assim, eu não causaria mais problemas a ninguém
— pondero com humor. — Principalmente para você.
Andrei não acha graça.
— Não diga isso. — Ele me encara com seriedade, a mão erguendo
meu rosto. — Nem de brincadeira.
Posso estar enganada, mas acho que vejo agonia em sua expressão,
então sorrio e me aconchego mais em sua mão para mostrar a ele que não
precisa se preocupar. No mesmo instante, ele relaxa e faz uma doce carícia
em minha bochecha, os olhos enfim se suavizando. Seus dedos descem até
o meu pescoço e perco o compasso da respiração.
Durante uma eternidade, a gente se olha por motivo nenhum, o
silêncio preenchendo os segundos, ambos paralisados e curtindo a
companhia do outro. E é a melhor sensação do mundo inteiro.
E justamente por não estar acostumada com o que é bom, que eu me
lembro de ser cuidadosa. É muito fácil esquecer que existe uma mulher em
sua vida enquanto me afogo em sentimentos que não ouso reconhecer.
Que não posso reconhecer.
Não tenho o direito.
Não mereço.
— Como foi o seu dia? — pergunto com o coração batendo na
velocidade de mil por hora.
Assumo a difícil tarefa de me afastar, pelo bem do meu próprio
coração, e me levanto. Andrei, que não esperava minha reação, abre
passagem após recolher o braço e me acompanha com um olhar intrigado,
enquanto coloco uma distância decente entre nós.
— Coisas da empresa, revisão de contratos e reuniões, nada que
valha a pena ser mencionado. — Ele se apoia no piano, fazendo uma pose
casual, mas o jeito que me observa causa um formigamento em minha
coluna. — E o seu?
— Acho que fiz amizade com uma vizinha do andar de baixo —
conto, tagarelando. Minha tentativa patética de ocupar nosso tempo com
palavras não passa despercebida, pois Andrei semicerra os olhos. — Eu
estava voltando de uma caminhada pelo bairro e a gente se esbarrou no
elevador. Ela me convidou para jantar na casa dela em algum momento dos
próximos dias.
— Isso é ótimo. — Ele se anima. — É bom que conheça pessoas
novas, se distraia um pouco e saia de casa. Eu sempre fico angustiado
quando estou na empresa, pensando em você aqui, sozinha e entediada.
Acho que só vou conseguir relaxar quando começar o seu trabalho no
abrigo.
Meu coração bobo fica agitado.
Meu cérebro dispara um alerta.
Tenho que colocar um basta.
— Andrei — digo, tremendo — nós precisamos conversar.
Ele vai me odiar.
— Eu sei. — Andrei avança um passo cauteloso, depois outro e
mais outro. Eu perco momentaneamente a fala, confusa e surpreendida. —
Não aguento mais fingir que não estou morrendo de ódio. Sei que tenho
agido estranho, e sinto muito se a deixei desconfortável. Sempre foi fácil
para mim manter os sentimentos em seus devidos lugares, mas, desde que
conheci você… — Ele suspira, agora muito perto de mim. — A verdade é
que não sou uma pessoa tão boa quanto dizem. Quando disse o nome dele
naquele dia, eu quis matá-lo com as minhas próprias mãos, enviá-lo para o
inferno por fazer você levantar tantos muros ao seu redor e me manter do
lado de fora. Desde então, é tudo em que tenho pensado.
Demoro a entender do que ele está falando, sobretudo por suas
palavras perigosas serem proferidas com uma voz calma. Um arrepio
agourento atravessa o meu corpo. Tenho certeza que eu nunca disse o nome
de Yerik em momento algum. Inclusive, gostaria de nunca mais pensar nele
ou sentir o terror constante de que me encontre e leve de mim o bebê dentro
da minha barriga que não merece crescer com aquele homem como pai.
— Zayn é meu irmão — explico, compreendendo a quem Andrei se
refere, e sou obrigada a voltar atrás na minha decisão. Se Andrei acabar em
uma situação difícil por minha causa... Não gosto nem de pensar. Quanto
menos ele souber agora, menores serão as chances de acabar em perigo.
Não é a hora certa ainda. — Zayn e Akira são meus irmãos, eles não sabem
de nada, você é o único. E não diga esse tipo de coisa, Andrei, não quero
que se envolva em problemas por minha causa.
Andrei não concorda e nem recusa o meu pedido, e sinto outro
galope em meu peito. Se continuar me tratando assim, não sei por quanto
tempo mais permanecerei imune aos seus encantos.
— Amanhã à noite jantarei com um amigo — informa, segurando a
minha mão. — Não vou convidá-la porque não vai ser divertido, ele disse
que precisa de ajuda com um processo e não quero que fique entediada.
Mas, quero levar você a um lugar especial no final da semana.
Não se iluda, Anastasia. Não pense bobagens.
— Acho melhor não — decido, odiando ser a responsável pela
decepção em seu rosto.
Mas ele não desiste. Andrei joga sujo, aposta alto, e envolve meu
corpo com o braço. Preciso morder o lábio para impedir que minha língua
confesse todo o desejo que esse seu temperamento intrometido me provoca.
Gosto quando você me toca, porque não dói.
— Conte-me o que aconteceu — ele pede, tentando-me com um
tom rastejante e sedutor. — Você tem me evitado e vou acabar
enlouquecendo, porque não consigo entender você.
— Não quero misturar as coisas — deixo escapar. — Eu sei que
você tem uma namorada, sua cunhada me contou por acaso. E tudo bem…
quer dizer, não está tudo bem, mas isso — aponto de mim para ele — não
deveria acontecer.
Andrei aperta os olhos e inspira profundamente, como se estivesse
contando de zero a dez. Quando volta a abri-los, ele me solta, mas se
mantém próximo a mim, com as duas mãos em minhas bochechas.
— Serena fala demais — reclama, bufando e rindo. — Eu não tenho
ninguém. Até pouco tempo, eu estava em um relacionamento, mas
terminamos e não foi de um jeito bom.
Preciso de um minuto inteiro para processar a informação.
— Por que não foi de um jeito bom?
Seus olhos dilatados ficam mais escuros. Arrependo-me de
perguntar assim que ele se afasta alguns passos e enfia as mãos nos bolsos.
— Digamos que nós dois temos um passado que não queremos
compartilhar — diz simplesmente. Não está bravo, nem sério ou triste, seu
olhar intenso e leve aquece meu peito como dois instrumentos distintos
quando encontram a sintonia perfeita em uma melodia. — Mas, não há
ninguém.
— Não precisa se explicar — digo, mas não consigo disfarçar meu
sorriso.
Andrei inclina o rosto para o lado com um vestígio de inocência,
mas já o conheço o suficiente para saber que se trata de uma fachada. Ainda
assim, nada me prepara para o que ele diz a seguir.
— Sim, eu preciso. Porque tenho desejado você e não quero que
pense que sou esse tipo de homem quando eu decidir te beijar.
11
Andrei
PRECISEI UTILIZAR TODA a minha sensatez para não beijar Ana como
meu corpo mandava: imprensada contra o sofá da nossa casa, a curva
exótica da sua cintura fina completamente à mercê dos meus toques, seus
lábios e todos os suspiros que lhe escapassem sendo cativados pela minha
boca.
Não me lembro de já ter experimentado uma sensação semelhante
ao que essa mulher me desperta quando estamos juntos. Não é apenas
desejo bruto e inconsequente, vontade de sentir seu corpo embaixo do meu,
de tocar suas curvas e assistir enquanto todos os pelos do seu corpo se
arrepiam ao ter meus dedos explorando a pele nua, é algo mais… ganância,
cobiça, ambição, a fonte d’água para o homem com sede, a única sombra
para se esconder em um dia de sol escaldante.
Independente de quantas vezes eu repita para mim mesmo que
preciso ser mais cuidadoso, ir mais devagar, que ela está quebrada e com
medo, minha necessidade de tomá-la para mim e protegê-la de qualquer
coisa que possa colocar em risco a sua felicidade só tem aumentado.
Provocar Ana e esperar por suas reações se tornou o meu vício
preferido e meus olhos a procuram de modo automático, como se
magnetizados por sua presença.
Eu me lembro do que fiz na madrugada daquele dia, quando a levei
ao abrigo. Não estava bêbado o bastante para perder a noção das minhas
ações, acho que nem todo álcool do mundo seria suficiente para me fazer
esquecer o arquejo gostoso que soltou ao me flagrar na cozinha.
Eu quis testá-la, desejei ser surpreendido por mais uma de suas atitudes
imprevisíveis, e consegui.
Só não esperava ser testado no processo também.
Merda.
Meu autocontrole tem sido fodidamente testado e vencido desde o
segundo em que meus olhos pousaram sobre ela. É uma loucura que eu
esteja obcecado por alguém que jurei proteger.
Nunca pensei que seu rosto inocente, somado com um pouquinho de
impertinência e expectativa, pudesse mexer tanto com a minha imaginação.
Que eu conseguisse pensar em fazer tantas coisas com ela em uma mísera
fração de segundos. Porque, porra, eu realmente a corrompi com a minha
mente, e não houve nada de puro em meus pensamentos. Nem naquela
noite, nem em todas as outras desde então.
Muito menos ontem, quando assumi a minha vontade dela.
Consigo ver seus ombros se movimentando de um lado para o outro
enquanto seu corpo acompanha as notas do piano. Quando Ana não está
comigo, o instrumento é seu companheiro e, nesses momentos, ela esquece
do mundo — exatamente quando mais amo a assistir, talvez o único
momento em que realmente enxergo e escuto seus sentimentos verdadeiros.
Imagino que mágica ela faria se tivesse um violino em mãos, já que é a sua
verdadeira especialidade.
Graças à presença de Ana, quase não tenho pensado no passado, em
Evgenia e tudo o que passamos, o que perdemos. Não lutar contra o que
estou sentindo por uma mulher como Ana, cheia de mistérios e segredos, é
um risco. Se fosse qualquer outro homem no meu lugar, eu seria o primeiro
a aconselhá-lo contra um envolvimento, mas eu não sou qualquer homem, e
estou acostumado a correr riscos.
E vencê-los.
Assim que entro no campo de visão de Ana, seus dedos perdem
velocidade, trazendo um silêncio confortável ao ambiente. Ela sorri,
examinando meu blazer e cachecol com a mesma minúcia que uso para
apreciar seu vestido confortável que se molda ao corpo curvilíneo e traz à
tona uma dualidade tortuosa entre pecado e pureza.
— Já está indo? — pergunta, levantando-se. Ela se aproxima de
mim, com os braços atrás do corpo e um rosto cheio de ansiedade.
— Posso ficar se quiser — ofereço, desejando que faça exatamente
isso.
Há uma parte egoísta dentro de mim que gostaria de nos isolar neste
apartamento pelo tempo necessário para que todos os nossos problemas
desapareçam.
— Não quero ser culpada por prejudicar a sua relação com seus
clientes. Aceitei o convite para jantar com Yuliya hoje, depois vou praticar
um pouco de piano. Mas não sou uma criança, consigo ficar uma noite
sozinha sem supervisão.
— Tem certeza? — insisto. Ana pode não ser uma criança, mas é tão
delicada quanto uma.
— Sim, e também não quero ser um empecilho entre você e a sua
família. Já conversou com a sua cunhada? Aquela que estava preocupada
com você? Talvez estejam sentindo a sua falta, já que tem passado a maior
parte do tempo comigo.
Ana começa a caminhar pela sala. Sem que eu consiga me conter,
imito seu trajeto, repetindo seus passos e mantendo a menor distância
possível entre nós. Ela não sabe que sou eu quem não aguenta ficar longe
dela nem por um segundo.
Hoje, em especial, será uma tortura deixá-la, pois minha mente está
perdida em hipóteses sobre o que ela tem pensado a respeito da declaração
que fiz sobre a minha vontade — e intenção — de beijá-la.
Ela não disse que queria.
Mas também não disse que não queria.
— Não, ainda não — respondo, recuperando-me do devaneio ao ver
sua expressão preocupada. Um sabor amargo invade a minha boca. Ana se
apoia na janela, seus cabelos estão soltos e arranjados em bonitas ondas
sobre os braços. Mesmo atrasado, coisa que repugno, ainda não estou
pronto para deixá-la, então continuo falando: — Mas não precisa ficar
preocupada. Antes de você chegar, eu já tinha me afastado deles para lidar
com coisas pessoais, então é uma falha exclusivamente minha. Ivan está
certo em ficar com raiva, Lara é boa demais e não tenho sido um bom
amigo.
— Você fala dela de um jeito muito bonito.
Apoio-me na janela ao lado de Ana, encarando a rua simples no lado
de fora.
— Quer ouvir um segredo problemático? — pergunto, evitando o
relógio. Só quero conversar mais e mais com ela, fazer com que confie em
mim mais rápido, mesmo que eu precise confessar verdades que me
machucam.
Com o canto dos olhos, vejo seu balançar tímido de cabeça.
— Segredos problemáticos são a minha especialidade — brinca, e
eu gosto que seja capaz de fazer piada sobre a própria condição, por mais
triste que seja.
— Minha ex-namorada sentia muito ciúmes da Lara. Ficamos juntos
por dois anos e eu me sentia muito mal quando o nome da minha cunhada
aparecia no meio das nossas discussões.
Faço uma pausa, absorvendo aquela pontadinha de culpa que
sempre arranha meu peito quando me lembro do passado.
— Lara teve uma vida difícil — prossigo. — Viveu o inferno e eu
poderia ter evitado anos de sofrimento se tivesse continuado ao lado dela.
Se não fosse por Ivan, não sei o que teria acontecido. Nós dois somos muito
próximos, temos a mesma idade e crescemos juntos, então ela é como uma
irmã para mim, mas Evgenia nunca entendeu assim.
Espero que diga alguma coisa, que faça um comentário de consolo
ou pergunte algo. Qualquer coisa. Sinto-me ansioso pela sua opinião.
Acho... Tenho certeza de que nunca conversei sobre o meu relacionamento
com ninguém.
— Então, ela se chamava Evgenia? — pergunta, brincando com uma
lasca de tinta da janela. — Nós a odiamos? Só para eu saber.
— Não. — A pergunta me faz rir. — Quer dizer, eu não a odeio.
Você pode odiá-la se quiser. — Dou um passo para o lado para que nossos
braços se toquem.
Ana sorri, algumas ruguinhas se formam nas laterais dos seus olhos
e fico com vontade de beijá-las.
— Talvez seja errado odiar alguém que eu nem conheço — pondera,
fingindo pensar seriamente no assunto. — Deve ser algum tipo de pecado.
Se for assim, então estou condenado ao inferno, porque odeio o
homem que feriu você como jamais imaginei que poderia odiar uma
pessoa.
— Já percebeu como estou sempre em desvantagem quando está
envolvida? Estou sempre contando coisas sobre a minha vida. Acho que me
deve um segredo problemático agora. — Viro de lado e cruzo os braços,
desafiando-a a contestar.
— Por quê? — Suas sobrancelhas franzem sobre os olhos castanhos
desconfiados.
— Nossa relação não está equilibrada — digo, persuasivo, usando
minha veia jurídica para convencê-la. — Eu te contei um segredo, então
você também deve me contar um ou eu vou me sentir usado.
— Acho que você fez isso de propósito para descobrir um segredo
meu — contrapõe, posicionando-se de frente para mim, com os braços
também cruzados abaixo dos seios tão perfeitos, e fartos e…
Pare de olhar.
— Acho que você está certa. Mas continua me devendo um segredo.
O sorriso dela aumenta, os lábios delicados desenham dois arcos no
rosto corado. Ana volta a se concentrar naquela lasquinha de tinta solta da
janela. Está aí outra coisa que eu jamais imaginei que aconteceria comigo:
sentir inveja de uma lasquinha de tinta em uma janela velha.
Acho que vou mandar reformar o apartamento em breve.
— Há uma coisa que eu preciso contar. — A nota de medo na voz
dela parte o meu coração. — Mas estou com medo de como vai reagir.
Uma briga interna se inicia dentro de mim. Fico indeciso sobre
como proceder em seguida. Pressionar ou recuar? Mas a conclusão é óbvia:
se ela teme a minha reação, é porque preciso ser mais paciente, além do
mais, não confio em mim para ouvir mais nada sobre aquele homem
enquanto minhas mãos estão atadas.
— Não precisa confessar um crime — digo, mantendo a conversa
humorada. Coloco uma mecha do seu cabelo atrás da orelha pelo simples
prazer de tocá-la. — Me fale um pouco sobre a sua família.
Minha sugestão a faz exalar sonoramente, aliviada.
Devagar, Andrei, devagar.
— Zayn, Akira e eu fomos adotados. Eu fui adotada aqui mesmo na
Rússia, por isso meu nome não é estrangeiro como o deles. Akira nasceu no
Japão, ele é três anos mais velho, mas chegou depois de mim. Zayn foi o
primeiro. Nossos pais são filantropos bem excêntricos, e aqui vai um
segredo problemático: não acho que qualquer um dos dois realmente nos
ame de verdade. Nossa adoção faz mais o tipo "vamos fazer algumas
caridades para órfãos abandonados", do que "vamos ter alguns filhos",
entende?
— Entendo, não posso dizer que concordo, mas entendo. Meu
sobrinho mais velho também foi adotado há mais ou menos três anos, não
consigo pensar nele de outra forma senão como parte da minha família.
Luna também, ela é muito esperta, nunca a ouvi chorar, nem parece um
bebê.
Ana ergue o rosto, um brilho novo refletido em seu olhar e a lasca
de tinta finalmente esquecida.
— Você não fala muito sobre eles. Seus sobrinhos, digo. — Ela gira
o corpo, de costas para a janela, e joga a cabeça para trás, deixando o
pescoço à mercê dos meus olhos. Apesar da vontade insana de descobrir
que tom de cor um beijo meu teria em sua pele, não gosto dos rumos da
conversa.
Olho para o relógio em meu pulso de propósito, como se só agora
me lembrasse do compromisso para o qual estou vinte minutos atrasado.
— Chega de segredos problemáticos por hoje, senhorita. Ou está
tentando me persuadir a ficar com você?
Captando meu trocadilho, Ana vira o rosto para que eu não a veja
sorrindo. É melhor eu ir embora de uma vez, mais cinco minutos disso e
não conseguirei me segurar. Entretanto, ingenuamente, dou três passos em
direção à saída e ela destrói meus planos, dizendo:
— Seu hábito de dizer coisas com duplo sentido é muito eficaz.
Não há nenhuma nota de malícia em sua voz, nenhum apelo de
sedução, mas confessar que isso a afeta causa uma reação instantânea no
meu corpo.
Estou outra vez perto dela, nem ao menos notei o meu retorno.
Estamos próximos, um de frente para o outro. Ela murmura algo que soa
como um sim, mas balança a cabeça como um não. Os olhos estão
descaradamente fixos na minha boca, e pela primeira vez eu consigo
entender algo sobre a personalidade de Ana: ela não percebe que faz certas
coisas. É tão ingênua que chega a doer nos meus ossos, porque isso com
certeza foi um grande trunfo para que aquele desgraçado a manipulasse.
— Se continuar fazendo essa cara, eu vou ser obrigado a beijar você
agora mesmo. E meus planos de ser um cavalheiro seriam arruinados.
— Que cara? — Ela explora o próprio rosto com as mãos,
procurando algum sinal que indique a que me refiro.
— De quem está esperando um beijo — explico. — E outras coisas
também.
— Eu não... — A frase finda em sua boca quando não encontra
argumentos que a defendam. — É sua culpa pelo que disse antes. Se não
ficasse brincando comigo...
Ela ainda acha que estou brincando?
— Eu preciso ir agora — decido, pelo bem de nós dois. — Vai ficar
bem? — Ela concorda. — Não vou demorar, desculpe não levar você, mas a
compensarei em breve.
— Não estou esperando nada assim — resmunga, desviando para o
piano e me deixando com cara de bobo.
— Ah, não?
— Talvez um pouco. — Ana senta-se na cadeira, suas mãos pousam
sobre as teclas, mas sem pressioná-las. Seus olhos perdem o foco, a mente
perdida em algum lugar. — Andrei, tem uma coisa...
Sua voz é sobrepujada pelo som do meu celular tocando. Não
preciso ser um gênio para saber quem é, afinal de contas, estou mais do que
atrasado.
— Desculpe, eu preciso mesmo ir agora.
Eu tento me virar e ir embora, mas me surpreendo ao
simplesmente não conseguir mover os meus pés, não sem antes me
despedir adequadamente. É como eu disse: provocá-la se tornou um vício.
Vou em direção aos seus lábios, aproximando nossas bocas até
restarem poucos centímetros entre nós. Ela, sentada e com o rosto em
evidência, e eu, privilegiado pela linda visão de seus olhos cheios de
expectativa.
Seguro a vontade de sorrir diante da cena, e deposito um beijo em
sua bochecha, no canto convidativo da boca, como uma promessa. Nessas
horas odeio ser o certinho Andrei Volkiov, como Roman costuma dizer.
Ela rola os olhos para trás assim que entende o que estou fazendo,
mas o sorriso satisfeito jamais lhe foge à face.
Finalmente, atravesso a sala para longe. Giro a chave devagar, como
se quisesse adiar minha partida.
— Andrei? — Ela me chama assim que abro a porta. Olho sobre o
ombro, com metade do corpo fora do apartamento. — Sobre o seu segredo,
fale com a sua cunhada. E tente não beber demais!
A primeira sugestão já está nos meus planos. Sobre a segunda, não
tenho tanta certeza. Mesmo assim, aceno para ela antes de fechar a porta,
como se concordasse com ambas.

***

Deixo meu carro com um funcionário do restaurante e cumprimento


o maître na entrada, que me reconhece imediatamente. O lugar é clássico,
frequentado por celebridades e empresários, mas parece particularmente
vazio hoje.
Há muito glamour na decoração, luzes e toalhas bordadas, além de
flores e mais flores por todo canto. Não faz o meu estilo, mas talvez seja
algo que Ana gostaria, sobretudo pela orquestra ao vivo. Ela saberia como
apreciar o som, fechando os olhos e se perdendo naquele mundo encantado
só dela.
E aqui estou eu, pensando nela.
De. Novo.
Retiro meu celular do bolso para ler a última mensagem, semelhante
às dez anteriores.
"Onde você está, seu advogado metido?"
É... Ele não mudou nada.
Nos conhecemos durante a faculdade. Ele era da turma de
economia, dois anos mais velho, o típico cara popular que todos querem ter
por perto. Eu era esse cara também — algo inevitável quando se nasce um
Volkiov — e a nossa aproximação foi natural, durante uma festa muito
louca.
Protagonizamos algumas polêmicas juntos que não fazem parte da
melhor época da minha vida, e nos afastamos por esses mesmos motivos.
Não temos mais nada em comum, exceto sobrenomes
superimportantes.
Não posso dizer que o considero um grande amigo. Sua
personalidade é péssima, por mais que a esconda muito bem. Eu sempre
soube que não valia muita coisa, no entanto, se eu fosse evitar o convívio
com toda pessoa que julgo como escória, teria que me isolar em uma
caverna.
Todo mundo tem um lado podre, alguns apenas fedem mais do que
outros.
De qualquer forma, eu não poderia negar seu pedido nem se
quisesse. Quando tivemos sucessivos problemas financeiros com a empresa,
ele foi um dos primeiros a oferecer ajuda. Um conceituado banqueiro de
São Petersburgo apoiando a Corporação Volkiov era tudo o que
precisávamos para superar a crise, e odeio dever favores.
Eu o reconheço de longe. Sentado de costas, com seu pescoço
comprido e o cabelo loiro demais. Não nos vemos pessoalmente há anos,
talvez desde quando terminou a faculdade e assumiu os empreendimentos
da sua família.
O maître se retira, deixando-nos a sós, e assim que ele nota a minha
presença, se levanta em um pulo, abrindo os braços para me cumprimentar
com um abraço. Está com o terno amarrotado, a gravata malfeita, os olhos
vermelhos. Não parece estar nos seus melhores dias.
— Andrei Volkiov! — diz assim que nos afastamos, mantendo uma
mão sobre o meu ombro. — Pensei que não viria mais. Você, logo você se
atrasando, não é uma coisa que acontece todo dia.
Coloco minha mão em seu ombro também, dando-lhe dois tapinhas
complacentes. Sobre a mesa, há três garrafas de marcas diferentes
esperando por nós. Será uma longa noite...
— Olá, Yerik.
12
Andrei
EU ME LEMBRO da primeira vez que estive à frente de um tribunal
representando a Corporação Volkiov como se fosse hoje. Ainda consigo
sentir a angústia de olhar fundo nos olhos tempestivos de Vladimir e
fraquejar por uma breve fração de segundos, duvidando das minhas
habilidades. E se eu falhasse? E se, por minha culpa, perdêssemos todo o
prestígio e respeito acumulados após anos árduos de trabalho duro?
E se eu não fosse suficiente?
Como irmão mais novo de três homens bem sucedidos, as pessoas
tendem a fazer todo o tipo de comparação, sobre praticamente qualquer
coisa, entre mim e eles, desde as roupas que uso até as notas que costumava
tirar na escola. Há sempre uma linha invisível traçada antes de mim que
precisa ser superada, um grande feito que pode se tornar ainda mais
grandioso.
Cresci cercado de expectativas, e me forcei a superá-las. Mesmo
quando parecia impossível, mesmo que significasse perder um pouco de
mim a cada escolha, a cada desafio e a cada palavra dita, eu tinha certeza de
que sacrifícios grandiosos me trariam resultados tão grandes quanto.
Naquele dia, há tantos anos, eu tive apenas uma fração de segundos
para decidir que tipo de homem eu me tornaria pelo resto da vida, e foi
graças àquele momento que entendi o peso das minhas escolhas, do meu
nome e do meu trabalho — também foi assim que nasceram meus títulos
mais populares e um tanto cafonas: Rei dos Tribunais e Escudo da Família
Volkiov, sendo o segundo o favorito da imprensa.
Um homem milimetricamente calculado para ser o mais honroso, o
mais paciente, o mais educado e inteligente. O melhor em absolutamente
tudo. Principalmente em definir quais casos devo ou não me envolver. É por
isso que, assim que me sento à mesa, acompanhado de Yerik, sei que estou
diante de um raro caso que eu gostaria de recusar, mesmo sem saber do que
se trata.
Ele serve três copos de uma vez para cada e não posso dizer que
desgosto desta parte de sua companhia.
— Não acredito que o Rei dos Tribunais esteja mesmo bebendo
comigo outra vez. — Alegre, empurra para mim os pequenos copos cheios.
— Você é um cara difícil de encontrar.
— Fiquei sabendo que me procurou no abrigo, mas são as minhas
cunhadas que administram o lugar. Deveria ter marcado uma reunião na
empresa, tenho certeza de que Vladimir o receberia na mesma hora.
— Não. — Yerik segura um dos copos, seus ombros estão
cabisbaixos, mas ele se esforça para parecer feliz. Seja lá o que aconteceu
para abalar a arrogância de Yerik, não foi algo bom. — O presidente é
muito ocupado e o que tenho para tratar, só você pode resolver, mais
ninguém. Mas, antes... — Ele ergue o copo, um pouco do líquido respinga
em sua mão, caindo na mesa, mas ele não se importa, age como se nem
percebesse. — Pelos velhos tempos? Ou você não aguenta mais me
acompanhar?
Sorrio, segurando a minha própria bebida.
— Como se alguma vez você tivesse sido páreo para mim. Pelos
velhos tempos. — Batemos os dois copos e sou o primeiro a virar todo o
líquido, engolindo a bebida como se fosse água.
— E pelos reencontros — diz Yerik, assistindo-me colocar o copo
vazio de volta à mesa antes de beber do seu. Assim que o faz, fecha os
olhos com força e suspira sofregamente.
— O que trouxe você a Moscou? Problemas com o banco?
Yerik encara um arranjo de flores brancas em um recipiente de vidro
sobre a mesa, e nega lentamente.
— Antes fosse, meu amigo. — Seu rosto colérico se contorce em
uma careta desgostosa. Um riso amargo atravessa seus dentes antes de
prosseguir, ignorando a minha pergunta. — Lembra quando a gente se
conheceu?
— Preferia não lembrar. — Giro o segundo copo e o acompanho em
mais um gole. — Faz o quê? Sete, oito anos? Eu não faço ideia, aquela festa
foi mesmo um fiasco. Por que? Vai dizer que não se lembra do que
aconteceu?
Porque eu me lembro muito bem, penso, tomando o terceiro copo.
Uma simples festa de universidade que, como qualquer festa de respeito,
terminou com a polícia na porta graças à música alta. Não havia nada de
errado acontecendo, pelo menos não que eu soubesse, e seria um problema
se meu nome acabasse envolvido em alguma confusão por causa de um
mal-entendido.
— Somente das partes em que eu estava sóbrio — diz, servindo
mais uma rodada para nós até os copos transbordarem. — Eu me lembro de
tudo. Você ficou para trás e resolveu a merda toda, mesmo não tendo nada a
ver com a denúncia. A festa acabou, todo mundo foi embora sem comer
ninguém e você se tornou um mártir, salvador de traseiros ricos e bêbados!
Yerik faz um brinde sozinho e bebe. Não acredito que estou
perdendo uma ótima noite ao lado de Ana para aturar a nostalgia barata de
Yerik. Onde ele pretende chegar?
— Não estava tentando salvar ninguém, só fiz o que era certo. Não
era justo várias pessoas pagarem pela imprudência de meia dúzia.
— Eu sentia inveja — sussurra, fungando. Ele está chorando? —
Você, meu amigo, é um cara bom de verdade. Sempre sabe o que é certo,
sua fama o precede. É por isso que estou aqui. Preciso da sua ajuda, não sei
mais a quem recorrer...
Yerik cobre o rosto com as mãos e faz o impensado: chora. Ele
chora mesmo, com soluços e ombros tremendo, enquanto o observo, incerto
sobre como reagir ao seu rompante de tristeza. Alguns funcionários nos
olham de esguelha, tentando manter a discrição, mas o contexto todo é
constrangedor e inesperado demais para não chamar atenção.
Desta vez, sou eu a encher nossos copos.
— Ela me deixou — diz com a voz enrolada. Limpa o rosto
vermelho com a manga da camisa, mas os olhos continuam úmidos e
desprovidos de alegria. — Minha mulher está grávida, mas ela foi embora e
eu não sei o que fazer para consertar a situação. Contatei alguns advogados
antes de procurar você, mas nenhum se compara. Eu estou desesperado! Por
favor, meu amigo, preciso que me ajude.
Não consigo não sentir um pouco de pena quando ele menciona a
gravidez, pensando na dor de ser separado do filho. Na dor única e lacerante
de perder o chão firme sob os pés e viver dia após dia em uma queda livre
constante. Eu conheço muito bem esse sentimento. A diferença é que, ao
contrário de Yerik, nenhum advogado no mundo pode reverter a minha
situação.
Esvaziamos nossos copos mais depressa que antes, mas tais doses
homeopáticas nem sequer fazem cócegas na minha lucidez.
— Casos familiares não são a minha especialidade — digo com
cuidado, estudando seu semblante. Preciso de mais do que algumas
lágrimas para aceitar um caso. — Você já deve saber que não aceito
advogar em causas que não tenham relação com a minha família ou nossos
negócios há muitos anos.
— Você tem filhos? — questiona, olhando fundo em meus olhos.
Sei que não enxerga a verdade lá dentro, porque ela está fechada e trancada.
— Não, não tenho.
— Meu maior sonho sempre foi ser pai. — O teor de suas palavras
atinge aquele ponto certeiro que dispara um espasmo em meu peito. —
Nastya e eu tentamos por vários meses, mas todas as nossas tentativas
falharam, até descobrirmos que sou estéril. Ela é uma mulher instável, eu
não sabia mais o que fazer para que ela não entrasse em choque, para que
não sofresse tanto, então recorremos a uma inseminação. — Yerik faz uma
pausa e coça a parte de trás da cabeça, fechando o outro punho sobre a
mesa. Seus olhos voam para um ponto à esquerda e voltam a buscar contato
com os meus, forçando um sorriso melancólico. Está tentando me contar
uma mentira, senhor Baranov? — Ela tentou esconder de mim que estava
grávida.
Ataco meu paladar com mais vodca. Casos envolvendo crianças,
matrimônios e dramas amorosos me fazem pensar em Evgenia e nossa
perda. Ana ocupou tanto a minha mente e a minha vida desde que chegou,
que eu quase me esqueci como era sentir essa dor profusa e irreversível,
mas ela continua aqui, com olhos semicerrados, fingindo dormir na
escuridão.
— Nós discutimos — ele continua. — Não foi nada demais. Uma
briga de casal, como outra qualquer. Na manhã seguinte, eu tive que sair
para uma reunião no banco. — Yerik esfrega os olhos e suspira. — Quando
voltei para casa, ela tinha partido. Foi embora grávida! Está me privando de
conhecer o meu filho quando nascer, entende? Eu tenho o direito de...
— Entendo o seu medo. — Tento assimilar todas as informações
dentro de um cenário crível. — Você sabe onde ela está agora?
Ele nega sem desfazer nosso contato visual. Não consigo ter certeza
se é ou não uma mentira.
— Acredito que esteja em Moscou. Ela morava aqui antes de nos
mudarmos para São Petersburgo. — Yerik roda o copo vazio com os dedos.
— Me encontrei com o irmão dela ontem e ele disse que a encontraria cedo
ou tarde. Um de meus advogados emitiu um documento para que a gente se
reúna já na próxima semana, para decidirmos o futuro do nosso filho, a
questão dos bens, do nosso casamento, e eu gostaria que você assumisse o
caso a partir de agora.
Pense profissionalmente, pense profissionalmente.
Encaro o lustre no teto, mirando as compridas gotas de vidro
enquanto meço minhas palavras, organizo as possibilidades e,
principalmente, afasto meus medos e sentimentos pessoais, mesmo sendo
quase impossível não me colocar no lugar dele.
— Tem certeza de que ele conseguirá entregar a tempo? —
pergunto.
— Sim, ele me garantiu.
Certo.
Endireito-me na cadeira e o olho com convicção.
— Você disse que conversou com outros advogados, então já deve
saber o básico da sua situação. Mesmo assim, farei algumas considerações.
— Yerik se empertiga e aquiesce obedientemente. Se eu conseguir ser
rápido, consigo voltar para casa antes que Ana adormeça. — São casados
oficialmente, você consentiu na inseminação, seu nome está em todos os
documentos de paternidade, então seria tolice da parte dela tentar uma
contestação. Ficar sem seu filho não é uma possibilidade.
Yerik concorda, o semblante se abrindo em compreensão. Minha
cabeça dói um pouco, mas continuo explicando da maneira mais simples
possível. Definitivamente, não era assim que eu esperava encerrar a minha
noite.
— Para isso, ela teria que ter provas contundentes de que foi
coagida de alguma forma a manter uma relação contra a vontade, ou sofrido
algum tipo de manipulação psicológica para ficar grávida. São muitas
possibilidades, eu precisaria estudar melhor o caso para te dar uma opinião
mais profissional. O importante agora é esperar que ela compareça à
audiência. — Yerik fecha as mãos sobre a mesa. Irritado? — Sendo
sincero, eu duvido que o caso vá adiante, o melhor para os dois é chegarem
a um acordo a respeito do casamento e, posteriormente, sobre a guarda da
criança.
— Está dizendo que vai me ajudar?
Sua pergunta é direta.
Simples.
Sim ou não, são as únicas respostas que espera ouvir de mim.
Mas sinto o cheiro de longe. Do que, exatamente, não tenho certeza
ainda. De uma mentira? Do medo? Da falsidade em seu estado mais bruto?
Não tenho como saber a menos que aceite seguir em frente com seu pedido.
Yerik sabe com quem está lidando, e sabe que estou ciente da isca que
acaba de jogar.
— Talvez. — Abro a segunda garrafa, pois a primeira já se foi entre
uma conversa e outra. — Posso representar seu advogado na semana que
vem, mas, se vou ou não continuar no caso, dependerá de você. Se está
dizendo a verdade, então a senhora... — Estalo os dedos para que repita o
nome.
— Anastasia — diz, limpando a garganta com um pigarro. —
Anastasia Leonidova Baranova.
Anastasia?
Um nome de princesa, hein?
— A senhora Anastasia Baranova não terá motivos para negar a
paternidade. Seria um processo longo e cansativo para uma mulher grávida,
então vamos evitar esse cenário. — Não desvio meus olhos por um segundo
das suas reações. — Tem certeza de que não sabe onde ela está?
Yerik gargalha, voltando sua atenção para a garrafa como se sua
vida dependesse dela, como se todos os seus problemas pudessem ser
apagados com um único gole. Conheço a sensação, porque faço a mesma
coisa todas as noites.
Nunca funciona.
— Quem sabe? — diz amargamente. — Talvez esteja abrindo as
pernas para algum filho da puta. Um belo par de chifres cairia bem com as
minhas olheiras e a barba por fazer, não acha?
Seu comentário me causa náuseas. Seria o bastante para me fazer
levantar e ir embora. Mas é tarde, escutei demais, me envolvi demais, e há
uma criança no meio dessa situação que pode acabar prejudicada. Uma
criança que tem a chance de estar ao lado dos pais, que merece essa chance.
Inclino-me sobre a mesa.
— Primeiro de tudo: se quer mesmo que eu defenda você, vai parar
de dizer esse tipo de merda. — Apesar do palavreado, minha voz soa calma
aos ouvidos. Vladimir costuma dizer que é a minha marca, um timbre
velado capaz de amedrontar o mais valente dos homens. — Segundo: meu
trabalho não é trazer a sua ex-mulher de volta, a menos que ela queira.
Terceiro: não conte comigo para tirar o bebê da mãe. Isso só vai acontecer
se ela for um risco para a vida da criança. E, quarto... — Pego meu copo
sobre a mesa e faço um brinde no alto. Ele está estático, um pouco surpreso,
arrependido, talvez, e por isso demora a me acompanhar. — Eu não me
tornei o melhor do país à toa, Yerik. Sei que não me contou a história
completa, talvez nem mesmo seja a verdadeira. Mas eu vou ajudar você.
Pelo bem da criança, que merece nascer sabendo que tem um pai, eu
ajudarei você.

***

Encosto a cabeça na porta do apartamento, fechando os olhos por


um instante.
Minha mente está uma zona. Quando não esteve?
Toda a porcaria com Yerik me fez relembrar o dia em que Evgenia
me ligou dizendo que estava no hospital. Nem a morte do meu pai foi tão
dolorosa quanto saber que eu jamais seguraria nos braços o bebê que já não
crescia mais dentro dela. Eu queria voltar algumas horas no tempo para
fazer tudo diferente. Se eu estivesse por perto, o resultado seria outro? Se eu
não estivesse tão preocupado com os problemas da minha família, teria
feito alguma diferença? Se eu tivesse conseguido amá-la de verdade, nosso
bebê estaria vivo?
A maioria das pessoas tem medo da morte, mas eu nunca a desejei
tão fortemente como naquele dia. Se eu tivesse a chance de reverter a minha
perda, agarraria com todas as forças e arriscaria a minha vida se preciso
fosse. E exatamente por isso não pude dizer não a Yerik.
Procuro meu celular dentro do casaco com certa dificuldade.
Gostaria de ter demorado menos para voltar para casa, mas acabamos
estendendo a conversa noite adentro, como eu sabia que aconteceria. Mas
pensei que beberíamos o bastante para que eu conseguisse desabar na cama
assim que chegasse, porém, no lugar do sono, o álcool me trouxe somente
uma sensação de entorpecimento e frustração.
E ansiedade.
É essa a palavra que me define toda vez que Ana surge em minha
mente: ânsia. Tem se tornado tão constante que me pergunto se há algum
momento em que não estou pensando nela. A mulher do outro lado desta
porta me faz sentir e desejar coisas que eu nunca quis vivenciar com mais
ninguém, desde as mais simples, às mais impróprias.
Uma zona.
Olho a tela do meu celular para conferir as horas. Há chamadas não
atendidas de Evgenia, como sempre e sempre e sempre e sempre. Todos os
dias ela tenta me ligar ao menos cinco ou seis ou quinze vezes. Deve ser o
seu jeito de me punir e torturar, é a sua maior especialidade. Já tentei
excluir o seu número, mas não consigo. Eu. Não. Consigo. Me. Livrar.
Dela. Que merda eu sou? Um covarde? Mas a ideia me parece egoísta ao
extremo depois da vida que dividimos juntos.
Eu aguento. Eu aguento. Eu aguento... É o mínimo que posso fazer.
Sem humor para continuar me martirizando com os “e se” do
passado, abro a porta, tentando ser silencioso para não acordar Ana. Não sei
quantas madrugadas consigo me segurar caso nossos encontros na
penumbra se tornem um hábito. Entretanto, depois de chutar meus sapatos
para um canto na entrada, chego à conclusão de que a sorte não é minha
aliada.
Ana está deitada sobre o pequeno sofá, com o corpo encolhido de
lado, os joelhos sutilmente dobrados e um dos pés para fora do estofado
macio. As cortinas abertas permitem que o luar faça carícias em sua pele,
lapidando todas as suas curvas em uma escultura absurdamente linda.
E eu sei que, no momento em que meus olhos exploram as pernas
descobertas pela camisola amontoada na altura dos quadris, um novo
pecado soma em minha curta lista de pensamentos perversos.
Eu me sinto um degenerado por não fazer nada além de olhar
durante longos segundos antes de obrigar meu corpo a se movimentar para
longe, em busca de qualquer coisa para cobri-la. Cobrir os tornozelos finos,
as panturrilhas macias e, principalmente, aquelas coxas que parecem
perfeitas para receber todo tipo de carícias das minhas mãos e de mais
ninguém.
Será que adormeceu enquanto me esperava?
Caminho até o meu quarto, retirando o casaco, cachecol e luvas.
Deixo tudo sobre o divã de suede marrom e puxo a camisa sobre a cabeça.
Entro no banheiro e jogo uma quantidade generosa de água no rosto, tanto
para lavar meu cansaço, quanto minha mente embriagada, que tatuou Ana
na parte interna das minhas pálpebras.
Depois de encontrar uma manta xadrez no armário, volto para a sala,
mas me parece cruel deixar que passe a noite inteira no sofá desconfortável.
Em contrapartida, não acho que seja uma boa ideia tocá-la e muito menos
segurá-la em meus braços.
Eu jamais faria algo. O problema é o que isso faria comigo. Quais
outros sentimentos podem ser despertados caso eu ultrapasse mais um
limite? Lutar contra a vontade que sinto dela é aterrador, pois tudo o que
mais desejo é trazer seu corpo junto ao meu e absorver toda a paz e
segurança que sinto ao seu lado, curar suas feridas enquanto ela faz o
mesmo por mim sem a menor consciência.
— Se soubesse o quanto fica linda dormindo assim — murmuro
para mim mesmo, evitando mentalizar como deve ficar ainda mais perfeita
sem as roupas.
Preciso de uma bebida.
Deixo a manta sobre seus pés e vou para a cozinha com os
pensamentos em frenesi. Não olhe, não toque, não pense.
Em um dia comum, sem Ana e nosso refúgio, eu estaria sozinho em
um hotel qualquer de Moscou, sem contar todos os copos que já bebi. Mas
não. Eu quero estar aqui, quero estar com ela, sentir o conforto da sua
companhia. Desejo apreciar seus sorrisos tímidos e provocá-la a ponto de
ver o brilho delicioso da luxúria acender em seus olhos sem que ela
perceba.
Encho um copo com gelo e uísque — tudo o que ainda resta no
apartamento, já que não repus o estoque. Encaro as pedras boiando no meio
do líquido marrom-avermelhado e experimento o primeiro gole, mas a
sensação de anestesiamento que estou acostumado a encontrar no álcool
não vem.
Por causa dela, sozinha e adormecida a poucos metros.
Meus pés ganham vontade própria e me levam de volta para a sala,
para Ana. Mesmo em sono profundo, estar tão perto dela, ouvir sua
respiração suave e ver sua expressão tranquila, acalma toda a algazarra das
minhas emoções, prendendo-me no presente.
Tão indefesa.
O que ela diria se acordasse agora e me visse assim, sedento por
ela?
Eu sou mesmo um caso perdido.
Deixo o copo de lado e me rendo. Passo um braço por baixo de suas
pernas, amparando seus ombros com o outro. Ergo-a sem nenhuma
dificuldade. Ana é leve como um dente-de-leão soprado pelo vento. Ela se
encaixa no meu corpo e uma emoção toma conta de mim, um sentimento
perigoso de ter encontrado algo de que sentia falta e não sabia.
Algo que é meu.
Maldição!
Ana aconchega a cabeça no meu ombro enquanto a levo para seu
quarto, mas não sinto vontade de soltá-la. Quero que fique comigo, perto,
nos meus braços. Parece tão certo, tão natural, uma proximidade tão
orgânica que o simples pensamento de deixá-la sozinha faz meu corpo doer.
— Seria muita canalhice da minha parte levar você para dormir na
minha cama enquanto você não pode sequer negar? — pergunto
retoricamente, lutando contra essa ideia absurda e nada ética.
Claro que não posso fazer isso.
Dou o primeiro passo em direção ao quarto dela, assim que estou
prestes a dar o segundo, suas mãos se firmam em meus braços,
descompassando todas as batidas do meu coração.
— Isso faria você se sentir melhor? — murmura, a voz fraca e
sonolenta. — Faria você dormir melhor?
Parado no meio do corredor, com todas as luzes apagadas, não ouso
mover nenhum músculo, com medo de que um transe tenha me acometido.
Seus olhos estão abertos, brilham imensos no meio da escuridão como
minha única fonte de fôlego, já que todo o ar abandonou meus pulmões.
— De vez em quando — sussurra baixinho — você mostra esse
olhar que me dá vontade de te abraçar. É um olhar Beethoven, opus vinte e
sete, número dois.
— Que tipo de música é essa? — pergunto igualmente baixo, como
se nossas vozes pudessem macular o momento.
— Uma sonata triste — explica, agasalhando-se em mim. Seu gesto
reconfortante diz mais do que as palavras e transmite toda sua asserção a
respeito da nossa proximidade. — Uma sonata realmente triste, Andrei.
Linda...
Estamos nos movendo de novo, meus pés se arrastando pelo chão
sem nada da hesitação anterior. Tenho uma noção muito distante da porta do
quarto dela ficando para trás à medida que entramos no meu.
Seus braços deslizam para os lados quando a deposito sobre a minha
cama. Dou um passo para trás, contemplando a pluralidade chocante e
indescritível de sentimentos amontoados dentro do meu peito por essa
visão. Ana na minha cama, comigo.
Deito-me ao lado dela, ansioso para sentir seu corpo de volta ao
meu. Não perco meu tempo pensando em toda a loucura que envolve nós
dois assim, juntos, abraçados, envolvidos, pois qualquer outro desfecho soa
como uma blasfêmia.
Nossos olhares não fogem, conectados por uma magia invisível que
me faz desejá-la como um viciado. Nos encaramos, silenciosos, seu rosto a
centímetros do meu. Seus dentes prendem o lábio inferior sem que eu tenha
a chance de entender o que estamos fazendo. Não há tempo para pensar
demais, ou planejar cada toque, cada necessidade. Não quando os instintos
se sobrepõem a todo o resto.
— Ana, lembra quando eu disse que pretendia beijar você em algum
momento? — pergunto, tocando nossos narizes enquanto ela concorda.
Seguro sua cintura, o tecido fino da camisola é suave, molda-se em seu
corpo, deixando nos meus dedos o sonho de sentir a pele por baixo. — Eu
fico repetindo para mim o tempo todo que preciso ter paciência, me
controlar e ser amável. Mas, acho que não consigo esperar mais.
Rolo por cima dela, prendendo-a contra a cama e entrelaçando
nossas pernas. As roupas entre nós são as únicas coisas que mantém a
minha sanidade controlada, delimitando até onde eu devo ir. Roço meus
lábios de leve nos dela, testando como seu corpo reage à minha boca.
Nossas respirações estão pesadas e se confundem no quase inexistente
espaço entre nós, como se ambos estivéssemos perdendo uma maratona.
Nos perdendo...
— Não quero que espere — diz, tímida, porém firme.
— Me diga que não — sugiro, oferecendo a ela uma última chance
para não se arrepender depois.
Ela pisca, encarando-me com os olhos em agonia. Suas emoções
estão afloradas e expostas como só acontece quando a ouço tocando alguma
melodia no piano, ou as cantarolando baixinho pela manhã. É como encarar
um espelho com várias rachaduras, todas as incertezas e medos refletem os
meus, mas são sobrepujados por um sentimento mais forte e voraz.
Estamos quebrados e, sem que eu me desse conta, nossos cacos se
misturaram a tal ponto que não consigo me remontar sem as partes dela.
— Estou tão confusa. — Apoio-me sobre um cotovelo e, com a
minha mão livre, acaricio sua bochecha, notando que uma lágrima deixou
um rastro úmido ali. — Você se sente assim? Estou sendo boba? Porque eu
não sei o que falar, ou o que fazer. É errado eu querer tão desesperadamente
ser beijada por você mesmo depois de tudo o que aconteceu? — Ana segura
minha mão e a leva até a lateral da própria cabeça. — Toda vez que me
provoca e diz ou faz esse tipo de coisa, ouço a voz dele aqui dentro dizendo
coisas horríveis sobre mim. E eu me sinto tão errada e suj...
Uma fração de segundo.
No passado, foi o tempo que tive para escolher quem eu me tornaria
como homem. Hoje, é o tempo que demoro para mudar todo o rumo das
nossas vidas.
Em uma fração de segundo, nosso mundo explode em um estrondo
de cores, toques e sensações. Eu me perco dolorosamente em sua boca,
calando-a com um beijo faminto, profundo e inclemente. Seus lábios
carregam o sabor salgado das lágrimas recém derramadas que se mistura ao
do uísque ainda fresco em meu paladar.
Ana tenta acompanhar o meu desespero, abre-se para permitir que
eu experimente todos os cantos da sua boca em busca da tranquilidade que
foi erradicada da minha mente, mas não é bastante. Dou início a uma trilha
de beijos por todo o seu pescoço, buscando satisfação, empenhando-me
para que não reste nada além do meu cheiro em sua pele.
Quero arrancar esse homem de dentro dela, da sua cabeça, de seus
pesadelos. Quero apagar a existência dele das suas lembranças e fazer seu
corpo esquecer que um dia foi brutalizado pelas mãos de alguém tão
abominável.
Quero que ele desapareça.
Estou ciente demais de tudo: dos seios prensados contra o meu peito
desnudo, minha perna encaixada entre as suas, a mão que uso para mapear
suas coxas, elevando um joelho para que nossos quadris se alinhem.
Deitada embaixo de mim, com os dedos fincados nas minhas costas
e nossas bocas outra vez em transe, Ana alimenta minhas fantasias,
retorcendo meu instinto protetor e possessivo até que em meu coração
residam apenas essas duas substâncias.
Não é loucura. Eu a quero inteira.
Seu corpo treme pela necessidade de respirar, meu próprio pulmão
parece em chamas, mas nenhum de nós assume o risco de se afastar. Os
sons agudos que faz nos inúteis momentos em que arquejamos entram pelos
meus ouvidos e escorregam para dentro do meu estômago. Sons eróticos e
femininos que contrastam com os meus grunhidos roucos.
Ela tenta assumir algum controle na dança de mãos e beijos,
segurando meus ombros e arranhando minha pele com suas mãos
pequeninas, e eu gosto disso, que esteja perdida e desesperada como eu,
retribuindo as minhas chamas com um incêndio inteiro.
Deslizo sua camisola para cima, expondo aos poucos o tecido
mínimo e rendado que esconde o lugar de seu corpo que mais desejo
reivindicar. Busco a aprovação em seu olhar para todos os meus
movimentos, mas Ana nada diz quando toco o osso protuberante e erótico
de sua pélvis. Ela respira sem compasso, o desejo desanuviando seus
sentidos e os meus.
No entanto, ao encontrar sua barriga perfeita, desabrigando a cintura
fina da camisola de cetim, como um piscar de olhos, ela congela. Ana abre
os lábios, assustada, piscando freneticamente.
Com medo? Com dúvida? Não está preparada, percebo, recobrando
algum senso de caráter.
Sorrio para acalmá-la. Meu corpo, é claro, demora mais tempo para
se acostumar com a ideia de que ainda não posso me perder dentro dela
como gostaria. Volto a beijar sua boca, mais calmo desta vez, e me
acomodo ao seu lado sem jamais desfazer nosso abraço.
Ela suspira.
Eu também.
— Você nunca vai precisar sentir medo perto de mim — digo,
esfregando seu ombro. — E eu quero que diga quando não se sentir bem,
quando não quiser algo, quando não gostar de alguma coisa. Quando quiser
ser beijada e quando não quiser, entendeu? — Ela balança a cabeça,
concordando, e esconde o rosto no meu pescoço. — Desculpe ir tão longe.
Eu só preciso de um pouco disso. — Rodeio seu corpo com os dois braços,
ficando de lado.
Ela sorri para mim.
— Disso, o que?
— De você — respondo o óbvio. — Torne-se minha, Ana, e eu
prometo beijá-la até que a única voz aqui dentro — beijo sua testa — seja a
minha.
Somente minha.
Eu sei o que preciso fazer. O que eu quero fazer.
E sei também que não posso fazer sozinho.
Eu a quero.
Quero que confie em mim.
Que se sinta protegida.
Que me queria também.
Eu quero tudo, mesmo que seja uma exigência do meu lado mais
instável e problemático.
— Ana? — chamo seu nome baixo após vários minutos de silêncio,
quando sua respiração se torna um soar pausado.
— Hum? — resmunga, com os olhos fechados, totalmente
descuidada quanto à sua posição frágil nos braços de um homem que estava
pronto para prová-la inteira minutos antes. Ela realmente confia em mim e
não sei o que fazer com a euforia que retumba em meu peito.
— Quero que conheça meus irmãos — sussurro.
Ao olhar em seu rosto, vejo que já adormeceu, não vai se lembrar de
nada que eu venha a dizer.
Suspiro, um tanto descrente. Meus olhos pesam também, sinto o
sono se aproximando, meu corpo todo relaxado. Não tenho lembranças de
como dormir sem ser esmagado pelo pânico do buraco que enxergo quando
fecho as minhas pálpebras, mas não o encontro agora, não vejo nada além
da mulher ao meu lado, que não faz ideia do quanto merece ser feliz.
Ela não tem noção do próprio valor.
E a culpa é do maldito que corrompeu sua mente.
E é assim que eu aceito a decisão contra a qual estive lutando,
enganando-me, mas que já se tornou inevitável. Não consigo mais hesitar
independente da minha bagunça emocional: roubarei Ana para mim, para
que eu possa devolvê-la a si mesma.
13
Andrei
A FOME ME faz flertar com o despudor, e ter o único alimento capaz de
saciar meu apetite imoral desfilando pelo apartamento, vestindo um body
rendado cujo decote é profundamente revelador, não faz meu corpo se sentir
menos tentado.
— O que foi? É demais? — Ana pergunta ao flagrar meu olhar
predatório. Ela se vira rapidamente para o espelho do próprio quarto,
conferindo sua roupa pela milésima vez. — É uma pantalona — diz,
referindo-se à calça vermelho-escura que está usando — mas posso trocar
se quis...
— Sim, é demais — respondo, impedindo que conclua a frase sem
cabimento. — Absolutamente demais. Trocar de roupa não vai mudar o
quanto você é demais. — Entro no quarto e me aproximo dela, encaixando
suas costas em meu corpo. Acaricio seu ouvido com a minha boca, vendo-a
estremecer com meu sussurro através do espelho. — Mas, se quiser colocar
algo mais fácil de tirar, eu ficaria muito feliz.
Recebo seu sorriso como recompensa pela provocação.
— Não sei… — diz, buscando meus olhos no espelho. — O decote
talvez tenha sido um exagero, dependendo de onde estamos indo.
Um belíssimo exagero.
— Está perfeita, não se preocupe.
— Não vai mesmo me contar para onde está nos levando? — insiste,
lânguida, enquanto deslizo um dedo por seu ombro desprotegido.
— Talvez, se me der um beijo, eu possa pensar no caso.
Ana faz um som ultrajado com o nariz, mas seus olhos travessos
brincam com os meus. Ela ergue o braço direito e sua mão vai de encontro à
minha nuca, seus dedos bagunçando os fios recém penteados.
— Você disse isso ontem — protesta. — E antes de ontem também.
— É uma surpresa — murmuro, inspirando seu cheiro primaveril.
Meu riso afaga seu pescoço quando o exploro com os lábios, traçando uma
linha invisível até o ombro, onde deposito um beijo demorado. — Faz parte
do meu plano de deixar você completamente apaixonada por mim.
— É um bom plano. — Há uma nuance sarcástica em sua voz. — Já
que o último não durou muito tempo.
— Bom, eu não calculei que sua boca seria ser tão tentadora —
explico em tom diplomático, apoiando o queixo em seu ombro. —
Subestimei seus poderes de sedução e superestimei o meu autocontrole,
acontece.
Sem sair de meus braços, Ana rodopia sobre os calcanhares e me
agarra pelo pescoço. Nos encaramos, os dois sorridentes e meio bobos.
— Certo, e o que pretende fazer depois que eu estiver perdidamente
apaixonada por você, senhor advogado? — pergunta, beijando meu queixo.
Porra, ela é linda demais.
Nos seguramos para não dar risada, e sua tentativa de manter a
expressão séria é apaixonante por si só. Desde a primeira noite em que nos
beijamos, tenho sucumbido mais e mais ao sentimento que cresce dentro de
mim sempre que a toco — algo que faço com grande frequência pelo
simples prazer de saciar minha necessidade dela.
Desafiado, sorrio presunçosamente e pressiono minha mão em suas
costas, conduzindo-a pelo quarto até pararmos diante da cama. Aponto para
os lençóis desarrumados sobre o colchão.
— Não é óbvio? — questiono seriamente. — Comer você, nessa
cama, várias e várias vezes.
— Andrei! — Seu peito vibra com a risada deliciosa e chocada que
deixa escapar. — Seus clientes sabem que o grande Rei dos Tribunais tem a
boca suja?
— Desculpe, desculpe. Vou tentar de novo.
Eu a abraço, minha mão escorrega pela extensão da sua coluna até o
limite da lombar. Seus traços amáveis são substituídos por uma expressão
temerária, as íris escurecendo algumas escalas. Ao voltar a falar, minha voz
adquire um tom rouco, um efeito colateral de sempre acabar afetado quando
a tenho com a guarda tão baixa.
— Eu quis dizer: fazer amor com você, várias e várias vezes... —
Mapeio todo o caminho dos seus lábios até o pescoço, depois sigo em
direção ao decote profundo, usando a ponta do meu indicador para traçar
sua pele. — E marcar todo o seu lindo corpo com a minha boca, enquanto
sua única função será delirar em cima de mim, e embaixo, de lado e de
costas também.
Ela abre a boca, sem palavras com meu divertidíssimo ataque, e
aproveito seu choque para exigir seus lábios sem nenhum preparo. Minha
língua a invade com fervor, eu perco o controle dos meus próprios sentidos
assim que adentramos no silencioso torpor regido pelo beijo.
Seus lábios são macios e delicados, e eu amo o barulhinho que ela
faz sempre que não consegue respirar por causa da minha intensidade. Ela
se agarra em meus ombros, na ponta dos pés, e lhe amparo com minhas
mãos, segurando a pequena cintura e a esmagando em meu corpo.
Meu martírio tem início no momento em que nos afastamos sem que
eu possa realizar o desejo de jogá-la sobre a cama para saciar a fome
inflamada em meu estômago.
— Melhor assim? — questiono, arfante com o fim precoce do beijo,
enredado em minha própria armadilha.
— Perfeito. — Ana suspira.
— Está falando de mim, ou do beijo?
— Os dois? — Ela faz uma expressão sonhadora, e por muito pouco
não volto para o calor aprazível de sua boca. Pelo bem do nosso passeio,
decido não prolongar a conversa ou acabaremos de fato sobre o colchão. —
O que acha de me dar uma pista? Assim eu posso tentar descobrir o nosso
destino. Acho bastante justo.
Afasto-me contra a vontade a caminho da saída, ajeitando meu
cachecol e o casaco branco.
Paro entre o quarto e o corredor e finjo pensar. A forma como ela
aguarda cheia de esperança é realmente muito engraçada e preciso de todo
esforço para não sorrir ao dar de ombros despreocupadamente, como se não
me importasse com sua curiosidade.
— Desista. — Pisco um olho para ela. — Não vai me convencer tão
facilmente.
Pestanejando, Ana balança os belos cachos, mas não sustenta sua
falsa pose de insatisfação por muito tempo. Algo indecifrável cruza seu
semblante, substituindo a leveza por densidade. Ainda não sou capaz de
entender suas nuances corporais, antever seus sentimentos, mas até um tolo
reconheceria a hesitação em seus olhos.
— Espera — diz, meio vacilante, com as duas mãos cruzadas sobre
a barriga, trocando o peso do corpo entre uma perna e outra. — Antes,
preciso conversar com você sobre uma coisa.
Abro a boca para perguntar qual o teor do assunto, mas me calo a
tempo. Não gosto da ideia de esperar, minha fome gosta menos ainda.
Mesmo assim, obrigo-me a colocar um sorriso no rosto para tranquilizá-la.
— Sinto cheiro de um segredo problemático a caminho? —
pergunto, camuflando um pouco da minha preocupação. Ana exala,
levantando o rosto com um sorriso de gratidão que faz qualquer espera
valer a pena.
— Talvez — murmura. — Provavelmente — acrescenta, nervosa.
— Sim, é isso mesmo — conclui, por fim, atrapalhando-se com as palavras.
— Certo — digo, anuindo enquanto mil suposições nascem na
minha mente. Por sorte, ela não pode ver os punhos fechados que mantenho
dentro dos bolsos. — Pensarei em um também, assim ficamos quites,
combinado? Mas não hoje. Porque hoje é um dia feliz. Vamos esquecer
nossos problemas e aproveitar, quero que se divirta e se concentre apenas
em mim e mais ninguém.
O que não me faltam são segredos problemáticos. Quero contar os
detalhes sobre Evgenia, meu passado, mas tenho medo de ser informação
demais para Ana lidar no momento, então preciso continuar mentindo.
Omitindo.
Não faz diferença.
Serei egoísta quanto a mantê-la comigo, mesmo que isso signifique
me corromper dia após dia ao seu lado.
— Mas...
— Shhh. — Toco seus lábios com os meus, um beijo sereno que
precede meu próprio sorriso. — Nada mais importa, apenas eu e você.
Ana deixa um suspiro esvair de sua boca e concorda, sorrindo em
resposta. Finalmente, eu a deixo sozinha para terminar de se arrumar e vou
para a sala na companhia de meus pensamentos.
Sei que estou fazendo a coisa certa ao trazê-la para mais perto da
minha vida, não tenho dúvidas da paixão e desejo mútuos que nos cercam,
mas fomos tragados por um redemoinho tão confuso de tantos outros
sentimentos, que me sinto cada vez mais tonto enquanto giramos e giramos
no meio de nossos próprios destroços.
E minha principal função é cercá-la de toda proteção possível para
que nenhum deles a acerte.

***

O destino tem um senso de humor mórbido às vezes. Pergunto-me


que tipo de expressão ele faz enquanto tece, com fios cinzentos e sôfregos,
agasalhos para vidas humanas frágeis, se isso lhe traz algum tipo de
diversão, ou se é tão doloroso que seus dedos sangram toda vez que precisa
nos obrigar a vestir suas penitências.
Eu sempre fui o menino ingênuo que sonhava com o amor
verdadeiro, em viver uma grande história digna dos superestimados finais
felizes. É mais cômodo nos apegarmos à promessa de que existe uma alma
destinada a completar a nossa, do que admitir que separar essa alma em
duas partes e obrigá-las a trilhar caminhos que podem nunca se cruzar é, na
realidade, uma ideia bem doentia.
Como saber se a pessoa pela qual estamos apaixonados é a nossa
outra metade? Passar a vida inteira ao lado de alguém que, além de não se
encaixar conosco, ainda pode nos destruir, deixando um grande vazio que
jamais poderá se encaixar com mais ninguém, não é uma possibilidade que
costumamos encontrar nos contos de fadas.
Mas a vida real é bem diferente.
Gostaria de saber se eu e Ana já chegamos nesse ponto, se
conseguiremos preencher o vazio deixado por nossos relacionamentos
anteriores, se somos compatíveis ou se tudo isso não passa de mais uma
vestimenta trágica do destino.
— Não precisamos entrar se não se sentir confortável — digo, com
medo de que ela desmaie. — Mas, eu queria muito que conhecesse a minha
família.
— Eu... — Ela fecha as mãos na frente do corpo, sobre a barriga. —
Eu não sei o que dizer. Não era isso o que eu esperava.
Deslizo meus óculos escuros para cima, acomodando-os no alto da
cabeça, e me dobro sobre ela, encostando nossas testas.
O brilho dos raios solares em contato com os olhos assustados de
Ana faz com que suas pupilas castanhas adquiram uma rara tonalidade
dourada. Mesmo com os saltos, ela continua pequena, tão delicada que
seguro suas mãos para ter certeza de que a brisa não vai varrê-la para longe
tal qual as folhas secas que despencam dos arbustos no jardim da mansão.
— Talvez esteja pensando que eu trouxe você aqui para pressioná-
la, e não posso negar dizendo que não previ essa consequência ou que ela
não me agrada, porque tenho tido pensamentos cada vez mais loucos com
relação a você, mas confie em mim quando digo que não é a minha
intenção. — Dispenso uma negativa com a cabeça e suspiro, desarmando-
me diante dela. — Faz algum tempo que não venho para casa, então será
uma grande surpresa para eles também — confesso, sussurrando, como
quem conta um segredo.
— Por que agora? — pergunta no mesmo tom.
— Você — respondo sem hesitar. — Passar esse tempo com você,
esses dias bons, me fez ter vontade de ver a minha família, de estar com
eles. A gente se afastou… eu os afastei.
— Por causa da sua namorada — diz, baixando os olhos.
Não gosto quando faz isso.
— Ex-namorada — corrijo-a, levantando seu queixo para que me
olhe diretamente. — Eu não tinha percebido como sentia falta deles até
conhecer você. Acho que... — Engulo em seco e deixo as próximas
palavras fluírem direto do meu coração. — Eu meio que quero dividir você
com eles.
A confissão me envolve, mais intensa e íntima do que um beijo.
Mais verdadeira do que qualquer coisa que eu já tenha lhe dito antes.
— Mesmo?
Ela sorri, emocionada, tirando um peso enorme do meu peito.
— Mesmo. — Puxo seu corpo para o meu e roubo dela um beijo
rápido, selando nossos lábios. — Talvez um pouco menos com o Roman —
digo, lembrando de como meu irmão sabe ser inconveniente.
Ana solta uma risadinha do meu comentário, a ponta arrebitada do
seu nariz enrubesce e desvio o rosto para não fazer algo esquisito como
morder aquele ponto.
— Vamos, não quero que sua mãe nos veja juntos assim — ela diz,
empurrando de leve o meu peito para se distanciar.
Minha mente protesta e, antes que eu consiga refrear meu corpo, já a
estou beijando. Tudo o que fazemos juntos é mágico, especial e intenso,
seus lábios não me repelem, pelo contrário, entram no meu ritmo como se
feitos para serem meus.
Ela relaxa, desmanchando-se nos meus braços. Sua confiança em
mim faz uma leve carícia no meu ego e quando me afasto seus olhos estão
turvos e rendidos.
— Pois o que eu mais quero é que nos vejam assim, juntos. —
Coloco os óculos de volta no rosto e sorrio, enquanto ela se recupera. —
Inclusive, agora é um ótimo momento para avisar que dona Tatiana pode ser
um pouco exagerada. Por favor, não se assuste.
De mãos dadas, subimos a escadaria que precede a entrada. Cada
detalhe extravagante da arquitetura combina perfeitamente com a minha
mãe, principalmente a mescla dúbia entre a modernidade das janelas
panorâmicas do segundo andar, com as colunas de mármore que ladeiam as
paredes da mansão.
— E se eles me odiarem? — Ana pergunta assim que paramos
diante da porta dupla. — E se pensarem que eu sou uma aproveitadora?
— Nesse caso, é melhor fazer um trabalho mais eficiente e se
aproveitar de mim direito — digo, achando graça do seu nervosismo.
— Andrei, estou falando sério. O que eu vou dizer para a sua mãe?
— Ana me olha horrorizada, mas sua expressão de pavor é tão fofa que eu
não consigo me manter sério. Ela me lança um olhar zangado e tenta
ensaiar: — Oi, tudo bem? Estou apaixonada pelo seu filho e estamos
morando juntos? — Ana fecha os olhos e geme. — Ela vai me odiar.
Apaixonada.
Ela não se dá conta do que acaba de dizer, sua preocupação continua
focada apenas na expectativa de conhecer minha mãe, então eu tento me
controlar. Tento. Não é nada fácil.
Guardo a avalanche de felicidade e paixão que me arrebatam e a
abraço pelos ombros, ignorando todo o resto do que foi dito. Sem chance de
voltarmos atrás agora, eu a quero em minha vida, na minha família, ao meu
lado, completamente minha.
— Você é perfeita — digo, sorrindo como um tolo que acaba de
ganhar um prêmio. — Minha mãe vai adorar você, acredite em mim. Muito
mais do que imagina. É humanamente impossível alguém não gostar de
você.
Ela me olha desconfiada, cedendo aos elogios. Beijo sua cabeça e
depois abro a porta, conduzindo-a para dentro.
— Não devia bater? — sussurra, agarrada ao meu braço como uma
criança.
Seus cabelos estão soltos, moldados em grandes ondas ao redor do
rosto, e ela puxa nervosamente uma mecha.
— É minha casa, eu não preciso disso.
A antessala está silenciosa, e o arfar de Ana reflete a beleza da
mansão. Eu a entendo, a casa da minha família é realmente uma das mais
lindas de toda a capital. Meu pai a escolheu especialmente para agradar
minha mãe, que nunca escondeu de ninguém como se amavam e colocou
aquele sentimento em cada detalhe: desde as taças combinando na
cristaleira, aos tons claros e românticos dos móveis.
— Minha mãe não se preocupa com os sapatos — digo, recolhendo
seu casaco e o pendurando no cabideiro junto com o meu —, ela diz que é
um costume ultrapassado.
— É incrível, Andrei — sussurra como uma intrusa. — Bem
diferente do que eu pensava. Consigo imaginar você crescendo em um lugar
como esse.
— Por que está sussurrando? — pergunto, rindo. — Meu pai
gostava dessa decoração mais ocidental, acho que puxei isso dele.
Uma rápida expressão confusa cruza o olhar de Ana.
— Eu gosto do nosso apartamento tradicional, das tapeçarias e os
quadros, você não?
Nosso apartamento.
— Você por acaso está tentando me deixar louco, é isso? —
pergunto, sedento para beijá-la de novo.
Mas nossa atenção é roubada por um pigarro impaciente que vem da
sala principal. Ana pula para o lado, separando-se de mim com os olhos
arregalados. Minha mãe caminha na nossa direção, vestida com um
macacão justo que deixaria as velhinhas do clube escandalizadas.
Ela olha primeiro para Ana com curiosidade, arqueia uma
sobrancelha bem feita, estreitando as pálpebras sobre os olhos azuis
idênticos aos do meu irmão mais velho. Ana se encolhe, arrisca um sorriso
discreto e espera que um de nós tome a palavra.
É claro que a primeira a dizer alguma coisa é minha mãe, seu
melhor olhar de desprezo direcionado a mim.
— Quem é você mesmo? — pergunta acidamente, apontando a unha
comprida e afiada para o meu nariz. — Seu rosto me parece familiar, mas
não consigo me lembrar.
— Sou eu, mãe, seu filho mais novo — respondo, paciente. Já
esperava por uma cena. — Não faz tanto tempo assim.
— Ah, sim. Eu já tive um filho caçula — ela divaga, agora
conversando com Ana como se eu nem existisse. — Lindo, jovem, educado,
com o sorriso mais arrebatador do mundo. Algumas vezes eu me pego
pensando no que pode ter acontecido com ele, já que não se dá ao trabalho
de se preocupar com a mãe doente.
De novo essa história.
— Não seja maldosa, mãe. A senhora não está doente.
Ela me encara com uma expressão entediada e torce o nariz com
desdém.
— Doente de desgosto e tristeza, em estado terminal de decepção!
— Ela gesticula com os braços, as pulseiras douradas tilintam em seus
pulsos a cada movimento brusco. — É sempre assim! Ivan fez o mesmo por
cinco anos, Vladimir não fica atrás, passou metade da vida enfiado naquela
empresa e se mudou na primeira oportunidade levando meus netos! Roman
é um caso à parte, ele não tem salvação. Você era a minha esperança, mas
preferiu abandonar sua família para morar com aquela incrível pessoa cheia
de adjetivos que eu prefiro não mencionar na frente da sua adorável
convidada. A propósito, seja muito bem-vinda, querida.
Ana me busca com o olhar, constrangida com o teatro da minha
mãe. Acho que não fui claro o suficiente sobre o quanto ela consegue ser
exagerada.
— Mãe, esta é Ana... — Faço uma pausa, não gostando da ideia de
usar o sobrenome que, muito possivelmente, pertence ao marido, e que
tenho evitado desde que nos conhecemos. — Ana Serova.
Há um segundo constrangedor em que a gente se encara.
— Ana está bom — ela intervém, esticando a mão.
Porém, a mão que lhe devolve o cumprimento não pertence à minha
mãe, e sim a Roman, meu irmão inconveniente que segura os dedos dela e
os leva à própria boca, deixando um beijo sobre eles com um sorriso torto e
provocativo. Como estamos parados no arco entre os dois cômodos, não
pude ver sua aproximação.
— Ana só Ana! — diz, colocando-se ao lado de nossa mãe. — A
moça da voz gostosa, que surpresa maravilhosa.
Eu estaria mentindo se dissesse que não sinto um incômodo, um
leve cutucão em meu ciúme adormecido, mas disfarço bem, principalmente
ao me deparar com o olhar horrorizado e culpado que se difunde no rosto
fragilizado de Ana, como se ela esperasse ser repreendida por mim.
Saboreio o ódio, memorizo seu amargor e o engulo de volta. Ela não
tem culpa de suas cicatrizes, e menos ainda dos receios com relação a mim,
em entender que não sou como ele.
— O que você está fazendo aqui, Roman? — Volto minha atenção
para meu querido e inoportuno irmão.
Roman, com sua típica jaqueta de couro e botas tratoradas,
semicerra os olhos verdes e cínicos, e não perde tempo em me provocar.
— Que rude, irmãozinho. Nem um abraço? Um beijinho? Nada? —
Ele faz uma careta ao perceber que não vou cair em sua conversa. — Está
ficando ranzinza igualzinho ao presidente.
— Pensei que fosse ficar mais tempo na Itália.
— Eu vim visitar minha linda, maravilhosa e extremamente doce,
mãe. — Roman puxa Tatiana pela cintura e beija seu rosto.
— Doce? — ela diz, ultrajada, empurrando meu irmão. — Eu não
carreguei você nove meses na barriga e aguentei o seu comportamento do
cão a vida inteira, para ser chamada de doce, Roman. Doce é a sua... —
Minha mãe para de falar, lembrando da presença de Ana. — Avó. — Ela se
desvencilha de Roman com um sorriso dissimulado, dá meia volta e
finalmente se retira para a sala principal.
— Doce como um dragão — Roman resmunga, dando risada. — Ela
anda cada vez pior, você realmente irritou a bruxa, Andrei, parabéns. —
Agora sim, Roman me puxa para um abraço. — Bom te ver por aqui, irmão.
Também o abraço, sentindo o cheiro de cigarro impregnado em suas
roupas. Felizmente, está apresentável, parece mais forte desde a última vez
que nos vimos, seu cabelo cresceu e não há sinais de brigas recentes em seu
rosto. Roman é mestre em arrumar problemas e vê-lo bem é um alívio sem
precedentes.
Achei que nosso reencontro seria estranho, tive medo de que a
relação entre nós quatro tivesse mudado, mas agora vejo como meus medos
foram infundados.
Eu os amo demais.
— Na verdade, estou feliz que esteja aqui também — digo assim
que nos afastamos. — Preciso conversar com você e nossos irmãos.
— Não — reclama com desgosto. — Por favor, me diga que não
quer uma reunião em pleno final de semana. Andrei, não nos vemos há
meses, esqueça o trabalho um pouco.
— Não é sobre a empresa — garanto, sem entrar em detalhes por
causa de Ana. — Há algo que preciso resolver.
Roman gargalha, pensando que estou de brincadeira. Não o culpo,
acho que nunca precisei pedir a ajuda deles para qualquer coisa antes.
— Bom, essa é nova. — Ele pigarreia, franzindo as sobrancelhas. —
Tipo, um problema? — Ele ri outra vez, descrente. — Desculpa, é que você
é o cara que resolve os problemas, então… — Meu irmão olha de mim
para Ana, e de volta para mim. — A matemática meio que não está fazendo
sentido.
Roman sempre foi perspicaz, então o encaro profundamente, em
silêncio. Como irmãos, nunca precisamos de muitas palavras para nos
comunicarmos. Ele lança outro olhar para Ana ao meu lado, fazendo uma
pergunta silenciosa que eu respondo com um breve aceno, sua expressão se
transforma no mesmo instante.
— Algo do tipo — digo, mantendo um tom tranquilo.
— E eu devo ligar para nossos irmãos agora? — pergunta, mais
sério. — Vladimir está na empresa e Ivan deve estar correndo atrás da Lara
com uma daquelas folhas gigantes, abanando o ar ao redor dela, igual um
servo.
Aquiesço com a cabeça o mais inexpressivamente possível.
— Sim, ligue para eles.
— Certo. — Roman abre um imenso sorriso, mas seus olhos
brilham, arregalados, com uma curiosidade perigosa. Volta-se para Ana e
vasculha seu rosto. — Foi um prazer, Ana só Ana.
Confusa, Ana se despede com um aceno, desconfiada. Não diz nada
até Roman desaparecer das nossas vistas.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunta, erguendo os olhos
amendoados para me encarar.
Nada demais, eu só preciso da ajuda deles para encontrar o homem
que machucou você.
— Não — minto, beijando sua maçã do rosto com ternura. — Nada
com o que se preocupar.
14
Andrei
EU ME SINTO como um adolescente levando a namorada para conhecer os
pais pela primeira vez. Minha ansiedade beira ao ridículo, mas ninguém
percebe. Na arte de dissimular os sentimentos, eu sou o mestre.
Passamos pelo hall com a escadaria que leva para o segundo andar e
entramos na sala de visitas, onde minha mãe já está acomodada em um dos
sofás brancos, com as pernas cruzadas e um sorriso exagerado no rosto.
Alguns móveis foram mudados de lugar, então me demoro reconhecendo as
cristaleiras que antes ficavam na sala principal, assim como a poltrona que
pertencia ao meu pai, da qual não ouso me aproximar.
— Pensei que tivessem se livrado disso.
Minha mãe finge não me escutar, mas dispensa um breve olhar para
o móvel e lá está a ruga de tristeza entre seus olhos que sempre me fez
praguejar contra as memórias boas de Nicolai. Eu o perdoei por tudo: por
tirar a própria vida, pelos danos irreversíveis que seus segredos causaram ao
meu irmão mais velho, por todos os problemas que precisei resolver
judicialmente graças aos seus erros.
Mas jamais o perdoei pelo sofrimento causado à minha mãe.
Algumas vezes eu penso que, talvez, tenha sido exatamente por isso
que insisti tanto em me manter ao lado de Evgenia: eu não queria causar
esse mesmo sentimento desolador em alguém que dedicou tanto do seu
amor a mim.
— Você está bem? — Ana sussurra, tocando meu braço. Olho para
baixo e encontro seu rosto preocupado, as pálpebras se movendo em um
piscar lento.
— Sim — respondo, vestindo um sorriso que a tranquiliza. — Só
um pouco nostálgico.
— Sente-se aqui, querida — minha mãe diz, dando tapinhas no
espaço vazio ao seu lado. — Me deixe ver seu rosto mais de perto, sim?
— Mãe, tente não ser tão assustadora, por favor? — peço em tom de
brincadeira.
— Não seja tolo, Andrei. — Ela me rejeita com um abano de mão,
batendo os cílios compridos. — Eu nem comecei ainda.
— Está tudo bem — Ana diz, acomodando-se perto de Tatiana.
Pobrezinha, acabei de atirá-la aos lobos. Ou melhor, à loba matriarca. —
Obrigada por nos receber, senhora Volkiova.
Minha mãe solta uma risada e segura o queixo de Ana, virando o
rosto dela de um lado para o outro com uma expressão aprovadora.
— Querida, me chame de Tatiana, ou de sogra, como preferir. —
Não interfiro. No tocante à inserção de Ana na família, eu espero que minha
mãe seja invasiva pelo tanto que eu ainda não posso ser. — Serena já havia
me contado que você era lindíssima, mas eu não imaginei que fosse tanto
assim.
— Obrigada — Ana murmura, constrangida, fazendo um pedido de
socorro com o olhar para mim, que finjo nem perceber.
— Ana vai trabalhar conosco no abrigo — conto, encostando no
batente da porta enquanto aguardo pela chegada dos meus irmãos. — Será
nossa nova professora de música.
Minha mãe continua olhando fixamente para Ana com um
semblante indecifrável.
— Professora de música? Interessante, muito interessante — repete
misteriosamente, sem jamais desviar os olhos. Dedilha, com suas unhas
compridas, o estofado do sofá. — Deve estar fazendo um bom proveito
daquele piano, isso é ótimo, estava parado há muitos anos.
Ana não percebe que minha mãe acaba de jogar uma isca para
descobrir se estamos vivendo juntos no apartamento, mas não tenho tempo
de alertá-la, pois seus olhos se iluminam como sempre acontece quando o
assunto envolve sua música, e eu perco momentaneamente a fala.
— É incrível! — exclama, feliz. O sorriso de minha mãe corta seu
rosto de orelha a orelha. — Fazia algum tempo que eu não tocava e poder
fazer isso todos os dias tem sido maravilhoso.
— Todos os dias? — Tatiana se adianta, animada. Fico quieto,
assistindo até onde essa conversa pode chegar. — Interessante, realmente
interessante.
— O que é tão interessante? — Ivan aparece atrás de mim e olha
direto para Ana, franzindo o cenho.
Meu irmão tem quase a minha altura, mas seus ombros largos e os
braços fortes conferem a ele uma aparência robusta e um pouco intimidante.
Ivan tem essa expressão de quem está puto o tempo todo por motivo
nenhum. Ele olha para mim com desprezo, as íris escuras se tornando mais
densas, e não se dá ao trabalho de me cumprimentar.
Sei que mereço cada gota de seu rancor, mas seu silêncio é pior do
que receber um soco.
— Nossa querida Ana — minha mãe diz em um tom perverso que
me deixa alerta, apontando para uma confusa e deslocada Ana ao seu lado
— tem tocado para o seu irmão todos os dias.
Espera...
— O que? — Ivan pergunta, arregalando os olhos na minha direção,
mas estou mais preocupado com a reação de Ana, que demora a chegar.
Ela inclina a cabeça para o lado, processando as palavras dúbias de
Tatiana enquanto seu rosto vai se tornando mais e mais lívido. Seus lábios
pequenos se escancaram em um círculo perfeito e, antes que eu consiga
salvar nós dois de um mal entendido catastrófico, Roman surge,
empurrando Ivan para o lado.
— Tocado? — pergunta, rindo sugestivamente. — Que pervertidos!
— Não foi isso que eu… — Ana tenta falar, mas é interrompida
pelo aparecimento de Iago, meu sobrinho, que se esquiva do pai e invade a
sala.
O menino magro e observador passa os olhos por todos nós
rapidamente, se demora em Ana, como se tentando decifrar quem ela é e o
que sua presença significa. Ele lhe sorri, educado, depois gira sobre os pés e
nos encara. Seu cabelo é uma desordem loira que combina com sua
camiseta larga e os pés descalços.
— Do que estão falando? — pergunta, usando um timbre maduro
característico dele, com seus penetrantes e sábios olhos verdes atentos em
nossas reações.
— Conversa de adultos — Roman responde. — Você não pode
ouvir. Volte daqui três ou quatro anos, quando tiver uma namorada e um
pipi grande.
— Eu não sou mais criança — Iago protesta e, preciso admitir, por
vezes sua idade mental supera a de Roman. — Já tenho dez anos, tio. Logo
vou fazer onze e dizer coisas como pipi grande é meio vergonhoso.
Roman faz uma careta engraçada para a eloquência de Iago.
— Mas o que é isso? Parece um velhinho falando. Quando eu tinha
dez anos estava comendo terra no jardim e girando meu pipi na frente do
espelho. — Roman se volta para nosso irmão. — Ivan, seu filho é uma
miniatura do presidente, faça alguma coisa a respeito.
— Devo perguntar o que está acontecendo? — Uma nova voz se une
à algazarra e o ambiente parece encolher com a chegada de Vladimir. Ele
espia sobre o ombro de Ivan e hesita ao notar o clima constrangedor,
inevitável quando nossa mãe e Roman estão envolvidos. — Sinto que não é
uma boa ideia.
— Ana e Andrei estão se tocando — Roman explica com um sorriso
sacana, contradizendo-se sobre a presença de Iago na sala.
— Não é nada disso! — Ana diz, com uma linda voz aguda e
desesperada, olhando para meu sobrinho com preocupação como se
cogitasse tapar seus ouvidos infantis.
— Então não estão se tocando? — minha mãe indaga se fazendo de
desentendida.
— Não… — Ana me busca com um olhar desesperado.
— Não? — Tatiana insiste, botando pressão, e todos os olhos se
voltam para mim, como se a questão fosse da conta deles e somente eu
tivesse o poder de sanar suas dúvidas.
Apesar das expressões constrangidas de Ana serem lindas de ver,
opto por colocar um fim à conversa.
— Piano, ela tem tocado piano. — Censuro minha mãe com um
olhar, mas ela dá de ombros com um sorriso dissimulado.
— Foi o que eu disse desde o começo — resmunga teimosamente.
— Ana tem tocado piano todos os dias para o irmão de vocês, no
apartamento onde estão morando juntos, tomando café da manhã juntos,
jantando juntos e dormindo juntos. Debaixo do mesmo teto, juntos. — Cada
sentença é proferida com um timbre acusatório. — Juntos, entenderam?
Vladimir se adianta para dentro da sala e Ana se ajeita na poltrona,
intimidada com a elegância e poder que emanam do meu irmão mais velho.
Ele me cumprimenta com um meio abraço bastante incomum. Está vestido
com um terno escuro e uma gravata vermelha, típica de um empresário.
— Não tivemos a chance de conversar direito aquele dia, mas
Serena me contou sobre você. — Vladimir estende a mão para
cumprimentar Ana e ela demora muito mais tempo do que seria educado
para se levantar e retribuir o gesto. — Quando ela sugeriu que vocês
pareciam próximos, pensei que fosse um exagero. Seja bem-vinda à família.
Escondo a boca com o dorso da mão para esconder uma risada.
Minha família não tem nenhum senso de discrição. Para completar, ele faz
um carinho rápido em sua cabeça que a deixa perplexa e sem reação. Não o
culpo, também sinto necessidade de tocá-la o tempo todo, sobretudo quando
esboça uma expressão tão encantadora.
— Ela provavelmente exagerou — digo para Vladimir. — Ou não
seria a Serena. Mas sim, nós estamos morando juntos. — Acalmo Ana com
um olhar, pedindo em silêncio que confie em mim. — Eu precisei me
mudar às pressas e não queria ficar em um hotel, e Ana também precisava
de um lugar para se hospedar aqui em Moscou, pelo menos por algum
tempo.
Ivan comprime os lábios e me fulmina com os olhos semicerrados.
— Não entendo. — Ele cruza os enormes braços na frente do peito
largo. — E por que você não veio para a mansão? Quer tanto assim ficar
longe da sua família?
— Pai, é óbvio que ele não queria deixar a Ana sozinha — Iago
explica, poupando-me de responder aquilo que está explícito. Meu sobrinho
rola os olhos para trás, arrancando de Roman uma gargalhada.
— Garoto — Roman diz, dando um apertão no ombro de Iago —,
sorte a sua que não pegou a lerdeza do seu pai. Eu sempre tive medo de que
fosse contagiosa.
Ivan segue me encarando como se quisesse arrancar a minha cabeça.
Sei que é seu jeito de demonstrar que se importa, mas também sei que Lara
é o centro do seu mundo e que ele prefere ser apunhalado no peito do que
ver sua mulher triste por minha causa — ou por qualquer motivo.
— Eu não tive a intenção de me afastar, Ivan — digo ao meu irmão.
— Vocês não precisam mais se preocupar comigo. Você sabe que amo Lara
e nunca quis magoá-la. — Não é o momento para termos essa conversa,
sobretudo na frente de Ana, mas eu preciso dar o primeiro passo e começar
a lidar com meus segredos problemáticos aos poucos.
Como eu posso querer lidar com os problemas dela se não resolver
os meus primeiro?
No entanto, Ana surpreende a todos nós, ficando de pé
abruptamente. Ela respira fundo, abre e fecha a boca algumas vezes,
enquanto a encaramos com atenção. Não sei o que esperar, mas há uma
determinação suave em seus olhos enquanto os passeia sobre cada membro
da minha família, que puxa meu coração um pouco mais para perto do dela.
— Eu sinto muito! — diz, esganiçada, meio gritando, meio
gaguejando. — Sei muito pouco sobre o que aconteceu entre vocês, mas
Andrei é um homem incrível que tem me ajudado muito. Posso ver que
sentem falta dele, que se amam e isso me deixa feliz porque ele merece ser
amado assim. — O som de sua voz vai se tornando mais baixo e vacilante,
mesmo assim, ela não para. — Mas eu gostaria de pedir que não o tirem de
mim ainda. Me desculpem por ser eu um dos motivos para que Andrei não
tenha voltado para casa ainda, mas eu realmente preciso da companhia dele.
Ao terminar, Ana se joga de volta no sofá e um silêncio absoluto
reina no ambiente. Há tantas emoções diferentes se confrontando dentro de
mim que não sei escolher a qual delas me apegar: se à paixão sólida que
pesa em meu estômago como uma nova parte da minha existência; se ao
desejo pedinte enraizado em meu corpo e cujo combustível é o queimor de
sua pele em contato com meus dedos; ou, quem sabe, ao egoísmo orgânico
que exige sua companhia com uma ganância submissiva, dependente e
irremediavelmente protetora.
— Você é muito fofa, Ana — Iago diz, impressionado.
Ela deixou todos sem palavras e eu meio que gosto disso.
Gosto demais.
Não é qualquer pessoa que deixa os irmãos Volkiov sem palavras.
— Espera um minuto — minha mãe fala de repente, erguendo a mão
no alto. — Então, vocês estão juntos? Romanticamente juntos? Fisicamente
juntos? Eu nem preciso dar um empurrãozinho? E a sua sanguessuga,
Andrei? O que aconteceu com ela? Não que eu me importe, é claro. Aliás,
esqueça que eu perguntei, foi um lapso momentâneo. Ana querida, meu
voto é seu.
— Nós estamos juntos — admito, caminhando para perto dela. Ana
emenda o restante do curto trajeto até mim. Quando a abraço, acolhendo
toda a força que parece transbordar de seu corpo miúdo, é como se as
preces das minhas mãos estivessem sendo atendidas. — Queria que vocês
fossem os primeiros a saber.
Olhamos ao mesmo tempo para o encontro de nossas mãos livres, os
dedos se entrelaçando, os lábios se curvando em sincronia no formato de
sorrisos gêmeos. Acato o pedido de minha mãe e não menciono o que
ocorreu entre mim e Evgenia para não deixar Ana desconfortável. Hoje o
dia é sobre nós, e não sobre nossos fantasmas.
— Obrigada — ela sussurra e, se eu cheguei a ter qualquer dúvida
inconsciente sobre trazer Ana até a mansão, elas são erradicadas assim que
encosta a cabeça em meu peito.
— Roman — minha mãe ofega, esticando um braço para frente
— me belisque, por favor?
— Ficou louca? Eu tenho muito amor à vida!
Tatiana espalma a mão direita sobre o peito e limpa uma lágrima
invisível com a outra, encenando um choro emocionado com direito a
fungada e soluço — bem típicos, falsos e normais para quem a conhece
bem.
— Eu sempre soube que meu filho caçula jamais me traria os
mesmos desgostos que vocês três — diz para meus irmãos. — É uma obra
perfeita, vejam: bonito, inteligente, educado, planeja se casar e ter filhos.
Nunca duvidei nem por um segundo.
— Há meia hora ela fingiu que não se lembrava do meu nome —
conto a eles. Ana treme com sua risada contagiante, que faz todos nós
rirmos também.
— Andrei é praticamente da realeza, já sabemos disso. — Vladimir
confere o relógio em seu pulso. — Agora, será que podemos conversar,
Andrei? Preciso voltar para a empresa, temos no máximo meia hora. Serena
está na associação com as crianças e Lara ficou presa em uma reunião.
— Então, além de fazer o trabalho de vocês, elas ainda cuidam das
crianças enquanto os dois marmanjos ficam vadiando? — Roman os
provoca. — Sinto pena das minhas cunhadas.
— Você que nos chamou, Roman — Ivan o repreende. Depois,
volta-se para mim e solta um suspiro vencido. — Ele disse que você
precisava conversar sobre algo importante.
— No escritório.
Meus irmãos se despedem de Ana e desaparecem, um após o outro,
pelo corredor, rumo ao escritório residencial.
— Iago, o que você acha de vir comigo até a cozinha? — Tatiana
sugere ao neto mais velho, puxando-o pela mão. — É educado servir
alguma coisa às visitas.
Temos funcionários suficientes na mansão para preparar um
banquete, e minha mãe não é a pessoa mais confiável quando o assunto
envolve gastronomia, mas a intenção por trás de seu convite não passa
despercebida nem a mim, e nem ao meu sobrinho — acho que nem à Ana.
— Quer deixar os dois sozinhos, vó? — ele pergunta com
naturalidade, acompanhando minha mãe porta afora.
— Ótima ideia! — ela exclama, pouco antes de sumirem do nosso
campo de visão. A conversa continua por alguns segundos breves até se
tornar inaudível pela distância.
Finalmente sozinhos, Ana relaxa em meus braços e a viro de frente
para mim. Sou arrebatado pelo rosto risonho à minha mercê. Seus braços
contornam a minha cintura e apoio os meus em seus ombros, deixando
nossos lábios corretamente próximos.
— Então, essa é minha família. Sinto muito, mas é tarde demais
para fugir.
— Eles são divertidos — diz, deslizando as mãos pelas minhas
costas. — Agora entendo porque sente tanta falta deles. Eu poderia me
acostumar com essa agitação.
— E eu poderia facilmente me acostumar com isso. — Nos giro de
encontro à parede e não lhe dou tempo para resistir. Preciso dela!
Ana não me decepciona e agarra as laterais da minha camisa, sinto-a
inteira com uma consciência quase sobrenatural. Se antes o corpo feminino
silenciava meus temores, o dela faz todos eles gritarem.
— Sua família… Andrei… — Ela arqueja contra a minha boca.
— Exato, se fizer algum barulho, eles podem nos ouvir.
É uma mentira, pois não permito que os gemidos sedutores que ela
emite fujam para longe. Eu os engulo. O único som reinante é dos
sentimentos que dançam e cantam em nossos corações.
Controlo a fome e a sede que se intensificam ao sentir o toque macio
de seus lábios e me entrego à lentidão venerativa do seu sabor. A gente se
sente, eu a toco, exploro, memorizo e mapeio, tanto com as mãos, como
com a boca, e de repente tudo em mim quer saber de tudo nela: os detalhes,
os pontos que a fazem se arrepiar e cada pequena pinta que porventura pode
estar escondida em sua pele.
Eu poderia tê-la assim, de pé contra a parede, com a luz da manhã
banhando sua pele com pigmentos de ouro. É definitivamente uma fantasia
tentadora e só comprova como minhas necessidades e sentimentos
alcançaram a loucura.
Não sei como, mas sou obrigado por um mísero fio de bom senso a
me afastar dela. Dói fisicamente, é horrível lutar contra nossos desejos, mas
se eu tomar uma gota a mais de Ana, acabarei derramando minha gula pelas
bordas de um autocontrole que não anda muito confiável.
É uma tortura necessária.
— Volto logo — prometo. — Meus irmãos estão esperando.
Ana aquiesce, tenta arrumar o cabelo e a roupa. Prefiro não dizer
que continua com cara de quem estava pronta para ser devorada, porque
gosto da visão. E é por gostar tanto que me obrigo a caminhar para a porta.
— É verdade que — ela diz às minhas costas, pouco antes de eu sair
— você sempre quis ter filhos?
Sinto o impacto da pergunta a tempo de policiar minhas expressões,
não consigo deduzir por qual motivo isso a preocupa. Falar sobre filhos é
um passo grande demais para alguém que saiu há tão pouco tempo de um
relacionamento como o dela, minha mãe deve tê-la assustado com seu
excesso de informações pessoais.
— Esse já foi o meu maior sonho — respondo cautelosamente.
Também não é o meu assunto preferido.
— Não é mais? — ela insiste, colocando-me diante de duas
possibilidades de resposta igualmente péssimas.
Mentir ou dizer a verdade. Tenho a impressão de que, quando se
trata de Ana e eu, estamos sempre transitando entre ambos com meias-
mentiras e meias-verdades.
— Sonhos são coisas abstratas demais, e nem sempre se realizam da
forma como desejamos. Eu acho que simplesmente entendi que não nasci
para ser pai. — Visto um sorriso mascarado para omitir a parte importante
que me machuca e sigo em frente. — Não mais.
Eu não suportaria passar por aquela dor novamente.

