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Copyright © 2023 Cinthia Freire

Capa:
Ellen Ferreira

Ilustração do início:
Luciana Souza

Ilustração do final:
Fera Ilustra

Mapa:
Aurora Karoliny

Revisão e Diagramação:
Carla Santos

Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
a realidade é mera coincidência.

Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer
meios existentes – tangiveis ou intangíveis – sem prévia autorização da
autora.
Todos os direitos reservados.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9.610/98,


punido pelo artigo 184 do código penal brasileiro.
Capa
Folha de Rosto
Ficha Catalográfica
Epígrafe I
Epígrafe II
Ilustração I
Mapa de Temnyy Gorod
Glossário
Nota da autora I
Nota da autora II
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Epílogo
Ilustração II
Agradecimentos
Biografia
Outras obras
Notas
“Todo homem tem seu preço, diz a frase. Não é verdade. Mas para cada
homem existe uma isca que ele não consegue deixar de morder.”
— Friedrich Nietzsche
“Ele tentou não olhar para ela, como se fosse o sol.
Mas, como o sol, ele a viu, mesmo sem olhar para ela.”
— Tolstói
Temnyy Gorod (Cidade Sombria): Cidade fictícia situada no Norte da
Rússia.
Granitsa: Grande muralha que divide o Setor Norte do resto da cidade,
localizada além da Kupol, construída há décadas para manter a elite
protegida.
Kupol: Floresta que protege e divide o Setor Norte do restante de
Temnyy Gorod.
Marodery: Saqueadores que são encontrados geralmente entre o Centro
e a Kupol.
Ozero: Lago localizado dentro da Kupol, frequentemente usado para
descarte de corpos e armas.
Berstuk: O gato da raça Sphynx, presente do pai de Demyan para
Roman. Seu nome na mitologia eslava significa deus do mal que vivia nas
florestas.
Noite Longa: Fenômeno climático fictício que ocorre no inverno e que
deixa toda Temnyy Gorod e parte do Norte russo na mais completa
escuridão.
Poço: Localizado no subsolo do Leste, é o local onde ocorre as lutas
clandestinas conhecidas como Ciclos.
Smorodina: Bar localizado entre o Centro, Leste e a Kupol, onde se
concentra boa parte de todo o tráfico de armas, drogas e comunicação.
Mudak: Idiota.
Mal’chick: Filho do sexo masculino.
Dorogoy: Querido.
Drug: Amigo.
Bliznetsy: Gêmeo.
Krónchka: Palavra carinhosa usada para mulher no sentido de pequena.
Ved’ma: Bruxa.
Slátkiy: Doce.
Devochka: Garota.

Funcionamento do Ciclo:
Cada Ciclo tem o nome de uma estação.

Verão: Leto
Outono: Padat’
Inverno: Zima
Primavera: Vesna
“Demyan1 e Roman são ruins de verdade, eles não são o tipo que você deve
desejar na vida real.”
F. LOCKS & CINTHIA FREIRE

Olá, leitor.
Antes de continuar sua leitura, gostaria de conversar um pouquinho com
você. É de extrema importância que não pule essa página e nem as
próximas com as notas de autora, para que você tenha uma leitura agradável
e segura.
Se você me acompanha nas redes sociais, já sabe bem o que Kings of
Dark significa, mas se você chegou até aqui porque gostou da capa, por
indicação de alguém ou por qualquer outro motivo, então é importante
saber que se trata de uma duologia Bully/Dark Romance e como tal, contém
elementos que podem causar desconforto em pessoas sensíveis aos temas.
De qualquer forma é importante frisar que os acontecimentos que
definem um livro como Dark e que estão inseridos nessa duologia, não
ocorrem entre os casais principais e sim ao redor deles. Mesmo assim, os
relacionamentos retratados aqui não são nem de longe parâmetros para
serem seguidos na vida real.
Lembrem-se sempre: tudo o que acontece aqui é apenas ficção, e as
autoras não concordam com comportamentos abusivos, possessivos, tóxicos
e que causem qualquer tipo de desconforto físico ou mental.
Há uma nota com todos os gatilhos relacionados ao livro e é de extrema
importância conhecê-los antes de seguir com a leitura.
A duologia Kings of Dark — Demyan e Roman — se passa em uma
cidade fictícia, sendo assim eu e a F. Locks utilizamos elementos baseados
em fatos inseridos através de muitas pesquisas para poder trazer a vocês
uma cidade com elementos distópicos, importantes para a ambientação da
duologia, porém tudo o que envolve Temnyy Gorod é ficção.
Para outras dúvidas que tiverem, podem me procurar em minhas redes
sociais, será um prazer conversar e esclarecê-las.

Este livro contém elementos que podem causar desconforto,


especialmente para aqueles que são sensíveis a temas abordados aqui.
Reconhecemos a importância de respeitar os limites individuais e entender
que nem todos os leitores desejam se envolver com conteúdos que possam
afetar seu bem-estar emocional.

Se esses gatilhos mencionados podem fazê-lo sentir-se mal ou


perturbado, recomendamos gentilmente que não prossiga com a leitura. É
fundamental cuidar de sua saúde mental e emocional, e não queremos que
se exponha a conteúdos que possam causar desconforto ou ansiedade.

Agradecemos sua compreensão e respeito pelos seus próprios limites.


Lembre-se: é sempre importante colocar sua saúde e bem-estar em
primeiro lugar.
Gatilhos para:
Assassinato, agressões físicas e psicológicas, ameaças, chantagens, uso
abusivo de álcool. Perseguição, abuso psicológico. Suicídio, tráfico de
mulheres, estupro. Terror psicológico, crises de pânico, Depressão.
Transtorno Pós-Traumático, Delírios. Experiências espirituais.

Este livro contém cenas e descrições relacionadas a aparições de


fantasmas e temas sobrenaturais e cenas descritivas de situações de abuso
sexual e agressão, que podem ser perturbadoras para alguns leitores.

Esta é uma obra de ficção destinada para maiores de 18 anos.


A autora não apoia e nem tolera esse tipo de comportamento. Não leia
se não se sentir confortável.

Denuncie se conhecer alguma vítima de qualquer um dos crimes citados


acima:
Disque 100 para denúncias de violações de direitos humanos.
LETO2

Um ano antes...

Encaro a pequena mala que descansa em cima da cama, estou parada há


tanto tempo que sinto minha nuca enrijecer enquanto analiso a
mediocridade do que sou, amontoada dentro de um retângulo de couro
gasto: meia dúzia de blusas térmicas tão surradas que há manchas horrendas
por todos os lados e nem todo o sabão de Temnyy Gorod seria capaz de
remover, duas calças jeans, três se contar com a que estou usando, um par
de botas e um casaco herdado de Waleska, antes dela nos deixar e ir embora
com seu namorado misterioso.
Isso foi há dois anos e, desde então, ela se esqueceu completamente de
nós.
Eu não a julgo, faria o mesmo se pudesse, aliás, é o que estou prestes a
fazer, assim que conseguir decidir o que mais quero levar comigo essa noite
e finalmente encerrar esse ciclo, me assusto ao perceber que não há muito
nesse lugar que me traga algum sentimento bom, a grande maioria das
coisas foram vendidas, a televisão antiga, o aparelho de VHS, até mesmo as
fitas de filmes e o fogão que mal funciona se foram, qualquer coisa que
traga uma moeda sequer para meus bolsos, qualquer coisa que possa me
garantir que terei algo com o que barganhar caso eu venha a precisar. Não
faço ideia do que me espera lá fora, nunca saí daqui, assim como a grande
maioria dos moradores dessa cidade maldita, nasci e cresci destinada a
morrer de trabalhar para não morrer de fome ou frio e, no fim das contas,
estou aqui, quase morrendo de solidão, de medo, de tristeza.
No fim das contas não tenho muito, isso é verdade.
Em um lugar onde a pobreza assola a população, é difícil ter algo de
valor, ainda mais difícil negociar com uma mãe de família faminta que mal
tem um mingau de aveia para encher as barrigas dos seus filhos, quanto
pagar em uma televisão antiga e meia dúzia de filmes que serão o
entretenimento das pobres e desnutridas crianças. Ou o quanto um senhor
deve me dar em troca de um sofá fedorento e mofado.
O fogão foi praticamente doado a um cara que tenho certeza de que não
vai usar, por não ter o que cozinhar, mas não ligo.
Sinceramente, não ligo para nada. Assim que terminar de fechar essa
mala, farei questão de deixar a porta aberta para que quem quiser e tiver
coragem de entrar aqui, possa levar o que sobrar do que um dia foi a minha
vida. Para o que restou depois que a miséria destruiu a família Vasilievna.
Para todo lugar que olho a única coisa que me recordo é fome, frio,
pobreza, abandono, heranças deixadas para trás enquanto um após um,
todos aqueles que um dia foram importantes para mim, se foram. Pela
morte, pela doença, pela maldade ou pela esperança, seja lá qual for o
motivo, todos saíram um dia por essa porta e nunca mais voltaram. Assim
como farei em breve, irei embora de Temnyy Gorod, foi para isso que
trabalhei duro e guardei tudo o que pude, para pagar a minha viagem para
longe daqui, a única forma que alguém como eu, consegue se livrar da
maldição que é nascer no vale da sombra da morte, no lugar mais esquecido
da face da Terra, a diferença é que, dessa vez, não terá ninguém para ser
deixado para trás, encarando minhas costas com o coração acelerado e os
olhos marejados.
E mais uma vez estarei sozinha.
Coloco uma mecha de cabelo atrás da orelha e mordo o lábio ressecado
pelo frio e falta de hidratação, há tempos deixei de me importar com minha
aparência, para dizer a verdade, minha mãe sempre dizia que ser bonita
aqui, é pedir para sofrer e então ela me ensinou a evitar chamar atenção de
ninguém.
Nunca erga os olhos quando estiver na rua Yelena, nunca sorria para
estranhos, nunca encare um homem nos olhos. Fique de cabeça baixa,
cabelos presos, olhos no chão e lábios fechados, e assim talvez você passe
despercebida.
Cresci com medo da minha aparência, medo de ser roubada, medo de
desaparecer, como algumas das minhas colegas da época do colégio
desapareceram, medo, medo, medo... até que um dia eu resolvi que o medo
não me ajudaria em nada e criei coragem de ir até os Marodery – o grupo de
saqueadores que dominam o centro velho de Temnyy Gorod –, que tem o
controle de quem pode ir e vir, os únicos caras que podem me ajudar a ir
embora daqui.
Os mais perigosos, os únicos que minha mãe me pediu para manter o
mais longe possível.
Mas ela não está mais aqui para me proteger e descobri do jeito mais
feio que minha beleza realmente pode me ajudar. Ela me ajudou aquela
noite, só espero que não precise mais dela para nada. Já paguei minha
dívida, agora eles terão que cumprir o combinado.
Respiro fundo e balanço a cabeça, afastando as lembranças amargas, as
palavras feias, os olhares sujos, não foi nada demais, é o que digo a mim
mesma desde o dia em que fui até eles, mas agora que está se aproximando
a hora de voltar àquele lugar estou nervosa, muito mais do que imaginei que
ficaria, afinal de contas, estou esperando por essa noite há quase dois meses
e, embora sair daqui seja tudo o que eu mais sonhei em toda a minha vida,
não consigo me sentir feliz.
Sinceramente, nem sei se me recordo como é se sentir assim, feliz com
algo, sorrir de verdade, não um meio sorriso que se dá a um conhecido na
rua, ou aqueles que surgem ao ver algo bonito, como um raro dia de sol na
sempre fria e cinzenta Temnyy Gorod. É por ela que eu anseio sair, Waleska
dizia que o calor do sol é o que faz a gente sorrir, ela vivia dizendo que,
assim que pudesse, iria a uma praia, se deitaria na areia e fecharia os olhos,
sentindo o calor do sol em sua pele. É isso que eu quero, quero sorrir com o
sol em meu rosto, e, às vezes, ainda sonho com minha irmã ao meu lado,
segurando minha mão e rindo também.
Olho para o aparador no canto do quarto, o porta-retratos ainda está no
mesmo lugar que Waleska deixou antes de partir, nele está a única foto da
família toda reunida, parece uma sobrevivente de um desastre, suja,
amassada, com as bordas rasgadas, como se tivesse andado na carteira de
alguém por muito tempo.
Vou até ele e o retiro, o papel parece colado pelo tempo no objeto, com
cuidado o removo, passo o polegar na imagem, tentando ativar alguma
memória dos jovens que estão sorrindo de verdade para a câmera, cada um
carregando em seus braços uma garotinha, a maior, com seus cabelos
brancos de tão loiros, e a menor com seus enormes olhos azuis estranhos,
glaciais.
Sorrio, aquele sorriso sem emoção, ao imaginar que, em algum
momento, fomos uma família feliz, completa, que se reunia à mesa e
jantava juntos, que montava a árvore de Ano-Novo e cantava canções de
Natal, que acreditava que o mundo podia ser um lugar melhor desde que
estivéssemos juntos.
Mas então o que houve com a gente? Por que nos dissolvemos como
neve sobre a sola, nos tornando uma lembrança fria e gasta em um pedaço
de papel?
Viro a foto e encontro uma mensagem na parte de trás, a letra é
feminina, mas não é a de Waleska. Imagino que seja da nossa mãe e que a
foto foi um presente para o nosso pai, talvez por isso a foto esteja
maltratada, por um breve tempo, ele desejou nos carregar junto de si.

“Para se lembrar de voltar para nós.


Com amor, Tanya.”

Fecho os olhos e me compadeço da pobre mulher que sonhou em


acreditar em finais felizes. Sinto falta dela, da sua mão áspera por trabalhar
a vida inteira nas indústrias que movem essa cidade, acariciando meu rosto,
até mesmo da sua voz, ao brigar comigo por ter saído com os cabelos soltos
para brincar. Sinto falta do seu cheiro, de chamá-la de mãe, de sentar-se ao
seu lado depois do jantar e ouvi-la ler uma história antiga. Olho mais uma
vez para o seu rosto bonito e penso se alguém também a alertou sobre a sua
beleza, se ela foi feliz com o meu pai, se ele se encantou por ela ou se o seu
casamento foi um acordo como a maioria das famílias pobres do Setor
Oeste fazem, são perguntas que nunca serão respondidas, e que não
significam mais nada para mim. Coloco a foto na mala, dentro do bolso de
uma das blusas, um lugar muito mais correto do que em um porta-retratos,
ao menos aqui ela não pode enganar ninguém.
Fecho a mala e visto o casaco sentindo o peso dele me aquecer, passo
pelo corredor e a sala, olho para a cozinha me recordando da última
refeição que fiz com Waleska, enquanto sorríamos e fazíamos planos que
nenhuma das duas tinha intenção de realizar, abro a porta sem olhar para
trás e a deixo aberta, cumprimento os vizinhos que passam por mim, a
maioria cansados depois de um exaustivo dia de trabalho, voltando para as
suas casas de mãos vazias e corações endurecidos.
Uma onda de alívio me toma conforme me distancio da casa, da rua, do
bairro. Será uma longa caminhada pelas ruas escuras e quase desertas da
cidade eternamente fria, mas não me importo. Enquanto caminho, penso
que não vou precisar passar por isso, não irei enganar crianças, nem me
iludir acreditando que um homem irá voltar para mim, não precisarei
trabalhar até a morte em uma indústria, nem precisarei ter medo.
De hoje em diante sou apenas eu, Yelena Vasilievna, uma pequena mala
em minha mão, nada além do essencial, nenhum sonho, nenhuma
lembrança, nenhuma saudade, nenhum medo, apenas o futuro.
E eu espero que ele seja bom.
Não existe muitas coisas sobre mim das quais posso falar com muita
certeza, grande parte do que se ouve por aí sobre Roman Stepanovich
Zorkin é algo que as pessoas viram, comentaram, inventaram e aí já viu,
vira uma bola de neve, algo fora de controle e então já matei um cara, já
viajei para a Lua e tudo mais.
Eu sei que não sou um cara fácil de se entender, cresci no lugar mais
feio do mundo, em meio à pobreza e ao lixo, esquecido por todos, por tudo,
roubando de dia para comer à noite, me metendo em mais briga do que um
garoto deveria, quebrando ossos com meu punho forte e sendo chamado de
tudo o que não presta, aguçando o ódio de uns, a admiração de outros e o
respeito da maioria. Mas existe uma coisa nessa vida que eu tenho certeza
de que quase ninguém sabe e que é a única que verdadeiramente importa.
Eu amo Anna com todo o meu coração corrompido.
Acho que a amo desde o dia em que nasci, no chão frio do banheiro da
sua casa, onde, por sorte, não escorreguei e caí de cara no chão graças a ela,
que na época era uma garotinha curiosa que não deixava nada passar, sem
que pudesse bisbilhotar; e que de acordo com minha mãe, que me contava
essa história sempre que podia, estava obcecada pelo mal’chik em sua
barriga. Pois é, a mulher da minha vida foi o primeiro ser humano a pôr as
mãos em cima de mim, não é à toa que sou louco por essas mãos desde
sempre. E nesse momento, enquanto ela grita comigo, andando de um lado
para o outro, estou me lembrando do que essas mãos fizeram na última vez
em que elas tocaram em mim e o quanto estou louco para que elas voltem
para o lugar delas.
— Você tá me ouvindo, Roman? — Anna pergunta, com seus olhos
escuros intensos me encarando como se pudessem me matar.
— Claro que estou — minto porque não aguento mais ouvir ela brigar
comigo e parei de prestar atenção no que ela diz há alguns minutos.
— O caralho que está — resmunga extremamente irritada.
Caminho devagar até onde ela está, sentindo sua raiva se transformar
em desejo à medida que me aproximo. Talvez ela também tenha se
apaixonado por mim no dia em que nasci, quando ela me segurou em suas
mãos coberto de sangue e sujeira e se deu conta do quanto ela era poderosa
diante daquele moleque inútil, frágil e pequeno.
— Eu tô bem, Anna, eu juro. — Ergo os braços, dando a ela uma visão
nada agradável do meu corpo machucado enquanto giro. — Viu só, tudo no
lugar. — Estico minha mão para abraçá-la, mas ela me impede.
— Não me toque. — Anna estende a mão, espalmando-a em meu peito
e faço de tudo para que ela não note que minhas costelas provavelmente
estão fodidas. Merda, odeio quando isso acontece.
Foi um descuido, geralmente não apanho desse jeito, eu sou o cara que
quebra ossos, o cruel e rápido Roman, impiedoso com seus adversários,
mas essa noite algo deu muito errado.
— Tudo bem, desde que você não pare de me tocar — provoco-a,
passando a língua em meu lábio e encarando o dela.
— Isso não é engraçado, Roman.
— Nunca disse que é. Minhas lutas são todas sérias — digo cheio de
orgulho, um orgulho que vem crescendo ao longo dos anos, desde que
minha mãe morreu e tudo o que me restou foi transformar meu dom natural
para arrumar confusão em algo que realmente me traga algo de bom: grana.
— Você me prometeu que não iria mais lutar. — Ela cruza os braços e
me inclino, deixando um beijo em sua bochecha.
— Não, eu disse que não iria mais brigar. — Passo meu nariz em seu
pescoço na tentativa de acabar com essa discussão boba e levá-la para a
cama.
— E qual a diferença? — Anna se contorce.
— Lutar me dá grana, comida na barriga, teto sobre minha cabeça,
coisas que, por sorte, você e o Demyan não precisam se preocupar —
respondo, enquanto enlaço sua cintura e a puxo para mim. Não há mágoa
em minha voz, embora esteja falando a verdade. A vida de Anna e Demyan
são muito diferentes da minha e já me acostumei com nossas realidades.
— Já disse que você não precisa disso. — Ela me empurra e gemo de
dor quando toca um hematoma dolorido.
— Não sou seu garoto de programa. — Vou até o meio do quarto, com a
mão espalmada em meu esterno enquanto me jogo na enorme e confortável
cama de casal, tenho certeza de que, se eu fechar meus olhos por um
instante, durmo aqui mesmo, por dias talvez, se minha barriga deixar.
— Você é um idiota, Roman! — ela resmunga, mais irritada do que eu
gostaria, mas não me importo, ela pode me xingar à vontade, não vou
mudar de ideia, tenho orgulho do que faço e de não precisar de nada que o
dinheiro deles possa comprar.
— Um idiota que você ama. — Cruzo as mãos atrás da cabeça e sorrio
para ela.
Anna é irmã do meu melhor amigo, filha de um dos endinheirados de
Temnyy Gorod, proprietários das maiores indústrias da cidade, talvez do
país, eles são ricos. Não, provavelmente são mais do que ricos, acho que ela
nem ao menos tem ideia do quanto de grana tem debaixo do seu rabo lindo
e gostoso. É muita grana, talvez por isso ela tenha tanta dificuldade de
entender o que significa para eu lutar por dinheiro, não é só o conforto que
a grana traz, tem a ver com dignidade, com manter o respeito das pessoas
que sempre me olharam feio no Setor Oeste por eu ser um fodido brincando
de casinha com a filha do responsável pela morte de metade da população
dessa cidade, que adoece diariamente por causa das precárias condições de
trabalho no Setor Sul, onde vivem.
Para essas pessoas, estou com Anna por conveniência, por ter uma cara
boa suficiente para seduzir a princesinha da cidade a ponto de fazê-la abrir
as pernas para um cara pobre e quatro anos mais novo. Faço isso por
conforto, por comida, para poder me aquecer no inverno. Não importa o que
eu diga, nem quantas surras já levei por ser o traidor da cidade, nem o fato
de ainda manter meu apartamento e voltar para casa quase todos os dias,
mesmo depois da morte da minha mãe. Eles nunca vão acreditar no meu
amor por essa garota e foda-se, não devo nada a esses vermes. O importante
é que ela sabe e me ama, o suficiente para que mesmo podendo dar o fora
desse inferno a hora que bem entenderem, ela continua aqui, assim como o
seu irmão, o que me faz pensar que só existe um motivo para que eles ainda
não tenham feito isso.
Eu.
Ter crescido na cozinha da casa deles me deu a oportunidade de sempre
ter comida de qualidade, mesmo quando eram apenas os restos das
refeições. E no inverno rigoroso, uma cama quente para dormir, já que era
quase inviável transitar pelas ruas com a neve batendo na nossa bunda. Era
algo natural para mim e, enquanto minha mãe passava os anos limpando a
mansão a troco de um punhado de comida e umas moedas que mal nos
mantinham vivos, eu fui me aproximando dos gêmeos, me tornando o
melhor amigo de Demyan, que sempre me acompanhava em minhas
aventuras pelo Centro ou pelo Setor Leste, ora explorando os lugares
inabitáveis dessa cidade, ora roubando o que poderia ser vendido em troca
de algum dinheiro, ora arrumando brigas, porque ninguém tolerava o
playboyzinho de merda metido na nossa área; e à noite, depois que todos
dormiam, eu me esgueirava para o quarto dela. No começo, eu sei que foi
por diversão, afinal de contas, que garota rica nunca quis dar para o cara
perigoso e pobre? E eu estava mais do que pronto para realizar a sua
fantasia.
Mas hoje não é mais assim.
Não sou mais só um subterfúgio para Demyan se aventurar fora dos
muros que separam o Setor Norte do resto da cidade, nem a fantasia de
Anna que queria sexo sujo com um cara abaixo da sua classe social.
Hoje sou o melhor amigo dele e o amor da vida dela.
Sou alguém que eles temem perder.
E isso faz de mim, um cara de sorte, mesmo em um lugar tão fodido
como Temnyy Gorod.
— Vem cá, tô te chamando — peço mais uma vez e ela se vira para
mim, olhando para partes do meu corpo que eu não quero que ela veja. Não
costumo apanhar tanto, essa noite me desconcentrei um pouco e foi o
suficiente para o mané, que estava tomando uma surra, me pegar de jeito,
algo que pretendo não repetir mais.
— Só se você prometer que não vai — ela insiste.
— Por que você está sendo tão chata? Não confia em mim? Acha que
sou fraco por acaso?
— Não quero pensar nisso, só não gosto de te ver em perigo.
Ergo-me sobre os braços e sorrio, um sorriso que faz as meninas
ficarem tímidas e os caras se irritarem comigo, Demyan diz que é o sorriso
de um psicopata, meio perturbador, frio e cheio de ódio; Anna diz que é o
sorriso do anjo da morte, talvez seja, que se foda. Ela gosta.
— Minha linda, viver fora desses muros já é estar em perigo.
Ela bufa, sabendo que perdeu essa, que nada que ela diga poderá ser
mais verdadeiro do que isso, viver em Temnyy Gorod é estar eternamente
em perigo.
— Agora vem cá cuidar de mim, estou com saudades. — Aponto o
queixo para o meu pau, que já começa a endurecer.
Anna caminha até onde estou, ainda de bico, mas ao menos não tão
brava. Ela monta em cima de mim, com uma perna de cada lado, e respiro
fundo quando noto que bato o quadril em algum lugar e está doendo, porra.
— Por favor, não volta lá — ela pede olhando para mim como se
estivesse querendo me contar algo.
— O que você quer de mim? Que eu vá para uma das fábricas do seu
pai? Sinceramente, Anna, se eu tiver que morrer, prefiro que seja no Poço
do que no Setor Sul.
— Vamos embora, eu, você e o Demyan. — Ela segura meu rosto em
suas mãos enquanto brinca com as mechas do meu cabelo com os dedos.
— Você sabe que eu não posso — sussurro, sentindo uma dor familiar
em meu peito.
Prometi à minha mãe, no dia em que a encontrei, envolta de uma poça
de sangue, depois de dias à sua procura, que vingaria sua morte, que um dia
encontraria o desgraçado que a matou por causa de um pacote de farinha e
um pedaço de porco.
— Galina não ia querer te ver fazendo justiça — ela diz e afasto sua
mão.
— Você não sabe. — Tento me levantar, mas Anna me abraça,
impedindo-me de me levantar.
— Eu te amo — ela sussurra em meu ouvido quando se abaixa para me
beijar, como se temesse ser ouvida. — Eu não posso te perder.
— Eu sei. — Passo a língua em seus lábios, enquanto envolvo sua
cintura com minhas mãos, puxando-a para mais perto. — E não vai.
— Não volta mais naquele lugar — ela insiste, passando os dedos em
meus hematomas e se referindo ao Poço, o lugar que todos que tem um
pouco de juízo na porra da cabeça, temem, mas que é onde ganho minha
grana, minha fama e todos os hematomas.
— Pensa pelo lado bom, meu rosto tá intacto — brinco, não querendo
mais continuar esse assunto e ela me bate.
— Babaca. — Ela ameaça se levantar e seguro-a pelas coxas,
mantendo-a em meu colo.
— Me beija — peço, erguendo o quadril e alcançando o meio das suas
pernas. — Dizem que beijos saram tudo — brinco, rindo, e ela revira os
olhos. — Eu sei que você quer. — Ela morde a boca, antes de se mover,
deixando beijos por todo o meu peito, se demorando nos lugares
machucados, até chegar ao cós da minha calça, onde seus dedos brincam,
provocando-me.
— Eu deveria te colocar para fora do meu quarto — ela ameaça
enquanto puxa minha calça, liberando minha ereção.
— Tenho um lugar melhor para você me colocar. — Puxo-a de volta
para o meu colo, beijando sua boca enquanto afasto sua calcinha e a
penetro. — Agora sim, bem melhor — sussurro em sua boca quando me
enterro dentro dela e começo a me mover, sentindo-a rebolar e gemer.
— Promete pra mim — ela insiste com a voz chorosa em meu ouvido,
quando giro nossos corpos, me colocando sobre ela e voltando a me mover.
— O que você quer, radnáya? — pergunto com minha voz já rouca de
tesão.
— Que você vai se cuidar. — Ela pressiona a testa na minha,
aumentando a força com que se move sobre mim.
— Eu prome... — Ela coloca o indicador em meus lábios, me
impedindo de falar.
— Não fale alto, traz má sorte fazer promessas em voz alta.
— Não tenho medo, Anna — digo, sentindo meu corpo rígido com o
orgasmo se aproximando.
— Você é um tolo por dizer isso, mön radnóy — ela diz, gemendo
baixinho, como se estivesse prestes a me contar um segredo.
— Eu sei o que digo. — Aumento a pressão, indo mais fundo, erguendo
sua coxa, empurrando meu pau dentro dela.
— Você não sabe de nada, Roman — ela diz, em meio a gemidos.
— Eu sei que te amo — sussurro em seu ouvido, no exato momento em
que me desmancho em seus braços e sinto seu corpo inteiro convulsionando
com o seu prazer.

Minha costela dói pra caralho, mas não tenho coragem de me mover,
Anna estava tão sentimental hoje, como se estivesse realmente com medo
de me perder e agora ela está dormindo, agarrada em mim de um jeito que
me faz querer largar tudo e aceitar sua proposta de ir embora, mas então eu
nunca mais poderia sair nas ruas, sempre de cabeça baixa, com a minha
dignidade enfiada no meu rabo até o talo e a culpa por ter quebrado a minha
promessa, sufocando-me, me assombrando à noite, como a maldita Baba
Yaga. Isso é algo que eu jamais suportaria, mesmo que ela nunca
compreenda.
Meu celular vibra na mesa de cabeceira e me assusto porque ele nunca
toca, a não ser que seja um dos Marodery me chamando para uma luta de
última hora, o que não pode ser já que acabei de chegar de uma, ou então...
— O que você quer? — sussurro ao atender a ligação.
— Que você vista uma roupa e saia do quarto da minha irmã —
Demyan diz com a voz divertida.
— Cara, você não tem o que fazer? — resmungo, mas me movendo
devagar para não acordar Anna.
— Exatamente por isso que estou te chamando, vem logo ou vou te
deixar pra trás.
Estou tentado a dizer a ele que vou passar essa, mas desde que o pai
deles morreu em um acidente de carro, há alguns meses, que Demyan vem
sentindo o peso e a pressão de assumir o lugar que ele nunca quis, e se
tornar o novo filho da puta assassino de Temnyy Gorod, assumindo o lugar
do seu pai à frente das Indústrias Petrovich.
Então sei que ele precisa de mim e, como o bom amigo que sou, eu
sempre vou até ele.
— Me dê um minuto. — Desligo a chamada e puxo minha calça e
camiseta, me arrastando até a poltrona onde calço as botas e antes de sair,
dou mais uma olhada em Anna e meu coração se aperta ao observá-la
encolhida no meio da cama, como se estivesse à minha procura, um vinco
de dor se forma entre seus olhos e ela sussurra meu nome.
Olho para a porta mais uma vez e respiro fundo.
— Já volto, radnáya. — Deixo um beijo em sua testa antes de abrir a
porta e sair, deixando a única garota que amei por toda a minha vida,
sozinha.
— Juro que achei que ia ter que te arrastar de lá de dentro — Demyan
diz, no instante em que coloco o pé do lado de fora do quarto de Anna.
— O que houve? — pergunto, encarando o rosto agitado do meu amigo,
ainda sem soltar a maçaneta, como se algo estranho me impedisse de me
afastar dela.
— Nada, só preciso dar o fora daqui. — Ele olha para os dois lados,
como se estivesse sendo observado e, sem pensar, faço o mesmo. — Tô me
sentindo sufocado. — Ele passa o indicador na gola do moletom, puxando-o
um pouco.
— O que você usou? — Tento observar seus olhos ou algo em sua
postura que me dê a resposta, mas esse é o Demyan, sempre agitado
demais.
— Ainda não usei nada. — Demyan puxa a manga da minha camiseta.
— Vamos logo, tá ficando tarde.
Passamos pela enorme propriedade que é a mansão da família
Petrovich, algo que para qualquer outro morador de Temnyy Gorod poderia
deixá-lo impressionado, mas que, para mim, não é nada demais, depois de
vinte anos vivendo por esses corredores, todo o luxo e poder deixa de ser
tão especial e passa a ser natural, o poder faz parte do que eles são. Ao
chegar à porta, Demyan joga meu casaco que está pendurado no armário,
em minha direção antes de sairmos para a noite congelante.
— Caralho, se continuar assim o inverno esse ano vai ser de foder —
ele diz, esfregando as mãos e levando-as à boca enquanto caminhamos até
onde está o seu carro.
— Não, não, vamos andando. — Puxo-o pelo capuz e Demyan
resmunga.
— Tá maluco? Deve estar fazendo uns 2 graus!
— Preciso me exercitar — justifico.
— Sexo não serve? Ouvi dizer que é um excelente exercício de cardio.
— Cale a boca, cuzão, é a tua irmã. — Dou um tapa em seu peito e
Demyan gargalha.
— Não, sério, vamos mesmo a pé? E se eu quiser ir ao Setor Sul?
— Eu sei bem aonde você quer ir, além do mais preciso passar em casa,
o Berstuk está com fome.
— Você e aquele maldito gato feio.
— Qual o problema com o meu gato? Foi seu pai quem me deu ele.
— Não, meu pai queria se desfazer daquela praga e você pegou.
Ergo os ombros enquanto me recordo do dia em que o Sr. Petrovich
chegou em casa com Berstuk ainda filhotinho, choramingando de fome e
frio, Anna correu para longe e, embora Demyan quisesse fazer o mesmo,
ele fingiu que não ligava, mas respirou fundo quando eu disse que o queria
para mim. Desde então, existe uma linha tênue de respeito entre meu amigo
e meu gato, um não gosta do outro, mas ambos sabem que são importantes
para mim. Naquela noite, minha mãe me contou a história do deus da
floresta e do mal e decidimos que esse seria o seu nome. Berstuk, o deus de
Temnyy Gorod.
— Que seja.
Caminhamos por toda a extensão da sua casa, passando pelo jardim,
pelas casas vizinhas, quase todas vazias já que seus proprietários em sua
maioria, estão em Moscou, onde a vida é mais fácil do que aqui, nessa
merda de mundo.
Chegamos a Granitsa, a grande e imponente muralha que separa os
privilegiados do resto de Temnyy Gorod, caso haja algum imbecil nessa
cidade que não tenha compreendido que não é bem-vindo do lado de cá. Ela
foi erguida há muito tempo, antes mesmo de eu ou o Demyan nascer, antes
mesmo dos nossos pais, como uma forma de mostrar ao mundo que ricos e
pobres não se misturam. Ou, para que nós dois possamos mijar nela e rir da
cara dos velhos impotentes que acharam que poderiam me impedir de ir
aonde eu quiser.
Sou o primeiro a subir, ignorando a dor que sinto ao me impulsionar
para cima, conheço cada pedra que compõe Granitsa e sei exatamente onde
encaixar meu pé e onde segurar, ouço Demyan fazer o mesmo ao meu lado
enquanto me xinga por estar obrigando-o a caminhar.
— Sério, não sei o que diabos eu tenho na minha cabeça quando sigo
você.
— Esse é o problema, Dem, você não tem nada nessa merda de cabeça
— provoco-o e salto, caindo de pé, diante da Kupol, a floresta que protege a
muralha e tudo o que tem dentro dela do resto do mundo, como uma grande
e bela redoma, o lugar que usamos para cortar caminho entre a casa de
Demyan e a minha.
Passamos nossa infância aqui, brincando e nos divertindo, construindo
casas de madeira à espera das Baba Yaga, alheios a todas as merdas que nos
cercavam, sempre senti como se, aqui, fôssemos iguais, não havia o mais
rico ou o mais pobre, apenas dois meninos cheios de sonhos e uma
imaginação boa para inventar coisas. Ao longo do tempo, Kupol passou a
ser o nosso refúgio para fazer merda, foder garotas, fumar uns baseados ou
apenas nos esquecer de que vivemos no centro do fim do mundo.
Há alguns anos, Demyan instalou um repetidor de sinal aqui, para que
pudéssemos acessar sites impróprios sem sermos pegos por seus pais, ele
sempre foi bom com essas coisas de tecnologia, na verdade ele é um cara
inteligente demais para perder seu tempo aqui, acabou de se formar na
universidade e tenho orgulho de ver ele passar as etapas que seus pais
esperam de alguém como ele. Não é para mim, nunca fui bom na escola, na
verdade, a única coisa que sou bom de verdade é em brigar, e foder, claro.
— Podemos ao menos ir mais rápido, estou congelando. — Demyan
passa por mim, com os braços cruzados no peito.
— Por que você não vestiu um casaco?
— Estamos no outono, não era para estar tão frio.
— Estamos na Rússia. Quando não está frio aqui?
— Foda, vamos logo, preciso de uma vodka — ele resmunga e
caminhamos lado a lado, por algum tempo. Demyan me conta algo sobre
uma garota que ele está saindo; de nós dois ele sempre foi o mais falante,
talvez por ter mais para contar além de miséria e fome. Não é algo assim
tão legal de dividir e tudo o que eu menos quero é que ele ou a Anna me
olhem como se eu fosse um coitado, porque não sou.
— Ei, tô preocupado com a Anna — admito um tempo depois.
— A Anna? Por que, vocês brigaram?
— O de sempre, ela não me quer no Poço — digo e recebo um olhar
acusatório dele.
Okay, se eu for bem sincero, nenhum dos dois me quer no Poço, mas
Demyan sabe que eu preciso estar lá, não, na verdade, ele sabe que é o
único lugar onde sou mais do que um moleque qualquer, sou o cara que
vem se destacando a cada luta.
— Por que você não faz o que ela tá te pedindo?
— Não posso.
— Qual é, Roman, nós dois sabemos que pode.
— Você sabe que não vou desistir.
— Roman, desculpa, mas já faz muito tempo, não acho que você vá
encontrá-lo — ele se refere ao assassino da minha mãe e respiro fundo para
não ter que dizer algo que não quero.
— Eu tenho um novo patrocinador — confesso e Demyan para de
andar.
— O quê? Como assim?
— Até pensei que poderia ser você.
— Eu? E por que diabos eu ia te incentivar a tentar se matar?
Reviro os olhos, ignorando a verdade em suas palavras, o Poço, a
princípio, nada mais é do que um clube clandestino de lutas onde, até
mesmo as regras que são utilizadas em outros clubes, são descartadas como
lixo lá, a única coisa que é proibida é a morte. Ela é destinada apenas à luta
principal do ciclo, que acontece no fim de cada trimestre.
Nela, o vencedor ganha muita grana, além do status de ser o melhor e o
direito de dar o fora daqui. Só há um problema: para vencer a luta principal
do ciclo, o lutador precisa matar seu oponente; e por mais que eu já tenha
visto uma ou duas vezes acontecer, nunca parei para pensar que, se eu
chegar lá, serei morto, ou me tornarei um assassino.
— Não sei, não consigo pensar em outras pessoas que estejam dispostas
a investirem grana em um moleque como eu.
— Qual é, Roman, todo mundo que te conhece sabe que você é bom de
briga — Demyan diz com convicção.
Nas lutas do Poço existe todo tipo de gente, é o lugar onde assassinos,
estupradores, traficantes e tudo o que de pior que existe no mundo se
encontra, esse é o motivo justificado pelos patrocinadores para permitir que
as atrocidades que aconteçam lá se mantenham por tanto tempo.
Estamos fazendo um favor à sociedade.
Quem sentirá falta de um assassino?
Não há justiça maior do que colocar dois estupradores para se matarem
enquanto o resto de nós assiste sem sujar as mãos.
Mas e quanto a mim? Nunca matei, nem machuquei ninguém. Os
roubos que faço, sempre foram para colocar comida na minha boca e um
teto sob minha cabeça. Sou apenas um garoto, e mesmo assim ninguém me
impediu de me inscrever em uma luta e subir naquele ringue. O que só
prova que eles estão cagando para quem se mete nisso.
— Mas é muita grana.
— Não sou eu — Demyan diz irritado. — Droga, claro que não sou!
— Então quem poderia ser?
— Não faço ideia, algum velho pervertido que gosta de ver tua cara
bonita fodida.
— Idiota! — Soco seu braço e Demyan ri.
— Talvez ele vá te fazer uma proposta depois — ele solta uma
gargalhada e se afasta antes que meu segundo soco o acerte. — Sério, não
faço ideia, não sou eu.
— Tanto faz, você não me diria de qualquer forma.
— Eu não faria isso, Roman, a Anna me mataria.
Voltamos a andar, enfio minhas mãos no bolso da jaqueta enquanto
ouço Demyan gemer de frio.
— Ganhei uma boa grana ontem. — Chuto uma pedrinha do meu
caminho.
— Sério?
— Quer dizer, não é nada demais, mas vai pagar meu aluguel por alguns
meses.
— Caralho, tanto assim? — ele pergunta e balanço a cabeça.
— Imagina quanto eu não ganharia se chegasse à final do ciclo.
— Ou poderia perder.
— Nunca vamos saber, não vou me inscrever.
— Não?
Balanço a cabeça enquanto me recordo da forma como Anna me olhou
hoje.
— Tua irmã vai arrancar minhas bolas antes de chegar ao Poço.
— Ela te ama, você sabe.
Amor, não tenho tanta certeza disso, às vezes acho que Anna não me
ama, não como eu a amo. E, embora eu nunca vá admitir, me sinto tão
jovem e imaturo. Só fiquei com uma garota a vida inteira e, às vezes, sinto
que estou agindo sem pensar, mas então, quando imagino minha vida sem
ela, sem a garota dos sorrisos fáceis, das histórias sobre o mundo real, tão
inteligentes, me sinto perdido, assustado, solitário.
— É, tô ligado — digo, me concentrando no caminho à nossa frente. Já
saímos da floresta, mas ainda está escuro o suficiente para que não
possamos enxergar quase nada. A iluminação no Setor Oeste, onde moro,
assim como em toda a cidade é escassa e geralmente não dura a noite
inteira.
— Tem certeza de que aquele gato não pode esperar? Eu tô congelando
e ainda vamos atravessar a cidade — ele resmunga quando chegamos ao
conjunto habitacional onde moro.
O Gigante Laranja é o principal bairro residencial de Temnyy Gorod, a
grande maioria dos habitantes mora em um dos quase quarenta edifícios que
compõem o Gigante Laranja, como é conhecido pelos moradores. Eu sou
um deles, moro no bloco 24, quarto andar, apartamento 418, desde que
nasci, e mesmo depois que minha mãe se foi, não consegui ir embora,
apesar das inúmeras tentativas de Demyan e Anna de me fazerem ir
definitivamente para a casa deles. É bom ter um lugar para chamar de casa,
onde tenho memórias, onde posso ser Roman Stepanovich, o garoto pobre e
problemático que não tem medo de nada, nem de ninguém, que não pensa
duas vezes em roubar, brigar, lutar.
E também tem Berstuk, o meu companheiro e, às vezes, meu animal de
estimação. O terror da vida de Demyan, que o detesta a ponto de preferir
ficar no frio do que ter que enfrentar a cara feia do meu felino.
— Tem certeza de que vai ficar aí? — encaro seu rosto azulado pelo
frio.
— Tô de boas, vai logo. — Demyan se senta no balanço enferrujado do
parquinho infantil, que fica em frente ao meu prédio, encolhendo-se de frio
e sem pensar duas vezes, removo meu casaco e o entrego. — O que você tá
fazendo? — pergunta quando estendo a peça de roupa para ele.
— Te poupando de morrer de hipotermia.
— Mas e você?
— Eu tenho outro lá dentro, pega logo. — Jogo o casaco no colo do
meu amigo e entro no edifício, frio e mofado. Subo as escadas correndo e
quando chego a minha porta, estou ofegando. Me inclino sobre o vaso que
está aqui desde antes da minha mãe morrer e retiro a chave de dentro dele, a
planta segue viva, não faço ideia do motivo, já que eu nunca nem mesmo
lembro de colocar água nela, mesmo assim ela segue firme, resistindo a
dureza de se manter viva em um lugar que cheira a mijo e mofo. Alguém no
fim do corredor abre a porta, só um pouquinho para ver quem está
chegando a essa hora.
— Sou eu, o Roman — digo para o que imagino que seja a moradora
mais antiga desse andar e ela bate a porta, sem nem mesmo falar um oi. —
Boa noite para você também — brinco ao entrar, Berstuk está à minha
espera, parado do outro lado da sala, sem a luz elétrica tudo o que vejo são
seus olhos brilhando como magia no escuro. — Ei, companheiro, sentiu
minha falta? — Vou até onde ele está e o gato ronrona quando faço carinho
em seu pescoço enrugado. Berstuk é um Sphynx, uma raça esquisita que
mais parece algo que deu muito ruim, mas que ninguém teve coragem de
apagar, e, de acordo com Anna, vale uma grana boa, caso eu o tivesse
vendido, mas minha mãe teve pena do bicho e acabamos ficando com ele.
Hoje não consigo sequer imaginar a vida sem a companhia silenciosa dele.
Demyan diz que é como se fôssemos uma coisa só, onde estou, ele está, e
gosto disso, da ideia de que temos esse tipo de conexão bizarra.
Ligo a luz da cozinha, ela pisca algumas vezes antes de acender, há uma
barata na pia e outra no canto do chão, estão tão gordas e preguiçosas que
nem tentam correr quando as mato.
— Alguém poderia ter me dado uma mão aqui, né? — Olho para o meu
gato que está parado na entrada da cozinha me olhando como se estivesse
mesmo pensando em me responder. — Baratas em casa, sério? Tem ideia do
que minha mãe faria se visse algo assim? — Pego o sachê de comida da
caixa que fica no armário de cima, e que roubei no mês passado, ainda
faltam quatro até que eu precise me preocupar com o que Berstuk comerá,
mas hoje não quero pensar nisso.
Coloco a comida do gato na vasilha e ele me observa por um tempo
antes de se aproximar, ele é desconfiado e sabe que não estou aqui para
dormir.
— Pode comer, prometo que vou voltar. — Passo a mão na cabeça dele
e vou até o meu quarto. No caminho dou uma olhada em Demyan lá
embaixo, ele está balançando para lá e para cá, já vestiu o casaco e agora
está fumando. De onde estou ele quase se parece com uma assombração, o
barulho do metal enferrujado deixa tudo com um ar ainda mais
fantasmagórico.
Abro o armário e puxo o casaco novo que ganhei da Anna no meu
último aniversário, é bonito, pesado e quente, o suficiente para que eu tenha
passado o último inverno aquecido. Ignoro o fato de que minhas roupas
estão cada vez mais escassas e puídas e que preciso de grana se quiser ter o
que vestir no próximo verão. O que me faz pensar no Poço, no meu
investidor misterioso e em tudo o que poderei fazer se eu ganhar o ciclo.
Nunca mais precisarei roubar para comer, nem aceitar presentes da minha
namorada, nunca mais matarei baratas ou passarei frio.
E tudo o que eu preciso fazer é brigar. Algo no qual sou bom, muito
bom.
Smorodina é o único lugar onde se pode ter um pouco de diversão em
Temnyy Gorod, situado entre o Centro e o Setor Leste, ele fica em um
espaço que um dia foi uma escola, mas que agora é apenas um punhado de
ruinas e paredes que mal se sustentam em pé. A única parte que sobrou, foi
o antigo anfiteatro, onde nesse momento, estou tentando desviar de pessoas
e chegar ao bar.
— Me vê uma vodka! — Demyan grita para a garota bonita que está do
outro lado do balcão.
— Para mim uma Kvas3 — peço e Demyan me olha estranho.
— O que deu em você? Vai mesmo me deixar beber só?
— Não tô a fim — confesso, mas meu amigo ignora meu pedido e se
vira para a garota bonita. — Duas vodkas. — Ele mostra dois dedos para o
caso dela não ter compreendido e a garota sorri como todas fazem na
presença dele.
Demyan sempre teve uma facilidade enorme em sair com as garotas,
claro que uma parte é por causa do seu sobrenome, todos aqui sabem quem
é ele, o herdeiro das Indústrias Petrovich. Mas mesmo que ele fosse um
morador do Setor Oeste, ainda assim conseguiria a garota que quer, elas
gostam da sua cara de folgado, do seu jeito desleixado, como se ele
estivesse sempre procurando confusão, sem medo de nada, nem de
ninguém, o verdadeiro príncipe de Temnyy Gorod.
— Teu problema é só a Anna enchendo o teu saco ou tem mais alguma
coisa? — ele pergunta um tempo depois, enquanto tomamos a segunda dose
e observamos as pessoas se espremendo na pista enquanto IC3PEAK
explode Bad Night nas caixas de som com qualidade ruim.
— Não sei, acho que tô cansado, apanhei pra caralho ontem — digo ao
me proteger quando um cara passa por mim.
— Eu vi — Demyan diz, observando as pessoas à nossa frente.
— Viu? Como assim?
— Eu fui lá.
— Por quê? — pergunto confuso.
— Garantir que teu corpo não seria jogado no Poço.
— Isso não vai acontecer — digo com uma convicção que nesse
momento não tenho.
— Espero que não. — Ele vira o resto da bebida e encara o copo vazio.
— Não vá mais lá — exijo.
— Você não manda em mim, não sei se sabe.
— Foda-se, não te quero lá.
— Também não te quero e mesmo assim você continua indo.
— Eu me desconcentrei ontem, por isso apanhei, deve ser por sua causa
— confesso e Demyan se vira para olhar para mim. — Me deu azar.
— É sério isso? Vai se foder, Roman, eu estava longe, você não me
veria mesmo se soubesse que eu estava lá.
— Eu senti.
— Nem começa com essas bizarrices.
— Não vá mais, estou falando sério.
— Achei que você tinha dito que não iria mais lutar.
Abro a boca para dizer que vou, mas então me recordo de Anna
chorando enquanto fazíamos amor e desisto.
— Não vou, por isso que não quero que você vá, lá não é lugar para
alguém como você.
— Acho que eles não ligam muito para a grana na carteira de quem
entra no Poço — Demyan diz com um ar brincalhão.
— Não volte lá, Demyan, agora que eu não estarei mais, não há motivos
para você se arriscar.
— Não vou — ele diz, mas algo em seu rosto me deixa agitado, como
se eu soubesse que ele não tem intenção de manter sua palavra.
— Vamos embora, já deu por hoje. — Ameaço me mover e Demyan
segura meu braço.
— Espera mais um pouco, preciso trepar e aquela gostosa sai em vinte
minutos.
— Vinte minutos? Porra, Demyan.
— Qual é, você tá de boa, pode esperar.
— Certo, vinte minutos.
Demyan vai até o balcão e pede mais duas vodkas que tomamos em
silêncio, estou agitado e Demyan parece quase fora de si, como se algo
muito esquisito estivesse nos rodeando. Também estou com uma sensação
esquisita, como se estivéssemos sendo observados por alguém, algo que não
é tão incomum já que eu vivo me metendo em confusão.
A garota sai antes dos vinte minutos e leva Demyan para os fundos do
Smorodina, onde eles ficam por cerca de dez minutos, o tempo suficiente
para uma rapidinha de pé, sem tirar nenhuma peça de roupa. Quando eles
voltam, ela se parece exatamente como alguém que acabou de ser fodida
nos fundos de um bar e meu amigo parece mais tenso do que quando foi.
— Vamos — Demyan diz quando se aproxima, já puxando um cigarro
do bolso e colocando na boca.
— O que houve? Não deu conta da garota? — Olho para trás onde ela
ficou, apoiada no balcão, conversando com outra garota. — Ela parece
satisfeita.
— Não é isso, eu tô com um sentimento esquisito. — Ele esfrega o
punho no peito, massageando o lugar enquanto coloca o cigarro na boca.
— Ai, caralho, tá passando mal?
— Não deve ser nada, só preciso dormir, acho que bebi demais. —
Demyan estica o pescoço de um lado para o outro como se assim pudesse se
livrar do que seja lá o que o está incomodando.
— Certo, vamos embora.
— Porra, Roman! — Ele para de andar e me olha feio.
— O que foi?
— Por sua culpa agora vamos ter que andar tudo isso de volta.
— Podemos voltar lá pra dentro, tenho certeza de que a garota do bar
arrumaria um lugar para você curar sua ressaca — provoco-o, mas Demyan
com frio e de ressaca é a combinação mais insuportável que conheço.

Eu gosto de caminhar, me sentir livre, é algo importante quando se mora


em um lugar como Temnyy Gorod, onde não se tem quase nada para fazer.
Andar me deixa leve, relaxado, quase feliz. Coloco meus fones e Vampir
começa a tocar, movo a cabeça no ritmo alucinante da música enquanto
ignoro o mau humor do meu amigo ao meu lado, Demyan está agitado,
esfregando os braços e ansioso, provavelmente usou uma das merdas dos
seus amigos riquinhos que, às vezes, aparecem por aqui só para se drogar e
se divertir no meio da escória russa antes de voltar para as suas vidas
perfeitas de merda.
— Eu vou morrer de tanto frio, porra! — Demyan diz um tempo depois.
— E eu vou morrer de tédio de tanto te ouvir reclamar — resmungo.
— Nunca mais deixo meu carro pra sair por aí com você.
— Já estamos quase lá — digo avistando a Granitsa a alguns metros à
frente.
— Graças a Deus, preciso dormir urgente. — Demyan esfrega o rosto
deixando-o vermelho e sorrio.
— Já, já, bebezão. — Estico a mão e acerto o meio do seu peito e
Demyan não reage.
Por algum motivo, sinto uma sensação ruim, como se eu não devesse
parar de andar, como se meus pés não aceitassem o local para onde estão
me levando, como se eu estivesse em um daqueles filmes de terror ruins
que o Demyan traz para a gente ver, onde o personagem pressente o perigo
e, mesmo assim, vai até ele. Um corvo grasna acima de nós, como se até ele
estivesse pressentindo algo.
Desconecto os fones e guardo o celular, nesse momento até mesmo a
música parece combinar com um cenário ruim.
Desde a morte do pai de Demyan e Anna, sua casa se silenciou, como se
o velho e poderoso Petrovich fosse a alma desse mausoléu, falando alto,
dando ordens, ouvindo música ou no celular. Ele nem era assim tão alto,
mas parecia ocupar cada pedacinho da propriedade da família. Agora tudo é
silencioso, frio, como se tudo estivesse congelado à espera de um dono que
nunca mais voltará.
No instante em que entramos, Demyan respira aliviado enquanto
aumenta o aquecimento, olho em volta, mas ainda é cedo demais para que
alguém se levante e, de qualquer forma, sua mãe não parece estar mais
interessada onde seu filho passou a noite ou por que o filho da ex-
empregada não sai do quarto da sua filha, é como se a Sra. Yaroslava
tivesse morrido junto com seu marido. O pior é que Demyan parece achar
normal tudo isso, ou, talvez, ele não esteja dando conta de tudo e isso seja
apenas uma forma de se proteger para não pirar como ela.
— Tô com fome, quer alguma coisa? — Ele entra na cozinha enorme e
moderna abrindo a geladeira de duas portas que nunca vi esvaziar.
— Pode ser. — Sento-me em uma cadeira e apoio os cotovelos na mesa
enquanto observo Demyan preparar um lanche para nós dois. Depois
comemos em silêncio, um de frente para o outro, o calor me faz tirar a blusa
e fico apenas com a camiseta.
— Isso parece feio. — Demyan aponta para o machucado em meu
braço.
— Tem piores. — Ergo os ombros com desdém e ele balança a cabeça
quando levanto a barra da camiseta e mostro a lateral que está formando um
hematoma preto.
— Agora entendi o desespero da Anna.
— Não foi nada, já disse — encerro o assunto e volto a comer.
Um barulho alto vindo lá de cima chama a nossa atenção.
— O que foi isso? — Demyan pergunta assustado.
— Deve ser um fantasma — provoco-o.
— Engraçado você.
— Relaxa, cara, olha a hora, deve ser qualquer coisa que caiu, a Anna
deve ter derrubado um daqueles livros dela.
— É, pode ser — Demyan diz encarando os farelos sobre a mesa. — Eu
que tô assustado.
— Percebi, o que houve?
— Semana que vem tenho uma reunião com a equipe das indústrias.
— É por isso que você tá tão pilhado?
— Não sei, talvez. — Ele balança a cabeça novamente, como se
estivesse com algum tique nervoso.
— Vai dar tudo certo, você é inteligente pra caralho e, de qualquer
forma, esse era o seu futuro, só adiantou um pouco.
— É, eu sei — ele sussurra.
— Você confia neles?
— Acho que sim, sei lá, a maioria me viu nascer, é bizarro saber que
agora sou o chefe deles.
Encaro meu amigo por alguns instantes, existem mil coisas que quero
falar, sobre as condições de trabalho dos funcionários, as moradias e a
idade. Há boatos de que existem crianças trabalhando lá, mas sei que, se ele
realmente quisesse falar sobre isso, ele falaria. Demyan sabe o que o espera,
e talvez por isso ele esteja tão assustado, não é tão fácil assim, há muita
grana envolvida, empresas ligadas ao governo, produções ilegais de
armamentos químicos que o mundo sequer imagina e, no meio disso, um
garoto que acabou de perder o pai e não faz ideia do que o espera.
E por um instante, o Poço parece algo simples.
— Vai dar tudo certo — digo palavras vazias que nenhum de nós
acredita de verdade, mas que é importante ouvir.
— Valeu, acho que vou subir. — Ele se levanta arrastando a cadeira e
fazendo um barulho alto demais para uma casa tão vazia.
— Também vou, aproveitar que a Anna ainda não acordou e evitar mais
uma briga.
— Pau-mandado — Demyan brinca e sorrio enquanto o acompanho
escada acima. Puxo meu celular do bolso quando uma mensagem chega, é
dela, e foi enviada algumas horas atrás, mas que só chegou agora já que não
tenho sinal de celular fora daqui.

“Não esqueça, promessas podem ser perigosas, te amo.”

Leio a mensagem sem entender nada e volto a colocar o celular no bolso


enquanto me despeço de Demyan e entro de novo no quarto, sentindo o
calor acolhedor dele, meu corpo inteiro relaxa no instante em que fecho a
porta, ainda está escuro e só uma luz suave ilumina a cama desarrumada
onde a deixei dormindo, sento-me e começo a tirar as botas jogando-as no
outro lado do quarto, em seguida faço o mesmo com a calça e a camiseta,
passos a mão sobre o lado dela da cama, está frio, como se ela tivesse
levantado há algum tempo. Talvez ela tenha ido ver a sua mãe, às vezes ela
acorda assustada e Anna vai acalmá-la, tem sido assim desde que tudo
aconteceu.
Esfrego o rosto sentindo o cansaço dos últimos dias me abater, abro a
gaveta em busca de um analgésico, e me assusto com a quantidade de
frascos que encontro em meio às camisinhas e coisas femininas, olho os
rótulos de alguns, reconheço a maioria, mesmo sem saber por que Anna
estaria usando antidepressivos. Será que ela está assim tão mal? Será que
existe algo que estou deixando passar despercebido? Será que Demyan
sabe que sua irmã está se entupindo de remédios para dormir e todas essas
merdas? Droga!
Sinto como se as coisas só piorassem, a exaustão se torna tão grande
que meus ombros parecem pesar uma tonelada enquanto me obrigo a pegar
um dos analgésicos e me levanto indo até o banheiro para tomar o
comprimido e mijar, são apenas cinco passos. Quatro, se eu não estivesse
tão cansado, o suficiente para que eu perceba que, às vezes, o mal nos
espreita, tentando nos preparar, tocando nossa face lentamente, deixando
nosso peito se acostumar com a angústia, porque no fundo sabe que não
estamos preparados para recebê-lo de uma vez só.
E é isso que acontece, no instante em que paro na porta do banheiro,
com o comprimido ainda na mão, os olhos pesados de sono e preocupação.
A dor que vinha me incomodando durante toda a noite passa, assim como a
cabeça pesada, a exaustão, a preocupação, tudo se vai, e o que fica é o mal
me abraçando com suas garras afiadas, fincando suas unhas em meu peito, e
arrancando de dentro de mim a única coisa boa que ainda existia.
Meu coração.
Abro a boca, mas não consigo gritar, então corro o mais rápido possível
e me jogo dentro da banheira, a água carmim molha meu corpo, o cheiro me
leva de volta a três anos atrás, o mesmo cheiro acobreado enche meu nariz e
minhas memórias de algo que eu daria tudo para apagar da minha mente.
— Não, não, não... — é tudo o que sai da minha boca enquanto envolvo
meus braços em torno dela, meus pés escorregam na banheira e sinto algo
afundar em minha pele, mas não ligo, não tenho tempo para nada. — Anna
não, por favor... — Não consigo respirar, o sangue está por toda a parte e
ela não se mexe. — Anna! — grito seu nome. Minha voz soa chorosa,
desesperada. — Deus não, por favor... — imploro e quando a puxo para
mim, pousando seus cabelos encharcados em meu peito, seu braço esquerdo
se move mostrando o motivo para que ela esteja... assim.
Fecho minha mão com força em seu punho frágil, o sangue escorre por
meus dedos, por meu pulso, meu cotovelo, ergo o outro braço e não me
surpreendo ao notar que ele está do mesmo jeito.
— Annaaaaa! — grito, um grito de dor, medo, desespero, um grito que
rasga minha garganta, mas que não chega aos seus ouvidos.
— O que diabos está acontecendo... — Demyan para, na porta do
banheiro, a mão espalmada no batente enquanto ele observa o nosso filme
de terror acontecer, vejo a cor sumir do seu rosto, vejo a vida se esvair de
seus olhos, vejo meu melhor amigo morrer no instante em que ele se dá
conta do que está acontecendo.
— Faça alguma coisa! — digo, mas estou chorando, escorregando
enquanto tento mantê-la junto comigo, porque não quero aceitar que, mais
uma vez, eu cheguei tarde demais. O mal ganhou novamente e já não tenho
mais forças para lutar.
PADAT’4

Sinto os músculos começarem a queimar à medida que puxo a barra do


remo indoor5 na direção do meu peito, o suor escorre por meus olhos,
fazendo-os arderem enquanto expiro. Mais duas rodadas e poderei
finalmente descansar, enquanto isso Monster toca em meus fones no
volume máximo, me mantendo focado e distante de qualquer coisa que não
seja meu objetivo.
— Vai devagar aí, garoto, uma lesão e você tá fora. — um cara de meia-
idade, que é responsável pela circulação das pessoas por aqui, diz tocando
em meu ombro e chamando minha atenção. Ergo os olhos em sua direção,
mas não respondo nada, eu nunca respondo, não tenho o que falar, sinto
que, se eu abrir a minha boca, não conseguirei mais parar de gritar, então eu
a mantenho fechada.
Em vez disso me concentro no meu exercício: dez, nove, oito...
A música começa novamente, já perdi a conta de quantas vezes a ouvi,
foi a última leva de músicas que Anna baixou no meu celular, essa era a
favorita dela.
Quatro, três, dois, um.
Solto a barra e inclino-me para a frente, o suor escorre por meu rosto e
ergo a camiseta para secá-lo, puxo o ar com força, sentindo cada músculo
do meu corpo implorar por um descanso que não estou interessado em lhe
dar. Falta pouco agora, só mais alguns dias e então tudo isso terá valido a
pena, todos esses meses, todas as horas de trabalho pesado para que eu
esteja no meu melhor e, no instante em que eu entrar naquele ringue, eu
poderei despejar tudo o que venho guardando dentro de mim há quase três
meses.
Três meses e já não sei mais quem é aquele cara sorridente e sonhador
que habitava minha pele, quando penso nele tudo o que sinto é raiva, raiva
da sua ingenuidade, na porra do seu coração tolo que acreditou que o amor
era algo bom, quando na verdade amar só o tornou vulnerável, cego, burro.
E hoje só sobrou isso, raiva, uma raiva tão grande que um dia inteiro nesse
lugar que cheira a rato morto, suor e medo não são capazes de aplacar.
Não dou a mínima para o limite do meu corpo, minha alma tem pressa,
e ela não é piedosa.
Obrigo-me a levantar e puxo a camiseta por minha nuca, uso-a para
secar o suor do meu rosto enquanto pego a garrafa de água e tomo tudo de
uma só vez, ignoro o olhar dos caras que me veem vir aqui todos os dias,
que acompanharam a minha transformação, do garoto magro para o corpo
que tenho agora, cheio de músculos e força; alguns deles reconheço do
Poço, tenho quase certeza de que já briguei com dois e venci, mas existe
uma regra: o que acontece no Poço fica no Poço, e nunca falamos sobre as
lutas, nem sobre os lutadores, os que perdem e principalmente os que
ganham.
O Poço é quase um lugar sagrado, os que ganham ou os que perdem, os
que vão só assistir, os que pagam para ver homens morrerem, tanto faz,
todo mundo sabe da sua existência, sabe o que acontece lá, a violência, o
sexo, as drogas e até mesmo as armas, tudo acontece debaixo do nariz de
todos, mas é como se existisse um código silencioso que todos sabem que
não pode ser quebrado. Não se fala do Poço fora do Poço.
Caminho sem olhar para ninguém até o vestiário, andar é difícil com
todos os músculos rígidos depois de serem exigidos ao limite, por sorte o
lugar está vazio e aproveito para tomar um banho rápido e frio, o choque da
água gelada em meu corpo quente me faz trincar os dentes e respirar fundo
de dor, mesmo assim me obrigo a ficar ao menos dez minutos debaixo do
jato forte, deixando que a água me ajude a relaxar os meus músculos e a
melhorar o meu condicionamento físico.
Quando saio do banho, dois dos caras que estavam lá fora, estão
parados ao lado do armário, estão conversando algo e se calam quando me
aproximo. Abro meu armário e pego minhas coisas sem fazer contato
visual, me troco rapidamente e me sento para calçar as botas, não porque
tenho medo, na verdade não sinto mais nada há muito tempo, e medo nunca
foi algo que eu ligasse muito, mas porque não dou a mínima para o que eles
falam ou deixam de falar. Estou quase terminando quando um deles me
chama.
— Ei, Roman, é verdade que você vai se inscrever para o Padat’? —
um dos caras pergunta chamando minha atenção.
Ergo o rosto, ignorando as mechas de cabelos que caem em meus olhos,
em seguida me levanto, puxando a bolsa por meu ombro e pegando o
casaco no armário.
— Ei, tô falando com você, moleque — o cara insiste quando nota que
não vou responder.
— Ele não fala, acho que comeram a língua dele — o outro diz
arrancando uma risada do amigo e aumentando a minha fúria. Fecho meus
punhos e olho para os dois, eu poderia acabar com eles aqui, agora mesmo,
já os vi treinar e são fracos e preguiçosos, mas não tenho tempo a perder
com dois bostas como esses e viro-me para a saída.
— Se estão mesmo tão interessados, se inscrevam e saberão — digo
antes de sair, sem parar para ouvir o que eles respondem.

São três e meia da tarde e a noite já caiu sobre Temnyy Gorod. Até o
fim do ano será assim, cada dia mais escuro, até que a noite se aposse da
cidade, derramando sobre ela a sua fúria gelada, deixando-nos em uma
escuridão sem fim, é a chamada Noite Longa. Puxo o zíper do meu agasalho
até o queixo quando saio para a rua deserta e escura, o vento gelado toca
meu rosto como uma amante ciumenta que não aceita me dividir com mais
ninguém, minha pele arde e meus olhos lacrimejam conforme caminho de
olhos no chão, sinto minhas bochechas queimadas, lembro de como Anna
odiava vê-las assim, sempre vermelhas e machucadas pelo frio, ela tentava
me fazer parar de andar por aí com o rosto descoberto, mas sempre gostei
de sentir o frio em minha pele.
Hoje não importa mais, ela não está aqui para reclamar da pele áspera,
nem para cuidar das queimaduras, nunca mais vai se importar comigo, se é
que algum dia ela se importou. Se me amasse de verdade, não teria feito o
que fez. É o que digo para mim sempre que a dor da saudade ameaça me
machucar.
Ela nunca se importou de verdade, nem comigo, nem com Demyan,
nem com ninguém.
Olho em volta e avisto um grupo de homens escondidos em um beco, a
cidade está cada dia mais vazia e solitária, as gangues dominam os
territórios, assombrando os moradores, tomando para si tudo aquilo que eles
querem: roupas, comida, mulheres. É perigoso para uma garota andar
sozinha por Temnyy Gorod. Sempre foi, mas ultimamente o número de
garotas desaparecidas vem aumentando.
Viro à esquerda em uma viela perto do Gigante Laranja. Há um grupo
de garotos na esquina, fumando e falando baixinho, eles param quando me
veem, como se estivessem prestes a me assaltar, mas então me reconhecem
e acenam.
— E aí, Roman. — O mais velho dos três ergue a mão em um aceno
animado demais. Movo a cabeça levemente, mas não paro de andar, não
quero conversar nem mesmo com eles.
— Ei, é verdade que você vai participar do Padat’? — ele repete a
mesma pergunta que me fizeram antes, o que me faz pensar que alguém está
espalhando boatos sobre a minha inscrição por aí, algo que não é comum, já
que estamos falando do Poço.
Continuo andando, ouço os meninos começarem a falar sobre o Padat’.
O mais velho deve ter por volta de quatorze anos, mirrado como qualquer
adolescente que cresce com uma quantidade ínfima de nutrientes, ele diz
que vai se inscrever daqui a dois anos. Tento imaginar o que esse garotinho
já fez para merecer ser aceito naquele lugar, eu tinha pouco mais que
dezoito quando entrei naquele lugar pela primeira vez. Arrogante e teimoso,
levei uma surra que me deixou de cama por uma semana e me ensinou que
o Poço não é para qualquer um. Afasto qualquer pensamento sobre garotos
fracos brincando com a morte, não é da minha conta.
Chego no lugar marcado e bato o punho na porta de metal, o barulho
reverbera pelas escadas e ouço alguém abrir a janela acima de mim, é
rápido e só o suficiente para que ele me veja antes de descer e abrir a porta.
— Está atrasado — o homem de reputação duvidosa, com uma voz
esganiçada de quem fumou a vida inteira, diz batendo a porta com força
assim que entro.
— Foram só cinco minutos.
— Só preciso de cinco minutos pra colocar um filho na boceta de uma
garota — ele se gaba e fico em silêncio enquanto o sigo escada acima e
imagino que cinco minutos não dá tempo sequer dele encontrar seu pau
debaixo de tanta gordura.
O lugar ainda está do mesmo jeito que me recordo da noite em que vim
aqui pela primeira vez, bêbado, chorando e machucado. Havia acabado de
voltar do enterro de Anna e não estava sabendo como lidar com a dor que
estava sentindo, eu precisava fazer alguma coisa, então enchi a cara,
arrumei uma briga e acabei vindo parar aqui. Não me lembro de muita coisa
daquele dia, mas o homem carrancudo que mais parece um gibi de dois
metros de altura me segurou pela gola do moletom e me jogou para fora do
seu estúdio.
“Só volte aqui quando estiver limpo.”
Faz quase três meses desde aquele dia, dois desde que fiquei
definitivamente limpo e parei de brigar, e desde então, não tem uma noite
sequer que eu não passe sem me lembrar de suas palavras.
— Você cresceu, garoto — ele diz, cruzando os enormes braços em
frente ao peito e olha para o meu corpo.
— Tenho me exercitado.
— Imagino o quanto para ter ficado desse jeito em tão pouco tempo, o
que tá usando? — Ele bate o punho em meu peito.
Ódio.
— Nada. — Jogo a mochila no chão e começo a abrir o zíper da blusa.
— Ei, o que está fazendo? — Ele aponta o queixo para mim.
— Você disse: “Volte aqui quando estiver limpo”. Eu estou limpo, agora
você faça o seu trabalho. — Tiro o agasalho e jogo em cima da mochila.
— Pelo visto, você continua do mesmo jeito.
— Não sei do que você está falando. — Olho em volta. — Onde eu me
deito? — pergunto e ele balança a cabeça e aponta para a maca no centro do
estúdio.
— Não sou seu pai, não tô aqui para dar conselhos.
— Exatamente. — Puxo a camiseta pela nuca e a jogo em cima do
agasalho, o ar gelado faz minha pele se arrepiar e, embora eu saiba que
tenho um bom físico, me sinto pequeno no meio desse lugar escuro, repleto
de arte duvidosa espalhada por todas as paredes e bugigangas por todos os
lados.
Se Demyan estivesse aqui, ele diria para darmos o fora, que ele me
levaria em um lugar legal onde eu não corro o risco de contrair uma doença
qualquer, mas ele não está, aliás, não nos falamos desde o dia do enterro,
depois de trocarmos ofensas e chorarmos. Ele me acusou de ter deixado
Anna angustiada, como se ela tivesse feito aquilo porque era insuportável
pensar em me perder, eu o acusei de ser um irmão de bosta que não deu
atenção ao que ela estava fazendo, joguei na cara todos os remédios que ela
estava usando e ele jogou na minha cara o Poço.
Foi horrível.
Até hoje ainda dói pensar naquele dia.
— Já podemos começar? — Olho para a maca, um lençol sujo está
sobre ela, provando que o lugar, embora escondido, é bastante
movimentado.
— Deita aí. — Ele abre uma gaveta e tira um par de luvas enquanto
faço o que ele pede. O homem acende uma lâmpada bem em cima da maca,
iluminando o meu corpo e se aproxima. — O que vai querer?
— A mesma coisa que pedi aquela noite.
— Ainda se lembra? — ele ri, com sua risada rouca e feia.
— Cada segundo — minto.
— Certo, cadê o desenho?
Puxo a folha gasta do bolso da minha calça e entrego para ele sem fazer
contato visual. Não preciso olhar para ele, conheço cada traço daquele
desenho, cada linha, lembro exatamente do dia em que ela o desenhou,
enquanto eu a provocava e ela sorria.
Um dia bom, que tratei como se fosse apenas mais um, sem saber que se
tornaria uma lembrança tão dolorosa.
— Bom traço, ela tem talento — ele diz encarando a folha como se
soubesse de quem é. Imagino que ele deve conhecer traços melhor do que
eu e ignoro o fato dele ter dito “ela” ao invés de “ele”.
— Tinha — corrijo-o e ele desvia o olhar do desenho para mim. Não há
nada a ser dito e agradeço por isso, não consigo falar de Anna com ninguém
e pela forma como esse estranho me olha, sinto que, de alguma forma, ele
conhece esse tipo de dor.
— Vamos lá, onde vai ser?
— Aqui. — Espalmo a mão no lado esquerdo do meu corpo.
— Quer tomar algo? Tenho uma vodka barata, mas ajuda a controlar a
dor.
— Não preciso.
— Vai demorar.
— Estou com tempo.
— Certo, durão. — Ele balança a cabeça e se afasta para preparar o
material que será usado e, pelas próximas seis horas, me deixo levar para
aquela noite, para os seus lábios beijando minhas costelas machucadas, para
o seu corpo preguiçoso debaixo do meu, para os sons que ela fazia toda vez
que eu metia fundo, seus dedos em meus cabelos, suas palavras...
Promessas podem ser perigosas.
Quando tudo termina não há uma parte que não esteja doendo, seja pela
manipulação ou pelo tempo deitado nessa maca. Ele geme e se estica
soltando palavrões enquanto me sento e olho para o meu corpo. O desenho
contrasta com a minha pele pálida, vermelha nas extremidades e dolorida.
Ele me explica como cuidar da tatuagem e me entrega um pote de algo
gosmento.
— Passe todos os dias, vai ajudar a curar.
— Valeu. — Me levanto e me visto, sentindo a pele sensível com o
toque do tecido, pago o valor que ele cobra, é o equivalente a dois meses de
aluguel, mas não ligo, me despeço e, antes de sair, ele me chama e me viro
para olhar para ele.
— Não caia, entendeu? Não importa o que acontecer, não se deixe ser
derrubado. — Sei que ele está se referindo ao Poço, mas não digo nada,
apenas assinto e saio. Se tudo der certo, até o fim do Padat’ estarei longe
daqui, desse bairro, dessa cidade, desse país, de tudo o que me lembra os
irmãos Petrovich.
Seja para o bem ou para o mal.
Não consigo treinar no dia seguinte, meu corpo inteiro dói e tento não
pensar em infecção ou qualquer merda do tipo, mas é meio difícil quando
tudo parece quente e esquisito dentro de mim. Cedo ao medo e acabo
passando a gosma fedida que o tatuador me deu e engulo dois analgésicos
vencidos que encontro na antiga caixa de medicamentos da minha mãe, vai
ter que servir.
Berstuk está estranho comigo, mais do que o normal, ele não se
aproxima, me olha como se não me reconhecesse e demoro a compreender
que está sentindo minhas emoções, mas é isso. Ele está assustado com o que
vê e não o culpo, também estou.
Acordo tarde e faminto, então vou até o armário e pego o que acho na
despensa, não é muito, mas dá para forrar meu estômago dolorido. Como
em pé, apoiado na bancada, enquanto o gato me observa como se quisesse
me dizer algo. Desvio o olhar do felino e encaro a janela, o balanço está
vazio e assim vai ficar nos próximos meses até que a neve se vá. Não é nada
inteligente se aproximar de objetos de metal com as temperaturas
despencando.
Lembranças de mim e Demyan surgem, somos crianças de novo e
estamos desafiando um ao outro a colocar a língua no corrimão, quase nos
demos mal naquele dia, se não fosse por Anna que nos salvou de perdermos
uma parte importante da nossa anatomia. Sorrio com a lembrança da sua
gargalhada, com a voz irritante de Demyan, com um passado que não volta.
Agora tudo o que resta são memórias, uma casa escura e fria, um gato
que me olha como se eu estivesse fazendo algo errado e um buraco em meu
peito que sinto que nunca vai sarar.
Respiro fundo e jogo o prato vazio na pia, em cima dos outros que
continuam empilhados à espera de que sejam lavados, não será hoje.
— Quer vir fazer algo de útil além de ficar me olhando com essa cara?
— pergunto para Berstuk, que sequer se mexe. — Foi o que pensei.
Saio da cozinha e, antes de entrar no quarto, olho mais uma última vez
pela janela, talvez, lá no fundo, alguma parte tola ainda espera ver Demyan
naquele balanço, tremendo de frio porque esqueceu o casaco e não tem
coragem de subir porque, por mais que não admita, tem medo de Berstuk.

Não faço a menor ideia do que estou fazendo, apenas movo minhas
botas pesadas pelo caminho que conheço como a palma da minha mão,
passando pelos mesmos lugares, fazendo o mesmo trajeto durante uma vida
inteira, caminhando pela cidade adormecida, coberta pela umidade de mais
um dia frio, a cabeça baixa, as mãos cobertas pelas luvas estão fechadas em
punho, talvez em um modo de proteção, ou, talvez, um modo de impedir de
dar meia-volta. O capuz me protege da garoa fina que começa a cair, de
olhares curiosos e perguntas que não tenho a menor intenção de responder.
Sinto o coração pesado em meu peito, como se estivesse carregando um
fardo grande demais, batendo devagar, um pulsar estranho, assustador.
Sinto a grama molhada sob meus pés, macia e familiar, sinto o ar
escapar, sinto a tatuagem pulsar em minha pele, como se estivesse gritando,
implorando para escapar do corpo que agora habita, corpo esse que se
arrepia com calafrios e me sinto doente, de um modo que sei, mesmo que
ninguém me diga, que nunca vai sarar.
Quando paro na frente dela, baixo o capuz e ergo o rosto, ainda está do
mesmo jeito que vi pela última vez. Meus olhos encaram as palavras
entalhadas no mármore, as gotículas de água começam a molhar meu rosto,
me dando o alívio de poder deixar que um pouco da minha angústia deixe
meus olhos enquanto observo-a sorrir para mim. Sem que eu me dê conta,
meus lábios se curvam em um sorriso triste.
— Olá, moy radnáya. — Minha voz soa rouca, áspera, como se minha
garganta estivesse cheia de areia e me obrigo a engolir antes de continuar.
— Desculpe não vir antes, é que... — Encaro o chão sob meus pés, me
obrigando a dar mais um passo, me aproximar um pouco mais. — Eu estive
ocupado — confesso, ao me sentar no banco à frente da sua lápide. — Na
verdade, eu... — respiro fundo e sinto que o ar não enche meus pulmões. —
Vim aqui para te mostrar algo, algo que prometi a você que um dia faria. —
Puxo o casaco dos meus ombros e retiro-o com cuidado, ele foi o último
presente que Anna me deu e não quero sujá-lo. — Espero que você goste,
radnáya. — Puxo a camiseta ignorando o frio que atinge minha pele quente
e me faz respirar fundo. — Veja, eu pedi para que ele fizesse exatamente
igual, aqui, aquele traço que você errou... — Passo meu dedo pelo desenho,
sentindo um orgulho imenso de ter suportado a agonia de ser tatuado por
seis horas. — Tinha que ver a cara do sujeito quando viu teu desenho,
radnáya, ele ficou igual criança, babando. Disse que você tem talento, mas
eu já sabia, eu sempre disse isso a você, lembra? — Respiro fundo,
relembrando várias vezes em que ela revirou os olhos para mim quando
disse isso. — Eu sempre soube. — Baixo os olhos novamente para o lugar
onde ela está deitada em seu sono eterno. Quero acreditar em todas as
coisas boas que falam sobre a vida depois da morte, quero imaginar que
Anna está melhor que eu, que ela está sorrindo seja lá onde ela estiver e
que, nesse momento, ela pode me ouvir. — Você gostou? — Ergo os olhos
e encaro a fotografia à minha frente, é a minha favorita e agradeço a
Demyan por ter me deixado escolher, embora eu tenha certeza de que ele
não teria condições de fazer muito no estado em que estava.
Fui eu quem tirei essa foto, ela está sorrindo para mim, o cabelo caindo
no rosto de um jeito tímido, mas o lábio entre os dentes me diz exatamente
o que ela queria. E eu dei tudo o que ela quis, por todo o tempo que pude.
Respiro fundo e baixo a camiseta, uma onda de tristeza me abate e
desvio o olhar porque é doloroso demais pensar que ela nunca mais vai
sorrir assim para mim, do jeito que ela sempre fazia antes de me beijar e
arrancar a minha roupa.
— Sabe, tá difícil — admito, puxando a garrafa de vodka que roubei na
noite passada e que trouxe dentro do casaco e abro-a. — Tá difícil pra
caralho, Anna.
Pego os dois copos que trouxe de casa, encho um para mim e um para
ela e o coloco sobre seu túmulo.
— Às vezes, eu te odeio tanto que me esqueço de como é te amar —
digo enquanto bebo uma dose e me sirvo de outra. — Esses são os melhores
dias, porque te odiar me ajuda a levantar da cama e seguir em frente —
confesso sentindo-me mais leve. — Eu tenho odiado muita coisa
ultimamente, você ficaria surpresa se me visse.
Tomo mais uma dose, meu corpo começa a aquecer e encho o copo pela
terceira vez.
— Tipo, eu odeio meu cabelo, acho que vou cortar essa merda, eu nunca
gostei, você nunca me deixava cortar, mas agora você não pode mais me
impedir, né? — As palavras saem carregadas de raiva. — Eu odeio esse
casaco, ele me pinica e é caro demais, não combina comigo, mas o porra do
Demyan não devolveu o meu outro, então tenho que usar este — minto
porque, na verdade, eu o odeio porque me faz lembrar dela. — Odeio ficar
em casa, eu quase não paro mais lá, as baratas estão adorando e o Berstuk tá
quase me matando. Sério, qualquer dia ele vai me atacar enquanto durmo...
— paro de falar e me concentro na chuva caindo agora com um pouco mais
de força na grama. — Ele tá sentindo a sua falta, eu sei porque ele não me
cheira mais, igual fazia quando eu voltava da sua casa. Ele sabe que não
tenho mais nada de bom e não se aproxima de mim. — Suspiro. — Odeio
aquele filme que a gente via sempre juntos. Odeio dias de sol. Odeio falar
com as pessoas, acho que a última conversa decente que tive tem uns dois
meses e foi com uma mulher que estava procurando o prédio onde a filha
morava. — Sorrio, mas é um sorriso triste. — Odeio ficar sozinho, Anna,
odeio tanto que passo os dias treinando naquela espelunca só para não ter
que voltar para casa. Odeio não dormir enterrado dentro de você, como a
gente sempre fazia. — Esfrego o meio do meu peito — Odeio seu irmão,
seu pai, sua mãe, essa casa maldita. Odeio esse bairro, odeio aquele muro
ridículo, odeio essa cidade, odeio ter nascido, odeio que você não me
deixou cair de cabeça no chão, quem sabe eu não teria morrido ali mesmo e
nos poupado de tudo isso?
Falo sem parar, sentindo a raiva borbulhando dentro de mim, enquanto
observo a água se misturando com a vodka em seu copo e me perco nas
doses que tomo.
— Não sou mais o Roman que você conheceu. — Olho para meu corpo,
para os músculos que adquiri nos últimos meses e penso em tudo o que fiz
para conquistá-los. — Eu nem sei mais quem sou.
Sorrio, me sentindo um pouco leve, talvez de tanto falar, ou talvez a
vodka seja boa, mas quero acreditar que seja porque ela está me ouvindo.
— Eu ainda não consigo entender o que aconteceu — confesso
encarando a garota sorridente na foto. — Por que você fez aquilo, Anna?
Por que você me deixou? O que foi que eu te fiz para você me odiar tanto?
— pergunto desejando com todo o meu coração que os céus me deem uma
resposta. — Por que você fez isso comigo? — Baixo os olhos para o copo
em minhas mãos, mas tudo começa a ficar turvo, meio confuso. — Cara,
você tem ideia do que fez? O Demyan, meu Deus, teu irmão morreu junto
com você. — Sinto o aperto em meu peito aumentar. — Porra, Anna, por
que diabos você foi uma vadia tão estúpida?
Ergo o copo e jogo-o na lápide, o barulho do vidro se espatifando faz a
dor em meu peito aumentar e meu equilíbrio ruim me faz balançar.
— Sua covarde de merda! — grito, com tanta força que caio no chão.
— Sua cretina maldita, eu te odeio — continuo gritando, desejando assim
aliviar a dor em meu coração. — Eu odeio você, Anna, eu te odeio — digo,
sentindo as lágrimas escorrendo por meus olhos. — Eu te odeio, porque não
consigo aceitar que você não está mais aqui — desabo, deitando-me sobre
ela, desejando poder arrancar toda essa terra e me juntar ao seu corpo. —
Vem me buscar, Anna, me leva com você — choro, sem me importar com
nada, sem saber o que estou fazendo. — Eu tô com saudades, Anna, me
leva com você, eu não quero mais ficar aqui sozinho.
Fecho minha mão em punho, puxando a grama com força, sentindo-a
pinicar minha bochecha.
— Vem logo, não demora — sussurro, me sentindo exausto. — O
Padat’ vai começar, promete que você vai me buscar? — peço, fechando os
meus olhos, deixando que a chuva encharque minhas roupas, minha pele,
meu coração. — Promete para mim, radnáya. Promete, por favor...

