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Capa:
Ellen Ferreira
Ilustração do início:
Luciana Souza
Ilustração do final:
Fera Ilustra
Mapa:
Aurora Karoliny
Revisão e Diagramação:
Carla Santos
Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer
meios existentes – tangiveis ou intangíveis – sem prévia autorização da
autora.
Todos os direitos reservados.
Funcionamento do Ciclo:
Cada Ciclo tem o nome de uma estação.
Verão: Leto
Outono: Padat’
Inverno: Zima
Primavera: Vesna
“Demyan1 e Roman são ruins de verdade, eles não são o tipo que você deve
desejar na vida real.”
F. LOCKS & CINTHIA FREIRE
Olá, leitor.
Antes de continuar sua leitura, gostaria de conversar um pouquinho com
você. É de extrema importância que não pule essa página e nem as
próximas com as notas de autora, para que você tenha uma leitura agradável
e segura.
Se você me acompanha nas redes sociais, já sabe bem o que Kings of
Dark significa, mas se você chegou até aqui porque gostou da capa, por
indicação de alguém ou por qualquer outro motivo, então é importante
saber que se trata de uma duologia Bully/Dark Romance e como tal, contém
elementos que podem causar desconforto em pessoas sensíveis aos temas.
De qualquer forma é importante frisar que os acontecimentos que
definem um livro como Dark e que estão inseridos nessa duologia, não
ocorrem entre os casais principais e sim ao redor deles. Mesmo assim, os
relacionamentos retratados aqui não são nem de longe parâmetros para
serem seguidos na vida real.
Lembrem-se sempre: tudo o que acontece aqui é apenas ficção, e as
autoras não concordam com comportamentos abusivos, possessivos, tóxicos
e que causem qualquer tipo de desconforto físico ou mental.
Há uma nota com todos os gatilhos relacionados ao livro e é de extrema
importância conhecê-los antes de seguir com a leitura.
A duologia Kings of Dark — Demyan e Roman — se passa em uma
cidade fictícia, sendo assim eu e a F. Locks utilizamos elementos baseados
em fatos inseridos através de muitas pesquisas para poder trazer a vocês
uma cidade com elementos distópicos, importantes para a ambientação da
duologia, porém tudo o que envolve Temnyy Gorod é ficção.
Para outras dúvidas que tiverem, podem me procurar em minhas redes
sociais, será um prazer conversar e esclarecê-las.
Um ano antes...
Minha costela dói pra caralho, mas não tenho coragem de me mover,
Anna estava tão sentimental hoje, como se estivesse realmente com medo
de me perder e agora ela está dormindo, agarrada em mim de um jeito que
me faz querer largar tudo e aceitar sua proposta de ir embora, mas então eu
nunca mais poderia sair nas ruas, sempre de cabeça baixa, com a minha
dignidade enfiada no meu rabo até o talo e a culpa por ter quebrado a minha
promessa, sufocando-me, me assombrando à noite, como a maldita Baba
Yaga. Isso é algo que eu jamais suportaria, mesmo que ela nunca
compreenda.
Meu celular vibra na mesa de cabeceira e me assusto porque ele nunca
toca, a não ser que seja um dos Marodery me chamando para uma luta de
última hora, o que não pode ser já que acabei de chegar de uma, ou então...
— O que você quer? — sussurro ao atender a ligação.
— Que você vista uma roupa e saia do quarto da minha irmã —
Demyan diz com a voz divertida.
— Cara, você não tem o que fazer? — resmungo, mas me movendo
devagar para não acordar Anna.
— Exatamente por isso que estou te chamando, vem logo ou vou te
deixar pra trás.
Estou tentado a dizer a ele que vou passar essa, mas desde que o pai
deles morreu em um acidente de carro, há alguns meses, que Demyan vem
sentindo o peso e a pressão de assumir o lugar que ele nunca quis, e se
tornar o novo filho da puta assassino de Temnyy Gorod, assumindo o lugar
do seu pai à frente das Indústrias Petrovich.
Então sei que ele precisa de mim e, como o bom amigo que sou, eu
sempre vou até ele.
— Me dê um minuto. — Desligo a chamada e puxo minha calça e
camiseta, me arrastando até a poltrona onde calço as botas e antes de sair,
dou mais uma olhada em Anna e meu coração se aperta ao observá-la
encolhida no meio da cama, como se estivesse à minha procura, um vinco
de dor se forma entre seus olhos e ela sussurra meu nome.
Olho para a porta mais uma vez e respiro fundo.
— Já volto, radnáya. — Deixo um beijo em sua testa antes de abrir a
porta e sair, deixando a única garota que amei por toda a minha vida,
sozinha.
— Juro que achei que ia ter que te arrastar de lá de dentro — Demyan
diz, no instante em que coloco o pé do lado de fora do quarto de Anna.
— O que houve? — pergunto, encarando o rosto agitado do meu amigo,
ainda sem soltar a maçaneta, como se algo estranho me impedisse de me
afastar dela.
— Nada, só preciso dar o fora daqui. — Ele olha para os dois lados,
como se estivesse sendo observado e, sem pensar, faço o mesmo. — Tô me
sentindo sufocado. — Ele passa o indicador na gola do moletom, puxando-o
um pouco.
— O que você usou? — Tento observar seus olhos ou algo em sua
postura que me dê a resposta, mas esse é o Demyan, sempre agitado
demais.
— Ainda não usei nada. — Demyan puxa a manga da minha camiseta.
— Vamos logo, tá ficando tarde.
Passamos pela enorme propriedade que é a mansão da família
Petrovich, algo que para qualquer outro morador de Temnyy Gorod poderia
deixá-lo impressionado, mas que, para mim, não é nada demais, depois de
vinte anos vivendo por esses corredores, todo o luxo e poder deixa de ser
tão especial e passa a ser natural, o poder faz parte do que eles são. Ao
chegar à porta, Demyan joga meu casaco que está pendurado no armário,
em minha direção antes de sairmos para a noite congelante.
— Caralho, se continuar assim o inverno esse ano vai ser de foder —
ele diz, esfregando as mãos e levando-as à boca enquanto caminhamos até
onde está o seu carro.
— Não, não, vamos andando. — Puxo-o pelo capuz e Demyan
resmunga.
— Tá maluco? Deve estar fazendo uns 2 graus!
— Preciso me exercitar — justifico.
— Sexo não serve? Ouvi dizer que é um excelente exercício de cardio.
— Cale a boca, cuzão, é a tua irmã. — Dou um tapa em seu peito e
Demyan gargalha.
— Não, sério, vamos mesmo a pé? E se eu quiser ir ao Setor Sul?
— Eu sei bem aonde você quer ir, além do mais preciso passar em casa,
o Berstuk está com fome.
— Você e aquele maldito gato feio.
— Qual o problema com o meu gato? Foi seu pai quem me deu ele.
— Não, meu pai queria se desfazer daquela praga e você pegou.
Ergo os ombros enquanto me recordo do dia em que o Sr. Petrovich
chegou em casa com Berstuk ainda filhotinho, choramingando de fome e
frio, Anna correu para longe e, embora Demyan quisesse fazer o mesmo,
ele fingiu que não ligava, mas respirou fundo quando eu disse que o queria
para mim. Desde então, existe uma linha tênue de respeito entre meu amigo
e meu gato, um não gosta do outro, mas ambos sabem que são importantes
para mim. Naquela noite, minha mãe me contou a história do deus da
floresta e do mal e decidimos que esse seria o seu nome. Berstuk, o deus de
Temnyy Gorod.
— Que seja.
Caminhamos por toda a extensão da sua casa, passando pelo jardim,
pelas casas vizinhas, quase todas vazias já que seus proprietários em sua
maioria, estão em Moscou, onde a vida é mais fácil do que aqui, nessa
merda de mundo.
Chegamos a Granitsa, a grande e imponente muralha que separa os
privilegiados do resto de Temnyy Gorod, caso haja algum imbecil nessa
cidade que não tenha compreendido que não é bem-vindo do lado de cá. Ela
foi erguida há muito tempo, antes mesmo de eu ou o Demyan nascer, antes
mesmo dos nossos pais, como uma forma de mostrar ao mundo que ricos e
pobres não se misturam. Ou, para que nós dois possamos mijar nela e rir da
cara dos velhos impotentes que acharam que poderiam me impedir de ir
aonde eu quiser.
Sou o primeiro a subir, ignorando a dor que sinto ao me impulsionar
para cima, conheço cada pedra que compõe Granitsa e sei exatamente onde
encaixar meu pé e onde segurar, ouço Demyan fazer o mesmo ao meu lado
enquanto me xinga por estar obrigando-o a caminhar.
— Sério, não sei o que diabos eu tenho na minha cabeça quando sigo
você.
— Esse é o problema, Dem, você não tem nada nessa merda de cabeça
— provoco-o e salto, caindo de pé, diante da Kupol, a floresta que protege a
muralha e tudo o que tem dentro dela do resto do mundo, como uma grande
e bela redoma, o lugar que usamos para cortar caminho entre a casa de
Demyan e a minha.
Passamos nossa infância aqui, brincando e nos divertindo, construindo
casas de madeira à espera das Baba Yaga, alheios a todas as merdas que nos
cercavam, sempre senti como se, aqui, fôssemos iguais, não havia o mais
rico ou o mais pobre, apenas dois meninos cheios de sonhos e uma
imaginação boa para inventar coisas. Ao longo do tempo, Kupol passou a
ser o nosso refúgio para fazer merda, foder garotas, fumar uns baseados ou
apenas nos esquecer de que vivemos no centro do fim do mundo.
Há alguns anos, Demyan instalou um repetidor de sinal aqui, para que
pudéssemos acessar sites impróprios sem sermos pegos por seus pais, ele
sempre foi bom com essas coisas de tecnologia, na verdade ele é um cara
inteligente demais para perder seu tempo aqui, acabou de se formar na
universidade e tenho orgulho de ver ele passar as etapas que seus pais
esperam de alguém como ele. Não é para mim, nunca fui bom na escola, na
verdade, a única coisa que sou bom de verdade é em brigar, e foder, claro.
— Podemos ao menos ir mais rápido, estou congelando. — Demyan
passa por mim, com os braços cruzados no peito.
— Por que você não vestiu um casaco?
— Estamos no outono, não era para estar tão frio.
— Estamos na Rússia. Quando não está frio aqui?
— Foda, vamos logo, preciso de uma vodka — ele resmunga e
caminhamos lado a lado, por algum tempo. Demyan me conta algo sobre
uma garota que ele está saindo; de nós dois ele sempre foi o mais falante,
talvez por ter mais para contar além de miséria e fome. Não é algo assim
tão legal de dividir e tudo o que eu menos quero é que ele ou a Anna me
olhem como se eu fosse um coitado, porque não sou.
— Ei, tô preocupado com a Anna — admito um tempo depois.
— A Anna? Por que, vocês brigaram?
— O de sempre, ela não me quer no Poço — digo e recebo um olhar
acusatório dele.
Okay, se eu for bem sincero, nenhum dos dois me quer no Poço, mas
Demyan sabe que eu preciso estar lá, não, na verdade, ele sabe que é o
único lugar onde sou mais do que um moleque qualquer, sou o cara que
vem se destacando a cada luta.
— Por que você não faz o que ela tá te pedindo?
— Não posso.
— Qual é, Roman, nós dois sabemos que pode.
— Você sabe que não vou desistir.
— Roman, desculpa, mas já faz muito tempo, não acho que você vá
encontrá-lo — ele se refere ao assassino da minha mãe e respiro fundo para
não ter que dizer algo que não quero.
— Eu tenho um novo patrocinador — confesso e Demyan para de
andar.
— O quê? Como assim?
— Até pensei que poderia ser você.
— Eu? E por que diabos eu ia te incentivar a tentar se matar?
Reviro os olhos, ignorando a verdade em suas palavras, o Poço, a
princípio, nada mais é do que um clube clandestino de lutas onde, até
mesmo as regras que são utilizadas em outros clubes, são descartadas como
lixo lá, a única coisa que é proibida é a morte. Ela é destinada apenas à luta
principal do ciclo, que acontece no fim de cada trimestre.
Nela, o vencedor ganha muita grana, além do status de ser o melhor e o
direito de dar o fora daqui. Só há um problema: para vencer a luta principal
do ciclo, o lutador precisa matar seu oponente; e por mais que eu já tenha
visto uma ou duas vezes acontecer, nunca parei para pensar que, se eu
chegar lá, serei morto, ou me tornarei um assassino.
— Não sei, não consigo pensar em outras pessoas que estejam dispostas
a investirem grana em um moleque como eu.
— Qual é, Roman, todo mundo que te conhece sabe que você é bom de
briga — Demyan diz com convicção.
Nas lutas do Poço existe todo tipo de gente, é o lugar onde assassinos,
estupradores, traficantes e tudo o que de pior que existe no mundo se
encontra, esse é o motivo justificado pelos patrocinadores para permitir que
as atrocidades que aconteçam lá se mantenham por tanto tempo.
Estamos fazendo um favor à sociedade.
Quem sentirá falta de um assassino?
Não há justiça maior do que colocar dois estupradores para se matarem
enquanto o resto de nós assiste sem sujar as mãos.
Mas e quanto a mim? Nunca matei, nem machuquei ninguém. Os
roubos que faço, sempre foram para colocar comida na minha boca e um
teto sob minha cabeça. Sou apenas um garoto, e mesmo assim ninguém me
impediu de me inscrever em uma luta e subir naquele ringue. O que só
prova que eles estão cagando para quem se mete nisso.
— Mas é muita grana.
— Não sou eu — Demyan diz irritado. — Droga, claro que não sou!
— Então quem poderia ser?
— Não faço ideia, algum velho pervertido que gosta de ver tua cara
bonita fodida.
— Idiota! — Soco seu braço e Demyan ri.
— Talvez ele vá te fazer uma proposta depois — ele solta uma
gargalhada e se afasta antes que meu segundo soco o acerte. — Sério, não
faço ideia, não sou eu.
— Tanto faz, você não me diria de qualquer forma.
— Eu não faria isso, Roman, a Anna me mataria.
Voltamos a andar, enfio minhas mãos no bolso da jaqueta enquanto
ouço Demyan gemer de frio.
— Ganhei uma boa grana ontem. — Chuto uma pedrinha do meu
caminho.
— Sério?
— Quer dizer, não é nada demais, mas vai pagar meu aluguel por alguns
meses.
— Caralho, tanto assim? — ele pergunta e balanço a cabeça.
— Imagina quanto eu não ganharia se chegasse à final do ciclo.
— Ou poderia perder.
— Nunca vamos saber, não vou me inscrever.
— Não?
Balanço a cabeça enquanto me recordo da forma como Anna me olhou
hoje.
— Tua irmã vai arrancar minhas bolas antes de chegar ao Poço.
— Ela te ama, você sabe.
Amor, não tenho tanta certeza disso, às vezes acho que Anna não me
ama, não como eu a amo. E, embora eu nunca vá admitir, me sinto tão
jovem e imaturo. Só fiquei com uma garota a vida inteira e, às vezes, sinto
que estou agindo sem pensar, mas então, quando imagino minha vida sem
ela, sem a garota dos sorrisos fáceis, das histórias sobre o mundo real, tão
inteligentes, me sinto perdido, assustado, solitário.
— É, tô ligado — digo, me concentrando no caminho à nossa frente. Já
saímos da floresta, mas ainda está escuro o suficiente para que não
possamos enxergar quase nada. A iluminação no Setor Oeste, onde moro,
assim como em toda a cidade é escassa e geralmente não dura a noite
inteira.
— Tem certeza de que aquele gato não pode esperar? Eu tô congelando
e ainda vamos atravessar a cidade — ele resmunga quando chegamos ao
conjunto habitacional onde moro.
O Gigante Laranja é o principal bairro residencial de Temnyy Gorod, a
grande maioria dos habitantes mora em um dos quase quarenta edifícios que
compõem o Gigante Laranja, como é conhecido pelos moradores. Eu sou
um deles, moro no bloco 24, quarto andar, apartamento 418, desde que
nasci, e mesmo depois que minha mãe se foi, não consegui ir embora,
apesar das inúmeras tentativas de Demyan e Anna de me fazerem ir
definitivamente para a casa deles. É bom ter um lugar para chamar de casa,
onde tenho memórias, onde posso ser Roman Stepanovich, o garoto pobre e
problemático que não tem medo de nada, nem de ninguém, que não pensa
duas vezes em roubar, brigar, lutar.
E também tem Berstuk, o meu companheiro e, às vezes, meu animal de
estimação. O terror da vida de Demyan, que o detesta a ponto de preferir
ficar no frio do que ter que enfrentar a cara feia do meu felino.
— Tem certeza de que vai ficar aí? — encaro seu rosto azulado pelo
frio.
— Tô de boas, vai logo. — Demyan se senta no balanço enferrujado do
parquinho infantil, que fica em frente ao meu prédio, encolhendo-se de frio
e sem pensar duas vezes, removo meu casaco e o entrego. — O que você tá
fazendo? — pergunta quando estendo a peça de roupa para ele.
— Te poupando de morrer de hipotermia.
— Mas e você?
— Eu tenho outro lá dentro, pega logo. — Jogo o casaco no colo do
meu amigo e entro no edifício, frio e mofado. Subo as escadas correndo e
quando chego a minha porta, estou ofegando. Me inclino sobre o vaso que
está aqui desde antes da minha mãe morrer e retiro a chave de dentro dele, a
planta segue viva, não faço ideia do motivo, já que eu nunca nem mesmo
lembro de colocar água nela, mesmo assim ela segue firme, resistindo a
dureza de se manter viva em um lugar que cheira a mijo e mofo. Alguém no
fim do corredor abre a porta, só um pouquinho para ver quem está
chegando a essa hora.
— Sou eu, o Roman — digo para o que imagino que seja a moradora
mais antiga desse andar e ela bate a porta, sem nem mesmo falar um oi. —
Boa noite para você também — brinco ao entrar, Berstuk está à minha
espera, parado do outro lado da sala, sem a luz elétrica tudo o que vejo são
seus olhos brilhando como magia no escuro. — Ei, companheiro, sentiu
minha falta? — Vou até onde ele está e o gato ronrona quando faço carinho
em seu pescoço enrugado. Berstuk é um Sphynx, uma raça esquisita que
mais parece algo que deu muito ruim, mas que ninguém teve coragem de
apagar, e, de acordo com Anna, vale uma grana boa, caso eu o tivesse
vendido, mas minha mãe teve pena do bicho e acabamos ficando com ele.
Hoje não consigo sequer imaginar a vida sem a companhia silenciosa dele.
Demyan diz que é como se fôssemos uma coisa só, onde estou, ele está, e
gosto disso, da ideia de que temos esse tipo de conexão bizarra.
Ligo a luz da cozinha, ela pisca algumas vezes antes de acender, há uma
barata na pia e outra no canto do chão, estão tão gordas e preguiçosas que
nem tentam correr quando as mato.
— Alguém poderia ter me dado uma mão aqui, né? — Olho para o meu
gato que está parado na entrada da cozinha me olhando como se estivesse
mesmo pensando em me responder. — Baratas em casa, sério? Tem ideia do
que minha mãe faria se visse algo assim? — Pego o sachê de comida da
caixa que fica no armário de cima, e que roubei no mês passado, ainda
faltam quatro até que eu precise me preocupar com o que Berstuk comerá,
mas hoje não quero pensar nisso.
Coloco a comida do gato na vasilha e ele me observa por um tempo
antes de se aproximar, ele é desconfiado e sabe que não estou aqui para
dormir.
— Pode comer, prometo que vou voltar. — Passo a mão na cabeça dele
e vou até o meu quarto. No caminho dou uma olhada em Demyan lá
embaixo, ele está balançando para lá e para cá, já vestiu o casaco e agora
está fumando. De onde estou ele quase se parece com uma assombração, o
barulho do metal enferrujado deixa tudo com um ar ainda mais
fantasmagórico.
Abro o armário e puxo o casaco novo que ganhei da Anna no meu
último aniversário, é bonito, pesado e quente, o suficiente para que eu tenha
passado o último inverno aquecido. Ignoro o fato de que minhas roupas
estão cada vez mais escassas e puídas e que preciso de grana se quiser ter o
que vestir no próximo verão. O que me faz pensar no Poço, no meu
investidor misterioso e em tudo o que poderei fazer se eu ganhar o ciclo.
Nunca mais precisarei roubar para comer, nem aceitar presentes da minha
namorada, nunca mais matarei baratas ou passarei frio.
E tudo o que eu preciso fazer é brigar. Algo no qual sou bom, muito
bom.
Smorodina é o único lugar onde se pode ter um pouco de diversão em
Temnyy Gorod, situado entre o Centro e o Setor Leste, ele fica em um
espaço que um dia foi uma escola, mas que agora é apenas um punhado de
ruinas e paredes que mal se sustentam em pé. A única parte que sobrou, foi
o antigo anfiteatro, onde nesse momento, estou tentando desviar de pessoas
e chegar ao bar.
— Me vê uma vodka! — Demyan grita para a garota bonita que está do
outro lado do balcão.
— Para mim uma Kvas3 — peço e Demyan me olha estranho.
— O que deu em você? Vai mesmo me deixar beber só?
— Não tô a fim — confesso, mas meu amigo ignora meu pedido e se
vira para a garota bonita. — Duas vodkas. — Ele mostra dois dedos para o
caso dela não ter compreendido e a garota sorri como todas fazem na
presença dele.
Demyan sempre teve uma facilidade enorme em sair com as garotas,
claro que uma parte é por causa do seu sobrenome, todos aqui sabem quem
é ele, o herdeiro das Indústrias Petrovich. Mas mesmo que ele fosse um
morador do Setor Oeste, ainda assim conseguiria a garota que quer, elas
gostam da sua cara de folgado, do seu jeito desleixado, como se ele
estivesse sempre procurando confusão, sem medo de nada, nem de
ninguém, o verdadeiro príncipe de Temnyy Gorod.
— Teu problema é só a Anna enchendo o teu saco ou tem mais alguma
coisa? — ele pergunta um tempo depois, enquanto tomamos a segunda dose
e observamos as pessoas se espremendo na pista enquanto IC3PEAK
explode Bad Night nas caixas de som com qualidade ruim.
— Não sei, acho que tô cansado, apanhei pra caralho ontem — digo ao
me proteger quando um cara passa por mim.
— Eu vi — Demyan diz, observando as pessoas à nossa frente.
— Viu? Como assim?
— Eu fui lá.
— Por quê? — pergunto confuso.
— Garantir que teu corpo não seria jogado no Poço.
— Isso não vai acontecer — digo com uma convicção que nesse
momento não tenho.
— Espero que não. — Ele vira o resto da bebida e encara o copo vazio.
— Não vá mais lá — exijo.
— Você não manda em mim, não sei se sabe.
— Foda-se, não te quero lá.
— Também não te quero e mesmo assim você continua indo.
— Eu me desconcentrei ontem, por isso apanhei, deve ser por sua causa
— confesso e Demyan se vira para olhar para mim. — Me deu azar.
— É sério isso? Vai se foder, Roman, eu estava longe, você não me
veria mesmo se soubesse que eu estava lá.
— Eu senti.
— Nem começa com essas bizarrices.
— Não vá mais, estou falando sério.
— Achei que você tinha dito que não iria mais lutar.
Abro a boca para dizer que vou, mas então me recordo de Anna
chorando enquanto fazíamos amor e desisto.
— Não vou, por isso que não quero que você vá, lá não é lugar para
alguém como você.
— Acho que eles não ligam muito para a grana na carteira de quem
entra no Poço — Demyan diz com um ar brincalhão.
— Não volte lá, Demyan, agora que eu não estarei mais, não há motivos
para você se arriscar.
— Não vou — ele diz, mas algo em seu rosto me deixa agitado, como
se eu soubesse que ele não tem intenção de manter sua palavra.
— Vamos embora, já deu por hoje. — Ameaço me mover e Demyan
segura meu braço.
— Espera mais um pouco, preciso trepar e aquela gostosa sai em vinte
minutos.
— Vinte minutos? Porra, Demyan.
— Qual é, você tá de boa, pode esperar.
— Certo, vinte minutos.
Demyan vai até o balcão e pede mais duas vodkas que tomamos em
silêncio, estou agitado e Demyan parece quase fora de si, como se algo
muito esquisito estivesse nos rodeando. Também estou com uma sensação
esquisita, como se estivéssemos sendo observados por alguém, algo que não
é tão incomum já que eu vivo me metendo em confusão.
A garota sai antes dos vinte minutos e leva Demyan para os fundos do
Smorodina, onde eles ficam por cerca de dez minutos, o tempo suficiente
para uma rapidinha de pé, sem tirar nenhuma peça de roupa. Quando eles
voltam, ela se parece exatamente como alguém que acabou de ser fodida
nos fundos de um bar e meu amigo parece mais tenso do que quando foi.
— Vamos — Demyan diz quando se aproxima, já puxando um cigarro
do bolso e colocando na boca.
— O que houve? Não deu conta da garota? — Olho para trás onde ela
ficou, apoiada no balcão, conversando com outra garota. — Ela parece
satisfeita.
— Não é isso, eu tô com um sentimento esquisito. — Ele esfrega o
punho no peito, massageando o lugar enquanto coloca o cigarro na boca.
— Ai, caralho, tá passando mal?
— Não deve ser nada, só preciso dormir, acho que bebi demais. —
Demyan estica o pescoço de um lado para o outro como se assim pudesse se
livrar do que seja lá o que o está incomodando.
— Certo, vamos embora.
— Porra, Roman! — Ele para de andar e me olha feio.
— O que foi?
— Por sua culpa agora vamos ter que andar tudo isso de volta.
— Podemos voltar lá pra dentro, tenho certeza de que a garota do bar
arrumaria um lugar para você curar sua ressaca — provoco-o, mas Demyan
com frio e de ressaca é a combinação mais insuportável que conheço.
São três e meia da tarde e a noite já caiu sobre Temnyy Gorod. Até o
fim do ano será assim, cada dia mais escuro, até que a noite se aposse da
cidade, derramando sobre ela a sua fúria gelada, deixando-nos em uma
escuridão sem fim, é a chamada Noite Longa. Puxo o zíper do meu agasalho
até o queixo quando saio para a rua deserta e escura, o vento gelado toca
meu rosto como uma amante ciumenta que não aceita me dividir com mais
ninguém, minha pele arde e meus olhos lacrimejam conforme caminho de
olhos no chão, sinto minhas bochechas queimadas, lembro de como Anna
odiava vê-las assim, sempre vermelhas e machucadas pelo frio, ela tentava
me fazer parar de andar por aí com o rosto descoberto, mas sempre gostei
de sentir o frio em minha pele.
Hoje não importa mais, ela não está aqui para reclamar da pele áspera,
nem para cuidar das queimaduras, nunca mais vai se importar comigo, se é
que algum dia ela se importou. Se me amasse de verdade, não teria feito o
que fez. É o que digo para mim sempre que a dor da saudade ameaça me
machucar.
Ela nunca se importou de verdade, nem comigo, nem com Demyan,
nem com ninguém.
Olho em volta e avisto um grupo de homens escondidos em um beco, a
cidade está cada dia mais vazia e solitária, as gangues dominam os
territórios, assombrando os moradores, tomando para si tudo aquilo que eles
querem: roupas, comida, mulheres. É perigoso para uma garota andar
sozinha por Temnyy Gorod. Sempre foi, mas ultimamente o número de
garotas desaparecidas vem aumentando.
Viro à esquerda em uma viela perto do Gigante Laranja. Há um grupo
de garotos na esquina, fumando e falando baixinho, eles param quando me
veem, como se estivessem prestes a me assaltar, mas então me reconhecem
e acenam.
— E aí, Roman. — O mais velho dos três ergue a mão em um aceno
animado demais. Movo a cabeça levemente, mas não paro de andar, não
quero conversar nem mesmo com eles.
— Ei, é verdade que você vai participar do Padat’? — ele repete a
mesma pergunta que me fizeram antes, o que me faz pensar que alguém está
espalhando boatos sobre a minha inscrição por aí, algo que não é comum, já
que estamos falando do Poço.
Continuo andando, ouço os meninos começarem a falar sobre o Padat’.
O mais velho deve ter por volta de quatorze anos, mirrado como qualquer
adolescente que cresce com uma quantidade ínfima de nutrientes, ele diz
que vai se inscrever daqui a dois anos. Tento imaginar o que esse garotinho
já fez para merecer ser aceito naquele lugar, eu tinha pouco mais que
dezoito quando entrei naquele lugar pela primeira vez. Arrogante e teimoso,
levei uma surra que me deixou de cama por uma semana e me ensinou que
o Poço não é para qualquer um. Afasto qualquer pensamento sobre garotos
fracos brincando com a morte, não é da minha conta.
Chego no lugar marcado e bato o punho na porta de metal, o barulho
reverbera pelas escadas e ouço alguém abrir a janela acima de mim, é
rápido e só o suficiente para que ele me veja antes de descer e abrir a porta.
— Está atrasado — o homem de reputação duvidosa, com uma voz
esganiçada de quem fumou a vida inteira, diz batendo a porta com força
assim que entro.
— Foram só cinco minutos.
— Só preciso de cinco minutos pra colocar um filho na boceta de uma
garota — ele se gaba e fico em silêncio enquanto o sigo escada acima e
imagino que cinco minutos não dá tempo sequer dele encontrar seu pau
debaixo de tanta gordura.
O lugar ainda está do mesmo jeito que me recordo da noite em que vim
aqui pela primeira vez, bêbado, chorando e machucado. Havia acabado de
voltar do enterro de Anna e não estava sabendo como lidar com a dor que
estava sentindo, eu precisava fazer alguma coisa, então enchi a cara,
arrumei uma briga e acabei vindo parar aqui. Não me lembro de muita coisa
daquele dia, mas o homem carrancudo que mais parece um gibi de dois
metros de altura me segurou pela gola do moletom e me jogou para fora do
seu estúdio.
“Só volte aqui quando estiver limpo.”
