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© 2021 LUANA PESSOA

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de fevereiro de 1998 |
Esta é uma obra de ficção. Qualquer nome, lugar, personagens e
ocasiões são produtos da mente do autor. Qualquer semelhança com pessoas
e acontecimentos reais não irão passar de mera coincidência.
Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

DIAGRAMAÇÃO |
CAPA
Larissa Chagas

REVISÃO
Mayta Ferreira Machado

LEITURA CRÍTICA
Wendy Rudio

DIABOLIC STEPBROTHER, Trilogia Diabolical — Livro 1 [Recurso


Digital] — Luana Pessoa /— 2ª Ed; 2021
1. Romance Contemporâneo 2. Literatura Brasileira 3. New Adult 4.
Dark Romance 5. Bully Romance 6. Ficção I. Título
NOTA DA AUTORA E AVISO DE GATILHOS
PLAYLIST
EPÍGRAFE
DEDICATÓRIA
PRÓLOGO
01 - INIMIGO DECLARADO
02 - CALIFORNIANOS
03 - PESADELO
04 - MECANISMO DE DEFESA
05 - MOSTRE-ME AGORA
06 - VESTÍGIOS DO PASSADO
07 - CALIFÓRNIA?
08 - ESCOMBROS
09 - NOCIVOS
10 - ALMAS QUEBRADAS
11 - ESTILHAÇOS
12 - RECOMEÇOS
13 - SABOR AMARGO
14 - EM OUTRAS VIDAS
15 - ESPELHO
16 - FILHO DO DIABO
17 - LIGAÇÕES PERIGOSAS
18 - GUARDA BAIXA
19 - SOMOS FEITOS DE CAOS
20 - DIABÓLICOS — PARTE I
21 - DIABÓLICOS — PARTE II
22 - DIABÓLICOS — PARTE III
23 - DIABÓLICOS — PARTE IV
24 - DIABÓLICOS — PARTE V
25 - UM MILHÃO DE VIDAS
EPÍLOGO
DIABOLIC ENEMY – LIVRO DOIS
AGRADECIMENTOS
Olá, querido leitor, seja muito bem-vindo ao primeiro livro da trilogia
Diabolical.
Meu chamo Luana, e quero que saiba, de antemão, que é um prazer
conhecê-lo.
Eu comecei essa jornada de criar estórias muito cedo, sempre para
grupos no Facebook. Uma vez, anos atrás, me arrisquei no Wattpad.
Resultado: foi um fiasco. Fiquei desanimada e achei que não era para
ser, que eu deveria focar em outra coisa. Mas sabe quando algo tem que ser
aquilo para você? Bem, Diabolic Stepbrother foi esse aquilo para mim. Em
2020, eu baixei o aplicativo novamente, minha ideia era criar um romance
obscuro. Em pouquíssimo tempo, atingi milhares de leituras. Portanto, aqui
vai um conselho: se você quer, sob hipótese alguma, desista.
Agora, há certas coisas que você precisa saber antes de iniciar a leitura
— principalmente o fato de que não ocorre incesto.
Por mais sugestivo que o título pareça, os personagens não possuem
ligação consanguínea. Esteja ciente, também, que se trata de um Dark
Romance. Os temas abordados estão inclinados a acionar gatilhos. Alguns
deles são cenas gráficas de assassinato, automutilação, abusos físicos e
psicológicos, consumo de bebidas alcóolicas, linguagem obscena, conteúdo
sexual explícito, tortura, mutilação, abuso sexual infantil e estupro.
Os personagens principais são donos de almas quebradas, caráter
distorcido e têm demônios internos que arranham a superfície com muita
frequência. Em específico, Grayson Cagliari. Meu anti-herói do livro que virá
a seguir pode — e vai — chocar você. Todavia, cada um evoluirá.
Nada será romantizado, porém. Se você se sentir desconfortável em
qualquer momento, peço para que não continue a leitura. Sempre preze em
primeiro lugar pela sua saúde mental, pois ela vale mais do que tudo.
Por fim, gostaria de alertar que alguns secundários terão um destaque
gritante, e você os verá aparecer tanto quanto os principais. Ocorre dessa
maneira porque eu, de fato, desejei. Entretanto, ocorre desse modo apenas no
primeiro livro.
Bem, meu caro leitor, caso tenha chegado até aqui e decidiu me dar
uma chance, eu te convido a mergulhar no universo caótico dos diabólicos.
E esteja ciente: você corre sérios riscos de se apaixonar.
Ouça a playlist de
DIABOLIC STEPBROTHER
no spotify.
"As coisas que perdemos sempre acham uma maneira de voltar para nós no
final.
Mas nem sempre da maneira que esperamos."
— Harry Potter
A todos que carregam cicatrizes.
Vocês são mais fortes do que qualquer coisa que os feriu.
“Achei que meus demônios estavam derrotados
Mas você ficou ao lado deles e os libertou
Eles sabem meus segredos e não me deixam em paz”
— Demons | Jacob Lee

AMOR É PARA OS TOLOS.


Eu aprendi cedo demais que a pior coisa dentro do corpo humano é o
coração. Carregamos uma bomba-relógio que se torna ainda mais perigosa
quando amamos. Nenhum outro órgão pode ser capaz de nos fazer cair em
queda livre na mesma proporção; não por puro capricho.
Talvez saber o tamanho de sua importância para a nossa sobrevivência, o faz
gostar de jogar com a razão, sempre nos transformando em idiotas
inconsequentes no quesito paixão e outras besteiras similares. Eu fui vítima
do meu quando ainda era um menino. Me tornei refém de um par de olhos
azuis, fios tão loiros que pareciam um campo de trigo e uma voz similar ao
canto de um anjo. No final, ela foi um demônio. Nada é capaz de colocar
preço em paz de espírito, não quando tudo o que você enxerga e tem
necessidade de obter é represália. O amor pode nos fazer tomar decisões
imprudentes, é verdade. Todavia, nenhuma outra coisa se compara ao
caminho que o ódio nos faz trilhar ao experimentar seu sabor pela primeira
vez. É amargo, torpe e viciante em níveis fodidos. Por essa razão, ao longo de
todos esses anos, foi o que eu sempre ansiei.
Quando seu lado feio decide sair para dar uma volta, não é possível saber em
que ponto os limites vão ser ultrapassados; pois você não os têm. Eu tomei
cada gota da minha ira e deixei todas as coisas com um bom significado em
minha vida para trás. E tudo porque eu queria vê-la se contorcer ao meu redor
pelo que fez comigo. Por me trair. Estive morrendo para assistir seu belo
rosto ser manchado por lágrimas. Apenas imaginá-la dessa forma me
satisfazia de inúmeras maneiras diferentes, alimentava meu lado diabólico. E
foi por causa dessa perspectiva, do vislumbre de seu sofrimento, que quando
a advogada dos Andreotti me procurou quando eu fiz dezoito anos, e disse
que eu seria o protetor legal dela, eu engoli a oportunidade como se estivesse
perdido no deserto e aquela fosse a primeira fonte de água limpa diante dos
meus olhos.
O problema foi que, ao finalmente bebê-la, eu gostei um pouco mais do
que deveria.
No momento em que seu cérebro e seu coração decidem entrar em uma
disputa, é evidente que o vencedor deixará o perdedor retalhado.
Você nunca deve ir longe demais em busca de vingança, é o que todos dizem.
Eles também costumam dizer que, quando você está determinado a persegui-
la, deve cavar duas covas. O que eu não sabia é que estava prestes a aprender
que essa era a porra da verdade.
INIMIGO DECLARADO

“Centenas de dias me fizeram mais velho


Desde a última vez que vi seu lindo rosto
Milhares de mentiras me fizeram mais frio
E eu não acho que possa olhar para isso da mesma maneira”
— Here Without You | 3 Doors Down

MORDO O INTERIOR DA BOCHECHA quando sinto meu


queixo ameaçar tremer enquanto permaneço encarando o piso envernizado.
Odeio a maneira como brilha. Toda a organização que preenche esse
lugar é uma farsa, não há nada imaculado. Na verdade, é imundo.
Meus dedos estão com uma textura pegajosa por causa do suor frio
impregnado neles. Preciso sair daqui.
Hoje não é sequer o décimo dia de aula do meu último ano no Golden
Elite College e eu estou mais apavorada do que o equivalente a todo o ano
anterior. Para minha consternação, não há nada que eu possa fazer — a não
ser esperar que ele volte a falar e me diga qual será a maldita humilhação que
escolheu dessa vez. Está ficando cada vez mais insuportável ter que aguentar,
mas eu preciso.
O silêncio me faz criar situações mentais desconfortáveis, ainda assim,
qualquer coisa é melhor do que lidar com seus malditos jogos doentios. Estou
com o pensamento pairando ao redor desse fato quando, de repente, sua voz
enganadora me arranca do meu torpor e me empurra para o precipício da
realidade.
Bem-vinda à sua dose diária do Inferno, Brooke.
— Ainda está me ouvindo, não está, linda? — indaga o diretor, seu
timbre é contido e suave, mas eu o conheço bem demais para saber que nada
de bondoso pode vir desse homem. Seu cabelo castanho escuro foi colocado
para o lado de maneira elegante. Não há um único fio fora do lugar.
O rosto ossudo e anguloso está livre da barba que o cobria ontem,
apenas uma leve sombra acinzentada descansa nele, e sua boca fina está
curvada em um sorriso que me faz querer vomitar.
Por fim, há seus olhos verdes — duas agulhas que me analisam e me
perfuram avidamente.
— Responda quando eu perguntar. — ordena, posicionando o indicador
em meu queixo. O movimento me obriga a erguer a cabeça e fitá-lo.
Nossos olhos se encontram. Reprimo a vontade dilacerante e quase
incontrolável de estremecer.
Quase três anos desde que meu tormento com Eric Carson começou.
Quase três malditos anos que entrei em sua mira e ele transformou
minha existência em um pesadelo constante.
Em determinados momentos, nos perguntamos o quê, de tão horrível,
fizemos em outra vida para estarmos sujeitos às coisas que passamos hoje.
Bem, eu acredito que a resposta seja essa: nada. Às vezes, o problema não
está conosco. O destino apenas gosta de brincar e nos transforma em uma de
suas pobres marionetes, decidindo que irá colocar uma pessoa qualquer no
nosso caminho com o propósito de destruir cada mínima coisa boa que
planejamos.
Para mim, Eric é essa pessoa.
— Sim. — finalmente dou minha resposta, encarando-o de volta e
lutando para que minha voz não saia como um sopro amedrontado.
No passado, eu me encantei pelos olhos dele. Tola. Tudo era pura
manipulação, sempre foi. Se eu apenas soubesse que por baixo dessa droga
de terno caro existia um monstro, eu teria me afastado tão rápido quanto me
encantei por ele. Fui ingênua o bastante para não ser capaz de enxergar quem
Carson realmente era, no entanto.
— Bom. — ele sorri, o gesto breve e lúgubre. — Você sabe por que
veio tão cedo para o escritório do diretor hoje, não sabe? Ou talvez eu precise
lembrá-la? Sua memória está fresca, Brooke?
Trinco os dentes com tanta força que o músculo da minha mandíbula
lateja. A sensação de náusea me atinge em cheio e eu quase engasgo pela
vontade de chorar. Decido colocar a raiva e a repulsa no centro desta vez. Eu
gostaria de estar dormente por inteira, mas ainda não cheguei a esse nível.
Ainda não.
— Você não precisa ir por esse lado. — intervenho. — Eu estou aqui,
afinal. Cheguei no horário exato que você ordenou. Qual é o problema?
Minha voz sai com mais emoção do que eu gostaria, e a explosão súbita
rende a Eric um sorriso ainda maior.
Nojento. O psicopata que mora em seu interior faz um verdadeiro
banquete quando isso acontece, porque ele gosta da luta. A punição aumenta.
Controle-se, Brooke, minha mente estala, apenas controle-se.
— Sabe, linda, você se tornou uma garotinha muito rebelde nesses
últimos dias. Eu não estou gostando nada, nada disso. Portanto, ouça com
atenção. — anuncia, envolvendo o cabelo da minha nuca com a mão livre e
apertando com brutalidade. Eu me contorço pela dor e acabo respirando de
modo irregular, o ar que fica preso em minha garganta por alguns segundos
me faz emitir um pequeno soluço.
— Eric. — chamo, mas ele continua sem se abalar:
— Eu não a quero em festas. Não a quero perto de nenhum garoto deste
colégio. Não quero que você sequer respire perto de alguém do sexo
masculino além de mim. — grunhe e, de uma maneira doentia, realmente há
raiva gotejando de cada sílaba. — Eu não gosto de ameaçar você, então, seja
uma boa menina e não volte a me irritar.
Suas sobrancelhas franzem com repulsa quando ele me larga e dá um
passo para trás. Levo uma mão ao local machucado, sentindo meu couro
cabeludo pulsar.
— Do contrário...
Eu sei o que ele vai dizer antes mesmo que as palavras deixem sua
boca. Pressentindo, interrompo sua maldita frase.
— Está bem. — concordo. — Apenas deixe-a de fora. Por favor.
Não consigo manter a máscara de irritação, pois minha voz quebra e
meu lábio inferior treme com avidez.
— Tudo depende da sua conduta.
— Você prometeu que não iria tirá-la de mim. — sou rápida em
contrapor.
Eu não acredito em nenhuma de suas promessas. Todas são mentiras
vazias, mas preciso me agarrar a essa. Do contrário, irei perder o que restou
da minha lucidez.
— E você prometeu que me obedeceria. — atira de volta, estreitando os
olhos. — Mas não estamos seguindo exatamente as linhas do nosso acordo.
Estamos, linda?
Eric não quer uma resposta, então, eu não dou uma. Ele respira pela
boca, sua cabeça balançando de um lado para o outro com letargia.
O alívio que sinto ao vê-lo se afastar um pouco mais é passageiro.
Identifico o brilho cruel que dilata suas pupilas quando ele inala com força e
me olha.
Oh, Deus. Por favor. Por favor, que seja rápido dessa vez.
Minhas pernas ameaçam sucumbir e meu estômago revira. Encostando
o corpo alto e magro contra a porta fechada da sala, ele ergue uma mão.
— Sente-se na minha mesa. – instrui, apontando para o local com
queixo.
Eu não hesito. Aprendi o quão doloroso é se eu o fizer. Desde o dia em
que levei um tapa no rosto, cumpro suas ordens sem nenhum protesto.
Movendo meu corpo na direção de sua mesa, tomo um pequeno impulso e me
sento com as pernas espremidas.
— Com qual delas você quer brincar hoje, Brooke? — questiona. —
Que tal a prateada?
Um caroço excruciante se aloja em minha garganta e eu pisco várias
vezes para afastar a nova onda de lágrimas. Respirando fundo, puxo a caneta
indicada do porta-lápis ao meu lado. Meus dedos tremem tanto que quase a
deixo cair. Estou prestes a esfregar o objeto em minha parte mais íntima
quando ele faz um barulho de negação, estalando a língua no céu da boca,
impaciente. Meus pelos arrepiam com o barulho e uma gota de suor frio
escorre pela minha espinha.
— Use mais uma.
Engasgo ao ouvir sua ordem.
— Duas? — indago num sopro fantasmagórico, sentindo a cor sumir do
meu rosto.
Me arrependo da pergunta ao ver uma carranca de irritação cair sobre
sua face.
— Muito desconfortável para você? Ou está com algum problema de
audição? Talvez precise enfiar uma delas na porcaria do seu ouvido?
Estremeço diante de suas palavras e de seu tom descontrolado.
Contudo, é a crueldade viva em sua presença que me deixa nauseada.
O modo como ele me atormenta e degrada sem que eu possa revidar me
dilacera. Carson age assim quando faço algo que o aborrece, mas hoje ele
parece estar à beira de um colapso de fúria, e isso nunca aconteceu antes. Não
tão rápido, pelo menos.
Apenas mais algumas semanas, Brooke. Aguente firme e você não terá
que passar outra vez por esse pesadelo.
Ergo o queixo e ignoro suas ameaças. Quanto mais rápido eu fizer o
que ele mandou, mais rápido poderei sair dessa maldita sala. Puxo uma
segunda caneta, fechando os olhos e me preparando para a pior parte. No
entanto, uma batida forte soa na porta, seguida por uma voz feminina que o
chama.
— Diretor Carson?
Eric é do tipo que detesta ser pego de surpresa, e agora ele realmente
parece surpreendido. Enfurecido, também. Nenhuma pessoa jamais ousou
bater na porta de seu escritório quando ele estava com algum aluno. Pela
primeira vez, em muitos anos, meu coração bate de alívio enquanto ainda
estou presa no mesmo ambiente que esse monstro. Rosnando um xingamento,
ele ajeita a gravata azul-marinho que usa. Quando se vira e gira a maçaneta,
eu salto da mesa e deixo as canetas no mesmo lugar em que estavam antes,
mas reúno saliva e cuspo no recipiente.
Ainda estou enjoada pelos últimos acontecimentos e me sinto
debilitada. Entretanto, empurro todos os meus temores para o fundo da minha
mente e me forço a não me entregar ao medo. Sento-me de costas para a
entrada, olhando o relógio que descansa na parede atrás da cadeira de Eric.
Dentro de alguns minutos, o sino indicando o final das aulas irá soar e eu
poderei ir embora desse inferno. A brisa que vem de fora embebeda o
ambiente assim que a porta é aberta por completo. A voz feminina se torna
audível e o tom exagerado de amabilidade em seu timbre enche o local.
Mantenho toda a atenção na conversa que tem início, apesar de fingir
estar concentrada nos inúmeros quadros diante de mim.
— Perdoe-me, diretor Carson.
Cassidy Miller se desculpa. A secretária que esconde uma paixão
secreta por ele. Pobre mulher.
Se você apenas soubesse...
Ela continua tagarelando sobre sentir muito por ter interrompido. Por
que tem que soar tão malditamente desesperada assim?
Quero alertá-la. Gritar que Eric Carson não passa de um monstro, quero
avisar para Cassidy ficar longe e sequer o toque com uma vara de três metros,
mas me custaria caro abrir a boca para fazer isso. Um preço muito alto e que
sou incapaz de pagar. Como sei que Cassidy espera que ele dê algum tipo de
primeiro passo, — o que ele nunca vai fazer — ela ficará segura de cair nas
garras desse maníaco. Pelo menos muito mais segura do que eu.
— Sei que não gosta de interrupção quando o senhor está em reunião
comportamental com um aluno. — ela pigarreia, envergonhada. — Mas é
importante.
— O que pode ser mais importante que corrigir um estudante que foi
contra as principais regras de nosso renomado colégio, Srta. Miller? —
questiona com um sorriso forçado que enxergo pelo reflexo da janela.
Qualquer pessoa poderia ser facilmente enganada pelo tom melódico que ele
adota. Um verdadeiro ator.
Cassidy dá uma risadinha sem graça, mas estranhamente gosta do que
sai de sua boca. Sotaques australianos tendem a fazer isso com você. Esse
efeito de atrair e manter flutuando ao redor de sua órbita. Infelizmente muitas
mulheres não enxergam o perigo que um homem pode significar.
A menos que esse perigo exploda em seus rostos. Às vezes, nem
mesmo desse modo.
— Perdoe-me. — Cassidy ronrona pela quadragésima vez e eu aperto
os olhos, desejando que o barulho do sino ecoe logo. — Mas o assunto
deveria chegar aqui, já que diz respeito à Srta. Andreotti.
Meu coração para.
O pensamento que vem em minha cabeça me deixa tonta. Um golpe
súbito que eu não previa. Eu me viro para encará-la assim que a frase deixa
sua boca e paira no ar. Cassidy está perdida em Eric. Um brilho descansando
em seus olhos pretos e brilhantes, enquanto ela desliza uma mecha de seu
cabelo cacheado atrás da orelha. Um sorrisinho tímido tomando seu rosto.
Estou distante, mas posso jurar que os pelos em sua pele negra estão
arrepiados. Ela não estaria com essa postura se algo de ruim houvesse
acontecido com a minha irmã, estaria? Não. Não estaria.
— O que aconteceu? — despejo sem fôlego. Levanto-me e ando na
direção deles sem poder sentir minhas pernas. — Foi com a minha irmã?
Minha expressão carregada chama sua atenção, fazendo Cassidy
engolir em seco e piscar várias vezes ao me olhar de volta.
Seus lábios cheios abrem e fecham como se ela fosse um peixe fora
d’água.
— Acalme-se, Brooke. — Eric intervém, um aviso silencioso
contornando sua voz. Eu não dou a mínima para a ameaça implícita.
— Responda-me! — exijo, dando mais um passo à frente. — O que
houve? Foi com a Blake?
Cassidy recua, alarmada pela minha explosão. Eric escolhe esse
momento para ficar no meio de nós duas. Ele ergue a mão para me tocar, mas
eu pulo para trás.
— Não encoste em mim! — trovejo, meus membros espasmando.
Meu coração acelera e um formigamento dolorosamente conhecido se
apodera bem acima dos meus joelhos. Minha cabeça cria várias situações
terríveis que envolvem minha irmã gêmea. Ela é a única coisa que me restou
no mundo. Eu continuo lutando todos os dias para ter uma vida normal por
causa dela. Não posso perdê-la.
— Srta. Andreotti...
Sinto-me exposta de imediato. Minhas pernas tremem e, de repente, é
como se eu estivesse nua diante deles. Como se eles pudessem enxergar
minha feiura.
Eles não podem ver, podem?
Não podem. Não, não podem!
Olho para baixo e encaro as meias pretas acima dos meus joelhos
pálidos. Não consigo tirar meus olhos delas, ainda que eu queira muito
desviá-los para outro lugar. É mais forte do que eu nesse momento, não sou
capaz de controlar o que me engole. Minha mente se perde em pensamentos,
mas tudo gira em torno da minha irmã.
— Blake. — sussurro seu nome num tom tão baixo quanto uma brisa
tênue. Terror súbito me abraça e toda minha visão borra, embora eu não
esteja chorando.
Uma mão fria segura meu braço e o aperta. Eu engulo com dificuldade.
A dor não é o suficiente para me salvar do buraco obscuro que começa a se
formar em meu cérebro confuso e perdido. Alguém grita meu nome repetidas
vezes e meu corpo é sacudido ao mesmo tempo. Continuo presa na espiral
que se formou em meu âmago.
Então, eu sinto.
Vem tão forte que toda minha estrutura balança de um lado para o
outro. Meus ouvidos zumbem e meu rosto queima. Eu pisco algumas vezes,
percebendo que levei um tapa. Forte, duro e tão impiedoso que minha carne
esquenta como brasa.
— Encoste nela novamente e eu farei com que a próxima superfície que
sua mão toque seja a de uma mesa de cirurgia. — uma voz grave e masculina
reverbera de algum lugar do corredor. O timbre contém uma dose explícita de
ferocidade e ódio palpáveis.
O primeiro a olhar na direção do dono dela é Eric. Seus olhos
semicerram e seus lábios apertam em uma linha fina. Em seguida, é a vez de
Cassidy.
Posso jurar que um gemido escapa de sua boca e suas íris brilham com
excitação. Eu sou a última a levantar a cabeça, e quando meus olhos
capturam a presença dele, meus lábios se separam em choque.
Posso não ter reconhecido a voz, mas esse rosto? Não há como
esquecer. Não há como apagar. É o rosto que assombra até os meus sonhos
mais efêmeros há muitos anos.
Drogo McAllister.
Os pelos da minha nuca arrepiam no mesmo instante que meu coração
acelera e tudo ao redor parece ficar em câmera lenta. Meu olhar cruza com o
dele e eu percebo que não há mais brilho em suas íris. Seus olhos estão frios,
opacos. Quase como se não carregassem vida, nada além de um espectro.
Não há sequer a sombra de um sorriso enfeitando seu rosto — que agora
parece ter sido esculpido, assim como todo seu corpo animalesco que emana
insolência e fúria mal contida. Drogo possui uma aura diabólica.
Ele começa a caminhar na nossa direção. Meu corpo paralisa e eu me
torno incapaz de fazer outra coisa a não ser encará-lo. Um par de brincos
pequenos e prateados descansam em suas orelhas. Seu cabelo loiro escuro
está curto nas laterais, mas o topo é parcialmente alto e foi empurrado para
trás, obviamente com a ajuda de seus dedos. O nariz suntuoso contrasta com
a mandíbula cerrada, enfatizando sua carranca perpétua.
Se eu não estivesse tão aterrorizada e surpresa pela sua chegada, seria
facilmente atraída pela presença que Drogo emana.
Você está, minha mente contra-ataca, mas eu a silencio. Contudo, o
pensamento se dissipa no momento que ele para diante de mim e sorri,
exibindo dois caninos pontiagudos. É vazio e feroz. Há uma promessa
silenciosa em sua postura hostil. E eu não preciso ler nas entrelinhas para
compreender.
O sorriso é uma farsa, puro teatro. A expressão em seu rosto grita
apenas uma coisa: vingança.
E eu com certeza não pretendo ser o alvo da retaliação de alguém.
Principalmente quando esse alguém se trata do único homem que já amei na
vida. Jamais pretendi magoá-lo por mero capricho. De qualquer maneira, ele
não faz ideia. E ainda que fizesse, tenho certeza de que não daria a mínima.
— O que está fazendo aqui? — a pergunta deixa minha boca quando
encontro minha voz.
Uma de suas sobrancelhas arqueia, cínica e desafiadora. Ouço um
pigarreio, o que me faz acordar do meu torpor e me afastar de Eric, o qual
captura minha reação, embora permaneça analisando Drogo como se
estivesse diante de uma ameaça eminente. Bom, posso dizer que sim. Não
para ele, entretanto. Para mim.
— Este é Drogo McAllister, diretor. Ele é o motivo que me trouxe até o
seu escritório. — esclarece Cassidy.
Sua informação tira um peso dos meus ombros quando percebo que não
tem relação com a Blake.
— Pelo visto sou o único que não o conhece, Sr. McAllister. — dispara
Eric desdenhoso, e olha fixo na minha direção.
Sinto-me desconfortável de estar sob seu radar, mas não dura muito
tempo, pois a sensação logo é substituída por puro choque quando Drogo diz:
— Olhe para mim quando estiver falando comigo, diretor.
Sua cabeça gira numa velocidade tão alarmante que estou surpresa por
não descolar de seu pescoço no processo.
Os olhos de Cassidy quase saltam das órbitas enquanto ela o encara
como se ele tivesse dito que mataria o Presidente.
— O que você disse? — indaga Eric, sua pele branca se convertendo
em rubro.
— Exatamente o que você ouviu. — Drogo sorri. — Agora, eu quero
que você me diga por qual razão a estapeou, diretor.
Silêncio.
Não há qualquer mínimo sinal de preocupação ou amabilidade em sua
voz. Para ser honesta, não sei qual sentimento escorre dele ao fazer essa
pergunta, ainda que exista um. O que eu sei é que, seja ele qual for, não é
bom.
— Ela estava fora de si. Precisei usar uma técnica um pouco mais...
brutal para fazê-la despertar. — responde por entre os dentes cerrados.
Sua cabeça pende quase que de maneira imperceptível para o lado.
— Ouça, ela pode estar diante de você, sendo possuída por algum tipo
de demônio, não volte nem mesmo a cogitar a ideia de fazer isso ou irei
recorrer a uma técnica um pouco mais... brutal para fazê-lo ficar longe. —
intervém.
Eu odeio ficar sem reação, mas não vejo outra saída a não ser essa no
momento. Parece que estou presa em um mundo alternativo e fantasioso.
Drogo dá mais um passo à frente, ficando cara a cara com Eric. A
diferença entre suas estruturas corporais e a altura dos dois é quase gritante.
Ele deve estar com dezoito anos agora, mas possui bons quinze centímetros à
mais do que Carson. Seus ombros são largos e seu corpo é musculoso; como
se ele devorasse bíceps em todas as refeições. Certamente é do time dos
atletas, enquanto Eric é seu completo oposto em tudo. Um veste terno, o
outro está usando camiseta que se agarra aos seus braços, jaqueta de couro e
jeans surrado acompanhados por botas de combate. Tudo é preto.
— Quem você pensa que é para me ameaçar? — Eric explode, seus
membros começando a tremular.
McAllister ignora sua pergunta, esfregando mandíbula de um jeito
despretensioso.
— Sua secretária, — ele olha para Cassidy e exibe um sorriso sacana
que a faz engolir em seco. — foi extremamente ágil com os papéis da minha
matrícula. Será uma honra fazer parte do colégio de elite mais renomado da
Inglaterra.
Meu queixo toca o chão no mesmo segundo que Eric o fuzila com um
olhar enviesado.
— O que o faz pensar que eu irei aceitá-lo em meu colégio? Esta é uma
instituição poderosa por um único motivo: nós só aceitamos a elite da elite.
— ele destila. — Filhos de ministros e magnatas, netos de parlamentares
influentes e renomados. Pessoas que movimentam a economia e outras áreas
importantes do país e do mundo.
Drogo não parece estar nem um pouco abalado com seu discurso
desprezível e elitista.
— Não é somente sobre possuir dinheiro. — finaliza Eric, recuperando
o fôlego e ajustando as lapelas de seu terno. — É sobre ter um sobrenome
que indique poder.
Um minuto inteiro de quietude paira no ambiente. Eu quero vomitar ao
fim de suas palavras, no fundo, porém, essa é a verdade.
Ao longo dos últimos anos, presenciei muitas pessoas sendo recusadas
no GEC por não terem um sobrenome poderoso e conhecido, somente
dinheiro. Não importa quantos dólares, libras esterlinas ou euros ocupem sua
conta bancária, sem sobrenome influente, aqui, você não é nada. Na verdade,
é menos que isso. Apenas um tapete para ser pisado. É uma realidade infeliz,
mas, ainda assim, é uma realidade. A que eu vivo, infelizmente. Abro a boca
para rebatê-lo. As palavras sequer têm a chance de sair em liberdade, pois
Drogo é mais rápido ao dizer:
— Sorte a minha possuir ambos, então.
Minhas sobrancelhas franzem quando eu o encaro e ele sustenta meu
olhar com um venenoso. Nós dois nos conhecemos desde a infância. Nossos
pais se tornaram próximos e ele morava há poucas casas de distância do
nosso residencial. Ainda que Drogo vivesse bem naquele tempo, não era o
suficiente para frequentar um colégio como esse. O sobrenome McAllister
está longe de ostentar algum tipo de influência na nossa sociedade.
Eric ri, uma risada contida e seca, mas sua atitude não o intimida.
— Muito obrigado por ter nos divertido com toda essa besteira sem
fundamento, garoto. Acredito realmente que você e a Srta. Andreotti se
conheçam, — aceita enojado. — mas conhecer alguém poderoso não o faz
ser poderoso. Portanto, peço para que se retire e não volte a colocar os pés no
meu colégio.
Neste momento, Drogo faz algo que eu não estava esperando ver: ele
sorri. E é um sorriso verdadeiro, banhado por satisfação. Após isso, me
encara com seus intensos olhos verdes, estreitando-os. Meu coração quase
explode na caixa torácica, pois sinto no fundo da minha alma que ele está
prestes a dizer alguma coisa. E seja lá o que for, tenho a sensação de que fará
meu mundo dar uma guinada terrível.
— Descobri há algum tempo que Sebastian Andreotti não era
exatamente a pessoa mais fiel da Inglaterra. — zomba, fazendo o oxigênio
esvair-se dos meus pulmões. — Espero que não ache muito incômodo dividir
seu importantíssimo sobrenome comigo... irmãzinha.
A última palavra que deixa seus lábios ainda paira no ar como se
pesasse, quando uma voz feminina e quase histérica irrompe no corredor.
— Irmã? — Blake, minha gêmea, grita. — Que diabos? Drogo é nosso
irmão, Bee?
— Blake. — finalmente falo, hesitante.
Me ignorando, ela corre na direção dele e se joga em seus braços,
gargalhando.
— Você cresceu, garota.
Um sentimento amargo que desconheço se instala no meu estômago
quando vejo a cena. Quando eles trocam de lado, o olhar dele encontra o meu
e Drogo pisca. Nenhum sorriso. Nada. Apenas uma maldita piscada que
derruba toda minha temperatura corporal, congelando-me. O choque
repentino faz meu cérebro disparar um alerta vermelho para o resto do meu
corpo, me obrigando a sair do transe. Eu me movo antes mesmo de raciocinar
completamente.
Vou para cima de ambos e os afasto, colocando Blake atrás de mim e
posicionando um braço protetor na frente dela.
— O que foi, Bee?
— Não o conhecemos. — disparo. — Não mais.
— Pelo amor de Deus, Brooke. Vocês eram melhores amigos desde...
sei lá! Desde que começaram a dizer as primeiras palavras? — ela retruca,
bufando, mas eu permaneço impassível e com seu rosto na mira.
— Éramos. — concordo. — Muito tempo se passou. Ele mudou, eu
mudei. Nós não o conhecemos mais.
— Eu nunca conheci você. — ele morde, sombrio.
Suas palavras são como punhais que me perfuram direto no peito,
torcendo em minha carne. Eu pisco, mantendo-me firme.
Os outros podem não saber o que ele quis dizer com isso. Eu, por outro
lado, tenho plena noção. Empurro sua alfinetada para o fundo da mente.
— Por que eu acreditaria que você é realmente nosso irmão? — profiro
em tom acusador. — Perdoe-me, mas não confio em você.
— E você está certa quanto a isso. — debocha, umedecendo os lábios.
— Essa infelizmente é a verdade, no entanto. Acredite em mim, irmãzinha,
eu não queria estar nessa posição tanto quanto você não queria que eu
estivesse. Veja, não há nada que possamos fazer. — ele inclina a cabeça para
o lado mais uma vez. Percebo que é um tipo de mania.
— Eu não acredito no que você diz.
— Então, que bom que não preciso de sua aprovação para falar nada,
hein? — ele enfia as mãos nos bolsos. — Diferente de você.
— O quê?
— Você ouviu.
— Do que está falando?
— Estou falando que já fui reconhecido como um Andreotti antes
mesmo de saber que era um, ainda que você não tivesse conhecimento sobre.
Quando fiz dezoito anos, em março, fui informado que uma das partes do
testamento deixado por Sebastian dizia que, caso vocês ficassem órfãs, eu
seria o guardião legal de ambas. O documento chegou até mim há algum
tempo por meio da advogada de sua família, porém, eu preferi aguardar.
— Isso não é verdade. — cambaleio, sendo segurada por Blake.
— Devo dizer que é, Srta. Andreotti. — intervém Cassidy, me fazendo
lembrar de sua presença e consequentemente da de Eric, que permanece
petrificado. — Ele me trouxe o documento original que recebeu. Antes de
morrer, o Sr. Andreotti havia pedido para que, no dia da leitura de seu
testamento, a parte que revela isso fosse omitida até que Drogo fosse maior
de idade. Somente precauções pessoais, podemos dizer assim.
— O que a Srta. Miller quer dizer é que tudo isso é verdade, Brooke. —
seu tom ao falar meu nome sai carregado de nojo. — Então, apenas aceite.
Quanto mais rápido o fizer, melhor será.
— Melhor para quem?
— Para todos. Principalmente para você.
Engulo o nó que se forma no meio da minha garganta.
Drogo nunca teve uma personalidade calma e afável, mas o que eu fiz
com ele sem dúvidas desencadeou um tipo de personalidade desumana que
ficava adormecida dentro dele. Pode não estar óbvio para outras pessoas, mas
eu consigo ver com extrema clareza a maldade exalando de sua aura. Eu já
suporto coisas terríveis demais, quase todos os dias, não tenho vontade
nenhuma de experimentar seja lá o que a mente distorcida de Drogo
McAllister planeja fazer para revidar o dano irreparável que eu causei.
— Por que principalmente para mim? — minha pergunta sai depois do
que se parecem anos.
Ele sequer liga para as pessoas que nos cercam ou o que quer que elas
possam pensar, pois olha para mim com um sorriso de lobo.
— Porque eu não acho que você queira dividir o seu teto com um
inimigo.
CALIFORNIANOS

“Sempre sentindo falta de quem eu não deveria sentir


Às vezes, é preciso queimar algumas pontes
Para criar uma certa distância”
— I hate u, I love u | Gnash feat. Olivia O’Brien

EU, DEFINITIVAMENTE, NÃO VOU PERMITIR que isso


ocorra.
Essa é a frase que queima na ponta da minha língua assim que as
palavras de McAllister ganham vida e pairam sobre mim como uma melodia
sangrenta. Os outros ainda estão em silêncio, como se não quisessem
interromper nosso diálogo. E apesar de Eric continuar com traços assassinos
no rosto, ele também se mantém profundamente quieto, e sem qualquer
menção de mudar isso. Blake, ao meu lado agora, está com um sorriso
entusiasmado que se desmancha quando inclino a cabeça para olhá-la com
uma feição dura.
— Vá para o estacionamento e me espere lá. — peço, afastando meu
braço de seu corpo.
— Por quê? — ela choraminga, os ombros caindo em frustração.
— Por favor.
Depois de alguns segundos de resistência, ela faz o que eu digo e se
retira a passos lentos, sumindo pelo corredor em seguida.
Eu suspiro de alívio. Menos uma dificuldade para lidar. Constatando
isso, volto a me virar para Drogo.
— Precisamos conversar. — minha voz se faz presente outra vez, mas
de um jeito calmo, quase metódico. Mesmo que eu esteja uma bagunça
caótica por dentro, não deixo nenhum sentimento sair em liberdade. As
palmas das minhas mãos voltam a ficar úmidas.
A sensação me deixa ainda mais ansiosa, pois demonstra fraqueza, e eu
não posso me dar ao luxo de evidenciar qualquer fragilidade quando estou
diante dele. Fazer isso é como dar de bandeja seu banquete favorito.
Suas íris opacas me perfuram com uma vagarosidade sufocante à
medida que tenho meu olhar sustentado. Novamente sua cabeça inclina para
o lado e um sorriso enganador faz a curva de sua boca se erguer
preguiçosamente.
— Não há nada para falar. — despeja, virando-se na direção de Eric. —
Você foi escolhido para ser o guardião temporário delas, certo? — Drogo
questiona, mas a pergunta é retórica e qualquer um pode notar. — O melhor
amigo de Sebastian antes de morrer, hm? Para ser honesto, isso não é muito
coerente. No entanto, não adianta bater nessa tecla. Bem, de agora em diante
eu assumirei a responsabilidade pelas gêmeas. Veja, eu descobri que Brooke,
mesmo estando entre os cinco por cento dos melhores alunos do colégio, está
constantemente sendo chamada ao escritório do diretor. Algum motivo em
específico para estar acontecendo isso?
Eu me pergunto como, em nome de Deus, ele sabe sobre esse assunto.
O rosto de Eric fica um pouco mais vermelho, sua mandíbula aperta de
maneira grosseira quando ele devolve o olhar que Drogo o direciona. Nunca
presenciei esse lado dele; é como se estivesse perdendo o controle imaculado
que costuma demonstrar para todos. Como se pensasse em Drogo como um
tipo de perigo que pode arruinar tudo o que ele foi capaz de esconder. Bom,
eu posso dizer que Carson está certo se pensa assim. Não conheço esse
homem diante de mim, mas posso dizer que ele exala hostilidade e, sem
dúvidas, é uma ameaça para qualquer um.
— Eu sou o diretor. — Eric brada, por fim. — A má conduta dos meus
alunos diz respeito a mim e somente a mim. Se Brooke fez algo que vai
contra as normas da minha instituição ou viola alguma regra de etiqueta que
exigimos, ela será punida de maneira educativa. São as regras.
— Srta. Andreotti. — Drogo corrige, fazendo a cara feia de Eric ir de
furiosa à confusa em uma fração de segundos.
— O que foi que você disse?
— Eu disse Srta. Andreotti. Me corrija se eu estiver errado, o que eu
não estou, mas você não deve chamá-la pelo primeiro nome, certo? É muito
íntimo. E ela não é sua amiga, é aluna do colégio que você dirige. — ele
estala, e eu quase engasgo por sua resposta ácida. — Enfim, de agora em
diante, eu serei o responsável por elas. Se for chamá-la para alguma punição
educativa gostaria de ser informado sobre o porquê.
Meu coração, pela primeira vez em muito tempo, realmente pulsa de
alívio. A situação está longe de ser positiva e sei que o que ele pretende fazer
comigo não pode ser bom, mas eu me agarro a Drogo como se estivesse me
afogando em alto mar e ele fosse um colete salva-vidas.
Sebastian, o homem que eu cheguei a chamar de pai um dia, foi quem
iniciou o pesadelo que me quebrou. Parece estranho ele ter deixado algo
assim em seu testamento. De qualquer maneira, que se dane. Eu não vou
continuar passando o que passo nas mãos de Eric. Tratando-se de Drogo, sou
capaz de revidar, com o diretor Carson isso não é nem mesmo uma
possibilidade fantasiosa.
Eric não poderá mais me ameaçar como fez ao longo desses anos, pois
não terá nenhum poder sobre Blake. A maior parte dos bens que possuo é
bloqueada porque ainda sou menor de idade e não possuo emancipação.
Queria não ter que recorrer ao dinheiro de Sebastian, mas não tenho escolha.
Eu só preciso aguentar mais um pouco até fazer dezoito anos e poderei
desaparecer de Londres com minha irmã sem ninguém para interferir.
— Isso é realmente verdade, não é? — pergunto, tentando fazer o
possível para mascarar o prazer que sinto.
— Sim. — Drogo responde sem me olhar. Percebo de soslaio quando
Eric dá um passo à frente.
— Você não pode fazer isso. — dispara. — Ficou maior de idade há
pouco tempo.
McAllister semicerra os olhos ao ver o tom de desespero de Eric.
— Não muda o fato de que eu tenho dezoito. — retruca. — Veja bem,
diretor, tudo isso veio diretamente para mim e tudo isso, também, não diz
mais respeito a você agora. Não é mais do seu domínio. Então, apenas faça o
seu trabalho. Não quero ter que usar meu sobrenome e o poder que ele
carrega para prejudicá-lo. — ele lança a Eric um sorriso feroz que deixa seus
caninos em evidência. — Isto é, a menos que você queira protestar e pagar
para ver do que eu sou capaz. Não sou um merdinha rico que nasceu em
berço de ouro e tem sangue azul correndo nas veias. Não esqueça.
Um silêncio pesado paira no ar antes que o sinal indicando o
encerramento das aulas ecoe por todo o colégio, vibrando em meus tímpanos.
Logo, nós ouvimos um burburinho de vozes animadas, acompanhadas
por passos frenéticos. Portas de armários abrem e fecham no processo.
— Brooke, tenho certeza de que você tem uma bolsa para buscar em
alguma sala. Sendo assim, vamos. Vou acompanhar vocês até a nossa casa
para ver como ela é. Minha memória é fraca e eu acabei esquecendo. Além
do mais, acho que vai ser bom termos uma conversa.
Minha boca fica seca, mas eu aquiesço. Tudo para fugir do alcance de
Eric. Não sou ingênua de achar que algo gentil vai sair de um diálogo entre
nós. Eu aceito o convite consciente. Um sinal vermelho de alerta pisca em
minha mente a todo momento, mas ignoro a sensação estranha que se forma
em meu estômago quando começo a me mover após pedir licença. Paro e
estrangulo a vontade de revirar os olhos ao vê-lo dar um sorriso à Cassidy.
— Obrigado por ter sido tão prestativa.
— Só fiz o meu trabalho. — ronrona, seu tom de voz é tão enjoativo
quanto um pote inteiro de mel e açúcar.
Então, ele olha para Eric.
— Vejo você em breve, diretor Carson.
Antes mesmo de obter uma resposta, anda na minha direção e nós dois
nos afastamos deles.
— Meia-irmã, hein? — sussurra, soando pejorativo, o que envia um
arrepio à minha espinha.
Neste momento, a certeza adormecida no fundo do meu cérebro me
atinge em cheio: eu não estou livre, apenas troquei de tortura.
E de torturador.

Minha sala de aula está vazia quando eu entro. Drogo fica do lado de
fora, nenhuma palavra sobre entrar saiu de sua boca, então eu apenas me
enfiei aqui sozinha. Na verdade, é bem melhor dessa forma. Controlo a
respiração para que ele não perceba que estou apreensiva.
— Respire fundo. — murmuro para mim mesma, enfiando meu
caderno de anotações na bolsa. — Tudo vai ficar bem.
Ignoro o arrepio que insiste em rastejar pela minha nuca e foco em ir o
mais rápido possível para sair daqui. Estou na melhor porcentagem de alunos
do GEC, e isso não se deve ao fato de eu me sentar nas últimas cadeiras. Sou
a primeira da fila, mas nesse momento o lugar parece estar absurdamente
distante da porta. Como se para piorar as coisas, apenas uma das oito luzes
está acesa, dificultando minha tarefa de reunir o material com agilidade.
Quando finalmente termino e posiciono a alça da minha bolsa no ombro
direito, meu corpo é empurrado contra a parede e eu perco o fôlego. Meu
grito fica preso na garganta ao passo que o ar é roubado dos meus pulmões,
fazendo-me resfolegar. Por um segundo de terror, penso que é Eric. Contudo,
uma palma grande e calejada esfrega a lateral do meu pescoço. A ponta
áspera do polegar faz minhas pálpebras tremularem e um gemido
involuntário escapar por entre meus lábios semiabertos. Retomando a razão,
eu abro a boca e ergo o rosto, somente para dar de cara com Drogo.
— O que você pensa que está fazendo? — eu sibilo.
Ele não responde, o que me deixa ainda mais furiosa.
— Drogo, afaste-se. — ordeno.
— Você não fala a porra do meu nome. — grita, os dentes trincados
com brutalidade. — Sabe por que não deixei essa merda ser apagada, não
sabe?
Agarro seu pulso, mantendo-me firme sob seu olhar colérico.
— Vai se foder. — ladro, deixando cada gota da minha educação
esvair-se. Estou cansada de ser boa e receber esse tipo de coisa.
— Me foder? — sua voz se torna rouca, um ronronado provocante e
sombrio. — Você já fez isso por mim, meu amor.
Suas palavras me penetram de imediato, deixando um rastro amargo
trilhar seu percurso por todo meu paladar.
— O que você quer, afinal? Dinheiro?
Ele ri. Não há traço de humor. No mais, sua risada é facínora, como se
eu tivesse contado uma piada ao próprio diabo.
— Que se dane o seu dinheiro sujo, Andreotti. Eu não dou a mínima
para ele. O que eu quero é foder com você. Eu quero a sua queda. —
vocifera. — Você vai chorar, lamentar, implorar para que eu a deixe em paz,
mas eu não irei. Não até vê-la sentindo o que eu senti.
A ponta de seu polegar se arrasta pelo meu lábio inferior e eu sufoco
estremecer. O olhar que ele tem é de puro desprezo.
— Revide. — elucida, e larga meu pescoço como se eu carregasse
algum tipo de vírus letal. — Afinal, qual é a graça de perseguir uma presa se
ela não lutar?
Drogo pisca para mim, saindo da sala em seguida. Sozinha, com a
cabeça uma completa bagunça, e o coração agredindo minha caixa torácica,
eu esfrego o rosto e desabo na cadeira mais próxima. Eu estou ciente do que
fiz para merecer todo esse ódio que ele carrega, no entanto, passo por um
inferno particular todos os malditos dias desde a infância. Posso ter sido pega
de surpresa desta vez, ainda assim, se ele pensa que vai conseguir me
aterrorizar sempre que quiser, seu raciocínio ultrapassa o errado. Estou farta
de ser uma pobre vítima das circunstâncias.
Eu fui quebrada, mas sou resiliente o suficiente para me reerguer.
Ele quer que eu revide, não quer? Bem, dois podem jogar esse jogo.

— Você soube? — uma Blake eufórica me agarra pelo cotovelo no


momento que eu pego as chaves da minha Range Rover.
A noite que eu achei que seria infernal, não foi.
Felizmente Drogo não trouxe seu traseiro para nossa casa ontem;
diferente do que eu havia pensado que aconteceria. Depois do episódio da
sala de aula, ele apenas ficou do lado de fora do GEC, observando Blake e eu
entrarmos no carro. Nada em seu olhar para mim era protetor ou qualquer
coisa similar. Pelo contrário, tudo o que eu vi não passou de nojo. Saio do
meu torpor quando minha irmã me sacode para me fazer acordar e captar o
que ela diz. Giro a cabeça e encaro o rosto que é idêntico ao meu, ao mesmo
tempo em que seus traços são dissemelhantes, também. Não apenas nossas
personalidades são distintas, mas nossos olhos e a cor dos cabelos. O meu é
loiro escuro e cai até o meio das costas, o de Blake possui um corte Chanel
com fios que sempre foram negros como a noite. E enquanto meus olhos são
azuis e sem vida, os da minha irmã são verdes brilhantes.
A boca dela se comprime em uma linha fina de irritação e eu franzo o
cenho, confusa.
— Você não está mesmo me ouvindo.
— Desculpe. — suspiro. — Saí um pouco da órbita.
— Então, volte, Bee! — Blake bufa, observando o céu nublado. —
Tenho novidades, querida. Várias novidades.
— E quais são elas?
Meu erro é fazer essa pergunta, pois minha irmã começa a tagarelar em
uma velocidade que me deixa tonta.
— Um pouco mais devagar, por favor.
— Alunos novos, Bee! — anuncia eufórica. — O GEC vai receber
alunos novos!
Isso, sim, captura minha atenção.
Nosso colégio não é do tipo que aceita novos estudantes quando o ano
letivo já teve início. E basicamente todas as pessoas que frequentam o Golden
Elite são as mesmas dos anos anteriores, nunca há rostos novos.
Estranho.
— Além dele? — eu questiono sem olhá-la, usando o tom de voz mais
baixo possível.
— Você pode falar o nome do Drogo, sabia? Não é como se ele fosse o
Voldemort, afinal de contas.
Eu reviro os olhos.
— Mas, sim. — continua, sem perder o ritmo. — Além dele. Eu soube
que há mais cinco ou seis chegando.
— E quem são?
— Eu não sei. Escutei a conversa de Cassidy com um dos pais ontem.
Algo como um incêndio no antigo colégio em que eles frequentavam. Parece
que o pai de um deles morreu na tragédia. — Blake responde, mordendo o
lábio inferior. — Eles são da Califórnia, Los Angeles. São tipo um bando,
pelo que eu entendi. Para onde um vai, os outros também vão. Eu estou tão
empolgada para conhecê-los!
— Por quê?
— Não é óbvio? — indaga, a voz abafada quando ela se joga no banco
do carona e eu dou a volta para ocupar o assento do motorista. — Gente
nova, minha cara. O Golden estava chato com os mesmos rostos de todos
esses últimos anos. Teremos a oportunidade de conhecer pessoas diferentes.
E californianos, ainda por cima. Dizem as boas e más línguas que eles são
quentes.
— Não fique animada. — aviso, puxando a alavanca e apertando o
botão de partida. — Você sabe que a animação é o primeiro passo para a
decepção.
— E onde diabos você ouviu isso?
— Acabei de inventar, querida.
— Foda-se. — ela bufa, mas começa a gargalhar.
— Eu sabia que você ia falar isso. — declaro.
As sobrancelhas escuras da minha irmã arqueiam com cinismo.
— Uma sempre vai saber o que se passa na cabeça da outra, Bee. —
cantarola. — É coisa de gêmeas.

Manobro para dentro do estacionamento subterrâneo, passando por uma


das lombadas. A caneta que Blake usa para desenhar um coração na perna,
escapa de seus dedos e cai na lateral da porta.
— Porcaria. — xinga rabugenta. — Tenho medo de colocar a mão e ser
picada por um inseto. Pode me emprestar uma caneta nova? Tenho teste.
— Claro. Prendi o cabelo com uma esses dias. Deixei no cofre.
Ela abre o compartimento, vasculhando em seu interior.
— Achei! — informa. — Obrigada. Procuro a minha depois.
— Deve ter caído no porta-trecos, ou seja lá o nome.
— Prefiro não arriscar.
— Sem problemas, querida. — finjo uma tosse. — Medrosa.
— Ei!
Ao chegar na fileira em que sempre estaciono, percebo que há uma
Lamborghini Gallardo na cor preta ocupando minha vaga.
— O quê?
Estreito os olhos e aperto o volante com força ao capturar na visão
periférica ninguém menos que Drogo saindo de dentro dela.
— Brooke... — escuto minha irmã me chamar, mas é tarde demais, eu
já estou desligando o veículo e abrindo a porta para sair do carro.
Os saltos das minhas botas fazem barulho pelo lugar à medida que me
movo.
— O que você pensa que está fazendo, McAllister? — trovejo, parando
diante dele.
Minhas narinas alargam quando, sem querer, meus olhos analisam sua
estrutura no uniforme azul marinho. A camisa branca está com dois botões
abertos, revelando um peitoral musculoso. O blazer está sendo esticado ao
limite por conta de seus bíceps e o tecido da calça só serve para deixar suas
coxas ainda mais poderosas. Se eu tinha alguma dúvida de que ele fazia parte
dos atletas, ela acaba de desaparecer.
Como se fosse atingida por um golpe, eu recuo um passo. Respiro
fundo e coloco as mãos na cintura, estreitando os olhos com intuito de fuzilá-
lo.
— Saia da frente. — Drogo resmunga, tirando os óculos escuros de sol
e passando uma mão pelo cabelo úmido.
Permaneço firme em meu lugar, mas minha atenção voa para sua boca,
onde um pequeno corte em vertical enfeita o lábio superior.
Com certeza esse ferimento não estava aí ontem.
Aproveito o fato de que as demais pessoas presentes no estacionamento
estão alheias quanto a nós dois e alguns dos veículos estacionados são altos o
bastante para nos camuflar de seus olhares curiosos.
— O que aconteceu com o seu rosto? — a pergunta escapa antes
mesmo que eu possa pensar em impedir.
Sua expressão muda e o músculo da mandíbula dele contrai com
irritação.
— Diga-me como isso pode ser da sua conta e eu não terei problema
algum em responder. — ele morde de volta.
A vontade que eu tenho é de acertar um soco em sua cara de canalha.
Ignoro sua grosseria e cruzo os braços.
— Essa vaga é minha.
Aponto com o polegar na direção do veículo dele, mas o babaca apenas
olha para mim com cinismo.
— Você a perdeu, meu amor. Agora saia da minha frente.
— Eu vou. — enfatizo. — Quando você tirar o seu carro.
Um sorrisinho insolente começa a se formar nos lábios cheios dele e
sua língua se projeta para fora para umedecê-los. Seu torso inclina para
frente, invadindo meu espaço, e eu inalo seu perfume. Seu aroma amadeirado
misturado com loção de barbear me deixa embriagada. Eu prendo a
respiração.
— E se eu não quiser? — divaga maldoso.
Minhas narinas abrem e eu estendo os braços ao lado do corpo,
apertando os punhos. Estou prestes a abrir a boca quando sinto alguém me
puxar para trás. Blake surge ao meu lado, segurando a manga do meu
uniforme.
— Eu já estacionei, Bee. — ela aponta com o queixo para onde minha
Range Rover está. — Kale disse que Lauren não poderá vir hoje porque teve
que ir ao médico para sua consulta mensal. Então, podemos ficar com a vaga
dela.
— E amanhã? — sibilo, lançando punhais com os olhos na direção
dele. — Lauren também irá ao médico?
— Nós descobrimos que somos irmãos ontem. — Blake sussurra,
olhando de mim para Drogo. — Vocês podem tentar não se matar?
Ele joga a mochila sobre o ombro. Com o movimento eu percebo que
ele tem sua gravata amarrada na mão direita como se fosse uma luva.
É mesmo um selvagem.
— Proponha isso para sua irmã. — estala, esbarrando contra o meu
corpo e quase me derrubando no processo. Drogo deixa uma trilha de garotas
babando em sua direção enquanto faz seu curso para fora do estacionamento
e desaparece do lado de fora dele.
— Eu o odeio.
— Não sei o que aconteceu para vocês passarem de melhores amigos a
inimigos declarados, mas não deixe que isso controle você. — Blake pede,
entregando minha bolsa que eu nem mesmo percebi que ela segurava. —
Drogo pode ter se tornado um valentão por algum motivo, mas ele não é mau.
— Ele é um canalha sem alma.
— Brooke. — ela geme num tom de repreensão. Inclino-me para puxar
ainda mais para cima minhas meias pretas. — Brooke. — tenta novamente.
— Pode recobrar sua razão por apenas dois minutos e tentar ser legal?
— Com aquele babaca? — balanço a cabeça. — Não me peça o
impossível.
Vou arrancar um braço antes de deixar minha guarda baixa com relação
a ele. Guardando esse pensamento para mim, envolvo os ombros dela com
um braço, arrastando-a para longe.
— Você não pode ao menos tentar? Nem mesmo um pouco?
— Eu prometo não pensar em matá-lo se ele ficar fora do meu
caminho.
— Oh, Bom Senhor...
— Relaxe, querida. — respondo, me afastando dela e forçando-me a
adotar um ar mais suave. — Agora, vamos entrar. Estou ansiosa para ver
quem são os novos rostos.
Minhas palavras têm o efeito que eu esperava nela. O rosto de Blake
muda de chateado para empolgado. As maças das bochechas se tornando
ainda mais avermelhadas.
— Vamos! — ela exclama.
Seu sorriso se desfaz por completo quando ela para bruscamente. Eu
vejo Avalon Montgomery, sua ex-melhor amiga, surgir na nossa frente como
se fosse uma divindade cruel.
— Para onde as gêmeas patéticas vão com toda essa pressa? — ela
ronrona, sua voz aveludada gotejando veneno em cada sílaba.
Avalon é como uma Barbie enviada diretamente por Satã à Terra.
Além de ser uma abelha rainha no GEC, ela é linda e sensual de um
jeito que nenhuma garota má deveria ser. Olhos azuis acompanham um nariz
pequeno e fino, seus lábios cheios e pequenos estão sempre pintados
majestosamente com um batom vermelho sangue. O cabelo dela é longo e
liso, num tom loiro, indo até o meio de sua cintura modelada. Seios
arrebitados e pernas bronzeadas completam o pacote de cadela perfeita.
Ela sempre está vestida de maneira glamurosa, mesmo quando se trata
do uniforme colegial.
Blake fica tensa ao meu lado, e tudo o que eu quero fazer é revidar, mas
Avalon acabaria com a minha irmã se eu o fizesse, pois as duas dividem um
segredo — que eu não faço ideia de qual seja — e por esse motivo ela me fez
prometer que eu nunca iria interferir quando a Regina George francesa
chegasse com sua língua venenosa contra ela. Meu sangue ferve e eu dou um
passo à frente.
— Saia, Montgomery.
— Saia você, Andreotti. — Avalon morde de volta. — Meu problema
não é com você. Não faça com que isso mude.
Kristina e Cameron, suas lacaias fiéis, se aproximam de onde estamos e
me encaram de um modo ameaçador. Elas não me intimidam.
Sustento seus olhares.
— Saiba que tentar me amedrontar só irá voltar para vocês. — dou meu
aviso, direcionando-me as duas. — Não vou ter dificuldade alguma em
arrancar o aplique de suas cabeças ocas.
Kristy é a primeira a se afastar, mas Cameron me olha como se eu fosse
um leão prestes a escapar do zoológico. Avalon adota uma postura idêntica à
minha, não se deixando abalar pelo que eu digo. Se o Golden Elite College é
um ninho de cobras, Avalon Montgomery é a Anaconda. Ela manda e
desmanda nesse lugar como se fosse seu parque de diversões particular.
Quando está sozinha é fria e indiferente, ainda um pouco cruel, mas perto das
víboras K&C se torna uma megera de primeira linha. Aqui, ela é uma aluna
modelo. Fora do GEC, é uma filha exemplar. Tudo não passa de mera
encenação. Ela é uma atriz.
— Sabe, Brooke, esse seu cabelo parece precisar de um corte. Quer que
eu o faça por você? — sua pergunta soa tão inocente que parece ter sido um
convite para o chá da tarde. O esmalte vermelho em suas unhas bem-feitas
brilha quando ela ergue o indicador e o dedo médio, abrindo e fechando
ambos ao imitar uma tesoura.
Suas amigas riem como duas hienas da ameaça que Avalon faz. Não
sou uma pessoa violenta, mas estou prestes a levar minhas mãos ao maldito
cabelo dela e puxar com força até que nós duas estejamos rolando no chão.
Antes que eu possa me mover para fazer isso, entretanto, uma voz feminina
com um sotaque diferente do nosso ecoa pelo local.
— E a sua boca bonita parece estar necessitando chupar um belo pau,
Barbie. Meu amigo aqui precisa de um carinho oral porque fizemos uma
longa viagem. O que me diz sobre ajudá-lo? Quer que ela faça isso por você,
DeLuca?
Uma garota e um cara caminham na nossa direção. Os dois estão
usando o uniforme do colégio, mas eu nunca os vi na vida. Ela fecha o
punho, onde descansa a tatuagem de um lobo no pulso direito, e faz um
movimento de vai e vem ao lado da bochecha. Sua língua força a parte
interna, insinuando um boquete.
Eles são lindos de uma maneira quase inaceitável. A loira é alta e
possui um estilo de surfista. Seu cabelo é ondulado e queimado pelo sol,
dando a ela uma aura selvagem. A pele é tão bronzeada que posso ver a
marca branca de biquíni escapando pelo decote chamativo. A blusa interna
foi amarrada na barriga com um nó, exibindo bastante pele, e a saia curta
deixa à mostra um par de longas pernas. O cara ao seu lado — DeLuca, como
a ouvi se referir a ele — mantém o olhar predatório fixo em Avalon. A
expressão em seu rosto perfeito é vazia, quase como se não existisse. Sua
presença é tão sombria e glacial que parece esfriar o ambiente. O cabelo preto
foi empurrado para trás com elegância — graças aos seus longos dedos, eu
presumo. Seus olhos são de um tom metálico, contrastando com o maxilar
marcado — tão cerrado que um músculo se projeta contra a carne — e o nariz
aristocrático dá a ele um toque ainda mais poderoso. Seu corpo é alto e forte,
ombros largos e definidos acompanham sua pele branca. O olhar dele
permanece em Avalon, não de uma maneira pejorativa, muito diferente do
que ele profere:
— Eu nunca fodi uma prostituta. Mas posso pagar bem, se ela estiver
interessada.
Avalon se engasga, horrorizada. Seu rosto esquentando com
incredulidade.
— Eu não sou uma prostituta! — berra indignada.
— Deveria. Essa boca parece ter nascido para chupar um pau. Ainda
que eu acredite que você não pudesse ser capaz de aguentar o meu.
Posso ver os membros dela tremendo pela sua ira.
— Seu...
Ela é arrastada para fora do estacionamento por suas amigas, mas não
sem antes gritar um “vai se foder, seu canalha!” para ele.
— Puta merda. — Blake engole em seco. — O que foi isso?
— Isso, minha cara, foi apenas uma apresentação. — responde a garota,
lançando uma piscadela para minha irmã. — Odeio valentões e cadelas más.
Vocês não?
— Sem dúvidas. — Blake sopra, sorrindo. — A propósito, vocês são os
novatos?
— Dois deles. Quais são os nomes de vocês duas?
— Eu sou a Blake. Esta é a Brooke. Não preciso dizer que nós somos
irmãs, huh?
— Definitivamente, não. Eu sou a Summer, este é o Matteo. DeLuca é
seu sobrenome. — informa. — Vocês precisam conhecer o Leo, vão adorá-lo.
Ou odiá-lo. Talvez os dois.
Ao fim de sua frase, como se essa fosse uma cena de filme ou série
adolescente, três carros invadem o estacionamento.
O primeiro a parar é um jipe preto, logo depois vem uma Lamborghini
na mesma cor, seguida pelo último, uma Bugatti.
— Bem, — ela ronrona, cruzando os braços e encostando o corpo em
um dos pilares. — nosso bando chegou, senhoritas.
Um cara alto e robusto como uma geladeira de duas portas salta do
primeiro veículo. O uniforme quase rasgando em seus músculos. O cabelo
dele é castanho-escuro, curto nas laterais e bagunçado no topo como se ele
tivesse acabado de sair de uma foda. Seu sorriso é tão contagiante que me faz
querer sorrir também.
— Já fizeram amigos? Porra, por que não me esperam nunca? —
resmunga, fazendo um bico exagerado.
— Acredito que esse seja o Leo. — presumo, sendo ouvida por ele.
— Eu mesmo, doçura. — ele me direciona uma piscadela sacana com
grandes olhos cor de jade ao parar na minha frente e pegar minha mão,
depositando um beijo no dorso dela. — Leon Bjorn Hoffman Van Acker-
Ballister. Alguns me chamam de Leo, outros de Ballister e há os que
preferem deus do sexo. Fique à vontade para escolher.
— Meu Deus. — as sobrancelhas de Blake se erguem.
— Gostei de todos. — brinco. — Mas “Leo” está ótimo para mim.
— Baby, com esse par de pernas que você tem, eu a deixaria me
chamar até mesmo de saco de bosta vedado. — ronrona.
Eu não me sinto incomodada por seu comentário. Na verdade, faz algo
aquecer em meu peito. Bem, Summer estava certa. Acho que vou adorar esse
brutamontes sem filtro. O celular de Matteo toca e ele pede licença para se
afastar e atendê-lo. No mesmo instante, minha atenção é roubada para outro
ponto quando noto uma garota de pele tão branca quanto um floco de neve e
altura mediana com longos cabelos pretos e uma franja fina sobre a testa sair
de dentro da Bugatti e caminhar em nossa direção.
Sua beleza é o completo oposto da que Summer ostenta. Ela tem uma
aura fria e sofisticada, exalando polidez a cada movimento executado. Seus
lábios são cheios, mas pequenos, e estão cobertos por uma camada escura de
batom vermelho.
— Estamos atrasados. — evidencia num tom contido, indiferente.
Ela não se apresenta. Na verdade, sequer faz menção de que deseja se
apresentar. Após dizer isso, pede licença e se vai. Eu franzo o cenho,
observando-a até que sua silhueta desaparece do meu campo de vista.
— Não ligue. — cochicha Leo, olhando para a Lamborghini, o único
dos veículos de onde ninguém saiu ainda. — Seu nome é Leona, nós somos
primos. Ela não gosta muito de conversar com desconhecidos. Minha garota é
introspectiva ao ponto da dor.
Suas palavras são tensas, mas sinto amor e proteção em cada uma
delas.
— Tudo bem. — eu sorrio. — Não tenho problema algum quanto a
isso, também costumo ser assim. Oh, e ela é realmente linda.
— Sim. — Summer concorda, soando orgulhosa. — É a nossa branca
de neve particular.
Leo ri e eu o acompanho.
— É um garoto ou uma garota? — a pergunta repentina vem de Blake,
que aponta com o queixo para a Lamborghini.
— Primeira opção. — ele informa, enroscando um braço no ombro da
minha irmã e a puxando para fora do estacionamento, falando algo como
“não se apaixonar pelo loiro sádico já que possui a atenção de um moreno
encantador e espetacular”.
— Ignore-o. — Summer boceja. — Leo é como uma coceira agradável,
não há nada a fazer sobre. Afinal, ele sempre consegue ter tudo e todos
gravitando ao seu redor. É como um maldito sol escaldante no pior dia de
inverno.
Sua analogia é engraçada e não me vejo dando outra resposta senão um
aceno em concordância.
— É bom ter um desses.
— Você nem imagina. — retruca com uma carranca, mas vejo que está
com um sorriso estampado no rosto.
Eu faço o mesmo que ela. Por um segundo, penso que esse último ano
pode ser um pouco mais fácil de suportar do que os anteriores.
Isto é, até eu colocar os pés no pátio principal e me deparar com uma
cena que eu nunca esperei ver: Drogo e Avalon se beijando.
PESADELO

“Mas, agora, eu não quero estar bem


Estou tão cansada
Sentada aqui esperando
Se eu ouvir mais um “apenas seja paciente”
Isso sempre será o mesmo
Então, me deixe desistir”
— You Don’t Know | Katelyn Tarver

O SORRISO QUE ESBOÇO DESAPARECE assim que vejo os


dois se beijando debaixo de uma das árvores que adornam o pátio principal.
É como se eu estivesse na primeira fila de uma sala de cinema vendo
um filme de terror em 4D. Todo meu corpo paralisa diante da cena mais
desagradável do enredo. Não é ciúmes — fora de cogitação. O que quer que
seja, entretanto, embrulha meu estômago e me faz parar no tempo por alguns
segundos.
— Mexa-se. — ouço Summer chiar. — Não sei qual é a merda, embora
eu a sinta. Não deixe parecer que atingiu você, garota.
Leo e Blake estão parados poucos metros adiante. Ele olha por cima do
ombro, no mesmo instante que DeLuca surge atrás de nós duas. Seu olhar se
arrasta vagarosamente de Drogo e Avalon para mim. Noto sua mandíbula
apertar, mas as feições endurecidas dele permanecem estoicas.
Estou prestes a movimentar meu corpo quando sinto seu braço
musculoso ser jogado sobre meus ombros. Olho para cima e fito seu rosto. O
que me choca, no fundo, é que um estranho está invadido meu espaço pessoal
e eu não sinto nem mesmo uma mísera fração de incômodo. Na verdade, eu
gosto do contato. É uma sensação diferente, porém, não é ruim. Engulo em
seco, observando seu semblante. Me perco em meus próprios pensamentos,
pensando no quão sinistra é a maneira como ele parece não carregar emoções
quando, de repente, seu olhar metálico captura o meu e ele simplesmente me
lança uma piscadela. A ação amolece minhas pernas e eu decreto que é a
coisa mais sexy do mundo, porque no habitual, as pessoas costumam sorrir de
maneira sacana ao fazerem isso, e DeLuca não possui sequer a sombra de um
sorriso. Nenhuma palavra deixa sua boca, mas eu torno a me mover com sua
presença pairando ao meu redor. Estou quase sufocando e tenho certeza de
que irei começar a transpirar muito em breve. O beijo entre Drogo e Avalon é
partido ao nos aproximarmos deles. Ela joga o cabelo loiro por cima do
ombro e arqueia uma sobrancelha em sinal explícito de desdém. Drogo age
como se nada tivesse acontecido, mas vejo o olhar maldoso que escorre dele
no segundo que o meu o encontra. Percebo que estava prendendo a respiração
somente quando me encontro fora do seu alcance. Não houve nenhum
comentário ácido de sua parte, ainda assim, todavia, pude notar o jeito que
seu maxilar trincou por causa da minha proximidade inusitada com um
desconhecido.
— Não sei o que aconteceu entre vocês. — DeLuca começa, e eu quase
posso tocar a frieza em sua voz. — Mas fique longe dele.
Meu couro cabeludo formiga e sinto a boca ressecar.
— Por quê? — inquiro.
— Porque somos parecidos em certos aspectos. — delibera, calmo. —
E pessoas como nós estão longe de significar algo bom.
Absorvo sua resposta, adotando um tom firme e irritado ao dizer:
— Descobri ontem que ele é meu meio-irmão.
Matteo me analisa por um curto período, desviando a atenção para
frente antes de assentir e se afastar, dizendo que precisa fazer algo.
— Puta merda. — Summer joga o braço onde o de DeLuca estava e me
puxa para perto. — Vocês são parentes? Então, a coisa toda é mais fodida do
que eu imaginei.
Oh, por favor, alguém me mate. Agora. Meus olhos arregalam e eu
abro a boca para explicar.
— Você entendeu errad...
O sinal embala cada centímetro do colégio, impedindo-me de concluir a
frase. Com rapidez, os estudantes que ainda estão espalhados pelo pátio
começam a se mover para dentro de suas respectivas Torres. Há três ao total;
uma para os primeiros anos, outra para os segundos e a última para os
terceiros. Todas são grandes e possuem estruturas vitorianas num estilo
gótico. Poderosas, porém, assustadoras na mesma intensidade.
Desistindo de tentar consertar a situação, eu sigo em frente com os
demais.
— Já sabem onde vão ficar? — questiono, assim que atravessamos o
corredor e seguimos até os armários. — Há dois terceiros anos. Vocês estão
em qual deles?
— Hum. — Summer aponta com o indicador para a sala que eu estudo.
— Leo, DeLuca e eu ficaremos naquela. Leona e Grayson na outra.
— Leona e Grayson na mesma sala? — Ballister tosse ao se engasgar
com a água que bebe, juntando-se a nós e fazendo Summer assentir em
resposta com uma careta.
— Isso não é nada bom.
— Ah. — murmuro, perdida. — Não quero parecer fofoqueira, mas do
que vocês estão falando? E quem é Grayson?
ele estala os dedos e aperta a ponte do nariz em seguida, suspirando.
— Esqueci que você não conheceu o anticristo. — pontua. — Ele é o
que não saiu do carro no estacionamento.
A percepção me atinge e eu aquiesço com veemência ao lembrar do
terceiro veículo.
— Por que você o chama assim?
— Você vai entender quando conhecê-lo.
Summer me solta e se coloca entre nós, encostando-se contra os
armários. Ela rasga a embalagem do pacote de goma de mascar que puxa do
bolso interno do blazer, nos oferecendo. Eu recuso e Leo aceita. Estourando o
chiclete ao mesmo tempo que joga o cabelo loiro para trás, dispara:
— Grayson Cagliari é o Inferno na Terra.
Minhas sobrancelhas se erguem em surpresa.
— Ele é realmente tão diabólico?
— Pense em um número com sete dígitos. — Ballister propõe.
— Agora, triplique-o. — ela completa com um quê de cinismo. — Este
é o grau de crueldade dele.
— Minha nossa. E por que vocês são amigos de alguém assim?
Leo bagunça meu cabelo com sua mão gigante.
— Somos um bando, doçura. Como os mosqueteiros: um por todos e
todos por um.
Lembro-me do que iniciou esse diálogo.
— E qual o problema entre ele e sua prima, afinal?
— Eles se odeiam em um nível fodido. Na verdade, Leona está mais
para indiferente. — seus ombros sacodem. — Digamos que os dois dividem
um passado... muito conturbado.
— Qual de nós não tem, meu amigo? — indaga Summer, estourando
outra bola. — Essa merda nos persegue aonde quer que vamos.
É agradável estar perto deles, eu constato. Parece que somos amigos de
longa data e eu realmente gosto disso. Pela primeira vez desde que coloquei
os pés nesse colégio, eu posso provar um pouco do gosto de ter pessoas legais
ao meu lado, além da minha irmã. Não sou do tipo que confia em estranhos,
principalmente quando se aproximam muito da minha bolha. Não que eu
esteja pensando em abaixar a guarda, mas não custa nada dar um pequeno
voto de confiança.
— É o nosso charme. O que acha de nós? Somos criaturinhas decentes,
Bee? — ele se vira para me olhar. — Posso chamá-la de Bee, não é?
— Sim, pode. — asseguro. — E quanto a pergunta, eu acho que vocês
são do tipo que quebram todas as regras.
— Oh, porra, sem dúvidas! — Leo exclama animado, e esfrega uma
mão na outra. — Faremos este ano ser o ano, doçura. Do caralho mesmo.
— Eu tenho certeza que sim.
Os dois trocam um sorriso cúmplice.
Que Deus me ajude.

Uma das minhas canetas escapa por entre meus dedos e vai parar no
chão. Solto um suspiro resignado ao me curvar a fim de recuperá-la, tomando
cuidado para não ser atingida pelos estudantes que transitam pelo corredor
das fileiras com o intuito de deixar a sala e seguir para o refeitório. As
pessoas por aqui podem ter oceanos de dinheiro, mas é possível contar nos
dedos quantos são educados. E garanto que não chegarei sequer a uma
dezena. Estou voltando a levantar, porém, paro no meio do caminho ao dar de
cara com um par musculoso de pernas diante de mim. Elevo a cabeça em
câmera lenta e meu foco encontra Leo Ballister. Uma expressão libertina
enfeita seu rosto bronzeado e me faz estreitar os olhos.
— Por que você está me olhando como se tivesse segundas intenções?
— resmungo, guardando o restante do material.
— Segundas? — desdenha. — Com você, doçura, seriam mais do que
segundas. Décimas, talvez.
Me sinto aliviada por não haver maldade em seu comentário.
— Você é gato, doçura, mas não faz o meu tipo. — atiro de volta,
mordendo o lábio inferior para não rir alto da careta de incredulidade que
arranca o sorriso presunçoso de seus lábios. Leo espalma uma mão contra o
peito e cambaleia um passo. Um verdadeiro rei do drama. As telas estão
perdendo esse mestre da atuação.
— Soldado Ferido! — reclama. — Como blasfemar desse jeito? Eu sou
o tipo de qualquer garota. E garoto. Sou o tipo universal, caramba.
Perdendo a luta, eu gargalho.
— Sinto muito, garoto californiano. Nada a se fazer. — dou de ombros
e fico de pé. — Agora, diga o que você quer comigo.
— Em primeiro lugar, eu sou francês. — corrige orgulhoso. — Em
segundo, como você sabe que eu ainda não disse o que realmente quero?
— Porque você ainda está aqui, garoto francês.
— Tem razão. Bem, veja, eu arrastei meu corpo sensual de atleta até
você para saber se a senhorita gostaria de me levar para comer alguma coisa.
Sua proposta me faz arregalar os olhos.
— Como em um encontro?
Minhas bochechas pegam fogo quando capturo o vislumbre libertino
que cruza suas feições. Ele inclina o torso para frente e apoia os cotovelos na
minha mesa. Por instinto, e porque a temperatura parece subir trinta graus de
repente, eu me movo para trás, esbarrando em uma das cadeiras sem querer.
O rangido acaba chamando a atenção dos alunos que estão passando do lado
de fora.
Um buraco para que eu enfie minha cabeça dentro. Rápido!
— Bem, — seu timbre é baixo e provocante. No entanto, como se os
últimos cinco segundos fossem somente uma situação fantasiosa, criada pela
minha mente confusa, Leo torna a ficar ereto outra vez e ri de uma maneira
irritantemente fofa. — é que eu estava pensando em comer no refeitório
mesmo. Contudo, aceito um jantar em um restaurante cinco estrelas. — ele
levanta a mão direita como se fizesse um juramento. — Tudo em nome de
uma boa alimentação.
Reviro os olhos com tanta voracidade que posso jurar que toca meu
cérebro. Apesar de tudo, não consigo carregar nem mesmo uma fração
mínima de raiva. Summer estava mesmo sendo sincera: Leo Ballister é uma
coceira agradável. Eu bato em seu abdômen duro como aço com um dos
cotovelos.
— Apenas leve seu traseiro bonito e tonificado para fora, babaca. —
reclamo divertida.
— Ora, ora. Temos uma pervertida aqui? — Leo sorri com empolgação
latente, puxando um dos fones no ouvido de Summer quando ela passa ao
nosso lado. — Você ouviu? A pequena Andreotti estava olhando a minha
bela bundinha tonificada.
— E o que eu tenho a ver com isso? — bufa, arrancando o fone que
restou.
— Não estrague o momento de euforia de alguém! Essa merda pode me
causar problemas psicológicos no futuro, e a culpa será toda sua.
Com um movimento preciso, ela agarra a orelha direita de Leo e o faz
se contorcer, protestando pela dor que a ação abrupta causa.
— Te vejo no refeitório, Bee! — ouço-o gritar ao ser arrastado para
fora da sala no processo.
Cubro a boca com uma mão, rindo baixinho. Guardando meu celular,
me preparo para deixar o local. No instante em que chego ao batente, um
corpo sólido barra minha saída e me faz regredir vários passos. Comprimo os
lábios com irritação ao ver Drogo ocupar minha visão periférica.
Ele empurra a porta sem perder tempo olhando para trás. Com um
baque silencioso, ela se fecha e nos oculta dos alunos que continuam
transitando pelos corredores. Me afasto dele e cruzo os braços acima dos
seios de modo defensivo. Embora eu mantenha uma fachada de dureza, meu
coração está galopando no peito.
— Saia da minha frente. — ordeno.
Sem qualquer sinal de boas maneiras à vista, escuto-o grunhir como um
homem das cavernas:
— Fique longe dele.
Estou inclinada a agarrar uma das cadeiras e jogar contra sua cabeça.
Elas não são pesadas, mas Drogo é ágil, e com certeza, — para minha
infelicidade — seria capaz de me parar no meio do ato. Apesar de cogitar
essa e outras diversas possibilidades, a maioria sendo violenta, eu não
prossigo com nenhuma. Pelo contrário, me vejo recorrendo a uma coisa que
não deveria usar com o canalha diante de mim: educação.
— Desculpe? — eu sopro incrédula. — Por que você acha que pode me
obrigar a parar de falar com o Leo?
Certo. Nós nos conhecemos hoje e eu não sei direito quem ele é, mas
tenho certeza de que eu não corro perigo algum de vida. E mesmo que fosse o
caso, sem dúvidas Drogo tentaria participar do plano para me ferrar ainda
mais rápido.
— Eu não estou falando sobre esse.
Meu raciocínio estala como um chicote no ar, alto e claro.
— Matteo? — sondo com um sorrisinho ousado.
Minha boca se enche de água quando vejo suas narinas dilatarem e uma
veia grosseira saltar de seu pescoço.
— Fique. Longe. — pontua.
— O que você pensa que é? Um cão? E eu sou seu território? —
gargalho, fingindo secar uma lágrima. — Oh, querido, não. Levante a perna e
procure outro lugar para urinar. Minha vida não diz respeito a você e eu falo
com quem eu bem desejar. Fique fora do meu caminho.
Tento passar, mas sou impedida. Irritada, emito um suspiro frustrado.
— Eu sou seu guardião legal. — intervém. — E seu meio-irmão mais
velho. Eu dito as regras, não você. Não dou a mínima para suas vontades. Se
eu disse para ficar longe, você fica. Ponto final.
Um sabor amargo dança em meu estômago, me deixando nauseada.
Tudo o que ele falou não passa de um discurso ridículo e mesquinho — até
mesmo cruel.
Ainda assim, a parte que me acerta como um soco doloroso é sua
segunda frase. Por que diabos eu odeio tanto isso?
Você sabe, minha mente traiçoeira ecoa.
Engulo com dificuldade. Eu me recuso a demonstrar fraqueza. Não vou
dar esse gosto a ele.
— Ser meu meio-irmão não faz nada por você, McAllister. — eu
mordo de volta, projetando minha estrutura para frente de modo a invadir seu
espaço. — Tente pregar essa maldita política de valentão comigo outra vez e
eu o farei se arrepender do dia que você presumiu ser uma boa ideia retornar
para minha vida em busca de vingança. Não brinque comigo, eu não sou mais
quem costumava ser no passado.
Mau humor torce seu rosto.
Sufoco uma respiração ao ser subitamente encurralada contra a porta
por ele. Minha bunda é pressionada no material frio e a sensação gélida me
faz soltar um gemido de surpresa. O que me conforta, no fundo, é ter noção
de que não há como sermos vistos por quem está do outro lado já que a porta
não possui nenhuma parte de vidro ou qualquer brecha que nos deixe sujeitos
aos olhares venenosos dos demais estudantes. Principalmente do trio de
cobras peçonhentas, pois seria como ir para a forca. As mãos de Drogo batem
no metal, uma de cada lado da minha cabeça. É doentio como meu corpo
parece reagir à proximidade do dele. Quero vomitar de repulsa. Não por ele, e
sim por minha causa. Eu tenho tanto nojo de mim que posso provar o gosto
azedo na ponta da língua. Meus pensamentos imundos são jogados para longe
quando a voz dele se faz presente mais uma vez:
— Não me teste. — adverte ameaçador. — Eu não sou amigável
quando estou com raiva.
Coloco a fachada de volta em seu lugar de origem; local que ela nunca
deveria ter saído.
— Você não é amigável. — desdenho, adotando um tom venenoso. —
Ponto final. Agora, saia.
Drogo é o único ser humano na face da Terra com poder de fogo
suficiente para tornar meu raciocínio lento, quase nulo, e eu não posso
permitir que isso aconteça. O problema estoura bem no meio do meu rosto
quando o cretino faz exatamente o contrário. Seu corpo se move um pouco
mais, tornando o meu hiperconsciente de sua presença. Por puro e infeliz
instinto, eu aperto uma perna contra a outra. Percebo meu erro no segundo
que um sorriso tirano faz o canto direito de sua boca se erguer. O verde de
seus olhos escurece.
— O que é isso? Não me diga que está ficando excitada pelo seu meio-
irmão. — a última coisa dita faz meu sangue borbulhar com fúria visceral.
Para minha infelicidade, entretanto, sou incapaz de revidar. Sem
pronunciar qualquer outra mísera sílaba, Drogo se afasta de mim, enfiando as
mãos dentro dos bolsos. O sorriso de antes em plena exibição, e ainda mais
perverso do que estava há poucos segundos.
— Não precisa ficar apreensiva. — ele agarra a maçaneta, deixando
espaço suficiente para passar. — Seu segredinho sujo está seguro comigo.
Mesmo quando o vejo ir embora, não saio de onde estou.
Principalmente depois de escutá-lo finalizar sua ameaça com um por
enquanto.
Ódio puro me consome e eu fecho os punhos.
— Ele vai me pagar caro por isso. — digo para mim mesma.
Este não é um mero desejo, é uma promessa. A qual eu irei cumprir
muito em breve.

Perdi boa parte do intervalo por ir ao banheiro lavar o rosto e dar um


jeito na minha aparência. Tudo com o intuito de parecer menos abalada.
Detesto me sentir fraca. A sujeira impregnada em meu corpo arranhou a
superfície em busca da liberdade e essa percepção me enlouqueceu ainda
mais. Com falsa serenidade, me junto aos outros no refeitório. Minha irmã é a
primeira a me notar, batendo no assento da cadeira vazia ao seu lado.
— Você demorou. — escuto-a reclamar quando me sento em silêncio,
usando uma mão para massagear meu ombro tenso.
— Deixei um dos meus brincos cair na sala de aula. — a mentira sai
com uma calma tão surpreendente que me espanta. — Levei algum tempo
para encontrar. — completo, evitando olhar para ela. A parte desastrosa é
que, ao desviar meu foco de Blake, eu o direciono sem querer para Leo.
O brilho sacana que banha suas íris quase me faz gemer no assento.
Não sei como, mas o cretino parece enxergar através da farsa que eu elaborei.
— Que bom que o encontrou, doçura. — ele me lança uma piscadela
divertida depois de inclinar o corpo para trás a fim de verificar minhas
orelhas.
Minha boca se abre em choque por sua atitude excêntrica. Prefiro não
protestar, porque isso com certeza renderia um belo alarde. Blake fareja
fofocas e nem mesmo eu posso escapar da mira dela quando sou colocada em
seu radar. Assinto com tranquilidade, agradecendo em silêncio por não me
tornar o centro das atenções. Summer está do outro lado da mesa, digitando
em seu celular com uma velocidade digna do Usain Bolt e a fúria de dez
vulcões em erupção.
— O que ele fez contra você, afinal? — questiono, espalhando um
pouco de geleia de amora na torrada que roubo da bandeja de Blake.
— Hum, olá? — bufa carrancuda. — Eu pretendia comê-la?
Dou de ombros, mordendo um pedaço generoso.
Summer responde assim que minha irmã se cala, largando o aparelho
em cima da mesa.
— A agente da minha mãe está enchendo o saco sobre um evento
beneficente que acontecerá neste sábado. Ela diz que preciso ir. Bem, eu não
irei.
— Agente? — a pergunta vem de Blake.
— Sim, sim.
— Qual é a profissão dela?
— Atriz. — comunica Leo. — Pornô.
Ele perde o fôlego com a cotovelada que recebe na costela por causa do
comentário.
— Não ouse se aproximar do meu corpinho outra vez, sua mulher
infernal. — xinga, massageando a região atingida.
— Minha mãe é atriz. Ponto. Ela atua em filmes de drama.
Agora que essa questão foi mencionada, realmente, Summer tem um
rosto que me é um pouco familiar. Pensei nisso assim que a vi no
estacionamento, mas não consigo lembrar com plena exatidão a quem ela se
parece.
— Qual seu sobrenome? — divaga Blake em tom conspiratório,
apoiando os cotovelos na superfície da mesa.
Ela joga o cabelo loiro por cima do ombro e cruza os braços,
descontente.
— Gautier.
Os olhos da minha irmã esbugalham e eu posso dizer que eles vão
saltar a qualquer momento.
— Você é filha de Sierra Gautier? — indaga, sua voz subindo inúmeros
decibéis.
Num segundo, Summer está do lado oposto ao nosso. No outro, ela se
lança sobre a mesa para tampar a boca da minha irmã com uma mão firme.
Eu poderia sair em sua defesa como sempre faço, porém, não há
violência verdadeira no gesto. Percebo que um pequeno público foi formado
por alguns estudantes e agora vários pares de olhos escorregam para onde
estamos. Levo as mãos ao rosto, escondendo-o. Ballister apenas ri, jogando
uma goma de mascar para dentro da boca.
— Fale esse nome em voz alta novamente e eu vou cortar sua língua e
dar ela para os gatos da Leona brincarem. — ameaça. — Balance a cabeça
bem devagar três vezes se você me entendeu, Andreotti.
Bem, talvez eu estivesse errada. Em câmera lenta, seu aceno se faz
presente. Então, Summer solta a boca dela e volta a se sentar.
— Era mesmo necessário todo esse alarde?
— Sim, sua irmã afetou minhas linhas já frouxas de autopreservação.
— seus ombros sacodem. — Eu tive que recorrer a medidas indelicadas.
Eu solto uma risadinha pelo nariz por causa do jeito exagerado que ela
fala. Pelo visto, ambas possuem o drama em comum.
Sierra Gautier é a estrela em ascensão do cenário hollywoodiano no
momento, por isso todos a conhecem. Ainda que eu não saiba muito sobre o
assunto, atores e atrizes são a praia da minha irmã, então estou por dentro de
várias coisas — quer eu queira, quer não.
Percebo duas segundanistas se aproximando da nossa mesa com uma
certa cautela. Não sou a única a notá-las, obviamente. Summer as vê ao olhar
de soslaio na minha direção. Com rapidez calculada, levanta e pega a bolsa
que deixou no chão. Um nanossegundo depois, ela está de pé.
— Tenho treino. — anuncia, desesperada para fugir do refeitório. —
Não me espere para voltarmos juntos, Ballister.
— Você conseguiu rápido, gata. — pondera Leo, mordiscando um
brócolis.
— Acha mesmo que o time de atletismo me perderia? Eu era a melhor
na Califórnia. Vou ser a melhor na Inglaterra, também. — zomba atrevida.
— Quem é seu treinador? — a pergunta vem de mim.
Eu sei que o time de atletismo estava precisando de mais membros,
principalmente na área de corrida. O problema é que Sawyer Vaughn quem
está no comando dele desde o último ano. E o homem pode ser o sonho de
consumo de muitos estudantes aqui no GEC, mas ele é um carrasco infernal.
Não estou blefando. Posso garantir não ter sido a única a vê-lo fazer um
veterano chorar apenas por receber um de seus olhares de aviso.
Summer morde o lábio inferior, pensativa.
— Percebi que não faço ideia.
Ela pode ser uma garota muito feroz, contudo, ninguém é páreo para
esse treinador. Tenho quase certeza de que dentro de duas horas — talvez
menos — eu a verei implorando para sair do clube. Ou até mesmo do colégio.
— Boa sorte se for o Treinador Sawyer. — deixo escapar como se
estivesse dando-lhe os pêsames pela morte de algum parente.
— Oh, é verdade. — completa Blake, me impedindo de remediar a
situação.
— Qual é o problema, afinal? Ele é um velho decrépito?
Com certeza, não.
Apesar da fama que o precede, o treinador sempre será o homem mais
quente de todo o Golden Elite. Se não for de toda a Londres. A
personificação do pecado e da brutalidade se materializaram em seus quase
dois metros de altura e nos músculos de aço. Posso declarar com convicção
que uma extensa parcela de estudantes já fantasiou sobre ele — com direito a
fotos suas no celular. Infelizmente, para todos, ele é como uma bomba-
relógio disfarçada de deus grego. A imagem de Summer achando que será
treinada por um velho e se deparando com uma versão mais bruta do Henry
Cavill, no entanto, desperta uma coceirinha de diversão maléfica na ponta da
minha língua, esfregando-a em meus dentes para conter um sorriso, deixo a
mentira rolar para fora.
— Oh, sim. — confirmo, esbanjando inocência. — Ele é exatamente
assim. Um infeliz decrépito, porém, amado por cada um de nós.
— E fede. — continua minha irmã, séria. — Talvez seja sua fralda
geriátrica que está sempre tão cheia?
— Blake. — repreendo-a, adotando uma postura de desagrado. — Você
sabe que não é permitido falar sobre isso.
— É mais forte do que eu. — ela lamenta, com um suspiro
convincente. — E ele nem tem setenta anos ainda, o pobrezinho.
— O homem está à beira da morte e não o afastaram? — Leo
praticamente berra, incrédulo, enquanto Summer nos encara com horror
evidente.
Mordo o interior da bochecha para não rir. Meus olhos começam a
lacrimejar, mas prendo o fôlego e foco em outro ponto que não seja ela.
— Eles têm pena. — minha irmã comenta, esticando-se na superfície
da mesa como se a informação fosse confidencial. — Os atletas são apegados
ao coitado.
Engolindo a sensação óbvia de desconforto, Summer balança a cabeça
e sai do transe ao ver que as duas garotas de antes, agora, estão ainda mais
perto da nossa mesa.
— Puta merda. — explode, empurrando o cabelo para trás com a ajuda
de uma mão. — Eu odeio esse colégio com todas as minhas forças e não faz
nem mesmo um dia que coloquei os pés nele.
Dou de ombros, bebericando minha água.
— Bem-vinda ao clube. — digo em tom de incentivo, lançando uma
piscadela em sua direção e fazendo-a estremecer com raiva.
— É oficial. Eu vou voltar para Los Angeles no segundo em que sair
desse maldito treino.
Summer não tarda a sumir do nosso campo de visão.
— Vamos morrer. — murmura Blake. — Ela vai nos matar quando
souber.
Balanço uma mão em descaso.
— Bobagem. — desdenho. — Estará ocupada demais tentando não cair
por ele. Ou matá-lo.
Leo semicerra os olhos com malícia, voltando a atenção para o nosso
diálogo.
— Me parece que minha bela amiga precisará de uma festa depois
desse primeiro dia de treino? — sugere, não se importando com o que quer
que tenhamos feito.
De repente, para o nosso horror, ele fica de pé no assento que ocupava
e grita, usando as mãos de concha ao redor da boca.
— Bonjour, mesdames et messieurs, é um prazer ser o mais novo
integrante do Golden Elite College. Meu nome é Leon Ballister, mas podem
me chamar de Leo. — informa, arrancando alguns suspiros. — Sem mais
delongas, é com enorme satisfação que eu vos convido para a primeira de
muitas das minhas festas. — ele sorri, fazendo um coro de assobios e
aplausos ecoarem pelo local fervorosamente. — Desse modo, por favor,
venham até mim para que eu possa lhes passar meu humilde endereço, e
claro, meu digníssimo telefone.
Ao ver a multidão assustadora que se aproxima, Blake e eu nos
levantamos ao mesmo tempo, saltando para o lado.
— Vejo vocês depois! — Ballister exclama, sendo engolido por
dezenas de corpos em seguida.
— Vai ser um longo ano. — minha irmã declara.
Como se para enfatizar, meus olhos, reféns de um magnetismo
perpétuo, encontram os de McAllister na outra extremidade do refeitório.
Ele está com alguns dos atletas do time de hóquei, braços cruzados
sobre o peito e uma carranca arrogante cobrindo o rosto dolorosamente
bonito. Sua atenção focada em mim envia uma onda de alerta por todo o meu
corpo, espalhando-se em meu sangue e fazendo-o ferver em uma resposta
silenciosa. Apesar da frieza mortal que o verde sem vida de suas íris emana,
eu não ouso quebrar o contato visual. Pelo contrário, encaro sua fisionomia
até que seja ele a desviar o olhar. E Drogo o faz. O foco do canalha vai para o
lado oposto como se eu não valesse seu tempo.
Eu não irei permitir que ele faça o que bem quer.
Drogo deseja minha ruína? Bem, vou fazê-lo se curvar antes mesmo
que ele saiba o que o atingiu.
Posso parecer metade de uma garota nesse momento, entretanto, sou
resiliente. Aprendi ao longo dos últimos anos que se me destruírem, eu
voltarei dez vezes mais forte. Ele não possui a mínima noção disso, mas vou
fazê-lo ter.
— Sem dúvidas, irmãzinha. — concordo, passando um braço ao redor
do ombro de Blake e puxando-a para perto. — Sem dúvidas.