Eu sinto, sinto como nunca senti em minha vida.


Sinto a umidade do seu corpo recebendo o meu, sinto o cheiro da sua
pele suada, sinto ela se retesando cada vez que entro e saio, sinto seus
lábios em meus ouvidos, gemendo baixinho, sinto suas unhas em minha
pele, sinto-a em todos os lugares.
Eu sinto.
Sinto tanto que me falta o ar, que não consigo me mexer.
— Roman... — ela sussurra meu nome.
Abro a boca, mas não consigo falar, meu corpo está ficando pesado e
não consigo mais me mexer.
Estou cansado, cansado demais até mesmo para continuar, então eu
paro, ainda dentro dela, ainda sentindo-a à minha volta.
— Roman...
Sinto meu coração acelerar no peito, de saudades de ouvir sua voz,
quero pedir para que ela fale mais, para que ela não pare, mas minha voz
sumiu.
— Radnóy — ela me chama e tento abrir os olhos, quero olhar para o
seu rosto bonito mais uma vez, quero tocar a sua pele, quero beijá-la, mas é
como se eu estivesse preso, incapaz de mexer meus braços.
“Anna, não me deixe, por favor”, penso com força, desejando que os
meus pensamentos cheguem a ela.
— Roman... — Sua voz se torna mais forte, e ela me solta, mas não me
movo. — Roman... — ela me chama, parecendo irritada, arisca, e já não
estou mais dentro dela, seu corpo está frio, molhado, duro, estranho.
Não... não... não...
— Roman! — ela grita, um grito áspero, como se a sua boca estivesse
cheia de areia, e ela estivesse usando tudo de si para me chamar.
Uso toda a minha força para abrir os meus olhos, mas eles não me
obedecem.
— Romaaaaannn! — o grito que ela dá é assustador, e sinto o frio do
seu corpo gelar meus ossos.
Anna começa a se debater, o corpo se move com brutalidade de um lado
para o outro, como se ela estivesse tentando se livrar de mim.
— Acorda! — ela grita, ou talvez não seja ela, não a minha Anna, não a
garota que amei por toda a minha vida.
E então eu abro os olhos, e o que vejo faz meu coração parar de bater.
Anna está na minha frente, usando o vestido branco que foi enterrada, ele
está sujo e esfarrapado, grossas manchas de sangue tingem o tecido em
várias partes, e seus pulsos estão abertos, a ferida pingando na grama
molhada.
Me sento rapidamente, a embriaguez se foi e estou lúcido novamente.
Meus olhos sobem por seu corpo até alcançarem seu rosto, pálido, de um
tom acinzentado que se assemelha ao asfalto no sol de julho, ressecado e
rachado em algumas partes, mas são seus olhos que me apavoram, eles não
têm cor, estão translúcidos, vazios, sem vida.
— Anna... — sussurro tão baixo, que mal ouço minha própria voz.
Quero fechar os olhos e esquecer isso, quero apagar essa imagem da minha
mente, não quero ver ela assim, não é isso que eu pedi, eu a quero sorrindo
como na foto, a quero feliz, a quero de volta para mim.
Mesmo assim estendo minha mão, esperando que ela a segure e me leve
junto com ela para outro lugar, Anna inclina a cabeça para o lado, seu corpo
inteiro está rígido e ela se move de um jeito esquisito, um passo depois do
outro, até estar na minha frente, tão perto que sinto seu cheiro de terra
molhada e sangue.
— Senti sua falta — confesso com a voz chorosa, mas seus lábios
rachados não se movem, enquanto ela se inclina devagar até estar com o
rosto fantasmagórico a centímetros do meu.
— Vá embora daqui — ela pede, baixinho, mas sua boca continua
fechada. Eu apenas ouço sua voz, como se ela estivesse falando em meu
pensamento. — AGORA! — Ela me empurra com tanta força, que caio de
volta no chão, batendo a cabeça na grama.
Abro meus olhos bruscamente, ainda estou deitado sobre seu túmulo
sozinho, puxo o ar para os meus pulmões e me levanto, tusso e engasgo
com o vômito, provavelmente desmaiei em algum momento de tanto beber,
e estava sufocando.
Vomito um pouco mais e tusso até meu peito doer, esfrego meu rosto
aliviado e tiro os pedaços de grama que grudaram em minha bochecha, a
garrafa está vazia aos meus pés e me surpreendo com o quanto bebi sem me
dar conta. Olho para o lado, e seu copo continua intacto, assim como a foto
bonita e sorridente que parece olhar para mim.
Levanto-me ainda um pouco sem equilíbrio e olho em volta, foi só um
sonho, digo para mim mesmo, enquanto tento acalmar meu coração, ela não
iria me salvar, Anna me levaria com ela, eu sei que levaria. Foi só um
sonho, aquilo não foi real.
Visto meu casaco porque estou sentindo um frio insuportável e dou
alguns passos para longe da cerca que envolve o lugar onde ela está, nunca
deixando de olhar para a garota que sorri para mim. Afasto meus cabelos do
rosto e olho em volta, mas estou completamente sozinho e não consigo
parar de tremer.
Decido que é hora de ir embora e me viro de costas para ela, mas não
consigo dar mais que dois passos antes de me virar e voltar. Sem pensar
muito, vou até o túmulo de Anna e arranco a foto, rasgo um pedaço do seu
cabelo e solto um palavrão enquanto tento arrumar, desisto por fim e coloco
a foto no meu bolso, então pego seu copo e viro a dose que deixei para ela.
— Agora você vai comigo, Anna Petrovna — digo antes de me virar e
voltar a caminhar, sentindo um arrepio se espalhar por minha espinha e um
sorriso atormentado se formar em meus lábios.
O sangue escorre por meus lábios, o gosto metálico se mistura com os
gritos caóticos à minha volta. Tudo parece pausado, apenas as vozes são
reais, o resto é um emaranhado de rostos desconhecidos e no meio de tudo
está ele. Meu adversário.
O lado esquerdo do seu rosto está inchado, seu olho está fechando e isso
me deixa eufórico, meus dedos estalam quando abro e fecho a mão, sinto a
carne rasgada arder, mas não ligo, sei que, quando meu corpo esfriar, a dor
vai ser agonizante, mas agora não, agora sou pura adrenalina, euforia e
tesão. Eu poderia estar duro agora mesmo se fosse possível, mas, em vez
disso, sinto como se cada célula do meu corpo estivesse acesa como
pequenos vaga-lumes dentro de mim.
Giro meus ombros de um lado para o outro, fecho meus punhos pela
última vez e encaro meu adversário. O chão sobre nós está escorregadio,
dos nossos sangues e dos que vieram antes de nós, é fácil escorregar, perder
o equilíbrio e cair, mas eu nunca caio, nunca perco o foco, nunca.
Ele parece exausto, e sua mão esquerda provavelmente está quebrada,
giro em sentido horário, estudando-o, acuando-o como um animal ferido,
ele sabe que a luta está ganha, mas é um homem corajoso, o mais corajoso
de todos que já enfrentei e está resistindo bravamente, o que está deixando
o público desesperado por um final destruidor, mas não posso dar isso a
eles, não ainda. Estamos apenas no início do Padat’ e ainda tenho muitas
lutas pela frente, então me divirto, apavorando meu adversário.
Bato o pé direito no piso e ele se assusta, a multidão a nossa volta grita
e meus lábios se movem, arregalo os olhos e faço novamente, passo a
língua por meu corte e sugo o sangue, enquanto minha boca se abre no que
vem se tornando a minha marca registrada. O sorriso psicopata que Demyan
sempre disse que tenho, agora é real, eu o faço sempre antes do golpe final,
e todos já sabem.
Roman! Roman! Roman!
Ouço meu nome ecoando nas vozes a minha volta, sinto minhas unhas
cravadas na minha pele enquanto me preparo. Sei o momento exato em que
ele está vulnerável, o peso certo que preciso impor em meu braço, sei o
exato instante em que meu punho acerta seu maxilar, no lado direito,
fazendo seu crânio estremecer, e ele desmaiar antes mesmo de seu corpo
imprestável desabar no chão.
É tão forte e poderoso, que preciso usar tudo de mim para me afastar,
para não me debruçar sobre ele e continuar atingindo-o, um golpe após o
outro, sentindo o prazer dançar em minhas veias como cocaína, explodindo
tudo dentro de mim.
B.Y.O.B toca nos alto-falantes, o caos se espalha pelo Poço e logo meu
corpo agitado é erguido no ar, mãos de todos os lados me tocam, desejando
me parabenizar, mas meus olhos não conseguem se separar do cara no chão,
como se uma parte de mim soubesse que ainda não terminei.
Sou levado para fora do ringue e, antes que eu pense no que estou
fazendo, meus olhos passeiam pelas pessoas, centenas de cabeças que se
acumulam para ver o Rei do Poço vencer mais uma. Mesmo assim, sinto
uma pontada de frustração que finjo ignorar quando noto que ele não está
aqui.
Então por que eu sinto como se estivesse?

— E aqui está ele! Roman, o Rei do Poço! — Arkady, o cara


responsável por tudo o que acontece por aqui, diz como se eu fosse uma
celebridade, enquanto entra no vestiário, com os dentes arreganhados em
um sorriso que deixa claro que hoje foi uma noite e tanto para ele.
Arkady é o cara que decide quem entra e quem sai do Poço, é o homem
a ser respeitado. Embora sempre esteja com um sorriso amigável nos lábios,
não se pode confiar nele.
Continuo me despindo, tentando não deixar claro o quanto meu corpo
está sofrendo com todas essas lutas seguidas.
— Você está enlouquecendo meus clientes, Roman. Os gritos dessa
noite fizeram as paredes do Poço tremerem como se estivéssemos sendo
bombardeados — ele gargalha, eufórico, e viro o rosto para encará-lo.
— Que bom saber que estou trazendo entretenimento — digo ao jogar
minhas botas sujas de sangue no chão e começar a baixar a calça.
— Não! Espere, o que pensa que está fazendo? — Ele segura meu
braço, me impedindo de me despir.
— Tirando a roupa.
— Não, venha comigo. — Ele nega com a cabeça ao soltar meu pulso.
— Posso tomar um banho antes? — Ergo uma sobrancelha meio
impaciente.
— Claro que pode, mas não aqui, tenho um lugar especial para o meu
garoto especial. — Ele volta a sorrir e não gosto nada da forma como me
olha.
— O que você quer dizer com isso? — pergunto desconfiado, sei bem
que não é só de lutas, bebidas e drogas que esse lugar vive e se ele está
achando que vai tirar mais alguma coisa de mim, eu estou pronto para
arrancar a sua cabeça aqui mesmo.
— Calma, garoto, é um presente de um dos nossos patrocinadores para
você.
— Presente? Não, obrigado — digo, voltando a baixar minha calça, mas
ele novamente me impede.
— Não seja teimoso, venha, tenho certeza de que você vai amar. — Ele
mostra a saída do vestiário.
— Se eu não quiser, posso ir embora?
— Tem minha palavra. — Ele cruza os dedos sobre os lábios e penso no
quanto a sua palavra vale, a bosta de Berstuk com certeza vale mais.
Mesmo assim deixo que ele me leve para fora do vestiário, no caminho
sou parado por alguns caras que querem me parabenizar. Tento agradecer,
mas logo sou cercado por Zakhar, o chefe de segurança desse lugar e braço
direito de Arkady. Ele me escolta até o outro lado do Poço, uma parte que
nunca fui até então, e que não tenho certeza se quero conhecer.
— Aqui está o nosso presente. Só alguns poucos homens que chegaram
ao Poço receberam algo tão especial, sinta-se lisonjeado — ele diz ao abrir
uma porta e me levar para dentro de um quarto que parece ter saído de um
palácio, enorme, luxuoso e tão claro que meus olhos doem. — Quer que eu
diminua as luzes? — pergunta, atento aos meus movimentos e faço que sim
com a cabeça. Ele vai até a parede e aperta alguns botões, então o quarto é
tomado por uma luz suave, baixa e aconchegante. — Melhor assim?
— Por que estou aqui? — Olho para uma banheira enorme no canto do
quarto e meu coração acelera ao lembrar de Anna, então desvio o olhar
rapidamente antes que ele note algo.
— Já disse, um presente de um patrocinador.
— Não sou garoto de programa — digo antes que ele pense que estou
disposto a fazer algo do tipo.
— Não se preocupe, não é para isso que você está aqui, meu rapaz,
embora eu precise confessar que já houve propostas para isso, números
impressionantes. — Ele coloca o braço em meu ombro e eu o afasto.
— Não me interessa. — Olho para a porta que ainda está aberta, onde
Zakhar está parado na frente, e tenho certeza de que não tenho muita opção
a não ser ver o que ele quer me oferecer.
— Tudo bem, mas voltando ao presente, pode ficar à vontade, ali tem
uma banheira com água aquecida e hidromassagem para relaxar seus
músculos. Do outro lado, tem uma mesa com tudo que você gosta.
— Você não sabe do que eu gosto — repreendo-o.
— Bom, fique à vontade, logo alguém virá para te ajudar a relaxar, você
está precisando. — Ele dá um tapinha em meu ombro antes de ir até uma
mesa e servir uma bebida. — Quer algo? — Ele aponta para a variedade de
garrafas e balanço a cabeça, aceitando um drinque. Ele me serve um copo
de uísque, diz o nome, a idade e algo mais, mas não ligo, viro tudo de uma
vez, sentindo o líquido descer por minha garganta e aquecer meu interior.
— Eu sabia que você iria gostar, ele é esplendido. — Ele me serve mais
uma dose e a tomo com um pouco mais de calma enquanto olho em volta e
tento entender o motivo para que alguém tenha pagado para que eu possa
vir até aqui, posso imaginar os milhares de dólares que foram gastos nisso
tudo e me sinto incomodado.
— Quem fez isso por mim?
— Ah, nossos patrocinadores são secretos. — Ele vai até a outra mesa
pequena e estende a mão para quatro carreiras de pó enfileiradas de forma
perfeita. — Servido? — Ele olha para mim e nego. — Bom, eu garanto que
nunca experimentou nada igual.
Termino de tomar o uísque e vou até onde ele está, olho para a cocaína,
decidindo se quero ou não. Desisto, porque, seja lá o que estão fazendo, é
primordial que eu esteja lúcido.
— Tudo o que eu quero é minha grana e dar o fora — digo sem rodeios.
Ele olha para a porta e faz um movimento silencioso com a cabeça para
Zakhar.
— Espere só um minuto, tenho certeza de que depois de ver o que seu
admirador trouxe para você, vai mudar de ideia.
Abro a boca para dizer que não, não gosto dessa palavra, não quero
ninguém me admirando, só quero socar uns caras e receber por isso, pegar
minha grana e dar o fora, mas no instante seguinte Zakhar entra segurando
uma garota pelo braço. Sem nenhuma delicadeza, ele a joga no meio da sala
e seu corpo desaba aos meus pés.
— Mas que porra... — começo a falar, mas paro no instante em que ela
ergue a cabeça. Uma cascata pesada de cabelos castanhos, longos e lisos
deslizam por seu rosto, me dando a visão dos mais belos e hipnotizantes
olhos que já vi na minha vida.
— Vamos, devochka, levante-se. — Arkady vem até ela e a ajuda a se
levantar. Ela parece envergonhada, mas se ergue em uma postura
impecável, nunca desviando os olhos dos meus e sinto um formigamento
esquisito em minha pele.
— Quem é ela? — Olho para Arkady e ele sorri, como se estivesse
diante de um prêmio.
— Ela não é magnífica? — Ele aponta para a garota, que mantém o
queixo erguido.
— Quem é ela e por que estou aqui? — repito a pergunta.
— Já disse, garoto, alguém gosta muito de você, o suficiente para te dar
a garota mais cara do Poço.
Olho novamente para ela, já vi algumas das garotas que trabalham no
Poço e posso garantir que nenhuma delas chega perto da beleza que essa
garota tem, a grande maioria são mulheres entre 30 e 40 anos, cansadas,
marcadas pela vida, pela violência e pelo vício, diferente dela, que parece
ter sido arrancada de uma das revistas que Anna adorava ver.
— Não estou interessado em suas garotas, me dê minha grana e me
deixe ir — volto a falar com Arkady.
— Sabe, Roman, existem coisas que não se deve fazer, uma delas é
contrariar um patrocinador, eles não costumam aceitar bem uma ofensa e
você ainda tem muitas lutas até chegar ao Padat’ — ele diz, o tom de
ameaça presente em suas palavras enquanto circula a garota que mais
parece uma estátua viva. — E convenhamos que isso aqui — ele passa a
ponta do dedo pelo braço dela — não é de se jogar fora. — Ele coloca o
dedo na boca, como se pudesse provar o gosto da garota e ela fecha os
olhos, só um pouquinho, tão rápido que, se eu não estivesse olhando
fixamente para ela, não teria notado. — Bom, eu preciso ir, tenho negócios
à minha espera, cuide bem do nosso menino, krónchka — ele sussurra no
ouvido dela e a garota assente lentamente.
Após ele se dirige para mim:
— Nos vemos em breve, garoto, parabéns pela luta. — Ele dá um
tapinha em meu braço e caminha para a porta, onde Zakhar o espera. — Ah,
seu pagamento estará aqui pela manhã. — Ele sorri e sai, então o segurança
fecha a porta e logo em seguida ouço o som da tranca nos fechando aqui
dentro.
Balanço a cabeça e respiro fundo, sinto algo estranho no ar, como se
estivesse sendo vigiado. Olho em volta, mas tudo o que vejo é luxo e poder
e uma garota linda e assustada me encarando.
— Bom, pelo jeito vamos passar a noite aqui trancados. Fique à
vontade, tem bebida, drogas e comida, sirva-se. — Aponto para as mesas
exageradamente abastecidas e tento não pensar em quantas pessoas
poderiam ser alimentadas em Temnyy Gorod com o que tem aqui só para
mim. Minha mãe foi assassinada por muito menos do que isso.
Caminho pelo quarto e encontro uma porta, abro-a e avisto um vaso
sanitário.
— Um pouco de privacidade — sussurro, enquanto fecho a porta e
desvio o olhar da banheira, olho o resto do quarto inteiro e percebo que vou
ter que ficar sem um banho, nem fodendo entrarei naquela banheira.
Vou até a pia e abro a torneira, estou prestes a pegar a barra de sabonete
quando sinto o toque de mãos delicadas e quentes sobre as minhas, me
assusto e afasto-me dela.
— O que está fazendo? — pergunto tentando não olhar para os seus
olhos azuis como o gelo do inverno.
— Deixa eu te ajudar — ela pede, com a voz mais doce e gentil que já
ouvi na vida.
— Não preciso de ajuda, sei me virar, vá comer, você parece faminta —
digo ao notar o quanto ela é magra e desvio o olhar porque o vestido que ela
está usando é revelador demais.
— Por favor — ela sussurra enquanto passo a barra entre minhas mãos e
estico meus dedos para abrir a torneira.
— Já disse, não preciso da sua ajuda.
A garota baixa o olhar e, devagar, olha em volta, como se soubesse que
estamos sendo vigiados. Ela se aproxima, chegando tão perto que sinto o
cheiro de mel e caramelo vindo de seus cabelos.
— Por favor, se eu não puder te ajudar eles vão me punir — ela diz, tão
baixo que não tenho certeza se estou ouvindo direito e me viro para olhar
para ela.
— O que disse? — pergunto, mas ela não responde, em vez disso ela
estica sua mão novamente, os dedos longos e femininos tocam minhas
feridas delicadamente enquanto retira o sabonete da minha mão e olha para
mim.
— Só me deixe cuidar de você, eu estou aqui para isso — ela pede, com
os olhos baixos em um ato submisso que faz aquele formigamento esquisito
voltar a aquecer a minha pele.
Não existe nada mais desesperador e apavorante do que saber que não
há ninguém que vá procurar por você.
Não importa o que houve, onde estou, por quanto tempo estou
desaparecida, ninguém vai se preocupar em procurar por mim, porque não
há ninguém esperando por mim. E essa constatação vem me consumindo,
dia após dia, enquanto vejo o tempo passar através das janelas da minha
prisão.
Tudo isso porque ousei sonhar.
Não penso mais em como seria se eu pudesse voltar àquela noite e
seguir meus instintos quando me vi sozinha no local marcado, cercada por
quatro homens estranhos e uma van com janelas escuras, eu deveria saber,
ninguém pode ser tão ingênua assim, aquilo não tinha nada a ver com o que
eu havia combinado, era uma emboscada e eu fui a presa mais fácil de toda
a Rússia.
Desde então, meus dias se perderam aqui dentro desse lugar.
O Poço, como é conhecido.
Todos sabem o que acontece aqui, até mesmo eu já ouvi alguns rapazes
falando sobre as garotas que trabalham para servir os clientes em dias de
luta, mas essas vêm para cá por livre e espontânea vontade, como um meio
de ganhar dinheiro ou não morrer de fome. Porém, existe um grupo seleto
de meninas escolhidas a dedo pelos patrocinadores, homens misteriosos que
nunca mostram seus rostos, mas que mantêm esse lugar funcionando, as
lutas acontecendo, as mortes se multiplicando, e nós, as meninas do Poço,
somos reservadas para momentos especiais.
Demorei algumas semanas até entender que, naquela noite, Yelena
Vasilievna morreu e o que sobrou dela foi trazido para cá, jogada nas
profundezas de Temnyy Gorod, em uma cela fria, suja e escura, à espera de
um fim que nunca chega.
Talvez eu já esteja no inferno, e esse será o meu destino, para toda a
eternidade, dia após dia, assim como as outras garotas que vivem nas celas
ao meu redor. Aproximadamente dez meninas, nunca são as mesmas, elas
sempre são trocadas às vezes a cada semana e, às vezes, uma ou duas por
dia, algumas nunca mais voltam e não quero pensar o motivo, já vi coisas
demais para uma vida só.
Conforme os dias vão se passando, o frio para de me incomodar, a
fome, a falta de privacidade ao ser obrigada a me despir na frente de
homens que me olham como se eu fosse um objeto, os gritos de outras
garotas ao serem levadas de suas celas deixam de me aterrorizar, o silêncio
que se segue depois, a solidão, a falta que sinto de ver o dia nascer, a
sensação de que nunca verei, nunca mais serei livre.
Nada mais me importa, só quero que minha vez chegue logo, que eu
seja levada para algo que seja o fim, que me façam o favor de me libertar da
minha prisão. O único medo que tenho é de nunca conseguir acabar com
esse martírio.
Hoje é dia de luta, o Padat’ começou há algumas semanas e o Poço se
tornou novamente um caos, é o segundo ciclo que sobrevivo e sei
exatamente quem está no ringue hoje, pela forma como tudo fica mais
agitado com a sua presença. Em noite de luta geralmente as meninas do
Poço são solicitadas para agradar aos patrocinadores, são noites horríveis,
algumas meninas passam dias chorando, teve uma que gritou por quase
cinco horas, eles deram um tiro nela, na sua cela, na frente de todas nós, o
barulho ecoou pelas paredes e penetrou meus ossos e depois daquilo, até
mesmo sofrer se tornou algo silencioso.
Ninguém fala aqui embaixo, é proibido falar, e mesmo que não fosse, o
medo nos calou de tal forma que nossas bocas não são capazes de
pronunciar nada dos horrores que vivemos, como se verbalizá-los o tornasse
ainda mais real.
As paredes das celas vibram essa noite, ouço seu nome sendo gritado
pelas pessoas lá em cima, é sempre assim quando o Rei do Poço sobe ao
ringue. Ele enlouquece as pessoas, domina as sombras decadentes desse
lugar, suga tudo à sua volta, como se fosse o dono e tudo.
As apostas sobre ele estão altas, ouvi alguns seguranças dizendo que
nunca houve um lutador como ele por aqui, todos estão esperando para ver
a final e não há ninguém que duvide que Roman Stepanovich será o grande
campeão do ciclo.
Estou encolhida em um canto da cela, imaginando quanto tempo a luta
vai demorar. Na semana passada Roman precisou de poucos minutos para
acabar com seu adversário, sinto um prazer quase pessoal quando ele
finaliza uma luta, todos sabem que só os piores homens têm coragem de se
inscrever para o Poço, assassinos, estupradores, ladrões, mas Roman é
diferente, ele está aqui como um ato de rebeldia, e talvez seja esse o motivo
para que todos o adorem, é extremamente raro se rebelar em um lugar como
Temnyy Gorod.
Roman... Roman... Roman...
Eles começam a cantar seu nome, em um coro cheio de paixão, apoio
meu queixo nos joelhos e fecho os olhos, um sorriso se forma em meus
lábios enquanto tento me lembrar dele, todos nessa cidade conhecem
Roman Stepanovich, o garoto sem medo, com seus cabelos rebeldes e seu
ar debochado, ele sempre andou por aí como se fosse o rei de Temnyy
Gorod, e hoje ele está se tornando uma lenda. Às vezes, desejo estar aqui
até a final, dizem que, na noite da grande luta, todas as meninas sobem para
assistir, não sei se é verdade, nenhuma está aqui a tempo suficiente para
tanto e eu... bom, eu não tinha condições de ir até lá.
Os gritos se tornam quase ensurdecedores, a luta deve ter chegado ao
fim, Roman ganhou mais uma vez e sorrio, feliz por ele. É bom ver alguém
do Gigante Laranja vencer algo, mesmo que seja uma luta clandestina que
tem como objetivo final, a morte de alguém.
Ouço passos vindo pelo corredor, é Zakhar, o chefe da segurança
responsável por nós. Ele passa pelas celas sempre fazendo barulho,
aterrorizando as meninas a ponto de fazê-las chorar.
Eu nunca choro.
Nem mesmo no primeiro dia, quando fui abusada, machucada e
marcada como uma mercadoria.
Nem quando me dei conta de que nunca mais sairei daqui.
Eu não choro, porque chorar é dar a eles o prazer de ver que eles
alcançaram minha alma, e ela é só minha, nada que façam comigo dará a
eles esse privilégio.
— Ei, você! — o segurança mal-humorado diz ao parar na frente da
minha cela e bater o molho de chaves nas grades que me prendem aqui.
Ergo o rosto e encaro o homenzarrão parado na minha frente.
— Levante-se — ele exige, enquanto escolhe uma das chaves e abre a
porta da minha cela.
Faço o que pede porque não há escolhas quando eles decidem que uma
de nós deve subir. Tudo o que podemos fazer é obedecer, ou as
consequências virão mais rápido do que se pensa. Aprendi isso da pior
forma possível e essa noite não vou dar a eles o prazer de me machucar.
— Venha, Arkady está chamando por você. — Zakhar puxa meu braço
com força, seus dedos apertam a minha carne, causando dor, mas mantenho
meu rosto o mais neutro possível enquanto caminhamos pelo corredor
escuro e frio, olho para as celas tentando ver se reconheço alguma dessas
garotas, mas as que ainda estão aqui, estão de cabeça baixa, como é
indicado ficar sempre que um deles descem.
Ele me leva até a sala de banho e me lavo na sua frente, odeio a forma
como me observa, como se soubesse que um dia a sua vez chegará, tento
não ligar para o jeito que meu estômago se revira com a ideia de servir esse
monstro.
Pelas minhas contas estou aqui há uns três, quatro meses; às vezes,
parece que estive aqui a vida toda. Às vezes, parece que acabei de chegar,
com milhares de perguntas que foram respondidas a tapas que me
ensinaram a ficar quieta.
— Vamos logo, não tenho a noite inteira — ele resmunga enquanto
visto a túnica branca com bordados vermelhos na barra, gola e mangas, e
que mais se parece uma camisola e deixa meu corpo visível para qualquer
um. É a única roupa que as garotas do Poço devem usar sempre que são
convocadas.
Termino de me vestir, escovo meus cabelos o máximo que consigo e
tento não me assustar com a minha imagem refletida no espelho, não
reconheço mais a Yelena que me olha de volta. Seus olhos frios e sem vida,
parecem capazes de implorar por socorro, estou mais magra do que já estive
um dia e as marcas da violência estão por todas as partes. Mesmo assim,
sou considerada a mais bela de todas as garotas, como Lada6 na mitologia,
uma deusa, algo criado para agradar os olhos, os corpos, as almas.
— Devochka! — ele grita chamando minha atenção e solto a escova
sobre a bancada antes de ser arrastada pelas mãos duras e firmes de Zakhar.
— Já disse, não me faça esperar. — Ele me chacoalha com força e arfo de
dor.
— Eu estava me preparando, como você sempre diz que devo fazer —
tento explicar, mas ele não está interessado em explicações tolas.
Passamos por um corredor amplo e iluminado, conheço algumas das
portas, já estive aqui em cima vezes o suficiente para saber que apenas
pessoas muito ricas ou importantes têm o privilégio de ter a companhia de
uma das devochkas, das garotas do Poço.
Chegamos ao local onde estou sendo esperada e, por mais que eu tente
evitar, meu coração acelera de medo. Não sei o que me aguarda lá dentro,
um homem rude e agressivo? Uma câmera? Uma surra? Qualquer uma
dessas opções é possível e isso me deixa nervosa à medida que nos
aproximamos. Ouço vozes, há dois homens lá dentro e reconheço a voz de
Arkady.
— Seja boazinha, ou sabe bem o que te espera amanhã — Zakhar
sussurra em meu ouvido ao abrir a porta no instante em que vejo quem é o
outro homem lá dentro.
Roman Stepanovich.
É ele, e no instante em que sou jogada aos seus pés, como o
brinquedinho que ele ganhou essa noite, e ergo meus olhos, eu o reconheço.
O garoto que vi de longe a minha vida inteira, o rei das ruas de Temnyy
Gorod, o aventureiro, destemido, o herói dos meninos que queriam ser
como ele ao crescer, e o ladrão de corações das garotas na época da escola.
Ele não me reconhece, obviamente, afinal de contas, sou apenas mais
uma menina em um mundo caótico e sem graça, e ele é... Ele.
Mesmo assim, não é como se o fato de estar aqui para servi-lo em vez
de um dos velhos imundos ou os patrocinadores e suas câmeras pervertidas,
fosse mais fácil, ao contrário, é como se eu estivesse sendo testada, e sinto,
a cada segundo que ele olha para mim, como se ao invés de limpa,
perfumada e arrumada, eu estivesse coberta de excrementos.
Quando a porta se fecha e ficamos a sós, Roman se afasta de mim,
caminhando pelo quarto como se estivesse à procura de uma saída. Sinto
muito, mas só existem duas saídas para o Poço: a porta da frente, onde só
quem eles permitem, pode ir embora. Ou a morte.
Tento me aproximar dele, é o que se espera de mim e sei que estou
sendo analisada, eles podem ver tudo. Mas Roman não parece ter se
surpreendido com a minha aparência ou com a exposição do meu corpo e se
afasta cada vez que me aproximo. Peço para que ele me deixe ajudá-lo, mas
Roman não confia em mim.
— Por favor... — sussurro mais uma vez, implorando para que ele
compreenda o que estou dizendo. Roman olha em volta e, em seguida, olha
para mim.
— Quem vai te punir? — ele pergunta, parecendo sem paciência para
respostas vagas.
— Não importa, só me deixa fazer o que é preciso. — Volto a esticar
minha mão, tentando ao máximo, evitar de tremer, e seguro a sua. Dessa
vez, ele me deixa tocá-lo e mantenho meus olhos na pele vermelha e
inchada dos seus dedos.
Limpo seus ferimentos com o máximo de delicadeza que posso, ele nem
ao menos se mexe, mesmo quando toco as partes mais feias, Roman apenas
fica lá, me olhando, as mãos grandes, fortes e pesadas sobre as minhas, o
cheiro de luta, sangue e suor emanando do seu corpo. Ele está maior, mais
forte, mais poderoso. Esse é o Rei do Poço, o homem capaz de fazer esse
lugar estremecer aos seus pés, mas seu rosto ainda é o do garoto que cresci
acompanhando de longe. Envolvo suas mãos em faixas e crio coragem para
erguer meu rosto. Seus olhos negros e profundos encontram os meus.
Nunca o vi assim tão de perto, não imaginava que ele fosse tão alto.
Analiso seu rosto e estico minha mão para tocar um machucado em sua
boca, mas antes que meus dedos toquem seus lábios ele se afasta.
— Não precisa — ele diz ao desviar o olhar do meu.
Roman se vira para o espelho à nossa frente e faço o mesmo. Ao seu
lado, eu me pareço ainda menor, mais magra e exótica, meus olhos parecem
vidrados e meus cabelos estão enormes. Os dele, que sempre foram rebeldes
e cheios, agora estão cortados em um estilo mullet, que levou os cachos
embora e o deixou com um ar mais adulto, agressivo. Talvez seja essa a
intenção, tirar qualquer coisa que faça com que seus adversários o vejam
como o garoto que ainda é.
— Você está machucado — digo ao olhar para ele, sentindo minha voz
falhar diante da beleza rude e juvenil dele.
— É isso que acontece quando se sobe no ringue — ele diz, sem olhar
para mim. — Além do mais, já passou. — Roman puxa uma toalha e a
molha, coloco minha mão sobre a sua e seguro-a.
— Eu faço — peço novamente.
— Não precisa, ninguém vai te machucar — ele diz baixinho, como se
também soubesse que estamos sendo observados.
— Você molhou os curativos — digo sem olhar para ele, ignorando suas
promessas vazias enquanto puxo a toalha da sua mão.
Roman cede e se afasta, indo até o outro lado do quarto e se sentando
em uma poltrona de veludo verde, vou até ele e me coloco ao seu lado.
Toco seu rosto devagar, erguendo-o para mim e lentamente passo a toalha
úmida em cada um dos seus machucados.
Ele fecha os olhos, apoiando a cabeça no encosto da poltrona, como o
verdadeiro rei desse lugar, preenchendo todos os espaços com seu corpo
grande e sua presença imponente. Vou até a pia e lavo o sangue da toalha,
torço e volto até onde ele está. Roman parece ter adormecido, os ombros
finalmente relaxados e a cabeça apoiada levemente para o lado esquerdo,
me aproximo devagar e volto a tocar seus machucados, dessa vez com um
pouco mais de delicadeza.
— Qual o seu nome? — ele pergunta um tempo depois, ainda sem abrir
os olhos.
— Achei que tivesse adormecido.
Ele finalmente abre os olhos e me encara.
— É difícil dormir com alguém limpando seus ferimentos — ele diz
ainda baixinho e começo a achar que está mais cansado do que aparenta.
— Desculpa.
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Quer que eu prepare algo para você comer? — pergunto ao terminar
de limpar seu rosto.
— Não.
— Ou posso encher a banheira para que possa tomar um banho.
— Não — ele repete.
— Acho que você se sentiria melhor se pudesse se livrar dessas roupas e
tomasse um banho, posso deixar a água quente e relaxante — ameaço me
afastar, mas Roman segura meu pulso, me fazendo parar.
— Eu não vou entrar naquela banheira — ele diz ainda segurando meu
pulso e noto o instante em que ele sente as marcas neles. Puxo meu braço
devagar e ele me solta, mas continua olhando para onde estão os meus
ferimentos.
— Por que você está aqui? — Há um vinco entre seus olhos enquanto
ele me olha como se finalmente estivesse me vendo de verdade. — Imagino
que não tenha sido uma boa escolha.
— Posso trazer toalhas molhadas e te limpar aqui, caso seja o seu desejo
— digo ignorando suas perguntas.
— Pare de fugir das minhas perguntas — ele exige e baixo meus olhos
para o chão.
— Por favor, não dificulte o meu trabalho — peço baixinho e ele solta
um palavrão.
— Pare de agir como se fosse minha escrava.
Eu sou sua escrava.
— Deixe-me te limpar — peço ainda de olhos baixos, mas ele segura
minha mão, puxando-me para perto.
— Olhe para mim — ele pede e ergo os olhos para os seus. — Quem te
machucou? — Ele passa o polegar por meu pulso.
— Isso? — Abaixo meus olhos para os machucados mostrando a marca
de queimadura. — Foi quando criança — minto sentindo minha voz falhar.
— Tem certeza? — ele pergunta e balanço a cabeça porque não sou
mais capaz de mentir.
— Posso trazer as toalhas? — pergunto mais uma vez.
— Não — ele diz firme.
— O que você quer que eu faça?
— Quero que você coma, depois que durma.
— Por quê?
— Porque você parece não dormir há muito tempo.
— Eu estou bem.
— Não, você não está.
— Por que diz isso?
— Porque eu reconheço uma alma cansada quando encontro uma — ele
diz e desvio o olhar e, nesse momento, não me sinto como Lada, nem
nenhuma entidade mitológica capaz de seduzir o Rei do Poço. Ao menos,
não pelos olhos de Roman. Para ele, sou uma garota comum, fraca, feia,
cansada, e isso só prova que o que dizem sobre ele é verdade, ele não é
como os outros homens que passam por aqui.
Ela vaga pelo quarto como se não soubesse ao certo o que fazer, onde
pôr suas mãos, para onde olhar, então desvia os seus olhos da cor de gelo
em minha direção, como se precisasse de permissão para fazer algo. E se eu
não estivesse tão exausto, me levantaria e a serviria. Mas algo me diz que
seria melhor meter uma bala no meio do seu peito em vez disso, então
apenas a observo se esgueirar pelo cômodo, os pés nus deslizando
suavemente, o corpo pequeno e delicado dançando dentro da peça de roupa
quase transparente.
É quase impossível não pensar em Anna, em comparação a essa garota
ela era quase irreal, cheia de curvas, com seus seios fartos e lindos, e sua
bunda que me deixava louco. Não havia um dia na minha vida em que eu
não a desejei e mesmo agora, três meses depois, ainda a desejo, com tanta
força que sinto meu peito doer.
Ao contrário de Anna, ela é como uma joia cara, bela e delicada, mas,
embora seu corpo pareça algo fácil de quebrar, é em seus olhos que parece
estar a sua verdadeira força. Eles falam, muito mais do que palavras; eles
seduzem, como uma fada dos contos que minha mãe me contava quando
criança. E por mais estranho que pareça, eu sempre tive medo delas, hoje eu
sei o porquê. Fadas são demônios vestidos de pureza, capazes de roubar
nossas almas e nos levar para as profundezas do desconhecido.
É isso o que eles querem de mim.
Me seduzir, me fazer perder a cabeça por causa de uma boceta, querem
me enfraquecer, por isso ela está aqui. Mas por quê? Será que eles estão
com medo de mim? A cada luta venho conquistando mais e mais o respeito
e admiração dos frequentadores do Poço, além disso, nas ruas, sou
cumprimentado como um verdadeiro ídolo, alguém a ser respeitado, um rei.
O Rei do Poço.
Isso nunca aconteceu antes, os homens vinham, lutavam, matavam,
pegavam sua grana e desapareciam para sempre, talvez seja porque não sou
como eles, não carrego em minhas mãos a morte de ninguém, nem nenhum
tipo de crime que tenha machucado alguém. Sou apenas eu, meus punhos e
meu sangue e isso vem fazendo uma grande diferença.
Talvez não seja isso que os patrocinadores querem.
— Escolha logo algo e coma — digo, um pouco rude demais e ela se
assusta. — Por favor — completo sem paciência.
— O que você mais gosta de comer no café da manhã? — ela pergunta
com as duas mãos cruzadas atrás do corpo. Seus seios empinados parecem
prestes a rasgar o tecido delicado do vestido, mas ela está confortável com
sua nudez diante de um estranho, provavelmente porque seja algo que faz
sempre.
— O que tiver pra comer — digo a verdade e ela vira o rosto em minha
direção, aquelas duas bolas de gelo me encaram de um jeito atordoante.
— Não foi isso que eu perguntei — sussurra de forma educada.
— Não ligo pra comida, como o que tem.
— Todos têm suas preferências.
Lembro-me de Anna. Ela amava café da manhã: ovos com tomate e
ervas, pão, manteiga e caviar.
— Syrniki7 — digo sem pensar porque é a primeira coisa que me vem à
cabeça, Anna nua, segurando um bolinho de cottage repleto de açúcar, seu
seio salpicado, minha língua lambendo-o.
— Sério? — Ela sorri parecendo surpresa.
— Qual o problema?
— Nenhum, não imaginei você gostando de Syrniki no café da manhã.
Não gosto, na verdade não gosto de doces, mas ela não precisa saber
disso. Na verdade, ela não precisa saber de nada e decido que essa conversa
já está longa demais
— Coma logo o que quiser e vá dormir, estou cansado.
— Quer que eu prepare a sua cama? — Ela olha para a monstruosidade
colocada no meio do quarto e nego com a cabeça.
— Não vou me deitar.
— Mas...
— Por Deus, coma logo e vá dormir. É isso que eu quero de você, que
cale a porra da sua boca e vá dormir.
Sinto uma onda de agitação quando ela abaixa a cabeça e aceita minha
ordem, não sou de gritar, ao menos não com mulheres; e geralmente com
homens minhas conversas são curtas e terminam com meu punho em seus
maxilares. Mas preciso manter uma distância entre mim e essa garota, não
vou ceder aos caprichos dos patrocinadores, seja lá quais forem os planos
deles, eu faço questão de frustrá-los.
Nenhuma fada vai me seduzir, por mais bela e preciosa que ela se
pareça.
Me ajeito na poltrona enquanto começo a sentir meu corpo dolorido em
todos os lugares que aquele filho da puta me acertou.
— Me desculpa — ela diz de cabeça baixa e bufo de frustração.
— Tudo bem, apenas coma — exijo e ela pega uma fatia de pão de
ervas e passa um pouco de caviar, exatamente como Anna faria se estivesse
aqui e tento não me abalar, deve ser algo do paladar feminino, apenas uma
estranha coincidência.
Ela come devagar, apreciando a comida como se estivesse faminta e não
me surpreenderia se soubesse que está, não comprei a sua história sobre a
marca de queimadura em seu pulso e tenho quase certeza de que ela tem
outras escondidas por baixo de sua roupa. Ela não fala mais comigo, em vez
disso se serve de um pouco de chá e vai para a cama. Meio sem jeito, ela se
senta na borda e cruza as mãos no colo.
É o que se espera dela, mas sinto que não é o que quer fazer. Há muita
força em seus olhos para alguém tão submissa.
— Deite-se — mando e ela ameaça tirar o vestido. — Não, quero você
assim. — Ela me olha como se não pudesse entender como sou capaz de
rejeitá-la.
Em outro tempo, eu estaria louco para me enterrar em seu corpo
pequeno e delicado, pensaria como ela me receberia, se seria apertada
demais, se eu a machucaria. Nunca estive com outra mulher além de Anna
e, embora eu sempre tenha tido curiosidades, nunca a traí.
E mesmo assim ela me traiu, me abandonou da forma mais cruel e
desumana.
A garota engatinha até estar no meio da cama, então ela se deita, de
costas para mim, me levanto e desligo todas as luzes, deixando apenas um
abajur ao lado da sua cama, então volto a me sentar e observo-a relaxar,
pouco a pouco, seu corpo aceita o descanso, o conforto de uma cama
produzida para acomodar um rei, ou talvez uma fada.
Ela se move, o suficiente para que seu vestido suba um pouco, só um
pouco enrolando-se entre suas coxas, e mesmo com a luz baixa do abajur,
consigo ver duas manchas escuras em seus tornozelos, me inclino um pouco
mais para a frente e não tenho dúvidas, são marcas de algo capaz de
machucar uma pele delicada como a dela. Algo capaz de marcar uma fada.
Algemas.

Em algum momento da noite acabo adormecendo na poltrona. Como em


todas as noites desde aquela fatídica noite no cemitério, desejo sonhar com
Anna, mas, em vez disso, sonho com olhos cor de gelo de uma garota caída
aos meus pés, implorando por ajuda.
Acordo assustado e demoro um instante para perceber onde estou, meus
olhos caem imediatamente na cama, mas ela não está mais lá, como se, ao
amanhecer, ela tivesse evaporado, voltado para os contos de fadas, onde
está presa, com seus tornozelos marcados por algemas de aço.
— Vejo que a noite não foi tão produtiva como pensei. — Arkady está
sentado à mesa, se servindo de tudo o que há nela.
— Onde está a garota? — pergunto sem tirar os olhos dele.
— Ela tinha outras coisas a fazer.
Penso na forma como ela parecia ansiosa ontem à noite, o medo sempre
a envolvendo, como se ela ainda estivesse com as algemas prendendo-a a
algo. A alguém.
— Ela não te agradou? Prefere garotos? Posso arrumar algum, só me
dizer do que gosta, loiros? Morenos? Negros? Fortes, magros, altos?
Alguém mais velho?
— Não vim aqui atrás de sexo — digo ao me levantar, sentindo-me
incomodado por ele ter entrado aqui enquanto eu dormia. Isso não é algo
que eu possa permitir, ele poderia ter me matado, droga, ela mesmo poderia
ter me matado, e, enquanto isso, eu estava desmaiado como um garotinho
indefeso naquela poltrona.
A fúria preenche minhas veias e faz meu coração palpitar.
— Mas quem rejeita é como dinheiro, uma bela boceta nunca é demais,
ou um pau caso seja do seu gosto.
— Não gosto de homens — digo para deixar claro que não é esse o
ponto.
— Então ela foi desagradável?
— Ela foi encantadora — respondo e ele ergue as sobrancelhas.
— Tem certeza? Porque ela me pareceu intocada.
— Não estava a fim de trepar. — Caminho até um aparador e olho em
volta. — Onde está o meu dinheiro?
Arkady se levanta e caminha devagar enquanto mastiga, ele não parece
ter pressa para nada e me sinto cada vez mais incomodado.
— Sabe, garoto, é de uma enorme falta de educação rejeitar um
presente, principalmente um presente como aquela devochka. Tenho certeza
de que o patrocinador vai se sentir ofendido.
— Peça desculpas em meu nome — digo sem nem um pingo de vontade
de me desculpar por algo.
— Talvez ele não aceite.
— O que você quer de mim? — pergunto por fim, encarando seus olhos
escuros. — Por que estou aqui?
— Eu? Nada, sou apenas um empregado seguindo ordens.
— E qual é a ordem?
— Você deveria ter aceitado o presente, Roman. — Ele balança a
cabeça em total descontentamento.
— Minha grana? — estendo a mão para ele e Arkady a encara por um
instante antes de abrir seu paletó e retirar o envelope de dentro.
— Sabe você tem um sono pesado — ele diz enquanto estende o
envelope em minha direção.
— Estava cansado. — Pego o envelope e o abro, contando o dinheiro
sem dar a mínima se é ofensivo ou não, foda-se, ele tentou me seduzir, me
trancou na porra da sua prisão de luxo e ainda está fazendo joguinhos
psicológicos comigo. — Isso não vai mais acontecer.
— Está tudo aí? — Ele cruza as mãos atrás do corpo e encara o punhado
de dinheiro em minhas mãos.
— Sim, como sempre. — Forço um sorriso que espero que seja
amigável e ele abre o maior de todos em seus lábios.
— Ótimo, nos vemos na próxima semana.
— Com certeza.
— Enquanto isso, tira uns dias para descansar, é perigoso para o Rei do
Poço andar tão cansado assim — ele diz com o braço em volta do meu
ombro enquanto me escolta para fora do quarto, antes de sair olho mais uma
vez para a cama. Na esperança de ter deixado algo passar despercebido.

O Poço vazio é algo estranho de se ver, toda a imponência e perigo se


foi, agora o que resta é muita sujeira e um silêncio estranho.
Vejo algumas garotas andando pelo salão principal, reconheço algumas
que circulam pelas noites de luta, mas ela não está em lugar nenhum.
— Ela não vem para cá — Arkady responde como se lesse minha
mente.
— Imaginei que não.
— Nenhum dos homens aqui tem dinheiro para pagar por ela — ele
completa.
— E mesmo assim ela é tratada como uma escrava — solto e ele me
olha como se não entendesse mais o russo.
— Ela é tratada como merece — ele responde e me viro para olhar em
seus olhos.
— Não quero que a machuque mais — exijo, como se tivesse algum
direito sobre ela.
— Está enfeitiçado por minha garota, Roman?
— Não, só não gosto de covardia.
— Cuidado com o que diz, garoto — ele me avisa e olho para uma
garota que passa por nós. Espero que ela esteja ouvindo nossa conversa e
que possa contar a ela.
— Gosto que cuidem bem do que é meu — digo ao desviar o olhar da
garota para ele.
— E quem disse que ela é sua?
— Você mesmo me disse que ela foi um presente, ou por acaso está
pensando em pegá-lo de volta? — Ergo a sobrancelha ao esticar meu braço
e dar um aperto amigável em seu ombro. — Foi o que pensei — completo
quando ele não diz nada. — Na semana que vem, provavelmente vou
precisar de novos curativos, ela é boa nisso. — Estendo minha mão
enfaixada e sorrio. — Até mais, moy drug — despeço-me ao me virar para
a saída, sentindo uma onda de satisfação por saber que estou brincando com
o perigo.
O problema é que eu nunca tive medo dele.
A bofetada vem antes que eu tenha tempo de me preparar, é tão forte
que perco o equilíbrio e caio no chão. Minha pele queima e ergo a mão para
tentar me proteger, mesmo sabendo que será em vão, não há como se
proteger. Ele me ergue do chão e acerta outro tapa, dessa vez do lado
esquerdo do meu rosto, e só não caio porque seus dedos estão cravados em
minha pele, me mantendo no lugar.
Quero perguntar o que eu fiz de errado, me defender, dizer a ele que
tentei de tudo, que me ofereci, mas sei que, quanto mais eu falar, pior será
para mim, então apenas aceito minha punição em silêncio. Uma após a
outra, sua mão pesada atinge meu rosto até que sinto minhas bochechas
queimarem e o gosto de sangue encher minha boca, e o tempo todo o olhar
dele é de satisfação, de puro prazer.
— Já chega! — Arkady grita, não porque ele está com pena de mim,
mas porque depois de um tempo, bater em quem não reage, perde a graça e
ele é uma pessoa que se entedia fácil.
Zakhar me joga de volta no chão e não tenho forças para me levantar,
em vez disso, me arrasto até apoiar minhas costas na parede fria do quarto
para onde fui levada depois de deixar Roman adormecido naquele quarto,
engasgo com o sangue que sai do corte na parte interna da minha boca e
começo a tossir enquanto Arkady se aproxima, lentamente, como um felino
prestes a devorar a sua presa. Ele para na minha frente e se abaixa, seus
olhos escuros e cruéis, tão diferentes dos olhos de Roman, me encaram e
me fazem desejar me encolher mais, até desaparecer.
— Pode ir, Zakhar — ele diz sem tirar os olhos de mim. — Eu cuido
dela daqui em diante. — Suas palavras são suaves, mas elas rasgam minhas
entranhas porque eu sei o que vem a seguir.
— Vou ver como estão as outras. — O brutamontes sádico e covarde me
olha com a satisfação de quem gosta do que vê e sabe que o pior ainda está
por vir, e então se vira, indo embora e nos deixando a sós.
— Ah, moy krónchka, o que eu faço com você, hein? — Ele segura meu
rosto em suas mãos, o aperto aumenta a dor e me faz tossir novamente,
gotas de sangue escapam e sujam seu rosto. Ele fecha os olhos
profundamente irritado e me solta se levantando. — Eu fiz um pedido
simples. — Ele se afasta, retirando um lenço do bolso e limpando meu
sangue do seu rosto. — Era tão simples, que até mesmo a mais burra de
todas as vadias do Poço poderia fazer, mas você não. — Ele se vira para
mim, e sinto um frio em minha espinha à medida que sua voz soa mais
irritada. — Você não foi capaz de fazer a única coisa para o qual você
presta. A única que me impede de dar um fim em você.
Abro a boca para falar, mas tudo dói e a fecho em seguida.
Eu tentei, quero dizer, eu juro que tentei, mas ele sequer olhou para
mim.
— Ele está cheio de perguntas, querendo saber por que você está
machucada, era só pra você abrir a porra das suas pernas e servir o garoto
como ele bem quisesse! — ele grita as últimas palavras e me encolho
quando volta a se aproximar e me ergue do chão. — O que você disse para
ele? — Ele me aperta, chacoalhando meu corpo e minha cabeça dói tanto
que sinto que posso desmaiar a qualquer instante. — Responda! O que você
disse para que ele te rejeitasse desse jeito?
— Nada... — sussurro sem olhar em seu rosto.
— Mentirosa. — Ele me solta e caio na cama, afundando nos lençóis
brancos. Tento me levantar, mas não consigo, então me afasto da ponta,
tentando manter distância, um ato idiota e irracional, só meu instinto
implorando por proteção, mas ele puxa meu pé, me arrastando de volta para
onde ele me quer. — Ele é um garoto tolo e jovem, cheio de tesão e energia,
estava eufórico e eu sei que naquele momento ele seria capaz de foder
qualquer coisa que se move, então não me diga que você não fez nada
porque eu sei que fez — ele diz com a voz cheia de acusações.
— Talvez ele não seja tão tolo assim — digo e vejo o calor da ira
acendendo seus olhos de forma assustadora.
— Ou talvez, você já não seja mais a nossa krónchka deliciosa. —
Arkady rasga meu vestido abrindo-o em duas partes e me deixando
completamente nua. — Acho que está na hora de verificar o que está errado
com você. — Ele afasta minhas pernas e um soluço escapa dos meus lábios
quando seus dedos me penetram agressivamente. — Hein, Yelena, você
perdeu a magia que enlouquece nossos patrocinadores? — Ele move seus
dedos dentro de mim e tento não me encolher, mas minhas pernas se
movem mesmo assim. — Responda! — ele grita e balanço a cabeça.
— Não...
— Não? Não o quê? — ele exige e a bile sobe por minha garganta.
— Não, se-senhor — sussurro quando ele se afasta, e desvio o olhar
para a parede quando ele começa a abrir sua calça.
— Então vamos ver se eu estou errado. — Ele afasta minhas pernas
novamente, se colocando entre elas, e então me invade, de forma bruta,
áspera, dura. — Vamos ver se você ainda sabe agradar um homem — ele
sussurra em meu ouvido enquanto se move, uma e outra vez. O choque do
seu corpo grande e violento sobre o meu me causa uma dor insuportável,
que atinge o centro do meu peito, naquele órgão pequeno e teimoso que
ainda insiste em continuar batendo, mesmo que eu implore para que ele
pare.
Não sei quanto tempo mais eu posso aguentar.
Arkady não é conhecido por ser um homem misericordioso, nem
mesmo por ser rápido. Quando ele decide que alguém merece ser punido,
ele faz questão de que essa punição seja completa. Perco a noção do tempo
enquanto sou usada e abusada, agredida e humilhada, ele me acusa das
coisas mais absurdas e por mais que eu saiba que deveria tentar reagir, eu
não faço nada, apenas permaneço calada, suportando seu corpo, suas
palavras, suas risadas.
E quando ele se dá por satisfeito, se afasta, limpando-se e se vestindo
enquanto atende uma ligação com um ar divertido que em nada combina
com o que ele acaba de fazer. E em nenhum momento ele olha para mim.
Como se eu fosse apenas um prato vazio de algo que ele já comeu e que não
serve mais, suja, imprestável, descartável.
Ouço o som da porta sendo fechada, do trinco me prendendo aqui, e
devagar eu me mexo, sentindo todas as partes do meu corpo doer e sabendo
que isso é só o começo, amanhã as dores serão piores. Me encolho o
máximo que posso, sentindo-me desprezível e desesperada. Na semana que
vem, quando Roman voltar, eu terei que ir até ele, terei que seduzi-lo, tentar
fazer com que ele me olhe.
O problema é que eu sei que isso não vai acontecer.
Eu já estou morta, não tem como ele me enxergar.
— Quem fez isso em você? — Grigory pergunta enquanto remove o
curativo em minha mão.
— Não importa, só faça o que tem que ser feito — resmungo, ignorando
a sua cara feia.
O seu decadente estúdio de tatuagem se tornou meu refúgio desde que
precisei recorrer a ele depois que minha tatuagem infeccionou e acabei
tendo uma alucinação na frente do túmulo da minha namorada ou ao menos
foi isso que ele disse enquanto me chamava de irresponsável, me jogava
debaixo da água fria e enfiava comprimidos em minha garganta. Apaguei
por dois dias e, sinceramente, não sei ao certo o que houve aquela noite, se
foi mesmo a tatuagem ou o fato de eu ter finalmente aceitado que Anna
havia morrido, que não voltaria mais, que eu estava sozinho.
Depois daquele dia, voltei frequentemente, para que ele verificasse a
minha cicatrização; depois, voltei para que ele corrigisse o desenho, afinal
de contas, ele não ia permitir que sua arte estivesse estampada daquele jeito
na pele do Rei do Poço, mesmo que eu garantisse a ele que não tiraria a
roupa nem nada parecido. Então comecei a lutar e todas as vezes que vinha
até Grigory, estava com um corte, um hematoma, uma dor, e todas as vezes
ele me xingava e depois suturava meus machucados. Quando me dei conta,
vir para cá havia se tornado um hábito a cada fim de luta.
— O que aconteceu dessa vez? Achei que estivesse morto. — Ele vira
minha mão de um lado para o outro enquanto verifica o ferimento.
— Isso só acontecerá na luta final.
Grigory ergue o rosto e me encara de um jeito que faria qualquer um se
encolher, mas dou um sorriso divertido porque sei que ele não é assim tão
mau quanto gosta de parecer.
— Não posso garantir que sairei vivo, você sabe, mas ao menos a
tatuagem tá legal. — Dou um tapinha em meu esterno e ele solta um
palavrão.
— Idiota — ele resmunga, voltando a se ocupar com meu machucado.
— Ela é bonita?
— Do que você está falando?
— Você passou a noite fora, alguém limpou seus ferimentos e não me
diga que não foi uma garota porque isso é coisa de mulher.
— Está com ciúmes? — provoco-o e levo um murro em meu ombro.
— Não me provoque, garoto. — Ele ergue o bisturi e caio na
gargalhada.
— Quero ver você explicar isso aí para o pessoal do Poço.
— Não tenho medo daqueles fodidos do caralho.
Grigory não tem medo de nada, acho que ele veio à Terra sem a noção
do perigo, e justo eu, que sempre me achei o mais destemido de todos,
descobri que existe alguém ainda pior do que eu. Demorou algumas
semanas para que ele finalmente me contasse a sua história, e acho que ele
só o fez porque achou que eu estava bêbado demais para me recordar no dia
seguinte, mas esse grandalhão barrigudo foi o vencedor do Zima, o ciclo do
inverno, foi há muito tempo e ele disse que muita coisa mudou desde então,
a sede por sangue, morte, dinheiro e drogas fez do Poço um lugar onde a
vida não importa e tudo gira em torno da diversão dos magnatas, e desde
então ele deixou de frequentar. De qualquer forma, ele tem sangue em suas
mãos e isso é algo que nunca vai mudar.
— Mas e aí? — Ele ergue uma sobrancelha e respiro fundo, tentando
não pensar muito, às vezes sinto como se ele pudesse ler mentes e isso é
algo desconcertante.
— Um patrocinador comprou uma das garotas do Poço para mim. —
Ergo os ombros. — Fui para uma suíte, que mais parecia saída de um
castelo. Você sabia que existiam lugares assim no Poço?
— Nunca tive uma carinha bonita para merecer presentinhos daqueles
malditos desgraçados.
— Arkady disse que ela era a garota mais cara do Poço.
— Uma das mais caras? — ele pergunta enquanto trabalha na minha
mão. — Deve ser uma boceta e tanto, agora entendi por que passou a noite
lá.
— É, foi o que ele disse, eu nunca a vi por lá de qualquer forma —
digo, ignorando seus comentários.
— Se lembraria se tivesse visto?
— Provavelmente. — Recordo-me dos seus olhos e de como eles
pareciam desesperados.
— Então ela é bonita.
— Bastante — digo, me sentindo estranho ao falar de outra garota. — O
suficiente para fazer Arkady achar que eu ficaria impressionado.
— Foi uma boa noite então.
— Não estou lá para isso, meu foco é outro.
— Fez bem.
— Você tinha um patrocinador?
— Não, na verdade nunca ouvi falar sobre eles, sempre soube que
existia gente com muita grana por trás do Poço.
— Então por que eu? Por que eles me escolheram?
— Você é o Rei do Poço antes mesmo de ganhar o Padat’, isso deve ter
chamado a atenção deles, querem te mimar. — Ele ergue os ombros. —
Qual o teu problema, garoto? Aceita logo essa boceta.
— Não é da tua conta — resmungo. — Cuida da minha mão logo que
eu tô exausto, preciso dormir um pouco.
Grigory fica olhando para mim por um instante.
— Tua namorada morta não vai te assombrar se você ficar com outra.
— Não é isso — minto, porque, de repente, a ideia de Anna vir me
assombrar começa a parecer interessante. Desde aquela noite nunca mais
sonhei com ela, e estarei mentindo se disser que não tive vontade de voltar
àquele lugar só pela chance de vê-la mais uma vez, não me importa como.
Acabei falando sobre Anna naquela mesma noite, bêbado e chorando,
obviamente não disse que ela era uma riquinha que vivia no Setor Norte,
nem que era irmã do meu melhor amigo, para Grigory. Anna é apenas a
“minha namorada morta”, a artista que desenhou minha tatuagem, o motivo
pelo qual ele teve que refazer seu trabalho pela primeira vez na vida. E
posso garantir que a segunda vez doeu muito mais do que todas as surras
que já tomei na vida. E não foram poucas.
— Eu fiquei com um mau pressentimento — admito depois que ele
termina de limpar meus ferimentos e faz outro curativo.
— Sobre a garota?
— Sim.
— Não confie em mulheres bonitas, elas são como a Baba Yaga,
fantasiada para nos seduzir e arrancar de nós tudo o que querem — ele diz
com seu sotaque forte e arrastado, fazendo com que a lenda das fadas da
floresta quase se pareça real.
Talvez ele tenha razão, e ela seja mesmo uma criatura fantástica,
justificaria sua beleza quase sobrenatural.
— Pode deixar, não confio.
Desço da maca e pego minha bolsa, jogando-a pelo ombro.
— E da próxima vez, vê se aproveita a noite como um homem de
verdade. — Ele dá um tapa nas minhas costas. — Se quiser, posso te
ensinar como se faz — ele me provoca, mas estou cansado demais para
responder.

A sensação estranha que senti aquela noite não me deixa em paz ao


longo dos dias que se passam, não consigo tirar a imagem daquela garota da
minha cabeça, havia algo de desesperador em seus olhos, como se ela
estivesse tentando me dizer algo em silêncio.
Um pedido de socorro talvez.
Passo dias me remoendo enquanto observo minha mão se curar, digo a
mim mesmo que não posso me meter nas merdas do Poço, se ela está lá é
porque quis, ninguém colocou uma arma na sua cabeça. Pelo que sei, todas
as garotas do Poço são escolhidas como os lutadores, só entra lá quem está
disposta a viver a vida do Poço, além do mais, ela não é da minha conta,
porra eu nem ao menos sei o seu nome. Talvez ela nem seja de Temnyy
Gorod, já ouvi falar que eles trazem garotas de todas as partes da Rússia e
até mesmo de outros países às vezes. Provavelmente bandidas, assassinas,
ladronas, quem disse que elas não podem ser belas e perigosas?
Vou até o Centro de Temnyy Gorod me encontrar com um grupo de
caras que estão à espera de uma mercadoria, não faço mais isso há algum
tempo, mas no auge da fome, quando ainda era só um menino mirrado e
destemido, passava meus dias levando e trazendo tudo o que é tipo de
tráfico para lá e para cá, isso foi uma das coisas que me fez ficar conhecido
por aqui, respeitado no Setor Oeste e foi por meio disso que conheci o
Poço.
Ainda me recordo a primeira vez que pisei meus pés lá, era o início do
ciclo do Leto, em pleno verão, a noite estava fresca e agradável e eu e
Demyan não queríamos desperdiçar um dia perfeito dormindo, então
estávamos andando por aí quando fiz a proposta, ouvíamos falar do Poço o
tempo todo e ele topou na hora, como sempre, e então fomos parar lá,
ninguém ligou de ver dois moleques vendo as lutas violentas, as mulheres
seminuas, ninguém se importou em nos proteger das drogas que eram
vendidas, todos estavam absortos em sua bolha de diversão tóxica e doentia.
Ainda me lembro do lutador que venceu aquela noite, seu nome era
Bóris, ele era alto, forte e ruivo, tinha uma barba enorme e olhos vidrados,
seu corpo estava repleto de cicatrizes e ele se parecia com um monstro da
Kupol, eu não conseguia tirar meus olhos dele, e quando seu punho acertou
o oponente, derrubando-o no chão, ele soltou um grito que fez meus pelos
se arrepiarem, naquele noite eu soube, um dia seria eu ali, o guerreiro da
Kupol, o Rei do Poço.
Passo um tempo perambulando sem destino, ainda não são nem quatro
da tarde, mas o sol já se foi e a cidade está tomada pela escuridão, se
preparando para os dias de noite sem fim, não quero voltar para casa, então
deixo meus pés me levarem por aí, sem um lugar ao certo para ir e quando
me dou conta, estou parado em frente a um lugar que não venho há algum
tempo.
Meus olhos se erguem diante da construção abandonada, a fachada que
um dia foi alegre e iluminada hoje está deteriorada pelo tempo e mal se
consegue ver a cor gasta das paredes, subo as escadas e passo pela porta
meio aberta que não tem mais o que proteger, tudo está exatamente como
deixei a última vez em que estive aqui e sinto saudades daquela vida, por
mais miserável que ela fosse, eu sempre tinha para onde ir.
Entro no edifício em ruínas e vou para a única sala que existia no antigo
cinema de Temnyy Gorod, o lugar parece ter piorado, as poltronas
destruídas, provavelmente pelos traficantes que usam o local para esconder
sua droga, vou até uma das poltronas e me sento, olhando para a parede
escura à minha frente, imaginando um mundo onde eu possa trazer uma
garota para vir aqui assistir um filme, dar risada e ser normal.
Me assusto ao me dar conta de que não faço ideia do que seja isso. Ser
normal em Temnyy Gorod é algo raro, tão escasso quanto os dias de sol.
Um barulho de algo caindo chama a minha atenção e me levanto
rapidamente, não quero ser visto aqui pelos traficantes locais, isso
levantaria perguntas e suspeitas e não preciso de mais ninguém de olho em
mim, já basta todo o falatório sobre o Rei do Poço.
— Desculpe, já estou de saída — começo a falar quando ergo o rosto e
encontro Demyan parado a poucos metros de distância.
É a primeira vez que nos encontramos desde o dia do enterro, e um
misto de emoções me atinge enquanto observo o rosto familiar do meu
amigo.
— Não achei que iria te encontrar aqui — Demyan diz parecendo
surpreso, seu rosto está um pouco escondido pelas sobras da parca luz de
emergência que é a única coisa que ilumina o lugar.
— Eu vim sem pensar — confesso e ele abaixa a cabeça.
Demyan está coberto de preto, dos pés à cabeça, como se ainda
estivesse carregando o luto por Anna, e, mesmo com a pouca iluminação,
noto um ar sombrio e triste em seu rosto.
— Como vai as lutas? — ele pergunta depois de algum tempo e me
sinto esquisito porque nunca tivemos problemas em nos comunicar antes.
— Indo.
— Ouvi dizer que você está detonando os caras.
— Estou me mantendo de pé — respondo, me sentindo idiota por me
importar com ele.
— É um bom plano. — Demyan balança a cabeça e ficamos em silêncio
por algum tempo, o suficiente para que eu comece a me sentir
desconfortável.
— Vou indo — digo ao passar por ele, sem coragem de olhar em seu
rosto e reconhecer o único amigo que tive na vida e o quanto sinto sua falta.
— Foi por isso que você foi até minha casa outro dia? — Demyan
pergunta quando chego a porta.
— O quê?
— Eu te vi no túmulo da Anna.
— É, eu fui vê-la, algum problema com isso? — respondo na defensiva.
— Estava se desculpando? — Demyan continua e sinto que seria
melhor que eu fosse embora, mas não consigo me mover.
— Do que está falando?
— Da promessa que você fez a ela, de não voltar mais no Poço.
— Isso foi antes — defendo-me.
— Antes dela morrer?
— Antes dela me trair dizendo que íamos ficar juntos para sempre e se
matar uma hora depois — jogo na sua cara, mesmo sabendo que vai doer.
De onde estou, sinto Demyan se retesar e uma parte mesquinha dentro de
mim se satisfaz.
— É por isso que você estava chorando igual um bebezinho? Porque pra
mim aquilo parecia remorso.
— Não sei, me diz você, como é? Você chora todas as noites debruçado
na banheira onde sua gêmea se matou? — digo, mas no instante em que as
palavras escapam da minha boca, me arrependo, porque machucá-lo é
doloroso para mim também.
— Dá o fora daqui, Roman, e não apareça mais na minha casa.
— Ou o quê? Vai mandar me prender?
— Deixa a Anna em paz, ela merece descansar — ele diz, com a voz
carregada de ameaças que conheço bem, mas nunca as vi direcionadas a
mim.
— Ela descansa enquanto nós dois vivemos nesse inferno. — Sorrio,
um sorriso cheio de escárnio que machuca meu coração.
— Cada um tem aquilo que merece. — Ele ergue os ombros, como se
não desse a mínima para o inferno em que está vivendo.
Há três meses não tenho notícias dele, não sei o que anda fazendo, se
está bem ou se já se tornou um fantasma, perambulando por aquela mansão
amaldiçoada, sozinho, se corroendo em culpa, dor e saudade. Talvez ele
tenha razão, cada um tem aquilo que merece e nós dois não temos merecido
nada de bom.
Viro-me e saio do lugar que foi nosso refúgio durante anos, o
passatempo de dois garotos tão diferentes, que, por algum motivo,
encontrou na amizade, um jeito de ver cor, em um mudo pintado em tons de
preto e cinza.
Na semana seguinte estou mais agitado que o normal, minha pele parece
coberta de agulhas e mal consigo me vestir, estou ansioso e irritado, e digo
para mim mesmo que nada tem a ver com a conversa que tive com Demyan,
nem com aquela garota misteriosa, nem mesmo com as coisas que Grigory
disse.
Mas quando chego ao Poço, quando subo no ringue e sou apresentado
ao meu oponente, quando ouço o grito das pessoas à minha volta, as
paredes ecoando meu nome, o sino indicando o início da luta, tudo se
apaga, e não adianta fingir que não sei o motivo, porque algo dentro de mim
se desconecta e volto àquela maldita noite. A noite em que tudo na minha
vida mudou, repassando a cada golpe, as palavras ditas, os punhos
manchados de sangue, a ruptura de algo que acreditei, do meu jeito
ingênuo, que poderia ser para sempre.
Como irmãos de alma.
Então meu punho acerta o rosto do cara com uma raiva que não é
direcionada a ele.
E a plateia grita.
E as palavras de Demyan atingem-me.
“Ela se foi, e a culpa é sua!”
Mais um golpe.
“Você era o namorado dela, como não notou?”
Outro golpe.
“Suma daqui.”
E então, estou na frente do seu túmulo, sentindo as lágrimas escorrendo
por meu rosto enquanto soco o rosto do meu amigo, desejando que ele faça
o mesmo comigo, querendo que ele me derrube no chão e faça a dor em
meu peito passar, mas ele não se move, apenas recebe os golpes até que me
dou conta do que ele está fazendo.
Ele está se punindo, da única forma que seria insuportável para ele: me
afastando da sua vida.
“Vai se foder, seu bastardo filho da puta!”
Grito enquanto me afasto, limpando o sangue do único golpe que ele me
deu.
“Nunca mais fale comigo, entendeu?”
Aponto o dedo em sua direção em uma ameaça trêmula e desesperada.
“Fique longe de mim, seu doente, esqueça que eu existo.”
Digo aos prantos, sentindo a garganta arranhar enquanto encaro o rosto
arrogante e familiar do cara, que sempre foi o meu melhor amigo, me
observar como se já não me conhecesse mais.
“Acabou, Roman.”
Ele limpa o ferimento em sua boca e me dá um sorriso estranho e nesse
momento eu entendo, o cara que me olha não é o Demyan que conheci a
vida inteira. Aquele morreu, acaba de ser enterrado, junto com a irmã
gêmea que prometeu proteger e cuidar, mas que não foi capaz de impedir de
cometer um ato horrível, bem debaixo da porra do seu nariz.
Esse cara de olhar frio, voz baixa e semblante endurecido, acaba de
nascer nesse momento, tomando o corpo do meu amigo, enquanto me
coloca para fora da sua vida definitivamente. E, sinceramente, eu acho que
tenho medo dele.

— Você foi incrível essa noite. — Arkady está à minha frente no


vestiário, andando de um lado para o outro, em um sorriso de quem faturou
alto no rosto. — Aquele golpe, meu Deus, eu pude ouvir os ossos do cara se
partindo ao meio. Se Zakhar não tivesse entrado lá, você teria matado o
desgraçado — ele gargalha alto, como se o som fosse algo satisfatório para
ele. — Garoto, não sei o que você tinha hoje, mas, seja lá o que for, fez de
você uma lenda.
Continuo passando a toalha molhada em meu olho, o único soco que o
maldito me acertou atingiu meu supercílio e ele ainda está sangrando.
— O médico virá aqui em instantes cuidar desse olho aí. — Arkady
aponta para mim.
— Eu estou bem, não precisa.
— Ele já está vindo — ele diz no instante em que um homem entra no
vestiário carregando uma maleta.
O médico, ou seja lá quem esse homem seja, faz um curativo em meu
supercílio, ele é rápido e silencioso e se vai assim que termina, novamente
nos deixando a sós.
— Tenho um recado do patrocinador — Arkady diz no instante em que
ficamos novamente a sós.
A palavra chama minha atenção e me viro para ele.
— Ele disse que, embora tenha ficado chateado por você ter rejeitado
seu presente na semana passada, gostaria de te parabenizar por essa luta. De
acordo com ele, foi uma das melhores que ele já viu na vida e pede que
aceite outro presente essa noite.
Cruzo os braços na frente do peito e inclino a cabeça.
— Quem é esse cara?
— Você conhece as regras, Roman, sem nomes, sem rostos, sem
perguntas.
— O que ele quer de mim?
— O que todos nós queremos, meu garoto, que esses punhos nos tragam
entretenimento. — Ele segura meu punho e o balança no ar. — Vamos, já
está tudo pronto para você.
Abro a boca para questionar, mas então me recordo da garota dos olhos
de gelo e deixo que ele me leve escoltado por dois seguranças que não
conheço, passamos pelo salão abarrotado de pessoas, mulheres seminuas e
música alta, então entramos mais uma vez no corredor iluminado e, quando
as portas se fecham, tudo fica silencioso e o único som que ouço é o dos
meus pés no chão frio e brilhante.
Arkady caminha à nossa frente, dando ordens através de um fone para
pessoas que não faço ideia, ouço os passos pesados dos brutamontes atrás
de mim e uma estranha sensação de agitação atinge minha pele, a
expectativa de encontrá-la de novo, mesmo sem saber o porquê, me deixa
ansioso.
— Seja bem-vindo, Roman, o nosso Rei do Poço. — Arkady abre a
porta do quarto e espera até que eu entre. Como da outra vez, é um quarto
enorme, porém mais discreto, com uma iluminação escura e paredes em um
tom de cinza, a cama ainda é grande, porém parece saída de um filme sobre
vampiros, me recordo de assistir alguns com Anna, ela adorava essas coisas
e, instintivamente, massageio meu peito quando ele dói.
— Espero que goste, temos comida, bebida, diversão. — Arkady aponta
para todos os lados. — Se quiser algo a mais, só pedir.
Sinto que ele está me testando, seus olhos escuros me observam e
desvio o olhar para a mesa onde quatro carreiras de pó estão perfeitamente
arrumadas.
— Me acompanha? — Aponto para elas e ele sorri.
— Não posso, estou a trabalho, mas divirta-se, essa é a nossa melhor. —
Ele dá um tapinha em minhas costas no instante em que ouvimos uma
batida na porta, tento ignorar a agitação por finalmente revê-la embora eu
não faça ideia do motivo, afinal de contas, é apenas uma prostituta, por
mais cara e bela que ela seja, é apenas isso, uma garota que está sendo paga
para me agradar.
Porém, tudo se desfaz rapidamente quando, em vez da garota dos olhos
de gelo, o capanga de Arkady entra segurando uma outra garota, ele a joga
nos meus pés novamente como se ela não fosse nada e se afasta.
— Desculpe a demora. — Ele olha para Arkady em uma conversa
silenciosa que me deixa curioso.
— Bom, vou deixar você relaxar à vontade. — Ele passa por mim e pela
garota, seus olhos sequer desviam para onde ela está. — Espero que, dessa
vez, você aproveite melhor.
Observo-o sair do quarto, na companhia do capanga, enquanto isso, a
garota continua caída no chão, os cabelos loiros, longos, escondem seu
rosto.
— Levante-se, por favor — peço e ela faz o que mando.
Ela está usando o mesmo vestido que a garota da semana passada, seu
corpo nu pode ser visto através do tecido fino e ela também parece
preparada para isso. Seus olhos tristes caem em meu olho. Mas não são os
olhos de gelo que esperei encontrar a semana toda.
— Posso cuidar de você? — ela indaga, com a mesma voz, o mesmo
tom desesperado, a mesma urgência em me agradar.
— Quem é você? — pergunto no instante em que seguro seu punho,
impedindo-a de me tocar.
— Eu sou sua — ela diz, como se fosse uma mercadoria, pronta para ser
usada.
— Onde está a outra garota?
— Que outra garota? — Ela parece confusa.
— A outra, morena, olhos de gelo, pequena.
A garota inclina a cabeça para o lado, como se tentasse se lembrar de
alguém com essas características.
— Não sei de quem você está falando. — Ela estica a mão mais uma
vez. — Isso deve estar doendo. — Ela passa a ponta dos seus dedos em meu
machucado, mudando de assunto. Os dedos frios e trêmulos parecem
ansiosos para me agradar e noto um padrão parecido.
Volto a olhar para a garota, para seu corpo em especial, ergo sua mão e
viro seu pulso e, para a minha surpresa, ela está lá: a mesma marca que vi
no pulso da outra garota, aquela que ela disse que havia feito ao se
machucar. Mentirosa do caralho!
Ela puxa o braço e esconde o pulso, como se tivesse sido pega fazendo
algo errado. Tarde demais.
— Me deixe ver seus pés — exijo e ela desvia o olhar, como se então se
desse conta de que tem dois pés.
— Como?
Não tenho paciência para esperar, me ajoelho e ergo seu tornozelo, ela
resiste, tentando se afastar, mas fecho meus dedos em torno de sua pele
apertando-a para mantê-la no lugar.
— Pare de se mexer. — Ergo o rosto para olhar para ela e tudo o que
vejo em seus olhos é o mesmo pânico que a outra garota carregava nos seus.
— Por favor — ela sussurra, mas não se mexe mais e ignoro seu pedido.
Afasto meus dedos e olho seu tornozelo, ela é quase tão magra quanto a
outra, mais alta, mais próxima dos padrões de garotas russas, mesmo assim,
minha mão se fecha em volta dela. Analiso sua pele e não me surpreendo
quando encontro o mesmo padrão de marcas. Uma fúria assassina se
apodera de mim e me levanto sem dar a mínima para a garota, que continua
a murmurar: “por favor, por favor”.
Não ligo para o que acontece naquele ringue, todos sabem que os
homens que estão ali é porque escolheram aquilo, porra, temos até mesmo
uma academia para nos prepararmos, então por que diabos essas garotas
estão sendo maltratadas? Não posso acreditar que elas estejam aqui por
livre e espontânea vontade.
Caminho a passos largos até a porta, mas a garota corre ao meu
encontro e se coloca à minha frente, espalmando as mãos em meu peito.
— Não faça isso — ela pede. Sua voz é quase um sopro de tão baixa.
— Por que não? O que me impede?
Ela não responde, em vez disso olha para os lados como se estivesse à
procura de algo e depois volta a olhar para mim. Ela respira fundo e dá um
passo para trás, então puxa o vestido pelo ombro, um lado de cada vez,
deixando a peça cair por seu corpo, e pousando no chão, meus olhos caem
em seus seios pálidos e pequenos, mas logo desvio o olhar.
— Vista-se — peço, mas ela não me obedece, em vez disso ela dá um
passo à frente, voltando a espalmar a mão em meu peito.
— Olhe para mim — sussurra e meus olhos pousam em seu rosto.
— Por que estão machucando vocês? — pergunto, sem esperanças de
que ela me diga a verdade.
— Você não quer essa resposta.
— Ah, não? É mesmo?
— Por que você não vai para a cama e deixa que eu cuide de você?
— Porque eu não vim aqui pra trepar.
— Não adianta, ninguém vai responder às suas perguntas — ela diz
quando retiro sua mão do meu peito. — Você não pode nos salvar, ninguém
pode, eles têm tudo muito bem planejado.
— Isso é o que vamos ver. — Caminho até a porta, giro a maçaneta,
mas, antes que eu possa sequer abri-la, a garota me chama, dessa vez sua
voz está forte.
— Não faça isso, por favor, eles vão matá-la se fizer.
Paro no meio do caminho, com a mão ainda na fechadura, sentindo o
ferro frio sobre meus dedos quentes.
— O que está dizendo? — Olho para a garota nua no meio do quarto,
ela parece quase irreal, como um fantasma, pálida, magra, os olhos sem
vida que me encaram parecem hipnotizantes, e demoro um instante para me
dar conta de que ela está segurando algo.
— Não deixe ela morrer — a garota diz.
— Você disse que não a conhecia, quem é você? — pergunto, mas não
há respostas, em vez disso uma lágrima rola do seu olho esquerdo um
instante antes dela enfiar a faca que, provavelmente, pegou em cima da
mesa em seu pescoço.
— Porra, não! — grito enquanto corro a seu encontro, segurando-a em
meus braços antes que seu corpo caia no chão. — Socorro, alguém ajuda
aqui! — grito enquanto desabo com ela em meu colo, minha mão trêmula
segurando seu pescoço, tentando impedir que o seu sangue escape, levando
a sua vida para as profundezas escuras da morte.
— Não, não, não, não. — Observo seus olhos desejando poder ajudá-la.
— Por favor... — ela sussurra, engasgando-se em seu próprio sangue.
— Meu Deus, não! Alguém... socorro! — grito mais uma vez.
A porta se abre bruscamente, uma leva de homens desconhecidos
entram no quarto, sou empurrado para longe, um segurança me puxa para
longe, Arkady se aproxima, os olhos vidrados no chão, onde a garota
permanece, e durante todo esse tempo, tudo o que consigo lembrar é das
suas palavras finais.
Ainda estou encarando o chão branco sendo tingido de vermelho
enquanto sinto minha pele molhada de sangue, o peso do seu corpo apoiado
no meu, a garganta queimando pelos gritos dados, o peito doendo, o
desespero se agarrando em mim, como um feitiço, me tornando escravo do
medo e da angústia.
E novamente Demyan está à minha frente, paralisado, incapaz de se
mexer, enquanto tenta entender o que está acontecendo.
— Me ajuda aqui — digo ao tentar me mover, a dor em meu pé se
aprofunda, e grito. Não sei mais o que estou sentindo, tudo dentro de mim
desmoronou e não consigo pensar.
Ele finalmente se move, vindo até a banheira e retirando Anna de
dentro, em seguida ele a coloca no chão e pulo da banheira ignorando a dor
em meu pé quando caminho até onde ele a deitou.
Demyan puxa a camiseta pelo pescoço rasgando-a em pedaços, o
barulho do tecido sendo destruído me deixa nervoso, ele se ajoelha e
envolve um dos seus pulsos, apertando o tecido em volta dele enquanto diz
algo baixinho, uma prece talvez, eu não sei. Em seguida, ele faz o mesmo
com o outro, a calma em sua voz me deixa assustado.
— Pronto, agora ela vai ficar bem — Demyan diz, com a voz vazia, em
choque. Ele estende a mão cheia de sangue e afasta os cabelos molhados do
rosto da sua irmã gêmea. — Vamos, Anna, não nos assuste, abra os olhos
— ele pede como se ela estivesse apenas dormindo. — Ei, vamos lá, sua
tola, pare com isso. — Demyan aperta sua bochecha, balançando-a em
busca de uma reação. — Anna, acorde, estou mandando — ele diz, e
finalmente começo a ver alguma reação dele. — Anna, ei, sou eu, seu
bliznetsy.
Ele chacoalha o corpo sem vida dela, mas os olhos vazios da minha
namorada estão fixos em mim, tento me afastar, mas não consigo, minha
respiração é curta demais, não consigo mais falar, sinto como se estivesse
morrendo também.
— Anna. — Ele se inclina sobre o corpo dela, respira fundo e solta um
grito que parece rasgar a sua alma.
E então ele chora.