***

Diferente do restante da casa, o escritório foi decorado com móveis


rústicos e tapeçarias, além de estantes abarrotadas com livros, que vão da
ficção ao empreendedorismo.
Meu irmão mais velho está sentado atrás da grande mesa de
carvalho como se fosse uma extensão do móvel. É apenas natural que sua
imagem esteja sempre associada ao ambiente de trabalho. Desde quando
assumiu os negócios da família, todas as minhas lembranças de Vladimir
estão ligadas à empresa e a este escritório.
Já faz um ano desde a última vez que estive aqui, mas a sensação
familiar continua a mesma. Nós crescemos dentro destas paredes,
brincamos por estes mesmos corredores. Os três homens à minha frente são
os únicos a quem confiaria a minha vida e por quem eu morreria se preciso
fosse, e sei que fariam o mesmo por mim.
Roman me entrega um copo cheio que eu levo à boca assim que
termino de fechar a porta atrás de mim. Meu paladar recebe a vodca com
muita satisfação, mesmo que já me seja tão comum quanto qualquer outra
bebida, seja ela alcoólica ou não. Ele também segura seu próprio copo, ao
contrário de Ivan, que vem para cima de mim com o dedo em riste.
— Ligue para ela — ordena. — Diga que a ama e que sente
saudades. Beije os pés dela se for preciso, cante uma canção ou a leve para
jantar, qualquer coisa, não me importo! Só me garanta que não passarei
mais uma semana escutando minha mulher se lamentar pelos cantos porque
está preocupada com você.
Tenho que fazer um grande esforço para não sorrir. Poucas coisas
me fazem tão feliz quanto a certeza do amor que meu irmão sente pela
minha melhor amiga.
— Eu prometo — garanto com convicção.
Ivan avalia minha expressão, e deve gostar do que encontra, porque
aquiesce e se afasta com passos duros, sentando-se em uma cadeira próxima
à mesa.
— Muito bem — Vladimir toma a palavra. — Agora conte, o que
está acontecendo? Já faz algum tempo desde quando precisou de nós para
resolver qualquer coisa.
— Uns vinte e seis anos, mais precisamente — Roman diz, fazendo
graça. Sua especialidade é usar o humor para disfarçar seu verdadeiro
estado de espírito e, a julgar por sua postura tensa, os músculos rígidos e os
olhos vidrados, diria que seu estado atual não está dos melhores.
— Preciso de ajuda para encontrar uma pessoa — digo sem rodeios,
com os pés fincados no chão, paralisado no lugar. Os três ficam em silêncio,
atentos às minhas palavras. — Sei que não tenho sido o melhor irmão nos
últimos meses, nem o melhor cunhado, filho ou mesmo um tio presente,
mas eu não estaria pedindo a vocês se não fosse importante.
— E o bom filho à casa torna. — Roman deixa seu copo já vazio
sobre a mesa e ignora o olhar enviesado de Vladimir. — Agora, quem
precisamos matar? Digo, encontrar?
Olho bem para cada um deles antes de também esvaziar meu copo.
Ando em linha reta até a mesa e o abandono ao lado do de Roman. Minha
garganta pede por mais, mas a ignoro por enquanto. Não sei por onde
começar, se pudesse escolher, apagaria da minha mente a imagem de como
Ana estava quando chegou até mim, mas não é algo que eu consiga
simplesmente esquecer.
— Conhecemos você — Vladimir diz, sendo perspicaz quanto ao
meu silêncio. — Desde pequeno, sempre foi o melhor de nós, Andrei. O
mais justo, o mais bondoso, o mais altruísta. Seu defeito é ser bom demais,
pensar mais nos outros do que em si mesmo. Então suponho que nos
chamou aqui hoje por causa dela. Qual é a verdadeira história por trás
daquela menina?
— Ela está fugindo de uma pessoa — conto de uma vez, com os
olhos fixos em um ponto do chão, recostando-me na mesa. — Tudo
começou quando Lara me chamou na associação mês passado, ela disse que
precisava da minha ajuda porque não conseguia tirar Ana da cabeça.
— Eu me lembro — Ivan diz, endireitando o corpo com o requinte
de um felino desconfiado. — Lara comentou que talvez ela fosse maltratada
pelo marido, mas que não tinha como ter certeza. — Ele aperta os braços da
cadeira até as veias em seus punhos fechados saltarem sobre o dorso das
mãos. — Então, é verdade?
Por um momento, minha visão fica turva e só há aquela imagem à
minha frente, propagando-se por quilômetros e mais quilômetros em um
limbo mental pelo qual odeio caminhar — a imagem das marcas em seu
corpo.
— Eu vi com meus próprios olhos — digo, ciente de que a
transfiguração de cólera em meu rosto antecipa a resposta. — Demorou
alguns dias para os hematomas desaparecem por completo.
— Porra! — Roman pragueja. — E não passou pela sua cabeça nos
procurar antes?
— Não poderiam ter feito nada. Eu precisava conquistar a confiança
dela.
— Ah, nós percebemos que conquistou bem mais do que a
confiança — Roman me alfineta, e não tenho como me defender de seu
julgamento.
— Estou ciente de que me envolver com ela não foi uma atitude
prudente. Mas ela é tão… — Procuro a definição certa, porém, seus
atrativos são tantos que não consigo escolher apenas um: linda, doce,
inteligente, talentosa, definitivamente gostosa demais para o próprio bem e
para o meu. — A questão é que não pude evitar, e não planejo voltar atrás.
— Está apaixonado por ela, já entendemos. — Olho para trás,
seguindo a voz de Vladimir. Ele apoia os cotovelos sobre a mesa e me
analisa, fechando as mãos sob o queixo quadrado. — E o que aconteceu
com você e Evgenia?
— Nós terminamos.
— Mesmo? — Ivan se intromete com um tom que beira a
indignação. — Acho que ela não pensa assim. Evgenia tem procurado por
você na empresa, Andrei. Ela liga, cerca nossos funcionários fazendo
perguntas a seu respeito, e ouso dizer que só não se aproxima da mansão
porque tem algum bom senso e sabe que nossa mãe a odeia.
Genny…
Suas inúmeras tentativas de me contatar pesam em meu bolso,
ligações e mensagens que tenho negligenciado como um covarde. Tentei me
apegar à ínfima possibilidade de que, se a ignorasse, eventualmente
desistiria de me procurar, mas parece que eu estava apenas me iludindo.
Trancafiar-me com Ana em nossa bolha não vai fazer com que o restante do
mundo deixe de existir.
— Preciso lidar com uma coisa de cada vez — digo, sentindo uma
pontada aguda no fundo do crânio. — Mas falarei com ela o mais breve
possível. Só preciso descobrir o paradeiro do ex-marido de Ana primeiro, é
a minha prioridade máxima e o motivo pelo qual preciso de vocês.
— Claro, todo dia é um bom dia para socar a cara de um filho da
puta. — Roman se espreguiça e estica o pescoço de um lado para o outro. O
canino brilha em seu sorriso torto e selvagem, formando um conjunto
harmonioso com seus olhos perturbadores. — Quando começamos?
— Ela se recusa a me dar um nome — explico, fingindo não levar
suas palavras a sério. Continuo repetindo para mim mesmo que encontrar
esse homem é apenas uma precaução, mas a verdade é que talvez, pela
primeira vez na vida, eu concorde com Roman. — Não posso obrigá-la a
me contar.
— Então, vai investigar a vida dela?
Analiso o rosto de Vladimir para determinar se há alguma
reprovação em sua pergunta, mas o semblante congelado e indecifrável do
presidente é uma máscara quase impenetrável.
— Não seria a primeira vez. — Viro-me para ele sem me intimidar.
— Ou preciso lembrá-lo que, se não fosse por mim, não teríamos metade
das informações coletadas sobre Serena quando estava procurando por seu
paradeiro? — Volto-me também para Ivan, cruzando os braços. — E o
mesmo sobre Lara: a iniciativa de investigar seu passado quando nos
propuseram aquele casamento por conveniência foi minha. Por que eu não
faria o mesmo agora?
Atônitos, arregalam os olhos diante da minha hostilidade a respeito
de seus relacionamentos. Nunca foi fácil ser um Volkiov, eles sabem disso.
— Ei, ei, ei, senhor advogado, guarde suas armas, estamos do seu
lado. — Roman ergue os braços em uma espécie de rendição. — Não é
como se qualquer um de nós tivesse alguma moral para julgar, e muito
menos para julgar você, um santo. Sejamos sinceros, quem quer que tenha
feito mal a ela, merece o inferno. A garota parece uma boneca, não poderia
se defender de um vento!
Ivan se ergue de sua cadeira e para na minha frente. De todos, é
provavelmente o único que entende esse sentimento sem nome se
alimentando da minha carne de dentro para fora, a ânsia monstruosa com
garras afiadas que pede pelo nome daquele que a quebrou, pois já passou
por algo semelhante com sua mulher.
— Ela é importante para você, irmão — ele diz, determinado. —
Importante o suficiente para trazê-lo de volta para nós. Então, a partir de
agora, é importante para esta família também.
Meu irmão se afasta, e os três me olham com expectativas
diferentes: Roman e sua selvageria quase criminosa, Ivan com sua lealdade
cega, e o presidente, Vladimir, que se limita a anuir com a cabeça,
demonstrando seu apoio com ações silenciosas.
— Não quero um dossiê sobre Ana e seu passado — explico, mais
aliviado em finalmente compartilhar um pouco do meu peso. — Preciso
apenas de uma ficha completa sobre o marido dela.
Odeio essa palavra: marido.
— Não vai ser difícil — Roman pondera. — Ana é prima de Dema,
e Dema é amiga da Lara, que é casada com o Ivan, seu irmão. A
matemática é simples, o que estamos esperando?
Nego com a cabeça, refutando sua ideia. O gosto das minhas
próximas palavras é tão amargo que a náusea ameaça me dominar.
— Dema não pode saber. Pelo menos, não por enquanto. Ana não
quer que a família fique sabendo. Ela pretende… — Quase não consigo
concluir a frase, mas a forço para fora da garganta junto com um grunhido.
— Esconder o ocorrido.
— Nem fodendo! — Roman esbraveja, inconformado.
— Não, também não concordo. — Adianto-me devagar até a garrafa
que meu irmão abrira para nos servir antes e encho meu copo, sentindo o
odor etílico impregnar minhas narinas. — Mas não quero que venham atrás
dela antes de descobrirmos com quem estamos lidando. Não vou correr o
risco de que a levem de mim.
Olho fixamente para o líquido agitado em minha mão, as ondas
trêmulas ilustrando meus sentimentos nada estáveis ao imaginar-me longe
dela. Em tão pouco tempo, já sinto como se toda a minha existência antes
de Ana tivesse sido apenas uma introdução simplória perto da experiência
que é viver ao seu lado.
Se apaixonar deveria ser assim tão rápido? Tão arrebatador?
— Mas está certo sobre uma coisa — prossigo, recuperando meu
raciocínio. — Não vai ser muito difícil. Tenho nomes, fontes. Ela veio de
São Petersburgo, será fácil rastrear seu trajeto até chegarmos ao ponto de
partida.
— Acha que ele virá atrás dela? — Ivan é quem faz a pergunta, e
preciso recorrer a um gole generoso da minha bebida antes de expor meus
temores.
— Ela disse que sim, mas não vou esperar para ter certeza. Você
consegue cuidar disso?
O semblante de Ivan endurece. Ele entende que meu pedido se
baseia em sua proximidade constante com inúmeros investigadores. Ele tem
os contatos certos, conhece os melhores da cidade. Há alguns anos, quando
ele e Lara adotaram Iago, uma garotinha que vivia no orfanato junto com
ele foi levada bem debaixo dos nossos narizes sob condições adversas.
Exceto por uma pista ou outra, jamais fomos capazes de encontrá-la.
Mas é claro que Ivan não desistiu, e duvido que um dia isso
aconteça. Mesmo assim, é o melhor de nós para colocar pessoas eficientes à
frente da busca pelo homem que pretendo encontrar.
— Posso contatar alguns dos investigadores que estão cuidando do
caso da Tasha — Ivan me garante. — Não ligo de recorrer à Dimitrio se for
preciso.
Dimitrio é seu cunhado, um sujeito arrogante e egoísta, mas que
possui vínculos valiosos com a Interpol que não ouso dispensar.
— Ana tem um irmão que se chama Akira e outro chamado Zayn —
conto, dando-lhe informações básicas para dar início às investigações. —
Os pais são filantropos, então duvido que teremos problemas para conseguir
resultados rápidos. Vou preparar um documento mais detalhado, mas pode
começar com isso.
— É o bastante, colocarei os homens certos no caso. Nós vamos
encontrá-lo — ele garante, tão determinado quanto eu mesmo.
Sabia que podia contar com eles.
— Andrei — Vladimir me chama, quebrando o silêncio em que se
manteve nos últimos minutos. Ele tem o talento de ouvir primeiro para tirar
suas próprias conclusões, e quando decide se pronunciar, seja o que for,
merece ser escutado com atenção. São as palavras de um líder. — O que
você pretende fazer quando encontrá-lo?
Que tipo de pergunta é essa?
O que eu vou fazer?
A resposta é fácil.
Fácil demais
— Garantir que nunca mais chegue perto dela.
— Devemos nos preocupar com os seus métodos? — Seus olhos
azuis brilham como o próprio oceano turbulento.
Não entendo o teor da pergunta de Vladimir à princípio, mas uma
linha de preocupação é visível nas três faces robustas à minha frente. Tento
me visualizar através de suas lentes: vejo-me no meio da sala, com minhas
visíveis e sempre presentes olheiras, o cabelo despenteado por causa do
tamanho, o copo quase vazio e os piores sentimentos tentando escalar as
muralhas da minha alma.
Eles podem ver as rachaduras através dos meus olhos? Conseguem
perceber as valas escuras dentro de mim que até eu desconheço?
Estão com medo... de mim?
— Alguma vez eu já dei a vocês algum motivo para se
preocuparem? — questiono firmemente, conseguindo até mesmo sorrir para
tranquilizá-los. Não sei o quão genuíno é esse sorriso. — Existem meios
legais para manter esse desgraçado longe, não vou fazer nenhuma loucura.
Eu não sou assim.
Eu não sou.
Eu não vou fazer nada imprudente.
Definitivamente não vou.
Certo?
— Se está dizendo. Mas, sabe de uma coisa? — Roman toma o copo
da minha mão e o encara com desgosto. Sua seriedade, tão incomum, é um
tanto perturbadora, sobretudo ao ser direcionada a mim nos moldes de um
aviso, um alerta cuidadoso, talvez até temeroso. — Só os tolos não temem
os bons. Você acha que são as pessoas más que causam catástrofes? Não,
não. As piores guerras são travadas em nome do amor, e à frente delas há
sempre um grande homem buscando justiça. E você, Andrei, é um maldito
justiceiro.
15
Anastasia
DURANTE TODA A minha infância e boa parte da adolescência, ouvi dos
meus pais que eu tinha sonhos bobos. Alguém com o meu talento não devia
desperdiçar a vida pensando em coisas como o amor, então fizeram de tudo
para me manter afastada das crianças da minha idade. Aquele desejo
fantasioso de formar a minha própria família precisava ser sobrepujado pelo
meu potencial sucesso, e por muito tempo eles conseguiram.
Frequentei os melhores colégios para garotas do continente antes de
ser enviada para a Europa. Meus pais disseram que seria bom para
aperfeiçoar meus talentos, mas eu sabia a verdade. Eles só queriam manter
Zayn e Akira afastados de mim, como se o fato de não compartilharmos o
mesmo sangue não nos fizesse irmãos de verdade.
Também era mais fácil comer a mente de Zayn se ele estivesse
isolado.
Eu não entendia o que significava ser um prodígio, não percebia a
animação cobiçosa, que muitas vezes vinha acompanhada de espanto, nos
olhares dos adultos quando me ouviam tocar. Desde que eu pudesse me
apegar ao arco de um violino ou às teclas de um piano, tudo ficaria bem.
Quando descobriram que eu estava namorando com Yerik, tentaram
me convencer que era loucura me comprometer com alguém no auge da
minha carreira, mas isso só durou até descobrirem de quem se tratava, e
como em um passe de mágica, a quantidade de dígitos na fortuna do meu
potencial marido se tornou o ponto de divergência entre o que era
considerado um sonho bobo, e os benefícios de um casamento inteligente.
Eles gostaram da ideia de um amor que me disciplinasse. Melhor do
que ter uma filha artista para inflar seus egos monumentais, era uma filha
obediente casada com um banqueiro famoso.
Nunca passou pela minha cabeça que era possível ter ambos, minha
carreira e uma família, então fiquei orgulhosa de mim quando escolhi Yerik
e desisti de Berlim. Eu estava disposta a correr atrás dos meus sonhos
bobos, contanto que fossem meus. Era a única coisa que eu sempre tive:
sonhos. Meu sonho bobo de ter a minha própria família, minha vontade
boba de ser amada incondicionalmente por alguém, a minha necessidade
boba de me apaixonar.
Boba, boba, boba.
O que uma menina ingênua, criada em uma redoma de vidro,
poderia saber sobre o amor? O que eu sabia sobre os homens?
Aquilo que eu sentia por Yerik não era amor, nem paixão ou sequer
desejo. Era, no máximo, a carência de uma menina desesperada por atenção
e afeto — algo que só compreendo agora graças a Andrei. O que ele me faz
sentir com um único sorriso não chega aos pés do que eu já senti por
qualquer pessoa em minha vida inteira. A maneira como meu corpo
reconhece e aceita o dele não pode ser comparada a nada que eu tenha
vivenciado antes.
E seus beijos… Deus! A minha boca ainda não esqueceu o gosto
tácito de whisky e vodca em sua língua quando nos beijamos pela primeira
vez. Andrei conseguiu calar a voz de Yerik quando calou a minha própria
com seu beijo, e se eu pudesse nomear o momento em que de fato me tornei
consciente da paixão que cresce em meu coração, seria aquele.
E é por ter me ensinado tanto, em tão pouco tempo, sobre o que é se
apaixonar de verdade, que suas palavras apunhalaram o centro do meu peito
como uma estaca de madeira que permanece fincada aqui dentro.
Não sei o que fazer com uma estaca, e menos ainda com o meu
coração perfurado.
Eu não nasci para ser pai.
O que isso significa? Que ele não quer uma criança em sua vida?
Será que abomina a ideia? Se for o caso, então cuidar de uma grávida seria
uma chateação, não seria? Ele disse que sou sua responsabilidade, mas um
bebê nunca fez parte do acordo, ele não sabia do pacote dois-em-um quando
decidiu me ajudar.
Ou me beijar.
E agora? O que eu faço? Como posso contar para ele? Eu ainda
devo? Não sei se consigo. Nunca senti tanta felicidade e desesperança ao
mesmo tempo. Talvez seja demais para ele… talvez... talvez...
— …Ana? Está se sentindo bem? — Olho para a mão pousada
sobre a minha, os dedos infantis praticamente do mesmo tamanho que os
meus.
Iago tem uma expressão preocupada e assustadoramente adulta. O
cabelo liso e irregular cobre suas orelhas e alguns fios rebeldes da franja
escondem os olhos esverdeados. Seu toque é amável e não consigo deixar
de compará-lo com Andrei e seu senso de responsabilidade.
Não havia me dado conta de seu retorno. Aliás, desde o segundo em
que Andrei sorriu tristemente e me jogou aquelas palavras, minha mente se
desprendeu da realidade.
— Estou sim — respondo, notando como a mentira flui de forma
natural. — Por que a pergunta?
— Você não estava respondendo. — Iago solta a minha mão e coça
a nuca, sentando-se no sofá ao meu lado. — E parecia prestes a chorar
também. Se quiser, posso chamar o meu tio aqui.
— Não precisa. — Apresso-me em dizer. — Estava apenas
distraída, pensando em coisas do passado que são difíceis de explicar.
— Coisas de adultos — ele diz para si mesmo, revirando os olhos
dramaticamente. — Se estiver com problemas, meu pai pode te ajudar. Ele é
bom com problemas, minha mãe tinha vários. Meu tio Vladimir também é
ótimo, a Serena sempre se mete em problemas e ele precisa resolver, então é
tipo um especialista. O Roman… — Iago franze as sobrancelhas. — Todo
mundo sempre diz que ele só causa problemas, que está sempre envolvido
em alguma confusão, mas eu não acho isso.
— E por que não? — pergunto, achando sua análise uma graça.
— Porque — Iago sussurra, como se contasse um segredo — ele se
preocupa com a gente. Ele fica irritado quando alguma coisa acontece com
os meus tios ou com o meu pai, mas é o jeito dele. Ninguém gosta de ver as
pessoas que a gente ama com problemas.
Lembro-me da reação de Roman quando chegamos, a conversa dele
com Andrei e como ficou incomodado ao supor que o irmão mais novo
precisava de ajuda com algo importante. Iago provavelmente está certo
sobre todos. Acho que nunca conheci pessoas tão especiais, uma família tão
linda, tão próxima de tudo o que sempre almejei para mim e meu bebê.
A ponta da estaca afunda mais um centímetro.
— E o que me diz do seu tio Andrei?
Ele cruza os braços magros em uma pose pensativa.
— Hoje ele está diferente — diz, inclinando a cabeça para me olhar.
— Deve ser por causa de você.
— Diferente, como?
— Ele parece mais feliz. — Iago sacode os ombros com indiferença.
— Antes, ele estava triste o tempo todo. Eu sei disso porque quando o tio
Andrei fica triste, minha mãe também fica, e meu pai fica bravo com ele
por deixar a minha mãe preocupada, mas a verdade é que ele também fica
preocupado com o meu tio, só não entende. Meu pai não é muito bom em
entender as coisas.
— É difícil entender o coração — suspiro, pousando minha própria
mão sobre o peito dolorido.
A cabeça de Iago pende para o lado e outra vez seus olhinhos
observadores pousam sobre mim. Uma expressão confusa cruza seu
semblante sereno.
— Não dá para entender o coração — diz em um tom
condescendente, como se eu fosse louca ou meio burra. — Ele é um órgão.
— Ela quer dizer que é difícil entender coisas como o amor e todos
os outros sentimentos. — Tatiana chega para me salvar. — Um dia você vai
entender do que estamos falando. Quando for um homem crescido, vai
encontrar alguém que fará seu coração bater mais rápido dentro do peito,
que vai querer proteger e estar perto o tempo todo, com quem vai desejar
passar o resto da sua vida.
Ela se senta em uma poltrona que parece mais antiga que os demais
móveis, cruza as pernas e abre um imenso sorriso, como uma verdadeira
rainha. É difícil acreditar que seja mesmo a mãe daqueles homens incríveis
e corpulentos, pois sua aparência é de alguém que poderia ser uma irmã
poucos anos mais velha dos quatro.
Iago se levanta e coloca as duas mãos nos bolsos da calça. Há certo
refinamento em sua postura, mas seu queixo empinado e as sobrancelhas
franzidas exalam uma aura indomável e revolucionária.
— É — diz orgulhosamente para a avó. — Eu vou mesmo encontrar.
Depois disso, Iago vai embora, deixando nós duas atônitas,
encarando a porta e o corredor vazio além dela.
— Ele é muito maduro para a idade. — digo, colocando um fim ao
silêncio que se estende.
— Ele é extremamente inteligente — Tatiana concorda. — Um
menino muito talentoso, com habilidades que não entendemos por algum
tempo. Infelizmente, viveu a maior parte da vida sem um acompanhamento
especializado e isso prejudicou bastante o seu desenvolvimento, mas nada
que não consigamos suprir com bastante dedicação e apoio. Não há nada
que Iago não consiga aprender, desde que esteja interessado. Recentemente,
foi colocado em uma classe avançada, mas tem sido complicado se adaptar
no meio das crianças mais velhas.
Um prodígio.
Que ironia.
Não me sinto confortável para falar sobre crianças incompreendidas
pelo restante do mundo.
— Andrei me contou um pouco sobre a adoção dele. É visível o
amor que sente por todos.
— Meu primeiro neto. — Tatiana se vangloria. — Por algum tempo
da minha vida, achei que morreria sem um neto, então a chegada de Iago foi
um sopro de esperança para esta família. Depois dele, vieram Luna, Tatiana
e Kolya. Espero dobrar esse número nos próximos dois ou três anos, no
máximo. — Sinto como se a última parte fosse um tipo de indireta.
— Quando eu era pequena, também sonhava com uma família
grande assim.
Isso chama sua atenção. Tatiana descruza as pernas longas e inclina
o corpo para frente, a curiosidade renovada em seus olhos azuis.
— Quer dizer que você pensa em ter filhos? — questiona,
tamborilando as unhas compridas no joelho.
Não só penso, como já tenho um crescendo dentro de mim nesse
exato momento.
Não posso contar a verdade, mas também não quero mentir.
— A ideia de uma casa cheia sempre me atraiu.
— Mesmo sendo tão jovem? Isso é raro hoje em dia. Não me
entenda mal, não é uma crítica. Na verdade, é um alívio! Nem vou precisar
me esforçar com vocês dois, o que já é um avanço e tanto em comparação
com meus outros filhos. Mas eu estaria mentindo se dissesse que não estou
curiosa sobre como meu Andrei acabou se envolvendo com uma
celebridade.
Há um segundo, um breve, doloroso e torturante segundo, em que
eu me agarro à esperança de ter escutado errado. De que minha mente tenha
sucumbido à insanidade e todo meu futuro de repente se encontre fadado à
loucura.
Uma celebridade.
É a dor no peito, no exato local em que a estaca pontiaguda penetra
no músculo pulsante, que me alerta para a ingenuidade do meu querer. Não
é um delírio, trata-se somente da verdade desalmada que mais uma vez
retornou para se divertir às custas do meu medo.
Minha língua incha dentro da boca, bloqueando palavras e
respiração. Todos os pigmentos dos belos móveis da mansão, da luz diurna
filtrada pelas cortinas translúcidas e do anil paradisíaco nos olhos de
Tatiana Volkiova, perdem a tonalidade, as cores transformadas em cinzas.
Alguém chega. Entorpecida, percebo uma moça de mais idade com
uma bandeja equilibrada nas mãos. Atrás dela, outras duas jovens
uniformizadas caminham em fila e logo começam a organizar comidas e
bebidas sobre a elegante mesa de centro.
— Então, Ana… — Tatiana estica o braço e captura um pirozhki
com a mão assim que ficamos sozinhas de novo. Morde a pequena torta
com naturalidade e me encara enquanto mastiga. — Por que está mentindo
para o meu filho?
— Mentindo? — repito, com vergonha de admitir em voz alta.
Tatiana ergue o dedo indicador e o aponta para um ponto entre os
meus olhos.
— Menina, eu posso ser velha, mas não sou burra. Eu reconheceria
seu rosto a quilômetros. Não consigo entender por que meu Andrei não sabe
que a mulher por quem está apaixonado é Anastasia Serova. Você tem ideia
de que o seu rosto já esteve estampado em alguns dos maiores jornais da
Rússia? Nas revistas mais importantes? É uma questão de tempo até que ele
descubra.
Levo minha mão ao peito, a dor do constrangimento é dolorosa
demais para suportar. Está tudo acabado.
— Eu não pretendia mentir. — Tento me explicar de alguma forma,
mas todas as justificativas que chegam à ponta da minha língua parecem
insuficientes. Mesmo assim, as despejo uma atrás da outra. — Na verdade,
não passou pela minha cabeça que a gente fosse se envolver tão rápido…
— O que é uma pena — ela me interrompe, mas não compreendo a
que se refere. É uma pena que a gente tenha se envolvido? Ou que isso não
tenha passado pela minha cabeça?
— Eu estava com problemas e Andrei me ofereceu ajuda mesmo
sem a gente se conhecer. Não sabia que tipo de pessoa ele era, mas tive
medo de que se metesse em alguma confusão por minha causa, então não
contei toda a verdade.
Encaro minhas mãos cruzadas sobre as pernas, os dedos
entrelaçados em desespero. É o máximo que consigo admitir em voz alta.
Ela não precisa saber que sinto vergonha de mim mesma pela situação em
que me encontro, a culpa que me corrói por ser fraca, o medo de ficar sem o
meu bebê.
— Eu já imaginava que fosse algo assim. Andrei é do tipo que não
consegue se conter quando há uma pessoa precisando de ajuda.
Concordo timidamente com a cabeça. Ele é mesmo esse tipo, e por
isso meu coração foi conquistado com tanta facilidade.
— O tempo foi passando e agora não sei o que fazer, como contar a
verdade — sussurro.
A verdade sobre quem eu sou.
Sobre meu bebê.
Sobre Yerik.
Meus olhos queimam, contendo uma grossa camada de lágrimas que
ameaçam tornar o momento ainda mais catastrófico. Tatiana se levanta em
um movimento gracioso e se acomoda ao meu lado.
Ela ergue meu rosto com a ponta dos dedos. O sorriso materno em
seus lábios não se parece com nada que eu já tenha recebido de alguém
antes, é caloroso e acolhedor, familiar de uma maneira inédita. Uma lágrima
solitária faz seu caminho para fora de mim, manchando minha pele em um
trajeto úmido dos cílios até a mandíbula, mas Tatiana a intercepta com o
polegar, fazendo uma carícia amigável em minha maçã do rosto como se eu
fosse uma criança.
— Mas o que é isso? — pergunta, se referindo ao meu choro tolo.
— Querida, não estou criticando você. Contar ou não contar é uma escolha
sua. O seu passado, a sua vida e carreira, não são da conta de ninguém, nem
mesmo do meu filho. Imagina o quão trágico o mundo seria se fôssemos
obrigadas a contar todos os nossos segredos para cada homem que cruza o
nosso caminho? Eu, pelo menos, já teria sido presa uma dezena de vezes,
ou internada em um manicômio.
— Não entendo — digo, confusa. — Pensei que fosse dizer para eu
me afastar dele.
Ela gargalha e volta a comer. Estou aturdida demais para fazer
qualquer coisa além de escutar o que tem a dizer.
— Não sei pelo que tem passado — diz sem me olhar, interessada
nos aperitivos —, mas não tenha vergonha por hesitar, por ter medo ou
dificuldade de confiar em alguém. Às vezes, a cautela é tudo o que temos
para nos defender. O mundo já é cruel e injusto o suficiente com nós,
mulheres, para perdermos tempo duvidando dos pilares que nos fortalecem,
você não acha?
Encaro Tatiana com um pouco mais de admiração e surpresa. É
como se ela soubesse, ou desconfiasse, das coisas que aconteceram comigo.
Sinto que posso confiar a ela todas as minhas inseguranças e isso me
assusta.
— Não quero que ele me odeie — confesso, minha voz tremendo
um pouco.
Outra vez, ela gargalha alto.
— Me pergunto se isso é possível. Você não é a única escondendo
segredos, minha querida, e posso assegurar que nenhum dos meus filhos é
santo. Por isso, meu conselho é o seguinte… — Ela faz uma pausa
enquanto mastiga. Aguardo pela sugestão com muita expectativa. — Las
Vegas.
O que?
— Desculpe?
— Em Las Vegas é possível casar dentro de um drive thru em
apenas noventa segundos, sabia disso? — Tatiana soa animada e, talvez, até
esperançosa. — Noventa segundos! — repete, vibrando e batendo palmas
entre seus devaneios. — Ou seja, quando Andrei ficar sabendo que você é
rica e famosa, já estarão casados. Se você engravidasse antes seria melhor
ainda.
Ela está falando sério?
Deus, ela parece estar falando sério!
— Não acho que seja tão simples — digo, praguejando contra a
imagem louca que surge em minha mente, de nós dois nos casando dentro
de um carro sob luzes de néon na cidade do pecado.
Isso só seria possível em uma realidade paralela na qual já não sou
casada e… Droga! Que pensamento é esse? Estou me deixando levar pela
influência de Tatiana. Em nenhuma realidade isso seria aceitável.
Além do mais, já estou grávida!
— Uma idosa pode sonhar, não pode? — Ela pisca para mim,
cúmplice. — Você logo vai perceber que Andrei é diferente de todos os
homens. Teve sorte, apesar de tudo, fisgou o melhor dos meus filhos.
— E há quem diga que as mães amam os filhos igualmente! —
Roman reaparece, nos surpreendendo. Ele coça a cabeça, os olhos
julgadores em Tatiana. — Enfim, a hipocrisia!
— Amar também envolve reconhecer os defeitos, Roman — ela
argumenta, sem se abalar. — Não posso fazer nada se você tem tantos.
Busco por Andrei, meu coração reagindo muito antes de ele
aparecer atrás do irmão. Basta um cruzar de sorrisos e o mundo volta a ter
sentido, os raios solares novamente têm calor e o vento algum frescor.
Quem inventou a saudade deveria ter definido um intervalo maior de tempo
para que ela nos arrebatasse com tanta intensidade.
Foram somente alguns minutos longe dele, mas são nesses pequenos
momentos, quando não o tenho por perto, que sou bombardeada por
pensamentos apavorantes sobre o que vai acontecer com nós dois. Com ele.
Não aguento ver a agonia em seus olhos. Ele consegue esconder e disfarçar
bem, mas eu sei que existe algo corroendo o seu coração assim como há no
meu, uma dor que tenta amortecer com a bebida, uma dor que talvez possa
ser apaziguada se eu der a ele um pouquinho de mim.
Só um pouquinho.
— Estava chorando? — Ele passa pelo irmão e se abaixa na minha
frente.
Nego, enxugando os últimos vestígios do meu choro, mas é tolice
esconder o óbvio. Andrei revira os olhos e me ajuda na inútil tarefa de me
recompor.
— Não é difícil me fazer chorar. Estava conversando com a sua mãe
e me emocionei um pouco. Nada com o que se preocupar. Viu? Já estou
bem!
Seguro suas mãos. Estão um pouco geladas e são muito maiores que
as minhas — algo comum considerando meus dedos curtos. É incrível.
Tudo sobre Andrei me fascina. Suas mãos, a barba bem desenhada ao redor
dos lábios sorridentes, a voz enluvada e calma que mais se parece uma
carícia aos ouvidos.
Ele é diferente. Foi o que Tatiana disse.
Não discordo, mas gosto de acreditar que não enxergam o mesmo
que eu, por mais prepotente que pareça considerando que são a sua família.
Comparada a eles, não sou ninguém. Mesmo assim, acho que não enxergam
as rachaduras no escudo.
Andrei me faz pensar em uma casa que esteve bagunçada por tempo
demais. Um lugar no qual consigo me imaginar vivendo e onde, mesmo
com toda a desordem, sou capaz de encontrar tudo o que preciso, porque é
isso o que acontece quando vivemos em um lar. Ele é o lar que estive
desejando por toda a vida.
— Certeza? — insiste, encaixando a mão na lateral do meu rosto.
— Absoluta. Não precisa se preocupar. Como foi a conversa com
seus irmãos? — Mudo o rumo da conversa ao sentir os olhos de Tatiana nos
observando.
Ela disse que tenho o direito de sentir medo, esperar e preservar o
meu coração, mas continua sendo a mãe dele. Se soubesse sobre a gravidez,
com certeza não seria tão benevolente, sobretudo se souber que Andrei não
deseja mais ter filhos.
— Chata e problemática — Roman responde no lugar de Andrei.
Por um segundo me esqueci que não estávamos sozinhos. Preciso ter
cuidado com esses efeitos de Andrei sobre mim. — Como todas as reuniões
que envolvem meus três irmãos certinhos. Voltei para Rússia há menos de
três horas e já me enfiaram em um escritório.
— E onde estão os seus irmãos? — Tatiana pergunta. — Não me
diga que já voltaram para a empresa?
Ela ignora a reclamação de Roman prontamente, assim como
Andrei. Sinto um pouco de pena, principalmente depois do que Iago disse
sobre ele na verdade se preocupar muito mais com a família do que deixa
transparecer.
— Vladimir voltou na frente, sim, mas Ivan está fazendo algumas
ligações. — Andrei se ergue com um impulso e senta no apoio do sofá, ao
meu lado, o braço contornando meu ombro.
Ele franze as sobrancelhas ao notar toda a comida disposta sobre a
mesa, mas não faz nenhum comentário sobre o exagero. Seu corpo bloqueia
a claridade da janela e a sombra masculina sobre mim monopoliza a minha
consciência de seu toque em meu ombro. Tudo piora — ou melhora —
quando se inclina e beija a minha testa.
O problema de Andrei é que todos os seus gestos são sempre dúbios,
ou eu é que sou inexperiente demais comparada a ele. Sua amabilidade tem
uma carga única de provocação, e minha pele queima a qualquer contato.
— Parecem dois adolescentes, acho que vou vomitar — Roman
resmunga, enchendo as mãos com meia dúzia de syrnikis. — Por favor,
procurem um quarto, estão sujando o carpete com todo esse açúcar.
— Sua inveja é lisonjeante, irmão — Andrei rebate, rindo.
Também sorrio, sobretudo ao ver a falsa expressão de ultraje que
Roman faz. São divertidos de assistir.
— Que seja. Eu também tenho que ir, antes que me enfiem em outra
reunião. Ana, foi um prazer.
Tatiana se levanta e faço o mesmo, aproximo-me de Roman para me
despedir apropriadamente. De frente para ele, é notável que sua altura e
porte físico são mais robustos que os dos irmãos. Seus olhos têm um tom
esverdeado que poderia ser confundido com azul dependendo da luz do dia.
— Foi um prazer conhecer todos vocês — digo com sinceridade. —
Nos últimos dias, Andrei tem falado muito sobre a família e eu só podia
imaginar as pessoas incríveis que ele descrevia. É muito bom finalmente
dar um rosto aos nomes de vocês com a certeza de que são muito mais
especiais do que eu supunha.
Roman se inclina para frente, os olhos estreitados me analisando.
Ele coloca um syrnik inteiro na boca e o mastiga lentamente.
— Você é da nobreza ou o quê? — pergunta com a boca cheia. —
Dê um jeito nisso, Andrei. E contrate um segurança para ela logo.
Depois, vira-se de costas e se afasta até desaparecer pelo corredor
afora.
— Eu disse alguma coisa errada?
— Você só é extremamente doce. — Andrei sai da posição no sofá e
me abraça, pressionando a boca na minha têmpora. — Perigosamente doce,
Ana. Faz a gente querer proteger você.
— Sim querido? — Tatiana grita de repente, fazendo a gente se
afastar em um pulo. Ela já está na porta, como se respondesse alguém aos
berros, mas não escutei nada que indicasse uma pessoa a chamando. —
Estou indo! — grita mais alto. Depois, olha para nós com um sorriso
dissimulado. — Vladimir precisa de mim, volto num minuto. — Ela sai
apressada, dá uns três passos, e acrescenta: — Alguns vários minutos. Vinte
ou mais, então podem ficar à vontade.
Os saltos no piso denunciam seu afastamento ligeiro, assim como o
tilintar de suas joias. Segundos depois, estamos mais uma vez sozinhos. Se
me lembro bem, Andrei disse que Vladimir já não estava mais em casa.
— Ela fez de novo — digo, aconchegando-me em Andrei, que nos
guia para uma poltrona apertada e me acomoda em suas pernas, com um
braço ao redor da minha cintura para que eu não caia no chão.
— Ela não disse nada estranho enquanto eu estava ausente, disse?
Muitas coisas.
— Que deveríamos nos casar logo — conto, agarrando-me ao
momento presente com as esperanças renovadas. — Em Las Vegas, de
preferência.
— Então eu fiz bem trazendo você aqui. — Ele olha para o relógio
caro em seu pulso. — Devemos fazer isso agora?
Tranquilo e sério, como se estivéssemos falando sobre a previsão do
tempo, ele levanta o rosto para o meu. Sua mão desliza para cima,
desvendando a lateral do meu corpo, até se acomodar no espaço sugestivo
abaixo do meu seio.
— Isso… isso… — gaguejo, sem saber o que mais me
desconcentra: sua insinuação a um casamento às pressas ou a perversão de
seu toque. — Você diz… — Procuro sentido na minha voz. — Casar em
Las Vegas?
Ele confirma. Seu polegar escorrega nas minhas costelas, fazendo
cócegas. Está aí outra faceta de Andrei que eu acho que sua família com
certeza não conhece: seu lado indecente.
— Acho que, se sairmos agora, conseguiremos chegar antes do
anoitecer. Amanhã eu já seria seu marido, e você — murmura baixo, seu
hálito morno aquecendo a pele do meu pescoço — seria a minha mulher.
Minha mulher.
Há um toque de possessividade em seu tom, mas nada brutal ou
grosseiro. A voz de Andrei me faz pensar em Largo ma non Tanto, de Bach,
segundo movimento do Concerto para Dois Violinos em Ré Menor. Calma
e romântica, mas cheia de veneração. Ele soa contemplativo e sonhador,
como se eu representasse o objeto de todo o seu desejo e apreço.
Noto um pouco de humor também, aquele nada inocente, tão
característico dele, e tudo faz sentido.
— Está implicando comigo de novo, não está? — presumo. Não é
tão fácil assim raciocinar quando se tem um homem como Andrei
utilizando a língua para contornar minha mandíbula.
Sinto seu sorriso descendo pelo meu pescoço.
— Desculpe — sussurra, mas claramente não está arrependido. —
Você se deixa levar com tanta facilidade que não consigo resistir. É tão
divertido ver você sem graça. Agora, me deixe testar uma teoria.
— Que seria...?
Ele desliza a alça da minha blusa para o lado, o suficiente para
deixar apenas uma parte do meu colo exposto, toda a área superior do meu
seio fica em evidência graças ao decote profundo. Um milímetro a mais e
teria à disposição de seus olhos a extremidade intumescida por seus
estímulos.
Se alguém chegar agora, seremos pegos no flagra, mas não quero
afastá-lo, não quero que faça nada além de seguir em frente.
— Seu sabor é mesmo doce como parece.
Ofego, notando tardiamente como estou enredada em seus braços,
imobilizada por mãos fortes, dedos ágeis, beijos irresistíveis. Ele suga a
superfície do meu corpo, raspando dentes e língua, indo da clavícula ao
limite mais íntimo de pele desnuda sobre meu coração afobado.
— Andrei — ofego no calor do momento, abraçando seu pescoço
contra mim em um arroubo de coragem. — Acho que estou me
apaixonando por você — deixo escapar.
Já estou apaixonada. Perdida e completamente apaixonada. E dói
demais, porque junto de tamanho sentimento, vem o medo latente de perdê-
lo.
Pode ser egoísta da minha parte, mas ainda não estou pronta para
perder Andrei. Não posso reclamar de uma estaca presa no peito, pois no
segundo em que ela for arrancada, vai doer e sangrar ainda mais.
— Boba. — Ele sorri, colocando minha roupa no lugar. — Eu sei
disso.
Claro que sabe.
Mas e você? Também está se apaixonando por mim? Por favor, por
favor, apaixone-se tanto quanto for possível, e me permita viver a ilusão de
um conto de fadas por um pouquinho de tempo a mais.
16
Anastasia
PELA PRIMEIRA VEZ em muito tempo, eu me sinto confiante.
Não sei se é um efeito colateral da gravidez, que afeta diretamente o
meu humor, ou se os dias ao lado de Andrei me infectaram com tanta
felicidade que o mundo não parece mais tão assustador, mas depois de
conhecer sua família, sinto que talvez a gente tenha uma chance.
Mesmo não merecendo, talvez ainda reste um pouco de piedade para
mim. Uma última chance de realizar todos os meus sonhos.
Consegui marcar uma consulta para daqui uma semana, não posso
adiar nem mais um dia e continuar arriscando a saúde do meu pequeno
milagre. Andrei já provou mais de uma vez ser digno da minha confiança,
então espero que até a minha visita ao obstetra já não exista mais nenhum
segredo entre nós.
— Está sorrindo — Serena diz, enquanto entramos na grande sala de
música, e instintivamente mordo meu lábio inferior. — Isso é um bom sinal.
Não quero pressionar você nem nada assim, mas nosso atual professor de
música só trabalha até o próximo mês e estamos pensando na possibilidade
de aumentar o número de crianças. Se você desistir, eu estarei em apuros
para encontrar outra pessoa qualificada a tempo.
— Não se preocupe. Estou animada com a ideia de tocar para mais
pessoas e fazer alguma coisa útil. — Sento-me na banqueta acolchoada e
passo os dedos sobre as teclas monocromáticas.
Ela se debruça sobre a tampa fechada do piano e me presenteia com
um largo sorriso. Serena tem uma vibração difícil de acompanhar e acho
intimidante a maneira como demonstra confiança e determinação em todas
as suas falas e ações, mas seu orgulho pelo abrigo é inspirador.
A sala de música da associação faria inveja em vários dos estúdios
pelos quais já passei. O acabamento acústico é o melhor possível e todos os
instrumentos são de ótima qualidade. Há dois pianos posicionados um
contra o outro no centro, com cadeiras e suportes para partituras ao redor
deles. É uma organização inteligente para que os alunos consigam assistir às
instruções sem perder nenhum detalhe importante.
— Nós temos uma imensa lista de espera para as turmas de música.
Preciso revisar os candidatos às vagas, analisar os perfis familiares e esse
tipo de coisa. Não me lembro quando foi a última vez que trabalhei tanto.
No geral, a associação é bem tranquila. Vou encaminhar um formulário para
o seu e-mail, assim traçamos um padrão etário. Podemos começar com duas
turmas e, depois, aumentamos aos poucos, enquanto você se adapta. O que
acha?
Lá está o sorriso largo e extremamente vermelho que eu jamais
conseguiria contestar. Ela é intensa, determinada, despeja todas as suas
ideias de uma vez e seus olhos brilham de expectativa pela minha resposta.
— Por mim está ótimo — respondo. — Se preferir, eu mesma posso
fazer a classificação. Na realidade, a margem de idade pode variar bastante,
mesmo em uma turma de crianças, então tudo vai depender do nível de
conhecimento musical dos alunos.
— Você faria isso? — Ela se anima, endireitando a coluna.
— Claro, não é como se eu tivesse muita coisa para fazer. Andrei
passa a maior parte do dia no trabalho, e eu acho que vou acabar
enlouquecendo se não ocupar a minha cabeça com alguma coisa diferente.
— Sí, sí. Una mente ociosa es el taller del diablo — diz com um
sotaque típico do oriente espanhol, provavelmente da região Valenciana.
— Por supuesto — concordo.
— Você fala espanhol? — Serena arregala os grandes olhos escuros.
Ela usa roupas elegantes, um blazer cinza-escuro sobre os ombros,
com botões dourados, uma blusa justa por baixo que faz seus seios se
destacarem mesmo no decote casto, e uma calça cujo cós alto marca bem
sua cintura modelada.
Seus trejeitos, contudo, são espalhafatosos e divertidos.
— Espanhol, italiano, inglês, francês e coreano — digo, contando
cada um nos dedos. — Mas também consigo me virar um pouco com
alemão, português, dinamarquês e latim. Meus pais queriam que eu
aprendesse japonês e romeno, mas chegou um ponto da minha vida que, ou
eu me dedicava a estudar línguas, ou música.
Sua boca forma um círculo perfeito quando termino de falar.
— O que você é? Uma máquina? — Coloca as mãos na cintura e faz
uma careta expressivamente indignada. — Misericordia, já cansei só de
ouvir. Se isso não é se dedicar, me pergunto como seria se tivesse estudado
mais, você falaria até com os mortos.
Isso me faz rir.
Levanto-me e abro a tampa do piano com alguma dificuldade para
conferir as cordas enquanto conversamos. É pesada, mas não tanto em
comparação ao piano que temos no apartamento. Mesmo assim, Serena me
ajuda a erguer o suporte.
— Eu já morei em muitos lugares diferentes do mundo, isso me
ajudou bastante a aprender melhor outros idiomas.
— E qual o seu favorito?
— Acho que Inglaterra — respondo distraidamente, analisando os
martelos que aparentam estar novos e limpos, como eu já suspeitava. —
Londres é muito acolhedora e ninguém ficava me olhando como se eu fosse
uma alienígena.
— Russos não são muito sutis — Serena resmunga.
— Eu prefiro não generalizar. — Deixo as cordas de lado e me viro,
apoiando as costas na madeira. Resgato algumas memórias bem indigestas
do meu passado. — Mas, quando eu era mais nova, comecei a me destacar
no ramo da música instrumental, participar de eventos e competições. As
primeiras matérias da comunidade musical que saíram a meu respeito não
me descreviam como sendo russa, eles preferiam a descrição “filha adotiva
de russos”, ou qualquer coisa parecida.
— Que hijos de puta — Serena pragueja em seu idioma. Acho
graça, ela parece pronta para bater em alguém.
Em comparação, olho para mim mesma, impecável como uma
dama. Tudo em seu devido lugar, do casaco longo ao vestido xadrez. A
primeira pessoa em quem bati na vida foi Yerik, ainda que por instinto.
— Talvez fosse para causar comoção, mas duvido muito. — Dou de
ombros e encaro as lâmpadas arredondadas do teto. — Quando ganhei meu
primeiro concurso internacional, tiveram a brilhante ideia de não colocar a
minha foto na reportagem.
— Isso é horrível! — Ela praticamente grita, sacando o celular. —
Vamos, me dê alguns nomes e eu farei meu marido acabar com a vida de
todos eles.
— Já faz muito tempo, Serena. — Sorrio, segurando sua mão antes
que ela disque todos os números. — Eu tive alguns privilégios por ter
crescido em uma família rica, nem todo mundo tem a mesma sorte. O
dinheiro realmente abre muitas portas.
— Continua sendo horrível — diz, ainda incomodada, os olhos
faiscando. Pelo menos, guarda o celular.
— Por supuesto — afirmo em concordância, arrancando dela um
sorriso orgulhoso. — Mas está tudo bem. Conforme eu fui crescendo,
tiveram que se acostumar a mim, porque nada no mundo me faria desistir
da música.
É mesmo. Foi assim por algum tempo. Até o veneno dele ser
injetado nas minhas veias, gota por gota, visceralmente.
Yerik gostava muito de usar o termo “pessoas como você” quando
queria fazer alguma crítica que pudesse envolver seu nome em um
escândalo. Dizia que, pessoas como eu, deveriam estar sempre muito mais
impecáveis que as outras, sobretudo uma mulher com o meu histórico — ter
sido uma musicista renomada já era problemático demais na visão dele.
Pessoas como eu, deveriam ser mais educadas e gentis. Pessoas como eu,
não deveriam elevar muito a voz para não se destacarem na multidão.
Basicamente, se eu me comportasse como se não existisse, então
ninguém poderia me ofender ou julgar, mesmo que injustamente. Eu era o
seu troféu exótico particular, milimetricamente adestrada.
— Espera. — Serena ofega e dou um salto para a realidade. —
Então quer dizer que você é famosa?
Apoio-me no piano, uma tontura repentina varrendo meus sentidos.
Inspiro devagar e acumulo o máximo de oxigênio em meus pulmões antes
de responder.
Tenho que ser mais cuidadosa.
— Algo do tipo — murmuro, desconversando. — Então, isso é tudo
por hoje? Não quero que você perca mais do seu tempo comigo.
— Tempo é o que eu mais gosto de perder na vida. — Ela aponta
um dedo indicador para o alto, como se tivesse lembrado de algo
importante, e meio corre, meio saltita, rumo a um armário aberto, onde é
possível ver vários estojos para violinos, flautas e outros instrumentos
musicais de porte pequeno e médio. — Só mais um minuto, antes que eu
me esqueça. A Tatiana me pediu para entregar uma coisa a você. Espera,
onde foi que eu coloquei mesmo? — Serena fica na ponta dos pés e puxa
uma peça que estava separada no alto. — Aqui está!
Ela volta naquele ritmo festivo e me estende a caixa. Meu coração
dá uma cambalhota, reconhecendo o estojo de violino um tanto antiquado.
A última vez que tive um desses em mãos não passa de um borrão em
minhas memórias, mas meu corpo se lembra com clareza da sensação de
segurar o instrumento entre o ombro e o queixo, de sentir a vibração das
cordas a cada deslize do arco.
Minhas mãos se movem por instinto, hipnotizadas pela promessa de
finalmente se fundir com um membro externo do meu corpo há muito
perdido.
Seguro a caixa e me sento em uma cadeira, coloco-a sobre as pernas
e pressiono as travas rapidamente, depois retiro a tampa, revelando o
violino mais lindo que eu já vi em toda a minha vida.
Aproximo o rosto da abertura acústica na madeira. Não acreditaria
no que tem marcado na parte interna da peça se não estivesse vendo com
meus próprios olhos. Não, não poder ser. É impossível.
— Isso é um... — Não consigo dizer. Noto o certificado de
autenticação fixado no verso da tampa do estojo. Ai. Meu. Deus. — Serena,
eu não posso aceitar!
Apesar de querer muito.
— Ah, pode sim. Pode e vai, porque eu não sou louca de levar isso
de volta. Olha, quer um conselho de nora veterana para nora caloura? Não
adianta argumentar contra Tatiana Pavlovna Volkiova, é apenas impossível,
perda de tempo. Se tentar devolver, é bem provável que ela compre outro e
faça você aceitar dois, depois três, até você ter violinos suficientes para
fundar uma orquestra só com eles.
Estou dividida entre o mais absurdo dos êxtases e a completa
descrença.
— Existem pouquíssimos desse no mundo. Alguns estão em
museus. — Fecho a caixa, atônita, e me levanto sem saber como reagir. —
Isso deve valer alguns milhões. É um Stradivarius legítimo. Original. Tipo,
totalmente verdadeiro. — Ela não manifesta a mesma excitação que eu com
essa notícia. — Eu poderia morrer neste instante!
— Por favor, não morra. Seria problemático explicar isso para o
meu querido cunhado. Andrei pode ser um anjo, mas Lúcifer também era.
— Serena coloca um braço ao redor dos meus ombros e nos guia para fora
da sala. — Nossa sogra é extravagante. A espertinha está tentando comprar
você. Pense nisso como um empréstimo, se preferir.
— Um empréstimo — sussurro, pensando na possibilidade. Seria
mentira se eu dissesse que não o quero para mim. — E você acha que ela
vai aceitar se eu tentar devolver depois de um tempo?
— Em nenhuma hipótese.
— Não é bem assim que os empréstimos funcionam — pondero,
falando comigo mesma, já que Serena tem sua opinião formada.
Como recusar o presente parece uma batalha perdida, decido aceitar
por enquanto. Talvez Andrei me ajude a tomar uma decisão mais tarde.
Voltamos pelos corredores do abrigo. É uma residência de luxo, bem
fora do convencional. Ser fora do convencional deve ser algum tipo de pré-
requisito para estar vinculado à família de Andrei e talvez seja exatamente
por isso que eu me sinta tão bem ao lado deles.
Serena faz questão de me apresentar para alguns funcionários que eu
ainda não tinha conhecido em minha primeira visita, e tento memorizar seus
nomes. A equipe é formada por todo tipo de profissional, de pedagogos a
psicólogos e nutricionistas, a exata estrutura que se espera de um projeto
gerido pela família mais poderosa da Rússia.
Preciso que esse emprego funcione e não tenho a opção de falhar.
Não posso e nem quero recorrer ao dinheiro dos meus pais, e o dinheiro de
Yerik não é uma opção. Começar me envolvendo com um dos co-
fundadores do lugar, dividindo com ele um apartamento e, pior ainda, um
quarto, não conta pontos a meu favor.
O celular de Serena toca assim que chegamos na entrada do abrigo.
— Ela vai enjoar de você se não conseguir ficar duas horas sem
ligar — atende. Por suas palavras e o olhar cheio de divertimento para mim,
tenho certeza de quem está do outro lado da linha. — Sim, está tudo certo,
estou cuidando muito bem dela. Não precisa ficar preocupado, Ana não vai
desaparecer só porque vocês ficaram afastados por algumas horinhas. —
Serena rola os olhos para o teto. — Eles têm que ficar do lado de fora da
casa para não assustar as crianças. — Ela afasta o aparelho do ouvido e o
entrega para mim. — Por favor, pode dizer que está bem e viva?
— Estou bem e viva — digo, rindo, já com o celular colado no
rosto.
— Vai enjoar de mim? — Andrei pergunta. A vibração de sua voz
desliza para dentro do meu ouvido e todo o interior do meu corpo dança em
sua rouquidão mansa.
— Talvez. — Decido provocá-lo um pouco. — Mas, se você espera
que eu enjoe de você para se livrar de mim, precisa ser um pouco mais
eficiente do que isso.
— No dia em que eu quiser me livrar de você, podem me prender em
uma camisa de força porque estarei completamente entregue à loucura —
declara, em seu mar de sentimentos sinceros e conquistadores. Não me
deixa sentir o impacto de toda ternura presente em sua escolha de palavras e
segue falando como se não fosse um homem perfeito demais para a
humanidade: — Soube que Serena não deixou o segurança que contratei
para você entrar no abrigo, queria ter certeza de que está bem.
O segurança.
Depois da visita à casa da família de Andrei, ele decidiu que eu
precisava de um segurança. Não disse com todas as letras, mas sei que teme
a sombra do homem que me machucou e de quem tenho tanto medo. Quer
garantir a minha segurança, e nem sequer imagina que a única a ameaçar
nosso relacionamento sou eu e as mentiras que nos cercam graças à minha
covardia.
Tenho medo da verdade, e me odeio por ser fraca.
Nos aproximamos a tal ponto que tem sido difícil e doloroso
compartilhar a mesma cama que ele. Sentir a temperatura calorosa do seu
corpo ao lado do meu, os braços protetores e firmes ao meu redor; dormir
ao som da sua respiração tranquila e pausada sempre que se entrega ao sono
profundo.
Mas há noites, a maioria delas, em que ele não dorme — mesmo
que, aos poucos, elas tenham diminuído.
Há noites em que Andrei fica em silêncio, apenas me observando
até que eu seja vencida pelo cansaço primeiro. Há noites em que se levanta
e vai para outro cômodo. Mesmo longe, sempre ouço o barulho da
cristaleira antiga, de uma garrafa sendo aberta, dos seus passos gatunos
perambulando por horas ferrenhas madrugada adentro.
Há noites em que eu desejo ser forte o suficiente para exterminar
seus fantasmas — sejam eles quais forem. Há noites em que me permito
sentir todas as ganâncias de uma mulher apaixonada, em que meu âmago
inflama para corresponder ao que eu sei que Andrei necessita.
Ele disse uma vez.
Uma mulher na minha cama.
Mas isso também significaria entregar para ele a chave que abre a
única comporta restante em meu coração que protege meu bem mais
precioso.
— Estou ouvindo a sua respiração — Andrei diz no meu ouvido. As
notas graves sugerem que está sorrindo.
— Desculpe eu estava...
— Divagando, eu sei. Amo quando faz isso, você fica absurdamente
linda.
Não é a primeira vez que diz isso, e gosto de não precisar me
controlar por medo de ser repreendida pelo meu jeito de ser.
— Estou perfeitamente bem — garanto. Serena acena com a mão
para que eu a siga, e saímos juntas para o jardim. — Sobre o segurança, eu
disse que não era preciso.
— Sim, você disse algumas vezes — ele concorda, na maior cara de
pau. — E eu ignorei todas elas, já que a sua segurança é mais importante
do que qualquer coisa para mim.
Serena caminha poucos passos à frente, perto o suficiente para ouvir
minha conversa. Ela não sabe disfarçar muito bem a curiosidade. Não posso
afirmar que esteja se esforçando também.
— Por que eu tenho a impressão de que estou sempre em
desvantagem contra os seus argumentos, Andrei Volkiov?
— Eu sou um advogado, já disse um milhão de vezes que
argumentar é o que faço de melhor na vida. — A voz dele ecoa, como se
tivesse entrado em um ambiente mais espaçoso. — Mas posso reconsiderar
sobre esse meu comportamento se ele for fazer você enjoar de mim.
Ele não está brincando, o comentário de Serena ficou mesmo em sua
cabeça.
— Eu nunca vou me enjoar de você — afirmo com muita convicção
para que entenda o absurdo dessa hipótese.
— Ah, pois eu estou enjoada de vocês dois! — Serena grita sem
olhar para trás, parando no que parece um banco de pedras irregulares, onde
se senta com as pernas cruzadas.
— Você pode registrar isso em um documento assinado? Sabe como
é, só por garantia, mania de advogado — diz com humor. — Algo como:
prometo jamais enjoar de Andrei Volkiov pelo resto da minha vida.
— Está usando seu trabalho para me manipular? — pergunto,
entrando na brincadeira, de costas para Serena, que está rindo de nós.
— Cada um usa as armas que tem.
— Injusto. Não estou usando nenhuma arma.
Ele gargalha, e o som pelo telefone, tão próximo ao meu ouvido, é
avassalador.
— Você inteira é uma arma. — Há uma sutil alteração no tom de sua
voz, a decadência de algumas escalas, tornando o timbre mortalmente
sensual, um derrame de sugestões imorais. Minha garganta fica seca, as
mãos úmidas, a pele em formigamento. — Ah, merda! Queria ver o seu
rosto agora. Como o mundo é injusto, guarde essa expressão para mim, por
favor.
Toco a lateral da minha face, absorvendo a quentura que se acumula
na minha bochecha. Ainda bem que Serena não pode me ver agora, ou
saberia imediatamente como qualquer mínima palavra de Andrei me afeta.
— Quero tocar para você essa noite — decido de repente, os
sentimentos assumindo a dianteira. — Sua mãe me presenteou com um dos
violinos mais caros do mundo sem direito a devolução. Faz tempo que não
toco um violino, pode não ser a minha apresentação mais ilustre, mas se for
para você, talvez...
Ele solta um gemido frustrado.
— Claro que eu quero, sabe que amo ver você tocando — responde
depressa, quase eufórico, meio rindo. Ele ama tudo o que Yerik odiava em
mim. — Mas devo chegar um pouco tarde hoje. Preciso terminar de
organizar alguns documentos, tenho uma audiência essa semana e vou me
reunir com o cliente para os ajustes finais agora. Talvez não seja uma boa
ideia esperar acordada.
— Tudo bem, eu vou tentar mesmo assim.
— Aposto que vai dormir no sofá outra vez — ele me acusa, com
razão. É algo que faço com grande frequência. — Não estou reclamando.
Não é nenhum sacrifício carregar você nos meus braços até o nosso quarto.
— Ele para de falar ao mesmo tempo em que ouço um ruído abafado em
seu lado da linha, semelhante ao de uma porta sendo fechada. Ouço o som
de uma voz distante, uma gargalhada masculina. — Só um minuto.
Andrei afasta o telefone da boca e conversa com alguém, um
homem. Não consigo escutar sobre o que estão falando direito, mas soa
como se fosse um amigo próximo por causa das risadas altas. Não sei por
qual razão, mas meus ombros ficam tensos, um desconforto sem explicação
cruzando meu peito em reação às suas vozes.
— Preciso desligar — volta a dizer repentinamente perto. — Depois
conversamos e você me conta as novidades sobre o abrigo, tudo bem?
— Claro, não se esforce demais.
— Não posso prometer — diz, rindo em seguida. — Até mais.
— Eu... — Paro de falar bem a tempo. Não sei o que pretendia
dizer. Que vou sentir saudades? Que a paixão está se transformando em
algo muito maior? Desse jeito, é ele quem vai enjoar de mim. — Até mais,
Andrei.
Olho para a tela do celular com a ligação encerrada e a saudade já
em polvorosa depois de meio segundo.
— Como é lindo o amor! — Serena exclama. Corro para devolver
seu celular. — Ainda não entendi por que ele ligou para mim ao invés de
ligar para você. — Ela pega o aparelho e me encosto à pedra ao seu lado.
De perto, entendo que se trata de uma decoração rústica. O terreno
do abrigo é muito maior do que me lembrava. Não tive muito tempo para
analisar a parte externa quando eu e Andrei viemos da primeira vez, mas
agora percebo que é imenso, com espaço suficiente para uma piscina nos
fundos e uma quadra simpática de vôlei.
Por causa do horário, não há muita movimentação, todos devem
estar nos refeitórios para o almoço. Mas vejo ao longe os seguranças na
entrada, e uma ou outra funcionária da limpeza tentando — inutilmente —
retirar as folhas secas dos blocos de pedras que formam caminhos
fantasiosos pelo jardim.
Tateio meu casaco, constatando que não trouxe o celular comigo.
— Acho que devo ter esquecido o meu celular em casa. — Andrei
me convenceu a aceitar um por segurança, e não pude refutar seus
argumentos.
— Você tem sorte, se fosse o Vladimir, teria corrido até aqui com
uma escolta, dois helicópteros e um atirador de elite. Ele odeia quando
escapo dos seguranças também e, pelo visto, meu cunhado está indo pelo
mesmo caminho.
— Temos nos visto pouco nos últimos dias. Ele está ocupado com
algum caso que aceitou defender recentemente — digo, sentindo que
preciso defendê-lo. Andrei tem seus motivos para se preocupar comigo,
porém, prefiro não dizer nada. Não quero envolver mais pessoas em minhas
desventuras deprimentes.
— É mesmo? Interessante, Andrei geralmente não aceita advogar
em casos que não tenham relação com a empresa depois do que aconteceu.
Agora ela detém minha atenção.
— O que aconteceu? — investigo.
— Você ainda não sabe? — Serena joga o cabelo para o lado e cruza
os braços, abraçando a si mesma. — Ele perdeu uma cliente há cerca de um
ano, mais ou menos. Foi uma época complicada.
— Pensei que Andrei nunca tivesse perdido um caso.
— Ah, não, não. Ele ganhou o caso, é claro. Graças a ele, a
Corporação se livrou de um grande processo. Deve ter ouvido falar sobre
isso.
— Sim, fiquei sabendo de uma coisa ou outra. Soube que passaram
por dificuldades e que isso o sobrecarregou bastante.
— Eu gostaria que fosse apenas isso. — Serena fica séria, encarando
o chão, minha curiosidade em saber mais sobre Andrei se retorcendo em
meu estômago. — Ele estava cuidando da adoção da Luna na época, minha
filha. A mãe biológica dela tinha problemas com drogas, as duas viviam em
condições deploráveis e perigosas, e Vladimir decidiu denunciá-la para
garantir que fossem afastadas. Mas Andrei tomou a frente e fez a denúncia
no lugar do meu marido. Ele sabia que seria um fardo pesado demais para
Vladimir carregar, acho que queria proteger o irmão de mais um fantasma.
Não sei se quero ouvir o resto.
— Andrei é esse tipo de pessoa — digo, repassando na mente tudo o
que tem feito por mim. Se aceitou acolher uma desconhecida, ele
sacrificaria o mundo por sua família.
Sacrificaria a si mesmo.
— Andrei assumiu a defesa dela depois que foi presa — Serena
continua. — Talvez para tentar se redimir. Ele sabe desvendar o coração das
pessoas, sabe quais merecem ser salvas e as salva com toda a sua força,
mas...
Serena não conclui a frase, e o silêncio que recai sobre nós é quase
sobrenatural. O cantar dos pássaros se cala, o vento para de correr entre as
folhas das árvores e a mudez do mundo fomenta o meu medo.
Medo da dor de Andrei como se fosse minha.
— Mas? — pergunto, encorajando a ela e a mim.
— Ela acabou morrendo na prisão.
Encaro Serena e espero por uma risada, um leve vibrar de lábios, um
piscar de olhos mais ligeiro e divertido. Espero que ela caia na gargalhada e
diga que está brincando. Mas não acontece e, de repente, tão rápido quanto
o apertar de um botão, minha mente faz um giro completo. Trezentos e
sessenta graus de compreensão.
Ele está ferido. Muito mais do que eu imaginava. Cada vez que
descubro algo a seu respeito, é doloroso e cruel, porque Andrei não merece
sofrer. Ele é bondoso.
Bom de um jeito que eu jamais serei.
— Não. — Escuto minha voz ao longe, um reflexo dos meus
pensamentos em negação.
— Para ser sincera, não sabemos o quanto deve ter sido difícil para
ele lidar com tudo sozinho, só podemos imaginar. Andrei não fala muito
sobre si mesmo — Serena diz, as palavras igualmente longínquas,
semelhantes a ecos.
Ele não fala muito sobre si mesmo, assim como eu.
Agora consigo ver o homem que passou por tudo isso em Andrei,
junto com os segredos problemáticos que me confessou na janela do nosso
apartamento modesto há tantos dias, sobre se culpar pelas dores da melhor
amiga por não ter sido capaz de protegê-la.
Consigo ver todos os outros pesos com mais clareza, como se uma
nova lente tivesse sido colocada na frente dos meus olhos. Enxergo nele a
fortaleza que se colocou na frente do irmão e sacrificou suas convicções
morais, separando uma criança da própria mãe. Vejo o advogado que
permanece invicto, mas que não pôde salvar uma vida e se responsabiliza
pela perda. Vejo alguém que trabalhou e continua trabalhando sem medir
esforços para manter protegido o legado empresarial que gira ao redor do
seu sobrenome e de seus irmãos.
O que há mais para ver? O que meus olhos não enxergam em suas
camadas de luz? Ou melhor, o que ele esconde atrás de todo o brilho
ofuscante de sua personalidade amável e perfeita?
Quais outros monstros grunhem e babam em seus ouvidos? São
esses barulhos que ele tenta silenciar com os copos na madrugada e que
roubam seu sono toda noite?
Ou haverá mais? Um que ninguém conhece além dele mesmo?
Ah... Quero chorar. Quero chorar. Quero chorar. Quero chorar.
Ele é um escudo.
Ele é uma muralha.
E eu sou mais uma bomba lançada na direção de seus tijolos.
— Obrigada por me contar — digo quase sem forças para esconder
minha tristeza e as lágrimas condensadas em meus olhos.
— Disponha. Achei que seria bom você saber, e contar o segredo
dos outros é o meu lance. — Serena olha a tela do celular, conferindo as
horas. — Agora, deixa eu voltar antes que pensem que eu fugi de novo.
Nos despedimos em uma rápida sequência de agradecimentos,
abraços e beijos. Por sorte, ela não percebe como essa história me deixou
abalada. Dez minutos depois, estou entrando no carro para voltar para casa,
com um violino raro em uma mão e várias mágoas no coração.
Komarov, o segurança que Andrei contratou para me acompanhar, e
que mede o dobro da minha altura, pergunta pelo menos três vezes se está
tudo bem comigo. Em todas eu respondo que “sim, obrigada”, pois dizer
que não suporto ser a responsável por machucar um homem que já foi
castigado o suficiente, é uma alternativa fora de cogitação.
Também não posso dizer que a gravidez me deixa sentimental
demais e com vontade de vomitar em cima de todo o estofado caro do
banco traseiro.
Coloco a mão aberta sobre o ventre, com os olhos fechados e a
cabeça apoiada na janela, enquanto o carro sacoleja, saindo dos limites do
abrigo. Estou ficando sem tempo. Será que eu consigo aceitar que o homem
dos meus sonhos em breve vai ser tornar apenas isso, um sonho?
Quero chorar. Quero chorar. Quero...
O carro freia bruscamente, meu corpo tomba para frente com
brusquidão, mas não o suficiente para me machucar. Abro os olhos em meio
ao susto e noto a preocupação arrebatar o rosto do segurança.
— Mas que porra é essa? — Komarov grita, inclinando-se em
direção ao para-brisa do carro.
Espio por cima do banco e vejo o que lhe perturba: um veículo está
parado no cruzamento, bloqueando a passagem. Há um homem de pé, com
as mãos nos bolsos e as pernas cruzadas despreocupadamente.
Eu o reconheço de imediato, desde os olhos grandes no rosto
bronzeado, ao corpo esguio em uma roupa social escura. Ele sempre foi
mais alto, e mais esperto também. Tudo nele é familiar.
O que está fazendo aqui?
Como conseguiu me encontrar?
Por que agora?
Por que hoje?
— Senhorita! — O segurança me repreende quando abro a porta e
pulo para fora do carro.
— Está tudo bem — digo pela janela. — Eu o conheço.
Quero chorar.
Obviamente, Komarov não fica satisfeito e sai do carro mesmo
assim, franzindo as sobrancelhas grisalhas, mas mantém uma distância
confortável enquanto caminho no meio da rua, até estar perto o bastante do
homem, que se afasta do veículo misterioso e também se aproxima de mim.
— Anastasia — ele diz com a voz nostálgica que me deixaria feliz
de ouvir se as circunstâncias fossem outras.
Eu quero apenas chorar.
17
Anastasia
A GENTE TINHA o costume de brincar dizendo que éramos o "projeto de
caridade a longo prazo de Yekaterina e Leonid Serov", claro que só
fazíamos isso quando não havia nenhum adulto por perto. Mas, tirando o
fato de termos sido adotados pelos mesmos pais, e termos recebido uma
dose bem limitada de atenção familiar, não poderíamos ser mais diferentes.
Meu irmão não é uma pessoa ruim. Pelo menos, eu gosto de
acreditar que aquele garoto responsável que sempre amei continua vivo em
algum lugar dentro dele.
Que eu não o destruí por completo.
Para a maioria das pessoas, claro, trata-se de um personagem que ele
precisa assumir diante do próprio trabalho. Como chefe e proprietário de
uma empresa especializada em sistemas de segurança pessoal, residencial e
corporativa, espera-se que sua identidade seja a alma do negócio. Talvez,
em partes, tenham razão.
Chega a ser um pouco irônico que eu não possa pedir ajuda a um
homem que trabalha protegendo os outros. Eu perdi esse direito quando
tinha oito anos. Também não o condeno em meu coração por não perceber
que eu precisava de sua proteção, porque fiz um bom trabalho escondendo
de todos a verdade sobre como o meu relacionamento com Yerik estava
acabando comigo.
Não podia falar sobre algo que nem mesmo eu reconhecia.
Zayn recebe uma pequena fortuna anual graças à parceria com a
rede bancária de Yerik. Todo o sistema de segurança dos estabelecimentos
do meu ex-marido foi desenvolvido pelos engenheiros do meu irmão. Mas
isso não é tudo. Eles são amigos, do tipo que trocam mensagens pelo celular
e marcam para beberem juntos no final de semana. É natural que tenha sido
enganado pela máscara que Yerik veste.
É por isso que eu sei.
Eu simplesmente sei.
Zayn está aqui para me levar de volta.
Ele retira o cachecol que esconde parte de sua mandíbula triangular
e o mantém pendurado nos ombros. A sombra de uma barba o deixa com a
aparência mais madura do que seus trinta e poucos anos. Está mais forte do
que da última vez que nos vimos, mas seu olhar passivo e indiferente
continua o mesmo, assim como seu cabelo escuro e impossivelmente liso.
— Vamos embora, Anastasia — diz ao perceber que não vou
responder seu cumprimento. Ele dá um passo para mais perto, e o segurança
poucos metros atrás de mim faz o mesmo. Zayn o olha, ainda com as mãos
desaparecidas dentro dos bolsos. — Interessante, vejo que você tem andado
ocupada.
Engulo a vontade de chorar.
— Pensei que estivesse fora do país — comento, ignorando a parte
sobre ir com ele de propósito. Tenho que ganhar tempo e ser cuidadosa em
minhas palavras.
Disfarçar o meu medo.
— Eu estava. Até receber uma ligação de Yerik dizendo que você
havia fugido de casa sem deixar vestígios. E, ainda por cima, grávida.
Então ele já sabe de tudo. Ou melhor, de toda a versão absurda e
mentirosa que Yerik deve ter inventado.
Zayn desvia os olhos do segurança, encarando-me de cima. Ele é
grande e esguio, não tem a aparência truculenta de alguém a ser temido,
mas sei que sua força e habilidades são extraordinárias. Nossos pais se
certificaram de que meus irmãos recebessem aulas particulares de diferentes
técnicas de luta, não é como se apenas Komarov fosse fazê-lo recuar, e não
me surpreende que Yerik tenha recorrido a ele de todas as pessoas.
Sinto-me fraca diante do meu irmão. Infantil e carente. Mesmo
querendo desesperadamente confiar nele, não consigo e isso é horrível.
Estou tão quebrada que não poderei confiar em ninguém, nunca mais?
Yerik fez um bom trabalho ao me transformar em uma pessoa
defeituosa.
— E o que mais ele contou? — pergunto, com a cabeça erguida e os
braços cruzados, camuflando o meu tremor.
— O que mais há para contar? — Ele retira a mão do bolso e olha
de relance para o segurança, conferindo sua posição. Não acho que
Komarov consiga nos ouvir, mas Zayn diminui drasticamente o volume da
voz. — Ele disse que você decidiu se separar dele de repente, mas acabaram
brigando por causa do bebê, e que você apenas desapareceu no dia seguinte.
Foi uma surpresa ouvir tudo isso, já que você não faz esse tipo de coisa.
De repente?
Então ele não contou como sua mão de repente acertou o meu rosto?
Como tentou me estrangular? Ou enfiar suas mãos em mim contra a minha
vontade?
Claro que não. Por que ele contaria?
E por que eu não consigo contar?
Percebo que minha mão está sobre a barriga, os cinco dedos abertos,
e o olhar do meu irmão se ameniza quando seus olhos correm para o mesmo
ponto. Eu sinto a vida crescendo dentro de mim. Não há um segundo de
todos os minutos e horas, em todos os dias e noites de cada semana, em que
eu não seja preenchida pela presença do meu bebê, que não me preocupe e
o ame com todas as minhas forças.
Queria que ele tivesse uma mãe mais corajosa. Sinto muito, sinto
tanto…
— E o que você espera que eu faça? — pergunto com sinceridade,
rogando por uma resposta que faça sentido, qualquer uma. No tempo de
uma respiração, minha voz se quebra e perco toda a compostura. As
lágrimas são inevitáveis, embora desçam silenciosamente pelo meu rosto.
Meu irmão me surpreende e escala a barreira imposta por nós dois,
envolvendo meus ombros com um braço. Demonstrações de afeto não são a
especialidade da minha família, menos ainda se tratando de Zayn, então eu
demoro a relaxar.
— Anastasia, não é fugindo que as coisas se resolvem. — Ele se
distancia depressa, parecendo não se sentir exatamente confortável também,
e pesca um envelope dentro do bolso. — Yerik abriu um processo e quer
negociar com você. Talvez você não saiba, mas o fato de estar grávida o
impede de seguir com um processo de divórcio sem o seu consentimento.
Eu entendo que alguns relacionamentos chegam ao fim, mas não posso
aprovar a maneira como está se comportando.
Olho para o rosto do meu irmão. Devo ter ouvido errado.
— Divórcio? Como assim?
Pego a carta, desconfiada, como se um monstro estivesse selado
dentro dela. É uma armadilha. O queijo na ratoeira, a isca estripada pelo
anzol. Eu a estou mordendo.
Passo os olhos pelo papel, mas paro assim que leio meu nome
completo de casada — Anastasia Leonidova Baranova — e sinto vontade
de vomitar.
— Yerik me pediu para entregar esse documento a você. É apenas
uma preparação para audiência, uma espécie de preliminar, para que possa
se posicionar quanto ao divórcio, não precisa se preocupar. Como pode ver,
vai acontecer amanhã, ainda bem que consegui encontrar você a tempo. —
Ele suspira, frustrado, frente ao meu silêncio. — Quer me dizer alguma
coisa? Contar por que fugiu escondida?
Por que ele me machucou.
As palavras sobem pela minha garganta seca, mas ficam presas no
meio do caminho. Posso listar todos os sentimentos que as bloqueiam:
angústia, vergonha, medo. Medo de não acreditarem em mim. Medo de
acreditarem. Medo, porque, independente do que aconteça, eu ainda serei
julgada.
E os martelos do mundo não decretam sentenças, eles nos esmagam.
— Como conseguiu me encontrar? — pergunto, recuando por
instinto.
Tomei todos os cuidados para não ser rastreada. Não utilizei minhas
contas e nem o meu nome verdadeiro em nenhum lugar, me recusei a dizê-
lo até para Andrei. Quase não coloquei os pés para fora de casa e não entrei
em contato com ninguém que pudesse revelar a minha localização.
Tudo para manter Yerik longe de nós.
Então por quê? Por que meus esforços foram inúteis?
Zayn volta a ficar sério ao notar que estou fortalecendo o muro que
nos coloca em lados opostos.
— Isso importa? — diz, evitando a resposta. — Anastasia, por que
nós não vamos…
— Não vou voltar — reafirmo, limpando o rosto com o dorso da
mão.
Ele suspira e enfia os dedos no cabelo, exasperado. Eu só quero dar
meia volta e correr para a proteção do carro, para bem longe de qualquer
pessoa que tenha ligação com Yerik.
Quero esquecer.
— Onde está morando? — insiste. Então, não sabe tanto assim.
Zayn encara Komarov e a expressão dos dois não é das melhores. Posso
sentir a tensão crepitando. — Com quem está morando, Anastasia? Se isso
sair na imprensa, vai ser um escândalo.
Estremeço só de pensar.
Não só um escândalo, seria um desastre. Eu nunca tive o apreço da
mídia, eles não teriam misericórdia de uma mulher grávida que fugiu do
marido. Yerik se aproveitaria das manchetes sensacionalistas, é tudo o que
ele precisa para garantir a guarda do meu filho quando nascer.
Minha visão queima. É como assistir ao nascimento de um ciclone,
que começa longe, no meio do oceano, até ganhar forma e força suficientes
para devastar um litoral inteiro. E eu estou sentada na areia da praia
aguardando por sua chegada.
— O pai e a mãe... — Engasgo com a hipótese, depois respiro
profundamente, tentando me acalmar. Estamos no meio da rua. Por sorte,
não há trânsito frequente de veículos nesse horário e, por isso, não estamos
atrapalhando ou chamando a atenção de ninguém. — Nossos pais já sabem?
— Ainda não. — Algo sombrio toma conta de suas feições. Zayn
não os ama, nunca foi capaz de sentir nada minimamente parecido, mas
existem outros meios de prender o coração de alguém. E o dele pertence a
nossos pais graças a mim. — Yerik me garantiu que não transformaria isso
em um circo, vamos manter aqueles dois fora dos nossos problemas por
enquanto.
— Pelo menos em uma coisa a gente concorda. — Olho para trás e
Komarov está falando com alguém pelo telefone, mas nada o faz tirar sua
atenção de nós. — Não pode me obrigar a voltar.
Meu irmão pisca com lentidão e sua expressão dura vacila por um
segundo.
— Poder, eu posso, mas me surpreende que você pense que eu faria
uma coisa dessas com você. Não estou te reconhecendo, Anastasia.
Você não é o único. Também não me reconheço mais.
— Isso é tudo?
Ele crispa os lábios em reação à minha frieza. Aponta com o queixo
para a folha, que agora está amassada pela força com que a seguro na mão
fechada.
— Você não tem muito tempo para se preparar, então vou
providenciar um advogado para acompanhá-la, mesmo sendo dispensável.
Pense bem e faça um bom acordo. É no meio de toda essa confusão que
você quer que esse bebê nasça?
A pergunta é retórica, portanto, não me dou ao trabalho de
responder. Ele não sabe que não há diferença entre me perguntar isso ou
atravessar o meu corpo com uma lâmina pontiaguda.
Olho para o asfalto, para nossas sombras sobrepostas, o sol pouco
fazendo para esquentar nossas cabeças em detrimento do vento gelado.
— Eu sei o que estou fazendo — digo, sem convicção. Outra
mentira. — Então não precisa se preocupar comigo, nem com um
escândalo.
Outro olhar petulante é atirado para o meu segurança.
— Eu queria ter certeza de que não estava em perigo — diz, por
fim. — Vejo que não preciso me preocupar. Você é inteligente, Anastasia,
muito mais do que eu ou Akira. É a filha adotiva favorita do projeto de
caridade daqueles dois. Sei que não vou convencê-la a voltar comigo hoje,
mas estarei em um hotel no centro. Se você…
Eu o impeço de concluir a frase.
— Não vou mudar de ideia.
— Se mudar de ideia, ou se precisar de qualquer coisa — diz
mesmo assim — sabe onde me encontrar.
Zayn estica a mão para acariciar a minha cabeça, mas desiste e
recolhe o braço, fechando o punho com aparente força. Depois, volta para o
seu carro e bate a porta. Os vidros escuros não me permitem saber se me
olha mais uma vez antes de ir embora.
Ele pode não ser uma pessoa ruim, mas eu gostaria de conseguir
odiá-lo como se fosse uma.
— Senhorita? — Komarov diz perto de mim. Não o ouvi se
aproximar, então dou um pulo de susto. — Perdão, mas é melhor voltarmos
agora. Por favor, não faça mais coisas imprudentes como essa.
— Desculpe por preocupá-lo — digo, envergonhada pelo sermão.
Volto ao lado de Komarov, exausta como se tivesse gastado todas as minhas
energias de um mês inteiro. Antes de entrar no carro, pergunto em um
sussurro: — Ele já sabe?
Komarov não me olha nos olhos.
— Sinto muito.

***

Pouquíssimos fenômenos continuam sem comprovação científica


nos dias de hoje, e a grande maioria deles possui uma gama considerável de
teorias plausíveis que podem ser utilizadas quando queremos uma resposta
para algo que não compreendemos com nossos conhecimentos limitados.
Sentir o peso do olhar de alguém que está nos observando é um desses
fenômenos.
Alguns associam essa habilidade com o que seria uma espécie de
sexto sentido, ou um sistema de autopreservação. Primeiro, vem o arrepio.
Ele parte da área central da nossa coluna e sobe até a nuca, causando um
espasmo nos ombros e no pescoço, em seguida, é a vez da nossa respiração
ser interrompida para que os ouvidos tentem captar a fonte do nosso
desconforto. O coração acelera, as mãos ficam geladas. E, um segundo
depois, inconscientemente, vem a certeza de que estamos sendo vigiados.
Sinto todos os sintomas, mas quando minhas pálpebras se movem,
não consigo enxergar nada. Acabei adormecendo na sala enquanto esperava
por Andrei, como ele disse que aconteceria. As cortinas estão fechadas e as
gotas de um chuvisco dedilham os vidros das janelas.
O apartamento está estranhamente frio. Uma das janelas foi deixada
aberta — não quero pensar no estrago que a chuva deve ter feito no carpete
— e há uma manta sobre as minhas pernas que não estava aqui antes.
De novo, sinto-me observada.
Estreito os olhos, habituando-me à escuridão. Jogo as pernas para
fora do sofá e me levanto. É quando percebo a silhueta ao meu lado, uma
grande sombra no breu, um corpo masculino imóvel na poltrona.
Está me olhando, analisando-me.
Arquejo, assustada, e tropeço nos meus próprios pés ao tentar me
afastar. Tudo acontece mais rápido do que consigo registrar. Sinto a queda,
meu corpo caindo, e a única coisa que me ocorre é proteger o meu filho.
Coloco os braços na frente da barriga, com medo de bater em algum móvel.
Fecho os olhos, preparada para o rompante de dor.
Mas nada acontece.
— Peguei você. — É Andrei. Seus braços estão ao meu redor, os
músculos tensionados me apertando.
Amparo-me em seus ombros e ele nos endireita, quase me erguendo
do chão. Fico na ponta dos pés, nossos corpos colados, ofegantes. Sua
camisa escura está aberta, a temperatura gelada de seu peito atravessa o
tecido fino da minha camisola, e o cheiro da chuva está impregnado nas
roupas úmidas.
— Você me assustou — digo, arrepiada pelo frio. Não há uma parte
dele que não esteja congelando. Ou, talvez, eu é que esteja quente demais.
— Estava vendo você dormir. — Ele passa a ponta gélida do nariz
pela minha bochecha. — E pensando se valia a pena te acordar ou não.
— Que horas são? — Estremeço, ele resvala à boca na minha, mas
não me beija. Percebo que não esteve bebendo esta noite, apesar da insônia,
o que é bem estranho. — Você está molhado, deveria se trocar ou pode
acabar ficando doente.
— Tem certeza que é disso que você quer conversar?
Minha visão começa a se ajustar. Seus traços ganham contrastes,
enxergo a mandíbula marcada pela barba e o vinco entre as sobrancelhas
grossas. No canto de sua boca, a sugestão de um sorriso diferente. Não há
uma vez em que Andrei Volkiov não me roube o fôlego e eu só queria
entender como o resto do mundo não sente o mesmo.
Ele desce a mão pelas minhas costas. Seus dedos são longos e
firmes, e tensionam a minha pele como se estivessem em busca de algo
mais, algo que não pode ser obtido apenas com o toque. Como se quisesse
me escavar, revirar o meu corpo do avesso.
Me desvendar.
E, seja por sua energia poderosa, ou minha predisposição a ele, tudo
me vem à mente de uma vez.
O abrigo.
O carro parado no meio da rua.
Meu irmão.
Yerik.
A audiência.
Amanhã.
Fecho os olhos e encosto a testa em seu peito.
— O que você quer que eu diga?
A brisa que entra no apartamento se debruça sobre nós com seu bafo
glacial e me vejo desejando que congele o tempo, que fiquemos presos para
sempre nesse abraço e nunca venha a existir um depois.
Andrei me equilibra no chão com cuidado e se desvencilha de mim,
deixando-me com mais frio do que antes. Ele acende a luz de uma
luminária, só então nos enxergamos de verdade.
Seu cabelo está grudado na testa, a calça rebaixada no quadril. Seu
alter ego inclemente e feroz está de volta e me sinto uma criminosa no
tribunal sendo sentenciada pelos olhos de um juiz.
Ele levanta a mão, com a palma aberta virada para cima.
— Eu sinto que estou segurando um cristal. Que ele se inclina de
um lado para o outro na palma da minha mão. Se eu fechar os olhos e
deixar esse cristal balançando como bem entender, ele pode acabar caindo e
se quebrando, porque é frágil, porque está sozinho. Mas, se eu fechar os
meus dedos — Andrei fecha o punho — ele pode acabar sendo esmagado
por mim. O que eu devo fazer?
Entendo suas analogias. Ele quer me pressionar, mas tem medo de
acabar me ferindo. É um sentimento estranhamente mútuo. Não quero
machucá-lo e, ao mesmo tempo, também quero mantê-lo comigo. Mas as
duas coisas são impossíveis. Perto de mim, ele eventualmente vai se
machucar.
Seu braço pende ao lado do corpo.
— Quem era aquele homem? — Sua voz vacila, como se a pergunta
lhe causasse um profundo desconforto. — Era ele?
Se era Yerik?
— Não, ele... — Engulo em seco, sentindo garras com unhas
compridas ao redor do meu pescoço. Não sei por onde começar.
— Se for mentir, é melhor não dizer nada. — Andrei não fala de
forma ríspida, mas ainda faz as lágrimas saltarem dos meus olhos.
Eu mereço isso. Que a culpa me agonize e a verdade seja jogada na
minha cara. Andrei tem medo de me quebrar, mas, para fazer isso, eu
precisaria estar inteira.
Quando já se foi despedaçada dezenas de vezes antes, a gente para
de se importar com as rachaduras, mesmo que elas doam o tempo todo.
Ele arregala os olhos e se adianta na minha direção. Um passo e já
está na minha frente, mãos nos meu rosto, limpando meu choro mudo.
— Desculpe, me perdoe, eu me expressei errado. — Beija meus
olhos com cuidado, um depois do outro, e me puxa para o sofá. — Vem
aqui.
Sentando-se sobre a manta desarrumada, ele me embala. Fico de
lado em seu colo, com as pernas atravessadas sobre o estofado. Ao mesmo
tempo que me sinto suja e mesquinha por não poupá-lo de mim, não sou
altruísta o bastante para recusar seu carinho, a mão em meu joelho, o
polegar que ele usa para fazer círculos no meu ombro. Andrei beija meu
rosto, pescoço e braço, não diz nada enquanto me acalmo.
Ele esconde seu frenesi de nervos para não me amedrontar, mas eu
sei, eu sinto a angústia emanando de seus poros.
No silêncio, o assovio do vento se sobressai, a força da chuva está
mais forte e um eco de pensamento me lembra que chorar sem fazer barulho
é só mais uma cicatriz dentre as tantas que carrego comigo. Perdi a conta de
quantas vezes me escondi no banheiro para não ser ouvida, ou as
madrugadas insones em que meus soluços morriam na garganta com Yerik
ao meu lado. Quando o tinha dentro de mim e precisava fingir que meu
choro era prazer.
Não consigo explicar, não consigo falar.
Há um corte profundo em minha garganta, dentro, na carne, rasgante
como se feita por uma lâmina dentada. Um buraco com respostas das quais
me envergonho para as tantas perguntas que não quero ler nos olhos de
Andrei.
Por que continuou com ele por tanto tempo?
Por que não o denunciou para a polícia?
Por que, mesmo depois de tudo, ainda decidiu ter um filho com ele?
— Eu sinto...
— Não. — Ele me corta com um selar de lábios. — Não peça
desculpas ou eu vou mesmo perder o controle de mim. Não imagina a
vontade que estou de fazer uma besteira descomunal. Sempre me orgulhei
de ser um homem racional e aguentar qualquer coisa, mas quando se trata
de você eu sinto menos empatia pelo mundo, todo resto perde a importância
e tudo o que me importa parece ser a sua existência.
Andrei me aperta em seus braços, tremendo, não de frio, mas de
medo. O mesmo temor corrosivo que cresce dentro de mim, uma besta
gananciosa e um tanto cruel que uniu nossas almas simplesmente porque
duas pessoas se afogando tendem a se agarrar uma na outra em busca de
salvação, mas acabam afundando ainda mais rápido.
Não importa o quanto eu me esforce, continuo destruindo as pessoas
ao meu redor. E Andrei, que já foi machucado além da imaginação, não
merece sofrer por minha causa. Ele não precisa se envolver mais. Não o
quero perto daquele monstro, não suportaria colocar mais uma pessoa em
risco e tenho medo de como Yerik reagiria se soubesse que estou vivendo
com outro homem. Tenho medo. Tenho medo o tempo todo, de tudo. Medo
do próprio medo.
Eu fui descuidada, baixei a minha guarda e comecei a sonhar alto
demais. A vinda de Zayn me trouxe de volta para a realidade.
Eu vou dar um jeito.
Eu vou consertar tudo.
— Era meu irmão — digo, não mais alto que um sussurro,
escondendo o rosto em seu pescoço. — Não sei como conseguiu me
encontrar, juro que não sei. Queria que eu fosse com ele, está com medo de
um escândalo.
Andrei emite um ruído com a garganta que se assemelha a um
rosnado.
— É mesmo? — Não preciso ver seu rosto para saber que está
enojado, seu tom de voz é o bastante, mas ele me empurra alguns
centímetros e, graças a nossa proximidade, compreendo que exterminaria
qualquer mal que Zayn pudesse representar. São os olhos de um justiceiro.
Sempre. — É essa a preocupação do seu irmão? Um escândalo?
— Ele não sabe...
Que Yerik me batia.
Andrei não fica menos tenso. Aliás, ao compreender o que quero
dizer, ele me pressiona mais contra si, estufando o peito.
— Qual dos seus irmãos? — sonda.
— Zayn.
— E por que não voltou com ele?
— Isso... — Fico confusa. A pergunta não faz sentido para mim. —
Nem passou pela minha cabeça. Eu só queria voltar logo. Voltar para...
— Mim — completa, exalando uma grande lufada de ar, como se
estivesse prendendo a respiração até agora. Beija a minha cabeça e o
formato dos seus lábios contra a pele da minha têmpora me permite sentir o
seu sorriso. — Estou um pouco puto que ele tenha conseguido chegar até
você, mas também estou orgulhoso. Obrigado.
— Pelo quê?
— Por me escolher. — Ele leva sua mão até o meu rosto e o levanta.
Preparo-me para um beijo, perguntando-me em que universo eu seria capaz
de não o escolher, mas o beijo não chega. — Você não confia em mim, eu
aceito isso. Só estamos começando. Quanto tempo você precisa? Uma
semana? Um mês? Um ano? Dez? Tudo bem. Aceitarei o que tiver para me
dar. No entanto, serei egoísta sobre uma coisa. — O semblante de Andrei
sofre uma leve distorção sombria. — Não pretendo deixar que te
machuquem de novo ou levem você de mim.
— Nem mesmo eu? — murmuro, nem sei se minha pergunta faz
sentido. — Se eu tentasse me tirar de você...
A frase fica por entender. Eu me deito em seu ombro, encolhida,
ouvindo a respiração pesada. Percebo quando engole a saliva, a mão
distraída fazendo carícias em minha perna, seu olhar desfocado em busca
do que dizer.
— Não posso te obrigar, Ana. Mas, eu lutaria por você. E não sei se
já te disseram, mas não costumo perder.
Não é o que eu esperava ouvir, mas infinitamente melhor.
Andrei é imprevisível.
Incomparável.
— Acho que já ouvi algo sobre isso uma vez ou outra.
Seu peito chacoalha com uma risadinha que faz acender dentro de
mim uma chama de gratidão. Consegui tirar aquele peso obscuro de seus
ombros, nada mais importa agora, contanto que eu possa protegê-lo da
minha mácula.
— Está gelada. — Andrei olha para si mesmo, só então se
lembrando da roupa molhada. — Merda, me ajude a tirar isso.
Fazemos algumas manobras para que retire a camisa sem que eu
saia de cima dele. Ajudo, mudando de posição, e logo a peça vai parar em
um canto do chão. Mas isso nos leva a outro ponto. Continuo sobre Andrei,
meus joelhos, contudo, agora estão nas laterais de seu corpo.
A gente se analisa, abaixando os rostos ao mesmo tempo para o
encaixe íntimo de nossos quadris. Também registro outros detalhes
importantes: minhas mãos em seu peito musculoso, as dele na curva da
minha lombar, nossas respirações cessadas, o frio esquecido. No entanto,
meu sexto sentido — que antes me alertara sobre a sua presença — sopra
no meu ouvido que Andrei percebe muito mais coisas do que eu, sensações
que desconheço, desejos que domina em um território que nunca coloquei
os pés.
O território dele.
— Por acaso, está tentando me seduzir? — diz, provocativo. Todas
as minhas células estremecem. — Logo eu, um pobre e inocente advogado?
Não pensei que fosse tão ousada, Ana, quem diria. As santinhas são mesmo
as piores.
— Pobre e inocente advogado? Você?
— É o que dizem os jornais. — Nossos narizes se encontram, nossas
respirações entram em um sincronismo denso.
— Puro sensacionalismo — digo, sorrindo. — Mas ninguém
acreditaria se eu contasse como vive se aproveitando de mim nas
madrugadas. Já está virando rotina, sabia?
— Espertinha. — Andrei morde meu lábio inferior, e meu cérebro
derrete com seu timbre rouco e baixo. — Se eu me lembro bem, foi você
quem adormeceu no meio da sala, praticamente nua.
— Eu não estou… — Olho para minha roupa reveladora, com
muitas rendas e pouco comprimento, e meus argumentos desaparecem. Ele
tem um bom ponto. — A culpa é sua por comprar camisolas tão indecentes.
Aguardo por sua defesa, tentando resistir às suas provocações, mas
ele sabe o que fazer com as mãos para que eu perca completamente a noção
da realidade. O tecido da minha roupa é fino o bastante para que eu sinta a
maciez de seus dedos me explorando. E, tenho certeza, ele pode me sentir
por inteiro também.
— Me chame de réu confesso — sussurra, buscando a minha boca.
— Porque desse crime eu sou totalmente culpado.
Ele completa o pequeno espaço entre nossos rostos, servindo-se da
minha boca com um beijo ousado. Sua língua não convida a minha, apenas
se aproveita da distração para saciar o desejo e transportá-lo para dentro de
mim. Tudo o que não falamos para o outro perde a importância no
movimento de nossos lábios, que traduz o idioma de sentimentos muito
maiores do que nossas histórias de vida, do que o passado e tudo o que
existiu antes de só existirmos nós dois.
Sim. Só nós dois no vazio e no silêncio.
Hora calmo, hora intenso, Andrei conduz o beijo e eu sinto suas
mãos em todos os lugares. Ele sente o meu consentimento e não se detém,
deixando escapar um pouquinho do homem que sabe o que pode fazer com
o corpo de uma mulher entregue aos seus encantos.
Explora a linha onde termina a minha camisola e a ergue,
espalmando sem prudência minhas coxas até que a brisa gélida afaga a
parte de trás do meu corpo, que logo recebe as mãos de Andrei. Ele tortura
a minha carne e a minha mente, apertando-me em cima dele, mostrando-me
o quanto me deseja, e eu percebo que chegaria facilmente ao êxtase com
apenas uns minutos disso.
— Deita — ordena, sem desvios, sua voz se mostrando uma
extensão da minha consciência, que acata a exigência no mesmo instante.
Já percebi que é um homem de poucas palavras quando está
excitado. Seus comandos visuais, suas reações, os sons da respiração rouca
e o ranger másculo de dentes substituem toda e qualquer palavra a mais.
E isso me excita.
A gente se provoca e se devora à beira da insanidade. Deitados, um
sobre o outro, em uma confusão de pernas entrelaçadas e beijos que variam
entre calmaria e luxúria, o tempo passa. O tempo para. Não sei dizer.
Quando estou com Andrei, é assim que me sinto. Sem forma, sem
definição, tudo e nada.
Minhas forças escoam, e Andrei solta mais uma de suas risadinhas
quando viro o rosto para respirar antes que acabe desmaiando em seus
braços pela falta de oxigênio.
— Da próxima vez, me lembre de tirar uma foto dessa expressão. —
Ele aperta a minha mandíbula com a mão livre, o polegar raspa em meus
lábios úmidos. — Você sem ar, corada, com os olhos dilatados de tesão. Eu
preciso disso em um quadro.
Ouço alguns balbucios sem sentido quando tento formular uma frase
completa que o faz rir descaradamente. Ofego ainda mais alto, acho que
gemo em algum momento. Não sou capaz de entender nada além de sua
boca na minha quando volta a me beijar sem clemência.
Mesmo sem sexo, é íntimo. É delicioso. Ele, sem camisa, e eu, com
uma roupa tão eficaz quanto a própria nudez. Mas Andrei cumpre sua
promessa de ser paciente, mesmo nadando nas bordas dos nossos limites.
Quando eu me tornar dele, se isso acontecer — considerando que,
por milagre, os astros se alinhem e alguma fortuna recaia sobre mim —
quero que esteja ciente da pequena vida que carrego. Que me possua
sabendo que não sou um corpo vazio.
Que me queira mesmo assim.
Se não, não faz sentido.
Ao menos sobre isso, não posso mentir.
Espremidos no sofá estreito, Andrei me dá um último beijo. Sei que
é o último porque é mais demorado e lento, vai perdendo a força
gradualmente até não passar de um pacato roçar de bocas e narizes.
— Migalhas de você são um banquete para um moribundo como eu,
sabia? — ele sussurra, como se lesse meus pensamentos e tentasse me dizer
que está satisfeito mesmo parando por aqui.
Mas é Andrei. Ele não precisa ler a mente das pessoas para ser um
cavalheiro e fazer o certo.
— Estou muito longe de ser um banquete — digo baixinho.
Ele sorri, um tanto sonolento, e joga uma perna por cima das
minhas, prendendo-me.
— Queria que enxergasse em você o que eu enxergo, que usasse os
meus olhos por um dia. Aliás, alguns minutos seriam o suficiente.
— Posso dizer o mesmo. Você não é um moribundo, Andrei. — Se
ele visse a si mesmo como eu vejo, saberia que não é um homem qualquer.
É o meu salvador.
Entre concordar ou discordar, Andrei não escolhe nenhum dos
dois. Ele me abraça e se deleita da minha presença. O que se passa em sua
mente? Gostaria muito de saber, sobretudo após o que Serena me contou.
Será que a ex-mulher continua atrás dele? Andrei nunca mais falou
sobre ela, apesar das ligações quase diárias de um número que ignora. Não
tenho coragem de perguntar, nem o direito.
Queria saber um jeito de ajudar ao invés de ser mais um estorvo.
Se fôssemos menos problemáticos, nossas chances seriam maiores?
— Já parou para pensar — digo, externando minhas dúvidas — que
a gente não é uma boa ideia?
Andrei se remexe, brincando com um cacho do meu cabelo.
— Acha que não somos uma boa ideia? — Devolve-me a pergunta.
Duas pessoas que acabaram de sair de relacionamentos
problemáticos?
— Acho que não deveríamos ser — digo, mas não é a resposta
verdadeira.
Talvez sejamos desastrosamente compatíveis.
Ele estreita os olhos.
— De todas as mentiras que já contou, essa é a primeira que consigo
detectar com cem por cento de certeza. — De novo, ele não responde. —
Acho melhor dormirmos para essa sua cabecinha parar de pensar besteiras.
— Andrei boceja. Vê-lo com sono é algo novo para mim. — Acabamos de
ter nossa primeira briga, vamos ficar abraçados para selar a paz.
— Isso não foi uma briga. Não é assim que as pessoas brigam.
Brigas vêm acompanhadas de gritos, lágrimas, coisas quebradas e
corações partidos. Elas ferem e nos marcam, deixam buracos na pele e na
alma. Não conheço outro tipo de briga, e só consigo associar seu
significado a um nome.
O nome de Yerik.
— Você tem razão — Andrei sussurra, melancólico.
É deprimente que concorde comigo, e explica muito do que vem
escondendo de mim. Feito a boba que sou, meus olhos se inundam.
Tudo nele é triste, mas sou a única que acaba chorando.
Andrei está acostumado às minhas lágrimas, que sempre aparecem
nos piores momentos. Ele as beija uma por uma com ternura, e percebo que
é a minha última chance de quebrá-lo.
— Andrei, eu… — Agarro seus ombros, meus dedos se fecham com
força em sua camisa.
Eu estou esperando um filho.
Olho-o nos olhos, ou melhor, afogo-me no canto mais íntimo do
olhar de Andrei, sabendo que nunca vou conhecer um lugar tão bonito… e
solitário.
Eu sei muito sobre ser machucada, e muito pouco sobre machucar
outra pessoa.
Simplesmente não posso.
— O que foi? — Ele fecha os olhos, deve estar cansado.
Eu estou.
— Obrigada por tudo — sussurro.
Quando estamos juntos, a gente consegue fingir que não somos um
desastre. Duas pessoas quebradas regando ilusões em um sofá apertado e
pouco confortável. É quase de manhã, a nuance de um amanhecer nublado
começa a aparecer através das cortinas translúcidas. Continua chovendo. O
carpete está arruinado.
E eu não estou mais apenas apaixonada por Andrei.
Acho que nunca estive. Acho que, naquele dia, no meio do
aeroporto, enquanto eu dedilhava a mesa e aguardava por ele, ao ouvir sua
voz, antes mesmo de abrir os olhos…
Não, ainda não.
Não sem antes corrigir os meus erros. Tenho que lidar com Yerik,
encontrá-lo amanhã e colocar um ponto final em nossa história, então
poderei ser sincera sem colocar Andrei em risco. Sem tragá-lo para os meus
problemas. Sem ser um estorvo. Depois de saber o que o futuro me reserva,
depois de ser forte.
É o mínimo que posso fazer por ele. E, se a verdade o afastar, então
eu terei que aceitar e conviver com a lembrança dos nossos momentos
juntos.
Com a cabeça apoiada em seu braço, admiro sua feição serena e
indefesa, as sobrancelhas escuras, o ombro rígido, proeminente. Ele me
segura como se eu pudesse desaparecer enquanto dorme. E, nossa, ele é
perfeito. Nunca me senti possessiva sobre nada ou ninguém, mas Andrei
desperta algo dentro de mim que não é apenas benevolente, mas ousado e
bravio.
Quero que ele fique bem, que seja feliz, e imaginar qualquer um
arrancando isso dele me faz sentir… raiva.
O coração de Andrei bate acelerado. É um som forte, um frenesi
difícil de acompanhar, com passagens rápidas que escalam até as notas mais
altas só para despencarem intensamente. Ele bate como o Concerto No. 4 de
Vivaldi, em Fá menor, opus 8; o coração de Andrei é L'inverno, em As
Quatro Estações.
Intenso. Forte. Profundo.
Meus dedos coçam para correr até o violino e tocar na mesma
sintonia.
— Ana — ele diz, surpreendendo-me, ciente de que continuo o
olhando como faz comigo quase toda noite. Achei que já tivesse dormido.
— Hum?
Andrei sorri antes de continuar, e é aquele sorriso. O sorriso Andrei
que ninguém mais tem. O sorriso que tira o meu fôlego.
— A gente é uma ótima ideia. Uma ideia perfeita.
18
Andrei
RESPONDO A MENSAGEM de Evgenia me sentindo o mais fraco dos
homens e empurro meu celular para a outra ponta da mesa antes que ele
acabe decorando a parede do escritório.
"Tudo bem, vamos nos encontrar na próxima semana, até lá, não
faça mais nada estúpido."
Ela quer que nos encontremos em casa — na nossa casa, em suas
palavras exatas. Como continua rondando a empresa, o abrigo e até o clube,
não posso mais ignorar os riscos de que acabe fazendo algo perigoso. No
fim, ela conseguiu o que queria: minha atenção.
Outro no meu lugar já teria dado um basta em sua insistência, mas
quando penso em tudo o que perdeu e em como as suas tentativas talvez
sejam as únicas coisas que restam para se apegar, não consigo ser tão cruel.
Porra.
É como dizem, as desgraças andam em bando. Ao primeiro sinal de
que algo muito ruim pode acontecer, elas se amontoam com seus humores
ácidos para assistir nossa ruína, afinal, somos as suas fontes de divertimento
favoritas, bobos da corte em um palácio repleto de armadilhas.
Não consigo dormir. Não consigo pensar. Respirar é um tormento.
Não queria fazer mais nada além de assistir a dança supliciosa
protagonizada pelos ponteiros do relógio, porque, a cada segundo, mais
perto estou de conseguir o que desejo.
Hoje, finalmente terei o nome dele.
O fato é que eu sou um mentiroso, e não existe castigo pior para
aquele que mente, do que saber que suas mentiras jamais serão convertidas
em verdades, não importa o quanto deseje ou para quais deuses implore,
uma mentira será sempre uma mentira. E elas estão me matando aos poucos
por tê-las mastigado e engolido, estão me comendo vivo de dentro para
fora.
Mesmo que a raiva quase tenha me cegado ao saber que Ana e o
irmão se encontraram, eu escolhi ser paciente, porém, a razão não é tão
nobre quanto ela imagina. Não é uma questão de caráter, não é porque sou
um homem bom. Eu não preciso de detalhes que vão machucá-la além do
suportável quando já entendi o mais importante: se sua família sabe o seu
paradeiro, então o filho da puta também sabe.
Ele está à espreita, um passo na minha frente, rondando o meu
território com suas patas imundas, e preciso fingir que não o quero morto
por machucar a minha mulher, por traumatizá-la a tal ponto que não consiga
confiar nem em mim.
— Ei, sumido. — Ergo os olhos dos papéis que eu deveria estar
revisando para a audiência a tempo de ver Lara entrando no meu escritório.
— Pensei que estivesse me evitando.
Eu estava.
Ela puxa uma cadeira e se senta na frente da minha mesa. O
expediente ainda não começou e, além do meu irmão mais velho e alguns
funcionários da limpeza, somos os únicos no prédio. Lara não costuma
chegar tão cedo, mas eu sabia que atenderia ao meu chamado independente
do horário.
— Não foi de propósito.
— Obrigada pela sinceridade — ironiza. — Me sinto bem melhor
sabendo que meu melhor amigo queria distância de mim, mas não de
propósito.
Sorrindo, retira o casaco e as luvas. Lara já foi vítima de um homem
odioso e olhar para ela me faz pensar ainda mais em Ana e no quão triste é
terem em comum algo tão terrível.
A minha capacidade de ser bondoso entra em xeque com tais
pensamentos.
— Me desculpe — digo, cansado demais para elaborar uma
justificativa. Ultimamente, tudo o que não envolva Ana me cansa. Sair de
perto dela e encarar o mundo real é uma chateação que eu gostaria de evitar
se pudesse.
Estou à deriva, agarrando-me a ela como se fosse uma âncora,
quando deveria ser o contrário. É Ana quem precisa da minha ajuda, é ela
que precisa ser salva.
— Claro, mas eu sei que não me chamou aqui apenas para pedir
desculpas.
— Não Lara... — Encaro os olhos confusos da minha melhor amiga.
Ana disse para eu tentar conversar com ela e expurgar alguns dos meus
segredos problemáticos. A teoria é muito mais fácil, no entanto. — Me
desculpe por tudo. Por preocupar você, por não ter sido um amigo melhor e
mais presente no passado. Por ter me afastado de vocês nos últimos meses,
e por ser um tio ausente. Me desculpe por tudo — repito.
Assim que termino de falar, meus ombros relaxam e sinto o coração
se acalmar um pouco, uma rápida bonança depois da tempestade. Palavras
tem o seu próprio peso, eu sei que têm, mas dificilmente aplico a regra do
desabafo a mim mesmo.
Como é típico de Lara, o sorriso gentil não esmorece em seu rosto.
— Está dizendo tudo isso porque Ivan ameaçou você? — brinca.
— Ivan e a família toda.
Ela estica a mão sobre a mesa, e eu faço o mesmo, entrelaçando
nossos dedos. O calor de sua amizade me conforta. É minha irmã, alguém
que não carrega o meu sangue, mas uma parte da minha alma.
— Você tem um coração bom, Andrei — ela diz. Não é a primeira
vez que escuto isso. — Precisa pegar mais leve consigo mesmo. Tem
trabalhado como um louco nos últimos anos, protegendo a empresa e a
nossa família. Não precisa se responsabilizar por todas as nossas
catástrofes. A minha história com o seu irmão já foi contada e agora
estamos vivendo o nosso felizes para sempre, e tudo o que eu mais desejo é
que você tenha a chance de ser tão feliz quanto eu sou ao lado das pessoas
que mais amo.
Felizes para sempre?
De vez em quando, no silêncio da madrugada, quando Ana está
dormindo tranquilamente, sem medo que alguém lhe faça mal, na proteção
do meu olhar, eu quase ouso sonhar com um.
Já tive o meu felizes para sempre nas mãos uma vez e ele foi
arrancado de mim.
— Como estão as crianças? — Mudo o assunto estrategicamente. Eu
queria apenas fazer o certo e me desculpar com Lara, não estava preparado
para cutucar o vespeiro adormecido em meu passado.
Ela puxa o braço de volta e me atira dardos com os olhos, crispando
os lábios. Já entendeu que estou fugindo, mas não insiste, respeita o meu
espaço porque me conhece bem o bastante para reconhecer as barreiras que
me cercam.
— Roman apelidou a minha filha de mini Bruxinha — conta,
suspirando — e disse que a culpa é minha por ter colocado o nome da sua
mãe nela. Já Iago enfiou na cabeça que vai se tornar piloto de corrida.
— Piloto? Pensei que ele quisesse ser engenheiro para construir o
maior prédio do mundo. — Era o que repetia quando chegou na família.
— Isso faz tempo, ele já trocou pelo menos umas dez vezes.
Engenheiro, agente secreto, policial, veterinário, neurologista, psicólogo…
— Ela conta nos dedos, orgulhosa. — Enfim, não duvido nada que até a
próxima semana queira se alistar no exército, ou escalar montanhas ou se
candidatar à presidência. — Lara não me dá tempo de comentar e se
debruça sobre a mesa. — O que é tudo isso, afinal?
Há uma bagunça organizada entre nós, documentos esparramados
em diferentes pilhas que só fazem sentido na minha cabeça. Tracei pelo
menos cinco desdobramentos diferentes para a preparação de audiência
porque precisava ocupar a mente com alguma coisa ou acabaria
enlouquecendo.
Casos familiares não são a minha especialidade, mas isso não
significa que eu seja menos eficiente com eles.
— Vou participar de uma audiência preliminar hoje e estava
revisando as informações para ter certeza de que nada importante passou
despercebido. Um amigo pediu a minha ajuda e eu... — Faço uma pausa,
ruminando minha própria falta de lógica. — Aceitei.
Aceitei por causa de uma criança que não deve ter mais do que um
ou dois meses na barriga da mãe, e porque deixei as minhas emoções se
sobreporem à razão. Que grande idiota eu sou.
— Isso é raro. — Lara ergue uma folha, passando seus olhos
astuciosos pelo documento antes de devolvê-lo à mesa. — Andrei Volkiov
em um caso que não envolva a Corporação.
— Yerik é um velho amigo, e foi um apoiador importante durante a
crise — explico-me vagamente. — Uma besteira conjugal, mas não pude
recusar. Ainda não aceitei o caso oficialmente, sou apenas um representante
temporário, mas espero que tudo se resolva sem que ele precise ir para o
tribunal.
No pior dos cenários, os dois podem acabar disputando a custódia
da criança, e espero evitar que isso ocorra a todo custo.
— É claro que vai conseguir, você é o melhor. — Lara apoia os dois
cotovelos na minha mesa e sorri orgulhosamente.
Não costumo fingir modéstia sobre o meu trabalho, pois sou mesmo
muito bom, mas estaria mentindo se dissesse que não há nada me
incomodando em todo o processo de Yerik com a mulher. Parece simples e
fácil demais para tantos dramas. Em nenhuma hipótese a paternidade lhe
seria negada, então trata-se apenas de escolher uma saída que cause o
menor dano possível a ambos.
Divórcios, no geral, não representam grandes desafios e por isso os
detesto tanto, mas a história é outra quando há dinheiro envolvido e, claro,
um filho. Que sorte eu tenho. E mais sorte ainda que tenha sido marcado
para hoje.
Que dia de merda.
— Tive que fazer um verdadeiro milagre com o pouco tempo que
tinha disponível. Pegar um caso na metade é uma porcaria.
Por se tratar de uma simples preparação, devem ter assumido que
fotografias e históricos familiares fossem dispensáveis — tudo bem, de fato
não são exigidas provas desse patamar a menos que as partes envolvidas
não cheguem a um acordo neste primeiro encontro e acabem em um
julgamento no tribunal. Mas eu não cheguei ao título de melhor advogado
do país seguindo os padrões simplistas dos meus colegas de trabalho.
Como não há nada a ser feito a não ser nadar seguindo a maré, meu
consolo é saber que, se tudo correr bem, tais informações não farão falta
alguma e as estratégias que consegui traçar com o material que tinha
disponível ainda beiram ao indisputável.
— Certo, e você não dormiu na empresa de novo, dormiu?
Eu simplesmente não dormi, ponto.
— Não deixaria Ana sozinha — digo, evasivo.
Há noites em que a presença de Ana é a única coisa capaz de
quebrar a minha exaustão. Mas, na maioria das vezes, sua presença também
tira o meu sono por ser dolorosamente linda, uma tortura constante para os
meus desejos mais profundos.
Lara coloca uma mecha do cabelo curto atrás da orelha e evita o
meu olhar. Mecanicamente, meu cérebro faz uma leitura e odeio encontrar
nela um receio triste e penoso, porque eu sei o que significa e para qual
rumo seus pensamentos seguiram: aquilo que as duas têm em comum.
— Já descobriram alguma coisa? — ela pergunta, abraçando o
próprio corpo, na defensiva. Pare de analisar. — Não se preocupe, Ivan me
pediu para não falar nada, pelo menos até terem um retorno do investigador.
— Não importa mais — digo, saboreando o gosto amargo que se
alastra pela minha boca e escorrega garganta adentro. Eles já sabem onde
ela está, é inútil continuar sendo cauteloso. O investigador vai se encontrar
com Ivan hoje, aqui mesmo na empresa, para repassar tudo o que descobriu.
— Hoje é um dia daqueles, então.
Como se o universo quisesse concordar com Lara, meu celular vibra
sobre a mesa e confiro a origem da chamada para constatar o óbvio. É
Genny de novo, insistente como só ela sabe ser.
— Você nem faz ideia. — Ignoro a ligação e viro a tela contra a
mesa. Sinto um zunido alto e constante atravessando meu crânio.
Saio da minha posição confortável na cadeira estofada e dou as
costas para Lara, caminhando até parar diante das janelas panorâmicas cuja
vista da capital pulsa com os primeiros raios solares. Encosto a testa no
vidro, sinto a temperatura contra a pele, tento me concentrar no frio,
imaginando se ele vem do lado de fora, ou de dentro de mim.
Ouço Lara se levantando também, o farfalhar de suas roupas. Sinto
sua atenção focada em minha nuca, a preocupação palpável viajando de seu
olhar. Fico esperando que diga alguma coisa ou questione a minha sanidade,
mas ela só arrasta os pés em silêncio e para ao meu lado, encarando a
mesma tela alaranjada de uma Moscou triste e gelada ao amanhecer de um
péssimo dia.
É seu jeito de demonstrar seu apoio e dizer que está aqui por mim.
Não sei se estou fazendo o certo, se Ana pode acabar se chateando
quando descobrir que estou atrás de seu ex-marido, mas não consigo
esperar de braços cruzados. Cada vez que a pressiono um pouco, sinto
como se ela fosse desmoronar bem diante dos meus olhos.
Ou como se eu fosse desmoronar.
Mas se eu quero que ela confie em mim, preciso ser um homem
confiável em primeiro lugar.

***

Quanto mais nos aproximamos da sala de audiência, mais a euforia


se espalha através do meu sistema nervoso, uma corrente elétrica de bem-
estar, um estado mental de felicidade reservado apenas a animais selvagens
quando são inseridos em seus habitats naturais.
Eu estou em casa.
Ao meu lado, Yerik caminha com certa arrogância, ombros
relaxados, mãos nos bolsos, e um olhar de superioridade e desdém
costurado no rosto. Minha companhia o faz ter certeza da causa ganha, e
homens como Yerik gostam de sentir o poder em suas cabeças, o peso de
uma coroa imaginária que os diferencia das pessoas comuns.
Sinto um pouco de inveja, pois aqueles que brincam com coroas de
papel e cola jamais conhecerão as responsabilidades trágicas de um
verdadeiro rei.
Como eu.
Fecho meus dedos com mais força na alça da pasta que carrego com
a mão direita. Na esquerda, sinto a palma suada ao redor do celular, que
mantenho junto comigo pelo maior tempo possível antes que a audiência
comece, à espera de uma ligação de Ivan.
Metade de mim está presente, a outra continua presa à existência de
Ana. Controlo a vontade de ligar para ela, só pelo prazer de ouvir sua voz
dizendo melodicamente no meu ouvido que está bem. Não nos falamos
desde o horário do almoço, há cerca de duas horas, quando me disse que
passaria a tarde no apartamento de Yuliya. Para mim, parece uma eternidade
sem notícias dela.
Falta pouco para o início da audiência. Tenho que manter os
pensamentos no lugar. Sei exatamente o que fazer, o que falar, já fiz isso
centenas de vezes antes. No entanto, sinto uma sensação diferente, um
pressentimento pútrido que combina com este dia de péssimos agouros.
— Andrei. — Yerik joga um braço ao redor de meus ombros. —
Obrigado, amigo, eu não sei o que faria se não fosse você.
De esguelha, olho para ele e tento parecer minimamente
envaidecido.
— Me agradeça quando tudo tiver chegado ao fim. — Yerik para
com a bajulação de abraços assim que encara meu semblante sério. —
Lembre-se do que conversamos e me deixe fazer o meu trabalho. Não deve
demorar, tenho certeza de que sua mulher vai perceber que nossas propostas
são irretocáveis.
— Ainda tenho esperanças de que não precisemos de um acordo —
diz, desviando os olhos para o chão, com as mãos apoiadas na cintura, bem
menos arrogante e cheio de si do que segundos atrás. — Eu ainda a amo —
declara, rindo sem humor. — Eu sei. Patético, não acha?
Yerik inclina o rosto para o lado e sigo seu gesto, apesar de saber
exatamente para onde está olhando. Não existe nada de especial a ser visto
além do que se espera de um edifício legislativo, com muitos tons de cinza
nas paredes e pessoas vestidas com roupas formais pelos corredores, mas é
naquela direção que podemos ver a porta da sala onde reencontrará a esposa
perdida.
Concordo que seja patético, mas quem sou eu para condenar um
homem por ter esperanças, quando passei anos me esforçando para
corresponder ao amor de uma mulher que já carregou o meu mundo dentro
do ventre?
Quando ousei me apaixonar por outra em um tempo humanamente
questionável?
Não sou melhor do que Yerik.
Mesmo sendo o requerente da ação, ele continua repetindo em todas
as oportunidades que gostaria de fazer as pazes com a esposa. Anastasia
Baranova é uma mulher emocionalmente instável — ou, pelo menos, é
nisso o que Yerik espera que eu acredite.
Geralmente é assim mesmo que funciona: os envolvidos adquirem
uma habilidade única de descrever o outro da pior maneira possível, e esse
é mais um grande motivo que me faz odiar casos familiares. Quando o amor
é contaminado, todos os outros sentimentos, como respeito e gratidão, são
abatidos na sequência.
Yerik diz amá-la, mas o que vejo em seu olhar enquanto encara a
porta, pode ser qualquer coisa, menos amor. Ele esconde alguma coisa, mas
ainda não consegui identificar o que.
— Precisa se acalmar, Yerik — digo, assumindo minha veia
profissional. Foda-se que seja um idiota, eu tenho um trabalho a cumprir
para me ver livre desse drama. — É importante manter a compostura neste
momento. Agora, mais do que nunca, mantenha a cabeça erguida.
Faço menção de seguir em frente, mas o idiota descontrolado se
coloca na minha frente e agarra as lapelas do meu paletó, arregala os
grandes olhos desesperados bem perto do meu rosto.
Que. Dia. Fodido.
— Meu filho — murmura, esbaforido, tremendo e com os dentes
cerrados. Ódio. Medo. Rancor. Perigo. Já suspeitava que Yerik fosse um
pouco descontrolado, mas não imaginei que seria uma bomba. — Não
posso ficar sem o meu filho em nenhuma hipótese.
Filho, a palavrinha mágica.
É por isso que estamos aqui. Tenho que parar de absorver tudo o que
ele diz como um maldito para-raios, mas não consigo ignorar a criança que
foi tragada para essa merda.
— Yerik, ouça o que estou dizendo. — Sem me mover, tento
acalmá-lo. — Isso não vai acontecer. Confie em mim, somos amigos, não
somos? Eu sei que parece difícil agora, mas esse tipo de reunião costuma
acabar depressa.
Ele não me solta, mas relaxa as mãos, a respiração diminuindo a um
arfar choroso. Não é meu primeiro cliente que surta, e cabe a mim manter o
controle.
— Vai dizer a ela? — pergunta. — Vai dizer com todas as letras que
ela não pode me impedir de ser o pai dessa criança?
— O juiz deve discorrer sobre os benefícios de manter o matrimônio
e essa é sempre uma possibilidade viável. — Eu já havia lhe explicado isso
antes, mas é a melhor resposta para não me comprometer com promessas.
— E você acha que existe alguma chance de a gente se acertar?
— Se ambos concordarem com a desistência da ação, claro. Mas
não se empolgue, tudo bem? Caso contrário, seguiremos com as propostas
de divisão de bens e a custódia da criança.
Ele concorda e inspira sonoramente, chacoalhando o rosto, como os
lutadores fazem antes de um confronto decisivo. Meu trabalho é garantir
que ele tenha o direito de conviver com o filho em circunstâncias saudáveis,
como qualquer pai que tenha o mínimo de caráter deseja — como eu
desejaria se tivesse a mesma chance.
Mas Yerik me incomoda.
Algo nele me perturba profundamente.
— A gravidez... — Suas pálpebras pesam e ele se afasta, vejo a
consciência recobrando as expressões em seu rosto constrangido.
— Faremos um requerimento para que possa custear e acompanhar
a gestação — garanto-lhe com firmeza.
E funciona. Yerik inspira e expira, a vermelhidão que havia tomado
todo o seu rosto dissipa até restar apenas um leve tom rosáceo, e o cabelo
loiro, outrora penteado para trás, faz curvas grudadas na testa suarenta.
— Desculpe eu... — Ele esfrega os olhos. — Hoje é um péssimo
dia.
Nem me fale.
— Tudo bem, é melhor nós irmos.
Ele abre a boca, como se quisesse dizer mais alguma coisa,
desculpar-se mais, suponho, mas desiste e se vira, caminhando na minha
frente com as costas rígidas. Eu o sigo, torcendo para que ele tenha o
autocontrole de ficar quieto e comportado enquanto lido com a audiência do
meu jeito, mas não consigo ir muito longe.
Meu celular vibra.
Meu coração acelera.
O pulso explodindo nos ouvidos.
Mas o nome na tela não é de Ivan, e sim de Komarov.
— Algum problema? — Yerik pergunta, olhando para trás.
Meu irmão deve estar com o investigador. Tenho que me desligar de
tudo o que envolve a minha vida pessoal assim que atravessar aquela porta,
ou corro o risco de conseguir meu primeiro fracasso em um processo.
Recuso a ligação.
Ana está com a vizinha, então não preciso me preocupar com a sua
segurança. Seja o que for, Komarov vai ter que esperar.
Esqueça tudo e foque no seu trabalho.
— Nenhum. — Porém, mesmo dizendo isso, a chamada recomeça.
Só que agora é meu irmão. É Ivan.
Finalmente.
Não deixo transparecer o que estou sentindo. Meu reflexo nas
janelas é a prova disso. Em meu rosto, expresso o mais tranquilo dos
semblantes e ouso fingir um sorriso. Quem olhar para mim, talvez pense
que estou feliz. Eu me pareço com um homem feliz.
Ah...
Eu estou sombriamente feliz.
Lá nos confins da minha mente, eu sei que é um erro atendê-lo
agora. Ivan sabe que estou trabalhando e, se ligou mesmo assim, é porque
está puto. E eu ficarei dez vezes mais.
Faço um sinal para Yerik, pedindo que espere um momento, e me
afasto dele.
Porra.
— Quem? — atendo, calmo, controlado, um mentiroso.
Há pessoas no corredor caminhando na nossa direção, duas formas
distantes que não consigo distinguir graças à perturbação mental. Yerik, não
muito atrás de mim, também se transforma em um borrão. Olho o relógio
em meu pulso, constatando que tenho apenas dez minutos. É mais do que
suficiente, não vou esperar nem mais um segundo da minha vida para saber
quem é o infeliz.
— Você não vai acreditar! — Ivan grita, confirmando o que eu já
sabia. O investigador teve sucesso em suas buscas. — É ele, Andrei! Esse
filho da puta.
— O nome, Ivan.
Ao longe, as duas silhuetas começam a ganhar contornos nítidos.
Um corpo masculino ao lado de outro menor e delicado. Uma mulher
cruelmente familiar. Minhas vísceras se contorcem e eu não faço nada para
contê-las. Posso berrar por dentro, porque lá os ouvidos e olhos comuns não
conseguem enxergar ou escutar nada.
Desde que a casca de Andrei Volkiov continue inteira, eu ficarei
bem.
— O cara que você está defendendo — Ivan continua, mas a voz do
meu irmão vai se extinguindo enquanto pisco e pisco e pisco, incrédulo.
— Ela é famosa. Porra, ela é famosa pra caralho. Nossa Ana, Andrei, é a
esposa de Yerik Baranov. Ela se chama...
Desço meu braço sem causar nenhuma comoção. Finja, ordeno a
mim mesmo, finja como jamais fingiu em toda a sua vida, seja um rei e
aguente a sua fodida coroa.
O nome desliza suavemente para dentro de mim, sem resistência.
O homem, que agora eu reconheço como um advogado, vem
distraído com vários documentos soltos nas mãos, lendo-os às pressas. Não
me importo com ele, mas é uma peça chave na rede que se forma em minha
cabeça. Ele é o advogado da esposa do meu cliente.
A mulher, igualmente distraída, não tem consciência de como a luz
das grandes janelas em um lado do corredor cultua seu rosto como se fosse
uma deusa, salpicando o marrom-claro de sua bela pele negra com toques
de ouro. Os cabelos cacheados formam uma cortina sobre os ombros
estreitos, mas não são suficientes para esconder a expressão perdida e
amedrontada em seu rosto magro.
É ela.
Anastasia Baranova.
Minha Ana.
Ela levanta o rosto para responder a qualquer coisa que o advogado
questiona, e acontece. Nossos olhares se encontram.
O relógio para de girar. O mundo congela.
E eu sangro.
Não o meu corpo, nem o meu coração, mas a minha alma. Ela
sangra e chora e grita. Tantas vezes desejei ser capaz de entender a minha
mulher, de perceber seus sentimentos e ler suas páginas dobradas, e agora
venderia minha alma ao diabo se ele prometesse arrancar os meus olhos
para não enxergar o terror na face de Ana ao me reconhecer.
Antes de eu sair de casa pela manhã, ela me deu um beijo e desejou
que eu tivesse um bom dia. Olhou nos meus olhos e fingiu que tudo estava
bem. Ela mentiu. A mágoa e o medo que está sentindo — pois eu os vejo
todos — se equiparam à minha própria decepção. Entretanto, diferente dela,
escondo muito bem.
Meu sorriso é frio, mas presente. E, como a cereja em cima do bolo,
recebo a última pancada. Ana...
Anastasia está grávida.
E meus esforços para protegê-la foram em vão, pois, hoje, eu serei
aquele que vai lhe causar o maior sofrimento.
19
Anastasia
A CADA PASSO pelo extenso corredor que leva para a sala onde vai
acontecer o fatídico encontro com Yerik, sinto a pressão em meu peito
aumentar, como se mãos invisíveis me puxassem para trás, dizendo-me para
fugir enquanto há tempo. Em alguns minutos, estaremos frente a frente para
selar o nosso divórcio. Eu ficaria feliz se não fosse a sensação de estar
perdendo uma guerra. Não pode ser tão simples.
Comparecer desassistida à essa reunião, mesmo se tratando de uma
audiência preliminar, seria uma idiotice sem igual — mais uma — então,
aceitei o advogado que meu irmão ofereceu.
Gusev me acompanha em silêncio. Ele claramente teve pouco tempo
para se preparar, considerando que continua lendo e relendo os papéis com
uma ruga entre as sobrancelhas. Mas, ainda é melhor do que nada. Tenho
que sobreviver ao dia de hoje e, depois…
Eu não sei o que vem depois.
O advogado me disse que divórcios normais são rápidos quando as
duas partes concordam com a separação. Geralmente, sequer precisaríamos
nos encontrar em uma audiência, bastaria pagar uma taxa qualquer e, dentro
de um mês, tudo seria resolvido. Entretanto, como eu fugi de casa, o cenário
é outro.
Por causa da gravidez, Yerik precisa da minha autorização para
formalizarmos o divórcio. Ele não pode se separar a menos que eu
concorde. Mas ele sabe que vou aceitar, o que reforça ainda mais a minha
teoria de que estou caindo em uma armadilha. Qual o seu verdadeiro plano?
Isso não é um julgamento, lembro a mim mesma. Não estamos a
caminho de um tribunal. Não é como nos filmes, com acusações, perguntas,
respostas, brechas. Ao menos, não ainda. Se tudo der certo, posso me ver
livre dele ainda hoje, dentro de meia hora ou menos, e é a essa chance que
me apego.
— Parece que não fomos os únicos a chegar em cima da hora — o
advogado diz.
Levanto meu rosto para entender a que se refere, e sou tragada.
Existe um momento, quando um músico sobe no palco, em que seus
ouvidos fazem uma pausa, um voto de silêncio com o universo. As vozes
dos espectadores perdem a potência em ondas sonoras graves, desaceleram
devagar até desaparecerem por completo, todos os ruídos ficam mudos,
congelados, e tudo o que ouvimos é o penetrante barulho do nada.
Dura o tempo de uma respiração, longa o suficiente para que todas
as nossas emoções escorram até as pontas dos dedos. É disso que se trata o
trabalho de um musicista: conduzir sentimentos para a superfície e expor
todos eles ao mundo.
Não há palco desta vez, tampouco uma plateia ou um instrumento
ao qual eu possa me apegar, mas a sensação é a mesma. Os olhos de Andrei
recaem sobre mim e enxergam tudo, me desnudam, reviram ainda mais a
bagunça que reside dentro do meu coração naquele milissegundo de
vulnerabilidade.
Eu flutuo no vazio do seu olhar, tentando entender o que está
acontecendo. Não faz sentido. Nada faz sentido. Será que estou sonhando?
Ou sendo punida? Desejo tão fortemente Andrei Volkiov ao meu lado que
minha mente sucumbiu à loucura e o invocou como uma alucinação?
Não.
Não estaria doendo tanto se não fosse ele. Andrei não é do tipo que
pode ser confundido. É ele. Aqui. Agora. Parado na minha frente. Não há
dúvidas.
E, céus, como dói.
Cada detalhe de seu ostensivo corpo masculino me são
reconhecíveis como uma parte de mim; a distância entre os ombros largos, a
circunferência dos braços fortes que me transmitem segurança sempre que
me amparam, os dedos compridos e firmes cuja aspereza ainda reside em
minha pele.
É ele. Mesmo assim, eu sinto como se o estivesse vendo pela
primeira vez. Há sombras em suas feições, uma seriedade gélida que causa
arrepios nos meus ossos.
Sua gravata azul-marinho e o terno preto são os mesmos que usava
pela manhã, quando eu tinha certeza de que estava fazendo a coisa certa ao
poupá-lo da verdade. Mas eu não imaginava que, de um jeito ou de outro,
com a mentira ou com a verdade, já estávamos condenados...

***

As cortinas abertas são a primeira coisa que vejo ao acordar, o céu


noturno e sem estrelas ainda está escondido atrás de camadas e mais
camadas da neblina que antecede o amanhecer. Não é a minha vista
preferida do céu.
Busco por Andrei ao meu lado, mas ele não está aqui, e, sem a sua
presença, eu não consigo respirar. Por que não está aqui? Justo hoje…
Preciso dele, de sentir o seu toque confiante no meu rosto, a respiração
perto do meu pescoço, e os lábios deixando rastros de beijos em toda a
minha pele. Mais do que em qualquer outro dia, necessito do seu toque
para me dar forças.
O olhar de Andrei, às vezes meigo e protetor, outras intenso e
ousado, é o único capaz de apaziguar a sensação de desespero deixada
pelo medo. A insegurança por sua ausência inesperada penetra minhas
narinas no lugar do oxigênio e sinto como se estivesse morrendo.
Preciso dele.
Jogo as pernas para fora da cama e me coloco de pé, mas minha
visão escurece e caio de volta no colchão. Eu espero, com a mão sobre a
barriga, enquanto a tontura vai diminuindo devagar. Sinto a protuberância
quase imperceptível em meu ventre, impossível de ser detectada por olhos
de terceiros, e sou preenchida pela existência do serzinho especial que
guardo dentro de mim.
Quando a tontura vai embora, o medo permanece, só que em dobro,
pois também o sinto pelo meu bebê.
Cambaleante, arrasto-me para fora do quarto. Todas as lâmpadas
estão apagadas, mas já conheço os corredores e as posições dos móveis, sei
onde ficam os quadros e as tapeçarias. De um jeito não intencional, Andrei
se tornou o meu lar e fez deste apartamento o nosso refúgio.
Procuro por ele. Não sei explicar porque necessito assim de sua
companhia, desesperadamente, mas a saudade é tão intensa que faz minhas
mãos suarem e o coração acelerar e meus membros tremerem e todo o
oxigênio desaparecer em um mísero piscar de olhos e eu volto ser um
grande e confuso colapso.
A sala continua com o cheiro forte de umidade que foi deixado pela
chuva de anteontem. Olho ao redor, buscando pistas de sua presença. Vejo
primeiro o copo cheio e aparentemente intocado sobre o piano fechado.
Então, noto a silhueta elegante e robusta.
Não penso muito, apenas corro aos tropeços e pulo em cima dele,
esticando-me na ponta dos pés para colocar os braços ao redor do seu
pescoço.
— O que aconteceu? — pergunta, visivelmente surpreso, a voz
pujante trazendo conforto aos meus ouvidos.
— Pensei que você tivesse desaparecido — digo, meio sem
raciocinar direito, com os sentimentos amplificados, segurando-me nele
com toda a minha força. Ao notar a tolice que acabo de confessar, tento me
corrigir: — Pensei que tivesse saído para o trabalho sem se despedir.
Andrei relaxa, me abraçando de volta, e meu coração agradece pelo
afago que vai exterminando as sombras ao meu redor.
— Não vou desaparecer — ele promete com confiança, mas não
consigo acreditar, apesar de querer muito. — A não ser que você queira
desaparecer comigo.
É uma proposta de contos de fadas, talvez por isso eu a ame tanto.
— Podemos? — murmuro, encostando o ouvido em seu peito que,
agora percebo com calma, está totalmente à mostra na fenda de sua camisa
desabotoada.
— O que? — questiona. Ele acende uma luminária próxima, e a
fraca luz amarelada me permite ver seu semblante risonho. —
Desaparecer?
— Sim. — Toco seu peitoral com as duas mãos e por um momento
Andrei estremece. — Só nós dois, para bem longe. Um lugar onde ninguém
possa nos encontrar, talvez um vilarejo meio desconhecido no sul, ou até
em outro país. Podemos ir para literalmente qualquer lugar do mundo.
— Vamos, não me torture assim — ele diz, suspirando. — Não faz
ideia de como é difícil negar qualquer coisa a você quando faz essa
carinha. — Suas duas mãos seguram meus quadris, provocando-me, e me
pressionam contra ele.
Tenho certeza de ouvir um som agudo saindo da minha garganta
pouco antes de ter os meus lábios dominados por Andrei. Ele treme assim
que nossas línguas se encontram, e sinto que cede o controle enquanto
movemos vagarosamente nossos rostos de um lado para o outro. Andrei
segue pacientemente meus movimentos, sem fechar os olhos, e conforme
nos beijamos, seus braços vão se comprimindo ao meu redor. É um
provocador natural e sabe que eu sempre caio em seus joguetes.
Ao girar nossos corpos e me ter contra o piano, ele coloca um
joelho entre as minhas pernas e sorri como um inocente dissimulado assim
que abro os lábios de choque. Andrei rouba o comando de mim sem me dar
tempo para raciocinar. Mergulha em minha boca e puxa as raízes dos meus
cabelos pela nuca, obrigando-me a dobrar o pescoço para trás.
Ele é ganancioso quando se trata de intimidades, e está fazendo de
mim uma fanática por mais dele. Mais de nós.
Seu joelho pressiona o ponto entre as minhas pernas e eu não
resisto à sensação delirante que me faz gemer. Seu sorriso orgulhoso é
palpável enquanto me beija, e beija, e beija, sugando a minha sanidade,
destruindo minhas defesas, infiltrando-se no meu coração.
— Cânone em Ré Maior, de Johann Pachelbel — murmuro em meio
ao meu transe, porque consigo sentir a música em nosso beijo. — É uma
melodia — explico, envergonhada — romântica, acabei me lembrando.
Ele sorri e remove a perna que me sustenta, mas me segura pela
cintura com apenas um braço ao perceber que mal consigo ficar de pé
sozinha. Apenas quando não há mais o risco de eu cair feito uma boneca de
pano, Andrei me solta e se afasta vários passos, abotoando a roupa.
Não deixa de me olhar. Sob seu escrutínio, eu me sinto especial,
protegida e amada, sem nenhum resquício daquele desespero que me
acometeu ao acordar. Vejo o fogo dentro dos seus olhos, a sua própria luta
contra um desejo que também faz o meu corpo queimar.
Ele pega uma gravata e a coloca nos ombros, caminhando na minha
direção. No entanto, não me toca, não me beija, não me desintegra em suas
mãos. Ao invés disso, busca ao meu lado, sobre o piano, o copo que estava
ali o tempo todo, e o vira na boca em um grande e longo gole.
— Você é um perigo para mim, Ana. — Andrei devolve o copo,
agora vazio, à superfície amadeirada do piano. Não sei do que está falando
especificamente, mas consigo supor, e meu estômago dá algumas
cambalhotas. — Eu não vou sumir — avisa, voltando ao assunto que nos
trouxe a este momento. — Então, não desapareça também.

***

Existe um abismo entre o homem diante de mim e aquele a quem


tanto tentei proteger da minha própria miséria. Que burrice a minha. Andrei
me estendeu a mão, e eu não a segurei com força o bastante. Mesmo que
estenda a minha agora, ele não vai segurar, porque não a mereço. As minhas
mentiras, medos, vergonhas e arrependimentos, estão escancarados. Todas
as minhas falhas, as minhas feridas, os meus fracassos.
Mas Andrei não vai me salvar, principalmente porque, ao lado dele,
está o meu pior pesadelo.
Yerik.
Eu arfo. O silêncio vai embora. Minha visão, turva por causa das
lágrimas, se junta com a algazarra de ruídos repentinos e me deixa
momentaneamente zonza; por muito pouco não desabo na frente dos dois.
Dentro de mim, uma frase se repete.
Andrei e Yerik estão juntos.
Andrei e Yerik estão juntos.
Andrei e Yerik estão juntos.
Como isso é possível?
— Nastya… — É a voz de Yerik, uma assombração penetrando
meus ouvidos.
Recuo, com medo. Medo dele, medo da pessoa que eu sou ao seu
lado. Sinto-me em um carrossel, girando e girando no mesmo lugar, presa
em um círculo sem fim. Não quero olhar em seus assustadores olhos azuis,
não quero que meu corpo se lembre das mãos dele ao redor do meu
pescoço, da sensação desesperadora de tentar respirar e não conseguir, de
gritar e não ser ouvida, do peso do seu punho, de como sempre doía.
Do medo de morrer.
Não compreendo.
Ergo meu rosto assim que a vertigem vai embora, mesmo que a
angústia continue esmagando meu peito. Limpo as bochechas úmidas com
as mãos, mas o choro escorre incessante sobre elas, duas nascentes
medíocres de gotas salgadas. Andrei se mantém impassível, perfeito,
controlado, uma muralha impenetrável como sempre fora.
É impossível deduzir o que está pensando ou sentindo. Seu silêncio
é aterrador e não tenho a menor chance de vencê-lo. Nem sei se quero.
— Só me diga que nosso filho está bem — Yerik insiste em um tom
mortalmente triste. Falso. Ele dá um passo à frente e eu faço o movimento
inverso por instinto, afastando-me o mesmo tanto. — Não faz assim,
querida.
Yerik tenta dar um segundo passo, mas Andrei coloca o braço
estendido na frente dele, a mão fechada em seu celular desligado. Todos
olhamos para ele ao mesmo tempo e eu quase tenho esperanças. Quase.
— Senhora Baranova — diz, e me quebra. O sobrenome de Yerik é
a minha maldição se concretizando na boca de Andrei. Não ouço emoções,
carinho ou paixão em sua voz. É distante e impessoal como um estranho.
Ele está com raiva, presumo. Tem o direito de estar com raiva. Eu a mereço.
— É um prazer conhecê-la. Peço desculpas pela importunação em nome do
meu cliente. Estamos indo na frente agora.
Cliente.
Ele desce o braço, deixando-me sem palavras, e murmura alguma
coisa que não consigo escutar para Yerik. Vê-los juntos, conversando um
com o outro, é horrível em tantos níveis que não consigo mensurar. Sempre
os imaginei como polos opostos, o demônio e o anjo, meu algoz e o meu
salvador.
Tudo está confuso agora. Não sei o que dizer, o que pensar, para
onde fugir.
Enquanto viram de costas, Yerik me encara, um sorriso ardiloso
rasgando o rosto esculpido. Eles seguem lado a lado para a sala.
Inocentemente, eu espero, rogando para que Andrei volte para mim e diga
que tudo vai ficar bem, que esta situação não passou de um mal-entendido e
que não vai mesmo defender o homem que me fez tão mal.
Mas Andrei, que se tornou o meu porto seguro, quebra a sua
promessa bem diante dos meus olhos e desaparece.
Os dois entram na sala.
Juntos.
Minhas pernas perdem a força e me agacho no meio do corredor,
com o corpo fraco dobrado para frente, sem me importar muito com as
poucas pessoas que passam por nós e seus olhares de curiosidade e pena.
Ainda bem que o nervosismo me impediu de comer durante o almoço, ou
tudo estaria sendo despejado aos meus pés agora.
— Senhora Baran…
— Me chame de Anastasia, por favor. Ou Ana. Qualquer coisa,
menos isso. Só preciso de um minuto.
Um minuto para sentir.
Andrei sabia quem era Yerik quando aceitou advogar em sua
defesa? Ou também foi pego de surpresa? E por que, mesmo sabendo tudo
o que Yerik me fez, mesmo tendo visto com os próprios olhos, ainda está ao
lado dele? É por que eu menti? Ele quer se vingar? Nenhuma possibilidade
parece plausível.
Eu não sei o que pensar. Deus, me faça entender, por favor, e leve
essa dor embora.
— Aquele era Andrei Volkiov, não era? — Gusev pergunta. — Não
era o nome dele que constava nos autos, deve ser um representante. Isso
complica um pouco as coisas se acabarmos indo a julgamento.
Hesito antes de responder, pois sei o que vem em seguida.
— Sim. — Meus lábios tremem. — Era.
Verbalizar torna tudo real. Sinto-me sem chão, cansada,
completamente perdida no escuro de uma queda sem fim.
Eu e Andrei...
Acabou, é isso?
Não consigo respirar.
— O senhor Volkiov é conhecido por ser um cara bacana, um
homem de caráter. — O pobre rapaz tenta me confortar, inclinando-se sobre
mim. — Vamos ouvir as propostas e tentar chegar a um bom acordo…
O advogado continua falando coisas que não quero escutar sobre
divisão de bens e guarda compartilhada, mas meu cérebro meio que
bloqueia suas palavras. Tento inspirar e expirar sequencialmente, meus
pulmões ardem, e as chamas que poluem o oxigênio chegam aos meus
olhos, que queimam também.
O mundo fica coberto de cinzas.
Andrei e Yerik estão juntos.
— Tudo o que eu fiz foi em vão? — A porta entreaberta me chama à
frente, com dentes afiados e garras à mostra. Eu sei que não tenho tempo
para desmoronar completamente agora. Procuro aquela única parte do meu
corpo onde reside toda a calmaria e me obrigo a ficar de pé, com a mão
pousada sobre o meu bebê. — Sinto muito — digo em um sussurro fraco.
— Podemos ir agora.
Eu abraço a minha dor e aceito andar de mãos dadas com o medo.
Faço um nó no meu coração para salvar o pouco que ainda resta, e fico feliz
por nunca ter dito em voz alta o nome do que sinto por Andrei, já que não
sei como me desfazer desse sentimento tão depressa.
A gente colhe o que planta, e minhas sementes podres floresceram.

***

Amortecida, sento-me à mesa retangular posicionada no meio da


sala claustrofóbica. Estou tremendo. Por dentro. Por fora. Deixo as mãos
fechadas sobre as pernas, por baixo da mesa, para que ninguém perceba,
principalmente os dois homens à minha frente.
Andrei e Yerik.
Há cadeiras dispostas em ambos os lados, e tenho uma noção
distante do juiz na ponta da mesa, um senhor com óculos garrafais e cabeça
calva que não parece muito simpático ou feliz. Ao lado dele, um pouco
atrás, outros dois homens acompanham o processo em silêncio e, apesar do
meu advogado sussurrar suas funções, eu realmente não consigo prestar
atenção.
Como a única mulher na sala, tenho a estranha sensação de estar em
desvantagem, um peixinho dourado solto em um mar de tubarões. Sinto que
me olham, todos eles, com pena, com presunção, com fome. E odeio me
sentir assim, tão desprotegida. Tão mortalmente sozinha.
Encolho-me na cadeira e tento ignorar o magnetismo que chama
pelos meus olhos, mas a energia emanando de Andrei começa a me
envolver, uma força invisível que dança ao meu redor, sussurrando o meu
nome, atraindo-me para as profundezas das suas órbitas polidas como
pérolas negras. Ao erguer meu rosto em sua direção, noto que me encara de
volta, com as pálpebras imóveis, o maxilar tenso, as expressões congeladas.
Meu coração desacelera enquanto o observo, como se não tivesse
mais ninguém na sala além de nós dois. Sua invasão deixa meus olhos
turvos, cheios de lágrimas não derramadas e súplicas silenciosas que nem
eu entendo. Imploro — não sei se para ele ou para mim mesma — que não
seja o nosso fim, mas sua resposta é o absoluto silêncio.
Andrei está mudo. Olhos, boca e coração não emitem palavras. A
cratera que se abriu entre nós é grande e funda, e aquele que der um passo
adiante primeiro, pode acabar caindo.
O juiz nos cumprimenta e começa a fazer um discurso sobre esperar
que cheguemos a uma solução amigável para ambos e outras besteiras sem
sentido. Tenho a impressão de escutar tudo como se estivesse dentro da
água. Ele se apresenta, depois aos outros homens, mas não guardo o nome
de ninguém.
Estou paralisada, os sentimentos escorrendo para fora de mim sem
que eu possa fazer nada. É Andrei quem interrompe o nosso transe ao se
virar na direção do juiz, que segura um punhado de folhas nas mãos.
Baixo meus olhos. Fique calma, fique calma.
— Esta é uma reunião de preparação de audiência, que visa verificar
a firmeza da decisão de ambas as partes em dissolver o casamento — diz o
juiz em tom enfadonho, como se lidar com toda a nossa situação fosse um
aborrecimento para ele. — Mediante desacordo na dissolução, será marcada
nova data para audiência de julgamento no tribunal, para que sejam
averiguadas e solucionadas as divergências em reivindicações sobre divisão
de bens materiais ou criação de filhos menores de idade.
Ele troca a folha que estava lendo por outra, suspira tediosamente, e
depois continua:
— Ainda que esta audiência tenha como base as partes envolvidas,
esperamos facilitar-vos a um acordo, bem como instruir a uma comunicação
agradável e não violenta.
A última palavra em sua frase quase me faz olhar para Yerik.
Mesmo que agora, na frente de tantas pessoas, ele se pareça com um santo,
eu sei que comunicação violenta é a sua especialidade. Sei da pior forma.
— A parte que iniciará a fala será aquela que propôs a demanda.
Nesse caso, senhor Yerik Aleksandrov Baranov, assistido por seu advogado
Andrei Nicolaevitch Volkiov.
É agora.
— Claro, meritíssimo — Andrei diz em tom diplomático, mas é para
mim que olha antes de continuar. — Embora meu cliente não queira dar
seguimento na ação de divórcio, por alegar ainda nutrir sentimentos pela
esposa, e tenha deixado explícito o seu interesse em manter o matrimônio se
assim a outra parte desejar no decorrer desta reunião, ele se viu obrigado a
recorrer a tais medidas ao ser privado de informações referentes à gestação
em andamento do cônjuge, uma vez tendo ela evadido da residência
partilhada pelo casal em São Petersburgo, sem deixar aviso de seu destino
ou paradeiro.
Quanto mais Andrei fala, menos o reconheço. Cada palavra é
sentida pelo meu corpo como uma perfuração nas costas. Ele sabe por que
eu fugi. Posso não ter contado todos os detalhes, mas ele viu.
Ele viu.
Andrei vira o rosto e diz algo para Yerik. Toda vez que interagem
um com o outro, eu morro um pouco por dentro.
— Não foi assim — digo com meus lábios frementes, em um
volume tão baixo que poderia ser apenas minha imaginação, mas Gusev
toca meu ombro para me conter. Existe um protocolo a ser seguido, lembro
de ele ter mencionado antes. — Eu… me desculpe.
Andrei prolonga seu silêncio após minha interrupção. Seus punhos
estão fechados sobre a mesa, as juntas dos dedos se destacam pela palidez, e
mesmo que meu coração esteja se despedaçando, uma parte de mim sente
vontade de segurar suas mãos.
— O senhor Baranov não tem nenhuma intenção de se opor a
quaisquer exigências financeiras que a ré venha a apresentar, visto que sua
maior preocupação é garantir a saúde e bem-estar tanto de sua esposa,
quanto do... — ele inspira, olhos nos meus, punindo a ambos, mas não para
— bebê. No entanto, devido ao histórico já mencionado de fuga da ré,
gostaria de reiterar o receio do meu cliente em ser privado de acompanhar o
pleno desenvolvimento do feto, e do convívio posterior ao nascimento da
criança, mesmo que ambos acordem pelo fim do matrimônio.
Pergunto-me se tudo o que diz causa o mesmo sofrimento nele que
em mim. Tento notar alguma mudança pequena em sua expressão, qualquer
traço de arrependimento, ódio, decepção, paixão… amor, qualquer coisa,
mas não há nada, e seu vazio me entristece. A ideia de que consiga
esconder tão bem que está sofrendo é tão terrível quanto o meu próprio
sofrimento.
— Assim sendo — diz, com a postura ereta, os ombros retesados —
que conste a exigência de que lhe seja assegurado o direito de acompanhar a
gestação e o nascimento da criança, bem como o convívio integral até que
ela alcance a idade de um ano.
— Não entendo onde eles pretendem chegar — digo para Gusev,
baixo, somente para seus ouvidos.
Ele se inclina um pouco mais perto de mim, e responde no mesmo
tom:
— Nossa legislação prevê que o divórcio não pode ser consumado
se a mulher estiver grávida e não concordar com a separação, lembra? E o
marido não tem o direito de requerer a guarda total do filho antes de ele
completar um ano de idade, a menos que você represente um risco para a
criança. Resumindo, em teoria a lei está do seu lado, então eles devem
tentar descredibilizar você para terem uma vantagem, é a brecha que
precisavam para ganhar a dianteira do processo se formos para o tribunal.
Ele já tinha tudo pensado.
Andrei vê o instante em que o golpe da compreensão me atinge, e a
forma como estreita os olhos me diz que ele sabe do que estamos
conversando.
— Estou tão surpreso quanto você — meu advogado acrescenta,
com uma risada de escárnio. — É uma abordagem bem agressiva. Pelo que
dizem os rumores, não se parece com algo que Andrei Volkiov faria.
Porque ele não faria algo tão cruel, mas eu o quebrei. Eu destruí um
anjo, não foi?
— Isso é tudo, meritíssimo — Andrei diz para o juiz.
— Não… — Viro-me para Yerik, cujo rosto não esconde a alegria
sádica diante da minha infelicidade. — Não vou aceitar. Não depois de tudo
o que você fez, Yerik…
— Por favor, não se dirija ao meu cliente — Andrei responde
primeiro, com a voz cortante e fria, obrigando-me a olhar para ele. — Se
tiver alguma coisa a dizer, fale diretamente comigo.
— Por que está fazendo isso? — pergunto, enfim desistindo de
segurar as minhas lágrimas, que caem em gotas sobre a mesa.
Eu me acostumei a ser cuidada por Andrei. Todas as vezes que
chorei desde quando nos conhecemos, ele me abraçou, secou as minhas
lágrimas e beijou minhas feridas. Mas, dessa vez, sua resposta é um sopro
frígido no meu coração.
— É o meu trabalho.
— Mais alguma colocação por parte do autor? — O juiz recupera a
atenção, impaciente, sem se importar com o meu choro. Andrei faz uma
breve negativa. — Muito bem, agora iremos ouvir a parte da ré, Anastasia
Leonidova Baranova, representada pelo advogado Ivo Grigoriev Gusev.
— Err… — Gusev se atrapalha, como se não esperasse ter a palavra
tão cedo. Ele junta seus papéis, que estavam espalhados na mesa, e franze o
cenho antes de prosseguir. — A minha cliente não tem intenção de manter
o casamento, e… bem, também não tem nenhuma exigência referente aos
bens materiais adquiridos pelo casal ao longo da união. Entretanto, não está
disposta a manter qualquer tipo de convívio, direto ou indireto com o autor,
seja durante a gestação ou após o nascimento do filho, fruto de uma
inseminação artificial sem qualquer relação consanguínea com o senhor
Baranov.
— Esse filho é tão meu quanto seu, Anastasia — Yerik fala,
assustadoramente calmo. Mal consigo ouvir sua voz sem querer vomitar. —
E não vou abrir mão dele. Você não pode ir por esse caminho. Nós somos
casados e nós dois concordamos com o procedimento, ou se esqueceu disso
quando decidiu fugir de casa?
Ele está certo, acusá-lo de não ser o pai do meu filho soa como se eu
fosse uma mulher insensível. Sangue não significa nada e eu sei disso mais
do que ninguém, mas é tudo o que tenho para tentar me defender. O
problema é que Yerik sabe como me fazer duvidar da minha própria mente,
como me acuar na frente das pessoas para que eu pareça louca.
O juiz nos incentiva a seguir com a conversa.
— Você nunca foi a nenhuma consulta do processo de inseminação
— digo, tentando me manter forte. Discutir a minha relação com Yerik, na
frente de Andrei, é a pior experiência da minha vida. De longe, a mais
vergonhosa. — Sua única ligação com essa criança é a assinatura do seu
nome em alguns papéis.
— Eu trabalho, você se esqueceu disso também? Que tenho
trabalhado como um louco desde que nos casamos para dar a você todo o
luxo que merece? Você foi embora no dia que descobrimos a gravidez, eu
nem tive tempo de ficar feliz.
Mentiroso.
— Senhora Baranova — diz o juiz, com as duas mãos cruzadas em
cima da mesa. Volto-me para ele a tempo de vê-lo revirando os olhos. — A
senhora entende que, caso não cheguemos a um acordo ou mesmo a uma
reconciliação, será iniciada uma nova etapa do processo que pode durar
meses para ser concluída? E que, ao final de todo esse trâmite desgastante, a
decisão das condições do divórcio será feita por um juiz após apuração de
provas e testemunhas que vocês dois venham a apresentar no tribunal?
Aqui, vocês têm a oportunidade de, pelo menos, chegar o mais próximo
possível da pretensão de ambos, amigavelmente.
Por que ele está dizendo isso para mim, e não para Yerik, como se a
culpa de termos chegado a tal ponto fosse apenas minha?
— Querida — Yerik me chama, falando devagar, um ritmo e tom
que sempre me fizeram sentir uma idiota. — Ouça o que o juiz está
dizendo. Você está grávida, não deveria passar por todo o estresse de uma
separação. Nós podemos superar isso juntos.
Há um mês e meio, talvez seu apelo tivesse funcionado. Por cima de
todas as camadas de mau-caratismo, ele ainda é um homem bonito e
eloquente e até misterioso. Seus olhos são meigos, encaram-me com
esperança — genuína ou não — e o cabelo loiro, todo bagunçando para trás,
é um charme a mais em sua aparência de príncipe encantado. Tudo em
Yerik é programado para convencer as pessoas a acreditarem em cada
coaxar que sai de sua boca.
Na vida real, sapos não viram príncipes, eles nos matam com seus
venenos e nos devoram como se fôssemos insetos.
— Nós não somos mais um casal — digo com os dentes batendo e o
choro entalado na garganta. — Não vou voltar para você, e nem para aquela
casa. Você não me ama, Yerik, nunca amou. Não sabe como amar outra
pessoa, e, por causa disso, eu nunca aprendi como ser amada até fugir de
você.
Sua postura muda, o olhar endurece, e eu tenho a impressão de que
Andrei também fica tenso ao seu lado.
— É mesmo? E como, exatamente, você aprendeu isso? Gostaria de
compartilhar com a gente?
Arregalo os olhos ao me dar conta do que acabo de insinuar — que
aprendi como ser amada. Sinto meu rosto esquentando, o calor todo
concentrado nas minhas clavículas e no pescoço, e de repente encarar
qualquer um dos dois parece impossível.
— Eu não… — gaguejo, a boca seca. — Não foi isso o que eu quis
dizer.
A sombra de Yerik, refletida na superfície da mesa, cresce na minha
direção.
— O que você tem feito nas últimas semanas, Nastya? Você tem se
cuidado? Foi a um médico, pelo menos?
Abro a boca para me explicar, dizer que marquei uma consulta, mas
a fecho logo em seguida, com vergonha de admitir que demorei tanto tempo
porque estava com medo de ser encontrada se fosse a um consultório —
algo que uma mulher louca diria.
— É claro que não foi, você não costuma fazer nada sozinha. — A
sombra dele aumenta um pouco mais, e eu vou me sentindo cada vez
menor. — Vamos acabar logo com isso, querida, estamos tomando o tempo
do juiz por causa de uma briga de casal. Vamos voltar para São Petersburgo
e superar nossos problemas juntos. Nós podemos tentar.
Os advogados estão quietos, é o nosso momento de falar. Vez ou
outra, porém, escuto a respiração de Andrei, o rápido arfar que antecede
uma fala, mas nada acontece. Ele continua longe, do outro lado do abismo.
Tudo o que vivemos juntos passa na frente dos meus olhos como um
filme de romance. Penso em nossos olhares trocados ao acordar, suas
palmas cheias de admiração sempre que eu tocava uma melodia para ele,
todos os seus sorrisos, carinhos e segredos problemáticos. Eu poderia expor
nossa relação e contar para todos que temos dividido a mesma cama, que
meu corpo já responde quando o dele chama mesmo que não tenhamos feito
amor, e que a minha pele carrega sinais dos seus beijos, mas que bem isso
traria?
Não quero macular a única coisa sobre a qual fui sincera esse tempo
todo.
— Não vou voltar com você — repito um pouco mais alto, e a
reprovação assola as feições de Yerik.
— Você é instável e a gravidez não está ajudando a pensar com
clareza. — Ele recorre ao juiz. — Quando criança ela inclusive chegou a
sofrer um acidente que afetou a sua saúde neurológica. Ela tem muita
facilidade para desistir das coisas no meio do caminho. Foi assim com a
carreira, foi assim com o nosso casamento.
— Eu desisti da minha carreira para ficar na Rússia — defendo-me.
Não sei como a sua cara de pau ainda me surpreende. — Por nós, porque
assim a gente poderia ser uma família. Não tem nada a ver com o passado.
Você me prometeu que…
Yerik não me deixa terminar e enfia suas garras na minha mente.
— Colocando a culpa dos seus fracassos em cima de mim, como
sempre! Eu, que sempre apoiei você, que sempre estive ao seu lado. Nunca
obriguei você a ficar comigo, foi uma escolha sua e apenas sua continuar na
Rússia. Prometi que teríamos uma família porque era o seu sonho, por amar
você. Ou vai negar agora?
Está certo, ninguém me obrigou diretamente, eu escolhi, mas ele
insistiu, fez promessas, me incentivou a ficar. Não foi tão simples. Yerik usa
seu talento para manipular a verdade em benefício próprio e anular meus
argumentos antes mesmo que eu os diga.
Você está louca, querida.
Eu nunca disse isso, querida.
Veja o que me obrigou a fazer com você, querida.
Se ficasse quieta, não teria acontecido.
É sua culpa.
Me perdoa.
Eu amo você.
Querida.
— Você me bateu.
Silêncio.
Quem disse isso?
Ninguém se pronuncia ou pisca ou se move. O universo prende a
respiração, suas engrenagens empedram. Eles se viram para mim com olhos
estreitados, cenhos franzidos. O homem atrás do juiz faz uma leve negativa
com a cabeça, o juiz empurra os óculos para cima e suas sobrancelhas
formam dois arcos reprovadores no alto da testa enrugada.
Andrei cruza os braços, é o único que não me encara. Está pálido,
suas narinas inflam a cada respiração, e enxergo alguma coisa por cima da
sua muralha de indiferença. É a expressão de uma pessoa em agonia, como
se sentisse uma dor profunda, uma dor física.
Eu disse isso.
Imediatamente me arrependo.
— Você está delirando? — Yerik se levanta. Eu agarro as bordas da
cadeira, atenta a seus movimentos. Ele não faria nada contra mim em
público, mas meu corpo não entende dessa forma. — Como pode dizer uma
coisa dessas? Por que está mentindo? Eu amo você. Não precisa fazer isso,
tudo o que eu quero é a minha família, nosso filho…
O juiz faz um sinal para que Yerik se cale. Ele vacila, ofegante, mas
murmura um pedido de desculpas e volta a se sentar.
— Entendo que esteja com raiva, mas essa é uma acusação grave,
senhora. Tem certeza do que está falando? — o juiz pergunta, olhando-me
por cima da haste dos óculos.
O gosto ácido de bile sobe pela minha garganta, e o sentimento de
desamparo vai se amplificando dentro de mim.
— Se eu tenho certeza que ele me bateu? — questiono de volta,
torcendo para ter entendido errado, mas o homem desvia seu rosto para a
folha, desinteressado na minha descrença, e faz suas anotações. — Foi por
isso que eu fugi.
— Isso é ridículo! — Yerik brada.
— É pertinente que a senhora ingresse com ação própria para que
uma investigação possa ser iniciada — o juiz explica, e vejo pelo canto dos
olhos que meu advogado aquiesce, anotando a orientação em um papel. Que
loucura. — Como mencionado anteriormente, esta não é uma audiência de
julgamento, nosso intuito é ter certeza de que ambos querem seguir com o
divórcio em uma audiência no tribunal.
A expectativa de me reencontrar com Yerik em um tribunal não me
alegra. Imaginar que Andrei, o melhor e mais bem conceituado advogado
de toda a capital, quiçá da Rússia, será aquele a me fazer perguntas e
acusações, a juntar provas para inocentar seu cliente, me dá náuseas. Eu
aguento tudo de Yerik, mas não tenho certeza do que vai sobrar de mim
depois de ter minha alma destruída por Andrei, e menos ainda se for eu
quem acabar destruindo o que resta dele — se é que ainda sobrou algo
depois de hoje.
Estou cansada.
— Tudo o que eu quero é um pouco de paz — digo para mim, ou
para o juiz, ou Yerik, ou Andrei. Talvez para Deus.
— Então, acho que vamos resolver isso no tribunal, meu amor. —
Yerik, ao contrário de mim, está sorrindo, provavelmente antecipando toda
a infelicidade ao qual terei que me submeter ao longo de todo o processo.
Por sorte, minhas preces são ouvidas e o juiz decreta o fim da
sessão. Ele pergunta diretamente para nós dois se temos certeza de nossas
decisões, e o passar de cada segundo leva embora gotas da minha escassa
energia.
Não aguento mais.
Assinamos papéis, ouvimos mais um monte de orientações —
espero que meu advogado esteja prestando atenção, pois eu estou a um
passo de desmoronar. Alguém agradece pela nossa presença, e quando o
juiz autoriza a saída de todos, Andrei é o primeiro a se levantar.
Não olho mais para Yerik, nem para o juiz. Eu os bloqueio e me dou
o direito de admirar por um último instante o homem que roubou o meu
coração e o fez bater novamente. Levanto meu rosto e apago as dúvidas,
inseguranças, os arrependimentos e mágoas, esqueço, mesmo que
brevemente, o quão inacreditável é a situação em que nos encontramos.
Ainda é ele, eu sei que sim. Andrei não é uma mentira.
Penso em todas as coisas que eu gostaria de dizer. Minhas últimas
palavras. Eu poderia exigir explicações, o motivo para ter se tornado o
advogado de um monstro. Implorar pelo seu perdão também é algo que
cogito fazer.
Porém, uma vez Andrei me disse para não pedir tantas desculpas.
— Obrigada — sussurro, por fim. É o melhor a ser dito.
Espero que ele saiba o bem que me fez, que o meu agradecimento é
por ter me salvado, pela mão que segurou a minha. Ele é e sempre será o
meu salvador, e é essa imagem de Andrei que levarei comigo.
Sorrio.
Andrei merece ao menos um sorriso.
É o meu limite.
Viro-me quando a primeira lágrima desce. Saio da sala antes de
qualquer um e caminho em linha reta, aturdida e confusa, pelo corredor.
Não sei quanto tempo passamos dentro da sala, mas para mim pareceu uma
eternidade. Ironicamente, o mundo continua o mesmo. As mesmas pessoas
com seus mesmos olhares tortos e os mesmos cochichos sem empatia.
Meus passos vão ganhando velocidade, um pé depois do outro, até
eu estar correndo em busca de ar. Esbarro em algumas pessoas, ouço um
xingamento, mas corro até alcançar as ruas lotadas de Moscou. Sinto-me
presa a correntes invisíveis, braços, pernas e cabeça que não respondem
mais aos meus comandos, como um fantoche nas mãos de um destino cruel.
As ondas de dor que inundam meu peito impedem a minha
respiração. Inspiro com força, mas nem todo o oxigênio do mundo parece
suficiente para preencher meus pulmões. Inspiro, inspiro, inspiro, minha
garganta arde. Alguém pergunta se estou bem, mas seu rosto é um borrão
sem sentido e eu ignoro.
Não paro de andar. Meu coração bate tão rápido que sinto medo,
pânico, enquanto choro sem rumo. A adrenalina que me manteve firme
durante a reunião escorre junto com as minhas lágrimas e percebo
tardiamente que não posso voltar para casa.
Não posso voltar para Andrei.
Não tenho para onde voltar.
Estou sozinha outra vez.
Encosto-me em uma parede, já não sei mais o quanto andei ou onde
estou, apenas paro e tento me acalmar por causa do meu bebê. Eu tenho que
ficar bem, ao menos fisicamente, para que ele também fique. Mas é inútil.
Não consigo. A dor verte e molha meu rosto, minha vista se torna mais e
mais turva até restarem apenas sombras para ver.
Sinto meu corpo caindo, e é nos braços da inconsciência que
encontro conforto. Eu já deveria ter aprendido que contos de fadas não
foram inventados para pessoas como Andrei e eu.
Nossa história não é sobre o amor.
É sobre corações partidos.
20
8 anos de idade.