Faz quase três meses desde aquele dia, dois desde que fiquei
definitivamente limpo e parei de brigar, e desde então, não tem uma noite
sequer que eu não passe sem me lembrar de suas palavras.
— Você cresceu, garoto — ele diz, cruzando os enormes braços em
frente ao peito e olha para o meu corpo.
— Tenho me exercitado.
— Imagino o quanto para ter ficado desse jeito em tão pouco tempo, o
que tá usando? — Ele bate o punho em meu peito.
Ódio.
— Nada. — Jogo a mochila no chão e começo a abrir o zíper da blusa.
— Ei, o que está fazendo? — Ele aponta o queixo para mim.
— Você disse: “Volte aqui quando estiver limpo”. Eu estou limpo, agora
você faça o seu trabalho. — Tiro o agasalho e jogo em cima da mochila.
— Pelo visto, você continua do mesmo jeito.
— Não sei do que você está falando. — Olho em volta. — Onde eu me
deito? — pergunto e ele balança a cabeça e aponta para a maca no centro do
estúdio.
— Não sou seu pai, não tô aqui para dar conselhos.
— Exatamente. — Puxo a camiseta pela nuca e a jogo em cima do
agasalho, o ar gelado faz minha pele se arrepiar e, embora eu saiba que
tenho um bom físico, me sinto pequeno no meio desse lugar escuro, repleto
de arte duvidosa espalhada por todas as paredes e bugigangas por todos os
lados.
Se Demyan estivesse aqui, ele diria para darmos o fora, que ele me
levaria em um lugar legal onde eu não corro o risco de contrair uma doença
qualquer, mas ele não está, aliás, não nos falamos desde o dia do enterro,
depois de trocarmos ofensas e chorarmos. Ele me acusou de ter deixado
Anna angustiada, como se ela tivesse feito aquilo porque era insuportável
pensar em me perder, eu o acusei de ser um irmão de bosta que não deu
atenção ao que ela estava fazendo, joguei na cara todos os remédios que ela
estava usando e ele jogou na minha cara o Poço.
Foi horrível.
Até hoje ainda dói pensar naquele dia.
— Já podemos começar? — Olho para a maca, um lençol sujo está
sobre ela, provando que o lugar, embora escondido, é bastante
movimentado.
— Deita aí. — Ele abre uma gaveta e tira um par de luvas enquanto
faço o que ele pede. O homem acende uma lâmpada bem em cima da maca,
iluminando o meu corpo e se aproxima. — O que vai querer?
— A mesma coisa que pedi aquela noite.
— Ainda se lembra? — ele ri, com sua risada rouca e feia.
— Cada segundo — minto.
— Certo, cadê o desenho?
Puxo a folha gasta do bolso da minha calça e entrego para ele sem fazer
contato visual. Não preciso olhar para ele, conheço cada traço daquele
desenho, cada linha, lembro exatamente do dia em que ela o desenhou,
enquanto eu a provocava e ela sorria.
Um dia bom, que tratei como se fosse apenas mais um, sem saber que se
tornaria uma lembrança tão dolorosa.
— Bom traço, ela tem talento — ele diz encarando a folha como se
soubesse de quem é. Imagino que ele deve conhecer traços melhor do que
eu e ignoro o fato dele ter dito “ela” ao invés de “ele”.
— Tinha — corrijo-o e ele desvia o olhar do desenho para mim. Não há
nada a ser dito e agradeço por isso, não consigo falar de Anna com ninguém
e pela forma como esse estranho me olha, sinto que, de alguma forma, ele
conhece esse tipo de dor.
— Vamos lá, onde vai ser?
— Aqui. — Espalmo a mão no lado esquerdo do meu corpo.
— Quer tomar algo? Tenho uma vodka barata, mas ajuda a controlar a
dor.
— Não preciso.
— Vai demorar.
— Estou com tempo.
— Certo, durão. — Ele balança a cabeça e se afasta para preparar o
material que será usado e, pelas próximas seis horas, me deixo levar para
aquela noite, para os seus lábios beijando minhas costelas machucadas, para
o seu corpo preguiçoso debaixo do meu, para os sons que ela fazia toda vez
que eu metia fundo, seus dedos em meus cabelos, suas palavras...
Promessas podem ser perigosas.
Quando tudo termina não há uma parte que não esteja doendo, seja pela
manipulação ou pelo tempo deitado nessa maca. Ele geme e se estica
soltando palavrões enquanto me sento e olho para o meu corpo. O desenho
contrasta com a minha pele pálida, vermelha nas extremidades e dolorida.
Ele me explica como cuidar da tatuagem e me entrega um pote de algo
gosmento.
— Passe todos os dias, vai ajudar a curar.
— Valeu. — Me levanto e me visto, sentindo a pele sensível com o
toque do tecido, pago o valor que ele cobra, é o equivalente a dois meses de
aluguel, mas não ligo, me despeço e, antes de sair, ele me chama e me viro
para olhar para ele.
— Não caia, entendeu? Não importa o que acontecer, não se deixe ser
derrubado. — Sei que ele está se referindo ao Poço, mas não digo nada,
apenas assinto e saio. Se tudo der certo, até o fim do Padat’ estarei longe
daqui, desse bairro, dessa cidade, desse país, de tudo o que me lembra os
irmãos Petrovich.
Seja para o bem ou para o mal.
Não consigo treinar no dia seguinte, meu corpo inteiro dói e tento não
pensar em infecção ou qualquer merda do tipo, mas é meio difícil quando
tudo parece quente e esquisito dentro de mim. Cedo ao medo e acabo
passando a gosma fedida que o tatuador me deu e engulo dois analgésicos
vencidos que encontro na antiga caixa de medicamentos da minha mãe, vai
ter que servir.
Berstuk está estranho comigo, mais do que o normal, ele não se
aproxima, me olha como se não me reconhecesse e demoro a compreender
que está sentindo minhas emoções, mas é isso. Ele está assustado com o que
vê e não o culpo, também estou.
Acordo tarde e faminto, então vou até o armário e pego o que acho na
despensa, não é muito, mas dá para forrar meu estômago dolorido. Como
em pé, apoiado na bancada, enquanto o gato me observa como se quisesse
me dizer algo. Desvio o olhar do felino e encaro a janela, o balanço está
vazio e assim vai ficar nos próximos meses até que a neve se vá. Não é nada
inteligente se aproximar de objetos de metal com as temperaturas
despencando.
Lembranças de mim e Demyan surgem, somos crianças de novo e
estamos desafiando um ao outro a colocar a língua no corrimão, quase nos
demos mal naquele dia, se não fosse por Anna que nos salvou de perdermos
uma parte importante da nossa anatomia. Sorrio com a lembrança da sua
gargalhada, com a voz irritante de Demyan, com um passado que não volta.
Agora tudo o que resta são memórias, uma casa escura e fria, um gato
que me olha como se eu estivesse fazendo algo errado e um buraco em meu
peito que sinto que nunca vai sarar.
Respiro fundo e jogo o prato vazio na pia, em cima dos outros que
continuam empilhados à espera de que sejam lavados, não será hoje.
— Quer vir fazer algo de útil além de ficar me olhando com essa cara?
— pergunto para Berstuk, que sequer se mexe. — Foi o que pensei.
Saio da cozinha e, antes de entrar no quarto, olho mais uma última vez
pela janela, talvez, lá no fundo, alguma parte tola ainda espera ver Demyan
naquele balanço, tremendo de frio porque esqueceu o casaco e não tem
coragem de subir porque, por mais que não admita, tem medo de Berstuk.
Não faço a menor ideia do que estou fazendo, apenas movo minhas
botas pesadas pelo caminho que conheço como a palma da minha mão,
passando pelos mesmos lugares, fazendo o mesmo trajeto durante uma vida
inteira, caminhando pela cidade adormecida, coberta pela umidade de mais
um dia frio, a cabeça baixa, as mãos cobertas pelas luvas estão fechadas em
punho, talvez em um modo de proteção, ou, talvez, um modo de impedir de
dar meia-volta. O capuz me protege da garoa fina que começa a cair, de
olhares curiosos e perguntas que não tenho a menor intenção de responder.
Sinto o coração pesado em meu peito, como se estivesse carregando um
fardo grande demais, batendo devagar, um pulsar estranho, assustador.
Sinto a grama molhada sob meus pés, macia e familiar, sinto o ar
escapar, sinto a tatuagem pulsar em minha pele, como se estivesse gritando,
implorando para escapar do corpo que agora habita, corpo esse que se
arrepia com calafrios e me sinto doente, de um modo que sei, mesmo que
ninguém me diga, que nunca vai sarar.
Quando paro na frente dela, baixo o capuz e ergo o rosto, ainda está do
mesmo jeito que vi pela última vez. Meus olhos encaram as palavras
entalhadas no mármore, as gotículas de água começam a molhar meu rosto,
me dando o alívio de poder deixar que um pouco da minha angústia deixe
meus olhos enquanto observo-a sorrir para mim. Sem que eu me dê conta,
meus lábios se curvam em um sorriso triste.
— Olá, moy radnáya. — Minha voz soa rouca, áspera, como se minha
garganta estivesse cheia de areia e me obrigo a engolir antes de continuar.
— Desculpe não vir antes, é que... — Encaro o chão sob meus pés, me
obrigando a dar mais um passo, me aproximar um pouco mais. — Eu estive
ocupado — confesso, ao me sentar no banco à frente da sua lápide. — Na
verdade, eu... — respiro fundo e sinto que o ar não enche meus pulmões. —
Vim aqui para te mostrar algo, algo que prometi a você que um dia faria. —
Puxo o casaco dos meus ombros e retiro-o com cuidado, ele foi o último
presente que Anna me deu e não quero sujá-lo. — Espero que você goste,
radnáya. — Puxo a camiseta ignorando o frio que atinge minha pele quente
e me faz respirar fundo. — Veja, eu pedi para que ele fizesse exatamente
igual, aqui, aquele traço que você errou... — Passo meu dedo pelo desenho,
sentindo um orgulho imenso de ter suportado a agonia de ser tatuado por
seis horas. — Tinha que ver a cara do sujeito quando viu teu desenho,
radnáya, ele ficou igual criança, babando. Disse que você tem talento, mas
eu já sabia, eu sempre disse isso a você, lembra? — Respiro fundo,
relembrando várias vezes em que ela revirou os olhos para mim quando
disse isso. — Eu sempre soube. — Baixo os olhos novamente para o lugar
onde ela está deitada em seu sono eterno. Quero acreditar em todas as
coisas boas que falam sobre a vida depois da morte, quero imaginar que
Anna está melhor que eu, que ela está sorrindo seja lá onde ela estiver e
que, nesse momento, ela pode me ouvir. — Você gostou? — Ergo os olhos
e encaro a fotografia à minha frente, é a minha favorita e agradeço a
Demyan por ter me deixado escolher, embora eu tenha certeza de que ele
não teria condições de fazer muito no estado em que estava.
Fui eu quem tirei essa foto, ela está sorrindo para mim, o cabelo caindo
no rosto de um jeito tímido, mas o lábio entre os dentes me diz exatamente
o que ela queria. E eu dei tudo o que ela quis, por todo o tempo que pude.
Respiro fundo e baixo a camiseta, uma onda de tristeza me abate e
desvio o olhar porque é doloroso demais pensar que ela nunca mais vai
sorrir assim para mim, do jeito que ela sempre fazia antes de me beijar e
arrancar a minha roupa.
— Sabe, tá difícil — admito, puxando a garrafa de vodka que roubei na
noite passada e que trouxe dentro do casaco e abro-a. — Tá difícil pra
caralho, Anna.
Pego os dois copos que trouxe de casa, encho um para mim e um para
ela e o coloco sobre seu túmulo.
— Às vezes, eu te odeio tanto que me esqueço de como é te amar —
digo enquanto bebo uma dose e me sirvo de outra. — Esses são os melhores
dias, porque te odiar me ajuda a levantar da cama e seguir em frente —
confesso sentindo-me mais leve. — Eu tenho odiado muita coisa
ultimamente, você ficaria surpresa se me visse.
Tomo mais uma dose, meu corpo começa a aquecer e encho o copo pela
terceira vez.
— Tipo, eu odeio meu cabelo, acho que vou cortar essa merda, eu nunca
gostei, você nunca me deixava cortar, mas agora você não pode mais me
impedir, né? — As palavras saem carregadas de raiva. — Eu odeio esse
casaco, ele me pinica e é caro demais, não combina comigo, mas o porra do
Demyan não devolveu o meu outro, então tenho que usar este — minto
porque, na verdade, eu o odeio porque me faz lembrar dela. — Odeio ficar
em casa, eu quase não paro mais lá, as baratas estão adorando e o Berstuk tá
quase me matando. Sério, qualquer dia ele vai me atacar enquanto durmo...
— paro de falar e me concentro na chuva caindo agora com um pouco mais
de força na grama. — Ele tá sentindo a sua falta, eu sei porque ele não me
cheira mais, igual fazia quando eu voltava da sua casa. Ele sabe que não
tenho mais nada de bom e não se aproxima de mim. — Suspiro. — Odeio
aquele filme que a gente via sempre juntos. Odeio dias de sol. Odeio falar
com as pessoas, acho que a última conversa decente que tive tem uns dois
meses e foi com uma mulher que estava procurando o prédio onde a filha
morava. — Sorrio, mas é um sorriso triste. — Odeio ficar sozinho, Anna,
odeio tanto que passo os dias treinando naquela espelunca só para não ter
que voltar para casa. Odeio não dormir enterrado dentro de você, como a
gente sempre fazia. — Esfrego o meio do meu peito — Odeio seu irmão,
seu pai, sua mãe, essa casa maldita. Odeio esse bairro, odeio aquele muro
ridículo, odeio essa cidade, odeio ter nascido, odeio que você não me
deixou cair de cabeça no chão, quem sabe eu não teria morrido ali mesmo e
nos poupado de tudo isso?
Falo sem parar, sentindo a raiva borbulhando dentro de mim, enquanto
observo a água se misturando com a vodka em seu copo e me perco nas
doses que tomo.
— Não sou mais o Roman que você conheceu. — Olho para meu corpo,
para os músculos que adquiri nos últimos meses e penso em tudo o que fiz
para conquistá-los. — Eu nem sei mais quem sou.
Sorrio, me sentindo um pouco leve, talvez de tanto falar, ou talvez a
vodka seja boa, mas quero acreditar que seja porque ela está me ouvindo.
— Eu ainda não consigo entender o que aconteceu — confesso
encarando a garota sorridente na foto. — Por que você fez aquilo, Anna?
Por que você me deixou? O que foi que eu te fiz para você me odiar tanto?
— pergunto desejando com todo o meu coração que os céus me deem uma
resposta. — Por que você fez isso comigo? — Baixo os olhos para o copo
em minhas mãos, mas tudo começa a ficar turvo, meio confuso. — Cara,
você tem ideia do que fez? O Demyan, meu Deus, teu irmão morreu junto
com você. — Sinto o aperto em meu peito aumentar. — Porra, Anna, por
que diabos você foi uma vadia tão estúpida?
Ergo o copo e jogo-o na lápide, o barulho do vidro se espatifando faz a
dor em meu peito aumentar e meu equilíbrio ruim me faz balançar.
— Sua covarde de merda! — grito, com tanta força que caio no chão.
— Sua cretina maldita, eu te odeio — continuo gritando, desejando assim
aliviar a dor em meu coração. — Eu odeio você, Anna, eu te odeio — digo,
sentindo as lágrimas escorrendo por meus olhos. — Eu te odeio, porque não
consigo aceitar que você não está mais aqui — desabo, deitando-me sobre
ela, desejando poder arrancar toda essa terra e me juntar ao seu corpo. —
Vem me buscar, Anna, me leva com você — choro, sem me importar com
nada, sem saber o que estou fazendo. — Eu tô com saudades, Anna, me
leva com você, eu não quero mais ficar aqui sozinho.
Fecho minha mão em punho, puxando a grama com força, sentindo-a
pinicar minha bochecha.
— Vem logo, não demora — sussurro, me sentindo exausto. — O
Padat’ vai começar, promete que você vai me buscar? — peço, fechando os
meus olhos, deixando que a chuva encharque minhas roupas, minha pele,
meu coração. — Promete para mim, radnáya. Promete, por favor...
A primeira coisa que noto ao abrir os olhos é que estou vivo e uma onda
de decepção me invade ao constatar isso.
A segunda é que não sei onde estou, não é mais naquele quarto, nem em
nenhum outro lugar que já estive. Forço-me a levantar e sinto o corte em
meu supercílio arder, é a única coisa que me parece real nessa noite caótica.
— Ele acordou — alguém diz e Arkady se aproxima.
— Graças a Deus, garoto, você me assustou — suspira, parecendo
aliviado enquanto passa um lenço em cima da boca. — Como está se
sentindo?
— Onde ela está? — Olho em volta sem saber ao certo o que estou
procurando.
— Roman — me chama.
— Onde a garota está? — exijo ao me levantar da cama e andar até o
outro lado do quarto.
— Infelizmente ela não resistiu. — Ele balança a cabeça como se
realmente se importasse com algo. Porra, ele administra esse lugar há anos,
com certeza não dá a mínima para quem morre e quem vive no Poço.
— Não estou perguntando dela, onde está a outra garota?
— Que outra garota? — Ele parece confuso, mas não sei mais o que é
real ou fingimento.
— A morena, da semana passada.
— O que tem ela?
— Aquela menina disse que, se eu saísse, vocês iriam matá-la.
— Pelo amor de Deus, aquela menina estava transtornada, você viu o
que ela fez.
— Então onde ela está?
— Não sei, deve estar por aí, por quê?
— Eu quero vê-la — ameaço sair, mas Arkady se coloca na minha
frente. — O quê, está me prendendo?
— Vamos com calma, garoto, lá fora naquele ringue você até pode ser
rei, mas aqui dentro você é apenas um menino que está me arrumando
problemas.
— Problemas? Eu só te fiz uma pergunta, uma garota acabou de se
matar na minha frente, pode ter certeza de que uma pergunta é o menor dos
seus problemas — me exalto e ele esfrega a base do nariz.
— Roman... não dificulte minha vida.
— Responda a porra da minha pergunta.
Arkady respira fundo e ergue os olhos para mim e tudo o que eu vejo é a
fúria que esconde por trás da sua fachada de homem de negócios, ele está
incomodado com minhas perguntas e eu nem ao menos comecei a falar.
— Tudo bem, eu vou buscá-la, mas você tem que me prometer que não
vai sair daqui, tudo bem?
Abro a boca para dizer que não sou seu empregado para obedecer suas
ordens, mas se existe uma coisa que a vida nas ruas me ensinou é que se eu
quero algo, preciso mostrar que sou digno de confiança.
— Claro, ficarei aqui. — Sento-me na poltrona e estendo meus braços
por ela, como se estivesse relaxado e confiante. Arkady me observa por um
instante, antes de sair balançando a cabeça como se fosse apenas um
capricho de moleque. Que se foda, eu quero ver aquela garota.
— Já volto. — Ele abre a porta enquanto coloca o celular no ouvido. —
Preciso do Zakhar, onde ele está? — ele diz ao telefone. A porta se fecha
antes que eu possa ouvir qualquer coisa.
Fico um instante apenas encarando a madeira, milhares de perguntas
permeiam meus pensamentos nesse momento. Tento com toda a minha
força não pensar na garota morta sob meus pés, mas seria mais fácil parar
de respirar.
O tempo passa lentamente, sinto cada pedaço de pele em meu corpo se
agitar, como se estivesse prestes a acontecer algo muito ruim, me inclino
para a frente, nunca deixando de encarar a porta, enquanto os ponteiros do
relógio tentam me enlouquecer.
Estou perto do salão principal, de onde estou posso ouvir o som da
próxima luta acontecendo, não sei quem são os caras que estão lá, por noite
acontecem muitas lutas e quase nunca sabemos algo um do outro. É uma
estratégia do Poço para manter o mistério em torno dos participantes,
mesmo assim, tento ouvir o nome de algum deles, mas minha concentração
está uma bosta, parte por causa da luta e das porradas que levei hoje, parte
por causa da garota.
“Não deixe ela morrer.”
O que será que aquela garota queria dizer com isso? Por que ela é tão
importante e, principalmente, por que comigo? O que tenho para que seja
responsável por sua vida? Meu Deus, se ela soubesse que não fui capaz de
proteger nem mesmo a garota que amo, nem a minha mãe.
Abaixo a cabeça e sinto uma tontura esquisita, como se estivesse
drogado ou algo parecido, mas não me recordo de ter usado nada, não, eu
tenho certeza de que não usei nada, mesmo assim as ideias em minha mente
estão confusas e começo a sentir o corpo ficando pesado. Fecho os olhos
por um instante, só para relaxar um pouco, e tudo parece ainda pior, então
me levanto e começo a andar de um lado para o outro me sentindo agitado.
A porta se abre e sinto meu coração disparar dentro do peito ao me
virar, mas não é a garota que está lá, e sim Zakhar, o capanga de Arkady.
— Ah, você... — ele limpa a garganta, parecendo surpreso ao me ver
aqui. Seus olhos caem na mesa de comidas e volta para mim. — Está tudo
bem?
— O que houve? — pergunto desconfiado, já não consigo acreditar em
mais nada e minha cabeça parece que vai explodir.
— Nada. Só vim conferir como você está.
— Cadê a garota?
— Estão providenciando, pode demorar um pouquinho, relaxa, quer que
te tragam algo?
Olho de soslaio para Zakhar, ele não é conhecido dentro e fora do Poço
por ser um cara gentil, ao contrário, ele é um dos caras mais terríveis que
tive o desprazer de conhecer, o que me deixa ainda mais incomodado com
sua gentileza. Algo estranho está acontecendo aqui e se eu tivesse o mínimo
de juízo daria o fora, mas não posso sair antes de vê-la.
— Não, tô de boa.
— Então tá.
A porta se fecha mais uma vez e volto a andar para lá e para cá, vou até
uma mesa e observo as mesmas quatro carreiras de cocaína, os mesmos
alimentos, as mesmas bebidas. Esses lugares são usados por pessoas que
vêm aqui atrás de diversão. Mas quem são as pessoas que podem pagar por
esse luxo? Com certeza, não são moradores de Temnyy Gorod.
Quase uma hora se passa desde que Zakhar veio me ver, o som lá fora
começa a diminuir e meu cansaço é tanto que sinto que, no instante em que
eu me sentar, vou desabar, então faço de tudo para continuar de pé, mesmo
que minhas pernas estejam exaustas e meus olhos pareçam pesar uma
tonelada.
Eu só preciso vê-la, garantir a mim mesmo que ela ainda está viva, e
permitir que aquela pobre garota possa descansar em paz.
Então, como se ouvisse meu pedido, a porta se abre mais uma vez, me
viro ansioso e Arkady entra, ainda falando ao celular enquanto caminha
para dentro do quarto, e atrás dele, de cabeça baixa, usando o mesmo
vestido, com os cabelos pesados e iluminados do qual me recordo, vem ela,
a garota dos olhos de gelo, a menina que, de acordo com aquela pobre
garota, preciso proteger.
Ela parece menor do que me recordo, mas quando ela para no meio do
quarto e ergue seu rosto de fada, e seus olhos pousam em mim, percebo que
na verdade estou enganado, ela não é pequena, nem mesmo frágil, ao
contrário, ela é a garota mais forte que já vi na minha vida, eu sinto isso no
instante em que nossos olhares se cruzam, na forma como ela ergue o
queixo ao me encarar, na sensação esquisita que tenho, como se ela
ocupasse todo o espaço, como se ela fosse alguém de quem preciso manter
distância, ter cuidado, muito cuidado.
— Prontinho, garoto, aqui está ela. — Arkady guarda o celular no bolso
e aponta para a pequena figura parada à minha frente. — Satisfeito?
Tento desviar o olhar para o homem ao meu lado, mas não consigo,
sinto como se ela fosse desaparecer caso eu o faça, então permaneço
olhando, enquanto movo a cabeça em um sim silencioso e caminho até
parar na sua frente.
A garota ergue um pouco mais o rosto ainda sem desviar o olhar.
— Você está bem? — pergunto baixinho só para ela, a garota desvia o
olhar por um breve instante e isso me incomoda.
— Sim, senhor — ela responde daquele jeito esquisito que elas sempre
falam comigo, como se eu fosse alguém de quem elas têm medo.
— Está machucada? — Analiso seu rosto, seu pescoço e braços, as
únicas partes expostas que consigo enxergar.
— Não, senhor.
— Não sou seu senhor, meu nome é Roman e quero que me chame
assim.
Ela balança a cabeça e abre a boca para falar, por algum motivo desiste
e apenas balança a cabeça novamente.
— Pronto, garoto, satisfeito?
— Preciso de um tempo a sós com ela — digo ao me virar para Arkady,
posicionando meu corpo na frente dela, para que ele não faça contato
visual.
— Ah, eu sinto muito, mas isso não será possível.
— Como não? Eu recebi um presente, infelizmente aconteceu uma
tragédia e não pude... usufruir dele, quero essa garota em troca.
— Escuta aqui, Roman, não é porque você tem um patrocinador
generoso que gosta de te paparicar, que você pode fazer exigências. Isso
aqui é um lugar muito sério e temos regras.
Cruzo meus braços na frente do peito não dando a mínima para as suas
balelas.
— Eu só quero o que é meu por direito — continuo e ouço a porta se
abrindo.
Arkady olha para ela e faço o mesmo, um homem desconhecido o
chama.
— Precisamos levá-la senhor — o homem diz e, mesmo estando a
alguns centímetros de distância da garota, posso senti-la se agitar.
— Levar para onde? — pergunto olhando para Arkady.
— Chega de perguntas, Roman, acho que está na hora de você ir para a
sua casa. Foi um dia cheio e você precisa descansar.
— Ela não vai. — Me aproximo um pouco mais da garota e posso sentir
seus pequenos dedos tocando minhas costas, o que me deixa estranhamente
protetor.
— Não é uma boa ideia me contrariar, você sabe — ele tenta me
ameaçar e se fosse Demyan aqui, com certeza ele seria inteligente o
suficiente para pensar em algo estratégico para dizer, mas não sou ele,
nunca fui bom com as palavras, meus assuntos sempre foram resolvidos no
punho.
— Foda-se, não tenho medo de você.
— Não estou pedindo que tenha, só acho que não é inteligente da sua
parte me afrontar — ele me dá um sorriso de satisfação que diz exatamente
isso.
— Ela não vai — digo e sinto sua mão se fechar em meu moletom.
— Roman — ela sussurra meu nome, tão baixinho que preciso me virar
para poder ouvir o que ela quer dizer.
— Você não vai sair daqui — insisto. — Não se preocupe.
— Eu preciso ir — ela diz.
— Não, não precisa.
— Eu vou ficar bem — ela continua, embora eu não consiga entender o
que está acontecendo aqui. Em seguida, o cara que está parado na porta se
aproxima e a segura pelo braço de um jeito que não gosto. Abro a boca para
falar, mas seus enormes e frios olhos de fada imploram para que eu não diga
nada, então observo a garota ser levada e volto a olhar para Arkady.
— Quero que me garanta que semana que vem ela estará aqui para mim
— digo, tentando manter a voz firme, ele ergue uma sobrancelha de forma
curiosa e sorri.
— Não é muito inteligente se apegar às garotas do Poço, seu pai não te
ensinou?
— Não tenho pai — retruco e ele balança a cabeça.
— Desculpa, eu havia me esquecido — responde em um tom
provocador que me incomoda.
Todos aqui sabem que meu pai fugiu. Como a grande maioria dos
homens de Temnyy Gorod, ele foi embora na primeira oportunidade que
teve, deixando para trás o único filho que teve, sem dar a mínima se eu
sequer chegaria a me tornar um homem. Não fui o primeiro moleque
abandonado e, infelizmente, sei que não serei o último.
— Semana que vem — reforço, voltando a falar da garota.
— Vai depender do seu patrocinador.
— Diga a ele que farei o que ele quiser.
— Cuidado com suas promessas, garoto, o Poço não é um lugar onde se
deve fazê-las.
— Só repita minhas palavras, cada uma delas. — Encaro o homem de
queixo erguido e ele move a cabeça em um sim silencioso.
— Como quiser.
Seu telefone toca, é a deixa para que ele se vá e então estou sozinho
mais uma vez. Penso em tudo o que aconteceu essa semana e me dou conta
de uma coisa:
Pela primeira vez, desde que Anna se foi, tenho um objetivo.
Eu preciso entender o que está acontecendo aqui e como posso proteger
essa menina.
Meu coração parece que vai explodir no instante em que sou levada
pelos corredores frios do Poço.
Eu pergunto o que está acontecendo, mas Arkady não responde, ele
parece irritado e diz coisas que não compreendo o tempo todo no celular,
gritando ordens, falando sobre alguém, uma garota, ela fez algo que o
deixou muito irritado e tento prestar atenção, mas Arkady é esperto e nota o
que estou fazendo, então guarda o aparelho e volta seus olhos do mal para
mim.
— Sabe, devochka, hoje eu estou muito, muito, muito puto. — Ele
aperta meu braço como se assim eu pudesse entender melhor. — Tão puto
que, se você me contrariar, eu não sei o que farei com você. — Ele me
pressiona na parede, colocando-se na minha frente. — Então eu espero que
você seja uma boa menina, ao menos dessa vez.
— Sim, senhor — respondo tentando manter a voz firme.
— Se disser alguma coisa, qualquer coisa que eu sinta que esteja errada,
eu darei um jeito de fazer você implorar pela morte — ele me ameaça, o
sorriso deixando seus dentes amarelos expostos e meu estômago se
embrulha. — E dessa vez não serei piedoso — completa, como se em
algum momento ele já tivesse sido.
— Sim, senhor — repito, enquanto tento não abaixar o rosto, mas algo
dentro de mim vence a batalha contra meu orgulho e meu corpo inteiro se
encolhe com as lembranças da última vez em que ele me castigou. Foram
dois dias sem conseguir andar direito depois da punição que recebi por não
ter conseguido seduzir Roman, meu rosto ainda tem algumas manchas
amareladas dos hematomas que seu capanga me causou, meu corpo ainda
estremece ao seu toque, minha garganta ainda queima com os gritos que
não dei.