Por ter emprestado meu carro à minha irmã, pois ela precisou fazer um
trabalho na casa de uma colega de sala, tenho que recorrer a um Uber. Busco
meu celular dentro da bolsa para chamar um, enquanto passo próximo à pista
de atletismo. Há uma grade de proteção que separa onde eu estou da trilha.
Paro abruptamente ao localizar com o canto do olho uma figura loira que
avança com agressividade até mim, fazendo seu percurso na minha direção
como um tornado.
— Oh, droga. — praguejo, temendo que as grades finas de aço não
sejam suficientes para me proteger de Summer Gautier.
— Você! — ela ladra ensandecida, apontando um indicador para mim.
Sua expressão é assassina e seu colo suado sobe e desce, expondo o quão
ofegante a garota está. — Brooke Andreotti, sua víbora com aparência
angelical, eu vou matá-la, porra!
Pisco com inocência, recorrendo a uma postura passiva.
— O que eu fiz?
A pergunta desperta ainda mais sua fúria latente, mas não permito que
minha máscara escorregue. Mantenho-me fixa em seu rosto ruborizado.
Summer está usando um short minúsculo de ginástica — o qual eu
tenho plena certeza que vai contra todas as regras de vestimenta de qualquer
instituição escolar no mundo — e um top justo, ambas as peças são pretas.
Seu longo cabelo selvagem está preso em um rabo de cavalo no topo de
sua cabeça e não há vestígios de maquiagem adornando sua face úmida.
— Você sabe exatamente o que fez! — acusa, sua fúria vacilando por
um instante.
Ela parece inquieta, de repente, quase desconfortável. Franzo o cenho,
começando a me preocupar.
— Você está se sentindo mal? — eu a sondo, inclinando-me para
frente.
Seus dedos longos e bronzeados agarram as brechas circulares da
grade.
— Estou fodida. — sussurra, mais para si mesma do que para mim.
Abro a boca, paralisando ao escutar um grito tão feroz que é similar a
um rugido. Meus olhos arregalam e os de Summer se fecham com pesar. Em
seguida, ela solta um pequeno gemido sôfrego.
— Barbie surfista! — a voz feroz do treinador se faz presente. — Traga
seu traseiro californiano de volta para a pista. Agora!
— Esqueça o que eu disse, está bem? — sugere. — Prometo não a
matar se você me salvar desse filho da mãe diabólico.
Mordo o lábio inferior em um pedido de desculpas silencioso.
— Andreotti...
— Sinto muito, querida. — suspiro. — Ninguém pode salvá-la de
Sawyer Vaughn.
— Vou contar até dois, Gautier! — ele rosna, o timbre grave ficando
tenebrosamente mais perto e furioso.
Summer choraminga, mas no mesmo instante está correndo de volta
para a pista. Mesmo sozinha, eu não faço menção de sair de onde estou.
Continuo com os olhos voltados para onde os dois estão conversando.
Corrigindo: se atacando verbalmente.
Ele está de frente para mim, então aproveito para inspecioná-lo sem
muito pudor. Podem dizer qualquer coisa sobre sua personalidade explosiva,
mas ninguém poderia ser capaz de ocultar o fato de que ele é absurdamente
sexy. O treinador coloca as duas mãos gigantes nos quadris estreitos, a calça
azul-marinho em seu corpo o deixa ainda mais gostoso. Seus olhos azuis são
como dois cubos de gelo e seu cabelo preto, hoje está coberto por um boné da
mesma cor do uniforme que ele usa, formando uma sombra na frente de seu
rosto. Percebo o modo como seu olhar se volta para Summer ao passo que
ambos parecem se desentender sobre alguma coisa. Ele está irritado, mas há
algo mais em sua postura. Algo que eu jamais o vi direcionar a qualquer outra
estudante ou funcionária do Golden. Me perco nessa constatação, ficando
alheia ao meu redor e os assistindo sumirem da minha vista.
É quando ouço a voz que sempre consegue me fazer ter o desejo de
vomitar tudo o que ingeri. Eu fico em alerta, meus membros tensionam de
imediato e eu giro a cabeça, dando de cara com o diretor.
— O que foi, linda? Por acaso viu um bicho?
Os pelos da minha nuca se arrepiam com aversão, preciso engolir e
prender o fôlego para não regurgitar o que comi no almoço.
— Quase isso.
Sua faceta cruel se fecha com desgosto evidente ao som da minha
resposta.
— Me acompanhe. — ordena. — E não me faça repetir. Do contrário,
irei tampar sua boca e arrastá-la pelos cabelos.
— Faça. — delibero, ódio sobrecarregando meu tom. — E eu gritarei
antes mesmo que você erga os dedos para me tocar.
Eric bufa um sorriso nasalado. Nada além de raiva borbulhando de sua
postura falsamente refinada. Ele é nojento.
— Está me desafiando, Brooke?
Não queria ter que recorrer a essa cartada, mas eu devo. Embora Drogo
não seja meu salvador, ele não permitiria que Carson fizesse mal a mim.
Portanto, preciso usar sua figura em prol da minha segurança. Pelo
menos neste momento.
— Estou dizendo o que vai acontecer se encostar em mim. — aviso. —
McAllister está em algum lugar desse colégio, e é meu guardião legal agora.
Não sei se você notou, mas Drogo não é bem um fã seu. Além do mais, ele
viu o que ocorreu ontem. Você me bateu. Está na mira dele. Quer mesmo
arriscar?
Meu coração está martelando contra a caixa torácica quando finalizo,
bebendo com louvor a maneira como a feição de Eric distorce em choque e
repulsa ao escutar minhas palavras. Ou melhor, minha ameaça implícita.
Quero sorrir vitoriosa, mas me abstenho. Não seria bom cutucar o monstro
sob sua pele com uma vara tão curta. Já deixei claro o bastante para ele, é
hora de recuar e deixá-lo se enforcar com a corda que amarrei ao redor de seu
pescoço.
— Não vai ser bonito quando eu colocar minhas mãos em você,
Brooke. — murmura com um sorriso que o deixa parecer que está me
contando uma piada inocente.
— O que o faz pressupor que o fará?
Suas veias das têmporas dilatam e Carson fica quase um minuto inteiro
quieto.
— Me aguarde. — cospe, dá as costas e se move para longe,
desaparecendo na direção da entrada do colégio.
Um arrepio grosseiro percorre minha espinha e eu solto a respiração
com força, sentindo as pernas oscilarem. Minhas palmas das mãos estão frias
e suadas pelo terror enraizado em meu âmago. Mesmo com todo o
desconforto, me obrigo a erguer a cabeça e enfrentar a realidade. Não escapei
de Eric. Este é somente um curto intervalo de tempo em que o tirei do meu
radar.
Ergo o braço e o apoio contra a grade de proteção, pressionando o rosto
nos ferros com o intuito de me acalmar.
— Sentindo-se mal?
Eu pulo ao som da voz de Drogo surgindo atrás de mim. Não me viro,
permanecendo de costas para ele. Sua presença me asfixiando.
A necessidade de chorar se apodera do meu peito e faz minha garganta
se fechar com um nó sufocante. Exausta demais para dar início a um diálogo
agressivo, eu olho para o céu nublado e inalo o ar frio, enchendo meus
pulmões que estão comprimidos no momento. Tudo o que eu queria era sumir
da Inglaterra. De repente, a possibilidade de ser engolida por um buraco não
me parece tão ruim assim.
Suspiro.
— O que você quer, McAllister?
— Estou verificando.
— Se eu estou mal o suficiente para que você se delicie com o meu
tormento? — antecedo. — A resposta é não. Estou zonza porque estava
sentada e me levantei muito rápido.
Ouço sua respiração pesada, o hálito quente contrastando com a baixa
temperatura do lugar.
— Decidi que estou indo dormir em casa hoje. — ele avisa, soando
entediado.
— Como?
— Você ouviu.
— Você pode ter uma casa para si mesmo. Morando conosco irá
invadir nossa privacidade. — argumento, virando-me para fitá-lo.
Este é um ponto válido, por esse motivo estou recorrendo a ele. Ainda
que nós tenhamos nos conhecido na infância e a amizade que
compartilhávamos houvesse perdurado até a adolescência, não é como se
continuássemos próximos a ponto de dividirmos uma residência.
Mesmo que seja uma mansão, será impossível não esbarrar com ele em
alguma hora do dia.
— Eu tenho. Um trailer. Certamente ele não possui um terço do
tamanho do seu quarto, mas eu gosto. O ponto, Brooke, é que estou enjoado
de viver nele e não pretendo morar sozinho por um bom tempo. Não quando
você ainda é menor de idade e precisa ter uma presença mais adulta no
mesmo lugar em que reside. — contra-ataca.
Empertigo-me.
— Não quero você lá.
— Eu não dou a mínima.
Não rebato. Minhas narinas dilatam durante o tempo que nos
encaramos sem recuar. Nenhum de nós diz qualquer coisa após sua
declaração.
Apesar do impasse silencioso e tórrido que dividimos, não perco a
maneira como seu olhar recai para meus lábios. O gesto desaparece tão
rápido quanto surgiu, pois alguém o chama. Noto que se trata de um dos
jogadores do time de hóquei. Eu não sei o que acabou de ocorrer em sua
postura, porém, o que quer que tenha sido não o agradou nem um pouco. Me
atenho a esse sinal quase imperceptível e guardo-o para mim mesma, fazendo
uma nota mental de que talvez eu continue tendo um certo poder sobre ele
mesmo após o que aconteceu naquele dia.
Ou pode ser apenas um tipo de peça que meu cérebro cansado esteja
pregando. Contudo, eu me agarro a ideia.
Despertando do transe com raiva, Drogo regride um passo e olha por
cima do ombro.
— Estou indo. — responde, voltando a me encarar logo em seguida. —
Vejo você no jantar.
Lambendo os lábios, ele se vira e segue o percurso que vai direto ao
outro atleta.
Somente quando os dois se vão, eu me permito encostar a cabeça contra
a grade de proteção e respirar normalmente.
— Não tem como esse dia ficar pior. — sussurro, esfregando o rosto.
Decido sair de onde estou antes que algo mais exploda na minha face.
Pego meu celular para verificar a hora ao mesmo tempo em que o visor
se ilumina com uma mensagem de Blake. Pressiono a notificação para ler o
curto texto sem desbloquear a tela.
Minha irmã diz que não pegou meu carro, pois decidiu ir com sua
colega de classe no veículo dela. Também cita que tentou entrar em contato
comigo por ligação para avisar, mas eu não atendi. Rolo a tela para cima e
percebo que realmente há duas chamadas perdidas. Faço os cálculos e
constato que deve ter sido quando Eric apareceu para me intimidar.
Eu ligo para Blake, ouvindo sua voz do outro lado da linha no terceiro
toque.
— Ei, por que não me disse antes de ir embora? — reclamo antes que
ela seja capaz de dizer alguma coisa.
— Eu tentei? — escuto-a bufar. — Mas você às vezes é como a droga
do Mestre dos Magos.
Reviro os olhos, suspirando ao andar em direção ao estacionamento
subterrâneo.
— Precisei falar com a Srta. Ramirez na biblioteca. — explico. —
Achei que demoraria menos de cinco minutos, não pensei que teria de ouvir
sua história sobre o bebê que a filha dela acabou de dar à luz.
— Oh, que saco. — minha irmã ri. — A mulher sempre nos pega de
jeito com essas coisas quando precisamos devolver um livro.
— Sim. Enfim, como está o projeto?
Um barulho similar a um farfalhar de vestido se faz presente.
— É um problema. — cochicha mal-humorada. — Alice só fica
navegando no Instagram, procurando o perfil do tal DeLuca.
— Ele possui um?
— Não. Quer dizer, a menos que seja com outro nome, não, não possui.
— Matteo não tem cara de quem curte redes sociais. — divago, tirando
as chaves reservas de dentro da bolsa.
— Eu concordo. Em contrapartida, ela parece não captar essa questão.
Certo, ele é um gato, mas sinistro na mesma intensidade.
— Com base nas suas paixões de filmes e séries, achei que esse fosse
exatamente seu tipo.
Mais uma risada ressoa dela.
— E você está certa. Em um futuro não muito distante, talvez. Estou de
olho no Ballister. — confessa.
— Blake...
— O quê? Estou sendo honesta. — rebate divertida. — Bem, tenho que
ir agora. Vejo você na hora do jantar.
— Se precisar de algo, me ligue, está bem?
Desde que a nossa mãe morreu há alguns anos, eu desempenho um
certo papel materno na vida da minha irmã. Não apenas por termos somente
uma à outra nesse mundo, mas porque sinto essa necessidade na maior parte
do tempo. Para ser honesta, é uma questão automática, quase natural.
— Certo. Eu te amo, Bee.
— Eu também amo você. — respondo, desligando após dizer essas
palavras.
Me apresso ao ver que estou sozinha no local. A maioria dos estudantes
já se foram, somente os atletas continuam no colégio por causa de seus
treinos, pois em breve haverá o início das Olimpíadas Escolares de Inverno.
Além deles, com certeza estão os líderes das salas, pois costumam ficar até
mais tarde também. Chego ao meu carro. Pressionando meu polegar na
digital, abro a porta e jogo minha bolsa no banco do carona. Me preparo para
me sentar, suspirando com exaustão. De repente, uma das luzes do
estacionamento apaga, assustando-me. O mesmo silêncio envolve o
ambiente, contudo, posso captar no ar que houve uma mudança considerável
em determinado aspecto.
— Peguei você, vadia.
Uma mão firme agarra meu cabelo e me puxa para o exterior. Solto um
grito estrangulado ao ser arrastada e erguida. Meu corpo colide contra a
lataria e eu arregalo os olhos, atordoada. Por instinto, levo meus dedos até o
local do aperto, tentando me libertar e falhando miseravelmente no processo.
Angústia me consome assim que ouço um grunhido.
— Achou mesmo que escaparia tão fácil assim de mim?
Meus olhos colidem com os de Eric antes que eu os mova para cima,
procurando as câmeras.
— Esqueça. — vocifera, parecendo saber o que estou procurando. —
Foram desligadas. O que você pensa que eu sou, Brooke? Um amador?
O resquício de esperança que havia em meu interior desaparece ao som
de sua réplica venenosa, a necessidade de chorar me atinge mais uma vez.
Sou arrastada para o outro lado de onde meu carro está estacionado.
Nunca pensei que fosse amaldiçoá-lo, mas o faço. Por ser uma Range Rover,
o veículo é alto o bastante para nos camuflar. Penso em gritar, entretanto, sei
que ninguém ouviria. O estacionamento subterrâneo é longe de tudo e
dolorosamente abafado.
— Não me machuque. — imploro, minha voz falhando. — Por favor,
não me machuque.
Ele sopra uma risada que faz meu estômago dar um salto.
— Você gosta dos seus novos amigos californianos? — devolve,
ignorando meu apelo.
O medo se apodera do meu peito quando o pensamento de que Eric
possa feri-los nubla minha cabeça.
— Eles não são meus amigos. — sou rápida em dizer, mas não o
convenço.
Seus dedos agarram o cabelo da minha nuca com mais brutalidade
ainda, me deixando fraca e nauseada.
— Sua putinha mentirosa.
Ignoro seu tom ameaçador e giro o rosto, lutando para encará-lo.
Embora a dor seja excruciante por causa do movimento que vai contra a
posição que eu estou, consigo encará-lo. Eric deve ver a fúria em meus olhos,
pois os dele se arregalam em surpresa.
— Fique longe. —aviso.
— Senão o quê? Esqueceu que mesmo que eu não tenha mais sua
guarda legal, ainda possuo poder de fogo para foder sua vidinha de garota
rica? — ele se irrita, trazendo meu rosto para perto do seu. — Acabo com
você em dois tempos, Andreotti.
Meu sobrenome sai com uma potência de ódio corrosiva.
— Não, você não vai. Porque, por algum motivo doentio que
desconheço, você precisa de mim. Diga que não. — desafio.
Seus dentes rangem, indicando que estou certa em meu raciocínio.
Mesmo que eu não saiba o que há, não sou ingênua. Sou útil para Eric em
alguma coisa, é por essa razão que ele sempre me quebra, mas nunca a ponto
de me destruir de vez. E acredito que eu seja punida justamente por este
pretexto.
— Sua versão corajosa me deixa irritado, sabia?
Um grito estridente rasga minha garganta quando sua mão livre se
fecha e acerta minha costela esquerda com um soco. O ar escapa dos meus
pulmões com o golpe brutal. Estou a um passo de vomitar, mas ele desfaz o
aperto em minha nuca para agarrar meu queixo e me forçar a fechar a boca.
Engulo o sabor ácido com dificuldade, meus olhos marejando por causa do
gosto.
— Eu não gosto dela. — sibila, sua saliva espirrando em minha face.
— E gosto menos ainda de seus novos amigos. Mas sabe quem realmente me
deixa enlouquecido quando está perto de você?
Sua mão segura meu maxilar com extrema violência. Por um momento,
chego a pensar que minha mandíbula irá deslocar.
Meu corpo estremece e eu me obrigo a balançar a cabeça em negação
ao saber que Eric espera uma resposta.
— Drogo McAllister. — sua ira transborda como lava. — E você sabe
por que me enfurece tanto, Brooke?
A carne no interior das minhas bochechas lateja quando o aperto se
torna mais intenso, fazendo-as rasparem contra minha arcada dentária.
Mais uma vez, eu nego.
— Porque nenhum irmão deveria olhar para uma irmã do jeito que ele a
olha.
Meus batimentos aceleram com suas palavras, parecendo errar algumas
batidas, mas a realidade volta a me atingir velozmente quando Eric continua:
— Você é minha marionete e eu não quero ninguém mexendo nas suas
cordas além de mim. — declara. — Sabe qual é o maior erro dos jovens de
hoje em dia? Achar que podem escapar de seu inferno particular quando bem
entenderem. Não é assim que funciona. Você errou se chegou a pensar, por
um maldito segundo, que ficaria livre de mim. No fundo, nós dois sabemos,
linda, que essa merda só vai ser possível quando eu estiver morto.
Tento me esquivar, lutando para escapar de suas garras, mas Eric agarra
o topo da minha cabeça, batendo-a na lataria da Range Rover. O impacto me
deixa atordoada por um minuto inteiro, tornando meu ponto de lucidez lento.
Minha visão borra e eu pisco para afastar as lágrimas que se formam por
causa da dor.
— Fique quieta, sua puta! — ordena, fora de si. — O que você quer?
Que eu a machuque? Quer sangue deslizando pelas suas pernas e manchando
suas preciosas cicatrizes?
Meus joelhos vacilam ao passo que minha mente rebobina memórias do
passado, mais precisamente quatro anos. Sinto o estômago embrulhar, o
reflexo de vômito se hospedando em meu paladar. No entanto, não é medo
que se apodera das minhas entranhas, é ódio. Puro e flamejante.
Permito que meus membros amoleçam, deixando brecha para que
Carson sugira que estou perdendo a consciência.
Ele afrouxa o aperto que tem sobre meu queixo para me manter de pé,
evidentemente transtornado pela situação. Quando se contorce para me
sustentar, eu estico os dedos e acerto a lateral de seu rosto ossudo com
minhas unhas. A pele é arranhada e logo o sangue quente surge nas fissuras
superficiais.
— Desgraçada! — ruge, cambaleando para longe e pressionando o
ferimento. — Sua vadia do caralho!
Não espero que outra ofensa role para fora de sua boca imunda antes de
entrar em alerta e me mover em disparada.
Com um estalo de voz maníaco, Eric corre atrás de mim.
Diversos carros continuam espalhados pelo estacionamento pouco-
iluminado, e eu aproveito para colocar esse ponto a meu favor, me
misturando entre os veículos com o intuito de sair do radar. Minhas pernas
formigam pelo esforço da corrida inesperada e meu coração galopa em um
ritmo frenético. Parar de correr está fora de cogitação, então tudo o que eu
faço é lutar para manter a velocidade que adotei para escapar dele. Percebo
que Eric não está mais tão perto de me alcançar, sou mais ágil e veloz.
Aproveito para me curvar na lateral de uma BMW vermelha, camuflando
minha presença. Pressiono as palmas das mãos no aço e observo através da
janela fechada, morrendo para controlar minha respiração e manter a cabeça
em uma altura que me faça ver, mas não ser vista. Capto quando Eric para de
correr, exausto, e busca ao redor.
— Vamos lá, Brooke. — ele ri, o barulho saindo seco. — Pare de se
esconder e eu posso ser um pouco mais bondoso com a sua punição.
O desejo de perder um braço é mais cativante do que acreditar em sua
falsa promessa. Não sou mais a mesma garotinha que confiava em cada
palavra dita pelo diretor refinado. Posso ter que voltar a enfrentá-lo e não
obter uma escapatória como essa, porém, ceder agora não é uma opção.
Voltando a me abaixar, trabalho meu raciocínio para buscar uma saída
que o faça se afastar ainda mais de onde estou. Preciso distraí-lo.
Mordendo o lábio inferior, esfrego o rosto. É simplesmente horrível
tomar uma decisão quando se está encurralada. Ao abrir os olhos, minha
atenção é desviada para o meu pulso pálido quando fito o dourado da pulseira
que estou usando. Sem pensar duas vezes, destranco o pequeno fecho, as
pontas dos meus dedos escorregam várias vezes por causa da umidade
impregnada neles. Na quinta ou sexta tentativa, consigo desprendê-la.
— Apareça, Brooke. Vamos conversar como seres decentes e nos
acertar. — sugere por entre os dentes cerrados. — Eu me exaltei um pouco.
Ele fica de costas. Eu fecho o punho e estico o braço, arremessando o
objeto na direção oposta a que me encontro o mais distante possível. O ruído
o faz entrar em alerta e correr no mesmo segundo para onde o barulho vem.
Tenho certeza de que atingi um carro ou pilar, mas não me importo.
Deitando-me no chão frio e sujo, rolo para debaixo da BMW. Os espaços que
separam os automóveis são curtos, permitindo que eu deslize sem muita
dificuldade de um para o outro. Faço o mesmo movimento vezes o bastante
para que meus cotovelos e joelhos fiquem superficialmente ralados. Não
permito que a ardência me impeça de continuar. Carson volta a se aproximar
de onde estou ao perceber que o estalo não foi nada relevante, o que me deixa
aflita ao vê-lo tão perto. Posso enxergar seus sapatos caros brilhando em
plena exibição. Reúno o máximo de oxigênio que consigo e prendo o fôlego
para não emitir qualquer ruído que chame sua atenção. Um filete de suor
escorre pelo vão dos meus seios e eu me preparo para ser encontrada por ele.
Me preparo para o pesadelo. Contudo, seu celular toca, fazendo-o se
concentrar no aparelho. Com um grunhido, escuto ele atender. Quem quer
que seja, ou o que quer que tenha ocorrido, consegue roubar seu foco sem
muito esforço. Resmungando um “tudo bem, estou chegando” Eric
finalmente se vai. Ouço seus passos se tornando mais e mais longínquos,
indicando seu distanciamento.
Puro alívio inunda meu peito quando constato que estou sozinha e
posso respirar sem restrições. Todo o ar abafado e rarefeito de antes se
dissipa como se fosse embora junto a ele. Piscando para afastar as lágrimas,
eu rolo para o lado e me sento. A pior parte de tudo é o cansaço físico e
mental, estou esgotada, incapaz de encontrar forças para me reerguer ou de
pensar com clareza. Meu fantasma interior escolhe sair para mexer minhas
cordas nesse momento. No modo automático, empurro minhas meias para
que ambas fiquem abaixo dos meus joelhos e uso minhas próprias unhas para
ferir a pele adornada pelas diversas cicatrizes que eu carrego. A dor não me
desperta, apenas me faz mergulhar ainda mais profundamente em meu
tormento. Me deixa ciente da minha realidade: não há uma saída para mim.
Essa é a verdade que eu me recuso a enfrentar.
Estou perdida.
Estou morrendo.
MECANISMO DE DEFESA

“Está tão quieto aqui


E eu me sinto tão fria”
— So Cold | Ben Cocks

MEU CORPO PARECE TER O PESO de uma rocha quando


sinto-me ser sacudida por alguém.
— Levante-se. — uma voz baixa e elegante, porém firme, preenche o
ambiente, me obrigando a abrir os olhos.
É quando vejo as manchas endurecidas de sangue marcando minhas
pernas e unhas que meu coração cai em queda livre.
Eu perdi o controle e me feri em um local público. Agora, meu show de
horrores está em plena exibição.
Oh, Deus. O que eu fiz?
Devagar, ergo a cabeça, temendo quem seja a pessoa diante de mim.
Um par de íris com um azul tão dolorosamente claro estão fixas na minha
face. A pele pálida, por um segundo, desvia minha atenção de toda a
catástrofe e me faz pensar que é semelhante à de um vampiro. Embora não
seja um rosto familiar, eu sei perfeitamente quem é.
— Leona. — sopro seu nome. Em um movimento rápido e
desesperado, puxo minhas meias para cima, sufocando a dor que me atinge
quando o tecido esbarra nos cortes. — Não é...
— O que estou pensando? — completa calmamente, e estende a mão
para mim. — Mecanismo de defesa.
Com cautela, coloco minha mão na sua e me impulsiono para cima.
Estou pensando na maneira como ela parece compreender a situação sem
deixar brechas para um julgamento quando as mangas justas de seu uniforme
sobem um pouco e eu enxergo diversas cicatrizes adornando a pele de seu
pulso fino. A imagem faz minha respiração falhar e não consigo esconder
meu choque por ver o que vejo.
Linhas finas e irregulares, como se ela as tivesse feito com pressa. Não
são profundas, reparo. E todas estão completamente cicatrizadas.
Desvio o olhar para o lado, envergonhada, ao perceber que Leona me
flagrou observando-a.
— Desculpe.
— Está tudo bem. — garante, ainda com um aspecto neutro. — Os
garotos do time de hóquei e de futebol estão vindo para o estacionamento.
A informação me faz ficar nervosa, e tenho certeza de que ela nota
minha aflição, pois abre a bolsa preta que carrega e procura por algo em seu
interior. Toda minha estrutura está dolorida e a ardência dos ferimentos
recentes contribui para que seja ainda pior. Não consigo raciocinar.
Cansada, escoro-me em um dos carros, vagueando meu foco por cima
dele. Como se o destino realmente houvesse tirado o dia para testar minha
capacidade de resistência, Drogo cruza o pátio superior e se coloca entre os
diversos atletas que caminham na nossa direção.
— Entre. — ouço Leona dizer, apontando na direção da Bugatti preta
estacionada do lado oposto ao que estamos.
Nenhum protesto escapa da minha boca ressecada, eu apenas me movo
o mais rápido que consigo. Abrindo a porta do passageiro, afundo no banco
de couro. A parte de dentro do automóvel é tão organizado e limpo que o faz
parecer ter saído da loja neste exato instante. O aroma de perfume caro
embebeda o interior e dança em meu olfato, enviando-me a calma que preciso
agora. Apesar de não conhecer nem mesmo um terço da garota do lado de
fora, por alguma razão eu acredito que não serei prejudicada por ela. Em
geral, costumo desconfiar de tudo e todos porque, a meu ver, as pessoas não
são capazes de serem boas comigo. Não sem uma intenção por trás. Com
Leona, porém, o instinto que costuma me fazer repelir quem me cerca se
mantém desligado. Então, eu não me forço a mudar esse aspecto. Olhando
pela janela fechada, eu franzo o cenho. Ela destampa uma pequena
embalagem que parece conter tinta vermelha dentro. Em seguida, começa a
jogar o líquido no chão. No lugar onde... Finco as unhas no assento à medida
que meu coração aperta com um sentimento desconhecido quando percebo
que Leona está encobrindo os rastros de sangue que eu deixei por causa dos
cortes. Um sentimento desconhecido se apodera do meu peito, aquecendo-o,
e constato que não poderiam existir palavras que eu pudesse usar para
agradecê-la. Ninguém, além da minha irmã, foi gentil comigo dessa forma.
Ninguém olhou para mim e realmente me enxergou.
Novas lágrimas fazem meus olhos arderem. Cansada de lutar contra
sempre que elas surgem, permito que rolem em liberdade pelas maçãs do meu
rosto. As vozes animadas dos atletas se misturam ao ar, indicando que eles
estão ainda mais perto do que antes, mas Leona já está abrindo a porta do
motorista e entrando. Me surpreendendo, ela estica o braço e abre o cofre do
carro, pegando um pacote com ataduras. Desenrolando-as ao rasgar o pacote.
— Afaste as meias. — ordena. — E eleve um pouco as pernas. Uma de
cada vez.
Como se eu fosse simplesmente incapaz de recusar, deslizo com
cuidado o tecido fino, emitindo um ruído baixo de dor quando sinto-as raspar
novamente nas feridas, e faço o que ela manda.
Com uma destreza surpreendente, Leona envolve as ataduras ao redor
das minhas pernas, deixando mais folgado que o normal.
— Não colocamos nenhum remédio, por isso estou deixando menos
apertado. — avisa, como se pudesse ler meus pensamentos anteriores. — É
somente por precaução.
— Obrigada. — eu sussurro, assentindo. — E obrigada também pela
tinta.
Quero perguntar o motivo que a faz carregar um frasco com esse
conteúdo em sua bolsa, mas me abstenho.
— Não há de quê. Agora, coloque o cinto de segurança e me passe seu
endereço.
— Você não precisa me levar para casa.
Ela olha pelo retrovisor, manobrando o carro para fora da vaga.
— Você está certa. — concorda, deixando o estacionamento e
acelerando para os portões de saída do colégio. — Eu não sou sua amiga.
Entretanto, meus amigos parecem ter gostado de você. E isso é raro. Sabe,
Brooke, nós protegemos e ajudamos uns aos outros quando é preciso. Não
sou parecida com Summer ou meu primo, embora. Não vou agir como se
você fosse um filhote de leão e eu a mãe. Eles são bons nisso, eu não,
confesso. Mas diferente de ambos, sei exatamente como você se sente. E não
estou falando somente das cicatrizes.
Mantendo a cabeça baixa, remexo nas pregas da minha saia suja de
poeira e sangue ressecado.
— Estou perdida. — confesso, soltando um suspiro. — É como se eu
estivesse me afogando mais e mais todos os dias. E ninguém percebe.
Seus dedos apertam o volante, afrouxando logo depois. Silêncio
engloba o carro, e mesmo que não seja desconfortável, me pergunto se falei
demais. Isto é, até que a voz aveludada de Leona volta a se fazer presente:
— Às vezes, as pessoas que nos cercam não são capazes de perceber a
tristeza que gravita ao nosso redor. — o que ela diz arranha minha superfície,
me penetrando gradativamente. — E tudo porque somos ótimos mentirosos.
Mentimos quando estamos tristes e forçamos um sorriso. Mentimos ao dizer
um “sim, estou bem” porque, na maior parte do tempo, não estamos. Mas
mentir é o que fazemos de melhor, Brooke, por isso ninguém percebe. Porque
estamos constantemente nos afogando em um mar de mentiras criado por nós
mesmos como um meio de nos defender do que desconhecemos.
Cada mínima sílaba que deixa seus lábios é como um tapa forte e cru,
contudo, necessário. Não entendo como uma pessoa tão jovem como ela pode
dizer coisas como essas. Reflito sobre o que acabo de ouvir, sentindo o nó
formado em minha garganta antes começar a desatar.
— Parece que você está em um inferno, mas não é verdade. Assim
como eu, você está em alto-mar. Apenas não se permita submergir.
— E como faço isso?
— Continue nadando até chegar à praia, querida. Porque a vista, depois
disso, será a mais bela de todas.

Alguns dias se passaram desde o que houve no estacionamento.


Por motivos que desconheço, Eric não me encurralou em outros lugares
ou sequer tentou se aproximar de mim. Claro que isso poderia ser um sinal
positivo, mas está longe de ser. Conhecendo-o como eu conheço, sei que
quanto mais silencioso ele se mantém, piores são as coisas que planeja
executar. Essa é a razão que me faz não baixar a guarda nem mesmo por uma
fração de segundos. Meu pensamento é sugado para a imagem de Leona em
minha casa. Eu jamais pensei que ela, a que parecia ser a mais fria e distante
do grupo, seria justamente a primeira pessoa daquele colégio a me ver
quebrar. Lembro-me com clareza de assisti-la despejar várias bolsas de gelo,
as quais ela comprou no meio do trajeto, dentro da minha banheira e depois
ligar a torneira, mandando-me entrar. A ideia de ser engolida por todo aquele
frio desumano me deixou aterrorizada. Porém, ainda que inúmeros sinais de
alerta piscassem em meu cérebro, fiz o que ela ordenou. Não tirei o uniforme,
entrei como estava.
E, Deus, foi insuportável.
Tentei sair quando senti meus ossos congelando, lutei para escapar,
mas fui segurada. Não que ela estivesse tentando me afogar ou me ferir. No
fim, pude entender o que eu deveria tirar de lição, e a agradeci por me
mostrar. O frio dissipou toda a dor que controlava meu corpo, deixando-me
dormente, quase como se eu estivesse flutuando. Não foi uma tarefa fácil ter
que suportar, todavia, valeu a pena. Em nenhum momento houve curiosidade
ou receio de sua parte. Ela só permaneceu ao meu lado todo o tempo.
Leona apenas... ficou comigo.
Por longos minutos, eu me vi dependendo de alguém que eu mal
conhecia e que demonstrava ter construído um castelo de gelo quase
indestrutível à sua volta, mas que mesmo assim não se negou a me mostrar
um lado seu cru e verdadeiro.
“Somos parecidas, Brooke. Duas almas ingênuas que tiveram que
conhecer o lado feio da vida muito cedo.”
Suas últimas palavras dirigidas a mim antes de ir embora ainda
continuam dançando em minha cabeça como uma melodia impossível de ser
esquecida. Desde então, há somente trocas de olhares fora da sala de aula. É
reconfortante saber que ela não contou nada a ninguém.
Drogo, por outro lado, está mais perto do que nunca.
Ele decidiu realmente morar conosco mais ou menos cinco dias atrás.
Apesar de estarmos dividindo o mesmo teto, eu só o vi duas vezes aqui. O
cretino fica mais fora de casa do que dentro dela, isso sem contar o fato de
que me evita como se eu fosse uma praga.
— Deus, como eu o odeio. — divago baixinho.
— Bom dia! — Blake cumprimenta, entrando na cozinha com um
sorriso brilhante em seu rosto maquiado.
Minha irmã anda muito animada ultimamente. Para ser específica,
desde a festa que Leo Ballister deu— a qual eu não compareci e ele ficou um
dia inteiro sem falar comigo — seu ânimo anda nas alturas.
— Bom dia. Quer suco?
— Qual sabor?
— Morango.
— Oh, sim, por favor. — geme, jogando os braços ao redor do meu
pescoço e beijando minha bochecha. — Com dois cubos de gelo.
Reviro os olhos.
— Folgada.
Ela trota pela cozinha, abrindo o pote de biscoitos amanteigados em
cima da mesa e pescando um.
— Você vai hoje, não vai? — questiona, a pergunta saindo desconexa.
— Não fale de boca cheia. — repreendo. — E, sim, eu vou. Foi o que
eu disse, certo?
— Mesmo?
Blake disse que eu ando fora de órbita e que não está gostando nada,
nada disso. Eu sempre consegui me esquivar quando ela começava com esse
assunto, porém, parece que não estou conseguindo atuar tão bem como antes.
Para não deixar nada transparecer, disse que aceitaria ir à festa anual de St.
Richard's Day que ocorre em uma cidade vizinha ao ser chamada por ela.
Prometi que agiria como uma adolescente normal e tentaria me divertir.
Infelizmente, Ballister é o rei das festas e já deixou claro que alugaria uma
casa — que eu acredito ser uma mansão — com vista para o lago. Para minha
consternação, ele agora faz parte da equipe de atletas que dominam o Golden
Elite College, o que inclui Drogo — atual capitão do time de hóquei — na
festa de hoje à noite. E nas que virão, obviamente. Não faço ideia de como
ele conseguiu esse posto tão rápido. De qualquer modo, não dou a mínima
para suas conquistas ou o que quer que diga respeito a ele.
— Brooke?
— Eu vou. — reitero. — Dei minha palavra.
Minha irmã emite um suspiro profundo, aproximando-se devagar.
— Eu só quero que você saia dessa bolha. — murmura. — Você é
minha irmã. Ainda que oculte certas coisas de mim, eu sinto quando há algo
de errado com você, Brooke. E, bem, estou sentindo isso há um bom tempo.
Dou de ombros, exibindo um sorriso fraco.
— É coisa de gêmeas.
— Não, não é. E você sabe. — Blake bufa após esperar que eu volte a
desligar o liquidificador. — Ouça, organize tudo que você precisa levar e
esteja pronta antes das 17h00, está bem? Vamos voltar no domingo, depois
do almoço. Leo já comprou a casa no lago.
Paro de encher nossos copos com o suco e encaro-a, boquiaberta.
— Espera aí. — eu quase engasgo. — Como assim “comprou”? Achei
que ele alugaria.
Ela quem dá de ombros agora.
— Não tente entendê-lo, irmãzinha. — aconselha, jogando os cubos de
gelo dentro do copo e se esgueirando para fora da cozinha sem outra palavra.
— Eu nunca o faria se fosse você.
Blake ri, subindo os degraus da escada e desaparecendo no andar de
cima.
Estou processando a informação quando escuto passos. Não há
necessidade de me virar para saber de quem se trata. Afinal, eu não posso ser
e minha irmã com certeza não manipula a habilidade de se teletransportar.
— A princesinha perfeita decidiu se juntar aos plebeus? — o tom
sarcástico de Drogo me dá nos nervos.
Giro a cabeça e o vejo de braços cruzados, apoiando o quadril contra o
batente da porta. Seu torso está livre de uma camiseta, tudo o que ele ostenta
no corpo com músculos bem distribuídos é uma calça jeans surrada.
Por que, em nome de Deus, ele nunca aparece feio? Suas sobrancelhas,
como de costume, estão unidas e voltadas para baixo, dando ao seu rosto a
impressão perpétua de raiva.
— Então, você está falando comigo? — dou um pequeno gole em meu
suco, provando o sabor doce do morango e ignorando-o.
— Por quê? Não posso?
— Não. — atiro de volta. — Não pode me ignorar e depois decidir,
magicamente, que quer dialogar comigo. Não funciona desse jeito.
Ele semicerra os olhos, contrariado, se movendo como um predador
que tem a intenção de estudar sua presa antes de colocar as garras para fora e
atacar. Se o canalha supõe que eu seja uma, lamentarei informar o quão
enganado seu pensamento ridículo está. Eu não recuo ou me abalo.
— Não quero um diálogo com você. — rebate, esfregando o maxilar.
— Não quero nada. Apenas senti vontade de falar e falei. Você não entendeu
ainda? Se eu quero, eu faço. Simples assim.
Nego com a cabeça, me forçando a sorrir de seu comentário
intimidador. Vamos entrar na mesma espiral de ataque de sempre. Ele não
cansa?
Descanso o copo na mesa novamente, encostando meu quadril na borda
e cruzando os braços acima dos seios.
— Não é simples assim. Não quando se trata de mim. Eu não sou um
maldito jogo. Portanto, você tem duas escolhas: ou fala comigo ou não fala.
Se acha que pode fazer o que bem entender, sugiro que pense melhor. Então,
pense de novo. E não faça.
Seu corpo se move para frente com uma destreza odiosa para alguém
do tamanho dele, quebrando a curta distância que nos separa, e invadindo
cada centímetro do meu espaço pessoal. Sem vacilar, corro minha atenção
para cima. Meus olhos colidem com o verde dos dele e eu os seguros sem
hesitar. Drogo levanta o indicador e prende uma mecha que escapa do meu
rabo de cavalo entre seus dedos.
— Perca a atitude, Brooke. Porque se você ao menos cogitar a ideia de
que pode falar assim comigo outra vez, vou fazê-la se arrepender.
Com um tapa forte, eu afasto sua mão e escapo de seu alcance. O
sorriso que contorna seus lábios faz meu sangue ferver.
O cômodo está silencioso e tenho certeza de que isso contribui para que
o miserável seja capaz de ouvir as batidas irregulares do meu coração.
Todavia, decido não dar munição a ele para ser usada contra mim. Arqueando
uma sobrancelha, eu sustento seu olhar intimidador.
— Não tenho medo de você, McAllister.
— Deveria, Andreotti. — avisa, deliberadamente dando um gole
generoso no meu suco. — Eu não tenho muitos princípios. O que é errado
para você, para mim não é porra nenhuma, meu amor. Sendo assim, não me
teste.
Drogo está prestes a se virar para deixar a cozinha, mas eu sou mais
rápida no quesito ação.
Agarrando o copo com firmeza, jogo o conteúdo direto no rosto dele.
Toda sua estrutura é banhada pelo tom rosa do morango. O líquido escorre
pelo seu torso quase em câmera lenta. De imediato, o canalha leva uma mão
grande até o local atingido, tirando o excesso.
— Brooke, você está fodida.
Sua feição é uma mistura entre choque e algo que não consigo
identificar enquanto seus membros vibram com ira quase palpável. Eu pisco
ao me dar conta do que acabo de fazer por puro impulso. Há um vermelho
gritante tomando sua face, e com certeza não é por causa da coloração do
suco. Constatando esse fato, eu largo o copo e recuo um passo com o intuito
de manter intacto o que resta da minha autopreservação.
Por um segundo, acho que vou ser capturada. Entretanto, Drogo se
desequilibra graças ao piso escorregadio e precisa se apoiar no balcão para
não cair ao tentar avançar como um pinscher raivoso. O barulho que suas
mãos propagam ao bater a borda de mármore é o estalo que eu preciso para
despertar do meu torpor momentâneo. Aproveitando o pequeno deslize que o
brutamontes comete, eu corro na direção oposta. Com um grito furioso, ouço-
o repetir enfaticamente:
— Você está fodida pra caralho, Brooke!
Alcanço o corrimão da escada, berrando de volta:
— Não tanto quanto você, seu saco de merda! — e praticamente voo
para o meu quarto, girando a chave na fechadura ao bater a porta.
Não tenho dúvidas de que o que eu fiz agora vai retornar para morder
meu traseiro mais cedo ou mais tarde. Mas quer saber? Que se dane.
Afasto o cabelo do rosto, remexendo minhas pernas. Estou inquieta
desde o que intitulei de Episódio do Suco hoje à tarde. Não tive nenhum sinal
de Drogo desde que o ataquei na cozinha.
E isso não é nada bom.
Eu suspiro, me distraindo com o crepitar do fogo diante de mim.
— Por que você, tipo, jamais tira as meias? — pergunta Summer, me
assustando, enquanto assa alguns marshmallows na fogueira.
Não desejando aprofundar o assunto, dou minha resposta genérica.
— Nunca gostei das minhas pernas e sempre gostei delas. — balanço
os ombros. — Juntei o agradável ao desagradável. Agora, não me vejo mais
sem elas. Independente da roupa que estou usando. É uma coisa minha, sabe?
Não é tudo mentira, para ser honesta. Desde a primeira vez que optei
por me cortar, decidi que nunca mais deixaria de usar algo para cobrir minhas
cicatrizes. As do uniforme e as meias-calças escuras que comprei com o
passar dos anos se tornaram minhas companheiras fiéis desde aquela noite.
Ainda existem pessoas que me olham como se eu fosse uma aberração. Bem,
deixei de me importar há muito tempo com suas opiniões sobre elas.
— Entendo. Quando eu era mais nova, não largava bonés. — divaga.
— Oh, e quanto aos biquínis?
— Eu não sei nadar. — confesso. — Então, não é como se fizesse
alguma diferença.
— E como você se bronzeia?
O horror em sua voz é cômico e faz qualquer tensão no ar ser dissipada
de imediato.
— Você não precisa nadar para se bronzear, Einstein.
— Você é uma coisinha estranha. — ela ri, esbarrando nossos ombros
ao ter seu galho com marshmallow roubado por mim.
Não há maldade em seu comentário, o que me faz não ter problema em
rir também.
— E você, Gautier, é uma dor no traseiro.
— Acredite quando eu digo que esse meu jeito é mais uma benção do
que uma maldição.
Gosto da companhia de Summer. É fácil esquecer dos problemas ao
iniciar uma conversa com ela, e não são muitos seres humanos que conheci
que têm essa capacidade. Sua personalidade é radiante.
Sopro o marshmallow, mordiscando-o com a ponta dos dentes. Virando
o lado, me preparo para dar uma mordida maior, sendo impedida de continuar
quando puxam o galho das minhas mãos. Leo se senta ao meu lado no tronco,
emitindo ruídos de prazer ao prová-lo. Eu assisto a cena com frustração
evidente torcendo o canto da minha boca com desgosto.
— Eu acabei de roubar isso. — protesto rabugenta.
Ele me lança uma piscadela sacana e praticamente engole o doce
inteiro.
— Desculpe, Bee-Bee.
— Afinal, que horas a festa vai começar? — indaga Summer.
— Faltam dez minutos. — informo, ganhando um gemido de frustração
de ambos.
— Por que não iniciam de uma vez? Quero dizer, o mundo pode acabar
em dez minutos. Caramba, ele pode acabar agora, neste exato segundo.
— Deixe de ser um bebê chorão. — Summer revira os olhos. —
Encontre alguma garota ou garoto para molhar seu biscoitinho por enquanto.
Leo estende as pernas e joga uma por cima da outra, seu jeans escuro
esticando de um modo que tenho plena convicção de que irá rasgar. Cruzando
as mãos atrás da cabeça, ele encara o céu escuro e solta um longo suspiro.
— Não posso.
Nós duas franzimos os cenhos.
Pelos boatos que correm no GEC, e pelo que todos dizem, ele já fez
sexo com mais gente do que um ator pornô no auge da carreira. Ballister está
no topo da pirâmide popular, o que faz dele o sonho da maioria dos
estudantes do nosso colégio. Sua beleza é de tirar o fôlego e seu carisma é
absurdo. Com base nisso, eu simplesmente não entendo ainda sua resposta
para a sugestão de Summer.
— Por que, em nome da minha prancha de surf mais cara, você não
pode?
— Por causa da cobra peçonhenta que é irmã gêmea de uma certa
pessoa.
Viro o rosto para fitá-lo.
— O que Blake tem a ver com a sua vida sexual?
— Fizemos uma aposta. Ela disse que eu não conseguiria ficar quarenta
e oito horas sem foder alguém. E eu, como um bom leonino que não recusa
desafios, disse que ela estava errada e que eu conseguiria ficar sem sexo
durante esse tempo tranquilamente.
— Então, você está num tipo de celibato temporário? — sugere
Summer, enfiando um novo marshmallow no espeto.
— Estou num tipo de inferno temporário. — lamenta. — Como você
pode ser tão amável e possuir uma gêmea tão diabólica, Bee?
— Eu não sei. De qualquer forma, sinto muito por você, meu amigo.
— Eu também. — resmunga frustrado. — Sinto pra caralho.

— Você tem certeza? — questiona Blake.


— Tenho. — confirmo pela milésima vez. — Eu vou ficar aqui.
A maioria dos que vieram para a casa que Leo comprou, decidiu
mergulhar no lago Sutton em plena madrugada. Minha irmã sabe que não sei
nadar e que estou longe de ser uma fã de lagos, pois uma vez, quando eu era
mais nova, tive um pequeno incidente que quase custou minha vida ao tentar
entrar em um. Por sorte, Drogo e Jaxon, um velho amigo nosso, estavam lá
para me salvar. Quando eu ainda significava algo para ele, penso.
Hoje em dia, Drogo certamente seria a pessoa a me empurrar e assistir
com um balde de pipoca do lado o meu afogamento. Posso até mesmo ouvir o
som de sua gargalhada com a cena.
— Mesmo? — escuto-a indagar outra vez, fazendo-me sair dos meus
devaneios.
Descansando as mãos nos ombros nus dela, trago-a para mais perto.
— Pelo amor de Deus, eu juro que vou gritar se você perguntar de
novo.
Blake passa o peso de um pé para o outro, suspirando.
— É que...
— Ficarei bem. Não é como se eu estivesse do outro lado do planeta.
Além do mais, vou para o quarto em breve. — argumento. — Estou cansada
e preciso dormir um pouco.
— São duas da manhã. Pare de ser uma decrépita presa no corpo de
uma adolescente. — imitando meu gesto, suas mãos voam para os meus
ombros e o apertam. — Você prometeu que tentaria se divertir. Pelo menos
me espere voltar e subiremos juntas. O que me diz?
— Achei que você fosse a defensora número um da vontade própria. —
devolvo, adotando um tom sarcástico.
— Eu sou, mas não quando minha irmã está tentando usar sua vontade
própria em prol de um atentado contra a diversão.
Afasto-me, deixando meus braços caírem ao lado do meu corpo, e
Blake faz o mesmo. Todo seu foco está voltado para mim com entusiasmo e
uma pitada de ansiedade à medida que ela espera uma resposta minha.
— Está bem. — estreito os olhos ao ouvi-la gritar, me capturando em
um abraço de urso. — Leve seu traseiro para dentro do lago antes que eu
mude de ideia.
— Você é a melhor! — dispara, gargalhando. — Me chame se precisar
e eu virei correndo.
— Sei disso.
— Eu te amo, Brooke.
— Eu amo você, Blake.
Minha irmã beija meu rosto cerca de cem vezes, desaparecendo na
trilha que leva ao lago Sutton logo após.
Dez minutos se passam até que eu decido ficar de pé e entrar na casa
para me aquecer. Definitivamente essas pessoas que decidiram mergulhar
precisam ser estudadas. Estou prestes a subir os pequenos degraus que dão
acesso à varanda quando ouço uma voz masculina dizer o meu nome. O
timbre é suave, mas alto o suficiente para que eu não continue a seguir em
frente. Olho por cima do ombro.
— Petterson? — murmuro, confusa por sua abordagem repentina.
Tyler Petterson é o capitão do time de Rugby. O tipo popular, atraente e
com um sorriso fácil sempre enfeitando seus lábios. Os cabelos castanhos
escuros são cheios e bagunçados, dando-lhe um ar descontraído. O perigo
real está em suas íris azuis. Conheço um lobo em pele de cordeiro no instante
em que vejo um. Sua boa aparência não passa de uma máscara para esconder
a realidade. A questão é: quem do Golden Elite não possui uma?
— Desculpa. Assustei você?
Eu me viro e cruzo os braços desnudos para aplacar um pouco da frieza
que banha o lugar.
— Não. Bem, estou indo para o quarto e...
— Tão cedo? — ele interrompe, sorrindo, e passa uma mão pelo cabelo
curto.
— São quase três da manhã.
— A noite é uma criança. — a sua outra mão ergue a garrafa de bud
light que segura e eu o vejo dar um gole rápido no líquido.
Certo. Essa situação é esquisita.
Petterson nunca dirigiu uma única sílaba a mim em todos esses anos
que estudamos no GEC. Seus pais, assim como os de todos os outros alunos,
são ridiculamente ricos e ele é visto como um menino de ouro. Para
completar o pacote, Tyler é ex-namorado de ninguém menos que a abelha
rainha; Avalon Montgomery.
Apesar disso, do ciclo dos populares, ele foi o único que jamais me
tratou de modo rude. Nunca quis me aproximar de qualquer estudante que
possuísse um certo vínculo com Avalon — e isso incluía seu namorado
perfeito. Os dois eram do tipo almas gêmeas desde a infância. Foi um choque
para todos quando ela simplesmente decidiu dar um fim ao relacionamento.
— Então, aproveite-a. — sugiro, prestes a me virar para girar a
maçaneta.
— Não vá. — seu pedido inesperado me surpreende. — Veja, Brooke,
eu não tentei me aproximar de você antes por causa do meu namoro com a
Avalon, mas eu meio que sempre quis, sabe?
Sua confissão me faz sorrir. Embora o gesto não seja verdadeiro o
bastante para alcançar meus olhos.
— Veja, Tyler, se você quisesse falar comigo, você o faria. Ela era sua
namorada, não uma fita isolante cobrindo sua boca.
— Porra! — ele se engasga, rindo, e cambaleia para trás como se o que
eu acabasse de proferir houvesse se materializado e acertado alguma parte do
corpo dele, nocauteando-o. — Essa doeu. Realmente doeu.
— Diga o que você quer de uma vez ou eu vou entrar.
— Quero ser seu amigo. — anuncia. — Você é o tipo de pessoa que eu
gosto de ter por perto e agora tenho uma chance de fazer acontecer.
Esfrego os olhos, suspirando.
— Não, não sou. Na verdade, estou o mais longe possível de ser.
— Engano seu. Posso parecer um cara sinistro agora, mas estou sendo
honesto.
Essa conversa é totalmente fora do eixo natural. É tão sem lógica que,
por um nanossegundo, me pergunto se não caí em um tipo de universo
alternativo. As coisas já eram estranhas na minha vida, porém, adotaram um
ritmo ainda mais complexo no quesito bizarrice nos últimos dias.
Tudo o que eu quero é tomar um banho e me deitar. Por que algo
simples tem que se tornar complicado desse jeito?
Apoio as mãos na cintura, inclinando a cabeça para o lado.
— De repente?
— Sim. E não. Eu já havia pensado na possibilidade duas ou três vezes.
— seus ombros sacodem como se a ação fosse um pedido de desculpas
silencioso. — Tomei coragem de falar quando te vi aqui, sozinha.
Praticamente todo mundo está se divertindo no lago nesse momento, menos
você.
Papo furado.
Somente por querer encerrar esse diálogo, dou a Petterson o que ele
deseja escutar.
— Certo. Podemos nos falar sem problemas. Então, agora, se me der
licença...
— Fique comigo.
— O quê? — resfolego.
— Não do jeito que você está pensando. — delibera, fazendo minhas
bochechas atingirem uma temperatura mais elevada. — Podemos conversar
um pouco? Porque, a não ser eu e você, os únicos que decidiram não
mergulhar no Sutton estão embriagados. Infelizmente, você é a única
companhia digna que vejo por perto desde que pisei nessa casa.
O vão entre minhas sobrancelhas enruga com seu comentário.
— Deveria ser um elogio?
Tyler ri, embora pareça ter a decência de parecer constrangido.
— Porra, me desculpa. Péssima escolha de palavras. Bem, posso me
redimir?
Estou a um passo de dar outra desculpa esfarrapada para fugir, mas
capturo a figura de McAllister poucos metros de distância de onde estamos.
A recordação do que fiz mais cedo me atinge em cheio e eu quase
tenho uma síncope ao lembrar da raiva que torceu suas feições.
Ajo sem sequer pensar duas vezes, pois posso me livrar de Petterson
com menos esforço. Além do mais, diferente de Drogo, ele não me parece ser
um cretino que quer foder minha vida por vingança. O que eu sei de Tyler é
que ele é um galinha de primeira por trás da pose de garoto de ouro. Eu só
preciso não cair na lábia dele e ser mais uma de suas conquistas. Posso lidar
com esse babaca, com o outro não. Não agora, pelo menos.
— Largue a cerveja e vamos para a sala de jogos. — digo, abrindo a
porta e entrando na casa. — Você é bom no Mortal Kombat?
Esse é o único cômodo de todas as casas que nunca está vazio.
Portanto, não preciso me preocupar em ficar sozinha com ele.
— Sou o melhor.
— Vamos ver.
— Estou sentindo um cheiro de desafio?
— Possivelmente.
Minha fala faz um vislumbre de animação piscar em seus olhos azuis
quando ele se coloca ao meu lado, esfregando as mãos.
— Desafio aceito.
Volto a olhar por cima do ombro disfarçadamente, aliviada ao notar
que Drogo não está por perto.
— Sendo assim, vamos jogar.

My love do Justin Timberlake é substituída por Heathens do Twenty


One Pilots. A melodia é iniciada em sincronia quando venço pela quinta vez.
Ou seria sétima? Para ser sincera, deixei de contar na terceira derrota de
Petterson. Embora onde estejamos seja uma parte mal iluminada da sala, há
outras pessoas ocupando o espaço. Não me importo que a maioria delas esteja
tentando transar com seu parceiro. Contanto que eu não fique sozinha com
ele, estarei confortável. O cômodo é uma mistura de Game Station e cinema.
Vários quadros com imagens de jogos famosos enfeitam as paredes,
ladeando-as, e uma dúzia de poltronas pretas se estendem pelo local. A
televisão é do tamanho de uma quadra de tênis.
O resto da mobília é na cor vermelha e cinza.
— Mais uma. — comento.
Dobro as pernas e trago os joelhos para perto dos seios, cansada de
mantê-las esticadas. Meus músculos doloridos protestam por causa do
movimento e um pequeno suspiro escapa por entre meus lábios. Todo o sono
anterior foi dissipado e tenho certeza de que não vou conseguir pregar os
olhos durante as próximas cinco horas, mas preciso ir.
— Você está roubando. — acusa, descansando um cotovelo na poltrona
atrás de nós. O controle balança ao passo que Tyler o chacoalha
distraidamente. — Sem sombra de dúvidas. Essa é a única explicação
plausível para a surra que eu estou levando.
— Uma maré de azar, talvez? — sugiro, puxando um elástico do bolso
e prendendo meu cabelo em um rabo de cavalo apertado.
— Nunca. — ele ri, virando o rosto para me encarar. — Eu sou como
um trevo de quatro-folhas.
— Acho que uma das pétalas caiu.
Outra risada irrompe de sua garganta.
— Seu senso de humor é uma dor na bunda.
— De verdade? — inquiro, arqueando as sobrancelhas. — Não pensei
que eu possuísse um.
Ainda que a conversa com Tyler se estenda de maneira agradável, tem
alguma coisa que me impede de mostrar meu verdadeiro lado.
Diferente de como me sinto na presença de Leo ou Summer. E até
mesmo na presença de Leona. Todavia, decido não pensar sobre isso.
— Vamos a última rodada. — propõe, esfregando a nuca. — Mereço
uma revanche.
Seu celular emite um bip e ele o verifica com pressa, visualizando a
notificação pela tela de bloqueio. Em seguida, volta a guardá-lo.
— Fica para uma próxima. — declaro, me colocando de pé. — Eu vou
para o meu quarto.
Petterson imita meu gesto, sobrepondo o meu tamanho com sua
estrutura ao ficar cara a cara comigo.
— Eu acompanho você. — murmura, seu timbre ganha um tom mais
rouco, quase sedutor.
Certo. Isso precisa terminar.
Ele está solteiro e parece não ter chances de reatar o namoro com
Avalon pelo que Blake comentou. Entretanto, ainda que os dois estejam
separados, eu não pretendo sequer gravitar ao redor do que ela tocou. Tenho
inúmeros problemas para lidar e não desejo adicionar uma Montgomery na
equação.
— Não é necessário. De verdade, eu preciso ir.
Petterson não desiste.
— Seu quarto é o último do segundo andar, pelo que ouvi sua irmã
dizer, e a casa está repleta de traseiros bêbados e inconsequentes, serei apenas
uma garantia para que nenhum canalha desconhecido chegue muito perto. Foi
uma madrugada divertida, eu te devo uma por ela.
— Eu recuso. — minha réplica sai firme e concisa, enquanto faço meu
trajeto por ele.
Não queria soar como uma pessoa grosseira, mas fui praticamente
forçada a seguir esse caminho. Sua insistência ultrapassou o limite de
tolerância que eu possuo, obrigando-me a ser indelicada. Nós, mulheres, às
vezes achamos que o erro está conosco ao recusarmos a proposta de um
homem, — por menos indecente que ela possa parecer — no entanto, não é
dessa forma. A grosseria é deles quando não desistem ao receber uma
resposta negativa. Estou convicta de que Tyler jamais deve ter recebido um
não — ao menos é o que sua expressão de choque indica.
Bem, para tudo há, de fato, uma primeira vez.
Deixo o controle em cima da mesa e abro a porta, saindo do recinto
sem me preocupar nos holofotes atraídos pelo nosso pequeno diálogo.
Muitos estudantes ocupam a sala de estar e se torna um pouco irritante
ter que passar por eles e seus corpos suados. Para o meu alívio,
eventualmente consigo me esquivar e subir os degraus da escada que dá
acesso ao segundo andar. O corredor e está vazio e com uma iluminação
fraca. Por sorte, nada que me faça não enxergar o caminho. Puxo meu celular
do bolso e vejo que tem uma mensagem recente de Blake na tela. Verifico o
conteúdo e meus dedos apertam o aparelho de imediato.
Drogo está procurando por você.
Ps.: Ele não me pareceu muito feliz. Aconteceu alguma coisa?
— Merda.
Guardo o telefone e empurro a chave na fechadura, destrancando.
Estou pensando que não serei capaz de evitá-lo em breve quando a
porta é escancarada com violência, batendo na parede e emitindo um forte
estrondo. Sou empurrada para dentro do quarto, derrubando meu celular no
chão por causa do ato brutal e inesperado. Olho por cima do ombro,
afastando com avidez os fios de cabelo que entraram na minha boca. Franzo
o cenho ao ver um Petterson colérico invadindo o cômodo. Seus dedos batem
com força no interruptor e logo tudo se enche de luz, deixando-me
desnorteada temporariamente. Eu pisco para me adaptar à claridade abrupta.
Não tenho chance de abrir a boca, pois sua voz grave, que sobe vários
decibéis, preenche cada centímetro do ambiente.
— Você se acha do caralho, não é, Andreotti?
Por instinto, pulo para trás quando o vejo avançar, puxando a poltrona
ao meu lado. Coloco a mobília entre nós como se fosse uma barreira de
proteção com o intuito de mantê-lo longe.
Tyler ri, descansando uma mão na cintura e passando a outra pelo
cabelo. Sem cerimônia, usa o cotovelo para fechar a porta. Então, puxa a
chave do lado de fora e a tranca. Assisto toda a cena sem conseguir mover
um único músculo para impedi-lo. Meu coração acelera com tanta força que
sinto os batimentos em minha garganta. Eu olho da porta fechada para ele e
vice-versa. Ainda sob meu silêncio, ele pega o celular e disca o número de
alguma pessoa, levando-o ao ouvido.
— Pode aumentar a música.
Numb, canção do Linkin Park que toca baixinho no andar de baixo, de
repente tem seu volume nas alturas. Mesmo que aqui soe abafado, está alto o
suficiente para que ninguém nos escute.
— O que quer que você esteja pensando em fazer, não faça. —
aconselho assim que ele desliga e se volta para mim, lutando para não
gaguejar.
— Acha que eu pretendo estuprá-la? — cospe. — Não. Tudo o que eu
queria era, no máximo, um beijo. Não me leve a mal, mas você não faz o meu
tipo. — seus dedos agarram o estofado e Tyler se inclina sobre a poltrona. —
Me deixar te seduzir, Brooke. Apenas. Porra, qual a dificuldade em ceder um
pouco? Que merda você é? Uma puritana? Seu irmãozinho não quer que a
gente se aproxime de você, então, através disso, eu encontrei um meio para
foder com ele. Colaboração; a única coisa que eu queria de você.
Bebo suas palavras como se elas possuíssem um gosto azedo,
engolindo com dificuldade. Por mais que eu queira me mexer, não encontro
uma maneira de fazê-lo. Todas essas informações que o ouço vomitar me
acertam como golpes atrozes, nocauteando-me.
— Agora, somente por ter me feito perder tempo, eu vou atormentá-la
um pouco. Quero ver seu medo, portanto, dê-me ele.
No modo automático, eu recuo um passo à medida que ele arrasta a
poltrona para o lado, tirando-a do meio do caminho.
— Vamos jogar.
Grito quando Petterson avança sobre mim, tropeçando para fora de seu
alcance. A primeira coisa que vejo na minha frente ao girar a cabeça no outro
sentido é minha mochila em cima da cama. Sem pensar duas vezes, eu a pego
e jogo contra seu corpo.
Como eu imaginei, o desgraçado consegue se esquivar. Ele é um atleta,
afinal. Mas a verdade é que não recorri a isso para feri-lo, e sim com o intuito
de ganhar ao menos uma fração de segundos a meu favor. Apoio as palmas
no colchão e fico de pé em cima dele, as molas me fazendo chacoalhar
enquanto escorrego para fora. A mão de Tyler se lança para me alcançar,
raspando na minha perna. Novamente, consigo escapar de ser capturada.
— Você é uma coisinha valente, não é? — ofega, gargalhando com
raiva.
Não respondo.
Luto para sugar o máximo de oxigênio possível, pois sei que se eu falar
irei cansar mais rápido. E estou em desvantagem demais para me dar ao luxo
de recorrer a uma decisão impulsiva e estúpida. De modo desesperado, agarro
um dos vasos que ficam em cima da cômoda e o arremesso em sua direção.
No último instante, ele ergue um braço e o coloca na frente do rosto para se
defender. O objeto acerta seu antebraço e cai no chão, quebrando em seguida.
Aproveito o fato de que Tyler parece prestes a ter um ataque de fúria por
causa do impacto e corro para a porta.
Um novo grito rasga do fundo da minha garganta quando tenho meu
corpo suspenso no ar ao alcançar a maçaneta e tocar nela.
— Não! — é tudo o que berro, debatendo-me.
— Puta que pariu, — ruge, apertando meus membros com mais afinco.
— você é uma dor no rabo!
Sou jogada em cima do tapete que se estende por boa parte do piso.
Petterson logo está em cima de mim, prendendo meus pulsos acima da minha
cabeça. Minha blusa sobe, revelando a pele pálida do abdômen, e eu grito por
ajuda.
— Socorro!
Embora a música sobreponha qualquer resquício da minha voz, sei que
preciso recorrer a última saída que me resta. Luto para convencer meu
cérebro de que não serei violentada, e que tudo o que estou passando neste
momento é só um tipo de jogo mental doentio que Tyler está me obrigando a
suportar por tê-lo deixado furioso mais cedo. No entanto, tenho certeza de
que o rosto de Eric irá ganhar vida em minha mente se eu fechar os olhos.
— Está com medo? — entoa, rangendo os dentes.
— Não! — engasgo com minha mentira.
Ele ri.
— Sim, você está. Então, agora que eu tenho metade do que queria,
vamos para a segunda e última parte. — delibera, agarrando meu queixo com
a mão livre. — Você vai dizer ao filho da puta do McAllister que trepou
comigo e que foi a melhor foda de toda a sua vida.
Encaro seu rosto rubro e suado.
— O quê? — sopro meu questionamento confuso, horrorizada.
Tudo acontece muito rápido.
Uma batida ensurdecedora reverbera pelo quarto, trazendo a música
consigo. Em um piscar de olhos, fico livre do peso corporal de Tyler quando
ele é puxado de cima de mim e arremessado contra a parede sem qualquer
aviso prévio. Apoio-me nos cotovelos e me arrasto para trás ao ver a cena que
se desenrola diante de mim. Drogo está com uma mão segurando o pescoço
de Petterson, simultaneamente fechando o punho da outra. O barulho de
carne sendo esmagada invade meus ouvidos e logo depois um uivo de agonia
ganha vida.
— Você a tocou. — Drogo vocifera, toda sua estrutura vibrando
violentamente.
Embora a frase saia como um questionamento, não é. Fica evidente.
Mas Tyler não parece ter noção de que está em desvantagem.
— Toquei. — é a réplica dita. — E ela gostou pra valer. Pelo menos foi
o que constatei quando a boceta da sua irmãzinha apertou meu pau.
Eu grito, levando as mãos à boca ao presenciar o segundo soco. Esse o
leva direto para o chão.
O sangue espirra de seu nariz, que agora tem um corte no meio, e desce
até seus lábios como se fosse convertido em uma cachoeira, fazendo meu
estômago revirar. Mesmo que ele mereça uma lição por ter me atormentado,
eu sei que a consequência de seu ato não virá. Seus pais possuem muita
influência nessa cidade para permitir que seu único filho seja punido por
qualquer coisa.
Pessoas como Petterson sempre saem ilesas de tudo que fazem como
se, no fundo, fossem as verdadeiras vítimas. Apenas por causa disso, eu
intervenho.
— Drogo! Saia de cima! — imploro desesperada. — Por favor, largue-
o!
Mas é como se eu estivesse falando com um objeto inanimado. Sou
ignorada.
Ele continua proferindo uma série de socos que Tyler tenta se defender
em vão. Eu perco as contas da quantidade de golpes disparados.
— Você vai matá-lo!
Nada. Eu começo a suar frio. Meu cérebro entra em pane e eu me torno
incapaz de raciocinar com clareza.
— É mentira! Nós não fizemos sexo!
Nenhum sinal que indique sua desistência. Eu não sei mais o que falar.
A música para de repente e eu pareço despertar em sincronia com o fim dela.
Desisto de tentar pará-lo e corro até a porta, passando pelo que restou dela e
seguindo para o final do corredor vazio.
Prestes a virar a esquina que leva direto à escada principal, meu corpo
colide contra algo sólido, quase me fazendo cair. Mãos firmes seguram meus
braços, mantendo-me de pé. Eu pisco algumas vezes, desviando o olhar para
cima. Um par de íris cinzentas como um dia chuvoso me fita de volta. Meu
fôlego engata, mas me forço a sair do transe.
— Matteo. — sopro seu nome.
— O que houve?
— Drogo está espancando o Tyler Petterson! — explico. — Venha
comigo, por favor!
Uma voz masculina com um sotaque carregado, rouco e profundo, faz
todos os meus pelos arrepiarem. Um cara loiro com os braços fechados de
tatuagens, e um taco preto fosco descansando em seu ombro direito, surge no
final do corredor. Ele vira o rosto ridiculamente bonito, — do tipo que nasceu
para estampar capas de revistas — estreitando os olhos verde-floresta, os
quais carregam um brilho anárquico. As argolas em suas orelhas reluzem por
causa da luz. O sorriso perverso que torce o canto da boca dele indica que,
quem quer que seja, é alguém que não se deve ficar perto.
— Cagliari.
— DeLuca. — assobia, umedecendo os lábios. — Cheguei na hora da
diversão, hein?
MOSTRE-ME AGORA

“Querida, nós dois sabemos


Que as noites foram feitas
Especialmente para falar coisas que
Não podem ser ditas no dia seguinte”
— Do I Wanna Know? | Arctic Monkeys

EU SEMPRE SOUBE QUE ERA uma besta descontrolada. Uma


fera brevemente contida por amarras.
O problema é que essas amarras, para mim, nunca passaram de linhas
finas, fáceis de partir.
E, quando ocorre, o resultado não é bonito. É fodido, e faz minha mente
desligar.
Na realidade, estive procurando a Brooke durante toda a noite desde
que coloquei os pés nessa casa, mas ela escapou por entre meus dedos o
tempo todo como se fosse um peixe escorregadio. Eu havia me convencido
de que desistiria por hoje. Até que passei por alguns idiotas que estavam
bebendo na cozinha e ouvi um deles falando que ela estava no quarto com
Tyler Petterson, o cuzão engomadinho que namorou com a Montgomery.
Ouvir aquilo foi o que bastou para que eu agarrasse o merdinha pelo
colarinho para me explicar que porra era aquela. E ele disse.
Pude sentir o exato instante em que meus olhos escureceram com a
ideia de que os dois estavam fodendo bem debaixo do meu nariz.
Larguei o bastardo e fui direto para o quarto que eu sabia que Brooke
havia escolhido sem ao menos ter certeza de que eles estariam lá, mas
estavam. Eu havia levantado a mão, fechando meu punho com tanta força que
minhas veias saltaram. Entretanto, me detive ao escutar um grito.
Socorro.
Brooke estava gritando por ajuda. Não me importei em verificar se a
porta realmente estava trancada. Eu arrombei.
O que me deixou completamente transtornado foi a cena diante de
mim. Petterson estava em cima de seu corpo e ela lutava para se libertar do
aperto que ele exercia. Eu fiquei desequilibrado. Agora, tenho os nós dos
meus dedos em carne viva enquanto encaro o rosto ensanguentado do filho da
puta que achou ser uma boa ideia tocar no que me pertence. Eu digo que não
foi, caralho. Apesar de todo o ódio e rancor que eu nutro por ter recebido uma
faca em meu peito anos atrás, Brooke Andreotti é minha.
Minha para destruir. Minha para quebrar. Minha para atormentar. Cada
parte dela, até mesmo as que não são de seu conhecimento, são minhas.
— Foda-se! — o verme berra, tentando revidar. Ele, conquanto, está
fora demais do eixo para conseguir. — Você quebrou meu nariz!
Petterson continua falando e falando, mas eu não dou a mínima para
seus lamentos desesperados.
Fecho o punho, prestes a desferir mais um soco, quando dois pares de
braços me imobilizam, puxando-me de cima dele e envergando meus braços.
Eu resfolego. Meu peito sobe e desce com uma respiração enfurecida e
eu luto para me libertar.
— Suficiente. — intervém uma voz masculina que eu reconheço bem.
Giro a cabeça o máximo que sou capaz e vejo Matteo DeLuca do meu
lado esquerdo. Há um loiro, com um sorriso psicótico e diversas tatuagens
escapando pela gola da camisa, me segurando no oposto. Seus olhos se
voltam para mim, brilhantes e anárquicos.
Irritado, eu estalo:
— Não vai adiantar nada me manter assim. Uma hora ou outra eu vou
sair e voltarei a arrebentar a cara desse bosta.
Ficamos nos encarando por um curto período, então mais alguém entra
no quarto.
— Que porra é essa?
Leo Ballister, encharcado da cabeça aos pés, surge na minha frente com
uma carranca. Observo Petterson gemendo de dor ao tentar sentar-se.
Certamente quebrei seu nariz, e teria feito o mesmo com seus dentes,
mas o bastardo conseguiu se proteger de muitos dos golpes mesmo em sua
condição deplorável.
— Vai ter retorno, filho da puta! — ameaça, cuspindo sangue no chão.
— Acha que vai fazer essa merda comigo e sair arrastando seu traseiro pelo
meu colégio sem se prejudicar somente por carregar o sobrenome Andreotti
agora? Com certeza não, caralho.
Embora toda minha estrutura esteja pulsando de ódio, eu sorrio. O
gesto é volátil e o faz se encolher.
— Faça. — incentivo. — Vou ter o prazer de deixá-lo em coma.
— Quer saber, McAllister? Eu acho que, no fundo, você quer mais é
foder sua própria irmã.
Cólera me atinge e tudo se torna um borrão vermelho. Me movo para ir
para cima novamente, quase conseguindo dessa vez, mas sou impedido ao ter
Leo Ballister me segurando. Algum deles mantém um braço ao redor do meu
pescoço e isso me faz ter dificuldade para respirar.
— Brooke! — ele grita, a água em seu cabelo respingando em meu
rosto.
Não demora para que eu escute a voz de Brooke surgindo no cômodo.
— Por favor, tire o Tyler desse quarto! — estou ciente de que nenhum
deles sabe o que o merda do Petterson fez. Ainda assim, eu fico fora de mim.
— Não! — vocifero. — Ela fica longe. Do contrário, juro por Deus que
irei me soltar e só vou parar quando transformá-lo na porra de um cadáver.
Ela me fita com olhos arregalados. No passado, eu sei que o que acabo
de dizer a teria feito rir, descrente. Hoje em dia, não.
Tyler ri. O som saindo como o de um animal moribundo chama nossa
atenção.
— É enervante, não é? — solta, fazendo uma careta de dor. — Quando
tocam no que é seu?
— Do que você está falando, seu bosta?
Certo. Beijei sua ex-namorada quando os dois ainda estavam juntos.
Todavia, ela me disse que seu relacionamento era livre de restrições quanto a
beijar outras pessoas. Logo não há como ser um problema. Montgomery pode
ser uma cobra venenosa, mas não mentiria nesse quesito.
Recebo seu olhar enviesado.
— Estou falando, seu desgraçado, sobre você ter fodido minha garota.
— O quê?
Dos três que me seguram, um deles aperta tão forte meu antebraço que
sinto que irá quebrá-lo ao meio se forçar um pouco mais.
Não preciso analisar minuciosamente para saber que o aperto mortífero
vem de DeLuca. Pude perceber a maneira como ele costuma observá-la desde
que entrou no GEC, eu só não imaginei que seu interesse por Avalon fosse
tão fodido.
— Sou uma ameaça para você, se você for uma ameaça para mim. —
alerto por entre os dentes trincados.
Meu intuito é que apenas ele possa ouvir. Não é o que acontece. O loiro
desconhecido arqueia uma sobrancelha, um vislumbre perverso de interesse
cobrindo suas feições como se ele fosse uma arma e o que eu acabo de dizer
fosse munição.
— Eu não beijei a Brooke. — diz Matteo, sarcasmo frio gotejando de
sua fala.
— Certo. — sufoco. — Você tem um ponto.
Estrelas piscam ao meu redor ao passo que a dor fica mais aguda.
Filho da puta.
— Eu jamais transei com a Avalon. — declaro finalmente. — Não sei
que porra andam falando, e assumo que a beijei. Bem, não é como se fosse
uma informação confidencial. Afinal de contas, todo mundo viu a cena. —
outro aperto do caralho me faz apressar minha resposta: — O ponto é, não
fodemos. Nunca.
— O que ele fez com você, Bee? — Ballister interroga.
Brooke respira fundo, deixando os braços caírem ao lado do corpo e
apertando os pequenos punhos.
— Ele quis me amedrontar para que eu dissesse que fizemos sexo. —
explica, fuzilando Petterson com grandes olhos azuis. — Então, seu cretino,
tudo não passou de um plano de vingança, huh? Você se dispôs a me
aterrorizar pelo simples fato de não superar um pé na bunda?
O bastardo sorri com raiva, mostrando uma fileira de dentes
ensanguentados ao se escorar na parede para ficar de pé.
— Você é gostosa, confesso. Porém, eu não curto as introvertidas.
Ela ergue uma sobrancelha e se aproxima de onde o verme está.
— E eu não curto otários. — revida, espalmando as mãos nos ombros
dele.
— Fique longe! — trovejo minha ordem.
Estou quase tendo uma síncope pelo contato, prestes a tentar sair mais
uma vez, e parando ao ouvir Brooke continuar:
— Mas sabe uma coisa que eu curto? — pondera, ignorando-me. —
Mostrar que é uma péssima escolha mexer comigo.
Surpreendendo a todos e sem outra palavra, ergue o joelho direito com
destreza calculada, acertando as bolas de Petterson brutalmente.
Meio segundo depois, um grito estridente estoura no ar e o corpo dele
cai no chão, encolhendo-se em posição fetal.
— Puta merda. — Ballister me solta e caminha até Tyler. — Eu senti.
— Leve-o para um dos amigos e diga que a melhor coisa que ele pode
fazer é mudar de colégio. — instrui DeLuca, desfazendo o aperto.
— Pode deixar. — Leo acata sem contestar, agarrando Petterson pela
parte de trás da camisa e o arrastando para fora do quarto como se fosse um
saco de batatas.
— Você está bem? — ele se volta para Brooke, ignorando minha
presença.
— Achei que estaria em pânico. Não estou. Tudo o que sinto é ódio.
— Isso é bom. — o estranho psicótico surge com um taco preto jogado
por cima do ombro. — É meu sentimento favorito.
Ela engole em seco, afagando a lateral do pescoço e olha de soslaio
para mim com uma expressão ansiosa, abrindo a boca.
Por causa desse sinal, eu desperto, forçando-me a voltar à realidade —
a que eu a odeio com cada átomo em meu corpo — e me viro para sair sem
me importar com o que ela gostaria de dizer.
Passo por Blake no corredor, fingindo não a ter notado no meio dele, e
muito menos escutado ela exclamar meu nome.
— Drogo!
Viro a esquina e sigo para o outro corredor, o qual fica o quarto que
escolhi. Abrindo a porta, bato-a com força suficiente para que toda a casa
estremeça. Com um rosnado impaciente, puxo a camisa e a descarto em cima
da poltrona, esfregando o rosto. Os nós dos meus dedos latejam e eu aceito a
dor. Ela é bem-vinda. O problema é que nem mesmo essa comiseração é
capaz de aplacar meus pensamentos que nublam meu cérebro, confundindo a
linha de raciocínio que eu criei e coloquei como foco.
— Porra. — solto o ar com força. — Porra! Porra! Porra!
Eu odeio Brooke Andreotti. Mas odeio ainda mais o que ela faz com
minha cabeça.

Desenrolo a faixa branca, agora manchada com sangue e poeira, e a


descarto no pequeno recipiente de lixo que fica ao lado da cama, empurrando
o cabelo úmido de suor para trás. Meu peito sobe desce com uma respiração
irregular pelo esforço recente da luta de hoje à noite. A porra do meu maxilar
lateja e tenho plena convicção de que em breve um hematoma irá surgir no
local atingido pelo punho de Travis.
Filho da puta.
Tiro o calção preto que estou vestindo, em seguida a cueca, e deixo
meu pau saltar em liberdade. Estou no batente que dá acesso ao banheiro
minúsculo quando a porta do meu trailer é aberta. Uma voz feminina
surgindo na retaguarda.
— Você foi bem. — elogia, se movendo para o interior.
Ignoro seu comentário e sigo para o chuveiro, girando a válvula
quebrada. Emito um gemido irritado de satisfação ao ter a água gelada
entrando em contato com meu corpo dolorido. Não demoro muito nele,
somente o suficiente para eliminar a sujeira impregnada em mim e o odor de
suor misturado com sangue. Sem me importar com minha nudez após sair,
ando pelo espaço bagunçado em busca de uma toalha limpa. Encontro a que
usei ontem. Vai servir.
Um par de olhos castanhos me analisa com atenção em cada
movimento que executo. Jogando o pano molhado sobre os ombros, coloco
uma calça de moletom cinza e cruzo os braços, sustentando o olhar que ela
me direciona.
— Cuspa. — ladro.
Tamara estoura a goma de mascar e bufa, afastando a franja rosa que
cai em seu rosto.
— O que há, Drogo? — dispara. — Você era o melhor do Carnivores
até semana passada.
— Continuo sendo bom.
— “Bom” não basta.
— Então, talvez eu deva parar.
Minha frase tem o impacto que eu queria para fazê-la calar a boca de
uma vez.
— De que merda você está falando?
Não é um blefe. Participo de lutas clandestinas desde os onze anos por
puro desejo. Meu temperamento explosivo existe desde sempre e eu
precisava liberá-lo de alguma forma. Muitos presumem que tenha sido por
questões financeiras, o que definitivamente jamais foi o caso. Em nenhum
momento da minha existência passei por necessidades e minha condição
quanto a dinheiro, ainda que eu nunca tenha sido um filho da puta rico,
também não foi nada ruim.
O problema é que as lutas se tornaram maçantes para mim nos últimos
meses. Não que eu esteja cuspindo no prato que comi, por causa delas pude
comprar esse trailer. E embora ele não seja um paraíso, é um espaço meu. Eu
poderia ficar na casa dos meus pais, em Hoxton, mas não gosto das
lembranças felizes que me engolem quando piso lá. De certo modo, me faz
sentir saudades. E essa é uma fraqueza que eu não devo me permitir ter.
Meu pai morreu em um assalto no meu aniversário de dezessete anos e
minha mãe se foi poucas semanas antes da advogada dos Andreotti entrar em
contato comigo para falar sobre o testamento deixado por Sebastian. Um
AVC a levou. Foi inesperado e me deixou fodido em inúmeros níveis, por
essa razão prefiro não viver no local em que tive um pouco de alegria em
minha vida de merda.
— Você ouviu. — reitero por fim. — Pretendo sair de Bethnal Green
no próximo final de semana.
— E voltar para Kensington? — dispara furiosa. — Dessa vez, para
morar com suas novas irmãzinhas e aproveitar o saldo do caralho na sua
conta bancária de bastardo de merda?
Eu dou um passo e Tamara recua de imediato.
— Não pense, porra, nem por um segundo que pode falar desse jeito
comigo. Você não pode. Ninguém pode.
Mais um passo.
— Vai me bater? — a pergunta me deixa nauseado.
— Eu não tocaria em você de nenhuma maneira possível.
Sua atração por mim vem desde o tempo em que eu comecei a estudar
no Vargas, o colégio mais violento daqui, no ano passado. Minha família
morou em Kensington por um determinado período. Mesmo nos mudando, eu
costumava estar pela área. Ou o filho da puta que eu pensei ser meu amigo no
passado encontrava um jeito de me visitar e trazer... ela. Meu foco recobra
para o presente quando a mão de Tamara se ergue e acerta meu rosto com um
tapa feroz. O estalo seco retumbando pelo trailer. Continuo parado diante
dela, sem esboçar qualquer reação. Lágrimas raivosas deslizam pelo seu
rosto, fazendo o rímel preto borrar suas bochechas angulosas.
— Vai se foder.
Com essas palavras, a garota gira nos calcanhares e abre a porta,
sumindo do lado de fora ao batê-la com força.
Nem mesmo o barulho que se instala no ar, ricocheteando pelo
ambiente, é capaz de parar meus pensamentos.
Eu já estou fodido.

Estou evitando Brooke desde que me mudei de vez para a mansão dos
Andreotti.
E ela percebeu. Como não poderia, afinal? Fujo dela como o diabo foge
da cruz. Não quero que tenhamos qualquer mísero tipo de contato, porque
nada de bom pode sair disso. Não se eu perder o controle e colocar para
escanteio minha real motivação. Ela bagunçou meu raciocínio lógico há
alguns dias, portanto fez tudo se tornar um maldito risco. Um campo minado.
Não me arrependo do que fiz com o verme do Petterson naquela madrugada,
mas irrita-me perceber que não estou mais com o ódio habitual que sinto por
Brooke. Não deveria estar acontecendo. Não tão rápido. Estou tomando
atitudes que eu não deveria desde que pisei aqui. Pouco tempo depois de
entrar no GEC, interferi em algo na vida dela sem seu conhecimento. Brooke
é retraída e desconfiada por natureza, mas nada justificava o quão
desconfortável ela ficava na presença de Eric Carson, o diretor. Então, fiz
algumas pesquisas com um velho amigo do Vargas para saber mais sobre ele.
É sempre bom manter um hacker por perto. Stephan me entregou um
pequeno resumo dos investimentos sujos de Carson ao longo dos anos e um
arquivo a respeito de sua fama com estudantes. A última parte era meio vaga,
nada além de boatos. De qualquer modo, decidi fazer uma visita a ele em seu
escritório assim que fui liberado do treino. Não cogitei gastar muita saliva.
Apesar de querer se impor como se fosse um deus, Eric, no fundo, não
passava de uma coisinha covarde do caralho. Sabendo desse ponto, tudo o
que fiz foi entrar em sua sala e ser objetivo. Fique longe, eu disse.
Claro que o bosta de terno iria tentar me enfrentar para não parecer
inferior. Mas foi justamente por prever este tipo de reação que eu cacei a
porra do seu passado imaculado. Não achei nada que pudesse tirá-lo de vez
da direção do Golden Elite College. As provas eram superficiais, o que faria
ser sua palavra contra a minha. E mesmo que eu não suporte sequer olhar
para aquele verme, eu não seria burro de fechar os olhos para a influência que
ele exerce sobre Londres. Conquanto, o que encontrei bastou para que ele não
pretendesse chegar perto de quem eu queria. Queria tê-lo assustado, e
consegui.
Stephan me deu certas cartas para jogar contra ele. Sorrio ao lembrar
da reação de Carson ao ver as fotos que fiz chover em sua mesa.
— Como diabos você conseguiu essas imagens, seu lixo?
Com movimentos rápidos e desesperados, ele jogou as fotos dentro da
lareira. Aproveitei sua instabilidade para correr os olhos pelo escritório
irritantemente organizado. Tive certeza de que o chão era mais limpo que a
coroa da rainha. Ninguém com esse grau de organização maníaco poderia
ser confiável.
— É algo clichê, diretor, mas tenho que alertar. — balbuciei,
arrastando a ponta do indicador pela superfície brilhante de mogno. — Não
sou estúpido. Tenho tantas cópias dessa merda que posso enfeitar até o
último centímetro desse colégio com elas.
Seu rosto estava vermelho e o corpo alto e ossudo sacudia com ira
fulminante. A cena me divertia.
— Está me ameaçando?
— Estou. — garanti, encarando-o. — Oh, e eu disse “até o último
centímetro deste colégio”? — meneio a cabeça, sorrindo com diversão vil. —
Permita-me corrigir, então. Eu posso triplicar a quantidade e enfeitar a
porra do Palácio da Rainha. Se eu achar que é pouco, posso partir para as
sete maravilhas do mundo, e cobrir cada uma delas com sua depravação.
O silêncio se fez presente, apenas confirmando o óbvio. Aquela era
uma batalha perdida. Para ele, claro. Voltando a ficar ereto, continuei:
— Portanto, não arrisque comigo. Eu não sou alguém para subestimar.
Fique. Longe. Dela. — repeti. — Não achei nada que pudesse arrancar de
vez seu traseiro dessa cadeira, confesso. Contudo, se eu obtive essas
fotografias sem muito esforço, tenho certeza de que, se eu cavar um pouco
mais, vou esbarrar em algo grande o bastante para fazê-lo passar seus
próximos cinquenta anos definhando num quarto imundo e minúsculo.
O vermelho em sua face havia se tornado ainda mais vívido.
— Saia do meu escritório. — ele grunhiu com os dentes cerrados,
fervendo.
Eu não saí.
— Não sou um cavalheiro, diretor. Chegue perto de Brooke Andreotti e
eu farei você achar que o Inferno é brincadeira de criança comparado ao
que posso fazer com a sua existência. — declarei meu aviso final, decidindo
finalmente me afastar e deixar a sala.
Afasto a lembrança daquela tarde ao receber meu pedido da garçonete
do drive thru.
— Aqui está. — ronrona, entregando-me o copo com suco de limão. —
Espero que goste, gato.
A fila atrás de mim está vazia. Penso que seria uma boa distração
investir em uma conversa. Todavia, o pensamento é apagado como vela
barata que colocam em bolos de aniversário. Meu celular toca em cima do
banco do carona e o nome do treinador Sawyer aparece no visor.
— Obrigado. — agradeço, devolvendo o tom de flerte. — Tenho
certeza de que irei.
Sem esperar sua resposta, ligo o carro e dirijo para fora do
estabelecimento, parando ao lado do primeiro meio-fio que avisto.
O celular toca outra vez. Começo a pensar em todas as coisas erradas
que eu possa ter feito nas últimas horas, ficando aliviado ao perceber que a
resposta é “nada”. Não tenho medo de homem nenhum, mas qualquer atleta
lúcido teria que ser, no mínimo, masoquista para não temer Sawyer Vaughn.
No terceiro toque, pego o aparelho e atendo.
— Treinador. — falo firme e cauteloso.
— Onde diabos estava seu maldito telefone, McAllister? — seu típico
grunhido explode do outro lado da linha. — Enfiado na porra da sua bunda?
— Desculpe, senhor. Deixei o celular no carro e fui ao banheiro,
quando voltei já tinha perdido uma ligação. — pigarreio. — Algum
problema?
— Sim. — resmunga, soltando uma respiração pesada. — Como atual
capitão do time, preciso que entre em contato com os outros e informe que o
horário do treino dessa tarde foi trocado.
— Para quando?
— Agora. Diga que eu quero o traseiro de cada um dos jogadores do
Golden Elite aqui, dentro do próximo minuto.
— Certo, senhor.
— Barbie Surfista! — ele vocifera, de repente, me obrigando a afastar
o celular do ouvido e estreitar os olhos. — Você não está em uma passarela
de moda da Victoria’s Secret! Comece a alongar suas malditas pernas
curtas!
— Elas não são curtas, seu brutamontes! — uma voz feminina, e
furiosa, troveja. — Eu tenho um metro e setenta e oito!
Sufoco uma risada ao ouvi-los discutir, principalmente quando percebo
que se trata de Summer Gautier.
Dando um gole em meu suco, verifico meu cabelo no retrovisor,
constatando que preciso de um novo corte.
— McAllister! — o treinador berra, me fazendo engasgar com o líquido
e tossir. — Acho bom que esteja falando com seus companheiros, porque se
não estiver, vou fazer cada um de vocês percorrerem todo o colégio até que
suas malditas pernas se partam no meio! Eu fui claro?
Puta que pariu.
— Sim, senhor. Foi claro como um dia ensolarado.
No segundo que a chamada é encerrada, eu entro no grupo do time de
hóquei e ligo para todos — que atendem na velocidade de um foguete.

— Porra. — praguejo, uma careta de dor torcendo minhas feições.


No treino de hoje, o filho da puta do Grayson Cagliari, aquele sádico do
caralho, fez uma bela apresentação de entrada na equipe ao detonar meu
supercílio direito. O desgraçado é letal. Preciso tomar cuidado com a minha
defesa nos treinos quando ele estiver no ataque.
Estou mergulhando mais fundo no hóquei desde que deixei de lutar. A
verdade é que sempre gostei desse esporte justamente por ser violento. Posso
descontar toda raiva e frustração que ferve em meu corpo no dia a dia.
Entretanto, são em momentos assim que percebo que também o odeio. São
23h22 quando estaciono a Lamborghini na garagem. A casa inteira está
silenciosa e a única luz que não a deixa cair na escuridão profunda vem da
sala de estar. Reviro os olhos ao cruzar o hall de entrada, presumindo que
Blake deve estar vendo aquela série de médicos pela centésima vez. Passo
pelo batente e desço os poucos degraus que dão acesso ao cômodo, me
movendo mais adiante.
Eu paro abruptamente ao perceber que não se trata de Blake, e sim de
Brooke. Fingindo não notar sua presença, continuo meu trajeto, seguindo
para a escada.
— Realmente? — ela sibila, ajoelhando no assento do sofá com uma
destreza absurda. — Você vai mesmo continuar me evitando?
— Vou. — declaro, ainda sem parar de andar.
— Oh, pelo amor de Deus. Quantos anos você tem, McAllister? Seis
novamente?
Paro de onde estou, mas não viro o rosto para encará-la. Mantenho o
foco voltado nos degraus que ainda restam.
— Esqueça. — estalo, me referindo à briga com Petterson. — Eu não
quis proteger você do modo heroico que sua mente arquitetou.
Meu tom é ríspido e a faz se contorcer de irritação.
— Você me salvou. Eu não posso simplesmente apagar da memória.
Desistindo de evitar contato direto, adoto uma carranca e escorro meu
olhar em sua direção.
— Você pode e você vai.
A última imagem que tenho após retomar meu percurso, é a de suas
longas e delicadas unhas afundando no sofá.

Minha cabeça está latejando quando me deito de bruços na cama.


A garrafa de vodca que virei cerca de quatro horas atrás deveria ter me
dado um efeito de sonolência, ainda que fosse mínimo, mas essa merda não
fez nada por mim. Meu foco cai para o relógio na parede, os ponteiros
marcando 05h18. A corrente gélida do ar-condicionado não basta para esfriar
minha temperatura corporal. Soltando um suspiro frustrado, eu me levanto e
decido tomar um segundo banho. É a melhor opção que possuo. Atravesso o
cômodo escuro com letargia, abrindo a porta do banheiro e me colocando
para dentro. O box está aberto e eu não me dou ao trabalho de fechar após
passar por ele. A sensação glacial que me atinge quando o jato frio do
chuveiro embebeda meu corpo. É dolorosamente prazerosa.
— Porra. — chio, apreciando.
Corro uma mão pelo rosto, tomando cuidado com o hematoma, e a
deslizo pelos fios curtos e encharcados do meu cabelo. Eu apenas permaneço
debaixo de toda a cascata de água. As coisas ficam fodidas no instante em
que meu cérebro rebobina a conversa que eu tive com Brooke mais cedo.
Trazendo pensamentos que eu não deveria ter à tona. Irritado comigo mesmo,
travo a válvula e saio do box. Pego uma toalha limpa e retiro todo o excesso
de umidade, enrolando-a em minha cintura.
Estou ferrado.
Eu sabia, desde o início, que morar aqui teria mais contras do que prós.
Não que eu goste de admitir, mas fode minha cabeça estar tão perto dela.
Dividir o mesmo maldito espaço. Preciso sair dessa casa. Foi uma ideia de
merda ter cogitado viver sob o mesmo teto que Brooke, pressupondo que
seria uma tarefa fácil. Quando retorno ao quarto, pego meu celular e digito
uma mensagem para Cameron Delgado, uma das amigas da Montgomery,
dizendo que mudei de ideia sobre a transa que ela sugeriu. Não espero uma
resposta imediata, obviamente.
A garota é uma cobra invejosa que ficou no meu radar desde o dia que
o boato referente ao beijo que Avalon e eu protagonizamos se espalhou como
um vírus pelo GEC. No entanto, percebi o modo como sua atenção voou para
Matteo DeLuca. Ela não conseguiu tê-lo, acredito. Por esse motivo está
tentando um novo jogo comigo. Bem, que se foda. Não dou a mínima. Meu
interesse em Cameron é tão superficial quanto seu silicone. Largo o celular
na mesa de cabeceira e capturo uma nova garrafa de vodca do meu estoque
privado de bebidas que mantenho dentro do guarda-roupas. Arrancando o
lacre, destampo e dou um gole. O líquido faz um rastro agradável de ardor
correr pela minha garganta.
Mesmo apreciando, opto por descartar a bebida no terceiro gole. Tenho
treino em poucas horas e não desejo que o treinador Sawyer me coloque em
sua mira. Deixo as persianas abertas para que a luz de fora entre e diminuo a
temperatura do ar-condicionado, me preparando para me deitar outra vez. Um
ruído suave ressoa da porta. Somente ao ouvir o barulho, me recordo de não a
ter trancado. A porta é aberta devagar e eu sei quem está entrando antes
mesmo de enxergar a pequena silhueta que surge no batente.
Puta que pariu.
Rosno um xingamento quando a figura de Brooke dá um passo à frente
e invade meu quarto de modo sorrateiro.
— Que merda você está fazendo aqui? — esbravejo.
Ela pula assustada e fecha a porta atrás de si com cuidado.
— Não grite! — sibila, voltando-se para mim.
A vontade de arrancar meu cabelo se torna visceral quando passo as
mãos por ele e percebo que uma camisola preta, transparente, e meias da
mesma cor, na altura dos joelhos, são as únicas coisas que cobrem seu corpo.
Jesus Cristo.
Embora a iluminação seja fraca, sou capaz de ver a forma de sua boceta
através do tecido fino. Não há qualquer sinal de calcinha. Caralho.
Um novo rosnado, dessa vez soando estrangulado, escapa do fundo da
minha garganta assim que esfrego o rosto, esquecendo o ferimento em meu
supercílio. A dor me deixa ainda mais furioso, mas a situação se torna dez
vezes pior quando Brooke, sem aviso prévio, se lança na minha direção e fica
na ponta dos pés para agarrar minha cabeça, inclinando-a para baixo a fim de
verificar meu rosto.
Ela é tão pequena. A diferença entre nossas alturas deve ser de quase
quarenta centímetros e... Porra. Quase gemo de irritação ao constatar que
parei no tempo para calcular isso.
Nossos olhos se encontram na fraca penumbra por um momento e os
lábios dela se abrem, indicando algo que não decifro. Receio? Nervosismo?
Por um segundo, acho que ela enlouqueceu e quer que eu a beije. No
entanto, tudo o que Brooke faz é usar as mãos para me examinar.
— Doendo muito? — sussurra.
— Me solta. — sibilo meu aviso, me preparando para afastá-la.
— Você me ajudou. — ela morde, irritada. — Me deixe fazer o mesmo.
— Não.
— Por quê?
— Situações diferentes. Além do mais, não quero a sua ajuda.
— Estou em dívida com você. Não quer que fiquemos quites?
Eu a evito desde que coloquei os pés nessa casa. E tudo isso para quê?
Para tê-la no meu quarto vestindo quase porcaria nenhuma? Fala sério.
O Universo só pode estar querendo tirar uma com a minha cara.
— Bela proposta. — devolvo sarcástico. — Mas eu recuso.
Posso ver sua paciência esvaindo-se como fumaça ao vento.
— Nós precisamos conversar.
Então, finalmente chegamos ao ponto principal. Uma pena, para ela,
que eu prefira perder um braço do que ceder ao seu desejo.
— Não. — recuso, dando um passo para trás e colocando uma distância
considerável entre nossos corpos. — Dê o fora, Brooke.
— Drogo...
Impedindo-a de prosseguir com sua fala, prossigo:
— Por que você acha que eu não fui verificá-la depois do que aquele
verme fez? Era o mínimo do mínimo. Algo que qualquer ser humano decente,
no meu lugar, faria. Eu não fiz, Brooke, porque queria evitar uma situação de
merda. E, veja só, — sorrio com ironia. — você está lutando para trazê-la até
mim. Apenas pare e esqueça. Não sou um herói. Na verdade, me empenho
para ser o exato oposto na sua vida.
Espero que sua reação seja imediata, mas nada vem. O que acabei de
falar deveria ser o bastante para fazê-la acertar meu rosto com um tapa forte e
sair do meu quarto como um furacão. Contudo, recebo somente um olhar
afiado. Sua postura se torna mais feroz e a carranca que cobre o rosto dela
esbanja impaciência.
— O que é essa expressão em você? — seu sorriso é contido e gentil,
contrastando com o tom maldoso em sua voz suave. — Decepção?
Minhas narinas dilatam.
— Brooke...
Dessa vez, eu que sou interrompido.
— Desista. Não vou sair correndo com o rabo entre as pernas somente
porque você está agindo como um cretino intimidador. Portanto, eu o
aconselho a parar por aqui. Me odeie ou despreze como quiser, Drogo, você
sempre vai me conhecer melhor do que qualquer outra pessoa. Deste modo,
sabe perfeitamente que só vou esquecer o que aconteceu após uma lavagem
cerebral. — dispara. — Estou cansada, e sei que é recíproco. Não é uma luta
recente. Estamos mergulhados nessa areia movediça há muito tempo e eu não
aguento mais tentar sair. Porque, no fundo, a verdade é que não existe
escapatória.
Minha mandíbula tensiona ao som de suas palavras, pois cada uma
delas faz algo comigo. Estou furioso pela coragem que Brooke resolveu
adotar para si. É prejudicial. E eu não posso arriscar cair por ela mais uma
vez. O problema é que, mesmo consciente quanto a isso, não sou capaz de me
ouvir com clareza como deveria. Faço a única pergunta que minha mente
bagunçada e entorpecida pode formular no momento:
— O que você quer?
Ela se aproxima de mim, sustentado o olhar que a direciono, fuzilando-
a.
— Sua honestidade. — murmura, enfeitiçando-me. — Prometi que não
o deixaria me quebrar. Mas como posso cumprir essa promessa, se eu
estilhaço toda vez que você está perto? É errado, nocivo e, devido ao que
somos agora, também é nojento.
No entanto, não há nojo em suas palavras. Tudo o que ouço
impregnado nelas é agonia.
Por um instante, me vejo tirando-a desse quarto à força. No fundo, é
exatamente o que anseio. Quero dizer que não a suporto e que a única coisa
que sinto por ela é desprezo, porque sei o quão errado é o jeito que estamos
nesse momento — até mesmo para alguém como eu.
Eu a odeio. Sei que a odeio. Ainda assim, estaria mentindo se dissesse
que não a desejo. Brooke foi a primeira pessoa que conseguiu entrar no meu
coração oco. E por mais que eu queira expulsá-la, eu não posso.
Estou em silêncio, absorvendo o que sai de sua boca por tempo
suficiente para que ela faça outra pergunta.
— Você sente?
Capturo o vislumbre de suas íris azuis, minha mandíbula tensionando à
medida que me perco nelas.
— Brooke. — estalo, percebendo que estou perdendo o jogo.
— Você sente? — ela repete. — Sente que somos ligados por sangue?
Viro o rosto para o lado, genuinamente irritado pela mísera perspectiva.
A mão dela, gélida e pequena, descansa contra meu maxilar.
Sou forçado a encará-la por causa do contato.
— Brooke. — tento mais uma vez.
— Eu não sinto. — bebo cada gota de sua revelação. — Você não é
meu meio-irmão. Mas, se disser que estou errada, e que sente o contrário, eu
saio deste quarto. Juro que esquecerei cada memória, e irei aceitar seu ódio.
Meu único pedido, entretanto, é que você seja honesto comigo. Conosco.
— Não. — minha réplica vem rápida demais. — Nunca foi um sim
para mim. E nunca vai ser.
Eu me fiz esse mesmo questionamento dezenas de vezes desde que tive
acesso ao testamento, e algo simplesmente não se encaixa. Não há como
sermos parentes, ligados pelo sangue. E eu me sinto aliviado em saber que ela
possui o mesmo pensamento.
— Você não sente.
— Não. — reafirmo, indo contra todas as regras ao agarrar seu corpo e
erguê-la em meus braços. — Não sinto.
A ponta de seu nariz desliza pela lateral do meu rosto no mesmo
instante em que a calidez de sua boceta esfrega contra meu pau.
— Drogo?
— Sim? — resmungo rouco.
— Você nunca vai me perdoar, não é?
Sua pergunta deveria me fazer acordar para a realidade fodida em que
estamos. Mas nem mesmo ela tem poder o bastante para erradicar isso.
É tarde. Seu perfume doce e suave dança em meu olfato, confundindo
meus sentidos e me deixando embriagado por ela. Não há como voltar.
— Nunca. — despejo, porque é a verdade.
Trilho uma mão até sua nuca, segurando-a com força, e deposito um
beijo na pele lisa de seu pescoço, provando seu gosto com meus lábios.
Alguma coisa quente pinga em meu ombro, deslizando pelo lado direito
do meu peito. Fecho os olhos quando percebo que ela está chorando. Estou
ciente de que almejo punir essa garota, e que ainda pretendo obter cada
resquício de tristeza que seu corpo seja capaz de produzir. Contudo, quanto
mais eu me forço para trazer toda minha raiva habitual de volta ao jogo, mais
percebo que o veneno de sempre não está presente. Brooke suspira e se
contorce quando chupo a curva entre seu ombro e pescoço, marcando-a.
Quando a manhã chegar, tudo será problemático. A lembrança vai ser feia e
torcida, errada em níveis cataclísmicos. Mas não dou a mínima. Não me
importo sequer com a porra do minuto seguinte. Eu me importo com o agora.
E, agora, tudo o que tenho em mente é a necessidade de manchá-la de um
modo irreversível.
A tristeza em seu rosto se dissipa, sendo substituída por ferocidade.
Tensiono o maxilar ao ter suas unhas fincadas em minha carne.
Nossos olhares colidem e eu me perco na imagem de seu rosto. Ela é
perfeita. E é minha obsessão.
Estive sonhando com seu rosto todas as noites, e em cada um dos
sonhos, eu a tomei de inúmeras maneiras depravadas. Pretendo fazer isso
hoje.
— Você me deseja?
— Sim.
— Você me odeia?
— Sim.
Brooke respira vagarosamente, separando os lábios cheios e rosados. A
visão rouba minha lucidez, tornando meu raciocínio lento.
— Você ainda me ama tanto quanto eu amo você?
O silêncio profundo que preenche cada centímetro do quarto faz
parecer que o tempo parou. Então, dou a Brooke o que ela deseja.
Porque, foda-se, essa também é porra da verdade. Inverto os lados,
andando até um dos pilares próximos à cama.
Suas costas colidem contra o mármore frio com um baque surdo,
fazendo-a perder o fôlego pelo impacto.
— Sim. — finalmente rosno minha resposta.
Nossas respirações profundas e irregulares se misturam. Sem aviso
prévio, ela agarra a bainha da camisola que está vestindo e a puxa para cima,
descartando-a no chão. Em seguida, seus dedos se movem na direção da
minha toalha, roçando em meu abdômen ao trabalhar para tirá-la de mim.
Segundos depois, meu pau dolorosamente duro salta livre, encaixando no
meio de sua bunda perfeita. O contato me faz trincar os dentes.
Nossas bocas estão separadas por uma linha fina e invisível, a qual eu
parto ao ouvi-la sussurrar:
— Você já me mostrou o quanto me odeia. Mostre-me agora o quanto
me ama.
VESTÍGIOS DO PASSADO

“Então essa coisa se tornou tão má


Eu não sei por que ainda estou surpresa
Mesmo os anjos têm seus planos perversos
E você leva isso para novos extremos
Mas você sempre será meu herói
Embora tenha perdido a cabeça”
— Love The Way You Lie (Parte II) | Rihanna

O FÔLEGO É ROUBADO DOS meus pulmões, que contraem ao


ponto da dor, quando a língua quente e impetuosa de Drogo faz seu caminho
para dentro da minha boca.
Eu o recebo com tanta sede e voracidade que, por um segundo, estou à
beira de colapsar. Saboreio cada gota de ódio que o beijo exala, devolvendo
tudo na mesma intensidade. Não é uma carícia de amantes apaixonados, é um
embate agressivo entre duas pessoas que se amam e se odeiam. Mesmo
depois de partir seu coração e dilacerar sua confiança, eu esperei pelo
momento que estaria em seus braços. Sonhei com este dia. E embora as
circunstâncias sejam as piores, e o que dividimos não passe de uma coisa má
e problemática que fica pior a cada instante, eu o quero.
Sempre o quis.
O aperto que Drogo mantém em minha nuca é doloroso, mas eu devo
ser masoquista, porque anseio pelo lado brutal dele. Seus lábios subjugam os
meus, fazendo-me arfar. Minha visão está parcialmente nublada e meu peito
sobe e desce de modo frenético quando o beijo é partido. Nossas testas são
pressionadas uma na outra enquanto o olhar escurecido dele aprisiona o meu.
Arrasto uma das mãos que tenho em seu ombro até a parte de trás de seu
pescoço, trazendo-o para mim. A possibilidade de um choque de lucidez ter
decidido cair sobre sua cabeça agora, tornando-o prudente, é deletada quando
enxergo o que está além do temporal de ódio que descansa em suas íris. É
desejo. Puro e visceral.
— Não pare. — sopro meu pedido luxurioso e necessitado contra seus
lábios. — Não ouse parar.
Enrosco minhas pernas na cintura dele com mais afinco, impulsionando
meu corpo para cima ao segurar com firmeza seu cabelo.
Com um grunhido raivoso, Drogo volta a atacar minha boca. Dessa
vez, mais animalesco.
Eu gemo. Seu peitoral maciço esmaga meus seios à medida que nossos
corpos suados dissipam toda e qualquer mínima distância que nos separa.
De repente, medo súbito me engloba e eu interrompo o beijo, fazendo
um pedido inesperado.
—Não tire as minhas meias.
Seu olhar afiado estreita em confusão, mas logo o tenho resmungando
em concordância.
— Como quiser.
Um ruído entrecortado rola para fora da minha garganta quando Drogo
inverte as posições.
Me segurando pela cintura, e como se eu não pesasse absolutamente
nada, ele suspende meu corpo, posicionando minhas pernas sobre seus
ombros musculosos. Estremeço ao sentir o mármore gélido do pilar punindo
minha carne. A realidade me atinge e meu coração acelera.
Porém, todos os pensamentos que tenho somem quando seu hálito
quente bate contra minha boceta nua e aberta.
— O que estamos fazendo não altera nada. Assim que deixarmos este
quarto, tudo volta a ser como era. — vocifera, um sorriso perverso curvando
o canto de sua boca. Então, sua língua se projeta para fora, umedecendo o
lábio inferior de modo predatório. — Contudo, enquanto isso não acontece,
aqui dentro você é minha. Você me pertence. E eu ainda a odeio, é verdade.
Mas, agora, vou te fazer gozar na porra da minha cara.
Primeiro dedo.
Segundo dedo.
— Oh! — engasgo.
Ele ri, sombrio.
— Abra essa doce boceta para mim, querida. Você está estrangulando
meus dedos.
Como se sua ordem obscena girasse uma chave, eu relaxo. Estou
quente e lubrificada naturalmente ao recebê-los, engolindo-os de bom grado.
— Boa garota.
No entanto, há mais.
Terceiro dedo.
Dentes.
Língua.
Eu sufoco, sucumbindo à invasão deliciosamente torturante que sou
submetida. Os ombros dele tensionam, e eu capturo a mudança abrupta assim
que ocorre, mas estou tão fora do eixo que não consigo raciocinar com
clareza. Seu polegar acerta meu ponto sensível, esfregando-o. Ainda estou
experimentando a sensação quando ele é substituído pelos lábios de Drogo,
como se me saboreassem com uma fome violenta.
Sou chupada como se estivesse sendo punida. É neste instante que
confirmo o que já tinha consciência; sou refém da doce agonia.
Me contorço e choramingo ao ter seus dedos me fodendo com mais
força, estocando-me até o fundo, queimando de dentro para fora.
Os únicos que já me penetraram antes foram os meus — dois.
Porém, ainda que eu chegasse a unir todos os cinco, percebo que nem
mesmo desse modo eles poderiam se comparar a três dos dedos de Drogo.
Cada resquício de lucidez que possuo escapa do meu alcance quando
excitação e desejo a letargiam. Eu gemo alto, ofegante e desesperada. Sua
língua impetuosa me devora, fazendo minhas pernas tremularem quando sou
tomada por um êxtase brutal. Balanço a cabeça de maneira frenética ao sentir
seus dedos, profundamente enterrados em minha boceta, se curvarem como
um gancho em meu interior, acertando com uma precisão dolorosa um ponto
que eu sequer imaginava existir.
— Oh, Deus! — grito, espasmando por inteira ao ser dominada por um
choque animalesco. — Drogo!
Gozo em sua boca sem qualquer sinal ou alerta prévio, jorrando todo
meu orgasmo nele. Minhas coxas se contraem, o apertando no processo, e o
som gutural que escapa de sua boca faz um arrepio se alojar em minha
coluna. Estou respirando com dificuldade. Meu cabelo suado se converteu em
uma cortina na frente do meu rosto, os fios grudando em minha testa. Toda a
bagunça que me tornei faz meus olhos arderem ao passo que lágrimas
começam a se formar. Porque noto que, pela primeira vez depois de ceder a
um orgasmo, o único sentimento que me controla é de deleite genuíno. A
fatídica sensação de sujeira que sempre me infectava depois que eu
experimentava me entregar ao prazer desapareceu. Nossos olhares colidem e
um calafrio percorre meu corpo quando Drogo puxa os dedos para fora de
modo vagaroso.
É estranho não os ter mais dentro de mim. A perda faz algo em meu
interior, todavia, estou esgotada demais para relutar. Tão esgotada que sequer
abro a boca para proferir uma mera sílaba quando ele me carrega até sua
cama, deitando-me sobre o colchão confortável em meio aos lençóis de seda.
A quietude no cômodo deixa meus ouvidos zunindo ao mesmo tempo que
meu corpo afunda devagar.
Eu relaxo ao ter o que eu presumo ser uma toalha deslizando por entre
minhas coxas pegajosas e doloridas. Usando o resto de energia que possuo,
abro os olhos. Após capturar o vislumbre da figura alta e suntuosa de Drogo,
volto a fechá-los.
— Quero que me responda uma coisa antes de adormecer. — ele diz,
de súbito. — Em determinado momento, eu a feri? Com meus dedos?
Há o rastro de algo implícito em seu questionamento, mas estou
esgotada demais para interpretar o que pode ser.
— Não. — é toda resposta que consigo entregar, soando sonolenta.
— Certo. — sua réplica é calma, contida, embora se faça presente
somente após longos segundos de silêncio no cômodo. — Durma.
E eu o faço.