Anastasia
CONSEGUIMOS ATRAVESSAR O portal interno sem sermos vistos,
porque Zayn dá um jeito de despistar o segurança da noite jogando uma
pedra na piscina e chamando sua atenção para longe. Espero que ele tenha
um plano para quando voltarmos, porque de jeito nenhum o sujeito vai sair
do posto novamente.
O lindo gazebo de madeira fica no jardim externo, logo depois da
cerca viva, e me sinto em um filme de aventura enquanto nos esgueiramos
pelas sombras.
Não temos muito tempo. Bater palmas e cantar em voz alta é
burrice, já que estamos tentando nos esconder dos empregados, e Akira
acha que sussurrar seria meio triste, então concordamos em ignorar os
parabéns e apenas comer o bolo.
Sentamo-nos em um pequeno círculo ao redor da caixa, ocultos
pelas flores pendentes nas balaustradas. As luzes do gazebo estão apagadas,
mas, por sorte, a lua está cheia, então todo o jardim parece brilhar como em
um cenário mágico de contos de fadas. Ao longe, podemos ver as grades
cinzentas do portão principal, monitoradas por uma guarita, mas a estrutura
de madeira e as flores nos mantém escondidos. Sozinhos no meio da noite,
é como se fôssemos as crianças perdidas do Peter Pan, órfãos em uma terra
cheia de encantos.
Só que não somos mais órfãos, e eu me sinto uma filha horrível por,
lá no fundo, não me sentir totalmente feliz por isso.
— E agora, o que a gente faz? — Akira pergunta ao nosso irmão.
Nós dois olhamos para Zayn ao mesmo tempo. Por algum motivo,
ele é como o líder do nosso pequeno grupo. Akira pode ser mais corajoso e
encrenqueiro, mas é Zayn quem sempre tem todas as respostas certas. Meus
irmãos são a minha família e isso nunca vai mudar. Pelo menos, é o que eu
desejo.
Hoje, em especial, sinto como se tivesse um monte de serzinhos
pequenos dentro do meu estômago, correndo e pulando e tocando música.
Eu nunca quebro as regras, no entanto, olhando para eles, parece
simplesmente correto estarmos aqui.
— Você comprou o bolo — Zayn responde, incentivando Akira a
seguir em frente e abrir a caixa.
Eu me inclino, vibrando por dentro. Há um grande laço branco de
cetim sobre o embrulho, que meu irmão retira com um puxão antes de
remover a tampa sem delicadeza alguma. Eu não esperava menos de Akira,
ser paciente não está dentro das suas qualidades mais marcantes, mas não o
deixo perceber o meu sorriso.
Dentro, vejo o pequeno bolo quadrado, muito cor-de-rosa e
confeitado com várias flores coloridas. Nunca vi um bolo tão lindo e fofo
na minha vida inteira, somente aqueles com muitos andares que são
expostos nas festas chiques dos nossos pais, e dos quais somos proibidos de
chegar perto. Nas raras vezes em que ganhamos uma festa — como quando
Zayn venceu um concurso de luta nacional em primeiro lugar e recebemos
uma equipe de reportagem, ou quando eu completei cinco anos e nossos
pais precisavam abafar um investimento malsucedido — eu nunca sinto que
aquilo tudo é nosso de verdade, nunca nossos amigos ou nosso bolo ou
nossa vida.
É tipo brincar de mentirinha.
Mas isso aqui, este bolo, é meu. É nosso. Eu nem sabia que bolos
podiam ser bonitinhos. Talvez, por ter sido um presente dos meus irmãos,
ele pareça especial, mas não seja de um modo geral. Só de olhar, sinto
vontade de chorar, então esfrego os olhos com o dorso da mão antes que as
lágrimas escorram.
— Eu sei que não é grande — Akira diz em tom defensivo. — Mas
não precisa…
— É o melhor bolo do mundo — sussurro. — Eu amei demais.
Isso… eu…
Não consigo explicar o que estou sentindo, então jogo meus braços
ao redor do pescoço de Akira e escondo o rosto em seu ombro, apertando-o
em um abraço forte. Ele demora a retribuir, mas logo seus braços me
envolvem, cheios de um carinho meigo e delicado. É bom saber que, pelo
menos comigo, ele consegue ser gentil.
— Ainda bem que gostou, irmãzinha — murmura no meu ouvido.
— Você merece muito mais do que isso, merece ser feliz. De nós três, você
é a melhor.
— Eu sou feliz. — Endireito o meu corpo e sorrio para o meu
irmão. Ele tem essa mania boba de me colocar lá no alto, acima de todos.
— Graças a vocês dois.
Akira não parece muito convencido, mas não insiste no assunto. Ele
faz um rápido afago em meu rosto enquanto a voz de Zayn soa por perto:
— Hora de experimentar o bolo. — Olho para trás a tempo de ver
seu sorriso relaxado. — Antes que sejamos pegos.
Zayn geralmente é sério e responsável, mas sempre que estamos
juntos, ele deixa aparecer a sua verdadeira idade. Eles vivem reclamando de
nossos pais exigirem muito de uma garotinha de oito anos, mas os dois não
são diferentes. Além de serem obrigados a agir como exemplos, ainda
fazem de tudo para cuidarem de mim.
Eu sou o peso a mais que eles carregam.
Com um garfo de plástico, Zayn corta três fatias e distribui uma para
cada. Eles esperam, olhando para mim, no aguardo de que eu prove
primeiro. O cheiro doce me deixa ansiosa pelo sabor, e assim que coloco
um pequeno pedaço na boca, sinto o gosto exato da felicidade. Não tem
como descrever de outra forma. Se Mozart fosse um confeiteiro, seus doces
seriam como este.
— O que foi, está ruim? — Akira cheira o seu pedaço. — Pensei
que você gostasse de morango.
— Ela está chorando porque gostou, idiota — nosso irmão explica,
já começando a comer.
A compreensão ilumina o rosto de Akira, que sorri satisfeito antes
de devorar a sua fatia com duas grandes mordidas. Fico grata por não
precisar explicar a origem das minhas lágrimas. Eu sempre choro por
qualquer coisinha, é uma chatice!
Meu irmão estava certo, não é um bolo grande, porque o devoramos
rápido demais enquanto conversamos aos murmúrios, mas como não estou
acostumada a comer nada além das refeições regradas, cheias de sementes e
coisas nutritivas, sinto que meu estômago pode explodir a qualquer
momento.
— E para onde você pretende ir? — Zayn pergunta a Akira, após
nosso irmão dizer seus planos para o futuro, que envolvem, em resumo,
fugir para bem longe de Yekaterina e Leonid.
Não é a primeira vez que ele diz algo do tipo. Akira é o que mais
sofre nas mãos do papai, então eu o entendo. Mas, ainda assim, sinto-me
triste, porque não o quero longe de mim. Mas sou crescida, e sei que não
devo ser egoísta pedindo a ele que continue ao meu lado.
Akira dá de ombros e abraça os joelhos.
— Não importa. — Acho que ele não pensou tão longe. — Mas eu
não vou passar o resto da minha vida sendo um boneco deles.
Mamãe e papai.
Zayn desvia os olhos, tentando esconder a tristeza neles, mas eu a
vejo lá por um segundo antes dele fixar a atenção em mim. Pode ser coisa
da minha cabeça.
— E você? Quer continuar sendo violinista?
De repente, sinto meu rosto esquentar. Não tenho muitas
oportunidades de falar sobre o que eu quero ou não, a maioria das pessoas
não se importa, então eu não penso muito no assunto.
— Eu amo tocar — digo, brincando com um cacho do meu cabelo.
— Mas não gosta de competir — Zayn diz por mim. Ele sabe
mesmo de tudo. — Você quer ser famosa ou algo assim? — Ele faz uma
careta. — Quer dizer, mais do que já é?
Estico as pernas e olho para as vigas de madeira no teto circular.
Uma lâmpada balança na ponta de uma corrente fixada ao centro do gazebo,
que tilinta baixo ao toque da brisa. Está esfriando, logo teremos que entrar.
Meu peito dói, não quero voltar. Afasto o meu olhar para a nossa casa, uma
enorme sombra contra o luar, com parte dela oculta atrás da cerca, e me
encolho.
Nem toda casa é um lar.
— Não é ruim me apresentar para várias pessoas — respondo após
refletir um pouco. — E seria legal entrar para uma grande orquestra no
futuro, como a mamãe diz, mas…
— Mas? — Akira me incentiva, curioso, os olhos alongados nos
cantinhos se estreitando à espera da minha resposta.
— Também gosto de quando é simples, de ensaiar sozinha sem a
cobrança de ser perfeita para vencer, ou só com vocês dois de ouvintes. —
Olho para os lados, como se a mamãe fosse aparecer de repente para me
repreender. Abaixo a minha voz ao volume de um sopro. — Eu quero ter
uma família.
— Eca! — Akira torce o nariz, enojado. É engraçado. — Tipo, se
casar? Isso é coisa de menininha. Que bobagem.
— E sou uma menininha.
— E não é bobagem — Zayn me apoia, sorrindo. — Um dia a gente
vai crescer, e não vamos mais precisar viver o sonho deles. — Ele vira a
cabeça para o teto com um olhar sonhador, como se pudesse ver as estrelas
além. — Não é bobagem — repete, firme, como quem faz uma oração.
Meu irmão não conta quais são os seus planos. Zayn é tão seguro de
si que nunca me perguntei se há algo que ele deseje. Será que seus sonhos
são mais parecidos com os de Akira, de fugir e ser independente, ou com os
meus? Não sei porquê, mas não tenho coragem de perguntar.
Eles odeiam a mamãe e o papai, e, às vezes, eu também acho que
não os amo tanto, principalmente quando fazem mal aos meus irmãos ou
me dizem para não ficar sozinha com eles. Mas sou grata aos nossos pais
por terem nos unido, caso contrário, eu jamais conheceria Zayn ou Akira.
Ainda assim, existem partes de Yekaterina e Leonid que eu odeio
quase sempre.
Odeio o custo de ser uma boa filha, sacrificando a maioria das
coisas divertidas que as crianças normais fazem. Na cabeça da mamãe, se
divertir significa se machucar ou adoecer ou desperdiçar tempo, então
nadar, correr, acampar e visitar colegas da escola são atividades
terminantemente proibidas. Sair de noite, em um dia frio, para comemorar o
meu aniversário no jardim, usando apenas um vestido de ensaio às vésperas
de uma competição? Arrepio-me só de imaginar o que ela faria se nos
pegasse em flagrante — e também odeio isso, porque, se acontecesse, meus
irmãos seriam os únicos punidos.
Pensando no bem deles, eu me levanto e dou uma boa olhada nos
dois. Amanhã, eu vencerei o concurso e então poderemos aproveitar os dias
seguintes, já que nossos pais costumam relaxar quando fazemos o que eles
querem direito. Passo as mãos no meu vestido, abanando as folhas secas e a
poeira do tecido, e sorrio.
— É melhor a gente… — Mas a minha voz é apagada pelo som de
um motor de carro que faz nós três arregalarmos os olhos em sincronia.
Nossos pais estão de volta. Não temos como voltar pelo mesmo
caminho sem sermos vistos. E com um horror de partir o coração, percebo
que é tarde demais.
21
Andrei
EU O SINTO se retorcendo dentro de mim, contido, preso a grilhões
pesados, correntes do aço mais resistente. Tento imaginar seu rosto
enquanto ele vaga por uma cela fechada nos confins da minha alma, mas só
consigo ver dentes e garras que ameaçam me rasgar em busca de liberdade.
Uma aberração disforme que eu mesmo tenho alimentado com todos os
meus sentimentos mais letais.
Dor, raiva, ódio, arrependimento.
Sede de vingança.
A quem estou tentando enganar? Não preciso que a criatura
maléfica que habita em mim se liberte para causar danos irreversíveis, estou
mais do que satisfeito seguindo a sua liderança. É parte de quem eu sou: um
manipulador egoísta que gosta de estar no controle de tudo e todos.
Andrei, o bondoso? O justo? O melhor Volkiov? Que mentira do
caralho.
Neste momento, eu quero queimar o mundo, assisti-lo ruir em fogo
e caos, e dormir sobre as cinzas que restarem.
Entro no escritório de Ivan com um estrondo, socando a porta do
meu caminho. Não me surpreendo ao encontrar Roman ao seu lado, e
menos ainda quando ele parte para cima de mim. Eu tenho duas opções:
desviar ou ficar parado. Por mais que eu mereça um pouco de dor, por mais
que eu a deseje como minha amante, um olho roxo seria um contratempo
com o qual não posso lidar no momento.
Não tenho tempo para ser punido.
O punho fechado de Roman voa na direção do meu rosto. Abaixo-
me no último segundo e seu corpo cambaleia para frente, mas meu irmão é
mais forte, mais rápido, mais experiente em brigas corporais, e não consigo
me esquivar a tempo de seu segundo golpe — uma cotovelada nas costelas.
— Porra! — Tusso, segurando o local atingido.
Um pouco mais de força e ele teria quebrado alguns dos meus ossos.
Meu irmão está mais irritado do que imaginei.
— Isso é por ser um filho da puta — grunhe, seus olhos injetados
atiram facas em mim. — Como tem coragem de aparecer aqui depois do
que você fez?
Seguro-me no encosto de uma poltrona e o encaro com um sorriso
vazio.
— Esta empresa também é minha — eu o lembro com cautela —,
caso tenha se esquecido.
— Foda-se a empresa! — Seu dedo sobe em riste até o meu peito.
— É melhor você começar a se explicar e que seja a porra da melhor defesa
que já fez na sua vida, irmãozinho.
Corro os olhos pelos dois. Não estava nos meus planos causar
qualquer tipo de comoção, mas é impossível ser discreto quando Roman
decide se envolver. Eles estão putos, e com razão. De certo modo, sinto
orgulho deles, e um imenso alívio por saber que posso contar com ambos
para protegê-la de tudo e todos, inclusive de mim se for preciso. Mas não
posso pensar nela agora.
Não posso, não posso, não posso, não posso.
O animal tem que continuar enjaulado.
Eu me recomponho, ajeitando as lapelas do paletó cinza-escuro.
Roman, em contraste, não poderia estar mais... Roman. Só ele viria à sede
principal vestido com botas de couro tratoradas e jaqueta jeans, mas não
estou em posição de repreendê-lo por qualquer motivo que seja, menos
ainda por suas roupas.
— Quero saber como ela está — digo em tom plácido, montado na
persona séria e pragmática que estão acostumados.
Meu irmão contrai o rosto, fazendo uma careta de repugnância,
depois me encara por longos segundos. Leio todo o seu corpo, já que ele
não é muito bom em esconder as emoções, e o que encontro é raiva,
decepção, punhos apertados prontos para me desfigurar.
— Já chega. — Ivan se enfia entre nós, impedindo que Roman
avance contra mim outra vez. Ele segura nosso irmão e o empurra para trás,
afastando-o de mim. — Não é assim que resolvemos as coisas.
— Diga por si mesmo. — Roman tenta desviar, mas Ivan não se
move. — Eu ainda quero socá-lo até que ele volte a fazer algum caralho de
sentido.
— A última coisa que precisamos agora é uma manchete nos
jornais! — Ivan argumenta, contrariando as expectativas e sendo a voz da
razão. — Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro.
Primeiro…
Noto, pela sua postura, que está tão nervoso quanto Roman. Eu
definitivamente estarei em desvantagem se os dois decidirem agir ao
mesmo tempo.
Não aguento sustentar o olhar de Ivan e solto um suspiro cansado,
tentando me distrair com qualquer outra coisa para não perder o controle.
Seu escritório, diferente do meu, está muito mais colorido agora, com fotos
de Lara e das crianças em porta-retratos sobre a mesa. Em uma delas, é
possível ver meu irmão com a pequena Tatiana no colo, e eu me pergunto
quando foi a última vez que segurei um de meus sobrinhos nos braços.
Pensar neles inevitavelmente me faz pensar em Anastasia e na
criança dentro dela, e o pensamento faz meu organismo se contorcer e rugir.
E vazar sangue por poros que não cicatrizaram ainda. Desde a audiência, há
dois dias, sinto-me preso dentro de uma camisa de força, os braços
amarrados, sucumbindo dia após dia à insanidade que me persegue no vazio
ecoante do meu coração.
Anastasia me encheu com sentimentos que eu não conhecia, que
jamais havia nutrido por outra pessoa. Sentimentos com os quais eu apenas
sonhava em histórias que existiam na minha cabeça. Ela me transbordou
com sua delicadeza e todos os sorrisos e toques e olhares, e mostrou o quão
pequeno eu sou perto de tudo o que ela guarda dentro da própria alma.
Depois, Anastasia me esvaziou, e eu não acho que seja possível
descrever o quanto a solidão é a pior das emoções humanas. A gente nunca
se acostuma com a ausência, mesmo das pessoas que jamais tivemos ao
nosso lado de verdade, mas acho que aprendemos a conviver com ela. É a
única explicação para eu ainda continuar de pé, mesmo que cair no abismo
seja tão tentador.
Preciso terminar o que comecei.
— Como ela está? — insisto, desviando os olhos da fotografia de
volta para Ivan, minha paciência sustentada por um mero fio.
— Então é verdade? — Ele me encara, decepcionado, cruza os
braços fortes na frente do peito, abandonando sua postura pacífica. — Você
continua trabalhando para aquele desgraçado, Andrei?
Meus ossos tremem, o silêncio confirma o que minha voz não
consegue proferir.
Roman avança e Ivan não tem a chance de impedi-lo — eu apostaria
que uma parte dele não quer impedir agora que entendeu a minha posição.
Meu irmão e eu tropeçamos para trás, e só não caímos porque chegamos à
uma parede antes. Ele me segura, imobilizando-me pelo pescoço, e lá nos
confins de seus olhos irados, flutua um sentimento típico de tristeza.
Tristeza por cultivar sentimentos tão diabólicos contra o próprio
irmão mais novo? Ou tristeza por saber as consequências das minhas
escolhas?
— Como você teve coragem de sentar naquela cadeira e não fazer
absolutamente nada? Ela estava sozinha. Logo você, Andrei? Eu... — Ele
treme, mas não me liberta. — Eu não consigo entender.
— Fiz o que eu sempre faço — explico pacientemente. Roman é do
tipo que não vale a pena bater de frente. — Fiz o que era necessário.
— Um caralho! — grita. — Pediu a nossa ajuda para descobrir
quem era o miserável que tinha batido na sua mulher, e quando enfim
descobrimos, você resolveu ficar do lado dele? Vai se foder.
Fique calmo, ordeno a mim mesmo. Fique calmo, porra!
— Anastasia não é minha. — Cada palavra sobe lacerante pela
minha garganta, brasa vomitada nos moldes do meu pior pesadelo. Se me
fosse dada a opção de mastigar e engolir tais palavras junto com cacos de
vidro e lava vulcânica, eu aceitaria de bom grado.
— Quem é você? — Roman vocifera, colando seu rosto no meu. —
Eu esperaria algo assim de qualquer um, mas você... — Ele nega,
balançando a cabeça, mas sei o que quer dizer, o que está insinuando.
— Claro. — Sinto a ironia escorrendo da minha boca como veneno.
— Eu sou o irmão bom, não é o que todos dizem? Aquele que não comete
erros tão monstruosos, que não protege demônios. Tão justo, tão altruísta.
Santo Andrei! — Estremeço ao ouvir as duas últimas palavras, lembrando-
me de Evgenia as profetizando tantas semanas atrás.
Um pouco da escuridão em mim escapa do meu controle e empurro
Roman usando toda a minha força. Ele recua alguns passos, visivelmente
surpreso.
Ivan coloca a mão no ombro do nosso irmão, depois dá um passo à
frente, assumindo a posição de irmão mais velho. Ambos me encaram como
se eu fosse um desconhecido, então passo por eles e vou até a mesa,
livrando-me de seus semblantes desgostosos. De costas, aperto minhas
mãos em punhos fechados e sou tragado novamente para as fotografias das
crianças.
Vejo Iago com sua irmã nos braços, olhando-a como se ele fosse um
pequeno adulto pronto para dizimar uma cidade inteira e protegê-la de uma
ameaça inexistente. Luna sentada em uma das motos de Roman, seu cabelo
preto e muito liso caindo sobre os olhos escuros. Nicolai, uma miniatura
perfeita de Vladimir, dormindo ao lado da prima sobre uma toalha
quadriculada no jardim.
Uma bolha dolorosa estaciona na minha garganta.
— Ela está grávida — Ivan finalmente diz atrás de mim,
provavelmente notando para onde estou olhando, e meu sangue parece se
solidificar dentro das veias. A gravidez de Anastasia é um tópico proibido,
um campo minado que pode colocar tudo a perder se eu me desviar um
centímetro do caminho que tracei naquele dia.
— Eu já sei. — Viro-me e os observo com atenção, organizando os
pensamentos. — Preciso saber como…
— Triste — Ivan responde ao meu pedido de saber como Anastasia
está antes de eu completá-lo pela terceira vez. — Ela está triste como um
fantasma, Andrei. Mas está segura na mansão. Você entende que foi pura
sorte eu estar esperando vocês do lado de fora do prédio quando ela passou
correndo? Consegue imaginar como foi horrível correr atrás dela e vê-la
desmaiar no meio da rua?
— Não — peço, rangendo os dentes. Recuso-me a imaginar. Prefiro
que um deles perfure o meu coração com uma lança. Muitas vezes. Que
arranquem os meus olhos e membros. Que me enterrem vivo como o
cadáver que me sinto. — Não me conte, eu não posso… — Enfio as mãos
no cabelo e fecho meus olhos, apagando da minha mente a lembrança de
quando ela sorriu para mim depois da reunião.
Ela sorriu e agradeceu.
— Ela estava chorando — Ivan continua impiedosamente, seu olhar
pesado e ressentido medindo meus movimentos. — E quando a peguei nos
braços para levá-la ao hospital, sabe o que eu pensei?
— Pare.
Ele não me dá ouvidos.
— Que ela era leve. — Ouço seu riso amargurado. — Você sabe do
que estou falando. Você sabe como deve ter sido fácil para ele.
— Eu sei! — admito, dando um grito. O semblante de Ivan
endurece. — Sei de tudo, e sei que bater não deve ter sido a pior coisa que
ele já fez contra ela. — Dizer em voz alta me faz enxergar vermelho. —
Mas eu preciso fazer isso do meu jeito!
Roman, que se mantivera misteriosamente quieto, bate os pés em
passos coléricos e se coloca na minha frente, com as pernas meio afastadas
uma da outra. Acho louvável seu esforço para não recorrer à violência que
arde dentro dele e faz seus punhos fechados tremerem.
O que diz em seguida, entretanto, me machuca muito mais do que
uma surra.
— Pensei que você a amasse.
Não encontro voz para me defender, mereço cada gota de seu
repúdio. Também pensei que eu amasse Anastasia, mas que merda eu
entendo sobre o amor para nomear as sombras que me cercam com esse
nome? Corri atrás de um sentimento amorfo com veneração cega, convicto
em meus sonhos irreais de que apenas coisas boas nascem de um coração
que ama.
Mas eu estava errado.
Tão fodidamente errado!
Analisando meus irmãos, não tenho dúvidas de que se importam
comigo, é óbvio que não ficariam quietos depois que descobrissem sobre o
ocorrido na audiência e a identidade de Anastasia. É assim que nós somos, é
assim que nos amamos. Se fosse qualquer uma das minhas cunhadas no
lugar dela, eu agiria da mesma forma ou pior. Eu as defenderia porque elas
são os corações dos meus irmãos batendo fora de seus corpos.
Porém, existem coisas que precisamos resolver sozinhos. Coisas
perversas que nos marcam, que nos mancham. Quantas mais pinceladas de
podridão são depositadas sobre uma alma em branco, menos espaços vazios
sobram para serem pintados nos tons da honra, da justiça e do amor.
Qual de nós tem menos espaços vazios, eu gostaria de saber.
Por fim, desvio meu rosto para o chão. É inútil explicar. Eles não
viram os documentos, não sabem que Yerik tem todas as provas a seu favor
e que o nome dele estará na certidão de nascimento daquela criança
independente do quanto Anastasia se despedace na frente de um juiz.
Tenho que continuar.
— Vou ficar fora por alguns dias — informo, ignorando o palavrão
que Roman cospe sobre mim. Virando-me para Ivan, eu digo: — Eu só
precisava ouvir de você.
Ele já havia me contado tudo por mensagem: que decidiu nos
encontrar porque estava preocupado com a maneira como encerrei sua
ligação antes da audiência, e que por isso acabou testemunhando quando
Anastasia chegou ao seu limite e saiu correndo sem rumo pelas ruas da
capital, sozinha, ferida, traída; Ivan também me repassou a garantia dos
médicos de que estava tudo bem com ela e a criança quando a levou até o
hospital mais próximo.
Mesmo assim, não era o bastante. Eu não conseguiria seguir em
frente sem ouvir de sua boca pessoalmente.
— Ela está com a gente — Ivan garante, suspirando. Ele não tenta
mais debater comigo, ao invés disso, diz com firmeza: — Aceitou o meu
convite de continuar na mansão por alguns dias. Então, seja lá o que estiver
pensando em fazer, saiba que cuidaremos dela.
Ótimo.
Era tudo o que eu precisava.
A única garantia.
Não agradeço e nem vacilo ao concordar com a cabeça e caminhar
até a saída. É difícil deixá-los assim, mas não tenho outra escolha. No
momento, estamos em lados opostos de um tabuleiro de xadrez sangrento. E
eu não sou um peão que pode ser usado facilmente.
Eu sou um rei.
E todos eles saberão disso em breve.
Ao girar a maçaneta, ouço a voz de Roman, baixa, equilibrada e
atípica, chamando meu nome.
— Ela não tem nenhuma chance com você do lado dele, Andrei —
ele diz, suplicante. Não me lembro de já ter ouvido meu irmão fazer algo
como suplicar antes. — Será um massacre no tribunal.
Abro a porta e, antes de sair, sussurro sobre o ombro:
— Ela não tem nenhuma chance no tribunal.

***

Assim que as portas do elevador se abrem, reconheço a figura


grande e imponente parada dentro dele, com as mãos nos bolsos da calça e
seus olhos gélidos fixos no teto de metal.
Deus sabe como eu daria qualquer coisa em troca de uma bebida
agora.
— Veio brigar comigo também? — pergunto para meu irmão mais
velho, enquanto pressiono o botão do térreo.
Esperava ir embora sem mais nenhum contratempo. Ao que tudo
indica, é impossível ter o direito a coisas básicas — como ir e vir — quando
se nasce na minha família. Os Volkiov não entendem o conceito da
privacidade.
— Não, na verdade não — Vladimir diz com a calma de um padre.
Quase me surpreende, mas eu o conheço, nada é por acaso se tratando do
presidente.
— Roman ficou puto. — Os andares descem lentos como nunca, os
números vão passando e, mesmo que eu os esteja encarando, não os
enxergo. — Por um momento, cheguei a quase temer pela minha vida.
— E quando Roman não está puto, exatamente? — Vladimir sorri,
consigo saber isso mesmo sem olhar para trás apenas pela maneira como
sua respiração muda.
— Pensei que fosse dizer que ele tem razão, e que eu fiz por
merecer o seu desprezo.
— Não preciso subestimar a sua inteligência dizendo o óbvio. Mas,
se faz tanta questão de ser diminuído à sua própria miséria, posso pensar em
uma ou outra verdade cruel a seu respeito para recitar nos próximos
segundos.
É a minha vez de sorrir.
— Não sei dizer se está sendo irônico ou excessivamente solidário.
— Ah, você sabe sim — ele garante. E, de fato, sei. Vladimir não é
um exemplo de solidariedade, e não vejo porque começaria a ser agora. —
Além disso — continua — gosto de acreditar que já está se corroendo o
suficiente sem a minha ajuda.
Não respondo. Prefiro não arriscar com Vladimir, ele não é um
homem tão facilmente enganável. Escolho a rota mais simples e mudo o
rumo da conversa.
— Vou sair da cidade por alguns dias.
— Ah, sim, eu ouvi dizer.
Que irritante.
Penso em perguntar como ele já sabe, mas me lembro que nada
acontece dentro desta empresa sem que Vladimir seja informado em
questão de segundos.
— É uma viagem breve. Tenho assuntos para resolver em São
Petersburgo. Não precisa se preocupar, já deixei tudo resolvido no
departamento jurídico e posso cuidar de qualquer contratempo a distância.
— Não estou preocupado.
Olho para o visor no canto superior direito do elevador, logo acima
do painel, e constato que estamos quase chegando. Com minha visão
periférica, vejo meu irmão se inclinando para fazer o mesmo e fico atento
ao que tem a dizer. Porque ele tem algo a dizer.
Dois andares antes de alcançarmos o destino desejado, o elevador
para e as portas se abrem. Um funcionário da comunicação arregala os
olhos ao nos reconhecer, balbucia um cumprimento formal e um tanto
antiquado na minha opinião — inclinando corpo e cabeça como se fosse um
súdito fiel — e pede desculpas pelo incômodo. Depois, libera o elevador,
dizendo que vai esperar pelo próximo.
A estranha cena só pode significar que eu e o presidente não
estamos com as melhores feições em nossos rostos, e a boa genética
garantiu que fôssemos os quatro irmãos mais naturalmente intimidadores da
Rússia. O homem seria um tolo se escolhesse ficar no mesmo ambiente que
nós agora, mas teria o meu respeito.
— Você tem um plano, não tem? — meu irmão pergunta assim que
voltamos a nos mover, colocando as garras para fora.
Já não era sem tempo.
— Plano?
— Como irmão mais velho, conheço você melhor do que Ivan e
Roman. Essa máscara de monstruosidade não lhe cai bem, Andrei.
— Ainda assim, eu a estou usando. — Viro-me de frente para ele ao
mesmo tempo que as portas voltam a se abrir, desta vez, no andar correto.
— E acho que me serve perfeitamente.
Vladimir semicerra os olhos diante da minha declaração inesperada.
— Então é uma máscara.
— Faz alguma diferença? — Dou de ombros, enfiando as mãos nos
bolsos na mesma pose que ele. Movo-me para trás apenas o suficiente para
impedir que as portas se fechem.
Estamos dançando com as palavras e Vladimir é o único que
consegue valsar no mesmo ritmo que eu sem tropeçar na própria língua.
— Depende de quem está tentando enganar. Desde que não seja a si
mesmo, não há com o que se preocupar. Mas, se estiver se forçando a
esquecê-la… — Ele se precipita poucos centímetros, diminuindo o volume
da voz. — Ou pior, se estiver tentando punir Anastasia, movido por algum
senso distorcido de justiça, seu arrependimento não será suficiente para
salvar a sua alma no final.
Felizmente, não tenho dificuldade em encontrar uma resposta.
— E o que te faz pensar que estou preocupado com a minha alma?
Controlo cada linha do meu rosto. Não… cada linha do meu corpo,
para não cair em sua provocação. Vladimir não me intimida mais. Talvez,
no passado, eu não tivesse a mesma postura sobre o meu irmão mais velho,
mas eu o vejo com outros olhos agora que entendo o desejo soberano de
querer desesperadamente submeter outra pessoa a um sofrimento eterno.
Nenhum deles tem o que é necessário para me fazer mudar de ideia:
certezas. Enquanto Ivan e Roman se sentem decepcionados, talvez até
traídos, Vladimir é a personificação da descrença. Ele se recusa a acreditar
que está errado em seu julgamento sobre o querido irmão mais novo, mas
não está conseguindo.
Eu sei que não.
É isso o que seu olhar profundo me revela ao vacilar, breve demais
para ser percebido por qualquer ser humano que não seja eu, assegurando-
me que estou fazendo um ótimo trabalho.
Libero as portas sem lhe oferecer mais explicações. Vladimir se
mantém imóvel, olhos nos meus, e enquanto elas se fecham lentamente, ele
murmura suas últimas palavras:
— Eu espero que tenha um plano.

***

Komarov abre a porta do carro e eu desço, abotoando o único botão


do meu blazer preto. Retiro meus óculos escuros e dou uma boa olhada para
cima, analisando a estrutura nada moderna, embora excessivamente
elegante, do edifício.
— Tem certeza de que ele está hospedado neste hotel? — pergunto
ao meu segurança, que aquiesce em silêncio.
É um daqueles lugares que não precisa de uma placa indicando sua
importância. Basta olhar para ele por dois segundos inteiros e os detalhes
sofisticados da vidraçaria rústica se sobressaem entre as luminárias
distribuídas em todo o frontispício do prédio, destacando-o como um
grande palácio perdido no meio da capital. O que, por sua vez, só permite
uma interpretação plausível: os hóspedes possuem contas bancárias tão
grandes quanto.
— Faz sentido que ele esteja aqui — digo para ninguém em
particular, mas Komarov volta a balançar sua cabeça em concordância.
Meu segurança tem se empenhado em suas funções, que agora vão
além de seu cargo. Eu sei que era sua obrigação acompanhar e proteger
Anastasia e mesmo assim ela conseguiu sair sozinha, mas nunca foi minha
intenção que ele a vigiasse. Ela não era minha prisioneira para ser
monitorada, então ele nunca recebeu essa ordem.
Não me sinto nervoso, como era de se esperar. Não sinto nada além
de um amortecimento constante, um vazio que se estende por quilômetros
dentro de mim. E isso é bom, não é? Imagino que seja.
Não sentir nada também significa não sentir dor alguma.
Mas faz apenas dois dias desde que falei com meus irmãos, por
quanto tempo meu autocontrole continuará sendo generoso comigo?
— Já deixou tudo pronto para que possamos evitar a recepção? —
pergunto a Komarov, recolocando os óculos no rosto.
— Saiu um pouco mais caro que o planejado, senhor, mas…
— Ótimo, dinheiro não é um problema.
Avançamos dentro do hotel. Assim como previsto, ninguém faz
objeções quando seguimos direto para os elevadores, subimos até o andar
desejado e paramos na frente do quarto antecipadamente conferido pelo
meu segurança. Se algum dia já critiquei o poder do dinheiro, retiro o que
eu disse neste segundo.
Levo minha mão à madeira branca com adornos dourados e bato
duas vezes.
Depois espero.
Espero.
Espero.
Ouço um resmungo do outro lado, passos se aproximando, o som
eletrônico da porta sendo destrancada pouco antes de ela se abrir em uma
circunferência ampla.
O homem franze as sobrancelhas espessas, confuso, piscando várias
vezes como se não acreditasse nos próprios olhos. Ele está sem camisa, não
esperava pela minha chegada, é evidente, mas merece alguns pontos por
não se alterar e gritar como qualquer outro hóspede endinheirado faria. Mas
a razão de sua calma vem assim que abre a boca.
— Você é…
Ele sabe quem eu sou.
— Sim — digo, interrompendo sua fala. — E você é Zayn Serov, o
irmão de Anastasia Serova. — Olho sobre seu ombro e lhe ofereço um
sorriso amigável. Espero que seja amigável. — Não vai me convidar para
entrar? Temos muito o que conversar.
22
Andrei
MEUS PADRÕES PARA embriaguez são altos, então quando meus
movimentos perdem um pouco da velocidade natural, como se linhas
invisíveis estivessem presas às extremidades do meu corpo, descarto meu
copo vazio sobre o balcão do bar, junto com algumas notas que saco da
carteira sem me importar com o troco.
Todas as noites, quando sou obrigado a encarar a dura realidade de
uma cama vazia, com a lua do lado de fora brilhando em sua infinita
metáfora da solidão, meu metabolismo treinado e resistente se recusa a me
conceder a dádiva de um desmaio alcoólico, mas, por hoje, meu objetivo
está completo: eu me sinto entorpecido e quase controlado. Depois de duas
semanas sem Anastasia, é a primeira vez que algo parecido com calma
penetra a muralha anárquica erguida ao redor da minha mente.
Quer dizer, verdade seja dita, talvez não tenha nada a ver com a
bebida, talvez seja assim que um predador se sente antes de uma caçada,
tranquilizado pela promessa do sangue que saciará sua sede.
De qualquer forma, é um sentimento bom.
Saio do estabelecimento e caminho pela rua estreita, ladeada por
prédios antigos com janelas coloniais e sacadas de um metro quadrado. São
Petersburgo não é o meu lugar favorito no mundo. Puxo o cachecol e cubro
o meu maxilar. Duas quadras depois, vejo o carro alugado estacionado perto
da esquina aos cuidados do motorista particular e de Komarov, que vem se
provando um excelente acréscimo como guarda-costas e faz-tudo — sendo
muito bem remunerado em ambas as funções.
— Conseguiu falar com algum dos meus irmãos? — pergunto assim
que nos acomodamos, um ao lado do outro, dentro do carro aquecido.
Ele me olha de soslaio, um movimento rápido de desconforto.
— Apenas com o senhor Roman. — Komarov se remexe no banco.
— Ele enviou um recado.
— Claro que sim — digo sem esconder meu sarcasmo. Tratando-se
de Roman, não é a notícia mais promissora do meu dia. — O que ele disse?
Seu rosto adquire a estranha coloração esverdeada de alguém que
gostaria de estar em qualquer outro lugar. Eu daria risada se me lembrasse
como fazer isso de uma maneira natural e feliz.
— Disse que você pode… — Ele engole em seco. — Ir chupar
um… err… pau. — Depois de pigarrear, acrescenta: — Senhor.
É a cara dele.
Dou dois tapinhas condescendentes no ombro do meu segurança e
me viro para a janela, sem de fato ver o lado de fora. É um mecanismo de
defesa que aperfeiçoei ao longo dos anos, estar ali sem realmente estar,
como um botão de piloto automático instalado dentro da minha cabeça. Ele
garante que eu continue executando tarefas simples, como beber, comer,
parecer simpático e todas as outras coisas que me caracterizam como um
ser humano comum.
Ou tão comum quanto se espera de um Volkiov.
Pedir a Komarov para tentar obter informações através dos meus
irmãos não foi a demonstração mais ilustre da minha inteligência. Acho que
estou chegando a algum tipo de limite, como um equilibrista caminhando
descalço sobre um barbante a dez metros de altura sem rede de proteção. Se
não fosse por minhas cunhadas e suas migalhas de comiseração, eu não
teria qualquer chance contra a queda livre e o impacto além.
Não é muito, mas, graças às duas, eu sei que, sim, Anastasia
continua na mansão da minha família, sim, ela já começou a trabalhar no
abrigo, e sim, está tudo bem com ela e o bebê.
Fora isso, sem mais detalhes para mim.
É melhor assim, tento me convencer enquanto verifico as horas no
meu relógio de pulso, o mínimo é bem mais do eu mereço ou posso lidar no
momento.
— Algo mais? — Rezo em pensamentos para que não.
— Sua ex-mulher deixou mais um recado — responde, sem
imaginar que acaba de piorar meu desequilíbrio mental em cem por cento.
— Disse que não vai aceitar outro adiamento.
Depois de tudo o que aconteceu, não fui capaz de me encontrar com
ela como havíamos combinado. Evgenia também tem limites e eles
queimam rápido como palitos de fósforo. Se ela começar um incêndio, a
culpa será minha.
Mais uma para a minha coleção.
— Peça a ela para confirmar uma nova data. — Encaro o borrão de
luzes e cores passando pela janela, intercalado com meu reflexo. Assim
como minha voz, os olhos vazios espelhados no vidro complementam a
epítome sombria dos meus verdadeiros sentimentos e intenções quando
mudo para o assunto que importa: — Está tudo pronto?
Comprovando seu profissionalismo, Komarov percebe a ira
apocalíptica que goteja junto com cada palavra da minha pergunta e se
afasta um único centímetro, como se movido por um instinto de
sobrevivência que vai além do seu controle. Ao responder, não consegue
disfarçar a vibração resignada em seu timbre grave.
— Sim, senhor.

***

Investimentos imobiliários são o foco principal da Corporação


Volkiov, então não é incomum que tenhamos imóveis bem-sucedidos em
diferentes pontos do mundo. Pontos estratégicos: capitais, cidades com
economia em ascensão ou cuja concorrência seja do nosso interesse
exterminar.
O meio empresarial é violento e não se pode sobreviver a ele sem
uma quantidade generosa de malícia. Ao fincarmos bandeiras de concreto
no topo das hierarquias urbanas, onde as pessoas são obrigadas a dobrar os
pescoços para trás, garantimos que nunca se esqueçam quem está acima
deles.
É disso que se trata: ser lembrado.
Sendo assim, quando Yerik chega a um dos andares mais altos da
Torre Medular do complexo empresarial construído no extremo noroeste de
Peter, acompanhado de um pequeno grupo de seguranças, não preciso usar
palavras para que ele se lembre quem está diante dele. Sua apreensão fica
evidente em seu jeito de caminhar, com passos curtos e dessincronizados,
nos olhos ligeiramente arregalados e nas mãos abobalhadas e disfuncionais
balançando nas laterais de seu corpo esguio.
Meu cérebro faz uma catalogação contra a minha vontade, captando
mais detalhes sobre ele do que eu gostaria de registrar, como o terno grafite
com padrão windowpane e os Oxfords de couro marrom em seus pés.
Analisando friamente, ele tem uma boa aparência. Em um mundo onde as
pessoas são facilmente enganadas por rostos bonitos e contas bancárias,
Yerik, com seu penteado louro impecável, não deve estar acostumado a se
curvar.
Eu me pergunto se ele sabe como fazê-lo direito.
Se curvar.
— Eu tenho que dizer, estou impressionado. — Ele estende o braço
para me cumprimentar.
Olho para sua mão e o pensamento de arrancá-la de seu corpo
atravessa o protocolo mental que estou tentando seguir. Não posso negar
que a imagem me agrada.
Foi com essa mão que ele…
Sorrio para Yerik e o cumprimento de volta. Fingir na frente dele
não demanda um grande esforço, e por mais que ideias delituosas se reúnam
aos montes na minha cabeça, consigo encontrar espaço para aproveitar o
momento. Será que as pessoas ainda me achariam bondoso se soubessem
como me sinto satisfeito quando penetro a frágil camada de suas mentes?
Deixar meus irmãos fora do meu caminho foi a melhor escolha, no
fim das contas. Eles não teriam a mesma presença de espírito que eu para
empilhar todas as peças em seus devidos lugares.
E seria menos divertido também.
Merda, deve ter alguma coisa muito errada comigo para achar
qualquer parte disso divertida.
— Espero que tenha tido uma boa subida — digo em tom de
brincadeira. — E que meus homens o tenham recebido bem.
O edifício colossal conta com seu próprio sistema de segurança e
um quadro de profissionais treinados tão eficientes e numerosos quanto um
batalhão do exército, porém, exceto por Komarov, posicionado perto de
uma das saídas principais, não é a mim que os demais seguranças
respondem, nem aos meus irmãos ou qualquer gerência ligada à onde
estamos. Mas Yerik não precisa saber disso ainda.
— Claro. — Ele nem se dá ao trabalho de olhar para eles. Deve se
achar importante demais para perder tempo com a mão de obra. — Esse
andar é todo da sua família?
Confirmo com a cabeça.
— Junto com três acima de nós e dois abaixo. Mas este é o único
que utilizamos para uso restrito da Corporação. É uma pseudorréplica
ampliada do nosso escritório na capital, embora raramente façamos uso de
nossas próprias salas. A principal diferença, além do tamanho, é óbvio, são
as paredes de vidro. — Aponto para a porta transparente que contém o meu
nome. — A falta de privacidade nem sempre é boa para os negócios.
Yerik concorda e olha ao redor.
As quatro salas formam um arco, dispostas uma ao lado da outra
contra as janelas panorâmicas que exibem o céu enevoado lá fora. A
recepção é ampla e moderna, com cinco estações de atendimento e um
espaço confortável de espera. Na parede leste, é possível ver uma parte do
corredor que leva para as salas de reuniões coletivas e de alguns acionistas
mais importantes.
A decoração predominante acompanha a proposta vítrea do edifício,
mas o grande atrativo do andar é o espaço aberto com vista para o Golfo da
Finlândia, com mesas circulares e reservadas que podem servir a propósitos
variados, desde conversas informais a momentos de reflexão e descanso.
Com intenções menos nobres, convido Yerik a se sentar comigo em uma
delas, que já está organizada com tudo o que precisaremos.
— E nunca pensaram em estabelecer a sede de vocês aqui? — Ele
desabotoa o único botão de seu paletó antes de se acomodar na cadeira
estofada.
— Temos um fraco por Moscou — respondo de modo casual,
assumindo meu lugar diante dele. — Roman pode ter sido o engenheiro-
chefe do complexo, mas seria o primeiro a pular daqui de cima se fosse
obrigado a trabalhar aqui dentro por mais de uma semana.
Yerik gargalha, mas não refuta. A fama de Roman o precede.
— Estamos falando de um escritório na torre empresarial mais
famosa da Eurásia. Maldição, Andrei! Eu o deixaria arrancar a minha perna
esquerda em troca de um espaço assim para realocar a diretoria do banco.
Faço os cantos da minha boca se elevarem em um sorriso passional.
Yerik não deixaria passar a chance de jogar sua lábia barata para cima de
mim. Agora que uma porta foi aberta, ele acha que pode me usar como
escada.
— Tem certeza? — Inclino a cabeça para o lado e sorrio com um
humor ácido. — Por que não fazemos isso agora? Se você prometer não
gritar, eu prometo ser rápido.
Seu riso perde a potência até sucumbir a um silêncio desconfortável.
O pomo de adão em sua garganta sobe e desce lentamente quando engole
em seco.
— O que?
Há incerteza em sua voz. Ele não é um ator ruim, já que conseguiu
me enganar uma vez, no entanto, não estou mais usando a venda das minhas
próprias desilusões para repetir o erro de subestimá-lo. Por gostar muito da
sensação de oprimir um homem acostumado a estar no papel contrário,
deixo os segundos se arrastarem antes de finalmente dizer:
— Brincadeirinha.
Yerik pigarreia como se estivesse rindo e eu o acompanho para
manter as aparências.
— Certo, claro — resmunga, em seguida, desvia seus olhos dos
meus e os fixa sobre a pasta de cor preta pousada na minha frente. — Então,
sobre aquele assunto…
— Por que a pressa?
Ele percebe a interrupção, mas ainda não me confronta. Quanto
tempo até entender que não o chamei para discutirmos as estratégias que
usaremos no tribunal contra Anastasia? Dez minutos? Vinte? Uma hora? Eu
espero que seja rápido. Por mera autossatisfação, coloco um cronômetro no
meu relógio de pulso.
— Eu não sabia que tinha outros planos — responde, evasivo. —
Depois da audiência com a minha mulher, a única notícia que recebi de
você foi aquela mensagem dizendo que continuaria à frente do caso.
Inclusive, não tive a chance de agradecê-lo por isso. Saiba que significa
muito para mim.
Fico tentado a remover minha máscara e corrigir sua insolência.
Chamar Anastasia de sua é uma escolha de palavras ousada e estúpida. Mas
não cheguei onde cheguei agindo como meus irmãos impulsivos, então
deixo o grito de advertência preso em meu peito.
Ele não é o único que sabe contar mentirinhas.
— Anastasia. — O nome dança na minha língua com um sabor
doce. — Teve alguma notícia dela depois da audiência?
Um espasmo faz o canto esquerdo de sua boca levantar um
milímetro, depois ele cerra os lábios em uma linha apertada e enruga o nariz
com uma fungada, como se estivesse coçando. Desprezo, raiva, desgosto.
Leio suas microexpressões como se fossem migalhas de pão marcando o
caminho para a sua ruína.
— Não. — Ele insiste na farsa, o que é meio decepcionante, mas,
pelo menos, se esforça para colocar uma nota de tristeza na voz. —
Desapareceu sem deixar rastros, então estou confiando na sua garantia de
que ela não vai conseguir me manter longe da criança por muito tempo.
Conhecendo Anastasia como só eu conheço, me surpreende muito que
ainda não tenha desistido dessa besteira e voltado para casa.
Talvez, é o que ela teria feito se estivesse sozinha.
Olho meu relógio. Apenas quatro minutos se passaram. Não gosto
quando as coisas progridem de forma lenta e não sei até que ponto vai durar
a minha tenacidade.
— Você conhece todos os meus irmãos, Yerik? — pergunto,
gostando da brincadeira de confundir sua cabeça ao mudar de assunto.
Ele franze as sobrancelhas e remonta o semblante, saindo da
melancolia para o interesse súbito.
— O presidente foi o único que tive a chance de conversar
pessoalmente, mas já me encontrei com os outros dois em conferências e
coisas do tipo. Por que a pergunta?
— Eu tenho o costume de imaginar o que cada um faria se estivesse
no meu lugar. — Levanto-me e apoio as duas mãos sobre a mesa. — Quer
ouvir a minha teoria mais recente?
— Err… claro, eu acho.
Com um sorriso forçado, caminho até o bar e escolho uma garrafa
Chisti Rosi, junto com dois copos pequenos de cristal.
— Por incrível que pareça — digo enquanto sirvo uma dose
generosa para ambos —, Ivan é sempre o mais difícil para criar hipóteses.
Ele funciona como uma montanha russa, indo de um extremo a outro, mas
não é do tipo que se arrepende com facilidade. — Observo o líquido incolor
no limite das bordas e sussurro com um sabor amargo no paladar: — Ele a
teria arrastado daquela sala sem pensar duas vezes.
Não por coincidência, Ivan é o responsável por Anastasia
permanecer na mansão, aos cuidados da minha família. Ele tem o hábito de
impor suas vontades, e mesmo não se tratando de uma qualidade, tudo o
que consigo sentir é gratidão.
— Não estou entendendo.
Volto para a mesa e bato o copo na frente de Yerik. A bebida
transborda por causa do movimento brusco, molhando meus dedos. De
novo, ele escolhe se calar.
— Vladimir é um caso à parte. — Ao invés de me sentar, afasto-me
de Yerik e me volto para o cenário calmo do exterior, com o céu e a água
turva se fundindo em uma dicotomia de escuridão e estrelas. — Pense nele
como uma maldição. Um companheiro sádico que jamais abandona suas
vítimas, tornando a existência delas a mais miserável de todas. Ele sentiria
muito prazer reduzindo as pessoas daquela sala a restos de poeira grudados
na sola de seu sapato.
Um prazer semelhante ao que estou sentindo agora.
— Onde está querendo chegar? — Yerik pergunta. — Por acaso
você está bêbado?
Não, não mais. Sinto que as linhas de contenção não estão mais
fortes o bastante. E é uma pena para ele.
— Gosto disso no meu irmão mais velho, ele sabe como fazer uma
vingança durar. — Faço um passeio lento pelas mesas, percorrendo o
caminho inverso de volta à minha cadeira. — Experimento um gole da
bebida enquanto me sento. — Mas o Roman… — Outro gole, seguido de
um sorriso. — É óbvio, você já estaria morto.
— Que merda. — Yerik se levanta com brusquidão. — Ficou louco?
Do que você está falando? Está tentando me ameaçar?
Komarov dá um passo à frente, junto com os outros seguranças, mas
eu os impeço com um simples balançar de dedos.
— Sim — respondo. No meu relógio, quase quinze minutos já se
passaram. — Já que entendeu, é melhor sentar e ouvir.
— Vá direto ao ponto! — Ele soca a mesa e derruba seu copo. O
líquido esparramado escorre até a borda, pingando no chão como um
contador de segundos, uma gota por vez.
— Sabe o que os três têm em comum? — Aponto para a minha
cabeça com o indicador e o polegar esticados no formato de uma arma. —
Eles têm a mim para expiar seus pecados. Mas eu não tenho nada. Não
posso me dar ao luxo de ser inconsequente e precipitado, porque, no fim do
dia, quem vai encobrir as minhas falhas?
— Andrei Volkiov não falha. — Yerik range os dentes. — E seus
irmãos? Com todo respeito, você sabe o que dizem sobre eles.
Rio sem humor.
— Que eles são monstros? Loucos? Imbatíveis? Então, em uma
escala de poder, se eu sou aquele que protege os monstros e nunca comete
erros, em qual posição eu me encontro? — Finalizo a minha bebida e deixo
o copo de lado. — No circo, quem as pessoas aplaudem? O leão ou o
domador? O atirador de facas ou a coragem do alvo? O mágico ou o coelho
na cartola?
— Chega de enigmas. — As narinas de Yerik se dilatam, seu rosto
fica todo vermelho e o ódio pulsa em seus olhos. — Contratei você para ser
o meu advogado, se não tem nada a dizer sobre o meu casamento…
— Os Volkiov são como um enxame, Yerik. Uma vez que você tenta
prejudicar um de nós, os outros se tornam seus adversários. Você escolheu a
família errada para enfrentar. — Com uma serenidade que não representa a
minha verdadeira natureza, acrescento: — E o irmão errado como inimigo.
— Eu não…
— PARE DE FINGIR, PORRA! — Eu me levanto abruptamente. A
cadeira cai atrás de mim com um baque estrondoso. — Você sempre soube
onde ela estava. Desde o maldito começo!
Enfim, acontece.
Ele se endireita e, pouco a pouco, as várias camadas de sua
fisionomia vão se desfazendo. A polidez usual se transforma em desprezo, e
seu olhar perde a reverência forçada, restando apenas ultraje e zombaria.
— Como descobriu?
Paro o cronômetro aos exatos vinte e três minutos e dou a volta na
mesa. Ficamos de frente um para o outro, a uma distância pouco segura.
— Eu pensei muito, por muito tempo, tentando encaixar todas as
peças, e algumas simplesmente não faziam sentido. — Olho para minhas
mãos e listo todos os pontos antes de explicar. — A começar pela sua
abordagem, procurando por mim no abrigo. Você sempre soube que
estávamos morando juntos, que eu era o homem com quem ela estava
trocando mensagens antes de fugir. Me escolheu como advogado porque
sabia que ela não tinha revelado a verdadeira identidade e quis nos colocar
um contra o outro. Um plano cheio de falhas que quase deu certo por pura
sorte.
— Quase? — O desgraçado ousa sorrir. — Você a entregou para
mim em uma bandeja de prata, Andrei. Exatamente como eu planejei.
Admito que não esperava ressentimentos, pensei que desistiria dela assim
que a visse na audiência, afinal, ela mentiu para você. Uma vagabunda
mentirosa.
Olho para a mesa e faço um rápido inventário: notebook, uma pasta,
alguns papéis, canetas… hum, são boas opções, mas escolho o copo. Meu
punho se fecha ao redor dele, sinto seu peso em silêncio e ergo meu rosto
para encarar Yerik, que me observa com desconfiança.
Lanço meu braço para trás e meu punho voa para frente. Sinto o
ardor quando o vidro perfura minha palma e escuto o som oco de seu crânio
ao ser atingido pelo golpe. Yerik grita, tenta investir contra mim com o
rosto ensanguentado, mas Komarov o impede junto com outro segurança.
Ele se debate, mas não é páreo para os dois.
— Não era para isso acontecer. — Há uma grande fenda vertendo
sangue em minha mão. Os cacos jazem em uma poça vermelha no piso
branco. A mancha tem o formato asqueroso de um coração partido ao meio.
— Eu costumo ser um homem paciente.
Acabo rindo sozinho enquanto retiro minha gravata e a envolvo no
ferimento. Não é engraçado, nem o corte, nem o sangue, nem a dor. Dizem
que buscar justiça com as próprias mãos não é o caminho certo, mas eu
nunca senti tanta satisfação e euforia em toda a minha vida.
Me faz querer mais, bater mais, arrancar mais sangue de seu corpo,
fazê-lo berrar à exaustão. Isso seria engraçado.
Será que ele se divertia quando a espancava? Será que dava risada
enquanto ela chorava? Ele sentia prazer?
— Você é um filho da puta! — Yerik continua lutando. — O que
pensa que está fazendo? Acha que vai se safar? Você está perdido, Andrei!
Acabado! Não vai sair impune, eu vou expor você, seu desgraçado!
— Sentem-no. — Dou o comando e levanto minha cadeira, depois
me acomodo como se lidasse com situações semelhantes todos os dias.
Komarov e o homem obedecem sem questionar e o seguram no lugar. —
Você pode me denunciar para a polícia, é um risco que estou disposto a
correr. — Ele para de se debater. — Mas pense por um segundo e vai mudar
de ideia sem a minha ajuda.
Yerik olha para os homens com as mãos em seus ombros, depois
procura as saídas, onde outros seguranças estão a postos. Quando a
compreensão o atinge, ele suspira.
— Estou em desvantagem — diz por fim.
— Sim, você está. — Faço um movimento amplo com a mão
machucada. — Meu território, minhas testemunhas, minhas provas. —
Vendo que ele desistiu de lutar, dispenso Komarov, que se afasta junto com
o outro homem. — Agora que já entendeu sua posição, podemos continuar.
A gola de sua camisa está toda manchada de sangue e sua pálpebra
esquerda não se abre por completo graças ao inchaço. Ainda é pouco perto
do que ele merece. Muito pouco. Mas tenho que me lembrar que não estou
atrás de vingança.
Não se trata dele.
Mas dela.
— Então, qual é o seu objetivo? Vai me matar? — Yerik cospe no
chão e mostra os dentes em uma tentativa de sorriso sarcástico, como se
duvidasse da possibilidade.
— Não sou um assassino. — Ouço uma risada histérica e longínqua
vinda de um lugar obscuro da minha própria cabeça, zombando da minha
fala. Eu a ignoro. — Sou o seu advogado. — Abro o computador portátil e
viro a tela para Yerik. — O advogado do diabo.
Aperto uma tecla e o vídeo começa.
Eu o assisti apenas uma vez, quando recebi o arquivo, e não
pretendo repetir o erro. Não preciso. Ele está gravado na minha maldita
mente, cada milésimo de segundo aterrador dos piores minutos da minha
vida.
O vídeo da fuga de Anastasia, gravado pelo próprio Yerik dentro de
seu quarto. O vídeo em que ele a enforca contra a cama, tão pequena e
frágil como nunca, forçando-se sobre ela como uma aberração covarde. O
vídeo que faz a risada ecoar mais e mais alto nos confins da minha cabeça,
caçoando do herói que estou vestindo e o desafiando a se tornar um vilão.
Quanto mais tempo eu passo na presença de Yerik, mais sinto
vontade de aceitar o desafio. E não posso, não agora. Pelo bem de
Anastasia, eu tenho que suportar.
— Como conseguiu isso? — Seu rosto fica lívido, a voz não mais
alta que um murmúrio.
— A pergunta correta é: o que eu vou fazer com isso? Ou com
isso… — No meu celular, deslizo uma galeria inteira de fotos e vídeos de
Yerik com mulheres diferentes em circunstâncias íntimas. Em algumas, há
mais de duas ao mesmo tempo. — E isso aqui também. — Pego um
envelope e jogo seu conteúdo sobre a mesa. — Tem mais de onde essas
evidências vieram, podemos passar a noite inteira aqui se quiser conferir
uma por uma.
Ele pega um dos documentos com receio e começa a ler, olhando-
me de vez em quando com repúdio por cima das folhas. Homens covardes
não sentem medo de serem confrontados por suas covardias a menos que
tenham o objeto de seu poder ameaçado.
Remova a lança de um lanceiro e você terá um homem comum.
— Não — ele diz de modo patético. — Não é possível.
— São exatamente o que parecem. Rescisões contratuais de
cinquenta por cento dos seus acionistas. — Aponto para outro conjunto de
documentos. — Trinta por cento dos seus associados com fortunas
milionárias já iniciaram o processo de transferência para outros bancos, e
esse número vai dobrar nos próximos dez dias. Seu valor de empresa vai
cair para menos da metade do valor atual em um prazo de seis meses.
Os punhos de Yerik se fecham e amassam algumas folhas. Ele
respira com dificuldade, bufando e tremendo, com os olhos esbugalhados.
Fico à espera de uma investida, ou um ataque de histeria, mas os segundos
vão se passando e, aos poucos, ele consegue se acalmar.
Surpreendente.
— Entendi — diz com a voz rouca e quebradiça. — Fingiu ficar
contra ela para ganhar tempo. Agora podemos negociar de igual para igual.
Muito bem, me diga o que você quer para reverter essa situação.
— Ah, não é isso o que estamos negociando. Você vai aceitar os
meus termos para que eu não destrua o pouco que sobrou do seu querido
banco. Passar por uma crise financeira junto com dois escândalos… —
Balanço a cabeça com um falso pesar. — Eu não apostaria mais do que um
ou dois anos para a sua falência.
— Está blefando.
— Eu estou? — Apoio os cotovelos na mesa e cruzo as mãos na
frente do rosto. Sinto uma pontada na parte ferida, mas consigo manter a
expressão neutra. — Poupe o nosso tempo, Yerik, você me conhece, então
abra seus olhos e pare de me subestimar. Não conto mentiras que não posso
sustentar.
Pensativo, ele abaixa os olhos para a montanha de arquivos
espalhados. Alguns tiveram o infortúnio de cair sobre a parte molhada da
mesa, mas não me preocupo, são apenas cópias.
Os ombros de Yerik cedem eventualmente, e ele desiste de manter a
postura.
Eu o peguei.
— O que você quer? — pergunta sem o mesmo vigor de antes.
— Que você desapareça — digo sem rodeios. O fato de a frase soar
como se eu tivesse dito "que você morra" não é um acaso. — Mais
precisamente, os últimos dois anos da sua existência. Como uma amostra da
minha benevolência, já fiz uma parte do trabalho por você. Não saiu barato,
mas foi mais fácil do que eu imaginava já que você a mantinha isolada do
mundo como um animal raro de estimação enquanto comia as suas amantes.
Ele estreita os olhos.
— O que isso deveria significar?
— Já ouviu falar em interneticídio? Contratei algumas empresas
especializadas em rastreio e deleção de dados on-line. Resumindo, tudo
relacionado ao seu casamento com Anastasia foi apagado da internet, desde
reportagens em jornais importantes a menções em redes sociais.
Não passa de uma maquiagem, como varrer a sujeira para debaixo
do tapete, mas uma medida necessária a longo prazo. Não quero que o
passado continue assombrando Anastasia, não quero que ela se esconda ou
se limite nunca mais. Quanto menos acesso as pessoas tiverem a
informações sobre os dois, mais rápido esquecerão que um dia estiveram
juntos.
Yerik já está com seu celular em mãos, fazendo pesquisas
freneticamente.
— Você é… — ele balbucia depois de comprovar minha declaração
e guardar o aparelho. Seu olhar transita entre choque, confusão e medo. —
Completamente louco.
Sinto uma náusea repentina, porque não tenho como me defender.
Eu pareço louco. Porra! Eu me sinto louco.
— Agora que entendeu, assine aqui. — Empurro-lhe a última pasta.
Ela desliza e para diante de Yerik, que a abre e se depara com uma
declaração de divórcio. — Você não deve se lembrar, mas em nosso
primeiro encontro, eu expliquei, com outras palavras, que divórcios
consensuais são os mais simples e rápidos de serem consumados, em
especial entre parceiros sem filhos.
Ele ergue a cabeça como um chicote.
— Nós temos um filho — sibila.
Chego à conclusão de que Yerik é muito corajoso ou extremamente
burro.
Quando me levanto, é devagar, com movimentos premeditados.
Tenho que me apegar à disciplina para não fazer algo do qual posso me
arrepender no futuro, ou que prejudique Anastasia.
Há um alarme agudo e constante soando no meu ouvido, lembrando-
me que o maior perigo não está diante de mim, mas sim dentro. E nada me
tira a vontade de entregar às sombras em meu peito aquilo que elas
anseiam: uma brecha para que assumam o controle e possam retribuir todo
o sofrimento causado à mulher que amo.
Fisicamente.
Estou parcialmente cego no momento em que paro ao lado de Yerik,
então me agarro ao último resquício de sanidade que me resta e dou um
sorriso.
— Quer ouvir uma história engraçada? — Não espero sua resposta.
Apoio-me com uma mão na mesa e a outra em seu ombro. — Anastasia está
grávida de um filho meu. Estamos juntos há quase um ano. Eu a visitava em
segredo quando você não estava na cidade. Coincidentemente, ela acabou
engravidando de mim na mesma época da inseminação.
Yerik tenta se levantar, mas eu o seguro com mais força.
— Essa é a mentira mais absurda que já ouvi na minha vida! — ele
berra com exasperação.
— Eu sei que é mentira. Você sabe que é mentira. Anastasia sabe
que é mentira. — Agarro seu pescoço por trás e me aproximo de seu
ouvido. Sinto o cheiro do sangue impregnado em suas vestes. — Mas,
vamos supor que você decida ser burro e se negue a assinar a porra do
divórcio agora. Vocês terão que se enfrentar no tribunal, Anastasia vai
contar essa história na frente de todos e eu já terei passado por cima da sua
carreira como um maldito rolo compressor. Quando pedirem um teste de
DNA, ele vai dar positivo, porque eu sou um dos quatro homens mais ricos
da Rússia e posso pagar a quantia que for necessária para tornar realidade
tudo o que eu quiser. Enquanto isso, você não vai passar de escória. Falido,
arruinado e sozinho.
Faço pressão com os dedos, sinto minhas unhas arranhando sua
pele. Yerik engasga e olha para o documento. Retiro uma caneta do meu
paletó e a coloco em sua mão. Ele a segura com o corpo trêmulo de raiva.
— Não seja burro, Yerik. Está acabado, não há nada que possa fazer.
Assine logo. — Empurro sua cabeça para frente, até seu nariz quase tocar o
papel, e grito: — Assine!
Os seguranças dão um passo à frente em sincronia, chamando a
atenção de Yerik. Ele pisca, como se tivesse esquecido da presença deles e
de sua própria vulnerabilidade.
Ele perdeu.
Ele sabe que perdeu.
Sua mão começa a se mover, mas eu continuo a postos, atento, de
olho em cada um de seus rabiscos. A caneta desliza enquanto eu conto
mentalmente os segundos. Ansioso, aflito, desesperado. Assim que ele
termina, fecho a pasta e a pego sem demonstrar meu alívio.
— Não entendo — ele murmura com a cabeça baixa, ombros caídos,
derrotado. — Anastasia mentiu esse tempo todo. Em nenhum momento
passou pela sua cabeça desistir dela?
Ele não merece uma resposta. Não merece mais nada relacionado a
Anastasia. Mas é bom que ela saiba que nunca teve chance de vitória.
— Você a quebrou, mas não a destruiu, Yerik. Ela é feita de tantas
partes que talvez eu jamais a conheça por inteiro, mas amo cada uma delas.
— Viro-me de costas. — Então, sim, você está certo. Ela mentiu para mim,
e esse é só mais um dos motivos pelos quais a quero para sempre ao meu
lado. É preciso ser forte para confiar em alguém, mas é preciso de ainda
mais força para sofrer sozinho.
Olho por cima do ombro e o vejo apertar os punhos. Espero por uma
reação, mas ele não faz nada. Não me enfrenta, não tenta me agredir. Está
acostumado com mulheres indefesas, vítimas menores que não podem
competir com sua força.
Um desgraçado covarde.
— Dessa vez, eu mantive meus irmãos longe, mas não considere
isso um ato de misericórdia. Eles com certeza não consideram. — Começo
a caminhar em direção à saída. O silêncio é tão absoluto que, quando volto
a falar, minhas palavras preenchem o andar inteiro. — Anastasia é minha
agora. A partir de hoje, ela carrega uma criança Volkiov no ventre, então
não ouse cobiçar e muito menos ameaçar o que me pertence.
Ou eu farei com que se arrependa, não preciso dizer.
— Você — Yerik rosna — é uma farsa.
Não respondo, ele está certo. E meu trabalho chegou ao fim.
Komarov recolhe o notebook e deixa as cópias como lembrança
para Yerik. É o único a me acompanhar, e assim que se aproxima o
suficiente, entrego-lhe também a pasta fechada. Ao pararmos na frente do
elevador, vejo os números acima dele se movendo depressa. Há uma pessoa
subindo.
Ele chegou.
— Você me perguntou mais cedo como eu havia conseguido aquele
vídeo. — Enfio as duas mãos nos bolsos e me permito um suspiro cansado.
Não sei se Yerik está prestando atenção, mas digo mesmo assim: — Uma
vez Anastasia me contou que o irmão dela era proprietário de uma empresa
de segurança privada, e que você era um de seus clientes. Estava mesmo
confortável demais para ser tão imprudente e contratar a empresa de seu
próprio cunhado para instalar câmeras na sua casa.
As portas se abrem e vejo Zayn com mais dois de seus seguranças o
flanqueando. Trocamos olhares. Ele não esboça nenhuma reação ao
perceber os respingos de sangue na minha roupa.
— Ele é todo seu agora.
Simples assim, trocamos de lugar. Ele e todos os seus homens ficam
para trás, com Yerik, que começa a gritar impropérios enquanto as portas
voltam a se fechar.
Depois, o silêncio.
O vazio.
Eu consegui.
Encosto-me na parede de metal do elevador e fecho minhas
pálpebras. A pressão da descida leva minha consciência e sinto a mente
girando. À medida que a adrenalina deixa meu corpo, começo a tremer por
dentro. Meus ossos doem, meu peito parece estar sendo rasgado e consigo
escutar barulhos estranhos vindos do meu estômago, que não para de se
contorcer.
Faço esforço para esvaziar minha mente e me concentro na fisgada
em minha mão. Não funciona. Continuo revivendo meu encontro com
Yerik, repassando todas as minhas falas como um maníaco.
Não sou um assassino.
O advogado do diabo.
Que você desapareça.
Ela é minha agora…
— Senhor — Komarov diz —, com todo respeito, posso fazer uma
pergunta?
Sim.
Não.
Não sei.
Estou confuso.
— Claro.
Ele solta um pigarro receoso.
— Se já tinha tudo planejado para assumir a criança e destruir a
carreira dele, por que fez tudo isso? Por que se dar ao trabalho?
É uma boa questão. Meus irmãos teriam me perguntado a mesma
coisa.
— Porque ela já sofreu demais. — O tremor aumenta. Será que ele
consegue ver? — Mesmo tendo conseguido aquele vídeo, eu não poderia
jogá-lo na mídia sem que Ana permitisse, e por mais que me doa admitir,
não sei se ela aceitaria. O processo de divórcio demoraria meses se o
levassem ao tribunal, e o dobro disso para determinar os direitos de Yerik
sobre a criança. Eu precisava de uma garantia.
— O divórcio.
— Sim. — Tenho a impressão de que minha voz soa tensa e
chorosa. Mas não estou chorando, ao menos não por fora. Não sinto a
presença de lágrimas. — Mesmo em um cenário promissor, no qual ela o
expusesse por agressão, ainda existia uma grande chance de Yerik vencer a
causa sobre a paternidade se eu não conseguisse forjar um teste. — Crispo
os lábios. — Eu não podia arriscar.
— Então estava mesmo blefando?
— Em partes, sim. Eu apenas o fiz acreditar que eu tinha o controle
de tudo. Joguei com a mente dele. — Cravo minhas unhas nas palmas e
sinto o sangue brotar do ferimento, atravessando o tecido da gravata. — A
mentira mais convincente é aquela que se veste de pequenas verdades.
— O banco…
— Ele não vai conseguir se recuperar. Nunca tive a intenção de lhe
dar uma chance. Yerik vai sucumbir tão rápido que ninguém vai se lembrar
que um dia existiu.
Komarov aquiesce em aprovação e não faz mais perguntas.
Depois de tudo, seu silêncio é uma dádiva que agradeço em segredo.
Esgotei todas as minhas habilidades de socialização e não sei como reagir
ao extremo vazio. É assim que me sinto, oco por dentro. E no âmago da
solidão, os grunhidos e sussurros de pensamentos perturbadores se
sobressaem. Estou acostumando com a desordem, a cacofonia incapacitante
que não me deixa dormir à noite.
Perco a noção do tempo, mas assim que o elevador para de se mover
e as portas desaparecem da minha frente, saio cambaleando pelo
estacionamento, sem enxergar direito. Sem pensar. Sem sentir. Sem… tudo.
Não consigo mais aguentar.
Não aguento mais me segurar.
Fingir.
Ser uma fraude.
Apoio minha mão — a que está cortada e, agora percebo, muito
dolorida — em uma pilastra, depois eu me curvo. Sinto a bile subir, ácida e
amarga, queimando toda a minha garganta. Porém, não importa o quanto eu
insista no vômito, faz três dias desde a última vez que coloquei algo sólido
na boca, por isso o máximo que consigo expelir são algumas frações do
copo que tomei antes.
Tusso sentindo engulhos, mas a ânsia não passa. Respiro com muita
dificuldade e meus pulmões ardem enquanto tento voltar a mim. Aos
poucos, meus sentimentos retornam, e junto deles vem o frio, a exaustão, e
a vontade de chorar e gritar até perder minha voz.
De fechar os olhos e não voltar a abri-los.
— Vamos — sussurro, ciente de Komarov parado a poucos metros,
quieto como um fantasma. Gosto dele, sobretudo de sua discrição. — Me
tire daqui antes que eu volte lá para cima e ajude Zayn a colocar Yerik em
seu devido lugar do jeito que ele realmente merece.
Meu segurança abre a porta traseira do carro e eu me jogo sobre o
banco de couro. Deito-me e cubro o rosto com o antebraço. O resto não
passa de um borrão que processo mecanicamente, como um expectador que
cansou de assistir a um filme ruim de tragédia. Komarov liga o veículo. Nós
saímos do complexo. É noite. Eu acabei de cometer uma série de delitos.
— Devemos parar em um hospital?
Balanço a cabeça em negativa, mas me lembro que não estou no
campo de visão do retrovisor e digo:
— Vamos direto ao aeroporto, eu preciso...
Eu preciso dela.
23
Anastasia
ACONTECEU OUTRA VEZ.
Eu realmente não queria, mas são poucas as coisas que tenho o
poder de controlar. Os dias continuam passando, e apesar de todos os meus
esforços, ainda sinto que uma parede foi construída no centro da minha
mente, com tijolos estranhos, disformes e pegajosos que não podem ser
escalados.
Fecho meus olhos e tento um pouco mais. Retorno para a lembrança
daquele dia, mesmo odiando reviver cada segundo. É doloroso, mas de um
jeito diferente das outras dores que estou acostumada a sentir, porque dessa
vez é a minha mão segurando o açoite que fere as minhas costas — o que
torna tudo ainda pior.
Mesmo assim, eu tento, pois é a única coisa que posso fazer por
mim mesma.
Lembro-me primeiro da sensação de encontrar seus olhos e sentir o
chão desaparecendo sob meus pés, de me perder em uma longa queda de
angústia e arrependimentos enquanto a feição impenetrável de Andrei abria
um precipício infinito no caminho entre nossos corações. Refaço os nossos
passos mentalmente e ouço de novo todas as palavras que trocamos, desde o
momento em que entramos na sala da audiência, onde nos desfizemos
juntos camada por camada, pele, músculos e ossos, até nossa trágica
separação.
O nosso fim.
Exatamente. Eu sorri para ele, agradeci ao invés de me desculpar, e
comecei a me afastar do homem que poderia ser o grande, verdadeiro e
único amor da minha vida. E depois…
Depois disso eu…
De alguma forma, acabei vindo parar na mansão da família de
Andrei.
Não me lembro de correr sem rumo pelas ruas enquanto chorava em
desespero ou de ser salva por Ivan Volkiov, nem de passar um dia inteiro no
hospital, oscilando em um estado de semiconsciência. Minha primeira
memória consistente é do irmão de Andrei informando, com um tom de voz
preocupado, mas autoritário, que me levaria para casa.
Não passou pela minha cabeça que estivesse falando da grande e
imponente mansão na qual Andrei e todos os seus irmãos cresceram. Mas
aqui estou eu…
— Aqui estamos nós — sussurro com a mão sobre a minha barriga,
o meu único conforto em meio ao caos.
— Tem fumaça saindo da sua cabeça. — Olho para trás bem a
tempo de ver Ivan contornando a trilha de pedras na lateral do jardim. —
Vai estressar o bebê se continuar pensando demais. E, por favor, me diga
que sabe nadar para estar sozinha na beira da piscina com os pés enfiados
na água.
Automaticamente, dou um sorriso. Eu sei que mostrar uma fachada
de mentira, uma na qual sou capaz de sorrir e conversar como se estivesse
bem, é só mais um dos presentes deixados por Yerik na minha vida, no
entanto, não sinto que com Ivan seja apenas fingimento.
Em algum momento dos últimos dias, parei de me constranger perto
dele, embora seja impossível não me impressionar com sua aparência.
Assim como Andrei, Ivan é um homem que se destaca — uma característica
compartilhada entre todos os irmãos, na verdade. Hoje, está usando roupas
casuais, uma calça de moletom dobrada nos joelhos e uma camisa sem
mangas que deixa seus braços em evidência. Ele costuma se exercitar na
academia da piscina todos os dias, às vezes na companhia de Lara ou
Roman, mas não há ninguém por perto hoje.
— Aprendi quando era criança. — Balanço minhas pernas e ondas
circulares se propagam na superfície líquida. — Por segurança, meus pais
permitiram que eu aprendesse o básico. Não sou uma profissional, mas sei o
suficiente para não me afogar em dois metros de água parada.
Ele para ao meu lado e cruza os braços. Não parece convencido.
— Mesmo assim, não é seguro ficar sozinha em um lugar como
este, nunca se sabe o que pode acontecer. Dois metros é muita coisa para
alguém com o tamanho de uma criança. E se você tivesse outro desmaio e
acabasse caindo? — Sua feição fica rígida, o maxilar tensionado, como se
pensar na possibilidade de me ver machucada o perturbasse. — Se
continuar assim, vai acabar superando todas as mulheres da família.
Sinto meu coração aquecido por ser incluída. Ele sabe que minha
relação com Andrei acabou, mas falando desse jeito, faz parecer um mero
detalhe.
E não é justo.
No começo, me deixei levar pela necessidade de não ter para onde
voltar mais uma vez. O apartamento de Andrei estava fora dos limites, e
Ivan não me deu a opção de negar o seu acolhimento — também não me
senti no direito de negar qualquer coisa a ele depois de todo o sofrimento
que causei ao seu irmão mais novo.
Mas agora é diferente.
É pior.
Ivan tem sido bom para mim, como um irmão mais velho, melhor e
mais atencioso do que meus próprios irmãos. É correto dizer que toda a sua
família tem sido generosa comigo. Tatiana começou a comprar presentes
para o bebê no segundo dia da minha chegada e não parou mais desde
então, fazendo pouco caso de todas as minhas tentativas de recusar. Sempre
há alguém por perto certificando-se do meu bem-estar ou simplesmente me
fazendo companhia.
Mas Ivan vai além, ele age como se nos conhecêssemos a vida
inteira.
Mesmo assim, não consigo afastar a sensação de que sou uma
fraude, uma impostora ocupando um lugar que não mereço.
— Ivan…
— Nem pensar.
Olho para cima e seu corpo bloqueia toda a luz solar, destacando-se
como uma muralha. Por causa de nossas posições invertidas, ele parece
muito maior, invencível, implacável.
— Você não sabe o que vou dizer — tento argumentar, mas o
convívio com Ivan me ensinou que ele não pode ser convencido com
facilidade.
— Claro que eu sei. — Ele se agacha com os joelhos dobrados e me
olha no fundo dos olhos. — Que não quer mais nos incomodar e que acha
melhor se mudar o quanto antes. Desista, Anastasia, você vai continuar
exatamente onde está. Não é seguro ficar sozinha.
A pressão em meu peito aumenta tanto que me pergunto se é
possível morrer disto — gratidão. Sinto vontade de jogar meus braços ao
redor de seus ombros e chorar. Chorar muito. Chorar até preencher o buraco
no meu coração com lágrimas salgadas. Chorar o suficiente para perder a
minha voz e secar o meu corpo.
Chorar até esquecer.
Seria mais fácil se ele me odiasse, se me insultasse com os piores
nomes e amaldiçoasse a minha existência. Se me culpasse.
— Seu irmão... pode não gostar.
É a primeira vez que menciono Andrei diretamente. Acho que não
consigo dizer o nome dele em voz alta ainda. Todos nós temos fugido do
assunto, mas eu sabia que o momento chegaria cedo ou tarde. Ivan, porém,
me surpreende com um sorriso paciente.
— Eu não sei o que meu irmão está aprontando, fiquei cego de raiva
por ter encontrado você naquele estado e acabei me precipitando sobre
como reagir às atitudes dele, mas posso garantir que você estar aqui não é
um problema. — Algo em minha expressão delata meu ceticismo, pois Ivan
acrescenta: — As únicas vezes que Andrei tentou entrar em contato foi para
conseguir notícias a seu respeito.
Meus olhos saltam das órbitas. Ele tem… perguntado por mim?
Andrei? Por que? O que isso significa? Sinto uma repentina algazarra em
meu estômago. Quero interrogar Ivan e descobrir o que mais ele sabe sobre
seu irmão, onde ele pode estar e o que tem feito, mas não sinto que devo —
covarde.
— Apesar de tudo, sei que ele não mandaria vocês me expulsarem
mesmo me odiando. Seu irmão tem um bom coração.
— Você é sempre assim? — Ivan dá um peteleco na minha testa. Às
vezes ele me trata como se eu fosse uma menininha. — Porque, se for,
consigo entender o que fez meu irmão se apaixonar.
— Assim…?
— Estou perguntando se você sempre se coloca para baixo como se
merecesse ser castigada pelas coisas ruins que fizeram com você e sobre as
quais não tinha controle algum. — Seu sorriso perde o brilho quando não
respondo. Não sei o que ele espera que eu diga. — Você foi treinada para
nunca perceber que é uma vítima. Yerik fez isso. Ele tirou de você essa
capacidade.
Eu faço isso?
Acho que Andrei mencionou algo semelhante uma vez.
— Não foi… a minha intenção.
Ivan estala a língua.
— Viu? Acabou de fazer de novo. — Ele respira fundo e diminui o
volume da voz. — Meu irmão é um protetor por natureza. Você deve ter
parecido para ele o mesmo que as lâmpadas parecem para as mariposas.
E, tal como as mariposas, Andrei também acabou se queimando por
seguir seus instintos cegamente.
— Antes de eu aparecer, vocês estavam tristes por Andrei ter se
isolado da família. — Dou um sorriso fraco. Os reflexos da luz poente do
entardecer banham Ivan com centenas de pontos brilhantes e dourados. Ele
parece com algo saído direto de uma fantasia. Forte, colossal e divino. —
Não quero que voltem a se afastar.
Ele me encara seriamente. Quase consigo ouvir as engrenagens em
seu cérebro girando atrás de uma solução para nossos impasses. Tenho
plena consciência de que sou temporária na vida de Ivan e sua família, mas
me vejo ansiosa por sua opinião, um sentimento muito semelhante ao que
eu costumava sentir por meus irmãos mais velhos.
— Vamos fazer um acordo — resolve, e percebo que não se trata de
uma pergunta, mas sim uma decisão unilateral. Ele é um especialista nelas.
— Vai nos dar mais um tempo. Caso Andrei continue com a loucura de
defender aquele… — Ivan range os dentes, recusando-se a dizer o nome de
Yerik. — Se isso acontecer, então eu mesmo me certificarei de ajudar você
a encontrar um lugar seguro onde ninguém mais poderá machucá-la,
incluindo meu irmão.
— Não podem brigar por minha causa. — Retiro minhas pernas da
água e seguro seu braço com força. — Nunca vou me perdoar se causar
uma desavença entre vocês!
Ele balança a cabeça para os lados.
— Isso não é você quem decide. — Levantando-se, Ivan inverte as
posições de nossos braços e me ergue sem dificuldade, mantendo as duas
mãos em meus cotovelos. Seu toque é fraterno na minha pele e não sinto o
impulso de repeli-lo. — Somos irmãos e nossos laços não são frágeis, então
pare de se preocupar.
Não adianta, ele não vai me dar ouvidos ou validar meus receios.
Ivan tem sua própria perspectiva da situação e, estranhamente, não me
enxerga como a causadora de todos os infortúnios pelos quais Andrei
provavelmente está passando.
— Eu só não quero que ele sofra mais — explico, abrindo uma
fresta do meu coração para que ele consiga espiar os meus sentimentos mais
sinceros. — Confesso que o trabalho no abrigo me ajuda a não pensar o
tempo todo, a me distrair da realidade e esquecer, mesmo que brevemente,
que não o tenho mais ao meu lado. Mas sempre que uma brecha aparece,
não consigo evitar de me perguntar se ele tem dormido ao menos um pouco,
se está se alimentando direito ou se continua bebendo demais.
A sombra de um sorriso passa pelo rosto de Ivan, mas é rapidamente
apagada por uma expressão melancólica. Ele me solta e cruza seus braços
musculosos, olhando-me como se buscasse por respostas em uma tela
abstrata.
— Não está com raiva?
— Raiva? — Não faço ideia do que ele está falando.
— Do meu irmão — diz, mas ainda não compreendo. Ele deve
enxergar a confusão em meu rosto, pois suspira novamente e explica: — Do
seu ponto de vista, Andrei escolheu defender o homem que a machucou de
maneiras que não consigo mensurar. Ninguém a julgaria se nunca mais
quisesse ouvir falar dele.
O dedo magro de uma brisa gélida acaricia a minha coluna e se
perpetua no vácuo do meu coração. Sei que preciso me acostumar com a
ausência de Andrei, mas ser privada de sua existência, de nossas memórias
juntos, como se o amor que sinto por ele não passasse de uma canção
esquecida no tempo, não é uma alternativa que eu goste de imaginar. Prefiro
sofrer com sua perda do que perder a história que vivemos juntos.
— Não foi assim — digo, olhando para a copa dançante das árvores
e suas poucas folhagens. — Realmente, o homem que viveu comigo por
dois meses sumiu em um piscar de olhos e me vi diante de uma versão
frígida e inclemente do meu salvador, só que… Você não quer que eu me
sinta culpada, mas eu continuei caminhando em direção ao penhasco
mesmo sabendo que seu irmão estava seguindo os meus passos. Eu o
obriguei a pular junto comigo, e prefiro me acusar assim a acreditar que seu
caráter era uma mentira.
Se ele me mostrou o seu lado ruim, é porque se viu diante do meu
primeiro. Eu escondi dele a verdade. Como não me culpar?
Fecho as pálpebras com força e mordo meu lábio inferior,
pressentindo o derramamento de um choro há muito reprimido. Desde que
Ivan me trouxe para sua casa, abstive-me do direito de expelir o meu
sofrimento, eu o deixei guardado dentro de mim como um parasita vivo. E
ele continua se alimentando às minhas custas e crescendo sem governo.
Mastigando. Engolindo. Rindo de mim a cada mordida.
Talvez eu esteja me punindo, talvez eu só não saiba como lutar
contra ele ou tenha me acostumado a ser devorada em silêncio, mas
independente do motivo, não aguento mais.
— Eu não... eu só... estou tão cansada — confesso e, simples como
o girar de uma chave, o resto vem em seguida, uma lágrima por vez. — Não
é justo — soluço. — Não é justo…
Cubro meus olhos com as mãos e continuo repetindo as três
palavras. Não é justo. Elas vêm de um lugar muito distante, de um passado
cheio de cicatrizes, de uma infância com mais regras, cobranças e abusos do
que afeto, de um casamento baseado em violência, submissão e medo.
De um eco.
O eco de um sentimento que não sei como arrancar de dentro de
mim.
— Venha aqui. — Ivan me puxa para seu peito e me abraça com
cuidado. O fantasma de Yerik não aparece para me repreender e meu corpo
não estranha a proximidade dele, como se o conhecesse e soubesse que
preciso de seu alento. — Pode chorar o quanto quiser — diz me embalando
—, já não era sem tempo.
Deixo as lágrimas seguirem seu curso. O que antes era um simples
choramingo, assume a forma de um pranto triste e audível. Ivan não diz
mais nada, ele me deixa encharcar sua camisa enquanto o silêncio ao nosso
redor engole o som do meu choro.
Eu me sinto perdida e com saudades de Andrei todos os dias. E a
pior parte não é o seu desaparecimento, mas sim essa sensação de estar
caminhando sobre pedras pontiagudas em um labirinto, andando e andando
sem nunca chegar ao outro lado enquanto meus pés são perfurados.
Ingenuamente, pensei que alguma força maior — divina, talvez —
garantisse um equilíbrio justo nas consequências para aqueles que pecam,
que existisse uma hierarquia, ou que, no mínimo, boas intenções não
enchessem o inferno. Mas esse foi só mais um dos meus pensamentos
bobos.
Não é justo que pessoas como Yerik saiam vitoriosas das
atrocidades que cometem, e nem que um bebê tenha a sua vida atrelada à de
um monstro por um erro de sua mãe. Não é justo encontrar o tipo de amor
que sonhamos a vida inteira só para vê-lo queimar diante de nossos olhos
um momento depois.
Nada disso é justo.
Mas agora, eu já aprendi a minha lição.
O mundo não se importa com a justiça e a balança do bem e do mal
funciona com pesos diferentes para cada tipo de pessoa. Quanto dinheiro
você tem, o que carrega entre as pernas e até o tom da sua pele são, na
grande maioria das vezes, mais determinantes que ações ou palavras.
Sentimentos valem menos ainda. Não é só sobre quem somos, mas o que
temos a oferecer ou o que podem arrancar de nós a força. E sinto falta das
minhas partes que foram roubadas.
Ironicamente, enquanto choro por ser incapaz de suportar a dor, tudo
o que mais desejo é ser mais forte. Eu tenho que ser.
Ivan está certo, há muitas inseguranças enraizadas em meu
subconsciente, tenho uma predisposição a sempre manter os olhos
abaixados, e também não sei como me defender de pessoas cruéis. Mas não
quero continuar vivendo com medo, à espera do momento em que tudo
cairá em ruínas ao meu redor.
Quero ser capaz de lutar pela minha felicidade e me tornar alguém
de quem meu filho se orgulhará no futuro.
Não posso mais esperar por justiça.
Então, da próxima vez que eu tiver a chance de lutar pelas pessoas
que são importantes para mim, de viver um amor pleno e verdadeiro e
realizar os sonhos inocentes que guardo comigo, eu a agarrarei com as
minhas próprias mãos e não permitirei que ninguém arranque isso de mim.
Ainda não sei como, mas eu vou descobrir.

***

Entro na mansão por uma porta nos fundos, esperando passar


despercebida depois de chorar dez litros nos braços de Ivan, como uma
criança sem pais — o que não está distante da realidade. Mas percebo meu
equívoco assim que duas cabeças giram na minha direção, encerrando a
conversa que estavam tento animadamente antes da minha chegada.
Preciso me lembrar que os Volkiov usam a cozinha com uma
frequência atípica para pessoas tão ricas, sobretudo Roman, que entra e sai
sem dar satisfações a ninguém; e a cozinha é o caminho mais rápido e
discreto para se chegar à garagem.
No entanto, acho que ele não tem planos de sair agora, ou não
estaria vestido com uma calça de pijama preta estampada com estrelas
brancas, sem nada na parte de cima do corpo além de suas tatuagens. Em
comparação aos irmãos, Roman tem o porte físico mais robusto, seus
ombros são mais largos e ele possui trejeitos de um predador.
Honestamente, não tivemos a chance de nos aproximarmos a ponto
de me sentir confortável com a sua seminudez, então o calor do
constrangimento me assola assim que enxergo os padrões marcados com
tinta preta em suas costas. São padrões assustadores e lindos ao mesmo
tempo.
Ao seu lado, Serena está sentada com as pernas cruzadas, usando
shorts curtos e uma blusa vermelha que exibe um laço chamativo no busto.
Seu cabelo longo e ondulado cai como uma cortina até a cintura, e brincos
perolados pendem de suas orelhas. Ela sorri ao me reconhecer e seus olhos
me lembram os da pequena Luna, amendoados e com longos cílios escuros.
Ela é linda.
— Tudo bem com você? — Roman pergunta, franzindo as
sobrancelhas.
Será que ele percebeu que estive chorando? Espero que não.
— Ah… hum… — gaguejo. — Seu irmão, Ivan, me pediu para não
ficar sozinha perto da piscina. Eu não queria interromper.
Noto que há um kit de primeiros socorros sobre o balcão, e o olho
direito de Roman parece algo saído de um filme de luta livre. Serena não
está fazendo um bom trabalho com os curativos.
— Você está muito ferrada.
Olho para ele, tentando entender a origem de sua afirmação. Estou
ferrada de muitas maneiras, a qual delas ele se refere? Quem esclarece,
porém, é Serena.
— Ivan é um pouco… demais. Quando chega a uma conclusão, ele
a assume como verdade absoluta. Pelo visto, ele decidiu que, na ausência de
Andrei, é o responsável por você.
— E acredite — Roman acrescenta —, meu irmão sabe como ser
um maluco teimoso e obsessivo quando quer. Ele não vai te deixar em paz.
— Vocês quatro são malucos teimosos. — Serena cutuca o corte em
seu supercílio com um algodão e Roman faz uma careta de dor.
— Já deu uma boa olhada no espelho, bebê? Da última vez que
conferi, você ainda era a pior do bando. Os fios brancos na cabeça de
Vladimir têm a sua assinatura.
— Engraçado, não foi você que avisou ao seu irmão de que ela
estava perambulando sozinha lá fora, para começo de conversa?
— Acontece que ela está grávida e passou por um grande estresse.
— Roman aponta para mim. — E deveria ficar de repouso. Mas é claro que
minha terceira cunhada seria tão descuidada quanto as duas primeiras. Até
parece que um homem como eu teria um pouco de paz!
Olho de um para o outro, achando a dinâmica engraçada, mas sem
saber como reagir, já que estão falando sobre mim. Se eu sair de fininho,
eles vão perceber?
— Vladimir mandou darmos um pouco de espaço a ela para se
acostumar.
— O presidente é um bastardo hipócrita. — Roman tenta virar o
rosto, mas Serena o segura com firmeza e continua tentando limpar o
sangue. — Ele tem essa mansão inteira sob vigilância.
— Não conte comigo para defender o meu marido. Ele precisa se
sentir no controle o mesmo tanto que precisa de oxigênio para respirar. —
Olhando para mim, ela diz: — Quer um conselho? Não pule as suas
refeições ou esqueça de tomar as suas vitaminas se não quiser uma visita
surpresa de Vladimir no meio do seu horário de trabalho.
Como não sei se estão exagerando ou falando sério, concordo com a
cabeça.
— Não pule as suas refeições se não quiser uma visita minha. —
Roman me lança um olhar ameaçador, examinando-me dos pés à cabeça.
Resisto à vontade de me encolher ou sair correndo. — Está magra como um
graveto, se eu não soubesse que está grávida, nunca acreditaria. Ivan tem
dois olhos na cara, tenho certeza que concorda comigo.
Acho melhor não comentar que ganhei alguns quilos morando com
Andrei. O que eles diriam se me vissem antes?
— O médico disse que estou bem — digo para tranquilizá-lo.
Serena ri sem desviar os olhos do rosto machucado de Roman, que
continua se contorcendo e reclamando.
— Nem perca seu tempo explicando — ela diz. — Não ouviu a
parte em que eu disse que eles são todos malucos? Você vai se acostumar
com o tempo. Agora, sobre Ivan, ele está com medo que você vá embora.
Digamos que ele não é muito bom lidando com perdas e teme que Andrei
acabe estragando tudo.
Eu que estraguei tudo.
Aproximo-me dos dois com passos cautelosos. Serena e eu temos
passado bastante tempo juntas desde que comecei a trabalhar no abrigo,
porém, evito encarar o torso de Roman, que possui outra variedade de
tatuagens estampadas em seus músculos do peito — vejo lobos de relance,
ou alguma outra espécie canina e selvagem.
Combina com ele.
— Prometi que vou esperar por enquanto. — Sinto minha garganta
secar, repentinamente apreensiva com o que dirão a respeito, mas ambos se
comportam como se não fosse nada demais.
Como se já esperassem a minha permanência em suas vidas.
— Ótimo. — Roman me olha de soslaio e dá um sorriso torto,
mostrando um canino proeminente. Nesse momento, Serena pressiona sua
testa com outro algodão encharcado. — Ai! Você quer arrancar o meu olho,
porra?
— Cala a boca! Se você parasse de arrumar confusão por aí, não
precisaria passar por isso toda vez.
— Ahn, posso ajudar se quiser — ofereço sem pensar demais.
Serena não faz ideia de como limpar o corte e, se continuar assim,
vai acabar infeccionando. É uma chance de retribuir um pouquinho do que
venho recebendo também.
— Tem certeza? — ela pergunta, e não deixo de reparar em seu tom
esperançoso. Engulo em seco e faço que sim com a cabeça. — Maravilha!
Vou aproveitar para ver se a Tatiana precisa de ajuda com as crianças.
Assumo o lugar de Serena, que desaparece na mansão, e percebo
tardiamente que agora estou sozinha com Roman. Não posso voltar atrás.
Sento-me diante dele um pouco nervosa e preparo uma solução para limpar
a ferida. Ao olhar para cima, ele está me encarando com uma expressão
suspeita.
— O que foi? — pergunto, superconsciente de sua proximidade.
— Estava pensando que seria divertido fazer um pouco de ciúmes
no meu irmão, mas você tem essa coisa meiga que me leva para a direção
contrária. Se a teoria de Vladimir estiver correta, ele já deve estar sofrendo
o bastante.
Meu corpo traidor reage ao seu elogio indireto e minhas bochechas
esquentam. Apesar do que disse, Roman mostra mais de seus dentes,
ampliando o sorriso ferino. Seus olhos verdes são diferentes de tudo o que
já vi na vida, com rajadas de azul-ciano idênticas a um raio cortando o
oceano ao meio. São os olhos de alguém que não tem medo de nada.
— Andrei não sentiria ciúmes do próprio irmão — digo, sem
convicção, iniciando uma limpeza decente em seu rosto. Alguém lhe
acertou um bom golpe.
Meu argumento arranca uma risada dele.
— Tudo bem, se é o que acha… — Deixa a possibilidade em
suspenso e estica o pescoço para facilitar meu acesso.
O brilho travesso em seu olhar continua intacto. De perto, consigo
identificar com clareza um lobo tatuado em seu peito, junto com outro
animal, uma raposa talvez, mas não encaro por tempo o suficiente para ter
certeza.
A cozinha é imensa e moderna, mas Roman tem a habilidade de
tornar qualquer ambiente pequeno com sua presença. Diferente de Ivan, não
consigo ficar totalmente confortável perto dele, porém, não sinto medo ou
qualquer coisa parecida, apenas uma inquietação duvidosa. É uma sensação
interessante, pois nunca sei o que esperar quando estamos no mesmo
cômodo.
No passado nada distante, quando eu não me permitia abrir novas
portas, eu o deixaria de fora, mas se quero mudar, posso começar aos
poucos, destrancando uma fechadura por vez. Roman é alguém que merece
esse esforço.
— Quem bateu em você? — pergunto, achando o tópico pertinente
para iniciar uma conversa.
É um tópico horrível.
Felizmente, a expressão de Roman continua descontraída.
— Como sabe que alguém me bateu? Eu posso ter sofrido um
acidente.
— Eu sei reconhecer um soco quando vejo um. — Não era para soar
como uma piada autodepreciativa, mas agora é tarde.
O sorriso de Roman desaparece, ele segura meu pulso, obrigando-
me a parar com o tratamento. A princípio, não diz nada, apenas me encara
com um oceano de compreensão raivosa, e as profundezas de seus olhos se
comunicam comigo em silêncio, oferecendo um consolo primitivo.
Fico tentada a me levantar e sair correndo quando meu corpo
estremece, confuso com a energia violenta que emana dele, mesmo que não
esteja direcionada a mim. Eu sei que se continuar obedecendo às marcas
invisíveis que Yerik me deixou, nunca serei livre de verdade, então controlo
a fagulha de ansiedade recém acesa e espero enquanto Roman lida com seus
próprios pensamentos.
Uma porta de cada vez.
— Quer saber como eu consegui isso? — Ele aponta para si mesmo,
indicando a testa lesionada. — Eu virei as costas para o mundo e decidi
escrever minhas próprias regras. E revidar está entre as regras mais
importantes. Se me batem, eu bato de volta dez vezes mais forte, se
ameaçam a mim ou a alguém que amo, eu devolvo a ameaça colocando-a
em prática. Se me roubam, eu tomo tudo deles até não restar nada.
A potência de suas palavras não deixa margens para dúvidas,
Roman faz o que quer e conquista aquilo que deseja, exterminando
quaisquer problemas que ameacem entrar em seu caminho. Não somos
feitos do mesmo material, na verdade, talvez sejamos como água e óleo,
insolúveis, incompatíveis, incomparáveis, mas, assim como a ciência possui
suas exceções, talvez não seja impossível encontrar um elemento que nos
conecte.
— Como? — pergunto. Roman me liberta e volto a cuidar de seu
rosto para manter minhas mãos ocupadas e entregar pouco do meu
nervosismo. — Eu não sei como ser forte assim.
— Você acha que é fraca? — Ele volta a relaxar e solta uma risada
sarcástica. — Ensinaram você a apanhar contra a sua vontade, docinho, não
só fisicamente. E isso é uma droga fodida que me deixa puto. — Por um
segundo, seu olhar volta a ficar sombrio. — Mas aprender a apanhar é a
metade ruim de saber como dar uma boa porrada. Uma porrada metafórica,
é claro. Existe uma grande diferença entre estar frágil e ser fraca, lembre-se
disso.
O que ele diz crava um ponto de interrogação gigantesco na minha
cabeça e fico feliz por ter gastado meu choro com Ivan, ou abriria o berreiro
agora. Ele disse que não… sou fraca? Aos meus ouvidos, soa como notas
musicais, mas preciso de tempo para refletir e me acostumar com essa nova
perspectiva.
Permito-me um breve sorriso e coloco uma pequena bandagem em
seu ferimento, fechando-o com esparadrapos.
— Que pena — digo gentilmente —, aposto que dar um gancho de
direita não metafórico também tem as suas vantagens.
— Com essas mãozinhas pequenas? — Ele segura meus dedos
curtos e franze os lábios, mas sei que está brincando. — Talvez nem tanto.
Fico surpresa que tenha percebido. Ao mesmo tempo, recordo-me
de Andrei medindo nossas mãos e continuo tagarelando, querendo substituir
a sensação nascente de melancolia por qualquer outra coisa.
— E se você me ensinasse? — Não estou falando sério, mas a
expressão de puro horror no rosto de Roman indica que ele não entende o
meu humor.
— Quer que eu ensine golpes de luta a uma mulher grávida?
— Autodefesa talvez? — continuo, achando divertido provocá-lo.
Roman, apesar da aparência truculenta, tem um lado extrovertido que reina
em sua personalidade.
Ele aponta o dedo indicador para o meu nariz.
— Se eu fizer isso, e não estou dizendo que vou, Andrei vai querer
cortar as minhas bolas com um canivete cego. — Seus olhos brilham de
empolgação, o sorriso se amplia, destacando os dois caninos pontudos. Ele
me lembra um lobo solitário e indomesticável. — Porra! Eu topo pra
caralho, docinho.
Sorrio contidamente. Parece que provocar o irmão é mais
importante do que o seu excesso de zelo.
Mas, espera, ele disse que aceita?
Abro a boca para negar e esclarecer que estava brincando. No
entanto, por que eu deveria fazer isso? Ocupar-me com algo além do
trabalho pode ser uma boa saída para preencher meus dias enquanto estou
na mansão, ao invés de vagar pelos corredores como um fantasma.
Uma fechadura de cada vez… certo?
— Ok — digo por fim. Seus lábios se abrem em um sorriso
diabólico e começo a duvidar da minha inteligência. — Então… acho que
você vai ficar bem agora.
Roman toca o curativo recém feito com os dedos.
— Você é boa nisso.
Concordo, balançando a cabeça, e depois sorrio.
Quando se faz muitas visitas ao hospital, as pessoas começam a
fazer perguntas. Era mais fácil aprender o básico e cuidar dos meus próprios
ferimentos. Mas não conto essa parte — algo me diz que não preciso, ele já
sabe.

***
Não consigo pensar em uma melodia caótica o bastante para
representar a minha atual situação. Se existe algum som que talvez chegue
perto de uma comparação literal, deve ser o de um trem descarrilando ou de
dois meteoros se chocando no espaço.
— Abra as pernas um pouco mais, docinho. — Roman confere a
minha postura e começo a entender de quem Andrei herdou o hábito de
dizer frases com duplo sentido. Se percebe meus olhos se arregalando, não
demonstra. — E mantenha os joelhos flexionados.
Timidamente faço como ele manda.
— Assim?
— Perfeito! Agora, mostre do que você é capaz. — Ele estufa o
peito. — Tente me acertar.
— Quer que eu te soque?
Ele não deve estar falando sério.
— Com toda a sua força.
Meu Deus, é muito sério!
— Eu n-não — gaguejo — quero machucar você.
No canto da academia, à minha direita, Ivan solta uma gargalhada.
Quando ficou sabendo que Roman me ensinaria um pouco de defesa
pessoal, ele não ficou muito feliz, mas acabou cedendo depois que
concordamos com a sua condição de supervisionar o treino de perto. E
prefiro que esteja aqui, sinto-me menos nervosa.
— Machuque ele, eu imploro! — Ivan pede, e não acho que esteja
brincando.
Roman faz um sinal obsceno com seu dedo médio para o irmão mais
velho antes de voltar a me dar instruções.
— Gosto que pense em si mesma como alguém capaz de me
machucar, continue assim e não se preocupe comigo. Sou mais resistente do
que imagina.
Ele dá dois tapinhas no abdômen e meus olhos descem direto para
aquele ponto, que felizmente não está exposto como ontem. Roman
combina com roupas despojadas, sua camiseta com detalhes rasgados tem
um aspecto surrado, mas nele parece uma tendência bem aplicada de moda
casual. Junto com a calça e o tênis de corrida, ele parece um personagem de
romance contemporâneo.
Um badboy, mais especificamente.
Olho de soslaio para a saída, uma porta dupla de vidro que mostra o
céu ainda escuro lá fora — todos concordamos que seria bom treinarmos
antes do trabalho, uma decisão que começo a questionar internamente —,
mas o Sol deve nascer a qualquer momento e fugir não é uma opção.
— Tudo bem — digo, deixando meus receios de lado. — Aqui vou
eu.
Preparo-me para o golpe e fecho meus punhos. Não sei bem o que
fazer ou onde mirar, mas sinto a adrenalina pulsando em meus ouvidos. Nos
filmes de ação, o rosto do adversário é sempre o alvo principal, por isso
decido seguir o exemplo. Como ele é alto, encaro seu nariz, respiro fundo, e
jogo meu punho para cima.
Por um segundo, tenho a ingenuidade de acreditar que vai dar certo,
mas é claro que Roman se defende. Com maestria, ele intercepta o golpe e
agarra meu pulso… o resto não consigo processar, mas termina comigo de
costas para ele, com o braço torcido em um ângulo estranho, sem conseguir
me mexer.
— Um a zero para mim — diz no meu ouvido. Graças à agitação da
atividade, consigo disfarçar o meu rubor incontrolável. — Primeira regra:
se o seu oponente é mais forte e maior do que você, mire em seus pontos
fracos. Começando pelo meio das pernas, se for um homem. Sempre tente
primeiro as bolas, mas um soco bem dado nas têmporas, pescoço ou
mandíbula pode nocautear uma pessoa mesmo que não use toda a sua força.
— Ah, certo.
Faz sentido.
— Você é pequena e só tem pele e osso, então a opção mais
inteligente é focar no pescoço — continua. — Mas nosso objetivo hoje não
é o ataque, e sim a defesa. — Roman solta o meu braço, mas me agarra
pelos ombros. Sinto seu peito rígido nas minhas costas e repenso se preciso
mesmo aprender tudo isso. — Tente escapar.
Vejo que Ivan nos observa como um falcão, e sei que vai interferir a
qualquer mínimo sinal de desconforto que eu demonstrar. Porém, estou
determinada e, de certo modo, empolgada por aprender algo novo depois de
tanto tempo — também não quero decepcioná-los.
Mas escapar de Roman é algo que beira o impossível. Tenho certeza
de que não está usando dez por cento de sua força e, ainda assim, seus
bíceps parecem rochas maciças. Ele é forte demais, grande demais,
habilidoso demais. Não consigo fazer nada além de me debater como um
peixe ao sentir a agulha da ansiedade pressionando minha frágil bolha
emocional.
Sinto a sombra das mãos de Yerik no meu pescoço, a recordação
sempre presente da última vez em que fui imobilizada, e meu corpo começa
a tremer enquanto luto para me libertar — dele, da lembrança —, mas assim
como naquele dia, não consigo respirar.
— Poupe suas forças. — Ouço Ivan dizer, e tenho a impressão de
que há uma vibração diferente em seu tom de voz, como se estivesse se
contendo ou rangendo os dentes. — Assim vai se cansar muito rápido.
Mantenha o controle, concentre-se e inspire devagar.
Agarro-me às suas instruções como um náufrago à sua jangada, e
começo puxando o ar com calma. Funciona, meu cérebro para de girar e
meus músculos dos braços param de se comportar como gelatina.
Certo.
É Roman atrás de mim, não Yerik. Eu não estou em nosso quarto e
nem fazendo algo de errado. Ninguém vai me machucar e não corro risco
de vida. É Roman, não Yerik.
— Vocês — consigo dizer, grata a Ivan por interceder a meu favor
— são todos especialistas em técnicas de luta?
— Não deixe Ivan enganar você — Roman resmunga, impaciente.
— Ele não é tão racional quanto parece, aliás, pode ser muito
temperamental às vezes, mas está certo sobre manter o controle nesse tipo
de situação. Se gastar sua energia esperneando sem rumo, ficará vulnerável
mais rápido. Use a cabeça.
Seu jeito de falar, como se tudo para ele fosse óbvio, meio que me
irrita um pouco.
— Pensei que fosse me ensinar — deixo escapar, e só percebo
minha rispidez quando ele joga a cabeça para trás e ri de mim.
— Ouviu isso? — pergunta a Ivan, que também dá uma risadinha.
— Vai ganhar um ponto extra pela coragem, docinho. Mas eu já disse o que
fazer: use a sua linda cabeça.
Graças aos céus Roman não pode ver o meu rosto, e com sorte
também não será capaz de sentir o calor da vergonha em minha pele. Ele
espera que eu use literalmente a minha cabeça? Bem, não deve ser
impossível, já que está curvado sobre mim, com o queixo praticamente
colado no meu ouvido, mas se tentar se esquivar, com seus trinta ou
quarenta centímetros a mais, eu parecerei uma tola saltitante.
Mas não seria justo desistir agora. Consegui enfrentar um dos meus
maiores receios, de estar aqui sozinha, com dois homens que não são meus
irmãos ou marido… ou Andrei. Consegui passar pelo nervosismo inicial e
não recuar a cada vez que Roman me segura para dar um simples comando.
Consegui me divertir com os dois. Eu consigo dar um simples pulo e
parecer desajeitada se precisar!
Olho para Ivan, que acena com a cabeça, encorajando-me, e penso
ver algo mais em sua expressão. Fé? Não sei, acho que ele parece acreditar
em mim.
Pelo menos um de nós acredita.
Preparo-me para a tentativa, inclinando o pescoço para frente a fim
de ganhar distância antes de aplicar o golpe, no entanto, as duas portas da
academia se abrem e Lara entra com pressa, meio descabelada, usando um
robe de veludo rosa-claro, como se tivesse acabado de acordar de um sono
ruim. Atrás dela, as nuvens já começam a se tingir de laranja, vermelho,
amarelo e roxo, anunciando o início da alvorada.
— Aconteceu alguma coisa? — Ivan pergunta, já a meio caminho de
alcançá-la, notando sua feição apreensiva.
Ela não responde de imediato, primeiro olha para Roman de cima a
baixo, processando a cena de seus braços ao meu redor, meu corpo
paralisado e nossas roupas de treino, em seguida, fixa os olhos castanhos no
marido.
— Você sabe que seu irmão não vai gostar nem um pouco disso, né?
— Ela não lhe dá tempo de responder. — Ele disse que precisa falar com
vocês urgente.
— Tudo é urgente para o presidente — Roman diz, afastando-se de
mim. Mesmo sem ver, sei que revira os olhos.
Lara morde o lábio inferior antes de dizer:
— Não estou falando do Vladimir, Andrei acabou de chegar, está
esperando no escritório e não parece nada bem.
24
Anastasia
MEUS SENTIDOS SE inclinam em busca de resquícios que comprovem a
presença dele, uma brisa carregando o seu perfume almiscarado com a
lembrança de algo etílico, ou o sibilar baixo da risada que ele emite sempre
que sua mente se enche de pensamentos secretos.
Ao mesmo tempo, porém, sei que não adianta me esforçar atrás de
rastros que podem não passar de brincadeiras feitas pela minha mente. Já
perdi a conta de quantas vezes sonhei que estava em seus braços, para no
fim ser jogada de volta à realidade dura e fria de sua ausência.
Encaro meus pés, tendo a certeza de que continuam se movendo
pelo corredor, e a cadência dos meus passos é o único som remanescente na
mansão silenciosa. Achei que conseguiria me recompor enquanto substituía
o suor do treino pela água quente de um banho rápido, e as roupas justas
por um vestido longo e confortável — inconvenientemente branco —, mas
nem os minutos de um milênio seriam suficientes para acalmar a balbúrdia
orquestrada por meus sentimentos antagônicos.
Quero vê-lo tanto quanto não quero, pois o limbo da eterna
ignorância nos mantém seguros da decepção, e as notas suspensas entre os
acordes sempre foram as minhas favoritas.
Vejo que Ivan está me esperando na frente da porta e sua presença
acalma minhas dúvidas como um sopro de calor após um inverno árduo.
Suas roupas de academia deram lugar a um terno vermelho-escuro que lhe
cai incrivelmente bem. Quando percebe a minha aproximação, os cantos de
sua boca se curvam em um sorriso que não alcança os olhos, e assim que
paro diante dele, recebo um afago no alto da cabeça — um hábito que
acabou se naturalizando entre todos os irmãos de Andrei.
É bom e reconfortante, eu gosto disso.
— Ei — Ivan diz baixinho, induzindo-me a levantar o rosto — tudo
bem aqui embaixo?
Sigo a direção de seu dedo indicador, que aponta para a minha
barriga. Minha mão está pousada sobre o meu ventre, mas ao contrário do
que parece, não estou tentando proteger o meu bebê, e sim buscando a sua
proteção.
Sua força.
Acho que balanço a cabeça positivamente. Não tenho certeza.
Talvez eu esteja apenas olhando apaticamente para a porta, com o estômago
dando voltas.
Andrei está lá dentro, perto, tão perto.
— Pare de sofrer por antecedência. — Ele tenta colocar um pouco
de ânimo na voz. — Lembre-se do que conversamos, vamos ouvir o que ele
tem a dizer, está bem?
Fico agradecida quando Ivan não espera mais uma resposta; eu não
saberia o que dizer. Ele também me faz o grande favor de indicar o
caminho, conduzindo-me para dentro do escritório com o braço apoiado ao
redor dos meus ombros. Sinto-me como um brinquedo de corda que precisa
de alguém responsável para girar a chave nas minhas costas, e admito que,
dadas as circunstâncias, minha passividade é a menor das minhas
preocupações.
Porque nada mais importa assim que o vejo.
É como mergulhar e ser capaz de respirar embaixo d’água, ou fechar
os olhos antes de pular da montanha mais alta com os braços abertos para
sair voando com tranquilidade entre as nuvens. É aquela última vírgula
antes do ponto final que nos faz perceber o valor da ótima história que
acabamos de ler; os aplausos que se prolongam por vários minutos depois
que as cortinas se fecham; ou o sono sem sonhos ou pesadelos que descansa
a nossa mente de todos os problemas.
A existência de Andrei dá sentido ao amor assim como a morte dá
sentido à vida através de uma consciência fatalista da finitude, e eu
acredito, de um jeito lindamente triste, que nenhuma outra relação
combinaria tanto comigo.
Seus olhos não entregam nada do que está pensando, mas procuram
os meus assim que ele percebe a minha chegada, interrompendo a conversa
sussurrada que estava tendo com Lara no meio do escritório. Há uma barba
escura preenchendo seu maxilar, e pela irregularidade dos fios, suspeito que
não tenha cuidado muito bem de si nos últimos dias. Talvez seja apenas
impressão da minha parte após tantos dias sem vê-lo, mas ele parece um
pouco mais magro também.
O que me preocupa, porém, são as ataduras em sua mão direita.
— O que aconteceu? — pergunto, esquecendo de qualquer outro
assunto que tenhamos para resolver.
Ele está ferido, existe algo mais importante do que isso?
Mas Andrei somente me encara, preso em algum tipo de transe,
como se não acreditasse que a pessoa diante dele é real. Como se eu fosse
um sonho, uma ilusão. Minhas pernas ameaçam assumir o controle e
reduzir a distância de poucos metros que nos separa, mas aceito a contenção
dolorosa de reconhecer o meu lugar.
Acho que não sou mais alguém com permissão de abraçá-lo
livremente.
— Vocês dois têm muito o que conversar — Lara diz, cortando a
conexão que nos transcende. Seu tom empático, a leveza de suas palavras e
o modo como olha para Andrei, são provas do grande carinho que nutre por
seu melhor amigo. — Se quiserem ficar sozinhos…
Ivan a interrompe quase imediatamente.
— Nada disso, nós ficaremos aqui. — Ele direciona a advertência ao
irmão, não rude ou autoritário, mas inquieto, agoniado, ansioso.
Andrei, pela primeira vez desde que chegamos, desvia o olhar,
fixando-o no rosto de Ivan, depois em sua posição ao meu lado e, por fim,
no braço apoiado em meu ombro.
— Querido — Lara repreende o marido com um sorriso forçado,
mas nada surpresa, já acostumada com embates do tipo —, você está sendo
ridículo.
— Não tem problema — Andrei diz à cunhada, sua voz soando
rouca e gasta, como se falar demandasse demais dele. — É bom que
estejam aqui, eu preciso de testemunhas.
— Testemunhas? — Roman entra na sala com todo o seu charme
ofensivo e para ao meu lado, flanqueando-me com Ivan. Ele destoa de todos
com um longo sobretudo preto e um cigarro encaixado na orelha direita. —
Planejando um crime, irmãozinho? Não se preocupe, eu escondo o corpo,
ninguém precisa saber.
Outra vez, o olhar de Andrei faz um estudo clínico da cena,
alternando entre os irmãos, mas sejam quais forem as suas conclusões, ele
não as transparece em seu rosto.
— Curioso, já que da última vez que nos vimos, Roman, você me
deu um soco.
— O que? — Surpresa com a informação inédita, viro-me para
Roman, que sorri cinicamente antes de piscar seu olho direito de forma
charmosa.
— É menos pior do que parece, docinho. — De volta ao irmão, ele
diz: — Primeiro, você mereceu e sabe muito bem disso. Segundo, guardar
ressentimentos da própria família dá azar e faz mal para o coração. E
terceiro… — O semblante maroto de Roman oscila, e seu alter ego
vilanesco, perigoso e imprudente aparece. — Estávamos preocupados,
porra! Por onde você andou? O que aconteceu? Como se machucou?
São perguntas que eu gostaria de estar fazendo.
Lara e Andrei trocam um olhar, ele faz um sinal positivo com a
cabeça, e sem que palavras sejam ditas, ela compreende o que deseja. A
postura de Lara ao atravessar o escritório demonstra elegância e firmeza, e
todos os três ficam calados enquanto pega uma pasta sobre a mesa e a
entrega ao marido, que me solta para folhear as páginas em suas mãos.
— Isso deve explicar tudo — ela diz. — Você vai gostar do
conteúdo, meu amor.
Apesar da minha curiosidade, não tento bisbilhotar enquanto Ivan
faz a leitura dos documentos que estão lá dentro. A presença imponente de
Andrei me prende em sua órbita, e simplesmente não consigo escapar, não
quero fazer nada que não envolva admirar seu rosto em busca de aberturas
para me aproximar dele.
Andrei tampouco demonstra interesse em outra coisa que não seja
eu — o que é tanto um alento, quanto desesperador. Ele ainda não disse
uma única palavra para mim.
— Andrei. — Estremeço com a entonação assombrada de Ivan. —
O que você fez?
Roman, percebendo o mesmo que eu — que há alguma coisa errada
—, pergunta:
— Qual o problema?
— São papéis de divórcio — Ivan responde. — Assinados.
Minha cabeça se move entre um e outro, tentando juntar todos os
pedacinhos de informações em um contexto plausível, porque não podem
estar se referindo ao meu divórcio com Yerik, eu o conheço como ninguém,
ele jamais assinaria. Não por vontade própria. E quanto mais penso a
respeito, menores são as minhas chances de continuar mantendo as pernas
firmes. Meu Deus…
— Deixe-me ver. — Roman pega os documentos e, sem o mesmo
cuidado de manuseio que o irmão, passa as folhas rapidamente. — Tudo
bem caçula, você venceu, eu me perdi. Não estou entendendo mais merda
nenhuma, pode começar a falar.
Mas Andrei não esboça qualquer intenção de se explicar. Ele não
quer? Ou não pode? Ou talvez… não saiba como?
Acho que consigo entender.
Também sinto o puxão insistente da linha amarrada ao redor dos
nossos corações. A linha invisível de um sentimento, outrora pacífico, que
enterramos injustamente em um campo cheio de minas terrestres. E não há
mapa, não existe um grande X vermelho marcando o local correto. Nós
estamos no centro de lugar nenhum cavando buracos, e eles nos deixam
mais perto de encontrar o sepulcro perdido do nosso amor, o mesmo tanto
que nos aproximam de uma explosão.
E talvez não haja diferença.
Talvez tudo se resuma a chamas e estrondos e arquejos, e de nada
valha o medo paralisante de nos queimarmos.
Dou um passo — um único, relutante, trêmulo e quase inconsciente
passo — à frente, e sinto todos os olhares se voltando para mim como
holofotes em um palco. Sinto a mudança brusca no ambiente, e o pesar
denso de suas expectativas pelo meu próximo movimento se solidifica no
meu estômago, mas ninguém tenta se intrometer na troca silenciosa de
olhares que eu e Andrei protagonizamos.
Eu sei que devo parecer a mesma menina deprimente e assustada de
sempre, com meus olhos cheios de lágrimas, minhas mãos inquietas se
contorcendo, abrindo e fechando sem parar por causa do nervosismo, e
minha postura cabisbaixa, tímida. Mas quanto mais o vejo, quanto mais o
enxergo, mais perto eu me sinto de casa. Da segurança de um lar.
Posso não ter muito a oferecer depois de tudo, e por mais que exista
a chance de ser rejeitada definitivamente, há uma coisa que ainda posso
fazer, uma coisa que eu deveria ter feito há muito tempo: confiar em
Andrei.
Eu confio nele.
— Andrei — digo, evocando seu nome como um feitiço antigo.
Ouço o seu arquejo antes de ele prender o fôlego, e caminho lentamente em
sua direção, sentindo as pernas trêmulas, os pés se arrastando, meus joelhos
fracos no limite de cederem. Mas eu não paro, não até alcançá-lo. Ergo o
rosto e, ignorando o embargo em minha voz, murmuro: — Um segredo
problemático por outro?
Andrei sempre se queixou de sua dificuldade em ler as minhas
emoções e pensamentos, mas agora eu sou um livro aberto. As bordas
tensas em seu maxilar se suavizam, muito pouco, e eu sei que ele entende as
entrelinhas da minha oferta: independente do que tiver a dizer, não precisa
se sacrificar sozinho.
Se eu der um pouco, e ele também, não faltará tanto a ambos, certo?
— Claro — responde com um sussurro, as sobrancelhas franzidas.
Respiro fundo, junto todas as minhas fichas e arrisco tudo, pousando
minha mão em seu peito, acima do coração, e como dois polos opostos, o
contato parece nos atrair. Unir. Fundir. Sua mão enfaixada, tão grande,
quente e forte quanto eu me lembrava, envolve a minha, segurando-a firme,
e a primeira tonelada de medos é retirada das minhas costas.
— Eu começo — digo, encorajada. — Eu estou… — Ele aperta a
minha mão mais forte, como se dizendo que tudo vai ficar bem. — Estou
grávida, Andrei.
Sei que ele já sabe, que descobriu da pior maneira, mas preciso que
ouça de mim. Devo isso a ele e ao meu bebê.
Atraído por minha admissão tardia, Andrei olha para a minha
barriga. E quando sua mão livre e saudável se movimenta sem hesitação,
pousando sobre o meu ventre com gentileza e cuidado, não consigo mais
conter minhas lágrimas.
Sim, seus olhos me dizem, eu sei e não vou recuar.
Eu sinto muito por não ter contado antes, transmito em segredo,
ciente de que agora ele pode interpretar todas as minhas camadas.
Andrei sorri. Falaremos disso depois.
— Minha vez — ele diz. Suas duas mãos me abandonam por
apenas um momento antes de envolverem meu rosto, os polegares
capturando as gotas salgadas assim que deixam meus olhos. — Eu cometi
alguns crimes na noite passada, viajei a madrugada toda e só me obriguei a
tomar um banho antes de vir direto até você porque não podia encontrá-la
parecendo um… — Ele dá um riso nasalado sem alegria. — Digamos que
eu não estava apresentável o bastante.
Não sei o que me deixa mais chocada: a informação em si, ou seu
jeito de admiti-la sem qualquer hesitação ou remorso.
— Como assim? O que você fez? Alguns crimes? Quantos? Quais?
Minha nossa, você vai ser preso?
— Sua vez. — Ele coloca um dedo sobre meus lábios, calando-me.
Exasperada, encho meus pulmões para fazer mais perguntas, mas
sua feição calma me induz a manter o controle, apesar dos meus olhos
arregalados e minha mente aos giros.
— Ahn, eu… — Não consigo pensar em nada profundo depois da
bomba que ele acaba de jogar em meu peito, então balbucio a primeira
coisa que me ocorre: — Tenho alergia a frutos do mar.
Andrei arqueia as sobrancelhas.
— Muito problemático de fato. — A promessa de um sorriso brinca
em seus lábios.
— Fique grato por eu não ter desmaiado ainda — reclamo, e estou
falando bem sério.
Sutilmente, Andrei se aproxima, passa um braço pelas minhas costas
e me ampara com a própria força. Seu corpo se comunica com o meu,
garantindo que jamais me deixaria cair, e sem demonstrar resistência, meus
músculos relaxam, deixando-se envolver em sua proteção.
— Está assustada com o que eu disse? — questiona, falando baixo
em meu ouvido, uma nota mais grave que o comum.
O que ele quer saber de verdade é se estou com medo de sua
confissão, com medo dele, e não penso duas vezes antes de negar.
— Nem um pouco, mas se me perguntar se estou preocupada com
você, a resposta será diferente.
Sinto-o exalar de alívio e me preparo, ou tento, para mais um de
seus segredos muito, muito, muito problemáticos. Encosto meu rosto em
seu peito, inalando o cheiro de sabonete e roupas novas, e me aconchego
tanto quanto possível em seu torso, sentindo a rigidez definida dos
músculos por baixo da camisa.
— Naquele dia — Andrei começa, elevando o volume da voz — eu
tive que fingir não conhecê-la, não me importar com você, fingir que não a
amava com a força de cada batida do meu coração, para que aquele
desgraçado não me usasse contra você. Se nosso relacionamento fosse
revelado naquela circunstância, seria uma enorme vantagem para ele. Sua
única chance… nossa única chance, era longe dos tribunais.
— Espera, então ele… — Sinto que vou vomitar. — Sabia sobre nós
dois?
Andrei aquiesce e me abraça mais forte.
— Ele tentou nos manipular para ficarmos um contra o outro.
Demorou um pouco, mas agora eu tenho tudo o que preciso para mantê-lo
longe de você.
Acho que entendo, uma parte de mim processa e arquiva tudo o que
ele diz, e faz sentido, mas sei que precisarei de algum tempo para
compreender o mapa completo.
— A assinatura, como conseguiu? — Levanto a cabeça para olhar
em seu rosto. — Yerik nunca…
— Não diga o nome dele — clama, cerrando os dentes, o lado
sombrio que mantém submerso raspando as garras de leve na superfície.
Não o temo. — Ainda é muito recente — explica-se, ofegante. — E não me
sinto controlado, nem de longe. Se eu pudesse entrar na sua mente e apagar
todas as memórias das coisas que ele fez contigo, de tudo o que a fez sofrer,
princesa, eu juro que faria.
E eu o deixaria apagar tudo de bom grado.
O que ele diz me faz pensar no quanto ele sabe e o quanto é apenas
especulação. Apesar de não ser difícil presumir o quão longe Yerik já
chegou, o quão cruel ele conseguia ser, não consigo afastar a sensação de
vergonha.
— Não direi — prometo. Não há razão para negar.
Andrei respira fundo mais uma vez antes de continuar. Seu aperto ao
meu redor se abranda. Apenas um pouco.
— Eu o ameacei — diz de uma vez, e não há arrependimento em
sua voz. — Juntei provas substanciais contra ele e o obriguei a assinar. Era
a única maneira de afastar você de um confronto direto. Tive ajuda do seu
irmão.
Isso me pega desprevenida, e tal como o recuo involuntário que
procede uma dor pungente, apoio ambas as mãos em seu peito e me afasto
um pouco. O movimento brusco, contudo, faz minha visão obscurecer,
minha mente cai em um vórtice de caos e névoa, e preciso de um momento
para me recuperar.
Andrei felizmente não se move, e graças à sua firmeza continuo de
pé.
— Zayn? — Semicerro os olhos.
Ele confirma com a cabeça.
— Sua vez, okay? — É mais um pedido do que uma pergunta.
Ele já revelou o suficiente por enquanto, provavelmente mais do que
consegue suportar. Apesar de querer mais detalhes — que, eu sei, ainda
virão — tenho que seguir o protocolo. A ideia de trocar segredos foi minha.
Pelo menos agora, consigo buscar um muito mais rápido.
— Zayn e eu não… Ele não… não deveria se envolver. — Volto a
me aninhar em seu busto. — Meu irmão já sofreu demais por minha causa.
— Faço uma pausa, reunindo coragem para acessar o pouco que sei sobre
aquele dia. — No meu aniversário de oito anos, aconteceu algum tipo de
acidente grave e meu irmão foi responsabilizado. Meus pais ficaram tão
bravos, tão desapontados. Eu era um troféu, mas os dois eram apenas… —
descartáveis, não completo. — Aquilo o destruiu e também nos afastou.
Sinto uma pressão no topo da minha cabeça. Um beijo. Ele se
demora com a boca sobre meus cabelos antes de falar com certo cuidado:
— Lembra quando me pediu para conversar com a Lara? Eu fiz isso
e funcionou. Acho que devia fazer o mesmo com Zayn. No início, meu
plano era confrontá-lo, eu queria que ele sofresse por não tê-la protegido
como irmãos devem fazer uns pelos outros, mas entendi que não era o caso.
Ele escolheu me ajudar a proteger você, Anastasia.
— Meus irmãos e ele eram muito próximos. — Como prometido,
não digo seu nome. — Depois de tudo o que passamos na infância, eu não
podia pedir muito aos dois. — Meneio a cabeça, confusa. Não quero falar
demais e acabar soando egoísta ou mimada. Ou pior, ingrata. — Desculpe,
não sei o que pensar.
— Algumas dessas palavras são de Yerik, princesa, não suas. Era
mais fácil manipular você se continuasse sozinha. — Não preciso olhar em
seu rosto para saber que sua expressão faria homens corajosos
estremecerem. — Mas eu sei que Zayn tentou convencê-la a voltar sem ao
menos desconfiar dele, do que era capaz de fazer, então perdoá-lo é algo
que cabe a você decidir.
Eu não acho que seja o caso de perdoar ou não, afinal, também sou
culpada por meus infortúnios. Mas me abstenho de explicar, Andrei não
aceitaria.
E há algo mais importante.
— Mesmo com o divórcio, Andrei, meu bebê…
— Nosso — ele me interrompe.
Olho para cima, direto em seu rosto. Não sei se entendi direito.
Provavelmente não.
— Ahn, o quê?
— Irei assumi-lo como meu — diz com firmeza, olhos nos meus, as
mãos deslizando até meus ombros e seguindo para meu rosto. Minha
expressão deve espelhar exatamente como me sinto, em um misto de
surpresa e perplexidade infinitas, pois ele dá um sorriso sincero, como se
minha reação o divertisse. — Com o meu nome, Yerik nunca vai se atrever
a tomá-lo, e mesmo que tente, não vai conseguir.
Assumi-lo? Seu nome? Ele pretende… ser o pai?
Não ouso me mover ou respirar ou piscar, com medo de que alguma
reação minha destrua essa possibilidade. Porque, Deus, se existir a mínima
chance de que eu não esteja alucinando ou sonhando acordada, não posso
perdê-la. Se eu puder ser aprisionada pelo resto dos meus dias nesse exato
segundo, agora, em que a hipótese de Andrei se tornar um pai para o meu
bebê é real, então escolho essa eternidade.
— Por favor — ele pede, a voz não mais alta que um sussurro —
diga alguma coisa.
Deve ser um engano.
Eu não ouvi direito.
Estou ficando louca.
Igualmente baixo, com uma estranha sensação de afogamento, como
se a água de um oceano inteiro estivesse entrando nos meus pulmões, peço:
— Você pode repetir o que acabou de dizer?
— Eu disse — ele se curva, encosta sua testa na minha, roçando o
nariz no meu — que serei o pai desse bebê, Anastasia. Desse e de todos que
você vier a ter no futuro.
Sinto um sabor salgado na minha boca, conscientizando-me do
choro que desce pelo meu rosto em duas trilhas, mas o brilho e a
vermelhidão nos olhos de Andrei são provas de que não sou a única, de que
suas lágrimas se misturam com as minhas e compartilhamos da mesma
emoção.
— Por quê? — digo, fungando.
Ele sorri.
— Que tipo de pergunta é essa?
— Responda. — Agarro o colarinho de sua camisa. Quero ter
certeza, preciso entender. — Você disse que não queria ter filhos.
— E eu me arrependo como o inferno de ter falado isso. — Andrei
beija minha maçã do rosto, meu olho direito, depois repete o mesmo do
outro lado. Está beijando minhas lágrimas. — Estava tão apavorado com a
ideia de perder tudo mais uma vez, que preferi negar a verdade. Você é tudo
o que eu sempre sonhei, Anastasia, e eu juro que será uma honra para mim
ser o pai da criança que está carregando.
Na ponta dos pés, jogo os braços sobre seus ombros, abraçando-o
pelo pescoço. Não sei o que ele quer dizer com “perder tudo outra vez”.
Está falando de seu relacionamento anterior?
Tenho medo de perguntar. Gostaria que existisse um limite do quão
problemático os segredos problemáticos podem ser.
Deixo meu coração falar através da minha boca:
— Essa é a única fração de mim que não está quebrada. E é tudo o
que tenho a oferecer por enquanto, Andrei, o inteiro de uma pequena parte.
Andrei solta uma risada que carrega alegria e tristeza na mesma
proporção. É um som lindo, mais do que qualquer instrumento inventado
pelo homem é capaz de produzir.
— Temos um problema que está longe de ser um segredo. — Ele
respira com urgência. Vejo seu rosto ansioso com clareza, os traços
masculinos e fortes, suas sobrancelhas grossas e bem marcadas, sua boca
perto, tão perto. — Não tenho algo assim para dar em troca, não me
restaram partes inteiras. Essa é a primeira que terei para mim em muito
tempo, e vou fazer de tudo para mantê-la em segurança. Vocês duas.
Duas.
Sei que é modo de dizer, não sabemos se teremos uma menina, mas
gosto de como soa. Consigo imaginar Andrei com uma garotinha no colo,
vestida com babados e sapatinhos de boneca. Protegendo-a como um lobo.
Um pai de verdade.
O pai que ela merece.
— Minha vez — digo, absorta na hipnose da minha fantasia. —
Quero beijar você.
Andrei fecha os olhos.
Eu também.
— Não há nada de problemático nisso, princesa.
Sinto a explosão quando a gente se beija, a pressão atômica dos
nossos lábios se encontrando, e comprovo a minha teoria: não há diferença
— amor, fogo, devastação. Sua boca me consome, varrendo-me com a onda
de energia e calor que flui de sua língua em contato com a minha, e meu
corpo inteiro entra em combustão.
Em algum lugar do universo, algo volta a funcionar, uma
engrenagem que havia desistido de exercer sua função no dia em que nos
separamos, e tudo volta a fazer sentido.
É mais do que um beijo, é um reencontro de almas. Andrei me
agarra, rodeando minha cintura com os braços, meus pés perdem o apoio do
chão e fico suspensa no ar por seu abraço. Sorrio contra a boca dele e
recebo em troca uma risada da felicidade mais pura. Não conseguimos
parar, não queremos, não podemos.
Andrei parece cada vez mais ganancioso, reduzindo as lacunas para
respirarmos a quase nenhuma, como se sua vida inteira se resumisse a esse
beijo e nada antes ou depois importasse. Ele gira, rodopiando no meio do
escritório, e seu riso convida o meu.
— Como eu senti falta disso — ele diz, me dando mais um beijo
estalado —, achei que fosse enlouquecer sem você. — Outro beijo. — Meu
único consolo era saber que estava segura com meus irmãos.
E então, só então, eu me lembro que não estamos sozinhos.
Bem, pelo menos, não estávamos, pois quando olho para trás, a
ponto de desmaiar de vergonha, não há ninguém.
— Quando eles…?
— Depois de ouvirem o suficiente e antes de começarmos a nos
beijar.
Graças aos céus!
Não acredito que me esqueci completamente deles, mas esse é o
efeito de Andrei sobre mim: a hiperconsciência de nós dois como unidade
que ofusca a minha capacidade de perceber muito além. Mesmo assim, é
admirável que não tenham se intrometido uma vez sequer. Eles são mesmo
especiais.
— Isso é um sonho? — Sou obrigada a perguntar.
— Não — Andrei diz, seu olhar preso na minha boca, ansiando por
mais —, mas você, sim. Você é o meu sonho realizado, Anastasia.