— Roman, ei garoto, olhe para mim. — Arkady está na minha frente,


sua palma espalhada por minha bochecha, sua voz suave e firme enquanto
ele me pede para olhar para ele.
Mas não posso, é Anna quem está deitada naquele chão, envolta em
sangue, me encarando como se estivesse me culpando por sua morte.
E mais uma vez, eu não pude salvá-la.
— Roman.
— Ele está em choque.
— Tire essa garota daqui.
— É melhor fazer ele se sentar.
— Limpem logo essa bagunça.
— Acho que ele vai...
Tudo se apaga.

A primeira coisa que noto ao abrir os olhos é que estou vivo e uma onda
de decepção me invade ao constatar isso.
A segunda é que não sei onde estou, não é mais naquele quarto, nem em
nenhum outro lugar que já estive. Forço-me a levantar e sinto o corte em
meu supercílio arder, é a única coisa que me parece real nessa noite caótica.
— Ele acordou — alguém diz e Arkady se aproxima.
— Graças a Deus, garoto, você me assustou — suspira, parecendo
aliviado enquanto passa um lenço em cima da boca. — Como está se
sentindo?
— Onde ela está? — Olho em volta sem saber ao certo o que estou
procurando.
— Roman — me chama.
— Onde a garota está? — exijo ao me levantar da cama e andar até o
outro lado do quarto.
— Infelizmente ela não resistiu. — Ele balança a cabeça como se
realmente se importasse com algo. Porra, ele administra esse lugar há anos,
com certeza não dá a mínima para quem morre e quem vive no Poço.
— Não estou perguntando dela, onde está a outra garota?
— Que outra garota? — Ele parece confuso, mas não sei mais o que é
real ou fingimento.
— A morena, da semana passada.
— O que tem ela?
— Aquela menina disse que, se eu saísse, vocês iriam matá-la.
— Pelo amor de Deus, aquela menina estava transtornada, você viu o
que ela fez.
— Então onde ela está?
— Não sei, deve estar por aí, por quê?
— Eu quero vê-la — ameaço sair, mas Arkady se coloca na minha
frente. — O quê, está me prendendo?
— Vamos com calma, garoto, lá fora naquele ringue você até pode ser
rei, mas aqui dentro você é apenas um menino que está me arrumando
problemas.
— Problemas? Eu só te fiz uma pergunta, uma garota acabou de se
matar na minha frente, pode ter certeza de que uma pergunta é o menor dos
seus problemas — me exalto e ele esfrega a base do nariz.
— Roman... não dificulte minha vida.
— Responda a porra da minha pergunta.
Arkady respira fundo e ergue os olhos para mim e tudo o que eu vejo é a
fúria que esconde por trás da sua fachada de homem de negócios, ele está
incomodado com minhas perguntas e eu nem ao menos comecei a falar.
— Tudo bem, eu vou buscá-la, mas você tem que me prometer que não
vai sair daqui, tudo bem?
Abro a boca para dizer que não sou seu empregado para obedecer suas
ordens, mas se existe uma coisa que a vida nas ruas me ensinou é que se eu
quero algo, preciso mostrar que sou digno de confiança.
— Claro, ficarei aqui. — Sento-me na poltrona e estendo meus braços
por ela, como se estivesse relaxado e confiante. Arkady me observa por um
instante, antes de sair balançando a cabeça como se fosse apenas um
capricho de moleque. Que se foda, eu quero ver aquela garota.
— Já volto. — Ele abre a porta enquanto coloca o celular no ouvido. —
Preciso do Zakhar, onde ele está? — ele diz ao telefone. A porta se fecha
antes que eu possa ouvir qualquer coisa.
Fico um instante apenas encarando a madeira, milhares de perguntas
permeiam meus pensamentos nesse momento. Tento com toda a minha
força não pensar na garota morta sob meus pés, mas seria mais fácil parar
de respirar.
O tempo passa lentamente, sinto cada pedaço de pele em meu corpo se
agitar, como se estivesse prestes a acontecer algo muito ruim, me inclino
para a frente, nunca deixando de encarar a porta, enquanto os ponteiros do
relógio tentam me enlouquecer.
Estou perto do salão principal, de onde estou posso ouvir o som da
próxima luta acontecendo, não sei quem são os caras que estão lá, por noite
acontecem muitas lutas e quase nunca sabemos algo um do outro. É uma
estratégia do Poço para manter o mistério em torno dos participantes,
mesmo assim, tento ouvir o nome de algum deles, mas minha concentração
está uma bosta, parte por causa da luta e das porradas que levei hoje, parte
por causa da garota.
“Não deixe ela morrer.”
O que será que aquela garota queria dizer com isso? Por que ela é tão
importante e, principalmente, por que comigo? O que tenho para que seja
responsável por sua vida? Meu Deus, se ela soubesse que não fui capaz de
proteger nem mesmo a garota que amo, nem a minha mãe.
Abaixo a cabeça e sinto uma tontura esquisita, como se estivesse
drogado ou algo parecido, mas não me recordo de ter usado nada, não, eu
tenho certeza de que não usei nada, mesmo assim as ideias em minha mente
estão confusas e começo a sentir o corpo ficando pesado. Fecho os olhos
por um instante, só para relaxar um pouco, e tudo parece ainda pior, então
me levanto e começo a andar de um lado para o outro me sentindo agitado.
A porta se abre e sinto meu coração disparar dentro do peito ao me
virar, mas não é a garota que está lá, e sim Zakhar, o capanga de Arkady.
— Ah, você... — ele limpa a garganta, parecendo surpreso ao me ver
aqui. Seus olhos caem na mesa de comidas e volta para mim. — Está tudo
bem?
— O que houve? — pergunto desconfiado, já não consigo acreditar em
mais nada e minha cabeça parece que vai explodir.
— Nada. Só vim conferir como você está.
— Cadê a garota?
— Estão providenciando, pode demorar um pouquinho, relaxa, quer que
te tragam algo?
Olho de soslaio para Zakhar, ele não é conhecido dentro e fora do Poço
por ser um cara gentil, ao contrário, ele é um dos caras mais terríveis que
tive o desprazer de conhecer, o que me deixa ainda mais incomodado com
sua gentileza. Algo estranho está acontecendo aqui e se eu tivesse o mínimo
de juízo daria o fora, mas não posso sair antes de vê-la.
— Não, tô de boa.
— Então tá.
A porta se fecha mais uma vez e volto a andar para lá e para cá, vou até
uma mesa e observo as mesmas quatro carreiras de cocaína, os mesmos
alimentos, as mesmas bebidas. Esses lugares são usados por pessoas que
vêm aqui atrás de diversão. Mas quem são as pessoas que podem pagar por
esse luxo? Com certeza, não são moradores de Temnyy Gorod.
Quase uma hora se passa desde que Zakhar veio me ver, o som lá fora
começa a diminuir e meu cansaço é tanto que sinto que, no instante em que
eu me sentar, vou desabar, então faço de tudo para continuar de pé, mesmo
que minhas pernas estejam exaustas e meus olhos pareçam pesar uma
tonelada.
Eu só preciso vê-la, garantir a mim mesmo que ela ainda está viva, e
permitir que aquela pobre garota possa descansar em paz.
Então, como se ouvisse meu pedido, a porta se abre mais uma vez, me
viro ansioso e Arkady entra, ainda falando ao celular enquanto caminha
para dentro do quarto, e atrás dele, de cabeça baixa, usando o mesmo
vestido, com os cabelos pesados e iluminados do qual me recordo, vem ela,
a garota dos olhos de gelo, a menina que, de acordo com aquela pobre
garota, preciso proteger.
Ela parece menor do que me recordo, mas quando ela para no meio do
quarto e ergue seu rosto de fada, e seus olhos pousam em mim, percebo que
na verdade estou enganado, ela não é pequena, nem mesmo frágil, ao
contrário, ela é a garota mais forte que já vi na minha vida, eu sinto isso no
instante em que nossos olhares se cruzam, na forma como ela ergue o
queixo ao me encarar, na sensação esquisita que tenho, como se ela
ocupasse todo o espaço, como se ela fosse alguém de quem preciso manter
distância, ter cuidado, muito cuidado.
— Prontinho, garoto, aqui está ela. — Arkady guarda o celular no bolso
e aponta para a pequena figura parada à minha frente. — Satisfeito?
Tento desviar o olhar para o homem ao meu lado, mas não consigo,
sinto como se ela fosse desaparecer caso eu o faça, então permaneço
olhando, enquanto movo a cabeça em um sim silencioso e caminho até
parar na sua frente.
A garota ergue um pouco mais o rosto ainda sem desviar o olhar.
— Você está bem? — pergunto baixinho só para ela, a garota desvia o
olhar por um breve instante e isso me incomoda.
— Sim, senhor — ela responde daquele jeito esquisito que elas sempre
falam comigo, como se eu fosse alguém de quem elas têm medo.
— Está machucada? — Analiso seu rosto, seu pescoço e braços, as
únicas partes expostas que consigo enxergar.
— Não, senhor.
— Não sou seu senhor, meu nome é Roman e quero que me chame
assim.
Ela balança a cabeça e abre a boca para falar, por algum motivo desiste
e apenas balança a cabeça novamente.
— Pronto, garoto, satisfeito?
— Preciso de um tempo a sós com ela — digo ao me virar para Arkady,
posicionando meu corpo na frente dela, para que ele não faça contato
visual.
— Ah, eu sinto muito, mas isso não será possível.
— Como não? Eu recebi um presente, infelizmente aconteceu uma
tragédia e não pude... usufruir dele, quero essa garota em troca.
— Escuta aqui, Roman, não é porque você tem um patrocinador
generoso que gosta de te paparicar, que você pode fazer exigências. Isso
aqui é um lugar muito sério e temos regras.
Cruzo meus braços na frente do peito não dando a mínima para as suas
balelas.
— Eu só quero o que é meu por direito — continuo e ouço a porta se
abrindo.
Arkady olha para ela e faço o mesmo, um homem desconhecido o
chama.
— Precisamos levá-la senhor — o homem diz e, mesmo estando a
alguns centímetros de distância da garota, posso senti-la se agitar.
— Levar para onde? — pergunto olhando para Arkady.
— Chega de perguntas, Roman, acho que está na hora de você ir para a
sua casa. Foi um dia cheio e você precisa descansar.
— Ela não vai. — Me aproximo um pouco mais da garota e posso sentir
seus pequenos dedos tocando minhas costas, o que me deixa estranhamente
protetor.
— Não é uma boa ideia me contrariar, você sabe — ele tenta me
ameaçar e se fosse Demyan aqui, com certeza ele seria inteligente o
suficiente para pensar em algo estratégico para dizer, mas não sou ele,
nunca fui bom com as palavras, meus assuntos sempre foram resolvidos no
punho.
— Foda-se, não tenho medo de você.
— Não estou pedindo que tenha, só acho que não é inteligente da sua
parte me afrontar — ele me dá um sorriso de satisfação que diz exatamente
isso.
— Ela não vai — digo e sinto sua mão se fechar em meu moletom.
— Roman — ela sussurra meu nome, tão baixinho que preciso me virar
para poder ouvir o que ela quer dizer.
— Você não vai sair daqui — insisto. — Não se preocupe.
— Eu preciso ir — ela diz.
— Não, não precisa.
— Eu vou ficar bem — ela continua, embora eu não consiga entender o
que está acontecendo aqui. Em seguida, o cara que está parado na porta se
aproxima e a segura pelo braço de um jeito que não gosto. Abro a boca para
falar, mas seus enormes e frios olhos de fada imploram para que eu não diga
nada, então observo a garota ser levada e volto a olhar para Arkady.
— Quero que me garanta que semana que vem ela estará aqui para mim
— digo, tentando manter a voz firme, ele ergue uma sobrancelha de forma
curiosa e sorri.
— Não é muito inteligente se apegar às garotas do Poço, seu pai não te
ensinou?
— Não tenho pai — retruco e ele balança a cabeça.
— Desculpa, eu havia me esquecido — responde em um tom
provocador que me incomoda.
Todos aqui sabem que meu pai fugiu. Como a grande maioria dos
homens de Temnyy Gorod, ele foi embora na primeira oportunidade que
teve, deixando para trás o único filho que teve, sem dar a mínima se eu
sequer chegaria a me tornar um homem. Não fui o primeiro moleque
abandonado e, infelizmente, sei que não serei o último.
— Semana que vem — reforço, voltando a falar da garota.
— Vai depender do seu patrocinador.
— Diga a ele que farei o que ele quiser.
— Cuidado com suas promessas, garoto, o Poço não é um lugar onde se
deve fazê-las.
— Só repita minhas palavras, cada uma delas. — Encaro o homem de
queixo erguido e ele move a cabeça em um sim silencioso.
— Como quiser.
Seu telefone toca, é a deixa para que ele se vá e então estou sozinho
mais uma vez. Penso em tudo o que aconteceu essa semana e me dou conta
de uma coisa:
Pela primeira vez, desde que Anna se foi, tenho um objetivo.
Eu preciso entender o que está acontecendo aqui e como posso proteger
essa menina.
Meu coração parece que vai explodir no instante em que sou levada
pelos corredores frios do Poço.
Eu pergunto o que está acontecendo, mas Arkady não responde, ele
parece irritado e diz coisas que não compreendo o tempo todo no celular,
gritando ordens, falando sobre alguém, uma garota, ela fez algo que o
deixou muito irritado e tento prestar atenção, mas Arkady é esperto e nota o
que estou fazendo, então guarda o aparelho e volta seus olhos do mal para
mim.
— Sabe, devochka, hoje eu estou muito, muito, muito puto. — Ele
aperta meu braço como se assim eu pudesse entender melhor. — Tão puto
que, se você me contrariar, eu não sei o que farei com você. — Ele me
pressiona na parede, colocando-se na minha frente. — Então eu espero que
você seja uma boa menina, ao menos dessa vez.
— Sim, senhor — respondo tentando manter a voz firme.
— Se disser alguma coisa, qualquer coisa que eu sinta que esteja errada,
eu darei um jeito de fazer você implorar pela morte — ele me ameaça, o
sorriso deixando seus dentes amarelos expostos e meu estômago se
embrulha. — E dessa vez não serei piedoso — completa, como se em
algum momento ele já tivesse sido.
— Sim, senhor — repito, enquanto tento não abaixar o rosto, mas algo
dentro de mim vence a batalha contra meu orgulho e meu corpo inteiro se
encolhe com as lembranças da última vez em que ele me castigou. Foram
dois dias sem conseguir andar direito depois da punição que recebi por não
ter conseguido seduzir Roman, meu rosto ainda tem algumas manchas
amareladas dos hematomas que seu capanga me causou, meu corpo ainda
estremece ao seu toque, minha garganta ainda queima com os gritos que
não dei.
Não sou tão burra assim, sei qual o limite que posso aguentar e duas
punições seguidas é demais até mesmo para mim. Sei por experiência
própria que ele não vai me levar ao fim, ele só quer ver até onde sou capaz
de aguentar, o problema é que, às vezes, ser dura e teimosa é mais do que
um ato de rebeldia, é burrice.
— Boa garota, eu gosto assim. — Ele estica sua mão, espalmando-a em
meu rosto, o polegar brincando com meu lábio, entrando e saindo de dentro
dele lentamente, me causando repulsa. — Não vejo a hora dessa noite
infernal acabar e finalmente descansar. Sabe o que eu vou fazer, minha
pequena Yelena? — Seus olhos caem em seu dedo passeando por meu
queixo, pescoço, ombro.
— Não, senhor.
— Vou tomar um banho bem quente, longo e relaxante, depois vou
assistir ao seu vídeo. Fiquei sabendo que você foi muito boa hoje, então vou
escolher uma das novas garotas que chegaram essa semana e vou fodê-la
até descarregar toda a minha raiva e frustração. — Ele se inclina sobre mim,
com o lábio tocando minha orelha. — Chegou uma garotinha ontem que me
lembrou você, virgem, deliciosa — ele sussurra, como uma confissão e
meus olhos pinicam de vontade de chorar. — Claro que ela não tem a sua
beleza. — Ele passa o polegar em meu olho esquerdo. — Esses olhos de
ved’ma.
Um soluço escapa dos meus lábios com as lembranças do meu primeiro
dia nesse lugar, na forma como eles me analisaram, nua na frente de um
monte de homens estranhos, como uma mercadoria, um objeto feito para
agradar. Ali fui marcada, rotulada, definida para o que eu seria boa ou não.
Mais tarde, uma das garotas me disse que eu chamei a atenção de gente
muito poderosa, que estava sendo chamada de “a Bela do Poço” e que isso
me traria regalias. Eu era uma garota de sorte.
Aquela menina morreu um mês depois, então, talvez, sorte seja algo
muito questionável por aqui.
Arkady ri, algo que ele sempre faz quando sabe que me desestabilizou,
passeia sua mão por meus cabelos, afastando-os do meu rosto de um jeito
íntimo e desconfortável.
— Não se preocupe, devochka, eu serei gentil com ela. Irei devagar até
ela se acostumar, farei como deve ser feito, mas para isso, você precisa ser
boazinha, porque, se você me contrariar, eu ficarei muito puto e aí terei que
descontar na garotinha.
Tento manter meus olhos fixos nos dele, se temos um acordo significa
que somos iguais em algum aspecto, não posso baixar minha cabeça, não
posso dar a ele mais poder do que ele já tem.
— Me leve logo para ele — digo, orgulhosa por minha voz se manter
firme mesmo quando tudo dentro de mim parece prestes a desmoronar.
O tempo parece parar nos segundos em que ele mantém seu corpo
pressionado ao meu, como se estivesse enxergando a verdade, como se
soubesse o exato ponto onde pode me quebrar, como se estivesse se
divertindo com isso. E ele está, ele sempre está.
O telefone vibra em seu bolso e ele se afasta para atender, respiro fundo,
aliviada por ter alguma distância entre nós, há um limite que posso suportar
seu toque e fingir que não sinto nada. Ele dá as costas para mim e, por um
breve momento, me imagino atingindo-o com um machado, pesado e afiado
o bastante para parti-lo ao meio, sempre me pego sorrindo com essa
imagem, às vezes esses pensamentos são tudo o que me mantém respirando.
Voltamos a caminhar, Arkady à minha frente, tento manter a calma, sei
para onde estou indo e, por algum motivo, anseio por isso desde o momento
em que ele entrou na sala e me mandou me preparar. Quero revê-lo, quero
estar lá novamente, mesmo sabendo que terei que pagar caro caso não faça
exatamente o que Arkady quer, e, mesmo assim, tudo o que consigo pensar
é que ele está à minha espera.
A porta se abre e, antes que eu possa vê-lo, eu o sinto. Seu cheiro, sua
presença, sua força, Roman ocupa tudo e mesmo que ele não faça ideia do
porquê estou aqui, uma parte de mim, a mesma boba sonhadora que
acredita que um dia poderei ir embora, depois de enfiar um machado nas
costas de Arkady, acredita que ele também sente o mesmo, que eu estou
aqui por ele.
Arkady se afasta de mim e faço o que sou ensinada a fazer, mantenho
minha cabeça baixa em sinal de submissão completa, nesse quarto Roman é
meu dono, ele pode fazer o que quiser comigo, mesmo que ele não saiba
disso, mesmo que ele não me queira, é minha obrigação obedecer.
E é o que faço, no instante em que ele para na minha frente me torno
sua, para o que ele quiser enquanto ouço sua voz, tão diferente da voz de
todos os que me olham por aqui. A dele é suave, preocupada, enquanto ele
me pergunta se estou machucada. Desvio o olhar rapidamente, quero tanto
contar tudo, pedir que ele me salve, que me tire daqui, quero tanto que ele
saiba que fui violentada por sua causa e que só ele pode me livrar de sofrer
novamente, mas então me obrigo a parar de sonhar, de parar de acreditar
que ele é diferente só porque tem um rosto de anjo e uma voz doce, Roman
Stepanovich não é diferente por parecer diferente, afinal de contas
misericórdia e compaixão não o tornaram o Rei do Poço.
Olho para as suas mãos sempre machucadas, penso nos motivos para
que elas estejam assim, então observo as manchas de sangue em sua
camiseta, em seus braços, em seu rosto, hoje ele parece vindo de uma
batalha sangrenta. Não, ele não é um anjo, ele é um soldado pronto para
matar, que não tem medo de passar por cima do que for para conquistar seus
objetivos.
E seu único objetivo é vencer.
Roman discute com Arkady e, se eu não estivesse tão nervosa com o
que vai acontecer comigo depois, estaria sorrindo de satisfação. Ele se
aproxima um pouco mais, permitindo que eu sinta o calor do seu corpo e
finja que ele me quer porque se preocupa comigo e não porque sou uma
mercadoria interessante. A porta se abre e um dos capangas de Arkady
entra. Nosso tempo acabou, mas Roman não quer me deixar ir, isso é ruim,
porque, por mais que eu saiba que não é pessoal, meu coração quer
acreditar que é, e, sem pensar, estico meus dedos e toco sua roupa, sentindo
a maciez do tecido entre meus dedos.
— Roman — sussurro seu nome, sentindo a palavra deslizando por
minha língua, como se sempre tivesse sido pronunciada por minha boca.
Roman...
Ele se vira de frente para mim e ergo o rosto para admirá-lo um pouco
mais, nosso tempo está acabando e não sei se o verei novamente, nem em
que condições estaremos da próxima vez.
— Você não vai sair daqui, não se preocupe — ele diz com uma
convicção que quase me emociona.
— Eu preciso ir — digo porque posso sentir os olhos ferozes de Arkady
sobre mim.
— Não, não precisa.
— Eu vou ficar bem — digo no momento em que o homem se aproxima
e me segura pelo braço, não é nem perto do que ele está acostumado a fazer,
mesmo assim Roman olha para ele como se pudesse incinerá-lo apenas com
a força do seu olhar.
Sinto o clima ficar mais pesado, quase insuportável e penso na
garotinha que terá a sua vida marcada para sempre essa noite, preciso
acreditar que Arkady terá compaixão dela se eu obedecer e como última
tentativa, tento acalmar Roman, olho para o seu rosto de menino furioso, a
súplica estampada em meus olhos: “Por favor, não faça isso...”. Ele parece
entender o que peço e então se vira para Arkady, voltando a fazer
exigências enquanto sou arrastada para fora do seu quarto, pelos corredores,
de volta para a minha cela. E durante todo o caminho, tudo o que consigo
pensar é na forma como minha mão parece queimar e, quando sou jogada
de volta à minha prisão, espero até que esteja a sós para erguê-la e tocar
meus lábios.
Sorrio, me sentindo patética e carente enquanto relembro a forma como
ele me reclamou, como se eu já fosse dele de alguma forma. E me assusto
com a verdade que incendeia meu peito, eu quero ser dele, quero que ele
grite com Arkady, quero que todos saibam que a Bela do Poço pertence ao
Rei do Poço.
Como se fôssemos personagens de um sombrio e perturbado conto de
fadas.
Me perco em pensamentos bobos, todos eles terminam comigo saindo
desse lugar de mãos dadas com Roman e com Arkady deitado em uma poça
do seu próprio sangue. São pequenas pontadas de alegria que me fazem
perder a noção do tempo, até que noto alguém parado na frente da minha
cela.
— Arkady. — Levanto-me em um rompante escondendo minhas mãos
nas costas, como se tivesse sido pega fazendo algo errado.
Ele abre a cela e tento não me mover enquanto ele entra, tornando o
lugar quase sufocante com a sua presença.
— Eu fiz tudo o que você me pediu — digo com a voz assustada.
— Sim, você fez. — Ele caminha até mim, me fazendo recuar, um passo
atrás do outro até que estou com as costas pressionadas na parede úmida e
pegajosa. — Ah, devochka... — Ele segura meu rosto em sua mão,
erguendo-o ao ponto de doer, não consigo respirar direito e meus olhos
pinicam. — Você conseguiu — ele diz, mesmo que eu não faça ideia do que
seja. — Você enfeitiçou o garoto. — Ele aperta um pouco mais e estou na
ponta dos pés, a dor me faz gemer. — Zakhar tem razão quando diz que
você é uma Baba Yaga. — Ele pressiona meu crânio na parede. — Das mais
perigosas, com esses olhos demoníacos. — Arkady bate minha cabeça com
força, pontinhos pretos nublam minha visão e me seguro em seus pulsos
para não cair. — O certo seria acabar com você aqui. — Ele bate mais uma
vez e um gritinho escapa da minha boca. — Assim, você não teria mais
poder com nenhum outro homem. — Suas unhas afundam em minhas
bochechas. — Mas, infelizmente, preciso de você e daquele moleque idiota
do Roman.
Arkady analisa meu rosto, os olhos caindo em minha boca em forma de
O com a força que seus dedos me pressionam, então ele bate minha cabeça
mais uma vez, com tanta força, que, na hora que ele me solta, desabo no
chão, sem chances de me proteger.
Tudo gira à minha volta e não consigo me levantar, só o que vejo são os
sapatos caros e brilhantes dele se afastando de mim.
— Peguem a garota e levem-na para o quarto — ele dá as ordens e sai,
sem olhar para trás nenhuma vez, enquanto seca suas mãos em um lenço
que retira do paletó, como se elas estivessem em contato com algo muito
sujo, contaminado.
Talvez tenha mesmo sido isso.
Dois homens que não conheço entram na cela e me erguem pelos
braços, minhas pernas ainda estão moles e não consigo andar, então sou
arrastada pelo corredor estreito e sujo, passando diante das celas, enquanto
sou levada para outro lugar como um troféu ruim do qual não se tem
nenhum orgulho. Tento reconhecer as meninas na cela e vejo uma sendo
retirada no instante em que passo por ela, é apenas uma garotinha, não deve
ter mais do que quinze anos, seus olhos assustados analisam tudo à sua
volta como se ainda não entendesse o que está acontecendo.
— Para onde estão me levando? — ela pergunta quando um dos
capangas a segura pelo braço.
— Para o paraíso — ele diz e os homens que estão comigo gargalham,
se divertindo com o pavor que ela sente.
Viro o rosto tentando olhar para ela mais uma vez, desejando poder falar
para ela: “Não chore, por favor não chore, eles se alimentam das nossas
lágrimas”.
Mas não tenho tempo para isso.
Baixo a cabeça e deixo que meus cabelos escondam a minha dor
enquanto vejo o piso mudar de barro para o granito luxuoso que reveste o
piso da área destinada aos patrocinadores. Algo ruim me espera, é o que
meu coração diz, martelando no meu peito, e esse pensamento me
acompanha até que chegamos em um quarto pequeno, mas bem equipado e
sou jogada dentro dele de qualquer jeito.
— Venha aqui — um dos homens me chama até um canto do quarto e
obedeço. Ele puxa os grilhões e agarra meu tornozelo. Sinto seus dedos
passeando por minha pele, sobre as marcas que nunca saram, ele ergue os
olhos e me dá um sorriso diabólico enquanto prende o metal, o clique causa
um sufocamento em minha garganta. — Assim fica bem melhor. — Ele se
levanta ainda admirando o serviço. Desvio o olhar para o chão porque não
importa o que ele pensa, ele nunca me tocará, sou proibida para ele e isso é
o máximo que terá de mim.
O homem na porta o chama e eles saem sem dizer mais nada enquanto
fecham a porta me trancando, olho em volta tentando entender o que está
acontecendo, mas não consigo adivinhar, então me sento causando um ruído
quando os anéis de metal se movem. Apoio minha cabeça na parede e fecho
meus olhos, desejando poder apagar o rosto daquela menina da minha
mente, ou não pensar em Roman, nem no que Arkady quis dizer com
precisar de mim. Perguntas sem respostas nada mais são do que pesadelos
que nos atormentam enquanto estamos acordados.
Só servem para nos enlouquecer.
Minha cabeça está a mil, não consigo entender o que está acontecendo,
muito menos porque me importo com isso. Talvez eu seja mesmo um tolo
idiota com síndrome de super-herói como o Demyan dizia sempre que eu
me metia em encrenca por causa de alguma injustiça.
“Você não pode salvar o mundo.”
Aprendi da pior forma possível que ele estava certo.
Primeiro, minha mãe, depois, Anna, e agora essa garota.
Não consigo dormir pelos dois dias seguintes, sempre que fecho meus
olhos tudo o que vejo é aquela garota afogada em sangue, morrendo em
meus braços, pedindo para que eu não fizesse perguntas.
Eles vão matá-la.
Quem vai matá-la? E como eu posso evitar que isso aconteça?
Não tenho respostas para nada e isso me deixa ainda mais irritado, então
tudo o que faço nos dias seguintes é ir para a academia me exercitar o
máximo que posso sem lesionar alguma parte do meu corpo, passo o
período da manhã puxando ferro e a tarde treinando sparring8.
— Não acha que está na hora de parar um pouco? — o cara que está
tentando me acompanhar há quase duas horas pergunta com as mãos em
frente ao rosto enquanto tenta escapar do meu punho.
— Não. — Estico meu braço e acerto um cruzado de esquerda.
— Roman — ele me chama, se esquivando de um gancho que o
derrubaria.
— Porra, não. — Dou um passo para a frente e acerto um golpe em seu
braço que o faz gemer.
— Chega! — Pavel, o treinador que não me deixa em paz, grita do lado
de fora do ringue e o idiota à minha frente resmunga algo parecido com
graças a Deus, ou sei lá o quê.
Desço sem olhar para ninguém, meus músculos queimam e o suor
escorre por meu rosto e gruda a roupa em meu corpo, mas não estou
disposto a parar. Então me aproximo de um saco e começo a socá-lo. Um,
dois, um, dois, três... Um, dois, um, dois, três...
Pavel para na minha frente, seus braços fortes de quem um dia já lutou
no Poço seguram o saco me impedindo de continuar.
— Mas que caralho, qual o problema com vocês hoje? — Dou um
último soco no saco, desejando poder acertar a cara do babaca à minha
frente. Mas ele sequer se move.
Dou as costas para ele sem saber onde ir, de repente esse lugar parece
pequeno demais e me sinto sufocar. Caminho de um lado para o outro até
que sinto os braços de Pavel me empurrar até a parede, não tenho tempo de
me defender, ele me pressiona contra o concreto com o antebraço me
imobilizando.
— Qual o teu problema, Roman? — ele pergunta, encarando-me com
seus olhos injetados de fúria.
— Me solta, porra! — exijo, afastando seu braço de cima de mim.
— O que você pretende com isso? Quer se matar, espera a próxima luta
e deixa teu adversário te acertar, garanto que as apostas contra você estão
altas.
— Vão ter que esperar até a última luta para o show completo. — Me
desvencilho dele e caminho retirando as luvas.
— O que você quer dizer com isso? — Ele para novamente na minha
frente e reprimo a vontade que sinto de meter um soco em sua traqueia.
— Nada. — Ergo os ombros e sorrio, um sorriso debochado que sempre
deixava Demyan louco de ódio.
— Garoto...
— Roman, meu nome é Roman.
— Eu sei bem qual é a porra do seu nome, mas nesse momento você
não o merece, então vou te chamar de garoto.
Respiro fundo para não o mandar se foder como o garoto que ele me
acusa de ser e paro de andar dando a ele a atenção que quer.
— Você não sabe de nada — digo, porque na verdade não posso contar
a ele nem a ninguém o que aconteceu naquela noite, não posso falar sobre
aquelas garotas, nem sobre o fato delas, de alguma forma, me pedirem
socorro; ou contar que, às vezes, acho que estou enlouquecendo e tudo isso
não passa de um surto de um cara fodido que não sabe mais o que fazer da
vida.
— Sei mais do que você imagina.
— Ah é? Sobre o quê? Me conta aí, diz o que você sabe, além de que
sou um moleque babaca. — Cruzo os braços na frente do peito, sinto os
músculos rígidos pelo exercício puxado e a pele quente, quase febril.
— Não seja idiota e infantil, todo mundo aqui tá vendo que você tá
pilhado, querendo arrumar confusão, não é assim que você vai resolver seus
problemas.
— Você não sabe nada sobre os meus problemas.
— Posso não saber, mas vejo claramente os que você vai arrumar se não
começar a pensar direito.
— Valeu pelos conselhos, pápa. — Dou um tapinha em seu peito e me
afasto. Como um bom idiota.
— Você vai conseguir o que quer, Roman, só espero que até lá, você
perceba que não é morrer e sim vencer.
— Voltei a ser Roman? — Ergo a sobrancelha sem dar a mínima para o
que ele está falando, Pavel balança a cabeça e me dá as costas, indo fazer
algo mais produtivo do que perder tempo com um cara como eu.

A essa hora do dia, o mercadinho decadente do centro de Temnyy


Gorod está lotado de mães de família tentando comprar algo decente para
alimentar os filhos, abandonados pelos pais, com seu dinheiro. Eu
reconheço o olhar no rosto de cada uma delas. Por sorte, muitas vezes os
pais de Demyan nos impediram de passar fome, mas existe uma coisa que
corre dentro das veias das mulheres dessa cidade além de sangue, é orgulho.
Elas preferem mil vezes levar uma sacola com meia dúzia de alimentos
comprados com seu salário do que carregar o peso da esmola que vem do
outro lado da Granitsa.
Observo uma mulher escolhendo um pacote de bolacha. Ela é jovem
demais, mesmo com todo o maltrato do frio e da fome ainda consigo
reconhecer a juventude em seus olhos azuis, quase tão belos como os da
garota do Poço.
A pequena fada.
Meus pensamentos escorregam para onde ela está, será que está sendo
alimentada? Está com frio? Machucada? Será que está presa como um
bicho selvagem à espera de alguém que a salve? Balanço a cabeça
afastando esses pensamentos, a mulher percebe que está sendo observada e
desvia o olhar para mim, seus olhos caem em minhas mãos e não tento
escondê-las, são as mãos de um homem repleto de ódio, dor e vingança. E
eu tenho orgulho delas.
A mulher coloca a bolacha no lugar e sai do corredor, volto minha
atenção para o que realmente quero. Vou até a prateleira dos fundos, onde
ficam as bebidas, e escolho uma garrafa de vodka, coloco-a debaixo do
braço e vou direto para o caixa. No caminho pego a bolacha que a mulher
estava olhando, é uma cheia de desenhos e com sabor de nata. Tem cheiro
de infância e saudade e sorrio ao me lembrar de um tempo em que eu ficaria
feliz em ter duas bolachas na mão e minha mãe ao lado.
Ignoro os olhares das mulheres e crianças por onde passo, ouço meu
nome ser sussurrado e imagino o que eles devem ter ouvido, não me
importo. Seja lá o que for, não é a verdade e nunca será. Vou até o caixa e
coloco minhas coisas em frente à garota de cabelos castanhos presos em um
lenço tradicional, ela é tímida e desvia o olhar quando me vê, suas
bochechas ficam coradas e imagino o que Arkady faria com uma menina
como ela, como ele a quebraria até tirar toda a vida de seus olhos ingênuos
e sonhadores, ela passa minhas compras e pago o valor cobrado. Guardo
tudo na minha mochila e dou um sorriso para a garota, que fica tão
vermelha que sinto dó.
— Posso te pedir um favor? — pergunto e a garota move a cabeça
bruscamente. — Pode entregar isso para aquela mulher? — Entrego o
pacote de bolacha a menina e aponto para a mulher do outro lado do
mercado. — Diga a ela que está pago.
— Claro — a menina diz baixinho, com a voz tão frágil que parece
prestes a se quebrar.
Quero me inclinar e dizer a ela para nunca olhar para o Setor Leste, para
nunca sequer responder a qualquer cantada que receber, mas tudo o que
faço é rezar para que ela tenha alguém que se importe o suficiente para
cuidar dela.
Saio do mercado e acendo um cigarro, caminho devagar aproveitando
os últimos dias em que veremos o sol, em breve a Noite Longa chegará e,
então, Temnyy Gorod será engolida pela escuridão por semanas, deixando-a
ainda mais triste e sombria.
Caminho devagar enquanto acendo um cigarro e estico minhas costas
doloridas, fecho o casaco e puxo o gorro até minhas orelhas. Ouço passos
vindo até mim, mas não me viro, seja quem for não me interessam.
— Ei, você. — Uma voz feminina me chama e viro-me para ver quem
é. Não me surpreendo ao encontrar a mulher do mercado parada à minha
frente, os cabelos castanhos escondidos em um gorro pesado de lã que deixa
seus olhos ainda mais bonitos. — Por que você me comprou isso? — Ela
estende o pacote de bolacha à minha frente.
— Você tem filhos, não tem?
— Que importa?
— São para ele — justifico.
— Não preciso, obrigada. — Ela estende o pacote em minha direção,
mas apenas olho para ele enquanto puxo a nicotina para os meus pulmões.
— Orgulho às vezes é um defeito, sabia?
— Não me importo, pegue, vamos.
— É um presente, não deve rejeitar.
— Você não me conhece. — A mulher ergue o queixo e fica um pouco
mais parecida com a garota do Poço, sem a beleza desnorteante dela, mas
com a mesma força e coragem.
— Não, mas podemos mudar isso. — Dou um passo em sua direção,
fechando minha mão em torno da sua, o pacote entre nós, seus olhos azuis
não parecem gelo, mas são intensos e determinados, ela sabe o que vai fazer
e, de alguma forma, eu sei que não é a primeira vez. No fim da noite,
quando ela se deitar ao lado dos filhos e fechar os olhos, ela dirá a si mesma
que foi por eles, e que sempre fará desde que eles estejam bem.

Viro o copo de vodka de uma vez sentindo meu corpo começar a


relaxar, estou cada dia mais resistente e preciso de mais doses para poder
esquecer, essa noite parece pior, estou tenso e minha cabeça não para, quero
descansar, mas não consigo e Berstuk não para de me julgar do outro lado
da sala.
Ouço os passos se aproximando antes mesmo da batida na porta, uma
ânsia esquisita me agita, mas digo a mim mesmo enquanto caminho até a
porta que não é ela, não é a garota do Poço que está atrás da porta. Abro-a e
encontro a mulher do mercado, parada do outro lado, ela está linda, com
seus cabelos longos e castanhos caindo por seu sobretudo de pele,
provavelmente um dos presentes que sua beleza a deu.
— Eu não posso demorar — ela começa a justificar.
— Não vamos. — Aponto para o centro da sala e ela entra, sei o exato
instante em que seus olhos encontram meu gato e ela se assusta.
— Não se preocupe, ele não vai te fazer mal.
— Tudo bem — ela diz com a voz suave e insegura.
— Nem eu — completo enquanto encho o copo de vodka. — Quer
uma? — Ergo o copo para ela.
— Não.
— Acho que vai te ajudar. — Viro o copo de uma vez e encho de novo,
ela aceita dessa vez e faz o mesmo que eu.
Fico parado na bancada da cozinha da minha casa caótica e solitária,
tentando não parecer um menino inseguro diante de uma mulher
desesperada, mas é isso que sou, um menino que nunca esteve nessa
situação antes, mas que precisa de algo desesperadamente.
— Tire a roupa — peço e ela hesita, com as mãos firmes no laço do seu
casaco. — Quanto mais rápido começarmos, mais rápido terminamos.
— Você tem razão. — Ela me dá um sorriso tímido enquanto desfaz o
laço e derruba o casaco no chão ficando completamente nua.
Meus olhos caem em seu corpo magro, em seus seios grandes, no meio
das suas pernas.
— Venha aqui — peço e ela caminha os poucos passos que nos
separam, com os olhos em Berstuk que observa tudo com um olhar
julgador.
Ela para na minha frente, as mãos femininas puxam a barra da minha
camiseta, tirando-a com habilidade, seus olhos caem em meu corpo, as
pontas dos dedos passeiam por meus músculos e vejo um brilho de desejo
em seu olhar.
— Vire-se de costas — mando e ela obedece, se inclinando sobre a
mesa.
Encho mais um copo de vodka e viro tudo enquanto abro minha calça,
vou até ela e abro suas pernas, deixando-a exposta para mim.
— Prometo que serei rápido — digo no instante em que a penetro, seu
corpo se retrai com a invasão, mas ela não diz mais nada, apenas fica lá,
imóvel, recebendo-me em silêncio, pagando sua dívida para um garoto
solitário.
Tudo é frio e sem graça e, quando gozo, não sinto nada além de um
alívio físico que nada tem a ver com prazer. Me afasto e pego um punhado
de papel-toalha, entrego a ela e fecho minha calça, voltando a garrafa de
vodka.
Ela se limpa em silêncio, depois vai até onde está o seu sobretudo e se
veste.
— São três meninos, o mais velho tem seis e o mais novo tem dois anos.
Eles são tudo o que tenho de mais precioso e hoje você colocou um sorriso
nos lábios deles. — Ela vem até mim e se inclina, deixando um beijo em
minha bochecha. — Obrigada — ela sussurra antes de se afastar.
Não digo nada, enquanto ela vai embora, me deixando novamente
sozinho, vazio, frio.
E por um instante sinto inveja desses três meninos.
Volto a me sentar no sofá, dessa vez com a garrafa quase no fim, bebo
enquanto penso, em nada, em tudo, nela, em Anna. Bebo até que sinto-me
perder a batalha contra a embriaguez, até que sinto sua presença, até que
não estou mais sozinho.
— Sinto sua falta, moy dorogoy — sussurro, com os olhos pesados,
quase se fechando. — Eu não quero mais continuar, não quero — continuo,
apoiando minha cabeça no encosto e deixando a garrafa vazia cair no chão.
— Me leva, Anna, me leva com você — peço, sem querer abrir os olhos e
perceber que estou sozinho. — Me leva ou me deixa em paz — digo,
sentindo sua mão fria em meu rosto. — Anna...
Berstuk mia baixinho, como se estivesse tentando me alertar, mas não
ligo para ele, tudo o que eu quero é que ela me leve embora daqui o mais
rápido possível.
— Acabe logo com a minha angústia — digo, já sentindo a garganta
arder. — Me leve com você.
Sinto-me flutuar, como se estivesse em um sono bom, Anna está ao meu
lado, sua mão sobre a minha, estamos felizes, eu sei, porque eu sempre
estive feliz ao seu lado.
— Roman — ela me chama, mas não quero olhar, não quero ver seu
rosto, só quero continuar aqui. — Roman, olhe para mim — ela pede e me
esforço para virar o rosto, mas não é ela quem está ao meu lado, não é a
minha Anna que me olha de volta, não é sua mão que segura a minha.
É ela, a garota do Poço, com seus olhos de gelo, implorando por
socorro.
Abro os olhos assustado, Berstuk está parado no mesmo lugar, imóvel
como se tivesse acabado de ver um fantasma, e talvez ele tenha visto, talvez
seja mesmo a minha Anna que veio me ver, me deixar uma mensagem que
até agora não consegui compreender, mas talvez seja essa a única forma de
me encontrar novamente com ela.
Eu preciso salvar aquela menina.
— O que diabos está acontecendo com você? — Grigory passa o pano
umedecido com uma gosma nojenta e fedida em meu rosto e reprimo um
gemido de dor. — Eu nunca vi um cara mais burro em toda a minha vida —
ele continua resmungando e me xingando enquanto trabalha nos meus
ferimentos. — O que aconteceu com o Rei do Poço?
— Mas eu venci, isso que... ai, porra! Importa.
— Não tenho certeza, porque se esse cara tivesse acertado mais um
soco, você estaria morto com certeza.
— Mas não estou, já ele... — Ergo os ombros e sorrio satisfeito com a
luta. Não o matei, claro, mas tenho certeza de que o cara que fodeu meu
rosto está praticamente irreconhecível nesse momento.
— Não pode ser sério, não é por você que estão fazendo esse
burburinho todo, não esse saco de pancadas parado aqui na minha frente,
não, não, de jeito nenhum.
— O próprio, o Rei do Poço, em carne e sangue — brinco, erguendo os
braços e sorrindo como o maldito insano que me tornei e Grigory bufa
enquanto continua falando sem parar, pelo tempo que demora até encher o
balde de sangue e unguento e meus ouvidos de asneiras.
— Pronto, agora toma um desse e vai dormir. — Ele estende um
comprimido para mim e quero rejeitar, mas sei que dessa vez preciso ser
mais inteligente que orgulhoso e engulo com um pouco de água.
— Agora você deita ali e dorme, de preferência o dia inteiro, não quero
te ver de pé zanzando por aí, está me entendendo?
Balanço a cabeça devagar e me arrasto até o sofá forrado com uma
manta limpa que ele arrumou para mim, quero fazer uma gracinha sobre o
Grigory ter um enxoval ou algo do tipo, mas não tenho forças para isso,
então apenas me sento devagar, removo minhas botas e o casaco sentindo
cada lugar onde fui atingido hoje. Me sinto frustrado, tudo foi planejado,
apanhar desse jeito na esperança de ser levado até a garota novamente, mas
hoje ninguém foi me ver no vestiário, nem mesmo Arkady. E quando
perguntei sobre ele, a resposta que recebi foi que ele não estava em Temnyy
Gorod essa noite, o que me deixou ainda mais agitado e nervoso.
Será que ela também não estava? Onde eles foram? Arkady nunca
havia perdido uma luta minha antes. Será que tem a ver com a discussão da
semana passada?
Fecho os olhos tentando me concentrar em relaxar, mas as perguntas
continuam martelando minha mente.
Será que ela está machucada? E se ele a levou para longe? Será que
ela conseguiu fugir? E se ela acabou fazendo o mesmo que sua amiga?
Não sei quando o remédio faz efeito, mas em algum momento eu apago,
aliviado ao menos por enquanto.
— Deixa eu ver se entendi, você teve um sonho com sua namorada
morta que te mandou uma mensagem enquanto você trepava com uma
mulher desconhecida? — Grigory está sentado na maca, os braços
carregados de tatuagens cruzados em frente ao peito enquanto olha para
mim como se eu estivesse ficando doido.
Talvez esteja, que se foda, não ligo.
— Você não está me escutando.
— Acredite, eu estou, mais do que eu gostaria inclusive.
— Eu preciso fazer algo. — Encaro seu rosto mal-humorado, tentando
pela milésima vez, fazê-lo entender o que estou falando.
Grigory se levanta e caminha até onde estou, parando na minha frente.
— Sim, você precisa. Precisa parar de pensar com a porra do seu pau e
focar no futuro.
— Eu não estou pensando com meu p...
— Escuta! — ele grita. — Presta atenção, porra! Você vai fazer o que
estou mandando.
— Eu não...
— Você vai me escutar. — Ele empurra o indicador no meu peito e me
encolho porque tudo dói. — Sabe por que você está nesse estado? Sabe por
que bateram tanto em você ontem? Porque eles estão loucos para derrubar o
Rei do Poço, as apostas contra você estão triplicando e eu aposto que o
desgraçado do Arkady tá metido com isso até o talo e nesse momento está
limpando aquela bunda peluda com dólares, e tudo isso nas suas costas, seu
idiota.
Ele se afasta, caminhando pesadamente até o outro lado da sala e
abrindo uma garrafa de bebida, uísque eu acho. Grigory enche dois copos e
me entrega um, penso em dizer não, mas ele não está com uma cara muito
boa para ser rejeitado, então apenas pego o copo e tomo um gole.
— Eu não sei quem são essas garotas que você está falando, nunca vi
nada parecido, as únicas bocetas que tive debaixo de mim são aquelas que
circulam o Poço em dias de luta, e elas não se parecem nem um pouco com
fadas ou bruxas vestidas de branco, então se isso que você está falando for
mesmo verdade, só existem duas possibilidades: ou você é um cara mais
poderoso do que estamos imaginando que seja, e conquistou o direito de
estar ao lado dos patrocinadores e ainda não percebeu — ele fala enquanto
bebe o seu uísque, balançando o copo no ar como se estivesse concentrado
demais. — Ou... eles estão usando essa garota para te distrair.
— Me distrair?
— Claro, seu idiota, provavelmente Arkady está por trás do aumento
das apostas contra você e ele tá usando a menina para te enfraquecer.
— Não sou um idiota — defendo-me ofendido.
Grigory olha para mim por tempo suficiente para me fazer duvidar do
que estou falando.
— Não sou, e não tenho interesse na garota, ela é linda, claro, mas eu
amo a Anna.
— Tá, tá, e vai morrer para se encontrar com a defunta, tô sabendo. —
Ele termina de tomar o restante do uísque e enche o copo mais uma vez.
— Não gosto que fale assim dela.
— E eu não gosto de ver a tua cara desse jeito. — Ele enche meu copo
mais uma vez.
— Isso vai passar.
— Até o dia que não passar.
— Eu não sou idiota — repito, já me sentindo exatamente como um.
— Então acorda, moleque, para de deixar essa porra aqui te guiar. —
Ele mete o dedo no meu peito, bem onde está o coração.
— Não é nada disso, você não sabe o que está falando.
— Não deixa eles conhecerem a sua fraqueza, ou ela vai te levar para a
lona e de lá, você sabe para onde — ele continua, provando que não dá a
mínima para o que estou dizendo. — E nem começa com esse papinho de
mortos que falam porque eu sei que isso não existe.
— Como você pode saber?
— Porque eu já estive no seu lugar e nunca vieram me buscar.
Abro a boca para dizer algo grosseiro, mas então vejo seus olhos
mudarem, uma mudança sutil, a fúria dando lugar à dor, e, antes que eu
possa sequer abrir a boca, ele vira o copo de uísque, tomando tudo antes de
colocar o copo na mesa.
— Se for embora, tranque a porta e leve a chave, eu tenho uma comigo
— ele diz, já a caminho da porta, puxando seu casaco e as chaves da sua
caminhonete.
A porta se fecha e fico sem saber o que pensar, e se ele estiver certo? E
se Arkady estiver usando aquelas garotas para me atingir? Mas então me
lembro da garota morta em meus braços e por mais que faça sentido o que
Grigory tenha dito, não consigo imaginar como ela pode ter cometido
suicídio para beneficiar alguém como Arkady.
Não, isso não faz sentido.
Inclino-me para a frente, minha cabeça pulsa de tanto pensar, de
ressaca, de dor. Tento organizar meus pensamentos, mas desisto, nunca fui
inteligente, agora com a cabeça cheia de porrada e álcool, não consigo
pensar em nada muito útil.
Levanto-me e vou até a garrafa, leio o rótulo, mas não conheço a marca,
encho o copo novamente e bebo, desejando ter algo para me distrair da
saudade de Anna e da falta que sinto de Demyan, ele saberia o que fazer, ele
sempre foi o mais inteligente de nós dois.

A noite chega rapidamente, assim como a garrafa se esvazia, levando


com ela a dor e a confusão, além do meu equilíbrio.
É estranho estar aqui sem Grigory e não faço ideia de onde ele está, não
sei muito sobre ele, falamos pouco, e criamos uma relação silenciosa de
confiança. Então decido ir embora, tranco o estúdio e levo a chave comigo.
Saio sem rumo, sentindo o ar gelado em minha pele aquecida pelo álcool,
passo por um grupo de meninos que me olham com surpresa, meu rosto
deve estar pior do que eu imaginava e coloco o capuz enquanto caminho
pelas ruas que dividem os edifícios do Gigante Laranja, olho para alguns
deles desejando tropeçar na mulher que esteve comigo outro dia, seria uma
boa trepar um pouco hoje, sorrio enquanto acendo um cigarro e tento não
cair, ouço um miado e sei que é Berstuk, ele estava rondando o estúdio
desde a noite passada, mas nunca se aproxima. Acho que está enciumado ou
talvez tenha pressentido que fui passado no moedor de carnes na noite
passada.
— Ei, gato, vá pra casa, está frio demais para um idiota sem pelos andar
por aí — sussurro para o escuro, mas ele não se afasta. Em vez disso, ele
mia mais uma vez.
Uma bronca talvez?
Sorrio.
Fumo três cigarros enquanto caminho à deriva, sem querer voltar para
casa, mas no fim, é exatamente onde acabo parando: no parque de árvores
sem galhos e bancos vazios, que fica na grande praça pública rodeada de
edifícios. Olho para o balanço onde costumava brincar quando menino, sei
que é imprudente me sentar nele nessa temperatura, está começando a nevar
e frio e ferro não são bons juntos, mas essa é uma noite de correr perigo e
estou disposto a ele.
Retiro as luvas do meu bolso e visto enquanto me aproximo, sento-me
no banco de madeira e seguro as correntes grossas de ferro que o prendem,
fecho meus olhos e balanço para a frente e para trás. O som das correntes
rangendo, o movimento junto com o álcool me faz sentir como se estivesse
voando. Berstuk mia ao meu lado e solto uma gargalhada, impulsiono mais
alto, e depois um pouco mais, até que estou tão alto que a descida faz minha
barriga se agitar, estou gargalhando e me segurando para não cair, é
engraçado e confuso.
Estou bêbado, assustado e sozinho, mas estranhamente me sinto feliz
essa noite. Uma felicidade mórbida, sombria, escura, como se estivesse
pressentindo o que está por vir e estivesse tudo bem com isso.
Não sei ao certo quanto tempo fico aqui nesse parque vazio e frio, que
mais parece saído de um filme de terror ruim, mas quando me canso de
balançar como uma criança e paro, ela está lá, do outro lado do parque,
coberta por uma fina camada de neve que cai, deixando-a com uma
aparência ainda mais fantasmagórica. De onde estou não consigo ver seu
rosto, mas eu sinto sua presença, assim como senti aquela noite no
cemitério, mas eu sei que é ela.
Moy dorogoy.
Berstuk está olhando para onde ela está, seu corpo magricelo está todo
eriçado, como se ele sentisse sua presença e o sorriso que se forma em meu
rosto faz o corte em minha boca voltar a sangrar.
Acho que Grigory não sabe de nada, ou talvez, a pessoa que ele perdeu
não soube como encontrá-lo, mas eu sei que a minha Anna me acharia,
mesmo que eu estivesse no inferno.
Faz quase duas semanas que estou nesse quarto, a única mudança que
aconteceu foi a troca dos grilhões do tornozelo esquerdo para o direito, por
causa de uma ferida que o metal causou toda vez que me movo para ir ao
banheiro ou para comer. Já desisti de deitar-me na cama, meu pé fica para
fora, pendurado, um lembrete constante de que não tenho direito a nada,
então continuo aqui, no mesmo lugar, tentando não enlouquecer com os
gritos e choros que ouço de vez em quando, contando os passos do lado de
fora, tentando reconhecer as vozes daqueles que passam pelo corredor,
como se essa porta não existisse.
E esperando por ele.
À noite tudo se transforma, o Poço está a todo vapor, as lutas se
tornando mais sangrentas à medida que o Padat’ se aproxima do fim, os
gritos de excitação pela dor e violência me assombram, mas também me
mantém em alerta.
Roman lutou na semana passada, foi caótico e assustador. Durou mais
do que o comum para os seus padrões, como se ele estivesse tendo
dificuldades em acabar com seu adversário. Tive medo por ele, basta um
golpe certeiro e ele estará fora. O que vai acontecer se ele deixar de ser o
Rei do Poço? Com certeza será o fim, nunca mais o verei. Ser quem ele é, é
o único motivo para que me permitam chegar perto dele, se Roman perder
as próximas lutas, acabou. Nunca mais o verei e não terei mais motivos para
continuar respirando.
Essa constatação me assusta, saber que o fio que me liga à vida é
alguém que mal conheço, mas que tem me mantido sã é apavorante.
Hoje ele está lá novamente, sinto o chão vibrando com os gritos de rei, a
cada passo que ele dá. Espalmo minha mão no chão e fecho meus olhos, me
transporto para onde ele está, observando-o se mover, com suas pernas
longas e ombros fortes, sorrindo para seus súditos enquanto se prepara para
massacrar seu oponente. Então ele ergue os olhos e me vê, seu sorriso se
espalha daquele jeito leve que ele fazia quando caminhava pelo Gigante
Laranja, desde sempre se comportando como se fosse o dono do lugar, eu
sorrio de volta, erguendo a mão e acenando, desejando boa sorte e ansiando
para encontrá-lo no fim.
Não aqui, presa nesse lugar imundo, mas lá fora, talvez uma caminhada
pelas ruas frias e vazias da nossa cidade, um café naquela cafeteria que
insiste em resistir à miséria desse lugar. A gente se sentaria um de frente
para o outro e conversaria sobre coisas bobas, nos conheceríamos, eu
contaria a ele meus segredos mais tolos e ele ficaria feliz em descobrir
coisas sobre mim. Seríamos pessoas comuns, em um mundo comum,
fazendo coisas comuns.
Um grito explode lá fora e me levanto, nervosa por ter me perdido em
pensamentos bobos que nunca se realizarão. Caminho até ficar o mais perto
possível da porta, a algema em meu tornozelo castigando-me, ainda ouço os
sons das vozes chamando Roman de rei, os gritos a cada golpe. É mais uma
luta caótica, as pessoas parecem contaminadas com o que ele carrega dentro
de si, como se ele conseguisse disseminar a sua fúria através dos seus
punhos, espalhando a euforia de suas lutas para todos aqueles que as
assistem.
E, mais uma vez, demora mais do que eu gostaria, a angústia aperta meu
estômago me fazendo ajoelhar e, sem perceber, estou quase rezando para
que acabe logo, para que eu possa ouvir o seu nome ser gritado como o
vencedor, para que eu possa respirar tranquilamente por mais uma semana.
Meu alívio chega algum tempo depois, o som forte dos gritos me diz
que ele venceu mais uma vez antes mesmo que eu ouça seu nome ser
falado, me jogo no chão e respiro aliviada, uma lágrima escapa do meu olho
e a seco porque não posso acreditar que Roman fez isso comigo, que eu
deixei que ele entrasse em minha mente e me contaminasse com o seu
poder, que fizesse de mim uma das suas súditas.
Ouço passos no corredor e me levanto, voltando para o meu lugar no
instante em que a porta se abre, é Zakhar que entra acompanhado de um dos
caras de Arkady, ele está sorrindo quando se aproxima, retirando as chaves
dos grilhões do seu bolso e entregando para o homem ao seu lado.
— Estão te chamando — ele diz enquanto o capanga se abaixa e livra
meu tornozelo ferido. — Hoje vai ter festinha para o rei.
O homem se levanta me olhando de um jeito sujo, o sorriso nos lábios
me diz o quanto ele queria fazer parte dessa festa, mas mantenho meus
olhos baixos para o chão. Estou exausta demais para provocá-los e tudo o
que penso é que vou ver o Roman mais uma vez.
— Arkady quer que você dê um trato no garoto. — Ele me olha como
se estivesse nua. — Bom, pelo que dizem, você é o brinquedinho mais
precioso desse lugar, então não deve ser tão difícil deixar o rei de pau duro.
— Talvez ele não goste de mim.
— Ele gosta. — Zakhar olha para o homem, que sorri concordando.
— Quem não gostaria de uma boceta dessa? — O capanga passa a ponta
do dedo por meu ombro e ignoro suas palavras.
— O negócio é o seguinte, você vai se arrumar e ficar bem gostosa,
depois vai lá e vai fazer o que estão mandando, não é um pedido, é uma
ordem e, dessa vez, faça acontecer, ou teremos uma conversinha um pouco
mais dura dessa vez. — Ele estrala seus dedos e mantenho meus olhos em
seus punhos.
— Por que é tão importante para Arkady que eu consiga seduzi-lo?
— Não sei, não interessa, apenas faça o que tem que ser feito. Vamos,
se arrume logo, o garoto está te esperando.
Desisto de falar, Zakhar nunca respondeu nenhuma das perguntas que já
fiz desde que cheguei, então faço o que ele manda o mais rápido possível
sem deixar que ele note o quanto estou ansiosa, visto o vestido que ele
deixou sobre a cama e escovo meus cabelos, o tecido é ainda mais
transparente e suave, como um pedaço de nuvem que finge cobrir algo
quando, na verdade, apenas atiça a vontade de tocá-lo, é revelador e me
deixa com um aspecto saudável, quase normal. Espero que Roman também
se sinta tentado a me tocar essa noite, preciso que ele faça ou serei punida e
Zakhar nunca faz promessas vazias.
Quando estou pronta, deixo que ele me leve pelos corredores até o
quarto reservado para Roman, é o mesmo que estive na primeira vez que o
vi, o maior de todos, o mais caro e mais perigoso de todos os quartos.
Quando a porta se abre, ele está lá, sinto o cheiro de sangue e suor, e a
adrenalina que parece escorrer do seu corpo como descargas elétricas se
espalhando por todos os lados. Ele está conversando com Arkady quando
entro e ambos param de falar e se viram para mim, meus olhos querem
olhar para Roman, mas forço-os a encarar o chão enquanto me ajoelho à sua
frente.
— Senhor — sussurro sentindo meu corpo inteiro tremer de medo e
ansiedade.
— Levante-se — Roman exige e faço o que ele diz, erguendo-me
devagar.
Duas semanas desde que o vi pela última vez e ele parece diferente,
mais duro, envelhecido, a adrenalina da luta ainda emana por seu corpo
quente, pulsante, sexy. Há hematomas antigos em seu rosto misturados com
novos machucados e seus cabelos grudados no rosto pelo suor e sangue
estão maiores, quase parecidos com o que eram antes dele entrar no Poço,
embora ele não se pareça em nada com o menino que conheci um dia.
— Vou deixar você descansar, parabéns pela luta — Arkady diz ao
passar por Roman dando um tapinha em seu ombro. — Foi uma das mais
intensas desse ciclo.
Roman olha para ele e sorri, orgulhoso e satisfeito.
— Divirta-se — Arkady diz e olha para mim, é rápido e se eu não o
conhecesse o suficiente, não notaria todos os recados dados em seu breve
olhar. Todas as ameaças embutidas nele, toda a dor e sofrimento que ele tem
reservado para mim caso não faça o que ele quer.
Ele se vai e a porta se fecha, então somos novamente eu e Roman, um
mundo de coisas e o peso de estarmos sendo forçados a ficar aqui juntos, sei
que, no fundo, nenhum de nós quer isso, mas espero que ele tenha
compreendido que, quando se entra no Poço, deixa-se de se ter escolha
sobre seu futuro, somos o que os patrocinadores querem. E eles nos querem
juntos.
— Posso cuidar de você? — pergunto de olhos baixos.
Ele não responde, então ergo o rosto e me assusto com a intensidade do
seu olhar, ele parece capaz de enxergar dentro de mim, de ver tudo o que
escondo por baixo dessa roupa.
— Eu achei que nunca mais te veria — ele sussurra, parecendo aliviado
e respiro fundo, tentando não me deixar levar por suas palavras.
— Obrigada, senhor, por se importar — digo, emocionada demais para
o meu próprio bem.
— Pare com isso. Não sou seu senhor.
— Desculpa — sussurro com a cabeça baixa, os lábios trêmulos, as
mãos frias.
Roman se aproxima, seu corpo causa uma euforia assustadora no meu,
e, quando ele toca meu queixo erguendo minha cabeça para olhar em meus
olhos, estremeço com a intensidade com que ele me prende. É só um toque,
apenas as pontas dos seus dedos sobre mim, mesmo assim, sinto como se
ele me possuísse por completo.
— Sem desculpas, aqui não, aqui eu sou o Roman e você é?
— Yelena — sussurro meu nome enquanto admiro seus intensos e
ferozes olhos escuros.
— Yelena — ele repete, e nesse momento ele não é o Rei do Poço, nem
o meu senhor, ele é apenas Roman, o garoto popular e arrogante do Setor
Oeste, o dono dos pensamentos da garotinha que o admirou a vida inteira de
longe, ele é o meu sonho de menina prestes a se realizar. — Prazer, Yelena.
Sorrio, sentindo meu coração acelerar com tanta força, que não consigo
respirar.
Ele se afasta, deixando sua mão cair e me forço a manter os olhos
erguidos, ele não quer minha submissão, talvez seja isso, se eu o olhar de
frente ao invés de abaixar a cabeça, eu possa alcançá-lo, fazer o que Arkady
quer de mim.
Me afasto, caminhando até o outro lado do quarto, meu coração está
acelerado, com medo de estar errada e ser punida. Medo de ser rejeitada,
medo de não suportar outro castigo.
— Eu te ouvi hoje — digo, me sentindo confiante quando olho sobre o
ombro e vejo Roman observando meu corpo, nunca fui uma garota de
muitas curvas e desde que cheguei aqui emagreci ainda mais, mesmo assim,
algo em mim chama a sua atenção. — Foi uma noite difícil.
— Todas, a partir de hoje, serão.
— Você tem medo? — Pego um pedaço de pão e o parto ao meio, estou
faminta, mas sei que não posso comer, não sem a autorização de Roman,
então apenas corto e me alimento com o aroma delicioso que exala dele.
— Medo? Não existe medo no Poço. — Sinto ele se aproximar e respiro
fundo porque isso é a maior mentira que já ouvi, o medo é a matéria-prima
desse lugar, é tudo o que o mantém de pé, funcionando dia após dia.
— Acho que você tem razão. — Ofereço o pão e ele se inclina para
recebê-lo, seus lábios resvalam em meus dedos e respiro fundo.
— Onde você estava? Eu não te vi — ele pergunta, ao pegar mais um
pedaço de pão e partir, comendo um e me entregando o outro. Quero chorar
de emoção quando o pão toca minha língua, está delicioso e tão macio,
provavelmente é o mais saboroso que já comi na vida.
— Eu não estava lá.
— Ah... — Ele parece frustrado ao se dar conta que não o vi lutando.
— Mas eu sempre te ouço, os gritos ecoam pelas paredes e chegam até
mim.
— Sério? — O orgulho cruza seu olhar, iluminando seu rosto
machucado e dolorido.
— Posso cuidar de você? — Olho para os seus machucados e em
seguida para os seus olhos, ele parece cansado, talvez de resistir, de lutar, de
tentar entender quem sou, então suspira e move a cabeça em um sim
silencioso que me faz acreditar que estou indo pelo caminho certo.
Respiro fundo, pedindo aos céus para me ajudarem a fazer tudo certo.
Não posso deixar que ele se afaste, essa talvez possa ser a nossa última vez
juntos, na semana seguinte ele pode perder, ou talvez, se Arkady me tocar,
dessa vez, pode não parar.
Ergo a mão e pego o pão que ele ainda segura, coloco-o na mesa sem
desviar o olhar dele, toco a barra da sua camiseta e ele afasta os braços para
que eu possa despi-lo, é tudo silencioso e intenso, o ar parece pesado
demais e não consigo respirar direito com ele me olhando dessa forma.
Ergo a camiseta e Roman se inclina para que eu possa me livrar dela.
— Fiquei preocupado — ele sussurra quando se aproxima de mim e
meu coração para de bater por um instante.
Quando ele se afasta, baixo o olhar porque sinto que ele pode ler meu
rosto. Toco sua pele, tão pálida que as manchas se destacam sobre ela, o
roxo se torna quase fluorescente, o rosado está ficando avermelhado. E no
canto esquerdo do seu torso há um desenho, uma tatuagem. Quero tocá-la,
contornar suas linhas, mas não posso.
— Morana — sussurro o nome da divindade eslava esculpida em sua
pele pálida, com seus seis longos braços e o vestido longo, o negro
profundo de traços fortes e firmes parecem rasgar a sua pele.
Roman baixa o rosto encarando o desenho da mulher segurando os
elementos que a representam: a serpente, o crânio rachado, a foice, a morte.
— Sim, a deusa da escuridão e da morte — ele diz tocando uma parte
irregular.
— Um pouco sinistro para um lutador.
— Meus adversários que o digam. — Ele volta a sorrir, como se não
tivesse medo, como se a deusa da mitologia eslava realmente pudesse o
proteger de algo.
— Te machucaram muito hoje. — Passo a ponta dos meus dedos por
seu torso, vencendo a batalha e tocando a barra do vestido da deusa,
sentindo os músculos fortes dele se enrijecendo ao meu toque.
— Eu estou bem — ele diz, ainda parado, me observando.
— Por favor, tenha cuidado — peço com sinceridade.
— Não se preocupe comigo, eu sei me cuidar. — Ele segura minha mão
afastando-a do desenho e colocando-a sobre seu coração. — Sou forte —
completa como se o pulsar do seu coração fosse eterno.
— Vou encher a banheira para você. — Tento me afastar, mas ele segura
meu pulso.
— Sem banheira.
— Mas...
— Não, sem banheira — ele repete e assinto.
— Posso te limpar então?
— Como da outra vez — ele diz e movo a cabeça em um sim
silencioso.
Ele me solta e vou até o banheiro, preparo tudo e quando volto. Roman
está olhando para o quarto, não para os móveis, mas para as paredes, como
se estivesse em busca de algo, uma câmera, uma escuta. Será que ele sabe
que estamos sendo vigiados?
— Quer se sentar para que eu possa te limpar? — sussurro ao parar na
sua frente, segurando o pote de água.
Ele me olha por um instante antes de ir até a poltrona em que esteve no
outro dia, mas, antes de se sentar, ele a analisa, como se houvesse algo
escondido ali.
— Sente-se, por favor — peço, rezando para que ele entenda que não
pode fazer isso.
Roman faz o que peço e me movo até ficar entre suas pernas, coloco o
pote na mesa ao lado e começo a limpá-lo delicadamente, me concentrando
nos cortes onde o sangue já secou.
— Quantos anos você tem? — ele pergunta enquanto passo o pano com
cuidado por seu corpo dolorido.
— Dezoito.
— Tão jovem, por que...
— Posso? — Me aproximo um pouco mais, cortando a sua pergunta,
não posso respondê-las e não quero que ele as faça.
— Claro. — Ele se ajeita, dando mais espaço para que eu me aproxime,
estamos tão perto que posso sentir suas pernas quase me prendendo entre
elas.
— Vou limpar seu rosto — digo ao espremer o pano e me inclinar. O
vestido desliza por meu ombro e deixo que ele caia, sei que ele pode ver
meus seios, mas seus olhos não desgrudam dos meus.
— Gosto dos seus olhos — ele diz com a voz rouca, baixa.
— Obrigada. — Sorrio, meio tímida, sentindo que estou finalmente
alcançando-o. Arkady me chama de A Bela do Poço, diz que sou a mais
bonita de todas, mas suas palavras nunca são como elogios, elas me enojam,
me relembram a cada instante que estou aqui para servir, mas Roman não,
suas palavras me fazem sentir especial, real, me fazem gostar de ser bonita.
— Vai doer um pouco — sussurro ao me aproximar mais, debruçando-me
sobre ele.
— Não me importo com a dor — ele diz, mais baixo, mais rouco, mais
intenso.
Pressiono o tecido no corte, tentando limpar as extremidades sem
machucá-lo. Sinto Roman se encolher, mas ele não emite nenhum som.
— Só mais um pouquinho — digo me aproximando mais, sentindo
como se meu coração fosse sair a qualquer momento. Seus dedos roçam
meu braço, sua respiração pesada aquece minha nuca e fecho meus olhos
por um instante porque é demais estar assim tão perto dele. — Se doer me
fale.
— Yelena... — ele me chama, inclinando-se sobre meu ombro, seus
lábios tocam minha pele e é a minha vez de estremecer, meu corpo inteiro
reage a seu toque e me concentro em continuar fazendo meu trabalho,
passando o pano úmido em seu ombro forte e masculino enquanto sinto
seus lábios subindo por meu pescoço, devagar, deixando um rastro de fogo
e agitação por onde passa, até chegar a meu ouvido. — Eu recebi o recado
da sua amiga — ele sussurra tão baixo que quase não ouço.
Na verdade, eu não tenho certeza se ouvi corretamente, que recado? Do
que ele está falando?
Desvio o olhar rapidamente para o canto do quarto, sei que há uma
câmera ali, provavelmente Arkady está nos vendo nesse momento, mas
desvio logo em seguida, e estico minha outra mão, tocando sua nuca,
acariciando-o na tentativa de o fazer relaxar.
— Me deixa cuidar de você — peço, me afastando para olhar em seus
olhos.
— É o que você quer? Ou estão te obrigando?
Coloco o pano dentro do pote e espalmo minhas mãos em seu peito.
— É tudo o que mais quero nessa vida — digo, apavorada com a
verdade das minhas palavras.
Quero mais do que isso, quero que ele sinta que é a minha última
esperança, que isso é muito mais do que apenas submissão e sexo, é
sobrevivência, pura e simples. Quero me ajoelhar a seus pés e implorar por
socorro, quero pedir que ele lute com todos para me tirar daqui, mas sei que
isso é impossível, porque, no fundo, o Rei do Poço não passa de um garoto,
humano demais para realizar os sonhos de uma amaldiçoada.
Início do Leto (ciclo do verão no Poço)
Meia-noite