Não sou tão burra assim, sei qual o limite que posso aguentar e duas
punições seguidas é demais até mesmo para mim. Sei por experiência
própria que ele não vai me levar ao fim, ele só quer ver até onde sou capaz
de aguentar, o problema é que, às vezes, ser dura e teimosa é mais do que
um ato de rebeldia, é burrice.
— Boa garota, eu gosto assim. — Ele estica sua mão, espalmando-a em
meu rosto, o polegar brincando com meu lábio, entrando e saindo de dentro
dele lentamente, me causando repulsa. — Não vejo a hora dessa noite
infernal acabar e finalmente descansar. Sabe o que eu vou fazer, minha
pequena Yelena? — Seus olhos caem em seu dedo passeando por meu
queixo, pescoço, ombro.
— Não, senhor.
— Vou tomar um banho bem quente, longo e relaxante, depois vou
assistir ao seu vídeo. Fiquei sabendo que você foi muito boa hoje, então vou
escolher uma das novas garotas que chegaram essa semana e vou fodê-la
até descarregar toda a minha raiva e frustração. — Ele se inclina sobre mim,
com o lábio tocando minha orelha. — Chegou uma garotinha ontem que me
lembrou você, virgem, deliciosa — ele sussurra, como uma confissão e
meus olhos pinicam de vontade de chorar. — Claro que ela não tem a sua
beleza. — Ele passa o polegar em meu olho esquerdo. — Esses olhos de
ved’ma.
Um soluço escapa dos meus lábios com as lembranças do meu primeiro
dia nesse lugar, na forma como eles me analisaram, nua na frente de um
monte de homens estranhos, como uma mercadoria, um objeto feito para
agradar. Ali fui marcada, rotulada, definida para o que eu seria boa ou não.
Mais tarde, uma das garotas me disse que eu chamei a atenção de gente
muito poderosa, que estava sendo chamada de “a Bela do Poço” e que isso
me traria regalias. Eu era uma garota de sorte.
Aquela menina morreu um mês depois, então, talvez, sorte seja algo
muito questionável por aqui.
Arkady ri, algo que ele sempre faz quando sabe que me desestabilizou,
passeia sua mão por meus cabelos, afastando-os do meu rosto de um jeito
íntimo e desconfortável.
— Não se preocupe, devochka, eu serei gentil com ela. Irei devagar até
ela se acostumar, farei como deve ser feito, mas para isso, você precisa ser
boazinha, porque, se você me contrariar, eu ficarei muito puto e aí terei que
descontar na garotinha.
Tento manter meus olhos fixos nos dele, se temos um acordo significa
que somos iguais em algum aspecto, não posso baixar minha cabeça, não
posso dar a ele mais poder do que ele já tem.
— Me leve logo para ele — digo, orgulhosa por minha voz se manter
firme mesmo quando tudo dentro de mim parece prestes a desmoronar.
O tempo parece parar nos segundos em que ele mantém seu corpo
pressionado ao meu, como se estivesse enxergando a verdade, como se
soubesse o exato ponto onde pode me quebrar, como se estivesse se
divertindo com isso. E ele está, ele sempre está.
O telefone vibra em seu bolso e ele se afasta para atender, respiro fundo,
aliviada por ter alguma distância entre nós, há um limite que posso suportar
seu toque e fingir que não sinto nada. Ele dá as costas para mim e, por um
breve momento, me imagino atingindo-o com um machado, pesado e afiado
o bastante para parti-lo ao meio, sempre me pego sorrindo com essa
imagem, às vezes esses pensamentos são tudo o que me mantém respirando.
Voltamos a caminhar, Arkady à minha frente, tento manter a calma, sei
para onde estou indo e, por algum motivo, anseio por isso desde o momento
em que ele entrou na sala e me mandou me preparar. Quero revê-lo, quero
estar lá novamente, mesmo sabendo que terei que pagar caro caso não faça
exatamente o que Arkady quer, e, mesmo assim, tudo o que consigo pensar
é que ele está à minha espera.
A porta se abre e, antes que eu possa vê-lo, eu o sinto. Seu cheiro, sua
presença, sua força, Roman ocupa tudo e mesmo que ele não faça ideia do
porquê estou aqui, uma parte de mim, a mesma boba sonhadora que
acredita que um dia poderei ir embora, depois de enfiar um machado nas
costas de Arkady, acredita que ele também sente o mesmo, que eu estou
aqui por ele.
Arkady se afasta de mim e faço o que sou ensinada a fazer, mantenho
minha cabeça baixa em sinal de submissão completa, nesse quarto Roman é
meu dono, ele pode fazer o que quiser comigo, mesmo que ele não saiba
disso, mesmo que ele não me queira, é minha obrigação obedecer.
E é o que faço, no instante em que ele para na minha frente me torno
sua, para o que ele quiser enquanto ouço sua voz, tão diferente da voz de
todos os que me olham por aqui. A dele é suave, preocupada, enquanto ele
me pergunta se estou machucada. Desvio o olhar rapidamente, quero tanto
contar tudo, pedir que ele me salve, que me tire daqui, quero tanto que ele
saiba que fui violentada por sua causa e que só ele pode me livrar de sofrer
novamente, mas então me obrigo a parar de sonhar, de parar de acreditar
que ele é diferente só porque tem um rosto de anjo e uma voz doce, Roman
Stepanovich não é diferente por parecer diferente, afinal de contas
misericórdia e compaixão não o tornaram o Rei do Poço.
Olho para as suas mãos sempre machucadas, penso nos motivos para
que elas estejam assim, então observo as manchas de sangue em sua
camiseta, em seus braços, em seu rosto, hoje ele parece vindo de uma
batalha sangrenta. Não, ele não é um anjo, ele é um soldado pronto para
matar, que não tem medo de passar por cima do que for para conquistar seus
objetivos.
E seu único objetivo é vencer.
Roman discute com Arkady e, se eu não estivesse tão nervosa com o
que vai acontecer comigo depois, estaria sorrindo de satisfação. Ele se
aproxima um pouco mais, permitindo que eu sinta o calor do seu corpo e
finja que ele me quer porque se preocupa comigo e não porque sou uma
mercadoria interessante. A porta se abre e um dos capangas de Arkady
entra. Nosso tempo acabou, mas Roman não quer me deixar ir, isso é ruim,
porque, por mais que eu saiba que não é pessoal, meu coração quer
acreditar que é, e, sem pensar, estico meus dedos e toco sua roupa, sentindo
a maciez do tecido entre meus dedos.
— Roman — sussurro seu nome, sentindo a palavra deslizando por
minha língua, como se sempre tivesse sido pronunciada por minha boca.
Roman...
Ele se vira de frente para mim e ergo o rosto para admirá-lo um pouco
mais, nosso tempo está acabando e não sei se o verei novamente, nem em
que condições estaremos da próxima vez.
— Você não vai sair daqui, não se preocupe — ele diz com uma
convicção que quase me emociona.
— Eu preciso ir — digo porque posso sentir os olhos ferozes de Arkady
sobre mim.
— Não, não precisa.
— Eu vou ficar bem — digo no momento em que o homem se aproxima
e me segura pelo braço, não é nem perto do que ele está acostumado a fazer,
mesmo assim Roman olha para ele como se pudesse incinerá-lo apenas com
a força do seu olhar.
Sinto o clima ficar mais pesado, quase insuportável e penso na
garotinha que terá a sua vida marcada para sempre essa noite, preciso
acreditar que Arkady terá compaixão dela se eu obedecer e como última
tentativa, tento acalmar Roman, olho para o seu rosto de menino furioso, a
súplica estampada em meus olhos: “Por favor, não faça isso...”. Ele parece
entender o que peço e então se vira para Arkady, voltando a fazer
exigências enquanto sou arrastada para fora do seu quarto, pelos corredores,
de volta para a minha cela. E durante todo o caminho, tudo o que consigo
pensar é na forma como minha mão parece queimar e, quando sou jogada
de volta à minha prisão, espero até que esteja a sós para erguê-la e tocar
meus lábios.
Sorrio, me sentindo patética e carente enquanto relembro a forma como
ele me reclamou, como se eu já fosse dele de alguma forma. E me assusto
com a verdade que incendeia meu peito, eu quero ser dele, quero que ele
grite com Arkady, quero que todos saibam que a Bela do Poço pertence ao
Rei do Poço.
Como se fôssemos personagens de um sombrio e perturbado conto de
fadas.
Me perco em pensamentos bobos, todos eles terminam comigo saindo
desse lugar de mãos dadas com Roman e com Arkady deitado em uma poça
do seu próprio sangue. São pequenas pontadas de alegria que me fazem
perder a noção do tempo, até que noto alguém parado na frente da minha
cela.
— Arkady. — Levanto-me em um rompante escondendo minhas mãos
nas costas, como se tivesse sido pega fazendo algo errado.
Ele abre a cela e tento não me mover enquanto ele entra, tornando o
lugar quase sufocante com a sua presença.
— Eu fiz tudo o que você me pediu — digo com a voz assustada.
— Sim, você fez. — Ele caminha até mim, me fazendo recuar, um passo
atrás do outro até que estou com as costas pressionadas na parede úmida e
pegajosa. — Ah, devochka... — Ele segura meu rosto em sua mão,
erguendo-o ao ponto de doer, não consigo respirar direito e meus olhos
pinicam. — Você conseguiu — ele diz, mesmo que eu não faça ideia do que
seja. — Você enfeitiçou o garoto. — Ele aperta um pouco mais e estou na
ponta dos pés, a dor me faz gemer. — Zakhar tem razão quando diz que
você é uma Baba Yaga. — Ele pressiona meu crânio na parede. — Das mais
perigosas, com esses olhos demoníacos. — Arkady bate minha cabeça com
força, pontinhos pretos nublam minha visão e me seguro em seus pulsos
para não cair. — O certo seria acabar com você aqui. — Ele bate mais uma
vez e um gritinho escapa da minha boca. — Assim, você não teria mais
poder com nenhum outro homem. — Suas unhas afundam em minhas
bochechas. — Mas, infelizmente, preciso de você e daquele moleque idiota
do Roman.
Arkady analisa meu rosto, os olhos caindo em minha boca em forma de
O com a força que seus dedos me pressionam, então ele bate minha cabeça
mais uma vez, com tanta força, que, na hora que ele me solta, desabo no
chão, sem chances de me proteger.
Tudo gira à minha volta e não consigo me levantar, só o que vejo são os
sapatos caros e brilhantes dele se afastando de mim.
— Peguem a garota e levem-na para o quarto — ele dá as ordens e sai,
sem olhar para trás nenhuma vez, enquanto seca suas mãos em um lenço
que retira do paletó, como se elas estivessem em contato com algo muito
sujo, contaminado.
Talvez tenha mesmo sido isso.
Dois homens que não conheço entram na cela e me erguem pelos
braços, minhas pernas ainda estão moles e não consigo andar, então sou
arrastada pelo corredor estreito e sujo, passando diante das celas, enquanto
sou levada para outro lugar como um troféu ruim do qual não se tem
nenhum orgulho. Tento reconhecer as meninas na cela e vejo uma sendo
retirada no instante em que passo por ela, é apenas uma garotinha, não deve
ter mais do que quinze anos, seus olhos assustados analisam tudo à sua
volta como se ainda não entendesse o que está acontecendo.
— Para onde estão me levando? — ela pergunta quando um dos
capangas a segura pelo braço.
— Para o paraíso — ele diz e os homens que estão comigo gargalham,
se divertindo com o pavor que ela sente.
Viro o rosto tentando olhar para ela mais uma vez, desejando poder falar
para ela: “Não chore, por favor não chore, eles se alimentam das nossas
lágrimas”.
Mas não tenho tempo para isso.
Baixo a cabeça e deixo que meus cabelos escondam a minha dor
enquanto vejo o piso mudar de barro para o granito luxuoso que reveste o
piso da área destinada aos patrocinadores. Algo ruim me espera, é o que
meu coração diz, martelando no meu peito, e esse pensamento me
acompanha até que chegamos em um quarto pequeno, mas bem equipado e
sou jogada dentro dele de qualquer jeito.
— Venha aqui — um dos homens me chama até um canto do quarto e
obedeço. Ele puxa os grilhões e agarra meu tornozelo. Sinto seus dedos
passeando por minha pele, sobre as marcas que nunca saram, ele ergue os
olhos e me dá um sorriso diabólico enquanto prende o metal, o clique causa
um sufocamento em minha garganta. — Assim fica bem melhor. — Ele se
levanta ainda admirando o serviço. Desvio o olhar para o chão porque não
importa o que ele pensa, ele nunca me tocará, sou proibida para ele e isso é
o máximo que terá de mim.
O homem na porta o chama e eles saem sem dizer mais nada enquanto
fecham a porta me trancando, olho em volta tentando entender o que está
acontecendo, mas não consigo adivinhar, então me sento causando um ruído
quando os anéis de metal se movem. Apoio minha cabeça na parede e fecho
meus olhos, desejando poder apagar o rosto daquela menina da minha
mente, ou não pensar em Roman, nem no que Arkady quis dizer com
precisar de mim. Perguntas sem respostas nada mais são do que pesadelos
que nos atormentam enquanto estamos acordados.
Só servem para nos enlouquecer.
Minha cabeça está a mil, não consigo entender o que está acontecendo,
muito menos porque me importo com isso. Talvez eu seja mesmo um tolo
idiota com síndrome de super-herói como o Demyan dizia sempre que eu
me metia em encrenca por causa de alguma injustiça.
“Você não pode salvar o mundo.”
Aprendi da pior forma possível que ele estava certo.
Primeiro, minha mãe, depois, Anna, e agora essa garota.
Não consigo dormir pelos dois dias seguintes, sempre que fecho meus
olhos tudo o que vejo é aquela garota afogada em sangue, morrendo em
meus braços, pedindo para que eu não fizesse perguntas.
Eles vão matá-la.
Quem vai matá-la? E como eu posso evitar que isso aconteça?
Não tenho respostas para nada e isso me deixa ainda mais irritado, então
tudo o que faço nos dias seguintes é ir para a academia me exercitar o
máximo que posso sem lesionar alguma parte do meu corpo, passo o
período da manhã puxando ferro e a tarde treinando sparring8.
— Não acha que está na hora de parar um pouco? — o cara que está
tentando me acompanhar há quase duas horas pergunta com as mãos em
frente ao rosto enquanto tenta escapar do meu punho.
— Não. — Estico meu braço e acerto um cruzado de esquerda.
— Roman — ele me chama, se esquivando de um gancho que o
derrubaria.
— Porra, não. — Dou um passo para a frente e acerto um golpe em seu
braço que o faz gemer.
— Chega! — Pavel, o treinador que não me deixa em paz, grita do lado
de fora do ringue e o idiota à minha frente resmunga algo parecido com
graças a Deus, ou sei lá o quê.
Desço sem olhar para ninguém, meus músculos queimam e o suor
escorre por meu rosto e gruda a roupa em meu corpo, mas não estou
disposto a parar. Então me aproximo de um saco e começo a socá-lo. Um,
dois, um, dois, três... Um, dois, um, dois, três...
Pavel para na minha frente, seus braços fortes de quem um dia já lutou
no Poço seguram o saco me impedindo de continuar.
— Mas que caralho, qual o problema com vocês hoje? — Dou um
último soco no saco, desejando poder acertar a cara do babaca à minha
frente. Mas ele sequer se move.
Dou as costas para ele sem saber onde ir, de repente esse lugar parece
pequeno demais e me sinto sufocar. Caminho de um lado para o outro até
que sinto os braços de Pavel me empurrar até a parede, não tenho tempo de
me defender, ele me pressiona contra o concreto com o antebraço me
imobilizando.
— Qual o teu problema, Roman? — ele pergunta, encarando-me com
seus olhos injetados de fúria.
— Me solta, porra! — exijo, afastando seu braço de cima de mim.
— O que você pretende com isso? Quer se matar, espera a próxima luta
e deixa teu adversário te acertar, garanto que as apostas contra você estão
altas.
— Vão ter que esperar até a última luta para o show completo. — Me
desvencilho dele e caminho retirando as luvas.
— O que você quer dizer com isso? — Ele para novamente na minha
frente e reprimo a vontade que sinto de meter um soco em sua traqueia.
— Nada. — Ergo os ombros e sorrio, um sorriso debochado que sempre
deixava Demyan louco de ódio.
— Garoto...
— Roman, meu nome é Roman.
— Eu sei bem qual é a porra do seu nome, mas nesse momento você
não o merece, então vou te chamar de garoto.
Respiro fundo para não o mandar se foder como o garoto que ele me
acusa de ser e paro de andar dando a ele a atenção que quer.
— Você não sabe de nada — digo, porque na verdade não posso contar
a ele nem a ninguém o que aconteceu naquela noite, não posso falar sobre
aquelas garotas, nem sobre o fato delas, de alguma forma, me pedirem
socorro; ou contar que, às vezes, acho que estou enlouquecendo e tudo isso
não passa de um surto de um cara fodido que não sabe mais o que fazer da
vida.
— Sei mais do que você imagina.
— Ah é? Sobre o quê? Me conta aí, diz o que você sabe, além de que
sou um moleque babaca. — Cruzo os braços na frente do peito, sinto os
músculos rígidos pelo exercício puxado e a pele quente, quase febril.
— Não seja idiota e infantil, todo mundo aqui tá vendo que você tá
pilhado, querendo arrumar confusão, não é assim que você vai resolver seus
problemas.
— Você não sabe nada sobre os meus problemas.
— Posso não saber, mas vejo claramente os que você vai arrumar se não
começar a pensar direito.
— Valeu pelos conselhos, pápa. — Dou um tapinha em seu peito e me
afasto. Como um bom idiota.
— Você vai conseguir o que quer, Roman, só espero que até lá, você
perceba que não é morrer e sim vencer.
— Voltei a ser Roman? — Ergo a sobrancelha sem dar a mínima para o
que ele está falando, Pavel balança a cabeça e me dá as costas, indo fazer
algo mais produtivo do que perder tempo com um cara como eu.
Assim que chego ao Setor Oeste vou até o beco onde os meninos
sempre se encontram. Há um grupinho usando drogas e, quando me veem,
se assustam.
— Tudo bem, estou aqui atrás do Sasha — digo ao me aproximar
puxando o baseado da boca de um deles e dando uma tragada. Berstuk para
ao meu lado e um dos meninos se assusta.
— Que gato feio da porra — ele diz arrancando risadas dos colegas.
— Se eu fosse você não o ofendia, Berstuk é bem rancoroso. — Dou
mais uma tragada e entrego o baseado para ele, que olha para o meu gato
como se estivesse prestes a pedir desculpas.
— O Sasha não tá — diz o menor de todos.
— Isso eu sei, quero saber onde ele mora.
— Por que você quer saber? — um dos meninos pergunta curioso.
— Quero avisar a mãe dele que ela está prestes a perder um filho.
— Talvez ela se sinta aliviada, uma boca a menos para alimentar. —
Ouço a voz atrás de mim e me viro no instante em que um dos meninos
solta um palavrão.
Sasha está parado na entrada do beco, com o rosto tão inchado que é
quase impossível reconhecê-lo. Caminho até onde ele está, tentando não
demonstrar pena, mas não consigo, ele é só um menino, e mal consegue
respirar sem gemer de dor.
— Vem comigo. — Seguro seu braço e ele tenta se afastar, mas não
consegue.
— O que você quer de mim? — Ele tenta a todo custo se livrar do meu
aperto, mas ignoro seus protestos e o levo até o outro lado da rua, entre dois
prédios, só paro quando seu corpo colide na parede fazendo-o gemer.
— Me solta, caralho! — Ele tenta me empurrar, mas aumento o aperto
sobre seu corpo franzino.
— Escuta aqui, porque eu só vou falar uma única vez. — Aponto o
dedo com força em seu peito magricelo.
— Não tenho que escutar nada, me solta.
— Você vai escutar, por sua mãe. — A menção dela o faz parar de se
debater e olhar para mim. — Você a ama?
— Isso não é da sua conta.
— Não mesmo, porque eu não dou a mínima para aquela vadia.
— Não fale dela — ele ameaça erguer a mão e eu a seguro, torcendo-a
sem esforço, demonstrando o quanto ele é fraco e inexperiente.
— Quer proteger a sua mãe? Quer proteger aquela garotinha, sua irmã,
como é mesmo o nome dela? Katya? Ela tem treze, não é mesmo? Era essa
a idade da menina que você estuprou?
— Eu não estuprei ninguém — ele diz se contorcendo de dor.
— Não é o que dizem.
— Eu menti — ele geme mais alto, quase chorando e posso sentir os
pares de olhos me observando do outro lado da rua.
— Ah, mentiu? Mas sabe de uma coisa? Eu não minto, nunca, então
escute bem o que vou falar agora, porque será só uma vez. — Aumento o
aperto em sua mão e posso jurar que ouço um estalo, um osso partido. O
garoto grita, seu corpo fraco desmorona na minha frente, mas não paro, não
posso parar agora. — Nunca mais coloque a porra dos seus pés no Poço,
está me entendendo?
— Você não manda em mim — ele diz chorando de dor.
— Não mando, nem quero, estou apenas te avisando. Se você ama sua
mãe e irmãos, será inteligente o suficiente para não voltar para o Setor
Leste, nem fazer nenhuma merda que te coloque na mira do Arkady
novamente, porque, se você voltar, eles não terão misericórdia de você e
sabe o que vai acontecer? Eles irão atrás da sua família, colocarão sua mãe
para servir os bêbados do Poço, trepando sem parar. Sua irmãzinha,
provavelmente irá pelo mesmo caminho, seus irmãos serão os vendedores
de drogas, aqueles que morrem aos montes porque ninguém liga, e sua
família querida se esfarelará como pão seco. Tudo porque você foi um
moleque burro e idiota — continuo falando, inclinando-me sobre ele
enquanto ele escorrega pelo chão, caindo de dor. — Diga para mim que
você entendeu — exijo me ajoelhando na sua frente, torcendo sua mão
quebrada mais um pouquinho.
— Você quebrou minha mão — ele diz chorando, com a voz carregada
de ódio.
— Eu posso quebrar cada osso do seu corpo até ter certeza de que você
me entendeu.
— Eu entendi — ele sussurra.
— Eu não ouvi, Sasha, pode repetir?
— Eu entendi, porra!
— Bom garoto, eu adoro quando sou claro. — Solto sua mão e ele a
segura, pousando-a no peito enquanto me olha com o único olho bom. —
Eu sei que está com ódio de mim agora, mas um dia, quando for um homem
adulto de verdade, vai me agradecer.
— Nunca.
— Você vai. — Dou um tapinha em suas costas e me levanto.
— Você está com medo de alguém ser melhor que você e roubar o teu
lugar de Rei do Poço — o menino fala, ainda gemendo de dor e me viro
para encarar seu rosto.
— Sabe, Sasha, na sua idade eu também era um garoto cheio de ódio e
me achava o mais inteligente do mundo, passava a maior parte da minha
vida fazendo merda e nunca tinha tempo para a minha mãe. Ela morreu
porque eu era um idiota teimoso, e hoje eu não tenho ninguém por quem
lutar, estou no Poço porque, se eu viver ou morrer, não vai fazer diferença
para ninguém, não tenho mais nada aqui. É isso que você quer para você?
— Ele balança a cabeça lentamente. — Então, seja mais inteligente que eu e
mantenha seu traseiro longe daquele lugar.
Dou o último aviso e me afasto, os seus amigos e o irmão estão nos
observando e caminho até eles.
— Nenhum de vocês, nenhum, deve ir ao Poço, nem para olhar, nem
mesmo para ver onde fica, estão me ouvindo? — O garotinho pequeno está
chorando enquanto olha para o seu irmão e todos balançam a cabeça. — Eu
saberei se algum de vocês forem, e, acreditem em mim, vocês vão se
arrepender de terem me desobedecido — digo olhando para cada um deles,
sei que não tenho poder algum de proteger esses meninos, mas, se eu puder
colocar ao menos uma pequena sementinha de medo em seus corações, eu
farei isso com prazer.
Alguma coisa mudou, e não sei ao certo o que foi, mas, desde a última
vez em que estive com Roman, estou sendo tratada diferente. Eu poderia até
mesmo dizer que está sendo bom, sem grilhões em meus tornozelos, sem
abusos, sem castigos, sem homens visitando meu quarto.
Uma semana em que eu tive um gostinho do que poderia ser chamado
de paz e tive medo, não é natural sentir paz no inferno, por mais calmo que
tudo esteja, por mais que minha barriga tenha comida e meu corpo esteja
sem dor, ainda é o inferno e algo dentro de mim sabe disso.
Às vezes, acordo no meio da noite esperando a porta se abrir e um dos
homens de Arkady me levar, ou o próprio entrar, exigindo meu corpo, ou
pior, Zakhar me punir por estar sentindo uma fagulha de paz. Então passo o
resto da noite tentando entender o que está acontecendo, prevendo o que
virá. Será que Roman tem algo a ver com tudo isso? Será que ele é mesmo
tão poderoso assim a ponto de ter suas vontades atendidas até mesmo
aqui?
Os dias se passam sem que uma resposta surja, durmo, como, penso,
ando de um lado para o outro e ouço, ouço tudo o que posso, vozes
aleatórias, choros e gritos, músicas, e, acima de tudo isso, nos dias em que
se passa, presa dentro desse quarto, sem ter o que fazer, eu me pego
pensando em Roman, na noite em que estivemos juntos, em como meu
corpo o recebeu dentro de mim, como me senti, não suja, nem usada, mas...
feliz.
Pela primeira vez desde que vim parar aqui, me peguei sorrindo, ao
relembrar seu cheiro, seu gosto, o peso dele sobre mim, a forma como suas
mãos me seguraram junto de si, nunca senti nada parecido. Antes de vir
para cá, não tinha experiência nenhuma com homens, só beijei um garoto e
agora, tudo o que tenho de referência é dor, humilhação, sofrimento,
vergonha. Eu estava pronta para sentir isso com Roman também, mas foi o
contrário.
E todos os dias eu refaço a nossa primeira vez em minha mente, a forma
como a água molhava seu corpo, o jeito como suas bochechas coraram, os
sons que ele fazia. Meu coração acelera só de lembrar, e depois ele dói de
saudades e expectativas. Quando será que vamos nos ver novamente? O
que ele fez comigo? Justo ele, que me acusa de ser uma fada, me enfeitiçou,
roubou meu coração, fez de mim sua... sua.
É isso, sou dele, e sorrio com a constatação de que gosto de ser dele,
meu corpo, meu coração, meus pensamentos, tudo em mim pertence a
Roman Stepanovich Zorkin e eu me sinto feliz com isso.
Será amor? Estou apaixonada pelo Rei do Poço? Por seus olhos doces
e sua boca gentil? Pela forma como ele me mostrou que homens nem
sempre machucam?
Não sei, mas, sinceramente, não ligo, não quando tudo a minha volta é
escuridão, dor e sofrimento, talvez amar Roman seja a luz que me guiará
para longe desse lugar, e eu estou disposta a segui-la.
A porta se abre e me levanto, assustada com a força com que ela bate na
parede. Não sei que horas são, minha janela está sempre fechada e quase
não tenho noção de tempo, mas sei que não é tarde, o Poço está silencioso.
Arkady entra e meu coração se agita, abraço meu corpo e abaixo a cabeça.
Rezando para que ele não queira... me machucar.
Ouço seus passos pelo quarto e a cada segundo de silêncio, o medo
aumenta dentro de mim ao ponto de começar a tremer quando ele para na
minha frente, encaro seus sapatos brilhantes sem coragem de erguer os
olhos.
— Olhe para mim — ele manda e obedeço, erguendo meu rosto
devagar, sem querer encarar seus olhos sem vida.
Arkady sorri, um sorriso perverso, que faz os pelos do meu corpo se
arrepiarem.
— Está bem instalada, devochka? — ele pergunta encarando meu rosto
bem de perto e balanço a cabeça em um sim.
— Sentiu minha falta? — pergunta, mesmo sabendo a resposta e minto
balançando a cabeça devagar.
Um tapa estala em meu rosto e solto um gemido baixo.
— Vadia mentirosa.
Coloco a mão em minha bochecha, sentindo a pele queimar, mas não
me arrependo de nada e, quando olho em seus olhos, sei que ele sabe disso
tanto quanto eu.
— Vejo que você engordou um pouquinho. — Ele espalma a mão em
minha cintura, fechando os dedos em minhas costelas com força. — Está
comendo bem? — Faz círculos com o polegar em minha pele e não me
movo, apenas aceito seu toque em silêncio. — Tão linda, minha slátkiy
Yelena. — Ele me puxa para junto de si, passando o nariz em meus cabelos,
inalando com força, como se pudesse sugar minha alma. — Tão preciosa —
continua falando, enquanto seus lábios descem por minha têmpora, olhos,
bochecha. — Você fez um bom trabalho — ele diz e sinto como se fosse
algo errado. — O garoto está louco por você. — Meu coração quase salta
pela boca em desespero, ele está louco por mim? O que isso significa? —
Mas eu já sabia que isso aconteceria, como não enlouquecer? Eu quase
enlouqueci de ciúmes de te ver nos braços dele — ele diz e aperto meus
olhos para não reagir com as suas palavras. — Cada estocada dele dentro de
você era como um punhal em meu coração — ele sussurra, como um
amante apaixonado se declarando para a sua amada, subindo sua mão por
meu corpo, passando por meus seios, até se alojar em minha garganta e meu
estômago se revira ao imaginar Arkady nos observando. — Você estava tão
diferente... — Ele se afasta, voltando a olhar meus olhos, fechando a mão
em volta da minha garganta. — Quase como se estivesse... gostando? Você
gostou de ser a vadia do Rei do Poço, Yelena? — Ele aperta um pouco e
nego rapidamente. — Ele te machucou? — Nego mais uma vez. — Você
estava molhada para ele, Yelena? — ele continua e nego de novo. — O que
ele te falou enquanto te fodia? — Ele caminha com a mão em meu pescoço
me guiando até que sinto a parede atrás de mim. — Ele falava coisas sujas?