***

— Pronto, com isso, você se torna oficialmente uma mulher solteira.


— Roman pega a folha que acabei de assinar e coloca junto com as outras,
dentro da pasta.
— Divorciada — Andrei o corrige. A cada minuto, tenho a
impressão de que sua paciência se esgota mais e mais. — Como você
consegue ser tão irritante?
— É um dom.
— Aposto que sim.
— Eu cuido disso. — Ivan se coloca entre os dois e pega a pasta de
cima da mesa. — Vou encaminhar para nossos advogados, você precisa de
um descanso e não podemos esperar.
Andrei não faz objeções. Eu também não. Consigo ver e sentir o
quanto os últimos dias lhe custaram física e psicologicamente. Ele escolheu
me proteger e, por consequência, se sacrificar no processo. Acho que
ninguém além de mim sabe sobre as suas dificuldades para dormir, ou que,
na maioria das noites, seus companheiros íntimos costumam ser copos e
garrafas, então me sinto na obrigação de ajudá-lo, apesar de não saber
como.
O quanto de sua postura atual é verdadeira e o quanto é apenas
fingimento? Ele viajou de tão longe, em tão pouco tempo, por que precisava
encerrar a ligação que me unia a Yerik de uma vez por todas, ou há outra
coisa vital de que necessite com urgência?
— Como está se sentindo? — ele pergunta próximo ao meu ouvido
ao notar que o estou encarando, alto o suficiente para todos escutarem,
fazendo-os focarem seus olhares em mim.
Afasto os pensamentos intrusivos e observo um por um, procurando
dentro de mim a resposta que não tenho na ponta da língua.
Lara é o pilar forte e inquebrável que mantém todos centrados, seus
olhos parecem enxergar mais longe, quase tanto quanto os olhos cirúrgicos
de seu melhor amigo, sempre atenta ao marido e aos cunhados para intervir
ou apoiar quando necessário. Ela é uma líder e espero um dia ter um terço
de sua coragem.
Roman, ao contrário, se comporta como se regesse a anarquia com
mãos de ferro. Quando nossos olhares se cruzam, sinto que minhas
próximas palavras poderiam guiar suas ações tanto para o bem, quanto para
a completa destruição de qualquer coisa que ainda me atormente.
Mas Ivan é visivelmente o mais ansioso, seu jeito de trocar o peso
do corpo entre os pés, olhando-me como se quisesse abrir a minha cabeça
para entender o que há dentro, me leva a pensar nele como uma ilha no
meio do oceano com toda a proteção e fartura que um náufrago precisa para
sobreviver.
Um amigo-irmão-pai. Família.
Também penso para além das quatro paredes que nos cercam.
Vladimir e Serena, as crianças, e Tatiana, que me abraçou em primeiro
lugar, mesmo sabendo que eu escondia segredos. Imagino-os todos e os
sinto em meu coração.
— Bem, eu acho. — Dou um sorriso tímido, pouco acostumada com
a sensação. Uno minhas mãos e as pouso sobre o peito. — Estranhamente
bem. Quer dizer, eu deveria estar aliviada ou me sentindo… livre, certo?
Mas, no momento, não sei explicar direito. É como se, graças a vocês, tudo
o que eu passei com ele não importasse tanto. Como se tê-los ofuscasse o
resto. — Graças à minha péssima escolha de palavras, sou tomada pelo
rubor. — Não que vocês sejam meus, quer dizer… apenas…
— Você nos tem. — Ivan, para minha sorte e eterna gratidão,
intercede a meu favor. — Somos a sua família, e não precisa mais olhar
para trás, e nem desperdiçar um só sentimento bom comparando o agora
com o antes.
Mas Roman, obviamente, não deixaria a oportunidade de lado.
— E você pode me ter, especificamente, sempre que quiser,
docinho.
Dessa vez, quem o repreende é Lara, com um beliscão no braço.
— Está vendo porque você sempre acaba com um olho roxo?
Roman a olha com horror, esfregando o braço, que duvido estar
doendo.
— Você já foi mais delicada, Larinha, sua convivência com a minha
mãe não está te fazendo bem, ela é um péssimo exemplo.
— Falando de mim? — Tatiana aparece, como se invocada pela
menção do filho. Apesar das roupas de dormir, uma camisola longa de
cetim azul-marinho e um robe preto de mangas rendadas por cima, ela
ostenta joias dos pés à cabeça.
— E existe mais alguma má influência nesta casa?
— Já tentou se olhar no espelho? — Andrei exibe um sorriso
mordaz.
— Eu não conto. — Roman se levanta e caminha até a mãe,
abraçando-a pelos ombros. Tatiana rola os olhos para trás, pestanejando os
cílios longos. — Quase não moro aqui desde que Vladimir assumiu o hábito
de me despachar para a Itália em toda oportunidade.
Ivan estala a língua antes de dizer, com a entonação mais
reprovadora possível:
— Ninguém mandou você beijar a mulher dele.
É a minha vez de arquejar.
Roman joga os braços para o alto, começando a se estressar.
— Já faz mais de um ano e ela que me beijou, eu apenas a ajudei a
se vingar porque o presidente estava sendo um idiota. E caso vocês não
tenham se olhado no espelho ainda, ser um idiota é um traço familiar bem
recorrente. — Na última parte de sua fala, ele direciona um olhar
significativo para Andrei, cuja mão pousada em meu ombro se contrai.
— Será que podemos mudar de assunto? — diz, ríspido. — Mãe, se
veio atrás de informações…
— Não precisa. — Ela desdenha, agitando os dedos no ar. —
Enquanto vocês conversavam, já arranquei tudo o que precisava saber do
seu faz-tudo lá fora. Aquele pobre homem merece um aumento. — Está se
referindo a Komarov, suponho.
— Ótimo, porque estamos de saída agora.
Estamos?
Andrei me ajuda a levantar, fingindo não perceber a expressão
indignada de sua mãe, o olhar preocupado de Lara, o sorriso intimidativo de
Roman e os braços cruzados, reprovadores, de Ivan. Deixo-me guiar porque
sinto que se encontra no limiar de algo que não pode falar ou demonstrar na
frente de sua família.
— Podemos continuar essa conversa outra hora — eu sugiro. Não
será bom para ninguém se começarem a discutir de novo, sobretudo por
minha causa. — Também, há algo que preciso conversar com Andrei, e
acho que seria bom fazer isso no nosso apartamento. — Espero que não
vejam através da minha desculpa esfarrapada. Andrei, cujas mãos parecem
conter imãs compatíveis apenas com o meu corpo, passa o braço pela minha
cintura e me mantém perto.
Bem, ele certamente sabe o que estou tentando fazer.
— Se é assim — Ivan diz ao irmão, as palavras soando mais brandas
—, cuide bem dela.
— E do meu neto — Tatiana acrescenta, risonha, os muitos anéis
brilhando em seus dedos conforme gesticula com as mãos. — Não vejo a
hora de saber se será menina ou menino! Até que enfim posso chamar essa
criança de neta e gastar todo o meu dinheiro com presentes.
Ela já não estava fazendo isso antes?
Sorrio contidamente. Meu bebê terá uma avó maravilhosa, e tios e
tias e primos. Quando penso nisso, a felicidade transborda de mim, mas
temo estar recebendo mais do que mereço, muito mais do que um dia
desejei, então decido ir devagar com minhas expectativas. Posso ser feliz de
pouquinho em pouquinho.
Sorrio de gratidão e não me prolongo nas despedidas, sabendo que,
se depender deles, nos veremos todos os dias. Andrei passa por Lara e beija
seu rosto, depois faz o mesmo com a mãe, e, por último, encara os irmãos
de maneira incisiva. Há um diálogo mudo entre os três, uma troca de
olhares cheia de tensão e energia masculina, pouco depois, Ivan diz:
— Colocaremos Vladimir a par de tudo.
Andrei assente e me escolta para a saída, a mão enfaixada
pressionando a minha cintura, mas Roman o chama de volta antes de nos
afastarmos demais.
— Andrei, só mais uma pergunta.
Ele olha para trás, pensativo, e indica o restante do caminho para
mim, meneando o queixo.
— Eu alcanço você em um segundo.
Faço como ele pede e sigo em frente, dobro a esquina do corredor,
mas, sem intenção alguma, consigo ouvir parte da conversa.
— Por que não nos levou junto?
Um momento de silêncio.
— Não é óbvio? — Andrei pergunta, rouco, a voz soando
monótona, desprovida de sentimentos. — Se vocês fossem, então haveria
mesmo um corpo para ser escondido.
A gargalhada de Roman ecoa pela mansão, alta e selvagem.
— Mais um motivo para nos levar! — Seu jeito de falar sugere que
está brincando, mas tenho as minhas dúvidas. Eles certamente têm poder
para ir tão longe.
Abraço meu próprio corpo, sentindo um frio repentino, mas não há
janelas abertas por perto, nem frestas por onde brisas gélidas possam passar.
Fui ensinada a cultivar valores como empatia e perdão, a ser boa — uma
boa menina, uma boa filha, uma boa esposa —, mas sinto um profundo
desespero ao me dar conta de que não me oponho à ideia de viver em um
mundo em que Yerik não exista.
Talvez, Andrei não seja o único a reprimir um lado sombrio dentro
de si.
Nada mais é dito, os passos de Andrei recomeçam e eu continuo
andando como se nada tivesse acontecido.

***

No caminho de volta, Andrei decide dispensar Komarov e dirigir ele


mesmo, então me sento ao seu lado bem quietinha. Gosto de olhar para ele
quando está silencioso e pensativo, menos polido, mais imprevisível, mas
também sei que ele precisa de tempo para se reorganizar — e eu também.
Nesse momento, a falta de palavras não me deixa insegura e ansiosa,
principalmente porque ele aproveita cada oportunidade para retribuir o meu
olhar.
Ao chegarmos em nosso apartamento, porém, percebo que algo
mudou.
O ar, eu acho, ou a gravidade. Sinto a densidade invadir meu corpo à
medida que entro em nossa sala de estar, um peso no fundo do estômago. É
uma sensação boa, diferente, como se meus pés tivessem raízes e elas
reconhecessem o solo sadio onde um tipo raro de amor foi cultivado.
Andrei gira a chave na porta, trancando-a, e o som se ramifica por
todos os cômodos escurecidos pelas cortinas fechadas.
Estamos sozinhos.
Olho para trás, ele fica parado com as costas apoiadas na parede ao
lado da saída, a cabeça levemente inclinada. Faço menção de me aproximar
dele, sentindo uma necessidade repentina de confortá-lo, enxugar lágrimas
invisíveis, mas Andrei ergue a mão, sinalizando para eu esperar.
Ele fecha os olhos, aperta os punhos com força, as juntas em seus
dedos embranquecendo, e respira fundo. A pouca claridade parece
amplificar a angústia estampada em suas feições, como se as sombras o
abraçassem… errado, é mais como se estivessem saindo de dentro dele.
Eu estava certa, Andrei não queria demonstrar sua fragilidade na
frente dos irmãos. Ao vê-lo tão vulnerável, entendo que não foi um esforço
simplório, ele parece sofrer uma dor física para se desfazer dessa contenção,
e não sei como tirar isso dele, como transferir para mim tudo o que o
machuca por dentro.
— Amo a minha família — diz, os olhos novamente abertos,
levemente avermelhados, junto com um sorriso misterioso, meio
melancólico, meio humorado. — E me sinto péssimo em admitir isso,
mas… — Ele meneia a cabeça. — Estou feliz em ter você só para mim.
Eles se tornaram bem territoriais de repente. Talvez seja o meu castigo por
deixá-la.
— Não faça isso — peço. — Se for culpar alguém, culpe a mim.
Ele sorri daquele jeito miserável e atraente.
— Espero que esteja falando sobre ter conquistado o coração de
todos os meus irmãos, Anastasia. — Sinto arrepios sempre que ele me
chama pelo meu nome. — Porque, sim, disso você é culpada. Por um
momento tive medo que Ivan quisesse adotá-la, ele parecia um pai
ameaçando o genro com uma espingarda quando cheguei.
Não duvido. Consigo, inclusive, imaginar Ivan e seu porte
ameaçador, pronto para defender a minha honra, mas acabo sorrindo ao me
lembrar do que ele me disse antes de me encontrar com Andrei. Ele me
pediu para ouvir o que seu irmão mais novo tinha a dizer.
— Eles o amam. — Junto minhas mãos na frente do corpo, sobre o
vestido, que de repente parece grudar na minha pele.
— Eu sei.
Mesmo longe, vejo suas pupilas crescendo, acostumando-se com a
pouca luminosidade, e imagino se as minhas também parecem oceanos
infinitos e cavernosos em uma noite sem estrelas. Se ele também tem a
sensação de se afogar nas profundezas do meu olhar todas as vezes que nos
encaramos.
Recorro a uma brincadeira na esperança de disfarçar meus
devaneios sobre pupilas, oceanos e afogamentos metafóricos:
— Mas confesso que vocês têm um jeito estranho de demonstrar
amor.
Ele dá uma risada curta, e ela parece sincera.
— Ah sim, nós temos. É uma particularidade bem conveniente,
sabe? — Andrei se endireita e vem até mim. Espero por ele, por seu tempo,
por seu toque. — Atribuir tudo isso à minha ascendência e me poupar dos
julgamentos.
— Tudo isso, o quê? — pergunto, hipnotizada por seu caminhar
rasteiro.
Andrei passa por mim, contornando meu corpo lentamente,
envolvendo-me com seu calor. Paro de respirar quando suas mãos tocam
meus ombros, seus dedos descendo pelos meus braços, e sinto o encaixe
perfeito de seu peito com as minhas costas quando ele se inclina. Sua
respiração faz carícias no meu pescoço, na minha bochecha, para no fim
envolver minha orelha direita.
— Amar como se estivesse morrendo — sussurra —,
obsessivamente, visceralmente, sem equilíbrio, como um selvagem cujo
instinto de defesa tende a sucumbir à insanidade caso uma única alma
vivente ameace esse amor. Toda essa bagunça primitiva aqui dentro, que
foge da lógica, do meu próprio controle. — Ele me abraça com força. — É
assim que eu me sinto quando se trata de você, princesa.
Sinto meu corpo, mente e coração se alinhando, alcançando a
harmonia perfeita, uma orquestra sinfônica de cem instrumentos produzindo
melodias no tempo certo, sem erros. Ele está dizendo que me ama.
Andrei me ama.
Sua escolha de palavras parece um exagero, uma utopia, mas eu
consigo entender com perfeição. Pessoas como nós, cheias de cicatrizes que
não são visíveis aos olhos, têm poucas chances de experimentar o amor
após uma tentativa fracassada, traumatizante, então, ao nos depararmos com
um amor de verdade, apostamos tudo.
Tudo.
Encho meus pulmões desse sentimento.
— Andrei eu também…
Ele não me deixa falar.
— Isso é perigoso — lamenta, afastando-se, todo o meu corpo se
queixa pelo abandono abrupto. Enquanto me viro, ele foge rumo à
cristaleira, suas costas tensas marcadas na camisa. — Achei que eu só
precisava estar perto de você e tudo ficaria bem. Que vê-la me limparia.
Mas quanto mais a tenho, mais de você eu quero. — Ele abre a porta de
vidro, pega um copo hexagonal e uma garrafa de qualquer coisa. — Preciso
mesmo de um descanso.
É visível que sim.
Andrei coloca os objetos sobre uma mesa de canto e começa a se
servir, os movimentos para encher o copo já gravados em sua memória
muscular. O tilintar de vidro contra vidro danifica a quietude dos meus
pensamentos e me vejo caminhando naquela direção com algo semelhante a
raiva fervilhando dentro de mim — não dele, mas do copo. Eu o pego sem
dar a Andrei a chance de entender o que estou fazendo, parte do líquido
molha a minha mão, mas não me importo.
Ele franze as sobrancelhas, confusão e uma advertência ponderada
estampadas em suas linhas de expressão. Abandona o frasco destampado na
mesa, sem tirar seus olhos de mim, e cruza os braços em uma pose
duvidosa.
— Você me disse uma vez que existem duas coisas — digo, e não
me condeno pelo modo como as palavras soam falhas, trêmulas e ansiosas.
Ele não se lembra de quando tivemos essa conversa, e embora eu tenha
certeza de que, mesmo assim, já entendeu a que me refiro, sou levada a ser
mais específica diante do seu silêncio: — Duas coisas que ajudam você… a
se sentir melhor.
Sinto o queimor da vergonha se alastrando das minhas clavículas às
bochechas. Ele nota, porque inspira profundamente, seu peito largo fica
ainda maior, as narinas se dilatam, e somente a consciência da minha
gravidez me impede de virar a bebida na minha própria boca para aliviar o
ressecamento que toma conta da minha garganta.
— Quer me dizer que “duas coisas” são essas? — Ele faz aspas com
os dedos. Uma provocação. Um teste. Uma dúvida.
Ele acha que não estou falando sério.
— Isso. — Estico o braço, o copo balançando perigosamente na
minha mão, e o viro lentamente. A bebida flui em uma linha fina até o chão,
manchando o carpete e impregnando o ambiente com o cheiro forte do
álcool. Em seguida, deixo o copo cair sobre uma poltrona ao meu lado.
Se eu me der um único segundo para pensar a respeito das minhas
ações, posso acabar fraquejando devido ao constrangimento, então encurto
o espaço entre nós, seguro suas duas mãos e as coloco de cada lado da
minha cintura.
— E isso — digo, baixo como um sopro.
Seus dedos flexionam muito de leve, à luz de um espasmo
involuntário, como se ele estivesse sendo traído pelo próprio corpo.
Mas Andrei nega com a cabeça.
— Não foi para isso que eu a trouxe de volta. Você não é um suporte
como aquilo. — Com o olhar, ele indica a mancha de sua bebida no chão.
— E não tem que se preocupar com minhas demandas doentias. Olhe para
mim, não estou… normal. Depois de ontem, o que eu fiz, o que vi… eu…
merda, tenho medo de não ser gentil o bastante.
Odeio o desprezo com que ele fala de si. Eu sei que está sendo
cuidadoso, e entendo que tenha dúvidas sobre mim, sobre a minha
tendência a me submeter sem o mínimo de autopreservação, mas não deixo
de sentir, também, um golpe no meu orgulho. Ele não está bem, mas, se não
estivéssemos juntos, será que se contentaria com qualquer outra mulher sem
hesitação? Ele a levaria para cama? Saciaria suas necessidades? Se livraria
de todo esse fardo?
— Confio em você — digo, desviando o meu olhar para o chão. —
Mas se não me quiser…
— Se eu não quiser você? — pergunta, alto, franzindo as
sobrancelhas grossas. Com uma mão, ele segura meu queixo delicadamente
e levanta meu rosto. — Querer você é a única coisa que tenho feito desde
que coloquei meus olhos naquela garota sozinha no aeroporto, triste,
dedilhando um piano imaginário sobre a mesa. Porra, na verdade eu a
queria antes mesmo de ver o seu rosto, quando a sua voz era a única coisa
de você que eu conhecia.
Ele raspa sua boca ofegante na minha, o peito subindo e descendo
com respirações profundas, e não consigo formular frases inteiras para
expor o que seu corpo provoca no meu.
— E maldita seja a minha mente, Anastasia, que não tem limites,
fantasiando todas as noites com você sendo minha, com o meu nome saindo
da sua boca enquanto a tenho em meus braços. — Habilmente, empurra
uma das alças do meu vestido, deixando meu ombro exposto, depois
começa uma trilha de beijos ao longo do meu pescoço. — Em como deve
ser boa a sensação de estar dentro de você.
Sua descrição, rica em detalhes, me faz corar, e sou invadida por
dezenas de imagens de nós dois fazendo exatamente o que ele acaba de
dizer. Sinto minhas extremidades adormecidas, formigando, um suor frio
descendo pela minha coluna, um ponto específico entre as minhas pernas se
contraindo.
É diferente de tudo o que já senti na vida, uma atração que beira à
mesma carência vital por oxigênio ou comida. Mais do que vontade, mais
do que desejo, muito mais do que uma esperança.
Pura e simples necessidade.
— Então, por quê?
— Medo. — Ele nem pestaneja. — Medo de ser demais para você,
de assustá-la. Medo de estar cego pelo meu egoísmo. Já reivindiquei mais
do que mereço e não suporto a ideia de perdê-la. Você não é um escape,
princesa, não é um maldito copo de bebida para aliviar o meu estresse e
muito menos uma foda qualquer. É a minha mulher!
Contrariando a si mesmo, Andrei me abraça com firmeza e seus
olhos me devoram com uma fome ancestral. Sua força de vontade para
reprimir o desejo de me tomar é tangível, as veias em seus braços parecem
gravemente inchadas, os músculos dilatados e sólidos, e me sinto diminuta,
mas protegida, sob toda a sua grandeza.
— Também tenho medo — murmuro à sombra de seu olhar. Nem
em meus remotos sonhos eu teria forças para encará-lo, então fecho meus
olhos e confesso baixinho: — Medo de nunca saber como é ser tocada com
amor e desejo e que minhas únicas referências envolvam sangue e lágrimas.
Andrei congela. É o máximo que consigo compartilhar dos abusos
que Yerik me fez sofrer, e sei que Andrei não precisa de mais detalhes.
Mesmo que nem sempre tenha sido ruim, tudo o que restou para lembrar
foram os momentos de dor e humilhação. Ele precisa saber que não é uma
decisão leviana, eu jamais me entregaria outra vez se não fosse única e
exclusivamente para ele.
— Você não é o único com demandas — digo, e fica implícito que
as minhas também são doentias à sua própria maneira.
Através das minhas pálpebras fechadas, sinto o calor abandonando a
minha pele, subjugado pela frieza cruel que Andrei transmite. Ele me aperta
como se quisesse se fundir a mim, prender-me em um local seguro dentro
de seu peito.
— Eu sinto muito — vocifera, com oscilações de um choro raivoso.
— Sinto tanto, porra!
Eu também sinto.
Mas estou cansada de chorar e lamentar, então, com delicadeza,
passo meus braços ao redor de seu corpo robusto e atlético, pousando
minhas mãos em suas costas retesadas, sentindo o delineado dos músculos,
de modo que ele também sinta cada parte de mim. Fico grata que minhas
vestes delicadas e finas façam um trabalho melhor que o meu revelando as
curvas que talvez o agradem.
— Então, tudo bem eu querer… — Ergo meu olhar, sua feição
misteriosa me recebe com profundo desejo, e me sinto nua sob seu
escrutínio. O queimor de um constrangimento bobo traz à tona a minha
inexperiência. — Isso?
Um canto de sua boca treme com a sugestão de uma risada.
— Onde você aprendeu a fazer uma pergunta tão sem sentido? —
Seu nariz toca o meu, nossos lábios flertam. — É claro que sim, princesa.
Mas se você ficar envergonhada dizendo esse tipo de coisa, vai perder toda
a credibilidade.
Andrei beija meu sorriso de leve e mais rápido do que eu gostaria.
— O que espera que eu diga? — brinco. — Por favor, faça amor
comigo?
— É um bom começo. — Ele ri baixinho, voltando para trás de
mim. Afasta meu cabelo da nuca e deposita outro beijo ali, causando
arrepios na minha pele. — Tem certeza? — pergunta, sua voz morna
acariciando a minha audição.
— Você não é ele. — Olho sobre o ombro, vendo a imensa sombra
de sua silhueta às minhas costas, e sem nenhum resquício de dúvida ou
hesitação, respondo: — Pode ser egoísta o quanto quiser.
Porque eu quero ser sua.
E que você seja meu.
Ele agarra meu pescoço pela frente, sua mão grande e os dedos
longos erguem meu queixo, puxando-me de encontro a si, e com apenas
duas palavras roucas, Andrei me enreda em uma espiral inescapável de
amor, desejos e vícios.
— Eu serei.
Andrei desarma suas contenções e exige a minha boca. Com a
cabeça inclinada para trás no limite, nossos rostos invertidos, dou a ele livre
acesso a tudo o que quiser de mim. Como em uma dança, ele me conduz, e
meu corpo responde às suas instruções mudas — no lugar de passos, beijos,
ao invés de giros e saltos ornamentados, toques ofegantes, gemidos e o
queimor se seus dedos explorando minha pele.
Sua expressão de desejo vem acompanhada de muitas ações e
olhares e contatos íntimos, poucas palavras, e essa simples constatação me
faz sorrir em meio ao delírio de seus beijos. A expectativa de ouvir o raro
timbre grave de sua voz quando está concentrado em desfrutar do prazer
carnal que sentimos mutuamente me estimula, e suspeito que ele goste de
me ver assim, rendida e ansiosa, que faça de propósito.
A diferença entre nós dois é nítida, ele sabe o que fazer, seus dedos
me acariciam com carinho, mas firmes, determinados, criando pequenos
lembretes no meu corpo para que eu nunca esqueça a quem essas mãos
pertencem. Ele liberta meu outro ombro da alça frágil que compõe meu
vestido, e prendo a respiração quando começa a deslizar o zíper nas minhas
costas para baixo.
É estranho e excitante sentir a textura macia e sedosa escorrer por
todo o meu corpo até se amontoar aos meus pés, mas são seus olhos
contemplativos, famintos, idolatrando a minha seminudez como se estivesse
diante de uma divindade, que me instiga a desejar mais — mais rápido,
mais íntimo, mais secreto.
Ressinto-me da vontade de cobrir meus seios, que estão
visivelmente mais inchados e pesados por causa da gravidez. Ser a única
exposta no meio da sala escura me desperta uma fagulha de insegurança,
mas Andrei, vigilante e dedicado, não permite que esse sentimento crie
raízes.
— Deixe-me vê-la, Anastasia — pede, mas soa tanto como uma
súplica, quanto uma ordem. É difícil diferenciar, mas em qualquer dos casos
me sinto confortável em obedecer.
Em ser aquela que supre as suas demandas como mulher.
Ele recua um passo, dois, três, até estar distante o suficiente para me
ver inteira, e para que eu o veja também. À flor da pele, na última camada,
evidente a olho nu, está o homem que por vezes se escondia de mim durante
as noites que passamos juntos, reprimido, ancorado na insônia e no álcool, o
homem que ninguém mais conhece. Alguém com dores, traumas e
fantasmas.
Quebrado.
Solitário.
Predatório.
E que eu amo.
— Andrei. — Seu nome sai de mim sem uma intenção definida.
Não o estou chamando, nem pedindo por alguma coisa. É instintivo, um
atestado verbal de pertencimento, que recebe a sua aprovação na forma de
um sorriso idôneo.
Dou a ele o que deseja: tempo para se saciar da visão que tem de
mim à sua mercê, e ele aproveita cada minuto como se fosse o último de
sua vida. Não me analisando, mas pensando. Pensando no que fazer, talvez,
ou por onde começar… No quanto eu aguento.
Ele ainda nem deu início aos seus esforços e já sinto minha energia
sendo drenada.
Timidamente, coloco meus braços para trás, entrelaçando minhas
mãos às costas, apenas para evitar que fiquem balançando sem rumo como
duas gelatinas tremeliquentes. No entanto, o movimento se volta contra
mim, pois me deixa ainda mais em evidência. Fico feliz que minha última
peça de roupa, apesar de simples, lisa e branca, não seja um atentado à
libido de qualquer homem.
Andrei emite um som que transita entre um gemido e um rosnado,
em seguida, dá início ao longo processo de remover sua camisa,
desabotoando os botões lentamente. Assisto, com os lábios secos, enquanto
seu torso esguio vem à tona, o peito desenhado com músculos firmes, o
abdômen cheio de vincos perfeitos, os braços esculpidos como os de
estátuas gregas de heróis antigos.
Logo depois, remove o cinto de couro, e tento não olhar naquela
direção por muito tempo, impressionada com o excesso de volume dentro
da calça social — ele dá uma risadinha áspera. No entanto, é impossível
fazer o mesmo quando começa a desenfaixar sua mão. Como uma pessoa
com certo conhecimento em curativos, sei que não deve ser muito grave,
mas saber que se machucou para me defender, que indiretamente sou a
causa de sua lesão, faz algumas poucas lágrimas retornarem à minha face.
Antes que a primeira delas toque o chão, Andrei me alcança e
acaricia meu rosto. Sinto o ferimento áspero pinicar minha pele, um corte
grotesco riscado em sua palma.
— Está doendo? — pergunto, encolhendo-me em sua mão.
— Não mais — ele mente e me beija.
Um beijo de verdade. Voraz, apaixonante. Sua língua dita as regras e
se apodera da minha boca, reclamando todos os cantos como um
conquistador de territórios inexplorados. Um rei cujo reino em expansão
abrange tudo o que ele quiser.
Nem se compara a nossos beijos anteriores. A sensação de pele
contra pele e dos meus seios pressionados em seu peito, coloca em
perspectiva tudo o que envolve nossos lábios se tocando. É íntimo,
envolvente e sexual. Puro. Rústico. Automático.
Indefinível.
Eu o sinto o tempo todo em todas as partes. A mão ferida parece
nunca encontrar um lugar definitivo, sedenta por apropriar-se das minhas
curvas, o corte grosseiro raspando a superfície sadia da minha pele como se
buscasse por uma cura milagrosa. Ele aperta minha cintura, segue para o
ponto mais baixo das minhas costas e sobe novamente, enchendo seu agarre
com meus seios.
Aos poucos, Andrei vai perdendo a compostura, deixando-se levar
pelo desespero acumulado. Ouço nossas respirações altas e aceleradas entre
estalos de beijos e gemidos. E eu o deixo se descontrolar, porque é o que ele
precisa — e eu só preciso dele, de qualquer forma que seja.
Sua temperatura quente me aquece por indução, ele mordisca meu
lábio inferior e nesse momento nossos olhares voltam a se encontrar.
Uma pausa.
Um segundo para desfrutar da realidade — não mais um sonho.
Um sentimento.
Há uma música ressoando. Forte. Alta. Sombria, mas poderosa.
Selvagem, mas cheia de emoções. Já a ouvi antes, tocando dentro dele, e na
época meus medos me impediram de compreender, porém, agora eu não
tenho mais dúvidas, porque não é sobre como o coração dele soa, e sim
como soa junto com o meu.
Um dueto em um palco sem luzes.
Uma apresentação para nenhum ouvinte.
Se o meu amor fosse uma melodia, ela seria L'inverno, Allegro non
Molto, de Antonio Vivaldi, o Concerto No. 4, opus 8, em Fá Menor.
— Ande — diz vagamente, e com tão pouco minhas pernas voltam a
funcionar, caminhando na direção que ele indica com um simples toque em
minha lombar.
O piano.
Será que ele ouviu através dos meus pensamentos?
Mas quem ocupa o lugar do pianista no banco aveludado é ele.
Andrei se posiciona no centro, não deixando espaço para mim em nenhum
dos lados.
Já não sinto mais vergonha, mas uma estranha inquietação de quem
não sabe o que fazer, o que ele pretende. Não dura muito. Andrei segura
meus quadris, puxando-me para perto, e com o rosto na altura ideal da
minha barriga, ele beija meu ventre várias vezes, deixando marcas
avermelhadas nos pontos em que seus lábios tocam.
Como se reafirmasse que eu e meu bebê somos dele agora.
Segurando as laterais da minha peça íntima remanescente, fixa os
olhos no meu rosto, investigando a minha aceitação, e a remove
vagarosamente. Deixo escapar um suspiro trêmulo, e Andrei se satisfaz da
minha reação, beijando um lado da minha virilha, próximo demais da
umidade crescente entre as minhas pernas.
Isso o agrada. Muito. Seu sorriso astuto o entrega. Como pude me
esquecer do quanto ele gosta de se divertir às custas da minha ingenuidade?
Sem dúvidas, ser o único vestido com calças também faz parte da
provocação.
E funciona.
Sinto-me em chamas, queimando por dentro e por fora. Entregue
completamente. Andrei inclina o corpo, projetando seus quadris para frente.
— Senta — ele manda em sua clássica e excitante economia de
palavras.
Pisco, sem entender direito, até que ele bate a mão em sua coxa.
No meu colo, princesa.
Ainda bem que não preciso encarar seu rosto ao atender seu pedido,
porque sei que ele acabaria rindo do novo tom de vermelho que tinge o meu
corpo. Como Andrei é muito maior, eu me encaixo sobre ele como uma
boneca, e sinto a grande solidez embaixo de mim, uma prova definitiva de
que não sou a única gostando de tudo isso.
Saber que sou a responsável por deixá-lo assim me deixa mais
ansiosa para saber o que pretende, mas nada me prepara para o que faz a
seguir: Andrei roça a boca na minha coluna, e assim que meus pelos eriçam,
afasta as minhas pernas com os joelhos. Abrindo-me.
Fico sem palavras, genuinamente surpresa com o quanto a
exposição me estimula — e o excita. Ele controla meus braços, como um
marionetista, e coloca minhas mãos sobre as teclas pretas e brancas do
piano. Para alcançar o instrumento, preciso me inclinar para frente,
empinando-me sobre suas pernas, a fricção me obrigando a choramingar de
desejo.
Próximo ao meu ouvido, Andrei diz:
— Agora toca.
25
Andrei
EU VOU PARA o inferno.
Mereço uma eternidade de tormentos por não conter a minha veia
imoral de Anastasia. Por não a poupar. Mas é um sacrifício que estou
disposto a suportar. Se o preço para tê-la é passar o resto dos meus dias com
o estigma da perversão cravado na minha consciência, então o carregarei
com prazer.
Ela é linda, e não tem noção da própria aparência, do efeito que
causa em um homem como eu, ou jamais ousaria mover os quadris para
alcançar os pedais do piano enquanto está montada em mim,
completamente nua, sem imaginar que cada movimento seu me faz latejar.
Aperto a mandíbula, trincando os dentes, e a acaricio com o meu
olhar. Anastasia tem curvas delicadas que me enlouquecem, uma cintura
estreita que chama pelas minhas mãos, além de um pescoço esguio o
suficiente para marcá-lo com a minha boca repetidas vezes.
Ela é o pecado esperando para ser cometido.
E eu serei o seu leal pecador.
Sempre a achei pequena demais, às vezes magra demais, muito
delicada para o próprio bem, e continuo achando, mas agora, encaixada
sobre mim, onde posso alcançar cada pedaço do seu corpo, segurar, abraçar
e senti-la inteira, percebo que ela tem o tamanho ideal para mim, somente
para mim.
Mas são os seus trejeitos que mais me excitam, como o rubor
inocente que tinge a sua pele, as expressões que transitam entre surpresa e
desejo e curiosidade toda vez que sente o tamanho da rigidez sobre a qual
está sentada, ou o olhar constrangido que ela joga sobre os ombros,
piscando os cílios volumosos, depois de ouvir o meu comando.
Agora toca.
Anastasia aquiesce, aceitando sem hesitar, e é a minha vez de
estremecer.
Ela deve ser algum tipo de criatura mística. Uma fada de beleza
incontestável; uma sereia cujo canto, sedutor, porém inocente, condena
homens errantes como eu às profundezas do oceano turbulento onde fluem
os seus sentimentos mais puros. Ou uma deusa — definitivamente uma
deusa —, que me impele a dobrar os joelhos e venerá-la como um servo
fiel.
Mas a mesma sobrenaturalidade sedutora que faz dela única entre
milhares, coloca a sua segurança em risco, afinal, quem não quer para si a
posse de uma raridade? Eu seria um mentiroso se dissesse que não quero,
mas já estive atrás das grades uma vez e sei reconhecer a linha tênue que
diferencia o amor de uma prisão.
Então espero pacientemente enquanto suas mãos pairam sobre as
teclas, conectando-se com o instrumento, acessando aquele estado de
transcendência que a faz parecer brilhar diante dos meus olhos. Porque
preciso ouvir o que ela tem a dizer, e é através da música que Anastasia se
expressa melhor.
Amaldiçoo o meu nome por exigir tanto. Em outras palavras, estou
pedindo que enfie as unhas na cavidade de seu peito, expondo carne,
músculos e ossos, e me deixe ver e ouvir e roubar a pulsação além. Mas
quando a primeira nota ecoa, seus dedos são… pura mágica.
Ela testa as teclas primeiro, o corpo ondulando na direção da
música, sentindo, dançando. Fico hipnotizado conforme a sequência de sons
assume uma cadência repetitiva, seus ombros acompanham os movimentos,
indo para frente e para trás, e a melodia vai se formando, envolvendo
ambos. Vejo-me preso a ela, ao seu talento e beleza, e sorrio ao me dar
conta de que acabei caindo em uma deliciosa armadilha: posso ser o mais
experiente, o mestre no que diz respeito aos seus desejos e fantasias, e tenho
as minhas predileções — as quais ela disse estar disposta a atender —, mas,
embora Anastasia não saiba, é nas mãos dela que se encontra a outra ponta
da coleira ilusória que ornamenta o meu pescoço.
Os cantos da minha boca se curvam para cima, projetando satisfação
e malícia. Estou destinado a ser o rei de uma doce princesa.
Dou a ela mais tempo que o planejado, conto cada segundo da
tortura auto-infligida que é não tocá-la até não aguentar mais. Quando sinto
dor, do tipo tangível, como se garras de ferro quente arranhassem as minhas
costas, minhas panturrilhas, as coxas, tudo… eu a seguro pela cintura.
Agarro, seria o termo correto.
Anastasia arqueja, uma nota se perde, a melodia fica estranha, lenta,
mas ela honra seu título de prodígio da música e consegue se recuperar
habilmente, o corpo naquela harmonia sensual com o piano, ondulando,
voando. Sexy. Por qualquer razão que foge à lógica, isso — ela tocando
para mim, em cima de mim, com tamanha dedicação e vestindo nada além
da própria pele — é tão estimulante quanto se estivesse de joelhos me
oferecendo sua boca.
— A-Andrei? — Ah, como eu adoro esse gaguejar. Ela não precisa
dizer mais do que o meu nome para que eu entenda a pergunta implícita:
instruções. Quer saber o que deve fazer, o que espero dela.
Subo minhas mãos bem devagar, meus polegares encontram a
inclinação inferior dos seios macios. Ela se arrepia enquanto pondero,
serpenteando a coluna como uma onda, meu olhar percorre toda a extensão
até o ponto mais baixo, fixando-se nas marquinhas gêmeas em sua lombar.
Porra!
Ela sabe, percebo com um orgulho predatório. Já entendeu que eu
gosto de dar ordens pontuais, e que o estímulo visual é mais importante
para mim do que qualquer outro. Que preciso ver, memorizar, assistir. Ter a
certeza incontestável dos meus próprios olhos. E acha que pode me agradar
assim.
De fato, agrada.
— Continue — digo, o comando gutural se sobressaindo até mesmo
à música.
Subo um pouco mais, minhas palmas se enchem daqueles montes
perfeitos e redondos, o par de pequenos bicos intumescidos roçam nos vãos
dos meus dedos. Primeiro, eu os sinto, apreciando o formato ideal para
minhas mãos e imaginando, como um sonhador, que gosto terão quando eu
os provar com a língua, e quais outros sabores Anastasia esconde em cada
uma de suas partes. Depois, eu os aperto, massageando, sovando e puxando.
Seus arquejos e gemidos agudos acompanham a frequência dos meus
movimentos, lentos a princípio, mas em uma crescente gradual.
Ela é sensível, eu já sabia. Mas isso… meus toques a incendeiam,
como se ela fosse uma extensão das minhas vontades, uma parte de mim.
Feita do mesmo material. Inebrio-me com seu cheiro, com seus sons, a
textura lisa de sua pele e sua leveza sobre minhas pernas, mas, ainda assim,
sedento por mais.
Marco um ponto em seu ombro e deixo que minha boca o encontre,
inicialmente com os lábios, em seguida, com os dentes, não forte para
marcar, mas o suficiente para que ela sinta, arqueando-se para mim. Ao
mesmo tempo, minhas mãos descem, descem, descem. Uma de suas pernas
se encontra esticada entre as minhas, a ponta do pé trabalhando naqueles
pedais, mas a outra, para minha contemplação, continua exatamente onde a
coloquei: pendurada no meu joelho, afastada, aberta, um caminho livre.
Elevo mais a minha perna, expondo-a no limite. Anastasia não luta
contra. Não. Ela gosta que eu a conduza, assim como faz com o piano e sua
música, o som potente, sombrio, misterioso, que combina tanto com nós
dois. Mais tarde, perguntarei qual o nome da melodia, mas agora…
Passeio pela coxa exposta, na parte interna, subindo pelo joelho,
enquanto minha outra mão fica livre, ora percorrendo a barriga, com pouco
sinal da gravidez, ora de volta aos seios convidativos ao tato, imaginando
minhas digitais invisíveis impregnadas dos dois lados. Concentro-me
abaixo, chegando ao espaço delicado no centro de seu corpo. Tão
fodidamente úmido que me faz grunhir.
Anastasia choraminga, a música perde o compasso outra vez,
ficando indistinta. Pressiono meu polegar na saliência inchada, sentindo a
passagem apertada um centímetro abaixo, com o dedo médio.
— Acho que… assim… não vou conseguir. — Apesar das palavras,
ela não para de tentar. A música ainda é reconhecível apesar das falhas.
Eu poderia dizer o mesmo, que eu não vou conseguir, levando em
conta a pulsação lancinante em minha virilha. Ao invés disso, no entanto,
aproximo-me de seu ouvido e sussurro com aspereza e paixão:
— Vamos, princesa, toque para mim enquanto eu toco para você.
Entro, escorrego, em seu corpo, feliz por estar usando as mãos e não
a parte que mais deseja se unir a ela. Pelo modo como se contrai, seja de
surpresa ou prazer, eu não duraria um minuto. E certamente não dou a ela o
mesmo tempo. Não quando é tão delicioso testar sua responsividade. Não
quando ela demonstra tão abertamente que está disposta a tudo para atender
às minhas demandas — e as próprias.
Sua música diz isso: sim, sim, sim; mais, mais, mais.
Eu respondo, indo o mais fundo possível, depois saindo e entrando e
repetindo a mesma ordem. E percebo, com uma surra de compreensão, que
as sombras e garras e correntes que me prendiam estão distantes, quase
como lembranças, longe o suficiente para que eu não as sinta ou tema.
Assim como minha sede e sono. Tudo o que sinto se resume à Anastasia, a
estar com ela, a tomá-la e ser tomado.
Tão pequena, tão forte e frágil… e tão minha.
— Você consegue — digo ao amparar seu seio, escavando a luxúria
de seu interior com a outra. Ela se contorce, fraquejando, a melodia perdida
em ritmo, mas ainda linda e potente enquanto seus dedos apertam as teclas.
— Continue até o fim.
Mostre-me o seu melhor espetáculo.
Para seu mérito, seja qual for a origem de sua genialidade, ela
consegue estabilizar a música, que irrompe em uma sequência frenética de
graves e agudos. Suas mãos se movem como as asas de um pássaro, e a
expressão em seu rosto, de completa entrega, é uma imagem que jamais
esquecerei nesta ou em outras vidas.
Anastasia geme, a voz graciosa transbordando deleite, inebriada de
um prazer que sinto em meus dedos. Em meus ossos. Com os olhos
fechados, ela parece fora de si, tremendo, arrepiada, uma fina camada de
suor fazendo sua pele brilhar. Sinto quando sua apresentação chega ao
ponto mais alto, indicando que o fim se aproxima, e tal como a música,
também a impulsiono rumo ao desfecho que ela merece depois de se
esforçar tanto por mim.
Para mim.
— Andrei — ela soluça assim que a massageio do jeito certo, sem
força e pressa, mas com cuidado. Deixando-a saber que sempre tratarei seu
corpo com esmero, que cuidarei dela e a protegerei, que é valiosa, e que seu
prazer é o meu prazer.
Anastasia continua repetindo o meu nome sem parar, acompanhando
aquelas últimas notas, doces e suaves, tão iguais a ela, enquanto alcança o
seu êxtase.
Andrei.
Andrei.
Andrei…
E assim que o mundo se cala, todo o som sendo sugado para um
vácuo de amor e satisfação, ela cambaleia para frente, sem forças, exausta.
Linda. Eu a seguro em meus braços, como a princesa que de fato ela é, e me
levanto. Seu sorriso mole, saciado, faz meu peito se encher de algo como
orgulho, e deixo um beijo em sua têmpora para não acabar dizendo algo
tolo como: case-se comigo agora, Anastasia.
Em breve, penso, suspirando, calculando, planejando.
— Ainda não acabamos — digo, no lugar, como se isso não soasse
igualmente tolo.
Pelo menos, o sorriso de Anastasia compensa tudo. Ela mostra todos
os dentes, os olhos brilham com uma diversão secreta. Continua lindamente
corada, com as sombras de uma vergonha contida ainda à espreita, mas
distantes.
— Que bom — murmura, deitando-se em meu ombro enquanto
percorro o corredor e entro em nosso quarto. Sinto a zombaria na boca que
resvala em meu pescoço muito antes de ela dizer: — Você colocou muitas
expectativas em si mesmo.
Um pequeno nó desata em meu peito, e dou uma gargalhada curta,
acomodando seu corpo estupidamente deslumbrante sobre os lençóis
brancos da cama. Anastasia se destaca na imensidão do colchão, sua nudez
evidenciada por um feixe solar que invade o quarto pela janela, em um
lembrete de que temos o dia todo. E a noite toda. E todos os dias e noites
depois destes.
— Longe de mim correr o risco de decepcioná-la, então. —
Inclinado sobre ela, cujos longos cabelos ondulados formam um arco escuro
ao redor de seu rosto, faço uma carícia em sua bochecha, no nariz redondo,
a boca em formato de coração. — Senti falta disso, sua amizade. Você faz
meus dias leves, princesa.
Ela pisca, uma, duas vezes.
— Mesmo agora? — A pergunta não passa de um sopro baixo,
como se ela temesse receber uma resposta.
Leio a verdade em seus olhos, o que ela realmente quer saber: eu
consegui ser o suficiente e livrá-lo do fardo e da dor?
— Principalmente agora — garanto, sem lhe dar um segundo a mais
para duvidar disso. — Agora eu poderia voar.
Sinto, mais do que vejo, seus ombros relaxarem, um peso invisível a
abandonando, abrindo espaço para o lampejo travesso que toma suas
feições. Ela se estica, como uma gatinha esperta, afastando os joelhos
apenas um pouco. Gosto desse seu lado impetuoso, e sei que o tempo, ao
curar suas feridas, permitirá que venha à tona mais vezes, até se estabelecer.
Porque, sim, essa é a Anastasia que foi subjugada ao quase
desaparecimento por uma relação criminosa.
— Então voe, Andrei Volkiov.
Meus olhos vagam pelo corpo feminino, o mais lindo que já existiu,
mas um lampejo horrível viola a minha mente. Vejo uma outra cama, em
um outro quarto, gravada de cima, a filmagem de Anastasia sobre a cama, e
de um monstro sobre ela. Suas lágrimas. Seu medo. Sua dor. E me pergunto
se sou digno, se mereço, embora o pensamento de qualquer outro em meu
lugar, por mais santo e imaculado que seja, me faça querer arrancar sangue.
Como se visse a dúvida e o terror através de algum fio do destino
que nos une, ela declara:
— Somente você.
Eu puxo uma grande lufada de ar, percebendo, só então, que tinha
parado de respirar durante segundos. Minutos, talvez.
Somente eu.
Anastasia não sabe, não imagina o quanto ela estar na minha cama,
livre das roupas, entregue aos meus cuidados, significa para mim. Minha
mania de proteção, a necessidade intrínseca e intransponível de estar no
controle para o bem de minha própria sanidade. O que isso faz comigo. E
eu provavelmente tenho apenas uma vaga noção do que significa para ela
me conceder a honra de possuí-la, após tudo o que passou, tudo o que foi
brutalizado em seu corpo.
Somente eu.
Recuo alguns passos, sem saber ao certo onde ou quando meus
sapatos foram removidos, se os deixei na porta ou a caminho do quarto.
Mas estou descalço, sem as meias, nada de camisa, e começo a retirar o que
falta: o cinto, minhas calças, a maldita e apertada cueca — Anastasia cora,
tentando não olhar.
A nudez nunca foi um problema para mim, pelo contrário, em algum
momento, tornou-se um caminho para um fim que me traz equilíbrio, ou a
ilusão de algo semelhante. Nada mais que sexo para sufocar sentimentos,
bons ou ruins. Gosto da liberdade que vem junto com o despudor, mas estar
aqui com ela é diferente.
Melhor.
E a reação de Anastasia, o retorno da timidez que tanto amo, vale a
ousadia.
Quando suas pupilas crescem ao tamanho de imensas pérolas
negras, arqueio uma sobrancelha e me ajoelho ao seu lado, perto. O peso do
meu corpo faz o colchão afundar e Anastasia franze o cenho, ciente da
provocação no sorriso que lhe ofereço — na intenção de deixá-la à vontade.
— Certo — diz, piscando os olhos para cima, evitando
completamente tudo abaixo da minha cintura —, isso sim é um segredo
problemático.
Minha cabeça tomba para trás junto com uma gargalhada, sem a
menor condição de ignorar sua brincadeira. Mais um nó, pequeno, desata, e
suspeito que seja essa a sua pretensão. Não sou o único me esforçando para
deixar o outro confortável. Assim que volto a respirar normalmente, mas
ainda com lágrimas nos olhos devido ao riso alto, movo-me até a ponta da
cama, seguro um de seus pés e o levo à minha boca.
— Serei cuidadoso — prometo, beijando os pequenos dedos, que se
contorcem à medida que subo até os tornozelos, depois para as panturrilhas.
Não ouso tirar meus olhos de seu rosto, apreciando cada mínima
reação, sempre atento a sinais de desconforto que nunca aparecem. Ela
permite que minhas vontades nos guiem, mesmo quando afasto seus joelhos
e a exponho para mim, ou quando tracejo suas coxas, de um lado a outro,
com a minha língua.
Anastasia se doa, uma oferenda a um rei caído.
— Não tenho medo — diz, não para mim, mas uma constatação
maravilhada sobre si mesma. Talvez tenha suposto que nunca mais
conseguiria se deitar com um homem, o que é compreensível, mas também
pode ser que não acreditasse, até agora, que eu a aceitaria, com uma visão
deturpada e inverídica sobre o próprio valor, mesmo sabendo que eu era o
único a quem se entregaria.
Somente eu.
Como uma prova da minha lealdade, de que sou dela, beijo os lábios
que não pertencem à sua boca. Anastasia, soltando um gritinho agudo que
sinto no estômago, arqueia as costas, fazendo um círculo completo com os
quadris. Espontâneo, sem malícia, pura reação.
Eu me deixo mergulhar em seu gosto, o sabor pelo qual homens
lutariam até a morte. Devoro o desejo que escorre para a minha língua, e a
ajudo a manter a cintura elevada, com as mãos agarradas firmes nas
sinuosas laterais de seu corpo, satisfeito com o peso das duas pernas sobre
meus ombros.
Os gemidos dela reverberam pelo quarto. Sem a interferência do
piano, eles soam mais altos, quase gritados. Uso a língua, os dentes, ela
enterra as mãos nos meus cabelos, e eu provo tudo, bebendo atrás da última
gota, tanto para satisfazê-la, quanto para saciar o novo vício que meu
paladar de repente exige — Anastasia. Ao sentir que seu limite se
aproxima de novo, entretanto, eu me afasto.
Um pequeno sofrimento para ambos.
Ela resmunga.
Eu sorrio.
Nossos olhares se encontram, os dela, inebriados, disparam uma
pergunta e uma reclamação, mas Anastasia compreende assim que começo
a subir lentamente, acomodando-me entre suas pernas, que se abrem para
receber todo o meu tamanho. Desta vez, quero sentir na minha pele quando
se perder, estar conectado a ela no momento em que sua mente for tomada
pelo clímax.
— Preciso que diga. — Nossa evidente diferença de alturas sempre
foi óbvia, mas nunca havia de fato calculado o quanto ela é menor. Sinto
que se soltar o peso de meus cotovelos, poderia esmagá-la. Seu corpo
desaparece sob o meu, delicado, pequeno, magro. Ombros tão estreitos. E
ainda abaixo de todas as camadas de pele e músculo, carregando uma
criança. O corpo de uma jovem mãe. Um corpo sagrado. — Diga de novo
— peço.
Seus grandes olhos redondos se fecham e abrem, tranquilos. O medo
que um dia residiu dentro deles, aniquilado.
— Sim — ela diz carinhosamente, estendendo a confirmação às
pernas, que se afastam ainda mais para me receber.
Então eu a beijo.
E a possuo.
Dolorosamente devagar, movo-me para dentro dela. Seus arquejos,
reflexos da invasão vagarosa, se perpetuam na minha boca, e fecho minhas
mãos em punhos para controlar a onda de prazer que me assola, ameaçando
acabar comigo cedo demais. Assim como cada parte de Anastasia, seu
interior me abraça com paredes delgadas, e concedo a nós dois alguns
segundos para nos acostumarmos.
Ela suspira, as unhas se cravando nas minhas costas.
— Você é muito… — O adjetivo se transforma em um ganido
quando avanço mais um centímetro.
— Muito? — pergunto em seu ouvido, deixando beijos por ali.
Diversão ardilosa ilumina seus olhos, seguida de um rubor sagaz.
Avanço mais, travando os dentes, estrangulado.
— Muito muito — diz simplesmente.
Rindo, busco sua outra orelha, mordiscando-a.
— E eu esperando algo viril, como grosso ou grande.
Mais um pouco. Praguejo internamente, com medo de machucá-la.
Anastasia não é experiente, e sua única referência é a pior possível. Não me
importo comigo, com quaisquer merdas de demandas doentias, ela merece
que seja bom. Merece que seja sempre perfeito.
Investigo seu rosto, com medo de encontrar agonia, mas nada além
de felicidade e emoção puras transitam em suas expressões.
— Tudo isso também. — Ela sorri, iluminando o mundo inteiro.
— Está doendo? — Continuo, quase até o fim. Anastasia nega, a
boca se abrindo em um gemido silencioso. — Oh, se não é dor, o que está
sentido então, princesa? Está se sentindo bem?
Recuo e avanço, encontrando menos resistência. Deslizando.
— Sim. — Ofega, seu peito se expande, chamando minha atenção
para os seios acentuados, apontando para mim, dispostos, livres, me
chamando.
— Devo continuar? — Mantenho meu peso em apenas um cotovelo,
enquanto minha mão cobre a projeção aveludada em seu colo exposto. Ela
se curva para mim, como uma chama soprada pelo vento, tremeluzindo.
Mas os olhos que me encaram antes de responder estão sólidos e
determinados, uma força da natureza renascida.
— Sim.
Sinto a palavra em cada terminação nervosa dos meus braços e
pernas, deixo que ela se assente, e um último nó, que estava, até então,
muito bem apertado dentro de mim desde meu encontro com Yerik, enfim
desaparece. Expurgado. Limpo. Anastasia exorciza algo, alguém, um medo,
uma barreira, deixando apenas paz e amor no lugar.
Somente eu.
— Por favor, Andrei, por favor — ela implora, tentando sozinha
acabar com a última porção do caminho entre nossos corpos. Determinada a
receber tudo.
E eu obedeço à sua vontade.
Retrocedo a fim de prepará-la, olhos nos dela, conectado, e
finalmente invisto por completo. Um golpe que me rouba o fôlego, os
sentidos, minha mente em branco. Ela aguenta, e gosta, não esconde o
desejo sendo saciado, a exultação nos olhos escuros e densos, como se feita
para mim. Um presente que jamais mereci, mas que não recusaria nem em
mil vidas ou dez mil ou cem — em nenhuma.
Deixo de lado a leveza e o humor.
Trago à tona o peso da minha gana por ela.
— Pernas — digo, ou rosno, minha voz parece algo saído de uma
catacumba há muito selada. Ela inclina o rosto para o lado, sem entender.
— Nas minhas costas — explico, beijando-lhe a face morna. Anastasia faz
como eu digo, agarrando-se a mim, e utilizo cada grama de autocontrole
quando ela se contrai ao meu redor. Com a boca na dela, eu lhe dou uma
última instrução: — Segure firme.
E assim seguimos juntos em uma dança que mistura sons, toques e
sentimentos, prazer e paixão, necessidade e desejo. Venero minha mulher a
cada ir e vir, roubando com a minha boca as palavras delirantes que ela
balbucia. Eu a beijo o tempo todo, registrando a textura dos seus lábios e a
sincronia com que respondem aos meus. Beijo seu pescoço, a longa faixa de
pele, e realizo o meu plano de deixar provas da nossa união gravadas em
cada centímetro.
Marcas de amor, não aquelas com as quais foi obrigada a se
acostumar.
Anastasia faz o mesmo, raspando unhas e dentes, como se soubesse,
ou suspeitasse, que a violência também não é uma estranha para mim, e que
suas marcas me purificam das antigas. Claro que nada do que eu passei
fisicamente se compara ao que ela suportou, mas ainda é um bálsamo, um
antídoto para o veneno que meu relacionamento anterior injetou em minhas
veias por anos.
Passo um braço por trás de seu corpo, o outro mantenho apoiado
acima de sua cabeça, e a ajudo com os movimentos, às vezes brutos e
selvagens, entrando e saindo com força, e outras mais calmos e suaves,
amorosos, exatamente como a música que tocou para mim ao piano, com
notas que subiam e despencavam, sem nunca parar.
Eu também não paro, sentindo a fagulha em seu interior se
transformar em chamas, seu clamor aumentando até que seja impossível
distinguir suas palavras balbuciadas dos gemidos, choramingos e gritos.
Não lhe poupo do que precisa, e uso, sim, meus anos de experiência a mais
ao desaparecer dentro dela, friccionando nossas pélvis, o gatilho final que a
dispara por um vórtice de perdição.
Ela quebra, entoando meu nome — eu acho. O som parece quase
fantasmagórico, perdido, rezado. Idêntico à primeira vez e, ainda assim,
único. Mas está lá, no fundo da minha mente, a voz de Anastasia em seu
ápice.
Andrei.
Andrei.
Andrei.
Quando minha vez chega, convidada pela dela, eu transbordo,
desfazendo-me e me remontando em um novo homem, e também canto
uma palavra. Se com a voz ou a mente, não sei dizer. Mas não é o seu nome
em si, e sim a representação dele que pertence somente a mim.
Princesa.
Princesa.
Princesa.
Por minutos ou horas ou por uma vida inteira, não digo nada, ela
tampouco, pois não há palavras que expliquem a balbúrdia de sentimentos
que nos tomam. Nada. Até que meus instintos falam mais alto, e não me
preocupo em ocultá-los, em me envergonhar ou temer que se assuste. Eu me
ajoelho, sentindo o desconectar de nossa união como uma parte de mim
sendo arrancada, e fico feliz que tenhamos mais tempo, porque não existe a
chance de pararmos por aqui. Depois a observo de cima.
Anastasia.
Linda, esparramada sobre os lençóis bagunçados. Minha. Busco os
detalhes e os guardo. Sua boca gasta e sorridente. A extensão do pescoço
com os rastros dos meus beijos, círculos vermelhos grandes e pequenos. Os
seios firmes, estimulados tanto pela minha língua quanto pelas mãos. A
barriga, guardando uma semente de vida.
Dobro e afasto seus joelhos, minha garganta ressecada vibra com
um rosnado.
O inchaço, a vermelhidão, os resquícios…
Ela não acha estranho que eu precise ver, ter uma prova de que não
estou alucinando — para que, quando enfim fechar os meus olhos mais
tarde e deixar que o cansaço me leve para a escuridão do sono, eu não tenha
medo de voltar a abri-los. Então eu olho, e olho e olho. Depois eu a toco no
centro pulsátil de seu corpo, e Anastasia também me deixa fazer como eu
quiser, tomar o que eu quiser, ver o que eu quiser.
E tudo fica claro na minha cabeça, no meu coração.
Porque quando movo meus dedos, sentindo a minha essência lá
dentro, vendo o que eu despejei escorrendo, marcando-a, reivindicando o
corpo que carrega uma criança, e que essa criança é minha, assim como a
própria Anastasia, eu sei que ela entende.
Para mim, também é ela e mais ninguém.
Somente ela.

***

A primeira coisa que procuro e vejo ao abrir meus olhos, é


Anastasia ao meu lado, absorta em um sono calmo, recobrando as energias.
Não faço ideia de onde foi parar o meu celular para conferir as horas, e não
há relógios no quarto, mas aquela mesma fenda na cortina, e a luz
alaranjada além dela, indicam um novo amanhecer.
Passamos o dia anterior inteiro juntos, nos amando das mais
diversas formas, em todos os cômodos do apartamento. Anastasia me
presenteou com outro espetáculo ao piano, mas comigo dentro dela, depois
eu fechei a tampa maciça do instrumento para que ela se deitasse, e retribuí
o favor com a boca. Quando a noite caiu, a exaustão e a fome nos forçaram
a fazer uma pausa, embora eu tenha cedido mais por ela do que por mim.
Então nos banhamos juntos, comemos e dormimos — por pouco tempo.
Durante a madrugada… olho para a cabeceira da cama, foi ali que eu pedi
que se segurasse, de costas para mim, recordo-me com um sorriso, os
detalhes ainda frescos na memória.
Então é surpreendente que eu tenha acordado antes do meio-dia, por
maior que seja o meu vigor.
Sinto uma ruga se formar na minha testa, entre as sobrancelhas, e
desvio meu olhar para a porta aberta, parte do corredor escuro me olha de
volta. Há apenas silêncio para além da total ausência de claridade, já que
não nos demos ao trabalho de abrir as cortinas e janelas dos outros
cômodos. Nada que justifique o meu despertar.
Não que acordar assustado seja uma novidade para mim, estou
acostumado com pesadelos me arrancando do sono, mas considerando que a
última noite foi a melhor da minha vida, é no mínimo estranho…
Como uma resposta às minhas desconfianças, três batidas soam na
porta de entrada do apartamento, fortes e impacientes, indicando que não é
a primeira tentativa de quem quer que seja.
Anastasia continua imóvel, desacordada, com uma perna dobrada
sobre a outra e um travesseiro entre elas. Vejo as pequenas manchas em seu
pescoço, uma particularmente grande sobre o colo, pouco acima do seio, e
engulo em seco para controlar a reação imediata do meu corpo. Eu poderia
observá-la dormindo por horas.
Com muito pesar, e um pouco de ódio do idiota batendo à nossa
porta — dos idiotas, já que tenho uma ideia de quem possam ser —, deslizo
para fora da cama, visto as calças que encontro amassadas em um canto do
chão, e caminho na ponta dos pés até a entrada. Assim que abro a porta, os
dois entram sem esperar um convite.
Somente meus irmãos conseguiriam subir sem serem anunciados.
— Então é aqui que você está se escondendo — Roman diz, olhando
ao redor, com as mãos nos bolsos de uma jaqueta preta. — Um pouco
escuro para o meu gosto. — Ele faz uma careta ao notar as tapeçarias nas
paredes. — E para o seu também. O estilo clean combina mais com a sua
caretice.
— Tentamos ligar — Ivan explica antes que eu tenha a chance de
mandar Roman à merda. — Nem você, nem Anastasia, nos atenderam.
Olho de um para o outro, lembrando a mim mesmo que os amo e
devo muito aos dois, e que, portanto, não posso simplesmente expulsá-los.
Embora eu queira. Daria qualquer coisa para voltar para cama e passar mais
um dia, ou dois, ou cem, isolado com a minha mulher.
— Estivemos ocupados — explico vagamente, mas meu tom faz
Roman dar um sorriso. — O que vocês querem?
Eles se entreolham de modo cúmplice, o que me preocupa. Roman,
com um toque de humor no sorriso torto, responde:
— Viemos buscar nossa cunhada.
— Eu disse que era uma péssima ideia. — Ivan o censura com um
olhar. — Mas, como você não deu notícias, eu decidi vir junto. — Ele agita
os ombros, despreocupado, como se invadir meu apartamento às… sabe-se
lá que horas da manhã, fosse algo totalmente normal em comparação ao que
nosso irmão disse.
— Não faz nem vinte e quatro horas que saímos da mansão — tento
argumentar, eles me ignoram.
— Fique feliz, nossa mãe queria mandar uma equipe de segurança.
— Ivan, usando uma camisa branca de botões e calça social, caminha pela
sala, observa o cômodo interligado à cozinha e espia o corredor vazio,
provavelmente à procura de Anastasia, depois se volta para mim e
acrescenta: — E a polícia.
— Mas a Lara foi contra — Roman complementa. — Disse que
somos loucos superprotetores possessivos sem noção de limites. — Ele
sorri de modo diabólico. — Eu agradeci o elogio.
Evito revirar os olhos e, calmamente, digo:
— Estamos bem e vivos, como podem ver. — Deixo a porta aberta,
para o caso de captarem a indireta, e caminho até a poltrona que fica no
centro da sala, próxima aos sofás. Apoio-me no encosto, de braços
cruzados. — E a Lara está certa, acho até que ela foi gentil demais. Nós
somos piores do que isso. — Incluo-me na descrição, porque eu sou,
provavelmente, o mais intrometido de todos.
Roman gargalha, e Ivan continua sondando o caminho até os
quartos, com esperanças claras de vê-la de repente. Sei que não faz sentido,
mas sinto uma pontada de algo parecido com ciúmes, não por desconfiar
das intenções dele, jamais, pois meu irmão só tem olhos para a mulher, mas
por saber que Anastasia não é mais só minha.
Loucos superprotetores e possessivos de fato.
Mas isso é bom. Uma parte racional do meu cérebro se alegra por
ela. A amizade entre eles é um passo muito grande para minha princesa, que
viveu aprisionada e solitária por tempo demais, longe de figuras masculinas
decentes. Só por ela aceitar a companhia deles sem sentir medo já é o
suficiente para que eu queira me ajoelhar e beijar os pés dos meus irmãos.
— Ela está dormindo — digo a eles, sorrindo. Ivan olha para mim e
aquiesce, ciente de que estou falando para que ele relaxe. Roman não tira o
sorriso orgulhoso e debochado do rosto. — E eu a amo, ela é a mulher da
minha vida, então podem baixar a guarda agora, não pretendo perdê-la. Não
me arrependo do que eu fiz, mas…
— Não foi fácil se segurar — Ivan diz por mim, referindo-se à sede
de sangue que senti perto de Yerik. A vontade de matá-lo. Ele entende,
porque já passou pelo mesmo. Depois de tudo o que Lara sofreu, não me
surpreende que tenha se afeiçoado tanto a Anastasia.
— Bom, eu nem teria me dado ao trabalho — Roman fala como se
tirar uma vida não fosse nada demais. Um sussurro obscuro na minha
cabeça concorda com ele. — Vladimir quer que a gente se reúna hoje,
precisamos saber dos detalhes sórdidos sobre o seu encontro com o
canalha. Ao que parece, não há mais nada na internet que ligue Anastasia a
ele, e acho que você tem alguma coisa a ver com isso.
É verdade, acabei não contando tudo, já que estava transtornado
demais e com pressa, mas sabia que essa conversa aconteceria cedo ou
tarde. Gostaria que não fosse tão cedo.
— Claro, já estava nos meus planos. — Passo a mão na nuca, no
cabelo, depois esfrego os olhos. — Zayn, o irmão dela, deve se juntar a nós.
Roman abana a mão no ar, entediado.
— Ótimo, o presidente vai enviar o horário e o local, então é melhor
manter o seu celular por perto — alfineta-me, estalando os dedos como se
eu fosse seu empregado. — Agora, chame nossa querida cunhada, não
temos o dia todo.
Meus olhos se estreitam.
— Chamá-la para o quê, posso saber?
— Nosso treino — diz, fazendo-se de inocente. — Ela não contou?
Sou oficialmente seu instrutor de defesa pessoal. Combinamos de treinar
todos os dias ao amanhecer. Você nos interrompeu ontem, inclusive.
Conto até dez mentalmente, mas nem isso é suficiente para disfarçar
meu tom mortal quando pergunto:
— Está dando aulas de luta para a minha mulher? — Olho para
Ivan. — E você concordou com isso?
— Não exatamente. — Para seu crédito, ele não vacila. — Ela ficou
empolgada com a ideia, eu não consegui dizer não. Então, avisei que
poderiam treinar desde que eu supervisionasse os dois.
— Em que universo isso é melhor? — vocifero, apertando os
punhos. Ela está grávida, será que eles bateram as cabeças?
— Sou um ótimo treinador — Roman se defende. Sua sorte é que
Ivan dá um passo à frente, colocando-se entre nós.
— Não vamos levá-la hoje — diz. Abro a boca para gritar que não
irão levá-la nunca, mas ele aponta o polegar para nosso irmão babaca e
continua: — Ele é um idiota, mas eu entendo a sua preocupação. — Não
duvido, afinal, Lara também já passou por uma gravidez e ele quase
enlouqueceu todos nós com seu excesso de zelo. — E nós dois sabemos
que, assim como eu, você também não vai conseguir, ou mesmo querer, que
ela se sinta proibida de qualquer coisa.
Merda.
Odeio quando Ivan decide usar os dois neurônios que ele tem. É
verdade, prometi que Anastasia seria livre ao meu lado, e se ela decidiu que
quer treinar com meu irmão, só me resta aceitar — o que não me impede de
alertá-los:
— Para o bem dos dois, é bom que ela não se machuque. — A
ameaça fica subentendida.
Quando estou pronto para mandá-los embora, um farfalhar à
esquerda chama minha atenção, pouco antes de ouvi-la arquejando.
— Ah! — Seu gritinho faz nós três olharmos para o arco do
corredor, onde Anastasia está parada.
Enrolada no lençol branco.
Nua.
— Porra… — Roman deixa escapar.
O tecido brinca com a transparência e mal cobre seus seios, uma
ponta mais longa chega à altura das coxas, escondendo sua intimidade.
Sobra pouquíssimo para a imaginação. Pouco demais.
Roman abaixa o rosto, achando o carpete muito interessante.
Ivan vira de costas na velocidade da luz.
Anastasia, de olhos arregalados, não sai do lugar, paralisada pelo
choque. Há medo também em seu lindo rosto exangue, como se ela tivesse
feito algo errado, e é isso o que me impede de sair mandando os dois para
os sete infernos.
— Volte para o quarto, princesa — digo, atuando uma calma que
não sinto. Podem ser meus irmãos, mas a mera ideia de outros homens a
vendo assim me deixa ensandecido. — E espere por mim.
Ela pisca, despertando do estarrecimento. Sua palidez dá lugar ao
rubor, que a tinge de vermelho sangue, ela faz menção de dizer algo, mas
desiste quando nenhum som sai de seus lábios trêmulos. Depois, vira-se e
sai correndo. Fico grato que eles não estejam mais olhando, pois nada lhe
cobre as costas. Assim que Anastasia desaparece e bate a porta do quarto,
eu me volto para os dois, esperando que sintam a minha ira.
Ivan, porém, está verde.
— Acho que acabei de ter um terrível vislumbre do futuro. — Ele se
apoia na parede, com a outra mão sobre o peito. — De quando minha filha
tiver essa idade e algum desgraçado…
Eu sou o desgraçado agora?
— Saiam — ordeno, já que a outra opção envolve arrancar seus
olhos. — Agora.
Felizmente, os dois obedecem. Roman, para a própria sorte, não faz
nenhuma piada indecente. Ivan, ainda abalado como se tivesse acabado de
ver sua filha sendo corrompida por um pervertido, para do lado de fora e
sobe um dedo em riste, dizendo:
— Espero que tenham uma menina.
Bato a porta na cara dele.
Uso o tempo que leva da sala ao quarto para me recompor, mas
assim que a encontro sentada no meio da cama, escondida debaixo do
lençol como um fantasminha, toda minha raiva desaparece.
— Me desculpe — ela diz com a voz embargada. — Eu não sabia
que eles estavam aqui. Quando acordei e não o vi na cama, sai andando sem
pensar nas roupas, já que nós não… bem, não as usamos desde ontem.
Acho que o sono me impediu de prestar atenção nas vozes…
— Você está na sua casa, princesa. — Sento-me diante dela, tirando
o pano de sua cabeça. Ela continua enrubescida, e é adorável. — Tem o
direito de andar como bem entender. Eu que devo desculpas, deveria ter
avisado que tínhamos visitas. E eles também devem desculpas, por
existirem.
Ela ri baixinho.
— Não está bravo?
— Não com você. — Sorrio, acariciando seu rosto. — Nunca com
você.
Anastasia me devolve o sorriso e não diz nada por um tempo. Seus
cabelos estão selvagens, e ela afrouxa o aperto no lençol, que escorrega e se
amontoa como nuvens à sua volta. Seus olhos perdem o foco, e já a
conheço bem o bastante para saber que se perdeu em algum lugar da própria
mente. Adoro quando faz isso.
Mas não antecipo o golpe da flecha que atravessa o meu coração
assim que ela volta a si e afirma com casualidade:
— Eu o amo. — Parecendo testar as palavras, ela tenta de novo: —
Amo você, Andrei. Percebi que não tinha dito ainda.
Realmente, não me lembro dela retribuindo minha declaração. Não
senti falta em momento algum, mas ouvi-la confessando o seu amor acende
algo novo dentro de mim. Uma chama de esperança que havia há muito se
apagado. Tento não parecer emocionado demais para não interrompê-la.
— Você disse de outras formas.
Ela olha ao redor, franze as sobrancelhas e me encara.
— E você me ama. — Não é bem uma pergunta, mas respondo
mesmo assim.
— Sim, também amo você, princesa.
— E vai ser o pai do meu bebê. — Sua mão procura a barriga. O
amor que sinto por ela se acumula e se multiplica junto com o amor que
sinto pela criança lá dentro, uma espécie de fonte infinita.
— Eu já sou o pai do nosso bebê, disse isso ontem.
Suas pálpebras se fecham e se abrem lentamente. Ela concorda,
balançando a cabeça, processando como tudo mudou em tão pouco tempo.
Demos um grande salto, e não me arrependo. Faria tudo de novo, me
destruiria quantas vezes fossem necessárias, se o resultado fosse o mesmo:
nós dois juntos.
— Não sei como lidar com tanta felicidade. O que fazer com tudo
isso. Não estou… — Ela morde o lábio. — Acostumada.
— Nem eu — digo, porque é a verdade. Mesmo sendo palavras
dolorosas, apego-me no presente, nessa nova chance de sermos felizes.
Deito-a no colchão e me acomodo sobre ela, nossas pernas se entrelaçam e
nossas bocas ficam na distância de um fôlego. — Mas vamos descobrir
juntos. E você pode começar me dando um beijo.
— Gosto desse plano. — Seus olhos brilham, ela sela nossos lábios.
— Amo você. — Dá uma risadinha que sinto no coração. — É gostoso
dizer isso.
— Então continue repetindo, por favor. — Eu a beijo igualmente
rápido, com selinhos. — Mas… — Afasto-me e a provoco: — Ouvi dizer
que a minha doce mulher grávida, que me ama muito, e que eu amo de todo
coração, está aprendendo golpes de luta e defesa pessoal. — Ela resmunga,
encolhendo-se diante da minha descoberta. Mordisco seu queixo. — Acho
que hoje eu serei o seu professor.
Minha princesa não protesta quando enfim a beijo com voracidade.
E, pelas próximas horas, ensino-lhe alguns truques — nenhum do qual
precise se defender.
26
Anastasia
MINHA HORA FAVORITA do dia continua sendo o café da manhã,
quando eu e Andrei nos sentamos à mesa — às vezes, eu em seu colo, como
hoje — e tomamos chá ou café juntos. Há sempre uma variedade exagerada
de comida também, muito mais do que duas pessoas são capazes de comer,
e ele insiste que eu prove um pouco de tudo, usando a sua desculpa
preferida de que “o bebê quer”.
Acontece que o bebê sempre quer muitas coisas, e a maioria delas
envolve eu comendo algo delicioso e calórico, ou descansando com as
pernas para o alto. Em dez dias, minha barriga se tornou mais proeminente,
e tenho minhas dúvidas de que seja apenas por conta da gravidez, mesmo
com Andrei insistindo que ela continua pequena demais para os meus recém
completados três meses de gestação.
— O médico disse que não há nada de errado com o tamanho da
minha barriga — repito, com um sorriso, quando o assunto vem à tona outra
vez, empurrando a tigela de mingau que ele tenta me oferecer. — Pode
confirmar por si mesmo mais tarde. E se eu comer mais uma colherada
disso, juro que vou vomitar.
Ele abre o sorriso, aquele que não é inocente e nem divertido, mas
reservado para seus casos judiciais. O sorriso de advogado manipulador.
— Mas o bebê q…
— O bebê — impeço-o de completar seu argumento regular e
envolvo seu pescoço com os braços — está dormindo, senhor Volkiov. E ele
não gosta de mingau de semolina com frutas vermelhas.
Seu corpo fica rígido, e a mão que ele havia casualmente deixado
descansando sobre a minha perna começa a se mover, fazendo círculos na
minha pele. Descobri em nossa segunda noite juntos o quanto ele gosta de
ser chamado assim, e desde então faço todo o possível para usar o título nas
horas que ele menos espera.
É divertido e novo ser… ousada. E coloco isso em um potinho
imaginário de pequenas vitórias das quais me orgulhar. Mesmo que eu
acabe corando todas as vezes.
Andrei gosta disso também.
— Minha princesa está aprendendo a jogar o jogo — ele diz, rouco,
o espelho da arrogância controlada.
Eu teria que nascer de novo para vencer Andrei Volkiov, o Rei dos
Tribunais, em uma disputa de argumentos, mas acentuo minha expressão
inocente mesmo assim ao responder:
— Estou aprendendo com o melhor.
Ter o ego massageado? Sim, outra coisa de que ele gosta bastante.
Não que eu esteja fazendo uma lista. Ou estou? Bem, talvez, acho que sim.
Ok, eu posso estar viciada em descobrir como surpreendê-lo e culpo os
meus hormônios por isso. Se Andrei vai usar a desculpa do bebê e sua
interminável fome para me convencer a fazer coisas, eu tenho o direito de
usar os hormônios da gravidez em minha defesa tanto quanto eu puder,
certo?
Por exemplo, o calor que se desprende do meu ventre e faz meu
coração bombear mais sangue do que o meu cérebro consegue receber,
tornando a minha visão nebulosa? Hormônios! Nada a ver com a mão de
Andrei se esgueirando pela barra da minha camisola de seda, e nem com o
crescente volume sobre o qual estou diligentemente sentada. De jeito
nenhum, nadinha. E eu com certeza não estou afetada com a promessa em
seu olhar de… alguma coisa. Andrei sabe ser bem criativo, e cada vez que
me deixo levar por suas ideias degeneradas, um novo item é adicionado ao
meu potinho da vitória.
Ele emite um som rouco ao limpar sua garganta, e pisco, voltando à
realidade. Ao olhar para ele, encontro o maior sorriso malicioso do mundo.
— Em que está pensando? — pergunta, mas ele sabe muito bem.
Depois de colocar todos os meus segredos na mesa e abaixar minhas
defesas, Andrei percebeu que conseguia fazer o seu "lance de advogado" e
interpretar meus sentimentos e expressões com uma facilidade que antes
não existia, e isso se tornou mais um de seus passatempos. E, tenho que
admitir, ele quase sempre acerta ou chega muito perto.
Quando perguntei se ele realmente não tinha um superpoder de ler
mentes ou coisa parecida, enquanto voltávamos juntos do abrigo, ele riu de
mim e disse que eu o estava seduzindo com a minha fofura. Foi assim que
acabamos fazendo amor na garagem do nosso prédio, dentro de seu carro
muito caro e muito transparente — o que me fez evitar todos os vizinhos
por alguns dias, com medo de que algum deles tivesse nos visto.
— Você sabe como é — reviro os olhos dramaticamente —,
hormônios e coisas de grávida.
— Se está tentando me convencer a faltar o meu maldito trabalho —
ele sobe a mão à altura das minhas costelas —, saiba que está funcionando.
É difícil pensar com clareza quando suas mãos estão sobre mim, seu
vocabulário rude também me afeta, e sei que está fazendo de propósito.
Andrei nunca age levianamente.
— Faltar? Jamais! — brinco, sorrindo. — Só se atrasar um
pouquinho.
— Um pouquinho não é tempo o bastante para o que eu quero fazer
com você agora, princesa.
Eu me engasgo, arregalando os olhos. Não esperava um ataque
direto. Esse homem não tem limites. Andrei ri alto, orgulhoso por marcar
seu ponto do dia, mas mantém a mão pairando em minha pele, por baixo da
roupa, como uma promessa velada.
Aceitando que perdi nossa disputa de provocações, mudo de assunto
rapidamente.
— Como hoje eu não tenho que dar aula no abrigo, combinei de
passar a tarde com a nossa vizinha, a Yuliya, até a hora da consulta.
— Eu buscarei você para irmos juntos. Convenci meus irmãos e
minha mãe a nos encontrarem na clínica. — Andrei hesita, olhando-me se
esguelha. — Tem certeza de que não quer seus irmãos presentes?
À menção de meus irmãos, tenho um vislumbre dos dois em minha
mente. Não dos homens altos e independentes e distantes que se tornaram,
mas dos dois garotinhos que um dia foram o eixo da minha infância. Eles
não existem mais, e ela — a menininha que passava seus dias trancada em
uma sala de música — também não.
— Não faço ideia de como contatar Akira, não nos falamos há um
bom tempo. E Zayn… — Meu coração reclama com a culpa e o amor que o
inundam. — Nós ainda temos muito o que conversar, e não quero todas as
coisas não ditas pairando entre nós enquanto descobrimos o sexo do nosso
bebê.
Ele balança a cabeça, respeitando minha decisão sem questionar.
Sua mão desliza para as minhas costas, tracejando minha coluna com os
dedos. Não sei se é intencional ou um movimento inconsciente, mas me
arrepio de qualquer forma.
— Talvez seja uma boa hora para contar que existe uma aposta
rolando sobre o sexo do bebê — diz. Olho para ele, interessada. — Roman,
Vladimir e Iago imaginam que será um menino, mas eu acho que é mais
uma esperança do que uma certeza. Serena e Lara disseram que teremos
uma menininha, alguma coisa sobre intuição materna. Ivan também apostou
em uma menina. Na cabeça dele, mereço passar pelo carma de seduzir você.
Minha mãe continua com a história dos gêmeos, mesmo eu dizendo que
nenhum dos seus ultrassons anteriores mostrou mais de um bebezinho.
Andrei olha para a minha barriga e faz um som queixoso, soltando o
ar pelo nariz, como se fosse óbvio, pelo tamanho da minha barriga, que mal
há espaço suficiente para comportar uma criança, quem dirá duas.
— E devo presumir que há um prêmio para quem acertar?
— Dinheiro — ele responde casualmente. — Algo na casa dos seis
dígitos.
— O quê?! — Minha voz sobe algumas oitavas, meus globos
oculares saltando das órbitas.
Andrei segue rindo.
— Não há como controlá-los, acredite, eu tentei. E sei que ficarão
felizes independente de qual for o resultado, só estão se divertindo. Roman
começou com essa história e acabou saindo do controle. Só contei porque
não queria que eles a surpreendessem.
Eu não tenho dúvidas de que todos os meus cunhados e suas
esposas, assim como minha sogra e seus netos, estão amando a perspectiva
de um novo membro chegando à família. E por mais imprevisíveis que
sejam às vezes, sinto-me honrada em tê-los.
Beijo o queixo de Andrei e sorrio para tranquilizá-lo.
— Ainda vou ter que me acostumar com essa coisa de fazer parte da
família mais poderosa do país.
Ele para com as carícias e me abraça pela cintura, ajeitando-me para
estar o mais perto possível de seu corpo, espremida no peito firme.
— Você é uma herdeira de renome, mesmo tendo pais...
questionáveis.
Andrei já sabe quem os dois são, o que fazem, onde vivem. Por sua
expressão sanguinária, posso sentir que sua opinião sobre eles não é das
melhores, mas acho sua escolha cuidadosa de adjetivos digna de mais um
beijo, dessa vez, nos lábios. Ele suspira na minha boca e suas mãos
retornam à exploração, passeando pela minha coxa nua.
Por não querer esconder nada dele, nunca mais, vejo-me dizendo:
— Sim, estou habituada aos privilégios da riqueza, a ambientes
luxuosos e roupas caras. Cresci nesse meio. Mas nunca tive acesso direto a
grandes quantidades de dinheiro e com certeza nunca na mesma escala que
você e seus irmãos. Tudo o que eu ganhei durante a infância ficou nas mãos
dos meus pais, e quase todo o patrimônio que juntei antes de me envolver
com Yerik, acabou se diluindo na fortuna dele.
Exceto por algumas antigas economias, as quais tive acesso
novamente após o divórcio, e de ser uma herdeira-projeto-de-caridade de
Yekaterina e Leonid, junto com meus irmãos, não tenho muito do que me
gabar.
Sinto Andrei ficar tenso, suas mãos param de se mover, exceto por
um espasmo nervoso que faz seus dedos flexionarem. Superamos a fase de
não pronunciar o nome de Yerik, e começamos aquela de suportar a
realidade até que não doa mais — ou que Andrei pare de se tornar tão
sombrio à sua menção.
Ele me disse que isso nunca vai acontecer.
— Você se arrepende de ter renunciado ao seu direito à metade de
todos os bens de Yerik? — questiona.
Andrei me contou a maior parte do que ele fez ao meu ex-marido, o
dano que causou aos seus negócios e sua ruína iminente, deixando de lado
apenas os detalhes mais violentos — esses eu pedi a ele que compartilhasse
apenas com seus irmãos, porque não teria estômago para ouvir, e não era
necessário.
A resposta desliza com facilidade quando abro a minha boca e
começo a falar.
— Eu não conseguiria viver com nada que viesse dele, ou que
tivesse sido contaminado por ele. Só o quero longe do nosso bebê. Tenho
tudo o que preciso bem aqui. — Pouso uma mão em seu peito e a outra
sobre o meu ventre.
Sua tensão se dissipa e o sorriso retorna ao rosto bonito, assim como
um lampejo de sagacidade que não consigo interpretar a tempo, antes de ele
dizer:
— Um marido estupidamente rico?
Perco momentaneamente a fala, abrindo minha boca em um círculo
desengonçado ao ouvir sua seleção meticulosa do título marido — não
namorado, mas marido. Andrei se delicia com a minha reação e aproveita
para exigir um beijo, brincando com a língua e mordiscando a minha boca.
— E estupidamente bobo — reclamo, mas não faço nada para
impedi-lo de receber seu prêmio por me capturar em outra artimanha
vocabular.
— Bobo e rico? — Ele ri, lábios nos meus, agarrando meus quadris
e os forçando para baixo. Andrei me esfrega contra ele, e a fricção derrete
minha mente. — Nossos filhos vão adorar.
Meu arquejo, que se projeta da minha boca trêmula e é capturado
por sua língua, não tem relação com a conversa. É puramente um reflexo do
meu corpo começando a atender o chamado ganancioso do corpo dele.
— Você quer isso? — indago com um fiapo de racionalidade. — Ter
mais filhos comigo?
Andrei encaixa seu rosto na curva do meu pescoço, deixando beijos
na minha pele. Quando se sente satisfeito, ele segura meu queixo com
delicadeza, erguendo-o para alinhar nossos olhares. Sinto sua respiração
como um toque carinhoso. Há malícia e amor no sorriso que antecede sua
fala, e seus olhos me adoram, desnudando-me enquanto suas mãos sobem
pelas laterais da minha silhueta, dependentes de mim, viciadas.
— Considere que eu a estarei engravidando quantas vezes forem
possíveis até que você determine um limite, Anastasia.
Sinto minha boca ressecar, drenada por sua estimulante e engenhosa
locução, e sou obrigada a umedecê-la. Seus olhos disparam para o
movimento como se cogitasse morder a ponta da minha língua.
— E se eu nunca lhe der um número? — pergunto, e minha
curiosidade é sincera.
Ele mantém sua atenção fixa na minha boca, flertando comigo.
— Então eu serei o homem mais sortudo e feliz do mundo.
— Parece algo cansativo — flerto de volta — de se conseguir.
Andrei dispensa minha observação com uma risada convencida. Ele
nem imagina o quanto se parece com Roman quando faz isso.
— De fato, nesse caso, é melhor nos mantermos em forma. —
Reforçando seu raciocínio, ele tateia minhas pernas, subindo e subindo.
— Você vai se atrasar. — Eu o lembro, fazendo-me de sonsa
enquanto aliso as lapelas de sua camisa. — E ainda não terminou de comer.
Para minha eterna decepção, ele fecha os olhos e suspira, libertando-
me de seu toque.
— Você está certa, princesa.
Arrependo-me instantaneamente por mencionar seu trabalho. Não
era esse o objetivo. Quero que continue me acariciando e fazendo
comentários espertos com seu timbre sensual, que refaça todas as marcas
dos beijos que já desapareceram do meu corpo. Estou prestes a implorar no
momento que ele estica o braço sobre a mesa. A princípio, imagino que ele
vá pegar sua xícara.
Não é isso o que ele faz.
Andrei joga quase tudo no chão: copos, xícaras e talheres. Eu me
sobressalto, não com medo, mas surpresa, vendo a tigela de mingau cair, e
prefiro não olhar para o estrago no chão. Quantos outros desastres o carpete
vai aguentar, é um mistério.
— O que você está fazen…
Ele me levanta, e antes que eu consiga entender seu plano, estou
deitada sobre a mesa, minhas costas quentes contra a madeira gelada, com
os joelhos dobrados.
Andrei é muito criativo.
E louco.
Completamente louco.
Ele faz o que quer.
Ouço os sons de seu cinto sendo desafivelado e do zíper de sua
calça, antes de seus dedos tatearam a frágil barreira de renda entre nós,
empurrando-a para o lado.
— Ainda não terminei de comer.

***

Acho que hoje todo mundo acordou e decidiu que sou algum tipo de
palhaça, uma pessoa que existe para seus eternos divertimentos.
Yuliya se curva, segurando a barriga e gargalhando histericamente.
Espero que seu apartamento também tenha proteção acústica, caso
contrário, todas as famílias em um raio de um quilômetro estão ouvindo sua
risada agora.
— Obrigada pelo apoio — reclamo, sarcástica, sentada à pequena
mesa de sua cozinha.
Seu apartamento continua estéril. Móveis simples, nenhuma
decoração, e ainda há algumas caixas empilhadas em um canto de sua sala
que não foram abertas em um passado próximo, considerando a poeira
acumulada sobre elas. É uma mulher ocupada e pragmática, assim como seu
marido, que não tive a chance de conhecer por estar viajando a trabalho.
Mas já é a terceira vez que nos reunimos desde o meu retorno e estou
gostando de ter uma amiga.
Nunca tive tantas.
Lara e Serena também se tornaram amigas especiais, assim como
minha prima Dema, com quem tenho falado frequentemente pelo celular e
que me prometeu uma visita assim que o bebê nascer. Mas, por morarmos
tão perto, minha amizade com Yuliya se tornou uma constante. Ela adora
ouvir sobre as minhas incursões com a família de Andrei.
— Desculpe, mas… — Ela limpa as lágrimas dos olhos depois de
seu ataque de riso. — Oito seguranças?
— Era para ser apenas quatro — conto, murmurando —, mas eu tive
uma ideia estúpida.
— Me conte!
— Você vai rir.
— Não vou, prometo! — Yuliya une as mãos pálidas na frente do
rosto, implorando. — Por favor, eu preciso disso para viver.
Sorrio diante de sua animação. Faço um suspense, fingindo decidir
se conto o resto da minha vergonhosa história. Yuliya pestaneja, agitando
seus cabelos dourados acima dos ombros magros. Por fim, rolo meus olhos
para cima.
— Tentei persuadir meu cunhado, o mais velho, a conversar com
Andrei e convencê-lo de que era um exagero.
Ela volta a dar risada, mas a abafa, crispando os lábios.
— Até eu, uma ninguém, já ouvi um ou outro rumor sobre a frieza
de Vladimir Volkiov, Nastya.
Encolho-me diante do apelido, mas Yuliya não percebe ou não acha
que é algo importante. Ela não sabe sobre Yerik, portanto, nem imagina que
ele me chamava assim.
— Pode não parecer — prossigo, deixando o desconforto de lado
—, mas eu realmente fiz um levantamento das minhas opções. Andrei já
havia descartado meu pedido com vários argumentos incontestáveis de
advogado. Ivan foi quem o convenceu a contratar mais gente, para começo
de conversa, dizendo que apenas Komarov não era suficiente. E Roman
pode até estar me ensinando autodefesa, mas ele ainda me trata como se eu
fosse uma boneca e vive jogando na minha cara o quão frágil eu sou
fisicamente. Vladimir era a minha esperança, imaginei que fosse o mais
coerente dos quatro.
— E o que ele fez?
— Me agradeceu pela, nas palavras dele, valiosa informação de que
seu irmão pretendia contratar um número inadequado de seguranças para
mim. — Suspiro com pesar. — E dobrou esse número. Agora estão
selecionando os melhores, com a ajuda do meu irmão, aparentemente, e
daqui duas semanas, no máximo, terei meu próprio comboio.
Yuliya cobre a boca e gargalha, dessa vez eu a acompanho. Sei que
meus cunhados, assim como Andrei, têm uma fama questionável, muitas
pessoas os admiram, mas um número ainda maior os teme. Eles são brutais,
teimosos e inconsequentes, mas no melhor sentido. Eu não me importo com
o que falam sobre eles. Sei que suas intenções são as melhores.
Considerando que a fama de Yerik era equiparável a de um santo, rumores
representam muito pouco da verdade.
— Talvez, na cabeça dele, proteger a família seja toda a coerência
que importa — Yuliya diz, a voz se abrandando.
— Lara disse a mesma coisa. Ao contrário de Serena, ela não luta
contra os seguranças.
— E você está lutando?
Olho para a janela aberta, esperando uma resposta milagrosa entrar
voando por ela. Não tenho como explicar à minha amiga que me sinto
apreensiva em ser acompanhada por tantos homens sem mencionar o meu
passado. Ao mesmo tempo, no entanto, eu sei que Andrei e seus irmãos
estão certos quanto à vigilância. Eles não querem que eu sofra mais. O
mínimo que posso fazer em troca é me acostumar com os seguranças.
— Não — respondo sem me prolongar. — Komarov é um bom
homem, Andrei me garantiu que os outros serão igualmente discretos.
Yuliya aceita minha resposta vaga, e essa é a sua qualidade que mais
gosto: ela não tenta cruzar os meus limites, não me questiona sobre o
porquê de Andrei Volkiov estar vivendo comigo em um prédio humilde, ou
o motivo oculto de sua superproteção. Não exige de mim mais do que
ofereço, e talvez seja esse o princípio de uma amizade verdadeira.
— Ele é bonito. — Ela se levanta e começa a preparar um chá com
ervas frescas. — O segurança.
— Komarov? — Arqueio as sobrancelhas, um tanto perplexa. —
Acho que sim, ele tem uma boa aparência, mas… ele é mais velho.
— Mas não está morto, está?
— Yuliya!
Não sei se ela está ou não brincando, e como sei muito pouco sobre
a sua relação com o marido, prefiro não aprofundar o assunto. Felizmente,
ela logo arruma um novo tópico para fofocar.
— Então seu irmão está ajudando. — Yuliya despeja a água fervente
em duas xícaras, e o cheiro das ervas infusionadas agitam o meu estômago.
O bebê, para o eterno divertimento de Andrei, parece gostar bastante de
chá. — Vocês estão bem? — Ela volta para a mesa e me entrega uma das
xícaras.
Encaro o líquido amarelado e inspiro a fumaça adocicada. Yuliya
sabe apenas o básico da minha relação com Zayn, ou seja, que é
complicada.
— Eu não sei. — Assopro meu chá e bebo devagar. — Vamos
almoçar juntos na próxima segunda, depois do trabalho. — Só de lembrar,
já me sinto exausta, porque sei que tocaremos em feridas antigas de ambos.
— Desculpe eu… — Dou um sorriso culpado. — Deve ser frustrante ser
minha amiga, não estou acostumada a falar muito sobre mim.
Yuliya rejeita minhas desculpas, estalando a língua.
— Sabe o que é frustrante de verdade? — Ela aponta para a porta
com olhar indiscreto. — Não podermos convidar seu amigo segurança para
tomar um chá com a gente. Tenho certeza que ele está com sede parado lá
fora sozinho. Eu deveria oferecer uma xícara? Talvez isso faça meu marido
voltar correndo e finalmente me ajudar com essas caixas.
Komarov a ajudaria com as caixas se eu pedisse, mas é melhor não
dar ideia.
Eu quase me levanto para abraçá-la perante sua demonstração de
que não se incomoda com meu jeito introvertido, mas só estico o braço
sobre a mesa. Yuliya imita meu gesto, segurando minha mão e apertando de
leve, sem perguntar mais nada pessoal pelo resto da tarde. E sou grata por
isso.

***
Andrei espreita o médico. Literalmente. Como um animal.
Acompanhando todos os movimentos do homem para se certificar que tudo
está dentro da ética profissional.
É engraçado, sobretudo porque o doutor Dubrov não se intimida,
acostumado, acredito eu, com papais protetores — e mais ainda com os
papais Volkiov, já que ele acompanhou as gestações de Lara e Serena
também, motivo pelo qual o aceitei. Confio no julgamento delas e, além de
ser muito qualificado, o que para mim é mais importante que meus receios,
os olhares ocasionais que ele lança para Andrei sugerem que quem precisa
se preocupar sou eu.
Rio baixinho dos meus pensamentos e Andrei move seus olhos de
um jeito muito predatório, desviando-o da minha barriga exposta e os
fixando no meu rosto. Sua expressão muda de ameaçadora para apaixonada
em um instante.
— Tudo bem, princesa? — pergunta. Vejo de relance o nosso
médico sorrir enquanto prepara os aparelhos. Andrei já me fez essa
pergunta, pelo menos, umas vinte vezes desde que entramos na sala de
atendimento. — Quer alguma coisa?
— Estou bem — murmuro. — E você?
— Como eu pareço?
Tenso. Ansioso. Estressado. Inquieto. Nervoso. Impaciente…
Acabo rindo de novo.
— Perfeito.
Andrei estreita os olhos, vendo através da minha pequena mentira.
Ele beija a minha testa e volta a prestar atenção no trabalho do médico.
É sua primeira vez em uma consulta, portanto, eu sei que não
adianta pedir a ele que mantenha a calma. O Dr. Dubrov, graças a Deus, não
se incomodou em repetir todos os exames físicos três vezes, explicando
cada passo a Andrei e garantindo que, sim, minha pressão está ótima, sim, a
pequena circunferência da minha barriga também está dentro do esperado, e
sim, é importante que eu continue tomando as minhas vitaminas.
Ajeito-me na maca e me preparo para o grande momento. O médico
pede licença e avisa o que vai fazer, e só encosta o instrumento gelado na
minha barriga quando autorizo com a cabeça. Atento-me ao homem que
segura minha mão com firmeza, não querendo perder sua reação.
O som preenche a sala.
Forte, rítmico, lindo. O tum-tum-tum acelerado do nosso bebezinho
flutua no ar, envolvendo-nos em um abraço invisível, a vida em seu estado
mais puro e inocente. Andrei olha para cima, de olhos arregalados, como se
esperasse ver a origem do som descendo do céu. Ele pisca freneticamente, e
quando abaixa o rosto, entendendo que sou eu, que os batimentos vêm de
dentro de mim, ele desmorona em lágrimas.
— I-isso é… — gagueja, rouco.
— Um coração muito saudável — o médico responde, satisfeito, em
um tom aprovador que me tranquiliza de imediato.
Andrei se abaixa, rindo e chorando, e beija todo o meu rosto. Nunca
o vi tão feliz, é contagiante, precioso, memorável. Não consigo imaginar
uma vida em que ele não esteja comigo, compartilhando cada alegria, sendo
meu apoio. O melhor pai, o melhor homem. Sentir a felicidade emanando
de seus infinitos beijos é quase tão bom quanto ouvir a preciosa melodia do
coraçãozinho do nosso bebê, nossa menininha ou menininho.
Seguro seu rosto molhado próximo ao meu.
— Ele bate como a Sinfonia n. 5 de Mozart, a parte do Allegro —
digo, sentindo o toque musical na ponta dos meus dedos.
— Tenho certeza que sim. — Sorrindo, beija a minha mão. Ele fica
mais bonito, se é que isso é possível, sem policiar suas expressões e gestos.
Livre de seus próprios tormentos. Ser feliz combina com Andrei. —
Obrigado por me proporcionar isso, princesa. Obrigado por me deixar amar
você. Obrigado por me escolher.
Como pode ser tão perfeito?
— Eu amo você — declaro minhas palavras favoritas. — Nós
amamos você, papai.
— E eu amo vocês.

***

Andrei fica igualmente emocionado com o ultrassom. Ele jura que


consegue identificar mãos, pernas e um narizinho, mesmo que para mim
tudo pareça um borrão. Um borrão lindo, apaixonante e perfeito, mas, ainda
assim, um borrão. E é claro que, durante todo o processo, em meio a
lágrimas e declarações de amor, ele submete o médico a outro interrogatório
que beira à tortura.
Mas está tudo bem com o bebê — e comigo, ele garante que o
médico deixe isso claro também. Então, eu me sinto nas nuvens, em paz,
feliz e completa como nunca.
Como suspeitávamos, ainda é cedo para descobrir o sexo do bebê
pelo ultrassom com cem por cento de certeza, embora o médico nos diga
que tem um bom palpite. Porém, como eu já havia coletado sangue
previamente para o exame de sexagem, já que Andrei e seus irmãos
morreriam de ansiedade se fossem obrigados a esperar mais quatro
semanas, ele nos deixa descobrir por nós mesmos e me entrega o envelope
lacrado ao final da consulta, junto com uma série de recomendações que
Andrei memoriza sem perder uma palavra.
Ao sairmos da sala, vamos para a área de espera e somos
recepcionados por uma multidão caótica. Todos vieram. Até Vladimir
arrumou espaço em sua agenda concorrida de presidente para estar aqui.
Eles são impressionantes juntos. Os quatro irmãos, por si só, com seus
ternos finos e rostos impressionantemente belos, chamam atenção como
faróis, mas na companhia de Lara, Serena e Tatiana, parecem um grupo de
celebridades… ou, sei lá, deuses?
Os bebês, que carregam os nomes dos avós, Tatiana e Nikolai, estão
dormindo em um carrinho compartilhado, quietinhos, e às vezes tenho que
me lembrar que os dois são primos, e não irmãos, já que estão sempre
grudados e só ficam calmos assim quando estão juntos. Luna está nos
braços de Iago, a cabecinha escura apoiada em seu ombro, parecendo uma
bonequinha de tão imóvel. Ele a segura de modo protetor, orgulhoso de si
mesmo por ser seu responsável enquanto os adultos estão ocupados.
— Finalmente! — Tatiana é a primeira a falar, desfilando à frente do
grupo com uma mão na cintura. Ela usa um longo vestido coral e justo que
revela sua ótima forma. Se não soubesse, diria que é irmã de Andrei, e não
sua mãe. — Por que demoraram tanto?
— Toda vez é a mesma coisa. — Roman, que achou conveniente
jogar um blazer preto por cima de uma camiseta com rasgos no peito,
deixando entrever a tatuagem por baixo, acompanha Tatiana nas
reclamações. — Da próxima vez, eu vou entrar junto — decide, estendendo
a promessa a todos os irmãos e cunhadas. — Foda-se o momento papai e
mamãe. Qual o problema desse médico, porra?
Fico feliz que não tenha mais nenhum paciente ou acompanhante
além de nós no recinto, mas duas enfermeiras que estão passando arregalam
os olhos e saem correndo.
— Eu os segurei o máximo que pude. — Lara vem até mim, com
um pedido de desculpas nos olhos. — Mais um segundo e seríamos
processados por Dubrov de novo.
De novo?
— Espere até ver como eles ficam no parto. — Serena revira os
olhos para o marido, dando-lhe um sorriso afetado. — Andrei era o elo que
os mantinham equilibrados. Você os arruinou permanentemente.
— Anastasia, ao contrário de um certo alguém — Vladimir diz com
sua voz poderosa — não vai negligenciar os sinais quando a hora chegar a
ponto de precisar ser levada às pressas para o hospital. — Vejo-me
acenando positivamente com a cabeça. Mesmo ele não tendo me feito
pergunta alguma, sinto que é um tipo de ordem.
— E é por isso — Ivan se junta ao irmão mais velho, afrouxando a
gravata cinza, totalmente descabelado — que eles deveriam ficar na
mansão, como eu disse desde o começo. Pelo menos, até o bebê nascer.
— E quando ele vai nascer? — Iago olha para a minha barriga e
franze as sobrancelhas, um gesto que já vi Andrei fazer inúmeras vezes. —
Sua barriga não está muito pequena? A da minha mãe ficou bem maior
antes da minha irmã nascer.
Andrei arqueia uma sobrancelha.
— Não é? — Ele aquiesce para o sobrinho, depois me olha
severamente. — É melhor consultarmos a opinião de um segundo médico,
só para termos certeza.
— Ela é pequena — Lara me salva, rindo. — Parem de ser loucos,
se o doutor disse que está tudo bem, então está tudo bem. E a barriga ainda
crescerá mais, meu filho. O bebê só vem daqui alguns meses.
— Mas ele disse isso? — Ivan se dirige a mim. — Que vocês dois
estão bem?
— Completamente bem — garanto.
— Vocês dois? — Serena cantarola. — Ou vocês duas?
— Ou vocês três? — Tatiana emenda, esperançosa.
Percebo que nenhum deles mencionou a aposta que fizeram, e fico
emocionada com o interesse verdadeiro deles em fazerem parte da vida do
meu bebê.
— Você conta. — Entrego o envelope a Andrei, pois estou tremendo
demais para abri-lo. Ele o faz meticulosamente, sem rasgar nenhum
pedacinho, ignorando o grunhido impaciente de Roman.
Andrei primeiro lê para si, seus olhos já inchados e vermelhos se
enchem de mais lágrimas. Ele me abraça, beijando-me antes de anunciar em
voz alta, com o maior dos sorrisos:
— É uma menina.
E quando todos eles, sem exceção, comemoram com palmas e gritos
e lágrimas, além de abraços e parabenizações, eu não tenho dúvidas de que
encontrei aquilo que sempre desejei a vida toda: uma família.
A minha família.
27
Andrei
NÃO POSSO MAIS adiar.
É tentador simplesmente ignorar e seguir em frente, fingir que não é
problema meu, principalmente agora que descobri como é sentir o ápice da
felicidade. Mas eu terei uma filha, uma garotinha, uma criança que um dia
se tornará uma mulher. E só de pensar nela rastejando por causa de um
relacionamento desastroso, sinto vontade de exterminar todos os homens da
maldita terra.
Todas as pessoas do mundo, se isso significar manter o coração da
minha menininha protegido das decepções. Aquele coração puro cujo som
ainda ecoa dentro de mim, com suas batidas aceleradas e inestimáveis,
apresentando-me a um novo tipo de amor.
E eu dei a minha palavra de que não cancelaria outra vez e aceitaria
qualquer data que ela determinasse.
Então escrevo uma resposta à mensagem de Evgenia que recebi
assim que coloquei meus pés na empresa, e que estive encarando ao longo
de toda a reunião com meus irmãos e outros quinze empresários, pouco
contribuindo para os negócios da família. Envio a confirmação de que
aceito o seu convite para almoçarmos juntos, mas deixo claro que será o
nosso último encontro, um adeus definitivo, a última porção de terra que
jogarei sobre o túmulo vazio que cavamos juntos.
Ergo meu rosto e encontro Ivan me encarando.
— Tudo bem? — pergunta em tom baixo.
Ao nosso redor, os demais homens já estão deixando a sala. Lara e
Vladimir fazem o trabalho enfadonho de se despedir formalmente,
agradecendo um por um pela presença e contribuições inestimáveis —
sendo a última parte uma grande mentira.
— Sim. — Guardo o celular no bolso e desvio meu olhar.
Felizmente, Ivan não insiste.
Vladimir aperta a mão do último possível investidor. O homem
devolve o cumprimento sem olhar nos olhos do meu irmão e murmura um
agradecimento que mais parece um pedido de desculpas. Ele sai da sala de
reuniões o mais rápido que consegue sem ser considerado uma corrida, e
finalmente a porta se fecha, restando apenas eu, meus irmãos, e Lara, nosso
braço direito e esquerdo.
É para ela que o presidente se vira, desfazendo-se da máscara
profissional. Seu rosto muda de neutro para exasperado, os olhos azuis
desbotados pelo cansaço.
— Pare com isso. — Lara não se abala. Poucos que se encontram
cara a cara com Vladimir Volkiov podem se gabar do mesmo feito. — Você
me disse para escolher os interessados com maior capital, não os mais
inteligentes. Surpresa! Nem todo homem podre de rico tem dinheiro por ser
um gênio nos negócios, alguns simplesmente dão sorte ou têm uma ótima
equipe fazendo todo o trabalho.
Ele massageia a ponte entre os olhos e suspira, caminhando até seu
lugar à ponta da mesa, um móvel antigo com espaço para trinta pessoas.
Vladimir se joga na grande cadeira presidencial, enquanto Lara ocupa o
assento ao seu lado, com Ivan à frente dela. Os dois trocam um sorriso
amoroso, e eu sinto inveja deles por poderem se encontrar o tempo todo,
enquanto eu sou obrigado a passar metade do meu dia longe de Anastasia.
— Iago conseguiria fechar acordos milionários melhor do que esses
homens — Vladimir observa, e não ironicamente eu concordo.
— Infelizmente — Ivan diz, tamborilando os dedos sobre seus
gráficos financeiros —, meu filho não é dono de uma companhia portuária,
e não podemos continuar usando o ancoradouro da vila sem prejudicar mais
ainda os moradores.
Vladimir concorda com a cabeça e olha para Roman, que leva seu
tempo encarando a estrutura que ele mesmo desenvolveu projetada em 3D
no televisor de apoio. Roman geralmente evita reuniões que exijam dele o
esforço de pentear os cabelos e vestir roupas formais, então sua presença é
uma prova da importância da situação.
— Precisamos mesmo de um porto maior o quanto antes, com um
cais que comporte mais barcos, para facilitar o transporte dos materiais —
reitera de maneira firme. — Se conseguirmos estocar uma quantidade
significativa de suprimentos, teremos um aproveitamento de, no mínimo,
trinta por cento do prazo previsto para a conclusão do resort.
Há pouco mais de um ano, Vladimir decidiu dar início ao maior
projeto imobiliário que já investimos: uma ilha inteira. Tudo começou por
um capricho envolvendo Serena e suas loucuras, mas meu irmão é um
visionário e soube unir o útil ao agradável. Reger integralmente um corpo
terrestre, seus empreendimentos e residentes, é o mais próximo de um
império que qualquer homem de negócios pode sonhar em chegar.
— A que horas você parte? — ele pergunta a Roman.
— O voo está marcado para às duas da tarde. — Ele confere o
relógio de pulso. — Daqui três horas e meia, mais ou menos.
— Ótimo, eu irei com você para fazer essa vistoria. Já faz algum
tempo que nossa mãe e Serena querem visitar a ilha para verem como a
mansão está ficando, então levaremos as duas e as crianças também. — Ele
olha para Lara, que entende a instrução imediatamente.
— Vou ligar para a Tatiana — ela informa, dando voz ao pedido do
meu irmão —, assim elas podem se organizar a tempo. Serena ainda deve
estar no abrigo.
— Serena vai surtar por você decidir isso de última hora, presidente.
Sua sorte é que ela gosta mais de viajar do que de trabalhar — Roman diz,
fazendo Vladimir sorrir.
— E prepare-se para levar os meus filhos com vocês — Lara
acrescenta. — Pois sua mãe vai usar a desculpa dos primos que não se
separam, como se não fosse culpa dela os dois serem assim. E Iago, que
aprendeu a ser uma miniatura teimosa, protetora e inflexível de vocês
quatro, vai querer ficar junto da irmã. — Ela se levanta, resmungando. —
Vou ter que ligar para a escola também…
Ivan segura sua mão antes que ela passe direto por ele e a puxa,
roubando um beijo. Lara o repreende com um olhar por fazer isso na nossa
frente, durante o trabalho, mas nenhum de nós dá a mínima. Desde que
estejam felizes, é só o que importa, e quando ela caminha rumo à saída, há
um enorme sorriso em seu rosto.
— Você é a melhor — meu irmão a bajula.
Lara não olha para trás ao atravessar a porta e caminhar para o
elevador presidencial, mas ouvimos as duas palavras que ela joga no ar.
— Eu sei!
Ao nos vermos sozinhos, compreendendo sua nova posição, Roman
faz uma careta.
— E lá se vai a minha semana de muito sexo e álcool à beira mar.
Pensando bem, não, obrigado, prefiro ficar aqui. Pode ir e levar Andrei
com vocês. Ele anda precisando de tomar um solzinho.
— Não vou deixar Anastasia. Você vai, você é o engenheiro-chefe.
Ivan e Lara cuidarão da empresa, e eu ajudarei no abrigo.
— Que conveniente. — Roman sorri de lado, enfrentando o meu
olhar com uma feição bestial. Seus caninos pontudos não foram herdados
de nossos pais, mas os considero sua característica física mais marcante. —
Resumindo, Vladimir e Serena vão transar na ilha, sob a luz das estrelas;
Ivan e Lara vão transar aqui na empresa, provavelmente em cima dessa
mesa; e você vai transar com a nossa querida e doce Anastasia nos
intervalos entre as aulas dela. Sabe quem não vai transar nessa história
toda? — Ele aponta para si mesmo. — Eu!
Ele está certo, é bem conveniente.
Obrigado.
Mas prefiro não pensar no que meus irmãos farão — e fazem —
com minhas cunhadas, muito menos quando ou onde. Seria hipócrita da
minha parte julgá-los depois de submeter Anastasia a todo tipo de
depravação. E como Lara é minha melhor amiga, minha irmãzinha,
abstenho-me de comentar.
De qualquer forma, sabemos que Roman vai dar um jeito de escapar
para o litoral, seja para arrumar confusão ou um caso de uma noite.
Possivelmente, as duas coisas. Mas sabemos, também, que é o cretino mais
talentoso do país e que fará o trabalho em tempo recorde para se ver livre o
quanto antes, e precisamos disso.
— O que você acha? — Demoro alguns segundos para entender que
Vladimir está falando comigo. Minha desatenção não fica alheia a ele. —
Algum assunto urgente que queira compartilhar, ou devo assumir que outro
de nossos edifícios servirá como base de tortura em breve?
Sua boca treme, um reflexo do sorriso que ele quase não consegue
esconder. Vladimir não está me repreendendo, sua dúvida é genuína: ele
não quer ser deixado de fora se for o caso. Como não tenho intenção de
explicar a eles o motivo de me sentir em dívida com minha ex-namorada,
porque isso levaria a mais perguntas indesejadas, conto apenas parte do que
está me preocupando, uma meia verdade.
— Anastasia vai se encontrar com Zayn hoje, só estou sendo
paranoico. Ela ama o irmão, mas a infância dos dois não foi nada bonita, e
sei que será doloroso para ela lidar com esse reencontro. — Sinto minhas
vísceras se contorcendo. — Pensei diversas vezes durante a noite em
mandá-lo desaparecer, mas isso não me faria diferente de Yerik.
Ivan se remexe na cadeira, desconfortável, seus olhos vagam para a
saída, como se enxergasse o rastro deixado por sua mulher e desejasse
segui-lo em busca dela. Mas não o faz. Meu irmão me encara, dando de
ombros.
— Essa é a parte difícil — diz. — Saber que não importa o quanto a
gente queira, não podemos protegê-las do passado ou escondê-las do mundo
para que não voltem a se machucar. Pelo menos, não na maioria das vezes.
— Ivan cruza os braços atrás da cabeça. — Sempre há exceções.
Eu que o diga.
— Zayn Serov traçou um perfil de caráter quando escolheu ajudar
com o divórcio de Anastasia — Vladimir discorre, a personificação da
calma profissional. — E não existe um julgador de caráter melhor do que
você, Andrei.
Ele está certo, pude avaliar Zayn quando nos conhecemos, ele ama a
irmã e quer se redimir de verdade. Eu já falhei uma vez, quando ignorei
meus instintos e me deixei enganar por Yerik. Não vai acontecer de novo.
— Como eu disse, só estou sendo paranoico.
— E é por isso que vocês são homens melhores do que eu —
Roman zomba, espreguiçando-se. Seja lá qual for a sua opinião, ou o que
faria no meu lugar, ele milagrosamente guarda para si. — Isso é tudo,
então? Podemos dar o fora? Não aguento mais essa gravata demoníaca. —
Ele puxa o nó em seu pescoço.
— Tem mais uma coisa. — Ivan aperta algumas teclas no laptop à
sua frente, e uma nova imagem aparece no televisor, um gráfico detalhado
de compra e venda, com projeções de lucros para os próximos doze meses.
— Os últimos imóveis que pertenciam ao grupo Giamatteo foram leiloados.
Conseguimos arrematar dezesseis dos vinte hotéis, que agora integram a
rede que adquirimos do Palliermo no ano passado.
Vladimir levanta as sobrancelhas, surpreso. Estamos tentando
alcançar a vanguarda do mercado hoteleiro na Itália há anos, e parece que
finalmente conseguimos.
— Pensei que eles tentariam resistir por mais tempo — o presidente
diz, referindo-se à dupla de irmãos Donatello e Elisabeta Giamatteo. — Que
lutariam pelo patrimônio perdido.
— Não tentaram — Roman informa, inteirado do assunto. Seus
meses na Itália não serviram apenas para diversão, afinal. — Eles
simplesmente sumiram do mapa depois da falência. Seus antigos clientes
foram os responsáveis por manter o legado do nome Giamatteo vivo por
alguns meses, porém, com a fonte seca, isso também foi se extinguindo.
Hoje em dia, ninguém se lembra deles por lá ou não se importa o suficiente.
É quase como…
— Se eles quisessem sumir — completo, antecipando o raciocínio
do meu irmão com base em suas informações.
— É relevante para nós? — Vladimir pergunta, olhando para mim.
Ele não quer uma opinião baseada em achismos e suposições, mas um
parecer jurídico.
— Legalmente, não existe nada com o que se preocupar, eles nunca
mais poderão reivindicar aqueles edifícios, são nossos. — Não me
aprofundo em maiores explicações técnicas, porque é a minha obrigação
saber delas e sintetizá-las.
Vladimir acena positivamente, satisfeito.
Com isso, chegamos ao fim de nossa reunião. Roman vai embora na
frente, comemorando o fim de suas viagens prolongadas à Itália, Ivan sai
em busca de sua esposa e Vladimir volta para a sua sala, a fim de adiantar
parte do trabalho antes de ir para a ilha, e eu…
Eu saio da empresa para me encontrar com a minha ex-mulher.

***

Tempo livre costuma ser o pior veneno para homens cuja mente não
consegue calar, e a minha tem muito a dizer. Na maioria, pensamentos que
não quero ouvir, lembranças que gostaria de esquecer. Para estrangular a
voz insistente dentro da minha cabeça, decido fazer o trajeto entre a
empresa e o restaurante caminhando.
Não é longe, e como estou adiantado, faço-o lentamente,
absorvendo a confusão de pessoas distintas e prédios que se perdem de
vista. Alguns lugares já começaram os preparativos para as festas de ano
novo, apesar da data ainda estar há semanas de distância. Vejo vitrines com
roupas que não pretendo usar, doces que não desejo comer e móveis que
não cabem no nosso apartamento. Tudo para não pensar.
Paro na frente de uma livraria e fico observando os títulos lá dentro.
Romances policiais. Fantasias. Terror. Comédias românticas. Livros de
romance erótico — um monte deles. Um livro de autoajuda sobre pessoas
que procrastinam. A biografia de uma cantora americana.
Livros infantis. Tio Fedya, O Cachorro e seu Gato; O Pequeno
Cavalo Corcunda; A Raposinha Prateada; O Pequeno Príncipe, um clássico
mundial. Faço um lembrete mental de voltar mais tarde para levar um de
cada, porque um dia eu os lerei para a minha filha.
Livros que eu nunca poderei ler para o bebê que Evgenia perdeu…
Não.
Não pense nisso.
Sigo em frente, andando com as mãos nos bolsos do meu paletó. O
tempo está ameno apesar do fim iminente do outono, e dos edifícios altos
ofuscarem os raios solares, mas eu sei que o frio deve chegar a qualquer
momento. Eu e Anastasia decidimos nos mudar temporariamente para a
mansão em breve, antes que a neve apareça para pincelar as ruas de branco.
Tatiana está exultante com a nossa decisão. Ela já reformou o meu
antigo quarto para receber a nossa bebezinha, arrastou Anastasia para um
shopping e fez um estoque de tudo o que uma criança de zero meses a um
ano de idade precisa e tudo o que não precisa.
Ainda não decidimos o que faremos depois, se voltaremos para o
nosso apartamento atual ou compraremos um novo em uma área mais
segura. Pelas contas, nossa filha nascerá entre Maio e Junho, e devemos
permanecer com a nossa família por, no mínimo, uns seis meses depois
disso, então não é uma decisão que precisemos tomar agora.
Estou ansioso para conhecê-la. Ver seu rostinho, as mãozinhas,
segurá-la em meus braços e a embalar durante o sono. Pergunto-me se será
parecida com a mãe, porque minha mulher é a mais linda que existe, mas
não me incomodo que tenha traços do doador biológico, isso nunca será
uma questão para mim. Minha filha será perfeita. O amor mais valioso na
forma de um pequeno ser humano.
Diminuo a velocidade dos meus passos e olho para o céu, as poucas
nuvens se movendo em uma lentidão densa lá no alto, e rogo por respostas.
Como contarei a Evgenia? Como explicar que terei uma filha com a mulher
que amo, e que essa mulher não é ela? Qual será a sua reação? Quer dizer,
eu não preciso contar, mas será que devo? Houve um tempo em que eu
achava que sabia lidar com ela, mas agora já não tenho tanta certeza sobre
quem controlava quem. Minha arrogância me deixou convencido demais.
Queria Anastasia comigo.
Sinto meu celular vibrando dentro do bolso e o pego
automaticamente, supondo se tratar de Vladimir ou Roman com problemas
na viagem — que eu ficaria feliz em resolver contanto que ocupasse meus
pensamentos pelo resto do caminho. Mas ler o nome de Anastasia na tela é
exatamente o que eu precisava. Ela é o antídoto para os meus suplícios.
— Oi, princesa — atendo com um sorriso que ela não pode ver —,
tudo bem?
— Sim — responde-me na vocalização melodiosa típica dela. — Só
estava pensando demais e quando dei por mim estava ligando para você.
Espero não estar atrapalhando.
— Nunca. — Meu sorriso diminui um pouco. Volto a caminhar. —
Onde você está? Komarov já a buscou no abrigo?
— Sim, a caminho do parque.
— E como está se sentindo? — sondo. — Nervosa? Sabe que não
precisa se forçar a isso se não quiser. Basta me dar a sua autorização e eu
lidarei com Zayn do meu jeito.
— Um pouco ansiosa — responde. Posso sentir pela tensão em suas
palavras. — Mas não precisa se preocupar, e nem assustar o meu irmão. —
Ela dá uma risadinha baixa. — Eu só queria ouvir a sua voz um pouquinho.
— E eu a sua. — Um nó se forma na minha garganta. Eu preciso de
muito mais. Meu corpo sente a falta de Anastasia, assim como meu coração.
— Você está bem? — ela pergunta, e consigo imaginá-la com a
cabeça inclinada para o lado, como acontece quando fica preocupada ou
confusa. — Aconteceu alguma coisa? Problemas no trabalho?
Não quero mentir.
Eu me deixei levar pela comodidade pacífica do nosso amor e
esperei que o resto desaparecesse no passado ao qual pertence. Fiquei
esperando o momento certo, mas ele nunca veio. Não posso mais fugir,
Anastasia merece saber que já falhei como pai uma vez. E se ela decidir que
não sou digno de nossa filha depois disso…
— Aconteceu algo — confirmo, porque parte da verdade ainda é
melhor do que uma mentira completa. — Mas você também não precisa se
preocupar. Eu… mais tarde… assim que estiver livre, avise-me ou peça a
Komarov que me ligue imediatamente, combinado? Quero passar o resto do
dia com você em meus braços.
Contar tudo agora por telefone, através de uma ligação de cinco
minutos no máximo, não é uma opção viável. Ela já tem coisas demais para
lidar agora, não é justo sobrecarregá-la com as minhas máculas. Depois de
falar com Evgenia, e depois de seu encontro com Zayn, então aí
conversaremos.
Hoje.
— Humm. — Ouço seu resmungo tímido. — E quanto a noite?
Por pouco não tropeço em meus próprios pés, mas esbarro em uma
senhora, que me olha feio. Murmuro um pedido de desculpas e abaixo meu
tom de voz ao falar com minha doce mulher atrevida.
— Acho que já estabelecemos que suas noites são sempre minhas,
princesa.
— Estabelecemos? — Ela se faz de desentendida em um tom
manhoso. — Não sei não. Como advogado, você deveria formalizar isso.
Sabe como é, só por precaução. Pensei que você fosse o melhor do país,
senhor Volkiov.
— Não me provoque, Anastasia — digo, amando essa faceta
audaciosa que ela mostra mais a cada dia. — Ou eu vou mesmo
providenciar um contrato sobre querer você na minha cama em horários
muito específicos e com roupas mais específicas ainda.
Ela faz um som que eu mataria para ouvir de perto, de preferência,
com seu corpo colado no meu.
Continuamos com as brincadeiras maliciosas por vários minutos.
Anastasia consegue desligar a minha noção de tempo. Eventualmente,
mudo de assunto, porque sou um homem em um terno justo caminhando
por ruas muito cheias, e também porque Anastasia, que tem o hábito de ser
expressiva e transparente demais, não está sozinha no carro.
Conto a ela sobre a ida de Roman e Vladimir para a ilha, e prometo
um passeio por lá em breve. Exultante, ela compartilha comigo sobre como
foi a sua manhã, começando pelo treino com meus irmãos, depois suas
aulas de música no trabalho e o progresso de seus alunos.
Quando chega a hora de nos despedirmos, já não sinto mais a culpa
angustiante ou o peso no meu coração, como se eu tivesse roubado um
pouco de força do infinito estoque que Anastasia possui, afinal, ela é muito
mais forte e corajosa do que eu. E mais bondosa também. E um ser humano
infinitamente melhor em tudo.
— Acabamos de chegar, tenho que ir. Já consigo ver meu irmão
daqui. Deseje-me boa sorte.
Por mais que eu não queira desligar, não encontro nenhuma
desculpa boa o bastante para prolongar a ligação.
— Boa sorte, princesa. Diga a Zayn que mandei um oi, e que se ele
a fizer chorar, o próximo encontro dele será comigo. — Faço uma careta
para mim mesmo. Deus! Estou soando igualzinho aos meus irmãos, senão
pior. E não me importo. — Não se esqueça, estou a uma ligação de
distância.
— Eu sei. — Algo como orgulho reverbera através do telefone. —
Amo você.
Meu peito inunda desse sentimento, transbordando, e eu respondo:
— Eu também te amo.
Continuo com o celular grudado na orelha por mais cinco segundos
após ela desligar, e quando o guardo no bolso, sinto-me pronto para voar.
Sorrindo, olho ao redor e noto que estou a uma quadra de distância do
restaurante, mas a vitrine ao meu lado chama a minha atenção.
Estou diante de uma joalheria. No expositor, um busto de cristal
exibe um lindo colar de ouro, dois pingentes pendem da corrente delicada:
uma nota musical e uma coroa com diamantes. A peça é magnífica, e parece
ter sido deixada ali especialmente para mim, como se as mãos invisíveis do
destino estivessem esticadas, oferecendo-me um presente.
Não penso duas vezes antes de entrar na loja.
— O colar na vitrine. — Aponto para o objeto. — Eu o quero.
A atendente, uma mulher na casa dos vinte anos com um longo
cabelo loiro, me olha de cima a baixo, medindo o meu nível social. Algo em
mim, provavelmente a minha expressão afobada, não a convence, pois ela
diz com um sorriso sem graça:
— A joia faz parte de uma coleção inédita e exclusiva, senhor. É um
lançamento…
Coloco o meu cartão preto sobre a bancada de vidro. Meu nome
brilha em dourado.
— Levarei o colar — afirmo, definitivo. Ela arregala os olhos. —
Não importa o valor.
— Agora mesmo, senhor Volkiov.