Minhas pálpebras oscilam quando abro os olhos com dificuldade e


bocejo, lutando para me colocar sentada sobre o colchão.
Tudo que está embaçado ao redor começa a ganhar a forma devida
assim que os esfrego, recuperando boa parte do meu foco. A primeira coisa
que enxergo com clareza é a silhueta robusta de Drogo parada em frente às
longas vidraças do quarto parcialmente escuro.
— Você não dormiu? — balbucio meu questionamento, meu timbre
rouco fazendo as letras saírem arrastadas.
Franzo o cenho ao não obter uma resposta, porque sei que ele me
ouviu.
Estou a um passo de perguntar se há algum problema quando sua voz
quebra o silêncio instalado no ambiente.
— Saia do meu quarto.
Sua voz, embora raivosa, contém uma dose absurda de cinismo. Minhas
bochechas ardem com a mera possibilidade da humilhação, mas não dou a ele
o gosto da vitória. Ergo o queixo e fixo o olhar em sua estrutura, estreitando-
o ao ser obrigada a fitar suas costas, pois Drogo não se vira para mim.
— Se vai tentar me ridicularizar depois de me fazer gozar como uma
estrela pornô, peço para que o faça olhando nos meus olhos. — desafio
venenosa. — É o mínimo.
— O mínimo, hm?
Ao som dessas palavras, ele bate um dedo contra o interruptor do
abajur, nos retirando da escuridão em que estávamos mergulhados.
Em seguida, vira o rosto na minha direção. Suas feições contorcidas em
um misto de raiva e sarcasmo. As narinas dilatadas e o músculo em evidência
de seu maxilar se projetando para fora, entregam o quão puto Drogo está.
Tenho que confessar que, o que quer que seja, é bem pior do que eu havia
pensado. Por um instante, cogitei ser somente sua razão sendo recobrada, o
que consequentemente traria todo o ódio que ele nutre por mim à tona e o
faria agir desse modo. Olhando-o agora, confirmo que minha teoria estava
errada. É essa percepção que faz meu coração começar a acelerar.
— Drogo...
— Você disse que eu não a machuquei quando fodi sua boceta com
meus dedos. — ele sopra um sorriso maldoso. — Mas, veja só, você sangrou.
Toda a cor some do meu rosto. Eu pisco, lívida.
Estou ciente de que o hímen não possui terminações nervosas, portanto
seu rompimento não causa dor. Eu não estava tensa, então tudo o que
experimentei foi um pequeno e passageiro desconforto pela intrusão.
Independentemente disso, nunca pensei que poderia vir a sangrar.
Deus, isso não deveria ter acontecido. É mais do que ruim, é
catastrófico em níveis alarmantes.
— Talvez tenha acontecido. Talvez tenha cortado e eu...
— Pare de ser uma atriz, Andreotti. Não sou a porra do Edward Mãos
de Tesoura. — cospe, andando de um lado para o outro. — Além do mais, já
trepei o bastante com virgens para reconhecer uma quando meto dentro dela.
Tirei sua virgindade com os meus dedos cinco horas e meia atrás.
Não há como omitir ou refutá-lo, porque lembro-me de quando seus
ombros ficaram tensos ao fazer seu caminho para dentro da minha boceta.
Abro a boca, mas logo torno a fechá-la, pois não há o que dizer. Não
existe maneira de buscar uma mentira coerente para encobrir o meu deslize.
— Isto não quer dizer nada. — declaro, fazendo-o soltar uma risada
alta e furiosa.
— Merda nenhuma. — esbraveja. — Olhe para si mesma, está pálida E
eu sou capaz de ouvir seus batimentos a milhas de distância.
Para enfatizar sua declaração, ele ergue as mãos e bate palmas,
imitando o ritmo desenfreado do meu coração. Engulo em seco.
— O que eu não entendo é: como você pode ser virgem se eu a flagrei
fodendo com a porra do meu melhor amigo na minha cama, querida?
Então, a constatação explícita do que eu mais temia ouvir saindo de sua
boca explode bem no meio do meu rosto. Toda a farsa do passado.
A mentira que arquitetei para mantê-lo longe de mim com o único
intuito de não o arrastar para a imundície que me cercava vem por água
abaixo. Nunca quis partir seu coração, muito menos fazê-lo me odiar, mas
tive que fazer. Por causa do que ocorreu comigo na infância e em
determinada parte da minha adolescência, eu me sentia como uma erva
daninha, prejudicando as coisas boas que estavam muito perto.
Drogo estava. Sempre esteve. E eu carregava tanto nojo da minha
existência que simplesmente não aguentava a ideia de sujá-lo com minha
feiura. Por esse motivo, fiz uma coisa horrível.
Muitas dores são difíceis de suportar, mas a dor de uma traição, quando
se ama verdadeiramente alguém, é como uma ferida profunda e exposta. Eu
sei que, mesmo se eu disser toda a verdade, nunca serei perdoada. Não há
como esquecer uma imagem que nos destroça de fora para dentro.
É lembrança eterna. Nos tornamos duas almas quebradas e perdidas.
Portanto, estaremos eternamente fadados a ter um final triste.
Uma lágrima cálida e solitária desliza devagar pela maçã da minha
bochecha direita, aquecendo a pele fria.
Desisto de uma guerra.
Puxo o lençol para o lado e coloco os pés no chão, sem proferir
qualquer réplica para sua acusação anterior. Drogo não se move, embora seus
olhos estejam fixos em cada movimento que eu executo até agachar e
recuperar minha camisola no chão.
— Brooke. — a raiva que meu nome carrega em seu timbre é como um
soco no estômago, fazendo-me respirar fundo e com dificuldade.
Não respondo.
Deslizo o tecido rendado por cima da minha cabeça e o ajusto em meu
corpo, mergulhada em silêncio profundo.
— Brooke. — ele tenta de novo, no entanto, há um rastro de agonia
desta vez.
Meu coração se parte e mais lágrimas não derramadas se acumulam nas
bordas dos meus olhos, nublando-os. Morrendo para colocar uma distância
entre nós dois, me movo em direção à porta.
— Não sei o aconteceu para você mentir tantas e tantas vezes, mas não
acabamos. Não até que eu obtenha a resposta para todas as perguntas.
— Será um tiro no escuro. — decreto, sem me virar. — Você é mais
esperto do que isso, McAllister. Sendo assim, o conselho que eu dou é:
desista.
— Não importa o quão firme esteja essa sua maldita fachada, Brooke,
eu vou trazê-la abaixo. — marco suas palavras, porque sei que ele pode.
A verdade mais absoluta, ainda que eu queira me negar com todas as
forças a aceitá-la, é que Drogo é o único capaz de o fazer. Ele sabe, eu
também.
— Boa sorte.
Silêncio.
O qual se dissipa quando Drogo destrói o espaço que nos separa,
pairando atrás de mim com sua aura nebulosa. Um calafrio percorre meu
corpo de imediato. Sem dizer nada, ele agarra a maçaneta, girando-a, e abre a
porta. O gesto não poderia ser mais claro. Me apresso para sair, parando no
corredor ao ouvir sua declaração final:
— Estou fora desta casa até que você decida parar de ser uma
mentirosa do caralho.
Giro a cabeça, procurando seu olhar por cima do ombro. Realizo a
pergunta antes mesmo de poder raciocinar devidamente.
— Para onde você vai?
Me arrependo de fazê-la no instante em que flagro o canto de sua boca
se erguer em um meio sorriso obscuro e diabólico.
— Não é da sua conta.
E bate a porta.

Duas noites se passaram desde que Drogo saiu de casa sem deixar
sequer nas entrelinhas para onde iria.
Quero me obrigar a não dar a mínima, mas não posso. Não quando
preciso contar essa mentira para mim mesma. Nunca pensei que uma noite de
prazer seria tão danosa. A luxúria é como uma arma carregada às vezes. Com
um suspiro cansado, seguro o pingente do meu colar e inclino a cabeça contra
o tronco da árvore que Summer e eu estamos encostadas, encarando o céu
limpo que aos poucos se torna nublado.
— Então, o que você sugere?
— Um teste de DNA. — diz rapidamente, arremessando a última
pipoca do pacote dentro da boca.
Em seguida, ela fica de pé e limpa a parte de trás do short de ginástica
preto que está usando.
— Não é tão fácil. — contraponho.
Eu não contei nada referente ao que houve entre mim e Drogo na noite
que invadi o quarto dele, apenas resolvi dizer que não sinto que estejamos
ligados por qualquer laço consanguíneo. Precisava colocar para fora, e por
mais irracional que possa parecer, confio em Summer para debater sobre este
tipo de assunto. Diferente de Blake, ela não é uma tagarela. Minha irmã
costuma dar com a língua nos dentes sem nem ao menos notar que o faz.
— Oh, por favor, Bee. É fácil, sim. — devolve, apoiando as mãos na
cintura estreita. — Eu mesma posso fazer, inclusive.
Reviro os olhos, cética.
— Não estamos nos falando há quase dois dias. Então, não é como se
eu pudesse simplesmente chegar e dizer “Ei, Drogo! Você poderia, por favor,
me deixar arrancar um fio de seu cabelo? O quê? Oh, para usar em um teste
de DNA e comprovar que não sou sua meia-irmã!” — enceno, sarcástica.
Desta vez, Summer quem revira os olhos.
— Pedir? — ela estala, arqueando uma sobrancelha. — Eu não quis
insinuar nada referente a pedir, querida. Consiga um taco de beisebol e... Na
verdade, delete isso. Grayson tem um, a Elizabeth, posso ser sorrateira e
pegá-la. Portanto, me dê apenas uma tesoura ou uma seringa com agulha.
— Parece um plano de assassinato. Sendo assim, estou totalmente
dentro. — a voz animada de Leo quebra no ar, nos assustando.
Juro por Deus, esse garoto é como um gato. Silencioso e preciso
quando se trata de atacar. É um pouco assustador.
— Não vamos matar ninguém. — esclareço.
— Não minta para mim, doçura. — ele ronrona, empurrando uma parte
do cabelo castanho atrás da orelha. — Diga-me, quem será a vítima?
— Você. — alfineta Summer, adotando uma postura maldosa. — Se
não falar baixo, cuzão.
Com o canto do olho, vejo alguns estudantes que estão espalhados pelo
jardim atentos a nossa conversa.
— Por acaso compraram ingressos, crianças? — ela grita, cinismo
escorrendo de seu questionamento afiado. No mesmo segundo, todos os
curiosos presentes se apressam para garantir uma certa distância,
desaparecendo assustados. — Foi o que eu pensei!
— Você é uma coisinha diabólica, Gautier. — Leo graceja. —
Rebobinando, bonecas, o que planejam fazer com um taco e uma seringa?
— Nada. — elucido.
É inútil, porque logo após o que digo, Summer despeja:
— Tirar sangue do capitão do time de hóquei.
Começo a repensar minha opinião sobre ela não ser uma tagarela.
— Gostei. Um risco eminente à saúde, porém, muito tentador. Eu
poderia me certificar de nocauteá-lo. — divaga malicioso. — Mas não posso
deixar que aconteça. O GEC está no primeiro lugar da liga estudantil graças
ao McAllister e ao DeLuca, o que faz uma certa pessoa feliz e poupa meu
belo traseiro bronzeado de ser chutado.
— Que pessoa? — indaga Summer, desconfiada.
— O treinador Sawyer.
Sua postura vacila ao som do nome dele, e eu capturo a reação de
imediato. Hora de fazê-la saborear um pouco do próprio veneno.
— Por falar no treinador. — me viro para fitá-la. — Gautier, o que está
achando dos treinos?
Ela abre a boca, depois fecha.
Então, abre novamente, somente para fechar de novo.
— Nada. Tanto faz. — sua resposta balbuciada não faz sentido, o que
me obriga a esconder um sorrisinho vitorioso.
— Muito intensos? — pressiono.
Leo, confuso com nosso diálogo, desiste de o acompanhar e desvia seu
foco para o refeitório, lançando uma piscadela para uma das líderes de torcida
que o encara sem preservar a discrição. Os dois iniciam um flerte, o qual eu
ignoro para me fixar na garota loira que está prestes a ter um colapso diante
de mim.
— Mais do mesmo.
— Realmente?
— Aonde você quer chegar com este interrogatório, Brooke?
Dou de ombros.
— Lugar nenhum.
Uma risada nervosa e irritada escapa dela, desbancando-a.
— Ele é um homem das cavernas que tem prazer em transformar minha
existência num inferno.
— Honestamente, o treinador é bom em desempenhar o papel de
carrasco.
— Carrasco? — estala incrédula. — Ele é mais do que um carrasco. É
um desgraçado sem escrúpulos, diabólico, cretino, infeliz, e muito...
Suas ofensas se perdem no ar, ganhando a atenção de Leo, que nos
assiste com um quê de curiosidade descansando em seu rosto.
— Muito?
— Muito...
— Gostoso? — sugiro como quem nada quer.
— Gostoso. — ela deixa escapar num suspiro lamurioso. Então, seus
olhos se arregalam em puro horror, quase saltando das órbitas. Tudo o que
faço é sorrir. — O quê? Pelo amor de Deus, não! Eu o odeio. O homem é
uma dor constante no meu traseiro. Aliás, como chegamos a este assunto?
— Não faço ideia.
Como se o destino também quisesse ver minha amiga bastante
desconfortável hoje, nada menos que o treinador em carne e osso surge no
meu campo de vista, caminhando com toda sua imponência na direção que
nós três estamos.
Summer não é capaz de notá-lo, pois ainda está de costas. Entretanto,
seu corpo tensiona de súbito assim que Leo e eu saudamos em uníssono:
— Treinador Sawyer.
Meus olhos escorregam dele para ela, e eu tenho que morder os lábios
para manter uma faceta distante ao apreciá-lo de perto. Seus olhos azuis —
quase tão escuros quanto a pintura do céu noturno — são de tirar o fôlego.
Acima da íris esquerda, há uma pequena mancha na cor marrom, dando a ele
uma aura exótica e sensual. Músculos maciços esticam o tecido azul-marinho
do uniforme que cobre sua estrutura. O treinador deve ter pelo menos 1,96m.
Seu farto cabelo castanho foi passado para trás várias vezes, pois está
bagunçando no topo, e a carranca perpétua de ira, sua marca registrada,
contrasta irrevogavelmente bem com seu nariz aristocrático e a sombra de
barba que pincela seu maxilar cerrado.
Parando para pensar, é doloroso saber que muita gente vai morrer sem
ter a oportunidade de fazer sexo com ele.
Afasto esse pensamento quando observo a troca de olhares entre ele e
Summer, no instante em que os dois ficam cara a cara.
— Boa tarde. — resmunga, fixando-se nela em seguida. — Espero que
você ainda não tenha trocado de roupa, Gautier.
Um brilho explícito de desafio se instala em suas íris verdes quando ela
semicerra os olhos, cruzando os braços.
Não perco a veia que salta no pescoço do treinador quando Summer
adota uma postura hostil.
— Qual é o problema? Este short é mais longo do que o anterior.
— É um short? — sua pergunta retórica sai repleta de sarcasmo. —
Achei que fosse uma calcinha.
O queixo dela quase toca o gramado. Sua boca se abre em um “o” de
pura indignação, enquanto Leo e eu ficamos em completo estado de inércia.
— Perdão? — ela brada incrédula.
— Sua bunda está totalmente à mostra.
— Então, pare de olhar, babaca!
Nossas sobrancelhas alcançam a linha do couro cabeludo. Eu sabia,
desde que os dois começaram a se dirigir um ao outro, que não haveria a
mínima possibilidade de acabar bem. Apesar disso, nunca cogitei que o
treinador pudesse apertar tanto o botão de Summer a ponto de fazê-la
explodir desse jeito. As pessoas costumam enlouquecer por causa dele, mas
jamais um estudante chegou tão longe assim.
Espero uma reação ainda pior da parte dele, contudo, a única coisa que
o vejo fazer é respirar devagar, prendê-la com um olhar maligno, e exibir um
sorriso ferino de lobo, fazendo toda a ira que nossa amiga exala, evaporar
como água aquecida.
— Detenção. — ele sentencia, calmo.
Sua versão impassível é mil vezes mais assustadora, constato.
— O quê?
— Você ouviu: detenção. Eu a quero na sala de detenção assim que o
treino da tarde acabar. — completa. — E agradeça por ser somente isso, e
não uma expulsão. Você pode achar que domina esse colégio por causa de
sua riqueza, Gautier, mas não funciona desse jeito. Não comigo.
Permanecemos em silêncio, absorvendo sua declaração. O rosto
bronzeado de Summer está num tom vibrante de vermelho e seu peito sobe e
desce com dificuldade. Todavia, ela não é capaz de argumentar ou se opor,
pois o treinador dá as costas e começa a se mover para longe de nós depois de
pedir licença.
— Não é justo! — atira de volta, exaltada.
— Eu decido o que é ou deixa de ser justo, Barbie Surfista. Por
exemplo, seu uniforme e sua conduta, ambos vão contra todas as regras
possíveis e impossíveis. Troque-o, e adquira um pouco de lucidez no
processo, e não terá que passar por esta situação uma segunda vez.
— Vou entrar em contato com o diretor Carson!
Sua cabeça gira em uma velocidade absurda, como se a menção ao
nome de Eric o causasse um tipo de fúria eminente.
Suas feições contorcidas só reforçam essa ideia. Bem, pelo visto não
sou a única que nutre um sentimento negativo pelo proprietário do colégio.
— Por mim você pode entrar em contato com a rainha. — sibila. —
Você está no meu território. Aconselho-a a não me ameaçar, não é prudente.
A imagem das costas dele é tudo o que recebemos quando o vemos
desaparecer mais à frente.
— Que diabos foi isso? — Leo indaga. — Perdeu a noção, Gautier?
— Estou ferrada. — ela choraminga. — Oh, Deus, eu o odeio tanto!
— Corra atrás do prejuízo. — sugiro, embora possa não ser a melhor
proposta. — Faça um bom treino e tente remediar o estrago. Ninguém quer
tê-lo como inimigo, já vi muitos estudantes saírem do GEC por menos. Você
o chamou de babaca, Summer. É algo corajosamente burro de se fazer.
Seu suspiro é audível e cansado, escancarando seu arrependimento.
— Não o ofendi por querer.
— Tem certeza?
— Leo. — repreendo.
— Desculpa. Enfim, se eu fosse você faria o que a Brooke disse. Aliás,
até onde eu sei, seu treino começa em dez minutos. Por que não se apressa?
Ela o fuzila com um olhar afiado.
— É horrível ter que confessar que você tem razão, Ballister. —
anuncia, depositando um beijo em nossos rostos. — Obrigada. Vejo vocês
depois.
Nós dois ficamos sozinhos quando Summer corre para longe.
— Bem, vamos para a sala, doçura. Temos aula da Meany Ranheta. —
recorda, descendo para o refeitório.
Ele apelidou a Sra. Keith, nossa professora de Estudos Sociais, dessa
forma. O pretexto é que, para Leo, a voz da mulher é tão irritante quanto a da
personagem do pica-pau.
Viro-me para pegar meu bloco de notas que está no gramado, quando
uma cena na entrada do vestiário das líderes de torcida prende minha atenção.
Estreito os olhos, o vinco entre minhas sobrancelhas enrugando à medida que
percebo de quem se trata.
Matteo DeLuca e Avalon Montgomery.
Os dois parecem estar trocando farpas, mas não faço ideia do que
dizem, pois estão ao longínquo e se enfrentam com cautela. Ele a encurrala,
descansando a mão esquerda ao lado da cabeça dela e pressionando a direita
na altura da cintura. Resfolego, chocada ao vê-la tentar acertar o rosto dele
com um tapa. Com uma calma chocante, DeLuca a segura ainda no ar e...
beija Avalon.
— Santa Mãe de Deus! — engasgo, num sussurro.
— Brooke? — Leo chama em sincronia com o ato, embora esteja
alheio. — Vamos logo. Parece até que você ficou fora de órbita no último
minuto.
— Hm. — quase gaguejo. — Lembrei que tinha algo para fazer e me
perdi no tempo, tentando lembrar do que se tratava. Enfim, podemos ir.
— Conseguiu lembrar?
— Não. Tenho certeza de que irei, em breve.
— Se você diz. — ele estende um braço, oferecendo-o para que eu
entrelace o meu.
Antes de aceitá-lo, dou uma última olhada para onde Avalon e Matteo
estavam. No entanto, não há sinal de nenhum dos dois. Pensei que os únicos
que se odiavam visceralmente eram Leona e o tal Grayson, mas vejo que há
segredos em excesso sob a superfície. Os californianos não são somente
caóticos, são diabólicos. Principalmente os mais estoicos e sofisticados deles.
No final das contas, é como dizem. São nas águas mais pacíficas que o
verdadeiro perigo se esconde.

O decorrer do dia, até a penúltima aula, passou com a velocidade de


uma lesma. A única pessoa que conseguiu torná-lo melhor foi Leo Ballister.
Blake está de cama, morrendo de cólicas, então teve que faltar hoje.
Drogo também não apareceu, já Summer teve que sair mais cedo, sua mãe
veio buscá-la. Não perdi os olhares sugestivos que Sierra Gautier lançou na
direção do treinador Sawyer durante o tempo que eles conversaram — muito
menos o quão furiosa sua filha ficou ao dar de cara com a cena.
Leo, fofoqueiro nato que é, disse que os dois eram conhecidos de longa
data. Por parecer uma história confusa, preferi não prolongar o assunto.
Há confusão demais em minha mente, não desejo adicionar mais
coisas.
O trovão que ressoa parece fazer o chão vibrar, eu oscilo ao me
assustar.
— Foda-se. É sério? — ele diz, num tom alto de incredulidade,
posicionando a bola oval no indicador e girando. — Mas vocês são gêmeas.
— Não quer dizer que temos o mesmo útero, gênio. — reviro os olhos,
tomando cuidado para que a chuva torrencial que banha a cidade não me
alcance muito. Os respingos atingem a calçada estreita que estamos
atravessando, nos encharcando parcialmente.
— Eu sei, eu sei. Porém, acreditava que ocorresse no mesmo dia.
— Perto, embora não no mesmo dia.
Com isso, a conversa bizarra que iniciamos sobre menstruação é
finalmente encerrada.
— Bem, vejo você amanhã, doçura. — Leo beija o topo da minha
cabeça. — Cuide-se.
— Certo. Você também. — eu sorrio, vendo-o lançar uma piscadela e
entrar na área em que ficam os vestiários dos jogadores.
Continuo meu percurso até o estacionamento, permitindo que um
suspiro escape dos meus lábios ao chegar nele.
Tudo o que eu quero é chegar em casa, tomar um banho e esquecer o
mundo fora do meu quarto. Estou esgotada física e psicologicamente. Parece
que, quanto mais luto para ser uma pessoa normal, mais os problemas
gravitam ao meu redor como uma nuvem escura e carregada.
Troco minha mochila de um ombro para o outro, massageando a pele
dolorida e marcada pela alça. Abro a porta e a jogo no banco de trás.
— Brooke, Brooke, Brooke. — meu nome cantarolado de modo
malévolo faz o sangue desaparecer do meu corpo.
Eu congelo com a voz que surge diante de mim. Meus batimentos
aceleram, descompassados.
É como se o mesmo pesadelo que vivi há alguns dias estivesse prestes a
ser recriado. Pânico se apodera do meu âmago, me deixando paralisada.
Eu o tive distante por tanto tempo que baixei a guarda, parei de evitar
lugares por medo. E tudo isso para quê? Para ser encurralada outra vez. Sou
forçada a encarar Eric quando ele surge na minha frente e captura meu
queixo, inclinando meu rosto. Sua aparência atual está tenebrosa. Um par de
círculos escuros contorna abaixo de seus olhos. Há pequenos cortes em seu
maxilar e bochechas, claramente causados pela retirada de sua barba. A
imagem é medonha, embora seu terno permaneça bem-alinhado. A visão me
dá enjoo, mas não tanto quanto seu perfume forte.
A fragrância enjoativa invade minhas narinas e eu me sinto tomada por
uma onda violenta de tontura.
— Estava com saudades? — ele chia. — Eu não ando com muita
paciência. Acredito que se dê ao fato de que senti sua falta, querida.
Dessa vez, não sou capaz de controlar minhas reações corporais. Eu
estremeço de nojo. Minha resposta involuntária o zanga, é evidente.
Forçando meu cérebro a retomar o raciocínio, busco uma maneira de o
fazer não se ater a este detalhe, trazendo à tona uma coisa que eu tenho
certeza de que irá capturar seu foco com rapidez genuína.
— Você havia esquecido da minha existência. — disparo nervosa. —
Por que decidiu voltar agora?
Carson ri. O som é fúnebre, medonho, e me faz hiperventilar por não
saber o que sua mente doentia está arquitetando.
— Eu nunca pretendi esquecer da sua existência. — seu rosto se
distorce. — Achou mesmo que aquela ameaça me faria ficar longe?
— Ameaça? — questiono sem entender. — Eu não sei do que você está
fal...
Antes que eu possa finalizar, sua mão fria e cadavérica envolve meu
pescoço, apertando-o consideravelmente. Meus olhos lacrimejam e eu tento
afastá-lo, usando a minha para remover a sua. Não estou sem ar ainda, mas
machuca o bastante para enviar uma onda de calafrios ao meu corpo.
— Eric...
— Nada vai me fazer ficar longe, Brooke. Se não acredita no que digo,
eu acho que vou ter que tomar medidas drásticas para evidenciar, não é?
Seu rosto, que estava a uma linha invisível de distância do meu, se
afasta numa fração de segundos. Eu perco o equilíbrio, titubeando.
Minhas mãos voam para o meu pescoço e eu massageio o local violado,
puxando ar para meus pulmões espremidos.
— Sabe quem foi ao meu escritório ontem? — o ruído de seus passos
ecoa em meus ouvidos como badaladas infernais. — Sua doce irmãzinha.
Ergo a cabeça bruscamente, esquecendo o caroço de desconforto que se
aloja no meio da minha garganta e avançando na direção dele.
— Seu desgraçado! — esbravejo, fora de controle, acertando um tapa
na lateral de seu rosto. — Fique longe dela!
Eric vira meu corpo, batendo uma mão contra minha boca e abafando
meus gritos. Continuo me debatendo, enlouquecida. Não percebo quando ele
escancara a porta do meu carro e me joga dentro da Range Rover, fechando
as portas. Sou empurrada para o banco do carona com brutalidade, me
atrapalhando ao tentar passar para ele.
— Fique quieta, vagabunda! — ordena num sussurro enfurecido,
fechando o punho e o acertando na minha têmpora direita quando me viro.
O golpe inesperado e doloroso me deixa fora do ar por vários instantes.
Arregalo os olhos, fechando-os simultaneamente ao piscar.
Tudo gira, desnorteando-me como se uma granada houvesse explodido
perto de onde estou. Meus tímpanos zumbem de modo gradativo, ecoando o
ruído fino e insuportável que ouço. Uma dor excruciante se aloja em todo
meu crânio e eu choramingo, recobrando aos poucos a noção da realidade.
Eric me bateu. Mais uma vez.
— Respire, querida. Vamos lá, sim? Volte para mim.
A quietude repentina que preenche o veículo, ajuda-me na
estabilização. Devagar, com uma certa dificuldade, torno a recuperar meu
foco.
— Brooke? — escuto-o me chamar, as letras continuam soando
distantes. — Oh, Brooke, abra os olhos. Eu nem a golpeei com tanta força
assim.
Esse maldito tom, eu sei o que significa. Estou prestes a lidar com seu
lado incriminador.
— Me deixe em paz. — imploro, segurando meus cabelos. — Me
deixei em paz. Desapareça como antes!
A única funcionalidade que o ato tem, é me fazer sentir dor e
compreender que esta não é uma cena fantasiosa. É real. Ele não vai
desaparecer.
Não há o que fazer. Minha saída é apenas enfrentar meu pesadelo.
— Pare de se exaltar.
— Você é louco.
— A culpa é sua. — e aí está. — Você me obriga a machucá-la,
querida.
Eric trabalha para me acomodar devidamente no assento. Em seguida,
retira o blazer e o joga no banco traseiro, ficando apenas de regata. Ridículo.
— Não encoste em mim. — ladro.
O latejar do golpe me persegue como um cão faminto, açoitando minha
têmpora machucada. Encaro o para-brisas fumê, vidrada no lado de fora, mas
sem enxergar nada. No começo, eu rezava para que alguma alma viesse ao
meu socorro sempre que eu caía nas garras deles, todos os locais eram
públicos, afinal. Eu não acreditava ser possível o fato de ninguém nos ouvir,
mas era. Por causa disso, desisti da ideia meses depois. É como se Carson
possuísse o poder de parar o mundo quando tem a intenção de me atormentar.
Nunca houve uma salvação, e nunca haverá. Estou sozinha. Sempre estive.
— Ouça, querida, garotas como você devem ser punidas. Sabe o
motivo? Vocês trazem à tona a pior parte de homens como eu, Brooke.
Gostaria de não estar acostumada com seu discurso misógino.
Entretanto, eu o escutei tantas vezes que se tornou um disco arranhado.
— Decrete sua punição de uma vez. — despejo exausta.
— Ainda não. Estou decidindo o que vou fazer. — declara,
acomodando-se no assento do motorista e vasculhando meus pertences. —
Sabe, é irritante sua postura. Você precisa colocar na sua linda cabecinha que
mulheres só existem para agradar os homens, serem nossas submissas. Não
há nenhum outro propósito para a existência ridícula da sua espécie. Vocês
são frágeis demais para conseguir fazer qualquer outra coisa. É o suficiente.
Todo o nojo dentro de mim é substituído por ódio. Mesmo a
comiseração que me aprisiona, roubando parte das minhas forças, é colocada
para escanteio. Por muito tempo, fui obrigada a escutar cada uma das
barbaridades ofensivas, cruéis, machistas e deploráveis que Eric proferia.
Chega.
— A cada dia, inúmeras mulheres morrem apenas por serem mulheres.
Vinte e quatro horas, para nós, é um labirinto obscuro onde temos que lutar
com todas as nossas forças se quisermos nos manter vivas. Não ouse abrir sua
boca imunda para nos degradar, porque já é horrível o bastante passar por
tudo o que passamos, somente por ser quem somos.
Ao fim da minha frase, a mandíbula de Eric aperta. Ele me direciona
um olhar assassino, contudo, nem mesmo um segundo golpe me faria recuar
agora. Esboço um curto sorriso e estreito os olhos.
— Recorra a força física e bata-me o quanto quiser. Me puna de formas
horrendas, se assim desejar. — eu cuspo, esticando sorrateiramente os dedos
para baixo com a intenção de localizar o metal frio com as pontas deles.
Estou meio deitada, meio sentada, portanto, a posição me ajuda a não entrar
no radar de desconfiança de Eric. No instante em que sinto o material gélido
esbarrar contra meu indicador, junto o dedo médio a ele e trago o objeto para
cima, segurando-o com firmeza, embora esteja trêmula. — Mas se você tocar
na minha irmã, não pense, nem por um mísero segundo, que eu continuarei
neste inferno em que fui submetida. Você criou um monstro, Carson, e vai
morrer pelas mãos dele.
Com um movimento ágil e certeiro, ergo a caneta que Blake deixou cair
no meu carro e a empurro na curva do ombro direito de Eric.
— Puta que pariu! — o grito que escapa de sua garganta é alto e
ensurdecedor, à medida que ele luta para arrancar o objeto cravado em sua
carne.
Não perco nem mais um segundo de sua agonia. Me lançando na
direção de seu corpo, luto para abrir a porta. Assim que consigo, faço uso das
duas mãos e empurro seu corpo magro. Não é uma tarefa fácil, suor em
excesso se acumula em minha testa e minha têmpora pulsa, protestando pelo
esforço. Ele reluta, agarrando meu pescoço e nos convertendo num ninho de
membros entrelaçados. Bato em seu braço, tateando os dedos para cima.
Alcanço a caneta, fechando o punho ao redor dela, e a pressiono mais fundo.
Sua estrutura espasma ao passo que ele uiva de dor, cedendo. Seu aperto
desaparece e eu finalmente sou capaz de jogá-lo para fora do veículo. O
estrépito que seu corpo produz ao colidir contra o piso do estacionamento,
ecoa por todo o local como um baque seco. Puxo a maçaneta e bato a porta
com força, voando para o assento do motorista. Elevo a proteção do botão de
partida, ligando a Range Rover.
— Brooke! — esganiça, cambaleando ao se colocar de pé. — Sua
vadia!
A careta que contorce seu rosto quando ele se livra da caneta é de outro
mundo. Sangue jorra do ferimento, manchando sua regata.
O motor ruge no exato instante em que Carson se lança na frente do
veículo, espalmando as mãos ensanguentadas no capô branco. Uma promessa
silenciosa e letal cobre seus olhos verde-musgo ao nos olharmos. Se ele
pressupõe que sua atitude suicida me impedirá de passar, está muito
enganado.
Ergo o dedo do meio.
— Vai se foder! — brado, e piso com tudo no acelerador.
Eric voa para o lado direito, sofrendo o impacto da queda, mas se
livrando de ser atropelado.
Sem olhar para trás, eu dirijo para longe. No trajeto, olho para cima e
vejo que o desgraçado foi ainda mais insano. Todas as câmeras foram
arrancadas. Se a intenção era me encurralar aqui sempre que desejasse, eu
devo alertar que ele chutou a bola para fora da rede.

Eric Carson pode querer me matar em breve, e até mesmo obter êxito
nisso. Mas não pretendo facilitar. Não mais.
Este é o pensamento que decreto em minha mente ao parar o carro na
frente de casa, depois de rodar com ele por quase duas horas inteiras. Me
automediquei com alguns analgésicos, o bastante somente para amenizar um
pouco a dor na minha têmpora. Inclinando o corpo na direção do banco
traseiro, pego o cachecol preto que deixo jogado ali para casos de emergência
e o posiciono envolta do meu pescoço, ocultando as marcas impressas em
minha garganta. Agora, estão mais evidentes. Sei que terei de recorrer à
maquiagem para esconder por pelo menos uns dois dias. O estrago não foi tão
absurdo graças à gola alta do uniforme, está apenas avermelhado. Apesar da
exaustão física e do emocional abalado, decido que não vou mais jogar as
coisas para debaixo do tapete por achar que é o melhor a se fazer, porque não
é. Nunca é uma saída prudente, embora pareça. Quanto mais você esconde
algo por medo, mais aquilo volta e te assombra. Pesco o pó de dentro da
bolsa e dou algumas batidinhas em minha face, cobrindo de maneira parcial o
inchaço que as lágrimas causaram. Por fim, prendo meu cabelo em um rabo
de cavalo, respirando fundo. Por enquanto, terei que voltar a encaixar a
máscara de atriz.
— Você consegue. — digo a mim mesma, observando meu reflexo no
retrovisor. — Você consegue. É mais forte do que todo esse tormento.
Erguendo a cabeça, abro a porta e saio. Uso o antebraço sobre a testa
para me proteger da chuva fina. Cessou bastante, porém, continua caindo.
Me atrapalho para digitar a senha do portão de entrada. Assim que a luz
em vertical é convertida de vermelho para verde e os portões se abrem, eu me
preparo para entrar.
— Olá, ma chérie.
Meu coração para de bater imediatamente. Essa voz. Eu a reconheceria
mesmo se estivesse no meio de uma multidão barulhenta.
— Jax? — sussurro, meus lábios se entreabrem quando nossos olhares
se cruzam e eu dou de cara com o herdeiro dos Gaillard.
O sorriso preguiçoso que eleva um dos cantos de sua boca traz
inúmeras lembranças do passado à tona, inclusive a daquela tarde.
— Bee, você está linda.
Então, algo surge além de mim, o fazendo desviar a atenção para o que
quer que seja. O sorriso dele, como se fosse possível, fica ainda mais largo.
Virando-me, acompanho a mesma linha visual. É quando localizo, em
meio à chuva, a figura colérica de Drogo se aproximando como um torpedo.
— E lá vamos nós.
Essa é a última frase que Jaxon consegue proferir antes que Drogo
feche o punho e acerte um soco brutal no maxilar de seu ex-melhor amigo.
CALIFÓRNIA?

“Nós não lidamos muito bem com pessoas de fora


Eles dizem que os recém-chegados têm um certo cheiro
Você possui problemas de confiança, sem mencionar
Eles dizem que podem farejar suas intenções”
— Heathens | Twenty One Pilots

ALGUNS ANOS ATRÁS

GERALMENTE, AS PESSOAS COSTUMAM adquirir uma


porcentagem exagerada de raiva ao perceber que gostam de alguém.
De fato, é uma dor no rabo, mas não me sinto dessa forma. Para ser
honesto, jamais me senti. Seria impossível. Como eu poderia, afinal? A
garota que amo desde os meus cinco anos de idade é tão doce e atenciosa que
me impede de estar enraivecido. Brooke Andreotti é meu completo oposto.
Paciente, gentil e sempre ajuda todos que a cercam — seja ser humano ou
animal. Em contrapartida, bem, eu sou eu. Ela me descreve como “uma força
da natureza”. Para minha consternação, não posso discordar.
Jaxon Gaillard, o bastardo engomadinho que é meu melhor amigo
desde a infância, não se cansa de dizer que não sou bom para uma garota
assim. Nas suas palavras, Brooke é muito suave e frágil, enquanto eu sou
uma máquina de violência. Um desastre eminente esperando para acontecer.
Certo, certo, nisto ele tem razão. Porém, em definitivo, não na parte que faz
questão de enfatizar que ela não nasceu para mim, porque nasceu. Ela é
minha. Tão minha que, embora sua boca permaneça exibindo apenas um
sorriso amável, eu sei que Brooke está com algum problema. Posso farejar
essa merda no ar, pois quando estou ao lado dela, percebo que algo não vai
bem. Mas, seja lá o que for, eu vou descobrir.
Atravesso o corredor a passos largos e pesados, fazendo o assoalho
emitir rangidos. A casa está vazia, graças ao fato de que minha mãe saiu.
Retirando do bolso o celular que ganhei de presente de aniversário na
semana retrasada, paro de andar e digito uma mensagem para Brooke. Digo
que precisamos nos ver hoje ainda para esclarecer certos assuntos. Minha
mãe não é muito fã dela, por isso só posso tê-la aqui quando estou sozinho.
Não sei a razão dessa animosidade. No entanto, é uma história com uma
bagagem de anos. Existe desde que nós dois éramos crianças. E o mesmo
ocorre com Sebastian Andreotti, pai de Brooke. Bem, que se foda ele. Não
estou dando a mínima para seu desapreço por mim, pois o sentimento é
recíproco pra caralho. Guardo o aparelho depois de dois minutos inteiros sem
obter uma reposta. Nunca ocorreu antes, minha resposta chega dentro de
meio segundo. Deslizo o polegar pela lista de contatos, contudo, opto por
tomar um banho primeiro.
De frente para a porta do meu quarto, decreto mentalmente que vou
fazê-la despejar tudo o que está aprisionado em sua cabeça. Se ela estiver
com medo de alguma coisa ou alguém, eu a protegerei a todo e qualquer
custo. Então, depois que resolvermos os problemas que ela carrega em
silêncio, vou tomar coragem para dizer o que eu deveria ter dito há anos.
Finalmente vou falar que, foda-se, eu a amo. Sempre amei. Namoramos em
segredo, mas eu quero trazer isso à tona de uma vez por todas.
Isto é, até que eu giro a maçaneta e a porta se abre, revelando um
cenário letal.
A garota que eu amo e o meu melhor amigo de infância. As duas
pessoas que eu mais confiava. Juntas.
Fodendo na porra da minha cama.

Bater em alguém, hoje, não estava nos meus planos.


Confesso que posso ser naturalmente agressivo, mas nunca sem uma
razão. Eu não sou do tipo que sai por aí distribuindo socos gratuitos. Deixei
minha merda quieta desde que me afastei do Carnivores. Apesar disso, há
certas ocasiões que apenas imploram pela minha ira. Eu decidi vir à mansão
Andreotti para pegar a chave reserva da minha Lamborghini, e escolhi
justamente esse horário, pois Blake, quando liguei para ela cinco minutos
atrás, disse que sua irmã não havia voltado do colégio ainda. Minha chegada
não deveria carregar um grama sequer de alarde. Tudo o que eu planejei foi
entrar, pegar e sair. Simples e nada dramático. Contudo, nenhum
acontecimento saiu como eu elaborei, porque o filho da puta que eu
costumava chamar de irmão antes de me apunhalar pelas costas, estava ao
lado de Brooke, conversando com ela e ostentando sua porra de sorrisinho
cínico — que se tornou ainda mais largo ao me ver se aproximando — como
se a traição do passado nunca houvesse existido. Por causa disso, agora tenho
meu punho fechado colidindo direto contra seu maxilar de playboy rico do
caralho.
— Oh, meu Deus! — escuto Brooke engasgar-se, pulando para o lado.
— Drogo, não!
Mas é tarde demais.
Gaillard aterrissa com violência no chão e eu vou para cima dele. A
chuva que banha o céu de Londres continua caindo, entrando em meus olhos
e embaçando parcialmente meu foco. No entanto, não é o bastante para me
parar. Sou como uma besta enjaulada que teve o cadeado da cela em que
estava preso arrebentado. A única cor que sou capaz de enxergar, neste
momento, é vermelho.
Jaxon agarra o colarinho da minha jaqueta, usando a mão livre para
devolver o golpe que eu havia desferido. Ser revidado me pega de surpresa.
No passado, eu sempre o protegia de valentões, nunca passou pela
minha cabeça a ideia de que ele poderia aprender a se virar sozinho algum
dia.
Acho que aprendeu, pois o impacto de seu soco contra meus lábios
rasga a pele, e logo o gosto metálico de sangue se espalha pela minha língua.
— Se você não o soltar, eu juro por Deus, que vou chamar a polícia!
Minhas narinas dilatam quando paro com o punho fechado a
centímetros de distância do rosto de Jaxon. Estou ciente de que ela chamaria.
E se fosse em outro tempo, eu não daria a mínima. Entretanto, estou com um
policial na cola por ter fodido a esposa dele. Somente por isso, prefiro não
arriscar. Na próxima oportunidade que eu tiver, embora, nem mesmo a rainha
vai ser capaz de me impedir. Gaillard arqueia uma sobrancelha escura,
virando a cabeça para cuspir. Então, volta a me observar com um quê de
cinismo explícito.
— Você ouviu a dama, chien enragé. — debocha. — Além do mais,
não é desse jeito que se trata um velho amigo.
Disparo mais um golpe, acertando precisamente seu supercílio direito.
Somente após isso, me obrigo a soltá-lo.
— Drogo!
— Filho da puta. — ele ri, desnorteado.
Me colocando de pé, seco o filete de sangue no canto da minha boca
com o dorso da mão.
— Por que você sempre tem que bater nas pessoas? — indaga Brooke,
exasperada.
— É um charme. — rebato mal-humorado, e reviro os olhos ao vê-la se
aproximar de mim como se esperasse que eu voltasse atrás e decidisse
transformar Jaxon em meu saco de pancadas. — Você pode relaxar,
Andreotti. Não pretendo encostar nesse merda outra vez.
Todavia, ela parece não confiar no que eu digo, já que pressiona sua
mão pequena contra meu abdômen com a intenção de me manter distante.
Trinco os dentes com força. O contato é danoso para o resquício de
sanidade que me resta. O motivo é que estou constantemente pensando sobre
o que ocorreu há duas noites. Com cuidado, agarro seu pulso fino e a afasto.
— Não precisa se preocupar. — garanto azedo.
Ela bufa, voltando-se para Gaillard.
— Consegue ficar de pé?
Ele assente devagar, o fazendo.
— Sabe, D, você sempre foi adepto à violência, mas eu não imaginava
que havia piorado com o passar dos anos.
— Continue abrindo sua boca para falar merda e eu vou mostrar o quão
pior me tornei.
Erguendo as mãos em rendição com falsa inocência, ele sorri.
— Apenas não encoste no meu nariz. Não fiz uma rinoplastia para seu
punho estragá-la. Para o meu desprazer, nem todos os bastardos que carregam
o peso de serem herdeiros de impérios magnatas, têm a sorte de nascer com
um nariz aristocrático. Eu, por exemplo, precisei comprar um.
— Foda-se. — é toda a resposta que eu dou, sua réplica é um beicinho
fingido de chateação.
— Certo. — suspira Brooke. — Afinal, por que está de volta à
Inglaterra, Jax?
— Não o chame assim. — sibilo por entre os dentes cerrados, antes que
possa me impedir.
Me arrependo do que falo ao ver de soslaio o sorriso de comedor de
merda que se forma nos lábios dele.
— Territorial como sempre, hein, Droguinho? — provoca. — Certas
coisas nunca mudam.
Semicerro os olhos.
— Quer mesmo me irritar? — lanço diabólico. — Devo dizer que não é
uma ideia prudente.
Dividir o mesmo espaço com alguém que te apunhalou pelas costas é
fodido, mas não pretendo sair.
Não quando isso implica em ter que deixar Jaxon sozinho com Brooke.
Prefiro ter meu pau mordido.
— Você, — ela aponta o indicador para mim. — não me diz como eu
devo ou não chamar as pessoas. E você, — seus olhos azuis se voltam para o
traidor do caralho. — pare de provocá-lo ou juro por Deus que serei eu a
deixá-lo inconsciente. — finaliza, passando as mãos pela cabeça. — Ai!
Seu pequeno chiado de comiseração me faz fitá-la.
— O que houve?
— Dor de cabeça. — explica. — E essa briga irritante e desnecessária
entre vocês só contribui para que a dor aumente. Assim que eu entrar, vou
tomar um remédio. Agora, Jax, eu quero que responda o que faz na
Inglaterra. E não seja um provocador de merda.
Ele sacode os ombros.
— Estou de volta.
— Não diga. — ironizo, ganhando um olhar enviesado de Brooke.
— Vai ficar de vez?
Gaillard voltou para a França, onde nasceu, cerca de uma semana
depois que os flagrei na minha cama. Apesar da partida inesperada, a viagem
não teve ligação alguma com a traição. Nenhum de nós três abriu a boca para
falar sobre o que ocorreu. A lembrança daquele dia morrerá conosco.
— Senti saudades da minha segunda casa, é evidente. — esclarece
dramático. — Entretanto, não pretendo ficar. Ao menos não atualmente.
— Ótimo.
— Ainda se sente ameaçado por mim, irmão? — ele balança a mão,
fazendo pouco caso. — Não se preocupe, não sou um indicativo de perigo
para a relação de vocês.
Brooke respira errado, resfolegando, e eu tensiono a mandíbula,
absorvendo a dor que o gesto transmite na carne dolorida.
— Não temos uma relação. — resmungo.
— Oh, por favor. Os dois estão juntos aqui. E você, Droguinho, me
atacou por estar perto da sua garota. Não seja um pequeno mentiroso.
— Ele é meu meio-irmão. — a resposta sussurrada, quase inaudível por
causa da chuva, que continua caindo, o faz ficar em silêncio.
Pela primeira vez desde que o conheço, vejo o bastardo do Gaillard
incapaz de produzir uma réplica imediata.
— Não. — dispara descrente. — Um grande e gigantesco não. E foda-
me se vocês acreditam nisso, porra.
— Acreditam em quê? — uma voz feminina e empolgada ganha vida
perto de onde estamos. Em seguida, Summer Gautier surge debaixo de uma
guarda-chuvas amarelo. — Ei, rostinho novo? Por acaso estão tentando
roubar nosso posto de novatos? — ela ri sacana. — Mal chegamos, gatinho.
O olhar dele aguça na direção dela.
— Summer, oi. Este é o Jaxon. Jax, esta é a Summer. Ela veio morar na
Inglaterra recentemente. O que está fazendo em Kensington, aliás?
— É um prazer. — declara, voltando-se para Brooke. — Alguns de
nós, vão morar nesse bairro de agora em diante. Legal, não? Seremos
vizinhas.
— Summer? — ele testa o nome, dando um passo à frente para se
inclinar e capturar a mão dela, depositando um beijo no dorso. — Belo nome.
— Seu sotaque, eu reconheço. Você é francês.
— E você também. Ah, a beleza francesa. — sopra. — Que tal trazer
mais dos nossos ao mundo, querida? É uma proposta tentadora, não acha?
Assisto sua cantada ridícula com uma expressão de desgosto.
— Você era tão encantador, querido. — diz Summer, soando ácida ao
capturar o queixo dele com a unha do indicador. — Pena que abriu a boca.
Sua alfinetada sagaz arranca uma risadinha contida de Brooke. Eu não
sou tão discreto na reação, embora. Jogo a cabeça para trás e gargalho.
— Drogo. — ela repreende, ainda que ache graça.
— Essa foi sensacional.
— Cale a boca, McAllister. — ele troveja. — Enfim, querida,
responda-me, você fez curso para partir corações?
— Sim, mas apenas os de babacas galanteadores.
— Bem, percebo que estou na mira. — constata.
Os dois começam uma pequena guerra entre si, tão alheios a tudo e
todos que Summer esquece da existência de seu guarda-chuvas e se junta ao
time de encharcados. Ainda estou observando-os quando meu foco é sugado
de ambos, pois sinto algo tocando no meu antebraço esquerdo.
O gesto é tão suave e receoso que não preciso calcular muito para saber
a quem pertence. Meus olhos escorregam para baixo e capto um par de
grandes íris azuis me fitando através dos pingos finos de chuva. As pálpebras
de Brooke oscilam, à medida que a água cai sobre elas e faz seus cílios se
converterem em uma cortina espessa.
— Eu queria falar com você.
— Você já está fazendo isso. — retruco mal-humorado.
Ela bufa, frustrada, e esfrega o rosto para retirar uma parte do excesso
de umidade. Novamente, suas feições se contraem com desconforto evidente.
— O que realmente aconteceu para você estar sentindo dor? —
pressiono.
Posso ver que uma nova mentira está sendo elaborada para ganhar
forma em sua cabeça.
— Eu caí no colégio. Fui descuidada e escorreguei no piso molhado.
Não que eu queira entrar em um debate com ela. Na verdade, tenho um
total de zero interesse em iniciar um diálogo. Geralmente, não me importo
com seu bem-estar. Foda-se, eu não dou a mínima. Ponto final. O problema é
que desde a última vez que nos falamos, há dois dias, eu não consigo apagá-
la da minha mente. Estou sendo forçado por mim mesmo a rebobinar o que
houve entre nós no meu quarto. Por causa disso, fodi Cameron Delgado
ontem. Tudo para tirar Brooke do meu sistema. Não bastou.
Estou ferrado.
Quero apenas assentir e dar as costas, porque sei que é exatamente o
que eu deveria fazer. Sou incapaz, entretanto. Quando percebo, estou
envolvendo seu pulso com uma mão e a arrastando para o interior da casa. A
garota reluta, resmungando baixinho para que eu a solte. Gaillard e Gautier
nem sequer notam que nos afastamos.
— Drogo, me solta. — delibera, acompanhando-me a contragosto.
Ao passarmos pelos portões abertos, faço o que ela pede. Largo seu
pulso como se, de repente, o contato da sua pele contra a minha queimasse.
A árvore que fica no pátio de entrada nos camufla para os demais. Com
uma carranca de impaciência, torno a colocá-la no centro do meu foco.
— Não seja uma mentirosa. — mordo em tom de alerta, sondando-a. —
Você brigou com alguém?
Eu a conheço bem o suficiente para saber que Brooke só brigaria se
fosse algo relacionado à sua irmã.
Blake é a vida dela. Porém, não acredito que tenha sido uma briga. Do
contrário, eu saberia. Não fui para o colégio hoje, mas se tem uma coisa que
os caras do time são bons, além de jogar, sem dúvidas é fofocar. Não teria
como uma situação dessas — caso realmente viesse a acontecer — passar em
branco.
— Responda.
— Por que você se importa? — contra-ataca ríspida.
Projeto a língua para fora, umedecendo os lábios com irritação.
— Este é o ponto, querida, eu não me importo.
A risada que rola para fora da boca dela é de puro desdém.
— Então, esqueça. — rebate. — Não é da sua conta, afinal.
Após seu pequeno afronte verbal, a merdinha mal-humorada tenta fazer
seu caminho para longe de mim.
Bato a palma da mão no tronco da árvore, bloqueando sua passagem.
Ela pula, surpresa, e ergue o rosto para me lançar um olhar enviesado.
— Não tão rápido. — estalo, invadindo seu espaço ao me inclinar sobre
seu corpo minúsculo. — Vamos tentar outra vez, hm?
— Eu já respondi.
— E a sua resposta não me convenceu.
— Dane-se.
Sua nova explosão me faz exibir um sorriso genuíno.
Brooke sempre foi um poço de calma e graciosidade, constantemente
seguindo cada regra de etiqueta existente. Noto, com uma certa pontada de
satisfação, que os anos moldaram esse lado que ela costumava carregar,
tornando-a mais casca grossa. No fundo, ainda que eu mantenha segredo
quanto a isso, e vá levar esse pensamento para o túmulo, confesso gostar das
vezes que suas garras são colocadas para fora. Diverte-me. É como um
filhotinho de gatinho enraivecido, tentando pegar a bolinha de tricô que
escapou de seu alcance. Zangada, Brooke morde o lábio inferior. Neste
momento, eu sou jogado para fora da porra do eixo. Antes que eu possa me
parar, uso a mão livre para capturar seu queixo, trazendo-a para perto de
mim. O mundo parece estar em diagonal, e ela se torna o maldito ponto
estável no meio da bagunça caótica.
Serei amaldiçoado se disser que não desejo substituir os dentes dela
pelos meus. Lembro-me da sensação que é beijá-la, e a mera lembrança, tão
recente que posso sentir o gosto, faz meu pau pulsar. Por um segundo,
esqueço o quão puto ainda estou por ter descoberto que estou lidando com
uma boceta virgem — quando ela não deveria ser.
— Está bem. Entretanto, de qualquer maneira, você continua me
devendo uma resposta.
Brooke pisca, confusa, sua voz saindo suave e letárgica, quando escuto-
a murmurar um:
— O quê?
Dissipo um pouco mais da distância, quase inexistente, que nos
mantém afastados.
— Deixe-me refrescar sua memória. — rosno baixinho. — O filho da
puta que tirou sua virgindade está a menos de dez metros de onde estamos
agora. Ou o correto seria “o filho da puta que deveria ter tirado sua
virgindade”? Desista desse jogo de resistência. Você pode tentar correr, mas
eu não vou parar até obter a verdade. Portanto, há duas opções aqui: ou você
fala a verdade, ou fala a verdade. A escolha é sua. Pense nela com sabedoria.
Não existe um modo fácil de arrancar honestidade de uma pessoa,
principalmente quando ela não tem a intenção de cedê-la.
Estou apostando com as cartas que tenho na mesa. Conquanto, mesmo
que eu precise dar mais alguns socos em ponta de faca, não pretendo recuar e
desistir. Não vou jogar a toalha.
— Não estudou ciências? Coisas assim são naturalmente recorrentes.
Você está fazendo uma tempestade em um copo d’água.
— Não me venha com essa. Sou tão bom em ler as pessoas, quanto
você é em fugir. — revido, finalmente soltando-a. — Sua reação naquele dia
entregou toda a farsa.
Brooke engole com dificuldade, mudando o peso de um pé para o
outro, impaciente.
Sua boca se abre para uma réplica. O que quer que seja, não vem, pois
o barulho audível de vidro estilhaçando ecoa da área em que fica a piscina.
Olhamos ao mesmo tempo na direção do ruído, mas a vejo correr com a
velocidade de uma bala, antes que eu seja capaz de me situar.
— Brooke! — vocifero, seguindo atrás dela.
Sou um jogador de hóquei, e a rapidez é o fator principal do nosso
êxito, porém, nem mesmo eu sou capaz de me igualar ao ritmo que ela adota.
Não há chances de ser um invasor. A tecnologia que adorna a mansão
Andreotti, sem dúvidas, é tão avançada quanto a que cerca a HMNB
Devonport. Tenho consciência do fato de que tudo possui falhas, todavia, não
acredito que essa frase se encaixe aqui.
Estou prestes a chamá-la outra vez quando seu corpo para bruscamente.
Demoro um nanossegundo para alcançá-la, e assim que o faço, eu noto seus
olhos arregalados.
— B... — sou impedido de continuar ao ser puxado para baixo. Os
arbustos farfalham, ao passo que nos enfiamos neles. — Que diabos?
— Fale baixo! — ela meio grita, meio sussurra, ofegante pelo esforço
da corrida abrupta. — E, por favor, não olhe na direção da churrasqueira.
Eu olho.
E tenho certeza de que minhas sobrancelhas encostam na nuca. Sua
irmã e Leo Ballister estão juntos do outro lado, e definitivamente não é
apenas um beijo que dividem. Eu reconheço uma foda de longe. Ele está de
frente para ela, somente uma cueca branca cobrindo seu traseiro, enquanto as
pernas de Blake estão enroscadas em sua cintura.
— Porra, eu vou me mover.
— Ande logo! Sim... Sim!
Não consigo escutar mais nada, porque um par de mãos pequenas
segura minha jaqueta, puxando-me para o lado oposto.
— Certo. — ela dispara nervosa. — Vamos sair daqui ou juro que irei
passar mal.
Aproveito essa brecha para apertar seu botão. Com uma expressão
sarcástica, alfineto:
— Bem-vinda ao mundo real, Andreotti. Onde nossos parentes transam
como qualquer outro ser humano. Está surpresa?
— Cale a boca, seu patife.
— Oh, o que é isso no seu rostinho bonito, querida? — cantarolo a
pergunta com falsa inocência escorrendo no ar. — Raiva?
O sorriso maldoso que ostento morre como fumaça ao vento, quando
Brooke para de andar e se vira para mim, despejando:
— Quer ser um canalha irritante? Está bem. Visto que o assunto que
você iniciou é de conotação sexual, por que não falamos sobre o pau do
Ballister? — sugere desafiadora. — Afinal, parece ser uma coisa de outro
mundo, não é? Agora, posso até formar uma imagem na minha mente e...
Meus dentes rangem.
— Brooke. — seu nome vibra no ambiente como um aviso implícito.
— Oh, o que é isso no seu rostinho bonito, querido? — fecho os olhos,
irritado pelo quão doce e cínica sua voz soa. — Raiva?
Agarro o braço dela, puxando seu corpo. A reação que recebo não é,
nem de longe, a que eu estava esperando. Tudo o que a pequena víbora faz é
sorrir.
— Pode agir como o pior dos carrascos, McAllister, não me importo.
— intervém. — Se esforce um pouco mais, se desejar. Mas não garanto êxito.
— Ver sua irmã fazendo sexo com seu amigo é equivalente a flagrar os
pais transando. Então, por que diabos você está tão feliz?
Seus olhos azuis encontram os meus e, pela primeira vez, há um brilho
natural ocupando o lugar que ultimamente pertencia à pura opacidade.
— Porque minha irmã está feliz. — responde, seu timbre suave. — E se
Blake está feliz, eu também estou.
Sua alegria genuína me atinge como um soco forte no estômago,
fazendo-me perceber que ela não parece receber o que merece, porque
sempre esteve colocando as necessidades de todos os outros à frente das suas.
Eu não quero ter que vê-la como via no passado. Não quero colocá-la no
centro do meu mundo como da última vez, porque ela foi a culpada por trazê-
lo abaixo. A única razão que me fez largar tudo para voltar a sua vida, foi
obter mais do que o mero vislumbre de destruí-la. Aceitei o que me foi
oferecido e prometi a mim mesmo que não deixaria nada entrar no meu
caminho para atrapalhar o que eu havia planejado. Mas, quando olho para ela,
eu simplesmente esqueço de cada coisa que elaborei com o intuito de fazê-la
provar do seu próprio veneno.
Eu acho que nunca a odiei como deveria. Na verdade, acredito que
nunca a odiei.
Foda-se. Não suporto sentir o que sinto, porque não é justo. Não é justo
continuar nutrindo sentimentos por quem nos destruiu.
— Não podemos ser vistos desta forma. — sussurra.
— Não, não podemos. — concordo, trazendo seu corpo para ainda mais
perto do meu. — Ainda assim, vou continuar segurando você desse jeito.
— Drogo, por favor.
— Não apele. Não quando a pessoa cujo você apela, sou eu. — aviso.
— Tudo o que eu fiz, foi amar você. Tudo o que você fez, foi mentir. Mesmo
nos dias de hoje, nós dois continuamos nos afogando no oceano de
fingimento de três anos atrás. Então, diga-me, Brooke, o porquê. Deixe-me
saber.
— Você é meu meio-irmão.
— Engraçado, — ladro e, embora eu esteja furioso, forço um sorriso.
— eu não fui seu meio-irmão quando sua boceta estava na minha cara.
Cada resquício da luta que Brooke estava empenhada em iniciar,
desaparece. A cor some de seu rosto, deixando-a lívida.
Continuo desejando vingança, é verdade. Mas há uma coisa que anseio
tanto — talvez até mais — quanto ela: a verdade.
— O que houve naquele dia não vai se repetir.
— Será? — inclino-me, levando meus lábios para perto de seu ouvido.
— Porque tenho certeza de que você fantasia sobre ser fodida por mim.
— Eu n...
— Olhe nos meus olhos e fale. Diga que eu estou errado. Negue e eu a
deixarei ir. — afasto-me para que ela o faça. Apesar disso, nada acontece.
O ruído suave e ansioso que escapa de sua boca, similar a um gemido
baixo, é toda a confirmação que eu precisava para girar sua chave de vez.
Decido recorrer à saída que jamais deveria. Porém, estou morrendo
para tirá-la do meu sistema. Portanto, que se danem as consequências.
— Vamos fazer um teste de DNA. — declaro, sem deixar brechas para
ser refutado.
Suas sobrancelhas se erguem à medida que ela desperta do transe,
piscando em confusão.
— O quê?
— Você ouviu.
— Por quê?
— Porque, quando eu te foder, e eu vou, — rosno, indo contra cada
regra que criei. — você não poderá usar essa desculpa de merda.
Brooke puxa o braço para longe, saindo do meu aperto.
— Você me odeia.
— E?
— Não pode querer.
— Foder você?
— Sim. — chia por entre os dentes, suas narinas inflando com uma
respiração pesada.
— Dê-me um motivo coerente, meu amor, pois ainda não encontrei um
que me impeça.
— Pelo amor de Deus, você é louco.
Dou de ombros, esfregando o queixo.
— Você pode estar certa.
Quase consigo pressentir sua síncope.
— Nunca vamos transar, McAllister.
— Se você não quiser, é verdade. — concordo. — Mas você vai. Claro
que, para ocorrer, sua linda boca terá que abrir e me dizer o que desejo ouvir.
Ela se prepara para uma nova resposta, mas para ao ver a figura de
Gautier cruzando os portões principais.
Sua massa de cabelos loiros e úmidos balançando, ao passo que a
garota se aproxima com um sorriso gigante no rosto.
— Ei, aí estão vocês! — exclama. — Finalmente a chuva se foi, huh?
Pensei que nunca fosse parar de cair, porra.
Brooke recobra a compostura, forçando um sorriso.
— Drogo precisava entrar para buscar umas coisas. — mente, evitando
me olhar. — E, sim, demorou bastante.
— Ah, entendi. Enfim, tenho novidades! Eu tive que sair mais cedo do
colégio, lembra?
Seu cenho franze com preocupação.
— Algum problema?
Gaillard, que eu pensei ter levado seu traseiro para outro lugar, surge
no meu campo de visão, ao mesmo tempo em que Summer grita:
— Nós vamos para a Califórnia!
ESCOMBROS

“Encontrando refúgio em minhas próprias mentiras


Como você está?
Eu estou indo bem
Pequenas conversas são um ótimo disfarce”
— Antidote | Faith Marie

AINDA ESTOU TENTANDO ABSORVER MEU recente diálogo


com Drogo quando a bomba explode no meio do meu rosto.
— Califórnia? — sopro paralisada.
— Sim! — a resposta de Summer permanece com o mesmo ritmo de
empolgação com o qual ela deu a notícia.
Eu gosto de viajar, sempre gostei, mas não é como se uma viagem
estivesse nos meus planos atuais.
— Eu não posso ir.
Seus lábios se entreabrem para emitir uma réplica, e neste exato
instante outro vaso é quebrado. Desta vez, o som reverbera por cada
centímetro.
— Vocês escutaram?
— Blake resolveu adotar um gatinho e ele está destruindo tudo. —
minto, ganhando um olhar cínico de Drogo. — Podemos conversar lá fora?
Presumo que aqui vá fazer muito barulho.
— É um filhote de gato muito serelepe, não é? — o canalha provoca.
— Sim. — meus dentes rangem.
— Gatos novos costumam ser difíceis. Eu me lembro que os da Leona
eram dois monstrinhos. Enfim, vamos andando.
Drogo e Jaxon nos acompanham em silêncio, embora a tensão assassina
que exale de ambos seja quase palpável.
Olho de soslaio para Summer. Leo, por ser seu melhor amigo, pode
dizer a verdade em breve. Prefiro não dar com a língua nos dentes e abrir um
jogo que não me diz respeito. Fui invasiva o bastante por hoje, mesmo que
tenha sido totalmente não intencional. Além do mais, não tenho a mínima
intenção de ser interrogada, e eu a conheço bem o suficiente para saber que
ela não me deixaria sair dessa sem uma chuva tórrida de perguntas. Ao
cruzarmos os portões, seus olhos verdes voltam a ficar fixos em mim. Me
preparo para sua tentativa de persuasão. Ela não vai desistir tão fácil.
Mordo o lábio inferior para conter um suspiro exasperado. Estou
cansada, e com muita dor, tudo o que eu desejo é tomar um banho, mergulhar
na minha cama e esquecer do mundo inteiro.
— Então, continuando, nós viajaremos dentro de dois dias e vamos
ficar na minha casa.
— Desculpe. — intervenho. — Eu agradeço a proposta.
— Não me venha com um “porém”. — sinaliza. — Certo, não somos
melhores amigas e não nos conhecemos há muitos dias, mas gosto de você. E
meus amigos também, em especial o que eu mais amo, o babaca do Ballister.
Leo possui um tipo de coisa sensitiva. Por causa dela, ele vive dizendo que
você precisa relaxar, que temos que te fazer visitar a Califórnia conosco. Hoje
é sexta-feira, e nós só voltaremos a ter aulas na terça-feira.
Uso os dedos para empurrar meu cabelo molhado atrás das orelhas.
— Summer, eu realmente...
— Sua irmã apoiou a ideia.
Congelo.
— Desculpe-me?
— Blake deu total apoio. Falou que você anda muito carregada e
precisa se distrair. Todos nós iremos, inclusive ela. Negue-se agora. —
desafia.
Não há como recorrer a outra saída. Eu jamais deixaria minha irmã
viajar para tão longe sem a minha companhia.
Não porque não confio nela, e sim pelo fato de que não posso deixar a
guarda baixa, pois Eric está por perto apenas esperando uma brecha.
Jaxon pede licença para atender o celular quando o aparelho toca, já
Drogo se aproxima com uma carranca de desinteresse, as mãos enfiadas no
bolso de sua calça preta. Jogo para o fundo do cérebro a sensação que ameaça
me engolir ao rebobinar a conversa que tivemos há poucos minutos.
Nervosa, faço a única pergunta que minha mente é capaz de formular
neste instante:
— Quem você quer dizer com “nós”?
— Ballister me chamou. — a resposta não vem de Summer. — Eu
sabia que estaria de bobeira esse final de semana, então aceitei.
— Você?
Drogo assente, sacana.
— Eu. — diz lentamente. — E se você está assim por minha causa,
imagine quando souber que Avalon Montgomery também irá.
Gautier prende a respiração.
Meu queixo cai.
Impossível.
Eu me viro para fitá-la com tanta rapidez que meu pescoço pulsa em
protesto. Faço uma careta, lutando para não me concentrar na dor irritante
que se espalha pela região como uma febre. Embora os dois não sejam
amigos, eles são jogadores, e os atletas têm mania de convidarem uns aos
outros para tudo. Festas estão no topo da lista. Certo, este ponto eu posso
compreender. Mas Avalon? Não.
Ainda que as líderes de torcida estejam em todas, ela não se mistura. E
se está em uma, é somente por ter segundas intenções por trás. Sua conduta
de garota exemplar é seguida com maestria, contanto que ninguém entre no
caminho dela. De qualquer maneira, mesmo que seu nível de popularidade
seja absurdo, não existe razão plausível para convidá-la. Afinal de contas, sua
primeira interação com Summer não foi exatamente uma coisa agradável,
tampouco amistosa.
— Eu devo ter escutado errado.
— Não escutou. — suspira derrotada. — A Barbie Maquiavélica irá
conosco.
— Você convidou a mim, a minha irmã, e a garota que estava soltando
seu veneno para cima de nós duas no dia em que nos conhecemos? Sério?
Minhas palavras me fazem perceber que Drogo sabia de tudo, inclusive
disso. Ergo a cabeça para encará-lo, meus olhos soltando punhais invisíveis.
— Você é um verdadeiro canalha. — trovejo.
Ele dá de ombros.
— Sou só uma camponesa. — ronrona. — Se me derem licença, vou
pegar meu celular. Retorno em um segundo para ver o desfecho dessa ópera.
Penso em mostrar o dedo do meio, mas ele já está dando as costas e
correndo na direção da Lamborghini que está do outro lado da rua.
As mãos de Summer descansam em meus ombros, segurando-os com
firmeza e me obrigando a desviar meu foco de volta para seu rosto.
— Eu juro que você nem vai perceber a presença dela, Bee. —
contrapõe, lançando-me um olhar que remete ao do Gato de Botas.
Para ser sincera, eu não tinha nada contra Avalon. Ela foi melhor amiga
da Blake por anos, o problema é que um dia a garota simplesmente resolveu
assumir a máscara de cadela diabólica e decidiu nos fazer suas inimigas
declaradas.
— Sem chances. — reitero. — E não entendo como minha irmã pode
ser a favor de fazermos essa viagem. Ela sabe, por acaso?
— Sim.
Eu reviro os olhos, soltando um suspiro descrente.
— Fala sério.
— E apenas para desencargo de consciência, eu não a convidei. —
informa, afastando-se de mim para cruzar os braços. — Foi o DeLuca.
É ainda pior, confesso. Se o embate entre Avalon e Summer no dia do
estacionamento foi ruim, o dela com o Matteo foi infernal.
Contudo, não estou surpresa. Não tanto quanto deveria, pelo menos.
Afinal, eu os vi se beijando como dois amantes apaixonados.
— São um casal agora?
— Eu não sei. E, sendo honesta, também não quero saber. Tratando-se
da mente do DeLuca, é melhor não chegar muito perto. Acredite.
Sua frase basta para arrepiar os pelos da minha nuca.
— Vou seguir o seu conselho.
Eu sei que por baixo de toda a educação e elegância que ele exala,
existe uma camada profunda de vilania. Matteo não é bom, apenas parece.
Seus olhos cinzentos são uma arma poderosa, por isso são usados como
meio de intimidação.
Não entendo o motivo que fez justamente Avalon, dentre tantas outras
garotas, cair no seu radar. Ambos são o exato oposto um do outro, tão
diferentes que chegam a ser uma imagem palpável. Ela poderia facilmente ser
sinônimo de fogo, enquanto ele é como uma geleira.
DeLuca é similar a uma ilha paradisíaca em que a entrada é proibida;
um território lindo e sedutor, porém, cercado de armadilhas letais.
No meio de todo esse pandemônio recém-criado, tem uma única coisa
que, até o presente momento, eu ainda não fui capaz de compreender.
Meu questionamento sai tão natural que, por um instante, esqueço
minha linha de pensamento anterior ao perguntar:
— Agora, diga-me, Summer. Por quê?
— Por que o quê?
— Por que está tão ansiosa para que eu aceite ir?
— Você está triste, Brooke. — declara baixinho. — Pode tentar negar,
mas conseguimos ver. Blake quer que você se divirta, já que não pode
arrancar uma confissão sua. Por essa razão, concordou com a viagem. Ainda
que isso implique em ficar sob o mesmo teto que alguém que ela odeia.
Sufoco a vontade de me encolher.
Não estou considerando suas explicações como chantagem emocional.
Posso reconhecer os aspectos de uma, pois vivo constantemente refém dela.
Por causa dessa circunstância, eu permito que a parte de mim que não sabia
como era ser notada, que não tinha a mínima ideia de como era ter amigos,
experimente a doce sensação de ser significante.
— Essa viagem foi planejada para me animar? — quase gaguejo,
estática. — Somente por que eu estava triste?
Sua cabeça pende para o lado, um pequeno sorriso elevando um dos
cantos de sua boca quando Summer volta a descansar uma mão no meu
ombro, apertando com gentileza desta vez.
— Você faz parte do nosso bando agora, garota. E, se um de nós
sangra, todos os outros sangram também. Alguns de nós odeiam uns aos
outros, é verdade, mas sempre nos protegemos. Sempre. Você foi adotada por
mim e pelo Leo, são as consequências de estar no nosso meio. Lide com elas.
Sou pega desprevenida quando tenho meu corpo envolvido em um
abraço caloroso. Uma lágrima solitária desliza pela maçã da minha bochecha
e eu a seco com rapidez. Antes que eu possa abraçá-la de volta, o contato é
partido.
— Eu não sei o que falar.
— Não precisa falar nada, apenas aceite logo. Estou morrendo pela sua
resposta, caramba. — resmunga rabugenta. — De qualquer maneira,
independente do que você disser, saiba que não está sozinha para enfrentar o
que quer que seja, está bem? Estamos aqui. Não precisa lutar sozinha.
Esperei tanto para ouvir palavras assim, eu só nunca imaginei que viria
de alguém que conheci há tão pouco tempo.
Este é o lado bom de Summer e Leo, entretanto. Ambos são aquele tipo
de pessoa que fazem parecer que a conhecem há anos.
— Eu vou. — confirmo. — E obrigada. De verdade.
O gritinho de empolgação que vem dela faz meus tímpanos latejarem.
Summer me abraça novamente, então segura meus braços, somente
para me encarar com grandes olhos verdes brilhantes. É inevitável não sorrir.
— Essa é a minha garota! — exclama animada. — Você vai amar Los
Angeles, Bee, eu juro! Espere, já esteve lá antes? Oh, cacete, eu nem cogitei.
— Pode relaxar. — tranquilizo-a. — Eu nunca coloquei os pés na
Califórnia.
— Ótimo! Lá é quente e agradável, total diferente da geleira que é
Londres. Nós ficaremos na minha casa. Vamos dançar e beber e...
Ela para de tagarelar subitamente, uma expressão azeda transformando
seu rosto em uma carranca profunda de desagrado.
— O que houve?
— Eu não vou poder beber. — lamenta frustrada. — Estarei no meu
território e não vou poder colocar uma gota sequer de álcool dentro da boca.
— E por que não? Sua mãe também vai?
Summer deixa os ombros caírem, parecendo estar prestes a ter um surto
psicótico. Não me admira, no entanto.
Afinal, posso sentir a ira vibrando de cada sílaba proferida.
— Não a minha mãe. Ela fez um tipo de trato infeliz com outra pessoa.
Foi um péssimo momento para eu descobrir suas antigas amizades, aliás.
— E de quem se trata?
Summer murmura algo. A resposta sai tão baixa e rápida que eu franzo
o cenho, confusa.
A linha de raciocínio cria seu percurso em meu cérebro, fazendo-me
começar a ligar os pontos. Lembro-me de sua mãe no colégio mais cedo.
— Do meu pesadelo.
— Não me diga que...
— Sawyer Fodido Vaughn. — sibila, cruzando os braços acima dos
seios. — Aquele carrasco desgraçado é quem irá conosco para a Califórnia.

No início, achei estranho e pressupus que seria problemático ter nosso


treinador indo em uma viagem conosco. Afinal, ele era o nosso treinador.
A verdade é que, de fato, é um pouco estranha a situação, mas imaginei
que seria bizarra ao extremo. O que não está sendo o caso. Afinal de contas,
ele não está aqui pelo cargo que exerce no Golden Elite, e sim como um
velho amigo fazendo um favor.
Minha bunda lateja em protesto pelas inúmeras horas que fiquei
sentada no assento do jatinho, e em seguida no do carro que nos trouxe.
Apesar disso, a pior parte é, sem dúvidas, a câimbra que abraça minhas
pernas. O formigamento é uma sensação quase enlouquecedora. No mesmo
segundo que desço do veículo em que estive nos últimos trinta minutos, eu
bato os pés na calçada com força, aliviando-me. A mansão Gautier é tão
extensa que ocupa quase todo o quarteirão. Sua estrutura deslumbrante no
estilo romano não poderia refletir mais na personalidade de Summer e Sierra.
Tudo parece brilhar e reluzir, pois é voltado para o branco e o dourado.
Extravagante, embora muito luxuosa.
— Porra, senti tantas saudades do meu paraíso! — exclama Leo,
parando ao meu lado, a voz soando grave e preguiçosa pela sua longa
cochilada.
Porém, não há como não concordar com a frase proferida.
Los Angeles é o Paraíso na Terra, é evidente. Seria o eufemismo do
século dizer que o lugar é bonito, pois não basta para descrever sua beleza.
A brisa tropical beija minha pele como se estivesse acariciando-a.
Inspiro profundamente, capturando o aroma inigualável da maresia. A
conversa atrás de mim começa a ficar mais audível. Viemos em automóveis
distintos, então aqui, além de mim, estão Leo, Summer e Leona. De um jeito
despretensioso, Ballister joga um dos braços musculosos sobre meu ombro,
colocando os óculos aviador que usa no topo de sua cabeça.
Nossa diferença de altura é gritante, o que faz parecer que um poste
está ao lado de um gnomo de jardim. A analogia me faz dar um sorrisinho.
— O que foi, doçura?
— Nadinha. — desconverso. — E por que você não retorna para cá?
Ele retira os fones de ouvidos, guardando-os no bolso de sua calça.
— Eu fui arrastado para o castelo de gelo que você chama de lar sem
opção de barganha. — lamenta.
— A Inglaterra não é tão fria assim, Sr. Drama.
O estalar exagerado de sua língua contra o céu da boca me faz rolar os
olhos.
— Para sua informação, meu lindo traseiro quase virou sorvete quando
coloquei os pés em Londres.
— Jesus. — gargalho, sem conseguir me controlar. — Você,
definitivamente, é o rei do drama.
Leo me lança um olhar sacana, seus lábios cheios se curvando em um
meio sorriso depreciativo.
— Ah, eu com certeza sou o rei de muitas coisas, Bee. Essa pode ser
uma delas. — declara.
Noto a pequena marca arroxeada na lateral de seu pescoço quando ele o
estica para olhar ao longínquo. Depois que todos foram embora da minha
casa ontem, eu dirigi até o Starbucks e só voltei cerca de meia hora depois —
apesar de todo o cansaço pelo pesadelo que havia enfrentado — e tudo para
dar privacidade a minha irmã.
Aprendi a mascarar tão bem meu sofrimento que às vezes é como se eu
somente apertasse um botão que desliga meu cérebro da infeliz realidade.
Blake estava corada e alegre quando retornei, o que fez todo meu
tormento interior ser amenizado. Eu a amo, suportaria qualquer inferno por
ela. Apesar disso, não a pressionei com indiretas para saber de Leo. Também
optei por não conversar sobre Eric, dizendo-a para ficar longe.
Mesmo que eu saiba ser impossível, afinal temos que recorrer ao
diretor do colégio uma hora ou outra por diversas circunstâncias, vou fazer o
máximo para que minha irmã não precise pisar na armadilha que é seu
maldito escritório. Vai ser difícil, mas eu sou capaz de adiar um pouco.
Pensarei nas opções que tenho, enquanto estivermos na Califórnia. Por
estar longe daquele desgraçado, poderei raciocinar tranquilamente.
Embora eu já esteja procurando um meio de abrir o jogo, não direi uma
palavra sequer agora. Não desejo estragar nossa estadia com uma bomba.
Estou aqui para tentar me divertir. Ou fingir, pelo menos.
Além do mais, Blake está radiante, e eu me recuso a ser a responsável
por derramar um balde de água fria em sua cabeça. Não irei entristecê-la.
— Volte para a Terra. — sou puxada dos meus devaneios por Leo.
— Desculpe, acabei saindo de órbita.
— Oh, não me diga. — ironiza, afastando o braço para se espreguiçar.
O movimento faz sua camisa se erguer, revelando um abdômen
definido e bronzeado.
— Você treina todos os dias?
— Sim. — ele dá de ombros, esfregando o maxilar. — É mais intenso,
em geral, por causa do futebol, mas já faz tanto tempo que me acostumei.
— Desde quando você está no time dos atletas?
— Eu comecei a jogar com cinco anos de idade. — explica, fitando-me
de soslaio com um olhar divertido. — Atletas não chamam a sua atenção?
— Como assim?
Leo volta a enfiar uma mão no bolso, deixando-a permanecer dentro
desta vez. Atravessamos a passarela de entrada, passando pela piscina.
Sua prima e Summer continuam mais afastadas, embora tenham se
aproximado mais desde que entramos na mansão. Tudo está quieto e sereno.
A sensação de tranquilidade me cerca como um cobertor aveludado, fazendo-
me confessar mentalmente que eu me arrependeria se recusasse vir.
— Permita-me corrigir, minha bela, porque eu não deveria ter feito uma
pergunta. Na verdade, está mais para uma afirmação. — ele usa o indicador
para colocar parcialmente os óculos para baixo e me encarar com uma
expressão cínica. — Nenhum cara parece chamar sua atenção. Por que,
afinal?
— Você é um canalha. — explodo, balançando a cabeça em sinal de
descrença. — Não sei. Não costumo nutrir interesse por ninguém em
especial.
Ao som da minha explicação, uma risada rouca e petulante rola para
fora de sua garganta.
— Mentirosa.
— Perdão?
Retiro a tampa da garrafa d’água que tenho em mãos e levo-a até os
lábios, dando um gole. Não estou nada acostumada com temperaturas altas.
Seu tom de voz diminui quando Leo traz o rosto para perto,
cochichando:
— Então, por que você olha para Drogo McAllister como se quisesse
comê-lo?
Engasgo.
Cada gota do líquido que beberiquei escapa da minha boca, escorrendo
no colarinho da minha roupa e encharcando o laço vermelho que o adorna.
— Ballister! — trovejo baixinho, ensandecida. — Você, por acaso,
perdeu todas as estribeiras? De que diabos está falando? Enlouqueceu de vez?
O babaca gargalha alto.
— Sua danadinha! — exclama. — Veja, é que eu achei estranho você
realmente não se interessar por mim. Coisas assim não são recorrentes, sabe?
Feriu meu ego de leonino. Por causa disso, comecei a prestar atenção nos
sinais e nos olhares que você o direcionava. Ficou tudo mais claro, doçura.
— Pelo amor de Deus.
— Relaxe, Bee. Sem julgamentos. Tomei decisões que vão me mandar
direto para o Inferno sem qualquer opção de uma moeda de troca. Esse seu
pecado nem é tão terrível assim. Estou falando porque Summer me disse que
há grandes chances de vocês não terem nenhuma ligação consanguínea.
Empurro meu cabelo para trás, secando meu rosto com o dorso da mão
esquerda.
— Vou matar ela. Depois que matá-la, vou matar você.
Uma nova gargalhada irrompe dele.
— Você é tão fofa. Eu realmente te adoro. É como olhar para um
gatinho furioso.
— Jesus Cristo, estou a um passo de cometer um crime de ódio,
babaca. Eu juro.
— Você não ousaria, Bee. É gostosura demais para ser desperdiçada
dessa forma. — rebate, subindo os degraus. — Você já viu meu abdômen? É
de outro mundo. Minha bunda é uma visão dos deuses. Fala sério, sou um
espécime perfeito. E, caralho, eu nem abri a boca para falar do meu p...
— Leon. — pronuncio seu nome num tom contido de aviso, usando o
timbre mais mortífero que sou capaz de produzir. — Feche essa matraca.
— Oh, uau. Usando meu nome no lugar do apelido, hm? Eu só ia falar
do meu peitoral, doçura. O que você, nessa sua cabecinha suja, pensou?
Bato a garrafa plástica em sua barriga.
— Saia de perto de mim, otário. — delibero, cruzando os dois pilares
brancos que se estendem na entrada luxuosa e passando pelas portas duplas.
Me pego maravilhada pela sala de estar. Os sofás são localizados no
centro e se completam, ambos parcialmente dentro do piso. Há duas entradas
em lados opostos, com quatro degraus cada, e um pufe redondo no meio. Um
lustre dourado fica localizado acima deles. O assoalho cor creme brilha,
evidenciando o quão limpo está. Meus olhos trilham a vasta escada em
porcelanato bege, perdendo-se no topo dela.
Eu pisco, saindo do meu torpor momentâneo quando Leo solta um
suspiro audível, posicionando a mochila vermelha que carrega no outro
ombro.
— Está bem, eu vou para o quarto escolhi. Mas, ouça com atenção,
sim? Eu não a quero chorando pela minha pessoa depois que você cair na real
e perceber que me perdeu. Estarei extremamente ocupado em busca da minha
felicidade. — dispara, seguindo para o andar de cima a passos firmes.
— Pare de ser dramático! — entoa Summer, afastando os óculos de sol
do rosto e descansando uma mão na cintura fina. — Ele é um bebê chorão.
— Eu ouvi isso, Gautier!
Sua prima surge em seguida. Diferente de todos nós, e assim como
Matteo, ela veste preto. A peça, um vestido longo e transparente com fendas
extravagantes em ambas as laterais, é a definição de reveladora. Além dos
grandes óculos de sol, ela também usa um chapéu floppy da mesma cor.
Ainda que seja chocante no meu ponto de vista, pois seus seios pequenos e
empinados estão em plena exibição, eu admiro a classe em sua postura.
Leona Van Acker é a epítome de uma Femme Fatale.
Com seu cabelo preto e liso, cuja franja deveria dar um ar mais
inocente, nela serve apenas para deixar sua aura ainda mais elegante.
Seus lábios, como sempre, ostentam um batom vermelho sangue.
Parando para observá-la, eu confesso que desperta meu interesse o fato de
que ela e DeLuca nunca usam outra cor de roupa, a única exceção é o
uniforme do Golden Elite. Mas prefiro me abster e guardar a curiosidade para
mim. É como as pessoas costumam dizer, afinal de contas: a curiosidade
matou o gato.
Summer a encara, soltando uma risadinha baixa e provocante.
— Eu queria tanto que o Grayson estivesse no mesmo carro que a gente
veio. — lamenta. — Eu estava morrendo para continuar vendo a cara dele.
No jatinho, pude notar os olhares lançados na direção de Leona. Sem
contar no instante em que ele foi beber água e quase triturou a embalagem.
— Pensei que vocês se odiassem mortalmente. — murmuro, confusa
pelo fato de que não parece ser somente ódio puro e flamejante.
— Jamais pense o contrário. — avisa, embora sua expressão seja séria,
não há frieza alguma. — Eu o odeio, e ele me odeia ainda mais.
— De qualquer modo, eu não ficaria perto dos dois se fosse você. As
coisas tendem a ficar bem caóticas quando eles dividem o mesmo espaço.
— Escute o conselho. — reitera Leona, e pela primeira vez desde que a
conheço, vejo-a sorrir. — Ninguém quer ficar perto do nosso fogo cruzado.

Da janela do meu quarto, eu descobri que tem uma praia privada na


parte de trás da casa. O lugar parece ter saído direto de um filme da Disney.
Olho através das longas vidraças, as pequenas ondas quebrando
vagarosamente ao chegarem na areia. É uma visão reconfortante. Prendendo
meu cabelo em um coque folgado, puxo a calça rosa de flanela para cima e
desenrolo as alças finas da blusa justa que escolhi usar. Envio uma mensagem
para minha irmã, perguntando se eles vão demorar para voltar. Todos
chegaram pouco tempo depois de nos instalarmos, mas ela saiu com Drogo
para comprar energético, pois foi a única bebida que esqueceram — e Leo
insistiu que era inaceitável. Desço as escadas em silêncio, ouvindo as risadas
e exclamações que ele e Avalon emitem ao brincar de mímica perto das
espreguiçadeiras. Summer decidiu surfar, DeLuca está no banho e Leona não
saiu do quarto desde que entrou nele há cerca de uma hora e meia atrás.
Passando pela mesa de sinuca, faço meu percurso até a cozinha, assustando-
me ao ver Grayson Cagliari encostado contra o balcão. Nunca estivemos
sozinhos antes, o que torna a situação estranha. Por alguma razão que
desconheço, me torno alerta sobre sua presença. É quando o cômodo, de
repente, parece ter um aumento considerável na temperatura. Ele está com
uma mão dentro do bolso de sua bermuda branca, enquanto a outra segura um
copo contendo o que eu presumo ser vodca dentro. Percebo que há um livro
em cima da mesa, o qual sei que pertence a ele. O Retrato de Dorian Gray,
de Oscar Wilde.
Seu cabelo loiro está espetado para cima, diferente das laterais curtas.
O maxilar é tão cerrado que o músculo do lado direito se projeta para fora.
Lindo e assustador na mesma intensidade. É como olhar para uma
versão tatuada de um deus grego. Os pelos da minha nuca arrepiam à medida
que suas íris verdes deslizam para o meu rosto em uma análise descarada. Eu
paraliso, incapaz de sair de onde estou para transitar pelo local.
Sei que estou encarando-o, mas simplesmente não consigo desviar
minha atenção para outro ponto que não seja o de sua figura tempestuosa.
— Você quer que eu te foda?
Sua voz sai tão rouca e lenta que, por um segundo, penso que
enlouqueci e estou ouvindo coisas. Meus olhos arregalam quando constato
que não.
Ele proferiu mesmo essas palavras. Eu não escutei errado. Santa Mãe
de Deus, o cara é um canalha totalmente desprovido do mínimo de pudor.
— Desculpe? — falo rápido demais, horrorizada.
— Você está me olhando como se quisesse.
Eu coro. Calor se espalha pelas minhas bochechas, esquentando-as.
Embora eu não possa dar um fim súbito a minha reação, me forço a me
mover.
— Eu não gosto nada de você. — despejo, indo até a geladeira e
abrindo-a. Tudo para esfriar meus pensamentos e escapar de seu foco
diabólico.
— Não gosta, hein? — ele ri, quase me fazendo ter uma síncope. — E
quem foi que disse que é preciso gostar de uma pessoa para trepar com ela?
Conheci muitos garotos cínicos, e muitos depravados também, mas
Grayson é, com certeza, a pior fusão dessas duas coisas.
— Qual é o seu problema?
Bato a porta da geladeira com mais força do que deveria.
— Possuo muitos. Na verdade, sou uma máquina de problemas.
— Não dou a mínima. — disparo. — Fique longe de mim.
Erguendo os braços em sinal de rendição, o cretino dá um último gole
no copo que segura, fazendo um barulho de apreciação ao ingerir o líquido.
— Relaxe, Polly Pocket. — capturando uma mecha do meu cabelo ao
se aproximar, ele se inclina sobre meu corpo despretensiosamente. De modo
vagaroso, leva os fios ao nariz e inala, sussurrando com puro cinismo
sombrio em meu ouvido: — Não me leve a mal, mas prefiro as de cabelo
preto.
Gritos eufóricos me fazem recuar um passo por instinto. A réplica que
fervia na ponta da minha língua não sai porque, da porta dupla francesa que
dá acesso ao lounge da casa, vejo Leo pegar Avalon nos braços, tentando
jogá-la dentro da piscina. Ela se debate, lutando para escapar dele.
— Não ouse, Leo!
— Um, dois, três...
E os dois caem na piscina.
Grayson se afasta, suas pupilas dilatam quando um brilho maquiavélico
banha suas íris. Ao enxergá-lo, um calafrio grosseiro arrepia meu corpo. Não
sei o que entra em seu campo de visão, mas o que quer que seja, o deixa com
uma expressão maléfica de humor.
— Drama. Eu adoro essa merda. — suspira excitado. — Vou pegar
mais vodca para apreciar o show com estilo. Você quer um pouco, querida?
— Do que está falando?
— Sua gêmea. Eu vi os olhares que ela lançou para o Ballister em todo
o voo, embora eu acredite que seu interesse seja no DeLuca. — pondera, e eu
solto uma respiração de choque pela boca. — De qualquer modo, é um tiro
no escuro. Leo não gosta de ninguém. Nunca vai gostar. Seu coraçãozinho já
pertence a uma pessoa; minha irmã mais nova. Ele se recusa a enxergar a
realidade. Porém, eu estou aqui para trazer à tona.
Menos de um segundo após sua confissão insensível, do outro lado do
jardim, atravessando a passarela, eu assisto Blake entrar ao lado de Drogo.
Toda a animação que ela demonstra se esvai abruptamente, ao passo
que minha irmã gira a cabeça na direção da piscina. Seu sorriso desaparece.
Observo a cena paralisada. Assim que as figuras de Leo e Avalon
emergem, brigando em meio a risadas, eu a vejo dizer algo e entrar com a
velocidade de um furacão na casa. Meu coração encolhe na caixa torácica,
quase como se estivesse sendo esmagado sem nenhuma piedade. Engulo em
seco, sentindo-me angustiada.
— É como dizem. — a voz de escárnio de Grayson se faz presente de
novo. Agora, num tom sussurrado. — Os olhos são as janelas da alma.
DeLuca aparece na área do lounge. Sua expressão neutra contrasta com
o timbre grave quando ele para próximo a cozinha e diz o nome de Avalon.
Como se um balde de gelo fosse derramado em sua cabeça, ela gira. As
narinas inflam com irritação evidente. Sem uma resposta, a garota apoia as
mãos na borda, preparando-se para sair. Ao fazê-lo, posiciona o cabelo em
cima de um dos ombros e aperta as madeixas, tirando o excesso da água.
Seus seios empinados balançam no minúsculo biquíni vermelho à medida que
ela volta a ficar ereta e caminha de maneira firme e sensual até ele.
— Não fale comigo como se fosse meu dono.
O tempo parece parar, pois todos que estão presentes os observam.
Depois do que parecem horas, Matteo se inclina, leva os lábios ao
ouvido dela e diz alguma coisa que ninguém além de Avalon é capaz de
ouvir. Independentemente do que seja, faz toda a estrutura dela enrijecer. Sua
resposta é fuzilá-lo com um olhar assassino. Então, ela aperta os punhos e
passa por ele, esbarrando seus corpos no processo. Embora o gesto seja
violento, o impacto não o faz mover um mísero centímetro sequer. É similar a
empurrar uma parede usando os indicadores.
A risadinha que Grayson dá me faz retornar à realidade. Preciso falar
com minha irmã, ainda que Blake seja do tipo solitária quando está chateada.
Coloco a mecha que escapou do coque, a mesma que o canalha cheirou, atrás
da orelha e o encaro.
— Você é desprezível. — delibero num tom cortante. — Um ser
humano podre. E a primeira oportunidade que eu tiver de envenená-lo, eu
usarei.
A aberração loira pisca para mim com insolência, mandando-me um
beijo após umedecer os lábios, deixando-os brilhando. Dou as costas e saio
da cozinha soltando fogo pelo nariz. Conto até dez para não voltar lá e dar
início ao crime de ódio que minha mente elaborou.

— Eu não entendo como o treinador concordou com isso. — declaro,


vendo Summer delinear a boca com o pincel do gloss que segura.
Usando o indicador para tirar o excesso dos cantos, ela volta a fechar a
embalagem. Em seguida, verifica seu reflexo no espelho uma última vez.
Estamos no meu quarto, há inúmeras peças de roupas espalhadas pela cama,
as quais ela me fez experimentar uma por uma. Tudo para que, no fim, o
resultado fosse inútil. Eu já sabia, claro. Meus 1,55m não são páreos para os
1,78m dela. Além do mais, ainda que seus seios sejam grandes e sua cintura
quase não exista, as minhas coxas são maiores, assim como minha bunda, e
eu possuo quadris mais largos. Desisti de seus vestidos banhados por glitter e
optei por uma saia preta de pregas e um cropped gola alta e sem alças da
mesma cor.
Não estou usando meias, mas escolhi botas de cano alto que sobrepõem
meus joelhos, ocultando as cicatrizes.
— Ele não concordou. — informa, virando-se para mim com uma
expressão de falsa inocência no rosto perfeitamente maquiado. — Eu o dopei.
— Você o quê? — eu grito, horrorizada.
— Brincadeira. Ou não. — ela ri. — Ele estava enjoado por causa do
voo, eu dei um remédio para enjoo, mas talvez um dos efeitos colaterais seja
sonolência. — seus ombros sacodem. — Sawyer vai dormir por algum
tempo, e esse tempo será suficiente para nos divertirmos. De qualquer modo,
não há com o que se preocupar. Vamos ao Sinners, um clube exclusivo para a
burguesia da Califórnia. Os DeLuca são os proprietários.
A maneira como tudo é dito, como se fosse natural, me deixa atônita —
porque não há, em absoluto, nada de natural em sua justificativa.
— Você enlouqueceu? — grito perplexa. — Quer que a gente saia
escondido? Summer, isto é errado em escala máxima. Pelo amor de Deus!
— Claro que não. — segurando minhas mãos nas suas, ela as aperta
como se para me reconfortar. — Vamos estar seguros, o pai do Matteo é
como um tio para todos nós. Portanto, não existe maneira de corrermos
nenhum tipo de perigo. Apenas deixe seu lado de garota inglesa que segue
todas as regras e aproveite a noite. Prometo que se você não se sentir bem lá,
digo para voltarmos no mesmo segundo. Estamos em Los Angeles, Bee,
curta!
O treinador Sawyer não está aqui como um profissional, é verdade,
entretanto, tenho certeza plena de que ele ficará bastante chateado. Todavia,
eu nunca quebrei regras. Summer pode estar certa, ainda que minimamente, e
talvez essa seja a oportunidade que preciso. Não sei como será o dia de
amanhã para mim, portanto devo apreciar ao máximo. Eu tenho que viver em
vez de sobreviver. Mordo o lábio, cedendo.
— Está bem, eu irei. — aperto as mãos dela de volta, sentindo meu
estômago formigar por causa da adrenalina. — Mas, se por algum motivo, a
polícia entrar na jogada, estou logo avisando que vou jurar de pés juntos que
não faço a mínima ideia de quem são vocês. Você entendeu?
Suas pupilas dilatam com empolgação genuína.
— Bee, você é a coisa mais fofa que eu já vi na vida. — proclama,
apertando minhas bochechas. — Porém, é assustadora na mesma proporção.
Me forço a não sorrir. E falho.
— Eu acho bom que a gente chegue antes dele acordar. Posso estar
prestes a fazer uma loucura, mas tenho meus limites.
— Tem minha palavra.
— Ah, tem outra coisa que eu quero dizer.
— O quê?
— Nunca mais aperte as minhas bochechas. Nunca. — aviso, a ameaça
explícita saindo lenta e arrastada.
Summer cruza os indicadores e os leva à boca, beijando-os.
— Eu prometo, sua merdinha tenebrosa.
— Ótimo. — resmungo ranzinza. — Me dê um abraço para selar essa
promessa.
— Agora, sim!
Seu corpo se curva para capturar o meu em um aperto de mamãe urso
que faz meus olhos lacrimejarem.
— Summer...
— Desculpe, eu me empolgo um pouco quando se trata de contato
físico. O que posso fazer? Sou uma garota de tato, este é o meu charme.
— Não tenho dúvidas.
— Enfim, vou até o quarto do Leo para apressar ele, aquele babaquinha
sempre demora um século para ficar pronto. Encontro você lá fora.
Confirmo com um aceno rápido e a vejo reunir todas as roupas jogadas
na cama, saindo com os braços cheios logo depois. Sozinha outra vez, eu
aproveito o tempo que me resta para guardar as maquiagens na maleta. Estou
soltando o cabelo quando ouço batidas à porta.
— Pode entrar.
Minha irmã invade o cômodo com um pote de sorvete em uma mão e o
carregador de seu celular na outra, trajada com um pijama azul de flanela.
Boquiaberta, assisto-a se jogar em cima do colchão, afundando nele, após
pegar com o controle da televisão e ligá-la.
Sua aparência não está horrível, mas confesso já tê-la visto em
momentos bem melhores. Sem pensar duas vezes, desabo ao lado de seu
corpo.
— O que, em nome de Deus, você está fazendo?
— Prestes a assistir Grey’s Anatomy. Por quê?
— Querida, você não vai conosco para o clube?
Ela escorrega os olhos da tela para mim, negando.
— Por causa do Leo?
Conversei com ela assim que deixei a cozinha mais cedo. Nosso
diálogo foi curto, pois eu sabia que era inútil pressioná-la para arrancar algo.
Blake sempre foi do tipo que se fecha por completo quando está
chateada. Eu a conheço muito bem para saber que não adianta insistir. Apesar
disso, ela confessou ter feito sexo com ele — usando preservativo, graças ao
Bom Senhor.
— Não. Honestamente, B, nós não temos nada. Foi apenas sexo, o
Ballister não é meu namorado. — esclarece, sentando-se. — O problema é
que todo cara que eu costumo nutrir um pouquinho de sentimento, se formos
considerar a atração um, de alguma maneira gravita ao redor da Avalon. É
como se ela, não sei, fizesse de propósito porque me odeia. Você sabe que
quem eu queria desde o começo era o DeLuca, tive a sorte dele sequer olhar
na minha direção. — ironiza, rolando os olhos. — Bem, me forcei a apagar
da mente que isso poderia mudar. Então, eu e o Leo, você sabe, aconteceu. E
eu gostei. Entretanto, não vai levar a lugar nenhum. Conheço quando alguém
tem uma pessoa na cabeça e no coração. E ele possui uma em ambos.
Sua confissão me faz lembrar da conversa que tive com Grayson mais
cedo. A lembrança serve para enfatizar o que saiu de sua boca depravada.
Embora eu deteste ver minha irmã chateada, jamais poderia colocar qualquer
resquício de culpa no Leo, e nem mesmo em Avalon. No meu ponto de vista,
para ser honesta, o que os dois fizeram não foi nada demais. No fundo, estou
ciente de que Blake guarda a mesma opinião.
Quanto a Matteo, duvido muito que tenha interesse romântico em
qualquer garota. A relação que os dois compartilham é sinistra o bastante
para que eu não deseje saber nada sobre. Às vezes, a ignorância realmente é
uma bênção.
— Eu entendo seu lado, Blake, contudo, não quero vê-la entrando em
uma bolha de infelicidade por mera chateação. Não vale a pena. E a Avalon
pode ser uma víbora noventa e nove porcento do tempo, no entanto, eu não
acredito que esteja fazendo essas coisas de propósito, entende?
Ela suspira, descansando a cabeça no meu colo. Acaricio seus fios
curtos e sedosos, afastando os que caem em sua face.
— Gostaria de poder culpá-la, é melhor sentir ódio do que tristeza.
Apesar do que eu acabei de dizer, não a culpo. Eu só quis desabafar, Bee.
Não quero parecer uma cadela rancorosa, sou boa demais para ser uma
víbora. — estremece, e eu concordo. — Enfim, não pretendo sair hoje porque
não estou com um pingo de vontade. Não ouse ficar mal por minha causa,
está bem? Saia com seus novos amigos e divirta-se. Eu vou me divertir aqui.
— Blake...
— Não comece. — intervém, se afastando do meu colo e me
empurrando para fora da cama. Eu tusso ao ter meu perfume espirrado em
mim.
Ainda estou tentando falar quando ela pega a pequena bolsa preta que
está em cima da poltrona, verifica o interior, fechando-a em seguida, e
continua seu pequeno esforço para me expulsar do quarto. As palmas de suas
mãos pressionam minhas costas até que eu esteja no corredor vazio.
— B...
— Curta a noite e todas as sacanagens deliciosas que ela pode oferecer.
Entretanto, não curta demais. Ligue-me se precisar. Amo você. Tchauzinho!
A porta é fechada na minha cara.

Agradeço ao garçom que traz a água com gás que pedi.


Dando um gole contido, observo a decoração. O local é
propositalmente escuro, somente luzes vermelhas banham o interior luxuoso.
É como estar dentro de uma moradia vampiresca. Os sofás e poltronas
espalhados, junto às inúmeras mesas, possuem tons escuros. As pessoas
transitam o tempo inteiro sem parar um único minuto, e todas estão vestidas
com roupas da moda. Me sinto deslocada com meu visual nem um pouco
chique e revelador, porém, pelo menos apostei em peças pretas. Deixo meu
olhar vagar pelos corpos suados que vibram na pista.
Não reconheço a melodia animada que toca, então só me mexo no
ritmo.
— Quer dançar? — pergunta Leo, sentado no assento a minha frente.
Ele decidiu ser um tipo de segurança para mim esta noite, e não saiu do
meu lado desde que chegamos.
— Não, obrigada. — falo por cima do som alto. — Você pode ir, se
quiser. Eu vou ficar legal aqui.
— Não estou com vontade no momento. — antecipa, seu sorriso se
ampliando ao capturar o celular do bolso e digitar alguma coisa. —
Entretanto, vou enviar uma mensagem ao DJ e pedir para tocar uma especial
depois que essa acabar.
— Você é amigo dele?
— Nós compartilhamos uma amizade com benefícios no passado. —
diz, lançando-me uma piscadela marota. — E a mantivemos até ano
retrasado.
— Isso não é meio oportunista?
— Não quando estamos falando de uma via de mãos duplas. — ronrona
sacana.
Summer surge de repente, desabando no sofá ao meu lado. Toda sua
atenção escorre para o meu rosto assim que ela agarra minhas mãos.
— Vamos dançar? — indaga. O colo de seus seios está suado e
vermelho, subindo e descendo velozmente com uma respiração errática.
— Eu não acho que seja uma boa ideia. — declaro em seu ouvido. —
Sou ruim dançando.
— Ninguém vai julgar você por não ser uma profissional, Bee.
Portanto, esqueça o medo e venha conosco para a pista rebolar sua bundinha
bonita.
— Conosco? — o questionamento vem da terceira ponta do triângulo.
Estou prestes a protestar quando sou puxada para cima sem aviso
prévio. Summer faz o mesmo com Leo, soltando-me momentaneamente para
pegar a garrafa de cerveja que ele segura e colocá-la em cima da mesa, nos
arrastando para o meio das dezenas de pessoas no centro da pista. Ainda
estou presa em suas garras, enquanto a vejo mover a cabeça, seus longos fios
loiros e ondulados esvoaçando de um lado para o outro.
— Esqueça todo mundo ao redor, Brooke. Finja que não há ninguém a
não ser você aqui. — grita, soltando-me e se afastando.
Careless Whisper do George Michael, um clássico dos anos 80,
preenche cada centímetro do clube, arrancando gritos eufóricos da multidão.
Summer e eu gargalhamos ao perceber, pela expressão de superioridade
que toma o rosto do nosso amigo, que a escolha da canção veio dele.
Entregue ao riso, eu fecho os olhos e ergo os braços, me deixando levar pela
melodia sem me importar com qualquer julgamento alheio. O mundo parece
ficar em câmera lenta. Antes que eu possa pensar em me impedir, lágrimas
umedecem minhas pálpebras, aquecendo-as. O batom é a única maquiagem
que estou usando, portanto, não dou a mínima para o fato de que elas
começam a deslizar pelo meu rosto.
Por que minha existência não pode ser simples e sem tantas
complicações?

To the heart and mind


(Para o coração e a mente)
Ignorance is kind
(A ignorância é gentil)
There’s no comfort in the truth
(Não há conforto na verdade)
Pain is all you’ll find
(Dor é tudo o que você encontrará)

Provo o gosto salgado assim que o tenho na boca. O refrão parece


zombar de mim, mas degusto cada gota de comiseração que me é oferecida.
A quem eu quero enganar? Pelo amor de Deus, estou perdida. Eu tento
fingir, luto para me forçar a achar que não, embora eu saiba que estou.
Aceitei vir para a Califórnia achando que a viagem amenizaria ao menos uma
parte da minha angústia perpétua.
Como poderia ser possível? Como eu conseguiria, se eu sinto Drogo
McAllister em meu mais profundo âmago? Se tudo em mim grita por tudo
dele? É um martírio.
Engulo o nó que se forma em minha garganta, o qual parece estar
rodeado por espinhos, e fecho os olhos com mais força. No entanto, por mais
que eu tente ir contra os pensamentos que me nublam e enfraquecem, eu
retorno para o mesmo ponto de partida. Por alguma razão doentia que
desconheço, ao fazer isso um rosto ganha vida em minha mente. Um que,
definitivamente, não poderia estar nela. Na tentativa desesperada de uma
fuga, permito que minhas pálpebras pesadas se entreabram. E este é o maior
erro que cometo.
A primeira pessoa que entra em meu foco assim que pisco,
recuperando-o, é a última que eu desejava ver neste momento. E em qualquer
outro.
Drogo.
Ele está do outro lado, sentado em um dos bancos do bar. A atenção
fixa em mim me deixa arrepiada de um modo que faz parecer que estou
sendo tocada por suas palmas calejadas. A sensação de ter a pele arranhada
pelas pontas ásperas de seus dedos desperta em meu interior vontades
proibidas. Eu deveria desviar o rosto, sei que sim, mas não o faço. Pelo
contrário, sustento seu olhar impiedoso, movendo-me devagar.
Oh, Deus. O que estou fazendo? Dançando para o homem que, embora
eu não sinta, para todos que nos conhecem é nada mais, nada menos do que
meu meio-irmão. No entanto, eu quero dançar para ele. Por circunstâncias
doentias, desejo ser a única coisa para qual Drogo irá olhar esta noite, neste
lugar. Então, o que não deveria acontecer, acontece.
Ele fica de pé.
E se move na minha direção.
NOCIVOS

“É nojento que você encontre tempo


Para viver e amar através de todas
Essas mentiras que terminam
Gentilmente saindo de sua boca”
— Avalanche | Cemetery Sun

EU BUSCO UM MEIO RÁPIDO de fuga, mas tudo que localizo


são corpos e mais corpos acumulando-se na pista. Sem brechas para uma
escapatória.
Meu coração pulsa na garganta e eu me preparo para ficar cara a cara
com meu algoz. Ainda que eu espere, nada ocorre.
Olho outra vez para o mesmo lugar em que vi a figura de Drogo,
porém, não há mais sinal dele. Por um momento, penso ter visto coisas.
Coloco a confusão que se instala em meu subconsciente para escanteio,
acalmando-me. Contudo, o alívio que me permito sentir é passageiro. Estou
prestes a soltar a respiração que estava prendendo e sequer notei quando um
par de mãos grandes circula minha cintura com firmeza. Perco o ar, e logo os
pelos da minha nuca arrepiam. Todo meu corpo se torna hiperconsciente de
sua presença tempestuosa atrás de mim.
— Brooke, Brooke, Brooke. — o estalo repetitivo de sua língua no céu
da boca soa em meu ouvido. — Você está tentando foder comigo?
Eu paraliso dos pés à cabeça ao escutá-lo. Por instinto, vasculho as
pessoas que estão dançando no centro, procurando por Summer e Leo. Não
localizo nenhum dos dois pelos arredores. E ainda que eu odeie admitir, a
percepção desse fato me deixa mais tranquila do que deveria.
— Não sei do que você está falando. — rebato por cima da música.
— Sabe. — sustenta, seu tom ainda mais grave e lento do que antes. —
Você estava dançando para mim.
Me preparo para negar com veemência. A letargia que se apodera do
meu raciocínio o torna tão vagaroso que quase o tenho nulo. No entanto,
Drogo me interrompe ao dizer:
— Continue.
Ele volta a apertar minha cintura, puxando-me para si e deixando
nossos corpos colados. Eu arfo pelo gesto e me contorço ao receber seu calor.
A situação é errada em uma escala exorbitante, mas acabo de ser lançada para
fora do eixo, tornando-me incapaz de pensar com clareza. No fundo, uma
parte de mim — a parte lúcida — grita para que eu não ceda. O problema é
que abafo sua voz, transformando-a num eco inaudível.
Espero que minha consciência desperte subitamente e que eu o empurre
para longe ou faça algo pior; como desferir um tapa forte em seu rosto. Tudo
para dizer a mim mesma que não o quero por perto. Mas quanto mais eu tento
recusar, mais anseio gravitar ao seu redor. É uma maldição. O cenário se
torna insuportavelmente visceral quando, de repente, a música anterior
termina e Don’t Come Close, do Yeasayer, ganha vida no local. As batidas
são baixas o bastante para que eu, ao abrir a boca e pronunciar a última frase
que desejo que Drogo ouça, não precise gritar.
— Eu queria tanto odiá-lo. — murmuro, erguendo uma mão e
arrastando meus dedos frios até seu pescoço cálido, arranhando-o.
— Acredite em mim, — ele se curva para frente, escovando os lábios
em minha mandíbula antes de os levar para cima. — eu também queria.
Desistindo de uma luta ao escutá-lo, eu aceito a doce dose de miséria
que me é oferecida, condenando-me, e me entrego ao seu pedido imoral.