Coisas melosas? Me diga o que o garoto falou.
Arkady se coloca na minha frente e fecho os olhos, porque já sei o que
vem a seguir, o que sempre acontece quando entra em meu quarto. Mas ao
contrário das outras vezes, em que ele é bruto e agressivo, dessa vez,
enquanto rasga minha roupa, e me segura em seus braços, enquanto ele me
penetra, tomando para si aquilo que eu sonhei um dia ser apenas de Roman,
ele parece quase... carente, desesperado, como se estivesse com medo de
me perder.
— Me beija — ele exige enquanto me marca com seu corpo e obedeço.
Minha boca toca a sua de um jeito esquisito e, quando ele força a sua língua
dentro da minha boca, eu desvio o rosto. — Faça comigo como fez com ele
— ele manda enquanto me possui, dessa vez com um pouco mais de
gentileza, até que ele percebe que não consigo fazer o que ele quer. — Foi
assim que ele fez? Devagar? Assim você gosta? — ele continua fazendo
perguntas que não consigo responder, tudo dói dentro de mim porque nada é
como Roman, nada nunca será igual a ele.
Então Arkady volta a apertar o meu pescoço, sufocando-me,
machucando-me, com os olhos injetados de ódio por não receber aquilo que
ele quer.
— Vamos, Yelena, olhe para mim como você olha para ele, me ame
como você o ama, me adore como seu senhor e rei. — Ele aumenta a força
com que me toma e gemo de dor enquanto tento afastar sua mão da minha
garganta.
— Você... está me machucando — digo com dificuldade, sentindo o ar
escapar dos meus pulmões e as lágrimas se acumularem em meus olhos.
— Eu vou machucar mais, até você entender que é MINHA! — ele grita
a última palavra enquanto me leva até a cama me empurrando de costas, me
fazendo ficar de quatro, afundando meu rosto no colchão, me quebrando,
me mostrando que não existe paz onde estou. Tudo foi uma ilusão e a culpa
de tudo isso é minha, por me atrever a me apaixonar por Roman, quando sei
que meu coração não me pertence. Nada em mim me pertence.
Arkady possui meu corpo de todas as formas possíveis, como uma
tentativa de alcançar o meu coração. Durante o tempo todo, ele exige que eu
lhe fale o que Roman me disse. Quando me nego a falar, ele me bate e me
machuca um pouco mais, sorrio como um ato de rebeldia que diz que não
importa o quanto ele me machuque, eu nunca darei o que ele quer.
E quando ele finalmente termina, exausto e saciado, sinto meu corpo
inteiro doer, mas minha alma canta de alegria, porque, pela primeira vez
desde que meu inferno começou, sinto Arkady queimar um pouco também.
Arkady vem ao meu quarto todos os dias e todas as vezes ele me manda
dizer o que Roman disse; em todas as vezes não digo, em todas as vezes ele
me machuca, em todas as vezes sorrio.
Estou perdendo a sanidade, mas não ligo. Em um mundo onde há
dezoito anos só perco, não me importo que ela se vá, talvez seja melhor,
mais fácil de lidar.
Hoje é noite de luta, Roman está no ringue, ouço as pessoas gritando
seu nome lá fora, a força dele ecoando pelas paredes enquanto sou
machucada, a cada grito de Rei, Arkady me pune um pouco mais, o tempo
todo me mantenho firme, com o rosto erguido e os olhos fixos no meu
abusador, encarando-o com tudo o que tenho dentro de mim, vendo-o
perder o controle. Arkady me agarra pelo pescoço, com o corpo grande
sobre o meu, me sufocando com seu ódio. Abro a boca, sem ar, movo meus
lábios e sussurro seu nome.
Roman.
Ele enlouquece, me bate tanto que perco os sentidos. Quando acordo,
ele está parado na minha frente, com os olhos apavorados, me encarando
como se temesse me perder.
— Graças a Deus. — Arkady me puxa para si, abraçando-me com força.
— Nunca mais faça isso — ele exige e não tenho forças para responder,
apenas movo a cabeça, confusa, sem saber o que está acontecendo. —
Nunca mais me provoque assim, eu perdi a cabeça, eu... meu Deus, se você
morresse...
Seria tão bom... é o que penso, enquanto tento fechar meus olhos,
sentindo eles doerem. Morrer seria tão bom.
— O que eu fiz? — pergunto confusa.
— Nada, minha slátkiy, você não fez nada. — Ele parece apavorado,
nunca o vi dessa forma e isso me assusta. Tento me mover, mas Arkady não
deixa. — Fique quieta, vou pedir para virem cuidar de você.
Ele se levanta, deitando-me com cuidado no travesseiro.
— Eu vou mandar um médico te ver, vai ficar tudo bem, eu só perdi um
pouco o controle, vai ficar tudo bem — ele continua falando.
Mas não quero que fique bem. Eu quero morrer, talvez sangrar até a
morte, morrer asfixiada, de tanto apanhar, não ligo, só quero que acabe
logo.
Ele continua falando enquanto se troca, lá fora tudo está silencioso e um
disparo em meu coração me acorda do torpor que eu estava.
— A luta acabou? — pergunto baixinho, sentindo a voz arranhar minha
garganta machucada.
Arkady se vira para olhar para mim, devo estar enlouquecendo ao
provocá-lo desse jeito, é o que digo a mim mesma, enquanto tento me
mover na cama, mas não consigo.
Ele está tremendo de ódio, seu corpo inteiro parece prestes a pegar fogo
e tenho certeza de que sua mão está ardendo de tanto me bater. Meu rosto
queima e sinto gosto de sangue, mas não ligo, estou feliz, finalmente
encontrei uma forma de devolver um pouco do que ele me faz. Machucar
seu ego é quase pior do que machucar o meu corpo e isso me dá forças para
continuar, dia após dia.
— Roman? É sobre ele que quer saber? — Ele se aproxima até parar
bem na minha frente. — Ah sim, ele ganhou, eu acho, não sei, estava com
minha puta, não ouvi, o som da sua boceta sendo fodida era mais alto — ele
diz. — Mas sabe de uma coisa? Eu havia prometido a ele que você assistiria
a sua luta hoje. — Meu coração se agita com essa informação. — Ele pediu,
não, na verdade, ele exigiu que você estivesse lá.
— Mas eu não estava — sussurro enquanto tento me sentar.
— Não, mas ele não sabe disso, eu mandei outra garota, e agora o Rei
do Poço está feliz, e eu... — Ele olha para o meu corpo machucado e sorri.
— Eu estou muito feliz.
Arkady se inclina e deixa um beijo casto em meus cabelos.
— Preciso ir, devochka, o Rei do Poço está esperando por você. Mas
preciso avisar a ele que hoje não poderá te comer.
Ele sai do quarto me deixando sozinha.
Roman me queria lá, ele exigiu minha presença.
Ele me quer. Ele ainda me quer.
Inclino-me para a frente e começo a rir, um riso desesperado, que faz o
meu ventre doer e minhas costelas balançarem. Rio tanto que começo a
chorar, até adormecer.
Posso sentir o sangue quente como lava correndo por minhas veias,
bombeando meu coração que bate pesado em meu peito, com tanta força
que não ouço nada à minha volta além do som do meu ódio.
Quente, forte, insano.
Mal espero a porta se fechar para que minhas mãos comecem a
trabalhar. Seguro Arkady pelo colarinho e o empurro até a parede, o barulho
do seu crânio batendo no concreto é música para os meus ouvidos e meus
dentes se arreganham involuntariamente. Nesse momento sou tudo, menos
humano.
— Onde ela está?! — grito em seu rosto e ele fecha os olhos como se
minhas palavras o tivessem acertado em cheio. — Responda! — Empurro
sua cabeça na parede mais uma vez.
Sinto os passos dos seus capangas se aproximando, mas não ligo, não
me movo, apenas encaro o filho da puta à minha frente. Arkady ergue a
mão exigindo que seus homens se mantenham longe e volto a perguntar:
— Onde. Ela. Está?
— Quer fazer o favor de me soltar? Não consigo falar enquanto estou
sendo enforcado por um maluco.
Alivio a pressão das minhas mãos em volta dele, mas não me afasto.
Estou pulsando de raiva e quase perdi a luta porque não conseguia parar de
pensar onde ela está.
— Ela estava lá... — ele começa a falar, mas o interrompo.
— Não brinque comigo, Arkady, eu sei que não era ela.
— Não? — Ele tosse e me sinto satisfeito por um instante. — Chamem
o Zakhar — ele pede para os homens atrás de mim e ouço eles saindo da
sala e nos deixando a sós.
— Por favor, garoto, se acalme. — Ele dá batidinhas em meu pulso e
afasto minhas mãos do seu rosto vermelho.
Arkady respira fundo e ajusta a camisa, sinto minhas veias pulsarem
com a fúria dentro delas.
— Onde ela está? — pergunto pela terceira vez.
— Eu não sei, eu dei a ordem para que ela fosse levada.
— Não a levaram — afirmo porque mesmo que, de onde eu estivesse,
não fosse capaz de ver seus olhos, eu sei que não era Yelena, não era sua
figura pequena e delicada, não eram seus olhos de gelo.
— Então houve um engano aqui, porque a ordem foi dada.
A porta se abre e Zakhar entra acompanhado dos outros dois caras, ele
olha para o chefe e para mim sem entender nada.
— Está tudo bem por aqui?
— Não, não está nada bem, eu dei uma ordem e ela não foi cumprida.
— Arkady parece furioso e Zakhar parece confuso.
— Como não?
— Eu prometi ao Roman que Yelena estaria hoje na sua luta, dei minha
palavra e ela foi desonrada.
— Mas havia uma garota, senhor — fala um dos capangas.
— Mas não era a Yelena — digo encarando o rosto mal-encarado do
homem.
— Onde ela está?! — ele continua gritando descontroladamente e quase
acredito que ele foi enganado.
— Eu... eu não sei, senhor — Zakhar fala e não há nada do gigante
feroz nele nesse momento.
— Procure-a, se virem, tragam-na para mim agora! — Arkady diz,
ainda mais vermelho.
— Sim, senhor — Zakhar responde antes de sair da sala junto com seus
homens e, quando ficamos apenas nós dois, me afasto dele e caminho até o
outro lado.
— As coisas estão um pouco fora do controle esses dias, outra das
nossas meninas cometeu suicídio e... — Ele balança a cabeça de um lado
para o outro parecendo chocado. — Eu nunca vou me conformar em como
alguém é capaz de um ato tão... horrível.
Penso em dizer que sei o motivo de alguém tirar a própria vida, quando
é usada como um objeto. Que sei que ele está mantendo essas garotas em
cárcere privado e que não vou deixar isso barato. Mil coisas passam pela
minha cabeça, quero matá-lo agora mesmo, com minhas mãos, com seu
abridor de cartas, com a sua gravata, com meus dentes, mas o que eu
ganharia? Com certeza, não sairia vivo desse lugar, e nunca mais veria
Yelena, nem a conseguiria protegê-la.
Preciso pensar, ser mais esperto que ele, entrar no seu joguinho, ver
onde ele vai me levar, então respiro fundo e finjo.
— Eu sinto muito — digo relembrando a garota morta em meus braços,
a forma como seus olhos me encaravam, sem vida, sem esperança, sem
futuro.
Ainda tenho pesadelos com aquela menina.
— Tudo bem, não é sua culpa, eu compreendo sua fúria. Eu fiz uma
promessa e ela não foi cumprida, mas vamos resolver isso já. — Ele se
senta em sua poltrona e caminho até a janela, depois até a parede e
novamente até a janela tentando acalmar meus punhos que gritam para
afundar o crânio desse maldito. — Você foi muito bem essa noite.
— Eu quase perdi — confesso.
— Droga, me desculpe, eu estou tão chateado.
— Eu quis perder — confesso e ele me olha parecendo confuso.
— Quis?
— Eu não estou brincando, Arkady. Se ela não estiver lá na próxima
luta, eu vou perder, e eu sei que isso será péssimo para os seus negócios —
digo encarando seu rosto. — Para todos eles — completo mencionando os
jogos ilegais que ele realiza por baixo das fuças dos patrocinadores.
— Para os seus também.
— Estou pouco me fodendo para o dinheiro.
— É pouco inteligente não dar o devido valor que o dinheiro merece.
— Eu sei o que deve ou não ter valor na minha vida — respondo sem
paciência.
A porta se abre antes mesmo que Arkady possa falar qualquer coisa e
Zakhar entra carregando a garota de capuz cinza que estava no Poço essa
noite. Ela é pequena e delicada, bonita como todas as meninas que são
mantidas aqui, seus olhos azuis parecem apavorados, mas não é Yelena.
— Essa foi a garota, ela disse ser a Yelena e o responsável em trazê-la
acreditou.
— Você fez isso? — Arkady pergunta para a garota, que se ajoelha no
chão e abaixa a cabeça.
— Me perdoe, senhor, eu não sabia que seria tão grave.
Arkady se levanta e vai até onde a garota está, ele a segura pelo braço
forçando-a a se levantar. O pavor cresce no rosto da menina, que começa a
choramingar e, antes que eu possa reagir, ele a esbofeteia.
— Mas que caralho! — Corro até onde eles estão, o corpo da menina é
jogado para trás e ela só não cai porque a seguro em meus braços. — O que
está fazendo, porra?! — grito com ele enquanto seguro a pobre garota, que
chora descontroladamente.
— Estou corrigindo-a — ele diz massageando a própria mão e uso tudo
de mim para não a quebrar.
— Você esbofeteou uma garota. — Abaixo meu rosto e observo-a. A
marca vermelha da mão dele se espalha rapidamente por seu rosto e ela olha
para mim como se pudesse pedir desculpas. — Eu sinto muito — sussurro,
acariciando seu rosto e ela volta a chorar.
— Olha, garoto, não vou permitir que você julgue meus métodos de
trabalho. Ela mentiu, poderia ter prejudicado meus negócios por causa de
uma mentira, um tapa é pouco para o que ela merecia.
— Não vou deixar que a machuque, não importa o que ela fez. — Olho
para a garota, a marca fica mais vermelha a cada segundo.
— Tudo bem, você tem razão, eu me extrapolei, sinto muito — ele fala
com a emoção de uma porta. — Zakhar, leve-a para colocar um gelo nesse
rosto e cuide para que ela fique bem.
O capanga vem até onde estou e retira a garota dos meus braços, ele sai
levando-a e sinto uma agitação em meu peito ao imaginar Yelena sendo
agredida dessa forma.
— Onde está Yelena? — pergunto pela terceira vez.
— Eu não sei, eu não sou babá da sua garota, tenho milhões de coisas a
fazer.
— Foda-se, eu quero vê-la.
— Vamos fazer o seguinte, na próxima luta, você a verá, prometo. Eu
mesmo farei questão de levá-la para você, ela estará assistindo você
massacrar seu oponente de camarote. — Ele vem até mim e passa o braço
por meu ombro.
— A próxima luta é daqui a uma semana, não vou esperar tanto tempo
assim.
— Roman, você não vai me dizer o que fazer.
— Eu não dou a mínima, me dê a garota e eu te deixo em paz.
— Hoje não.
— Onde ela está? Você a machucou?
Arkady se vira de frente para mim, seus olhos brilham e não consigo
identificar o que há neles, mas não gosto do que vejo.
— Eu jamais machucaria uma garota.
— Você acabou de esbofetear uma garota na minha frente.
— Aquilo foi um erro, mas não sou um abusador — ele diz isso olhando
dentro dos meus olhos e me assusto com a capacidade dele de mentir.
— Não é o que vejo, Yelena é cheia de marcas, por quê? Por que essas
meninas são mantidas aqui?
— Garoto, não faça perguntas demais, aceite o que estou te oferecendo,
nenhum outro Rei do Poço teve tanta liberdade quanto você. Não faça os
patrocinadores se arrependerem de terem te escolhido.
Sinto o peso das ameaças embutidas em suas palavras e me calo, não
posso bater de frente com ele. Arkady tem razão, por algum motivo eles
gostam de mim e preciso preservar isso.
— E essa garota?
— O que tem ela?
— Quero que me prometa que ela vai ficar bem.
— O que está pensando de mim, rapaz? É claro que ela vai ficar bem.
Houve um mal-entendido e já está resolvido.
A porta se abre mais uma vez e Zakhar entra agora sozinho.
— Arkady, estão te esperando para a reunião de emergência.
— Ah sim, claro. Por favor, acompanhe o Roman até a saída, dê a ele
uma bonificação para compensar o transtorno. Pode ser 30%, não, melhor,
50%.
Ele se afasta, indo até a mesa e pegando seu celular. Antes de sair, ele
vem até mim e dá um tapinha em meu rosto.
— Não se preocupe, estamos cuidando muito bem da nossa devochka.
Ele se afasta e uma sensação esquisita aperta meu peito.
Arkady está cheirando a Yelena.
A porta se abre e Arkady entra, não me movo, nem ao menos ergo meus
olhos. Não tenho mais forças para lutar, ele venceu. Mais uma vez, ele
conseguiu o que queria e voltei a minha vida miserável.
Não penso mais em Roman, nem na noite em que ficamos juntos. Não
adianta, tudo só piorou e agora Arkady parece um louco obsessivo, então eu
desisti de tudo. Não como, não tomo banho, não me movo, apenas
permaneço deitada esperando que ele venha e me use, e depois viro para o
outro lado e choro baixinho até dormir. E durmo o máximo que posso, até
perder a noção de dia e noite, de vida e morte.
Ele se aproxima devagar, se senta ao meu lado, mas não me toca.
Espero pela bofetada, mas ela não vem, espero por qualquer coisa, mas ele
apenas me observa, como se estivesse me olhando pela primeira vez.
— Essa semana uma das garotas morreu — ele diz baixinho, quase
como se importasse. — Foi horrível, havia sangue por todo lado. — Ele
balança a cabeça e ergo meus olhos rapidamente.
Que inveja.
— Fiquei pensando, se fosse você, o que eu faria — ele continua. —
Mas você é uma das garotas mais fortes que já passou por esse Poço — diz
ainda sem me tocar. — Você não faria isso, não é? Você não me deixaria.
Não reajo.
— Se não por mim, ao menos por ele, afinal de contas, o futuro do
garoto está atrelado a você — ele chama minha atenção e ergo os olhos. —
Pois é, ele disse que, se não te ver, vai perder de propósito e, sabe como é,
os patrocinadores veriam como um ato de traição e traidores não são bem-
vistos por aqui — Arkady suspira e sinto meu estômago se revirar. — Eu
adoraria que você fosse mais maleável, tudo seria mais fácil.
Não me movo.
— Não haveria tanta dor, tanto sofrimento.
Não respondo.
Arkady respira fundo e estica a mão para me tocar, instintivamente me
retraio e ele para com a mão no meio do caminho.
— Você não seria capaz de machucar o garoto, não é mesmo?
Olho para ele por tanto tempo que tenho certeza de que ele sabe a
resposta, claro que não. Eu jamais faria algo que pudesse prejudicar Roman.
— Por isso te amo. — Ele dá um tapinha em meu rosto. — A minha
Bela do Poço, dona do meu coração. — Sua mão finalmente toca minha
bochecha e ela queima quase tanto quanto se ele tivesse me batido.
Arkady se levanta, afastando-se de mim e encaro suas costas enquanto
imagino uma lâmina descendo por ela, rasgando-o ao meio.
— Quero que se levante, tome um banho, fique bem linda, essa noite
vai ser especial. — Ele parece animado e me afundo no colchão. Será que
se eu disser não dessa vez ele me mata? — Você não vai me perguntar o
porquê?
Viro-me de costas para ele desejando que a resposta seja sim.
— Vamos lá, Yelena, hoje você vai ver o Rei em ação, vamos assistir a
sua luta de camarote — ele diz chamando minha atenção.
Me movo devagar, sentindo a fraqueza dos últimos dias cobrar seu
preço. Desde que Arkady me machucou, da última vez, ele vem sendo
cuidadoso, e hoje não é diferente, ele me ajuda a ir ao banheiro, lava meus
cabelos e me ajuda a vestir uma roupa. Quase choro ao me olhar no
espelho, de jeans e camiseta, tão... comum, quase a Yelena que fui um dia.
— Ele vai amar te ver assim — ele diz por trás de mim, como um
espírito maligno, me atormentando e me iludindo.
Arkady seca meu cabelo e me obriga a comer e beber, e quando a noite
chega, trazendo com ela a agitação de mais um torneio de lutas, ele ainda
está aqui, me ajudando, me falando que Roman me quer lá, que ele vai amar
me ver e que essa noite é especial.
E por mais que eu queira acreditar, não tenho mais forças para isso.
Paro na frente da última porta do dia, a mesma que vi nos últimos vinte
anos, velha, gasta, com arranhões e marcas do tempo. Inclino-me no vaso e
pego a chave, já posso ouvir Berstuk lá dentro e me pergunto como ele faz
para fugir sempre e estar em casa quando chego, como se tivesse um sensor
que o avisa quando estou perto.
Abro a porta e sinto o familiar cheiro de casa, aquele cheiro que só o
nosso lar tem, não importa se é um lugar grande ou um apartamento
decadente no Gigante Laranja. É minha casa, meu lugar. Meu cheiro.
— E aí, bichano, como você passou o dia? — Me aproximo estendendo
minha mão para ele, mas Berstuk apenas olha para ela e se vira voltando
para o sofá. — O meu foi ótimo, obrigado por perguntar. — Jogo minhas
coisas em cima do balcão e caminho até a sala, me jogando no sofá. Berstuk
se aninha ao meu lado enquanto lambe suas patas. Ficamos um tempo
assim, apenas aproveitando a companhia um do outro. — Sabe, eu tô bem
confiante — digo encarando uma mancha no teto. — Sei que vai dar certo,
mas se não der, quero que você me ouça — continuo falando para o gato
que, na maior parte do tempo, nem olha para mim. — O Dem vai cuidar de
você, tudo bem? Ele não prometeu e eu sei que ele tem medo de você, mas
meu amigo sabe que... merda, ele sabe que você é tudo o que tenho e que é
importante para mim, então quero que seja bonzinho com ele, tá? Nada de
arranhar ou de assustá-lo, fica na tua, não encara. Ele vai entrar, te alimentar
e vai embora. Quem sabe, com o tempo, ele se acostuma com você e então
te leva para o Norte. — Meu gato se move erguendo o rosto como se
estivesse compreendendo o que estou falando. — Eu sei, eu sei, você não
gosta do Norte, mas isso é até você conhecer a Irina, ela vai encher a tua
pança até você não aguentar mais comer e tem um monte de escadas, você
vai adorar, e vai poder assustar o Demyan sempre. — Sorrio imaginando
meu amigo xingando o Berstuk porque ele o assustou. — Ah, você também
tem que me prometer que não vai confiar em qualquer um. Se eu não voltar,
significa que... bom, você sabe, e então todos saberão que você está por sua
conta, e não confio em ninguém, só no Grigory e no Demyan.
Berstuk se espreguiça e muda de lugar, sentando-se no outro lado do
sofá, de frente para mim.
— Sabe quem falou de você? Não vai acreditar, a Yelena, ela te
conhece. Tem ideia? Você é famoso, seu gato feio da porra! — Passo a mão
em sua cabeça e ele ronrona para mim. — Eu tô começando a achar que
você é mais famoso que o Rei do Poço — rio sem achar graça. — Onde
será que ela estava, hein, antes de tudo isso acontecer? Onde a minha fada
estava que eu nunca a vi? Você se lembra dela? É uma garota pequena,
magra, de enormes olhos azuis, quase glaciais, cabelos longos, castanhos, e
sardas lindas que enfeitam seu narizinho de fada. — Sorrio ao me relembrar
de cada pequeno detalhe de Yelena. — Acho que você também não a
conhece, né? Tenho certeza de que não esqueceria, ela é inesquecível.
Meu gato continua com sua rotina de se limpar enquanto continuo
falando sem parar, talvez porque, no fundo, eu saiba que, se parar, vou
começar a pensar; e se eu pensar, bom, talvez eu descubra que Grigory tem
razão e eu não passo de um mudak. O maior de todos.
Não me recordo a última vez em que vim aqui e isso me deixa com um
sentimento de culpa, que corrói meu coração, quando me dou conta de que
durante anos usei a sua morte como justificativa para a minha rebeldia
quando, no fundo, sempre fui assim, sempre gostei de quebrar regras, de
ultrapassar limites, de impor a minha vontade.
No fim das contas, estou no lugar onde deveria estar, não sou mesmo
melhor do que aqueles caras que me encaram de volta no Poço. No
máximo, sou um filho da puta hipócrita que se escondeu atrás do
assassinato da mãe para explorar suas merdas.
Berstuk se aproxima de mim, roçando seu corpo magro e sem pelos na
minha canela, como se estivesse me dando apoio. Sento-me e ergo o rosto
para a fotografia que eu mesmo coloquei aqui três anos atrás. Observo o
mato alto, a falta de flores, como se ela nunca tivesse sido importante para
mim.
— Oi, mãe, sou eu, o Roman — falo, como se o fato de não ter vindo
aqui a fizesse se esquecer de mim de algum modo. — Eu sei que tô em falta
com você, e que essa não é o tipo de visita que deveria fazer, mas não tenho
muito tempo. — Respiro fundo e olho em volta. Está tarde, escuro e tão
frio, que não sinto a ponta dos meus dedos. — Tanta coisa aconteceu na
minha vida, que, às vezes, eu acho que não sou mais aquele menino que te
enterrou — exalo, grossas baforadas de ar condensado saem da minha boca.
— Eu tenho muito o que falar, mas não vai dar. Você sabe quem sou, sabe
que sempre odiei injustiça e que me meti em muita merda por causa disso,
eu preciso fazer isso mãe, mas não estou com medo, espero que você saiba
disso e que saiba também que eu... eu te amo, mãe, mesmo que não diga
muito, que não venha aqui, mesmo se eu não voltar nunca mais, eu te amo.
— Pego o pacote com o bolinho favorito dela e abro, como um pedaço e
coloco outro em cima do seu túmulo, Berstuk observa esperando por seu
pedaço. Comemos em silêncio, enquanto me lembro de momentos nossos,
os três juntos em jantares tardios, rindo, felizes, mesmo sem saber.
Levanto-me e vou até a sua foto, passo a ponta dos dedos em seu rosto,
a saudade aperta em meu peito à medida que me dou conta de que não
importa o que aconteça, as pessoas que amo sempre se vão de algum jeito.
— Cuida de mim aí de onde você estiver — sussurro para a fotografia.
— Se puder, cuida dela também, eu preciso muito da sua ajuda — admito.
— Então se puder, só me ajuda, por favor.
Quando saio do cemitério, com Berstuk ao meu lado e um sentimento
de missão cumprida, sinto que estou pronto para o que me espera, seja lá o
que for.
O dia finalmente chegou, depois de uma semana difícil, dolorosa e
longa, Arkady parece não ter percebido nada, ao menos ele não imagina que
a chave perdida do seu capanga segue debaixo da minha cama. Mesmo
assim, todas as vezes em que ele entra aqui sinto meu coração parar para
depois bater em uma velocidade três vezes maior. É uma tortura insana que
faz as sessões de sexo com ele parecer o paraíso.
A porta se abre e Arkady entra carregando minha roupa, jeans e
camiseta, algo simples e que me faz parecer uma garota comum, apenas
mais uma na multidão.
O problema é que não sou comum, talvez um dia eu tenha sido apenas
uma garotinha frágil e sonhadora, que acreditou que existia pessoas boas no
mundo, mas essa garotinha morreu e o que sobrou já viu coisas demais. Foi
forjada a ferro e fogo, passou pelo inferno, deitou com o próprio diabo, e,
quando achou que não iria suportar, descobriu que tinha forças para mais.
Sou forte demais para ser considerada comum.
— Está pronta para a noite de hoje? — Ele deposita a roupa em cima da
cama, com seus pés a menos de um metro de distância da minha salvação.
Estou sentada no meio dela, envolta nos lençóis, exatamente como ele
me deixou pouco mais de uma hora depois de me usar e dizer que me ama.
Amor, ele não sabe o que é isso, ou nunca diria algo assim. Amor não
machuca, não humilha, não usa; amor é doação, entrega, cuidado. Coisas
que Arkady não conhece.
Ergo meus olhos da forma mais inocente que consigo e balanço a
cabeça em um sim sem muita confiança. Arkady me olha com um pouco
mais de atenção, como se finalmente notasse que não estou bem.
— O que houve, minha devochka? — Ele pousa o indicador em meu
queixo, erguendo meu rosto para olhar para ele. — Eu te machuquei?
Sinto vontade de rir, não, de rasgar seu rosto com minhas unhas, de
arrancar esses olhos do mal de seu rosto.
Machucar? Será mesmo que ele sabe o que é isso? Minhas costas ainda
ardem do resultado da punição da semana passada — aquilo que ele
chamou de obra de arte —, meu corpo ainda está sensível por ter sido
violado sem eu querer. Hoje sei o que é dor e o que é prazer, e isso só faz o
ódio que sinto por ele aumentar.
— Não, é que eu acho que não estou me sentindo muito bem. — Pouso
a mão em meu estômago, o lençol de cetim escorrega por meu ombro,
deixando um dos meus seios à mostra. Arkady o observa e um brilho
maligno surge em seus olhos.
— Como assim?
— Não sei, ontem um dos seus homens estava espirrando e disse que
estava com dor de estômago. — Ergo o ombro parecendo confusa.
— Ele te tocou? — ele pergunta se sentando e afastando o cabelo do
meu rosto. — Me diga a verdade, Yelena.
— Por favor, não me peça isso.
— Fale agora! — ele grita e me encolho.
— Ele... ele me beijou e...
— Quem fez isso? Fale agora! — Arkady exige, seu rosto fica vermelho
como se nenhum outro homem fosse merecedor de me tocar a menos que
ele ache que deve.
Hipócrita imundo!
