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Capa e Diagramação:
Letti Garcia
Revisão e Betagem:
Nathalia Franco e Lais Prado
Andrei
Meu corpo inteiro dói, as juntas das minhas mãos rangem sempre que
flexiono os dedos, e o indicador esquerdo não responde aos meus
comandos, continua retorcido em um ângulo estranho. Não é uma sensação
agradável... Merda, está bem longe de ser agradável. Dói como o inferno!
Respirar também não é nada bom, queima e arde. O sabor ferroso na minha
boca escorre para dentro da garganta a cada inspiração, desencadeando um
desejo desumano de vomitar.
E ainda tem o cheiro.
O cheiro.
Não se assemelha a nada que minha memória olfativa já tenha
registrado antes. Arriscaria dizer que se parece, mesmo que suavemente,
com odor de metal enferrujado, arame farpado umedecido pela chuva. Mas
é mais forte, mais definitivo, uma fragrância pungente de podridão no
perfume utilizado pelo anjo da morte depois de ceifar uma vida.
E está impregnado em mim, nos meus braços, no pescoço pegajoso,
nas minhas vestes encharcadas com o líquido viscoso. Está dentro,
serpenteando no interior dos meus olhos, arranhando músculos e pele para
se alojar entre as fendas. Depois de hoje, não importa que o tempo passe,
que os dias continuem acontecendo e os meses se tornem anos, jamais
esquecerei como é sentir o aroma do medo, o bafo quente e pútrido do
desespero invadindo as minhas narinas.
Invadindo a minha alma.
A poça ao redor dos meus joelhos continua aumentando, e a
escuridão transforma o vermelho pegajoso em um tom profano enquanto
meu corpo tremula sobre o mar crescente de sangue.
Há um som quebrando o silêncio, ecoando como um dueto de
soluços e gritos estrangulados, meu próprio lamento sem controle ou
harmonia. Queria poder gritar mais forte, chorar alto o suficiente para calar
o berro do meu coração, mas não me restam forças para lutar contra essa
agonia excruciante que amplifica o meu sofrimento.
E eu tento, como um louco, tento; golpeando o chão com o punho
direito, canalizando a dor em um castigo físico. Só preciso que a dor vá
embora, não a suporto, não consigo mais lidar com ela. Preciso que pare.
Que isso acabe.
Que não seja verdade.
Mas não adianta, nada é suficiente. Os socos perdem a potência à
medida que meu corpo enfraquece, subjugado pela exaustão. Minhas
lágrimas se esgotam, o choro sendo substituído por grunhidos de
indignação. Começo a me arrastar na direção em que suponho estar a saída,
necessitado de colocar a maior distância possível entre mim e este pedaço
do inferno, no entanto, os espasmos tornam meus movimentos lentos.
Arfando, tento ficar de pé, mas minhas pernas cedem sobre o piso
molhado e cambaleio de volta ao chão, tombando com um baque aquoso.
Prendo a respiração, forçando a vista na grande sala fechada. Meus olhos
vertiginosos pouco enxergam no breu, exceto pela pequena fresta entre as
madeiras pregadas na janela, que deixa entrar um feixe fraco da luz lunar.
O dia se foi.
Procuro manter a calma, contando o passar vagaroso dos segundos
mentalmente. Não olhe para trás, ordeno a mim mesmo em silêncio, focado
no trajeto adiante.
Não olhe para trás.
Forço meus joelhos, piscando freneticamente para afastar a náusea
que os movimentos bruscos evocam, e dessa vez consigo me sustentar com
a coluna curvada para frente.
Uma pequena torrente de fluidos espessos escorre pelos meus braços
até a ponta dos dedos, pingando pausadamente no chão. Encaro minhas
palmas manchadas, as mangas da camisa outrora brancas agora ensopadas,
e tento visualizar a mim mesmo, parado no meio do escuro com o corpo
banhado de sangue.
Dou um passo, depois outro, arrastando-me com muito esforço, até
finalmente fechar o punho na maçaneta da porta, marcando minhas
impressões no metal e na parede ao lado do batente quando me apoio para
não cair de novo.
Preciso encontrar os meus irmãos, eu preciso deles agora como
jamais qualquer um deles precisou de mim.
Pensar neles traz lágrimas aos meus olhos de imediato, enquanto
abro a porta e atravesso até o cômodo seguinte, relembrando quando fiz o
caminho contrário sem imaginar o que me aguardava. Continuo tremendo,
meu corpo desgovernado não responde ao meu desejo de ficar calmo, então
sigo em frente mesmo parecendo um mero fantasma.
É assim que eu me sinto: um fantasma, o despojo de uma guerra
perdida.
Como posso ter chegado a esse ponto? Como? Eu fiz tudo certo, não
queria que ninguém sofresse, muito menos ela. Principalmente ela! Minha
princesa perdida. Vai dar tudo certo, foram as minhas palavras exatas. Tive
a audácia de prometer uma mentira assim.
Vai dar tudo certo.
Não aconteceu.
No último cômodo, as luzes azuis e vermelhas vindas do exterior,
que deveriam me trazer alívio, somam em meu infinito desespero. Elas
brilham, tremulando nas paredes brancas, formando sombras que me
remetem às labaredas do inferno. Depois que eu sair, não haverá mais volta.
Mergulharei em uma realidade ainda mais devastadora.
Um mundo sem Anastasia.
Um mundo vazio, onde não vale a pena sonhar, ou sorrir, ou viver.
— Esta é sua vida agora — digo a mim mesmo com dificuldade,
uma espécie de ordem para continuar firme, embora minha voz soe
embargada e rouca pelo choro silencioso que já me fugiu do controle
novamente.
Obrigo meu corpo a continuar adiante, em frente, sempre em frente,
até abrir a última barreira entre mim e a verdade brutal. Escancaro a porta e
o conjunto de flashes e gritos atordoam meus pensamentos, agredindo olhos
e ouvidos com tanta violência que desmorono diante da algazarra de
policiais empunhando armas e jornalistas munidos de câmeras e
equipamentos de reportagem.
A dor não cessa, pelo contrário. É só isso o que me resta, é só ela
que existe, eternamente. Abraço meu corpo enquanto uma grande confusão
tem início. Escuto as vozes, pessoas discutindo, gatilhos sendo preparados,
mas não sou capaz de assimilar o que dizem, o que significam. E nem
desejo descobrir.
Contudo, minha atenção recai sobre um par de amedrontadores
olhos verdes. Roman tenta furar o bloqueio, o rosto vermelho de tanto
gritar, seus lábios desenhando o meu nome inúmeras vezes. Um grupo de
policiais impede a sua passagem.
Inclino-me para frente, desejando chegar até ele, esperançoso de que
meus irmãos sejam capazes de fazer o tempo regredir, ou que suas forças
sejam suficientes para sustentar os efeitos colaterais da minha queda. Não
posso mais defendê-los, não sou capaz de proteger ninguém. Não sou o
escudo, não sou um rei, nem invencível.
Eu perdi, e fiz isso da pior maneira, no pior momento possível.
Com a mulher da minha vida.
Não fui capaz de defendê-la.
Eu perdi.
— É o meu irmão, porra!!! — Roman grita, lutando contra os
homens que o mantém em cárcere.
Em outros tempos, eu o repreenderia. Esse tipo de atitude pode
colocá-lo atrás das grades, e seu acúmulo de infrações torna cada vez mais
complicado advogar em sua defesa. Mas é assim que Roman funciona, e é
assim que eu o amo.
— Deixem ele passar! — ruge um sujeito ao seu lado que demoro a
reconhecer como sendo Dimitrio. Sua aparência magra e cansada de dois
anos atrás agora se transformou em robustez, e o cabelo está maior do que
me lembrava. Mas é ele sem sombra de dúvidas.
O que está fazendo aqui?
Os policiais atendem ao seu comando quando mostra algum objeto
que não consigo enxergar, mas deve ser algo relativo ao seu envolvimento
com a Interpol. Roman sobe as escadas correndo, o rosto lívido e punhos
fechados com força. Abre os braços, levando as mãos à cabeça, só então
registrando a bagunça de sangue e hematomas que me tornei.
Ele não sabe como ou onde tocar, mas se coloca de joelhos diante de
mim. Pavor e raiva distorcem suas feições, e pela primeira vez me ocorre
que esse tipo de revolta não combina com Roman, mesmo que lhe seja tão
habitual. Gosto mais quando faz suas brincadeiras inconvenientes, suas
provocações e o sorriso debochado.
Sinto falta deles.
Muita.
— VLAD! — berra, olhando para trás. Tento focar a visão, mas está
tudo confuso, escuro. Identifico paramédicos se preparando, homens
uniformizados desviando do meu corpo para invadir a residência. Ele tenta
de novo: — VLADIMIR! Porra Andrei, o que você fez? O que merda você
fez?
Nego, balançando a cabeça. Coloco a mão bem em cima do peito,
rogando para que entenda meu gesto mudo como um indicativo do meu
sofrimento. Veja, é aqui onde mais dói, tento dizer-lhe, mas nada sai da
minha boca além de outro soluço.
Duas sombras se agigantam sobre Roman. De um lado, Vladimir
com olhos diabólicos e perturbadores, do outro, Ivan com irrefreável pavor
diante da cena, o sangue dela ainda fresco em suas roupas, mas está tudo
turvo, não conseguirei me manter acordado por muito mais tempo.
— Esse sangue... é seu? — pergunta o presidente, dando passagem
para três profissionais que sobem as escadas carregando uma maca aberta.
É meu?
Talvez.
Não, acho que não.
Não tenho certeza.
Provavelmente sim.
O grupo faz um semicírculo ao meu redor, entreolham-se com
hesitação. Há chances de eu estar pior do que supunha. Mas não consigo
falar, minha voz não sai. E eu forço, grunhindo e tossindo até ser acometido
pela ânsia e pender para trás, deitando-me aos pés dos meus irmãos.
— Eu... perdi. — Consigo dizer, a voz ruidosa e baixa. — Eu a perdi
— repito, perdendo as forças, desistindo, enquanto os três conversam entre
si, dizendo coisas sem sentido sobre resolver tudo.
Eu a perdi
Eu as perdi.
Ana.
Anastasia.
Princesa.
— Vamos dar um jeito nisso, irmão — Ivan promete, aflito,
escondendo o desespero que raramente deixa explodir. Ele também está
sofrendo.
Fecho os olhos assim que uma máscara é colocada sobre o meu
rosto. Verdadeiramente exausto. Não quero ver a esperança e o alívio em
seus olhos, a real felicidade por terem reencontrado o irmão vivo.
Estão errados.
Não me reconheço.
Eles ainda não entenderam, não fazem ideia do que aconteceu lá
dentro. Não têm como saber. E por mais que ouçam e vejam e tentem
imaginar, talvez, ainda assim, jamais percebam.
Arrancaram tudo de mim, e o que restou está morto.
Andrei Volkiov está morto.
1
Andrei
POUCAS COISAS ME trazem tanto prazer quanto apreciar as curvas de
uma mulher nua adormecida sobre lençóis brancos. Um fetiche
absurdamente específico, é verdade, mas que, para um homem como eu,
admirador da beleza humana, das feições e sentimentos que manifestamos,
torna-se sagrado.
Desvio meus olhos de onde Evgenia repousa, submersa em um sono
profundo. Levanto-me da poltrona no canto do quarto e procuro minhas
roupas, encontrando apenas a cueca preta jogada sobre o divã. Depois de
vesti-la, caminho até o aparador de vidro e escolho uma elegante garrafa de
vodca, servindo-me com um copo cheio.
Retorno para perto da cama, sorvendo o líquido devagar para que
meu organismo desperte do estupor. Passa das seis da manhã, continuo
fadado a noites de insônia e tormento. Analiso a nudez de Evgenia,
satisfeito com o belíssimo quadro composto pelo excesso de pele exposta,
os joelhos ligeiramente afastados.
É uma mulher linda, não há como negar. O contraste dos cabelos
pretos, lisos e compridos sobre o branco dos tecidos ao seu redor torna a
vista ainda mais excitante.
— Seria tão fácil se eu apenas me apaixonasse por você — sussurro
comigo mesmo, a voz baixa para que não a desperte.
Porém, não sinto nada além de desejo orgânico ao analisar a mulher
com quem tenho vivido há mais de um ano. Mesmo a respeitando e
prezando pelo seu bem-estar durante nossos momentos de intimidade,
continua sendo apenas uma mulher.
Não a mulher. Não única. Poderia ser qualquer outra sobre o
colchão macio agora, minha admiração seria a mesma: com igual deslumbre
visual, mas sem aquele algo mais que tanto almejo.
Sem uma gota de amor sequer.
E eu tentei. Com todas as minhas forças, tentei amá-la. Todos os
minutos de todos os malditos dias, coloquei Evgenia no topo das minhas
prioridades tentando compensar minha ausência quando ela mais precisou.
Eu tentei.
Eu falhei.
E, agora, não tenho certeza de quanto tempo mais conseguirei
continuar neste relacionamento fadado ao fracasso, condenando nós dois a
uma vida infeliz.
— Não conseguiu dormir outra vez? — A voz sonolenta de Evgenia
me surpreende. Ela se encolhe, vira-se de lado e cobre parte das costelas,
quebrando o fluxo dos meus pensamentos.
Será que me ouviu?
— Acabei de acordar — minto, não querendo despertar sua
preocupação.
Tudo com Evgenia é sempre muito... exagerado. E não estou
inclinado a mais um de seus delírios sem cabimento.
— Vai para a empresa? — sonda, buscando meu olhar. Essa
pergunta nunca termina bem.
Antes de responder, arrasto os pés até a porta que dá acesso à
varanda, abrindo as cortinas para que a luz do sol ilumine o ambiente. É
possível ver a ponta do Leningradskaya se sobressaindo na floresta de
concreto do lado de fora. O enorme arranha-céu ainda brilha forte apesar do
amanhecer, com todas as suas luzes ainda acesas, e não deixo de lamentar.
Sentirei falta da vista.
— Vou para o abrigo. — Não entro em detalhes, pegando uma
toalha dentro do closet.
— Outra vez? — reclama, sentando-se com o lençol preso entre os
dedos na altura dos seios. A pele de porcelana ganha uma pincelada de
dourado por causa da claridade matutina.
Fingindo indiferença para que não se irrite por motivo nenhum e tire
conclusões sobre coisas sem sentido, dou de ombros distraidamente.
— Precisamos de uma nova professora de música. — Escolho um
conjunto social e o deixo sobre a cama. — Lara ligou ontem e...
Evgenia me interrompe, fazendo soar um barulho ríspido com a
garganta.
— Lara, claro — ironiza, rolando os olhos para cima.
Respiro fundo, desejando não ser duro com ela, mas odeio a forma
desrespeitosa como sempre se refere à minha família e, principalmente, à
Lara, distorcendo nossa relação fraterna para qualquer desconfiança
infundada que sua mente fértil cultive.
— Não vamos começar outra vez — peço, sem alterar o volume da
minha voz. — Já falei, pode vir comigo se quiser. Minhas cunhadas são
ótimas pessoas, tenho certeza de que teriam se dado bem se você
permitisse.
Agora é tarde.
— Elas me odeiam, assim como a sua mãe. E você sempre fica do
lado delas! — Arrastando-se para fora da cama com movimentos bruscos,
ela luta contra os lençóis enroscados em seu corpo enquanto pragueja.
— Não estou de lado nenhum.
É verdade que minha mãe jamais aprovou nossa relação, algo muito
estranho considerando que seu maior objetivo de vida sempre foi casar os
filhos. Não posso negar que isso me chateou muito por algum tempo,
principalmente depois do que passamos. Às vezes, sinto como se fosse
morrer com tudo engasgado na minha garganta, uma bola de
arrependimentos e sonhos interrompidos que ameaçam me estrangular todas
as noites.
Não aguento mais essa sensação.
— É isso o que diz, mas sempre quando ela chama, você vai
correndo. — Não preciso de um nome para saber de quem está falando. Sua
implicância com Lara é de longe um dos argumentos mais absurdos que já
escutei na vida. — Qual é o problema dela? Seu irmão não está dando
conta?
Porra!
Fecho os olhos e massageio a ponte sobre o nariz, uma dorzinha
despontando na minha cabeça. Eu tentava argumentar nas primeiras vezes,
porém, com o tempo fui aprendendo a me moldar ao redor das emoções
afloradas de Evgenia para evitar seus gritos e ameaças.
Dissimulo meus sentimentos, escondendo qualquer fagulha de
revolta gerada por suas palavras. Ao invés de gritar de volta, ou tentar me
defender da acusação camuflada a respeito da minha cunhada, levanto
minhas mãos e envolvo seu rosto com as palmas.
O toque amável faz seus ombros tensos relaxarem.
— Lara é uma irmã para mim — digo, calmo, porém firme,
fazendo-a se encolher. — Não fale dela, não dessa forma. Estou cansado da
sua implicância infantil e injusta.
Surpresa, ela abre a boca, enchendo os pulmões para rebater, mas
me afasto depressa, seguindo para o banheiro.
Seus passos me acompanham de perto, como já era previsto.
Não é muito difícil descobrir como lidar com as pessoas, contanto
que a gente aprenda o mínimo sobre suas mentes. Quais os seus sonhos,
segredos e desejos, quantos medos possuem e o que almejam conquistar.
É assim que eu funciono e o motivo pelo qual consegui conviver
com Evgenia por tanto tempo. Tudo faz parte de um livro que pode ser lido
e interpretado: o timbre da voz, as expressões faciais, os movimentos das
mãos e até mesmo a velocidade com que falamos e sorrimos.
Aprendi a medir cada nuance do corpo humano para sobreviver na
selva de leis e tribunais, mas não percebi o momento exato em que essas
habilidades passaram a interferir também na minha vida pessoal.
Ligo o chuveiro e retiro minha única peça de roupa. Evgenia fica
parada me observando, enquanto o vapor da água embaça o vidro que nos
separa. Seu olhar recai sobre meu corpo despido com ganância e confusão.
Está nervosa... Não, ansiosa. Não é tola, conhece bem demais com
quem está lidando para não desconfiar que por trás da minha calma e
controle há muita frustração acumulada. Frustração, sim, porque eu
realmente queria que déssemos certo, que ela fosse a mulher da minha vida.
— Sabe como eu me sinto sobre outras mulheres, da minha
insegurança quando se trata de você — ela argumenta com a voz
embargada. Meus sentidos alertam para a encenação já tão familiar, mas
não consigo ser insensível a ponto de ignorar seu choro, seja ele legítimo ou
não.
— Não podemos mais continuar com isso, Genny. Eu não consigo.
Minhas palavras a afetam, ouço seu arfar estrangulado, um breve
soluço antes de invadir o chuveiro junto comigo, agarrando-se ao meu
pescoço e se debulhando em lágrimas incessantes.
— Não diga isso — pede, segurando meus ombros freneticamente,
desesperada. — Me desculpa, eu só tenho você, Andrei. Não posso te
perder também, não pode fazer isso comigo, não pode me abandonar!
Evgenia fica na ponta dos pés, exigindo um beijo que concedo para
acalmá-la. Ainda tenho um imenso carinho por ela, mas é o remorso que
sempre me faz ceder.
Não me deixe.
Não me abandone.
Não faça isso comigo.
Palavras e mais palavras.
Amparo seu corpo entre os braços, desejando, rogando para que
alguma faísca acenda em meu coração, implorando silenciosamente que o
mundo desapareça e apenas ela importe, que se torne a razão da minha
existência.
Mas nada acontece.
Nada acontece.
— Sinto muito — sussurro em seu ouvido.
Empurro seus ombros com cuidado, mas ela não cede. Não seria tão
fácil, nunca foi. Vejo-a cair de joelhos na minha frente, cravando uma das
mãos na minha perna esquerda e alcançando meu membro com a outra.
Unhas compridas penetram a carne da minha coxa enquanto nossos corpos
são lavados pela água quente.
Evgenia me estimula, sabe como fazer, os pontos certos, a
velocidade perfeita. Chamas ardem em seus olhos assim que meu corpo
reage, os dedos se comprimindo mais ao meu redor. Olhando de cima,
consigo uma visão privilegiada do cabelo grudado nas costas, escorrendo
até a base da coluna, o rosto frágil e esperançoso me implorando para não
renegar o seu corpo.
— Eu vou melhorar — promete sem parar com o ir e vir da mão
escorregadia. — Não consigo viver sem você, não pode me tirar isso
também. Desculpe, eu me exaltei, não vai acontecer de novo, eu prometo.
Promessas, promessas.
Estou cansado delas.
Acariciando mais lentamente, Evgenia aguarda para saber se
pretendo continuar discutindo. Ela desliza por toda a minha extensão
enquanto encara a ponta com olhos gulosos, passeando a língua sobre os
lábios rosados e pequenos como um coração.
Fecho os meus olhos e jogo a cabeça para trás, recebendo a água
tórrida no rosto. Há muito o sexo deixou de ter o mesmo poder de persuasão
e convencimento que antes, mas Evgenia está presa demais no mundinho de
dependência que criou em torno de mim para perceber.
— Isso não muda nada — digo, sendo sincero. A indignação que
cruza seu semblante se desfaz assim que lhe dou a próxima ordem,
segurando um punhado de seus cabelos pela raiz e impulsionando os
quadris para frente. — Faça.
Ela não espera um segundo comando e tão logo substitui a mão pela
boca, abrindo os lábios em um círculo largo para me engolir ao máximo,
esticando-se em um esforço muito prazeroso enquanto balança a cabeça
para frente e para trás.
Não tento resistir, quero que ela sinta o que minhas palavras não são
capazes de transmitir, por mais que eu diga claramente que não somos mais
os mesmos, ou que o caminho que estamos trilhando não terá um bom
desfecho.
Isso não muda nada.
Arrancando dela um lamento que se mistura a um gemido lânguido,
ofereço o que mais necessita enquanto ainda posso estar presente. Ainda
somos nós, e ela ainda é a minha mulher.
A cada estocada, cada passeio que sua língua faz em toda a minha
pele rígida, espero por aquele milagre inesperado que nos levará em uma
viagem de volta no tempo.
Que fará dela a pessoa mais importante e especial em meu coração.
Que me fará amá-la incondicionalmente.
Mas nada acontece.
Nada.
***
***
***
Anastasia
DE OLHOS FECHADOS, respiro fundo enquanto ergo o braço, depois
prendo o ar nos pulmões pouco antes de encostar o arco nas cordas com
delicadeza. O mundo fica vazio, como sempre acontece quando estou
tocando, e toda a superfície é engolida pelo silêncio, que tinge de branco o
grande buraco de nada que resta ao meu redor.
Somos apenas eu e o meu violino agora.
A primeira nota ressoa de forma limpa e precisa, ecoando por
quilômetros em todas as direções enquanto expiro devagar, minha
respiração em sincronia com o instrumento. Imagino a nota solitária na
minha frente, grande e dançante, em uma partitura imaginária cujas linhas
se amontoam ao meu redor como as barras de ferro em uma cela. Ainda
não está perfeito. Tenho que praticar mais.
Repito o processo, ele é bem simples.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
Repito o processo.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
Repito o processo.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
Repito o processo.
Inspirar. Arco nas…
— Anastasia?
Não, agora não.
...arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
— Ana? — Reconheço a voz de Akira, meu irmão, mas não posso
parar agora. Tenho que manter a mente focada no violino. É só o que
importa.
Repito o processo.
— O que há de errado com ela? — Zayn, nosso irmão mais velho,
pergunta.
Inspirar. Arco nas cordas. Expirar. Deslizar.
— Talvez esteja quebrada — Akira supõe. Os dois estão bem
próximos de mim, sei pelo volume de suas vozes.
— Ela não é um brinquedo, seu idiota. Quer dizer, pessoas não
quebram, quebram?
Repito o processo.
— Não desse jeito, eu acho. Talvez ela tenha caído de uma árvore e
batido a cabeça?
— Ela não pode sair de casa, lembra? Se ela se machucasse, acho
que Yekaterina teria um ataque e colocaria nós três de castigo pelo resto da
vida.
Sim, não posso ferir minhas preciosas mãos. Todo mundo sabe
disso.
Concentre-se, Anastasia!
Repito o processo.
— Não é justo! — Akira protesta em seu rompante diário de
rebeldia. Meu irmão nunca aprendeu a ter o mesmo refinamento de Zayn e
por isso sempre acaba sendo punido por nossos pais. — Ela fica o dia todo
trancada estudando essa porcaria, não pode fazer coisas legais com a gente,
não pode correr, não pode subir em lugares altos, não pode dormir tarde,
nem brincar de se esconder ou de pular corda. Yekaterina e Leonid a tratam
como se fosse uma prisioneira, mas ela só tem oito anos.
— E nós só temos onze — Zayn argumenta, ironicamente, em um
timbre bem maduro. — Não tem nada que a gente possa fazer.
Acelero a velocidade das repetições, sinto o suor se acumulando
mais e mais na minha testa e o foco começa a se distanciar no meu mundo
tingido de branco. Ao invés de continuar treinando a minha empunhadura,
agarro-me a um último fio de concentração antes que meus irmãos me
interrompam e deslizo para dentro de uma melodia completa.
Os dois se calam enquanto eu toco.
Toco de verdade.
A música flui através dos meus ouvidos e meus dedos dançam,
traçando cada nota, antecipando-as com a maestria exigida em um
capriccio. Não preciso olhar para o violino, eu o sinto pulsar, vívido, sob o
domínio dos meus dedos. Ele conversa comigo enquanto toco, guiando-me
por La Cadenza, de Henryk Wieniawski.
Como o próprio nome já diz, não se trata apenas de uma obra
musical, é um desenho feito com pincéis de acordes livres. É uma
experiência. Eu me fundo com a música ao mergulhar na cadência de notas
em uma técnica que clama pelos sentimentos de seu intérprete. Meu corpo
expõe todas as minhas emoções mais secretas, deixando-me vulnerável
como uma amadora.
Qualquer avaliador vai perceber há centenas de quilômetros que na
verdade a menina prodígio é um talento triste.
Finalizo minha performance com um vibrato, mas mantenho o
violino em meu ombro, o rosto colado na queixeira, enquanto minha
respiração volta ao normal. Ofegante e suada, repasso todos os meus
movimentos na cabeça, tendo a certeza de que não errei nenhuma vez. Não
errar é bom, mas ainda não é o bastante.
Minhas pálpebras se movem e eu abandono aquele lugar vazio e
silencioso da minha mente, retornando para a realidade do grandioso
estúdio residencial onde passo a maior parte dos meus dias. Minha prisão,
como Akira gosta de chamar.
A torre da Rapunzel.
O lugar foi projetado para mim e eu deveria me sentir especial por
isso. Crianças educadas ficam felizes quando ganham presentes dos pais. É
o que dizem. Não tenho certeza. Yekaterina e Leonid não são como os
outros pais, então eu acho que nunca saberei a menos que tenha minha
própria família algum dia.
Olho para baixo e vejo meus irmãos sentados um ao lado do outro,
no chão. Eles sempre fazem isso quando conseguem despistar os
funcionários e se esgueirar para dentro do estúdio, não importa quantas
vezes eu diga para usarem as cadeiras. Suspiro, meus braços pendem ao
lado do corpo, arco e violino firmes nas minhas mãos.
— Isso foi um pouco… — Zayn coça a nuca e desvia o rosto para o
lado. Ambos têm a mesma idade, mas ele continua sendo o mais alto de nós
três. Com as pernas cruzadas, parece-me um tanto desengonçado.
— Mórbido — Akira completa, recebendo de Zayn um tapa bem
dado na parte de trás da cabeça. — Ai! Por que fez isso? Eu só disse a
verdade.
— Quer deixar ela triste? — Zayn sussurra, arregalando seus olhos
grandes e redondos.
Akira o despreza com uma careta e volta sua atenção para mim.
— Até quando vai ficar presa aqui dentro? Vimos quando seus
professores foram embora. — Ele olha para o relógio em seu pulso. — Há
três horas.
Akira é uma criança magra de temperamento ruim. Sua pele clara
possui marcas de cicatrizes que ganhou ao longo dos anos, fazendo suas
peripécias irresponsáveis que sempre terminavam com ele ferido de alguma
forma. Teve uma vez que tentou pular a cerca do jardim, se enroscou em
uma vinha e caiu em cima de um arbusto espinhento. Ele levou sete pontos
no joelho direito e três no cotovelo. Nunca vi tanto sangue na minha vida.
Akira não chorou. Sinto inveja das cicatrizes dele. Queria saber
como é a sensação de escalar a cerca do jardim.
— A competição nacional termina amanhã e eu tenho que treinar até
o último segundo para ficar em primeiro lugar — explico o óbvio.
Sento-me junto com os dois, com as pernas dobradas de lado por
causa do vestido. Deixo o violino em cima do colo com cuidado. É
importante usar roupas semelhantes às que vestirei na apresentação oficial
durante os ensaios para ter certeza de que não ficarei desconfortável
enquanto toco. Meu vestido é especialmente macio e leve, liso e sem
nenhum adorno que possa me pinicar.
Eu gosto. É simples e não chama muita atenção. Meus pais dizem
que eu já sou chamativa o suficiente por causa da minha aparência.
— Escutamos os professores conversando com os nossos pa… —
Zayn se engasga. Já faz algum tempo que vem se recusando a chamar
aqueles dois como "mamãe" e "papai". Akira é bem melhor nisso. — Com
Yekaterina e Leonid. Eles disseram que a sua apresentação estava perfeita e
que nenhuma outra criança vai ter chances contra você na competição.
— Os professores não entendem. Eles não conseguem mais me
acompanhar. — Passo o indicador pelas cordas do violino e abaixo o rosto.
Eu não deveria desqualificar meus professores, mas é a verdade. O que
chamam de perfeição não é mais o suficiente para os meus ouvidos. — Não
me importo de treinar sozinha.
Akira se levanta com um pulo silencioso e estende a mão para mim.
Procuro por Zayn, curiosa pela iniciativa repentina de nosso irmão
bagunceiro, e recebo dele um balançar positivo com a cabeça. Ainda
desconfiada, deixo que Akira me levante. Ele coloca as duas mãos em meus
ombros e fixa seus lindos olhos oblíquos e dissimulados nos meus.
— Você sabe que dia é hoje?
Ah, então é sobre isso que eles querem conversar. Eu devia ter
imaginado.
— É claro que sim — respondo, indiferente. — Mamãe disse que
era melhor não comemorarmos o meu aniversário por causa da competição
e eu acho que ela está certa. É melhor evitar distrações na véspera de uma
apresentação.
— Você já está falando igualzinho a ela. — Akira pressiona meus
ombros com mais força. — Viemos até aqui porque queremos comemorar
com você. Só nós três.
Penso um pouco. Não seria tão ruim fazer algo com meus irmãos.
Eles são os melhores irmãos do mundo inteiro, mesmo que eu não tenha
com o que comparar. Minhas melhores lembranças são ao lado dos dois, e é
justamente por isso que eu nego.
— Vocês vão acabar se metendo em problemas se formos pegos, não
podemos. Lembram o que aconteceu da última vez? Tivemos que passar as
férias inteiras separados só porque fui jogar videogame escondida na sala de
jogos ao invés de ensaiar. Mamãe me disse para ir direto para o quarto
quando acabasse de repassar a música.
— Mamãe é uma vaca! — Akira reclama, e não sei o que me deixa
mais chocada: ele chamar Yekaterina de mamãe ou de vaca.
Na falta do que responder, Zayn se aproxima e repreende nosso
irmão com um olhar duro. Depois, ele se coloca ao meu lado e diz, com
mais calma:
— Ninguém vai saber, eu prometo.
Uma promessa de Zayn é bastante coisa. Se ele diz que ninguém vai
saber, eu acredito. Mas, ainda assim, parece-me arriscado demais. Será que
vale a pena? Não é como se comemorar o meu aniversário fosse algo
importante. A gente nunca comemora aniversários, a menos que nossos pais
precisem limpar seus nomes de alguma polêmica. Aí eles dão uma festa.
Esse ano, mamãe acha que mostrar que eu amo mais a música do que o meu
aniversário vai ser bom para a minha imagem.
— Não sei, Zayn. Se eu não ganhar o primeiro lugar amanhã,
mamãe disse que me enviaria para estudar na Europa. Não quero ficar longe
de vocês de novo.
É solitário quando não os tenho por perto. Quer dizer, mais solitário
que o normal.
Akira estala a língua.
— Eu comprei um bolo, tá legal? E ele é cor-de-rosa, então você
meio que deveria vir com a gente logo, porque escondemos a caixa no
gazebo do jardim, e algum gato perdido pode encontrar e comer tudo, ou até
um esquilo.
Não há gatos ou esquilos na propriedade Serov, nossos pais
detestam animais de qualquer natureza, mas sinto uma onda de animação ao
pensar no bolo. Um bolo cor-de-rosa!
— Akira, era surpresa — Zayn reclama. — Você não sabe calar a
boca?
Akira encolhe os ombros e olha para mim.
— O que importa? Se ela não vier, não vai ter surpresa.
— Um bolo? — pergunto, mais interessada neste assunto do que nos
dois se alfinetando. — Como? Quando? Com que dinheiro?
— Ele roubou a carteira do Leonid na sexta-feira — Zayn o dedura.
Arregalo os olhos para o meu irmão, que não parece nem um pouco
arrependido.
— Roubou o papai? Ficou louco?
— Eu não precisaria roubar se ele não fosse um imbecil. Eu sei que
faço merda, e que mereço meus castigos, mas você é uma boa filha. É a
estrela da família! Pagar por um maldito bolo é mínimo que ele deveria
fazer. — Akira coloca as mãos atrás do pescoço, uma pose despreocupada.
— Ele nem percebeu, estava ocupado demais trancado no quarto de
hóspedes com a governanta.
Os dois trocam um longo olhar que não sei interpretar. Odeio
quando me deixam de fora. Mas o papai faz isso às vezes, ele e a senhorita
Asimova se dão muito bem e adoram conversar juntos no quarto. Quer
dizer, eu acho que eles se dão bem, mas já ouvi ela fazer alguns barulhos
estranhos lá dentro, então não sei dizer. Papai nos avisou para nunca
atrapalhar os dois e nós obedecemos, como sempre. Não é esperto
desobedecer o nosso pai.
Mas não gosto de imaginar meu irmão roubando, e menos ainda o
que nossos pais farão com ele se descobrirem. Ainda tenho pesadelos com o
som dos seus gritos da vez em que apanhou por xingar o papai de um nome
horrível no meio de uma festa, então precisamos nos livrar daquele bolo o
quanto antes.
Olho para o violino e engulo seco.
— Tudo bem, mas não podemos demorar.
Zayn abre um grande sorriso enquanto eu corro para guardar meu
instrumento. Mesmo sem querer, começo a ficar ansiosa. A gente não tem
muitas oportunidades de brincar sem supervisão. Não vai ser o fim do
mundo passear no jardim e comer bolo escondido. Não é como se algo
fosse acontecer.
Quando os dois estão comigo, é sempre divertido, caótico e intenso.
Zayn e Akira são como Caprice, op. 1, no. 24, de Paganini.
E eu os amo exatamente assim.
8
Andrei
JÁ FAZ UM ano desde que Vladimir abriu um buraco bem no meio da
empresa, trazendo à tona a verdade sobre um desabamento ocorrido vários
anos antes, e que culminou na morte de inúmeras pessoas. Tive que fazer o
impossível para que meu irmão saísse ileso de todos os processos, coisas
das quais não me orgulho, mas também não me arrependo.
Uma verdade impopular sobre mim? Meu senso ético, tão aclamado
e exaltado, vai até um certo limite. E este limite é a minha família. Não há
nada que eu não faça pelas pessoas que amo.
Foi o mesmo quando Ivan se envolveu com Lara e tivemos que
interromper nossos investimentos com a empresa da família dela, que tinha
um mundo de projetos ilícitos nas costas. Ou quando Roman decidiu que
era uma boa ideia atirar no pai da nossa cunhada. Não importa o tamanho
da sujeira, eu estou sempre lá, pronto para limpar tudo.
Considerando que existe um passado criminoso na história do
sobrenome Volkiov, envolvendo cassinos ilegais e parentes desconhecidos
— de acordo com minha mãe —, talvez mentir e esconder segredos seja um
lance de família. Talvez esteja no meu sangue.
Escuto passos no corredor e saio do meu transe. Faz quatro…?
Confiro o relógio em meu pulso. Cinco horas que estou sentado na mesma
posição, absorto em minha mente conturbada que se nega a desligar. Nada
muito diferente do habitual, exceto que agora eu moro com alguém que
acorda todos os dias às cinco da manhã para tocar piano. Nossos vizinhos
nos odeiam e terei que pagar algumas multas ao sindicato por causa do
barulho, mas Ana acha que temos paredes acústicas e não tenho coragem de
contar a verdade. Não quando tocar é a única coisa que afasta as sombras de
seu olhar.
Depois de duas semanas, não consegui descobrir muita coisa sobre
ela, mas chegamos a um equilíbrio interessante de convivência, no qual
compartilhamos o café da manhã todos os dias e conversamos sobre
banalidades durante o jantar. Gosto da nossa rotina, sua presença me dá um
pouco de tranquilidade e sinto que a cada dia Ana e eu nos tornamos mais
próximos.
Assim que os passos dela se distanciam, eu me levanto e caminho
até o espelho acoplado em uma das paredes. É um objeto bonito de formato
circular, com ornamentos dourados nas bordas, seu único defeito é o reflexo
que me encara de volta com olhos escuros e pesados, aquele semblante
faminto de quem precisa de um descanso. Meu organismo se acostumou a
relaxar apenas com álcool ou sexo, de preferência, juntos. Mas tenho feito o
possível para me contentar só com o primeiro item.
O possível não tem sido o suficiente.
Meu celular vibra sobre o colchão da cama e olho de relance para a
tela. Outra chamada de Evgenia que ignoro. Ela começou a enviar
mensagens e mais mensagens no dia da separação e não parou mais. Até
tentei ler algumas no começo, preocupado com seu bem estar. As primeiras
foram mais controladas, com pedidos educados de "vamos
conversar" e "não consigo viver sem você". Ao perceber que eu não
responderia, ela voltou ao seu estado normal de "você vai pagar por tudo o
que está fazendo comigo".
Se não fosse por Ana, eu provavelmente já teria cedido à suas
ameaças e voltado para casa.
Ana.