Don’t come close


(Não se aproxime)
I don’t want you to see my face, my face
(Eu não quero que você veja meu rosto, meu rosto)
You go away
(Você se foi)
I work so hard
(Eu trabalhei tão duro)
I don’t have time to start all over
(Eu não tenho tempo para começar tudo de novo)

A letra é como arame farpado rodeando meu peito, dilacerando-o por


dentro. De novo, lágrimas ameaçam se formar em meus olhos e eu os fecho.
Estou confusa, sendo engolida por um turbilhão de sentimentos e
pensamentos que são prejudiciais às escolhas que preciso fazer. Fugir de
Drogo, após entrar em seu radar, é como tentar escapar de areia movediça
depois de pular em sua direção por vontade própria. Sua respiração se torna
forte, pesada, dançando em meu ouvido como um sopro abafadiço,
lembrando-me constantemente de sua presença. Pensei que ele estivesse aqui
para me infernizar com suas típicas palavras rudes. No entanto, é pior. Seu
silêncio não é somente um mero castigo, é uma tortura.

I’d like to be...


(Eu gostaria de...)
Leave you without feeling bad
(Deixar você sem me sentir mal)
I’d leave you with the knowledge that...
(Eu te deixaria com a certeza de que...)
Most, most people would release you
(A maioria, a maioria das pessoas iriam te libertar)
Most, most people don’t change, they only get old
(A maioria das pessoas não muda, apenas envelhece)
Uma de suas mãos circula meu pescoço e eu inclino a cabeça, dando-
lhe acesso. O leve aperto que recebo rouba o resto do meu discernimento.
— Abra os olhos. — ordena.
Eu não abro, porque sei que se o fizer, serei obrigada a encarar a
realidade corrompida em que entrei e me nego a enxergar.
Às vezes, arrepender-se de um pecado, após cometê-lo, não basta para
livrar você de seu inferno pessoal. Ainda que eu deva fugir, não quero. Estou
condenada. Amar quem te odeia é como mergulhar em uma praia nociva,
tóxica. Não apenas isso, é também beber de suas águas. Razão e lógica
abandonam nossa mente ao querermos o que não devemos, nos deslocando
do que é moral, do que é certo, e nos convertendo em peças masoquistas. Nós
dois somos desse jeito. Somos ruins juntos. Mas, se é assim, por que
continuamos sendo atraídos um para o outro?

So, if I let you back in close


(Então, se eu deixar você se aproximar)
Will you hurt me?
(Você irá me machucar?)

Devagar, seu polegar roça na gola da minha blusa, arrastando-a para


baixo. O ar-condicionado que circula o clube toca a carne exposta,
despertando-me. Abro os olhos, me afastando de seu corpo tão subitamente
que fico tonta. Acabo colidindo contra algumas pessoas, quase caindo no
processo. Drogo rosna algo e estica a mão para me segurar, mas, por pura
reação natural, eu a estapeio com força. Nossos olhares se encontram ao
passo que os ocupantes da pista se afastam. Sem titubear, giro nos
calcanhares e corro para longe, seguindo por uma direção que sequer
reconheço. Abro passagem, pedindo desculpas a quem acabo empurrando
pelo trajeto. Suor frio desliza pelo vão dos meus seios, deixando-me
agoniada. Ainda sem ar, dobro uma esquina e sigo mais a fundo em um
corredor escuro onde as paredes luxuosas são cobertas por veludo na cor
marsala. Meus dedos tocam o material, enquanto pressiono a palma da mão
livre em meu peito, sentindo meus batimentos desregulados.
Estou prestes a virar no próximo corredor quando bato em alguém com
violência. Abro a boca para me desculpar, sendo interrompida.
— Ei! Olhe por anda! Você quase me fez sujar meu Valentino e...
Andreotti? — ergo o rosto e dou de cara com grandes e claros olhos azuis.
Avalon faz uma careta.
— Montgomery. — arfo.
— Você está passando mal?
— Sim. — minto, embora não seja totalmente uma inverdade. —
Avalon, sei que você não gosta de mim, e acredite quando digo que se eu
pudesse recorrer a outra pessoa, o faria, porém, não há outra pessoa agora.
Então, ouça, você pode me humilhar se quiser, mas, por favor, me leve para
casa.
Espero resistência imediata. Na verdade, me preparo para ouvir uma
risada cruel escapando por entre seus lábios cheios e vermelhos. Entretanto,
nenhuma das duas coisas vem. Tudo o que a vejo fazer é olhar para algum
ponto além, em seguida, seu braço envolve o meu, surpreendendo-me. Cerca
de um minuto depois, estamos nos aproximando de um lugar vazio. Uma
única porta cinza adorna o local. Inclinando-se para baixo, Avalon puxa duas
presilhas de dentro de seu salto e as posiciona na fechadura, movendo-as com
agilidade. Atônita, franzo o cenho.
— O que está fazendo?
— Utilizando um meio de escapatória que evita explicações caso
sejamos flagradas saindo. — ela me encara por cima do ombro, arqueando
uma sobrancelha bem-feita. — A menos que você queira justificar sua saída
abrupta. No entanto, a julgar pela sua expressão atual, eu apostaria o
contrário.
— Continue. — digo, desistindo de uma réplica.
— Obrigada.
Eu fico em silêncio, olhando aflita ao redor.
— Como sabia desse lugar?
— Entrada para funcionários. — responde. — Estava procurando o
banheiro quando vi um segurança do tamanho de um foguete passar por aqui.
Constato neste momento que esse é um daqueles dias em que não
devemos colocar os pés para fora de casa. Por um instante, me pego pensando
o quão melhor tudo seria se eu tivesse ficado com Blake em meu quarto. Me
sentindo exposta demais, solto meu cabelo e o jogo por cima do ombro,
cruzando os braços. A temperatura parece ter caído drasticamente. Tento me
concentrar em outra questão, como o fato de que nós duas podemos ser pegas
a qualquer segundo. Todavia, nem mesmo a aflição pode substituir a
confusão instalada em meu cérebro. Meu raciocínio, antes lento, agora está
acelerado com dezenas de pensamentos sobre o que ocorreu na pista de
dança. Luto para dissipá-los, perdendo a batalha.
— Pronto! — ela notifica, voltando a ficar ereta e abrindo a porta. —
Oh, misericórdia. Essa me deu uma trabalheira. Enfim, pronta para ir?
— Há muito tempo. — suspiro, dando um passo à diante. — Você
primeiro.
— Por favor, você tem praticamente um letreiro em neon na sua testa
implorando por ar fresco. Vá em frente, garota. Eu estou bem atrás de você.
Decido não relutar.
Passamos pelo beco úmido e vazio, seguindo para a lateral do clube.
Não demora muito para que um táxi apareça e Avalon faz sinal para que ele
pare. Alívio me cerca quando me acomodo no banco de couro. Inspiro de
bom grado a brisa que adentra no automóvel por meio da janela aberta.
— Boa noite, senhoritas. — o motorista de cabelos ralos e castanhos
saúda, olhando pelo retrovisor. — Qual o destino?
Escuto-a explicar o endereço sem me dar ao trabalho de perguntar, após
Avalon ficar quieta ao meu lado, como ela o descobriu.
O veículo começa a se mover e eu observo o teto limpo, direcionando
minha atenção para a paisagem em movimento do lado de fora. A ironia,
percebo, tem prazer em nos perseguir. Achei que essa noite iria servir para
me distrair, contudo, estou mais confusa do que nunca com relação aos
sentimentos que abrigo em meu peito. Como se eu já não possuísse
problemas em excesso para lidar.
— Se você for desmaiar, avise com antecedência, estamos passando
perto de um hospital. — ouço-a sinalizar baixinho.
— Não vou. — garanto. — Posso fazer uma pergunta?
— Claro. Eu só não garanto que você receberá uma resposta.
Reviro os olhos com seu tom arrogante, embora o típico veneno não
esteja presente nele.
— Como aprendeu a fazer aquilo?
Seus ombros desnudos sacodem com indiferença.
— Sou uma mulher de diamantes, Andreotti. Me banho com Dom
Perignon, sou envolta por Prada, e Bentley é como um brinquedinho luxuoso
para mim. No entanto, apesar de cada um desses pontos citados, também sou
uma garotinha suja. Digamos apenas que damas na minha posição não
deveriam saber do que eu sei. Ou fazer o que eu faço. O que você viu foi
somente uma demonstração das minhas habilidades ocultas. — ronrona.
Eu sempre soube, no fundo, que Avalon era mais do que um rosto
perfeito. Ainda assim, não imaginei nada similar à sua proeza com a
fechadura.
— Você é mesmo uma caixinha de surpresas. — observo sua face uma
última vez, escondendo um sorriso ao trilhar meu olhar de volta à janela.
— Brooke?
— Sim?
— Conte para alguém e eu mato você. — sussurra séria. — Sou fã de
CSI e NCIS, o que me faz saber muito bem como esconder um cadáver.
E eu não preciso ouvi-la dizer duas vezes. Uma onda fraca de náusea
me atinge, fazendo-me ficar reclusa.
— Minha cabeça está doendo. — reclamo para mim mesma.
— Não tenho nenhum remédio aqui.
— Está tudo bem. Vou fechar os olhos e esperar chegarmos.
Nenhum outro diálogo é iniciado por todo o resto do trajeto. Por sorte,
a casa não fica muito distante do clube. Ao sentir o automóvel parar, eu abro
a porta e desço. Recordo-me de ter deixado Summer responsável por guardar
minha bolsa. Bato na testa, notando que meu celular e carteira ficaram dentro
dela. Fiquei tão nervosa com todos os acontecimentos que nem me lembrei.
— Estou sem minha bolsa. — digo, vendo Avalon saltar do carro. —
Vou subir e...
— Eu pago. — informa, puxando uma nota de cem dólares da pequena
bolsa pendurada em seu ombro. — E não precisa devolver nada.
Inclinando-se na janela do taxista antes que eu possa continuar, ela
exibe um de seus típicos sorrisos perfeitos.
— Muito obrigada, senhor. Pode ficar com o troco.
— Oh, não precisa!
— Por favor, eu insisto. Está tarde, aceite como um agradecimento pela
hora, sim?
— Bem, então eu não irei recusar. Agradeço, senhorita. Tenham uma
ótima noite.
Nós acenamos de volta, subindo na calçada ao escutar o carro se
afastando. A casa está silenciosa quando entramos, cruzando os portões
principais. Poucas luzes continuam acesas, uma delas é a da piscina. Decido
parar de andar e me sento em uma das espreguiçadeiras. Diferente de mim,
Avalon continua seu caminho. Acho que a aventura que compartilhamos essa
noite acaba aqui. Descansando minha nuca contra o encosto, eu suspiro com
exaustão. Estou ciente de que precisarei enfrentar Drogo e lidar com o que
houve mais cedo. Contudo, não quero ter que resolver isso tão cedo.
Massageio as têmporas, exausta. Pela primeira vez na vida, acho que me
embebedar e apagar em seguida seria uma opção fantástica.
— Pegue.
Ergo o olhar, localizando a figura de Avalon na minha frente. Ela
estende um comprimido na minha direção e um copo com água.
— O que é?
Seus olhos reviram com desdém.
— Não se preocupe, não é nada para acabar com a sua vida, apenas um
analgésico para a dor de cabeça que você disse estar sentindo.
— Ah. Obrigada. — murmuro, chocada por sua atitude bondosa. —
Uh, por que não se senta?
Ela parece pensar um pouco, então ajusta seu vestido preto e brilhante
de alças finas antes de desabar na espreguiçadeira ao meu lado. Ficamos em
um silêncio tão agradável que, por um instante, esqueço que estou na
presença de quem odeia com todas as forças minha irmã. A garota pode ser
maldosa, mas qualquer um que disser que não há uma única gota de altruísmo
em sua personalidade, estará mentindo. Podemos ter inúmeras divergências,
porém, nunca vou esquecer o quão importante foi tê-la comigo hoje. Pensei
que a ideia de dever uma a ela seria insuportável — confesso que foi uma
hipótese muito equivocada. Uma das piores coisas da vida é ficar perto de
uma pessoa que constantemente precisamos falar algo, pois a quietude é
sufocante. Estou feliz, ainda que eu não demonstre, pelo fato de que Avalon
Montgomery não é desse jeito.
— Por que não permite que as pessoas vejam seu lado decente? —
questiono.
Sua réplica vem mais rápida do que eu imaginei.
— Porque ser gentil hoje em dia é sinônimo de fraqueza. E quando
você possui uma vida como a minha, não se pode dar ao luxo de ter
fraquezas.
— e por causa disso que você prefere ser a cadela má?
Avalon sorri, porém, não há humor verdadeiro no gesto.
— Por mais feio que possa parecer, é somente dessa forma que consigo
a minha liberdade. Carregar o sobrenome Montgomery não é... fácil.
Sua confissão me faz refletir. Nunca pensei por esse lado, embora
sempre soubesse que sua mãe é rigorosa.
O silêncio ameno que se instala no ambiente é quebrado ao som de sua
pergunta, a qual me faria engasgar se eu ainda estivesse bebendo água.
— O que há entre você e o McAllister?
Respiro errado, pigarreando.
— Perdão?
Suas íris brilham com cinismo, entregando o quão ruim minha reação
foi. Não fui capaz de me parar e agora estou encurralada.
— Ouviu o que eu falei perfeitamente, Andreotti. — retruca. — Não
me leve a mal, ele é muito gostoso, mas não tenho mais interesse.
Curiosidade.
Agradeço ao fato de que ninguém está por perto para acabar ouvindo
essa conversa. Seu tom de voz permanece baixo e inalterável, o que faz com
que eu, mesmo com o coração quase saltando da caixa torácica, não me sinta
absurdamente exposta pelo interrogatório repentino. Por um momento,
desconfio que essa possa ser uma armadilha, uma ocasião que voltará para
me morder mais cedo ou mais tarde. Embora não seja o mais prudente a se
fazer, porque eu deveria considerar cada mínimo movimento que vem de
Avalon, acabo desistindo da hipótese, declarando sem rodeios:
— Ele é meu meio-irmão. — a frase deixa um rastro amargo na minha
língua ao sair, ecoando no ar como a lamúria de um fantasma.
— Escutei os boatos. — informa, sondando-me. — Veja, não pretendo
ser sua amiga, eu queria apenas entender o motivo que o faz...
Ela para, mordendo o lábio inferior.
Eu deveria utilizar sua quietude súbita a meu favor, o problema é que
uma parte minha precisa saber o que vem no final.
— Que o faz o quê? — prossigo, arqueando uma sobrancelha ao
esperar sua conclusão. Minhas palmas exalam suor frio. — Diga de uma vez.
— Olhá-la como se quisesse devorar você. E eu estou falando no
sentido sexual da coisa toda. Certo, tem raiva e rancor, porém, não sobrepõe.
Ar entra em minha garganta e eu me engasgo. Minha saliva desce de
forma áspera, arranhando-a no processo e fazendo-me tossir.
Leves batidas acertam minhas costas, à medida que eu pisco com
avidez para que meus olhos parem de lacrimejar.
— Respire fundo. — instrui.
Pressiono as mãos em meu peito, tentando me acalmar da crise que me
atinge. Foi uma péssima ideia não ter ido direto para o meu quarto. Mudo o
conceito anterior do meu raciocínio. Essa noite não devia acabar logo, pelo
contrário, ela não deveria sequer ter começado.
— Sente-se melhor?
— Sim. Desculpe, respirei errado. — explico, secando as lágrimas que
se acumularam nas bordas dos meus olhos.
— Tem certeza?
— Tenho. — asseguro.
— Tudo bem. — suspira, afastando com cautela a mão das minhas
costas e a descansando no colo. — Oh, por favor, prossiga, eu estou ouvindo.
— Você está vendo coisas onde não há.
— Será? — divaga, pendendo a cabeça para o lado. — É muito difícil
eu estar errada quanto a qualquer coisa. Tenho um bom faro para tudo.
Eu não sei que tipo de atenção Avalon está me direcionando desde que
Drogo foi para Kensington, mas seja ela qual for, precisa ter um fim urgente.
Não posso ter outros estudantes do GEC carregando o mesmo
questionamento Apesar do choque, outro sentimento se apodera de mim,
aquecendo minhas bochechas e tornando meus batimentos cardíacos mais
irregulares. Fico horrorizada ao perceber que é um tipo de prazer. Deus, que
tipo de ser humano doentio eu estou me transformando? Morrendo para tirar
seu foco de mim, dou uma justificativa vaga.
— Ele me abomina. Ponto final. — seu nariz enruga, deixando evidente
que não a convenci. Sou mais rápida, entretanto, continuando: — Já que
estamos falando em ódio, eu queria entender, Montgomery. Por qual razão
você passou a odiar a minha irmã?
Seu corpo fica tenso de imediato e as feições dela se distorcem, abrindo
brecha para uma covinha quase invisível no lado direito. Para ser sincera, eu
não premeditei questioná-la quanto ao que houve entre ambas para fazê-las
passarem de amigas para rivais. Contudo, Blake nunca abre a boca para me
contar o que ocorreu. Ela sempre encontra um meio de escapar. Sendo assim,
preciso seguir por outras rotas para descobrir.
Além do mais, é um meio de distração. Pelo modo como a vi recuar,
tenho quase certeza de que não haverá mais interrogatórios sobre o Drogo.
— Por incrível que pareça, eu não quero agir como uma cadela,
Brooke, só que esse assunto não é da sua conta.
O que a escuto rebater não me abala. Na verdade, eu esperava uma
réplica desse nível.
Eu me acomodo na espreguiçadeira, inclinando-me de um modo que
me faz ter ampla visão de sua face.
— Tem razão. — concordo. — Todavia, gostaria de saber o motivo que
a fez decidir nos declarar seus fantoches de ataque. Eu entendo sua mira
apontada na minha direção. Sou irmã dela e, embora ache hipócrita da sua
parte, realmente entendo. Eu faria o mesmo. Mas, não é justo, sabe?
E não é.
Quero dizer, pode ser. Não sei o que houve, mas sei que Blake não é
uma mera vítima. Não sou ingênua, sei que se ela não tivesse culpa, não
desviaria de cada investida que dou como se a pergunta fosse uma bala. De
tempos em tempos, tento obter justificativas.
Sua língua sai para umedecer os lábios cheios. Acompanho-a com um
olhar comedido ao vê-la se colocar de pé e adotar uma postura ofensiva.
— A vida não é justa. — esclarece. — Eu sei que para você nada pode
justificar eu ter sido melhor amiga da sua irmã um dia e simplesmente
detestá-la e querer transformar a existência dela em um inferno diário no
outro. Mas, assim como em uma moeda, toda história tem dois lados, duas
versões. Duas faces. Então, acredite em mim quando falo que não me importo
que você me odeie por causa disso. Sou pintada como uma vadia cruel e sei
que mereço essa fama, principalmente dentro do Golden Elite. Apesar disto,
eu não quero que você pense por um único segundo que não suporto a
presença da Blake por puro capricho. Ela despertou meu lado ruim, a maneira
como eu ajo é apenas o reflexo de uma consequência. Ouça a versão dela da
história e tire suas próprias conclusões. As aparências enganam, Brooke. —
conclui, virando-se. Antes de começar a se mover, Avalon olha por cima do
ombro. — Toda alma rica e jovem da nossa cidade é pútrida. É como as
pessoas sempre costumam dizer; nem tudo que reluz é ouro.
O que Avalon disse permanece martelando em minha mente mesmo
depois que eu desperto, horas após a nossa conversa na piscina.
É similar as badaladas de um sino; embora o barulho termine, o ruído
continua reverberando em seu ouvido por um bom tempo. Decreto que irei
arrancar a verdade de Blake de qualquer forma, não me importam os meios
que seu cérebro explore para uma saída. Puxo o edredom, verificando o
relógio em cima da mesa de cabeceira. Os ponteiros marcam 18h53 quando
me levanto da cama, encaixando meus pés nas pantufas rosas de coelho e
seguindo para o banheiro. Tiro a camisola de cetim que estou usando e
desfaço o que restou do coque que fiz antes de me deitar, escovando os
dentes em seguida. Honestamente, não estou admirada por ter dormido tanto.
Estava exausta, precisava desse tempo para descansar, e estou grata por não
ter sido acordada por ninguém. Blake já estava trancada em seu quarto
quando subi para o meu, por isso não quis falar com ela. Não sei em qual
momento os demais retornaram, mas ouvi vozes e sons de motores ao
longínquo, enquanto a doce inconsciência me sondava. Eu solto um gemido
suave de agrado ao ter o jato quente do chuveiro caindo em cascata sobre
meus membros tenso. Sentindo-o, eu relaxo.
Estou ciente de que assim que eu abrir a porta deste quarto e sair, vou
precisar estar o mais calma possível, pois o que me aguarda será turbulento.
Acabando o banho, volto para o quarto. Escolho um suéter vermelho de gola
alta, o qual também cobre o short que visto, e opto por meias da mesma cor.
As marcas em meu pescoço estão clareando, todavia, prefiro não arriscar.
Retorno ao banheiro para usar o secador. Levo cerca de dez minutos para tirar
todo o excesso de água do meu cabelo, saindo ao finalizar. Alcanço a
maçaneta, me preparando para girá-la, paro ao ouvir sussurros exasperados
no corredor. Encosto meu ouvido contra a madeira, tentando entender do que
se trata. Não que eu seja uma fofoqueira, esta é minha irmã, porém, os
cochichos chamam minha atenção, despertando um nível de curiosidade que
costumo manter adormecido. Determino no subconsciente que é melhor
verificar o terreno antes de pisar nele, apenas por precaução.
Afinal de contas, nunca se sabe o que podemos atrapalhar sem querer.
Por via das dúvidas, fecho as mãos em concha, me concentrando no diálogo.
O gesto me permite ouvir um pouco melhor. Reconheço a voz do treinador
Sawyer sem tamanha dificuldade, o problema é que há uma segunda. Não
consigo identificar de quem é, mas sei que se trata de um timbre feminino.
Então, eu recebo um pequeno estalo mental. Meus olhos arregalam.
É a voz de Summer.
— Expliquei que o clube é do meu tio, você não precisava se
preocupar. Estávamos seguros o tempo todo. — declara.
— Eu não dou a mínima. Ainda que eu esteja aqui como um amigo da
sua mãe, fazendo um favor, possuo regras. Você quebrou uma quando fez
aquela merda ontem. Não haverá uma segunda vez. Partiremos dentro de dois
dias, não se comporte e eu terei prazer em adiantar a porra do voo.
Seu tom é tão ríspido que meus pelos se eriçam. A frieza com que ele
fala serve apenas para enfatizar o que pensei desde o início; que daria merda.
O treinador não é do tipo que você é capaz de enganar com facilidade.
Porque, no fim, sempre existirá uma punição para quem o deixar irritado.
Nenhum dos dois torna a falar. Estou pensando que a discussão encerrou,
mas logo Summer quebra o silêncio momentâneo.
— De fato, você não está aqui como o meu treinador, e sim na
posição de um velho amigo de Sierra Gautier. Sendo assim, Sawyer, vai se
foder.
Horrorizada, me afasto da porta em um solavanco.
— Oh, meu Deus. — sussurro atônita.
Primeiro, uma porta bate, então passos firmes e pesados se fazem
presentes no corredor, indicando que algum deles se foi. Não preciso calcular
muito para saber que foi o treinador. Somente quando não ouço mais ruídos,
decido sair do quarto.
Olhando pela pequena fresta, verifico se o recinto realmente está
vazio, me movendo com cautela ao constatar que estou sozinha no local. Eu
sei que Summer, desde que o conheceu, não é muito amistosa. No entanto,
este foi um espetáculo de fúria. O resultado não vai ser nada bom. Por um
instante, penso em tentar ir até ela, mas com certeza não é uma boa hora.
Deixando para depois, desço as escadas e vou para a cozinha.
Da última vez que pisei nela, tive o desprazer de dar de cara com o
filho do diabo. Torço por todo o percurso para não esbarrar em Grayson
novamente, suspirando aliviada ao passar pelo batente e não ver sequer a
sombra do canalha tatuado. Todavia, Ballister está sentado na mesa,
mordiscando uma batata frita sem muita empolgação. O foco dele escorrega
para mim quando entro, passando pela mesa.
— Boa noite, Bela Adormecida. — zomba, semicerrando os olhos e
cruzando os braços acima do peito, sua regata esticando com o movimento.
Somente nessa hora percebo que, como Summer e Grayson, ele possui a
mesma imagem da cara de um lobo negro e feroz tatuado no ombro.
— Boa noite.
Sua sobrancelha escura é elevada como se ele estivesse esperando por
uma explicação. Pego um copo, ligando a torneira para enchê-lo de água.
— Por que está me encarando desse jeito?
— Você sabe. Comece a falar, Andreotti.
Apoio-me no balcão, torcendo a boca em desagrado.
— O que você quer ouvir?
Leo descruza as pernas, apoiando os cotovelos em cima dos joelhos
ao se inclinar para frente e me fuzilar com um olhar afiado.
— Não sei. — gesticula irônico. — Talvez sobre o fato de você ter
ido embora do clube sem avisar a ninguém? O que me diz?
Eu bufo.
— Não encontrei vocês na pista e precisei sair, me senti mal de
repente. Avalon estava perto, por isso pedi para vir comigo.
Seus traços demonstram inquietação. Eu largo o copo antes mesmo de
umedecer os lábios com a água, me aproximando da mesa.
Não o conheço como a palma da minha mão, porém, sei quando há
algo de errado com ele. Por algum motivo, meu estômago se revira.
Vejo-o observar os arredores de soslaio, projetando o torso na minha
direção como se estivesse prestes a me contar um segredo.
— Summer e eu vimos quando o McAllister chegou. — cochicha. —
A mãe dela ligou no mesmo minuto e eu não pude simplesmente deixá-la ir
sozinha atender, porque ela estava um pouco alta. Saiba que eu quis te
informar que íamos dar uma saída rápida, porém... — seus dedos raspam
contra o queixo. — Não sei um modo correto de dizer, então serei o mais
claro possível. Você parecia estar muito entregue ao momento.
Minha boca se abre. Oh, Deus. Eu sabia que era uma situação
delicada e que seria catastrófico qualquer um deles nos ver naquela pista de
dança, embora tenha desligado meu cérebro para o que poderia acontecer em
um flagra. Drogo e eu estávamos próximos, foi um contato íntimo. Foi
carnal. Leo espera uma justificativa, posso ver em suas íris a expectativa
evidente. Ainda que eu saiba que o mais sensato a se fazer é negar, eu não
nego. Estou pisando em um terreno desconhecido. Não sabendo se posso, de
fato, confiar em alguém além de mim. Apesar disso, prefiro arriscar. Puxo a
cadeira que fica ao lado da sua e desabo em cima dela, entrelaçando os dedos
e os posicionando no meu colo. Solto um sopro resignado.
— Sei que essa frase é uma das mais clichês da Terra, mas acredite
quando digo que não é o que parece. Não estou flertando com meu meio-
irmão.
Ele cobre o rosto com as mãos, esfregando-o, em seguida as pressiona
na nuca, mantendo-as lá por um tempo. — Veja, eu gosto de quebrar as
regras, mas sou um canalha com caráter, entende? Possuo escrúpulos. E tem
coisas que são demais até mesmo para a minha frágil compreensão. Bee, você
tinha que ter visto como ele me encarou quando eu quis me aproximar para
avisá-la. Não foi uma merda de meio-irmão protetor. Aquela porra foi uma
olhada territorial. Assassina. Eu quase mijei nas calças.
Empurro alguns fios do meu cabelo para trás das orelhas, erguendo o rosto
com o intuito de fitar o teto, enquanto procuro um jeito de explicar. Ao
confirmar que realmente não há como ir pelas beiradas, decido ser honesta. A
melhor forma de dissipar suas dúvidas, é dizendo a verdade.
Ou pelo menos o que eu suponho ser verdade. Mordo o lábio inferior,
voltando a ficar ereta.
— Drogo não é meu meio-irmão. — declaro por fim.
Seja lá o que estivesse para sair de sua boca agora, morre no meio do trajeto,
uma vez que alguém entra na cozinha e nos faz parar a conversa.
Desviamos a atenção ao mesmo tempo, localizando a figura animada
de Blake atravessar o cômodo. Não acredito que tenha sido possível nos
ouvir. Julgo a expressão da minha irmã com cautela. Ela é como um livro
aberto, não deixaria passar batido caso houvesse escutado. Eu relaxo.
— O que estão fazendo aqui? — questiona por cima do ombro,
abrindo os armários. — Nós vamos para a sala de jogos nos divertir.
— Apenas conversando. — Leo é rápido em responder, esboçando um
sorriso descontraído ao coçar o cabelo escuro. — É mesmo? Fazer o quê?
— Jogar Eu Nunca. Summer deu a ideia. — explica, virando-se com uma
pequena torre de copos para shot. — Estou aqui para pegar as bebidas.
Franzo o cenho, desconfiada. Não quero ser estraga-prazeres, embora
acabe soando como uma assim que faço o questionamento:
— O treinador Sawyer permitiu?
Minha irmã bufa, balançando uma mão em sinal de desdém.
— Por favor, B. É somente uma brincadeira que adolescentes
costumam fazer o tempo inteiro. O que tem para não ser permitido? —
indaga, agarrando duas garrafas de vodca. — Ballister, você pode encontrar
uma de cerveja que esteja vazia? Procurei uma bud light, mas não achei.
Ele fica de pé e ajusta a bermuda, espreguiçando-se. O movimento faz
seu membro, que aposto não estar endurecido, marcar o tecido com tanto
afinco que eu preciso me obrigar a olhar na direção oposta. Diferente de
Blake. O olhar dela ganha um brilho malicioso, o qual me faz apertar a ponte
do nariz. Quero sussurrar para que minha irmã disfarce, todavia, sei que seria
um conselho inútil. Os dois não estão mais ficando desde o dia da piscina, e o
clima sempre que ambos estão perto se tornou ambíguo. Não há mais o toque
relaxado e amigável de antes, e eu sei que não é por escolha de Leo.
Conheço-a muito bem para saber suas artimanhas quando seu foco é se
desligar de um garoto. Não a julgo, mas não é legal.
— Claro. — concorda, a voz soando grave e preguiçosa. — Eu vou
procurar no meu quarto, deixei uma perdida por lá hoje de madrugada.
Assim que meu amigo pede licença e se encaminha para fora, eu a vejo
acompanhá-lo com o olhar até que sua presença desapareça, refletindo
internamente. Uma música abafada começa a tocar, vindo de um outro
cômodo. O sonido a faz despertar de seus devaneios, chacoalhando a cabeça.
Ela se vira para mim, estendendo a mão com os copos. Aceito em silêncio,
ainda incerta sobre o jogo, e a espero pegar as duas garrafas.
— Mas que merda foi essa?
Seus ombros sacodem.
— Relaxe, B. Só admirando.
Saímos juntas da cozinha meio segundo depois, passando pela sala
principal vazia sem nos importar em iniciar um novo diálogo.
Ao entrarmos no corredor, a ponta da minha língua formiga com a
necessidade de fazer uma nova pergunta. Sem me segurar, questiono como
quem nada quer, adotando um tom desprovido de interesse.
— Você sabe quem vai jogar?
— Todo mundo, eu acredito.
É quando me torno consciente de que Drogo está incluído nessa
porcentagem. Eu não o vi o dia inteiro, pois estive dormindo a maior parte
dele. Entretanto, sabia que teria de enfrentá-lo mais cedo ou mais tarde.
Como se o destino estivesse querendo me testar, minha irmã informa:
— Drogo estava te procurando, esqueci de dizer. Falou com ele?
Nego com um aceno vagaroso, fechando a boca ao perceber que a abri de
modo involuntário.
— Acordei quase agora. — explico.
— É, eu sei. Por que dormiu tanto?
— Cansaço. O clima daqui me deixa sonolenta.
Ela sopra um riso efêmero e nasalado, ficando quieta logo após. Posso
perceber que há algo perturbando-a, mas não a pressiono, apenas espero. É
exaustivo sempre ter que girar sua chave para descobrir o que se passa em
sua mente e ela deixa guardado. Estou aqui para ouvir e Blake sabe.
— Acho que vou ficar com o Cagliari. — despeja com naturalidade.
Eu paro de andar abruptamente e a encaro com o semblante torcido
em puro choque, quase fazendo os copos caírem e se estilhaçarem no piso.
— Brooke, cuidado!
— O que você disse?
— Qual o problema?
— Pelo amor de Deus, Grayson Cagliari é o problema.
Ela rola os olhos, irritada.
— Ele é gostoso, ferrado de tatuagens e tem um humor vil, é total
diferente dos caras que estou acostumada a flertar. Preciso ter um gostinho.
Certo. Minha irmã perdeu cem porcento da sua capacidade de
raciocínio, e com certeza chutou a autopreservação para o fundo do cérebro.
Não importa o quão atrativo aquele canalha possa ser, ele é
desequilibrado em níveis alarmantes. Uma completa aberração da natureza.
Claro que eu poderia apoiá-la, incentivar sua vontade. Contudo, estive
sozinha com ele e pude ver o quão torpe Grayson é.
Eu não duvidaria se alguém aparecesse, neste exato momento,
dizendo que o viu matar uma pessoa. Ele seria capaz. Se já não o fez, é claro.
— Você não vai. — decreto, adotando uma expressão séria, uma que
jamais precisei usar antes.
— O que deu em você?
— Em mim? Oh, por favor, em você! — acuso, meu tom se tornando
mais alterado. — Fique longe dele. Do contrário, eu quem a farei ficar.
Pressentindo que a resposta que virá não vai ser nada agradável, passo
por ela antes de ouvi-la, fazendo meu caminho para a sala de jogos. Meus
pensamentos estão conturbados, embora eu lute para não me concentrar
neles. Preciso de uma distração. Constatando este fato, ando mais depressa. A
porta está fechada quando paro diante dela, usando a mão livre para alcançar
a maçaneta e girá-la.
O ar que vem de dentro é um pouco mais frio do que o do resto da
casa, arrepiando meus pelos. Somente a luz da lareira banha o local. Me
movo com cuidado para não acabar tropeçando e cair. A primeira pessoa que
vejo comprova que a Califórnia realmente não é para mim.
Drogo está de pé ao lado da janela, digitando no celular com uma mão
e usando a outra para segurar uma garrafa de cerveja. Como se farejasse
minha presença, seus olhos se erguem, colidindo diretamente com os meus e
me fazendo perder o fôlego por alguns instantes.
Ele, assim como Leo, está vestindo uma bermuda branca, mas sua
camisa é uma polo na cor preta. Seus bíceps esticam o tecido ao extremo. Me
obrigo a desviar o olhar, piscando para afastar o torpor repentino que insiste
em tentar me embalar, e continuo meu percurso para dentro.
— Bee! — Summer exclama, correndo na minha direção. — Aqui,
pode me entregar os copos e se sentar no chão. Vamos começar em breve.
— Eu nunca participei desses jogos. — declaro, sentindo-me
deslocada. — Não sei como são, apenas ouvi falar. Então, tudo bem se eu
ficar fora.
— Nada disso. — reclama, fazendo uma careta. — Você vai pegar o
jeito rápido. Acredite, não é nenhum bicho de sete cabeças. Cadê a garrafa?
A porta é aberta novamente. Agora, Blake surge no recinto, seguida
por Leo. Sem olhar para mim ao se mover pelo lugar, desfaz o lacre de uma
das vodcas e distribui os copos de shot. Na minha vez, eu tenho que pegar
um, porque ela não dá. Ballister ergue a bud light vazia.
Irritada, decido que não vou recuar.
— Com o papai aqui. — ele avisa, colocando-a deitada no centro da
sala e sentando-se ao meu lado. — Então, amigos, quando o jogo vai iniciar?
— Estávamos esperando por você. Leona não vai jogar, e o DeLuca
ainda não desceu.
— Que tal um aquecimento? — sugere.
— Eu topo. — Blake aceita, sentando-se, logo Avalon e Drogo fazem
o mesmo. Ela deixa as pernas curvadas, enquanto ele eleva somente uma,
dobrando-a na altura da barriga e descansando o antebraço sobre o joelho.
Confesso que não me agrada a indiferença repentina que ele adotou.
— Já explicaram a maneira como nós jogamos para os novatos? —
uma entonação perversa ressoa do canto inferior do local.
Fecho os olhos com força ao identificar a quem pertence. Ninguém
menos que Grayson Cagliari. Eu não havia notado sua presença porque onde
ele está é o lugar mais escuro da sala, o que o faz ser camuflado com uma
maestria irritante. Cerro os punhos ao vê-lo ficar de pé, dando um gole em
sua bebida e secando o canto da boca com a ponta do polegar. Ele me encara
sem qualquer mínima discrição, continuando:
— A não ser que elas já saibam.
— Não. — estalo, sustentando seu olhar sem dar para trás. — Nós
não sabemos, mas não é necessário que a explicação venha de você.
— Querida, eu faço questão. — enfatiza, pressionando uma palma no
peito. — Virar um shot não é a única penalidade no nosso Eu Nunca.
— E o que mais há para se fazer além disso? — questiona Avalon.
— Estamos no estilo californiano. Desse jeito, a cada gole, damos
adeus a um acessório. — explica Summer. — Jogamos assim desde os
quinze.
Não me concentro na última informação, pois a primeira é o bastante
para me encher de certas ideias. Meu couro cabeludo formiga. Preciso tentar
parecer o mais calma e indiferente possível, embora internamente alarmes de
perigo soem no meu subconsciente. Luto para que minha voz não falhe
quando a encontro. Troco o peso do corpo de um lado para o outro, minha
coragem esvaindo-se de repente. Minha garganta se move quando engulo
com dificuldade. Grayson se senta na minha frente. O dorso de sua mão
direita é preenchido por uma tatuagem de escorpião e a esquerda possui um
lobo, ambos negros. Todos os seus dedos, também tatuados, são repletos de
anéis.
De maneira preguiçosa, ele a gira. Decido obter a resposta para a
dúvida que martela em minha mente desde que essa conversa teve início.
— O que ocorre quando não houver mais acessórios para descartar?
A garrafa ganha vida, movendo-se de modo veloz. Concentro-me
nela. Levam alguns segundos para que o objeto comece a perder rapidez.
Seu bocal para apontado justamente para mim.
— Nós tiramos as roupas.
ALMAS QUEBRADAS

“Como posso dizer isso sem desmoronar?


Como posso dizer isso
Sem assumir as consequências?
Como posso transformar em palavras
Quando isto é quase demais para minha alma solitária?”
— Hurts Like Hell | Fleurie

EXISTEM MUITAS COISAS QUE ME irritam com uma


facilidade fodida. A principal delas, percebo agora, é ter que me conter
quando, no fundo, o que eu quero mesmo fazer é jogar a coisinha de suéter
rosa que acaba de entrar na sala por cima do meu ombro e arrastá-la para
outro lugar. Mais cedo ou mais tarde, eu a farei abrir a maldita boca para
dizer o motivo pelo qual ela simplesmente fugiu ontem à noite. Eu tentei ir
atrás dela, — embora meu subconsciente rugisse o contrário — contudo, eu a
perdi de vista meros instantes depois.
Quando retornei para cá, fui direto ao quarto dela. Não era o mais
prudente a ser feito, claro, só que eu não estava dando a mínima para certo e
errado. Não estou agindo de maneira racional ultimamente. Porque se
estivesse, não teria agido daquele jeito. O problema foi que Avalon me
encurralou no corredor e praticamente me intimou a dar meia-volta e ir
embora, dado que Brooke havia ido dormir. Não que sua ameaça de chutar
meu traseiro tenha me assustado, porém, eu sabia que seria um esforço vão,
similar a dar socos na ponta de uma faca. Então, eu apenas segui para o
quarto em que estou hospedado, tomei um banho frio e me joguei na cama.
Não consegui fechar os olhos nem mesmo por um mísero nanossegundo. No
fundo, eu estava ciente de que algo assim ocorreria. Está ferrando com a
minha cabeça ter que ficar tão perto dela nesta casa, principalmente após o
que aconteceu entre nós no clube. Não fui capaz de me conter, não depois de
a ver olhar para mim daquele jeito. Foi como girar a chave na fechadura que
mantinha a besta enjaulada.
Meu inferno particular.
Eu me movo no modo automático, sentando-me no chão. O círculo é
formado e eu trinco os dentes quando ouço o segundo tipo de penalidade ser
dita. Um manto vermelho borra minha visão, me obrigando a contar até dez
para controlar o solavanco de raiva que me cerca. Dane-se se eu for permitir
que Brooke tire as roupas e fique nua na frente desses filhos da puta. Ballister
está alheio, mas meu foco não é ele.
Grayson Cagliari é quem me deixa irritado. O merdinha loiro não
parece conhecer os limites, e caso os conheça, não parece dar a mínima.
Se balançarem sua cabeça, tenho certeza de que será possível escutar o
som dos parafusos que estão soltos dentro dela — ao menos dos que restam.
Não gosto nem um pouco do filho da puta loiro, tampouco, do jeito que o
bastardo a encara, e eu irei deixar esse fator evidente em breve.
— A palavra é sua, querida. — declara, num tom sarcástico.
Não me agrada nada a maneira como as letras se formam e saem de sua
boca, pairando no ambiente como uma piada maldosa.
Quase posso pegar no ar suas intenções, e elas estão além de segundas.
Se eu o fizer, vou arrancar as bolas dele e fazê-lo comer uma de cada vez.
Agradeço por não estar segurando uma garrafa, do contrário, estilhaços de
vidro já estariam rolando pelo chão. Meu foco cai para Brooke assim que
seus lábios cheios e naturalmente rosados se entreabrem, fazendo meu pau se
contorcer. É irritante a maneira que meu corpo parece responder aos mínimos
movimentos do seu. Eu preciso tirá-la da porra do meu radar logo.
— Eu nunca fiz sexo com um professor. — uma pausa, minhas
sobrancelhas se unem e eu, por um instante, me pergunto se veio dela. — do
Golden.
Grayson se recosta na poltrona atrás de si por alguns segundos,
verificando-a como se estivesse procurando por uma brecha. Ao não a
encontrar, seja ela qual for, permite que seu sorrisinho de comedor de merda
se alargue, voltando a trazer o corpo para frente com uma letargia que me
enerva. Mais lentamente ainda, retira o rótulo da vodca e enche o copo,
erguendo-o na direção de Brooke e virando um shot logo em seguida.
Avalon e Ballister são os únicos, além dele, que também viram e se
desfazem de algum acessório.
— Seus danadinhos. — enfatiza. — Vamos, Andreotti, mostre-nos
quem será a nova vítima. Estou ansioso para ver os podres dando uma volta.
Com um resmungo, ela gira a garrafa.
— Minha vez. — entoa sua irmã, empolgada.
Em geral, eu detesto esse tipo de jogo. Costumo apenas ficar sentado
em um sofá, observando os demais que participam e se fodem no processo.
Não sei por qual motivo estúpido eu decidi participar de um essa noite. Foda-
se. Eu sei. Apesar de saber, não tenho intenção alguma de admitir. Eu me
ocupo em olhar para uma única pessoa. Deixo minha merda baixa o
suficiente para não alertar nenhum deles, principalmente Brooke. Embora, no
fundo, eu tenha certeza de que ela está ciente do meu foco. É como uma
coceira em um local onde não podemos alcançar. Suas mãos se tornam
inquietas, e eu percebo. Com movimentos sutis, ela mexe nas mangas do
suéter que veste, puxando-as para baixo. Em seguida, troca o corpo de um
lado para o outro, usando as pontas dos dedos para coçar a parte da nuca. Eu
não suporto seu jeito doce e tímido de se portar às vezes. A falsa inocência
que ainda a cerca também me desagrada. Gostaria de poder escolher
memórias para deletar. Porque, se fosse possível, eu não permaneceria tão
escravo de sua existência. Tão escravo dela.
Eu sempre senti, desde pequeno, que seria um ser humano
amaldiçoado. Eu só não esperava que fosse por causa de uma garota.
— Eu nunca fiquei com mais de três pessoas em uma noite. — Avalon
diz, escorregando seu olhar afiado por todos.
Desta vez, Summer, Leo, eu e o bastardo loiro viramos um shot ao
mesmo tempo.
Por estar sem qualquer acessório no momento, estico o braço e puxo
minha camisa pela parte de trás, jogando-a em cima da poltrona mais
próxima.
Blake, com uma expressão de choque mais explícita do que a que
descansa no rosto de Brooke, indaga:
— Quantas?
Ballister dá de ombros.
— Oito, acho.
Gautier levanta a mão.
— Nove para mim.
— Grayson? — suas sobrancelhas se elevam, aguardando uma
resposta.
— Doze.
As gêmeas chiam em uníssono, horrorizadas, e desviam o olhar logo
após.
— Podemos continuar? — pergunto impaciente.
Avalon concorda e o jogo retoma.
Essa garrafa de vodca não vai me derrubar, embora eu iria adorar que o
fizesse. Pelo menos dessa forma, eu não teria que ver Brooke se desfazendo
de mais peças de roupa do que eu achei que iria uma hora e meia depois. Ela
está apenas com seu suéter e as meias, sem contar que mal consegue se
manter sentada por causa da quantidade de vodca que ingeriu, e a percepção
disso me deixa irritado, para não dizer frustrado em uma escala de merda. O
músculo da minha mandíbula tensiona quando trinco os dentes com força,
vendo suas coxas pálidas e lisas expostas. Cerca de meio minuto atrás, eu
estava com minha calça jeans, mas precisei tirá-la graças a Leo e sua boca
grande, malditamente certeira. Tudo o que me resta é uma cueca box preta.
Cagliari e Gautier são os únicos que também estão assim.
A garrafa passou para Summer, que tem uma das mãos descansando em
cima do objeto agora mesmo, somente esperando para girar. Eu entendi a
explicação que foi dissertada há poucos minutos, explicando como funciona
após sobrar somente uma única peça, e estou ciente de que, se por algum
motivo o bocal parar apontado para ele, Grayson vai estar livre para escolher
um de nós dois para dar uma ordem. É como incluir um Verdade ou Desafio
dentro do Eu Nunca nos quarenta e cinco do segundo tempo. O problema é
que eu sei — pressinto — que o filho da puta não pretende escolher Summer
para pagar um preço, ela sempre foi uma carta fora de sua jogada, porque sou
eu que estou na mira.
Volto a olhar para Brooke. As maçãs de seu rosto estão ruborizadas e
suas pálpebras parecem lutar para não fecharem. O estado de embriaguez é
evidente, e o que me deixa puto é o fato de que Blake, que não está bêbada,
simplesmente percebe e não a tira dessa sala.
— Parece que estamos presos em um impasse, hein? — ele assobia
para mim, seus olhos estreitados brilhando com diversão vil.
— Não vejo impasse nenhum. — eu ladro.
— Se você diz. Gire, querida. — incentiva.
Desvio minha atenção para Ballister quando o vejo inclinando-se para o
lado.
— Você está bem? — murmura, e eu a assisto acenar letargicamente,
indicando que sim, mas eu não compro sua merda. A mentira é evidente.
Ignorando todo o jogo, me coloco de pé e sigo até onde ela está
sentada, não dando a mínima para os pares de olhares que caem sobre mim.
Posso odiá-la com cada átomo que possuo, mas a porra do instinto de
proteção que desenvolvi desde que a vi pela primeira vez, sentada naquela
fonte agarrada um maldito urso de pelúcia, queima em minha corrente
sanguínea como se fosse ácido. É mais forte do que meu raciocínio, pois, por
mais que eu me obrigue a chutar para o fundo da mente, ele volta dez vezes
mais impiedoso e corrosivo, me tomando. Eu não penso, eu apenas faço. O
pensamento do início, o qual me fez querer esmagar seus lábios com os meus,
adormece. A única coisa que eu desejo é tirá-la daqui. Eu a pego nos braços e
sua cabeça tomba para frente, o hálito quente soprando contra meu peito nu
me deixa com uma sensação de desconforto. Não porque é ruim, e sim pelo
motivo de que faz minha guarda baixar.
Tomo uma respiração profunda. Brooke, diferente do que eu imaginei,
não reluta. Pelo contrário, ela se acomoda como se fosse um bebê coala.
— McAllister, sua atitude vai contra as nossas regras. Você não pode
apenas sair dessa maneira, docinho. — Grayson avisa, soando divertido.
— Vai me impedir?
Sua cabeça se move, balançando em negação. Devagar, ele aponta para
o centro com o queixo. No modo automático, olho para o mesmo ponto.
É quando vejo o bocal da garrafa apontado em sua direção.
— Embora você esteja de pé, permanece dentro do círculo. Sendo
assim, ainda posso dar uma ordem para você.
Sorrio com irritação genuína. Se fosse um momento diferente, meu
punho já estaria colidindo em sua cara. Um dos cantos de sua boca se curva.
— E qual é?
— Seja uma boa babá.

Foi uma péssima ideia.


Sendo honesto, eu sabia que seria desde que a peguei e não recebi
nenhuma resistência, só não achei que seria tão fodido fazê-la tomar banho.
— Apenas entre de uma vez nessa maldita banheira, Brooke. — eu
resmungo de frente para a porta do banheiro.
— Saia. — balbucia.
— Eu não vou sair, porra. Tenho certeza de que, nesse estado, você
poderia morrer afogada. — grunho.
Cogitei a possibilidade do chuveiro, porém, eu teria que segurá-la.
Mandei uma mensagem para sua irmã, dizendo para vir até o meu quarto para
dar um banho em Brooke, mas ela visualizou e ignorou. Foda-me se eu irei
tentar outra vez. Não preciso somar dois mais dois para saber que as duas
devem ter se desentendido.
— Eu não vou morrer. — reclama. — Mas não irei ficar pelada com
você a quatro passos de distância de mim. Me deixe ficar sozinha.
Bufo pelo nariz, alcançando a maçaneta.
— Certo. Vou ficar do lado de fora. No entanto, a porta não será
trancada com chave, ela vai ficar aberta. — aviso. — Você tem cinco
minutos.
Escuto seus protestos, ainda que eu finja o contrário. Encosto a cabeça
contra a madeira, ouvindo sua voz abafada do outro lado.
— Jesus Cristo! Está fria!
— Entre de uma vez.
— Impossível! — berra.
— Faça, Brooke. Precisa ser fria para ajudar no processo da saída do
álcool. Pare de choramingar, quanto mais rápido for, melhor para nós dois.
Silêncio.
Então, poucos segundos depois, há o farfalhar de algo, em seguida, o
baque suave de seu corpo finalmente entrando na banheira e os gritos de
reclamação pela baixa temperatura da água. Cronometro o tempo em meu
relógio, marcando exatos cinco minutos, enquanto encaro o teto do quarto. A
única fonte de luz que banha o interior é do fogo que crepita na lareira, o qual
não irá demorar muito para se dissipar. Posso me preocupar com esse
empecilho depois que Brooke terminar. O trailer em que eu vivia, assim
como todo o resto do lugar, ostentava uma iluminação precária, pois ficava
perto de um parque de diversões abandonado. Por isso, me acostumei com
lugares pouco iluminados. Agora, prefiro eles. Me sinto deslocado com
fontes intensas de luzes. Ergo o pulso, verificando o cronômetro.
— Diga alguma coisa. — ladro rabugento.
Por puro instinto, me viro abruptamente. Segurando a maçaneta, paro
antes de girá-la e invadir o local, trovejando meu alerta:
— Se não responder, eu vou entrar. A escolha é sua.
— Alguma coisa. — seu resmungo se faz presente de imediato,
carregado de ira, e saindo como se fosse um xingamento.
— Boa garota.
— Não fale comigo como se eu fosse um cachorro, seu babaca. — grita
furiosa.
— Eu jamais faria isso. — faço uma pequena pausa. — Cachorros são
obedientes.
O estrondo de um objeto colidindo contra a porta fechada me pega de
surpresa, fazendo-me rir.
— O que você jogou?
— É um xampu! — ela berra. — Mas eu gostaria que tivesse acertado a
sua cara, seu desgraçado!
Coço o vão entre as sobrancelhas com a ponta do polegar, sufocando
uma gargalhada.
O relógio emite um sonido, indicando que os cinco minutos acabaram.
Eu poderia ser gentil e deixá-la com mais um de bônus, mas não o faço.
— Fim de show. — informo ríspido. — Enrole-se na toalha, vou entrar.
— O quê? — ofega, parecendo recuperar sua sobriedade de modo
instantâneo. — Eu ainda estou com sabonete no rosto!
— Problema seu. Vou contar até três e abrir.
— Você não far...
— Um. — começo lentamente, e estreito os olhos com diversão
maligna ao imaginar sua expressão de horror. — Dois...
— Eu te odeio tanto!
Sua respiração se torna tão profunda que sou capaz de escutá-la.
— Eu posso dizer o mesmo. — mordo de volta, giro a maçaneta e abro
a porta com uma letargia que me enerva. — Três.
Brooke está ensopada, mas não é esse o ponto que me deixa chocado, e
sim o fato de que ela está vestida com o suéter e as meias. As peças estão
uma bagunça em seu corpo, e a umidade impregnada em seus seios medianos
cria círculos no formato de ambos. Eu esfrego o rosto, incrédulo. Proferindo
um xingamento inaudível, vou até onde ela está. A porra de um pinto
molhado. Os olhos dela voam para além de mim, parecendo verificar o que
há no caminho. Não sei o que, de repente, toma a mente dela, mas não gosto
nem um pouco do modo como sua boca abre e fecha, deixando-a idêntica a
um peixe fora d’água. Farejo o que está vindo antes mesmo de chegar.
— O que você estiver pensando em fazer, não faça. — advirto, calmo,
mesmo que a insinuação do meu aviso esteja explícita.
Apesar disso, ignorando o que eu digo, a merda louca tenta correr.
Tenta. Eu não preciso sequer me mover para dar um fim à sua estupidez,
porque a garota simplesmente escorrega ao dar o primeiro passo e cai como
um saco de bosta no piso lustrado.
O movimento revela sua calcinha amarrada em um dos pulsos, pois o
suéter rosa é erguido, deixando sua bunda nua em plena exibição.
Puta que pariu.
Brooke não explicou o motivo de ter agido daquela forma desajustada,
e talvez ela sequer saiba.
De qualquer maneira, preferi me abster de um interrogatório. Agora,
nós dois estamos em seu quarto. Não por sugestão minha, e sim porque ela
implorou para vir após o incidente catastrófico que houve. Eu tive que
esperá-la colocar um pijama para poder entrar sem nenhum novo problema.
A verdade é que eu não pretendia ficar, mas não pude dar as costas e ir
embora. Não quando vi o hematoma que começou a se formar em seu rosto.
— Dói. — ela funga baixinho, os cílios grossos estão unidos e
molhados graças ao choro anterior. — Foi tão humilhante.
Por um segundo, ao pressionar o gelo em sua bochecha avermelhada,
eu penso que ela está falando sozinha, então apenas ignoro seu lamento. Não
quero ter que exceder o limite mais do que ele já foi. Vou terminar o que
estou fazendo e voltar para o meu quarto. O cômodo só não cai em um
silêncio profundo porque a música abafada que vem da sala de jogos continua
sendo trazida para cá. Há também o tiquetaqueado incessante do relógio na
parede. Pigarreando, afasto o gelo de seu rosto. Eu o peguei do frigobar e
enrolei a pequena pedra transparente em uma camiseta dela para não queimar
sua pele ao iniciar o contato. Apesar disso, a região está num tom carmesim
que vai além do machucado.
Meu olhar se mantém voltado para o ferimento dela, e o seu continua
fixo em mim. Posso parecer não o perceber, mas eu percebo.
Tensionando o maxilar, finalizo a compressa.
— Você tem alguma pomada para isso?
Brooke pisca, saindo do transe que a toma, e assente devagar.
— Eu vou pegar no banheiro. — diz, levantando-se logo após.
Apoio o cotovelo na borda da cama, usando uma mão para empurrar
meu cabelo. Estou me sentindo como se uma areia movediça me cercasse.
Embora o ar-condicionado esteja ligado, minha temperatura continua
aumentando consideravelmente. Qual é a porra do meu problema?
Por um momento, cogito a ideia de sair sem dar explicações. Afinal de
contas, não é como se eu fosse um cavalheiro. Este é um dos comportamentos
que se pode esperar de alguém como eu. Além do mais, Brooke não está mais
alcoolizada e pode se virar de agora em diante. A pior parte já passou. O
problema é que, por alguma razão fodida, eu apenas não consigo abrir aquela
maldita porta e cruzá-la como anseio fazer. Como eu deveria fazer. Em vez
disso, permaneço enraizado no mesmo lugar, esperando que sua presença
enganadoramente doce e ingênua se faça presente outra vez.
Na infância e adolescência, eu costumava brigar muito. Era tão
recorrente que ninguém se surpreendia quando eu aparecia com um olho roxo
ou um corte profundo. Ela, por outro lado, sempre brigava comigo e chorava
enquanto fazia meus curativos. Mas era mais forte do que eu, um instinto
primitivo e quase diabólico que me dominava. Eu não podia parar. As lutas
depois do colégio faziam o sangue correr mais quente em minhas veias, me
davam o que eu precisava. Conquanto, um dia eu apanhei mais do que havia
imaginado. Foi tão fodido que eu tive uma das costelas quebradas, pois o
garoto com quem briguei era maior e mais forte. Porém, eu nunca planejei
deixar daquele jeito. Avisei que revidaria ao me recuperar. Esperei
pacientemente o passar dos dias. E assim que melhorei, me preparei para dar
o troco. Eu só não esperava dar de cara com Brooke ao abrir a porta da minha
casa. Seus grandes olhos azuis embebedados por lágrimas, imploravam para
que eu desistisse.
Eu tinha quinze anos e ela quatorze, mas, naquela hora, não me senti
como o mais velho. Pelo contrário, eu me vi como uma criança.
As palavras que ela gritou para mim, ao mesmo tempo em que me
bateu, não abandonaram meu cérebro nem mesmo atualmente.
— Você prometeu que não me magoaria.
Bem, agora eu vejo que fomos dois mentirosos ao fazermos essa
promessa anos atrás. Porque nenhum de nós foi capaz de realmente cumpri-
la.
— Eu passei. — a voz dela é um sussurro, o qual soa ansioso e incerto.
Acho que ela não esperava me ver aqui depois que voltasse ao quarto.
— Bom. — respondo ríspido, e evito contato visual ao ficar de pé.
— Eu queria agradecer, e me desculpar. Sinto muito se o aborreci, não
foi minha intenção.
Aceno em concordância, mantendo uma expressão neutra. Olho para
todos os cantos, menos para o ponto em que Brooke está parada.
— Tanto faz. — dou de ombros, enfiando as mãos nos bolsos da calça
que vesti antes de vir para cá. — Estou saindo.
— Espere.
Paro de costas para ela, mas não movo um centímetro sequer para me
virar e fitá-la. Nada de bom pode vir disso, caso eu o faça. É evidente.
Nenhuma outra palavra deixa sua boca vibra no ar. Sua figura se move
e para diante de mim. Embora o ambiente esteja mergulhado em uma
escuridão parcial, pelo fato de a iluminação haver incomodado sua vista, e eu
não a enxergue de modo detalhado, posso ver suas feições temerosas. Seu
olhar incerto e cauteloso cai para o meu rosto e o vão entre as sobrancelhas
dela enruga, evidenciando seu desconforto.
Brooke belisca as mangas de seu pijama.
— Você pode...
Inclino a cabeça para o lado, estudando-a. Mesmo que eu me esforce
para descobrir, não tenho a mínima noção do que ela pretende falar.
— Diga logo. — resmungo impaciente.
— Dormir comigo? — a pergunta sai tão suave que eu quase não sou
capaz de ouvi-la. Desta vez, eu quem pisco, confuso pelo pedido inesperado.
— O quê?
A lufada de ar que escapa de seus lábios entreabertos é nervosa,
exalando receio. Me preparo para dizer algo arrogante que a fará me expulsar
do quarto e tirar essa ideia ridícula da mente, mas paro assim que sua mão
fria e pequena segura a barra da minha camisa, fazendo as pontas dos dedos
dela encostarem no meu braço. Seus olhos sobem para os meus tão
vagarosamente que, por estar com a guarda baixa, eu me pego enfeitiçado por
eles através da fraca penumbra que embebeda o lugar. Tento encaixar a
fachada de filho da puta que costumo direcionar a ela, contudo, não consigo.
— Por favor, Drogo. — diz novamente, e meu nome saindo de sua
boca acende algo em meu coração oco. Franzo o cenho. — Eu sei que não é
justo pedir o que estou pedindo, e que apesar de todas as coisas entre nós
dois, você fez muito por mim hoje. Então, pode me odiar quando o amanhã
vier, ainda mais do que já odeia. Eu aceitarei cada gota do seu desprezo sem
qualquer relutância. Mas, por favor, não me deixe ficar sozinha essa noite.
Eu poderia negar. Poderia apenas rir, me virar e ir embora. Eu poderia
ser a porra de um bastardo cruel e desalmado. Porque é o que eu sou.
Entretanto, eu não recorro a nenhuma dessas opções. E, no fundo, ainda
que eu saiba que posso, eu não desejo. Tudo o que eu digo é:
— Você tem certeza?
Minha interrogação a pega de surpresa tanto quanto a mim mesmo.
Brooke não reage, apenas me fita sem piscar, paralisada. Estou começando a
pensar que ela enxergou a realidade e irá desistir do que sugeriu quando, sem
emitir uma sílaba, ela assente. Sua mão cai ao lado do corpo, soltando minha
roupa. Não querendo trazer uma dosagem de drama, caminho até a porta e
giro a chave.
— Tem problema com isso?
— Não.
— Certo. — umedeço o lábio inferior, observando-a fixamente ao
deliberar meu aviso: — Eu não consigo dormir de camisa.
Posso não ver com clareza, mas aposto que suas bochechas coram. Às
vezes, sua ingenuidade é tão vívida que transparece como água cristalina.
Puxo-a pela parte de trás da cabeça e coloco a peça em cima da
primeira cadeira que vejo. Hesitante, Brooke se desfaz das pantufas e sobe na
cama. Sentada no colchão, ela observa meus movimentos. Com uma
sobrancelha arqueada, volto-me para sua figura pequena no centro do quarto.
— Você, hum... pode dormir aqui. Se quiser, claro. — murmura.
— Eu vou dormir no divã. — minto, pois está óbvio que não serei
capaz de dormir, mas prefiro dizer isso do que aceitar sua sugestão. Ela
suspira.
— Pelo amor de Deus, Drogo, você tem o dobro do tamanho dele. —
retruca, cruzando os braços. Seus seios empinam com o gesto, o que só serve
para enfatizar ainda mais que vai ser uma péssima ideia ficarmos tão
próximos. Principalmente porque eu não a vejo como deveria ver. Meia-irmã.
Foda-se. Na situação em que me encontro neste exato segundo, essa
palavra parece ser uma piada pronta.
— Deite-se e durma. — estalo, me acomodando no divã. Apesar de ser
confortável, sem dúvidas não foi feito para alguém do meu tamanho e
largura.
— É como ver uma geladeira deitada em uma lata de sardinha. —
zomba, acendendo o abajur que fica em cima da mesa de cabeceira.
Eu fecho os olhos diante da luz repentina, jogando o antebraço sobre o
rosto e soltando um xingamento.
— Faça o que eu mandei, Brooke.
— Você está muito rabugento.
— Faça. — repito. — Ou eu saio.
Não que eu vá, mas preciso fazê-la desistir de alguma maneira. E se for
por meio de uma ameaça, que seja.
Os lençóis farfalham, depois há o barulho alto e seco de seu dedo
batendo no interruptor para desligá-lo.
— Boa noite, McAllister.
Por saber que não corro risco de ser flagrado, permito que o canto da
minha boca se curve em um sorriso.
— Boa noite, pirralha.

Minhas pálpebras estão com o peso de uma bola de canhão quando as


abro. Levo alguns segundos para me adaptar a luz cinzenta que invade as
longas vidraças. O sol ainda não nasceu, posso perceber sem muita
dificuldade. Uso o polegar e indicador para esfregar meus olhos e focar
minha visão. Todo o meu corpo dói como se um caminhão houvesse passado
por cima. As partes que mais protestam são meu pescoço e as costas.
Ao engolir, sinto a salivar descer arranhando minha garganta seca.
Estou tomando coragem para ficar de pé quando eu escuto. Primeiro, é
somente um ruído, porém, o barulho evolui para sussurros num tom
desesperado. Confuso, eu me levanto subitamente. A realidade me atinge
como um soco, fazendo-me recobrar a noção e me lembrar de que não estou
no meu quarto, e sim no de Brooke. No instante em que a primeira palavra
deixa seus lábios, cortando o ar como se fosse o grito da morte, eu corro em
direção à cama, segurando-a.
— Não! — seus membros se debatem, ansiando se livrar do meu
aperto, ao passo que seus olhos permanecem fechados com força. É um
pesadelo.
— Brooke. — chamo seu nome por entre os dentes cerrados, afastando
o rosto quando suas unhas avançam para o acertar.
Estou pensando em agarrar seus ombros para sacudi-la quando, de
repente, lágrimas escorrem pela face contorcida dela.
Seu desespero me deixa louco. Então, acontece. Um grito animalesco
rasga sua garganta, seguido por um pedido e um nome. Meu estômago revira.
Suas unhas se lançam para frente novamente, dessa vez conseguindo arranhar
a lateral esquerda do meu pescoço. É o necessário para que eu saia do meu
torpor momentâneo. Ignorando o que vibra em minha mente e a sensação de
nojo que me toma, envolvo meus braços ao redor de seu corpo pequeno,
trazendo-a para mim. Seu rosto molhado gruda em meu peito quando seguro
a parte de trás de sua cabeça com uma mão, sussurrando:
— Está tudo bem, amor. Sou eu. — sua luta continua, entretanto, eu
não paro de repetir minhas palavras. Acaricio seu cabelo. — Está tudo bem.
A respiração que emana dela, antes frenética, começa a cessar aos
poucos, ganhando um ritmo cadenciado, embora espasmos a cerquem.
Mesmo quando Brooke volta a adormecer vários minutos depois, e
ainda sem acordar, eu não a solto. Permaneço com ela colada a mim. Suor a
embebeda, fazendo alguns fios dourados grudarem em sua testa e deslizarem
por suas têmporas. Afasto-os devagar, a observando com um certo alívio.
Seus lábios se abrem devagar, soprando pequenas lufadas de ar, e as
pálpebras dela agora estão relaxadas. Seu semblante tranquilo é o que preciso
ver para saber que minha garota não está mais mergulhada no tormento
causado pelo seu subconsciente. Com cuidado, movo-me sobre o colchão,
apoiando minhas costas contra a cabeceira da cama e erguendo o rosto. Eu
não me movo durante as próximas horas, sejam lá quantas forem. Quando o
sol começa a nascer e a luz forte invade o cômodo, eu percebo os pelos de
seus braços eriçados e noto que a pele desnuda está fria. Usando a mão livre,
puxo o edredom. Em seguida, uso o controle em cima da mesinha para fechar
as persianas.
O que Brooke gritou continua ecoando em meu cérebro. Não é como
um disco arranhado, e sim como unhas afiadas se arrastando por um quadro.
Inúmeros pensamentos se formam em minha mente, e todos eles fazem
minhas entranhas revirarem, pois é um pior do que o outro.
Só se implora tão desesperadamente para que alguém não nos toque,
quando esse alguém chegou a nos machucar de uma forma desumana.
Mas essa não foi a parte que fez meu estômago embrulhar. A pior parte
foi a palavra que saiu de sua boca após o pedido angustiado dela.
Papai.
ESTILHAÇOS

“Mas quando você me contou toda a história


Eu senti que iria vomitar”
— Daddy Issues | The Neighbourhood

SÃO ONZE E MEIA DA manhã quando Brooke começa a dar


indícios de que está despertando.
A massa de fios loiros, agora completamente seca, forma uma cascata
desgrenhada que nos embala. Mais cedo, Ballister enviou uma mensagem
para o meu celular avisando que todos iriam dar um mergulho na praia e
perguntou se eu queria ir. Neguei a proposta e deixei claro que ela não iria,
tinha que descansar. Que se dane. Não dou a mínima para o que se passou na
cabeça dele depois.
Eu continuo quieto, esperando-a recuperar os sentidos. Brooke
permanece acomodada ao meu corpo, não quebrando o contato entre nós nem
mesmo ao se espreguiçar. Ao erguer uma das mãos, seus dedos escorregam
em meu abdômen.
É quando sua cabeça se move com hesitação para cima e seus olhos
encontram os meus em meio à penumbra parcial que adorna o cômodo.
— Drogo? — engasga-se, afastando-se subitamente. — O que está
fazendo na minha cama?
Como eu esperava, ela não lembra do episódio que ocorreu essa
madrugada. Diferente do habitual, eu não falo uma única palavra.
Imitando o movimento que fiz horas atrás, seguro o controle, usando-o
para abrir uma das persianas. Deixo uma fresta larga o bastante para poder
enxergar suas feições com clareza. Brooke reclama, estreitando os olhos e os
cobrindo com uma mão. Ignoro os protestos e observo a pele de seu rosto.
Suas bochechas possuem uma longa mancha, a qual brilha quando a luz
reflete, exibindo o rastro ressecado das lágrimas.
Eu a espero adaptar-se à claridade. Demora um pouco, mas logo
Brooke não tem mais sua mão erguida para fazer sombra diante de seus
olhos. Meus membros estão infernalmente doloridos por causa do tempo que
passei na mesma posição, entretanto, jogo a dor para o fundo da mente e me
concentro na garota diante de mim. Não vou iniciar uma chuva de perguntas,
este nunca foi o plano. Para ser honesto, não cheguei a elaborar um. Eu irei
deixá-la ciente do que houve, contudo, não tenho a intenção de pressioná-la
para saber a verdade. A sensação que me acometeu desde que tentei acalmá-
la, continua corroendo-me por dentro como um vírus. Apesar da comiseração
que queima em minha garganta, envolvendo-a como se fosse arame farpado.
Espero sua próxima ação, vendo sua postura, antes hostil, se tornar cautelosa
à medida que Brooke encurta a distância.
— Drogo, o que aconteceu?
O músculo da minha mandíbula tensiona, deslocando-se parcialmente
para o lado. Sufoco a vontade de fechar os olhos ao som de sua voz incerta.
Puxo o lençol, levantando me em seguida.
— Pesadelos são recorrentes para você?
Capturo o exato instante em que seu corpo enrijece e ela fica lívida.
Sustento o contato visual que compartilhamos, não a deixando desviar o
olhar. Não é necessário pensar em excesso para saber que algo está errado. É
tão visível no ar quanto uma chuva fina que cai. Brooke pode negar, mas até
mesmo ela possui plena ciência de que não há garantias que vão me fazer
cair. Independentemente da explicação que pode ser colocada em jogo, não
existe nenhuma possibilidade que me faça ser manipulado. Ficamos num
impasse, ambos sem ceder ou recuar. Apesar disso, continuo esperando.
— Do que você está falando? — indaga, adotando uma expressão
neutra.
— Você sabe.
— Não. Eu não sei. — declara. — E eu acho que é melhor você ir
embora.
Esfrego o maxilar, sufocando um riso de pura incredulidade. Que se
foda.
— Por quanto tempo mais você vai continuar fazendo isso?
— Drogo, por favor... — sua voz falha, entregando o nervosismo que
ela luta para esconder a qualquer custo.
Eu disse que não iria pressioná-la, mas não é assim que funciona.
Porque a verdade é que, se eu a deixar à vontade, nunca irei saber.
Não estou lidando com uma garota que despeja tudo o que tem que
despejar quando giram um pouco sua chave. Brooke não é apenas retraída, é
autodestrutiva. Dar as costas e fazer o que ela quer não a ajuda. Portanto, não
importa o quão infernal possa ser, preciso fazê-la me dizer o que houve.
Mas não por mim. Por ela.
— Pode parar de atuar? — franzo as sobrancelhas. — Pode, ao menos
uma vez na sua vida, parar de se esconder?
— Eu não estou me escondendo.
Sua resposta é a gota que faz o balde transbordar.
— Está! — acuso. — Eu jurei que só voltaria para a sua vida para te
destruir, da mesma forma que você fez, mas eu simplesmente não sou capaz
de foder com você, porque eu não suporto vê-la desmoronando na minha
frente. Agora, estou aqui, diante de você, esquecendo meu orgulho e dizendo
todas essas coisas. Sendo honesto. Sempre é por você. Mesmo quando eu não
quero que seja, mesmo quando digo que não é. Porque você estava certa
quando entrou na porra do meu quarto e disse que eu a amava. Eu amo. —
confesso. — Então, por favor, pare de suportar tudo sozinha.
Seus olhos se enchem de lágrimas, e embora eu não esteja gritando, seu
corpo se encolhe à medida que eu falo.
Eu não tinha a intenção de confessar, mas também não suportaria
permanecer sustentando uma mentira, uma farsa. Mesmo quando eu jurei me
vingar, eu sabia que estava prestes a entrar em um campo minado.
Principalmente porque, embora eu houvesse negado por todos esses anos que
estive longe, continuei sendo louco por ela. O fato é que eu nunca cheguei a
odiá-la, só me obriguei a acreditar que sim. Era mais fácil desse jeito.
— Eu... eu não consigo. — ela chora, e a honestidade nessas poucas
palavras me faz entender que eu nunca poderia realmente quebrá-la.
Não se pode destruir o que já está destruído.
Ela puxa seus joelhos, levando-os para perto do peito, e os abraça como
se estivesse se afogando e eles fossem um bote salva-vidas. Seu corpo
balança num ritmo repetitivo e vagaroso de vai-e-vem, e logo as lágrimas que
ela luta para impedir que saiam, escorrem pelo seu rosto.
A imagem é quase insuportável de ser assistida. Sinto como se eu
estivesse de mãos atadas enquanto a vejo se afogar diante dos meus olhos.
Seus soluços altos e amedrontados ecoam pelo quarto silencioso.
— Por favor, saia. — pede. — Eu quero ficar sozinha.
Em vez de recuar, faço a pergunta que queima na ponta da minha
língua:
— Sebastian batia em você? — mais uma vez, seu corpo fica rígido.
— Saia. — repete, tremendo. — Saia!
— Brooke. — dou um passo em sua direção. — Fale comigo, amor.
— Por favor! — grita. — Estou implorando! Saia do meu quarto!
Apenas vá embora, Drogo!
Levo alguns segundos para atender sua ordem. Não sei se espero que
ela mude de ideia ou algo similar. De qualquer forma, ela não volta atrás.
Sendo assim, faço a única coisa que está ao meu alcance agora; cedo ao
seu pedido sem a contestar.
— Está bem. — concordo, pegando minha camisa da cadeira. Antes de
deixá-la sozinha, eu a olho por cima do ombro. — Não acabamos aqui.
Sabendo que não vou receber uma resposta, eu saio.
Brooke não saiu de seu quarto desde a nossa última conversa. Estou
tentando manter meus pensamentos focados em outras coisas, mas não
consigo. A cada mínima tarefa que executo, acabo sendo jogado mentalmente
para ela. Sua imagem aterrorizada, o pavor evidente em suas íris azuis. Não
importa o quanto eu tente não pensar, no fim, acabo perdendo o jogo.
— Chegamos! — estou sentado no sofá, de braços cruzados e olhando
para o teto, quando o burburinho de passos explode atrás de mim.
Leo Ballister é o primeiro que eu vejo, seguido pelo bastardo do
Cagliari.
Evitando um confronto, porque sei que ele fareja essa merda e não
estamos dividindo um bom clima, eu me levanto e pego o copo que deixei em
cima da mesa de centro, bebendo o resto de água que há nele e indo na
direção da cozinha. O problema é que, diferente do amigo, ele não segue para
o lounge. Pelo contrário, vai para o mesmo cômodo.
Lavo o copo e o coloco para secar, prestes a sair. Entretanto, sou
parado por Grayson. Com um sorrisinho de comedor de merda, o verme
bloqueia o caminho. Ele é alto e, assim como eu, possui ombros largos. Não é
admirável, tendo em conta que ambos somos jogadores de hóquei. No
entanto, continuo sendo mais alto e musculoso. A parte irritante é que essas
diferenças não parecem intimidá-lo. Para ser honesto, olhando-o bem, eu
diria que ele não é o tipo de cara ciente dos limites. Ele não parece carregar
consigo o botão de autopreservação.
— Como foi a noite, McAllister? — questiona, adotando um tom de
escárnio. O “r” rola para fora de sua língua de maneira seca e acentuada,
quase trêmula. Apesar do jogo de ontem, eu só me atenho ao seu sotaque, o
qual eu presumo ser galês, neste momento. Seu modo de falar me enerva.
Ignoro sua provocação, novamente tentando passar. E sendo impedido
mais uma vez, pois ele descansa um de seus ombros no batente da porta.
— Saia.
— O que é isso? — um sorriso ainda mais largo do que o anterior
curvando sua boca. — Britânicos não costumam ser educados? Agir como
lordes?
Dissipo a distância que nos mantém afastados, me aproximando o
suficiente para ter sua respiração colidindo contra o meu rosto. Nós nos
encaramos.
— Diga-me, Cagliari, alguma pessoa já quebrou esse seu nariz de
playboyzinho rico?
Ele umedece os lábios com uma calma infernal, observando minha
boca antes de arrastar o olhar vagarosamente para cima, fixando-o no meu.
— Sim. E eu me certifiquei para que nenhuma delas tivesse um final
feliz. Não queira fazer parte da lista. Não sou legal quando me chateiam.
Se eu estivesse diante de outro alguém, apenas escutaria as palavras
sem absorvê-las, mas tratando-se do desajustado na minha frente, não
acredito que esse seja somente um blefe. A parte mais fodida é que Grayson
parece se deliciar ao evidenciar essa merda. O cara é claramente desajustado.
Mas que se foda. Estou por um fio, e quando esse maldito fio se romper, vou
fazê-lo desejar que jamais tivesse se partido.
— Dane-se. — sibilo, minhas narinas se alargando. — Saia. Do
contrário, além de quebrar seu nariz, vou fazer você comer ele.
O que digo faz sua careta perpétua de celerado iluminar, similar a noite
de Natal. Bom, verei como suas feições ficam ao ser colocadas do avesso.
— Para onde você vai com tanta pressa, hein? — canta, e eu não
respondo. Tudo o que faço é me afastar. — Oh, espere, eu sei. Porém, antes
de confirmar minha singela teoria, por favor, responda-me, McAllister, a
doce Brooke está melhor hoje?
Essas palavras bastam para que um manto vermelho borre minha visão,
ligando meu botão irracional.
Meus dedos envolvem a gola de sua camisa quando eu a agarro,
apertando com brutalidade suficiente para machucar a lateral de seu pescoço.
— Chame-a desse jeito outra vez e eu vou deixar você em coma. —
grunho, meus ombros ondulando.
— Sabe, — manifesta. — eu estava desconfiado. Nada concreto,
embora. Para ser sincero, achei que seria difícil arrancar algo de você, mas
não foi. Não me leve a mal, não é pessoal. Eu gosto de saber o ponto fraco
dos que me cercam. É sempre bom ter com o quê barganhar, afinal.
Eu ranjo os dentes ao notar que caí na porra da armadilha. Eu sabia que
seu joguinho mental não era por acaso.
— Você é a porra de um desequilibrado. — cuspo.
— Você também. — anuncia, aproximando os lábios do meu ouvido.
— A diferença entre nós dois, é que eu não estou fodendo minha meia-irmã.
Ergo o punho fechado para desferir um soco em sua cara assim que a
frase corta o ar. Acabo acertando o nada, pois alguém me empurra.
— McAllister!
Sem parar para verificar quem seja, avanço outra vez. Grayson se
esquiva do primeiro golpe, abrindo os braços ao cambalear para longe.
— A verdade é fodida, hein? — incita, lançando-me uma piscadela.
Com um grunhido de raiva, me lanço em sua direção. É quando sou
puxado para trás e vejo a figura de Leo bloquear minha visão dele.
— Sai da minha frente, caralho!
— Que diabos, cara?
— Ei, ei, ei!
Suas mãos espalmam contra o meu peito, me impedindo de ir adiante.
Eu tento tirá-lo do caminho, mas logo o treinador Sawyer surge.
— Que merda vocês pensam que estão fazendo? — ruge, erguendo os
braços ao se posicionar entre nossos corpos. — Viraram cães de briga?
Ainda que sua raiva ondule por todo o ambiente, não há como
equiparar-se à minha. Meu corpo inteiro está tremendo pela ira mal contida.
O verme loiro ri, lambendo a boca em apreciação.
— Vou quebrar a cara desse filho da puta! — trovejo, indo para cima.
— Chega, McAllister! — o treinador brada, voltando sua carranca
profunda de desagrado para mim ao pontuar: — Biblioteca. Os dois. Agora.

Meu humor está macabro.


Encaro os nós ensanguentados dos meus dedos que envolvem o bocal
da garrafa de vodca, fazendo uma careta de desgosto ao observá-los. Fodi
minha mão direita depois de deixar a biblioteca e sair da casa. Esmurrei a
primeira parede de beco que vi pela frente. Nada da lição de moral que o
treinador deu serviu para mim. Durante o tempo que ele falou, tudo o que eu
quis foi quebrar os dentes do Grayson.
Não absorvi porra nenhuma, e irrita-me não poder socar a cara de
alguém para aplacar a raiva. Estamos proibidos de chegar perto um do outro,
ao menos na Califórnia, por ordem dele. Foi a última coisa que ouvi ao passar
pela porta da biblioteca algumas horas atrás. Que se foda. No segundo que
pisarmos em Londres, farei questão de mudar isso. Não importa se a minha
atitude vai me fazer ser expulso daquele colégio de riquinhos com o rabo
mimado, eu vou transformar a cara daquele bastardo do caralho no meu saco
de pancadas particular.
É madrugada quando decido ir para a hidromassagem. Todos os outros
foram para seus quartos cedo, menos Leona, pois costuma sair à noite.
Entrando na banheira, tento relaxar. A água aquecida bate nos ferimentos e eu
chio pela dor que se erradia com o choque do contato.
— Merda. — reclamo.
— Falando sozinho?
Ergo o rosto devagar e capturo de soslaio uma massa esvoaçante de
cabelo platinado. Avalon arqueia uma sobrancelha em sinal de desdém.
Tirando Leo, os outros não sabem da cena que ocorreu mais cedo na
cozinha, optando por manter dessa forma, tiro minha mão machucada de sua
vista, deslizando-a para baixo. Cerro a mandíbula ao sentir o queimor que se
espalha pelos cortes expostos e adoto uma expressão de poucos amigos.
— É um passatempo. — respondo, apontando com o queixo para o
livro de capa laranja que ela carrega. — Este é o seu?
Sua atenção cai para o mesmo ponto e, por uma fração de segundos,
sua máscara escorrega e a garota sorri. Não dura muito tempo, embora.
— Este é o meu. — confirma.
— Qual o nome?
— Corte de Névoa e Fúria.
— É bem grande. — eu digo, querendo que o foco dela permaneça
onde está agora. — Vai demorar para terminar.
— Estou relendo, na verdade. — explica. — É meu livro favorito.
Por mais que seja uma cadela infernal dentro do Golden Elite, fora
daqueles portões Montgomery é um ser humano decente.
Ninguém faz ideia, mas nós nos conhecemos ano passado em um pub
no bairro em que eu vivia. Não sei o que ela estava fazendo por lá, afinal de
contas garotas de Kensington costumam ficar distantes de Bethnal Green
como se o lugar fosse uma praga. De qualquer maneira, não é da minha
conta. O que eu ainda não consigo compreender é o fato de que, mesmo
sendo uma boa pessoa, Avalon continua mantendo a fachada de vadia cruel.
— Entendo. Honestamente, admiro os amantes da leitura. No entanto,
faço parte dos que não curtem. Não são a minha praia.
— Para mim, deveria ser a praia de todo mundo. Isto é imenso, são
mundos. Amor, amizade, vida, morte. Tudo. — sussurra, apertando-o com
mais força. — E as pessoas não dão o devido valor que os livros merecem.
Elas deveriam, entretanto. Essas páginas possuem um poder imensurável.
Ainda que nos quebrem, e nos façam chorar, também nos reconstroem. Nos
moldam. Livros salvam mais do que vidas, salvam almas.
Eu sequer tento buscar uma resposta para dá-la, pois é uma tarefa
impossível. Não admito, mas me perco em suas palavras. Não sou único que
cai nesse efeito, porém. Avalon balança a cabeça, parecendo despertar do
pequeno transe que a toma. Com uma velocidade surpreendente, seus ombros
ficam retos e ela adota uma pose de superioridade, voltando a encaixar a
máscara de indiferença.
— McAllister?
— Sim?
— Essa conversa nunca aconteceu.
Notando a tensão que ela tenta jogar para debaixo do tapete a todo e
qualquer custo, decido não ser um filho da puta. De modo irônico, indago:
— Que conversa?
Avalon solta um suspiro quase imperceptível ao sorrir contidamente,
fechando os olhos ao fazê-lo. Em seguida, dá um passo para trás.
— Boa noite, McAllister.
Sem replicar, eu aceno.
Ao ficar sozinho outra vez, e perceber que meus pensamentos não
pretendem dar uma trégua, decido recolher minha bagunça e subir.
São 04h43 da manhã quando atravesso o corredor silencioso, seguindo
para o quarto em que estou instalado. Diminuo o ritmo ao passar perto do que
Brooke fica. A porta está trancada, obviamente. Porém, como o idiota que
sou, me aproximo para ouvir o interior. Nada. Nem mesmo o ruído do ar-
condicionado. A quietude me faz afastar a ideia de bater. Seria inútil. Então,
opto por retomar meu percurso. O corredor parece se estender ainda mais a
cada passo que dou. Talvez seja minha mente, mas é a sensação que tenho.
Preciso beber mais. E logo.
Ao finalmente chegar, eu giro a maçaneta e entro. Pego a camisa
pendurada em meu ombro e a jogo na direção da poltrona de canto.
— Não acenda as luzes.
A voz calma e firme que vem do outro lado do cômodo me faz paralisar
com o indicador a centímetros do interruptor quando eu a reconheço.
Devagar, eu me viro.
Capturo a silhueta de Brooke sentada no final da cama. Ela usa um
vestido branco, e embora esteja escuro, a claridade natural que vem de fora
me faz enxergar sua forma. Seu cabelo está solto, caindo em cascatas na
frente de seu corpo. A pele pálida é beijada pela luz da lua. Ela parece um
anjo.
Eu pisco.
Não sei como reagir, ou o que devo dizer, por esse motivo escolho a
saída que me parece menos prejudicial. Não quero vê-la fugindo outra vez. A
garota se torna escorregadia quando está incerta, e eu não preciso raciocinar
tanto para saber que não há certeza nela. Não ainda, pelo menos.
— O que veio fazer aqui? — questiono calmamente, pois é a única
frase que sou capaz de formular com coerência nesta situação.
Suas mãos pequenas, posicionadas em seu colo, apertam o tecido,
enrugando-o. Escuto o farfalhar que é quase inaudível pela suavidade.
— Seria ridiculamente engraçando se eu dissesse que preciso de você,
não concorda? — o sorriso que curva sua boca é uma farsa do caralho.
— Brooke.
— Eu preciso de você. — confessa. — Mais do que isso, preciso que
você me escute. Eu preciso que, por um segundo, esqueça que me odeia.
Pela primeira vez em muitos anos, eu me permito não resistir. Me
permito baixar a guarda com a pessoa que jurei nunca baixar. E tudo porque,
intrinsecamente, mesmo não trazendo à tona, a verdade é que eu jamais a
odiei. Nem mesmo quando eu disse com todas as letras.
E eu quis. Porra, eu quis odiá-la. Eu quis tanto que me tornei doente.
Mas querer não bastou, pois eu sempre quis mais outra coisa. Ela.
— Fale comigo, amor. — murmuro, encorajando-a com o tom mais
suave que sou capaz de produzir. — Eu estou aqui, e não irei a lugar nenhum.
Ouço-a suspirar, secando uma lágrima. Ela respira fundo, reunindo
coragem. Embora eu deseje me aproximar, aguardo seu próprio tempo.
Posso ver a batalha interna que está sendo travada em seu interior,
também sou capaz de enxergar o medo e o receio de se abrir, de falar.
Estou a um passo de tentar acalmá-la, mas paro ao som de suas
palavras ganhando vida.
— Todas as vezes que Blake e eu saíamos para jantares importantes
quando nós duas éramos pequenas, as pessoas costumavam nos olhar de uma
forma estranha. Eu as ouvia cochichar que éramos muito diferentes uma da
outra. No começo, eu não sabia que havia casos em que gêmeos poderiam ter
aparências distintas. Quando me tornei um pouco maior para compreender,
minha mãe explicou. No entanto, mesmo assim, eu me sentia mal. Porque,
sempre que eu olhava para minha irmã... — há uma pausa. — e para
Sebastian, eu me sentia uma estranha. Mas não foi essa a parte esquisita, e
sim o fato de que, com o passar do tempo, por alguma razão, eu quem
pareceu receber mais amor. E eu não conseguia entender, simplesmente não
entrava na minha cabeça. Por que ele demonstrava se importar tanto comigo,
que era tão diferente dele, e não agia da mesma maneira com a minha irmã,
que era o seu retrato? Blake tinha olhos verdes e cabelos pretos, idênticos aos
dele, e completamente diferentes das minhas características. Então, numa
noite após o jantar, eu fui até seu escritório e perguntei “Papai, você não
gosta da minha irmã?” — uma nova pausa é acrescentada. — E ele apenas
virou sua cadeira, olhou para mim, com um sorriso robótico que não
alcançava seus olhos, e disse “Não. E eu odeio amar você, criança.”
Fecho o punho. Nunca gostei de Sebastian Andreotti, e ao ouvi-la
percebo que, independentemente do motivo, eu estava certo em me sentir
assim. Levando os dedos até a boca, ela soluça baixinho, continuando:
— Foi feio. Traumatizante. E me fez deixar seu escritório no mesmo
segundo. Eu fiquei com tanto medo que não era capaz de me concentrar nas
aulas. Quando estava fazendo as atividades, sempre acabava desenhando seu
rosto com aquela expressão. Eu não percebia, era automático. Minha mãe me
levou a uma psicóloga infantil sem que ele soubesse, mas não adiantou nada.
Eu não falava com ninguém. Um dia, quando estávamos voltando para casa,
ela me perguntou se eu queria alguma coisa. — sua voz sai trêmula,
indicando o choro preso em sua garganta. — Eu disse que queria dormir no
quarto de Blake. Foi o meu único pedido. Então, ela fez um quarto para
dividirmos, foi tão... bom. Eu me sentia segura e consegui dormir bem
novamente. Vários meses se passaram, e no decorrer deles eu fiz de tudo para
só ficar perto da minha irmã e da minha mãe, fui capaz até determinado
ponto. O problema foi quando nosso aniversário de sete anos chegou.
Sebastian não poderia comparecer, pois estaria em uma viagem de negócios.
Fiquei tão feliz. Você lembra? Foi a primeira vez que nos falamos depois que
eu te dei meu urso de pelúcia. — murmura, e a lembrança me atinge como
um soco. Eu nunca parei de pensar nela, embora não a tivesse visto mais.
Engulo em seco, assentindo. — Bem, eu nunca pensei que um dia tão perfeito
pudesse estar guardando uma noite tão terrível. Nós duas abrimos os
presentes, cada um deles, e o nosso favorito foram os pijamas de coelhos que
havíamos ganhado do seu pai. Assim que a festa terminou, subimos para o
quarto e tomamos um banho. A gente nem se importou em pedir para
lavarem, decidimos usá-los. Brincamos muito, por várias horas, e minha irmã
ficou tão cansada que acabou adormecendo na minha cama. Tentei acordá-la
de todas as formas possíveis, infelizmente Blake sempre teve um sono
pesado.
Seu corpo começa a ficar inquieto, e logo as mãos dela estão mexendo
no vestido com urgência. Não se perca, querida, eu quero dizer, fique
comigo. Meus ferimentos ardem pela corrente fria de ar que circula no quarto.
Fecho e abro o punho, permitindo que a dor que se erradia pelos machucados
me mantenha longe de pensamentos que possam fazê-la recuar. Não quero ter
que supor nada, do contrário, não vou conseguir permanecer racional. Uma
sensação sufocante se apodera do meu peito, estrangulando-o. Por um
momento, cogito a possibilidade de ser raiva. Estou errado. É medo. A
maneira que ela respira se torna mais irregular.
— Estava tarde quando eu escutei passos no corredor. Tínhamos
horário para dormir e, embora fosse nosso aniversário, aquela noite não era
uma exceção. Eu achei que fosse a nossa mãe, porque ela costumava nos dar
beijos de boa noite. Por receio de que ela brigasse, desliguei o abajur e me
joguei na cama vazia. Fingi estar dormindo, no entanto, não fechei os olhos
totalmente. No começo, apesar de tudo, eu queria sorrir. Eu estava perto de
sorrir, mas, assim que a porta foi aberta e eu vi a silhueta que ocupou o
batente, a vontade desapareceu. Porque não era minha mãe, era Sebastian.
Dou um passo em sua direção, parando ao vê-la levantar subitamente e
andar de um lado para o outro. Um caroço se aloja em minha garganta.
— O odor de bebida alcóolica impregnou todo o quarto e quase me fez
vomitar. Me senti apavorada, porém, quando o vi entrar, me obriguei a pensar
que era para nos dar um beijo de boa noite. Quis acreditar que ele, no fundo,
nos amava. — a dor que ondula em sua frase faz meu coração se partir. Não
somente por notá-la, e sim por não haver apenas ela. Há nojo. — Mas não
amava. Aprendi da pior maneira. Foi por causa disso que afastei você. — ela
funga. — Jaxon e eu jamais fizemos algo. Foi tudo uma armação, porque eu
não queria contaminar você com a minha... sujeira.
A confissão é como uma faca cravada em meu peito, torcendo
vagarosamente. Apesar de tudo o que ouço, não me concentro na informação
sobre sua farsa. A verdade é que, depois daquela noite em Londres, eu já
havia imaginado que a cena de anos atrás não passava de uma mentira.
— O que Sebastian fez, Brooke? — meu timbre é grave e quebrado ao
fazer o questionamento. Meus olhos queimam com lágrimas não-derramadas.
— Todas as noites, — continua, ainda sem responder. — eu tenho
pesadelos com aquele som.
— Qual som?
Não quero estar certo quanto ao que toma minha mente. Não desejo
acreditar que Sebastian possa ter feito o que imagino. Conquanto, me deparo
com sua resposta, a qual eu estive morrendo nos últimos segundos para que
não ganhasse vida. Assisto-a cambalear, abraçando o próprio corpo. Suas
unhas se fincam na carne, afundando com brutalidade na pele, subjugando-a.
— O som de seu zíper.
Náusea violenta me atinge como um soco, seguida por uma fúria que
me faz tremer. Toda minha visão se torna turva.
— Ele... abusou de você? — a pergunta faz a bile subir em minha
garganta. Me sinto doente.
— Uma vez ele... se masturbou. — sua voz falha. — Deveria ser minha
irmã. Aquele desgraçado pensou que eu era ela. Por que, Drogo? Por quê?
Tudo acontece em uma velocidade alarmante. Em um minuto, sua
figura está de pé na minha frente, no outro, seu corpo desaba no chão.
Então, ela vomita.
Sem pensar duas vezes, agarro a camisa que descartei em cima da
cadeira e corro em sua direção, me ajoelhando diante dela. Seu rosto pende
para baixo e seu olhar está fixo em tudo o que foi expelido de seu estômago.
O modo desesperado como as palavras deixam sua boca, enquanto as mãos
da minha garota escorregam por toda a sujeira, me dilacera. Eu jogo a camisa
em cima do vômito, afastando Brooke. Seu choro é tão estridente que se torna
ensurdecedor. Trinco os dentes ao envolvê-la em meus braços. Segurando seu
corpo, sigo para o banheiro.
— Você nunca me contaminar, porque jamais foi suja. Você era uma
criança. — aperto-a com mais força. — Porra, eu sinto tanto.
O choro se torna abafado quando ela enterra a face contra o meu peito,
agarrando-se a mim como se eu fosse desaparecer a qualquer instante.
— Eu precisava falar. — engasga-se. — Eu tinha que dizer. Eu não
suportava mais me sentir quebrada, Drogo. Eu... estava morrendo a cada dia.
— Eu nunca vou permitir que você se sinta assim novamente. É uma
promessa. Você não está quebrada, anjo.
Meus molares rangem e eu me torno incapaz de segurar as lágrimas que
ardem em meus olhos quando passo pela porta e acendo as luzes.
Empurro a entrada do box para o lado com o pé, pressionando o botão
de jato quente do chuveiro, e giro a válvula. A cascata cálida acerta nossos
corpos, nos lavando. Ela treme, mas não reluta, só continua soluçando. Não
faço menção de tirar seu vestido, apenas mantenho-a em meus braços sem me
mexer. Gostaria de poder acabar com a dor que sua alma carrega.
Não sei precisamente quanto tempo se passa. Talvez meros minutos,
talvez horas. Sinto a pele dos meus dedos começar a enrugar gradativamente.
— Você precisa se lavar, meu amor. — sussurro, explicando do modo
mais cuidadoso que sou capaz. — Eu tenho que limpar o quarto.
Não estou sendo sincero, claro. O que eu mais anseio, agora, é
permanecer ao seu lado. Todavia, também desejo sua melhora, e sei que
inspirar aquele cheiro irá trazer memórias desagradáveis da recente situação.
Portanto, opto por agir pela razão, embora vá contra a minha maior vontade.
— Me desculpe. Eu fiz uma bagunça e...
— Você não tem que se desculpar. — antecipo, inquieto pela
impotência. — Está tudo bem.
— Drogo... — o pânico em sua voz é evidente, meu nome sai com
pressa de sua boca, pairando no recinto de forma urgente e angustiada.
— Não vou demorar. — asseguro calmamente, e afasto os fios
molhados que caem em seu rosto. — Me chame e eu virei na mesma hora,
entendeu?
Com receio, Brooke acena devagar. Eu a coloco de pé, me certificando
de que ela não irá cair. O temor que adorna suas íris quando eu me afasto e
me preparo para deixar o ambiente quase me faz voltar atrás, entretanto, freio
meus pensamentos e me distancio. Hesitante, saio do banheiro. Me enfurece
saber que não existe modo de deletar seu trauma, e nem sequer recorrer à
vingança. O filho da puta está morto há anos. A sensação avassaladora de
impotência é sufocante e me deixa enfurecido. Por mais que eu tente não me
concentrar nela, no fim, acabo voltando.
Ao voltar para o quarto, uso minha camisa para recolher o excesso,
pegando o balde vazio de gelo do frigobar para jogar dentro. Por causa do
mau-cheiro, abro as janelas para que a brisa entre e circule. Deixando o
cômodo, sigo para a área de limpeza no andar de baixo. Levo cerca de cinco
minutos para limpar tudo quando retorno ao quarto. Olho por cima do ombro
ao ouvir passos soando atrás de onde estou.
A figura de Brooke, pálida e quieta, surge enrolada em uma toalha
branca. Pego a camisa que deixei em cima da cama e ando até ela.
— Posso? — murmuro, ao seu sinal verde, passo a camisa pela cabeça
dela e ajusto em seu corpo, afastando a toalha ao vê-la devidamente coberta.
Seu semblante está apático e ela se mantém cabisbaixa. Mascaro o que
estou sentindo, me forçando a não transparecer toda a raiva e culpa.
Como eu não enxerguei, porra? No passado, eu sabia que algo estava
errado, pude farejar a quilômetros de distância, mas nem mesmo assim fui
capaz de notar a gravidade do que a cercava. Deve haver mais coisas nessa
história, contudo, irei machucá-la se buscar por explicações profundas.
— Quer se deitar? — inquiro, dando um passo para o lado. — Eu vou
tomar um banho.
Evitando palavras, ela concorda. Inclino-me para puxar o edredom,
cobrindo-a.
— Drogo?
— Sim?
— Pode deixar a luz do abajur acesa?
— Claro. — puxo a corda, vendo em cima da mesa de cabeceira a
caneca de chocolate quente que trouxe há pouco tempo. — Trouxe para você.
Os olhos dela brilham, enchendo-se de lágrimas, as quais ela pisca
apressadamente para não caírem. Eu finjo que não constatei seu gesto.
— Obrigada.
— Descanse. — instruo.
Mantenho a porta do banheiro aberta enquanto tomo banho, indo o
mais rápido possível. Ao terminar, coloco uma calça de moletom cinza e
regata da mesma cor. Meu coração, por eu estar apreensivo, acelera ao passo
que esfrego a toalha no cabelo com rapidez, retirando todo o excesso da água.
O silêncio que paira no ambiente me faz pensar que Brooke tenha
acabado adormecendo, o que percebo não ser o caso ao flagrá-la acordada.
— Como se sente?
— Estranha. — sopra, colocando a caneca vazia em cima da mesinha
ao lado. — E aliviada, também. Eu não sei ao certo como devo me sentir.
Seus ombros sacodem e ela funga, segurando o choro. É uma situação
angustiante.
Sou péssimo com palavras, todavia, me esforço para trazer à tona o que
eu desejo que ela esteja ciente da melhor forma que encontro.
— Ouça, — começo, agachando nos calcanhares ao lado da cama. —
você não precisa pensar em nada, foi uma noite difícil. Foi uma vida difícil.
Você carregou um fardo que ninguém no mundo deveria. E eu consigo
imaginar o quão horrível deve ter sido, mas jamais conseguirei vivenciar cada
resquício da sua dor, porque infelizmente ela é somente sua. Você é a única
pessoa capaz de saber exatamente o que passou. Acredite em mim quando eu
digo que seria capaz de matar para que não fosse desse jeito. Se eu pudesse,
apagaria todas as suas lembranças ruins, cada uma delas, não importa qual
preço eu tivesse que pagar para o fazer. Eu não posso, embora. Entretanto,
vou fazer de tudo para que você não tenha que lidar com os seus traumas sem
ter alguém por perto. Eu não estava aqui antes, Brooke, mas agora estou. —
beijo sua testa, acariciando a nuca dela com a mão que posiciono atrás de sua
cabeça e aprecio a textura dos fios úmidos esfregando contra minha palma.
— E você nunca mais vai estar sozinha.
Uma lágrima solitária desliza pela ponte de seu nariz, caindo no
travesseiro. Vejo medo em suas íris, porém, não é tão vívido como
anteriormente.
— Eu não sei se consigo ter uma vida normal, Drogo. — confessa,
apertando a mão que apoio no colchão. — Estou tão cansada, tão... fraca.
— Não é verdade. Você é forte. Vai escalar esse maldito buraco em que
foi jogada e irá sair dele. Estarei ao seu lado a cada passo do trajeto.
Seu olhar percorre minha face. Ficando de joelhos, Brooke me abraça,
envolvendo seus braços ao redor dos meus ombros e me puxando para perto.
Eu não penso duas vezes para corresponder o gesto, segurando-a como se
fosse perdê-la a qualquer segundo.
Lágrimas quentes encharcam minha camisa quando o rosto dela é
enterrado na curva do meu pescoço e minha garota se permite chorar. Eu a
mantenho colada a mim enquanto sua estrutura inteira tremula à medida que
os soluços que a tomam se intensificam.
— Eu não quero ser uma casca. — sua voz sai entrecortada. — Não
quero que o abuso que sofri me controle para sempre, Drogo. Eu quero viver.
— Você viverá cada dia. — rosno meu juramento, sentindo a
ferocidade de cada sílaba proferida vibrar em meu âmago. — Eu prometo.
E eu serei amaldiçoado se essa for uma promessa que pretendo quebrar.
RECOMEÇOS

“Quando o fogo estiver


Novamente em meus pés
E os abutres começarem a me rodear
Eles irão sussurrar:
“Seu tempo acabou”
Mas ainda assim eu vou me levantar”
— Rise | Katy Perry

EU SOU FORTE O SUFICIENTE para me reerguer e lutar.