— Eu não sei, estava escuro e eu não ergui os olhos, mas foi só um... —
Espirro, virando o rosto para o outro lado. — Agora tudo dói.
— Maldição, vou me informar e quem estiver doente é um cara morto.
Eu sei que deveria me sentir mal por estar colocando a vida de um
homem em perigo, mas não tenho tempo para isso, além do mais, ele não
hesitaria se pudesse me estuprar. Então, o que posso dizer é que ele tem
sorte, ao menos Arkady não gosta de homens. Sua morte provavelmente
será rápida, quase indolor, diferente da minha, que se estende há tanto
tempo.
— Por favor, não grite, minha cabeça dói. — Aperto as laterais e gemo
com tanta verdade, que faria qualquer um acreditar que estou mesmo
adoecendo.
Quase posso imaginar Roman parado do outro lado do quarto, os braços
cruzados e um sorriso enorme em seus lábios, orgulhoso de mim.
Afasto todo e qualquer pensamento que me leve àquele sorriso bonito
ou ao dono dele, não é hora para isso, não agora.
— Me desculpe, minha devochka. — Ele parece nervoso e posso jurar
que suas mãos estão suadas, trêmulas. — Vou pegar um remédio para você,
por favor, não se levante.
— Mas, e o Roman? Hoje eu teria que servi-lo. — Baixo o olhar para as
minhas mãos unidas em meu colo, exatamente como ele gosta, submissa,
frágil, inocente.
— Dane-se o Roman, ele vai entender, tenho certeza que sim.
— Não fale antes da luta — peço ainda de cabeça baixa.
— Por quê?
— Porque ele pode ficar preocupado e se distrair. Não seria bom para
você se ele perdesse, correto? — Nunca falei dessa forma com ele, dando
palpites, mas também nunca fiquei tanto tempo aqui em cima, nunca tive
um único parceiro por muito tempo e, pela forma como Arkady me olha, ele
também está surpreso com minha observação.
Me sinto ousada e mal consigo respirar, a adrenalina deixa cada célula
do meu corpo ciente de que estou brincando com o perigo. Respiro com
dificuldade e Arkady confunde a ansiedade com mal-estar.
— Deite-se, não se preocupe com nada. — Ele me ajuda a deitar, suas
mãos imundas afastam meus cabelos, seus lábios asquerosos beijam minha
testa, seu cheiro me deixa verdadeiramente doente e uso tudo de mim para
não desviar o olhar quando seus olhos negros como o mal me encaram. —
Eu cuidarei de tudo, nosso rei vencerá essa luta, e na semana que vem, ele
estará no topo, pronto para o Padat’ — Arkady diz com a arrogância de
quem acredita que tem o poder e o controle, e apenas movo minha cabeça.
Observo o homem, que me mostrou que o inferno existe, caminhar para
fora do quarto e sinto um misto de nervoso e alívio ao ouvi-lo trancar a
porta.
Na semana que vem estaremos longe, bem longe de tudo isso e,
principalmente, de você, seu desgraçado.
O verão em Temnyy Gorod é um período de férias, ruas cheias, crianças
brincando, peles à mostra, luz, dias longos, cor.
É quase como se eu estivesse em outro lugar, é bom, mas me sinto mais
eu quando tudo fica novamente cinza. É como voltar para casa.
Uma vez, eu, Demyan e Anna fomos a um lago na divisa de Temnyy
Gorod, no lado Sul, passamos o dia inteiro para chegar ao local que Anna
jurou por tudo que era lindo. Ao chegar, sentei-me em um formigueiro e só
me dei conta quando todo o meu corpo estava pinicando.
É exatamente assim que estou me sentindo agora, como se uma porção
daquelas formigas estivessem sobre mim, me atormentando, me
enlouquecendo. A diferença é que hoje ninguém vai me socorrer, não posso
gritar por socorro.
Hoje, eu sou o socorro.
A porta se abre e o barulho invade o lugar onde estou, hoje o Poço
parece um caldeirão fervendo. Não há nem mesmo como se mover tamanha
a quantidade de pessoas que estão lá, todas esperando pelo rei.
É a última luta antes do Padat’, o outro finalista lutou ontem. Não vim
ver, não sei quem é, não quero saber, não me importa, até mesmo porque
essa luta não vai acontecer.
Uma garota entra com uma bandeja repleta de coisas: bebidas, comidas,
drogas. Ela não me olha, apenas se move até o outro lado da sala e deposita
a bandeja na mesa, então ela para na minha frente e faz uma mesura
exagerada, como se eu realmente fosse algum tipo de rei ou divindade. Ela
não espera que eu diga nada, apenas sai, fechando a porta, me livrando do
barulho.
Um minuto depois, a porta se abre novamente, Arkady entra parecendo
preocupado, ansioso. Meu coração dispara e respiro fundo tentando ao
máximo não demonstrar nada.
— Ansioso por hoje? — Ele retira aquele maldito lenço do bolso do
terno e limpa a parte superior do lábio enquanto caminha até onde estou.
— Um pouco — respondo enquanto estralo os dedos da mão esquerda.
— Vai ser uma luta e tanto, o Poço está fervendo — ele continua, mas
não sinto a animação de sempre em sua voz. Será que ele desconfiou de
algo?
Arkady vai até onde está a bandeja, pega um copo e se serve de uma
bebida, que ele engole de uma vez, então enche o copo de novo e toma mais
um gole.
— Você esteve doente?
— Como?
— Nada, esquece.
Ele balança a mão no ar e bate o copo na mesa antes de cheirar uma
carreira de pó.
— Ah... — Ele revira os olhos e observo sem gostar nem um pouco das
suas atitudes.
— Está tudo bem? — pergunto sem paciência.
— Infelizmente, nossa devochka não vai poder estar no Poço essa noite.
— Como assim?
— Ela aparentemente está doente.
— Aparentemente?
— Não, ela está doente, nossa menina pegou um resfriado e não quero
expô-la a mais vírus, além do mais ela está com dor de cabeça, não fará
bem para ela ficar ali em meio a tantos gritos. Tenho a impressão de que
essa noite alcançaremos um público nunca visto no Poço.
— Mas ela está bem? — pergunto preocupado.
— Sim, só um pouco fraquinha, sabe como é, ela é frágil e delicada.
Não, ela não é frágil, nem um pouquinho. Yelena é a garota mais forte
que já conheci na vida.
— Então acho que é melhor mesmo, mas ela está bem, certo?
— Sim, não se preocupe, agora você precisa se concentrar na luta, essa
noite será incrível, as apostas estão altíssimas. — Ele esfrega as mãos
exageradamente e o sorriso que se espalha por seu rosto faz meus punhos se
fecharem involuntariamente. — Bom, vou deixar você se preparar. Se
quiser trepar, me avise. Posso providenciar uma garota, não é como nossa
devochka, mas dá para o gasto.
Ele sorri ao passar por mim dando um tapinha em minhas costas, com
as pupilas dilatadas, o sorriso de lado, o ar confiante que tanto odeio.
Tudo está indo bem, conforme planejamos, vai dar tudo certo.
Respira, Roman, falta pouco, falta muito pouco.
O barulho lá fora é insano e, se eu não soubesse o motivo, poderia jurar
que outra catástrofe acaba de acontecer em Temnyy Gorod, mas na verdade
é tudo por ele, pelo Rei do Poço.
Roman está aqui, em algum lugar, e quase posso sentir a ansiedade que
emana de seu corpo se esgueirando pelas paredes desse lugar, alcançando-
me, me tocando, reconhecendo a minha própria ansiedade.
Mal consigo respirar, o ar entra em meus pulmões trêmulos, enchendo-
me de coragem, fortalecendo a certeza de que estou fazendo a coisa certa.
Estou no mesmo lugar desde que Arkady saiu há quase uma hora, o
nome de Roman começa a ser ecoado em uma música a cada cinco minutos.
Já decorei, é boba, mas bonitinha, imagino-o ouvindo-a, o ar presunçoso em
seu rosto, o sorriso debochado em sua boca, lindo. Tão lindo.
Meu rei.
Preciso esperar, tudo tem que ser executado da forma que planejamos.
Durante todos esses dias, eu já refiz aquelas palavras sussurradas em meu
ouvido milhares de vezes. Sua voz rouca, a forma como seus dedos me
seguravam enquanto ele me possuía, nunca perdendo o contato, nunca
deixando de me fazer sentir, mesmo quando nossas mentes estavam em
outro lugar.
Foi insano, a coisa mais sexy e louca que já fiz.
Mais vinte minutos se passam, o som das pessoas lá fora se torna maior,
a euforia é sentida até por quem não está presente. Está chegando a hora, o
Rei do Poço entrou no ringue.
É o meu momento.
Levanto-me da cama devagar, meus olhos encaram os meus pés
enquanto caminho até o lado onde a chave está. Derrubo um pedaço de pão
no chão e me abaixo para pegar, estico-me um pouco e alcanço a chave, o
metal parece quente em minha palma, minhas mãos tremem tanto que tenho
medo de derrubá-la. Me levanto ainda sem erguer o rosto e caminho
devagar de volta para a cama. Sento-me e observo tudo a minha volta,
memorizando cada detalhe, relembrando os passos que dei na única vez em
que estive no Poço, fazendo o caminho em minha mente.
Vai dar certo, eu sei que vai.
Os gritos aumentam...
Roman, Roman, Roman...
Começo a contar...
Um, respira, dois, respira, três...
“Conte até cem, pausadamente, assim ó. Um, respira, dois, respira, três
respira... Assim teremos a certeza de que ambos estamos contando igual.”
Trinta, respira, trinta e um respira...
“Como vou saber que você está contando?”
“Assim que os gritos aumentarem significa que entrei no ringue, será o
momento da apresentação e começarei a contar, e você também.”
Noventa e nove, respira, cem.
Ergo meu rosto, encaro a porta à minha frente, sabendo que só tenho
uma chance. É agora, não posso hesitar. Aperto a chave com força enquanto
me levanto, obrigando meus pés a se acalmarem. Não posso correr, vou até
ela, espalmo minha mão na madeira e colo meu ouvido, como se estivesse
apenas tentando ouvir. Com a outra mão, delicadamente coloco a chave na
fechadura, meu coração bate com tanta força, que sinto meu peito doer.
Um clique.
Roman, Roman, Roman...
Dois cliques.
Dou um passo para trás, nesse momento uma câmera está gravando
tudo, tenho apenas alguns minutos, minha única chance é acreditar que
todos estão de olho no Poço, no que Roman está fazendo.
“Vou dar a eles uma luta incrível.”
“O que você vai fazer?”
“Vou matá-lo.”
Toco a maçaneta, giro-a, abro a porta, dou mais um passo. O corredor
está vazio, olho rapidamente para o outro lado antes de começar a correr.
Meu estômago revira, a bile sobe em minha garganta. Quero voltar e me
trancar, quero me deitar na cama e rezar para que ninguém tenha visto,
quero correr até meus pés sangrarem, quero viver, quero morrer, quero
alcançá-lo.
Roman, Roman, Roman...
Sigo os gritos, a adrenalina, o meu coração.
“Vai dar certo, fada.”
“Como você sabe?”
“Porque eu confio em você.”
O som do caos preenche tudo à minha volta, diminuo o passo, me
escondo quando vejo um dos capangas, o suor começa a cobrir minha testa,
minhas pernas tremem, meu coração bate.
Estou tão perto...
“O Demyan estará à sua espera, é fácil reconhecer, ele será o único
idiota de capuz.”
“Como ele saberá que sou eu?”
“Ele saberá.”
Os dois homens passam apressadamente, os olhos fixos no ringue.
Falta pouco agora.
Me recomponho, jogo meu cabelo para a frente, seco minhas mãos na
calça e respiro fundo.
Vamos, Yelena, é agora ou nunca.
Coloco um pé na frente do outro, não olho para os lados até chegar ao
salão principal. Quero chorar de emoção quando me misturo, desvio meu
olhar rapidamente para onde ele está, perco o ar com o que vejo. Roman
parece exatamente o deus que todos acreditam que ele seja, forte, grande,
imponente, o rosto corado, os cabelos colados à testa, o suor deixando sua
pele pálida iluminada, tão lindo.
Ele está focado em seu oponente, os ombros se movendo com violência
à medida que seus golpes brutos atingem o adversário.
Sou empurrada por um grupo de homens que querem ver a luta mais de
perto, dou um passo para o lado e volto a caminhar.
“Vá para perto da porta, Demyan estará lá. Não diga nada, apenas o
siga. Ele vai te levar para longe daqui.”
“Mas e você?”
“Eu estarei dando a esses filhos da puta o que eles querem. Nos
encontraremos assim que eu puder.”
Faço o que Roman pediu. De onde estou avisto a porta, mas parece que
Temnyy Gorod inteira está aqui hoje, há tantas pessoas que mal consigo me
mover. Cometo um erro, olho para trás e vejo os mesmos dois homens, eles
estão agora falando algo no aparelho e olham para a multidão como se
estivessem procurando alguém. Como se estivessem me procurando.
Meu coração dispara.
— Licença — peço para um homem que está com os olhos fixos em
Roman. Ele mal me ouve e preciso empurrá-lo um pouco para passar.
Faço o mesmo com os outros cinco que estão à minha frente, um deles
tenta me beijar e desvio o rosto, continuo andando, rezando para que eu seja
mais rápida que eles.
Falta pouco agora.
De onde estou consigo ver a porta, ela parece o portal do Paraíso das
lendas que ouvimos quando crianças, e tudo o que consigo pensar é que, em
algumas horas, eu e Roman estaremos longe, bem longe daqui.
Vai dar certo, ele confia em mim.
Passo por mais um grupo de pessoas e, então, encontro o seu amigo,
reconheço-o antes mesmo dele erguer o rosto. Demyan está apoiado na
parede ao lado da porta, o rosto escondido pelo capuz do seu moletom se
ergue quando me vê se aproximar, sei que é ele porque, no instante em que
ele me vê, seus olhos desviam para onde Roman está e então ele respira
fundo, quase consigo ouvi-lo suspirar.
Mais alguns passos, estou perto, vamos conseguir.
Me movo mais um pouco, quero correr, mas não posso chamar atenção,
Demyan se afasta da parede e olha para mim, mas seus olhos desviam para
o lado, a expressão se transforma e ele solta um palavrão.
— Devochka? Está se sentindo melhor?
Roman derruba seu adversário.
“Vou matá-lo.”
A multidão grita.
Eu me viro.
Arkady está parado na minha frente, com um sorriso de lado enquanto
espera por minha resposta.
Meus olhos desviam para onde Roman está, seus punhos trabalham com
violência, quero pedir para que ele pare, para que vá embora e não volte
mais.
Acabou.
Meu sonho se desfez.
É o fim, estou morta.
Na verdade, eu nunca pensei em matar, mesmo quando me inscrevi no
Poço pela primeira vez, antes mesmo de tudo acontecer e Anna morrer. Eu
sempre achei que seria eliminado antes ou, se chegasse ao final, eu
morreria, mas então as lutas foram acontecendo e, um a um, eles foram
sendo derrotados. Sempre foi fácil para mim bater. Demyan dizia que meu
soco é forte, que tem um impacto destruidor. No ginásio, aprendi a
fortalecer meus músculos, a usar os golpes a meu favor, a me defender, a
me tornar quase invencível.
Quase.
Estou em cima dele, não sei seu nome, seu crime, sua idade, não sei se
ele tem uma família ou se por acaso vai deixar alguém. A única coisa que
eu sei é que preciso continuar, um soco após o outro, até que ele esteja
morto.
É o plano.
Um surto, o descontrole do rei, a loucura do público.
Roman, Roman, Roman...
Continuam gritando meu nome, o chão vibra sob meus pés, mas não
paro.
Ele não reage mais, mas ainda está vivo, sinto seu coração batendo.
Preciso continuar, ergo o punho, não posso parar, não posso desviar o olhar.
Ela está aqui, em algum lugar, Demyan está a postos, eu o vi assim que
entrei. Vai dar certo, é o plano perfeito.
O golpe faz o sangue espirrar em mim, fecho os olhos e desvio o rosto.
Não consigo ver nada, estou cercado de pessoas sedentas por violência,
morte.
— Roman? — Ouço meu nome, mas ainda não acabei. — Já chega! —
Alguém segura meu pulso e viro-me para encontrar Zakhar, que me ajuda a
levantar. — O que diabos pensa que está fazendo?
— Eu... — Não respondo, desvio meu olhar rapidamente para a porta
enquanto o grito explode a minha volta, sou o campeão, o finalista.
Demyan não está lá e isso me deixa aliviado. Deu tudo certo, ela está
fora, longe daqui, minha fada finalmente está livre.
Olho para o homem desacordado aos meus pés, seu rosto está
desfigurado e minhas mãos inchadas. Não sei qual o seu sangue e qual o
meu, estou coberto deles e meu peito infla com força em busca de ar.
Solto um grito que pode ser confundido com comemoração, de certa
forma é. O riso vem em seguida e ergo os braços vibrando.
— Consegui, porra! — grito enquanto sou erguido no ar. Dezenas de
mãos tocam meu corpo dolorido e aquecido pela adrenalina, eles cantam
para o rei, para mim.
Tento agir naturalmente, depois que a euforia passa vou para o vestiário.
Espero que Arkady venha até mim, mas Zakhar me avisa que ele foi
convocado para uma reunião de emergência. Ele me envia uma garota que
eu nego, estou coberto de sangue e justifico que preciso descansar e me
preparar para a final, sem garotas mais. Me lavo, me controlando o máximo
para não correr. Quero logo me encontrar com Yelena, abraçá-la, dizer que
agora ela está livre, que pode ir para onde quiser.
Pode até ir para longe de mim.
Meu peito aperta com a ideia de me afastar dela, mas é a verdade, estou
pronto para deixá-la ir mesmo que isso machuque meu coração.
Minha fada.
Levo mais de duas horas para finalmente conseguir sair do Poço. A
noite fria está congelante e, mesmo com toda a proteção térmica, sinto meu
corpo doer de frio, ou será que é ansiedade?
Caminho pelas ruas desertas da cidade, meus olhos desviam para todos
os lados, conferindo se não estou sendo seguido. Uma sensação estranha
agita meu estômago, tenho medo, quero ir logo embora daqui.
Quando chego ao lugar onde combinamos de nos encontrar, na Kupol,
em uma parte quase desconhecida que divide Temnyy Gorod com o restante
da Rússia, encontro Demyan apoiado em uma árvore, o capuz cobrindo seu
rosto, a fumaça do cigarro flutuando no ar. Ele mais se parece com uma
figura mitológica do que meu amigo.
Não avisto Yelena.
Paro de andar, Demyan ergue o rosto, meu estômago se retorce, porque
conheço essa expressão, conheço bem demais para não me iludir.
— Onde ela está?
— Rom...
— Cadê a Yelena?
— Não deu certo, Roman.
— O quê? — Caminho até onde meu amigo está, parando bem na sua
frente. — Não brinque comigo, cadê a Yelena?
— Roma...
— CADÊ A YELENA?! — grito, sentindo o medo começar a me
dominar à medida que a resposta não vem, nem ela surge detrás de uma
árvore correndo até mim, se jogando em meu colo, vibrando por termos
conseguido.
Demyan balança a cabeça em um não silencioso que não quero ver e
meus punhos se fecham em seu moletom.
— O que você fez? — exijo empurrando meu amigo. — Onde ela está?
— O Arkady a pegou antes que ela conseguisse chegar até mim.
— Não, não, é impossível, a gente planejou tudo, eu quase matei aquele
homem. — Me afasto caminhando até o outro lado. — Não, você se
enganou, vamos voltar, ela deve estar esperando por mim, vamos. —
Começo a caminhar, mas Demyan me segura.
— Roman, pare.
— Me solta, porra! — Empurro seu braço e volto a caminhar.
— Onde você pensa que vai, caralho?
— Pegar a minha fada.
— Roman, a essa hora ela já está escondida em algum lugar, ele não vai
te deixar chegar perto dela.
— Mas eu prometi, porra, eu disse a ela que estaríamos juntos, que eu a
levaria embora dali! — grito. Minha garganta arde quase tanto quanto os
meus dedos.
— Eu sinto muito.
Meus joelhos cedem, desabo no chão.
É o fim, ela está morta.
— Não seja burro, pare um pouco e me ouça — Demyan continua
falando enquanto puxo a mochila debaixo da cama e começo a conferir se
toda a grana está lá dentro. Uma pequena parte de mim se arrepende de ter
dado aquela grana para a Daria, eu preciso de todo o meu dinheiro agora.
— Ele vai me dar ela, ou não vou lutar.
— Roman, desculpa, mas isso... — Demyan aponta para a quantia
dentro da mochila. — É dinheiro de troco para o Arkady.
— Então me dê mais, você tem, você é o dono da porra da metade dessa
merda de cidade, não vai te fazer falta.
— Eu te daria, se eu soubesse que isso a traria de volta para você,
caralho, eu te daria meu império inteiro, mas o que você acha que ele vai
fazer quando te vir lá na frente dele com todo esse dinheiro? — Demyan
continua com uma calma que me assusta. — Ele vai te usar, Rom. Eu sei,
porque eu faria isso. Não importa se você chegar lá com todo o rublo da
Rússia, ele quer isso aqui. — Ele estica a mão e bate o indicador na minha
cabeça. — E ele vai mexer com você até conseguir, agora cabe a você usar
isso contra ele.
Meus ombros despencam, meus olhos ardem. Quero chorar, quero
gritar, quebrar algo, mas Demyan está aqui e ele não vai me deixar fazer
nada que não seja pensar.
Mas eu não consigo pensar em nada além dela, de que falhei mais uma
vez e que agora estou perdido.
Eu não quero pensar, eu quero Yelena comigo, quero ir embora desse
lugar, quero vê-la em segurança, ao invés disso, agora ela está lá, como uma
traidora, nas mãos daquele desgraçado.
— Ele vai matá-la — digo pela primeira vez encarando o rosto do meu
amigo.
— Não vai — ele diz com uma certeza que não compreendo.
— Como você pode saber? Ela tentou fugir, porra.
— Eu corto meu saco se ele a matar.
— Por quê?
— Porque eu vi o jeito que ele olhou para ela.
— Que jeito? — Começo a achar que Demyan está mentindo, tentando
me tranquilizar.
— Ele a ama — meu amigo responde e agora tenho a certeza de que ele
está maluco.
— O quê?
— Ele ama aquela garota, Roman, eu tenho certeza, eu vi.
O sangue aquece minhas veias à medida que tudo se encaixa. Nossa
devochka, ele sempre se referiu à Yelena como nossa, como se ele a
possuísse também. O medo estampado em seu rosto quando perguntei se ela
estava doente, ele acreditou nela, acreditou que ela estava doente.
— Deus... — Sento-me e apoio o rosto nas mãos machucadas, meus
nódulos doem, mas não me importo, tudo o que consigo pensar é que ela
está lá, nas mãos daquele maluco, e eu não posso fazer nada. — O que eu
faço agora?
— Agora você vai se acalmar e depois vamos planejar o próximo passo
— Demyan aconselha com a tranquilidade de quem já pensou em tudo.
O som da bolsa caindo sobre a mesa o faz desviar o olhar dos papéis.
Mais uma vez, vejo os nomes dos próximos lutadores, as inscrições
alcançaram um número absurdo e a pilha à minha frente faz meu estômago
embrulhar. Quantas crianças ele levará ao Poço dessa vez?
No início, eu via as lutas como uma forma de justiça com as próprias
mãos, afinal de contas não há lugar melhor para um assassino do que em
um ringue, apanhando, morrendo...
Mas então vi Sasha se colocar em perigo, se tornar um bandido só para
ter uma chance de estar aqui, de ser como eu, o futuro rei. O problema é que
ele é só uma criança, não deveria estar se preocupando em se tornar um
bandido e sim um homem.
Isso é o que deveria ser o certo.
Não, o Poço não é um lugar de justiça, isso não existe, nunca foi o
objetivo, ele é um lugar de faturar à custa da dor e do sofrimento, da miséria
e da fome. Graças a ele, as pessoas estão começando a ver o crime como
um subterfúgio para algo mais lucrativo.
— Olá, rei. — Arkady se inclina em sua cadeira imponente e ergue os
olhos para mim. — O que te trouxe aqui? Achei que estaria se preparando
para o Padat’.
Demyan me mataria com suas próprias mãos se soubesse que ignorei
seus conselhos de esperar e vim até aqui. Mas como eu poderia ficar em
casa, esperar, enquanto ela foi pega depois de ter tentado fugir? Não, sinto
muito, amigo, mas não posso.
— Onde ela está? — pergunto sem dar a mínima para a sua hipocrisia,
não sou seu rei e ele sabe disso melhor do que ninguém.
— Do que você está falando, Roman?
Apoio minhas mãos na madeira e me inclino para a frente, nunca
deixando de encarar os seus olhos.
— Yelena, minha devochka — enfatizo as últimas palavras e vejo um
brilho em seu olhar, tão sutil que poderia passar imperceptível se eu não
estivesse observando-o tão de perto.
— Sua? — Ele ergue uma sobrancelha e cruza as mãos em seu colo.
— Sim, minha, como sabemos.
— Acho melhor você começar a se desapegar dela, afinal de contas,
daqui a alguns dias, será a sua última luta, garoto, supondo que você a
vença.
— Eu vou vencer — interrompo-o.
— Supondo que sim, o que acha que vai acontecer depois? Que ela será
encaminhada a sua casa em uma caixa de presentes?
— Eu vou te falar o que vai acontecer. — Sento-me em sua mesa e pego
a pilha de papéis em minhas mãos.
— Solte isso! — ele exige como o grande babaca arrogante que é e eu
ignoro, como o grande filho da puta desobediente que sou.
— Você vai levantar a sua bunda dessa cadeira e vai lá dentro buscar a
Yelena. — Jogo uma folha atrás da outra em cima da sua mesa, vários
rostos desconhecidos me encaram enquanto continuo falando: — Vai me
trazer ela aqui e eu vou levá-la comigo. Agora. — Ergo uma das fichas em
minhas mãos. Como imaginei, a foto não condiz com o que deveria ser o
certo. O homem que olha para mim com um rosto magro e assustado é mais
um garoto, e, dessa vez, mais jovem que Sasha. — Ou isso aqui vai ser
investigado. Vamos ver o que as autoridades vão achar de você estar
ganhando dinheiro em lutas com menores de idade. Pelo que me lembro,
ainda é ilegal em Temnyy Gorod. Na Rússia, no mundo. — Jogo a ficha em
cima das outras.
Arkady me encara por alguns segundos, seus olhos frios e calmos
observam-me sem se alterar, como se não desse a mínima para as minhas
ameaças.
— Não, eu é que vou te dizer o que vai acontecer. — Ele afasta a
cadeira e se levanta, caminhando até parar na minha frente. — Melhor, eu
vou te mostrar uma coisinha. — Arkady retira a pilha de papéis da minha
mão e coloca sobre a mesa. — Venha comigo.
— Nem fodendo. — Cruzo meus braços na frente do peito e ele bufa.
— Não vou a lugar nenhum com você.
— Como quiser. — Arkady retira o telefone do bolso e digita alguma
coisa nele, um instante depois ele coloca o aparelho na mesa ao meu lado e
uma imagem aparece, como se fosse uma câmera de segurança.
Demoro um instante para entender do que se trata, mas pouco a pouco a
imagem vai ganhando qualidade e, então, eu a vejo.
É ela, Yelena, em uma espécie de porão, machucada, os cabelos
cobrindo seu rosto, os braços frouxos fixados em correntes que os prendem
no alto.
Não consigo ver por mais de alguns segundos, algo dentro de mim
explode uma reação em cadeia, me desestabilizando até que eu avanço para
cima dele.
— Eu vou te matar, seu filho de uma puta maldito! — grito enquanto o
ataco. Acerto seu rosto e ele cai no chão, em seguida estou em cima dele,
sentado sobre seu peito, mais um soco atinge seu rosto e grito novamente:
— Eu vou acabar com você!
— Faça isso e ela nunca será encontrada. — Ele vira o rosto e cospe o
sangue no tapete. — Me mate e ela morre também — ele diz com uma
frieza que me assusta.
Pela primeira vez, Demyan está errado. Ele não a ama, ele não ama
ninguém. Arkady é um monstro, frio, calculista e manipulador, e eu vou
matá-lo com minhas próprias mãos.
Afasto-me no instante em que Zakhar entra acompanhado de mais dois
homens, que vêm até mim. O primeiro tenta me acertar, mas sou mais
rápido e o derrubo no chão; o segundo, me pega por trás, mas logo o
imobilizo em um mata-leão, que o faz cair no chão. Estou tão focado neles
dois, que não percebo Zakhar se aproximar por trás. Ele é rápido e
silencioso, covarde. Sinto o calor da lâmina atingindo meu esterno, o
sangue escorrendo por minha blusa, sinto minhas pernas cedendo, meu
corpo caindo.
Zakhar limpa o canivete na calça enquanto olha para mim, o brilho da
lâmina reflete no sorriso satisfeito enquanto Arkady se levanta e vem até
onde estou.
— Quando você vai aprender que a única pessoa que dá as ordens aqui
sou eu, hein, menino? — Arkady retira um lenço do terno e limpa o sangue
que escorre da sua boca. Sinto uma dor insuportável no local onde Zakhar
me acertou e pressiono o machucado com a mão tentando me levantar.
— Seu covarde do caralho, precisa de três homens para fazer o trabalho
por você? — cuspo as palavras com certa dificuldade, um sorriso
perturbado se espalhando por meus lábios.
— Agora que você está mais calminho, vamos conversar. — Arkady
ignora minhas provocações e se senta ao meu lado.
— Não tenho nada pra falar com você, seu maldito desgraçado — digo
em meio à dor lancinante que sinto. — Eu vou matar você — ameaço-o.
— Não, esquece isso. — Ele abana a mão no ar e meu ódio aumenta na
mesma medida que a dor. — Você vai lutar, é o que todos esperam, é o
Padat’ afinal de contas. E você... — Ele passa o dedo por meu braço,
descendo até onde está minha mão — É o rei dessa porra aqui, e as apostas
estão altíssimas.