Deixo o celular para trás e decido conferir o que está fazendo. Ao
abrir a porta, a resposta chega depressa: ouço a primeira nota reverberar
pelo apartamento, alta, limpa e melódica. Outras vêm em seguida, mais
rápidas e ferozes.
Seduzido pelo som, caminho silenciosamente até a sala, onde a
encontro sentada na frente do piano. Está vestida com um roupão azul duas
vezes maior do que ela e é a merda da coisa mais sensual que eu já vi,
mesmo sem expor nem um centímetro de pele, com um laço marcante na
cintura. Seus cabelos estão molhados, os caracóis pesando sobre os ombros.
Ela para de atacar as teclas e respira fundo, como se estivesse se
preparando. Ao retornar, seus movimentos produzem uma melodia familiar,
muito mais sensível e tocante. É suave e delicada, assim como ela, e me
deixa paralisado, cativado pela música e todas as sensações que envolvem a
imagem diante dos meus olhos.
Há um tom de tristeza, mas também de liberdade.
Inexplicável.
Contra a luz que entra pelas janelas, ela se parece com um anjo e eu
perco a noção do tempo, parado entre o corredor e a sala, apenas
contemplando o som e a beleza. Seu corpo oscila de um lado para o outro,
acompanhando a música como se fosse parte fundamental dela. Quando a
última tecla finda, ecoando baixinho, não consigo ficar em silêncio.
— Linda — digo, minha voz soando grave e profunda. Ana se
sobressalta no banco e olha para trás. Estou me referindo única e
exclusivamente a ela, mas disfarço: — A música é mesmo muito bonita.
— Chopin. — Sorrindo, Ana coloca uma mecha de cabelo atrás da
orelha. — Noturno, Opus nove, número dois, em Mi Bemol Maior.
— Chopin? — Meu tom de voz deixa claro que não sou um
especialista.
— Se disser que não conhece Chopin, sinto que seremos obrigados a
colocar um fim em nossa relação, infelizmente — diz de modo trágico,
brincando.
Quase pergunto a qual relação ela se refere, mas me contenho.
— Não será preciso, conheço Chopin, e eu sabia que a música não
me era estranha no momento em que ouvi, mas esse nome complexo? Eu
não saberia repetir nem se minha vida dependesse disso, senhorita pianista.
— Claro que não sou uma pianista! — Ana gargalha, seus ombros
chacoalham livremente de maneira adorável.
Chego mais perto e meus olhos traidores voam para seu colo
exposto em busca de marcas. Mesmo que todos os hematomas tenham
desaparecido há dias, não consigo parar com o hábito. Sinto uma onda de
alívio ao vislumbrar a pele lisa e curada, mas outra sensação me invade
assim que vejo o roupão frouxo sobre seu corpo, a fenda entre os seios se
pronunciando no decote desleixado do roupão.
Calor.
E fome.
— E por que não? — pergunto, focando em seu rosto.
Ana retira uma mão das teclas monocromáticas e a ergue na minha
direção, com a palma aberta, mostrando todos os cinco dedinhos como se
eles explicassem tudo. Continuo sem entender, aproximo-me dela,
inclinando para frente, em busca de alguma deformidade nas juntas, mas
nunca uma mão me pareceu tão perfeita.
— Mãos pequenas, dedos curtos — explica, sorrindo gentilmente da
minha completa ignorância com o meio musical.
Levo minha própria mão à dela, encaixando as duas no espaço entre
nós. Meus dedos são muito maiores e mais grosseiros.
— São mesmo pequenas — sussurro, hipnotizado, medindo as
diferenças. Sinto um aperto repentino no peito, algo parecido com
preocupação e medo. Ela é toda delicada demais.
— Não é uma regra ter mãos grandes para se tornar um profissional
— segue explicando, sem notar o quanto seu toque mexe comigo —, mas
facilita bastante. Aprendi a tocar piano, flauta e violino quando era criança,
mas desisti da flauta por volta dos dez anos. Segui com o piano
como hobby porque gostava muito do som, e o violino se tornou a minha
paixão.
— Violinista, então. — Recolho minha mão antes que ela note
minha expressão sombria. Ana confirma, e uma rápida onda de tristeza faz
seu sorriso vacilar. Posso estar vendo coisas. — Está com fome?
Ela nega, pressionando uma ou outra tecla do piano.
— Não conseguiu dormir de novo? — pergunta, perspicaz, mas não
me deixa responder. — Posso tocar uma música de ninar se quiser. —
Mesmo ciente de que se trata de uma brincadeira, fico ansioso para vê-la
tocando para mim.
— Eu adoraria ouvir.
Há um momento desconfortável em que nossos olhos se conectam.
Tento ler seu semblante, escutar seus pensamentos, calcular o que as
profundezas das pupilas marrons escondem, mas é inútil. Ana está dentro de
uma muralha e eu sou o soldado solitário acampado na frente de seus
portões.
Toque para mim, peço em silêncio, enrijecendo o corpo cheio de
expectativa. Magicamente, ela acata, dando início a uma música suave e
calma como o ninar de uma criança. Pergunto-me se é assim que se
expressa, se as suas emoções estão presentes na sonância, e se o frenesi de
alívio, expectativa e felicidade que penso identificar entre as notas são
reflexos do que está sentindo.
Gostaria que fosse, porque é incrível de se ouvir. Na verdade, tudo
nela é incrível. Eu poderia assisti-la tocando para sempre.
São as mãos pequenas de dedos curtos mais lindas que eu já vi.
9
Anastasia
A RISADINHA IRÔNICA de Andrei me traz de volta à realidade. Desvio
o rosto ao mesmo tempo em que termina de fechar o último botão de sua
camisa. Ele pega o paletó que estava pousado sobre a poltrona, vestindo em
seguida, e finjo um interesse repentino em meus próprios pés.
— Não olhe demais, Anastasia — repreendo-me baixinho,
brincando com a barra do meu vestido. Felizmente, está calor o bastante
para que uma meia-calça me proteja do vento fresco lá fora.
Andrei está perfeito em um terno azul de costura inglesa que destaca
seus ombros largos e a extensão rígida de suas costas. Mas ele poderia se
vestir com um saco de batatas que o impacto de sua beleza não seria
afetado.
— Disse alguma coisa? — pergunta, segurando a risada. Ele passa a
gravata sobre a cabeça e inicia o nó com agilidade, mas volta-se na minha
direção em busca da resposta.
— Absolutamente não — digo depressa, negando com a cabeça.
Pela maneira como seu sorriso aumenta de tamanho, tenho certeza
que está me provocando. Ele faz isso com grande frequência agora que nos
tornamos mais próximos — o quão próximos, eu não sei como medir, mas
já não somos mais os dois completos estranhos do primeiro dia, que mal
conseguiam disfarçar a própria miséria.
— O vestido ficou ótimo em você. — Ele olha de relance na minha
direção, o sorriso ainda presente, mas sua voz assume um tom grave ao
completar: — Está muito bonita.
Sinto meu rosto acender como uma tocha. Não estou acostumada
com elogios. Quando Yerik elogiava minhas roupas, era um sinal que eu
deveria trocá-las.
— Obrigada — murmuro enquanto o observo passar a gravata por
trás do pescoço.
— Quem comprou tem um ótimo gosto, não acha?
Sou obrigada a sorrir. De alguma forma, ele sabe como me deixar
confortável em um piscar de olhos.
— Está tentando ganhar um elogio, senhor Volkiov?
Ele faz um gesto casual com os ombros, porém, sua expressão é de
um predador cuja presa acaba de cair em sua armadilha de palavras.
— Sou um homem carente, preciso de bajulação para validar os
meus sentimentos.
Não aguento segurar a risada. Andrei tem o talento de fazer até suas
brincadeiras parecerem argumentos sérios. Deve ser coisa de advogado.
Tivemos um pequeno embate na primeira semana por causa das
roupas. Como não pude trazer nada comigo, ele se ofereceu para comprar
tudo o que eu precisasse, e é claro que recusei. No entanto, Andrei sabe
como ser convincente e venceu todas as minhas justificativas, afinal, eu
realmente não podia ficar andando nua pelo apartamento, mas quando eu
disse que não conseguiria gastar o dinheiro dele mesmo assim, que seria
muito constrangedor, ele próprio saiu e só apareceu três horas depois
carregando uma infinidade de sacolas lotadas com roupas caríssimas — e só
então eu pude compreender a extensão da sua fortuna.
Talvez seja tão ou mais rico que meus pais.
— Sim — digo ao perceber que ele espera uma resposta —, você
tem muito bom gosto, eu amei. Obrigada mais uma vez, vou pagar por tudo
assim que…
— Claro, claro. — Ele nem tenta disfarçar a interrupção certeira. —
Não se preocupe com isso. O importante agora é pensar em você e no seu
futuro.
— Futuro? — experimento a palavra, mas ela tem um sabor
agridoce. Se Andrei soubesse o que o futuro tem guardado para mim, não
sei se estaria sendo tão otimista.
Ele para o que está fazendo e me encara. Sua atenção rouba o meu
fôlego. Ainda não me acostumei com seu olhar poderoso, distinto,
enigmático, existe um conflito permanente transbordando de suas órbitas,
um desejo profano de enxergar mais do que a visão comum alcança. Ele não
tenta esconder.
Eu diria, inclusive, que gosta quando percebo suas tentativas de me
desvendar. Gosta de ser reconhecido.
Andrei admitiu a plenos pulmões que pretende se manter ao meu
lado pelo tempo que achar necessário, mas, às vezes, eu me sinto despida
diante dele, completamente nua, física e emocionalmente invadida por sua
personalidade imperturbável e controlada a uma profundidade que Yerik
jamais conseguiu alcançar.
O problema é que nada disso me incomoda. Estou bem com ele, um
homem que até o mês passado era desconhecido para mim. Mais do que
bem, sinto-me viva como nunca antes. Ele tem um rosto bonito, um jeito de
príncipe encantado e um corpo másculo, definido e robusto, mas seu olhar é
o mais intenso que já encontrei em uma pessoa, naturalmente sedutor e
desconcertante, alguém que não apenas vê as pessoas, mas as enxerga.
Que me enxerga.
— Não precisa ficar assustada. — Ele caminha até mim, terminando
de arrumar as abotoaduras do paletó. Segura meu queixo com uma
intimidade cautelosa que tranquiliza meus instintos auto protetivos antes
que eu sequer pense em recuar. — É só uma visita. Você conhece o lugar, as
crianças, conversa com algumas pessoas e vai se familiarizando. Não
precisamos formalizar a sua contratação até estar cem por cento segura de
que é isso o que deseja fazer.
Seu dedo indicador faz uma pequena carícia na minha bochecha, no
lugar em que antes estava o hematoma causado por Yerik. Pode ser que a
minha imaginação ingênua esteja inventando coisas, mas uma sombra
agressiva recobre seu semblante pacífico antes de se afastar, deixando-me
confusa.
Temos convivido como duas pessoas isoladas do mundo em uma
ilusão segura onde eu não preciso ter medo. Ele faz questão de me ouvir
tocando piano antes do nosso café da manhã, e de noite, depois de chegar
do trabalho, conversamos sobre as banalidades do dia a dia. Vez ou outra,
Andrei faz algum comentário sobre seus irmãos e cunhadas, mas nunca fala
sobre si mesmo, não revela seus pensamentos ou quais tormentos esconde
em seu coração.
Quem é este homem e o que aconteceu com ele para se fechar dessa
forma?
Eu quero saber.
Desejo saber.
— Você tem uma incrível capacidade de sempre dizer a coisa certa
no momento certo, sabia? — digo, elogiando-o com sinceridade, e minha
recompensa vem em seguida na forma de um sorriso matador.
Deus! Quando ele sorri, é difícil até de respirar.
— É o meu trabalho. — Bem humorado, olha o relógio em seu
pulso. — Inclusive, eu e a minha incrível capacidade de dizer a coisa certa
gostaríamos de informar que vamos nos atrasar se não sairmos neste exato
minuto.
Automaticamente, o rosto de Yerik irritado me vem à mente,
dizendo: "Você é lerda, Anastasia. Vamos nos atrasar por sua causa", mas
Andrei não parece nervoso, nem decepcionado e seu tom também não me
assusta. Eles não são iguais, preciso me lembrar o tempo todo, assombrada
com o fantasma do meu marido que insiste em me aterrorizar.
Ainda assim, apresso-me para segui-lo até a saída.
— Atrasar? — murmuro, esperando-o trancar a porta. — Mas, você
acabou de dizer que é só uma visita.
Ele guarda a chave no bolso da calça e, em um movimento natural,
pousa uma mão protetora e gentil em minha lombar. Dessa vez, porém, meu
corpo reage por conta própria e meus músculos se enrijecem, uma sensação
de estranhamento cruza a tênue linha da minha consciência e eu estremeço
da cabeça aos pés.
— Desculpe. — Andrei recolhe o braço de imediato e se afasta de
mim com um semblante preocupado. — Fiz sem perceber.
Procuro me acalmar rapidamente. Meu corpo às vezes esquece que
não é mais uma propriedade e que não preciso temer o toque de outras
pessoas. Não serei mais punida por conceder a outro homem permissão para
um gesto tão simples. Mesmo envergonhada por minha reação, nego com a
cabeça e me explico:
— Não tem problema. Só fui pega de surpresa. Eu não… eu
nunca… — Sinto minha garganta se fechando. — Ainda estou me
acostumando. Faz muito tempo que ninguém se aproxima tanto. Ninguém
além… — Engulo o nome de Yerik em seco. — Você sabe, eu sinto muito.
Preparo-me para ser chamada de louca ou coisa parecida, mas
Andrei volta a se aproximar e inclina o rosto para me olhar de perto. As
sombras que de vez em quando ameaçam dominar seu rosto angelical,
gozam da liberdade como se ele não quisesse escondê-las de mim agora.
— Eu entendo — diz em um tom que não sei definir se é calmo ou
zangado. Ele faz uma pausa e olha para as minhas mãos, que mantenho
fechadas na frente do corpo. — Posso tentar outra vez?
Meu cérebro dá uma cambalhota com seu pedido e fico na dúvida se
entendi direito. Ele quer me tocar de novo? Por quê?
— Por quê? — ecoo a dúvida que paira em minha mente.
— Porque eu quero. — Ele não hesita, sua postura transmite toda a
potência e veracidade de suas palavras. — E porque não gosto da ideia de
alguém que te feriu tendo exclusividade em uma parte tão pura de você.
Sinto meus olhos arderem. Andrei ergue um dos braços, um convite
para me encaixar naquele espaço particular ao seu lado. Procuro motivos
para rejeitar seu pedido, outra indicação do meu organismo que se oponha
ao contato, entretanto, por mais que os julgamentos fantasmagóricos de
Yerik continuem à espreita, chego à conclusão de que preciso ser mais
corajosa. Um passo de cada vez, certo?
— Tudo bem — sussurro, mas tampouco saio do lugar. Andrei
solta uma de suas risadinhas misteriosas e assume a liderança, abraçando-
me de lado.
A mão dele retorna para um ponto específico das minhas costas,
pairando na base da minha coluna por um longo minuto.
— Podemos ir agora? — pergunta. Graças às nossas posições, sinto
sua respiração fazendo cócegas no meu cabelo. Aquiesço em resposta, toda
sem jeito, mas inegavelmente confortável.
Com um leve empurrão, ele nos guia até os elevadores, mas não se
afasta ao entrarmos no cubículo apertado e seus dedos também não deixam
de me segurar contra ele. Quando as portas voltam a se abrir, fico
imaginando quando vai me soltar, mas Andrei se mantém irredutível em seu
propósito. Seus dedos deslizam com naturalidade até se acomodarem na
minha cintura, deixando meu corpo alerta e ansioso.
Bloqueio a voz de Yerik assim que ela ameaça me recriminar e me
concentro em outras coisas, como o formato de nossas sombras refletidas
no chão, ou no cheiro almiscarado de sua loção pós-barba. Andrei está
sendo gentil, só isso. Não é nada demais, não significa nada.
— Você disse que vamos nos atrasar — eu lembro quando o vejo
conferir o relógio novamente, em uma tentativa de preencher o silêncio. —
Não sabia que tínhamos hora marcada.
— Eu quis dizer que vamos nos atrasar para um excelente café no
caminho — explica, charmoso. — Não sei você, mas estou morrendo de
fome.
— Depois de beber tanto, era de se esperar que estivesse com
fome — digo sem pensar muito bem, fazendo referência ao que aconteceu
na noite anterior. Arrependo-me quando seus músculos ficam tensos, seu
semblante endurecido ao olhar para baixo, para mim.
— Estou acostumado — diz, estreitando os olhos. — Por acaso, eu
não disse nada estranho, disse?
— Claro que não. — Dou de ombros, abaixando o rosto e forçando
uma risada. Por sorte, chegamos ao carro e somos obrigados a nos afastar,
mas isso não me impede de recordar cada detalhe do que aconteceu de
verdade.
Do que ele disse.
Acordei no meio da noite sedenta por um pouco de água. Estava
nauseada por causa da gravidez, sonolenta pelo despertar repentino, e não
me importei em vestir um robe ao sair do quarto usando nada mais do que
uma camisola de seda cor-de-rosa, um item inusitado e constrangedor
dentre todos os que Andrei comprou para mim.
Eu estava vergonhosamente imaginando se a peça foi escolhida por
ele, se seu gosto por roupas femininas é mesmo tão indecente, quando ouvi
seu arfar no centro da cozinha escura. Andrei estava sozinho, encostado
contra a ilha de mármore com o peito despido, usando nada mais do que
uma calça cinzenta de elástico, os músculos do abdômen formando um
caminho pecaminoso rumo ao cós rebaixado.
Ele é grande, mas naquele momento me senti minúscula diante de
seus olhos ardentes, queimando no centro da escuridão. Apesar das sombras
recobrindo parcialmente seus traços rijos, meu olhar já havia se acostumado
com o breu o bastante para perceber sua expressão de surpresa varrendo
todo o meu corpo.
Em sua mão esquerda, havia um copo pela metade, na direita, uma
garrafa já quase vazia.
— Não consegue dormir? — perguntei, tentando agir normalmente.
— Quase nunca. — Sua voz soava rouca, um pouco arrastada e
lenta. — Não sem um pouco disso aqui. — Ele ergueu o copo, rindo com
um tom de desgosto, e depois levou o líquido à boca, virando todo o
conteúdo com goles exagerados e sonoros.
Naquele momento, eu quis chorar. Não por medo como seria com
Yerik. Não por temer que sua embriaguez representasse algum perigo a
mim. Mas sim porque eu entendi que há uma luta dentro de Andrei que
ninguém é capaz de enxergar. Aquela talvez tenha sido uma das raras vezes
em que se permitiu baixar suas defesas.
— Deveria procurar outros meios, esse não faz bem para a sua saúde
— sugeri, preocupada.
Andrei voltou a sorrir amargamente, enchendo seu copo até quase
transbordar. Ele deixou a garrafa aberta para trás, sobre o balcão de
mármore, vindo na minha direção com um caminhar audacioso e
determinado. Parou diante de mim, o cheiro do álcool era pungente, mas
não estava forte o bastante para ocultar seu perfume masculino, a fragrância
sofisticada com notas florais e cítricas.
Ele não fez nada além de me olhar, mas eu senti sua inspeção como
uma carícia sôfrega que fez todo o meu corpo estremecer. Os hormônios da
gravidez tiveram sua parcela de culpa quando fechei os olhos e me perdi na
sensação gostosa de ser o alvo de sua atenção.
— Infelizmente, a outra coisa que me ajuda a dormir um pouco, eu
não posso ter no momento — disse, misterioso.
Minhas pálpebras se abriram a tempo de ver Andrei se inclinar sobre
mim, os olhos dilatados por causa de toda aquela bebida alcoólica. Cada
centímetro da minha pele se arrepiou quando seu rosto parou a centímetros
do meu, sua respiração se misturando com a minha.
— E o que seria? — sussurrei, guiada pelo choque.
Andrei tornou a sorrir, como se não esperasse a minha pergunta.
— Uma mulher — respondeu, umedecendo os lábios com a língua
— na minha cama. Boa noite, Ana.
E, tão inesperadamente como veio, Andrei e seu copo de vodca me
deixaram, sozinha e com um monte de ideias erradas germinando na minha
cabeça pelo resto da noite.
Entro no carro e fecho a porta, procurando controlar a queimação no
meu rosto. No meu corpo todo. Expurgo da minha mente a lembrança —
ou, pelo menos, tento — antes que ele perceba e volte a me questionar.
Andrei se acomoda no banco do motorista e confere o celular, dando
partida em seguida. Não toca mais no assunto, ao invés disso, aproveita
para me explicar mais detalhes sobre o trabalho que suas cunhadas
executam na associação e o que esperam de mim como professora de
música, caso eu aceite o trabalho.
Finjo prestar atenção, mas um pedacinho de mim continua preso
naquela madrugada. Em seu olhar devastado, na forma como se agarrava ao
copo como se sua vida dependesse daquilo. No modo como enxerguei um
pouco de ousadia em seu olhar sobre mim.
Na minha reação boba.
É claro que ele não se lembraria, estava bêbado. Tenho certeza de
que nem mesmo sabia quem eu era no centro daquela cozinha.
Sou uma fugitiva. Estou grávida e ele nem mesmo sabe. Céus! Tem
uma criança crescendo dentro de mim, meu bebê, e Andrei jamais olharia
na minha direção se soubesse a verdade.
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Anastasia
CONSEGUIMOS ATRAVESSAR O portal interno sem sermos vistos,
porque Zayn dá um jeito de despistar o segurança da noite jogando uma
pedra na piscina e chamando sua atenção para longe. Espero que ele tenha
um plano para quando voltarmos, porque de jeito nenhum o sujeito vai sair
do posto novamente.
O lindo gazebo de madeira fica no jardim externo, logo depois da
cerca viva, e me sinto em um filme de aventura enquanto nos esgueiramos
pelas sombras.
Não temos muito tempo. Bater palmas e cantar em voz alta é
burrice, já que estamos tentando nos esconder dos empregados, e Akira
acha que sussurrar seria meio triste, então concordamos em ignorar os
parabéns e apenas comer o bolo.
Sentamo-nos em um pequeno círculo ao redor da caixa, ocultos
pelas flores pendentes nas balaustradas. As luzes do gazebo estão apagadas,
mas, por sorte, a lua está cheia, então todo o jardim parece brilhar como em
um cenário mágico de contos de fadas. Ao longe, podemos ver as grades
cinzentas do portão principal, monitoradas por uma guarita, mas a estrutura
de madeira e as flores nos mantém escondidos. Sozinhos no meio da noite,
é como se fôssemos as crianças perdidas do Peter Pan, órfãos em uma terra
cheia de encantos.
Só que não somos mais órfãos, e eu me sinto uma filha horrível por,
lá no fundo, não me sentir totalmente feliz por isso.
— E agora, o que a gente faz? — Akira pergunta ao nosso irmão.
Nós dois olhamos para Zayn ao mesmo tempo. Por algum motivo,
ele é como o líder do nosso pequeno grupo. Akira pode ser mais corajoso e
encrenqueiro, mas é Zayn quem sempre tem todas as respostas certas. Meus
irmãos são a minha família e isso nunca vai mudar. Pelo menos, é o que eu
desejo.
Hoje, em especial, sinto como se tivesse um monte de serzinhos
pequenos dentro do meu estômago, correndo e pulando e tocando música.
Eu nunca quebro as regras, no entanto, olhando para eles, parece
simplesmente correto estarmos aqui.
— Você comprou o bolo — Zayn responde, incentivando Akira a
seguir em frente e abrir a caixa.
Eu me inclino, vibrando por dentro. Há um grande laço branco de
cetim sobre o embrulho, que meu irmão retira com um puxão antes de
remover a tampa sem delicadeza alguma. Eu não esperava menos de Akira,
ser paciente não está dentro das suas qualidades mais marcantes, mas não o
deixo perceber o meu sorriso.
Dentro, vejo o pequeno bolo quadrado, muito cor-de-rosa e
confeitado com várias flores coloridas. Nunca vi um bolo tão lindo e fofo
na minha vida inteira, somente aqueles com muitos andares que são
expostos nas festas chiques dos nossos pais, e dos quais somos proibidos de
chegar perto. Nas raras vezes em que ganhamos uma festa — como quando
Zayn venceu um concurso de luta nacional em primeiro lugar e recebemos
uma equipe de reportagem, ou quando eu completei cinco anos e nossos
pais precisavam abafar um investimento malsucedido — eu nunca sinto que
aquilo tudo é nosso de verdade, nunca nossos amigos ou nosso bolo ou
nossa vida.
É tipo brincar de mentirinha.
Mas isso aqui, este bolo, é meu. É nosso. Eu nem sabia que bolos
podiam ser bonitinhos. Talvez, por ter sido um presente dos meus irmãos,
ele pareça especial, mas não seja de um modo geral. Só de olhar, sinto
vontade de chorar, então esfrego os olhos com o dorso da mão antes que as
lágrimas escorram.
— Eu sei que não é grande — Akira diz em tom defensivo. — Mas
não precisa…
— É o melhor bolo do mundo — sussurro. — Eu amei demais.
Isso… eu…
Não consigo explicar o que estou sentindo, então jogo meus braços
ao redor do pescoço de Akira e escondo o rosto em seu ombro, apertando-o
em um abraço forte. Ele demora a retribuir, mas logo seus braços me
envolvem, cheios de um carinho meigo e delicado. É bom saber que, pelo
menos comigo, ele consegue ser gentil.
— Ainda bem que gostou, irmãzinha — murmura no meu ouvido.
— Você merece muito mais do que isso, merece ser feliz. De nós três, você
é a melhor.
— Eu sou feliz. — Endireito o meu corpo e sorrio para o meu
irmão. Ele tem essa mania boba de me colocar lá no alto, acima de todos.
— Graças a vocês dois.
Akira não parece muito convencido, mas não insiste no assunto. Ele
faz um rápido afago em meu rosto enquanto a voz de Zayn soa por perto:
— Hora de experimentar o bolo. — Olho para trás a tempo de ver
seu sorriso relaxado. — Antes que sejamos pegos.
Zayn geralmente é sério e responsável, mas sempre que estamos
juntos, ele deixa aparecer a sua verdadeira idade. Eles vivem reclamando de
nossos pais exigirem muito de uma garotinha de oito anos, mas os dois não
são diferentes. Além de serem obrigados a agir como exemplos, ainda
fazem de tudo para cuidarem de mim.
Eu sou o peso a mais que eles carregam.
Com um garfo de plástico, Zayn corta três fatias e distribui uma para
cada. Eles esperam, olhando para mim, no aguardo de que eu prove
primeiro. O cheiro doce me deixa ansiosa pelo sabor, e assim que coloco
um pequeno pedaço na boca, sinto o gosto exato da felicidade. Não tem
como descrever de outra forma. Se Mozart fosse um confeiteiro, seus doces
seriam como este.
— O que foi, está ruim? — Akira cheira o seu pedaço. — Pensei
que você gostasse de morango.
— Ela está chorando porque gostou, idiota — nosso irmão explica,
já começando a comer.
A compreensão ilumina o rosto de Akira, que sorri satisfeito antes
de devorar a sua fatia com duas grandes mordidas. Fico grata por não
precisar explicar a origem das minhas lágrimas. Eu sempre choro por
qualquer coisinha, é uma chatice!
Meu irmão estava certo, não é um bolo grande, porque o devoramos
rápido demais enquanto conversamos aos murmúrios, mas como não estou
acostumada a comer nada além das refeições regradas, cheias de sementes e
coisas nutritivas, sinto que meu estômago pode explodir a qualquer
momento.
— E para onde você pretende ir? — Zayn pergunta a Akira, após
nosso irmão dizer seus planos para o futuro, que envolvem, em resumo,
fugir para bem longe de Yekaterina e Leonid.
Não é a primeira vez que ele diz algo do tipo. Akira é o que mais
sofre nas mãos do papai, então eu o entendo. Mas, ainda assim, sinto-me
triste, porque não o quero longe de mim. Mas sou crescida, e sei que não
devo ser egoísta pedindo a ele que continue ao meu lado.
Akira dá de ombros e abraça os joelhos.
— Não importa. — Acho que ele não pensou tão longe. — Mas eu
não vou passar o resto da minha vida sendo um boneco deles.
Mamãe e papai.
Zayn desvia os olhos, tentando esconder a tristeza neles, mas eu a
vejo lá por um segundo antes dele fixar a atenção em mim. Pode ser coisa
da minha cabeça.
— E você? Quer continuar sendo violinista?
De repente, sinto meu rosto esquentar. Não tenho muitas
oportunidades de falar sobre o que eu quero ou não, a maioria das pessoas
não se importa, então eu não penso muito no assunto.
— Eu amo tocar — digo, brincando com um cacho do meu cabelo.
— Mas não gosta de competir — Zayn diz por mim. Ele sabe
mesmo de tudo. — Você quer ser famosa ou algo assim? — Ele faz uma
careta. — Quer dizer, mais do que já é?
Estico as pernas e olho para as vigas de madeira no teto circular.
Uma lâmpada balança na ponta de uma corrente fixada ao centro do gazebo,
que tilinta baixo ao toque da brisa. Está esfriando, logo teremos que entrar.
Meu peito dói, não quero voltar. Afasto o meu olhar para a nossa casa, uma
enorme sombra contra o luar, com parte dela oculta atrás da cerca, e me
encolho.
Nem toda casa é um lar.
— Não é ruim me apresentar para várias pessoas — respondo após
refletir um pouco. — E seria legal entrar para uma grande orquestra no
futuro, como a mamãe diz, mas…
— Mas? — Akira me incentiva, curioso, os olhos alongados nos
cantinhos se estreitando à espera da minha resposta.
— Também gosto de quando é simples, de ensaiar sozinha sem a
cobrança de ser perfeita para vencer, ou só com vocês dois de ouvintes. —
Olho para os lados, como se a mamãe fosse aparecer de repente para me
repreender. Abaixo a minha voz ao volume de um sopro. — Eu quero ter
uma família.
— Eca! — Akira torce o nariz, enojado. É engraçado. — Tipo, se
casar? Isso é coisa de menininha. Que bobagem.
— E sou uma menininha.
— E não é bobagem — Zayn me apoia, sorrindo. — Um dia a gente
vai crescer, e não vamos mais precisar viver o sonho deles. — Ele vira a
cabeça para o teto com um olhar sonhador, como se pudesse ver as estrelas
além. — Não é bobagem — repete, firme, como quem faz uma oração.
Meu irmão não conta quais são os seus planos. Zayn é tão seguro de
si que nunca me perguntei se há algo que ele deseje. Será que seus sonhos
são mais parecidos com os de Akira, de fugir e ser independente, ou com os
meus? Não sei porquê, mas não tenho coragem de perguntar.
Eles odeiam a mamãe e o papai, e, às vezes, eu também acho que
não os amo tanto, principalmente quando fazem mal aos meus irmãos ou
me dizem para não ficar sozinha com eles. Mas sou grata aos nossos pais
por terem nos unido, caso contrário, eu jamais conheceria Zayn ou Akira.
Ainda assim, existem partes de Yekaterina e Leonid que eu odeio
quase sempre.
Odeio o custo de ser uma boa filha, sacrificando a maioria das
coisas divertidas que as crianças normais fazem. Na cabeça da mamãe, se
divertir significa se machucar ou adoecer ou desperdiçar tempo, então
nadar, correr, acampar e visitar colegas da escola são atividades
terminantemente proibidas. Sair de noite, em um dia frio, para comemorar o
meu aniversário no jardim, usando apenas um vestido de ensaio às vésperas
de uma competição? Arrepio-me só de imaginar o que ela faria se nos
pegasse em flagrante — e também odeio isso, porque, se acontecesse, meus
irmãos seriam os únicos punidos.
Pensando no bem deles, eu me levanto e dou uma boa olhada nos
dois. Amanhã, eu vencerei o concurso e então poderemos aproveitar os dias
seguintes, já que nossos pais costumam relaxar quando fazemos o que eles
querem direito. Passo as mãos no meu vestido, abanando as folhas secas e a
poeira do tecido, e sorrio.
— É melhor a gente… — Mas a minha voz é apagada pelo som de
um motor de carro que faz nós três arregalarmos os olhos em sincronia.
Nossos pais estão de volta. Não temos como voltar pelo mesmo
caminho sem sermos vistos. E com um horror de partir o coração, percebo
que é tarde demais.
21
Andrei
EU O SINTO se retorcendo dentro de mim, contido, preso a grilhões
pesados, correntes do aço mais resistente. Tento imaginar seu rosto
enquanto ele vaga por uma cela fechada nos confins da minha alma, mas só
consigo ver dentes e garras que ameaçam me rasgar em busca de liberdade.
Uma aberração disforme que eu mesmo tenho alimentado com todos os
meus sentimentos mais letais.
Dor, raiva, ódio, arrependimento.
Sede de vingança.
A quem estou tentando enganar? Não preciso que a criatura
maléfica que habita em mim se liberte para causar danos irreversíveis, estou
mais do que satisfeito seguindo a sua liderança. É parte de quem eu sou: um
manipulador egoísta que gosta de estar no controle de tudo e todos.
Andrei, o bondoso? O justo? O melhor Volkiov? Que mentira do
caralho.
Neste momento, eu quero queimar o mundo, assisti-lo ruir em fogo
e caos, e dormir sobre as cinzas que restarem.
Entro no escritório de Ivan com um estrondo, socando a porta do
meu caminho. Não me surpreendo ao encontrar Roman ao seu lado, e
menos ainda quando ele parte para cima de mim. Eu tenho duas opções:
desviar ou ficar parado. Por mais que eu mereça um pouco de dor, por mais
que eu a deseje como minha amante, um olho roxo seria um contratempo
com o qual não posso lidar no momento.
Não tenho tempo para ser punido.
O punho fechado de Roman voa na direção do meu rosto. Abaixo-
me no último segundo e seu corpo cambaleia para frente, mas meu irmão é
mais forte, mais rápido, mais experiente em brigas corporais, e não consigo
me esquivar a tempo de seu segundo golpe — uma cotovelada nas costelas.
— Porra! — Tusso, segurando o local atingido.
Um pouco mais de força e ele teria quebrado alguns dos meus ossos.
Meu irmão está mais irritado do que imaginei.
— Isso é por ser um filho da puta — grunhe, seus olhos injetados
atiram facas em mim. — Como tem coragem de aparecer aqui depois do
que você fez?
Seguro-me no encosto de uma poltrona e o encaro com um sorriso
vazio.
— Esta empresa também é minha — eu o lembro com cautela —,
caso tenha se esquecido.
— Foda-se a empresa! — Seu dedo sobe em riste até o meu peito.
— É melhor você começar a se explicar e que seja a porra da melhor defesa
que já fez na sua vida, irmãozinho.
Corro os olhos pelos dois. Não estava nos meus planos causar
qualquer tipo de comoção, mas é impossível ser discreto quando Roman
decide se envolver. Eles estão putos, e com razão. De certo modo, sinto
orgulho deles, e um imenso alívio por saber que posso contar com ambos
para protegê-la de tudo e todos, inclusive de mim se for preciso. Mas não
posso pensar nela agora.
Não posso, não posso, não posso, não posso.
O animal tem que continuar enjaulado.
Eu me recomponho, ajeitando as lapelas do paletó cinza-escuro.
Roman, em contraste, não poderia estar mais... Roman. Só ele viria à sede
principal vestido com botas de couro tratoradas e jaqueta jeans, mas não
estou em posição de repreendê-lo por qualquer motivo que seja, menos
ainda por suas roupas.
— Quero saber como ela está — digo em tom plácido, montado na
persona séria e pragmática que estão acostumados.
Meu irmão contrai o rosto, fazendo uma careta de repugnância,
depois me encara por longos segundos. Leio todo o seu corpo, já que ele
não é muito bom em esconder as emoções, e o que encontro é raiva,
decepção, punhos apertados prontos para me desfigurar.
— Já chega. — Ivan se enfia entre nós, impedindo que Roman
avance contra mim outra vez. Ele segura nosso irmão e o empurra para trás,
afastando-o de mim. — Não é assim que resolvemos as coisas.
— Diga por si mesmo. — Roman tenta desviar, mas Ivan não se
move. — Eu ainda quero socá-lo até que ele volte a fazer algum caralho de
sentido.
— A última coisa que precisamos agora é uma manchete nos
jornais! — Ivan argumenta, contrariando as expectativas e sendo a voz da
razão. — Vamos ouvir o que ele tem a dizer primeiro.
Primeiro…
Noto, pela sua postura, que está tão nervoso quanto Roman. Eu
definitivamente estarei em desvantagem se os dois decidirem agir ao
mesmo tempo.
Não aguento sustentar o olhar de Ivan e solto um suspiro cansado,
tentando me distrair com qualquer outra coisa para não perder o controle.
Seu escritório, diferente do meu, está muito mais colorido agora, com fotos
de Lara e das crianças em porta-retratos sobre a mesa. Em uma delas, é
possível ver meu irmão com a pequena Tatiana no colo, e eu me pergunto
quando foi a última vez que segurei um de meus sobrinhos nos braços.
Pensar neles inevitavelmente me faz pensar em Anastasia e na
criança dentro dela, e o pensamento faz meu organismo se contorcer e rugir.
E vazar sangue por poros que não cicatrizaram ainda. Desde a audiência, há
dois dias, sinto-me preso dentro de uma camisa de força, os braços
amarrados, sucumbindo dia após dia à insanidade que me persegue no vazio
ecoante do meu coração.
Anastasia me encheu com sentimentos que eu não conhecia, que
jamais havia nutrido por outra pessoa. Sentimentos com os quais eu apenas
sonhava em histórias que existiam na minha cabeça. Ela me transbordou
com sua delicadeza e todos os sorrisos e toques e olhares, e mostrou o quão
pequeno eu sou perto de tudo o que ela guarda dentro da própria alma.
Depois, Anastasia me esvaziou, e eu não acho que seja possível
descrever o quanto a solidão é a pior das emoções humanas. A gente nunca
se acostuma com a ausência, mesmo das pessoas que jamais tivemos ao
nosso lado de verdade, mas acho que aprendemos a conviver com ela. É a
única explicação para eu ainda continuar de pé, mesmo que cair no abismo
seja tão tentador.
Preciso terminar o que comecei.
— Como ela está? — insisto, desviando os olhos da fotografia de
volta para Ivan, minha paciência sustentada por um mero fio.
— Então é verdade? — Ele me encara, decepcionado, cruza os
braços fortes na frente do peito, abandonando sua postura pacífica. — Você
continua trabalhando para aquele desgraçado, Andrei?