É o pensamento que possuo ao abrir os olhos.
Minhas pálpebras estão inchadas, posso sentir. A sensação me traz
memórias de horas atrás, mas não as ruins. As que eu achei que rodariam em
minha mente como uma punição, continuam adormecidas. No começo,
hesitei vir ao quarto de Drogo, confesso que pensei em inúmeras maneiras de
desistir assim que entrei. A melhor coisa que fiz, foi ter decidido não recuar.
A pior parte de suportar tudo era ter que carregar todo o fardo sozinha, sem
ninguém para poder me escutar. Estar invisível. Nenhuma pessoa que passou
pelo tipo de pesadelo que eu passei deveria sofrer em silêncio. Agora
entendo, com toda minha alma, que não sou metade de alguém. Eu sou uma
sobrevivente. E não há nada no mundo mais forte do que isso.
Ergo o rosto, observando os traços relaxados que pairam diante de
mim. Minha respiração soturna sopra em seu peito desnudo. A boca de Drogo
está parcialmente aberta e suas sobrancelhas escuras franzem como se ele
estivesse irritado durante o sono. Hesitante, levo os dedos até os fios que
caem em sua testa, tocando-os com ternura. Me pergunto internamente se, de
agora em diante, eu poderei me livrar de uma vez por todas das amarras do
passado. Espero que a resposta do futuro seja um “sim”. Com cuidado para
não o acordar, afasto o edredom e me movo para o lado, saindo da cama. O
ruído que emito o faz se mexer, mas ele não acorda.
Sigo em direção à porta. Prestes a alcançar a maçaneta, ouço seu timbre
rouco reverberar por todo o cômodo, fazendo-me parar e virar.
— Eu não queria te acordar. — explico. Apesar de tudo, consegui
dormir bem por tê-lo ao meu lado. Diferente dele, que dormiu poucas horas.
— Não é um problema para mim. — responde. — Como está se
sentindo?
— Melhor do que eu imaginava. — confesso sincera. — Você não
dormiu muito.
— Foi o necessário. — eu o vejo levantar sem qualquer empecilho,
caminhando com cautela até onde estou. — Está com fome?
A saliva desce como navalha arranhando seu percurso por minha
garganta quando engulo em seco. A sensação é muito desconfortável.
— Com sede.
— Vou pegar uma garrafa para você. — avisa, direcionando-se ao
frigobar. — Com gás?
— Por favor.
De repente, estou nostálgica. A situação parece irreal. Não que este seja
um conto de fadas, mas eu não carrego o apavoramento que achei que iria.
Ele se mantém cuidadoso com relação ao modo de agir, quase como se
estivesse receoso de me ferir ao falar qualquer coisa.
Não sei o que somos, se voltamos a ser amigos ou se somente demos
uma trégua. Independentemente, espero que não seja temporário. Eu fui
honesta quando disse que queria viver, porque é o que almejo. Quero poder
rir, e até mesmo chorar, sem me importar com o que me cercava no passado.
Estou cansada de ter que passar por cada dia de um jeito superficial, falso. Eu
quero experimentar tudo o que perdi ao longo desses anos sem ter medo
algum. Sem hesitar. Estou ciente de que sempre carregarei as marcas do meu
tormento. Não há como esquecer ou apagar. Contudo, também sei que, apesar
de toda a dor, eu sou capaz de seguir em frente. Não voltarei a concordar que
meu medo me controle. Não mais.
— Drogo?
— Sim?
Eu me permito sorrir, embora seja taciturno, é verdadeiro. Então,
decido que, a partir de hoje, darei à minha vida um novo rumo. Novos
recomeços.
— Obrigada.

— Ballister! — Avalon berra, pulando da espreguiçadeira em que está


deitada, quando Leo mergulha na piscina e espirra água para todos os lados.
— Desculpe, boneca! — ele exibe seu sorriso mais galanteador ao
emergir, chacoalhando a cabeça.
Observo-os do lounge, aguardando meu hambúrguer ficar pronto.
Continuo com uma sensação de cansaço, mas não aceito que me abale.
— Aqui está. — anuncia Summer, estendendo a bandeja repleta de
minis hambúrgueres. — Bom apetite.
Eu agradeço, pescando o meu e o colocando no prato que seguro. A
primeira mordida que dou me faz flutuar nas nuvens. O sabor é delicioso.
— Perfeito. — elogio depois de mastigar.
— Matteo é um ótimo cozinheiro, não é?
Concordo com afinco.
— Honestamente, é o melhor que já comi.
Ela captura um e o saboreia, revirando os olhos para enfatizar seu
prazer.
— É tão macio. — geme. — Os DeLuca sempre gostaram de cozinhar,
e sempre cozinharam muitíssimo bem. Dom de italianos, eu presumo.
— Você o conhece há quantos anos?
— Não sei ao certo. — declara pensativa. — Desde que tínhamos oito
ou nove anos, acho.
— Um bom tempo.
— Sim.
Eu a deixo assim que Summer volta a se ocupar com a comida.
Caminho até a sala principal, que está vazia, porque todos os outros foram
para a área de lazer, e os que não estão nela, saíram. O frio da noite deixou
minhas mãos gélidas, então esfrego uma na outra com o intuito de aquecê-las.
As vozes do lado de fora se tornam abafadas, desviando-me delas à medida
que me afasto mais e mais, subindo os degraus da escada.
Minha melhor opção, caso eu queira voltar para onde estava, é colocar
um casaco. Acho que todo o cansaço anterior me fez ficar um pouco enferma.
Nada preocupante, porém, a moleza que insiste em se instalar no meu corpo é
bastante incômoda.
Cruzo o corredor, me aproximando do quarto, e parando ao ver Blake
sair de dentro do dela como se fosse um furacão. Eu freio e recuo um passo.
Já ficamos sem nos falar antes, não é nenhuma anomalia quando se trata de
irmãos, mas essa barreira que foi erguida entre nós desde a noite do Eu
Nunca, precisa sumir.
Seus lábios se separam e minha irmã adota uma expressão firme de
indiferença, desviando o olhar ao me ter encarando-a sem nenhuma discrição.
— Deseja algo? — indaga, mudando o peso de um pé para o outro.
Ignoro o fato de que seu tom sai com uma certa rispidez.
— Sim, eu desejo. — retruco. — Desejo que você pare de me evitar.
Seus olhos rolam, enquanto eu permaneço apática.
— Você foi imatura.
Sua acusação me faz sorrir com incredulidade.
— E você foi ridícula. — devolvo, mesmo sabendo que essa é a pior
rota para se seguir ao tentar uma reconciliação.
Todavia, Blake tem que escutar algumas verdades, apenas desse jeito
ela vai cair na real e irá perceber o erro cometido.
— O quê?
— Você ouviu. — mordo, deixando a postura ereta. — Pare de ser tão
inconsequente. Olhe a que ponto chegamos, e tudo por causa de um cara.
A risada nasalada que a ouço emitir sai desdenhosa, evidenciando seu
desagrado. No fundo, eu fico triste ao ver o quão iludida ela está.
Pelo amor de Deus, o que aquele canalha deturpado fez? Um tipo de
feitiço involuntário?
— Eu não irei conversar com você. — declara entredentes. — Não
quando a sua intenção é me detonar. Esse seu julgamento não é justo,
Brooke.
De todas as coisas que poderiam deixar sua boca neste instante, essa é,
sem dúvidas, a mais inválida delas. Minhas palmas formigam e eu as fecho,
retraindo minha profunda decepção. Sua queda será muito maior do que eu
cheguei a cogitar. Balanço a cabeça vagarosamente.
— E parar de falar comigo por causa de uma pessoa que não está nem
aí para a sua existência, minha irmã?
Seu silêncio abrupto é a resposta que eu havia previsto.
Detesto me desentender com Blake, mas não posso voltar atrás quanto
ao que disse e simplesmente concordar com sua atitude inaceitável.
A face dela se contorce em uma careta de indignação ao fim da minha
frase. Posso ter sido dura, confesso, ainda assim, é a realidade. Apesar de ser
clara somente para uma de nós duas. Grayson não liga ou nutre respeito por
nenhum ser humano além dele mesmo. Não dá a mínima se trata-se de um
homem ou uma mulher, se é uma pessoa boa ou ruim, tudo o que importa é o
quão vulnerável podemos ficar no seu radar.
Eu estou ciente de seu modus operandi, por essa razão não irei permitir
de bom grado que minha irmã caia na dele.
Impedindo que a palavra final venha dela, dou um passo à frente, o qual
nos deixa cara a cara, e finalizo:
— É justo? — fitando-a por uma fração de segundos antes de me
afastar, eu retomo meu caminho. O que eu falei irá bastar para fazê-la pensar.
Todos estão dormindo quando decido ir para o lado de fora da casa.
Cruzando a passarela, vejo as boias que flutuam sobre a piscina.
Há uma de unicórnio, que pertence a Avalon, e uma de flamingo, a qual
Leo comprou em uma de suas idas à praia. As luzes noturnas no interior são a
única fonte de iluminação. O tempo não está mais tão frio quanto
anteriormente, por isso aproveito para mergulhar. Na verdade, não é apenas
por esse motivo. Nesse horário, não preciso me preocupar em ficar de meias,
pois não há ninguém por perto. Contudo, mantenho um par em cima de uma
das mesas que circulam o local.
Penso sobre o dia que irei finalmente ter a coragem necessária para me
livrar delas. Não importa qual seja, meu único desejo é que não demore.
Os quartos são à prova de som, portanto, não tenho que me preocupar
em ser sorrateira para evitar ruídos e acordá-los. Após a conversa que tive
com Blake mais cedo, eu sabia que não seria capaz de dormir. A insônia,
infelizmente, sempre foi uma velha companheira.
Com o celular em mãos, escolho uma das minhas listas de reprodução
favoritas para tocar. Voltaremos para a Inglaterra amanhã à tarde, e eu
preciso aproveitar meus últimos momentos aqui antes de voltar a pisar no
Golden Elite outra vez. Se o desgraçado do Eric acha que me destruir será
uma tarefa fácil, ele está muito enganado, pois eu não pretendo facilitar.
Independentemente de quais escolhas o futuro esteja reservando para mim, e
se elas serão positivas ou negativas, vou lidar com cada uma delas.
Eu não terei medo. Nunca mais.
Seleciono uma música e, ao ouvi-la soar no alto-falante do aparelho,
sento-me na borda da piscina e desço sem pressa, afundando. A água fria é
agradável ao embrulhar meu corpo como um cobertor de veludo. Aprecio
cada resquício que a sensação me proporciona, submergindo. Eu não poderia
experimentar uma situação mais relaxante do que essa agora. Pode ser
contraditório, mas é libertador ser engolida. Movimentando os braços por
dentro da água, começo a nadar para o outro lado. Ao chegar nele, repito o
processo, voltando para onde estava. Mantenho os olhos abertos o tempo
inteiro, e somente ao sentir que meu fôlego está nos segundos finais, retorno
à superfície. Com os dedos, tiro o excesso de água que queima meus olhos,
abrindo-os em seguida. É quando capto a figura de uma pessoa de pé na
borda.
Drogo.
— Uma hora inusitada para um mergulho, não? — divaga, arrastando o
olhar pelo relógio que adorna seu pulso e depois o deslocando até mim.
Dou de ombros, respirando com avidez.
Não nos falamos com frequência após eu sair de seu quarto e ir para o
meu, mas trocamos olhares quando estávamos aqui pela tarde. Eu tive
vontade de falar com ele, no entanto, os outros estavam por perto e eu não
quis arriscar chamar a atenção deles, especialmente a de Blake.
— Nunca é tarde demais para um mergulho. — retruco, e nado para
longe do centro da piscina. — Eu pensei que você estivesse dormindo.
— Eu estava. Desci para beber água e vi você.
— Entendo. — descansando os antebraços na borda, ergo a cabeça e o
fito. — Sabe, Drogo, você pode parar de agir dessa forma.
O vinco entre suas sobrancelhas enruga.
— De que forma?
— Como se eu fosse quebrar a qualquer segundo.
— Eu não quero falar e cometer algum erro.
— Não vai. — asseguro, vendo-o se apoiar nos calcanhares. —
Acredite.
— Brooke. — suspira inquieto. — Você não deveria ter tanta fé em
mim.
— E você não deveria ter tão pouca.
Sua língua sai para umedecer os lábios, deixando à mostra sua agitação.
Eu sei que ele não está se portando desse jeito porque quer, e sim por
preocupação. Mesmo quando a guerra entre a gente foi declarada, nos
mantivemos conscientes quanto ao fato de que jamais seria possível apagar a
centelha de cuidado que passamos a dividir desde a primeira vez que nos
encontramos. Não existe maneira de explicar, porque se trata de sentimento.
E não podemos dar uma definição a este tipo de coisa.
Embora eu esteja batalhando para demonstrar confiança, possuo
hesitações. Mas estou lutando ao máximo para tirá-las do foco.
Honestamente, eu compreendo seu receio. Não é fácil saber qual é o próximo
passo que devemos dar. Afinal, não é como se fôssemos preparados a vida
toda para lidar com cenários referentes à traumas. Apesar disso, Drogo está
tentando. E é por esta razão que eu sei que não poderia ter escolhido outra
pessoa para confessar meu maior medo. Eu amo a minha irmã, porém, com
ele é diferente. Possuímos uma ligação que ultrapassa todas as leis físicas. A
verdade é que nós sabemos, bem no fundo, que sempre permaneceremos um
com o outro. Sempre. Independentemente de qualquer situação. Mesmo não
dizendo as palavras, dentro de mim, eu sei que nunca conseguiria deixar de
amá-lo. Porque, mesmo depois do que fiz, Drogo me vê. O homem que eu
amo desde que éramos crianças me enxerga através da fachada que eu criei e
moldei ao longo dos anos, e não importam as circustâncias, nem quanto
tempo se passe, ou o quão feio tudo seja, ele passa por cima de cada
promessa que fez a si mesmo quando se trata de mim. E a maior confirmação
que recebi quanto a isso foi quando o escutei sussurrar que me amava
enquanto eu adormecia em seus braços.
Minhas unhas se arrastam levemente pelo porcelanato molhado.
Quando estava viva, minha mãe costumava falar que era um erro não
confessarmos o que sentíamos por alguém, somente por supor que seria
melhor o fazer em uma outra oportunidade, pois talvez essa outra
oportunidade jamais pudesse chegar. E ela não poderia estar mais correta.
Meu olhar encontra o seu.
— Eu te amo. — declaro, e minha confissão o deixa paralisado. Ele
pisca com choque evidente. — E confio em você, Drogo. Faça-o, também.
Para comprovar que estou sendo honesta, retiro minha última camada.
A qual nunca deixei exposta para qualquer outro ser humano além de mim.
Espalmando as mãos na borda, forço meu corpo para cima, saindo da
água. Drogo, para me dar espaço, fica de pé e se afasta. Com os batimentos
subjugando minha caixa torácica, ergo a cabeça e respiro fundo. Como eu
previa, sua atenção é guiada para baixo de maneira involuntária, trilhando
devagar seu curso para minhas pernas desnudas. Mais especificamente, a
região acima dos meus joelhos.
Minhas cicatrizes.
Eu percebo o exato momento em que sua respiração falha e o
semblante dele se torna feroz, quase assassino. Há rastros de dor nele. E
culpa.
— Quando?
— Eu tinha treze anos da primeira vez e dezessete da última. —
confesso, lembrando do dia em que Leona me encontrou no estacionamento.
O músculo do lado esquerdo de sua mandíbula tensiona.
— Você pensa em...
A preocupação que embala sua pergunta faz meu coração palpitar no
peito. É uma versão dele que eu costumava estar diante somente no passado.
— Fazer novamente? Não. — falo, porque é a verdade. — Ouça, este
não é um diálogo em que desejo me aprofundar. Ainda não estou pronta para
essa conversa. Um dia, talvez, mas com certeza não hoje. O que eu quero que
você entenda é que estou me despindo por inteira, e apenas com você.
Nenhuma outra pessoa, além de você, me viu assim antes. É um lado meu
que mantenho escondido dos holofotes custe o que custar.
— É por causa delas que você nunca tira as meias. — conclui.
— Escondi durante todo esse tempo não pelos olhares de julgamento, e
sim por me achar uma garota covarde, frágil. Pensei que eu fosse fraca.
— Mas você não é. — revida. — Nunca foi e nunca será. Ter recorrido
a essa saída não fez de você nenhuma dessas coisas. Sabe disso, não sabe?
Eu não me atrevo a recuar quando ele avança em minha direção. O
movimento é calmo, tão suave que me surpreende. Contudo, permaneço
imovél. Meus pensamentos borbulham em minha mente, deixando-me
inquieta. Meus lábios se tornam ressecados pelas lufadas frias de ar que eu
sopro.
Sua mão se ergue de modo hesitante, e as pontas de seus dedos se
arrastam pela pele úmida e gelada do meu rosto, acariciando-me com
cuidado. Minhas pálpebras tremem, fechando-se, e eu descanso a palma
contra seu dorso adornado por veias grosseiras. No fundo, eu tive medo de
que Drogo sentisse pena de mim. Eu poderia ser capaz de suportar muitas
coisas, inclusive seu ódio, mas não sua pena.
Não sei o que irá acontecer conosco quando voltarmos para a
Inglaterra, se nós continuaremos bem ou não. Entretanto, estou disposta a
arriscar. Consigo entender que a luz no fim do túneo, diferente do que
costumam dizer, não aparecerá a menos que a persigamos. E eu perseguirei a
minha.
— Agora eu sei. — sussurro, finalmente.
SABOR AMARGO

“Estou sozinho com você


Você está sozinha comigo
E eu estou esperando que você se veja
Como eu te vejo”
— I See You | Missio

EU DETESTO ESPERAR.
Não. Eu detesto pra caralho esperar.
Meu foco está fixo nas minhas mãos durante os incontáveis minutos
que eu as fecho e abro, sentado em uma das cadeiras do corredor vazio. Perdi
as contas da quantidade de vezes que me levantei e andei de um lado para o
outro com o intuito de aliviar a maldita onda de ansiedade. A porra do
tiquetaqueado dos ponteiros ressoa em meu cérebro, badalando de forma
irritante e sem qualquer pausa. O ruído incessante contribui para o aumento
da minha impaciência. Hoje estou mais raivoso do que o normal, e tudo
porque tenho que aguardar. Estou a um passo de arrancar a porcaria do
relógio da parede para quebrá-lo em dois. Talvez, assim, eu possa finalmente
ter um pouco de paz.
Com um suspiro profundo de irritação, descanso a cabeça contra o
gesso e fecho os olhos. Em silêncio, começo a contar até cem de trás para
frente. Era uma rota que eu seguia quando era mais novo e tinha o desejo de
esmurrar a cara de algum endinheirado que mexia comigo.
Meu pai quem me ensinou. Às vezes, funcionava. Todavia, dava muito
mais errado do que certo. Bem, acredito que o importante era tentar.
Esfrego as palmas úmidas no tecido da minha calça. O uniforme parece
ainda mais apertado do que o normal em meus membros. Faz cinco dias que
retornamos à Londres, e ontem Brooke e eu tomamos a decisão de fazer um
teste de DNA. Neste exato instante, estou aguardando a chegada dela no
laboratório para vermos o resultado. Cheguei primeiro porque fui dispensado
do treino. Pescando o celular do bolso, verifico o aplicativo de conversas.
Arrastando o polegar pelo teclado, escrevo uma nova mensagem para
perguntar onde minha garota se enfiou. Antes mesmo que eu possa finalizar,
passos ecoam pelo corredor vazio.
Desvio a atenção do aparelho, erguendo o rosto. Me levanto ao vê-la
entrar no recinto com uma expressão gritante de nervosismo e expectativa.
Seu ritmo apressado é tão cômico que alivia minha fúria, obrigando-me a
esquecer, por um minuto inteiro, que estou irritado.
— Então? — indaga ansiosa.
— Mesma coisa.
Brooke desaba na cadeira ao lado.
— Eu estou apreensiva. Tentei ficar calma, só que parece ser
impossível. Eu sinto que vou vomitar a qualquer instante. — admite.
Repito seu movimento, segurando seus dedos nos meus ao me sentar.
Entre eles está escorregadio por causa do suor frio que os rodeia.
— Você não precisa ficar assim. — asseguro. — Com todo esse medo.
Não faz nada bem.
— Mas, Drogo, se der negativo, você não será um Andreotti. — seus
dentes prendem o lábio inferior e ela o mastiga sem nem perceber.
— Que se dane, meu amor. Não dou a mínima para o dinheiro. O que
eu tenho pode me manter suficientemente bem. Não se preocupe.
Sua testa enruga em confusão quando Brooke gira a cabeça para me
encarar. De um jeito bizarro, posso pressentir a pergunta que virá.
Não tenho problema algum em dizer o que fiz ao longo desses últimos
anos para sobreviver, embora a merda toda fosse clandestina. Eu estaria
mentindo se dissesse que não sinto falta das brigas, porém, coloquei outra
coisa em meu foco. A questão é que, agora, essa outra coisa seguiu um rumo
que eu não estava prevendo. Temos uma longa história, uma grande carga
que foi carregada por ambos, e que me fez repensar tudo de ruim que eu
havia planejado quando aquela advogada toda engomadinha me procurou,
meses atrás. Pode parecer algo repentino e sem fundamento para qualquer
outra pessoa de fora que venha a observar nossa relação atual. Não para nós
dois, porém. A verdade é que, para Brooke e eu, levou tempo. Tempo demais.
Esta é uma segunda chance que nos foi dada e que eu não pretendo
desperdiçar. E foda-me se tiver alguma coisa a ver com pena, como ela
pensou. Nunca, porra.
— Você tem uma Lamborghini, veste roupas boas e tem até um Rolex.
— diz, e não capto maldade em seu comentário. — Seus pais não eram
pobres, contudo, também não eram ricos o bastante para que você tivesse
uma vida com tamanha regalia. Como você tem dinheiro para bancar tudo?
Esfrego a nuca devagar, acomodando-me de modo preguiçoso e
relaxado no assento.
— Eu era o melhor no que eu fazia.
— O que você fazia? — inquire, e eu desvio o olhar com despretensão,
coçando o maxilar. Ao não dar uma explicação, Brooke resmunga: — Drogo.
— Podemos falar sobre esse assunto outra hora.
— Por quê?
— Porque este não é um local apropriado.
Seus lábios formam um bico de insatisfação.
O gesto me faz ter um desejo quase enlouquecedor de beijá-la. Eu fui
capaz de provar esses lábios, mas acho que uma, duas ou três vezes jamais
serão o suficiente. Por um segundo, me pego pensando se Brooke sente o
mesmo. É um pensamento que me deixa inquieto por não saber a resposta. Eu
não irei, de nenhuma maneira existente, pressioná-la para saber se é um
desejo unilateral ou não.
Na noite em que estávamos na piscina, ainda na Califórnia, tivemos um
longo diálogo sobre como seria entre nós daquele momento em diante.
Seu único pedido foi que eu fosse paciente com suas decisões. E eu
pagarei alguém para me espancar até a morte se a sua vontade não for
respeitada.
Observo-a prender seus fios loiros e sedosos em um rabo de cavalo
como se fosse o gesto mais fascinante do mundo. Na verdade, acho que é. A
gravata de seu uniforme está parcialmente desalinhada, então eu ajeito.
— Passou maquiagem no pescoço? — pergunto.
— Sim. — pigarreia. — Há dias em que eu costumo passar um
pouquinho.
Concordo com um aceno rápido, voltando a me recostar no assento.
— Ei! Não pense que irá escapar do interrogatório. — a porra de um
arrepio percorre minha coluna quando ela sussurra: — Não terminamos
ainda.
— Acredite em mim quando eu digo que já estava imaginando isso. —
balbucio, levando o dorso de sua mão à boca e depositando um beijo nele.
Ela sopra uma risadinha pelo nariz, revirando os grandes e vívidos
olhos azuis. Notei que, ultimamente, eles estão brilhando com mais
frequência.
Gosto disso.
— O que foi? — questiona desconfiada. — Você está me olhando de
um modo estranho.
— E que tipo de estranho seria? — interrogo, adotando um tom cínico.
— Bom ou ruim?
— Hum. — divaga, fingindo escolher, mas logo sorri. — Eu ainda não
consegui decidir.
Nossos sorrisos desaparecem ao som da porta diante de nós abrindo.
Uma mulher de uniforme branco e cabelo raspado, com tatuagens até o
pescoço, sai de dentro da sala. É a mesma que pegou as amostras necessárias
para o exame de DNA. Seus olhos pretos desviam em nossa direção e eu vejo
a sombra de um sorriso elevar um dos cantos de sua boca adornada por um
batom escuro. Ela é jovem. Eu diria que está na casa dos trinta.
Brooke é a primeira a levantar.
— Olá. — saúda, apertando nossas mãos com firmeza. — Como vão?
— Bem, e você?
— Muito bem, obrigada. Eu demorei um pouco mais para finalizar,
pois houve um pequeno imprevisto. Nada que possa ser prejudicial. —
antecede. — Porém, por causa disso, a recepção não o teve em mãos para
entregar a vocês ainda.
— Ah, sem problemas. Quanto tempo mais irá demorar?
Quase posso ver o coração de Brooke pulsando em sua garganta. Ela se
esforça ao máximo para não evidenciar o nervosismo que sente, falhando.
Mantenho um aspecto neutro, embora esteja no mesmo barco. É
ridículo, porque sabemos que não somos meios-irmãos, conquanto, a
sensação que nos envolve não nos faz enxergar esse ponto com clareza. A
mulher explica que o resultado está sendo encaminhado para a recepção
agora e que teremos que o buscar lá dentro de alguns minutos, informando
também que só seria necessário permanecer com ela, caso fosse preciso dar
alguma explicação final. O que não foi o caso, tendo em conta que tudo saiu
perfeitamente esclarecedor. Ou seja, todo esse tempo que esperei sentado
nesse corredor foi inútil. Reviro os olhos ao cair na real. Hospitais e esses
locais similares não são minha praia, portanto, não sei como funciona o
processo para determinada coisa.
Começo a entender o motivo de Brooke ter mandado um emoji com a
expressão confusa quando perguntou se eu estava na recepção e eu neguei.
A culpa não foi minha. Passei lá antes de vir para cá e não tinha nada.
Então, achei melhor aguardar aqui. Afinal de contas, era o único local vazio.
Durante o diálogo, permaneço quieto, apenas observando. No final, ambas
voltam a apertar as mãos e eu faço o mesmo em seguida, agradecendo.
— Por que ficou tão calado? — ouço-a questionar ao seguirmos para
fora do corredor.
— Eu não tinha nada de importante para acrescentar. — explico, dando
de ombros.
— Surpreendente.
— Desculpe? Você, por acaso, está debochando de mim? — indago, de
modo retórico.
Ela solta uma risadinha suave, segurando meu pulso enfaixado com
suas mãozinhas.
— Foi o que pareceu? — seu tom é condescendente.
— Foi exatamente o que pareceu. — retruco irônico.
O envelope continua lacrado.
E eu não faço a mínima ideia sobre o lugar em que estamos indo.
Brooke pediu para escolher o lugar onde gostaria de abri-lo e eu aceitei
sem contestar, ainda que o desejo de ver a confirmação fosse maior. Fecho a
porta do banco do motorista da minha Gallardo assim que a vejo saltar para o
interior, acomodando-se no assento após descer o teto solar. Dou a volta,
apoiando uma mão na lataria para pular dentro. O conversível balança com o
movimento e eu ignoro a careta de desagrado que enfeita suas feições. Ajudo-
a com o cinto de segurança, passando o meu depois, e descanso um cotovelo
na janela, esfregando o lábio inferior.
Não estou receoso quanto ao fato de que não estou no controle, e muito
menos por se tratar do meu carro — embora eu tenha ciúmes dele, pois sei o
quão difícil foi o conseguir — e tudo porque Brooke sempre dirigiu bem. O
sentimento de apreensão que carrego comigo é devido a outra coisa.
— Relaxe. Seu bebê está em boas mãos. — escuto-a garantir,
observando o retrovisor ao manobrar para fora da vaga e acelerar em direção
à estrada.
Ajusto a aba do boné que uso, me permitindo achar graça de seu
comentário.
— Estou relaxado.
— Se você diz. — dá de ombros. — Ah, tem uma venda na minha
bolsa. Pode pegá-la, por favor?
Olho-a com desconfiança, mas faço o que ela pede, pegando a bolsa
dos meus pés e abrindo.
Não demoro muito para ver o tecido preto em um dos bolsos na parte
interna. Fecho o zíper com uma carranca. Posso sentir onde vamos chegar.
— O que pensa que vai fazer?
Minha pergunta não indica uma dúvida ingênua, obviamente. Estou
interrogando-a somente para confirmar minha teoria evidente.
— Eu? Nada. Você? Colocá-la.
Sua réplica soa tão doce e meiga enganaria qualquer pessoa. Qualquer
pessoa, menos eu.
Com uma sobrancelha arqueada em cinismo, verifico sua face
ruborizada, a qual está fixa na pista à frente. Brooke morde o lábio inferior
com o intuito de prender o riso, e luta para manter uma fachada de
indiferença. Por um minuto inteiro, noto o vislumbre de felicidade que banha
suas íris. A imagem faz algo em meu peito, um sentimento satisfatório. Estou
tentando ao máximo deixá-la à vontade. Ainda que isso implique em ter que
aceitar esse tipo de coisa. Não dou a mínima para o que os demais irão achar
futuramente, se vão ou não olhar de maneira estranha para nós dois. Agora,
temos um ao outro, e isto é o mais importante.
— Não sei. — divago, analisando a venda. — Devo confiar em você?
Ela bufa uma risadinha de incredulidade, estapeando a minha perna.
— Você pode, por favor, parar de falar besteira e colocar de uma vez
por todas? — seu timbre mandão é equivalente ao de um hamster furioso.
— Estou pensando.
— Drogo! — berra descrente.
Não vou dizer em voz alta, mas, porra, adoro como meu nome rola para
fora de sua boca. Ele costumava ser um problema para mim na infância.
— Está bem, está bem. — cedo, esticando o tecido e passando-o na
frente dos meus olhos. Em seguida, dou um nó na parte traseira. —
Satisfeita?
— Sim. Vê alguma coisa?
— Eu não estou enxergando um palmo, mulher. — resmungo minha
resposta, dando os retoques finais para não incomodar. — Vai demorar?
— Acho que não.
— Brooke. — profiro em tom de repreensão, virando a cabeça como se
pudesse olhá-la.
Sufoco a vontade de revirar os olhos com sua justificativa, escutando o
som de indignação que ela emite ao bater sua língua contra o céu da boca.
— É que já faz alguns anos.
— O quê? — brado.
— Estou brincando!
Aperto a ponte do nariz, frustrado por estar fora de qualquer resquício
de controle aqui. Eu sei que cometi pecados inconcebíveis em vida, mas
estou começando a achar que pela paciência que estou tendo agora, quando
chegar minha hora de partir, eu poderei passar pelos portões do Céu.
— Você é uma coisinha má.
— Sou uma garotinha cruel.
Eu tento raciocinar, pensando nas possibilidades de locais que podem
indicar nosso destino. Entretanto, nenhum em específico me vem à mente.
Brooke sempre guardou segredos muito bem. Portanto, recorrer à
manipulação ou chantagem está completamente fora de cogitação. Ela não
vai cair em nenhuma armadilha que eu criar, estou ciente. Então, tudo o que
me resta fazer é me abster de um interrogatório e esperar.
Tamborilo os dedos em minha coxa, me forçando a concentrar os
pensamentos em um ponto que não seja esse. Do contrário, vou ter um
infarto.
Sinto as narinas dilatarem com o excesso de voracidade que eu coloco
ao respirar. Ouço o chiado que Brooke emite ao se mexer no assento.
— Quanto tempo mais? — inquiro, após vários minutos se passarem.
— Minha bunda está ficando quadrada.
— E você possui o título de capitão do time de hóquei? — alfineta
irônica.
— Sua língua afiada está se tornando um problema.
— Você diz? Porque, bem, eu estou adorando usá-la.
A interação que dividimos parece não ser real. Quero dizer, menos de
uma semana atrás eu estava sendo um bastardo do caralho.
As coisas que falei para Brooke desde que voltei à Kensington são
dignas de arrancar minhas bolas sem anestesia. Eu fui um filho da puta,
embora não tenha feito um terço do inferno que planejei. Tive inúmeras
chances, confesso. Ainda assim, nunca fui adiante. Não em todas elas, pelo
menos. Boa parte do que eu disse foi da boca para fora, não importa o quão
verdadeiro parecesse. Eu queria me convencer de que era a realidade. Não
era. O maldito peso em minha consciência não é devido ao que houve na
Califórnia, e sim porque Brooke nunca mereceu ser alvo de situações ruins,
mesmo as mais ínfimas. Tento mandar esses pensamentos negativos que me
corroem para o fundo da mente, porém, é uma tentativa sem sucesso. Eu
queria não apenas poder consertar tudo, e sim apagar cada evento infeliz
como se fosse uma letra incorreta escrita a lápis em um caderno. O sabor
amargo dos rastros de culpa vai me perseguir até o dia da minha morte.
— Brooke. — começo rouco.
Interrompo o que pretendia falar ao registrar sua euforia repentina,
anunciando que chegamos. A Lamborghini para de se mover gradativamente,
e o barulho de seu cinto sendo retirado logo depois, além do vento forte que
vem de fora, é todo o barulho que circula em meus ouvidos. Inspiro seu
perfume de menina doce quando ela se inclina na minha direção, seus cabelos
roçando em meu peito através do tecido do uniforme o faz parecer diminuir
alguns números. Eu cerro a mandíbula, fechando os punhos para esmagar a
vontade de segurá-la contra mim sem aviso prévio.
Meu cinto é desprendido do suporte.
— Você ia dizer alguma coisa?
Eu quero ver seu rosto, é a verdadeira confissão que queima na ponta
da minha língua e que eu quase permiti que escapasse.
— Nada.
— Tem certeza? — insiste.
— Sim. Podemos ir ou não?
A resposta para o que eu pergunto não vem de imediato. Suponho que
Brooke esteja pensando em algo, tendo em conta que sua cabeça não para.
Apesar do silêncio que recai entre nós, seu corpo não se mexe para criar uma
certa distância. Pelo contrário, ela permanece imóvel.
Sua respiração cálida sopra em um ritmo cadenciado na pele exposta do
meu peito, onde eu desabotoei propositalmente mais cedo.
Se qualquer outra garota estivesse nessa mesma posição, seria uma
situação irrelevante. Não me afetaria. Com Brooke, porra, não funciona
assim. Ela torna tudo tão difícil que, ainda que se trate da tarefa mais simples
de ser executada, eu não me vejo conseguindo raciocinar da forma correta.
O sonido que se inicia indica a quebra de contato que dividimos
parcialmente. O calor que emanava de sua presença antes se dissipa, similar a
fumaça no ar. É doentio o modo como meu corpo reage. A sensação que
tenho é de estar viciado em uma droga e assisti-la ser tirada do meu alcance.
Estou fodido.
— Claro. — concorda por fim, e abre a porta. — Vou dar a volta e te
ajudar a sair.
— Não precisa. — antecedo, tateando meu lado em busca da maçaneta.
— Precisa. Não vai ser legal se você tropeçar e cair de cara. O lugar
está muito decadente, é fácil ocorrer. Aconteceu comigo da última vez.
— Você me trouxe para uma armadilha mortífera, então? — desdenho.
— Quase isso.
A risadinha que ela produz é abafada, mas me faz esboçar um sorriso.
A porta do carona é aberta e eu a tenho me instruindo enquanto me segura.
— Devagar para não se ferir e...
— Não estou operado. — alerto solenemente. — Diga onde eu tenho
que pisar e eu irei. Não vai ser legal se eu tropeçar e cair em cima de você.
— Eu morro.
— De fato.
O solo é cheio de buracos, o que me dá a impressão de estar mancando
ao me movimentar sobre ele. O vento, aqui, parece ser mais violento e glacial
do que no resto da cidade. Por esse motivo, pressuponho estarmos em um
local alto. Não há sons de outros veículos ou burburinhos de pessoas, e o
aroma também não me é familiar. Não que seja desagradável, mas cheira
como terra úmida e velharia. O canto de pássaros ao longínquo é trazido pela
brisa que circula o ambiente. Consigo perceber que estamos cercados por
algumas árvores, pois escuto o farfalhar das folhas. Eu poderia dizer, mesmo
com os olhos vendados, que este é o lugar ideal para um filme de terror, e a
coruja ao fundo só enfatiza a ideia. Não é uma floresta. Fica evidente porque,
embora tenha pequenas crateras, o piso não é de terra. E não foi preciso
desviar das árvores ou pisar em cascalhos. Na verdade, é concreto. O que é
bom, o tênis que estou usando é branco, seria uma dor no rabo ter que lavá-lo
por estar coberto de lama.
Estou a um passo de perguntar se nunca chegaremos quando Brooke,
como se lesse meus pensamentos, anuncia que podemos parar de andar.
— Não tire ainda.
— Caramba, mulher. — reclamo, e espero uma réplica para o meu
comentário mal-humorado, todavia, ela não se dá ao trabalho de morder a
isca.
— Eu vou tirar para você. — avisa, posicionando-se atrás de mim.
Ela deve subir em alguma coisa, pois fica da minha altura, ou um pouco
maior. Suas mãos trabalham com pressa para desfazer o nó que eu dei.
Apertei apenas o suficiente para que o tecido não ficasse escorregando
no meu rosto, o que a faz terminar a tarefa em uma fração de segundos. Não é
difícil notar que o ar foi embebedado pela empolgação genuína dela. O que
eu não consigo entender é a razão de Brooke estar tão empolgada. Então, a
venda é retirada. Eu pisco para recuperar o foco, estreitando os olhos. E,
foda-se, porque finalmente compreendo o motivo de sua euforia.
Nós estamos onde nos conhecemos.
EM OUTRAS VIDAS

“Ninguém vê, ninguém sabe


Nós somos um segredo
Não podemos ser expostos
É como isso é, é como isso será
Longe dos outros, perto um do outro”
— Uncover | Zara Larsson

A EXPECTATIVA ME SUBJUGA.
Não pretendia vir para a residência, agora em ruínas, que Drogo e eu
nos conhecemos na infância. Foi uma ideia de última hora, nada programada.
Eu venho todos os anos por pelo menos uma vez no ano desde 2010.
Estamos em 2018.
Os proprietários, por um motivo que desconheço, simplesmente
pararam de cuidar do lugar. Ao vê-lo decair com o passar do tempo e notar
que o tinham deixado ao relento, eu pensei em fazer algo a respeito. No
entanto, acreditei que isso seria como mexer no que não deveria. Não era
certo. Então, optei por deixar o processo natural fazer seu trabalho. É
estranho que ninguém tenha feito algo com o terreno. Embora a casa seja
longe da cidade, mais próxima do campo, e sua localização não chegue nem
perto de atrativa, é um local reconfortante, mesmo em seu estado deplorável
atual. Não sou o tipo de pessoa que precisa estar cercada por luxo, o simples
me encanta. Além do mais, apesar dos pesares, eu me sinto protegida aqui.
Meu corpo inteiro está rígido atrás de Drogo, enquanto espero, com o coração
martelando em meu peito, qualquer coisa que ele possa vir a dizer.
Minhas mãos inquietas, as quais abro e fecho por causa do nervosismo
a cada nanossegundo, começam a exalar suor frio. Odeio ficar nervosa.
Sinto a pulsação tão acelerada que as vibrações são enviadas direto para
os meus ouvidos, ricocheteando neles. Eu esqueço como devo respirar.
Memórias do nosso passado, de quando éramos crianças, jovens e inocentes,
envolvem meu cérebro como um cobertor grande e aveludado. Por muito
tempo, desejei poder trazer de volta toda a inocência que eu possuía naquela
época, quis recuperar a bondade que costumava ter. Porém, no fim, eu
entendi que a inocência, no mundo em que vivemos hoje, não é uma bênção.
Pelo contrário, é uma maldição. E pode nos matar.
Meu fôlego engata por um curto período.
— Brooke?
A voz de Drogo afasta os devaneios que começam a me engolir sem
que eu note. Suas íris verde-floresta me encaram com uma intensidade
dolorosa.
— Me desculpe. Eu...
— Você está bem?
Ele deve ver que saí de órbita, porque franze o cenho ao me questionar.
Suas mãos estão segurando meus ombros e o contato me deixa arrepiada.
Oh, merda. Eu devo ter estragado tudo. Essa é a pior parte de se perder
nos próprios pensamentos quando se é uma pessoa com traumas. É feio.
Tristeza se aloja em minha garganta de repente, como se um nó invisível a
tomasse, roubando minha fala. Me recuso a chorar, piscando com força.
— Sim. — digo, finalmente, mas não sei se estou sendo honesta ou
não.
A carranca que distorce o rosto bonito dele, camuflado de maneira
parcial pela luz da noite, indica seu descontentamento pela réplica que eu
cedo.
Eu consegui transformar algo que deveria ser bom em uma coisa ruim.
Talvez, trazê-lo para cá, tenha sido a pior escolha que eu poderia fazer.
— Não minta para mim.
O aviso vem após um curto intervalo de silêncio de ambas as partes.
Meus lábios ressecam graças as lufadas de ar que produzo ao som de sua voz.
Penso em sustentar a resposta, manter o “sim”. A farsa sai tão transparente
que não a vejo como um erro, é natural. Contudo, não quero fazer isso. A
mentira tende a ser a pior saída quando se trata de usá-la com alguém que
pode enxergar através de você.
Eu não quero ter que mentir para o Drogo sempre que estiver confusa
ou com medo. Fiquei presa dentro da bolha que criei por muito tempo, não
posso continuar indo de encontro ao que me destrói. É um mecanismo de
defesa nocivo, e estou cansada de ser constantemente arrastada para ele.
Desistindo, permito que a verdade role para fora:
— Eu me perdi em minha mente. — explico. — E não queria parecer
uma esquisita, então, menti. Estou tentando, juro, só que é uma luta árdua.
Confessar tira um peso enorme das minhas costas. É libertador, e eu
não me arrependo nem um pouco de mostrar meu lado desarmado para ele.
Drogo inspira devagar, envolvendo-me em seus braços. É como estar
dentro de uma fortaleza. O calor que seu corpo emana é tudo o que eu
preciso. Enterro o rosto na curva de seu pescoço, fechando os olhos ao inalar
seu perfume. A presença dele afasta cada uma das sensações ruins.
— Vai ficar tudo bem. — sussurra sua garantia, acariciando meu
cabelo. — É normal esse tipo de coisa ocorrer. Suas memórias são de anos
atrás, no entanto, você tornou as lembranças ainda mais frescas ao falar sobre
elas. Foi um ato corajoso, é evidente, mas também arriscado para você
mesma.
— Não sei o que pensar ao certo. — admito, suspirando. — Estou
confusa, mesmo que eu saiba o que quero. Você entende?
— Vai passar em breve. Dê tempo ao tempo e não tente fazer mais do
que é possível no momento. Você não precisa ter pressa alguma, Brooke.
Suas palavras são calmas e certeiras, diminuindo a chuva tórrida de
ideias sem fundamento que nubla meu cérebro e me deixa apreensiva.
Eu ergo a cabeça, procurando suas íris em meio à fraca penumbra que
nos envolve. Ao ter nossos olhos colidindo fixamente, sustento seu olhar. Em
geral, é necessário inclinar a cabeça para cima se eu quiser encará-lo, por
causa da diferença gritante entre nossas alturas. Agora, porque estou na parte
mais alta de um dos bancos que adornam o lugar, não preciso me esforçar
muito para que nós dois fiquemos cara a cara.
— Eu vou. — afirmo, e sei que não preciso dizer outra coisa para que
ele acredite. — Ficarei bem, contanto que você esteja comigo.
Seu sorriso contido me surpreende, enviando uma maré de arrepios que
percorre toda minha coluna. Não estou acostumada com esse lado dele.
— Em cada parte do caminho, meu amor.
Pego-me observando cada detalhe que o compõe. Seus fios loiros, mais
escuros do que os meus, estão bagunçados nas laterais por causa da venda, e
o topo está alto o bastante para que eu enterre meus dedos. A ideia tentadora
estala em minha cabeça. Sem me impedir, faço o que tenho vontade. A
maciez de seu cabelo roça nas pontas frias, fazendo-me soprar baixinho com
o toque vagarosamente despretensioso. O movimento de vai e vem é
reconfortante. Depois de alguns segundos, empurro as mãos para trás e as
descanso em sua nuca, usando os polegares para acariciar os fios curtos.
— Você sente que é real? — meu queixo treme. — Você e eu? Esse...
momento?
— Sim.
— Eu também. Gostaria de poder congelá-lo. — declaro, o meu tom é
baixo, mas sei que fui ouvida, pois suas íris verdes escurecem de súbito.
É desejo. Puro e flamejante.
Eu passei tanto tempo sem experimentar a sensação de ser desejada por
alguém que eu quase poderia deixar passar. Quase. Eu não deixo, embora.
Drogo está se segurando, e eu jamais o julgaria. Não somos como a maioria
das pessoas. Não somos normais, sequer estamos perto disso. Contudo,
também não podemos permitir que nossos medos nos controlem ou definam.
Não sabemos como será o dia de amanhã, e não fazemos a mínima ideia se a
vida ainda estará conosco ou terá nos deixado, tampouco se estaremos
realizados com nossas ações e feitos. Então, por que temer?
— Abra. — murmuro.
Ele umedece os lábios.
— Tem certeza?
Aceno, concordando. Porém, quando sua mão se move para a parte
inferior do blazer dele e eu assisto o envelope branco sendo puxado, eu o
paro. Drogo inclina a cabeça levemente para o lado, estudando minhas
feições. Nenhuma sílaba deixa sua boca para contestar meu gesto abrupto.
Meus olhos se enchem com lágrimas pesadas. Eu o amo, é verdade,
como jamais amarei outro homem, mas há coisas que devem ser esclarecidas.
Precisamos ser racionais.
— Não importa qual seja o resultado dentro desse envelope porque,
para mim, meu coração está certo. Nós dois não somos ligados pelo sangue.
— começo, aproximando nossos lábios até que uma linha invisível seja a
única coisa que nos separa. Inspiro seu perfume, enchendo meus pulmões
com seu cheiro masculino. A primeira lágrima rola pela minha face e eu a
seco com rapidez. — Entretanto, se formos meios-irmãos, acabaremos aqui.
— Não somos. — diz cético.
— Acabaremos aqui.
O músculo de sua mandíbula pulsa com força. Ele vira o rosto,
deslizando a ponta da língua no canto de sua boca num frenesi de
descontentamento.
Seria mais do que errado. E apesar de todas as coisas que fizemos, eu
não poderia levar adiante. É diferente quando a ignorância faz parte do jogo.
— Certo. — delibera insatisfeito. — No entanto, se não for o caso, e
com certeza não vai ser, todos saberão que você é minha. E eu a beijarei hoje.
— O quê?
— Eu concordei com seu pedido, não? — contrapõe, tornando a me
fitar. — Mas nunca disse que o acataria sem usar uma moeda de troca. É o
que eu desejo. Você. Cada parte sua, levando o tempo que for. — sentencia.
— Não me importo se terei que esperar. Tratando-se de você, eu sou
paciente.
Mesmo com as dezenas de emoções que me cercam agora, eu as
mantenho sob a superfície, não aceitando que elas escapem e me controlem.
Por mais distorcido que possa parecer, eu gosto da voracidade em sua
confissão, porque aquece até as partes desconhecidas do meu âmago. Eu
sorrio, pois é absurda sua ideia de achar que o contrário já ocorreu. Eu
sempre fui dele. Sempre. Nada no universo seria capaz de mudar isso.
A verdade é que, almas gêmeas, às vezes, ainda que não estejam
destinadas a permanecerem juntas, jamais deixarão de ser almas gêmeas.
Em outras vidas, Drogo e eu fomos namorados. E em outras, noivos.
Estivemos casados em alguma delas, também. E nós dois fomos amantes.
É nisso que eu acredito.
— Está bem. — aquiesço, não revelando meus últimos pensamentos.
— Você pode ir em frente.
Assisto, desta vez sem interrompê-lo, Drogo pegar o envelope e o
rasgar sem qualquer cerimônia.
O que me deixa aflita é o quão inexpressiva sua expressão se torna. Ele
fica quieto por uma longa passagem de tempo, e por um instante eu penso se
os segundos e minutos simplesmente paralisaram. Eu mordo o lábio inferior,
inquieta, enquanto aguardo com o coração na mão sua resposta.
Nada vem. Nem mesmo um mísero vislumbre que indique ou não uma
ligação consanguínea.
Tento decodificar seu rosto, todavia, é um ato vão. O que eu recebo é
uma tela em branco. Sem suportar a quietude repentina instalada, eu brado:
— Por Deus, fale alguma coisa!
De repente, sem aviso prévio, suas pálpebras se fecham com ferocidade
e ele inclina a cabeça para cima.
Eu congelo. Mas, como antes, seus olhos ficam na altura dos meus. O
sorriso que Drogo esboça é feroz.
— Obrigado, porra. — grunhe.
E me beija.
Nossos lábios se chocam com uma fúria impetuosa, enviando uma
sensação febril que vai direto para o meu núcleo. A mão dele agarra minha
nuca, mantendo-me sob seu domínio. Assim que sua língua empurra seu
caminho para dentro, eu gemo. Seus dedos encaixam na parte de trás do meu
pescoço à medida que eu arrasto as unhas pelo peito dele, ultrapassando o
tecido do uniforme e trilhando seu percurso para o interior.
Entro em combustão quando minha língua é chupada com violência.
Meu corpo é puxado para o dele e eu envolvo sua cintura com as pernas ao
ser suspensa em seus braços. Minha intimidade esfrega contra sua barriga e
eu arfo com o contato. Estou começando a ficar sem fôlego, mas não me
atrevo a partir o beijo. Os botões da minha camisa interna se abrem quando a
fricção entre nós se intensifica. Meus seios são esmagados pelo seu peitoral
maciço. Há raiva, paixão, temor e luxúria refletindo nesse beijo, e cada um
dos sentimentos me desestabiliza ao se misturarem. É impiedoso, cru. Minha
boca é esmagada pela sua, e eu me vejo refém da brutalidade impregnada no
homem que me toma sem se conter. Nós pegamos fogo. Enlouqueço pelo que
estou recebendo, porque ele me trata do modo que anseio, e não como se eu
fosse uma boneca de porcelana prestes a quebrar, uma coisa frágil que precisa
de cuidados e delicadeza. Tudo meu grita por tudo dele. Apoio uma mão em
seus ombros, levando a outra até sua nuca.
— Não pare. — imploro, choramingando, à medida que me esfrego em
sua estrutura descaradamente. Eu preciso dele. Deus, preciso dele agora.
— Não. — estala, envolvendo meu cabelo por entre os dedos antes de
puxá-lo para me encarar. — Não aqui. — avisa, como se lesse minha mente.
Meus olhos estão nublados de desejo, e mesmo que minhas vontades
implícitas sejam negadas, sei que é o certo. Não estou pensando com lucidez.
Minha intimidade carente lateja em protesto, obrigando-me a engolir em
seco. Eu luto para manter-me coerente e entender que foi a melhor decisão.
Devagar, eu assinto. Demora um pouco para que minha respiração
volte ao normal e o calor que sinto irradiando pelo corpo comece a se esvair.
Drogo esfrega a ponta do nariz na lateral da minha cabeça, inalando
meus fios desgrenhados. Em seguida, segura meu olhar no seu, deslizando de
modo vagaroso a ponta da língua quente e úmida sobre meus lábios inchados.
A umidade em minha calcinha me fazendo contorcer quando meu centro
pressiona contra sua barriga. Uma nova onda de calor se espalha pelas maçãs
do meu rosto, capturando sua atenção de águia imediatamente. Suas íris são
tomadas por um brilho mais escuro, e mais forte do que o último, quando
seus dedos caem entre nossos corpos, tateando para baixo. Eu não preciso
raciocinar para saber qual foi seu intuito, porque fica evidente quando Drogo
ergue a mão, levando-a ao nariz e cheirando.
Prendo a respiração.
— Você, Brooke, cheira como minha.
— Eu sou sua.
A resposta o faz sorrir com ferocidade.
— Sim. — rosna possessivo. — Você é.
— Bee! — ouço alguém chamar do corredor enquanto coloco os livros
e meu bloco de notas dentro do armário.
Inclino o corpo para trás, segurando a porta ao fazer uma busca
minuciosa pelo recinto.
A figura radiante de Summer trilha seu caminho até mim, rebolando
como uma modelo da Victoria’s Secret, com Leo ao seu lado.
— Bom dia, menina bonita. — entoa, atraindo a atenção dos outros
alunos. — Nós temos uma novidade espetacular para contar.
Que Deus me ajude.
Eu coloco a combinação no cadeado, posicionando a bolsa no ombro ao
terminar, e aguardo ambos se aproximarem de vez. Fecho a cara ao ver
Grayson atrás deles. Parecendo farejar minha presença, ele gira o rosto na
minha direção, lambendo o canto da boca como se estivesse em um
restaurante e meu traseiro fizesse parte do menu. Adoto uma careta explícita
de desprezo, rolando os olhos ao assistir as garotas que ocupam o corredor
salivando pelo anticristo tatuado.
Oh, por favor. O cara tem uma expressão perpétua de que rouba doces
de crianças. Como elas podem olhá-lo como se quisessem casar com ele?
Além do mais, Grayson flerta com qualquer um. Embora eu não tenha
ouvido boatos — não ainda — voltados para suas conquistas sexuais.
Bem, o lado razoavelmente positivo é que não estudamos na mesma
sala. Seria insuportável ter que aturar sua existência por tanto tempo.
Desvio meu foco dele ao ver a figura imponente de Matteo DeLuca
mais atrás. Os dois sempre estão juntos, ainda que sejam como vinho e
gasolina. No entanto, eu não diria que são amigos, não como Gautier e Leo.
Há uma vibração hostil emanando de ambos toda vez que eles estão
próximos. A única que não está por perto, hoje, é Leona.
Para ser sincera, eu não a vejo desde ontem, quando as aulas
começaram, e lembro agora que a flagrei saindo antes do horário devido.
Ballister está girando uma bola de futebol americano em seu indicador,
focado ao extremo em manter o equilíbrio.
— Bom dia. — saúdo, sendo envolvida por um abraço rápido da minha
amiga quando ela para diante de mim. — Ei, onde está sua prima?
— Hum, ela vai chegar um pouco mais tarde. — ele explica, parando o
que faz ao ouvir a pergunta. — Algo como uma consulta médica de rotina.
— Entendo. Como estão?
— Estou muito bem
— Eu estou péssima.
Suas respostas distintas e despejadas ao mesmo tempo me fazem
enrugar o nariz. Eu cruzo os braços, soltando um suspiro.
— O que aconteceu, Summer?
— Ei, ei! — o outro reclama, arqueando uma sobrancelha. — E eu?
Não irá questionar por qual motivo eu estou radiante?
— O dela é mais importante. — esclareço o óbvio.
— Está bem. Porém, ouça, sim? Você não pode me tirar do centro das
atenções, doçura. Eu sou leonino, é como matar uma fada.
Abro a boca, mas fecho-a ao ver Grayson parar subitamente ao meu
lado. DeLuca, como sempre, é indiferente ao que o cerca e segue seu
percurso um pouco mais afastado em absoluto silêncio. Volto a adotar uma
postura hostil. Ignorando sua presença, foco em Summer. O problema é que,
agora, Grayson exibe uma carranca profunda de irritação. Meus olhos caem
para o livro em sua mão, O Médico e o Monstro. Ele o aperta com tanta força
que as pontas de seus dedos se tornam purpúreas sobre a capa dura. A parte
mais bizarra é quando ele move a cabeça. E me cheira.
— Qual é o seu problema? — chio, torcendo o nariz.
— Trocou de perfume?
Seu questionamento soa glacial e impaciente, atípico do usual. Os
demais parecem não perceber esse detalhe, mas eu me agarro nele.
Não é todo dia que tenho a oportunidade de vê-lo se comportando sem
qualquer mínimo resquício de cinismo ou depravação.
— Não é da sua conta, babaca. — rebato num tom baixo, franzindo o
cenho com desprezo. — Leve sua merda para longe de mim.
Ele não se distancia.
Eu deveria ter pensado melhor. Todavia, mirei na resposta que estava
queimando para sair. Mordo o interior da bochecha, inexpressiva por fora.
Não tenho sua réplica de imediato, o que faz um rastro de apreensão pairar
em cima de mim como uma nuvem carregada.
Summer e Leo trocam olhares antes de darem um passo à frente. Eu
poderia ouvir uma agulha caindo no chão neste instante.
— Vá embora. — ela pede, retirando os óculos de sol. — Procure outra
pessoa para atormentar.
— Não é, hein? — assobia, ignorando-a. Então, me fitando, completa:
— Esse seu perfume novo é uma porcaria. Ofende o meu olfato. Jogue fora.
Ele se aproxima ainda mais, vagarosamente, invadindo meu espaço.
Minha pulsação acelera e eu paro de respirar. A expressão cruel em seu rosto
é sinistra. Leo se aproxima e abre a boca, parando ao som grave da voz
masculina que se faz presente no ambiente.
— Cagliari.
Matteo o chama, soando como um aviso. Grayson estala a língua contra
o céu da boca, irritado, e se afasta logo em seguida. DeLuca faz o mesmo.
O que foi isso?
— Nada para ver aqui. Circulando. — Summer grita para os estudantes
que ainda estão enraizados no corredor. — Ignore-o. Gray é problemático.
Ela e Ballister agem tão normalmente diante da cena bizarra que
acabou de acontecer que me pergunto o quão normal esse tipo de coisa deve
ser.
— Ele age dessa maneira com todos. Não leve para o pessoal. Aliás,
seu cheiro está ótimo — meu amigo diz. — Eu posso jurar que já o senti
antes.
É quando a realidade me atinge como um tapa. O perfume! Me torno
eufórica, abstraindo os sentimentos anteriores.
Pressiono uma mão contra a boca, emito uma risadinha, sentindo as
bochechas esquentarem com prazer genuíno. Sua atitude foi maldosa, é
verdade, mas não dou a mínima para esse ponto. Se fosse outra pessoa, e
outra situação, como minha roupa ou cabelo, eu estaria furiosa. No entanto,
tudo o que se apodera do meu cérebro é satisfação. A fúria de Grayson teve
uma razão, e essa razão me entregou de bandeja seu calcanhar de Aquiles.
Até os mais diabólicos têm pontos fracos.
Agora, eu sei o dele.
Porque esse é o perfume que Leona usa.
Um baile de máscaras na mansão dos DeLuca.
Essa era a novidade.
Pela primeira vez, não senti vontade de recusar um convite. Eu deveria
estar desconfiada do quão boa minha vida parece nos últimos dias, mas não
me preocupo em ocupar a mente com pensamentos negativos. Eric está
afastado temporariamente do GEC por motivos que desconheço.
No fundo, eu sei que não vai durar por muito mais tempo, contudo, vou
aproveitar cada segundo de liberdade que me resta fora de seu alcance.
Eu suspiro, lembrando que nem tudo é um mar-de-rosas. Blake voltou a
falar comigo, todavia, apenas frases curtas. Eu quero mudar isso, e sei que ela
também, o problema é que minha irmã é orgulhosa demais para dar o braço a
torcer — mesmo que esteja errada.
Eu termino de colocar a gargantilha de diamantes, a joia que mais
estimo em minha vida, pois era a favorita da minha mãe, e verifico meu
reflexo no espelho uma última vez antes de deixar o quarto e seguir para o
corredor vazio. Blake saiu muito antes de mim e Drogo ainda não está em
casa. Na verdade, eu não acredito que ele pretenda voltar hoje. Assim como
nós duas, ele foi convidado, mas recusou. “Mundos diferentes” foi seu
argumento raivoso quando eu o pedi para aceitar o convite e ir. Em sua
mente, os outros o tratariam como um cachorro sarnento. Eu gostaria de
poder ter dito que não seria dessa forma. Infelizmente, seria. Conheço a elite
de Londres bem o bastante para saber que tentariam humilhá-lo. Apenas
tentariam, porque eu jamais permitiria. O problema é que Drogo não
entendeu isso. No fim, acabamos nos desentendendo e ele saiu sem dar
explicações. Eu mandei uma mensagem — ou mais — e não recebei
nenhuma resposta. No fundo, talvez seja melhor eu não saber seu paradeiro.
Posicionando a máscara branca em meu rosto, abro a porta e saio. Inalo
a brisa glacial, enchendo meus pulmões com ela.
Leo está me esperando com uma mão enfiada no bolso e o corpo
encostado em seu Mercedes Classe G. O terno preto que ele veste abraça com
maestria seu corpo musculoso. O cabelo castanho-escuro foi penteado para o
lado e permanece lá com a ajuda de uma camada vigorosa de gel.
Ao me aproximar, eu sorrio. Não é falso, estou feliz de poder ver um
rosto amigável depois de um dia tão complicado quanto o de hoje.
— Muito bonito. — elogio.
— O retrato de um homem de negócios, hm? — lança, ajustando a
gravata borboleta. — A personificação de um membro da realeza. Um
gostosão.
— Eu já entendi. — gracejo, interrompendo-o ao pressentir que estes
seriam apenas o começo de seus adjetivos nada convencionais. — Vamos?
— Claro, doçura. — concorda, abrindo a porta do carona. — A
propósito, Bee, você está magnífica. Essa cor combina com você, realça seus
olhos.
Observo o vestido azul-marinho no modelo tomara que caia. Optei por
um estilo princesa com corpete liso. Minhas curvas foram realçadas, em
específico a região dos seios, graças ao decote em formato de coração. Fiz
uma mudança no meu cabelo, também. No lugar do típico liso, escolhi deixá-
lo ondulado e caindo sobre um dos ombros. Esta é a primeira vez que me
sinto realmente bem dentro de uma roupa luxuosa escolhida por mim mesma.
E estou ainda mais feliz pelo fato de que fui eu que decidi cada peça, joia e
penteado. Em geral, quando ocorrem eventos de gala e eu sou convidada,
minha irmã é quem me ajuda com toda a produção. Por não estarmos nos
falando, tive que fazer tudo sozinha. E gostei do resultado.
— Leo?
— Sim?
— Estou guardando algo faz algum tempo e queria contar a alguém
que... — faço uma breve pausa, tomando coragem para concluir. — eu
confio.
Suas íris brilham ao final da minha frase, similares a fogos de artifício
no Ano Novo. É como dizer ao seu cachorrinho, depois de passar horas preso
no trabalho e finalmente chegar em casa, que você vai passear com ele. Bato
uma mão na testa, percebendo meu erro ao tê-lo me encarando eufórico. A
verdade é que, além de Summer, ele é a segunda pessoa que criei um laço de
amizade que ultrapassa qualquer lógica. Eu gosto dos dois. Muito. E confio
para fazer minha confissão. Uma das coisas que preciso fazer para aceitar as
mudanças que planejo iniciar em minha vida é permitir que meus amigos
enxerguem através da fachada que ergui para me proteger antes que eu saia
por completo dela.
Eu me tornei extremamente cuidadosa e desconfiada, mas nunca tive
medo de ninguém além de Sebastian e Eric.
Meus traumas não me fizeram temer seres humanos, somente eles.
Sendo assim, não preciso continuar escondida no lugar escuro da minha
mente.
Ainda que, para isso, eu precise fazer algo que me amedrontou por
vários anos: me abrir.
— Não quero apressá-la, — Leo interrompe meu devaneio. — mas
estou quase tendo um orgasmo de euforia. Por favor, Bee, acabe com a
tortura.
Respiro fundo.
— Drogo e eu fizemos um teste de DNA. — informo, preparando-me.
— Não somos meios-irmãos.
— Isto era óbvio. — declara condescendente. — Agora, diga-me. Me
conte seus segredinhos sujos.
— Fique quieto e me deixe falar, pode ser?
— Oh, perdão. A palavra é sua. — ronrona, um sorriso travesso em
seus lábios cheios e convidativos.
Certo. Eu posso fazer isso. Respire fundo, Brooke, e conceda entrada
para a nova garota que você disse que seria.
Suor frio embebeda minhas palmas. Organizo meus pensamentos,
ignorando os que podem me engolir, e descanso as mãos em cima do colo,
contando até dez de trás para frente. O tecido ameniza a transpiração,
substituindo o desconforto por alívio. A umidade se dissipa aos poucos. Meu
amigo espera pacientemente, e eu agradeço por não ser pressionada. Seu
cheiro de loção pós-barba e perfume caro misturados, me acalmam. Percebo,
neste momento, que embora nossa amizade não seja de longa data — mesmo
que pareça — eu não seria capaz de escolher alguém melhor.
Ballister é calmo e um ótimo ouvinte, apesar de ser muito extrovertido.
Ele é do tipo que sempre irá ceder seu ombro caso haja a necessidade, e ainda
que seu lado fofoqueiro componha boa parte de sua personalidade
exuberante, ninguém guardaria tão bem um segredo quanto o grandalhão ao
meu lado. E acredito que essa parte seja de família. Nem mesmo em cem
anos eu conseguiria agradecer sua prima da forma devida. Minha pulsação
adota um ritmo sereno, e eu me orgulho em saber que sou a responsável por
me tranquilizar. No passado, eu jamais conseguiria.
— Eu o amo. — desabafo. Agora, vem a parte difícil. A qual não meço
palavras ao dizer: — E eu gostaria de ir... para os finalmentes com ele.
Leo se engasga.
Eu me engasgo.
Uma crise de tosse nos atinge ao mesmo tempo. Meus olhos marejam
em sincronia com os seus, ardendo.
A declaração saiu sem que eu sequer pudesse formular de modo
adequado como dizê-la. Eu não pensei que soaria desse jeito. Santa Mãe de
Deus!
As maçãs do meu rosto esquentam como se eu estivesse com febre.
Fecho os punhos, arrastando o vestido no processo, e os encaro, atordoada.
Não dava para ser bonito. A verdade é que eu sempre quis ser vista como
uma garota desejada, saber qual é a sensação sem me sentir... suja.
Não anseio dar esse passo com Drogo apenas pelo sentimento que nutro
por ele, e sim porque não me imagino fazendo amor com outro homem.
— Caralho! — Leo pigarreia. — Oh, cara, eu não estava esperando por
uma confissão dessa... magnitude. Vamos por partes. Primeiro: ele sabe?
— Acredito que sim. — empurro a vergonha para debaixo do tapete,
erguendo a cabeça. — O problema é que, bem, eu não sei como deixar claro.
— Então, diga. — conclui simplesmente. — A melhor maneira de fazer
outra pessoa saber o que você quer, é dizendo o que você quer. Sem rodeios.
É quando a realidade me estapeia. Nós, seres humanos, estamos tão
acostumados a dificultar tudo que, às vezes, não notamos que a resposta para
nossos problemas é simples e fácil.
Seguro o queixo dele, depositando um beijo barulhento em sua
bochecha. Ainda sem concordar ou discordar em voz alta de seu conselho,
passo o cinto de segurança, ajustando-me confortavelmente no banco. Eu
inalo a brisa gélida que adorna o interior do automóvel, inspirando o aroma
limpo. Leo não reage de primeira, quase como se tivesse parado no tempo
para raciocinar sobre o que acabou de acontecer.
Meu amigo pisca, atônito.
— Você é o melhor. — anuncio, colocando minha máscara. —
Obrigada.
O que eu falo parece fazer seu cérebro voltar a funcionar de súbito. Seu
rosto se ilumina com uma expressão presunçosa.
A impressão que tenho é de que acabei de dar uma pistola d’água para
uma criança travessa. Porcaria de boca grande. Eu criei um monstro, e
consigo vê-lo prestes a sair da jaula que o aprisionava. Mas é tarde demais
para arrependimentos.
— Repita. — exige, colocando a máscara.
— Cale a boca e dirija.
— Não até que você repita.
— Eu não vou.
— Sendo assim, não iremos a lugar nenhum.
— Ballister. — profiro seu nome em tom de aviso, calmo e sinistro,
meu olhar assassino caindo em sua direção com uma lentidão mortífera.
O cafajeste estremece e se encolhe, no entanto, não recua.
— Nada feito. — ele morde. — Vamos, doçura, quanto mais rápido
terminar com isso, mais rápido chegaremos à festa. É pegar ou largar.
Massageio as têmporas.
Vai ser uma longa noite.

— Preto, sem dúvidas, é a cor deles. — comento baixinho, e Leo


assente com uma risadinha abafada ao meu lado, o braço enlaçado no meu.
A residência parece um castelo gótico e luxuoso dos tempos modernos.
Toda a estrutura tem um estilo romano envolto pela cor citada, somente
alguns tons pastéis quebram a obscuridade gritante do lugar. Embora possa
parecer estranho, nenhuma outra palavra poderia definir melhor a mansão do
que poder. Pilares longos e majestosos se estendem pelas laterais da entrada,
e o jardim, o qual acabei de cruzar, ostenta uma piscina enorme — também
preta, obviamente — e tem a grama mais bem-aparada da história, acredito
eu. Uma fonte com um lobo majestoso enfeita o centro do local. A passarela
que dá acesso ao salão é feita de vidro e foi projetada sobre um caminho de
água. Pequenos refletores iluminam todo o percurso. É impressionante. Em
específico, o bom gosto. Eu sabia que Matteo vinha de uma família rica,
contudo, não imaginava que seria nesse nível.
— Com o quê o pai do DeLuca trabalha? — cochicho, disfarçando dos
demais.
— Muitas coisas. — ele dá de ombros, achando graça. — Meu tio tem
sua mão em todos os ramos lucrativos que existem no mundo, praticamente.
— Tais como?
— Hum, desde hospitais a cassinos.
— Minha nossa. Ele deve ser bastante velho.
— Porra, não. O homem é a cópia do David Beckham, falo sério. É que
são negócios da família. Noventa porcento das coisas vieram de seu pai.
— Uau, estamos falando de um ótimo profissional.
— Que tem outros ótimos profissionais trabalhando para si. — comenta
bem-humorado, e lança uma piscadela marota.
— Hum, então, DeLuca não se parece com ele?
— Nadinha, apenas em termos de vestimentas. Ele e seus irmãos mais
novos, Asa e Wangari, foram adotados quando eram crianças.
— Ah, entendi.
Continuo deslumbrada com toda a estrutura enquanto nós dois
seguimos para o salão em silêncio. O burburinho de vozes se intensifica ao
passo que nos aproximamos. Os convidados são pessoas que conheço, pelo
menos suas famas. Médicos, banqueiros, advogados, políticos renomados,
magnatas do ramo imobiliário. Todos os mais ricos e poderosos que
compõem a alta sociedade londrina estão presentes aqui hoje. O que é
surpreendentemente bizarro, tendo em conta que eles se mudaram para a
Inglaterra há pouquíssimo tempo. O Sr. DeLuca deve ter uma grande
influência, pois essa não é uma tarefa fácil.
De soslaio, capturo uma figura conhecida do outro lado. Apesar da
máscara, sei que é Blake. Uma garota loira conversa com ela, ambas alheias
às pessoas ao redor e totalmente centradas em seu diálogo. A cena, por um
instante, me chateia. Eu deveria estar ali, conversando sobre algo legal ou
irrelevante, mas não estou bem com minha irmã para que isso ocorra. Não
consigo decifrar sua companhia, mas acredito que deva ser alguém do
colégio.
Os pais de muitos estudantes do Golden Elite estão aqui esta noite, de
acordo com Leo, pois são os maiores influenciadores da sociedade londrina.
Ele se afasta, avisando que vai pegar uma bebida porque está com a
garganta seca, e me pede para esperar. Eu quase faço o que Leo diz — quase.
Sem um sinal de aviso prévio, começo a andar pelo meio das pessoas,
permitindo que meus pés me levem mais adiante sem me atrever a pará-los.
Não há nem mesmo um único convidado circulando no interior da residência.
Eu penso que estou cometendo um erro ao entrar onde ninguém mais está.
Ainda assim, permaneço andando. Eu me sinto deslocada. Leo é uma ótima
companhia, mas tudo seria melhor se eu pudesse ter Blake por perto. A
situação em que estamos é ridícula. Não entendo como uma pessoa pode ter a
cabeça virada por outra que mal conhece — e sequer vale a pena.
Estou irritada enquanto continuo explorando, nem mesmo percebo para
onde vou, e muito menos nos problemas em que posso me meter.
A parte de dentro é tão luxuosa quanto a de fora. O piso é de
porcelanato preto, metodicamente lustrado, e as paredes possuem um tom
cinzento. Longas vidraças se estendem por todo o perímetro, e sou capaz de
dizer que é o tipo de vidro em que as pessoas que ocupam o lado externo não
podem ver quem está no interior da residência. Observo os quadros abstratos
que estão posicionados nas paredes, são poucos, entretanto, luxuosos. Minha
mãe sempre gostou do assunto, então sei que não se trata apenas de arte para
enfeitar. O Sr. DeLuca deve realmente apreciar ou entender. Talvez ambos.
De qualquer maneira, uma coisa é inegável: essa família sabe o que é
elegância. Por um momento, me vejo questionando se Matteo tem irmãos.
As fotos que encontro no aparador da segunda sala me dizem que sim.
Franzo o cenho, me aproximando dos porta-retratos em cima do vidro.
São três fotos ao total, e todas têm em comum três pessoas. Uma delas
é ele, as outras duas eu nunca vi. Um cara grande, tanto quanto DeLuca, está
ao seu lado. Sua pele é amarela e os orbes castanhos brilham com alegria. O
cabelo preto, mesmo empurrado para trás, insiste em cair sobre seus olhos
estreitos e angulados. A terceira pessoa na foto é uma garota negra de pele
clara com aparência inexpressiva. Ela usa box braids platinadas. Suas íris
verdes também brilham, ainda que ela não sorria como o garoto. Os lábios
cheios estão adornados por um batom marrom escuro. Por fim, há o nariz
largo, onde duas argolas douradas descansam do lado esquerdo. As outras
fotos seguem o mesmo padrão de ordem entre eles. A diferença são as poses,
os locais e suas vestes. Embora em todas as vestimentas sejam pretas, seus
estilos são diferentes.
Minha atenção desvia para o piano no canto inferior da sala, lindo e
solitário. Eu costumava tocar quando era pequena, mas Sebastian me proibiu.
Encantada, começo a me aproximar. Contudo, paraliso ao som de uma
voz profunda e áspera que reverbera pelo ambiente, enviando um arrepio à
minha espinha ao soar atrás de mim.
Com os olhos arregalados e os batimentos frenéticos por ter sido pega,
me preparo para virar o corpo e ficar cara a cara com quem quer que seja.
Luto para adotar uma expressão que não entregue o jogo. Engulo em
seco e respiro pela boca. Quando tomo coragem e o faço, quase caio para
trás. O homem mascarado diante de mim, parado na soleira com um copo de
whisky na mão grande e coberta por veias grossas, me rouba o ar. Ele é todo
músculos e pele bronzeada. Seu cabelo loiro escuro está penteado para trás.
Uma barba bem-feita e aparada cobre o rosto imponente, adornado por um
maxilar duro como pedra. Suas sobrancelhas se voltam para baixo, dando a
impressão de que o desconhecido pareça estar perpetuamente zangado. A
visão do oceano é refletida em seus orbes azuis escuros. O terno sob medida
que ele veste não é capaz de amenizar os músculos que imploram para sair de
todo o refinamento imposto. Meus olhos se movem para cima, mais
precisamente para seus lábios. Ele é lindo de morrer.
Assim que o estranho se move, vindo em minha direção, meu cérebro
esquece como raciocinar. Então, eu apenas fico parada no mesmo ponto.
— Você se perdeu?
A partir do momento que sua voz volta a ganhar vida, ela se torna mais
profunda e severa, vibrando em meus ouvidos com uma nitidez maior.
— Sim. — a mentira sai baixa, meu tom contrastando com o dele.
Decido recorrer à farsa mais comum já usada: — Eu queria encontrar o
banheiro.
Ele fica em silêncio, parecendo enxergar através das minhas
inverdades. Para ser honesta, eu acredito que ele saiba que não estou sendo
sincera.
Este não é o tipo de homem para quem se pode mentir sem ser
descoberta. Os segundos parecem se arrastar como se estivessem em câmera
lenta. Sem abrir a boca para me contestar, eu o vejo dar um passo para o lado
e usar a mão livre para indicar o corredor no final da sala.
— Siga direto e suba as escadas em seguida. — explica calmo e
diligente. — Os banheiros ficam no segundo andar. São as últimas portas à
direita.
— Obrigada. — digo rápido demais. — Hum, o senhor é o pai do
Matteo? — não acho que seja certo chamá-lo dessa forma, porque ele não
deve sequer ter quarenta. Eu chutaria trinta e cinco. A pergunta o pega de
surpresa, fazendo-o exibir um sorriso ladino de dentes brancos e alinhados.
— Sou o tio dele. — informa, arqueando uma sobrancelha com
diversão. — Meu nome é Diego DeLuca. Seu pai, Michael, é meu irmão mais
velho.
— Oh. — pigarreio. — Desculpe.
— Não se preocupe, somos parecidos. Cheguei em Londres hoje, estive
no Brasil nos últimos anos, não o vi ainda desde que coloquei os pés aqui.
— Sempre quis visitar o Brasil. — confesso, antes mesmo de poder me
impedir. — Ah, eu também não o vi ainda, por isso a pequena confusão.
— Entendo.
Seu olhar traça a rota do meu rosto, estudando-me, e eu noto que essa é
uma mania de família. Matteo é do mesmo jeito, sempre calculando tudo. O
perfume másculo e evidentemente caro dele dança em meu olfato, me
despertando para a realidade. Eu preciso sair daqui o mais rápido possível.
Não gosto de desconhecidos me olhando como se pudessem ver meu interior.
A fachada. Estou trabalhando para aceitar cada parte de mim, mas é um
processo lento. Não posso simplesmente agir de um modo que não condiz
com o que eu sou para manter a personagem que criei no passado.
Meus dedos formigam. Fecho os punhos para amenizar a sensação.
Forçando um sorriso doce, empurro uma mecha do cabelo para trás da orelha.
— Enfim, senhor, — digo amável. — desculpe-me se agi
inconvenientemente, e mais uma vez obrigada por me ajudar. Eu tenho que ir
agora.
Antes que Diego possa formular uma resposta, peço licença e dou as
costas. Todavia, não vou longe. Por educação, paro ao ouvi-lo falar de novo.
Uma de suas mãos está enfiada no bolso de sua calça e ele tem um
ombro apoiado contra o batente da entrada despretensiosamente.
É reconfortante que este seja um baile de máscaras, embora a minha
cubra apenas metade da minha face, porque eu me sinto menos exposta.
— Sim?
Eu ouvi com clareza sua pergunta, todavia, prefiro demonstrar que não.
Estou entrando em um campo perigoso, pois Diego sabe que estou sendo
desonesta, entretanto, não se esforça para inverter a situação. Pelo contrário,
ele só joga de acordo com as palavras que eu cedo. É um homem ardiloso.
Com uma calma torturante, ele repete:
— Seu nome.
Seria um ótimo momento para que algum convidado entrasse aqui e o
distraísse de mim. Eu sou azarada demais para ter essa sorte, porém.
Desisto de resistir. Estou ciente de que, quanto mais eu tentar atrasar,
pior vai ser. A melhor saída é entregar o ouro e sair. Além do mais, sou uma
ótima atriz.
— Perdoe-me se pareci estranha. Meu nome é Brooke Andreotti,
senhor. — declaro, esboçando um sorriso. — Foi um prazer conhecê-lo.
É quase imperceptível, no entanto, vejo seus olhos semicerrarem
levemente ao som do meu sobrenome. A ação me faz franzir o cenho com
cautela. Eu poderia ficar confusa, realmente, mas todo mundo que o escuta
reage de modo negativo. Sebastian era odiado por muitas pessoas no mundo.
Finjo que não percebi a mudança súbita no ambiente. De algum modo, sou
capaz de enxergar o exato momento em que sua postura se torna hostil.
— Eu digo o mesmo. — reitera, dando um aceno rápido.
Em seguida, dá as costas e sai do cômodo em silêncio absoluto. O
alívio que eu achei que sentiria quando não estivesse mais perto dele não
ocorre. Continuo parada, olhando para onde Diego DeLuca estava há poucos
segundos. Seu perfume paira ainda mais forte no ar depois de sua saída.
Erguendo o queixo, adoto uma postura altiva e torno a me mover.
Dessa vez, eu realmente sigo para o banheiro. Preciso de um momento
sozinha.
Porque vou precisar colocar mais de uma máscara esta noite.
ESPELHO

“Me segure como se você não pudesse soltar


Mantenha-me segura quando eu voltar para casa
Me ame como uma rosa do deserto”
— Desert Rose | Lolo Zouaï

GIRO A GARRAFA DE BUD LIGHT de um lado para o outro


usando as pontas dos dedos. A umidade gruda em minha pele, tornando-a
escorregadia.
A cerveja esquentou há bastante tempo, e a água presente na
embalagem encharcou boa parte da mesa velha de madeira em que estou. O
ponto é que tudo no Snake é velho. As cadeiras são de uma madeira tão
questionável que rangem somente de olharem para elas. A iluminação
também não é das melhores, a lista de reprodução que está tocando neste
sábado sem dúvidas foi a mesma que tocou no primeiro sábado de 1995. O
estofado verde da mesa de sinuca deixou de ser verde há muito tempo, sem
contar que um dos pés é sustentado por dois tijolos, senão cai. O odor que
paira no ambiente é uma mistura entre cigarro, roupa de couro molhada e
sexo. A merda é decadente, eu confesso, mas este é o único estabelecimento
em Londres que não está cheio de bastardos ricos com traseiros cheirando a
talco importado. Gosto do lugar. Eu me sinto em Bethnal.
E a julgar pelo modo como os rapazes do time estão se embebedando,
eles compartilham do mesmo sentimento. O problema, para mim, é que hoje
não estou no clima de encher a cara, muito diferente do que eu pensei quando
decidi me juntar a eles na última hora. Eu não bebi uma única gota.
Fechando o punho, encaro os nós dos meus dedos. A lembrança dos
anos em que lutei para dissipar qualquer resquício de emoção nubla minha
mente. Por uma fração demorada de instantes, me permito ter essas memórias
violentas. Inquieto, eu me movo no assento. O movimento faz meus
músculos retesarem, esticando a jaqueta de couro que uso, mas nem mesmo a
sensação desconfortável e os pensamentos do meu passado de problemático
desviam meu cérebro do que insiste a todo custo cercar minha cabeça.
A conversa que se inicia é tão barulhenta que quase sobrepõe à música
alta e meus devaneios fodidos. Boa parte da empolgação repentina é por
causa do trio de garotas que se juntou à nossa mesa poucos minutos atrás.
Uma delas, a de cabelo vermelho com aparência angelical, — que eu ainda
não entendi o motivo de estar se forçando a ser o que claramente não é —
lançou alguns olhares para mim, os quais eu sequer me dei ao trabalho de
retribuir. Todo o meu foco está voltado para Brooke e a discussão que
tivemos mais cedo por causa de um baile de máscaras da elite. Eu não estava
errado. Minha aversão aos burgueses de Kensington vem desde a infância.
Todos sempre nos olhavam de maneira estranha, a mim e ao meu pai, quando
minha família comparecia a eventos que abrigavam a elite. Pensei que, com o
tempo, esse tipo de coisa mudaria. Não mudou. Pelo contrário, as coisas
apenas pioraram. Eu brigava todo dia no colégio porque me tratavam como se
eu fosse lixo. No final das contas, meus pais entraram em consenso e
decidiram se mudar para outro bairro. Eu não demorei muito para me adaptar
na casa nova, foi fácil. Desde o dia que coloquei os pés em Bethnal Green,
decidi que transformaria aquele lugar em meu lar. E transformei. No entanto,
eu sentia falta do passado. Dela. Brooke sempre esteve em minha cabeça
como uma doença que se enraíza e você não tem escolha a não ser aceitar o
que lhe foi dado pelo destino.
Destino.
A palavra ricocheteia nos cantos mais escuros da minha mente como se
estivesse caçoando de mim. Eu nunca acreditei nessa merda. Agora, olhe só.
— Não é, capitão? — Bjorn Kovac, o defensor mais tagarela da equipe,
canta a pergunta de modo arrastado, sua língua enrolando as letras.
A parte branca de seus olhos está avermelhada, evidenciando a mistura
entre álcool e sono que dança em seu corpo.
Todos os outros estão firmes, assim como estavam quando começaram
a bebedeira imparável cerca de três horas atrás. Estou ciente que terei que
cuidar do traseiro bêbado do garoto, pois nenhum outro o fará. Além do mais,
sou o capitão e preciso dar exemplo. Responsabilidade é uma merda.
Encaro o relógio em meu pulso, verificando os ponteiros. Sem dar a
resposta desejada para o interrogatório que sequer prestei atenção, fico de pé.
— Eu vou ao banheiro. — dou meu aviso, ajustando os bolsos da calça.
— Quando voltar, vou levar você para casa. Feche a boca, já deu a sua hora.
O irlandês reclama, dramático. Duas das garotas passam as mãos nele,
acariciando seus bíceps enquanto emitem lamentos sobre sua partida.
— Por favor, capitão! — choraminga.
Rolo os olhos, que caem direto na de cabelo vermelho. Ela me fita,
exibindo um sorrisinho ansioso. Não devolvo o gesto. Em geral, quando
ocorrem essas saídas, eu estabeleço um limite de embriaguez porque sempre
há jogos ou treino no outro dia. Embora se trate de um fim de semana, os
domingos costumam ter algum amistoso com um colégio rival. Hoje não foi
um desses dias, porém. Não teremos nenhum jogo importante amanhã e só
haverá treino na próxima quinta-feira. Sendo assim, todos estão livre para
beber. Eles vêm de Uber para isso, afinal.
Bjorn sempre é o que dá mais dor de cabeça, pois perde a capacidade
de raciocínio com somente duas cervejas e meia. Então, sou eu quem tem que
lidar constantemente com seu traseiro alcoolizado quando escolhemos pisar
no Snake.
Um cara barrigudo e careca coça a barba rala enquanto flerta com uma
das garçonetes na entrada que dá acesso ao corredor dos banheiros. O trajeto
é ainda mais mal iluminado do que o resto do lugar. Ele é estreito e ladeado
por papéis de parede de madeira, os quais irão cair dentro de um ano, talvez
menos. As pontas do adesivo descolando nos cantos inferiores apenas acentua
esse fato. Usando a ponta da minha bota de combate para abrir passagem, eu
entro. Agradeço pelas portas das cabines estarem fechadas. Da última vez que
Kovac decidiu mijar aqui, ele não teve uma visão muito agradável. Eu sei
disso porque o merdinha saiu com ânsia de vômito e lágrimas nos olhos. Seu
estado de embriaguez passou em meio segundo.
O rangido que vem da porta não me faz parar de lavar as mãos. As
unhas que, de repente, se arrastam por minha coluna com incerteza, sim.
Que porra é essa?
Desviando o corpo para o lado, dou de cara com o mesmo par de orbes
verdes e brilhantes que não desgrudaram de mim durante o tempo em que eu
estive na mesa do bar. Carrancudo, bato na alavanca da torneira para desligar
o jato precário de água que continua escapando dela.
— O que está fazendo? — disparo, mantendo um tom controlado. Sua
expressão não desmancha com minhas palavras, tudo o que a garota faz é rir.
— O que você acha? — rebate irônica, mas vejo o nervosismo
estampado em suas íris. — Eu percebi seu olhar antes de sair.
— Meu olhar? — dessa vez, eu quem adoto ironia ao fazer a pergunta.
O vinco entre suas sobrancelhas franze com um quê de ofensa.
Retesando os lábios cheios e vermelhos numa linha fina, ela pontua:
— O que você me direcionou ao deixar a mesa e avisar que viria ao
banheiro. É o olhar que eu dou a um cara quando pretendo f-foder com ele.
Eu aperto a ponte do nariz, incrédulo. A farsa foi longe demais agora.
Ela está claramente atuando e não sabe que deve parar. Por não estar com um
humor macabro, apesar dos acontecimentos que ocorreram, decido não ser
um filho da puta completo e opto por facilitar para a garota. Com um suspiro
agudo, apoio uma mão na cintura, afastando a jaqueta no processo, e volto a
encará-la. Tento não ser intimidador, mas é um pouco difícil quando se tem
quase dois metros de altura. Ela se encolhe, receosa, e eu recuo um passo
com o intuito de acalmá-la.
— Primeiro, vamos sair daqui. — eu anuncio paciente. O lugar parece
o urinol particular de satã. — Você quer que eu vá na frente ou prefere ir?
— Por favor. — pede, fazendo sinal para que eu passe. Um vislumbre
tórrido de relaxamento contorna suas feições, entregando o alívio dela.
Cerca de cinco segundos depois, estamos pisando no corredor. Vejo
seus punhos abrirem e fecharem, indicando seu nervosismo, mas mantenho-
me distante e quieto. Não preciso calcular para saber que, agora, a garota está
mergulhada em vergonha. Não impedirei sua futura miséria ou lamúria. Estou
com este pensamento circulando o meu cérebro quando ela se vira em uma
velocidade alarmante assim que nós chegamos perto da entrada.
— Me desculpe! — geme, enterrando o rosto nas mãos. — Não sou
desse jeito. Juro!
— E por que está fazendo isso? — lanço do modo mais cordial
possível, um que eu nem mesmo sabia que possuía. — Se forçando a ser o
que não é.
— Eu terminei meu namoro. — explica, mordiscando o lábio inferior.
— E minhas amigas disseram que eu deveria me divertir e esquecer das
consequências essa noite. Eu não costumo sair, sou do tipo estudos, estudos e
estudos, mas aceitei porque estava chateada. Elas disseram que o Snake,
apesar de não ser tão encantador, — ouço-a tagarelar, tendo certeza de que
nenhuma das outras duas usou esse termo. — tinha caras gatos.
Aperto a ponte do nariz, soltando um suspiro contido de incredulidade
pela boca. Tinha que ser algo relacionado às decepções amorosas.
Não estou com a mínima vontade de ser um ouvinte, no entanto,
também não escolho ser um cuzão.
— Um coração partido, às vezes, nos torna inconsequentes. Eu sou
homem, e ainda que me reste um pouco de decência, minha raça não é
confiável. Se fosse outro alguém naquele banheiro, talvez o desenrolar da
cena fosse ruim. Portanto, não volte a escutar o conselho estúpido das suas
amigas, e não tente agir como uma pessoa que não é para forçar uma coisa a
entrar na sua cabeça. — advirto. — Seu ex-namorado foi um babaca ou o
quê?
Seus olhos se enchem de lágrimas, secando-os com agilidade, a garota
nega. O aceno me surpreende, eu achei que viria um monólogo o destruindo.
— Pelo contrário, ele é... perfeito.
— Então, por que você terminou?
Seus ombros sacodem com pesar.
— Mundos diferentes. — diz, e a explicação acerta meu estômago com
a força de um soco impiedoso. Quase posso sentir que a dor do golpe é real.
— Se você o ama, se tem certeza, deveria ligar para ele. — aconselho
no automático, meus olhos vidrados no nada. — Mostre que, apesar disso,
você o quer. Diga. Mundos distintos é uma razão trivial demais para ser
colocada na balança. — tudo o que eu falo para ela, retorna como um eco.
— Você está certo. — conclui, várias exclamações de agradecimento
rolam para fora de seus lábios num tom animado. — Muito obrigada!
Eu pisco e sua figura pequena e determinada está se encaminhando até
a mesa. Surpreendendo a todos, a coisinha saltitante ergue os dedos do meio e
os aponta para as duas amigas, pegando a jaqueta que está em cima do
encosto da cadeira e trotando para a porta de saída logo depois.
Trilho o mesmo percurso em questão de segundos, pescando uma nota
de cinquenta libras do bolso traseiro da calça e a jogando sobre a superfície.
Trent, além de mim, é o único com senso. Deixo claro que Brandon e Collins,
os dois que restam, apesar de serem maiores de idade, estão sob sua
responsabilidade para voltar para casa em segurança. O último aviso é para
deixar a gorjeta para Rose, a garçonete mais velha e a nossa preferida. Ignoro
as garotas, as quais continuam horrorizadas pela cena anterior. Kovac assiste
cada movimento que executo com olhos atentos e arregalados.
— Levante. — ordeno pegando as chaves, e não preciso falar duas
vezes para que ele pule e venha atrás de mim sem qualquer sinal de
relutância.

Não podemos mais ficar assim.


Faz dois dias que Brooke não se dá ao trabalho de olhar na minha
direção. Para piorar, se eu entro em um cômodo e ela está, não fica por muito
tempo. Se abro a boca para me dirigir a ela, sou ignorado por completo. Os
últimos dias serviram apenas para jogar minha mente em um pandemônio.
Mergulhei de cabeça numa espiral fodida e não fui capaz de sair de dentro
dela. E cada parcela de culpa pertence única e exclusivamente a mim. Agora,
tudo o que posso fazer é tentar reverter a situação. Preciso consertar a merda
que causei, e farei isso hoje.
Blake mandou uma mensagem avisando que dormiria na casa de uma
amiga do colégio. Ela e Brooke não estão nos dias mais amigáveis desde que
voltamos da Califórnia. Consigo ver que as duas querem se falar, mas ambas
— a mais nova, principalmente — são orgulhosas demais para cederem. De
qualquer modo, esta é uma chance que não posso deixar passar.
Depois do banho, coloco um jeans surrado e desço as escadas, seguindo
para o andar de baixo. Brooke, como eu imaginei, está sentada no sofá,
assistindo o que eu tenho quase certeza de que é um de seus típicos filmes
com o Brad Pitt. Assim que eu entro na sala, os créditos começam a subir na
tela. No mesmo instante, ela afasta as almofadas e fica de pé, prestes a
escapar. Dessa vez, entretanto, não permito que sua fuga seja bem-sucedida.
Eu espalmo uma mão no batente, impedindo sua passagem. Minha ação a
pega de surpresa, fazendo-a entreabrir os lábios cheios e franzir o cenho.
Cruzando os braços, seu olhar cai para o meu rosto, fuzilando-me.
— Tire. — exige com firmeza.
— Sinto muito, meu amor, — lamento com falso pesar. — mas temo
não poder fazer isso.
Suas íris azuis brilham com fúria.
— O que você quer?
— Não sei. — desconverso, ocultando a frustração. — Que você pare
de me ignorar, talvez?
Ela sorri, todavia, não há rastros de humor. Pelo contrário, ela parece
estar com um desejo absurdo de chutar meu rabo. Eu não a culpo, no entanto.
Fui um verdadeiro babaca.
— Temo não poder fazer isso. — replica, usando minhas palavras
contra mim.
— Por que não?
— Porque eu não quero.
Eu vou infartar. Empurro a ponta da língua no interior da bochecha.
Minhas narinas se alargam quando aperto a ponte do nariz e inspiro com
força.
Eu nunca me desculpo. Nunca. Contudo, Brooke é uma exceção para
tudo. Não posso quebrar essa barreira erguida entre nós sem um pedido
decente de desculpas. Não é uma garantia, porém, preciso consertar o erro
que cometi de alguma maneira. Ainda que as circunstâncias gritem que será
inútil.
— O que você quer que eu faça para me redimir por ter sido um idiota?
Diga e eu farei. — decreto, abrindo os braços. — Você quer que eu ajoelhe?
Certo, posso fazer. Quer que eu peça desculpas em outras línguas? Tudo bem,
eu consigo. Qualquer coisa, Brooke. Fale o que deseja e eu farei.
Ela não parece querer considerar as ideias.
— São tentadoras. — declara. — Terei que recusar, no entanto.
— Estou aberto a opções.
— Eu vejo.
Encaro o teto, soltando um suspiro demorado. Puta que pariu.
— Qualquer coisa. — tento outra vez, sufocando o orgulho.
— Por que está se empenhando tanto para ter o meu perdão?
— Porque eu amo você.
Eu não havia planejado dizer essa frase, e pela palidez súbita que
envolve o rosto dela, Brooke também não estava esperando por essa resposta.
Não me arrependo, embora. Não sou o tipo de cara que demonstra
sentimentos e emoções com facilidade. Na verdade, sou o completo oposto,
uma rocha impenetrável. Aprendi desde criança que dar voz ao que você
sente por outra pessoa é como entregar de bandeja sua maior fraqueza. Não
dou a mínima para isso. Nós não brigamos, e a discussão que tivemos na
noite da festa foi rápida, efêmera. Ainda assim, não posso mais tê-la me
ignorando. Estou provando meu próprio veneno e posso garantir com
convicção que o sabor é insuportável. Desprezo é pior do que ódio.
— Drogo...
— Me odeie. — declaro interrompendo sua fala. — Me bata, me
xingue, brigue comigo. Escolha sua punição e eu irei recebê-la de bom grado.
— suspiro, empurrando o cabelo para trás. — Mas, por favor, não continue
me ignorando. Sei que estou sendo um egoísta do caralho, também sei que
errei feio. Te magoei, falei coisas desnecessárias e fui a porra de um cuzão
naquela noite. Vou entender se você não quiser me perdoar, falo sério.
Apenas não finja que eu não existo. — peço baixinho. — Estraguei tudo e
estou tentando consertar. Me dê uma chance, amor.
Quando seus olhos brilham ao fim das minhas palavras, não posso
evitar que uma faísca de esperança ganhe vida em meu peito. Quase posso
ver a batalha interna travada em sua mente, mesmo que ela permaneça quieta.
A declaração permeia o ar mesmo depois que alguns segundos se passam.
Espero em silêncio por sua resposta, mas ela não vem. Desisto da luta, pelo
menos por ora.
Escolho recuar no lugar de insistir e falar outras coisas, pois não irá
adiantar. Eu disse tudo o que deveria dizer, e fui honesto em cada letra
proferida. Agora, tudo o que me resta é esperar sua decisão. Inclino o corpo
para frente, e antes de regredir um passo e sair, deposito um beijo em seu
rosto.
— Você sabe onde me encontrar. — aviso, afastando-me. Seu perfume
me faz querer beijar sua boca bonita, mas, foda-me, porque não o faço.