Tento me mover, mas não consigo, sinto como se estivesse paralisado,
mal sinto minhas pernas, como se, de certa forma, a lâmina que me acertou
estivesse... envenenada.
— Nem fodendo eu vou lutar para você, me mate se quiser, mas não
vou subir naquela porra nunca mais — falo entre gemidos que deixam
minha boca involuntariamente.
Arkady pede para que Zakhar entregue o seu celular e ele o vira para
mim novamente, vejo Yelena naquela situação, seu corpo pequeno coberto
por sangue e hematomas. Ela ergue o rosto como se pudesse notar que está
sendo observada e meu peito dói tanto, que tenho certeza de que, seja lá o
que tinha naquela lâmina, alcançou meu coração.
— Seu covarde filho da puta! — cuspo enquanto começo a tossir e dói
tanto que tenho medo de desmaiar.
— Vamos deixar os elogios para outro dia. Como eu estava dizendo,
você vai subir naquele ringue e, como eu sou um cara muito legal, eu vou
fazer algo que nenhum outro participante teve — ele continua enquanto me
contorço de dor. — Eu vou deixar você escolher. Se ganhar, se tornará o Rei
do Poço, levará uma grana alta o suficiente para que possa ser considerado
um dos homens mais ricos de Temnyy Gorod, mais até que aquele seu
amiguinho, como ele chama mesmo? Demyan?
O som do nome do meu amigo na boca dele faz minha cabeça girar.
— Mas tem um porém, meus patrocinadores te deram aquela putinha
por um motivo, Roman, e não foi só para você descarregar sua porra dentro
dela. — Ele volta a erguer a câmera, mas não consigo mais olhar, é quase
insuportável vê-la daquele jeito. — Eles deixaram você se apegar a ela,
criar um laço, afinal de contas você sempre teve esse ar de herói, de quem
quer salvar o mundo e, obviamente, salvar Yelena é tudo o que você quer.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Sei mais do que você imagina. — Ele entrega o celular para Zakhar e
se levanta. — Sei, inclusive, que você ajudou essa vadia a tentar fugir.
Sorrio ao me relembrar daquele dia, a forma corajosa com que ela topou
tentar, sem medo, mesmo sabendo as consequências.
— Eu preciso dizer que fiquei excitado, ela estava tão linda, como um
animal selvagem, seu corpo quente pela adrenalina — ele começa a falar e
me sento ignorando a dor em meu esterno. — Fodê-la nunca foi tão
gostoso.
— Seu maldito desgraçado. — Tento me erguer, mas não consigo. — O
que você fez comigo? — Olho para Zakhar, que parece estar se divertindo à
minha custa. — Você me envenenou — constato. — Seu covarde.
— Deixe isso para lá — Arkady diz chamando minha atenção. —
Vamos nos concentrar no que realmente importa, você tem uma escolha a
fazer.
— A única coisa que eu tenho que fazer é te matar, e eu vou te matar.
Arkady ri como se eu não fosse capaz.
— Ganhe o ciclo e ela morre, ou... perca e ela vive.
— O quê?
— Você entendeu. Se ganhar o Padat’, sua vadiazinha será assassinada
e, se perder, ela viverá.
— Mas você quer que eu... — não consigo completar a frase, meu corpo
parece em chamas e começo a me sentir tonto. — Por quê? Por que eu?
— Isso não posso dizer, ao menos não agora. — Ele dá um tapinha em
meu peito. — A escolha é sua, Vossa Majestade.
Ele se levanta e Zakhar se aproxima com seus comparsas.
— Você não vai matá-la, não teria coragem.
— Se não for ela, será outra, na noite do Ciclo, um lutador e uma
devochka morrem.
— As garotas que somem, é você quem as mata?
— Não sou eu, Roman, são as regras do jogo. Alguém tem que morrer.
— Mas achei que isso se limitava ao Poço, ao menos os homens que
estão lá sabem disso, mas elas?
Ele ergue as mãos e olha em volta.
— Tudo aqui é o Poço, você ainda não percebeu?
— Seu maldito, o inferno é pouco para você!
Arkady ri, se divertindo com a minha desgraça.
— Levem ele daqui, podem fazer o que quiser, vocês têm uma semana
para acalmar nosso garoto, só não deixem rastros, não quero que ninguém
perceba, portanto, nada de machucar essa carinha linda, afinal de contas o
rei precisa parecer bem na sua luta final.
Todo mundo tem medo da morte, mas, na verdade, morrer é bom, eu
tenho certeza disso, morrer é mil vezes melhor do que sobreviver, morrer
não exige esforço, é fluido, faz parte da sequência natural da vida, é o fim
do ciclo, é a paz.
Morrer é bom.
Mas eu ainda não morri.
Arkady não quer me deixar ir, ele gosta de me ver assim, agonizando,
no limbo. Metade da minha alma lá, a outra aqui, presa entre suas garras,
brincando de juiz da minha vida.
Meus braços doem e já não sinto as minhas mãos, meu olho esquerdo
não abre e o direito está inchado, minha cabeça pende para a frente,
forçando meus ombros a trabalhar mais para manter o meu corpo em pé.
Mas eu só quero desabar, desistir, ir.
A porta se abre e não ligo mais se é Arkady ou Zakhar, ou qualquer
outro homem, tanto faz. Já perdi a conta de todas as vezes em que eles se
revezaram para me punir.
O som das suas botas deixou de me fazer estremecer há algum tempo,
não sei quando. Não sei quanto tempo faz que estou aqui, um dia, uma
semana, um mês?
Parei de pensar em Roman quando percebi que isso era o que Arkady
queria, ele me enfraquece, me faz querer chorar por algo que nunca vou ter,
abre uma fresta para que Arkady me alcance, mas ele não entendeu ainda
que ele nunca vai conseguir.
Me mate logo.
— Bom dia, minha devochka. — Ele para na minha frente, os dedos já
não tocam mais a minha pele, estou coberta de sangue e sujeira e há cortes
em todos os lados, não há mais beleza em mim, sou o que ele irá usar para
assustar a próxima devochka, eu já posso até mesmo ver ele manipulando as
meninas, amedrontando-as com os vídeos das minhas punições.
“Olhe o que acontece com quem me desobedece.”
A minha única alegria é saber que, mesmo nos momentos mais
desesperadores, eu não chorei. Ele pode ter todo o meu sangue e meu corpo,
mas nunca terá as minhas lágrimas.
— Dormiu bem? — Ele caminha em volta do meu corpo, mas não o
vejo, não ergo meu rosto, não respondo, não me movo.
— Sabe que dia é hoje, Yelena? — Ele continua andando, o som do seu
sapato ecoando nas paredes vazias do porão, onde estou desde aquela noite
em que ousei ter esperança.
— Daqui você não consegue ouvir, não é mesmo? Mas lá em cima, o
seu rei está prestes a se tornar uma lenda.
Suas palavras finalmente chamam a minha atenção.
O dia do Padat’.
Isso significa que estou aqui há mais de uma semana, uma semana. Meu
Deus, eu não acredito que ainda estou viva, talvez Roman tenha razão e eu
seja mais forte do que penso. Ou talvez eu seja apenas uma amaldiçoada.
— Acho que nunca vi o Poço assim, nosso rei é uma lenda, todos
falarão dele, mesmo depois da sua morte.
Morte?
Eu sorrio, porque isso não vai acontecer, Roman não vai morrer, ele é
forte e poderoso, e ele sabe que não pode fazer mais nada por mim,
provavelmente deve achar que estou morta, não adianta mais. Ele não vai
morrer, ele vai ganhar, se tornar o rei e ir embora daqui. Esse era seu plano
e ele vai cumprir. Ele me prometeu.
— E para provar o quanto eu sou bonzinho, hoje você terá o privilégio
de assistir a luta final, aqui, do meu ladinho.
Ele vai até a porta e a abre, ergo meus olhos e vejo Zakhar entrar. Meu
corpo involuntariamente se arrepia, espasmos fazem meu estômago
protestar e vomito, mas nada sai, nem mesmo a bile.
Ele está carregando uma espécie de carrinho com uma enorme televisão
em cima. Então é isso, vamos ver Roman lutar através de uma tevê, mas
por quê?
Durante os próximos minutos, eles ajustam a televisão até que ela fique
como Arkady quer, a tela se acende e o Poço surge como se fosse um
programa de tevê.
— Agora vamos, me ajude a tirá-la daqui — Arkady exige e Zakhar
vem até mim. Desvio o olhar para o chão ignorando o medo irracional que
tenho dele, suas mãos me tocam e me encolho enquanto ele solta meus
pulsos das algemas, um grito rouco escapa da minha garganta com a dor
lancinante que sinto e desabo imediatamente no chão frio e sujo. —
Coloque-a na cama — Arkady manda e ele obedece.
Não consigo me mover, meus membros não se sustentam, sou um saco
de ossos e sangue, até mesmo respirar é difícil, mesmo assim encaro seu
rosto no curto caminho até a cama e, quando ele me deposita nela, eu sorrio.
— Capacho — sussurro bem baixinho em seu ouvido e me preparo para
o seu punho, mas ele não faz nada, apenas me olha e sorri de volta.
— Hoje não, vadia imunda. — Ele limpa as mãos na calça antes de se
afastar indo para a porta e pergunta para Arkady: — Mais alguma coisa?
— Não, pode ir.
Quando estamos sozinhos, Arkady vem até mim e se senta ao meu lado,
ele retira o lenço do seu terno e molha em um copo de água, em seguida
passa em meu rosto, os machucados doem tanto que quero pedir para ele
parar.
— Você está tão suja, tenho certeza de que o rei teria nojo de você, mas
eu não. — Ele continua limpando minhas feridas, mas não me movo. Em
vez disso, observo um hematoma em seu queixo, algo que não notei antes,
mas agora tão perto, posso notar o amarelado, quase curado, que
aparentemente está aqui há algum tempo.
Só existe uma pessoa no mundo capaz de acertar Arkady sem medo de
morrer.
E meu sorriso se espalha nos lábios machucados e ressecados enquanto
imagino-o fechando seu punho e enchendo essa cara imunda de socos.
— O que foi? — Ele se afasta parecendo desnorteado.
— Esse hematoma ficou bem em você — comento com a voz fraca, a
garganta machucada de sede e de tanto gritar.
— Do que está falando?
— Foi ele, não foi? Foi o Roman que te acertou desse jeito, foi o Rei do
Poço — digo, com uma alegria que faz as palavras saltarem da minha boca
antes que eu consiga evitar.
— É, tivemos uma conversinha. — Ele passa a mão no maxilar
machucado.
— Estou vendo.
— Ah, mas você precisa ver como ele ficou, vou te mostrar.
Arkady se levanta e vai até onde a televisão está, ele cantarola algo
enquanto pega o controle e liga, sinto meu estômago se revirar enquanto me
sento na cama, obrigando meu corpo exausto a se sustentar.
A tela se ilumina e uma imagem aparece, não é o Poço, é uma sala,
quase parecida com a que estou. Paredes sujas, correntes e algemas, cordas
e no canto...
— Ele está aqui... — sussurro enquanto observo a imagem à minha
frente.
— Claro, só o melhor para os meus preciosos — Arkady debocha, mas
meus olhos estão fixos nele. Meu Roman, acorrentado, nu, com um corte na
lateral do seu corpo e hematomas cobrindo suas pernas e torso, ele está
desmaiado, ou dormindo, ou...
Coloco a mão na boca, sentindo meus olhos arderem. As lágrimas que
tanto protegi pinicam querendo escapar.
— Calma, devochka, ele ainda não morreu, mas, quem sabe, hoje ele
finalmente cumpra com sua missão de herói.
— Do que você está falando? — pergunto ainda olhando para a
televisão, dois homens entram na sala, Zakhar está com um deles. Ele se
aproxima de Roman e o acerta, bem no local onde está ferido. Roman
sequer reage, um grito escapa dos meus lábios e sinto sua dor em minha
pele. — O que está fazendo com ele? Eles vão matá-lo.
— Não, eles não o mataram, isso é apenas um vídeo, tem uma semana
desde que ele chegou, você sabe, ele veio aqui no dia seguinte a sua
tentativa de fuga, exigir que eu te entregasse a ele e blá-blá-blá — ele ri,
como se fosse um absurdo.
Ele veio. Ah, não, ele veio por mim. Oh, Roman...
— Estava bem bravinho, e foi quando ele fez isso aqui. — Arkady
aponta para o seu queixo. — Então tivemos que conter o garoto, garantir
que ele não causaria nenhum dano e que estaria pronto para a noite de hoje.
— Você o manteve preso por todos esses dias? — pergunto, com certa
dificuldade.
— Assim como você, o Rei e a Bela do Poço.
Ergo meus olhos e encaro o verme à minha frente, nunca tive tanta
vontade de matá-lo como agora, talvez se minhas pernas suportassem meu
peso, seria isso que eu faria, eu o mataria, arrancaria seus olhos com minhas
mãos e comeria.
E faria tudo isso sorrindo.
Arkady puxa o carrinho com a televisão até onde estou, ele aperta um
botão no controle remoto e a câmera muda para o Poço, ele tinha razão
quando disse que estava lotado. A noite em que tentei fugir não é nada perto
do caos em que se encontra hoje, há homens pendurados em todos os lados,
cantando, gritando, pulando.
Há dezenas de faixas com o nome e o rosto de Roman, em uma delas
ele está com os dois braços erguidos, o corpo marcado por músculos
esculpidos, salpicado de sangue, o sorriso insano em seus lábios, os olhos
arregalados, vibrando com a vitória.
É assustador olhar para ele.
— Estou empolgado, devochka, essa noite entrará para a história do
Poço. — Ele se senta ao meu lado, comendo um pedaço de bolo de frutas.
O cheiro faz meu estômago doer de fome, de nojo, de medo.
— Hoje vamos ver o quanto o garoto te ama.
— O quê? — Viro-me para ele, sem acreditar no que está dizendo.
— Não me olhe assim, são as regras do Poço.
— Mas ele não vai morrer — digo com a certeza de quem acredita que
ninguém será páreo para o Rei do Poço.
— É aí que vamos ver, porque, se ele não morrer, quem morre é você.
— Arkady bate o indicador em meu queixo e desvio o rosto.
— Pode me matar, não ligo. — Ergo os ombros, com a certeza de que
será um alívio acabar com tudo isso.
— Mas ele — Arkady aponta para a tevê — liga.
— O que você quer dizer com isso?
— Nosso Rei do Poço terá duas lutas essa noite, uma contra seu
adversário, e a outra contra seu coração.
— Diga a ele que eu escolho morrer, não é justo, eu já estou aqui, você
nunca vai me libertar, me deixe morrer, deixa ele em paz e se divirta
comigo.
— Não é assim tão simples, minha doce Yelena. Faz partes das regras,
não sou eu quem escolho.
— De que regras está falando?
— Há uma regra que nenhum lutador conhece quando se inscreve, mas
cada um deles tem uma devochka, mesmo que eles nunca venham a
conhecê-la. Quando um lutador chega à final do Ciclo, existe um ritual que
acontece apenas para os nossos patrocinadores, se o lutador vencer, a
devochka dele morre e, se ele morrer, a devochka dele vive, no caso, hoje,
será ele ou você.
Não há reação em meu coração diante da morte, mas então me dou
conta do que ele disse alguns minutos atrás.
“Quem sabe, hoje ele finalmente cumpra com sua missão de herói.”
— Você quer que ele perca. — Compreendo seu plano imundo. — Foi
por isso que você o machucou? Para que ele não consiga vencer e você não
precise me matar?
Arkady para com o bolo no meio do caminho, ele vira o rosto em minha
direção e quero vomitar novamente, seus olhos se tornam ternos e ele se
move lentamente, colocando seu corpo grande e pesado sobre o meu, me
fazendo cair de volta ao colchão. Arkady passa a ponta do dedo por meu
rosto, por meus cabelos, por meu colo.
— Eu morreria se tivesse que tirar a sua vida — ele confessa e sinto
uma repulsa dolorosa por seu sentimento, seja ele qual for.
Encaro seus olhos negros, frios, sem vida e quase me sinto sugada para
dentro da maldade que existe em sua alma corrompida. Espalmo minha mão
em seu peito enquanto compreendo o que ele fez: uma vida pela outra.
— Mas se ele perder...
— A devochka do outro lutador morre.
— De qualquer forma, uma garota morrerá hoje — constato.
— Tão inteligente a minha devochka.
Isso é tão injusto.
Ergo-me devagar, meus olhos nunca deixando os dele, aproximo nossos
rostos e o beijo. Meus lábios frios e machucados tocam o seu, em um beijo
da morte, um beijo carregado de sentimentos ruins. Ele parece sentir e se
afasta, meu corpo estremece enquanto ele observa o sorriso que surge em
minha boca.
— Eu odeio você — digo e ele sorri.
— Não tenho pressa, devochka, eu sei esperar.
Ele se afasta, sentando-se novamente no instante em que o nome de
Roman é chamado pelo apresentador da luta, os gritos são tão altos que não
consigo ouvir o que ele diz.
A câmera se move e logo eu o vejo, meu coração acelera no peito ao
lembrar-me de que ele está machucado por baixo dessas roupas, e evito
olhar para Arkady enquanto me sento.
— E lá está o nosso menino. Preciso dizer que ele fica incrível na
televisão, olha esses braços — Arkady me provoca e noto que há faixas nos
pulsos de Roman, provavelmente para esconder os hematomas.
Ah, Roman... se não tivesse vindo atrás de mim, nada disso teria
acontecido.
O apresentador continua falando, Roman não sorri, não vibra, seus
olhos estão fixos no seu oponente e qualquer pessoa poderia acreditar que
ele está concentrado, ele ergue a mão e toca sutilmente o lugar onde está
machucado, ninguém nota, estão todos empolgados demais com a final do
ciclo.
— E essa noite conheceremos o vencedor do ciclo mais concorrido e
aguardado da história do Poço. E como sabemos, a luta principal só termina
quando um dos dois for eliminado, não há regras, apenas a morte será o fim
— o homem diz, a plateia grita, é assustador. Essa noite um desses dois
homens morrerá e eles estão vibrando como se não fosse nada.
O oponente de Roman não é mais alto que ele, mas está saudável, se
preparou bem e está empolgado, enquanto Roman está ferido, abatido,
faminto.
— Isso não é justo — digo baixinho enquanto observo o que pode ser os
últimos minutos de vida do meu rei.
— A vida não é justa, devochka.
Aproximo-me um pouco mais da tevê, meus dedos coçam com a
vontade de tocar em seu rosto, de dizer a ele para não ter medo. Ele ainda
pode ganhar, ele é forte, o maior lutador que esse Poço já teve, eu sei que
ele pode.
— Vamos lá, Roman — sussurro sentindo meu coração apertar.
— Acho que será uma luta e tanto, ele não vai se entregar assim tão
fácil — Arkady diz com uma empolgação que me enoja.
— Como você pôde fazer isso?
— Foi por você, minha devochka. — Ele sorri e balanço a cabeça,
incapaz de dizer algo que não seja desejar a sua morte.
O homem anuncia o início da luta, os adversários se cumprimentam,
meu coração parece prestes a pular pela boca, ergo minhas pernas e abraço
meus joelhos, meu corpo inteiro treme e quero fechar meus olhos, já não
sinto mais a dor física, tudo o que sinto é o medo adormecendo meu corpo
maltratado e me sufocando, não consigo deixar de pensar que, se ele morrer,
o mundo perderá uma das pessoas mais belas e gentis que já conheci, e eu
nunca vou ter a oportunidade de dizer a Roman o quanto ele significa para
mim.
Roman acerta o primeiro soco, os homens a sua volta vibram, mas eu
noto a expressão de dor em seu rosto, ele está em desvantagem, mesmo
assim seu oponente sente o impacto e uma onda de orgulho me invade.
Ele luta como um verdadeiro guerreiro, seu corpo explode em uma fúria
assustadora. Arkady continua falando coisas que me enojam, mas toda a
minha atenção está no garoto de cabelos escuros e olhar feroz que um dia
viu em mim uma fada e me fez acreditar em contos de fadas.
O primeiro golpe me faz soltar um grito, Roman cambaleia e prendo a
respiração, ele reage, mas seu oponente nota que ele não é mais o mesmo,
ele vai para cima e acerta Roman no rosto, seu supercílio se abre em um
corte violento que faz seu rosto se banhar em sangue, coloco minha mão na
boca, abafando o pavor que sinto à medida que Roman se cansa. Seu rosto
está vermelho, seus cabelos colados à pele, ele cambaleia, os braços
parecem pesados.
Ah não, Roman... não desista.
O adversário acerta um golpe em seu esterno, no exato lugar onde ele
está machucado, Roman se contorce de dor, as lágrimas nublam meus
olhos. Não, não, por favor, reaja.
Ele recebe mais um golpe, o Rei do Poço cai.
Seu oponente se aproveita e sobe em cima dele, os golpes se tornam
sangrentos, cruéis, mortais. Os braços de Roman não se movem, seu corpo
é atingido de forma brutal.
Duram apenas alguns segundos, no máximo um minuto, mas meu
coração dói tanto que sinto como se fosse uma hora. O árbitro se aproxima,
o corpo mole já não reage mais, mesmo assim o oponente continua
golpeando-o.
— Pare com isso! — grito, ao me virar para Arkady. — Eu faço o que
quiser, para sempre, serei boa para você, nunca mais te desobedecerei, só
faça parar, por favor, eu imploro. — Puxo sua camisa, no instante em que a
primeira lágrima escapa dos meus olhos.
Arkady me observa, com o rosto lívido ao ver aquilo que tanto quis. Ele
ergue a mão e captura a primeira lágrima com o polegar desviando os olhos
para ela.
— Então era isso? Eram para ele que elas estavam guardadas? — ele
pergunta encarando a lágrima em seu dedo como se fosse uma joia, algo
precioso. — Eu só precisava matá-lo?
— Ele não morreu — digo, com as palavras rasgando minha garganta,
enquanto aperto meus dedos em sua camisa, sujando-a.
— Olhe. — Ele ergue o rosto na direção da televisão. — Não sou eu
quem estou dizendo. — Ele sorri enquanto a cena se desenrola à nossa
frente. O árbitro ergue o braço do homem, que começa a gritar
comemorando a sua vitória, enquanto, caído ao seu lado, está o corpo do
único garoto que amei na vida, coberto de sangue, derrotado em uma luta
cruel e desigual.
Um homem se inclina e confere o pulso de Roman, ele olha para o
árbitro e confirma.
Acabou, ele se foi. Meu Rei foi eliminado.
O piso se abre e o corpo de Roman desaba lá embaixo, humilhado como
um perdedor deve ser. O Poço inteiro está em silêncio, nem uma palavra é
dita, como se todos estivessem chocados com o resultado, observando o rei
morto ser levado embora. Como se fosse o fim de um sonho.
— Seu maldito! — Avanço em Arkady, sentindo a raiva queimar em
meu peito. — Você o matou, eu te odeio, eu te odeio! — Meus punhos
acertam seu rosto, seu pescoço, seu peito, mas estou fraca demais e desabo
em cima dele. Meu choro agora é incontrolável.
— Shhh... minha devochka, não se preocupe, vai ficar tudo bem, eu vou
cuidar de você, eu prometi a ele. — Arkady me abraça, acariciando meus
cabelos enquanto choro, descobrindo que corações mortos também sofrem.
Arkady me deita na cama, enquanto tenta me acalmar. Olho para a
televisão e um cartaz com a foto de Roman aparece. Nele, o sorriso
escandaloso se espalha no rosto bonito e me dou conta de que ele nunca
mais vai sorrir.
Olho para o homem à minha frente e meu ódio toma uma proporção
gigantesca. Ele roubou tudo de mim: minha virgindade, minha liberdade,
meu corpo, minhas escolhas; e agora, meu único amor.
O grito que escapa da minha garganta pode ser confundido com o de um
bicho enjaulado, é feio, doloroso, assustador, e antes que minha coragem se
vá, eu avanço em seu rosto e o mordo com toda a força que tenho. Ele grita,
tenta se afastar, mas a sua dor me dá forças para segurá-lo junto a mim.
Sinto o sabor do seu sangue em minha língua, a textura da carne macia em
meus dentes e o seu corpo estremecendo com a dor. Eu sorrio quando me
afasto, cuspindo em seu rosto. O olhar que ele me dá é a última coisa que
vejo antes de um golpe me apagar.
E, por um segundo, desejo que ele seja forte o suficiente para me matar.
ZIMA10
Meus pés mal se movem no chão coberto por lama pegajosa e escura, o
esforço para caminhar faz meu esterno doer e pressiono a palma com força
no ferimento, que pulsa como um órgão extra, enquanto tento reconhecer o
lugar onde estou. Uma névoa densa me impede de ver muito além de um
braço de distância, e isso me deixa nervoso.
Está frio, mas não é o frio russo do qual estou acostumado, é um frio
que machuca meus músculos, que me faz sentir o estômago revirando e os
olhos doerem.
E eles doem.
Como se nunca tivessem sido usados, como se olhassem tudo pela
primeira vez. Forço minhas pernas puxando-as para fora do lamaçal, o
cheiro pútrido faz meu nariz arder e começo a tossir. Tudo dói, quero me
deitar, mas não posso parar ou serei engolido.
Roman...
Ouço meu nome ao longe, mas não consigo ver quem é, não há ninguém
à minha frente, apenas a vastidão nublada e sombria e uma solidão tão
profunda, que me faz pensar que fui esquecido aqui nesse lugar que nada
parece.
E é quando me dou conta de onde eu estou.
Eu morri, é isso, estou no limbo, esperando Chyort11 me levar para o
inferno.
Mas onde ele está? Por que ainda não veio? Não posso aguentar muito
tempo, preciso que ele me leve logo embora daqui ou desabarei nesse
lamaçal e meu corpo será engolido pela escuridão pegajosa.
Roman...
Mais uma vez, a voz me chama. Quero me virar, mas não consigo, estou
preso, exausto e dolorido. Meu corpo parece pesar uma tonelada. O tempo
passa, longo, lento e agoniante, continuo caminhando sem nunca chegar a
lugar algum. Minha garganta queima com a sede que sinto, o frio começa a
doer em meus ossos, a noite nunca chega ao fim, muito embora eu sinta que
o dia vem em algum momento, em algum lugar, eu só não consigo chegar
até ele.
De tempos em tempos, meu nome surge vindo de lugar nenhum,
ecoando acima de mim, reverberando à minha volta.
Tento responder, mas não consigo. Minha voz se perde na vastidão
sombria e silenciosa e apenas continuo caminhando, com a lentidão imposta
pela lama podre, sentindo que preciso chegar a algum lugar, mesmo que eu
não saiba onde. Alguém me espera, alguém precisa de mim. Ou será que
sou eu quem preciso de alguém?
Roman...
Um passo lento, agonizante; outro passo, dor, sede, frio, exaustão. O
tempo se perde junto com minha consciência, não sei mais o que é real e o
que é delírio, apenas uma coisa me mantém em pé, seguindo adiante: a voz
que chama meu nome.
E então, depois de um longo período, finalmente a exaustão me
consome e perco as forças, não há por que continuar, não consigo chegar a
lugar algum, então como meu último ato de escolha, fecho meus olhos,
respiro fundo e me deixo cair. Sinto o impacto do meu corpo sendo
engolido pela lama densa e pegajosa, não dói, o frio diminui e minhas
pernas já não lutam mais para se mover. Fico parado um instante, sentindo
meu corpo afundar lentamente, mantenho meus olhos cansados abertos.
Embora não veja nada além da névoa, é reconfortante, quase como se eu
estivesse em paz. Fecho meus olhos pelo que imagino que seja a última vez,
conformado com o fim.
Então eu ouço, mais forte, mais nítido.
Roman, não!
Meus olhos se abrem por vontade própria, meu coração, cansado,
acelera no peito. Puxo o ar para os meus pulmões, que já haviam desistido
de trabalhar. A lama começa a pressionar, me abraçando, me levando.
Roman, reaja!
Eu conheço essa voz, ela me faz pensar em resistir, em caminhar, é por
ela que eu estou indo, mesmo sem saber para onde, é ela quem me mantém
aqui, que não me deixa ir.
É ela.
Roman...
Tento me levantar, mas não consigo. Quanto mais me mexo, mais
afundo, a lama é pesada e me puxa para baixo, me debato, tentando me
livrar dela.
Rom, pare.
Imediatamente meu corpo obedece e paro de me mexer, a voz comanda
meu corpo. No instante seguinte, sinto mãos me puxando pela camisa,
como se eu não pesasse nada. Tento focar em seu rosto, mas não consigo
reconhecer, apenas sinto seu cheiro, e sei, é alguém especial, alguém
importante o suficiente para que apenas a sua voz seja capaz de me fazer
querer continuar.
— Quem é você? — pergunto estranhando a aspereza na minha voz.
Ela se aproxima, aperto meus olhos para tentar ver seu rosto, mas é
como se houvesse uma névoa sobre ele encobrindo-o.
Roman, me escute.
Ela sussurra em meu ouvido e sinto um arrepio por todo o meu corpo.
Ela precisa de você, volte para ela.
— Então me diga quem é você — peço, mas então sinto suas duas mãos
em meu peito, me empurrando com força. O impacto do meu corpo caindo
só não é maior do que a sua voz.
VOLTE!
E então eu acordo.
Matar alguém muda algo dentro de nós, nos esfria, nos desconecta, é
como se, a cada alma ceifada, um buraco se abrisse dentro de nós.
Matar alguém leva embora algo irreparável.
E eu venho perdendo mais do que imaginei que seria capaz de suportar.
As lutas não acontecem de forma regular, às vezes duas por semana, às
vezes uma a cada quinze dias. São cruéis, desleais e desumanas. Saber que
um bando de doentes estão se esbaldando com o sangue que mancha meus
dedos é algo que me faz perder noites de sono.
E no meio de tudo isso estão filhos e esposas, irmãs e mães, entes
queridos que nunca saberão que foram honrados até a morte, que foram
amados em sacrifícios, e que o carrasco sou eu.