***

Genny e eu nos conhecemos alguns meses antes de Ivan retornar dos


Estados Unidos para se casar com Lara. Na época, eu me sentia sozinho, já
que Vladimir passava todo o seu tempo enfurnado na empresa, e Roman
quase nunca aparecia em casa.
Nosso começo foi bom.
Esbarramos um no outro na saída de uma festa corporativa. Ela
fingiu que havia sido um acidente, a consequência de um tropeço, mas eu vi
por trás da atuação calculada e não me importei. Fiquei intrigado com a sua
audácia, a inteligência fria por trás do flerte, e me deixei capturar por sua
armadilha. Esse foi o meu primeiro erro.
Sempre me achei um homem com inteligência acima da média,
sobretudo no campo das relações humanas. Um manipulador com mínimos
escrúpulos, mas criado para enxergar através do véu de sentimentos e
intenções. No entanto, pensando bem, eu nunca estive um passo à frente
com Evgenia, estive? Ela sabia como apertar os botões certos, como fazer
parecer que eu a entendia, quando na verdade ela me tinha nas palmas das
mãos.
Havia uma dança, e eu não era o condutor.
Nossa relação não se baseava em amor. Era uma competição e uma
obsessão para ela — talvez continue sendo. Me ter era a sua perspectiva de
vitória, uma representação deturpada de poder. Eu era o adversário e o
prêmio. Sua posse, sua conquista, seu brinquedo. E todas as vezes em que
acreditei que a havia acalmado, compreendido e resguardado, eram ilusões
tecidas com muito cuidado por uma igual.
O fato de eu estar aqui agora, sentado diante dela em um restaurante
requintado no coração de Moscou, cedendo o meu tempo e atenção, movido
por sentimentos de débito e culpa, comprova a minha idiotice.
— Você veio — ela afirma, mordaz, depois de me dar uma olhada
demorada que suga uma porção da minha força de vontade.
A injeção de felicidade que recebi de Anastasia pode não durar
muito tempo.
Também a analiso antes de abrir a boca, e me surpreendo com a sua
aparência. Da última vez que nos vimos, Evgenia estava descontrolada,
irreconhecível, gritando e quebrando coisas, com as feições distorcidas de
ódio e rancor. Nada parecida com a mulher à minha frente.
Ela é bonita, sempre foi, entretanto, sua personalidade complicada
não me permite mais admirar a casca em sua plenitude. Mas não é só isso.
Não sei o que eu esperava — nada, eu acho, já que nunca dispus de um
único pensamento para imaginá-la depois de três longos meses. Mas é um
alívio que pareça tão… saudável.
Nada de olheiras profundas e olhos vidrados.
Um casaco de pelos brancos, compatível com a meia-estação, abraça
seus ombros, destacando o preto de seu longo cabelo liso. Ela dedilha a
mesa com unhas curtas e bem cuidadas, com pulseiras de pérolas adornando
os dois pulsos. A única coisa remanescente do nosso último contato é a
promessa de algo violento que ronda seu semblante, tendo a mim como
alvo, mas já era esperado.
— Desculpe ter adiado tantas vezes, eu… — Busco uma
justificativa cabível, mas chego à conclusão de que não lhe devo
explicações. — Andei ocupado.
Ela estala a língua e solta uma risadinha arrastada, nem um pouco
parecida com os risos leves de Anastasia. Minha mãe costumava dizer que
Evgenia sibilava como uma cobra, será que estava se referindo a esse tipo
de som?
Balanço a cabeça.
— Então não estava me evitando de propósito? — O sorriso se
alarga.
Mantenho minha face inexpressiva, assimilando sua estratégia. É
assim que vai ser: um monte de insinuações passivo-agressivas, pois ela
sabe que são eficientes. Eu costumava encará-las como pequenas e
merecidas punições por não ser um bom companheiro, estava satisfeito
sendo a sua válvula de escape, um saco de pancadas para aplacar sua perda.
Nossa perda.
O lado bom é que a exposição prolongada às suas humilhações me
tornou resistente a elas — não imune.
— Apenas achei que não havia o que ser evitado, já que nós
terminamos. — Aperto os lábios, controlando a minha língua. — Entenda,
não estou aqui para começar uma briga, só acho melhor sermos sinceros.
Evgenia faz menção de reclamar, os olhos faiscando, mas um
garçom aparece para recolher nossos pedidos e ela sabiamente se cala.
Escolho uma salada, não por gostar e muito menos por estar com fome, e
sim por ser a opção mais rápida de ser consumida do cardápio. Quero
acabar com isso o quanto antes.
Assim que o homem se afasta, ela dispara:
— Você não voltou.
— Quando eu disse que era o nosso fim, estava falando sério. —
Cruzo as mãos sobre a mesa e me inclino ligeiramente. — Você precisa
aceitar isso, Genny. Não pode ficar cercando a minha família, a empresa,
meus funcionários. Esse nível de perseguição é crime. — Vou direto ao
ponto. — Se continuar assim, vai acabar sendo presa.
Seus olhos brilham com uma mágoa não contida.
— Você faria isso comigo? Me entregaria para a polícia por uma
bobagem dessas?
— Não. — E é verdade. A menos que ela represente um perigo real,
o que não é o caso. Ainda. — Mas meus irmãos, principalmente Vladimir,
não pensariam duas vezes. — Ela cerra os punhos. — E eu não os
impediria.
Ela não diz nada por um longo momento. Eu a deixo lidar com o
que quer que esteja sentindo. Enquanto isso, sinto o peso aconchegante do
colar em meu bolso, e reprimo a minha vontade de mandar uma mensagem
para Anastasia, perguntando como está indo seu almoço com o irmão.
Melhor que o meu, espero.
Evgenia inspira, preparando-se para formular uma frase, e volto a
prestar atenção nela.
— Sua família nunca gostou de mim. Eles queriam nos separar.
— Isso não é verdade. — Apesar da terrível e crescente sensação de
estar perdendo o meu tempo, olho para ela com firmeza. — Foi por esse
tipo de coisa, esses seus pensamentos e falas, que acabei me distanciando
dos meus irmãos, da minha mãe, até dos meus sobrinhos. Tudo para mostrar
minha lealdade a você. Eu… — Mordo a língua, frustrado. — Não importa
mais. Como eu disse, já passou da hora de seguir em frente. O que você
espera conseguir, insistindo em me encontrar? Por que me chamou aqui?
Acho que deixei bem claro que não queria vê-la novamente.
Ela espalma a mesa num ímpeto de fúria que não deveria me causar
familiaridade, mas causa. Meu corpo fica rígido, aguardando o ataque
verbal, mas o garçom retorna com as nossas saladas e Evgenia mais uma
vez recua — algo inesperado e surpreendente, tratando-se dela. Talvez, seja
um progresso?
Não, eu não sou ingênuo a esse ponto.
Assim que o homem vai embora, após deixar nossos pedidos sobre a
mesa em meio a um silêncio constrangedor, começamos a comer. Eu engulo
folhas e molho sem sentir gosto algum, enquanto Evgenia corta e mastiga
delicadamente. Nossos talheres raspando na porcelana branca é a única
intercadência em nossa dinâmica muda.
Evgenia quebra o padrão primeiro.
— Eu posso dar o que você quer.
Pouso a faca e o garfo de cada lado do meu prato, deixando metade
do almoço intocado.
— Se for sobre o apartamento, já providenciei os documentos
passando tudo para o seu nome.
— Um filho, Andrei! — exaspera-se. — Podemos continuar de onde
paramos há dois anos.
Jesus! Ela ao menos ouve o que está dizendo?
Não sou um homem que fica sem palavras com facilidade, mas de
repente todas elas desaparecem do meu vocabulário. Balbucio alguns "hãn"
e "que" antes de conseguir formular uma frase, e ela soa como se lanças
estivessem transpassadas na minha garganta.
— Nós já tivemos um filho.
— Ele nunca existiu — grita, atraindo alguns olhares que a fazem
cair em si. Recompondo-se, acrescenta, falando baixo: — Nunca teve a
chance.
Um lampejo de tristeza passa pelo meu peito, através dele, reabrindo
um buraco.
— E é em respeito a ele que ainda estou sentado aqui, ouvindo você.
Quero que você fique bem, Evgenia, mas não posso mais estar ao seu lado.
— Quantas vezes terei que repetir até ela entender?
— O que você tem feito?
A mudança súbita não me desestabiliza. Conheço a tática, sou um
especialista nela. É possível que tenha aprendido comigo. Responder,
porém, é um pouco mais complicado.
Estou morando com a mulher da minha vida, uma incrível musicista
que cativou o meu coração à primeira vista, e que agora carrega minha
filha dentro de si, e não faço outra coisa além de pensar nas duas vinte e
quatro horas do meu dia.
Não posso dizer isso assim nem fodendo, seria o mesmo que ativar
uma bomba atômica, e meu objetivo é o oposto de uma catástrofe. Mas não
vou mentir. Anastasia é valiosa demais para ser desonrada dessa forma.
— Eu segui em frente — esclareço sem vacilar, firme e direto,
torcendo para não precisar ser mais duro com ela. — Estou com outra
pessoa, e estamos nos dando muito bem. Por isso, estou pedindo a você que
faça o mesmo.
Ela abaixa as pestanas e se empertiga, um gesto normal demais para
o tamanho da notícia que acabo de compartilhar. Sinto um calafrio na
espinha e meu estômago parece se colar às costas enquanto várias peças
minúsculas começam a se encaixar, até que me dou conta de algo que evoca
um gosto amargo à minha boca.
— Você já sabia.
Ela não nega.
Ela. Não. Nega. Porra.
— Sei o que está pensando. — Evgenia rola uma azeitona no prato
de um lado para o outro usando o garfo, mas seu olhar permanece em mim,
fixo, colante, impregnado.
Que bom, pelo menos um de nós sabe, pois não faço ideia do que
pensar. Não é como se eu estivesse tentando esconder minha relação com
Anastasia. Pelo contrário, acho que mostrá-la ao mundo e me gabar dela se
aproxima mais dos meus esforços. Mas Evgenia saber, especificamente, me
deixa preocupado, o que não faz sentido.
Ela não é perigosa.
Não era, corrige a infeliz voz da razão dentro da minha mente, mas
você a deixou.
— Que sou louca — continua, esticando os cantos dos lábios em um
sorriso cáustico. Eu não sei se usaria essa palavra, mas que Evgenia não
está bem, é um fato.
— Você tem me espionado?
Até então, rondar a empresa e o abrigo, e interceptar nossos clientes
e funcionários atrás de mim, é tudo o que eu sei sobre os seus últimos
movimentos, mas se ela andou me perseguindo, vigiando… isso muda as
coisas. Do que mais ela é capaz? Não quero pensar na mulher com quem
planejei construir uma vida, que esteve grávida de mim, como uma ameaça,
no entanto, existe Anastasia agora, e minha filha, não posso me dar ao luxo
de ser leviano.
Mas que mal ela poderia causar?
O que mais ela sabe?
Evgenia não é um monstro, uma criminosa ou pior, mas está
desesperada, e eu sei o que pessoas desesperadas são capazes de fazer. Um
lampejo de Yerik sangrando me ocorre, seguido de uma mancha vermelha
em formato de coração. Empurro as duas lembranças para longe.
— Eu já esperava que você fosse — ela saboreia o ar, passando a
língua nos lábios — arrumar uma distração. Você sempre precisou, como se
fosse uma droga, mas é só sexo, certo?
Fito seus olhos estreitos, o rosto outrora belo adulterado por uma
lente da verdade, e não a reconheço. Em que momento ela mudou tanto?
Será que sou eu o culpado, como um Midas cujo toque, ao invés de ouro,
transforma as pessoas em invólucros de terror e tristeza, ou ela sempre foi
assim?
A voz volta para me assombrar, sussurrando o que não quero
admitir: eu me ceguei, enfiei duas lâminas de negação nos meus olhos,
achando que assim compensaria o vácuo deixado pelo nosso filho. O olhar
dela diz o resto: a culpa é sua, sua, sua…
— Posso arrumar ajuda para você — ofereço, meus ombros
desabando ao cansaço da conversa. Eu sabia que seria ruim, mas tive
esperanças de que conseguiríamos chegar a um resultado melhor. — Um
profissional de confiança.
Ela ri, o som que agora só consigo interpretar como um sibilo.
— Você é mesmo bonzinho. — Uma pausa. Outra risada. — Exceto
quando não é. — Algo fica implícito, uma piada interna que só ela entende,
como quem esconde um segredo ou sabe de alguma coisa proibida. — Não
estou doente, nem preciso de tratamento psicológico. Ficar presa em uma
clínica para que você possa brincar de casinha com seu bichinho e a cria
dela? Não vai acontecer, Andrei.
Cria.
A palavrinha mágica que rompe um fio já muito esticado dentro de
mim. De repente, meu sangue protetor ferve dentro das veias. Pensar em
Evgenia perto de Anastasia grávida acaba com a minha vontade de ajudá-
la, contrariando todo o meu sermão sobre ela não ser um risco. Esvazio a
minha mente e leio o seu rosto. Ansiedade, nervosismo e raiva predominam
em sua feição, junto com uma mágoa ancestral. Pode significar qualquer
coisa.
Com um pesar sombrio e exausto, vejo-me envolto em uma epifania
sobre minha oferta ser em vão. Não há nada que eu possa fazer por
Evgenia. E, a essa altura, não sei se quero. Prefiro carregar mais essa culpa
— do que quer que venha a acontecer com ela se continuar obcecada por
mim, como ser presa ou processada —, do que permitir que ela cause
problemas à minha mulher.
— Você disse que eu sou bonzinho, mas existe um limite, sabia? —
Calmamente, retiro algumas notas da carteira sob seu escrutínio e deixo
sobre a mesa. — Do quanto eu estou disposto a ser castigado para que você
continue se sentindo bem. E você acaba de cruzar esse limite. Então, pelo
bem de nós dois, não me ligue mais e pare de rondar a minha família. —
Depois faço menção de me levantar.
— Ela sabe sobre o nosso bebê? — Pestanejo, e é tudo o que
Evgenia precisa. — Pela sua cara, acho que não. E ainda se considera um
homem respeitável? Honroso? Como ela vai reagir quando descobrir que a
culpa foi sua?
Não é isso, quero dizer, explicar, mas as palavras não saem. Não
estou escondendo de Anastasia que Evgenia sofreu um aborto e que eu não
estava por perto para ajudar. Nós passamos por tanta coisa que fui
empurrando essa confissão, esse último segredo, para depois, esperando o
momento certo, quando eu me sentisse pronto.
Ou será que estou apenas arrumando desculpas?
Não! Eu não posso ir por esse caminho de novo e deixá-la fazer e
dizer o que quiser, entrando na minha cabeça como um vírus ou uma praga.
— Veremos. — Dou-lhe as costas e vou embora, frustrado, irritado e
triste. Evgenia não tenta me impedir, o que diz tudo sobre a sua intenção de
não parar por aqui.
Faço o caminho inverso com a mente em frenesi, voltando para a
empresa em busca do meu carro, mas antes, compro os livros infantis na
livraria, assim como uma sacola dos doces de morango pelos quais passei
direto mais cedo, e que sei que Anastasia vai adorar. Levo menos da metade
do tempo dessa vez. Vou direto para o estacionamento e me acomodo atrás
do volante, deixando as sacolas no banco de trás.
Encosto a cabeça no assento, fecho os olhos e me permito fraquejar
finalmente.
Tenho que conversar com a minha mulher, abrir o meu coração e
mostrar a ela uma ferida que nunca para de sangrar, antes que seja tarde.
Como ela vai reagir quando descobrir que a culpa foi sua?
Minha visão fica turva de repente, uma piscina de lágrimas se
acumula atrás das minhas pálpebras. A parte surpreendente, no entanto, é
que não são apenas lágrimas de medo e tristeza e remorso. Algumas, a
maioria, são de libertação iminente, porque no fundo eu sei que Evgenia
está errada, e é a primeira vez que eu consigo entender isso.
Anastasia também vai me entender. Ela é assim, tem um coração
lindo e cheio de luz. Manteve-se doce, compreensiva e amável apesar de
tudo o que passou. Ela, que tinha todo o direito de se fechar em um casulo e
amaldiçoar o mundo, deu outra chance ao amor — a mim.
Eu a amo.
E ela me ama.
Apanho o meu celular a fim de perguntar se ela ainda está
almoçando com Zayn — espero que não. Felizmente, já há uma mensagem
dela me esperando, enviada há dois minutos, junto com duas fotografias
anexadas. O texto de uma linha me deixa confuso e me endireito no banco,
as lágrimas desaparecendo.
É um endereço fora da cidade. Será que eles foram passear?
Com o cenho franzido, abro a primeira foto. Ela é confusa, está
embaçada, e foi tirada com muito zoom, parece alguma coisa amarrada com
cordas bem finas — mas isso não faz sentido. Viro a tela de um lado para o
outro, tentando discernir se estou certo. Anastasia é uma péssima fotógrafa,
tenho que me lembrar de implicar com ela sobre isso mais tarde.
Por fim, desisto e passo para a próxima foto, e o que vejo me faz
abrir a porta do carro enquanto uma terrível ânsia de vômito sobe pela
minha garganta, junto com um desespero mortal e a sensação de perder o
firmamento sob meus pés.
É Anastasia.
Minha mulher.
Com as mãos amarradas — eram elas na primeira imagem, suas
mãos pequenas de dedos curtos. Amarradas. Feridas pela corda apertada.
Sem que eu possa me recuperar ou reagir, meu celular vibra com
uma nova mensagem e mal sou capaz de ler o que está escrito através das
sombras de sangue e medo e ódio que cobrem a minha visão.
Venha sozinho.
28
Zayn
MEU PAI TINHA uma tática diferente para controlar cada filho.
Anastasia era a sua favorita, e nunca guardei ressentimentos por
isso, pois ela era a minha também. Mas ser a favorita não a impediu de
sofrer. Minha irmã vivia como uma boneca de porcelana. Intocada, perfeita
e aprisionada. Não importava aonde ela fosse, havia sempre uma coleira
invisível em seu pescoço. Ela era um cão. E quanto mais distante do mundo
ele a mantinha, com a conivência da nossa mãe, mais triste ela se tornava.
Crianças deprimidas tendem a se manter em silêncio. E não
questionar era exatamente o que nossos pais queriam dela, sua garotinha
obediente.
Já Akira era surrado — não existe uma maneira suave de dizer isso.
É o que é. Enquanto nossa irmã tinha feridas na alma, meu irmão as
carregava no corpo. Ele foi submetido a todo tipo de castigo para fazer o
que eles queriam. Nem sempre funcionava, porque Akira era teimoso, mas
depois de ficar acamado algumas vezes, ele aprendeu a não passar muito
dos limites.
Mas surras e privações não eram eficientes comigo, então eles
encontraram algo pior: meus irmãos. As ameaças aos dois me mantinham
na linha e eram sempre muito criativas. Devolver Akira para algum
orfanato no exterior. Deixar Anastasia sem comida. Enviar os dois para um
colégio interno onde eu jamais os veria novamente, coisa que acabou
acontecendo mais tarde. Uma vez, Leonid disse que conhecia homens que
fariam coisas horríveis com a minha irmã se ele pedisse, e eu me lembro de
vomitar por horas.
Era asqueroso, cruel, mas naquela idade eu já conhecia bem o
bastante as pessoas que haviam nos adotado para saber que não eram
palavras ditas da boca para fora. Sendo assim, eu me tornei um filho
submisso a fim de proteger meu irmão e irmã e, ao mesmo tempo, um
cúmplice, pois ajudava nossos pais a garantir o bom comportamento de
Anastasia e Akira. Eles me ouviam. Admiravam. Obedeciam. Ao
obedecerem, não eram punidos.
Nunca perceberam que eu era um instrumento, e que por trás de
cada opinião, conselho e advertência que eu dava, havia sempre a sombra
dos nossos pais por trás, que manipulavam os dois para serem crianças-
estrelas através de mim.
Eu também era só uma criança tentando cuidar dos irmãos,
principalmente depois do que aconteceu no aniversário de Anastasia.
Porém, de nada adiantou. Akira cumpriu sua promessa de ir embora para
longe, mas levou consigo um acúmulo infinito de ódio. E minha irmã,
minha querida irmãzinha, cujo esquecimento sempre foi o seu melhor e pior
aliado, apenas trocou um inferno por outro sem que ninguém soubesse.
E eu fiquei para trás.
Olho para a mulher deslumbrante caminhando pela alameda estreita
em um canto remoto do Parque Gorky, alguns passos à minha frente, com
seu vestido longo de mangas compridas oscilando no compasso das árvores
que nos rodeiam. Ela tem um brilho próprio que ofusca a luz da tarde, mas
tenho a impressão que mesmo os raios solares tentam se esgueirar pelos
galhos e folhas ao seu encontro, como se quisessem tocar a fonte de toda a
luminescência do mundo.
Ela gira no próprio eixo com um sorriso largo cuja beleza poderia
ofuscar as sete maravilhas do mundo antigo e do novo. Sendo uma
testemunha viva de tudo o que ela sofreu em sua infância roubada, nunca
pensei que a veria sorrir assim. Que ela conseguiria.
— É muito bonito aqui, obrigada por escolher um lugar tão
agradável — diz no tom educado e gentil ao qual foi treinada a vida toda
para ter, e que agora é uma parte inerente de sua personalidade. — Ainda
estou me acostumando com isso. — Ela inclina a cabeça, de modo a receber
uma faixa de calor direto na bochecha. — Ar livre. — Nossos olhos se
encontram ao mesmo tempo e compartilhamos um antigo lampejo de dor.
— Eu não quis…
Apresso meus passos até alcançá-la.
— Está tudo bem, eu sei. — Engulo para limpar minhas cordas
vocais, ou tento. Minha garganta parece ter se transformado em uma
lixadeira. Voltamos a caminhar lado a lado. — Imaginei que fosse gostar.
Tem uma área de descanso logo depois daquela curva, pensei em nos
sentarmos um pouco. Mas, se estiver com muita fome, podemos seguir
direto para o restaurante que fica mais adiante, próximo ao lago.
— Não. — Ela coloca os braços para trás e cruza as mãos às costas,
depois me olha de esguelha. — Eu gosto do primeiro plano.
E assim nós fazemos, em um silêncio tenso e estranho, muito
diferente da conexão que existia entre nós na infância. Mas não é ruim. Há
um garotinho dentro de mim muito feliz por estar junto da irmã novamente,
mesmo nas circunstâncias atuais, e ele gosta de observá-la vibrando como
uma criança por cada coisinha que chama a sua atenção: as poucas flores,
os pássaros, as belas fontes e esculturas.
Seguimos até a esquina e viramos à direita, alcançando um espaço
discreto e vazio, com árvores ao redor cheias de folhas secas, quase
sucumbindo ao inverno, e algumas mesas de pedra fixadas ao gramado.
No verão, o parque é fantástico, um verdadeiro cenário dos sonhos,
perfeito para passeios e piqueniques. Muitas pessoas costumam aproveitar
as tardes jogando nas quadras de areia ou passeando de pedalinho no lago.
Com a aproximação do inverno, porém, enquanto as pistas de patinação
ainda não estão abertas, o número de visitantes é consideravelmente menor.
Sentamo-nos um de frente para o outro.
Da margem oposta do lago, é possível ouvir os ecos de crianças
brincando e os trotes dos cavalos de passeio, embora não possamos vê-los.
Duas embarcações deslizam suavemente de um lado a outro sobre a água,
os remos subindo e descendo, distantes demais para assimilarmos os rostos
de seus condutores — casais apaixonados, certamente. Bancos de madeira,
com pés que me remetem a montarias de ferro negro, ladeiam as passarelas
de todo o parque, esperando por visitantes exaustos.
Enquanto o silêncio se prolonga, olho em volta, procurando por
Matvei Komarov, o segurança pessoal de Anastasia. Ele possui um ótimo
precedente, que pude averiguar graças às minhas conexões no ramo, mas
estou certo que me despreza. Com razão. Nosso primeiro encontro, quando
tentei convencer minha irmã a voltar comigo, não deixou uma boa primeira
impressão.
E Andrei deve ter lhe dado ordens bem pontuais sobre arrancar a
minha cabeça caso sua mulher se sinta incomodada.
— Ele é discreto. — Anastasia explica, vendo através de mim.
Desvio meu olhar de uma fileira de troncos descascados e o concentro nela.
Minha irmã sorri, os lábios se curvando um centímetro. — Komarov sabe
que eu não gosto de chamar atenção e que nós precisamos de um pouco de
privacidade, mas está sempre por perto, como uma sombra.
Seu tom reprovador é engraçado e me ajuda a relaxar.
— Anastasia, eu… — Abaixo a minha cabeça, encarando as mãos.
Há tantas coisas que quero dizer, coisas pelas quais desejo me desculpar,
que não sei ao certo por onde começar.
Tudo o que Andrei me contou, os vídeos e fotos que reunimos, são
memórias frescas e perturbadoras na minha mente, mas não passam de
frações minúsculas dos traumas que ela suportou ao decorrer de dois longos
anos, e cuja gravidade eu só posso imaginar. Mais sofrimentos e
humilhações, mais uma prisão. Que tipo de filho da puta sádico é o destino
para continuar empurrando uma criatura tão inocente através de caminhos
tão hediondos?
— Como foi? — ela pergunta, tirando-me do estupor de raiva e
arrependimentos.
— O quê?
— Andrei me contou o que vocês fizeram, bem, a maior parte. Ele
me disse que o deixou com você antes de ir embora. Não precisa me contar
os detalhes, só quero saber como… — Ela entrelaça os dedos, fechando-os
sobre a mesa cinzenta e empoeirada. — Como foi?
De todas as opções, não era assim que eu esperava começar a nossa
conversa. Por instinto, recolho minhas mãos, como se ela pudesse, de
repente, ver os hematomas que ficaram por dias em meus punhos.
— Quando terminamos, ele estava inconsciente — digo com
cautela. Ela crispa os lábios, sua feição firme oscila, demonstrando tristeza.
— Mas não causamos nenhum dano permanente — adiciono.
Seus ombros cedem. Ela puxa o ar, assobiando, como se tivesse
esquecido de respirar por alguns segundos.
— Que bom. — Seus olhos marejam, as lágrimas transformando o
castanho em caramelo. — Eu ficaria arrasada se você tivesse passado dos
limites, com o que isso causaria a você. Sinto muito que tenha sido
arrastado para os meus problemas mais uma vez.
— Anastasia. — Ela se retrai ao meu tom brusco, e me xingo
mentalmente pela falta de controle. Respiro fundo e recomeço: — No dia
em que você me contou que se casaria com Yerik, eu fiquei feliz. Foi,
provavelmente, o dia mais feliz da minha vida, porque você estaria, de uma
forma não muito natural, escapando da interminável roda de tortura
psicológica a que era submetida com Leonid e Yekaterina. Entende o que eu
estou dizendo? Que fiquei feliz em deixar você nas mãos de Yerik? E agora
está dizendo que sente muito por mim?
— Você não tinha como saber — murmura.
— Talvez sim, talvez não, mas foram dois anos. Quando você
começou a ignorar as minhas ligações, cancelar nossos encontros, evitar a
minha companhia, eu devia ter desconfiado que havia algo de errado. Ao
invés disso, me convenci que era melhor assim, que você estava melhor
sem mim. Longe daquele lugar, daqueles dois, de um passado do qual eu
fazia parte.
— Zayn! — É tanto uma repreensão quanto um lamento embargado.
— Desde pequeno, você esteve sofrendo por minha causa, aceitando a culpa
por um acidente que ninguém poderia ter evitado. Você já tinha problemas
demais para lidar, e nossos pais… — Ela faz uma pausa, hesitando. — Eu
sei que você tem, ou tinha, não sei ao certo mais, um senso de lealdade com
os dois.
— Não quando o assunto é você. — Levanto o queixo. —
Anastasia, você e Akira são tudo pelo qual lutei a vida toda. — Ao dizer
isso, sinto um buraco se abrindo no meu estômago, e dou uma risada
amarga. — Que belo trabalho eu fiz.
Ela estica a mão, como se quisesse me tocar, mas a recolhe da
mesma forma que eu fiz quando fui atrás dela e a acusei de ser
irresponsável por fugir de seu marido estando grávida. Mais um item na
minha coleção de arrependimentos. Desculpas não são o bastante.
— Não se culpe — ela clama, inclinando-se com o rosto contorcido,
sofrendo. Seu segurança deve aparecer a qualquer momento para me
nocautear, e serei grato pela agressão. — Por favor, não faça isso. Eu fiz
todas as escolhas erradas, eu…
Balanço a cabeça.
— Escolhas? — exaspero-me. — Você nunca teve escolha de
verdade, irmã. Nossos pais nem queriam que você se casasse, você era o
grande investimento da família. Eles só não criaram problemas porque
conheceram Yerik e descobriram quem ele era, os benefícios financeiros e
de status que o casamento traria para os dois.
Ela foi praticamente vendida, mas não quero colocar essa palavra na
mesa. Só estou piorando a situação. Minha irmã limpa uma lágrima, a
postura ereta de uma princesa. Depois me encara com uma potência e
determinação que faria o mundo girar ao contrário se ela quisesse.
— Eu sei, mas tenho escolha agora. Eu escolhi Andrei e sua família.
E escolhi o meu bebê. — O modo como fala reflete o amor incondicional
que sente pelo filho. Meu sobrinho ou sobrinha, se um dia minha irmã me
conceder o privilégio, que eu certamente não mereço, de assumir o meu
papel como tio. — Você não teve culpa, Zayn. Nem sobre Yerik, e nem
sobre o acidente. Você era só uma criança.
— Você não se lembra.
— Mas eu me lembro do que veio depois! — protesta, falando alto,
e não consigo desviar meus olhos dessa versão nova e determinada da
minha irmãzinha. — Lembro de como eles nos afastaram e o fizeram
acreditar que você era perigoso para mim. Eu escalei a cerca, Zayn, eu caí
porque não tinha prática, mas fiquei bem depois. Estou bem.
— Mas não sem um custo.
— Está falando como nossos pais! — Ela retira uma mecha de
cabelo do rosto e o acomoda atrás da orelha. — Nós três saímos escondido
porque era meu aniversário, mas acha que é o único culpado porque só eu
me machuquei? Você mandou o nosso irmão fugir e assumiu a
responsabilidade sozinho enquanto eu me recuperava. Como acha que me
senti vendo você se afastar sem nem entender o que eu havia feito de
errado?
Por que ela não entende?
Anastasia jamais teria saído de casa naquela noite se eu não tivesse
prometido que tudo ficaria bem. Era o seu aniversário, véspera de uma
apresentação importante, e Akira havia roubado dinheiro de Leonid e
comprado um bolo escondido. Mas alguma coisa deu errado, e nossos pais
voltaram mais cedo. Ficamos desesperados, porque não conseguiríamos
voltar para dentro de casa a tempo.
Então eu dei a ideia de pularmos a cerca. Não parei para pensar no
quanto minha irmã era pequena, sem a mesma compleição física que eu ou
Akira. Mas Anastasia adorou a ideia, e subiu sem hesitar. Quando ela caiu,
havia tanto sangue que eu pensei que estivesse morta.
Jamais esquecerei da sensação que estraçalhou a minha vida infantil
ao ver minha irmã caída entre os arbustos, nem dos respingos escuros nas
pedras ao redor de sua cabeça, os olhos fechados como se estivesse apenas
dormindo. Ela demorou um mês para acordar.
— Sabe como Yerik me convenceu a vir atrás de você? — É uma
pergunta retórica, claro, mas faço uma pausa antes de continuar. — Ele me
perguntou se o seu comportamento inadequado era uma sequela. — Olho
para a água, um grande espelho refletindo as nuvens, sem conseguir encará-
la. — Eu temia que fosse. Achei mais provável que estivesse louca, do que
sendo maltratada pelo marido.
Pelo canto dos olhos, vejo minha irmã enrijecer, remexendo-se no
banco.
— É para isso que nos encontramos? — ela indaga. Não sei
interpretar o seu tom. Há tristeza, mas também outra coisa, que pode ser
mágoa ou pena. — Para você me convencer a odiá-lo?
— Eu… — Não, quero dizer, mas não sai nada. Meu objetivo era
pedir desculpas pelo modo como me comportei da última vez que nos
vimos. Agora que tenho a chance, no entanto, parece-me insuficiente. Inútil.
— Eu não sei.
O mundo cai em um silêncio colossal. As árvores se rebelam contra
o vento, parando de resmungar e crepitar junto com as folhas, e o lago cala
suas ondulações. Eu abraço a quietude, que se iguala ao vazio em minha
mente. Quilômetros de um grande nada que suga, tal qual um vácuo
temporal, as minhas palavras, emoções e sentimentos.
Anastasia move o rosto, ficando de perfil, seu olhar perdido na única
embarcação restante sobre a vastidão cristalina. Há enfeites em seus
cabelos, grampos incrustados com pedras brilhantes que refletem o sol,
formando um arco, como uma coroa. Ela nada diz enquanto os minutos se
arrastam, seu rosto limpo e inexpressivo se fundindo ao silêncio.
Mas seus dedos se movem inconscientemente, tamborilando. O
fundo dos meus olhos queima. Ela continua com o hábito de tocar seus
instrumentos invisíveis, isso é um bom sinal.
— Como estão nossos pais? — Sua pergunta é tão fora do esperado
que eu demoro para acreditar que é real, e não uma alucinação auditiva.
— Falei com eles apenas uma vez desde que Andrei me procurou
com a verdade. Eu tinha que saber se Yerik já havia seduzido os dois para o
lado dele e você já deve imaginar o resultado. Mesmo assim, eu tentei
explicar a verdade, seu lado da história. Os dois não ficam mais jovens a
cada ano, e os tempos mudam, eles já não possuem a fama e influência que
um dia possuíram. — Falar deles é exaustivo, uma chateação que prefiro
evitar. Suspiro, inalando o aconchegante cheiro de terra úmida. — Nós
crescemos e o projeto de caridade a longo prazo deles fracassou.
— Caridade. — Anastasia fala como se degustasse a palavra. —
Onde estávamos com a cabeça quando escolhemos esse nome?
Ela me arranca um sorriso.
— Os dois não estão felizes com seu relacionamento atual — conto.
— Sua nova família tem uma… — Sem que eu consiga impedir, meu
sorriso se amplia. — Tendência a se meter em polêmicas. Você fez uma boa
escolha.
Anastasia gargalha, sua risada musical repercute pelo parque, dando
um toque de leveza ao momento. Sinto uma faísca de orgulho por inspirar
nela alguma alegria, mesmo que passageira.
— Sim, eu fiz. — Ela fala deles com muito amor, o que me deixa
aliviado. Ter uma grande família unida sempre foi o maior desejo da minha
irmã. Ela merece ser cuidada e amada. — Você não precisa voltar, sabia?
Leonid e Yekaterina… — Nega com a cabeça. — Não precisa se submeter a
eles para sempre.
— Já faz muito tempo que eu deixei de obedecer aos dois. O senso
de lealdade que você mencionou, de fato, um dia existiu, mas isso ficou no
passado.
— Então por que…
— Por que eu fiquei? Por que continuei ao lado deles? — Faço as
perguntas por ela, que aquiesce, concordando. — Nada dura para sempre,
um dia eles não estarão mais aqui e alguém vai ter que lidar com as
consequências. Eles precisam de mim, só Deus sabe o que fariam sem um
filho por perto, fazendo suas vontades e fingindo para todos que são ótimos
pais. Eu tinha medo que fizessem algo extremo como começar um novo
projeto de caridade, ou que fossem perturbar a sua paz.
Uma paz que não existia.
Mas os dois realmente podiam acabar adotando uma nova leva de
pobres crianças, e eu não saberia viver comigo mesmo se não fizesse nada.
Depois de aperfeiçoar minhas habilidades de atuação, contra a minha
vontade, por anos a fio, continuar rondando os dois e fazendo o jogo deles
não é nada com o qual eu não possa lidar agora que sou um adulto.
— Isso é muito bom de ouvir, Zayn, muito mesmo. — Anastasia
estica os braços e captura minhas mãos. As dela, tão pequeninas, quase
somem entre os meus dedos. — O que estou tentando dizer é que eu ficaria
feliz em tê-lo por perto.
— Por quê? — balbucio, inseguro, com receio de estar sendo
enganado pela minha audição. Parece bom demais para ser verdade.
— Você é meu irmão, e sinto a sua falta. — Ela sorri, os olhos
lacrimejados. — Eu estava com tanto medo de me encontrar com você.
Passei a última semana inteira pensando no que diria, nas perguntas que eu
faria, como iria me comportar. Era como se eu fosse me encontrar com um
estranho. Mas nós somos irmãos, e assim que coloquei meus olhos em
você, me lembrei que é parte de mim, assim como Akira. Quero superar
isso, nós merecemos uma segunda chance. E quero que minha filha conheça
o tio carinhoso, responsável e protetor que sempre cuidou de mim quando
eu era uma garotinha.
As lágrimas são instantâneas e não tento disfarçá-las, não quando
ela acaba de dizer as palavras que tenho desejado ouvir há meses, até anos,
embora jamais tenha admitido.
Você é meu irmão.
Nós somos irmãos.
E Anastasia me quer por perto? Quer que eu participe da vida de sua
filha? Como pode ser? Parece-me impossível sonhar com um futuro em que
a gente consiga seguir em frente, mas há tanta certeza em sua declaração,
uma força indomável e angelical, quase sobrenatural, que eu ouso acreditar.
E ao ousar, eu sinto.
Ao sentir, eu sei.
É possível. Céus! É muito possível.
— É uma menina? — Enxugo meu rosto na manga da camisa, mas
as gotas salgadas continuam vindo em excesso. Estou sorrindo também,
rindo. Uma bagunça.
— Sim. — Anastasia sorri, e seu belo rosto está molhado. — Sua
sobrinha, Zayn.
É o meu limite, alguma coisa se rompe dentro de mim, um cadeado
implodindo. Eu me curvo sobre suas mãos e choro copiosamente,
soluçando, imaginando a menininha que ela carrega como uma miniatura da
minha irmã. O recomeço que todos nós precisamos, almejamos. Uma
criança cuja vida não será maculada como a nossa, principalmente a de
Anastasia, graças à sua coragem como mãe de romper o ciclo e abandonar o
homem que tentou destruí-la das piores formas.
— Desculpe — soluço. — Eu sinto muito por tudo o que ele fez
com você, por não ter estado presente. — E pensar que Yerik além de
agredi-la, fez isso com ela grávida. Achei que tinha batido nele o bastante,
mas estava errado, ele precisa daqueles danos permanentes. — Sinto tanto,
me desculpe…
Continuo repetindo que sinto muito por não sei quanto tempo.
Anastasia me tranquiliza, murmurando palavras de apoio, dizendo que tudo
vai ficar bem, mas ela mesma não para de chorar.
— Não precisa… — Ela vai dizendo. Ergo meu rosto, deixando um
último beijo em suas mãos antes de soltá-la.
— Eu preciso, Ana. Por favor, não quero um afago na cabeça, sei o
que eu fiz e onde eu errei. Quero… — Inspiro profundamente, controlando
minha respiração e colocando um fim em meu pranto de alívio. — Espero
que me perdoe.
— Eu perdoo você — diz sem nem pensar. Ela limpa suas
bochechas usando o dorso da mão. — Contanto que me perdoe de volta. Eu
também não quero um afago na cabeça, sei que deveria ter contado tudo
logo no começo, confiado em você quando ele deu os primeiros sinais.
É diferente. Yerik comeu a mente dela como um maldito parasita,
até ela acreditar que estava sozinha, mas sei que não adianta argumentar.
Minha irmã não precisa do meu perdão, apenas que alguém valide os seus
arrependimentos, e posso ser essa pessoa se é o que ela precisa para estar
em paz com o próprio passado.
Com um gesto positivo de cabeça, deixo a interpretação por sua
conta, e pelo modo como ela sorri, sei que isso basta.
Conversamos, em seguida, sobre outras coisas. Coisas banais
demais em comparação às declarações sentimentais despejadas até então.
Ganho um relato detalhado sobre o seu trabalho no abrigo que a deixa
animadíssima, muito mais do que ela costumava ficar com suas
apresentações — por hora, guardo essa observação para mim. Depois, ela
fala sobre seus cunhados e cunhadas com um carinho tangível, mas quando
começa a me contar a respeito de sua sogra e suas excentricidades, eu perco
o fôlego de tanto rir.
Em dado momento, após os assuntos se esgotarem, ela pergunta
sobre Akira.
— Ele não sabe de nada, não consegui falar com ele ainda, então é
impossível que Yerik tenha conseguido, ou mesmo tentado. Você sabe como
Akira funciona, ele aparece quando quer, e desaparece com a mesma
facilidade.
Nosso irmão abriu mão de todo o suporte financeiro que nossos pais
adotivos ofereciam e desapareceu no mundo assim que sua idade permitiu.
Quando voltou, anos mais tarde, ele tinha construído seu próprio
empreendimento no ramo de investigação particular. Para a eterna
saciedade de seu ego estupidamente grande, ele é considerado por muitos o
Sherlock da vida real.
O trabalho, com alta demanda, exige que ele passe muitos meses em
campo, um detalhe conveniente para alguém que odeia retornar as suas
origens, mas quem sou eu para julgar?
— Espero que a notícia da minha gravidez aplaque as partes ruins.
— Ela tenta parecer otimista, mas falha miseravelmente.
— Ele vai surtar de qualquer forma. — E vai querer matar Yerik,
sem dúvida. Eu talvez não o impeça. Acho melhor mudarmos de assunto,
não quero destruir o clima. — Ela já tem um nome?
Falar sobre a filha deixa a minha irmã estonteante, a empolgação
remove seus filtros.
— Não. — Ela dá um gritinho agudo. — Nós descobrimos há pouco
tempo que é uma menina, e Andrei rejeitou todas as minhas sugestões. Ele
decidiu que não precisa ser um nome tradicional, o que gerou um pequeno
caos na família. Eu acho que ele acha que eu prefiro alguma coisa
estrangeira, só porque eu já morei fora do país, o que é uma grande
bobagem, mas também acho fofo que ele se preocupe com isso. Então
nossas opções meio que englobam uma lista de uns cem nomes de todos os
continentes do mundo, já que toda a família está envolvida em uma força
multitarefas de sugestões.
— Caramba. — Sorrio, minhas sobrancelhas em arcos. — Mas você
deve ter um favorito.
Ela nega.
— Se tiver algo em mente, fique à vontade para dizer.
Nós rimos. Eu assumo que esteja brincando, no entanto, minha irmã
me encara cheia de expectativa, esperando que eu realmente dê a minha
contribuição. De repente, sinto como se essa fosse a questão da minha vida,
minhas mãos gelam e meu coração aumenta seu ritmo. Mas eu tenho uma
sugestão.
— Ariya — digo, em tom descontraído, porque não quero ser
arrogante a ponto de achar que justo o meu nome vai ser o escolhido,
quando há tantos de seus novos familiares ávidos por essa honra. —
Significa…
— Eu sei — ela diz com um sorriso que alcança seus olhos. — Você
se lembra.
— Sim.
O nome quer dizer melodiosa, mas tem outro significado. Quando
eu tinha quinze anos, fui autorizado a assistir uma das performances de
Anastasia em um teatro. Nossos pais geralmente nos mantinham em casa
para evitar o risco de constrangimentos, então ver minha irmã em um palco
era um fenômeno raro para mim — Akira nunca teve essa chance. Após o
seu espetáculo, assistimos a um número de ópera, já que Leonid e
Yekaterina queriam exibi-la um pouco, e minha irmã, empolgada com a
minha presença, não parou de falar nem um segundo.
Assim, ela me ensinou que a palavra "ária” se refere a um trecho,
dentro de uma apresentação de ópera, destinada a uma solista, quando todos
os holofotes se destinam exclusivamente a ela e seus sentimentos em forma
de canto.
Não sei por qual razão me lembro disso. Acho que, talvez, por ter
sido um raro momento compartilhado com minha irmã em que nos sentimos
crianças normais.
— É lindo Zayn, eu gostei. Na verdade, eu gostei muito.
Não posso mentir, fico a um passo de chorar novamente. Sou salvo
pelo toque de seu celular, o que me deixa agradecido. Ela o retira da
pequeníssima bolsa pendurada em seu ombro, e pela maneira como sorri ao
encarar a tela, deve ser alguém de quem gosta muito. Contudo, aos poucos,
seu semblante muda, tornando-se confuso.
— Estranho — murmura, unindo as sobrancelhas.
— O que foi?
— Minha amiga, Yuliya, nós moramos no mesmo prédio. Ela me
mandou uma mensagem. — Anastasia vira a frente de seu celular para que
eu veja. — E uma foto.
Inclino-me para enxergar melhor. Há apenas uma frase curta,
seguida de uma imagem.
Sei que não significa nada, mas como sua amiga eu tenho a
obrigação de mostrar, só para o caso de… bem, você sabe!
Na foto, duas pessoas estão sentadas em um restaurante, almoçando.
Um homem e uma mulher de longos cabelos tão pretos quanto os meus. Ela
está de costas, portanto, é impossível ver seu rosto. Poderia ser um casal,
porém, o homem é claramente Andrei Volkiov, e não existe possibilidade no
mundo de ele trair a minha irmã, não depois do que ele fez por ela.
Eu jamais me esquecerei de seu olhar quando trocamos de lugar e
ele deixou Yerik sob meus cuidados. Era o olhar de alguém que acabara de
sacrificar uma parte irrecuperável da própria alma, e que iria muito além se
precisasse. Ele daria tudo de si e ficaria sem nada.
— Está com ciúmes? — Baixo meus olhos, observando sua reação.
Ela dá mais uma olhada no celular antes de guardá-lo, e mesmo isso
é feito com movimentos graciosos. Anastasia, que sempre foi uma chorona
incorrigível, dessa vez faz o oposto e sorri.
— Claro que sim. — Ela olha para cima, inabalada. — Mas eu sei
que existe uma explicação. Confio nele.
E não há uma gota de dúvida nela.
— Vocês se amam — digo, reiterando o óbvio. — E você está feliz.
— Eu estou — ela responde, apesar de não ter sido uma pergunta.
— E você, Zayn, está feliz?
— Se eu estou feliz? — Ouço minha própria risada, e apesar de
estranhar o som, sinto esperança de me acostumar a ele. — Olhe para nós
dois, juntos e livres. Eu nunca pensei que isso fosse possível. Que eu
pudesse querer isso para mim, ser um tio… uau! E você, meu Deus, Ana!
Ver você conquistando seus sonhos, se tornando uma mãe incrível ao lado
de um homem que a valoriza e que sempre irá protegê-la? Eu poderia
morrer agora, de tanta felicidade.
— Bom saber — diz uma terceira voz, seguida de um estrondo.
Uma explosão?
O barulho alto fere os meus ouvidos, atravessando o meu crânio.
Encaro minha irmã, seus olhos estão arregalados em um ponto acima da
minha cabeça, atrás de mim, seus lábios congelados em um grito silenci…
29
Anastasia
O CORPO DE Zayn tomba para frente.
O mundo para de girar, congelado, para sempre frio, para sempre
vazio. Um milissegundo suspenso no tempo, como se uma mão invisível
segurasse os ponteiros do relógio que determina o limite entre a vida e o
que vem depois.
Seu rosto pousa — ele bate com força, fazendo um horroroso som
de crack — contra a mesa de concreto, e uma poça começa a se formar
abaixo dele, um lençol carmesim.
Sinto o grito subindo pela minha garganta, rasgando-me por dentro
como uma lâmina afiada, a dor de mil vidas me atravessando.
Mas o grito é abafado por Yerik, que envolve a minha boca com um
pano úmido. Meus sentidos ficam embaralhados de imediato, um som
agudo e contínuo se prolonga dentro da minha cabeça, ecos do tiro. Um
tiro, disparado por Yerik. Tenho uma vaga noção de estar sendo arrastada
enquanto minha visão fica turva e desconexa.
Mas eu continuo olhando para o mesmo ponto até não conseguir
mais: o corpo do meu irmão.
O corpo de Zayn.
Morto.
30
Andrei
EU SINTO QUANDO a transição acontece, o momento em que a hesitação
vai embora e a adrenalina assume o seu lugar.
Mais uma vez, é como se eu fosse um espectador dentro de mim,
assistindo enquanto uma anomalia monstruosa e sanguinária controla o meu
corpo. Engraçado. Sempre a desprezei, relegando-a a um calabouço escuro
nas profundezas da minha alma, renunciando toda a crueldade e frieza que a
acompanham, para agora isso ser tudo o que importa. Tudo o que eu quero
ser: o invólucro de um terror atroz e vingativo que não gosta de ser
ameaçado.
Venha sozinho.
Burrice.
Já me deparei com casos de sequestro antes, estudei alguns deles
durante a minha formação, e já vi inúmeros documentários sobre pessoas
que têm seus familiares levados por criminosos para serem usadas como
moedas de troca ou coisas piores. Em todos os casos, há um ponto de
convergência, essa mesma instruçãozinha utópica. Venha. Sozinho. Ou, em
outras palavras: não envolva a polícia — o que eu sempre achei uma
enorme estupidez.
Mas agora eu entendo. Sou obrigado a reconhecer que não é
estupidez quando envolve a vida da pessoa que você mais ama no mundo.
Qualquer um pensaria duas vezes antes de tomar uma decisão que pode
significar a sentença ou a salvação de alguém que representa uma parte
significativa da sua própria existência.
Dou um soco no volante enquanto sigo pela rodovia A-104, mal
registrando o percurso ao passar por cima do Rio Klyazma muito acima da
velocidade permitida. O cenário urbano vai sendo substituído por árvores à
medida que avanço, ultrapassando veículos como a porra de um lunático.
Meus olhos disparam para o trajeto indicado no computador de bordo, que
indica uma curva sinuosa escondida alguns quilômetros à frente.
Não tenho muito tempo para pensar no que fazer ou nas eventuais
consequências. A fotografia de Anastasia amarrada e sem consciência me
cega completamente, e não me atrevo a pensar para além disso, no que pode
estar acontecendo com as minhas princesas agora. Eu preciso chegar até
elas o mais rápido possível. Piso no acelerador com força, ouço o vento
assobiando pelas janelas, o som do pneu cantando sobre o asfalto, e grito
uma sequência de xingamentos a cada automóvel que surge em meu
caminho.
Não posso acionar a polícia até ver Anastasia com meus próprios
olhos, mas não ter um plano também não vai garantir a sua segurança. Eu
preciso dos meus irmãos dessa vez — que eles pensem por mim, que
salvem a minha mulher e nossa filha, que sejam os heróis enquanto assumo
o papel oposto.
Eu fiz isso.
Eu causei isso.
E eu tenho que pagar o preço.
Tento entrar em contato com meus irmãos, mas Vladimir e Roman
devem estar dentro do avião uma hora dessas, incomunicáveis, então Ivan é
a minha única esperança. Ele também não me atende a princípio —
maldição!
Estou a meio pensamento de ligar para Lara quando o celular toca
na minha mão. Quase perco o controle da direção, o carro oscila, fazendo
zigue-zagues na pista, mas consigo manter a calma mesmo diante do perigo.
Nem a porra da morte vai me impedir de chegar até a minha mulher. Trinco
os dentes, sinto o suor frio escorrendo pela minha testa e sigo em frente
cada vez mais rápido. A vibração continua, olho rápido e é o nome de Ivan
na tela.
Graças a Deus.
Coloco a ligação no viva-voz depois de atender e jogo o aparelho
em cima do painel.
— Onde você está?! — ele explode. Seu desespero me diz bastante
coisa, meu irmão já sabe de algo, e isso não é um bom sinal. — Andrei,
onde caralhos você está?
Forço minha mandíbula a se abrir, destrincando meus dentes. A voz
do meu irmão, de alguma forma, ancora a minha consciência à lucidez, e o
turbilhão de promessas violentas girando ao redor do meu alter ego amorfo
se acalma por um momento.
— O que você sabe? — pergunto, a língua ressecada colando no céu
da boca. Minhas palavras soam ferozes e inumanas, eu mal consigo
controlar.
— Nada, porra! O segurança de Anastasia acabou de me ligar, ele
está no hospital com uma fenda de dez centímetros na cabeça e uma boa
dose de tranquilizante nas veias, dizendo um monte de coisas sem sentido,
que precisávamos chamar a polícia. Eu disse a ele que sabia quem chamar,
mas... — Ivan está ofegante, ouço-o andando de um lado para o outro
mesmo através do telefone. — Por favor, me diga que vocês estão bem.
Eu estava mesmo me perguntando o que havia acontecido com
Komarov, e fico aliviado que esteja vivo, mas o timing dos acontecimentos
é perfeito demais para ser uma coincidência. Yerik não conseguiria chegar
perto de Anastasia em qualquer outro dia, já que ela estava limitada a
frequentar apenas lugares superprotegidos, como o abrigo e a mansão,
enquanto a gente selecionava o resto de seus seguranças, cujo serviço teria
início ainda essa semana. Hoje era o único dia com uma brecha.
O filho da puta sabe o que está fazendo, não é o delírio de um
homem abandonado. E eu sei exatamente o que ele deseja.
Dizer as próximas palavras me causa uma dor proporcional a enfiar
meus dedos dentro do peito e arrancar ossos, músculos e ligamentos, e
depois esmagar o órgão em decomposição que mal consegue pulsar sem a
presença de Anastasia.
— Ele a pegou, Ivan. — Curvo-me, agonizando. O carro serpenteia
no centro da pista. — Yerik está com ela.
— Não — meu irmão balbucia, a voz ao mesmo tempo irada e
chorosa. — Não, porra, não! Como sabe disso? Onde você está, irmão?
— Não temos muito tempo. — Meus olhos disparam para o trajeto
indicado no mapa, conferindo se continuo na rota certa. Sim. Entro na
região de Trudovaya e sei que preciso diminuir a velocidade, ou acabarei
passando direto pela curva. — Yerik quer a mim, ele a está usando para me
atrair e não podemos envolver a polícia ainda, é arriscado demais. Eu tenho
que estar lá primeiro, junto com ela.
— Andrei…
— Não me insulte sugerindo que eu a deixe sozinha! — vocifero, o
grito estremecendo meus ossos e alma. — Eu sou a melhor chance que ela
tem. Deixar Anastasia à mercê de Yerik, por sabe-se lá quanto tempo até o
seu resgate, é muito perigoso, os danos podem ser irreversíveis, você sabe
disso!
Meu irmão profere uma maldição, depois faz uma pergunta hesitante
para uma resposta que eu não gostaria de ouvir se estivesse no lugar dele.
— O que você está me pedindo?
— Eu sei que estou caindo em uma armadilha, Ivan, fazendo
exatamente o que ele quer. Mas — balanço a cabeça —, eu preciso que lide
com isso. Não poderei fazer nada além de ganhar tempo. Assim que eu
estiver dentro, vocês terão que cuidar da polícia e toda a merda que vier
depois. Aconteça o que acontecer… — Minha voz falha, um par de
lágrimas transborda dos meus olhos. — Por favor, as duas têm que viver,
entendeu?
— Andr…
Desligo a chamada.
Não importa se ele concorda ou não, eu já tomei a minha decisão, e
cada fôlego desperdiçado pode ser decisivo.
Encaminho a mensagem que recebi mais cedo para o meu irmão,
contendo o endereço e as fotografias. Ao erguer meus olhos, deparo-me
com a fodida curva. Não diminuí a velocidade, mas não faz diferença. Giro
o volante todo para a esquerda, as rodas traseiras derrapam na pista, sinto
cheiro de borracha queimada, e a lateral do carro se espatifa contra uma
árvore, arranhando toda a lataria.
Mas eu consigo entrar no túnel estreito, em uma estradinha de terra
batida, abobadada com árvores altas.
— Estou chegando, princesa — digo, e continuo repetindo essa
promessa pelo resto do caminho, esperando que o vento ou alguma força
celestial e misericordiosa carregue minhas palavras até ela. — Estou
chegando, estou chegando, estou chegando…

***

Há três construções decrépitas no centro de uma clareira


abandonada, quase encoberta pela mata. Minha mulher está em uma delas.
Eu a sinto — ou alucino com o desejo de senti-la. No retrovisor, o par de
olhos que me encara pisca de uma forma puramente animal, o rosto pálido
como o esqueleto por baixo da pele.
Abandono o carro estacionado de qualquer jeito ao lado de uma
árvore semimorta. Ele está todo fodido de tanto colidir com os obstáculos
do caminho. Logo depois, seguro a minha coleira, refreando o ímpeto de
sair gritando o nome dela e chutando portas sem nenhuma prudência.
Dou uma boa olhada ao redor.
Um galpão mediano e sem portas se destaca no limiar do terreno, e
eu o descarto imediatamente. As janelas foram arrancadas da estrutura e o
interior parece cheio de entulhos, não é um lugar que poderia ser usado
como cativeiro. Também não perco meu tempo investigando a casinha
menor, que apesar de estar em boas condições, deve ter sido um depósito no
passado, pequena demais para abrigar duas pessoas.
É para a casa principal que eu caminho.
Ela não tem nada demais. Olhando de fora, parece bem normal,
habitável até, se ignorarmos toda a área externa. Subo a escadaria de
madeira, pulando os degraus de dois em dois, que rangem sob meu peso.
Tudo bem, eu não planejava chegar de fininho mesmo. Ele está à minha
espera, Yerik tem a vantagem por enquanto, e eu quero que ele continue
pensando assim, empanturrando-se de confiança até se engasgar com ela.
Sinto-me estranho ao levantar meu punho e bater na porta três
vezes, ao invés de colocar tudo abaixo como eu gostaria. É, no mínimo,
uma cena singular, uma vez considerado o contexto abominável do que a
casa esconde em seu interior. Mas acho que no final sempre será sobre isso:
a perversão dos detalhes, os horrores que não podemos ver, as máculas que
se camuflam bem diante dos nossos olhos e zombam da ignorância alheia,
como flores plantadas em cima de túmulos.
Apenas silêncio me recebe.
Não posso ter me enganado, estou no lugar certo, sem dúvidas,
então o suspense faz parte do jogo. Fecho meus olhos, abrindo mão de
apenas dois ou três segundos para empilhar meus sentimentos de forma
organizada para que não sejam usados contra mim. Ou pior, contra
Anastasia.
Com as costas eretas, minha aberração à espreita, forço a maçaneta.
A porta se abre sem resistência, as dobradiças gritando.
A primeira coisa que percebo é o cheiro de madeira úmida, em
seguida, a origem do odor: tábuas em todas as janelas. Não há iluminação
dentro da casa, com exceção de uma ou outra rachadura por onde o sol se
esgueira, ou seja, quando eu fecho a porta atrás de mim, sou engolido pela
grande boca da escuridão. Meus olhos se ajustam à medida que caminho em
linha reta até a próxima porta fechada. Abro uma pequena fresta.
Reconheço o papel de parede mofado, o mesmo que compunha o
fundo da fotografia de Anastasia. Mordo a parte interna das minhas
bochechas até sentir o sabor ferroso de sangue, usando a dor como um
contrapeso para o desespero.
Empurro a porta um pouco mais.
E não consigo respirar, como se o oxigênio estivesse sendo roubado
de dentro de mim por uma mão invasora, que desce pela minha garganta,
destruindo minhas vias aéreas e os pulmões. Meus olhos também falham,
perturbados com a cena de Anastasia escorada em uma cadeira velha, com
os braços dobrados para trás, os tornozelos amarrados, suas pernas expostas
até os joelhos por um rasgo grotesco em seu vestido, a cabeça pendendo
molemente sobre o pescoço, seus olhos fechados, dormindo.
Dormindo?
Minha sensatez vira poeira, o emocional devorando a razão. Corro
até ela, ciente da emboscada que me espera — e que eu espero. Meu
coração bate loucamente, rugindo com agressividade contra a minha caixa
torácica. Eu me abaixo, minhas mãos tremem quando a toco, segurando o
rosto que parece gelado demais em minha palma fria.
— Princesa — chamo, a voz errática.
Ela não responde.
Não acorda.
Não se mexe.
Mas está respirando?
Sim, sim.
Fraco.
Viva.
Está viva.
Levanto-me a fim de libertar seus pulsos, mas é quando eu sinto a
morte me observando de um canto, um olho brilhando nas sombras — o
solitário orifício de uma arma, empunhada pelo diabo em pessoa. Por
impulso, eu me coloco na frente de Anastasia e enfrento o responsável por
tudo isso com a frieza do inferno gelado que reside em meu coração.
— Yerik — cuspo o nome ácido, rangendo os dentes em seguida. —
Você passou de todos os limites, é um lunático! Um homem morto.
— Mesmo? — ele ri, sua mão chacoalha. — Enfim nós temos algo
em comum.
Yerik engatilha a porra da arma lentamente — click, clack —, a
intenção de atirar está exposta em toda a sua postura corporal, mas meu
instinto de preservação não dá a mínima para o que pode acontecer comigo.
Eu não me importo. Só consigo pensar na minha mulher grávida atrás de
mim, em protegê-la desse desgraçado. Estou farto pra caralho dele.
Ele a pegou.
Tocou com suas mãos sujas.
Não posso perdê-la assim. Não me permito considerar esse risco.
Então eu dou um pulo para o lado e avanço, partindo para cima do
desgraçado e levando a mira dele para longe dela. É estúpido, eu talvez
precise refletir sobre as minhas tendências autodestrutivas mais tarde, mas
nós precisamos de tempo e não posso deixar que ele dê um disparo com
Anastasia na trajetória da bala.
E funciona, porque Yerik puxa o gatilho.

***

Dor.
Muita dor.
Meu ombro está queimando.
Meus olhos estão pesados.
O que… está acontecendo comigo?
Tento me movimentar, mas não consigo. Minhas mãos não se
movem, apesar de eu conseguir forçá-las. Estão contidas. Empurro minhas
pálpebras para cima, elas parecem seladas com concreto, mas aos poucos a
escuridão da minha cabeça se abre às fendas duplas dos meus olhos. Minha
visão, porém, não é capaz de se ajustar, de modo que não enxergo formas
concretas, somente um borrão turvo e muita névoa. Até que entendo: o
problema não está somente na minha capacidade de ver, mas no meu
organismo.
Estou zonzo, a mente aos giros, meu estômago se rebelando. Há um
tecido muito fino de sonolência velando os meus pensamentos. A porcaria
da dor, no entanto, me impede de cair nos aconchegantes braços de um sono
longevo.
Tem alguma coisa errada comigo, mas não desisto de assumir o
controle. Sinto-me angustiado por causa de… Anastasia. Sim, minha
mulher. Agora eu me lembro, ela foi sequestrada, roubada de mim, mas eu a
encontrei, sempre encontrarei o meu caminho até ela. Mas depois disso
eu… Ah, faz sentido, eu levei um tiro no ombro, e Yerik provavelmente
usou algum tipo de entorpecente para me apagar, isso explica a minha
dificuldade para controlar o meu corpo.
Concentre-se, ordeno a mim, cerrando a mandíbula. Pisco algumas
vezes, lacrimejando, meus olhos se tornam nítidos aos poucos. Não tenho
noção de quanto tempo demora até que eu consiga distinguir a forma
diminuta de Anastasia à minha frente, sentada na mesma cadeira de antes,
mas agora desperta.
Seu rosto é um quadro triste de lágrimas e desolação.
Eu estou aqui, quero dizer, não chore, porém, quando faço uma
tentativa de falar, as palavras soam ininteligíveis, grunhidos roucos e secos.
Ela também me diz alguma coisa, sei disso porque vejo seus lábios se
movendo freneticamente, mas não consigo escutar direito, como se meus
ouvidos estivessem submersos em água, abafados pela pressão de um mar
agitado.
Meus sentidos voltam a funcionar em algum ponto — se demora
muito ou pouco tempo, eu nem imagino. Meus membros formigam, a
queimação na ferida aberta diminui consideravelmente, o que não deve ser
bom. Sinto o cheiro bolorento proveniente da umidade nas tábuas podres
sobre as saídas, e ouço o ruído baixo do choramingo de Anastasia, os
soluços entrecortados.
É o pior som que já ouvi na minha vida.
— Por favor — ela está dizendo. Não para mim, percebo. Seu
clamor se destina a outra pessoa. — Por favor, deixe ele ir, por favor, eu
imploro. Ele precisa de um médico. Tem tanto… — Mais lágrimas caem.
— Tanto sangue, por favor…
Correção: ouvi-la implorando pela minha vida é de longe o pior som
que já ouvi.
Não vejo nenhum machucado grave aparente em seu corpo.
Lembro-me que ela usava uma tiara quando saiu de casa e um par de
sapatos baixos, mas ambos desapareceram. Seus cabelos estão
desarrumados, soltos, os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar. Sua
roupa, porém, com um rasgo visivelmente forçado que deixa suas pernas à
mostra, arranca um rosnado da minha garganta.
Se ele tentou fazer alguma coisa…
— Já mandei ficar quieta! — Yerik grita com ela, fazendo-a se
encolher. O desgraçado não está no meu campo de visão, sua voz vem do
mesmo canto escuro à esquerda de onde ele disparou contra mim. — Você
costumava ser mais obediente, querida. Sabia ficar calada como uma boa
mulher. E pensar que ele a estragou tanto em tão pouco tempo.
Viro o meu pescoço devagar, preciso ver a expressão dele enquanto
diz tanta merda. O que vejo é frustrante, eu esperava mais. Yerik não tem
nada de excepcional, nenhuma característica que possa absolvê-lo de seus
crimes, nada de olhos vidrados ou uma expressão miserável. Ele é normal.
A porra de um homem medíocre, com roupas comuns e uma arma.
Um clichê patético.
No futuro, talvez eu culpe a perda de sangue, ou o choque por ter
sido baleado, ou até o meu lado sardônico que costuma ter um humor
duvidoso, mas por qualquer razão que seja, eu começo a rir. Sinto os dois
pares de olhos arregalados sobre mim.
— Andrei — Anastasia sussurra, a voz gasta e rouca. — Andrei?
Ah, minha nossa! Você… seu ombro, me diga que está bem.
Deixo meu riso delirante se extinguir e olho para a outra metade da
minha alma.
— Olá, princesa — digo suavemente. — Não chore, eu estou bem.
Não está doendo nadinha, olha. — Faço movimentos circulares com o
ombro, sem transparecer a dor que irradia por todas as minhas terminações
nervosas. — Só parece ruim, mas pegou de raspão.
É mentira. Sinto a presença da bala, ela não saiu pelo outro lado,
deve estar alojada em algum lugar entre a minha clavícula e a escápula. Não
tenho esperanças de me livrar dela sem uma cirurgia. O sangramento parece
controlado, mas é difícil dizer já que a minha camisa está encharcada,
grudando na pele.
— Por que você veio?! — ela pergunta de maneira repreensiva,
balançando a cabeça, desolada, em choque, chorando copiosamente. — Ele
vai matá-lo também, Andrei, por que você tinha que vir? Devia ter me
deixado.
Também? O que ela quer dizer? Alguém foi morto?
Puta merda.
Zayn.
Os dois estavam juntos, contudo, não vejo sinais da presença dele
em lugar nenhum. Talvez tenha sido ferido e deixado para trás, mas o
desespero de Anastasia, o terror em seus olhos transbordantes, a certeza
fatalista em suas palavras, me leva ao entendimento de que ela presenciou
algo terrível e traumático.
Espero estar errado.
— Por que eu não viria? — Sorrio, ou tento. Preciso mantê-la
calma, pelo bem dela e da nossa filha. — É onde você está.
— Que comovente! — Yerik se intromete, batendo palmas. Ele sai
das sombras e se aproxima de Anastasia. Entro em alerta, meu corpo fica
tenso. — Quando me falaram sobre a sua síndrome de herói, eu tive as
minhas dúvidas, meu amigo. Mas aqui está você, arrogante como sempre.
Não reconhece a situação em que se encontra? Que esse buraco no seu
ombro é apenas uma amostra?
Ele dá a volta em Anastasia, para atrás dela e coloca as duas mãos
no encosto da cadeira, os dedos perturbadoramente próximos de seus
ombros estreitos. A arma não está à vista.
Sei muito bem da minha situação. Aquele disparo sem aviso prévio
confirmou a minha teoria de que Yerik não planeja negociar pela minha
vida — ela é o pagamento. Sem mim, Anastasia corria o risco de pagar esse
preço sozinha, de uma forma muito pior.
Meus olhos recaem sobre o tecido maculado de seu vestido, sombras
tingem o meu coração, sussurrando votos de tormento e violência.
Tempo.
Eu tenho que ganhar tempo.
— Parabéns, você conseguiu o que tanto queria, e agora? Eu estou
bem aqui, por que não acaba logo com isso?
— Não! — Anastasia se debate na cadeira, o rosto empalidecendo.
Tento transmitir uma mensagem tranquilizante com o meu olhar, mas ela
está nervosa demais para perceber. — Pare com isso, Yerik, é loucura! É a
mim que você quer machucar, eu fugi de você, então deixe ele ir agora. Não
posso… não suporto isso… Não faça mal a mais ninguém… por minha
causa… por favor… por favor…
Não consigo evitar, meus olhos se enchem de lágrimas ao vê-la em
tamanha agonia. Preocupo-me com as sequelas psicológicas que toda essa
situação pode lhe causar, ainda mais se Zayn estiver morto, mas não posso
pensar nisso agora.
— Você quer? — Foco em Yerik, no dedo que ele deixa resvalar
preguiçosamente no pescoço de Anastasia. Ela se retesa, a palidez se
tornando esverdeada. — Machucá-la?
Algo cruza muito rápido o olhar dele, confusão eu acho, mas
esmaece na mesma velocidade. Não consigo prestar atenção em muita coisa
que não seja aquele dedo e minha promessa interna de esmagá-lo com um
martelo.
— Eu nunca quis. — Mentiroso, desgraçado mentiroso. — Ela não
me deu outra escolha. Tudo isso poderia ser evitado se ela nunca tivesse
deixado a nossa casa, ou sido uma boa garota e aceitado a segunda chance
que eu ofereci em nosso encontrinho judicial. — Yerik segura o queixo dela
e a força a erguer o rosto. Meus dentes rangem, cortando as gengivas. —
Claro que eu teria que discipliná-la com mais firmeza, mas nós ficaríamos
bem. Eventualmente. Agora, eu já não sei se consigo consertá-la.
— Não toque nela — ordeno, plácido, imperturbável, uma máscara.
Anastasia fecha os olhos bem apertados e abaixa a cabeça, da forma
como ela costumava fazer quando nos conhecemos. Os dedos de Yerik
deslizam, desenhando o contorno de seu maxilar. Minhas unhas se afundam
nas palmas, tamanha força com que fecho meus punhos. Eu sei que ela
evoluiu muito nos últimos meses, que está conseguindo se curar, tenho
muito orgulho da minha mulher, mas feridas fechadas deixam cicatrizes, e
mesmo havendo dias em que nos esquecemos delas, basta um olhar para
que nos lembremos da dor.
A lavagem cerebral a qual Yerik a submeteu por dois anos é uma
cicatriz, e Anastasia está sendo obrigada a olhar para ela agora.
Não metaforicamente, eu quero que ele morra por isso.
Dolorosamente.
— Eu planejava testar algumas coisinhas antes de você chegar,
sabe? Aproveitar enquanto ela estava dormindo, mansa e totalmente
disponível, para lembrar ao corpo dela a quem ele pertence. É lamentável
que você tenha vindo tão rápido. — Ele traceja seu pescoço, a linha de pele
nua em sua clavícula. Anastasia faz uma careta, os lábios tremendo,
chorando. — Mais cinco minutinhos e eu teria me divertido um pouco.
— Tire as mãos dela! — grito, uma fenda se abrindo na máscara.
Dou um solavanco com o braço, a dor no ombro sobrepujada pelo meu
ódio, fazendo a cadeira estalar embaixo de mim. Yerik pisca diante do som.
É mais como um tique nervoso. — Seu filho da puta, fique longe dela,
porra!
O som que escapa da minha boca não é nada menos que bestial.
Mantenho meu olhar em cada ponto que ele toca, jurando para todos os
deuses no céu e aos demônios no inferno, que ele vai pagar por isso. E não
será bonito.
Eu juro.
Eu juro.
Ele vai pagar.
Uma ruga aparece entre as suas sobrancelhas, ele enxerga a sentença
fatal em meus olhos, sua mão recua com um espasmo nervoso, da forma
como o nosso corpo reage inconscientemente quando tocamos o fogo ou
levamos um choque.
— Mais tarde — ele deixa a sugestão perecer enquanto me encara
com olhos vítreos. — Não gosto de plateia.
Maldito.
Filho da puta nojento.
Nunca duvidei do risco que ela corria nas mãos dele, mas agora,
muito mais do que antes, sei que estou no lugar certo. Eu tinha que vir. É
um alívio saber que ele não conseguiu o que queria, mas uma maldição que
sequer tenha cogitado — a roupa dela, rasgada, é um lembrete gritante do
que ele pretendia fazer. Se eu não tivesse vindo imediatamente, teria sido
tarde. Se ele a forçasse…
Ele não vai conseguir, lembro-me para não perder a porra da cabeça.
Meus irmãos já devem ter acionado a polícia, mantenha a calma.
Sem a ameaça de suas digitais maculando a pele de Anastasia,
consigo pensar melhor, ver com clareza, voltar a ser racional e não um
animal com fome e sede viscerais.
— Vamos ser sinceros, Yerik. — Tento uma nova estratégia. Com
minhas mãos amarradas, não adianta gritar e xingar. Nesse momento, ter
um autocontrole acima da média é a minha melhor arma. — Você não faz a
mínima ideia do que está fazendo. O que você espera ganhar com isso?
Porque é impossível sair impune dessa situação. Em todos os desfechos,
você sai perdendo.
Ele se aproxima de mim a passos lentos. Para na minha frente e me
encara de cima. Bom. Quanto mais distante de Anastasia, melhor. Sinto-a
nos observando, mas não arrisco olhar de volta. Yerik confere o relógio em
seu pulso e seu semblante muda, demonstrando aprovação.
— Em alguns desfechos, todos nós perdemos.
Sorrio com desdém. Ele está certo.
— Mas não é isso o que você quer. Se fosse, nós dois já estaríamos
mortos. — Inclino a cabeça para o lado, pensando. — Bem, você com
certeza me quer morto, não tenho nenhuma dúvida de que isso faz parte do
seu plano, mas não Anastasia. Você a quer, eu sei que sim. Ela é o seu
prêmio. — Nego com a cabeça. — Sua obsessão por ela vai ser a sua
destruição.
— Guarde a saliva, amigo. — Ele se apoia em meu ombro e
pressiona a cavidade formada pelo tiro, mais sangue transborda. Não
esboço reação. — Sua merda de advogado não vai funcionar comigo dessa
vez.
— Sendo assim — continuo minha análise provocativa, ignorando
sua ordem —, não me diga que pretende pedir um resgate? Pelo que eu me
lembre, fiz um bom estrago nos seus negócios, mas sobrou o suficiente das
suas economias para que você não morresse de fome.
Sinto o vento no meu rosto quando seu punho recua e avança,
acertando-me com força, minha visão se apaga por um momento. Eu tento
suportar e não presenteá-lo com a satisfação de me ver sofrendo, mas mal
consigo me recuperar antes de perceber o segundo soco chegando. Depois
um terceiro e um quarto.
Cuspo o acúmulo de sangue no chão. Sinto meu rosto começando a
inchar. Ele pega impulso para um quinto golpe.
— Pare! — Anastasia clama, meu peito fica pequeno, o coração
espremido. — Não faça isso, Yerik, pare por favor. Eu faço o que você
quiser, apenas pare com isso. Andrei! Andrei?!
Os olhos dele brilham, insanes, a boca treme, esticando-se em um
sorriso obsoleto, seu braço fica paralisado no meio do caminho.
— Eu prometi que não mataria você. Mas toda vez que ela diz o seu
nome, eu perco mais e mais a vontade de cumprir com a minha palavra.
Abaixo o volume da minha voz para que Anastasia não me ouça.
— Vá em frente. Eu te avisei uma vez, lembra? Se me matar, acha
que meus irmãos deixarão você em paz? Que a sua prisão vai ser o
suficiente para eles? — Limpo o corte em meu lábio com a língua. — Você
vai desejar estar morto.
— Não tenho medo dos seus irmãos. — Mas ele tem, eu sei, eu vejo
em seus olhos. — Eu e Anastasia estaremos muito longe daqui quando eles
encontrarem você. Vivo ou morto, quem sabe?
Ele leva a mão às costas e pega a arma novamente. Um feixe de luz
vermelho-alaranjado, vindo de alguma fenda nas janelas, colide com o aço
cromado, o preto maciço absorvendo o que devem ser os últimos resquícios
do sol.
Franzo as minhas sobrancelhas.
O crepúsculo acontece cedo no inverno, mas se o dia já está se
esgotando, eu devo ter ficado inconsciente por um tempo considerável. Isso
significa que a polícia já está a caminho, podem chegar a qualquer
momento. O procedimento padrão, geralmente, envolve um período de
negociações com o sequestrador, mas não tenho como saber como eles
pretendem agir.
— A clássica fuga para fora do país — desdenho. — Previsível.
Aposto que as passagens já estão compradas, por isso nós ainda estamos
aqui. Eu serei a distração, suponho, para que você consiga chegar ao
aeroporto com Anastasia bem em cima do horário de embarque. Mas pela
cara que você fez há pouco, olhando para o seu relógio, deve estar quase na
hora.
Sua boca se contrai em uma linha fina e tensa.
Bingo.
— Como assim? — A voz de Anastasia flutua até nós, muito fraca,
mas pela primeira vez desde que eu cheguei, ela não está chorando. — Que
tipo de distração?
Sua pergunta é retórica, ela sabe. Yerik não olha para trás ao
responder:
— O tipo que manterá a equipe ocupada, tentando descobrir como
salvá-lo, caso ainda esteja vivo quando eles chegarem. — Ele aponta para o
meu ombro. — Eu disse que era apenas uma amostra.
— Por quê? — ela pergunta, outro sopro desesperançoso de voz.
Sua cabeça está abaixada. A princípio, parece um sinal de submissão, mas
não é o caso. Ela está olhando para a barriga. Para a nossa filha. — Sempre
me perguntei isso, por que eu? Por que você não pode só… me deixar ser
feliz em paz?
— Você foi feita para mim. — A atenção de Yerik é sugada pelo
questionamento de Anastasia. Ele gira no próprio eixo e caminha até o
centro da sala, obtendo uma visão ampla de nós dois. — Não percebe isso?
Quando a conheci, eu soube que era a mulher perfeita para estar ao meu
lado. A mulher que sempre sonhei. Obediente, educada e estupidamente
linda, mas o mais importante: desesperada por afeto. Um diamante bruto
que eu poderia lapidar do jeito que eu quisesse, porque você precisa disso.
De alguém que tome as decisões certas por você, que a instrua e a defenda.
O mundo é um lugar perigoso, querida, só quero protegê-la de homens
como ele. — Seu dedo indicador sobe, apontando para mim.
— Em outras palavras, você fez dela o seu bichinho.
— Eu a salvei! — ele grita, uma veia saltando em sua têmpora, a
arma balançando perigosamente em sua mão. — Ela odiava aquela vida, as
apresentações, a exploração do seu talento, o assédio da mídia. Ela estava
melhor comigo, na nossa casa, sendo a minha esposa e nada mais. Anastasia
não nasceu para ser uma mulher do mundo.
— Juro que nunca escutei tanta porcaria misógina de uma só vez. —
Sinto uma vontade real de vomitar. — O que você fez foi distorcer a
verdade. Se aproveitou das inseguranças que ela tinha com a própria vida e
carreira para prendê-la em sua maldita masmorra. — Olho para Anastasia e
acrescento: — Ela realmente não nasceu para ser uma mulher do mundo, e
sim para ser a dona dele.
Ela levanta a cabeça e nossos olhares se agarram um ao outro,
entranhados, desesperados, um abraço visual em que o sentimento reinante
não tem nada a ver com amor, mas puro pertencimento, algo mais cru e
vital do que carne e sangue. Você é minha e eu sou seu, transmito através do
meu olhar, esperando que ela consiga ouvir meus pensamentos, ou pelo
menos decifrá-los de alguma forma. Qualquer coisa que acalente o seu
coração.
Não dura muito.
Nosso laço é rompido por Yerik, que despeja mais palavras
delirantes.
— Ela precisa de mim. — Dirigindo-se a ela, ele diz: — Tudo vai
acabar bem. Vamos para Berlim, como você sempre sonhou, e vou levá-la
aos melhores especialistas para tratar a sua condição. Ouvi dizer que
algumas sequelas podem aparecer mesmo depois de anos, isso explica por
que não está se comportando como você mesma ultimamente.
Quando eu e Anastasia estávamos trocando segredos problemáticos,
ela me contou algo sobre ter sofrido um acidente na infância, do qual seu
irmão foi responsabilizado. Yerik também já havia mencionado isso em
outra ocasião. Não conheço os detalhes do ocorrido, ou sua gravidade, mas
junto as peças rapidamente e compreendo que Yerik está se referindo a esse
evento em específico.
Não me surpreendo com sua insensibilidade doentia, mas meu ódio
continua crescendo como uma erva daninha.
— Você é um psicopata — digo, fazendo uma pausa. — E nunca a
terá. — Dou um sorriso rígido, incitado pelos sons que se propagam à
distância.
Sons de sirenes.
Anastasia muda sua postura, ouvindo também, e olha para as janelas
como se esperasse vê-las sendo arrancadas de suas bases. Eu bem que
gostaria, e por um momento eu imagino nós dois sendo salvos e como seria
boa a sensação de tê-la em meus braços no instante seguinte, abraçando-a
para nunca mais soltar, rumo a um futuro em que amar um ao outro seja
mais simples.
Yerik também percebe a chegada iminente da polícia, e junto com
essa percepção, a falha óbvia em seu plano ordinário: eu sou um
manipulador muito melhor do que ele, e infinitamente mais focado, desde o
começo furtando minutos preciosos com as perguntas certas.
— Você… — ele vocifera.
— A minha síndrome de herói me trouxe até aqui, você estava certo,
eu jamais a deixaria nas suas mãos. Mas vir sozinho? Que idiota pensa que
sou? Eu sabia que a sua vaidade e egocentrismo o impediriam de me matar
logo de cara, então sim, eu entrei aqui fingindo não me preocupar em ser
pego e aceitei o primeiro tiro de propósito. — Dou de ombros, a dor há
muito entorpecida, e digo à guisa de explicações: — Tempo, desde o
começo, era o que eu queria. Não para mim, mas para ela. — Aponto para
Anastasia, cego para seu semblante traído. — Então é melhor correr, porque
eu posso não pegar você… — Sorrio, parafraseando o aviso que um dia lhe
fiz o favor de dar: — Mas os Volkiov são como um enxame.
Yerik empunha a arma, o cano mortal me reencontrando como um
velho amigo. Carregar uma arma tem esse efeito contraditório e, eu diria,
poético, do qual eu gosto muito: a falsa sensação de poder atrelada ao medo
constante da retaliação. Medo. É bom que ele sinta, pois a menos que me
mate de uma vez, essas amarras não o protegerão de mim para sempre.
É assim que tem que ser. Eu sou a distração. O sacrifício. Ele ainda
vai tentar fugir, mas eles os alcançarão.
E eu…
— Vai dar tudo certo, princesa — prometo, porque não importa o
que aconteça comigo, contanto que exista uma única chance de lutar contra
a morte para continuar ao seu lado, eu lutarei.
Nem a morte.
Nem a porra da morte.
Mesmo que doa, mesmo que eu tenha que escalar as paredes do
inferno, eu vou lutar por esta vida. Nós temos uma chance. Esse não é o
nosso fim. Por ela, enquanto ela estiver nesse mundo, eu consigo aguentar.
Eu vou sobreviver.
Vai dar tudo certo, continuo demonstrando com o meu olhar, pois
não vou fechar os meus olhos agora, fodam-se as lágrimas que escapam do
meu controle, não me permitirei sentir medo, não vou deixar a minha
família, minha futura esposa e nossa filha, não ousarei me despedir delas,
eu vou aguentar, não é o fim, vai dar tudo certo.
O dedo dele se move sobre o gatilho.
Vai dar tudo certo…
Mas Anastasia grita algo que chama a atenção de Yerik.
E tudo dá incrivelmente errado.
31
Andrei
— O QUE VOCÊ disse? — Yerik pergunta, seu tom ameaçador disparando
alarmes por todo o meu cérebro. — Que porra você acabou de dizer?
Tenho a sensação de estar sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo
horroroso, pois o semblante de Anastasia, minha doce e querida princesa
quebrada, não tem nada da fragilidade habitual. Suas lágrimas desaparecem
e uma chama começa a queimar no fundo de seus olhos determinados. Ela
se empertiga na cadeira, os ombros retesados, a coluna bem reta, e ergue o
queixo de um jeito insolente que nunca a vi usar antes.
Uma rainha.
Por mais estranho e inédito que pareça, e por mais que não seja a
melhor hora para agir sem cuidado, não deixo de perceber como ela fica
linda assim. Se o passado não tivesse sido tão cruel e opressor com ela, ou
se existisse um meio de arrancar dela todas as lembranças ruins, imagino
que teria a oportunidade de ver mais desse seu lado destemido e audaz.
Mas agora… agora é realmente um péssimo momento.
— Exatamente o que você ouviu — ela diz, enfrentando-o com o
nariz empinado. Não gosto disso, não gosto nem um pouco, porque não
entendo o que essa mudança súbita em seu comportamento significa. — Eu
odeio você, Yerik. Sinto vontade de vomitar toda vez que falo seu nome. Na
verdade, estava pensando o quão patético você é como homem para decidir
que sua melhor chance de conquistar uma mulher é matando o seu
concorrente.
Yerik, tão ou mais surpreso que eu, luta para encontrar as palavras.
— Não pode falar assim comigo! Sua sorte é que estamos sem
tempo, senão eu…
— Senão o quê? Iria me bater como sempre fez para me manter
calada? — Anastasia está praticamente gritando, sua postura corporal
oscilando entre a histeria e a bravura. — É bom que você saiba, Andrei é
melhor em me calar também. Mas ele sabe como manter a minha boca
ocupada de um jeito mais divertido! — Santo Deus! O que ela está
dizendo? — O que foi? Por que está com essa cara? Por acaso pensou que
eu passaria meses ao lado dele sem nada acontecer entre nós? Não era você
que vivia me chamando de prostituta?
Sua boca verte deboche. Sinto um pressentimento ruim. Algo muito
importante está sendo tecido bem diante dos meus olhos, uma teia perigosa
que não faz o menor sentido.
Quero que ela pare.
Ela tem que parar de falar agora.
— Vagabunda. — A mão de Yerik volta para a posição inicial,
balançando a arma na minha direção. O semblante de Anastasia estremece,
mas não cede. — Deixou ele usar você como uma puta?
Anastasia dá uma risadinha aguda e, ao mesmo tempo, feroz.
— É isso mesmo, uma puta. A puta de Andrei Volkiov, soa bem aos
ouvidos, faz jus à verdade, já que ele me usou de todas as formas que um
homem pode usar uma mulher. — Ela não está sendo sincera, nossas
intimidades foram sempre intensas, mas cheias de amor, paixão e entrega.
Então, por quê? Qual é o seu objetivo? — E ele é muito melhor do que
você, Yerik. Tão melhor que mesmo se o matar agora e me obrigar a dormir
com você todos os dias antes da minha morte, é ele quem eu vou imaginar
dentro de mim, e é o nome dele que você vai ouvir saindo da minha boca
até o fim da sua vida miserável.
Porra! O que caralhos ela está dizendo? Algo assim nunca vai
acontecer. Ele não a terá de forma alguma, eu não vou permitir, minha
família tampouco. Essa conversa nem deveria estar acontecendo! Não é o
rumo que eu esperava. Anastasia não deveria ser o foco agora. As sirenes
ainda estão muito distantes.
Não é o suficiente, ela não está totalmente segura.
— Princesa, já chega. — Forço as malditas cordas, elas cortam
meus pulsos, deixando minhas mãos escorregadias com meu sangue. Isso
me dá uma ideia que guardo com uma noção secundária. — Pare agora.
Nenhum dos dois dá a mínima para o meu pedido. O braço de Yerik
permanece erguido com o cano mortal mais ou menos apontado para mim,
seu rosto transmutado em algo saído do inferno enquanto encara Anastasia.
— Retire o que disse — ordena. — Vai retirar tudo o que disse, e
iremos embora daqui.
Ela nega com a cabeça, despejando uma avalanche de
ressentimentos.
— Você sempre me aterrorizou com ameaças sobre jamais deixar
outro homem se aproximar de mim além de você, ao ponto de eu ficar
paranoica e não conseguir cumprimentar as pessoas sem achar que estava
fazendo alguma coisa errada. Eu tinha medo de sorrir! De erguer o meu
rosto e acabar cruzando o meu olhar sem querer com o de um
desconhecido! Tinha medo de abrir a minha boca em público porque não
sabia qual seria a sua reação quando chegássemos em casa! — Sorri com
escárnio. — Deve ser frustrante saber que não tem mais esse poder.
— Cala a boca! — Yerik berra, uma veia se pronuncia em seu
pescoço. Mas o som da trava de segurança, quando ele a puxa para trás, soa
mais alta e violenta que suas palavras. — Nada disso importa. Quer ser
tratada como uma vadia? Oh, eu posso fazer melhor do que isso. Mas
guarde bem as minhas palavras, querida: ainda vai me implorar de joelhos
para voltarmos a ser como antes!
— Eu estarei morta e fria antes de me submeter a você outra vez! —
Anastasia também tenta se soltar, mas sua força é inútil contra as amarras.
Seus pulsos magros não têm chance contra os nós grossos das cordas.
— Pare com isso! Já chega! — peço, gritando e me contorcendo.
Por causa dos movimentos frenéticos, o fluxo de sangue em meu ombro
ferido se intensifica, pingando no chão.
Olho ao redor, procurando alguma coisa que me ajude a escapar
mais rápido, mas não há nada, nenhuma lasca de madeira perdida no chão,
nenhuma pedra que eu possa alcançar, simplesmente um cômodo vazio,
insalubre e pouco iluminado, que pela primeira vez me enche de um pavor
congelante, enquanto as palavras morta e fria me esfaqueiam, mutilando
partes do meu corpo com cortes dolorosos e profundos.
— Eu odeio você, Yerik! — Minha princesa grita, a voz
recomeçando a tremer junto com o choro, que faz seus olhos vermelhos
parecerem maiores, duas cavernas tristes inundadas com água salgada. —
Odeio, odeio, odeio! Vou odiar para sempre!
— Estou mandando ficar quieta! — ele urra em resposta, piscando
freneticamente, desnorteado, imprevisível.
— Espero que você morra!
— Anastasia! Pare de falar, não o provoque! — eu imploro, sentindo
gosto de sal e sangue na minha boca. Minha cadeira cai para o lado
enquanto me debato, levando-me direto para o chão.
O som abafado da minha queda se perde em meio às ordens dele
para que ela se cale, mas Anastasia imediatamente me olha, sua fisionomia
implacável completamente suplantada pelo medo — por mim, percebo, não
por si mesma como deveria ser. Seu calor me rodeia, os braços invisíveis do
nosso amor se acariciando, abraçados um ao outro em uma espécie de
saudação fatalista.
Seus lábios desenham duas palavras mudas, acompanhadas de um
sorriso gracioso e lindo e apaixonante, como ela sempre foi: amo você.
Então, com uma fluidez lenta e temerária, Anastasia desata os laços
com o meu olhar e desvia sua atenção para o objeto instável na mão de
Yerik. Sinto-me oco diante da emoção sombria, efêmera e cabal que toma
conta de seu rosto.
— Lembra do que você me perguntou naquele dia? — pergunta,
voltando-se para o homem consternado cuja mente parece se fragmentar a
cada segundo. — Como eu aprendi a ser amada depois de fugir de você?
— Cala a boca! CALA A BOCA! Você é minha, você me ama!
— Princesa, por favor…
— Você nem imagina — ela diz, a voz falhando, fraca —, como foi
fácil abrir as minhas pernas para outro, Yerik. E como eu realmente gostei.
— Anastasia! — clamo, arrastando-me com a cadeira e tudo.
Yerik treme de ódio, os olhos esbugalhados, vidrados, loucos,
gritando todo tipo de obscenidades sobre seu caráter, chamando-a pelos
piores nomes, inverdades que ela jamais deveria ouvir.
— E sabe de uma coisa? — Ela sorri enquanto seus olhos são
apenas lágrimas. — Você é um monstro.
— Não, Ana, querida, já chega, porra! — Faço força, um dos braços
da cadeira se quebra, mas não consigo me levantar.
— Pode me arrastar pelos cabelos, me prender em um porão e fingir
para si mesmo que conseguiu a sua vitória.
— Eu já venci! — Yerik rosna, tremendo dos pés à cabeça, como
uma besta encurralada. — Você é minha, minha, minha.
— Princesa.
— Mas guarde bem as minhas palavras — Anastasia o observa com
nojo e pena. — Eu não amo você, Yerik, nunca amei, e nunca vou…
O braço dele muda de direção.
Eu grito.
Um trovão corta o céu, rachando o mundo em duas partes para
sempre. De um lado, o início de um sonho dourado, onde melodias um dia
puderam ser ouvidas e a salvação de dois corações destinados pôde ser
contada, o passado inalcançável de um segundo atrás; do outro, o fim
grotesco, cruel e sádico de uma história de terror, e estou preso nela,
rodeado pelo eterno tormento de um ponto final triste.
Como se nunca tivesse acontecido, o estrondo se dissipa, tornando-
se mais baixo à medida que se propaga pelo quarto, até não restar nada além
da ausência — de som, de esperança, de vida, de alegria, de futuro, de
amor, de… tudo.
A arma recém disparada cai no chão, ao mesmo tempo, Anastasia
tomba para o lado, seu corpo atado à cadeira assim como o meu. Os dois
eventos sincronizados duram uma eternidade e meu cérebro se recusa a
reconhecer a conexão entre eles — o tiro alto como o fim do mundo,
Anastasia estática e frágil no assoalho poeirento, Yerik soltando a arma
abruptamente, como se nem ele esperasse fazer o que fez.
Porque ele não atirou em mim, mas nela.
Yerik deu um tiro na minha mulher.
— Não, não, não, não, não — repito, sem acreditar. — NÃO, POR
FAVOR, NÃO! O que você fez? O QUE VOCÊ FEZ?
Não tenho certeza para quem estou perguntando, a única pessoa que
existe nesse momento é Anastasia. Ela com os olhos fechados, o corpo
pequeno parecendo vulnerável demais nas sombras, com uma mancha
escura crescendo em seu vestido, na região da barriga — oh, Deus, não
pode ser. Eu me arrasto pelo chão, mas é inútil, não consigo me aproximar o
bastante, não consigo voltar na porra do tempo, não consigo salvá-la.
Ana.
Nossa filha.
Por quê?
Por que isso está acontecendo?
— Fale comigo, Ana, querida, princesa, apenas fale comigo,
mantenha os olhos abertos!
Ela movimenta as pálpebras molemente, mas sua visão sem brilho
ou vigor não dá indícios de me enxergar. Geme baixinho em seguida, um
choramingo de dor que me apunhala como uma foice, ceifando a vida de
dentro de mim — Anastasia é minha vida, e eu a estou perdendo.
O sangue em seu abdômen começa a se acumular no chão,
formando uma pequena poça.
Poucas semanas atrás, nós estávamos no consultório médico
ouvindo o coração da nossa filha, e minha maior preocupação era a
aparência pequenina de sua barriga, mas agora, aquele montinho
proeminente tingido de vermelho se destaca como um grande alvo. Muito
exposto, muito visível, muito indefeso.
— Por quê? — eu choro, provavelmente grito, soluçando, irado e
devastado e desesperado. — Por que você fez isso? Por que o enfrentou? Eu
disse que aguentava, eu disse que tudo ficaria bem, princesa. Não me deixe!
Eu imploro a você, não me deixe! Olhe para mim, aguente firme, por favor,
não, não, não. Por quê? Por quê, princesa?
A sombra de um sorriso toca seus lábios, mas ela não tem forças
para fazer muito além disso.
— Porque eu… — sussurra em um tom fantasmagórico, distante e
sonhador. — Estou agarrando com as minhas próprias mãos. — Depois ela
fecha os olhos.
E não volta a abri-los.

***

Ela sabia.
Sabia o que estava fazendo. Sabia como seria a reação de Yerik. Ela
o conhece. Ela o conhece. Ela o conhece. Ela sabia. Ela sabia. Ela sabia. Ela
sabia.
Sabia que ele atiraria.
Sabia que ele entraria em choque.
Sabia que assim minha vida seria poupada.
Anastasia sabia que provavelmente morreria.
Ela sabia.
Ela sabia.
Ela sabia.
E, ainda assim, ela fez.
Suas últimas palavras se repetem. Eu não sei o que elas significam,
o que ela quis dizer. Mas continuo ouvindo-as em sequência. Elas são o
firmamento que regem o mundo. O princípio e o fim. Eu sou feito delas,
composto pela finitude infinita das últimas palavras ditas pelo amor da
minha vida.
Estou agarrando com as minhas próprias mãos. Estou agarrando
com as minhas próprias mãos. Estou agarrando com as minhas próprias
mãos. Estou agarrando com as minhas próprias mãos. Estou agarrando
com as minhas próprias mãos.
Mas ela sabia.
Não sabia?
Ela tinha que saber.
Estou agarrando com as minhas próprias mãos. Estou agarrando
com as minhas próprias mãos. Ela sabia. Estou agarrando com as minhas
próprias mãos. Ela sabia. Ela sabia. Ela SABIA. ELA SABIA. ELA
SABIA. ELA SABIA. ELA SABIA. ELA SABIA. ELA SABIA. ESTOU
AGARRANDO COM AS MINHAS PRÓPRIAS MÃOS. ELA SABIA. ELA
SABIA. ELA…
Ela sabia.
…com as minhas próprias mãos.
Ela sabia.
Sabia que havia uma chance de morrer no meu lugar.
Porque ela está morrendo.
Está sangrando.
Morrendo.
Anastasia.
Nossa filha.
O sangue delas.
As duas estão morrendo.
Eu estou.
Ela sabia.
É irreal.
Parece-me impossível que ela não se mova, que eu não consiga ver
seu peito subindo e descendo em um ritmo profundo. Por noites
ininterruptas, meu principal compromisso tem sido admirar o seu sono
depois de fazermos amor por horas. Eu sei de cor como Anastasia ressona,
o ritmo de suas respirações, seu jeito fofo de se encolher em meus braços e
esconder o rosto em meu peito. Nenhum desses detalhes está presente no
corpo jogado de qualquer jeito sobre o chão sangrento.
— Ana? Anastasia, abra os olhos, acorde, diga alguma coisa,
qualquer coisa, olhe para mim. — Não adianta o quanto eu peça, ela não
reage.
Minhas súplicas são inúteis, meu choro não significa nada. Minhas
lágrimas não vão curá-la. Meus gritos têm ainda menos valor. O que eu
faço? O que eu faço? O que eu tenho que fazer? Rezar? Pagar uma
penitência? Andar de joelhos sobre pedras em brasas? Qualquer coisa,
qualquer custo, qualquer preço, eu só preciso saber o que fazer para que ela
não morra.
Que já não esteja morta como parece.
Morta.
Morta.
Anastasia, morta.
É essa palavra tóxica que me faz reagir, apesar da sensação letárgica
que tenta conter o meu corpo, como um relógio cuja engrenagem mais
importante foi retirada de sua complexa maquinaria, condenando-o à
eternidade de um mesmo segundo, em um mesmo minuto de uma mesma
hora.
Elas precisam ir a um hospital urgente.
Olho para o culpado e urro de ódio. Era para ser ele naquele chão,
perfurado e sangrando. Não é justo que os olhos dele estejam abertos, que
ele consiga respirar e falar e chorar enquanto Anastasia deixa esse mundo
cedo demais.
— Yerik — rosno. Ele não reage. — YERIK! Preste atenção, seu
desgraçado maldito, você não tem o direito de chorar por ela! Então
coloque a merda da sua cabeça no lugar e me ouça, porra! Você tem que
entregá-la aos policiais. Se existe alguma mínima parte de você que se
importa, deixe que eles a levem!
— Ela está morta — balbucia, encarando as próprias mãos. — Eu a
matei.
— VOCÊ NÃO SABE!
— Eu não… isso… eu não queria…
Você queria, você fez.
— FODA-SE YERIK! Entregue ela! Deixe que eles a levem!
— Não, não podem, eu preciso dela…
— ELA VAI MORRER!
— Eu não posso, está tudo acabado.
— YERIK, PORRA! ENTREGUE ELA!
Seus olhos opacos se estreitam sobre mim, vazios e loucos.
— Está tentando escapar?
Eu vou matar esse desgraçado, é uma maldita promessa. Ele vai
morrer.
— Eu não dou a mínima com o que você vai fazer comigo. Ligue
para o meu irmão, ele vai estar com os policiais, e diga que aceita entregar
Anastasia contanto que ele a pegue, e que eu ficarei com você como
garantia.
Dúvida paira em seu semblante. Ele pega o aparelho no bolso, que
reconheço como sendo o celular de Anastasia. Tenho que aproveitar
enquanto ainda não se recuperou completamente para entrar em sua cabeça
e fazer o meu estrago.
— Pense bem, você não tem mais nada a perder. Se confirmarem
que ela está mesmo… — Porra, eu não consigo dizer. — Que ela se foi,
então basta me dar um tiro no crânio e acabar com tudo de uma vez por
todas. Mas, se conseguirem salvá-la, ainda terá a mim para negociar. Você
vai ter tempo para planejar uma nova rota de fuga. Pode exigir um carro e
dinheiro. Ainda haverá uma chance para você.
Mentira.
Ele hesita, olhando para Anastasia e, em seguida, alternando entre
mim e o telefone.
— Eu preciso dela.
Não, eu preciso dela.
— Então ela tem que viver.
Tremendo, Yerik se abaixa e pega a arma de volta com a mão livre.
— Se eles tentarem qualquer coisa…
— Eu sei — digo, sem medo ou receio. Sem nada. Eu não sinto
nada. — Você me mata.

***

A negociação dura menos de três minutos.


Eu sei porque conto o tempo na minha cabeça. Yerik levanta a
minha cadeira e me arrasta até o canto do quarto, de modo a formar uma
barreira entre ele e a única entrada. Ele posiciona a arma na minha têmpora,
o toque gelado como um beijo da morte, e espera.
Ouço sua respiração fremente e ansiosa, sinto seu tremor através do
metal. Ao contrário de mim, ele já ultrapassou todos os seus limites —
graças à pressão de Anastasia, que o levou a explodir como uma mina
terrestre depois de ser pisada.
Se eu quisesse, poderia convencê-lo a desamarrá-la, pelo menos isso
tornaria a imagem dela caída um pouco menos dolorosa, mas não o quero
perto dela, e não sei quais riscos ela correria se fosse movida antes do
tempo — caso ainda esteja viva, afasto a voz obscura da minha
consciência. As cordas podem estar ajudando o sangue a circular mais
devagar, ou este sou eu tentando me enganar a fim de estender o meu
controle só mais um pouquinho.
Entre a ligação e a chegada de Ivan, duzentos e oitenta e nove
segundos se passam. Duzentos e oitenta e nove segundos em que sou
obrigado a assistir Anastasia sangrando sem poder fazer nada. E eu sei que
carregarei essa imagem pelo resto da minha merda de vida.
Assim como Yerik combinou, meu irmão entra sozinho na velha
casa, e a parte automática do meu cérebro se lembra de fazer uma anotação:
uma equipe tática já foi montada para que ele tenha entrado tão rápido, e
assim que ele a levar, começarão a planejar o meu resgate. Não será
necessário de qualquer forma.
A maioria das pessoas não sabe, mas Ivan é o menos previsível de
nós quatro. Sempre tive dificuldade para ler suas intenções, já que ele pode
tanto explodir do nada como Roman, quanto agir com indiferença fria como
Vladimir. Mas assim que vê Anastasia no meio de todo aquele mar
carmesim, seu rosto se torna um livro aberto de medo, desespero e muita
dor.
— Mas que porra é essa. — Ele corre, ajoelhando-se ao seu lado, e
retira as cordas a uma velocidade quase sobrenatural. Meu irmão ampara o
corpo flácido da minha princesa, deitando a cabeça dela em seu ombro de
modo acolhedor. — Ei, querida, acorde, não faça isso com a gente.
— Ivan, me diga como ela está.
Ao som da minha súplica, ele me olha, seu rosto recai em sombras
infernais diante da ameaça à minha vida, mas Anastasia em seus braços o
mantém concentrado. Nós não temos nenhum tempo a perder.
Ele tenta checar seu pulso, no entanto, sua expressão nauseada e
desprovida de cor se adianta às suas palavras. É ruim.
— Eu não…
Ele não sente nada.
Honestamente, não sei se ele sabe como fazer isso direito, mas eu
sinto algo se partindo dentro de mim: o cadeado invisível dos grilhões
pesados que envolvem o meu coração agora seco e podre. O limite que
estive evitando. Porque se Anastasia não está viva, eu também não estou. E
o mundo pode arder em chamas.
— Tire ela daqui. — A ordem vem da pessoa atrás de mim.
— Solte ele — meu irmão rebate, ríspido, ameaçador, sedento por
vingança tanto quanto eu.
— Não é esse o combinado! — Yerik pressiona a arma com mais
força. Eu deveria sentir medo, mas, novamente, não há nada.
— Não importa, Ivan — eu digo, a voz oca, meu rosto em branco.
— Faça como ele diz.
Ivan começa a negar, girando a cabeça para os lados. Eu o entendo,
já que seu amor por mim é equivalente ao meu por ele. Seria estranho se ele
não dissesse nada. Somos irmãos, eu já esperava por sua resistência.
— Mas irmão…
— Você me deve isso! Por Lara, pelo que eu fiz por ela, você me
deve. — Dor e mágoa cruzam o seu olhar. Usar minha cunhada, aquela que
considero minha melhor amiga e irmã, é um golpe baixo. Eu a ajudei no
passado e faria mil vezes se necessário. Mas essa é a maneira mais rápida e
eficiente de convencer Ivan, que tem o hábito de ser um merda teimoso. —
Por favor, faça isso por Anastasia. Vá agora, porra! Leve ela daqui!
Ele range os dentes, mas funciona, e sei que parte disso é graças ao
vínculo de amizade quase paternal que ele criou com Anastasia. Apesar de
eu ser grato, é bem triste. Meu irmão nunca vai se esquecer de hoje. Do dia
em que teve que deixar seu irmão mais novo para trás e carregar sozinho a
sua protegida à beira da morte.
Eu sinto muito, irmão, me desculpe.
Depois de xingar uma série de palavrões, ele abaixa o rosto para ela,
a coisinha delicada e inconsciente em seus braços, e a abraça com cuidado,
ficando de pé sem nenhuma dificuldade. O sangue dela mancha sua camisa
branca, e seu braço fino pende, balançando sem vida.
Meus olhos queimam, lágrimas ressurgem, eu contenho um grito em
minha garganta, sentindo-o em minhas entranhas dolorosamente, pois eu sei
que é uma despedida. Ivan está levando embora o meu mundo inteiro e,
ironicamente, ele parece pesar quase nada.
— Nós vamos tirar você dessa, Andrei — ele garante antes de se
virar e partir de uma vez, correndo, sem olhar para trás, como se não
confiasse em si mesmo para suportar sua escolha.
Anastasia e minha filha somem do meu campo de visão, mas a
mancha escura no chão, com o formato do corpo dela estampado na
madeira, fica como um lembrete sádico do que foi feito às duas, do que
minha mulher sofreu.
De que ela está morta — pode estar.
E de que alguém vai ter que pagar.

***

Eu sempre gostei de Pensamentos Intrusivos. Eles costumam


aparecer de repente, atravessando todos os outros sem serem chamados, de
forma inconveniente e absurda. Uma hora você está andando na rua
distraidamente e, do nada, se imagina pulando na frente do próximo carro.
Você não quer pular, mas imagina a cena mesmo assim.
Por quê?
Dizem que se trata de um mecanismo de defesa, nosso cérebro
processando rápido demais o que não devemos fazer. Mas eu me pergunto
se é isso mesmo, ou se são nossos demônios internos brincando de
bisbilhotar a realidade.
Se for o caso, há dois demônios dentro de mim. Enquanto um se
delicia com variações de "e se eu o fizer engasgar com o cano daquela
arma?", o outro repete sem parar "Anastasia está morta".
E se eu usar as cordas que ficaram caídas onde Ivan as cortou,
encharcadas com o sangue dela, para estrangulá-lo?
Anastasia está morta.
E se eu lhe der um buraco na barriga, igual ao que ele fez nela, e
deixá-lo jorrando no chão até não sobrar uma gota de sangue em seu
corpo?
Anastasia está morta.
Yerik me vigia pelo canto dos olhos enquanto verifica as minúsculas
fendas nas janelas com a arma presa no cós de sua calça. Ele não sabe, mas
eu também o vigio de volta. Nada tira de mim a calma sinistra e predatória
agora que estamos sozinhos.
Quer dizer… eu, ele e meus demônios.
— Eu estava aqui pensando, você aceitou entregar Anastasia rápido
demais. — Visto uma das minhas múltiplas faces, a da neutralidade. O
vazio me ajuda a acessá-la mais rápido que o normal. Inclino a cabeça, ele
pisca. — Minha teoria é que você planeja, em sua ignorância doentia, fugir
do país, esperar a poeira baixar e retornar para buscar Anastasia caso… —
Respiro fundo, regulando o meu ranger de dentes. — Caso ela sobreviva.
Anastasia está morta.
Quatro passos largos e ele está sobre mim, bufando e suando.
Previsível, descuidado, tolo.
— Não é da sua conta, meu amigo.
— Você nunca vai parar, não é? Se acabar preso, seja daqui vinte,
trinta, quarenta anos, assim que estiver livre, você vai voltar para
atormentá-la.
Ele não confirma e nem nega, o que para mim é resposta o bastante.
Yerik nunca vai desistir de Anastasia. Ameaças, surras e anos de cárcere
não são suficientes para garantir que ele pare, e se ela está morta, esses são
pagamentos baixos demais.
De uma forma ou de outra, só existe um caminho. Resta saber se
tenho o que é necessário para percorrê-lo. Acho que vamos descobrir.
— Meu irmão prometeu que me tiraria daqui. Portanto, se eu esperar
pacientemente, ele vai cumprir com a sua palavra. Ele, junto com Vladimir
e Roman, caso os dois tenham conseguido voltar, devem estar fundando um
novo tipo de inferno na Terra nesse exato momento.
— Vocês quatro se acham tão invencíveis, mas não dessa vez,
Andrei. Ao invés de continuar com a maldita máscara de homem perfeito e
controlado, você deveria começar a rezar, porque se não me derem o que eu
quero, nenhum de nós dois sairá daqui com vida.
Pouco depois da saída de Ivan e Anastasia, Yerik pediu informações
sobre o estado dela, mas não obteve resposta, então começou a fazer
exigências estúpidas, como um carro, roupas limpas e uma mala de
dinheiro. Sua mente está além da compreensão para não enxergar o fim da
linha bem embaixo do seu nariz.
Ele não vai parar, ele nunca vai parar.
Eu errei não enxergando isso antes.
Eu errei.
Anastasia está morta.
— A questão, Yerik, é que eu não preciso ser salvo. — Meus lábios
se repuxam em um sorriso de mentira. Ele ainda não entendeu.
Com um impulso, eu me jogo em cima dele. A surpresa por me ver
livre o impede de reagir rápido o suficiente, e faço a vantagem valer a pena.
O primeiro soco me deixa muito consciente dos danos em meu ombro, mas
até onde me importo, ele pode apodrecer e cair, contanto que Yerik tenha
seu rosto desfigurado.
Ele cambaleia, atordoado, o nariz sangrando, e tenta pegar a arma,
mas eu já esperava por isso e tento fazer o mesmo. No meio da luta entre
quem a saca primeiro, um de nós dois atinge a arma com um tapa, fazendo-
a voar e deslizar pelo cômodo.
Yerik avança xingando atrás dela, eu me abaixo rapidamente e
removo as cordas dos meus tornozelos. Ele consegue se jogar no chão,
esticar o braço e tocar a ponta dos dedos em sua preciosa arma, sua única
chance contra mim, mas eu já estou sobre ele novamente. Seguro seu
cabelo, puxo o couro cabeludo com força, ergo sua cabeça para tomar
impulso e soco sua cara no chão.
De novo e de novo e de novo.
O som disso… eu gosto bastante.
Ele desiste da arma e joga o cotovelo para trás, acertando meu
queixo. Cuspo mais um tanto de sangue e sinto o tremor subindo pela
minha garganta antes de soltar uma risada histérica. É assim que a loucura
se parece? Eu realmente cruzei o limite.
Fodam-se as máscaras.
Fodam-se os teatros e as maquinações.
Foda-se a porra do Rei dos Tribunais.
Anastasia. Está. Morta. E o vazio… eu preciso preenchê-lo com
algo.
Yerik rola para o lado, longe da arma, mas pronto para uma boa
briga.
— Quando? — sibilia, engasgando-se com a boca ensanguentada.
Seu nariz é uma cachoeira vermelha. Nós dois ficamos de pé a míseros
metros um do outro.
— Quando eu consegui me soltar? — Dou um passo, ele recua dois.
— Pouco antes de Ivan sair. — Mostro meus punhos fechados, os pulsos em
carne viva. — Forçar as cordas para dilacerar os meus pulsos e encharcar
minhas mãos em sangue finalmente deu o resultado que eu esperava.
Consegui remover as amarras, escorregando-as através da pele moída,
enquanto você estava distraído vigiando meu irmão.
Confusão e medo se chocam no rosto deformado de Yerik, seus
olhos verdes perdem a saturação natural, sucumbindo a um tom
embolorado.
— Oh, você finalmente entendeu? É, se eu quisesse, poderia ter
tentado escapar junto com Ivan, aproveitado a oportunidade de fazer isso na
presença da equipe que devia estar a postos do lado de fora, esperando por
ele e Anastasia. Mas escolhi ficar com você. Apenas eu e você. Porque se o
pegassem, você seria preso. — Paro de fingir a voz mansa. Tudo na
próxima sentença é feroz e brutal. — Só que você não vai desistir.
Dou um impulso e o seguro pela camisa, meu braço sobe para
terminar o trabalho em seu rosto, mas ele reage, acertando-me primeiro nas
costelas. Quando meu corpo se curva com o impacto, eu ouço uma conversa
na minha mente, uma lembrança entre Anastasia e eu que parece fazer parte
de uma invenção, o primeiro dia em nosso apartamento.
— Está tão na cara assim a minha miséria?
— Acho que um miserável reconhece o outro.
Volto para o presente e ataco, sentindo minha determinação
renovada, como se a lembrança preenchesse o vazio aos poucos. Meu
punho encontra seu caminho até o estômago de Yerik, que tosse e se
encolhe. Eu não paro, querendo mais dessa sensação vingativa e final.
O pedaço de lixo reage, mas eu mal processo os seus golpes.
Continuo socando e chutando, até o suor e o sangue se misturarem sobre a
minha pele. Sinto o momento em que ele dobra os dedos da minha mão
esquerda para trás, ouço o barulho de um osso se deslocando. Isso também
não me para.
Mais uma lembrança eclode, brilhando como fogos de artifício no
céu noturno: as mãozinhas de Anastasia contra as minhas.
— Mãos pequenas, dedos curtos.
— São mesmo pequenas.
Eu derrubo Yerik, caio por cima dele, que mal consegue se defender.
Há muito sangue por toda parte, minhas mãos e braços estão revestidos com
o brilho pegajoso. Eu quero mais. Ele me acerta alguns socos, e para cada
acerto, eu o golpeio três vezes mais. Meu punho sobe e desce, e tenho outro
vislumbre de Anastasia murmurando baixinho:
— Já parou para pensar que a gente não é uma boa ideia?
— A gente é uma ótima ideia. Uma ideia perfeita.
Ele para de lutar e fecha os braços na frente do rosto. Eu não paro,
não consigo, não estou no controle. O vazio dentro de mim implode. Dor,
medo, desespero, ódio, tudo vaza de uma vez, transborda, litros e litros de
sentimentos que eu não posso comportar.
É demais. Anastasia. O que eu vou fazer? A sua ausência dói. Eu
não aguento essa dor. É muito forte. Então eu choro. Lágrimas, suor e
sangue.
— Amo você, Andrei. Percebi que não tinha dito ainda.
— Você disse de outras formas.
O corpo abaixo de mim fica flácido, os braços caem, revelando o
rosto irreconhecível. Puxo o ar, minha mão fechada treme no alto, minhas
unhas estão fincadas na palma.
— Você… não é… — ele tosse — um assassino.
— Eu não sou, mas você não vai parar a menos que eu o pare. —
Apesar do choro, minha voz sai limpa e firme. — Ah, tudo bem, isso pode
ser uma mentira, uma desculpa. Você atirou na minha mulher. Antes disso,
abusou dela por anos, espancou e humilhou, arrastou ela pelo inferno. E aí a
matou. Por que acha que tem o direito de viver e ela não?
— Anast… — balbucia, engasgando.
Soco a sua boca.
— Não vai dizer o nome dela, porra! — Nunca mais. Nunca mais.
Nunca mais. Ele nunca mais vai dizer esse nome.
O que parece ser uma lágrima escorre do único olho parcialmente
aberto de Yerik. Ele me suplica por sua vida com esse olhar, já que não
consegue mais balbuciar palavras. Acho que terminei de quebrar o seu
maxilar.
Agora é a hora de me levantar. Sou um advogado, eu busco a justiça
através da lei, não com as minhas próprias mãos. Não sou um monstro.
Você gosta de ser o herói.
Eu não quero me levantar.
Eu não quero o que a lei oferece.
Eu não quero que ele viva.
Se Yerik viver, um dia ele vai voltar. Eu não posso arriscar, não vou
cometer o mesmo erro duas vezes. E ainda há a dor, eu preciso que pare de
doer.
Minha cabeça alterna entre dois pensamentos: se Anastasia estiver
viva, ela não pode passar o resto da vida com medo dele, esperando o dia
em que seu monstro vai reaparecer e arruinar tudo; se ela estiver morta, ele
merece ser varrido da face da terra pelo simples deleite da minha vingança.
Ambos os pensamentos levam a um mesmo fim.
É inevitável.
Aproximo-me até sentir o cheiro podre da respiração de Yerik, quero
que meu rosto seja a sua última visão.
— Uma coisa que as pessoas esquecem com frequência: heróis
também matam pessoas, só que ninguém sai por aí chamando eles de
assassinos já que são os únicos dispostos a fazer o trabalho sujo de limpar o
mundo de merdas como você.
— Isso... ainda... não... acabou...
Então ele grita, um som gorgolejante, e eu deixo a minha mão cair
continuamente. Perco a conta de quantos socos desfiro em seus restos,
fazendo uma bagunça completa para todos os lados. Eventualmente, ele
desiste de resistir. Em seguida, seus gemidos emudecem. Mas eu só paro
muito tempo depois de seu peito ficar imóvel.
A dura verdade sobre pessoas ruins, é que lhes damos mais crédito
do que provavelmente merecem, pois no final do dia elas sangram vermelho
e choram lágrimas salgadas como todos nós. E, com a motivação certa,
morrem do mesmo jeito: geladas e com medo.
Simples assim, tudo acaba, rápido e brutal. Lágrimas lavam o meu
rosto, eu tremo até a última essência da minha alma, sentindo os pedaços já
quebrados de mim se partindo em fragmentos menores ainda, grãos e poeira
do que Anastasia havia colado.
Deslizo para o lado e rastejo pelo chão, formando um rastro com o
meu corpo. Caio de costas quando minhas forças findam e uma avalanche
feita de sombras me engole de uma só vez, trazendo à tona um universo de
sofrimento.
Eu sinto tudo.
Meu Deus, essa dor...
Meu corpo inteiro dói, as juntas das minhas mãos rangem sempre
que flexiono os dedos, e o indicador esquerdo não responde aos meus
comandos, continua retorcido em um ângulo estranho. Não é uma sensação
agradável... Merda, está bem longe de ser agradável. Dói como o inferno!
Respirar também não é nada bom, queima e arde. O sabor ferroso na minha
boca escorre para dentro da garganta a cada inspiração, desencadeando um
desejo desumano de vomitar.
E ainda tem o cheiro.
O cheiro.
Não se assemelha a nada que minha memória olfativa já tenha
registrado antes. Arriscaria dizer que se parece, mesmo que suavemente,
com odor de metal enferrujado, arame farpado umedecido pela chuva. Mas
é mais forte, mais definitivo, uma fragrância pungente de podridão no
perfume utilizado pelo anjo da morte depois de ceifar uma vida.
E está impregnado em mim, nos meus braços, no pescoço pegajoso,
nas minhas vestes encharcadas com o líquido viscoso. Está dentro,
serpenteando no interior dos meus olhos, arranhando músculos e pele para
se alojar entre as fendas. Depois de hoje, não importa que o tempo passe,
que os dias continuem acontecendo e os meses se tornem anos, jamais
esquecerei como é sentir o aroma do medo, o bafo quente e pútrido do
desespero invadindo as minhas narinas.
Invadindo a minha alma.
A poça ao redor dos meus joelhos continua aumentando, e a
escuridão transforma o vermelho pegajoso em um tom profano enquanto
meu corpo tremula sobre o mar crescente de sangue.
Há um som quebrando o silêncio, ecoando como um dueto de
soluços e gritos estrangulados, meu próprio lamento sem controle ou
harmonia. Queria poder gritar mais forte, chorar alto o suficiente para calar
o berro do meu coração, mas não me restam forças para lutar contra essa
agonia excruciante que amplifica o meu sofrimento.
E eu tento, como um louco, tento; golpeando o chão com o punho
direito, canalizando a dor em um castigo físico. Só preciso que a dor vá
embora, não a suporto, não consigo mais lidar com ela. Preciso que pare.
Que isso acabe.
Que não seja verdade.
Mas não adianta, nada é suficiente. Os socos perdem a potência à
medida que meu corpo enfraquece, subjugado pela exaustão. Minhas
lágrimas se esgotam, o choro sendo substituído por grunhidos de
indignação. Começo a me arrastar na direção em que suponho estar a saída,
necessitado de colocar a maior distância possível entre mim e este pedaço
do inferno, no entanto, os espasmos tornam meus movimentos lentos.
Arfando, tento ficar de pé, mas minhas pernas cedem sobre o piso
molhado e cambaleio de volta ao chão, tombando com um baque aquoso.
Prendo a respiração, forçando a vista na grande sala fechada. Meus olhos
vertiginosos pouco enxergam no breu, exceto pela pequena fresta entre as
madeiras pregadas na janela, que deixa entrar um feixe fraco da luz lunar.
O dia se foi.
Procuro manter a calma, contando o passar vagaroso dos segundos
mentalmente. Não olhe para trás, ordeno a mim mesmo em silêncio, focado
no trajeto adiante.
Não olhe para trás.
Forço meus joelhos, piscando freneticamente para afastar a náusea
que os movimentos bruscos evocam, e dessa vez consigo me sustentar com
a coluna curvada para frente.
Uma pequena torrente de fluidos espessos escorre pelos meus braços
até a ponta dos dedos, pingando pausadamente no chão. Encaro minhas
palmas manchadas, as mangas da camisa outrora brancas agora ensopadas,
e tento visualizar a mim mesmo, parado no meio do escuro com o corpo
banhado de sangue.
Dou um passo, depois outro, arrastando-me com muito esforço, até
finalmente fechar o punho na maçaneta da porta, marcando minhas
impressões no metal e na parede ao lado do batente quando me apoio para
não cair de novo.
Preciso encontrar os meus irmãos, eu preciso deles agora como
jamais qualquer um deles precisou de mim.
Pensar neles traz lágrimas aos meus olhos de imediato, enquanto
abro a porta e atravesso até o cômodo seguinte, relembrando quando fiz o
caminho contrário sem imaginar o que me aguardava. Continuo tremendo,
meu corpo desgovernado não responde ao meu desejo de ficar calmo, então
sigo em frente mesmo parecendo um mero fantasma.
É assim que eu me sinto: um fantasma, o despojo de uma guerra
perdida.
Como posso ter chegado a esse ponto? Como? Eu fiz tudo certo, não
queria que ninguém sofresse, muito menos ela. Principalmente ela! Minha
princesa perdida. Vai dar tudo certo, foram as minhas palavras exatas. Tive
a audácia de prometer uma mentira assim.
Vai dar tudo certo.
Não aconteceu.
No último cômodo, as luzes azuis e vermelhas vindas do exterior,
que deveriam me trazer alívio, somam em meu infinito desespero. Elas
brilham, tremulando nas paredes brancas, formando sombras que me
remetem às labaredas do inferno. Depois que eu sair, não haverá mais volta.
Mergulharei em uma realidade ainda mais devastadora.
Um mundo sem Anastasia.
Um mundo vazio, onde não vale a pena sonhar, ou sorrir, ou viver.
— Esta é sua vida agora — digo a mim mesmo com dificuldade,
uma espécie de ordem para continuar firme, embora minha voz soe
embargada e rouca pelo choro silencioso que já me fugiu do controle
novamente.
Obrigo meu corpo a continuar adiante, em frente, sempre em frente,
até abrir a última barreira entre mim e a verdade brutal. Escancaro a porta e
o conjunto de flashes e gritos atordoam meus pensamentos, agredindo olhos
e ouvidos com tanta violência que desmorono diante da algazarra de
policiais empunhando armas e jornalistas munidos de câmeras e
equipamentos de reportagem.
A dor não cessa, pelo contrário. É só isso o que me resta, é só ela
que existe, eternamente. Abraço meu corpo enquanto uma grande confusão
tem início. Escuto as vozes, pessoas discutindo, gatilhos sendo preparados,
mas não sou capaz de assimilar o que dizem, o que significam. E nem
desejo descobrir.
Contudo, minha atenção recai sobre um par de amedrontadores
olhos verdes. Roman tenta furar o bloqueio, o rosto vermelho de tanto
gritar, seus lábios desenhando o meu nome inúmeras vezes. Um grupo de
policiais impede a sua passagem.
Inclino-me para frente, desejando chegar até ele, esperançoso de que
meus irmãos sejam capazes de fazer o tempo regredir, ou que suas forças
sejam suficientes para sustentar os efeitos colaterais da minha queda. Não
posso mais defendê-los, não sou capaz de proteger ninguém. Não sou o
escudo, não sou um rei, nem invencível.
Eu perdi, e fiz isso da pior maneira, no pior momento possível.
Com a mulher da minha vida.
Não fui capaz de defendê-la.
Eu perdi.
— É o meu irmão, porra!!! — Roman grita, lutando contra os
homens que o mantém em cárcere.
Em outros tempos, eu o repreenderia. Esse tipo de atitude pode
colocá-lo atrás das grades, e seu acúmulo de infrações torna cada vez mais
complicado advogar em sua defesa. Mas é assim que Roman funciona, e é
assim que eu o amo.
— Deixem ele passar! — ruge um sujeito ao seu lado que demoro a
reconhecer como sendo Dimitrio. Sua aparência magra e cansada de dois
anos atrás agora se transformou em robustez, e o cabelo está maior do que
me lembrava. Mas é ele sem sombra de dúvidas.
O que está fazendo aqui?
Os policiais atendem ao seu comando quando mostra algum objeto
que não consigo enxergar, mas deve ser algo relativo ao seu envolvimento
com a Interpol. Roman sobe as escadas correndo, o rosto lívido e punhos
fechados com força. Abre os braços, levando as mãos à cabeça, só então
registrando a bagunça de sangue e hematomas que me tornei.
Ele não sabe como ou onde tocar, mas se coloca de joelhos diante de
mim. Pavor e raiva distorcem suas feições, e pela primeira vez me ocorre
que esse tipo de revolta não combina com Roman, mesmo que lhe seja tão
habitual. Gosto mais quando faz suas brincadeiras inconvenientes, suas
provocações e o sorriso debochado.
Sinto falta deles.
Muita.
— VLAD! — berra, olhando para trás. Tento focar a visão, mas está
tudo confuso, escuro. Identifico paramédicos se preparando, homens
uniformizados desviando do meu corpo para invadir a residência. Ele tenta
de novo: — VLADIMIR! Porra Andrei, o que você fez? O que merda você
fez?
Nego, balançando a cabeça. Coloco a mão bem em cima do peito,
rogando para que entenda meu gesto mudo como um indicativo do meu
sofrimento. Veja, é aqui onde mais dói, tento dizer-lhe, mas nada sai da
minha boca além de outro soluço.
Duas sombras se agigantam sobre Roman. De um lado, Vladimir
com olhos diabólicos e perturbadores, do outro, Ivan com irrefreável pavor
diante da cena, o sangue dela ainda fresco em suas roupas, mas está tudo
turvo, não conseguirei me manter acordado por muito mais tempo.
— Esse sangue... é seu? — pergunta o presidente, dando passagem
para três profissionais que sobem as escadas carregando uma maca aberta.
É meu?
Talvez.
Não, acho que não.
Não tenho certeza.
Provavelmente sim.
O grupo faz um semicírculo ao meu redor, entreolham-se com
hesitação. Há chances de eu estar pior do que supunha. Mas não consigo
falar, minha voz não sai. E eu forço, grunhindo e tossindo até ser acometido
pela ânsia e pender para trás, deitando-me aos pés dos meus irmãos.
— Eu... perdi. — Consigo dizer, a voz ruidosa e baixa. — Eu a perdi
— repito, perdendo as forças, desistindo, enquanto os três conversam entre
si, dizendo coisas sem sentido sobre resolver tudo.
Eu a perdi
Eu as perdi.
Ana.
Anastasia.
Princesa.
— Vamos dar um jeito nisso, irmão — Ivan promete, aflito,
escondendo o desespero que raramente deixa explodir. Ele também está
sofrendo.
Fecho os olhos assim que uma máscara é colocada sobre o meu
rosto. Verdadeiramente exausto. Não quero ver a esperança e o alívio em
seus olhos, a real felicidade por terem reencontrado o irmão vivo.
Estão errados.
Não me reconheço.
Eles ainda não entenderam, não fazem ideia do que aconteceu lá
dentro. Não têm como saber. E por mais que ouçam e vejam e tentem
imaginar, talvez, ainda assim, jamais percebam.
Arrancaram tudo de mim, e o que restou está morto.
Andrei Volkiov está morto.
32
Um ano depois.