Estou nervosa e agitada, minhas pernas tremem e sinto que posso


explodir a qualquer momento. Está acontecendo, é real e mal posso me
conter, tamanha a minha ansiedade. De onde estou, já consigo avistar a van
que está à minha espera, pronta para me levar embora desse lugar.
No silêncio da noite, meus passos pesados pelas botas de frio delatam a
minha proximidade, há quatro homens encostados na van, fumando e
conversando, todos olham na minha direção e um deles se afasta do
automóvel se aproximando de mim. Ele é alto e grande, com uma expressão
serena e que parece estar ansioso.
— Yelena Vasilievna?
— Sim, sou eu — digo tentando não sorrir tanto, estou empolgada,
feliz.
Ou outros homens sussurram algo, um deles ri e olho em volta.
— Onde estão os outros? — pergunto para o homem parado à minha
frente, me analisando de um jeito que me incomoda.
— Somos só nós — um deles responde.
— Achei que teria mais... mulheres — completo me sentindo
estranhamente acuada por esses pares de olhos rudes.
— Acho que o Arkady vai gostar dessa — ele diz para os amigos,
ignorando minha observação.
— Eu disse que era das boas — diz um dos caras responde, jogando o
cigarro no chão e amassando com a ponta da sua bota.
— Arkady? Quem é Arkady? — pergunto, sem me recordar de ter
ouvido esse nome antes.
— Está pronta para a diversão, slátkiy? — Ele continua ignorando
minhas perguntas e sinto um frio estranho em minha espinha, que nada tem
a ver com o frio da noite.
— Desculpa, acho que eu me confundi, eu achei que vocês fossem
outras pessoas. — Dou alguns passos para trás, sem tirar os olhos do
homem parado à minha frente.
— Não se confundiu não, somos nós mesmo. — Ele começa a caminhar
a meu encontro.
— Essa sempre é a minha parte favorita — diz um dos homens
enquanto o outro se aproxima de nós.
Eles gargalham.
— Eu preciso ir. — Viro-me para fugir, mas dou de cara com uma
parede de músculos.
— Aí que você se engana, devochka. — O primeiro homem se
aproxima, passando o braço por minha cintura e me puxando para junto de
si. — Você acaba de chegar.
Minha garganta queima com os gritos que dei, mas parece que o som
que sai da minha boca não chega a lugar nenhum, fazem alguns dias desde
que cometi um erro que custou tudo de mim, que fui trazida para um lugar
estranho, escuro e frio, onde nada vejo e tudo ouço, onde o choro e o medo
se tornaram tudo o que tenho, dias desde que deixei de ser Yelena para me
tornar a devochka novata e desde então ninguém parou para me contar o
que fiz para ser trazida para cá, por que eu? O que querem de mim? Mas
agora, eu daria tudo para voltar para aquela cela suja e solitária, porque
sinto que minhas perguntas estão prestes a serem respondidas.
E eu já não quero mais as respostas.
— Temos aqui uma devochka que acabou de chegar — diz o homem
que descobri depois ser o tal Arkady, no meio de uma sala enorme, branca e
fria, cercados por dezenas de pares de olhos de outros homens que me
observam como se eu fosse um objeto em leilão. Estou nua, lavada,
depilada e exposta, humilhada, sinto frio, nojo, repulsa, medo. Um medo
que impede meus ossos de pararem de bater e meus olhos de se erguerem,
um frio assustador que nunca senti antes e que tenho certeza de que nunca
esquecerei enquanto viver. É o frio da morte.
— Dezoito anos, olhos azuis, cabelos castanhos longos, 50 quilos, 1,57
m... virgem — ele completa e posso sentir as respirações pesadas a minha
volta como se fosse um detalhe muito especial saber que nunca estive com
nenhum homem antes.
— Nossa krónchka. — Ele passa a ponta dos dedos por meu seio
esquerdo e ele se arrepia involuntariamente fazendo com que Arkady dê um
sorriso sujo e agitado. — É uma das mais belas que já tivemos aqui e está à
disposição para quem der o maior lance hoje — ele diz, provando que eu
estava certa, estou sendo leiloada.
Os homens se aproximam, todos estão protegidos por máscaras que me
impede de reconhecer seus rostos, como se isso fizesse alguma diferença,
talvez não seja de mim que eles se protegem, talvez seja deles mesmos.
Um a um me olham, sem me tocar, mantenho os olhos no chão como fui
orientada, mas não consigo parar de chorar, durante a hora seguinte,
enquanto valores que poderiam mudar a vida de muitas pessoas em Temnyy
Gorod são mencionados, vejo a vida de uma única garota ser modificada
para sempre.
Quando tudo acaba, sou levada para um quarto, o mais bonito que já vi
na minha vida. Há uma cama imensa, comida e bebida de todos os tipos,
Arkady me acompanha, segurando meu braço com força, me obrigando a
caminhar ao seu lado, ele me leva até o centro do quarto e para na minha
frente.
— Você foi incrível. — Ele segura meu rosto erguendo-o para olhar em
meus olhos. — Mas eu já sabia, não tinha como não ser, olhe para você, a
mais bela de todas, só poderia ser a mais cara. — Ele sorri, um sorriso
perverso. — Eu quero que lute, lute muito, mostre para ele que você não vai
se entregar fácil.
— O quê? — pergunto sem entender o que ele está falando, assustada
demais para compreender o jogo doentio que começava naquela noite.
Arkady passa o polegar embaixo do meu olho esquerdo capturando uma
lágrima, então ele a coloca na boca, gemendo com o sabor do meu medo.
— Eu adoraria que fosse eu essa noite, mas infelizmente vamos ter que
deixar para outro dia.
Ele se afasta, observando meu corpo, meu rosto, meu desespero.
— Eu não estou entendendo, por que eu?
— Acredite em mim, quanto menos você souber, mais real fica. — Ele
sorri, um sorri perverso e assustador e então caminha até a porta. Antes de
sair, ele olha por cima do ombro. — Ah, se puder, chore, eles adoram
quando vocês choram.
A porta se fecha.
Antes daquela noite, a única mulher com quem estive foi a Anna, eu
gostava de como a gente se dava bem, como ela sabia o que eu queria e
como eu sabia o que fazer. Na minha cabeça de menino, eu achava que era
porque nos amávamos, isso fazia tudo ser diferente, certo.
Mas então aquela mulher se debruçou sobre a minha mesa e eu a possuí,
e algo dentro de mim se decepcionou, porque eu sabia exatamente o que
fazer, como me mover, onde entrar, não havia magia, sentimentos ou
conexão, era apenas sexo, necessidade fisiológica, duas pessoas encaixadas
se movendo.
É o que espero que aconteça essa noite. No instante em que Arkady me
disse que Yelena estaria a minha disposição, eu me preparei para isso, para
não sentir, para apenas fazer o que acredito que tenha que ser feito, possui-
la, tomá-la para mim, dar a ele o que ele quer, ver onde esse jogo vai parar.
Mas então ela chegou, e Deus do céu, eu achei que havia me
acostumado com o seu olhar, depois de todos os sonhos e pensamentos, mas
não, talvez eu nunca vá me acostumar, afinal de contas, ela é uma fada, e eu
estou completamente enfeitiçado.
— É tudo o que mais quero nessa vida — ela diz, debruçada sobre mim.
Uma cascata negra cai em meu peito, enquanto uma parte do seu vestido
cai, revelando um seio pequeno e delicado.
Luto para afastar qualquer pensamento que possa me impedir de fazer o
que vim fazer essa noite, mas ao contrário daquele dia, com aquela
desconhecida, não é assim tão fácil com ela, sinto que estou entrando em
uma emboscada, mas não sei mais como evitar.
Estendo a mão e afasto seu cabelo, seus olhos se fecham lentamente
enquanto meus dedos tocam sua nuca, puxando-a para perto de mim.
Delicadamente trago-a para meu colo e ela vem. Senta sobre mim enquanto
seu corpo leve e quente se encaixa sobre o meu.
Aproximo minha boca da sua, os lábios tocam os seus devagar, sem
beijar.
— Não vou te machucar — sussurro, o mais baixo possível, Yelena
estremece com minhas palavras e me pergunto se ela está acostumada com
isso, ser usada, machucada, descartada. Ela envolve minha nuca em sua
mão, descendo seus lábios por meu pescoço com uma suavidade que faz os
pelos da minha nuca se arrepiarem.
— Faça o que eles querem — ela diz e meu coração bate pesado sem
entender o que está acontecendo, tento me afastar para confrontá-la, mas ela
aumenta o aperto em minha pele. — Sem perguntas, apenas faça — ela
exige, a voz repleta de determinação e coragem e penso naquela outra
garota morta.
O que eles querem...
Passo meus braços em volta das suas coxas e a trago para mais perto de
mim, meu nariz percorre seu pescoço enquanto desço a alça do seu vestido,
despindo-a da cintura para cima. Ela é tão linda e estou completamente
consciente dela, do seu cheiro de fada, da sua pele quente, da forma como
ela é tão pequena e se encaixa tão bem em meu colo.
— Estamos sendo vigiados? — sussurro com os lábios em sua pele e ela
move a cabeça delicadamente em um sim quase imperceptível.
Então tudo fica claro.
A forma como ela sempre tem medo, não de mim, ou do que farei com
ela, mas de quem está nos vendo nesse momento, como ela sempre se
mantém de cabeça baixa, mesmo quando digo que pare, como se soubesse
que, se não fizer, algo ruim acontecerá com ela quando sair daqui, por isso
Yelena sempre implora para que eu deixe que ela me sirva, é isso o que
querem dela, e estão nos vigiando.
Porra.
Quero afastá-la, sair dessa porra de quarto e confrontar Arkady, mas não
sou idiota, se fizer isso, será o fim, nunca mais a verei e só Deus sabe o que
acontecerá com ela. Então me concentro no agora, no que estamos fazendo,
está dando certo, ela está falando comigo, talvez desse jeito eles não nos
ouçam.
Desço minha mão por seu corpo, sentindo a maciez delicada dos seus
seios, acaricio-os e ela estremece com meu toque, como se fosse algo novo,
que ela nunca recebeu.
— Senhor... — ela geme baixinho, mas alto o suficiente para que possa
ser ouvida e me mexo na cadeira, incomodado com a ideia de alguém nos
observando.
— Gosta disso? — pergunto, enquanto massageio seus bicos sentindo-
os endurecer entre meus dedos. Ela fecha os olhos, balançando a cabeça em
um sim confuso que me deixa louco. Como ela pode ficar mais bonita a
cada segundo?
— Senhor, o que posso fazer por você? — ela pergunta com a voz fraca
de tesão, mas não consigo pensar direito. Preciso de mais tempo, preciso de
respostas. Quem era a garota morta? Por que eu preciso salvá-la? Por que
ela está aqui? Quantas são? Quem está nos observando?
Minha cabeça está um verdadeiro caos, o tesão me deixa confuso, mas
preciso manter o foco no que realmente estou fazendo, então tenho uma
ideia, algo que explode em meu cérebro rapidamente.
— Quero um banho. — Afasto-a e olho em seus olhos. — Ligue o
chuveiro, estou cansado e sujo, quero me limpar de verdade.
Yelena demora um instante antes de entender o que estou pedindo.
— Fiz algo errado, senhor?
— Não, e meu nome é Roman, agora vá ligar o chuveiro, quero um
banho — peço e ela se afasta, seus olhos de gelo me dizem um sim
silencioso enquanto ela levanta e caminha de cabeça baixa até o outro lado
do quarto, tento não procurar por câmeras, mas sinto como se estivesse
sendo visto por milhares e ouço o som do chuveiro sendo ligado. Me
levanto e caminho até onde ela está, parada ao lado da cabine grande o
suficiente para que nós dois possamos entrar.
— Tire minha roupa — ordeno, porque acredito que seja isso que ela
espera que eu faça, ela não hesita, ao se ajoelhar na minha frente e retirar
minha calça, cueca, sapatos e meias, então se levanta. Seus olhos estão
respeitando minha nudez, fixos nos meus à espera de mais uma ordem que
não quero dar, mas que sei que é preciso. — Tire — digo ao puxar uma
parte do vestido que cede ao meu toque, ela se desfaz dele, ficando
completamente nua, e me surpreendo com o quanto me sinto agitado por
sua beleza, ela é pequena, delicada, feminina. Uma verdadeira fada.
Entro no banho, estendendo a mão para que ela venha junto, Yelena não
hesita novamente e me pergunto por que ela está aqui, quando poderia estar
em qualquer lugar do mundo, sorrindo, com sua cabeça erguida e seus olhos
brilhando. É isso que acontece com as meninas que somem em Temnyy
Gorod? Elas estão aqui, sendo usadas pelos homens que deveriam protegê-
las? Essa possibilidade me enoja e sinto uma dificuldade imensa em me
concentrar no que estamos fazendo, não quero ser um desses homens, mas
preciso tomá-la caso queira ver até onde Arkady vai nos levar.
A água começa a nos molhar, o som do chuveiro, derrubando as pesadas
gotas no piso e ecoando nas paredes atrás de nós serve como uma barreira
acústica e me aproximo, passando minhas mãos por sua cintura e puxando-a
para mim.
— Não tenha medo — digo olhando em seus olhos.
— Não estou — ela diz com uma convicção que me deixa excitado,
como se realmente quisesse isso, quisesse ser minha, me inclino para mais
uma vez quase beijá-la.
— Por que aquela garota se matou? — pergunto em seu ouvido
enquanto minha mão passeia por seu corpo se fixando em sua cintura tão
fina que meus dedos se tocam.
— Não sei do que está falando — ela sussurra de volta, com os lábios
em meu ombro, erguendo-se na pontinha dos pés para alcançar meus
ouvidos. Ela está mentindo? Como pode não saber quando uma vida se foi
em seu nome?
— Ela disse que eu precisava te salvar — continuo, ainda fingindo estar
beijando-a, meus lábios tocando sua pele.
Yelena se afasta para olhar em meus olhos. Assim, molhada, assustada,
confusa, ela é ainda mais bonita e, quando seus lábios se abrem, espero
ouvir uma resposta que me explique o que estamos fazendo, mas não é o
que ouço.
— Me possua, por favor, faça de mim sua, agora — ela implora,
abaixando a cabeça e segurando minha mão, levando-a ao seu seio. —
Tome meu corpo — ela pede, apertando minha mão sobre a carne macia.
— Então me responda, quem era a garota?
Ela sorri, parecendo desesperada ao olhar para o lugar onde minha mão
está, imóvel, cobrindo todo seu seio pequeno.
— Eu não sei, não conheço as outras. — Sua voz está trêmula de medo.
– Mas, por favor, faça agora, se eles perceberem que estamos conversando...
— Ela se aproxima um pouco mais, os lábios trêmulos tocam meu peito,
bem em cima do lugar onde meu coração está acelerado nesse momento.
— O que eles farão?
— Se você se importa comigo, me tome agora, sem perguntas. — Ela
continua salpicando beijos por meu peito. — Só faça logo e acabe com meu
tormento. — Ela ergue os olhos para mim, e posso jurar que vejo lágrimas
brilhando neles.
Estou confuso com o que está acontecendo aqui, com essa garota que
mexe comigo de uma forma insana, mas principalmente com a forma como
suas palavras me tocam. Sei que não terei as respostas que preciso, então
faço o que ela pede, me inclinando sobre seu corpo, segurando-a em minhas
mãos, observando seu rosto de fada enquanto caminho levando-a até a
parede do outro lado, ela envolve as mãos em minha nuca quando a ergo em
meu colo, me segurando junto a si e sinto seu corpo pequeno tremendo
como uma garotinha assustada.
— Preciso que você relaxe um pouco — sussurro em seu ouvido
enquanto bombeio meu pau até que ele esteja pronto para ela. Yelena faz
que sim com a cabeça e respira fundo, fazendo exatamente o que estou
pedindo.
— Faça. — Não é um pedido, é um apelo que não quero cumprir, mas
que preciso porque ela está apavorada.
— Tem certeza? — pergunto uma última vez enquanto guio minha
ereção até sua entrada. Observo seus olhos assustados, tão frios e intensos,
que sinto que podem me perfurar. Ela move a cabeça em um sim firme e
carregado de palavras que não podem ser ditas, então eu a preencho,
sentindo o quanto ela é pequena, forçando minha passagem por seu corpo
delicado, ouvindo um gemido baixinho sair da sua garganta por não estar
pronta para mim, sentindo seu corpo se retesar ao me receber por inteiro. —
Descu... — tento falar, mas Yelena me cala com um beijo, suave e cheio de
segredos que eu adoraria que ela pudesse derramar em minha boca como
uma fada, dando-me as respostas que não terei.
Fico um instante assim, parado, sentindo meu pau enchendo-a, tão
apertada que tenho medo de machucá-la, Yelena se move um pouco, se
ajustando ao meu tamanho, ela respira fundo, os lábios entreabertos,
ofegando, como se fosse tudo demais para ela, seus olhos me pedem mais e
começo a me mover, a princípio devagar, sentindo a leveza de seu corpo
delicado em volta do meu, a água quente e relaxante em minhas costas e um
mundo inteiro de coisas erradas à nossa volta.
É diferente do que tive com aquela mulher, mas também não é como o
que tive com Anna, é algo único, novo, assustador, quero ser cuidadoso e
delicado, quero ter o tempo todo para tentar falar com ela, mas seu corpo é
apertado e convidativo e perco a batalha contra o que quero e o que preciso,
então começo a me mover mais rápido, não querendo acabar logo, mas
sabendo que não vou durar muito. Yelena geme baixinho a cada estocada,
com a mão enroscada em meus cabelos, segurando-se em mim e olhando
em meus olhos, me recebendo em um silêncio quase insuportável. Me
sugando para as profundezas do seu universo congelado.
— Me fale algo — sussurro, apoiando a mão livre na parede.
— Não sei muito, só que fui preparada para você.
— Por quê?
— Alguém nos quer juntos. — A voz dela está mais baixa e chorosa.
Envolvo sua cintura em minhas mãos enquanto aumento o ritmo.
— Quem?
— Não sei, Arkady, os patrocinadores.
— Quem são os patrocinadores.
— Homens com dinheiro o suficiente para brincar com a vida das
pessoas — responde, com o rosto enterrado em meu pescoço. — Homens
ruins, diabólicos, perversos que gostam de machucar.
Paro de me mover e tento afastá-la, Yelena me segura firme.
— Continue, por favor — ela pede.
— Quem está te machucando, Yelena?
— Todo mundo — ela confessa. A voz chorosa parte meu coração, me
sinto sujo porque nesse momento sou um deles e quero parar, mas ela
parece sentir meu corpo desistir e volta a me beijar.
— Não pare — ela sussurra em minha pele.
— Me conte tudo o que você sabe — digo, aumentando o controle,
preciso que dure mais.
— Fui sequestrada há alguns meses, e... — Sua voz abaixa um pouco
mais e sinto seu corpo estremecer, como se o medo de ser ouvida fosse
maior que a vontade de ser ajudada. — Estou sendo usada desde então, de
várias formas, de todas as que eles querem. — Sua voz continua em meu
ouvido, baixa e cheia de medo. Confirmando aquilo que temi ser verdade, o
Poço é o responsável pelos sumiços das garotas.
— Sequestrada? Arkady te sequestrou? — Me afasto para olhar para ela
e Yelena move a cabeça lentamente. — Maldito desgraçado, eu vou matá-
lo!
— Se ele souber que estou te contando essas coisas, não sei o que será
de mim.
— Eu não vou deixar nada de ruim te acontecer — prometo, mas sinto
as palavras vagas.
— Você não pode me proteger — ela diz, baixando a cabeça e beijando
meu pescoço.
— Eu posso sim, eu vou.
— Agora eu preciso que você continue — ela pede e só então me dou
conta de que parei de me mover. Fecho os olhos e tento me concentrar,
volto a beijá-la, acariciando seu corpo, tentando me conectar novamente
com ela, demora um pouco, mas logo estou me movendo.
— Por que ele faz isso?
— Eu não sei.
— E a garota? Ela também foi sequestrada?
— Eu não sei quem é ela. Mas provavelmente sim. Acho que todas aqui
foram.
Ela se esgueira, beijando meu pescoço.
— Eles não nos deixam conversar umas com as outras — ela conta com
a voz assustada em meu ouvido.
— Mas o recado? — Minha voz falha à medida que o orgasmo se
aproxima, Yelena se afasta e olhar em seus olhos é quase um tormento
encará-los assim tão de perto tão vulneráveis, tão lindos que me faz perder
o controle e fecho os meus por um instante, não posso gozar, não ainda.
Yelena enrosca seus dedos em meus cabelos com mais força, como se
por um milagre, as coisas ficassem um pouco mais confortáveis para ela, as
pernas firmes em meus quadris enquanto a possuo como se sempre tivesse
feito isso, como se fosse natural.
— Eu nunca mandei nenhum recado para você.
— Nunca? — Busco em seus olhos algo que me diga que ela está
mentindo.
— Nunca, infelizmente isso seria impossível. — Ela complementa antes
de me abraçar com força, encaixando seu rosto em meu pescoço: — Mas se
eu pudesse, eu mandaria.
Bombeio mais fundo, apertando-a junto a mim. Querendo tirá-la daqui,
arrancar a tristeza em seu olhar, a dor em sua voz.
Minha.
Foi o que eu disse para Arkady, é o que sinto nesse momento, Yelena é
minha, para proteger, para salvar, para me dar a absolvição que preciso
para, talvez, encontrar a minha paz.
— O que você diria? — pergunto, fechando os olhos e apoiando minha
cabeça em seu ombro.
— Que você me tire daqui, que me salve — ela responde, no instante
em que gozo, sentindo uma euforia esquisita, uma sensação de posse, como
se nesse momento, enquanto encho seu corpo com o meu prazer,
estivéssemos selando um pacto.
— Eu vou — sussurro em seus cabelos, a voz trêmula de prazer
enquanto sinto-me desmanchar dentro dela, marcando-a de uma forma
quase animalesca, exausto, confuso e estranhamente forte, como nunca me
senti na vida.
O Gigante Laranja é o maior complexo habitacional de Temnyy Gorod.
Praticamente toda a população dessa cidade mora lá, ou estuda em uma
escola de lá ou conhece alguém que vive lá. No fim, embora seja um
enorme amontoado de prédios decadentes, é o mais perto do que temos de
uma sociedade, é o melhor que possuímos em meio a tanta pobreza e
desgraça. É o meu lar e o de Roman também.
Durante minha infância, eu amava aquele lugar, amava brincar com as
outras crianças e me esconder nos edifícios, correndo pelas escadarias sujas,
gritando e ouvindo meu eco nos corredores vazios, invadindo apartamentos
abandonados, me sentindo livre. Naquela época, eu não sabia que a miséria
era algo tão feio, eu era só uma menina desbravando o meu pequeno pedaço
de mundo feito de concreto, fome e pobreza.
Eu era feliz.
Eu ainda me recordo da primeira vez que vi Roman. Estava correndo
com uma amiga, apostando quem conseguiria descer mais rápido as escadas
de um dos edifícios. Eu estava ganhando, minhas pernas magricelas e
curtinhas desciam tão rápido que não consegui parar antes e trombei nele.
Por sorte, ele foi mais rápido do que eu e se segurou no corrimão impedindo
que nenhum de nós caíssemos, seria um desastre, talvez eu poderia ter até
morrido, rolando por aquelas escadas abaixo, enroscada em Roman
Stepanovich.
Naquela época, eu achava que havia tido sorte em não morrer, hoje eu
daria tudo para que tivesse acontecido. Morrer em seus braços me parece
bem melhor do que continuar respirando.
Foi a primeira vez que vi seus olhos castanhos tão de perto, que ouvi a
sua voz de menino, que ele me segurou. E mesmo que eu fosse apenas uma
garotinha magricela e arteira, brincando como se nada de ruim pudesse me
acontecer, eu senti a força do seu olhar, a coragem das suas mãos hábeis, a
esperteza em seu corpo franzino em nos manter a salvo.
E agora estou aqui novamente em seus braços, tantos anos depois e sem
saber, ele vem me mantendo viva nesse looping eterno de medo e dor, como
um sopro de ar em meus pulmões cansados de lutar, imersos na podridão
que é o Poço.
Assim como sinto agora, enquanto ele se move dentro de mim, me
possuindo, me marcando com suas mãos fortes e seu corpo másculo. Eu
sinto, embora seja doloroso, que é diferente, ele é diferente, cuidadoso e
gentil e, pela primeira vez desde que esse pesadelo começou, eu quis algo
com tanta força.
Eu quis isso, ansiei por esse momento por ter o Rei do Poço entre
minhas pernas, me tornando dele, me marcando como sua.
E é o que ele faz, quando pergunta o que eu quero, enquanto seu corpo
me enche de seu prazer, quando seus olhos pesados se movem para encarar
os meus, quando seu rosto bonito e machucado ganha um tom corado e
estendo minha mão para tocá-lo. Eu sinto dentro do meu coração que ele
está falando a verdade. Ele vai tentar me salvar.
Ficamos um instante assim, parados, ainda sinto seu membro pulsando
dentro de mim e estranhamente não sinto nojo, nem repulsa ou dor, só sinto
ele, apenas ele, sua força e tamanho, seu calor e cheiro, e uma paz estranha
que me assusta. Quero poder ficar aqui para sempre, presa na calmaria dos
seus braços, sentindo seu hálito quente em minha pele, sua respiração
pesada em meus ouvidos. Seus braços em torno de mim.
— Você está bem? — Ele afasta uma mecha do meu cabelo segurando
meu rosto com sua mão ferida e assinto, confirmando. — Me desculpa se te
machuquei.
— Não machucou — admito, estranhamente confortável com ele.
É a primeira vez que alguém se preocupa se estou bem, se me
machucou, que pede desculpas por me usar, como se meu bem-estar fosse
algo importante para ele e sinto meus olhos marejados de emoção, porque,
pela primeira vez desde que fui arrastada contra a minha vontade para esse
lugar, me sinto humana novamente, uma pessoa com o direito de ter uma
opinião. Mesmo que isso não mude nada, não me leve para longe daqui,
sequer me dê a garantia de que ele vá voltar.
Não muda realmente nada, mas me dá algo bom para pensar, quando for
insuportável, quando não for ele dentro de mim, quando eu voltar a ser
apenas um objeto.
O garoto dos olhos escuros acaricia meu rosto, esfrega minha bochecha
com o polegar enquanto sua respiração se acalma.
— Eu prometo que... — ele começa a falar, mas me ergo em seus braços
e calo suas palavras com meus lábios. Promessas são perigosas aqui e não
quero que ele me faça nenhuma, então eu o beijo, meio sem jeito, confusa e
trêmula, fechando meus olhos com força e me concentrando em Roman, na
sua boca, com gosto de sangue e álcool, em como ela é macia e quente e
como ele beija bem.
Eu continuo beijando-o, inclinando o meu rosto quando ele me ergue
acima da sua cabeça, segurando seu rosto em minhas mãos, aprofundando a
nossa intimidade forçada, desesperada por mais, por tudo de bom que eu
puder ter dele. Eu o beijo, sentindo a maciez da sua língua sobre a minha, a
força com que ele me toma, a forma como parece já conhecer cada
resquício de mim.
Como se já fosse o meu dono.
E mesmo quando ele me coloca no chão, deixando a enorme diferença
de altura entre nós me obrigar a erguer-me na ponta dos pés, nossas bocas
não se descolam, nossas línguas não se afastam, nosso silêncio nos
aproxima.
Eu poderia ficar a vida inteira aqui, sendo beijada pelos lábios do Rei do
Poço.
E, por algum tempo, é assim que me sinto, como se uma vida inteira
tivesse passado até que algo muda. A água para de cair, alguém cortou a
água.
— Acho que demoramos demais — Roman diz, se afastando só um
pouco, segurando meu rosto em suas mãos, um sorriso lindo se
desmanchando em seus lábios retorcidos pela luta. — Minha fada — ele
sussurra ainda de olhos fechados e me sinto confusa. — Eu vou cuidar de
você, prometo — ele diz, finalmente abrindo os olhos, selando nossa noite
com uma maldição que vai custar caro para nós dois, uma que estou
disposta a suportar, desde que me traga de volta para os seus braços, para
esse momento, para mais um pouco de vida, de ar, de esperança.
Existe algo mais perigoso? Tenho certeza de que não, isso só prova o
quanto estamos perdidos.
Yelena se abre um pouco mais depois de transarmos, sinto-a um pouco
mais relaxada, mas o medo continua ali, permeando à nossa volta, como
uma sombra maligna querendo nos lembrar a todo momento que isso aqui
não é um encontro, nem um pagamento de dívida ou a troca de favores, é
algo maior, pior, algo que ainda não conheço, mas que, se Grigory tiver
razão, pode ser a minha perdição.
Ou talvez a minha salvação.
Saímos do banho e nos secamos, não nos vestimos, não há necessidade
de roupas depois de tudo o que aconteceu entre nós, então nos deslocamos
pelo quarto completamente nus até a enorme mesa de comida.
— Está com fome? — pergunto ao remexer nas opções, à espera de uma
resposta sua, mas ela não vem, então me viro e encontro Yelena parada,
com as mãos cruzadas na frente do corpo, a cabeça baixa, em um sinal claro
de submissão que ela insiste em manter sempre que estamos juntos.
Vou até ela e ergo seu rosto, encarando seus lindos e tristes olhos de
gelo.
— Não quero que tenha medo de falar quando estiver comigo — digo,
encarando-a, Yelena abre a boca para dizer algo, mas se cala em seguida. —
Eu não sou seu senhor e nem quero ser, sou um amigo e já disse que vou te
proteger, e farei o que for preciso para isso — repito as palavras que disse
há poucos minutos, sentindo-as se tornarem cada vez mais fortes. — Está
me entendendo? — pergunto e ela balança a cabeça. — Então me diga, está
com fome? Pelo jeito que está magra, deve estar faminta, então venha,
vamos encher essa barriga de comida.
Seguro sua mão e a levo até a mesa, nos sentamos um de frente para o
outro e ofereço tudo o que posso para ela. Estou faminto e como tanto que
me sinto mole, as dores das pancadas que recebi essa noite começam a
aparecer enquanto relaxo, observando a garota nua à minha frente, comendo
um pedaço de pão com tanta calma, que parece que tem medo de comer.
— Vamos lá, coma, quero você forte para mim — digo, como uma
forma de incentivá-la.
Yelena ergue os olhos e noto um brilho em seu olhar, não sei definir se é
medo, curiosidade, obediência, às vezes sinto como se ela estivesse lutando
pra não se desconectar, para ficar aqui comigo, mas como se fosse algo
difícil demais de manter, como se algo a puxasse para longe de mim.
Pego um pouco de caviar e passo em uma torrada, entrego a ela e pego
outra, passo mel e como, gemo de prazer com o sabor doce em meus lábios
e Yelena me observa, a sombra de um sorriso escapa em seus lábios e sorrio
de volta.
— Eu amo isso aqui — digo de boca cheia e ela move a cabeça,
deixando uma mecha de cabelo cair, escondendo seu seio esquerdo, o joelho
erguido esconde o direito, assim ela parece selvagem e bela. Uma
verdadeira fada.
Minha fada.
Meus olhos caem em suas pernas e toda a fome e prazer que senti até
agora se vai.
— O que fizeram com você? — Estendo minha mão em torno do seu
tornozelo, ela tenta se afastar, mas não a deixo ir.
— Não foi nada.
— O caralho que não, não estava assim antes. — Me lembro bem como
ela estava marcada a primeira vez que a vi, mas agora há feridas horríveis
em seu tornozelo, como se ela estivesse presa todos esses dias. — Por que
eles te machucam? — Me aproximo, ajoelhando-me na sua frente e
segurando seu rosto em minhas mãos. Yelena suspira, um soluço doloroso
escapa dos seus lábios e ela desvia o olhar para um canto atrás de mim antes
de falar.
— Talvez porque eu seja má.
As palavras escapam da sua boca com facilidade, mas não consigo
acreditar, essa menina não é má, não pode ser, não existe como isso ser
verdade, ninguém como ela pode ser má.
— Não, isso não é verdade.
— Você mesmo me disse, sou uma fada, não sou? — Ela afasta minha
mão do seu rosto e acaricia meu peito. — Fadas são más.
— Então você é a fada mais burra que já vi.
— Já viu muitas? — ela pergunta, mas não gosto do jeito triste que
Yelena sorri.
— Talvez.
— Então talvez eu seja burra o suficiente para ter sido capturada e
enjaulada. — Há dor em suas palavras e me inclino para deixar um beijo em
sua boca bonita antes de falar.
— Não seja mais, não gosto de te ver machucada — admito, sentindo
uma fúria enorme em meu peito ao imaginar Arkady machucando essa
garota, não, pior, Zakhar, e seus punhos de aço.
Uma fúria insana me domina só de pensar em algo assim e preciso me
conter para não me levantar e ir até eles, perguntar por que estão fazendo
isso.
— Não posso evitar — ela sussurra de cabeça baixa.
— Por quê? — pergunto e ela volta a olhar para atrás de mim, sigo seu
olhar, mas não vejo nada além de mobília cara e extravagante em um quarto
feito para o sexo.
— Porque, às vezes, é tudo o que me mantém viva. — A tristeza em
suas palavras me deixa agoniado, preciso pensar direito, arrumar um jeito
de tirá-la daqui sem irritar Arkady.
— Agora você tem a mim, eu já disse.
— Até quando? — ela indaga, tão baixinho quanto um sopro de ar, tão
forte que atinge o centro do meu coração.
Me inclino sobre ela, puxando-a para a ponta da cadeira, envolvendo
suas pernas em minha cintura, abraçando-a.
— Enquanto meu coração bater — digo, com meus lábios em seus
cabelos, sentindo a verdade em minhas palavras, a certeza de que sei o que
estou fazendo e a força para buscar meus objetivos. — Então prometa que
não fará mais nada para justificar que te machuquem. — Deixo um beijo
em sua testa antes de me afastar e olhar em seus olhos, deixando-me mais
uma vez ser sugado pelas profundezas da sua magia.
— Eu prometo tentar — ela sussurra, no instante em que volto a beijá-
la, sentindo meu corpo pronto para ela novamente, desejando ardentemente
marcá-la. Yelena se aproxima, envolvendo meu pescoço e puxando-me para
si, e, antes mesmo que eu possa me dar conta, eu a quero novamente com
uma força que não consigo compreender.
— Vamos para a cama — sussurro em seu ouvido. — Lá é mais
confortável.
Ela enrijece, mas não diz nada. Sinto que ela nunca dirá algo que seja
contrário à minha vontade, então eu a ergo em meus braços e a levo até a
cama, a deito com delicadeza, acariciando seus tornozelos machucados,
sentindo o ódio fermentar o sangue em minhas veias, ela se abre para mim
de um jeito tímido e sedutor que me deixa louco, seu corpo belo e delicado
me hipnotiza e me inclino sobre ela, guiando meu pau para a sua entrada,
deslizando devagar sentindo os resquícios do meu prazer deixando-a
escorregadia para mim, enquanto observo seus olhos de gelo me enfeitiçar.
Me enterro inteiro dentro dela, apoiando meu peso nos braços para não
machucá-la e começo a me mover, dessa vez com calma, sem perguntas,
palavras ou dúvidas, apenas me concentro nela, na nossa ligação que parece
aumentar a cada movimento meu, minha promessa se fortalece a cada vez
que encaro seus olhos, confiantes e assustados. Duro mais dessa vez e,
embora ela não esteja retribuindo como eu queria, ao menos não parece
estar doendo, ou incômodo e, pouco a pouco, ela relaxa.
— Me abrace — peço, quando começo a me mover mais forte,
encaixando meu rosto em seu pescoço, erguendo suas coxas em meus
quadris, ela faz o que peço, me beija quando mando, me toca, me olha, mas,
ainda assim, não é como se ela estivesse realmente aqui e, quando termino
dessa vez, sinto raiva, por não saber o que fazer, por não entender porque
ela está aqui comigo. Sinto-me confuso, tonto, cansado, errado por estar
usando seu corpo, mesmo que ela tenha implorado por isso.
Desabo sobre ela e rolo para o lado, trazendo-a junto a mim, sentindo
seu coração bater fraquinho, como se fosse realmente o coração de uma
fada, aprisionado em um corpo humano, escravizado, castigado,
amaldiçoado.
— Você está bem? — pergunto ainda ofegante e satisfeito, ela move a
cabeça devagarinho e a abraço um pouco mais. — Era isso que ele queria?
Que você me seduzisse? — pergunto com os lábios perto o suficiente para
que só ela escute. Novamente, ela move a cabeça em um sim silencioso. —
Então dessa vez fizemos o certo — concluo com um sorriso confuso e ela
sorri de volta para mim.
— Hoje foi perfeito — ela sussurra enquanto acaricia meu rosto com a
ponta dos seus dedos. — Mais do que eu poderia imaginar. — Meu peito se
enche de um sentimento estranho e novo, puxo-a um pouco mais para mim
e encaixo-a em meus braços.
— Eu vou salvar você, minha fada — é a última coisa que digo com os
lábios em seus cabelos, antes de apagar, como se, de alguma forma,
estivesse realmente enfeitiçado.

Quando acordo, estou completamente sozinho no quarto, minhas roupas


estão limpas e dobradas em cima da poltrona onde Yelena esteve sentada e
minha mochila está ao lado, olho em volta me sentindo vulnerável,
entraram aqui, a levaram de mim enquanto eu dormia, nu.
Não, eu não dormia, mais uma vez sinto como se tivesse sido dopado, e,
por mais que eu queira culpar o cansaço e as dores, sei que foi algo mais.
Olho para a mesa de comida, relembro a forma como Yelena não queria
comer, será que... não, ela também estava sonolenta, e dormiu quase tão
rápido quanto eu.
Levanto-me e vou até a mesa, cheiro tudo, remexo os alimentos como
se estivesse ficando maluco, talvez eu esteja, cada dia mais e Grigory tenha
razão, estou caindo na onda dessa porra de patrocinador e, nesse momento,
ele deve estar se divertindo à minha custa. Vou até minhas roupas e me
visto rapidamente, pego minha mochila e, antes que eu possa sequer me
aproximar da porta, ela se abre e dois dos capangas de Arkady entram.
— Onde ele está? — Sinto minhas bochechas queimarem com a fúria
que sinto.
— Seu tempo acabou, garoto — diz o maior deles, cruzando os braços
na frente do peito e me desafiando. Sorrio, passando a língua nos lábios
cortados.
— Onde está Arkady? E a garota?
— Não sabemos de nada, só viemos aqui para te levar até a saída — o
outro diz dessa vez.
— Eu não saio antes de falar com Arkady. — Solto a mochila no chão e
o grandalhão dá um passo em minha direção, me preparo para lutar, não
ligo se estou dopado e fodido enquanto ele parece pesar uns cinquenta
quilos a mais do que eu. Preciso de respostas e não saio daqui sem elas.
— O chefe não vai gostar se a gente estragar o brinquedinho dele — o
outro cara diz pousando a mão no ombro do companheiro, que está louco
para me acertar.
— Se você está falando do seu amigo, provavelmente não vai gostar
mesmo — provoco-o fechando os punhos ao lado do corpo.
O homem bufa e dá um passo para trás, voltando a si.
— Vou chamar o Zakhar — ele diz para o amigo antes de sair do quarto.
Mesmo assim não consigo relaxar, não confio nesses homens, nem em nada
aqui dentro e me mantenho alerta.
O cara que fica comigo vai até a porta e olha em volta, em seguida vem
até mim.
— Vem, vou te mostrar onde ela está — ele sussurra e sai, antes mesmo
que eu possa dizer algo.
Sem alternativa, pego minha mochila e o sigo pelos corredores escuros
repletos de portas fechadas, ele é rápido e preciso acelerar o passo para
alcançá-lo. Alguns metros à frente o homem para e olha para mim.
— Escuta bem o que eu vou falar agora, você vai olhar e vai embora,
está me entendendo? Sem perguntas, sem demora, apenas olhar e dar o fora
daqui, ou eu juro por tudo que acabo com você e não tô nem aí se vão
gostar ou não.
Olho dentro dos olhos frios do homem e assinto. Não sou tão burro, sei
que não estou em posição de discutir e se ele vai mesmo me deixar ver
Yelena, é mais do que já tive desde que tudo isso começou.
Ele se vira retirando um molho de chaves do bolso e escolhendo uma
delas, rapidamente abre a porta e me puxa para dentro. É um quarto
simples, muito menor do que o que passamos a noite, mas ao menos é
limpo e há uma cama, pequena, encostada no canto da parede, onde ela está
dormindo, vestida com uma camiseta branca e short, tão diferente da fada
que sempre vai até mim, quase uma garota comum, adormecida em seu
quarto.
Olho para o homem pedindo autorização para me aproximar, ele faz que
sim com a cabeça e vou até onde ela está, observo-a um instante, puxo o
lençol para garantir que não há nada a prendendo ou machucando e, quando
percebo que ela está bem, solto a mochila no chão e me ajoelho a sua frente.
— Sem perguntas — o homem me lembra e concordo.
Estico meu braço e afasto uma mecha do seu cabelo, delicadamente
para não a acordar, observo seu rosto, faz apenas algumas horas que a tive
em meus braços, que fiz promessas que quero cumprir, mas nesse momento
me sinto um impostor, deixando-a aqui sozinha com esses homens.
— Minha pequena fada — sussurro enquanto acaricio seu rosto. — Eu
vou voltar para você — digo antes de me inclinar e deixar um beijo em seus
lábios macios e delicados. — Eu prometo — completo antes de me afastar.
— Vamos logo, garoto — o homem diz e me levanto. Antes de sair,
puxo o lençol e cubro-a novamente, deixando um beijo delicado em seus
cabelos, ela se mexe, acomodando-se e um vinco se forma entre seus olhos,
quero tirar a dor de seu rosto, mas não há nada o que eu possa fazer no
momento além de deixá-la.
Yelena se move, puxa o lençol até a bochecha e suspira. Estou quase
saindo, quando ouço ela me chamar, apenas um sussurro baixinho, mas alto
o suficiente para me fazer virar, à espera de que ela esteja acordada e possa
ver que estou cumprindo a minha promessa, mas ela ainda está dormindo.
— Ela faz isso às vezes — o homem diz sem parar de andar.
— Fala dormindo?
— Te chama nos sonhos. — Ele olha para mim enquanto tranca a porta
deixando-a lá dentro.
— Chama?
— Acho que você tem uma admiradora, rapaz. — Ele sorri e pousa a
mão em meu pescoço. — Vamos dar o fora daqui antes que eu arrume
problemas para mim. — Ele guarda a chave no bolso e olho mais uma vez
para a porta onde Yelena está sozinha.
E uma fagulha de esperança aquece meu peito.
Não costumo ver as outras lutas que acontecem no Poço, não me
interessam, não me importo se o meu próximo oponente é um estuprador ou
um ladrão de batatas, isso não vai mudar o meu objetivo: derrubá-lo.
Então, quando entro no Poço e sinto a energia que emana dos gritos
eufóricos a minha volta, me sinto um pouco estranho. Não é para mim que
eles gritam, e sim para aqueles dois homens que estão se estudando lá em
cima. Apoio-me em uma parede distante e observo-os por um instante, a
diferença de tamanho é enorme e desigual, além disso, o mais baixo é
nitidamente mais jovem e destemido, o que dá a ele uma vantagem sobre o
seu oponente. Nesse momento, ele acerta um gancho de direita e o
grandalhão perde um pouco o equilíbrio, o baixinho vibra, dando assim
espaço para seu oponente se recuperar. Um erro nítido de principiante, e,
quando ele se vira de frente para mim, descubro que é um erro maior do que
eu imaginava.
O homem que recebe um golpe aéreo, que acerta seu pescoço, é o
garoto que vi outro dia no Setor Oeste, o menino que me prometeu que um
dia seria ele aqui. Seus olhos ainda jovens demais para ver tanta miséria se
encontram com os meus no instante em que ele é nocauteado, seu corpo
franzino desaba como um saco de batatas e preciso me conter para não ir
até ele e arrancá-lo dali.
Alguém diz meu nome, e, em seguida, outro, depois outro e outro, logo
estou cercado de homens que me parabenizam, um amontoado de vozes que
não reconheço, falando um por cima do outro enquanto tento a todo custo
enxergar por sobre as pessoas, o garoto que ainda não se levantou.
Ele não pode morrer, a morte só é permitida na luta da noite sem fim, o
fim do ciclo Padat’, essa é a regra máxima para lutar no Poço, tudo é
permitido, menos a morte.
— Ei, o chefe tá te chamando. — Zakhar aparece, abrindo passagem
entre os homens à minha volta e me puxando pelo braço.
— O que aquele garoto está fazendo ali? — Aponto para o ringue, mas
Zakhar sequer se vira para olhar. — Não sabia que podia ter menores de
idade aqui.
— A única regra é ter a ficha suja, você sabe disso.
— Aquele garoto não tem — insisto enquanto saímos por uma porta que
nos leva à administração.
— Não tenho nada a ver com isso, a ordem foi te levar até Arkady —
ele encerra a conversa e deixo que me leve pelo corredor até a porta onde
está escrito o nome do homem com quem vim falar essa noite.
Zakhar abre a porta e avisto Arkady do outro lado. Como sempre, ele
está falando ao telefone e me pede um minuto enquanto finaliza a ligação.
A porta se fecha e olho em volta tentando encontrar algo que me explique
sobre Yelena e as outras garotas, mas não há quase nada na sala impessoal
onde ele trabalha.
Vou até a janela e observo Temnyy Gorod, uma nevasca fina cai lá fora
deixando-a com uma beleza sombria, olho para o fim da rua, uma parte de
mim gostaria de avistar Anna, talvez fosse um bom presságio, como se ela
estivesse apoiando minhas decisões, mas não há nada, além da sombra de
algo que tenho quase certeza de que é Berstuk à minha espera, aquele gato
maldito e teimoso.
— O que te trouxe aqui hoje, Roman? — Arkady pergunta me
chamando a atenção, viro-me para ele.
— Você está recrutando crianças? — faço a primeira pergunta sobre o
que vi.
— Como?
— Acabei de ver uma luta, o garoto que apanhou, ele não tem mais do
que quinze anos.
Arkady remexe alguns papéis, com a expressão confusa como se não
soubesse o que estou falando.
— Sasha Popovich, dezessete anos, filho mais velho de seis irmãos,
mãe doente, pai foragido da polícia depois de matar um homem por causa
de um pacote de farinha de milho, acusado de pequenos roubos ao
mercadinho central e de abusar sexualmente de uma garota de quinze anos
— ele lê todas as coisas na ficha do garoto e então olha para mim. — O que
faz de alguém um homem? Você acha mesmo que esse tal de Sasha é um
garotinho indefeso? Eu acredito que não. — Ele joga a folha sobre a mesa
novamente antes de voltar a olhar para mim. — A corrupção da alma não
escolhe idade, nem carinha bonita, nem sexo. Esse garoto já está
corrompido e tem todos os requisitos exigidos para participar da luta, assim
como você. — Ele aponta o queixo em minha direção e me sinto sujo.
— Que seja. — Ergo os ombros sem saber o que falar, ele tem razão,
números não significam muito em um lugar onde a média de vida não chega
longe, onde as pessoas morrem cedo, seja de fome, doenças causadas pela
contaminação ou a violência.
— Mas imagino que não tenha vindo até aqui para falar do Sasha,
correto? Pelo que fiquei sabendo, ele perdeu a luta dessa noite.
— Não, eu vim aqui para falar da Yelena.
— Yelena? — Ele ergue uma sobrancelha e sorri de um jeito que me
incomoda. — O que nossa devochka fez? Fiquei sabendo que ela finalmente
te serviu como deve, algo te desagradou?
— Eu a quero na minha próxima luta — digo logo de uma vez e noto a
surpresa no rosto de Arkady.
— E por que eu faria isso? — Ele cruza os braços na frente do corpo.
— Porque eu quero, quero ela lá me vendo lutar, quero saber que ela
está no Poço quando eu estiver.
— Não vai acontecer, sinto muito, garoto. — Ele se vira, voltando a
sentar no seu lugar.
— Você só tem a ganhar com isso — continuo.
— É mesmo? Me explique.
— Se Yelena estiver lá na próxima noite, eu prometo que te darei a
melhor luta desse ciclo.
— Você me promete? E como vai me dar isso?
— Leve-a para mim e o resto deixa comigo.
Afasto-me da parede e caminho até parar na frente da sua mesa, meus
olhos desviam rapidamente para a enorme pilha de fichas, a grande maioria
são de homens, como posso imaginar, lutadores do Poço, mas no meio
delas, consigo avistar uma diferente, a foto de uma garota está anexada a
folha e a menos que ele esteja pensando em criar um torneio feminino, não
consigo entender por que aquela ficha está ali, quero olhar mais, puxar a
ficha da garota, mas não posso levantar mais suspeitas, então me inclino
sobre a mesa e encaro-o.
— Aumente as apostas, enlouqueça seus patrocinadores, me dê a garota,
eu prometo que não vai se arrepender.
Arkady me analisa por um momento, seus olhos passeiam por meu rosto
como um detector de mentiras humano, não me movo, não desvio o olhar,
não respiro, apenas olho de volta, confiante de que estou fazendo uma
excelente jogada.
— Vou pensar no seu caso — ele diz por fim e sei que não terei mais
nada dele além disso. Arkady não é um homem facilmente manipulável, ele
não seria o responsável pelo Poço se fosse, mas o que ele não sabe, é que
está lidando com alguém que não tem medo de perder, sendo assim, aposto
alto, e sempre me dou bem.

Assim que chego ao Setor Oeste vou até o beco onde os meninos
sempre se encontram. Há um grupinho usando drogas e, quando me veem,
se assustam.
— Tudo bem, estou aqui atrás do Sasha — digo ao me aproximar
puxando o baseado da boca de um deles e dando uma tragada. Berstuk para
ao meu lado e um dos meninos se assusta.
— Que gato feio da porra — ele diz arrancando risadas dos colegas.
— Se eu fosse você não o ofendia, Berstuk é bem rancoroso. — Dou
mais uma tragada e entrego o baseado para ele, que olha para o meu gato
como se estivesse prestes a pedir desculpas.
— O Sasha não tá — diz o menor de todos.
— Isso eu sei, quero saber onde ele mora.
— Por que você quer saber? — um dos meninos pergunta curioso.
— Quero avisar a mãe dele que ela está prestes a perder um filho.
— Talvez ela se sinta aliviada, uma boca a menos para alimentar. —
Ouço a voz atrás de mim e me viro no instante em que um dos meninos
solta um palavrão.
Sasha está parado na entrada do beco, com o rosto tão inchado que é
quase impossível reconhecê-lo. Caminho até onde ele está, tentando não
demonstrar pena, mas não consigo, ele é só um menino, e mal consegue
respirar sem gemer de dor.
— Vem comigo. — Seguro seu braço e ele tenta se afastar, mas não
consegue.
— O que você quer de mim? — Ele tenta a todo custo se livrar do meu
aperto, mas ignoro seus protestos e o levo até o outro lado da rua, entre dois
prédios, só paro quando seu corpo colide na parede fazendo-o gemer.
— Me solta, caralho! — Ele tenta me empurrar, mas aumento o aperto
sobre seu corpo franzino.
— Escuta aqui, porque eu só vou falar uma única vez. — Aponto o
dedo com força em seu peito magricelo.
— Não tenho que escutar nada, me solta.
— Você vai escutar, por sua mãe. — A menção dela o faz parar de se
debater e olhar para mim. — Você a ama?
— Isso não é da sua conta.
— Não mesmo, porque eu não dou a mínima para aquela vadia.
— Não fale dela — ele ameaça erguer a mão e eu a seguro, torcendo-a
sem esforço, demonstrando o quanto ele é fraco e inexperiente.
— Quer proteger a sua mãe? Quer proteger aquela garotinha, sua irmã,
como é mesmo o nome dela? Katya? Ela tem treze, não é mesmo? Era essa
a idade da menina que você estuprou?
— Eu não estuprei ninguém — ele diz se contorcendo de dor.
— Não é o que dizem.
— Eu menti — ele geme mais alto, quase chorando e posso sentir os
pares de olhos me observando do outro lado da rua.
— Ah, mentiu? Mas sabe de uma coisa? Eu não minto, nunca, então
escute bem o que vou falar agora, porque será só uma vez. — Aumento o
aperto em sua mão e posso jurar que ouço um estalo, um osso partido. O
garoto grita, seu corpo fraco desmorona na minha frente, mas não paro, não
posso parar agora. — Nunca mais coloque a porra dos seus pés no Poço,
está me entendendo?
— Você não manda em mim — ele diz chorando de dor.
— Não mando, nem quero, estou apenas te avisando. Se você ama sua
mãe e irmãos, será inteligente o suficiente para não voltar para o Setor
Leste, nem fazer nenhuma merda que te coloque na mira do Arkady
novamente, porque, se você voltar, eles não terão misericórdia de você e
sabe o que vai acontecer? Eles irão atrás da sua família, colocarão sua mãe
para servir os bêbados do Poço, trepando sem parar. Sua irmãzinha,
provavelmente irá pelo mesmo caminho, seus irmãos serão os vendedores
de drogas, aqueles que morrem aos montes porque ninguém liga, e sua
família querida se esfarelará como pão seco. Tudo porque você foi um
moleque burro e idiota — continuo falando, inclinando-me sobre ele
enquanto ele escorrega pelo chão, caindo de dor. — Diga para mim que
você entendeu — exijo me ajoelhando na sua frente, torcendo sua mão
quebrada mais um pouquinho.
— Você quebrou minha mão — ele diz chorando, com a voz carregada
de ódio.
— Eu posso quebrar cada osso do seu corpo até ter certeza de que você
me entendeu.
— Eu entendi — ele sussurra.
— Eu não ouvi, Sasha, pode repetir?
— Eu entendi, porra!
— Bom garoto, eu adoro quando sou claro. — Solto sua mão e ele a
segura, pousando-a no peito enquanto me olha com o único olho bom. —
Eu sei que está com ódio de mim agora, mas um dia, quando for um homem
adulto de verdade, vai me agradecer.
— Nunca.
— Você vai. — Dou um tapinha em suas costas e me levanto.
— Você está com medo de alguém ser melhor que você e roubar o teu
lugar de Rei do Poço — o menino fala, ainda gemendo de dor e me viro
para encarar seu rosto.
— Sabe, Sasha, na sua idade eu também era um garoto cheio de ódio e
me achava o mais inteligente do mundo, passava a maior parte da minha
vida fazendo merda e nunca tinha tempo para a minha mãe. Ela morreu
porque eu era um idiota teimoso, e hoje eu não tenho ninguém por quem
lutar, estou no Poço porque, se eu viver ou morrer, não vai fazer diferença
para ninguém, não tenho mais nada aqui. É isso que você quer para você?
— Ele balança a cabeça lentamente. — Então, seja mais inteligente que eu e
mantenha seu traseiro longe daquele lugar.
Dou o último aviso e me afasto, os seus amigos e o irmão estão nos
observando e caminho até eles.
— Nenhum de vocês, nenhum, deve ir ao Poço, nem para olhar, nem
mesmo para ver onde fica, estão me ouvindo? — O garotinho pequeno está
chorando enquanto olha para o seu irmão e todos balançam a cabeça. — Eu
saberei se algum de vocês forem, e, acreditem em mim, vocês vão se
arrepender de terem me desobedecido — digo olhando para cada um deles,
sei que não tenho poder algum de proteger esses meninos, mas, se eu puder
colocar ao menos uma pequena sementinha de medo em seus corações, eu
farei isso com prazer.
Alguma coisa mudou, e não sei ao certo o que foi, mas, desde a última
vez em que estive com Roman, estou sendo tratada diferente. Eu poderia até
mesmo dizer que está sendo bom, sem grilhões em meus tornozelos, sem
abusos, sem castigos, sem homens visitando meu quarto.
Uma semana em que eu tive um gostinho do que poderia ser chamado
de paz e tive medo, não é natural sentir paz no inferno, por mais calmo que
tudo esteja, por mais que minha barriga tenha comida e meu corpo esteja
sem dor, ainda é o inferno e algo dentro de mim sabe disso.
Às vezes, acordo no meio da noite esperando a porta se abrir e um dos
homens de Arkady me levar, ou o próprio entrar, exigindo meu corpo, ou
pior, Zakhar me punir por estar sentindo uma fagulha de paz. Então passo o
resto da noite tentando entender o que está acontecendo, prevendo o que
virá. Será que Roman tem algo a ver com tudo isso? Será que ele é mesmo
tão poderoso assim a ponto de ter suas vontades atendidas até mesmo
aqui?
Os dias se passam sem que uma resposta surja, durmo, como, penso,
ando de um lado para o outro e ouço, ouço tudo o que posso, vozes
aleatórias, choros e gritos, músicas, e, acima de tudo isso, nos dias em que
se passa, presa dentro desse quarto, sem ter o que fazer, eu me pego
pensando em Roman, na noite em que estivemos juntos, em como meu
corpo o recebeu dentro de mim, como me senti, não suja, nem usada, mas...
feliz.
Pela primeira vez desde que vim parar aqui, me peguei sorrindo, ao
relembrar seu cheiro, seu gosto, o peso dele sobre mim, a forma como suas
mãos me seguraram junto de si, nunca senti nada parecido. Antes de vir
para cá, não tinha experiência nenhuma com homens, só beijei um garoto e
agora, tudo o que tenho de referência é dor, humilhação, sofrimento,
vergonha. Eu estava pronta para sentir isso com Roman também, mas foi o
contrário.
E todos os dias eu refaço a nossa primeira vez em minha mente, a forma
como a água molhava seu corpo, o jeito como suas bochechas coraram, os
sons que ele fazia. Meu coração acelera só de lembrar, e depois ele dói de
saudades e expectativas. Quando será que vamos nos ver novamente? O
que ele fez comigo? Justo ele, que me acusa de ser uma fada, me enfeitiçou,
roubou meu coração, fez de mim sua... sua.
É isso, sou dele, e sorrio com a constatação de que gosto de ser dele,
meu corpo, meu coração, meus pensamentos, tudo em mim pertence a
Roman Stepanovich Zorkin e eu me sinto feliz com isso.
Será amor? Estou apaixonada pelo Rei do Poço? Por seus olhos doces
e sua boca gentil? Pela forma como ele me mostrou que homens nem
sempre machucam?
Não sei, mas, sinceramente, não ligo, não quando tudo a minha volta é
escuridão, dor e sofrimento, talvez amar Roman seja a luz que me guiará
para longe desse lugar, e eu estou disposta a segui-la.
A porta se abre e me levanto, assustada com a força com que ela bate na
parede. Não sei que horas são, minha janela está sempre fechada e quase
não tenho noção de tempo, mas sei que não é tarde, o Poço está silencioso.
Arkady entra e meu coração se agita, abraço meu corpo e abaixo a cabeça.
Rezando para que ele não queira... me machucar.
Ouço seus passos pelo quarto e a cada segundo de silêncio, o medo
aumenta dentro de mim ao ponto de começar a tremer quando ele para na
minha frente, encaro seus sapatos brilhantes sem coragem de erguer os
olhos.
— Olhe para mim — ele manda e obedeço, erguendo meu rosto
devagar, sem querer encarar seus olhos sem vida.
Arkady sorri, um sorriso perverso, que faz os pelos do meu corpo se
arrepiarem.
— Está bem instalada, devochka? — ele pergunta encarando meu rosto
bem de perto e balanço a cabeça em um sim.
— Sentiu minha falta? — pergunta, mesmo sabendo a resposta e minto
balançando a cabeça devagar.
Um tapa estala em meu rosto e solto um gemido baixo.
— Vadia mentirosa.
Coloco a mão em minha bochecha, sentindo a pele queimar, mas não
me arrependo de nada e, quando olho em seus olhos, sei que ele sabe disso
tanto quanto eu.
— Vejo que você engordou um pouquinho. — Ele espalma a mão em
minha cintura, fechando os dedos em minhas costelas com força. — Está
comendo bem? — Faz círculos com o polegar em minha pele e não me
movo, apenas aceito seu toque em silêncio. — Tão linda, minha slátkiy
Yelena. — Ele me puxa para junto de si, passando o nariz em meus cabelos,
inalando com força, como se pudesse sugar minha alma. — Tão preciosa —
continua falando, enquanto seus lábios descem por minha têmpora, olhos,
bochecha. — Você fez um bom trabalho — ele diz e sinto como se fosse
algo errado. — O garoto está louco por você. — Meu coração quase salta
pela boca em desespero, ele está louco por mim? O que isso significa? —
Mas eu já sabia que isso aconteceria, como não enlouquecer? Eu quase
enlouqueci de ciúmes de te ver nos braços dele — ele diz e aperto meus
olhos para não reagir com as suas palavras. — Cada estocada dele dentro de
você era como um punhal em meu coração — ele sussurra, como um
amante apaixonado se declarando para a sua amada, subindo sua mão por
meu corpo, passando por meus seios, até se alojar em minha garganta e meu
estômago se revira ao imaginar Arkady nos observando. — Você estava tão
diferente... — Ele se afasta, voltando a olhar meus olhos, fechando a mão
em volta da minha garganta. — Quase como se estivesse... gostando? Você
gostou de ser a vadia do Rei do Poço, Yelena? — Ele aperta um pouco e
nego rapidamente. — Ele te machucou? — Nego mais uma vez. — Você
estava molhada para ele, Yelena? — ele continua e nego de novo. — O que
ele te falou enquanto te fodia? — Ele caminha com a mão em meu pescoço
me guiando até que sinto a parede atrás de mim. — Ele falava coisas sujas?
Coisas melosas? Me diga o que o garoto falou.
Arkady se coloca na minha frente e fecho os olhos, porque já sei o que
vem a seguir, o que sempre acontece quando entra em meu quarto. Mas ao
contrário das outras vezes, em que ele é bruto e agressivo, dessa vez,
enquanto rasga minha roupa, e me segura em seus braços, enquanto ele me
penetra, tomando para si aquilo que eu sonhei um dia ser apenas de Roman,
ele parece quase... carente, desesperado, como se estivesse com medo de
me perder.
— Me beija — ele exige enquanto me marca com seu corpo e obedeço.
Minha boca toca a sua de um jeito esquisito e, quando ele força a sua língua
dentro da minha boca, eu desvio o rosto. — Faça comigo como fez com ele
— ele manda enquanto me possui, dessa vez com um pouco mais de
gentileza, até que ele percebe que não consigo fazer o que ele quer. — Foi
assim que ele fez? Devagar? Assim você gosta? — ele continua fazendo
perguntas que não consigo responder, tudo dói dentro de mim porque nada é
como Roman, nada nunca será igual a ele.
Então Arkady volta a apertar o meu pescoço, sufocando-me,
machucando-me, com os olhos injetados de ódio por não receber aquilo que
ele quer.
— Vamos, Yelena, olhe para mim como você olha para ele, me ame
como você o ama, me adore como seu senhor e rei. — Ele aumenta a força
com que me toma e gemo de dor enquanto tento afastar sua mão da minha
garganta.
— Você... está me machucando — digo com dificuldade, sentindo o ar
escapar dos meus pulmões e as lágrimas se acumularem em meus olhos.
— Eu vou machucar mais, até você entender que é MINHA! — ele grita
a última palavra enquanto me leva até a cama me empurrando de costas, me
fazendo ficar de quatro, afundando meu rosto no colchão, me quebrando,
me mostrando que não existe paz onde estou. Tudo foi uma ilusão e a culpa
de tudo isso é minha, por me atrever a me apaixonar por Roman, quando sei
que meu coração não me pertence. Nada em mim me pertence.
Arkady possui meu corpo de todas as formas possíveis, como uma
tentativa de alcançar o meu coração. Durante o tempo todo, ele exige que eu
lhe fale o que Roman me disse. Quando me nego a falar, ele me bate e me
machuca um pouco mais, sorrio como um ato de rebeldia que diz que não
importa o quanto ele me machuque, eu nunca darei o que ele quer.
E quando ele finalmente termina, exausto e saciado, sinto meu corpo
inteiro doer, mas minha alma canta de alegria, porque, pela primeira vez
desde que meu inferno começou, sinto Arkady queimar um pouco também.

Arkady vem ao meu quarto todos os dias e todas as vezes ele me manda
dizer o que Roman disse; em todas as vezes não digo, em todas as vezes ele
me machuca, em todas as vezes sorrio.
Estou perdendo a sanidade, mas não ligo. Em um mundo onde há
dezoito anos só perco, não me importo que ela se vá, talvez seja melhor,
mais fácil de lidar.
Hoje é noite de luta, Roman está no ringue, ouço as pessoas gritando
seu nome lá fora, a força dele ecoando pelas paredes enquanto sou
machucada, a cada grito de Rei, Arkady me pune um pouco mais, o tempo
todo me mantenho firme, com o rosto erguido e os olhos fixos no meu
abusador, encarando-o com tudo o que tenho dentro de mim, vendo-o
perder o controle. Arkady me agarra pelo pescoço, com o corpo grande
sobre o meu, me sufocando com seu ódio. Abro a boca, sem ar, movo meus
lábios e sussurro seu nome.
Roman.
Ele enlouquece, me bate tanto que perco os sentidos. Quando acordo,
ele está parado na minha frente, com os olhos apavorados, me encarando
como se temesse me perder.
— Graças a Deus. — Arkady me puxa para si, abraçando-me com força.
— Nunca mais faça isso — ele exige e não tenho forças para responder,
apenas movo a cabeça, confusa, sem saber o que está acontecendo. —
Nunca mais me provoque assim, eu perdi a cabeça, eu... meu Deus, se você
morresse...
Seria tão bom... é o que penso, enquanto tento fechar meus olhos,
sentindo eles doerem. Morrer seria tão bom.
— O que eu fiz? — pergunto confusa.
— Nada, minha slátkiy, você não fez nada. — Ele parece apavorado,
nunca o vi dessa forma e isso me assusta. Tento me mover, mas Arkady não
deixa. — Fique quieta, vou pedir para virem cuidar de você.
Ele se levanta, deitando-me com cuidado no travesseiro.
— Eu vou mandar um médico te ver, vai ficar tudo bem, eu só perdi um
pouco o controle, vai ficar tudo bem — ele continua falando.
Mas não quero que fique bem. Eu quero morrer, talvez sangrar até a
morte, morrer asfixiada, de tanto apanhar, não ligo, só quero que acabe
logo.
Ele continua falando enquanto se troca, lá fora tudo está silencioso e um
disparo em meu coração me acorda do torpor que eu estava.
— A luta acabou? — pergunto baixinho, sentindo a voz arranhar minha
garganta machucada.
Arkady se vira para olhar para mim, devo estar enlouquecendo ao
provocá-lo desse jeito, é o que digo a mim mesma, enquanto tento me
mover na cama, mas não consigo.
Ele está tremendo de ódio, seu corpo inteiro parece prestes a pegar fogo
e tenho certeza de que sua mão está ardendo de tanto me bater. Meu rosto
queima e sinto gosto de sangue, mas não ligo, estou feliz, finalmente
encontrei uma forma de devolver um pouco do que ele me faz. Machucar
seu ego é quase pior do que machucar o meu corpo e isso me dá forças para
continuar, dia após dia.
— Roman? É sobre ele que quer saber? — Ele se aproxima até parar
bem na minha frente. — Ah sim, ele ganhou, eu acho, não sei, estava com
minha puta, não ouvi, o som da sua boceta sendo fodida era mais alto — ele
diz. — Mas sabe de uma coisa? Eu havia prometido a ele que você assistiria
a sua luta hoje. — Meu coração se agita com essa informação. — Ele pediu,
não, na verdade, ele exigiu que você estivesse lá.
— Mas eu não estava — sussurro enquanto tento me sentar.
— Não, mas ele não sabe disso, eu mandei outra garota, e agora o Rei
do Poço está feliz, e eu... — Ele olha para o meu corpo machucado e sorri.
— Eu estou muito feliz.
Arkady se inclina e deixa um beijo casto em meus cabelos.
— Preciso ir, devochka, o Rei do Poço está esperando por você. Mas
preciso avisar a ele que hoje não poderá te comer.
Ele sai do quarto me deixando sozinha.
Roman me queria lá, ele exigiu minha presença.
Ele me quer. Ele ainda me quer.
Inclino-me para a frente e começo a rir, um riso desesperado, que faz o
meu ventre doer e minhas costelas balançarem. Rio tanto que começo a
chorar, até adormecer.
Posso sentir o sangue quente como lava correndo por minhas veias,
bombeando meu coração que bate pesado em meu peito, com tanta força
que não ouço nada à minha volta além do som do meu ódio.
Quente, forte, insano.
Mal espero a porta se fechar para que minhas mãos comecem a
trabalhar. Seguro Arkady pelo colarinho e o empurro até a parede, o barulho
do seu crânio batendo no concreto é música para os meus ouvidos e meus
dentes se arreganham involuntariamente. Nesse momento sou tudo, menos
humano.
— Onde ela está?! — grito em seu rosto e ele fecha os olhos como se
minhas palavras o tivessem acertado em cheio. — Responda! — Empurro
sua cabeça na parede mais uma vez.
Sinto os passos dos seus capangas se aproximando, mas não ligo, não
me movo, apenas encaro o filho da puta à minha frente. Arkady ergue a
mão exigindo que seus homens se mantenham longe e volto a perguntar:
— Onde. Ela. Está?
— Quer fazer o favor de me soltar? Não consigo falar enquanto estou
sendo enforcado por um maluco.
Alivio a pressão das minhas mãos em volta dele, mas não me afasto.
Estou pulsando de raiva e quase perdi a luta porque não conseguia parar de
pensar onde ela está.
— Ela estava lá... — ele começa a falar, mas o interrompo.
— Não brinque comigo, Arkady, eu sei que não era ela.
— Não? — Ele tosse e me sinto satisfeito por um instante. — Chamem
o Zakhar — ele pede para os homens atrás de mim e ouço eles saindo da
sala e nos deixando a sós.
— Por favor, garoto, se acalme. — Ele dá batidinhas em meu pulso e
afasto minhas mãos do seu rosto vermelho.
Arkady respira fundo e ajusta a camisa, sinto minhas veias pulsarem
com a fúria dentro delas.
— Onde ela está? — pergunto pela terceira vez.
— Eu não sei, eu dei a ordem para que ela fosse levada.
— Não a levaram — afirmo porque mesmo que, de onde eu estivesse,
não fosse capaz de ver seus olhos, eu sei que não era Yelena, não era sua
figura pequena e delicada, não eram seus olhos de gelo.
— Então houve um engano aqui, porque a ordem foi dada.
A porta se abre e Zakhar entra acompanhado dos outros dois caras, ele
olha para o chefe e para mim sem entender nada.
— Está tudo bem por aqui?
— Não, não está nada bem, eu dei uma ordem e ela não foi cumprida.
— Arkady parece furioso e Zakhar parece confuso.
— Como não?
— Eu prometi ao Roman que Yelena estaria hoje na sua luta, dei minha
palavra e ela foi desonrada.
— Mas havia uma garota, senhor — fala um dos capangas.
— Mas não era a Yelena — digo encarando o rosto mal-encarado do
homem.
— Onde ela está?! — ele continua gritando descontroladamente e quase
acredito que ele foi enganado.
— Eu... eu não sei, senhor — Zakhar fala e não há nada do gigante
feroz nele nesse momento.
— Procure-a, se virem, tragam-na para mim agora! — Arkady diz,
ainda mais vermelho.
— Sim, senhor — Zakhar responde antes de sair da sala junto com seus
homens e, quando ficamos apenas nós dois, me afasto dele e caminho até o
outro lado.
— As coisas estão um pouco fora do controle esses dias, outra das
nossas meninas cometeu suicídio e... — Ele balança a cabeça de um lado
para o outro parecendo chocado. — Eu nunca vou me conformar em como
alguém é capaz de um ato tão... horrível.
Penso em dizer que sei o motivo de alguém tirar a própria vida, quando
é usada como um objeto. Que sei que ele está mantendo essas garotas em
cárcere privado e que não vou deixar isso barato. Mil coisas passam pela
minha cabeça, quero matá-lo agora mesmo, com minhas mãos, com seu
abridor de cartas, com a sua gravata, com meus dentes, mas o que eu
ganharia? Com certeza, não sairia vivo desse lugar, e nunca mais veria
Yelena, nem a conseguiria protegê-la.
Preciso pensar, ser mais esperto que ele, entrar no seu joguinho, ver
onde ele vai me levar, então respiro fundo e finjo.
— Eu sinto muito — digo relembrando a garota morta em meus braços,
a forma como seus olhos me encaravam, sem vida, sem esperança, sem
futuro.
Ainda tenho pesadelos com aquela menina.
— Tudo bem, não é sua culpa, eu compreendo sua fúria. Eu fiz uma
promessa e ela não foi cumprida, mas vamos resolver isso já. — Ele se
senta em sua poltrona e caminho até a janela, depois até a parede e
novamente até a janela tentando acalmar meus punhos que gritam para
afundar o crânio desse maldito. — Você foi muito bem essa noite.
— Eu quase perdi — confesso.
— Droga, me desculpe, eu estou tão chateado.
— Eu quis perder — confesso e ele me olha parecendo confuso.
— Quis?
— Eu não estou brincando, Arkady. Se ela não estiver lá na próxima
luta, eu vou perder, e eu sei que isso será péssimo para os seus negócios —
digo encarando seu rosto. — Para todos eles — completo mencionando os
jogos ilegais que ele realiza por baixo das fuças dos patrocinadores.
— Para os seus também.
— Estou pouco me fodendo para o dinheiro.
— É pouco inteligente não dar o devido valor que o dinheiro merece.
— Eu sei o que deve ou não ter valor na minha vida — respondo sem
paciência.
A porta se abre antes mesmo que Arkady possa falar qualquer coisa e
Zakhar entra carregando a garota de capuz cinza que estava no Poço essa
noite. Ela é pequena e delicada, bonita como todas as meninas que são
mantidas aqui, seus olhos azuis parecem apavorados, mas não é Yelena.
— Essa foi a garota, ela disse ser a Yelena e o responsável em trazê-la
acreditou.
— Você fez isso? — Arkady pergunta para a garota, que se ajoelha no
chão e abaixa a cabeça.
— Me perdoe, senhor, eu não sabia que seria tão grave.
Arkady se levanta e vai até onde a garota está, ele a segura pelo braço
forçando-a a se levantar. O pavor cresce no rosto da menina, que começa a
choramingar e, antes que eu possa reagir, ele a esbofeteia.
— Mas que caralho! — Corro até onde eles estão, o corpo da menina é
jogado para trás e ela só não cai porque a seguro em meus braços. — O que
está fazendo, porra?! — grito com ele enquanto seguro a pobre garota, que
chora descontroladamente.
— Estou corrigindo-a — ele diz massageando a própria mão e uso tudo
de mim para não a quebrar.
— Você esbofeteou uma garota. — Abaixo meu rosto e observo-a. A
marca vermelha da mão dele se espalha rapidamente por seu rosto e ela olha
para mim como se pudesse pedir desculpas. — Eu sinto muito — sussurro,
acariciando seu rosto e ela volta a chorar.
— Olha, garoto, não vou permitir que você julgue meus métodos de
trabalho. Ela mentiu, poderia ter prejudicado meus negócios por causa de
uma mentira, um tapa é pouco para o que ela merecia.
— Não vou deixar que a machuque, não importa o que ela fez. — Olho
para a garota, a marca fica mais vermelha a cada segundo.
— Tudo bem, você tem razão, eu me extrapolei, sinto muito — ele fala
com a emoção de uma porta. — Zakhar, leve-a para colocar um gelo nesse
rosto e cuide para que ela fique bem.
O capanga vem até onde estou e retira a garota dos meus braços, ele sai
levando-a e sinto uma agitação em meu peito ao imaginar Yelena sendo
agredida dessa forma.
— Onde está Yelena? — pergunto pela terceira vez.
— Eu não sei, eu não sou babá da sua garota, tenho milhões de coisas a
fazer.
— Foda-se, eu quero vê-la.
— Vamos fazer o seguinte, na próxima luta, você a verá, prometo. Eu
mesmo farei questão de levá-la para você, ela estará assistindo você
massacrar seu oponente de camarote. — Ele vem até mim e passa o braço
por meu ombro.
— A próxima luta é daqui a uma semana, não vou esperar tanto tempo
assim.
— Roman, você não vai me dizer o que fazer.
— Eu não dou a mínima, me dê a garota e eu te deixo em paz.
— Hoje não.
— Onde ela está? Você a machucou?
Arkady se vira de frente para mim, seus olhos brilham e não consigo
identificar o que há neles, mas não gosto do que vejo.
— Eu jamais machucaria uma garota.
— Você acabou de esbofetear uma garota na minha frente.
— Aquilo foi um erro, mas não sou um abusador — ele diz isso olhando
dentro dos meus olhos e me assusto com a capacidade dele de mentir.
— Não é o que vejo, Yelena é cheia de marcas, por quê? Por que essas
meninas são mantidas aqui?
— Garoto, não faça perguntas demais, aceite o que estou te oferecendo,
nenhum outro Rei do Poço teve tanta liberdade quanto você. Não faça os
patrocinadores se arrependerem de terem te escolhido.
Sinto o peso das ameaças embutidas em suas palavras e me calo, não
posso bater de frente com ele. Arkady tem razão, por algum motivo eles
gostam de mim e preciso preservar isso.
— E essa garota?
— O que tem ela?
— Quero que me prometa que ela vai ficar bem.
— O que está pensando de mim, rapaz? É claro que ela vai ficar bem.
Houve um mal-entendido e já está resolvido.
A porta se abre mais uma vez e Zakhar entra agora sozinho.
— Arkady, estão te esperando para a reunião de emergência.
— Ah sim, claro. Por favor, acompanhe o Roman até a saída, dê a ele
uma bonificação para compensar o transtorno. Pode ser 30%, não, melhor,
50%.
Ele se afasta, indo até a mesa e pegando seu celular. Antes de sair, ele
vem até mim e dá um tapinha em meu rosto.
— Não se preocupe, estamos cuidando muito bem da nossa devochka.
Ele se afasta e uma sensação esquisita aperta meu peito.
Arkady está cheirando a Yelena.
A porta se abre e Arkady entra, não me movo, nem ao menos ergo meus
olhos. Não tenho mais forças para lutar, ele venceu. Mais uma vez, ele
conseguiu o que queria e voltei a minha vida miserável.
Não penso mais em Roman, nem na noite em que ficamos juntos. Não
adianta, tudo só piorou e agora Arkady parece um louco obsessivo, então eu
desisti de tudo. Não como, não tomo banho, não me movo, apenas
permaneço deitada esperando que ele venha e me use, e depois viro para o
outro lado e choro baixinho até dormir. E durmo o máximo que posso, até
perder a noção de dia e noite, de vida e morte.
Ele se aproxima devagar, se senta ao meu lado, mas não me toca.
Espero pela bofetada, mas ela não vem, espero por qualquer coisa, mas ele
apenas me observa, como se estivesse me olhando pela primeira vez.
— Essa semana uma das garotas morreu — ele diz baixinho, quase
como se importasse. — Foi horrível, havia sangue por todo lado. — Ele
balança a cabeça e ergo meus olhos rapidamente.
Que inveja.
— Fiquei pensando, se fosse você, o que eu faria — ele continua. —
Mas você é uma das garotas mais fortes que já passou por esse Poço — diz
ainda sem me tocar. — Você não faria isso, não é? Você não me deixaria.
Não reajo.
— Se não por mim, ao menos por ele, afinal de contas, o futuro do
garoto está atrelado a você — ele chama minha atenção e ergo os olhos. —
Pois é, ele disse que, se não te ver, vai perder de propósito e, sabe como é,
os patrocinadores veriam como um ato de traição e traidores não são bem-
vistos por aqui — Arkady suspira e sinto meu estômago se revirar. — Eu
adoraria que você fosse mais maleável, tudo seria mais fácil.
Não me movo.
— Não haveria tanta dor, tanto sofrimento.
Não respondo.
Arkady respira fundo e estica a mão para me tocar, instintivamente me
retraio e ele para com a mão no meio do caminho.
— Você não seria capaz de machucar o garoto, não é mesmo?
Olho para ele por tanto tempo que tenho certeza de que ele sabe a
resposta, claro que não. Eu jamais faria algo que pudesse prejudicar Roman.
— Por isso te amo. — Ele dá um tapinha em meu rosto. — A minha
Bela do Poço, dona do meu coração. — Sua mão finalmente toca minha
bochecha e ela queima quase tanto quanto se ele tivesse me batido.
Arkady se levanta, afastando-se de mim e encaro suas costas enquanto
imagino uma lâmina descendo por ela, rasgando-o ao meio.
— Quero que se levante, tome um banho, fique bem linda, essa noite
vai ser especial. — Ele parece animado e me afundo no colchão. Será que
se eu disser não dessa vez ele me mata? — Você não vai me perguntar o
porquê?
Viro-me de costas para ele desejando que a resposta seja sim.
— Vamos lá, Yelena, hoje você vai ver o Rei em ação, vamos assistir a
sua luta de camarote — ele diz chamando minha atenção.
Me movo devagar, sentindo a fraqueza dos últimos dias cobrar seu
preço. Desde que Arkady me machucou, da última vez, ele vem sendo
cuidadoso, e hoje não é diferente, ele me ajuda a ir ao banheiro, lava meus
cabelos e me ajuda a vestir uma roupa. Quase choro ao me olhar no
espelho, de jeans e camiseta, tão... comum, quase a Yelena que fui um dia.
— Ele vai amar te ver assim — ele diz por trás de mim, como um
espírito maligno, me atormentando e me iludindo.
Arkady seca meu cabelo e me obriga a comer e beber, e quando a noite
chega, trazendo com ela a agitação de mais um torneio de lutas, ele ainda
está aqui, me ajudando, me falando que Roman me quer lá, que ele vai amar
me ver e que essa noite é especial.
E por mais que eu queira acreditar, não tenho mais forças para isso.