Meus ossos tremem, o silêncio confirma o que minha voz não
consegue proferir.
Roman avança e Ivan não tem a chance de impedi-lo — eu apostaria
que uma parte dele não quer impedir agora que entendeu a minha posição.
Meu irmão e eu tropeçamos para trás, e só não caímos porque chegamos à
uma parede antes. Ele me segura, imobilizando-me pelo pescoço, e lá nos
confins de seus olhos irados, flutua um sentimento típico de tristeza.
Tristeza por cultivar sentimentos tão diabólicos contra o próprio
irmão mais novo? Ou tristeza por saber as consequências das minhas
escolhas?
— Como você teve coragem de sentar naquela cadeira e não fazer
absolutamente nada? Ela estava sozinha. Logo você, Andrei? Eu... — Ele
treme, mas não me liberta. — Eu não consigo entender.
— Fiz o que eu sempre faço — explico pacientemente. Roman é do
tipo que não vale a pena bater de frente. — Fiz o que era necessário.
— Um caralho! — grita. — Pediu a nossa ajuda para descobrir
quem era o miserável que tinha batido na sua mulher, e quando enfim
descobrimos, você resolveu ficar do lado dele? Vai se foder.
Fique calmo, ordeno a mim mesmo. Fique calmo, porra!
— Anastasia não é minha. — Cada palavra sobe lacerante pela
minha garganta, brasa vomitada nos moldes do meu pior pesadelo. Se me
fosse dada a opção de mastigar e engolir tais palavras junto com cacos de
vidro e lava vulcânica, eu aceitaria de bom grado.
— Quem é você? — Roman vocifera, colando seu rosto no meu. —
Eu esperaria algo assim de qualquer um, mas você... — Ele nega,
balançando a cabeça, mas sei o que quer dizer, o que está insinuando.
— Claro. — Sinto a ironia escorrendo da minha boca como veneno.
— Eu sou o irmão bom, não é o que todos dizem? Aquele que não comete
erros tão monstruosos, que não protege demônios. Tão justo, tão altruísta.
Santo Andrei! — Estremeço ao ouvir as duas últimas palavras, lembrando-
me de Evgenia as profetizando tantas semanas atrás.
Um pouco da escuridão em mim escapa do meu controle e empurro
Roman usando toda a minha força. Ele recua alguns passos, visivelmente
surpreso.
Ivan coloca a mão no ombro do nosso irmão, depois dá um passo à
frente, assumindo a posição de irmão mais velho. Ambos me encaram como
se eu fosse um desconhecido, então passo por eles e vou até a mesa,
livrando-me de seus semblantes desgostosos. De costas, aperto minhas
mãos em punhos fechados e sou tragado novamente para as fotografias das
crianças.
Vejo Iago com sua irmã nos braços, olhando-a como se ele fosse um
pequeno adulto pronto para dizimar uma cidade inteira e protegê-la de uma
ameaça inexistente. Luna sentada em uma das motos de Roman, seu cabelo
preto e muito liso caindo sobre os olhos escuros. Nicolai, uma miniatura
perfeita de Vladimir, dormindo ao lado da prima sobre uma toalha
quadriculada no jardim.
Uma bolha dolorosa estaciona na minha garganta.
— Ela está grávida — Ivan finalmente diz atrás de mim,
provavelmente notando para onde estou olhando, e meu sangue parece se
solidificar dentro das veias. A gravidez de Anastasia é um tópico proibido,
um campo minado que pode colocar tudo a perder se eu me desviar um
centímetro do caminho que tracei naquele dia.
— Eu já sei. — Viro-me e os observo com atenção, organizando os
pensamentos. — Preciso saber como…
— Triste — Ivan responde ao meu pedido de saber como Anastasia
está antes de eu completá-lo pela terceira vez. — Ela está triste como um
fantasma, Andrei. Mas está segura na mansão. Você entende que foi pura
sorte eu estar esperando vocês do lado de fora do prédio quando ela passou
correndo? Consegue imaginar como foi horrível correr atrás dela e vê-la
desmaiar no meio da rua?
— Não — peço, rangendo os dentes. Recuso-me a imaginar. Prefiro
que um deles perfure o meu coração com uma lança. Muitas vezes. Que
arranquem os meus olhos e membros. Que me enterrem vivo como o
cadáver que me sinto. — Não me conte, eu não posso… — Enfio as mãos
no cabelo e fecho meus olhos, apagando da minha mente a lembrança de
quando ela sorriu para mim depois da reunião.
Ela sorriu e agradeceu.
— Ela estava chorando — Ivan continua impiedosamente, seu olhar
pesado e ressentido medindo meus movimentos. — E quando a peguei nos
braços para levá-la ao hospital, sabe o que eu pensei?
— Pare.
Ele não me dá ouvidos.
— Que ela era leve. — Ouço seu riso amargurado. — Você sabe do
que estou falando. Você sabe como deve ter sido fácil para ele.
— Eu sei! — admito, dando um grito. O semblante de Ivan
endurece. — Sei de tudo, e sei que bater não deve ter sido a pior coisa que
ele já fez contra ela. — Dizer em voz alta me faz enxergar vermelho. —
Mas eu preciso fazer isso do meu jeito!
Roman, que se mantivera misteriosamente quieto, bate os pés em
passos coléricos e se coloca na minha frente, com as pernas meio afastadas
uma da outra. Acho louvável seu esforço para não recorrer à violência que
arde dentro dele e faz seus punhos fechados tremerem.
O que diz em seguida, entretanto, me machuca muito mais do que
uma surra.
— Pensei que você a amasse.
Não encontro voz para me defender, mereço cada gota de seu
repúdio. Também pensei que eu amasse Anastasia, mas que merda eu
entendo sobre o amor para nomear as sombras que me cercam com esse
nome? Corri atrás de um sentimento amorfo com veneração cega, convicto
em meus sonhos irreais de que apenas coisas boas nascem de um coração
que ama.
Mas eu estava errado.
Tão fodidamente errado!
Analisando meus irmãos, não tenho dúvidas de que se importam
comigo, é óbvio que não ficariam quietos depois que descobrissem sobre o
ocorrido na audiência e a identidade de Anastasia. É assim que nós somos, é
assim que nos amamos. Se fosse qualquer uma das minhas cunhadas no
lugar dela, eu agiria da mesma forma ou pior. Eu as defenderia porque elas
são os corações dos meus irmãos batendo fora de seus corpos.
Porém, existem coisas que precisamos resolver sozinhos. Coisas
perversas que nos marcam, que nos mancham. Quantas mais pinceladas de
podridão são depositadas sobre uma alma em branco, menos espaços vazios
sobram para serem pintados nos tons da honra, da justiça e do amor.
Qual de nós tem menos espaços vazios, eu gostaria de saber.
Por fim, desvio meu rosto para o chão. É inútil explicar. Eles não
viram os documentos, não sabem que Yerik tem todas as provas a seu favor
e que o nome dele estará na certidão de nascimento daquela criança
independente do quanto Anastasia se despedace na frente de um juiz.
Tenho que continuar.
— Vou ficar fora por alguns dias — informo, ignorando o palavrão
que Roman cospe sobre mim. Virando-me para Ivan, eu digo: — Eu só
precisava ouvir de você.
Ele já havia me contado tudo por mensagem: que decidiu nos
encontrar porque estava preocupado com a maneira como encerrei sua
ligação antes da audiência, e que por isso acabou testemunhando quando
Anastasia chegou ao seu limite e saiu correndo sem rumo pelas ruas da
capital, sozinha, ferida, traída; Ivan também me repassou a garantia dos
médicos de que estava tudo bem com ela e a criança quando a levou até o
hospital mais próximo.
Mesmo assim, não era o bastante. Eu não conseguiria seguir em
frente sem ouvir de sua boca pessoalmente.
— Ela está com a gente — Ivan garante, suspirando. Ele não tenta
mais debater comigo, ao invés disso, diz com firmeza: — Aceitou o meu
convite de continuar na mansão por alguns dias. Então, seja lá o que estiver
pensando em fazer, saiba que cuidaremos dela.
Ótimo.
Era tudo o que eu precisava.
A única garantia.
Não agradeço e nem vacilo ao concordar com a cabeça e caminhar
até a saída. É difícil deixá-los assim, mas não tenho outra escolha. No
momento, estamos em lados opostos de um tabuleiro de xadrez sangrento. E
eu não sou um peão que pode ser usado facilmente.
Eu sou um rei.
E todos eles saberão disso em breve.
Ao girar a maçaneta, ouço a voz de Roman, baixa, equilibrada e
atípica, chamando meu nome.
— Ela não tem nenhuma chance com você do lado dele, Andrei —
ele diz, suplicante. Não me lembro de já ter ouvido meu irmão fazer algo
como suplicar antes. — Será um massacre no tribunal.
Abro a porta e, antes de sair, sussurro sobre o ombro:
— Ela não tem nenhuma chance no tribunal.
***
***
***
***
***
Não consigo pensar em uma melodia caótica o bastante para
representar a minha atual situação. Se existe algum som que talvez chegue
perto de uma comparação literal, deve ser o de um trem descarrilando ou de
dois meteoros se chocando no espaço.
— Abra as pernas um pouco mais, docinho. — Roman confere a
minha postura e começo a entender de quem Andrei herdou o hábito de
dizer frases com duplo sentido. Se percebe meus olhos se arregalando, não
demonstra. — E mantenha os joelhos flexionados.
Timidamente faço como ele manda.
— Assim?
— Perfeito! Agora, mostre do que você é capaz. — Ele estufa o
peito. — Tente me acertar.
— Quer que eu te soque?
Ele não deve estar falando sério.
— Com toda a sua força.
Meu Deus, é muito sério!
— Eu n-não — gaguejo — quero machucar você.
No canto da academia, à minha direita, Ivan solta uma gargalhada.
Quando ficou sabendo que Roman me ensinaria um pouco de defesa
pessoal, ele não ficou muito feliz, mas acabou cedendo depois que
concordamos com a sua condição de supervisionar o treino de perto. E
prefiro que esteja aqui, sinto-me menos nervosa.
— Machuque ele, eu imploro! — Ivan pede, e não acho que esteja
brincando.
Roman faz um sinal obsceno com seu dedo médio para o irmão mais
velho antes de voltar a me dar instruções.
— Gosto que pense em si mesma como alguém capaz de me
machucar, continue assim e não se preocupe comigo. Sou mais resistente do
que imagina.
Ele dá dois tapinhas no abdômen e meus olhos descem direto para
aquele ponto, que felizmente não está exposto como ontem. Roman
combina com roupas despojadas, sua camiseta com detalhes rasgados tem
um aspecto surrado, mas nele parece uma tendência bem aplicada de moda
casual. Junto com a calça e o tênis de corrida, ele parece um personagem de
romance contemporâneo.
Um badboy, mais especificamente.
Olho de soslaio para a saída, uma porta dupla de vidro que mostra o
céu ainda escuro lá fora — todos concordamos que seria bom treinarmos
antes do trabalho, uma decisão que começo a questionar internamente —,
mas o Sol deve nascer a qualquer momento e fugir não é uma opção.
— Tudo bem — digo, deixando meus receios de lado. — Aqui vou
eu.
Preparo-me para o golpe e fecho meus punhos. Não sei bem o que
fazer ou onde mirar, mas sinto a adrenalina pulsando em meus ouvidos. Nos
filmes de ação, o rosto do adversário é sempre o alvo principal, por isso
decido seguir o exemplo. Como ele é alto, encaro seu nariz, respiro fundo, e
jogo meu punho para cima.
Por um segundo, tenho a ingenuidade de acreditar que vai dar certo,
mas é claro que Roman se defende. Com maestria, ele intercepta o golpe e
agarra meu pulso… o resto não consigo processar, mas termina comigo de
costas para ele, com o braço torcido em um ângulo estranho, sem conseguir
me mexer.
— Um a zero para mim — diz no meu ouvido. Graças à agitação da
atividade, consigo disfarçar o meu rubor incontrolável. — Primeira regra:
se o seu oponente é mais forte e maior do que você, mire em seus pontos
fracos. Começando pelo meio das pernas, se for um homem. Sempre tente
primeiro as bolas, mas um soco bem dado nas têmporas, pescoço ou
mandíbula pode nocautear uma pessoa mesmo que não use toda a sua força.
— Ah, certo.
Faz sentido.
— Você é pequena e só tem pele e osso, então a opção mais
inteligente é focar no pescoço — continua. — Mas nosso objetivo hoje não
é o ataque, e sim a defesa. — Roman solta o meu braço, mas me agarra
pelos ombros. Sinto seu peito rígido nas minhas costas e repenso se preciso
mesmo aprender tudo isso. — Tente escapar.
Vejo que Ivan nos observa como um falcão, e sei que vai interferir a
qualquer mínimo sinal de desconforto que eu demonstrar. Porém, estou
determinada e, de certo modo, empolgada por aprender algo novo depois de
tanto tempo — também não quero decepcioná-los.
Mas escapar de Roman é algo que beira o impossível. Tenho certeza
de que não está usando dez por cento de sua força e, ainda assim, seus
bíceps parecem rochas maciças. Ele é forte demais, grande demais,
habilidoso demais. Não consigo fazer nada além de me debater como um
peixe ao sentir a agulha da ansiedade pressionando minha frágil bolha
emocional.
Sinto a sombra das mãos de Yerik no meu pescoço, a recordação
sempre presente da última vez em que fui imobilizada, e meu corpo começa
a tremer enquanto luto para me libertar — dele, da lembrança —, mas assim
como naquele dia, não consigo respirar.
— Poupe suas forças. — Ouço Ivan dizer, e tenho a impressão de
que há uma vibração diferente em seu tom de voz, como se estivesse se
contendo ou rangendo os dentes. — Assim vai se cansar muito rápido.
Mantenha o controle, concentre-se e inspire devagar.
Agarro-me às suas instruções como um náufrago à sua jangada, e
começo puxando o ar com calma. Funciona, meu cérebro para de girar e
meus músculos dos braços param de se comportar como gelatina.
Certo.
É Roman atrás de mim, não Yerik. Eu não estou em nosso quarto e
nem fazendo algo de errado. Ninguém vai me machucar e não corro risco
de vida. É Roman, não Yerik.
— Vocês — consigo dizer, grata a Ivan por interceder a meu favor
— são todos especialistas em técnicas de luta?
— Não deixe Ivan enganar você — Roman resmunga, impaciente.
— Ele não é tão racional quanto parece, aliás, pode ser muito
temperamental às vezes, mas está certo sobre manter o controle nesse tipo
de situação. Se gastar sua energia esperneando sem rumo, ficará vulnerável
mais rápido. Use a cabeça.
Seu jeito de falar, como se tudo para ele fosse óbvio, meio que me
irrita um pouco.
— Pensei que fosse me ensinar — deixo escapar, e só percebo
minha rispidez quando ele joga a cabeça para trás e ri de mim.
— Ouviu isso? — pergunta a Ivan, que também dá uma risadinha.
— Vai ganhar um ponto extra pela coragem, docinho. Mas eu já disse o que
fazer: use a sua linda cabeça.
Graças aos céus Roman não pode ver o meu rosto, e com sorte
também não será capaz de sentir o calor da vergonha em minha pele. Ele
espera que eu use literalmente a minha cabeça? Bem, não deve ser
impossível, já que está curvado sobre mim, com o queixo praticamente
colado no meu ouvido, mas se tentar se esquivar, com seus trinta ou
quarenta centímetros a mais, eu parecerei uma tola saltitante.
Mas não seria justo desistir agora. Consegui enfrentar um dos meus
maiores receios, de estar aqui sozinha, com dois homens que não são meus
irmãos ou marido… ou Andrei. Consegui passar pelo nervosismo inicial e
não recuar a cada vez que Roman me segura para dar um simples comando.
Consegui me divertir com os dois. Eu consigo dar um simples pulo e
parecer desajeitada se precisar!
Olho para Ivan, que acena com a cabeça, encorajando-me, e penso
ver algo mais em sua expressão. Fé? Não sei, acho que ele parece acreditar
em mim.
Pelo menos um de nós acredita.
Preparo-me para a tentativa, inclinando o pescoço para frente a fim
de ganhar distância antes de aplicar o golpe, no entanto, as duas portas da
academia se abrem e Lara entra com pressa, meio descabelada, usando um
robe de veludo rosa-claro, como se tivesse acabado de acordar de um sono
ruim. Atrás dela, as nuvens já começam a se tingir de laranja, vermelho,
amarelo e roxo, anunciando o início da alvorada.
— Aconteceu alguma coisa? — Ivan pergunta, já a meio caminho de
alcançá-la, notando sua feição apreensiva.
Ela não responde de imediato, primeiro olha para Roman de cima a
baixo, processando a cena de seus braços ao meu redor, meu corpo
paralisado e nossas roupas de treino, em seguida, fixa os olhos castanhos no
marido.
— Você sabe que seu irmão não vai gostar nem um pouco disso, né?
— Ela não lhe dá tempo de responder. — Ele disse que precisa falar com
vocês urgente.
— Tudo é urgente para o presidente — Roman diz, afastando-se de
mim. Mesmo sem ver, sei que revira os olhos.
Lara morde o lábio inferior antes de dizer:
— Não estou falando do Vladimir, Andrei acabou de chegar, está
esperando no escritório e não parece nada bem.
24
Anastasia
MEUS SENTIDOS SE inclinam em busca de resquícios que comprovem a
presença dele, uma brisa carregando o seu perfume almiscarado com a
lembrança de algo etílico, ou o sibilar baixo da risada que ele emite sempre
que sua mente se enche de pensamentos secretos.
Ao mesmo tempo, porém, sei que não adianta me esforçar atrás de
rastros que podem não passar de brincadeiras feitas pela minha mente. Já
perdi a conta de quantas vezes sonhei que estava em seus braços, para no
fim ser jogada de volta à realidade dura e fria de sua ausência.
Encaro meus pés, tendo a certeza de que continuam se movendo
pelo corredor, e a cadência dos meus passos é o único som remanescente na
mansão silenciosa. Achei que conseguiria me recompor enquanto substituía
o suor do treino pela água quente de um banho rápido, e as roupas justas
por um vestido longo e confortável — inconvenientemente branco —, mas
nem os minutos de um milênio seriam suficientes para acalmar a balbúrdia
orquestrada por meus sentimentos antagônicos.
Quero vê-lo tanto quanto não quero, pois o limbo da eterna
ignorância nos mantém seguros da decepção, e as notas suspensas entre os
acordes sempre foram as minhas favoritas.
Vejo que Ivan está me esperando na frente da porta e sua presença
acalma minhas dúvidas como um sopro de calor após um inverno árduo.
Suas roupas de academia deram lugar a um terno vermelho-escuro que lhe
cai incrivelmente bem. Quando percebe a minha aproximação, os cantos de
sua boca se curvam em um sorriso que não alcança os olhos, e assim que
paro diante dele, recebo um afago no alto da cabeça — um hábito que
acabou se naturalizando entre todos os irmãos de Andrei.
É bom e reconfortante, eu gosto disso.
— Ei — Ivan diz baixinho, induzindo-me a levantar o rosto — tudo
bem aqui embaixo?
Sigo a direção de seu dedo indicador, que aponta para a minha
barriga. Minha mão está pousada sobre o meu ventre, mas ao contrário do
que parece, não estou tentando proteger o meu bebê, e sim buscando a sua
proteção.
Sua força.
Acho que balanço a cabeça positivamente. Não tenho certeza.
Talvez eu esteja apenas olhando apaticamente para a porta, com o estômago
dando voltas.
Andrei está lá dentro, perto, tão perto.
— Pare de sofrer por antecedência. — Ele tenta colocar um pouco
de ânimo na voz. — Lembre-se do que conversamos, vamos ouvir o que ele
tem a dizer, está bem?
Fico agradecida quando Ivan não espera mais uma resposta; eu não
saberia o que dizer. Ele também me faz o grande favor de indicar o
caminho, conduzindo-me para dentro do escritório com o braço apoiado ao
redor dos meus ombros. Sinto-me como um brinquedo de corda que precisa
de alguém responsável para girar a chave nas minhas costas, e admito que,
dadas as circunstâncias, minha passividade é a menor das minhas
preocupações.
Porque nada mais importa assim que o vejo.
É como mergulhar e ser capaz de respirar embaixo d’água, ou fechar
os olhos antes de pular da montanha mais alta com os braços abertos para
sair voando com tranquilidade entre as nuvens. É aquela última vírgula
antes do ponto final que nos faz perceber o valor da ótima história que
acabamos de ler; os aplausos que se prolongam por vários minutos depois
que as cortinas se fecham; ou o sono sem sonhos ou pesadelos que descansa
a nossa mente de todos os problemas.
A existência de Andrei dá sentido ao amor assim como a morte dá
sentido à vida através de uma consciência fatalista da finitude, e eu
acredito, de um jeito lindamente triste, que nenhuma outra relação
combinaria tanto comigo.
Seus olhos não entregam nada do que está pensando, mas procuram
os meus assim que ele percebe a minha chegada, interrompendo a conversa
sussurrada que estava tendo com Lara no meio do escritório. Há uma barba
escura preenchendo seu maxilar, e pela irregularidade dos fios, suspeito que
não tenha cuidado muito bem de si nos últimos dias. Talvez seja apenas
impressão da minha parte após tantos dias sem vê-lo, mas ele parece um
pouco mais magro também.
O que me preocupa, porém, são as ataduras em sua mão direita.
— O que aconteceu? — pergunto, esquecendo de qualquer outro
assunto que tenhamos para resolver.
Ele está ferido, existe algo mais importante do que isso?
Mas Andrei somente me encara, preso em algum tipo de transe,
como se não acreditasse que a pessoa diante dele é real. Como se eu fosse
um sonho, uma ilusão. Minhas pernas ameaçam assumir o controle e
reduzir a distância de poucos metros que nos separa, mas aceito a contenção
dolorosa de reconhecer o meu lugar.
Acho que não sou mais alguém com permissão de abraçá-lo
livremente.
— Vocês dois têm muito o que conversar — Lara diz, cortando a
conexão que nos transcende. Seu tom empático, a leveza de suas palavras e
o modo como olha para Andrei, são provas do grande carinho que nutre por
seu melhor amigo. — Se quiserem ficar sozinhos…
Ivan a interrompe quase imediatamente.
— Nada disso, nós ficaremos aqui. — Ele direciona a advertência ao
irmão, não rude ou autoritário, mas inquieto, agoniado, ansioso.
Andrei, pela primeira vez desde que chegamos, desvia o olhar,
fixando-o no rosto de Ivan, depois em sua posição ao meu lado e, por fim,
no braço apoiado em meu ombro.
— Querido — Lara repreende o marido com um sorriso forçado,
mas nada surpresa, já acostumada com embates do tipo —, você está sendo
ridículo.
— Não tem problema — Andrei diz à cunhada, sua voz soando
rouca e gasta, como se falar demandasse demais dele. — É bom que
estejam aqui, eu preciso de testemunhas.
— Testemunhas? — Roman entra na sala com todo o seu charme
ofensivo e para ao meu lado, flanqueando-me com Ivan. Ele destoa de todos
com um longo sobretudo preto e um cigarro encaixado na orelha direita. —
Planejando um crime, irmãozinho? Não se preocupe, eu escondo o corpo,
ninguém precisa saber.
Outra vez, o olhar de Andrei faz um estudo clínico da cena,
alternando entre os irmãos, mas sejam quais forem as suas conclusões, ele
não as transparece em seu rosto.
— Curioso, já que da última vez que nos vimos, Roman, você me
deu um soco.
— O que? — Surpresa com a informação inédita, viro-me para
Roman, que sorri cinicamente antes de piscar seu olho direito de forma
charmosa.
— É menos pior do que parece, docinho. — De volta ao irmão, ele
diz: — Primeiro, você mereceu e sabe muito bem disso. Segundo, guardar
ressentimentos da própria família dá azar e faz mal para o coração. E
terceiro… — O semblante maroto de Roman oscila, e seu alter ego
vilanesco, perigoso e imprudente aparece. — Estávamos preocupados,
porra! Por onde você andou? O que aconteceu? Como se machucou?
São perguntas que eu gostaria de estar fazendo.
Lara e Andrei trocam um olhar, ele faz um sinal positivo com a
cabeça, e sem que palavras sejam ditas, ela compreende o que deseja. A
postura de Lara ao atravessar o escritório demonstra elegância e firmeza, e
todos os três ficam calados enquanto pega uma pasta sobre a mesa e a
entrega ao marido, que me solta para folhear as páginas em suas mãos.
— Isso deve explicar tudo — ela diz. — Você vai gostar do
conteúdo, meu amor.
Apesar da minha curiosidade, não tento bisbilhotar enquanto Ivan
faz a leitura dos documentos que estão lá dentro. A presença imponente de
Andrei me prende em sua órbita, e simplesmente não consigo escapar, não
quero fazer nada que não envolva admirar seu rosto em busca de aberturas
para me aproximar dele.
Andrei tampouco demonstra interesse em outra coisa que não seja
eu — o que é tanto um alento, quanto desesperador. Ele ainda não disse
uma única palavra para mim.
— Andrei. — Estremeço com a entonação assombrada de Ivan. —
O que você fez?
Roman, percebendo o mesmo que eu — que há alguma coisa errada
—, pergunta:
— Qual o problema?
— São papéis de divórcio — Ivan responde. — Assinados.
Minha cabeça se move entre um e outro, tentando juntar todos os
pedacinhos de informações em um contexto plausível, porque não podem
estar se referindo ao meu divórcio com Yerik, eu o conheço como ninguém,
ele jamais assinaria. Não por vontade própria. E quanto mais penso a
respeito, menores são as minhas chances de continuar mantendo as pernas
firmes. Meu Deus…
— Deixe-me ver. — Roman pega os documentos e, sem o mesmo
cuidado de manuseio que o irmão, passa as folhas rapidamente. — Tudo
bem caçula, você venceu, eu me perdi. Não estou entendendo mais merda
nenhuma, pode começar a falar.
Mas Andrei não esboça qualquer intenção de se explicar. Ele não
quer? Ou não pode? Ou talvez… não saiba como?
Acho que consigo entender.
Também sinto o puxão insistente da linha amarrada ao redor dos
nossos corações. A linha invisível de um sentimento, outrora pacífico, que
enterramos injustamente em um campo cheio de minas terrestres. E não há
mapa, não existe um grande X vermelho marcando o local correto. Nós
estamos no centro de lugar nenhum cavando buracos, e eles nos deixam
mais perto de encontrar o sepulcro perdido do nosso amor, o mesmo tanto
que nos aproximam de uma explosão.
E talvez não haja diferença.
Talvez tudo se resuma a chamas e estrondos e arquejos, e de nada
valha o medo paralisante de nos queimarmos.
Dou um passo — um único, relutante, trêmulo e quase inconsciente
passo — à frente, e sinto todos os olhares se voltando para mim como
holofotes em um palco. Sinto a mudança brusca no ambiente, e o pesar
denso de suas expectativas pelo meu próximo movimento se solidifica no
meu estômago, mas ninguém tenta se intrometer na troca silenciosa de
olhares que eu e Andrei protagonizamos.
Eu sei que devo parecer a mesma menina deprimente e assustada de
sempre, com meus olhos cheios de lágrimas, minhas mãos inquietas se
contorcendo, abrindo e fechando sem parar por causa do nervosismo, e
minha postura cabisbaixa, tímida. Mas quanto mais o vejo, quanto mais o
enxergo, mais perto eu me sinto de casa. Da segurança de um lar.
Posso não ter muito a oferecer depois de tudo, e por mais que exista
a chance de ser rejeitada definitivamente, há uma coisa que ainda posso
fazer, uma coisa que eu deveria ter feito há muito tempo: confiar em
Andrei.
Eu confio nele.
— Andrei — digo, evocando seu nome como um feitiço antigo.
Ouço o seu arquejo antes de ele prender o fôlego, e caminho lentamente em
sua direção, sentindo as pernas trêmulas, os pés se arrastando, meus joelhos
fracos no limite de cederem. Mas eu não paro, não até alcançá-lo. Ergo o
rosto e, ignorando o embargo em minha voz, murmuro: — Um segredo
problemático por outro?
Andrei sempre se queixou de sua dificuldade em ler as minhas
emoções e pensamentos, mas agora eu sou um livro aberto. As bordas
tensas em seu maxilar se suavizam, muito pouco, e eu sei que ele entende as
entrelinhas da minha oferta: independente do que tiver a dizer, não precisa
se sacrificar sozinho.
Se eu der um pouco, e ele também, não faltará tanto a ambos, certo?
— Claro — responde com um sussurro, as sobrancelhas franzidas.
Respiro fundo, junto todas as minhas fichas e arrisco tudo, pousando
minha mão em seu peito, acima do coração, e como dois polos opostos, o
contato parece nos atrair. Unir. Fundir. Sua mão enfaixada, tão grande,
quente e forte quanto eu me lembrava, envolve a minha, segurando-a firme,
e a primeira tonelada de medos é retirada das minhas costas.
— Eu começo — digo, encorajada. — Eu estou… — Ele aperta a
minha mão mais forte, como se dizendo que tudo vai ficar bem. — Estou
grávida, Andrei.
Sei que ele já sabe, que descobriu da pior maneira, mas preciso que
ouça de mim. Devo isso a ele e ao meu bebê.
Atraído por minha admissão tardia, Andrei olha para a minha
barriga. E quando sua mão livre e saudável se movimenta sem hesitação,
pousando sobre o meu ventre com gentileza e cuidado, não consigo mais
conter minhas lágrimas.
Sim, seus olhos me dizem, eu sei e não vou recuar.
Eu sinto muito por não ter contado antes, transmito em segredo,
ciente de que agora ele pode interpretar todas as minhas camadas.
Andrei sorri. Falaremos disso depois.
— Minha vez — ele diz. Suas duas mãos me abandonam por
apenas um momento antes de envolverem meu rosto, os polegares
capturando as gotas salgadas assim que deixam meus olhos. — Eu cometi
alguns crimes na noite passada, viajei a madrugada toda e só me obriguei a
tomar um banho antes de vir direto até você porque não podia encontrá-la
parecendo um… — Ele dá um riso nasalado sem alegria. — Digamos que
eu não estava apresentável o bastante.
Não sei o que me deixa mais chocada: a informação em si, ou seu
jeito de admiti-la sem qualquer hesitação ou remorso.
— Como assim? O que você fez? Alguns crimes? Quantos? Quais?
Minha nossa, você vai ser preso?
— Sua vez. — Ele coloca um dedo sobre meus lábios, calando-me.
Exasperada, encho meus pulmões para fazer mais perguntas, mas
sua feição calma me induz a manter o controle, apesar dos meus olhos
arregalados e minha mente aos giros.
— Ahn, eu… — Não consigo pensar em nada profundo depois da
bomba que ele acaba de jogar em meu peito, então balbucio a primeira
coisa que me ocorre: — Tenho alergia a frutos do mar.
Andrei arqueia as sobrancelhas.
— Muito problemático de fato. — A promessa de um sorriso brinca
em seus lábios.
— Fique grato por eu não ter desmaiado ainda — reclamo, e estou
falando bem sério.
Sutilmente, Andrei se aproxima, passa um braço pelas minhas costas
e me ampara com a própria força. Seu corpo se comunica com o meu,
garantindo que jamais me deixaria cair, e sem demonstrar resistência, meus
músculos relaxam, deixando-se envolver em sua proteção.
— Está assustada com o que eu disse? — questiona, falando baixo
em meu ouvido, uma nota mais grave que o comum.
O que ele quer saber de verdade é se estou com medo de sua
confissão, com medo dele, e não penso duas vezes antes de negar.
— Nem um pouco, mas se me perguntar se estou preocupada com
você, a resposta será diferente.
Sinto-o exalar de alívio e me preparo, ou tento, para mais um de
seus segredos muito, muito, muito problemáticos. Encosto meu rosto em
seu peito, inalando o cheiro de sabonete e roupas novas, e me aconchego
tanto quanto possível em seu torso, sentindo a rigidez definida dos
músculos por baixo da camisa.
— Naquele dia — Andrei começa, elevando o volume da voz — eu
tive que fingir não conhecê-la, não me importar com você, fingir que não a
amava com a força de cada batida do meu coração, para que aquele
desgraçado não me usasse contra você. Se nosso relacionamento fosse
revelado naquela circunstância, seria uma enorme vantagem para ele. Sua
única chance… nossa única chance, era longe dos tribunais.
— Espera, então ele… — Sinto que vou vomitar. — Sabia sobre nós
dois?
Andrei aquiesce e me abraça mais forte.
— Ele tentou nos manipular para ficarmos um contra o outro.
Demorou um pouco, mas agora eu tenho tudo o que preciso para mantê-lo
longe de você.
Acho que entendo, uma parte de mim processa e arquiva tudo o que
ele diz, e faz sentido, mas sei que precisarei de algum tempo para
compreender o mapa completo.
— A assinatura, como conseguiu? — Levanto a cabeça para olhar
em seu rosto. — Yerik nunca…
— Não diga o nome dele — clama, cerrando os dentes, o lado
sombrio que mantém submerso raspando as garras de leve na superfície.
Não o temo. — Ainda é muito recente — explica-se, ofegante. — E não me
sinto controlado, nem de longe. Se eu pudesse entrar na sua mente e apagar
todas as memórias das coisas que ele fez contigo, de tudo o que a fez sofrer,
princesa, eu juro que faria.
E eu o deixaria apagar tudo de bom grado.
O que ele diz me faz pensar no quanto ele sabe e o quanto é apenas
especulação. Apesar de não ser difícil presumir o quão longe Yerik já
chegou, o quão cruel ele conseguia ser, não consigo afastar a sensação de
vergonha.
— Não direi — prometo. Não há razão para negar.
Andrei respira fundo mais uma vez antes de continuar. Seu aperto ao
meu redor se abranda. Apenas um pouco.
— Eu o ameacei — diz de uma vez, e não há arrependimento em
sua voz. — Juntei provas substanciais contra ele e o obriguei a assinar. Era
a única maneira de afastar você de um confronto direto. Tive ajuda do seu
irmão.
Isso me pega desprevenida, e tal como o recuo involuntário que
procede uma dor pungente, apoio ambas as mãos em seu peito e me afasto
um pouco. O movimento brusco, contudo, faz minha visão obscurecer,
minha mente cai em um vórtice de caos e névoa, e preciso de um momento
para me recuperar.
Andrei felizmente não se move, e graças à sua firmeza continuo de
pé.
— Zayn? — Semicerro os olhos.
Ele confirma com a cabeça.
— Sua vez, okay? — É mais um pedido do que uma pergunta.
Ele já revelou o suficiente por enquanto, provavelmente mais do que
consegue suportar. Apesar de querer mais detalhes — que, eu sei, ainda
virão — tenho que seguir o protocolo. A ideia de trocar segredos foi minha.
Pelo menos agora, consigo buscar um muito mais rápido.
— Zayn e eu não… Ele não… não deveria se envolver. — Volto a
me aninhar em seu busto. — Meu irmão já sofreu demais por minha causa.
— Faço uma pausa, reunindo coragem para acessar o pouco que sei sobre
aquele dia. — No meu aniversário de oito anos, aconteceu algum tipo de
acidente grave e meu irmão foi responsabilizado. Meus pais ficaram tão
bravos, tão desapontados. Eu era um troféu, mas os dois eram apenas… —
descartáveis, não completo. — Aquilo o destruiu e também nos afastou.
Sinto uma pressão no topo da minha cabeça. Um beijo. Ele se
demora com a boca sobre meus cabelos antes de falar com certo cuidado:
— Lembra quando me pediu para conversar com a Lara? Eu fiz isso
e funcionou. Acho que devia fazer o mesmo com Zayn. No início, meu
plano era confrontá-lo, eu queria que ele sofresse por não tê-la protegido
como irmãos devem fazer uns pelos outros, mas entendi que não era o caso.
Ele escolheu me ajudar a proteger você, Anastasia.
— Meus irmãos e ele eram muito próximos. — Como prometido,
não digo seu nome. — Depois de tudo o que passamos na infância, eu não
podia pedir muito aos dois. — Meneio a cabeça, confusa. Não quero falar
demais e acabar soando egoísta ou mimada. Ou pior, ingrata. — Desculpe,
não sei o que pensar.
— Algumas dessas palavras são de Yerik, princesa, não suas. Era
mais fácil manipular você se continuasse sozinha. — Não preciso olhar em
seu rosto para saber que sua expressão faria homens corajosos
estremecerem. — Mas eu sei que Zayn tentou convencê-la a voltar sem ao
menos desconfiar dele, do que era capaz de fazer, então perdoá-lo é algo
que cabe a você decidir.
Eu não acho que seja o caso de perdoar ou não, afinal, também sou
culpada por meus infortúnios. Mas me abstenho de explicar, Andrei não
aceitaria.
E há algo mais importante.
— Mesmo com o divórcio, Andrei, meu bebê…
— Nosso — ele me interrompe.
Olho para cima, direto em seu rosto. Não sei se entendi direito.
Provavelmente não.
— Ahn, o quê?
— Irei assumi-lo como meu — diz com firmeza, olhos nos meus, as
mãos deslizando até meus ombros e seguindo para meu rosto. Minha
expressão deve espelhar exatamente como me sinto, em um misto de
surpresa e perplexidade infinitas, pois ele dá um sorriso sincero, como se
minha reação o divertisse. — Com o meu nome, Yerik nunca vai se atrever
a tomá-lo, e mesmo que tente, não vai conseguir.
Assumi-lo? Seu nome? Ele pretende… ser o pai?
Não ouso me mover ou respirar ou piscar, com medo de que alguma
reação minha destrua essa possibilidade. Porque, Deus, se existir a mínima
chance de que eu não esteja alucinando ou sonhando acordada, não posso
perdê-la. Se eu puder ser aprisionada pelo resto dos meus dias nesse exato
segundo, agora, em que a hipótese de Andrei se tornar um pai para o meu
bebê é real, então escolho essa eternidade.
— Por favor — ele pede, a voz não mais alta que um sussurro —
diga alguma coisa.
Deve ser um engano.
Eu não ouvi direito.
Estou ficando louca.
Igualmente baixo, com uma estranha sensação de afogamento, como
se a água de um oceano inteiro estivesse entrando nos meus pulmões, peço:
— Você pode repetir o que acabou de dizer?