Andrei
O PADRÃO SE repete: eu acordo com o eco da mesma lembrança, a voz
gentil de Anastasia ressoando na minha mente.
Acho que perdi uma coisa importante.
Encolho-me na cama, abraço meus joelhos e contemplo… nada.
Silêncio.
Vazio.
Tudo continua igual.
Ao lado da minha cama, sobre a mesa de cabeceira, o relógio digital
mostra que continuo acordando junto com o nascer do sol, apenas duas
horas depois de pegar no sono. Vendo pelo lado bom, isso é uma hora a
mais do que eu conseguia dormir há seis meses. Naquela época, eu passava
dias consecutivos acordado, embebedando-me, até meu corpo desligar de
exaustão, e mesmo assim meu sono era doloroso e cheio de pesadelos — a
última parte não melhorou muito.
A decoração do meu quarto na mansão da minha família segue o
estilo minimalista que eu costumava gostar, com muito preto, branco e
cinza, e móveis geométricos; agora ela só serve para me lembrar a todo
momento o quanto eu sinto falta das tapeçarias e da rusticidade tradicional
que Anastasia tanto amava.
Ela dizia que era aconchegante.
Deito-me de costas e encaro o teto branco por mais vinte minutos
antes de me levantar. É um processo automático. Eu sei o que tenho que
fazer e simplesmente faço. Substituo meu pijama por terno e sapatos pretos,
mas mantenho as luvas. Elas estão sempre comigo. Confiro minha
aparência no espelho, meu cabelo precisa de um corte, mas decido que o
conjunto geral está bom o bastante. Eu acho. Provavelmente.
Saio do quarto e desço até a sala de jantar, onde a minha família já
está quase toda reunida. Eles não me notam a princípio, então eu tomo o
meu tempo apreciando a grande algazarra feliz.
Vladimir e Serena estão sentados um ao lado do outro. Luna está no
colo do pai, comportada como uma pequena dama, com seus cabelos pretos
e retos na altura dos ombros contrastando com a pele pálida. Eles não
moram conosco na mansão, mas passam mais tempo aqui do que em sua
própria residência.
Roman está comendo como se fosse a sua última refeição enquanto
conversa com Lara, que tem uma expressão zangada em seu rosto. É a
primeira vez que o vejo em uma semana. Ivan, ao lado dela, tem um plano
de morte escrito em seus olhos. Ele odeia quando aborrecemos a sua
mulher, e verdade seja dita, fazemos isso com uma frequência alarmante.
Por último, minha mãe. Sinto uma agulhada no peito sempre que a
vejo.
Tatiana é uma mulher incomparável, a cola que mantém nossa
família unida. Usando um vestido rosê bordado com pedras brancas, além
de uma quantidade exagerada de joias nos braços, ela ocupa a extremidade
da mesa; está sorrindo para qualquer coisa que Serena diz ao marido. Seus
cabelos, recém pintados de um preto azulado e intenso, estão presos em
uma trança longa que cai sobre seu ombro esquerdo.
A elegância em pessoa.
Ela não chorou na minha frente nenhuma vez durante o meu período
de recuperação no hospital, jamais permitiu que alguém visse suas lágrimas,
mas eu a ouvia. Quando os remédios mais fortes me induziam ao sono, às
vezes eu ficava preso em um limbo entre os sonhos e a realidade, e então eu
conseguia ouvir o seu choro baixo. Às vezes, ela rezava, pedindo a pessoas
que já se foram que protegessem o seu amado filho.
— Se quiser sair de fininho, eu posso dizer a eles que deixou um
recado.
Assusto-me e olho para o lado, encontrando meu sobrinho mais
velho parado como uma assombração. Desde o seu último aniversário, ele
não para de crescer. O uniforme escolar, que consiste em uma camisa
branca de mangas compridas, junto com colete e calças nas cores vinho e
dourado, fazem-no parecer mais velho do que sua idade atual.
— De onde você saiu? — pergunto, não o ouvi se aproximando.
Ele aponta para o corredor com um aceno desleixado.
— Estava me despedindo dos bebês antes de ir para a escola. A babá
está cuidando deles. — Iago me observa, as pálpebras se estreitando sobre
pupilas verdes. — Você quer?
— O que?
— Que eu acoberte você?
Ah, sim, definitivamente.
— Não, tudo bem. — Dou um sorriso. — Como eu estou?
Iago franze as sobrancelhas amarelas e me analisa dos pés à cabeça.
— Convincente, apesar das olheiras. Mas continue sorrindo assim e
eles nem vão perceber. Bom trabalho, tio. — Ele me dá um aceno
aprovador e vai se juntar aos outros, parando para cumprimentar a mãe com
um beijo antes de se sentar ao lado do pai. Tatiana se derrete de imediato.
Às vezes eu concordo com Roman, é difícil acreditar que Iago só
tem onze anos e não oitenta.
Sigo a dica do meu sobrinho.
— Bom dia — digo a todos com um grande sorriso enquanto me
aproximo e ocupo o meu lugar à mesa, à esquerda de Ivan.
Há uma pausa de segundos em que os assuntos se calam e uma
densidade melancólica toma conta do ar. Isso sempre acontece quando eu
chego, não importa o lugar. Eles não fazem de propósito, acho que na
maioria das vezes nem percebem. Não é culpa deles também, afinal, eu sou
aquele que caminha sobre cacos de vidro com um passado sombrio
costurado nas solas dos pés.
Felizmente, minha família, ao contrário da maioria das pessoas que
não sabe a história verdadeira, não faz perguntas que não desejo responder.
Eles sabem que estou em paz com os meus demônios e aceitam a versão
oca que restou de mim — acho que, na visão deles, ter uma casca que anda,
fala e sorri como Andrei Volkiov é melhor do que nada —, então eu não me
incomodo em interromper o silêncio.
Roman, no entanto, faz isso por mim. Ele nunca foi um grande leitor
de ambientes.
— Andrei, me salve, eu só tenho você. Diga a nossa Larinha que me
enviar como representante da empresa para o leilão é uma péssima ideia.
— Lara não tem péssimas ideias — Vladimir intercede, e sou
obrigado a concordar. — Você pode odiar festas formais o quanto quiser,
seu charme continua sendo um atrativo valioso para os nossos negócios.
Você conseguiu arrematar todos aqueles hotéis da última vez por uma razão.
— Você acabou de elogiar o meu charme? O que é isso? — Ele
cheira sua xícara. — Colocaram vodca barata no meu chá?
— Você bem que gostaria — Ivan o provoca.
Roman dá um sorriso torto e pisca o olho esquerdo para nosso
irmão, mostrando o canino pontudo. Sinto uma coceira nostálgica e amarga
na garganta ao olhar no fundo da minha xícara vazia.
— Pare de ser um covarde chorão — Serena diz. Ela pega uma
migalha de biscoito que caiu das mãozinhas de Luna e atira em Roman, mas
ele sorri como se fossem farelos de ouro e nem se incomoda em abanar a
sujeira das roupas. — Faça o seu trabalho como um adulto.
— Se você for minha acompanhante, bebê, eu posso até considerar.
O que acha de usar aquele vestidinho vermelho da última vez?
Lara esconde um sorriso atrás de sua xícara fumegante. Vladimir
semicerra as pálpebras, apoia os cotovelos na mesa e acomoda o queixo em
suas mãos entrelaçadas. Essa pose é sua marca registrada, ele geralmente a
usa em dois casos específicos: quando deseja intimidar alguém e obrigar
essa pessoa a fazer o que ele quer, ou quando está planejando testar na
prática quanto tempo um ser humano demora para morrer depois de ser
enterrado vivo.
— Se o seu plano é me irritar até eu despachar você para outro
continente, é melhor desistir, Roman. Tudo o que vai conseguir é um olho
roxo e ainda terá que comparecer ao leilão.
Os olhos de Roman brilham.
— Você acha que consegue me acertar, presidente?
Vladimir sorri — range os dentes.
— Quer apostar?
— Parem logo com essa palhaçada — Tatiana intervém, mas ela mal
esconde o próprio sorriso.
Ivan aponta o garfo de um para o outro.
— Não, não parem, lutem até a morte como faziam os romanos.
— Eu aposto cem mil que o Roman ganha — Serena diz, animada.
Vladimir, devagar, olha para a esposa. Por fora, ele parece o símbolo
oficial da calma e da paciência, mas seus olhos frios revelam a sua
indignação.
— Corazón, eu sou seu marido, lembra? Por que está torcendo por
outro homem na minha frente?
Minha cunhada, sorrindo diabolicamente, cantarola:
— Melhor do que torcer pelas suas costas, Lord Vlad.
Minha mãe e Ivan gargalham. Os cantos dos meus lábios também se
curvam ligeiramente, e a sensação de me divertir com a minha família é
uma das poucas capacidades que fico feliz em ter recuperado com o passar
do tempo.
Vladimir bufa, balançando a cabeça. Os dois têm a sua própria
dinâmica de casal. Serena torna os dias do meu irmão muito mais
desafiadores, pois não deixa o presidente subjugá-la como ele faz com a
maioria das pessoas. É como se o destino a tivesse moldado especialmente
para ele e vice-versa.
Conhecendo Vladimir, ele vai dar um jeito de cobrar esse desaforo
mais tarde, quando os dois estiverem sozinhos. E conhecendo a minha
cunhada, esse é o seu objetivo.
Roman, o agente do caos, ignora o pequeno embate de olhares entre
nosso irmão e Serena, e continua falando pelos cotovelos:
— Cem mil dólares?
— Até parece! — Ivan desdenha. — Rublos, seu idiota, estamos na
Rússia, use a sua própria moeda.
— Vocês estão fugindo do assunto — Lara reclama e estala a língua
de um jeito afetado. — O leilão acontece no próximo mês. Elena Kokorina
será a anfitriã este ano e nós teremos cinco itens disponíveis no evento, os
melhores imóveis da ilha desde a inauguração.
Normalmente, Vladimir é o responsável por cuidar desse tipo de
tarefa — o leilão é um evento anual organizado por inúmeros empresários,
e reúne investidores de diferentes ramos comerciais —, mas nosso
presidente e Elena têm um histórico conturbado, e temos evitado escândalos
depois de tudo o que aconteceu comigo.
— O Resort e a ilha já são um sucesso. — Roman não dá o braço a
torcer. — Aqueles abutres vão brigar por esses imóveis como urubus na
carniça.
Lara e Vladimir estão lutando em uma guerra perdida. Roman não
faz nada que ele não queira. No dia em que ele der o seu último suspiro, se
o anjo da morte não tiver um bom argumento para levar a sua alma, é bem
provável que ele continue preso ao corpo por mais mil décadas.
Mas essa conversa não se trata apenas de sua teimosia e obstinação,
eu sei o que ele está fazendo aqui — hoje faz um ano. Um ano desde que a
minha vida encontrou o seu fim. Um ano sem Anastasia. Um ano sem nossa
filha. Um ano me forçando a seguir adiante com as sombras que me cercam,
aprendendo a respeitá-las como minhas companheiras, a amar essa parte
obscura de mim.
Roman está tentando chamar a atenção para si a fim de nos manter
distraídos do elefante branco sentado à mesa.
Eu.
O resto da família não sabe, nunca contei a ninguém, mas Roman
foi o primeiro rosto familiar que eu vi depois de abrir os meus olhos pela
primeira vez, após os dias que passei desacordado no hospital. E o que ele
disse foi determinante para impedir que a consciência do que eu havia feito
e de quem eu havia perdido me consumisse inteiro.

***

Barulho infernal.
Pi.
Pi.
Pi.
Obrigo meus olhos a se abrirem, esse simples esforço me cansa.
Quando consigo, sou atingido por um clarão cegante. Pisco algumas vezes
para me acostumar, enquanto o som repetitivo continua em sua sequência
interminável de pi, pi, pi. Eu realmente odeio esse barulho.
Uma enfermeira de meia idade se debruça sobre mim, conversa
comigo. Está sorrindo enquanto fala. Tento entender, eu realmente tento me
concentrar nos desenhos que seus lábios formam a cada palavra. Parece
ser algo importante, uma pergunta talvez. Quer saber como estou me
sentindo hoje? Se eu preciso de alguma coisa? Não sei, esse parece ser o
tipo de pergunta que as enfermeiras fazem aos seus pacientes. Porém, ao
invés de palavras inteiras e coerentes, o que ouço saindo de sua boca é
uma sequência pausada de apitos.
— Pi... Pi… Pi…
Acho que estou enlouquecendo.
Tento me mover, sinto-me fraco, não consigo me sentar. Há faixas
brancas ao redor do meu torso, ombro, braço e mãos. Meus pensamentos
são uma bagunça, imagens terríveis de sangue e morte se sobrepondo na
minha cabeça. O nome dela é a única constante, seu rosto sorridente
brilhando no meio do breu. Uma lua longínqua, inalcançável, no céu
noturno.
A enfermeira franze as sobrancelhas e coloca uma lanterna na
frente dos meus olhos, primeiro um depois o outro. De repente, ela olha
para trás e fala alguma coisa com alguém. Parece brava.
Talvez eu esteja morrendo.
Eu certamente mereço morrer depois de assassinar uma pessoa. E
meio que não me importo, já que não me arrependo. Ele mereceu, ele era
um monstro, e a única maneira de derrotá-lo era me tornando o seu
semelhante. Um criminoso. Além disso, se eu morrer, não sentirei mais essa
dor absurda no peito. Não me lembro de ter sido atingido no coração, a
bala acertou o meu ombro, mas a sensação é de que um buraco foi aberto
no meio da minha caixa torácica.
A enfermeira deve saber o que está acontecendo comigo. Não existe
um protocolo sobre dar conforto aos pacientes em seus momentos finais?
Abro a boca para perguntar algo como “você pode me matar de uma vez,
por favor?”, mas formar uma frase completa está fora de cogitação. Garras
arranham a minha garganta, sinto a presença intrusiva de um pequeno tubo
na minha boca, minha língua pesa uma tonelada.
Após muito esforço, tosses e ânsia de vômito, consigo dizer uma
palavra. Ela soa fraca, rouca e nada humana.
— Dói.
A cabeça da enfermeira gira depressa, surpresa e alívio tomam
conta de suas feições. Ela faz menção de me examinar, mas não consegue,
alguém a puxa para trás. Outro rosto surge acima de mim, um que eu
reconheço.
Roman ofusca a luz com seu tamanho. Ele parece feroz, uma
besta… não, não uma besta, é mais como um lobo — combina com o nosso
sobrenome. A selvageria de Roman não é completamente sem controle, ela
flui por suas veias de forma natural, existe coerência em sua rebeldia. Meu
irmão não pode ser contido, domesticado, Roman tem sua própria visão de
mundo e ela não inclui se submeter, mas isso não o impede de ser leal aos
seus.
É por isso que ele respeita Vladimir como presidente, reconhece
Ivan como um igual, e me enxerga pelas minhas qualidades. Roman ignora
tudo o que não importa para ele.
Meu irmão me espreita, seus olhos verdes possuem um aro
avermelhado ao redor das pupilas, como se ele tivesse chorado por um bom
tempo. Quando ele fala, felizmente, sua voz não ecoa o apito irritante, são
palavras poderosas e definitivas.
— Você vai viver, porra! Mesmo que não queira, mesmo que ache
que não merece e sinta vontade de desistir todos os dias, você vai viver.
Você fez a coisa certa, Andrei, você sempre faz.
— Como…? — Eu tusso, as palavras não saem.
Mas ele entende a pergunta que não consigo completar por falta de
forças: como ele sabe? Como pode ter tanta certeza de que eu posso
continuar? Eu não quero viver em um mundo com essa dor interminável, ou
com o fantasma da minha falha empoleirado nas minhas costas. Minhas
mãos… eu sinto o sangue impregnado nelas.
E Anastasia…
Dói.
Dói demais.
— Porque eu sei o que você está sentindo, a sensação de sujar as
mãos, mas diferente de mim — a voz dele quebra, Roman se debruça,
abraçando-me como se quisesse trocar de corpo comigo e sofrer no meu
lugar — você é a porra de um herói, irmãozinho. E se você cair, ele vai ter
vencido.

***

— Eu posso ir — ofereço, bloqueando a lembrança. — Metade das


pessoas sente pena de mim agora, e a outra metade morre de medo. Posso
fazer um bom uso disso.
Lara me dá um chute por baixo na mesa.
— Não tem graça.
— Eu acho que tem. — Roman sorri, uma fagulha de admiração e
respeito queima na relva esverdeada de seu olhar. — Você ficou muito mais
divertido com essa aura sombria, irmãozinho.
Vladimir e Ivan compartilham um sorriso. Mencionar a minha nova
reputação ajuda a minha família a relaxar e prosseguir com o desjejum
como se fosse um dia normal.
Geralmente, eles evitam o tópico "sequestro" e tudo relacionado aos
meses seguintes. É compreensível, levando em consideração que os três
ficaram responsáveis por lidar com a imprensa e a polícia, enquanto
também sofriam pela perda e a ruptura da nossa família.
Eles fizeram um ótimo trabalho encobrindo a presença de Anastasia
na cena do crime. Ela foi retirada da casa antes dos repórteres chegarem, e
os contatos de Ivan na polícia, com as quantias certas de dinheiro,
garantiram que a investigação corresse sem o nome dela ser envolvido.
Em resumo, compramos uma nova verdade que foi repetida por todo
o país: eu matei Yerik em legítima defesa e a motivação do sequestro se deu
por discordâncias comerciais, e como eu realmente havia prejudicado seus
negócios nas semanas anteriores, foi fácil construir uma narrativa
convincente.
Anastasia nunca existiu, seu nome jamais foi citado por nenhum
veículo de comunicação — de novo, ter erradicado previamente a relação
dela com Yerik da mídia foi um fator decisivo para isso funcionar. Um
golpe de sorte, eu diria. E com o apoio de Yekaterina e Leonid Serov, nossa
história foi completamente apagada.
E eu… bem, eu fiquei conhecido como o Rei Caído da família
Volkiov; a Arma, e não mais o Escudo. O Salvador de Ninguém.
Assim que terminamos de comer — eu tomo apenas uma xícara de
chá com leite —, e todos concordarem com a minha participação no leilão,
meus irmãos e cunhadas se dispersam para o trabalho. Serena e Vladimir
vão na frente. Agora que a pequena Luna já completou dois anos, ela
costuma acompanhar a mãe no abrigo e participar das atividades culturais.
Lara segue para a empresa e Ivan fica com a missão de deixar Iago na
escola.
Eu me levanto, mas não vou para a empresa ainda. Fico para trás por
uma razão.
Meu pai tinha uma doença mental. Com exceção da minha família,
quase ninguém sabe disso. Inclusive, até pouco tempo, Vladimir e minha
mãe eram os únicos que sabiam a verdade sobre a causa de sua morte.
Eu nunca percebi nada.
Queria poder culpar a minha idade, já que eu era o mais jovem da
minha família e, portanto, não teria notado os indícios do que meu pai
estava sofrendo, mas a verdade é que Nicolai Volkiov era um ótimo
mentiroso e sabia usar máscaras como ninguém. Acho que herdei isso dele.
Por muitos anos, Tatiana teve que lidar sozinha com o ônus de amar
um homem doente. Eu nunca duvidei que meu pai também a amava, ela era
o seu universo e um pouco mais, e sei que minha mãe não se arrepende do
tempo que passaram juntos, mas nada disso diminui o medo que ela deve
ter sentido, dia após dia, de perdê-lo.
Eu sei como é esse medo, a destruição que ele gera dentro de nós.
Por minha causa, minha mãe teme que a história se repita. Pergunto-me se
ela continua chorando quando não há ninguém por perto, ou se ainda ora
para os fantasmas das pessoas que ela amou e perdeu.
— Estou bem — digo assim que minha mãe me puxa para um
abraço apertado. Abraços se tornaram a sua demonstração de afeto
favoritas, porque assim ela pode ter certeza de que ainda estou respirando.
— E eu tenho um rabo de dois metros.
— O quê?!
Ela se afasta e dá um tapinha na minha bochecha. Eu quero queimar
a imagem que se forma na minha mente. Terei um novo pesadelo da
próxima vez que conseguir adormecer.
— Ah, não é uma competição de quem conta a mentira mais
absurda?
— Mãe…
— Tudo bem, tudo bem. Sou uma mãe idosa preocupada com o
bem-estar do meu filho caçula, me processe por isso. — Ela entrelaça o
braço no meu e dita o ritmo dos nossos passos até a entrada e depois ao
jardim.
A quietude de Tatiana é um evento raro que não desperdiço. As
pessoas estão certas quando dizem que não há consolo melhor do que os
braços de uma mãe. A minha não tem o hábito de ser carinhosa e doce,
exceto em ocasiões muito especiais, como a minha delicada situação mental
— na perspectiva dela, não minha. Ela faz mais o tipo leoa, pronta para
dilacerar predadores maiores e mais perigosos, mas ao contrário do senso
comum, seus instintos maternos não envolvem proteger seus quatro
filhotinhos problemáticos, e sim ensinar-lhes sobre a hierarquia do mais
forte.
É assim que se sobrevive no nosso mundo, e foi com ela que
aprendemos a resistir.
Caminhamos sobre o circuito de pedras que passa pela lateral da
casa. Nosso jardim é denso, com árvores altas de diferentes espécies, raízes
sobressalentes e arbustos. Na primavera, a propriedade fica cheia de cores
exóticas, mas nos meses gelados, torna-se uma espécie de floresta mal-
assombrada, principalmente com as estátuas de pedra cobertas de musgo em
decorrência da umidade.
Não há um dia em que minha mãe não caminhe entre as plantas,
estejam elas bonitas ou pavorosas. É um ritual, ela se senta no pergolado
que meu pai construiu em sua homenagem e passa horas lendo um livro ou
apenas pensando na vida. Assim que nos acomodamos em seu canto
sagrado, ela acaricia o assento almofadado com uma expressão sonhadora
no rosto.
— Quando eu era jovem, eu costumava adormecer bem aqui. Seu
pai sempre aparecia, me segurava como uma princesa e me levava em seus
braços até o nosso quarto. Às vezes, eu fingia dormir só para ser carregada.
Ok, não era o assunto que eu estava esperando, mas sorrio e olho
para o céu nublado.
— Eu me lembro disso. Meu pai ordenou que nenhum funcionário
se aproximasse quando você estivesse dormindo. Eles achavam romântico.
— Há! — ela debocha. — Ele não suportava a ideia de outras
pessoas me observando enquanto eu estivesse vulnerável. Romântico? De
jeito nenhum. Era o bom e velho ciúme.
Isso é… revelador, já que eu penso mais ou menos igual. Não conto
a minha mãe que eu tinha hábitos semelhantes, e que os elevei a um nível
obsessivo com Anastasia. Compartilhar detalhes íntimos sobre a minha
antiga relação é quase tão estranho quanto ouvir sobre as intimidades dos
meus pais — não, obrigado.
— É romântico, de certa forma — digo, na defensiva. Ela sorri,
concordando. — Por que está me contando isso?
— Tem que ter um motivo?
— Quando você está envolvida, sim.
Minha mãe ri e segura minha mão enluvada, olho para baixo, seus
dedos magros e longos entrelaçados nos meus. Sua pele parece mais
delicada que uns anos atrás, eu nunca tinha reparado.
— Porque vocês quatro puxaram ao seu pai, esse jeito único de
amar. E eu sei que deixar ir… — Seu sorriso não some, mas ele se
transforma conforme sua voz perde a potência, tornando-se triste. — Abrir
mão do amor não é da natureza da nossa família.
— Eu estou tentando — digo, abrindo-me ao seu acolhimento.
Minha mãe raramente fala sobre o passado, ela merece o mesmo esforço de
mim. — Alguns dias são piores que outros.
— Eles sempre são. — Ela se endireita, o sorriso volta a ser
animado. — Lara me contou que está indo bem com o seu probleminha
alcoólico.
— Chamar o meu vício de "probleminha" é um eufemismo quase
insolente, não acha?
Arqueio uma sobrancelha e a encaro de esguelha. Ela revira os
olhos.
— Detalhes.
Claro.
Minha mãe me solta e se ajeita de lado com os joelhos dobrados.
Nessa posição, ela pode me observar à vontade. Sua expectativa é
desconcertante, mas engulo o meu orgulho e começo a falar:
— Sim, o que Lara disse é verdade. O doutor Bóris me deu alta das
sessões semanais, agora eu só preciso manter o acompanhamento de rotina
mensal. Ele disse que sou um monstro da determinação, mas resistir à
bebida foi a parte fácil do processo. Minha dependência nunca esteve
diretamente relacionada ao álcool em si, mas na minha necessidade dele
para outros fins.
— Como dormir — ela deduz sabiamente, eu confirmo com um
rápido aquiescer.
Era mais do que apenas dormir. Ele amortecia a culpa corrosiva pela
perda do meu primeiro filho e controlava a recorrência dos meus pesadelos.
Depois do sequestro, graças ao álcool eu conseguia conviver com o
fantasma à beira do meu colchão.
— Sempre tive uma resistência incomum a bebidas alcoólicas, e
quanto mais eu bebia, mas essa resistência aumentava, até chegar ao ponto
de uma garrafa inteira não ser o bastante. Isso mudou um pouco quando
conheci Anastasia. — Solto um riso amargurado. — Eu estava errado em
vincular a minha estabilidade emocional ao nosso relacionamento, estou
ciente disso agora. Lara tem me ajudado, eu vou ficar bem.
A decisão de parar com o meu consumo excessivo de álcool veio há
apenas seis meses, quando minha melhor amiga me encontrou no chão do
meu apartamento, desmaiado em cima do meu próprio vômito. Lara, que
viveu na sombra de um pai alcoólatra, me implorou para que eu não me
destruísse daquela forma. Naquele mesmo dia, comecei um tratamento de
reabilitação que me manteve fora de circulação por três meses.
Depois da internação, com a falta de álcool, de sexo e de Anastasia,
eu descobri um novo método de tortura: conviver com os meus pesadelos.
— Tem certeza? — minha mãe pergunta, tentando ver se existe uma
mentira oculta através da minha fachada.
— Como eu disse, alguns dias são piores que outros. Mas pode
confiar em mim, mãe. Não planejo desistir, e não estou falando apenas do
álcool. — Como parte da minha promessa, parafraseio o que Roman me
disse todos aqueles meses atrás: — Se eu cair, ele vence.
E nem sobre a porra do meu cadáver eu deixarei um morto me
vencer.
— Que bom. — Ela tem mais a dizer, sei que sim. Tatiana torce os
dedos e observa nossos arredores, evitando o meu olhar.
— Diga de uma vez, ser diligente não combina com você.
— Alguma notícia daquela mulher? — ela dispara, vomitando a
pergunta como se a possibilidade a insultasse.
— Já falei para não se preocupar. Eu e Evgenia terminamos há
muito tempo, não tenho planos de me relacionar outra vez. Nem com ela,
nem com ninguém.
— Mas vocês se falam às vezes.
Nos encontramos quase todos os dias, mas se eu contar isso à minha
mãe, ela é capaz de cometer um crime pior que o meu.
— Raramente — eu digo, e de um ponto de vista literal, não é
mentira.
Ela sorri sem mostrar os dentes. Acho que minha mãe sabe mais do
que transparece. As mães sempre sabem, certo?
— Você está atrasado. Seus irmãos estavam animados mais cedo,
falando que vocês precisam alinhar os detalhes de algum projeto importante
além do leilão, então não vou te segurar por mais tempo.
— Nos vemos mais tarde.
Levanto-me, beijo sua testa e dou os primeiros passos de volta à
mansão. Estou no primeiro bloco da trilha de pedras quando ouço minha
mãe dizer:
— Sabe, querido? Sobre a nossa Ana, já faz bastante tempo, por que
você não tenta…
— Não, mãe. — Eu a interrompo, olhando por cima do ombro.
Devia ter imaginado que ela faria uma tentativa. — Eu fiz uma escolha e
preciso mantê-la até o final. Ela está melhor sem mim. — Volto a caminhar,
e não olho para trás uma segunda vez. — Anastasia não pode sofrer por
uma tragédia da qual não se lembra, e nem amar um homem que ela não
conhece.
33
Anastasia
EU AMO UM homem que não conheço.
Ele é mais alto do que eu, sua voz é tranquila, porém firme, e
sempre que diz o meu nome — Anastasia —, ela soa alguns acordes mais
graves. Ele tem ombros largos, é esguio e os músculos rígidos de seus
braços ficam marcados na camisa. Sei que seus cabelos são bem escuros,
algo entre o castanho e o preto, e que se curvam na nuca quando ele passa
muito tempo sem cortá-los, formando cachinhos adoráveis.
Mas eu nunca consigo ver o seu rosto, a cor dos seus olhos e o
formato de seus lábios, ou se vejo, nunca me lembro ao acordar.
Meu médico diz que pode ser uma lembrança perdida, ou uma
invenção da minha mente para preencher o buraco de dois anos e alguns
meses nas minhas memórias. Eu espero que seja o primeiro caso, pois pior
do que amar um homem que não conheço, é amar um homem que não
existe.
Ambos os casos, porém, me enquadram na seleta categoria de
pessoas que costumam bater ponto no hospício.
É…
Talvez eu deva mesmo trabalhar o meu humor, como minha mãe
sugeriu. Mandou. Yekaterina não faz sugestões, ela dá suas ordens e espera
que todos obedeçam.
— Aonde você vai?
Falando no diabo.
Eu não ficaria surpresa se descobrisse que minha mãe tem uma sala
de controle instalada em um cômodo secreto atrás das estantes da nossa
biblioteca, com televisores e microfones para sempre observar os meus
passos.
Sorrio antes de me virar.
Yekaterina me oferece o oposto de um sorriso, mantendo os lábios
tão apertados que quase desaparecem. Seu rosto tem o formato de uma
pirâmide invertida, com olhos grandes, um nariz arrebitado e o queixo
muito pontudo. Akira dizia que mamãe parecia uma alienígena, e eu
secretamente concordava com ele.
Ela caminha como uma atriz no tapete vermelho, mesmo com
pantufas de veludo preto nos pés. Seu robe de cetim, também preto, balança
suavemente na altura de suas canelas magras, e para completar o visual
aristocrático, seu cabelo ruivo está trançado ao redor da cabeça, sem
nenhum fio fora do lugar. Minha mãe acha que é uma dama — no sentido
arcaico da palavra —, e cobra o mesmo comportamento de mim.
Isso significa que sair de fininho às dez da noite, em uma quarta-
feira, é um crime passível de morte, ou de um sermão, o que é quase mesma
coisa vindo dela.
— Sair — respondo polidamente, entrelaço os dedos na frente do
corpo.
Para o meu azar, estou além da salvação quanto ao meu
comportamento. Eu não desgosto de mim como sou, mesmo que a minha
natureza educada e, de certo modo, tímida, tenha sido construída
cuidadosamente pelos meus pais. Eu sou a filha perfeita, o sonho de todo
casal, mas gosto de pensar que essa personalidade é a minha principal arma
contra as manipulações dos dois, e o motivo pelo qual eu resisto à vontade
de empurrá-los das escadas de vez em quando.
Existe uma frase famosa sobre isso, algo sobre o discípulo superar o
seu mestre. Minha mãe, por exemplo, odeia respostas curtas. Eu as uso
sempre que posso.
— Para onde, Anastasia? — ela grasna, sua pálpebra esquerda
treme, um tique antigo que ela não consegue controlar, e que sempre
denuncia a sua raiva. — É perigoso sair tão tarde da noite, ainda mais sem
avisar ninguém.
— Mariya já está ciente, ela vai cuidar de tudo e me ligará caso
ocorra uma emergência, então você pode dormir tranquila. Além disso, eu
não vou demorar.
Como não confio em nenhum funcionário dos meus pais, contratei
minha própria auxiliar há mais ou menos sete meses, quando percebi que
seria impossível fazer tudo sozinha. Mariya é apenas um ano mais velha
que eu, e tem sido a minha salvação.
É desnecessário mencionar que minha mãe odeia a pobre mulher.
— Esse não é o ponto, Anastasia! — mamãe ralha no mesmo tom de
quando eu tinha cinco anos. — Faz meses que voltou a ensaiar, não que
você precisasse, já que seu desempenho continua superior ao de qualquer
músico renomado da atualidade, basta se apresentar uma vez e seu nome
estará de volta aos maiores teatros do mundo! — Ela bufa, gesticulando
com as mãos. — E, mesmo assim, eu fui paciente e aceitei os seus termos
sobre ir devagar. Agora, olhe só para você, saindo tarde da noite como se
isso fosse apropriado. Não pensa no que pode acontecer? Que aquilo pode
se repetir? Já imaginou alguma vez como foi difícil para mim?
Sinto o baque de suas palavras, meu peito se comprime, ficando
pequeno e dolorido. Por "aquilo" ela está se referindo à morte de Zayn, da
qual eu não me lembro. Tudo o que eu sei se resume ao que me foi contado:
eu e meu irmão estávamos juntos em um parque de Moscou, há cerca de um
ano, quando alguém nos atacou. Latrocínio, eles disseram. O culpado nunca
foi identificado. Zayn morreu na hora. Eu fui atingida com um tiro no
estômago e passei alguns dias no hospital.
Sem minhas memórias.
Mais de dois anos completamente apagados.
— Vou me encontrar com o Diretor-Geral do Friedrichstadt-Palast.
— Mentira, tudo mentira. Quando eu fiquei tão boa nisso? — Papai
mencionou que é o seu teatro favorito aqui em Berlim e, como você disse,
tenho a habilidade necessária para tocar onde eu quiser.
Besteira. Eu não poderia me importar menos com a minha carreira
ou a fama que a provém, mas tenho que ser inteligente se quero que meu
plano funcione.
— Oh. — Ela pisca, sua única reação de surpresa antes de deslizar
os olhos pelas minhas roupas. Uma ruga aparece entre as suas sobrancelhas.
— Vestida assim?
Custa tudo de mim não revirar os meus olhos. Mesmo se fosse
verdade, e eu estivesse a caminho de um jantar profissional, meu vestido de
mangas longas, junto com a meia-calça escura e os Oxfords de saltos
baixos, estão mais que adequados.
— Achei melhor manter a discrição.
Minha mãe faz uma careta.
— E por que não disse antes? É melhor eu ir com você, fico pronta
em cinco minutos.
— Não precisa, já estou atrasada. — Apresso-me para fora de casa
antes que ela tenha a chance de insistir. Enquanto fecho a porta, vislumbro
seus olhos se estreitando, desconfiados. — Nos vemos mais tarde.

***
Meus pais foram estranhamente dedicados nos meses iniciais da
minha recuperação, compartilhando detalhes sobre os anos da minha vida
que foram apagados da minha mente. Os médicos disseram que relatos de
parentes próximos talvez me ajudassem a acessar algumas memórias, mas
também disseram que, como as chances de isso acontecer serem muito
imprecisas, eu não devia criar esperanças.
Eles me contaram que pausei a minha carreira para engravidar, já
que ser mãe sempre foi o meu grande sonho. Faz sentido que eu tenha me
rebelado. A parte difícil de acreditar? Os dois terem concordado com a
minha decisão, afinal, meus pais sempre foram implacáveis em exigir de
mim o retorno pelo investimento que fizeram na minha criação.
Mas não importava o quanto eles me contassem, eu não conseguia
me lembrar de nada. Aquelas histórias pareciam tão… não eu.
Assim que recebi alta daquele hospital onde eu acordei, em Moscou,
nos mudamos para Berlim. Leonid e Yekaterina se tornaram obsessivos com
a minha segurança, mantendo-me dentro de casa como faziam na minha
infância. Durante cinco meses, eu pouco conseguia respirar ar puro na
janela do meu quarto sem que um dos dois aparecesse dizendo que era
perigoso.
Eu repetia para mim mesma que era normal eles se preocuparem
após a perda de Zayn e a minha quase morte, mas Yekaterina e Leonid
nunca foram exemplos de pais zelosos. Sem minhas memórias, no entanto,
não sobrava muito para se teorizar.
Até que um dia aconteceu.
Minha primeira lembrança surgiu enquanto eu assistia a uma peça
sinfônica na televisão: a voz de Zayn me dizendo um nome de menina. E o
som assustador de algo se quebrando.
Crack.
Quando contei aos meus pais, eles não ficaram felizes. Acho até que
odiaram a novidade. Correram comigo para o hospital e só descansaram
quando o médico garantiu que aquele fragmento não passava de um sonho,
uma invenção. Uma porção de nada com nada.
— Não se esforce demais, Anastasia — minha mãe disse no
caminho de volta. Eu senti a ordem implícita atrás do sorriso viperino que
ela me deu. — Você não precisa das suas memórias, se concentre no futuro.
Mas isso continuou acontecendo conforme mais imagens surgiam ao
longo do tempo: um piano Fazioli sobre um carpete manchado; um
apartamento tradicional e aconchegante; um homem — não o mesmo dos
meus sonhos — abraçado comigo à beira de uma piscina enquanto eu
chorava; uma amiga, minha vizinha; um salão cheio de crianças aprendendo
música, e eu diante delas, espelhando seus sorrisos, ensinando.
Toda vez que eu tentava contar aos meus pais, eles me levavam ao
mesmo médico para repetir a mesma desculpa esfarrapada que minava as
minhas esperanças.
Então eu parei de contar.
Agora, eu guardo meus fragmentos para mim, tentando juntar tudo
em um quebra-cabeça gigante.
Yekaterina e Leonid não sabem sobre o homem que eu amo. Ele me
pertence, seja real ou não, e sinto um curioso instinto possessivo quando se
trata dele. Não quero ninguém tentando me convencer de sua inexistência.
Ele é meu.
Meus pais também não fazem ideia de que nem todas as minhas
lembranças resgatadas são felizes. Há vezes em que ouço um homem
gritando; vejo poças de sangue; mãos ao redor do meu pescoço, bloqueando
a minha respiração. São apenas flashes que duram no máximo dois
segundos, mas que sempre trazem lágrimas aos meus olhos e um
sentimento sufocante de medo. Muito medo.
O que diabos aconteceu comigo?
Eu preciso descobrir, por isso saí de casa esta noite, menti para
minha mãe sobre o meu destino, e chamei um táxi, despistando o motorista
e os seguranças. E por isso eu estou em um restaurante fora da cidade, em
um espaço reservado, esperando a única pessoa que pode me ajudar.
Alguém que meus pais tentaram manter longe de mim. A terça parte
de um projeto de caridade que perdeu o seu membro mais importante.
— Zayn tem sorte — ele diz, apoiando o braço direito no batente da
porta. Sua voz calorosa me atinge como um abraço morno. — Se estivesse
vivo, eu daria um soco no nariz dele.
Eu dou risada, mas um soluço dissonante a corta no meio.
— P-por quê? — gaguejo.
— Ele me disse uma vez que as pessoas não quebram como os
brinquedos. Nosso irmão mentiu, pois toda vez que a vejo, irmãzinha, você
parece uma bonequinha quebrada.

***
Eu me aninho nos braços do meu irmão por muito, muito tempo,
mas não choro. Sinto vontade, aquela típica queimação nos olhos, o aperto
na garganta, mas as lágrimas se recusam a aparecer. Agora que penso sobre
isso, percebo que tenho chorado cada vez menos nos últimos meses.
Ainda assim, Akira me conforta em silêncio, fazendo carinho nas
minhas costas. Apesar da completa ausência de lágrimas, tanto minhas
quanto dele, nossos lamentos queimam no ar como enxofre: perdemos
nosso irmão, que foi enterrado sem que nenhum de nós dois estivesse
presente, e muito antes disso, nunca tivemos a chance de curar nossas
feridas de infância de maneira adequada.
Mas eu também lamento, especificamente e em segredo, pelo
homem sem rosto e sem nome de quem sinto saudades, que está sempre
comigo, como um membro fantasma, lembrando-me que não posso ser
fraca. Eu preciso de toda a determinação e controle emocional para
descobrir a verdade.
Olho para o rosto do meu irmão. Akira foi o primeiro de nós a sair
de casa, como ele disse que faria desde quando aprendeu a balbuciar frases
inteiras, então eu me acostumei com a sua falta — o que nunca me fez amá-
lo menos. Entretanto, por causa do meu período amnésico, somado aos
últimos doze meses que passei reaprendendo a viver, parece ter se passado
uma eternidade desde o nosso último encontro pessoal. As marcas desse
tempo estão gravadas em todo o seu corpo.
Ele deixou o cabelo crescer. Seus longos fios pretos e muito lisos
estão presos em um coque de samurai. Seu rosto não tem a sombra de uma
barba, é limpo como a pele de um bebê, chamando toda a atenção para o
maxilar reto. Mas a parte mais bonita de Akira são os seus olhos alongados,
que carregam toda a força de sua ascendência.
Meu irmão tem cheiro de algum sabonete barato de ervas. Ele
costumava usar roupas largas e rasgadas na adolescência, como um punk
sem-teto, muito diferente de suas vestes atuais: um casaco longo e preto,
por cima de uma camisa requintada, branca, com botões de madeira, calças
jeans que marcam suas coxas grossas, e um par de tênis branco. Chega a ser
surpreendente que o clássico esporte-social combine tanto com ele.
Depois de me acalmar, eu finalmente pergunto:
— Por que você demorou tanto? Nós brigamos? Você me odeia por
algum motivo?
Ele me observa como se tentasse abrir um buraco na minha cabeça
para olhar o que tem dentro.
— Então é verdade. Você perdeu a memória, como daquela vez no
seu aniversário.
— Quem me dera. — Rio sem humor. — Daquela vez eu esqueci
apenas algumas horas da nossa noite, dessa vez foram anos, Akira. Anos!
Eu acordei e Zayn estava morto, e você… — Tento não soar magoada, mas
fracasso. — Você não veio.
— Eu tentei — ele diz, a voz suave. Sua mão pousa sobre a minha.
— Por meses, eu continuei indo até a residência de Leonid, e você sabe que
jurei nunca mais colocar os meus pés naquele lugar. Mas o desgraçado
sempre dava um jeito de me expulsar.
— Isso… Eu… eu nunca soube — murmuro, mas uma parte de mim
já sabia, não é? Por isso não contei à minha mãe sobre o nosso encontro. —
Sempre que eu perguntava sobre você, nossos pais diziam que também não
tinham notícias.
— Eu já imaginava. — Akira range os dentes.
O quebra-cabeça começa a fazer sentido.
— Quando eu sugeri viajar até a sua companhia, na Rússia, eles
disseram que era melhor esperar que você desse o primeiro passo, que não
seria bom pressioná-lo. Eu tentei ligar, no entanto, mas minhas ligações
eram igualmente inúteis e sempre caíam antes de serem completadas.
— Uau! Os dois foram tão longe a ponto de controlar os seus
telefonemas? Isso é doentio, até para os padrões deles.
— Eu assumi que você não queria me ver ou falar comigo. Fiquei
me questionando se eu tinha feito alguma coisa ruim, se você me odiava.
Cheguei a pensar que talvez me culpasse pela morte de Zayn.
Seus olhos dobram de tamanho, horrorizados.
— Eles disseram isso?
— Não com todas as letras, mas deixaram a hipótese subentendida.
Você sabe como a mãe e o pai são. — Sorrateiros, mentirosos,
manipuladores, adjetivos que meu irmão já conhece. — Como eu tinha
preocupações mais importantes para lidar, e precisava de toda a ajuda
possível dadas as minhas condições, resolvi esperar e observar. Eu
suspeitava que estivessem me escondendo coisas, só não fazia ideia de que
eram tantas.
Ou tão sombrias.
— Você ainda não faz ideia. — Uma entonação raivosa se projeta de
sua boca. Sinto um arrepio, meus pelos ficam eriçados. — Assim que eu
soube da morte de Zayn, fiz de tudo para chegar até você. Até pensei em
abrir uma ocorrência na polícia, mas você não estava com eles contra a sua
vontade, e chamar atenção só iria piorar as coisas. Eu sabia que, se
pensassem que eu havia desistido, cedo ou tarde, eles baixariam a guarda, e
por saber da sua condição delicada, achei melhor esperar.
Então, nós tivemos a mesma ideia. Ainda que seu relato seja triste, o
final faz brotar um sorriso no meu rosto.
— Minha condição delicada?
As feições duras de Akira desmoronam. Ele solta a minha mão e
coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha, o gesto é cuidadoso e
familiar. Eu me inclino ao toque.
— É um jeito de falar. — Ele balança a cabeça, espantando algum
pensamento. — Quando você me contatou através da sua assistente, eu
quase não acreditei. Aqueles filhos da puta devem ter adorado recuperar a
Rapunzel deles. Eu não devia ter ido embora, se eu estivesse por perto,
talvez Zayn… — Meu irmão não termina essa frase.
Há uma semana, recuperei uma lembrança que não era boa e nem
ruim, ou era ambos, ao mesmo tempo. Havia uma mão masculina passando
pela minha pele, adorando-me, ela estava machucada, enfaixada, e por
alguma razão aquilo me fazia sofrer; eu odiava saber que o dono daquela
mão estava ferido. E havia música ao nosso redor, eu a estava tocando
pessimamente, mas ainda consegui reconhecer a melodia.
E eu acho… tenho quase certeza, de que era ele. O homem sem
rosto dos meus sonhos, o dono do meu amor, aquele que pode não existir,
mas que eu preciso que exista. Não sei como, mas eu preciso dele, e por
esse motivo, pedi a Mariya que atuasse longe das vistas dos meus pais e
procurasse por Akira em meu nome.
Eu quero encontrar esse homem.
Foi assim que acabamos neste restaurante, como dois clandestinos.
Quero dizer ao meu irmão que ele não tem culpa, que ninguém tinha
como adivinhar que eu e Zayn seríamos atacados, mas outra parte de sua
fala chama a minha atenção.
— Como assim, me recuperar?
Akira apoia os braços na mesa, o rosto muito sério. Ele solta um
suspiro e captura o meu olhar, prendendo-me na expectativa da sua
resposta. Quando ele começa a falar, o mundo como eu conheço desaparece
sob meus pés.
— Não tem uma forma simples de contar isso, então serei direto. —
Ele suspira. — Você foi casada, Anastasia. Por dois anos, você viveu com
seu marido em São Petersburgo, mas vocês dois se divorciaram algumas
semanas antes da morte de Zayn. Tudo o que nossos pais disseram, as
poucas notícias sobre o assassinato dele, e talvez até mesmo a sua condição
médica, são uma mentira.

***

Eu escuto meu irmão sem interromper, mas não por escolha própria.
Simplesmente não consigo encontrar a minha voz. Não sei o que dizer ou
como reagir à notícia de que minha vida é uma mentira.
É apenas… muita coisa.
Ele conta que me casei com Yerik Baranov, um velho amigo dos
meus irmãos, e abandonei minha carreira para viver como esposa. Bem, é
verdade que várias vezes imaginei como seria renegar os sonhos dos meus
pais para viver o meu próprio, e não ligo para uma carreira mundial, mas a
música faz parte de mim, não sei como cheguei ao ponto de renunciar a ela
totalmente.
A história fica mais estranha quando ele menciona que me isolei do
mundo, afastando-me por completo dele e de Zayn. Na visão de Akira, era
uma coisa boa que eu finalmente estivesse vivendo por mim mesma;
natural, até, considerando o nosso passado e o fato de ele próprio ter fugido
primeiro.
Então ele chega na parte importante. Segundo meu irmão, Zayn
enviou uma mensagem para ele um mês antes de morrer. O trabalho de
Akira exige que ele se mantenha fora de acesso durante longos períodos,
então quando ele tomou conhecimento da mensagem, era tarde.
Nosso irmão deixou duas informações importantes na tal
mensagem: primeiro, que eu e meu marido havíamos nos divorciado após
eu fugir de casa; e segundo, que ele já tinha resolvido tudo — seja lá o que
esse "tudo" significa. Ele esperava se encontrar com Akira assim que
possível, e prometeu contar os detalhes pessoalmente, mas isso nunca
chegou a acontecer.
E nunca vai, porque nosso irmão está morto.
— Tem mais uma coisa. — Ele retira um envelope de seu casaco e
espalha o conteúdo sobre a mesa, afastando nossos pratos e talheres
intocados para abrir espaço. — Seu marido, quer dizer, ex-marido — ele
hesita, seu pomo de Adão sobe e desce —, morreu no mesmo dia que Zayn.
Um único som sai da minha boca:
— Oh.
Meu irmão sonda meu rosto. Acho que ele está com medo de eu
colapsar, mas não me sinto à beira de um surto. Já que não me lembro de
nada do que ele está dizendo, é como ouvir uma história que foi vivida por
outra pessoa. É chocante, claro, e talvez eu precise de tempo para digerir
tudo, mas diferente da versão contada — inventada — pelos meus pais, essa
me parece tão… verdadeira.
Uma verdade assustadora, sim, mas há algo mais. Como um
caminho de pedras vulcânicas cujo destino meu subconsciente esteve
almejando em segredo.
Eu sei que Yerik e o homem que costuma aparecer nas minhas
lembranças, ou sonhos, não são a mesma pessoa. Lembro-me dele de
antigamente, com meus irmãos, e posso não saber como o rosto daquele que
amo se parece, mas todas as suas demais características não correspondem
às do meu marido. Ex-marido. Falecido.
Falecido-ex-marido?
Tanto faz. Fico aliviada que sejam pessoas diferentes,
principalmente quando meu irmão me entrega o recorte de uma notícia
impressa. No título, escrito com letras garrafais, eu leio "CONFLITOS
COMERCIAIS ENTRE BANQUEIRO E ADVOGADO TERMINAM EM
TRAGÉDIA". Em um segundo recorte, mais discreto, retirado de um jornal
digital, outra notícia sobre o caso diz: "Bilionário sequestrado por Yerik
Baranov alega ter agido em legítima defesa”.
As folhas tremem nas minhas mãos. Não sou de falar palavrões, mas
o "puta que pariu" que sai da minha boca parece bem adequado.
— No último ano, eu me dediquei a investigar a morte de Zayn em
busca do assassino que tirou a vida dele, e quanto mais eu investigava, mais
certeza eu tinha de que esses dois casos estão interligados. — Akira faz
uma pausa e, em tom de desculpas, diz: — Sinto muito, sei que é demais
para você processar de uma vez.
Entre receber doses homeopáticas de memórias sem sentido, e ouvir
a verdade em um único golpe, eu fico com a segunda opção.
— Não se preocupe comigo, continue.
Akira faz uma expressão involuntária de surpresa, em seguida, volta
a me olhar como se quisesse remover a tampa do meu crânio e vasculhar o
interior em busca de um parafuso solto. Eu devo ter uma coleção deles.
— Tem certeza?
Meneio a cabeça, confirmando. Aponto para os documentos.
— Você disse que os dois casos estão interligados. Por que acha
isso?
— Eu sei que vai parecer teoria da conspiração, mas… — Meu
irmão olha por cima do ombro, verificando se estamos salvos de ouvidos
curiosos antes de continuar: — Sua conexão com Yerik foi ignorada pela
polícia e pela grande mídia, e o assassinato de Zayn no parque teve
pouquíssima repercussão, já que todos os veículos de comunicação estavam
focados no sequestro. A polícia disse que vocês dois foram assaltados e
arquivou a investigação por falta de pistas, mas eles nem se esforçaram. E a
parte mais estranha, é que não há registro midiático do seu casamento em
nenhum lugar, como se tivessem apagado propositalmente a relação de
vocês.
— Isso é possível? Por que alguém faria algo assim? Acha que
nossos pais…
— Sozinhos, eles não têm poder suficiente para uma manipulação
desse nível. Além do presidente da Rússia em pessoa, só existe uma família
em nosso país com influência, dinheiro e autoridade para distorcer um
crime. Já fizeram isso antes, ocultando um desabamento. — Ele pega uma
fotografia no meio de suas evidências e aponta para os homens em
sequência. — Esses quatro irmãos. Vladimir, Ivan, Roman e Andrei
Volkiov.
Sinto um puxão, uma linha invisível presa em meu peito se alonga,
como uma vara de pesca fisgada por um peixe. Meu olhar se agarra ao
último homem. Todos são lindos, mas há algo sobre ele que me deixa
hipnotizada. Seu sorriso parece conter um oceano de segredos, e o ar de
mistério funciona como uma extensão de sua beleza. Mesmo através de
uma simples foto, ele se porta como um rei, emanando segurança e uma
tranquilidade calculada.
Não é a primeira vez que o vejo.
— Andrei Volkiov — ecoo seu nome, ele tem um sabor doce e
picante na minha língua.
— Esse é o homem que foi sequestrado por Yerik — Akira diz, mas
eu já imaginava. Meu subconsciente sabe dessa informação, e odeio não ser
capaz de acessá-la. Seria tão mais fácil se meu cérebro estúpido libertasse
as minhas memórias.
Mas eu junto os pontos.
Ele matou o seu sequestrador. Andrei Volkiov tirou uma vida com as
próprias mãos. Assim como eu, ele também quase morreu.
Estranhamente, meus olhos se enchem de lágrimas, e uma tristeza
antiga se aloja em meu corpo, atrás das costelas.
— Andrei Volkiov — repito, não sei por quê. Esse nome… quero
dizê-lo dez vezes mais. Não, cem vezes. Toco seu rosto com a ponta do meu
indicador, traçando o contorno do seu sorriso. — Eu o conheço.
— Das suas memórias perdidas?
— Não, não das perdidas, mas de depois delas. — Minha mão livre
se fecha ao redor do pingente em meu pescoço e eu volto no tempo. — Nós
ficamos internados no mesmo hospital.

***

Eu caminho sem sapatos pelo corredor vazio, tocando.


Bem, não tocando literalmente, é mais como uma atuação. Imagino
as cordas do meu violino e movimento meu arco invisível sobre elas,
produzindo notas musicais que só eu escuto. É libertador, fazia dias que
Debussy e sua Sonata para Violino e Piano em Sol Menor estavam presos
na minha cabeça, clamando por atenção.
Debussy a escreveu quando já estava doente, e a trajetória de sua
enfermidade pode ser sentida ao longo dos três movimentos que constituem
a música. O começo, Allegro vivo, é um mergulho sombrio e fragilizado de
terças descendentes; em seguida, no Intermède, suprime-se um pouco do
clima obscuro e se tem um meio cuidadoso, encantador; no fim, Très animé,
voltamos ao início triste, mas com um fechamento otimista que ninguém
espera.
É uma música apropriada para se encenar em um hospital, deve ser
por isso que me sinto inspirada em reproduzi-la. Mas esse não é o único
motivo, não é sequer o principal.
Na verdade, eu precisava escapar.
Se eu passasse mais dez minutos presa em meu quarto estéril, com
cheiro de desinfetante e cloro, tentando inutilmente me lembrar de alguma
coisa, eu acabaria cruzando a linha do "meio louca" para o
"completamente maluca".
Não tenho muito tempo antes que meus pais retornem. Eles quase
não me dão espaço para respirar, e por mais que eu esteja acostumada com
o supercontrole deles, é também sufocante tê-los me pressionando a cada
minuto por vestígios das minhas memórias. Só preciso de um momento a
sós comigo mesma para reorganizar os meus sentimentos.
No primeiro dia, quando acordei e não sabia onde estava ou o que
havia acontecido comigo, eu senti que todos — médicos, enfermeiros e
meus pais — esperavam que eu ficasse triste ou entrasse em um estado de
choque, mas é difícil lamentar por algo de que não nos lembramos.
Somente quando me contaram sobre a morte do meu irmão, eu chorei o
suficiente para encher um oceano.
Conforme os dias passam, no entanto, mais a minha ansiedade
aumenta, como se alguma parte esquecida de mim estivesse à espera de
algo, com… saudades, eu acho. Meus nervos estão por um fio, e esse lugar
quieto e solitário em minha própria mente, onde ninguém além de mim tem
acesso, é meu refúgio.
Com os olhos fechados, giro em meu eixo, dedilhando as notas no
ar. A sensação de me recolher em um vazio incolor, onde só eu existo e todo
o resto se resume ao meu conceito de mundo perfeito, faz com que eu perca
a noção da realidade. Então quando minhas pálpebras tremem, deixando
uma fresta vazar, eu me assusto, pois descubro que não estou sozinha.
— Caramba! — exclamo, minha mão direita voa até o meu peito a
fim de conter as palpitações frenéticas causadas pelo susto. — Eu não vi
você aí. Ainda bem que não tenho um problema cardíaco.
O estranho abaixa o rosto, coçando os olhos, de modo que não
consigo ver a sua expressão. Por um rápido momento, horrorizo-me com a
possibilidade de que esteja chorando, porque eu não saberia como
confortá-lo, mas ao se endireitar, eu é que fico à beira das lágrimas.
Ele é bonito demais. Nunca vi um homem com tanta presença. Não
consigo piscar ou desviar os meus olhos. Ele é bem mais alto que eu e tem
uma coleção de traços que só costumamos encontrar em modelos e atores
famosos. Será que estou delirando? Vendo coisas? E por que estou corando
de repente? Espero que ele não perceba e ache que sou uma garotinha tola,
ou uma tarada doida.
Suas roupas são iguais às minhas, um conjunto de pijama branco
estampado com bolinhas azuis, o que faz dele um paciente. E se as roupas
não fossem pistas óbvias, seu braço engessado até o cotovelo, as faixas
visíveis através da gola de sua camisa e os vestígios de hematomas em seu
rosto, também dizem alguma coisa.
Ao me dar conta que estamos nos encarando em silêncio enquanto
os segundos se arrastam, eu limpo minha garganta com um pigarro e solto
a primeira bobagem que me vem à mente.
— Você não é um fantasma, né?
O homem bonito sorri. Ele não devia fazer isso, tipo, nunquinha,
porque eu meio que sinto minhas pernas se transformando lentamente em
gelatina. Alguém com esse nível de aparência só pode ser coisa da minha
cabeça, ou um anjo, o que justifica a minha pergunta.
Ao invés de responder, ele se aproxima, e a luz do corredor faz com
que ele pareça brilhar.
Eu fico paralisada, sem falar ou respirar.
O homem para bem na minha frente, evidenciando a nossa visível
diferença de alturas. Eu sei que cenários assim não são os mais
promissores, sobretudo para uma mulher sozinha, mas não sinto medo.
Quero, inclusive, esticar o meu braço e tocar seu belo rosto, sentir se a
textura de sua pele é suave como seu sorriso, ou profundamente triste e
gelada como seu olhar.
Antes que eu tenha a chance, ele se abaixa, pega alguma coisa do
chão com sua mão funcional, e volta a se levantar, balançando uma
correntinha na frente do meu nariz.
— Você deixou cair.
Sua voz combina com o resto, é potente, firme e sensual, mas não
daquele jeito forçado que os homens geralmente usam para parecer mais
másculos. O timbre dele é natural, rouco, mas suave, e há uma camada de
malícia escondida sob a superfície de um reconhecível sotaque moscovita.
Atordoada, eu concordo e estico minha mão, pegando o objeto
delicado. Graças à sensação do metal gelado em contraste com a minha
palma suada, eu me dou conta do que estou fazendo.
— Isso não é meu.
Tento devolver, ele não aceita.
— Eu vi quando caiu — diz com convicção —, é seu com certeza.
Seu tom não deixa margem para dúvidas, e o poder de
convencimento em suas palavras me faz questionar quem eu sou e o que
estou fazendo.
— Eu não me lembro de ter… — Paro de falar. Lá está a palavra-
chave: lembrar.
Não é como se eu pudesse garantir que o colar não é meu.
Considerando que minha memória está longe de ser uma referência de bom
funcionamento, é bem provável que eu tenha me esquecido dele. E não faz
sentido argumentar contra alguém que só está tentando ser gentil.
Engulo minha teimosia e sorrio timidamente.
— Ah, bem, talvez seja meu.
— Não o perca — ele ordena, e me sinto na obrigação de obedecer.
Com essa voz profunda e seu olhar poderoso, se ele me mandasse imitar um
avestruz pulando em uma perna só, eu concordaria com um imenso prazer.
Sentindo meu rosto passar por três tons diferentes de vermelho,
paro de me distrair com pensamentos impróprios e murmuro:
— Obrigada.

***

Abro a minha mão.


Desde aquele dia, carrego os dois pingentes cravejados no meu
pescoço. A nota musical faz sentido, mas nunca entendi o significado da
coroa. Como todo o resto, o colar faz parte do aglomerado de coisas
esquecidas por mim. Quem o comprou, quando e por que, são questões que
permanecem sem uma resposta.
Eu nunca mais vi o homem misterioso com quem me encontrei no
hospital, embora tenha procurado por ele, perguntando a enfermeiros e
médicos por um paciente com as suas descrições; ninguém soube me dizer
quem ele era ou o seu nome. Eventualmente, o tempo fez o seu trabalho e
ele se tornou só mais uma história em uma gaveta — nem esquecido e nem
lembrado, apenas guardado.
Agora eu sei a verdade: aquele homem era Andrei Volkiov. E
provavelmente ele é mais do que isso.
— Eu tenho que falar com ele.
Meu irmão segura meu queixo com cuidado, seu toque me
distraindo da imagem de Andrei na fotografia.
— Ana — Akira mastiga as palavras, como se não quisesse colocá-
las para fora. — Nós não sabemos qual é o papel dele em toda essa história.
Se Andrei e os irmãos dele são os responsáveis por esconder a verdade
sobre o que realmente aconteceu com você, Zayn e Yerik, então talvez… —
Ele me dá outro olhar hesitante. — É possível que ele não queira vê-la. No
mínimo, podemos deduzir que Andrei Volkiov não quer que você se
envolva.
Akira está certo, eu sei, mas dói escutar, e eu nem entendo o motivo
de doer.
Seja lá o que aconteceu, se esse homem, Andrei Volkiov, se aliou
aos meus pais para reescrever uma tragédia, isso significa que ele também
escolheu me apagar.
— Mas por quê? — deixo a pergunta escoar pela minha língua, mas
o gosto azedo da dúvida não se extingue com a mesma rapidez.
Meu irmão se ajeita ao meu lado, passa o braço por cima do meu
ombro e me aconchega em um meio abraço confortável.
— Eu não sei, irmãzinha, mas se você quiser, vamos descobrir
juntos.
Não é questão de querer, eu sinto que preciso. Eu não consigo mais
viver sem encontrar o que me foi tirado.
— Como? — pergunto, olhando-o de lado. — Você tem um plano?
Akira sorri, os dentes brancos e retos espelhando a malícia e a
anarquia de quando ele era uma criança problemática.
— Mais ou menos. Estava pensando em ir até Moscou e arrancar a
verdade de Andrei Volkiov, o que pode ou não envolver algum nível de
violência.
Reviro os olhos e digo com firmeza:
— Você não vai bater nele, Akira. E também não fará nada sozinho.
Eu vou com você. — Indignado, ele começa a sacudir a cabeça. Eu o corto,
seguindo com o meu raciocínio: — O pai e a mãe sabem de alguma coisa,
senão tudo. Se os confrontarmos cedo demais, eles vão negar até a morte e
acabar com qualquer ponta solta em potencial. Tem que haver outro jeito.
— Talvez haja alguém.
— Quem?
— É só um palpite. — Akira remexe seus documentos. — Lembra
da nossa prima Dema?
— Sim? — Inclino minha cabeça, sem entender a conexão entre
uma coisa e outra.
Dema não é exatamente nossa prima, mesmo que a consideremos
como tal. Nossos avós ajudaram na criação dela, que era filha de uma
empregada. Nossas mães cresceram juntas, mas assim que vovô e vovó
faleceram, a mãe dela foi embora, levando Dema consigo. Eu não tive
notícias dela no último ano além de um cartão me desejando uma boa
recuperação.
— Ela é amiga íntima dessa mulher.
Ele me mostra outra fotografia, na qual uma mulher elegante, de
cabelos curtos, está abraçada a um dos irmãos de Andrei. O homem não
está olhando para a câmera, sua atenção está focada na mulher ao seu lado,
e há tanto amor, tanta entrega e devoção em seu semblante apaixonado, que
chega a ser íntimo demais.
Algo sobre ele, no entanto, faz meu coração esticar seus bracinhos
invisíveis, como se quisesse um abraço. Eu o conheço, mas por quê? De
onde?
Será que conheço toda a família?
O que aconteceu?
Por que eles me apagaram?
— Lara Volkiova é esposa desse aqui — Akira indica o homem com
o dedo indicador —, Ivan Volkiov. Então Dema pode saber de alguma
coisa. Vai haver um leilão gigantesco dentro de três semanas, Dema e o
marido estarão presentes. É bem possível que alguém da família Volkiov
também apareça. Leonid e Yekaterina estão na lista de convidados, eu
conferi.
— Sim, papai comentou algo a respeito, mas ele disse que não
pretendia participar. Tanto ele quanto a nossa mãe tem evitado a Rússia
como se fosse um pedaço do inferno. — Mordo meu lábio, pensando no que
fazer. — Mas, se eu me oferecer para tocar no evento, eles vão mudar de
ideia.
Algo como raiva brilha nos olhos de Akira. Ele pisca, e não está
mais lá.
— Você tem certeza? — Ele exala pesadamente. — Eu disse que
queria descobrir a identidade do assassino de Zayn, mas se você quiser,
podemos esquecer tudo isso. Você, mais do que ninguém, merece viver a
vida tranquila que você tem agora. É só dizer, Ana, e seguimos em frente,
deixamos o passado onde ele pertence.
Akira tem razão, minha vida não é ruim. No começo foi difícil, mas
agora eu consigo lidar com a possessão dos meus pais. Estar com eles esse
tempo todo foi uma escolha mútua. Não é como se eu fosse uma prisioneira.
Tenho tudo o que preciso, o que eu sempre sonhei. Minhas memórias
desapareceram por uma razão que vai além de ver meu irmão sendo morto,
não deve ter sido bonito, e cutucar um vespeiro com uma vara muito curta
nunca é uma boa ideia.
Eu sou feliz, por que arriscar isso?
Meus olhos são atraídos para a fotografia de Andrei Volkiov, e todos
os meus argumentos se liquefazem. Há um magnetismo incontrolável,
desconhecido e profundo que me puxa para ele, um sentimento tão
poderoso que nem a minha amnésia pôde apagar.
E tem mais um detalhe, o mais importante: eu e ele não somos os
únicos algarismos a serem considerados na equação ingrata em que fomos
colocados pelo destino. Quando eu respondo, tendo plena consciência da
minha decisão, com minha voz livre de dúvidas e medos, não é apenas por
mim:
— Sim, eu tenho certeza.
34
Andrei
GOSTO DE JOGAR um joguinho divertido chamado "o que os idiotas
fazem quando ninguém está olhando". Roman o inventou e o nomeou aos
dez anos. Ele sempre teve uma aptidão ímpar para ideias caóticas.
O jogo consiste, basicamente, em observar as pessoas, selecionar
aquelas com comportamentos suspeitos e deduzir quais segredos elas
escondem, seus pecados mais recentes ou que tipo de pensamentos sórdidos
elas nutrem por trás dos sorrisos falsos.
Eu e meus irmãos costumávamos jogar durante as festas
corporativas que nosso pai nos obrigava a comparecer, mas Roman desistiu
da brincadeira quando percebeu que eu sempre acertava, e então o jogo se
tornou sobre mim. Ele escolhia algum velhote asqueroso que ninguém
gostava e me fazia revirar a alma do sujeito, e mais tarde, durante um jantar
ou um brinde importante, usava as informações para constranger a pessoa.
Eu sou o único que manteve o hábito depois de adulto, mas com
outro objetivo em mente. Acontece que a famigerada máxima
"conhecimento é poder" está certa.
Por exemplo, em apenas duas horas no magnífico salão de eventos
da Kokorin Enterprises, eu já sei quem são os maiores interessados em
nossos imóveis, e posso ter incentivado uma disputa de lances épicos entre
eles que nos garantirá o dobro ou o triplo do que Ivan havia estimado.
Também pude medir o meu nível de popularidade. Uma boa parte dos
convidados me lança olhares cautelosos e até amedrontados. Alguns me
evitam, outros continuam tentando me agradar.
É... diferente de antes.
Porém, às vezes, eu sinto um arrepio distinto na minha nuca, uma
sensação de estar sendo observado de volta que não tem nada a ver com os
curiosos atrevidos. É um sentimento com o qual já estou acostumado.
Mas deixando de lado a parte burocrática do jogo, eu também
consigo descobrir coisas menos úteis, mas igualmente interessantes.
O casal à minha direita, sentados lado a lado em um sofá de couro
amarelo, são na verdade amantes; o rapaz de pé ao lado do buffet é um
penetra esperando dar um lance de sorte; a anfitriã, Elena, conhecida por ser
uma megera dissimulada, está há vinte minutos presa no banheiro com o
seu segurança; e as duas mulheres trocando risadinhas perto do palco
planejam me convidar para uma festa particular a três depois do leilão.
Enfim, o ser humano em sua essência nua e crua.
— Você planeja fazer algo a respeito? — O responsável pela
pergunta se junta a mim, acomodando-se no banco alto da mesa bistrô que
escolhi por garantir uma visão ampla de todo o salão.
— Aleksander? — Controlo minha expressão facial no último
milissegundo. Sorrindo, estico meu braço e o cumprimento com um aperto
firme. — Eu não sabia que o encontraria aqui, se soubesse teria procurado
por você desde o começo. Lara não comentou que estavam na cidade.
Olho por cima de seu ombro, procurando uma mulher baixinha de
cabelos dourados. Ouço minha pulsação nos ouvidos, como sempre
acontece com qualquer coisa minimamente relacionada a Anastasia, mas
não vejo ninguém. Aleksander ignora a minha deixa e não me dá pistas
sobre a sua esposa, se ela está ou não o acompanhando.
Eu não pergunto.
Dema, a prima de Anastasia, foi uma das pessoas mais difíceis de
persuadir sobre a minha decisão de manter distância. Se não fosse por sua
amizade com Lara, eu não teria conseguido a sua colaboração. Dema não
sabe muita coisa além dos abusos que Anastasia sofria e do nosso
envolvimento, mas até esses detalhes eram arriscados e poderiam colocar
tudo a perder.
— Não tem problema, você parece ocupado. — Aleksander inclina
os lábios. — Então, vai ou não fazer algo a respeito daquilo ali?
Sigo seu olhar até a dupla de mulheres, que agora encara nós dois
com um interesse renovado. Elas são bonitas, não tenho como negar. Uma
loira e uma morena, cabelos longos na primeira, curtos na segunda, as duas
com olhos azuis idênticos, o que pode indicar algum grau de parentesco.
Seus vestidos justos, um vermelho e o outro dourado, respectivamente, não
escondem muita coisa.
Não há nada de errado nelas, são mulheres livres, interessantes, que
sabem o que querem. Em outros tempos, eu não hesitaria em dar o que tanto
desejam, e aproveitaria cada segundo, mas agora, imaginar-me entre as duas
me deixa doente. Tocar seus corpos, sentir o gosto de suas peles alvas, estar
dentro de qualquer uma delas… não ironicamente, eu prefiro a morte.
— Estou aqui a trabalho, não tenho tempo para distrações. —
Demonstro minha real indiferença. Pareço meu irmão mais velho falando.
Aleksander dá risada e muda de assunto. Conversamos
principalmente sobre negócios, mas ele também pergunta sobre a minha
família. Apesar de minha cunhada e a esposa dele serem amigas, a distância
dificulta o contato frequente. Um assunto leva a outro, e logo estamos
falando sobre crianças e filhos, ou melhor, ele tagarela sobre seu garotinho
enquanto eu aceno, contribuindo com um ou outro comentário breve sobre
os meus sobrinhos mais novos.
No geral, evito falar. Até eu tenho um limite para o quão bem
consigo fingir, e o luto ainda é um parasita silencioso dormindo sob a minha
pele.
— E já que estamos falando sobre nossas famílias — ele diz em
determinado momento, usando um tom casual, porém calculado —, tem
algo que você pode estar interessado em saber.
— Se for sobre ela… — Sou rápido em negar, reforçando minha
recusa com a cabeça.
— Sim e não. — Aleksander foge do meu olhar enquanto remove
uma poeira inexistente de seu smoking preto, a vestimenta padrão de todos
os homens do leilão, inclusive a minha. — Ainda há pouco, antes de
encontrar você aqui, solitário como um falcão em busca de bichinhos para
comer, metaforicamente falando e tal, eu acabei esbarrando com os tios
postiços da minha querida esposa.
Demoro alguns segundos para entender a teia de conexões e dar
nomes às pessoas que ele está mencionando: o casal que jurou nunca mais
aparecer na minha frente e evitar a Rússia a todo custo, os pais de
Anastasia.
O que caralhos eles estão fazendo aqui? Será que trouxeram…
Não, eu não vou por esse caminho.
Mas talvez já tenha começado...
Mordo o lado de dentro da minha bochecha até sentir gosto de ferro
e engulo o sangue junto com todas as perguntas sobre Anastasia que eu
quero fazer, mas cujas respostas não mereço ainda. Minha cabeça dá
indícios de uma dor repentina, e me arrependo de ter vindo no lugar de
Roman.
— Não é da minha conta — minto.
Minha mente trabalha contra a minha vontade e de repente meus
olhos estão correndo pelo salão a procura deles — dela.
— Eu não sei o que rolou com você. Dema também não entende, já
que não estávamos por perto quando tudo aconteceu, mas achei melhor
avisar. — Despreocupadamente, Aleksander relaxa os ombros e pesca uma
taça cheia de espumante que um garçom nos oferece. — Quer um?
Nego, sentindo minha garganta se fechar. Quando o homem se
afasta, eu volto a respirar e finalmente pergunto:
— Falando em Dema, ela não veio hoje?
— Ah, isso… — Ele toma um gole, eu me forço a olhar para o chão.
— Sim, viemos juntos. Ela quer expandir a rede de cafés e está de olho em
alguns estabelecimentos que serão leiloados mais no fim da noite. Assim
que chegamos, o primo dela nos abordou e pediu para conversar com ela a
sós.
— Primo? — Minha cabeça estala para cima e eu quase voo sobre a
mesa para arrancar a resposta dele. Não sou tão eficiente controlando a
minha língua dessa vez. — Está se referindo a Akira Serov? O irmão de
Anastasia? Ele também está aqui?
Aleksander confirma.
Mas que porra!
Meus instintos se unem para berrar no meu ouvido. Está
acontecendo. Engulo minha saliva, ela parece ter gosto e textura de lama.
Fecho minhas mãos bem apertadas, as luvas pretas que as recobrem ficam
enrugadas com a força dos meus punhos. Eu sinto a umidade por baixo do
tecido, o sangue invisível grudado na minha pele, entre os dedos.
Eternizado nas minhas digitais. Carimbado na minha alma.
Não é coincidência o único irmão vivo de Anastasia estar aqui hoje.
Procuro pistas na multidão, de volta ao meu jogo particular. Avisto
Dema caminhando em nossa direção, um furacão cor-de-rosa com olhos
azuis aflitos.
Aleksander, que deve ter percebido o mesmo que eu — o leve
pânico no semblante de sua esposa — se levanta e a envolve em seus
braços. Exceto pela baixa estatura, Dema parece uma boneca Barbie, com
longos cabelos loiros e um vestido chiclete cheio de babados e mangas
bufantes.
— O que aconteceu? — ele a interroga.
Mas é para mim que Dema lança um olhar resignado, de desculpas,
unindo as sobrancelhas antes de despejar um monte de palavras atropeladas.
— Eu sinto muito, Andrei. Eu não podia mentir, então o máximo
que pude fazer por você, foi dizer a ela que lhe desse uma chance de se
explicar, ao invés de ouvir da boca de outra pessoa. Juro que não contei
nada, mesmo com Akira mordendo os meus calcanhares, mas é melhor se
preparar.
Me preparar... como se minha vida não se resumisse a isso.
Nunca basta.
De repente, a potência das luzes centrais do salão enfraquece,
reduzida a um tom de laranja-escuro que me lembra o crepúsculo no
inverno.
Um estampido grave se propaga pelo salão, acionando um clarão
cegante. Eu fico tenso, meus músculos enrijecendo a ponto de pedra, e
várias pessoas ofegam em uníssono. No palco, dois holofotes apontam para
uma mulher belíssima, com um vestido branco repleto de plumas. Ela
empunha um violino preto.
Seus cabelos, cor de avelã e canela, estão soltos, mais longos do que
eu me lembrava, cascatas encaracoladas que tocam a linha da sua cintura,
encimados por uma tiara dourada. Ela poderia facilmente ser uma musa dos
tempos antigos, ou uma deusa do Olimpo. Porra! Há uma grande chance de
Anastasia ser o centro do universo inteiro e o motivo pelo qual a raça
humana foi inventada a princípio, porque se hoje ela existe, então todos os
séculos de evolução valeram a pena.
Ela começa a derramar sobre os ouvidos de todos a sua feitiçaria
melodiosa da mais alta qualidade e beleza.
Eu me impeço de ficar feliz ou sentir qualquer coisa parecida com
esperança. Anastasia não deveria estar aqui, nós não deveríamos nos
encontrar, eu não deveria vê-la em nenhuma hipótese. E por mais que uma
porcentagem considerável de mim queira se ajoelhar à frente dela e declarar
meus desejos secretos na frente de todos, reclamando-a como minha,
atenho-me à parte dolorosa que nunca me deixa esquecer todos os motivos
pelos quais não devo fazer isso.
A música que ela toca, apesar de sua perfeita execução, é mera
coadjuvante. Anastasia brilha no palco, oscilando no ritmo do violino como
se os dois fossem partes um do outro, amigos, parceiros, amantes. Almas
gêmeas. Ela é a protagonista e, assim como eu, ninguém consegue desviar
os olhos.
Quando Anastasia chega ao final da apresentação e os resquícios da
última nota pairam no ar, ouço o público exalando ao mesmo tempo e me
lembro de respirar. Meu pé direito se move e dou um passo inconsciente na
direção dela. O silêncio se prolonga por alguns segundos enquanto as
pessoas se recuperam do transe, em seguida, vem a explosão de aplausos.
Eu me fecho, recuando, e tranco meus sentimentos com um
cadeado. Coloco um véu no meu rosto e pergunto, com a voz monótona e
desprovida de emoções:
— O que ela está fazendo aqui, Dema? Ela… — Estremeço. — Ela
se lembra?
Anastasia desce do palco, entrega seu instrumento a um funcionário.
Várias pessoas se juntam ao seu redor e ela desaparece do meu campo de
visão. Sinto um misto de alívio e preocupação. Suor começa a brotar da
minha pele, meu coração galopa, descontrolado.
— Não — Dema responde. — Mas eu não sei o quanto ela
descobriu. Akira deve ter contado, pelo menos, sobre o casamento dela com
a cria de Satanás. Como eu não quis me envolver, ela também me manteve
no escuro e me acusou de conspirar com o inimigo. E sim, você é o
inimigo, caso não tenha entendido a gravidade da situação. Provavelmente,
ela e Akira somaram dois mais dois e descobriram que você tem alguma
relação com… bem, você sabe, com tudo. Como você e seus irmãos
deixaram escapar uma ponta solta como Akira? Se quer a minha opinião…
Aleksander coloca a mão no ombro da esposa.
— Acho que ele não quer, meu amor.
Dema pestaneja, irritada, mas se cala. Eu agradeço Aleksander com
um olhar breve. Não é pessoal, como se eu não quisesse, especificamente, a
opinião dela, e não tem nada a ver com a amizade de Dema com Lara ou
seu parentesco com Anastasia. Eu simplesmente não quero a opinião de
ninguém.
Procuro Leonid e Yekaterina e os encontro perto do palco,
socializando com os admiradores da filha. O que esses dois malditos estão
pensando? Estou prestes a arrastar um deles até o terraço para fazer
algumas perguntas — e ameaças — quando sinto uma mão pequena de
dedos curtos tocando o meu antebraço.
E meu mundo desacelera, invertendo a sua rotação.
— Peguei você — ela diz em um tom animado. A voz, santo Deus,
a voz dela me domina, infiltrando-se no meu sangue, nublando a minha
mente. — Nem pense em fugir.
Eu não penso.
Não consigo pensar.
Olho para baixo, encontrando olhos travessos e inteligentes e
meigos. Ela me encara como se eu fosse um prêmio, um tesouro, sua maior
descoberta. Mas não há reconhecimento, nada que indique o retorno das
suas lembranças, e não sei como me sinto sobre isso. Feliz? Triste?
Furioso?
Nada disso.
E tudo isso.
Puxo meu braço e me distancio de seu toque. Meu corpo protesta,
mas eu enterro a dor e a saudade e me concentro na mulher diante de mim.
Coloco minhas mãos para trás, longe dela.
Não me toque. Não me olhe. Não se lembre.
— Posso ajudá-la? — digo, minha voz robótica.
Ela torce o nariz e avança dois passos, empertigando-se. Quando eu
volto a me afastar, Anastasia estreita os olhos e apoia as mãos na cintura
fina. Sua barriga… eu não olho tão abaixo, pois eu sei o que não vou
encontrar lá, e não confio nas minhas habilidades de atuação no momento.
Respirando fundo, visivelmente contrariada — o que é meio
surpreendente, já que antes ela vivia encolhida, insegura e com medo de ser
um incômodo —, Anastasia me responde com outra pergunta.
A mesma pergunta daquele dia.
A porra da mesma pergunta.
— Eu conheço você?

***

Tudo é vermelho, menos ela.


As paredes e janelas, o teto e o chão, os objetos e os médicos.
Vermelho. Vermelho. Vermelho. Quando eu pisco, ao invés da escuridão, há
um oceano carmesim. E sempre que eu como alguma coisa, seja uma barra
de cereal da máquina de vendas que fica no refeitório do hospital, ou a
sopa sem graça que me servem duas vezes ao dia, sinto o sabor ferroso do
vermelho. Sim, é estranho que uma cor tenha gosto, mas é verdade.
Vermelho tem gosto de sangue. Ele é a cor da morte, do luto e do
sofrimento.
E eu o odeio.
Mas não Anastasia.
Tudo é vermelho, menos ela.
— Isso não é meu.
Ela tenta devolver o colar, sua expressão é a coisa mais adorável
que eu vi nos últimos dias. Um bálsamo. Considerando o ambiente em que
estamos, pode não ser uma observação significativa, mas me faltam
motivos para procurar beleza no mundo. Na vida. Anastasia é minha única
exceção.
— Eu vi quando caiu — a mentira dança na minha boca —, é seu
com certeza.
— Eu não me lembro de ter… — Como eu já havia previsto, ela
hesita, porque Anastasia não se lembra mesmo de nada. Nem de mim. —
Ah, bem, talvez seja meu.
Eu pisco. Vermelho.
Ela me apagou junto com todas as memórias ruins, e não posso nem
mesmo lamentar por tamanha perda quando sua alegria é visível. Quantas
vezes desejei que ela se esquecesse de todo o sofrimento causado por Yerik?
Quantas vezes eu pedi por uma intervenção que a livrasse dos fantasmas
em seus ombros? Quantas vezes eu me perguntei como ela seria sem as
suas feridas?
Cuidado com o que deseja?
Porra nenhuma.
Eis a minha resposta.
— Não o perca — ordeno, socando-me mentalmente por deixar meu
lado autoritário, herdado da minha família, assumir o controle. Tem sido
difícil controlar.
Anastasia, contudo, não se intimida. Se alguma coisa, ela parece
gostar.
Suas bochechas coradas são uma ironia prazerosa. Eu gosto de
como esse vermelho se apresenta na pele dela — a mescla com o marrom,
resultando em um vinho escuro cujo sabor eu sinto vontade de provar. Qual
o gosto das suas maçãs do rosto? Por que eu nunca tentei mordiscá-las
quando tive a chance?
— Obrigada — sussurra. Anastasia me observa com interesse, os
olhos inteligentes e prodigiosos, e me sinto consciente demais da minha
própria sujeira. Aquela que só eu posso ver. Começo a me afastar, não
querendo manchá-la, e por causa dessa breve distração, não vejo a sua
próxima pergunta chegando: — Eu conheço você?

***

No vale macio entre seus seios, a dupla de pingentes repousa, perto


do coração. Eu sinto o fundo dos meus olhos queimando, mas lhe dou a
mesma resposta daquele dia, no corredor do hospital:
— Não.
Giro nos calcanhares e caminho em qualquer direção, esperando,
com sorte, encontrar a saída. Anastasia se enfia na minha frente, um metro e
meio de pura determinação sofisticada. Ela tem um fogo no olhar que há
muito havia se apagado, transformado em cinzas e soprado pelo vento.
— Pois eu acho que sim — insiste. Com preocupação, ela espia os
olhares curiosos que estamos atraindo e abre um sorriso dissimulado,
disfarçando o clima tenso.
— Está enganada. — Também sorrio.
— Ficamos internados no mesmo hospital.
Essa parte eu não posso negar.
— Sim.
— Mas antes disso a gente já se conhecia.
— Creio que não.
Dou um passo para o lado. Anastasia espelha meu movimento e me
bloqueia.
— Interroguei minha prima e ela falou que era melhor conversarmos
pessoalmente, então eu e você temos alguma coisa para conversar.
Procuro por Aleksander e sua esposa tagarela em busca de alguma
ajuda, mas os dois espertinhos sorrateiros já desapareceram em meio à
confusão.
Merda, vir sozinho não foi uma boa ideia.
— Dema certamente é alguém que fala além da conta. — Tento o
outro lado, ela é mais rápida, e por pouco não nos esbarramos.
— E meu irmão acha que você é um figurão mafioso cheio de
contatos, que está escondendo coisas bem importantes sobre mim.
— Um… o quê? Por quê?
— Okay, a parte do "mafioso" é invenção minha. — Anastasia
revira os olhos. — Por acaso você tem cachinhos na nuca?
Na ponta dos pés, ela tenta se empoleirar em mim e vasculhar meu
cabelo. Eu me esquivo tal qual um rato tentando se salvar de um gato
faminto, e mudo de rota, apressando os passos. Ela não desiste e me segue
de perto. Para acompanhar o meu ritmo, Anastasia precisa dar corridinhas, e
sou obrigado a esmagar meu impulso servil de reduzir a velocidade para me
moldar a ela e às limitações de suas pernas curtas.
Deixamos o salão sem maiores comoções. Seus pais nem percebem
a nossa saída, distraídos com a atenção de seus bajuladores — o que diz
muito sobre as suas prioridades. Seu irmão, Akira, não está à vista.
Não tenho tempo para pensar neles agora e caminho o mais rápido
que posso.
— Volte para a festa — ordeno assim que chegamos em uma área de
descanso, onde bancos de pedra dividem espaço com arbustos amarelados.
A iluminação do espaço amplo conta com a luz do luar, que entra
através de uma gigantesca claraboia hexagonal, além de algumas poucas
luminárias acopladas ao chão, indicando o caminho até um espelho d'água
artificial, que imita um lago circular. Não há convidados à vista. Maravilha.
Olho para os lados, tentando entender de onde nós viemos e em que
direção seguir para chegar ao estacionamento. Se eu for rápido, ela vai
desistir. Possivelmente.
Anastasia dá risada.
— Está perdido?
— Não.
Sim, pra caralho.
— Podemos nos sentar um pouco, bem ali, naquele banquinho. —
Ela me circunda, alegre e sorridente, parecendo um cão com o seu dono. —
O que acha de responder algumas perguntas? Prometo ser rápida. Mais ou
menos. Eu tenho uma lista considerável de questões, mas acredito que, se
você parar com a coisa de mentir, conseguimos terminar em meia hora.
Fecho meus olhos, respiro fundo e conto até dez. O cheiro dela,
doce e frutado, inebria a minha mente e eu me perco na contagem, pulando
do cinco para o oito. Dois, três, sete. Não vai funcionar.
— Por favor — eu imploro — desista. Seja lá o que você pensa que
sabe, esqueça.
— Esse é o ponto, eu já esqueci.
Anastasia segura a saia volumosa e se coloca diante de mim, o nariz
arrebitado, com a ponta redonda, todo franzido. Ela faz um som com a boca
e cutuca o meu peito, usando a ponta do indicador. Eu me reteso, meu corpo
desperta, sentindo o magnetismo, a presença dela, e um rugido vibra onde
seu dedo toca.
Encontro algum bom senso para dizer:
— Então vá embora. Eu não sou quem você imagina. — A segunda
parte não chega a ser uma mentira. Eu sou um estranho para ela.
Anastasia nem se dá ao trabalho de considerar meu aviso.
— Eu não sabia que encontraria você hoje. Eu tinha um plano:
conseguir algumas respostas com a minha prima, gritar com os meus pais e
só então ir atrás de você. Mas quando o vi no salão, fiquei te observando e
não consegui mais parar. E depois, a forma como me olhou… Não importa
o que diga, eu sei que você me conhece. Eu sinto que nos conhecemos.
Pela primeira vez, eu olho para Anastasia de verdade, olho no olho,
sem fugir. No último ano, eu me peguei imaginando como seria vê-la
novamente, fantasiei com esse encontro, tentando criar uma versão dela que
eu jamais conheceria. Nenhum dos meus sonhos fez justiça à sua beleza
real.
Anastasia é incomparável, mas conseguiu fazer o impossível e ficar
ainda mais atraente. Eu quase não resisto ao desejo de me inclinar e roçar
meus lábios no arco do cupido de sua boca macia. No entanto, a vontade
que sinto dela vai além da aparência física. Ela está diferente, mais leve e
autoconfiante, exatamente como eu sabia que ela seria sem os dedos de
Yerik enterrados em sua mente.
Só dessa vez, permito-me um momento de descuido.
Só dessa vez.
— Você é feliz, Anastasia?
Ela cruza os braços, seus seios enchem o decote e puxo uma longa
respiração. Foco em um ponto acima do seu ombro esquerdo e o mantenho
como se minha vida dependesse disso. E ela depende, de certa forma, pois
encarar o corpo de Anastasia depois de todos os meus esforços para ficar
longe, arriscando a linha tênue entre cobiçar e possuir, é o equivalente
mental de mergulhar em um rio profundo com uma rocha de meia tonelada
acorrentada aos meus pés.
Não tem volta.
— Ei! Eu faço as perguntas, não você.
A voz da minha consciência me lembra que preciso ir embora, mas
há uma curiosidade crescendo em mim que necessita de mais um minuto. O
que ela sabe? O quanto sabe? O que quer saber?
— Um segredo problemático por outro? — ofereço e, não posso
negar, observo atentamente sua reação ao termo que costumávamos usar
para trocar confidências.
Ela não demonstra nada.
— Tudo bem. — Anastasia dedilha o antebraço. Sem a causa-efeito
de um casamento tóxico, sua cisma é pura esperteza e zero sequelas
traumáticas. A garota amedrontada com botinhas vermelhas que eu conheci
na mesa do aeroporto em um passado muito distante ficaria orgulhosa de si
mesma. — Por que quer saber se eu estou feliz?
— É essa pergunta que deseja barganhar? — Um canto da minha
boca força seu caminho para cima, um meio sorriso que eu apago
rapidamente.
— Não.
— Não é assim que o jogo funciona pri… — Finjo uma crise de
tosse repentina. — E não quero saber se está feliz, mas sim se você é feliz.
— Tem diferença?
Não resisto à oportunidade de provocá-la.
— Essa é a sua pergunta?
Anastasia sorri, e é o sorriso mais falso da história do mundo. Por
dentro, sua vontade real parece ser a de furar os meus olhos.
— Não, não é. — Ela expira pelo nariz, irritada. — Bem, eu sou
feliz, satisfeito?
— Tem que ser mais específica.
— Quem disse?
— Eu disse, o jogo é meu. — Outra vez, minhas pernas cedem à
ambição e me levam um passo à frente, mais perto dela. — Minhas regras.
O olhar dela se fecha em duas fendas.
— Por que eu tenho a ligeira impressão de que estou sendo
persuadida?
— Sou um advogado. — A desculpa padrão para tudo na minha
vida. Se eu me arrependo de usar o estereótipo do advogado manipulador
para justificar alguns dos meus desvios de caráter? Jamais.
Ela balança a cabeça de um jeito reprovador e solta um suspiro
vencido. Seus olhos caem para a minha boca, enfatizando os poucos e
perigosos centímetros que nos separam. Quando ela fala, seu tom não é
mais alto que um murmúrio.
— Ninguém é feliz o tempo todo, mas acho que eu sou na maior
parte do tempo. — Ela sorri com resignação. — Noventa por cento feliz,
isso serve?
Não é o que eu esperava ouvir.
Os centímetros diminuem, não sei dizer qual de nós dois é o
responsável, talvez ambos. Consigo ver minha silhueta refletida no brilho
dos seus olhos. O vermelho-escuro, de volta às suas bochechas, me instiga.
Minhas mãos doem, lutando contra a minha força de vontade, exigindo um
toque, uma carícia, uma reivindicação.
— O que acontece durante os outros dez por cento, Anastasia?
Ela estremece, seus ombros despidos ficam arrepiados.
Tenho certeza de que deveria estar pensando em qualquer outra
coisa, e não em deixar uma marca nas suas clavículas, ou em remover seu
vestido branco, tão malditamente parecido com um vestido de noiva, e
colocá-la diante do espelho d’água para assim adorarmos juntos a sua nudez
por toda a eternidade.
Anastasia projeta a ponta da língua, passeando-a pelos lábios. Não
sei o que está pensando, mas apostaria a minha vida que sua imaginação
tem alguma semelhança com a minha, e eu daria qualquer coisa em troca de
espiar tais pensamentos por um segundo.
Estou preso.
Basta que ela diga as palavras — beije-me — e eu estarei perdido,
todos os meus esforços, arruinados. Anastasia não imagina o poder que tem
sobre mim.
— As regras — ela sussurra, o queixo se erguendo com uma certa
inocência, inconsciente da própria sedução. — É a sua vez, Andrei.
Andrei.
Meu nome em sua boca puxa a minha consciência como um soco no
estômago. Atordoado e com vontade de separar a minha cabeça do pescoço,
eu coloco uma distância segura entre nós. Anastasia pisca, mágoa cobrindo
suas feições.
Acho que perdi uma coisa importante.
Isso é errado.
Eu só posso estar louco. Como posso colocar tudo a perder por um
mero capricho egoísta? Por um minuto? Um momento? Anastasia vale
muito mais. Ela merece mais.
— A resposta para a sua pergunta — eu digo, já que lhe devo um
segredo, mas removo toda e qualquer emoção da minha voz — é sim, você
me conheceu uma vez, Anastasia. — Viro de costas, pois não aguento sua
expressão, a decepção em seus olhos, assim como a fagulha de curiosidade.
— Mas acredite quando eu digo que a melhor coisa que pôde acontecer com
você, foi ter me esquecido.
Porque você não sabe o que perdeu.
Depois disso, eu vou embora.
E Anastasia não me segue mais.
35
Anastasia
EU FAÇO DE tudo para ter certeza, forçando as barreiras da minha mente
até o limite, mas o único resultado que consigo é uma dorzinha chata na
lateral da cabeça. Meu coração está convencido de que Andrei é o homem
dos meus sonhos, e meu corpo corrobora com essa suspeita, mas a menos
que eu me lembre de verdade, não posso sair por aí declarando aos quatro
ventos que o amo, ainda mais depois de saber que ele mal suporta estar
perto de mim.
Mas… é ele.
Tem que ser, pois eu não sou dissimulada o bastante para inventar o
que senti ao vê-lo pessoalmente, a euforia que fez meu coração bater como
as asas de um beija-flor feliz quando ouvi sua voz grave, rouca e amável —
apesar de seus esforços para esconder essa última característica.
Durante três dias após o nosso encontro no leilão, eu me permiti
afundar em autopiedade e fiz por merecer cada segundo, cultivando todo
tipo de pensamento negativo que se possa imaginar, com direito a lágrimas
e uma dose considerável de músicas tristes. Hoje, porém, no começo do
quarto dia, eu me agarro a outro sentimento além da tristeza.
Sua confirmação de que já nos conhecíamos não me surpreendeu, é
algo que eu esperava, ansiava até, mas a maneira como Andrei disse que
esquecê-lo foi a melhor coisa que aconteceu comigo me deixa… furiosa!
Ele não sabe nada sobre mim, não faz ideia do quanto estive sofrendo
justamente por não me lembrar dele. Quem ele pensa que é para determinar
qualquer coisa sobre os meus sentimentos?
Pois se ele pensa que vou desistir só por causa de seus avisos
enigmáticos, está muito enganado.
— Você pretende assaltar um banco?
Sobressaltada, deixo minha xícara cair sobre o balcão da cozinha e
olho para trás, mas é apenas Akira se aproximando com pés de veludo.
— Droga. — O chá quente molha a ponta dos meus dedos. Eu fico
indecisa entre enfiá-los embaixo d'água ou limpar a bagunça de cacos de
vidro, chá e leite, mas acabo escolhendo a água fria quando minha pele
começa a queimar. — Você me assustou! E, nossa, por que isso dói tanto?
— Desculpe. — Ele olha por cima do meu ombro e faz uma careta
para as rugas surgindo em meu indicador e no dedo médio. — Você
geralmente não se assusta assim. Está se sentindo bem? Que roupas são
essas?
Vejamos, por onde eu devo começar?
Graças à minha apresentação no evento, meus pais me deram um
pouco de espaço. Eu disse a eles que pretendia visitar o túmulo do meu
irmão e fazer algumas compras na capital, e prometi que voltaria para
Berlim no início da próxima semana — o que está bem distante da verdade.
Minha mãe insistiu que eu mantivesse uma equipe de funcionários comigo,
mas utilizei todo o meu treinamento de filha obediente para convencê-la de
que Mariya era suficiente. E, de fato, ela é indispensável por vários
motivos.
Meu pai não fez objeções, o que é assustador. Ou ele está muito feliz
pelo sucesso do meu espetáculo, ou confia demais na coleira invisível que
colocaram no meu pescoço. Não preciso dizer que nenhum dos dois sabe
que eu e Akira estamos juntos, ou suspeita de nossas tramoias, uma vez que
meu irmão se manteve nas sombras e não ousou dar as caras na frente deles
durante o leilão.
Como resultado de tantos meandros, agora Akira, eu e minha
assistente estamos vivendo juntos no apartamento dele — um imóvel
luxuoso no centro de Moscou — por tempo indeterminado. E a título de
curiosidade, a convivência entre os dois não é das melhores.
Eu suspiro e começo a me explicar pela parte mais simples.
— Terminei de lamber as minhas feridas, agora vou até a sede da
Corporação Volkiov fazer outra tentativa de conversar com Andrei. Tenho
que aproveitar cada segundo enquanto mamãe e papai estão longe. Foi pura
sorte os dois não terem me visto conversando com ele no leilão. A roupa é
para não chamar muita atenção, pois caso Andrei se recuse a me receber,
quero pelo menos dar uma olhada no lugar, conversar com algumas pessoas
e ver se me lembro de alguma coisa.
Akira parece cético. Ele dá uma boa olhada nas minhas peças: calça
bem justa, botas de couro, blusa de mangas longas e gola alta, tudo na cor
preta, que contrasta com a correntinha dourada e os pingentes brilhantes
pendurados no meu pescoço.
— Você está parecendo uma ninja. — Ele torce o nariz. — E sinto
dizer, mas você continua não tendo nenhuma noção de si mesma se acha
que consegue passar despercebida com esse corpo. Sobre aqueles dois, que
se foda! Não entendo por que se importa.
Eu também não sei explicar, e não tento. Sinto-me presa aos nossos
pais, mas há alguma coisa por trás da parede cristalina que borra a minha
mente. Eu sinto que não posso deixá-los soltos. Zayn esteve equilibrando a
balança por anos, sem nunca os abandonar, e agora que ele se foi, alguém
precisa assumir a função.
— Eu me lembrei de mais uma coisa — conto, mudando de assunto,
e este é o motivo principal pelo qual eu decidi que era hora de agir. — Ao
que tudo indica, meu reencontro com Andrei acionou uma série de gatilhos
na minha mente, que não para de disparar lembranças como uma
metralhadora anti-amnésica fora de controle.
Enquanto eu chafurdava na minha lama de tristeza pela rejeição de
Andrei, comecei a me lembrar pouco a pouco de momentos preciosos do
passado que compartilhamos juntos. Pedacinhos, como sempre.
Em um deles, eu me vi ao lado de Andrei em uma espécie de abrigo
para pessoas carentes. Juntando essa memória com outra mais antiga, em
que eu estava à frente de uma sala ensinando música, consegui me lembrar
de ter trabalho lá por um breve período. Mantive essa lembrança comigo
por várias horas, saboreando a felicidade que eu sentia na época, com medo
de perdê-la novamente.
Também consegui outros fragmentos sem ordenação definida.
Lembrei-me de chorar na frente de uma linda mulher de aparência madura
enquanto recebia seu alento materno; depois, eu me vi passeando por
corredores onerosos de uma mansão, sua enormidade colocando-a no
patamar de um palacete; em outros momentos, eu estava cercada de
pessoas, feliz, sorrindo, sentindo-me parte de uma família.
Mas apenas na noite passada, antes de acordar suada, com tremores
e um quadro severo de pânico generalizado, eu recuperei uma das minhas
lembranças mais reveladoras até agora, e que me fez entrar em um estado
permanente de alerta, do qual eu talvez jamais consiga sair — ou jamais
deveria ter saído.
— Do que você se lembrou dessa vez? — Akira quer saber, a
preocupação com meu bem-estar audível em sua pergunta hesitante.
— Nosso primeiro encontro. — Desligo a água corrente e apoio
meus quadris no mármore da pia. Esqueço a queimadura no mesmo
instante, minha visão se desfoca, borrando o mundo real enquanto visualizo
a cena de meses e meses atrás. — Meu e de Andrei Volkiov.
— E como foi? — A voz do meu irmão se parece com um eco
perdido nas altitudes de uma montanha abandonada, distante e inalcançável.
Arrebatador e triste, e eu acho que me apaixonei por ele à primeira
vista. Não falo nada disso porque, número um, eu sei que Akira não está
interessado nessa parte, e número dois, não quero que meu irmão duvide
das minhas faculdades mentais.
— Você lembra que na mensagem de Zayn, ele mencionou que eu
havia fugido do meu marido? Eu acho… — Minha voz se quebra e eu
preciso inspirar e expirar algumas vezes antes de continuar. Quando o faço,
é rápido e direto, sem palavras embelezadas. — Acho que ele me bateu. Ou
batia. Meu marido. Não sei dizer com que frequência.
— Como é que é? — Akira praticamente grita, uma ira infernal
pairando nas bordas de seus olhos. — Yerik batia em você?
Meu irmão cospe o nome de seu velho amigo, o homem com quem
me casei, como se fosse um tipo de câncer.
— Andrei e eu nos conhecemos pessoalmente no aeroporto, ele foi
me buscar e eu me lembro de estar muito machucada. — Coloco minhas
mãos no pescoço, sentindo a memória fresca das marcas roxas e feias. — E
com medo, eu estava apavorada. Era difícil respirar, porque ardia, minha
garganta... Eu... Meus lábios estavam inchados, mas de uma ferida mais
antiga. Eu me lembro de… — Minhas palavras tremem, eu não me deixo
acovardar por isso e falo por cima da rouquidão. — De sentir nojo de mim,
do que ele, meu marido, havia tentado fazer. Mas, acima de todo esse show
de horrores, e não me peça para explicar como ou por que eu sei disso,
Andrei estava lá para me ajudar.
Ninguém diz nada por muito tempo. A revelação azeda pode ser
sentida nas narinas, o odor cítrico e podre da verdade. Meu irmão quebra o
silêncio, sua voz ainda naquele estado de raiva transbordante.
— Faz bastante sentido. E isso muda tudo. — Curiosa, eu observo
meu irmão pelo canto dos olhos. Surpreendentemente, sua atenção não está
focada em mim, mas em nada. Seus olhos estão presos naquele estado de
total dissociação. Ele repete, falando baixo: — Muda tudo.
— Por quê? — sussurro.
Akira fecha os punhos, seus olhos escorregando até os meus.
— Porque se Yerik agredia você, e Andrei Volkiov o matou com o
grau de violência que alguns jornais noticiaram, então eu tenho que
agradecê-lo profundamente por isso.
Grau de violência.
O termo me soa antagônico à Andrei, como se ambos fossem
compostos, respectivamente, de água e óleo. Às vezes eu me esqueço que
Andrei, o homem que detém uma parte considerável do meu coração — ao
que parece contra a sua vontade — é um assassino para todos os efeitos
gramaticais da palavra.
Eu sei que outra pessoa no meu lugar talvez achasse sensato ter
cautela perto dele, mas esse simples pensamento me deixa à beira de um
ataque de risos. Não tenho medo de Andrei, e mesmo sem as minhas
memórias, eu sei que nunca terei.
Andrei não é assim. Isso não é ele. Andrei é bom. Eu sei disso.
Eu simplesmente sei.

***

Digito uma mensagem rápida enquanto caminho sem prestar muita


atenção às ruas superlotadas da capital.
"Você é uma vadia".
Apago a última palavra.
"Você é uma…"
Vaca? Não, não, pesado demais. Uma idiota? Hum, pesado de
menos, até para mim. Talvez…
"Você é uma babaca".
Leio e releio a frase, parece bom por enquanto. Ainda preciso
melhorar as minhas habilidades de comunicação ofensiva, mas ninguém é
perfeito. Envio a mensagem para minha querida prima, que teve a audácia
de retornar à sua cidade sem dizer adeus, só para não responder às minhas
perguntas. Traidora. Mas tudo bem, não preciso mais dela.
Andrei é o único em quem preciso me concentrar no momento — o
que, falando a verdade, não demanda esforço algum. Basta que um segundo
de distração esvazie um pedacinho da minha mente para que ele se
esparrame no espaço como se fosse o dono de tudo.
Provando a minha tese, esbarro em uma pessoa enquanto estou
perdida em devaneios sobre Andrei e sua capacidade de monopolizar os
meus pensamentos. Isso tem que ser um tipo de cúmulo.
— Ah, me desculpe, a culpa foi toda minha — já vou logo dizendo
para a mulher.
Ela tropeça alguns passos, mas consegue se equilibrar, evitando uma
queda pública e humilhante. Ela olha para mim, os longos cabelos pretos
esvoaçando à brisa, o rosto contorcido em desgosto. Eu me preparo para
receber um xingamento merecido, mas ao colocar os olhos em mim, uma
emoção diferente, como surpresa ou assombro, distorce o desenho de seus
lábios finos, formando um círculo bem aberto. A mulher fecha a boca um
momento depois, seu maxilar redondo batendo com força.
— Tente prestar mais atenção por onde anda — ela chia, conferindo
seu blazer branco como se nosso esbarrão pudesse tê-lo manchado. Depois
de me atirar mais um olhar pungente, segue seu caminho em um ritmo
apressado de passos clicados.
Eu resmungo mais um pedido de desculpas, mesmo à distância, e
finjo não notar os olhares antipáticos dos outros transeuntes. A estranha
desaparece no meio da multidão e eu giro sobre meu eixo, vasculhando ao
redor para me localizar.
Logo à frente, não mais distante que cinco metros, a escadaria do
edifício me encara como uma grande boca dentada. Eu não havia percebido
que estava tão perto do meu destino e minhas sobrancelhas se erguem
sozinhas.
Dobro meu pescoço para ver a sua extensão, e o edifício-sede da
Corporação Volkiov na Rússia me faz lembrar do titã Atlas segurando o
peso dos céus pela eternidade. Olhando de baixo, é assim que parece: um
colosso moderno e espelhado que se perde de vista para amparar a
infinidade azul muito acima.
É aqui que Andrei trabalha.
Ele está lá dentro, em algum lugar.
Sinto um misto de ansiedade e esperança, e bem lá no fundo, um
pouco de receio também. Eu quero ser capaz de alcançá-lo, mas o que eu
farei se ele jamais esticar a sua mão de volta?
Subo os degraus como quem não quer nada, fingindo ser uma
cliente ocasional. Um segurança do tamanho de um guarda-roupas está
posicionado ao lado da entrada, e dispensa o mais breve dos olhares na
minha direção, sem suspeitas aparentes.
Depois de atravessar as portas de vidro, eu me vejo no centro de
uma recepção. Tudo é tão luxuoso quanto se pode esperar da empresa mais
lucrativa do país — um saguão em tons de preto, branco, cinza e dourado;
vidros polidos do teto ao chão e pisos com padrões geométricos que
refletem as pessoas como espelhos de mármore; lustres com centenas de
gotas iluminadas que pendem como chuva de ouro; colunas retorcidas e
obras de arte, de quadros a vasos maiores que o meu tamanho.
É chocante, para dizer o mínimo. Estou acostumada com
demonstrações exacerbantes de riqueza, mas parece que essa família vai
além, eles flertam com o poder em todos os detalhes. Sinto-me intimidada,
mas não o suficiente para desistir. Ainda.
Reúno toda a minha pouca coragem e me aproximo do balcão em
formato de meia-lua onde quatro atendentes uniformizadas estão sentadas
uma ao lado da outra, digitando em seus computadores de última geração.
Eu tento não demonstrar meu nervosismo e me debruço sobre a superfície
de vidro.
— Com licença?
A moça, que deve ter por volta de trinta e poucos anos, cabelos
curtos e olhos redondos, para o que está fazendo e me encara com um
grande sorriso profissional. Ela é boa nisso.
— Pois não? — canta docemente. — Em que posso ajudar?
— Eu gostaria de falar com o senhor Volkiov. — O sorriso dela
morre um pouco, seus olhos percorrem o meu corpo, medindo-me. Eu
acrescento: — Andrei Volkiov, no caso. Não os irmãos dele.
— A senhorita tem horário marcado? — O sorriso desaparece por
completo, assim como o açúcar em suas palavras.
— Hum, bem, não, eu não tenho, mas se você disser o meu nome
para ele, então com certeza ele vai…
— Sinto muito, precisa de horário marcado.
— Você não entende — insisto. — Meu nome é Anastasia Serova,
ele me conhece. Se puder comunicá-lo da minha presença…
Ela me corta outra vez.
— Desculpe. Você pode tentar marcar um horário, mas já adianto
que será um esforço inútil, ele não costuma atender suas admiradoras no
trabalho.
Admiradoras?
— Ele as recebe em outro lugar então? — Engasgo com a pergunta
que sai de mim. Uma pequena chama queima na base do meu estômago ao
pensar nele com outras mulheres. Suas… admiradoras. São tantas assim
para usarem o plural?
Eu não vi menções dele com alguém nos recortes de jornais do meu
irmão, no entanto, Akira pode simplesmente ter ignorado a vida íntima de
Andrei. Mas ele é lindo, tanto que beira ao ridículo já que todos os outros
homens perdem a graça perto dele. Além de ser, também, muito rico. É
natural que existam mulheres dispostas a satisfazê-lo, mas por que eu nunca
considerei a possibilidade de ele corresponder?
A chama começa a se espalhar para outras partes do meu corpo. Eu
não quero olhar para essa sensação e entender o que ela significa.
— É melhor você se retirar. Tentarei passar o recado de que esteve
aqui. Se ele realmente a conhece, saberá como entrar em contato. — Depois
de dizer isso, a secretária troca um olhar misterioso com a colega de
trabalho ao seu lado.
A segunda mulher bufa e rabisca o meu nome em um pedaço de
papel rasgado. Eu sinto meu rosto inteiro se aquecer de vergonha. As duas
não pretendem informar nada a ninguém. Esse deve ser um tipo de
protocolo da piedade padrão.
— Claro, eu… hum, obrigada. — Saio depressa, querendo derreter e
virar uma poça no chão para ser pisoteada.
Mesmo assim, ao invés de ir embora, eu caminho timidamente até a
área de espera e me sento em uma das poltronas individuais. Algumas
pessoas que estão por ali — clientes, sócios e funcionários, eu suponho —
olham para mim com curiosidade ou interesse, sendo o segundo caso mais
comum aos homens engravatados.
Akira estava parcialmente certo sobre a falha no meu plano: eu
sempre chamo atenção, estamos na Rússia e pessoas como eu... pessoas
como eu...?
Espera, de onde veio isso?
Alguém já me disse algo assim antes, e não de um jeito bom.
Agarro o estofado da poltrona e balanço a cabeça. Não é hora de
pensar nisso.
Ignoro a tudo e todos e espero. Digo a mim mesma para não desistir,
não importa que haja alguém na vida de Andrei ou o que essa constatação
causa dentro de mim. Isso não muda o meu direito à verdade. Toco La
Campanella nos braços do assento para manter minha mente distraída.
Depois passo para a Sonata em Ré Menor, de Wagne, e a dedilho três vezes.
Quando estou na metade da próxima música, a clássica Clair de Lune, sinto
um toque brusco no meu ombro.
Pulo de susto e uma onda de pânico dispara através do meu corpo.
Eu reconheço o sentimento. O rosto do meu desconhecido, embora muito
morto, ex-marido surge na minha mente em um flash hediondo. Uma
lembrança dele sobre mim, gritando, meu corpo pressionado contra um
colchão. Eu perco o compasso da minha respiração e tento fugir do toque,
escapar dele e da lembrança.
E então estou de volta ao presente, lutando contra as mãos firmes de
um homem.
— Precisamos que nos acompanhe. — Ele segura meu braço com
firmeza, mas estou tremendo demais para responder. Os resquícios da
lembrança perambulam sobre os meus membros como os cem pés de uma
centopeia, beliscando a minha pele por baixo da roupa.
Eu já imaginava o que Yerik fazia comigo, mas isso… eu consigo
sentir a memória viva dentro de mim, a sensação, o medo e a certeza
fatalista da inevitabilidade, de que eu acabaria morrendo. É a primeira vez
que experimento tamanho desespero.
Estou sendo levada pelo segurança através de um corredor e outro.
Meu estômago parece dobrar sobre si mesmo e apenas me deixo arrastar. O
homem corpulento é o mesmo que me olhou na entrada. Começo a ficar
muito consciente do seu tamanho em comparação a mim, sua mão é maior
do que a minha cabeça, e sua expressão está anos luz de qualquer simpatia.
Eu não me considero uma covarde, mas seja lá quem eu fui antes de
perder as minhas memórias, estava acostumada a sentir medo e ter sempre
um olhar por cima dos ombros.
Entramos em uma sala menor que eu especulo ser exclusiva à
equipe de segurança. Há uma cozinha decente à esquerda, sofás e poltronas
à direita, e uma mesa retangular no centro, com cinco cadeiras vazias. Outro
segurança aparece logo depois, fechando a porta. São dois deles agora.
Algum resíduo de bom senso me lembra de tentar escapar, mas
quando puxo o meu braço, ele não cede. O segurança não chega a me
machucar, mas seu aperto é de titânio, impossível de vencer na base da
força.
O que eu faço? O que eu faço? O que eu faço?
— Essa é a menina? — O cara novo pergunta. Ele é mais baixo,
mais largo e desprovido de cabelos, sua cara espelha a antipatia do
primeiro. Deve ser um lance de seguranças, afinal, é o trabalho deles
intimidar as pessoas para impor respeito.
Estar do outro lado dessa imposição, contudo, não é nada divertido.
— Sim, ela estava procurando pelo senhor Andrei Volkiov, de
acordo com as meninas da recepção. E ficou acampada no átrio por quase
uma hora, certamente esperando para abordá-lo.
Abro a boca para negar, mas ele está certo. Meu plano era
exatamente esse: esperar por Andrei e obrigá-lo a me ouvir.
— Não é a mesma da outra vez. — O careca carrancudo comenta,
franzindo as sobrancelhas.
— Legal, então agora são duas perseguidoras? — Meu captor
reclama. Ele olha para mim como se esperasse encontrar o rótulo escrito na
minha testa. — Qual o seu nome? — pergunta.
Mas estou concentrada demais em suas palavras anteriores para
responder. Se eu entendi direito, Andrei tem, ou teve em algum momento,
alguém do sexo feminino atrás dele — sem ser eu. E eles acham que nós
duas somos iguais. Agora entendo a reação das recepcionistas.
— Não sou uma stalker — digo, ofendida. Tenho muitas perguntas
passando pela minha cabeça, nenhuma relacionada ao meu objetivo inicial
quando decidi vir até aqui, mas faço a mais óbvia de todas: — Ele já foi
perseguido antes?
— Responda à nossa pergunta primeiro — o segurança número dois
exige com certa impaciência. — Seu nome.
Fico tentada a não cooperar, mas não sou uma rebelde por natureza e
acho difícil obter alguma ajuda sendo teimosa. A opção de sair correndo
também não está disponível de qualquer maneira, já que a mão enorme do
senhor Guarda-Roupas continua trancada ao redor do meu braço.
— Anastasia Serova — respondo, comportada. — Se vocês ao
menos comunicarem o meu nome ao chefe de vocês, ele vai esclarecer que
essa situação é um grande mal-entendido.
Ou talvez ele peça aos dois que me chutem na rua como a intrusa
que sou.
Os homens trocam um olhar.
— Espere um momento, eu vou averiguar.
Fico genuinamente surpresa quando ele pressiona a escuta em seu
ouvido e sai da sala, deixando-me a sós com o Guarda-Roupa. Conforme a
minha adrenalina diminui, percebo que eu estava projetando o pavor
causado pela lembrança de Yerik e acabei enxergando tudo por uma lente
negativa. Eles são seguranças, só estão fazendo o trabalho deles e em
nenhum momento deram a entender que me machucariam.
Se eu não tivesse reagido como uma pessoa suspeita quando meu
ombro foi tocado, é bem provável que todo esse constrangimento fosse
evitado.
Derrotada, eu aguardo sem dizer nada que possa piorar a minha
situação. Alguns minutos depois, o sujeito retorna, trazendo consigo o seu
chefe. O problema é que ele tem quatro chefes, e quem o acompanha não é
Andrei, mas seu irmão, Ivan Volkiov.
Pessoalmente, seu porte físico é surpreendente. Mesmo ao lado de
dois seguranças altos e em ótima forma, Ivan se sobressai, a energia de sua
imponência pode ser sentida no ar, como uma massa densa e morna. Seus
olhos são parecidos com os de seu irmão mais novo, castanhos, mas não
totalmente, é uma coloração única, meio dourada, meio cinzenta, como a
cor do céu se despedindo do Sol no horizonte.
Sinto vontade de correr até ele como uma pirralha mimada —
bizarro. Eu preciso que minhas memórias voltem logo para que meus
sentimentos façam algum sentido.
— Você quer morrer? — ele pergunta com um timbre fatal que me
acorda para a realidade. Se Andrei não gosta de mim, é de se esperar que
seus irmãos compartilhem da mesma opinião.
— Eu… eu não…
— Não estou falando com você — ele me interrompe, seco e
irritado. O segurança ao meu lado fica tenso. Ivan crava seus olhos nele
como se estivesse tentando cortá-lo ao meio com a força da mente. — Se
não quer morrer — diz entredentes — tire as mãos dela agora mesmo,
porra!
O homem, subitamente pálido, obedece e se coloca a uma boa
distância de mim.
— Senhor… — ele começa a dizer, gaguejando, mas basta outro
olhar de Ivan e ele se cala com a cabeça baixa.
Ivan fuzila o sujeito por tanto tempo que eu sinto pena. Ele parece
em conflito com seus próprios pensamentos, decidindo o que fazer, ou
tentando se autocontrolar. No fim, recorre a uma única palavra, que é dita
com o potencial catastrófico de uma bomba nuclear.
— Desapareçam.
Os dois seguranças se curvam para mim primeiro, um pedido de
desculpas mudo, depois cumprimentam seu superior e saem às pressas da
sala.
Eu fico boquiaberta, não saberia o que dizer nem se eu tentasse.
Ivan sorri, sua expressão se transformando da água para o vinho em
um piscar de olhos, a atmosfera mortal completamente suplantada por uma
curiosidade acolhedora. Ele se aproxima de mim, segura meu cotovelo e
move meu braço para cima e para baixo.
— Isso dói? Ele a machucou? Algum deles tentou fazer alguma
coisa com você?
— Não — respondo, mas minha voz sai fraca e Ivan cerra os olhos,
pouco convencido. Eu me dou três tapas mentais e elaboro com mais
convicção: — Não fizeram nada além do que são pagos para fazer.
Ele finge pensar, olhando para cima.
— Estranho, não me lembro de uma cláusula dizendo que poderiam
tocar em você quando contratamos os serviços deles para cuidar da nossa
matriz, terei que rever o contrato mais tarde. — Suas pupilas caem sobre
mim, a diversão nelas contrasta com a perplexidade que suponho estar
presente nas minhas enquanto o encaro. — Estou brincando.
Claro, brincadeira… não parece.
— Eles não terão problemas por minha causa, né?
Ivan inclina o pescoço, jogando os ombros de modo casual.
— Digamos que os dois tiveram sorte que eu estava por perto e
respondi ao chamado antes dos meus irmãos. Se fosse Roman, ele teria
agido primeiro e perguntado depois.
Prefiro não me aprofundar sobre a que tipo de ação ele está se
referindo. Timidamente, estico a minha mão.
— Eu sou…
— Eu sei quem você é, querida. — Ivan não me deixa no vácuo,
mas além de apertar a minha mão, ele se inclina e me cumprimenta com um
beijo na bochecha. Tenho a impressão de que ele gostaria de fazer mais,
como me abraçar ou dizer alguma coisa profunda, mas recua e mantém a
postura. — Andrei nos contou sobre o seu encontro com ele no leilão. Bom,
na verdade, ele contou para a minha esposa, que contou para a Serena, que
fez o resto do trabalho.
Não é só isso, Ivan me conhece de antes. Como os funcionários da
empresa não me reconheceram, significa que Andrei nunca me trouxe aqui,
mas sua família e eu não somos estranhos. E eu gosto deles.
Cruzo os meus braços.
— E então? Vai me dizer para ficar longe também? Que a melhor
coisa que me aconteceu, foi perder a memória e esquecer seu irmão?
Suas sobrancelhas sobem, formando dois arcos, mas a expressão de
surpresa não se prolonga. À medida que Ivan processa a origem das minhas
perguntas, uma carranca descontente toma conta de seu rosto.
— Andrei disse isso?
Instantaneamente, arrependo-me por falar demais. Não quero ser a
causadora de uma briga entre irmãos.
— Mais ou menos — murmuro. — Eu posso ter entendido errado.
— Entrelaço minhas mãos, torcendo os dedos. — É complicado, eu acho
que ele me odeia, mas eu sinto… — Mordo a minha língua. — Só quero
saber a verdade sobre nós dois e o que realmente aconteceu há um ano.
— Mesmo se a verdade não for o que você imagina? Mesmo se ela
for horrível e estragar a sua vida para sempre? — Suas sobrancelhas caem
com pena. — Há um consenso na minha família de que Andrei tem o
melhor coração, ele é sensível e atencioso, uma pessoa melhor do que eu e
meus outros irmãos jamais seremos. Só que meu irmão não consegue mais
se enxergar dessa forma. Os últimos meses foram difíceis e tudo o que ele
se forçou a superar tão rápido... — Ivan balança a cabeça. — Ele só quer
proteger todo mundo, inclusive você.
— E quem o protege? — pergunto, tomada por um instinto de
proteção que não sei explicar. Ivan faz uma expressão de surpresa, como se
não esperasse essa reação vinda de mim. — Pode me achar boba. Sei que
pareço uma pobre mulher tonta sem memórias que não sabe se cuidar
sozinha e fica enfiando o nariz onde não foi chamada, mas eu estou certa da
minha vontade, e não pretendo seguir as ordens do seu irmão mesmo que
isso o irrite.
Imediatamente, fecho a minha boca, mas não retiro uma única
palavra do que acabo de dizer, por mais vergonhoso que seja. Eu o encaro,
Ivan fica me olhando enquanto os segundos passam. No fim, ele sorri, e
acho que acabo de vencer uma batalha que eu nem sabia estar lutando.
— O que eu vou fazer com você, hein? — ele diz. Logo depois, abre
a porta, indicando o corredor além. — Venha comigo.
36
Andrei
EU AMO MEUS irmãos. Eu amo meus irmãos. Eu realmente amo meus
irmãos. Preciso me lembrar disso enquanto as portas do elevador se abrem
no último andar do edifício e uma cena digna de filme se revela aos meus
olhos.
A sala se estende adiante, retangular e muito comprida, com móveis
em tons escuros e decoração que mescla o clássico com o contemporâneo.
Janelas panorâmicas ocupam toda a extensão da parede norte, mas pesadas
cortinas azul-escuras obstruem parte da vista privilegiada da cidade.
Sentado em uma majestosa cadeira presidencial atrás de uma mesa
igualmente chamativa, há um homem, meu irmão mais velho, o presidente
da empresa cujo rabo eu já livrei de problemas mais de uma vez. E ele não
está sozinho. Ivan, alguém que definitivamente está bem longe de ser uma
referência de bom comportamento, se encontra apoiado na mesa.
Era de se esperar que tivessem alguma consideração por mim, seu
irmão mais novo, aquele que sempre os defende das consequências de suas
péssimas personalidades. Mas não. Os dois hipócritas ingratos — que,
lembrando, eu sou obrigado a amar — não estão sozinhos.
A terceira pessoa, no entanto, não deveria estar aqui, na nossa
empresa, sentada com as pernas cruzadas, uma calça justa agarrada às
coxas, com um sorriso tímido em seus lábios macios enquanto olha
fixamente para mim.
Apesar da raiva e da surpresa, eu perco o fôlego diante da beleza
dela. Seus cabelos pesados e escuros ondulam nas laterais do rosto, e o
cordão de ouro em seu pescoço faz cócegas no meu orgulho, como se o
objeto a marcasse secretamente como minha.
— Você veio rápido. — A voz de Vladimir se propaga ao longo do
ambiente. Eu me lembro que preciso agir como alguém normal e dou passos
meticulosos à frente. Ele confere o relógio em seu pulso e zomba em
seguida: — Três minutos e quarenta e cinco segundos.
Assim que recebi a mensagem de Ivan dizendo que Anastasia havia
sido abordada pelos nossos seguranças e que ela estava agora na sala da
presidência, abandonei o trabalho acumulado em meu escritório e corri
cegamente ao seu encontro.
Patético, Andrei, você é uma piada.
Ignoro meu irmão mais velho, pois há um procedimento na minha
cabeça que preciso seguir, e ele inclui não demonstrar as minhas emoções.
Mas assim que abro a minha boca, noto uma coisa que suga a minha
atenção tal qual o vácuo no espaço, tornando meu cérebro incapaz de
processar todo o resto.
— Está ferida.
Anastasia franze as sobrancelhas. Vladimir e Ivan ficam sérios. Em
sincronia, os dois pares de olhos — gelo glacial e sol da tarde — se
desviam, perscrutando a única presença feminina na sala, como feras
protetoras e territoriais diante do perigo.
— Hum?
— Você está ferida — repito pausadamente. — Como isso
aconteceu?
— Não estou, não.
Aponto para as mãos pequenas cruzadas sobre seu colo.
— Há uma queimadura nos seus dedos, Anastasia — digo, paciente
por fora, mas em frenesi por dentro. — Você fez isso sozinha, ou existe um
culpado?
Ela olha para baixo, compreensão e uma leve surpresa iluminando
seus traços encantadores.
— E-eu me queimei de manhã, com o chá. Foi um acidente. — Seus
olhos amendoados sobem. Anastasia me observa por um momento. —
Como você reparou? A marca é tão pequena que eu nem me lembrava
disso.
Meus irmãos trocam um olhar e me encaram, a zombaria em seus
rostos faz todo aquele amor fraternal dentro de mim ser colocado em
cheque. Sinto-me em um frigorífico, um coelho com as entranhas expostas,
meu sangue congelado nas veias. É tanto uma dádiva quanto uma maldição
ter irmãos que me conhecem tão bem.
Eles sabem que não tenho como explicar que teria notado a falta de
um fio de cabelo em sua cabeça há quilômetros de distância, não sem
parecer esquisito.
E suspeito.
Felizmente, sou salvo da resposta quando as portas do elevador
voltam a se abrir — eu sequer notei que haviam se fechado atrás de mim.
— Ora, ora — Roman debocha em seu habitual caminhar
desleixado, usando um blazer off white de linho e viscose por cima de uma
camiseta amassada, com um sorriso diabólico se insinuado nos caninos. —
Estão fazendo uma reuniãozinha familiar e nem me chamaram? Pensei que
irritar vocês fosse trabalho meu. Andrei, como se sente sabendo que esses
dois estavam aqui, sozinhos, trocando figurinhas com a sua mulher? — Ele
aponta para Vladimir e Ivan de modo acusatório. — Traição! Traição da
pior espécie. O que as minhas queridas cunhadas vão pensar quando
ficarem sabendo disso? Não tem outro jeito, eu farei o grande sacrifício de
consolar todas elas. Inclusive você, docinho.
Retiro o que eu disse: teria sido melhor responder à pergunta de
Anastasia a ter Roman conosco, causando discórdia.
— Um dia — Ivan diz, sorrindo de um jeito assustador — você terá
uma mulher, Roman.
Vladimir também sorri — o que é ainda pior de se ver, como se ele
tivesse cortado o rosto com uma faca — e completa:
— E todas as suas provocações e piadinhas voltarão para assombrar
você, só que dez vezes piores. Eu garanto.
— Meu ego não é frágil assim, presidente. — Roman se joga na
poltrona ao lado da que Anastasia está sentada e pisca o olho direito para
ela, que não retribui o flerte de forma alguma. Ela está presa em um fio de
pensamento inalcançável, naquele estado de introspecção que sempre me
deixa fascinado. — E não sou fácil de perturbar com esse tipo de coisa, já
que nunca me apego. Sua esperança cósmica de vingança através do carma
nunca vai acontecer.
Deve ser uma piada, e eu sou obrigado a dar risada de sua
hipocrisia.
Somos ciumentos descarados, está no nosso sangue, como nossa
mãe costuma dizer, mas Roman… vai além. Ele tem seu próprio modo de
administrar as suas relações, e não somente as de teor romântico. Roman vê
a todos que ama como seus preciosos pertences. Ele ama nossa família.
Nós, como seus irmãos, somos dele, assim como nossa mãe, seus sobrinhos
e, obviamente, as cunhadas — suas favoritas. O que é dele, é dele. Ou seja,
quando Roman tiver uma mulher, é bom que o mundo se curve quando ela
passar para que sejam evitadas quaisquer catástrofes de teor apocalíptico.
Vendo dessa forma, pelo bem das futuras gerações, talvez seja
melhor que ele continue solteiro para sempre.
— Eu sou sua mulher? — Anastasia sai de seu transe, piscando. Eu
devia saber que era nisso o que estava pensando.
Roman tem o raro bom senso de fechar a boca, o sorriso
desbotando. Vladimir mantém a postura estoica e irritante, atento à minha
resposta. Ivan não tira os olhos de Anastasia, como se estivesse com medo
de ela desaparecer, o que é compreensível dado o seu histórico de perdas.
Coloco os braços para trás, a fim de que ninguém perceba minhas
mãos com luvas grossas fechadas em punhos, e me aproximo de Anastasia.
— Eu me lembro de ter mandado você embora — digo.
Um dos meus irmãos solta um ruído que lembra muito um rosnado,
Roman, provavelmente. O que eles são? Cães de guarda?
— Mas eu fui embora. Do leilão. — Anastasia inclina a cabeça,
piscando os olhinhos com uma inocência petulante e fingida. — Ah, você
estava querendo dizer, ir embora da sua vida? Desculpe, era melhor ter sido
mais claro.
Tensiono a mandíbula, impedindo que minha face demonstre o
quanto eu gosto de vê-la me enfrentando com a cabeça erguida. Apelo para
os meus irmãos, tirando meus olhos do nariz arrebitado e dos cílios
pequenos e das maçãs do rosto que devem ter gosto de açúcar.
— O que ela está fazendo aqui?
— Eu a trouxe. — Ivan responde, simplesmente, como se estivesse
falando que trouxe um souvenir da feira. E como é típico dele, também não
se dá ao trabalho de acrescentar contexto à informação.
— As circunstâncias mudaram — Vladimir argumenta, confortável.
Ele ajeita o nó frouxo de sua gravata vermelha, o único ponto de cor no
conjunto de paletó, colete e terno pretos. — Ignorar a situação e deixar que
a sorte defina o curso da verdade não coloca apenas você em risco, mas
toda a nossa família e a empresa. E, é claro, coloca Anastasia em risco.
Arrisco um olhar para ela, que está concentrada na tarefa de se
fundir com a poltrona. Encolhida e com o rosto um tom mais pálido,
pergunto-me o que — e quanto — ela sabe. Eu me enganei com a esperança
de que fosse desistir depois do meu aviso.
De toda forma, mantenho-me resoluto na frente dos meus irmãos.
— Tenho tudo sob controle.
— Estamos vendo — Roman ironiza. — Não voltou para casa
depois do leilão e está se escondendo de novo naquele seu apartamento
mal-assombrado.
Anastasia se estica, interessada, as orelhas parecendo se alongar
como as de um gato. Eu xingo Roman internamente, mantendo a fachada
régia. Não é hora e nem lugar para falarmos sobre os meus pesadelos, e não
na frente de Anastasia.
— Eu sei que não sou a pessoa certa para dizer isso — Ivan se
intromete —, nunca fui bom em enxergar um palmo na frente dos olhos,
mas sou um hipócrita e direi mesmo assim. — Ele bagunça a coroa de fios
castanho-claros em sua cabeça. — Você tentou, Andrei, todos nós tentamos.
E deu certo. Você precisava se curar e Anastasia também. Não era assim
que você tinha em mente, eu sei, mas ia acontecer uma hora ou outra.