E tem ela, minha fada, que vem me ver todas as lutas, com seu beijo que
mais se parece com um lembrete de que, se eu não cumprir com o
combinado, será ela a morrer.
Estou sentado no chão, o corpo do homem que acabei de matar ainda
está à minha frente, imóvel, irreconhecível, o sangue dele escorre pelo piso,
por minhas mãos, em meus ossos.
Estou ofegante, dolorido, sangrando, meu olho esquerdo está fechado e
acho que quebrei o nariz, mas nada disso importa, afinal de contas eu venci,
só não sei o quê, nem por quanto tempo ainda suportarei.
VESNA12
Os dias passam sem que nada mude, mal consigo fazer Roman olhar
para mim, os capangas trazem cobertores e comida, mas ele não come, não
se mexe e começo a ficar apavorada. Depois do terceiro dia, Roman começa
a reagir, mas seus olhos se perdem às vezes, como se não soubesse ao certo
onde está.
Uma semana se passa desde a morte do garoto e Roman ainda não
consegue falar, ele deixa um médico vê-lo e o corte em seu pescoço começa
a melhorar. Eu continuo aqui, mesmo sem saber o motivo, acho que, dessa
vez, Arkady teve medo de perdê-lo de vez.
Estamos no seu quarto, ambos na cama, Roman sentado no canto, a
cabeça apoiada na parede, e eu do outro lado, com as pernas cruzadas,
pensando em como fazer ele me notar quando a porta se abre. É Arkady e
meu sangue gela ao me dar conta de que ele veio me buscar, quero me
levantar e ir até ele, implorar para me deixar ficar, mas não me movo.
Roman sequer parece notar a sua presença.
— Pelo visto, nosso garoto ainda não se recuperou.
— Você destruiu a mente dele, você o fez matar uma criança — acuso-o
fincando minhas unhas com força nas palmas das minhas mãos para não
avançar nele.
— Já disse, devochka, aqui não existe criança, todos são homens o
suficiente para vencer ou perder.
Ele caminha até onde estamos, Roman continua olhando para a parede,
mas noto sua respiração mudar e temo pelo pior, então me aproximo,
puxando sua mão, o fazendo olhar para mim.
— Roman. — Ele se afasta da parede, como se estivesse despertando de
um sono profundo, seus olhos desviam de mim para Arkady e, em questão
de segundos, ele pula em cima do monstro que o obrigou a fazer todas essas
coisas.
— Maldito desgraçado! — Roman rosna enquanto derruba Arkady no
chão e monta em cima dele segurando-o pelo pescoço. — Eu vou te matar
— ele diz, mas logo o pequeno quarto é tomado por homens que retiram
Roman de cima de Arkady, que tosse, com o rosto e pescoço vermelhos
pela violência com que foi atacado.
— Não, não façam nada com ele — Arkady avisa antes de se levantar
com a ajuda de um dos seus homens. — Eu o quero inteiro para a próxima
luta.
— Só se for com você! — Roman grita. Seu rosto está escurecido pelo
ódio.
— Você me dá tanto trabalho. Se não fosse tão lucrativo, já teria me
livrado de tudo isso — Arkady diz se colocando de pé e limpando o terno
com o seu maldito lenço. — Bom, já que você está dificultando a nossa
vida, vou te ajudar a entender algumas coisas.
Ele caminha até onde Roman está, sendo dominado por dois capangas.
Roman parece prestes a explodir e tenho certeza de que, se soltarem ele
agora, não sobrará nada do Arkady.
— Como eu disse alguns meses atrás, nessa fase os desistentes pagam
de um jeito muito ruim, e hoje eu trouxe para você algumas imagens de
covardes que não foram capazes de continuar.
Arkady tira um envelope de dentro do seu terno e o joga na cama.
— Abra — ele manda e com os dedos trêmulos pego o envelope. Tenho
medo do que vou encontrar, do que Roman verá. E se for demais para ele,
se eu o perder de vez?
Abro o envelope e retiro as fotografias de dentro, prendo a respiração
com a sequência de imagens, não conheço a mulher que caminha
tranquilamente pelas ruas da cidade sem se dar conta de que está sendo
seguida. Na próxima, ela está dentro do mercado e fico confusa, não era
bem o que eu estava esperando.
— Stepan Ivanovich Zorkin era um homem muito temperamental —
Arkady diz e, quando ergo os olhos para onde Roman está, vejo a dor
ganhar um novo significado.
Olho novamente para a mulher na fotografia em minhas mãos, sinto
como se eu tivesse o poder de matá-la novamente, não quero erguer a
próxima foto, não quero ver a dor nos olhos dele, não quero machucá-lo.
Arkady olha para mim, obrigando-me a erguer a próxima foto. A
mulher, mãe de Roman, está saindo do mercado e em suas mãos há apenas
um pacote pequeno. Seus olhos estão assustados, como se ela estivesse
vendo algo que não queria.
— Ele disse que usaria o dinheiro para dar a você um futuro melhor —
Arkady diz, mas não tenho certeza se Roman o está ouvindo, nem mesmo
se ele ainda está aqui.
— Arkady, por favor — peço, mas ele me obriga a ver a próxima foto.
O choque me faz suspirar e posso ouvir Roman gemer de ódio, de saudade,
de tristeza.
Sua mãe está no chão, esparramada de um jeito ruim, com um pequeno
furo na testa e uma poça de sangue atrás de sua cabeça.
Assassinada.
Olho para Roman, seus olhos estão cheios de lágrimas, mas ele não está
mais tentando se soltar, na verdade, tenho quase certeza de que os capangas
são os únicos que o estão segurando.
— Eu sinto muito — sussurro para ele no instante em que Arkady me
entrega mais um envelope.
— Esse é para você. — Ele me entrega outro envelope e não quero
pegar, não quero ver a monstruosidade que esse lugar fez comigo.
Nego com a cabeça, incapaz de erguer a mão.
— Vamos, devochka, não me faça perder tempo.
Ele joga o envelope em meu colo e olho para ele por alguns instantes.
— Esse eu não me lembro muito bem o nome, era um merdinha, se
achava mais do que realmente era, no instante em que pisou no porão ele se
mijou inteiro. — Arkady ri, divertindo-se com as desgraças que acontecem
por sua culpa. — Vamos, devochka, abra, você vai se surpreender.
Meus dedos tremem tanto que o envelope cai da minha mão, abro com
medo do que vou ver, e já na primeira imagem começo a chorar.
— Não, não, não, não. — Desabo agarrada a fotografia de Waleska,
amarrada em uma sala parecida com o Porão, nua, machucada.
— Yelena, olhe para mim — Roman pede, mas não consigo erguer os
olhos.
— Ela era bonitinha, não tanto quanto você, mas a persistência e força é
uma característica das irmãs Vasilievna.
Choro por tudo o que sonhei para a minha irmã, todas as coisas boas,
todas as vezes em que tive inveja dela, por ter conseguido ir embora daqui.
— Seu desgraçado, chega, tudo bem, eu volto ao porão — Roman diz.
— Calma, falta a mais especial de todas, a que eu guardei com todo o
meu coração para esse momento. — Arkady segura um último envelope
junto do seu coração, com os olhos fixos em Roman enquanto ele sorri,
como o maldito demônio que é. — Essa foi uma das mais difíceis de
conseguir, tivemos que arquitetar todo um plano, por você, sempre por
você. — Ele aponta o envelope para Roman enquanto estende a outra mão
para mim. — Venha aqui, Yelena, eu quero que você abra o envelope.
— Deixa ela fora disso — Roman exige olhando para Arkady.
— Ah, mas eu planejei tudo, e vai ficar muito mais dramático se for ela
a te mostrar. — Ele continua com seu joguinho doentio. — Yelena, vem
aqui — ele me chama novamente e me levanto, depositando a foto de
Waleska e da mãe de Roman na cama sem ter ideia do que mais esse
monstro pode usar contra nós. — Eu não posso ficar com o crédito dessa
para mim, foi o seu patrocinador quem deu a ideia.
— Meu patrocinador? — Roman começa a empalidecer. — Mas eu fiz
tudo o que vocês pediram.
— Calma, não tenta adivinhar, isso é chato — Arkady o repreende
enquanto entrega o envelope em minhas mãos. — Vamos lá, fadinha,
mostra para o teu rei o que o trouxe para esse lugar.
O envelope preto parece pesar uma tonelada, tenho medo e, mais do que
tudo, tenho nojo. Sei que algo terrível está aqui dentro, mesmo que nenhum
de nós dois sejamos capazes de imaginar.
— Lembra a primeira vez que você veio ao Poço? — Arkady pergunta
enquanto se afasta, caminhando pelo pequeno quarto, com as mãos
cruzadas na parte de trás das costas. — Faz o que, uns dois anos, talvez
quase três, você era só um garotinho, magrinho e corajoso e lutou com tanta
força que chamou a atenção dos nossos patrocinadores, de um em especial
— ele continua. — Mas não se preocupe, você não o conhece, ele sequer
sabe onde fica Temnyy Gorod. Para ele, você é como uma peça de xadrez,
não, melhor, a carta mais alta em um jogo de baralho, não é pessoal, você
me entende?
— Não, eu nunca vou entender a mente doente por trás disso tudo —
Roman diz com os olhos vermelhos de tristeza e ódio.
— Pois é, mesmo assim eu preciso dizer que ele foi brilhante no
planejamento e execução da forma como encontrou de te trazer de volta ao
Poço.
Arkady continua andando, como se não tivesse pressa para mais nada,
como se sua vida inteira tivesse sido feita para esse momento.
— Eu mesmo fui um dos que duvidou das chances desse plano dar
certo.
Olho para o envelope, enquanto me dou conta de que esse lugar não tem
só o controle dos que colocam seus pés aqui, ele controla todos que vivem
em Temnyy Gorod.
— Abra o envelope, Yelena, entregue ao seu rei o presente mais
precioso, o que o trouxe para você.
Abro o envelope devagar, sentindo a textura da fotografia em minhas
mãos, desejando poder apagar o que seja lá que esteja nesse envelope, meus
olhos se encontram com os de Roman, eu sussurro um pedido de desculpas,
porque sinto que vou terminar de partir o que resta do seu coração, e não sei
o que vai sobrar.
A fotografia vai ganhando forma, em preto e branco, vejo no rosto de
Roman o reconhecimento, é um banheiro, azulejos, uma banheira, um...
Deus do céu!
— Seu malditooooo! — Roman grita. Um grito de agonia, de desespero.
Um grito que queima meus ouvidos enquanto observo a garota morta na
banheira, com os pulsos cortados, o sangue sujando tudo, escorrendo pelo
chão, levando embora mais uma vida, dando a esses desgraçados mais uma
vitória.
Mais dois homens entram no quarto, eles se colocam na frente de
Arkady enquanto os que seguram Roman tentam contê-lo, ouço o som do
seu braço se partindo com a força que ele emprega na vontade de se soltar,
ouço o grito aumentar, ouço o som do seu corpo caindo no chão quando ele
é solto, o braço imóvel, o corpo retorcido, de dor, de desespero. Me jogo
sobre ele, abraçando-o, as fotografias caídas à nossa volta, enquanto tento a
todo custo acalmá-lo, desejando desesperadamente poder suportar um
pouquinho da sua dor, mesmo sabendo que isso é algo que só ele pode
sentir.
No fim das contas, esse é um jogo injusto, onde, mesmo fazendo tudo o
que eles querem, no fim saímos sempre perdendo.
Ela não se matou.
E essa constatação rasga meu peito como se tivesse um punhal
enferrujado nele. É doloroso, desesperador, triste.
Durante todo esse tempo, eu acreditei que a Anna havia tirado a sua
própria vida, que sua atitude egoísta havia nos destruído, quando, na
verdade, tudo o que ela fez foi para nos proteger.
Encaro as fotos sobre a cama enquanto o médico termina de imobilizar
meu braço quebrado. Em uma delas, eu e Demyan estamos no Smorodina,
na noite em que ela foi assassinada, sei disso porque naquela noite Demyan
estava usando o meu casaco.
Forço-me a lembrar daquela noite, da sensação esquisita, como se
estivéssemos sendo observados, a angústia que deixava Demyan inquieto, a
mensagem de Anna em meu celular.
Promessas são perigosas, ela disse, ou algo assim. Lembro de Yelena
também falando sobre isso, promessas são perigosas por aqui.
Não sei o que foi dito a ela. Será que ela entendeu o que estava
acontecendo? Será que deram a ela a chance de escolher? Será que aquela
mensagem foi mesmo ela quem mandou ou um dos doentes que trabalham
para Arkady? Tantas perguntas que nunca serão respondidas.
De repente, me pego pensando em Demyan, espero que ele tenha
aprendido a lição e não tenha se arriscado mais uma vez. Ele precisa ficar
longe daqui e, se possível, dessa cidade maldita.
— Pronto, vou deixar alguns medicamentos e nos vemos daqui a cinco
semanas — o médico que passou a ser quase como um amigo silencioso, de
tanto que vem me ver, diz enquanto recolhe as ataduras e gessos.
Cinco semanas sem mover meu braço, cinco semanas a mais nesse lugar
sem perspectiva de nada.
Espero o homem sair e olho para Yelena, ela ainda está sentada no canto
do quarto, as fotos de sua irmã dentro de um dos envelopes ao seu lado.
Levanto-me e vou até onde ela está, as lágrimas já secaram, mas deixaram
um rastro em seu rosto bonito.
Sento-me ao seu lado puxando-a para o meu colo com meu braço bom,
ela vem sem hesitar, se aninhando em meu peito, se encaixando em mim,
apoio meu queixo no alto da sua cabeça e a envolvo em meu abraço, não
falamos nada, apenas ficamos assim, imersos em nossas dores, relembrando
os nossos entes queridos.
— Está doendo? — ela pergunta tocando o gesso ainda fresco em meu
braço.
— Não — nego sentindo a garganta arranhar com todos os gritos que
dei.
Ela volta a deitar a cabeça em meu peito, ainda não sei por que Arkady
a deixou aqui, não confio em nada que ele faça, sei que tem algo por trás
disso, mesmo que eu não consiga decifrar.
Meu medo é nunca conseguir me adiantar a ele.
— Rom, posso te fazer uma pergunta? — Ela se afasta um pouquinho
para olhar para mim.
— Claro.
— Aquele dia, quando quis te levar para a banheira, foi por isso que...
— ela não termina de falar e agradeço. Não quero falar sobre Anna, nem
sobre minha mãe ou sua irmã, não quero falar sobre as pessoas que
perdemos e tudo que deixamos de ser por causa de um punhado de
monstros que acham que porque têm dinheiro podem fazer o que querem
com os miseráveis.
Então apenas movo a minha cabeça em um sim silencioso e volto a
aninhá-la em meus braços.
— Eu sinto muito por tudo — ela diz e beijo seus cabelos.
— Eu também.
— Você precisa dormir um pouco — Yelena diz um instante depois,
como se soubesse que não podemos continuar desse jeito, como se fosse um
dia qualquer de uma vida comum e não como se tivéssemos acabado de
descobrir que as pessoas que amamos foram assassinadas.
— Eu estou bem — respondo porque é tudo o que sai da minha boca.
— Você está tudo, menos bem — ela diz ainda com a cabeça em meu
peito. — Nenhum de nós está.
O silêncio é tudo o que posso dar a ela.
— Às vezes, tenho medo de nunca me sentir bem novamente, de passar
o resto da minha vida aqui — ela continua divagando.
— Isso não vai acontecer, um dia perderemos o que eles gostam, eu já
não sou mais o mesmo. — Ergo meu braço engessado. — Provavelmente,
não lutarei mais como antes e serei eliminado, e você...
— Serei morta em seguida — ela finaliza a frase, ambos sabemos que é
a verdade, por mais dolorosa que seja. — Eu não me importo, Roman. —
Ela ergue o rosto para olhar para mim. — Não tenho medo de morrer.
— Nem eu.
— Só tenho medo de ficar aqui sem você, de continuar nesse inferno
quando você se for.
— Então, vamos fazer de tudo para irmos juntos — digo enquanto
afasto uma mecha do seu cabelo do rosto e me inclino para depositar um
beijo em sua testa, Yelena envolve seus braços em meu pescoço, abraçando-
me de um jeito carinhoso, como se estivéssemos selando o nosso pacto.
No dia seguinte, quando acordo, Yelena não está mais ao meu lado, em
algum momento da noite eles a levaram, já não me importo mais com a
ideia de alguém entrando no quarto enquanto eu durmo, não há mais nada
de pior que eles possam fazer comigo do que tudo o que já fizeram.
Nas semanas seguintes, eu não a vejo mais. As poucas vezes em que
Arkady vem até mim e me mostra ela pela câmera do seu celular, Yelena
está dormindo, ou quieta demais, olhando para o nada, pensando em coisas
que não posso imaginar. Sua irmã talvez, nosso futuro ou a falta dele.
Pouco a pouco, meu braço vai melhorando, de acordo com o médico por
sorte não cheguei a fraturar, eu ri na sua cara, porque essas palavras
deveriam ser proibidas de ser ditas aqui. Sorte não entra no Poço, e hoje eu
sei que nem mesmo no ringue.
Quase um mês depois volto àquele porão, as lembranças da última vez
em que estive nele invadem minha mente, assim como as últimas palavras
de Sasha enquanto ele morria sob meus punhos:
“De qualquer forma, sempre soube que não viveria muito.”
Não era pra ser assim, não em um mundo justo, onde as pessoas têm
oportunidades de melhorar de vida, de estudar, de trabalhar, de ser um
cidadão de bem. Mas, para a maioria dos garotos de Temnyy Gorod, o Poço
é como um upgrade de vida. Na pior das hipóteses, você será uma boa
lembrança no coração da sua família e um prato a menos na mesa.
Como sempre, Arkady está lá, com Yelena ao seu lado. Novamente ela
está usando roupas normais e me recordo a primeira vez que a vi, com
aquele vestido longo e revelador, como uma fada criada para me seduzir.
Seus enormes e gélidos olhos me encaram, ela está mordendo o lábio
inferior e parece nervosa, movo meus ombros para trás e para a frente,
testando-os, não estou cem por cento, mas acho que posso dar conta.
Preciso dar conta.
Arkady fala as merdas de sempre, mas não dou ouvidos, nem ao menos
olho para ele, a verdade é que, se Yelena não estivesse aqui, a luta de hoje
seria bem diferente e, provavelmente, não teria um vencedor. Ele sabe
disso, tenho a impressão, inclusive, de que Arkady gosta do perigo, da
sensação de quase-morte, de saber que, se eu estivesse sozinho com ele,
seria um homem morto, e que Yelena é a única coisa que me impede de
realizar meus desejos.
E por falar nela, minha fada caminha até onde estou, noto seu queixo
tremendo, como se ela estivesse prestes a chorar. Quando ela para na minha
frente, seguro seu rosto em minhas mãos, passando a ponta dos polegares
por suas sardas suaves.
— Eu estou bem, não se preocupe — digo mais para confortá-la, Yelena
não diz nada, apenas move a cabeça e ergue a mão me puxando para baixo,
para si, para os seus lábios frios e amargos. E então ela me beija, de um
jeito esquisito, como se estivesse confusa e não soubesse o que está
fazendo.
Um instante depois sinto algo dentro da minha boca, quero abrir os
olhos, perguntar o que é, mas não demoro para notar o formato alongado do
comprimido, amargo como seus lábios, com uma textura estranha.
Ela se afasta, passando a língua por seu lábio, ainda perto o suficiente
para que ninguém note o que estamos fazendo.
— Engula — ela sussurra.
— O que é isso? — pergunto enquanto tento não quebrar o comprimido.
Yelena se afasta, seus olhos apavorados me encaram.
— O fim — ela diz e se afasta, então eu compreendo.
Observo-a se afastar, seu corpo pequeno e delicado parece hesitar
enquanto ela caminha, um passo na frente do outro. Arkady a observa com
adoração e, por mais que ele diga que não se importa, é impossível me
enganar, eu conheço aquele tipo de olhar doentio e obcecado.
Enquanto a vejo ir para longe de mim, desejo ter tido mais tempo com
ela, ter falado o que sinto naquela noite em que nossos corações estavam
quebrados pelos nossos entes queridos, desejo poder abraçá-la e amá-la
mais uma vez, desejo tanta coisa que, talvez, uma vida só seja muito pouco,
então apenas aceito o que tivemos, pouco, sujo, exposto e usado, mas foi o
que podemos ter e sei que ao menos dei a ela tudo que eu tinha: meu
coração. Mesmo que ela nunca saiba.
Engulo o comprimido sentindo-o queimar minha garganta, o gosto
amargo se espalha por toda a minha boca me fazendo sentir como uma
metáfora da minha vida de merda chegando ao fim.
Seca e amarga.
Pergunto-me onde ela conseguiu isso. Será que ela tem um para si
também? Será que ela vai ter coragem? Tenho certeza que sim, Yelena é a
personificação da coragem e força e tenho tanto orgulho de ter tido o
privilégio de tê-la conhecido.
Mantenho meus olhos fixos nela, na minha fada, é a última vez, depois
disso só se, por algum acaso, formos merecedores de um paraíso onde nos
encontraremos, então gravo cada pedacinho dela, e, por fim, seus olhos,
sempre eles, frios, intensos, belos.
Olhos de fada, olhos que me hipnotizaram desde o início.
— Boa sorte, meu garoto — Arkady diz, mas sua voz está distante
enquanto ele vai embora, carregando Yelena ao seu lado. Não respondo
nada, apenas observo.
A porta se abre, o adversário entra, sinto meu corpo fraco, instável,
minha mente está nublada, abaixo o rosto para os meus pés, não quero ver
quem vai levar consigo a honra de ter finalmente eliminado o Rei do Poço,
isso já não importa mais.
No fim, nada mais importa.
Ouço a porta se fechar, ouço os passos dele se aproximar, cambaleio e
quase caio, mas consigo me manter em pé. Sinto o cheiro da morte, tem
cheiro de paz.
Foram precisos quase dois meses até que Andrey finalmente
conseguisse conquistar a minha confiança.
Desde a noite em que ele me disse que íamos dar um jeito, uma
sementinha de esperança se instalou em meu peito. É engraçado como a
esperança é como uma erva daninha que cresce mesmo quando indesejada,
se espalhando e tomando lugares que jamais imaginamos.
Hoje estou repleta de esperança.
Sinto o gosto amargo em meus lábios enquanto deixo Arkady me levar
embora, mas também sinto o gosto dos lábios de Roman, da forma como ele
parecia confuso e mesmo assim disposto a aceitar tudo o que lhe ofereci
sem questionar.
Passamos pelos capangas que estão à espera do fim da luta, para levar o
corpo do perdedor para o seu último descanso. Andrey está entre eles,
nossos olhos se encontram rapidamente, ele acena, tão sutil que ninguém
nota e desvio o olhar para o chão, passo a língua sobre meus lábios mais
uma vez, desejando sair logo daqui.
Sinto como se todos soubessem, como se a qualquer momento alguém
fosse me chamar e dizer que sou uma traidora, que matei o Rei do Poço.
O fim...
Arkady anda à minha frente, ele parece tão feliz, cantarolando uma
canção que não conheço, os passos apressados enquanto caminhamos para
fora do subsolo, em direção ao que se tornou o meu lar desde o inverno
passado.
Passamos pela porta do meu quarto, mas ele não para.
— Onde estamos indo? — Sinto o medo na minha voz, as coisas estão
saindo do meu controle.
— Hoje você vem comigo, devochka. — Ele se vira para trás e sorri,
quero dizer que não, que vou ficar no meu quarto, mas desisto, é melhor
manter a calma.
Respiro fundo e o sigo até o seu escritório, de onde ouvimos o som do
Poço, das lutas e das pessoas que continuam enchendo esse lugar, fazendo
com que ele continue se alimentando de maldade e dor.
Arkady entra e deixa a porta aberta para que eu faça o mesmo, dois
capangas ficam à porta, um deles olha para mim e acena, provavelmente um
dos homens de Andrey. Há muitos deles por aqui ultimamente, desde que
Arkady contou a Roman tudo sobre os assassinatos, como se ele temesse
que, de alguma forma, Roman conseguisse se libertar e vir até aqui para
vingar os seus.
Seria incrível, admito.
— Hoje vai ser uma noite e tanto — Arkady diz enquanto se serve de
uma dose de vodka, ele vai até a mesa e pega o controle remoto, então liga
uma enorme tevê e se senta em uma poltrona. Olho em volta, observando os
detalhes da sala, há muita informação que talvez seja importante, afinal de
contas, provavelmente é aqui que ele trabalha, que decide quem vive e
quem morre.
A tela se ilumina e Arkady estende a mão para mim, quero dizer não,
mas vou até ele e me sento em seu colo, ele me beija e pousa a mão em meu
quadril como se fôssemos um casal, sinto nojo e vontade de me afastar, mas
respiro fundo e digo a mim mesma que está acabando, de um jeito ou de
outro, hoje será a última vez que esse desgraçado me toca.
Desvio o olhar para a tevê e vejo Roman, ele está mais magro e
cansado, nos últimos meses ele envelheceu dez anos e em nada se parece
com um garoto de vinte, seu corpo grande parece desengonçado e meu
coração começa a bater rápido.
— O que houve com ele? — Arkady pergunta e demoro um instante
para perceber que está falando sozinho.
Meus olhos estão fixos na tevê, esperando o momento em que tudo vai
acontecer. O seu adversário se aproxima, ele diz algo, Roman sorri e sorrio
também porque eu amo esse sorriso insano, de quem não tem medo de
nada.
Roman tropeça nos próprios pés e cai, o adversário olha em volta e me
enrijeço no colo de Arkady.
— Mas que porra... — Arkady começa a falar no instante em que o
corpo de Roman começa a desabar, a cabeça bate no chão de um jeito
esquisito, o outro homem sequer teve tempo de tocá-lo.
Como era esperado.
Solto um grito de desespero, Arkady me derruba no chão e se levanta
apressadamente, ele puxa o aparelho celular do bolso e começa a discar, na
tevê, os capangas entram na sala, entre eles está Andrey, eles afastam o
adversário, que diz coisas que não consigo ouvir. É Andrey quem se abaixa
até Roman, é ele quem verifica seus batimentos cardíacos, é ele quem pede
para chamarem o médico.
Durante todo o tempo em que tudo acontece permaneço sem respirar,
Arkady está gritando, meu coração batendo tão forte que tenho certeza de
que ele seria capaz de ouvir se prestasse atenção.
O médico se aproxima, faz os procedimentos, verifica os sinais, fixo
meus olhos nele, apenas nele, e no momento em que ele balança a cabeça,
em um não que significa que meu plano deu certo.
Ele se foi.
Arkady sai da sala imediatamente, dando ordens para que os capangas
fiquem de olho em mim, eles assentem e a porta se fecha, continuo olhando
para a tevê até que a tela se apaga. É isso, deu certo.
Forço minhas pernas a se levantarem, mas elas tremem tanto que tenho
medo de cair, vou até a sua mesa e começo a mexer em tudo, preciso de
informações, qualquer coisa que eu possa gravar em minha memória, levar
comigo, seja lá para onde eu for. Abro as gavetas, remexo em tudo, observo
as pilhas de folhas na mesa, há números, nomes, valores, não consigo ler
tudo, mesmo assim não paro, até que eu encontro um molho de chaves, meu
coração acelera tanto que temo que ele vá parar a qualquer momento, pego-
o e coloco no meu bolso. Não sei se vai dar certo, minha experiência diz
que não, vou até o outro lado e continuo mexendo, encontro um alarme e
guardo no meu outro bolso. Mesmo que eu não faça ideia do que seja,
continuo vasculhando, procurando, mexendo até que ouço uma batida na
porta, é bem suave, um código, confirmando que é realmente um dos
homens de Andrey.
Corro até a poltrona e me sento novamente, me inclino para a frente e
escondo o rosto em minhas mãos como se estivesse chorando, em choque.
A porta se abre com violência, Arkady entra, ele está furioso, posso
senti-lo como chibatadas de fogo que queima minha pele, tento respirar,
mas tudo é tão rápido que mal tenho tempo de me preparar, ele me pega
pelo braço, me puxando para si, espero pela bofetada, pela agressão, pela
acusação, mas nada disso vem, ao contrário, ele me puxa para si, em um
abraço desesperado que me faz arfar.
— Yelena... — ele sussurra meu nome como um apelo, desesperado. —
Nosso menino... — ele ofega como se tivesse sido atingido. Tento me
afastar, empurro seu corpo e ele me solta.
— Nosso? — indago me afastando, um passo atrás do outro, cada vez
mais longe. — Nosso? — começo a rir, ele me olha como se não estivesse
entendendo. — Quando é que você vai entender, Arkady, que não existe
nada seu aqui. — Coloco minha mão trêmula no bolso, sentindo o molho de
chaves se mover enquanto busco por algo. — Nunca houve nada seu —
digo sentindo uma força absurda surgir de dentro de mim. — Nada,
absolutamente nada aqui é seu. — Meus lábios se movem em um sorriso
nervoso que faz os músculos do meu rosto doerem. — Você pode ter me
usado, me machucado, me humilhado... — Afasto uma lágrima fujona com
as costas da minha mão. — Mas isso nunca fez nada ser seu.
— Yelena...
— Isso só me deu a certeza de que nem que você fosse o último homem
do mundo, eu nunca desejaria ser sua.
— Eu não vou me ofender, você está em choque, eu sei, eu também
estou.
— Choque? — Balanço a cabeça com força. — A única coisa que eu
sinto é um alívio imenso e inveja, porque ele não está mais aqui.
— Não, eu prometi a ele. Eu... — Ele caminha até parar na minha
frente. Encaro seus olhos frios e imundos, olhos que já viram tudo o que o
mundo tem de pior e ainda conseguem se fechar à noite para dormir, olhos
que eu daria tudo para nunca mais ver na vida.