— Eu disse — ele se curva, encosta sua testa na minha, roçando o
nariz no meu — que serei o pai desse bebê, Anastasia. Desse e de todos que
você vier a ter no futuro.
Sinto um sabor salgado na minha boca, conscientizando-me do
choro que desce pelo meu rosto em duas trilhas, mas o brilho e a
vermelhidão nos olhos de Andrei são provas de que não sou a única, de que
suas lágrimas se misturam com as minhas e compartilhamos da mesma
emoção.
— Por quê? — digo, fungando.
Ele sorri.
— Que tipo de pergunta é essa?
— Responda. — Agarro o colarinho de sua camisa. Quero ter
certeza, preciso entender. — Você disse que não queria ter filhos.
— E eu me arrependo como o inferno de ter falado isso. — Andrei
beija minha maçã do rosto, meu olho direito, depois repete o mesmo do
outro lado. Está beijando minhas lágrimas. — Estava tão apavorado com a
ideia de perder tudo mais uma vez, que preferi negar a verdade. Você é tudo
o que eu sempre sonhei, Anastasia, e eu juro que será uma honra para mim
ser o pai da criança que está carregando.
Na ponta dos pés, jogo os braços sobre seus ombros, abraçando-o
pelo pescoço. Não sei o que ele quer dizer com “perder tudo outra vez”.
Está falando de seu relacionamento anterior?
Tenho medo de perguntar. Gostaria que existisse um limite do quão
problemático os segredos problemáticos podem ser.
Deixo meu coração falar através da minha boca:
— Essa é a única fração de mim que não está quebrada. E é tudo o
que tenho a oferecer por enquanto, Andrei, o inteiro de uma pequena parte.
Andrei solta uma risada que carrega alegria e tristeza na mesma
proporção. É um som lindo, mais do que qualquer instrumento inventado
pelo homem é capaz de produzir.
— Temos um problema que está longe de ser um segredo. — Ele
respira com urgência. Vejo seu rosto ansioso com clareza, os traços
masculinos e fortes, suas sobrancelhas grossas e bem marcadas, sua boca
perto, tão perto. — Não tenho algo assim para dar em troca, não me
restaram partes inteiras. Essa é a primeira que terei para mim em muito
tempo, e vou fazer de tudo para mantê-la em segurança. Vocês duas.
Duas.
Sei que é modo de dizer, não sabemos se teremos uma menina, mas
gosto de como soa. Consigo imaginar Andrei com uma garotinha no colo,
vestida com babados e sapatinhos de boneca. Protegendo-a como um lobo.
Um pai de verdade.
O pai que ela merece.
— Minha vez — digo, absorta na hipnose da minha fantasia. —
Quero beijar você.
Andrei fecha os olhos.
Eu também.
— Não há nada de problemático nisso, princesa.
Sinto a explosão quando a gente se beija, a pressão atômica dos
nossos lábios se encontrando, e comprovo a minha teoria: não há diferença
— amor, fogo, devastação. Sua boca me consome, varrendo-me com a onda
de energia e calor que flui de sua língua em contato com a minha, e meu
corpo inteiro entra em combustão.
Em algum lugar do universo, algo volta a funcionar, uma
engrenagem que havia desistido de exercer sua função no dia em que nos
separamos, e tudo volta a fazer sentido.
É mais do que um beijo, é um reencontro de almas. Andrei me
agarra, rodeando minha cintura com os braços, meus pés perdem o apoio do
chão e fico suspensa no ar por seu abraço. Sorrio contra a boca dele e
recebo em troca uma risada da felicidade mais pura. Não conseguimos
parar, não queremos, não podemos.
Andrei parece cada vez mais ganancioso, reduzindo as lacunas para
respirarmos a quase nenhuma, como se sua vida inteira se resumisse a esse
beijo e nada antes ou depois importasse. Ele gira, rodopiando no meio do
escritório, e seu riso convida o meu.
— Como eu senti falta disso — ele diz, me dando mais um beijo
estalado —, achei que fosse enlouquecer sem você. — Outro beijo. — Meu
único consolo era saber que estava segura com meus irmãos.
E então, só então, eu me lembro que não estamos sozinhos.
Bem, pelo menos, não estávamos, pois quando olho para trás, a
ponto de desmaiar de vergonha, não há ninguém.
— Quando eles…?
— Depois de ouvirem o suficiente e antes de começarmos a nos
beijar.
Graças aos céus!
Não acredito que me esqueci completamente deles, mas esse é o
efeito de Andrei sobre mim: a hiperconsciência de nós dois como unidade
que ofusca a minha capacidade de perceber muito além. Mesmo assim, é
admirável que não tenham se intrometido uma vez sequer. Eles são mesmo
especiais.
— Isso é um sonho? — Sou obrigada a perguntar.
— Não — Andrei diz, seu olhar preso na minha boca, ansiando por
mais —, mas você, sim. Você é o meu sonho realizado, Anastasia.
***
***
***
***
Acho que hoje todo mundo acordou e decidiu que sou algum tipo de
palhaça, uma pessoa que existe para seus eternos divertimentos.
Yuliya se curva, segurando a barriga e gargalhando histericamente.
Espero que seu apartamento também tenha proteção acústica, caso
contrário, todas as famílias em um raio de um quilômetro estão ouvindo sua
risada agora.
— Obrigada pelo apoio — reclamo, sarcástica, sentada à pequena
mesa de sua cozinha.
Seu apartamento continua estéril. Móveis simples, nenhuma
decoração, e ainda há algumas caixas empilhadas em um canto de sua sala
que não foram abertas em um passado próximo, considerando a poeira
acumulada sobre elas. É uma mulher ocupada e pragmática, assim como seu
marido, que não tive a chance de conhecer por estar viajando a trabalho.
Mas já é a terceira vez que nos reunimos desde o meu retorno e estou
gostando de ter uma amiga.
Nunca tive tantas.
Lara e Serena também se tornaram amigas especiais, assim como
minha prima Dema, com quem tenho falado frequentemente pelo celular e
que me prometeu uma visita assim que o bebê nascer. Mas, por morarmos
tão perto, minha amizade com Yuliya se tornou uma constante. Ela adora
ouvir sobre as minhas incursões com a família de Andrei.
— Desculpe, mas… — Ela limpa as lágrimas dos olhos depois de
seu ataque de riso. — Oito seguranças?
— Era para ser apenas quatro — conto, murmurando —, mas eu tive
uma ideia estúpida.
— Me conte!
— Você vai rir.
— Não vou, prometo! — Yuliya une as mãos pálidas na frente do
rosto, implorando. — Por favor, eu preciso disso para viver.
Sorrio diante de sua animação. Faço um suspense, fingindo decidir
se conto o resto da minha vergonhosa história. Yuliya pestaneja, agitando
seus cabelos dourados acima dos ombros magros. Por fim, rolo meus olhos
para cima.
— Tentei persuadir meu cunhado, o mais velho, a conversar com
Andrei e convencê-lo de que era um exagero.
Ela volta a dar risada, mas a abafa, crispando os lábios.
— Até eu, uma ninguém, já ouvi um ou outro rumor sobre a frieza
de Vladimir Volkiov, Nastya.
Encolho-me diante do apelido, mas Yuliya não percebe ou não acha
que é algo importante. Ela não sabe sobre Yerik, portanto, nem imagina que
ele me chamava assim.
— Pode não parecer — prossigo, deixando o desconforto de lado
—, mas eu realmente fiz um levantamento das minhas opções. Andrei já
havia descartado meu pedido com vários argumentos incontestáveis de
advogado. Ivan foi quem o convenceu a contratar mais gente, para começo
de conversa, dizendo que apenas Komarov não era suficiente. E Roman
pode até estar me ensinando autodefesa, mas ele ainda me trata como se eu
fosse uma boneca e vive jogando na minha cara o quão frágil eu sou
fisicamente. Vladimir era a minha esperança, imaginei que fosse o mais
coerente dos quatro.
— E o que ele fez?
— Me agradeceu pela, nas palavras dele, valiosa informação de que
seu irmão pretendia contratar um número inadequado de seguranças para
mim. — Suspiro com pesar. — E dobrou esse número. Agora estão
selecionando os melhores, com a ajuda do meu irmão, aparentemente, e
daqui duas semanas, no máximo, terei meu próprio comboio.
Yuliya cobre a boca e gargalha, dessa vez eu a acompanho. Sei que
meus cunhados, assim como Andrei, têm uma fama questionável, muitas
pessoas os admiram, mas um número ainda maior os teme. Eles são brutais,
teimosos e inconsequentes, mas no melhor sentido. Eu não me importo com
o que falam sobre eles. Sei que suas intenções são as melhores.
Considerando que a fama de Yerik era equiparável a de um santo, rumores
representam muito pouco da verdade.
— Talvez, na cabeça dele, proteger a família seja toda a coerência
que importa — Yuliya diz, a voz se abrandando.
— Lara disse a mesma coisa. Ao contrário de Serena, ela não luta
contra os seguranças.
— E você está lutando?
Olho para a janela aberta, esperando uma resposta milagrosa entrar
voando por ela. Não tenho como explicar à minha amiga que me sinto
apreensiva em ser acompanhada por tantos homens sem mencionar o meu
passado. Ao mesmo tempo, no entanto, eu sei que Andrei e seus irmãos
estão certos quanto à vigilância. Eles não querem que eu sofra mais. O
mínimo que posso fazer em troca é me acostumar com os seguranças.
— Não — respondo sem me prolongar. — Komarov é um bom
homem, Andrei me garantiu que os outros serão igualmente discretos.
Yuliya aceita minha resposta vaga, e essa é a sua qualidade que mais
gosto: ela não tenta cruzar os meus limites, não me questiona sobre o
porquê de Andrei Volkiov estar vivendo comigo em um prédio humilde, ou
o motivo oculto de sua superproteção. Não exige de mim mais do que
ofereço, e talvez seja esse o princípio de uma amizade verdadeira.
— Ele é bonito. — Ela se levanta e começa a preparar um chá com
ervas frescas. — O segurança.
— Komarov? — Arqueio as sobrancelhas, um tanto perplexa. —
Acho que sim, ele tem uma boa aparência, mas… ele é mais velho.
— Mas não está morto, está?
— Yuliya!
Não sei se ela está ou não brincando, e como sei muito pouco sobre
a sua relação com o marido, prefiro não aprofundar o assunto. Felizmente,
ela logo arruma um novo tópico para fofocar.
— Então seu irmão está ajudando. — Yuliya despeja a água fervente
em duas xícaras, e o cheiro das ervas infusionadas agitam o meu estômago.
O bebê, para o eterno divertimento de Andrei, parece gostar bastante de
chá. — Vocês estão bem? — Ela volta para a mesa e me entrega uma das
xícaras.
Encaro o líquido amarelado e inspiro a fumaça adocicada. Yuliya
sabe apenas o básico da minha relação com Zayn, ou seja, que é
complicada.
— Eu não sei. — Assopro meu chá e bebo devagar. — Vamos
almoçar juntos na próxima segunda, depois do trabalho. — Só de lembrar,
já me sinto exausta, porque sei que tocaremos em feridas antigas de ambos.
— Desculpe eu… — Dou um sorriso culpado. — Deve ser frustrante ser
minha amiga, não estou acostumada a falar muito sobre mim.
Yuliya rejeita minhas desculpas, estalando a língua.
— Sabe o que é frustrante de verdade? — Ela aponta para a porta
com olhar indiscreto. — Não podermos convidar seu amigo segurança para
tomar um chá com a gente. Tenho certeza que ele está com sede parado lá
fora sozinho. Eu deveria oferecer uma xícara? Talvez isso faça meu marido
voltar correndo e finalmente me ajudar com essas caixas.
Komarov a ajudaria com as caixas se eu pedisse, mas é melhor não
dar ideia.
Eu quase me levanto para abraçá-la perante sua demonstração de
que não se incomoda com meu jeito introvertido, mas só estico o braço
sobre a mesa. Yuliya imita meu gesto, segurando minha mão e apertando de
leve, sem perguntar mais nada pessoal pelo resto da tarde. E sou grata por
isso.
***
Andrei espreita o médico. Literalmente. Como um animal.
Acompanhando todos os movimentos do homem para se certificar que tudo
está dentro da ética profissional.
É engraçado, sobretudo porque o doutor Dubrov não se intimida,
acostumado, acredito eu, com papais protetores — e mais ainda com os
papais Volkiov, já que ele acompanhou as gestações de Lara e Serena
também, motivo pelo qual o aceitei. Confio no julgamento delas e, além de
ser muito qualificado, o que para mim é mais importante que meus receios,
os olhares ocasionais que ele lança para Andrei sugerem que quem precisa
se preocupar sou eu.
Rio baixinho dos meus pensamentos e Andrei move seus olhos de
um jeito muito predatório, desviando-o da minha barriga exposta e os
fixando no meu rosto. Sua expressão muda de ameaçadora para apaixonada
em um instante.
— Tudo bem, princesa? — pergunta. Vejo de relance o nosso
médico sorrir enquanto prepara os aparelhos. Andrei já me fez essa
pergunta, pelo menos, umas vinte vezes desde que entramos na sala de
atendimento. — Quer alguma coisa?
— Estou bem — murmuro. — E você?
— Como eu pareço?
Tenso. Ansioso. Estressado. Inquieto. Nervoso. Impaciente…
Acabo rindo de novo.
— Perfeito.
Andrei estreita os olhos, vendo através da minha pequena mentira.
Ele beija a minha testa e volta a prestar atenção no trabalho do médico.
É sua primeira vez em uma consulta, portanto, eu sei que não
adianta pedir a ele que mantenha a calma. O Dr. Dubrov, graças a Deus, não
se incomodou em repetir todos os exames físicos três vezes, explicando
cada passo a Andrei e garantindo que, sim, minha pressão está ótima, sim, a
pequena circunferência da minha barriga também está dentro do esperado, e
sim, é importante que eu continue tomando as minhas vitaminas.
Ajeito-me na maca e me preparo para o grande momento. O médico
pede licença e avisa o que vai fazer, e só encosta o instrumento gelado na
minha barriga quando autorizo com a cabeça. Atento-me ao homem que
segura minha mão com firmeza, não querendo perder sua reação.
O som preenche a sala.
Forte, rítmico, lindo. O tum-tum-tum acelerado do nosso bebezinho
flutua no ar, envolvendo-nos em um abraço invisível, a vida em seu estado
mais puro e inocente. Andrei olha para cima, de olhos arregalados, como se
esperasse ver a origem do som descendo do céu. Ele pisca freneticamente, e
quando abaixa o rosto, entendendo que sou eu, que os batimentos vêm de
dentro de mim, ele desmorona em lágrimas.
— I-isso é… — gagueja, rouco.
— Um coração muito saudável — o médico responde, satisfeito, em
um tom aprovador que me tranquiliza de imediato.
Andrei se abaixa, rindo e chorando, e beija todo o meu rosto. Nunca
o vi tão feliz, é contagiante, precioso, memorável. Não consigo imaginar
uma vida em que ele não esteja comigo, compartilhando cada alegria, sendo
meu apoio. O melhor pai, o melhor homem. Sentir a felicidade emanando
de seus infinitos beijos é quase tão bom quanto ouvir a preciosa melodia do
coraçãozinho do nosso bebê, nossa menininha ou menininho.
Seguro seu rosto molhado próximo ao meu.
— Ele bate como a Sinfonia n. 5 de Mozart, a parte do Allegro —
digo, sentindo o toque musical na ponta dos meus dedos.
— Tenho certeza que sim. — Sorrindo, beija a minha mão. Ele fica
mais bonito, se é que isso é possível, sem policiar suas expressões e gestos.
Livre de seus próprios tormentos. Ser feliz combina com Andrei. —
Obrigado por me proporcionar isso, princesa. Obrigado por me deixar amar
você. Obrigado por me escolher.
Como pode ser tão perfeito?
— Eu amo você — declaro minhas palavras favoritas. — Nós
amamos você, papai.
— E eu amo vocês.
***
***
Tempo livre costuma ser o pior veneno para homens cuja mente não
consegue calar, e a minha tem muito a dizer. Na maioria, pensamentos que
não quero ouvir, lembranças que gostaria de esquecer. Para estrangular a
voz insistente dentro da minha cabeça, decido fazer o trajeto entre a
empresa e o restaurante caminhando.
Não é longe, e como estou adiantado, faço-o lentamente,
absorvendo a confusão de pessoas distintas e prédios que se perdem de
vista. Alguns lugares já começaram os preparativos para as festas de ano
novo, apesar da data ainda estar há semanas de distância. Vejo vitrines com
roupas que não pretendo usar, doces que não desejo comer e móveis que
não cabem no nosso apartamento. Tudo para não pensar.
Paro na frente de uma livraria e fico observando os títulos lá dentro.
Romances policiais. Fantasias. Terror. Comédias românticas. Livros de
romance erótico — um monte deles. Um livro de autoajuda sobre pessoas
que procrastinam. A biografia de uma cantora americana.
Livros infantis. Tio Fedya, O Cachorro e seu Gato; O Pequeno
Cavalo Corcunda; A Raposinha Prateada; O Pequeno Príncipe, um clássico
mundial. Faço um lembrete mental de voltar mais tarde para levar um de
cada, porque um dia eu os lerei para a minha filha.
Livros que eu nunca poderei ler para o bebê que Evgenia perdeu…
Não.
Não pense nisso.
Sigo em frente, andando com as mãos nos bolsos do meu paletó. O
tempo está ameno apesar do fim iminente do outono, e dos edifícios altos
ofuscarem os raios solares, mas eu sei que o frio deve chegar a qualquer
momento. Eu e Anastasia decidimos nos mudar temporariamente para a
mansão em breve, antes que a neve apareça para pincelar as ruas de branco.
Tatiana está exultante com a nossa decisão. Ela já reformou o meu
antigo quarto para receber a nossa bebezinha, arrastou Anastasia para um
shopping e fez um estoque de tudo o que uma criança de zero meses a um
ano de idade precisa e tudo o que não precisa.
Ainda não decidimos o que faremos depois, se voltaremos para o
nosso apartamento atual ou compraremos um novo em uma área mais
segura. Pelas contas, nossa filha nascerá entre Maio e Junho, e devemos
permanecer com a nossa família por, no mínimo, uns seis meses depois
disso, então não é uma decisão que precisemos tomar agora.
Estou ansioso para conhecê-la. Ver seu rostinho, as mãozinhas,
segurá-la em meus braços e a embalar durante o sono. Pergunto-me se será
parecida com a mãe, porque minha mulher é a mais linda que existe, mas
não me incomodo que tenha traços do doador biológico, isso nunca será
uma questão para mim. Minha filha será perfeita. O amor mais valioso na
forma de um pequeno ser humano.
Diminuo a velocidade dos meus passos e olho para o céu, as poucas
nuvens se movendo em uma lentidão densa lá no alto, e rogo por respostas.
Como contarei a Evgenia? Como explicar que terei uma filha com a mulher
que amo, e que essa mulher não é ela? Qual será a sua reação? Quer dizer,
eu não preciso contar, mas será que devo? Houve um tempo em que eu
achava que sabia lidar com ela, mas agora já não tenho tanta certeza sobre
quem controlava quem. Minha arrogância me deixou convencido demais.
Queria Anastasia comigo.
Sinto meu celular vibrando dentro do bolso e o pego
automaticamente, supondo se tratar de Vladimir ou Roman com problemas
na viagem — que eu ficaria feliz em resolver contanto que ocupasse meus
pensamentos pelo resto do caminho. Mas ler o nome de Anastasia na tela é
exatamente o que eu precisava. Ela é o antídoto para os meus suplícios.
— Oi, princesa — atendo com um sorriso que ela não pode ver —,
tudo bem?
— Sim — responde-me na vocalização melodiosa típica dela. — Só
estava pensando demais e quando dei por mim estava ligando para você.
Espero não estar atrapalhando.
— Nunca. — Meu sorriso diminui um pouco. Volto a caminhar. —
Onde você está? Komarov já a buscou no abrigo?
— Sim, a caminho do parque.
— E como está se sentindo? — sondo. — Nervosa? Sabe que não
precisa se forçar a isso se não quiser. Basta me dar a sua autorização e eu
lidarei com Zayn do meu jeito.
— Um pouco ansiosa — responde. Posso sentir pela tensão em suas
palavras. — Mas não precisa se preocupar, e nem assustar o meu irmão. —
Ela dá uma risadinha baixa. — Eu só queria ouvir a sua voz um pouquinho.
— E eu a sua. — Um nó se forma na minha garganta. Eu preciso de
muito mais. Meu corpo sente a falta de Anastasia, assim como meu coração.
— Você está bem? — ela pergunta, e consigo imaginá-la com a
cabeça inclinada para o lado, como acontece quando fica preocupada ou
confusa. — Aconteceu alguma coisa? Problemas no trabalho?
Não quero mentir.
Eu me deixei levar pela comodidade pacífica do nosso amor e
esperei que o resto desaparecesse no passado ao qual pertence. Fiquei
esperando o momento certo, mas ele nunca veio. Não posso mais fugir,
Anastasia merece saber que já falhei como pai uma vez. E se ela decidir que
não sou digno de nossa filha depois disso…
— Aconteceu algo — confirmo, porque parte da verdade ainda é
melhor do que uma mentira completa. — Mas você também não precisa se
preocupar. Eu… mais tarde… assim que estiver livre, avise-me ou peça a
Komarov que me ligue imediatamente, combinado? Quero passar o resto do
dia com você em meus braços.
Contar tudo agora por telefone, através de uma ligação de cinco
minutos no máximo, não é uma opção viável. Ela já tem coisas demais para
lidar agora, não é justo sobrecarregá-la com as minhas máculas. Depois de
falar com Evgenia, e depois de seu encontro com Zayn, então aí
conversaremos.
Hoje.
— Humm. — Ouço seu resmungo tímido. — E quanto a noite?
Por pouco não tropeço em meus próprios pés, mas esbarro em uma
senhora, que me olha feio. Murmuro um pedido de desculpas e abaixo meu
tom de voz ao falar com minha doce mulher atrevida.
— Acho que já estabelecemos que suas noites são sempre minhas,
princesa.
— Estabelecemos? — Ela se faz de desentendida em um tom
manhoso. — Não sei não. Como advogado, você deveria formalizar isso.
Sabe como é, só por precaução. Pensei que você fosse o melhor do país,
senhor Volkiov.
— Não me provoque, Anastasia — digo, amando essa faceta
audaciosa que ela mostra mais a cada dia. — Ou eu vou mesmo
providenciar um contrato sobre querer você na minha cama em horários
muito específicos e com roupas mais específicas ainda.
Ela faz um som que eu mataria para ouvir de perto, de preferência,
com seu corpo colado no meu.
Continuamos com as brincadeiras maliciosas por vários minutos.
Anastasia consegue desligar a minha noção de tempo. Eventualmente,
mudo de assunto, porque sou um homem em um terno justo caminhando
por ruas muito cheias, e também porque Anastasia, que tem o hábito de ser
expressiva e transparente demais, não está sozinha no carro.
Conto a ela sobre a ida de Roman e Vladimir para a ilha, e prometo
um passeio por lá em breve. Exultante, ela compartilha comigo sobre como
foi a sua manhã, começando pelo treino com meus irmãos, depois suas
aulas de música no trabalho e o progresso de seus alunos.
Quando chega a hora de nos despedirmos, já não sinto mais a culpa
angustiante ou o peso no meu coração, como se eu tivesse roubado um
pouco de força do infinito estoque que Anastasia possui, afinal, ela é muito
mais forte e corajosa do que eu. E mais bondosa também. E um ser humano
infinitamente melhor em tudo.
— Acabamos de chegar, tenho que ir. Já consigo ver meu irmão
daqui. Deseje-me boa sorte.
Por mais que eu não queira desligar, não encontro nenhuma
desculpa boa o bastante para prolongar a ligação.
— Boa sorte, princesa. Diga a Zayn que mandei um oi, e que se ele
a fizer chorar, o próximo encontro dele será comigo. — Faço uma careta
para mim mesmo. Deus! Estou soando igualzinho aos meus irmãos, senão
pior. E não me importo. — Não se esqueça, estou a uma ligação de
distância.
— Eu sei. — Algo como orgulho reverbera através do telefone. —
Amo você.
Meu peito inunda desse sentimento, transbordando, e eu respondo:
— Eu também te amo.
Continuo com o celular grudado na orelha por mais cinco segundos
após ela desligar, e quando o guardo no bolso, sinto-me pronto para voar.
Sorrindo, olho ao redor e noto que estou a uma quadra de distância do
restaurante, mas a vitrine ao meu lado chama a minha atenção.
Estou diante de uma joalheria. No expositor, um busto de cristal
exibe um lindo colar de ouro, dois pingentes pendem da corrente delicada:
uma nota musical e uma coroa com diamantes. A peça é magnífica, e parece
ter sido deixada ali especialmente para mim, como se as mãos invisíveis do
destino estivessem esticadas, oferecendo-me um presente.
Não penso duas vezes antes de entrar na loja.
— O colar na vitrine. — Aponto para o objeto. — Eu o quero.
A atendente, uma mulher na casa dos vinte anos com um longo
cabelo loiro, me olha de cima a baixo, medindo o meu nível social. Algo em
mim, provavelmente a minha expressão afobada, não a convence, pois ela
diz com um sorriso sem graça:
— A joia faz parte de uma coleção inédita e exclusiva, senhor. É um
lançamento…
Coloco o meu cartão preto sobre a bancada de vidro. Meu nome
brilha em dourado.
— Levarei o colar — afirmo, definitivo. Ela arregala os olhos. —
Não importa o valor.
— Agora mesmo, senhor Volkiov.
***
***
***
Dor.
Muita dor.
Meu ombro está queimando.
Meus olhos estão pesados.
O que… está acontecendo comigo?
Tento me movimentar, mas não consigo. Minhas mãos não se
movem, apesar de eu conseguir forçá-las. Estão contidas. Empurro minhas
pálpebras para cima, elas parecem seladas com concreto, mas aos poucos a
escuridão da minha cabeça se abre às fendas duplas dos meus olhos. Minha
visão, porém, não é capaz de se ajustar, de modo que não enxergo formas
concretas, somente um borrão turvo e muita névoa. Até que entendo: o
problema não está somente na minha capacidade de ver, mas no meu
organismo.
Estou zonzo, a mente aos giros, meu estômago se rebelando. Há um
tecido muito fino de sonolência velando os meus pensamentos. A porcaria
da dor, no entanto, me impede de cair nos aconchegantes braços de um sono
longevo.
Tem alguma coisa errada comigo, mas não desisto de assumir o
controle. Sinto-me angustiado por causa de… Anastasia. Sim, minha
mulher. Agora eu me lembro, ela foi sequestrada, roubada de mim, mas eu a
encontrei, sempre encontrarei o meu caminho até ela. Mas depois disso
eu… Ah, faz sentido, eu levei um tiro no ombro, e Yerik provavelmente
usou algum tipo de entorpecente para me apagar, isso explica a minha
dificuldade para controlar o meu corpo.
Concentre-se, ordeno a mim, cerrando a mandíbula. Pisco algumas
vezes, lacrimejando, meus olhos se tornam nítidos aos poucos. Não tenho
noção de quanto tempo demora até que eu consiga distinguir a forma
diminuta de Anastasia à minha frente, sentada na mesma cadeira de antes,
mas agora desperta.
Seu rosto é um quadro triste de lágrimas e desolação.
Eu estou aqui, quero dizer, não chore, porém, quando faço uma
tentativa de falar, as palavras soam ininteligíveis, grunhidos roucos e secos.
Ela também me diz alguma coisa, sei disso porque vejo seus lábios se
movendo freneticamente, mas não consigo escutar direito, como se meus
ouvidos estivessem submersos em água, abafados pela pressão de um mar
agitado.
Meus sentidos voltam a funcionar em algum ponto — se demora
muito ou pouco tempo, eu nem imagino. Meus membros formigam, a
queimação na ferida aberta diminui consideravelmente, o que não deve ser
bom. Sinto o cheiro bolorento proveniente da umidade nas tábuas podres
sobre as saídas, e ouço o ruído baixo do choramingo de Anastasia, os
soluços entrecortados.
É o pior som que já ouvi na minha vida.
— Por favor — ela está dizendo. Não para mim, percebo. Seu
clamor se destina a outra pessoa. — Por favor, deixe ele ir, por favor, eu
imploro. Ele precisa de um médico. Tem tanto… — Mais lágrimas caem.
— Tanto sangue, por favor…
Correção: ouvi-la implorando pela minha vida é de longe o pior som
que já ouvi.
Não vejo nenhum machucado grave aparente em seu corpo.
Lembro-me que ela usava uma tiara quando saiu de casa e um par de
sapatos baixos, mas ambos desapareceram. Seus cabelos estão
desarrumados, soltos, os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar. Sua
roupa, porém, com um rasgo visivelmente forçado que deixa suas pernas à
mostra, arranca um rosnado da minha garganta.
Se ele tentou fazer alguma coisa…
— Já mandei ficar quieta! — Yerik grita com ela, fazendo-a se
encolher. O desgraçado não está no meu campo de visão, sua voz vem do
mesmo canto escuro à esquerda de onde ele disparou contra mim. — Você
costumava ser mais obediente, querida. Sabia ficar calada como uma boa
mulher. E pensar que ele a estragou tanto em tão pouco tempo.
Viro o meu pescoço devagar, preciso ver a expressão dele enquanto
diz tanta merda. O que vejo é frustrante, eu esperava mais. Yerik não tem
nada de excepcional, nenhuma característica que possa absolvê-lo de seus
crimes, nada de olhos vidrados ou uma expressão miserável. Ele é normal.
A porra de um homem medíocre, com roupas comuns e uma arma.
Um clichê patético.
No futuro, talvez eu culpe a perda de sangue, ou o choque por ter
sido baleado, ou até o meu lado sardônico que costuma ter um humor
duvidoso, mas por qualquer razão que seja, eu começo a rir. Sinto os dois
pares de olhos arregalados sobre mim.
— Andrei — Anastasia sussurra, a voz gasta e rouca. — Andrei?
Ah, minha nossa! Você… seu ombro, me diga que está bem.
Deixo meu riso delirante se extinguir e olho para a outra metade da
minha alma.
— Olá, princesa — digo suavemente. — Não chore, eu estou bem.
Não está doendo nadinha, olha. — Faço movimentos circulares com o
ombro, sem transparecer a dor que irradia por todas as minhas terminações
nervosas. — Só parece ruim, mas pegou de raspão.
É mentira. Sinto a presença da bala, ela não saiu pelo outro lado,
deve estar alojada em algum lugar entre a minha clavícula e a escápula. Não
tenho esperanças de me livrar dela sem uma cirurgia. O sangramento parece
controlado, mas é difícil dizer já que a minha camisa está encharcada,
grudando na pele.
— Por que você veio?! — ela pergunta de maneira repreensiva,
balançando a cabeça, desolada, em choque, chorando copiosamente. — Ele
vai matá-lo também, Andrei, por que você tinha que vir? Devia ter me
deixado.
Também? O que ela quer dizer? Alguém foi morto?
Puta merda.
Zayn.
Os dois estavam juntos, contudo, não vejo sinais da presença dele
em lugar nenhum. Talvez tenha sido ferido e deixado para trás, mas o
desespero de Anastasia, o terror em seus olhos transbordantes, a certeza
fatalista em suas palavras, me leva ao entendimento de que ela presenciou
algo terrível e traumático.
Espero estar errado.
— Por que eu não viria? — Sorrio, ou tento. Preciso mantê-la
calma, pelo bem dela e da nossa filha. — É onde você está.
— Que comovente! — Yerik se intromete, batendo palmas. Ele sai
das sombras e se aproxima de Anastasia. Entro em alerta, meu corpo fica
tenso. — Quando me falaram sobre a sua síndrome de herói, eu tive as
minhas dúvidas, meu amigo. Mas aqui está você, arrogante como sempre.
Não reconhece a situação em que se encontra? Que esse buraco no seu
ombro é apenas uma amostra?
Ele dá a volta em Anastasia, para atrás dela e coloca as duas mãos
no encosto da cadeira, os dedos perturbadoramente próximos de seus
ombros estreitos. A arma não está à vista.
Sei muito bem da minha situação. Aquele disparo sem aviso prévio
confirmou a minha teoria de que Yerik não planeja negociar pela minha
vida — ela é o pagamento. Sem mim, Anastasia corria o risco de pagar esse
preço sozinha, de uma forma muito pior.
Meus olhos recaem sobre o tecido maculado de seu vestido, sombras
tingem o meu coração, sussurrando votos de tormento e violência.
Tempo.
Eu tenho que ganhar tempo.
— Parabéns, você conseguiu o que tanto queria, e agora? Eu estou
bem aqui, por que não acaba logo com isso?
— Não! — Anastasia se debate na cadeira, o rosto empalidecendo.
Tento transmitir uma mensagem tranquilizante com o meu olhar, mas ela
está nervosa demais para perceber. — Pare com isso, Yerik, é loucura! É a
mim que você quer machucar, eu fugi de você, então deixe ele ir agora. Não
posso… não suporto isso… Não faça mal a mais ninguém… por minha
causa… por favor… por favor…
Não consigo evitar, meus olhos se enchem de lágrimas ao vê-la em
tamanha agonia. Preocupo-me com as sequelas psicológicas que toda essa
situação pode lhe causar, ainda mais se Zayn estiver morto, mas não posso
pensar nisso agora.
— Você quer? — Foco em Yerik, no dedo que ele deixa resvalar
preguiçosamente no pescoço de Anastasia. Ela se retesa, a palidez se
tornando esverdeada. — Machucá-la?
Algo cruza muito rápido o olhar dele, confusão eu acho, mas
esmaece na mesma velocidade. Não consigo prestar atenção em muita coisa
que não seja aquele dedo e minha promessa interna de esmagá-lo com um
martelo.
— Eu nunca quis. — Mentiroso, desgraçado mentiroso. — Ela não
me deu outra escolha. Tudo isso poderia ser evitado se ela nunca tivesse
deixado a nossa casa, ou sido uma boa garota e aceitado a segunda chance
que eu ofereci em nosso encontrinho judicial. — Yerik segura o queixo dela
e a força a erguer o rosto. Meus dentes rangem, cortando as gengivas. —
Claro que eu teria que discipliná-la com mais firmeza, mas nós ficaríamos
bem. Eventualmente. Agora, eu já não sei se consigo consertá-la.
— Não toque nela — ordeno, plácido, imperturbável, uma máscara.
Anastasia fecha os olhos bem apertados e abaixa a cabeça, da forma
como ela costumava fazer quando nos conhecemos. Os dedos de Yerik
deslizam, desenhando o contorno de seu maxilar. Minhas unhas se afundam
nas palmas, tamanha força com que fecho meus punhos. Eu sei que ela
evoluiu muito nos últimos meses, que está conseguindo se curar, tenho
muito orgulho da minha mulher, mas feridas fechadas deixam cicatrizes, e
mesmo havendo dias em que nos esquecemos delas, basta um olhar para
que nos lembremos da dor.
A lavagem cerebral a qual Yerik a submeteu por dois anos é uma
cicatriz, e Anastasia está sendo obrigada a olhar para ela agora.
Não metaforicamente, eu quero que ele morra por isso.
Dolorosamente.
— Eu planejava testar algumas coisinhas antes de você chegar,
sabe? Aproveitar enquanto ela estava dormindo, mansa e totalmente
disponível, para lembrar ao corpo dela a quem ele pertence. É lamentável
que você tenha vindo tão rápido. — Ele traceja seu pescoço, a linha de pele
nua em sua clavícula. Anastasia faz uma careta, os lábios tremendo,
chorando. — Mais cinco minutinhos e eu teria me divertido um pouco.
— Tire as mãos dela! — grito, uma fenda se abrindo na máscara.
Dou um solavanco com o braço, a dor no ombro sobrepujada pelo meu
ódio, fazendo a cadeira estalar embaixo de mim. Yerik pisca diante do som.
É mais como um tique nervoso. — Seu filho da puta, fique longe dela,
porra!
O som que escapa da minha boca não é nada menos que bestial.
Mantenho meu olhar em cada ponto que ele toca, jurando para todos os
deuses no céu e aos demônios no inferno, que ele vai pagar por isso. E não
será bonito.
Eu juro.
Eu juro.
Ele vai pagar.
Uma ruga aparece entre as suas sobrancelhas, ele enxerga a sentença
fatal em meus olhos, sua mão recua com um espasmo nervoso, da forma
como o nosso corpo reage inconscientemente quando tocamos o fogo ou
levamos um choque.
— Mais tarde — ele deixa a sugestão perecer enquanto me encara
com olhos vítreos. — Não gosto de plateia.
Maldito.
Filho da puta nojento.
Nunca duvidei do risco que ela corria nas mãos dele, mas agora,
muito mais do que antes, sei que estou no lugar certo. Eu tinha que vir. É
um alívio saber que ele não conseguiu o que queria, mas uma maldição que
sequer tenha cogitado — a roupa dela, rasgada, é um lembrete gritante do
que ele pretendia fazer. Se eu não tivesse vindo imediatamente, teria sido
tarde. Se ele a forçasse…
Ele não vai conseguir, lembro-me para não perder a porra da cabeça.
Meus irmãos já devem ter acionado a polícia, mantenha a calma.
Sem a ameaça de suas digitais maculando a pele de Anastasia,
consigo pensar melhor, ver com clareza, voltar a ser racional e não um
animal com fome e sede viscerais.
— Vamos ser sinceros, Yerik. — Tento uma nova estratégia. Com
minhas mãos amarradas, não adianta gritar e xingar. Nesse momento, ter
um autocontrole acima da média é a minha melhor arma. — Você não faz a
mínima ideia do que está fazendo. O que você espera ganhar com isso?
Porque é impossível sair impune dessa situação. Em todos os desfechos,
você sai perdendo.
Ele se aproxima de mim a passos lentos. Para na minha frente e me
encara de cima. Bom. Quanto mais distante de Anastasia, melhor. Sinto-a
nos observando, mas não arrisco olhar de volta. Yerik confere o relógio em
seu pulso e seu semblante muda, demonstrando aprovação.
— Em alguns desfechos, todos nós perdemos.
Sorrio com desdém. Ele está certo.
— Mas não é isso o que você quer. Se fosse, nós dois já estaríamos
mortos. — Inclino a cabeça para o lado, pensando. — Bem, você com
certeza me quer morto, não tenho nenhuma dúvida de que isso faz parte do
seu plano, mas não Anastasia. Você a quer, eu sei que sim. Ela é o seu
prêmio. — Nego com a cabeça. — Sua obsessão por ela vai ser a sua
destruição.