Caminhamos pelos corredores lado a lado, às vezes tropeço por conta da


minha fraqueza, mas Arkady está sempre atento e me segura antes que eu
desabe. Estou tonta e, à medida que avançamos pelo Poço, as vozes ficam
mais altas, indicando que estamos perto.
Meu coração ganha vida no peito, agitando-se a cada vez que ouço seu
nome, e o que imaginei ser impossível acontece: eu sorrio. Um sorriso
genuíno quando Arkady abre uma porta e a multidão surge à minha frente.
Pessoas, livres, que estão aqui porque querem, que poderão ir embora a
hora que quiserem, que estão gritando o nome dele, carregando faixas e
cartazes. Um deles tem uma foto de Roman, com os braços erguidos e um
sorriso insano e lindo nos lábios.
É a primeira vez que vejo algo além do meu quarto ou da cela suja e
escura em que vivo por meses, o ar, embora esteja carregado de fumaça,
suor e poeira, enche meus pulmões de um jeito que me faz ansiar por
liberdade com tanta força que meus olhos se enchem de lágrimas.
— Viu só, é tudo por ele, pelo nosso Rei do Poço — Arkady diz à
medida que avançamos, passando por pessoas, cercados agora por seus
seguranças, que nos acompanham até o mezanino, onde temos uma vista
privilegiada de todo o Poço, principalmente do ringue.
Me acomodo no guarda-corpo, com os olhos atentos por todos os lados.
Ignoro os olhares desconhecidos que me observam com curiosidade e
procuro por ele em todos os cantos. Demora alguns minutos para que eu
finalmente o encontre, ele está entrando, carregando em seu ombro a
mochila, as pessoas dão tapinhas em suas costas e dizem coisas que o fazem
sorrir. O coro de “Roman, Roman, Roman” começa e me emociono ao
ouvi-lo assim tão forte, que parece ecoar em minhas entranhas.
Ele está tão lindo, que perco o ar, todo de preto, com o sobretudo
salpicado de neve... Ah, neve, que saudades de sentir minha calça molhada,
das pontas dos dedos adormecidos, do rosto queimando. Roman tem as
bochechas vermelhas, provavelmente queimadas de frio e ele nunca se
pareceu tanto com o garoto que admirei a vida toda do que agora.
O locutor começa a falar sobre os competidores, ele menciona o
oponente e todos vaiam o homem que caminha até o ringue devagar, com
uma confiança que me surpreende. Ele sobe no ringue e se prepara
enquanto o locutor começa a falar de Roman, a multidão vai à loucura e
quase não se ouve mais nada.
Eu não ouço.
Tudo o que faço é olhar para ele, agarrada à grade como se fosse
despencar a qualquer momento, e quando ele sobe no ringue, seu rosto se
ergue e ele finalmente me vê. E eu sinto que poderia morrer agora mesmo
tamanha a minha felicidade em vê-lo novamente.
Roman demora um instante para notar que sou eu, seu rosto se modifica
e o sorriso se forma em seus lábios bonitos, se espalhando, se alargando,
tomando tudo dele. Sorrio de volta, não consigo conter a emoção de estar
aqui, de poder vê-lo em toda a sua glória, no lugar onde ele é o rei e eu sou
mais uma de suas súditas.
Ele ergue a mão e faço o mesmo, meus dedos tremem enquanto aceno.
Arkady se aproxima, a mão em minha cintura me puxa para perto dele e
estremeço quando Roman olha para ele, o sorriso se desfaz e ele desvia o
olhar.
— Está preparada para vê-lo brilhar? — Arkady pergunta e faço que
sim sem tirar os olhos do garoto lá embaixo.
Roman se prepara para a luta, ele remove a camiseta ficando com o
dorso nu, a pele clara enfeitada pela deusa da escuridão e da morte. Hoje
não há hematomas e me entristeço por saber que ele não terminará a noite
da mesma forma, que, quando nos encontrarmos, ele estará tão machucado
que mal poderei tocá-lo.
O oponente não tira os olhos dele, como se pudesse adivinhar o que
vem a seguir, ele parece preparado, mas Roman parece certo da vitória, ele
exala confiança, força, coragem e isso é tudo o que preciso para acreditar
que vai ficar tudo bem, que ele terminará essa noite vencedor.
Antes do início, eles se cumprimentam, o locutor diz as regras, Roman
ergue o rosto para onde estou e digo um “cuidado” silencioso. Ele move a
cabeça em um sim firme que em nada me acalma e vai para o seu lado do
ringue.
A luta começa e Roman acerta o primeiro golpe, a multidão grita seu
nome e ele sorri, seus olhos escapam rapidamente para onde estou e quero
pedir para que ele olhe para a frente, que não se machuque muito e que
fique bem para mim.
Ele acerta o segundo golpe, seu punho fechado toca o maxilar do
homem que cospe sangue, mais gritos ecoam por todos os lados e, a cada
um deles, Roman parece se transformar, crescer, dominar tudo à sua volta.
Seus olhos amendoados analisam o homem, seu corpo grande e forte é ágil
e ele se esquiva de quase todos os golpes. O primeiro acerta a lateral do seu
corpo, bem onde Morana está, ele se encolhe rapidamente e o hematoma se
forma na hora, manchando sua pele pálida de vermelho.
O homem acerta um segundo golpe, que derruba Roman, e solto um
grito que parece vir de dentro do meu coração. Arkady retesa ao meu lado e
parece que uma eternidade se passa antes de Roman se mover, ele é rápido e
logo está de pé, mas o adversário é mais rápido e acerta um soco em sua
boca, onde o sangue escorre imediatamente, e Roman ri, um riso perturbado
que faz meus pelos se arrepiarem quando me dou conta de que ele está se
divertindo.
— Está tudo sob controle, ele gosta disso, de brincar com seus
adversários, deixá-los cansarem, acreditarem que têm alguma chance
quando eles nunca tiveram sequer alguma — Arkady diz com uma
confiança que não tenho. Quero que ele acabe logo com isso, que pare de
apanhar, que venha para mim.
Roman dá um giro para a esquerda e pega o adversário pelas costas, o
soco faz o homem perder o ar e o equilíbrio, cambaleando para o lado.
Roman acerta mais um em seu braço e o homem se esquiva, a multidão vai
à loucura e Roman ergue os braços pedindo mais gritos enquanto caminha
em círculos rondando seu adversário como uma presa. Seu olhar é mortal e,
quando ele acerta o golpe no rosto do homem, a carne dele se rompe com o
impacto, deixando um rastro de sangue pingando no ringue.
Os gritos chegam a um patamar ensurdecedor, Roman toma mais um
golpe no nariz, sua cabeça vai para trás com a força e, quando ele volta a
olhar para o homem, ele diz algo que não consigo compreender, move a
cabeça de um lado para o outro e parte para cima dele.
É o início do fim, Roman acerta um golpe atrás do outro, o homem não
tem mais condição de reagir, seu corpo grande cambaleia para trás até
alcançar as cordas. Roman segue golpeando-o, com os olhos injetados de
fúria, os punhos trabalhando alternadamente, um, depois o outro, os golpes
acertam o rosto sem misericórdia. O homem desaba no chão de um jeito
esquisito, braços de um lado, pernas de outro, Roman sobe em cima dele e
continua batendo, um, dois, três, quatro.
O gongo toca, a luta acaba, mas Roman parece não ouvir, ele continua
acertando o homem que está com o rosto desfigurado, um dos capangas
sobem no ringue e se colocam entre Roman e o homem, ele é golpeado pela
fúria do Rei do Poço, que só então se dá conta de que acabou.
Roman venceu mais uma.
Ele se levanta, o corpo banhado em sangue, suor e força. Seu sorriso
endiabrado é lindo e assustador ao mesmo tempo e quando ele se vira para
onde estou, fazendo um cumprimento exagerado para mim, noto meu corpo
rígido finalmente relaxar.
Beijo a ponta dos meus dedos e jogo em sua direção, ele finge pegar e
guardar em seu coração e, por um momento, não vejo mais nada além do
menino de ouro, banhado de sangue, poder e glória.
E eu me apaixono por ele.
Roman é cercado pela multidão, como o verdadeiro dono desse lugar, os
olhos dos homens que o tocam parecem brilhar de emoção e me pego
invejando cada um deles. Eu queria estar lá, queria ser eu a tocá-lo, a
abraçá-lo, mas tudo o que posso fazer é olhar de longe para o garoto ladrão
que virou rei e roubou meu coração.
— Vamos! — Arkady segura meu braço, me puxando para longe dele.
— Não, não, por favor, não me leve agora — imploro, sentindo uma dor
nova em meu peito ao imaginar voltar para aquele pesadelo e deixar Roman
aqui.
Arkady parece gostar do que vê e ergue a sobrancelha me analisando, se
divertindo com meu desespero. Com meu medo.
— Seu tempo acabou.
— Por favor, só mais um pouquinho — peço, encarando seus olhos
perversos.
— Sabe, eu adoro ver você implorando — ele diz em meio a um sorriso
maligno.
— Eu imploro — digo da forma mais submissa que posso.
— O que eu ganho com isso? — Ele se aproxima um pouco mais e
desvio o olhar para onde Roman está, de onde estou ele não é capaz de me
ver, seus olhos estão passeando pelo mezanino, à minha procura e quero
chorar por saber que ele pode achar que não me importo.
Eu me importo, mais do que deveria, mais do que é seguro.
— O que você quiser — suspiro, sabendo que pagarei um preço alto.
Arkady inala profundamente, se alimentando da minha dor e do meu
desespero.
— Hummm... o que eu quiser — ele repete minhas palavras e um
calafrio sobe por minha espinha porque sei que pagarei caro por isso.
— Ah, minha devochka... se você soubesse o poder que tem sobre mim.
— Ele passa o nariz em meu pescoço e aperto os olhos, enojada. Quando os
abro, encontro Roman sendo levado embora, o rosto machucado se vira
mais uma vez à minha procura, mas seus ombros desabam ao notar que não
estou mais aqui.
— Deixe-me vê-lo — peço, voltando a olhar para Arkady. — Por favor,
me deixe ir, eu farei o que você quiser.
Ele me analisa por tempo demais para o meu gosto, os olhos passeando
por meu rosto à procura de respostas que nunca darei.
— O que você vê naquele garoto? — Ele passa o polegar em meu rosto,
descendo por meu pescoço até pousar em meu seio, massageando meu
mamilo, me humilhando, me fazendo sentir suja. — Ele é só um menino
bobo, sem graça.
Baixo meus olhos para o seu corpo, paro onde fica a sua parte que mais
odeio. Imagens de Roman enchem minha mente, grande, poderoso, lindo,
gentil, quero dizer a ele o quanto Roman é maior, muito mais homem,
muito melhor, mas apenas reprimo um sorriso e volto a olhar para ele.
— Eu também sou só uma garota boba e sem... — não termino de falar.
Arkady coloca um dedo em meus lábios me silenciando.
— Isso não é verdade. Você não tem ideia de quem você é — ele diz
com uma certeza que me irrita.
Não sou ninguém, no máximo um brinquedinho usado e maltratado, que
ele insiste em chamar de seu.
— Você é a minha devochka, a mais linda e deliciosa de todas. — Ele
belisca meu mamilo, pressionando sua ereção sobre mim e gemo no
instante em que sua boca desce sobre a minha, capturando minha dor,
minha promessa meu destino.

O quarto continua exatamente igual, mas por algum motivo parece


menor, mais escuro, claustrofóbico, assustador. Me sinto dentro de um dos
filmes de terror que minha irmã amava, à espreita, sabendo que não importa
o quanto eu corra, meu fim será o mesmo de todas as garotas ingênuas.
A morte.
Tento não pensar no que me espera fora daqui, Arkady não é um homem
bom, não há sequer uma célula de bondade em seu corpo, não espero que
ele seja benevolente comigo, mas estou disposta a pagar o preço que for só
para poder estar com Roman mais uma vez.
Respiro fundo e afasto o cabelo do meu rosto, estou tremendo tanto que
mal consigo respirar. Será que eles o deixarão vir? Ele me quis lá, ele não
deixaria de me querer aqui também.
A porta finalmente se abre e me viro para encontrar Roman parado do
outro lado do quarto. As palavras sujas de Arkady invadem minha mente,
me causando um mal-estar que tento afastar a qualquer custo. Estou
tremendo de medo, de ansiedade, de um misto de sentimentos que não
consigo entender, mas tento não pensar em nada. Esse momento é nosso e
não posso permitir que aquele monstro o suje. Então respiro fundo e
caminho até onde ele está, parado na porta com sua mochila nas costas, o
rosto machucado e o sorriso que sempre amei nos lábios.
— Oi — sussurro ao parar na sua frente, seu rosto bonito está inchado
do lado esquerdo e ele cheira a antisséptico, flashes dele sendo atingido
pelo seu adversário invadem minha mente e estremeço só de lembrar, mas
quando seus olhos pousam em mim e seu sorriso se espalha em seus lábios
cheios e convidativos, eu esqueço tudo e me concentro nele. No menino
parado à minha frente, na forma como ele me deixa agitada, ansiosa,
eufórica e em como desejo seus braços em volta de mim.
Senti sua falta.
— Oi — ele responde e sorrimos, ele parece nervoso e dou mais um
passo parando bem na sua frente, seus olhos descem por meu corpo e vejo
um brilho em seu olhar. — Você está linda hoje — Roman diz e o sorriso se
espalha em meu rosto.
Pela primeira vez desde que fui raptada, estuprada e machucada, me
sinto feliz com essa palavra. Gosto de ser admirada, de ser elogiada por
Roman.
— É para você — admito e seus olhos ganham um brilho novo.
— Eu adorei.
Estico minha mão e seguro a sua, está machucada e há curativos em
alguns dedos, mesmo assim eu gosto da forma como ela se enrosca na
minha me puxando para mais perto.
— Eu te vi lá no Poço. — Ergo o rosto, ansiosa para que ele me beije,
que tire dos meus lábios o gosto da boca imunda de Arkady.
— Gostou do que viu? — Roman passa seu outro braço em minha
cintura, me puxando até que nossos corpos estejam colados.
— Uhum... — sussurro sentindo-me fraca com sua presença e com
todos os sentimentos que ele me desperta.
— Também gostei de saber que minha fada estava me observando. —
Ele se inclina, curvando seu corpo grande e forte sobre o meu e seguro seu
rosto em minhas mãos, acariciando o lado machucado.
— Por que deixou ele te bater? — Passo o polegar com cuidado em sua
bochecha.
— Gosto de iludir meus adversários. — Ele ergue um ombro com
desdém e me lembro das palavras de Arkady sobre a forma com que Roman
luta.
— Eu não gosto de te ver machucado assim — admito, me sentindo
ousada quando penso que aquele desgraçado provavelmente está nos
ouvindo nesse momento.
— Não foi nada, nem está doendo.
— Você está mentindo — digo, sabendo exatamente como dói levar um
murro.
— Não estou, juro, talvez amanhã eu sinta a dor, mas hoje meu sangue
ainda está quente, a adrenalina da luta adormece a dor.
— Mesmo assim, não se machuque tanto — peço com meus lábios
próximos dos seus, encarando seus olhos castanhos.
— Eu gosto que você cuide de mim — ele admite me surpreendendo
com sua sinceridade.
— Eu sempre vou cuidar de você — digo sabendo que não posso
prometer nada, essa pode ser a nossa última vez.
— Então eu sempre ficarei bem.
— Promete — peço, inclinando-me para trás para olhar em seus olhos
escuros.
— Sim, o que mais você quer? — Ele dá mais alguns passos me
carregando em seus braços. — Peça e eu te dou.
Quero ir embora daqui, quero sentir a neve em meu rosto, quero
escolher o que vestir e comer, quero ser a dona da minha vida novamente.
— Prometa pra mim que nunca vai cair — peço enroscando meus dedos
nas ondas pesadas do seu cabelo enquanto ele se desfaz da sua mochila e
volta a me tocar. — Prometa que não vai se colocar em perigo e que sempre
vai voltar para mim — peço, já sentindo sua boca junto da minha, me
buscando, me acariciando, me tomando.
— Prometo — ele responde com uma certeza que enche meu peito de
esperança. — Promete que irá me ver em todas as lutas daqui em diante?
Ele envolve as mãos em minha bunda me erguendo em seu colo. Nossos
rostos estão na mesma altura e admiro cada detalhe dele, as suaves sardas
em sua pele pálida, as bochechas rosadas pelo frio, sua íris castanha quente
e suave, seu nariz grande e masculino, a forma como as mechas de seu
cabelo caem em seu rosto de um jeito tão bonito.
— Não posso prometer, não depende de mim — relembro o acordo sujo
que fiz com Arkady para poder estar aqui e minha garganta se fecha com a
vontade que sinto de chorar.
— Eu já falei com Arkady, temos um acordo.
— Um acordo? O que você prometeu a ele? — Tenho medo por ele,
mas Roman parece notar minha aflição e acaricia meu rosto.
— Calma, fadinha, eu só garanti que lutarei melhor se você estiver me
vendo.
Melhor... não sei até que ponto isso é bom, não confio em Arkady e ele
gosta de ver Roman apanhando.
Me inclino sobre ele, beijando seu pescoço.
— Não confie nele — sussurro em seu ouvido rezando para que
ninguém me ouça. Sinto Roman enrijecer e, em seguida, seus lábios tocam
meu pescoço.
— Ele te machucou? — ele indaga com a boca em minha pele.
Aperto os lábios e respiro fundo, quero chorar por mentir para ele, mas
não adianta me iludir, achar que Roman pode fazer algo além do que
fazemos quando estamos juntos, dizer para ele que sim, só irá tirar seu foco
das lutas e talvez seja isso que Arkady queira, que eu diga a ele o quanto
sou machucada, assim Roman perderá o foco e poderá ser derrubado.
Sinto muito, Arkady, não vai acontecer.
Então me afasto, voltando a olhar em seus olhos doces, olhos que me
acalentam, que me acalmam, que me levam embora daqui sempre que me
olham assim...
— Não — digo com tanta certeza que me surpreendo.
— Não minta para mim.
— Não estou, juro — minto e ele respira fundo, me abraçando e deito
minha cabeça em seu ombro, me deixando ser abraçada por ele.
— Estou com saudades de você — ele diz baixinho com os lábios em
meus cabelos. — Fiquei furioso por não ter visto você semana passada.
Semana passada... foi o dia em que ele me reclamou, foi dia em que
Arkady quase me matou.
Beijo seu queixo marcado, o maxilar machucado, o cantinho da boca.
— Agora eu estou aqui.
— Sim, você está.
— Então mate sua saudade, me faça sua — sussurro, a ponta da minha
língua brinca com seu lábio, o fazendo estremecer.
— Porra... — ele geme ao me apoiar na parede e me soltar devagar até
que meus pés tocam o chão.
Roman me observa devagarinho, como se os seus olhos pudessem me
despir antes das suas mãos me tocarem, ele passa o indicador pela gola da
camiseta, a suavidade do seu toque contrasta com a agressividade de
Arkady.
— Vamos tomar um banho. — Ele desce a mão por meu corpo,
entrando por baixo da camiseta e tocando minha pele.
Faço que não com a cabeça freneticamente relembrando as palavras de
Arkady.
“Nada de banho.”
— Melhor não — respondo encarando seus olhos.
— Por quê? Ele está nos observando?
Movo a cabeça devagar e Roman olha em volta, meu coração acelera e
ergo minha mão puxando seu rosto para mim, seus olhos caem em meu
corpo e puxo minha camiseta pela cabeça despindo-me da cintura para
cima.
— Concentre-se em mim — peço.
— Mas... — Ele franze o cenho parecendo confuso.
— Roman, em mim — peço e ele respira fundo como se soubesse que
não podemos ir por esse caminho.
Olho para a porta, temendo que alguém entre e me arraste para fora a
qualquer momento. O pânico ameaça me dominar e respiro fundo voltando
a olhar para Roman.
— Eu estou aqui, isso é tudo o que importa. — Pego sua mão e a coloco
em meu seio, estou tremendo e Roman sente meu medo, ele segura meu
rosto e se inclina para me beijar. — Por favor — sussurro em sua boca e ele
aprofunda o beijo me acalmando com seus lábios e língua.
Enrosco minha mão em seus cabelos enquanto ele fecha a sua em torno
do meu seio, apalpando-o de forma delicada. Pego sua outra mão e faço o
mesmo com o outro seio, Roman me acaricia com cuidado, os dedos
ásperos massageiam meus mamilos, enquanto seus olhos atentos observam
meu rosto.
— Você gosta assim, Yelena? — Ele belisca os mamilos com um pouco
de força, me fazendo sentir bem, tão diferente da forma como Arkady faz.
Isso é o certo.
— Eu gosto de tudo o que você faz — admito, com a voz alta suficiente
para que Arkady possa me ouvir e Roman repete o ato, beliscando com um
pouco mais de força, puxando-o, me fazendo gemer. — Ah sim, assim...
Ele se inclina, abocanhando um dos meus seios. Sua língua brinca com
meu mamilo sensível, circulando-o, chupando. Ele se dedica a eles, sua
boca me faz sentir coisas que jamais imaginei que seriam possíveis
enquanto suas mãos se desfazem da minha calça jeans, derrubando-a no
chão, e, quando acho que nada pode ser melhorado, Roman me ergue em
seus braços completamente nua. Ouço o som da sua calça sendo aberta
enquanto ele me beija e então o sinto endurecendo, firme, forte, poderoso.
— Está pronta para mim, Yelena? — Sinto seus dedos passeando por
minha entrada e estremeço com seu toque. — Hoje eu te quero pronta para
receber o meu pau. — Seu dedo sobe e desce por toda a minha abertura. —
Quero que seja gostoso para você também. — Ele para em cima do meu
ponto mais sensível e solto um suspiro profundo quando sinto uma sensação
gostosa.
— Não sei fazer isso — admito e ele me olha com surpresa.
— Tudo bem, eu te ensino, sem pressa, Yelena, eu vou cuidar de você.
— Ele massageia esse ponto e baixo o olhar para ver o que está fazendo.
É a imagem mais bonita que já vi, seus dedos, os mesmos que agora há
pouco estavam golpeando um homem com força e violência, agora me
tocam com tanta delicadeza e cuidado que me sinto prestes a me
desmanchar em seus braços.
— Roman... — choramingo, assustada com o que estou sentindo e ele
enche meu rosto de pequenos beijinhos, que transformam meu corpo em
uma massa humana de necessidades.
— Tudo para a minha fada — ele brinca com o apelido que me deu
enquanto seu polegar se dedica a esse ponto tão delicado.
Começo a me esfregar nele, desejando que ele aplaque logo minha
agonia.
— Roman, por favor — peço sem saber ao certo o que quero e, ao
contrário do que espero, ele para o que está fazendo e caminha comigo
ainda em seu colo até a enorme poltrona do outro lado do quarto.
Roman se senta, completamente nu da cintura para baixo, sua enorme
ereção pulsa entre nós e quero tocá-lo, sentir sua maciez, seu sabor... Ele
parece notar e a segura com sua mão machucada, força e poder definem o
que vejo quando ele começa a se tocar.
— Você gosta do que vê? — ele pergunta, enquanto sobe e desce com
força. — Então vem cá, vou te ensinar. — Ele segura a minha mão sobre
seu membro, forçando-a subir e descer. — Isso, assim... — Ele se inclina
para a frente, capturando novamente meu seio em sua boca, ele me chupa
conforme o toco, me fazendo gemer. — Mais forte, Yelena — ele pede
enquanto faz o mesmo com meu outro seio e sinto sua mão descer para o
meio das minhas pernas novamente. É insano, perturbador e tão forte que
me sinto enfraquecer.
— Deixa eu ver se você está pronta. — Ele enfia um dedo dentro de
mim profundamente e, quando o tira, seu dedo está úmido. Roman sorri
antes de colocá-lo na boca. — Deliciosamente molhada.
Perco a concentração no que estou fazendo e ele volta a segurar minha
mão passando-a pela ponta da sua ereção, há umidade nela e minha mão
desliza escorregando até a base.
— Quero sua boceta pingando para mim — ele sussurra em meu ouvido
antes de voltar a me tocar, massageando o ponto em meu sexo, dessa vez
ele não para, até que eu comece a me contorcer, sentindo-me fraca e
confusa. — Quanto mais molhada, mais gostoso será para você e mais feliz
eu ficarei.
Ele me observa, o tempo todo analisando minha reação. De tempos em
tempos, seu dedo anelar desliza para dentro de mim, e quando sai, cada vez
mais molhado, um sorriso diabólico se forma em seu rosto.
— Quase pronta — ele diz aumentando a fricção em meu sexo. Seus
dedos encharcados deslizam por minha intimidade, abrindo-me, me
expondo, me tomando para si.
Roman insere dois dedos dessa vez, abrindo-me e me fazendo gemer,
ele os move para dentro e para fora e, pela minha posição em seu colo,
assisto tudo com os lábios abertos. Quando eles saem, estou realmente
pingando e ele captura a umidade espalhando-a por toda a minha abertura.
— Agora sim, vem cá. — Ele segura seu membro com uma mão e com
a outra me posiciona até que eu esteja em cima dele, seus olhos caem para
onde nossos corpos pulsam e, então, Roman me puxa para baixo.
Lentamente sinto-o me abrir, toda a sua largura me deixa sem ar de um jeito
gostoso, não há dor, só uma sensação intensa de ser preenchida, me seguro
em seus ombros e ele geme enquanto se enterra inteiro dentro de mim; e
quando termina, ele apoia a testa na minha, com a respiração pesada, os
olhos baixos ainda me observando.
— Está confortável?
— Sim.
Ele me beija devagar, segurando meu rosto com delicadeza. Estamos
imóveis, conectados da forma mais íntima que duas pessoas podem ficar. É
quase emocionante tê-lo assim.
— Somos perfeitos juntos, Yelena — ele diz quando se afasta, tocando
meu sexo sensível com devoção. — Porra, que delícia. — Ele volta a tocar
o ponto delicado e gemo alto com a sensação quase insuportável. Ele ergue
o rosto e me encara por um instante. — Você quer como? Devagar, forte?
— Eu quero o que você quiser — digo, segurando seu rosto e me
inclinando para beijá-lo. — Quero você, Roman.
Ele estremece com o seu nome escapando da minha boca e se afasta, me
puxando para cima.
— Então vou te ensinar a cavalgar teu rei. — Ele segura meu quadril
com as duas mãos, os dedos cravados com força na minha carne e, quando
ele me ajuda a subir e em seguida me puxa para baixo, sou surpreendida
com a força com que ele me enche de um prazer que até então nunca havia
sentido. Nunca fui tomada dessa forma, minha posição sempre é de
submissão e meu corpo nunca foi tratado com tanta gentileza.
Ergo meus olhos assustada com o quanto gosto disso, e ele repete, me
puxando para cima, só para me empurrar para baixo novamente, cada
investida é mais forte e dura que a outra. Alcançamos um ritmo bom e logo
estou me movendo como ele faz meus quadris girando em busca de alívio,
Roman volta a me acariciar enquanto cavalgo em seu membro, uma de suas
mãos belisca meus seios enquanto a outra me estimula entre as minhas
pernas.
— Mais forte, Yelena — ele exige, com a voz rouca e irreconhecível,
exigente, dura, sexy. Viro meu rosto para onde eu sei que há uma câmera e
Roman percebe, ele se inclina sobre mim capturando minha boca em um
beijo exigente. — Olhe para mim, quero você aqui! — ele exige segurando
meus quadris. — Olhe para o seu rei enquanto te fodo. — Ele ergue seus
quadris, me atingindo em um ponto mais fundo, me fazendo gritar. Tudo
aumenta de intensidade, me sinto forte e inabalável, suada, gemendo de um
jeito que não consigo evitar, sentindo tudo com tanta força, que tenho medo
do que sobrará de mim quando tudo acabar.
— Isso, goza para mim, Yelena — ele exige aumentando a força com
que me toma. — Quero ouvir meu nome quando gozar. — Ele parece no
limite, o suor escorre por seu pescoço e me inclino puxando sua camiseta,
arrancando-a fora, deixando seu belo corpo exposto para as minhas mãos.
Acaricio sua pele quente, querendo segurá-lo junto a mim. Para sempre.
— Mais forte — peço sem saber ao certo o que quero e ele me dá. O
som do seu corpo me possuindo é alto e forte, ele geme, sussurra coisas e
chama meu nome.
— Goza no meu pau, vem comigo — ele pede e sinto-o pulsando dentro
de mim. — Yelena! — ele me chama, quase como uma ordem e sem
entender o que estou fazendo, começo a rebolar cada vez mais forte à
medida que a sensação aumenta, e, então, uma avalanche de sentimentos
me inunda, assustando-me ao ponto de me agarrar a ele porque sinto como
se fosse morrer.
— Roman, eu... — não sei o que dizer, baixo meus olhos e observo-o
entrar e sair de dentro de mim. — Roman — choramingo à medida que a
sensação aumenta até que se torna insuportável e grito seu nome.
— Isso, goza gostoso pra mim, vem. — Ele volta a me massagear,
aumentando a sensação. — Eu tô sentindo, Yelena, sua boceta gozando
gostoso. — Suas palavras me levam a um lugar que não conhecia até então,
meu corpo inteiro estremece, a consciência do seu membro dentro de mim e
tudo o que sinto e então eu desabo, exausta, com meu corpo mole caindo
sobre o seu.
Roman continua, mais forte e duro, com as mãos cravadas em meus
quadris.
— Ah, Deus... — ele geme, me beija, me puxa mais forte. — Diz pra
mim que ela é minha. — Ele passa a ponta do dedo em meu sexo. — Diz
que essa boceta é só minha, Yelena, que eu sou o dono dela e ninguém
mais.
Quero chorar porque isso é tudo o que eu quero, ser só dele, sentir essa
sensação louca e intensamente ser amada. Amar.
Fecho meus olhos com força e me permito sonhar, viajar para um
mundo onde isso é real.
— Sim, eu sou sua — falo sem forças para mais nada. — Só sua, de
mais ninguém — completo sentindo uma lágrima escapar dos meus olhos
no instante em que Roman enrijece sob meu corpo.
— Ah, porra — ele geme, antes de meter mais fundo e mais forte, me
chamando de sua, me marcando com suas palavras e sua força. É tão forte e
tão intenso, que por um segundo me esqueço onde estamos e sinto como se
só existissem nós dois no mundo, e a força incontrolável disso que nos une.
Roman goza com força, me enchendo com seu prazer, me tornando sua
de um jeito que nunca imaginei que seria possível. Ele me abraça,
envolvendo meu corpo enquanto pulsa dentro de mim, deito minha cabeça
em seu peito, sentindo seu coração corajoso e forte batendo em meus
ouvidos.
Ficamos um instante quietos, exaustos, conectados, nos recuperando do
que seja lá isso que acabou de acontecer.
— Como você está? — ele pergunta com os lábios em meus cabelos e
as mãos em minhas costas.
— Eu não sei — admito emocionada.
— Eu te machuquei? — Ele se afasta olhando para o meio das minhas
pernas.
— Não, ao contrário, foi... bom. — Sinto minhas bochechas corarem e
ele olha para mim com um sorriso satisfeito. — Foi mais que bom, foi... eu
nunca...
— Você nunca havia gozado — ele constata e nego com a cabeça. —
Ah, minha fada. — Ele passa o polegar por minha bochecha acariciando-a
com delicadeza. — A partir de hoje, eu farei de tudo para que você se sinta
bem comigo.
— Você já está fazendo — admito antes de voltar a deitar minha cabeça
em seu peito. Sentindo-o ainda dentro de mim, me movo devagar,
provocando-o, pronta para mais, para tudo que ele quiser me dar.
Olho para a câmera e imagino Arkady do outro lado, com os olhos
injetados de ódio enquanto vê seu brinquedinho nos braços do Rei do Poço.
Sorrio ao lembrar da forma desesperada com que ele perguntou o que
Roman disse, como se fosse suas palavras o que o tornam diferentes.
Não é, é a forma como ele me toca, com reverência e carinho; é o jeito
que ele me possui, sem dor, me fazendo sentir importante; é como ele
sempre me beija, como se eu de alguma forma fosse sua.
— Minha fada.
— Meu rei.
Roman começa a se mover devagarinho enquanto acaricia minhas
costas e sorrio me acomodando em seus braços imaginando a bela visão que
Arkady está tendo nesse momento.
Você pode ter meu corpo, mas minha alma, meu coração e meu prazer
nunca serão seus.
Sinto-me vingada, forte e pronta para o que ele estiver preparando para
mim.
— Está com fome? — pergunto ao voltar do banheiro.
Roman está deitado na cama, seu corpo enorme esparramado no
colchão, o rosto relaxado e satisfeito. Observa-me caminhar completamente
nua até parar na frente da mesa de comidas.
— Agora não, vem cá. — Ele estende a mão para mim e olho mais uma
vez para a cama, quero pedir para voltar para a poltrona, mas respiro fundo
e faço o que ele pede.
É difícil não seguir uma ordem quando se é condicionada a obedecer
sempre.
Me acomodo ao seu lado, mesmo que todo meu corpo grite para que
saia daqui, ele me puxa para o mais perto possível e seus braços me
envolvem em um abraço protetor que acalma meu coração repleto de
traumas.
— Acho que essa comida está batizada — ele diz tão baixinho que
tenho dificuldade de entender.
— Como assim? — Acaricio seu peito fingindo desinteresse. Roman é
esperto e entendeu rápido que tudo o que falamos é ouvido.
— A última vez em que comi, apaguei e não vi eles te levando embora.
Não tenho o sono tão pesado, era para eu ter acordado.
Lembro de ter acordado em outro quarto, com Arkady em cima de mim,
me possuindo de forma doentia. Meu corpo rígido estremece ao pensar que
eles estão fazendo esse tipo de coisa e Roman parece sentir meu
desconforto e se move até ficar de frente para mim.
— Tudo bem, é só a gente não comer mais — ele diz como se fosse
algo simples, como se todos os nossos problemas fossem apenas um
punhado de comida, mas aos poucos ele vai entender que Arkady tem o
controle de muito mais do que apenas a nossa comida, então balanço a
cabeça em silêncio.
Roman me puxa para si, sinto suas mãos deslizando pela base da minha
coluna até chegar a minha bunda e me reteso com seu toque, mesmo
sabendo que é ele, que são suas mãos sobre meu corpo e que ele não vai me
machucar, meu corpo reage de forma automática.
— O que houve? Te machuquei? — ele pergunta, notando minha reação
e afastando a mão de mim.
— Não.
— Você parece tensa. — Ele afasta meus cabelos até poder olhar em
meus olhos. — Não minta para mim, Yelena, aconteceu alguma coisa? —
pede como se fosse algo simples de se fazer e respiro fundo decidindo se
posso ou não fazer isso. Sei que não devo, mas Roman precisa saber o que
significa estar aqui, o que significa permitir que ele me tenha de forma tão
íntima e sincera.
— Foi aqui que perdi minha virgindade. — As palavras parecem rasgar
minha alma ao serem pronunciadas. Roman se aproxima um pouco mais,
para que eu possa sussurrar ainda mais baixo, desvio o olhar do seu rosto
para o seu ombro, há uma cicatriz ali e me prendo nela para criar coragem.
— Aqui no Poço?
Balanço a cabeça negando.
— Aqui, nessa cama — digo, chamando sua atenção. — Fui leiloada em
uma sala com uns vinte homens, a maioria falava inglês, não eram russos eu
acho, alguns eram velhos demais para isso, mas todos eles me olhavam de
um jeito... — Respiro fundo porque relembrar aquele dia dói demais. — O
homem que me ganhou tinha por volta de 40 anos, era alto e muito forte. —
Tento me recordar do seu rosto, mas algo dentro de mim o bloqueou dos
meus pensamentos, é difícil demais pensar naquele dia. — Ele não disse
uma palavra sequer, apenas me pegou e... foi cruel comigo. Eu implorei,
chorei, disse que estava doendo, mas quanto mais eu pedia, mais ele... —
Ouço Roman falar um palavrão, sinto seu coração acelerado e me emociono
com a forma como ele me olha. — Aquele dia eu achei que iria morrer,
passei dias machucada, em choque, chorando e tentando entender por que
eu, por que aquele estranho fez isso comigo?
— Arkady sempre fala de você com tanta adoração, sempre achei que
você estava aqui por escolha, que vocês eram algum tipo de elite das
garotas do Poço — ele diz com sinceridade. — Tenho certeza de que
ninguém lá fora sabe disso. Meu Deus do céu, eu nunca imaginei algo
assim.
— Eu ainda sonho que morri aquele dia. — Ergo meus olhos e encaro o
rosto dele. — São meus sonhos favoritos. — Dou um sorriso envergonhado
e Roman se inclina para deixar um beijo em minha testa, suas mãos ásperas
e enormes acariciam minha pele com cuidado.
— Eu sinto muito, Yelena — ele diz ainda com os lábios em minha
pele. — Eu não fazia ideia, eu...
— Eu sei, você não tem culpa — me apresso em dizer.
— Sinto muito, muito mesmo — ele repete e ergo meus braços
envolvendo seu pescoço e o puxando para mim.
— Tudo bem, eu só queria que você soubesse o porquê é tão difícil para
mim estar aqui.
— Vamos sair daqui então. — Ele ameaça se levantar, mas nego com a
cabeça.
— Eu quero ficar aqui, com você — digo com sinceridade. — Porque a
verdade é que você é a única coisa boa que me aconteceu desde que vim
parar aqui — confesso olhando para seu rosto.
— Como você pode dizer isso, se não consigo fazer nada por você?
— Você faz muito, mais do que imagina.
Você me dá esperanças.
— No fim das contas você está aqui, fazendo algo que não quer, me
servindo e eu... — ele parece triste ao dizer isso e coloco um dedo em seus
lábios, calando-o.
— Não é verdade, eu quero estar aqui.
— Você não estaria na minha cama se não estivéssemos aqui.
— Você nunca me olharia se não estivéssemos aqui. — Dou um sorriso
triste ao constatar a verdade, ele nunca me viu, nem mesmo quando éramos
crianças, nem depois, quando se tornou o famoso Roman Stepanovich.
Ele abaixa a cabeça e suspira sabendo que estou certa.
— Nunca saberemos.
— Não importa, essa realidade não existe, estamos aqui, e nada disso é
culpa sua.
— Você é tão corajosa. — Ele passa o polegar por minha bochecha e
fecho os olhos por um instante querendo acreditar nisso.
— Sou o que preciso ser, Roman — confesso.
— O que eu posso fazer por você? Me diga, eu farei.
Me tire daqui...
Passo meus braços por suas costas, sentindo o calor da sua pele e a força
dos seus músculos. Roman se aproxima um pouco mais, encaixando o rosto
na curva do meu pescoço, segurando minha coxa em seu quadril, nos
encaixando. Sei que isso é necessário para que possamos conversar, mas
gosto de pensar que ele não suporta ficar sem me tocar, me abraçar, me
beijar.
— Me faça sentir de novo.
Ele se afasta e olha para mim por um tempo, sinto o conflito dentro
dele, afinal de contas as memórias que tenho são terríveis e eu sequer contei
a ele metade do que aconteceu comigo naquele dia, mas logo ele me puxa
para um beijo, que começa lento, cheio de uma culpa que não é dele, mas
que, aos poucos, se transforma em algo quente que agita meu corpo, que faz
o meio da minhas pernas latejar de desejo e meu coração brincar de se
entregar.
— Eu quero você — peço no instante em que ele se coloca sobre mim,
abrindo minhas pernas para recebê-lo. — Quero sentir que nem tudo é feio,
sujo e forçado, quero sentir que nem tudo é dor e culpa.
Roman parece triste, incomodado, enquanto me penetra devagar, com
um cuidado que me emociona e faz meus olhos marejarem.
— Eu sinto muito — ele diz, se encaixando em mim, me tomando do
seu jeito, com seus olhos fixos nos meus, pesados, intensos, sérios. — Eu
daria minha vida para tirar essa memória de você.
— Me ajude a criar outras. — Abraço seu corpo induzindo-o a se
mover.
— Eu sinto muito, Yelena — ele repete a cada estocada, lutando entre o
desejo e a culpa.
— Não foi você, Roman. — Seguro seu rosto em minhas mãos,
enroscando minhas pernas em seu quadril e o estimulando. — Você nunca
me machucaria, eu sei disso — digo, olhando dentro dos seus olhos.
— Eu morreria antes — ele fala baixinho, mas sinto como se estivesse
gritando essas palavras e eu adoraria que fosse, que Arkady ouvisse, que
aqueles homens doentes e asquerosos entendessem que um homem não
precisa ser violento para ter uma mulher.
Roman me beija enquanto seu corpo me leva de volta para o paraíso, de
onde não quero mais sair.

— Precisamos usar camisinha — ele diz um tempo depois, deitado de


frente para mim, o rosto apoiado na mão, os lábios em minha testa,
sussurrando para não sermos ouvidos. — Antes que seja tarde demais.
Ainda sinto os resquícios dele dentro de mim, uma sensação dolorida e
gostosa, que me faz querer mais, por medo do futuro ou talvez por não
querer que acabe nunca.
— Nós não engravidamos.
— Como assim?
— Todas nós passamos por um procedimento ao sermos trazidas pra cá,
eles implantam algo em nós. — Estendo meu braço entre nós para que ele
veja a pequena cicatriz. — Isso nos impede de engravidar.
Roman passa a ponta do dedo sobre minha pele, um vinco profundo se
forma entre seus olhos deixando-o com uma expressão perigosa. Lindo,
sexy.
— Meninas grávidas devem ser um problema para eles — constata.
— A menos que algum patrocinador queira. Já aconteceu uma vez, eles
trouxeram uma garota grávida, ela devia estar bem no final, sua barriga era
enorme. — Durante muito tempo tentei tirar a imagem daquela garota da
minha mente, a forma como ela implorava pela vida do seu bebê foi uma
das piores coisas que já vi.
— Meu Deus, eles sequestraram uma garota grávida? — Roman parece
horrorizado e tenho medo de estar falando demais.
— Ela não ficou muito tempo.
— Eles a mataram?
— Eu não sei, não sei o que acontece com as meninas que desaparecem.
Não podemos conversar entre nós e tudo o que sabemos é o que ouvimos
dos guardas ou através das paredes.
— Jesus Cristo.
— Coisas horríveis acontecem aqui, Roman, mas ninguém sabe.
— Agora eu sei, e vou fazer de tudo para acabar com isso — ele diz
com uma certeza absurda e perigosa.
— Só, por favor, toma cuidado.
— Alguém está procurando por você?
— Ninguém está procurando por mim.
Fecho meus olhos por um instante, a dor da solidão machuca meu peito
ao pensar em todas as pessoas que perdi, nas poucas que deixei para trás
acreditando que estou longe, feliz, livre.
— Onde está a sua família?
— Perdi meus pais há muito tempo e minha irmã foi embora daqui
quando pôde.
— Tem certeza? — ele pergunta.
— Do quê?
— A sua irmã, ela disse onde estava ou algo assim?
— O que você quer dizer com isso? — Sinto meu coração acelerado no
peito à medida que começo a compreender o que ele está falando.
— Você disse que ela foi embora e... — ele não termina, mas
compreendo onde quer chegar.
— Ela não estava sozinha, foi diferente de mim, ela tinha um namorado.
— Ah, que bom, então ela está longe daqui.
Faço que sim com a cabeça, rezando para que ele esteja certo.
— Também não tenho ninguém — ele diz um tempo depois, segurando
a minha mão, entrelaçando nossos dedos e a levando para onde está seu
coração.
— Somos o tipo perfeito de pessoas para estar aqui — digo, encarando
nossas mãos unidas. — Jovens, sozinhos, destruídos. Se desaparecermos,
ninguém sentirá a nossa falta. — Sinto um nó se formar em minha garganta
e Roman se inclina para deixar um beijo em minha testa. — Existe algo
mais perfeito do que isso?
— Então vamos garantir que não vamos desaparecer.
— Como?
— Seja boazinha, não desafie o Arkady, eu vou me encarregar de vencer
as lutas e tirar você daqui.
— Como você vai fazer isso?
— Deixa comigo. — Ele me puxa para si, abraçando-me com força,
como se pudesse me proteger com suas palavras, e por essa noite eu me
permito acreditar que ele pode, afinal de contas ele é o Rei do Poço, ele
pode tudo.
— Tá com sono? — ela pergunta, os lábios tocando minha pele, a voz
ficando mais molinha à medida que a noite passa.
— Não, mas você está.
— Não quero dormir, não quero que acabe — ela admite e me sinto um
pouco melhor por saber que Yelena também gosta de ficar comigo, mesmo
sabendo que é algo imposto.
Eu disse a verdade, se ela pudesse com certeza não estaria aqui, mas, de
algum jeito, nossa conexão fez com que deixasse de ser algo ruim e se
tornasse um refúgio, da dor, da solidão.
— Nem eu.
Yelena está aninhada em meus braços, tão pequena, tão leve, tão frágil.
Suas palavras ainda estão martelando minha mente, quero saber quem
foi o maldito que a estuprou, quero ele no Poço onde poderei lidar com ele
de igual para igual, de homem para homem. Tentei fazer mais perguntas,
mas Yelena notou a minha raiva e o medo a calou, como se ela quisesse
esquecer o que aconteceu. Foi o que ela disse enquanto transávamos.
“Me faça sentir.”
Puxo-a para mais perto, nossos corpos ainda estão quentes, sujos e
exaustos, mas ela se recusa a tomar banho, provavelmente uma ordem, já
que debaixo da água fica impossível de ouvir o que estamos falando.
Arkady sabe? É ele quem dá as ordens? Ele sabe que aquele
desgraçado a machucou?
Yelena fica nervosa sempre que faço perguntas, então decido que não é
o momento, ela precisa descansar, e dessa vez ficarei acordado a noite
inteira, velando seu sono.
“Ela chama por você.”
Beijo seus cabelos enquanto faço uma promessa silenciosa de que ela
não vai ficar aqui por muito tempo. Nem que eu tenha que dar a minha vida
em troca da sua liberdade.
Yelena se move ficando quase em cima de mim, seus olhos de gelo
lindos e sonolentos me observam e ela sorri.
— Como está se sentindo?
— Bem — ela responde um pouco tímida, lembranças dela gemendo
meu nome enquanto a fodia invadem minha mente em uma explosão de
raiva e possessividade. Quero protegê-la, arrancar a dor dos seus olhos,
quero matar cada homem que já a tocou, o maldito que a fez acreditar que
esse mundo só tem dor para lhe oferecer.
— No que está pensando?
— No quanto você é linda.
Ela sorri, um sorriso largo que a deixa com um ar juvenil, leve.
— Minha fada. — Coloco uma mecha atrás da sua orelha e ela beija
meu peito.
— Me conte algo sobre você.
— Sobre mim? Não tenho grandes histórias para contar.
— Tenho certeza de que tem mais do que eu.
— Tenho um gato.
— Um gato? — ela ri.
— Sim, um gato muito, muito feio e temperamental.
— Muito, muito feio?
— Nunca diga isso a ele.
— Pode deixar, não direi nada ao Berstuk, é esse o nome, não é?
— Isso... o quê? Você já sabia?
— Você não é só o rei do Poço, Roman Stepanovich, é também o rei do
Setor Oeste.
Ergo-me surpreso e Yelena solta uma gargalhada, é a primeira desde que
a conheci e o som enche meu coração de alegria.
— Toda a Temnyy Gorod conhece o Berstuk, ele fica rondando pelo
Gigante Laranja enquanto você tá fora.
— Aquele gato é mais esperto que muita gente.
— Com certeza.
— O que mais você sabe? — Me sento, apoiando as costas nos
travesseiros e puxo Yelena comigo.
— Sei muita coisa.
— O quê?
— Sei que você fez algumas coisas erradas, que adora uma briguinha.
— Isso não é novidade, estou aqui e só os filhos da puta conseguem
chegar ao Poço.
— Deixa eu pensar. — Ela apoia a mão no queixo enquanto pensa. —
Ah, já sei, você tem um amigo, mas ele não é do Oeste, acho que ele é do
Setor Norte.
— Por que você acha isso?
— Ele tem um carro bonito demais para morar no Oeste e se veste bem
demais para ser do Sul.
Sorrio com a forma simples com que as pessoas são classificadas na
nossa cidade.
— Ele se chama Demyan e sim, ele é do Norte, além das muralhas da
Granitsa.
— Imaginei — ela brinca com a tatuagem em meu corpo passando a
ponta dos dedos sobre ela. — Sei que você nunca namorou ninguém do
Setor Oeste.
— Como você sabe?
— Tem muitas meninas lá que dariam tudo por uma chance com você.
Ergo a sobrancelha convencido e ela revira os olhos, aos poucos ela vai
se soltando, mais leve e mais relaxada com o passar do tempo.
— Não fique aí se achando.
— Eu não disse nada — defendo-me.
— Acho que sei o motivo.
— Sabe?
— Imagino que seja a tal Anna, o motivo para que você nunca tenha se
interessado por nenhuma garota do Setor Oeste.
Sou surpreendido com sua conclusão.
— Como você sabe?
— Deduzi. — Ela ergue os ombros nus e baixa o olhar para a minha
tatuagem. — Você falou o nome dela outro dia.
— Eu falei? — Franzo o cenho surpreso.
— Uhum, ela é a Morana?
Baixo meus olhos para a tatuagem, relembrando o dia em que Anna fez
esse desenho, um sentimento de proteção me invade e quero mudar de
assunto, respeitar sua memória, tirar o nome dela dessa conversa, desse
quarto, mas então me lembro de que ela não está mais aqui.
— Não, mas foi ela quem desenhou.
— Ela é muito boa desenhista.
— Ela amava desenhar.
— Amava?
Movo a cabeça em um sim triste.
— Ela... morreu. — Minha voz sai baixa, como se estivesse repleta de
cacos de vidro, ainda é difícil falar sobre sua morte, é difícil até mesmo
acreditar nisso, tantos meses depois e ainda tenho a sensação de que ela vai
voltar no verão e vamos nos reencontrar, como sempre fizemos. Yelena
parece sentir minha tristeza, porque ela se ergue em meu colo, me
envolvendo em seus braços.
— Eu imaginei — ela sussurra em meu ouvido.
— Por quê?
— Porque eu acho que você não estaria aqui se ela estivesse viva.
Um calafrio se espalha por meu corpo quando me dou conta do que ela
está falando, a promessa que fiz a Anna de não lutar mais, a forma como ela
parecia assustada quando conversamos naquela última noite, com medo por
mim. Então imagino Yelena aqui sozinha, sem ninguém que se importe com
ela. Será que ela já teria sucumbido se não tivéssemos nos conhecido?
— Provavelmente não. — As palavras machucam meu coração e Yelena
suspira, ciente da verdade.
— Provavelmente — ela sussurra e abraço-a com força, fechando meus
olhos e tentando não pensar nisso.
— Mas nunca saberemos — completo, me entristecendo ao pensar que
nunca existirá uma realidade onde Yelena e Anna poderiam existir juntas.
E isso parte a porra do meu coração.
Estamos trocados, sentados um de frente para o outro, Yelena traça
linhas que não fazem sentido algum para quem estiver nos observando na
palma da minha mão, a ponta do seu dedo para em um canto, então ela
desce o dedo um pouco mais, apontando para outro ponto.
É um mapa.
Tento com todas as forças gravar em minha mente o que ela está
tentando desenhar, seus olhos estão fixos na minha mão, os cabelos caindo
em cascatas pesadas sobre seus ombros, ainda posso sentir o cheiro de suor
e sexo cravado em nossas peles, lembrando a todo momento que essa noite
foi real.
Ela repete o desenho mais três vezes antes da porta se abrir e nos
levantarmos bruscamente.
Seus olhos caem no chão imediatamente e ela assume a postura
submissa de sempre, fazendo meu coração disparar no peito de ódio,
instintivamente a puxo para perto de mim, pousando minha mão
protetoramente em sua cintura em um abraço possessivo e cheio de fúria.
Dois capangas de Arkady entram, eles olham para Yelena de um jeito
que odeio, me inclino e sussurro baixinho em seu ouvido:
— Algum desses te tocou? — Ela faz que não com a cabeça, mas suas
mãos estão apertadas com força uma na outra.
Minha respiração acelera, tudo que vejo é ódio, morte e vingança, meus
punhos se fecham e meu corpo inteiro se retesa.
— Rom, não — ela sussurra ainda mais baixo, como se pudesse sentir o
que estou prestes a fazer.
— Viemos buscar a garota — um deles diz e me coloco na frente dela.
— Não — respondo sem pensar. — Já chega dessa porra, ela não vai —
digo, pronto para estourar a cara de qualquer um que tente tirá-la de perto
de mim.
Os homens se olham como se pudessem ter uma conversa silenciosa
bem na minha frente.
— Roman, por favor — ela sussurra em minhas costas.
— Avisem ao seu chefe que ela não sai daqui.
— Não podemos, a ordem foi de levá-la.
— Tô pouco me fodendo para suas ordens. — Olho em volta até achar
um ponto onde tenho certeza de que há uma câmera, me viro para ela e falo.
— Seja lá quem for o filho da puta pervertido que passou a noite batendo
uma olhando para o meu pau, fique sabendo que ela não sai daqui sem mim.
— Pelo amor de Deus, pare com isso! — Yelena implora e me viro para
segurar seu rosto em minhas mãos.
— Não se preocupe, vou cuidar de você — digo com a certeza de que
não vou recuar.
Um dos homens aproveita minha distração e se aproxima, perto o
suficiente para que eu dobre meu braço e acerte seu nariz com meu
cotovelo. O homem desaba no chão e me preparo para o próximo.
— Eu tô falando sério — digo para o homem que observa seu amigo
segurando o nariz ensanguentado. — Você será o próximo.
— Seu filho da puta! — o homem resmunga no chão.
A porta se abre mais uma vez e Arkady entra acompanhado de Zakhar.
Antes que eu possa sequer respirar, Yelena corre em direção a ele, se
jogando em seus pés com a cabeça tão baixa que posso jurar que ela vai
beijar a ponta das botas desse desgraçado e meu estômago se revira com
essa cena.
— Yelena! — a chamo, mas ela parece não me ouvir.
— Minha devochka. — Arkady faz um carinho em seus cabelos, como
se ela fosse seu bichinho de estimação. — Vamos, se levante. — Ele se
inclina, segurando seu braço e a ajudando a se levantar.
— Perdoe-o, por favor, ele não sabe o que está fazendo, por favor, o
perdoe — ela implora, com a voz carregada de medo.
— Pare com isso, Yelena. — Dou um passo em sua direção, quero
arrancá-la dos braços dele, mas os capangas se colocam na minha frente, o
homem que acertei ainda segura o nariz com uma das mãos.
— Vamos nos acalmar, por favor — Arkady diz, segurando Yelena em
seus braços como se ela fosse a sua garotinha. O sangue ferve em minhas
veias com a imagem e tento fazer contato visual com ela, mas Yelena se
recusa a me olhar.
Ela está com medo, posso sentir, seu corpo inteiro está tremendo e,
mesmo de onde estou, sou capaz de ver a palidez em seu rosto de fada.
— Tudo bem, vocês podem ir — Arkady dá a ordem e os homens
hesitam. — Vamos, saiam! — ele grita e os imbecis me olham por um
instante antes de obedecerem.
— Ela vai embora comigo — digo estendendo a mão para ela. —
Vamos, Yelena, não tenha medo, eu vou te proteger. — Encaro seu rosto
buscando seus olhos, noto que é minha mão que está tremendo, não, meu
corpo inteiro, meus órgãos, minha alma, nunca me senti tão vulnerável e
com tanto ódio.
Sempre soube que Arkady é um filho da puta, nunca gostei dele, mas o
ódio que sinto nesse momento é tão grande que eu seria capaz de matá-lo
apenas com a força do meu olhar. Yelena não olha para mim, em vez disso,
ela enterra o rosto no peito dele e uso tudo dentro de mim para não a puxar
para longe desse maldito.
— Acho que precisamos conversar — Arkady diz, enquanto sua mão
faz um carinho nos cabelos dela.
— Não quero conversar, quero a Yelena longe daqui — digo, olhando
para ela.
— Vamos fazer o seguinte, nós dois vamos levá-la para o seu quarto e
você vai ver como ela está bem, depois você vai para casa, dormir um
pouco. Provavelmente nossa garota o deixou acordado a noite toda e a
privação de sono faz as pessoas delirarem.
— Não estou delirando. — Fecho meus punhos com força e seus olhos
caem em minhas mãos.
— Eu tenho certeza de que está, você não agrediria um dos meus
homens se não estivesse, você sabe que não aceito esse tipo de
comportamento com meus funcionários, não é mesmo?
Olho para ela novamente, ela parece ter diminuído de tamanho e quase
posso ouvir a sua respiração, tamanho o medo que ela exala.
— Yelena, é isso que você quer? — pergunto, ignorando as ameaças do
filho da puta. Ela ergue o rosto para mim, seus olhos parecem vidrados, sem
vida, sem esperança, assim como os olhos de Anna quando a encontrei
naquela banheira; como os olhos daquela garota que vi morrer. Como os
olhos de alguém que já desistiu da vida.
Por favor, não desista.
Ela move a cabeça em um sim discreto, que parte meu coração ao meio.
Arkady olha para ela, um sorriso triunfante se forma em seus lábios e
ele a abraça ainda mais forte, mais íntimo, mais perturbador. Então me
recordo do dia em que senti o cheiro dela nele, e o meu coração quebrado,
sujo e cheio de ódio explode em meu peito.
Sou como aquela usina nuclear, transbordando radiação, morte e dor,
destruindo tudo a minha volta em um silêncio macabro. Quero agarrar
Arkady pelo pescoço, quero bater sua cabeça na parede até ver seu cérebro
explodir, quero ouvi-lo implorar, enquanto se engasga com seu próprio
sangue.
— Então, vamos lá, está na hora de dar um descanso para a nossa
menina, ela parece ter tido uma noite e tanto. — Arkady ergue o seu rosto e
ela desvia o olhar para o chão. — Se despeça do nosso rei, vamos.
Arkady a empurra em minha direção e Yelena hesita antes de se
aproximar. Meu corpo grita, cada célula dele implora por ela e sem entender
por que diabos estou fazendo isso, a puxo para mim e beijo sua boca de um
jeito bruto e possessivo.
— Não tenha medo — digo ao segurá-la junto de mim, ela está fria e
tremendo, mas não se afasta, apenas move a cabeça sutilmente enquanto
alcanço sua mão com o máximo de discrição que consigo, posso sentir seu
coração batendo com força à medida que ela se afasta, seus olhos nunca
encontrando os meus enquanto ela caminha até onde Arkady está.
Um outro homem entra e se aproxima, Arkady dá ordens para que ele
leve Yelena embora, antes de sair ela olha para mim e noto um suave sorriso
surgir em seus lábios, fazendo-me coração tolo se agitar. Assim que ela sai,
volto a olhar para Arkady e respiro fundo.
— Ela roubou o coração do Rei do Poço, não é? — ele diz com uma
satisfação que me incomoda porque é verdade. De alguma forma, essa
garota roubou um pedaço do meu coração que eu nem sabia que estava
disponível.
— Me desculpe, eu não deveria... — Passo a mão nos cabelos cansado e
nervoso, Arkady estala a língua com todo o controle e calma.
— Não precisa se desculpar, eu compreendo, não é e à toa que ela se
tornou a queridinha dos patrocinadores, essa garota sabe como enlouquecer
um homem.
— O que você está falando?
— Yelena é a nossa garota de ouro, a princesinha dos patrocinadores.
— Ela foi leiloada? — pergunto, sabendo que não deveria.
— Ela é uma prostituta, não se deixe levar por essa carinha de fada, essa
garota já recebeu mais homens em sua cama do que eu posso contar, e cada
um deles saiu desse jeito, enlouquecido de amor.
— Eu não a amo.
— Que seja, desejo, luxúria, posse, essa coisa que corre nas nossas
veias masculinas e nos fazem sentir donos das bocetas que fodemos.
Abro a boca para questionar, mas me obrigo a respirar e deixar para lá,
não importa o que ele diga, sei bem o que sinto.
— Fique tranquilo, rapaz, eu já providenciei que ela seja exclusiva sua,
até o fim do Padat’ ninguém mais toca na nossa devochka — ele diz, mas
não consigo acreditar em suas palavras, não acredito em nada que ele diz e
a certeza de que preciso agir o mais rápido possível aumenta a cada
instante.
— Obrigado, eu acho que você tem razão, eu me apeguei a ela.
— Tudo bem, você é jovem, seu pau fala mais alto que sua mente — ele
ri e a vontade de socá-lo só aumenta. — Mas, por favor, só não ataque mais
os meus homens, eles estão fazendo o seu trabalho.
— Prometo que isso não vai acontecer mais — digo, com a certeza de
que, se precisar, quebrarei cada osso de cada homem que eu imaginar que
tocou em um fio de cabelo dela.
Arkady me acompanha para fora do quarto, durante todo o caminho
passo meus dedos pela palma da minha mão, relembrando com detalhes
tudo o que combinamos e rezando para que, ao menos uma vez na porra da
minha vida, eu tenha sorte em alguma coisa.
Uma vez, quando era bem pequena, passamos por algumas semanas
muito difíceis em casa. Eu vivia faminta e a fome era tanta, que meu
estômago doía a ponto de não conseguir dormir à noite. Até mesmo beber
água era ruim, já experimentou beber água com o estômago completamente
vazio? Dói pra caramba.
Depois de alguns dias, eu já estava começando a ficar sonolenta e fraca,
até mesmo circular pelo nosso minúsculo apartamento era exaustivo, então
eu e a Waleska tivemos uma ideia. Era arriscada e se fôssemos pegas,
poderíamos, na melhor das hipóteses, sermos presas, e, na pior, levaríamos
uma surra inesquecível dos nossos pais.
Mas a fome faz isso com as pessoas, as torna corajosas, destemidas e
percebemos que, no fim das contas, temos muito pouco a perder.
Então, fomos ao mercadinho que ficava na divisa do Setor Oeste com o
centro, passamos o dia escondidas observando tudo, cada pessoa que
entrava e saía, cada vez que o dono se distraía, cada turno de funcionários.
Fizemos isso por dois dias, dois dias em que a fome foi nossa arma e nossa
coragem, por fim, Waleska se levantou e disse: “É agora, vamos!”.
Não tínhamos um plano bom, nem éramos inteligentes, só precisávamos
de coragem e sorte. A primeira, a gente já tinha, mas precisávamos acreditar
que a segunda viria.
Ainda me recordo do peso daquele pacote de biscoito dentro da minha
blusa, ele parecia pesar uma tonelada e ser feito com o puro urânio, me
queimando de dentro para fora.
É exatamente como me sinto nesse momento, enquanto caminho pelos
corredores que conheço como a palma da minha mão, em silêncio, com a
cabeça baixa, o coração prestes a explodir no peito e um pedaço de urânio
pressionando minha costela. A diferença é que, dessa vez, não tenho
Waleska ao meu lado me dizendo que vai dar tudo certo, e a sorte não
conhece o Poço.
— Preciso dizer que estou orgulhoso de você — Arkady diz alguns
minutos depois enquanto abre a porta do meu quarto. Sinto o peso da culpa
martelando em minhas costelas a cada batida do meu coração, mantenho
meus olhos no chão incapaz de encarar os seus porque sinto que, se fizer
isso, ele vai descobrir.
Arkady fecha a porta e o som do trinco se movendo é a certeza de que
ele não mentiu ao dizer que iria cobrar seu prêmio por me deixar ficar com
Roman a noite toda, posso sentir a raiva borbulhando através dele, eu a
conheço bem.
— Acho que, no fim das contas, você sabe quem é o seu verdadeiro
dono, não é, devochka? — Ele para na minha frente e ergue meu rosto,
encarando meus olhos por tanto tempo que tenho a certeza de que será o
meu fim.
Ele vai descobrir, é agora, justo agora que finalmente tenho uma
esperança, ele vai descobrir e vai me matar e depois irá atrás de Roman e
vai matá-lo. Não, pior, vai destruí-lo, até não sobrar mais nada.
— Responda. — Ele aperta meu queixo e respiro fundo erguendo os
olhos, ignorando a dor em meu estômago.
— Você — sussurro sentindo a bile subir por minha garganta.
— Não ouvi, fale mais alto — ele exige.
— Você, é você o meu dono e senhor! — falo alto e claro, com meus
olhos fixos nos seus, no brilho maligno que eles emanam, na forma como
são capazes de me matar um pouquinho a cada vez que se colocam sobre
mim.
O tapa vem antes que eu possa me preparar, é tão forte e brutal que sou
jogada no chão.
É a minha chance.
Baixo a cabeça apoiando a testa no piso frio, meus cabelos escondem
meu rosto e todo o lado direito do meu corpo. Pego a chave que Roman me
entregou quando me beijou, a chave que ele conseguiu roubar de um dos
capangas com maestria quando ele o acertou e jogo-a debaixo da cama, não
tão longe que eu não possa pegar, não tão perto que Arkady possa ver.
No instante seguinte, sou puxada pelos cabelos e colocada de joelhos na
sua frente.
— Você fez de propósito, não foi? — ele pergunta enquanto ergue meu
rosto e me estapeia mais uma vez. — Eu sei que foi. Cada palavra que saiu
dessa boca imunda foi para me punir, não foi? — ele continua falando, com
seus dedos cravados em meu rosto, que queima com os tapas. — Responda,
maldita! — ele grita, liberando o verdadeiro Arkady, o homem demoníaco
que me apavora.
— Não, senhor — digo com os olhos fixos no chão, sentindo o peso do
objeto escondido debaixo da cama.
Minha salvação ou minha morte.
Arkady caminha lentamente a minha volta, em uma tortura psicológica
que me deixa ainda mais apavorada porque não sei para onde ele está
olhando.
Olhe para mim, apenas para mim.
— Mentirosa! — Outro tapa surge do lado esquerdo e, dessa vez, não
caio, mas meu rosto parece em carne viva.
Penso em Roman acertando os capangas, dizendo que ninguém me toca,
que ele vai me proteger. Sinto um filete de sangue escorrer por meu lábio,
sinto um sorriso insano se formar enquanto penso com tristeza na minha
realidade.
Não existe nada que possa me proteger. Meu destino foi selado no
momento em que entrei naquele furgão.
Eu já estou morta, só preciso parar de respirar.
— Sabe o que sinto vontade de fazer com você? — Ele segura meu
cabelo na base do crânio, a dor me faz gemer.
— Não, senhor.
— Te castigar, até que você implore por misericórdia, mas então eu me
lembro de que você não chora e nem implora e isso me deixa tão puto da
vida que desisto, porque eu sei que, se eu começar, eu não vou parar, não
enquanto seu coração bater — ele diz cada palavra com uma calma que gela
minha espinha. Eu sei que está falando a verdade, porque já tentou uma vez
e não deu muito certo. Fiquei de cama por semanas, o que atrasou todo o
seu cronograma e o obrigou a mentir para os patrocinadores.
— Mas isso não significa que não posso te punir. — Ele retira o cinto
em um puxão e o segura com a mão esquerda, enquanto com a direita
mantém minha cabeça erguida. — Tire a roupa.
Abro a boca para implorar, mas desisto, não vai mudar nada e não vou
dar a ele esse gostinho, então faço o que me pede. Tiro minha roupa
devagar, sentindo que estou despindo não só o meu corpo, mas também a
minha alma, dobro cada peça e deposito-a em cima da cama. Quando estou
completamente nua, me ajoelho novamente à sua frente e abaixo a cabeça.
— Mãos para trás! — ele exige e cruzo-as atrás das costas, e Arkady as
prende com algemas apertadas e se afasta.
Não ouço nada além da sua respiração e meu coração que bate
desesperado no peito. Ele demora o tempo necessário para me enlouquecer,
e sabe bem como fazer isso.
O primeiro golpe é sempre o pior, ele queima a minha pele e me faz
perder o equilíbrio, sem as mãos, caio de lado e ele me ergue pelas algemas.
— Comece a contar, fadinha — ele exige me chamando pelo apelido
que Roman me deu e faço o que ele manda.
Um, dois, três, cinco, dez, quinze...
Arkady me açoita com fúria, a cada golpe ele repete algo que disse
enquanto estava nos braços de Roman. Estou recebendo o que mereço por
provocá-lo, eu sei disso, eu já sabia quando o fiz, mas nem assim me
arrependo.
Minha voz se torna fraca, quase um gemido, quando chego ao trinta, as
lágrimas pinicam meus olhos e mal consigo respirar, mas minha atenção
está naquele pequeno objeto dourado debaixo da cama e no poder que ele
tem na minha vida. É só isso que importa, nada mais.
Arkady ofega exausto e sei que chegou ao fim quando ouço o som do
cinto caindo no chão. Ele fica um instante em silêncio, o som da sua
respiração pesada é tudo o que ouço.
— Por que você faz isso comigo? — Ele se aproxima, apoiando a testa
nas minhas costas machucadas. — POR QUÊ?! — grita, quase em
desespero, não consigo pensar direito, a dor me deixa confusa e sinto a
exaustão quase me derrubar.
Arkady me segura pela cintura, puxando-me para junto de si, eu poderia
jurar que ele está chorando, mas não me movo, não digo nada, quase não
respiro, sou uma máscara de indiferença, algo que os meses de tortura e
exploração nas mãos desse monstro me ensinaram a fazer.
— Tão linda. — Ele passa a ponta dos dedos na minha pele marcada,
ferida, inchada pelos golpes do couro. — Isso é uma obra-prima — ele diz,
passeando os dedos por minhas costas, quadris e coxas. — Minha obra-
prima — sussurra antes de deixar beijos por todas as partes do meu corpo.
Respiro fundo e tento pensar em outra coisa, qualquer uma que me
impeça de sentir seus lábios sobre mim. Arkady se acalma aos poucos, e
então se levanta e caminha até parar na minha frente, me dando a certeza de
que ele chorou. Seus olhos estão vermelhos, inchados, úmidos e preciso de
tudo de mim para conter um sorriso de satisfação ao parar na minha frente,
erguendo meu rosto em sua direção.
— Minha linda e selvagem devochka. — Ele passa a ponta dos dedos
por meu rosto, é tão insuportável que quase peço para que volte a me bater,
a dor dos golpes é melhor do que ser tocada por ele. — Quando você vai
entender que não importa o que faça, você é minha, meu brinquedinho,
minha garotinha.
Arkady abre sua calça e retira seu membro, segurando-o com uma mão,
enquanto acaricia meu rosto com a outra, falando obscenidades enquanto o
bombeia.
— Abra a boca, receba seu dono — ele pede no instante em que me
invade, enfiando seu pau em minha boca, me sufocando, me punindo e
durante todo o tempo ele repete que sou dele, que pode me matar a qualquer
momento, que Roman vai se cansar de mim, que o nosso tempo está
acabando.
Arkady está furioso e não me surpreendo, nada que ele faz me assusta,
eu já sabia, e, sinceramente, não me importo, hoje ele pode me punir, pode
me usar, pode falar o que quiser, não estou nesse quarto, estou em um lugar
diferente, nos braços de Roman, sendo tratada como uma garota merece.
— Olhe para mim — ele exige, bombeando seu membro em meu rosto,
me sujando com seu esperma, me humilhando.
Ele só não sabe de uma coisa: existe um limite que um ser humano pode
ser quebrado, ele já alcançou esse limite comigo há muito tempo, nada mais
me atinge, porque eu sei que tudo é passageiro. A dor, a humilhação, o
medo, tudo passa. Pode levar o tempo que for, uma hora ele vai se sentir
saciado e vai me deixar, e então eu terei todo o tempo do mundo para
colocar em prática o que planejamos.
E se tudo der certo essa será a minha última semana em suas mãos.
Estou tremendo tanto, que mal consigo respirar e nada tem a ver com o
vento frio que parece lâminas afiadas em meu rosto, mas sim com a
sensação de impotência que sufoca meus pulmões à medida que me
distancio do Poço.
De Yelena.
Caminho pelas ruas escuras da manhã fria, não ouso olhar para trás,
nem mesmo parar de andar, sei que, se eu fizer isso, vou voltar lá para
dentro e matar Arkady e quem tentar me deter, ou vou morrer com uma bala
no meio da minha testa e estragarei tudo, então apenas contínuo colocando
um pé na frente do outro enquanto decoro o mapa invisível em minha mão e
relembro a forma desesperada como ela tremia quando a beijei.
Porra, porra, porra.
Ela é a garota mais corajosa que já conheci na minha vida, e isso é
muito. Viver em Temnyy Gorod já requer uma dose de coragem enorme,
principalmente para as mulheres, mas nunca vi o que vi hoje nos olhos dela
enquanto bolávamos o nosso plano em meio a gemidos de prazer.
O único problema é que, à medida que me afasto, tudo parece frágil
demais.
E se ela não conseguir esconder a chave, e se Arkady descobrir?
Viro uma esquina e continuo andando, pensando nos olhos perdidos e
apagados da minha fada e me lembrando a todo momento que o jogo virou,
entrei nessa porra como um desafio, uma brincadeira, depois voltei sem
nenhum objetivo além de um desejo insano de morrer e agora... agora eu
daria tudo para ser imortal, como os deuses das histórias que minha mama
me contava, para poder tirá-la de lá em segurança.
“Não tenho medo de morrer, Roman, tenho medo de ficar aqui para
sempre.”
Foi o que ela me disse depois que gozamos, abraçados, ofegantes, com
o sabor da sua pele, do seu suor e da sua coragem pinicando em minha
língua e, naquele momento, meus sentimentos estavam em combustão, em
um emaranhado de coisas que me faziam sentir com tanta força, que eu
poderia jurar que me apaixonei por ela, mas isso não pode ser. Eu amo a
Anna, eu ainda sinto o amor em meu coração, ainda há dentro de mim uma
fagulha de desejo de morrer e me encontrar com ela, porém, se eu for bem
sincero, eu direi que essa fagulha já não é mais tão forte, não é mais uma
chama, não queima meu peito, não me faz chorar de saudades.
Agora são lembranças...
Ah Deus, não, não pode ser.
Esfrego meu rosto com força, não consigo respirar e começo a acreditar
que Arkady tem razão, aquela garota roubou um pedaço do meu coração.
Atravesso a Kupol desejando que o frio e o silêncio me ajudem a
organizar as minhas ideias, mas, ao chegar na frente dos portões de ferro
altos e imponentes, mas que nunca me impediram de chegar aonde quero,
continuo do mesmo jeito, cheio de perguntas e quase sem respostas. Estico
minha mão e toco o interfone, é estranho ouvir a voz do outro lado me
atendendo.
— Roman, ah, menino, o que você faz aí fora? — Irina, a governanta da
família de Demyan, pergunta. Ela me viu crescer, trabalhou com a minha
mãe e me conhece bem.
— O Demyan está? — pergunto sentindo saudades dela, das suas
broncas quando sujávamos a casa ou quebrávamos alguma coisa.
Ela não responde, em vez disso ouço a trava do portão se abrindo em
um convite silencioso para entrar na propriedade dos Petrovich.
Faço o mesmo caminho que fiz a minha vida toda, mas não me sinto
mais o mesmo, não vejo mais as coisas como antes, é estranho e confuso,
familiar e novo.
Irina está na porta à minha espera, com um sorriso nos lábios e um olhar
de quem está com saudades.
— Achei que nunca mais ia te ver — ela diz ao abrir os braços e me
envolver em um abraço carinhoso.
— Ainda moro no mesmo lugar — digo ao abraçá-la de volta.
— Você sabe que não saio de casa.
— Nem por mim? — brinco e ela me puxa para dentro da mansão da
família de Demyan. Olho em volta reconhecendo cada peça de arte, cada
objeto, cada canto, desde a imponente e sombria janela, até meus olhos
pararem nas escadas que levam ao andar de cima. Sinto um mal-estar
começar em meu estômago, subir por minha garganta, se instalar em minha
boca.
— Ele ainda não está em casa, mas venha comigo, você parece faminto,
vamos comer. — Irina me puxa pelo braço me obrigando a segui-la pela
casa até a cozinha. Assim que sinto o cheiro da comida, meu estômago
sensível protesta, estou mais do que faminto, estou cansado e dolorido, mas
então me recordo de Yelena.
Será que ela comeu, será que está descansando?
Será que ainda está viva?
Tento recusar, mas seria mais fácil o mundo parar de girar do que
impedi-la de fazer o que quer.
Então eu como, enquanto respondo algumas perguntas e faço outras.
Irina me conta como Demyan está e sinto tanto a sua falta, que chega a ser
ridículo.
— Demyan disse que você está se metendo em confusão. — Ela aponta
para o meu rosto e não nego. — Até quando você vai continuar com isso,
menino?
— Lá eu sou rei.
— Rei morto não vale nada.
— Não vou morrer — digo com uma certeza que me assusta e ela
suspira, nitidamente sem acreditar em mim.
— O Demyan está preocupado com você.
— Tá, então por que ele não veio falar comigo?
— Porque você não veio falar com ele também.
— A gente não é mais amigo, Irina — confesso me sentindo vazio.
— Se não fosse, ele não estaria preocupado e você não estaria aqui.
Vocês não são amigos, são quase irmãos, só estão machucados demais para
se dar conta da importância que um tem para o outro.
— Bobagem. — Me levanto sentindo a exaustão do dia me derrubar.
— Vem, vou te levar para tomar um banho e descansar.
— Não posso — tento recusar.
— Não discuta comigo, estou mandando. — Ela me segura pelo braço e
deixo que me leve escada acima para o quarto de hóspedes que sempre
fingia usar quando ficava para dormir.
Assim que Irina sai, eu me desfaço das minhas roupas e entro no
chuveiro. Tomo um banho quente e pego uma muda de roupa de Demyan
que está na gaveta. Ele sempre deixava roupas para mim, porque dizia que
não queria desculpas para ver o meu pau de fora por aí.
Sorrio com a lembrança de dias leves, onde éramos apenas dois jovens
provocando-se.
Olho para a cama grande e confortável, nunca dormi nela. Todas as
noites que passei aqui, estive do outro lado do corredor, no dele quando
criança, brincando com seus brinquedos caros ou vendo tevê, quando cresci,
passei a frequentar o quarto dela; e sem pensar, faço o mesmo caminho que
fiz minha vida inteira, atravessando o corredor e indo até a porta do outro
lado. Giro a maçaneta ignorando a forma como meu coração bate, é a
primeira vez que estou aqui desde que ela se foi e, embora eu não tenha
planejado isso, sinto que preciso entrar.
O lugar está exatamente igual, cada coisinha dela do jeito que ela
deixou: os livros, a penteadeira, a caixinha de música. Abro-a e ouço a
canção familiar e triste, que atinge o meio do meu peito, como se fosse a
própria Anna aqui, me tocando, dizendo que sente a minha falta. Fecho-a e
vou até o frigobar que ela fazia questão de manter cheio e pego uma garrafa
de vodka. Está pela metade e sei que fomos nós quem a tomamos, abro e
tomo um gole enquanto caminho pelo lugar, tocando em tudo, cheirando
seus perfumes, deixando a saudade me abater. Vou até a mesa onde ela
amava ficar, seus cadernos de desenhos e todos aqueles materiais, lápis,
tinta e tudo o mais estão lá, tem até um papel amassado no canto da mesa.
Folheio os cadernos, me lembrando de cada um desses desenhos, paro
na página rasgada onde ela desenhou a minha tatuagem. Passo os dedos
pelo papel, quase posso sentir como se ela estivesse aqui, rindo e me
provocando, sempre tão segura de si, tão inteligente.
Sempre me senti pequeno e bobo na sua presença, aqui nunca fui rei, fui
seu súdito, seu aprendiz. Não a protegi, não a salvei, às vezes tenho medo
de descobrir que nem ao menos a amei, eu a idolatrava, a respeitava,
admirava. Anna era minha melhor amiga, minha confidente, a pessoa com
quem eu mais conversava, mais até que Demyan. Ela conhecia meus
medos, entendia minhas dúvidas, ela me mostrava o mundo pela janela, me
prometia que um dia eu chegaria a algum lugar. Anna me olhava como eu
nunca fui capaz de olhar.
Bebo enquanto mato a saudade de casa, de seu cheiro e calor, das
histórias que vivemos, dos filmes que assistimos, de como ela me ensinou a
ouvir Ic3peak e defendeu com unhas e dentes a banda até eu me apaixonar
por ela também. Com a Anna era assim, ela enxergava tudo com uma lente
de aumento, com força e intensidade e foi assim que nossa história foi
forjada pelos olhos dela.
Coloco os cadernos no mesmo lugar e vou até o outro lado do quarto,
tomo a vodka cara no gargalo, em goles longos. O álcool queima por onde
passa e desejo que ele seja rápido. Preciso apagar, esquecer, respirar.
Me deixe respirar, Anna.
Vou até a cama, está desarrumada como se ela fosse voltar a se deitar a
qualquer momento. Me sento e tomo mais um longo gole antes de colocar a
garrafa na mesa e pegar o travesseiro dela. Inalo profundamente tentando
sentir o seu cheiro, mas não há nada, como se ela fosse apenas um sonho
bom que tive.
Olho para a porta do banheiro e meu coração dispara no peito, como se
um monstro estivesse ali à minha espera, pronto para me matar. Não
consigo me mover, não tenho coragem de entrar lá, temo encontrá-la
naquela banheira, imersa em água e sangue, sem vida. Sem mim.
É tão doloroso que mal consigo respirar, meu peito se comprime e
massageio com o punho enquanto desvio o olhar do lugar onde minha vida
mudou para sempre. O tempo passa e a dor não se vai, tudo volta à minha
mente: o cheiro de morte, o olhar de pânico de Demyan, o grito em minha
garganta.
Então abro a gaveta sabendo exatamente o que vou encontrar nela, pego
o saquinho de pó que Anna sempre deixava ali, ainda está intacto. Espalho
o pó na mesa e ajeito, faço um rolinho com o papel que deixamos ao lado e
inalo tudo de uma vez. Meu nariz arde, minha garganta coça e tusso,
sentindo meus olhos se encherem de lágrimas e o barato me atingir como
um soco em meu rosto. Me deixo cair na cama, puxando o travesseiro junto,
me aninhando nele, deixando que a brisa me leve embora para outro lugar.
Para onde ela está.