Eu não sei quanto tempo se passou desde que entrei no quarto. De


qualquer modo, não fará a mínima diferença se eu souber. Então, que se dane.
Observo a chuva forte que banha a cidade. As gotículas incessantes
batem contra as vidraças, embaçando a paisagem do lado de fora. Desligando
o ar-condicionado, abro as janelas e permito que a brisa natural circule cada
centímetro do cômodo escuro, trazendo a água consigo e molhando o chão.
Eu me afasto sem desviar os olhos. Sabendo que será inútil tentar dormir,
decido esperar acordado o sol nascer. Não será a primeira vez, afinal. A
insônia, para mim, nada mais é que uma velha amiga. Penso em abrir uma
garrafa de vodca para apreciar o queimor alcoólico, porém, minha atenção
escorrega para a porta assim que ela é aberta. De repente, é como se eu me
pegasse sendo capturado por um déjà vu. Brooke se move para dentro
devagar, seus olhos colidindo com os meus no exato instante em que os lanço
em sua direção, sustentando o gesto até que sua figura angelical pare a
poucos metros de distância de onde estou.
Permaneço em silêncio, não permitindo que minha surpresa faça seu
caminho para fora. Apesar da pouca iluminação, consigo ver sua silhueta
perfeitamente. Minha boca fica seca quando a observo chegar mais perto. A
aproximação basta para que, agora, eu tenha visão de suas feições.
Me preparo para quebrar a quietude, entretanto, Brooke me antecipa.
— Eu estava hesitante porque não sabia o que falar depois de tudo o
que você disse. — sussurra, parando diante de mim. — Somente por isso
demorei.
Não consigo evitar sorrir.
— Você não precisava falar nada.
— Eu queria. — ela devolve firme, erguendo a cabeça para poder me
encarar. Seus lábios convidativos capturam meu foco e eu preciso umedecer
os meus para me impedir de tomá-la em meus braços aqui, neste segundo. A
necessidade que queima em minhas veias é infernal, brasa pura. Travando o
maxilar, concentro-me em escutá-la. — Você estava certo. — declara, e eu
estreito os olhos. — Sobre ter sido um babaca naquela noite. Sim, você foi. E,
algumas horas atrás, também estava correto ao confessar o seu egoísmo. Por
um momento, quando você propôs ajoelhar-se, eu quase concordei. Eu
desejei ver o quão longe você seria capaz de ir por mim.
— Muito longe. — eu confesso rouco.
— Mesmo que significasse passar por cima do seu orgulho?
— Mesmo que significasse passar por cima do meu orgulho.
— Então, você desistiria de mim, se eu dissesse para fazê-lo?
— Nunca.
Por mais doentio que seja, é a porra da verdade. Eu não contei uma
mentira quando disse ser egoísta, porque eu sou. Principalmente tratando-se
dela. Dessa vez, sua língua sai para umedecer a própria boca. O gesto
vagaroso faz meu pau latejar, pulsando contra o tecido da calça que estou
vestindo.
— O que isso quer dizer?
Seu questionamento vem num tom baixo e inocente, ainda que não haja
qualquer ingenuidade reverberando dele. Tudo o que vejo é expectativa.
— Você sabe.
— Permita-me formular. — pede. — Você disse qualquer coisa. E se
eu falasse que o perdoaria, porém, com uma única condição?
Posso sentir meu pau endurecendo cada vez mais, e embora a sensação
não me permita pensar com total clareza, eu não recuo.
— Qual condição seria? — questiono calmamente. Meu pomo de Adão
sobe e desce quando engulo, sabendo que a reposta não irá me agradar.
Estou certo.
— Beijar outro homem na sua frente.
A ideia de que a situação possa vir a ocorrer é suficiente para fazer as
veias em meu pescoço saltarem. Apesar disso, eu me forço a sorrir.
O sentimento de possessividade me atinge com força.
— Você está brincando com fogo. — aviso áspero.
— Diga. — insiste de um jeito suave, ignorando meu alerta. — Por
quê?
Cada sílaba que sai de sua boca goteja malícia, e eu sei que Brooke está
tentando girar minha chave. Bem, posso dizer que ela conseguiu.
Ciúmes puro e flamejante arde em meu peito, tornando-me irracional.
Eu faria chover sangue antes de aceitar vê-la beijar outro.
A expressão que adoto exala fúria. A imagem faz um manto vermelho
borrar minha visão. Nem fodendo. Minha carranca é assassina e eu espero
que ela se afaste ao perceber. Todavia, a garota inconsequente não faz
menção alguma de ir embora.
— Porque, — eu rosno, dissipando o resto de distância que existe entre
nós. — eu mataria qualquer homem que se aproximasse de você.
Ela sorri, semicerrando os olhos quando agarro sua nuca, enlaçando os
fios sedosos de seu cabelo. Seu lado masoquista grita pelo meu lado sádico.
E ele ouve.
Minha mão coça para estapear sua bunda bonita, marcando a carne
pálida com meus dedos. Novamente, meu pau lateja, e a julgar pelo fôlego
entrecortado que escapa por entre seus lábios, eu tenho certeza de que ela
sentiu. Seus seios sobem e descem com uma respiração forte. Indo mais
longe, sua pergunta ressoa uma segunda vez.
— Por quê? — sussurra, seu hálito quente soprando em meus lábios
assim que inclino o torso para baixo e pressiono seu corpo no meu.
— Você me pertence. — eu sibilo.
Nossos olhos se encontram.
— Prove.
E foda-se, porra, porque eu provo.
Cubro sua boca com a minha, tomando posse do que é meu, ao mesmo
tempo em que bato as mãos em sua bunda e a ergo com brutalidade.
O gemido que escapa de seus lábios entreabertos vibra por toda minha
espinha. Suas pernas enlaçam ao redor da minha cintura e eu sei que posso
trilhar meu tato para outras partes negligenciadas dela. Seguro seu pescoço
por trás, movendo o polegar para frente e sentindo sua pulsação acelerada.
Um rosnado gutural rola para fora da minha boca quando sua boceta nua e
cálida pressiona em minha barriga. Todos os meus músculos se tornam
rígidos assim que eu entro em alerta pelo contato lascivo. Capturo a língua
escorregadia dela, chupando seu gosto doce. Seus dedos ansiosos puxam meu
cabelo com a intenção de me trazer para perto. Com um estalo, solto seu lábio
inferior e inclino a cabeça, arrastando a ponta do nariz ao longo da curva de
um dos ombros dela, marcando a carne pálida com força suficiente para saber
que, muito em breve, haverá um hematoma ali. Brooke choraminga e se
contorce, empurrando contra mim em busca de alívio imediato. Posso sentir a
umidade que se acumula em seu ponto sensível.
E como o sádico que me tornei, me delicio com sua agonia. Movendo-
me entre nossos corpos, alcanço entre suas pernas trêmulas, mergulhando três
dos meus dedos dentro de sua boceta. Ela se engasga com um gemido,
arqueando as costas. Seus olhos reviram à medida que eu a invado, abrindo-a.
Com a outra mão, empurro as alças de sua camisola fina e transparente. Seus
seios saltam em liberdade, e assim que os tenho em meu campo de visão,
tomo um deles em minha boca. Chupo o bico com força, fazendo-a gritar ao
passo que o tenho enrijecendo em meus lábios.
Como todas as outras partes de seu corpo perfeito, essa também é doce
e macia. Tudo em Brooke grita pureza. Uma que estou manchando.
Ela é um anjo.
E eu irei profaná-la.
Deslizo meu foco para o outro seio, provocando o mamilo endurecido.
Arrastando os dentes, faço pressão sobre ele ao lamber devagar e prendê-lo.
O tique em minha mandíbula se erradia até o músculo quando aperto-a para
controlar todos os impulsos viscerais que desejo trazer à tona ao ter sua
intimidade carente estrangulando meus dedos a ponto da dor. É uma sensação
deliciosa do caralho. Meto com força, estocando em seu interior apertado,
fodendo-a. Com letargia calculada, eu os trago de volta, apenas para os
mergulhar uma segunda vez de forma ainda mais hedionda.
— Drogo! — meu nome escapa de sua boca num gemido alto e
desesperado, tornando meu pau ainda mais duro do que estava antes. Eu
xingo.
— Fale meu nome novamente. — rosno vil.
E ela, como a boa garota que sempre foi, fala.
Sua cabeça tomba para frente, suor faz seus fios loiros grudarem em
sua testa. O rosto vermelho, os espasmos que começam a tomá-la e a
respiração falhando indicam que não falta muito para que eu receba seu
orgasmo. Brooke agarra meus ombros, violando a carne ao enterrar as unhas
neles. A dor me faz trincar os dentes.
Seus seios brilham com o rastro que deixei. E não importa o quão
doente isso seja, a imagem faz a possessividade enraizada em meu peito
crescer. Brooke é minha, porra. Tudo dela é meu. Cada maldita parte de seu
corpo perfeito pertence a mim, e eu irei reivindicá-la por completo essa noite.
Parecendo ler meus pensamentos deturpados, sua estrutura oscila, então sua
boceta chove em meus dedos com voracidade. Ela goza, gritando meu nome,
e perdendo o fôlego ao finalmente desabar. Como um animal descontrolado,
eu capturo seus lábios uma última vez antes de colocá-la no chão.
Com cuidado, eu a mantenho de frente para o espelho que se estende
por uma das paredes. Pegando o controle, acendo duas das quatro lâmpadas.
Ao sinal da iluminação enchendo cada milímetro do quarto, Brooke pisca,
atordoada, e tenta esconder os seios desnudos, prestes a erguer as alças.
— Não. — digo, a ordem saindo num tom grave.
Eu me posiciono atrás dela, pairando sobre seu corpo trêmulo, após
retirar meu jeans. Meu pau balança, cutucando suas costas, e ela arfa.
— O que você está fazendo? — ofega.
— Estou fazendo você enxergar. — começo rouco, despindo-a de vez
das peças de roupa que impedem que eu a veja por inteira.
A camisola branca cai, amontoando-se em seus pés. Em seguida, é a
vez das malditas meias que ela usa para se esconder de todos.
Abaixando-me, eu alcanço a barra de uma delas. Minha garota,
nervosa, tenta me parar. Sua mão alcança a minha e o medo que flagro
transbordando em seus olhos faz minhas narinas se alargarem. Apesar da
raiva por não poder apenas acabar com todo o seu temor, continuo tirando.
Dois segundos depois, eu a tenho completamente nua. E vou ser amaldiçoado
se a deixar se esconder de mim. Preciso fazê-la compreender, e eu vou.
— Olhe para o espelho. — eu digo, e ela hesita. Encontrando suas íris e
mantendo meu olhar fixado no seu, repito: — Olhe para o espelho, Brooke.
Mesmo receosa, ela me obedece, endireitando a postura e encarando
seu reflexo. Mesmo ao terminar de despi-la, eu não fico de pé imediatamente.
O arfar que escapa de seus pulmões quando seguro suas pernas e deposito um
beijo em cada cicatriz, é tão agudo que paira no ar por incontáveis segundos.
Não desvio o foco do espelho à nossa frente, onde a encaro sem piscar,
erguendo-me após terminar o que eu queria fazer há muito tempo.
— Por que você está...
— Fazendo isso?
— Sim. — murmura baixinho, lágrimas não-derramadas cobrindo seus
olhos. Eu detesto vê-la chorar, mas não irei parar aqui. — Por que, Drogo?
— Porque eu quero que você entenda de uma vez por todas que não
precisa mais se esconder. Não precisa temer nada. Você é perfeita. —
declaro, beijando a lateral de seu pescoço. — Suas cicatrizes não a deixam
imperfeita. Pelo contrário, elas fazem parte de você do mesmo modo que
espinhos adornam rosas. E não importam quantos sejam ou o tamanho deles,
porque nenhum é capaz de as tornar menos bonitas. Não existe nada no
mundo que possa aplacar sua beleza. Você é a minha rosa. E eu sempre irei
amar cada um dos seus espinhos. — murmuro, afastando as mãos de seus
ombros. Então, me aproximo de seu ouvido, sussurrando meu comando: —
Agora, eu quero que toque sua doce boceta. E não olhe para outro lugar que
não seja o seu reflexo neste espelho. Goze para mim e para você. Permita-me
ver o quão deslumbrante você fica ao ser fodida por si mesma, meu amor.
E minha garota o faz.
Sua mão está incerta ao trilhar o percurso de sua intimidade. Suas
unhas se arrastam pela barriga pálida com lentidão, descendo até se perder no
meio de suas coxas. Ao chegar lá, Brooke morde o lábio inferior. Seus cílios
cheios e curvados oscilam à medida que ela luta para não fechar as pálpebras.
Quando empurra o indicador e o dedo médio, um gemido baixo e suave corta
sua garganta. Meu pau duro pulsa com a visão que recebo. Ela é o mais perto
do Paraíso que alguém como eu poderia ser capaz de chegar. Minha alma está
irrevogavelmente condenada, mas eu não me importo em ir para o Inferno.
Cada pecado que eu cometi a trouxe de volta para mim. E, se eu tivesse que
passar por cada maldita coisa uma segunda vez para poder tê-la, eu passaria.
Eu mataria por ela. Ou pior, eu morreria por ela.
Pego um dos preservativos na gaveta da mobília ao lado e rasgo a
embalagem com a ponta dos dentes, deslizando-o pela extensão do meu pau.
Sua cabeça é jogada para trás e eu assisto sua mão livre capturar um
dos seios com força, apertando-o com uma necessidade quase
enlouquecedora. A boca dela se abre e lufadas entrecortadas de ar sopram
através dela. Suas coxas apertam uma contra a outra e seu peito sobe e desce.
O movimento de vai e vem aumenta, as estocadas mais rápidas e
desesperadas. Simultaneamente, seus gemidos se intensificam.
Tenho suas costas pressionadas em minha barriga, quentes e suadas, ao
passo que ela perde o controle e começa a revirar os olhos. Por fim, ela goza.
Espasmos ainda mais violentos que os anteriores arrebatam seus membros e
eu capturo o quão lubrificada pelo orgasmo sua mão ficou.
O brilho faz algo dentro de mim. Sinto o exato instante em que minhas
íris escurecem. Com um grunhido, seguro seu queixo, movendo-a até que
seus seios estejam esmagados pelo espelho quando a pressiono contra ele.
Minha respiração voraz o embaça. Piscando, Brooke olha na minha direção.
Seu olhar tão escurecido quanto o meu. A língua dela sai para umedecer o
lábio inferior e a imagem serve apenas para desacorrentar minha besta.
Seguro meu pau, usando um dos joelhos para separar suas pernas e encaixar a
cabeça coberta de pré-gozo na entrada de sua boceta molhada.
Não deveria ser assim. Eu queria levá-la até a cama e fazer amor com
ela, e não a foder como um animal irracional. Ela está escorregadia demais
para que eu encontre dificuldade em me impulsionar o resto do trajeto e fazer
o que venho desejando há muito tempo. Meus dedos foram os responsáveis
por levarem seu hímen, não existe mais porra nenhuma no caminho.
Foda-se. Meus dentes rangem com o esforço que exerço. Agarrando
seu queixo sem delicadeza, giro seu rosto para que ela me encare.
De bom grado, e sem qualquer sinal de resistência, seus orbes se fixam
em mim. Desta vez, contudo, não há mais aquela centelha de inocência. E por
um longo momento, eu me afogo nelas. Nenhum outro azul que já vi na vida
se compara ao azul que seus olhos carregam. É único.
— Eu vou machucá-la. — ladro meu aviso por entre os dentes cerrados,
as veias em minhas têmporas saltando. — Me diga para parar.
Se eu a tomar, não serei gentil. Eu não serei o que ela merece.
No entanto, Brooke parece não dar a mínima para os limites que tento
impor. Pressionando as mãos no espelho, ela se inclina ainda mais.
— Não pare. — sussurra, empinando a bunda bonita. A diferença entre
nossas alturas é fodida, mas que se dane. Eu farei acontecer.
Coloco uma mão em seu quadril, curvando os joelhos e direcionando-
me para dentro dela com um impulso visceral. Sua boceta engole meu pau
com uma urgência do caralho, estrangulando-o ao receber cada centímetro
que empurro em seu interior quente. Um terceiro orgasmo a atinge quando
estou na metade. Suas pernas vacilam e eu preciso segurá-la para mantê-la de
pé. Com a ponta do indicador, massageio onde sei que é necessário.
— Abra as pernas, baby. — sibilo. — Relaxe para mim e me deixe
comer você.
Seus gritos se convertem em gemidos à medida que a tenho se abrindo
devagar. Afasto-me, somente para empurrar outra vez ao ter Brooke se
adaptando a minha espessura. Seus seios balançam com violência quando
mergulho todo meu pau. Repito o mesmo movimento três ou quatro vezes,
aumentando o ritmo das investidas. Eu me imaginei dentro dela muitas vezes,
mas nenhuma das que fantasiei poderia chegar perto da realidade.
Meus lábios encontram os dela e eu provo seus gemidos em minha
boca, embebedando-me em cada um deles enquanto a fodo contra o espelho.
Quanto mais eu a possuo, mais quero possuir. Desejo marcar cada milímetro
do seu corpo, mas não apenas ele. Também quero sua alma, porque tudo em
mim pertence a ela. Chega a ser doentio o quanto a amo, o quanto preciso
dela. E, agora que a tive, não posso mais viver sem essa mulher.
Minha cabeça está fodida. Eu estou.
Parto o beijo para olhar seu rosto, me perdendo em sua pele ruborizada,
suas feições contorcidas e banhadas por suor. As unhas dela se arrastam pela
minha nuca quando chupo o lóbulo de sua orelha, arrastando os lábios por
seu pescoço esbelto. Fecho uma mão ao redor de seu seio, firmando um braço
em suas costelas. O mamilo suave contrastando com a aspereza da minha
palma calejada assim que meto mais forte, causando um atrito delicioso. Meu
pau lateja dentro dela, inchando em seu interior, e sei que vou gozar. Para
isso, entretanto, tenho que fazê-la vir mais uma vez. E não é uma tarefa
difícil. Ela está em seu limite, beirando o abismo, e tudo o que preciso fazer
para que ela caia em queda livre nele, é acertar seu ponto sensível com dois
dos meus dedos ao mesmo tempo em que agarro o bico rosado de seu seio
esquerdo, o acariciando de maneira impiedosa. Uma fração de segundos
depois e a tenho encharcando a proteção em torno do meu pau com um novo
orgasmo voraz. Somente ao ter sua estrutura exausta amolecendo em meus
braços, eu gozo. Trinco os dentes quando toda minha porra é jorrada no
preservativo. Meu peito está subindo e descendo com bestialidade no
momento que seu rosto vira, procurando-me. Seus cílios tremulando quando
ela pisca.
Um dia, se Brooke permitir, vou foder ela sem essa merda no caminho.
— Caso eu não tenha deixado claro ainda, embora eu ache muito
difícil. — começo. — Somente para reforçar, quero que saiba que você é
minha.
— Você é muito possessivo, sabia? — ela ri, rolando os olhos.
— Sim, estou ciente. — gememos em uníssono quando eu finalmente
retiro meu pau, puxando a camisinha. — Agora, venha. Vou te dar um banho.
— Vamos dormir?
Desta vez, eu quem esboço um sorriso.
— Meu amor, nós apenas começamos.
FILHO DO DIABO

“Eles me chamam de diabo


E você deveria ter medo”
— Call Me Devil | Friends In Tokyo

EU NUNCA FUI UMA FÃ de dias ensolarados, do tipo que


está tão quente que você não suporta sequer pensar em uma roupa de manga

longa.
Mas hoje é um dia em que estou radiante, ainda que a temperatura
esteja alta. Porque, pela primeira vez, eu piso na instituição do Golden Elite
College sem minhas típicas meias. Hoje, minhas pernas estão desnudas. E eu
me sinto incrivelmente poderosa.
Drogo não apenas me mostrou o que eu me recusei a enxergar durante
anos, ele também me permitiu ver beleza no que, para mim, não passava de
uma fraqueza. Isto é liberdade, e é exatamente o que o amor faz por você: ele
te liberta.
Todas as amarras que me prenderam por todo esse tempo não existem
mais. Eu quebrei cada uma das correntes. Agora, posso caminhar sem medo.
Os olhares de choque, horror e espanto que os alunos espalhados por toda a
extensão do GEC me dão, não diminuem minha força.
Ajusto meus óculos escuros de sol, sentindo a brisa rarefeita bater em
meu rosto e sacudir meus fios soltos e selvagens. De cabeça erguida, faço
meu trajeto em direção às Três Torres. O caminho é longo, e parece ainda
mais distante neste momento, mas eu não me importo. Rebolando, continuo.
Eu decidi entrar atrasada propositalmente, apenas para que todos os
estudantes fora das salas me vissem chegando.
Sem desviar o olhar para os lados com o intuito de verificar o
julgamento alheio, paro na frente do meu armário. Lanço a combinação no
cadeado e o destranco, abrindo em seguida. Pego os livros respectivos às
aulas que terei essa manhã e fecho novamente, agarrando um tablete de
chicletes sabor menta antes e colocando um dentro da boca. No fundo, a
verdade é que estou terrivelmente dolorida. Meus membros latejam e eu vi,
depois do banho que tomei mais cedo, inúmeras marcas em minha pele. No
começo, eu surtei. Eu quase acordei Drogo para soltar os cachorros em cima
dele, mas desisti ao vê-lo dormindo. O homem parecia um deus grego
inconsciente. Desistindo do meu ataque de fúria, o qual não passava de puro
charme, pois eu não poderia estar mais feliz, fui para o meu quarto e
organizei meu uniforme. Então, tomei um café da manhã rápido e esperei na
esquina a hora exata para me atrasar. Todo o burburinho que estava
ocorrendo antes da minha entrada triunfal cessa. Seria tão fácil ouvir uma
agulha caindo no chão brilhante, penso. Eles não sabem ser discretos,
contudo, eu não estou dando a mínima para toda a fofoca que vai rolar. Os
diversos boatos sobre minhas cicatrizes. Porque, no fim, é somente isso o que
boatos são: boatos.
Portanto, que se dane. Esta é a minha nova versão, e ela não foi feita
para se importar com o que as cadelas e os babacas ricos irão falar.
A dor que sinto entre minhas coxas é bem-vinda, pois me faz entender
que sou capaz de suportar qualquer coisa de queixo erguido, sem titubear.
Voltando a cruzar o corredor para chegar na sala, passo pelo grupinho
infernal de Avalon. A questão é que ela não está no meio das cobras.
Cameron, por outro lado, está. E deve pensar que se tornou a líder por causa
da ausência da Montgomery, porque ela simplesmente chama meu nome com
seu tom peçonhento. Eu ignoro, é claro. No entanto, ela não para por aí.
— O que foi, Andreotti? — zomba, estas palavras bastam para que suas
amigas comecem a rir, chamando a atenção dos demais para sua pergunta
debochada. — Tirou as meias e as enfiou nos ouvidos? — fala alto o
suficiente para que todos ouçam — Eu estou falando com você, sua
aberração.
Eu me viro com fogo nos olhos, embora não adote uma expressão
assassina.
— Do que você me chamou?
O sinal toca no mesmo instante em que ela abre a boca coberta por uma
camada gordurosa de gloss. Meio segundo depois, como se fosse invocada, a
Sra. Dolls, supervisora do colégio, aparece no corredor nos mandando ir
direto para as salas ou irá aplicar sua famigerada suspensão temporária. É a
única coisa que me impede de dar continuidade ao que a víbora diz. Com os
olhos estreitados, dou uma última olhada nela, saindo logo após.
— Não acabamos, Andreotti! — grita, levando uma bronca da Sra.
Dolls.
E ela está certa.

Para ser honesta, eu estava com muito medo da reação dos meus novos
amigos. Tive receio de que eles me olhassem estranho, eu ficaria arrasada.
Todavia, nenhum deles o fez. Na verdade, eles sequer abriram a boca
para fazer um interrogatório. Nem mesmo Blake, mas eu vi que ela estava se
mordendo por dentro quando passou por mim assim que o intervalo começou.
Estamos no refeitório, Summer, Ballister e eu, os três conversando sobre a
época de Halloween. Leo, claro, quer dar uma festa inesquecível na noite das
bruxas.
— É, mas ainda estamos em agosto. — contra-ataco. — Por que está
tão empolgado com uma coisa que vai demorar para acontecer?
Ele revira os olhos.
— Agosto só é bom porque é o mês do meu aniversário. — conclui. —
Eu nunca vi um mês que parece tanto ter trezentos e sessenta e cinco dias.
— É a bênção dele. — a frase vem de Summer, que está mordendo um
dos morangos em sua tigela.
— Bênção? — estala, descrente, e a fuzila com um olhar indignado. —
Uma maldição, você quis dizer.
— Tanto faz. — ela sacode os ombros. — Não me importo com meses
que passam na velocidade de uma lesma. Acabando um dia, tudo certo.
Verifico meu celular ao ver uma notificação na tela. Uma mensagem do
Drogo. Antes mesmo de abri-la, estou sorrindo como uma garotinha.
Grande erro. Leo e Summer, como se possuíssem um tipo de radar
diabólico, capturam minha reação de imediato. Os dois se inclinam sobre a
mesa, na minha direção para ser mais específica. Fingindo não perceber,
digito a resposta, dizendo que aceito ir com ele — seja lá o destino escolhido
— hoje à noite.
Bloqueando o aparelho, eu o coloco em cima da mesa com o visor para
baixo. Erguendo uma sobrancelha, lanço um olhar questionador para ambos.
— Comece a falar. — eles ordenam em uníssono.
— Perdão?
— Nem fodendo. — Gautier balança a cabeça. — Não me venha com
teatro. Sou filha de uma atriz, esqueceu? Eu reconheço essa merda de longe.
Faço um biquinho, erguendo as mãos em rendição.
— Eu realmente não sei o que vocês querem saber.
Leo ergue três dedos, abaixando um ao passo que repete a mesma
conclusão — sussurrada, graças a Deus — depois de citar determinados
pontos.
— Se você sorri ao receber uma mensagem, significa que pretende ou
fez sexo. Se responde essa mensagem assim que termina de ler, significa que
pretende ou fez sexo. — pontua, imitando-me no gesto da sobrancelha. A
diferença é que a dele está insinuando obscenidades subliminarmente. — Por
fim, doçura, se você coloca o celular para baixo após seguir todos esses
passos, o que é uma ação sorrateira, devo confessar. — cochicha, apoiando-se
nos cotovelos para se aproximar de mim, finalizando: — Significa que você,
com certeza, pretende pra caralho fazer sexo. Ou, foda-me, você já fez.
Eu fico chocada.
Sorrindo, Summer o elogia e os dois batem as mãos, comemorando a
esperteza infeliz dele. Agilizo minha mente para formular uma resposta
coerente. Estou perto de refutá-lo, mas paro assim que Cameron Delgado e as
duas garotas que estavam com ela antes, certamente substitutas de Avalon e
Kristy, pois nenhuma das duas veio ao colégio hoje, entram no refeitório
como se fossem proprietárias do lugar. Sufoco a vontade de revirar os olhos.
Por um momento, penso que ela vai passar direto por nós e seguir para sua
mesa de costume, bem longe de onde estamos. Contudo, Cameron não segue
o percurso que imaginei que faria. Pelo contrário, e para minha consternação,
ela para de andar e se vira para mim com uma lentidão irritante. Sua atenção
cai para Ballister, porém, não dura muito lá. Girando o rosto com uma
expressão de desgosto, seu foco escorre para onde estou sentada. O problema
da garota é supor que comanda o GEC quando Avalon falta. Não é o caso.
Ela não é poderosa ou inabalável aqui. É como qualquer um. Arrastando a
unha sobre a superfície lisa, Cameron indaga de um jeito desnecessariamente
arrastado:
— Se machucou, querida?
Eu sei o que ela quer dizer com a pergunta. Absorvo cada gota da
insinuação maldosa que ela profere. Todavia, não caio em seu joguinho
maldoso. Para ser sincera, sempre que tinha a oportunidade, principalmente
na frente de outros estudantes, Delgado tinha prazer em me infernizar. A
questão é que seu hobby de me atormentar havia cessado no último ano. Não
faço ideia do que possa ter ocorrido para que, agora, ela decida pegá-lo do
túmulo. Me ajusto na cadeira, olhando para meus amigos com uma feição que
indica que não preciso que eles me defendam.
Não apenas os dois, mas todo o restante dos californianos — até
mesmo Grayson, embora eu deteste admitir — nutrem essa coisa de instinto
protetor. É similar à maneira que lobos agem, e eu tenho que admitir que é
uma coisa estranhamente reconfortante. Entretanto, estou cansada de precisar
que alguém me defenda. Eu sou capaz de fazer isso. Eu tenho que ser. Do
contrário, estarei dentro de uma sombra perpétua da qual jamais poderei sair.
Noto que, assim como foi no corredor, os alunos que ocupam o refeitório nos
assistem sem qualquer discrição.
— Posso perguntar o mesmo? — divago complacente. — Porque sua
queda deve ter sido feia. Quero dizer, para ficar com essa cara, uh, bem
difícil.
Nem mesmo toda a coleção de sapatos que minha irmã tem,
conseguiria pagar a carranca súbita de choque e horror que torce o rosto de
Cameron.
Gargalhadas e chiados surpresos ecoam por todo o local. Summer gira
o torso para o lado, enquanto Leo se engasga, cobrindo a boca.
— O que você acabou de dizer?
— O que você acabou de ouvir.
As cobaias dela paralisam, sem reação. As duas não parecem garotas
ruins, apenas o típico tipo que almeja ser popular e segue as mais influentes
ao receber uma brecha, por mais humilhante que possa ser. Aposto minha
Range Rover que ambas serão descartadas quando o alarme de saída tocar.
Cameron bate as mãos na mesa, mas não me assusto com o gesto abrupto.
Mantendo meu olhar vazio e inexpressivo sobre ela, — um que aprendi
observando o DeLuca — eu cruzo os braços acima dos seios. Eu detesto
brigar, especialmente com mulheres. Rivalidade feminina, por qualquer
motivo, é tão infeliz. No entanto, no meu ponto de vista, em casos de
bullying, é necessário revidar.
Os valentões não ligam para o lance de violência não se resolver com
violência. Então, bem, por que nós, as vítimas, deveríamos nos importar?
Eu passei muito tempo sendo tratada como pária somente por ser como
eu sou. Sendo assim, está na hora de dar um pouco de voz a mim mesma.
Cameron ri, é seco e sem humor, e vejo a raiva tornando suas
bochechas vermelhas.
— Qual foi o pacto que você fez, Andreotti? — divaga alto o bastante
para que todos a ouçam. — As meias em troca de uma dose de coragem?
O coro de risadas de antes volta a reverberar pelo refeitório. Leo é o
primeiro a adotar uma postura hostil. Summer não demora para fazer o
mesmo. Mais uma vez, eu os acalmo sem proferir uma única palavra.
Bocejando, chacoalho uma mão em descaso na direção dela, sem me abalar.
— É tudo? — questiono entediada. — Você terminou?
Novamente, sua boca se abre, esbanjando indignação. Porém, algo
passa em seu olhar. O vislumbre de alguma coisa maldosa. Coloco-me em
alerta. Conheço-a bem o suficiente para saber que, das três, Cameron sempre
foi a mais venenosa. E por puro prazer. Ela tem um tipo de fetiche em
degradar.
— Soube que sua irmã saiu da linha na viagem que vocês fizeram. —
ronrona, e eu aperto os punhos. — O McAllister foi o único que ela não
fodeu, não foi? Hum, talvez seja apenas questão de tempo? — meu corpo
inteiro ondula. Não paro para verificar a reação dos meus amigos, permaneço
fixa nela. Então, vem a gota que faz o balde transbordar: — Sua mãe tem
sorte de estar morta. Pelo menos, ela não precisa saber que a filha é uma puta.
Eu faço antes mesmo de raciocinar. Em um segundo, estou do lado
oposto de Cameron, no outro, estou engatinhando sobre a mesa e agarrando
seu cabelo com ambas as mãos com uma fúria que borra toda minha vista.
Eu grito, ela grita, e outros estudantes devem gritar também, porque
todo o barulho que explode ao meu redor, além das bandejas e copos que
derrubo, são gritos histéricos. Meu corpo colide contra o dela e nós duas
caímos no chão com um baque alto e seco. Fecho o punho e acerto sua
cabeça.
— Saia de cima de mim! — berra, todavia, eu não paro.
Eu a esmurro sem parar para pensar nas consequências. Meu único
desejo, neste exato segundo em que arranco os fios de seu cabelo, é socá-la
mais. Sou uma pessoa calma, realmente. Mas nunca, nunca, aceito falarem da
minha mãe. Isso é o que acontece quando se atrevem a quebrar essa regra. Os
braços dela se agitam no ar, tentando me atingir, um deles até consegue
acertar um soco em minha costela. Nada capaz de me parar, embora.
Agarrando os dois, ergo as pernas e os coloco debaixo delas, roubando seus
movimentos. Cameron se contorce sob mim, lutando para escapar em meio a
diversos pedidos de ajuda e alguns xingamentos agudos e furiosos. Nenhuma
outra pessoa vem ao seu socorro ou sequer me puxa para longe. Estapeio a
lateral de seu rosto com tanta violência que a cabeça dela gira para o lado
como se possuísse uma mola embutida. Sou como uma animal feroz e
incontrolável em cima dela. Meus ataques não perdem o ritmo ou diminuem,
embora meus membros doloridos protestem. Eu jogo a dor física para o fundo
da mente, me concentrando na cólera que me envolve como brasa. Eu a
estapeio, desfiro socos, arranho.
— Nunca mais abra sua boca imunda para falar da minha mãe! —
grito, sobrepondo seu choro de desespero.
— Saia de cima de mim, sua desgraçada! Psicopata! Você está
estragando todo o meu rosto, sua cadela louca!
Saltando de cima dela, agarro seu cabelo. Cameron berra quando eu a
arrasto com dificuldade até a mesa e empurro seu rosto borrado na superfície.
Com os dentes rangendo de ódio, abaixo o meu na altura do dela, sussurrando
em um rosnado:
— Da próxima vez, — ofego, meus fios desgrenhados grudando no
meu rosto. — pense muito bem antes de ofender a minha família, sua vaca.
Com a mão livre, pego o único copo intacto que ficou sobre a mesa sem
sair quando avancei para cima dela, o que contém suco de limão, e o
destampo. Derramo o líquido na cabeça dela sob os berros entrecortados e
escandalosos que escapam de sua boca ao passo que ela tenta, em vão,
sacudir-se para sair do meu aperto. Cameron agarra a borda, impulsionando-
se para trás. Como todas as tentativas anteriores, todavia, essa também é um
fracasso. Ballister e Gautier, lado a lado agora, assistem a cena do lado
oposto. Eles sabem que não devem interferir. Não sou uma pessoa injusta,
estamos no um a um. E ela foi a responsável por apertar meu botão, o mínimo
que deve fazer é suportar as consequências.
— O erro dos valentões é achar que todos os retraídos não reagem às
provocações. — finalizo, soltando-a. — Não é assim. Agradeça por eu estar
de bom-humor. Do contrário, eu teria arrancado cada fio desse seu cabelo.
Não volte a falar da minha família. E, se tem amor a vida, fique longe de
mim.
Afastando a franja do rosto, ajusto meu uniforme no corpo e deixo o
refeitório com Leo e Summer no meu encalço, cercada por olhares
arregalados. Ao pisar do lado de fora, os gritos no interior estouram como
fogos de artifício.
— Puta que pariu. — Ballister é o primeiro a quebrar nosso silêncio,
assobiando.
— Eu pensei em interferir. — minha amiga informa. — Mas Cameron
mereceu.
— Sabe, ela é gata. — ele declara e nós duas o encaramos com
desgosto. — O quê? É verdade. O problema é que também é uma coisinha
bem cruel.
— Eu não gosto de brigar. Na verdade, nunca briguei na vida. —
suspiro. — Só que ela não apenas mereceu, ela implorou para que eu
explodisse. — diminuo o tom de voz. — Mais cedo, me chamou de
aberração. Eu escutei, embora tivesse preferido que não. Por favor, não
sintam pena de mim.
Ambos me olham com o vão entre as sobrancelhas franzido.
— Por que diabos sentiríamos? — ela bufa com um sorriso,
envolvendo um braço ao redor dos meus ombros e me puxando para perto. —
Se estiver falando essa besteira por causa das cicatrizes, é ridículo. Todos
temos cicatrizes, Brooke. A diferença é que umas são mais visíveis do que as
outras.
Não preciso raciocinar muito para entender o que Summer quis dizer. O
ponto é que cada um de nós possui traumas e marcas causadas por eles.
Sejam físicas ou emocionais.
— É bom ter amigos. — eu sorrio, enrolando-me na cintura dos dois.
— Podem me acompanhar até a sala do diretor? Tenho que confessar o que
fiz.
— Claro, doçura.
— Podem dizer que não estavam por perto quando tudo aconteceu. —
asseguro firmemente. — Para que ele não comece com um interrogatório.
— Tá brincando? — resmunga. — Veja, Bee, fui uma garota da parte
suja da Califórnia. Na verdade, sempre serei. Comi areia da praia no café da
manhã, almoço e jantar. Até na sobremesa. No dia que eu mentir por medo,
jogue meu corpo em um caixão e o enterre, porque eu estarei morta.

O diretor interino não foi tão cruel quanto eu achei que seria. No mais,
ele foi severo na medida esperada.
Ao fim das perguntas e de seus sermões, aguardei em silêncio uma
suspensão. Contudo, ela não veio. Bem, ele citou uma expulsão caso algo
similar ocorresse novamente, mas garanti que não iria. Então, tive sinal verde
para ir embora. Relaxada, abro a porta e saio. Não estou suportando as dores
em meus músculos e o suor que gruda em meu corpo. Preciso de um banho.
Cameron passa por mim no instante em que eu chego na esquina do
corredor. A pequena bolsa de gelo pressionada no canto inferior de sua boca
evidencia o quão feio o hematoma ficou. Se fosse antes, eu me sentiria mal
pelo que fiz. Todavia, não sou mais a garota que suportava suas maldades.
Olho para outro ponto, seguindo meu curso em sozinha e em silêncio. Meus
amigos tiveram que sair mais cedo, e Drogo não está no GEC. Porém, com
base nas inúmeras ligações feitas de seu celular enquanto eu estava presa
aqui, eu posso dizer, sem sombra de dúvidas, que ele já sabe.
Decido ir direto para o estacionamento. Chegando na vaga em que meu
carro está, abro a porta e entro, jogando a bolsa no banco do carona. Fiquei
tanto tempo naquela sala que as duas últimas aulas passaram sem que eu
sequer percebesse. Ballister foi quem levou minha bolsa para que eu não
tivesse que voltar para pegá-la. Ele sabia que eu estava cansada em excesso e
me ajudou. Envio uma mensagem para Drogo, avisando que passarei na loja
de conveniência antes de ir para casa. Não aguardo resposta, pois sei que a
equipe de hóquei foi para Cambridge, ouvi as garotas falando no corredor.
Reclamando, para ser mais exata. Lembro de como ele cuidou de mim na
madrugada. Me deu um banho — como disse que faria — e comprimidos
para dor. Além de uma massagem. Por um momento, eu pensei que estivesse
no paraíso. No fundo, eu realmente estava. Meu paraíso particular. Mal vejo a
hora de vê-lo novamente.
O homem é incansável e não foi uma tarefa fácil me adaptar ao seu
ritmo voraz. Não sou experiente, mas sei que irei me sair melhor com o
tempo.
Um sorriso bobo curva meus lábios à medida que dirijo em direção ao
posto de gasolina. Posso sentir as maçãs do rosto esquentando com as
memórias. As coisas que ele me falou. Deus do céu, eu quase tive uma
síncope quando fui colocada na frente daquele espelho e ele disse... aquilo.
Assim que estaciono o carro no beco ao lado da loja de conveniência, meu
celular toca, dissipando meus devaneios lascivos.
Franzo o cenho ao ver o nome da minha irmã no identificador de
chamadas. Blake voltou a falar comigo, embora se trate somente do básico.
Mas nunca mais entrou em contato por meio de ligação. Esqueço totalmente
da briga com Cameron e foco apenas em problemas que podem ter ocorrido.
— O que houve? — indago ao atender, sem dar chance a ela. — Você
está bem?
— Hãn? — Blake grita do outro lado da linha. — Eu quem deveria
perguntar isso!
— Eu estou bem. Nada demais. — dou de ombros, entrando no
estabelecimento. O sino no topo da porta faz um pequeno barulho quando
passo por ela e começo a me mover por entre as prateleiras de doces e
salgados. Por sorte, o lugar está vazio. Além da funcionária, sou a única
pessoa.
— Fala sério, Brooke. Você não é de brigar. O que te deu para
avançar em cima da Cameron? Quero dizer, deve ter sido uma coisa muito
fodida mesmo.
— E foi. — é tudo o que eu revelo enquanto pego alguns M&M’s e
dois pacotes de Fini. Por último, pego um pote de sorvete de Ovomaltine.
Com tudo o que preciso em mãos, sigo para o caixa. A garota tatuada e
de cabelo verde do outro lado do balcão larga a revista que está lendo,
voltando-se para mim. Ela masca um chiclete de forma audível, e a música
em seus fones de ouvidos é tão alta que posso ouvi-la de onde estou.
— Você precisa me falar o que aconteceu. Ela te machucou? Você está
ferida? Eu vou te encontrar em casa assim que sair dessa reunião chata do
conselho. — Blake balbucia, fazendo-me lembrar da ligação que esqueci por
alguns instantes. Devagar, eu passo o que comprei, escutando os ruídos de
bip.
— Estou bem. — repito. — Não, ela não me machucou. Na verdade,
Cameron nem teve a oportunidade de encostar num fio de cabelo meu.
— Tem certeza?
— Sim. — confirmo. — Ouça, volte para a reunião e quando você
chegar em casa nós conversamos, certo? Preciso ir. Estou um pouco ocupada.
— Certo, certo. E onde você está agora? Na farmácia?
— Não. Estou perto de casa.
— Tudo bem. Te vejo mais tarde. Se precisar, me liga.
— Você também. Até mais. Beijo. — eu desligo.
— Quatorze libras. — informa, embalando as coisas.
Pesco uma nota de cinquenta libras e entrego à atendente, esperando o
troco em silêncio.
— Aqui está. — anuncia. — Obrigada.
Recebendo o troco, eu pego as sacolas e agradeço, me encaminhando
para o lado de fora. A garota vira a placa de fechado logo depois que vou
embora. No beco, estou prestes a entrar no carro quando um homem surge de
repente. Com o susto de sua voz quebrando a quietude, eu pulo.
Suas roupas estão sujas e não passam de farrapos. Ele tem uma barba
grande coberta por uma camada gordurosa de comida, e o gorro em sua
cabeça possui diversos furos. Ao vê-lo abrir a boca e exibir um sorriso, noto
que seus dentes estão amarelos e um dos molares não está presente.
A aparência dele está longe de ser um problema, o que não gosto é a
maneira como seus olhos ostentam um brilho predatório, mal-intencionado.
Meus batimentos cardíacos aceleram assim que o vejo diminuir o
espaço que nos separa, lambendo a boca sem desviar o foco de onde estou.
— Não vai responder? — pigarreia, reunindo saliva e cuspindo no
chão.
Eu não respondo e ele se aproxima mais. A parte ruim é que, quanto
mais o estranho chega perto, mais eu recuo, afastando-me do meu carro. De
repente, ele ergue uma mão enluvada e estapeia o capô. Eu estremeço dos pés
à cabeça e minha reação o faz gargalhar de modo estrepitante.
— Você quer dinheiro?
Ele torce o nariz.
— Uma coisinha que veio da parte boa da cidade? — canta, coçando a
barba. — O que tem nas sacolas? Não vou perguntar uma terceira vez.
Minhas pálpebras tremem e lágrimas ameaçam rolar pelo meu rosto
quando noto que não há ninguém, além de nós dois, no local.
Estou em perigo.
Sua língua volta a sair para lamber os lábios. Meu reflexo de vômito
ganha vida no momento que o assisto levar uma mão até a virilha e apertar.
— Você tem um cheiro bom, garota. Sua pele também deve ser boa.
Deve ser macia, não é, bonequinha? Eu poderia morder você agora mesmo.
— Fique longe. — sibilo, encontrando minha voz.
— Ela fala, então. — zomba. — Fique quieta ou vou cortar você com a
faca que tenho no bolso. Se você não quer isso, entre no carro e me obedeça.
Eu arfo, horrorizada. Minhas pernas enraízam no concreto. Incapaz de
trabalhar meu cérebro em busca de uma fuga, eu me preparo para o pior.
É quando desvio o olhar para um ponto além dele. Na esquina,
entrando no beco, está ninguém menos que o filho do diabo.
Grayson Cagliari.
Ele, como eu, ainda está usando o uniforme do Golden Elite College.
Entretanto, os botões da camisa interna estão abertos e a gravata se foi. Um
taco de basebol preto, e decerto pesado, descansa em seu ombro. A mão livre
dele carrega o que parece ser um... galão de gasolina?
Levando um indicador ao lábios, os quais ostentam um sorriso sinistro
que faz meus pelos arrepiarem, ele faz sinal para que eu fique em silêncio.
Não demora muito para que sua estrutura grandiosa pare a alguns
milímetros atrás do verme. O qual não o vê chegando, mas com certeza o
sente. Sem emitir qualquer ruído de aproximação, ele usa o pé esquerdo para
acertar uma rasteira no desgraçado, que cai como um saco de batatas no chão.
Os gritos de dor e agonia que rasgam sua garganta por causa do golpe,
ressoam por todo o beco.
Ao rolar e erguer a cabeça, seus olhos encontram os dele. Grayson bate
a língua contra o céu da boca, circulando o indivíduo como um predador.
— Quer dizer que o show de horrores gosta de atacar garotas, hein?
— Seu filho da puta. — estrebucha, abraçando os joelhos. — Quem é
você?
Cagliari ri, usando a ponta do tênis branco para cutucar o corpo do
miserável. Colocando pressão no gesto, e não lhe dando outra saída que não
seja se contorcer e parar de usar os braços como meio de proteção. Em
choque, permaneço parada, atenta a cada movimento que o loiro executa.
— Sou a porra de um filme de terror. — declara, estalando o pescoço.
Levando o galão vermelho até a boca, ele o destampa com os dentes,
cuspindo a tampa para longe antes de encharcar o estranho com o líquido.
O homem grita e se contorce, tentando escapar, mas leva outro golpe.
Dessa vez, com o taco. Cubro a boca com uma mão ao assistir, horrorizada,
toda a cena se desenrolar. Eu nunca presenciei alguém ferindo outra pessoa
com tanto prazer quanto estou vendo neste segundo.
Descartando a embalagem vazia da gasolina, ele balança o taco em sua
mão. Choramingando e ensopado, o maldito nojento implora por piedade.
— Você não parece tão assustador agora. — divaga, apreciando seu
feito ao circulá-lo. — Olhe para mim, seu porco velho.
Sua ordem é acatada prontamente. Ele grita de modo estridente quando
o taco é empurrando contra seus testículos, esmagando-os.
— Pare! Pare! — implora, sufocando com o próprio vômito. — Vai
estourar minhas bolas!
A imagem é horrível e faz meu estômago revirar. Minhas pernas viram
geleia e preciso me apoiar na parede para não ceder e cair no concreto.
— Ouça com atenção, pois eu detesto repetir. — Grayson estala,
pegando um isqueiro do bolso interno e o acendendo. — Se você ao menos
cogitar a ideia de pisar aqui. Se sonhar, mesmo que sem querer, com seu
corpo inútil e patético caminhando por essas ruas, eu vou te caçar e vou te
torturar. Por fim, vou fazer um casaco com a sua pele e o vender na Deep
Web. Toda a porra de processo vai ser tão lenta e doentia que você vai
implorar pela morte. Vou fazê-lo comer seu próprio intestino. — finaliza
debochando.
Eu, bem, jogo o rosto para o lado e vomito ao final da ameaça. —
Estamos entendidos?
Não sei o que é dito. Se ele apenas acena ou se realmente diz alguma
coisa. Meus ouvidos estão zunindo durante os incontáveis segundos em que
coloco tudo o que comi mais cedo para fora, acertando a lata de lixo
esverdeada em que, não me importando com a sujeira no momento, eu me
apoio. Grayson aparece ao meu lado, sua altura e músculos sobrepondo
minha estatura pequena. Eu pisco quando ele estende um lenço na minha
direção.
— Você está uma porcaria. — resmunga. — Limpe a boca e venha
comigo, vou te levar até o seu carro para que você saia desse buraco de
merda.
Hesitante, faço o que ele diz. Eu poderia relutar, mas não o faço. Pelo
amor de Deus, apesar de sua insanidade recente, eu fui salva de ser atacada.
Não estou em posição de ser uma cadela.
Sem olhar para o homem no chão, e sem querer saber qual será o seu
destino quando eu sair daqui, sigo para o veículo com Grayson ao meu lado
como um cão de guarda. Destravo a porta e entro, surpresa por ele ter
recuperado as sacolas que derrubei. Meus dedos estão rígidos quando agarro
o volante, a umidade das palmas tornando tudo escorregadio. Secando-as em
meu uniforme, respiro fundo. Ao menos o pior não chegou a acontecer. Este
é um dos dias em que não se deve sair da cama de modo algum. Achei que
depois de toda a tempestade o arco-íris viria. E veio, para ser sincera. Eu só
não imaginava que viriam outras tempestades.
— Hm, obrigada. — murmuro. — Você me salvou.
— Consegue dirigir? — pergunta, ignorando o agradecimento.
Respirando fundo e cansada demais para dizer qualquer coisa, eu só aceno.
— Consigo. — desconverso. — Estou bem.
Grayson estuda meu rosto, mas não insiste. Não é como se ele fosse um
cavalheiro, afinal. Sou grata pela ajuda, mas sei reconhecer a realidade.
— Dê o fora daqui.
Faço uma careta para o que ele pretende fazer. Grayson não precisa
estar furioso para fazer coisas desumanas, sua imprevisibilidade é o perigo.
Não que já não soubesse o quão volátil e desajustada sua mente pode ser.
Contudo, agora tenho imagens vívidas dando voltas em minha cabeça. Eu não
ficaria surpresa se, de repente, aparecessem cartais de procurado na cidade
com seu rosto impresso neles. Ele não é a pessoa que está a um passo ou dois
do penhasco que leva à completa insanidade. Grayson é a pessoa que já pulou
nele. Sua mente é um completo abismo caótico.
— Você vai...
— Matar o show de horrores? — completa, e eu concordo. — Se eu
tivesse que matar, ele estaria morto. Não me importo com testemunhando.
Para ser honesto, gosto bastante. No entanto, não decidi ainda o que farei.
Não sou o que podem chamar de homem de palavra, este é o Matteo.
— Então, é um sim?
— É um você não quer saber. Faça o que mandei e dê o fora,
Andreotti. Tenho certeza de que não quer ver a maneira como costumo me
divertir.
— Você tem problemas, Cagliari. — murmuro abismada, e incapaz de
segurar o que queima na ponta da minha língua. — Sérios problemas.
— Todos temos. A diferença entre mim e o resto dos seres humanos
que compõem essa sociedade, é que eu deixo minha merda sair para brincar.
Meu olhar escorrega para baixo e eu vejo uma mancha de sangue na
barra de sua camisa branca. Não pertence ao homem, porque ele não sangrou.
Além do mais, a mancha escarlate já ressecou. Não quero saber o que houve.
Ainda assim, a curiosidade fala mais alto e eu o questiono.
— Você se machucou? — suas íris seguem o mesmo trajeto para o qual
eu olho. Uma covinha surge em sua bochecha quando ele sorri.
Enxergo o perigo que descansa em seus orbes verdes e voláteis. Apesar
de ter me salvado, Grayson não é uma boa pessoa.
Ele é um vilão, uma névoa densa e nociva para qualquer um que se
perder dentro dela. Suas roupas na moda e higiene excêntrica, assim como os
sorrisos brancos e limpos, não bastam para esconder a natureza vil que paira
sobre ele como uma sombra diabólica. As atitudes galanteadoras e sua aura
sensual que, em conjunto com seu rosto esculpido e corpo atlético, poderiam
estampar milhares de revistas de moda, são suas armadilhas. É fácil atrair-se
pelo que é bonito. Além do mais, Grayson é mutável. Adapta-se às situações
como se possuísse inúmeras camadas.
Mas ninguém, em sã consciência, quer estar no foco dele. Porque ele é
um psicopata.
E sua resposta, sussurrada enquanto seu corpo se afasta da Range
Rover com uma calma calculada, é o alerta que eu preciso para me lembrar.
— Este sangue não é meu, querida.
LIGAÇÕES PERIGOSAS

“Romper os grilhões
Balançar através das cadeias
Não há nenhum opressor
Ninguém para culpar, além de você”
— Kings | Tribe Society

EU SEMPRE DETESTEI BOATOS.


Em específico, pelo fato de que se espalham como um vírus no ar. E na
maioria das vezes, são falsos. Claro que, apesar disso, eu costumo escutá-los.
Com uma frequência irritante, aliás. Não se pode fugir dos boatos quando se
estuda em um colégio como esse. Ou você é o foco deles ou apenas está
passando como quem nada quer e acaba os escutando. As paredes, no GEC,
não têm ouvidos, têm bocas.
Quando me sento em um dos bancos do vestiário para amarrar os
cadarços, Kovac surge na entrada e voa na minha direção como se fosse um
maldito foguete, esbarrando nos outros caras que estão espalhados pelo lugar
e recebendo uma série de xingamentos, os quais ele ignora. Assim que o
bastardo dinamarquês paira sobre mim, noto que seu cabelo loiro em estilo
militar, tão claro que mais parece branco, ainda está com espuma do xampu
de seu banho pré-treino. Juro por Deus que nunca entenderei sua lógica de se
limpar apenas para transpirar como um animal em fuga.
— Capitão! — grita sem fôlego. O pano em sua cintura, que eu
presumo ser uma toalha, não cobre quase porra nenhuma por causa de sua
altura. O cara tem cerca de dois metros, ele não deveria estar enrolado na
porcaria de uma toalhinha para secar o rosto. Principalmente na minha frente.
Inclinando-me para trás, eu ergo o rosto até que estejamos nos encarando.
— Se afaste. — reclamo. — Por que você está usando apenas esta
merda?
— Não importa...
— Claro que importa. — ladro, rangendo os dentes. — Vista o
uniforme.
— Mas, capitão...
Não dou bola. Ele sempre foi exagerado em suas conversas alarmantes.
Da última vez que chegou desse jeito perto de mim, foi para falar que
finalmente tinha atingido a marca de cem gols no FIFA 18.
— Eu não vou falar de novo. — estalo.
Apertando a ponte do nariz, conto até dez. Porque, infelizmente, não
posso agarrá-lo pelo pescoço e dar um soco em sua cabeça oca do caralho.
Sou o capitão, quem precisa dar o exemplo, e não posso resolver esse tipo de
situação na base da violência, ainda que seja uma ideia tentadora. O problema
é que conheço Bjorn Kovac bem demais para saber que, não importam as
ameaças que eu possa vir a dar voz, ele não vai se virar e sair. Desistindo, eu
cedo.
— Fale de uma vez e desapareça em seguida.
Seus pulmões soltam uma lufada considerável de ar quando ele libera o
fôlego que estava prendendo. No entanto, antes que o garoto possa abrir a
boca, o treinador entra no vestiário. Toda a conversa anterior some como
fumaça no vento ao passo que ele adentra ainda mais, nos verificando. Como
de costume, todos nós ficamos de pé. Seu rosto endurecido se transforma em
uma carranca quando ele para o olhar na figura de Bjorn. Suas pálpebras se
fecham por dois segundos. Então, o treinador Sawyer respira fundo.
— Kovac. — diz, seu típico tom furioso sendo trocado pelo pior de
todos: o internamente colérico.
— Senhor?
— Eu posso saber, filho, por que diabos você é o único que ainda não
está com a porcaria da roupa? — seu rugido me faz contrair os tímpanos.
— Porque, — Kovac tenta se explicar, parecendo buscar algo no fundo
de sua mente para usar sem soar como se não fosse um assunto
desnecessário. — eu tinha um assunto importante para tratar com o capitão.
Era urgente, treinador, eu precisei recorrer a medidas drásticas.
— Suas medidas drásticas incluem estar quase pelado e com a cabeça
coberta de espuma? — troveja.
— Para minha desgraça, sim, senhor.
Decido parar a catástrofe antes que ela se estenda de um modo que eu
seja incapaz de controlar e a cólera do treinador respingue em mim.
Os outros querem rir, mas se mantém quietos somente para não caírem
no radar de Sawyer. Eu não os julgo por nenhuma das duas coisas. Bjorn
pode ser uma dor no rabo às vezes, em específico quando enche a cara e nos
dá trabalho. No entanto, todos nós gostamos do garoto.
— O Kovac já está indo se trocar. — interrompo, lançando-lhe um
olhar implícito de aviso.
Ele suspira, derrotado.
— Claro, capitão. — concorda, seguindo para onde fica o seu armário e
pegando a mochila.
Nosso treino não vai ser no GEC esta manhã, estamos indo para o
Beauvillier Stadium agora, o principal rinque de patinação de Cambridge.
Como o primeiro jogo dessa próxima temporada vai ser realizado lá, pois os
últimos foram interrompidos por motivos técnicos, as equipes de todos os
colégios devem ir aos dias que foram escolhidos pelos seus treinadores, e
Sawyer decidiu que o nosso seria hoje. A notícia foi uma surpresa, claro,
estávamos basicamente de molho. Porém, nenhum de nós ousaria ir contra
uma ordem sua. Não quando se trata de hóquei, pelo menos.
— Bom. — resmunga. — O ônibus já chegou. Quando terminarem,
formem uma fila e vão para o lado de fora. Sairemos em cerca de dez
minutos.
— Sim, senhor. — dizemos em uníssono.
Volto a organizar as coisas, enfiando os equipamentos na mochila e
puxando o zíper ao terminar. A última coisa que pego são os fones de ouvido.
Estou subindo a rampa quando o treinador me para ao dizer meu nome. Os
outros jogadores continuam seu trajeto em meio a diálogos animados,
passando por mim com sussurros de “boa sorte, capitão”. Eu seguro a
vontade de rolar os olhos e me concentro no nosso querido carrasco.
— McAllister, assim que você entrar no ônibus, quero que faça a
chamada de confirmação. — anuncia, entregando-me uma prancheta com
uma folha solitária presa nela. Pegando o objeto, verifico de modo rápido os
nomes impressos. — Serei o último a entrar, então preciso que faça isso.
Não pergunto a razão, apenas acato a ordem com um pequeno aceno de
concordância. Agradecendo, ele se afasta e some do meu campo de vista.
Dez minutos depois, quando todos estão sentados, inclusive Kovac,
começo a chamada. Com uma caneta, assinalo um visto ao lado de cada
nome. DeLuca e Cagliari são os únicos que não estão presentes hoje, mas
acredito que tenham avisado. Do contrário, Sawyer estaria surtando.
Os dois são bons, se não os melhores, e seria fodido não os ter em um
jogo decisivo. Entretanto, tendo em conta que ambos nunca perdem um
treino, não acho que ficaremos sem eles.
— Onde está o treinador, capitão? — Travis, o goleiro, questiona.
Dou de ombros.
— Não sei. — admito. — Mas acredito que já esteja chegando.
— Estou aqui. — sua voz medonha nos assusta. — Sentem-se.
Sou o único que ainda está de pé, então acredito que a indireta seja para
mim. O que é hipócrita. Afinal de contas, estou fazendo um favor para ele.
Devolvo a prancheta e começo a andar pelo corredor, me sentando num lugar
em que ninguém esteja ocupando o outro assento.
Um pouco de paz é tudo o que preciso.
Eu não tive um minuto de paz.
Para um treino comum, esse me deixou muito dolorido. Sem contar nos
diversos hematomas que ganhei de brinde na barriga e abdômen.
O filho da puta do Kovac descontou toda sua raiva na pista de gelo.
Meus olhares raivosos de aviso não bastaram para fazê-lo segurar sua merda.
Depois do banho, recolho meus equipamentos e volto para o ônibus. Ao
desabar na poltrona com um gemido de alívio, movimento o ombro. Como
antes, o treinador é o último a subir. A chamada começa novamente e eu ergo
dois dedos e resmungo um “aqui” quando ouço meu nome. Puxo o celular do
bolso, verificando o aplicativo de mensagem.
Enviei uma para Brooke mais cedo, e imaginei que ela não responderia
até chegar em casa. A garota tem algo contra usar o celular em sala de aula.
Voltando a empurrar o aparelho no bolso, cruzo os braços e os descanso
contra o peito. Fecho os olhos, soltando um suspiro de exaustão, e relaxo.
Aproveito o fato de que os demais estão cansados o bastante para não
iniciarem suas típicas conversas estridentes como se estivessem em uma
feira. Novamente, minha paz é interrompida.
O assento vazio ao meu lado faz um ruído abafado, evidenciando que
não está mais vazio. Sem abrir os olhos, semicerro os dentes e ladro um:
— Saia.
Pode ser o treinador, não dou a mínima. Não vou dividir o lugar, ainda
que ele não me pertença e qualquer um tenha sinal verde para tomar posse.
No entanto, eu sei que não se trata dele. Assim que o motor ganha vida e o
chacoalhar do ônibus se faz presente, a brisa de fora circula no interior,
atravessando a janela aberta, e envia um aroma forte, o qual eu reconheço
muito bem — pois o merdinha parece virar um vidro inteiro de perfume a
cada banho que toma — direto para as minhas narinas. O destino quer me
coagir a cometer um crime, é a única explicação para que eu esteja sendo
testado desse modo. Mais uma vez, volto a apertar a ponte do nariz. Contar
até dez não vai resolver a situação, mas tento da mesma forma.
— Capitão, você pode estar querendo esmagar minhas bolas...
— Estou. — corto, sibilando.
— Imaginei. Mas é realmente um assunto importante e eu não posso
mais esperar para contar. Mordi todas as unhas e a culpa é sua. Portanto,
deixe-me dar um aviso de antecedência, não ouse me matar se o
arrependimento de não ter me escutado antes bater em sua porta, está bem?
— cochicha, respirando de um jeito exagerado. Como se fosse uma bala,
dispara: — Sua irmã brigou hoje. Desceu o cacete na garota.
Abro o olhos.
— Minha irmã?
Por um momento, esqueço que os outros ainda não sabem que não sou
meio-irmão das gêmeas.
— Sim. — delibera. — Brooke.
Faço uma careta de desagrado.
— Você está confundindo.
Não sei o que aconteceu, ou o motivo de ter ocorrido uma briga, porém,
tenho certeza de que ele, ou quem quer que tenha passado essa informação,
fez uma confusão com as duas. Por mais que Brooke não tenha a paciência de
um santo, e possa perder o controle como qualquer outra pessoa, brigar não
está em sua essência. Quero dizer, eu a conheço há mais de dez anos e sei que
esse assunto está mais para o lado de Blake.
— Foi a loira.
Demoro cerca de cinco segundos para piscar. O que o ouço dizer,
apesar de sair com convicção, é simplesmente recusado de entrar em meu
cérebro. Falo a coisa mais apropriada para o momento, e a única que sou
capaz de formular com coerência.
— Nem fodendo.
Bjorn esfrega a nuca, procurando por palavras que nem ele mesmo sabe
como formar. Desistindo de buscar uma resposta para o que eu digo, ele
ergue as mãos em rendição. Na equipe, Kovac é o cara das fofocas, todos os
tipos de boatos existentes caem em seu colo sem que ele os procure. O
problema, neste momento, é que eu sei que cada coisa que ele diz, nesses
casos, sempre é verdade. Nenhum boato repassado por ele foi mentira. Pesco
o celular do bolso, desbloqueando a tela e ligando para Brooke. Eu faço cerca
de nove chamadas sob o olhar atento de Bjorn. Na décima, sei que ela não irá
me atender de jeito nenhum. Encaro o visor até que tudo se torne um breu
espelhando meu rosto na tela apagada.
— Quem? — leva tudo de mim não gritar a pergunta. A culpa não é
dele, mas não estou raciocinando de maneira lúcida agora. Eu estou surtando.
— A Cameron, capitão. Tudo o que eu sei é que foi no refeitório.
Ao som de sua resposta nervosa, minhas sobrancelhas franzem com
tanto afinco que o vinco entre elas quase toca o meio do meu nariz.
— O quê? — meu olho direito se contrai. — Cameron Delgado?
Quando ele balança a cabeça, confirmando, eu pulo do assento e grito
para que o motorista pare o ônibus. Como se tudo estivesse pegando fogo, o
motorista diminui a velocidade e para no acostamento. O treinador, que
estava em uma das poltronas do fundo, também salta de seu assento. Ignoro o
xingamento que ele troveja, cruzando o corredor, e sigo em direção à porta.
Com toda a educação que ainda me resta, peço para abri-la. Já estou com o
celular contra o ouvindo quando desço os degraus. No terceiro toque,
Cameron atende. Sua voz deixa evidente que ela sabe que eu estou ciente do
que houve.
— Que porra você fez? — rujo.
— O que eu fiz? — uma gargalhada ecoa do outro lado da ligação, mas
não há humor nela, somente fúria.
— Se você a machucou...
— Vai se foder, Drogo! — explode. — Aquela vadia ferrou com o meu
rosto. A porcaria do meu dente ficou mole e é tudo culpa dela!
Abro e fecho o punho, andando de um lado para o outro. Vários pares
de cabeças são colocados para fora das janelas, assistindo a cena.
Eu não me deixo enganar com suas palavras ou o quanto de voracidade
ela usa para as replicar. Cameron é uma atriz do caralho, mas não para por aí.
Avalon pode ser uma vadia cruel quando quer e Kristy, a mais apagada do
trio, pode agir como um pé no saco às vezes, contudo, as duas sabem seus
limites e nunca fariam algum mal irreversível a alguém. Diferente de sua
amiga. Delgado não possui resquícios de caráter ou empatia. Eu sei que se
Brooke, de fato, fez algo contra ela, vai ter volta. Na verdade, posso apostar
que uma vingança está sendo planejada.
— O que você disse, porra? — explodo, ignorando as ofensas. Ao não
ser respondido, repito de forma pontuada: — O que. Você. Disse. Porra?
O silêncio presente na chamada anteriormente se dissipa em poucos
segundos.
— Eu fiz apenas uma brincadeira.
Aperto o celular com mais força, minha palma sendo marcada pelo
aparelho.
Falsa. Tão falsa que sinto o gosto de sua superficialidade escorrendo
até a ponta da minha língua. Eu me arrependi de foder ela no instante em que
descobri que tudo havia sido gravado. Por sorte, excluí a porcaria do vídeo
antes que a merda toda explodisse bem no meio da minha cara.
— Uma brincadeira, hein?
— Somente uma brincadeira.
Sawyer aparece na porta, interrogando sobre minha saída. O resto dos
jogadores está mais do que atento a cada movimento que eu executo. Apesar
de ser bastante agressivo, eu sou reservado. Não suporto ser o centro das
atenções, a menos que se trate de um ringue de luta clandestina, porque ser o
foco de todos me deixa ainda mais irritado do que o normal. Meus ombros
sacodem com minhas respirações violentas.
— McAllister, entre na droga do ônibus. — ordena, mantendo um tom
de voz surpreendentemente baixo e completamente distinto do habitual.
Não é uma boa ideia seguir a rota que estou seguindo. Se fosse em
outra ocasião, eu jamais pensaria em não acatar suas ordens. Entretanto, se
trata de Brooke. E eu passaria por cima das ordens de qualquer pessoa por
causa dela. Meus pensamentos rebobinam as palavras que Cameron proferiu.
Essa foi a pior porcaria de mentira que poderia ter deixado sua boca
venenosa. Brooke sempre foi solitária, e ainda que este não fosse o caso,
Cameron não chega nem perto de ser sequer uma opção futura de amizade
para ela. As veias em meu pescoço saltam quando ranjo os dentes.
— Mentirosa do caralho. — sibilo.
Escuto seu fôlego falhar.
— Que merda aconteceu? — indaga. — Para você, de repente, se tornar
tão malditamente superprotetor? Todos sabem que você a odeia!
Assim que sua voz aguda e irritante ameaça tirar o resto do meu
controle, decido que chegou a hora de dar um fim à discussão.
— Não é da sua conta. — ladro. — Agora, escute com atenção o que eu
irei falar. Você não é amiga dela. Portanto, não aja como se fosse. E que se
danem as desculpas que você pode elaborar para inverter tudo e se
transformar na vítima, eu não dou a mínima. Faça qualquer coisa contra a
Brooke e eu juro por Deus que não vou me importar se você é a primeira-
dama ou a porra de uma rainha. — rosno meu aviso. — Eu te mato.
GUARDA BAIXA

“Cruzei o oceano da minha mente


Minhas feridas estão sendo cicatrizadas pelo sal”
— Can We Kiss Forever? | Kina

EU NÃO CONSIGO PARAR MEUS pensamentos. O que


ocorreu horas atrás continua indo e vindo em minha cabeça desde o caminho

de volta para casa. Mesmo agora, enquanto estou penteando meu cabelo

ainda úmido, não sou capaz de me concentrar por inteira nesta simples tarefa,

pois minha mente insiste em rebobinar como um disco arranhado a imagem

do que houve depois que eu saí da loja de conveniência. Sinto meu corpo dez
vezes mais pesado do que estava no início, mas não estou cansada o

suficiente para dormir, porque meus membros doem. Até o simples

movimento que executo para desembaraçar os fios se torna incômodo. No

entanto, só largo a escova em cima da penteadeira quando finalizo. Com um

suspiro involuntário, desfaço o nó da toalha enrolada em meu corpo e coloco

uma camisola vermelha de seda. Por fim, pego o robe que faz parte da peça e

o visto, dando um laço na cintura. Verifico meu celular, entretanto, não vejo

nenhuma notificação nova.


O sol está começando a desaparecer e ainda não há nenhum sinal de
Blake ou Drogo. Não querendo ficar em meu quarto, me preparo para descer.
É quando algo lá fora chama minha atenção. Estreitando os olhos em
linha reta, enxergo duas silhuetas. Uma pertence à minha irmã. A outra... No
exato segundo em que a percepção me atinge como um tapa forte, eu saio em
disparada. Abro a porta e corro na velocidade de uma bala.
— Blake! — grito, de súbito ela se vira, o sorriso genuíno em seu rosto
desaparece e uma expressão interrogativa contorce suas feições.
Minha estrutura inteira ondula à medida que me aproximo dos portões
abertos. A pulsação acelerada deixando meus ouvidos zunindo.
Lágrimas fazem meus olhos queimarem, mas me forço a não chorar.
Não posso permitir que o medo faça seu trajeto para o lado de fora.
Não quando eu estou cara a cara com meu atormentador. Eric Carson.
— Olá, Brooke. — saúda, sorrindo de modo complacente ao entregar
os livros que têm em mãos à minha irmã. — Faz algum tempo, hm?
Ele usa um de seus típicos ternos caros. O azul-marinho da peça serve
somente para destacar ainda mais as olheiras que circulam sua pele pálida. As
maçãs angulosas de sua face, agora, estão ainda mais destacadas do que
quando o vi pela última vez, mesmo que não faça tanto tempo. Apesar de
estar limpo e com a barba feita, Carson não parece tão saudável. Ele nunca
foi muito forte, porém, perdeu uma quantidade considerável de peso. Parece
que faz meses que não o vejo, embora se trate só de alguns dias.
Encaixada a máscara, entro no seu jogo doentio de falsa gentileza e
cordialidade, apenas para que os respingos de sua loucura não acertem Blake.
— De fato, diretor. — concordo, adotando um tom educado. No fundo,
desejo vomitar. Desvio o foco para minha irmã. — Leo quer falar com você.
— Ele está aqui?
— Residencial. — minto. — Não o deixe esperando, avisei que você
havia chegado assim que a vi nos portões e ele disse que te esperaria.
Eric vê através da minha farsa, no entanto, permanece quieto. Nenhum
sinal indicando sua inclinação para fazê-la ficar por mais tempo. Pelo
contrário, o infeliz parece querer que ela saia. Na verdade, constatar isso mais
me acalma do que atormenta, pois mesmo que implique em ficar sozinha com
ele, ao menos tenho a garantia de que minha irmã estará longe de seu alcance.
Sou capaz de lidar com esse desgraçado, diferente dela.
— Estou indo, então. — avisa, finalmente, e eu sufoco a vontade de
suspirar aliviada. — Obrigada pela ajuda, diretor Carson. Nos vemos em
breve.
O miserável acena, concordando. Não faço ideia de como seus
caminhos acabaram se cruzando, mas não dou a mínima. Blake nunca mais
será acompanhada por esse maldito verme. Ela atravessa os portões de
entrada logo após desejar boa noite. Somente quando a vejo passar pela
varanda, arremeto o meu ataque contra Eric.
— Eu vou matá-lo. — estremeço, sussurrando a promessa que queima
em minha corrente sanguínea. — Juro por Deus que eu irei matar você.
Seu olhar preguiçoso escorrega para onde estou e ele ri como se eu
tivesse contado a piada do século, avançando sem pressa na minha direção.
— Estou ficando louco ou, ao que parece, você realmente acha que
pode me ferir? — zomba. — Acho que me ausentei por mais dias do que
deveria.
Aperto os punhos, não deixando toda a minha raiva transparecer. Em
vez disso, faço com que meu lado destemido desperte e dê as caras. Por mais
que eu saiba que ele queira, Eric não pode me machucar. Não aqui. Ambos
sabemos que passaria de uma grande estupidez, seria suicídio.
— Eu não acho. — endireito a postura, meus lábios se curvando em um
sorriso ferino, o qual o enerva. — Tenho certeza. Um dia, vou te matar.
— Se eu fosse você, não estaria tão certo disso. — dispara raivoso. E
sua ira latente serve para me deixar ainda mais confiante em minha ameaça.
— Tem razão. — aquiesço calmamente, e alimento o seu olhar raivoso
com um cínico que faz suas veias saltarem em fúria. — Mas você não é.
Ele fica em silêncio profundo por alguns instantes. Ao piscar para a
realidade, sorri. Entretanto, não há rastros de humor, é seco e vazio. Quase
como se Eric estivesse convencendo a si mesmo de que não deve dar a
mínima para o que eu digo. Capturo o vislumbre de inquietação que
transpassa por suas íris, porém. No fundo, estamos cientes do quão real essa
ameaça pode se tornar, pois não é um simples aviso vazio e superficial.
— Você está com medo. — delibera. — Eu consigo ver.
Sua tentativa para me deixar em pânico não funciona.
— De você? — nego com um aceno. — Não. Não mais.
Seu maxilar retesa como se eu o tivesse insultado.
— Brooke, Brooke...
— Saia da minha casa.
Seu sorriso cai com minha ordem inesperada.
— O que você disse?
— O que você ouviu. — reitero. — Saia da minha casa.
Então, seu lado psicótico resolve emergir. De modo impulsivo, Eric se
coloca para frente, erguendo uma mão com o intuito de agarrar meu pescoço.
Eu sou mais rápida, no entanto. Pulo para longe de seu aperto e puxo a faca
que estive guardando desde que cheguei aqui. Eu a mantive no bolso do meu
robe e a segurei contra minha palma durante todo esse tempo. Quando ele
detecta o objeto afiado em meu domínio, se afasta subitamente.
— Estamos em um ponto cego das câmeras, eu poderia furar cada
milímetro do seu estômago imundo e dar um jeito de sair como a vítima. —
sibilo por entre os dentes. — Não vou fazer isso apenas porque não é desse
jeito que eu quero que você morra. Eu vou beber o seu sofrimento. — disparo
meu alerta. Além do mais, há altas chances do meu plano de atacá-lo acabar
saindo pela culatra. Estou exausta, com dores em todos os meus membros, e
embora esteja armada, Carson não iria se entregar sem uma luta. Uma que eu
perderia. Não sou estúpida e sei que, mesmo com essa faca, estou numa
desvantagem considerável. Sabendo que ele não irá tentar nada, repito com o
dobro de ferocidade: — Agora, saia da minha casa.
Os ombros dele se agitam com ira descontrolada, mas seu lado racional
entra em cena. Afastando-se aos poucos, ele ergue as mãos em rendição.
— Você está se achando tão corajosa, hm? — incita. — Marque as
minhas palavras, Brooke: Vou fazer questão de mandá-la outra vez para o
buraco em que você estava. Não sei como foi capaz de escapar, mas acredite,
eu a jogarei lá de novo. E vou me certificar de que nunca mais saia.
Eu sinto a ameaça em meus ossos. Contudo, não vou recuar ou ceder a
postura que adotei. A parcela de medo que seu prenúncio carrega não é o
bastante para me fazer ser intimidada. Passei muito tempo temendo cada
sílaba que saía de sua boca pútrida, e isso não vai mais voltar a acontecer.
Porque eu finalmente entendi que é somente quando um inimigo fareja nosso
ponto fraco, quando o entregamos a ele, que nós perdemos o jogo antes
mesmo de pensar em começá-lo. Não me importando com o quão ameaçador
Eric possa parecer agora, ou o que ele venha a fazer, disparo:
— Você pode tentar.
Eric não tenta. Não neste momento, pelo menos. Sem uma réplica, dá
um último passo e bufa um palavrão, sumindo no final da rua logo depois.
Permaneço fincada onde estou por incontáveis minutos, voltando à realidade
apenas ao ter um par de faróis super brancos refletindo onde eu estou e me
obrigando a estreitar os olhos ao chegar mais perto. Não tardo a verificar o
modelo do carro, e levo exatos dois segundos para saber a quem pertence.
Drogo. É a Lamborghini dele. Ainda que sua presença não se faça visível,
meus batimentos suavizam e eu percebo que o pior já passou. Recobrando a
consciência, jogo discretamente a faca entre os arbustos e viro-me antes da
porta do motorista ser elevada e ele saltar para fora.
Seu rosto bonito está distorcido em um misto de fúria e preocupação
quando a distância é partida e suas mãos ásperas seguram meus ombros.
— O que você está fazendo aqui? — ofega, acariciando meus braços
desnudos. O robe de seda não possui mangas longas, mas não foi a baixa
temperatura de Londres que congelou minha pele. Sem proferir outra
pergunta, ele abre o zíper de sua jaqueta colegial e a coloca sobre meus
ombros. Em seguida, faz uma varredura minuciosa por todo meu corpo,
verificando-me. — Cameron te machucou?
Sua voz é suave, terna, e quando meu rosto é sustentado por suas mãos,
toda a agitação em meu interior se dissipa como se jamais tivesse existido.
Pela primeira vez no dia, eu sorrio com sinceridade.
— Para ser honesta, eu quem a machuquei. — não me orgulho do que
fiz, porque detesto brigar com outras mulheres por qualquer motivo. No
entanto, ela foi cruel. Cutucou uma parte dentro de mim que eu não permito
que nenhum ser humano no mundo ouse desrespeitar.
Minha mãe é a figura mais sagrada que existe em minha memória, e eu
jamais permitiria que alguém manchasse sua imagem. Eu prefiro morrer. As
lembranças que tenho sobre ela não são meros borrões. Infelizmente, o amor
da minha vida se foi quando eu era grande o bastante para entender o
significado da morte. Eu tinha quase quinze anos quando ocorreu. Todos os
noticiários transmitiram. Ainda posso ouvir as vozes dos repórteres ecoando
em meu cérebro se o silêncio perdurar. No dia, eu estava na escola, na sala de
Eric, e descobri por meio dele. Ao chegar em casa, eu quis morrer. Eu tentei,
mas lembrei que não estava sozinha no mundo. Havia minha irmã.
Eu não desisti de tudo por causa dela.
Escondido no fundo falso de uma das gavetas, há recortes de jornais
sobre. Não sei a razão que me levou a guardá-los, todavia, eu os mantenho lá.
Assim como minha mente, para a minha completa infelicidade, ainda mantém
alguns dos títulos impressos nos papéis que anunciaram a tragédia.

MORREM SEBASTIAN E BLAIR ANDREOTTI


“Casal teve a vida ceifada após explosão em barco.”

Cada fase do luto é visceral de uma maneira distinta. A pior de todas,


pelo menos para mim, foi a segunda. A raiva. É nela que você entende que
não pode mais negar. Deste modo, também compreende que é impossível
mudar o passado. A perda é real e nós a sentimos até os ossos. É excruciante.
Não há como esquecer ou apagar. O buraco que fica em nosso peito é eterno.
O tempo não cura nada. Nós apenas aprendemos a conviver com a dor. É um
fardo imutável que somente quem perdeu uma pessoa que amava pode saber
qual é a sensação. O peso de viver um dia após o outro.
— Não chore, meu amor. — seu pedido me faz piscar.
Não percebo que estou chorando até sentir os lábios de Drogo se
arrastando pelas maçãs da minha face. Ele beija minhas lágrimas sem me
questionar o motivo pelo qual elas estão ali, deslizando silenciosamente.
Cansada de lutar por tanto tempo, eu me permito baixar a guarda.
Mesmo que eu tenha Blake, e ame minha irmã com todas as forças, ele
é o único com quem eu sinto que posso retirar minha armadura.
— Eu estou tão cansada. — sussurro minha confissão. — De tudo. Eu
só quero fechar os olhos e acordar em um mundo melhor do que esse.
— Não sei como consertar. — admite, perdido e inquieto. — Diga o
que eu tenho que fazer para te deixar feliz e eu farei. Deixe-me saber.
Eu sorrio, embora esteja chorando.
— Nada.
E é a mais pura verdade. É uma luta interna que travo comigo mesma
desde que perdi a fé nas coisas. Ninguém, além de mim, pode mudar isso.
Os segundos se passam e eu acredito que ele esteja absorvendo minhas
palavras. Me preparo para envolver meus braços ao redor de sua cintura e
enterrar o rosto em seu corpo. Entretanto, Drogo me levanta nos seus. Eu
solto o fôlego preso no fundo da garganta ao ser erguida com uma facilidade
assustadora, mas não protesto. Tudo o que faço é relaxar contra ele. Inalo seu
perfume e o cheiro de roupa limpa que seu traje exala. Eu ficaria nessa
posição por horas.
— Tem que ter algo.
— Não há nada.
A pior parte eu consegui ultrapassar. O maior dos obstáculos: meu
passado. Não me sinto mais como uma aberração suja e quebrada, incapaz de
viver uma vida boa e decente algum dia. Eu nunca estive tão completa
antigamente como estou agora, apesar da guerra interna que preciso travar, e
boa parte dessa superação é graças a ele, às palavras que ele me disse. Drogo
quem me fez enxergar que eu era mais do que metade de alguém. É uma
jornada difícil, a qual eu sou capaz de enfrentar sozinha, mas as coisas se
tornam um pouco mais fáceis de lidar quando o tenho por perto.
— Vou cuidar de você. — anuncia, de repente, com convicção. —
Quer assistir um filme? Não importa o quão ruim seja, estou de acordo. Foda-
se, eu deixarei que pinte minhas unhas da cor que desejar se isso a fizer feliz.
Só não continue desse jeito. Porque eu não suporto te ver triste.
Eu tenho certeza de que uma mancha em formato circular contorna sua
camisa branca, pois minhas novas lágrimas saem ainda mais exorbitantes.
Tenho plena consciência de que Drogo me sente encharcando sua roupa,
entretanto, não emite protestos ou reclamações sobre a bagunça que faço.
— Realmente? — murmuro, a minha voz saindo abafada.
— Realmente. — ele ri. — Então, pirralha, o que me diz?
Sem afastar o rosto de seu peito para observá-lo, eu aceno. Ele sabe que
eu concordei com suas propostas, ambas.
E eu sei que, independentemente do que o futuro esteja reservando para
nós dois, eu sempre amarei esse homem.
SOMOS FEITOS DE CAOS

“Você pensou que o pior tinha passado


Mas ele está lá quando amanhece”
— The War We Made | Red

HOJE SERÁ UM DIA MELHOR.


Pelo menos é nisso que eu acredito enquanto sigo para dentro da sala de
aula barulhenta.
Lembro da noite de ontem. Não foi um bom começo, porém, eu não
poderia ter recebido um final melhor. Drogo não saiu do meu lado, até
dormiu no meu quarto, e suportou assistir toda a primeira temporada de Teen
Wolf com aqueles efeitos especiais horríveis sem reclamar. Também não
voltou atrás quanto a sua palavra sobre me permitir pintar suas unhas. Pensei
na cor rosa ou num tom perolado, confesso, mas optei por uma base simples.
Blake não saiu de seu quarto a noite toda, pois fez uma maratona de Grey’s
Anatomy. Por causa disso, não precisamos nos preocupar com seus olhos de
águia. Além do mais, Leo me ajudou sem nem saber o motivo que me fez
mentir. O destino, às vezes, é cômico. Ele realmente ligou e falou com ela,
embora sua intenção não fosse aquela. No entanto, ele fez parecer. Não sei o
que ocorre com os californianos que os faz raciocinarem tão depressa,
contudo, agradeço. Não sei o que teria sido de mim sem sua ajuda de última
hora. Eu estava esgotada demais pensar em uma nova mentira.
Não contei a ninguém sobre os acontecimentos infelizes que ocorreram
quando saí da loja de conveniência, então somente Grayson sabe de tudo. As
dores em meu corpo cessaram graças aos analgésicos que tomei antes de
dormir, ao menos. Estou renovada e pronta para enfrentar o dia de hoje.
Passando por mim, Drogo se encaminha para o final da sala,
cumprimentando alguns jogadores da equipe de hóquei.
Os demais ainda não sabem que não somos meios-irmãos. Ninguém
além de nós dois sabe, na verdade. Blake inclusa. Preciso preparar o território
para contar. Não é uma notícia simples, afinal de contas. A única coisa que
mudou foi o fato de que paramos de nos tratar como se nos abominássemos.
Algumas pessoas já perceberam, e sei que até mesmo comentaram sobre essa
mudança repentina em nossos comportamentos, mas eu não dou a mínima
para seus olhares soturnos ou os boatos que estão começando a se espalharem
pelos corredores do GEC.
— Bom dia. — saúdo, ignorando a presença de Cameron ao passar ao
lado dela.
Os cochichos se tornaram mais intensos depois que cruzei a porta, pude
perceber. Todavia, finjo que não notei a mudança nada sutil. É melhor agir
dessa forma do que parecer afetada e dar o dobro de munição a eles. Eu os
conheço muito bem, o que me faz saber exatamente como devo me portar.
— Bom dia, doçura. — Leo cumprimenta, erguendo o rosto para me
olhar. — Pronta para exercitar essas perninhas lindas?
Com um suspiro resignado, sento-me ao lado dele. As carteiras
escolares são duplas, e nós dois passamos a dividir uma há algum tempo.
— Não. — respondo sincera. — Você já sabe que eu detesto os dias em
que temos que fazer aula de educação física prática. A teórica é minha praia.
— Você detesta porque é uma coisinha sedentária. — rebate, agitando a
caneta entre o indicador e dedo médio num movimento frenético ao recostar-
se de maneira preguiçosa no assento.
— Tem razão. — confesso sem me envergonhar, digitando a senha
padrão do notebook. — No meu ponto de vista, qualquer ser humano que
goste de correr e se exercitar, antes das dez da manhã, é capaz de cometer
quaisquer atrocidades inconcebíveis.
— Você é uma pérola. — ele ri, espreguiçando-se. A camisa de seu
uniforme sobe, exibindo um abdômen tonificado. Capturo o momento em que
o olhar de Cameron se fixa em seu corpo musculoso. O brilho que adorna
suas íris castanhas é malicioso e me faz virar o rosto para revirar os olhos. A
garota perdeu o resto de seu juízo se acha que eu vou permitir que ela
coloque suas garras tóxicas em meu melhor amigo.
— Onde está a Summer? — questiono.
— Foi ao banheiro e ainda não voltou.
— Ah. Faz muito tempo?
Ballister passa os dedos pela nuca despretensiosamente, pensativo. Por
fim, faz uma careta confusa e dá de ombros, voltando a endireitar a postura.
— Pouco mais de dez minutos, eu acho. Ela ficou com dor de barriga
ontem à noite depois que comemos algumas fatias de uma pizza de chocolate.
— Jesus. — sopro horrorizada.
— Gautier estava triste por algum motivo e não quis conversar.
Descontou tudo na comida. O resultado foi bastante infeliz, como você pode
ver.
— Tenho um remédio bom para essas situações. — informo,
vasculhando o interior da minha bolsa em busca da pequena maleta repleta de
medicamentos que costumo levar para todos os lugares. No começo, Blake
ria de mim e dizia que eu parecia uma velha por carregar esse tipo de coisa
comigo. É útil, entretanto. E muito. Pude ajudar inúmeras pessoas desde que
decidi mantê-la ao meu alcance, inclusive ela, que agradeceu por eu ser uma
velha.
A Sra. Bowman, nossa professora de cálculo, entra no recinto com um
sorriso radiante no rosto após nos saudar com um bom dia animado.
Depositando os livros da aula em sua mesa, ela dá a volta. Seus olhos
correm pelo lugar, parando em mim.
— Oh, Andreotti, o diretor pediu para que você fosse até a sala dele. —
comunica. — E quando ela voltar, Delgado, é a sua vez de ir.
Sufoco um gemido frustrado. Achei que toda a confusão já estava
resolvida e sem brechas para futuros esclarecimentos. Vejo que me precipitei.
Com um aceno rápido de concordância, vou até a mulher de cabelos
grisalhos e pego o crachá que nos permite transitar pelos corredores se
precisarmos ir a algum local. Passando o cordão pelo meu pescoço, sigo para
o lado externo. Os corredores estão vazios quando os cruzo e ando em
direção à diretoria. A secretária do diretor não está em sua mesa como de
costume. Decido que não há necessidade de esperá-la. Ela deve estar ciente.
— Entre. — a voz calma do diretor interino ressoa abafada quando dou
duas batidas na porta. Girando a maçaneta, faço o que ele manda.
O sorriso educado que descansa em meus lábios morre assim que eu
vejo, sentado na poltrona que fica no canto inferior da sala, a figura de Eric.
Arame farpado parece enrolar-se ao redor da minha garganta e todo
meu corpo paralisa. Ele ajusta o terno cinza com elegância e se coloca de pé.
— Olá, Srta. Andreotti. Como vai? — o desgraçado me observa com
uma expressão amigável, sorrindo calorosamente.
— O que está fazendo aqui? — estalo antes mesmo de poder conter a
tempestade de emoções que começa a me engolir.
Silas Petrov, o diretor atual, olha de mim para Eric, confuso, sem
entender o porquê da minha hostilidade. Desistindo, ele pigarreia baixinho.
Abro os punhos, apenas para fechá-los com força. Eu estava ciente de
que Carson acabaria retomando seu cargo de diretor uma hora ou outra, mas
não imaginava vê-lo aqui hoje. Minha atenção é desviada para a mesa do
escritório, onde a maior parte dos objetos foi guardada em duas caixas. Meu
cérebro não se esforça tanto para chegar ao resultado da equação. Um
segundo é o tempo que levo para compreender que Petrov está indo embora.
Eu serei encurralada outra vez.
Premeditando a situação infeliz, analiso tudo o que posso pegar e
transformar em uma arma letal. Todavia, não localizo nada que eu possa
utilizar. Meus ombros caem ao constatar isso.
— Eu estive longe do Golden Elite por razões pessoais. — responde,
ignorando minha pergunta. — Felizmente, eu as resolvi, e retornei como
diretor.
Silas sorri ao olhá-lo, admirando a pessoa que ele acha que conhece. A
verdade é que, no fundo, o pobre homem não faz ideia do monstro à espreita.
— Eu precisei reportar o que houve entre você e a Srta. Delgado ontem,
Andreotti. — ele explica, suspirando. — Não se preocupe. Como eu
expliquei, não haverá punição. Bem, preciso ir agora. O táxi está me
esperando para me levar ao aeroporto, viajo para a Austrália dentro de uma
hora e ainda tenho que organizar essa bagunça. — informa, apontando para
as caixas. Quase imploro para que ele não vá, que não me deixe aqui com
Eric. Meu queixo oscila e me forço a engolir a vontade de chorar,
aquiescendo ao passo que o vejo pegar suas coisas e se despedir, apertando
minha mão depois que solta a de Carson. Eu a seguro na minha com mais
intensidade do que devia. Novamente, é inútil, porque Silas não percebe meu
sinal.
— Tenha uma boa vida, Srta. Andreotti. — murmura suavemente,
quando eu desisto da tentativa de ser salva por ele e desfaço o aperto,
soltando-o.
— O senhor também. — finalizo, meu timbre tão baixo que eu mal sou
capaz de ouvir minha própria voz. — Faça uma ótima viagem.
— Obrigado. — agradece. — Adeus.
Permaneço enraizada no lugar em que estou ao escutá-los finalizarem o
diálogo. Mesmo quando a porta se abre e fecha, indicando que estou sozinha
com meu algoz, eu não me movo. Mesmo quando Eric caminha a passos
lentos, me circulando, me cercando como se eu fosse uma presa, eu não mexo
um único músculo. Toda minha estrutura está entorpecida. Eu entendo, com
pesar, que só poderei ficar livre desse inferno quando ele morrer. Não há uma
outra saída, ou uma alternativa nova. É a realidade. Carson jamais me deixará
em paz. Enquanto ele viver, eu estarei fadada ao tormento.
Ainda quieta, recordo-me das palavras da minha mãe na última
conversa que tivemos antes que eu a perdesse.
— Para pessoas como nós, querida, que sofreram mais do que a
maioria, não existe uma luz no final do túnel nos esperando. Então, o que
devemos fazer?
— Desistir?
Ela sorriu. E aquele foi o sorriso mais gentil que eu havia visto na
vida.
— Nunca. — sussurrou, os olhos enchendo-se de lágrimas. — Mente e
corpo são coisas poderosas. Mas nada, absolutamente nada, é mais poderoso
do que a coragem. Portanto, meu coração, se você chegar ao fim do túnel e
não encontrar uma luz nele, faça ela. Quebre-o e só pare quando o brilho
aparecer. Porque ele vai. Acredite.
Eu quero acreditar.
Quando a voz de Eric ressoa atrás de mim como o estalo seco de um
chicote, apesar de manter a cabeça erguida, eu fecho os olhos por instinto.
— Qual o problema, Brooke? — ele me sonda. — Por que você ficou
tão calada, linda?
O maldito apelido me desestabiliza momentaneamente, pegando-me
desprevenida. Há um bom tempo não o ouço, e não estava preparada para ter
que escutá-lo tão de repente. Por mais simples que possa parecer, traz
memórias do passado que eu não gostaria de relembrar. Me enfraquece.
— O que você quer, Carson? — exijo, jogando as lembranças para o
fundo da minha mente e colocando a raiva no centro. — Diga de uma vez e
me deixe ir. Sabemos que, por mais que você esteja extremamente inclinado a
me atormentar, você não pode me manter nesta sala para sempre.
Nenhuma resposta imediata. Eu odeio como ele faz parecer que, de
fato, faz algum tempo que nós não nos víamos. O que não é verdade.
— Em que dia?
— Do que você está falando?
A batida alta e estridente na superfície da mesa me faz pular de susto
quando ele espalma uma mão contra ela de forma abrupta e impiedosa.
— Não seja uma atriz, vadia! — exige, surgindo diante de mim como
uma assombração. Uma mecha de seu cabelo solta do penteado meticuloso e
cai em sua testa. O rosto dele está vermelho e marcado por pequenas veias
saltadas. — Qual foi o dia que você deu para o bastardo do seu irmão?
Eu perco o ar.
— O quê? — minha entonação é fantasmagórica e eu sinto como se o
chão sob os meus pés estivesse desmoronando sem que eu pudesse impedir.
— Você — Eric ri, nojo escapando de cada sílaba gotejada. — fala que
eu sou um doente. E quanto a você? Uma vadia incestuosa.
— Ele não é meu meio-irmão. — vocifero, enfurecida demais para me
conter e não revelar.
Entretanto, Eric não acredita em minhas palavras, as interpretando
como se fossem somente uma frase jogada ao vento por pura raiva irracional.
— Eu vou para o inferno, Brooke, e se você continuar me
decepcionando, eu a levarei comigo. — sibila, capturando meu queixo. — A
menos que volte a ser a boa garota de antes. Eu sei que você pode. Portanto,
vou te dar uma chance. Serei bondoso e esquecerei seus erros. Com uma
condição.
Não caio em seu jogo. Apesar disso, sei que ele irá dizer de qualquer
modo. Não desejando prolongar o pesadelo, eu falo o que Carson deseja
escutar.
— E qual seria a condição? — engulo com dificuldade, e espero que o
desgraçado possa ver o nojo em minhas feições por estar sendo tocada por
ele.
— Afaste-se dos seus amigos. Em especial, dele. — exige. — Estou
ciente de que vocês estão fazendo coisas que não deveriam. Não ache que
pode me enganar. Eu sei de tudo. Portanto, a quero sozinha como era antes.
Eu quero que você os faça odiá-la como punição por ser uma garotinha
rebelde.
Minhas pernas oscilam e se torna uma tarefa quase impossível manter-
me de pé. Bebendo minha reação, sua risada retorna ainda mais cruel do que
da última vez. Eu esperava que ele fosse dizer algo similar. Ainda assim,
jamais pensei que me deixaria tão atordoada. É como ter uma faca
enferrujada sendo introduzida em meu estômago, girando devagar,
contorcendo minhas entranhas sem piedade e extinguindo minha vida
lentamente enquanto eu apenas assisto sem poder mudar meu destino. Ontem,
eu estava me sentindo confiante. Agora, o medo se torna real e rouba meu
raciocínio. Carson levou praticamente tudo de bom que restava em mim ao
longo dos anos, não posso permitir que ele continue seu trabalho hediondo.
Demoro uma fração de segundos para recobrar minha lucidez e
entender que, assim como a que eu fiz na noite anterior, a sua ameaça não é
vazia e sem fundamento. Há uma coisa mais tenebrosa o rodeando, sua aura
obscura parece ter se intensificado. Antes eu sabia que Eric tinha muito a
perder, olhando-o neste minuto, não enxergo mais o vislumbre de receio que
descansava em suas íris cruéis. Não é uma coisa boa, este é um péssimo sinal.
— Eu me recuso. — enfrento-o.
Suas narinas se alargam ao som da minha frase e seus dedos se afastam
do meu queixo com avidez quando sua estrutura recua e ele sorri.
— Então, — começa. — assista a todos que você ama queimarem. Não
somente eles, e sim cada um que a cerca. Eu vou fazê-la se arrepender do dia
em que decidiu sair da gaiola em que eu havia a trancafiado. E, por favor, não
esqueça, eu quis ser misericordioso, e você negou minha misericórdia.
Portanto, cada desgraça que ocorrer com as pessoas que você se importa, será
culpa sua. Você quem irá carregar todo o fardo miserável, Brooke.
Dando a volta na mesa com movimentos calculados, Eric empurra a
mecha solta de seu cabelo para trás, recompondo-se. Ao sentar-se em sua
cadeira com um sorriso vitorioso no rosto, joga uma perna por cima da outra
e descansa o cotovelo no apoio, esfregando a lateral do indicador em seu
queixo. Meu estômago embrulha. Cada parte de mim grita para avançar em
cima dele e asfixiá-lo com minhas próprias mãos até que a vida desapareça de
seus olhos. Porém, seria um ato vão. Eu morreria antes de conseguir envolver
seu pescoço por inteiro. No fundo, sei que não é somente pela raiva que
borbulha em meu sangue que tenho essa vontade, mas por querer encontrar
um meio de não deixar que sua ameaça me controle. Porque sei que há essa
possibilidade. Este não é um blefe, e tudo o que anseio é fugir daqui. Eric faz
sinal para que eu me retire. Entretanto, não é alívio que me abraça quando
giro a maçaneta e abro a porta, pois a frase final que rola para fora de sua
boca é mais do que um conselho distorcido. É um aviso.
— E se eu fosse você, minha querida, — murmura sua sugestão sórdida
de uma maneira cínica. — ficaria de olho na pequena Montgomery.

E eu fico.
Não consigo apagar as coisas que ouvi de Eric durante o tempo que
estive em sua sala. As atrocidades que ele cuspiu com um prazer torpe e
distorcido permanecem rodando em minha cabeça e me fazem temer qualquer
passo que meus amigos possam vir a dar. Eu poderia estar atenta a outra
pessoa, minha irmã, Drogo, Leo ou Summer, mas não posso simplesmente
me forçar a ignorar a última coisa que escapou de seus lábios imundos.
Avalon e eu estamos longe de sermos amigas. Ainda assim, eu jamais
permitiria que ele a machucasse para me atingir. Coloco como missão
principal ficar observando-a até que as aulas do dia terminem e seu motorista
particular venha buscá-la. O que facilita meu trabalho, é o fato de que, graças
a aula de educação física, minha sala e a dela irão se unir para compartilhar as
atividades práticas. Sempre é desse modo, e agora eu agradeço por isso.
O treinador Sawyer está gritando ordens para os garotos, mandando-os
darem mais uma volta ao redor da pista de corrida e pararem de reclamar.
Quando ele utiliza seu maldito apito, fazendo nossos ouvidos zunirem,
Summer e eu pulamos de onde estamos nos aquecendo.
Ela faz cara feia.
— Eu tenho tanta vontade de enfiar esse apito no...
— Gautier. — advirto.
— O quê? Eu não ia falar nada demais. — justifica.
— Você ia, sim. — acuso, semicerrando os olhos.
Com um sorriso sacana, ela arrasta a ponta da língua nos dentes
superiores.
— Eu ia.
Solto uma risadinha. Para que ninguém perceba que há algo de errado,
decido agir da forma mais natural e relaxada possível, sem brechas para
suspeitas. Terminando o aquecimento, pego minha garrafa de água e me
encaminho para a pista de corrida antes dela. Montgomery deve estar em sua
segunda volta, e é admirável que mesmo com o suor brilhando por todo seu
corpo, ela continue com uma aparência impecável. Focada no trajeto à sua
frente, Avalon fala comigo sem virar o rosto. Apesar da pele com um leve
rubor por causa do esforço, noto que seus lábios estão esbranquiçados e ela
parece um pouco pálida. Meus pés formigam e fico nervosa de imediato.
Estou ficando paranoica e isso pode acabar atrapalhando meu raciocínio.
— Está se sentindo bem? — questiono como quem nada quer depois de
responder com educação seu cumprimento.
— Estou ótima. — arfa, mantendo uma respiração regular, seu rabo de
cavalo loiro balançando para todos os lados.
— Tem certeza?
— Por que eu não teria, Andreotti? — Avalon sorri. — Enfim, soube
do seu desentendimento com a Cameron ontem.
Solto o ar pela boca, me concentrando na pista.
— E quem não soube? — ironizo, aumentando a velocidade para que
fiquemos lado a lado. — Foi a notícia do dia.
— Estamos em um colégio de elite que mais parece um internato de
meio período. As coisas aqui se espalham como fumaça ao vento.
— Acho que é assim em qualquer lugar.
— Não. — ela nega. — Aqui é muito pior. Não somos apenas crianças
ricas, Brooke. Somos filhos de magnatas, políticos, multibilionários e toda
essa besteira similar que comanda o país e a economia dele. Por causa disso,
não nos importamos com as consequências ou punições do que fazemos ou
falamos, porque sempre iremos nos safar delas. E ainda conseguimos colocar
a vítima como culpado e tomar o lugar dela. — conclui, encarando-me.
— Você pode ter razão. — concordo, após refletir sobre o que ouço.
— Eu tenho. — ronrona ao completarmos uma volta. — E você sabe.
O cansaço começa a vencê-la quando chegamos a metade da nova
volta. Avalon me diz para continuar, mas eu recuso e a faço companhia.
Paramos debaixo de uma árvore gigante que fica do lado oposto de
onde alguns dos garotos do time de hóquei estão, somente uma mureta nos
separa. Eles conversam empolgados sobre algo que não faço ideia, pois não
consigo escutar. Drogo está conversando com o treinador, acompanhado por
Matteo, a poucos metros de distância. Destampo a garrafa e beberico uma
quantidade mínima, o suficiente para umedecer meus lábios ressecados. Meu
peito sobe e desce, e há rastros pegajosos de suor o banhando por inteiro.
Apoio-me nos joelhos, lutando para recobrar minha respiração regular. Eu
odeio fazer exercícios.
— Quem não parece bem, é você. — escuto-a alfinetar, dando um gole
em sua água.
— Eu estou ótima. — minto. — Sendo honesta, me sinto radiante como
um girassol.
— Se você for desmaiar, me avise para chamar alguém. — adverte
maldosa. — Fiz as unhas recentemente e seria um incômodo danificá-las.
— Eu imagino. — retruco usando o mesmo tom sarcástico, então rolo
os olhos ao ver para onde os dela estão fixos. — Você pode ao menos
disfarçar?
Mas ela não disfarça. Pelo contrário, fita de modo ainda mais descarado
a figura distante de Matteo.
— Sabe, por mais que eu não goste do crápula, vejo um lado positivo
em dormir com ele. — Avalon constata, maliciosa, observando DeLuca
treinar.
Vou me arrepender de perguntar. Contudo, abstraio essa informação e
permito que a curiosidade fale mais alto, dando voz aos meus pensamentos.
— E qual é?
— Você não precisaria ter receio de ir à cozinha de madrugada por
cogitar a possibilidade de ser perseguida por um demônio. Afinal de contas,
já teria um na cama. — ao fim de sua frase maldosa, eu pressiono a palma na
boca, abafando uma risada, pois acho muito errado rir de seu comentário.
Poucos minutos depois, retornamos à corrida para a última volta.
Avalon, ao meu lado, tem um ritmo lento, totalmente diferente do anterior.
Eu sei do seu cansaço por ter corrido bastante, embora não esteja indo com o
máximo de sua velocidade. Todavia, ela não me parece nada bem.
— Quer dar uma nova pausa? — sugiro preocupada. Seus lábios estão
com o dobro de palidez e o suor que começa a encobri-la se torna excessivo.
Com um aceno rápido, minha sugestão é recusada. O nervosismo que
senti antes volta a me comer viva. Desta vez, todavia, ele corrói meus ossos.
Eu estou a um passo de forçá-la a parar de correr quando, subitamente, seus
olhos reviram. Toda a cena parece ocorrer em câmera lenta.
Avalon sufoca. E cai.
DIABÓLICOS — PARTE I

“Todos os meus amigos são pagãos, vá com calma


Espere eles te perguntarem quem você conhece
Por favor, não faça movimentos bruscos
Você não sabe nem metade do abuso”
— Heathens | Twenty One Pilots

TODA A PREOCUPAÇÃO É SUBSTITUÍDA por medo


colossal. Eu paraliso ao vê-la engasgando-se, os olhos rolando com tanta

força para cima que nada além da parte branca está visível. Lágrimas borram

minha visão e um nó se aloja em minha garganta, dificultando meu foco.


Meus membros enrijecem assim que o pânico se apodera de mim. Luto
para não perder o controle dos movimentos. Eu preciso ajudá-la.
Os lábios de Avalon, antes pálidos, começam a ficar roxos. Toda sua
estrutura entra em colapso, tremendo com uma violência alarmante.
Ela vai morrer.
Uma voz em minha cabeça brada para que eu me mova, que faça algo,
mas estou aterrorizada. Como última medida desesperada, cravo as unhas em
meu braço, enterrando-as na carne com brutalidade o bastante para emergir
do oceano de temor que tenta me afogar. Finalmente, eu desperto.
Caindo sobre meus joelhos, seguro o rosto dela. Minhas mãos estão
escorregadias por causa do suor frio impregnado nelas. Preciso agir rápido.
— Socorro! — grito, o pedido fazendo minhas cordas vocais vibrarem
pelo esforço que faço. Começo a chorar ao vê-la sufocando mais. — Socorro!
A movimentação ao redor se torna barulhenta assim que o resto dos
estudantes percebe que há alguma coisa errada. Desviando o olhar para cima,
vejo o exato momento em que DeLuca, sentado em um dos bancos ao lado
dos jogadores, fica de pé. Os olhos dele vasculham o local, fixando-se na
nossa direção. É quando o assisto disparar em uma corrida. Drogo e Grayson
fazem o mesmo, mas Matteo é como uma bala.
Ele apoia ambas as mãos no muro de concreto que nos separa e o salta,
fazendo seu curso por entre os alunos que se aproximam, os quais se afastam
para sua passagem. Meio segundo é o tempo que DeLuca leva para se colocar
ao meu lado. Seu olhar afiado percorrendo o rosto dela.
— Chamem uma ambulância! — Drogo ordena ao alcançá-lo.
— Ela comeu alguma coisa? — a pergunta vem de Matteo.
— Eu não sei!
— Você a viu beber algo?
— Eu não... — interrompo-me ao lembrar da garrafa d’água, embora
Avalon já estivesse estranha antes. Todavia, eu digo: — Água! Ela bebeu
água!
Sua atenção voa para a multidão, buscando por alguém, à medida que
ele ergue o corpo dela e o segura contra o seu.
— Cagliari. — grunhe ao localizar Grayson, esticando a mão direita. —
Preciso estar com a mão limpa. Use o seu cantil.
Sem protestar, o loiro ergue a camisa que está usando e puxa o objeto
de inox que descansa em sua cintura tatuada, destampando-o e encharcando a
mão do amigo com o líquido. O odor de vodca dança em meu olfato,
nauseando-me. Prendo o fôlego, iniciando o processo de respirar pela boca.
Com a outra mão, Matteo força o maxilar de Avalon. Ao receber uma
brecha mínima de sua boca se abrindo, trilha dois dedos molhados para
dentro, acertando o fundo de sua garganta. O barulho que Avalon emite é
horrível, um chiado engasgado que faz meu coração encolher no peito.
Nada acontece.
Então, ele empurra um pouco mais fundo. A cena é tão agonizante que
tampo a boca e envolvo minha barriga com um braço. Estou a um passo de
me levantar e sair correndo para longe de todo esse pesadelo. No entanto, seu
corpo reage. DeLuca é rápido em afastar os dedos e inclinar o rosto dela para
o lado. Avalon abre a boca, vomitando um líquido denso e esverdeado. Eu
me coloco em ação prontamente, ainda que não saiba o que estou fazendo.
Meu cérebro coordena meus movimentos, e quando dou por mim, estou me
agachando atrás dela e segurando seu rabo de cavalo. Ela passa quase um
minuto inteiro vomitando sem parar. A poça que se forma ao lado após tudo
ser expelido de seu estômago tem um odor distinto do comum, é como se
fossem ferro e gasolina misturados. Não é um cheiro habitual. Afasto os
devaneios repentinos assim que noto seus olhos voltarem ao normal e os
lábios dela assumirem uma cor de roxo menos vívida. Avalon ainda está
ofegante ao terminar, mas parece melhor. Drogo tira a camisa que está
usando e a estende, me entregando. Pegando-a, começo a limpá-la.
Suas íris azuis deslizam vagarosamente para cima, colidindo com a
imagem do rosto do DeLuca. Sorrindo fraco, ouço-a dizer:
— Eu ainda te odeio. — sua voz suave reverbera de um jeito rouco pelo
esforço. — Mas... obrigada. — sussurra, aninhando-se contra ele.