***

— É verdade? — Ivan aparece abruptamente, batendo as botas


encharcadas no chão do hospital. — Vão concordar com essa loucura? —
Está falando com nossos irmãos, Vladimir e Roman. Nenhum deles
responde. — Não fode, porra!
Não desvio os olhos da janela. Um pedaço do céu está caindo do
lado de fora, uma chuva pesada e triste. Meu reflexo no vidro é apenas um
fantasma distante do homem que já fui um dia; meu rosto, maculado pela
perda e congelado no tempo em uma fotografia de eterna tristeza. Eu ouço
os protestos dos meus irmãos, mas não parecem reais, nada ao meu redor
me passa veracidade, como se eu estivesse preso dentro de um ato trágico
de Shakespeare.
— Sim, é verdade — respondo, e acho que deveria sentir alguma
coisa ao dizer isso, mas não há nada além da dor e do vermelho, as duas
únicas coisas que me mantém respirando e às quais estou agarrado como
minhas âncoras. — Anastasia partirá com os pais para Berlim. Ela nunca
vai saber.
— Não — Ivan protesta, inquieto, a voz rouca e trêmula, em
negação; um dos estágios do luto, dizem. — Isso é loucura! Ela vai se
lembrar, Andrei, vai recuperar as memórias, não podemos abandoná-la.
Ela é sua mulher, ela é família.
— Não estou abandonando ela. — Minha voz é qualquer coisa
quebrada, um rádio que não sintoniza em estação alguma, mas que ainda
funciona à base de chiados. — Estou libertando Anastasia, protegendo-a.
As memórias jamais voltarão, Ivan. Ela não se lembra e nunca vai se
lembrar. E eu não posso — engasgo —, não posso contar sobre a nossa
filha. — Sinto a umidade tomando conta da minha face. Soluços irrompem
entre as minhas tentativas de falar. — Tudo o que ela passou, o que perdeu,
o que foi feito a ela… Como eu poderia? Como? Me diga… apenas me diga
como fazê-la passar por mais isso e sair sem nenhum arranhão?
Jogo a cabeça para trás e cubro meus olhos com o antebraço. Não
quero vê-los. Pela primeira vez em muito tempo, não quero meus irmãos
perto de mim. Não suporto seus olhares de pena, não quero lidar com eles e
seus sentimentos, não tenho forças.
— Os pais dela disseram isso? — Vladimir pergunta. Sinto-me
grato por sua praticidade.
— Sim. — Minhas lágrimas morrem silenciosamente no travesseiro.
Eu mal consigo me lembrar da conversa que tive com eles sem ser tomado
pela raiva. — O caso dela é irreversível. Ela não sabe sobre a nossa… —
Dói falar, dói me lembrar dela, dói demais. Quisera eu o alívio de uma
amnésia. — Nossa filha. Eles convenceram os médicos a manter o aborto
em segredo até agora.
Aborto.
Eu odeio essa palavra.
Não preciso dizer aos meus irmãos como Leonid e Yekaterina
conseguiram a solidariedade criminosa do hospital: dinheiro. Não somos
diferentes dos pais de Anastasia, já que também estamos pagando caro
para abafar partes do nosso sequestro a fim de protegê-la do assédio da
mídia.
Pessoas como nós compram almas como o diabo. Talvez por isso
estejamos todos sujeitos ao mesmo fogo que queima no inferno. É o nosso
carma.
— Andrei… — Ivan tenta, de novo, porque ele me ama, mas não
quero o seu amor, não quero nada. Se eu pudesse simplesmente
desaparecer, rápido como o estouro de um balão, faria sem hesitar.
Já que não posso, eu explodo de outra maneira, pior e mais cruel,
uma que combina comigo no momento.
— É a segunda vez! — grito, encarando os três em meio ao borrão
de lágrimas. Ivan tem um contorno vermelho ao redor das pupilas, e
Vladimir, que raramente demonstra cansaço, já acostumado com noites
insones de muito trabalho, parece acabado, com olheiras profundas e uma
nova ruga entre as sobrancelhas. Roman é apenas Roman, em seu estado
permanente de ferocidade reprimida. — É a segunda vez que perco um
filho! Eu sei como funciona, eu sei que a dor nunca, nunca, nunca vai
passar e eu sei o que vem depois.
— Andrei, do que está falando? Quando? — Vladimir começa a se
aproximar, mas eu o paro, erguendo a mão. Não adianta, nenhum conforto
pode me livrar dos meus fardos, palavras bastam menos ainda. Não há
nada que eles possam fazer além de… entender. Por que eles não
entendem?
Eu só preciso que eles entendam!
— Quando… se Anastasia souber… — Chacoalho a minha cabeça.
— Ela nem sabe quem eu sou. Ela vai me odiar como Evgenia odiou, eu
terei que assistir enquanto ela se destrói em um poço infinito de rancor e
amargura e tristeza. Já vi acontecer antes. E sabe a pior parte? Eu
aceitarei tudo mais uma vez. Evgenia estava certa... eu sou uma fraude.
Então eu conto tudo aos meus irmãos, vomitando o segredo que
mantive a sete chaves por anos: a perda do meu primeiro bebê com
Evgenia, o arrependimento que se tornou um pedaço do meu corpo, mais
pesado que meus braços e pernas, e conto que foi a partir daquele
momento que eu decidi viver por ela e a deixei consumir todos os meus
fôlegos de vida.
E eu choro o tempo todo. Lágrimas que para mim parecem gotas de
sangue, gordas e vermelhas. A exaustão se contorce no meu estômago,
ansiosa para ser digerida, absorvida pela minha corrente sanguínea e
bombeada através do meu coração em busca de um fim.
Meus irmãos ficam em silêncio por muito tempo. Quando Roman
fala, maculando a quietude melancólica, sua voz rouca e baixa transmite
uma atípica conotação de seriedade.
— Por que nunca nos contou?
Dou uma risada amarga.
— Eu não sei mais — respondo, as palavras saem arranhadas e sem
força. Olho para a minha mão enfaixada, meus dedos cheios de
hematomas, a outra mão escondida sob o gesso. — No começo, porque
Evgenia me pediu, e o sofrimento dela como mãe e mulher era
reconhecidamente superior ao meu. Era o momento dela de desmoronar e
eu precisava ser forte por nós dois. Ela não queria que ninguém soubesse,
disse que se sentiria humilhada, e eu decidi respeitar a sua vontade. Era o
mínimo, já que eu não estava lá quando ela precisou do meu apoio.
— Isso explica muita coisa — Vladimir reflete em voz alta, seus
olhos em um tom mais escuro de azul-índigo, quase roxos. — Seu
afastamento, os pesadelos, a bebida…
Meneio a cabeça em sinal positivo.
— Com o passar do tempo, ela foi mudando, ou se revelando, eu
não sei. Evgenia começou a me culpar pela perda do bebê sempre que a
gente brigava. Ela dizia que eu… — Sufoco com a lembrança. — Que eu o
havia matado. Não sei dizer em que momento eu comecei a sentir vergonha
e medo de contar a vocês, mas era assim que eu me sentia sempre que
pensava no assunto. Eu temia que Evgenia estivesse certa.
— Não diga bobagens, Andrei. — Ivan se aproxima da minha cama.
Seu casaco amarrotado está salpicado com gotas de chuva, ele deve ter
corrido uma parte do caminho, sem paciência para esperar que o motorista
encontrasse uma vaga no estacionamento. Segura meus ombros, sinto suas
mãos firmes tremerem de leve, os dedos flexionando. — Conhecemos você e
sabemos que trocaria a sua vida pela de seus filhos se isso fosse trazê-los
de volta.
Agarro os pulsos de Ivan. Meu corpo inteiro vacila, sacudindo-se
em espasmos. Minha cabeça pende de encontro ao seu peito.
— Eu fui atrás de Anastasia — confesso, chorando —, estava
irritado por causa de tudo o que Evgenia me disse, e queria ver a minha
mulher sem me importar com as consequências. E eu a vi… Falei com
Anastasia e ela estava… Ah, Deus, ela estava tão linda e feliz e leve, vocês
teriam gostado de vê-la tocando seu violino invisível no meio do corredor, e
provavelmente entenderiam, assim como eu entendi naquele momento, que
não posso destrui-la. Eu a amo demais para isso. Mesmo que o preço pela
felicidade dela seja ficar longe de mim. É o único jeito.
— Você tem certeza, Andrei? — Ivan me abraça cuidadosamente,
como se eu fosse algo delicado prestes a desvanecer no tempo. — De que
quer deixá-la ir? De que consegue fazer isso e, ainda assim, sobreviver à
ausência de Anastasia pelo tempo que for preciso?
Apenas a flexão tênue entre viver e sobreviver impede minha
resposta de ser uma mentira.
— Sim.

***
As expressões tensas nos rostos de Ivan, Vladimir e Roman me dão
uma pista de que não sou o único revivendo a memória.
Quero ser racional, de verdade, mas a presença de Anastasia torna as
coisas muito difíceis na batalha entre o meu cérebro e o coração. Eu tive
que me trancar em nosso apartamento por noites seguidas desde que a vi no
leilão, intoxicando-me com as lembranças dos momentos que vivemos
juntos, de nós dois em cada cômodo, de possuir seu corpo em todos os
lugares possíveis, para me impedir de procurar por ela e continuar de onde
paramos há um ano.
E para quê?
Para meus irmãos a trazerem direto até a nossa toca de lobos.
— Muito bem — digo, meu corpo gira sozinho e me aproximo do
meu adorável imã particular, de ombros estreitos e olhos irresistíveis —, o
que você sabe?
Suas sobrancelhas traçam dois arcos no alto da testa. Anastasia fica
de pé abruptamente, mas com uma fluidez natural. Uma fragrância de
primavera flutua até as minhas narinas, floral e doce, suave, como rosas
desabrochadas ou jasmim. Inspiro todo o ar que consigo, saciando-me do
seu cheiro.
Se eu pudesse apenas me afundar em seu pescoço e consumir tudo
de uma vez…
— Por que eu deveria dizer se você não me diz nada? — ela me
afronta.
— Não sabia que era uma negociação — Meu olhar recai na veia
pulsante que desce rumo à sua clavícula, escondida por baixo do tecido
preto e inconveniente de sua blusa. Deleito-me com os pingentes dourados,
que repousam sobre os montes destacados de seus seios, e subo lentamente
até os lábios.
Anastasia os comprime em linhas apertadas, sua respiração
irregular.
— Eu não ousaria — diz com docilidade irônica. — Afinal, ao
contrário do que dizem os rumores, você não joga limpo. — Ela deve estar
falando do nosso último acordo, quando eu confirmei sua pergunta sobre
termos nos conhecido no passado, mas sem entrar em detalhes.
— É o que eu sempre digo — Roman escarnece, marchando para o
lado de Anastasia e colocando um braço ao redor de seus ombros, como um
polvo escorregadio e cheio de tentáculos. — Os bonzinhos são sempre os
piores!
Ela sorri e, timidamente, escapa das garras de Roman, que coloca a
mão sobre o peito, encenando um golpe no coração. Eu poderia beijá-la
agora mesmo por isso.
— E o que pretende fazer com as informações que está buscando,
senhorita Serova? — Vladimir assume a liderança. Há um discreto ar de
diversão em seus olhos quando se concentram em uma Anastasia bastante
deslocada.
— Espera, vocês estão com medo que eu — ela torce o nariz —,
surte? Ou talvez, que faça um escândalo? Eu não me envolvo com jornais
de fofoca. Ah! Acham que eu vou chamar a polícia?
— É um jeito de colocar as coisas. — Vladimir quase sorri.
— Não se preocupem, se eu acabar em uma polêmica, meus pais
vão me trancar em uma torre tão alta que nem a Rapunzel em pessoa
conseguiria escapar. Eu nunca mais veria a luz do dia e vocês não teriam
que se preocupar comigo perambulando pela empresa ou perseguindo
Andrei. — Anastasia me dá um olhar de esguelha. Tenho a impressão de
que ela quer dizer mais a respeito dessa observação, ou que estou alheio ao
significado oculto do que está insinuando. — Eu acho que, dependendo do
ponto de vista, podem até achar um bom negócio. Mas eu gosto de vocês e
não quero prejudicar ninguém.
Ela está tagarelando por causa do nervosismo.
— Repita a última parte, docinho. — Roman abre um sorriso cheio
de dentes. — Não é todo dia que isso acontece, não somos gostáveis.
Somos, eu diria, o oposto disso, algo como insuportáveis ou detestáveis,
Vladimir especialmente. — Ele abaixa o tom de voz, mas nós conseguimos
ouvir muito bem quando acrescenta: — Serena diz que o ama, mas cá entre
nós, ela não bate muito bem da cabeça.
Anastasia sorri com uma diversão respeitosa, não querendo ser
conivente com a insolência de Roman, mas não conseguindo resistir ao seu
humor espaçoso. Antigamente, ela mal conseguia estar no mesmo ambiente
que nós quatro sem se tremer inteira.
Sinto um aperto familiar no peito, fundo o suficiente para ninguém
perceber.
— Eu não concordo. — Ela coloca um longo cacho atrás da orelha.
— Não os conheço — diz, e não deixo de notar que, ao invés disso, ela
poderia ter dito que não se lembra de nós —, mas Ivan me trouxe até aqui
mesmo sabendo que causaria um grande alvoroço; Roman está fazendo
piadas e irritando vocês para que eu me sinta confortável; e Vladimir parece
o mais disposto a ouvir o meu lado e garantir que ninguém saia prejudicado.
— Anastasia me olha e comprime a boca, sem nada a acrescentar sobre
mim.
Eu sorriria, pois sei que ela está magoada comigo e esse é seu jeito
de se manter por cima, mas acabo me sentindo… enciumado.
— E seu irmão? Akira Serov pensa como você? — Vladimir
questiona, e fico perplexo com sua dissimulação. Às vezes é difícil dizer
qual de nós dois é o melhor mentiroso. — Não foi graças às investigações
dele que você conseguiu chegar até nós?
— Akira só quer descobrir quem assassinou nosso irmão. A menos
que tenha sido um de vocês, é improvável que ele cause problemas. — Ela
faz uma pausa, os olhos crescendo. — Não que eu ache que… — gagueja,
evitando me encarar. — Eu não acredito que fariam algo assim.
Minhas unhas afundam nas palmas com tanta força que sinto a
descarga das pontas afiadas através das luvas. Não sou ingênuo, eu matei
uma pessoa, independente das circunstâncias, todo mundo sabe. Mas nunca
pensei que esse momento chegaria, em que eu me sentiria feio e
envergonhado por uma escolha da qual não me arrependo.
Eu sei o que tenho que fazer, mas a consciência não é nem um
pouco encorajadora. Se o tormento de Anastasia reside em sua falta de
memórias, pode-se dizer que o meu está em seu oposto equivalente:
lembrar-me de tudo com uma perturbadora riqueza de detalhes.
Sinto o olhar condescendente de Ivan, porém, não busco abrigo em
seu apoio silencioso. Chego perto de Anastasia, que não se afasta. Ela
sempre foi boa em esconder seus sentimentos, impedir-me de interpretar a
maioria das suas expressões, usando um véu sobre si mesma a fim de se
defender do mundo.
O véu não existe mais.
Ela mostra tudo: carinho, esperança, amor e até um desejo por algo
intenso que eu me nego a reconhecer. Anastasia quer a verdade porque não
sabe como lidar com os sentimentos remanescentes de uma vida da qual
não se lembra. Ela acha que a verdade vai libertá-la, mas está enganada.
A verdade é uma prisão agridoce.
Minha prisão.
— Vocês têm razão — eu declaro, sentindo-me derrotado e até meio
inútil, como uma vela embaixo d'água —, lutar contra o inevitável não vai
nos trazer nada além de ressentimentos e uma sensação incorreta de
fracasso.
Anastasia ergue a mão direita e, por um breve momento, eu acho
que vai esticar o braço até mim, vejo-me inclinando, esperançoso e
descuidado, mas ela o recolhe e fecha os dedos sobre o peito.
Espero que minha decepção não esteja escancarada em meu
semblante.
— Isso quer dizer — ela articula, hesitante — que aceita falar
comigo?
— Você não precisa, e não vai, continuar se humilhando por
respostas. Desculpe por resistir tanto, mas eu precisava tentar. — Faço o
mesmo movimento que ela com a mão, mas não recuo, alcanço seu rosto,
um leve roçar que mal pode ser considerado um toque. Ela estremece. —
Antes de começarmos, eu quero que você saiba que… — Fecho os olhos,
manchas vermelhas pontilham a escuridão por trás das minhas pálpebras. —
Eu só queria que você tivesse uma chance de ser feliz, e sabia que não
conseguiria ao meu lado, não da forma como eu estava. Era o único jeito.

***

Eu e Anastasia nos sentamos nas poltronas individuais diante da


mesa de Vladimir, que continua acomodado em seu trono de couro
presidencial. Ivan se muda para um dos sofás duplos, à direita de Anastasia,
e Roman, que tem dificuldades para se manter quieto por um minuto
inteiro, prefere ficar de pé, apoiado na mesa, do lado esquerdo.
Então eu começo — e talvez o tempo cure mesmo algumas feridas,
ou quanto mais nos expomos a elas, mais tolerantes nos tornamos, pois ao
contrário do que eu imaginava, não dói tanto.
Conto o resumo dos fatos quase todo sozinho, começando pela
abordagem de Lara e nossas suspeitas sobre o que Anastasia sofria, até os
meus primeiros contatos com ela por telefone. Anastasia não esboça
surpresa conforme a história avança. Ela meneia a cabeça vez ou outra,
como se encaixando peças em sua mente que fazem sentido, mas seus olhos
não negam a tristeza que vai roubando seu brilho lentamente.
Meus irmãos fazem comentários pontuais sobre partes relevantes ou
quando minha voz começa a embargar; exceto por Roman, que assume a
responsabilidade de acrescentar uma boa quantidade de observações
sarcásticas que contribuem muito pouco à história.
Faço uma lista com os tópicos que ela precisa saber, mas sem me
aprofundar demais nos detalhes desconfortáveis, deixando-os
subentendidos: a fuga dela de São Petersburgo para Moscou e como
acabamos morando juntos em um dos imóveis mais antigos da minha
família; seu trabalho excepcional no abrigo como professora de música; o
surgimento de Zayn por causa das artimanhas de Yerik para pressioná-la
com o divórcio; e minha união com o irmão dela a fim de acabarmos com
seu ex-marido — obviamente, não menciono como fizemos isso.
— Eu me apaixonei por você — declaro com a cabeça baixa, meus
cotovelos apoiados nos joelhos. Não ouso olhar como ela reage à minha
confissão. — Sei que deve ser estranho ouvir isso de um desconhecido, mas
é a verdade, Anastasia. No começo, eu nem sabia quem você era, mas já a
amava desde então. Aqueles foram os melhores dias da minha vida e eu
gostaria que tivessem durado para sempre.
Minha voz vacila na última parte, tremendo, e preciso de um
segundo para me recompor. Não consigo mencionar a gravidez assim. Eu
não… posso. Não ainda. Primeiro, porque é muito para se lidar de uma vez,
e segundo, porque ainda não acabou — e sua reação pode mudar o rumo de
tudo.
— Não previmos a chance de uma retaliação — Vladimir explica,
percebendo que estou me equilibrando sobre uma linha muito fina e
desfiada que está prestes a arrebentar. — Yerik, completamente alucinado
por tê-la perdido, planejou o seu sequestro. Você e seu irmão, Zayn Serov,
estavam juntos quando ele a levou. Yerik efetuou o disparo que tirou a vida
do seu irmão.
Percebo, pelo canto dos olhos, que Anastasia fica muito rígida.
— Vladimir! — Roman o censura. — Esqueceu que você nunca
deve ficar responsável pelas notícias ruins? — Ele gesticula com os braços,
expressando sua indignação. Com um tom ameno e acolhedor, o vestígio de
um sorriso adoçando suas palavras, ele se dirige à Anastasia: — Desculpe,
docinho, ele é sensível como uma porta.
— Sentimos muito, querida — Ivan acrescenta, mais sentimental.
Ela não emite som algum. Sem palavras, sem soluços, nenhum
choro ressentido, de raiva ou de tristeza. Nada. Acho que sequer respira.
Mas seu silêncio diz muita coisa, aquilo que a língua falada não expressa, o
vazio de um coração rachado, seu conteúdo vazado, esparramado,
desperdiçado.
— O resto — eu digo semi-presente, oscilando entre o aqui e o
antes, o agora e o depois — é bem próximo do que você deve ter visto nos
jornais. Eu só estava lá porque fui atraído para o seu cativeiro, não podia
deixá-la sozinha, sofrendo sabe-se lá quais tipos de atrocidades. Mas tudo
deu errado. Você foi baleada e retirada do local antes de mim. Quando eu
soube, depois, que você havia perdido a sua memória... — Sorrio,
mortificado. — Não éramos mais os mesmos, eu não era. Então a deixei ir.
Nossos olhos se encontram.
Não, eles colidem.
Uma fenda se abre no espaço e sou transportado no tempo. Ela não
imagina que foi exatamente assim que nos encaramos naquele dia, dentro
de um casebre escuro, úmido e mofado, pouco antes do disparo que nos
arrancou tudo. Eu estava preso em seus lindos olhos quando ela disse a
frase cujo significado oculto jamais deixou de me assombrar.
Estou agarrando com as minhas próprias mãos.
Depois o som.
O sangue.
A dor.
E o adeus.
Anastasia se levanta, a postura rígida, os ombros retos. Ela pisca,
uma lágrima desce silenciosamente, manchando sua linda pele. E sem dizer
uma única palavra, ela vai embora.
37
Tatiana
USO MINHA PRÓPRIA chave para entrar no apartamento. Como é típico
dos meus filhos quando fazem merda, Andrei tem ignorado as minhas
ligações, não me deixando escolha além de invadir o seu espaço pessoal
para dar a ele um choque de realidade.
Assim que me vejo no centro da pequena sala rústica, sinto
nostalgia, bem-estar e um pouquinho de mágoa também. O lugar, hoje
transformado por Andrei em uma espécie precária de santuário, onde ele
pode cultuar os deuses da miséria e da autopiedade em paz, aos meus olhos
nada mais é do que um mausoléu.
Nicolai, meu amado e teimoso marido, nunca permitiu que eu
removesse um único copo do apartamento que um dia pertenceu ao seu
irmão — não que eu tivesse a intenção. Nós três éramos uma boa equipe.
Depois do meu casamento, este lugar se tornou o nosso ponto de encontro.
Três jovens adultos insatisfeitos com os desdobramentos da vida, unidos
por uma ligação muito maior e mais forte do que a semântica leviana da
palavra amor.
Exceto pela disposição de alguns móveis, vejo que meu filho não
mudou muita coisa.
O Fazioli de Valentim, limpo e conservado, continua sendo o
protagonista da casa — espero que Anastasia tenha dado um novo sentido
ao instrumento, que merece ser tocado por uma pessoa talentosa como ela.
Dou uma boa olhada em tudo: as ridículas matrioskas nas prateleiras, as
tapeçarias que não combinam com o carpete, as janelas basculantes por
onde entrávamos e saíamos com garrafas de vodka em mãos, usando as
escadas de emergência enferrujadas a fim de não sermos vistos pelo síndico.
Uma mulher casada se embebedando sozinha com dois rapazes nos
anos sessenta? Terrível, imoral, o fim dos tempos — às vezes eu torcia para
sermos pegos apenas pela expectativa de causar um grande escândalo, teria
sido um desfecho interessante, embora trágico. Totalmente a minha cara.
Faz tanto tempo…
— Quem está aí?!
Assusto-me com o grito e me viro de modo súbito.
Por um instante, entre um piscar de olhos e outro, tenho um breve
vislumbre do meu marido surgindo pelo corredor, com os cabelos escuros
em pleno caos e uma camiseta branca amarrotada, calças de moletom caídas
nos quadris, os olhos um tom mais forte de castanho por causa da pouca
claridade no ambiente. Mas é apenas Andrei.
Muitos acham que Vladimir é o filho que mais se parece com o pai,
um fato que não deixa o meu primogênito feliz, mas isso acontece por não
terem conhecido o Nicolai de vinte e poucos anos. Andrei é quase uma
cópia perfeita, não só fisicamente. Ele teve a quem puxar o seu imenso
coração e o senso extremo de justiça, assim como a capacidade estúpida,
embora digna, de sacrificar partes de si em prol dos outros.
Nicolai ficaria orgulhoso.
Ele está orgulhoso, tenho certeza, enquanto se reveza com o irmão
na tarefa de manter o trono do inferno aquecido para mim.
— Mãe? — Andrei pisca várias vezes com o cenho franzido. —
Como você entrou? Não, não responda. — Emoldurado pelo mogno escuro
do portal retangular, meu filho suspira. — Alguma chance de eu voltar a
dormir e fingirmos que a sua vinda não passou de um sonho?
— Zero — respondo e, como não estou com muita paciência hoje,
dou a ele uma ajuda para se curar da sonolência. — Anastasia ainda está na
cidade.
— Isso não…
— E eu vou me encontrar com ela para uma noite das garotas.
Ele imediatamente se recompõe, os olhos esbugalhando de surpresa.
Meus filhos são previsíveis demais, como cachorros que seguem seus
instintos cegamente e não resistem a um bom pedaço de carne balançando
sob seus narizes.
— Do que você está falando?
Caminho até a cozinha para que ele não veja o meu sorriso de
Cheshire, desvio de uma mancha de tamanho considerável no carpete perto
da mesa, que não me lembro de ter estado ali antes, e ouço seus passos
abafados atrás de mim. Abro os armários e começo a pegar utensílios para
fazer um chá: água, um bule de cerâmica e algumas folhas de groselha preta
que não parecem exatamente frescas, mas vão ter que servir.
Andrei espera pacientemente. É quase irritante, tenho que admitir.
Outro dos meus filhos já teria surtado.
— Faz quase um mês desde que vocês conversaram. Se Anastasia
ainda não desapareceu do mapa e nem denunciou você e seus irmãos para a
polícia, coisa que eu, particularmente, acho bem inusitado, significa que ela
está fazendo a mesma coisa que você. — Deixo a água aquecendo no fogão
e olho para ele, que ergue uma sobrancelha questionadora. — Se culpando
por todas as tragédias que acontecem no mundo, pelo mal que espreita a
humanidade e esse tipo de coisa.
— Não estou fazendo isso. — Ele cruza os braços, irredutível.
Considero jogar o bule em sua cabeça, talvez assim a peça mal posicionada
em seu cérebro volte para o lugar.
— A pobrezinha deve estar pensando que destruiu a sua vida, e que
tudo o que você contou teria sido evitado se vocês jamais tivessem se
conhecido. E essa nem é a pior parte. Aposto o meu peso em ouro que ela
também está se corroendo de vergonha por não se lembrar de nada,
relegando você ao fardo de carregar sozinho todas essas memórias
horríveis.
— Ela não tem culpa.
— Ora, meu querido, eu sei, não sou burra. — Dou as costas a
Andrei e coloco um monte de folhas murchas dentro da água fervente. —
Mas alguém precisa dizer isso a ela, e como eu estou com saudades da
minha nora, decidi assumir essa tarefa.
— Mãe...
— E é claro que você não vai tentar me impedir — eu o corto —,
afinal, não preciso da sua permissão para me encontrar com Anastasia. Ela
muito menos. Que bom que estamos entendidos sobre isso. A situação é a
seguinte: convidei Lara, Serena e Anastasia para um… — Fecho o bule
com um tilintar alto. O cheiro ácido e adocicado começa a se difundir pelo
ar. — Passeio? Algo parecido com um jantar, só que mais divertido,
presumo. — Giro meus saltos e dou um sorriso dissimulado. — Todas
aceitaram.
— Anastasia aceitou? — pergunta, negando com a cabeça, como se
fosse um feito impossível. — Por quê?
— Por que não?
— Eu pensei… — Ele pisca, confuso. Chega a dar pena, mas bem
pouquinho. — A forma como ela foi embora… — Seus olhos se estreitam
na minha direção, o rosto sério. — Mãe, Anastasia sabe quem é você?
— Que eu sou sua mãe? — desdenho, abanando a mão cheia de
anéis e pulseiras de ouro. — Ah, isso é apenas um detalhe, que diferença
faz? A coitadinha tem amnésia, Andrei, ela não sabe quem é ninguém. O
que coloca você no mesmo patamar que todos os homens do mundo. Ela
pode se apaixonar por você outra vez tanto quanto por um europeu de
quarenta anos com uma bunda durinha chamado George.
Ele fecha a cara.
— George? Quem diabos é George?
Ignoro a pergunta. Não é o ponto!
— Ela sabe, porém, que eu tenho uma mensagem sua para entregar,
com a condição de que ela me acompanhe hoje à noite. O que nos leva ao
motivo da minha vinda: a sua mensagem. Vamos, pense em algo, e nada de
dizer que sente muito. Quero uma mensagem ousada! Diga que está com
saudades, que a deseja, que fantasia com ela fazendo… coisas sexuais.
Meu filho abre a boca, incrédulo.
— Acho que eu vou pular da janela.
— Tenha em mente que Anastasia vai receber uma mensagem de
Andrei Volkiov de uma forma ou de outra. Podemos fazer isso do seu jeito
ou do meu.
Andrei respira fundo e se junta a mim no balcão da cozinha,
lançando um breve olhar de repulsa ao meu preparo borbulhante sobre o
fogo.
— Eu sei que a senhora nunca aceitou totalmente a minha separação
de Anastasia, mas decidiu me apoiar mesmo assim. O que mudou, mãe?

***

As mães têm uma mania secreta: conferir a respiração de seus


bebês enquanto eles dormem. Nós observamos o sono deles por vários
segundos, às vezes até por longos minutos, só para termos certeza de que o
peito daquele pedacinho de gente está se movendo no ritmo lento
característico dos sonos profundos. Quando a observação contínua e
obsessiva não basta, desenvolvemos o hábito de colocar os dedos perto de
seus narizinhos até que consigamos sentir o fluxo de ar.
Parece loucura, é verdade, mas fica ainda pior: algumas mamães —
eu, inclusa — conseguem elevar o nível de vez em quando, e assim, só por
precaução, despertam a pobre criança de repente, que sempre abre os
olhinhos preguiçosos sem entender nada, já que são apenas bebês e,
portanto, pequenos demais para saberem o quanto suas vidas estão ligadas
ao nosso bem-estar.
Andrei não é mais um bebê há muito tempo. No entanto, desde que
foi trazido inconsciente para o hospital, eu voltei a observar seu peito e
sentir a sua respiração. É estranho, pois eu vejo nitidamente seu peito
subindo e descendo, o oxigênio se condensando na máscara, mas ele não
acorda.
Meu filho não acorda.
Já faz quase cinco dias e seus olhos continuam fechados, seu corpo
ligado a fios e tubos e máquinas. Andrei, meu caçula, meu menino bondoso
e sorridente, criado com amor e esmero, está confinado a uma cama de
hospital. Imóvel, marcado, costurado. Parece um pesadelo terrível.
Sentada em uma poltrona ao lado de sua cama, da qual tenho me
levantado por poucas horas a cada dia apenas para tomar banhos rápidos
em casa e trocar as roupas, eu uno minhas mãos diante do corpo, fecho
meus olhos e rogo novamente:
— Nicolai querido, estou tentando o meu melhor sem você e seu
irmão, mas se estiver me ouvindo agora, proteja o nosso filho. Você sempre
disse que eu era uma especialista em dar ordens, então considere meu
pedido uma ordem e não permita que ele morra. Por favor, por favor, traga
nosso menino de volta.

***

Dou uma boa olhada no meu filho. Limpo, sem nenhum hematoma,
perfeito como no dia em que veio ao mundo. Andrei é uma obra prima, de
beleza delicada e, ao mesmo tempo, poderosa. Um anjo vingador. O
sequestro não deixou marcas visíveis em seu rosto, nada que remeta aos
dias terríveis passados naquele leito de hospital, mas as feridas na carne
são, com grande frequência, as que desaparecem mais rápido.
— Você e seus irmãos não me enganam — respondo em tom
acusatório —, sei quando estão escondendo coisas de mim, mas confesso
que, mesmo assim, eu queria ser contra a separação na época. Só que eu
quase perdi você. Como mãe, eu tinha que ficar ao seu lado e priorizar a sua
recuperação, você estava no fundo do poço, definhando até a morte. Com
Anastasia, seriam duas pessoas a serem salvas de um lugar muito fundo e
muito escuro. Separados, vocês puderam se esforçar por si mesmos.
Andrei concorda, movendo a cabeça devagar.
— Eu sempre soube que ela seria capaz, nunca duvidei nem por um
segundo. Por isso eu consegui deixá-la ir. — Ele olha as próprias mãos, que
estão nuas, sem as luvas usuais, e me pergunto o que ele vê enquanto as
encara. — Não sei se posso dizer o mesmo de mim.
— Ah, meu querido filho, eu sei como é fazer um sacrifício em
nome do amor, mas também sei como é estar do outro lado, como é ser a
pessoa por quem os outros se sacrificam, e garanto a você, nenhum dos dois
casos deveria ser um estado permanente. — Percebendo o clima
melodramático, decido fazer um desvio no assunto e retornar ao plano
original. — Enquanto perdemos tempo, por exemplo, Anastasia pode estar
agora mesmo nos braços do George.
— Não existe um George — Andrei bufa, rangendo os dentes.
— Ainda — observo. — Não faça essa cara, você aceitou o risco
quando se separaram, ou por acaso pensou que Anastasia fosse continuar
solteira para sempre?
— Claro que considerei a possibilidade, mas não sou um
masoquista. Não vou me submeter à tortura de imaginar a mulher da minha
vida construindo uma família feliz com algum desgraçado. Não, muito
obrigado. — Com uma careta irritada, Andrei se afasta até o outro lado da
cozinha e se apoia em um balcão que divide o ambiente da sala de estar.
— Eu entendo, o que os olhos não veem, o coração não sente. Mas
você a viu — cantarolo — e não pode desver. — Desligo o fogão antiquado
e despejo o conteúdo do bule em duas xícaras transparentes, porém, a
aparência do líquido... — Estranho, ficou preto, acho que deveria ser meio
avermelhado, ou seria marrom?
— Desde quando a senhora sabe?
— Eu nunca fiz chá de folha de groselha, então não sei…
— Não estou falando sobre o chá. — Ainda estou analisando as
duas bebidas, já que a textura densa parece tão suspeita quanto a coloração,
quando percebo a mudança em sua voz, o tom grave e contido, chamando a
minha atenção. — Se é que isso pode ser chamado assim — acrescenta.
Devagar, equilibro as duas xícaras, uma em cada mão, e o encaro. Andrei
tem um sorriso tímido e fatalista que não me inspira um bom
pressentimento. — Desde quando sabe que Evgenia perdeu um filho meu?
Não sou fácil de surpreender, mas sua pergunta me deixa sem fala.
Com passos calculados, eu me junto a ele, disponho as duas bebidas sobre a
bancada de madeira e me sento no banco alto e desconfortável.
— Desde quando você sabe que eu sei? — questiono.
De perto assim, reparo nas olheiras em seu rosto, os ombros meio
caídos, sua compleição embotada, reflexos de uma noite mal dormida.
— Não faz muito tempo, eu fui juntando os pontos porque sempre
achei estranha a maneira como a senhora reprovava Evgenia, já que nunca
foi seletiva com nossas parceiras. Muito pelo contrário, se eu aparecesse
casado com uma assassina em série, você diria que não podemos julgar os
hobbys das pessoas e mandaria construir um quarto de bebê inspirado no
Ghostface. — Ele sorri, e é sincero. — Então tinha que existir um motivo,
mas você jamais a julgaria daquela maneira simplesmente por não querer
ter filhos, seria cruel e misógino, e eu a conheço, você não é assim, embora
sempre usasse esse argumento para escapar do que realmente a
incomodava.
— E eu pensando que tinha disfarçado bem.
— Você nem tentou. — Meu filho gargalha, zombando. — Quando
anunciei que estava namorando, foi na mesma época em que Vladimir deu
início às negociações de matrimônio comercial com a família de Lara, e
tudo se tornou uma bagunça. Evgenia perdeu o bebê, e só depois vocês
puderam conhecê-la pessoalmente. Já naquela época, você não a suportava,
e eu simplesmente presumi que devia haver uma explicação no meio desses
dois acontecimentos.
— Mas como ela o manipulou para não buscar conforto no seio da
sua família, usando a desculpa de que não queria que ninguém soubesse,
você se afastou para que não percebêssemos como aquela perda o havia
destruído — adivinho. Andrei não nega. — Muito conveniente para ela,
não? Principalmente sendo uma mulher que estava sofrendo tanto, ou
deveria estar.
— Eu estava cego, achava que tinha o controle de tudo, que ceder às
vontades dela era a escolha certa. Não sou inocente, era cômodo para mim
também: já que eu não estava em condições psicológicas de conversar sobre
o ocorrido, afastar-me com a desculpa de satisfazer Evgenia parecia uma
dádiva. Eu estava errado, e me arrependo profundamente. — Andrei olha
para longe, sem focar em nada, como se pudesse ver uma imagem do
passado flutuando no meio da cozinha. — Depois do sequestro, quando eu
ainda estava no hospital, Evgenia me fez uma visita e acabou deixando
escapar que vocês duas se encontraram antes de eu apresentá-la à família.
— Ela foi ao hospital? — Sinto uma onda de fúria tomar conta de
mim, uma vontade fervorosa de incorporar a Rainha de Copas e cortar
cabeças à reveria. — Com que propósito? Não me diga que esperava reatar
com você naquela situação?
— Quando nos separamos, não foi bonito. Evgenia estava fora de si
e disse que estaria por perto para ver a minha ruína. — Ele dá de ombros,
como quem está acostumado. Fico imaginando que tipo de coisas ele teve
que suportar até chegar nesse nível de não se surpreender mais com nada
que Evgenia faça. — E ela estava.
— Que absurdo! — digo com desprezo. — É verdade, eu a procurei
logo no começo, sem você saber. As minhas intenções eram as melhores, eu
pretendia dizer a ela que estava feliz por ter uma nora e quem sabe
incentivá-la ao casamento, você sabe que eu sou uma idosa prática. Mas
quando toquei no assunto, ela disse que nunca teriam filhos porque não
aceitava dividir você com mais ninguém, nem mesmo com uma criança
gerada por vocês dois. Que jamais o deixaria amar outra pessoa mais do que
amava ela, nem mesmo um bebê. O bebê de vocês dois! Eu teria respeitado
a escolha dela por qualquer outro motivo, mas esse… — Torço o nariz,
sentindo repulsa ao lembrar.
— Realmente, soa como algo que ela diria.
— Dias depois, você mudou completamente, indo do céu ao inferno.
Em um mês, estava nas nuvens, no outro, se tornou alguém triste, quebrado
e distante. Começou a beber e se afastar. Eu apenas cheguei à conclusão
óbvia de que ela havia perdido um bebê, ou o tirado, e não posso fazer um
julgamento sobre o segundo caso, por mais que eu tenha uma opinião a
respeito se tratando do meu neto. Mas sobre ela usar o seu maior sonho
contra você, meu filho, isso eu jamais perdoarei.
Andrei arregala os lindos olhos castanhos, o halo dourado ao redor
de suas íris aumentando como uma estrela no céu.
— Tirado? Você acha que… — Ele fecha as mãos, e eu percebo,
com muita tristeza, que a possibilidade jamais havia passado por sua
cabeça. — Não, mãe, isso não é possível. Evgenia me culpava pela perda,
dizia que havia perdido nosso bebê porque eu não me dedicava a ela,
sempre dividido entre a minha família e a nossa relação.
— Ela tinha todas as bandeiras vermelhas, mesmo assim, achei
melhor não fazer acusações sem provas. A perda de um filho é sempre um
assunto delicado, mesmo se induzido. E, se fosse o caso, eu esperava que
ela mesma contasse a verdade a você. — Rolo os olhos para cima. — Só
que você decidiu sair de casa para morar com ela e eu me vi de mãos
atadas.
Meu filho exala uma respiração pesada.
— Eu não sei o que dizer. Acho que não importa. Não mais.
— Você já passou por esse luto — eu o apoio, sorrindo. — Por isso
é capaz de falar sobre ele agora, mas não conseguia antes. Significa que está
superando, meu filho, parabéns. — Aproveitando a deixa, toco em um
tópico igualmente sensível, mais recente, e que ainda dói em toda a família:
— E talvez seja hora de começar a superar a segunda perda também, junto
com a mulher que ama. Você nunca vai se perdoar se não tentar.
Ele sorri com leveza, sincero, os dentes retos aparecendo na fenda
entre os lábios. O sorriso de Andrei é capaz de mover montanhas; é uma
pena que, ultimamente, ele tenha encontrado poucos motivos para fazê-lo.
— Você é mesmo uma mulher obstinada, Tatiana Volkiova, tenho
que reconhecer. — Ele ergue sua xícara, retine contra a minha e faz menção
de tomar um gole, mas desiste depois de sentir o cheiro do meu chá.
A culinária nunca foi o meu ponto forte.
Não deixo de achar suspeita a sua rápida aceitação à ideia de
reconquistar Anastasia. Pensei que seria mais difícil, mas eu é que não vou
reclamar!
— Também sou sábia, bonita e inteligente — complemento, afinal, é
a verdade. — Não poupe elogios, meu querido, o que seria de você e seus
irmãos tolos sem mim? Mas agora, sobre aquela mensagem…

***

— Andrei disse isso? — Anastasia deixa alguns cachos largos


caírem estrategicamente sobre o rosto, escondendo parte da timidez
impressa no alto de suas bochechas.
— Ah, sim, disse, ele com certeza disse que mal pôde se conter na
sua frente, pois a todo momento só pensava em tomá-la nos braços diante
de todos e mostrar ao mundo como são compatíveis em todos os aspectos,
disse que sente falta de beijar você e que tem tido sonhos… — Pisco um
olho. — Ele não quis me contar os detalhes, mas deve imaginar de que tipo
de sonhos estamos falando. Molhados.
Não, ele não disse. Na realidade, Andrei mandou um recado
romântico sobre sentimentos que ultrapassam as barreiras do tempo, sobre a
hipocrisia de almejar uma chance de ouvi-la como ela o ouviu primeiro e
estar pronto para aceitar qualquer coisa, fosse o seu amor ou o seu ódio
eterno. Muito encantador e compreensivo da parte dele, mas acho a minha
versão mais eficiente, e conhecendo meu filho, sei que não estou mentindo.
Ele pensa nela, e não de um jeito inocente.
— Entendo — ela diz, recostando-se no assento acolchoado com
almofadas cor-de-rosa. Anastasia não compartilha a sua opinião sobre a
mensagem; eu não esperava que assim fizesse.
Tudo faz parte de um plano maior: quando se planta uma semente
nas condições adequadas, com a quantidade certa de água, luz solar e terra
de qualidade, ela vai se desenvolver naturalmente, tornar-se uma linda flor,
ou uma árvore forte, sem quase nenhum esforço adicional.
O lugar em que estamos, por exemplo, também não é uma escolha
do acaso. Eu gostaria de parabenizar quem teve a brilhante ideia de criar
uma balada a céu aberto, no topo de um prédio comercial com vistas para o
Hotel Ukraina e o Rio Moscou — a grande serpente de água parecendo
absorver a noite sem estrelas.
Está lotado com pessoas de todas as idades. Não é o tipo de
ambiente que costumo frequentar, mas gosto do que vejo: homens e
mulheres aproveitando a vida, dançando ao som de músicas eletrônicas e
luzes caleidoscópicas, com sofás, cadeiras e pufes coloridos esparramados
ao longo de pequenas tendas transparentes que delimitam as áreas de
socialização.
É tudo cheio de vida, mas eu posso ter levado minhas noras, Lara,
Serena e Anastasia, a acreditarem que passaríamos uma noite tranquila em
um restaurante de luxo no centro da cidade. Não é problema meu que elas
ainda caiam nas minhas falcatruas, principalmente as duas primeiras. Não
que Serena pareça incomodada enquanto dança na pista como se fosse o seu
último dia na Terra.
Lara, honrando o cargo de “minha primeira discípula”, também está
lidando bem com a situação, distraído Anastasia com conversas sobre o
trabalho que ela costumava executar no abrigo. Desde que descobriu que
sou mãe de Andrei, ela parece estar a ponto de ter um colapso nervoso.
Uma fofura.
Formamos um grupo inusitado aos olhos.
A fim de não chamar atenção dos meus filhos, não quis sair do meu
armário habitual, mas ainda bem que não sou uma mulher sem graça. Não,
não. Tatiana Volkiova está sempre preparada para tudo e em grande estilo.
Meu conjunto de terno mostarda poderia ter sido escolhido a dedo para este
evento. Sem a camisa e o colete por baixo do blazer, um rubi do tamanho de
um morango se acomoda perfeitamente no centro do meu busto, alvo de
vários olhos arregalados — admirando meus seios ou a pedra preciosa, eu
não sei dizer.
Lara brilha como uma estrela. Literalmente. Seu vestido dourado e
justo, com o comprimento acima dos joelhos, acompanha cada um de seus
movimentos como se fizesse parte de sua pele, refletindo as rajadas de luzes
multicoloridas lançadas pelos holofotes. Seu corte de cabelo a favorece,
chamando atenção para o pescoço longilíneo, os ombros elegantes e, claro,
a parte mais importante, o decote profundo em suas costas, que exibe cada
pedacinho de sua coluna, do topo à base, dando a cada vida inteligente na
festa algo para imaginar.
Serena, em comparação, é o seu contraste, embora igualmente
chamativa. Usando botas pretas e shorts de couro, uma blusa de renda
vermelha combinando com seus lábios cor de sangue, ela parece uma
versão feminina de Roman. Sensual, despreocupada e dona do próprio
nariz. Tenho certeza de que estava usando um casaco longo quando
chegamos, mas agora não há nada para bloquear o excesso de pele exposta
em suas pernas e ombros da observação cobiçosa ao seu redor.
Mas Anastasia, honestamente, é o diamante azul dos seres humanos.
É óbvio que ela não esperava ser trazida para um evento noturno
com luzes ofuscantes. Em um ambiente normal, suas roupas não teriam o
mesmo impacto. Seu vestido é composto por duas peças: a primeira, um
vestido na cor idêntica de sua pele negra que não ultrapassa a metade de
suas coxas, e por cima dele, um longo tecido transparente com pontos
brilhantes, que refletem as rajadas estroboscópicas de luz dando uma falsa
primeira impressão de estar nua por baixo.
Ninguém consegue se poupar de uma segunda olhada, e então, cair
no encanto de sua beleza. Há algo sobre a maneira como ela se move, seu
comportamento, que remete à uma princesa, do tipo que vemos retratadas
em filmes. Elegante, educada e amável, mas imponente e forte na mesma
medida. É inadmissível que tenha sido obrigada a se esconder do mundo
por aquele defunto monstruoso. Espero que ele esteja apodrecendo nos
piores cantos do inferno.
— Está babando, sogra. É veneno? — Serena se acomoda ao lado de
Anastasia, os cabelos cheios, longos e pretos lindamente desarrumados.
— Apenas admirando a beleza das minhas noras. — Faço um
movimento amplo com o braço para indicar nossos arredores, demorando-
me, particularmente, em um grupo de rapazes que não para de sorrir e
encarar. — Assim como todo mundo, aparentemente.
Lara arqueia uma sobrancelha e indaga:
— Estou curiosa, como descobriu este lugar, Tatiana? Não me diga
que frequentar festas suspeitas é o seu passatempo semanal. Se seus filhos
descobrirem, vão comprar a rede inteira de boates, fechar uma por uma e
colocar fogo no que sobrar.
— Que exagero — reclamo, mas tenho noção da realidade e do que
os quatro são capazes. — Eu simplesmente pesquisei na internet lugares de
Moscou com uma fama questionável.
— Aqui parece bem normal para mim. — Serena faz um muxoxo
desconfiado, então me encara. — O que está escondendo?
— Depois da meia-noite, eles liberam o acesso para uma área
reservada bem embaixo de onde estamos. — Casualmente, analiso minhas
unhas pontiagudas como garras. Levando em conta que elas acabarão
descobrindo, eu digo a verdade. — Dizem que é uma casa de swing.
— Tatiana! — Lara exclama, os olhos dobrando de tamanho.
— Díos mio — Serena ecoa, mas não com espanto. Ela vibra no
assento, suspirando.
— Nós não vamos entrar — pontuo.
— Não vamos? — Ela torce o nariz, não tenta disfarçar a decepção.
— Eu só queria que ele se sentisse ameaçado pela possibilidade —
explico, dispensando dar o nome de Andrei a um contexto que só se aplica a
ele no momento. — Irritar os outros três faz parte da diversão. Poderíamos
entrar, é claro, mas duvido que tenhamos a chance. Por mais impagável que
seja imaginar a cara deles se nos encontrassem lá dentro, não vai dar tempo.
Eles devem chegar antes. A qualquer momento.
— Nós mal saímos de um escândalo, não podemos nos envolver em
outro. — Lara estremece. Ela é a pessoa que passa mais tempo com os
quatro e, portanto, aquela que mais os conhece depois de mim. — Eles vão
ficar loucos.
— Mais um motivo para darmos uma espiadinha — Serena
argumenta, os olhos brilhando com malícia —, se vamos ouvir um sermão,
melhor que seja por algo de que somos culpadas.
Anastasia, enrolando uma mecha do cabelo nervosamente, questiona
com a voz inibida:
— De quem estão falando? Acho que não estou conseguindo
acompanhar.
— Meus filhos, é claro. Podem usar terno e gravata na maior parte
do tempo, mas continuam sendo homens das cavernas com testosterona
vazando pelos ouvidos. — Ela faz uma expressão confusa, e me lembro do
seu probleminha de memória. — Não se preocupe, logo você vai entender.
Já passou pela fase de adaptação uma vez e se saiu muito bem.
— O que Tatiana está tentando dizer — Lara interfere, cobrindo a
mão de Anastasia com a sua em sinal de apoio —, é que você é bem-vinda à
família, eu diria que faz parte dela, nunca deixou de fazer. Andrei e os
irmãos nos contaram sobre a conversa que tiveram, que você finalmente
sabe o que aconteceu, e não queremos que você pense, de modo algum, que
a culpamos ou nos ressentimos. Quando Andrei tomou a decisão de deixá-la
ir, nós todos tivemos que abrir mão de você também porque era o certo a se
fazer, mas não foi fácil para ninguém.
— Você é uma santa — Serena diz, e não fica claro se é uma crítica
ou um elogio. — Eu, no seu lugar, teria feito um barraco.
— Como eu poderia? — Anastasia dá um meio sorriso. — Ainda
não consegui encarar meus pais, eles mentiram e tentaram me manipular de
novo, mas eu não estava sofrendo. Isso é algo vocês precisam saber. — Ela
nos encara sem vacilar. — Depois de ouvir o relato de Andrei, percebi que
enquanto eu estava vivendo o melhor momento da minha vida, ele estava
passando pelo pior: lidando com o trauma de ter matado uma pessoa para
me defender, porque só pode ter sido essa a sua motivação. — Suas mãos se
fecham sobre o colo, o rosto bonito ganhando traços sutis de frustração. —
Queria ter estado aqui para dar apoio, eu queria…
— Não havia nada que você pudesse fazer — Lara garante de modo
vago.
A decisão de esconder a perda da minha neta não partiu de Andrei,
mas ele deve ser o único a contar a respeito.
Um funcionário da boate, usando nada além de calça de alfaiataria e
gravata borboleta, se aproxima com nossos drinques — algo azul para
Serena, com base de Martini, limão e sabe-se Deus mais o quê; champagne
para mim e Lara; e um suco natural de tomate para Anastasia, que se
recusou veemente a beber qualquer coisa alcoólica.
O homem além de bonito é inteligente, pois flerta descaradamente
com cada uma enquanto distribui nossos copos e taças, com certeza na
esperança de ganhar uma boa gorjeta — que eu estou disposta a dar com
prazer.
Assim que ele vai embora com sua bunda muito redonda, Anastasia
volta ao assunto.
— Quando recebi o convite para este encontro, não sabia que eram
parte da família de Andrei. Eu fiquei tão animada com a chance de receber
uma mensagem dele, que vim sem pensar. Mas eu me lembro da sensação
de estar na mansão, rodeada de amor e cuidado. É revigorante saber que
nem tudo está perdido, que eu posso continuar tentando me aproximar de
Andrei sem parecer uma stalker inconformada com o fim do
relacionamento.
Que comparação específica e familiar.
— Você disse que se lembra? — Serena indaga com sua taça em
formato de cone paralisada a caminho da boca. — Sua memória voltou?
Esperançosa, concentro-me em Anastasia, que não se encolhe como
uma gatinha assustada diante dos nossos olhares combinados.
— Mais ou menos — revela, girando o copo em suas mãos. Lara e
Serena trocam um olhar discreto, surpreendidas pela novidade. Eu já
imaginava. — Eu tenho tido alguns episódios, principalmente depois do
meu reencontro com Andrei.
— Meu filho sabe disso?
— Eu pretendia contar, mas depois de ouvir todos os problemas que
causei a Andrei e aos irmãos dele, a vocês todos, não tive coragem.
— Que bobagem! Causar problemas é um pré-requisito básico para
conquistar um Volkiov. Lara, por exemplo, além de ser irmã da primeira
noiva de Ivan, já esteve na mira da Interpol. E a lista da Serena é grande
demais: irmão criminoso, incêndio, um rombo de milhões em nossos
cofres…
Serena, como se quisesse marcar pontos a seu favor, relembra:
— Lara teve aquele lance com tráfico humano também.
— Obrigada, Serena — Lara ironiza, sorrindo. — Sua lealdade é
comovente. Assim vocês estão assustando ela.
— Não, tudo bem — Anastasia responde, sorrindo. O som de sua
risada é algo a se admirar. — Acho que vou gostar de ouvir os detalhes
mais tarde. — Ela experimenta um gole de seu suco, como se precisasse de
uma pausa para formular a próxima pergunta, que vem em seguida: — O
que os irmãos dele acham disso? Digo, eu reaparecendo quando ninguém
esperava? Eles foram ótimos quando nos encontramos, mas não sei o que
pensar e, por algum motivo que não compreendo, já que não me lembro,
sinto que a opinião deles importa para mim.
— Não admita isso para nenhum deles, ouviu? — aconselho, um
dedo em riste. — Já são insuportáveis sem uma mulher adorável inflando
seus egos.
— Especialmente Ivan — Lara concorda. — Ele já acha que é o seu
cunhado favorito.
— Para o seu imenso azar, sem dúvida você é a favorita dele —
Serena informa, soando como uma condolência.
A conversa segue leve, com minhas noras revelando os podres dos
maridos. Anastasia não confirma suas intenções em relação ao meu filho ou
se nossa demonstração coletiva de afeto surte o efeito esperado de
incentivá-la a dar uma nova chance a Andrei — o que facilitaria bastante o
desfecho da minha armação genial.
Na meia hora seguinte, começo a me sentir impaciente e decido
apressar as coisas, enviando de maneira discreta algumas fotografias
tendenciosas de Anastasia sendo amplamente cobiçada pelos demais
frequentadores da boate enquanto dança com Serena e Lara, que recebem a
mesma atenção. As duas, porém, informam com quem são casadas, a notícia
se espalha rapidamente e aqueles que temem por suas vidas têm o bom
senso de manter o respeito.
Para todos os efeitos — e meu absoluto deleite — Anastasia não é
comprometida, o que a torna um brilhante troféu de ouro que todos esperam
conquistar.
Com todas as peças encaixadas em seus devidos lugares, não preciso
fazer nada além de assistir quando eles finalmente chegam. Parece uma
releitura contemporânea do mar vermelho se abrindo, as pessoas saem do
caminho conforme os quatro desfilam lado a lado, como os cavaleiros do
apocalipse segurando o fim do mundo nas mãos.
Já não era sem tempo!
No entanto, o que acontece em seguida… nem eu poderia esperar.
Registro superficialmente as roupas que estão vestindo: Vladimir e
Ivan com ternos de trabalho, preto sobre branco, Roman em seu uniforme
de couro, um cigarro pendendo na boca, e Andrei, com peças mais casuais,
jaqueta jeans, calças escuras, suas luvas de sempre e tênis de corrida, com
os cabelos ainda pingando sobre os ombros, indicando sua saída às pressas.
Até que um tumulto tem início no meio da pista, bem onde as
meninas estão — ou pelo menos estavam — dançando.
Serena grita um xingamento em espanhol, Lara recua um passo, a
mão se erguendo na direção de um segurança parado à distância, mas o
campo de visão dele está bloqueado por causa das pessoas se acumulando
ao redor das três. Um homem não muito jovem, mas de uma altura que
rivaliza até com Roman, está segurando Anastasia pela cintura em uma
clara tentativa forçada e desrespeitosa de dançar com ela, esfregando-se em
seu corpo como se tivesse algum maldito direito.
Muitas coisas acontecem ao mesmo tempo. Eu me levanto,
preocupadíssima. Andrei avança, uma promessa de sangue escrita em seus
olhos. Ivan grita alguma coisa, movendo-se logo atrás do irmão. Roman se
atrasa para pegar uma garrafa, que ele bate contra a quina de uma mesa e
transforma em uma arma afiada — céus, eu criei um delinquente! Que bom.
Vladimir, com uma frieza que congelaria o deserto do Saara, caminha
devagar.
Nenhum deles chega a tempo.
Anastasia sai de seu estado de choque e gira nos braços do sujeito,
que abre um sorriso nojento de aprovação. O sorriso desaparece no instante
em que o joelho dela sobe de encontro a suas bolas, surpreendendo a todos,
e com seu pequeno punho fechado golpeia a garganta do homem, que cai no
chão, encolhido, uma das mãos entre as pernas e a outra no pescoço,
respirando com dificuldade.
Todo mundo congela no lugar, estátuas com olhos arregalados
diante da cena inesperada. Anastasia arqueja, empalidecendo, como se nem
ela acreditasse no que acaba de fazer. Seus olhos, parecendo grandes demais
em seu rosto, percorrem a multidão, uma luz de reconhecimento pulsa no
fundo das íris marrons ao notar a presença de Andrei e seus irmãos, mas é
em Roman que eles se fixam.
— Você — diz em tom de acusação, apontando um dedo tremente.
— Você me ensinou isso. Eu ouvi a sua voz na minha cabeça dizendo “tente
primeiro as bolas, mas um soco bem dado nas têmporas, pescoço ou
mandíbula pode nocautear uma pessoa”, e aí meu corpo agiu sozinho. Eu
não sabia que podia fazer isso, até ter feito.
Roman abre um enorme sorriso.
— Culpado até que se prove o contrário, docinho. — Ele ergue a
garrafa quebrada, as pontas afiadas apontando para cima, em uma espécie
de brinde a si mesmo.
— Sua maluca! — O momento é interrompido pelo grito do idiota
asqueroso, cuja capacidade de falar e respirar, infelizmente, parecem em
perfeito estado de funcionamento. Ele não se levanta, no entanto, o que
pode significar que outras partes não tiveram a mesma sorte. —
Desgraçada, você sabe quem eu sou? Eu vou…
— A pergunta certa é: você sabe quem eu sou? — Vladimir já está
sobre ele. — Ah, pela sua expressão, eu aposto que sim. Então pense bem
antes de concluir essa frase. Suas próximas palavras definirão como será a
sua vida pelos próximos cinquenta anos, e sua projeção atual já é quase
insuportável.
O homem murmura palavras ininteligíveis que soam como pedidos
de desculpas, alheio ao inferno que acaba de recair sobre o seu futuro.
Implorar por perdão de joelhos sobre brasas quentes seria igualmente inútil,
por mais que me agrade a ideia. Vladimir nunca aprendeu o conceito de
piedade.
Dois seguranças levam o sujeito arrastado depois de receberem
instruções de Vladimir, que não consigo ouvir graças à distância, mas que
espero serem tão terríveis quanto as que eu mesma daria.
Paralelo a isso, Lara já está nos braços de Ivan, Serena e Roman
continuam atônitos, e todos os olhares, incluindo o meu, convergem para
Anastasia — perplexa consigo mesma por agredir um homem com o dobro
do seu tamanho — e Andrei, com o rosto ilegível, estático no mesmo lugar,
a apenas dez passos dela.
Como ele vai reagir?
E como ela vai responder?
Não aguento a tensão, mas colo a língua no céu da boca para não
atrapalhar o momento mandando os dois se pegarem de uma vez.
— Isso foi… — Andrei diz com o timbre rouco, como quando ele
acaba de acordar e está sem usar as cordas vocais por muitas horas.
— Eu sei, foi horrível — Anastasia lamenta, constrangida.
— Simplesmente incrível! — ele gargalha, incrédulo. Em um ano, é
o som mais verdadeiro, feliz e sincero que já ouvi vindo do meu filho. A
distância desaparece, ele a erradica com cinco passos largos, e segura o
rosto dela com as duas mãos. — Você é incrível, princesa.
Andrei a beija. Beija mesmo. Um beijaço!
Os dois são a coisa mais linda de assistir. Pode-se sentir o amor
ressurgindo como uma fênix — um milagre que nunca morre, mas reúne
forças para retornar sempre mais forte. Anastasia se deixa levar, encantada
com a desenvoltura de seu amado, e eu me pergunto se qualquer que seja a
força teimosa e maligna que tentou separá-los tantas vezes, enfim entendeu
que esse tipo de amor supera tudo, o destino, o tempo e até a vida.
Um coro de vivas, palmas e assobios ecoa da plateia. Eu também
comemoro, é claro, o mérito é todo meu.
— Satisfeita? — É Vladimir com uma carranca. — Seu plano foi
um sucesso. Você nos atraiu até aqui e fez Andrei e Anastasia se
entenderem. Parabéns, mas precisava escolher um lugar tão…
— Interessante?
— Perigoso — corrige. Reviro os olhos, ele bufa. — As pessoas
vêm aqui com um propósito, mãe, encontrar um tipo bem… específico de
sexo.
— Ora, eu espero que eles façam sexo. — Indico os dois, que estão
abraçados, sorrindo, os rostos colados, nariz contra nariz, segredando
palavras. — Onde estão Lara e Ivan? — Procuro por eles, mas sem sinal. —
Aposto que fazendo sexo em algum cantinho. Por que não segue o exemplo
e sai do meu pé?
— Graças a você, eu tenho que cuidar daquele cara, enquanto minha
mulher dança sem mim.
Ele sai pisando duro e resmungando. Sento-me novamente e peço
um novo drinque, algo forte para comemorar a minha vitória. Eu mal me
livro de um filho, entretanto, e outro aparece. Roman se joga ao meu lado.
— O que você quer?
— Estou só fazendo companhia para A MINHA MÃE — berra para
a festa inteira escutar, marcando território. Era só o que me faltava. Dou um
empurrão nele, mas é como empurrar uma parede. — E alguém tem que
ficar de olho naquela ali até o Vladimir voltar. — Indica Serena com o
queixo, mas depois da cena que acabou de acontecer, ninguém se aproxima
para além de dois metros dela.
— Olhe para eles — aponto em direção a Anastasia e Andrei —,
nem parece que ficaram um ano separados. O que será que estão
conversando?
Roman assopra um tanto de fumaça, apaga seu cigarro pela metade
com os próprios dedos, guarda o que sobrou no bolso da jaqueta e sorri.
— Você quase matou o caçula do coração com aquelas fotos,
precisava ser tão má? Ele começou a dizer que não ia aguentar se ela ficasse
com o George. — Roman faz uma careta e olha ao redor com um interesse
violento. — Quem é George, afinal?
— Longa história. — Dispenso o assunto com um gesto casual. — É
aquele velho ditado, você pode criticar os meus métodos, mas não os meus
resultados. Eles acabariam juntos mesmo sem a minha ajuda. Anastasia está
recuperando as memórias, ninguém sabe o quanto ela já se lembra. Seu
irmão nem imagina. Eu só dei um empurrãozinho. Sou uma mulher velha,
não tenho a vida toda.
— Um empurrãozinho? — Ele solta uma risada alta. — Andrei é
esperto, mãe, e você fez exatamente o que ele precisava.
Roman beija a minha testa e vai se juntar a Serena na pista de dança.
Vladimir vai amar a cena. Sei que ele mantém um olho em mim, e não me
importo, pois Andrei segura Anastasia pela mão e vai embora, levando-a
consigo, sem um mísero olhar para nada ou ninguém, o que significa que
meu trabalho chegou ao fim, e meu plano foi um tremendo sucesso!
38
Andrei
NÃO É SÓ pelo ciúme, como minha mãe deve estar pensando. Ele não está
nem entre os motivos principais. Claro que não. Até parece! Também não se
trata de uma epifania, como se, diante da ameaça de perdê-la, eu tivesse me
dado conta que não posso mais viver sem ela. E não tem nada a ver com o
George ou as fotografias que minha mãe enviou de Anastasia nua — ela
parecia nua, e eu não pensei em analisar as imagens com atenção antes de
sair correndo ao seu encontro.
Quem pode me julgar?
Mas até um segundo antes de Anastasia dar um soco naquele
sujeito, eu não fazia a menor ideia de qual seria o meu próximo movimento.
O que eu pretendia fazer? Um discurso? Sobre o que? Não ser da minha
conta o que ela faz ou deixa de fazer em uma balada fetichista de péssima
reputação? A porra de uma casa de swing?
Duvido muito.
Eu não tinha um plano exato.
E tudo ficou ainda pior quando vi aquele cara a agarrando por trás.
Aquilo obliterou toda a minha capacidade de agir como uma criatura
racional. Eu fiquei cego. Meu corpo só queria uma coisa: a cara dele no
meu punho. Mas Anastasia, minha Anastasia, uma coisinha de um metro e
meio, com os dedos curtos fechados em sua mão pequena, o socou. Ela deu
a porra de um soco no desgraçado depois de acertar uma joelhada entre as
pernas dele e… Puta merda, aquilo foi incrível!
Tudo ficou muito claro na minha mente: meus sentimentos, o que eu
tinha que fazer, o motivo de tudo. Beijar Anastasia foi como voltar para
casa após ficar meses à deriva, assistindo minha vida passar sem de fato
vivê-la, um espectador na primeira fila de um teatro vazio.
Mas não mais.
Nunca mais.
— Você mora aqui? — Anastasia pergunta, olhando a porta simples
de madeira com uma expressão cética.
Depois do nosso beijo cinematográfico, concordamos em fugir
sozinhos, e o primeiro lugar que me veio à mente foi o nosso apartamento.
Agora que estamos diante da entrada, não tenho certeza se foi uma boa
ideia. E se ela odiar? Ou presumir que estou pulando várias etapas? Eu
estou. E se Anastasia me achar estranho por trazê-la ao lugar onde fizemos
amor tantas vezes? Não que ela se lembre. Será que ela lembra? Devo
contar? Ela vai pensar que eu sou um tarado? E se eu for um?
— Pode-se dizer que sim — respondo. Coloco a chave na fechadura
e, só por via das dúvidas, sugiro: — Não quero que se sinta desconfortável.
Se quiser, podemos ir para onde você está hospedada…
— Não! — ela me interrompe, um tanto afobada. — Minha…
humm… — Coloca um dedo sobre a boca, e um momento depois, o ergue,
como se tivesse lembrado da resposta correta para um problema
matemático. — Assistente está lá. Mariya. Ela me ajudou com a roupa.
Automaticamente, meus olhos percorrem seu corpo. O vestido pode
ter danificado alguma parte do meu sistema cardíaco, mas sua beleza é
inegável. Ela está linda. E atraente. Sexy é a palavra-chave. É difícil me
lembrar que existe um tecido sobre sua pele, visto que ele esconde tão
pouco.
— Já gosto dela.
Anastasia sorri, desvia o olhar, tímida.
— Meu irmão também já deve ter chegado, isso é, se Mariya ainda
não o matou. Os dois estão sempre no pescoço um do outro, é cansativo de
assistir, não sei como eles conseguem encontrar tantas desculpas para
brigar. Ela odeia o jeito que ele sorri. Ele não gosta do perfume dela. Ela
acha meu irmão um, como é mesmo? Ah, sim, um brutamontes gourmet.
Não me pergunte o que significa. Contra todas as expectativas, Akira se
tornou um adulto razoavelmente maduro, mas perto dela, ele se comporta
como um adolescente rebelde. Se formos até lá agora, corremos o risco de
testemunhar uma verdadeira cena de crime.
Adoro quando ela tagarela.
— Melhor evitarmos casos envolvendo a polícia por um tempo —
digo, e mal posso acreditar que consigo fazer piada sobre o assunto. Mas
não foi sempre assim? Anastasia torna tudo mais leve. — Seja bem-vinda
ao nosso pequeno castelo, princesa.
Abro a porta e dou passagem a Anastasia. Assim que ela entra, seus
olhos ficam arregalados, o rosto se enchendo de alegria genuína.
— É um Fazioli? — pergunta, exultante. Por pouco eu não desabo
de joelhos. — É mesmo um piano Fazioli! Uma marca italiana, sabe? São
os…
— São os seus preferidos — completo, inundado por um sentimento
de nostalgia. Suas palavras são quase as mesmas que ela disse quando eu a
trouxe aqui pela primeira vez.
— Você toca? — Ela retira as sandálias, alheia ao sorriso que me
corta a face.
É igual e diferente ao mesmo tempo. Ela não está machucada e nem
fugindo, não há uma sombra em seus olhos ocultando o medo ancestral de
ser terrivelmente ferida. Anastasia caminha com seus passos de veludo,
dançante e suave como uma brisa, com nada além de um sorriso angelical
decorando seu belo rosto.
— Não. — Tenho que desviar os olhos e me concentrar na tarefa
simples de retirar meus sapatos, a fim de não me perder em lembranças dela
tocando para mim. Sem nenhuma peça de roupa. No meu colo. Certo.
Agora, tenho que fechar a porta. Trancar com a chave. Sorrir. Respirar.
Andar. Vamos, você consegue, só aja normalmente. — Sou apenas um
humilde ouvinte. É seu para usar quando quiser.
— Eu me lembro de tocar. — Ela passa a mão sobre o veludo
carmesim do assento. — Bem aqui. — Em seguida, olha ao redor com uma
expressão sonhadora, certamente tentando se recordar de momentos que
continuam perdidos em sua mente.
— Por que não me disse antes que suas memórias estavam
voltando? — Envolvo sua cintura, suas costas acomodam-se em meu peito,
e descanso meus lábios em seu pescoço. — Você se lembra das aulas de
defesa pessoal que teve com meu irmão, então deve se lembrar de mais
coisas, estou certo?
Anastasia inclina o rosto para o lado, embalada em meus braços.
— Eu não tinha certeza se eram mesmo lembranças. Quando eu vim
para Moscou, não passavam de fragmentos. Agora eu já consigo ver cenas
inteiras. — Ela gira sem se desvencilhar de mim, apoia as mãos em meus
ombros. — Principalmente envolvendo você.
— Ah, princesa… — Inspiro seu cheiro, inclinando o corpo, e
encosto minha testa na dela. Seu nariz corteja o meu, nossas respirações se
confundem. — Ficar longe de você foi como morrer todos os dias, então
não espere que eu consiga libertá-la novamente, mesmo pela sua segurança.
Não consigo, Anastasia. É uma promessa. Estou jurando que prefiro ser
apunhalado, massacrado e enforcado a me afastar de você com minhas
próprias pernas. Se não for isso o que deseja, por favor, me diga agora.
Minha pequena e preciosa mulher suspira, na ponta dos pés, os
lábios resvalando de leve nos meus. Nem sequer pestaneja ao responder:
— Mesmo sem me lembrar de você, eu continuei te amando,
Andrei. Não sei como, mas meu coração jamais se esqueceu. Quer saber o
que desejo? Eu desejo que você não me deixe. Fique ao meu lado, faça com
que o resto de mim também se lembre. E não tem problema se, apesar de
tudo isso, algumas partes da minha memória jamais retornarem, pois você
as conhece, e poderá contar os detalhes no meu ouvido todas as noites como
se fossem histórias de dormir.
— É uma promessa, Anastasia — repito gravemente, com
severidade. Aperto-a contra mim, seu corpo todo delicado e macio em
contraste com a minha rigidez. — Você vai ser a minha mulher e nunca
mais haverá um dia de nossas vidas que passaremos longe um do outro.
Com ou sem memórias, eu a farei se apaixonar por mim quantas vezes
forem necessárias.
— E não existirá mais ninguém para nenhum de nós — acrescenta,
arrancando-me uma espécie de grunhido.
— Pode ter certeza disso.
Eu a consumo através de um beijo ardente. Seus lábios são macios e
urgentes, a língua encontra a minha com recato, mas não dura muito.
Anastasia tem uma habilidade extraordinária de entrar em sintonia e
adaptar-se ao meu ritmo, talvez por conta de seu talento musical. É isso,
beijar Anastasia é como ouvir a melodia mais linda, perder-me em suas
notas altas e baixas e permitir que me preencha inteiro. Ela me encanta.
Tudo o que não foi dito com palavras, deixo explícito em sua boca:
que ela é minha, que não há volta, que está proibida de desistir
independente do que venha a descobrir ou se lembrar.
As mentiras. As verdades. Nossa filha.
Removo a camada translúcida que cobre o seu vestido sem nem
tentar — as alças largas deslizam para o lado e a rede brilhante se amontoa
inteira aos nossos pés. Ainda resta muito tecido entre ela e eu, coisa que não
me deixa feliz, mas há outra barreira da qual preciso me livrar antes de
qualquer outra.
Contrariando a necessidade do meu corpo de se manter em contato
com o calor de Anastasia, recuo alguns centímetros e mantenho minhas
mãos suspensas entre nós, as palmas viradas para cima, ocultas pelo par de
luvas que eu raramente me permito ficar sem.
— Passei a usá-las depois de voltar para casa. Quando deixei o
hospital, eu não conseguia superar a sensação de estarem sujas de sangue.
— Fico surpreso com a crueza da verdade colocada em palavras e o quanto
é fácil compartilhá-las com Anastasia. — Por alguns meses, eu o sentia em
todo o meu corpo, minha visão era um borrão vermelho. Consegui superar a
maior parte com terapias e remédios, minha família também ajudou, mas as
luvas acabaram se tornando uma barreira. Eu me acostumei, mesmo não
precisando mais delas o tempo todo.
As mãos de Anastasia seguram uma das minhas, a esquerda, e me
atenho ao tamanho delas, é impossível não perceber a diferença: uma muito
grande no meio de duas menores, porém mais firmes e decididas, ao passo
que estou tremendo.
— Posso? — ela pergunta no tom do vento e dos segredos. Eu
movimento a cabeça, concordando. Com a delicadeza que apenas uma
violinista conseguiria ter, remove a primeira luva. Palma e pele se
encontram. — Essas mãos me salvaram.
Meu instinto me pede para voltar atrás, afastar-me, mas Anastasia
inclina o rosto até seus lábios tocarem meus dedos. Ela os beija um por um
como se fossem preciosos e repete o ritual na outra mão. Fico atento, quase
à espera de algum resquício de sangue minando através dos meus poros,
manchando sua boca, maculando-a com meu pecado. Não acontece.
É hipnotizante. A boca dela, macia, úmida, errante, carimbando
beijos repetidamente nas minhas mãos. No indicador, entre as juntas, nos
meus pulsos. Eu não deveria ir mais longe do que isso. Não é assim que os
vícios começam? Uma prova inocente que nos empurra para a dependência
vital? Mas que tipo de mentira estou contando? Nunca deixei de querer
mais uma prova de Anastasia. No máximo, tornei-me um abstinente
desejando em segredo mais um pouquinho dela.
Anastasia é definitiva em meu organismo. Não pode ser arrancada
como o álcool. E eu quero mais. Muito mais. Eu preciso dela inteira para
mim.
Enlaço-a pela cintura. Anastasia ainda está beijando a minha outra
mão quando seguro seu rosto, deslizo o polegar sobre a sua boca e
pressiono de leve, bem na abertura entre seus lábios suaves como algodão.
— Abre.
Ela me atende… porra.
No começo, parece não saber muito bem o que fazer com meu dedo,
mas assim que brinco com a sua língua, ela reage, sorvendo morosamente.
Tenho um vislumbre de quando a tive de joelhos com a mesma expressão,
em uma das infinitas vezes que fizemos amor. Já estive em sua boca antes e
sei que é pequena demais para mim — o que nunca foi um problema —,
por isso, sou capaz de evocar uma lembrança exata de como seus gemidos
soam à medida que me engole, de sua garganta se fechando ao meu redor.
— O problema de não ter estado em sua cama por tanto tempo,
princesa, é que agora eu quero tudo de uma vez.
Rio da perplexidade que toma conta do seu rosto, os olhos
crescendo, sua respiração engasgada. Havia me esquecido como é divertido
chocá-la. Antes que se recupere, recolho minha mão e a pego no colo.
Anastasia solta um gritinho, mas tem o ímpeto de se segurar, abraçando
meus ombros.
Percorro o caminho até seu antigo quarto, pois sei que o outro,
aquele que costumávamos compartilhar e que estive usando sozinho nos
últimos dias, está tão habitável quanto um cemitério. Ao deitar Anastasia
sobre a cama de aspecto antigo, pairo sobre ela, apoiado em meus
cotovelos. Sorrimos — e rimos de pura felicidade. Retiro uma mecha
volumosa de cabelo do seu rosto, os fios longos se espalham ao redor dela,
perfumado com notas frutadas e doces.
Ela segura meu rosto com carinho.
— Alguma vez você pensou em voltar atrás? Procurar por mim?
— Todos os dias — confesso. Beijo seu nariz, a ponta, depois sua
boca bem suavemente. — Passei o último ano lutando contra esse impulso,
convencendo a mim mesmo de que valia a pena manter distância.
— Até eu estragar os seus planos com a minha obsessão de
encontrar o homem que eu amava. Que amo — ela se corrige.
— Foi por isso que veio? Me encontrar?
— Principalmente. Eu sonhava com você, sabia que o amava, mas
não conseguia ver o seu rosto. Para falar a verdade, até você me beijar esta
noite, eu ainda não tinha visto claramente. — Sua voz fica embargada. —
Quando nossos lábios se tocaram e fechei os meus olhos, eu me lembrei.
Consegui vê-lo. Sempre foi você, Andrei. O homem dos meus sonhos,
sempre foi você.
Uma gota molha sua face — minha lágrima de alívio.
Beijo minha mulher. Minha. Nunca deixou de ser. Sinto o gosto
salgado e sei que não é apenas o sabor do meu choro em sua pele, mas do
dela também, que ri enquanto lágrimas escapam dos seus olhos. É um
momento mágico e raro. Rir de felicidade. Amar por amar. Não tinha como
ser de outro jeito. Eu me apaixonei por Anastasia à primeira vista, somos
feitos um para o outro. Estamos ligados. Destinados.
— Amo você, princesa — declaro, e acho que ela murmura uma
resposta em concordância, mas já a estou beijando novamente, roubando
suas palavras e fôlegos.
O que é lento, se torna rápido e intenso e desesperado. Eu a beijo
com força, ganância, e Anastasia retribui com igual necessidade, embora
infinitamente mais delicada e gentil. Os dedos que se infiltram por dentro
da minha camisa são hesitantes, as pontas me causando arrepios, e quando
pressiono nossos quadris, com a dureza contida em minhas roupas se
avolumando a um limite doloroso, Anastasia geme alto.
O som é a minha perdição.
Livro-me das indesejáveis vestimentas que bloqueiam os meus
braços e pernas de sentirem a totalidade do corpo dela, a jaqueta e as calças
vão parar no chão, e minha camiseta… eu sinceramente não me importo.
Acaricio suas panturrilhas. A lâmpada solitária no centro do teto
está acesa, apesar de eu não saber qual de nós a ligou quando passamos pelo
interruptor, e a luz amarelada que ela emana é fraca como a chama de uma
vela. Mas consigo observar sua pele se arrepiando à medida que meus
dedos passeiam ao longo dos joelhos e coxas.
Seu vestido marrom é maleável e elástico, de modo que o retiro sem
grandes malabarismos. Eu já suspeitava que não encontraria nada por baixo
além de uma minúscula calcinha de renda, mas ver seus seios — tão
maiores do que eu me lembrava — faz minha boca ficar seca com a vontade
de prová-los. Detenho-me, porém, pois Anastasia os cobre em uma adorável
explosão de timidez.
Explicar ao meu cérebro que devemos ir com calma, no entanto, é o
mesmo que dispor um prato de comida diante de um prisioneiro faminto e
exigir que ele use garfo e faca ao invés das mãos.
E já estou descendo, aceitando qualquer parte dela. Beijo o interior
de suas coxas. Anastasia suspira alto, ofegando, e tomo isso como um
incentivo para seguir em frente. Removo sua última e insignificante peça.
Admiro por vários segundos a figura imaculada sobre a cama, preparada
para mim, as pernas levemente afastadas. Testo sua receptividade primeiro,
sentindo a textura úmida com os dedos.
Ela fica tensa e me afasto no mesmo instante.
— Não! — diz, alarmada. Estica o braço, impedindo-me de sair. —
Eu não quero que você pare. É só que… — Ela morde o lábio, desvia o
olhar e enrola as mãos no lençol branco. — Eu não me lembro de ter me
relacionado com alguém. Eu sei que já fiz isso, e que eu e você já fizemos,
e que eu possivelmente já havia feito muito antes de você…
— É a sua primeira vez — concluo, e quase me dou um murro no
nariz por demorar tanto a perceber o óbvio.
— A primeira de que me lembro — murmura. — Ou que vou me
lembrar, enfim.
— A primeira. — Estendo-me sobre seu corpo. Sinto minha pele
queimar diante do contato, fogo clamando para ser subjugado dentro dela.
Pouso minha boca em seus lábios. — É assim que eu quero que você pense.
Que esta é a sua primeira vez, sua primeira memória de ser tocada por um
homem. Porque é, Anastasia. Mesmo que venha a recuperar memórias de
tempos que não merecem ser lembrados, ou das outras vezes que estivemos
juntos, elas virão depois de hoje. Então este momento será para sempre a
sua primeira recordação de quando entregou o seu corpo e recebeu de volta
todo o amor que merece.
Sinto o formato do seu sorriso com a boca. Ela envolve os braços
em mim, seus seios fartos roçam no meu peito, as pontas túmidas me
levando à loucura. Passamos vários minutos nos beijando. Língua, dentes e
estalos. Minha mão direita recomeça o estímulo entre as suas pernas, e
dessa vez Anastasia não me rechaça. Oh, não. Ela se abre para mim e
choraminga quando a possuo com o indicador e o dedo médio ao mesmo
tempo.
Escorregadio, penso, deleitoso.
Ela está pronta.
Perfeita.
Tenho o bom senso de colocar um preservativo. Fico feliz por ter
mantido alguns na gaveta ao lado da cama, mesmo que não os usássemos
antes. Anastasia estava grávida, e nenhum de nós precisava se preocupar
com doenças — ainda não precisamos, porém, por mais que eu queira
muito colocar um filho dentro dela, é uma ideia que precisamos discutir
juntos.
Da segunda vez em diante, talvez?
Isso. Gosto desse plano.
— Olhe para mim, princesa, não tire os olhos de mim. — Meu
clamor é prontamente concedido. Seu rosto, as expressões livres como são
as nuvens e as estrelas, revelam a certeza absoluta que está sentindo, o
quanto me quer. Ainda assim, eu preciso que ela diga. — Tem certeza?
Suas pupilas dilatam, o preto preenchendo quase todo o castanho.
Com um prazer absoluto, sentido não só no meu corpo, como em minha
alma, noto que ela não pensa duas vezes antes de responder:
— Você sempre teve o meu sim. Eu fui sua quando você era apenas
um delírio, e quero continuar sendo agora que tenho a sua versão real para
tocar, beijar e amar. — Anastasia inclina metade do corpo para cima,
incitando-me, oferecendo a si mesma como um cordeiro ao sacrifício. —
Você disse que queria tudo. Pegue tudo, Andrei.
Adentro o estranho mundo da luxúria, onde palavras não fazem mais
sentido. Emudeço ao ver o êxtase que inunda suas feições durante o tempo
que a preencho lentamente. O interior de Anastasia esmaga minha carne e
reprimo o impulso sádico que me estimula a alcançar o fim em um golpe
ambicioso.
Aproveito cada longo, longo segundo. Sua boca entreaberta é um
convite que eu me nego a aceitar de imediato, porque gosto demais de sua
expressão para não apreciá-la. A parte visual de fazer amor sempre foi a
minha favorita. Assim que estou inteiro dentro dela, Anastasia geme, o som
carregado com dolência e prazer.
Fico parado, pulsando. Deixo que se acostume com a sensação e a
beijo na boca, no queixo, nas bochechas. Então me lembro de provar suas
maçãs do rosto e dou uma leve mordida. O sabor é melhor do que o néctar
da fruta mais doce.
Continuo mordiscando cada pedacinho dela, e descubro que posso
tornar isso um hábito. Mordo sua mandíbula, a orelha, desço até as
clavículas, onde me permito fechar os dentes com mais força. Ela emite um
barulho que vibra contra o meu peito e reduz o meu autocontrole à quase
inexistência. Movo-me em seu interior, saindo e entrando, estocadas que
progridem com uma rapidez avassaladora.
Seus gemidos convergem com o balançar de nossos corpos:
potentes, tresloucados, febris. Ela enterra as unhas nas minhas costas, a
ardência combinada ao êxtase por pouco não me leva à ruína antes da hora.
Cerro meus dentes, meus músculos enrijecidos como pedras, e sou obrigado
a encará-la com perplexidade — e fascinação, afinal, que caralho de mulher
que sempre me pega de surpresa!
Anastasia percebe que fico por um fio e sorri.
— Desculpe. — Mas ela não parece arrependida. Nem um pouco.
— Não. — Tento me manter sério, mas acabo sorrindo. — Não é
assim que funciona. — Deito-me atrás dela, de lado, colo suas costas ao
meu corpo e passo um braço por baixo de sua cabeça, alcançando seus
seios. — Joelho erguido, Anastasia.
— A-assim? — Ela obedece certinho, e aprovo com um beijo em
sua nuca. Assim, à minha mercê, não pode fazer gracinhas, e eu consigo dar
a ela toda a atenção que merece.
Recomeço minha peregrinação por seu corpo. Graças à nova
posição, consigo alcançar um ponto que a faz convulsionar em meus braços.
Não me contenho. Possuo a minha mulher da forma como nós dois
precisamos. Completa e intensamente. Usando meu braço livre, ajudo a
sustentar sua perna no alto enquanto a estimulo com movimentos circulares
e constantes.
Choco-me dentro dela, indo e voltando. Beijo e chupo e lambo todo
lugar que minha boca encontra. Marco sua pele com dedos e dentes. E sinto
quando ela paira no abismo.
— Tudo — exijo em seu ouvido, batendo mais rápido, massageando
mais forte. — Quero tudo.
E tudo eu recebo.
Ela grita, contorcendo-se, o ápice do prazer impresso em seu lindo
rosto satisfeito, e francamente, eu não me prolongo nem um segundo a
mais, não consigo. Abraço Anastasia bem apertado enquanto me
desmancho, eu me liquefaço, viro nada, e muito maior e mais intenso que a
euforia física, é aquela que sinto em meu coração.
Porque Anastasia é minha, como sempre deveria ter sido.
Minha mulher, a quem eu amo.
E embora eu tenha pedido que me desse tudo, é ela quem detém o
direito a cada parte de mim.

***

Eu acho que perdi uma coisa importante.


A frase ecoa enquanto eu abro os meus olhos, mas não me sinto sem
ar, desesperado ou com medo. É a primeira coisa que percebo ao acordar:
não tive nenhum pesadelo durante a noite, e essa é a primeira vez em...
bem, em mais de um ano.
A segunda coisa que noto é a ausência de Anastasia ao meu lado,
que me leva à terceira percepção: a música.
A melodia está no apartamento inteiro, reverberando através de
notas alegres e de ritmo acelerado. Anastasia sempre teve o hábito de abrir
as portas do seu coração quando toca, então eu recebo a música como um
presente, pois graças a isso eu tenho certeza de que ela está feliz e não se
arrepende de nada do que fizemos durante toda a madrugada.
Meus cabelos ainda estão úmidos do banho que tomamos juntos
antes de sucumbirmos à exaustão, então faço uma rápida visita ao banheiro
para escovar os dentes e saio atrás do som, como os ratos de Hamelin
seguindo o feitiço musical do flautista. No meu caso, ao invés da morte
certa, eu chego no paraíso.
Ela flutua na frente do piano, não tem outra maneira de descrever.
Sinto sua alegria na forma como se move, os dedos ágeis pressionando
teclas mais rápido do que meus olhos conseguem acompanhar. Está vestida
com um roupão, e aposto que não há nada por baixo dele, mas como não
quero estragar o momento arrastando-a de volta para o quarto, ou
possuindo-a ali mesmo, tento não pensar muito a respeito.
Seus cabelos estão soltos, levemente despenteados. O marrom
escuro dos fios cria um contraste divino com sua pele. É um daqueles
momentos em que penso nela como nada além de uma deusa.
A música chega ao fim e a cumprimento com uma salva de palmas.
Seu rosto afogueado pelo esforço de tocar se ilumina ainda mais ao me ver.
— Alla Turca, de Mozart, faz parte da Sonata para piano número
onze em lá maior — ela diz, como se isso explicasse alguma coisa
importante. Deve ser um lance de prodígio, eu não sei, mas não a questiono.
O importante é que está feliz.
— Eu adorei, princesa, é linda. E você ainda mais. Linda e talentosa,
que homem de sorte eu sou. — Curvo-me sobre ela e roubo um beijo. —
Por que não me acordou? Eu teria sido uma plateia mais dedicada à causa.
— Que causa?
— Idolatrar você.
Ela sorri. Deve achar que estou brincando.
— Não tive coragem — responde. — Você estava tão bonitinho
segurando a ponta do lençol perto do rosto, parecia um bebê dormindo.
Não coro com frequência, mas Anastasia consegue trazer alguma
quentura ao meu rosto. Estou acostumado a ser aquele que a observa
enquanto dorme, não o contrário. Dou um pigarro e vou logo mudando de
assunto.
— Como está se sentindo? — Sento-me na poltrona reclinável e
estico a mão. Ela se junta a mim, jogando as pernas de lado, sobre os braços
do assento de couro
— Eu me lembrei de mais algumas coisas — conta. Não sei como
reagir, então fico quieto, torcendo para que não tenha recuperado uma
memória horrenda. — Dias inteiros que passamos juntos, eu e você, e
momentos com a sua família. Consigo me lembrar de todos agora, de como
são unidos e do quanto eu realmente gosto deles. Ah, eu me lembrei das
crianças: Iago, Luna, os priminhos Kolya e Tatiana; o nome dela é uma
homenagem à sua mãe, certo? — Faço um sinal positivo com a cabeça. —
Também me lembrei que a gente tinha uma dinâmica de trocar segredos
problemáticos.
Anastasia sorri, olhando-me por baixo dos pequenos cílios escuros.
Sinto uma pontadinha no peito, e não sei ao certo se é dor, saudade ou amor.
Olho para o colar em seu pescoço, os dois pingentes que nos
representam brilhando graças à luz da manhã — Anastasia abriu todas as
cortinas e nosso apartamento parece um lugar habitável outra vez.
— Quer tentar? — pergunto. Ela concorda, rindo. Da última vez que
tentamos isso, foi um desastre. — Como funcionam as suas memórias?
Pode me contar? Seus pais disseram que era impossível recuperá-las.
Sondo seu rosto para ver como reage ao assunto. Ela pensa um
pouco antes de responder, mas não demonstra se incomodar. Acho,
inclusive, que ela parece bem confortável.
— No início, os médicos chamaram a minha condição de Amnésia
Dissociativa, é um tipo de perda de memória que está ligada a um evento
traumático. Porém, como normalmente esses casos se revertem após
algumas semanas ou meses, levantaram a possibilidade de que eu tenha
desenvolvido também uma sequela no funcionamento da minha rede neural,
resultante de um traumatismo ocorrido na minha infância.
— Esse evento teve a ver com seus irmãos? Você me contou uma
vez que tinha se acidentado na infância, eu não sabia que tinha sido grave
assim.
— Era meu aniversário de oito anos. Meus pais não me deixaram
comemorar porque, no dia seguinte, eu ia participar de uma competição.
Meus irmãos fizeram uma surpresa escondida e me levaram para comer um
bolo no jardim. Mas nossos pais voltaram mais cedo e nós tentamos pular o
muro para não sermos vistos. Eu caí, bati a cabeça e fiquei quase um mês
em coma. Zayn acabou levando a culpa sozinho. Quando acordei, eu tinha
perdido a lembrança daquela noite. Ela nunca voltou.
Então existia mesmo uma chance de ela jamais se lembrar de mim,
mas não quero reviver essa hipótese em meu coração.
— Está me dizendo que seu cérebro tende a repetir o padrão de
deletar algumas lembranças diante de um grande estresse?
— Exato, sobretudo quando envolve um risco à minha vida.
Ela se deita em meu ombro e fica brincando distraidamente com o
par de pingentes. Eu nunca soube dessa parte, seus pais esconderam muito
bem, mas agora tudo faz sentido.
— No dia em que eu representei Yerik como advogado — relembro
—, você entrou em choque, saiu correndo pelas ruas, desesperada, e foi
resgatada por Ivan depois de desmaiar. Ele me contou que você não se
lembrava de ter feito o trajeto, mas não demos atenção na época. — De
repente, sinto o impacto da realidade e minha visão fica turva. — Espera,
isso quer dizer que pode acontecer outra vez?
Anastasia levanta o rosto e sorri.
— Eu não pretendo passar por outra experiência de quase-morte,
mas sim.
Nem fodendo.
Não.
Ela nunca mais vai passar por algo minimamente parecido. Eu
garanto que não. Isso significa que eu não tenho direito a um erro. Tudo
precisa ser perfeito.
A ideia de construir uma redoma blindada passa pela minha mente.
— Esse colar não era meu, né? — Ela me surpreende com a
pergunta.
Eu reorganizo meus sentimentos antes de responder. Beijo seus
cabelos, a bochecha e me demoro em seus lábios.
— Eu devia ter contado antes de fazermos amor, então existe uma
chance considerável de você me odiar depois disso. Se for o caso, me odeie
ao meu lado, okay?
Seu olhar me sorri com carinho. Ela me abraça, encaixando a cabeça
no meu pescoço. Sua proximidade acalma as batidas ansiosas do meu
coração.
— Eu também... — Pausa de modo hesitante. — Como é uma troca,
para mantermos a nossa tradição, quer dizer que nenhum dos dois pode
fugir no final — ela decide. Gosto desses raros momentos em que exerce a
sua autoridade, ditando as regras. Anastasia não sabe o poder que tem sobre
mim. Eu cometeria loucuras, os piores crimes, se ela mandasse. — O que
tem para me contar, Andrei?
Tudo.
Pegue tudo.
— O depois — digo, fechando os olhos. No apartamento silencioso,
meu sussurro soa alto e terminante demais. — Como foi depois que saímos
daquele cativeiro. Tudo o que aconteceu no hospital. E principalmente, o
que nós dois perdemos.
39
Um ano antes.

Andrei
ALGUÉM ME CONTOU que Anastasia perdeu o bebê. Não sei quem. E
não sei quanto tempo se passou desde que a informação chegou até mim.
Uma hora? Um dia?
Droga, eles me prenderam à cama porque eu estava gritando e
chorando, e acho que quebrei o nariz de um médico. Depois me apagaram
para evitar que eu acabasse me machucando — com ou sem intenção.
Ainda sinto o efeito do calmante no meu organismo, uma leve sensação de
estar lento em relação à vida real. Agora não tenho como fazer nada além
de… de o quê?
Minha filha não existe mais.
Estou tentando entender, juro que sim. Os médicos dizem que
preciso, como é mesmo? Reagir. Isso. Eles querem que eu faça alguma
coisa, mas sem me esforçar demais para não prejudicar o meu braço
esquerdo, que está imobilizado por causa da cirurgia que fizeram no meu
ombro, e de uma fratura na minha mão. Acho contraditório, estou preso e
dopado, mas não digo nada. Tenho a impressão de que, se abrir a minha
boca, será para amaldiçoar cada um deles por não salvarem a minha
garotinha.
Na minha cabeça, onde eu consigo me isolar da realidade, há uma
série de caixas em um corredor vermelho. Cada caixa possui um rótulo.
Estão organizadas por data, eu acho. O que veio antes e o que veio depois, e
cada uma está relacionada à próxima. É como uma trilha de dominós: ao se
empurrar a primeira peça, não tem como evitar a reação em cadeia, elas
desabam umas sobre as outras até não restar nada.
Eu achava que tudo tinha começado com Anastasia. No aeroporto.
Mas foi antes. A primeira caixa é antiga e nela está escrito “Evgenia sofreu
um aborto”, o primeiro acontecimento em uma série de desastres. Foi por
causa dessa perda que eu fiquei preso em um relacionamento condenado. E
por não ter me curado completamente, acabei me deixando levar pelas
enganações de Yerik, pensando nele como um pai desolado pelo abandono
da mulher grávida.
Está tudo conectado de uma forma ou de outra.
No dia em que me separei de Evgenia e Anastasia fugiu de Yerik,
nós nos apaixonamos à primeira vista. Era de se esperar, já que ambos
tínhamos a mesma vontade não saciada de amor. Nós éramos iguais em
nossos sofrimentos.
Um miserável reconhece o outro.
Mas não era o bastante. Não foi o bastante.
Aqui, em meu recanto alucinado de recordações em caixas e
corredores de sangue, vejo como nossa história é cheia de momentos tristes
e alguns poucos respiros de felicidade. Não há equilíbrio. Os últimos
eventos são especialmente trágicos.
Anastasia foi sequestrada.
Eu matei Yerik.
Anastasia sobreviveu ao tiro.
Ela não se lembra de nada.
Nossa filha está morta.
Não há mais caixas.
Então é isso. O que começou com a perda de um filho, terminou
com a perda de outro.
Fico imaginando como seria a relação dos dois se estivessem vivos.
Aposto que seriam bons irmãos. Caso o primeiro bebê fosse um menino, ele
seria protetor com a irmãzinha, como é típico de todo garoto da nossa
família. Os dois cresceriam ao lado dos primos, e dentro de alguns anos
teríamos uma pequena gangue de Volkiovs causando estragos por todo o
país.
Mas sei que estou apenas me torturando com tais pensamentos
inúteis. A realidade não pode ser alterada só porque estou sofrendo.
Ao lado da minha cama, sobre um móvel alto de cabeceira, está o
colar que encontraram no meu bolso. Uma coroa e uma nota musical feitos
de ouro e brilhantes. Eu disse aos meus irmãos que entregaria pessoalmente,
mas ainda não consegui me encontrar com ela.
Anastasia, segundo disseram, está se recuperando devagar. Os pais
dela já estavam aqui quando chegamos e assumiram a frente do seu
tratamento. Eu não queria, eles não teriam sido a minha escolha número
um, e nem a número cem, mas precisávamos de alguém que pudesse nos
ajudar a desassociar a imagem de Anastasia da nossa e de Yerik, e eles
mentem muito bem.
Vladimir me garantiu que o plano está funcionando. A parte mais
difícil é não podermos nos aproximar dela. Ficar ao seu lado. Ela já sabe?
Alguém contou sobre a nossa filha? Como ela reagiu?
Porra, eu preciso da minha mulher! Foda-se tudo.
Ouço as dobradiças da porta. Deve ser alguém da minha família
vindo conferir se o efeito dos sedativos já passou, ou um enfermeiro com
mais remédios. Seja quem for, quero que remova as restrições para que eu
possa ir atrás de Anastasia, então forço minhas pálpebras arenosas a se
abrirem.
E vejo uma figura parada na extremidade da minha cama que faz
meu coração parar por um momento. Não de alegria, mas de terror.
É ele.
O rosto desfigurado e ensanguentado. Yerik. Tento me arrastar para
longe dele, porém, estou amarrado — meu pulso direito e os tornozelos.
Não tenho como me mover. Assim como fiquei amarrado àquela cadeira
enquanto Anastasia sangrava. Meu corpo sofre um espasmo, como se meu
subconsciente também quisesse sair correndo.
Sinto ânsia de vômito. Tem alguma coisa errada com o meu peito.
Uma camada grossa de suor frio escorre pelas minhas têmporas, mas não
consigo alcançar o rosto para limpar. Eu pisco, minha visão é engolida por
uma penumbra carmesim, e ele desaparece. Apenas um segundo e não está
mais ali, assombrando-me. Em seu lugar, há uma mulher baixa e magra que
conheço bem.
Evgenia.
Ela caminha ao redor da minha cama de hospital. No meio da névoa
vermelha que confunde meus pensamentos e emoções, não consigo registrar
como está vestida ou qualquer outro detalhe sobre a sua aparência. Reparo
apenas em uma coisa: ela está sorrindo.
Será que percebeu o meu pequeno ataque de histeria? Os médicos
disseram que as alucinações fazem parte do trauma e que devem
desaparecer com tempo, paciência e bastante ajuda psicológica. Eu disse a
eles que um copo de vodca, ou qualquer coisa alcoólica, resolveria o
problema. Minha sugestão foi, obviamente, ignorada.
Minha única mão disponível continua enfaixada, mas consigo mover
os dedos e os enterro no colchão, agarrando-me a qualquer coisa que me
ajude a manter a lucidez. Eu gostaria que Evgenia fosse outro delírio, outra
invenção da minha cabeça fodida que vai desaparecer assim que eu piscar
os olhos novamente.
Preferir fantasmas a tormentos de carne e osso deve dizer alguma
coisa sobre mim. Mas não cedo a esperanças vazias e a encaro, dando a ela
a atenção que deseja.
Evgenia sempre gostou de me ver assim, no meu pior estado.
— O que est… — Caralho. Não esperava que minha voz fosse soar
tão patética e frágil, então faço uma pausa e recomeço, dessa vez,
controlando o meu tom corretamente. — Como conseguiu entrar aqui?
— Alguma vez você já pensou — diz, observando os aparelhos
conectados ao meu corpo, contando o ritmo dos meus batimentos — como
teria sido se não tivesse me deixado?
Está claro que não vai responder a minha pergunta. Ela coloca um
pequeno arranjo de flores na mesa, perto do colar. Conto os botões
vermelhos. Seis.
Um número par para o luto.
— O que você quer?
— Não, eu aposto que não. — Ela me ignora mais uma vez. Seu
jeito de falar é estranhamente doce e calmo. — Você nem imagina, não é?
Tudo, tudo teria sido diferente, Andrei. Nada disso precisava ter acontecido.
Você só tinha que ficar comigo. — Sinto sua mão em meu tornozelo, mas
como não há nada que eu possa fazer para escapar de seu toque, também
não dou a ela a satisfação de perceber a minha repulsa.
— Vá embora — ordeno, frio e direto. Meu corpo fica tenso
involuntariamente quando ela começa a subir os dedos.
Evgenia ri alto, o som me remete a unhas raspando em uma lousa de
giz.
— Eu vi nos jornais o que seus irmãos estão fazendo. — Ela para na
linha do meu joelho e se inclina sobre mim, sua outra mão afunda ao lado
da minha cabeça, no travesseiro sobre o qual estou deitado. Seu longo
cabelo preto, que um dia achei atraente e lindo, ofusca toda a luz e nenhum
brilho consegue chegar aos seus olhos. — O poder do dinheiro é
impressionante, vocês conseguiram mudar a história, mas você sabe que a
culpa é sua. Como sempre, meu amor, você é o único culpado.
— Não me chame assim, não sou seu amor. Não sou nada seu.
Mas a culpa é minha, ela está certa.
— Você é meu — sussurra. — Nunca deixou de ser.
— Eu avisei para ficar longe de mim e da minha família — digo
apaticamente. Estou cansado demais para brigar com ela. Considerando
minha posição desfavorável, só existe uma pessoa capaz de sair vitoriosa
desse embate, e não sou eu. Conheço Evgenia, eu só preciso suportar até
que ela alcance qualquer que seja o seu objetivo do dia.
Minha filha morreu.
Minha mulher não se lembra de mim.
Eu matei uma pessoa.
Honestamente, aguentar o assédio de Evgenia é o menor dos meus
problemas.
— Um dia, Andrei Volkiov, você encontrará alguém que não vai
conseguir salvar — ela recita as mesmas palavras que disse quando nos
separamos, uma maldição de rancor que eu nunca levei a sério — e eu
espero estar por perto para assistir a sua queda quando esse momento
chegar. — Evgenia sorri, desliza a mão pela minha coxa. — Eu tinha que
ver — diz de um jeito manhoso. — Andrei Volkiov, o salvador de
ninguém.
Sua voz se assenta na minha mente e cria raízes muito profundas.
O salvador de ninguém.
— Saia. — Ouço o ranger dos meus dentes. — Tire as mãos de
mim.
Sua expressão oscila — mágoa, mas rapidamente encoberta por um
sorriso largo.
— Sabia que sua mãe me procurou uma vez? Não é engraçado?
Antes do nosso bebê. Sou muito grata. Graças a ela, eu pude entender que a
sua família seria sempre um problema.
— Do que caralhos você está falando?
Paro de respirar com o próximo movimento de sua mão. Ela nota
minha tensão e ronrona como um felino cujas garras estão fincadas na
cauda de um ratinho. O toque já não me é familiar, sinto-me invadido
conforme seu dedilhar continua rumando para cima, ao longo da minha
barriga até o ponto sobre o meu coração, onde sua mão enfim repousa com
os cinco dedos abertos.
— Está doendo, eu sei. Mas você fez isso quando trouxe as duas
para as nossas vidas. Por que pensou que tinha o direito de assumir a
criança de outro homem depois de causar a morte do nosso bebê, Andrei?
Depois de me abandonar? Essa dor que está sentindo é um lembrete de que
você não merece seguir em frente sem mim.
Seu veneno penetra as camadas vulneráveis dos meus pensamentos.
Não tenho como lutar contra a verdade que ela injeta nas minhas veias: a
culpa é o carma da desonra; o tamanho da culpa que sentimos é equivalente
ao sofrimento que causamos.
— Sim, está doendo — digo sem emoção. — Pronto, era o que você
queria escutar? Tire uma foto, se preferir, só faça depressa ou vai acabar
sendo pega. — A expressão dela fica cinza. — Por que essa cara de
surpresa? Você é boa no que faz, mas não é melhor do que eu, Genny. Ficou
esperando quantos dias por essa oportunidade ideal de invadir o meu
quarto? Quem você subornou para conseguir o acesso? Quanto tempo te
deram, hein? Cinco minutos? Dez? É melhor se apressar.
Evgenia comprime os lábios, confirmando que fiz a leitura correta
da situação.
— Já estou de saída. — Ela crava as unhas no meu rosto. — Só mais
uma coisa…
Minha mente fica em branco, como se o relógio pulasse um
segundo, e quando compreendo a boca de Evgenia se forçando contra a
minha, é tarde demais. O rosto de Anastasia pisca no meio do nada, um
vislumbre de lembrança que amplifica o sentimento de nojo que toma conta
de mim. Viro o rosto com brusquidão e me debato.
Sou mais forte, mesmo preso, e a cama é alta. Ela tenta segurar a
minha cabeça, mas não consegue. Por fim, Evgenia se endireita, rindo,
passa o polegar na boca, soltando um gemido agudo. A cena toda é
perturbadora, confusa, e não deixo de pensar que talvez eu só esteja tendo
um pesadelo.
Quem sabe ela faça parte do trauma também, uma alucinação que eu
mesmo criei para me castigar.
— Ficou louca? — pergunto, incrédulo, com raiva e asco, minha
visão embebida em sangue, os dentes trincados.
— Eu sabia que você não ia gritar. Seus irmãos estão na sala ao
lado, teriam vindo correndo. Mas você é do tipo que prefere sofrer sozinho.
— Vá. Embora. Porra! — vocifero.
Ela faz uma última carícia na minha mão enfaixada, que mantenho
em punho apesar da dor que me aflige. Abaixa-se perto do meu ouvido e eu,
por reflexo ao que acabou de acontecer, viro a cabeça, praticamente
afundando o rosto no travesseiro.
— A ignorância é uma benção, Andrei. Ela não vai entender, não
como eu. Nada pode ficar entre nós. Filhos, mulheres e nem a sua família.
No final, eu sempre serei aquela que vai aceitar você apesar de qualquer
coisa, do sangue inocente nas suas mãos, das suas mentiras e manipulações,
porque nós somos iguais. E assim como eu disse que estaria aqui para ver a
sua queda, estarei vendo você rastejar de volta para mim.
Não aceito suas palavras. Nada do que ela diz tem coerência. Eu
amo Anastasia. Com ou sem memórias, ela é o amor da minha vida. Minha
mulher. Minha princesa.
É isso o que estou prestes a dizer, mas assim que viro o meu olhar
em sua direção, Evgenia já está saindo do meu quarto. A porta se fecha, um
retângulo branco com uma maçaneta dourada, e não volta a se abrir.
Mantenho meu olhar fixo na entrada, esperando o seu retorno para mais
tormentos, mas o silêncio se prolonga e é como se ela nunca tivesse estado
aqui.
Talvez tenha sido mesmo um pesadelo?
Eu estou quebrado nesse nível?
Esfrego a ponte entre os meus olhos, tentando limpar a matiz
vermelha que tinge o meu mundo, mas…
Espere.
Confuso, olho para minha mão direita, aquela que Evgenia tocou
antes de sair. Livre. Ela me soltou? Por que?
Bem, não importa. Estou à beira de outro ataque. Eu o sinto
rastejando dentro de mim como uma víbora, veneno gotejando de seus
dentes afiados. Anastasia — o nome dela, o conceito de sua existência —
brilha nos confins mais obscuros da minha mente, a luz que eu preciso
perseguir, minha salvação.
Não posso dizer como, já que meus membros não parecem
responder aos meus comandos muito bem, como se houvesse um atraso de
comunicação entre o meu cérebro e o restante do meu corpo, mas termino
de me soltar. Desconecto os fios que estão colados no meu peito e arranco
agulhas dos meus braços. Um aparelho começa a emitir um som constante e
alarmado, e de alguma forma sei que preciso sair daqui logo.
Passo a mão pela corrente dourada e corro aos tropeços para fora do
quarto. Não há ninguém. Seja lá o que Evgenia fez para abrir caminho até
mim, ainda está em andamento. Respiro fundo. Pisco em meu mundo de
sangue, a visão manchada, e começo a caminhar à procura de Anastasia.

***

Estou caminhando.
Cambaleando, é o termo.
Meu corpo ainda está doendo. Hoje fazem… onze dias? Doze? Doze
dias desde a minha chegada ao hospital. Sete que estou acordado. Ainda
não vi Anastasia. Doze dias.
Anastasia perdeu nossa filha por causa daquele tiro. Faz doze dias,
então. Yerik a tirou de nós. Minha menininha. Eu matei o desgraçado e,
mesmo assim, ele continua causando destruição. Quando vai acabar? Será
que devo ir atrás dele no inferno? Só assim nós teremos um pouco de paz?
Eu ando sem rumo pelos corredores do hospital, ele está
praticamente vazio. Os enfermeiros que me veem não tentam me parar,
devem pensar que sou um simples paciente fazendo a sua caminhada de
rotina.
Sinto-me desajeitado e fraco, como um boneco cujas pernas e braços
foram surrupiados de outro brinquedo. Meu ombro, agora percebo, precisa
mesmo de cuidados, ele dói se me movimento rápido demais. Os médicos
estavam certos.
Esfrego meus olhos, tentando limpar a minha visão, mas não
adianta, para todos os lados que olho, continuo enxergando sangue. Meu
mundo se tornou vermelho — mais um lembrete constante de que Yerik
está morto apenas na carne, pois as consequências dos seus crimes ainda
pairam, terríveis e inevitáveis.
Através das placas de orientação, eu me guio sem problemas. Sei
qual é o número do quarto de Anastasia porque escutei meus irmãos
conversando a respeito, mas pouco antes de virar no último corredor, eu a
encontro.
E fico paralisado.
Hipnotizado.
Seus olhos estão fechados, o corpo embalando suavemente enquanto
ela conduz seu instrumento imaginário. Eu quase consigo escutar a música.
Sua expressão corporal canta as notas ao vento e a leveza em seu rosto é
algo que eu nunca vi antes.
Nunca.
Anastasia é como um anjo com asas enormes, o mundo ao seu
dispor.
Ela sorri enquanto movimenta o braço para frente e para trás, os
dedos firmes no arco invisível. Há um brilho ao seu redor, uma luz antes
apagada que ilumina a minha alma obscura. Ela é puro frescor, o primeiro
raio de sol a banhar o mundo depois de uma noite muito longa e gelada.
Sinto-me um intruso, um alienígena em seu pequeno antro de
felicidade. Meus olhos se enchem de lágrimas pelo simples fato de poder
vê-la tão bem.
Eu não sei o que esperava encontrar, mas era qualquer coisa muito
distante do que vejo agora. Na última vez que a vi desperta, ela estava
chorando, havia muito sofrimento em seus olhos, minha mulher estava
amarrada, quebrada, sua mente violada. Acho que meu maior medo era
reencontrar todos aqueles sentimentos horríveis estampados em seu rosto.
Mas não há nada além de pura liberdade.
Porque ela não se lembra.
— Caramba! — Anastasia exclama, dando-se conta da minha
presença. — Eu não vi você aí. Ainda bem que não tenho um problema
cardíaco.
Antes que ela perceba, esfrego meus olhos para afastar as lágrimas e
volto a encará-la, sem acreditar que minha Ana, minha princesa perdida, a
musicista prodígio, a mulher mais talentosa que conheço e amo, está
sorrindo para mim. Deve ser um sonho. Talvez eu ainda esteja amarrado à
cama, delirando. Se for o caso, espero não acordar jamais.
— Você não é um fantasma, né? — pergunta.
Inesperadamente, eu sorrio. Não faço a menor ideia de como
acontece, mas meus lábios se curvam para cima e sinto uma onda de calor
se espalhando dentro de mim. Não sei o que responder, como falar, o que
dizer sem manchar o seu universo brilhante e iluminado com a minha
viscosidade vermelho-escura e sombria.
Eu vim até aqui com que propósito? Arrastá-la de volta para o meu
pesadelo? Destruir… tudo isso? Apagar sua luz outra vez?
Lembro que estou segurando o colar. O presente que comprei em
uma outra vida, e o imagino em seu pescoço, destacado sobre a pele negra
de seu colo esguio. Estamos ambos usando pijamas, o uniforme hospitalar
destinado aos pacientes, mas Anastasia poderia estar a caminho do tapete
vermelho; tudo o que ela usa se torna automaticamente digno de um Oscar.
Depois de muito pensar, eu me aproximo, e estou ciente de seu
estranhamento.
Eu sou ninguém para a mulher que é o meu tudo.
Ao entrar em seu espaço pessoal, preparo-me para acalmá-la caso
estranhe o meu comportamento, mas Anastasia não se move, não se
encolhe, não me rechaça, ela fica ali, parada, olhando-me com uma
curiosidade inocente e esperta.
Linda.
Abaixo-me e finjo pegar o colar do chão. Se eu lhe oferecer de boa
vontade, ela vai recusar com certeza. Sei que não é correto da minha parte
usar a sua fragilidade, colocando-a em dúvida sobre a própria mente a fim
de convencê-la a ficar com o presente, mas como Anastasia não se lembra
de ter tido ou não um colar como esse, não pode me refutar.
— Você deixou cair — minto.
Com timidez, Anastasia segura a joia contra o peito.
Ela brilha como um grande farol, sinalizando, ironicamente, a única
direção que não posso seguir.
Tudo é vermelho, menos ela.
As paredes e janelas, o teto e o chão, os objetos e os médicos.
Vermelho. Vermelho. Vermelho. Quando eu pisco, ao invés da escuridão, há
um oceano carmesim. E sempre que eu como alguma coisa, seja uma barra
de cereal da máquina de vendas que fica no refeitório do hospital, ou a sopa
sem graça que me servem duas vezes ao dia, sinto o sabor ferroso do
vermelho. Sim, é estranho que uma cor tenha gosto, mas é verdade.
Vermelho tem gosto de sangue. Ele é a cor da morte, do luto e do
sofrimento.
E eu o odeio.
Mas não Anastasia.
Tudo é vermelho, menos ela.
— Isso não é meu.
Ela tenta devolver o colar, sua expressão é a coisa mais adorável que
eu vi nos últimos dias. Um bálsamo. Considerando o ambiente em que
estamos, pode não ser uma observação significativa, mas me faltam
motivos para procurar beleza no mundo. Na vida. Anastasia é minha única
exceção.
— Eu vi quando caiu — a mentira dança na minha boca —, é seu
com certeza.
— Eu não me lembro de ter… — Como eu já havia previsto, ela
hesita, porque Anastasia não se lembra mesmo de nada. Nem de mim. —
Ah, bem, talvez seja meu.
Eu pisco. Vermelho.
Ela me apagou junto com todas as memórias ruins, e não posso nem
mesmo lamentar por tamanha perda quando sua alegria é visível. Quantas
vezes desejei que ela se esquecesse de todo o sofrimento causado por
Yerik? Quantas vezes eu pedi por uma intervenção que a livrasse dos
fantasmas em seus ombros? Quantas vezes eu me perguntei como ela seria
sem as suas feridas?
Cuidado com o que deseja?
Porra nenhuma.
Eis a minha resposta.
— Não o perca — ordeno, socando-me mentalmente por deixar meu
lado autoritário, herdado da minha família, assumir o controle. Tem sido
difícil controlar.
Anastasia, contudo, não se intimida. Se alguma coisa, ela parece
gostar.
Suas bochechas coradas são uma ironia prazerosa. Eu gosto de como
esse vermelho se apresenta na pele dela — a mescla com o marrom,
resultando em um vinho escuro cujo sabor eu sinto vontade de provar. Qual
o gosto das suas maçãs do rosto? Por que eu nunca tentei mordiscá-las
quando tive a chance?
— Obrigada — sussurra. Anastasia me observa com interesse, os
olhos inteligentes e prodigiosos, e me sinto consciente demais da minha
própria sujeira. Aquela que só eu posso ver. Começo a me afastar, não
querendo manchá-la, e por causa dessa breve distração, não vejo a sua
próxima pergunta chegando: — Eu conheço você?
Contra a minha vontade, uma semente de esperança ousa brotar no
meu peito. Talvez… talvez tenha restado algo. Talvez ela ainda tenha
alguma lembrança, um resquício, uma poeira de nós dois. Talvez, se
trabalharmos juntos, ela possa se lembrar de mim e…
E dos anos que passou sendo torturada, manipulada e abusada; de
ter sido quebrada em milhões de pedaços; de ver a morte do seu irmão sem
poder fazer nada para salvá-lo; de ser sequestrada e assistir enquanto ele me
espancava; de quase morrer por causa daquele tiro.
E do nosso bebê…
Nossa filhinha.
Eu esmago o pequeno broto.
Meus olhos queimam, a dor volta com tudo. Se eu chorar, as gotas
serão vermelhas como sangue? Temo que sim. Eu sangro dia e noite, o
líquido espesso de uma cor horrível saindo pelos meus poros. Sinto-me sujo
e enojado de mim. Apavorado com cada esquina e olhar. Tenho medo dos
meus sonhos.
Eu não me sinto o mesmo.
O que eu vou fazer comigo?
Um morto que anda.
Um homem defeituoso.
O salvador de ninguém.
Quero contar tudo, e quase me deixo levar por esse desejo, mas no
último segundo meu olhar desce para a sua barriga e a verdade fica entalada
na minha garganta, sobrepujada por uma compreensão irônica e cruel: ao
meu lado, não tenho como garantir a sua proteção, mas longe, ela tem uma
chance.
Revelar a verdade significa acorrentá-la a mim, condenar a garota
livre e leve do violino imaginário a se enterrar no meu caixão de sangue.
— Não — digo, e recebo o abraço da dor visceral.
Está feito.
Volte atrás, a voz da minha consciência implora de imediato, retire o
que disse, não a deixe.
Começo a tremer. Meu coração se descontrola, socando meu peito
de dentro para fora com tanta força que escuto as batidas nos meus ouvidos.
Acho que vou chorar, mas não posso fazer isso na frente dela.
Retire o que disse. Agora. Conte quem você é. Diga que a ama.
Volte atrás.
— Pergunta estranha, eu sei. Desculpa, deve estar achando que eu
fugi da ala psiquiátrica. — Anastasia solta uma risadinha e toca na cabeça
com seu dedo indicador. — Amnésia — ela diz, sem saber que estou ciente
da sua condição. — Não lembro de nada que aconteceu comigo nos últimos
dois anos, mais ou menos. Não é interessante? Pensei que essas coisas só
aconteciam em filmes e livros.
Interessante.
Ela acha interessante.
— E não tem problema você estar andando por aí? — pergunto,
preocupado, olhando nossos arredores como se um médico fosse surgir do
nada para esclarecer minha dúvida. Anastasia passou por uma cirurgia,
como pode estar de pé tão cedo? — Não tinha que ficar de repouso? Sendo
acompanhada vinte e quatro horas por dia? Quem deixou você sair do seu
quarto?
— Você acha que está em condições de falar alguma coisa? — ela
brinca, indicando meu braço imobilizado. — Eu não aguentava mais ficar
deitada, ouvindo meus pais perguntando se me lembrei de alguma coisa ou
como estou me sentindo. Eu me sinto culpada, caramba! Todos me olham
como se eu devesse estar profundamente triste e abalada, e eu estou, porque
perdi meu irmão, mas faz parte do luto, e eu entendo isso. Não estou triste
por não me lembrar. Eu prefiro não lembrar! Então estou bem assim, e me
sinto culpada por me sentir bem! — Ela se interrompe do nada e morde o
lábio inferior, dando-se conta de seu desabafo. Acanhada, finaliza, dizendo:
— Meu médico disse que depois de quinze dias eu já poderia me
movimentar sem exageros.
Ora essa…
Ela está sendo espertinha. Faz apenas doze dias, não quinze, mas
não posso dizer isso sem revelar que a conheço.
Tudo o que ela disse se aloja em um canto do meu coração, porque a
sua alegria sempre será a minha prioridade. Esquecer-se de mim é um preço
baixo perto das atrocidades que não podem mais atormentá-la. Eu sou o
contrapeso na balança.
— Eu estava procurando uma pessoa — digo, com pesar. Tento
sorrir, fingir que não dói tanto, mas sou traído pela minha voz. — E acabei
de descobrir que ela está indo embora.
Anastasia se compadece ao ouvir o meu tom infeliz, sem saber que
as lágrimas acumuladas nos meus olhos pertencem a ela.
Que tudo em mim é dela.
— Eu sinto muito. Você não vai conseguir vê-la antes de partir?
— Não sei como dizer adeus.
Ela aquiesce, deprimida pela minha situação.
— Acho que perdi uma coisa importante — diz, olhando para além
das janelas.
Nuvens densas e cinzentas estão se reunindo no horizonte, e o Sol,
lutando por sua sobrevivência, cobiça o rosto de Anastasia, como se ela
fosse a sua última esperança.
Nossa filha.
Você perdeu a nossa filha.
A dor em meu peito se expande, tomando meu corpo inteiro.
— Alguém? — questiono.
Fico com medo da resposta, de que ela acabe se lembrando e sofra
como eu estou sofrendo. É irônico, de certo modo, porque não se lembrar
de nada de repente já não me parece a pior coisa do mundo.
— Eu não sei. — Anastasia suspira, saindo de seu devaneio. Ela se
volta para mim com um sorriso sincero, os olhos brilhando, amigáveis e
amorosos. — Não é a mesma coisa, mas entendo como se sente.
— Entende mesmo?
Ela desvia o rosto, quebrando o breve contato comigo, e caminha até
a janela, coloca as duas mãos no vidro, como se quisesse passar por ele e
vagar através da tempestade que se aproxima. Eu me reconheço nas nuvens
carregadas, nos trovões retumbando e gritando, engolindo o brilho de um
lindo dia.
— Quando a gente se despede de alguém — sussurra — não
estamos dizendo adeus apenas à pessoa em si, mas também a nós mesmos, a
quem fomos ao lado dela. Acho que foi isso o que eu perdi: uma parte de
mim de quem não pude me despedir.
Fico aliviado que ela não esteja me olhando, pois sou vencido pelas
minhas lágrimas.
Sua conclusão é tristemente literal.
Anastasia dedilha a janela, esquecida da minha presença, os olhos
vagando para longe, muito longe. Sei que está tocando porque a conheço.
Quantas manhãs acordei ao som do seu piano? Quantas vezes assisti
enquanto ela tocava, sem notar a minha chegada? Quantas declarações
fizemos? Quantos beijos nós demos? Quantas vezes falei que a amava?
Não o suficiente.
Eu escuto o momento da ruptura, quando o chão começa a rachar
sob meus pés e um abismo se abre, dividindo-nos para sempre. Aquela voz
chorando dentro de mim, meu eu apaixonado, o devoto de sua amada,
clama uma última vez por ela, como se Anastasia fosse a deusa a quem
dedico meus dias e noites, o meu cálice da vida eterna, aquela capaz de me
resgatar das profundezas mais escuras.
Mas se a minha salvação coloca em risco a vida dela, a minha
decisão já está tomada.
Uma mentira em troca da sua felicidade.
Aprendemos que a verdade deve prevalecer, doa a quem doer.
Porém, as pessoas mentem mesmo assim. Para proteger seus amores ou a si
mesmos, por cultivarem intenções perversas, ou por se negarem a acreditar
na realidade quando essa se mostra cruel e injusta demais. Não importa.
Todas as pessoas mentem, as boas e as ruins.
Existem aqueles que consideram a mentira um pecado, eu prefiro
acreditar que se trata de um mal necessário, sobretudo quando mentimos
para nós mesmos em busca de um conforto passageiro. Se apegar a uma
mentira que pode te salvar do inferno em um momento crítico, às vezes, é
uma escolha misericordiosa. Algo como “minta até que você consiga lidar
com a verdade”.
E aí está a grande pegadinha da mentira: ela é momentânea, um
curativo de pano para um corte que precisa de pontos. Sem ela, você vai
sangrar até a morte, mas se pressionar por tempo o bastante, pode ter uma
chance de continuar vivo até encontrar tudo o que precisa: linha, agulha… e
a pessoa responsável pelo corte, a mão empunhando a faca.
Doa a quem doer?
Não.
Eu prefiro que doa em mim.
Sua imagem na janela, iluminada pelo suspiro póstumo do sol, é a
última visão que tenho de Anastasia antes de me virar e ir embora.
Despedaçado, miserável, sozinho, louco e de coração partido.
— Adeus, princesa.
40
Anastasia
— DEPOIS EU ME encontrei com seus pais. — Andrei enrola
distraidamente uma mecha do meu cabelo. Minhas lágrimas pairam, jamais
derramadas, pois sinto que devo isso a ele. Apesar de tudo o que acabou de
me contar, Andrei não está chorando. — Eles confirmaram o que eu já
havia entendido: para contar que você ficou grávida, teriam que contar
sobre a perda também, e então sobre todo o resto, você acabaria sofrendo e
todos os nossos esforços despistando a polícia e a mídia seriam em vão. Eu
fiz eles jurarem que a levariam para longe. Ordenei que a tratassem bem,
que respeitassem o seu tempo e não a obrigassem a fazer apresentações a
menos que essa fosse a sua vontade. Claro, meus avisos não foram gentis.
Por isso minha mãe e meu pai têm sido tão solícitos comigo, não por
vontade própria, mas por temerem Andrei Volkiov.
Eles têm medo — e com razão.
Por mais de um ano, Andrei foi obrigado a viver sozinho com a
terrível dor do vazio deixado pela ausência da nossa filha. Nossa garotinha.
O homem dos meus sonhos, aquele que amo, Andrei Volkiov, a quem
muitos chamam de Rei, é o pai do bebê que carreguei em meu ventre. De
todas as maneiras que são mais importantes, ele é o verdadeiro e único pai
da menininha que nunca pôde estar em seus braços.
E eu sei que ele daria o mundo a ela.
O rei e sua herdeira.
Ah… então é assim — eu me lembro. Lembro-me dos batimentos
cardíacos da nossa filha, o dia em que descobrimos que era uma menina. O
som acelerado preenchia todas as rachaduras do meu ser, e Andrei estava
chorando, emocionado, segurando a minha mão o tempo todo.
— Ele bate como a Sinfonia n. 5 de Mozart, a parte do Allegro — eu
disse na ocasião.
— Tenho certeza que sim — ele me respondeu. — Obrigado por me
proporcionar isso, princesa. Obrigado por me deixar amar você. Obrigado
por me escolher.
Ele estava feliz, tão feliz. Onde foi parar aquela felicidade?
Agora eu entendo o porquê de sua hesitação em me contar a
verdade, não é um segredo qualquer. Não é nem mesmo um segredo
problemático. É o tipo de confissão que pode envenenar um coração
despreparado.
Mas não sou capaz de odiar o homem que sacrificou tudo por mim.
Sua honra.
Sua sanidade.
Sua alegria e seu amor.
A sua vida.
E a sua alma.
Andrei me deu tudo e se atirou no inferno.
Como eu poderia?
— Você disse que quando eu fui resgatada — digo, arrancando
forças do meu coração para não desabar em lágrimas — meus pais já
estavam esperando no hospital. Como eles sabiam?
— Eles foram avisados.
— Pelo hospital? Por causa de Zayn?
Faz-se silêncio por um longo momento, e começo a duvidar se ele
ouviu a minha pergunta, mas quando estou prestes a repetir, Andrei
simplesmente diz:
— Graças à presença deles, conseguimos encobrir o seu
envolvimento com o sequestro, já que os dois ficaram responsáveis por
você enquanto minha família lidava com o resto. Quando acordei, eu contei
aos meus irmãos que não confiava neles, mas eram a nossa melhor opção.
Andrei suspira, cansado, e decido que não preciso fazer outras
perguntas, não quero que ele se torture ainda mais. Não posso mensurar a
extensão do que ele sofreu durante a sua recuperação. Me dói imaginar
como devem ter sido os primeiros meses depois da nossa trágica despedida.
Andrei estava definhando, física e emocionalmente, ele se considerava um
homem morto! Sentia-se menos que nada no dia em que renunciou a mim.
Se não fosse pela sua família, talvez hoje eu não estivesse em seus braços.
Aninho-me nele, com medo de perdê-lo para o mero pensamento de
sua inexistência. Andrei é uma vítima — das circunstâncias, do seu
relacionamento passado, do canalha com quem me casei, das pessoas que
me criaram, e talvez até do seu amor por mim. Mas é também o meu herói,
meu protetor, meu justiceiro.
Andrei é o meu salvador.
Coloco minha mão em cima de seu peito firme, seu coração me dá
boas-vindas com batidas fortes, reconhecendo o meu toque. Uma melodia
familiar se precipita na ponta dos meus dedos, mas no instante em que
começo a dedilhar as primeiras notas, Andrei estremece, o belo conjunto de
músculos esculturais fica rígido sob a minha palma, distraindo-me
completamente.
Estamos no meio de algo grandioso, o momento mais importante e
decisivo de nossas vidas, e não consigo impedir meus pensamentos de
vagarem pelas lembranças do que vivemos e fizemos horas antes, das coisas
que ele fez comigo, a incrível sensação de ser tomada por um homem tão
habilidoso e incrível e que me ama acima de tudo.
Cada ponto em mim que foi beijado por seus lábios experientes
continua queimando. Tenho o discernimento de me censurar mentalmente
toda vez que o encaro e me comporto como uma bobalhona apaixonada.
Foi fácil estar em sua cama, entregar-me de corpo e alma, porque
nunca deixei de ser dele — assim como Andrei nunca deixou de ser meu.
E agora é a minha vez de salvá-lo.
— Andrei. — Olho para o seu rosto, cujos olhos me veneram de
volta com atenção e receio. Ele teme ser rejeitado. Mesmo depois de tudo,
ainda acha que existe alguma chance de me perder. Não existe. — Eu
preciso que você venha comigo.