Respiro profundamente, inalando seu cheiro, cheiro de vida, de


liberdade, de amor.
Sinto meu corpo inteiro formigar, como se milhões de formigas
estivessem me picando, é estranho e perturbador, mas não consigo me
mexer. Deve ser o pó misturado com a vodka e, sinceramente, não ligo a
mínima. Se isso for morrer, não é assim tão ruim.
Minha pele se arrepia, um frio intenso chega aos meus ossos e começo a
tremer, mas ainda não consigo me mexer, os espasmos machucam meu
peito, o ar está pesado demais e não consigo respirar, então desisto.
— Roman... — Ouço um sussurro, quase tão suave quanto um sopro de
ar, forço meus olhos a abrirem, mas eles não me obedecem. — Roman... —
o sussurro se torna um pouco mais forte, alto o suficiente para que eu
reconheça a sua voz.
Leve, alegre, com o erre arrastado.
— Anna — a chamo, ainda incapaz de me mover e uma onda de
emoção inunda meu peito. Ela está aqui, eu sinto, em cada pedacinho do
meu corpo.
— Não me deixe — ela pede, a voz triste, chorosa.
Meu coração se agita, porque reconheço essas palavras.
— Não me deixe sozinha — ela repete, mas não consigo responder. —
Abra os olhos — pede e, instantaneamente, os abro.
Ela está sobre mim, seus olhos vidrados me encaram acima da minha
cabeça, os cabelos curtos emoldurando seu rosto de boneca.
— Moy dorogoy... — a chamo, mas ela não está sorrindo, ao contrário,
Anna começa a chorar e estendo minha mão para tocá-la.
— Não me deixe sozinha.
— Não vou deixar, eu estou tentando te alcançar. — Estico meu braço,
mas quanto mais tento, mais distante ela fica.
— Então venha me buscar, antes que seja tarde demais.
As lágrimas começam a cair de seus olhos, manchando seu rosto de
porcelana de vermelho.
Lágrimas de sangue.
— Anna, onde você está? — pergunto desesperado.
— Você sabe, venha logo, não vou suportar tanto tempo — ela diz,
ofegando, como se estivesse sendo machucada.
Inclino meu rosto tentando entender onde ela está, porque não consigo
alcançá-la, noto seu vestido flutuando em torno do seu corpo, não é o
mesmo que vi da outra vez, mas eu o reconheço, é o mesmo vestido que
Yelena usa quando vai me ver.
— Onde você está? — pergunto novamente, sentindo-a se afastar, seus
olhos mudam, agora são olhos de gelo, olhos que hipnotizam, olhos de fada.
— Yelena — a chamo, confuso, porque por um momento é o rosto dela que
vejo acima de mim. Pequeno e delicado, os olhos cheios de medo e dor.
— Vem logo, eu preciso de você. — Ela estende a mão, os dedos
machucados, o sangue escorrendo por eles. — Eles vão me pegar.
É ela, eu sinto, é ela. E se aquele maldito a machucou, se...
— Ele não vai me perdoar, vem logo me salvar.
O sangue lava seu vestido, cobre sua pele, a suga para longe de mim.
— YELENA! — eu grito no instante em que acordo coberto de suor,
com o coração explodindo no peito e uma certeza: Anna está me mandando
uma mensagem.
Estou parado na frente da lareira, meu coração ainda bate acelerado e
minhas mãos continuam suadas, Demyan diria que estou me sentindo assim
por causa da mistura de vodka com cocaína, que fantasmas não existem e
que sou um bobo por acreditar nisso, mas eu sei que foi real, eu sinto.
— Roman. — Ouço sua voz e me viro para encontrar meu amigo,
parado a alguns metros de distância, com a carranca de sempre e os lábios
azulados de frio.
Demyan sempre sente muito frio.
— Já disse para se agasalhar melhor antes de sair de casa, qualquer dia
você vai desmaiar de frio.
— É um bom jeito de morrer. — Ele ergue os ombros com desdém
enquanto caminha até onde estou, esticando as mãos em frente à lareira.
Sinto um pouco de alívio por saber que ele também tá uma merda, que não
superou, que ele ainda sente a falta da irmã, mas como poderia ser diferente
se Anna era a sua gêmea e ele ainda vive aqui, debaixo desse teto
amaldiçoado, dormindo a poucos metros de distância do lugar onde
vivemos a pior noite da nossa vida?
— A casa tá diferente, você tirou as fotos.
— Não tava suportando olhar para elas espalhadas por aí como se
fôssemos uma família.
— Vocês foram.
— Não somos mais.
— Você não mexeu no quarto da Anna. — Olho para o seu rosto pálido,
mas ele não me olha de volta.
— O que você está fazendo aqui? — Demyan pergunta encarando o
fogo com a naturalidade de sempre, como se não tivéssemos passado os
últimos meses nos evitando.
— Você ainda não entrou lá, né?
Demyan desvia o olhar para mim, ele sempre foi um cara bom em
analisar pessoas. Quando mais jovens, ficávamos horas sentados fumando
enquanto ele analisava qualquer um que passasse por nós, descrevendo
características e justificando cada uma delas, era como um hobby. Anna
desenhava, ele analisava.
— Você tá chapado — constata.
— Não muda de assunto.
— E tá bêbado também.
— Não, só um pouco alto.
Ele me analisa com o cenho franzido, como fazia com aqueles estranhos
muito tempo atrás e me sinto incomodado porque não sou um estranho, sou
seu amigo, seu melhor amigo.
— Quer parar de me olhar assim?
— Seja lá o que você veio fazer aqui, não vou levar em consideração.
— Vai se foder!
Ele se afasta caminhando pela enorme sala vazia e impessoal, não há
mais fotos, nem nada que lembre que algum dia uma família viveu aqui,
tudo é frio, como se até mesmo a casa estivesse de luto.
— Eu não viria se não fosse sério — digo.
Demyan volta a me olhar preocupado, como se tentasse entender o que
estou falando.
— Está com fome?
Ele sempre se preocupou com isso, se estou comendo, se estou bem.
Nego com a cabeça.
— Não é isso.
— O que você quer aqui então?
— Você ainda não conseguiu entrar lá, não é? — repito a pergunta e ele
nega balançando a cabeça de um lado para o outro antes de puxar um
cigarro do bolso e colocar na boca.
— Não tem problema, Dem, quando você estiver pronto, mas é
importante ir, fechar esse ciclo.
— Foi isso que você veio fazer aqui? Fechar um ciclo?
— Também, eu precisava, mas também vim te ver.
— Por quê?
— O Padat’ está chegando.
— Foda-se, você não vai morrer — ele diz com uma certeza que me
emociona, Demyan sempre acreditou mais em mim do que eu mesmo, mas
acho que é isso que amigos de verdade fazem, eles veem em nós o que não
somos capazes de enxergar.
— Se eu ganhar...
— Você vai ganhar — ele me interrompe e sorrio.
Ele acende o cigarro e traga soltando a fumaça no ar, milhares de
palavras flutuando em meio à nicotina, porque nenhum de nós somos bons
com essa merda de sentimentos e nos últimos meses estamos acumulando
uma porrada deles dentro de nós.
— Foi uma luta e tanto — ele muda de assunto ao apontar para os
curativos em minha mão.
— Você continua indo?
— Não se fala em outra coisa, o Rei do Poço está acabando com todos.
Abaixo a cabeça me sentindo meio esquisito, sei exatamente sobre o
que ele está falando, lembro bem de cada uma das lutas que tive, cada rosto
que golpeei, cada soco que tomei, mas ao mesmo tempo é como se não
fosse eu, como se eu estivesse também assistindo um outro cara fazer as
coisas que faço.
— Estou com problemas — digo logo de uma vez.
— Que tipo de problemas?
— Acho melhor se sentar, a história é um pouquinho longa.
Demyan se senta e faço o mesmo, durante a próxima hora fumamos sem
parar enquanto conto tudo que posso para o meu amigo, o mínimo possível,
não quero metê-lo em problemas. Quanto menos ele souber, mais seguro
será para ele, não confio no Arkady, mas, se tudo der certo, ele nunca saberá
que Demyan me ajudou, e, quando ele se der conta que Yelena sumiu,
estaremos bem longe daqui.
— Você está gostando dela? — ele pergunta, as palavras parecem
difíceis de serem pronunciadas e ainda mais difíceis de serem ouvidas.
— Não, quer dizer, é meio impossível não gostar, ela é uma garota
incrível, forte e corajosa, mas não é como o que tive com a Anna.
— Não faça comparações, o que vocês tiveram foi único.
Balanço a cabeça sem saber o que dizer, não esperava que ele fosse
brigar comigo, mas também não imaginava que ele iria me dar apoio com
outra garota.
— O que você quer que eu faça? — ele pergunta com o cigarro entre os
lábios, pronto para o que eu pedir: explodir o Poço, matar Arkady, salvar o
mundo.
Sempre foi assim. Por um lado, existe o Demyan justiceiro, o cara que
faz qualquer coisa para se redimir por ter nascido em uma família rica; mas
também existe o Demyan que gosta de uma boa briga, o cara que roubava
por prazer quando moleque, que se metia em brigas só para sentir o sabor
de arrebentar um cara, que sabia arrombar portas e falar com traficantes. E
se precisar, ele não pensará duas vezes para puxar um gatilho, ou enfiar uma
faca em um coração, desde que ele saiba que está fazendo justiça.
E que se dane o resto.
Conto para ele tudo o que estou planejando para a próxima luta, e ele
ouve todo o meu plano suicida com atenção.
— Só preciso que você a ajude a sair de lá em segurança e me empreste
um carro, o resto eu resolvo depois.
— Tem certeza do que está fazendo?
— Absoluta.
— Então estarei lá, não se preocupe com o carro, será seu.
— Valeu.
— Mas e o Padat’? — ele pergunta preocupado.
— Foda-se, não dou a mínima.
— Arkady não vai te perdoar, imagino a grana que estão investindo em
você.
— Ele não terá tempo para isso, quando pensar em vir atrás de mim
estarei longe.
— Só garanta para mim que estará.
— Pode deixar, e você também, preciso saber que estará em segurança.
— Arkady não pode me culpar por algo que eu sequer sei, de qualquer
forma, estamos brigados, Temnyy Gorod inteira sabe disso, aqueles filhos
da puta fofoqueiros que frequentam o Smorodina adoram cuidar da vida dos
outros.
— Bando de bêbados fofoqueiros.
— Eu vou garantir que eles não tenham dúvidas sobre isso.
— Valeu, cara.
Demyan me observa por um instante, com aquela mania irritante de ler
minhas expressões como se pudesse me julgar. O barato do pó e do álcool
se foi há algum tempo e agora tudo o que tenho é um cansaço imenso e uma
dor de cabeça que ameaça ser maior ainda.
— A Anna te amava. — Suas palavras são como punhais em meu peito
e abaixo o rosto encarando o cinzeiro lotado a nossa frente.
— Eu também a amava... acho que uma parte minha sempre vai amá-la
— confesso me sentindo aliviado com essa constatação.
— Ela sempre parecia brilhar quando falava de você e daqueles
desenhos dela.
Continuo encarando o amontoado de bitucas uma em cima da outra,
imaginando os destroços do Poço, e Arkady queimando embaixo deles.
Algo que venho pensando cada dia mais e mais, e que sei, um dia, farei com
que aconteça.
— Seja lá onde minha irmã estiver, ela deve estar orgulhosa de você
bancando o herói, salvando garotas em perigo. — Demyan bate a cinza
antes de tragar novamente.
— Você acha isso?
— Eu tenho certeza.
Ergo o rosto e encontro o meu amigo de volta, não o cara sombrio e
triste que se transformou depois da morte dela, mas o cara que conheço
desde que nasci.
— Eu estou orgulhoso de você — ele completa.
— Senti sua falta — confesso e ele sorri.
— Eu também senti a sua.

A noite já caiu em Temnyy Gorod e ainda são apenas quatro da tarde.


Faz oito horas desde que deixei Yelena sozinha com Arkady e desde então
respirar parece uma tarefa quase impossível. Tento bloquear os
pensamentos, dizer a mim mesmo que ela vai conseguir, porque é
inteligente e sobreviveu até aqui. Falta pouco agora, muito pouco e estou
me sentindo confiante, Demyan vai tirá-la de lá enquanto eu distraio
Arkady e todos com uma luta digna de um Padat’.
Está tudo certo, repassamos o plano mil vezes, Demyan não encontrou
nenhum furo, nada que possa dar errado.
Aproveito que ele foi tomar um banho e faço algo que preciso. Caminho
pela propriedade, seguindo direto para o lugar que estou evitando desde
aquela noite. Fazem apenas alguns meses e parece muito mais. Tanta coisa
aconteceu, meu mundo virou de cabeça para baixo, e agora estou aqui,
diante do seu túmulo mais uma vez; e se tudo correr como o planejado, essa
pode ser a última vez.
Sento-me no banco em frente, sentindo o vento frio em meu rosto,
aceitando com prazer o ar gelado em meus pulmões.
— Sabe, eu planejei mil coisas para te falar quando chegasse aqui —
digo encarando a fotografia que estava em meu bolso todo esse tempo. —
Eu tive medo, em alguns momentos senti como se estivesse te traindo,
como se não te amasse mais. — Ergo meus olhos para o túmulo sentindo
sua presença ao meu lado, tão forte e invisível como o vento que move as
árvores ao longe e toca a minha pele. — Mas hoje eu entendi que o que nós
dois vivemos, o que sentimos, o que eu ainda sinto, é algo único, nosso, e
que vou carregar para sempre em meu coração — confesso acariciando seu
rosto amassado e sorridente. — Eu te amo, Anna, eu sempre vou te amar.
— Ergo a fotografia e deixo um beijo em seu rosto congelado para sempre
na memória da garota que um dia conheci. — Mas agora eu preciso ir. Ela
precisa de mim, eu sou tudo o que ela tem, a sua única esperança de sair
daquele lugar. — Respiro fundo sentindo um alívio esquisito em meu peito
enquanto passo o polegar pela foto. — Sabe, você gostaria dela se a
conhecesse, ela amou seu desenho, é divertida mesmo naquele lugar. — Me
entristeço ao pensar que ela esteve perto de mim todo esse tempo e eu
nunca a vi. Será que eu poderia tê-la impedido de ser pega se nos
conhecêssemos? Não sei, nunca vou saber. — Talvez eu não volte mais
aqui. Se isso acontecer, você já sabe o motivo. Eu vou tentar, Anna, pode
não dar certo e então... — Engulo em seco, buscando algum pedaço de mim
que esteja com medo ou em dúvida, mas não há, tudo em mim sabe o que
estou prestes a fazer e as consequências. — A gente se vê em breve, moy
dorogoy. — Dou mais um beijo na foto e devolvo-a para o lugar dela.
Me viro para sair e avisto a figura sombria escondida por baixo do
capuz preto, como uma sombra permanente, me seguindo, garantindo que
estou em segurança, como um bom amigo.
Ergo o braço acenando para Demyan, ele repete o gesto. Não falamos
mais nada, não há mais nada a ser dito, ambos sabemos que, a partir de
hoje, não haverá mais volta.
Demoro mais do que imaginei para encontrar o edifício, entre tantos
iguais, construídos com o intuito de nos fazer perder a nossa identidade, de
sermos apenas mais um entre tantos. Longos corredores escuros, úmidos e
frios, cercados de portas iguais que guardam dentro de si histórias únicas.
Bato os nós machucados dos meus dedos na madeira velha e manchada,
posso ouvir o som das crianças brincando, um desenho antigo cantarolando
na televisão, vida, família, calor. Algo raro em um lugar como Temnyy
Gorod.
Ouço seus passos se aproximando e dou um passo para trás no instante
em que a porta se abre, só um pouco, o suficiente para que ela me
reconheça.
— Roman, o que você faz aqui? — Daria pergunta, assustada com a
minha presença em sua casa.
— Podemos conversar um pouco?
— Agora não posso.
— Não vou demorar.
Ela hesita um pouco, olha para os filhos e, em seguida, para mim.
— Só conversar — reforço e ela respira fundo.
— Tudo bem.
Ouço os trincos sendo abertos e, então, a porta se abre para mim, ela
baixa o olhar para a bolsa em minha mão.
— Está indo embora?
— De certa forma sim.
— O Padat’ está próximo? — ela constata.
— Sim.
— Veio se despedir?
— Também, mas na verdade vim te entregar algo.
Coloco a bolsa em cima da mesa velha e gasta, ela balança com o peso e
as crianças se viram ao notar que há um estranho em sua casa. Aceno para
eles, apenas um acena de volta; o mais jovem, ainda inocente o suficiente
para não temer estranhos.
— O que é isso? — ela pergunta desconfiada.
— É para você, para que nunca mais precise aceitar comida de
estranhos em troca de... — Olho para a sala, onde os meninos nos
observam. — Enfim, não é muito, mas se for inteligente, pode te tirar daqui.
Não entregue para ninguém, não confie em ninguém. Se tiver alguma
dúvida, fale com o Grigory, ele sabe de tudo e é a única pessoa em quem eu
confio.
— O tatuador? — ela pergunta sem muita certeza.
— Ele é de confiança.
Empurro a bolsa em sua direção, não há muito, mas, quando ela a abre e
olha a quantia dentro, seu rosto perde a cor, como se fosse todo o rublo da
Rússia.
— Não posso aceitar. — Ela empurra a bolsa de volta.
— Por eles. — Seguro sua mão. — Pelo futuro deles, para que nenhum
deles tenha que roubar ou entrar no Poço um dia.
Seus olhos se enchem de lágrimas.
— São das lutas?
— Sim, mas não se preocupe, não é tudo.
— Por que eu?
— Porque um dia você me salvou.
— Mas eu não fiz nada.
— Às vezes, as pessoas nem imaginam o quanto estão fazendo, mesmo
quando acreditam que não fazem nada.
Estou estranhamente tranquilo, leve, como se estivesse desatando os
nós, deixando para trás sacos de pedra que vinha carregando desde a morte
de Anna, não, desde a morte da minha mãe.
Não tenho medo, apenas uma ansiedade louca para que chegue logo o
dia da luta.
Enquanto isso, estou sentado na cadeira olhando Grigory me xingar há
mais de uma hora enquanto fumo um cigarro.
— Devem ser os golpes, sempre ouvi falar que golpes demais fazem
isso com as pessoas.
— Isso serve para você também? — provoco-o e recebo um olhar que
poderia me matar agora mesmo.
— Apanhou demais, mexeu com seu senso de noção.
— Pode falar o que quiser, não ligo. — Apoio-me na cadeira esticando
as costas, meus pensamentos voam para Yelena.
Foi assim nos últimos dois dias, a cada momento que eu me vi pensando
nela, precisei me segurar para não ir lá pedir para o Arkady me deixar vê-la,
só para ter certeza de que está viva.
— Ah, mas isso eu sei, você não liga porque é um mudak9.
Olho feio para ele, mas Grigory não é um homem que se importa com
cara feia.
— Eu tô começando a achar que está apaixonado por mim, é isso, está
com medo de perder o grande amor da sua vida? — provoco-o e eu poderia
jurar que ele rosna como um urso velho com tosse.
— Você vai morrer, você e aquela ved’ma que te enfeitiçou com um
pedaço de boceta.
Levanto-me jogando o resto do cigarro no copo e caminho até onde ele
está.
— Não se preocupe comigo, meu amigo, eu vou tomar cuidado.
— Você está cego se acha que vai conseguir tirar uma das garotas do
Arkady debaixo do nariz dele.
— Aí é que está o problema, Yelena não é dele, ela é minha e eu vou
buscar o que é meu — digo com a certeza de que vai dar tudo certo.
— Deus do céu, você está completamente louco! — Ele se afasta
passando por mim com força, indo até onde ficam as suas bebidas e se
servindo de uma dose.
— Eu preciso de um favor seu.
— Vai se foder, não vou buscar a porra do seu corpo.
— Não ligo para ele. Se eu morrer, o que não vai acontecer, você pode
me deixar de presente para os cachorros do Arkady.
Ele solta um palavrão e sorrio, porque, desde que o conheci, nunca vi o
Grigory tão nervoso.
— O que você quer, então, um memorial em seu nome?
— Não, o que acontecer é o que tiver que acontecer, não quero nada
para mim, mas preciso de sua ajuda para uma pessoa.
— Quem?
— Seu nome é Daria, eu a conheci há algum tempo... — conto para ele
toda a história, explico o que fiz hoje e ele tem a confirmação de que estou
maluco quando digo a quantia que entreguei para uma desconhecida. Ignoro
seus xingamentos e concluo: — Aqui está o endereço dela.
— Não sou babá de boceta.
— Não pedi que seja, mas se um dia ela bater na sua porta, por favor,
atenda e seja educado.
— Não sou educado.
— Só não a chame de boceta.
— Por que não? Ela tem uma.
Reviro os olhos e entrego o papel dobrado.
— Só faça isso, por favor, como o último pedido de um amigo.
— Vá se foder, seu mudak — ele resmunga, mas guarda o papel no
bolso da sua camisa.

Paro na frente da última porta do dia, a mesma que vi nos últimos vinte
anos, velha, gasta, com arranhões e marcas do tempo. Inclino-me no vaso e
pego a chave, já posso ouvir Berstuk lá dentro e me pergunto como ele faz
para fugir sempre e estar em casa quando chego, como se tivesse um sensor
que o avisa quando estou perto.
Abro a porta e sinto o familiar cheiro de casa, aquele cheiro que só o
nosso lar tem, não importa se é um lugar grande ou um apartamento
decadente no Gigante Laranja. É minha casa, meu lugar. Meu cheiro.
— E aí, bichano, como você passou o dia? — Me aproximo estendendo
minha mão para ele, mas Berstuk apenas olha para ela e se vira voltando
para o sofá. — O meu foi ótimo, obrigado por perguntar. — Jogo minhas
coisas em cima do balcão e caminho até a sala, me jogando no sofá. Berstuk
se aninha ao meu lado enquanto lambe suas patas. Ficamos um tempo
assim, apenas aproveitando a companhia um do outro. — Sabe, eu tô bem
confiante — digo encarando uma mancha no teto. — Sei que vai dar certo,
mas se não der, quero que você me ouça — continuo falando para o gato
que, na maior parte do tempo, nem olha para mim. — O Dem vai cuidar de
você, tudo bem? Ele não prometeu e eu sei que ele tem medo de você, mas
meu amigo sabe que... merda, ele sabe que você é tudo o que tenho e que é
importante para mim, então quero que seja bonzinho com ele, tá? Nada de
arranhar ou de assustá-lo, fica na tua, não encara. Ele vai entrar, te alimentar
e vai embora. Quem sabe, com o tempo, ele se acostuma com você e então
te leva para o Norte. — Meu gato se move erguendo o rosto como se
estivesse compreendendo o que estou falando. — Eu sei, eu sei, você não
gosta do Norte, mas isso é até você conhecer a Irina, ela vai encher a tua
pança até você não aguentar mais comer e tem um monte de escadas, você
vai adorar, e vai poder assustar o Demyan sempre. — Sorrio imaginando
meu amigo xingando o Berstuk porque ele o assustou. — Ah, você também
tem que me prometer que não vai confiar em qualquer um. Se eu não voltar,
significa que... bom, você sabe, e então todos saberão que você está por sua
conta, e não confio em ninguém, só no Grigory e no Demyan.
Berstuk se espreguiça e muda de lugar, sentando-se no outro lado do
sofá, de frente para mim.
— Sabe quem falou de você? Não vai acreditar, a Yelena, ela te
conhece. Tem ideia? Você é famoso, seu gato feio da porra! — Passo a mão
em sua cabeça e ele ronrona para mim. — Eu tô começando a achar que
você é mais famoso que o Rei do Poço — rio sem achar graça. — Onde
será que ela estava, hein, antes de tudo isso acontecer? Onde a minha fada
estava que eu nunca a vi? Você se lembra dela? É uma garota pequena,
magra, de enormes olhos azuis, quase glaciais, cabelos longos, castanhos, e
sardas lindas que enfeitam seu narizinho de fada. — Sorrio ao me relembrar
de cada pequeno detalhe de Yelena. — Acho que você também não a
conhece, né? Tenho certeza de que não esqueceria, ela é inesquecível.
Meu gato continua com sua rotina de se limpar enquanto continuo
falando sem parar, talvez porque, no fundo, eu saiba que, se parar, vou
começar a pensar; e se eu pensar, bom, talvez eu descubra que Grigory tem
razão e eu não passo de um mudak. O maior de todos.

Não me recordo a última vez em que vim aqui e isso me deixa com um
sentimento de culpa, que corrói meu coração, quando me dou conta de que
durante anos usei a sua morte como justificativa para a minha rebeldia
quando, no fundo, sempre fui assim, sempre gostei de quebrar regras, de
ultrapassar limites, de impor a minha vontade.
No fim das contas, estou no lugar onde deveria estar, não sou mesmo
melhor do que aqueles caras que me encaram de volta no Poço. No
máximo, sou um filho da puta hipócrita que se escondeu atrás do
assassinato da mãe para explorar suas merdas.
Berstuk se aproxima de mim, roçando seu corpo magro e sem pelos na
minha canela, como se estivesse me dando apoio. Sento-me e ergo o rosto
para a fotografia que eu mesmo coloquei aqui três anos atrás. Observo o
mato alto, a falta de flores, como se ela nunca tivesse sido importante para
mim.
— Oi, mãe, sou eu, o Roman — falo, como se o fato de não ter vindo
aqui a fizesse se esquecer de mim de algum modo. — Eu sei que tô em falta
com você, e que essa não é o tipo de visita que deveria fazer, mas não tenho
muito tempo. — Respiro fundo e olho em volta. Está tarde, escuro e tão
frio, que não sinto a ponta dos meus dedos. — Tanta coisa aconteceu na
minha vida, que, às vezes, eu acho que não sou mais aquele menino que te
enterrou — exalo, grossas baforadas de ar condensado saem da minha boca.
— Eu tenho muito o que falar, mas não vai dar. Você sabe quem sou, sabe
que sempre odiei injustiça e que me meti em muita merda por causa disso,
eu preciso fazer isso mãe, mas não estou com medo, espero que você saiba
disso e que saiba também que eu... eu te amo, mãe, mesmo que não diga
muito, que não venha aqui, mesmo se eu não voltar nunca mais, eu te amo.
— Pego o pacote com o bolinho favorito dela e abro, como um pedaço e
coloco outro em cima do seu túmulo, Berstuk observa esperando por seu
pedaço. Comemos em silêncio, enquanto me lembro de momentos nossos,
os três juntos em jantares tardios, rindo, felizes, mesmo sem saber.
Levanto-me e vou até a sua foto, passo a ponta dos dedos em seu rosto,
a saudade aperta em meu peito à medida que me dou conta de que não
importa o que aconteça, as pessoas que amo sempre se vão de algum jeito.
— Cuida de mim aí de onde você estiver — sussurro para a fotografia.
— Se puder, cuida dela também, eu preciso muito da sua ajuda — admito.
— Então se puder, só me ajuda, por favor.
Quando saio do cemitério, com Berstuk ao meu lado e um sentimento
de missão cumprida, sinto que estou pronto para o que me espera, seja lá o
que for.
O dia finalmente chegou, depois de uma semana difícil, dolorosa e
longa, Arkady parece não ter percebido nada, ao menos ele não imagina que
a chave perdida do seu capanga segue debaixo da minha cama. Mesmo
assim, todas as vezes em que ele entra aqui sinto meu coração parar para
depois bater em uma velocidade três vezes maior. É uma tortura insana que
faz as sessões de sexo com ele parecer o paraíso.
A porta se abre e Arkady entra carregando minha roupa, jeans e
camiseta, algo simples e que me faz parecer uma garota comum, apenas
mais uma na multidão.
O problema é que não sou comum, talvez um dia eu tenha sido apenas
uma garotinha frágil e sonhadora, que acreditou que existia pessoas boas no
mundo, mas essa garotinha morreu e o que sobrou já viu coisas demais. Foi
forjada a ferro e fogo, passou pelo inferno, deitou com o próprio diabo, e,
quando achou que não iria suportar, descobriu que tinha forças para mais.
Sou forte demais para ser considerada comum.
— Está pronta para a noite de hoje? — Ele deposita a roupa em cima da
cama, com seus pés a menos de um metro de distância da minha salvação.
Estou sentada no meio dela, envolta nos lençóis, exatamente como ele
me deixou pouco mais de uma hora depois de me usar e dizer que me ama.
Amor, ele não sabe o que é isso, ou nunca diria algo assim. Amor não
machuca, não humilha, não usa; amor é doação, entrega, cuidado. Coisas
que Arkady não conhece.
Ergo meus olhos da forma mais inocente que consigo e balanço a
cabeça em um sim sem muita confiança. Arkady me olha com um pouco
mais de atenção, como se finalmente notasse que não estou bem.
— O que houve, minha devochka? — Ele pousa o indicador em meu
queixo, erguendo meu rosto para olhar para ele. — Eu te machuquei?
Sinto vontade de rir, não, de rasgar seu rosto com minhas unhas, de
arrancar esses olhos do mal de seu rosto.
Machucar? Será mesmo que ele sabe o que é isso? Minhas costas ainda
ardem do resultado da punição da semana passada — aquilo que ele
chamou de obra de arte —, meu corpo ainda está sensível por ter sido
violado sem eu querer. Hoje sei o que é dor e o que é prazer, e isso só faz o
ódio que sinto por ele aumentar.
— Não, é que eu acho que não estou me sentindo muito bem. — Pouso
a mão em meu estômago, o lençol de cetim escorrega por meu ombro,
deixando um dos meus seios à mostra. Arkady o observa e um brilho
maligno surge em seus olhos.
— Como assim?
— Não sei, ontem um dos seus homens estava espirrando e disse que
estava com dor de estômago. — Ergo o ombro parecendo confusa.
— Ele te tocou? — ele pergunta se sentando e afastando o cabelo do
meu rosto. — Me diga a verdade, Yelena.
— Por favor, não me peça isso.
— Fale agora! — ele grita e me encolho.
— Ele... ele me beijou e...
— Quem fez isso? Fale agora! — Arkady exige, seu rosto fica vermelho
como se nenhum outro homem fosse merecedor de me tocar a menos que
ele ache que deve.
Hipócrita imundo!
— Eu não sei, estava escuro e eu não ergui os olhos, mas foi só um... —
Espirro, virando o rosto para o outro lado. — Agora tudo dói.
— Maldição, vou me informar e quem estiver doente é um cara morto.
Eu sei que deveria me sentir mal por estar colocando a vida de um
homem em perigo, mas não tenho tempo para isso, além do mais, ele não
hesitaria se pudesse me estuprar. Então, o que posso dizer é que ele tem
sorte, ao menos Arkady não gosta de homens. Sua morte provavelmente
será rápida, quase indolor, diferente da minha, que se estende há tanto
tempo.
— Por favor, não grite, minha cabeça dói. — Aperto as laterais e gemo
com tanta verdade, que faria qualquer um acreditar que estou mesmo
adoecendo.
Quase posso imaginar Roman parado do outro lado do quarto, os braços
cruzados e um sorriso enorme em seus lábios, orgulhoso de mim.
Afasto todo e qualquer pensamento que me leve àquele sorriso bonito
ou ao dono dele, não é hora para isso, não agora.
— Me desculpe, minha devochka. — Ele parece nervoso e posso jurar
que suas mãos estão suadas, trêmulas. — Vou pegar um remédio para você,
por favor, não se levante.
— Mas, e o Roman? Hoje eu teria que servi-lo. — Baixo o olhar para as
minhas mãos unidas em meu colo, exatamente como ele gosta, submissa,
frágil, inocente.
— Dane-se o Roman, ele vai entender, tenho certeza que sim.
— Não fale antes da luta — peço ainda de cabeça baixa.
— Por quê?
— Porque ele pode ficar preocupado e se distrair. Não seria bom para
você se ele perdesse, correto? — Nunca falei dessa forma com ele, dando
palpites, mas também nunca fiquei tanto tempo aqui em cima, nunca tive
um único parceiro por muito tempo e, pela forma como Arkady me olha, ele
também está surpreso com minha observação.
Me sinto ousada e mal consigo respirar, a adrenalina deixa cada célula
do meu corpo ciente de que estou brincando com o perigo. Respiro com
dificuldade e Arkady confunde a ansiedade com mal-estar.
— Deite-se, não se preocupe com nada. — Ele me ajuda a deitar, suas
mãos imundas afastam meus cabelos, seus lábios asquerosos beijam minha
testa, seu cheiro me deixa verdadeiramente doente e uso tudo de mim para
não desviar o olhar quando seus olhos negros como o mal me encaram. —
Eu cuidarei de tudo, nosso rei vencerá essa luta, e na semana que vem, ele
estará no topo, pronto para o Padat’ — Arkady diz com a arrogância de
quem acredita que tem o poder e o controle, e apenas movo minha cabeça.
Observo o homem, que me mostrou que o inferno existe, caminhar para
fora do quarto e sinto um misto de nervoso e alívio ao ouvi-lo trancar a
porta.
Na semana que vem estaremos longe, bem longe de tudo isso e,
principalmente, de você, seu desgraçado.
O verão em Temnyy Gorod é um período de férias, ruas cheias, crianças
brincando, peles à mostra, luz, dias longos, cor.
É quase como se eu estivesse em outro lugar, é bom, mas me sinto mais
eu quando tudo fica novamente cinza. É como voltar para casa.
Uma vez, eu, Demyan e Anna fomos a um lago na divisa de Temnyy
Gorod, no lado Sul, passamos o dia inteiro para chegar ao local que Anna
jurou por tudo que era lindo. Ao chegar, sentei-me em um formigueiro e só
me dei conta quando todo o meu corpo estava pinicando.
É exatamente assim que estou me sentindo agora, como se uma porção
daquelas formigas estivessem sobre mim, me atormentando, me
enlouquecendo. A diferença é que hoje ninguém vai me socorrer, não posso
gritar por socorro.
Hoje, eu sou o socorro.
A porta se abre e o barulho invade o lugar onde estou, hoje o Poço
parece um caldeirão fervendo. Não há nem mesmo como se mover tamanha
a quantidade de pessoas que estão lá, todas esperando pelo rei.
É a última luta antes do Padat’, o outro finalista lutou ontem. Não vim
ver, não sei quem é, não quero saber, não me importa, até mesmo porque
essa luta não vai acontecer.
Uma garota entra com uma bandeja repleta de coisas: bebidas, comidas,
drogas. Ela não me olha, apenas se move até o outro lado da sala e deposita
a bandeja na mesa, então ela para na minha frente e faz uma mesura
exagerada, como se eu realmente fosse algum tipo de rei ou divindade. Ela
não espera que eu diga nada, apenas sai, fechando a porta, me livrando do
barulho.
Um minuto depois, a porta se abre novamente, Arkady entra parecendo
preocupado, ansioso. Meu coração dispara e respiro fundo tentando ao
máximo não demonstrar nada.
— Ansioso por hoje? — Ele retira aquele maldito lenço do bolso do
terno e limpa a parte superior do lábio enquanto caminha até onde estou.
— Um pouco — respondo enquanto estralo os dedos da mão esquerda.
— Vai ser uma luta e tanto, o Poço está fervendo — ele continua, mas
não sinto a animação de sempre em sua voz. Será que ele desconfiou de
algo?
Arkady vai até onde está a bandeja, pega um copo e se serve de uma
bebida, que ele engole de uma vez, então enche o copo de novo e toma mais
um gole.
— Você esteve doente?
— Como?
— Nada, esquece.
Ele balança a mão no ar e bate o copo na mesa antes de cheirar uma
carreira de pó.
— Ah... — Ele revira os olhos e observo sem gostar nem um pouco das
suas atitudes.
— Está tudo bem? — pergunto sem paciência.
— Infelizmente, nossa devochka não vai poder estar no Poço essa noite.
— Como assim?
— Ela aparentemente está doente.
— Aparentemente?
— Não, ela está doente, nossa menina pegou um resfriado e não quero
expô-la a mais vírus, além do mais ela está com dor de cabeça, não fará
bem para ela ficar ali em meio a tantos gritos. Tenho a impressão de que
essa noite alcançaremos um público nunca visto no Poço.
— Mas ela está bem? — pergunto preocupado.
— Sim, só um pouco fraquinha, sabe como é, ela é frágil e delicada.
Não, ela não é frágil, nem um pouquinho. Yelena é a garota mais forte
que já conheci na vida.
— Então acho que é melhor mesmo, mas ela está bem, certo?
— Sim, não se preocupe, agora você precisa se concentrar na luta, essa
noite será incrível, as apostas estão altíssimas. — Ele esfrega as mãos
exageradamente e o sorriso que se espalha por seu rosto faz meus punhos se
fecharem involuntariamente. — Bom, vou deixar você se preparar. Se
quiser trepar, me avise. Posso providenciar uma garota, não é como nossa
devochka, mas dá para o gasto.
Ele sorri ao passar por mim dando um tapinha em minhas costas, com
as pupilas dilatadas, o sorriso de lado, o ar confiante que tanto odeio.
Tudo está indo bem, conforme planejamos, vai dar tudo certo.
Respira, Roman, falta pouco, falta muito pouco.
O barulho lá fora é insano e, se eu não soubesse o motivo, poderia jurar
que outra catástrofe acaba de acontecer em Temnyy Gorod, mas na verdade
é tudo por ele, pelo Rei do Poço.
Roman está aqui, em algum lugar, e quase posso sentir a ansiedade que
emana de seu corpo se esgueirando pelas paredes desse lugar, alcançando-
me, me tocando, reconhecendo a minha própria ansiedade.
Mal consigo respirar, o ar entra em meus pulmões trêmulos, enchendo-
me de coragem, fortalecendo a certeza de que estou fazendo a coisa certa.
Estou no mesmo lugar desde que Arkady saiu há quase uma hora, o
nome de Roman começa a ser ecoado em uma música a cada cinco minutos.
Já decorei, é boba, mas bonitinha, imagino-o ouvindo-a, o ar presunçoso em
seu rosto, o sorriso debochado em sua boca, lindo. Tão lindo.
Meu rei.
Preciso esperar, tudo tem que ser executado da forma que planejamos.
Durante todos esses dias, eu já refiz aquelas palavras sussurradas em meu
ouvido milhares de vezes. Sua voz rouca, a forma como seus dedos me
seguravam enquanto ele me possuía, nunca perdendo o contato, nunca
deixando de me fazer sentir, mesmo quando nossas mentes estavam em
outro lugar.
Foi insano, a coisa mais sexy e louca que já fiz.
Mais vinte minutos se passam, o som das pessoas lá fora se torna maior,
a euforia é sentida até por quem não está presente. Está chegando a hora, o
Rei do Poço entrou no ringue.
É o meu momento.
Levanto-me da cama devagar, meus olhos encaram os meus pés
enquanto caminho até o lado onde a chave está. Derrubo um pedaço de pão
no chão e me abaixo para pegar, estico-me um pouco e alcanço a chave, o
metal parece quente em minha palma, minhas mãos tremem tanto que tenho
medo de derrubá-la. Me levanto ainda sem erguer o rosto e caminho
devagar de volta para a cama. Sento-me e observo tudo a minha volta,
memorizando cada detalhe, relembrando os passos que dei na única vez em
que estive no Poço, fazendo o caminho em minha mente.
Vai dar certo, eu sei que vai.
Os gritos aumentam...
Roman, Roman, Roman...
Começo a contar...
Um, respira, dois, respira, três...
“Conte até cem, pausadamente, assim ó. Um, respira, dois, respira, três
respira... Assim teremos a certeza de que ambos estamos contando igual.”
Trinta, respira, trinta e um respira...
“Como vou saber que você está contando?”
“Assim que os gritos aumentarem significa que entrei no ringue, será o
momento da apresentação e começarei a contar, e você também.”
Noventa e nove, respira, cem.
Ergo meu rosto, encaro a porta à minha frente, sabendo que só tenho
uma chance. É agora, não posso hesitar. Aperto a chave com força enquanto
me levanto, obrigando meus pés a se acalmarem. Não posso correr, vou até
ela, espalmo minha mão na madeira e colo meu ouvido, como se estivesse
apenas tentando ouvir. Com a outra mão, delicadamente coloco a chave na
fechadura, meu coração bate com tanta força, que sinto meu peito doer.
Um clique.
Roman, Roman, Roman...
Dois cliques.
Dou um passo para trás, nesse momento uma câmera está gravando
tudo, tenho apenas alguns minutos, minha única chance é acreditar que
todos estão de olho no Poço, no que Roman está fazendo.
“Vou dar a eles uma luta incrível.”
“O que você vai fazer?”
“Vou matá-lo.”
Toco a maçaneta, giro-a, abro a porta, dou mais um passo. O corredor
está vazio, olho rapidamente para o outro lado antes de começar a correr.
Meu estômago revira, a bile sobe em minha garganta. Quero voltar e me
trancar, quero me deitar na cama e rezar para que ninguém tenha visto,
quero correr até meus pés sangrarem, quero viver, quero morrer, quero
alcançá-lo.
Roman, Roman, Roman...
Sigo os gritos, a adrenalina, o meu coração.
“Vai dar certo, fada.”
“Como você sabe?”
“Porque eu confio em você.”
O som do caos preenche tudo à minha volta, diminuo o passo, me
escondo quando vejo um dos capangas, o suor começa a cobrir minha testa,
minhas pernas tremem, meu coração bate.
Estou tão perto...
“O Demyan estará à sua espera, é fácil reconhecer, ele será o único
idiota de capuz.”
“Como ele saberá que sou eu?”
“Ele saberá.”
Os dois homens passam apressadamente, os olhos fixos no ringue.
Falta pouco agora.
Me recomponho, jogo meu cabelo para a frente, seco minhas mãos na
calça e respiro fundo.
Vamos, Yelena, é agora ou nunca.
Coloco um pé na frente do outro, não olho para os lados até chegar ao
salão principal. Quero chorar de emoção quando me misturo, desvio meu
olhar rapidamente para onde ele está, perco o ar com o que vejo. Roman
parece exatamente o deus que todos acreditam que ele seja, forte, grande,
imponente, o rosto corado, os cabelos colados à testa, o suor deixando sua
pele pálida iluminada, tão lindo.
Ele está focado em seu oponente, os ombros se movendo com violência
à medida que seus golpes brutos atingem o adversário.
Sou empurrada por um grupo de homens que querem ver a luta mais de
perto, dou um passo para o lado e volto a caminhar.
“Vá para perto da porta, Demyan estará lá. Não diga nada, apenas o
siga. Ele vai te levar para longe daqui.”
“Mas e você?”
“Eu estarei dando a esses filhos da puta o que eles querem. Nos
encontraremos assim que eu puder.”
Faço o que Roman pediu. De onde estou avisto a porta, mas parece que
Temnyy Gorod inteira está aqui hoje, há tantas pessoas que mal consigo me
mover. Cometo um erro, olho para trás e vejo os mesmos dois homens, eles
estão agora falando algo no aparelho e olham para a multidão como se
estivessem procurando alguém. Como se estivessem me procurando.
Meu coração dispara.
— Licença — peço para um homem que está com os olhos fixos em
Roman. Ele mal me ouve e preciso empurrá-lo um pouco para passar.
Faço o mesmo com os outros cinco que estão à minha frente, um deles
tenta me beijar e desvio o rosto, continuo andando, rezando para que eu seja
mais rápida que eles.
Falta pouco agora.
De onde estou consigo ver a porta, ela parece o portal do Paraíso das
lendas que ouvimos quando crianças, e tudo o que consigo pensar é que, em
algumas horas, eu e Roman estaremos longe, bem longe daqui.
Vai dar certo, ele confia em mim.
Passo por mais um grupo de pessoas e, então, encontro o seu amigo,
reconheço-o antes mesmo dele erguer o rosto. Demyan está apoiado na
parede ao lado da porta, o rosto escondido pelo capuz do seu moletom se
ergue quando me vê se aproximar, sei que é ele porque, no instante em que
ele me vê, seus olhos desviam para onde Roman está e então ele respira
fundo, quase consigo ouvi-lo suspirar.
Mais alguns passos, estou perto, vamos conseguir.
Me movo mais um pouco, quero correr, mas não posso chamar atenção,
Demyan se afasta da parede e olha para mim, mas seus olhos desviam para
o lado, a expressão se transforma e ele solta um palavrão.
— Devochka? Está se sentindo melhor?
Roman derruba seu adversário.
“Vou matá-lo.”
A multidão grita.
Eu me viro.
Arkady está parado na minha frente, com um sorriso de lado enquanto
espera por minha resposta.
Meus olhos desviam para onde Roman está, seus punhos trabalham com
violência, quero pedir para que ele pare, para que vá embora e não volte
mais.
Acabou.
Meu sonho se desfez.
É o fim, estou morta.
Na verdade, eu nunca pensei em matar, mesmo quando me inscrevi no
Poço pela primeira vez, antes mesmo de tudo acontecer e Anna morrer. Eu
sempre achei que seria eliminado antes ou, se chegasse ao final, eu
morreria, mas então as lutas foram acontecendo e, um a um, eles foram
sendo derrotados. Sempre foi fácil para mim bater. Demyan dizia que meu
soco é forte, que tem um impacto destruidor. No ginásio, aprendi a
fortalecer meus músculos, a usar os golpes a meu favor, a me defender, a
me tornar quase invencível.
Quase.
Estou em cima dele, não sei seu nome, seu crime, sua idade, não sei se
ele tem uma família ou se por acaso vai deixar alguém. A única coisa que
eu sei é que preciso continuar, um soco após o outro, até que ele esteja
morto.
É o plano.
Um surto, o descontrole do rei, a loucura do público.
Roman, Roman, Roman...
Continuam gritando meu nome, o chão vibra sob meus pés, mas não
paro.
Ele não reage mais, mas ainda está vivo, sinto seu coração batendo.
Preciso continuar, ergo o punho, não posso parar, não posso desviar o olhar.
Ela está aqui, em algum lugar, Demyan está a postos, eu o vi assim que
entrei. Vai dar certo, é o plano perfeito.
O golpe faz o sangue espirrar em mim, fecho os olhos e desvio o rosto.
Não consigo ver nada, estou cercado de pessoas sedentas por violência,
morte.
— Roman? — Ouço meu nome, mas ainda não acabei. — Já chega! —
Alguém segura meu pulso e viro-me para encontrar Zakhar, que me ajuda a
levantar. — O que diabos pensa que está fazendo?
— Eu... — Não respondo, desvio meu olhar rapidamente para a porta
enquanto o grito explode a minha volta, sou o campeão, o finalista.
Demyan não está lá e isso me deixa aliviado. Deu tudo certo, ela está
fora, longe daqui, minha fada finalmente está livre.
Olho para o homem desacordado aos meus pés, seu rosto está
desfigurado e minhas mãos inchadas. Não sei qual o seu sangue e qual o
meu, estou coberto deles e meu peito infla com força em busca de ar.
Solto um grito que pode ser confundido com comemoração, de certa
forma é. O riso vem em seguida e ergo os braços vibrando.
— Consegui, porra! — grito enquanto sou erguido no ar. Dezenas de
mãos tocam meu corpo dolorido e aquecido pela adrenalina, eles cantam
para o rei, para mim.
Tento agir naturalmente, depois que a euforia passa vou para o vestiário.
Espero que Arkady venha até mim, mas Zakhar me avisa que ele foi
convocado para uma reunião de emergência. Ele me envia uma garota que
eu nego, estou coberto de sangue e justifico que preciso descansar e me
preparar para a final, sem garotas mais. Me lavo, me controlando o máximo
para não correr. Quero logo me encontrar com Yelena, abraçá-la, dizer que
agora ela está livre, que pode ir para onde quiser.
Pode até ir para longe de mim.
Meu peito aperta com a ideia de me afastar dela, mas é a verdade, estou
pronto para deixá-la ir mesmo que isso machuque meu coração.
Minha fada.
Levo mais de duas horas para finalmente conseguir sair do Poço. A
noite fria está congelante e, mesmo com toda a proteção térmica, sinto meu
corpo doer de frio, ou será que é ansiedade?
Caminho pelas ruas desertas da cidade, meus olhos desviam para todos
os lados, conferindo se não estou sendo seguido. Uma sensação estranha
agita meu estômago, tenho medo, quero ir logo embora daqui.
Quando chego ao lugar onde combinamos de nos encontrar, na Kupol,
em uma parte quase desconhecida que divide Temnyy Gorod com o restante
da Rússia, encontro Demyan apoiado em uma árvore, o capuz cobrindo seu
rosto, a fumaça do cigarro flutuando no ar. Ele mais se parece com uma
figura mitológica do que meu amigo.
Não avisto Yelena.
Paro de andar, Demyan ergue o rosto, meu estômago se retorce, porque
conheço essa expressão, conheço bem demais para não me iludir.
— Onde ela está?
— Rom...
— Cadê a Yelena?
— Não deu certo, Roman.
— O quê? — Caminho até onde meu amigo está, parando bem na sua
frente. — Não brinque comigo, cadê a Yelena?
— Roma...
— CADÊ A YELENA?! — grito, sentindo o medo começar a me
dominar à medida que a resposta não vem, nem ela surge detrás de uma
árvore correndo até mim, se jogando em meu colo, vibrando por termos
conseguido.
Demyan balança a cabeça em um não silencioso que não quero ver e
meus punhos se fecham em seu moletom.
— O que você fez? — exijo empurrando meu amigo. — Onde ela está?
— O Arkady a pegou antes que ela conseguisse chegar até mim.
— Não, não, é impossível, a gente planejou tudo, eu quase matei aquele
homem. — Me afasto caminhando até o outro lado. — Não, você se
enganou, vamos voltar, ela deve estar esperando por mim, vamos. —
Começo a caminhar, mas Demyan me segura.
— Roman, pare.
— Me solta, porra! — Empurro seu braço e volto a caminhar.
— Onde você pensa que vai, caralho?
— Pegar a minha fada.
— Roman, a essa hora ela já está escondida em algum lugar, ele não vai
te deixar chegar perto dela.
— Mas eu prometi, porra, eu disse a ela que estaríamos juntos, que eu a
levaria embora dali! — grito. Minha garganta arde quase tanto quanto os
meus dedos.
— Eu sinto muito.
Meus joelhos cedem, desabo no chão.
É o fim, ela está morta.
— Não seja burro, pare um pouco e me ouça — Demyan continua
falando enquanto puxo a mochila debaixo da cama e começo a conferir se
toda a grana está lá dentro. Uma pequena parte de mim se arrepende de ter
dado aquela grana para a Daria, eu preciso de todo o meu dinheiro agora.
— Ele vai me dar ela, ou não vou lutar.
— Roman, desculpa, mas isso... — Demyan aponta para a quantia
dentro da mochila. — É dinheiro de troco para o Arkady.
— Então me dê mais, você tem, você é o dono da porra da metade dessa
merda de cidade, não vai te fazer falta.
— Eu te daria, se eu soubesse que isso a traria de volta para você,
caralho, eu te daria meu império inteiro, mas o que você acha que ele vai
fazer quando te vir lá na frente dele com todo esse dinheiro? — Demyan
continua com uma calma que me assusta. — Ele vai te usar, Rom. Eu sei,
porque eu faria isso. Não importa se você chegar lá com todo o rublo da
Rússia, ele quer isso aqui. — Ele estica a mão e bate o indicador na minha
cabeça. — E ele vai mexer com você até conseguir, agora cabe a você usar
isso contra ele.
Meus ombros despencam, meus olhos ardem. Quero chorar, quero
gritar, quebrar algo, mas Demyan está aqui e ele não vai me deixar fazer
nada que não seja pensar.
Mas eu não consigo pensar em nada além dela, de que falhei mais uma
vez e que agora estou perdido.
Eu não quero pensar, eu quero Yelena comigo, quero ir embora desse
lugar, quero vê-la em segurança, ao invés disso, agora ela está lá, como uma
traidora, nas mãos daquele desgraçado.
— Ele vai matá-la — digo pela primeira vez encarando o rosto do meu
amigo.
— Não vai — ele diz com uma certeza que não compreendo.
— Como você pode saber? Ela tentou fugir, porra.
— Eu corto meu saco se ele a matar.
— Por quê?
— Porque eu vi o jeito que ele olhou para ela.
— Que jeito? — Começo a achar que Demyan está mentindo, tentando
me tranquilizar.
— Ele a ama — meu amigo responde e agora tenho a certeza de que ele
está maluco.
— O quê?
— Ele ama aquela garota, Roman, eu tenho certeza, eu vi.
O sangue aquece minhas veias à medida que tudo se encaixa. Nossa
devochka, ele sempre se referiu à Yelena como nossa, como se ele a
possuísse também. O medo estampado em seu rosto quando perguntei se ela
estava doente, ele acreditou nela, acreditou que ela estava doente.
— Deus... — Sento-me e apoio o rosto nas mãos machucadas, meus
nódulos doem, mas não me importo, tudo o que consigo pensar é que ela
está lá, nas mãos daquele maluco, e eu não posso fazer nada. — O que eu
faço agora?
— Agora você vai se acalmar e depois vamos planejar o próximo passo
— Demyan aconselha com a tranquilidade de quem já pensou em tudo.
O som da bolsa caindo sobre a mesa o faz desviar o olhar dos papéis.
Mais uma vez, vejo os nomes dos próximos lutadores, as inscrições
alcançaram um número absurdo e a pilha à minha frente faz meu estômago
embrulhar. Quantas crianças ele levará ao Poço dessa vez?
No início, eu via as lutas como uma forma de justiça com as próprias
mãos, afinal de contas não há lugar melhor para um assassino do que em
um ringue, apanhando, morrendo...
Mas então vi Sasha se colocar em perigo, se tornar um bandido só para
ter uma chance de estar aqui, de ser como eu, o futuro rei. O problema é que
ele é só uma criança, não deveria estar se preocupando em se tornar um
bandido e sim um homem.
Isso é o que deveria ser o certo.
Não, o Poço não é um lugar de justiça, isso não existe, nunca foi o
objetivo, ele é um lugar de faturar à custa da dor e do sofrimento, da miséria
e da fome. Graças a ele, as pessoas estão começando a ver o crime como
um subterfúgio para algo mais lucrativo.
— Olá, rei. — Arkady se inclina em sua cadeira imponente e ergue os
olhos para mim. — O que te trouxe aqui? Achei que estaria se preparando
para o Padat’.
Demyan me mataria com suas próprias mãos se soubesse que ignorei
seus conselhos de esperar e vim até aqui. Mas como eu poderia ficar em
casa, esperar, enquanto ela foi pega depois de ter tentado fugir? Não, sinto
muito, amigo, mas não posso.
— Onde ela está? — pergunto sem dar a mínima para a sua hipocrisia,
não sou seu rei e ele sabe disso melhor do que ninguém.
— Do que você está falando, Roman?
Apoio minhas mãos na madeira e me inclino para a frente, nunca
deixando de encarar os seus olhos.
— Yelena, minha devochka — enfatizo as últimas palavras e vejo um
brilho em seu olhar, tão sutil que poderia passar imperceptível se eu não
estivesse observando-o tão de perto.
— Sua? — Ele ergue uma sobrancelha e cruza as mãos em seu colo.
— Sim, minha, como sabemos.
— Acho melhor você começar a se desapegar dela, afinal de contas,
daqui a alguns dias, será a sua última luta, garoto, supondo que você a
vença.
— Eu vou vencer — interrompo-o.
— Supondo que sim, o que acha que vai acontecer depois? Que ela será
encaminhada a sua casa em uma caixa de presentes?
— Eu vou te falar o que vai acontecer. — Sento-me em sua mesa e pego
a pilha de papéis em minhas mãos.
— Solte isso! — ele exige como o grande babaca arrogante que é e eu
ignoro, como o grande filho da puta desobediente que sou.
— Você vai levantar a sua bunda dessa cadeira e vai lá dentro buscar a
Yelena. — Jogo uma folha atrás da outra em cima da sua mesa, vários
rostos desconhecidos me encaram enquanto continuo falando: — Vai me
trazer ela aqui e eu vou levá-la comigo. Agora. — Ergo uma das fichas em
minhas mãos. Como imaginei, a foto não condiz com o que deveria ser o
certo. O homem que olha para mim com um rosto magro e assustado é mais
um garoto, e, dessa vez, mais jovem que Sasha. — Ou isso aqui vai ser
investigado. Vamos ver o que as autoridades vão achar de você estar
ganhando dinheiro em lutas com menores de idade. Pelo que me lembro,
ainda é ilegal em Temnyy Gorod. Na Rússia, no mundo. — Jogo a ficha em
cima das outras.
Arkady me encara por alguns segundos, seus olhos frios e calmos
observam-me sem se alterar, como se não desse a mínima para as minhas
ameaças.
— Não, eu é que vou te dizer o que vai acontecer. — Ele afasta a
cadeira e se levanta, caminhando até parar na minha frente. — Melhor, eu
vou te mostrar uma coisinha. — Arkady retira a pilha de papéis da minha
mão e coloca sobre a mesa. — Venha comigo.
— Nem fodendo. — Cruzo meus braços na frente do peito e ele bufa.
— Não vou a lugar nenhum com você.
— Como quiser. — Arkady retira o telefone do bolso e digita alguma
coisa nele, um instante depois ele coloca o aparelho na mesa ao meu lado e
uma imagem aparece, como se fosse uma câmera de segurança.
Demoro um instante para entender do que se trata, mas pouco a pouco a
imagem vai ganhando qualidade e, então, eu a vejo.
É ela, Yelena, em uma espécie de porão, machucada, os cabelos
cobrindo seu rosto, os braços frouxos fixados em correntes que os prendem
no alto.
Não consigo ver por mais de alguns segundos, algo dentro de mim
explode uma reação em cadeia, me desestabilizando até que eu avanço para
cima dele.
— Eu vou te matar, seu filho de uma puta maldito! — grito enquanto o
ataco. Acerto seu rosto e ele cai no chão, em seguida estou em cima dele,
sentado sobre seu peito, mais um soco atinge seu rosto e grito novamente:
— Eu vou acabar com você!
— Faça isso e ela nunca será encontrada. — Ele vira o rosto e cospe o
sangue no tapete. — Me mate e ela morre também — ele diz com uma
frieza que me assusta.
Pela primeira vez, Demyan está errado. Ele não a ama, ele não ama
ninguém. Arkady é um monstro, frio, calculista e manipulador, e eu vou
matá-lo com minhas próprias mãos.
Afasto-me no instante em que Zakhar entra acompanhado de mais dois
homens, que vêm até mim. O primeiro tenta me acertar, mas sou mais
rápido e o derrubo no chão; o segundo, me pega por trás, mas logo o
imobilizo em um mata-leão, que o faz cair no chão. Estou tão focado neles
dois, que não percebo Zakhar se aproximar por trás. Ele é rápido e
silencioso, covarde. Sinto o calor da lâmina atingindo meu esterno, o
sangue escorrendo por minha blusa, sinto minhas pernas cedendo, meu
corpo caindo.
Zakhar limpa o canivete na calça enquanto olha para mim, o brilho da
lâmina reflete no sorriso satisfeito enquanto Arkady se levanta e vem até
onde estou.
— Quando você vai aprender que a única pessoa que dá as ordens aqui
sou eu, hein, menino? — Arkady retira um lenço do terno e limpa o sangue
que escorre da sua boca. Sinto uma dor insuportável no local onde Zakhar
me acertou e pressiono o machucado com a mão tentando me levantar.
— Seu covarde do caralho, precisa de três homens para fazer o trabalho
por você? — cuspo as palavras com certa dificuldade, um sorriso
perturbado se espalhando por meus lábios.
— Agora que você está mais calminho, vamos conversar. — Arkady
ignora minhas provocações e se senta ao meu lado.
— Não tenho nada pra falar com você, seu maldito desgraçado — digo
em meio à dor lancinante que sinto. — Eu vou matar você — ameaço-o.
— Não, esquece isso. — Ele abana a mão no ar e meu ódio aumenta na
mesma medida que a dor. — Você vai lutar, é o que todos esperam, é o
Padat’ afinal de contas. E você... — Ele passa o dedo por meu braço,
descendo até onde está minha mão — É o rei dessa porra aqui, e as apostas
estão altíssimas.
Tento me mover, mas não consigo, sinto como se estivesse paralisado,
mal sinto minhas pernas, como se, de certa forma, a lâmina que me acertou
estivesse... envenenada.
— Nem fodendo eu vou lutar para você, me mate se quiser, mas não
vou subir naquela porra nunca mais — falo entre gemidos que deixam
minha boca involuntariamente.
Arkady pede para que Zakhar entregue o seu celular e ele o vira para
mim novamente, vejo Yelena naquela situação, seu corpo pequeno coberto
por sangue e hematomas. Ela ergue o rosto como se pudesse notar que está
sendo observada e meu peito dói tanto, que tenho certeza de que, seja lá o
que tinha naquela lâmina, alcançou meu coração.
— Seu covarde filho da puta! — cuspo enquanto começo a tossir e dói
tanto que tenho medo de desmaiar.
— Vamos deixar os elogios para outro dia. Como eu estava dizendo,
você vai subir naquele ringue e, como eu sou um cara muito legal, eu vou
fazer algo que nenhum outro participante teve — ele continua enquanto me
contorço de dor. — Eu vou deixar você escolher. Se ganhar, se tornará o Rei
do Poço, levará uma grana alta o suficiente para que possa ser considerado
um dos homens mais ricos de Temnyy Gorod, mais até que aquele seu
amiguinho, como ele chama mesmo? Demyan?
O som do nome do meu amigo na boca dele faz minha cabeça girar.
— Mas tem um porém, meus patrocinadores te deram aquela putinha
por um motivo, Roman, e não foi só para você descarregar sua porra dentro
dela. — Ele volta a erguer a câmera, mas não consigo mais olhar, é quase
insuportável vê-la daquele jeito. — Eles deixaram você se apegar a ela,
criar um laço, afinal de contas você sempre teve esse ar de herói, de quem
quer salvar o mundo e, obviamente, salvar Yelena é tudo o que você quer.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Sei mais do que você imagina. — Ele entrega o celular para Zakhar e
se levanta. — Sei, inclusive, que você ajudou essa vadia a tentar fugir.
Sorrio ao me relembrar daquele dia, a forma corajosa com que ela topou
tentar, sem medo, mesmo sabendo as consequências.
— Eu preciso dizer que fiquei excitado, ela estava tão linda, como um
animal selvagem, seu corpo quente pela adrenalina — ele começa a falar e
me sento ignorando a dor em meu esterno. — Fodê-la nunca foi tão
gostoso.
— Seu maldito desgraçado. — Tento me erguer, mas não consigo. — O
que você fez comigo? — Olho para Zakhar, que parece estar se divertindo à
minha custa. — Você me envenenou — constato. — Seu covarde.
— Deixe isso para lá — Arkady diz chamando minha atenção. —
Vamos nos concentrar no que realmente importa, você tem uma escolha a
fazer.
— A única coisa que eu tenho que fazer é te matar, e eu vou te matar.
Arkady ri como se eu não fosse capaz.
— Ganhe o ciclo e ela morre, ou... perca e ela vive.
— O quê?
— Você entendeu. Se ganhar o Padat’, sua vadiazinha será assassinada
e, se perder, ela viverá.
— Mas você quer que eu... — não consigo completar a frase, meu corpo
parece em chamas e começo a me sentir tonto. — Por quê? Por que eu?
— Isso não posso dizer, ao menos não agora. — Ele dá um tapinha em
meu peito. — A escolha é sua, Vossa Majestade.
Ele se levanta e Zakhar se aproxima com seus comparsas.
— Você não vai matá-la, não teria coragem.
— Se não for ela, será outra, na noite do Ciclo, um lutador e uma
devochka morrem.
— As garotas que somem, é você quem as mata?
— Não sou eu, Roman, são as regras do jogo. Alguém tem que morrer.
— Mas achei que isso se limitava ao Poço, ao menos os homens que
estão lá sabem disso, mas elas?
Ele ergue as mãos e olha em volta.
— Tudo aqui é o Poço, você ainda não percebeu?
— Seu maldito, o inferno é pouco para você!
Arkady ri, se divertindo com a minha desgraça.
— Levem ele daqui, podem fazer o que quiser, vocês têm uma semana
para acalmar nosso garoto, só não deixem rastros, não quero que ninguém
perceba, portanto, nada de machucar essa carinha linda, afinal de contas o
rei precisa parecer bem na sua luta final.
Todo mundo tem medo da morte, mas, na verdade, morrer é bom, eu
tenho certeza disso, morrer é mil vezes melhor do que sobreviver, morrer
não exige esforço, é fluido, faz parte da sequência natural da vida, é o fim
do ciclo, é a paz.
Morrer é bom.
Mas eu ainda não morri.
Arkady não quer me deixar ir, ele gosta de me ver assim, agonizando,
no limbo. Metade da minha alma lá, a outra aqui, presa entre suas garras,
brincando de juiz da minha vida.
Meus braços doem e já não sinto as minhas mãos, meu olho esquerdo
não abre e o direito está inchado, minha cabeça pende para a frente,
forçando meus ombros a trabalhar mais para manter o meu corpo em pé.
Mas eu só quero desabar, desistir, ir.
A porta se abre e não ligo mais se é Arkady ou Zakhar, ou qualquer
outro homem, tanto faz. Já perdi a conta de todas as vezes em que eles se
revezaram para me punir.
O som das suas botas deixou de me fazer estremecer há algum tempo,
não sei quando. Não sei quanto tempo faz que estou aqui, um dia, uma
semana, um mês?
Parei de pensar em Roman quando percebi que isso era o que Arkady
queria, ele me enfraquece, me faz querer chorar por algo que nunca vou ter,
abre uma fresta para que Arkady me alcance, mas ele não entendeu ainda
que ele nunca vai conseguir.
Me mate logo.
— Bom dia, minha devochka. — Ele para na minha frente, os dedos já
não tocam mais a minha pele, estou coberta de sangue e sujeira e há cortes
em todos os lados, não há mais beleza em mim, sou o que ele irá usar para
assustar a próxima devochka, eu já posso até mesmo ver ele manipulando as
meninas, amedrontando-as com os vídeos das minhas punições.
“Olhe o que acontece com quem me desobedece.”
A minha única alegria é saber que, mesmo nos momentos mais
desesperadores, eu não chorei. Ele pode ter todo o meu sangue e meu corpo,
mas nunca terá as minhas lágrimas.
— Dormiu bem? — Ele caminha em volta do meu corpo, mas não o
vejo, não ergo meu rosto, não respondo, não me movo.
— Sabe que dia é hoje, Yelena? — Ele continua andando, o som do seu
sapato ecoando nas paredes vazias do porão, onde estou desde aquela noite
em que ousei ter esperança.
— Daqui você não consegue ouvir, não é mesmo? Mas lá em cima, o
seu rei está prestes a se tornar uma lenda.
Suas palavras finalmente chamam a minha atenção.
O dia do Padat’.
Isso significa que estou aqui há mais de uma semana, uma semana. Meu
Deus, eu não acredito que ainda estou viva, talvez Roman tenha razão e eu
seja mais forte do que penso. Ou talvez eu seja apenas uma amaldiçoada.
— Acho que nunca vi o Poço assim, nosso rei é uma lenda, todos
falarão dele, mesmo depois da sua morte.
Morte?
Eu sorrio, porque isso não vai acontecer, Roman não vai morrer, ele é
forte e poderoso, e ele sabe que não pode fazer mais nada por mim,
provavelmente deve achar que estou morta, não adianta mais. Ele não vai
morrer, ele vai ganhar, se tornar o rei e ir embora daqui. Esse era seu plano
e ele vai cumprir. Ele me prometeu.
— E para provar o quanto eu sou bonzinho, hoje você terá o privilégio
de assistir a luta final, aqui, do meu ladinho.
Ele vai até a porta e a abre, ergo meus olhos e vejo Zakhar entrar. Meu
corpo involuntariamente se arrepia, espasmos fazem meu estômago
protestar e vomito, mas nada sai, nem mesmo a bile.
Ele está carregando uma espécie de carrinho com uma enorme televisão
em cima. Então é isso, vamos ver Roman lutar através de uma tevê, mas
por quê?
Durante os próximos minutos, eles ajustam a televisão até que ela fique
como Arkady quer, a tela se acende e o Poço surge como se fosse um
programa de tevê.
— Agora vamos, me ajude a tirá-la daqui — Arkady exige e Zakhar
vem até mim. Desvio o olhar para o chão ignorando o medo irracional que
tenho dele, suas mãos me tocam e me encolho enquanto ele solta meus
pulsos das algemas, um grito rouco escapa da minha garganta com a dor
lancinante que sinto e desabo imediatamente no chão frio e sujo. —
Coloque-a na cama — Arkady manda e ele obedece.
Não consigo me mover, meus membros não se sustentam, sou um saco
de ossos e sangue, até mesmo respirar é difícil, mesmo assim encaro seu
rosto no curto caminho até a cama e, quando ele me deposita nela, eu sorrio.
— Capacho — sussurro bem baixinho em seu ouvido e me preparo para
o seu punho, mas ele não faz nada, apenas me olha e sorri de volta.
— Hoje não, vadia imunda. — Ele limpa as mãos na calça antes de se
afastar indo para a porta e pergunta para Arkady: — Mais alguma coisa?
— Não, pode ir.
Quando estamos sozinhos, Arkady vem até mim e se senta ao meu lado,
ele retira o lenço do seu terno e molha em um copo de água, em seguida
passa em meu rosto, os machucados doem tanto que quero pedir para ele
parar.
— Você está tão suja, tenho certeza de que o rei teria nojo de você, mas
eu não. — Ele continua limpando minhas feridas, mas não me movo. Em
vez disso, observo um hematoma em seu queixo, algo que não notei antes,
mas agora tão perto, posso notar o amarelado, quase curado, que
aparentemente está aqui há algum tempo.
Só existe uma pessoa no mundo capaz de acertar Arkady sem medo de
morrer.
E meu sorriso se espalha nos lábios machucados e ressecados enquanto
imagino-o fechando seu punho e enchendo essa cara imunda de socos.
— O que foi? — Ele se afasta parecendo desnorteado.
— Esse hematoma ficou bem em você — comento com a voz fraca, a
garganta machucada de sede e de tanto gritar.
— Do que está falando?
— Foi ele, não foi? Foi o Roman que te acertou desse jeito, foi o Rei do
Poço — digo, com uma alegria que faz as palavras saltarem da minha boca
antes que eu consiga evitar.
— É, tivemos uma conversinha. — Ele passa a mão no maxilar
machucado.
— Estou vendo.
— Ah, mas você precisa ver como ele ficou, vou te mostrar.
Arkady se levanta e vai até onde a televisão está, ele cantarola algo
enquanto pega o controle e liga, sinto meu estômago se revirar enquanto me
sento na cama, obrigando meu corpo exausto a se sustentar.
A tela se ilumina e uma imagem aparece, não é o Poço, é uma sala,
quase parecida com a que estou. Paredes sujas, correntes e algemas, cordas
e no canto...
— Ele está aqui... — sussurro enquanto observo a imagem à minha
frente.
— Claro, só o melhor para os meus preciosos — Arkady debocha, mas
meus olhos estão fixos nele. Meu Roman, acorrentado, nu, com um corte na
lateral do seu corpo e hematomas cobrindo suas pernas e torso, ele está
desmaiado, ou dormindo, ou...
Coloco a mão na boca, sentindo meus olhos arderem. As lágrimas que
tanto protegi pinicam querendo escapar.
— Calma, devochka, ele ainda não morreu, mas, quem sabe, hoje ele
finalmente cumpra com sua missão de herói.
— Do que você está falando? — pergunto ainda olhando para a
televisão, dois homens entram na sala, Zakhar está com um deles. Ele se
aproxima de Roman e o acerta, bem no local onde está ferido. Roman
sequer reage, um grito escapa dos meus lábios e sinto sua dor em minha
pele. — O que está fazendo com ele? Eles vão matá-lo.
— Não, eles não o mataram, isso é apenas um vídeo, tem uma semana
desde que ele chegou, você sabe, ele veio aqui no dia seguinte a sua
tentativa de fuga, exigir que eu te entregasse a ele e blá-blá-blá — ele ri,
como se fosse um absurdo.
Ele veio. Ah, não, ele veio por mim. Oh, Roman...
— Estava bem bravinho, e foi quando ele fez isso aqui. — Arkady
aponta para o seu queixo. — Então tivemos que conter o garoto, garantir
que ele não causaria nenhum dano e que estaria pronto para a noite de hoje.
— Você o manteve preso por todos esses dias? — pergunto, com certa
dificuldade.
— Assim como você, o Rei e a Bela do Poço.
Ergo meus olhos e encaro o verme à minha frente, nunca tive tanta
vontade de matá-lo como agora, talvez se minhas pernas suportassem meu
peso, seria isso que eu faria, eu o mataria, arrancaria seus olhos com minhas
mãos e comeria.
E faria tudo isso sorrindo.
Arkady puxa o carrinho com a televisão até onde estou, ele aperta um
botão no controle remoto e a câmera muda para o Poço, ele tinha razão
quando disse que estava lotado. A noite em que tentei fugir não é nada perto
do caos em que se encontra hoje, há homens pendurados em todos os lados,
cantando, gritando, pulando.
Há dezenas de faixas com o nome e o rosto de Roman, em uma delas
ele está com os dois braços erguidos, o corpo marcado por músculos
esculpidos, salpicado de sangue, o sorriso insano em seus lábios, os olhos
arregalados, vibrando com a vitória.
É assustador olhar para ele.
— Estou empolgado, devochka, essa noite entrará para a história do
Poço. — Ele se senta ao meu lado, comendo um pedaço de bolo de frutas.
O cheiro faz meu estômago doer de fome, de nojo, de medo.
— Hoje vamos ver o quanto o garoto te ama.
— O quê? — Viro-me para ele, sem acreditar no que está dizendo.
— Não me olhe assim, são as regras do Poço.
— Mas ele não vai morrer — digo com a certeza de quem acredita que
ninguém será páreo para o Rei do Poço.
— É aí que vamos ver, porque, se ele não morrer, quem morre é você.
— Arkady bate o indicador em meu queixo e desvio o rosto.
— Pode me matar, não ligo. — Ergo os ombros, com a certeza de que
será um alívio acabar com tudo isso.
— Mas ele — Arkady aponta para a tevê — liga.
— O que você quer dizer com isso?
— Nosso Rei do Poço terá duas lutas essa noite, uma contra seu
adversário, e a outra contra seu coração.
— Diga a ele que eu escolho morrer, não é justo, eu já estou aqui, você
nunca vai me libertar, me deixe morrer, deixa ele em paz e se divirta
comigo.
— Não é assim tão simples, minha doce Yelena. Faz partes das regras,
não sou eu quem escolho.
— De que regras está falando?
— Há uma regra que nenhum lutador conhece quando se inscreve, mas
cada um deles tem uma devochka, mesmo que eles nunca venham a
conhecê-la. Quando um lutador chega à final do Ciclo, existe um ritual que
acontece apenas para os nossos patrocinadores, se o lutador vencer, a
devochka dele morre e, se ele morrer, a devochka dele vive, no caso, hoje,
será ele ou você.
Não há reação em meu coração diante da morte, mas então me dou
conta do que ele disse alguns minutos atrás.
“Quem sabe, hoje ele finalmente cumpra com sua missão de herói.”
— Você quer que ele perca. — Compreendo seu plano imundo. — Foi
por isso que você o machucou? Para que ele não consiga vencer e você não
precise me matar?
Arkady para com o bolo no meio do caminho, ele vira o rosto em minha
direção e quero vomitar novamente, seus olhos se tornam ternos e ele se
move lentamente, colocando seu corpo grande e pesado sobre o meu, me
fazendo cair de volta ao colchão. Arkady passa a ponta do dedo por meu
rosto, por meus cabelos, por meu colo.
— Eu morreria se tivesse que tirar a sua vida — ele confessa e sinto
uma repulsa dolorosa por seu sentimento, seja ele qual for.
Encaro seus olhos negros, frios, sem vida e quase me sinto sugada para
dentro da maldade que existe em sua alma corrompida. Espalmo minha mão
em seu peito enquanto compreendo o que ele fez: uma vida pela outra.
— Mas se ele perder...
— A devochka do outro lutador morre.
— De qualquer forma, uma garota morrerá hoje — constato.
— Tão inteligente a minha devochka.
Isso é tão injusto.
Ergo-me devagar, meus olhos nunca deixando os dele, aproximo nossos
rostos e o beijo. Meus lábios frios e machucados tocam o seu, em um beijo
da morte, um beijo carregado de sentimentos ruins. Ele parece sentir e se
afasta, meu corpo estremece enquanto ele observa o sorriso que surge em
minha boca.
— Eu odeio você — digo e ele sorri.
— Não tenho pressa, devochka, eu sei esperar.
Ele se afasta, sentando-se novamente no instante em que o nome de
Roman é chamado pelo apresentador da luta, os gritos são tão altos que não
consigo ouvir o que ele diz.
A câmera se move e logo eu o vejo, meu coração acelera no peito ao
lembrar-me de que ele está machucado por baixo dessas roupas, e evito
olhar para Arkady enquanto me sento.
— E lá está o nosso menino. Preciso dizer que ele fica incrível na
televisão, olha esses braços — Arkady me provoca e noto que há faixas nos
pulsos de Roman, provavelmente para esconder os hematomas.
Ah, Roman... se não tivesse vindo atrás de mim, nada disso teria
acontecido.
O apresentador continua falando, Roman não sorri, não vibra, seus
olhos estão fixos no seu oponente e qualquer pessoa poderia acreditar que
ele está concentrado, ele ergue a mão e toca sutilmente o lugar onde está
machucado, ninguém nota, estão todos empolgados demais com a final do
ciclo.
— E essa noite conheceremos o vencedor do ciclo mais concorrido e
aguardado da história do Poço. E como sabemos, a luta principal só termina
quando um dos dois for eliminado, não há regras, apenas a morte será o fim
— o homem diz, a plateia grita, é assustador. Essa noite um desses dois
homens morrerá e eles estão vibrando como se não fosse nada.
O oponente de Roman não é mais alto que ele, mas está saudável, se
preparou bem e está empolgado, enquanto Roman está ferido, abatido,
faminto.
— Isso não é justo — digo baixinho enquanto observo o que pode ser os
últimos minutos de vida do meu rei.
— A vida não é justa, devochka.
Aproximo-me um pouco mais da tevê, meus dedos coçam com a
vontade de tocar em seu rosto, de dizer a ele para não ter medo. Ele ainda
pode ganhar, ele é forte, o maior lutador que esse Poço já teve, eu sei que
ele pode.
— Vamos lá, Roman — sussurro sentindo meu coração apertar.
— Acho que será uma luta e tanto, ele não vai se entregar assim tão
fácil — Arkady diz com uma empolgação que me enoja.
— Como você pôde fazer isso?
— Foi por você, minha devochka. — Ele sorri e balanço a cabeça,
incapaz de dizer algo que não seja desejar a sua morte.
O homem anuncia o início da luta, os adversários se cumprimentam,
meu coração parece prestes a pular pela boca, ergo minhas pernas e abraço
meus joelhos, meu corpo inteiro treme e quero fechar meus olhos, já não
sinto mais a dor física, tudo o que sinto é o medo adormecendo meu corpo
maltratado e me sufocando, não consigo deixar de pensar que, se ele morrer,
o mundo perderá uma das pessoas mais belas e gentis que já conheci, e eu
nunca vou ter a oportunidade de dizer a Roman o quanto ele significa para
mim.
Roman acerta o primeiro soco, os homens a sua volta vibram, mas eu
noto a expressão de dor em seu rosto, ele está em desvantagem, mesmo
assim seu oponente sente o impacto e uma onda de orgulho me invade.
Ele luta como um verdadeiro guerreiro, seu corpo explode em uma fúria
assustadora. Arkady continua falando coisas que me enojam, mas toda a
minha atenção está no garoto de cabelos escuros e olhar feroz que um dia
viu em mim uma fada e me fez acreditar em contos de fadas.
O primeiro golpe me faz soltar um grito, Roman cambaleia e prendo a
respiração, ele reage, mas seu oponente nota que ele não é mais o mesmo,
ele vai para cima e acerta Roman no rosto, seu supercílio se abre em um
corte violento que faz seu rosto se banhar em sangue, coloco minha mão na
boca, abafando o pavor que sinto à medida que Roman se cansa. Seu rosto
está vermelho, seus cabelos colados à pele, ele cambaleia, os braços
parecem pesados.
Ah não, Roman... não desista.
O adversário acerta um golpe em seu esterno, no exato lugar onde ele
está machucado, Roman se contorce de dor, as lágrimas nublam meus
olhos. Não, não, por favor, reaja.
Ele recebe mais um golpe, o Rei do Poço cai.
Seu oponente se aproveita e sobe em cima dele, os golpes se tornam
sangrentos, cruéis, mortais. Os braços de Roman não se movem, seu corpo
é atingido de forma brutal.
Duram apenas alguns segundos, no máximo um minuto, mas meu
coração dói tanto que sinto como se fosse uma hora. O árbitro se aproxima,
o corpo mole já não reage mais, mesmo assim o oponente continua
golpeando-o.
— Pare com isso! — grito, ao me virar para Arkady. — Eu faço o que
quiser, para sempre, serei boa para você, nunca mais te desobedecerei, só
faça parar, por favor, eu imploro. — Puxo sua camisa, no instante em que a
primeira lágrima escapa dos meus olhos.
Arkady me observa, com o rosto lívido ao ver aquilo que tanto quis. Ele
ergue a mão e captura a primeira lágrima com o polegar desviando os olhos
para ela.
— Então era isso? Eram para ele que elas estavam guardadas? — ele
pergunta encarando a lágrima em seu dedo como se fosse uma joia, algo
precioso. — Eu só precisava matá-lo?
— Ele não morreu — digo, com as palavras rasgando minha garganta,
enquanto aperto meus dedos em sua camisa, sujando-a.
— Olhe. — Ele ergue o rosto na direção da televisão. — Não sou eu
quem estou dizendo. — Ele sorri enquanto a cena se desenrola à nossa
frente. O árbitro ergue o braço do homem, que começa a gritar
comemorando a sua vitória, enquanto, caído ao seu lado, está o corpo do
único garoto que amei na vida, coberto de sangue, derrotado em uma luta
cruel e desigual.
Um homem se inclina e confere o pulso de Roman, ele olha para o
árbitro e confirma.
Acabou, ele se foi. Meu Rei foi eliminado.
O piso se abre e o corpo de Roman desaba lá embaixo, humilhado como
um perdedor deve ser. O Poço inteiro está em silêncio, nem uma palavra é
dita, como se todos estivessem chocados com o resultado, observando o rei
morto ser levado embora. Como se fosse o fim de um sonho.
— Seu maldito! — Avanço em Arkady, sentindo a raiva queimar em
meu peito. — Você o matou, eu te odeio, eu te odeio! — Meus punhos
acertam seu rosto, seu pescoço, seu peito, mas estou fraca demais e desabo
em cima dele. Meu choro agora é incontrolável.
— Shhh... minha devochka, não se preocupe, vai ficar tudo bem, eu vou
cuidar de você, eu prometi a ele. — Arkady me abraça, acariciando meus
cabelos enquanto choro, descobrindo que corações mortos também sofrem.
Arkady me deita na cama, enquanto tenta me acalmar. Olho para a
televisão e um cartaz com a foto de Roman aparece. Nele, o sorriso
escandaloso se espalha no rosto bonito e me dou conta de que ele nunca
mais vai sorrir.
Olho para o homem à minha frente e meu ódio toma uma proporção
gigantesca. Ele roubou tudo de mim: minha virgindade, minha liberdade,
meu corpo, minhas escolhas; e agora, meu único amor.
O grito que escapa da minha garganta pode ser confundido com o de um
bicho enjaulado, é feio, doloroso, assustador, e antes que minha coragem se
vá, eu avanço em seu rosto e o mordo com toda a força que tenho. Ele grita,
tenta se afastar, mas a sua dor me dá forças para segurá-lo junto a mim.
Sinto o sabor do seu sangue em minha língua, a textura da carne macia em
meus dentes e o seu corpo estremecendo com a dor. Eu sorrio quando me
afasto, cuspindo em seu rosto. O olhar que ele me dá é a última coisa que
vejo antes de um golpe me apagar.
E, por um segundo, desejo que ele seja forte o suficiente para me matar.
ZIMA10

Meus pés mal se movem no chão coberto por lama pegajosa e escura, o
esforço para caminhar faz meu esterno doer e pressiono a palma com força
no ferimento, que pulsa como um órgão extra, enquanto tento reconhecer o
lugar onde estou. Uma névoa densa me impede de ver muito além de um
braço de distância, e isso me deixa nervoso.
Está frio, mas não é o frio russo do qual estou acostumado, é um frio
que machuca meus músculos, que me faz sentir o estômago revirando e os
olhos doerem.
E eles doem.
Como se nunca tivessem sido usados, como se olhassem tudo pela
primeira vez. Forço minhas pernas puxando-as para fora do lamaçal, o
cheiro pútrido faz meu nariz arder e começo a tossir. Tudo dói, quero me
deitar, mas não posso parar ou serei engolido.
Roman...
Ouço meu nome ao longe, mas não consigo ver quem é, não há ninguém
à minha frente, apenas a vastidão nublada e sombria e uma solidão tão
profunda, que me faz pensar que fui esquecido aqui nesse lugar que nada
parece.
E é quando me dou conta de onde eu estou.
Eu morri, é isso, estou no limbo, esperando Chyort11 me levar para o
inferno.
Mas onde ele está? Por que ainda não veio? Não posso aguentar muito
tempo, preciso que ele me leve logo embora daqui ou desabarei nesse
lamaçal e meu corpo será engolido pela escuridão pegajosa.
Roman...
Mais uma vez, a voz me chama. Quero me virar, mas não consigo, estou
preso, exausto e dolorido. Meu corpo parece pesar uma tonelada. O tempo
passa, longo, lento e agoniante, continuo caminhando sem nunca chegar a
lugar algum. Minha garganta queima com a sede que sinto, o frio começa a
doer em meus ossos, a noite nunca chega ao fim, muito embora eu sinta que
o dia vem em algum momento, em algum lugar, eu só não consigo chegar
até ele.
De tempos em tempos, meu nome surge vindo de lugar nenhum,
ecoando acima de mim, reverberando à minha volta.
Tento responder, mas não consigo. Minha voz se perde na vastidão
sombria e silenciosa e apenas continuo caminhando, com a lentidão imposta
pela lama podre, sentindo que preciso chegar a algum lugar, mesmo que eu
não saiba onde. Alguém me espera, alguém precisa de mim. Ou será que
sou eu quem preciso de alguém?
Roman...
Um passo lento, agonizante; outro passo, dor, sede, frio, exaustão. O
tempo se perde junto com minha consciência, não sei mais o que é real e o
que é delírio, apenas uma coisa me mantém em pé, seguindo adiante: a voz
que chama meu nome.
E então, depois de um longo período, finalmente a exaustão me
consome e perco as forças, não há por que continuar, não consigo chegar a
lugar algum, então como meu último ato de escolha, fecho meus olhos,
respiro fundo e me deixo cair. Sinto o impacto do meu corpo sendo
engolido pela lama densa e pegajosa, não dói, o frio diminui e minhas
pernas já não lutam mais para se mover. Fico parado um instante, sentindo
meu corpo afundar lentamente, mantenho meus olhos cansados abertos.
Embora não veja nada além da névoa, é reconfortante, quase como se eu
estivesse em paz. Fecho meus olhos pelo que imagino que seja a última vez,
conformado com o fim.
Então eu ouço, mais forte, mais nítido.
Roman, não!
Meus olhos se abrem por vontade própria, meu coração, cansado,
acelera no peito. Puxo o ar para os meus pulmões, que já haviam desistido
de trabalhar. A lama começa a pressionar, me abraçando, me levando.
Roman, reaja!
Eu conheço essa voz, ela me faz pensar em resistir, em caminhar, é por
ela que eu estou indo, mesmo sem saber para onde, é ela quem me mantém
aqui, que não me deixa ir.
É ela.
Roman...
Tento me levantar, mas não consigo. Quanto mais me mexo, mais
afundo, a lama é pesada e me puxa para baixo, me debato, tentando me
livrar dela.
Rom, pare.
Imediatamente meu corpo obedece e paro de me mexer, a voz comanda
meu corpo. No instante seguinte, sinto mãos me puxando pela camisa,
como se eu não pesasse nada. Tento focar em seu rosto, mas não consigo
reconhecer, apenas sinto seu cheiro, e sei, é alguém especial, alguém
importante o suficiente para que apenas a sua voz seja capaz de me fazer
querer continuar.
— Quem é você? — pergunto estranhando a aspereza na minha voz.
Ela se aproxima, aperto meus olhos para tentar ver seu rosto, mas é
como se houvesse uma névoa sobre ele encobrindo-o.
Roman, me escute.
Ela sussurra em meu ouvido e sinto um arrepio por todo o meu corpo.
Ela precisa de você, volte para ela.
— Então me diga quem é você — peço, mas então sinto suas duas mãos
em meu peito, me empurrando com força. O impacto do meu corpo caindo
só não é maior do que a sua voz.
VOLTE!
E então eu acordo.