Eu sei que preciso parar, todavia, quanto mais os ponteiros emitem um


barulho, indicando a passagem dos segundos, mais minhas pernas balançam.
Minha irmã, reclinada no assento ao lado, escorrega os olhos do livro
que segura para me encarar. Blake verifica minha agitação, voltando a se
fixar em meu rosto com um gemido frustrado. Massageando as têmporas,
larga o livro no colo e se concentra em mim, suspirando.
— Você pode, por favor, se acalmar um pouco? — pede, tocando meu
joelho trêmulo afim de pará-lo. — Quer que eu compre algo? Um suco?
Eu nego.
Estou aflita enquanto espero Drogo ser liberado. Sabemos que Avalon
não corre risco de vida, mas isso não me acalma. Sendo sincera, nada me
acalmaria hoje. A ameaça de Eric cria raízes em meu interior, e o que eu
sabia que não seria um blefe, se concretizou da pior forma possível. Desejei ir
até seu escritório, contudo, não seria uma boa ideia confrontá-lo. Ele mostrou
que pode fazer coisas terríveis de modo sorrateiro. Não sei no que devo
pensar ou como agir para que as pessoas que eu gosto fiquem seguras. Por
mais cruel que tudo tenha sido, eu tive a sorte de ser avisada com quem seria
pelo próprio Eric. Agora, entretanto, estou perdida. Tenho que manter os
outros por perto o máximo que eu puder, porque Carson pode atacar qualquer
um deles a qualquer instante. A sensação amarga de culpa apodera-se do meu
âmago, e por mais que eu me force a jogá-la para o fundo da mente, não
consigo simplesmente apagar o que sinto. Sempre foi uma tarefa difícil
manter a fachada para que ninguém enxergasse através dela, mas neste
momento é ainda pior. Eu quero chorar, porém, não posso. Se eu demonstrar
fraqueza, mesmo que em nível mínimo, perderei o jogo.
E isso não pode acontecer.
— Vou ficar bem. — asseguro, acenando com um sorriso forçado. — É
só que... é muita... coisa para assimilar, entende? Precisarei de um tempo.
— Avalon não corre perigo, Bee. — sinaliza, apertando minha mão. —
Você a ajudou. Não há mais nada a se fazer agora. Portanto, acalme-se.
Arranho a perna, distraída. Todos nós tivemos que depor em horários
distintos. Nós duas terminamos, mas Drogo ainda está na sala do comissário.
— O padrasto dela, — pigarreio. — o Dr. Mackenzie, disse que foi
envenenamento. Você ouviu. Tentaram matar ela, Blake. Realmente
tentaram.
Os paramédicos foram rápidos em constatar. Eu soube que, assim que
ela chegou ao hospital, a submeteram a uma lavagem estomacal completa.
Infelizmente, só fomos liberados das aulas cerca de meia hora depois do
ocorrido. Eu temi pela vida dela ao saber que Eric poderia acompanhá-la. No
entanto, DeLuca não permitiu que Avalon fosse levada sem que ele estivesse
por perto. A única coisa que me tranquilizou um pouco.
— A mãe da Avalon faz parte dos gigantes da política. — cochicha. —
E é muito odiada. Os policiais, pelo que escutei, disseram que tem ligação.
Iam recolher a garrafa que ela bebeu água, mas o negócio desapareceu como
se nunca tivesse existido. Alguém pegou, Brooke. E isso é fodido.
— Será que pagaram alguém para sumir com o objeto? — sugiro,
sabendo que seria inútil trabalhar meu cérebro para achar o culpado, pois eu
estava ocupada demais focada em Avalon para ter visto qualquer pessoa
pegar a garrafa. E com base no que disseram nos depoimentos, ninguém faz
ideia.
Blake cruza os braços, reclinando-se na cadeira.
— Tudo é possível. — murmura pensativa. — A única certeza que
temos a essa altura, é que um de nós o fez. Sendo assim, alguém está
mentindo.
Interrompemos a conversa quando a porta à nossa frente se abre e
Drogo sai de dentro da sala, empurrando o cabelo para trás para colocar o
boné.
— Prontas para ir?
Nos levantamos ao mesmo tempo, concordando. Dois dos policiais que
estão na entrada nos olham com desconfiança à medida que passamos. Não
me importo, eles olharam para todos que cruzaram essa entrada do mesmo
jeito, parecendo dois cachorros treinados farejando suspeitos para atacar.
Nossos rostos compartilham aspectos cansados e empalidecidos. Todos
estamos exaustos e necessitando de um banho quente para relaxar. Enquanto
Drogo e Blake debatem num tom contido sobre seus respectivos depoimentos
e as perguntas que o comissário fez, eu tento me concentrar no próximo passo
de Eric. Ele não é estúpido, não vai atacar diretamente os que estão mais
pertos de mim, pelo menos é o que acredito. Ou o que quero acreditar. Não
acho que DeLuca ou Grayson, até mesmo Leona, estejam em sua mira. Os
três são os que quase não possuo contato. Sendo assim, os coloco como
última opção. Não descarto a hipótese, porque tratando-se de um psicopata,
ferir nunca é demais. E Carson deseja me ferir. Ele vai tentar de tudo.
O estacionamento fica no fim da rua, do outro lado, e parece se tornar
ainda mais longínquo ao passo que nós andamos para chegar aos nossos
carros. O celular de Blake toca e ela o pega do bolso traseiro para atender,
pedindo licença ao se afastar. Uma chuva fina cai de repente e nós nos
apressamos.
— Eva? Oi! — saúda, atravessando a rua. — Sim, eu acabei de sair.
Com quem você...
A voz dela se torna mais distante ao passo que Drogo e eu ficamos para
trás, nos protegendo debaixo das árvores. O farfalhar das folhas é o único
ruído, além da chuva, que quebra o silêncio instalado. É um bairro tranquilo,
não há movimentação de automóveis, somente um ou outro passam.
— Como está se sentindo? — pergunta Drogo, virando o boné.
— Eu não sei. — dou de ombros, incerta. — Muitas coisas para
assimilar. Ainda estou pensando na Avalon.
— Foi um dia conturbado, mas você não pode continuar fazendo isso,
Brooke. — adverte, e eu franzo o cenho.
— Isso o quê?
— Se culpar.
— Eu não estou me culpando. — sopro ofendida, minha caixa torácica
apertando com a sensação desconfortável que se espalha por ela.
— Você está. — insiste cético. — Internamente, mas está. Não muda
nada você trazer ou não o lixo para o lado de fora, porque eu consigo ver.
Rebater não vai servir de nada, percebo sem muito esforço. No fundo,
embora sua suposição, sem sombra de dúvidas, venha de algum outro motivo
diferente do real, ele está certo. Eu estou me culpando, e eu irei me culpar
durante todo o tempo. De agora em diante, caso algum deles venha a se
machucar dessa maneira, será minha culpa. Eric me deu um ultimato e eu o
recusei sem sequer pestanejar. O erro foi meu. E por mais que eu tente buscar
uma saída para que não haja mais estragos futuros, sei que é uma luta vã. Eu
anseio me convencer do contrário, porém, como poderia?
Eric é poderoso, possui uma posição influente entre as pessoas da nossa
sociedade. E foi por essa razão que não abri a boca para contar sobre o que
sofri em suas garras. Sebastian não pode mais me ferir. Carson, por outro
lado, continua respirando o mesmo ar que todos nós como se fosse uma
pessoa exemplar. Ele não é, no entanto. Eu suspiro. Não posso continuar
arriscando a vida de quem eu amo, tenho que fazer algo. Mas o quê?
A pergunta defasa meu discernimento. Desistindo da luta, puxo o ar
para os meus pulmões, preparando-me para dar minha réplica, quando noto
um carro preto se aproximando em alta velocidade a poucos metros de
distância. Eu não teria problemas com a cena, se não fosse pelo fato de que o
veículo está na contramão. Indo direto para... Giro o rosto, localizando minha
irmã do outro lado.
Eu não paro para ver se Drogo também percebe, porque já estou
correndo na direção dela.
— Blake! — grito com todo meu fôlego, correndo o mais rápido que
minhas pernas permitem. Ouço meu nome, mas nada mais, além dela, me
importa agora. A chuva embaça minha visão, fazendo meus olhos arderem ao
acertá-los impiedosamente. Sequer pisco ao pisar no concreto para atravessar
de uma calçada para a outra. As poças rasas de água que se formam no chão
salpicam para todos os lados. — Blake! — grito de novo. — Corre!
Ela não o faz. Seu corpo paralisa e sua mão, a que segura o celular,
desaba. O aparelho cai na calçada, o visor estilhaçando-se. Assim como meu
coração quando percebo que não chegarei a tempo de salvá-la. Minhas
lágrimas se misturam com a água que cai do céu escuro.
Eu irei perdê-la.
A ideia de assistir minha irmã morrendo na minha frente é dilacerante,
infernal. É minha culpa. Ela vai morrer e a culpa é minha.
O carro me ultrapassa, desviando da estrada e subindo a calçada. Eu
grito outra vez, então, novamente. Grito alto o suficiente para acordar todos
os mortos. Entretanto, a voz em minha garganta parece falhar. Meus gritos
desesperados se perdem em meio ao barulho estridente de motor e chuva.
Eu não posso perdê-la.
Com o canto do olho, enxergo a figura de Drogo, que ainda estava do
lado oposto até meio minuto atrás, cruzar a rua asfaltada. Seu corpo colide
com o de Blake num impacto brutal quando ele a agarra, levando-a consigo
para o chão. Os dois caem no vasto gramado, rolando sobre ele. O veículo,
por um milésimo de segundo, não os acerta. Penso que o carro vai frear, que
alguém irá saltar de seu interior com uma arma e atirar nela. Ou nele. Talvez
em ambos. Todavia, absolutamente nada ocorre. O automóvel continua
seguindo em frente, desaparecendo no horizonte. O motor continua rugindo
mesmo quando o perco de vista. O zunido some aos poucos, mas continua
ressoando em meus ouvidos como unhas arranhando um quadro. Despertando
do transe causado pelo pânico, corro até onde eles estão. Drogo se afasta,
apoiando-se nos cotovelos antes de se jogar para o lado. Agachando-me nos
calcanhares, verifico minha irmã em busca de possíveis ferimentos. Meu
coração bate aliviado quando constato que ela não ostenta nada além de um
arranhão superficial na parte inferior da palma direita. Eu beijo sua testa,
sussurrando que a amo e que sinto muito. Me distanciando, viro-me para
Drogo. Sua face está banhada pela chuva, e seus olhos se converteram em
duas esferas escurecidas. Ainda assim, mesmo em meio ao mar de escuridão
que são suas íris, consigo ver minha alma refletindo nelas. Acaricio seus fios
úmidos com meus dedos, colando nossos lábios. Eu apago o fato de que não
estamos sozinhos e que nenhum outro momento seria tão ruim quanto esse
para fazer o que estou fazendo.
Mas nada importa.
É uma necessidade.
Eu preciso fazer isso, porque essa vai ser a última vez que beijarei esse
homem, o amor da minha vida. Este é nosso último beijo. É o meu adeus.
Meus lábios molhados pressionam nos dele e eu trilho a língua para o
interior de sua boca, sentindo o gosto salgado das minhas próprias lágrimas.
Minhas mãos descansam em seu rosto e eu o seguro como se ele fosse o meu
mundo e eu estivesse prestes a vê-lo desaparecer diante dos meus olhos.
As pessoas dizem que a mentira tem um gosto amargo, todavia, não
acredito que seja mais amargo do que o sabor da verdade, do que é real.
Eu gostaria de poder voltar no tempo e nunca ter o conhecido porque,
desse modo, eu não teria que quebrar seu coração duas vezes. Eu não teria
que carregar o fardo de ferir, pela segunda vez na vida, a pessoa que menos
mereceu receber minhas partes ruins. Eu gostaria de poder livrá-lo de mim.
Drogo e eu sempre seremos pessoas certas em momentos errados, e não há
como burlar ou distorcer a realidade. Não se pode enganar o destino.
Somos almas gêmeas, mas não nesta vida.
Pressionando nossas testas, finalmente tomo coragem para abrir os
olhos. Por baixo dos cílios, guardo a imagem de sua face bonita em minha
mente.
— Eu te amo. — sussurro com todo meu coração. — Mas acabou.
Não espero para ver sua reação. Sem proferir outra palavra, e não
permitindo uma resposta, eu me coloco de pé e corro para o estacionamento.
Localizo minha Range Rover. Destravando-a, eu entro e aperto o botão
de partida, manobrando para fora do prédio sem olhar pelo retrovisor.
Durante todos esses anos, eu tive que fazer escolhas difíceis. Muitas
delas me trouxeram consequências ainda piores. A maioria causou danos que
eu jamais poderei reparar. São marcas eternas que carregarei até o fim dos
meus dias. No entanto, nenhuma delas foi tão dolorosa quanto essa. Nada é
mais cruel e miserável na vida do que renunciar a alguém que amamos
quando tudo o que mais queremos é ficar ao lado dessa pessoa.
Os soluços que rasgam minha garganta são de outro mundo à medida
que piso no acelerador, sentindo-me asfixiar com o meu sofrimento. Parando
o carro no acostamento, mantenho os faróis piscando ao inclinar o torso para
trás e agarrar minha bolsa, vasculhando em seu interior. Meus movimentos se
tornam letárgicos e eu só percebo que estou mordendo o lábio quando o gosto
metálico se espalha pelo meu paladar, enojando-me. Eu sempre acreditei que
havia uma chance de ganhar, que essa era uma batalha que eu venceria, ainda
que as probabilidades fossem mínimas. Desejei acreditar que eu era capaz de
ver a luz no final do túnel, não importando se ela realmente estivesse lá
quando eu finalmente o alcançasse, pois eu o quebraria e criaria minha
própria luz. Mesmo dilacerada e sem forças, eu o faria. Mas não existe um
túnel, não existe final feliz para mim. Se para salvar quem eu amo, eu preciso
fazer eles me odiarem, tudo bem. Estou de acordo.
Meus dedos percorrem a tela e eu disco o número que decorei sem que
eu realmente quisesse. Encaro o visor com nojo torcendo meu estômago.
Não seco as novas lágrimas que queimam em meus olhos. Elas são de
raiva, de fúria. Me motivam. Ao escutar a voz que roubou tudo o que eu
tinha, faço uma promessa. Se eu cair, não será sozinha, eu levarei esse
maldito desgraçado para baixo comigo com um sorriso vitorioso.
A única maneira de destruir Eric, é de dentro para fora. Ele quer uma
vadia sem coração? Certo. Eu serei uma vadia sem coração.
— Olá, Brooke.
Respiro fundo.
— Você venceu.
DIABÓLICOS — PARTE II

“Bem-vindo à cela cheia de pessoas


Que tem celas cheias de pessoas que elas amaram um dia
Afastadas delas
Só porque deixamos as armas na porta
Não significa que nossas mentes deixarão de serem granadas”
— Heathens | Twenty One Pilots

EU TENHO QUE ENFRENTAR A REALIDADE.


Hoje faz cinco dias desde que eu agi como uma covarde e fugi para não
ser vista estilhaçando, me entregando ao que jurei não permitir me destruir.
Cinco dias desde que três pessoas se machucaram por minha culpa. Porque eu
achei que recuar, estudar meu inimigo e atacá-lo seria uma boa ideia. Agora,
preciso pagar o preço de ter subestimado meu atormentador. O problema,
para Eric, é que eu não fui a única a subestimar alguém aqui. No começo, era
uma sede de vingança, medo e uma fraca audácia que me encorajavam à
destruí-lo. O jogo virou.
Eu não sinto nenhuma outra coisa além de ódio, de pura repulsa. E nada
no mundo é mais perigoso do que uma mulher silenciosamente enfurecida.
A poeira baixou há dois dias, quando as aulas foram retomadas, e o
temor pelo que ocorreu com a Avalon foi extinguido assim que encontraram
um culpado. É claro que eu não caí na conversa do homem de boné e casaco
preto que entrou e saiu do GEC sem ser notado por nenhum funcionário,
levando a garrafa envenenada consigo ao deixar o local. Foi tudo
ridiculamente armado. Em especial, o fato das câmeras o flagrarem somente
em lugares específicos, pois a maioria eram pontos cegos e não capturaram
sua imagem. Eu poderia dizer que a polícia de Londres se tornou inútil por
criar essa bobagem malfeita e cheia de furos. Isto é, se eu não soubesse que
Carson detém um certo poder sobre alguns homens de farda. Tudo o que o
infeliz precisa fazer é estalar os dedos. Além do mais, a bomba não se
espalhou. Afinal, não seria bom para a reputação do colégio de elite mais
renomado do país. Sempre que ocorrem incidentes prejudiciais, Eric dá um
jeito de jogar tudo para debaixo do tapete como se a sujeira nunca houvesse
existido. Ele fez o mesmo com dois estudantes bolsistas que morreram
misteriosamente no ano passado. O mais doentio é que as pessoas parecem
ter apagado essa informação da memória. Eu estaria admirada, se não
soubesse como as coisas funcionam. Como elas sempre funcionaram.
A tentativa de atropelar minha irmã? Bem, decretaram que foi nada
além de um motorista bêbado e inconsequente. Eu não comprei essa merda.
Seguro a alça da bolsa com uma mão ao atravessar o corredor,
ignorando os olhares direcionados a mim e os cochichos que os demais
iniciam.
Eu não piso no Golden Elite desde o dia que tudo saiu do controle. A
forma que encontrei de mostrar que estava viva era mandando mensagens à
Blake — que quase me matou por não contar sobre o exame de DNA. Fiquei
hospedada em um hotel, preparando-me para voltar apenas quando estivesse
pronta para ser uma filha da puta de primeira. Bem, eu estou.
Vai ser feio, mas não tenho outra saída. Eric tem que acreditar que eu
realmente afastarei todas as pessoas que amo, que eu voltarei a ser uma alma
solitária. Embora eu não confie em sua palavra, e por causa disso terei que ter
uma carta na manga, o farei prometer que não tocará em nenhum deles.
Não entro em minha sala ao passar por ela, opto por seguir para a do
diretor. Não mais temendo pisar na jaula dos meus piores pesadelos.
Seu escritório não me aterroriza como era no passado, causando-me
calafrios somente por pensar nele. Não se pode afetar uma alma entorpecida.
A secretária, Cassidy, fica de pé ao me ver, espalmando as mãos na mesa e
inclinando-se sobre ela com uma carranca profunda de desagrado.
— Srta. Andreotti. — chama num fio agudo de voz. Eu a ignoro e faço
meu percurso até a porta, girando a maçaneta sem bater antes. — Srta.
Andreotti! — dispara outra vez, aumentando a entonação. — Não pode entrar
desse jeito! O diretor Carson está ocupado com uma chamada mui...
— Eu não me importo. — corto-a, entrando.
Eric está reclinado em sua poltrona, observando o notebook. Seus olhos
sobem devagar, arrastando-se pela tela e se fixando em mim. Ele se despede
de quem quer que esteja falando e ergue o indicador, fazendo sinal para que
eu espere. Detesto agir como se fosse uma situação normal entre aluna e
diretor, porque não é. Cassidy aparece na soleira, fervendo em meus
calcanhares. Não me dou ao trabalho de me virar para ver de perto sua ira.
— Senhor, eu tentei impedi-la. — justifica, tentando ocultar sua
respiração ofegante.
— Está tudo bem. A Srta. Andreotti está num dia ruim. — acena,
exibindo um de seus sorrisos falsos que me deixam nauseada. — Você pode
ir agora.
— Claro. — pigarreia insatisfeita, e o farfalhar indica que está
ajeitando o terninho verde que abraça suas curvas. — O senhor deseja alguma
coisa?
— Ah, que bom que você perguntou. Eu gostaria de uma xícara de
café.
— Srta. Andreotti?
— Nada. — respondo, largando a bolsa em cima do sofá. — Obrigada.
Cassidy leva um tempo para se mover, recuando em seguida. Eu o vejo
sair de trás da mesa, arrumando a gravata que escapa do terno. O sorriso de
antes ainda permeia seus lábios finos e pálidos. O desejo que eu tenho é de
esmurrar sua boca até que ele cuspa um litro de sangue. Talvez mais.
Meu sangue fervilha com nojo. Nojo de estar tão próxima desse
monstro. Nojo de ter que ser o que eu não sou por causa dele. Nojo de cada
coisa. Todavia, eu tenho que fazer o que me trouxe aqui. Continuo com uma
expressão vazia ao me aproximar de onde ele está, respirando pela boca para
não ter que inalar seu maldito perfume. A pior parte, eu acredito que seja
essa. Seu cheiro me deixa hiperconsciente de sua presença do que a imagem
dele em si. Para mim, é como enxofre.
— Sua visita ao meu escritório não foi para um diálogo estudantil. —
conclui, analisando minhas feições. — Diga logo o que você quer.
— Você sabe o que eu quero. Mas colocarei as cartas na mesa mesmo
assim. — começo, ríspida. — Eu quero que você deixe meus amigos em paz.
Não sou estúpida. Como já disse, a palavra de Eric não serve de nada. É
tão insignificante quanto sua existência. Contudo, é o único vislumbre de
certeza que posso obter a essa altura do campeonato. No início, ele havia
prometido que não tocaria num fio de cabelo da minha irmã se eu me
comportasse, e eu o fiz. Blake permaneceu fora de seu radar durante todos
esses anos. Por mais que não seja uma convicção, é o que preciso. Uma
segurança. Não significa que baixarei a guarda, só o farei pensar que estou na
palma de sua mão. Serei um lindo cavalo de Tróia.
— Você irá confiar em mim? — ele ri surpreso.
— Claro que não. — disparo, e seu sorriso se desfaz. — Eu não confio
em absolutamente nada que saia da sua boca, Carson. Nem uma única sílaba.
— E por que precisa que eu dê minha palavra?
— Ela não é para mim. — declaro, decidindo que está na hora de
inverter as regras do jogo que eu acabo de iniciar. — É para você.
Os traços dele se distorcem, evidenciando a fúria que começa a crescer.
Não me deixa amedrontada. Estou dormente até os ossos.
— Para mim, hm? — divaga, seus ombros oscilando com raiva mal
contida. Eric emite uma curta risada de incredulidade.
— Sim. — reitero, pegando minha bolsa e indo em direção à porta. —
Vai precisar de algo que me assegure não ser uma terrível dor de cabeça. Eu
aceitei sua proposta. Aceitei afastar todos que eu amo. E não somente isso,
também me comprometi a fazer todos me odiarem como se eu fosse uma
praga. Me queria como uma aberração? Serei uma aberração. Sou importante
para você. Não sei por qual motivo, mas sei que sou. É por essa razão que me
mantém como sua marionete. Tenho algo que você quer. — sibilo. —
Machuque-os e eu farei questão de transformar sua vida miserável em um
inferno. Vou fazer você se arrepender de não ter me matado quando pôde.
Portanto, esteja ciente que, se você os ferir, eu não terei mais nada a perder. E
você não quer isso. Então, faça o que eu disse e fique longe deles. Do
contrário, eu acabo com você. Essa, sim, é a porra de uma promessa.
Giro a maçaneta e saio.

Eu sabia que seria difícil ignorar meus amigos na sala de aula, mesmo
me sentando afastada de todos. Mas não foi só difícil, foi quase impossível.
Permaneci quieta o tempo todo, evitando olhares e expressões
chamativas. Adotei uma fachada impenetrável em que não permiti brechas
para que alguém pudesse enxergar além. O problema é que, como eu já
previa, nenhum deles parece cogitar desistir fácil. Principalmente o Drogo.
Foi desprezível e cruel a maneira como o deixei e fugi, recusando suas
ligações e deletando suas mensagens nos últimos dias. Posso ver que ele está
surtando pelo modo como sua mão aperta a caneta. Se a pobre coitada tivesse
uma alma, ela já estaria voando por aí.
Quando o sino ecoa pela torre, nos liberando para irmos embora, eu sou
a primeira aluna a levantar, recolher os materiais e deixar o local. Porém, não
sigo direto para a saída. Me misturo na multidão, indo contra à maré de
estudantes, e corro para onde fica o banheiro feminino. As caixas de som
presas nos topos das paredes, como acontece em todo final de aula, começa a
tocar música. O problema é que parece que o destino resolveu se divertir com
a minha cara hoje, porque a canção que enche os corredores barulhentos nada
menos é do que Don’t Come Close, a qual tocou na noite da boate quando
estávamos na Califórnia. Lembranças proibidas rodeiam minha cabeça e eu
luto para as manter distantes, falhando miseravelmente. Com raiva, empurro
a porta do banheiro e entro, agradecendo o fato de que sou a única pessoa
ocupando o ambiente. Jogando a bolsa em cima do lavabo, ligo a torneira e
molho a mão, passando-a nas laterais do pescoço. Me sinto irritada, e para
completar, ainda estou incerta sobre como devo agir de agora em diante. Não
sei por onde começar. Ser sozinha sempre foi ruim, mas eu me convencia do
contrário. É um martírio saber que, depois de experimentar a sensação de
alegria, vou ter que voltar ao início de tudo. A mesma amarga solidão do
passado. Eu sei que é necessário, mas isso não impede de doer.
Respiro profundamente, reunindo uma quantidade exorbitante de ar em
meus pulmões. Ao erguer o rosto e olhar para o espelho, eu solto um grito.
Drogo está apoiado contra a porta fechada, os braços cruzados acima do
peito. Seus ombros largos tomam conta de cada centímetro da soleira, e sua
feição carrega um semblante nada amigável. Inclinando a cabeça para o lado,
ele me estuda antes de se desencostar e dar um passo à frente. O olhar dele
contorna meus lábios, esgueirando-se até o meu rosto com uma letargia que
aquece meu núcleo, deixando-me sutilmente inquieta.
Prendo o fôlego ao tê-lo pairando sobre mim.
— Diga-me o que aconteceu. — apesar da calma em seu tom de voz, a
frase é uma exigência.
— Nada. — minto, e Drogo se aproxima ainda mais. Seu cheiro dança
em meu olfato como uma punição, lembrando-me que não posso ser quem
costumava. Endireito minha postura, encaixando a máscara de indiferença. —
O que você quer? Que eu repita o que falei? É isso?
— O que eu quero, — anuncia. — é que você pare de ser a porra de
uma mentirosa. Medo não justifica sua reação. Você se escondeu durante
cinco dias. Me beijou, disse que me amava, mas que acabou. Então, se foi.
Agora, está de volta, e não passa de um fantasma. O que você está tentando
fazer? Nos afastar? Ficar sozinha? — seus olhos escurecidos me sondam
como os de um lobo. — Porque, se for, não é assim que funciona.
— Você está certo. Não justifica. — concordo, sem responder suas
perguntas. — Eu estava em pânico, precisava ficar longe. Fui uma covarde,
admito. Mas esses dias em que estive sozinha, afastada de todos, percebi que
eu havia me precipitado. Ficar ao seu lado não era o que eu queria. —
deposito o máximo de veracidade na confissão. — Você não vê? Tragédias
acontecem quando estamos juntos. Mesmo que não sejam nossa culpa. Parece
que nós dois, desde que tudo aconteceu em Los Angeles, bagunçamos a
ordem natural das coisas. Além do mais, nunca daria certo. Como você disse,
mundos diferentes. Pretendo ir embora de Londres quando terminar o
colegial. Então, o melhor a se fazer é fingir que nunca aconteceu.
Eu acho que essa é a desculpa mais ridícula que eu poderia dar. Na
verdade, é mais do que ridícula. É vergonhosa, mesquinha. Eu sou capaz de
usar argumentos melhores, mais coerentes. Todavia, não consigo raciocinar
estando tão próxima dele. Sua presença me desestabiliza. Preciso sair daqui.
Minhas palmas ficam pegajosas com suor frio à medida que o nervosismo faz
seu caminho pela minha garganta, envolvendo-a com um nó firme. Drogo
esfrega o rosto, recuando um passo. Suas lufadas de ar saem violentas e
efêmeras, tão fortes que ricocheteiam em meus ouvidos. O aceno frenético
que sua cabeça faz ao balançar em negação é o sinal que me faz entender que
acabei de dissipar o último resquício de seu autocontrole.
— Que se foda. — ele cospe, rindo sem humor ao voltar a me encarar.
— Você quer mesmo que eu acredite em toda essa bobagem de merda?
— Não dou a mínima para o que você deseja ou não acreditar. Dentro
de alguns meses, não vamos mais lembrar dessa ilusão que nós dois criamos.
Nossas vozes sobem alguns decibéis, reverberando pelo banheiro. A
mandíbula dele tensiona, trincando com tanta brutalidade que seus dentes
rangem. Eu permaneço fincada onde estou, lutando para não deixar que a
máscara de cadela escorregue. Drogo me conhece o bastante para capturar
qualquer deslize que eu venha a cometer. E será uma catástrofe colocar tudo a
perder por não controlar minhas emoções.
— O que aconteceu? — estala furioso. — Por que está levantando
muros para me afastar quando já passou por cima dos que havia erguido?
Suas palavras são como um tapa forte em minha face.
— Porque eu não quero mais você. — murmuro.
— Mentira, porra! — seu rugido me faz pular. — Eu já falei, Brooke.
Eu a conheço. Portanto, pare de contar essas mentiras do caralho e seja
honesta.
Sufoco a vontade de abraçar meu próprio corpo. Meu desejo é de me
jogar em seus braços e chorar todas as minhas angústias, meus medos. Mas
eu não posso. Não se eu quiser que ele fique seguro. Eric é muito pior do que
demonstra e eu sei que seria capaz de matá-lo sem pensar duas vezes.
Ficamos em um impasse silencioso. Seu peito sobe e desce em um ritmo
voraz enquanto ele leva as mãos para a parte de trás da cabeça e as deixa lá,
andando de um lado para o outro. Essa conversa vai ficar cada vez pior se
continuar se estendendo. Pegando minha bolsa do lavabo, torno a fitá-lo.
— O que eu preciso fazer para que você acredite que eu não te quero
mais? — proponho, desprovida de emoção. — Diga e eu farei.
Drogo morde o lábio inferior. Um sorriso facínora torce sua boca
quando os braços dele se abrem numa provocação e eu o ouço proferir sua
sentença.
— Parta meu coração.
Seco a lágrima solitária que desliza de um dos meus olhos sem que eu
perceba. Mantendo minha expressão séria ao sustentar seu olhar, sussurro:
— Como você quiser.

É a mais perfeita e infeliz oportunidade, penso ao ver as dezenas de


caras e garotas que transitam pelo gramado com copos vermelhos em suas
mãos.
Assim que eu saí do banheiro e segui para o estacionamento, acabei
esbarrando em Grayson, que me convidou para a festa de boas-vindas
preparada em comemoração à chegada da sua irmã e dos irmãos do DeLuca.
Pelo que entendi, eles haviam permanecido na Califórnia para esperar o
resultado das provas do penúltimo semestre. Ele disse que a festa seria em
uma casa que comprou na semana passada, porque não permitia esse tipo de
coisa em sua residência. Algo como sujeira em seu lar envenena sua alma. O
cara é um sádico de primeira, mas não gosta de desorganização.
Inacreditável.
Se fosse anteriormente, eu não teria pensado duas vezes em recusar.
Tudo mudou, entretanto. Fiz questão de comparecer, pois preciso cumprir
minha promessa. Ouvi as líderes de torcida no estacionamento comentarem
que todo o time de hóquei estaria presente. Eu não poderia deixar passar. Vou
consertar as coisas que farei de ruim quando finalmente estiver livre de Eric.
A única prece que rogo a Deus é que ele me conceda esse pedido.
Entro na casa e passo pelos diversos corpos suados e amontoados.
Novamente, esbarro em alguém ao passar pela cozinha, sendo impedida de
chegar à área do lounge por causa da colisão. Meu peito bate contra uma
barriga dura e eu cambaleio pelo impacto. Uma mão grande segura meu
braço esquerdo, impedindo-me de cair. O absinto em meu copo já era, no
entanto. O líquido voou para todos os lados, mas não fez vítimas. Tanto faz,
não é como se fizesse diferença. Afinal, eu não pretendia beber. Olhando para
cima, encontro um rosto conhecido. Leo. Sufoco a chama de felicidade que
tenta trilhar seu curso para fora.
Ele está bêbado. Eu nunca o vi ficar bêbado, não importando a
quantidade de álcool ingerida. Além do mais, ele parece com raiva e
miserável.
— Oh, Bela Desaparecida. — diz por cima da música, soando
chateado. Detesto ter que magoá-lo mais do que meu amigo já parece estar.
Mesmo querendo saber o que houve para deixá-lo assim, eu me
controlo e finjo não perceber nada de diferente em sua postura chateada.
— Eu não estava desaparecida. — rebato, saindo de seu aperto.
O cenho dele franze com a quebra de contato abrupta, e eu me sinto
péssima por ter que recorrer a esse tipo de saída nada amigável.
— Cinco dias é muita coisa. — morde de volta, e posso ver seu pomo
de Adão subindo e descendo com desagrado.
Quando não dou uma resposta, e não faço sequer menção de responder,
ele exibe uma careta e dá um gole na cerveja que segura, virando-se para sair
de perto. Todavia, para subitamente e aperta o meu ombro. Sua ação
inesperada me pega de surpresa, embora eu não demonstre.
— O que foi?
— Eu te amo.
Leo é o tipo de amigo que, mesmo quando só te deixa no supermercado
e dá as costas para seguir seu rumo, faz questão de proferir essas palavras.
Para ele, é natural. Mas eu não estava esperando ouvi-las. Não em um
momento como esse, onde pareço uma completa estranha.
— Por que está dizendo isso agora?
Seus ombros se movem devagar.
— Nunca se sabe quando será a última vez, Bee. — diz, e por alguma
razão que desconheço, meu estômago se remexe.
Meu melhor amigo se vai e eu não o paro, também não digo que o amo.
Mas eu o amo. Muito. E odeio o fato de ter que agir como uma escrota.
Desistindo de ir até o lounge, eu sigo as placas espalhadas pela
residência que indicam o banheiro. Duas garotas estão se beijando no
corredor quando eu passo, seguindo para a última porta. Por sorte, o lugar
está vazio. Não estou usando nenhuma maquiagem, então, não preciso me
privar de jogar um pouco de água no rosto. Estou me esforçando para agir
como uma vaca, mas receio ainda me domina. Eu só pisei aqui esta noite para
uma coisa. Ao menos ela, por mais insensível que seja, tenho que fazer
direito. Estapeio meu próprio rosto, cansado e empalidecido.
Observando a marca avermelhada que fica impressa na minha bochecha
em poucos segundos. É para o bem deles, decreto em pensamento.
— Seja uma cadela. — rosno para mim mesma ao encarar meu reflexo.
— Seja uma maldita cadela. — abro a porta e desço o lance de escadas.
As pessoas que ocupam a área externa estão completamente fora do
eixo, entorpecidas de maconha e bebidas alcoólicas. Com o canto do olho,
noto as figuras de Leo e Summer em uma das extremidades. Os dois parecem
discutir, ou simplesmente não estão entrando em consenso em seu diálogo.
Não há sinal nenhum de Drogo até agora. Também não vi minha irmã,
embora eu saiba que ela está aqui. Mudo o foco, vendo Grayson e DeLuca,
um de frente para o outro, na hidromassagem. Meu queixo toca o chão assim
que as costas largas do segundo entram em meu campo de visão. A figura do
lobo negro, idêntico aos dos outros, preenche cada centímetro de sua pele.
Mas não é esse o ponto que, embora devesse, me paralisa. E sim as
incontáveis cicatrizes irregulares camufladas pela tinta. São tantas, de tantos
tamanhos e larguras, que chega a ser aterrorizante pensar no que as causou.
Solto o ar com força, afastando o choque. Meus pés me movem na
direção deles. Eu tiro o vestido que estou usando e fico apenas com um
biquíni preto. Ao notarem minha chegada, ambos me olham sem erguer as
cabeças. Grayson, como sempre, sorri com malícia, descansando um braço na
borda. A hidromassagem é gigante e possui vários degraus para se sentar,
escolho um que fica abaixo do que Matteo ocupa.
— Andreotti. — cumprimenta. — Junte-se a nós. Estamos esperando os
nossos irmãos.
Matteo permanece em silêncio, observando-me passar uma perna,
depois a outra, e me sentar. A água aquecida contrasta com o frio da noite e
faz meu corpo tenso relaxar, pelo menos de forma parcial. A música não é tão
alta desse lado da casa e eu agradeço mentalmente por isso, pois posso falar
sem ter que gritar para ser ouvida. Porém, nada pode cessar meus
pensamentos conturbados. Estou focada em cada pessoa que entra e sai.
— Procurando por alguém? — sugere Grayson. Me pego admirando as
diversas tatuagens que adornam seu corpo robusto. Ambos os braços são
fechados, assim como seu peitoral, pescoço, e os dedos ornados por anéis. A
junção de todas faz parecer que ele está usando uma camisa. Seu rosto, por
outro lado, é totalmente limpo. As argolas em suas orelhas balançam quando
ele se inclina para pegar o copo de bebida do lado oposto.
— Não. — minto, mas eles parecem farejar a inverdade sem qualquer
esforço. — Confesso que fiquei surpresa de vê-lo aqui, Matteo.
Eu me mexo, desconfortável pela maneira que seus olhos, similares à
neblina, parecem ser capazes de enxergar a sujeira da minha alma.
— Gosto de hidromassagens. — diz calmamente, e dá um gole em seu
whisky. — Você ingeriu álcool?
— Não. — pigarreio, erguendo as sobrancelhas ao ser pega de surpresa
pelo questionamento. — Não. Por quê?
— As pessoas costumam fazer péssimas escolhas quando estão
alcoolizadas. — ele olha para Grayson, embora esteja falando comigo. —
Como a que você fez quando decidiu sentar-se conosco. — seu olhar
nebuloso retorna para o meu e sinto meus batimentos pararem por dois
segundos.
— Não pense muito, querida. — o loiro aconselha, inalando o ar com
força. — Eu adoro esse cheiro de tensão sexual. Me deixa excitado pra
caralho.
Passo a língua pelos lábios ao senti-los ressecarem e engulo com
dificuldade. Não bebi uma gota de álcool, mas é como se o tivesse feito. Meu
interior queima com uma sensação estranha, a qual se apodera do meu
núcleo, obrigando-me a pressionar uma coxa na outra. Eu estou atraída por
eles. Isto é problemático. Excitada por dois caras que mal conheço e que nem
me tocaram. Além do mais, ambos são ruins. Não é necessário conviver com
os dois para saber. Qualquer ser humano, no fundo, sabe quando se aproxima
de pessoas boas e pessoas que não são nada boas. Matteo e Grayson, sem
dúvidas, estão na última categoria. Principalmente o segundo. Sua presença,
em geral, é de dar arrepios.
— Você deveria ir embora. — DeLuca avisa. Contudo, seu corpo se
aproxima do meu, pairando atrás de mim. Eu estremeço quando o escuto
sussurrar em meu ouvido: — Sabe disso.
Sim. O que devo fazer é me levantar e sair daqui sem olhar para trás. Se
é assim, e eu sei, por que não o faço? Por que não vou?
A pergunta forma uma espiral em meu subconsciente, embora eu já
tenha a resposta. O problema é que, quando se flerta com vilões, recuar não é
uma opção. As razões lúcidas para escolher as saídas certas se tornam
insignificantes. Nada parece mais deliciosamente atrativo do que o errado. O
aroma que seu corpo seminu exala, uma mistura entre âmbar e sândalo,
nublam meu raciocínio quando eu o inspiro, fechando os olhos por um breve
momento. Ao abri-los, Grayson está na minha frente. Matteo se posiciona
atrás de mim. Seus longos dedos afastam meu cabelo, dando-lhe acesso ao
meu ombro. Olho por cima dele, encontrando seus orbes metálicos. Tudo
nele é tão sofisticado e intenso que se torna difícil respirar.
— Com medo?
— Sim. — ofego sendo honesta. Não estou com medo de que eles
façam algo ruim comigo, eu tenho medo dos dois. Qualquer pessoa com o
mínimo de juízo deveria ter. Ambos me apavoram, mas me fascinam na
mesma medida. Eles me intrigam, e atiçam minha curiosidade. Eu arfo ao ter
o loiro chupando o lóbulo da minha orelha, instigando-me ao declínio. Num
fio de entonação, confesso: — Você... me intimida.
Sua mão envolve meu pescoço.
— Eu intimido qualquer um.
Minhas pernas amolecem ao som rouco de sua réplica dita de modo
sensual. Um gemido involuntário escapa do fundo da minha garganta quando
a ponta quente e úmida da língua de Grayson acerta a curva livre do meu
pescoço, enviando uma onda de arrepios por todo meu corpo. Estou entrando
em combustão. Abrindo as pernas, movo-me para cima. A provocação faz
uma bagunça danosa em minha cabeça.
— Você não quer ir tão longe. — seu timbre se agrava, acertando meu
núcleo.
— Como pode falar isso com tanta certeza? — eu me contorço sob seu
aperto.
— Porque não precisamos estar dentro de você para saber que você não
aguentaria.
Minha pele queima com suas palavras. Por um momento, me pego
imaginando, fantasiando, como seria tê-los ao mesmo tempo. É tão errado.
As ideias deturpadas que envolvem minha mente são suficientes para
condenar minha alma. Sujo demais, torcido demais. Proibido demais.
O barulho de celular tocando ressoa de onde estamos. Matteo afasta a
mão do meu pescoço. Não tenho tempo para pensar sobre o vazio que ele
deixa ao pedir com licença e sair, porque Grayson não tarda a preenchê-lo.
Me concentro nele e em sua presença tempestuosa.
— Oh, — o brilho vil em seus olhos, assim que eles se movem para um
ponto além de mim, é um indicativo de problemas. — nosso capitão chegou.
— notifica, e eu paraliso. — Não é necessário que as palavras se formem
para que eu saiba o que você deseja. Sou bom em ler nas entrelinhas. — seus
lábios roçam nos meus. — Você pode me usar para machucá-lo. Porque
também pretendo usar você para ferir alguém.
Não penso em recuar. É tarde demais para voltar atrás. E ainda que não
fosse, eu não voltaria.
— Faça.
Grayson sorri, serpenteando minha nuca com um aperto duro e
implacável.
— Com muito prazer.
Então, sua língua invade minha boca.
DIABÓLICOS — PARTE III

“Nós não lidamos muito bem com pessoas de fora


Eles dizem que os recém-chegados têm um certo cheiro
Você tem problemas de confiança, sem mencionar que
Eles dizem que conseguem farejar suas intenções”
— Heathens | Twenty One Pilots

SE ALGUÉM, NA SEMANA PASSADA, me dissesse que eu


iria beijar Grayson Cagliari hoje, eu falaria para essa pessoa procurar um

psiquiatra. E urgente. A ideia não seria apenas ridícula, mas um absurdo

colossal. Quero dizer, eu não somente o detestava com todas as forças, como

também não me imaginava chegando a menos de dez metros de distância


dele. Pelo amor de Deus, por sua causa eu fiquei sem falar com minha irmã

durante dias.
E, neste instante, estou permitindo que ele me beije.
Muito pior, estou gostando de ser beijada por ele.
Bom Senhor, estou correspondendo ao beijo dele.
Nada no mundo poderia ter me preparado para isso. Seu gosto é
viciante, menta e vodca, e o modo como ele chupa minha língua é
enlouquecedor. Sua mão continua na parte de trás do meu pescoço,
mantendo-me sob seu domínio. Nossas bocas estão pressionadas uma na
outra com ganância. É mais do que desejo, é necessidade. Porque, no fundo,
não somos realmente nós que estamos beijando um ao outro.
Sua língua é possessiva sobre a minha e Grayson me toma com tanta
brutalidade que chega a ser doloroso. Eu não me importo. É uma punição
bem-vinda. Bebo cada gota de sua raiva, preparando-me para enterrar os
dedos em seu cabelo.
Entretanto, a oportunidade é roubada de mim. Porque, num minuto,
nossos corpos estão colados, e no outro tudo o que eu toco é o nada.
Meus olhos se abrem.
E o que eles captam é a figura enfurecida de Drogo puxando-o para
fora da hidromassagem e acertando um soco em seu rosto.
Alguns dos convidados que estão ao redor da piscina saem correndo
para ver a confusão. Meus pés molhados derrapam no piso e eu agarro a
borda para não cair quando saio, endireitando o biquíni. Corro na direção
deles, afastando as pessoas que começam a formar um círculo.
— Larga ele! — grito desesperada ao ver o corte nos lábios do
Grayson. Drogo está fora de si, e nada de bom pode vir disso. Cacete, o que
eu fiz?
Os dentes do Cagliari estão cobertos de sangue quando ele ri, virando o
rosto e cuspindo. O deboche explícito serve somente para piorar a situação
caótica. Ao não ver DeLuca ou Leo por perto, disparo até a cozinha,
empurrando todos os corpos que vejo pela frente em busca de algum jogador
do time de hóquei. Adrenalina corre em minhas veias, fazendo o sangue
bombear nos meus ouvidos. A música, agora alta, me deixa ainda mais aflita.
Tem alguém com um microfone abafado e barulhento na pista de dança
improvisada que fica no meio da sala. É tudo uma bagunça.
Furiosa, subo na pista e roubo o microfone do garoto ruivo e magro que
canta alguma música que desconheço, bêbado até o último fio de cabelo.
— Onde está o time de hóquei? — berro, ignorando os olhares
arregalados em surpresa que se viram para me encarar.
Cerca de cinco caras com quase dois metros de altura, próximos à
entrada, erguem as mãos. Dois deles estão beijando garotas, e o restante está
bebendo, mas todos param o que fazem e prestam atenção em mim. Eu
reconheço um, Bjorn Kovac, é por ele que eu grito para vir comigo.
Eu poderia recorrer a outras pessoas, mas ninguém está interessado em
separar dois homens gigantes de uma briga. Eles querem assistir.
Volto para a área do lounge com um grupo de brutamontes fervendo
em meus calcanhares, e sequer preciso apontar para algum lugar, pois todos
voam para separar a briga ao ver a multidão. Estou com as mãos unidas na
frente do rosto, rezando para que ninguém tenha morrido. Com base nos
berros e grunhidos primitivos que começam a ecoar nas vozes de ambos,
percebo que os dois estão vivos, apesar dos ferimentos que ostentam. Meu
coração encolhe na caixa torácica. Eu sabia que ele ficaria com raiva, no
entanto, jamais nesse nível de descontrole. Me sinto enjoada.
— Me soltem, porra! — Drogo se debate ao ser agarrado por dois dos
jogadores e ter o corpo arrastado para longe. — Não acabou, Cagliari!
Grayson abre os braços, ainda de costas para onde estou, vestígios de
grama e sangue por toda sua estrutura tatuada.
— Eu não vou esquecer, companheiro, — ele cospe, indignado. — que
você me pegou pelo pescoço como se eu fosse a porra de uma galinha!
Culpa me corrói, fazendo-me sentir péssima. Sei que é exatamente o
que eu queria, seu ódio. Mas era somente para uma pessoa: eu. Respingou
mais do que imaginei, e isso me deixa péssima.
A grama úmida farfalha sob meus pés descalços quando encurto a
distância entre mim e Grayson, posicionando-me diante dele com traços de
culpa em meu rosto. Há sangue escorrendo de sua narina esquerda e um corte
profundo estampa seu lábio inferior. Sem contar nos do supercílio e
bochechas. Em breve, tenho certeza de que haverá uma coloração bizarra
tomando os arredores de seu olho esquerdo. Apesar dos ferimentos, ele ri.
— Preocupada? — zomba, afastando os fios loiros da testa suada e
cuspindo a mistura de sangue e saliva. — Porque, se estiver, é bem inútil.
— Eu sinto muito. — me desculpo, um gosto amargo dançando em
minha garganta seca. — Não imaginei que tomaria essa proporção.
— Sente muito pela briga? — sua atenção cai para os meus lábios
inchados e ele ergue a sobrancelha que está ferida. — Ou pelo beijo?
Meus ombros caem em desistência. Grayson é tão complexo que se
torna impossível manter um diálogo por muito tempo.
— Ambos. — suspiro. — Se um não ocorresse, o outro também não
aconteceria. Sendo assim, você não estaria neste estado ferrado.
Seu sorriso se alarga, tornando-se sinistro. Por instinto e
autopreservação, recuo um passo. Seu corpo se projeta sobre o meu.
— Este é o ponto. Eu estou sempre ferrado. — enfatiza. — Eu gosto de
estar ferrado. A dor, para mim, é uma fonte torcida de prazer. Então, querida,
não sinta. Desculpas são supérfluas. E as pessoas que costumam pedi-las, são
as que mais tornam a repetir o erro que as levou a se desculparem. — ele
segura uma mecha úmida do meu cabelo e cheira, depois solta. — Portanto,
evite. É irritante e desnecessário. Agora, com sua licença, tenho que tomar
um banho. Se eu não tirar essa sujeira do corpo, vou acabar matando alguém.
— assobia. — E nós dois sabemos que eu não estou brincando.
Eu me viro com o intuito de entrar na casa para procurar Drogo e
verificar seu estado, somente para ter certeza de que o estrago não foi tão
gigante quanto minha visão fez parecer à medida que o puxaram para longe.
No entanto, paro ao ver Blake com o olhar fixo onde eu estou. O semblante
de decepção que cobre suas feições é tão evidente que se torna palpável.
Meus lábios se separam para chamá-la, abrindo-se lentamente por estarem
ressecados. Eu não tenho chance de articular nada. O chão parece desaparecer
debaixo dos meus pés ao passo que corro atrás dela quando raiva faz seus
ombros ondularem e minha irmã arremessa o copo que segura no deck de
madeira, desaparecendo na entrada. A sala está menos cheia, por isso se torna
mais fácil passar pelos convidados. Ignoro o fato de que ainda estou só de
biquíni e cruzo a porta, saindo.
— Blake, espera! — estou sem fôlego ao chamar seu nome, diminuindo
o ritmo quando chego na calçada. Ela já está perto da fileira de carros
estacionados no meio-fio, seguindo para sua BMW. Meus olhos esquentam
com lágrimas, o frio da noite agride meu corpo, mas não me importo com
outra coisa que não seja fazê-la me escutar. O problema é que eu não faço
ideia do que dizer para consertar tudo. — Por favor. Por favor, Blake.
Eu paro a cerca de trinta centímetros de sua figura, pulando ao escutar
o baque seco de sua mão acertando a janela. Assim como eu, ela também está
com lágrimas nos olhos. A diferença é que o meu choro é de culpa, e o dela é
de raiva. Mordo os lábios, prendendo ambos entre os dentes.
— Por favor? — explode. — Por favor? Você, realmente, está apelando
para mim, porra? — eu não respondo, qualquer frase que eu pudesse vir a
formular para usar neste momento, seria ridícula e pioraria a situação. —
Você fez uma sacanagem comigo, Brooke, e eu te entendi. Compreendi seu
lado e seu pânico. Eu quase fui atropelada e você simplesmente fugiu e
desapareceu por dias. Sabe como eu me senti? Um lixo! Engoli a dor para ser
uma pessoa altruísta, uma boa irmã. Pensei “Eu estou apavorada, mas ela está
mais. Tudo bem, eu consigo me reerguer sozinha.”, porque você viu de perto
a Avalon em um estado horrível, e eu tentei facilitar tudo. Suportei estar, todo
esse tempo, sendo feita de idiota, achando que o Drogo era nosso meio-
irmão, quando você sabia que não era e não me falou merda nenhuma! —
acusa. — O que você fez antes, foi egoísta. Mas essa noite? Você foi uma
vadia. Pelo visto, a existência do Cagliari não a enoja tanto quanto pensei. Do
contrário, você não estaria quase trepando com ele na frente de todo mundo
como uma cadela no cio. Hoje, Brooke, você morreu para mim. — cospe,
abrindo a porta da BMW. — Eu te odeio.
Os soluços que transmito são irreconhecíveis, capazes de estrepitar por
todo o quarteirão. Meu choro é tão alto e violento que minha barriga dói com
o esforço que imponho ao me abraçar para abafar o barulho. Toda minha
visão está borrada e eu não consigo enxergar um palmo sequer com clareza.
Pressionar as mãos sobre a boca para diminuir os ruídos ensurdecedores não
serve de nada. Nenhum gesto pode aplacar meu estado atual. As coisas se
tornam um borrão escuro e meus membros parecem se converter em chumbo.
Contudo, mantenho-me de pé. Estou sufocando, sendo engolida viva pelas
mentiras que criei. Eu luto para lembrar que é o melhor a ser feito, e que tem
que ser desse modo, por mais monstruoso que possa parecer, mas é difícil
caminhar sobre um rio de lava com pés descalços. Grito para mim mesma,
em meu subconsciente, que tudo o que eu fiz terá sido em vão se eu desistir.
Não posso pensar em jogar tudo para o alto, mesmo que as palavras que eu
ouça me destruam.
Não sei ao certo quanto tempo se passou quando eu finalmente engulo
meu sofrimento e decido que está na hora de desligar de vez as emoções.
Com dedos rígidos, seco o rastro gelado e pegajoso de lágrimas que mancha
meu rosto. Embora meus olhos estejam inchados, sou capaz de enxergar a
calçada. Eu retorno para dentro da residência e sigo até o deck lotado, onde
deixei minhas roupas. Na volta, sou parada por Summer. A única pessoa que
estimo e ainda não magoei. Bem, é uma questão de tempo. E um tempo que
está muito, muito próximo. Ela ergue um braço com a intenção de me tocar.
A comoção repentina no interior da casa indica que as pessoas que faltavam
chegar, chegaram. Não ansiando criar mais conflitos e inimigos futuros,
porque todos eles são unidos demais para aceitar que magoem qualquer um
do bando, decido que sairei pelos fundos.
— Você quer conversar? — pergunta, enfiando o polegar livre no bolso
frontal do short branco que usa.
— Por que eu iria querer?
Minha pergunta sugerida numa entonação cortante de indiferença a faz
piscar em surpresa, voltando a abaixar o braço ao desistir de me alcançar.
— Está assim por causa do Evento das Famílias Principais?
Foram tantas coisas acontecendo que acabei esquecendo da festa que
ocorre todo ano, no dia do meu aniversário. Um evento tão falso quanto as
pessoas que o frequentam. O intuito é agradecer às doações da ONG fundada
por eles com Ópera, discursos e champanhes. Como se eles se importassem
com pessoas carentes. A razão pela qual permaneço marcando presença é
somente pela minha mãe. Ela foi uma das fundadoras e sempre fazia questão
de nos levar. Não apenas para que víssemos, mas porque os herdeiros
precisam dar um pequeno discurso anual.
Ótimo. Estar diante de dezenas de ingleses falsos é mesmo o que eu
mais preciso para completar o Pacote Desgraça em minha vida miserável.
— Eu vejo que foram convidados. — sugiro, sem nenhuma
empolgação.
— Sim. Os nossos pais contribuíram esse ano.
— Que bom. — digo, e ela suspira, inconformada.
— O que aconteceu?— queixa-se. — Fizemos algo que a deixou
chateada? Porque, as coisas que você fez ultimamente, Brooke... Esta não é
você.
— As coisas que ando fazendo ultimamente, não dizem respeito a
ninguém. E eu agradeceria se não voltasse a se meter onde não foi chamada,
Summer. — interrompo, dando as costas. Antes de ir embora, olho-a por
cima do ombro. — Ah, e esta sou eu, sim. Em uma versão melhorada.

O teatro lírico de Kensington é uma mistura entre a Fontana di Trevi e


o Coliseu. A estrutura possui um aspecto greco-romano grandioso que se
estende por vários quarteirões. Acredito que boa parte do dinheiro da ONG,
depois que minha mãe morreu, foi usado para engrandecer o local, tendo em
conta que este foi fundado pelas Famílias Principais. Para todos os lugares
que eu olho há luxo e mais luxo. Como falei antes, nenhum deles se importa
com as pessoas carentes, tudo o que querem é uma fachada na qual possam se
apoiar para fingir serem o que não são. E eu posso dizer que esta é uma bela
fachada. A parte interna é repleta de poltronas vermelhas e toda a arquitetura
carrega tons dourados, inclusive o palco chamativo.
Pego uma das taças que os diversos garçons carregam em bandejas
douradas ao transitarem de um lado para o outro e provo o champanhe nela.
Vinte e três de agosto, meu aniversário.
Hoje, eu irei matar Eric Carson.
Tenho um plano. Um que não ousarei adiar. Eu o criei assim que deixei
a festa na noite anterior. O evento não poderia acontecer em uma hora
melhor, pois não apenas a elite de Londres estará marcando presença aqui,
como todos os meus amigos. Desse modo, não haverá risco de Eric criar uma
armadilha para qualquer um deles. Apesar de ser um maníaco irracional boa
parte do tempo, ele é inteligente. Não vai atacar na frente de todos, nem
mesmo se estiver encurralado. No final das contas, é medroso demais. Além
disso, é uma chance de ouro, do tipo uma em um milhão, e eu a usarei. Nem
que seja a última coisa que eu faça.
E aquele desgraçado nem imagina.
Pegando meu binóculo na entrada da cabine, eu entro. O estofado
forrado por veludo na cor carmesim me faz soltar um gemido de alívio
quando me sento, apreciando o quão confortável é. Há uma poltrona similar
ao lado, a qual minha irmã costumava ocupar, porém, agora se encontra
vazia. É uma regra imutável que todos os anos um concerto anteceda os
discursos. O desse ano se trata de L’amour est um oiseau rebelle, um clássico
do Georges Bizet. A soprano, uma mulher branca e robusta de cabelos pretos,
se posiciona na frente da orquestra, sendo aplaudida. Através do meu
binóculo, olho para baixo. Mesmo longe, consigo enxergar a silhueta elegante
de Avalon, também capturo a de Blake na outra extremidade. Meu coração
erra uma batida, mas luto para não seguir a linha da emoção. Continuo
olhando para todos os lados, erguendo os olhos ao não encontrar mais
ninguém que conheço. À minha frente, entretanto, do lado oposto, localizo
Summer e Leo em uma cabine, Leona em outra e Grayson e Matteo dividindo
uma terceira. Três pessoas que me são familiares ocupam a quarta delas. Um
rapaz alto de pele amarela, uma garota negra e uma loira que me lembra
alguém. Inclino o rosto um pouco mais, percebendo que os dois primeiros são
os que estavam no porta-retrato da casa dos DeLuca. Decerto são seus
irmãos. A outra, todavia, não reconheço. Estou quase desistindo quando a
vejo sorrir, exibindo covinhas profundas, idênticas as de Cagliari. Sua irmã,
Gianna, constato, parando de olhar. A iluminação diminui e a sonata tem
início.
Hora do show.

L’amour est un oiseau rebelle


(O amor é um pássaro rebelde)
Que nul ne peut apprivoiser
(Que ninguém pode domar)
Et c’est bien en vain qu’on l’appelle
(E é simplesmente em vão chamá-lo)
S’il lui convient de refuser
(Se é conveniente para ele recusar)
Retorno minha atenção para os convidados da plateia próxima ao palco
e procuro por Eric. Estou percorrendo o olhar pela pequena multidão quando,
de repente, uma voz grave e profunda se faz presente atrás de mim. Meu
antebraço permanece erguido, segurando o objeto, mas eu paro de respirar.
Drogo se senta. De soslaio, e mesmo na escuridão parcial em que
estamos, capto o movimento que suas mãos fazem ao ajustar o terno.
— O que está fazendo aqui?
— O mesmo que você.
— Na minha cabine. — reformulo, por entre os dentes, embora saiba
que não há necessidade de o fazer.
— Fui ao banheiro e acabei esquecendo o caminho da que eu estava. —
mente despreocupado. — Então, acabo de decidir que ficarei nessa.
Aperto o binóculo com mais afinco, ainda sem fazer menção de me
virar para olhá-lo. Porque vai ser um grande erro olhar para ele, eu sinto com
todas as minhas forças. A julgar pela fragrância de seu perfume caro, eu
posso dizer com convicção que Drogo está, no mínimo, arrebatador.
— Não, não decidiu. — delibero. — Saia.
Ele solta uma risadinha desprovida de humor. Sou capaz de tocar na
raiva que ondula de sua presença, mesmo que ele insista em mantê-la
adormecida. Não nos falamos, ou nos vimos, depois da noite passada. É
estranho iniciar um diálogo onde sua postura seja de indiferença. Nessas
situações, Drogo costuma rosnar, gritar, agir como um touro enfurecido.
Manter-se calmo, para alguém com sua personalidade, não é um bom sinal.
— Você já foi mais educada. — alfineta, impassível.
Estou a um passo de jogar o maldito binóculo nele.
— Por favor, — adoto uma entonação falsa de amabilidade, contando
até dez mentalmente para não cair em suas provocações. — saia.
A última palavra sai com uma certa dureza.
— Terei que recusar. Não vou a lugar algum, meu amor. Portanto,
indico que volte a apreciar a apresentação. É a sua melhor escolha.

L’amour est enfant de Bohême


(O amor é filho da boêmia)
Il n’a jamais, jamais connu de loi
(Ele nunca, nunca conheceu lei alguma)
Si tu ne m’aimes pas, je t’aime
(Se você não me ama, eu te amo)
Si je t’aime, prends garde à toi!
(Se eu te amo, proteja-se!)

Curtas batidas soam na porta, e estou ciente de que se trata do garçom.


Eles passam em cada cabine duas vezes ao total, servindo mais champanhe e
doses de Bourbon. Quando o rapaz se inclina para nos servir, eu recuso,
agradecendo. Drogo, pelo que consigo observar, não segue o mesmo gesto. A
porta se fecha e nós voltamos a ficar sozinhos. A canção e todo o sonido
árduo que a orquestra faz, não bastam para me fazer focar somente neles. Eu
me movo no assento, inquieta. Contudo, tomo cuidado para não parecer aflita
em excesso e cair no seu radar. Espero algum novo comentário de sua parte,
todavia, nada vem. Pergunto-me se ele resolveu prestar atenção no concerto.
A dúvida se erradica em um nanossegundo. Sem aviso prévio, ele puxa as
cordas que mantém as cortinas presas. O tecido denso cai como se fosse uma
pena. E nada além da luz fraca de uma pequena lamparina pendurada na
parede, nos faz submergir de vez à penumbra. Eu endureço na poltrona,
ultrajada, mas meu choque não perdura. Um fogo de ira toma meu corpo,
incitando-me a reagir. Largo o binóculo e me viro com o intuito de enfrentá-
lo, furiosa. Conquanto, paro de súbito assim que sua estrutura se projeta sobre
mim com uma velocidade chocante, encurralando-me ao pressionar ambas as
mãos nos apoios de braços. A ação me desestabiliza e eu esqueço o que
pretendia executar.
Não é justo que seu perfume seja tão embriagante desse jeito, muito
menos que o corpo dele emita um calor natural que me deixa enfraquecida.
— Por que fez aquilo? — esbraveja. — Por quê?
Eu sei exatamente do que ele está falando.
— Você disse que eu deveria partir seu coração.
Eu engulo, respirando de modo irregular. Nossos hálitos entram em
sincronia, abafados, e o cheiro suave de whisky misturado com um aroma
mentolado, me faz lamber a boca por puro instinto. Drogo está perto demais,
mas esse não é o único problema. O maior de todos eles, é o fato de que estou
morrendo internamente para ser beijada. Sinto tanta falta dos seus lábios que,
neste segundo, tudo o que mais anseio é prová-los mais uma vez.
— Eu te odiei. — sibila. — Fiquei irritado pra caralho. Mas nada
superou a fúria que eu senti ao ver aquele filho da puta te tocando. Porra.
Beijando você como se fosse dele. Você é minha. Não adianta fingir que tudo
acabou e que não me deseja, porque você me quer. E sabe disso.
— Eu não menti. — tento endurecer meu tom, mas é um ato vão.
— Mentiu. — sussurra, e sua voz está assustadoramente suave e
atormentada na mesma intensidade. — Do mesmo modo que eu também
menti.
Franzo o cenho ao ouvi-lo, o vinco entre minhas sobrancelhas
oscilando. As chamas sutis da lamparina dançam e refletem em sua face
bonita.
— O quê?
— Quando eu te disse para partir o meu coração, eu menti. — ele
descansa a testa contra a minha, fechando as pálpebras como se estivesse
sendo torturado. Corro os olhos pelos hematomas que marcam seu rosto. O
corte no lábio superior e o círculo em cores verdes e arroxeadas que marcam
sua mandíbula. — Você nunca poderia parti-lo, Brooke. Porque eu não tenho
um. O meu coração pertence a você. Ele é seu. Assim como eu sou.
A confissão me faz estremecer, acelerando meus batimentos tão
visceralmente que os ruídos ressoam em meus ouvidos, me jogando para fora
do eixo. Cada átomo em meu corpo vibra em resposta às suas palavras
murmuradas. O corpete que uso debaixo do vestido preto e luxuoso parece
encolher à medida que meu coração se expande. Sei que devo resistir, é o
mais prudente a se fazer. Mas eu não posso. Drogo está certo.
Sabendo que a noite de hoje será decisiva, e que posso nunca mais
voltar a vê-lo, eu paro de lutar contra mim mesma e as barreiras que coloquei
ao redor das minhas emoções para mantê-las escondidas. A razão se torna
fútil demais para que eu me agarre a ela. Entretanto, não a erradico.
— Uma última vez. — proponho, sem dar brechas para outra opção, e
roço nossos lábios, encarando-o. — É tudo o que eu sou capaz de dar.
Há uma guerra sendo travada em seus orbes. Espero uma desistência,
que o homem diante de mim insista por mais ou desista permanentemente.
Drogo não escolhe nenhuma das duas alternativas.
— Não sei porque você está fazendo isso. — declara com um timbre
feroz, embora baixo, à medida que sobe meu vestido de gala com uma calma
torturante. — Mas aceito sua proposta. Eu prefiro ter você mais uma vez por
uma única noite, do que não te ter nunca mais.
Meus dedos envolvem o apoio de braço da poltrona com um aperto de
morte ao arquear a coluna, entreabrindo os lábios assim que seu indicador
coloca minha calcinha para o lado e Drogo arrasta o polegar áspero pela
entrada lisa e escorregadia. Não é preciso nenhuma lubrificação, estou
encharcada o suficiente para deslizar em torno de seu pau grosso sem
qualquer dificuldade.
Entretanto, pela maneira como dois de seus longos dedos mergulham
em minha boceta ansiosa, não acho que ele se importe com essa justificativa.
Meus ouvidos zumbem com o prazer que se espalha por minha corrente
sanguínea, fazendo meu sangue correr mais depressa e aguçando meus
sentidos. Eu abro a boca, mas levo uma mão até ela para abafar um gemido
alto que insiste em fazer sua rota para fora. A língua quente de Drogo acerta
meu ponto sensível como se estivesse me punindo. Separo as coxas, dando-
lhe acesso completo. Ouço o pequeno rosnado gutural que rasga sua garganta
e soluço ao ter a bunda erguida e minhas coxas posicionadas sobre seus
ombros rijos. Quando seus lábios esfregam contra minha parte mais sensível,
preciso morder o interior da bochecha para não gritar. Estou sendo fodida
pelos seus dedos e boca ao mesmo tempo, minha carne sendo abocanhada
com uma fome primitiva. Contorcendo-me, arrasto as unhas por seus fios
curtos, trazendo-o para perto ao sentir a necessidade de tocá-lo. Meus olhos
reviram quando um terceiro dedo é empurrado em minha boceta e ele usa o
polegar para completar a doce agonia.
Tornando-se impossível me manter racional ao ser submetida à uma
tortura tão enlouquecedora, eu perco o controle e me derramo em seu rosto.
Meu orgasmo ainda me toma, fazendo minha estrutura colapsar, quando sou
erguida em seus braços e nossas posições se invertem.
Assim que desabo em seu colo, uma perna de cada lado, sua mão se
move entre nossos corpos, traçando a rota para baixo. Eu tremo ao sustentar
meu peso em meus próprios joelhos, e tremo mais ainda pelo fato de que sua
outra mão mantém minha calcinha presa. Eu sei o que acontecerá agora. A
ponta larga de seu pau toca minha boceta nua e eu estremeço, trincando os
dentes. Antes que ele possa se prontificar a pegar um preservativo de seu
bolso, eu o paro. Uso um implante contraceptivo desde os treze anos, quando
tive minha primeira menstruação. Mas não é apenas por este motivo que
tomo a decisão, e sim por ansiar ter minha carne contra a sua. Além do mais,
essa realmente pode ser a última vez.
— Não tire. — eu digo, segurando sua espessura grossa em torno dos
meus dedos. Engulo com dificuldade ao deslizar sobre ela, sabendo que a
posição, no começo, não será confortável. Não me concentro na dor, porém.
Somente em seu rosto e a maneira como seu olhar sustenta o meu.
Agarro seu ombro com a mão livre, fincando as unhas. Depois de
longos dois minutos, finalmente o tenho por inteiro dentro de mim. Levo
alguns segundos para me adaptar ao tamanho. Ele é muito grande. Drogo
segura meus quadris, apertando-os com possessividade, rosnando:
— Eu não vou.
O ritmo iniciado não é doce ou suave. Pelo contrário, é cruel, voraz, e
parece multiplicar todas as sensações que percorrem meu corpo, aflorando o
prazer que queima em meu núcleo. Nossos lábios se fundem num beijo de
luxúria necessitado. Ele castiga minha boca enquanto faz o mesmo com a
minha boceta, que aperta ao redor de seu comprimento e o faz gemer. Minha
mente se perde na sensação de ser preenchida por ele. Suas estocadas
aumentam quando rebolo em seu pau. Sem fôlego e movida pelo desejo de
alcançar um novo orgasmo, eu interrompo o beijo. A intensidade que cresce
entre nós é, ao mesmo tempo, arrebatadora e insuportável. Drogo me fode
implacavelmente, acertando partes dentro de mim que eu sequer sabia que
existiam. É brutal e violento, mas é tudo o que preciso. Gemo seu nome da
forma mais tangível e suave que consigo, colocando todo o sentimento que
nutro por ele ao chocar nossos lábios pela segunda vez. Sua mão agarra
minha nuca e ele chupa minha língua com brutalidade.
É o bastante para me fazer chegar ao clímax. Seu pau me estica ao
limite e ele derrama todo seu esperma em meu interior ao gozarmos juntos.
Deveria ser um momento de felicidade genuína. Todavia, meu coração
se parte quando, após alguns minutos sem nos mover, apenas respirando com
uma força considerável, eu o tenho saindo do meu interior. A sensação
repentina e profunda de vazio, à medida que ele me levanta e nossos corpos
suados se distanciam, faz meus olhos arderem. Eu pisco para aplacar a
vontade de me jogar contra ele e chorar. Seu gozo se derrama por entre
minhas coxas, mas Drogo é rápido ao puxar o lenço branco que descansa no
bolso de seu terno e usar para me limpar, ajustando meu vestido em seguida e
descartando o tecido úmido na lixeira ao lado. Assim que estou limpa, o
máximo possível, pelo menos, eu o observo pegar algo do interior de seu
blazer. Uma caixinha aveludada. Ao abri-la, não consigo impedir que uma
lágrima role. É uma pulseira dourada, cravejada por pequenos cristais, e
idêntica à que eu ganhei da minha mãe na infância e perdi. É extremamente
cara e somente duas, em todo o mundo, foram feitas. Eu estava tão triste pela
morte dela que, mesmo querendo, não comprei a outra. Estendo o pulso e ele
a coloca em meu braço cuidadosamente, inclinando-se para beijar meu rosto
ao terminar. A Ópera tem seu fim em sincronia com seu gesto, e quando a
salva de palmas ressoa por todo o local, eu o escuto murmurar:
— Feliz aniversário.
Eu continuo na cabine mesmo quando Drogo dá as costas e se retira.
Contudo, sequer tenho tempo de assimilar os últimos acontecimentos, pois
uma comoção intempestiva irrompe da plateia. Faço uma careta de desagrado
ao ouvir o microfone emitir um barulho fino e esganiçado que sensibiliza
meus tímpanos. Pequenas batidas ressoam, me obrigando a encolher os olhos
e abrir as cortinas para entender o que está havendo.
Espalmo as mãos no pequeno parapeito. Procurando por entre as
diversas pessoas. Localizo, no palco, ninguém menos que minha irmã.
Seu vestido é parecido com o meu. Uma fenda reveladora, assim como
o decote, alças finas e um tecido brilhante adornado por glitter. A diferença
está nas cores, o meu é preto e o dela vermelho. Quando as palavras
começam a deixar sua boca num tom venenoso e o olhar dela voa para cima,
encontrando o meu sem muito esforço, um sorrisinho toma seus lábios
cheios. Embora eu esteja distante, sou capaz de enxergar toda a mágoa e raiva
que embebedam seu rosto maquiado. Ela segura o microfone com mais
afinco, mas o deixa preso ao suporte, mantendo-se parada ao erguer a taça em
um brinde para comemorar a noite. A besteira de elogiar e parabenizar pode
enganar a todos, contudo, o mesmo resultado não respinga em mim. Blake
está bêbada, eu percebo.
E nada de bom pode vir disso.
Preparando-me para sair e tirá-la de lá, ainda que à força, afasto as
palmas do parapeito. Todavia, sou parada de seguir adiante pela sua voz.
— Por favor, irmãzinha. — debocha ao capturar minha intenção. —
Permaneça onde está. Não seja mal-educada. — os convidados buscam
minha presença ao olhar para cima. Uns acham, outros não. Meu estômago se
agita. — Perdoem-nos pela indelicadeza. Bem, onde eu estava? — ela finge
pensar. — Ah! Depois de saudá-los e elogiar a magnitude do evento desta
noite, como é em todos os anos, eu gostaria de me desculpar por estar aqui,
quando eu sei que ainda não é a hora do discurso dos herdeiros. Porém, eu
precisava anteceder algumas palavras à determinadas pessoas. Amigos,
colegas, — seus olhos tornam a me fitar. — parentes. É sempre uma honra
fazer parte desse círculo poderoso. Afinal, somos pessoas ricas e influentes, e
quanto mais pessoas ricas e influentes conhecemos, melhor, não é? —
risadinhas estrepitam pela plateia ao fim de sua pergunta retórica e Blake dá
um gole em sua taça. — Claro, claro. Todo porco ama mesmo uma fartura.
— as risadas morrem e um coro de indignação ressoa no ar, meu queixo toca
o chão do teatro com sua fala. — Mas a fartura de vocês é diferente, ela reluz.
Brilha. Porque vocês são porcos que adoram ouro e diamante, tudo o que
indica luxo. Tudo o que indica uma porra de mentira. — a algazarra se
amplia. — Não! Não ousem levantar suas bundas imundas desses assentos.
Eu ainda não acabei. — decreta ríspida e aponta para alguém da primeira fila
— Vamos começar por você, Avalon. Uma atriz do caralho. Sua boa forma
não se dá as dietas e excelente alimentação, huh? Sua bulimia tem um
dedinho aí. Ou devo dizer na sua garganta? — a crueldade em seu tom é
desprezível e me deixa horrorizada, em choque. — Leo Ballister, meu velho
amigo colorido, você é realmente bom de cama, e isso eu posso comprovar.
Contudo, gostaria que uma segunda pessoa me ajudasse na afirmação. Talvez
a mãe da sua melhor amiga? Sierra Gautier, pelo que eu soube, é mais do que
capaz de afirmar o que eu digo. — oh, meu Deus. — Por falar na nossa
melhor corredora atual. Querida, como vai o treinador?
— Blake, já chega! — grito, sendo ignorada.
— E, apenas para não perder o ritmo. Por citá-lo, — continua. — eu
gostaria de declarar que alguns de seus jogadores têm manias bem devassas.
Por exemplo, Grayson Cagliari e Matteo DeLuca, que possuem uma amizade
deturpada. Nada os excita mais do que foder uma mulher ao mesmo tempo.
Minhas unhas se fincam no parapeito com tanta avidez que dói. É como
ter um pesadelo, despertar e perceber que tudo se tornou real.
Eu sempre soube, desde pequena, que ela desligava o botão de lucidez
ao estar tomada pelo ódio. Mas, o que está ocorrendo neste momento, passou
de todo e qualquer limite. É inaceitável, e sei que as consequências para seus
atos serão terríveis. Leo é o primeiro a se levantar e sair, seguido por
Summer, que faz o mesmo poucos minutos depois. Os demais permanecem
sentados nas poltronas com expressões tempestuosas.
— Blake! — tento outra vez, me concentrando nela. — Pare!
Sua atenção recai para as cabines em que o restante dos californianos
ocupa.
— E, para finalizar, a cereja do bolo. Deixei ambas por último porque
essas duas pessoas adoram uma coisa mais tabu. — ela sorri, erguendo a taça.
— Um brinde à herdeira das Van Acker, a rainha do gelo. Como foi trepar
com o pai do seu amor de infância? — então, sob todo o caos instalado, vira-
se para mim. — E um brinde à minha irmã gêmea, Brooke Andreotti. — seus
olhos queimam nos meus. — Que acabou de ser fodida pelo nosso meio-
irmão.
Eu saio da cabine ao mesmo tempo em que ela joga a taça no chão do
palco e desaparece nos bastidores.
Não é vergonha que eu sinto, como deveria ser, ou como achei que
seria, é fúria. Minha vista está borrada e calor latente se acumula em meu
peito. O punhal, posicionado na lateral do meu salto, parece se converter em
metal ao passo que me movo pelo corredor vazio, seguindo para as escadas
que levam ao térreo. Alcanço a porta de saída, prestes a empurrá-la para abri-
la quando alguém antecede meu gesto. Eu cambaleio pelo susto, mas sou
impedida de cair, pois uma mão envolve o meu antebraço. Eu solto um grito
pela dor que se erradia, correndo um olhar desesperado para cima.
— Olá, linda.
Eu não recebo tempo para raciocinar ou sequer proferir seu nome. A
mão pesada de Eric se ergue e acerta o lado direito do meu rosto num tapa
atroz que quase me leva ao chão. Minha cabeça gira, e o estalo seco ecoa por
todo o local. Ainda estou zonza pelo golpe quando sou arrastada por ele.
Piscando para recobrar meus sentidos, tento me livrar de seu aperto, lutando
para escapar de suas garras. Consigo arranhar seu maxilar, mas o ataque
serve somente para intensificar sua ira. Com a mesma mão que me estapeou,
ele agarra meu pescoço e bate meu corpo contra uma das paredes, fazendo
um quadro cair e se estilhaçar no tapete vermelho. Começo a me engasgar ao
não sentir mais os pés no chão, sufocando em busca de oxigênio.
— Você tinha que ser uma vadia, não tinha? — ruge, saliva
respingando em minha face rubra. — Tinha que abrir as pernas para aquele
bastardo!
— Eric... Por favor...
Meu apelo é ignorado.
— Você fede a sexo, Brooke! — acusa, furioso. A falta de oxigenação
em meu cérebro faz meus olhos lacrimejarem e torna meus pensamentos
lentos à medida que a vida é lentamente tirada de mim. — Eu dei todas as
chances do mundo para que você se comportasse, mas você escolheu o
caminho errado. — sua mão livre se junta a que está me asfixiando. —
Agora, eu vou ter que te matar. Não é trágico, querida? — ele ri, histérico, só
que tudo está longe. Eu sinto como se estivesse flutuando. Mãe, não há
nenhuma luz no final do meu túnel. — Que você morra justo no dia em que
ganhou a vida?
Espero o doce abraço da escuridão me envolver. O último rosto que se
forma em minha mente é o do homem que eu amo. Mas o abraço que tanto
espero, não vem. Meu corpo desaba no piso de madeira e a dor que acerta a
minha bunda por causa da queda me faz voltar a realidade. Tossindo em
busca de ar, esfrego a região do aperto, forçando minha visão a focar ao meu
redor. Os ruídos, antes distantes, voltam audivelmente aos poucos. Quando
procuro por Eric, vejo seu corpo sendo arremessado no chão.
E Drogo é o responsável por esse feito.
Ele o agarra pelo colarinho e fecha o punho ainda no ar, acertando um
soco brutal no meio do rosto de Eric. Sangue espirra de seu nariz, que torce
em um ângulo estranho. Os berros que vêm de Carson são de outro mundo.
Drogo não espera para dar o segundo golpe, ainda mais bárbaro do que o
primeiro. Os nós de seus dedos ficam em carne viva, cobertos de sangue,
enquanto uma nova série de socos é desferida. O barulho de carne esmagada
faz meu estômago revirar, assim como o cheiro metálico. Eric luta, embora
não seja páreo, tentando acertá-lo. Erguendo um braço, bate no aparador ao
lado, mas não consegue ir longe. Um dos vasos em cima cai e quebra, quase
acertando sua cabeça.
Os ombros largos de Drogo parecem triplicar de tamanho em seu terno
sob medida quando eles oscilam por causa de suas lufadas agressivas.
Com dificuldade, eu me apoio na parede e me levanto. Assim que
minha visão foca de vez e meu fôlego se estabiliza. Eu me movo para frente.
Preparo-me para abaixar e pegar o punhal que guardei, mas o ruído alto
de tiros explodindo em algum canto do teatro captura nossa atenção ao
mesmo tempo. Algo se agita em meu peito, uma sensação ruim que amarga
meu paladar. Por um momento, penso em Blake. Nas consequências. Um
grunhido gutural me desperta. Eu olho para trás e vejo Drogo cair segurando
a coxa, a qual tem a ponta de um vidro cravada nela. Sangue pinga da mão de
Eric à medida que ele se levanta, cambaleando, e corre de modo desajeitado
para a saída de emergência.
— Achou mesmo que eu estaria sozinho? Eu ainda vou te matar! Cada
um de vocês! — berra, o rosto ensanguentado, e desaparece logo após.
Ignoro a ameaça ao avançar e encurtar a distância entre mim e Drogo.
Ele está suando frio. O sangue jorrando de sua perna me deixa nauseada.
— Você vai ficar bem. — garanto, vendo que não foi muito profundo.
— Aquele filho da puta vai fugir! — esbraveja, tentando se levantar.
Eu o impeço para estancar o ferimento, rasgando um pedaço do meu vestido.
— Ele não importa agora!
— Como não? — sua ira é palpável. — Olhe o que ele quis fazer com
você! E eu quero saber o que há por trás de toda essa história, Brooke.
— Não importa, Drogo! Temos que sair daqui. Você escutou o disparo.
— a palavra me faz estremecer.
Há uma pausa.
— Está pensando na sua irmã, não está? — ele sopra, grunhindo ao
trincar os dentes e emitir um rosnado ao puxar o objeto pontiagudo.
Prendo o farrapo ao redor de sua coxa, estancando. Está sangrando
bastante, mas vai melhorar com a atadura improvisada. Ele ficará bem.
— Talvez precise de pontos. — minhas lágrimas involuntárias pingam
em seu terno e eu pisco para afastá-las. — Drogo, eu preciso ir.
— O quê?
— Eric não vai voltar, e eu tenho que achar minha irmã.
— Você não pode sair por aí sozinha. Não com aquele...
No entanto, eu já estou me erguendo e me afastando dele.
— Brooke!
Arranco os saltos, derrubando o punhal, e corro para as escadas. Passo
por elas o mais rápido possível. No meio do caminho, o terceiro tiro é
disparado. Dessa vez, mais perto. Os gritos assustados de antes se
intensificam. Ainda há pessoas correndo para a saída. Eu vou no sentido
horário, seguindo para a sala de câmeras, de onde acho que os tiros vieram.
Prudência e lógica abandonam meu cérebro e eu entro sem pensar duas vezes
no lugar. Tudo está uma bagunça, as fitas foram arrancadas e a iluminação é
precária. Noto sangue nos monitores e acredito que Eric, mesmo em seu
estado, possa ter passado por aqui, ou seus capangas. Saio da sala e retomo
meu percurso.
— Oh, meu Deus... — meu coração para quando, no final do corredor,
vejo meu melhor amigo titubear, a camisa branca coberta de sangue.
Eu me lanço na direção de Leo, mas não consigo chegar a tempo de
alcançá-lo e impedir que seu corpo ferido desabe no chão à minha frente.
DIABÓLICOS — PARTE IV

“Você nunca vai conhecer a aberração sentada seu lado


Haverá pessoas estranhas sentadas ao seu lado
Você vai pensar:
“Como vim parar aqui, sentado ao seu lado?”
— Heathens | Twenty One Pilots

TUDO SE CONVERTE EM SANGUE.


Um mar interminável dele.
Eu continuo correndo, mas pareço não ser capaz de chegar. Como se
pudesse servir de algo, embora eu saiba que não, estendo um braço. Meus
dedos se esticam com lentidão à medida que tento, inutilmente, tocá-lo. O
nada é a resposta que obtenho. Um fatídico nada.
Toco o ar ao mesmo tempo em que o corpo sangrento de Leo
desmorona sobre os próprios joelhos e cai diante de mim sem que eu possa
evitar.
O grito que rasga minha garganta é ensurdecedor. A única forma que
encontro de, no momento, colocar toda a dor que me subjuga para fora.
— Não!
Eu caio ajoelhada diante dele, ignorando a dor do impacto. Seu corpo,
caído de bruços, tremula, e eu luto com todas as forças que possuo para virá-
lo. O líquido quente tornando meus movimentos escorregadios. Minhas mãos
oscilam por causa do sangue que jorra do ferimento em seu estômago. Há
tanto que se torna difícil identificar a marca da bala. Abro sua camisa,
arrebentando os botões, e pressiono o local atingido. Sua figura se converte
em um borrão ao passo que lágrimas embebedam meus olhos. Eu pisco para
afastá-las, mas parece nunca ter fim.
Seus orbes verdes se voltam para o meu rosto e Leo se engasga ao
tentar dizer meu nome, apertando fracamente meu braço. O esforço que ele
faz é como um soco no estômago e me deixa ainda mais aterrorizada. Ele não
pode se mexer. Quando sua boca se abre, apenas minha inicial sai.
— Não! Não! Não! — eu choro, tremendo. — Não se force! Você tem
que ficar comigo! — procuro por alguém ao redor. — Por favor, socorro!
Ao longo desses anos, eu senti diversos tipos de medo, e alguns foram
dolorosamente maiores do que outros. Mas, agora, vejo que nenhum temor
que senti antes, pode se comparar ao que me corrói neste segundo. As últimas
semanas da minha vida, as melhores e piores, passam pela minha cabeça
como um filme. E todas as coisas que vivi com Leo, tendo-o como um amigo,
mesmo em todas as vezes que eu quis bater nele por ser um pé no saco,
englobam meus pensamentos confusos. Meus ombros sacodem durante o
tempo em que tento mantê-lo acordado, consciente.
— Pelo amor de Deus, alguém! — minhas cordas vocais vibram pelo
esforço. — Alguém, por favor! Eu preciso de ajuda! Meu amigo está ferido!
— B... — sangue jorra de sua boca.
— Não fale! — imploro. — Por favor, por favor! Oh, meu Deus! — um
nó excruciante se aloja em minha garganta. — Eu não posso perder você.
A poça de sangue que começa a se acumular ao nosso redor,
encharcando o vestido que uso e o tornando pesado, faz o pânico crescer em
meu interior. Nenhuma outra sensação, por mais horrível que seja, pode se
comparar a que se apodera do nosso peito ao vermos alguém morrendo diante
dos nossos olhos. A impotência, o temor, tudo o que não somos capazes de
fazer nos engole, nos sufoca. Principalmente quando se trata de uma pessoa
que amamos e sabemos que não a valorizamos da forma devida, do modo que
essa pessoa merecia. Leo merecia mais.
Meu peito dói ao lembrar que, da última vez que nos falamos, eu não
fui uma boa amiga. Diferente dele desde o dia em que nos conhecemos.
As vezes em que fui salva dos meus próprios tormentos graças às suas
risadas, suas frases ridículas e toda a besteira que, feita por ele, parecia uma
coisa grandiosa, magnífica. Porque Leo Ballister tem esse dom. Porque ele é
o melhor amigo que qualquer ser humano poderia querer.
Leo não pode morrer assim. Não pode. Ele não merece ter seus sonhos
interrompidos de uma maneira tão cruel e desumana.
Meu choro se intensifica, misturando-se a culpa esmagadora que cresce
em meu peito. Sem ter a quem recorrer por perto, eu olho para cima.
— Você o colocou em minha vida. Me deu ele. — digo, pedindo a
Deus para ter meu pedido escutado. — Então, por favor. Não o tire de mim.
Voltando a me inclinar para baixo, eu beijo os fios de seu cabelo. Em
seguida, seu rosto ensanguentado. Implorando para que ele não me deixe.
— Eu te amo. — soluço baixinho, colocando sua cabeça em meu colo e
pressionando os lábios em sua testa. — Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo.
A esperança que insisto em carregar, que luto por nós dois para manter
a chama acesa, começa a se apagar lentamente. O pensamento que tenho é
que não há mais saída, que ninguém virá nos ajudar, e eu realmente vou
perder meu melhor amigo bem na frente dos meus olhos.
Mas é quando algo acontece.
Passos frenéticos soam de algum lugar, ficando mais pesados e unindo-
se a um burburinho repentino de vozes. O barulho de sirenes eclode assim
que as portas de fora do teatro são escancaradas. Paramédicos entram no
local, correndo na nossa direção. Eu vejo Summer descer as escadas do outro
lado, correndo enquanto diz palavras que eu não sou capaz de compreender.
Tudo parece lento e distante, e a única coisa em que presto atenção é no rosto
desacordado de Leo. A imagem é arrancada de mim quando alguém me
segura, erguendo-me e tentando me afastar. Eu grito e me debato, implorando
para que me deixem ficar perto dele. Mas não permitem. A última coisa que
vejo, ao ser pressionada contra o peitoral duro de alguém, é a máscara de
oxigênio que colocam em seu rosto antes de o deitarem em uma maca.
— Brooke, acalme-se! — a voz grave de Drogo paira em meus
ouvidos, trazendo o foco de tudo.
Sou levada para fora. A iluminação externa, mais potente que a do
interior, acerta minha visão como um flash, desnorteando-me. Seu timbre
profundo continua pedindo para que eu me acalme, murmurando que tudo vai
ficar bem. Eu não consigo acreditar, no entanto. Eu quero. Por Deus, como eu
quero. Meu maior desejo é acreditar que, em breve, eu verei meu amigo
acordado e sorrindo como deve ser. Mas o medo me torna irracional e não me
permite ser positiva. Meus pensamentos estão caóticos, misturando-se como
carreteis de linhas bagunçados.
A ambulância fecha as portas após inserir a maca em que Leo está. De
longe, vejo Summer entrar no veículo, aos prantos, falando com alguém pelo
celular. Por não estar vendo o restante do bando, acredito que seja para algum
deles. Não entendo porque ela é a única aqui.
Meus ombros são segurados por suas mãos e ele me vira para encará-lo.
Seu cabelo loiro está bagunçado e rastros de suor cobrem suas têmporas. A
pele pálida, mais do que estava quando o deixei, e respingos de sangue
ressecado na parte branca de seu terno e face. Seu cansaço é evidente.
— Ele não pode morrer. — repito, soluçando, porque é a única frase
que posso formular. — Eu quero ir para o hospital. Eu... preciso de notícias.
Drogo me abraça, envolvendo meu corpo com seus braços fortes, e me
puxa para perto de seu calor corporal.
— Ele não vai morrer. — garante, beijando o topo da minha cabeça. —
E eu a levarei, mas precisa passar em casa e tirar essa roupa, meu amor.
Aceno no modo automático, pois sei que não adiantará nada me opor.
Eu gostaria de ter ido com Summer. Não queria sair de perto dele. Contudo,
não sinto como se merecesse estar perto de seus verdadeiros amigos após tê-
los tratado de uma forma indevida na noite anterior. E, principalmente, depois
das coisas horríveis ditas pela minha irmã, minutos atrás. A tristeza se funde
ao ódio, esquentando meus membros frios. E, justo neste momento, eu a vejo
do lado oposto ao qual estamos. Blake está debaixo de uma árvore, fungando
ao observar a ambulância sumir no horizonte. Toda minha estrutura enrijece
com ira ao passo que me afasto de Drogo, que entra em alerta prontamente, e
sigo na direção dela.
Seus olhos se movem até os meus, captando minha presença e sua
figura logo se recompõe. Recobrando a postura, minha irmã empina o nariz.
— Brooke, sei como você está se sentindo. E sei que...
— Não. Você não faz ideia. — vocifero. — Cale-se.
— Ouça-me...
— Cale a boca.
— Minha irmã.
— Eu te disse para calar a porra da boca! — esbravejo, desferindo um
tapa doloroso em seu rosto que a faz tropeçar no meio fio e cair na grama.
Horror banha suas feições quando ela torna a me olhar, pressionando a
bochecha. Todos os convidados que ainda estão na frente do teatro se voltam
para nós duas, mas eu não poderia me importar menos em ser o centro das
atenções. Diferente dela, que parece surpreendentemente tímida. Perceber
isso me deixa ainda mais furiosa. Como ela pode agir desse modo após tudo o
que falou naquele palco? Eu não admito sua dor.
Sua garganta se move para cima e para baixo com força quando Blake
engole em seco, apoiando-se no gramado para se erguer e me fitar de pé.
— Não foi minha culpa o que aconteceu! — rebate, alguns fios de seu
cabelo entrando em sua boca. — Além do mais, você não é a única triste!
Meu fôlego fica entrecortado, fazendo meu peito se agitar
violentamente quando cruzo o meio fio para que nenhuma distância fique
imposta.
— Triste? — brado descontrolada, e ela se encolhe. — Você acha que
eu estou triste? Eu não estou triste! Eu estou destruída! Meu coração está
dilacerado! — dois homens se movem com o intuito de impedir a discussão,
mas Drogo os para com um olhar afiado e ambos recuam. Meu rosto é uma
bagunça de lágrimas, rímel borrado e sangue. O vestido que uso está rasgado
e não há um único centímetro dele que não possua vestígios da tragédia que
ocorreu com Leo. — Ele agonizou em meus braços enquanto eu não podia
fazer nada para salvá-lo, para amenizar seu sofrimento! Eu fui obrigada a
assistir a pessoa mais alegre que conheço se converter em um corpo inerte e
ensanguentado! Eu o vi sufocar com o próprio sangue! Você acha que triste é
o suficiente para me descrever? — indago, a raiva aplacando meu choro.
Embora ele esteja preso em minha garganta, lutando para sair. — Não ouse
sentir-se triste. Você não tem esse direito, porque antes de tudo acontecer,
você fodeu com todos nós por ser a porra de uma pirralha mimada! — acuso,
não dando a mínima para as lágrimas que se acumulam em seus olhos. —
Você não podia ter feito o que fez! Não após cuspir todo aquele discurso na
minha cara na festa de ontem! Sua raiva era por mim! E você a descontou em
cima de pessoas que não tinham nada a ver com a nossa merda! — recuo um
passo, ofegante, e empurro o cabelo que cai em minha testa para trás. — Sim,
Blake, você tem razão. A culpa do que ocorreu com o Leo não foi sua. — a
primeira lágrima desliza pelo meu rosto sujo e eu a seco com violência. —
Mas você não deixa de ser culpada. As últimas coisas que ele ouviu, estando
consciente, foram desprezíveis. E elas vieram de você. Portanto, juro por
Deus, que se ele não sair do hospital com vida, da mesma maneira que eu
morri para você na noite passada, você morrerá para mim. E você não quer
isso. — disparo a frase com uma lentidão vulcânica. — Então, torça, minha
irmã, para que Leo Ballister fique vivo.
Eu não me submeto a olhar para trás uma última vez ao dar as costas e
ir embora.

Estou quieta, observando inexpressiva a água gélida do chuveiro lavar


o sangue do meu corpo desnudo, transformando o tom escarlate num rosa
pálido ao se misturar com a espuma e desaparecer. O odor ainda permanece
desagradável, mas fraco demais para ser comparado ao que impregnou meu
olfato cerca de uma hora atrás. É suportável, porém, me nauseia na mesma
intensidade. Um lembrete cruel do que aconteceu.
Por maior que fosse minha vontade, eu me acovardei. Meu temor me
sufocou tanto que me recusei ir ao hospital. A única notícia que recebi, a qual
chegou através de uma mensagem da Summer, foi que a cirurgia havia
começado. Isso foi há quase três horas. E nada mais veio depois.
A agonia é a primeira fase do medo, a segunda é o entorpecimento, e a
terceira é a cólera. Passei por uma delas e estou enfrentando outra. As coisas
parecem não ter, de fato, ocorrido. É como se eu estivesse presa em um
pesadelo, sabendo que irei acordar em algum momento e tudo voltará a ser
como era. Chego a fechar os olhos para que a mágica aconteça. Nada vem. A
dor é tão profunda que adormece os meus sentidos.
Levo uma mão à válvula, cessando o jato suave. Abrindo as portas de
vidro do box, capturo uma toalha, enrolando-me nela, saio do banheiro.
Meus pés me levam pelo quarto sem que eu perceba. Ao chegar no
centro dele, eu encaro todo o luxo que o engloba. Toda a riqueza espalhada.
Tudo me enoja.
Me secando de qualquer jeito, ando até o closet. Escolho vestir um
jeans skinny preto, optando por uma camisa de alças finas branca.
Drogo aparece em silêncio, mantendo-se parado no batente. O cheiro
limpo que vem dele é o único aroma agradável por aqui.
Inalando-o, inicio minha confissão:
— Eu me apaixonei por Eric. — declaro, surpreendendo-o. Estou
cansada de ter que omitir. Sua feição se transforma, choque e algo mais. —
Na verdade, me apaixonei pelo que vi em seus olhos. — sorrio, pois é
patético. — Eu fiquei sozinha por tanto tempo que, quando recebi um
pequeno vislumbre de interesse de alguém, me agarrei a ele como se estivesse
me afogando e finalmente encontrasse um bote salva-vidas. Eu sabia que era
uma má ideia, mas fui tratada tão bem que ignorei os diversos sinais de alerta
que piscaram em minha mente. Eu deveria tê-los escutado, não deveria? —
divago, entorpecida. — Porque, se eu tivesse, nada disso teria acontecido. Ou
talvez, sim. Nunca se sabe o quão filho da puta o destino pode ser conosco.
— a risadinha que emito é amarga e vazia. — O que parecia bom não durou
quase nada. De qualquer maneira, vamos dizer apenas que ele fez coisas ruins
comigo. — engulo a saliva, sem desejar proclamar os detalhes. — Perdão.
Deixe-me corrigir, as coisas ruins que ele me obrigou a fazer comigo mesma.
Eric nunca me tocou de modo íntimo, e apesar de todo o inferno ao qual fui
submetida nos últimos anos desde que o conheci, pelo menos por essa
pequena parte, eu posso ser grata. — declaro, dando de ombros com pesar. —
Porque, se ele tivesse me tocado, seria irreparável, Drogo. Não haveria
salvação para a minha alma. E nem mesmo você seria capaz de me consertar.
Os músculos de sua mandíbula se movem. Posso ver seu autocontrole
ruindo, mas ele, assim como eu, sabe que não se pode mudar o imutável.
— Eu sabia que tinha alguma coisa errada. — cospe, andando de um
lado para o outro. — Sempre soube, mas não... Por que você não me contou?
— Por causa disso. — abro os braços como se o resultado estivesse
diante dos nossos olhos. E está. Contudo, ao mesmo tempo, não há nada. —
Porque ele faria tudo o que ocorreu hoje à noite se tornar realidade! — minha
entonação sobe alguns decibéis. — O envenenamento da Avalon? Eric! A
tentativa de atropelamento da Blake depois que saímos da delegacia?
Adivinhe só, foi o Eric! O Leo estar em uma mesa cirúrgica neste segundo?
Eric! Tudo, absolutamente tudo, foi o Eric! — grito. — Ele me disse que os
deixaria em paz se eu me afastasse de você, e eu me afastei! Segui sua ordem
para poder enganá-lo e acabar com ele. Só que nós dois, Drogo, eu e você
aconteceu. — meu cenho ondula, instável pelas lágrimas que tento conter. Eu
estou tão cansada de chorar. — O que fizemos naquela cabine, foi incrível.
Foi perfeito. Mas também foi um erro.
Ele tenta avançar, entretanto, eu o paro ao erguer uma mão.
— Brooke, não é sua culpa...
— É. — aceno com veemência. — Você não precisa tentar me
convencer do contrário. Porque, sim, a culpa é minha. Se eu tivesse saído
quando você entrou, tudo acabaria diferente. Você estaria bem, o Leo estaria
bem. Não haveria sangue, nem dor, não haveria medo. Não haveria nada!
A verdade é asfixiante. Eu seco os rastros de lágrimas com tanta
ferocidade que minhas bochechas ficam doloridas pelo gesto raivoso.
Todos nós gostaríamos de poder mudar o passado. Ou pelo menos
determinadas situações dele. As coisas que, mesmo sabendo que trarão
consequências duramente irreversíveis, insistimos em fazer. Todo ser
humano, em algum momento, acha ser possível bancar Deus. Nós brincamos
com presente e futuro, e sequer percebemos. Juramos sermos inabaláveis e
pensamos que as coisas que acontecem com os outros sempre acontecerão
somente com os outros. Não é assim que funciona. A vida adora nos pregar
peças. Ela nos faz jogar um jogo que acreditamos ser nosso, em que
presumimos estar no controle de tudo. Quando, na verdade, o jogo é dela.
Nós não passamos de meros peões em um tabuleiro.
Eu errei em subestimar Eric, e não o contrário. Sede de vingança nos
torna irracionais. Pensei que eu o venceria graças a toda raiva que estava
sentido. Como eu pude ser tão ingênua? Não. Como eu pude ser tão estúpida?
Minha prepotência e arrogância me tornaram inconsequente.
— Você não pode se culpar. — Drogo repete, trazendo-me de volta à
realidade. — Você foi uma vítima. Se não acontecesse hoje, aconteceria
amanhã, ou depois. Talvez na semana que vem, no ano que vem. Até mesmo
ontem ou no mês passado. — seu olhar é repreensivo, e inconformado. —
Porque a culpa não é sua. É dele. E você não pode carregar o fardo pela
mente de um psicopata. Ele o faria de qualquer jeito.
Mais uma vez, eu observo meu quarto. Estou viva, de pé, e fui eu quem
provocou a ira de Eric. Então, por que Leo quem teve que pagar o preço?
— Por favor, saia. — sussurro. — Eu preciso ficar sozinha, Drogo.
— Brooke.
— Saia. — o meu semblante é vazio enquanto as lágrimas rolam.
No fim, não há protestos ou insistência. Ele apenas aceita.
— Faça o que tem que fazer e volte para mim. Não se entregue.
Eu conto vinte segundos. A porta se fecha. E a terceira fase eclode.
Meus gritos são sobre-humanos à medida que arremesso o que vejo
pela frente contra a parede. Os estilhaços se espalham como poeira no ar.
Ódio visceral substitui a tristeza e a culpa que insistem em me comer
viva. A fúria borbulha em meu âmago, fundindo-se à todas as emoções que
mantive reprimidas nas últimas horas. Drogo está certo. Esse fardo não é
meu, mas é fácil mudar essa rota, porque estou tentando me autodestruir, e
preciso de algo para usar. Qualquer coisa ao meu alcance que facilite esse
processo, eu a tomarei. Por mais que as circunstâncias sejam injustas, no
fundo, não é minha culpa. Aquele desgraçado traria o pandemônio para a
minha vida mais cedo ou mais tarde. Era inevitável.
Eu estava ciente, sabia disso. Todavia, preferia acreditar que estava um
passo à frente. Eu nunca fui um cavalo de Tróia, apenas uma marionete.
Ele brincou com a minha cabeça, a bagunçou de um modo desumano.
Eric torceu cada uma das minhas cordas e eu sequer fui capaz de perceber.
Com o antebraço, arrasto todos os perfumes que estão em cima da
penteadeira. As fragrâncias se misturam, dançando no cômodo. O cheiro doce
é uma farsa, assim como toda a riqueza impregnada neste quarto, nesta casa.
Tudo o que esse sobrenome miserável me trouxe foi desgraça, dor. Nada
além de inúmeros graus de infelicidade. É repulsiva a maneira como cada
centímetro foi projetado para parecer um paraíso, porque não é desse jeito
que a minha vida é. Meu lugar mais íntimo não me reflete, ou o que eu
preciso suportar. Ou o que enfrento a cada maldito dia.
Minhas palmas agarram a borda da mesa de vidro e eu a empurro para
cima. O material pesado se torna leve como uma pluma. Vendo o caos que
causei, procuro mais objetos para destruir. Ainda há muitos. Contudo,
escolho o quadro gigante que fica acima da minha cama, posicionado na
parede principal. Uma foto minha quando eu tinha cerca de dez anos. O
sorriso que mostrei para a câmera naquele dia foi tão falso que, somente em
olhar para a imagem, posso sentir o mesmo gosto amargo que senti ao me
sentar naquela poltrona esplendorosa. Mais uma mentira.
Eu costumava trocar a moldura todo ano, uma mania que adquiri por
meio da minha mãe. Desde a sua morte, todavia, não toquei nele para outra
coisa que não fosse limpar. Não tive coragem de fazer as poucas coisas que
me alegravam, pois eu era covarde demais para enfrentá-las.
Fechando os punhos, faço meu trajeto até ele, subindo na cama para o
arrancar da parede. É tão sólido quanto me recordo, talvez mais. Ao deixá-lo
cair no meio do colchão, decido que irei rasgar a porcaria da foto antes de
depredar a moldura. Abro todas as oito trancas minúsculas.
Erguendo o fundo, franzo o cenho ao ver, colado à parte de trás da
fotografia, um envelope amarelado ostentando um carimbo de cera no meio.
Com cuidado, quase como se o objeto fosse frágil o suficiente para que eu
pudesse quebrá-lo com qualquer mínimo movimento, eu o desprendo.
É uma carta. No entanto, não é essa a constatação que me faz perder o
ar, ou faz meu estômago revirar com ansiedade pungente. E sim as iniciais
impressas no pequeno círculo vermelho de cera. Eu as reconheço, assim
como também reconheço o carimbo delicado que protege o envelope.
Pertencem à minha mãe.
Com dedos hesitantes por receio de danificar, eu levo cerca de um
minuto para finalmente remover a proteção. Ao desdobrar o papel, eu leio:

“Meu coração,

Eu sempre gostei do seu nome, Brooke. Ele é puro, mas também muito
forte e poderoso. Assim como você, querida.
Nós duas vimos o lado feio da vida cedo demais. E não foi nossa culpa. Não
pedimos para enfrentá-lo. Então, eu quero que saiba, antes de continuar,
que eu sei o que aconteceu. Eu a vejo. Você é muito parecida comigo,
portanto, acredito que também terá um mecanismo de defesa. O meu é
escrever. O primeiro não foi tão bonito. Ele deixou marcas. Então, espero
que siga um caminho distinto. Mas se não seguir, eu sei que você será
capaz de se reerguer um dia. Eu tenho fé em você. Porque você é minha
filha. E nós duas temos mais do que sangue correndo em nossas veias, nós
temos vontade de viver.
Saiba que parte meu coração estar nesta sala, vendo-a próxima à janela,
quieta enquanto assiste a chuva cair, e não poder te abraçar e dizer que
tudo não passou de um pesadelo e que você está segura. Porque eu estaria
mentindo.
Hoje pretendo livrá-la de seu tormento. Farei de tudo para conseguir. Eu
não terei medo.
Antes de ir, no entanto, você tem que saber algumas coisas.
Há quinze anos, eu conheci o amor da minha vida. Não falo de Sebastian.
Foi tragicamente lindo. E apesar de tudo o que ocorreu, não me arrependo.
Se existir outra vida, espero encontrá-lo nela.
Eu o conheci na Itália, em uma das típicas festas importantes que eu
constantemente tinha que comparecer. Deus, eu odiava aquilo.
Mas aquela noite foi diferente, eu senti no ar. Quando coloquei os olhos
nele, eu o amei. Foi meu maior acerto, e meu maior erro.
Sebastian descobriu o que eu havia feito, e sua punição foi desumana, me
destruiu. Dois meses depois, quando retornamos à Inglaterra, eu descobri
que estava grávida. No momento em que você e sua irmã nasceram, eu
sabia que algo não estava certo.
Blake era idêntica à Sebastian, olhos verdes, cabelos pretos. Diferente de
você. Seus olhos eram tão azuis que pareciam refletir minha alma neles, os
fios loiros, similares a um campo de trigo, e um pequeno e quase
imperceptível sinal perto da boca, abaixo do lábio inferior.
Você, Brooke, era o reflexo do homem que eu mais amei em minha vida.
Gêmeas. Mas de pais diferentes.
Sebastian soube, e ainda assim a amou mais do que amou seu próprio
sangue. Eu não conseguia entender. Porém, estava aliviada em saber que
ele não era uma ameaça. Isto é, até que ele se tornou. Eu o vi em seu
quarto uma noite, querida. E eu sinto muito. Eu sinto tanto, tanto.
Por causa disso prometo que, hoje, eu irei consertar tudo.
Esta é a parte que você precisa prestar muita atenção. Sebastian tem um
amante: Eric Carson.
Ele provavelmente vai tentar feri-la, pois não poderá fazer comigo. Por ser
melhor amigo de Sebastian, ele o colocou como guardião de vocês. Eu
consegui alterar uma parte sem ser descoberta e coloquei outra pessoa no
lugar. Seja paciente.
Estou deixando munição suficiente para que você destrua Eric, caso seja
necessário. Não hesite, Brooke. Nunca hesite.
Seu pai sabe o que pretendo fazer, também sabe que não deve me impedir.
É a minha decisão. E sei que, por mais que o dilacere, ele a respeitará. Da
mesma forma que vai respeitar o último pedido que fiz; esperar que você o
procure, e não o contrário.
Porque preciso que esteja preparada. Preciso que tenha conhecimento das
palavras dentro desta carta primeiro.
Há uma bomba no barco em que Sebastian e eu estaremos, eu a coloquei
lá. Ele não irá escapar, e eu também não. É como deve ser.
Eu te amo. Eu a amarei até a última batida em meu peito. Eu a amarei
além dela. Além de tudo e qualquer pessoa, meu coração.
Sua existência é o que não me faz carregar arrependimentos. Porque você é
fruto do amor mais profundo e verdadeiro que eu senti, Brooke.
Você não é filha de Sebastian Andreotti. Você é filha de Michael DeLuca.”