— Guarde a saliva, amigo. — Ele se apoia em meu ombro e
pressiona a cavidade formada pelo tiro, mais sangue transborda. Não
esboço reação. — Sua merda de advogado não vai funcionar comigo dessa
vez.
— Sendo assim — continuo minha análise provocativa, ignorando
sua ordem —, não me diga que pretende pedir um resgate? Pelo que eu me
lembre, fiz um bom estrago nos seus negócios, mas sobrou o suficiente das
suas economias para que você não morresse de fome.
Sinto o vento no meu rosto quando seu punho recua e avança,
acertando-me com força, minha visão se apaga por um momento. Eu tento
suportar e não presenteá-lo com a satisfação de me ver sofrendo, mas mal
consigo me recuperar antes de perceber o segundo soco chegando. Depois
um terceiro e um quarto.
Cuspo o acúmulo de sangue no chão. Sinto meu rosto começando a
inchar. Ele pega impulso para um quinto golpe.
— Pare! — Anastasia clama, meu peito fica pequeno, o coração
espremido. — Não faça isso, Yerik, pare por favor. Eu faço o que você
quiser, apenas pare com isso. Andrei! Andrei?!
Os olhos dele brilham, insanes, a boca treme, esticando-se em um
sorriso obsoleto, seu braço fica paralisado no meio do caminho.
— Eu prometi que não mataria você. Mas toda vez que ela diz o seu
nome, eu perco mais e mais a vontade de cumprir com a minha palavra.
Abaixo o volume da minha voz para que Anastasia não me ouça.
— Vá em frente. Eu te avisei uma vez, lembra? Se me matar, acha
que meus irmãos deixarão você em paz? Que a sua prisão vai ser o
suficiente para eles? — Limpo o corte em meu lábio com a língua. — Você
vai desejar estar morto.
— Não tenho medo dos seus irmãos. — Mas ele tem, eu sei, eu vejo
em seus olhos. — Eu e Anastasia estaremos muito longe daqui quando eles
encontrarem você. Vivo ou morto, quem sabe?
Ele leva a mão às costas e pega a arma novamente. Um feixe de luz
vermelho-alaranjado, vindo de alguma fenda nas janelas, colide com o aço
cromado, o preto maciço absorvendo o que devem ser os últimos resquícios
do sol.
Franzo as minhas sobrancelhas.
O crepúsculo acontece cedo no inverno, mas se o dia já está se
esgotando, eu devo ter ficado inconsciente por um tempo considerável. Isso
significa que a polícia já está a caminho, podem chegar a qualquer
momento. O procedimento padrão, geralmente, envolve um período de
negociações com o sequestrador, mas não tenho como saber como eles
pretendem agir.
— A clássica fuga para fora do país — desdenho. — Previsível.
Aposto que as passagens já estão compradas, por isso nós ainda estamos
aqui. Eu serei a distração, suponho, para que você consiga chegar ao
aeroporto com Anastasia bem em cima do horário de embarque. Mas pela
cara que você fez há pouco, olhando para o seu relógio, deve estar quase na
hora.
Sua boca se contrai em uma linha fina e tensa.
Bingo.
— Como assim? — A voz de Anastasia flutua até nós, muito fraca,
mas pela primeira vez desde que eu cheguei, ela não está chorando. — Que
tipo de distração?
Sua pergunta é retórica, ela sabe. Yerik não olha para trás ao
responder:
— O tipo que manterá a equipe ocupada, tentando descobrir como
salvá-lo, caso ainda esteja vivo quando eles chegarem. — Ele aponta para o
meu ombro. — Eu disse que era apenas uma amostra.
— Por quê? — ela pergunta, outro sopro desesperançoso de voz.
Sua cabeça está abaixada. A princípio, parece um sinal de submissão, mas
não é o caso. Ela está olhando para a barriga. Para a nossa filha. — Sempre
me perguntei isso, por que eu? Por que você não pode só… me deixar ser
feliz em paz?
— Você foi feita para mim. — A atenção de Yerik é sugada pelo
questionamento de Anastasia. Ele gira no próprio eixo e caminha até o
centro da sala, obtendo uma visão ampla de nós dois. — Não percebe isso?
Quando a conheci, eu soube que era a mulher perfeita para estar ao meu
lado. A mulher que sempre sonhei. Obediente, educada e estupidamente
linda, mas o mais importante: desesperada por afeto. Um diamante bruto
que eu poderia lapidar do jeito que eu quisesse, porque você precisa disso.
De alguém que tome as decisões certas por você, que a instrua e a defenda.
O mundo é um lugar perigoso, querida, só quero protegê-la de homens
como ele. — Seu dedo indicador sobe, apontando para mim.
— Em outras palavras, você fez dela o seu bichinho.
— Eu a salvei! — ele grita, uma veia saltando em sua têmpora, a
arma balançando perigosamente em sua mão. — Ela odiava aquela vida, as
apresentações, a exploração do seu talento, o assédio da mídia. Ela estava
melhor comigo, na nossa casa, sendo a minha esposa e nada mais. Anastasia
não nasceu para ser uma mulher do mundo.
— Juro que nunca escutei tanta porcaria misógina de uma só vez. —
Sinto uma vontade real de vomitar. — O que você fez foi distorcer a
verdade. Se aproveitou das inseguranças que ela tinha com a própria vida e
carreira para prendê-la em sua maldita masmorra. — Olho para Anastasia e
acrescento: — Ela realmente não nasceu para ser uma mulher do mundo, e
sim para ser a dona dele.
Ela levanta a cabeça e nossos olhares se agarram um ao outro,
entranhados, desesperados, um abraço visual em que o sentimento reinante
não tem nada a ver com amor, mas puro pertencimento, algo mais cru e
vital do que carne e sangue. Você é minha e eu sou seu, transmito através do
meu olhar, esperando que ela consiga ouvir meus pensamentos, ou pelo
menos decifrá-los de alguma forma. Qualquer coisa que acalente o seu
coração.
Não dura muito.
Nosso laço é rompido por Yerik, que despeja mais palavras
delirantes.
— Ela precisa de mim. — Dirigindo-se a ela, ele diz: — Tudo vai
acabar bem. Vamos para Berlim, como você sempre sonhou, e vou levá-la
aos melhores especialistas para tratar a sua condição. Ouvi dizer que
algumas sequelas podem aparecer mesmo depois de anos, isso explica por
que não está se comportando como você mesma ultimamente.
Quando eu e Anastasia estávamos trocando segredos problemáticos,
ela me contou algo sobre ter sofrido um acidente na infância, do qual seu
irmão foi responsabilizado. Yerik também já havia mencionado isso em
outra ocasião. Não conheço os detalhes do ocorrido, ou sua gravidade, mas
junto as peças rapidamente e compreendo que Yerik está se referindo a esse
evento em específico.
Não me surpreendo com sua insensibilidade doentia, mas meu ódio
continua crescendo como uma erva daninha.
— Você é um psicopata — digo, fazendo uma pausa. — E nunca a
terá. — Dou um sorriso rígido, incitado pelos sons que se propagam à
distância.
Sons de sirenes.
Anastasia muda sua postura, ouvindo também, e olha para as janelas
como se esperasse vê-las sendo arrancadas de suas bases. Eu bem que
gostaria, e por um momento eu imagino nós dois sendo salvos e como seria
boa a sensação de tê-la em meus braços no instante seguinte, abraçando-a
para nunca mais soltar, rumo a um futuro em que amar um ao outro seja
mais simples.
Yerik também percebe a chegada iminente da polícia, e junto com
essa percepção, a falha óbvia em seu plano ordinário: eu sou um
manipulador muito melhor do que ele, e infinitamente mais focado, desde o
começo furtando minutos preciosos com as perguntas certas.
— Você… — ele vocifera.
— A minha síndrome de herói me trouxe até aqui, você estava certo,
eu jamais a deixaria nas suas mãos. Mas vir sozinho? Que idiota pensa que
sou? Eu sabia que a sua vaidade e egocentrismo o impediriam de me matar
logo de cara, então sim, eu entrei aqui fingindo não me preocupar em ser
pego e aceitei o primeiro tiro de propósito. — Dou de ombros, a dor há
muito entorpecida, e digo à guisa de explicações: — Tempo, desde o
começo, era o que eu queria. Não para mim, mas para ela. — Aponto para
Anastasia, cego para seu semblante traído. — Então é melhor correr, porque
eu posso não pegar você… — Sorrio, parafraseando o aviso que um dia lhe
fiz o favor de dar: — Mas os Volkiov são como um enxame.
Yerik empunha a arma, o cano mortal me reencontrando como um
velho amigo. Carregar uma arma tem esse efeito contraditório e, eu diria,
poético, do qual eu gosto muito: a falsa sensação de poder atrelada ao medo
constante da retaliação. Medo. É bom que ele sinta, pois a menos que me
mate de uma vez, essas amarras não o protegerão de mim para sempre.
É assim que tem que ser. Eu sou a distração. O sacrifício. Ele ainda
vai tentar fugir, mas eles os alcançarão.
E eu…
— Vai dar tudo certo, princesa — prometo, porque não importa o
que aconteça comigo, contanto que exista uma única chance de lutar contra
a morte para continuar ao seu lado, eu lutarei.
Nem a morte.
Nem a porra da morte.
Mesmo que doa, mesmo que eu tenha que escalar as paredes do
inferno, eu vou lutar por esta vida. Nós temos uma chance. Esse não é o
nosso fim. Por ela, enquanto ela estiver nesse mundo, eu consigo aguentar.
Eu vou sobreviver.
Vai dar tudo certo, continuo demonstrando com o meu olhar, pois
não vou fechar os meus olhos agora, fodam-se as lágrimas que escapam do
meu controle, não me permitirei sentir medo, não vou deixar a minha
família, minha futura esposa e nossa filha, não ousarei me despedir delas,
eu vou aguentar, não é o fim, vai dar tudo certo.
O dedo dele se move sobre o gatilho.
Vai dar tudo certo…
Mas Anastasia grita algo que chama a atenção de Yerik.
E tudo dá incrivelmente errado.
31
Andrei
— O QUE VOCÊ disse? — Yerik pergunta, seu tom ameaçador disparando
alarmes por todo o meu cérebro. — Que porra você acabou de dizer?
Tenho a sensação de estar sonhando, ou melhor, tendo um pesadelo
horroroso, pois o semblante de Anastasia, minha doce e querida princesa
quebrada, não tem nada da fragilidade habitual. Suas lágrimas desaparecem
e uma chama começa a queimar no fundo de seus olhos determinados. Ela
se empertiga na cadeira, os ombros retesados, a coluna bem reta, e ergue o
queixo de um jeito insolente que nunca a vi usar antes.
Uma rainha.
Por mais estranho e inédito que pareça, e por mais que não seja a
melhor hora para agir sem cuidado, não deixo de perceber como ela fica
linda assim. Se o passado não tivesse sido tão cruel e opressor com ela, ou
se existisse um meio de arrancar dela todas as lembranças ruins, imagino
que teria a oportunidade de ver mais desse seu lado destemido e audaz.
Mas agora… agora é realmente um péssimo momento.
— Exatamente o que você ouviu — ela diz, enfrentando-o com o
nariz empinado. Não gosto disso, não gosto nem um pouco, porque não
entendo o que essa mudança súbita em seu comportamento significa. — Eu
odeio você, Yerik. Sinto vontade de vomitar toda vez que falo seu nome. Na
verdade, estava pensando o quão patético você é como homem para decidir
que sua melhor chance de conquistar uma mulher é matando o seu
concorrente.
Yerik, tão ou mais surpreso que eu, luta para encontrar as palavras.
— Não pode falar assim comigo! Sua sorte é que estamos sem
tempo, senão eu…
— Senão o quê? Iria me bater como sempre fez para me manter
calada? — Anastasia está praticamente gritando, sua postura corporal
oscilando entre a histeria e a bravura. — É bom que você saiba, Andrei é
melhor em me calar também. Mas ele sabe como manter a minha boca
ocupada de um jeito mais divertido! — Santo Deus! O que ela está
dizendo? — O que foi? Por que está com essa cara? Por acaso pensou que
eu passaria meses ao lado dele sem nada acontecer entre nós? Não era você
que vivia me chamando de prostituta?
Sua boca verte deboche. Sinto um pressentimento ruim. Algo muito
importante está sendo tecido bem diante dos meus olhos, uma teia perigosa
que não faz o menor sentido.
Quero que ela pare.
Ela tem que parar de falar agora.
— Vagabunda. — A mão de Yerik volta para a posição inicial,
balançando a arma na minha direção. O semblante de Anastasia estremece,
mas não cede. — Deixou ele usar você como uma puta?
Anastasia dá uma risadinha aguda e, ao mesmo tempo, feroz.
— É isso mesmo, uma puta. A puta de Andrei Volkiov, soa bem aos
ouvidos, faz jus à verdade, já que ele me usou de todas as formas que um
homem pode usar uma mulher. — Ela não está sendo sincera, nossas
intimidades foram sempre intensas, mas cheias de amor, paixão e entrega.
Então, por quê? Qual é o seu objetivo? — E ele é muito melhor do que
você, Yerik. Tão melhor que mesmo se o matar agora e me obrigar a dormir
com você todos os dias antes da minha morte, é ele quem eu vou imaginar
dentro de mim, e é o nome dele que você vai ouvir saindo da minha boca
até o fim da sua vida miserável.
Porra! O que caralhos ela está dizendo? Algo assim nunca vai
acontecer. Ele não a terá de forma alguma, eu não vou permitir, minha
família tampouco. Essa conversa nem deveria estar acontecendo! Não é o
rumo que eu esperava. Anastasia não deveria ser o foco agora. As sirenes
ainda estão muito distantes.
Não é o suficiente, ela não está totalmente segura.
— Princesa, já chega. — Forço as malditas cordas, elas cortam
meus pulsos, deixando minhas mãos escorregadias com meu sangue. Isso
me dá uma ideia que guardo com uma noção secundária. — Pare agora.
Nenhum dos dois dá a mínima para o meu pedido. O braço de Yerik
permanece erguido com o cano mortal mais ou menos apontado para mim,
seu rosto transmutado em algo saído do inferno enquanto encara Anastasia.
— Retire o que disse — ordena. — Vai retirar tudo o que disse, e
iremos embora daqui.
Ela nega com a cabeça, despejando uma avalanche de
ressentimentos.
— Você sempre me aterrorizou com ameaças sobre jamais deixar
outro homem se aproximar de mim além de você, ao ponto de eu ficar
paranoica e não conseguir cumprimentar as pessoas sem achar que estava
fazendo alguma coisa errada. Eu tinha medo de sorrir! De erguer o meu
rosto e acabar cruzando o meu olhar sem querer com o de um
desconhecido! Tinha medo de abrir a minha boca em público porque não
sabia qual seria a sua reação quando chegássemos em casa! — Sorri com
escárnio. — Deve ser frustrante saber que não tem mais esse poder.
— Cala a boca! — Yerik berra, uma veia se pronuncia em seu
pescoço. Mas o som da trava de segurança, quando ele a puxa para trás, soa
mais alta e violenta que suas palavras. — Nada disso importa. Quer ser
tratada como uma vadia? Oh, eu posso fazer melhor do que isso. Mas
guarde bem as minhas palavras, querida: ainda vai me implorar de joelhos
para voltarmos a ser como antes!
— Eu estarei morta e fria antes de me submeter a você outra vez! —
Anastasia também tenta se soltar, mas sua força é inútil contra as amarras.
Seus pulsos magros não têm chance contra os nós grossos das cordas.
— Pare com isso! Já chega! — peço, gritando e me contorcendo.
Por causa dos movimentos frenéticos, o fluxo de sangue em meu ombro
ferido se intensifica, pingando no chão.
Olho ao redor, procurando alguma coisa que me ajude a escapar
mais rápido, mas não há nada, nenhuma lasca de madeira perdida no chão,
nenhuma pedra que eu possa alcançar, simplesmente um cômodo vazio,
insalubre e pouco iluminado, que pela primeira vez me enche de um pavor
congelante, enquanto as palavras morta e fria me esfaqueiam, mutilando
partes do meu corpo com cortes dolorosos e profundos.
— Eu odeio você, Yerik! — Minha princesa grita, a voz
recomeçando a tremer junto com o choro, que faz seus olhos vermelhos
parecerem maiores, duas cavernas tristes inundadas com água salgada. —
Odeio, odeio, odeio! Vou odiar para sempre!
— Estou mandando ficar quieta! — ele urra em resposta, piscando
freneticamente, desnorteado, imprevisível.
— Espero que você morra!
— Anastasia! Pare de falar, não o provoque! — eu imploro, sentindo
gosto de sal e sangue na minha boca. Minha cadeira cai para o lado
enquanto me debato, levando-me direto para o chão.
O som abafado da minha queda se perde em meio às ordens dele
para que ela se cale, mas Anastasia imediatamente me olha, sua fisionomia
implacável completamente suplantada pelo medo — por mim, percebo, não
por si mesma como deveria ser. Seu calor me rodeia, os braços invisíveis do
nosso amor se acariciando, abraçados um ao outro em uma espécie de
saudação fatalista.
Seus lábios desenham duas palavras mudas, acompanhadas de um
sorriso gracioso e lindo e apaixonante, como ela sempre foi: amo você.
Então, com uma fluidez lenta e temerária, Anastasia desata os laços
com o meu olhar e desvia sua atenção para o objeto instável na mão de
Yerik. Sinto-me oco diante da emoção sombria, efêmera e cabal que toma
conta de seu rosto.
— Lembra do que você me perguntou naquele dia? — pergunta,
voltando-se para o homem consternado cuja mente parece se fragmentar a
cada segundo. — Como eu aprendi a ser amada depois de fugir de você?
— Cala a boca! CALA A BOCA! Você é minha, você me ama!
— Princesa, por favor…
— Você nem imagina — ela diz, a voz falhando, fraca —, como foi
fácil abrir as minhas pernas para outro, Yerik. E como eu realmente gostei.
— Anastasia! — clamo, arrastando-me com a cadeira e tudo.
Yerik treme de ódio, os olhos esbugalhados, vidrados, loucos,
gritando todo tipo de obscenidades sobre seu caráter, chamando-a pelos
piores nomes, inverdades que ela jamais deveria ouvir.
— E sabe de uma coisa? — Ela sorri enquanto seus olhos são
apenas lágrimas. — Você é um monstro.
— Não, Ana, querida, já chega, porra! — Faço força, um dos braços
da cadeira se quebra, mas não consigo me levantar.
— Pode me arrastar pelos cabelos, me prender em um porão e fingir
para si mesmo que conseguiu a sua vitória.
— Eu já venci! — Yerik rosna, tremendo dos pés à cabeça, como
uma besta encurralada. — Você é minha, minha, minha.
— Princesa.
— Mas guarde bem as minhas palavras — Anastasia o observa com
nojo e pena. — Eu não amo você, Yerik, nunca amei, e nunca vou…
O braço dele muda de direção.
Eu grito.
Um trovão corta o céu, rachando o mundo em duas partes para
sempre. De um lado, o início de um sonho dourado, onde melodias um dia
puderam ser ouvidas e a salvação de dois corações destinados pôde ser
contada, o passado inalcançável de um segundo atrás; do outro, o fim
grotesco, cruel e sádico de uma história de terror, e estou preso nela,
rodeado pelo eterno tormento de um ponto final triste.
Como se nunca tivesse acontecido, o estrondo se dissipa, tornando-
se mais baixo à medida que se propaga pelo quarto, até não restar nada além
da ausência — de som, de esperança, de vida, de alegria, de futuro, de
amor, de… tudo.
A arma recém disparada cai no chão, ao mesmo tempo, Anastasia
tomba para o lado, seu corpo atado à cadeira assim como o meu. Os dois
eventos sincronizados duram uma eternidade e meu cérebro se recusa a
reconhecer a conexão entre eles — o tiro alto como o fim do mundo,
Anastasia estática e frágil no assoalho poeirento, Yerik soltando a arma
abruptamente, como se nem ele esperasse fazer o que fez.
Porque ele não atirou em mim, mas nela.
Yerik deu um tiro na minha mulher.
— Não, não, não, não, não — repito, sem acreditar. — NÃO, POR
FAVOR, NÃO! O que você fez? O QUE VOCÊ FEZ?
Não tenho certeza para quem estou perguntando, a única pessoa que
existe nesse momento é Anastasia. Ela com os olhos fechados, o corpo
pequeno parecendo vulnerável demais nas sombras, com uma mancha
escura crescendo em seu vestido, na região da barriga — oh, Deus, não
pode ser. Eu me arrasto pelo chão, mas é inútil, não consigo me aproximar o
bastante, não consigo voltar na porra do tempo, não consigo salvá-la.
Ana.
Nossa filha.
Por quê?
Por que isso está acontecendo?
— Fale comigo, Ana, querida, princesa, apenas fale comigo,
mantenha os olhos abertos!
Ela movimenta as pálpebras molemente, mas sua visão sem brilho
ou vigor não dá indícios de me enxergar. Geme baixinho em seguida, um
choramingo de dor que me apunhala como uma foice, ceifando a vida de
dentro de mim — Anastasia é minha vida, e eu a estou perdendo.
O sangue em seu abdômen começa a se acumular no chão,
formando uma pequena poça.
Poucas semanas atrás, nós estávamos no consultório médico
ouvindo o coração da nossa filha, e minha maior preocupação era a
aparência pequenina de sua barriga, mas agora, aquele montinho
proeminente tingido de vermelho se destaca como um grande alvo. Muito
exposto, muito visível, muito indefeso.
— Por quê? — eu choro, provavelmente grito, soluçando, irado e
devastado e desesperado. — Por que você fez isso? Por que o enfrentou? Eu
disse que aguentava, eu disse que tudo ficaria bem, princesa. Não me deixe!
Eu imploro a você, não me deixe! Olhe para mim, aguente firme, por favor,
não, não, não. Por quê? Por quê, princesa?
A sombra de um sorriso toca seus lábios, mas ela não tem forças
para fazer muito além disso.
— Porque eu… — sussurra em um tom fantasmagórico, distante e
sonhador. — Estou agarrando com as minhas próprias mãos. — Depois ela
fecha os olhos.
E não volta a abri-los.
***
Ela sabia.
Sabia o que estava fazendo. Sabia como seria a reação de Yerik. Ela
o conhece. Ela o conhece. Ela o conhece. Ela sabia. Ela sabia. Ela sabia. Ela
sabia.
Sabia que ele atiraria.
Sabia que ele entraria em choque.
Sabia que assim minha vida seria poupada.
Anastasia sabia que provavelmente morreria.
Ela sabia.
Ela sabia.
Ela sabia.
E, ainda assim, ela fez.
Suas últimas palavras se repetem. Eu não sei o que elas significam,
o que ela quis dizer. Mas continuo ouvindo-as em sequência. Elas são o
firmamento que regem o mundo. O princípio e o fim. Eu sou feito delas,
composto pela finitude infinita das últimas palavras ditas pelo amor da
minha vida.
Estou agarrando com as minhas próprias mãos. Estou agarrando
com as minhas próprias mãos. Estou agarrando com as minhas próprias
mãos. Estou agarrando com as minhas próprias mãos. Estou agarrando
com as minhas próprias mãos.
Mas ela sabia.
Não sabia?
Ela tinha que saber.
Estou agarrando com as minhas próprias mãos. Estou agarrando
com as minhas próprias mãos. Ela sabia. Estou agarrando com as minhas
próprias mãos. Ela sabia. Ela sabia. Ela SABIA. ELA SABIA. ELA
SABIA. ELA SABIA. ELA SABIA. ELA SABIA. ELA SABIA. ESTOU
AGARRANDO COM AS MINHAS PRÓPRIAS MÃOS. ELA SABIA. ELA
SABIA. ELA…
Ela sabia.
…com as minhas próprias mãos.
Ela sabia.
Sabia que havia uma chance de morrer no meu lugar.
Porque ela está morrendo.
Está sangrando.
Morrendo.
Anastasia.
Nossa filha.
O sangue delas.
As duas estão morrendo.
Eu estou.
Ela sabia.
É irreal.
Parece-me impossível que ela não se mova, que eu não consiga ver
seu peito subindo e descendo em um ritmo profundo. Por noites
ininterruptas, meu principal compromisso tem sido admirar o seu sono
depois de fazermos amor por horas. Eu sei de cor como Anastasia ressona,
o ritmo de suas respirações, seu jeito fofo de se encolher em meus braços e
esconder o rosto em meu peito. Nenhum desses detalhes está presente no
corpo jogado de qualquer jeito sobre o chão sangrento.
— Ana? Anastasia, abra os olhos, acorde, diga alguma coisa,
qualquer coisa, olhe para mim. — Não adianta o quanto eu peça, ela não
reage.
Minhas súplicas são inúteis, meu choro não significa nada. Minhas
lágrimas não vão curá-la. Meus gritos têm ainda menos valor. O que eu
faço? O que eu faço? O que eu tenho que fazer? Rezar? Pagar uma
penitência? Andar de joelhos sobre pedras em brasas? Qualquer coisa,
qualquer custo, qualquer preço, eu só preciso saber o que fazer para que ela
não morra.
Que já não esteja morta como parece.
Morta.
Morta.
Anastasia, morta.
É essa palavra tóxica que me faz reagir, apesar da sensação letárgica
que tenta conter o meu corpo, como um relógio cuja engrenagem mais
importante foi retirada de sua complexa maquinaria, condenando-o à
eternidade de um mesmo segundo, em um mesmo minuto de uma mesma
hora.
Elas precisam ir a um hospital urgente.
Olho para o culpado e urro de ódio. Era para ser ele naquele chão,
perfurado e sangrando. Não é justo que os olhos dele estejam abertos, que
ele consiga respirar e falar e chorar enquanto Anastasia deixa esse mundo
cedo demais.
— Yerik — rosno. Ele não reage. — YERIK! Preste atenção, seu
desgraçado maldito, você não tem o direito de chorar por ela! Então
coloque a merda da sua cabeça no lugar e me ouça, porra! Você tem que
entregá-la aos policiais. Se existe alguma mínima parte de você que se
importa, deixe que eles a levem!
— Ela está morta — balbucia, encarando as próprias mãos. — Eu a
matei.
— VOCÊ NÃO SABE!
— Eu não… isso… eu não queria…
Você queria, você fez.
— FODA-SE YERIK! Entregue ela! Deixe que eles a levem!
— Não, não podem, eu preciso dela…
— ELA VAI MORRER!
— Eu não posso, está tudo acabado.
— YERIK, PORRA! ENTREGUE ELA!
Seus olhos opacos se estreitam sobre mim, vazios e loucos.
— Está tentando escapar?
Eu vou matar esse desgraçado, é uma maldita promessa. Ele vai
morrer.
— Eu não dou a mínima com o que você vai fazer comigo. Ligue
para o meu irmão, ele vai estar com os policiais, e diga que aceita entregar
Anastasia contanto que ele a pegue, e que eu ficarei com você como
garantia.
Dúvida paira em seu semblante. Ele pega o aparelho no bolso, que
reconheço como sendo o celular de Anastasia. Tenho que aproveitar
enquanto ainda não se recuperou completamente para entrar em sua cabeça
e fazer o meu estrago.
— Pense bem, você não tem mais nada a perder. Se confirmarem
que ela está mesmo… — Porra, eu não consigo dizer. — Que ela se foi,
então basta me dar um tiro no crânio e acabar com tudo de uma vez por
todas. Mas, se conseguirem salvá-la, ainda terá a mim para negociar. Você
vai ter tempo para planejar uma nova rota de fuga. Pode exigir um carro e
dinheiro. Ainda haverá uma chance para você.
Mentira.
Ele hesita, olhando para Anastasia e, em seguida, alternando entre
mim e o telefone.
— Eu preciso dela.
Não, eu preciso dela.
— Então ela tem que viver.
Tremendo, Yerik se abaixa e pega a arma de volta com a mão livre.
— Se eles tentarem qualquer coisa…
— Eu sei — digo, sem medo ou receio. Sem nada. Eu não sinto
nada. — Você me mata.
***
***
Andrei
O PADRÃO SE repete: eu acordo com o eco da mesma lembrança, a voz
gentil de Anastasia ressoando na minha mente.
Acho que perdi uma coisa importante.
Encolho-me na cama, abraço meus joelhos e contemplo… nada.
Silêncio.
Vazio.
Tudo continua igual.
Ao lado da minha cama, sobre a mesa de cabeceira, o relógio digital
mostra que continuo acordando junto com o nascer do sol, apenas duas
horas depois de pegar no sono. Vendo pelo lado bom, isso é uma hora a
mais do que eu conseguia dormir há seis meses. Naquela época, eu passava
dias consecutivos acordado, embebedando-me, até meu corpo desligar de
exaustão, e mesmo assim meu sono era doloroso e cheio de pesadelos — a
última parte não melhorou muito.
A decoração do meu quarto na mansão da minha família segue o
estilo minimalista que eu costumava gostar, com muito preto, branco e
cinza, e móveis geométricos; agora ela só serve para me lembrar a todo
momento o quanto eu sinto falta das tapeçarias e da rusticidade tradicional
que Anastasia tanto amava.
Ela dizia que era aconchegante.
Deito-me de costas e encaro o teto branco por mais vinte minutos
antes de me levantar. É um processo automático. Eu sei o que tenho que
fazer e simplesmente faço. Substituo meu pijama por terno e sapatos pretos,
mas mantenho as luvas. Elas estão sempre comigo. Confiro minha
aparência no espelho, meu cabelo precisa de um corte, mas decido que o
conjunto geral está bom o bastante. Eu acho. Provavelmente.
Saio do quarto e desço até a sala de jantar, onde a minha família já
está quase toda reunida. Eles não me notam a princípio, então eu tomo o
meu tempo apreciando a grande algazarra feliz.
Vladimir e Serena estão sentados um ao lado do outro. Luna está no
colo do pai, comportada como uma pequena dama, com seus cabelos pretos
e retos na altura dos ombros contrastando com a pele pálida. Eles não
moram conosco na mansão, mas passam mais tempo aqui do que em sua
própria residência.
Roman está comendo como se fosse a sua última refeição enquanto
conversa com Lara, que tem uma expressão zangada em seu rosto. É a
primeira vez que o vejo em uma semana. Ivan, ao lado dela, tem um plano
de morte escrito em seus olhos. Ele odeia quando aborrecemos a sua
mulher, e verdade seja dita, fazemos isso com uma frequência alarmante.
Por último, minha mãe. Sinto uma agulhada no peito sempre que a
vejo.
Tatiana é uma mulher incomparável, a cola que mantém nossa
família unida. Usando um vestido rosê bordado com pedras brancas, além
de uma quantidade exagerada de joias nos braços, ela ocupa a extremidade
da mesa; está sorrindo para qualquer coisa que Serena diz ao marido. Seus
cabelos, recém pintados de um preto azulado e intenso, estão presos em
uma trança longa que cai sobre seu ombro esquerdo.
A elegância em pessoa.
Ela não chorou na minha frente nenhuma vez durante o meu período
de recuperação no hospital, jamais permitiu que alguém visse suas lágrimas,
mas eu a ouvia. Quando os remédios mais fortes me induziam ao sono, às
vezes eu ficava preso em um limbo entre os sonhos e a realidade, e então eu
conseguia ouvir o seu choro baixo. Às vezes, ela rezava, pedindo a pessoas
que já se foram que protegessem o seu amado filho.
— Se quiser sair de fininho, eu posso dizer a eles que deixou um
recado.
Assusto-me e olho para o lado, encontrando meu sobrinho mais
velho parado como uma assombração. Desde o seu último aniversário, ele
não para de crescer. O uniforme escolar, que consiste em uma camisa
branca de mangas compridas, junto com colete e calças nas cores vinho e
dourado, fazem-no parecer mais velho do que sua idade atual.
— De onde você saiu? — pergunto, não o ouvi se aproximando.
Ele aponta para o corredor com um aceno desleixado.
— Estava me despedindo dos bebês antes de ir para a escola. A babá
está cuidando deles. — Iago me observa, as pálpebras se estreitando sobre
pupilas verdes. — Você quer?
— O que?
— Que eu acoberte você?
Ah, sim, definitivamente.
— Não, tudo bem. — Dou um sorriso. — Como eu estou?
Iago franze as sobrancelhas amarelas e me analisa dos pés à cabeça.
— Convincente, apesar das olheiras. Mas continue sorrindo assim e
eles nem vão perceber. Bom trabalho, tio. — Ele me dá um aceno
aprovador e vai se juntar aos outros, parando para cumprimentar a mãe com
um beijo antes de se sentar ao lado do pai. Tatiana se derrete de imediato.
Às vezes eu concordo com Roman, é difícil acreditar que Iago só
tem onze anos e não oitenta.
Sigo a dica do meu sobrinho.
— Bom dia — digo a todos com um grande sorriso enquanto me
aproximo e ocupo o meu lugar à mesa, à esquerda de Ivan.
Há uma pausa de segundos em que os assuntos se calam e uma
densidade melancólica toma conta do ar. Isso sempre acontece quando eu
chego, não importa o lugar. Eles não fazem de propósito, acho que na
maioria das vezes nem percebem. Não é culpa deles também, afinal, eu sou
aquele que caminha sobre cacos de vidro com um passado sombrio
costurado nas solas dos pés.
Felizmente, minha família, ao contrário da maioria das pessoas que
não sabe a história verdadeira, não faz perguntas que não desejo responder.
Eles sabem que estou em paz com os meus demônios e aceitam a versão
oca que restou de mim — acho que, na visão deles, ter uma casca que anda,
fala e sorri como Andrei Volkiov é melhor do que nada —, então eu não me
incomodo em interromper o silêncio.
Roman, no entanto, faz isso por mim. Ele nunca foi um grande leitor
de ambientes.
— Andrei, me salve, eu só tenho você. Diga a nossa Larinha que me
enviar como representante da empresa para o leilão é uma péssima ideia.
— Lara não tem péssimas ideias — Vladimir intercede, e sou
obrigado a concordar. — Você pode odiar festas formais o quanto quiser,
seu charme continua sendo um atrativo valioso para os nossos negócios.
Você conseguiu arrematar todos aqueles hotéis da última vez por uma razão.
— Você acabou de elogiar o meu charme? O que é isso? — Ele
cheira sua xícara. — Colocaram vodca barata no meu chá?
— Você bem que gostaria — Ivan o provoca.
Roman dá um sorriso torto e pisca o olho esquerdo para nosso
irmão, mostrando o canino pontudo. Sinto uma coceira nostálgica e amarga
na garganta ao olhar no fundo da minha xícara vazia.
— Pare de ser um covarde chorão — Serena diz. Ela pega uma
migalha de biscoito que caiu das mãozinhas de Luna e atira em Roman, mas
ele sorri como se fossem farelos de ouro e nem se incomoda em abanar a
sujeira das roupas. — Faça o seu trabalho como um adulto.
— Se você for minha acompanhante, bebê, eu posso até considerar.
O que acha de usar aquele vestidinho vermelho da última vez?
Lara esconde um sorriso atrás de sua xícara fumegante. Vladimir
semicerra as pálpebras, apoia os cotovelos na mesa e acomoda o queixo em
suas mãos entrelaçadas. Essa pose é sua marca registrada, ele geralmente a
usa em dois casos específicos: quando deseja intimidar alguém e obrigar
essa pessoa a fazer o que ele quer, ou quando está planejando testar na
prática quanto tempo um ser humano demora para morrer depois de ser
enterrado vivo.
— Se o seu plano é me irritar até eu despachar você para outro
continente, é melhor desistir, Roman. Tudo o que vai conseguir é um olho
roxo e ainda terá que comparecer ao leilão.
Os olhos de Roman brilham.
— Você acha que consegue me acertar, presidente?
Vladimir sorri — range os dentes.
— Quer apostar?
— Parem logo com essa palhaçada — Tatiana intervém, mas ela mal
esconde o próprio sorriso.
Ivan aponta o garfo de um para o outro.
— Não, não parem, lutem até a morte como faziam os romanos.
— Eu aposto cem mil que o Roman ganha — Serena diz, animada.
Vladimir, devagar, olha para a esposa. Por fora, ele parece o símbolo
oficial da calma e da paciência, mas seus olhos frios revelam a sua
indignação.
— Corazón, eu sou seu marido, lembra? Por que está torcendo por
outro homem na minha frente?
Minha cunhada, sorrindo diabolicamente, cantarola:
— Melhor do que torcer pelas suas costas, Lord Vlad.
Minha mãe e Ivan gargalham. Os cantos dos meus lábios também se
curvam ligeiramente, e a sensação de me divertir com a minha família é
uma das poucas capacidades que fico feliz em ter recuperado com o passar
do tempo.
Vladimir bufa, balançando a cabeça. Os dois têm a sua própria
dinâmica de casal. Serena torna os dias do meu irmão muito mais
desafiadores, pois não deixa o presidente subjugá-la como ele faz com a
maioria das pessoas. É como se o destino a tivesse moldado especialmente
para ele e vice-versa.
Conhecendo Vladimir, ele vai dar um jeito de cobrar esse desaforo
mais tarde, quando os dois estiverem sozinhos. E conhecendo a minha
cunhada, esse é o seu objetivo.
Roman, o agente do caos, ignora o pequeno embate de olhares entre
nosso irmão e Serena, e continua falando pelos cotovelos:
— Cem mil dólares?
— Até parece! — Ivan desdenha. — Rublos, seu idiota, estamos na
Rússia, use a sua própria moeda.
— Vocês estão fugindo do assunto — Lara reclama e estala a língua
de um jeito afetado. — O leilão acontece no próximo mês. Elena Kokorina
será a anfitriã este ano e nós teremos cinco itens disponíveis no evento, os
melhores imóveis da ilha desde a inauguração.
Normalmente, Vladimir é o responsável por cuidar desse tipo de
tarefa — o leilão é um evento anual organizado por inúmeros empresários,
e reúne investidores de diferentes ramos comerciais —, mas nosso
presidente e Elena têm um histórico conturbado, e temos evitado escândalos
depois de tudo o que aconteceu comigo.
— O Resort e a ilha já são um sucesso. — Roman não dá o braço a
torcer. — Aqueles abutres vão brigar por esses imóveis como urubus na
carniça.