O som do bipe das máquinas é o meu único companheiro por um tempo,


durmo e acordo com frequência, tento me manter desperto tempo suficiente
para reconhecer onde estou, mas, por mais que eu tente, não faço ideia,
nunca estive aqui.
Nos primeiros dias não consigo lembrar de nada, a confusão me deixa
exausto e sou dopado a maior parte do tempo. Pouco a pouco, começo a me
conter, ficar calmo, entender que preciso me controlar se quiser
compreender o que está acontecendo.
Um homem sério e de poucas palavras me vê todos os dias, ele é a única
presença humana, sempre de máscara e jaleco e nunca conversa comigo,
nem mesmo faz contato visual. Apenas faz as mesmas perguntas: “Se estou
com dor, se me lembro de algo, qual o meu nome?”.
Sinto o tempo passar, os dias se tornarem semanas, e pouco a pouco vou
me recuperando. Sou transferido para outro lugar, mais parecido com um
quarto, sem aqueles bipes todos. O homem continua me visitando e fazendo
as mesmas perguntas. A dor começa a diminuir, mas ainda tenho
dificuldades de me lembrar de tudo.
Lembro de Demyan, de Berstuk, lembro do velório de Anna, de uma
luta, lembro de olhos azuis glaciais, sinto um ferimento em meu esterno
queimar, como uma chama que nunca se apaga. Vozes ecoam meu nome,
centenas deles, como um grito de guerra.
Roman, Roman, Roman.
Acordo várias vezes à noite com esse eco em minha mente, tento me
lembrar de onde vem, às vezes tenho flashes de golpes, sinto gosto do
sangue, a raiva queimando em meu peito, sinto a saudade, a preocupação.
Preciso ir a algum lugar, mas não sei onde.
O dia mais feliz é quando consigo me levantar sozinho, a dignidade de
poder fazer minhas necessidades em paz é algo sem palavras, quase choro
quando entro no banheiro e ligo o chuveiro. Tiro o avental hospitalar e entro
embaixo do jato quente de água, o som dela caindo em minhas costas ativa
uma memória. Esfrego meu peito sentindo uma dor esquisita, um medo de
algo que não sei, como se tivesse perdido alguém. À medida que o tempo
passa, outros sentimentos me confundem, abaixo minha cabeça e fecho os
olhos, me concentrando no som da água caindo no chão, no cheiro de
banho, na voz que sempre me acorda, nos olhos azuis que me recordo.
“Quem está machucando você?”
“Todo mundo.”
Meu coração acelera quando reconheço a voz, pouco a pouco as
lembranças daquele dia vão se formando, como um quebra-cabeça: a garota
assustada, os olhos implorando por ajuda, o banho.
Deus...
Onde ela está? Onde eu estou?
Saio do banho sem me preocupar em me secar, caminho devagar até o
quarto. Não há quase nada além da minha cama, uma mesinha com uma
cadeira e uma outra com uma gaveta. Vou até ela e a abro, há apenas alguns
papéis e um lápis, nada mais que isso.
Vou até a porta e tento abri-la, mas está trancada.
— Me tirem daqui, abram essa porta! — grito enquanto esmurro a
porta. — Alguém me tire daqui! — continuo gritando e esmurrando, na
esperança de que alguém a abra.
Alguns minutos se passam e ouço passos, vou até o banheiro e recolho o
avental, o visto e volto para o quarto, tentando manter a calma.
A porta se abre e dois homens entram, eles não usam jalecos e nem
máscaras, mas avisto armas em suas cinturas. Por que diabos homens
usariam armas em um hospital?
— Eu preciso falar com o médico, eu acho que estou me lembrando —
digo no instante em que eles se aproximam de mim. Um deles me encara
por alguns segundos, o sorriso perverso em seus lábios me faz estremecer.
Algo estranho faz um alerta acender em minha mente e, antes que eu
possa pensar, começo a correr, corro em direção à porta e depois continuo
correndo. Há um longo corredor mal iluminado com paredes mofadas.
Ouço os passos dos homens atrás de mim, estou fraco e sinto que não vou
conseguir ir muito longe. Viro à direita e noto uma espécie de cela, há
grilhões no chão e mais uma lembrança me invade.
“Por que estão machucando você?”
Uma garota, machucada, marcas em seus tornozelos. Tento me lembrar
de algo mais, mas não há tempo para mais nada. Sinto o impacto antes de
desabar no chão.
Eles me alcançaram.
Minha cabeça dói e me sinto um pouco tonto, mas, quando a porta se
abre, desperto de um sono confuso e noto que não estou sozinho.
— Finalmente Vossa Majestade nos dando o privilégio da sua presença.
Olho para o homem parado à minha frente, alto e imponente em um
terno que tem cara de caro, os braços abertos, um sorriso idiota nos lábios e
uma cicatriz avermelhada em seu maxilar.
— Arkady? — digo antes mesmo de me dar conta que o conheço.
— Viram só? Ele se lembrou de mim, devo me sentir lisonjeado — ele
diz olhando para os homens que me trouxeram de volta ao quarto. Me
mexo, sentindo uma raiva antiga pulsar em minhas veias, e é quando noto
que estou preso.
— Que porra é essa?! — esbravejo ao notar meus pulsos amarrados à
cama.
— É para a sua segurança, Zakhar me disse que você saiu correndo por
aí.
Zakhar... Olho novamente para o homem de rosto frio e começo a me
lembrar, flashes de um outro lugar, do seu sorriso enquanto eu era açoitado
até perder a consciência.
— O corte em meu corpo, foi você que me envenenou, seu desgraçado.
— Encaro o maldito que vou matar com minhas próprias mãos assim que
sair daqui e recebo de volta um sorriso frio e debochado.
— Bem que o doutor disse que ele recuperaria a consciência aos poucos
— Arkady continua. — Eu estava ficando preocupado, afinal de contas
foram quase dois meses.
Dois meses? Eu fiquei apagado por todo esse tempo?
Olho assustado para o homem à minha frente, incapaz de raciocinar
direito.
— O quê? Por quê? — pergunto exausto de tentar me soltar, de pensar,
de entender o que está acontecendo.
— As perguntas universais. — Ele anda pelo quarto, a cicatriz em seu
rosto chama minha atenção, em formato de meia-lua, parece recente, mas
não posso afirmar, não lembro de muita coisa.
— Me deixe ir embora — peço, quando ele para ao meu lado.
— Por que eu deixaria? A diversão vai começar agora.
— Diversão?
— Ah, Roman, você acha que eu gastei todo esse dinheiro, que eu te
trouxe para cá e cuidei de você... — Ele se inclina até ficar bem perto do
meu rosto. — Que eu te salvei da morte... — sussurra. O cheiro em sua
pele, algo familiar, ativa uma memória.
Olhos azuis.
— Para te deixar ir assim, agora que você voltou para nós? — conclui.
— O que você quer de mim?
Arkady se senta ao meu lado na cama, ele passa a ponta dos dedos na
cicatriz antes de voltar a falar:
— Tanta coisa... Pra começar, agora que o nosso Rei do Poço se foi,
tenho novidades.
Rei do Poço...
Os golpes, os gritos ecoando meu nome, a sessão de socos e a facada.
Tudo vem em uma enxurrada de imagens, sons, sensações.
— Me solta. — Puxo meu braço e Arkady acena para Zakhar. Ele
hesita, mas vem até mim liberando meus braços das amarras. Esfrego-os
notando algumas marcas neles, são antigas, como se eu já tivesse sido
algemado antes.
Um porão, dor, frio, fome...
— Continuando o que eu estava dizendo, agora que tecnicamente você
está morto é que precisamos começar a nos preparar, inclusive estamos
atrasados, afinal de contas você demorou tanto para voltar, que foi preciso
trazer a nossa devochka.
Devochka...
Meu coração acelera e tenho que me esforçar para não avançar em cima
dele quando me recordo: a garota do banho, os tornozelos machucados, a
voz que me chamava sempre que eu me perdia, era ela.
— Yelena — sussurro seu nome me recordando de cada detalhe dela,
minha fada.
— Sempre que estávamos quase perdendo você, ela vinha para cá e te
acalmava, foi lindo de ver — Arkady debocha.
Então era ela, minha fada, era ela quem me mantinha aqui, isso significa
que ele cumpriu sua palavra, ela está viva.
— Onde ela está? — pergunto.
— Ela está bem, estou cuidando dela.
Maldito desgraçado.
— Quero vê-la — exijo.
— Calma, garoto.
— Não quero ter calma, quero vê-la, só depois aceito ouvir qualquer
coisa que você tenha a falar.
— Pelo visto, todo esse tempo no limbo da morte não mudou nada em
você, continua o mesmo garoto temperamental e irracional.
— Como pode ver, não adianta tentar me quebrar, eu sou difícil de
destruir. — Encaro seu rosto sentindo todas as lembranças do último ano
preencherem as lacunas vazias da minha mente. — Traga Yelena aqui ou
nada feito.
Arkady respira fundo e balança a cabeça em um ato exagerado.
— Esses jovens apaixonados, sempre tão imediatistas.
Ele vai até o outro lado do quarto e retira o celular do bolso.
— Nada de vídeos, eu quero vê-la.
Ele para o que está fazendo e olha para Zakhar. Apenas um movimento
de cabeça e seu cão de guarda sai, deixando-nos com apenas um capanga.
Em outros tempos eu seria capaz de imobilizá-lo, mas estou fraco demais
até mesmo para me manter em pé por muito tempo e Arkady sabe disso, ele
não cometeria o mesmo erro duas vezes.
— Enquanto esperamos a nossa devochka, vou te deixar a par das
últimas fofocas de Temnyy Gorod.
— Estou pouco me fodendo para fofocas.
— Sabe quem se inscreveu para o próximo Ciclo? — ele continua sem
dar a mínima para o que peço. — Seu amiguinho, Demyan.
Viro meu rosto em sua direção, o medo se espalha por minhas veias
como veneno e Arkady sabe, o sorriso em seu rosto é a prova disso.
— Pode ficar tranquilo, ele não é nem de longe como você e já foi
eliminado do Zima — ele diz se referindo ao ciclo do inverno, que, pelo
visto, já começou há quase dois meses se o que ele disse sobre mim for
verdade.
Porra, ainda não consigo acreditar que passei dois meses nessa cama,
preso nos meus pensamentos de merda, perdido entre a vida e a morte.
Um alívio enorme enche meus pulmões e exalo agradecendo aos céus
por Demyan nunca ter se importado muito com lutas ou então ele poderia
estar nessa merda, caminhando para o inferno como eu fiz.
— Foi uma surra e tanto — ele continua e imagino Demyan naquele
ringue, algo difícil de acreditar.
Então me dou conta da última vez em que nos vimos. Meu Deus, eu fui
embora sem nem ao menos me despedir, e desapareci depois disso. Imagino
o desespero em que ele está, sem um corpo para sepultar.
Mais uma perda na sua vida de merda.
Será que esse é o motivo para que ele tenha se metido no Poço? Droga,
do jeito que ele é teimoso, não duvido que tenha tentado descobrir onde
estou e, pelo que conheço dele, não descansará nem tão cedo.
A porta se abre me tirando dos desvaneios, Zakhar entra trazendo com
ele a garota que me salvou da morte. Ela está diferente, os cabelos um
pouco mais curtos na altura do ombro, usando um suéter azul que realça
seus olhos. Ela ergue o rosto quando entra e meu coração para por um
instante quando Yelena sorri.
— Você acordou — ela sussurra e um sorriso enorme se espalha por seu
rosto, um sorriso capaz de enfeitiçar garotos e fazer idiotas voltarem à vida,
só para morrerem de novo.
Dois meses.
Sessenta dias em que não respirei, apenas esperei, dia e noite, vendo os
ponteiros girando devagar, em uma tortura maior do que qualquer coisa que
já tenha passado.
Cada noite que chegava, cada dia que amanhecia, cada momento em
que meu coração batia, sem saber se Roman iria acordar, era como uma
tortura emocional que não sabia se um dia teria fim.
Tive medo, tanto que me vi chorar ajoelhada ao seu lado, pedindo para
que ele não me deixasse aqui sozinha, e todos os dias, durante os poucos
minutos em que Arkady me deixava vir vê-lo, eu rezei para que Deus não o
levasse embora, enquanto, no fundo do meu coração, eu o invejava por estar
tão perto do fim.
Mas agora, enquanto o vejo sentado, vivo, com seu sorriso bonito nos
lábios, os olhos que temi nunca mais ver abertos, me observando, sinto uma
alegria tão grande que preciso me conter para não correr e me jogar em seus
braços.
— Você acordou — sussurro aliviada e o sorriso se espalha por meu
rosto também.
— Yelena — ele diz e, como sempre, sinto meu coração perder o
compasso com o som do meu nome em seus lábios.
Sei que não estamos sozinhos, que Arkady está analisando cada passo
meu, sei que, embora ele tenha me perdoado pelo que fiz em seu rosto,
dizendo que agora ele tem algo marcado em seu corpo, como o doente
pervertido que é, e que prometeu nunca mais me machucar, para mim suas
palavras valem tanto quanto o lixo descartado no final de cada dia. E o ódio
que ele sente por Roman é maior do que qualquer outra coisa que ele diz
sentir por mim.
— Vamos, minha querida, se aproxime do nosso garoto. — Arkady
estende a mão para mim e hesito um pouco, noto Roman também ansioso e
respiro fundo dizendo a mim mesma para me acalmar, não posso deixar que
Arkady sinta o meu medo, isso o fortalece.
Caminho até a cama onde Roman está, nitidamente mais magro e
abatido, os olhos arroxeados, os lábios pálidos, parecendo cansado,
confuso. Mas o mais importante, vivo.
— Qual é, parecem até dois estranhos. Vai lá, dê um abraço nele. Vai lá,
devochka, seu rei te espera. — Arkady me encoraja, mas não sei o que ele
está querendo. Me torturar? Testar a minha devoção a ele?
Antes que eu possa decidir o que fazer, ele pega minha mão e coloca em
cima da mão do Roman.
— Ela esteve aqui o tempo todo com você — ele diz segurando nossas
mãos unidas sobre as suas e sinto nojo da forma como Arkady adora brincar
com nossos sentimentos.
Tudo em mim grita para me jogar nos braços de Roman, para beijá-lo e
dizer que senti sua falta, mas não confio em Arkady, então me aproximo
devagar. Arkady se afasta e me sento ao lado dele, sorrindo nervosa. Roman
ergue os olhos até mim, minhas roupas, meus cabelos, meu rosto.
— Você está diferente — ele diz e abaixo o olhar para as nossas mãos
novamente enquanto toco meus cabelos cortados.
Roman faz o mesmo, seus dedos roçam as mechas escuras e fecho os
olhos por um instante, inalando seu cheiro, sentindo o calor do seu toque.
Vivo.
— Eu disse que cuidaria da nossa garota enquanto você se recuperava
— Arkady responde, mas Roman sequer ergue o olhar para ele.
— Você está bem? — ele me pergunta e movo a cabeça novamente. —
Deixe-me ver seus pulsos — pede e ergo o rosto assustada para onde
Arkady está.
— Vamos, devochka, mostre seus pulsos para ele.
Ergo as mangas do suéter e estendo meus pulsos para Roman, as antigas
marcas ainda estão lá, como um lembrete de que estive no inferno uma vez
e que posso voltar para lá a qualquer momento, mas elas são apenas isso,
lembretes.
Arkady realmente cumpriu sua palavra e, embora eu ainda seja uma
prisioneira, nunca mais fui punida. Zakhar não tem mais permissão para me
machucar e até mesmo Arkady tenta ser generoso, embora seu toque seja
como fogo em minha pele, queimando e me lembrando todos os dias de que
não sou livre.
Roman estende a mão para tocar minha pele, seus dedos são gentis ao
pousar nas cicatrizes e quase posso sentir a dor em seus olhos quando ele
contorna as marcas.
— Senti sua falta — ele diz baixinho, mesmo que nós dois saibamos
que temos plateia. Que tudo o que sempre dissemos um para o outro nunca
foi verdadeiramente só nosso.
— Eu também — sussurro de volta.
Antes que eu possa pensar, Roman enrosca sua mão em minha nuca, me
puxando para si. Eu hesito, com meu corpo rígido de medo e viro o meu
rosto para Arkady, como se estivesse fazendo algo errado e, de certa forma,
estou. Sou dele, esse era o acordo. E ele cumpriu sua parte. A vida de
Roman por minha liberdade. Eu preciso cumprir a minha.
Arkady move a cabeça em uma permissão silenciosa e então relaxo,
sentindo o polegar de Roman em minha nuca, nossos dedos entrelaçados,
nossas respirações aliviadas, ele me envolve em um abraço que rouba o
meu ar. Deito minha cabeça em seu ombro e fecho meus olhos, inalando seu
cheiro, sentindo o sabor da sua pele em meus lábios.
— Tive medo de te perder — sussurro em sua pele, como fazíamos nos
nossos encontros.
Roman não diz nada, apenas respira fundo, soltando o ar bem devagar.
— Por favor, não me deixe nunca mais — digo ainda mais baixinho,
com medo da força dos meus sentimentos, enquanto aproveito seu abraço.
Roman deixa um beijo em meus cabelos, é sutil e casto, mas o
suficiente para me deixar apavorada e me afastar, voltando a me sentar.
Arkady estende a mão e a aceito sem ter opção, ele me puxa para o seu lado
em um abraço frio e possessivo.
Roman desvia os olhos para os lençóis em volta do seu corpo e faço o
mesmo, porque é quase insuportável estar tão perto dele e não poder dizer
tudo o que sinto.
Que o amo, mais que a minha própria vida.
Que no momento em que o vi desabar naquele poço, enquanto ele ardia
em febre nessa cama, oscilando entre a vida e a morte, eu entendi que o
amava, que não tinha sentido nenhum continuar sem ele, e que eu estava
disposta a dar a minha vida por ele.
— Tudo bem, pode falar. — Roman se vira para Arkady e quero pedir
para que ele não faça nada que esse monstro sugerir. Mantenho meus olhos
fixos em seu rosto, mas Roman sequer desvia o olhar para mim, no fundo
ele sabe o que o espera, sabe que Arkady vai me usar contra ele, e todos nós
sabemos que ele vai aceitar, como um círculo vicioso sem fim.
— Bom, vamos lá. — Arkady se afasta de mim caminhando até o outro
lado do quarto e indicando que seus capangas saiam. Quando estamos
apenas nós três sozinhos, ele caminha até parar na frente da cama de
Roman.
Ele nos olha com um fascínio que me enoja, conheço sua mente doentia
o suficiente para saber que ele é capaz de usar nossos sentimentos contra
nós, e adoraria fazer isso.
— Eu preciso dizer que forjar a sua morte foi um truque de mestre. A
grana que faturei naquela noite foi a maior desde que vim parar aqui, afinal
de contas todas as apostas estavam a seu favor, quase ninguém acreditava
que o rei seria derrubado.
— Então foi para isso que seu capanga me esfaqueou e me envenenou?
Para que você garantisse a minha derrota?
— Não fale assim, Roman, parece até que eu fiz de propósito, eu só me
defendi. Foi você quem me atacou primeiro, esqueceu?
— Eu deveria ter te matado, isso sim.
— Ameaças vazias me cansam. Seja lá o que foi, você perdeu e isso é
tudo o que importa.
— Eu não perdi, eu estava machucado, me coloque lá de novo com
aquele cara e eu acabo com ele antes mesmo que você possa se ajoelhar
para mim — Roman diz e meu coração acelera.
— Eu não duvido disso. — Arkady ergue uma sobrancelha e seu olhar é
tão nojento que não consigo encará-lo por muito tempo. — E a prova disso
é que você vai voltar.
— O quê? — digo sem acreditar no que estou ouvindo. — Não.
Roman se ajeita na cama, empolgado.
— Quando?
— Roman, não! — peço sentindo o pânico me consumir, não posso
perdê-lo de novo, não.
— Calma, garoto, agora as regras mudaram — Arkady diz com um
sorriso vencedor.
— Então, desembucha logo! — Roman exige sem paciência para os
joguinhos de Arkady.
— É como um jogo, e você passou de fase, não há mais como você
voltar para o Poço, afinal de contas, para todos os efeitos, o rei morreu —
ele diz e estremeço com essas palavras. — Mas tenho algumas lutas ainda
melhores para você.
— Com quem vou lutar?
— Com antigos lutadores do Poço, perdedores dos Ciclos passados.
— E por que eles estão dispostos a voltar? — Roman continua fazendo
perguntas.
— Grana, claro.
— E quanto eu vou ganhar com isso?
— Você? Nada.
— Deixa eu ver se entendi. — Roman cruza os braços em uma postura
que parece relaxada, mas eu sinto a sua fúria como ondas de energia que
exalam do seu corpo e chegam ao meu. — Eu fui usado, enganado,
espancado, esfaqueado e agora vou lutar para você a troco de nada? Por que
diabos eu faria qualquer coisa por você?
Eu sei a resposta, antes mesmo que Arkady abra a boca, e tenho certeza
de que Roman também sabe. Merda, até mesmo as paredes desse lugar
sabem que a Bela do Poço se apaixonou pelo rei e que esse amor é
amaldiçoado.
— Por mim, nada, mas por ela. — Ele ergue o queixo em minha
direção. — Eu sei que você seria capaz de morrer, não é mesmo, Roman?
— Está querendo me chantagear de novo? Não caio mais nessa — diz
Roman, ainda aparentando uma tranquilidade que não é real.
— Não? Tem certeza? Bom, talvez eu tenha me enganado então e você
não goste tanto assim da nossa fadinha — Arkady continua provocando-o.
— Não tem a ver com meus sentimentos, mas sim com os seus, você
não a machucaria.
— Eu? Ah não, meu interesse por ela já acabou. — Arkady vem até
onde estou e passa a ponta do seu dedo por meu quadril, atraindo a atenção
de Roman. — Sabe como é, depois de um tempo fodendo a mesma boceta,
ela acaba perdendo a graça. — Enlaça a minha cintura e me puxa para perto
de si. — Mesmo sendo uma tão apertadinha. — Arkady passa o nariz em
meus cabelos e fecho os olhos, não porque me incomodo com suas palavras
sujas, mas porque não quero que Roman se deixe abalar.
— Então por que você a mantém aqui? Por que não se livrou dela?
— Por sua causa, óbvio.
— Minha? — Roman pergunta intrigado.
— Claro, para mim ela não vale nada, mas sei o quanto é valiosa para
você, afinal de contas você voltou do inferno por ela — Arkady diz, com a
certeza de quem tem tudo muito bem arquitetado.
— Você tem razão — Roman concorda, mas suas bochechas começam a
ficar vermelhas de ódio e quero chorar por saber que Arkady nos tem nas
mãos. — Mas não vou mais ser usado por você.
Arkady se afasta de mim e me aproximo da cama, esticando minha mão
lentamente até os meus dedos tocarem as pontas dos dele. Roman olha para
mim, em um pedido silencioso para que eu me afaste e, quando não o faço,
ele recolhe sua mão.
— Sabe, Roman, Yelena foi uma das mais lucrativas garotas que já
tivemos aqui no Poço, os patrocinadores amavam vê-la ser violada,
castigada, usada. — Baixo meus olhos para o chão desejando, com todo o
meu coração, que Roman não precise ouvir isso. — Mas tudo passa e ela já
não tem mais seu valor, chegou uma nova garota, não tão bonita quanto ela,
claro, mas ela é tão novinha e assustada, e gritou tanto no dia em que foi
leiloada. Sabe como é, existem homens que não resistem a uma garotinha
implorando, chorando, pedindo por favor.
Engulo em seco ao pensar no que ele diz, existe nesse momento uma
outra garota que está vivendo as mesmas coisas que vivi, e que um dia,
quando perder a graça, será descartada em uma vala, usada e destruída, e
então outra entrará em seu lugar.
Meu Deus, isso não tem fim nunca.
— Você é um porco imundo maldito — Roman diz, mas Arkady não
liga.
— Vamos parar com isso, já passamos dessa fase, o que eu quero dizer é
que, se a Yelena não me serve para mais nada, bom... você me entendeu.
— Não se preocupe comigo, Roman. — Puxo sua mão e o obrigo a
olhar para mim, mas ele se desvencilha de mim e volta a olhar para Arkady.
— Então eu luto, mas com uma condição.
— Você não aprende nunca, não é, garoto? Você não dá as ordens, sou
eu quem dou.
— Enquanto eu estiver sujando minhas mãos para você, ela fica longe
daqui — Roman diz.
— Não, não, Roman, pare.
— Tira ela do Poço, quero ela longe do Zakhar, dos patrocinadores, de
mim.
— O quê? Roman, não! — continuo implorando desesperadamente.
— Quando você se cansar de mim, ou quando eu for derrotado, tanto
faz, ela está livre, fora de Temnyy Gorod.
— Não... — sussurro, sentindo meus olhos arderem com as suas
palavras.
— Não quero vê-la mais.
— Viu só, fadinha? Até mesmo seu rei se cansou de você, é o que digo,
mulheres servem para serem usadas e descartadas — Arkady provoca-me.
— Roman — o chamo e ele olha para mim, seus olhos estão tristes e
repletos de desculpas que não pode me dar.
— Não ligo para o que você pensa, quero garantias de que meu pedido
será cumprido.
— Te dou minha palavra, pela nossa amizade. — Arkady coloca a mão
no peito, como se ele tivesse um coração.
— Sua palavra não vale nada para mim.
— O que você quer, um pedaço de papel assinado? Sério?
— Não, quero uma câmera aqui, para que eu a veja todos os dias.
Arkady solta uma gargalhada que faz meus ossos gelarem.
— Por favor, garoto, você se acha demais.
— É isso ou nada.
— Ela morre. — Ele aponta para mim aumentando o tom de voz.
— Tenho certeza de que viver aqui é pior do que a morte.
— Não será uma morte bonita, você sabe, mortes são bem lucrativas na
dark web.
— Dark web? Do que você está falando? — Roman pergunta
horrorizado. — Você está dizendo que está vendendo as atrocidades que
acontecem aqui na internet?
— As câmeras — sussurro
— Tudo que vocês fizeram, tudo o que acontece aqui no submundo do
Poço é comercializado — Arkady diz. — Nossos patrocinadores são os
responsáveis pela distribuição de tudo o que é feito aqui, as lutas, o sexo, as
punições. As mortes.
— Meu Deus... — Roman parece chocado e não consigo compreender
tudo o que está acontecendo.
— Você não imagina o tamanho da sede por podridão que o ser humano
possui, rapaz.
— Então tudo isso foi planejado? — Roman pergunta incrédulo. — As
lutas, as mortes, as garotas, tudo faz parte de um plano?
— Exatamente.
— Eu não consigo acreditar... — Roman exala e ainda estou confusa,
não sei o que significa isso, mas imagino que, assim como tudo o que é
feito com as garotas aqui, suas mortes também devem ser filmadas e
expostas para os patrocinadores verem. Talvez mais. — O inferno é pouco
para você.
— Não me julgue, eu sou apenas um representante, se não fosse eu seria
outro, talvez mais cruel. A verdade, Roman, é que o mundo gira em torno
de duas coisas, sexo e dinheiro e o que vem atrelado a esses dois: a
ganância, o poder, a luxúria, a curiosidade. A internet é a verdadeira caixa
de Pandora da humanidade, ela abriu as portas para todos os tipos de
fetiches que se pode sonhar. O dinheiro deu poder a quem pode pagar por
eles e nós somos apenas comerciantes, realizamos aquilo que eles não
podem fazer. Criamos os sonhos, mas não somos os sonhadores.
— Eu só quero que todos vocês apodreçam lentamente no fogo eterno
do inferno.
— Tá, tá, um dia, quem sabe, mas não hoje. — Arkady sorri, em um
deboche perverso. Roman parece prestes a vomitar e seu corpo inteiro está
rígido como se ele pudesse avançar em Arkady a qualquer momento.
— Roman — o chamo mais uma vez, mas ele continua olhando para
Arkady.
— Certo, então só me resta acreditar em sua palavra de que ela ficará
bem, a sua palavra. A palavra de um sádico assassino?
— Isso ou nada.
— Não precisa ser assim, Roman — peço mais uma vez e ele
finalmente vira o rosto para mim.
— Não temos outra escolha, no fim somos peões no jogo doentio dele
— Roman diz.
— Deixa ele me matar, eu não ligo — peço.
— Ele não vai me deixar ir embora, mesmo que você morra — Roman
sussurra como se tentasse me fazer entender que não importa a escolha, o
fim será o mesmo.
— Então me deixe ficar aqui.
— Não posso te manter junto a mim, Yelena, você me deixa fraco,
como a Baba Yaga que sempre foi.
Ele solta minha mão, me afastando de si, depois de tudo, e sinto meu
peito doer tanto que parece que vou morrer.
Ela está viva, segura e longe de mim, isso é tudo o que importa, tudo o
que me faz acordar e dormir, comer e me fortalecer nas semanas que se
passam. Ainda estou tentando assimilar a realidade, que vivi os últimos dois
anos, enquanto tentava a todo custo me tornar um lutador do Poço, sem
imaginar que estava fazendo parte de uma armação, um plano imundo e
maligno projetado para a diversão de um punhado de milionários doentes
que acham que seu dinheiro faz deles deuses e que me trariam para cá, para
o inferno.
A verdade é que não importa o que eu faça, nem o que Yelena tenha que
suportar, nunca sairemos daqui, mas existe algo dentro de nós que nos
impede de desistir e por isso sigo acreditando que, em algum momento,
encontrarei a falha nesse esquema. Porque eu sei que existe, todo plano tem
uma falha.
No Natal, Arkady traz um presente para mim: um vídeo de Yelena. Ela
está sorrindo enquanto come, seus lindos olhos de fada quase fechados,
deduzo que esteja assistindo algo, um filme engraçado, não faço ideia, mas
isso não importa, ela está sorrindo e parece tão jovem, com uma calça jeans
e camiseta, quase normal. Reconheço o quarto, pergunto o que ela está
fazendo aqui no Poço e, de acordo com ele, ela se recusou a ir embora e
imagino que sua teimosia deve ter custado caro para ela.
Nas semanas seguintes, ainda recebo a visita do médico que continua
me examinando, mas, pela sua expressão, tenho certeza de que estou cada
dia mais recuperado.
Arkady me deixa ver Yelena por suas câmeras sempre que peço e,
mesmo que eu nunca diga, sou grato por isso, saber que ela está bem me
deixa aliviado, é aquele lance de sobrevivência irracional, não tem
explicação.
Toda semana uma garota diferente é enviada para mim, ruivas, morenas,
loiras, negras, asiáticas, até mesmo um garoto, são presentes para me deixar
animado. Rejeito todos e obrigo os capangas os levarem embora assim que
chegam. Minha concentração inteira é em arrumar um jeito de sair daqui,
não importa quando, nem como e de qualquer forma, não consigo sequer
olhar para outra mulher, tudo o que penso é em Yelena, no seu corpo, na
forma como nos encaixamos e se algum dia iremos poder ficar juntos
novamente.
Eu já sei a resposta, só não quero aceitar.
As semanas se passam, estamos no final do Zima e me assusto com o
quanto o tempo passou rápido, tento não pensar no que está acontecendo lá
em cima no Poço, mas os capangas sempre falam sobre as lutas e seus
favoritos.
Logo o dia da minha primeira luta chega, ainda não sei quase nada
sobre o que vai acontecer, Arkady não me deu muitas informações e isso só
me deixa mais desconfiado, com certeza nada de bom virá disso.
A porta se abre e sou levado por Zakhar pelo longo corredor,
caminhamos em silêncio até chegarmos a uma escada, descemos dois lances
e me pergunto qual o verdadeiro tamanho do Poço, o que de mais terrível
ele esconde nos seus subsolos.
Chegamos a um porão, mal iluminado, sujo e frio, ele cheira a mofo e
medo e imagino todas as atrocidades que já foram feitas aqui. No canto
esquerdo do porão há uma câmera que se move de acordo com nossos
movimentos e chama minha atenção, me recordo do que Arkady disse sobre
a dark web. Seja lá o que vai acontecer aqui, produzirá entretenimento para
algum doente sádico filho da puta e grana para ele.
Do outro lado do porão, estão o desgraçado do Arkady e Yelena.
— O que ela está fazendo aqui? — pergunto tentando não olhar para
ela, mas meu coração idiota bate tão forte que tenho medo de que eles
escutem.
Droga, isso não é bom, ter ela aqui só me desconcentrará.
— Eu disse a ela, mas sabe como são as mulheres, teimosas e
sentimentais. Ela queria te desejar boa sorte, não é, devochka?
Yelena move a cabeça em um sim tímido e tenho certeza de que ele está
mentindo, mas não me importo, não adianta me importar, nem ao menos sei
se sairei vivo daqui essa noite.
— Vá lá, dê um beijo de boa sorte em seu herói, hoje ele vai precisar. —
Arkady a empurra em minha direção. Yelena hesita, mas então vem até
mim, devagar, com os olhos fixos no chão, como naquela primeira vez em
que nos encontramos.
O que será que teria acontecido a ela se eu tivesse dito não? Se a
tivesse rejeitado, será que ele já a teria matado? De acordo com o que ele
disse, o destino dela já estava selado.
— Me desculpe — ela pede baixinho com o rosto perto do meu, inclino-
me para baixo e inalo o aroma dos seus cabelos. Porra, que saudades.
— Tudo bem — digo enquanto a puxo para mim, colando seu corpo
pequeno e frágil no meu e erguendo seu rosto. — Vamos dar a ele o que
quer — falo no instante em que pouso minha boca na sua, em um beijo
possessivo, forte e explícito.
Sinto suas mãos se fechando em minha camiseta, me puxando para si e
meu corpo inteiro dói de saudades, de raiva, de ciúmes. Então a beijo com
mais força, desejando marcá-la para sempre, para que todos que olhem para
ela, saibam que ela é minha, minha fada, minha garota, meu... coração.
Por ela morri uma vez e morrerei quantas outras forem necessárias.
Palmas exageradas nos fazem parar, aproveito para observá-la um
pouco mais, ela parece saudável, menos magra, corada, tão linda, a mais
linda que já existiu, e meu coração afunda um pouco mais por ela. Por saber
que embora ela esteja aqui, na minha frente, que eu posso tocá-la e beijá-la,
nunca teremos um futuro.
— Eu quero que me prometa que não importa o que aconteça, você não
vai assistir o que vai acontecer aqui hoje.
— Roman...
— Me prometa, Yelena, eu não vou suportar saber que você está vendo.
— Então me prometa que você vai tomar cuidado, por favor — ela
pede, passando seus dedos por meu peito e balanço a cabeça.
— Pode deixar. — Me inclino e deixo mais um beijo em sua testa.
Quero dizer mais, quero falar o que sinto, o quanto ela é importante para
mim e como tenho medo de perdê-la, mas não posso, isso é algo só nosso
que direi um dia, quando estivermos a sós, seja aqui ou em qualquer outro
mundo.
— Pronto, agora que vocês já se viram Zakhar pode levá-la — Arkady
pede.
— Ele não — digo segurando Yelena junto a mim, uma fúria insana me
domina e sou capaz de matar Zakhar se ele sequer olhar para ela. Por sorte,
Arkady não insiste e chama outro homem que não conheço. Ele vem até
onde estamos e estende a mão para Yelena.
— Não a toque, sequer olhe para ela, está me ouvindo — digo e o
homem olha para Arkady.
— Faça o que ele pediu — Arkady diz revirando os olhos e o capacho
assente enquanto espera que Yelena caminhe na sua frente, observo-a ser
levada para longe de mim.
A porta se abre e poucos minutos depois um homem encapuzado entra,
sendo levado por mais um dos capangas de Arkady, ele é colocado no outro
lado do porão, de frente para mim. O capanga retira o capuz e reconheço o
homem com quem lutei em uma das primeiras lutas do Padat’. A forma
como ele olha para mim, como se estivesse vendo um fantasma, é a certeza
de que as pessoas acreditam na minha morte.
— Bom, chegou a hora de apresentar a vocês as regras da nossa luta. —
Arkady se aproxima de nós. — Não se preocupem, é bem fácil de
compreender, afinal só existem duas: lutem até morrer. — Ele ergue um
dedo no ar. — Só serão libertados quando acabar. — O segundo dedo se
levanta no ar enquanto ele olha de mim para o homem de quem não me
recordo o nome. — É proibido desistir e, caso aconteça, temos os nomes
das pessoas que pagarão por sua covardia.
Então é isso, não é só pela grana como ele disse, de certa forma no
momento em que um homem coloca seus pés no Poço, ele sela seu destino,
seja por sua própria vontade, ou pela vida de quem eles amam.
Por isso a Yelena foi entregue a mim, eles sabiam que eu não tinha nada
que me prendesse ao mundo, viver ou morrer, tanto faz, eu não me
importava, e isso fazia de mim uma peça difícil de manipular.
No fim das contas, todos que estão aqui têm alguém lá fora por quem
estão dispostos a morrer, a única diferença é que, no meu caso, Yelena já
está com eles.
— Digam olá para os nossos patrocinadores que estão ansiosos para
assistir a luta dessa noite. — Arkady acena para a câmera que vira na minha
direção, não me movo e ela se vira para o meu adversário que também se
mantém imóvel.
— Você quer dizer que tenho que matar esse homem? — Aponto na
direção do meu oponente, que continua em silêncio.
— Tudo bem, ele pode te matar se assim preferir — Arkady responde
parecendo ansioso para ver a luta.
— Ninguém aqui precisa morrer — continuo. — Podemos apenas lutar,
como no Poço.
— Esqueça o Poço, estamos em um outro nível, mas caso queiram
desistir, haverá outra gravação essa noite, uma morte vai acontecer de
qualquer forma. — Ele ergue os ombros. — Ah, antes que eu me esqueça,
vale tudo, então, boa sorte, rapazes.
Ele se afasta e, antes que eu possa sequer questionar a insanidade disso
tudo, o homem avança para cima de mim, um grito desesperado sai de sua
garganta enquanto ele tenta me acertar.
Sou mais rápido e desvio do seu soco e o que acontece a seguir é uma
sequência de ataques mal planejados, executados por dois estranhos que não
se conhecem, mas que sabem que só existe uma forma disso acabar.
Passo alguns minutos tentando falar com ele, pedir que me escute, mas
ele não me dá ouvidos. Está concentrado em me aniquilar e começa a se
dedicar para isso, os socos doem por ter ficado tanto tempo sem lutar, meu
corpo demora a se acostumar e me canso rápido.
— Olhe para mim, não precisamos fazer isso — digo segurando-o pela
camiseta suja, o suor azedo do seu medo faz meu estômago revirar. — Não
quero te matar.
— Se não fizermos, ele vai matar a minha filhinha — ele diz, com a
certeza de que Arkady não mentiu quando disse que tinha nomes. — Me
desculpa, Roman, mas preciso fazer isso. — Suspira, instantes antes de me
atacar novamente.

Matar alguém muda algo dentro de nós, nos esfria, nos desconecta, é
como se, a cada alma ceifada, um buraco se abrisse dentro de nós.
Matar alguém leva embora algo irreparável.
E eu venho perdendo mais do que imaginei que seria capaz de suportar.
As lutas não acontecem de forma regular, às vezes duas por semana, às
vezes uma a cada quinze dias. São cruéis, desleais e desumanas. Saber que
um bando de doentes estão se esbaldando com o sangue que mancha meus
dedos é algo que me faz perder noites de sono.
E no meio de tudo isso estão filhos e esposas, irmãs e mães, entes
queridos que nunca saberão que foram honrados até a morte, que foram
amados em sacrifícios, e que o carrasco sou eu.
E tem ela, minha fada, que vem me ver todas as lutas, com seu beijo que
mais se parece com um lembrete de que, se eu não cumprir com o
combinado, será ela a morrer.
Estou sentado no chão, o corpo do homem que acabei de matar ainda
está à minha frente, imóvel, irreconhecível, o sangue dele escorre pelo piso,
por minhas mãos, em meus ossos.
Estou ofegante, dolorido, sangrando, meu olho esquerdo está fechado e
acho que quebrei o nariz, mas nada disso importa, afinal de contas eu venci,
só não sei o quê, nem por quanto tempo ainda suportarei.
VESNA12

Estou deitado em um campo de lavanda, sorrindo, porque sei


exatamente quem foi o otário que plantou essas merdas coloridas que em
nada combinam com o cinza de Temnyy Gorod. Ele está correndo atrás de
Berstuk, que não dá a mínima para ele.
O sol está quente, a brisa do vento refresca meu corpo aquecido pela
primavera que chega trazendo vida para a nossa cidade. Estendo as mãos e
sinto seus dedos roçarem os meus, o sorriso se espalha por meu rosto e meu
coração bate acelerado como o bobo apaixonado que sou.
Sim, apaixonado.
Não sei quanto tempo levei para me dar conta disso, mas é a verdade, eu
a amo, não como amei Anna, é diferente, eu a amo com tanta força que, às
vezes, me sinto quase imortal, indestrutível. Mas hoje sou apenas um
garoto, em um jardim deitado ao lado da menina mais bonita do mundo,
sem lutas, sem medo, sem dor.
— Rom. — Ouço meu nome e abro os olhos, Yelena está sentada à
minha frente, usando um vestido suave e colorido, os olhos arregalados
olhando para mim, Demyan está atrás dela, também parecendo assustado,
como se estivesse olhando para um fantasma.
— O que foi? — pergunto me levantando e olhando para o que chama a
atenção deles e me assusto com o que vejo.
Sou eu, meu corpo, esparramado no chão, coberto de sangue e pedaços
humanos, meu pescoço está quebrado e minha cabeça está em um ângulo
estranho.
— Ei, não olhem para ele, olhem para mim — peço quando Yelena se
joga sobre o corpo e Demyan começa a chorar, mas ele nunca chora.
— Não me deixe, Rom, você prometeu, não me deixe aqui — ela diz
ainda debruçada sobre o cadáver apodrecido.
— Eu estou aqui, olhem para mim — peço, mas nenhum dos dois me
veem.
— Roman. — Alguém toca meu ombro e me viro, é Anna, ela está de
pé, atrás de mim, os pulsos cortados, pingando sangue, ao seu lado, todos os
homens que matei. — Viemos te buscar — ela diz, mas sua voz não é a
mesma. — Está na hora de você pagar a dívida de todas as vidas que tirou.
— Não, eu não posso ir, eu preciso ficar — digo no momento em que os
homens se aproximam, mãos tocam meu ombro, me puxam, tento me soltar,
mas são muitos.

Um grito terrível rasga minha garganta e acordo suado, ofegante e


assustado, demoro um instante para me dar conta de que tudo foi um
pesadelo, mais um dos muitos que tenho quase todas as noites desde que me
tornei um monstro.
Olho para o relógio na parede e me dou conta de que dormi apenas duas
horas, um novo recorde que vai cobrar seu preço depois, noites
maldormidas se tornaram uma constante em minha vida.
Vida...
Parece até mesmo uma piada chamar o que tenho de vida. Isso é tudo,
qualquer coisa, menos viver, sou um escravo nas mãos de Arkady, usado e
explorado, servindo de entretenimento para um bando de loucos que se
divertem com a minha agonia.
E ela parece não ter fim.
No início da noite, um dos homens de Arkady vem até mim, mas não
estou pronto. Em vez disso, estou deitado no canto do quarto, encolhido
como um garotinho assustado, perdido em meus pensamentos, em tudo e
em nada.
O que será que Demyan está fazendo? Será que ele montou a árvore de
Natal esse ano? Ele teria motivos para isso? E Berstuk? Ele ainda está
naquela casa, sozinho, esperando por alguém que nunca vai voltar? Estou
com saudades de casa, da comida da minha mãe, será que ela vai me
perdoar por tudo o que fiz?
Os pensamentos se atropelam na minha mente, estou com frio, mas não
consigo me mover, não quero dormir, tenho medo de sonhar novamente
com Anna, tenho medo dela me odiar, tenho medo de tudo.
— Ei, garoto, tá na hora de se levantar — o homem diz, mas não me
movo. Ele vem até onde estou e bate a ponta da sua bota na minha costela,
ela dói, mas não ligo, já me acostumei com a dor, com o cheiro do sangue,
com o olhar de medo dos meus adversários ao notar que a morte é certa.
— Roman, vamos — o cara continua insistindo.
— Não quero mais — digo encarando um defeito no piso e ele bufa.
— O Arkady não vai gostar disso.
— Foda-se ele, você e esses patrocinadores doentes, foda-se tudo —
falo sem tirar os olhos do chão, o indicador passeando pela imperfeição do
piso, como uma cicatriz, como uma das dezenas que cobrem meu corpo.
— Porra, Roman, vamos lá, levante — o outro homem na porta diz,
quase como se importasse com algo. Eu sorrio, um sorriso cansado de quem
não tem forças para mais nada.
O cara ao meu lado respira fundo e saca uma arma da cintura, em
qualquer outra circunstância eu estaria apavorado, mas tudo o que consigo
sentir é um alívio imenso, uma bala na cabeça deve ser melhor do que isso.
— Levanta. — Ele pressiona a arma em minha cabeça, o toque gelado
do metal me faz querer fechar os olhos. — Merda, garoto, você vai mesmo
me obrigar a fazer isso?
— Vai logo, não seja tão covarde — digo descobrindo outro defeito no
piso, o cara se afasta e uma onda de frustração me invade, tinha certeza de
que ele iria me matar, mas então o tempo passa e ouço vozes vindas do
corredor, se aproximando mais e mais até que ele entra novamente em meu
quarto, mas, dessa vez, ele não está sozinho, há uma garota com ele, ela está
machucada, com um hematoma em seu rosto e um corte em seu lábio, ergo
a cabeça e olho para a garota, ela deve ter a idade de Yelena, talvez um
pouco menos, não há emoção em seu rosto e tenho certeza de que morrer
para ela não importa.
— Deixa a garota em paz — peço, mesmo sabendo que ele não vai me
ouvir, me sento com dificuldade, no momento em que ele pressiona o cano
em sua cabeça.
— Levanta — ele exige.
— Deixa a garota fora disso — peço mais uma vez enquanto estou me
levantando, é apenas um segundo, não tenho tempo sequer de pensar, o som
do disparo é tão alto que perco o equilíbrio e caio no chão, em seguida o
baque do corpo magro da garota desabando na minha frente me faz me
afastar, me arrastar até que minhas costas colidem na parede.
— Jesus Cristo, você a matou — sussurro encarando o corpo no chão.
Os olhos abertos, arregalados, sem vida.
— Não, você a matou, eu só disparei — ele diz apontando a arma em
minha direção.
— Seu maldito, você a matou — repito sem conseguir tirar os olhos do
corpo sem vida, que parece olhar para mim, como se estivesse me julgando.
— Vai se levantar ou vou ter que buscar outra?
Ergo os olhos para o carrasco que acabou de tirar a vida de uma garota
como se matasse uma barata, movo a cabeça incapaz de formar uma frase
sequer e me levanto, ele segura meu braço e me empurra para fora do
quarto. Antes de sair, olho mais uma vez para a garota e digo a mim mesmo
que ela está livre, da única forma que as garotas do Poço são capazes de se
libertar: com a morte.

Quando chego ao porão não há novidade, tudo é igual, o cheiro de


morte que exala das paredes, o som da câmera se movendo, a presença de
Arkady e Yelena.
Não olho para ela, nem mesmo quando ela se aproxima para me beijar,
ela segura meu rosto em suas mãos, tão pequenas e quentes, tão macias,
quero fechar os olhos e dormir, quero desistir da luta, quero morrer, mas
então olho dentro dos seus olhos e percebo que não posso.
— O que houve? Você está tremendo.
Olho para Arkady, surpreso com a maldade que parece só crescer dentro
dele.
— Filmou a garota que seu capanga matou?
— Não, infelizmente.
— Que pena, perdeu uma grana violenta — provoco-o e Yelena me olha
de boca aberta.
— Não tem problema porque hoje eu sinto que será uma noite e tanto.
— Ele se afasta da parede e caminha até a porta abrindo-a e deixando que
outro dos seus homens entre trazendo meu adversário dessa noite. Como
sempre, ele está encapuzado.
Noto que ele é menor, mais magro, e mesmo sem ver seu rosto, sei que
é jovem, talvez mais jovem do que eu. Arkady dá a ordem e seu capanga
retira o capuz, revelando a identidade do lutador. É o Sasha, o garoto que fiz
prometer que não voltaria ao Poço nunca mais. Ele pisca se acostumando
com a claridade do lugar, então ele me vê e seu rosto perde a cor.
— Roman? Você está vivo? — o garoto pergunta, provavelmente sem se
dar conta da grande merda que está prestes a fazer.
— Seu desgraçado. — Avanço para cima de Arkady, mas o capanga que
me trouxe saca a arma da cintura no mesmo instante em que puxa Yelena
para si.
— O que você quer de mim?! — grito olhando para a Arkady e ouvindo
Yelena me pedir para ter calma.
— Depois de tantas lutas, você ainda não entendeu? — Arkady debocha
e tudo o que quero é puxar a arma da mão do capanga e atirar em sua testa.
— E não posso fazer isso, pelo amor de Deus ele é só um menino. —
Aponto para Sasha, que continua sem entender o que está acontecendo.
— Bom, então deixe que ele faça. — Arkady ergue as mãos no ar.
Olho para Yelena, a dor de ter que tomar essa decisão na sua frente é
terrível e sinto como se meu corpo inteiro fosse rasgado de dentro para fora.
— Me desculpe — sussurro para ela e noto uma lágrima escapar dos
seus olhos.
— Roman, ei! — Sasha me chama. — Eu quero lutar com você —
confessa.
— SEU IDIOTA! EU FALEI PARA FICAR LONGE DAQUI! — grito
com toda a força que tenho e Yelena se encolhe ao lado do capanga.
— Se eu morrer, tudo bem, eu morro feliz, será uma honra.
— Você não sabe o que está falando. — Vou até ele e o empurro. — Seu
idiota, você não sabe de porra nenhuma! — volto a gritar, completamente
descontrolado, caminho até o outro lado do porão e apoio minha cabeça na
parede, lutando contra as lágrimas que ameaçam cair.
— Sei muito mais do que você pensa, eu estou aqui porque quero — ele
diz, cheio de coragem, como se morrer nessa merda de lugar fosse algo para
se orgulhar.
— Bom, o papo está bom, mas temos que ir — Arkady diz, ao caminhar
até onde Yelena está. Viro-me para olhar para ele, com a fúria, o medo e o
cansaço se avolumando dentro de mim.
— Roman, por favor — Yelena pede com os olhos vermelhos,
marejados, enquanto Arkady a enlaça pela cintura e a leva para fora do
porão.
A porta se fecha e então somos apenas eu e o garoto.
— Deus... por que seu imbecil? — Me ajoelho no chão e começo a
lamentar, não quero matá-lo, não posso matá-lo. — Eles vão perseguir a sua
família. — Puxo meus cabelos, sentindo o ódio queimar minhas veias, não
importa o que eu faça, ele está amaldiçoado para sempre. Se ele desistir, sua
família morre; se ele vencer, ele se tornará o próximo monstro, o
brinquedinho deles, e não sei quanto tempo ele vai resistir.
— O que eles fizeram com você? — Sasha sussurra, ainda parado do
outro lado do porão.
Ergo os olhos e encaro o menino do outro lado do porão, vejo muito de
mim nele, a coragem e a confiança de quem acha que sabe o que está
fazendo.
— O que fizeram comigo? — digo ao me levantar, sentindo o peso de
cada homem que matei aqui dentro me atingir. — Eles me destruíram,
arrancaram minha alma, queimaram tudo o que tinha dentro de mim — digo
sem reconhecer a voz que sai da minha boca. — Eles me mataram, me
trouxeram para o inferno e me transformaram nisso que você está vendo. —
Começo a caminhar em sua direção. — Não sou o Roman. — Me aproximo
surpreso por ele sequer se mover. — Não tenho mais nada do cara que você
conheceu um dia. — Estalo meu pescoço. — Sou um monstro. — Respiro
fundo — E você está prestes a entender o porquê.
Fecho meus olhos por um instante, peço desculpas mentalmente ao
garoto que um dia ele foi, desconecto todo o resto e avanço.
Estou sentada em uma sala pequena e vazia, os joelhos erguidos, a testa
apoiada neles, os olhos fechados com força enquanto espero.
Esperar tem sido tudo o que faço desde que Roman foi trazido para cá,
espero pelo fim da luta, por sua vida, por um milagre.
Não sou de rezar, mas, nesse momento, eu daria tudo para saber, o medo
vem em ondas de choque que atingem meu peito e me fazem respirar fundo.
E se ele morrer?
Nunca o vi daquele jeito, apavorado, tremendo, frágil, e o outro rapaz...
meu Deus, ele é só uma criança...
Balanço a cabeça tentando não pensar no que vai sobrar dele quando
essa luta acabar, não sei quanto tempo ainda poderei alcançá-lo, trazê-lo de
volta para mim. Resgatar sua humanidade.
A porta se abre e um dos capangas me chama:
— Arkady está te esperando.
Me levanto respirando fundo antes de seguir com ele pelo corredor,
mas, em vez de subirmos para onde fica o Poço, ele me leva para baixo,
onde fica o porão e onde o Roman está.
— Não. — Paro de andar e encaro o homem à minha frente. — Não
posso fazer isso, não posso. — Balanço a cabeça firme e ele bufa.
— Ele não está morto — o capanga diz ao notar meu desespero. —
Ainda.
Solto o ar aliviada enquanto termino de descer as escadas correndo. Sei
exatamente onde ele está, no porão, onde o deixei para matar aquele garoto,
mas não sei por que estou sendo chamada, isso nunca aconteceu.
Antes que eu possa entrar na sala, sou puxada para trás pelo capanga
que me segura junto de si.
— Fica calma, vamos dar um jeito nisso — ele sussurra em meu ouvido
e olho para o seu rosto, ele me solta e passa por mim, como se nada tivesse
dito, e abre a porta para que eu possa passar.
Antes mesmo de entrar posso sentir o cheiro da morte invadir meu
nariz, é forte e arde, queima, dói. Olho em volta e encontro Roman
encostado no canto, segurando o corpo imóvel do menino em seus braços,
como se estivesse o embalando.
— Roman — o chamo, mas ele não me ouve. Seu pescoço está coberto
de sangue, assim como o rosto do menino e demoro um instante para me
dar conta de que o sangue é dele. — Roman, não! — Corro a seu encontro e
me jogo ao seu lado, ele continua na sua tentativa de rasgar sua pele. — O
que está fazendo? Pare! — Seguro sua mão, que está escorregadia, e ele
consegue se desvencilhar de mim com facilidade. — Rom, não, olhe para
mim. — Puxo o garoto do seu colo, um capanga se aproxima e o tira de
perto de Roman, me coloco em seu colo, afastando sua mão. — Olhe para
mim, Roman, respira. — Seguro seu rosto e o forço a me encarar.
— Eu o matei, eu... eu o matei, eu o matei... — ele repete sem parar
enquanto o abraço, sentindo o cheiro do seu medo, da minha dor, do nosso
desespero.
A câmera se move para onde estamos.
É um espetáculo e tanto.

Os dias passam sem que nada mude, mal consigo fazer Roman olhar
para mim, os capangas trazem cobertores e comida, mas ele não come, não
se mexe e começo a ficar apavorada. Depois do terceiro dia, Roman começa
a reagir, mas seus olhos se perdem às vezes, como se não soubesse ao certo
onde está.
Uma semana se passa desde a morte do garoto e Roman ainda não
consegue falar, ele deixa um médico vê-lo e o corte em seu pescoço começa
a melhorar. Eu continuo aqui, mesmo sem saber o motivo, acho que, dessa
vez, Arkady teve medo de perdê-lo de vez.
Estamos no seu quarto, ambos na cama, Roman sentado no canto, a
cabeça apoiada na parede, e eu do outro lado, com as pernas cruzadas,
pensando em como fazer ele me notar quando a porta se abre. É Arkady e
meu sangue gela ao me dar conta de que ele veio me buscar, quero me
levantar e ir até ele, implorar para me deixar ficar, mas não me movo.
Roman sequer parece notar a sua presença.
— Pelo visto, nosso garoto ainda não se recuperou.
— Você destruiu a mente dele, você o fez matar uma criança — acuso-o
fincando minhas unhas com força nas palmas das minhas mãos para não
avançar nele.
— Já disse, devochka, aqui não existe criança, todos são homens o
suficiente para vencer ou perder.
Ele caminha até onde estamos, Roman continua olhando para a parede,
mas noto sua respiração mudar e temo pelo pior, então me aproximo,
puxando sua mão, o fazendo olhar para mim.
— Roman. — Ele se afasta da parede, como se estivesse despertando de
um sono profundo, seus olhos desviam de mim para Arkady e, em questão
de segundos, ele pula em cima do monstro que o obrigou a fazer todas essas
coisas.
— Maldito desgraçado! — Roman rosna enquanto derruba Arkady no
chão e monta em cima dele segurando-o pelo pescoço. — Eu vou te matar
— ele diz, mas logo o pequeno quarto é tomado por homens que retiram
Roman de cima de Arkady, que tosse, com o rosto e pescoço vermelhos
pela violência com que foi atacado.
— Não, não façam nada com ele — Arkady avisa antes de se levantar
com a ajuda de um dos seus homens. — Eu o quero inteiro para a próxima
luta.
— Só se for com você! — Roman grita. Seu rosto está escurecido pelo
ódio.
— Você me dá tanto trabalho. Se não fosse tão lucrativo, já teria me
livrado de tudo isso — Arkady diz se colocando de pé e limpando o terno
com o seu maldito lenço. — Bom, já que você está dificultando a nossa
vida, vou te ajudar a entender algumas coisas.
Ele caminha até onde Roman está, sendo dominado por dois capangas.
Roman parece prestes a explodir e tenho certeza de que, se soltarem ele
agora, não sobrará nada do Arkady.
— Como eu disse alguns meses atrás, nessa fase os desistentes pagam
de um jeito muito ruim, e hoje eu trouxe para você algumas imagens de
covardes que não foram capazes de continuar.
Arkady tira um envelope de dentro do seu terno e o joga na cama.
— Abra — ele manda e com os dedos trêmulos pego o envelope. Tenho
medo do que vou encontrar, do que Roman verá. E se for demais para ele,
se eu o perder de vez?
Abro o envelope e retiro as fotografias de dentro, prendo a respiração
com a sequência de imagens, não conheço a mulher que caminha
tranquilamente pelas ruas da cidade sem se dar conta de que está sendo
seguida. Na próxima, ela está dentro do mercado e fico confusa, não era
bem o que eu estava esperando.
— Stepan Ivanovich Zorkin era um homem muito temperamental —
Arkady diz e, quando ergo os olhos para onde Roman está, vejo a dor
ganhar um novo significado.
Olho novamente para a mulher na fotografia em minhas mãos, sinto
como se eu tivesse o poder de matá-la novamente, não quero erguer a
próxima foto, não quero ver a dor nos olhos dele, não quero machucá-lo.
Arkady olha para mim, obrigando-me a erguer a próxima foto. A
mulher, mãe de Roman, está saindo do mercado e em suas mãos há apenas
um pacote pequeno. Seus olhos estão assustados, como se ela estivesse
vendo algo que não queria.
— Ele disse que usaria o dinheiro para dar a você um futuro melhor —
Arkady diz, mas não tenho certeza se Roman o está ouvindo, nem mesmo
se ele ainda está aqui.
— Arkady, por favor — peço, mas ele me obriga a ver a próxima foto.
O choque me faz suspirar e posso ouvir Roman gemer de ódio, de saudade,
de tristeza.
Sua mãe está no chão, esparramada de um jeito ruim, com um pequeno
furo na testa e uma poça de sangue atrás de sua cabeça.
Assassinada.
Olho para Roman, seus olhos estão cheios de lágrimas, mas ele não está
mais tentando se soltar, na verdade, tenho quase certeza de que os capangas
são os únicos que o estão segurando.
— Eu sinto muito — sussurro para ele no instante em que Arkady me
entrega mais um envelope.
— Esse é para você. — Ele me entrega outro envelope e não quero
pegar, não quero ver a monstruosidade que esse lugar fez comigo.
Nego com a cabeça, incapaz de erguer a mão.
— Vamos, devochka, não me faça perder tempo.
Ele joga o envelope em meu colo e olho para ele por alguns instantes.
— Esse eu não me lembro muito bem o nome, era um merdinha, se
achava mais do que realmente era, no instante em que pisou no porão ele se
mijou inteiro. — Arkady ri, divertindo-se com as desgraças que acontecem
por sua culpa. — Vamos, devochka, abra, você vai se surpreender.
Meus dedos tremem tanto que o envelope cai da minha mão, abro com
medo do que vou ver, e já na primeira imagem começo a chorar.
— Não, não, não, não. — Desabo agarrada a fotografia de Waleska,
amarrada em uma sala parecida com o Porão, nua, machucada.
— Yelena, olhe para mim — Roman pede, mas não consigo erguer os
olhos.
— Ela era bonitinha, não tanto quanto você, mas a persistência e força é
uma característica das irmãs Vasilievna.
Choro por tudo o que sonhei para a minha irmã, todas as coisas boas,
todas as vezes em que tive inveja dela, por ter conseguido ir embora daqui.
— Seu desgraçado, chega, tudo bem, eu volto ao porão — Roman diz.
— Calma, falta a mais especial de todas, a que eu guardei com todo o
meu coração para esse momento. — Arkady segura um último envelope
junto do seu coração, com os olhos fixos em Roman enquanto ele sorri,
como o maldito demônio que é. — Essa foi uma das mais difíceis de
conseguir, tivemos que arquitetar todo um plano, por você, sempre por
você. — Ele aponta o envelope para Roman enquanto estende a outra mão
para mim. — Venha aqui, Yelena, eu quero que você abra o envelope.
— Deixa ela fora disso — Roman exige olhando para Arkady.
— Ah, mas eu planejei tudo, e vai ficar muito mais dramático se for ela
a te mostrar. — Ele continua com seu joguinho doentio. — Yelena, vem
aqui — ele me chama novamente e me levanto, depositando a foto de
Waleska e da mãe de Roman na cama sem ter ideia do que mais esse
monstro pode usar contra nós. — Eu não posso ficar com o crédito dessa
para mim, foi o seu patrocinador quem deu a ideia.
— Meu patrocinador? — Roman começa a empalidecer. — Mas eu fiz
tudo o que vocês pediram.
— Calma, não tenta adivinhar, isso é chato — Arkady o repreende
enquanto entrega o envelope em minhas mãos. — Vamos lá, fadinha,
mostra para o teu rei o que o trouxe para esse lugar.
O envelope preto parece pesar uma tonelada, tenho medo e, mais do que
tudo, tenho nojo. Sei que algo terrível está aqui dentro, mesmo que nenhum
de nós dois sejamos capazes de imaginar.
— Lembra a primeira vez que você veio ao Poço? — Arkady pergunta
enquanto se afasta, caminhando pelo pequeno quarto, com as mãos
cruzadas na parte de trás das costas. — Faz o que, uns dois anos, talvez
quase três, você era só um garotinho, magrinho e corajoso e lutou com tanta
força que chamou a atenção dos nossos patrocinadores, de um em especial
— ele continua. — Mas não se preocupe, você não o conhece, ele sequer
sabe onde fica Temnyy Gorod. Para ele, você é como uma peça de xadrez,
não, melhor, a carta mais alta em um jogo de baralho, não é pessoal, você
me entende?
— Não, eu nunca vou entender a mente doente por trás disso tudo —
Roman diz com os olhos vermelhos de tristeza e ódio.
— Pois é, mesmo assim eu preciso dizer que ele foi brilhante no
planejamento e execução da forma como encontrou de te trazer de volta ao
Poço.
Arkady continua andando, como se não tivesse pressa para mais nada,
como se sua vida inteira tivesse sido feita para esse momento.
— Eu mesmo fui um dos que duvidou das chances desse plano dar
certo.
Olho para o envelope, enquanto me dou conta de que esse lugar não tem
só o controle dos que colocam seus pés aqui, ele controla todos que vivem
em Temnyy Gorod.
— Abra o envelope, Yelena, entregue ao seu rei o presente mais
precioso, o que o trouxe para você.
Abro o envelope devagar, sentindo a textura da fotografia em minhas
mãos, desejando poder apagar o que seja lá que esteja nesse envelope, meus
olhos se encontram com os de Roman, eu sussurro um pedido de desculpas,
porque sinto que vou terminar de partir o que resta do seu coração, e não sei
o que vai sobrar.
A fotografia vai ganhando forma, em preto e branco, vejo no rosto de
Roman o reconhecimento, é um banheiro, azulejos, uma banheira, um...
Deus do céu!
— Seu malditooooo! — Roman grita. Um grito de agonia, de desespero.
Um grito que queima meus ouvidos enquanto observo a garota morta na
banheira, com os pulsos cortados, o sangue sujando tudo, escorrendo pelo
chão, levando embora mais uma vida, dando a esses desgraçados mais uma
vitória.
Mais dois homens entram no quarto, eles se colocam na frente de
Arkady enquanto os que seguram Roman tentam contê-lo, ouço o som do
seu braço se partindo com a força que ele emprega na vontade de se soltar,
ouço o grito aumentar, ouço o som do seu corpo caindo no chão quando ele
é solto, o braço imóvel, o corpo retorcido, de dor, de desespero. Me jogo
sobre ele, abraçando-o, as fotografias caídas à nossa volta, enquanto tento a
todo custo acalmá-lo, desejando desesperadamente poder suportar um
pouquinho da sua dor, mesmo sabendo que isso é algo que só ele pode
sentir.
No fim das contas, esse é um jogo injusto, onde, mesmo fazendo tudo o
que eles querem, no fim saímos sempre perdendo.
Ela não se matou.
E essa constatação rasga meu peito como se tivesse um punhal
enferrujado nele. É doloroso, desesperador, triste.
Durante todo esse tempo, eu acreditei que a Anna havia tirado a sua
própria vida, que sua atitude egoísta havia nos destruído, quando, na
verdade, tudo o que ela fez foi para nos proteger.
Encaro as fotos sobre a cama enquanto o médico termina de imobilizar
meu braço quebrado. Em uma delas, eu e Demyan estamos no Smorodina,
na noite em que ela foi assassinada, sei disso porque naquela noite Demyan
estava usando o meu casaco.
Forço-me a lembrar daquela noite, da sensação esquisita, como se
estivéssemos sendo observados, a angústia que deixava Demyan inquieto, a
mensagem de Anna em meu celular.
Promessas são perigosas, ela disse, ou algo assim. Lembro de Yelena
também falando sobre isso, promessas são perigosas por aqui.
Não sei o que foi dito a ela. Será que ela entendeu o que estava
acontecendo? Será que deram a ela a chance de escolher? Será que aquela
mensagem foi mesmo ela quem mandou ou um dos doentes que trabalham
para Arkady? Tantas perguntas que nunca serão respondidas.
De repente, me pego pensando em Demyan, espero que ele tenha
aprendido a lição e não tenha se arriscado mais uma vez. Ele precisa ficar
longe daqui e, se possível, dessa cidade maldita.
— Pronto, vou deixar alguns medicamentos e nos vemos daqui a cinco
semanas — o médico que passou a ser quase como um amigo silencioso, de
tanto que vem me ver, diz enquanto recolhe as ataduras e gessos.
Cinco semanas sem mover meu braço, cinco semanas a mais nesse lugar
sem perspectiva de nada.
Espero o homem sair e olho para Yelena, ela ainda está sentada no canto
do quarto, as fotos de sua irmã dentro de um dos envelopes ao seu lado.
Levanto-me e vou até onde ela está, as lágrimas já secaram, mas deixaram
um rastro em seu rosto bonito.
Sento-me ao seu lado puxando-a para o meu colo com meu braço bom,
ela vem sem hesitar, se aninhando em meu peito, se encaixando em mim,
apoio meu queixo no alto da sua cabeça e a envolvo em meu abraço, não
falamos nada, apenas ficamos assim, imersos em nossas dores, relembrando
os nossos entes queridos.
— Está doendo? — ela pergunta tocando o gesso ainda fresco em meu
braço.
— Não — nego sentindo a garganta arranhar com todos os gritos que
dei.
Ela volta a deitar a cabeça em meu peito, ainda não sei por que Arkady
a deixou aqui, não confio em nada que ele faça, sei que tem algo por trás
disso, mesmo que eu não consiga decifrar.
Meu medo é nunca conseguir me adiantar a ele.
— Rom, posso te fazer uma pergunta? — Ela se afasta um pouquinho
para olhar para mim.
— Claro.
— Aquele dia, quando quis te levar para a banheira, foi por isso que...
— ela não termina de falar e agradeço. Não quero falar sobre Anna, nem
sobre minha mãe ou sua irmã, não quero falar sobre as pessoas que
perdemos e tudo que deixamos de ser por causa de um punhado de
monstros que acham que porque têm dinheiro podem fazer o que querem
com os miseráveis.
Então apenas movo a minha cabeça em um sim silencioso e volto a
aninhá-la em meus braços.
— Eu sinto muito por tudo — ela diz e beijo seus cabelos.
— Eu também.
— Você precisa dormir um pouco — Yelena diz um instante depois,
como se soubesse que não podemos continuar desse jeito, como se fosse um
dia qualquer de uma vida comum e não como se tivéssemos acabado de
descobrir que as pessoas que amamos foram assassinadas.
— Eu estou bem — respondo porque é tudo o que sai da minha boca.
— Você está tudo, menos bem — ela diz ainda com a cabeça em meu
peito. — Nenhum de nós está.
O silêncio é tudo o que posso dar a ela.
— Às vezes, tenho medo de nunca me sentir bem novamente, de passar
o resto da minha vida aqui — ela continua divagando.
— Isso não vai acontecer, um dia perderemos o que eles gostam, eu já
não sou mais o mesmo. — Ergo meu braço engessado. — Provavelmente,
não lutarei mais como antes e serei eliminado, e você...
— Serei morta em seguida — ela finaliza a frase, ambos sabemos que é
a verdade, por mais dolorosa que seja. — Eu não me importo, Roman. —
Ela ergue o rosto para olhar para mim. — Não tenho medo de morrer.
— Nem eu.
— Só tenho medo de ficar aqui sem você, de continuar nesse inferno
quando você se for.
— Então, vamos fazer de tudo para irmos juntos — digo enquanto
afasto uma mecha do seu cabelo do rosto e me inclino para depositar um
beijo em sua testa, Yelena envolve seus braços em meu pescoço, abraçando-
me de um jeito carinhoso, como se estivéssemos selando o nosso pacto.

No dia seguinte, quando acordo, Yelena não está mais ao meu lado, em
algum momento da noite eles a levaram, já não me importo mais com a
ideia de alguém entrando no quarto enquanto eu durmo, não há mais nada
de pior que eles possam fazer comigo do que tudo o que já fizeram.
Nas semanas seguintes, eu não a vejo mais. As poucas vezes em que
Arkady vem até mim e me mostra ela pela câmera do seu celular, Yelena
está dormindo, ou quieta demais, olhando para o nada, pensando em coisas
que não posso imaginar. Sua irmã talvez, nosso futuro ou a falta dele.
Pouco a pouco, meu braço vai melhorando, de acordo com o médico por
sorte não cheguei a fraturar, eu ri na sua cara, porque essas palavras
deveriam ser proibidas de ser ditas aqui. Sorte não entra no Poço, e hoje eu
sei que nem mesmo no ringue.
Quase um mês depois volto àquele porão, as lembranças da última vez
em que estive nele invadem minha mente, assim como as últimas palavras
de Sasha enquanto ele morria sob meus punhos:
“De qualquer forma, sempre soube que não viveria muito.”
Não era pra ser assim, não em um mundo justo, onde as pessoas têm
oportunidades de melhorar de vida, de estudar, de trabalhar, de ser um
cidadão de bem. Mas, para a maioria dos garotos de Temnyy Gorod, o Poço
é como um upgrade de vida. Na pior das hipóteses, você será uma boa
lembrança no coração da sua família e um prato a menos na mesa.
Como sempre, Arkady está lá, com Yelena ao seu lado. Novamente ela
está usando roupas normais e me recordo a primeira vez que a vi, com
aquele vestido longo e revelador, como uma fada criada para me seduzir.
Seus enormes e gélidos olhos me encaram, ela está mordendo o lábio
inferior e parece nervosa, movo meus ombros para trás e para a frente,
testando-os, não estou cem por cento, mas acho que posso dar conta.
Preciso dar conta.
Arkady fala as merdas de sempre, mas não dou ouvidos, nem ao menos
olho para ele, a verdade é que, se Yelena não estivesse aqui, a luta de hoje
seria bem diferente e, provavelmente, não teria um vencedor. Ele sabe
disso, tenho a impressão, inclusive, de que Arkady gosta do perigo, da
sensação de quase-morte, de saber que, se eu estivesse sozinho com ele,
seria um homem morto, e que Yelena é a única coisa que me impede de
realizar meus desejos.
E por falar nela, minha fada caminha até onde estou, noto seu queixo
tremendo, como se ela estivesse prestes a chorar. Quando ela para na minha
frente, seguro seu rosto em minhas mãos, passando a ponta dos polegares
por suas sardas suaves.
— Eu estou bem, não se preocupe — digo mais para confortá-la, Yelena
não diz nada, apenas move a cabeça e ergue a mão me puxando para baixo,
para si, para os seus lábios frios e amargos. E então ela me beija, de um
jeito esquisito, como se estivesse confusa e não soubesse o que está
fazendo.
Um instante depois sinto algo dentro da minha boca, quero abrir os
olhos, perguntar o que é, mas não demoro para notar o formato alongado do
comprimido, amargo como seus lábios, com uma textura estranha.
Ela se afasta, passando a língua por seu lábio, ainda perto o suficiente
para que ninguém note o que estamos fazendo.
— Engula — ela sussurra.
— O que é isso? — pergunto enquanto tento não quebrar o comprimido.
Yelena se afasta, seus olhos apavorados me encaram.
— O fim — ela diz e se afasta, então eu compreendo.
Observo-a se afastar, seu corpo pequeno e delicado parece hesitar
enquanto ela caminha, um passo na frente do outro. Arkady a observa com
adoração e, por mais que ele diga que não se importa, é impossível me
enganar, eu conheço aquele tipo de olhar doentio e obcecado.
Enquanto a vejo ir para longe de mim, desejo ter tido mais tempo com
ela, ter falado o que sinto naquela noite em que nossos corações estavam
quebrados pelos nossos entes queridos, desejo poder abraçá-la e amá-la
mais uma vez, desejo tanta coisa que, talvez, uma vida só seja muito pouco,
então apenas aceito o que tivemos, pouco, sujo, exposto e usado, mas foi o
que podemos ter e sei que ao menos dei a ela tudo que eu tinha: meu
coração. Mesmo que ela nunca saiba.
Engulo o comprimido sentindo-o queimar minha garganta, o gosto
amargo se espalha por toda a minha boca me fazendo sentir como uma
metáfora da minha vida de merda chegando ao fim.
Seca e amarga.
Pergunto-me onde ela conseguiu isso. Será que ela tem um para si
também? Será que ela vai ter coragem? Tenho certeza que sim, Yelena é a
personificação da coragem e força e tenho tanto orgulho de ter tido o
privilégio de tê-la conhecido.
Mantenho meus olhos fixos nela, na minha fada, é a última vez, depois
disso só se, por algum acaso, formos merecedores de um paraíso onde nos
encontraremos, então gravo cada pedacinho dela, e, por fim, seus olhos,
sempre eles, frios, intensos, belos.
Olhos de fada, olhos que me hipnotizaram desde o início.
— Boa sorte, meu garoto — Arkady diz, mas sua voz está distante
enquanto ele vai embora, carregando Yelena ao seu lado. Não respondo
nada, apenas observo.
A porta se abre, o adversário entra, sinto meu corpo fraco, instável,
minha mente está nublada, abaixo o rosto para os meus pés, não quero ver
quem vai levar consigo a honra de ter finalmente eliminado o Rei do Poço,
isso já não importa mais.
No fim, nada mais importa.
Ouço a porta se fechar, ouço os passos dele se aproximar, cambaleio e
quase caio, mas consigo me manter em pé. Sinto o cheiro da morte, tem
cheiro de paz.
Foram precisos quase dois meses até que Andrey finalmente
conseguisse conquistar a minha confiança.
Desde a noite em que ele me disse que íamos dar um jeito, uma
sementinha de esperança se instalou em meu peito. É engraçado como a
esperança é como uma erva daninha que cresce mesmo quando indesejada,
se espalhando e tomando lugares que jamais imaginamos.
Hoje estou repleta de esperança.
Sinto o gosto amargo em meus lábios enquanto deixo Arkady me levar
embora, mas também sinto o gosto dos lábios de Roman, da forma como ele
parecia confuso e mesmo assim disposto a aceitar tudo o que lhe ofereci
sem questionar.
Passamos pelos capangas que estão à espera do fim da luta, para levar o
corpo do perdedor para o seu último descanso. Andrey está entre eles,
nossos olhos se encontram rapidamente, ele acena, tão sutil que ninguém
nota e desvio o olhar para o chão, passo a língua sobre meus lábios mais
uma vez, desejando sair logo daqui.
Sinto como se todos soubessem, como se a qualquer momento alguém
fosse me chamar e dizer que sou uma traidora, que matei o Rei do Poço.
O fim...
Arkady anda à minha frente, ele parece tão feliz, cantarolando uma
canção que não conheço, os passos apressados enquanto caminhamos para
fora do subsolo, em direção ao que se tornou o meu lar desde o inverno
passado.
Passamos pela porta do meu quarto, mas ele não para.
— Onde estamos indo? — Sinto o medo na minha voz, as coisas estão
saindo do meu controle.
— Hoje você vem comigo, devochka. — Ele se vira para trás e sorri,
quero dizer que não, que vou ficar no meu quarto, mas desisto, é melhor
manter a calma.
Respiro fundo e o sigo até o seu escritório, de onde ouvimos o som do
Poço, das lutas e das pessoas que continuam enchendo esse lugar, fazendo
com que ele continue se alimentando de maldade e dor.
Arkady entra e deixa a porta aberta para que eu faça o mesmo, dois
capangas ficam à porta, um deles olha para mim e acena, provavelmente um
dos homens de Andrey. Há muitos deles por aqui ultimamente, desde que
Arkady contou a Roman tudo sobre os assassinatos, como se ele temesse
que, de alguma forma, Roman conseguisse se libertar e vir até aqui para
vingar os seus.
Seria incrível, admito.
— Hoje vai ser uma noite e tanto — Arkady diz enquanto se serve de
uma dose de vodka, ele vai até a mesa e pega o controle remoto, então liga
uma enorme tevê e se senta em uma poltrona. Olho em volta, observando os
detalhes da sala, há muita informação que talvez seja importante, afinal de
contas, provavelmente é aqui que ele trabalha, que decide quem vive e
quem morre.
A tela se ilumina e Arkady estende a mão para mim, quero dizer não,
mas vou até ele e me sento em seu colo, ele me beija e pousa a mão em meu
quadril como se fôssemos um casal, sinto nojo e vontade de me afastar, mas
respiro fundo e digo a mim mesma que está acabando, de um jeito ou de
outro, hoje será a última vez que esse desgraçado me toca.
Desvio o olhar para a tevê e vejo Roman, ele está mais magro e
cansado, nos últimos meses ele envelheceu dez anos e em nada se parece
com um garoto de vinte, seu corpo grande parece desengonçado e meu
coração começa a bater rápido.
— O que houve com ele? — Arkady pergunta e demoro um instante
para perceber que está falando sozinho.
Meus olhos estão fixos na tevê, esperando o momento em que tudo vai
acontecer. O seu adversário se aproxima, ele diz algo, Roman sorri e sorrio
também porque eu amo esse sorriso insano, de quem não tem medo de
nada.
Roman tropeça nos próprios pés e cai, o adversário olha em volta e me
enrijeço no colo de Arkady.
— Mas que porra... — Arkady começa a falar no instante em que o
corpo de Roman começa a desabar, a cabeça bate no chão de um jeito
esquisito, o outro homem sequer teve tempo de tocá-lo.
Como era esperado.
Solto um grito de desespero, Arkady me derruba no chão e se levanta
apressadamente, ele puxa o aparelho celular do bolso e começa a discar, na
tevê, os capangas entram na sala, entre eles está Andrey, eles afastam o
adversário, que diz coisas que não consigo ouvir. É Andrey quem se abaixa
até Roman, é ele quem verifica seus batimentos cardíacos, é ele quem pede
para chamarem o médico.
Durante todo o tempo em que tudo acontece permaneço sem respirar,
Arkady está gritando, meu coração batendo tão forte que tenho certeza de
que ele seria capaz de ouvir se prestasse atenção.
O médico se aproxima, faz os procedimentos, verifica os sinais, fixo
meus olhos nele, apenas nele, e no momento em que ele balança a cabeça,
em um não que significa que meu plano deu certo.
Ele se foi.
Arkady sai da sala imediatamente, dando ordens para que os capangas
fiquem de olho em mim, eles assentem e a porta se fecha, continuo olhando
para a tevê até que a tela se apaga. É isso, deu certo.
Forço minhas pernas a se levantarem, mas elas tremem tanto que tenho
medo de cair, vou até a sua mesa e começo a mexer em tudo, preciso de
informações, qualquer coisa que eu possa gravar em minha memória, levar
comigo, seja lá para onde eu for. Abro as gavetas, remexo em tudo, observo
as pilhas de folhas na mesa, há números, nomes, valores, não consigo ler
tudo, mesmo assim não paro, até que eu encontro um molho de chaves, meu
coração acelera tanto que temo que ele vá parar a qualquer momento, pego-
o e coloco no meu bolso. Não sei se vai dar certo, minha experiência diz
que não, vou até o outro lado e continuo mexendo, encontro um alarme e
guardo no meu outro bolso. Mesmo que eu não faça ideia do que seja,
continuo vasculhando, procurando, mexendo até que ouço uma batida na
porta, é bem suave, um código, confirmando que é realmente um dos
homens de Andrey.
Corro até a poltrona e me sento novamente, me inclino para a frente e
escondo o rosto em minhas mãos como se estivesse chorando, em choque.
A porta se abre com violência, Arkady entra, ele está furioso, posso
senti-lo como chibatadas de fogo que queima minha pele, tento respirar,
mas tudo é tão rápido que mal tenho tempo de me preparar, ele me pega
pelo braço, me puxando para si, espero pela bofetada, pela agressão, pela
acusação, mas nada disso vem, ao contrário, ele me puxa para si, em um
abraço desesperado que me faz arfar.
— Yelena... — ele sussurra meu nome como um apelo, desesperado. —
Nosso menino... — ele ofega como se tivesse sido atingido. Tento me
afastar, empurro seu corpo e ele me solta.
— Nosso? — indago me afastando, um passo atrás do outro, cada vez
mais longe. — Nosso? — começo a rir, ele me olha como se não estivesse
entendendo. — Quando é que você vai entender, Arkady, que não existe
nada seu aqui. — Coloco minha mão trêmula no bolso, sentindo o molho de
chaves se mover enquanto busco por algo. — Nunca houve nada seu —
digo sentindo uma força absurda surgir de dentro de mim. — Nada,
absolutamente nada aqui é seu. — Meus lábios se movem em um sorriso
nervoso que faz os músculos do meu rosto doerem. — Você pode ter me
usado, me machucado, me humilhado... — Afasto uma lágrima fujona com
as costas da minha mão. — Mas isso nunca fez nada ser seu.
— Yelena...
— Isso só me deu a certeza de que nem que você fosse o último homem
do mundo, eu nunca desejaria ser sua.
— Eu não vou me ofender, você está em choque, eu sei, eu também
estou.
— Choque? — Balanço a cabeça com força. — A única coisa que eu
sinto é um alívio imenso e inveja, porque ele não está mais aqui.
— Não, eu prometi a ele. Eu... — Ele caminha até parar na minha
frente. Encaro seus olhos frios e imundos, olhos que já viram tudo o que o
mundo tem de pior e ainda conseguem se fechar à noite para dormir, olhos
que eu daria tudo para nunca mais ver na vida.
— Sabe o que me deixa feliz? Saber que nunca mais vou precisar sentir
seu corpo imundo sobre o meu. — Ergo minha mão entre nós, levando o
pequeno objeto à minha boca, colocando-o rapidamente nela no instante em
que ele me segura em seus braços.
— O que é isso, o que você colocou na boca? — Ele me chacoalha,
enquanto o comprimido áspero e amargo desce por minha garganta. —
Yelena, o que você fez? — ele grita, me apertando junto a si, enquanto enfia
a mão dentro da minha boca.
Não há mais tempo, acabou.
— Acabou, Arkady — sussurro sentindo um alívio imenso em
finalmente poder dizer isso.
— Não, não, não, sou eu quem decide quando acaba, sou eu! — ele
grita enquanto me chacoalha e faço algo inesperado.
Eu começo a rir.
Às vezes, tudo o que nos resta a fazer é desistir.
De buscar entender por que eu?
De querer resolver tudo.
De acreditar que dá conta.
De fingir que não está com medo.
De achar que é forte o tempo todo.
De tentar se antecipar ao futuro.
Ele não existe.
Foi o que percebi naquele momento quando entendi o que Yelena estava
fazendo, me envenenando, me matando, me libertando para que eu não
precise mais passar por aquilo.
Eu aceitei sem pensar duas vezes, porque, às vezes, é preciso entender
quando se deve parar de lutar.
Eu entendi isso no momento em que abri meus olhos e me dei conta de
que eu não estava morto, ou talvez eu morri e isso aqui é alguma espécie de
céu para monstros como eu.
Tento levantar, mas minha cabeça dói e volto a me deitar, a garganta
ainda machucada dos gritos arde e tento engolir, mas é como se eu não
tivesse mais saliva em minha boca.
Ouço o som de passos e uma tosse rouca e grave que me faz ter a
certeza de que não estou no céu. Então...
Levanto-me bruscamente sem me importar com a dor, olho em volta
reconhecendo o lugar onde estou, é a antiga cabana que eu e Demyan
usávamos quando crianças para brincar pela Kupol enquanto fingíamos que
estávamos desbravando o mundo.
Tudo parece quase igual ao que me lembro, algumas coisas menores,
outras mais velhas, desbotadas, sem graça, como se, ao crescer, o
encantamento que cobria esse lugar houvesse se desmanchado.
— Se eu fosse você, não tentava se levantar assim tão rápido — Grigory
diz parado na entrada do chalé, carregando um monte de lenha em seus
braços fortes.
— Eu disse para não ir... atrás do meu corpo — falo com dificuldade,
cansado demais.
— É, você disse, mas eu não dou a mínima para o que um mudak como
você diz — ele responde e tento sorrir, mas todos os meus músculos
parecem doer.
— Onde ela está? — pergunto, espalmando a mão em meu abdômen e
tentando mais uma vez levantar.
— Deita, moleque. — Ele vai até o outro lado da cabana e coloca a
madeira em cima da lareira.
— A Yelena... — Obrigo-me a me levantar, ainda estou tonto e não
consigo andar em linha reta. Além do mais, meu estômago está
embrulhado, como se eu estivesse com uma puta ressaca e fosse vomitar a
qualquer momento.
— Teimoso como a porra daquele gato — Grigory diz cruzando os
braços e me observando tentar andar sem cair.
— Eu preciso ir... a Yelena... ela está lá — digo com um esforço
anormal, mas o grandalhão à minha frente apenas me observa sem nada
fazer. — Onde ela está? — pergunto mais uma vez.
Grigory aponta com o queixo para a parte externa da cabana e, quando
sigo seu olhar, sinto meu coração inteiro explodir de emoção com a certeza
de que eu devo ter morrido, esse é o único motivo para que eu esteja vendo
uma fada em meio à floresta fria e úmida da Rússia, sorrindo como se fosse
a porra da minha salvação.
E ela é.
— Yelena — sussurro com medo dela desaparecer como névoa em um
sonho. Ela está ao lado de Daria, aparentemente bem embora esteja
parecendo tão enjoada quanto eu.
— Até tentamos manter essa aí deitada, mas ela é mais teimosa que
você — Grigory diz.
— Acredite, ela esteve no inferno por tempo demais para alguma coisa
a impedir de fazer algo.
Yelena, minha pequena fada, minha heroína caminha devagar até onde
estou, tento dar um passo e logo sinto o braço de Grigory a minha volta.
— Vem, eu te ajudo, moleque teimoso — ele resmunga enquanto me
ajuda a caminhar ao encontro dela. — Para de sorrir, parece um mudak.
— Eu não estou... sorrindo — minto enquanto sinto a brisa fria do fim
do dia em meu rosto, o cheiro das árvores tão familiar para mim, o peso
suave da liberdade.
Yelena para a poucos passos de distância, ela parece pálida, como se
estivesse doente, mas o sorriso ilumina seu rosto de fada enquanto espera
por mim.
— Oi — digo ao parar na sua frente, tentando me manter em pé sem a
ajuda de Grigory, mas falhando miseravelmente.
— Eu não me lembrava mais de como isso aqui é lindo — ela diz ao
olhar em volta.
— Você tem razão, é a coisa mais linda que já vi na minha vida — digo
sem tirar os olhos da garota com olhos de gelo à minha frente.
— Você demorou para acordar — ela diz, a voz frágil, quase dolorosa.
— Eu estava fazendo um pouco de suspense... — Respiro fundo
sentindo um pouco de náusea.
— Bem típico do... Rei do Poço.
— Não, na verdade, de acordo com ele — aponto para Grigory ao meu
lado —, sou apenas um mudak.
— Acho que posso me acostumar com isso.
Me desvencilho de Grigory e dou mais um passo, Yelena faz o mesmo
e, então, estamos finalmente um de frente para o outro. Estico minha mão e
estendo-a para Yelena, ela desvia o olhar para ela por alguns instantes antes
de colocar a sua em cima. Um ato tão simples, mas que significa tanto para
quem, por muito tempo, só precisou de um toque para não se perder em sua
própria insanidade. Fecho meus dedos em volta dela, sentindo a
familiaridade aquecer meu coração.
Dou mais um passo e ela faz o mesmo, nossos corpos instáveis se
tocam, sinto o calor da sua pele sobre a minha, o seu cheiro de fada em meu
nariz, a sensação de envolver meus braços em sua cintura, de segurá-la
junto a mim. De tê-la em meus braços mais uma vez.
Minha.
— Senti sua falta — ela sussurra com os lábios em meu peito.
— Eu também — digo com os meus lábios em seus cabelos, sentindo
seu cheiro de paz e conforto.
Yelena ergue o rosto e olha para mim.
— Chega de morrer — ela pede com os seus olhos carregados de
sentimentos, ergo minha mão e passo o polegar em sua bochecha,
capturando uma única lágrima que ousa cair de seus olhos.
— Por você eu morreria mil vezes mais.
Inclino-me e deixo um beijo demorado em sua testa, Yelena aperta seus
braços em volta de mim, como se estivesse com medo de me soltar e tudo
acabar.
— Se for um sonho não quero acordar — ela diz, com os lábios em meu
peito.
— Não pode ser um sonho, o Grigory está aqui — digo e ele resmunga
algo que não ouço, estou imerso na magia de me sentir vivo pela primeira
vez depois de muito tempo.
Ainda não faço ideia do que está acontecendo ou como viemos parar
aqui, tudo o que me lembro é de estar mais uma vez naquele porão, de ter
beijado-a e, em seguida, ter engolido um comprimido e então o mundo à
minha volta apagou, e agora estou aqui, e por um instante não quero saber
de nada, quero ser o idiota do qual Grigory me chama.
Um grande, fodido, dolorido e idiota apaixonado.