— Sabe o que me deixa feliz? Saber que nunca mais vou precisar sentir
seu corpo imundo sobre o meu. — Ergo minha mão entre nós, levando o
pequeno objeto à minha boca, colocando-o rapidamente nela no instante em
que ele me segura em seus braços.
— O que é isso, o que você colocou na boca? — Ele me chacoalha,
enquanto o comprimido áspero e amargo desce por minha garganta. —
Yelena, o que você fez? — ele grita, me apertando junto a si, enquanto enfia
a mão dentro da minha boca.
Não há mais tempo, acabou.
— Acabou, Arkady — sussurro sentindo um alívio imenso em
finalmente poder dizer isso.
— Não, não, não, sou eu quem decide quando acaba, sou eu! — ele
grita enquanto me chacoalha e faço algo inesperado.
Eu começo a rir.
Às vezes, tudo o que nos resta a fazer é desistir.
De buscar entender por que eu?
De querer resolver tudo.
De acreditar que dá conta.
De fingir que não está com medo.
De achar que é forte o tempo todo.
De tentar se antecipar ao futuro.
Ele não existe.
Foi o que percebi naquele momento quando entendi o que Yelena estava
fazendo, me envenenando, me matando, me libertando para que eu não
precise mais passar por aquilo.
Eu aceitei sem pensar duas vezes, porque, às vezes, é preciso entender
quando se deve parar de lutar.
Eu entendi isso no momento em que abri meus olhos e me dei conta de
que eu não estava morto, ou talvez eu morri e isso aqui é alguma espécie de
céu para monstros como eu.
Tento levantar, mas minha cabeça dói e volto a me deitar, a garganta
ainda machucada dos gritos arde e tento engolir, mas é como se eu não
tivesse mais saliva em minha boca.
Ouço o som de passos e uma tosse rouca e grave que me faz ter a
certeza de que não estou no céu. Então...
Levanto-me bruscamente sem me importar com a dor, olho em volta
reconhecendo o lugar onde estou, é a antiga cabana que eu e Demyan
usávamos quando crianças para brincar pela Kupol enquanto fingíamos que
estávamos desbravando o mundo.
Tudo parece quase igual ao que me lembro, algumas coisas menores,
outras mais velhas, desbotadas, sem graça, como se, ao crescer, o
encantamento que cobria esse lugar houvesse se desmanchado.
— Se eu fosse você, não tentava se levantar assim tão rápido — Grigory
diz parado na entrada do chalé, carregando um monte de lenha em seus
braços fortes.
— Eu disse para não ir... atrás do meu corpo — falo com dificuldade,
cansado demais.
— É, você disse, mas eu não dou a mínima para o que um mudak como
você diz — ele responde e tento sorrir, mas todos os meus músculos
parecem doer.
— Onde ela está? — pergunto, espalmando a mão em meu abdômen e
tentando mais uma vez levantar.
— Deita, moleque. — Ele vai até o outro lado da cabana e coloca a
madeira em cima da lareira.
— A Yelena... — Obrigo-me a me levantar, ainda estou tonto e não
consigo andar em linha reta. Além do mais, meu estômago está
embrulhado, como se eu estivesse com uma puta ressaca e fosse vomitar a
qualquer momento.
— Teimoso como a porra daquele gato — Grigory diz cruzando os
braços e me observando tentar andar sem cair.
— Eu preciso ir... a Yelena... ela está lá — digo com um esforço
anormal, mas o grandalhão à minha frente apenas me observa sem nada
fazer. — Onde ela está? — pergunto mais uma vez.
Grigory aponta com o queixo para a parte externa da cabana e, quando
sigo seu olhar, sinto meu coração inteiro explodir de emoção com a certeza
de que eu devo ter morrido, esse é o único motivo para que eu esteja vendo
uma fada em meio à floresta fria e úmida da Rússia, sorrindo como se fosse
a porra da minha salvação.
E ela é.
— Yelena — sussurro com medo dela desaparecer como névoa em um
sonho. Ela está ao lado de Daria, aparentemente bem embora esteja
parecendo tão enjoada quanto eu.
— Até tentamos manter essa aí deitada, mas ela é mais teimosa que
você — Grigory diz.
— Acredite, ela esteve no inferno por tempo demais para alguma coisa
a impedir de fazer algo.
Yelena, minha pequena fada, minha heroína caminha devagar até onde
estou, tento dar um passo e logo sinto o braço de Grigory a minha volta.
— Vem, eu te ajudo, moleque teimoso — ele resmunga enquanto me
ajuda a caminhar ao encontro dela. — Para de sorrir, parece um mudak.
— Eu não estou... sorrindo — minto enquanto sinto a brisa fria do fim
do dia em meu rosto, o cheiro das árvores tão familiar para mim, o peso
suave da liberdade.
Yelena para a poucos passos de distância, ela parece pálida, como se
estivesse doente, mas o sorriso ilumina seu rosto de fada enquanto espera
por mim.
— Oi — digo ao parar na sua frente, tentando me manter em pé sem a
ajuda de Grigory, mas falhando miseravelmente.
— Eu não me lembrava mais de como isso aqui é lindo — ela diz ao
olhar em volta.
— Você tem razão, é a coisa mais linda que já vi na minha vida — digo
sem tirar os olhos da garota com olhos de gelo à minha frente.
— Você demorou para acordar — ela diz, a voz frágil, quase dolorosa.
— Eu estava fazendo um pouco de suspense... — Respiro fundo
sentindo um pouco de náusea.
— Bem típico do... Rei do Poço.
— Não, na verdade, de acordo com ele — aponto para Grigory ao meu
lado —, sou apenas um mudak.
— Acho que posso me acostumar com isso.
Me desvencilho de Grigory e dou mais um passo, Yelena faz o mesmo
e, então, estamos finalmente um de frente para o outro. Estico minha mão e
estendo-a para Yelena, ela desvia o olhar para ela por alguns instantes antes
de colocar a sua em cima. Um ato tão simples, mas que significa tanto para
quem, por muito tempo, só precisou de um toque para não se perder em sua
própria insanidade. Fecho meus dedos em volta dela, sentindo a
familiaridade aquecer meu coração.
Dou mais um passo e ela faz o mesmo, nossos corpos instáveis se
tocam, sinto o calor da sua pele sobre a minha, o seu cheiro de fada em meu
nariz, a sensação de envolver meus braços em sua cintura, de segurá-la
junto a mim. De tê-la em meus braços mais uma vez.
Minha.
— Senti sua falta — ela sussurra com os lábios em meu peito.
— Eu também — digo com os meus lábios em seus cabelos, sentindo
seu cheiro de paz e conforto.
Yelena ergue o rosto e olha para mim.
— Chega de morrer — ela pede com os seus olhos carregados de
sentimentos, ergo minha mão e passo o polegar em sua bochecha,
capturando uma única lágrima que ousa cair de seus olhos.
— Por você eu morreria mil vezes mais.
Inclino-me e deixo um beijo demorado em sua testa, Yelena aperta seus
braços em volta de mim, como se estivesse com medo de me soltar e tudo
acabar.
— Se for um sonho não quero acordar — ela diz, com os lábios em meu
peito.
— Não pode ser um sonho, o Grigory está aqui — digo e ele resmunga
algo que não ouço, estou imerso na magia de me sentir vivo pela primeira
vez depois de muito tempo.
Ainda não faço ideia do que está acontecendo ou como viemos parar
aqui, tudo o que me lembro é de estar mais uma vez naquele porão, de ter
beijado-a e, em seguida, ter engolido um comprimido e então o mundo à
minha volta apagou, e agora estou aqui, e por um instante não quero saber
de nada, quero ser o idiota do qual Grigory me chama.
Um grande, fodido, dolorido e idiota apaixonado.
Agora somos nós três, eu, Grigory e Demyan, um plano nas mãos e o
mundo à nossa volta. Não faço ideia do que vai acontecer conosco, mas não
mudaria nada, é o que quero fazer e tenho certeza de que é o que Demyan
também quer.
— E aí, como você está? — Demyan pergunta um tempo depois.
Estamos sentados de frente um para o outro, seu rosto tem hematomas de
lutas passadas e seu olhar demonstra o quanto está cansado, mas há algo
mais, algo que não estava ali na última vez que o vi, algo novo, diferente.
— Estou indo, um passo de cada vez.
— Grigory tem ficado preocupado.
— Ele é um bom amigo — digo e Demyan move a cabeça. — Eu tenho
bons amigos.
— No fim das contas, você é um cara de sorte.
Ergo a sobrancelha querendo discordar, mas talvez ele tenha razão.
— Saberemos em alguns dias.
Ele move a cabeça mais uma vez, as mãos cruzadas, os braços apoiados
nas coxas, tenso, como se a qualquer momento algo de ruim fosse
acontecer.
— Antes, preciso te contar umas coisas que fiquei sabendo quando
estava no Poço.
Demyan se ajeita na cadeira franzindo o cenho.
— Que coisas?
— É sobre a Anna — digo e sinto a garganta se fechando à medida que
me lembro daquelas fotos. Agradeço a Deus que ele nunca vá vê-las, é
doloroso demais para um irmão.
— O que tem ela?
— Ela não se matou, Dem — respondo. As marcas de sangue nos
azulejos invadem minha mente e tento afastá-las sem sucesso.
— Do que você está falando?
Conto a ele tudo sobre o porão, desde o momento em que matei o
primeiro homem até o instante em que Arkady me entregou os envelopes,
conto sobre meu pai e a forma cruel como eles usaram Anna para me fazer
entrar no Poço, conto sobre Yelena e como tudo foi forjado, para que eu me
apegasse a ela.
— Tudo é filmado e vendido por quantias absurdas, grana alta, vem de
todo lugar, do mundo inteiro. Somos os brinquedos deles, a diversão desses
sádicos imundos — continuo.
Demyan se levanta e começa a andar de um lado para o outro, com as
mãos em concha em frente aos lábios enquanto assimila tudo.
— Ela foi estuprada — ele diz, agora de costas para mim.
— O quê?
— Ela deixou uma carta explicando o motivo, ou dando um motivo. —
Ele apoia as mãos na janela e abaixa a cabeça. — Porra, eu nem sei se foi
ela mesmo quem escreveu, ou se foi obrigada a dizer aquilo. Pelo que você
está dizendo, tudo ali é pensado.
— Jesus Cristo. — Inclino-me para a frente sem saber o que pensar. —
Se isso realmente aconteceu, com certeza eles venderam... — não consigo
terminar de falar, mas ele compreende e se vira para olhar para mim.
— Vamos fazer eles pagarem por tudo — Demyan diz, com os olhos
vermelhos pelas lágrimas que ele não quer permitir deixar cair e a voz
carregada de promessas de vingança.
Levanto-me e vou até onde ele está, estendo minha mão e ele a observa
por um tempo.
— Vamos vingar a nossa Anna.
Demyan segura minha mão, selando assim a nossa promessa.
— Eu preciso ir, vocês estão precisando de alguma coisa? — Demyan
pergunta já do lado de fora, se encolhendo de frio.
— Não, estamos bem.
Yelena surge em meio às árvores na companhia de Daria, que vem se
tornando uma amiga.
— E aí, como vocês estão?
— Nos adaptando, ainda é estanho estar livre, imagino que para ela seja
ainda pior, mas Yelena é forte e corajosa.
— E você está apaixonado.
— Sim, eu estou.
— Que bom, você merece, não sei se ela merece você, mas... — ele me
provoca e dou um murro em seu braço, que o faz se encolher.
— Ainda não aprendeu a apanhar?
— Não, mas já aprendi a bater, quer ver? — Demyan fecha os punhos e
gargalho alto.
— Ainda não. — Empurro sua mão para longe de mim.
— E aí, vai me falar sobre ela? — pergunto um tempo depois, enquanto
fumo o primeiro cigarro em muito tempo.
— Ela quem? — Demyan pergunta, fumando o seu próprio cigarro.
— A garota.
— Quem te contou?
— Ninguém, tá na tua cara.
Demyan balança a cabeça e um sorriso feliz surge em sua boca.
— Se eu te contar, você não vai acreditar.
— Acho que pode tentar, quanto tempo até a próxima reunião lá na
fábrica?
Demyan olha para o relógio em seu pulso.
— Vinte minutos.
— Então vamos lá, desembucha.
— Lembra quando eu ia ao colégio te esperar para a gente ir fazer
merda no centro?
Ele começa a falar sobre a garota que roubou a porra do seu coração
fodido, a cada frase o sorriso idiota aumenta provando o que eu já
imaginava.
Meu amigo se apaixonou.
— O banheiro fica bem ali. — Grigory aponta para uma porta do outro
lado do salão lotado de pessoas que imaginei que nunca mais colocaria
meus pés.
— O quê?
— Você tá aí se contorcendo igual a um moleque com vontade de mijar,
só estou indicando o lugar.
— Engraçadinho — digo enquanto ele gargalha alto demais para o meu
gosto. — Pelo jeito, o grandalhão tomou uma chave de boceta que o deixou
de bom humor né? — provoco-o e Grigory para de rir imediatamente.
— Se abrir a boca mais uma vez, eu mesmo acabo com você — ele me
ameaça e é minha vez de rir.
Nossa brincadeira acaba no instante em que o apresentador da noite
começa a falar sobre a luta de hoje.
O Padat’.
Tento ignorar a parte em mim que implora para ir embora, que tenta me
alertar de que basta um dos homens do Arkady me ver aqui e, então, estarei
de volta naquele porão, matando homens que nada me fizeram para agradar
um punhado de homens poderosos.
Mas então eu me obrigo a lembrar que não estou sozinho, na verdade,
nesse momento tem tantos homens nossos misturados como expectadores,
como capangas que Arkady não teria nem tempo de terminar de soletrar seu
nome.
— Chegou a hora — Grigory avisa e me afasto da parede, ainda estou
usando um agasalho de Demyan, com o capuz erguido para não chamar a
atenção de ninguém e puxo um pouco mais, no caso de uma rajada de vento
ultrapassar as paredes e me atingir ou... ah porra, nem sei.
Olho para o lugar onde Demyan entra, ele parece confiante e tranquilo,
uma muralha de frieza e raiva, sei exatamente como ele está se sentindo, já
estive no seu lugar embora no meu caso, não terminou tão bem.
— Boa sorte, mudak — Grigory diz ao passar por mim, conforme
planejamos. Olho mais uma vez para o ringue, estou pronto para me mover
quando ouço meu nome. Me viro apenas um pouco para não entregar meu
rosto, mas então a curiosidade vence e giro o corpo todo, na minha frente
está uma ruiva de cabelos longos e sardas no rosto, seus olhos me encaram
como se fôssemos velhos amigos, mesmo que eu não me recorde de tê-la
visto alguma vez, ela inclina a cabeça me analisando e, então, tudo se
encaixa.
A garota que roubou o coração do Demyan, a responsável por ele estar
sorrindo novamente, observo-a mais uma vez para garantir que não estou
maluco.
— Sardenta?
Seus olhos se arregalam como se eu tivesse dito uma palavra mágica ou
algo do tipo, é, meu amigo tá mesmo muito fodido, essa garota é do tipo
durona que não leva desaforo para casa. Essa constatação faz um sorriso
enorme se espalhar por meu rosto.
— O que...? O que tá fazendo aqui? — ela pergunta parecendo confusa.
O apresentador grita o nome de Demyan, as pessoas se agitam, meu
sorriso aumenta.
— Você não sabe? A luta final é minha com Demyan — digo e vejo o
pavor em seus olhos, ela sabe o que isso significa, é o Padat’ afinal de
contas.
Ela dá um passo para trás e posso jurar que está prestes a gritar, como
em um filme de terror, mas antes que ela tenha a oportunidade, seu corpo
esbarra em uma muralha de músculos, mesmo que sejam músculos um
pouco avantajados demais.
Grigory olha para mim enquanto impede Annika de gritar tapando sua
boca com a mão.
— Vai logo, moleque, antes que mais alguém apareça — ele diz já
arrastando a ruivinha para um canto escuro para que ninguém a veja.
Principalmente Demyan, tenho certeza de que ele não iria gostar nem um
pouco.
O caminho até o ringue não é tão longo, dou alguns passos desviando
das pessoas que se espremem para que eu possa passar. Posso ouvir alguns
sussurros, até mesmo um deles falando meu nome, não paro de andar, nem
ergo meu rosto para olhar para Demyan. Não será fácil depois de tudo o que
fui obrigado a fazer, mas é por uma boa causa e nós dois sabemos disso.
Quando subo no ringue, o árbitro olha para mim, sua expressão é
confusa e ele parece não entender o que está acontecendo. Seus olhos
desviam para um lugar, mas o apresentador se aproxima e sussurra algo,
uma ameaça provavelmente, avisando para ele continuar.
Puxo o moletom pela cabeça revelando minha identidade afinal, o Poço
fica em silêncio enquanto Demyan sorri, com os braços descansando nas
cordas.
— Seja bem-vindo de volta, Rei — ele diz e sorrio sentindo uma
estranha familiaridade com esse lugar.
Aqui fui o Rei desse lugar.
O árbitro me apresenta: Roman, o Rei do Poço. Ele fala um monte de
merda que não ouço, meu cérebro está refazendo todos os passos, tentando
ignorar a última vez que tentamos algo assim. Aquilo foi diferente, era um
plano idiota de um garoto apaixonado, hoje estamos em uma missão que foi
planejada muito bem.
Ergo os braços cumprimentando a multidão, que grita nossos nomes,
Demyan faz o mesmo e giramos em nossos calcanhares atiçando as
torcidas.
A luta começa e passamos alguns segundos nos estudando, milhares de
momentos passam por minha mente, desde pequenos, brincando por aí,
escalando a Granitsa, desbravando a Kupol, fazendo nosso nome por todo o
Oeste e Sul, nunca fomos muito de falar sobre o que significamos um para o
outro, mas esse cara gastou mais dinheiro do que um dia terei na minha vida
para me resgatar. Durante um ano inteiro, ele não desistiu de me procurar
enquanto eu tentava não morrer, e isso é mais do que palavras podem
sequer dizer.
O primeiro soco vem antes que eu possa me preparar e me desestabiliza,
cambaleio até sentir minhas costas nas cordas, mas Demyan não se
aproveita para avançar como eu sei que ele faria, não é uma luta de ódio, é
mais como dois amigos descarregando suas dores.
Ele vem até mim, ergue o braço e aproveito para acertar suas costelas,
os homens lá embaixo gritam enquanto meu amigo geme.
— Foi mal — sussurro antes de acertar o próximo.
— Vai se foder, Roman, desaprendeu a bater? — Demyan me provoca e
tento acertar seu rosto, mas ele se esquiva e gira para a minha esquerda.
A luta se desenvolve assim, trocas de socos sem grandes danos, os
homens à nossa volta estão hipnotizados, incapazes de desviar o olhar,
afinal de contas, essa luta será contada através da história de Temnyy
Gorod, de pai para filho.
Eu vi as lendas juntas, melhores amigos.
Demyan acerta um golpe em meu maxilar, que me faz perder o
equilíbrio, caio, mas ele não avança, o que causa irritação nos homens que
vieram até aqui e pagaram para ver a morte.
“Lutem o máximo que puderem, distraiam as pessoas, causem alvoroço,
quanto mais tempo tivermos melhor.”
Tento levantar e caio de novo, chamo Demyan de covarde e ele chuta
minhas costelas, urro de dor e uma onda de gritos insanos surgem à nossa
volta, é isso que eles querem.
Me levanto com dificuldade e vou para cima de Demyan, ele olha
dentro dos meus olhos e preciso dizer, meu amigo é corajoso por saber o
que virá e, mesmo assim, me olhar nos olhos dessa forma.
— Desculpa — sussurro, só para ele ouvir no instante em que atinjo seu
rosto. É um golpe forte e perigoso, que geralmente finaliza uma luta, mas
hoje não basta, eu preciso de mais.
Demyan cai no chão, seu corpo bate violentamente e os gritos de Rei do
Poço preenchem cada canto desse lugar, sento em seu peito e continuo
socando seu rosto de playboy folgado, até que ele para de se mover, o
apresentador começa a gritar:
— Acabou, acabou!
O árbitro se aproxima me puxando de cima de Demyan, o médico é
chamado, ele se aproxima, confere os batimentos cardíacos, não há nada ali.
Antes de descer do ringue, o médico olha para mim, é tão rápido que só
eu consigo notar, seus olhos dizem que estamos indo bem. O árbitro ergue
minha mão, sou finalmente o campeão do Padat’.
O Rei do Poço.
O alçapão se abre sob meus pés, quero desviar os olhos, digo a mim
mesmo que está tudo bem, mas, no momento em que os homens pegam o
corpo de Demyan e o jogam no Poço, sinto meu corpo inteiro tremer e os
rostos de todos aqueles homens que matei surgem na minha frente.
— Roman... — ouço meu nome e me viro. É Sasha, ele está parado na
minha frente, o rosto inchado, o sangue envelhecido em sua pele, as órbitas
fundas sem os olhos. — Por que você fez isso comigo? — ele pergunta,
abro minha boca para responder, mas não tenho tempo para mais nada, o
barulho da explosão informa que meu tempo acabou.
O plano está em andamento.
Dois dias antes...
Ele sempre faz isso, começou uma semana depois de finalmente irmos
embora de Temnyy Gorod, depois que eu disse que não seria capaz de
comprar uma garrafinha de água porque eu teria que falar com a atendente
da loja.
Ele esperou quase uma hora até que eu estivesse pronta para me afastar
dele, então eu entrei, comprei a água e quando saí me sentindo a garota
mais corajosa e forte do mundo ele estava lá, apoiado no carro, com Berstuk
ao lado sentado no capô, os dois me observando atravessar a rua, o sorriso
no rosto de Roman era tão grande que poderia quebrar seu maxilar.
“Eu sabia que você era capaz”, ele disse ao me abraçar.
Uma garrafa de água.
Existem pessoas que comemoram vitórias grandiosas, conquistas de
uma vida inteira e eu estava feliz por ter comprado uma garrafa de água.
Depois comemorei por ter escolhido uma roupa, no outro dia, foi por ter
dito não a Roman quando ele quis fazer sexo e eu estava cansada demais
para isso, então por ter conseguido fechar a porta do banheiro para poder
tomar banho.
Na semana passada cortei o cabelo, nessa eu escolhi meu celular, o
mesmo que está tocando nesse momento.
Pego-o em meu bolso e a tela com uma foto minha e de Roman
sentados no capô do carro, Berstuk está no meu colo, o sol está se pondo,
em um degradê de cores no céu, as cores que eu desejo para nós.
— É a Annika — digo antes de atender.
— E aí, como estão as coisas? — ela pergunta do outro lado da ligação.
— Estamos quase chegando a São Petersburgo —digo olhando para
Roman, ele sorri, empolgado, feliz.
— Ah que máximo, não esquece, quero muitas fotos.
Annika é uma boa amiga, fácil, determinada, inteligente e atenciosa,
estabelecemos uma amizade bonita, ela se preocupa conosco, sempre
pergunta como estamos sem ser invasiva, e sempre conta como estão as
coisas por lá.
— Pode deixar, mandaremos.
Conversamos mais um pouco enquanto a comida não chega e nos
despedimos com promessas de que voltaremos para o Natal.
— Diga a Roman que Demyan está com saudades — ela diz e posso
ouvir um grito de longe negando, sorrio e nos despedimos.
Comemos tudo e a omelete não é tão boa como parecia, pedimos a
conta e Roman paga, com o cartão que Demyan deu, ele disse que Dimitri
conseguiu encontrar uma conta do Poço e desviou uma parte do dinheiro
para nós, como parte do pagamento por tudo o que passamos.
É muito dinheiro, o suficiente para que não precisemos mais roubar, ou
fugir, para que possamos sonhar sem medo, para que possamos ser livres.
— Está pronta, senhorita?
— Sim.
— Então vamos, o mundo nos espera. — Ele estende a mão para mim e
a recebo, como naquele primeiro dia e como em todos os outros.
Saímos do restaurante abraçados, como um jovem casal de namorados,
Berstuk que estava à nossa espera, vem correndo ao nosso encontro e
caminhamos em direção ao carro que nos últimos seis meses vem sendo o
nosso lar.
Roman abre a porta do carro e o gato pula para o banco de trás, nos
acomodamos e saímos rumo a mais uma aventura.
— Quando você vai aprender a dirigir? — ele diz e giro o rosto em sua
direção.
— Dirigir?
— Claro, será ótimo dividir a direção com você.
Olho para a estrada à nossa frente, um mundo inteiro de possibilidades,
olho para os pulsos de Roman, em seguida olho para os meus e me pego
pensando em como a liberdade é algo tão poderoso.
— O que foi? — Roman pergunta quando nota que estou em silêncio.
— Estava pensando naquela garota que se matou na sua frente — digo,
embora evitamos falar do Poço na maioria das vezes.
— O que tem ela?
— Nunca descobrimos por que ela fez aquilo.
— Por que está pensando nela agora? — ele pergunta com os olhos na
estrada.
— É que, às vezes, eu fico pensando... —Balanço a cabeça
envergonhada com minha ideia.
— Pensando no quê?
— Nada não, deixa pra lá.
— Yelena, diga o que estava pensando.
— E se foi a Anna, e se ela de alguma forma arrumou um jeito de nos
ajudar, de fazer você perceber que precisava me salvar?
Roman me olha parecendo assustado, como se o que eu disse fosse algo
absurdo.
— Como um recado — ele constata.
— Como uma ajuda.
— Porque ela saberia que, naquele momento, eu não olharia para
nenhuma garota a não ser que ela estivesse precisando.
— Sendo assim, a sua Anna te levou até mim.
Ele sorri, um sorriso emocionado.
— Ela faria isso, com certeza faria.
Me inclino e deixo um beijo em sua boca.
— Porque no fim ela sempre soube que o ladrão na verdade é um herói.
— Nossa história é um conto de fadas então?
— Não sei, não me vejo como uma princesa. — Volto a olhar para os
meus pulsos.
— É, você tem razão, você não é uma princesa, você é uma fada, a
minha fada.
Ele me puxa para junto de si, acariciando meus cabelos com uma mão
enquanto dirige com a outra.
— Então nossa história pode ser um conto?
— Como os da mitologia — ele continua falando enquanto uma música
suave começa a tocar no rádio.
— O gigante e a fada — digo admirando o sol se pondo no horizonte.
— Que tal o guerreiro e a fada?
Me afasto para olhar para ele, relembrando cada uma das cicatrizes que
ele tem, todas as lutas que ele precisou vencer, os vilões que precisou matar,
a masmorra que precisou encontrar e eu, a garota que ele precisou salvar.
É isso, nossa história não é um conto de fadas, nem um romance fofo
como dos filmes, somos diferentes deles, e isso faz de nós dois, únicos.
— Guerreiro? É, acho que gosto disso.
Eu tenho milhões de coisas para escrever aqui, mas nesse momento
estou tão cansada que não consigo lembrar de tudo, óbvio que daqui a
algumas semanas vou me xingar por ter me esquecido de algo.
Então, antes de agradecer, quero dizer para a Cinthia do passado: “Não
se cobre tanto assim, você fez o impossível, dentro das suas limitações de
prazos e tempo, e sério, que orgulho de você. Justo você que achava que era
incapaz de escrever um dark, hoje está finalizando uma história linda. Você
pode tudo! Não se esqueça disso”.
Quando eu e a Fran decidimos escrever essa duologia, eu não fazia ideia
que estávamos embarcando não só no caos de Temnyy Gorod, como
estávamos prestes a viver a insanidade dessa cidade.
Tudo foi muito intenso, muito fluído e muito rápido. Um dia estávamos
pensando: “Ei, que tal escrever um livro juntas?” e no outro estávamos
fazendo pesquisas e mais pesquisas sobre o universo dark, sobre a Rússia,
sobre mitologia eslava. Roteiros, cronogramas, fichas, mapa. A gente fez
um mapa!
Ufa! Como é difícil sair da nossa zona de conforto, escrever sobre algo
que não é comum para mim, dar liberdade para a minha mente criar
situações que eu jamais me imaginei escrever. Me desafiar.
E no meio disso tudo, eu não estive sozinha, minhas betas me apoiaram,
as que já conhecem o gênero, as que nunca leram, as que estavam receosas,
todas elas me abraçaram e falaram “eu confio em você” e seguraram minha
mão, me enlouqueceram e me fizeram ler e reler mil vezes. Mas valeu a
pena.
E vocês não têm ideia do quanto foi importante para mim ter a
confiança delas em meu trabalho, assim como é incrível saber que, desde a
primeira vez em que usei Evanescence na trilha sonora desse livro, minhas
leitoras já compraram My Immortal e Bring me to Life como os hinos do
Rei e da Fadinha.
E para completar teve ela, minha companheira de noites acordadas, de
horas e horas de mensagens, de pesquisas, de marketing e ice, de
bolachinhas Bauducco e memes engraçados, de risadas, muitas risadas,
rindo de nervoso, de emoção, de alegria, de orgulho, de apoio. Obrigada,
loira, foi incrível dividir esses dois meses com você, Demyan e Annika.
E por fim, você que embarcou nessa jornada, que leu até aqui, eu
gostaria de agradecer por ter apoiado meu trabalho. Espero que Roman e
Yelena tenham tocado o seu coração, que eles possam ter te entregado uma
história diferente, especial, mitológica, mas, acima de tudo, uma história de
amor.
Única.
Ahh... antes de sair, não esquece de avaliar, suas estrelinhas são muito
importantes para mim. E, se quiser, vem me contar o que achou da história,
vou amar saber a sua opinião.
Nos vemos na próxima aventura.
Cinthia Freire é uma escritora apaixonada por romances, adora as mil
formas com que uma história de amor pode ser contada e a magia por trás
disso.
Autora de livros que sempre carregam uma carga dramática e um tema
social pertinente, mas que tem como lema o famoso felizes para sempre.
Afinal de contas, essa é a principal missão de um romance: deixar o coração
quentinho.
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1 - Meu erro
1.5 - Minha (conto)
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2.5 - Meu (conto)
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3.5 - Nosso (conto)
4 - Minha cura
4.5 - Seu (conto)
1. Nuno
2. Ivan
3. Nick
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