Lara e Vladimir estão lutando em uma guerra perdida. Roman não
faz nada que ele não queira. No dia em que ele der o seu último suspiro, se
o anjo da morte não tiver um bom argumento para levar a sua alma, é bem
provável que ele continue preso ao corpo por mais mil décadas.
Mas essa conversa não se trata apenas de sua teimosia e obstinação,
eu sei o que ele está fazendo aqui — hoje faz um ano. Um ano desde que a
minha vida encontrou o seu fim. Um ano sem Anastasia. Um ano sem nossa
filha. Um ano me forçando a seguir adiante com as sombras que me cercam,
aprendendo a respeitá-las como minhas companheiras, a amar essa parte
obscura de mim.
Roman está tentando chamar a atenção para si a fim de nos manter
distraídos do elefante branco sentado à mesa.
Eu.
O resto da família não sabe, nunca contei a ninguém, mas Roman
foi o primeiro rosto familiar que eu vi depois de abrir os meus olhos pela
primeira vez, após os dias que passei desacordado no hospital. E o que ele
disse foi determinante para impedir que a consciência do que eu havia feito
e de quem eu havia perdido me consumisse inteiro.
***
Barulho infernal.
Pi.
Pi.
Pi.
Obrigo meus olhos a se abrirem, esse simples esforço me cansa.
Quando consigo, sou atingido por um clarão cegante. Pisco algumas vezes
para me acostumar, enquanto o som repetitivo continua em sua sequência
interminável de pi, pi, pi. Eu realmente odeio esse barulho.
Uma enfermeira de meia idade se debruça sobre mim, conversa
comigo. Está sorrindo enquanto fala. Tento entender, eu realmente tento me
concentrar nos desenhos que seus lábios formam a cada palavra. Parece
ser algo importante, uma pergunta talvez. Quer saber como estou me
sentindo hoje? Se eu preciso de alguma coisa? Não sei, esse parece ser o
tipo de pergunta que as enfermeiras fazem aos seus pacientes. Porém, ao
invés de palavras inteiras e coerentes, o que ouço saindo de sua boca é
uma sequência pausada de apitos.
— Pi... Pi… Pi…
Acho que estou enlouquecendo.
Tento me mover, sinto-me fraco, não consigo me sentar. Há faixas
brancas ao redor do meu torso, ombro, braço e mãos. Meus pensamentos
são uma bagunça, imagens terríveis de sangue e morte se sobrepondo na
minha cabeça. O nome dela é a única constante, seu rosto sorridente
brilhando no meio do breu. Uma lua longínqua, inalcançável, no céu
noturno.
A enfermeira franze as sobrancelhas e coloca uma lanterna na
frente dos meus olhos, primeiro um depois o outro. De repente, ela olha
para trás e fala alguma coisa com alguém. Parece brava.
Talvez eu esteja morrendo.
Eu certamente mereço morrer depois de assassinar uma pessoa. E
meio que não me importo, já que não me arrependo. Ele mereceu, ele era
um monstro, e a única maneira de derrotá-lo era me tornando o seu
semelhante. Um criminoso. Além disso, se eu morrer, não sentirei mais essa
dor absurda no peito. Não me lembro de ter sido atingido no coração, a
bala acertou o meu ombro, mas a sensação é de que um buraco foi aberto
no meio da minha caixa torácica.
A enfermeira deve saber o que está acontecendo comigo. Não existe
um protocolo sobre dar conforto aos pacientes em seus momentos finais?
Abro a boca para perguntar algo como “você pode me matar de uma vez,
por favor?”, mas formar uma frase completa está fora de cogitação. Garras
arranham a minha garganta, sinto a presença intrusiva de um pequeno tubo
na minha boca, minha língua pesa uma tonelada.
Após muito esforço, tosses e ânsia de vômito, consigo dizer uma
palavra. Ela soa fraca, rouca e nada humana.
— Dói.
A cabeça da enfermeira gira depressa, surpresa e alívio tomam
conta de suas feições. Ela faz menção de me examinar, mas não consegue,
alguém a puxa para trás. Outro rosto surge acima de mim, um que eu
reconheço.
Roman ofusca a luz com seu tamanho. Ele parece feroz, uma
besta… não, não uma besta, é mais como um lobo — combina com o nosso
sobrenome. A selvageria de Roman não é completamente sem controle, ela
flui por suas veias de forma natural, existe coerência em sua rebeldia. Meu
irmão não pode ser contido, domesticado, Roman tem sua própria visão de
mundo e ela não inclui se submeter, mas isso não o impede de ser leal aos
seus.
É por isso que ele respeita Vladimir como presidente, reconhece
Ivan como um igual, e me enxerga pelas minhas qualidades. Roman ignora
tudo o que não importa para ele.
Meu irmão me espreita, seus olhos verdes possuem um aro
avermelhado ao redor das pupilas, como se ele tivesse chorado por um bom
tempo. Quando ele fala, felizmente, sua voz não ecoa o apito irritante, são
palavras poderosas e definitivas.
— Você vai viver, porra! Mesmo que não queira, mesmo que ache
que não merece e sinta vontade de desistir todos os dias, você vai viver.
Você fez a coisa certa, Andrei, você sempre faz.
— Como…? — Eu tusso, as palavras não saem.
Mas ele entende a pergunta que não consigo completar por falta de
forças: como ele sabe? Como pode ter tanta certeza de que eu posso
continuar? Eu não quero viver em um mundo com essa dor interminável, ou
com o fantasma da minha falha empoleirado nas minhas costas. Minhas
mãos… eu sinto o sangue impregnado nelas.
E Anastasia…
Dói.
Dói demais.
— Porque eu sei o que você está sentindo, a sensação de sujar as
mãos, mas diferente de mim — a voz dele quebra, Roman se debruça,
abraçando-me como se quisesse trocar de corpo comigo e sofrer no meu
lugar — você é a porra de um herói, irmãozinho. E se você cair, ele vai ter
vencido.
***
***
Meus pais foram estranhamente dedicados nos meses iniciais da
minha recuperação, compartilhando detalhes sobre os anos da minha vida
que foram apagados da minha mente. Os médicos disseram que relatos de
parentes próximos talvez me ajudassem a acessar algumas memórias, mas
também disseram que, como as chances de isso acontecer serem muito
imprecisas, eu não devia criar esperanças.
Eles me contaram que pausei a minha carreira para engravidar, já
que ser mãe sempre foi o meu grande sonho. Faz sentido que eu tenha me
rebelado. A parte difícil de acreditar? Os dois terem concordado com a
minha decisão, afinal, meus pais sempre foram implacáveis em exigir de
mim o retorno pelo investimento que fizeram na minha criação.
Mas não importava o quanto eles me contassem, eu não conseguia
me lembrar de nada. Aquelas histórias pareciam tão… não eu.
Assim que recebi alta daquele hospital onde eu acordei, em Moscou,
nos mudamos para Berlim. Leonid e Yekaterina se tornaram obsessivos com
a minha segurança, mantendo-me dentro de casa como faziam na minha
infância. Durante cinco meses, eu pouco conseguia respirar ar puro na
janela do meu quarto sem que um dos dois aparecesse dizendo que era
perigoso.
Eu repetia para mim mesma que era normal eles se preocuparem
após a perda de Zayn e a minha quase morte, mas Yekaterina e Leonid
nunca foram exemplos de pais zelosos. Sem minhas memórias, no entanto,
não sobrava muito para se teorizar.
Até que um dia aconteceu.
Minha primeira lembrança surgiu enquanto eu assistia a uma peça
sinfônica na televisão: a voz de Zayn me dizendo um nome de menina. E o
som assustador de algo se quebrando.
Crack.
Quando contei aos meus pais, eles não ficaram felizes. Acho até que
odiaram a novidade. Correram comigo para o hospital e só descansaram
quando o médico garantiu que aquele fragmento não passava de um sonho,
uma invenção. Uma porção de nada com nada.
— Não se esforce demais, Anastasia — minha mãe disse no
caminho de volta. Eu senti a ordem implícita atrás do sorriso viperino que
ela me deu. — Você não precisa das suas memórias, se concentre no futuro.
Mas isso continuou acontecendo conforme mais imagens surgiam ao
longo do tempo: um piano Fazioli sobre um carpete manchado; um
apartamento tradicional e aconchegante; um homem — não o mesmo dos
meus sonhos — abraçado comigo à beira de uma piscina enquanto eu
chorava; uma amiga, minha vizinha; um salão cheio de crianças aprendendo
música, e eu diante delas, espelhando seus sorrisos, ensinando.
Toda vez que eu tentava contar aos meus pais, eles me levavam ao
mesmo médico para repetir a mesma desculpa esfarrapada que minava as
minhas esperanças.
Então eu parei de contar.
Agora, eu guardo meus fragmentos para mim, tentando juntar tudo
em um quebra-cabeça gigante.
Yekaterina e Leonid não sabem sobre o homem que eu amo. Ele me
pertence, seja real ou não, e sinto um curioso instinto possessivo quando se
trata dele. Não quero ninguém tentando me convencer de sua inexistência.
Ele é meu.
Meus pais também não fazem ideia de que nem todas as minhas
lembranças resgatadas são felizes. Há vezes em que ouço um homem
gritando; vejo poças de sangue; mãos ao redor do meu pescoço, bloqueando
a minha respiração. São apenas flashes que duram no máximo dois
segundos, mas que sempre trazem lágrimas aos meus olhos e um
sentimento sufocante de medo. Muito medo.
O que diabos aconteceu comigo?
Eu preciso descobrir, por isso saí de casa esta noite, menti para
minha mãe sobre o meu destino, e chamei um táxi, despistando o motorista
e os seguranças. E por isso eu estou em um restaurante fora da cidade, em
um espaço reservado, esperando a única pessoa que pode me ajudar.
Alguém que meus pais tentaram manter longe de mim. A terça parte
de um projeto de caridade que perdeu o seu membro mais importante.
— Zayn tem sorte — ele diz, apoiando o braço direito no batente da
porta. Sua voz calorosa me atinge como um abraço morno. — Se estivesse
vivo, eu daria um soco no nariz dele.
Eu dou risada, mas um soluço dissonante a corta no meio.
— P-por quê? — gaguejo.
— Ele me disse uma vez que as pessoas não quebram como os
brinquedos. Nosso irmão mentiu, pois toda vez que a vejo, irmãzinha, você
parece uma bonequinha quebrada.
***
Eu me aninho nos braços do meu irmão por muito, muito tempo,
mas não choro. Sinto vontade, aquela típica queimação nos olhos, o aperto
na garganta, mas as lágrimas se recusam a aparecer. Agora que penso sobre
isso, percebo que tenho chorado cada vez menos nos últimos meses.
Ainda assim, Akira me conforta em silêncio, fazendo carinho nas
minhas costas. Apesar da completa ausência de lágrimas, tanto minhas
quanto dele, nossos lamentos queimam no ar como enxofre: perdemos
nosso irmão, que foi enterrado sem que nenhum de nós dois estivesse
presente, e muito antes disso, nunca tivemos a chance de curar nossas
feridas de infância de maneira adequada.
Mas eu também lamento, especificamente e em segredo, pelo
homem sem rosto e sem nome de quem sinto saudades, que está sempre
comigo, como um membro fantasma, lembrando-me que não posso ser
fraca. Eu preciso de toda a determinação e controle emocional para
descobrir a verdade.
Olho para o rosto do meu irmão. Akira foi o primeiro de nós a sair
de casa, como ele disse que faria desde quando aprendeu a balbuciar frases
inteiras, então eu me acostumei com a sua falta — o que nunca me fez amá-
lo menos. Entretanto, por causa do meu período amnésico, somado aos
últimos doze meses que passei reaprendendo a viver, parece ter se passado
uma eternidade desde o nosso último encontro pessoal. As marcas desse
tempo estão gravadas em todo o seu corpo.
Ele deixou o cabelo crescer. Seus longos fios pretos e muito lisos
estão presos em um coque de samurai. Seu rosto não tem a sombra de uma
barba, é limpo como a pele de um bebê, chamando toda a atenção para o
maxilar reto. Mas a parte mais bonita de Akira são os seus olhos alongados,
que carregam toda a força de sua ascendência.
Meu irmão tem cheiro de algum sabonete barato de ervas. Ele
costumava usar roupas largas e rasgadas na adolescência, como um punk
sem-teto, muito diferente de suas vestes atuais: um casaco longo e preto,
por cima de uma camisa requintada, branca, com botões de madeira, calças
jeans que marcam suas coxas grossas, e um par de tênis branco. Chega a ser
surpreendente que o clássico esporte-social combine tanto com ele.
Depois de me acalmar, eu finalmente pergunto:
— Por que você demorou tanto? Nós brigamos? Você me odeia por
algum motivo?
Ele me observa como se tentasse abrir um buraco na minha cabeça
para olhar o que tem dentro.
— Então é verdade. Você perdeu a memória, como daquela vez no
seu aniversário.
— Quem me dera. — Rio sem humor. — Daquela vez eu esqueci
apenas algumas horas da nossa noite, dessa vez foram anos, Akira. Anos!
Eu acordei e Zayn estava morto, e você… — Tento não soar magoada, mas
fracasso. — Você não veio.
— Eu tentei — ele diz, a voz suave. Sua mão pousa sobre a minha.
— Por meses, eu continuei indo até a residência de Leonid, e você sabe que
jurei nunca mais colocar os meus pés naquele lugar. Mas o desgraçado
sempre dava um jeito de me expulsar.
— Isso… Eu… eu nunca soube — murmuro, mas uma parte de mim
já sabia, não é? Por isso não contei à minha mãe sobre o nosso encontro. —
Sempre que eu perguntava sobre você, nossos pais diziam que também não
tinham notícias.
— Eu já imaginava. — Akira range os dentes.
O quebra-cabeça começa a fazer sentido.
— Quando eu sugeri viajar até a sua companhia, na Rússia, eles
disseram que era melhor esperar que você desse o primeiro passo, que não
seria bom pressioná-lo. Eu tentei ligar, no entanto, mas minhas ligações
eram igualmente inúteis e sempre caíam antes de serem completadas.
— Uau! Os dois foram tão longe a ponto de controlar os seus
telefonemas? Isso é doentio, até para os padrões deles.
— Eu assumi que você não queria me ver ou falar comigo. Fiquei
me questionando se eu tinha feito alguma coisa ruim, se você me odiava.
Cheguei a pensar que talvez me culpasse pela morte de Zayn.
Seus olhos dobram de tamanho, horrorizados.
— Eles disseram isso?
— Não com todas as letras, mas deixaram a hipótese subentendida.
Você sabe como a mãe e o pai são. — Sorrateiros, mentirosos,
manipuladores, adjetivos que meu irmão já conhece. — Como eu tinha
preocupações mais importantes para lidar, e precisava de toda a ajuda
possível dadas as minhas condições, resolvi esperar e observar. Eu
suspeitava que estivessem me escondendo coisas, só não fazia ideia de que
eram tantas.
Ou tão sombrias.
— Você ainda não faz ideia. — Uma entonação raivosa se projeta de
sua boca. Sinto um arrepio, meus pelos ficam eriçados. — Assim que eu
soube da morte de Zayn, fiz de tudo para chegar até você. Até pensei em
abrir uma ocorrência na polícia, mas você não estava com eles contra a sua
vontade, e chamar atenção só iria piorar as coisas. Eu sabia que, se
pensassem que eu havia desistido, cedo ou tarde, eles baixariam a guarda, e
por saber da sua condição delicada, achei melhor esperar.
Então, nós tivemos a mesma ideia. Ainda que seu relato seja triste, o
final faz brotar um sorriso no meu rosto.
— Minha condição delicada?
As feições duras de Akira desmoronam. Ele solta a minha mão e
coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha, o gesto é cuidadoso e
familiar. Eu me inclino ao toque.
— É um jeito de falar. — Ele balança a cabeça, espantando algum
pensamento. — Quando você me contatou através da sua assistente, eu
quase não acreditei. Aqueles filhos da puta devem ter adorado recuperar a
Rapunzel deles. Eu não devia ter ido embora, se eu estivesse por perto,
talvez Zayn… — Meu irmão não termina essa frase.
Há uma semana, recuperei uma lembrança que não era boa e nem
ruim, ou era ambos, ao mesmo tempo. Havia uma mão masculina passando
pela minha pele, adorando-me, ela estava machucada, enfaixada, e por
alguma razão aquilo me fazia sofrer; eu odiava saber que o dono daquela
mão estava ferido. E havia música ao nosso redor, eu a estava tocando
pessimamente, mas ainda consegui reconhecer a melodia.
E eu acho… tenho quase certeza, de que era ele. O homem sem
rosto dos meus sonhos, o dono do meu amor, aquele que pode não existir,
mas que eu preciso que exista. Não sei como, mas eu preciso dele, e por
esse motivo, pedi a Mariya que atuasse longe das vistas dos meus pais e
procurasse por Akira em meu nome.
Eu quero encontrar esse homem.
Foi assim que acabamos neste restaurante, como dois clandestinos.
Quero dizer ao meu irmão que ele não tem culpa, que ninguém tinha
como adivinhar que eu e Zayn seríamos atacados, mas outra parte de sua
fala chama a minha atenção.
— Como assim, me recuperar?
Akira apoia os braços na mesa, o rosto muito sério. Ele solta um
suspiro e captura o meu olhar, prendendo-me na expectativa da sua
resposta. Quando ele começa a falar, o mundo como eu conheço desaparece
sob meus pés.
— Não tem uma forma simples de contar isso, então serei direto. —
Ele suspira. — Você foi casada, Anastasia. Por dois anos, você viveu com
seu marido em São Petersburgo, mas vocês dois se divorciaram algumas
semanas antes da morte de Zayn. Tudo o que nossos pais disseram, as
poucas notícias sobre o assassinato dele, e talvez até mesmo a sua condição
médica, são uma mentira.
***
Eu escuto meu irmão sem interromper, mas não por escolha própria.
Simplesmente não consigo encontrar a minha voz. Não sei o que dizer ou
como reagir à notícia de que minha vida é uma mentira.
É apenas… muita coisa.
Ele conta que me casei com Yerik Baranov, um velho amigo dos
meus irmãos, e abandonei minha carreira para viver como esposa. Bem, é
verdade que várias vezes imaginei como seria renegar os sonhos dos meus
pais para viver o meu próprio, e não ligo para uma carreira mundial, mas a
música faz parte de mim, não sei como cheguei ao ponto de renunciar a ela
totalmente.
A história fica mais estranha quando ele menciona que me isolei do
mundo, afastando-me por completo dele e de Zayn. Na visão de Akira, era
uma coisa boa que eu finalmente estivesse vivendo por mim mesma;
natural, até, considerando o nosso passado e o fato de ele próprio ter fugido
primeiro.
Então ele chega na parte importante. Segundo meu irmão, Zayn
enviou uma mensagem para ele um mês antes de morrer. O trabalho de
Akira exige que ele se mantenha fora de acesso durante longos períodos,
então quando ele tomou conhecimento da mensagem, era tarde.
Nosso irmão deixou duas informações importantes na tal
mensagem: primeiro, que eu e meu marido havíamos nos divorciado após
eu fugir de casa; e segundo, que ele já tinha resolvido tudo — seja lá o que
esse "tudo" significa. Ele esperava se encontrar com Akira assim que
possível, e prometeu contar os detalhes pessoalmente, mas isso nunca
chegou a acontecer.
E nunca vai, porque nosso irmão está morto.
— Tem mais uma coisa. — Ele retira um envelope de seu casaco e
espalha o conteúdo sobre a mesa, afastando nossos pratos e talheres
intocados para abrir espaço. — Seu marido, quer dizer, ex-marido — ele
hesita, seu pomo de Adão sobe e desce —, morreu no mesmo dia que Zayn.
Um único som sai da minha boca:
— Oh.
Meu irmão sonda meu rosto. Acho que ele está com medo de eu
colapsar, mas não me sinto à beira de um surto. Já que não me lembro de
nada do que ele está dizendo, é como ouvir uma história que foi vivida por
outra pessoa. É chocante, claro, e talvez eu precise de tempo para digerir
tudo, mas diferente da versão contada — inventada — pelos meus pais, essa
me parece tão… verdadeira.
Uma verdade assustadora, sim, mas há algo mais. Como um
caminho de pedras vulcânicas cujo destino meu subconsciente esteve
almejando em segredo.
Eu sei que Yerik e o homem que costuma aparecer nas minhas
lembranças, ou sonhos, não são a mesma pessoa. Lembro-me dele de
antigamente, com meus irmãos, e posso não saber como o rosto daquele que
amo se parece, mas todas as suas demais características não correspondem
às do meu marido. Ex-marido. Falecido.
Falecido-ex-marido?
Tanto faz. Fico aliviada que sejam pessoas diferentes,
principalmente quando meu irmão me entrega o recorte de uma notícia
impressa. No título, escrito com letras garrafais, eu leio "CONFLITOS
COMERCIAIS ENTRE BANQUEIRO E ADVOGADO TERMINAM EM
TRAGÉDIA". Em um segundo recorte, mais discreto, retirado de um jornal
digital, outra notícia sobre o caso diz: "Bilionário sequestrado por Yerik
Baranov alega ter agido em legítima defesa”.
As folhas tremem nas minhas mãos. Não sou de falar palavrões, mas
o "puta que pariu" que sai da minha boca parece bem adequado.
— No último ano, eu me dediquei a investigar a morte de Zayn em
busca do assassino que tirou a vida dele, e quanto mais eu investigava, mais
certeza eu tinha de que esses dois casos estão interligados. — Akira faz
uma pausa e, em tom de desculpas, diz: — Sinto muito, sei que é demais
para você processar de uma vez.
Entre receber doses homeopáticas de memórias sem sentido, e ouvir
a verdade em um único golpe, eu fico com a segunda opção.
— Não se preocupe comigo, continue.
Akira faz uma expressão involuntária de surpresa, em seguida, volta
a me olhar como se quisesse remover a tampa do meu crânio e vasculhar o
interior em busca de um parafuso solto. Eu devo ter uma coleção deles.
— Tem certeza?
Meneio a cabeça, confirmando. Aponto para os documentos.
— Você disse que os dois casos estão interligados. Por que acha
isso?
— Eu sei que vai parecer teoria da conspiração, mas… — Meu
irmão olha por cima do ombro, verificando se estamos salvos de ouvidos
curiosos antes de continuar: — Sua conexão com Yerik foi ignorada pela
polícia e pela grande mídia, e o assassinato de Zayn no parque teve
pouquíssima repercussão, já que todos os veículos de comunicação estavam
focados no sequestro. A polícia disse que vocês dois foram assaltados e
arquivou a investigação por falta de pistas, mas eles nem se esforçaram. E a
parte mais estranha, é que não há registro midiático do seu casamento em
nenhum lugar, como se tivessem apagado propositalmente a relação de
vocês.
— Isso é possível? Por que alguém faria algo assim? Acha que
nossos pais…
— Sozinhos, eles não têm poder suficiente para uma manipulação
desse nível. Além do presidente da Rússia em pessoa, só existe uma família
em nosso país com influência, dinheiro e autoridade para distorcer um
crime. Já fizeram isso antes, ocultando um desabamento. — Ele pega uma
fotografia no meio de suas evidências e aponta para os homens em
sequência. — Esses quatro irmãos. Vladimir, Ivan, Roman e Andrei
Volkiov.
Sinto um puxão, uma linha invisível presa em meu peito se alonga,
como uma vara de pesca fisgada por um peixe. Meu olhar se agarra ao
último homem. Todos são lindos, mas há algo sobre ele que me deixa
hipnotizada. Seu sorriso parece conter um oceano de segredos, e o ar de
mistério funciona como uma extensão de sua beleza. Mesmo através de
uma simples foto, ele se porta como um rei, emanando segurança e uma
tranquilidade calculada.
Não é a primeira vez que o vejo.
— Andrei Volkiov — ecoo seu nome, ele tem um sabor doce e
picante na minha língua.
— Esse é o homem que foi sequestrado por Yerik — Akira diz, mas
eu já imaginava. Meu subconsciente sabe dessa informação, e odeio não ser
capaz de acessá-la. Seria tão mais fácil se meu cérebro estúpido libertasse
as minhas memórias.
Mas eu junto os pontos.
Ele matou o seu sequestrador. Andrei Volkiov tirou uma vida com as
próprias mãos. Assim como eu, ele também quase morreu.
Estranhamente, meus olhos se enchem de lágrimas, e uma tristeza
antiga se aloja em meu corpo, atrás das costelas.
— Andrei Volkiov — repito, não sei por quê. Esse nome… quero
dizê-lo dez vezes mais. Não, cem vezes. Toco seu rosto com a ponta do meu
indicador, traçando o contorno do seu sorriso. — Eu o conheço.
— Das suas memórias perdidas?
— Não, não das perdidas, mas de depois delas. — Minha mão livre
se fecha ao redor do pingente em meu pescoço e eu volto no tempo. — Nós
ficamos internados no mesmo hospital.
***
***
***
***
***
***
***
As expressões tensas nos rostos de Ivan, Vladimir e Roman me dão
uma pista de que não sou o único revivendo a memória.
Quero ser racional, de verdade, mas a presença de Anastasia torna as
coisas muito difíceis na batalha entre o meu cérebro e o coração. Eu tive
que me trancar em nosso apartamento por noites seguidas desde que a vi no
leilão, intoxicando-me com as lembranças dos momentos que vivemos
juntos, de nós dois em cada cômodo, de possuir seu corpo em todos os
lugares possíveis, para me impedir de procurar por ela e continuar de onde
paramos há um ano.
E para quê?
Para meus irmãos a trazerem direto até a nossa toca de lobos.
— Muito bem — digo, meu corpo gira sozinho e me aproximo do
meu adorável imã particular, de ombros estreitos e olhos irresistíveis —, o
que você sabe?
Suas sobrancelhas traçam dois arcos no alto da testa. Anastasia fica
de pé abruptamente, mas com uma fluidez natural. Uma fragrância de
primavera flutua até as minhas narinas, floral e doce, suave, como rosas
desabrochadas ou jasmim. Inspiro todo o ar que consigo, saciando-me do
seu cheiro.
Se eu pudesse apenas me afundar em seu pescoço e consumir tudo
de uma vez…
— Por que eu deveria dizer se você não me diz nada? — ela me
afronta.
— Não sabia que era uma negociação — Meu olhar recai na veia
pulsante que desce rumo à sua clavícula, escondida por baixo do tecido
preto e inconveniente de sua blusa. Deleito-me com os pingentes dourados,
que repousam sobre os montes destacados de seus seios, e subo lentamente
até os lábios.
Anastasia os comprime em linhas apertadas, sua respiração
irregular.
— Eu não ousaria — diz com docilidade irônica. — Afinal, ao
contrário do que dizem os rumores, você não joga limpo. — Ela deve estar
falando do nosso último acordo, quando eu confirmei sua pergunta sobre
termos nos conhecido no passado, mas sem entrar em detalhes.
— É o que eu sempre digo — Roman escarnece, marchando para o
lado de Anastasia e colocando um braço ao redor de seus ombros, como um
polvo escorregadio e cheio de tentáculos. — Os bonzinhos são sempre os
piores!
Ela sorri e, timidamente, escapa das garras de Roman, que coloca a
mão sobre o peito, encenando um golpe no coração. Eu poderia beijá-la
agora mesmo por isso.
— E o que pretende fazer com as informações que está buscando,
senhorita Serova? — Vladimir assume a liderança. Há um discreto ar de
diversão em seus olhos quando se concentram em uma Anastasia bastante
deslocada.
— Espera, vocês estão com medo que eu — ela torce o nariz —,
surte? Ou talvez, que faça um escândalo? Eu não me envolvo com jornais
de fofoca. Ah! Acham que eu vou chamar a polícia?
— É um jeito de colocar as coisas. — Vladimir quase sorri.
— Não se preocupem, se eu acabar em uma polêmica, meus pais
vão me trancar em uma torre tão alta que nem a Rapunzel em pessoa
conseguiria escapar. Eu nunca mais veria a luz do dia e vocês não teriam
que se preocupar comigo perambulando pela empresa ou perseguindo
Andrei. — Anastasia me dá um olhar de esguelha. Tenho a impressão de
que ela quer dizer mais a respeito dessa observação, ou que estou alheio ao
significado oculto do que está insinuando. — Eu acho que, dependendo do
ponto de vista, podem até achar um bom negócio. Mas eu gosto de vocês e
não quero prejudicar ninguém.
Ela está tagarelando por causa do nervosismo.
— Repita a última parte, docinho. — Roman abre um sorriso cheio
de dentes. — Não é todo dia que isso acontece, não somos gostáveis.
Somos, eu diria, o oposto disso, algo como insuportáveis ou detestáveis,
Vladimir especialmente. — Ele abaixa o tom de voz, mas nós conseguimos
ouvir muito bem quando acrescenta: — Serena diz que o ama, mas cá entre
nós, ela não bate muito bem da cabeça.
Anastasia sorri com uma diversão respeitosa, não querendo ser
conivente com a insolência de Roman, mas não conseguindo resistir ao seu
humor espaçoso. Antigamente, ela mal conseguia estar no mesmo ambiente
que nós quatro sem se tremer inteira.
Sinto um aperto familiar no peito, fundo o suficiente para ninguém
perceber.
— Eu não concordo. — Ela coloca um longo cacho atrás da orelha.
— Não os conheço — diz, e não deixo de notar que, ao invés disso, ela
poderia ter dito que não se lembra de nós —, mas Ivan me trouxe até aqui
mesmo sabendo que causaria um grande alvoroço; Roman está fazendo
piadas e irritando vocês para que eu me sinta confortável; e Vladimir parece
o mais disposto a ouvir o meu lado e garantir que ninguém saia prejudicado.
— Anastasia me olha e comprime a boca, sem nada a acrescentar sobre
mim.
Eu sorriria, pois sei que ela está magoada comigo e esse é seu jeito
de se manter por cima, mas acabo me sentindo… enciumado.
— E seu irmão? Akira Serov pensa como você? — Vladimir
questiona, e fico perplexo com sua dissimulação. Às vezes é difícil dizer
qual de nós dois é o melhor mentiroso. — Não foi graças às investigações
dele que você conseguiu chegar até nós?
— Akira só quer descobrir quem assassinou nosso irmão. A menos
que tenha sido um de vocês, é improvável que ele cause problemas. — Ela
faz uma pausa, os olhos crescendo. — Não que eu ache que… — gagueja,
evitando me encarar. — Eu não acredito que fariam algo assim.
Minhas unhas afundam nas palmas com tanta força que sinto a
descarga das pontas afiadas através das luvas. Não sou ingênuo, eu matei
uma pessoa, independente das circunstâncias, todo mundo sabe. Mas nunca
pensei que esse momento chegaria, em que eu me sentiria feio e
envergonhado por uma escolha da qual não me arrependo.
Eu sei o que tenho que fazer, mas a consciência não é nem um
pouco encorajadora. Se o tormento de Anastasia reside em sua falta de
memórias, pode-se dizer que o meu está em seu oposto equivalente:
lembrar-me de tudo com uma perturbadora riqueza de detalhes.
Sinto o olhar condescendente de Ivan, porém, não busco abrigo em
seu apoio silencioso. Chego perto de Anastasia, que não se afasta. Ela
sempre foi boa em esconder seus sentimentos, impedir-me de interpretar a
maioria das suas expressões, usando um véu sobre si mesma a fim de se
defender do mundo.
O véu não existe mais.
Ela mostra tudo: carinho, esperança, amor e até um desejo por algo
intenso que eu me nego a reconhecer. Anastasia quer a verdade porque não
sabe como lidar com os sentimentos remanescentes de uma vida da qual
não se lembra. Ela acha que a verdade vai libertá-la, mas está enganada.
A verdade é uma prisão agridoce.
Minha prisão.
— Vocês têm razão — eu declaro, sentindo-me derrotado e até meio
inútil, como uma vela embaixo d'água —, lutar contra o inevitável não vai
nos trazer nada além de ressentimentos e uma sensação incorreta de
fracasso.
Anastasia ergue a mão direita e, por um breve momento, eu acho
que vai esticar o braço até mim, vejo-me inclinando, esperançoso e
descuidado, mas ela o recolhe e fecha os dedos sobre o peito.
Espero que minha decepção não esteja escancarada em meu
semblante.
— Isso quer dizer — ela articula, hesitante — que aceita falar
comigo?
— Você não precisa, e não vai, continuar se humilhando por
respostas. Desculpe por resistir tanto, mas eu precisava tentar. — Faço o
mesmo movimento que ela com a mão, mas não recuo, alcanço seu rosto,
um leve roçar que mal pode ser considerado um toque. Ela estremece. —
Antes de começarmos, eu quero que você saiba que… — Fecho os olhos,
manchas vermelhas pontilham a escuridão por trás das minhas pálpebras. —
Eu só queria que você tivesse uma chance de ser feliz, e sabia que não
conseguiria ao meu lado, não da forma como eu estava. Era o único jeito.
***
***
***
Dou uma boa olhada no meu filho. Limpo, sem nenhum hematoma,
perfeito como no dia em que veio ao mundo. Andrei é uma obra prima, de
beleza delicada e, ao mesmo tempo, poderosa. Um anjo vingador. O
sequestro não deixou marcas visíveis em seu rosto, nada que remeta aos
dias terríveis passados naquele leito de hospital, mas as feridas na carne
são, com grande frequência, as que desaparecem mais rápido.
— Você e seus irmãos não me enganam — respondo em tom
acusatório —, sei quando estão escondendo coisas de mim, mas confesso
que, mesmo assim, eu queria ser contra a separação na época. Só que eu
quase perdi você. Como mãe, eu tinha que ficar ao seu lado e priorizar a sua
recuperação, você estava no fundo do poço, definhando até a morte. Com
Anastasia, seriam duas pessoas a serem salvas de um lugar muito fundo e
muito escuro. Separados, vocês puderam se esforçar por si mesmos.
Andrei concorda, movendo a cabeça devagar.
— Eu sempre soube que ela seria capaz, nunca duvidei nem por um
segundo. Por isso eu consegui deixá-la ir. — Ele olha as próprias mãos, que
estão nuas, sem as luvas usuais, e me pergunto o que ele vê enquanto as
encara. — Não sei se posso dizer o mesmo de mim.
— Ah, meu querido filho, eu sei como é fazer um sacrifício em
nome do amor, mas também sei como é estar do outro lado, como é ser a
pessoa por quem os outros se sacrificam, e garanto a você, nenhum dos dois
casos deveria ser um estado permanente. — Percebendo o clima
melodramático, decido fazer um desvio no assunto e retornar ao plano
original. — Enquanto perdemos tempo, por exemplo, Anastasia pode estar
agora mesmo nos braços do George.
— Não existe um George — Andrei bufa, rangendo os dentes.
— Ainda — observo. — Não faça essa cara, você aceitou o risco
quando se separaram, ou por acaso pensou que Anastasia fosse continuar
solteira para sempre?
— Claro que considerei a possibilidade, mas não sou um
masoquista. Não vou me submeter à tortura de imaginar a mulher da minha
vida construindo uma família feliz com algum desgraçado. Não, muito
obrigado. — Com uma careta irritada, Andrei se afasta até o outro lado da
cozinha e se apoia em um balcão que divide o ambiente da sala de estar.
— Eu entendo, o que os olhos não veem, o coração não sente. Mas
você a viu — cantarolo — e não pode desver. — Desligo o fogão antiquado
e despejo o conteúdo do bule em duas xícaras transparentes, porém, a
aparência do líquido... — Estranho, ficou preto, acho que deveria ser meio
avermelhado, ou seria marrom?
— Desde quando a senhora sabe?
— Eu nunca fiz chá de folha de groselha, então não sei…
— Não estou falando sobre o chá. — Ainda estou analisando as
duas bebidas, já que a textura densa parece tão suspeita quanto a coloração,
quando percebo a mudança em sua voz, o tom grave e contido, chamando a
minha atenção. — Se é que isso pode ser chamado assim — acrescenta.
Devagar, equilibro as duas xícaras, uma em cada mão, e o encaro. Andrei
tem um sorriso tímido e fatalista que não me inspira um bom
pressentimento. — Desde quando sabe que Evgenia perdeu um filho meu?
Não sou fácil de surpreender, mas sua pergunta me deixa sem fala.
Com passos calculados, eu me junto a ele, disponho as duas bebidas sobre a
bancada de madeira e me sento no banco alto e desconfortável.
— Desde quando você sabe que eu sei? — questiono.
De perto assim, reparo nas olheiras em seu rosto, os ombros meio
caídos, sua compleição embotada, reflexos de uma noite mal dormida.
— Não faz muito tempo, eu fui juntando os pontos porque sempre
achei estranha a maneira como a senhora reprovava Evgenia, já que nunca
foi seletiva com nossas parceiras. Muito pelo contrário, se eu aparecesse
casado com uma assassina em série, você diria que não podemos julgar os
hobbys das pessoas e mandaria construir um quarto de bebê inspirado no
Ghostface. — Ele sorri, e é sincero. — Então tinha que existir um motivo,
mas você jamais a julgaria daquela maneira simplesmente por não querer
ter filhos, seria cruel e misógino, e eu a conheço, você não é assim, embora
sempre usasse esse argumento para escapar do que realmente a
incomodava.
— E eu pensando que tinha disfarçado bem.
— Você nem tentou. — Meu filho gargalha, zombando. — Quando
anunciei que estava namorando, foi na mesma época em que Vladimir deu
início às negociações de matrimônio comercial com a família de Lara, e
tudo se tornou uma bagunça. Evgenia perdeu o bebê, e só depois vocês
puderam conhecê-la pessoalmente. Já naquela época, você não a suportava,
e eu simplesmente presumi que devia haver uma explicação no meio desses
dois acontecimentos.
— Mas como ela o manipulou para não buscar conforto no seio da
sua família, usando a desculpa de que não queria que ninguém soubesse,
você se afastou para que não percebêssemos como aquela perda o havia
destruído — adivinho. Andrei não nega. — Muito conveniente para ela,
não? Principalmente sendo uma mulher que estava sofrendo tanto, ou
deveria estar.
— Eu estava cego, achava que tinha o controle de tudo, que ceder às
vontades dela era a escolha certa. Não sou inocente, era cômodo para mim
também: já que eu não estava em condições psicológicas de conversar sobre
o ocorrido, afastar-me com a desculpa de satisfazer Evgenia parecia uma
dádiva. Eu estava errado, e me arrependo profundamente. — Andrei olha
para longe, sem focar em nada, como se pudesse ver uma imagem do
passado flutuando no meio da cozinha. — Depois do sequestro, quando eu
ainda estava no hospital, Evgenia me fez uma visita e acabou deixando
escapar que vocês duas se encontraram antes de eu apresentá-la à família.