***

Em algum momento no meio da madrugada, eu me lembrei de


enviar uma mensagem ao meu irmão avisando que só voltaria para casa no
dia seguinte. O que meu irmão não sabe, é que Andrei Volkiov vai estar
junto comigo.
Bem, eu também não sabia.
Akira terá uma bela surpresa.
Atrapalho-me com as chaves, tremendo como um parafuso solto nos
trilhos de um trem. Sorrio para Andrei de pé ao meu lado, tentando mostrar
uma confiança que não sinto, e embora ele enxergue através do meu
nervosismo, não faz nenhuma tentativa de me interrogar. Como esperado,
ele é um cavalheiro.
Para dizer a verdade, estou apavorada.
Em pânico.
— Aqui, deixe comigo, princesa. — Ele pega as chaves e assume a
tarefa de encaixá-las na fechadura, o que acontece em um segundo, porque
Andrei é bom em tudo, inclusive em abrir portas. — O que foi?
— Não é justo — reclamo, fazendo um muxoxo —, como consegue
se manter calmo mesmo em uma situação como essa?
— Eu não sei qual é a situação. — Sorrindo, Andrei me acompanha
para o interior da sala de estar. — Mas sou bom em esconder os meus
sentimentos. Agora mesmo, pode não parecer, estou chocado com a sua
reação a tudo o que conversamos. E olha que eu imaginei vários desfechos
para aquela conversa e nenhum deles envolvia você me trazendo para a casa
do seu irmão. Estou tentando adivinhar o motivo.
Meu coração pulsa em um ritmo acelerado, meu estômago parece
estar em uma batalha contra si mesmo e meu cérebro pode entrar em curto-
circuito a qualquer momento. O olhar vigilante e desconfiado de Andrei
deixa tudo pior.
Retiro meu cardigã cor-de-rosa, o cachecol listrado e minhas luvas
de tricô, e deixo tudo sobre o aparador que fica perto da entrada. Ainda bem
que havia uma variedade considerável das minhas antigas roupas no
apartamento de Andrei, e não precisei atravessar a cidade com um vestido
que me faz parecer nua em pleno inverno. Não posso me gabar, no entanto,
da minha combinação atípica de meias pretas e saia longa, pois estava tensa
demais para pensar em como me vestir bem — ao contrário de Andrei, com
seu blazer branco de veludo cotelê, parecendo um príncipe encantado.
Ele olha ao redor com pouco interesse, dispensando o mais breve
olhar para o corredor à direita, de onde é possível ouvir o eco abafado de
vozes.
A diferença entre o seu apartamento e do meu irmão é gritante, mas
eu sei que Andrei tem uma predileção por decorações modernas como essa.
A casa de Akira possui janelas automáticas, uma televisão que desce do teto
e lâmpadas que funcionam por comando de voz. Em uma das paredes, há
quadros estilizados com temas esportivos: hóquei no gelo, futebol, biatlo e
basquete.
— Meu irmão comprou este lugar depois que Zayn morreu —
explico.
— Sim, eu sei.
Ah.
O clima começa a ficar tenso. Sinto sua desconfiança emanando em
ondas.
Não sei o que vai acontecer agora que eu e Andrei estamos nos
entendendo. Não quero me afastar dele, ou dormir em uma cama sem a sua
companhia. É preocupante, tenho a maioria das minhas memórias mais
felizes de volta e em todas ele está presente. Será que vamos… morar
juntos?
Eu até tento perguntar isso, mas me parece precipitado e, quando
não encontro outra desculpa para protelar o inevitável, viro-me para ele e
digo:
— Eu queria ter contado antes. Eu não imaginava, Andrei. Não me
lembrava, e por isso me esquivei na possibilidade. Akira tentou me avisar
várias vezes que eles estavam escondendo alguma coisa, e eu sabia que sim,
mas nunca imaginei que seriam capazes de algo tão… cruel.
— Anastasia, você está começando a me preocupar. Do que está
falando?
O som de passos se antecipa à minha resposta. Meu irmão surge
primeiro, usando roupas de ginástica e fones de ouvido pendurados no
pescoço. Ele tem o péssimo hábito de franzir as sobrancelhas perto de
Mariya, não importa quantas vezes eu peça para ele ser simpático com a
minha única funcionária, e é assim que ele se parece agora.
Mariya chega em seguida, batendo os pés. Uma caneta está enfiada
em seu cabelo louro-escuro, mantendo-o preso em um coque desalinhado, e
há um novo avental com estampas de peixinhos coloridos amarrado em seus
quadris.
— Não sei como isso é da sua conta — ela está dizendo. Os dois,
absortos em uma discussão acalorada, não percebem que eu e Andrei
estamos ouvindo tudo.
— Não é da minha conta — Akira debocha —, assim como não era
da conta dele.
— Eu perguntei onde ficava a sessão plus size, ele estava apenas
respondendo.
— Não, ele estava perguntando o tamanho do seu sutiã.
— Para saber se eles tinham o meu número!
— Ah, tá bom! O cara nem era funcionário da loja. Você não viu a
cara dele? O idiota estava quase se oferecendo para medir os seus peitos
com as mãos.
— Talvez eu deixasse ele usar mais do que as mãos! — Mariya
debocha, falando alto.
Meu irmão abre a boca, chocado e furioso, os olhos soltando faíscas
de puro ódio. Acho que nunca o vi tão irritado. Eu não deveria ter deixado
os dois sozinhos por tanto tempo. Decido que é a minha deixa para
interferir.
— Ah! Vocês estão aí, que bom — digo em tom afetado, como se
não tivesse visto os dois até este exato segundo. — Vejam quem eu trouxe.
Eles se sobressaltam em sincronia, e me seguro para não rir. Mariya
fica corada até a raiz do cabelo, mas tenta seguir o fluxo. Akira continua
emburrado.
— Stasya! — ela exclama, vindo me abraçar. Quando a contratei,
queria alguém de confiança ao meu lado, e acabei ganhando uma amiga de
verdade. O apelido carinhoso é uma prova disso. No começo, ela tentou me
chamar de Nastya, que é o apelido mais comum para o meu nome, mas
acabei tendo uma crise de choro porque odiei como soava. Na época eu não
sabia o motivo, mas agora eu me lembro: era como Yerik me chamava. —
Desde quando estão aqui?
— Acabamos de entrar — Andrei responde. Ele mente com uma
desenvoltura assombrosa. — Muito prazer, eu sou Andrei Volkiov.
Mariya dá um gritinho de surpresa.
— Aquele Andrei?
— Existe algum outro? — ele graceja. — Se sim, vai ser por pouco
tempo.
Mariya se engasga. Ela sabe de toda a minha história, assim como
Akira. Os dois são os únicos com quem compartilhei tudo o que Andrei e
seus irmãos me contaram, assim como todas as lembranças que recuperei
até o momento.
Dou um suspiro e o repreendo:
— Não faça gracinhas sobre… — Matar pessoas. — Você sabe.
Andrei encolhe os ombros.
— Força do hábito, culpe meus irmãos, eles vivem me incentivando.
— Ele está sendo visivelmente dissimulado.
— Vocês se entenderam. — Akira se junta a nós e aperta a mão que
Andrei oferece. Meu irmão não está fazendo uma pergunta, mas Andrei
confirma que sim, movendo a cabeça. — Que bom — diz, sucinto. Em
seguida, dirige-se a mim: — Veio resolver aquele assunto?
Sinto o peso da atenção afiada de Andrei analisando a conversa. Ele
capta todas as nuances do que falamos, de como eu me expresso, dos
significados ocultos em nossas palavras, fazendo com que eu me sinta um
experimento de laboratório.
— Sim. — Engulo em seco e me inclino mais perto do meu irmão.
— É ele, como a gente imaginava.
Uma breve reação de surpresa passa pelo rosto do meu irmão.
Andrei franze as sobrancelhas. Nada foge do seu olhar.
— Tudo bem, você pode me explicar tudo depois. — Akira recua,
abrindo passagem. — Eu e Mariya estaremos aqui se precisar.
Agradeço os dois com um meio sorriso, seguro a mão de Andrei —
sua mão de verdade, quente e aconchegante, sem as luvas — e o arrasto
comigo. Eu não sei se vou me lembrar do trajeto que fazemos da sala até o
corredor, das duas portas fechadas dos quartos de Mariya e Akira, ou de
ouvir o meu coração batendo alto, mas quando atravessamos o arco do
último cômodo, sou forçada de volta a mim pela expressão no rosto dele.
Músicos há muito mortos venderiam suas almas pela chance de
compor uma melodia inspirada nas lágrimas que se acumulam em seus
olhos, ou sobre o passo que ele dá à frente, o joelho que vacila, fazendo-o
tropeçar e quase cair no chão; uma sonata sobre como o tempo de repente
não faz sentido, o passado e o presente colidindo, o impossível criando
forma. Um milagre.
Sua mão esmaga a minha, meus dedos doem, incomparáveis com a
força de seu punho fechado, mas não o solto. Do meu jeito, aperto de volta,
mostrando a ele que estou aqui, ao seu lado. Que é real.
Meu quarto não tem uma decoração definitiva. A maioria dos
móveis já estava aqui antes de mim e não achei necessário fazer grandes
mudanças, já que não sabia por quanto tempo continuaria morando com
meu irmão. Eu sempre senti que tinha um lar me esperando em algum lugar.
Mas há um cantinho especial ao lado da minha cama para onde eu e Andrei
nos dirigimos.
Um espaço em tons de rosa e branco, cheio de babados, com
cheirinho de talco. Andrei se debruça sobre o pequeno colchão, observando
o pacotinho adormecido. Ele respira com dificuldade, como se faltasse
oxigênio no mundo, e seus ombros começam a tremer.
Sem conseguir mais se controlar, ele soluça com trilhas molhadas
em suas bochechas.
— Princesa, esta é…?
Ao som da voz de Andrei, nossa filha abre os olhinhos sonolentos e
sorri, e eu sinto no fundo do meu coração que ela também esteve esperando
por ele durante toda a sua curta vida até agora.
Esperando por Andrei.
Seu precioso papai.
41
Andrei
EU NÃO CONSIGO acreditar. Normalmente, confio nos meus sentidos, na
minha capacidade de manter o senso de julgamento mesmo diante das
situações mais extremas. Mesmo quando eu me entreguei às sombras
punitivas da minha tristeza, ao profundo tormento da minha solidão ante a
ausência da mulher que amo, eu sabia que existia um propósito maior que
precisava — e ainda precisa — ser cumprido.
Mas dessa vez, eu simplesmente não acredito no que estou vendo.
O quarto só pode ser de Anastasia, seu cheiro me envolve por
completo, e alguns detalhes se sobressaem aos meus olhos: uma maleta de
violino escorada ao lado da imensa cama com lençóis floridos; uma
fotografia de um metro quadrado suspensa na parede principal, de Anastasia
em tons monocromáticos, posando de perfil para capturar a beleza de sua
lindíssima barriga com meses completos de gestação.
Ela não perdeu o bebê.
Anastasia não perdeu a nossa filha.
No berço cor-de-rosa, olhinhos de âmbar me encaram cheios de
vida. A bebê sorri para mim com apenas dois dentinhos na gengiva de
baixo, parecendo uma boneca em um macacão de tricô lilás e meias de
renda. Ela tem o mesmo tom de pele da mãe, os cabelos com cachos bem
pequeninos e um nariz redondinho.
Eu pensei que já havia esgotado todas as lágrimas reservadas à
minha filha quando me disseram que ela não havia resistido, mas eu estava
errado. Eu chorei a sua perda, mas as lágrimas não derramadas, e que não
consigo mais conter, são justamente aquelas destinadas aos momentos
felizes que jamais viveríamos juntos — eu acreditava que não: seu
nascimento, a primeira vez segurando-a em meus braços, o aniversário de
um ano, suas primeiras palavras, os primeiros passos, seu primeiro dia na
escola…
Nem tudo está perdido.
Estou vendo a minha filha. Vendo, com meus olhos. Não é minha
imaginação, ou um sonho. Sinto o amor como um golpe, uma flecha me
atravessando, transformando quem eu fui e quem eu sou em uma pessoa
completamente diferente. A felicidade se converte em um pranto silencioso,
doloroso, mas inegavelmente bom.
— Sim, Andrei — Anastasia aperta a minha mão, chorando e
sorrindo. — É a sua filha, nossa filha.
— Como… como é possível?
— Meus pais mentiram para você. — Anastasia me solta e se
debruça sobre o berço, estica os braços e pega a nossa garotinha. Vejo as
duas juntas e é difícil não ficar chocado com a cena. Minha mulher e minha
filha, vivas e bem. — Eu não sabia em que parte da nossa história ela se
encaixava, já que você não mencionou nada sobre a minha gravidez ou a
existência dela. Estava tentando protegê-la até descobrir tudo. Pensei que
talvez você não soubesse na época. Mas agora tudo faz sentido, nós dois
caímos em uma armadilha.
Eles mentiram.
Os dois se aproveitaram da situação, da nossa fragilidade. Sabiam
que ninguém pensaria em questionar a verdade naquelas circunstâncias.
Minha sanidade estava fragmentada, instável, e meu único desejo era
proteger Anastasia a qualquer custo — mas não esse custo.
Não a minha filha.
A garotinha mais linda do mundo inclina a cabeça, observando-me
com a curiosidade infantil típica dos bebês. Seus olhos parecem jovens e
antigos, inocentes e conhecedores, como se ela soubesse quem eu sou.
Então, os dois bracinhos sobem na minha direção, mãos pequenas com
dedinhos curtos como as de sua mãe. Anastasia tenta se aproximar de mim,
com aquela criança pura, frágil e imaculada, e de repente eu entro em
pânico com a possibilidade de estragar tudo.
— Não eu… — Olho para as minhas mãos, estou sem luvas, sei que
não há sangue, não mais. Aquele mundo vermelho, de traumas e dor, onde
morei por meses antes de começar a me recuperar, já não existe mais. Mas,
e seu eu tocá-la e tudo voltar? E se eu contaminar a minha filha com algum
resquício da desgraça que pode continuar escondida dentro de mim? —
Princesa, eu não consigo.
Tropeço para longe das duas.
Perco o controle do meu coração, que dispara em meu peito,
pulsando depressa, sem ritmo, sem rumo. Minha filha, sem entender nada,
parece pedir por mim, mas é inocente demais para compreender o que está
acontecendo. Quem eu sou e o que represento. Eu me lembro de vê-las
sangrando — Anastasia ferida, inconsciente, a vida esvaindo de seu corpo
caído no chão imundo do nosso cativeiro.
É a voz de Anastasia que me mantém ancorado à realidade.
— Você consegue, Andrei.
— Não…
— Sim! — Ela dá passos determinados, encurtando a nossa
distância. Minha filha ergue os braços gordinhos novamente, sorrindo como
se eu fosse a coisa mais incrível que ela já viu. — Lembra do que eu falei?
Você me salvou, não importa como. Não podemos mais deixar que o nosso
passado impeça a nossa felicidade. Ela é sua filha, Andrei, e você já sofreu
demais por tragédias que não foram culpa sua. Se existe uma pessoa no
mundo inteiro além de mim que jamais faria algum mal a ela, essa pessoa é
você. — Anastasia sorri, seus olhos transbordam com o choro incontido. —
Eu não fui a única que esteve à sua espera.
Minha filha.
Anastasia tem razão, eu não posso machucá-la.
Confiro minhas mãos mais uma vez. Estão trêmulas, não exatamente
firmes, mas limpas. Devagar, relutante, eu finalmente me permito esticar as
mãos e pegar minha filha nos braços. É como segurar um tesouro de valor
inestimável, a essência da vida, meu pequeno milagre.
Eu a abraço e sinto que nunca mais serei capaz de soltá-la. Apoio
minha mão em sua cabeça, nos cachos macios e enroladinhos como
caracóis, e ela gargalha. O som quebra algo dentro do meu peito, uma rocha
muito pesada, rígida e fria que estava escondendo um campo aberto, cheio
de luz, por onde o amor consegue fluir livremente.
E ele flui pelo meu corpo, preenchendo e consertando todas as
rachaduras.
Ajoelho-me no chão do quarto, pois não confio nas minhas pernas
para nos manter em segurança. Eu soluço, com lágrimas infinitas
encharcando o meu rosto, a barba por fazer, minha camisa e,
provavelmente, minha filha. Beijo sua testa, agradecendo por essa chance,
esse novo começo, pela vida da minha garotinha.
Obrigado.
Obrigado.
Obrigado.
— Ei, pequena — digo a ela, que reage ao som da minha voz com
um balbucio — você sabe quem eu sou? — Ela segura meu nariz, fazendo-
me rir. Acho… acho que ela gosta de mim. — Eu sou seu pai, meu amor,
sinto muito ter demorado tanto, mas eu prometo que nunca mais vou deixá-
la, tudo bem? Prometo que ninguém vai nos afastar outra vez, que vou ficar
ao lado da mamãe para sempre e cuidarei de vocês duas. — Anastasia se
ajoelha junto a mim, puxo-a para perto, agarrando os amores da minha vida.
— Eu não entendo, naquele dia, você disse que havia perdido uma coisa
importante, que sentia isso, então…
— O que eu perdi naquele dia foi você, Andrei, não a nossa filha. A
coisa importante que perdi, sempre foi você. O homem que amo e que
nunca deixei de amar, mesmo quando não lembrava quem você era. O
homem sem rosto que aparecia nos meus sonhos e que eu amava de todo o
coração. E eu o encontrei, finalmente, encontrei o que eu havia perdido.
Acho que perdi uma coisa importante.
Todo esse tempo, ela estava falando de mim.
Eu era a sua coisa importante.
Anastasia não se lembrava de mim, mas já sentia minha falta desde
então.
— Amo você — declaro, pois não existem palavras que definam
melhor o que estou sentindo. — Amo vocês duas, princesa. Você e nossa
filha. Como ela se chama?
— Aryia. — Ela sorri, fazendo carinho em nossa filha. — No dia
em que ela nasceu, eu recuperei a minha primeira memória, um pequeno
fragmento de Zayn sugerindo esse nome. Aryia foi o começo de tudo, acho
que ela queria que eu me lembrasse. Ela queria que eu reencontrasse você.
— Ariya. — O nome encontra seu caminho até o meu coração. —
Então foi assim? Você fez isso?
Ela sorri, achando graça da minha voz rouca. Como pode uma
bebezinha tão pequena e frágil, junto de sua mãe, a detentora de metade da
minha alma, mudarem completamente o rumo da minha vida? Nada parece
ter a mesma importância que tinha antes de eu entrar neste quarto, só as
duas.
Anastasia e Aryia.
Minha mulher e minha filha.
Porque se eu morri naquele dia quando pensei que tinha perdido as
duas, agora eu sei que estou vivo, pois as tenho de volta.

***
A vista do apartamento de Akira não é grande coisa mesmo se
tratando de um imóvel de luxo, já que a região é cheia de prédios
residenciais, mas há uma pequena praça-jardim no quarteirão da frente,
onde bétulas semidesfolhadas pela estação já estão enfeitadas com as luzes
de ano novo.
Não há muitas pessoas do lado de fora, a rua não é movimentada,
mas avisto um casal de idosos caminhando de mãos dadas, um grupo de
quatro crianças brincando entre os arbustos secos de um antigo canteiro, e
uma mulher sentada no único banco de concreto da praça, fingindo ler um
livro.
Já faz algum tempo que ela está lá, no mesmo lugar, parada, sem
jamais virar uma página. De vez em quando, ela olha para cima como se
esperasse me ver em uma das janelas, e nesses momentos, seu longo cabelo
preto fica visível sob o capuz do casaco marrom que está usando hoje.
Ela gosta de variar suas roupas, acho que na tentativa de não ser
notada.
Daqui de cima, eu realmente não consigo distinguir seu rosto, mas a
reconheceria em qualquer lugar, a qualquer distância. Ela está sempre do
outro lado de todas as minhas janelas, esperando, observando, espreitando a
minha vida.
— Que cara é essa? — Lara tenta se empoleirar em meu ombro,
porém, como é mais baixa, não consegue, desiste da provocação e me
empurra para abrir espaço à janela. — Até parece que viu um fantasma. —
Ela olha brevemente lá embaixo, mas não percebe nada incomum. — Está
com medo de nunca mais deixarem você segurar a sua filha? — Ela brinca,
referindo-se aos meus irmãos mais velhos, disputando a atenção de Ariya.
Toda a minha família se mobilizou para vir ao meu encontro assim
que souberam da novidade, mas Vladimir, Ivan e Lara foram os primeiros a
chegar, vindos direto da empresa, os três com as vestimentas formais de
trabalho. Ivan decidiu monopolizar a minha filha, dizendo que agora é a sua
vez de ser o tio favorito — como se já não bastasse eu ser obrigado a
suportar o seu apego fraterno com a minha mulher.
Felizmente tenho Lara ao meu lado, que me abraça com os olhos
marejados. Minha melhor amiga sempre quis que eu fosse feliz. Ela estava
lá durante a minha pior fase sem Anastasia, quando os meus pesadelos eram
constantes e esmagadores — sobretudo depois da minha internação,
enquanto eu enfrentava a abstinência, a solidão e o luto — até eu voltar a
ser alguém digno de ser amado.
Dou uma última olhada lá fora antes de dizer o que, de fato, estava
planejando enquanto observava o meu fantasma:
— Acho que precisamos organizar um jantar de comemoração.
— Na mansão? — Ela se empolga. — Eu posso cuidar disso, sua
mãe vai adorar a ideia.
Beijo sua têmpora como forma de agradecimento, então ela se junta
ao rodízio de pessoas se revezando para segurar minha filha.
Serena chega logo em seguida, gritando que meus sogros são
grandes hijos de puta e mal paridos que merecem arder en el infierno —
quando minha cunhada xinga em espanhol, pode-se saber que está
verdadeiramente irritada. Roman, que aparece logo depois dela, concorda
com tudo e ainda acrescenta seu próprio repertório de xingamentos e
ameaças, dentre os quais ele inclui a sugestão de enviar os pais de Anastasia
para conhecer os sete palmos de terra onde o desgraçado do Yerik está
enterrado.
Os dois, porém, são logo desmontados pela fofura de Ariya, e todas
as promessas de vingança ficam pairando à distância.
Até que Vladimir se aproxima de mim.
Meu irmão mais velho, que assumiu um lugar de referência para
mim após a morte do nosso pai, me puxa para um longo abraço. Ele não
tem o hábito de demonstrar as suas emoções, e dessa vez não é diferente.
Vladimir é prático e dificilmente deixa para depois aquilo que precisa de
resolução imediata. Conheço meu irmão bem o bastante para saber que ele
entende o limbo em que me encontro.
Razão e emoção.
Amor e ódio.
Sempre no meio de dois extremos.
— Estou feliz por você, caçula — diz, mantendo uma mão firme de
apoio em meu ombro —, pela nossa família. Mas estou certo em presumir
que isso muda o curso das coisas?
A existência de Ariya implica uma série de medidas que preciso
adaptar, pessoas a serem confrontadas, processos que não podem mais
esperar, mas eu e Vladimir não nos aprofundamos nos detalhes. A gente se
entende pelo olhar e, no interior dos meus olhos plácidos, ele encontra a
explicação que procura.
Estou feliz, sim, em uma escala que supera a definição de infinito
em todas as unidades de medida, e na mesma proporção, sinto-me furioso.
Esconderam minha filha de mim, tentaram retardar a recuperação de
Anastasia, dificultando o retorno de suas memórias, e subestimaram a
minha inteligência por causa de um evento traumático que me deixou
fragilizado na época. Eu sei a quem culpar — os peões de Yerik, os
fanáticos que seguem um bobo-da-corte morto só porque o chapéu dele
imita uma coroa.
— Tudo estará acabado em breve.
Minha mãe é a última a chegar, trazendo consigo toda a geração de
netos.
Luna vem caminhando sozinha, vestida com uma jardineira amarela
e botas de borracha, e imediatamente vai ao encontro de seu pai. Iago, de
mãos dadas com os primos mais novos, guia os dois até Lara, a única
pessoa que eles obedecem. Mas no momento em que Tatiana vê a minha
filha, que está nos braços de Roman, entretida com as correntes em seu
pescoço, algo incomum acontece: minha mãe coloca a mão cheia de anéis
de ouro sobre o peito, e todos nós ficamos no aguardo de um de seus
costumeiros dramas teatrais, mas minha mãe realmente desmaia.
Dura como uma tábua.
Por sorte, Akira, que a havia recepcionado abrindo a porta de sua
casa, está perto o suficiente para ampará-la.
— Misericórdia! — Serena exclama.
Eu e Ivan, que estamos com os braços livres, corremos ao seu
socorro, e um minuto depois, minha mãe já está deitada no sofá modular da
sala de visitas do meu cunhado.
— Talvez seja melhor a levarmos até um hospital — Lara
recomenda, preocupada, enquanto Anastasia abana minha mãe com uma
almofada. — É a primeira vez que isso acontece.
— Também é a primeira vez que ela vê uma neta voltando dos
mortos. — Roman ergue Ariya, fazendo com que ela o encare com um
sorrisinho meigo. — Você quase fez a sua avó bater as botas, sabia? Isso é o
que eu chamo de entrar para a família em grande estilo.
— Lara tem razão — Vladimir se faz ouvir, a voz retumbante —
pode ser grave, é melhor checarmos.
Mas Serena pondera:
— Por que a gente simplesmente não traz um médico até aqui?
Sempre que vocês quatro aparecem juntos nos hospitais, por qualquer
razão, os funcionários ficam achando que vão cometer um atentado.
Ela está certa. Nosso histórico em hospitais não é dos mais
favoráveis.
É então que Mariya, a mulher que trabalha para Anastasia nos
cuidados de Ariya, se aproxima com uma postura confiante.
— Com licença, eu tenho formação em primeiros socorros, é
obrigatório na minha profissão. Tentem erguer as pernas dela assim. — Ela
coloca algumas almofadas embaixo dos calcanhares da minha mãe. —
Pronto, agora é só inclinar um pouquinho o rosto de lado e… — Tatiana
resmunga, recobrando a consciência. — Ah, que maravilha, ela já está
acordando, viram?
— Eu não vi. — Roman encara Mariya com um sorriso malicioso.
— Pode repetir o procedimento em mim? A gente deita, ergue as pernas e
depois…? — Meu irmão faz uma breve mesura. — Ah, a propósito, nós
não fomos apresentados, quem está tentando esconder você de mim?
Akira se enfia entre os dois, encarando Roman.
— Você pode não flertar enquanto está com a minha sobrinha no
colo?
— Ela é minha sobrinha também — Roman diz, inabalado. — E
estudos comprovam que as mulheres se sentem mais atraídas por caras com
bebês.
É Ivan quem, felizmente, interfere, resgatando minha filha do duelo
de testosterona.
— Pois então tente arrumar um filho você mesmo. — Ele pega
Ariya, que sorri, achando graça das caretas e vozeirões dos três. — Veja,
sua vovó está quase acordando.
— Eu já estou bem, estou bem — minha mãe murmura. — Parem
de drama! — Ela se senta com a ajuda das noras, totalmente recuperada. —
Como são exagerados, não estão vendo que estou bem? Minha saúde está
ótima, foi só um desmaio, nada demais. — Não é isso o que ela vive
dizendo, mas quem somos nós para contestar suas palavras sagradas? —
Agora, deixe-me ver a minha netinha.
Ivan entrega Ariya para minha mãe, que a abraça com o carinho e
cuidado de uma verdadeira avó. Minha mãe não é leviana quando nos pede
para gerar netos aos montes, ela tem amor de sobra para distribuir entre
cada um deles.
— Ela se chama Ariya — Anastasia diz. — Acabou de completar
oito meses.
— É um lindo nome, querida. — Tatiana sorri para a minha mulher,
mas logo sua atenção é totalmente direcionada à netinha sorridente. — Seja
muito bem vinda à sua família, Ariya. Eu sou sua avó, e você é uma neta
legítima de Tatiana Pavlovna Volkiova, sabe o que isso significa? Que o
mundo, minha pequena, é todo seu, e você, assim como seus primos e
primas, jamais precisará abaixar a sua cabeça para ninguém.
Meu olhar se encontra com o de Anastasia do outro lado da sala, e é
como se ela estivesse me abraçando com os olhos. Nós dois entendemos o
que minha mãe deixa escrito nas entrelinhas: Ariya nunca vai passar pelo
que ela passou, nenhum homem jamais colocará as mãos em nossa filha, e
ela sempre vai poder contar com uma família que a ama.
— Ela não vai querer que você os machuque. — Akira se aproxima,
também observando o sorriso da irmã.
Sei de quem está falando, e já sabia disso antes de ele dizer. Seus
pais adotivos — dele e de Anastasia —, que cometeram o grave erro de
mentir para mim. Entretanto, o que ninguém sabe, é que graças a essa
mentira, finalmente revelada, agora eu sei que os dois possuem algo que eu
preciso.
Uma pequena informação perdida no tempo.
— Ela não vai querer que eles sangrem — faço a correção. Também
não considero um impedimento literal, porém, não vejo necessidade de nos
aprofundarmos na questão. — Mas sua irmã entende a gravidade do que
fizeram. Os dias de glória de Leonid e Yekaterina Serova estão no fim.
Akira estreita as pálpebras, minha declaração o deixa interessado.
— Como pretende fazer isso?
— Que bom que perguntou. — Sorrio de puro contentamento. —
Porque eu preciso que você me faça um favor.
42
Andrei
O TEMPO É a moeda de troca mais valiosa que existe.
Décadas, anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos e até
milésimos podem ser negociados em troca de realizações específicas. Mas
todo sistema comercial funciona com base em um pressuposto óbvio: as
partes envolvidas visam algum tipo de lucro; e quando a gente negocia o
nosso tempo em troca dos nossos próprios interesses, estamos
estabelecendo uma conexão de ganho e perda com nós mesmos.
É diferente de um investimento, por exemplo, em que temos a
chance de recuperar o valor aplicado. O tempo não volta atrás, ele é a vida
que assassinamos aos poucos em um altar de sacrifício. Para cada
conquista, uma parcela diferente de sangue derramado.
Cerca de nove meses para nascermos.
Sete dias até nos recuperarmos de uma gripe.
No mínimo, quatro anos em troca de um diploma.
Dez minutos pelo melhor beijo das nossas vidas.
Apenas um para o pior adeus.
Eu fiz um lance às cegas, sem saber quanto tempo me custaria —
um mês, dez anos ou toda a minha vida, quem sabe? No fim, foram
necessários apenas quatorze meses. Precisamente, um ano, dois meses e
dezessete dias de um pagamento que poderia não me dar o que eu mais
desejava. Teria sido justo de qualquer maneira.
Porém, se eu soubesse que minha filha estava viva… eu teria pago o
mesmo valor? Será que teria escolhido a consequência imediata ao invés do
sacrifício prolongado? Não tenho como saber, a opção de escolha foi
arrancada de mim, um montante inestimável de dias acreditando que
Anastasia havia perdido a nossa Ariya.
E, como eu disse, o tempo não volta.
Agora, eles me devem.
As duas pessoas na minha frente, devem a mim o tempo que eu
passei longe da minha filha. Ladrõezinhos de merda, é o que eles são. E já
que não podem me devolver aquilo que roubaram, então que o preço seja
pago com suas malditas vidas.
— Você disse que deixaria a minha filha em paz — Leonid Serov
ousa me acusar.
Ele ainda não entendeu a posição em que se encontra.
Uma rápida viagem em nosso jato particular nos trouxe até Berlim.
Vladimir teve que ficar de fora por compromissos inadiáveis como
presidente, e Ivan, a pedido meu, ficou encarregado de acompanhar
Anastasia e garantir que nada aconteça a ela ou a nossa filha durante a
minha ausência.
Roman veio comigo.
Ele é a escolha perfeita quando o assunto envolve colocar a escória
em seu devido lugar.
Meu irmão soca a mesa do escritório particular de Leonid, fazendo
vários objetos caírem no chão, incluindo uma fotografia de Anastasia
criança, na faixa dos cinco ou seis anos, com uma medalha de primeiro
lugar muito grande ao redor do pescoço infantil, abraçada a um violino
como se ele fosse o seu melhor amigo. Uma garotinha explorada desde
sempre para satisfazer o ego dos adultos que deveriam protegê-la.
Com um cigarro preso entre os dentes, a fumaça espiralando da
ponta em brasa, Roman ameaça meu sogro:
— Abaixe a porra do tom para falar com o meu irmão ou a próxima
coisa inútil que vou socar vai ser essa sua cara irritante.
Leonid tropeça nos pés desengonçados e cai sentado ao lado da
esposa, que finge um choro sem lágrimas. Nota-se que não esperavam pela
nossa chegada: ela está vestida com um robe elegante de cetim perolado,
pantufas e uma touca na cabeça, já Leonid, usa apenas um roupão de banho.
Ele tem uma boa compleição para um homem na casa dos sessenta e cinco,
sendo a barba grisalha um dos poucos indicativos de sua idade.
A casa do casal Serov fica situada em Charlottenburg, uma
construção que deve valer alguns milhares de euros nas imediações do
Parque Lietzensee. Foi aqui, dentro destas paredes, que Anastasia esteve
vivendo durante o ano passado, junto com a nossa filha. Tento imaginar
minha mulher caminhando pelos corredores clássicos com Ariya em seus
braços, mas não consigo evocar uma imagem.
Aqui nunca foi o lugar delas.
— Nós podemos explicar — Yekaterina diz com a voz aveludada.
— Você tem que entender, só queríamos proteger a nossa filha. Nunca foi a
nossa intenção esconder a gravidez de você, mas o amor materno faz a
gente cometer loucuras.
— Amor materno? — Akira ironiza. Sua mãe, ou o que quer que ela
seja para o homem sentado confortavelmente atrás da mesa de Leonid,
lança um olhar venenoso ao filho. — Sempre pensei que você pegaria fogo
se pronunciasse palavras como essas, tipo um vampiro sendo exposto à luz
solar. — Ele faz uma pausa e a observa. — Pena que não.
Akira é a peça-chave da nossa vinda.
Sem ele, Leonid e Yekaterina não teriam aceitado nos receber, mas
foram rapidamente convencidos depois que Akira se apresentou aos
funcionários da entrada como o filho dos patrões. Para os dois, a reputação
imaculada que construíram é a única coisa que está acima do orgulho.
Leonid se descontrola:
— Seu ingrato, depois de tudo o que fizemos por você, é assim que
nos retribui? Por acaso, sabe quem é esse homem? O que ele fez? Se não
fosse por ele, sua irmã não teria passado por tantos problemas!
— Se não fosse por ele, senhor Serov, minha irmã estaria morta. —
Akira apoia os pés confortavelmente sobre a mesa. — Ah, e não podemos
esquecer que, se não fosse por vocês, ele não estaria tão irritado. — Ele
gargalha, escarnecido com as expressões desconcertadas dos pais. Em
seguida, repete a pergunta de Leonid de um modo notoriamente irônico: —
Por acaso, sabe quem é esse homem? Ou a família dele? Se eu fosse vocês,
responderia às perguntas sem reclamar.
Aproveito a oportunidade para fazer o primeiro movimento até o
interior de suas mentes.
— Não seja por isso, eu posso fazer o favor de lembrá-los. — Sorrio
e começo a listar: — O último velho rico que se meteu com Ivan, perdeu
toda a fortuna em questão de semanas e foi detido pela maldita Interpol.
Alguma vez você ouviu falar do sujeito desde então? Não, claro que não.
Hoje em dia, Ivan tem mais contatos no Ministério de Assuntos Internos do
que uma unidade inteira da polícia federal, e para o azar de vocês, ele se
apegou a Anastasia como se ela fosse a sua irmã mais nova, ou um bichinho
que ele quer cuidar e alimentar; é irritante às vezes. E Vladimir? Meu irmão
tem uma lista de coisas com que se importa. A mulher dele, os filhos, o
resto da família e a empresa. Tudo o que não envolva esses quatro itens é
equivalente a nada. Vocês não são nada para o presidente, então jamais
conseguirão qualquer coisa minimamente parecida com a sua piedade.
Quanto a mim… acho que conheceram Yerik e o fim que ele levou.
Leonid muda de cor, do branco pálido ao verde-musgo.
— Não podem nos machucar — diz, mas sua convicção termina de
morrer assim que Roman abre a boca.
— Podemos colocar fogo na casa e dizer que foi acidental —
sugere, e está falando muito sério. Ele traga seu cigarro, olhando as paredes
e janelas. — Mas seria uma pena desperdiçar um imóvel como esse. Não
que eu me importe de ser pego, já contei que meu irmão é o melhor
advogado da Rússia?
Roman, é claro, dispensa apresentações.
Tudo o que ele fala surte o efeito esperado e os dois finalmente
expressam o medo que deveriam ter sentido desde o começo. Meu irmão
tem uma capacidade inerente de tornar a sua reputação a pior possível que é
muito útil em momentos assim.
— O que vocês querem de nós? — Leonid pergunta, manso como
um cordeiro.
— Para começar, uma explicação — eu respondo. — Vocês
pensaram que eu não descobriria? Que, em algum momento, não chegaria
aos meus ouvidos que Anastasia Serova tem uma filha? Vocês não podem
ter sido tão burros assim, então estou pressupondo que exista uma
explicação plausível. E me poupem da baboseira sobre amor. Que tipo de
garantia vocês acharam que tinham, para decidir que podiam afastar minha
filha de mim sem sofrerem nenhuma consequência?
Os dois se entreolham, resignados. O pomo de adão de Leonid faz o
movimento de subir e descer quando ele engole a saliva.
Antes da nossa separação, Anastasia não havia se aprofundado nos
relatos sobre o seu passado, apenas o suficiente para eu saber que seus pais
estavam longe de representar as colunas da moral e da boa razão. Mas eu
sabia que ela estaria melhor com eles do que comigo naquele momento — o
que acabou se provando verdade.
A necessidade às vezes nos leva a tomar decisões extremas, e foi o
que aconteceu comigo: a minha necessidade de me recuperar enquanto
posicionava as peças sobre o tabuleiro fez com que Leonid e Yekaterina
encontrassem uma pequena abertura em meu próprio jogo. Mas eles ainda
podem ser úteis antes de receberem a punição que merecem.
— Nós pensamos que… — O pai de Anastasia torce as mãos,
olhando de esguelha para Roman, que mostra os dentes no que deveria ser
um sorriso, mas o faz parecer um cão raivoso. O temor — Soubemos que
você tinha outro relacionamento. Pensamos que você não se importaria com
Anastasia ou o bebê depois que tivesse reconstruído o seu relacionamento
com a sua ex-mulher.
Que porra…
— Nós fizemos o que você pediu! — Yekaterina vocifera. — Ariya
não é sua filha, não de verdade! Ela é nossa neta, Anastasia Serova é nossa
filha, nós a fizemos. Não devíamos mais explicação alguma a você.

***

Eu sinto a distância entre nós em meus ossos, como se a linha do


destino que une as nossas almas estivesse protestando contra o estiramento
forçado, consciente do risco de se romper. É mais do que um afastamento
físico e tangível — esse tipo eu sei que consigo reverter em um estalar de
dedos — mas das emoções que nos unem, o amor verdadeiro que muitos
sonham em encontrar um dia e outros sequer acreditam que de fato exista.
— Quer dizer então que ela não sabe? — confronto os pais de
Anastasia. Depois de deixá-la, eu pedi a uma enfermeira que trouxesse os
dois até mim em uma sala de espera vazia, onde não seremos interrompidos
por ninguém. Meus irmãos já devem ter percebido que não estou em meu
quarto, e não serão coniventes com a minha decisão caso fiquem sabendo
antes de eu ter a chance de explicar tudo. — Ninguém a informou que
perdeu o bebê, que estava grávida até ser levada para a sala de cirurgia!
Leonid Serov esfrega a mandíbula e depois a nuca antes de me
responder. Para um pai que perdeu um filho, ele parece muito bem.
— O Chefe do Departamento de Neurologia concordou que seria
melhor não pressionarmos ela demais. Muitas informações em um período
tão curto podem agravar o quadro de amnésia.
— Mentira — digo, lendo por dentro do seu nervosismo. — Vocês
subornaram o médico. Nem deve ter sido tão complicado, uma vez que o
hospital já está nos nossos bolsos desde que vocês e meus irmãos decidiram
esconder o que realmente aconteceu naquele cativeiro. O que é um
favorzinho a mais perto de alguns milhares de rublos na conta?
— Você não está pensando em contar a ela, está? — Yekaterina, a
mãe de Anastasia, pergunta. Ela tem um cabelo longo e vermelho, sempre
que a encaro, lembro-me do rosto ensanguentado de Yerik destruído pelas
minhas mãos. Minhas mãos sujas com o seu sangue. A cor é igual. —
Anastasia não vai se lembrar, o caso dela é irreversível.
Irreversível.
Eu sei o que essa palavra significa: aquilo que não se pode
reverter; impossível de mudar o sentido ou a direção; sem possibilidade de
retornar a uma etapa anterior.
Eles não precisam me falar, eu já sei disso também.
— Eu vim dar a vocês um decreto. Quero que levem Anastasia para
longe daqui, que cuidem dela, a protejam da verdade como estão fazendo, e
em troca, eu a deixarei em paz.
— Embora… — Leonid murmura, confuso. Ele me encara com os
olhos estreitos, desconfiado. Não tiro a sua razão. — E para onde nós
iríamos?
— Berlim.
Uma vez, Anastasia me disse que gostava de Berlim. Era onde ela
pretendia viver se tivesse seguido com sua carreira musical.
— Mas isso fica na Alemanha! — Yekaterina reclama. — Nós
podemos simplesmente voltar para São Petersburgo.
— A cidade de onde ela precisou fugir depois de ser espancada pelo
marido? — Fecho meus punhos, tentando controlar o meu temperamento.
Tem sido difícil manter o ódio que queima dentro de mim abaixo da
superfície. Os dois só podem estar brincando com a minha cara. — Eu não
estou negociando com vocês. É uma ordem. Tirem Anastasia do país. Eu a
quero longe.
De mim.
— Se fizermos isso — Leonid assume a frente da conversa, ele
parece ser o mais diplomático dos dois; pessoas diplomáticas tendem a ser
as melhores mentirosas — você vai deixar nossa filha em paz?
Ele fala como se eu fosse o culpado por tudo o que Anastasia
sofreu. E acho que sim, eu sou, mas não sozinho. A história da minha
princesa perdida é cheia de pessoas horríveis que gozaram da impunidade
por tempo demais: dos professores e jornalistas que a discriminaram e
importunaram quando criança, de Leonid e Yekaterina, os pais de
reputação incólume e coração podre. Mas é a sombra de Yerik que eu
preciso erradicar primeiro.
O monstro que causou a perda da minha filha; que quase tirou a
vida de Anastasia; o culpado por sua amnésia. Ele disse, não disse? Ainda
não acabou.
Ainda não.
O desgraçado está morto, sua carne, sangue e ossos já não pulsam
vida, mas sua alma maligna permanece, um fantasma em meus ombros, o
obsessor que faz vigília ao lado da minha cama. E eu sou o seu oposto,
morto por dentro, com um corpo que ainda sente — dor, agonia e raiva. De
certa forma, continuamos lutando de igual para igual.
Mas é tudo uma questão de tempo. É o tempo que determina o
começo e o fim de todas as coisas. Tempo, paciência e poder. Felizmente,
eu tenho bastante dos três.
— Sim — respondo. Leonid e sua esposa não sabem se estou
mentindo ou dizendo a verdade. — Mas vocês devem cuidar bem dela,
tratá-la como uma princesa. Ela tem que ser feliz, custe o que custar. Nem
pensem em forçá-la a se apresentar, foquem na sua recuperação. Façam
valer a porra da farsa que começaram quando decidiram esconder dela a
criança que estava em seu centre. Vocês são péssimos pais, mas finjam que
são os melhores do mundo como se suas vidas dependessem disso, porque,
acreditem em mim, elas dependem.
Eles aceitam os meus termos.
Leonid e Yekaterina fazem promessas de manter distância e um
monte de porcaria que não me interessam. A função dos dois é apenas uma:
dar o suporte que Anastasia precisa para se recuperar. Eles são pecinhas,
muito, muito pequenas.
Deixo os dois falando sozinhos e volto caminhando para o meu
quarto. Já não choro, mas sei que as lágrimas serão minhas companheiras
pelos dias que virão. É assim que funciona quando se decide pagar o preço
do tempo, e talvez, mesmo assim, não seja o bastante, talvez, nem o tempo
seja capaz de dar uma segunda chance ao amor quando ele nasce e morre
rápido demais.
Eu sei disso.
Eu já sei.

***
Das atrocidades que ela diz, insinuar que fizeram Anastasia é a pior
de todas. Minha mulher foi adotada, então Yekaterina não está se referindo
à parte biológica que envolve fazer um filho. Ela está dizendo que a
moldaram e a treinaram, como se minha Ana não tivesse vontades e sonhos
próprios. Como se ela fosse apenas um resultado, um produto, uma… coisa.
Roman também entende.
Quase não vejo ele se movendo, lançando o braço robusto para trás
e depois ao encontro do rosto de Leonid. Meu sogro até tenta se proteger
com as mãos, mas por estar sentado, não é rápido o bastante. O punho do
meu irmão acerta a sua mandíbula e uma espessa corrente de sangue
começa a vazar do lábio cortado, manchando sua barba grisalha e o roupão
branco.
Yekaterina berra, apavorada, saltando para trás do sofá.
— Por que fez isso?! — Leonid grita. Ele tenta conter o
sangramento, mas o líquido vermelho-escuro não para de encher as suas
mãos. Já vi meu irmão dar socos mais fortes do que esse, não deve ser tão
grave assim. — Eu não disse nada!
Roman encara seu trabalho com uma satisfação animalesca —
maravilha, então talvez seja grave.
— Eu não bato em mulheres — Roman explica. Ele olha para
Yekaterina, que lamenta, chorando de medo. — Então toda vez que a
senhora insinuar que meu irmão não é o pai da minha sobrinha, ou que a
minha cunhada é um maldito brinquedo, eu vou socar o seu marido,
entendeu?
Ela concorda.
Isso simplifica bastante as coisas.
Confiro como Akira reage aos pais sendo intimidados, mas pela
raiva ardendo em seu olhar, acho que ele mesmo gostaria de ter rasgado a
boca de Leonid. Anastasia me contou que Akira foi quem mais sofreu
maus-tratos físicos na infância — outra informação que eu não tinha em
mãos quando a deixei sob os cuidados deles — e foi assim que consegui
pensar em uma maneira de fazê-los pagar o que me devem.
Tempo se paga com tempo.
— Vocês já estavam no hospital quando Anastasia chegou — digo,
caminhando devagar pelo aposento — mas não por causa de Zayn. Vocês
viajaram previamente até Moscou porque já sabiam que alguma coisa ia
acontecer. Foi Yerik quem avisou vocês?
Yekaterina, com uma aparência menos arrogante que dois minutos
antes, separa os lábios, suas sobrancelhas se erguem levemente, os olhos
ficam um pouquinho maiores no rosto triangular — micro expressões de
surpresa. Ela tenta camuflar tudo com um sorriso antes de responder.
— Claro que não…
— Sim — Leonid a corta. Acho que ele não quer ganhar outro soco.
— Ele enviou um recado no dia anterior ao sequestro, dizendo que
precisaria de ajuda para retirar Anastasia da cidade. Não sabíamos o que ele
pretendia fazer! Eu… eu posso provar!
Ele se levanta e vai até a mesa, lançando um olhar de desprezo ao
filho. Algumas gotas de sangue marcam o seu trajeto, mas são suas mãos
ensopadas que fazem uma bagunça enquanto ele vira o seu computador na
minha direção, digita meia dúzia de palavras e se afasta para eu conferir
pessoalmente sua suposta prova.
Na tela, há um e-mail com as iniciais de Yerik enviado na data
informada por Leonid. O conteúdo da mensagem bate com o seu
testemunho: um pedido de ajuda para retirar Anastasia de Moscou. Também
há uma pequena nota dizendo que, se tudo desse errado, os dois não
deveriam deixar Anastasia comigo.
Ainda não acabou… mesmo.
— Muito bem. — Olho para Leonid e seu semblante ansioso, depois
para a esposa dele. — Viram só como foi fácil? Ninguém precisava ter se
machucado.
— Precisava sim — Roman opina.
— Pronto, já contamos tudo o que sabíamos, vocês já têm o que
queriam, podem ir embora agora — Leonid esbraveja.
Akira ri.
— Quem disse que isso é tudo? É muita presunção mesmo acharem
que Andrei Volkiov viria até aqui só para ouvir vocês confessando algo que
ele já tinha entendido sozinho.
— Akira tem razão — digo com tranquilidade. — Existem três
opções disponíveis para o que vai acontecer daqui em diante. Na primeira,
vocês dois entregarem de boa vontade o gerenciamento de todo o
patrimônio da sua família para Akira Serov.
— O quê?! — Os dois gritam juntos.
— Estou me referindo a cada centavo de tudo o que possuem. Vocês
receberão uma mesada considerável para continuarem vivendo suas
vidinhas de mentira, mas deverão reportar cada um dos seus passos a ele. O
que comem, o que compram, o que vestem, onde vão e com quem falam.
Leonid gargalha histericamente, seu lábio inferior volta a esguichar
sangue.
— E por que faríamos isso? Hã? Esse garoto não merece a nossa
fortuna! Ele é um ingrato! Um merdinha delinquente que nunca soube o seu
lugar.
— Cara — Roman faz uma careta de nojo — você precisa de uns
pontos nessa boca.
— A segunda opção é a minha favorita. Eu posso simplesmente
interditar os dois, vocês perdem toda e qualquer possibilidade de autonomia
que a alternativa número um oferece e passam a viver reclusos em algum
lugar estabelecido pelo filho de vocês. — Indico Akira. — Isso os afastaria
da grande roda da alta-sociedade que tanto prezam.
— Ele… ele não pode fazer isso, pode? — Yekaterina direciona a
pergunta ao marido, que não se dá ao trabalho de explicar que sim, posso
fazer a porra do que eu quiser.
Será um pouco trabalhoso caso essa seja a alternativa escolhida, mas
não impossível. Nada é impossível para mim no território jurídico.
— A terceira opção também não é ruim. — Coloco um pouco de
ânimo na voz. — Nós vamos todos para a forca. Anastasia e Akira
denunciam vocês pelos abusos sofridos na infância. Nesse cenário, claro,
vocês passariam a ter uma carta na manga para usar contra mim: a verdade,
minha história inteira com Anastasia, afinal, já que não teriam mais nada a
perder, vocês poderiam me arrastar junto. Mas, como vocês já sabem,
minha família adora um escândalo. Inclusive, foi por isso que preferiam
Yerik do que a mim, não foi? Mesmo meu sobrenome sendo muito mais
relevante, vocês gostavam da estabilidade que haviam construído.
Com essa descrição, eles ficam completamente atônitos. Leonid se
joga de volta no sofá, estarrecido. Gosto bastante de ver os dois
encurralados. As três possibilidades têm algo em comum que está explícito:
em todas, Leonid e Yekaterina se tornam objetos nas mãos do filho que eles
mais desprezam.
A terceira não passa de um blefe para deixá-los com medo.
— Leonid — Yekaterina balbucia — se temos mesmo que escolher,
então que seja a primeira…
— Ah, desculpe, houve uma falha de comunicação. Não estou
oferecendo as opções a vocês dois, mas a ele. — Indico Akira com um
amplo movimento de mão.
Só assim eles compreendem, o impacto da realidade recai em suas
faces, cobrindo-as com sombras: eles estão presos.
Leonid e Yekaterina me roubaram, mas não sou o único, existe uma
lista de débitos e nela eu não estou em primeiro lugar. Tempo, como eu
disse, se paga com tempo. Uma inversão de papéis, em que ambos
experimentam como é viver para sempre sob o jugo e a vontade de outra
pessoa, assim como fizeram com o trio de crianças órfãs composto por
Anastasia e seus irmãos, é um jeito adequado de fazê-los pagar.
Quando Akira faz a sua escolha, não é só por si mesmo, mas pela
irmã que ele ama. E por Zayn, cujo tempo roubado é inestimável.
— Eu fico com a interdição.

***

Tatiana passa correndo de mãos dadas com Nicolai. Eu não sei


porquê meus irmãos concordaram em homenagear nossos pais, colocando
seus nomes nos filhos, foi uma ideia horrorosa. Tati e Kolya puxaram as
personalidades de suas mães, o que é um presságio nada otimista do que
nos aguarda no futuro. A pequena é audaciosa e travessa como minha
melhor amiga costumava ser na infância, e seu primo tem o mesmo hábito
de Serena de se meter em problemas.
Os dois ainda nem completaram dois anos.
Caminhando atrás dos meus sobrinhos mais novos, está Iago. Por
ser o mais velho, ele tomou para si a responsabilidade de proteger os primos
menores, e cumpre a função com muito empenho, tanto que nem me
percebe chegando na sala de visitas da mansão. Seus olhos verdes como
esmeraldas estão fixos no trajeto da dupla dinâmica.
Como eu já imaginava, Anastasia está sentada ao piano, o móvel
branco que nunca desempenhou outro papel na mansão além de embelezar
o ambiente. Mas ela não está tocando no momento. Ao seu lado, Ivan
embala minha filha, os dois sorriem enquanto conversam.
Uma cena que nunca imaginei que poderia acontecer,
principalmente depois do nosso sequestro.
Eu jamais perguntei ao meu irmão como ele se sentiu naquele dia ao
resgatar Anastasia quase sem vida, como foi depois que eles saíram. Nós
chegamos a um acordo silencioso de que não era necessário. Ivan sabe que
sou eternamente grato, pois se ele tivesse hesitado por apenas um minuto a
mais, talvez Anastasia não estivesse aqui hoje.
E Ariya.
Conhecendo meu irmão, ele também deve ter se culpado pela perda
— a falsa perda — por muito tempo, pensando que deveria ter feito algo
diferente. Mas ele fez tudo certo.
Por isso, não me importo de compartilhar um pouco da atenção de
Anastasia com ele. E ela merece receber todo tipo de amor que existe no
mundo.
— Estou atrapalhando? — digo, com humor, e o jeito que o rosto da
minha mulher se ilumina ao som da minha voz faz meu coração doer de
alegria.
— Você voltou! — Ela pula, ficando de pé com graciosidade, e me
abraça pela cintura. — Como foi? Meu irmão já me contou a maior parte
por telefone, mas como você está? — Ela inclina o corpo de lado, sondando
atrás de mim. — E o Roman?
— Roman veio comigo, mas assim que chegamos do aeroporto, ele
pegou uma das motos dele e saiu. Akira vai passar a semana em Berlim
para colocar o patrimônio da sua família em ordem e passar um pente fino
em tudo. E estou bem, princesa. Tudo saiu conforme o esperado e seus pais
continuam vivos.
Ela me cutuca com o dedo e faz um beicinho fofo que eu me seguro
para não morder.
— Já falei para não brincar com isso.
— Como eles reagiram? — Ivan pergunta.
Ele me entrega Ariya, que já está com seus olhos de mel vidrados
em mim. Minha filha… Céus! Ela é perfeita. Eu sempre quis ter filhos,
sempre sonhei em formar uma família, mas as minhas fantasias não chegam
minimamente perto do amor real que sinto por essa bebezinha de cabelos
cacheados e nariz redondinho.
Apesar de frequentemente brincar sobre o assunto, eu odeio a parte
de mim que tirou a vida de uma pessoa, mesmo essa pessoa sendo um
monstro que não merecia estar neste planeta. Mas quando penso na minha
filha e imagino qualquer pessoa lhe fazendo mal, sei que voltaria a ser
aquele Andrei que enxergava o mundo em vermelho, pois nada me
impediria de protegê-la ou vingá-la.
— Amor — Anastasia me chama — seu irmão fez uma pergunta.
— Ah, eles… — Ajeito Ariya de modo que fique deitada e ela fecha
os olhinhos de imediato. Parece mágica. — Tentaram resistir no começo,
mas acabaram confessando tudo e consegui a informação que eu precisava.
O processo para torná-los inaptos vai exigir alguns subterfúgios, mas não há
muito o que eles possam fazer sem se prejudicarem mais ainda. Você e seu
irmão não precisam mais se preocupar com o risco de eles tentarem
começar um novo projeto de caridade.
Ela me contou sobre o termo também. Pensar em criancinhas se
autointitulando assim, como se fosse normal, é triste em tantos níveis…
— Está satisfeita com isso? — Ivan pergunta à minha mulher. —
Eles mereciam mais.
Anastasia suspira.
— Eu não tenho dúvidas de que meu irmão vai garantir que os dois
não tenham um momento de paz na vida. Mas sinceramente, não me
importo mais com eles. Estou feliz demais para isso.
— Que bom, querida. — Meu irmão sorri e se dirige a mim. —
Tenho que ir para a empresa agora, esperamos você mais tarde, combinado?
Concordo sem falar nada.
Assim que meu irmão sai, eu sondo as crianças, que estão distraídas
com blocos de montar, e beijo minha mulher. Não há muito o que eu possa
fazer com nossa filha em meus braços, então por mais que eu queira e
precise me aprofundar em sua boca, limito-me a um breve selar de lábios.
— Estava ensaiando? — pergunto, indicando o piano. Anastasia
decidiu que vai tocar para a família durante o jantar. Minha mãe está em
êxtase.
— Vou começar agora, quer ouvir?
— Você sabe que a resposta para essa pergunta sempre vai ser sim,
princesa.
Sorrindo, Anastasia senta-se ao piano novamente. Ela acaricia as
teclas primeiro, como se quisesse mostrar a elas todo o seu respeito. Eu me
acomodo em uma poltrona para ouvir, com Ariya adormecida e quietinha.
Ela é um anjo.
Anastasia respira fundo e fecha os olhos, quando ela faz isso, sei
que se transporta para outra dimensão onde tudo se resume à sua conexão
com o instrumento, mas dessa vez é diferente.
— Andrei — ela me chama, baixinho, e enquanto as primeiras notas
começam a soar, completa: — Obrigada.
43
Evgenia
ELE NUNCA DORMIA bem quanto estava comigo, mas desde que ela
voltou, ele não abre mais os olhos. É frustrante.
Entro no quarto deles, vazio. Estão passando alguns dias na mansão.
Uma funcionária me disse que a família não quer ficar longe da criança,
aquela praguinha asquerosa que deveria estar morta. É incrível o que as
pessoas contam quando não sabem quem você é ou o que você quer.
Mas não era para ser assim.
Andrei deveria ficar comigo.
Eu não tenho mais ninguém. Minha vida se resume a viver daquilo
que os meus pais me deixaram… e Andrei.
Eu pensei que, sem ela, ele voltaria para mim em algum momento,
então fui paciente. Andrei precisa de sexo para dormir, sempre foi assim,
ele deveria ter me procurado, já que sei responder suas necessidades à
altura. Mas ele é teimoso, até parou de beber depois que Lara, sua
amiguinha favorita, o convenceu a fazer um tratamento.
Vagabunda.
Era mais fácil manipulá-lo quando ele não estava sóbrio. Talvez seja
isso, eu posso simplesmente induzi-lo a beber de novo. Deixá-lo tão
alcoolizado a ponto de não reconhecer a mulher que vai estar em sua cama.
Obrigá-lo a me comer como se eu fosse a sua princesa.
O quarto é sem graça. Não entendo como ele pode preferir este
apartamento velho ao nosso duplex de luxo. Já conheço todos os detalhes
dos quartos, sala e cozinha, já estive aqui muitas vezes.
Assombrando Andrei.
Vigiando.
Vendo-o agonizar em seus sonhos.
Algumas noites, principalmente as primeiras depois do sequestro,
ele acordava gritando. Eu sempre tive o cuidado de me esconder nas
sombras, no canto, perto da saída, mas ele me via às vezes. E, quando isso
acontecia, ele pensava que estava alucinando com o fantasma de Yerik, uma
projeção da sua própria mente.
Andrei chorava, era lindo.
Andrei é lindo.
E é meu.
Deito-me na cama, o travesseiro tem o cheiro dele. E dela. É aqui
que ele a fode todas as noites. Mas é o meu lugar. É o meu corpo que
deveria saciá-lo, é a mim que Andrei deveria desejar. Mas ele prefere
continuar brincando de família feliz.
Fecho meus olhos.
Deixo minhas mãos vagarem até o interior das minhas pernas e
imagino Andrei aqui comigo. Suas mãos, seu corpo, seus comandos. Abro-
me para ele, gemendo, estimulando-me como ele faria se estivesse aqui — e
como ele vai fazer em breve, assim que voltar para mim.
É tão rápido que chega a ser frustrante, pois Andrei gosta que
demore, ele sabe como fazer uma mulher se sentir bem a noite toda. Mas ao
atingir o ápice, eu grito alto o nome dele sem me importar com os vizinhos.
Quero que ouçam o nome do meu homem. Se eu der sorte, alguém vai
pensar que ele está traindo a princesinha dele com outra.
Mas Andrei é meu.
E eu já sei como fazê-lo entender isso.
Andrei tem pessoas demais para amar. No passado, eu consegui
afastá-lo de sua família e monopolizar o seu amor. Basta repetir o feito. A
criança, porém, é um problema. Ela não podia ter sobrevivido. Se eu
soubesse, não teria sido tão cautelosa. Assim que a menina estiver fora da
equação, Andrei vai definhar. E depois eu vou lidar com a mãe.
É simples. Muito simples.
Já sei quando.
E onde — o lugar que eles menos esperam.
É tudo uma questão de tempo.
— Andrei é meu — digo antes de dormir em sua cama, em seu
quarto, no apartamento dele, porque gosto de escutar para nunca me
esquecer. — Meu, meu, meu…
44
Anastasia
O AMOR É um negócio engraçado mesmo. Ele não é só um sentimento que
a gente sente, uma emoção momentânea que depende de condições
específicas para ser ativada, como acontece com a alegria e a tristeza, mas
um estado de ser. A partir do momento que amamos, nos tornamos amor.
E é bom demais saber que não existem espaços vazios esperando
para serem preenchidos dentro de nós. Nenhum buraco, nenhuma
rachadura.
A grande questão é que, ao sermos amor por inteiro, basta uma gota
a mais desse amor para não cabermos em nós e vazarmos pelo mundo, e
Andrei tem a incrível capacidade de me transbordar o tempo todo.
Francamente, ele nem se esforça. Qualquer sorriso dele me transforma em
um oceano dentro de um copo, os olhos me levam para navegar em
abismos, e às vezes eu sinto que posso morrer.
Fico imaginando se foi assim que surgiu a expressão “morrer de
amor” que as pessoas falam. Porque eu acho que faz todo o sentido.
Vejo-o perambular de mesa em mesa com Ariya em seus braços e
chego à conclusão de que ele está fazendo isso de propósito: ser o homem
mais lindo, sedutor e apaixonante que existe, para quem sabe assim, eu
nunca mais conseguir raciocinar direito, ou ser uma pessoa minimamente
funcional, já que não consigo parar de admirar o meu homem.
Meu homem — eu nunca posso dizer isso a ele em voz alta. Andrei
tem um gosto refinado por elogios, sobretudo os que enaltecem a sua
importância. Como se pudesse ouvir a minha mente, Andrei olha ao redor
até me encontrar, e ao flagrar que o estou encarando, ele abre aquele sorriso
encantador que faz o céu dar um suspiro.
Ele está impressionante em uma camisa de linho branca, calça cáqui
e mocassim de camurça, completamente confortável com o fato de ser
lindo. A barba, um pouco maior do que costuma usar, dá a ele um ar de
casualidade, mas ele ainda não parece um ser humano normal. É como se
um anjo tivesse acordado uma bela manhã e decidido que queria caminhar
entre os meros mortais.
Andrei fala alguma coisa no ouvido da nossa filha, que está usando
um presente de sua avó, um vestido muito chique de veludo bordô, com um
laço combinando e sapatilhas de boneca, depois ele segura sua mãozinha e a
faz acenar para mim.
E aqui estou eu, de novo, esguichando amor para todos os lados. Ele
ri de mim, porque eu devo estar fazendo uma cara de boba apaixonada, e
vai se juntar ao irmão em uma mesa.
Quando me disseram que fariam um jantar, eu imaginei… um jantar
mesmo, não uma festa no jardim com direito a banda ao vivo e animadores
para as crianças. Mas Lara passou uma semana organizando tudo, então eu
podia ter desconfiado.
Ela transformou o jardim da mansão em um baile a céu aberto. As
árvores estão iluminadas com gotas de luz, a água da fonte, não sei como,
parece um arco-íris líquido, chovendo em tons de rosa, vermelho e azul sob
o testemunho das estrelas, e meia dúzia de mesas foram dispostas em um
semicírculo ao redor do palco em formato de concha, onde músicos se
revezam entre melodias clássicas e contemporâneas.
Pelo menos, apesar da decoração extravagante e da quantidade de
comida suficiente para alimentar um batalhão do exército, estamos em um
número razoável de pessoas — ou tão razoável quanto se pode ser com uma
família do tamanho da de Andrei.
Vladimir e Serena estão dançando. Para qualquer pessoa de fora, à
primeira vista, eles devem parecer completos opostos: o presidente da
empresa, sério e compenetrado, capaz de congelar o mundo com seus olhos
glaciais, e ela, um espírito livre, sedutor, em chamas. Mas quando se olha
com atenção, eles são idênticos. Os dois são misteriosos, seus olhares
contam histórias sobre duas almas e um destino. Onde Vladimir é guerra e
vitória, Serena é poder e conquista, parece-me a união perfeita. Amor e
caos. Paixão e glória. Entrega e rendição.
Roman está jogando conversa fora com meu irmão e Aleksander, o
marido de minha prima Dema. Agora que meus pais estão exilados em uma
casa monitorada por Akira no interior da Carélia, eu estou livre para
estreitar os laços que foram cortados com as pessoas que amo. Felizmente,
Dema e Lara são melhores amigas, então é como se fossemos todos parte da
mesma família — a grande família que eu sempre sonhei.
Ivan e Andrei estão juntos, cada um segurando a própria filha.
Tatiana, a neta, está entretida com uma pirozhki de carne, que já
transformou suas calças de zebra em uma bagunça de molho e tomates.
Tatiana, a avó, como já era de se imaginar, está rodeada pelo
restante dos netos, parecendo que ganhou na loteria dos herdeiros. Desde
que a quantidade de seus descendentes aumentou um dígito por causa de
Ariya, ela começou uma campanha por mais netos, dizendo que prefere ter
um número par. Andrei tem considerado a ideia muito pertinente.
Engravidar de Andrei… eu não posso dizer que me oponho. Para ser
sincera comigo mesma, só de pensar em como ele tem se empenhado na
tarefa, e no quanto é bom em executá-la, sinto que posso acabar me
acostumando com seus planos superpopulacionais. Por que não? Uma vida
ao lado de Andrei e vários dos nossos filhos crescendo juntos, rodeados de
amor? Eu não preciso de mais nada.
Além das crianças Volkiov, o filho de Dema, Grigory, também
encontrou seu espaço ao lado de Kolya, o bebê que é uma cópia de
Vladimir dos olhos azuis ao cabelo crepuscular, e da pequena Luna,
silenciosa e observadora como o astro que a nomeia.
Iago, o neto mais velho, transita no meio de todos os núcleos da
família, às vezes ajudando com os primos, às vezes fazendo companhia para
a mãe e suas tias, e às vezes conversando de igual para igual com Vladimir,
como se fossem dois presidentes de empresas distintas discutindo negócios
importantes.
Mariya também veio, mas não como minha funcionária. Agora que
tenho uma rede de apoio que me permite criar mais umas cinco crianças se
eu quiser, ela está com medo de ser dispensada do trabalho, e quero mostrar
a ela que é minha preciosa amiga e que preciso dela em minha vida. Além
do mais, de acordo com o que tenho observado do comportamento do meu
irmão, se os dois não se matarem, vão acabar se casando!
Fora a família e amigos, algumas pessoas da empresa e da
associação também foram convidadas, em geral, conhecidos, sócios do
círculo íntimo de Andrei e seus irmãos, algumas senhoras do clube, para
quem Tatiana adora exibir os seus netos e netas.
Estou sentada à mesa central, em uma posição de destaque, a mando
de Lara, que organizou nossos lugares. Tenho uma visão privilegiada das
pessoas. Estou justamente observando um por um quando alguém chama a
minha atenção. Uma funcionária, eu acho, com um rosto pálido que me
parece familiar demais.
Eu a conheço, mas não me lembro de onde…
— Eles estão escondendo alguma coisa — Lara diz, sentando-se ao
meu lado. Distraio-me com a sua chegada repentina e perco a mulher de
vista. — O que foi? Quer que eu chame alguém?
— Não eu… — Seja lá quem for, não há razão para procurá-la
agora. Se eu não me lembro, significa que nos conhecemos antes de eu
perder as minhas memórias. — Quem está escondendo o quê?
— Quem mais? Os quatro mosqueteiros.
Tenho quase certeza de que eram apenas três. Acompanho o olhar
desconfiado de Lara até nossos companheiros.
— Está falando de Andrei e dos irmãos?
— Sim! E acho que Andrei é o responsável.
— Pelo quê?
— Eu não sei! — Lara bufa, visivelmente frustrada, passa as mãos
nos cabelos curtos, que estão penteados para trás, muito elegantes. — Mas
alguma coisa está acontecendo.
Observo Andrei e Ivan por um tempinho, esperando encontrar
algum indício do que Lara está insinuando. Ela os conhece muito melhor do
que eu, seu amigo de infância e o grande amor de sua vida, então terei que
confiar em sua palavra já que, a meu ver, os dois parecem tão normais como
sempre.
A festa continua, o jantar é servido, nós dançamos, conversamos e
nos divertimos. Trocamos histórias, Roman e Serena nos fazem rir com
seus comentários sarcásticos, os irmãos se provocam a cada segundo, e
Tatiana me trata como se fosse uma filha. Pela primeira vez na vida, eu
sinto que pertenço a um lugar.
Não que faço parte apenas, como um objeto decorativo faz parte do
ambiente, mas que realmente pertenço a essa família, que eles me amam e
me querem, que esperei a minha vida inteira apenas para experimentar essa
sensação.
A família de Andrei, da nossa filha, minha família. Eles me fazem
pensar em Für Elise, Bagatela para Piano, número 25, em Lá menor, de
Ludwig van Beethoven.
É com esta música na cabeça que me dirijo ao grande piano branco
posicionado no centro da concha acústica. Não sei quantas pessoas e
equipamentos foram necessários para trazer o instrumento até o lado de
fora, mas Andrei me disse para não pensar demais na questão e é o que
estou tentando fazer.
Sento-me na banqueta estofada e respiro fundo.
No começo, eu tinha intenção de utilizar o violino, teria sido mais
fácil, porém, essa é uma melodia composta especialmente para o piano e eu
não conseguiria expressar a minha felicidade com nenhuma outra. Quero
que eles sintam a minha gratidão — por mim e por Ariya — e saibam que,
sem eles, eu jamais conheceria o verdadeiro significado de família. Andrei
me deu isso, a realização do sonho de uma garotinha que nunca quis nada
além de amar e ser amada.
Aperto os dois pingentes do colar em meu pescoço.
Procuro por Andrei no meio da minha pequena e valiosa plateia.
Pouso as mãos sobre as teclas.
Nossos olhos estão conectados quando a primeira nota soa para a
noite estrelada, e continuamos nos olhando — transbordando amor através
do toque de nossas almas — enquanto meus dedos dançam sobre o
instrumento. A música cresce e cresce, rítmica, feliz, emocionante e
divertida.
No entanto, algo acontece no meio da apresentação.
Eu raramente consigo sair do transe antes de terminar uma música,
principalmente uma com um peso emocional tão grande para mim, mas por
causa daquele laço, o fio de amor que me liga a Andrei e que já não me
deixar ficar inconsciente de sua existência, eu vejo que há algo estranho
acontecendo.
Um segurança se aproxima de Andrei, inclina-se sobre ele e diz
alguma coisa em seu ouvido. Andrei não esboça uma reação significativa,
mas eu sinto a sua tensão em meus músculos e ossos, como se fôssemos
uma só alma em dois corpos.
Seria uma cena irrisória, não fosse o segurança.
Conheço ele, seu nome é Komarov, acho que costumava me
acompanhar antes do sequestro. Tenho certeza disso, já o vi algumas vezes
em pequenos fragmentos de memória. Ele é um bom homem, não é jovem,
mas se eu não estiver enganada, ele também foi atacado naquele dia, no
parque, antes de Zayn ser brutalmente assassinado por Yerik.
O que ele está fazendo aqui?
Andrei poderia tê-lo trazido até mim antes, eu gostaria de agradecer
por seu trabalho duro no passado, desculpar-me por todos os problemas
causados.
Um burburinho começa a se propagar entre os convidados.
Eu erro uma nota — só que eu nunca erro.
— O que está acontecendo? — Desisto de tocar. Levanto-me,
segurando a barra do meu longo vestido preto para chegar até Andrei. Sinto
que preciso estar perto dele, que seu corpo está chamando pelo meu, o que é
uma loucura, mas quando suas mãos tocam meus ombros, elas estão frias
como pedras de gelo.
— Não entre em pânico — ele diz.
Serena faz um som de engasgo.
— Esse é o aviso número um para fazer as pessoas entrarem em
pânico, Andrei!
— Os seguranças acabaram de interceptar um intruso na mansão —
Vladimir explica, abraçando sua mulher a fim de acalmá-la.
— Inter… ceptar? — gaguejo, minha cabeça rodando.
— Ele quer dizer que capturaram um invasor, docinho. — Roman,
bizarramente, está sorrindo. Ele menospreza a grave situação com um
desdenhar de ombros. — Oh, quem será?
Meu Deus. Meu Deus. Meu Deus.
— Ela foi encontrada no quarto das crianças — Komarov, o
segurança, explica, como se Roman estivesse interessado de verdade em
uma resposta. — Estava tentando se esconder enquanto não havia ninguém
lá dentro.
Ela?
Uma mulher desconhecida, no quarto das crianças?
Que loucura estão dizendo? Por que alguém faria mal às crianças?
— Ariya… — Eu procuro a minha filha, mas o medo cega meus
olhos e não a encontro em lugar nenhum. É o pior segundo da minha vida.
Um momento em que tudo e nada passam pela minha mente e minha única
missão é proteger Ariya, minha bebezinha, da ameaça inominada e
monstruosa que quer machucá-la.
Minha filha, eu preciso da minha filha...
— Ela está bem — Andrei me segura com uma força capaz de
fundar universos, seu tom firma meu corpo no lugar, dissipa o medo até não
restar uma gota. Não duvido de suas palavras. Nunca. Acredito nele com
todo o meu coração. — Todas as crianças estão em segurança. Contratamos
uma equipe extra por isso. Seu irmão agora é o responsável pela empresa de
Zayn, lembra? Estamos protegidos, princesa. Não nos faltam seguranças e
funcionários qualificados agora. A mansão é o lugar mais seguro do mundo.
A polícia está a caminho, você não precisa se preocupar.
Sem o véu do terror, olho na direção que Andrei aponta e identifico
todas as crianças reunidas em uma mesa. Meu alívio ao ver Ariya no colo
do meu irmão, junto com Tatiana, Lara, Mariya e Dema, pessoas em quem
confio, é imediato. Mas não é só isso. Há pelo menos cinco homens
uniformizados ao redor deles, outros espalhados entre as demais mesas.
Eu não tinha percebido tantos seguranças até agora. Será que foi por
isso que Lara ficou desconfiada? Eles não costumam agir assim?
— Andrei, nós temos que ir — Vladimir o chama.
— Ir? — pergunto, indignada, minha voz escalonando várias
oitavas. Agarro os pulsos de Andrei com as unhas. — Por que vocês iriam
até lá? E se ela tentar alguma coisa contra nós?
— Você pode ficar aqui se quiser, princesa, não vai ser bonito
mesmo, mas eu tenho que fazer isso.
De repente, tudo se encaixa.
Ele sabe quem ela é.
Andrei, meu querido e amável e lindo Andrei, conhece a pessoa que
veio atrás da nossa filha, porque ela nunca o deixou em paz. Sempre o
punindo por uma tragédia que não é culpa dele, causando um sofrimento
eterno ao homem que já caminhou no inferno por mim.
— É ela, não é? Sua perseguidora, a mulher que você namorou antes
de mim. — Sinto uma avalanche de repugnância e ódio tomar conta do meu
corpo. Andrei se surpreende com a minha reação e confirma rapidamente
com a cabeça. — Eu quero vê-la, vamos, não vou deixar você passar por
isso sozinho.

***

Assim que entramos no hall da mansão, a atmosfera parece mudar,


como se a presença dela causasse um grande prejuízo ao oxigênio do
ambiente. Deve ser um reflexo da repulsa que estou sentindo, mas sinto
vontade de vomitar assim que a vejo. Está sentada em uma cadeira com
entalhes ornamentais, gritando obscenidades aos seguranças que a cercam
como se fosse a dona do lugar.
À medida que nos aproximamos, eu a reconheço: é a mulher que eu
vi mais cedo, de relance. Aquela que tenho a impressão de já ter conhecido
antes.
Ela está usando o mesmo uniforme que a equipe do buffet, um terno
simples e preto, com sapatos fechados e uma gravata borboleta na cor
vermelha. Seus cabelos estão amarrados em um rabo alto, os fios longos e
lisos brilhando à luz do lustre que pende do teto. Seus olhos são pequenos,
redondos no meio e alongados nos cantos, e encaram Andrei com uma
possessividade doentia assim que ela percebe a nossa chegada.
— Finalmente! — ela grita, histérica. Tenta se levantar, mas é
impedida por um dos homens da equipe de segurança, que a empurra de
volta para a cadeira. — Pode ordenar a esses dois trogloditas para me
deixarem em paz?
Essa voz…
Eu a reconheço, sei que já conversamos antes, mas quando? Onde?
Andrei nunca mencionou nada a respeito de sua ex e eu termos nos
encontrando no passado. Será que estou imaginando coisas?
Percebo que os homens não fazem nada além de contê-la e impedir
que cause algum dano. Eles se mantêm por perto, sem tocá-la, exceto
quando ela tenta se levantar e investir contra nós. Andrei estava dizendo a
verdade, ela não tem nenhuma chance de escapar, é quase como se
estivessem à sua espera.
Continuo com a estranha sensação de que já falei com ela antes…
— Eles não vão a lugar nenhum, Genny, e nem você. Não até a
polícia chegar. Você foi longe demais invadindo a casa da minha família.
Arrisco um olhar para Andrei, sem entender o uso do apelido, mas
logo entendo que ele nem percebe que ainda a chama assim. Está
condicionado a ser dócil perto dela, porque era desse jeito que a mantinha
equilibrada e evitava as brigas. Seu rosto parece uma máscara em branco,
os olhos vazios, inexpressivos, nunca o vi reagir dessa maneira a ninguém.
Conosco, estão seus irmãos. Os quatro juntos exalam poder e
confiança, e assim como Andrei, os demais também não transparecem o que
estão sentindo ou pensando — exceto por Roman, que continua sorrindo,
todo confortável, como se o perigo e a anarquia fossem a sua zona de
conforto.
— Polícia? — Evgenia desdenha, mostrando os dentes. Fica de pé,
os seguranças formam uma barreira com os braços, mantendo-a longe de
nós. — Que bom, eu também tenho uma ou duas historinhas que eles vão
adorar ouvir. Aquela sobre o advogado que assassinou um sujeito com as
próprias mãos depois de roubar a mulher dele, já ouviu?
Ofego com a brutalidade das suas palavras. É assim que ela fala com
Andrei sempre? Esse tipo de acusação venenosa que ele vem suportando
desde que se separaram? Como ele aguenta? Mas, mais importante do que
isso…
— Como ela sabe? — sussurro, mortificada. Minha própria mente
responde a minha pergunta com uma lembrança. Uma revelação de algo que
estava embaixo do meu nariz esse tempo todo. A confirmação de que sim,
eu conheço Evgenia, sei quem é a criminosa que se acha no direito de
perseguir o homem que amo. Digo o nome dela, sentindo o gosto de veneno
em cada letra: — Yuliya.
Antes, quando a conheci, seu cabelo era loiro, provavelmente uma
peruca, por isso demorei tanto para reconhecê-la. Yuliya era nossa vizinha,
morava um andar abaixo do apartamento de Andrei, e eu a considerava uma
amiga. Na época, ela havia acabado de se mudar, não tinha muitos móveis e
alegava que seu marido trabalhava demais, por isso vivia sozinha.
Era tudo mentira.
Yuliya é, na verdade, Evgenia.
O tempo todo, ela esteve lá, ouvindo minhas confidências, coletando
informações, ela me enganou, me usou, tudo isso para chegar a Andrei.
— Ding, ding, ding! — Yuliya, ou melhor, Evgenia gargalha. —
Acertou! Até que enfim, eu já estava ficando magoada. Sentiu minha falta?
Andrei se coloca na minha frente.
O Escudo.
— Não fale com ela.
— Andrei. — Ao meu chamado, ele olha por cima do ombro, sua
expressão se suaviza um pouquinho assim que nossos olhares se encontram.
— Ela estava lá desde o começo. Talvez você não se lembre, porque nunca
chegaram a se encontrar pessoalmente, mas ela era a nossa vizinha, a amiga
que eu fiz no prédio.
— Eu sei, princesa.
Ele… sabe?
Okay, Lara estava certa, tem alguma coisa acontecendo.
— Guarde a sua saliva, queridinha, ele não vai fazer nada. Andrei
não pode fazer nada contra mim porque ele sabe que seria injusto depois de
tudo que ele já me causou. — Evgenia fica mais descontrolada a cada
minuto. — Não era para você ter voltado — grita. Levo um momento para
entender que está se referindo a mim. — Teria sido melhor para todo mundo
se você continuasse ruim da cabeça, sem lembrar de nada!
— Você é louca! — Eu chego no meu limite. Andrei me abraça
quando tento avançar para cima dela. Ivan também se aproxima, tentando
me acalmar. — Por que você não desiste? Por que continua fazendo isso?
Chegar ao ponto de fingir ser minha amiga, apenas para nos prejudicar, é
cruel! Desumano. Você é uma pessoa horrível!
— Você ainda não entendeu nada. — Evgenia me encara com um
sorriso viperino. — Eu não estava apenas perseguindo Andrei. Ele é meu, e
eu tinha que fazê-lo entender que seu lugar é ao meu lado. Para isso,
precisava tirar você do meu caminho. Pense um pouquinho. Depois que nós
duas nos conhecemos, seu marido logo conseguiu encontrar você. Como
acha que Yerik soube que Andrei e você estavam vivendo juntos antes de
decidir contratá-lo como advogado? Quem você acha que contou para o seu
marido, que Andrei ficaria sensibilizado com a história dele assim que ele
mencionasse o bebê?
Não pode ser…
É pior do que eu imaginava. Ela não apenas estava lá desde o
começo, como ainda estava atuando junto com o homem que me machucou
das maneiras mais monstruosas que existem. Agora faz todo sentido. As
pequenas lacunas na história, aqueles detalhes que não faziam sentido,
todas as vezes em que eu acusei o universo de ter um humor sádico com
suas coincidências trágicas, eram apenas ela e Yerik, juntos.
Por isso ele sabia, durante a audiência, que eu não havia contado a
verdade a Andrei sobre a gravidez. Foi assim que Yerik conseguiu
monitorar a nossa relação. O que mais ela sabe? De que outras formas Yerik
se aproveitou dessa cumplicidade para causar todos os danos possíveis a
Andrei, a mim e a nossa filha?
Andrei começa a tremer. Tudo isso… eu nem consigo mensurar
como deve ser difícil para ele descobrir a verdade depois de sofrer sozinho
por tantos meses. Não sei como confortá-lo, o que dizer, então permaneço
ao seu lado, abraçando-o, tentando ser a sua força de alguma maneira. Toco
seu peito, abraço Andrei enquanto seus ombros sofrem espasmos. Não
quero que ele chore na frente dela.
Mas Andrei joga a cabeça para trás…
E gargalha.
45
Andrei
QUAL A DIFERENÇA entre a justiça e a vingança?
Falando em termos conceituais, parece óbvio. A primeira se vale do
que é considerado correto e ético para aplicar uma compensação
proporcional ao fenômeno da causa-e-consequência, ou seja, a ideia de
justiça tem a ver com restituição — a intensidade do mal que você recebe
depende do mal que você causa. A segunda, no entanto, é puramente sobre
castigo, e ele pode ser mais ou menos intenso em comparação ao que está
sendo vingado.
Podemos considerar, portanto, que a vingança existe sem a justiça,
mas não o contrário. Fazer justiça é uma ação inerente à necessidade de se
vingar, pois é na retribuição que a vingança prospera — olho por olho e
dente por dente.
Quando Yerik me usou para prejudicar Anastasia, induzindo-me ao
erro de defendê-lo antes de saber que ela era a sua esposa, eu não pensei em
ser justo. Junto com Zayn, nós o atacamos fisicamente, fizemos ele sofrer
um pouco do que ela sofreu em suas mãos, e no fim, acabei com todas as
suas chances de ficar com a minha filha e a minha mulher. Quando ele
sequestrou Anastasia, eu paguei o preço da minha alma e fiz ele pagar com
a sua vida.
Ser um justiceiro faz de mim um homem essencialmente vingativo.
É por isso que não consigo conter a risada — a vingança é a minha glória.
— Andrei — Anastasia chama o meu nome, hesitante. Deve estar
pensando que finalmente sucumbi a loucura. — O que está havendo?
— Ele está bem, docinho — Roman diz, sorrindo. Ele é um babaca,
mas dessa vez estamos na mesma página. — Andrei só é assustador e
inteligente pra caralho às vezes. Quem pensa que o presidente é maligno,
não conhece a mente de ferro do nosso advogado.
— Que moral você tem para chamar qualquer pessoa de maligna,
Roman? — Vladimir, com as mãos nos bolsos da calça, uma pose que exala
confiança, arqueia uma sobrancelha — Se olhe no espelho e pare de sorrir
como uma criança no parque de diversões. Daqui a pouco os policiais
estarão aqui e vão pensar que você é o psicopata que precisa ser detido.
— Eu não sou? — Roman caçoa, o sorriso torto inalterado.
— Eu não… — Anastasia gagueja. Ela se agarra a mim, acredito
que na intenção de me dar apoio, mas sou eu que acabo a amparando. — Eu
não estou entendendo nada.
— Princesa, eu já sabia que os dois estavam trabalhando juntos, só
isso — explico com carinho.
Ela abre a boca, surpresa, uma ruga aparece entre as suas
sobrancelhas. Eu já sabia que teria dificuldade em entender, ela ainda não
tem uma boa parte das memórias e não dispõe de todas as informações
como eu.
— Desde quando?
— Quando eu e você estávamos presos, Yerik deixou escapar uma
informação sem perceber. Na hora, havia muita coisa acontecendo e esse
detalhe acabou passando despercebido. Mas eu nunca me esqueci. Ele se
referiu a mim dizendo: “eu prometi que não mataria você”, mas a quem ele
faria tal promessa? E por quê? Yerik era o maior interessado em me matar.
Então, depois, quando Evgenia apareceu no hospital, eu tive certeza de que
era ela.
— Tem mais — Ivan diz, condescendente. — Seu sequestro, a
forma como tudo aconteceu era muito suspeita. Graças a Komarov,
conseguimos preencher algumas lacunas na ordem dos fatos.
— Evgenia me convenceu a almoçar com ela na mesma hora que
você estaria no encontro com seu irmão, mantendo-me ocupado — conto, e
vejo sua expressão mudar, de choque e tristeza para horror. — Demoramos
a descobrir, mas Yerik sabia que ainda não havíamos terminado o processo
de contratação da sua equipe de segurança. Aquele encontro era a única
oportunidade que ele teria de levar você, e ele só soube porque…
— Eu contei para minha amiga, Yuliya. — Anastasia é inteligente e
compreende o restante sozinha. — E como vocês fizeram de tudo para
amenizar o escândalo e poupar você de acabar sendo condenado, caso se
comprovasse que não agiu em legítima defesa e sim para me proteger, não
puderam contar para a polícia que ela era uma cúmplice. Sem as minhas
memórias, eu era inútil, e com Yerik morto, teria sido a sua palavra contra a
dela. E você estava sozinho. Isso é… — Anastasia começa a chorar. — Isso
é triste demais. Depois de passar por todos aqueles horrores, você ainda
teve que deixar a pessoa que o atormentava, livre. Você escolheu se
sacrificar mais uma vez. Não é justo!
De novo, a palavra-chave: justiça.
Compreendo que é assim que deve parecer para Anastasia, que eu
fui lesado, o mais prejudicado, e que minha compensação não foi o
suficiente — ou justa. Mas eu não estou atrás de justiça. Dessa vez, eu
quero a minha vingança. E apesar do que parece, não estou falando de
Evgenia.
Mas sim de Yerik.
Evgenia é uma semente que ele plantou há muito tempo, e que criou
raízes profundas, um caule resistente e frutos venenosos.
Ainda não acabou.
— Estou impressionada, querido! — Evgenia grita de sua contenção
de seguranças. Eles são profissionais e foram instruídos a não machucá-la,
mas ela não colabora e continua lutando contra eles, tentando se aproximar
de nós. Ela nunca mais vai chegar perto de Anastasia ou da minha filha. —
Mas todos sabemos que você e seus irmãos não podem me entregar. Não
vão querer jogar fora todo o trabalho que tiveram para proteger essa mulher
e a preciosa empresa de vocês.
— Foi Yerik que disse isso a você? Ele deve ter previsto que
mentiríamos para nos defender, já que fiz isso da primeira vez que tivemos
um acerto de contas. Aposto que ele deixou instruções sobre como você
deveria agir caso tudo desse errado, mas era egocêntrico demais e não
pensou na chance de acabar morrendo. — Encaro minha ex-mulher, sem
saber para onde foi parar o amor que um dia acreditei sentir por ela. — Na
época, eu realmente não podia entregar você, Genny, mas eu logo descobri
um jeito de contornar essa situação. Eu só precisava de um elemento
valioso e muito simples: tempo.
— O que você quer dizer com isso? — Evgenia desiste de resistir ao
bloqueio dos seguranças e cruza os braços. Uma pose defensiva.
— Eu precisava ganhar tempo para me recuperar, e sabia que você
não nos deixaria em paz se Anastasia continuasse junto comigo. Então eu
convenci os pais dela a levarem-na para outro continente, não porque eu
queria estar longe da mulher que eu amo, mas para mantê-la protegida de
você. A sombra de Yerik. Dessa forma, eu não precisei me preocupar com a
segurança dela, e o mais importante, consegui juntar provas para incriminar
você de outra maneira.
— Mentira — Evgenia sibila, cerrando os dentes, com ódio. — Está
blefando.
— Estou? Pense bem. No último ano, você me seguiu todos os dias.
Invadiu o meu apartamento quase todas as noites. Por que você acha que
nunca tentei impedi-la, mesmo sabendo que estava lá? — Contraio os
ombros com despretensão. — Eu queria alimentar a sua narrativa. Agora,
tenho material suficiente para acusá-la e, não só isso, para invalidar
qualquer depoimento que você tente fazer contra mim ou a minha família.
Acha que alguém vai acreditar na sua história mirabolante de que Anastasia
estava comigo no cativeiro de Yerik, mas foi retirada de lá pelo meu irmão?
Que eu apaguei todos os rastros sobre o casamento deles?
— Mas é a verdade! — Ela protesta, rindo, mas já não esboça a
confiança arrogante de antes.
— A melhor maneira de esconder uma verdade, não é contando uma
mentira, mas encobrindo-a com outra verdade. — Indico a mulher ao meu
lado, abraçada a mim como se tentasse me proteger. — Veja só o meu caso.
É verdade que eu poderia perder Anastasia para sempre quando a deixei, e
também é verdade que eu queria dar a ela uma chance de ser feliz, algo que
não aconteceria comigo naquele estado profundo de invalidez emocional,
física e psicológica que eu me encontrava. Mas também é verdade que eu
precisava cuidar dela, distanciando-a de você, e eu sabia, apesar de tudo,
que um dia nos encontraríamos de novo, fosse para ficarmos juntos ou não.
— Tem certeza? — Anastasia consegue sorrir. — Porque não
parecia!
Vladimir faz o favor de explicar por mim:
— Seu irmão encontrou evidências da sua relação com a nossa
família, quando nem a polícia conseguiu manter provas significativas
graças aos nossos contatos. Akira era a ponta solta que deixamos de
propósito para usarmos quando chegasse a hora certa. Ele agiu como nós
previmos e foi atrás de você. Não tínhamos garantia, porém, de como você
reagiria ou se suas memórias voltariam nesse meio tempo.
Anastasia parece não encontrar palavras para expressar o que está
sentindo, mas seu corpo me tranquiliza. Sinto-a firme ao meu lado, uma
rocha sólida e indestrutível, muito diferente do cristal frágil que eu conheci.
Ela não se afasta de mim em momento algum, sua presença me dá forças.
Evgenia, por outro lado, volta a ficar histérica, percebendo que caiu
em minha armadilha.
— Não pode ser. — Ela ri e chora, descontrolada. É um pouco triste,
sinto que tenha chegado a esse ponto, mas quando penso que ela veio aqui
para machucar Ariya, e que teria conseguido se eu não estivesse um passo à
frente, minha empatia morre. — Eu não posso viver sem você, Andrei. Você
tem que entender, tudo o que eu fiz foi por amor. Eu e você temos uma
história, não pode fazer isso comigo.
— Está tudo interligado… Evgenia. — Meus ressentimentos
reprimidos por anos começam a ecoar na minha voz, fazendo-a soar rouca,
pesada, as palavras oscilando. — Todas as noites que entrou no meu
apartamento para me atormentar, porque sabia sobre os meus pesadelos, e
encontrava a saída de emergência aberta, era porque eu deixava. Há
câmeras naquele apartamento, coletando todas as suas invasões. E essa
festa! — Estico o braço, indicando a mansão com um movimento amplo. —
É como o queijo na ratoeira. Eu sabia que tentaria agir assim que
descobrisse sobre a minha filha. Vi você da janela naquele dia. Eu mesmo
espalhei a informação de que faríamos uma comemoração aqui na mansão,
contei o nome do buffet aos funcionários da empresa que você sempre
persegue atrás de notícias sobre mim, e paguei a eles para contratarem você
quando tentasse se infiltrar.
— Está sendo monitorada desde que colocou os pés aqui dentro —
Vladimir resume, para o caso de não ter ficado claro.
— Não posso ser presa, não posso, não posso… — Ela chora
copiosamente.
— Não se preocupe, você não vai ficar presa por muito tempo. Isso
não me traria a satisfação que eu desejo, porque não é você que eu quero
destruir, Evgenia, mas o homem por trás de tudo. Você é apenas um
instrumento.
Eu sei que Yerik nos encontrou graças a Evgenia, mas tudo o que
veio depois só aconteceu porque ele era um desgraçado. Minha ex-mulher é
a mão empunhando a faca, mas não a lâmina em si. É como o pino de uma
granada: o gatilho inicial que ativa a explosão, mas no fim, é a granada que
causa todos os estragos.
Limpe os restos, e tudo acaba.
— Eu sabia que você não me faria mal, Andrei. — Seu timbre
meloso chega a me causar engulhos no estômago. — No fundo, ainda sente
algo por mim.
Ignoro completamente a última parte.
Komarov leva a mão ao ouvido, pressionando sua escuta. Ele troca
informações com a equipe que está esperando do lado de fora, e depois nos
informa:
— A polícia acabou de chegar, senhores.
Ótimo.
Está chegando ao fim.
Anastasia pressiona os braços ao meu redor. Ela também quer que
isso tudo acabe. Nós merecemos seguir em frente, deixar Yerik para trás.
Chega de fantasmas.
— O que vai acontecer daqui em diante, Evgenia, é o seguinte: você
será levada pela polícia. Eu recomendo fortemente que não tente expor a
verdade, mas sei que vai tentar mesmo assim, e quanto mais fizer isso,
menos as pessoas vão acreditar em você. Eu, com o meu grande coração,
vou propor que seja encaminhada para cumprir a sua sentença em uma
clínica de minha confiança para tratar o seu psicológico, já que você
claramente não aceita o fim do nosso relacionamento mesmo depois de
anos. Está lembrada daqueles três meses que eu passei internado, livrando-
me da dependência e tratando os meus traumas? Eles também serviram para
conhecer o lugar, criar laços, conexões, contatos. Como eu disse, está tudo
conectado.
— Porra, Andrei — Roman assobia. — Me lembre de nunca irritar
você.
Como se ele não me irritasse o tempo todo.
— Podem levá-la agora — Vladimir orderna.
Evgenia começa a gritar enquanto a arrastam em direção à saída. Ela
não poupa ofensas às pessoas que amo, chama Anastasia de nomes que não
ouso repetir nem em meus pensamentos, faz ameaças à vida da minha filha.
Digo para Anastasia esperar um momento junto com Ivan e me
aproximo da minha ex-mulher. Pensei que me arrependeria em algum
momento, que acabaria desistindo já que ela sempre conseguiu entrar na
minha cabeça e fazer a bagunça que queria — não porque eu deixava, mas
porque ela sabia como usar os meus pontos fracos contra mim —, mas ao
encará-la de perto, percebo que não me restam sentimentos para
desperdiçar.
Não sinto pena, mas também não sinto ódio.
Eu simplesmente não sinto nada por essa mulher, e acredito que esse
é o melhor desfecho possível. Ela sempre quis qualquer migalha de mim, os
meus pedaços mais quebrados, e no fim, só vai ter isso: a minha
indiferença.
— Você vai se arrepender um dia — digo com a voz despida de
emoções. — Porque só depois de se arrepender, será capaz de sofrer pelas
consequências dos seus atos. Para isso acontecer, você precisa de
tratamento. Você vai ficar boa, não importa quantos anos demorem, vai
aceitar que não sou o seu brinquedo, sua posse, para usar e quebrar como
bem entender. — Dou um passo para trás quando ela tenta me acertar com
um tapa. Um dos seguranças a puxa de volta. — Viver o suficiente para
sofrer com o peso da sua consciência, vai ser o seu castigo, Evgenia.
Ela grita, amaldiçoando-me.
Pensei muito a respeito do que fazer com Evgenia. Tive longos
meses para tomar uma decisão. Condená-la a alguns anos na prisão não
seria suficiente para acabar com a sua obsessão por mim. E não quero o
sangue de mais ninguém nas minhas mãos. Para Evgenia, o peso da justiça
é o suficiente.
Dessa forma, eu coloco um fim definitivo na teia de desgraças
tecida por Yerik antes da sua morte. Eu percebi que só me sentirei vingado
quando ele não tiver mais nenhum poder sobre a minha vida. E acabo de
cortar o último fio que ainda lhe restava — Evgenia.
— Eu jamais vou desistir de você! — Ela esbraveja. Eu não
esperava mesmo que sua aceitação fosse rápida ou amigável. Mas ela vai
aceitar, é sua única opção.
— Tudo bem, a escolha é sua. — Viro para sair de perto dela para
sempre, mas já que chegamos a esse ponto, eu decido esclarecer uma última
pendência. — Mais uma coisa. Nosso bebê. Quero saber se foi de propósito.
Se você o tirou.
O sorriso de Evgenia rasga o seu rosto de um lado ao outro. Posso
estar cometendo um erro ao tocar nesse assunto, já que ela sempre usou a
perda para me controlar, mas ela não pode me machucar mais do que já
machucou até agora.
— Ele nunca existiu, Andrei — ela cospe a verdade como uma faca.
— Eu nunca estive grávida de você. Eu jamais aceitaria dividir o seu amor
com uma criança! Mas serviu bem ao propósito de manter você ao meu
lado. — Atrás de mim, ouço os arquejos dos meus familiares. Roman
pragueja, Anastasia lamenta. Eu apenas a encaro. — Como se sente
sabendo que viveu uma mentira por todos esses anos, meu amor?
Eu sei o que ela espera escutar: que estou arrasado, triste, que ela
acabou de pisar no meu coração, que me sinto devastado. Evgenia gosta de
me ver em ruínas. Mas eu retribuo a sua sinceridade com a verdade
absoluta:
— Eu me sinto aliviado.

***

As vinte e quatro horas seguintes são exaustivas. Passamos horas na


delegacia, dando os primeiros depoimentos. Meus irmãos e eu já havíamos
alinhado nossas histórias há muito tempo. Anastasia só precisou insistir que
não sabia de nada. Nosso plano foi um sucesso.
Não vou abrir mão de registrar Ariya como minha filha, mesmo com
o risco de sermos descobertos. Esse sempre foi o meu objetivo desde
quando eu e Zayn confrontamos Yerik pela primeira vez. Caso alguém
suspeite de alguma coisa, diremos que Anastasia perdeu a memória, e por
isso eu não sabia que tinha uma filha.
Meias-verdades são ótimas mentiras.
Quando finalmente consigo ficar sozinho com a minha mulher,
trocamos nossas roupas de festa por pijamas e desabamos na cama do meu
quarto na mansão, abraçados, em completo silêncio.
Ficaremos aqui por enquanto. Ariya já tem o seu próprio quarto
decorado graças a minha mãe, e não podemos voltar para o nosso
apartamento até o edifício passar por uma reforma completa — já que eu
comprei o prédio inteiro para transformá-lo em um lugar seguro e adequado
para a nossa filha crescer.
— Diga alguma coisa — peço.
As cortinas estão fechadas, as luzes, apagadas, mas meus olhos se
acostumam depressa à ausência da claridade. Vejo o rosto de Anastasia a
centímetros do meu, seus olhos me fitando de volta.
— Agora acabou? — ela pergunta, sussurrando, suas palavras
enfeitadas com um sorriso. — Ou você vai aparecer daqui um mês com
outro plano secreto?
Sou levado a sorrir também.
— Acabou, princesa — garanto. Faço uma carícia em sua bochecha.
— Como você está se sentindo? Chateada? Foi muito assustador?
Ela nega.
— Só queria que você não tivesse sofrido tanto. Queria ter estado ao
seu lado. — Anastasia me toca também, seus dedos percorrem a minha
mandíbula, a orelha e minha têmpora. — Você disse que sabia que eu
voltaria, mas quando nos reencontramos, você foi bem resistente.
Ela quer dizer que eu fui um idiota, mas é amorosa demais para me
criticar depois do que enfrentamos na noite passada.
— Eu acho que fiquei com medo de ter esperança — confesso.
Aproximo-me dela o máximo possível, entrelaçando nossas pernas e braços,
testa com testa. — No dia em que me despedi de você naquele corredor,
aceitei que aquele era o nosso fim, independente do que acontecesse no
futuro. E foi a coisa mais difícil que já fiz na minha vida, a mais dolorosa.
Eu estava morto, e continuei assim até você reaparecer. Quando voltou, tive
medo de passar outra vez pela dor de deixá-la.
Anastasia beija meus lábios levemente.
— Sinto muito, meu amor.
— Também sinto, princesa.
Ela suspira, cansada, as pálpebras piscando sem forças.
— Por que me chama assim? — resmunga, sonolenta. Não pareço
muito diferente. Sinto-me no limite das minhas energias. Só quero continuar
aqui, imóvel, envolvido com a minha mulher, sem me preocupar com mais
nada.
— Assim como? Princesa? — Ana aquiesce, então eu satisfaço a
sua curiosidade: — Foi depois que descobri o seu nome. Até então, você era
apenas Ana, mas quando eu soube que se chamava Anastasia, lembrei-me
do filme sobre a princesa desaparecida. Você era como ela: estava longe de
casa, perdida e sozinha, mas continuava sendo uma princesa, inteligente,
talentosa e linda.
— Humm. — Ela se aconchega em mim. — Na história original,
Anastasia não sobreviveu ao massacre dos Romanov.
— Gosto mais da versão infantil, amor.
Ela ri de mim, quase se entregando ao sono que está sentindo. Meus
olhos também começam a se fechar sozinhos.
— Acha que nossa filha está dormindo? — ela questiona, seu lado
materno falando mais alto que o cansaço.
Beijo seus olhos e a abraço apertado.
— Não se preocupe, ela deve estar com a minha mãe, ou com Ivan e
Lara, talvez até com Iago. Nossa filha agora tem muitas pessoas que podem
cuidar dela enquanto sua linda mamãe descansa. Não há mais perigos nos
espreitando, nossos fantasmas se foram. Yerik finalmente se foi. — Ela
relaxa em meus braços. — Durma, princesa. E quando acordarmos, será um
novo dia. Um muito melhor do que todos que vivemos até agora, porque
será o primeiro dos vários dias que viveremos juntos pelo resto de nossas
vidas.
46
Andrei
EU TENHO UM novo vício específico e ele envolve a minha mulher.
Ah, correção: eu tenho dois novos vícios, o primeiro é chamar a
minha mulher de “minha mulher”, já que ela é completamente minha —
porra, como eu amo isso — e o segundo é assistir a minha mulher
dormindo. Eu sei que sempre tive uma predileção estranha aos estímulos
visuais do corpo feminino, e como nunca fui um ser dormente, tornei-me
obsessivo com a observação do sono alheio.
Mas com Anastasia, as coisas saíram totalmente do controle.
Existe uma graciosidade sobrenatural presente na textura macia de
sua pele que merece ser contemplada, e é em momentos como esse, quando
ela ainda está rendida ao mundo dos sonhos, consumida pela exaustão da
saciedade carnal após nossas longas madrugadas de prazer, que mais amo
observá-la.
Não é uma prática comum, eu sei. Requer certa sensibilidade que
inexiste na grande maioria dos homens. Aliás, não é algo que qualquer
pessoa seja capaz de fazer, ou mesmo deseje. Não se trata apenas de ver a
composição física, as panturrilhas curvilíneas e delicadas, os ossos
proeminentes dos quadris que se encaixam com perfeição nos meus, os
montes saborosos dos seios que mexem com a minha pífia imaginação
masculina; é sobre enxergar a arte frágil por trás das várias camadas de
sedução e me sentir honrado por ela deixar seu corpo vulnerável entregue à
minha segurança. Uma confiança quase cega que infla o meu ego rústico e
faz com que eu me sinta mais importante do que de fato sou.
Então, agora, eu tenho esse vício que domina as minhas manhãs. E
não estou reclamando.
Não mesmo!
Nossa cama é enorme, com espaço de sobra para sermos criativos à
vontade, mas Anastasia sempre monopoliza pelo menos dois terços do
colchão, aninhando-se a mim como se eu fosse o seu travesseiro particular
— uma função que estou muito feliz em exercer, mesmo com meu braço
dormente, há horas sem circulação porque não quero me mover e correr o
risco de acordá-la. Meu braço pode cair se ele quiser, o sono e o bem-estar
da minha mulher são sagrados.
Ela é tão linda, eu penso enquanto admiro seus cílios curtos, os
lábios cheios, as curvas onduladas de seus cabelos. Está usando uma
camisola transparente de alças finas, então eu consigo ter uma visão
privilegiada do seu corpo, dos seus seios pressionados na lateral do meu
peito e a ausência de peças íntimas.
Meu braço não é a única parte de mim sendo torturada…
Tento pensar em outra coisa.
Amanhã é um dia importante para Anastasia: seu retorno aos palcos.
Ela tomou a decisão há cerca de três meses, e assim que o anúncio foi feito,
começaram a chover convites de orquestras interessadas em seu talento.
Mas ela disse que deseja manter a sua carreira independente, sem a pressão
a qual foi submetida a vida inteira, e que vai fazer suas apresentações de
acordo com a própria vontade.
Como nós já temos um novo professor de música no abrigo, que
contratamos logo depois de ela ir embora, Anastasia também vem pensando
seriamente em fundar sua própria escola — um projeto que incentivo
fortemente.
Eu a apoiaria em qualquer coisa que decidisse fazer da vida, mas a
maneira como a sua música a deixa radiante é contagiosa. Saber que agora
tem o poder de escolha parece ter mudado alguma coisa dentro dela.
Anastasia respira música, e eu respiro ela. Se minha mulher está feliz, então
é assim que eu me sinto.
Já se passaram seis meses desde que a nossa vida começou —
quando Anastasia e Ariya voltaram para mim e reanimaram o meu coração.
Nesse tempo, muita coisa mudou.
Voltamos para o nosso apartamento. Bom, o apartamento que
costumava pertencer à minha mãe, mas que ela nos cedeu com muito
prazer, alegando que um lugar valioso merece habitantes valiosos. Fizemos
uma reforma, expandimos o número de quartos e o tamanho de alguns
cômodos, então agora o andar inteiro faz parte da nossa casa. Anastasia
ganhou um estúdio e ficou muito constrangida quando descobriu que não
tínhamos paredes acústicas até então.
Mantivemos a decoração tradicional, já que Anastasia ama. Ela acha
aconchegante, e como meu novo gosto pessoal se resume a gostar de tudo o
que faz a minha mulher sorrir, eu simplesmente sou apaixonado por todos
os detalhes da nossa casa, das tapeçarias aos quadros e papéis de paredes
estampados.
Contamos com um sistema de segurança avançado e uma equipe
treinada que monitora o edifício vinte e quatro horas por dia. Felizmente,
diferente de Serena, Anastasia não se incomoda com os seguranças. Ela é
amiga deles, sabe seus nomes, conhece suas famílias e, às vezes, todos se
reúnem para tomar chá na nossa cozinha.
Ela insistiu muito para que Komarov voltasse a acompanhá-la, e na
ocasião, o pobre homem até chorou. Ele se ressentia do sequestro de
Anastasia, culpava-se por ter falhado em seu serviço, mas minha princesa,
cujo coração é mais precioso que todos os diamantes do mundo, apenas o
abraçou e disse que a vida dele também era importante, e que ficava feliz
por ele não ter se machucado seriamente.
Anastasia continua treinando com Roman duas vezes por semana,
mas agora Serena se juntou ao grupo, e até Lara aparece às vezes. E é claro
que ele usa isso para nos irritar, dizendo que são reuniões do seu harém.
Ivan deu um soco nele uma vez por isso, e Vladimir vive o ameaçando com
horas extras de trabalho. Eu prefiro que seja o babaca do meu irmão
ensinando-as do que algum outro babaca desconhecido.
As memórias de Anastasia não voltaram completamente. Ela se
lembra de quase tudo o que vivemos, algumas coisas relacionadas ao seu
casamento com Yerik e fragmentos do nosso sequestro. Depois de se
consultar com médicos qualificados e de confiança, descobrimos que talvez
essas lembranças nunca voltem. Anastasia disse que está bem com isso, e
não posso dizer o contrário. Mas tomamos cuidados especiais para que não
ocorra novamente, já que qualquer trauma semelhante pode causar um novo
quadro amnésico.
Os pais de Anastasia continuam sendo monitorados pelo irmão dela.
Os dois não têm mais nenhum poder sobre qualquer um dos filhos. Evgenia
foi condenada e transferida para uma clínica psiquiátrica, onde vai
continuar por muitos e muitos anos, exatamente como eu planejei. E Yerik
se foi para sempre, morto, enterrado e esquecido, como ele merece.
— Você teve um pesadelo?
Encontro seus olhos abertos, os lábios risonhos. O meu dia não
começa com o nascer do sol, mas com o primeiro sorriso de Anastasia.
— Sonhei que meu braço ficava podre e caía — brinco, mas é um
pouquinho verdade. Rindo, ela se sobressalta na cama e me deixa mudar de
posição, mas eu a puxo de volta para o meu peito. — Estava vendo você
dormir e pensando na vida perfeita que eu tenho.
Ela dá uma risadinha.
— Você não disse que tinha uma reunião com o Vladimir hoje cedo?
— Estou de folga, tenho um compromisso mais importante.
— Qual?
— Esse aqui. — Giro por cima dela e beijo seu pescoço.
Minha mulher dá risada, arrepiando-se com os meus toques. Estou
usando apenas a peça de baixo do meu pijama, com o torso exposto, e
quando seus olhos percorrem o meu abdômen tensionado, eles dobram de
tamanho, suas bochechas adquirem uma coloração rosada, maravilhosa.
— Quando o presidente perguntar por que você anda faltando tanto
ao trabalho, espero que não coloque a culpa em mim. — Apesar do
protesto, ela passa as unhas nas minhas costas.
Eu estremeço com a provocação inesperada.
— Ele jamais culparia você — beijo suas clavículas, o vale entre os
seios — Vladimir a adora. — Vou descendo até as suas costelas. — Todos
eles a mimam. É mais fácil ele me demitir, do que repreender você por
qualquer coisa. E também, eles não têm moral nenhuma para falar de mim,
são tão obcecados por suas mulheres quanto eu sou pela minha.
Anastasia acaricia meus cabelos enquanto subo o tecido translúcido
e maleável de sua roupa, expondo cem por cento do seu corpo para o regalo
dos meus olhos. Fico de joelhos sobre ela, memorizando cada centímetro de
sua pele.
Pelo jeito, tenho um terceiro vício: possuir a minha mulher em
qualquer lugar e a qualquer hora.
Em sua barriga, pouco acima do umbigo pequeno, há uma cicatriz.
Ela não é grande, tem cerca de um centímetro, quase imperceptível. Beijo a
marca, como faço todos os dias e noites. A cicatriz do ferimento que quase
arrancou Anastasia de mim.
— Por que você a beija? Não acha nojento?
— Sabe quando eu vou achar qualquer parte de você nojenta, meu
amor? Quando os oceanos secarem, as montanhas criarem asas e
alienígenas dominarem o mundo, substituindo o meu cérebro pelo de
alguma criatura verde com olhos grandes. — Beijo a marca novamente, só
para ela perceber o quanto sua pergunta é absurda. — Eu a beijo porque sou
grato. Essa cicatriz me lembra todos os dias que você está viva. Ela é linda,
porque você é linda, e eu a amo, porque amo você.
Anastasia se derrete com olhos lacrimosos e me puxa para cima,
beijando-me apaixonadamente.
— Eu me lembrei de uma coisa sobre aquele dia.
“Aquele dia” é como ela se refere ao sequestro. No geral, nós
evitamos o assunto, mas às vezes é necessário. Nos últimos meses, já contei
alguns detalhes para Anastasia a respeito do que aconteceu enquanto
ficamos em cativeiro, pois faz parte do seu processo de recuperação e o
médico disse que era bom responder aos estímulos quando ela se lembrasse
de alguma coisa.
Eu nunca vou me esquecer de cada segundo do terror que vivemos,
mas quanto mais o tempo passa, menos espaço essa caixa ocupa dentro de
mim. Acho que isso também tem a ver com algum tipo de justiça universal,
a compensação que me faltava: agora há tantas caixas felizes na minha
mente e coração, que aquele corredor vermelho se foi, soterrado pelas
alegrias que estou vivendo.
— O que? — Apoio-me sobre um cotovelo, dou mais um beijo nela
e faço uma carícia em seus cabelos.
— Eu sei que vai parecer loucura, mas na lembrança, eu estava me
sentindo feliz. Eu me lembro de ver você caído no chão, chorando muito e
me perguntando por que eu havia feito aquilo. Não sei o que era, mas eu me
lembro de me sentir muito bem. Não é estranho? Você se lembra disso?
Claro que eu me lembro.
Fico tenso só de pensar naquele momento, a dor que eu estava
sentindo ao ter minha alma rasgada no meio.
— Você ficou provocando ele — conto — até ele atirar em você. Eu
fiquei desesperado, perguntando “Por que você fez isso? Por que o
enfrentou?” enquanto você sangrava. Suas últimas palavras para mim foram
“estou agarrando com as minhas próprias mãos” e eu nunca entendi o que
isso significava. Essa frase me assombrou por muito tempo.
Anastasia expressa a sua tristeza através do olhar. Franze as
sobrancelhas, acessando a lembrança.
— Eu me lembro disso — ela sussurra, piscando, uma lágrima
escapa de seus olhos e desliza pela lateral do rosto. — Se eu não chamasse
a atenção dele para mim, ele teria matado você.
É como eu sempre pensei: ela sabia o que estava fazendo.
— Sei que isso tudo está no passado, princesa, mas você não devia
ter feito aquilo. Se colocar em risco por minha causa, e nossa filha, vocês
duas são mais importantes que tudo, mais que a minha vida.
— Eu não pensei que ele fosse atirar para me matar — ela se
justifica, como se isso tornasse a sua decisão menos inconsequente. —
Imaginei que ele pudesse me agredir, mas eu não estava com medo. Eu
queria salvar você, Andrei, a minha felicidade. Era sobre isso que eu estava
falando. — Anastasia segura meu rosto e sorri. — Eu não queria mais fugir,
eu tinha decidido que lutaria pelas pessoas que amo, pela chance de realizar
os meus sonhos e viver um amor pleno, que agarraria com as minhas
próprias mãos essa chance e não deixaria ninguém arrancar ela de mim. Foi
isso o que eu fiz, e não me arrependo.
Não tenho como repreendê-la, por mais que eu prefira ser torturado
por mil dias e mil noites a vê-la machucada. Só tenho amor e gratidão
dentro de mim. Embora tenha sido a pior experiência que já vivenciei,
Anastasia me salvou. Minha princesa escolheu me salvar porque, assim
como eu não vivo sem ela, o contrário também é real.
Anastasia Serova — em breve Volkiova — me salvou.
E se hoje estamos juntos, é porque nós dois escolhemos a nossa
felicidade, escolhemos um ao outro, e ela nunca mais precisará se colocar
em risco por mim e nem por ninguém enquanto eu viver.
Uno nossos lábios, e com a boca na dela, nossas respirações se
confundindo, os corpos se encontrando em todos os pontos que são
importantes, eu digo:
— Então agarre-me com suas pequenas mãos, princesa, e não me
solte jamais.

***

No camarim lotado com flores e presentes de parabenização pela


reestreia, sentada diante do espelho com um lindo vestido de cetim rosa-
fúcsia pregueado no busto, Anastasia sorri.
— Me ajuda a colocar? — Ela me entrega o colar.
Passo o delicado cordão de ouro pelo seu pescoço, os dois pingentes
brilhando, refletindo a luz — uma coroa e uma nota de música,
representando nós dois. Prendo o fecho com cuidado e a joia pende em seu
busto. Ela está linda, com os cabelos soltos, recém-cortados abaixo da linha
dos ombros especialmente para a apresentação de hoje.
— Você está maravilhosa, princesa — elogio pela milésima vez. —
Sou um homem de muita sorte. Não vejo a hora de nos casarmos. Tem
certeza que você quer esperar?
Ela ri.
— Sua mãe está muito feliz cuidando dos preparativos, vai ser um
grande evento, não quero desapontá-la. Vamos ser pacientes.
— Minha mãe ficaria mais feliz se nos casássemos hoje, em uma
capela clandestina no sul do país, e voltássemos com você grávida de
trigêmeos.
Ela se levanta, majestosa, os saltos baixos a deixando poucos
centímetros mais alta. Passa os braços sobre os meus ombros, seu perfume
me lembra a fragrância de uma flor de laranjeira: frutada, cítrica e doce. É
deliciosa.
— Uma vez ela me disse que existe um drive thru em Las Vegas
onde é possível se casar em menos de um minuto e meio.
— Que tentador! — Abraço sua cintura, puxando o corpo delgado
para o meu. — Isso é um pedido? Porque eu tenho um avião.
Ela sorri e me beija. É obvio que estamos brincando. Ainda faltam
dois meses para a data do nosso casamento, quando Ariya vai completar um
ano e meio de vida. Anastasia merece uma cerimônia memorável depois do
que ela sofreu em seu casamento anterior. Quero que ela crie as melhores
lembranças ao meu lado, momentos que vão prevalecer para sempre.
— Está quase na hora — ela diz, suspirando. Confiro meu relógio
de pulso e percebo que ela está certa. — Todos vieram?
Sou obrigado a rir.
— Você acha que eles perderiam? O Roman colocou um terno e
uma gravata por sua causa, isso é quase uma declaração de amor! — Roubo
um último beijo dela, não consigo resistir. — É melhor eu ir agora, estarei
na primeira fila.
— Uau — Anastasia me provoca com um sorrisinho enquanto ajeita
a minha gravata-borboleta. — Um lugar privilegiado.
Inclino-me e sussurro em seu ouvido:
— Não conte a ninguém, mas a estrela principal é a minha mulher.

***

O teatro está lotado.


Anastasia vem ganhando muito destaque na mídia desde que seu
retorno foi anunciado durante a última festa de ano novo da Corporação,
junto com a notícia do nosso noivado. A verdade é que essa é a primeira
vez que temos uma celebridade na família. Nosso nome é famoso, mas as
notícias sobre nós têm maior repercussão dentro do núcleo empresarial — e
fora dele somente quando nos envolvemos em escândalos.
Anastasia está em outro patamar.
Chegaram a especular sobre o seu afastamento de quase quatro anos
no total, já que muitas pessoas tinham ouvido falar sobre o rumor da
violinista prodígio que abandonou a carreira para se casar, mas resolvemos
isso do jeito tradicional: dinheiro. Alguns pagamentos aqui, outros ali, e os
jornais esclareceram que tudo não passava de rumores sensacionalistas.
Na primeira fila está toda a nossa família, incluindo as crianças e o
irmão de Anastasia. Um total de doze pessoas ansiosas para prestigiar a
mulher que eu mais amo. Em meu colo, Ariya aguarda, impaciente. Ela não
gosta de ficar parada por muito tempo, assim como os primos, que já estão
resmungando em seus assentos. Se a espera se prolongar, teremos que dar
uma voltinha.
— Como ela estava? — Ivan pergunta, de novo. Ele está sentado à
esquerda de Lara, cujo lugar é ao lado do meu. — Tem certeza de que não
era melhor um de nós ter ficado ao seu lado?
— Estava ótima — respondo, de novo. Meu irmão tem sérios
problemas de preocupação excessiva. Também estou ansioso, mas tenho
bom senso. — Daqui a pouco deve aparecer, já apagaram as luzes. Se
alguém ficasse no camarim, ela não conseguiria se concentrar.
Principalmente com um de vocês!
— Ela recebeu as nossas flores? — Serena pergunta, do meu outro
lado. — Eu queria rosas vermelhas, mas seu irmão insistiu que tulipas eram
mais bonitas! No fim enviamos as duas. Mas então o presidente achou
pouco e comprou metade da floricultura só porque a atendente disse que
esculturas de flores eram melhores do que buquês.
— Quem liga para as flores! — Roman reclama, lutando contra o nó
de sua gravata como se fosse uma forca. — Ela recebeu o meu presente?
— Está falando dos brincos de diamantes? — lembro-me. — Ela
amou, inclusive vai usá-los hoje.
— Eu dei os brincos — Ivan comenta, reivindicando seus créditos.
— Nossa mãe enviou um pacote de viagens para as Maldivas.
— Quem sabe assim vocês finalmente produzem o meu próximo
neto! — Ela grita da ponta da fileira, chamando atenção de vários
espectadores que estão sentados atrás de nós. — Ariya está crescendo e
precisa de um irmão.
Se ela soubesse o quanto estamos tentando…
A garotinha em meus braços, ao ouvir seu nome, fica atenta à
conversa. Seus cabelos estão presos com uma fita, os cachos escuros
pendem sobre os ombros. Ela fica cada dia mais linda e mais parecida com
a mãe. Ivan não me deixa esquecer que um dia nossas filhas vão crescer, um
fato que me recuso a aceitar.
Agora entendo a obsessão dele e de Vladimir por conventos.
— Você quer um irmão, meu amor? — pergunto carinhosamente à
minha filha.
Ela faz uma careta e responde com um sonoro “não-não” que faz
todo mundo dar risada, depois aponta para Lara e acrescenta “primo”.
Minha amiga fica desesperada, dizendo que “a fábrica da titia já fechou”,
minha mãe protesta, já que “isso é um absurdo, se eu tive quatro filhos,
vocês também conseguem” e Vladimir argumenta chamando Tatiana de
gananciosa, já que ela sempre pediu um neto e agora que tem cinco fica
querendo mais, então nossa mãe o manda ir à puta que pariu — o que eu
acho irônico, já que ofende apenas a si mesma, mas faz o presidente se
calar.
Ariya ama os primos, Tatiana e Kolya são os seus favoritos, acho
que por causa da idade aproximada, então ela ainda não entende o conceito
de “irmãos”, mas tenho certeza de que, quando acontecer, ela vai adorar,
porque ela é uma Volkiova e nós amamos a nossa família. Está na nossa
alma.
— Então o que você comprou, Roman? — Lara questiona após o
caos instaurado pela minha filha se dissipar. Ela se inclina para frente e faz
contato visual com o meu irmão.
Ele dá de ombros e sorri de lado.
— Ela disse que precisava relaxar antes das apresentações, então eu
comprei uma coisinha para ajudar com essa questão.
Anastasia ganhou muitos presentes, mas eu me lembro que uma
caixa específica a fez corar. Quando perguntei o que era, ela me disse que
contaria mais tarde.
— É bom que não seja o que estou pensando, Roman, senão eu vou
matar você.
Não que eu me oponha ao método, inclusive queria ter pensado
nisso primeiro, mas nem fodendo eu vou gostar de ver Anastasia usando
alguma coisa em seu corpo que foi comprada e escolhida pelo Roman —
logo ele. Meu irmão sabe disso, é claro, ele jamais perderia a chance de me
irritar.
Faço uma nota mental de substituir o item mais tarde.
De repente, uma luz se acende no meio do palco. Ariya aponta seu
dedinho para o alto e diz, animada:
— Mama!
Iluminada pela luz amarelada em formato cônico, está Anastasia.
Acontece o arquejo coletivo de todas as pessoas prendendo as respirações
ao mesmo tempo, impressionados com a beleza dela. Minha princesa
nasceu para isso, é onde ela mais brilha, aos olhos do mundo, em destaque,
sendo admirada e ovacionada como uma divindade.
Ela posiciona o violino no ombro, aquele que minha mãe lhe deu de
presente e que esteve guardado em nosso apartamento todo esse tempo,
esperando o seu retorno assim como eu. Há um pianista ao fundo para fazer
o acompanhamento das melodias, mas Anastasia é o destaque principal.
Minha princesa violinista de mãos pequenas e dedos curtos.
Até onde eu sei, ela não precisa falar nada. Normalmente, os
músicos entram e tocam para que as pessoas se concentrem na
apresentação. Todos nós recebemos um folhetim com o repertório das
músicas assim que chegamos. Mas Anastasia se inclina um pouco na
direção dos microfones, e diz:
— É assim que o nosso coração se parece.
Então ela começa a tocar.
A música me atravessa, eu me reconheço nas notas e sinto todas as
emoções de Anastasia. Ela está abrindo seu coração na frente de todos, e ele
é idêntico ao meu. As notas parecem melancólicas a princípio, mas
conforme avançam, tornam-se fortes, apaixonadas e profundas.
Confiro o nome da música no meu folheto: L'inverno, Allegro non
Molto, Concerto No. 4, op. 8, em Fá Menor, de Antonio Vivaldi.
Anastasia parece contar uma história através dela. Uma vez, há
muito tempo, nós fomos dois miseráveis dividindo um teto. Um homem
atormentado e uma mulher ferida. Para muitas pessoas, pode parecer uma
história triste, mas não é sobre isso. Assim como na melodia, nossa história
é sobre força, paixão e profundidade.
É sobre amor.
Entre mentiras e verdades, Anastasia e eu encontramos um motivo
para vivermos, e fizemos isso juntos. Nos salvamos quando tudo parecia
perdido, nos apaixonamos quando nossos corações estavam quebrados, e
descobrimos que o amor verdadeiro não machuca, ele nos fortalece. Ela
entrou na minha vida e me conquistou antes da primeira palavra, do
primeiro sorriso e do primeiro olhar, me ensinou que alguns fins justificam
os meios, e que quando se trata de amor, sempre vale a pena lutar, porque
Anastasia é a mulher que eu amo, a minha mulher, e essa é a única verdade
que importa.
epílogo
Andrei
PASSAMOS NOSSA VIAGEM de lua de mel na Inglaterra, Londres,
precisamente, em um hotel sofisticado de Mayfair. Quinze dias de uma paz
celestial com Anastasia, em que minha única função era fazer amor com a
minha mulher, passear com a minha mulher, dormir ao seu lado e depois
fazer mais um pouco de amor com ela.
Fico me perguntando como eu saí daquele paraíso e vim parar direto
no inferno de uma reunião com meus irmãos assim que voltamos para
Moscou. Será que Roman esteve certo esse tempo todo sobre os prejuízos
do trabalho excessivo e eu nunca percebi?
E porque eu tenho que estar aqui, preso há três malditas horas,
enquanto nosso único irmão solteiro está… eu não faço nenhuma ideia de
onde ele está. Provavelmente brigando com alguém ou participando de uma
orgia. É sábado, já passa das oito da noite, então eu aposto na segunda
opção.
Estamos no escritório da mansão. Pensei que fôssemos jantar em
família. Se eu soubesse que Vladimir aproveitaria a oportunidade para me
torturar, teria ficado em casa.
— Você ficou fora por quinze dias — ele diz, fazendo meus
devaneios amargurados se dissiparem. — Há muito trabalho acumulado,
não adianta me olhar assim.
Reviro meus olhos, assino mais um contrato e coloco sobre a
enorme pilha de documentos que ele está me obrigando a revisar.
— Eu posso me aposentar — digo. — Somos ricos o suficiente para
isso.
— Está falando como o Roman. — Ele me entrega outro papel. — E
não, você não pode se aposentar, precisamos de você. Ainda mais agora que
a Ilha está em expansão.
— E o Roman já sabe que vai mandá-lo para outra temporada fora
do país? — Ivan pergunta, entretido com sua própria pilha de papéis e um
notebook. Assim como eu, ele parece cansado e louco para sair daqui.
Vladimir dispensa um olhar breve para Ivan, antes de dizer:
— Contanto que não seja a Itália, ele não vai se importar.
— Afinal — Ivan diz — vocês sabem por que ele odeia tanto a
Itália?
Eu nego, mas o presidente reflete um pouco e diz:
— Ele fez uma viagem para Roma, aos dezessete anos, lembram? E
nunca tocou no assunto. Eu estava muito ocupado na época, aprendendo
sobre os ofícios da empresa, então não dei muita importância.
Como eu era mais novo, não me lembro muito bem.
— Acha que aconteceu alguma coisa nessa viagem? — Ivan
especula. Vladimir passa para ele outro montante de documentos que o faz
torcer o nariz. — Isso não tem fim?
— É o Roman. — Vladimir dá de ombros. — Tudo pode ter
acontecido. E ainda temos mais uma hora de trabalho atrasado. Fiquem
felizes por não estarmos fazendo isso na empresa.
Uma hora?
Não, nem fodendo.
Para a minha sorte, alguém bate à porta do escritório e, um segundo
depois, ela se abre. Serena coloca a cabeça pela fresta, seus cabelos pretos e
longos balançando no ar. Ela sorri, mas poderia estar atirando facas em seu
marido, já que o efeito é o mesmo.
— Vladimir — diz com um falso tom açucarado. — Chega de
trabalhar por hoje.
Meu irmão se levanta imediatamente.
— Que coincidência, Corazón, foi o que eu acabei de falar para os
meus irmãos.
Serena estreita seus olhos pretos, não acreditando em uma palavra
do presidente, mas não o questiona. Os dois trocam confidências na porta,
meu irmão completamente rendido à mulher, esquecendo-se de nós. Eu e
Ivan nos entreolhamos e sorrimos. Pelo menos, isso coloca um fim em
nossa tortura.
— Ah, antes que eu me esqueça… — Serena diz um pouco mais
alto, chamando a nossa atenção. — Não surtem, mas Anastasia disse que
não estava se sentindo muito bem.

***

Anastasia
Eles surtaram, é claro que sim, o que eu esperava?
— E por que não nos chamaram? — Andrei pergunta, irritado.
— Amor, foi só uma leve dor de cabeça, eu estou ótima.
— Você sabe que tem uma condição neurológica, Anastasia? — Ele
argumenta com seu tom de advogado. É sexy, gosto quando ele faz isso e
me chama pelo meu nome, como se quisesse me castigar. Mas agora não é
hora de pensar nisso. — E que qualquer coisa pode ser o sintoma de algo
maior?
— Minha condição não tem nada a ver com isso — digo, mas eles
me ignoram.
— Vamos para o hospital — Ivan decide, fazendo Lara suspirar ao
meu lado. É impressionante como os quatro são parecidos quando deixam
aflorar a autoridade que corre em suas veias. — Estamos perdendo muito
tempo.
A sala de visitas da mansão parece menor quando eles se juntam, é
uma coisa sobre presença, sobre preencher qualquer ambiente com a
potência de suas vozes e posturas dominantes.
— Por favor, alguém me mate agora — Serena resmunga. — A
minha cabeça está começando a doer só de pensar em vocês reunidos em
um hospital.
— Deve ter sido a nossa viagem — Andrei discorre sozinho, como
se estivesse tentando fazer um mapa mental sobre o que pode ter causado a
minha dor de cabeça. — Não devíamos ter ficado tanto tempo fora. Você
sentiu saudades de Ariya e seu cérebro pode ter se sobrecarregado. Você se
lembra da nossa viagem? Acha que esqueceu de alguma coisa?
— Andrei, não é assim que funciona — tento acalmá-lo. — Eu
estou ótima. Senti saudades da nossa filha tanto quanto você. Foi só uma
dor passageira, uma tonturinha de nada, eu me sentei e passou.
— Tontura? — ele questiona, severo, cruzando os enormes braços.
Seu olhar duro me fita, e tenho que me segurar para não me jogar em seus
braços e roubar um beijo. — Ninguém tinha falado nada sobre uma tontura
até agora! Meu Deus, vocês todas podiam ter um pouquinho de
autopreservação!
— O que está acontecendo aqui? — Tatiana aparece, descendo as
escadas com minha garotinha em seus braços. — Eu estava com as crianças
e comecei a ouvir uma gritaria.
— Anastasia precisa de um médico — Vladimir sintetiza, do seu
jeito. Acho que ele só registrou essas duas palavras até agora: Anastasia
médico.
— Ela precisa que vocês parem de loucura! — Lara se exaspera.
— Eu também preciso — Serena fala baixinho, massageando as
têmporas.
Andrei vai ao encontro de Ariya, que estica os bracinhos para o seu
papai. É lindo como os dois se aproximaram instantaneamente, o elo que
criaram em tão pouco tempo. Nossa filha o ama demais, e Andrei é um pai
incrível, cuidadoso, protetor, educado e amoroso, ele é a minha melhor
escolha.
— Ela é o rosto da nossa família — Lara, com sua infinita sensatez,
continua tentando colocar alguma razão em suas cabeças duras — se
formos todos juntos, vamos acabar em outra coluna de fofocas.
Lara está certa, e eles sabem como prefiro evitar a parte
sensacionalista da minha exposição profissional.
— Podemos reservar uma ala do hospital — Vladimir pondera,
como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Não tem jeito.
Eles continuam falando todos ao mesmo tempo. Ariya, sem entender
nada, move a cabeça de um lado para o outro, rindo dos tios desesperados e
do drama de seu pai. Eles não vão desistir até me arrastarem para um
hospital, mas eu realmente não preciso de um.
Pelo menos, não imediatamente.
Mas entendo a preocupação deles, e no fundo, eu até gosto. É bom
saber que sou amada, que seus exageros são por causa da consideração que
sentem por mim. Eles se importam comigo o suficiente para não medirem
as próprias ações, porque isso é amor: um sentimento que não tem régua e
nem limite.
Isso é família.
— Eu estou grávida — deixo escapar.
Eles param de falar no mesmo instante. O silêncio que se segue,
junto com as expressões chocadas de todos, me faz sorrir. Eu não pretendia
contar assim, era para ser surpresa, mas já que eles não conseguem se
controlar, e eu não preciso de exames neurológicos mesmo, acho que é o
momento certo.
Andrei se aproxima de mim, alternando entre olhar para o meu rosto
e a minha barriga, como se uma grande barriga de nove meses fosse
aparecer de repente.
— Você está grávida? — pergunta, rouco.
— Sim.
Ele coloca a mão livre sobre o meu ventre, e sinto as minhas
lágrimas chegando.
— Tem outro bebezinho meu aqui dentro?
— De quem mais seria?
Ele ri e me puxa pela cintura. Nossa filha se apoia em meu ombro,
abraçando nós dois ao mesmo tempo. Eu os abraço de volta.
— Você está grávida! — repete, feliz como nunca. Seu sorriso largo,
aquele que encanta o mundo, enche o meu coração, transborda-me, eu sinto
o amor se derramando aos meus pés. Meu choro de felicidade. — Eu vou
ter mais um filho!
— Talvez sejam dois! — Tatiana comemora. Na verdade, todos já
estão celebrando com sorrisos emocionados. A preocupação de antes
suplantada pela alegria da novidade.
— Eu amo você, princesa. — Andrei me dá um beijo suave,
apaixonado, ele mal consegue falar por causa do choro e da risada que
disputam um lugar em suas emoções. — Obrigado, obrigado por ser a
minha mulher, por me amar e me salvar. Eu te amo mais que a vida.
— Também amo você, Andrei. Obrigada por realizar todos os meus
sonhos e ser a minha felicidade.
A felicidade que eu agarrei com minhas mãos.
E que não soltarei jamais.

FIM.
agradecimentos
Muita coisa aconteceu durante o processo de escrita de Entre
Mentiras e Verdades, algumas mais difíceis que outras. Foi uma história
difícil e dolorosa de se colocar em palavras, e muitas vezes eu pensei que
não fosse conseguir. Alguns temas que o livro aborda foram e ainda são
gatilhos para mim. Passar por essa escrita foi visceral, mas uma experiência
que jamais esquecerei. Eu aprendi junto com os personagens e também me
reinventei com eles.
É por isso que o meu primeiro agradecimento vai para os dois:
Andrei e Anastasia. Obrigada por não desistirem — um do outro e de si
mesmos. E falando em desistir, eu sei que todo e qualquer agradecimento às
leitoras que esperaram por este livro não será o suficiente, mas vou tentar
mesmo assim. Obrigada por não desistirem de mim. Vocês são, e sempre
serão, as melhores leitoras e qualquer autora poderia sonhar.
Obrigada, também, às minhas betas, Nathalia e Laís, duas pessoas
essenciais para a finalização de Entre Mentiras e Verdades, minhas maiores
incentivadoras e as únicas que conhecem as dificuldades do trajeto, pois o
percorreram junto comigo. E obrigada à Gabi, minha “advogata” que me
ajudou com horas extras de consultorias, pesquisas e traduções russas.
Agradeço, com todo o meu amor, ao meu marido e filhos, que são a
minha força e fonte constante da minha inspiração. Eu os amo mais que a
vida.
Obrigada às criadoras de conteúdo literário que acompanham a mim
e aos meus livros, o trabalho de vocês é inestimável e essencial para a
literatura nacional. Agradeço a todas as minhas amigas e colegas autoras,
que estiveram presentes, conversando e me apoiando, mas também
agregando no meu processo de escrita com opiniões e conhecimentos, em
especial à Cassia Carducci e Natalia Saj.
Por último, mas não menos importante, obrigada a você, que chegou
até aqui. Espero nos vermos novamente na próxima.

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