Aos poucos, vamos nos desintoxicando do veneno que forjou a nossa


morte e nos permitiu sermos retirados do Poço como corpos a serem
despejados no Ozero13. Tudo planejado com maestria por Demyan que,
como imaginei, não ficou satisfeito com o meu sumiço e minha morte sem
corpo e foi até Grigory para bolar um plano, a princípio para encontrar meu
corpo, para então descobrir que na verdade eu ainda estava vivo.
Não foi fácil, como Grigory contou quando estive em condições de
ouvir. Eles se colocaram em perigo, contrataram informantes que colocaram
homens de confiança de Grigory infiltrados no Poço, e se dispuseram a dar
informações com a ajuda de muita grana.
“Todo homem tem seu preço, garoto.”
Foi o que Grigory disse. Porra, não consigo nem imaginar o quanto meu
amigo gastou para me resgatar. Até mesmo o médico responsável pela
confirmação da nossa morte foi pago para isso.
Demyan nunca desistiu de mim, porque ele é assim, ele nunca desiste de
algo que acredita ser o certo. E é por isso que, mesmo depois de duas
semanas, ele ainda não veio nos ver, por achar que pode estar sendo
seguido, por acreditar que nos colocará em perigo. Em vez disso, ele está lá,
naquela porra de Poço, se colocando em perigo por causa de uma vingança.
Duas semanas se passaram desde que chegamos aqui, duas semanas em
que nos permitimos ser apenas dois jovens em recuperação, deixando
nossos corpos se fortalecerem e nossas mentes se acalmarem enquanto
Grigory continua de olho em tudo.
Durante o dia é mais fácil, com a pequena cabana movimentada, o
cheiro de comida e as conversas, é como se o que passamos fosse só um
sonho ruim, um pesadelo do qual não queremos falar, mas quando a noite
chega, tornando tudo escuro, frio e silencioso, preciso usar todas as minhas
forças para não enlouquecer.
Não consigo dormir, sinto meu corpo inteiro pinicar, tenho pesadelos,
principalmente com Sasha, que me olha como se pudesse me punir por ter
ceifado a sua vida tão jovem.
Então eu levanto e caminho em volta da cabana, sem me afastar, apenas
deixando que o ar gelado do outono preencha meus pulmões, me traga de
volta à vida.
Quando volto para a cabana, Yelena está lá, parada à porta, usando uma
camiseta e calça de ginástica, os cabelos presos em uma trança que está
começando a se desmanchar.
— Tentando fugir de nós? — ela brinca ao se sentar nos degraus.
— Na verdade fui mijar.
— A última vez que verifiquei havia banheiro na cabana.
— Mas não é como regar uma árvore com seu mijo sagrado — brinco e
ela sorri e é como se o céu escuro e sem estrelas se abrisse para o sol entrar.
Sento-me ao seu lado e Yelena apoia a cabeça em meu ombro.
— Sabe, às vezes eu me pego pensando, e se ele decidisse nos queimar?
— ela diz enquanto pica uma folha.
— Será que acordaríamos? — pergunto imaginando a cena. — Seria
uma morte bem dolorosa — concluo estremecendo com a ideia.
— Nunca vamos saber — ela finaliza o assunto.
Ainda é difícil falar sobre o que passamos ali, ainda é difícil pensar que
tudo poderia dar errado, que foi um ato de extrema coragem da sua parte.
Estico minha mão em minha coxa e ela pousa a sua sobre ela, seguro-a
junto a mim, fazendo carinho em suas cicatrizes enquanto penso no quanto,
apesar de tudo o que passamos, ainda somos pessoas de muita sorte.
Os dias estão começando a ficar bastante frios e Grigory é o responsável
por nos manter aquecidos enquanto Daria nos alimenta, eles quase nunca se
falam, mas estão sempre juntos e não preciso ser nenhum gênio para ver a
forma como ele a observa quando ela não vê. Isso não significa que eu o
imagine com um bando de crianças correndo a sua volta, mas tenho certeza
de que algo está acontecendo entre eles e me deixa bastante feliz.
Ainda não ficamos sozinhos, nem um dia sequer e tudo bem, na verdade
eu me sinto mais seguro em saber que temos eles conosco, Grigory disse
que Demyan contratou alguns caras de fora para nos proteger, a cabana está
cercada deles, dia e noite, e o fato de eu nunca ter visto nenhum deles me
deixa agitado, como se ainda não fosse o fim.
Estou sentado nos degraus, observando Grigory cortar um pouco de
lenha. Yelena se aproxima e abro minhas pernas para que ela se sente entre
elas. Não conseguimos nos afastar muito um do outro, sempre nos tocando,
nos abraçando, nos olhando, como se dependêssemos da presença um do
outro para viver.
Ela se acomoda em meu peito e beijo seus cabelos ouvindo-a suspirar,
baixo meus olhos para as flores em seu colo, tão delicadas quanto ela.
Estendo minha mão e toco delicadamente as cicatrizes em seu pulso, não
consigo sequer imaginar o significado de estar livre para ela. Para alguém
que havia perdido as esperanças de sobreviver, que passou quase um ano
sem ver a luz do sol, o simples fato de poder escolher o que vestir, que
horas tomar seu banho e poder segurar um punhado de flores recém-
colhidas em seu colo é mais do que qualquer um pode imaginar.
Roman não dorme e isso é algo que me deixa angustiada. Ele acha que
eu não percebo, mas todas as noites, quando ele se levanta devagar para não
acordar ninguém e sai de fininho da cabana, eu o noto. Não sei o motivo, às
vezes tenho a impressão de que é por causa de tudo o que passamos. Muita
dor e medo, a morte, a solidão, o desespero, essas coisas fazem isso com as
pessoas, as unem de uma forma única, que só quem passou por isso é capaz
de compreender.
Essa noite não é diferente, ele se levanta no meio da madrugada, depois
de poucas horas de um sono agitado em que resmungou algumas palavras
incoerentes, e saiu. Levanto-me e saio também, quase todas as noites fico
sentada nos degraus da frente observando-o caminhar, esperando ele voltar,
um pouco mais calmo, para mim.
É meu modo de dizer a ele que estou aqui.
Ou talvez é apenas meu coração que não suporta ficar muito tempo
longe do seu. Tanto faz, não ligo.
Dessa vez, eu resolvo segui-lo, a princípio ele não me nota e continua
andando, observando-o, os ombros caídos, o corpo grande e magro em suas
roupas folgadas, tão diferente do homem que todos aprenderam a chamar de
Rei do Poço, mas, ainda assim, o único garoto que chegou ao meu coração.
Ele caminha por um tempo até chegar a uma parte mais fechada da
floresta, não há nada além de árvores e mais árvores a nossa volta, como
uma proteção divina contra todo o mal, ele para de andar e faço o mesmo.
— Perdeu o sono, fada? — ele pergunta ainda sem se virar.
— Como sabe que sou eu?
— Porque eu te sinto — ele responde e me aproximo um pouco mais,
apoiando meu rosto em suas costas, segurando sua mão, fechando meus
olhos e sentindo a floresta a nossa volta, o ar frio, a paz.
— Quando era criança, eu gostava de vir para cá, eu me sentia tão
corajoso e forte.
— Mas você é, Roman, o homem mais corajoso e forte que já conheci
— digo e ele respira fundo, enchendo os pulmões de ar.
— Eu queria poder mudar as coisas.
— As coisas são o que são, não se torture com isso.
— Como você consegue, como dorme à noite depois de tudo? — ele
pergunta, não como uma acusação, mas como se não suportasse mais viver
assim, e aperto meus braços em torno de seu corpo. — Às vezes, sonho com
Sasha e, em outras, é com Anna quem vem até mim, como se eles
precisassem de algo.
— Talvez eles só queiram ter a certeza de que você vai ficar bem.
— Como posso fazer isso, se eu tenho os sangues dessas pessoas em
minhas mãos?
— Deixa eles irem, Roman, não os mantenha aqui, solte-os.
Ele abre os punhos, ainda encarando suas mãos e toco-as com as pontas
dos meus dedos.
— Estou preocupada com você — confesso.
— Vai passar, espero — ele diz, sem muita confiança e meu coração
dói.
— Mesmo se não passar, quero que saiba que eu estou aqui, não precisa
andar sozinho, nem guardar tudo isso dentro de você. Eu seguro sua mão.
Roman se vira para mim, os cabelos desmanchados pela noite caótica,
os olhos cansados de quem não dorme bem, o sorriso triste em seus lábios.
Tão belo, tão meu.
— É tudo o que preciso — ele diz ao erguer minhas mãos em seus
lábios e beijá-la.
Então envolvo meus braços em seu pescoço e Roman se inclina para me
beijar, um beijo delicado, suave, que não tem nenhuma intenção além de me
provar que ele diz a verdade, isso é tudo o que ele precisa e se for tudo o
que eu tiver para dar, é o que ele vai aceitar.
Mas apesar de tudo, apesar dos horrores que vivi, das dores que senti,
da maldade que conheci, Roman foi a bondade, o amor, a beleza em minha
vida. Ele foi a pessoa que me fez sentir algo além da dor, ele me provou
que, mesmo diante do mal, o amor pode nascer, e ele nasceu, no solo seco
do meu coração, regado por minhas lágrimas, cercado de dor e medo, e
talvez por isso, eu o sinta com tamanha força, que ele foi capaz de apagar
ou ao menos amenizar as dores que eu sei, serão como cicatrizes eternas em
minha alma ferida.
E nesse momento, no meio de uma floresta fria, sem saber
absolutamente nada sobre o futuro, ele é tudo o que eu quero.
Me afasto de Roman e seguro a barra da sua camisa térmica, passando a
ponta dos meus dedos por sua pele pálida, a removo, em seguida ele faz o
mesmo com a minha, depois são nossas calças, nossas roupas íntimas,
nossas botas de frio até que estamos completamente nus, de corpo, alma e
sentimentos.
Olho para o seu rosto de menino e vejo o homem que foi ao inferno por
mim, que se recusou a ceder a dor, que mesmo quebrado tentou com todo o
seu coração me proteger, que morreria por mim, mil vezes se necessário.
Estico minha mão e toco seu corpo, sentindo o calor da sua pele nessa noite
gelada. Pela primeira vez estamos sozinhos, sem ninguém nos vendo,
maculando nosso amor.
Subo minhas mãos por seu quadril, passando pela cicatriz da facada no
seu esterno, e da violência que sofreu em suas costas, peito, pulsos. São
marcas que contam uma história que só nós dois conhecemos e que nos une
de uma forma única.
Roman faz o mesmo comigo, me tocando, com suas mãos enormes e
fortes, mas que sempre que pousaram sobre mim me fizeram sentir segura,
amada, adorada.
Ele se aproxima beijando meu ombro devagar, enquanto suas mãos me
tocam e as minhas fazem o mesmo em seu corpo, o ar frio à nossa volta, o
silêncio da vida, é como uma pausa para que possamos finalmente sermos
apenas nós, duas almas feridas se conhecendo, se amando, se curando.
— Está com frio? — ele pergunta baixinho.
— Nunca sinto frio quando estou com você — respondo e ele me beija,
incendiando meu corpo cheio de saudades.
Roman me segura em seus braços, eu o agarro em minhas mãos, nossas
bocas se unem, nossos corpos se conectam, é tudo tão natural, tão certo, tão
verdadeiro, que, quando o sinto dentro de mim, é como se eu estivesse
finalmente voltando para o meu lugar nesse mundo.
Ouço sua respiração pesada em meus ouvidos, ouço nossos corações,
ouço nossos corpos, ouço nosso amor, um amor bonito, forjado no fogo,
duro, resistente.
Imortal.
— Eu te amo — sussurro em seu ouvido algum tempo depois, deitados
sobre nossas roupas, seus dedos brincando em minha pele ainda quente e
excitada, causando arrepios gelados.
Roman vira o rosto para mim, o sorriso se espalha por sua boca e me
ergo para beijá-lo mais uma vez, notando que talvez eu nunca vá me cansar
de fazer isso.
— Eu te amo, Roman Stepanovich Zorkin, e eu acho que sempre te
amei, mesmo quando não tinha ideia de que isso era possível.
Roman segura meu rosto em suas mãos, os dedos brincam em meus
lábios e ele passa tanto tempo em silêncio que começo a acreditar que não
ouviu o que eu disse, ou talvez não esteja pronto para algo assim.
Estou quase dizendo que tudo bem, que ele não tem que dizer de volta,
quando se inclina sobre mim, me fazendo deitar e abrir minhas pernas para
ele, Roman me invade devagarinho e enlaço seu quadril cruzando meus pés
em suas costas, ele entra e sai, ainda lentamente, sem pressa, enquanto me
beija, me toca, me ama.
— Sabe o que estamos fazendo agora? — ele sussurra em meu ouvido,
nunca deixando de se mover. O calor da sua respiração me causa arrepios,
não consigo falar, estou tomada de uma emoção intensa que me rouba o ar,
apenas movo a cabeça e ele sorri novamente. — Estamos fazendo amor,
Yelena, isso é amar, e eu quero que você saiba que todas as vezes em que eu
estiver assim dentro de você, eu estarei te amando, com meu corpo e com
meu coração, e que eles são seus, só seus. — Ele segura minha mão,
enroscando nossos dedos, apoiando nossas testas, me amando. E eu sinto o
seu amor, na forma mais intensa e plena de todas.
E quando ele goza, dizendo meu nome em meio aos gemidos que me
levam junto, eu sei que nada pode ser mais lindo do que isso.
— Eu te amo, minha fada — ele diz, segurando nossas mãos sobre seu
peito, onde seu coração de guerreiro bate forte e poderoso.
E inteirinho para mim.
O tempo cura tudo, era o que minha mãe costumava dizer e tudo o que
eu posso desejar é que ela tenha razão, quero me sentir curado, inteiro
novamente. Um dia, quero poder olhar para Yelena e não sentir raiva por
tudo o que ela passou, quero não me sentir culpado o tempo todo.
Quero voltar a dormir.
Por enquanto nada disso aconteceu, mas tudo ainda é muito recente e o
principal.
Ainda não acabou.
Estou sentado à mesa, Grigory está a minha frente, me atualizando das
coisas, a final do Padat’ está se aproximando, faltam poucos dias e Demyan
está lá, é incrível que apenas um ano tenha se passado desde que eu fui o
Rei do Poço e agora meu amigo que odiava essas coisas, agora está prestes
a se tornar um rei.
A porta se abre e espero que seja Yelena com Daria, elas foram dar uma
volta, acho que Daria queria conversar coisas de garotas com ela, sobre
bebês e tudo mais. Desde aquela noite na floresta em que fizemos amor,
temos dormido na mesma cama e, às vezes... bom, tentamos ser silenciosos.
Eu acho.
Mas não é a garota dos olhos de gelo, nem a mulher que Grigory insiste
em dizer que não sente nada, mesmo que seus olhos a sigam como um
mosquito segue a luz, que entra. É meu amigo, ou alguém muito parecido
com o que Demyan foi um dia.
Ele para na porta e olha para mim, e voltamos a ser apenas dois garotos
de mundos tão distantes, unidos por um acaso, desbravando o mundo,
salvando princesas e matando monstros.
— Eu espero que meu gato esteja bem alimentado — digo me sentindo
meio bobo, mas aliviado por estar vendo a cara feia dele novamente.
— Eu nunca quebro uma promessa — ele diz, ainda parado a porta, com
as bochechas magras vermelhas de frio. — Além do mais, tenho certeza de
que aquela porra viria até minha casa me obrigar. — Demyan sorri e me
levanto, caminhando até onde ele está, puxando-o para um abraço meio sem
jeito, sabendo que ele odeia esse tipo de coisa e pouco me fodendo para
isso. Porque se tem uma coisa que a morte me ensinou é que não há tempo a
perder quando o assunto é sentimentos.
— Senti sua falta, seu filho da puta — ele diz, dando tapinhas em
minhas costas.
— Eu também, moy brat14.

Agora somos nós três, eu, Grigory e Demyan, um plano nas mãos e o
mundo à nossa volta. Não faço ideia do que vai acontecer conosco, mas não
mudaria nada, é o que quero fazer e tenho certeza de que é o que Demyan
também quer.
— E aí, como você está? — Demyan pergunta um tempo depois.
Estamos sentados de frente um para o outro, seu rosto tem hematomas de
lutas passadas e seu olhar demonstra o quanto está cansado, mas há algo
mais, algo que não estava ali na última vez que o vi, algo novo, diferente.
— Estou indo, um passo de cada vez.
— Grigory tem ficado preocupado.
— Ele é um bom amigo — digo e Demyan move a cabeça. — Eu tenho
bons amigos.
— No fim das contas, você é um cara de sorte.
Ergo a sobrancelha querendo discordar, mas talvez ele tenha razão.
— Saberemos em alguns dias.
Ele move a cabeça mais uma vez, as mãos cruzadas, os braços apoiados
nas coxas, tenso, como se a qualquer momento algo de ruim fosse
acontecer.
— Antes, preciso te contar umas coisas que fiquei sabendo quando
estava no Poço.
Demyan se ajeita na cadeira franzindo o cenho.
— Que coisas?
— É sobre a Anna — digo e sinto a garganta se fechando à medida que
me lembro daquelas fotos. Agradeço a Deus que ele nunca vá vê-las, é
doloroso demais para um irmão.
— O que tem ela?
— Ela não se matou, Dem — respondo. As marcas de sangue nos
azulejos invadem minha mente e tento afastá-las sem sucesso.
— Do que você está falando?
Conto a ele tudo sobre o porão, desde o momento em que matei o
primeiro homem até o instante em que Arkady me entregou os envelopes,
conto sobre meu pai e a forma cruel como eles usaram Anna para me fazer
entrar no Poço, conto sobre Yelena e como tudo foi forjado, para que eu me
apegasse a ela.
— Tudo é filmado e vendido por quantias absurdas, grana alta, vem de
todo lugar, do mundo inteiro. Somos os brinquedos deles, a diversão desses
sádicos imundos — continuo.
Demyan se levanta e começa a andar de um lado para o outro, com as
mãos em concha em frente aos lábios enquanto assimila tudo.
— Ela foi estuprada — ele diz, agora de costas para mim.
— O quê?
— Ela deixou uma carta explicando o motivo, ou dando um motivo. —
Ele apoia as mãos na janela e abaixa a cabeça. — Porra, eu nem sei se foi
ela mesmo quem escreveu, ou se foi obrigada a dizer aquilo. Pelo que você
está dizendo, tudo ali é pensado.
— Jesus Cristo. — Inclino-me para a frente sem saber o que pensar. —
Se isso realmente aconteceu, com certeza eles venderam... — não consigo
terminar de falar, mas ele compreende e se vira para olhar para mim.
— Vamos fazer eles pagarem por tudo — Demyan diz, com os olhos
vermelhos pelas lágrimas que ele não quer permitir deixar cair e a voz
carregada de promessas de vingança.
Levanto-me e vou até onde ele está, estendo minha mão e ele a observa
por um tempo.
— Vamos vingar a nossa Anna.
Demyan segura minha mão, selando assim a nossa promessa.
— Eu preciso ir, vocês estão precisando de alguma coisa? — Demyan
pergunta já do lado de fora, se encolhendo de frio.
— Não, estamos bem.
Yelena surge em meio às árvores na companhia de Daria, que vem se
tornando uma amiga.
— E aí, como vocês estão?
— Nos adaptando, ainda é estanho estar livre, imagino que para ela seja
ainda pior, mas Yelena é forte e corajosa.
— E você está apaixonado.
— Sim, eu estou.
— Que bom, você merece, não sei se ela merece você, mas... — ele me
provoca e dou um murro em seu braço, que o faz se encolher.
— Ainda não aprendeu a apanhar?
— Não, mas já aprendi a bater, quer ver? — Demyan fecha os punhos e
gargalho alto.
— Ainda não. — Empurro sua mão para longe de mim.
— E aí, vai me falar sobre ela? — pergunto um tempo depois, enquanto
fumo o primeiro cigarro em muito tempo.
— Ela quem? — Demyan pergunta, fumando o seu próprio cigarro.
— A garota.
— Quem te contou?
— Ninguém, tá na tua cara.
Demyan balança a cabeça e um sorriso feliz surge em sua boca.
— Se eu te contar, você não vai acreditar.
— Acho que pode tentar, quanto tempo até a próxima reunião lá na
fábrica?
Demyan olha para o relógio em seu pulso.
— Vinte minutos.
— Então vamos lá, desembucha.
— Lembra quando eu ia ao colégio te esperar para a gente ir fazer
merda no centro?
Ele começa a falar sobre a garota que roubou a porra do seu coração
fodido, a cada frase o sorriso idiota aumenta provando o que eu já
imaginava.
Meu amigo se apaixonou.
— O banheiro fica bem ali. — Grigory aponta para uma porta do outro
lado do salão lotado de pessoas que imaginei que nunca mais colocaria
meus pés.
— O quê?
— Você tá aí se contorcendo igual a um moleque com vontade de mijar,
só estou indicando o lugar.
— Engraçadinho — digo enquanto ele gargalha alto demais para o meu
gosto. — Pelo jeito, o grandalhão tomou uma chave de boceta que o deixou
de bom humor né? — provoco-o e Grigory para de rir imediatamente.
— Se abrir a boca mais uma vez, eu mesmo acabo com você — ele me
ameaça e é minha vez de rir.
Nossa brincadeira acaba no instante em que o apresentador da noite
começa a falar sobre a luta de hoje.
O Padat’.
Tento ignorar a parte em mim que implora para ir embora, que tenta me
alertar de que basta um dos homens do Arkady me ver aqui e, então, estarei
de volta naquele porão, matando homens que nada me fizeram para agradar
um punhado de homens poderosos.
Mas então eu me obrigo a lembrar que não estou sozinho, na verdade,
nesse momento tem tantos homens nossos misturados como expectadores,
como capangas que Arkady não teria nem tempo de terminar de soletrar seu
nome.
— Chegou a hora — Grigory avisa e me afasto da parede, ainda estou
usando um agasalho de Demyan, com o capuz erguido para não chamar a
atenção de ninguém e puxo um pouco mais, no caso de uma rajada de vento
ultrapassar as paredes e me atingir ou... ah porra, nem sei.
Olho para o lugar onde Demyan entra, ele parece confiante e tranquilo,
uma muralha de frieza e raiva, sei exatamente como ele está se sentindo, já
estive no seu lugar embora no meu caso, não terminou tão bem.
— Boa sorte, mudak — Grigory diz ao passar por mim, conforme
planejamos. Olho mais uma vez para o ringue, estou pronto para me mover
quando ouço meu nome. Me viro apenas um pouco para não entregar meu
rosto, mas então a curiosidade vence e giro o corpo todo, na minha frente
está uma ruiva de cabelos longos e sardas no rosto, seus olhos me encaram
como se fôssemos velhos amigos, mesmo que eu não me recorde de tê-la
visto alguma vez, ela inclina a cabeça me analisando e, então, tudo se
encaixa.
A garota que roubou o coração do Demyan, a responsável por ele estar
sorrindo novamente, observo-a mais uma vez para garantir que não estou
maluco.
— Sardenta?
Seus olhos se arregalam como se eu tivesse dito uma palavra mágica ou
algo do tipo, é, meu amigo tá mesmo muito fodido, essa garota é do tipo
durona que não leva desaforo para casa. Essa constatação faz um sorriso
enorme se espalhar por meu rosto.
— O que...? O que tá fazendo aqui? — ela pergunta parecendo confusa.
O apresentador grita o nome de Demyan, as pessoas se agitam, meu
sorriso aumenta.
— Você não sabe? A luta final é minha com Demyan — digo e vejo o
pavor em seus olhos, ela sabe o que isso significa, é o Padat’ afinal de
contas.
Ela dá um passo para trás e posso jurar que está prestes a gritar, como
em um filme de terror, mas antes que ela tenha a oportunidade, seu corpo
esbarra em uma muralha de músculos, mesmo que sejam músculos um
pouco avantajados demais.
Grigory olha para mim enquanto impede Annika de gritar tapando sua
boca com a mão.
— Vai logo, moleque, antes que mais alguém apareça — ele diz já
arrastando a ruivinha para um canto escuro para que ninguém a veja.
Principalmente Demyan, tenho certeza de que ele não iria gostar nem um
pouco.

O caminho até o ringue não é tão longo, dou alguns passos desviando
das pessoas que se espremem para que eu possa passar. Posso ouvir alguns
sussurros, até mesmo um deles falando meu nome, não paro de andar, nem
ergo meu rosto para olhar para Demyan. Não será fácil depois de tudo o que
fui obrigado a fazer, mas é por uma boa causa e nós dois sabemos disso.
Quando subo no ringue, o árbitro olha para mim, sua expressão é
confusa e ele parece não entender o que está acontecendo. Seus olhos
desviam para um lugar, mas o apresentador se aproxima e sussurra algo,
uma ameaça provavelmente, avisando para ele continuar.
Puxo o moletom pela cabeça revelando minha identidade afinal, o Poço
fica em silêncio enquanto Demyan sorri, com os braços descansando nas
cordas.
— Seja bem-vindo de volta, Rei — ele diz e sorrio sentindo uma
estranha familiaridade com esse lugar.
Aqui fui o Rei desse lugar.
O árbitro me apresenta: Roman, o Rei do Poço. Ele fala um monte de
merda que não ouço, meu cérebro está refazendo todos os passos, tentando
ignorar a última vez que tentamos algo assim. Aquilo foi diferente, era um
plano idiota de um garoto apaixonado, hoje estamos em uma missão que foi
planejada muito bem.
Ergo os braços cumprimentando a multidão, que grita nossos nomes,
Demyan faz o mesmo e giramos em nossos calcanhares atiçando as
torcidas.
A luta começa e passamos alguns segundos nos estudando, milhares de
momentos passam por minha mente, desde pequenos, brincando por aí,
escalando a Granitsa, desbravando a Kupol, fazendo nosso nome por todo o
Oeste e Sul, nunca fomos muito de falar sobre o que significamos um para o
outro, mas esse cara gastou mais dinheiro do que um dia terei na minha vida
para me resgatar. Durante um ano inteiro, ele não desistiu de me procurar
enquanto eu tentava não morrer, e isso é mais do que palavras podem
sequer dizer.
O primeiro soco vem antes que eu possa me preparar e me desestabiliza,
cambaleio até sentir minhas costas nas cordas, mas Demyan não se
aproveita para avançar como eu sei que ele faria, não é uma luta de ódio, é
mais como dois amigos descarregando suas dores.
Ele vem até mim, ergue o braço e aproveito para acertar suas costelas,
os homens lá embaixo gritam enquanto meu amigo geme.
— Foi mal — sussurro antes de acertar o próximo.
— Vai se foder, Roman, desaprendeu a bater? — Demyan me provoca e
tento acertar seu rosto, mas ele se esquiva e gira para a minha esquerda.
A luta se desenvolve assim, trocas de socos sem grandes danos, os
homens à nossa volta estão hipnotizados, incapazes de desviar o olhar,
afinal de contas, essa luta será contada através da história de Temnyy
Gorod, de pai para filho.
Eu vi as lendas juntas, melhores amigos.
Demyan acerta um golpe em meu maxilar, que me faz perder o
equilíbrio, caio, mas ele não avança, o que causa irritação nos homens que
vieram até aqui e pagaram para ver a morte.
“Lutem o máximo que puderem, distraiam as pessoas, causem alvoroço,
quanto mais tempo tivermos melhor.”
Tento levantar e caio de novo, chamo Demyan de covarde e ele chuta
minhas costelas, urro de dor e uma onda de gritos insanos surgem à nossa
volta, é isso que eles querem.
Me levanto com dificuldade e vou para cima de Demyan, ele olha
dentro dos meus olhos e preciso dizer, meu amigo é corajoso por saber o
que virá e, mesmo assim, me olhar nos olhos dessa forma.
— Desculpa — sussurro, só para ele ouvir no instante em que atinjo seu
rosto. É um golpe forte e perigoso, que geralmente finaliza uma luta, mas
hoje não basta, eu preciso de mais.
Demyan cai no chão, seu corpo bate violentamente e os gritos de Rei do
Poço preenchem cada canto desse lugar, sento em seu peito e continuo
socando seu rosto de playboy folgado, até que ele para de se mover, o
apresentador começa a gritar:
— Acabou, acabou!
O árbitro se aproxima me puxando de cima de Demyan, o médico é
chamado, ele se aproxima, confere os batimentos cardíacos, não há nada ali.
Antes de descer do ringue, o médico olha para mim, é tão rápido que só
eu consigo notar, seus olhos dizem que estamos indo bem. O árbitro ergue
minha mão, sou finalmente o campeão do Padat’.
O Rei do Poço.
O alçapão se abre sob meus pés, quero desviar os olhos, digo a mim
mesmo que está tudo bem, mas, no momento em que os homens pegam o
corpo de Demyan e o jogam no Poço, sinto meu corpo inteiro tremer e os
rostos de todos aqueles homens que matei surgem na minha frente.
— Roman... — ouço meu nome e me viro. É Sasha, ele está parado na
minha frente, o rosto inchado, o sangue envelhecido em sua pele, as órbitas
fundas sem os olhos. — Por que você fez isso comigo? — ele pergunta,
abro minha boca para responder, mas não tenho tempo para mais nada, o
barulho da explosão informa que meu tempo acabou.
O plano está em andamento.
Dois dias antes...

— Deixa eu ver se entendi, você quer que eu arrebente a tua cara


enquanto os homens do Grigory entram no Poço, comandados pela equipe
do nerd que trabalha na sua indústria, como é o nome dele mesmo?
— Isso mesmo, nós dois vamos distrair as pessoas.
— É o Padat’, caso você não saiba, seu otário! — interrompo-o.
— Você não vai me matar — Demyan diz e só de imaginar a
possibilidade já sinto meu estômago embrulhando.
Yelena segura minha mão embaixo da mesa, apertando-a, me fazendo
lembrar de que ela está aqui e que não estamos mais naquele lugar.
— Como vamos enganar centenas de pessoas e o pessoal do Arkady
com uma morte imaginária? — pergunto ainda sem acreditar que ele está
mesmo pensando que isso vai dar certo.
— Quem vai determinar que Demyan morreu é o médico — Grigory diz
e Demyan ergue as sobrancelhas como se dissesse entendeu agora?
— Enquanto isso, Dimitri vai entrar no sistema e desarmar os alarmes
— Demyan completa.
— E meus homens vão entrar com as chaves que Yelena trouxe com ela
e resgatar as garotas presas.
Olho para Yelena ao meu lado, ainda não acredito que ela conseguiu
pensar em trazer as chaves das celas naquela noite caótica, claro que
Grigory fez questão de comprovar que elas abriam todas as portas através
de um dos seus capangas infiltrados, que ainda continuam lá comandados
por Andrey, que, neste momento, está de pé na porta da cabana. Ainda não
me sinto confortável na presença de ninguém que já esteve naquele lugar e
posso sentir a forma como Yelena está tensa, mas Grigory confia nele e eu
confio em Grigory.
— Tá, então eu te mato, você cai lá embaixo, Dimitri destrava o sistema
de segurança e aciona um alarme, Grigory dispara a primeira bomba,
começa o caos...
— Aí vamos começar a brincadeira — Demyan diz se encostando na
cadeira e esfregando as mãos, um sorriso maquiavélico surge em seu rosto e
se espelha no meu.

— Como ele está? — pergunto assim que pulo no buraco aberto no


ringue, Demyan já foi arrastado para um canto e está sendo atendido pelo
médico.
— Ainda não acordou, mas ele vai ficar bem — ele diz sem olhar para
mim.
— Roman, vá logo, não temos tempo — um dos homens de Grigory diz
no instante em que vejo Annika sentada no canto, com os olhos marejados,
os lábios apertados, como se ela estivesse tentando controlar o choro
enquanto olha para Demyan desmaiado. Por minha culpa.
Ela se levanta, caminhando até onde estamos, posso sentir a sua raiva
exalando do seu corpo pequeno, os cabelos ruivos como labaredas de fogo,
espalhados em volta do seu rosto irritado, furioso.
— Eu sinto muito... — começo a falar, mas sou golpeado por um tapa
estalado, que me assusta.
— Seu filho da puta! — Annika diz enquanto chacoalha a mão no ar.
— Mas que porra, você me bateu? — pergunto.
— Você quase o matou, como você pode fazer isso quando ele esteve
procurando por você esse tempo todo, seu traidor! — ela começa a gritar,
defendendo o cara desmaiado atrás de mim e não me surpreendo ao
perceber que ela não sabe de nada. Demyan a protegeu, afinal de contas,
quanto menos ela souber, melhor.
— Desculpa, mas o verdadeiro filho da puta é aquele ali. — Aponto
para o Demyan, que mal se mexe.
— Roman, caralho! — Grigory diz e me viro para onde ele está. —
Vamos! — ele me chama e o sigo, ignorando os gritos da garota do meu
amigo. — Ela parece bater bem.
— Demyan que se cuide — respondo esfregando a bochecha que ainda
arde.
O rádio dele toca, é uma das equipes informando que está tudo sob
controle, o caos é generalizado lá em cima, pessoas correndo em busca de
uma saída, já que um incêndio começou na cozinha do bar que abastece o
Poço, enquanto isso, eu, Grigory e mais dois caras corremos em direção ao
lugar combinado.
— Onde ela está? — pergunto sem parar de correr.
— Está com Andrey.
Sorrio sentindo a adrenalina invadir minhas veias ao imaginar minha
garota tendo a sua chance. Em momento algum Yelena hesitou em voltar a
esse lugar, desde que ela pudesse ter o seu momento, a sua vingança.
Corremos por corredores, passamos por alguns corpos caídos, capangas
de Arkady eliminados, as portas de todos os quartos estão abertas, olho para
um deles e vejo uma cama, meu coração acelera ao lembrar de Yelena aqui,
sendo usada, explorada, violentada e filmada para depois ser vendida.
— Vamos, garoto, não pense em nada — Grigory diz como se pudesse
ouvir meus pensamentos. Ouço tiros e rezo para que sejam os nossos caras
que estão se dando bem.
— Por aqui. — Abro uma porta que sei exatamente onde vai dar,
Grigory me segue enquanto desço as escadas correndo. Ao chegar ao
corredor onde vivi por quase um ano, todas as celas estão abertas, todas as
garotas livres, todo o lugar vazio, exceto por um grupo de pessoas no fim
dele.
Andrey, seus homens e ela.
Minha Yelena.
Ela está mais linda do que nunca, usando roupas pretas e com o cabelo
preso em uma trança, os olhos brilhando de ódio e fúria, ela corre até mim e
a seguro em meus braços desejando protegê-la mais do que nunca.
— Graças a Deus, você chegou — ela sussurra em meus braços e deixo
um beijo em sua boca.
— Onde eles estão? — Grigory pergunta para Andrey, que aponta para
uma das celas, no fim do corredor.
Caminhamos até ela, o cheiro de medo, dor e morte ainda está
impregnado nas paredes do lugar e quero mais do que tudo tirar Yelena
daqui.
Olho para uma cela, suja, cheirando a urina e fezes e não consigo sequer
imaginá-la nesse lugar sozinha, assustada, machucada. Isso faz a fúria
crescer dentro de mim e cerro os meus punhos.
Quando chegamos a cela encontro Arkady, ele está de costas para os
homens, andando de um lado para o outro, seu terno perfeito, seus cabelos
bem arrumados, a verdadeira imagem de um homem de negócios não
combinam com a feiura desse lugar e quero arrancar suas roupas, deixá-lo
nu, vulnerável, perdido. Yelena se retesa ao meu lado e olho para ela.
— Eu estou bem — ela sussurra e vejo o exato momento em que
Arkady percebe que ela chegou, seus ombros se enrijecem e ele para de
fazer seja lá o que for.
— Minha devochka — ele diz no instante em que se vira e a vê, o
espanto se espalha por seu rosto e ele sorri. — Oh Deus, você está viva. —
Ele vem até nós, mas é bloqueado no meio do caminho pela coronhada que
acerta o meio da sua cara.
Olho para Yelena no instante em que ele cai.
— Ah porra, mulher, você vai me matar hoje — digo enquanto ela
guarda a arma no cós da calça e sorri.
Andrey ajuda Arkady a se levantar, com o nariz sangrando e um inchaço
crescendo em seu maxilar.
— Você... — ele mal consegue terminar de falar.
— O quê? Até parece que viu um fantasma. — Cruzo meus braços no
peito e sorrio.
— O que está acontecendo aqui? De que parte do inferno vocês dois
saíram? — Ele tenta se livrar de Andrey, mas o homem é três vezes mais
forte do que ele.
— Ah, Arkady, você não tem ideia do que as pessoas são capazes de
fazer por dinheiro — digo algo parecido com o que ele nos disse.
Ele sorri, mas é um sorriso apavorado.
— Vocês vão se dar muito mal se acham que vão conseguir sair daqui.
— É mesmo? Por quê? — pergunto me divertindo com sua expressão.
— Assim que meus homens perceberem que algo estranho está
acontecendo, eles vão acionar os alarmes de segurança.
— Não se preocupe, já cuidamos disso — digo.
— O quê?
— Arkady, já saímos daqui uma vez, esqueceu? — É Yelena quem diz
dessa vez e ele parece não reconhecer a garota a sua frente.
— Os Patrocinadores irão perceber que há algo de errado com os
vídeos.
— Ah sim, Dimitri nosso gênio da tecnologia deixou alguns vídeos
rolando, você não tem ideia do que se pode encontrar na internet —
continuo. — Até eles perceberem que tem algo errado, já teremos
terminado nossa conversinha.
Viro na direção da entrada no instante em que ouvimos passos.
— Olha só quem chegou para a festa.
Zakhar caminha com dificuldade, o rosto marcado provavelmente por
um soco, o sangue escorrendo no canto da boca. Ele ergue os olhos e encara
Yelena que dá um passo hesitante e seguro sua mão.
— Está tudo bem, ele não pode te tocar mais — sussurro e ela olha para
mim parecendo uma menininha assustada.
O homem joga Zakhar dentro da cela, um segundo homem entra e
prende o tornozelo dele aos grilhões que estão presos à parede, os mesmos
que machucavam os tornozelos das garotas que eles prenderam aqui, que
deixou marcas em Yelena.
Zakhar continua olhando para ela, o sorriso malicioso em seu rosto me
enche de ódio, dou um passo à frente pronto para tirá-lo do seu rosto, mas
sou surpreendido por Demyan, que surge acompanhado do médico. Ele
entra na cela onde o possível assassino da sua irmã está, seus olhos
injetados de ódio encaram o homem conhecido por espalhar o medo por
onde vai.
— O quê? Veio vingar a putinha da banheira? — Zakhar pergunta e a
resposta vem em forma de um murro que o faz cair e que provavelmente
quebrou a mão de Demyan tamanha a força.
— Seu maldito desgraçado! — Demyan grita, — O que me consola é
saber que você vai queimar no inferno, que é o seu lugar — ele diz e Zakhar
gargalha.
Grigory se aproxima puxando uma faca da parte de trás da sua calça, ele
a entrega para Demyan, que sorri enquanto a gira no ar.
— A única coisa que eu preciso é garantir que, para onde você for, você
irá incompleto. — Grigory e mais dois homens seguram Zakhar enquanto
Demyan enfia a mão dentro da calça do desgraçado, que se debate e grita
para ele parar.
— Puta que pariu! — digo cruzando os braços no peito e ignorando os
resmungos de Arkady que vê tudo da sua cela.
Demyan puxa o pau mole dele para fora e com a faca que Grigory lhe
entregou, ele arranca fora o membro mole do maldito, que grita como um
maldito.
— Agora sim, pode ir para onde o diabo te espera, seu desgraçado. —
Demyan joga o órgão em cima de Zakhar, que se debate em agonia. Grigory
puxa meu amigo pelo braço e fecha a cela, trancando-a.
— Meu Deus.... — Arkady sussurra e leva um murro na boca de
Andrey.
— Não ouse falar o nome Dele na minha frente — o homem que salvou
a minha vida e de Yelena exige, mas os olhos de Arkady estão no seu braço
direito, que chora como um garotinho enquanto olha para o seu pau
imprestável caído no chão.
— Agora nossa conversinha é com você — digo e todos se viram para
onde Arkady tenta se livrar pedindo calma, mas nenhum de nós o ouve.
— Não temos muito tempo — Grigory avisa.
— Não precisamos de muito — Demyan diz, com a mão suja de sangue
segurando a machucada.
— Tirem a roupa dele — exijo e Arkady começa a se debater, os homes
arrancam suas roupas, rasgando as peças até deixá-lo completamente nu.
— O que vocês vão fazer? — ele pergunta, apavorado e lamento por
saber que infelizmente sua agonia não durará tanto quanto deveria. Ao
menos não aqui na Terra.
Olho para Yelena, dando a ela espaço para que faça o que veio aqui para
fazer.
— Sabe, Arkady, eu adoraria ter muito tempo para dar a você um pouco
do que você deu a mim e as outras garotas que você prendeu aqui contra a
sua vontade. — Yelena se aproxima dele, os olhos analisando o homem nu e
apavorado à sua frente e meu coração acelera de medo.
— Eu posso dar dinheiro para vocês, eu tenho muito, eu posso dar o que
vocês quiserem. — Ele faz mais uma tentativa.
— Enfia no rabo, a gente não quer — digo ignorando os gritos do outro
lado do corredor.
— Dez minutos — Grigory diz.
— Seu dinheiro não tem mais poder Arkady, infelizmente, vou ter que
acreditar que, no lugar para onde você está indo, alguém fará você chorar
sangue dia e noite por toda a eternidade. — Yelena continua.
— Demyan, olhe para mim, vamos conversar, houve um mal-entendido
— Arkady diz desviando o olhar para o meu amigo que mostra o dedo do
meio em resposta.
Yelena estende a mão e um dos homens entrega a ela o galão.
— Mas eu vou ajudar, vou deixar que você comece a se acostumar com
o calor, os gritos e a dor. Seus próximos companheiros de vida, ou... de
morte, se preferir.
— Não, não, você não pode fazer isso — ele implora olhando para o
galão. — Você sempre foi minha favorita, minha devo...
Ele não termina de falar, meu punho acerta a sua boca antes e ele geme
de dor.
— Chame-a assim mais uma vez e eu juro que arranco sua língua.
— Cinco minutos.
— Vamos, Yelena, você não precisa fazer isso. Daqui a alguns minutos
tudo isso aqui vai para os ares de qualquer jeito — Estendo a mão para ela,
mas Yelena nega, afastando o galão cheio de óleo diesel, de perto de mim.
— Eu faço questão. — O olhar em seu rosto me diz que não adianta
discutir.
Ela espalha o líquido por todo o corpo dele, dos pés até o quadril,
deixando a parte de cima seca para garantir que ele esteja vivo o máximo de
tempo possível, em seguida ela espalha por toda a cela, chão e paredes.
Durante todo o tempo, ela grita como se estivesse se libertando de todas as
suas dores enquanto faz isso.
Quando ela termina está ofegante e furiosa, seus olhos nunca deixando
de encarar o homem que destruiu a sua vida.
Os homens soltam Arkady e se afastam retirando as calças respingadas
de gasolina e vestindo outras que estavam separadas para isso. Andrey
fecha a cela e Demyan me entrega o isqueiro.
— É com você.
Pego o isqueiro da sua mão e abro ligando a chama, olho para ela por
um instante antes de olhar para Arkady.
— Boa viagem. — Jogo o isqueiro na cela e o fogo se espalha
rapidamente.
Andrey faz uma linha de óleo diesel no chão da cela de Arkady até a
cela de Zakhar, que parou de gritar e olha para nós como se fôssemos os
próprios príncipes do inferno olhando para ele.
— Em breve, vocês estarão juntos novamente — ele diz antes de jogar o
galão vazio dentro da cela.
— Precisamos ir agora — Grigory diz.
— Vamos. — Puxo Yelena pela mão segurando-a com força, saímos
correndo, Grigory, Demyan e o médico à nossa frente, Andrey e seus
homens atrás de nós, enquanto o mal queima no lugar onde um dia meninas
inocentes tiveram suas vidas ceifadas.
O resto do caminho até a saída secundária que Arkady usava para
desovar os corpos, drogas e armas, é feito em completo silêncio. Sinto uma
sensação esquisita, como se precisasse correr o máximo possível até
garantir que Yelena está longe desse lugar, como se, de alguma forma,
Arkady pudesse se livrar daquela cela e vir até ela, tirá-la de mim,
machucá-la.
O rádio de Grigory apita pela última vez no instante em que saímos do
Poço, minhas pernas queimam com a força com que corro e então ouvimos
a explosão, em segundos tudo vai pelos ares, a bola de fogo se espalha pelo
ar e somos todos jogados no chão.
— Annika! — Demyan grita no instante em que avista a ruiva correndo
na nossa direção. — Porra, não! — ele continua gritando tentando impedi-la
de se aproximar, correndo ao seu encontro, segurando-a em seu colo com
apenas uma mão, enterrando seu rosto no pescoço dela.
E de onde estamos, somos capazes de ouvir o alívio em sua voz quando
ele diz:
— Acabou, finalmente acabou.
Um incêndio de grandes proporções destruiu um bar nessa madrugada.
O lugar, além de ser um ponto de encontro dos moradores da pequena
Temnyy Gorod, cidade industrial localizada no norte da Rússia, de acordo
com testemunhas, também era usado para a realização de lutas
clandestinas.
O imóvel ficava localizado em uma área onde há vinte anos um
acidente químico forçou as autoridades a remover os moradores da área,
desde então o Setor Leste, como é conhecido, se tornou uma área
abandonada.
De acordo com as primeiras investigações, o incêndio começou na
cozinha que abastecia o lugar conhecido como O Poço, se espalhando
rapidamente para os outros andares. A explosão que destruiu o lugar foi
causada por um depósito de produtos inflamáveis que ficava em umas das
salas subterrâneas.
Cerca de vinte pessoas ficaram feridas entre funcionários e
frequentadores, também foram encontrados dois corpos carbonizados que
foram levados para identificação.
Olho para a tela à nossa frente, é a mesma desde sempre, assim como
tudo na cidade onde crescemos, mas hoje ela parece diferente, mais clara,
como se, a qualquer momento, um filme fosse surgir ali. Gostaria que fosse
um filme engraçado, uma aventura, até mesmo um desenho, estamos
precisando de um pouco de leveza depois de tudo o que aconteceu.
— Quais os planos? — Demyan pergunta colocando os seus pés na
poltrona à sua frente, a mão imobilizada segura o pacote de biscoitos de
manteiga enquanto com a outra ele come. Por sorte, não foi tão grave como
imaginamos. Por sorte.
Acho que tivemos sorte, embora ele não goste dessa palavra, é como se
tropeçássemos na solução no meio do caminho, quando na verdade nos
dedicamos a encontrá-la.
Um ano de trabalho duro não pode ser chamado de sorte, né?
— Não sabemos ainda, e vocês?
— Vamos ficar — ele diz com a boca cheia e me viro para olhar para
ele.
— Sério? — pergunto mas no fundo não estou surpreso, nunca vi
Demyan longe de Temnyy Gorod, mesmo na época da universidade, ele
voltava todo fim de semana, ansioso para colocar os pés nesse solo
infectado e brincar de delinquente ao meu lado.
— Annika não é o tipo de mulher que deixa as coisas inacabadas, e a
gente tem muita coisa para fazer por aqui agora que o Poço se foi — ele diz
com um brilho nos olhos que acho que nunca vi e que me faz acreditar que
ele fez a escolha certa. — Temos uma cidade para reconstruir.
Ainda não acredito que tudo aconteceu, às vezes acordo de madrugada
com o som daquele lugar indo pelos ares, o calor do fogo em minha pele, os
gritos de Arkady e Zakhar, mas os piores dias ainda são os que sonho com
Sasha. Annika diz que é transtorno de estresse pós-traumático e que vai
passar, eu adoraria que ela estivesse certa, mas no fundo sinto que algo
dentro de mim se partiu naquele lugar e por mais que o tempo passa, nunca
mais será o mesmo.
Assim como Yelena, ela está bem, na maior parte do tempo ela sorri e
conversa, mas sempre que alguém a toca, ela se encolhe, toda vez que
precisa sair da casa de Demyan noto uma certa angústia em seu olhar, como
se Arkady estivesse à espreita, pronto para levá-la de volta para aquele
lugar e não importa que toda noite eu a envolva em meus braços e diga a ela
que já passou, que ninguém vai tirar ela de mim, porque, às vezes, na calada
da noite, depois de mais um pesadelo, até eu mesmo tenho essa sensação.
Vai passar, eu sei que vai.
Esse é um dos motivos para que tenhamos escolhido ir embora, é muito
difícil curar nossas feridas aqui, sentindo o peso da realidade, sob os
escombros do nosso cárcere. Precisamos de ares novos, descobrir que a vida
é mais do que dor e medo, que é mais do que tivemos, é muito mais e
merecemos.
— Eu sempre soube que você nunca iria embora — concluo.
— Por quê?
— Porque você é igual a tua garota, não deixa nada para trás, nem
mesmo o amigo que todos acreditavam que estava morto, não deixaria o
legado da tua família, nem a tua mãe.
Demyan respira fundo, aliviado já que sua mãe tem se mostrado mais
calma a cada dia que passa desde que o Poço foi eliminado. De acordo com
Annika, que chamo de sabe-tudo, ela nunca esteve doente, era apenas o
desespero de uma mãe sabendo que Anna queria se comunicar, mas como
Demyan não acredita nessas coisas, ela não tinha como ser ouvida.
Mas agora Anna está em paz, descansando em um lugar bom, sem dor
ou medo, vingada pelas mãos das pessoas que mais a amaram nessa vida.
Eu e Demyan.
— É, pode ser — Demyan diz erguendo os ombros fingindo que não
liga. — De qualquer forma, temos muito o que fazer. Dimitri está estudando
uma forma de modernizar a cidade, mês que vem uma equipe especializada
em desastres químicos virá para cá, eles querem avaliar o Setor Leste, estão
achando que talvez já não tenha mais perigo, o solo não está mais
contaminado e que Arkady usava isso para manter a população assustada e
assim poder realizar suas atrocidades sem ninguém para atrapalhar.
— Eu não duvido — é tudo o que consigo falar sobre isso, todos os dias
uma coisa nova sobre o Poço surge, Dimitri encontrou inclusive alguns
vídeos, por sorte nenhum de Yelena ou Anna, embora eu nunca vá saber,
não quis ver, não me interessa, nada vai mudar ou desfazer os horrores que
aconteciam naquele lugar.
Sabemos que o que fizemos aqui foi pouco, o Poço era apenas uma
célula em um mundo imenso, repleto de maldade e poder, mas foi tudo o
que podemos e só de saber que as mulheres e crianças de Temnyy Gorod
estão protegidas, já é o bastante para dois garotos como nós.
O telefone de Demyan toca e ele dá um pulo, se atrapalhando com o
pacote de biscoito.
— Droga!
— Trabalho? — pergunto mesmo que eu já saiba a resposta. Demyan
tem tido um monte de trabalho, saindo cedo e chegando tarde todos os dias,
ele e Annika se tornaram bons empresários, justos e honestos e tenho
orgulho do cara que ele se tornou.
— Tenho uma reunião com a equipe nova que vai coordenar a
capacitação dos nossos funcionários — ele explica.
— Beleza, também preciso ir, tenho que terminar de arrumar as minhas
coisas.
— Quando vocês pretendem ir?
— Amanhã.
Demyan respira fundo e balança a cabeça em concordância, ele não
pede para que eu fique, nem diz que vai sentir minha falta ou nada dessas
coisas, ele apenas aceita.
Saímos do cinema em silêncio, sem saber se algum dia sequer
voltaremos a ele, não olho para trás, prefiro levar comigo as boas
lembranças do que vivi aqui ainda garoto ao lado do meu melhor amigo.
— Ei, tenho um lugar para a gente ir. — Ele me puxa pela manga do
moletom mudando a nossa direção.
— Mas e a sua reunião?
— Não vamos demorar.
Caminhamos em silêncio por cerca de dez minutos. Assim que viramos
a esquina descubro os planos dele.
— O que viemos fazer aqui? — pergunto olhando para as ruinas do que
um dia foi o Poço, ignorando a forma ridícula que meu coração dispara,
como se a qualquer momento as paredes pudessem se erguer novamente.
— Você vai saber. — Demyan para bem onde um dia foi a entrada para
a parte subterrânea, abre a calça e coloca o pau para fora.
— Que porra é... — paro de falar quando entendo o que ele está
fazendo, faço o mesmo que ele e então mijamos nas ruinas do lugar em que
um dia lutamos.
Como os fodidos Reis do Poço que somos.
Gargalhamos enquanto fazemos o nosso último ato rebelde antes de
começarmos a nossa nova vida. Uma vida boa, uma vida correta.

— Não está esquecendo nada? — Grigory pergunta parado na frente do


carro com as portas escancaradas enquanto me observa colocar as poucas
coisas que realmente importa na minha vida, no porta-malas.
— Não, já conferi tudo.
— Não esquece de deixar o celular carregado, Demyan vai te ligar todos
os dias.
— Já disse que não precisa, vamos ficar bem.
— Verifica a gasolina, carros precisam ser abastecidos.
— Grigory, eu já sei.
— Não custa avisar, afinal de contas você é um mudak de merda.
Sorrio, porque esse é o jeito dele dizer que se preocupa comigo.
— Pode deixar.
— Cuida da menina, ela ainda tem medo de quase tudo e precisa comer
mais, tá parecendo um saco de osso.
— Pode deixar, eu vou cuidar.
Para sempre se ela deixar.
— E você se cuida para poder cuidar dela. — Balanço a cabeça
confirmando. — Mantenha a arma protegida, nunca se sabe o que pode
acontecer.
— Grigory — o chamo e ele bufa.
— Tá, tá, já parei. — Ele balança a mão no ar no momento em que
Yelena aparece, carregando uma mala pequena em suas mãos.
É tudo o que ela tem e, mesmo assim, nada do que tem naquela mala é
oficialmente dela, um par de calças da Annika, algumas blusas da Faina,
amiga da Annika, produtos de higiene que a Daria fez questão de dar de
presente, pequenos lembretes que Arkady roubou tudo o que ela um dia foi.
Ela para na minha frente e me entrega a bolsa, coloco-a sem dificuldade
na parte traseira do carro e finalmente fecho o porta-malas.
Demyan e Annika se aproximam abraçados, ela ainda finge que está
brava com ele, afinal de contas, para ela, foi uma traição não ter feito parte
do plano, e todos os dias ela faz questão de deixar claro que nunca vai
perdoar Demyan por causa disso, mas basta ele olhar para ela daquele jeitão
dele, que ela fica toda bobona.
— Certo, então acho que é aqui que nos despedimos — digo quando ele
para na minha frente.
— Não é o fim — Demyan diz.
— Eu sei, é um recomeço.
— Será um lindo recomeço — Annika diz sorrindo.
— Eu mando fotos dos lugares que formos — digo e ele apenas move a
cabeça.
— E você vai me atualizando sobre ela. — Aponto o queixo para Daria
que se aproxima parando ao lado de Grigory.
— Nem pensar.
— Pode deixar, eu dou — Demyan diz e Grigory solta um palavrão.
— Vão cuidar das vidas de vocês.
Puxo Grigory para um abraço desajeitado e ele bate em minhas costas.
— Se cuida, mudak.
— Pode deixar, fica de olho nele para mim — peço.
— Não sou babá de pau! — ele resmunga, mas quando nos afastamos,
ele sorri, e tenho quase certeza de que é a primeira vez na vida que vejo
seus dentes.

Sinto o toque suave e quente da sua mão sobre as minhas enquanto


caminhamos até parar na frente do túmulo dela, a foto ainda está lá,
amassada e rasgada, seu sorriso bonito, sua alegria, sua coragem.
— Ela era tão linda — Yelena diz baixinho.
— Ela era incrível — digo ainda olhando para Anna. — Vocês seriam
boas amigas.
— Você sabe que isso não aconteceria.
Yelena sempre faz questão de dizer que nunca teríamos nos conhecido,
mas gosto de fingir que ela está errada.
— Isso você nunca vai saber — provoco-a.
Yelena sorri e solto sua mão, me aproximando do túmulo e tirando o
vidro de vodka do bolso do meu agasalho.
— A gente começou a tomar essa uns dois dias antes, lembro que você
disse que ela era especial, envelhecida e sei lá o quê, eu disse que gostei,
mas eu detestei, mas você sabe, eu tomaria tudo sem reclamar. — Balanço a
cabeça sorrindo ao lembrar daquele dia.
Abro a garrafa e sirvo uma dose em um copo, coloco sobre seu túmulo,
entrego um para Yelena, depois um para Demyan e outro para Annika, por
fim sirvo outro para mim.
— Za zdorov'ye15! — digo antes de tomar tudo de uma vez, sentindo o
líquido queimar minha garganta.
Espero até que todos façam o mesmo e então ficamos mais um tempo
ali sentados em volta do seu túmulo, compartilhando histórias de quando
éramos crianças. Tantas memórias.
O dia se vai, levando consigo o calor confortável e trazendo o frio da
noite, estamos todos um pouco embriagados, saudosos e emocionados, mas
estamos juntos, e, de alguma forma, felizes com o que temos.
Aprendemos da pior maneira possível que a felicidade é resistente, forte
e bonita, que ela não deixa de existir porque algo ruim acontece, ao
contrário, é nesses momentos que ela se torna mais forte.
Como uma força da natureza.
Como o feitiço de uma fada.
Como um sopro de Deus em nossos corações.
E nesse momento, rodeado pelas pessoas que amo, brindando ao amor,
tenho certeza de que nunca fui tão feliz em toda a minha vida.
Quase dois anos desde que tive um sonho.
O sonho de poder ser livre, um sonho que me mostrou o pior do ser
humano, que me fez desejar morrer, que me transformou para sempre.
Hoje não consigo mais sonhar, não como antes, com todas as cores e
brilho, meus sonhos são em tons de cinza, frios e instáveis, como se a
qualquer momento eles pudessem se desfazer, como fumaça no ar, como
uma bolha de sabão, como a neve na ponta dos dedos.
Olho para o casal ao lado, eles estão conversando, sorrindo, parecem
felizes, coloridos, ela é bonita e ele a olha como se fosse a única do mundo,
meu estômago se revira e sorrio, porque é assim que me sinto quando
Roman olha para mim, como se eu fosse única.
Uma garotinha passa por mim, correndo, seus cabelos ruivos me fazem
pensar em Annika e Demyan, em uma garotinha deles, em um futuro
colorido onde eles estão felizes e bem. Tenho certeza de que eles serão
excelentes pais.
Do outro lado do salão, um casal mais velho come em silêncio e até
mesmo a falta de diálogo deles parece cúmplice, como se um já soubesse
tudo do outro e não precisa de mais nada, só da presença, do calor da pele,
do cheiro tão familiar.
Às vezes, me sinto exatamente assim com Roman, como se
estivéssemos juntos há uma vida inteira e só a sua presença fosse o
suficiente para acalmar meu coração dolorido, minha mente agitada, meus
medos, seu silêncio silencia minha alma perturbada, seu cheiro faz meus
membros relaxarem, seus braços me deixam dormir em paz.
Paz... ele é a minha paz, a minha salvação, a minha paixão.
E não me importo se isso tudo não é normal, porque não somos
normais, somos um amontoado de partes coladas, em tons de cinza, que
juntos fazem todo sentido, mas que separados, não se parecem com nada.
— E aí, já escolheu? — Roman se senta à minha frente me trazendo de
volta à realidade.
— Ah, não, eu estava esperando por você — minto porque na verdade
não consigo escolher o que comer, não depois de tanto tempo comendo só o
que me permitiam, na hora que mandavam.
Entenda, não é que eu não queira ou não consiga, eu apenas não sei
escolher entre tantas opções, então prefiro esperar até que Roman escolha
algo e então aceito.
— Yelena — ele me chama e ergo os olhos do cardápio. — Vamos lá,
escolha algo, hoje eu quero comer o que você escolher.
Olho novamente para o cardápio sem ideia de nada.
— Acho que nunca comi essa omelete. — Aponto para a opção que tem
frango e aspargos. — Parece bom.
Roman se inclina para olhar os ingredientes, observo a cicatriz em seu
supercílio, seria linda se eu não soubesse exatamente de onde ela vem,
mesmo assim, gosto dela, gosto de como ele parece alguém confiante e
durão com ela, gosto de como ele brinca com ela enquanto está assistindo
um filme. Aliás, Roman ama filmes, uma das coisas que descobri sobre ele,
também ama falar sobre histórias que sua mãe contava e ama comer doce,
principalmente pela manhã. Ele ama tomar banho antes de dormir, diz que é
relaxante, ama fazer amor de manhã, mas a verdade é que estamos sempre
fazendo amor, a qualquer hora, em qualquer lugar, sempre que sentimos
vontade, é como o nosso ato de rebeldia, dar a nossos corpos aquilo que ele
quer, a hora que quer, seja comida, banho, sono, sexo.
— Por mim pode ser, pega uma porção de batatas e uma salada, estou
com fome — ele diz e fazemos o pedido.
Roman estende a mão e segura a minha, seus dedos indicadores
brincando com minha cicatriz, os olhos nos meus, tão lindos e apaixonados.
— Viu, não foi tão difícil assim.
— É, você tem razão.
Roman puxa o caderninho de dentro da sua mochila e abre na página
marcada, então ele pega um lápis e faz uma anotação.

Escolher o que vamos comer em um restaurante.

Ele sempre faz isso, começou uma semana depois de finalmente irmos
embora de Temnyy Gorod, depois que eu disse que não seria capaz de
comprar uma garrafinha de água porque eu teria que falar com a atendente
da loja.
Ele esperou quase uma hora até que eu estivesse pronta para me afastar
dele, então eu entrei, comprei a água e quando saí me sentindo a garota
mais corajosa e forte do mundo ele estava lá, apoiado no carro, com Berstuk
ao lado sentado no capô, os dois me observando atravessar a rua, o sorriso
no rosto de Roman era tão grande que poderia quebrar seu maxilar.
“Eu sabia que você era capaz”, ele disse ao me abraçar.
Uma garrafa de água.
Existem pessoas que comemoram vitórias grandiosas, conquistas de
uma vida inteira e eu estava feliz por ter comprado uma garrafa de água.
Depois comemorei por ter escolhido uma roupa, no outro dia, foi por ter
dito não a Roman quando ele quis fazer sexo e eu estava cansada demais
para isso, então por ter conseguido fechar a porta do banheiro para poder
tomar banho.
Na semana passada cortei o cabelo, nessa eu escolhi meu celular, o
mesmo que está tocando nesse momento.
Pego-o em meu bolso e a tela com uma foto minha e de Roman
sentados no capô do carro, Berstuk está no meu colo, o sol está se pondo,
em um degradê de cores no céu, as cores que eu desejo para nós.
— É a Annika — digo antes de atender.
— E aí, como estão as coisas? — ela pergunta do outro lado da ligação.
— Estamos quase chegando a São Petersburgo —digo olhando para
Roman, ele sorri, empolgado, feliz.
— Ah que máximo, não esquece, quero muitas fotos.
Annika é uma boa amiga, fácil, determinada, inteligente e atenciosa,
estabelecemos uma amizade bonita, ela se preocupa conosco, sempre
pergunta como estamos sem ser invasiva, e sempre conta como estão as
coisas por lá.
— Pode deixar, mandaremos.
Conversamos mais um pouco enquanto a comida não chega e nos
despedimos com promessas de que voltaremos para o Natal.
— Diga a Roman que Demyan está com saudades — ela diz e posso
ouvir um grito de longe negando, sorrio e nos despedimos.
Comemos tudo e a omelete não é tão boa como parecia, pedimos a
conta e Roman paga, com o cartão que Demyan deu, ele disse que Dimitri
conseguiu encontrar uma conta do Poço e desviou uma parte do dinheiro
para nós, como parte do pagamento por tudo o que passamos.
É muito dinheiro, o suficiente para que não precisemos mais roubar, ou
fugir, para que possamos sonhar sem medo, para que possamos ser livres.
— Está pronta, senhorita?
— Sim.
— Então vamos, o mundo nos espera. — Ele estende a mão para mim e
a recebo, como naquele primeiro dia e como em todos os outros.
Saímos do restaurante abraçados, como um jovem casal de namorados,
Berstuk que estava à nossa espera, vem correndo ao nosso encontro e
caminhamos em direção ao carro que nos últimos seis meses vem sendo o
nosso lar.
Roman abre a porta do carro e o gato pula para o banco de trás, nos
acomodamos e saímos rumo a mais uma aventura.
— Quando você vai aprender a dirigir? — ele diz e giro o rosto em sua
direção.
— Dirigir?
— Claro, será ótimo dividir a direção com você.
Olho para a estrada à nossa frente, um mundo inteiro de possibilidades,
olho para os pulsos de Roman, em seguida olho para os meus e me pego
pensando em como a liberdade é algo tão poderoso.
— O que foi? — Roman pergunta quando nota que estou em silêncio.
— Estava pensando naquela garota que se matou na sua frente — digo,
embora evitamos falar do Poço na maioria das vezes.
— O que tem ela?
— Nunca descobrimos por que ela fez aquilo.
— Por que está pensando nela agora? — ele pergunta com os olhos na
estrada.
— É que, às vezes, eu fico pensando... —Balanço a cabeça
envergonhada com minha ideia.
— Pensando no quê?
— Nada não, deixa pra lá.
— Yelena, diga o que estava pensando.
— E se foi a Anna, e se ela de alguma forma arrumou um jeito de nos
ajudar, de fazer você perceber que precisava me salvar?
Roman me olha parecendo assustado, como se o que eu disse fosse algo
absurdo.
— Como um recado — ele constata.
— Como uma ajuda.
— Porque ela saberia que, naquele momento, eu não olharia para
nenhuma garota a não ser que ela estivesse precisando.
— Sendo assim, a sua Anna te levou até mim.
Ele sorri, um sorriso emocionado.
— Ela faria isso, com certeza faria.
Me inclino e deixo um beijo em sua boca.
— Porque no fim ela sempre soube que o ladrão na verdade é um herói.
— Nossa história é um conto de fadas então?
— Não sei, não me vejo como uma princesa. — Volto a olhar para os
meus pulsos.
— É, você tem razão, você não é uma princesa, você é uma fada, a
minha fada.
Ele me puxa para junto de si, acariciando meus cabelos com uma mão
enquanto dirige com a outra.
— Então nossa história pode ser um conto?
— Como os da mitologia — ele continua falando enquanto uma música
suave começa a tocar no rádio.
— O gigante e a fada — digo admirando o sol se pondo no horizonte.
— Que tal o guerreiro e a fada?
Me afasto para olhar para ele, relembrando cada uma das cicatrizes que
ele tem, todas as lutas que ele precisou vencer, os vilões que precisou matar,
a masmorra que precisou encontrar e eu, a garota que ele precisou salvar.
É isso, nossa história não é um conto de fadas, nem um romance fofo
como dos filmes, somos diferentes deles, e isso faz de nós dois, únicos.
— Guerreiro? É, acho que gosto disso.
Eu tenho milhões de coisas para escrever aqui, mas nesse momento
estou tão cansada que não consigo lembrar de tudo, óbvio que daqui a
algumas semanas vou me xingar por ter me esquecido de algo.
Então, antes de agradecer, quero dizer para a Cinthia do passado: “Não
se cobre tanto assim, você fez o impossível, dentro das suas limitações de
prazos e tempo, e sério, que orgulho de você. Justo você que achava que era
incapaz de escrever um dark, hoje está finalizando uma história linda. Você
pode tudo! Não se esqueça disso”.
Quando eu e a Fran decidimos escrever essa duologia, eu não fazia ideia
que estávamos embarcando não só no caos de Temnyy Gorod, como
estávamos prestes a viver a insanidade dessa cidade.
Tudo foi muito intenso, muito fluído e muito rápido. Um dia estávamos
pensando: “Ei, que tal escrever um livro juntas?” e no outro estávamos
fazendo pesquisas e mais pesquisas sobre o universo dark, sobre a Rússia,
sobre mitologia eslava. Roteiros, cronogramas, fichas, mapa. A gente fez
um mapa!
Ufa! Como é difícil sair da nossa zona de conforto, escrever sobre algo
que não é comum para mim, dar liberdade para a minha mente criar
situações que eu jamais me imaginei escrever. Me desafiar.
E no meio disso tudo, eu não estive sozinha, minhas betas me apoiaram,
as que já conhecem o gênero, as que nunca leram, as que estavam receosas,
todas elas me abraçaram e falaram “eu confio em você” e seguraram minha
mão, me enlouqueceram e me fizeram ler e reler mil vezes. Mas valeu a
pena.
E vocês não têm ideia do quanto foi importante para mim ter a
confiança delas em meu trabalho, assim como é incrível saber que, desde a
primeira vez em que usei Evanescence na trilha sonora desse livro, minhas
leitoras já compraram My Immortal e Bring me to Life como os hinos do
Rei e da Fadinha.
E para completar teve ela, minha companheira de noites acordadas, de
horas e horas de mensagens, de pesquisas, de marketing e ice, de
bolachinhas Bauducco e memes engraçados, de risadas, muitas risadas,
rindo de nervoso, de emoção, de alegria, de orgulho, de apoio. Obrigada,
loira, foi incrível dividir esses dois meses com você, Demyan e Annika.
E por fim, você que embarcou nessa jornada, que leu até aqui, eu
gostaria de agradecer por ter apoiado meu trabalho. Espero que Roman e
Yelena tenham tocado o seu coração, que eles possam ter te entregado uma
história diferente, especial, mitológica, mas, acima de tudo, uma história de
amor.
Única.
Ahh... antes de sair, não esquece de avaliar, suas estrelinhas são muito
importantes para mim. E, se quiser, vem me contar o que achou da história,
vou amar saber a sua opinião.
Nos vemos na próxima aventura.
Cinthia Freire é uma escritora apaixonada por romances, adora as mil
formas com que uma história de amor pode ser contada e a magia por trás
disso.
Autora de livros que sempre carregam uma carga dramática e um tema
social pertinente, mas que tem como lema o famoso felizes para sempre.
Afinal de contas, essa é a principal missão de um romance: deixar o coração
quentinho.
Se quiser saber mais, siga a autora no Instagram
(@cinthiafreireautora), que ela vai adorar conversar com você.
Conheça outras obras da autora, que estão à venda na Amazon e também
pelo Kindle Unlimited:

SÉRIE SEGREDOS:

1 - Meu erro
1.5 - Minha (conto)
2 - Minha rendição
2.5 - Meu (conto)
3 - Meu refúgio
3.5 - Nosso (conto)
4 - Minha cura
4.5 - Seu (conto)

SÉRIE CARROSSEL DE SENTIDOS:

1. Nuno
2. Ivan
3. Nick

VOLUMES ÚNICOS:

Antes dos vinte


Confie em mim
Só hoje
Um milhão de promessas
Um novo amanhecer
Sobre nós
Ao seu lado: Coletânea de contos da quarentena
1)
Primeiro livro da duologia, escrito por F. Locks.

2)
Início do verão russo e do Ciclo de lutas no Poço.

3)
Kvas ou Kvass é uma bebida tradicional russa, não alcoólica, refrescante, de sabor
levemente ácido e levemente adocicado.

4)
Início do outono russo e do Ciclo de lutas no Poço.

5)
Uma máquina de exercício projetada para simular o movimento de remar em uma
embarcação, proporcionando um treinamento cardiovascular e de força para o corpo.

6)
Deusa eslava associada à beleza, ao amor, à harmonia, à fertilidade e à primavera. Ela é
considerada uma das principais deusas do panteão eslavo e tem uma importância
significativa na cultura e religião dos povos eslavos antigos.

7)
Os syrniki são um prato tradicional da culinária russa e de alguns países eslavos. Trata-se
de panquecas de queijo cottage, que são bastante populares no café da manhã ou como
sobremesa.

8)
Treinamento em que os atletas realizam exercícios ou lutas simuladas, geralmente com
menor intensidade do que uma competição oficial.

9)
Idiota, em russo.

10)
Início do inverno russo e do Ciclo de lutas no Poço.

11)
Figura conhecida na mitologia eslava por transportar as almas dos falecidos do mundo dos
vivos para o mundo dos mortos.

12)
Início da primavera russa e do Ciclo de lutas no Poço.

13)
Lago que fica dentro da floresta.

14)
Meu irmão, em russo.

15)
Pela saúde, em russo.

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