— Ela foi ao hospital? — Sinto uma onda de fúria tomar conta de
mim, uma vontade fervorosa de incorporar a Rainha de Copas e cortar
cabeças à reveria. — Com que propósito? Não me diga que esperava reatar
com você naquela situação?
— Quando nos separamos, não foi bonito. Evgenia estava fora de si
e disse que estaria por perto para ver a minha ruína. — Ele dá de ombros,
como quem está acostumado. Fico imaginando que tipo de coisas ele teve
que suportar até chegar nesse nível de não se surpreender mais com nada
que Evgenia faça. — E ela estava.
— Que absurdo! — digo com desprezo. — É verdade, eu a procurei
logo no começo, sem você saber. As minhas intenções eram as melhores, eu
pretendia dizer a ela que estava feliz por ter uma nora e quem sabe
incentivá-la ao casamento, você sabe que eu sou uma idosa prática. Mas
quando toquei no assunto, ela disse que nunca teriam filhos porque não
aceitava dividir você com mais ninguém, nem mesmo com uma criança
gerada por vocês dois. Que jamais o deixaria amar outra pessoa mais do que
amava ela, nem mesmo um bebê. O bebê de vocês dois! Eu teria respeitado
a escolha dela por qualquer outro motivo, mas esse… — Torço o nariz,
sentindo repulsa ao lembrar.
— Realmente, soa como algo que ela diria.
— Dias depois, você mudou completamente, indo do céu ao inferno.
Em um mês, estava nas nuvens, no outro, se tornou alguém triste, quebrado
e distante. Começou a beber e se afastar. Eu apenas cheguei à conclusão
óbvia de que ela havia perdido um bebê, ou o tirado, e não posso fazer um
julgamento sobre o segundo caso, por mais que eu tenha uma opinião a
respeito se tratando do meu neto. Mas sobre ela usar o seu maior sonho
contra você, meu filho, isso eu jamais perdoarei.
Andrei arregala os lindos olhos castanhos, o halo dourado ao redor
de suas íris aumentando como uma estrela no céu.
— Tirado? Você acha que… — Ele fecha as mãos, e eu percebo,
com muita tristeza, que a possibilidade jamais havia passado por sua
cabeça. — Não, mãe, isso não é possível. Evgenia me culpava pela perda,
dizia que havia perdido nosso bebê porque eu não me dedicava a ela,
sempre dividido entre a minha família e a nossa relação.
— Ela tinha todas as bandeiras vermelhas, mesmo assim, achei
melhor não fazer acusações sem provas. A perda de um filho é sempre um
assunto delicado, mesmo se induzido. E, se fosse o caso, eu esperava que
ela mesma contasse a verdade a você. — Rolo os olhos para cima. — Só
que você decidiu sair de casa para morar com ela e eu me vi de mãos
atadas.
Meu filho exala uma respiração pesada.
— Eu não sei o que dizer. Acho que não importa. Não mais.
— Você já passou por esse luto — eu o apoio, sorrindo. — Por isso
é capaz de falar sobre ele agora, mas não conseguia antes. Significa que está
superando, meu filho, parabéns. — Aproveitando a deixa, toco em um
tópico igualmente sensível, mais recente, e que ainda dói em toda a família:
— E talvez seja hora de começar a superar a segunda perda também, junto
com a mulher que ama. Você nunca vai se perdoar se não tentar.
Ele sorri com leveza, sincero, os dentes retos aparecendo na fenda
entre os lábios. O sorriso de Andrei é capaz de mover montanhas; é uma
pena que, ultimamente, ele tenha encontrado poucos motivos para fazê-lo.
— Você é mesmo uma mulher obstinada, Tatiana Volkiova, tenho
que reconhecer. — Ele ergue sua xícara, retine contra a minha e faz menção
de tomar um gole, mas desiste depois de sentir o cheiro do meu chá.
A culinária nunca foi o meu ponto forte.
Não deixo de achar suspeita a sua rápida aceitação à ideia de
reconquistar Anastasia. Pensei que seria mais difícil, mas eu é que não vou
reclamar!
— Também sou sábia, bonita e inteligente — complemento, afinal, é
a verdade. — Não poupe elogios, meu querido, o que seria de você e seus
irmãos tolos sem mim? Mas agora, sobre aquela mensagem…
***
***
Andrei
ALGUÉM ME CONTOU que Anastasia perdeu o bebê. Não sei quem. E
não sei quanto tempo se passou desde que a informação chegou até mim.
Uma hora? Um dia?
Droga, eles me prenderam à cama porque eu estava gritando e
chorando, e acho que quebrei o nariz de um médico. Depois me apagaram
para evitar que eu acabasse me machucando — com ou sem intenção.
Ainda sinto o efeito do calmante no meu organismo, uma leve sensação de
estar lento em relação à vida real. Agora não tenho como fazer nada além
de… de o quê?
Minha filha não existe mais.
Estou tentando entender, juro que sim. Os médicos dizem que
preciso, como é mesmo? Reagir. Isso. Eles querem que eu faça alguma
coisa, mas sem me esforçar demais para não prejudicar o meu braço
esquerdo, que está imobilizado por causa da cirurgia que fizeram no meu
ombro, e de uma fratura na minha mão. Acho contraditório, estou preso e
dopado, mas não digo nada. Tenho a impressão de que, se abrir a minha
boca, será para amaldiçoar cada um deles por não salvarem a minha
garotinha.
Na minha cabeça, onde eu consigo me isolar da realidade, há uma
série de caixas em um corredor vermelho. Cada caixa possui um rótulo.
Estão organizadas por data, eu acho. O que veio antes e o que veio depois, e
cada uma está relacionada à próxima. É como uma trilha de dominós: ao se
empurrar a primeira peça, não tem como evitar a reação em cadeia, elas
desabam umas sobre as outras até não restar nada.
Eu achava que tudo tinha começado com Anastasia. No aeroporto.
Mas foi antes. A primeira caixa é antiga e nela está escrito “Evgenia sofreu
um aborto”, o primeiro acontecimento em uma série de desastres. Foi por
causa dessa perda que eu fiquei preso em um relacionamento condenado. E
por não ter me curado completamente, acabei me deixando levar pelas
enganações de Yerik, pensando nele como um pai desolado pelo abandono
da mulher grávida.
Está tudo conectado de uma forma ou de outra.
No dia em que me separei de Evgenia e Anastasia fugiu de Yerik,
nós nos apaixonamos à primeira vista. Era de se esperar, já que ambos
tínhamos a mesma vontade não saciada de amor. Nós éramos iguais em
nossos sofrimentos.
Um miserável reconhece o outro.
Mas não era o bastante. Não foi o bastante.
Aqui, em meu recanto alucinado de recordações em caixas e
corredores de sangue, vejo como nossa história é cheia de momentos tristes
e alguns poucos respiros de felicidade. Não há equilíbrio. Os últimos
eventos são especialmente trágicos.
Anastasia foi sequestrada.
Eu matei Yerik.
Anastasia sobreviveu ao tiro.
Ela não se lembra de nada.
Nossa filha está morta.
Não há mais caixas.
Então é isso. O que começou com a perda de um filho, terminou
com a perda de outro.
Fico imaginando como seria a relação dos dois se estivessem vivos.
Aposto que seriam bons irmãos. Caso o primeiro bebê fosse um menino, ele
seria protetor com a irmãzinha, como é típico de todo garoto da nossa
família. Os dois cresceriam ao lado dos primos, e dentro de alguns anos
teríamos uma pequena gangue de Volkiovs causando estragos por todo o
país.
Mas sei que estou apenas me torturando com tais pensamentos
inúteis. A realidade não pode ser alterada só porque estou sofrendo.
Ao lado da minha cama, sobre um móvel alto de cabeceira, está o
colar que encontraram no meu bolso. Uma coroa e uma nota musical feitos
de ouro e brilhantes. Eu disse aos meus irmãos que entregaria pessoalmente,
mas ainda não consegui me encontrar com ela.
Anastasia, segundo disseram, está se recuperando devagar. Os pais
dela já estavam aqui quando chegamos e assumiram a frente do seu
tratamento. Eu não queria, eles não teriam sido a minha escolha número
um, e nem a número cem, mas precisávamos de alguém que pudesse nos
ajudar a desassociar a imagem de Anastasia da nossa e de Yerik, e eles
mentem muito bem.
Vladimir me garantiu que o plano está funcionando. A parte mais
difícil é não podermos nos aproximar dela. Ficar ao seu lado. Ela já sabe?
Alguém contou sobre a nossa filha? Como ela reagiu?
Porra, eu preciso da minha mulher! Foda-se tudo.
Ouço as dobradiças da porta. Deve ser alguém da minha família
vindo conferir se o efeito dos sedativos já passou, ou um enfermeiro com
mais remédios. Seja quem for, quero que remova as restrições para que eu
possa ir atrás de Anastasia, então forço minhas pálpebras arenosas a se
abrirem.
E vejo uma figura parada na extremidade da minha cama que faz
meu coração parar por um momento. Não de alegria, mas de terror.
É ele.
O rosto desfigurado e ensanguentado. Yerik. Tento me arrastar para
longe dele, porém, estou amarrado — meu pulso direito e os tornozelos.
Não tenho como me mover. Assim como fiquei amarrado àquela cadeira
enquanto Anastasia sangrava. Meu corpo sofre um espasmo, como se meu
subconsciente também quisesse sair correndo.
Sinto ânsia de vômito. Tem alguma coisa errada com o meu peito.
Uma camada grossa de suor frio escorre pelas minhas têmporas, mas não
consigo alcançar o rosto para limpar. Eu pisco, minha visão é engolida por
uma penumbra carmesim, e ele desaparece. Apenas um segundo e não está
mais ali, assombrando-me. Em seu lugar, há uma mulher baixa e magra que
conheço bem.
Evgenia.
Ela caminha ao redor da minha cama de hospital. No meio da névoa
vermelha que confunde meus pensamentos e emoções, não consigo registrar
como está vestida ou qualquer outro detalhe sobre a sua aparência. Reparo
apenas em uma coisa: ela está sorrindo.
Será que percebeu o meu pequeno ataque de histeria? Os médicos
disseram que as alucinações fazem parte do trauma e que devem
desaparecer com tempo, paciência e bastante ajuda psicológica. Eu disse a
eles que um copo de vodca, ou qualquer coisa alcoólica, resolveria o
problema. Minha sugestão foi, obviamente, ignorada.
Minha única mão disponível continua enfaixada, mas consigo mover
os dedos e os enterro no colchão, agarrando-me a qualquer coisa que me
ajude a manter a lucidez. Eu gostaria que Evgenia fosse outro delírio, outra
invenção da minha cabeça fodida que vai desaparecer assim que eu piscar
os olhos novamente.
Preferir fantasmas a tormentos de carne e osso deve dizer alguma
coisa sobre mim. Mas não cedo a esperanças vazias e a encaro, dando a ela
a atenção que deseja.
Evgenia sempre gostou de me ver assim, no meu pior estado.
— O que est… — Caralho. Não esperava que minha voz fosse soar
tão patética e frágil, então faço uma pausa e recomeço, dessa vez,
controlando o meu tom corretamente. — Como conseguiu entrar aqui?
— Alguma vez você já pensou — diz, observando os aparelhos
conectados ao meu corpo, contando o ritmo dos meus batimentos — como
teria sido se não tivesse me deixado?
Está claro que não vai responder a minha pergunta. Ela coloca um
pequeno arranjo de flores na mesa, perto do colar. Conto os botões
vermelhos. Seis.
Um número par para o luto.
— O que você quer?
— Não, eu aposto que não. — Ela me ignora mais uma vez. Seu
jeito de falar é estranhamente doce e calmo. — Você nem imagina, não é?
Tudo, tudo teria sido diferente, Andrei. Nada disso precisava ter acontecido.
Você só tinha que ficar comigo. — Sinto sua mão em meu tornozelo, mas
como não há nada que eu possa fazer para escapar de seu toque, também
não dou a ela a satisfação de perceber a minha repulsa.
— Vá embora — ordeno, frio e direto. Meu corpo fica tenso
involuntariamente quando ela começa a subir os dedos.
Evgenia ri alto, o som me remete a unhas raspando em uma lousa de
giz.
— Eu vi nos jornais o que seus irmãos estão fazendo. — Ela para na
linha do meu joelho e se inclina sobre mim, sua outra mão afunda ao lado
da minha cabeça, no travesseiro sobre o qual estou deitado. Seu longo
cabelo preto, que um dia achei atraente e lindo, ofusca toda a luz e nenhum
brilho consegue chegar aos seus olhos. — O poder do dinheiro é
impressionante, vocês conseguiram mudar a história, mas você sabe que a
culpa é sua. Como sempre, meu amor, você é o único culpado.
— Não me chame assim, não sou seu amor. Não sou nada seu.
Mas a culpa é minha, ela está certa.
— Você é meu — sussurra. — Nunca deixou de ser.
— Eu avisei para ficar longe de mim e da minha família — digo
apaticamente. Estou cansado demais para brigar com ela. Considerando
minha posição desfavorável, só existe uma pessoa capaz de sair vitoriosa
desse embate, e não sou eu. Conheço Evgenia, eu só preciso suportar até
que ela alcance qualquer que seja o seu objetivo do dia.
Minha filha morreu.
Minha mulher não se lembra de mim.
Eu matei uma pessoa.
Honestamente, aguentar o assédio de Evgenia é o menor dos meus
problemas.
— Um dia, Andrei Volkiov, você encontrará alguém que não vai
conseguir salvar — ela recita as mesmas palavras que disse quando nos
separamos, uma maldição de rancor que eu nunca levei a sério — e eu
espero estar por perto para assistir a sua queda quando esse momento
chegar. — Evgenia sorri, desliza a mão pela minha coxa. — Eu tinha que
ver — diz de um jeito manhoso. — Andrei Volkiov, o salvador de
ninguém.
Sua voz se assenta na minha mente e cria raízes muito profundas.
O salvador de ninguém.
— Saia. — Ouço o ranger dos meus dentes. — Tire as mãos de
mim.
Sua expressão oscila — mágoa, mas rapidamente encoberta por um
sorriso largo.
— Sabia que sua mãe me procurou uma vez? Não é engraçado?
Antes do nosso bebê. Sou muito grata. Graças a ela, eu pude entender que a
sua família seria sempre um problema.
— Do que caralhos você está falando?
Paro de respirar com o próximo movimento de sua mão. Ela nota
minha tensão e ronrona como um felino cujas garras estão fincadas na
cauda de um ratinho. O toque já não me é familiar, sinto-me invadido
conforme seu dedilhar continua rumando para cima, ao longo da minha
barriga até o ponto sobre o meu coração, onde sua mão enfim repousa com
os cinco dedos abertos.
— Está doendo, eu sei. Mas você fez isso quando trouxe as duas
para as nossas vidas. Por que pensou que tinha o direito de assumir a
criança de outro homem depois de causar a morte do nosso bebê, Andrei?
Depois de me abandonar? Essa dor que está sentindo é um lembrete de que
você não merece seguir em frente sem mim.
Seu veneno penetra as camadas vulneráveis dos meus pensamentos.
Não tenho como lutar contra a verdade que ela injeta nas minhas veias: a
culpa é o carma da desonra; o tamanho da culpa que sentimos é equivalente
ao sofrimento que causamos.
— Sim, está doendo — digo sem emoção. — Pronto, era o que você
queria escutar? Tire uma foto, se preferir, só faça depressa ou vai acabar
sendo pega. — A expressão dela fica cinza. — Por que essa cara de
surpresa? Você é boa no que faz, mas não é melhor do que eu, Genny. Ficou
esperando quantos dias por essa oportunidade ideal de invadir o meu
quarto? Quem você subornou para conseguir o acesso? Quanto tempo te
deram, hein? Cinco minutos? Dez? É melhor se apressar.
Evgenia comprime os lábios, confirmando que fiz a leitura correta
da situação.
— Já estou de saída. — Ela crava as unhas no meu rosto. — Só mais
uma coisa…
Minha mente fica em branco, como se o relógio pulasse um
segundo, e quando compreendo a boca de Evgenia se forçando contra a
minha, é tarde demais. O rosto de Anastasia pisca no meio do nada, um
vislumbre de lembrança que amplifica o sentimento de nojo que toma conta
de mim. Viro o rosto com brusquidão e me debato.
Sou mais forte, mesmo preso, e a cama é alta. Ela tenta segurar a
minha cabeça, mas não consegue. Por fim, Evgenia se endireita, rindo,
passa o polegar na boca, soltando um gemido agudo. A cena toda é
perturbadora, confusa, e não deixo de pensar que talvez eu só esteja tendo
um pesadelo.
Quem sabe ela faça parte do trauma também, uma alucinação que eu
mesmo criei para me castigar.
— Ficou louca? — pergunto, incrédulo, com raiva e asco, minha
visão embebida em sangue, os dentes trincados.
— Eu sabia que você não ia gritar. Seus irmãos estão na sala ao
lado, teriam vindo correndo. Mas você é do tipo que prefere sofrer sozinho.
— Vá. Embora. Porra! — vocifero.
Ela faz uma última carícia na minha mão enfaixada, que mantenho
em punho apesar da dor que me aflige. Abaixa-se perto do meu ouvido e eu,
por reflexo ao que acabou de acontecer, viro a cabeça, praticamente
afundando o rosto no travesseiro.
— A ignorância é uma benção, Andrei. Ela não vai entender, não
como eu. Nada pode ficar entre nós. Filhos, mulheres e nem a sua família.
No final, eu sempre serei aquela que vai aceitar você apesar de qualquer
coisa, do sangue inocente nas suas mãos, das suas mentiras e manipulações,
porque nós somos iguais. E assim como eu disse que estaria aqui para ver a
sua queda, estarei vendo você rastejar de volta para mim.
Não aceito suas palavras. Nada do que ela diz tem coerência. Eu
amo Anastasia. Com ou sem memórias, ela é o amor da minha vida. Minha
mulher. Minha princesa.
É isso o que estou prestes a dizer, mas assim que viro o meu olhar
em sua direção, Evgenia já está saindo do meu quarto. A porta se fecha, um
retângulo branco com uma maçaneta dourada, e não volta a se abrir.
Mantenho meu olhar fixo na entrada, esperando o seu retorno para mais
tormentos, mas o silêncio se prolonga e é como se ela nunca tivesse estado
aqui.
Talvez tenha sido mesmo um pesadelo?
Eu estou quebrado nesse nível?
Esfrego a ponte entre os meus olhos, tentando limpar a matiz
vermelha que tinge o meu mundo, mas…
Espere.
Confuso, olho para minha mão direita, aquela que Evgenia tocou
antes de sair. Livre. Ela me soltou? Por que?
Bem, não importa. Estou à beira de outro ataque. Eu o sinto
rastejando dentro de mim como uma víbora, veneno gotejando de seus
dentes afiados. Anastasia — o nome dela, o conceito de sua existência —
brilha nos confins mais obscuros da minha mente, a luz que eu preciso
perseguir, minha salvação.
Não posso dizer como, já que meus membros não parecem
responder aos meus comandos muito bem, como se houvesse um atraso de
comunicação entre o meu cérebro e o restante do meu corpo, mas termino
de me soltar. Desconecto os fios que estão colados no meu peito e arranco
agulhas dos meus braços. Um aparelho começa a emitir um som constante e
alarmado, e de alguma forma sei que preciso sair daqui logo.
Passo a mão pela corrente dourada e corro aos tropeços para fora do
quarto. Não há ninguém. Seja lá o que Evgenia fez para abrir caminho até
mim, ainda está em andamento. Respiro fundo. Pisco em meu mundo de
sangue, a visão manchada, e começo a caminhar à procura de Anastasia.
***
Estou caminhando.
Cambaleando, é o termo.
Meu corpo ainda está doendo. Hoje fazem… onze dias? Doze? Doze
dias desde a minha chegada ao hospital. Sete que estou acordado. Ainda
não vi Anastasia. Doze dias.
Anastasia perdeu nossa filha por causa daquele tiro. Faz doze dias,
então. Yerik a tirou de nós. Minha menininha. Eu matei o desgraçado e,
mesmo assim, ele continua causando destruição. Quando vai acabar? Será
que devo ir atrás dele no inferno? Só assim nós teremos um pouco de paz?
Eu ando sem rumo pelos corredores do hospital, ele está
praticamente vazio. Os enfermeiros que me veem não tentam me parar,
devem pensar que sou um simples paciente fazendo a sua caminhada de
rotina.
Sinto-me desajeitado e fraco, como um boneco cujas pernas e braços
foram surrupiados de outro brinquedo. Meu ombro, agora percebo, precisa
mesmo de cuidados, ele dói se me movimento rápido demais. Os médicos
estavam certos.
Esfrego meus olhos, tentando limpar a minha visão, mas não
adianta, para todos os lados que olho, continuo enxergando sangue. Meu
mundo se tornou vermelho — mais um lembrete constante de que Yerik
está morto apenas na carne, pois as consequências dos seus crimes ainda
pairam, terríveis e inevitáveis.
Através das placas de orientação, eu me guio sem problemas. Sei
qual é o número do quarto de Anastasia porque escutei meus irmãos
conversando a respeito, mas pouco antes de virar no último corredor, eu a
encontro.
E fico paralisado.
Hipnotizado.
Seus olhos estão fechados, o corpo embalando suavemente enquanto
ela conduz seu instrumento imaginário. Eu quase consigo escutar a música.
Sua expressão corporal canta as notas ao vento e a leveza em seu rosto é
algo que eu nunca vi antes.
Nunca.
Anastasia é como um anjo com asas enormes, o mundo ao seu
dispor.
Ela sorri enquanto movimenta o braço para frente e para trás, os
dedos firmes no arco invisível. Há um brilho ao seu redor, uma luz antes
apagada que ilumina a minha alma obscura. Ela é puro frescor, o primeiro
raio de sol a banhar o mundo depois de uma noite muito longa e gelada.
Sinto-me um intruso, um alienígena em seu pequeno antro de
felicidade. Meus olhos se enchem de lágrimas pelo simples fato de poder
vê-la tão bem.
Eu não sei o que esperava encontrar, mas era qualquer coisa muito
distante do que vejo agora. Na última vez que a vi desperta, ela estava
chorando, havia muito sofrimento em seus olhos, minha mulher estava
amarrada, quebrada, sua mente violada. Acho que meu maior medo era
reencontrar todos aqueles sentimentos horríveis estampados em seu rosto.
Mas não há nada além de pura liberdade.
Porque ela não se lembra.
— Caramba! — Anastasia exclama, dando-se conta da minha
presença. — Eu não vi você aí. Ainda bem que não tenho um problema
cardíaco.
Antes que ela perceba, esfrego meus olhos para afastar as lágrimas e
volto a encará-la, sem acreditar que minha Ana, minha princesa perdida, a
musicista prodígio, a mulher mais talentosa que conheço e amo, está
sorrindo para mim. Deve ser um sonho. Talvez eu ainda esteja amarrado à
cama, delirando. Se for o caso, espero não acordar jamais.
— Você não é um fantasma, né? — pergunta.
Inesperadamente, eu sorrio. Não faço a menor ideia de como
acontece, mas meus lábios se curvam para cima e sinto uma onda de calor
se espalhando dentro de mim. Não sei o que responder, como falar, o que
dizer sem manchar o seu universo brilhante e iluminado com a minha
viscosidade vermelho-escura e sombria.
Eu vim até aqui com que propósito? Arrastá-la de volta para o meu
pesadelo? Destruir… tudo isso? Apagar sua luz outra vez?
Lembro que estou segurando o colar. O presente que comprei em
uma outra vida, e o imagino em seu pescoço, destacado sobre a pele negra
de seu colo esguio. Estamos ambos usando pijamas, o uniforme hospitalar
destinado aos pacientes, mas Anastasia poderia estar a caminho do tapete
vermelho; tudo o que ela usa se torna automaticamente digno de um Oscar.
Depois de muito pensar, eu me aproximo, e estou ciente de seu
estranhamento.
Eu sou ninguém para a mulher que é o meu tudo.
Ao entrar em seu espaço pessoal, preparo-me para acalmá-la caso
estranhe o meu comportamento, mas Anastasia não se move, não se
encolhe, não me rechaça, ela fica ali, parada, olhando-me com uma
curiosidade inocente e esperta.
Linda.
Abaixo-me e finjo pegar o colar do chão. Se eu lhe oferecer de boa
vontade, ela vai recusar com certeza. Sei que não é correto da minha parte
usar a sua fragilidade, colocando-a em dúvida sobre a própria mente a fim
de convencê-la a ficar com o presente, mas como Anastasia não se lembra
de ter tido ou não um colar como esse, não pode me refutar.
— Você deixou cair — minto.
Com timidez, Anastasia segura a joia contra o peito.
Ela brilha como um grande farol, sinalizando, ironicamente, a única
direção que não posso seguir.
Tudo é vermelho, menos ela.
As paredes e janelas, o teto e o chão, os objetos e os médicos.
Vermelho. Vermelho. Vermelho. Quando eu pisco, ao invés da escuridão, há
um oceano carmesim. E sempre que eu como alguma coisa, seja uma barra
de cereal da máquina de vendas que fica no refeitório do hospital, ou a sopa
sem graça que me servem duas vezes ao dia, sinto o sabor ferroso do
vermelho. Sim, é estranho que uma cor tenha gosto, mas é verdade.
Vermelho tem gosto de sangue. Ele é a cor da morte, do luto e do
sofrimento.
E eu o odeio.
Mas não Anastasia.
Tudo é vermelho, menos ela.
— Isso não é meu.
Ela tenta devolver o colar, sua expressão é a coisa mais adorável que
eu vi nos últimos dias. Um bálsamo. Considerando o ambiente em que
estamos, pode não ser uma observação significativa, mas me faltam
motivos para procurar beleza no mundo. Na vida. Anastasia é minha única
exceção.
— Eu vi quando caiu — a mentira dança na minha boca —, é seu
com certeza.
— Eu não me lembro de ter… — Como eu já havia previsto, ela
hesita, porque Anastasia não se lembra mesmo de nada. Nem de mim. —
Ah, bem, talvez seja meu.
Eu pisco. Vermelho.
Ela me apagou junto com todas as memórias ruins, e não posso nem
mesmo lamentar por tamanha perda quando sua alegria é visível. Quantas
vezes desejei que ela se esquecesse de todo o sofrimento causado por
Yerik? Quantas vezes eu pedi por uma intervenção que a livrasse dos
fantasmas em seus ombros? Quantas vezes eu me perguntei como ela seria
sem as suas feridas?
Cuidado com o que deseja?
Porra nenhuma.
Eis a minha resposta.
— Não o perca — ordeno, socando-me mentalmente por deixar meu
lado autoritário, herdado da minha família, assumir o controle. Tem sido
difícil controlar.
Anastasia, contudo, não se intimida. Se alguma coisa, ela parece
gostar.
Suas bochechas coradas são uma ironia prazerosa. Eu gosto de como
esse vermelho se apresenta na pele dela — a mescla com o marrom,
resultando em um vinho escuro cujo sabor eu sinto vontade de provar. Qual
o gosto das suas maçãs do rosto? Por que eu nunca tentei mordiscá-las
quando tive a chance?
— Obrigada — sussurra. Anastasia me observa com interesse, os
olhos inteligentes e prodigiosos, e me sinto consciente demais da minha
própria sujeira. Aquela que só eu posso ver. Começo a me afastar, não
querendo manchá-la, e por causa dessa breve distração, não vejo a sua
próxima pergunta chegando: — Eu conheço você?
Contra a minha vontade, uma semente de esperança ousa brotar no
meu peito. Talvez… talvez tenha restado algo. Talvez ela ainda tenha
alguma lembrança, um resquício, uma poeira de nós dois. Talvez, se
trabalharmos juntos, ela possa se lembrar de mim e…
E dos anos que passou sendo torturada, manipulada e abusada; de
ter sido quebrada em milhões de pedaços; de ver a morte do seu irmão sem
poder fazer nada para salvá-lo; de ser sequestrada e assistir enquanto ele me
espancava; de quase morrer por causa daquele tiro.
E do nosso bebê…
Nossa filhinha.
Eu esmago o pequeno broto.
Meus olhos queimam, a dor volta com tudo. Se eu chorar, as gotas
serão vermelhas como sangue? Temo que sim. Eu sangro dia e noite, o
líquido espesso de uma cor horrível saindo pelos meus poros. Sinto-me sujo
e enojado de mim. Apavorado com cada esquina e olhar. Tenho medo dos
meus sonhos.
Eu não me sinto o mesmo.
O que eu vou fazer comigo?
Um morto que anda.
Um homem defeituoso.
O salvador de ninguém.
Quero contar tudo, e quase me deixo levar por esse desejo, mas no
último segundo meu olhar desce para a sua barriga e a verdade fica entalada
na minha garganta, sobrepujada por uma compreensão irônica e cruel: ao
meu lado, não tenho como garantir a sua proteção, mas longe, ela tem uma
chance.
Revelar a verdade significa acorrentá-la a mim, condenar a garota
livre e leve do violino imaginário a se enterrar no meu caixão de sangue.
— Não — digo, e recebo o abraço da dor visceral.
Está feito.
Volte atrás, a voz da minha consciência implora de imediato, retire o
que disse, não a deixe.
Começo a tremer. Meu coração se descontrola, socando meu peito
de dentro para fora com tanta força que escuto as batidas nos meus ouvidos.
Acho que vou chorar, mas não posso fazer isso na frente dela.
Retire o que disse. Agora. Conte quem você é. Diga que a ama.
Volte atrás.
— Pergunta estranha, eu sei. Desculpa, deve estar achando que eu
fugi da ala psiquiátrica. — Anastasia solta uma risadinha e toca na cabeça
com seu dedo indicador. — Amnésia — ela diz, sem saber que estou ciente
da sua condição. — Não lembro de nada que aconteceu comigo nos últimos
dois anos, mais ou menos. Não é interessante? Pensei que essas coisas só
aconteciam em filmes e livros.
Interessante.
Ela acha interessante.
— E não tem problema você estar andando por aí? — pergunto,
preocupado, olhando nossos arredores como se um médico fosse surgir do
nada para esclarecer minha dúvida. Anastasia passou por uma cirurgia,
como pode estar de pé tão cedo? — Não tinha que ficar de repouso? Sendo
acompanhada vinte e quatro horas por dia? Quem deixou você sair do seu
quarto?
— Você acha que está em condições de falar alguma coisa? — ela
brinca, indicando meu braço imobilizado. — Eu não aguentava mais ficar
deitada, ouvindo meus pais perguntando se me lembrei de alguma coisa ou
como estou me sentindo. Eu me sinto culpada, caramba! Todos me olham
como se eu devesse estar profundamente triste e abalada, e eu estou, porque
perdi meu irmão, mas faz parte do luto, e eu entendo isso. Não estou triste
por não me lembrar. Eu prefiro não lembrar! Então estou bem assim, e me
sinto culpada por me sentir bem! — Ela se interrompe do nada e morde o
lábio inferior, dando-se conta de seu desabafo. Acanhada, finaliza, dizendo:
— Meu médico disse que depois de quinze dias eu já poderia me
movimentar sem exageros.
Ora essa…
Ela está sendo espertinha. Faz apenas doze dias, não quinze, mas
não posso dizer isso sem revelar que a conheço.
Tudo o que ela disse se aloja em um canto do meu coração, porque a
sua alegria sempre será a minha prioridade. Esquecer-se de mim é um preço
baixo perto das atrocidades que não podem mais atormentá-la. Eu sou o
contrapeso na balança.
— Eu estava procurando uma pessoa — digo, com pesar. Tento
sorrir, fingir que não dói tanto, mas sou traído pela minha voz. — E acabei
de descobrir que ela está indo embora.
Anastasia se compadece ao ouvir o meu tom infeliz, sem saber que
as lágrimas acumuladas nos meus olhos pertencem a ela.
Que tudo em mim é dela.
— Eu sinto muito. Você não vai conseguir vê-la antes de partir?
— Não sei como dizer adeus.
Ela aquiesce, deprimida pela minha situação.
— Acho que perdi uma coisa importante — diz, olhando para além
das janelas.
Nuvens densas e cinzentas estão se reunindo no horizonte, e o Sol,
lutando por sua sobrevivência, cobiça o rosto de Anastasia, como se ela
fosse a sua última esperança.
Nossa filha.
Você perdeu a nossa filha.
A dor em meu peito se expande, tomando meu corpo inteiro.
— Alguém? — questiono.
Fico com medo da resposta, de que ela acabe se lembrando e sofra
como eu estou sofrendo. É irônico, de certo modo, porque não se lembrar
de nada de repente já não me parece a pior coisa do mundo.
— Eu não sei. — Anastasia suspira, saindo de seu devaneio. Ela se
volta para mim com um sorriso sincero, os olhos brilhando, amigáveis e
amorosos. — Não é a mesma coisa, mas entendo como se sente.
— Entende mesmo?
Ela desvia o rosto, quebrando o breve contato comigo, e caminha até
a janela, coloca as duas mãos no vidro, como se quisesse passar por ele e
vagar através da tempestade que se aproxima. Eu me reconheço nas nuvens
carregadas, nos trovões retumbando e gritando, engolindo o brilho de um
lindo dia.
— Quando a gente se despede de alguém — sussurra — não
estamos dizendo adeus apenas à pessoa em si, mas também a nós mesmos, a
quem fomos ao lado dela. Acho que foi isso o que eu perdi: uma parte de
mim de quem não pude me despedir.
Fico aliviado que ela não esteja me olhando, pois sou vencido pelas
minhas lágrimas.
Sua conclusão é tristemente literal.
Anastasia dedilha a janela, esquecida da minha presença, os olhos
vagando para longe, muito longe. Sei que está tocando porque a conheço.
Quantas manhãs acordei ao som do seu piano? Quantas vezes assisti
enquanto ela tocava, sem notar a minha chegada? Quantas declarações
fizemos? Quantos beijos nós demos? Quantas vezes falei que a amava?
Não o suficiente.
Eu escuto o momento da ruptura, quando o chão começa a rachar
sob meus pés e um abismo se abre, dividindo-nos para sempre. Aquela voz
chorando dentro de mim, meu eu apaixonado, o devoto de sua amada,
clama uma última vez por ela, como se Anastasia fosse a deusa a quem
dedico meus dias e noites, o meu cálice da vida eterna, aquela capaz de me
resgatar das profundezas mais escuras.
Mas se a minha salvação coloca em risco a vida dela, a minha
decisão já está tomada.
Uma mentira em troca da sua felicidade.
Aprendemos que a verdade deve prevalecer, doa a quem doer.
Porém, as pessoas mentem mesmo assim. Para proteger seus amores ou a si
mesmos, por cultivarem intenções perversas, ou por se negarem a acreditar
na realidade quando essa se mostra cruel e injusta demais. Não importa.
Todas as pessoas mentem, as boas e as ruins.
Existem aqueles que consideram a mentira um pecado, eu prefiro
acreditar que se trata de um mal necessário, sobretudo quando mentimos
para nós mesmos em busca de um conforto passageiro. Se apegar a uma
mentira que pode te salvar do inferno em um momento crítico, às vezes, é
uma escolha misericordiosa. Algo como “minta até que você consiga lidar
com a verdade”.
E aí está a grande pegadinha da mentira: ela é momentânea, um
curativo de pano para um corte que precisa de pontos. Sem ela, você vai
sangrar até a morte, mas se pressionar por tempo o bastante, pode ter uma
chance de continuar vivo até encontrar tudo o que precisa: linha, agulha… e
a pessoa responsável pelo corte, a mão empunhando a faca.
Doa a quem doer?
Não.
Eu prefiro que doa em mim.
Sua imagem na janela, iluminada pelo suspiro póstumo do sol, é a
última visão que tenho de Anastasia antes de me virar e ir embora.
Despedaçado, miserável, sozinho, louco e de coração partido.
— Adeus, princesa.
40
Anastasia
— DEPOIS EU ME encontrei com seus pais. — Andrei enrola
distraidamente uma mecha do meu cabelo. Minhas lágrimas pairam, jamais
derramadas, pois sinto que devo isso a ele. Apesar de tudo o que acabou de
me contar, Andrei não está chorando. — Eles confirmaram o que eu já
havia entendido: para contar que você ficou grávida, teriam que contar
sobre a perda também, e então sobre todo o resto, você acabaria sofrendo e
todos os nossos esforços despistando a polícia e a mídia seriam em vão. Eu
fiz eles jurarem que a levariam para longe. Ordenei que a tratassem bem,
que respeitassem o seu tempo e não a obrigassem a fazer apresentações a
menos que essa fosse a sua vontade. Claro, meus avisos não foram gentis.
Por isso minha mãe e meu pai têm sido tão solícitos comigo, não por
vontade própria, mas por temerem Andrei Volkiov.
Eles têm medo — e com razão.
Por mais de um ano, Andrei foi obrigado a viver sozinho com a
terrível dor do vazio deixado pela ausência da nossa filha. Nossa garotinha.
O homem dos meus sonhos, aquele que amo, Andrei Volkiov, a quem
muitos chamam de Rei, é o pai do bebê que carreguei em meu ventre. De
todas as maneiras que são mais importantes, ele é o verdadeiro e único pai
da menininha que nunca pôde estar em seus braços.
E eu sei que ele daria o mundo a ela.
O rei e sua herdeira.
Ah… então é assim — eu me lembro. Lembro-me dos batimentos
cardíacos da nossa filha, o dia em que descobrimos que era uma menina. O
som acelerado preenchia todas as rachaduras do meu ser, e Andrei estava
chorando, emocionado, segurando a minha mão o tempo todo.
— Ele bate como a Sinfonia n. 5 de Mozart, a parte do Allegro — eu
disse na ocasião.
— Tenho certeza que sim — ele me respondeu. — Obrigado por me
proporcionar isso, princesa. Obrigado por me deixar amar você. Obrigado
por me escolher.
Ele estava feliz, tão feliz. Onde foi parar aquela felicidade?
Agora eu entendo o porquê de sua hesitação em me contar a
verdade, não é um segredo qualquer. Não é nem mesmo um segredo
problemático. É o tipo de confissão que pode envenenar um coração
despreparado.
Mas não sou capaz de odiar o homem que sacrificou tudo por mim.
Sua honra.
Sua sanidade.
Sua alegria e seu amor.
A sua vida.
E a sua alma.
Andrei me deu tudo e se atirou no inferno.
Como eu poderia?
— Você disse que quando eu fui resgatada — digo, arrancando
forças do meu coração para não desabar em lágrimas — meus pais já
estavam esperando no hospital. Como eles sabiam?
— Eles foram avisados.
— Pelo hospital? Por causa de Zayn?
Faz-se silêncio por um longo momento, e começo a duvidar se ele
ouviu a minha pergunta, mas quando estou prestes a repetir, Andrei
simplesmente diz:
— Graças à presença deles, conseguimos encobrir o seu
envolvimento com o sequestro, já que os dois ficaram responsáveis por
você enquanto minha família lidava com o resto. Quando acordei, eu contei
aos meus irmãos que não confiava neles, mas eram a nossa melhor opção.
Andrei suspira, cansado, e decido que não preciso fazer outras
perguntas, não quero que ele se torture ainda mais. Não posso mensurar a
extensão do que ele sofreu durante a sua recuperação. Me dói imaginar
como devem ter sido os primeiros meses depois da nossa trágica despedida.
Andrei estava definhando, física e emocionalmente, ele se considerava um
homem morto! Sentia-se menos que nada no dia em que renunciou a mim.
Se não fosse pela sua família, talvez hoje eu não estivesse em seus braços.
Aninho-me nele, com medo de perdê-lo para o mero pensamento de
sua inexistência. Andrei é uma vítima — das circunstâncias, do seu
relacionamento passado, do canalha com quem me casei, das pessoas que
me criaram, e talvez até do seu amor por mim. Mas é também o meu herói,
meu protetor, meu justiceiro.
Andrei é o meu salvador.
Coloco minha mão em cima de seu peito firme, seu coração me dá
boas-vindas com batidas fortes, reconhecendo o meu toque. Uma melodia
familiar se precipita na ponta dos meus dedos, mas no instante em que
começo a dedilhar as primeiras notas, Andrei estremece, o belo conjunto de
músculos esculturais fica rígido sob a minha palma, distraindo-me
completamente.
Estamos no meio de algo grandioso, o momento mais importante e
decisivo de nossas vidas, e não consigo impedir meus pensamentos de
vagarem pelas lembranças do que vivemos e fizemos horas antes, das coisas
que ele fez comigo, a incrível sensação de ser tomada por um homem tão
habilidoso e incrível e que me ama acima de tudo.
Cada ponto em mim que foi beijado por seus lábios experientes
continua queimando. Tenho o discernimento de me censurar mentalmente
toda vez que o encaro e me comporto como uma bobalhona apaixonada.
Foi fácil estar em sua cama, entregar-me de corpo e alma, porque
nunca deixei de ser dele — assim como Andrei nunca deixou de ser meu.
E agora é a minha vez de salvá-lo.
— Andrei. — Olho para o seu rosto, cujos olhos me veneram de
volta com atenção e receio. Ele teme ser rejeitado. Mesmo depois de tudo,
ainda acha que existe alguma chance de me perder. Não existe. — Eu
preciso que você venha comigo.
***
***
A vista do apartamento de Akira não é grande coisa mesmo se
tratando de um imóvel de luxo, já que a região é cheia de prédios
residenciais, mas há uma pequena praça-jardim no quarteirão da frente,
onde bétulas semidesfolhadas pela estação já estão enfeitadas com as luzes
de ano novo.
Não há muitas pessoas do lado de fora, a rua não é movimentada,
mas avisto um casal de idosos caminhando de mãos dadas, um grupo de
quatro crianças brincando entre os arbustos secos de um antigo canteiro, e
uma mulher sentada no único banco de concreto da praça, fingindo ler um
livro.
Já faz algum tempo que ela está lá, no mesmo lugar, parada, sem
jamais virar uma página. De vez em quando, ela olha para cima como se
esperasse me ver em uma das janelas, e nesses momentos, seu longo cabelo
preto fica visível sob o capuz do casaco marrom que está usando hoje.
Ela gosta de variar suas roupas, acho que na tentativa de não ser
notada.
Daqui de cima, eu realmente não consigo distinguir seu rosto, mas a
reconheceria em qualquer lugar, a qualquer distância. Ela está sempre do
outro lado de todas as minhas janelas, esperando, observando, espreitando a
minha vida.
— Que cara é essa? — Lara tenta se empoleirar em meu ombro,
porém, como é mais baixa, não consegue, desiste da provocação e me
empurra para abrir espaço à janela. — Até parece que viu um fantasma. —
Ela olha brevemente lá embaixo, mas não percebe nada incomum. — Está
com medo de nunca mais deixarem você segurar a sua filha? — Ela brinca,
referindo-se aos meus irmãos mais velhos, disputando a atenção de Ariya.
Toda a minha família se mobilizou para vir ao meu encontro assim
que souberam da novidade, mas Vladimir, Ivan e Lara foram os primeiros a
chegar, vindos direto da empresa, os três com as vestimentas formais de
trabalho. Ivan decidiu monopolizar a minha filha, dizendo que agora é a sua
vez de ser o tio favorito — como se já não bastasse eu ser obrigado a
suportar o seu apego fraterno com a minha mulher.
Felizmente tenho Lara ao meu lado, que me abraça com os olhos
marejados. Minha melhor amiga sempre quis que eu fosse feliz. Ela estava
lá durante a minha pior fase sem Anastasia, quando os meus pesadelos eram
constantes e esmagadores — sobretudo depois da minha internação,
enquanto eu enfrentava a abstinência, a solidão e o luto — até eu voltar a
ser alguém digno de ser amado.
Dou uma última olhada lá fora antes de dizer o que, de fato, estava
planejando enquanto observava o meu fantasma:
— Acho que precisamos organizar um jantar de comemoração.
— Na mansão? — Ela se empolga. — Eu posso cuidar disso, sua
mãe vai adorar a ideia.
Beijo sua têmpora como forma de agradecimento, então ela se junta
ao rodízio de pessoas se revezando para segurar minha filha.
Serena chega logo em seguida, gritando que meus sogros são
grandes hijos de puta e mal paridos que merecem arder en el infierno —
quando minha cunhada xinga em espanhol, pode-se saber que está
verdadeiramente irritada. Roman, que aparece logo depois dela, concorda
com tudo e ainda acrescenta seu próprio repertório de xingamentos e
ameaças, dentre os quais ele inclui a sugestão de enviar os pais de Anastasia
para conhecer os sete palmos de terra onde o desgraçado do Yerik está
enterrado.
Os dois, porém, são logo desmontados pela fofura de Ariya, e todas
as promessas de vingança ficam pairando à distância.
Até que Vladimir se aproxima de mim.
Meu irmão mais velho, que assumiu um lugar de referência para
mim após a morte do nosso pai, me puxa para um longo abraço. Ele não
tem o hábito de demonstrar as suas emoções, e dessa vez não é diferente.
Vladimir é prático e dificilmente deixa para depois aquilo que precisa de
resolução imediata. Conheço meu irmão bem o bastante para saber que ele
entende o limbo em que me encontro.
Razão e emoção.
Amor e ódio.
Sempre no meio de dois extremos.
— Estou feliz por você, caçula — diz, mantendo uma mão firme de
apoio em meu ombro —, pela nossa família. Mas estou certo em presumir
que isso muda o curso das coisas?
A existência de Ariya implica uma série de medidas que preciso
adaptar, pessoas a serem confrontadas, processos que não podem mais
esperar, mas eu e Vladimir não nos aprofundamos nos detalhes. A gente se
entende pelo olhar e, no interior dos meus olhos plácidos, ele encontra a
explicação que procura.
Estou feliz, sim, em uma escala que supera a definição de infinito
em todas as unidades de medida, e na mesma proporção, sinto-me furioso.
Esconderam minha filha de mim, tentaram retardar a recuperação de
Anastasia, dificultando o retorno de suas memórias, e subestimaram a
minha inteligência por causa de um evento traumático que me deixou
fragilizado na época. Eu sei a quem culpar — os peões de Yerik, os
fanáticos que seguem um bobo-da-corte morto só porque o chapéu dele
imita uma coroa.
— Tudo estará acabado em breve.
Minha mãe é a última a chegar, trazendo consigo toda a geração de
netos.
Luna vem caminhando sozinha, vestida com uma jardineira amarela
e botas de borracha, e imediatamente vai ao encontro de seu pai. Iago, de
mãos dadas com os primos mais novos, guia os dois até Lara, a única
pessoa que eles obedecem. Mas no momento em que Tatiana vê a minha
filha, que está nos braços de Roman, entretida com as correntes em seu
pescoço, algo incomum acontece: minha mãe coloca a mão cheia de anéis
de ouro sobre o peito, e todos nós ficamos no aguardo de um de seus
costumeiros dramas teatrais, mas minha mãe realmente desmaia.
Dura como uma tábua.
Por sorte, Akira, que a havia recepcionado abrindo a porta de sua
casa, está perto o suficiente para ampará-la.
— Misericórdia! — Serena exclama.
Eu e Ivan, que estamos com os braços livres, corremos ao seu
socorro, e um minuto depois, minha mãe já está deitada no sofá modular da
sala de visitas do meu cunhado.
— Talvez seja melhor a levarmos até um hospital — Lara
recomenda, preocupada, enquanto Anastasia abana minha mãe com uma
almofada. — É a primeira vez que isso acontece.
— Também é a primeira vez que ela vê uma neta voltando dos
mortos. — Roman ergue Ariya, fazendo com que ela o encare com um
sorrisinho meigo. — Você quase fez a sua avó bater as botas, sabia? Isso é o
que eu chamo de entrar para a família em grande estilo.
— Lara tem razão — Vladimir se faz ouvir, a voz retumbante —
pode ser grave, é melhor checarmos.
Mas Serena pondera:
— Por que a gente simplesmente não traz um médico até aqui?
Sempre que vocês quatro aparecem juntos nos hospitais, por qualquer
razão, os funcionários ficam achando que vão cometer um atentado.
Ela está certa. Nosso histórico em hospitais não é dos mais
favoráveis.
É então que Mariya, a mulher que trabalha para Anastasia nos
cuidados de Ariya, se aproxima com uma postura confiante.
— Com licença, eu tenho formação em primeiros socorros, é
obrigatório na minha profissão. Tentem erguer as pernas dela assim. — Ela
coloca algumas almofadas embaixo dos calcanhares da minha mãe. —
Pronto, agora é só inclinar um pouquinho o rosto de lado e… — Tatiana
resmunga, recobrando a consciência. — Ah, que maravilha, ela já está
acordando, viram?
— Eu não vi. — Roman encara Mariya com um sorriso malicioso.
— Pode repetir o procedimento em mim? A gente deita, ergue as pernas e
depois…? — Meu irmão faz uma breve mesura. — Ah, a propósito, nós
não fomos apresentados, quem está tentando esconder você de mim?
Akira se enfia entre os dois, encarando Roman.
— Você pode não flertar enquanto está com a minha sobrinha no
colo?
— Ela é minha sobrinha também — Roman diz, inabalado. — E
estudos comprovam que as mulheres se sentem mais atraídas por caras com
bebês.
É Ivan quem, felizmente, interfere, resgatando minha filha do duelo
de testosterona.
— Pois então tente arrumar um filho você mesmo. — Ele pega
Ariya, que sorri, achando graça das caretas e vozeirões dos três. — Veja,
sua vovó está quase acordando.
— Eu já estou bem, estou bem — minha mãe murmura. — Parem
de drama! — Ela se senta com a ajuda das noras, totalmente recuperada. —
Como são exagerados, não estão vendo que estou bem? Minha saúde está
ótima, foi só um desmaio, nada demais. — Não é isso o que ela vive
dizendo, mas quem somos nós para contestar suas palavras sagradas? —
Agora, deixe-me ver a minha netinha.
Ivan entrega Ariya para minha mãe, que a abraça com o carinho e
cuidado de uma verdadeira avó. Minha mãe não é leviana quando nos pede
para gerar netos aos montes, ela tem amor de sobra para distribuir entre
cada um deles.
— Ela se chama Ariya — Anastasia diz. — Acabou de completar
oito meses.
— É um lindo nome, querida. — Tatiana sorri para a minha mulher,
mas logo sua atenção é totalmente direcionada à netinha sorridente. — Seja
muito bem vinda à sua família, Ariya. Eu sou sua avó, e você é uma neta
legítima de Tatiana Pavlovna Volkiova, sabe o que isso significa? Que o
mundo, minha pequena, é todo seu, e você, assim como seus primos e
primas, jamais precisará abaixar a sua cabeça para ninguém.
Meu olhar se encontra com o de Anastasia do outro lado da sala, e é
como se ela estivesse me abraçando com os olhos. Nós dois entendemos o
que minha mãe deixa escrito nas entrelinhas: Ariya nunca vai passar pelo
que ela passou, nenhum homem jamais colocará as mãos em nossa filha, e
ela sempre vai poder contar com uma família que a ama.
— Ela não vai querer que você os machuque. — Akira se aproxima,
também observando o sorriso da irmã.
Sei de quem está falando, e já sabia disso antes de ele dizer. Seus
pais adotivos — dele e de Anastasia —, que cometeram o grave erro de
mentir para mim. Entretanto, o que ninguém sabe, é que graças a essa
mentira, finalmente revelada, agora eu sei que os dois possuem algo que eu
preciso.
Uma pequena informação perdida no tempo.
— Ela não vai querer que eles sangrem — faço a correção. Também
não considero um impedimento literal, porém, não vejo necessidade de nos
aprofundarmos na questão. — Mas sua irmã entende a gravidade do que
fizeram. Os dias de glória de Leonid e Yekaterina Serova estão no fim.
Akira estreita as pálpebras, minha declaração o deixa interessado.
— Como pretende fazer isso?
— Que bom que perguntou. — Sorrio de puro contentamento. —
Porque eu preciso que você me faça um favor.
42
Andrei
O TEMPO É a moeda de troca mais valiosa que existe.
Décadas, anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos e até
milésimos podem ser negociados em troca de realizações específicas. Mas
todo sistema comercial funciona com base em um pressuposto óbvio: as
partes envolvidas visam algum tipo de lucro; e quando a gente negocia o
nosso tempo em troca dos nossos próprios interesses, estamos
estabelecendo uma conexão de ganho e perda com nós mesmos.
É diferente de um investimento, por exemplo, em que temos a
chance de recuperar o valor aplicado. O tempo não volta atrás, ele é a vida
que assassinamos aos poucos em um altar de sacrifício. Para cada
conquista, uma parcela diferente de sangue derramado.
Cerca de nove meses para nascermos.
Sete dias até nos recuperarmos de uma gripe.
No mínimo, quatro anos em troca de um diploma.
Dez minutos pelo melhor beijo das nossas vidas.
Apenas um para o pior adeus.
Eu fiz um lance às cegas, sem saber quanto tempo me custaria —
um mês, dez anos ou toda a minha vida, quem sabe? No fim, foram
necessários apenas quatorze meses. Precisamente, um ano, dois meses e
dezessete dias de um pagamento que poderia não me dar o que eu mais
desejava. Teria sido justo de qualquer maneira.
Porém, se eu soubesse que minha filha estava viva… eu teria pago o
mesmo valor? Será que teria escolhido a consequência imediata ao invés do
sacrifício prolongado? Não tenho como saber, a opção de escolha foi
arrancada de mim, um montante inestimável de dias acreditando que
Anastasia havia perdido a nossa Ariya.
E, como eu disse, o tempo não volta.
Agora, eles me devem.
As duas pessoas na minha frente, devem a mim o tempo que eu
passei longe da minha filha. Ladrõezinhos de merda, é o que eles são. E já
que não podem me devolver aquilo que roubaram, então que o preço seja
pago com suas malditas vidas.
— Você disse que deixaria a minha filha em paz — Leonid Serov
ousa me acusar.
Ele ainda não entendeu a posição em que se encontra.
Uma rápida viagem em nosso jato particular nos trouxe até Berlim.
Vladimir teve que ficar de fora por compromissos inadiáveis como
presidente, e Ivan, a pedido meu, ficou encarregado de acompanhar
Anastasia e garantir que nada aconteça a ela ou a nossa filha durante a
minha ausência.
Roman veio comigo.
Ele é a escolha perfeita quando o assunto envolve colocar a escória
em seu devido lugar.
Meu irmão soca a mesa do escritório particular de Leonid, fazendo
vários objetos caírem no chão, incluindo uma fotografia de Anastasia
criança, na faixa dos cinco ou seis anos, com uma medalha de primeiro
lugar muito grande ao redor do pescoço infantil, abraçada a um violino
como se ele fosse o seu melhor amigo. Uma garotinha explorada desde
sempre para satisfazer o ego dos adultos que deveriam protegê-la.
Com um cigarro preso entre os dentes, a fumaça espiralando da
ponta em brasa, Roman ameaça meu sogro:
— Abaixe a porra do tom para falar com o meu irmão ou a próxima
coisa inútil que vou socar vai ser essa sua cara irritante.
Leonid tropeça nos pés desengonçados e cai sentado ao lado da
esposa, que finge um choro sem lágrimas. Nota-se que não esperavam pela
nossa chegada: ela está vestida com um robe elegante de cetim perolado,
pantufas e uma touca na cabeça, já Leonid, usa apenas um roupão de banho.
Ele tem uma boa compleição para um homem na casa dos sessenta e cinco,
sendo a barba grisalha um dos poucos indicativos de sua idade.
A casa do casal Serov fica situada em Charlottenburg, uma
construção que deve valer alguns milhares de euros nas imediações do
Parque Lietzensee. Foi aqui, dentro destas paredes, que Anastasia esteve
vivendo durante o ano passado, junto com a nossa filha. Tento imaginar
minha mulher caminhando pelos corredores clássicos com Ariya em seus
braços, mas não consigo evocar uma imagem.
Aqui nunca foi o lugar delas.
— Nós podemos explicar — Yekaterina diz com a voz aveludada.
— Você tem que entender, só queríamos proteger a nossa filha. Nunca foi a
nossa intenção esconder a gravidez de você, mas o amor materno faz a
gente cometer loucuras.
— Amor materno? — Akira ironiza. Sua mãe, ou o que quer que ela
seja para o homem sentado confortavelmente atrás da mesa de Leonid,
lança um olhar venenoso ao filho. — Sempre pensei que você pegaria fogo
se pronunciasse palavras como essas, tipo um vampiro sendo exposto à luz
solar. — Ele faz uma pausa e a observa. — Pena que não.
Akira é a peça-chave da nossa vinda.
Sem ele, Leonid e Yekaterina não teriam aceitado nos receber, mas
foram rapidamente convencidos depois que Akira se apresentou aos
funcionários da entrada como o filho dos patrões. Para os dois, a reputação
imaculada que construíram é a única coisa que está acima do orgulho.
Leonid se descontrola:
— Seu ingrato, depois de tudo o que fizemos por você, é assim que
nos retribui? Por acaso, sabe quem é esse homem? O que ele fez? Se não
fosse por ele, sua irmã não teria passado por tantos problemas!
— Se não fosse por ele, senhor Serov, minha irmã estaria morta. —
Akira apoia os pés confortavelmente sobre a mesa. — Ah, e não podemos
esquecer que, se não fosse por vocês, ele não estaria tão irritado. — Ele
gargalha, escarnecido com as expressões desconcertadas dos pais. Em
seguida, repete a pergunta de Leonid de um modo notoriamente irônico: —
Por acaso, sabe quem é esse homem? Ou a família dele? Se eu fosse vocês,
responderia às perguntas sem reclamar.
Aproveito a oportunidade para fazer o primeiro movimento até o
interior de suas mentes.
— Não seja por isso, eu posso fazer o favor de lembrá-los. — Sorrio
e começo a listar: — O último velho rico que se meteu com Ivan, perdeu
toda a fortuna em questão de semanas e foi detido pela maldita Interpol.
Alguma vez você ouviu falar do sujeito desde então? Não, claro que não.
Hoje em dia, Ivan tem mais contatos no Ministério de Assuntos Internos do
que uma unidade inteira da polícia federal, e para o azar de vocês, ele se
apegou a Anastasia como se ela fosse a sua irmã mais nova, ou um bichinho
que ele quer cuidar e alimentar; é irritante às vezes. E Vladimir? Meu irmão
tem uma lista de coisas com que se importa. A mulher dele, os filhos, o
resto da família e a empresa. Tudo o que não envolva esses quatro itens é
equivalente a nada. Vocês não são nada para o presidente, então jamais
conseguirão qualquer coisa minimamente parecida com a sua piedade.
Quanto a mim… acho que conheceram Yerik e o fim que ele levou.
Leonid muda de cor, do branco pálido ao verde-musgo.
— Não podem nos machucar — diz, mas sua convicção termina de
morrer assim que Roman abre a boca.
— Podemos colocar fogo na casa e dizer que foi acidental —
sugere, e está falando muito sério. Ele traga seu cigarro, olhando as paredes
e janelas. — Mas seria uma pena desperdiçar um imóvel como esse. Não
que eu me importe de ser pego, já contei que meu irmão é o melhor
advogado da Rússia?
Roman, é claro, dispensa apresentações.
Tudo o que ele fala surte o efeito esperado e os dois finalmente
expressam o medo que deveriam ter sentido desde o começo. Meu irmão
tem uma capacidade inerente de tornar a sua reputação a pior possível que é
muito útil em momentos assim.
— O que vocês querem de nós? — Leonid pergunta, manso como
um cordeiro.
— Para começar, uma explicação — eu respondo. — Vocês
pensaram que eu não descobriria? Que, em algum momento, não chegaria
aos meus ouvidos que Anastasia Serova tem uma filha? Vocês não podem
ter sido tão burros assim, então estou pressupondo que exista uma
explicação plausível. E me poupem da baboseira sobre amor. Que tipo de
garantia vocês acharam que tinham, para decidir que podiam afastar minha
filha de mim sem sofrerem nenhuma consequência?
Os dois se entreolham, resignados. O pomo de adão de Leonid faz o
movimento de subir e descer quando ele engole a saliva.
Antes da nossa separação, Anastasia não havia se aprofundado nos
relatos sobre o seu passado, apenas o suficiente para eu saber que seus pais
estavam longe de representar as colunas da moral e da boa razão. Mas eu
sabia que ela estaria melhor com eles do que comigo naquele momento — o
que acabou se provando verdade.
A necessidade às vezes nos leva a tomar decisões extremas, e foi o
que aconteceu comigo: a minha necessidade de me recuperar enquanto
posicionava as peças sobre o tabuleiro fez com que Leonid e Yekaterina
encontrassem uma pequena abertura em meu próprio jogo. Mas eles ainda
podem ser úteis antes de receberem a punição que merecem.
— Nós pensamos que… — O pai de Anastasia torce as mãos,
olhando de esguelha para Roman, que mostra os dentes no que deveria ser
um sorriso, mas o faz parecer um cão raivoso. O temor — Soubemos que
você tinha outro relacionamento. Pensamos que você não se importaria com
Anastasia ou o bebê depois que tivesse reconstruído o seu relacionamento
com a sua ex-mulher.
Que porra…
— Nós fizemos o que você pediu! — Yekaterina vocifera. — Ariya
não é sua filha, não de verdade! Ela é nossa neta, Anastasia Serova é nossa
filha, nós a fizemos. Não devíamos mais explicação alguma a você.
***
***
Das atrocidades que ela diz, insinuar que fizeram Anastasia é a pior
de todas. Minha mulher foi adotada, então Yekaterina não está se referindo
à parte biológica que envolve fazer um filho. Ela está dizendo que a
moldaram e a treinaram, como se minha Ana não tivesse vontades e sonhos
próprios. Como se ela fosse apenas um resultado, um produto, uma… coisa.
Roman também entende.
Quase não vejo ele se movendo, lançando o braço robusto para trás
e depois ao encontro do rosto de Leonid. Meu sogro até tenta se proteger
com as mãos, mas por estar sentado, não é rápido o bastante. O punho do
meu irmão acerta a sua mandíbula e uma espessa corrente de sangue
começa a vazar do lábio cortado, manchando sua barba grisalha e o roupão
branco.
Yekaterina berra, apavorada, saltando para trás do sofá.
— Por que fez isso?! — Leonid grita. Ele tenta conter o
sangramento, mas o líquido vermelho-escuro não para de encher as suas
mãos. Já vi meu irmão dar socos mais fortes do que esse, não deve ser tão
grave assim. — Eu não disse nada!
Roman encara seu trabalho com uma satisfação animalesca —
maravilha, então talvez seja grave.
— Eu não bato em mulheres — Roman explica. Ele olha para
Yekaterina, que lamenta, chorando de medo. — Então toda vez que a
senhora insinuar que meu irmão não é o pai da minha sobrinha, ou que a
minha cunhada é um maldito brinquedo, eu vou socar o seu marido,
entendeu?
Ela concorda.
Isso simplifica bastante as coisas.
Confiro como Akira reage aos pais sendo intimidados, mas pela
raiva ardendo em seu olhar, acho que ele mesmo gostaria de ter rasgado a
boca de Leonid. Anastasia me contou que Akira foi quem mais sofreu
maus-tratos físicos na infância — outra informação que eu não tinha em
mãos quando a deixei sob os cuidados deles — e foi assim que consegui
pensar em uma maneira de fazê-los pagar o que me devem.
Tempo se paga com tempo.
— Vocês já estavam no hospital quando Anastasia chegou — digo,
caminhando devagar pelo aposento — mas não por causa de Zayn. Vocês
viajaram previamente até Moscou porque já sabiam que alguma coisa ia
acontecer. Foi Yerik quem avisou vocês?
Yekaterina, com uma aparência menos arrogante que dois minutos
antes, separa os lábios, suas sobrancelhas se erguem levemente, os olhos
ficam um pouquinho maiores no rosto triangular — micro expressões de
surpresa. Ela tenta camuflar tudo com um sorriso antes de responder.
— Claro que não…
— Sim — Leonid a corta. Acho que ele não quer ganhar outro soco.
— Ele enviou um recado no dia anterior ao sequestro, dizendo que
precisaria de ajuda para retirar Anastasia da cidade. Não sabíamos o que ele
pretendia fazer! Eu… eu posso provar!
Ele se levanta e vai até a mesa, lançando um olhar de desprezo ao
filho. Algumas gotas de sangue marcam o seu trajeto, mas são suas mãos
ensopadas que fazem uma bagunça enquanto ele vira o seu computador na
minha direção, digita meia dúzia de palavras e se afasta para eu conferir
pessoalmente sua suposta prova.
Na tela, há um e-mail com as iniciais de Yerik enviado na data
informada por Leonid. O conteúdo da mensagem bate com o seu
testemunho: um pedido de ajuda para retirar Anastasia de Moscou. Também
há uma pequena nota dizendo que, se tudo desse errado, os dois não
deveriam deixar Anastasia comigo.
Ainda não acabou… mesmo.
— Muito bem. — Olho para Leonid e seu semblante ansioso, depois
para a esposa dele. — Viram só como foi fácil? Ninguém precisava ter se
machucado.
— Precisava sim — Roman opina.
— Pronto, já contamos tudo o que sabíamos, vocês já têm o que
queriam, podem ir embora agora — Leonid esbraveja.
Akira ri.
— Quem disse que isso é tudo? É muita presunção mesmo acharem
que Andrei Volkiov viria até aqui só para ouvir vocês confessando algo que
ele já tinha entendido sozinho.
— Akira tem razão — digo com tranquilidade. — Existem três
opções disponíveis para o que vai acontecer daqui em diante. Na primeira,
vocês dois entregarem de boa vontade o gerenciamento de todo o
patrimônio da sua família para Akira Serov.
— O quê?! — Os dois gritam juntos.
— Estou me referindo a cada centavo de tudo o que possuem. Vocês
receberão uma mesada considerável para continuarem vivendo suas
vidinhas de mentira, mas deverão reportar cada um dos seus passos a ele. O
que comem, o que compram, o que vestem, onde vão e com quem falam.
Leonid gargalha histericamente, seu lábio inferior volta a esguichar
sangue.
— E por que faríamos isso? Hã? Esse garoto não merece a nossa
fortuna! Ele é um ingrato! Um merdinha delinquente que nunca soube o seu
lugar.
— Cara — Roman faz uma careta de nojo — você precisa de uns
pontos nessa boca.
— A segunda opção é a minha favorita. Eu posso simplesmente
interditar os dois, vocês perdem toda e qualquer possibilidade de autonomia
que a alternativa número um oferece e passam a viver reclusos em algum
lugar estabelecido pelo filho de vocês. — Indico Akira. — Isso os afastaria
da grande roda da alta-sociedade que tanto prezam.
— Ele… ele não pode fazer isso, pode? — Yekaterina direciona a
pergunta ao marido, que não se dá ao trabalho de explicar que sim, posso
fazer a porra do que eu quiser.
Será um pouco trabalhoso caso essa seja a alternativa escolhida, mas
não impossível. Nada é impossível para mim no território jurídico.
— A terceira opção também não é ruim. — Coloco um pouco de
ânimo na voz. — Nós vamos todos para a forca. Anastasia e Akira
denunciam vocês pelos abusos sofridos na infância. Nesse cenário, claro,
vocês passariam a ter uma carta na manga para usar contra mim: a verdade,
minha história inteira com Anastasia, afinal, já que não teriam mais nada a
perder, vocês poderiam me arrastar junto. Mas, como vocês já sabem,
minha família adora um escândalo. Inclusive, foi por isso que preferiam
Yerik do que a mim, não foi? Mesmo meu sobrenome sendo muito mais
relevante, vocês gostavam da estabilidade que haviam construído.
Com essa descrição, eles ficam completamente atônitos. Leonid se
joga de volta no sofá, estarrecido. Gosto bastante de ver os dois
encurralados. As três possibilidades têm algo em comum que está explícito:
em todas, Leonid e Yekaterina se tornam objetos nas mãos do filho que eles
mais desprezam.
A terceira não passa de um blefe para deixá-los com medo.
— Leonid — Yekaterina balbucia — se temos mesmo que escolher,
então que seja a primeira…
— Ah, desculpe, houve uma falha de comunicação. Não estou
oferecendo as opções a vocês dois, mas a ele. — Indico Akira com um
amplo movimento de mão.
Só assim eles compreendem, o impacto da realidade recai em suas
faces, cobrindo-as com sombras: eles estão presos.
Leonid e Yekaterina me roubaram, mas não sou o único, existe uma
lista de débitos e nela eu não estou em primeiro lugar. Tempo, como eu
disse, se paga com tempo. Uma inversão de papéis, em que ambos
experimentam como é viver para sempre sob o jugo e a vontade de outra
pessoa, assim como fizeram com o trio de crianças órfãs composto por
Anastasia e seus irmãos, é um jeito adequado de fazê-los pagar.
Quando Akira faz a sua escolha, não é só por si mesmo, mas pela
irmã que ele ama. E por Zayn, cujo tempo roubado é inestimável.
— Eu fico com a interdição.
***
***
***
***
***
***
Anastasia
Eles surtaram, é claro que sim, o que eu esperava?
— E por que não nos chamaram? — Andrei pergunta, irritado.
— Amor, foi só uma leve dor de cabeça, eu estou ótima.
— Você sabe que tem uma condição neurológica, Anastasia? — Ele
argumenta com seu tom de advogado. É sexy, gosto quando ele faz isso e
me chama pelo meu nome, como se quisesse me castigar. Mas agora não é
hora de pensar nisso. — E que qualquer coisa pode ser o sintoma de algo
maior?
— Minha condição não tem nada a ver com isso — digo, mas eles
me ignoram.
— Vamos para o hospital — Ivan decide, fazendo Lara suspirar ao
meu lado. É impressionante como os quatro são parecidos quando deixam
aflorar a autoridade que corre em suas veias. — Estamos perdendo muito
tempo.
A sala de visitas da mansão parece menor quando eles se juntam, é
uma coisa sobre presença, sobre preencher qualquer ambiente com a
potência de suas vozes e posturas dominantes.
— Por favor, alguém me mate agora — Serena resmunga. — A
minha cabeça está começando a doer só de pensar em vocês reunidos em
um hospital.
— Deve ter sido a nossa viagem — Andrei discorre sozinho, como
se estivesse tentando fazer um mapa mental sobre o que pode ter causado a
minha dor de cabeça. — Não devíamos ter ficado tanto tempo fora. Você
sentiu saudades de Ariya e seu cérebro pode ter se sobrecarregado. Você se
lembra da nossa viagem? Acha que esqueceu de alguma coisa?
— Andrei, não é assim que funciona — tento acalmá-lo. — Eu
estou ótima. Senti saudades da nossa filha tanto quanto você. Foi só uma
dor passageira, uma tonturinha de nada, eu me sentei e passou.
— Tontura? — ele questiona, severo, cruzando os enormes braços.
Seu olhar duro me fita, e tenho que me segurar para não me jogar em seus
braços e roubar um beijo. — Ninguém tinha falado nada sobre uma tontura
até agora! Meu Deus, vocês todas podiam ter um pouquinho de
autopreservação!
— O que está acontecendo aqui? — Tatiana aparece, descendo as
escadas com minha garotinha em seus braços. — Eu estava com as crianças
e comecei a ouvir uma gritaria.
— Anastasia precisa de um médico — Vladimir sintetiza, do seu
jeito. Acho que ele só registrou essas duas palavras até agora: Anastasia
médico.
— Ela precisa que vocês parem de loucura! — Lara se exaspera.
— Eu também preciso — Serena fala baixinho, massageando as
têmporas.
Andrei vai ao encontro de Ariya, que estica os bracinhos para o seu
papai. É lindo como os dois se aproximaram instantaneamente, o elo que
criaram em tão pouco tempo. Nossa filha o ama demais, e Andrei é um pai
incrível, cuidadoso, protetor, educado e amoroso, ele é a minha melhor
escolha.
— Ela é o rosto da nossa família — Lara, com sua infinita sensatez,
continua tentando colocar alguma razão em suas cabeças duras — se
formos todos juntos, vamos acabar em outra coluna de fofocas.
Lara está certa, e eles sabem como prefiro evitar a parte
sensacionalista da minha exposição profissional.
— Podemos reservar uma ala do hospital — Vladimir pondera,
como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Não tem jeito.
Eles continuam falando todos ao mesmo tempo. Ariya, sem entender
nada, move a cabeça de um lado para o outro, rindo dos tios desesperados e
do drama de seu pai. Eles não vão desistir até me arrastarem para um
hospital, mas eu realmente não preciso de um.
Pelo menos, não imediatamente.
Mas entendo a preocupação deles, e no fundo, eu até gosto. É bom
saber que sou amada, que seus exageros são por causa da consideração que
sentem por mim. Eles se importam comigo o suficiente para não medirem
as próprias ações, porque isso é amor: um sentimento que não tem régua e
nem limite.
Isso é família.
— Eu estou grávida — deixo escapar.
Eles param de falar no mesmo instante. O silêncio que se segue,
junto com as expressões chocadas de todos, me faz sorrir. Eu não pretendia
contar assim, era para ser surpresa, mas já que eles não conseguem se
controlar, e eu não preciso de exames neurológicos mesmo, acho que é o
momento certo.
Andrei se aproxima de mim, alternando entre olhar para o meu rosto
e a minha barriga, como se uma grande barriga de nove meses fosse
aparecer de repente.
— Você está grávida? — pergunta, rouco.
— Sim.
Ele coloca a mão livre sobre o meu ventre, e sinto as minhas
lágrimas chegando.
— Tem outro bebezinho meu aqui dentro?
— De quem mais seria?
Ele ri e me puxa pela cintura. Nossa filha se apoia em meu ombro,
abraçando nós dois ao mesmo tempo. Eu os abraço de volta.
— Você está grávida! — repete, feliz como nunca. Seu sorriso largo,
aquele que encanta o mundo, enche o meu coração, transborda-me, eu sinto
o amor se derramando aos meus pés. Meu choro de felicidade. — Eu vou
ter mais um filho!
— Talvez sejam dois! — Tatiana comemora. Na verdade, todos já
estão celebrando com sorrisos emocionados. A preocupação de antes
suplantada pela alegria da novidade.
— Eu amo você, princesa. — Andrei me dá um beijo suave,
apaixonado, ele mal consegue falar por causa do choro e da risada que
disputam um lugar em suas emoções. — Obrigado, obrigado por ser a
minha mulher, por me amar e me salvar. Eu te amo mais que a vida.
— Também amo você, Andrei. Obrigada por realizar todos os meus
sonhos e ser a minha felicidade.
A felicidade que eu agarrei com minhas mãos.
E que não soltarei jamais.
FIM.
agradecimentos
Muita coisa aconteceu durante o processo de escrita de Entre
Mentiras e Verdades, algumas mais difíceis que outras. Foi uma história
difícil e dolorosa de se colocar em palavras, e muitas vezes eu pensei que
não fosse conseguir. Alguns temas que o livro aborda foram e ainda são
gatilhos para mim. Passar por essa escrita foi visceral, mas uma experiência
que jamais esquecerei. Eu aprendi junto com os personagens e também me
reinventei com eles.
É por isso que o meu primeiro agradecimento vai para os dois:
Andrei e Anastasia. Obrigada por não desistirem — um do outro e de si
mesmos. E falando em desistir, eu sei que todo e qualquer agradecimento às
leitoras que esperaram por este livro não será o suficiente, mas vou tentar
mesmo assim. Obrigada por não desistirem de mim. Vocês são, e sempre
serão, as melhores leitoras e qualquer autora poderia sonhar.
Obrigada, também, às minhas betas, Nathalia e Laís, duas pessoas
essenciais para a finalização de Entre Mentiras e Verdades, minhas maiores
incentivadoras e as únicas que conhecem as dificuldades do trajeto, pois o
percorreram junto comigo. E obrigada à Gabi, minha “advogata” que me
ajudou com horas extras de consultorias, pesquisas e traduções russas.
Agradeço, com todo o meu amor, ao meu marido e filhos, que são a
minha força e fonte constante da minha inspiração. Eu os amo mais que a
vida.
Obrigada às criadoras de conteúdo literário que acompanham a mim
e aos meus livros, o trabalho de vocês é inestimável e essencial para a
literatura nacional. Agradeço a todas as minhas amigas e colegas autoras,
que estiveram presentes, conversando e me apoiando, mas também
agregando no meu processo de escrita com opiniões e conhecimentos, em
especial à Cassia Carducci e Natalia Saj.
Por último, mas não menos importante, obrigada a você, que chegou
até aqui. Espero nos vermos novamente na próxima.
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