Estou presa em uma espiral borbulhante de sensações e pensamentos


caóticos, afundando mais e mais a cada vez que torno a ler a última frase.
Filha de Michael DeLuca. Michael DeLuca como... o pai do Matteo.
As letras se misturam, se formam, e ao mesmo tempo, embora estejam
ordenadas, não entram em minha cabeça. Há um bloqueio dentro dela,
impedindo-as de fazerem sentido. Ou, talvez, seja eu quem esteja recusando o
sentido que elas fazem. Porque, Deus, como pode ser possível?
Mas, então, trata-se de Blair Andreotti. Minha mãe. Sua caligrafia. Eu
me lembro, não tão vagamente, do dia que a vi escrevendo essa carta.
Eu estava olhando para o lado de fora, é verdade. No entanto,
observava sua figura sempre que recebia uma brecha. E eu jamais duvidaria
dela.
Deslizando a ponta do indicador sobre a folha amarelada, toco nos
pequenos relevos escurecidos que marcam algumas partes do papel.
São marcas de lágrimas.
Meu queixo oscila quando, sem pensar duas vezes, e antes que meu
próprio choro se misture ao dela, eu descanso os lábios no papel, beijando a
superfície macia. Minha mãe se sacrificou para que eu fosse feliz, e ela
sequer hesitou. Eu não posso permitir que sua morte tenha sido em vão.
Pressionando a carta contra meu peito, ergo os olhos para cima como se
pudesse ser vista ou ouvida. No fundo, acho que posso. Coisas ruins
aconteceram comigo, mas tudo poderia ter sido muito pior. A verdade é que
possuo um anjo da guarda, e sei que este nunca irá me abandonar.
— Você pode me ouvir, não pode? — murmuro, minha garganta se
movendo como se eu engolisse pedras. — Eu sinto que pode. — encolho os
ombros. — E eu queria tanto, mãe, poder te ouvir também. Porque eu sinto
sua falta. Acho que não haverá um único dia em que não irei sentir. Está tudo
tão difícil. Meu único desejo era sentir seu abraço, seu perfume nunca deixou
de ser meu aroma favorito. — fungo, baixinho. — Em algum momento, nós
vamos nos reencontrar. Eu prometo. Mas esse momento não pode acontecer
ainda. Há coisas que preciso fazer, porque não posso deixar você ter partido
em vão. — secando as lágrimas, meus pés tocam no piso frio, grudando sobre
ele à medida que ando de volta ao closet. Pegando um par de coturnos e
jaqueta de couro. Ao colocá-los, suspiro. — Estou cansada de fugir. Então, eu
lutarei. Sou uma guerreira. Nós duas somos. Agora, eu realmente preciso que
faça um favor para mim. — meu timbre sai baixo, porém firme. — Preciso
que seja o anjo da guarda do meu melhor amigo. Fique perto dele, e não me
deixe perdê-lo. Sei que é um pedido egoísta, mas tenho que fazer. — não me
permito cair aos prantos outra vez. Mordendo o lábio inferior para conter o
choro, sussurro minhas últimas palavras: — Eu amo você, mãe.
Decretando que não irei mais chorar, dobro a carta com cuidado e
guardo-a no bolso frontal da jaqueta, ajustando-a em meu corpo ao sair do
quarto e cruzar o corredor. Seguindo para as escadas, paro no topo dela ao
ver Drogo sentado em um dos degraus, de costas para onde eu estou.
Parecendo captar minha presença no ambiente como um choque súbito,
seu rosto gira e ele olha por cima do ombro, ficando de pé prontamente assim
que captura minha figura. Encurto a distância que nos separa. Estou em meu
pior estado; destruída. Meus olhos estão tão inchados que a carne ao redor é
cálida. Arde, embora não seja nada insuportável. Apesar disso, tudo o que há
no fundo de seus olhos é paixão, amor.
Drogo me observa como se eu, mesmo em meu pior momento, fosse a
coisa mais preciosa que pudesse aparecer em sua frente.
Ele me esperou colocar toda minha bagunça para fora, e manteve-se
por perto o tempo todo. Ele não me abandonou como qualquer outro faria.
Pelo contrário, o homem à minha frente viu minhas partes feias e não
somente as permitiu sair como também as abraçou e cuidou de cada uma.
— Obrigada. — eu agradeço, segurando-me no corrimão ao me inclinar
para encostar minha testa na sua. — Por não ter ido embora.
— Eu fiz uma promessa. — declara. — E não pretendo quebrá-la. —
há uma pausa. Por fim, a notícia: — Leo não corre risco de vida.
Num solavanco, me afasto e cubro a boca com a mão livre. Novamente,
meu cenho oscila. Desta vez, porém, é um misto entre felicidade e alívio.
— Como você soube disso? — engasgo, euforia repentina vibrando em
minha corrente sanguínea e disparando em direção aos meus ouvidos.
— O padrasto da Avalon é o médico-cirurgião. Quando ela soube o que
aconteceu, foi ao hospital. Eu acabei de receber sua ligação. — percebo que
Drogo ainda segura o celular durante o tempo em que fala comigo. — A bala
atravessou, não atingiu nenhum órgão vital. Ele ficará bem.
A última frase enraíza-se em meu cérebro como um cobertor,
aquecendo-me e acalmando a agitação. Saber, com certeza, que não perderei
meu melhor amigo, e compreender que poderei dizer a ele todas as coisas que
estão presas em meu peito, é a melhor sensação que me tomou nesses últimos
dias, principalmente na noite de hoje. Eu jamais seria capaz de descrever o
sentimento de alegria que inicia seu processo para me cercar, enviando cargas
que esvanecem toda a angústia anterior. Meu canal lacrimal esquenta, mas
como prometi a mim mesma, não irei chorar.
Embora seja de felicidade genuína, não devo me atrever a continuar
perdendo tempo. A segurança das pessoas que eu amo continua em jogo.
E eu não irei me dar ao luxo de baixar minha guarda.
Seus dedos envolvem um dos meus ombros, apertando-o de leve para
me despertar dos flashes repentinos de devaneios. Recobro minha razão.
— Essa foi a melhor notícia que eu poderia receber. — asseguro, e não
há nada além de veracidade no que falo. O problema é que, demonstrar o
sentimento de júbilo que arranha minha garganta, a essa altura do
campeonato, me tornaria lenta e atrasaria o que pretendo executar. Algo que,
em definitivo, não pode ocorrer. Endireitando a postura, recupero o papel
dobrado no bolso da jaqueta. — Esta é uma carta que minha mãe fez para
mim antes de morrer. Eu deveria tê-la encontrado há muito tempo, e por um
erro, não o fiz. As coisas seriam diferentes se eu tivesse achado ela anos
atrás, e não estou supondo nada. Mas eu só soube de sua existência essa
noite, depois que destruí meu quarto. — esclareço. Tomando fôlego, disparo
com a voz repleta de amargura e ao mesmo tempo alívio: — Sebastian,
aquele desgraçado, não é meu pai.
Os olhos de Drogo, anteriormente semicerrados, arregalam-se e ele faz
uma careta, exibindo sua confusão. Sem esperar sua fala, eu continuo:
— Blake é filha dele, eu não. Por mais irreal que pareça, é possível. Há
algumas coisas que preciso entender, entretanto. Porque tudo é muito confuso
e estranho. Mas, apesar disso, eu acredito no que minha mãe escreveu. É a
caligrafia dela, Drogo. Foram suas últimas palavras. Agora, eu tenho que
encontrar meu pai biológico. Ele sabe quem eu sou e está ciente de toda essa
história. Para ser sincera, ele está esperando por mim.
É verdade. A questão é que sua espera não é bem uma coisa atual,
desse momento. Não é como se minha chegada estivesse prevista para hoje.
— Você sabe quem é?
— Sei. — suspiro, prendendo o lábio inferior com os dentes.
Segurando a mão dele, nos forço a descer os degraus que faltam. — Michael
DeLuca.
— Que diabos? — chia perplexo. Seu rugido inesperado me faz
encolher os ombros. — O pai do Matteo?
— Sim. — declaro, digitando o código do alarme e abrindo a porta.
Nós dois nos encaminhamos para o estacionamento e eu sigo em direção à
Bugatti Veyron. Eu nunca usei esse carro, embora o achasse lindo, pois ele
pertencia à minha mãe. Todavia, abrirei uma exceção na noite de hoje.
Drogo sabe que estou nervosa demais para poder dirigir, então assume
o banco do motorista, fechando a porta e colocando o cinto de segurança. Ele
puxa a alavanca e bate no botão de partida. Os faróis ganham força em
sincronia com o motor, iluminando o local envolvido pela escuridão.
— O que tem nessa carta?
— A jugular de Eric Carson.
DIABÓLICOS — PARTE V

“Eu tentei te avisar para ficar longe


Agora, eles estão lá fora, prontos para explodir
Parece que você é um de nós”
— Heathens | Twenty One Pilots

OBSERVO A ESTRUTURA PODEROSA QUE se estende


por quarteirões. A primeira vez que pisei neste lugar, foi na noite do baile de

máscaras. Eu achei que seria a última, também. É esquisito como tudo pode

mudar de um minuto para o outro. Apesar de não ter uma vida dentro dos

padrões de normalidade, há coisas que continuam me surpreendendo por


serem inimagináveis. Honestamente, essa é uma delas. Se eu estivesse onde

estou agora, cinco dias atrás, eu não iria conseguir chegar perto dos portões

pretos que reluzem do lado oposto, evidenciando a ferocidade que banha cada

mínima parte da mansão DeLuca — não sem tropeçar em meus próprios pés

e cair. Eu certamente iria me encolher, tremer, ou meus olhos se encheriam

com lágrimas pesadas. Talvez os três, ou até mais do que eles. Me

conhecendo bem, eu diria que todos ao mesmo tempo. A antiga Brooke era

sinônimo de hesitação. Não vou mentir, no entanto. Estou assustada, e seria

uma farsa dizer o contrário. Não é como se fosse algo esperado, uma coisa

comum, banal. Mas eu deixei de ser a garotinha receosa que tinha pavor de

olhar para trás e acabar vendo a própria sombra.


Eric brincou com minhas cordas por tempo demais. Está na hora de
revidar. Eu possuo as cartas do meu destino. E hoje irei colocá-las na mesa.
— Você tem certeza? — Drogo questiona, estudando minhas feições.
— Sim, eu tenho. — respiro fundo. — Preciso fazer isso sozinha.
Ele não insiste ou tenta argumentar, apenas recosta-se contra o muro e
joga um calcanhar por cima do outro, cruzando os braços acima do peito.
— Eu estarei aqui. — avisa.
— Eu sei. — minha convicção o faz exibir um sorriso ladino quase
imperceptível.
Erguendo a cabeça, me afasto da árvore em que estive nos últimos
minutos, permitindo que a chuva fina que escoa do céu de Londres me molhe.
É uma sensação agradável, eu sinto como se a água estivesse lavando o peso
que havia em meus ombros por causa dos acontecimentos recentes.
Atravessando a rua deserta sem olhar para os lados, me aproximo dos
portões que se estendem na entrada e protegem o casarão. Eles não são a
única proteção do lugar, entretanto. Dois homens uniformizados com ternos
pretos sob medida, e armados, estão do outro lado. Ao total, eu conto seis
guardas. Dois estão parados na escada de entrada que dá acesso à porta
principal, e os que restam andam pelo gramado impecável, ignorando por
completo a chuva. Todos eles usam comunicadores auriculares, do tipo que
só vemos em agentes do FBI ou CIA nos filmes. A única razão para toda essa
segurança reforçada existir é que, além de ser uma família extremamente rica,
os DeLuca possuem muitos inimigos.
Assim que finalmente paro em frente aos portões, uma luz branca quase
me deixa cega. Eu aperto os olhos com força por puro instinto, mas não recuo
ou levo as mãos ao rosto para cobrir meus olhos. Eu sequer notei que um dos
guardas, um careca de aparência rústica e do tamanho de um armário, havia
se aproximado tanto. Ele permanece mirando a lanterna em meu rosto ao
mesmo tempo em que seu companheiro aponta a arma para mim. Ambos são
grandes e musculosos, o completo oposto da minha aparência. Apesar disso,
eles me fitam como se fôssemos idênticos.
— Mãos aonde possamos ver. — o segundo, ainda maior e mais
robusto do que o primeiro, ordena. Eu elevo as mãos, posicionando-as ao
lado da cabeça. Sei que estão seguindo o protocolo, todavia, é um pouco
irritante a maneira como agem. Quer dizer, se eu quisesse causar problemas,
já teria causado. Sem contar que há câmeras espalhadas por todo o local. Eles
seriam alertados caso ocorresse alguma movimentação, de fato, bastante
suspeita. Embora eu não esteja sozinha, pois Drogo está a somente alguns
metros daqui, é evidente que nenhum de nós está armado. Não presto atenção
na pergunta que é feita, então ela é repetida. A superioridade em sua voz e o
modo como ele me estuda, como se eu fosse uma pedra dentro do seu sapato,
me enerva. Abaixo os braços, ainda que seus protestos se intensifiquem. Eu
ignoro o risco de levar um tiro.
— Não sou uma ameaça. — disparo, meus membros esquentando com
a chama de fúria em meu interior. — Eu quero ver o patrão de vocês.
Os dois riem em sincronia, similares a hienas, e trocam olhares
cúmplices de soslaio. As armas permanecem apontadas para mim, entretanto.
— Todos querem, garotinha. Está bem tarde, não acha? Por que não dá
as costas e vai para sua bela casinha antes que as coisas fiquem feias?
— Elas ficarão feias, — rebato, agarrando as barras gélidas dos portões
e os encarando com um olhar ferino. — se não me permitirem entrar.
— E por que permitiríamos?
— Porque ela é uma DeLuca.
Eu reconheceria essa voz mesmo se estivesse no meio de uma multidão
barulhenta. Diego DeLuca. O homem alto e poderoso que conheci algumas
noites atrás, anda em nossa direção como se o mundo o pertencesse. Pelo
poder e pela confiança que ele exala apenas em se mover, eu diria que meu
pensamento não é nada mais do que a verdade.
Seu timbre áspero corta o ar, sendo transmitido através da brisa como
fumaça densa ao vento. O arrepio que me toma não é somente por causa da
entonação firme e contidamente feroz usada, mas pelas palavras escolhidas.
Meu ritmo cardíaco acelera e eu agradeço internamente pela chuva, pois ela
serve para acalmar a enxurrada de sentimentos. Sua seguinte ordem é que
abram os portões — a qual é obedecida em segundos.
Recuo um passo ao vê-los emitir um pequeno ruído, indicando o início
do processo. Não demora muito para que ambos se estendam diante de mim
como asas pretas se abrindo. A visão faz algo em meu estômago. Ou talvez
sejam os pares de olhos curiosos que me observam com atenção ao passo que
retomo meu caminho, entrando na mansão. Seria ridículo fingir que não os
vejo, pois são tão discretos quanto polegares doloridos.
Passo pelos guardas, adorando vê-los cabisbaixos quando cruzo a
entrada. Diego os observa de um jeito nada amigável, e eles percebem isso.
— Não esqueçam. — murmuro disfarçadamente, seguindo de cabeça
erguida. —Eu avisei.
Meus dedos estão rijos e molhados quando fico cara a cara com o
homem que, por mais estranho que possa parecer, é nada mais que o meu tio.
— Você demorou, criança. — adverte num tom fraternal que me pega
desprevenida. Mesmo que sua expressão seja dura, noto um vislumbre
afetuoso descansando em seu rosto. Ele ostenta uma barba bem-feita, e seus
olhos azuis — mais escuros do que me recordo — percorrem cada centímetro
da minha face com agilidade, parecendo querer guardar todos os meus traços.
Não o impeço, porque a ação não me incomoda.
— Na noite do baile de máscaras, — pigarreio, perguntando assim que
começamos a andar pela passarela de vidro. — você já sabia que eu...
— Não. — sou interrompida. — Eu sempre soube da sua existência,
mas naquela noite não a reconheci. Não até ouvi-la me dizer seu nome.
Finalmente entendo sua reação abrupta e hostil. Achei que fosse devido
ao fato de que ele seria uma das muitas pessoas que odiavam Sebastian
Andreotti. Bem, eu estava errada. Ou não. Talvez uma coisa não anule outra.
De qualquer maneira, continuo conversando com ele à medida que passamos
pelos pilares pretos de mármore que se estendem por todo o trajeto,
sustentando o vasto hall de entrada da mansão.
Meus passos se tornam razoavelmente mais lentos quando nós
cruzamos a sala principal. Diego informa que seu irmão já sabe que estou
aqui e me aguarda em seu escritório. É estranho, embora reconfortante, o
modo como ele consegue manter uma conversa casual, agindo como se
fôssemos velhos conhecidos. Suas perguntas são calmas e simples, coisas
sobre a escola e minha irmã. Eu percebo, então, qual é o seu intuito.
Me distrair.
— Nós nos desentendemos no começo da noite. — murmuro. Em geral,
sou uma pessoa reservada. Eu não saio falando da minha vida e do que
acontece ou deixa de acontecer nela. Porém, ele faz parecer tão casual que,
por alguns minutos enquanto conversamos, me permito ser aberta. — Você...
soube do que houve com o Leo? — o nó em minha garganta é real, pois
mesmo que eu saiba que ele está bem agora, ainda é delicado.
Sua mandíbula endurecida faz um movimento ríspido, evidenciando
que, sim, não é uma novidade. De qualquer jeito, eu já estava imaginando.
— Foi tudo armado. — elucida o que eu nutria plena ciência. —
Agiram de dentro para fora, o que não esperávamos naquela noite. O restante
deles foi trancado em suas cabines. A Summer e o Leo foram os únicos que
conseguiram sair, mas apenas por terem se retirado antes. Ela nos ligou e
contou o que ocorreu. Procurava pelo amigo no momento dos disparos.
Matteo permanece no hospital, e nenhum deles pretende sair do prédio antes
do amanhecer. Deveríamos estar no teatro, Michael e eu. No entanto, tivemos
uma mudança de planos em alguns assuntos pessoais. Meu sobrinho tomou
partido. — finaliza a explicação. — Ainda que seja um acontecimento quase
impossível, nós fomos pegos desprevenidos.
Eric é mais engenhoso do que eu pensava. Não sabia que sua mente
havia programado cada ação de modo tão elaborado e perigoso.
Por um minuto, penso que, assim como os outros, eu deveria estar ao
lado de Leo. O problema é que fui uma covarde e não me senti preparada
para vê-lo naquele estado. A imagem de seu corpo caído, coberto por todo
aquele sangue, principalmente o que escapava de sua boca, é uma imagem
que sempre vai me perseguir como uma sombra. Certas coisas, por mais que
desejamos, não podem ser apagadas.
— Não pense muito. — Diego me alerta calmamente. — Você
entenderá, em breve, como as nossas vidas funcionam. Não se assuste,
criança.
O tempo para que eu rebata seu aviso não me é dado. Quando torno à
realidade, saindo dos meus devaneios, nós já estamos parados diante de uma
porta de mogno que vai do chão ao teto. A maçaneta foi tão bem lustrada que
brilha, reluzente como ouro. Adotando uma postura mais firme, empino o
queixo. Meu nervosismo é palpável, não importa o quanto eu lute para
empurrá-lo para debaixo do tapete, mas não irei recuar.
— Vocês precisam ficar a sós. Contudo, estarei esperando no final do
corredor. — informa. — Brooke, sei que você não me conhece e que tudo
isso está te assustando em grandes níveis. Porém, gostaria que, apesar dos
pesares, você pudesse cumprir um pedido meu. Acha que consegue?
Depois de uma fração de segundos, eu aceno.
— Qual?
— Quisemos conhecê-la desde que soubemos da sua existência, mas
Blair fez meu irmão prometer que ficaria distante até que você o procurasse.
— reitera. — Estávamos ansiosos pela sua chegada, e foi por você que
saímos da Califórnia para vir à Inglaterra. Não estivemos ao seu lado como
queríamos desde o início. Por isso, perdemos inúmeras partes da sua vida, e
sei que não passamos de completos estranhos. Entretanto, agora somos sua
família, nós protegemos uns aos outros. E iremos protegê-la. Então, meu
pedido é para que não nos olhe como se tivesse medo.
— Vocês não me assustam. — digo mais rápido do que deveria, no
entanto, não há sarcasmo em minha resposta.
Não estou mentindo. Eles me intimidam, mas não os vejo como se
fossem monstros e meu pescoço estivesse em seu cardápio. Os DeLuca são
pessoas poderosas e carregam uma aura sombria, austera. Dizer que eles não
são intimidadores, seria como assumir que você não tem cérebro.
O sorriso que torce seus lábios é contido, quase imperceptível. Todavia,
eu capturo o pequeno lampejo zombeteiro que o gesto exibe.
— Vai mudar de ideia. — seu tom é severo, e eu paraliso ao ter sua
mão bagunçando o topo da minha cabeça gentilmente. — É bom tê-la aqui.
Diego abaixa o braço, deixando-me sozinha e sumindo no final do
corredor. Sua atitude foi chocante, porém, o choque maior é porque eu gostei.
Hesitante, recupero o fôlego e acerto duas curtas batidas à porta. Na
terceira, uma voz intensa e autoritária, totalmente distinta de qualquer uma
que eu já tenha escutado, me diz para entrar. É o tipo de entonação que,
apenas em ouvir, arrepia todos os pelos do corpo.
Eu congelo, não sabendo o que devo fazer. Por um minuto inteiro,
minha mente sai do eixo e eu me sinto desnorteada. Piscar, respirar e
raciocinar parecem ações que requerem um esforço árduo. Aniquilando meu
nervosismo repentino, alcanço a maçaneta, girando-a, e entro.
Há situações em nossas vidas que passamos horas, dias e meses nos
preparando para enfrentar, também ocorrem as que temos que nos preparar de
última hora. A segunda foi o meu caso, mas nem mesmo toda a segurança
que me obriguei a ter desde que li a carta e pisei aqui, poderia ter me
preparado para o homem que está à minha espera assim que a porta se abre e
revela sua figura imponente do outro lado.
É como olhar para um espelho. O cabelo loiro, embora numa tonalidade
escura, lembra o meu. Seu escritório está bem-iluminado, por isso eu sou
capaz de enxergar o pequeno sinal no canto inferior de sua boca. Por fim,
completando o pacote impressionante de similaridades, há seu olho esquerdo;
um mar azul que cintila como se pudesse despir almas sem esforços. Não se
parece com o azul dos meus, é igual. Mas apenas ele.
Porque o direito é diferente, cinza como uma neblina. Como os de
Matteo.
Ele usa uma camisa social preta e sob medida, onde não há um único
amassado sequer, e calças que acentuam os músculos poderosos de suas
coxas. As mangas da camisa foram erguidas, revelando uma trilha de
tatuagens em seus antebraços, as quais vão até o pescoço. As laterais de seu
cabelo, distintas do topo parcialmente alto, são raspadas e dão destaque para
a tinta sobre a pele que preenche, também, seu peitoral largo.
Ele continua inalterável. A única mudança que adota é ao colocar uma
mão tatuada dentro do bolso frontal, esticando o tecido no processo.
Fechando a porta atrás de mim, eu me movo, parando de andar ao
chegar no meio do recinto. Estamos a cerca de meio metro de distância um do
outro quando meu foco recai para sua mandíbula quadrada, a qual ostenta
uma barba bem-feita, e suas maçãs do rosto são altas e suntuosas.
Apesar da boa forma, Michael tem pequenas rugas nos cantos dos
olhos. Conquanto, nada capaz de diminuir sua beleza marcante. Estou diante
de um homem que não parece ser poderoso, tudo em sua estrutura grita que
ele é poder. Nobre, elegante e letal. Assim como sua voz profunda.
— Olá, Brooke. — saúda, quebrando o silêncio.
Nossos olhares colidem e se sustentam.
— Quando encontrei a carta, — começo, realçando meu timbre para ser
ouvida com clareza e não permitir que as emoções tomem o controle. Meu
semblante é inflexível, uma tela em branco. — eu não sabia exatamente o que
pensar. Só havia uma versão nela, afinal. E ainda que fosse a versão da minha
mãe, há algo que tenho o direito de perguntá-lo, pois nenhuma outra pessoa
poderia me dizer verdadeiramente o que quero.
Ele assente devagar. Prendo a respiração.
— Diga-me o que anseia ouvir, e eu falarei. — declara calmo. — A
palavra é sua. Use-a. Você é uma DeLuca, sabe como conseguir o que deseja.
Eu não esperei ou fantasiei um reencontro amoroso ou repleto de
lágrimas, e agradeço por não ser assim. Não tenho a mínima vontade de
transformar tudo em um show de emoções conturbadas. Michael é duro como
aço, e há camadas ainda mais sólidas o cercando, tornando-o impenetrável.
Não é à toa que os boatos que correm sobre seu nome desde que ele pisou na
cidade são do tipo que fazem qualquer um temê-lo.
Não existe uma rota fácil. Portanto, tomo a única. E a mais direta.
— Quero saber se você a amou.
— Mais do que qualquer coisa.
Eu não esperava por uma resposta tão concisa, sem brechas para
dúvidas. Posso sentir a verdade e angústia por trás de sua frase. Dói. É
visível.
E por alguma razão que desconheço, neste instante, acabo me
colocando em seu lugar. Penso em como seria amar alguém e o perder de
modo tão precoce, tão injusto, e sem poder fazer nada para impedir. Por um
segundo, imagino minha vida sem o Drogo, e a mera suposição destrói meu
coração em mil partes diferentes. Isso é o que amar faz conosco; nos assusta,
nos faz temer o futuro, pois não sabemos o que nos aguarda.
O amor nos faz ter medo porque nunca estamos preparados para perder
quem amamos.
Não importa o quanto você saiba que vai acontecer. Nada pode
amenizar a dor de um coração dilacerado, nem mesmo a certeza do
inevitável.
Sabendo que foi um pedido dela não permitir que sua escolha fosse
interferida, eu jamais ousaria culpá-lo por não ter tentado pará-la.
— Você a amou, e a fez feliz pelo tempo que pôde. — murmuro,
encurtando o resto da distância que nos separa e o encarando. — Obrigada.
— Blair foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. — seus
traços suavizam. — E você, Brooke, foi a melhor coisa que aconteceu na
nossa.
Assusta-me saber que eu gostaria de abraçá-lo. Ainda assim, não o
faço. Somos dois desconhecidos, embora estejamos ligados pelo sangue. Vai
levar um tempo até que eu me adapte ao mundo atual que estou sendo
inserida a partir deste momento. Ele entende, e eu agradeço por isso.
— Eu não estive presente em sua vida durante esses anos, mas pretendo
consertar esse erro de alguma forma. Você está aqui. Diga-me como.
Memórias de todas as atrocidades as quais fui submetida, toda a
humilhação e o temor que me engoliram viva somente por respirar, cada uma
delas se esvai com sua ordem. Eu, finalmente, tenho a chance de revidar
minhas dores e tirar o peso que carrego desde muito jovem. Não sei como
Michael pode me ajudar, mas a coisa estranha é que confio nele para fazê-lo.
Eric arruinou minha vida e a das pessoas que eu amo por tempo demais. Está
na hora de pagar. Enoja-me estar ciente de que Sebastian e ele eram amantes.
Minha mãe precisou enfrentar muita dor em vida, e mesmo sua morte não foi
pacífica. Ela merecia mais. Eu mereço. É por essa razão que farei Eric pagar.
O meu pesadelo irá ter um fim.
Eu não sou mais um mero peão nesse tabuleiro. Eu sou a maldita
rainha.
— O diretor Carson tornou minha existência um inferno. Seus jogos
para me atormentar eram no colégio, e na maior parte das vezes em seu
escritório. Ele nunca me tocou intimamente, mas me obrigava a fazer... coisas
ruins. Eu não quero falar sobre. De qualquer modo, aceitei tudo para proteger
minha irmã. — aperto os punhos. — Também não quero que sinta pena. A
única coisa que eu almejo, é minha vingança. Eu desejo sua cabeça em uma
bandeja. — reitero, e sou capaz de enxergar o ódio que o queima, pois
equipara-se ao meu. Noto o jeito como os músculos de sua mandíbula se
movem, rijos. Mas algo que percebi nos DeLuca é que, não importa o quão
feia seja a situação, eles são extremamente racionais, não perdem o controle.
— Na carta que minha mãe deixou, ela disse que tinha munição suficiente
para destruí-lo. Você sabe onde eu a encontro?
Seus orbes escurecem.
— Eu sou a munição. — declara. — Mesmo com todo meu poder, não
consegui protegê-la. Eu não fazia ideia de nada. Então, farei de tudo para
vingá-la. Começando por agora. Porque, ao que parece, é uma noite de sorte.
— ele vira o monitor em cima de sua mesa para que eu olhe a tela.
Estreito os olhos para enxergar a filmagem. Um homem, apenas de
cueca, está acorrentado ao teto de um galpão. Eu o reconheço imediatamente.
— É...
— Sua vingança. — Michael interrompe, implacável, e meu coração dá
um salto. Reclinando-se, ele estala o pescoço. — Eric Carson está aqui.

Michael e Diego estão comigo. Drogo também deveria, era o que ele
desejava. Todavia, pedi para que verificasse Blake em nossa casa. Por mais
que nós duas não estejamos em nosso melhor momento, não posso permitir
que a segurança dela corra risco por minha causa. Muitas pessoas já se
machucaram, e não sei se há algum capanga de Eric andando por aí, apenas
esperando uma brecha. Portanto, é melhor prevenir. Além do mais, Logan
Knife, um dos homens que trabalham para Michael, e que eu soube ser o
braço direito de Diego, está o acompanhando por via das dúvidas.
— Vamos entrar. — o segundo avisa.
Eu não sei bem como me sinto, ou o que irá, de fato, acontecer. Meus
sentimentos estão conturbados e, sendo sincera, nada parece verdade agora.
Michael me disse que seus homens pegaram Eric assim que ele tentou
deixar o teatro pela saída dos fundos, próxima aos camarins. Sua repulsa por
Carson vem de anos atrás, desde o tempo em que ele conheceu Sebastian na
Itália. Não sei ao certo como ocorreu, mas algo relacionado a uma união nos
negócios entre os pais deles quando ambos estavam vivos. A verdade é que
ele, pelo que explicou, tem as mãos em coisas ilegais.
Mafiosos.
Meu pai biológico e meu tio, assim como sua família, a minha família.
Todos inseridos no berço da máfia. É bizarro e chocante. Entretanto, é real.
Desperto do meu transe ao ouvir um rangido suave. A porta pesada se
abre e o cheiro instalado no galpão me golpeia no instante em que entramos
no denominado Abatedouro, nauseando-me. É uma mistura entre vômito,
urina e suor. O ar é rarefeito e acerta-me como um sopro abafadiço. Uma
lareira está acesa, também. O odor pútrido não incomoda Michael ou Diego,
e sei que é porque os dois estão mais do que acostumados a pisar aqui. Me
assusta, mas não recuo. Qualquer outra pessoa em meu lugar estaria
morrendo para fugir. Eu não estou. Nada além de sedenta por retaliação.
Meu olhar percorre o local com iluminação precária. Observo uma
mesa auxiliar de cirurgia no canto inferior, o inox brilha para mim. Eu capto
vários objetos cirúrgicos sobre a superfície. Imaginar para que eles servem,
antes, faria meu estômago embrulhar. Neste momento, tudo o que faço é me
perder no modo como o bisturi reluz. Meu olfato começa a se adaptar ao
mau-cheiro, diminuindo a náusea, embora eu evite respirar fundo.
Quando tomo coragem para encarar o centro do galpão, eu o vejo. Com
os pulsos unidos e acorrentados por uma corrente grossa que está presa em
uma das vigas, está Eric Carson. Meu pior pesadelo desde os quinze anos de
idade. Seu corpo magro está embebedado de sangue ressecado e brilha com
rastros de suor. Um círculo amarelado no meio de sua cueca branca, que
agora está encardida, deixa claro o que houve. Ele se mijou todo.
Lembranças do que esse homem foi capaz de fazer comigo me
assaltam, enviando-me em uma espiral momentânea do passado. A qual é
apagada quando Diego, usando luvas pretas de couro, similares as que
cobrem as minhas mãos e as de Michael, arranca os fones de proteção que
descansam nos ouvidos de Eric. Sua estrutura sacode em um solavanco, e
antes que ele possa entender o que aconteceu, a venda em seus olhos é
arrancada.
Carson pisca freneticamente, forçando a visão a adaptar-se à luz
repentina que acerta seus olhos. Enrugando o nariz e respirando com
dificuldade, seu olhar voa em direção à porta. Onde estou. Ele grita por cima
do tecido em sua boca, mas nada faz sentido, pois são meros ganidos
ininteligíveis.
Eu tomo coragem para avançar um passo.
— Muito desconfortável para você? — repito as mesmas palavras que
ele usou comigo algum tempo atrás, minha entonação saindo cruel, facínora.
Por mais que a situação me assuste, preciso fazer isso sem a presença
de ambos.
— Eu gostaria de ficar sozinha com esse verme.
Michael permanece com uma expressão resguardada, enquanto Diego
hesita por alguns segundos. Retirando a mordaça, afasta-se de Eric.
— Se precisar, estaremos do lado de fora. — intervém, afastando-se.
Meu pai olha para mim por alguns segundos com uma certa intensidade
em suas íris distintas. Como se quisesse me lembrar, por meio desse olhar,
quem eu realmente sou e qual o sangue que corre em minhas veias. É o
sangue dele. Porque eu sou uma DeLuca. Sempre fui, eu só não sabia.
— Sabe, Carson, — Michael começa. — eu nunca gostei de você.
Quando meus homens colocaram as mãos no seu corpo inútil e imundo
naquele teatro, eu pensei “Finalmente vou ensiná-lo uma lição.” Mas, bem,
não irei. — há uma pausa. — Eu, não. Brooke é minha filha e você sempre
soube, é por isso que a odiou tanto, não é? Porque uma traição com seu
amado Sebastian Andreotti era inaceitável. Ainda assim, ocorreu. Estou
ciente que minha menina seja capaz de dar a você uma morte épica. Portanto,
a menos que ela peça, eu não irei, de modo algum, interferir. Meu aviso é que
não abra sua boca para pedir misericórdia, porque não terá. Hoje, você vai
entender que tocar nos meus filhos não é apenas burrice, é suicídio.
A maneira como suas palavras são proferidas, e principalmente a calma
e a convicção imposta nelas, faz minha corrente sanguínea borbulhar.
Eric ofega, enraivecido, suas narinas dilatando como as de um touro
bravo.
— Acha mesmo que ela vai ter coragem? — berra, salivando.
— Eu não sou o tipo de homem que acha nada, Carson. Ou eu tenho
certeza, ou não. E, sendo honesto, neste momento estou com a primeira
opção.
Sem proferir outra sílaba, a cabeça de Michael se move em um aceno, o
qual eu retribuo. Ele e Diego saem do galpão, fechando a porta e me
deixando com quem foi meu maior tormento. A diferença é que, agora,
nossas posições foram invertidas. Eu não sou mais a presa, sou a caçadora.
— Você tinha razão. — Eric cospe. — Eu deveria ter te matado quando
tive a chance. Olhe a dor no rabo que você se tornou para mim, sua putinha.
Eu não respondo. Os gestos que executo ao andar até o atiçador e
pressionar a ponta dele no fogo da lareira são enganosamente fleumáticos.
Minha mão se fecha ao redor do cabo e eu observo, sob os gritos e ofensas
que vêm dele, o quão pontiagudo é. Na extremidade há uma bifurcação, onde
um dos lados é reto e afiado, e o outro é moldado de forma côncava. Corro o
polegar ao longo da pequena argola no início. Meu olhar é de ódio, mas
permito que se perca na ação, apreciando a mudança de cor no material. Por
enquanto, não pretendo matá-lo. Não. Eu quero fazê-lo sofrer.
Eu o farei gritar.
— Eu sabia, — falo por cima de seus berros, que diminuem ao som da
minha voz. — que você não estava transformando minha vida em um inferno
por puro prazer. Quer dizer, — sorrio, mas é vazio de humor. — você estava.
Mas eu sempre soube, Carson, que havia um motivo por trás de tudo.
— Você é uma aberração! — grita, contorcendo-se.
Paro em sua frente com o atiçar apontado para ele.
— Sou. — concordo. — E farei questão de mostrar.
Não importam as palavras que ele pretendia berrar como réplica,
porque tudo o que sai de sua boca é um ganido de agonia quando penetro o
atiçador em sua coxa direita. Eric se engasga com a própria saliva,
contorcendo-se como um animal moribundo. Seus braços se agitam e as
correntes no teto emitem um rangido barulhento. Mantenho a ponta dentro de
sua carne, segurando com firmeza e apreciando a maneira como o sangue
vívido escorre da ferida aberta. A imagem é doentia e me enoja, similar a um
filme de horror, mas, por mais bizarra que seja, me satisfaz. Esperei por
muito tempo para fazê-lo grunhir como um porco e pagar por toda a
crueldade causada. Nenhum sentimento racional é capaz de sobrepor a sede
de vingança que me toma. Não é somente por mim, é por todas as pessoas
que amo e fui obrigada a assistir serem machucadas.
Esse desgraçado não se sentiu mal ao me atormentar ou os ferir. Sendo
assim, eu me recuso a ter um estômago fraco tratando-se de machucá-lo.
Puxo o objeto, somente para enfiá-lo em sua outra perna. O grito que
reverbera dele é ainda mais desesperado e maníaco do que o anterior. Seus
músculos se retraem por puro reflexo, e o chiado que sua carne faz quando
puxo devagar o atiçador, se mistura aos seus uivos estridentes. Meu nariz
arde e sei que estou prestes a chorar. Não quero dar o gosto da minha
fraqueza a ele. Embora não sejam lágrimas de tristeza, ainda são lágrimas.
Contudo, por mais que eu tente esconder, Eric se agarra à brecha da minha
ruptura, deliciando-se enquanto arfa e estremece pela tortura.
— Eu disse, — estala, suor escorrendo por seu peito sujo e desnudo. —
que você não teria coragem. É fraca demais, boa demais. Sempre foi, Brooke.
— seu tom é cantado, similar a uma canção infernal. — Eu te disse que vi o
dia em que você e sua irmãzinha foram concebidas? Como aconteceu? Como
foram gêmeas de pais diferentes? É porque Michael fodeu sua linda mãe e
logo depois Sebastian a estuprou. Ela implorou para que ele parasse. Chorou,
soluçou. Eu deveria ter gravado seus gritos. — seu rosto gira para me olhar
por cima do ombro. — Foram de outro mundo.
Calor ferve em meu corpo à medida que sua revelação desumana rola
para fora, vibrando em meus ouvidos como um disco arranhado. Eu não tento
mais impedir que as lágrimas deslizem, pois elas o fazem com uma violência
excruciante. Minha visão borra e eu ofego, tomada pela fúria. Meus
movimentos são agitados quando volto a jogar a ponta do atiçador no fogo
que crepita na lareira. O ar se torna dez vezes mais abafado, pesado como
concreto. Minha saliva parece areia quando engulo, arranha minha garganta.
Tropeçando em meus próprios pés para chegar à mesa cirúrgica, agarro um
dos bisturis. Ao retornar para perto dele, posiciono-me bem atrás. Não há
mais hesitação em mim, nada que não seja ira.
Eu cravo a lâmina cortante em suas costas, formando um “X” sangrento
que marca quase toda a região. A ponta é tão afiada que corta sua carne com
facilidade. As coisas que Eric diz somem no galpão quando seus berros
estouram. Em seguida, sua cabeça pende para baixo. O vômito que jorra de
sua boca se lança no piso, sujando sua barriga, e o odor de urina espalha-se
pelo ambiente quando ele volta a se mijar, o líquido amarelado escorrendo
por entre suas pernas. Todos os xingamentos proferidos se tornam lentos,
arrastados. Localizo onde começa a corrente que prende seus pulsos, vendo-a
enrolada ao redor de uma válvula. Não é fácil desenrolar, eu levo alguns
minutos. Todavia, assim que termino, tenho o corpo ensanguentado de
Carson caindo em seu próprio sangue e mijo com um baque alto e seco. Volto
a agarrar o atiçador, me movendo em sua direção. Tudo o que enxergo é uma
bagunça nojenta. Meu peito sobe e desce com lufadas intensas, um véu
vermelho borrando meu campo visual.
— Rasteje! — ordeno, meu tom é mortífero enquanto o persigo
devagar ao passo que ele estica um braço, depois o outro, lutando para se
arrastar.
Eu o assisto conseguir chegar até a porta de aço. Mesmo que ele
pudesse abri-la, seria inútil. Seu destino é a morte, não há qualquer
absolvição. Portanto, eu dou o que ele merece. Erguendo um pé, pressiono a
sola da minha bota em suas costas feridas, embalando-a com seu sangue
imundo. Eu piso com mais força e ele chora. Seus membros oscilam e Eric
arfa quando, usando o mesmo pé, eu empurro seu corpo debilitado para cima,
tirando-o de bruços. Seus lábios estão esbranquiçados, e seus olhos se
encolhem para me encarar pairando sobre ele como uma sombra ceifadora.
— Você não é assim... linda. — sufoca. — Não é um monstro. — o que
ele diz, me lembra as palavras de Grayson. Então, eu as recito calmamente:
— Todos nós somos monstros. Eu só estou colocando o meu para
brincar. — meu foco o vasculha com lentidão. — Você profanou a memória
da minha mãe, fez coisas horríveis para as pessoas que eu estimo e tentou me
usar como se eu fosse sua maldita marionete. Mas eu nunca fui, Eric.
Troco o atiçador de uma mão para a outra sem desviar meus olhos dos
dele. Eu quero ver o exato segundo em que a vida deixará seu corpo, em que
sua alma podre não passará de lixo inerte, um nada ao vento. Eu quero
assistir cada mísero segundo, porque eu mereço apreciar a morte dele.
Meus dedos se enroscam no objeto com mais força. As correntes
rangem fracamente quando o verme tenta, em vão, lutar para se mexer e
escapar.
— Você lembra? — eu assobio baixinho. — Lembra quando eu disse,
naquele dia, que você morreria pelas minhas mãos? Eu não estava blefando.
— as íris dele cintilam com um brilho aterrorizado. Do tipo que você sabe
que chegou ao limite, onde não há mais lugar para correr. Não lhe resta
absolutamente nada a não ser seu destino. A vingança, em si, é boa. Contudo,
nada se compara a vingança lenta, aguardada com paciência. Seu sabor é
doce. — Todos os dias, eu acordava pensando que aquela seria a data em que
eu finalmente te mataria, o inferno acabaria. Este dia chegou.
— Você, Brooke, é uma vadia.
— Sou a vadia que vai te matar. — seguro a corrente que ainda prende
seus pulsos e a enrosco em sua garganta, apertando o ferro pesado o mais
forte que sou capaz. Carson se contorce para se livrar do aperto que o asfixia.
Recordo-me do meu pescoço sendo segurado no teatro, sua tentativa frustrada
de me enforcar. — Não é tão satisfatório quando é você no lugar, não é? Está
começando a ficar sem fôlego? Seu raciocínio está lento? Bagunçado? —
sorrio. — Eu quero que você dê um recado a Sebastian Andreotti assim que o
encontrar no Inferno: diga que eu o mandei se foder.
Raiva contorce sua feição abatida e ele tenta me cuspir, mas a saliva sai
fraca e seca, e acaba acertando sua própria face. Uma bela porcaria patética.
Descanso o atiçador em seu peito, fazendo-o rugir e se mexer
freneticamente pela queimadura que a ponta afiada causa ao penetrar em sua
carne.
— Você será igual a mim! Depois que cruzar a linha, — Eric brada
enfurecido, em meio a um rio de lágrimas e jatos de saliva. — não poderá
voltar!
Curvando meu corpo sobre o seu de modo parcial. Nossos olhares
colidem, e eu sei que será a última vez. Porque, agora, finalmente irá ter um
fim.
— Eu não pretendo voltar. — sussurro, descendo sua cueca e agarrando
seu pau pequeno, úmido e amolecido. Com os dedos enluvados, puxo-o para
cima. Capturo o bisturi que descansa em meu bolso traseiro com a mão
direita, e com a esquerda cerro a base ornada por pelos pubianos.
Seus gritos estrepitosos ecoam por todo o lugar, os orbes revirando pela
dor. Quando termino, tenho seu pênis ensanguentado. O qual eu enfio dentro
de sua boca com violência, enterrando fundo. Mais um engasgo, mais vômito,
mais espasmos. Descartando as luvas, fico de pé e murmuro:
— Eu deveria ter gravado seus gritos. — coloco a ponta do atiçador em
seu peito, lágrimas queimando em meus olhos. — Foram de outro mundo.
Sem outra palavra, envolvo ambas as mãos no ferro, cravando
profundamente em sua carne. Um barulho estranho ressoa e sangue quente
espirra, acertando minhas roupas e rosto. A cabeça dele pende para o lado. Eu
sei. Eu sinto com todas as minhas forças que meu maior pesadelo terminou.
Eric Carson está morto.

Estou banhada em carmesim quando passo pelo cadáver no chão.


Abrindo a porta, encolho as pálpebras ao receber a luz forte da manhã em
minha face. Não sei quantas horas estive dentro deste lugar esquecido por
Deus, mas deve ter sido um tempo considerável, pois quando entrei ainda era
madrugada. O canto dos pássaros do lado de fora é calmo e suave, todavia,
não serve para acalmar o furacão presente em meu interior. É como se eu
estivesse sob o efeito de alguma droga. Sinto-me entorpecida, agindo no
modo automático. Talvez a razão seja o choque.
A única coisa que sinto, e muito bem, é o ar fresco. Fecho os olhos,
absorvendo a brisa que faz as árvores cheias farfalharem ao colidir nelas.
— Brooke?
Eu me viro devagar. Constatando que, como haviam dito, Michael e
Diego estão me esperando. Eles caminham lado a lado até chegar onde eu
estou.
Desperto e percebo que ainda seguro o bisturi ensanguentado. Decido
colocá-lo no bolso da jaqueta. O primeiro a quebrar o silêncio é o mais novo.
— Ele está morto? — questiona cuidadosamente.
Eu aceno em resposta, evitando usar palavras. Não sei o que acontecerá
se eu decidir abrir a boca. Talvez eu chore, ou grite. Talvez ambas as coisas.
— Venha. — Michael instrui, observando o sangue e o mau-cheiro
impregnados em mim e os ignorando. — Não vamos falar disso se você não
quiser.
— Eu não quero. — é a única coisa que digo. — Tudo o que eu desejo
é tomar um banho e... esquecer.
Os dois trocam olhares que desconheço, e logo eu sou levada para
longe do galpão. O que eles dizem não faz sentido para mim, embora seja
coerente. Preciso de um tempo para me adaptar e digerir os últimos
acontecimentos. Porque, neste segundo, é como se eu não possuísse emoções,
nada além de dormência.
Eu matei uma pessoa. Só sabemos até que ponto somos capazes de
fazer determinadas coisas, quando a vida nos obriga a mostrar o nosso pior
lado.
Tirei a vida de Eric com minhas próprias mãos de uma maneira
sanguinária. E, sendo sincera, achei que me sentiria péssima depois que a
ficha caísse e eu entendesse o que, de fato, causei. Eu não somente o matei,
eu o torturei. Tive coragem de fazê-lo mergulhar em sofrimento. Eu, que
cerca de um mês atrás, era incapaz de ferir uma mísera formiga. Seus gritos
continuam contornando minha mente, e tenho certeza de que ficarão nela para
sempre.
Michael permanece em silêncio quando cruzamos a sala principal,
prestes a subir as escadas para que eu lave a sujeira em meu corpo. Ele avisa
que seu filho mais novo, Asa, está chegando. As palavras não me penetram,
mas eu aceno. Em um dos meus bolsos traseiros, meu celular toca. Eu havia
esquecido que ele ficou ali o tempo todo. Encarando a tela, vejo o nome de
Drogo aparecer no identificador de chamadas.
— Ei, — seu tom é hesitante. — como estão as coisas?
Sua voz, embora distinta do habitual, ameniza minha agitação. Eu
gostaria de tê-lo por perto. Ele não sabe o que eu fiz e não desejo contar desse
jeito.
— Não sei ao certo. — digo apenas, pois seria péssimo criar uma
conversa complexa através de uma ligação. Drogo iria enlouquecer. — E a
Blake?
Alguém do outro lado da linha parece dizer algo, distraindo-o por uma
fração de segundos com alguma pergunta ou coisa similar.
— Desculpe. O tal do Knife possui uma boca insuportável e grande. —
ele reclama. — Sua irmã não está na mansão. Na verdade, não pisa lá há
dias. Disse que ficou em um apartamento fora da cidade, um prédio da
família, porque precisava assimilar tudo o que aconteceu. Estou indo lá em
breve. O pneu acabou furando e tivemos que rebocar manualmente até o
posto de gasolina mais próximo. Que não era nada próximo, na verdade. De
qualquer modo, liguei para avisar esse imprevisto.
— Está bem. — corro a ponta do polegar ao longo do apoio da escada,
assentindo. — Eu preciso tomar um banho agora. Nos falamos depois, certo?
— Claro. Ligue se precisar.
Antes que ele encerre, interrompo:
— Eu te amo. — declaro baixinho.
— Eu também amo você.
A linha cai em um silêncio profundo. O qual não demora a ser
quebrado quando ouço um dos homens falar sobre o celular de Eric ao
passarem pelo hall de entrada. Como se uma alavanca fosse puxada em
minha cabeça, há um estalo que reverbera por ela. Carson sempre foi um
viciado em celular, e tenho certeza de que há coisas no dele — e não apenas
sobre seus segredos pessoais, mas sim fotos e vídeos sobre mim. Ele era o
tipo de pessoa que gravava tudo, principalmente quando estávamos em seu
maldito escritório. Virando-me, salto os degraus de dois em dois, pulando na
frente dos homens ao chegar onde eles estão. Minha parada abrupta os
impede de continuar andando. Seus cenhos franzem com minha presença.
— É o celular do Eric Carson? — ofego.
Devagar, o mais alto e forte deles acena.
— Eu pedi para que conseguissem acesso, já que a digital não era uma
opção. Quero ver as coisas que aquele verme escondia para trazê-las aos
holofotes da sociedade londrina e mostrar quem o diretor era. — Michael
explica acima de mim. — Eu soube que ele não desgrudava desse aparelho.
Me perco no objeto por alguns segundos. O visor está trincado, mas
nada muito exagerado. Somente um traço em vertical no canto inferior.
Acredito que tenha sido causado depois que o pegaram saindo do teatro,
porque Carson nunca ficaria com um celular danificado, ainda que
razoavelmente. Abstraindo o odor de sangue em minhas vestes, estendo a
mão e peço o telefone. Os homens me olham com desconfiança, mas não
recusam me entregar, pois Michael os dá sinal verde. Agradecendo, verifico a
tela. O fundo é uma daquelas paisagens padrões que vemos em computadores
novos. Em geral, seria um papel de parede normal, tratando-se do monstro
que o portava, não consigo achar menos do que bizarro.
Meu intuito é entrar na galeria para ver quais os tipos de vídeos e fotos
estão armazenados. Todavia, por ainda estar com a ligação que Drogo fez
recentemente em meus pensamentos, acabo deslizando o polegar sobre o
botão do histórico de chamadas.
O vinco entre minhas sobrancelhas enruga, oscilando quando vejo que
todas as ligações que existem, mesmo as de meses atrás, são somente para
uma pessoa. As iniciais são o que prendem minha atenção de imediato. Por
puro instinto, mesmo que um pouco hesitante, inicio uma nova chamada.
Este é um daqueles momentos em que as coisas ocorrem e você
presencia. Porém, parece não estar realmente lá, testemunhando. O mundo
para, o chão desaba. A sensação que tenho pune meu peito, é como se uma
mão arrancasse meu coração e o apertasse diante dos meus olhos. O primeiro
toque ecoa em meus ouvidos como um tapa oco e seco. O segundo, mais
demorado, equipara-se a uma queimadura em minha região mais sensível.
Mas é o terceiro toque que arranca de vez a minha alma.
— Eric! Onde você está? O namoradinho dela está vindo.
Essa voz... Eu a reconheço. É a voz da minha irmã. Blake.
Não. Não. Não.
O celular cai do meu aperto, acertando o piso e estilhaçando-se em
dezenas de pedaços ao redor dos meus pés. Eu pisco, mas nada diante dos
meus olhos possui foco. É tudo um borrão. Minhas pernas amolecem e eu
sinto os calcanhares colidindo contra algo maciço. Não percebo que são os
degraus até que meu corpo ceda e eu desabe em cima de um deles. Vozes
explodem na sala, chamando-me, falando comigo. Mesmo perto, estão
distantes. Ouço o timbre grave de Michael, no entanto, não entendo o que ele
diz. Eu me converto em um tsunami de dor. Não quero aceitar, não quero que
as suposições se enraízem em meu cérebro. Contudo, uma voz — a que estala
repetidamente em meu subconsciente — me faz entender que é o que é.
Tenho o estômago revirando como se estivesse sendo torcido ao limite.
Eu vou vomitar.
Minha irmã. Todo esse tempo, ela esteve junto a Eric.
A agonia é tão lancinante que eu não sou capaz de derramar uma
lágrima sequer. Eu tento chorar, tento colocar meu horror para fora.
Entretanto, absolutamente nada sai. É como se, em definitivo, eu me
convertesse em pedra. A dor é real, me engole viva, e eu a sinto corroer todos
os meus ossos.
As palmas das minhas mãos estão geladas e escorregadias quando me
forço a levantar, agarrando o corrimão liso e sufocando a vontade de vomitar.
— O que aconteceu, Brooke?
— Eu preciso de um carro! — berro enjoada.
— Diga o que aconteceu. — Michael insiste.
— Apenas me dê as chaves!
A porta da frente se abre e eu vejo o rapaz do porta-retratos, o que
estava no teatro lírico. Seu semblante é cansado, similar ao meu. Ele ainda
usa o mesmo terno da noite passada. Sem qualquer cumprimento formal, o
garoto faz um barulho com a boca, capturando minha atenção. A atitude
desagrada a Michael, mas, não estou dando a mínima para quaisquer
sermões.
— É a Lamborghini branca. — ele grita seu aviso. — A senha é mil
duzentos e trinta e sete.
A mão de Michael toca meu antebraço para que eu raciocine e o escute.
Eu o afasto tão violentamente que cambaleio, correndo para fora do casarão.
Minhas botas derrapam quando piso na passarela de vidro que dá acesso ao
jardim. Eu escorrego, mas pressiono as das mãos no chão para me impedir de
cair. Erguendo-me, torno a correr. Os portões estão fechados, barrando minha
saída. Bato nas grades ao chegar nelas, gritando para que abram. Os guardas
fazem o que eu peço e logo estou atravessando a calçada, seguindo em
direção ao veículo no meio-fio. Coloco a senha e elevo a porta. Pulando
dentro, piso no acelerador após bater no botão de partida. Blake está em um
dos prédios construídos por Sebastian e que ficou como parte da nossa
herança. Quando mais nova, ela costumava pedir ao nosso antigo motorista
para que a levasse para lá. Depois dos dezesseis, decorou seu apartamento.
Eu nunca pretendi pisar naquele lugar.
Não até hoje.
Estou completamente perdida quanto ao que ela queria que Eric fizesse.
Certamente me matar. Pensar nisso envenena minha alma, destroça-me. No
entanto, se tem uma coisa que eu tenho certeza é de que se trata de uma
armadilha. Ela pretende colocar as mãos em Drogo para me atrair, é a única
explicação. Mas eu morrerei antes de permitir seu êxito. Minhas mãos
apertam o volante com tanta força que as veias saltam em meu dorso e os nós
dos meus dedos se tornam esbranquiçados. Com a esquerda, pego meu
celular do bolso traseiro e ligo para o último número no histórico de ligações.
— Por favor. — imploro aflita. — Por favor, atende!
Como se ouvisse meu pedido, no quarto toque sua voz ressoa do outro
lado da linha. Alívio me toma, contudo, é uma sensação passageira.
— Ei, — forço-me a não permitir que meu nervosismo transpareça. —
onde você está?
— Prestes a sair do posto de gasolina. Por quê? Algum problema?
— Nenhum. — pigarreio. — Percebi que vai ser melhor se eu falar
pessoalmente com a Blake. Você e o Knife podem voltar, eu te encontro em
breve.
Silêncio.
— Tem certeza?
— Sim, tenho. — ressalto, desviando de um carro ao perceber que
estávamos no caminho para colidir. Minha cabeça não está no lugar, porém,
preciso ter concentração se quiser chegar inteira em meu destino. Estou
despedaçada por dentro, perdida e sozinha, mas não posso permitir que a
bagunça seja refletida do lado de fora. Posso estar na beira do abismo que
leva à loucura, mas há coisas que devo fazer. E a principal delas é confrontar
Blake.
— O que foi isso? — o questionamento de Drogo me faz respirar fundo
e despertar do declínio. — Brooke, você está realmente bem? Eu posso ir
com você.
— Não! — asseguro rápido demais. — Estou bem, sério. É uma coisa
de irmãs. Apenas ela e eu. Hm, eu tenho que desligar agora, estou dirigindo.
Encerro a chamada sem escutar sua réplica.
O brilho do sol me faz estreitar os olhos quando o veículo sobe um
pequeno declive. Eu passo pelo posto de gasolina em que os dois certamente
estão, todavia, não paro para verificar se minha constatação está correta. O
prédio não fica longe daqui, mas é afastado do centro, próximo ao Mount
Bowl, um lugar cercado por casas extravagantes. Pouco menos de dez
minutos dirigindo e estou parando a Lamborghini no meio-fio. Encaro a
fachada do arranha-céu. Há dois apartamentos onde o de Blake fica, e um
deles foi projetado para mim. Em vão, é claro. Eu nunca quis sequer me
aproximar.
Uma garrafa quase vazia está jogada em cima do banco do carona, uso-
a para lavar os respingos secos de sangue em meu rosto ao abrir a porta do
veículo. Ao terminar, puxo o zíper da jaqueta até a garganta, escondendo as
manchas grudadas no tecido branco da camiseta interna. Secando as lágrimas
que eu não havia notado que estavam caindo, faço um rabo de cavalo e saio.
Atravesso a calçada e me movo para o interior do edifício, cruzando a porta
dupla de vidro e subindo os degraus de entrada. O saguão luxuoso não faz
meus olhos se encherem, não me envia emoção alguma.
Pelo contrário, torna o embrulho em meu estômago mais intenso. A
riqueza que o sobrenome Andreotti carrega é uma farsa. Nada além de
imundície.
— Srta. Andreotti! — Tomaz Williams, o gerente, cumprimenta ao me
ver. — Como é bom tê-la aqui. Quer as suas chaves?
— Eu quero a cópia do apartamento da minha irmã. — disparo,
ignorando sua saudação.
— Por qual motivo? — indaga, sua expressão indo de felicidade
genuína à confusão sutil.
— Porque eu quero.
Seu sorriso é fraco e sem graça. Eu permaneço séria, impenetrável. Não
quero estender esse diálogo mais do que o necessário.
— Sinto muito...
Eu sei que ele está a um passo de começar toda a besteira sobre
protocolos, o que pode ou não pode ser feito. Cresci nesse mundo, e estou
ciente de como funciona. Seus argumentos, ainda que sejam válidos, não irão
servir de nada para mim. Antes que Williams possa continuar, eu o
interrompo:
— Eu quero a cópia do apartamento da minha irmã. — repito
duramente, e adoto um tom contido. — Do contrário, farei questão de
estampar seu rosto nos jornais mais famosos de Londres com provas
explícitas de que comer as esposas dos banqueiros que se hospedam aqui é
sua refeição favorita. Portanto, você pode fazer o que estou pedindo e seguir
suas regras de etiqueta depois que me der as chaves, ou pode arriscar ter seu
traseiro na mira de diversos homens poderosos. Escolha com sabedoria,
Williams, porque eu não sou uma boa pessoa.
Não há outra coisa em seu rosto que não seja pânico e descrença. As
palavras que poderiam indicar uma resposta não deixam sua boca, e eu vejo
um filete de suor rolar por sua têmpora antes de sumir em seu terno caro. Seu
pomo de Adão sobe e desce quando Tomaz engole em seco, exibindo uma
careta. Meio segundo é todo o tempo que leva para que seu corpo magro gire
e vá até a recepção, inclinando-se contra o balcão para falar com a mulher do
outro lado. Assentindo, ela se vira e o entrega um par de chaves douradas
presas por uma pequena argola no topo.
Eu espero pacientemente seu retorno. E quando ele vem, estendendo-as
na minha direção, eu as seguro contra a palma, apertando a ponto da dor.
É real. Por mais que eu me force a querer não acreditar, não possuo
meios para fugir da realidade. Minha própria irmã me apunhalou. Ela me
traiu.
A pessoa que mais amei e protegi. Cada dor que senti para mantê-la a
salvo, cada gota de comiseração que fui forçada a beber para que ela não
precisasse enfrentar o lado feio e torcido da vida. Eu a amei e me sacrifiquei
por ela, e todo o meu inferno na terra não passou de um ato vão, inútil.
Porque, no fundo, minha irmã esteve todo esse tempo ao lado de Eric
Carson. Deus, isso dói tanto.
O barulho das chaves me faz piscar. Eu saio do meu torpor e olho o
rosto empalidecido de Tomaz.
— Obrigada, Williams. — agradeço.
Dou as costas e sigo para o elevador vazio, apertando o botão que leva
ao vigésimo andar. Apoio as mãos sobre os joelhos, curvando-me para
respirar fundo. O local parece mais abafado, mais apertado e minha audição
se torna aguçada. Eu escuto cada mínimo ruído ao encostar-me contra o
espelho.
Assim que o barulho do elevador se faz presente e as portas se abrem,
privilegiando-me com a visão do vasto corredor, eu pulo para fora dele,
permitindo que meus pés me levem ao apartamento de Blake. Eu empurro a
chave na fechadura e giro a maçaneta, olhando pela fresta criada.
Ela não espera por mim, espera por Drogo, e sabe que ele bateria
quando chegasse. Como não é o caso, sei que sua guarda está baixa.
Fecho a porta com cuidado ao entrar. O ambiente é amplo, bem-
iluminado. A mobília, assim como as paredes, possui tons claros. Uma lareira
está abaixo da TV e há uma mesinha de vidro no centro. Meu olhar se perde
na arma, uma Glock 9 mm, que descansa sobre as diversas revistas que estão
jogadas em cima da superfície. Como um fantasma, ando até ela e verifico a
munição. Está com várias cápsulas, mas ainda faltam balas. Três, ao total.
Meus pensamentos me jogam para a noite do teatro. Os tiros, um deles
acertou o Leo. Posso estar fantasiando, mas pressinto que estou certa.
Foi Blake quem atirou.
De repente, considero que ele não estivesse tentando chamar meu nome
quando proferiu minha inicial, e sim o dela. As pequenas coisas começam a
fazer sentido. Por um minuto, penso que estou enlouquecendo. Talvez esteja.
Ainda assim, prefiro enlouquecer a virar o rosto e negar o óbvio, acreditando
que exista uma possibilidade de confiar nela, porque não existe. Com calma,
eu tiro o restante da munição e as derrubo no aquário vazio.
Quando éramos mais novas, tivemos aulas de tiro. Blake e eu sabemos
manejar uma arma, embora nunca tenhamos precisado. Quer dizer, não eu.
Jogo a Glock dentro de um dos vasos de plantas artificiais. Estou
observando a vista da cidade que se estende pelo horizonte, vagueando o
olhar pela paisagem, quando ouço passos pesados na direção da escada. Olho
por cima do ombro, vendo a figura de Blake surgindo na metade dela.
— Caramba! — grita, espalmando uma mão no peito e respirando com
força. Seu cabelo está molhado, indicando que ela acabou de sair do banho, e
sua vestimenta é uma blusa preta de alças, similar à minha, e calça jeans
branca. A parte inferior de seus olhos ostenta um tom preto e borrado, como
se Blake estivesse com pressa demais para remover devidamente a
maquiagem. O sorriso que torce sua boca faz meu reflexo de vômito ativar.
Falsa.
Eu permaneço em silêncio da mesma forma que ela se mantém onde
está, optando por não subir ou descer. Quando seus dedos magros se
enroscam no corrimão com mais afinco, percebo a inquietude que sua postura
adota. Não é a minha irmã que está diante de mim, é uma completa estranha.
De todas as crueldades que a vida me fez enfrentar, essa é a pior e mais
insuportável de todas. Dando um passo à frente, eu a encaro, inexpressiva.
— Por quê? — é tudo o que pergunto. — Por que fez tudo isso?
Eu não dou brechas para uma encenação. Seus lábios se separam,
abrindo e fechando. Então, finalmente, Blake permite que a máscara
escorregue.
— Sem teatros? — ironiza, arrastando os olhos para onde estava a arma
e os revirando ao ver que está em desvantagem tratando-se de alcançá-la. —
Antes de começar todo o show de irmãs, deixe-me esclarecer algumas coisas,
Bee. Você sabia que em algum lugar da internet, dizem que um dentre os
pares de gêmeos tem tendências a ser desajustado? — seus ombros sacodem
e ela sorri de leve. — Surpresa! Eu fui a felizarda com esses genes.
— Por quê? — repito gritando, meus pulmões protestando pelo esforço
imposto na pergunta.
— Porque eu te odeio! — brada de volta. — Porque não suporto que,
mesmo sendo uma antissocial do caralho você seja o centro de tudo! — sua
entonação sobe diversos decibéis e minha estrutura oscila com o timbre
furioso que ela adota. — Porque você não merece a porra da glória, Brooke!
— Eu amei você! — explodo, abrindo os braços. — Eu protegi você
mais do que a mim mesma! Eu vivi e existi por você todo esse tempo, Blake!
— Inútil! — sua saliva respinga no ar. A gargalhada que irrompe de
sua garganta é alta e descontrolada. — Eu nunca precisei ser protegida,
irmãzinha!
Então, eu compreendo o que estava bem na minha frente. Durante esses
anos, Eric não a tocou por minha causa, e sim porque os dois eram cúmplices.
Eu perco o fôlego por alguns segundos, desnorteada.
— Você sabia. — acuso. — De tudo!
— Desde o começo. — enfatiza eufórica. — Você acha que o imbecil
do Eric era inteligente? Bem, na verdade ele não era tão burro quanto você,
ao menos. De qualquer forma, sim. Eu sempre soube, principalmente do
passado. Carson me contou cada mínima coisa que sabia. Ah, é nojento,
porém, eu também sabia sobre o — ela faz uma careta. — caso com
Sebastian. — sua cabeça balança com irritação. — Você vê, Brooke? Eu era
filha dele, tínhamos o mesmo maldito sangue, mas era você quem aquele
doente da porra amava! E por quê? Porque ele tinha nojo de mim! Uma
coisinha imunda que nasceu de um estupro, enquanto você era a garotinha de
ouro. Mesmo sendo fruto de uma traição, possuía o amor dele. E tudo porque
Michael, seu querido pai, e nossa amada mãe, que Deus a tenha, se amavam!
É fodido, não é? Chega a ser utópico, só que não passou da realidade! — o
estalo que vibra através do recinto quando sua mão acerta o corrimão me
causa um pequeno susto. — Não era justo! Você, assim como eu, é fruto de
um pecado, é uma alma imunda vagando pelo mundo e fazendo ainda mais
peso nessa Terra de merda! Então, diga-me, irmã, se é desse jeito, por que
você sempre fica com tudo? — ladra raivosa. — Por que sempre acaba tendo
o melhor? Por que as pessoas a amam mais do que a mim? Eu quem deveria
ter seus amigos! Eu quem deveria ser amada por um homem! Eu quem
deveria ser filha de Michael DeLuca! Eu! Eu! Não você! Eu!
Arrasto os dedos pelo couro cabeludo, não acreditando que estou
ouvindo cada palavra proferida. Ela suga uma lufada de ar, empertigando-se.
— A propósito, fui eu quem envenenei a Avalon. Também fui eu quem
atirou em Leo Ballister. E irrita-me profundamente saber que ele está vivo.
Aliás, a tentativa de atropelamento teve meu lindo dedo no meio. Talvez
você, já que chegou até aqui, saiba de alguma dessas coisas. Ou de todas.
Entretanto, eu tenho certeza de que você não sabe que matei seu gato e o
cachorro do Drogo. Você tinha que ouvir os últimos barulhinhos que eles
fizeram, foi tão triste. Bem, para não ser tão filha da puta, embora seja um
pouco tarde, não irei prolongar o assunto. De qualquer forma, gostaria de
deixar evidenciado que eu já sabia, também, que você e o Drogo não eram
meios-irmãos. Quer dizer, ele é realmente filho do Sebastian. — outra vez ela
ri, é quase como se estivesse contando a piada do século. — Sua mãe, Diana,
foi prometida ao meu pai pouco antes de Blair, e eles tiveram o Drogo graças
a uma recaída do passado, após o término prematuro. Ou seja, eu e seu
namoradinho temos o mesmo sangue pútrido correndo nas veias.
As coisas parecem girar.
É um pesadelo. Uma coisa terrível da qual, infelizmente, eu sei que não
posso escapar. Não posso fugir ou me esconder, fechar os olhos até que
suma. Minha irmã é uma aberração e não mede esforços para me fazer
entender isso. Eu me odeio por ter sido tão burra, tão ingênua. Mas como eu
poderia saber? Como poderia compreender que a pessoa que esteve ao meu
lado durante todos esses anos desde que eu nasci, era essa coisa? Esse
monstro?
Lembro-me da morte dos nossos animais de estimação. Eu fiquei
devastada. Contudo, Drogo ficou mais. Foram dias horríveis. E ela quem os
matou.
— Por que você fez isso, Blake?
— Porque eu queria a sua vida. — grunhe. — E não podia. Desse
modo, minha única alternativa era torná-la um inferno. Eu consegui, não
consegui?
Todas as sensações adormecidas arranham a superfície em busca da
liberação. Eu luto para não deixar que as emoções me tomem, mas elas
começam a escapar pelas rachaduras que são criadas. Forçando-me a me
manter de pé, eu permaneço enraizada onde estou, minha visão tornando-se
embaçada.
— Foi inveja? — eu sussurro incrédula. — Inveja? A minha vida e a
dos meus amigos correram perigo por que você é a porra de uma invejosa?
— Sim! — berra. — Sim, Brooke, sim! Eu gostava do seu sofrimento!
Eu me deliciava com ele! Desde a noite em que vi Sebastian no nosso quarto,
quando não passávamos de duas coisinhas pequenas, eu gostei de ver o seu
medo e a sua dor naquela maldita penumbra. Porque, graças àquilo, você se
tornou tão fodida quanto eu. — sua frase me enoja tanto que eu levo uma
mão até a boca para não vomitar. Meus olhos ardem e lacrimejam pelo
esforço que executo ao não me permitir colocar tudo para fora. É mais do que
desumano, é doentio em níveis e graus alarmantes.
— Eu era uma criança!
— Eu também! — sua pele ganha um tom escarlate vibrante. As veias
do pescoço saltando em exibição, assim como as da testa. Seu peito sobe e
desce, frenético. — Eu era uma criança especial. Uma menininha diferente
com alguns aspectos levemente problemáticos. — suspira. — Você estragou
tudo.
— É. — ladro firmemente. — Eu estraguei. Porque, decerto, você tinha
um plano perfeito, não tinha? Terminar de foder comigo e sair como a pobre
vítima. Mas eu baguncei as peças do tabuleiro, não baguncei? Eu arrebentei
as malditas cordas que me prendiam. Então, agora que estamos revelando
nossos segredos sujos. — a conversa me enjoa, mas desligo o botão de
consciência. Abrindo o zíper, tiro a jaqueta. — Eu tenho que te contar um.
O vislumbre de algo que desconheço cruza seu olhar vidrado. De
repente, as posições parecem ter se invertido. Blake não está no topo que
construiu.
— O que está fazendo?
— Acho que você já deve imaginar que Eric está morto. Permita-me
falar que eu o matei. — esclareço apática. — E eu o fiz sofrer muito. A todo
momento ele duvidou que eu teria coragem de dilacerar seu corpo antes de
mandá-lo direto para o colo de Satã. Você faz o mesmo comigo, Blake. Eu
consigo ver nos seus olhos que você duvida do que sou capaz. Mas eu sou
capaz de muitas coisas. — eu me aproximo e ela recua. — Porque eu não sou
mais aquela garota que você assistia por trás das cortinas ser atormentada. Eu
te fiz viver, mas, da mesma forma, posso te fazer morrer. E eu vou. — minha
ameaça a acerta, embora ela lute para que eu não veja. Todavia, eu percebo.
Farejo sua hesitação, seu receio. — Você errou em me subestimar.
Nunca, nem em mil anos, imaginei que poderia ter esse tipo de embate
com minha irmã. Todas as coisas que vivemos desde a infância me
englobam. Meu cérebro é uma marionete, a única parte de mim que não
deveria, entretanto, ainda está recheada de lembranças e memórias felizes de
nós duas.
As quais eu massacro uma por uma.
Blake está além da salvação. Sua alma, se é que ela já possuiu uma, é
um poço de maldades. Não preciso estar em sua mente para saber que, se
pudesse ou precisasse, ela faria tudo de novo. Talvez de formas ainda piores.
Nada justifica suas atrocidades. Ela foi além de mentir, ela feriu, matou.
— Eu não tenho medo de você, Brooke. — sua declaração quebra o
silêncio instalado.
— Deveria.
— Então, o quê? — ela umedece os lábios e ri. — Acha mesmo que vai
me matar?
— Não acho. — o que eu falo a faz exibir uma careta enojada. — Eu
tenho certeza.
— Se eu fosse você, não estaria tão certa disso.
— Este é o ponto, Blake. — sustento seu olhar, estalando o pescoço. —
Você não é.
Ela ri. Contudo, este sorriso é diferente dos outros. É um sorriso de
desconforto. De medo. E a prova final que recebo para comprovar minha
teoria é quando, virando o corpo numa velocidade alarmante, ela agarra o
corrimão e se impulsiona para os degraus de cima, iniciando uma corrida.
Uma descarga de adrenalina me toma de imediato e eu também corro.
Minhas botas, por não possuírem saltos, não são um problema.
Blake quase consegue chegar ao topo, quase, eu a impeço ao subir dois
degraus de cada vez e agarrar seu calcanhar. Nós duas caímos de bruços ao
mesmo tempo, o ar me sendo roubado quando a quina de um degrau acerta
meu abdômen. Apesar da dor, eu não a solto. Seu cabelo sacode ao passo que
o rosto dela gira na minha direção e suas unhas se agarram à madeira. Seus
olhos, antes os verdes mais brilhantes e bonitos que eu havia visto em toda
minha vida, se convertem num poço obscuro de ímpeto. O rugido que escapa
por entre seus dentes me ordena que eu a solte. Em contrapartida, seguro com
mais avidez, enroscando-me nela como uma serpente. Alcanço o corrimão,
usando-o de suporte para puxá-la. Mais uma vez, sua estrutura escorrega,
ficando mais perto. Seu pé livre se ergue, acertando um chute na minha boca.
O golpe me deixa atordoada, e logo sinto o gosto metálico espalhar-se. Por
ser pega desprevenida, eu afrouxo a pressão que mantenho, mas me obrigo a
não soltar. Será ruim se acontecer.
Recorrendo à minha melhor opção de saída, direciono todo meu peso
para trás. O corpo de Blake oscila em sincronia com o meu e nós duas
rolamos os degraus ao mesmo tempo, nos tornando uma mistura caótica de
membros e ruídos indecifráveis. A queda é lancinante. O impacto que minhas
costas sofrem ao colidir com o piso me faz engasgar e arregalar os olhos. Eu
ofego em busca de oxigênio, enfraquecida pelo baque.
— Sua desgraçada... — ouço-a xingar, incoerente, tropeçando ao ficar
de pé.
Levo cerca de um minuto para me recuperar, titubeando ao me levantar.
Ao me erguer, Blake tenta acertar uma rasteira em minhas pernas, mas sou
mais rápida e cambaleio para fora de seu alcance. O que eu não esperava é
que sua segunda tentativa de me acertar fosse ter êxito.
Ela agarra um dos quadros que enfeitam a parede, acertando-o na
minha costela. Eu perco o equilíbrio, todavia, consigo me esquivar antes que
minha irmã me atinja outra vez. Pego um dos jarros que enfeitam o aparador
e lanço contra ela, mas erro a mira e o objeto se estilhaça num ponto distante.
— Se pretende me matar em breve, irmãzinha, — seu sorriso é
perverso. — vai ter que melhorar sua mira.
— Se você diz. — estalo, partindo para cima.
Nossos corpos colidem num embate brutal. Circulo os dedos em sua
nuca, agarrando um punhado de seu cabelo. Blake revida de imediato,
enviando as unhas longas na lateral do meu pescoço. Os arranhões doem
como o inferno. Eu ergo um dos joelhos e acerto sua barriga, fazendo-a se
curvar e tentar pular para longe. Fecho a mão com mais firmeza, usando toda
a força que possuo para lançar seu corpo em cima da pequena mesa de vidro.
A mobília se parte, quebrando em dúzias de pedaços irregulares à medida que
sua estrutura cai, rolando sobre os vidros. Gotas de seu sangue se misturam
aos estilhaços, pingando neles. Os braços dela estão adornados por arranhões,
mas nenhum profundo. Dessa vez, Blake é quem avança. Suas mãos
espalmam em meu peito e eu não sou capaz de afastá-la. Meu corpo bate em
um objeto pesado e eu vejo a sala rodar. O sofá acerta em cheio minha perna
quando caio, prendendo-a. Sinto-me zonza pela dor.
Dando a volta, ela para ao meu lado. A respiração descompassada. É
quando percebo um pedaço de vidro descansando em sua mão
ensanguentada.
— Eu te conheço bem o suficiente para saber que tocou na minha arma.
— anuncia convicta. — Portanto, terei que recorrer a outra forma de te ferir.
— Antes de nós continuarmos, — sorrio. — há algo que quero dizer.
— A palavra é sua.
— Vai se foder. — assobio, mostrando o dedo do meio.
— Eu vou foder com você. — vocifera descontrolada. — Ah, por falar
em foder. Sabia que tentei trepar com o Drogo? Não porque ele queria, claro.
Para ser honesta, ele nem mesmo sabia. Um dia, pouco tempo depois que
começamos a dividir o mesmo teto, ele chegou tão bêbado que não estava
aguentando ficar de pé. Era madrugada, você estava dormindo. Eu entrei no
quarto dele tão silenciosamente, Bee. Foi fácil demais. — náusea me atinge e
desejo tampar os ouvidos, porém, minhas mãos estão ocupadas, trabalhando
para me livrar do sofá. — Só que, como você, ele estragou tudo.
— Cale a boca!
— Eu cheguei a massagear o pau dele sobre a calça. Eu desci a
braguilha. — sua língua sai para umedecer os lábios. Nojento. Arrastando o
vidro pelo encosto virado do sofá, ela bufa e revira os olhos com tanto afinco
que quase tocam a linha do couro cabeludo. — Mas ele teve que dizer o seu
nome.
— Você... — horror me toma quando as palavras fazem sentido. —
Você é mesmo um monstro, Blake!
— Acredite, querida. Quase ter transado com um homem inconsciente
é o menor dos meus crimes.
O estofado se rasga com a pressão que Blake coloca, a espuma
escapando da pequena fenda. Um gosto ruim toma meu paladar. Pelo amor de
Deus.
— Ele é seu meio-irmão. — cuspo enojada. Eles realmente dividem o
mesmo sangue. E pensar que ela tentou se aproveitar de seu estado de
embriaguez, de fato me faz compreender que a garota está além de ter caráter
falho. Ela é uma aberração. Um perigo eminente para qualquer pessoa.
Seus ombros sacodem com indiferença.
— Sempre gostei de um tabu. — delibera. — Por que acha que Avalon
Montgomery me odeia? — seu olhar se ilumina. — Eu transei com a mãe
dela.
Encaixo as unhas no estofado, o gesto parece dilacerá-las. Quando
Blake termina seu discurso doentio e se inclina para me atingir, eu
impulsiono os quadris para cima, afastando-os do chão e empurro a mobília.
Ela tropeça, mas permanece com o vidro sob seu domínio, rangendo os
dentes. Eu me arrasto para longe de seu alcance. Meu joelho esquerdo foi o
mais prejudicado. Tentar dobrá-lo requer um esforço que não tenho. Estou
começando a cansar. Tento me levantar, mas sou agarrada pelos cabelos.
Com uma força sobre-humana, sou erguida e jogada contra o aparador. Penso
que irei cair, mas ela não me solta. Estou me preparando para desferir uma
cotovelada em sua barriga quando minha cabeça é pressionada dentro do
aquário. Engasgo com a água que adentra em meu nariz, enchendo meus
pulmões. Bolhas violentas se formam e meus olhos ardem enquanto agarro as
bordas, tentando emergir. Meus movimentos, antes agitados, perdem a
velocidade, se tornam arrastados e minhas pálpebras se fecham lentamente,
pesadas.
É assim que vai acabar.
Eu morrerei desse jeito.
— Sabe o que é estranho de se ver? Você sem aquele bando. — sua voz
está abafada. Nada mais que um murmúrio ao longínquo dançando em meus
ouvidos. — Eu acho irritantemente impressionante como eles se odeiam, mas
morreriam uns pelos outros. Inclusive por você. Ah, última coisa. No lugar de
tê-los trancado nas cabines, eu queria os ferir. Só pude tocar no Leo, embora.
Foi um problema ele escutar o áudio que mandei para o Carson.
Então, tudo foi ela. Cada infeliz acontecimento naquele teatro, mesmo
os que pensei terem sido Eric, ela quem causou. O quão psicótica sua mente
é?
Minha mão cai dentro do aquário e minha palma esbarra contra algo
sólido e irregular. Uma pedra. Usando meus últimos resquícios de força,
agarro o objeto. O movimento que faço é errôneo, pois estou perdendo a linha
do meu raciocínio. Ainda assim, é o que basta para acertar alguma parte dela.
Eu escorrego e caio sentada, tossindo avidamente. Piscando, enxergo o
filete escuro de sangue que escorre de sua têmpora esquerda. Estou no limite.
Não consigo entrar em uma briga com ela neste estado. O afogamento
foi demais para mim. Eu continuo cuspindo a água. Meu cabelo molhado
pinga em minha blusa, formando pequenos círculos sobre o sangue. Minhas
narinas ardem, meus olhos estão levemente turvos, e eu sou incapaz de me
levantar. Blake, por outro lado, apesar dos ferimentos, nutre mais vitalidade.
Além do mais, ela é uma maldita psicopata. Não vai parar até morrer.
— A propósito, Brooke. Eu nunca, em nenhum mísero momento, amei
você.
É duro. Todavia, ela não poderia ser mais honesta. É assustador
imaginar como uma pessoa pode ser capaz de atuar tão bem, e por tanto
tempo. Mas essa é a coisa dos seres humanos. Somos criados com a mentira
enraizada em nosso âmago, assim como o pecado, faz parte da nossa
natureza. A questão é que alguns de nós, como minha irmã, levam a mentira a
um patamar totalmente absurdo.
Eu engulo em seco, permanecendo no mesmo lugar enquanto a assisto
encurtar a distância entre nós. Um passo, dois, três, quatro... Eu conto todos.
Estou aceitando meu destino, o fato de que vou morrer pelas suas mãos,
quando a frase final que ela usa serpenteia meu cérebro, despertando-me:
— Quando eu te matar, — sibila, limpando o ferimento com raiva.
Curvando-se, pega um pedaço de vidro ainda maior do que o anterior,
caminhando até mim com um olhar assassino no rosto. — eu vou usar um
bisturi para cortar a pele do seu rosto bonito e a usarei como uma máscara no
Halloween.
Minha jaqueta está caída a centímetros de mim. Recordo-me que o
bisturi, o qual usei para marcar as costas de Eric, permanece dentro do bolso
esquerdo. Aproveito seu discurso vanglorioso para esticar os dedos, tocando
o couro reforçado. Respiro pela boca ao sentir o aço frio contra as pontas
deles. Sem que Blake perceba, capturo o instrumento cirúrgico, mantendo-o
escondido sob minha palma. Eu não sei se vou ser rápida o bastante, mas não
vou perder minha vida sem lutar até o último suspiro. Não aceitarei nadar,
nadar e morrer na praia. Não quando ainda me resta uma chance.
— Suas últimas palavras, irmãzinha? — cantarola, secando um filete de
sangue que começa a escorrer de uma de suas narinas.
— Você fala demais. — eu esboço uma risada fraca, deixando-a fora de
controle. Com um berro escandaloso, Blake avança, se jogando com força no
chão para finalmente cravar o pedaço de vidro em meu peito num golpe fatal.
Entretanto, eu me esquivo, segurando o bisturi e erguendo-o.
Tudo acontece ao mesmo tempo. No segundo em que o tenho
atravessando minha carne e eu grito, também perfuro o pescoço dela com a
lâmina. Sangue escuro e quente jorra, indicando que devo ter atingido sua
jugular. No fim, seu rosto frente a frente com o meu é tudo o que resta. A
vida deixando-a gradativamente. Seu corpo desliza, os olhos arregalados.
Blake não profere qualquer sílaba. Ela não se move, não respira. Ela não
existe.
Porque Blake está morta.
UM MILHÃO DE VIDAS

“Eu vou fazer isso durar para sempre


Não me diga que é impossível
Porque eu te amo até o infinito”
— Infinity | Jaymes Young

SEIS ANOS DE IDADE

MINHA MÃE, DIANA, DIZ QUE EU tenho que estar

charmoso para conhecer pessoas novas e importantes. A parte ruim é que

isso sempre é vergonhoso para mim.


Ela costuma me vestir como se eu fosse o Chaves.
Estou descendo os suspensórios da minha roupa, irritado por ter que
usá-los, quando enxergo um pontinho cor de rosa e brilhante sentado em um
banco perto da fonte. Uma cabeça, eu percebo. Chegando mais perto, eu me
camuflo nos arbustos e estreito os olhos. No bolso traseiro, carrego um
estilingue e pérolas de tamanho médio, as quais arranquei de um colar velho
que achei na rua ontem à tarde. Minha mira é boa, posso acertar quem quer
que seja se eu considerar uma ameaça. Ou apenas por puro prazer. Estou
tão entediado que eu poderia morrer de infelicidade. Talvez eu caia duro
bem aqui, nesse chão.
Deslizo os dedos para trás devagar, no entanto, paro ao escutar um
barulho suave, baixinho. O pontinho é uma menina e ela está chorando. Eu
detesto lágrimas.
— Você está chorando por quê? — resmungo revirando os olhos e
saindo dos arbustos. Enfio as mãos nos bolsos da frente das minhas calças
curtas.
Eu queria tirar esses suspensórios horríveis, mas papai me daria uma
bronca e mamãe ficaria chateada. A menina, ainda de costas, funga
apressadamente e acaba derrubando o urso de pelúcia que está segurando.
Com uma careta, abaixo-me e pego a porcaria felpuda. Quando o estendo
em sua direção, fazendo um barulho com a boca para que ela me olhe, seu
rosto finalmente se vira. E eu posso dizer que tenho a mesma reação dos
adultos nas novelas mexicanas que minha mãe assiste todas as tardes.
Aquele tipo de cena em que o homem olha para a mulher em câmera lenta.
Por um instante, penso estar vendo uma miragem. Algo que não existe.
Ela é um anjo.
Tão linda que meu coração faz uma coisa estranha e eu tenho vontade
de vomitar. Diferente de Jaxon Gaillard, meu melhor amigo, eu não odeio as
garotas. Eu só nunca gostei de uma. Quer dizer, eu gosto da minha mãe e da
nossa vizinha, a senhora Margot — porque ela sempre me dá biscoitos e
chocolate quente depois que entrego seu jornal. Agora, entretanto, é uma
coisa diferente. Uma sensação que nunca senti antes. Então, eu entendo. É
amor. Eu a amo. Sim, eu a amo mesmo.
O cabelo loiro dela está solto, e eu noto que seus fios são um pouco
mais claros do que os meus. Seus olhos são como duas piscinas limpas e sua
boca tem um formato de coração. Os lábios dela me lembram o que Janine,
prima de Jax, desenha em seu caderno rosa quando coloca “Drogo e
Janine” nas últimas páginas.
— Qual é o seu nome, gatinha? — murmuro, usando o apelido que meu
pai usa com a minha mãe. Acho que com ela não funciona, pois tudo o que
recebo é uma careta de confusão. A garota balança a cabeça, negando-se a
me dizer. Eu cruzo os braços. Não pretendo desistir. — Está bem, está bem.
E a sua idade? Pode falar?
Demora um pouco, porém, ela acaba erguendo a mão direita,
mostrando cinco dedinhos rechonchudos e bem-cuidados.
— Eu tenho seis. — informo, mesmo que ela não tenha perguntado. —
E meu nome é Drogo. É parecido com dragão, mas é mais foda. — seus
olhos avermelhados arregalam com horror quando profiro a última palavra.
Isso me faz sorrir. — Você não diz palavras feias? — sua cabeça balança tão
rápido que estou surpreso por não descolar e sair rolando pelo chão. — Seus
pais brigam? — ela assente. — Você já falou alguma vez? — ela nega. —
Você acha engraçado? — outro aceno.
Seus olhos se arregalam de imediato, então, ela nega com veemência.
Sua pequena mentirosa, eu penso. Entretanto, eu é que não vou dizer que
chamo escondido porque meus pais brigariam comigo se ouvissem. Aprendi
a usar palavras feias na escola, e eu gosto delas. Meu amigo diz que as
meninas adoram os garotos maus.
— Por que você está chorando? — tento de novo, lutando para fazê-la
dizer qualquer palavra, qualquer coisa. Eu só quero ouvir sua voz. — Não
gosto quando as pessoas choram. — reclamo, sentando-me ao lado de seu
pequeno corpo e empurrando as camadas bufantes de seu vestido de
princesa. Muito rosa, muitos babados e muito brilho. — Principalmente as
mulheres. A minha mãe nunca chora, e eu fico feliz por isso. Meu pai cuida
bem dela. O seu pai cuida bem da sua mãe?
Ela franze o cenho e parece pensar. Por fim, sacode os ombros. — Hm,
eu espero que sim. — ergo o rosto, observando o grande céu noturno e as
estrelas nele.
— Você não quer falar, certo. Mas eu posso adivinhar o que te fez
chorar? — proponho. Hesitante, ela concorda. — Está bem. Alguém que
você gosta morreu?
Não.
— Hm. Alguém te disse coisas feias?
Novamente, não.
— Seus pais foram maus com você?
Mais um não.
— Seu animal de estimação fugiu? — seus olhos brilham, mas ela
nega. — Estou perto, não estou? — questiono com um sorriso convencido na
boca, ela aquiesce.
Eu respiro fundo.
— Você quer um animal de estimação?
Sim. Sim? Sim! Eu acertei, puxa vida!
Seu cabelo balança à medida que ela concorda avidamente.
— O que aconteceu? Não querem te dar um? — sua cabeça volta a se
mover, todavia, não é um sim nem um não. Eu suspiro, mordendo o interior
da bochecha.
Ela é muito difícil.
— Sua mãe não deixa?
Não de novo.
— Seu pai?
Ela concorda, tristemente. É quando eu decido que tenho a solução
para o seu problema. Vou acabar com a tristeza dela.
— Certo. Eu te darei um animal de estimação. — declaro firme.
Sua boca se abre em choque. A garota está surpresa, mas não há sinal
de horror. É... felicidade. Eu sorrio por causa disso.
— Um gato. — decreto, estendendo a mão direita com o meu mindinho
curvado. — É uma promessa.
Sua mão toca a minha para juntarmos os mindinhos. Eu queria que ela
nunca a afastasse. É... macia.
Ouvimos passos ecoando atrás de nós e eu pulo de onde estou sentado,
prestes a alcançar meu estilingue. Paro ao ver que o invasor se trata da
minha mãe.
— Drogo McAllister, o que você está... — ela paralisa, olhando para a
menininha. — Venha, querido. Nós precisamos ir embora.
Eu franzo o cenho, porque ela nunca usa esse tom, nem mesmo quando
está brava. Mamãe é calma, sempre gentil e amorosa. Mesmo não querendo
ir, seguro a mão que ela estende para mim. Estou a um passo de me virar
para me despedir quando sinto algo puxando meu suspensório caído. Olho
para baixo e vejo uma mãozinha pequena agarrando fortemente o acessório.
Arregalo os olhos quando a garotinha ergue seu urso de pelúcia e me
oferece.
— Eu sinto muito, minha querida, mas este brinquedo é seu. Drogo não
pode ficar com ele.
— Por favor. — sussurra, colocando-o em minha mão livre.
Eu quase caio para trás. A voz dela é tão suave que parece o canto de
um anjo de verdade, ainda que eu não saiba como é um. Deve ser assim,
embora.
Ainda estou chocado quando ela sorri de um jeito contido, desce do
banquinho e corre para longe, desaparecendo dentro da mansão. Mamãe se
agacha.
— Ouça, filho, eu não quero que você seja amigo de Brooke Andreotti.
— mamãe murmura seu aviso. Contudo, estou apaixonado demais para
escutá-la.
B-r-o-o-k-e. Brooke.
Gosto desse nome.
Seguro com força o ursinho que Brooke me entregou. Olhando no
fundo dos olhos verdes da minha mãe, eu respondo com toda a firmeza do
meu coração:
— Tarde demais, mamãe. Eu vou me casar com ela.

Eu sabia que algo estava errado assim que recebi aquela ligação.
Brooke pode atuar para todo mundo e fazer eles acreditarem nas coisas que
ela diz, porque a garota é boa nisso. Ela usou uma máscara para esconder a
verdade durante muito tempo. Mas comigo não funciona. Como eu sempre
disse, posso ver através dela mesmo que nós dois não estejamos cara a cara.
E por causa disso, no instante em que a chamada foi encerrada, eu decidi que
iria até o apartamento de sua irmã de qualquer maneira. Eu só não cheguei
mais rápido porque um pequeno acidente na estrada — nada grave, todavia
— me obrigou a esperar alguns minutos por uma liberação. No momento em
que a tive, segui direto para o hotel.
O gerente parecia preocupado quando entrei, nervoso como o inferno, e
não hesitou em subir comigo para verificar o apartamento ao me ouvir dizer
que eu era o irmão mais velho delas. Mentir foi irritante, contudo, necessário.
O homem estava suando como um porco quando entramos no elevador. E eu
não tardei a compreender que ele, do mesmo modo que eu, sabia que alguma
coisa estava errada. E, porra, não poderíamos estar mais certos. Ainda no
corredor, eu recebi uma ligação de um número desconhecido. Ninguém falou
nada do outro lado da linha, entretanto, logo depois um vídeo foi enviado,
uma gravação amadora, obviamente feita pela câmera de um celular, que
mostrou Blake atirando em Leo Ballister quando ele a confrontou sobre Eric
Carson no teatro. Eu não entendi porra nenhuma de início, porém, minha
mente estalou com o provável perigo que Brooke estava correndo. O gerente,
atrás de mim, estava tão nervoso que se atrapalhou com as chaves. Eu não
pude esperar, então arrombei.
A primeira visão que eu tive do interior ao invadi-lo foi o retrato exato
de um pandemônio. O local estava destruído, um completo caos. Cacos de
vidro espalhados por todo o lugar, mobília quebrada, sofá revirado. A pior
parte foi o sangue. A trilha de respingos pelo assoalho me fez sentir um medo
que eu jamais havia sentido. Imaginei tantas coisas, as mais fodidas. No
entanto, nada me preparou para a cena real. Meu estômago revirou.
A figura de Blake, caída em cima de sua irmã, parecia um filme de
terror sangrento ao vivo. Pude sentir o coração parar por um minuto inteiro,
talvez mais. O pânico me paralisou, roubou meu raciocínio, e eu só fui capaz
de o esvair ao ver que Brooke, embora inconsciente, ainda respirava.
A porra do problema foi que eu não sabia por quanto tempo.
Um estilhaço estava cravado acima de seu peito esquerdo, próximo ao
ombro, não muito profundo. Todavia, o sangue escorria do ferimento como
se fosse uma maldita fonte. Ela também tinha inúmeros cortes superficiais,
arranhões e hematomas recém-formados espalhados pelo rosto, colo e braços.
Ao me aproximar delas e empurrar sua irmã para longe, pude ver um bisturi
cravado na lateral de seu pescoço. A causa da morte de Blake.
Era Brooke ou ela. E olhando para minha garota deitada nesta cama de
hospital, eu não poderia ser mais grato por não ter sido a primeira opção.
Hoje, faz três dias desde que tudo aconteceu. Brooke permanece
sedada, porque os médicos disseram que seria a melhor opção após os
resultados dos diversos exames aos quais ela foi submetida saírem. Seu corpo
e cérebro estavam exaustos demais, beirando um colapso. Era arriscado
mantê-la acordada, forçando atividades cerebrais estando no limite do limite.
Eu entendo que é para o seu bem, mas, porra, ainda que ela não corra
qualquer risco de vida, eu me sinto péssimo por não ter conseguido evitar um
terço sequer das coisas que ela precisou suportar. Eu carrego uma certa culpa.
— Gostaria de trocar de lugar com você. — sussurro contra o dorso de
sua mão delicada e ferida, segurando-a mesmo depois de depositar um beijo.
— Precisa descansar, filho. — é a primeira coisa que escuto Michael
DeLuca, pai biológico de Brooke, me dizer ao abrir a porta do quarto e entrar.
Reclino-me na poltrona, esfregando o queixo.
— Terei tempo suficiente para descansar, senhor. — justifico, pegando
a xícara fumegante de café. — Já que as aulas foram suspensas por uns dias.
A sujeira que envolvia Carson foi jogada aos ventos. Agora, todos
sabem como ele, de fato, era. E as atrocidades que cometia. Achei que seu
negócio era foder com alunos — no sentido literal da coisa toda — e nada
mais. As fotos que eu havia jogado em sua cara há algumas semanas, no dia
em que invadi seu escritório, eram recortes de um vídeo amador, o qual foi
uma dor de cabeça encontrar, em que ele trepava com um aluno do GEC.
Descobri recentemente que esse mesmo rapaz havia morrido de forma
misteriosa ano passado. Sem dúvidas o dedo daquele porco esteve no meio.
Eu tenho passe livre para soltar o vídeo na internet, é claro, apenas para
ferrar mais com sua imagem suja, porém, decidi manter no escuro por causa
do garoto.
Lembro-me da noite do Evento das Famílias Principais, quando o vi
com as mãos no pescoço de Brooke. Eu quis matá-lo. Eu ia. Por um descuido,
o filho da puta conseguiu escapar. Tudo ficou ainda mais feio assim que ela
disse o que havia passado durante anos sem que ninguém desconfiasse.
Paro no tempo, lutando para controlar minha pulsação. Embora não
tenha sido eu, pelo menos deram um fim na existência dele. O mesmo com
Blake. A história do que ocorreu no hotel foi completamente distorcida e
encoberta para não causar um alarde maior. Preferi não saber o que os
DeLuca fizeram. Minha cabeça já está ferrada o bastante. Essa merda toda é
confusa e surreal, do tipo que quanto mais se sabe ou pensa, pior fica. Então,
logo, eu continuo completamente no escuro quanto aos acontecimentos, mas
sei que Eric e sua irmã gêmea infernal não são mais um problema. Os jornais
estão fervendo, em específico com a notícia do pai biológico da minha garota
ser quem é.
Por desgraça, eu descobri que sou mesmo filho de Sebastian Andreotti.
Michael e eu tivemos muito tempo para conversar e eu soube, através dele,
que a minha mãe, pouco antes de se casar com meu pai, que havia trabalhado
para sua família numa certa época, — falo sério quando digo que, porra,
Michael DeLuca é onipresente — foi noiva do verme cadavérico. Bem, não
dou a mínima, minha figura paterna sempre será Ryan McAllister.
O resto dos detalhes não passam de um borrão, porque foi a minha
vontade. Eu desisti de cavar mais fundo em busca de respostas e conclusões.
De qualquer forma, o que ficou evidente foi que a família DeLuca tem
um grande domínio sobre a polícia e os jornais prestigiados da Inglaterra.
Não fomos interrogados, não há investigações, também tem o fato de que
publicaram somente o que lhes foi conveniente. É tanta coisa debaixo do
tapete que é melhor não juntar as peças. Além do mais, meu cérebro não está
filtrando nada, então todas as informações que recebo não me abalam.
Tudo o que me importa, neste momento, é que Brooke fique bem. O
mundo pode permanecer de ponta-cabeça, contanto que eu a tenha sã e salva.
Ajustando o sobretudo para se sentar em uma das poltronas, Michael
anuncia:
— Você precisa saber de uma coisa. — concentro-me nele, me
preparando para mais uma revelação de estourar os miolos. — Sawyer
Vaughn, seu treinador, não é um treinador. Seu nome verdadeiro é Dante
Casini, ele foi melhor amigo da mãe da Brooke na infância e adolescência.
Viajou para os Estados Unidos para se tornar um federal, e conseguiu. Dante
voltou à Inglaterra para trabalhar em um caso. Nesse meio-tempo, fui capaz
de convencê-lo a trabalhar para mim. Por razões que não importam agora, o
FBI o afastou por um certo período. Meu pedido foi que, como ele ficaria
distante por alguns anos, encontrasse uma brecha para ficar de olho na minha
filha. Por ter Carson na lista de inimigos desde a época de Blair, ele aceitou.
— noto o vislumbre de decepção e revolta em seus orbes dissemelhantes. —
Infelizmente, nós não conseguimos proteger nenhuma delas.
— Eu sei como se sente. — murmuro, desviando meu olhar para o anjo
desacordado em cima da cama. — Compartilhamos do mesmo sentimento.
Apesar de não ter sido diretamente nossa culpa, é impossível esvair a
sensação. Poderíamos ter sido um pouco melhores. Embora perto, não fomos
capazes de enxergar. Ainda que eu dissesse que poderia ver através da
fachada que Brooke se empenhava em erguer, não pude notar tão além.
— Mas não deveria. — a voz de Michael me faz retornar ao agora. —
Você é jovem demais para carregar um fardo tão pesado. Preocupe-se com o
momento atual, não com o passado. Ele deve ser enterrado. Todos vocês são
novos demais para serem acorrentados por lembranças antigas. Portanto,
permita que elas sigam seu caminho para uma direção oposta. Deixe qualquer
peso para alguém mais velho, filho. Estamos acostumados.
Eu não tenho tempo para contrapor, porque antes que meu cérebro
possa formular um retorno, eu o vejo levantar. Sua mão camuflada por uma
luva preta bate em meu ombro num gesto firme e amigável. Por educação, eu
fico de pé. É difícil achar alguém do meu tamanho, o treinador e o Ballister
são os únicos, mas Michael consegue equiparar-se conosco. Pressuponho que
o homem esteja na casa dos quarenta, porém, sua vaidade evidente não o faz
parecer ter mais do que trinta e cinco anos. Espero chegar em sua idade com,
pelo menos, metade da aparência que ele ostenta.
— É mais fácil falar, senhor. — é tudo o que digo, e minha resposta o
faz exibir um sorriso quase imperceptível.
Seu celular toca assim que eu termino de falar.
— Eu sei, garoto. — pegando o aparelho e o silenciando, ele se vira e
inclina o torso, depositando um beijo no topo da cabeça de Brooke e
sussurrando palavras que eu acredito serem em italiano. Não é uma língua
que eu compreenda, então não faço ideia do que foi dito. — Preciso atender.
— informa. — Asa e Wangari, meus filhos mais novos, virão aqui pela
manhã. Aproveite a chegada deles para descansar um pouco.
— Desculpe. — antecipo-me. — Mas não pretendo sair do lado dela.
Eu não quero ser desrespeitoso, mas é o meu desejo. Espero que compreenda.
Ele fica em silêncio por alguns segundos, parecendo absorver minha
frase.
— Acredite, eu compreendo muito bem. — assegura. — Permanecerei
no prédio. Se precisar de alguma coisa, avise.
— Claro. — concordo, apertando sua mão estendida.
— E me deixe ser o segundo a saber que minha menina acordou. — seu
aviso explícito é envolto por uma entonação sarcástica. — Até mais, filho.
Aceno em concordância.
Ballister aparece na entrada assim que a porta é aberta. Já passa das
onze da noite, e ele não deveria estar aqui. Em específico porque, mesmo que
seja capaz de se locomover, não deve forçar muito o corpo, ainda que se
mova com a lentidão de uma tartaruga. Ele está usando uma camisola
hospitalar e arrasta consigo um suporte para soro. Seu torso está levemente
curvado por causa da cirurgia e a pele dele carrega um tom pálido. Apesar
disso, o sorriso sacana de sempre eleva um dos cantos de sua boca ressecada.
A experiência de quase morte parece nunca ter acontecido.
— Ei, tio. — cumprimenta divertido.
— Filho, o que está fazendo aqui?
— Fugindo da Dolores, minha enfermeira sanguinária. Eu juro por
Deus que aquela velha dos infernos quer drenar todo o meu sangue. —
reclama.
Michael prefere não estender o assunto, então apenas beija sua testa e
pede com licença. Ao ficarmos sozinhos, eu esfrego o rosto e cedo passagem.
Ele cheira a talco de bebê e xampu floral, sem contar o fato de que seu
cabelo castanho escuro tem um penteado que me lembra o do Superman.
— Como estamos, McAllister?
— Nada ainda.
Seu suspiro é longo e dramático.
— Eu menti. — comenta de repente. — Estou aqui para confessar que
amo a Brooke e que, quando ela acordar, vou lutar com tudo o que tenho para
tê-la. Você sabe, cara, não podemos parar a paixão que arde em nosso peito
quando encontramos o amor. Eu quero essa garota, e eu a terei.
Eu pisco, chocado. Pela primeira vez desde que o conheci, Leo não tem
o semblante habitual de diversão. Pelo contrário, sua cara é de seriedade.
— De que merda você está falando? — sibilo, chocado demais para me
mover e incapaz de acreditar que sua confissão súbita seja mesmo sincera.
Há uma pausa. Um silêncio profundo corta o ar.
Por fim, o bostinha arqueia uma sobrancelha, segurando uma risadinha.
Ele tem uma certa sorte de estar neste estado, do contrário, eu o mataria.
— Eu te peguei de jeito, não foi? — comemora. — Essa merda foi
épica. Estou cogitando a carreira de ator e fiz um teste com você. O que me
diz?
— Eu digo para você dar o fora daqui antes que eu decida gastar meu
réu primário. — alerto, rangendo os dentes.
Sua mão livre se eleva em rendição. Eu não o expulsei de verdade, mas
acredito que ele já tenha cumprido com seu intuito de encher o saco alheio.
Ou somente tenha decidido que a enfermeira Dolores não é mais uma
assassina em potencial pronta para coletar litros de sangue de seu corpo.
— Já vou, já vou. — anuncia, e eu me arrependo de observá-lo afagar o
cabelo da Brooke ao alcançá-la, pois a parte de trás de sua vestimenta se abre
parcialmente, revelando suas nádegas bronzeadas. Aperto a ponte do nariz,
fechando os olhos. Ao abri-los, sua figura está diante de mim.
— Até outra hora, rival. — ele se despede, passando pela soleira.
— Ballister, — rosno. — eu posso ver a porcaria do seu traseiro.
O bastardinho olha para trás com a intenção de confirmar o que eu
digo. Ao constatar que tenho razão, o sorriso de antes volta a se fazer
presente.
— Por nada, garotão. — e se vai.
Filho da puta.
Minha cabeça está explodindo quando fecho a porta. Talvez eu
realmente devesse dormir um pouco. Por mais que estar nessa situação seja
um tormento, sei que não há nada que eu possa fazer a não ser continuar
esperando. Ergo a cabeça ao escutar o relógio marcar meia-noite em ponto.
Um novo dia. Mais um deles.
— Ei, estranho. — uma voz tênue, suave como brisa fresca, ecoa pelo
cômodo. Eu me viro e meu coração para durante um minuto inteiro quando
vejo um par de íris azuis me observando com ternura. Eu nunca choro. Mas,
foda-se, meus olhos se enchem com lágrimas. — Sentiu minha falta?
É dia primeiro de outubro e eu sinto que, embora o mês tenha acabado
de começar, eu vou enlouquecer.
A pior coisa que Brooke poderia ter feito, principalmente por ter sido
uma sugestão de ninguém menos que Leo, foi aceitar fazer uma pequena festa
de aniversário para ela.
Quero arrancar meus ouvidos e cometer a porra de dois homicídios, e
um deles irá implicar na minha morte certa, pois trata-se de um DeLuca.
— Eu já disse que é melhor balões azuis com fitas douradas, seu
miserável! — Ballister brada, prestes a ter um colapso nervoso.
— E eu já falei que balões dourados com fitas azuis combinam mais,
seu poço de fezes! — grita Asa, irmão mais novo de Brooke.
Os dois continuam brigando no meio do jardim de entrada da casa que
Michael escolheu dar a ela de presente pelos dezoito anos.
Tudo o que almejo é pegar as cabeças de ambos e bater uma contra a
outra até que o resultado seja um traumatismo craniano duplo.
— Não se atreva, verme insolente. Eu sou o melhor amigo dela!
— E eu sou o irmão, seu saco de esterco!
Essa, sem dúvidas, é a briga mais nojenta e desnecessária do ano.
— Chega! — Summer brada repentinamente, ao parar do meu lado e
ver a cena que os dois sem-cérebro protagonizam. Ela coloca ambas as mãos
na cintura estreita e semicerra os olhos, parecendo um dragão prestes a cuspir
fogo. — Nós vamos fazer metade de cada. Uma parte dos balões será azul
com fitas douradas e a outra será dourada com fitas azuis. — decreta
cirúrgica. — Eu fui específica o bastante ou terei que ser um pouco mais?
— Estamos totalmente de acordo. — o mais novo concorda.
O aniversário de Leo também foi em agosto, mas ele não gosta de
comemorá-lo por motivos pessoais, então seus amigos respeitam sua decisão.
A velocidade de recuperação dele ultrapassou o surpreendente, e
chocou a equipe médica, inclusive. O cara é um atleta, porém, foi
impressionante.
— Eles ainda estão brigando? — a voz de Brooke surge no ar,
chamando minha atenção para sua presença. — Já faz o quê? Duas horas e
meia?
— Chato. Eu achei que teríamos ao menos um cadáver quando
voltássemos. — Wangari, sua irmã, ronrona num tom maldoso.
As duas tinham saído para comprar bebidas. Uma conversa é iniciada
entre as três garotas, e eu me concentro em Brooke e nas suas risadas alegres.
Não está sendo tão fácil quanto aparenta. Algumas noites são árduas,
em específico as madrugadas, quando durmo com ela e sou acordado por um
de seus pesadelos sobre Blake. Ela grita pela irmã e chora ao recordar do que
aconteceu, das coisas que fez. As lembranças, mesmo não possuindo tanta
intensidade quanto nas primeiras noites, continuam sendo uma carga difícil
de ser carregada, ainda que as sessões de terapia dela ajudem.
Mas eu sei que, mais cedo ou mais tarde, minha garota vai conseguir
sair de vez desse buraco. Estamos trabalhando para que isso ocorra em breve.
— Você não ousaria! — a acusação nada discreta de Asa me puxa de
volta para a realidade. — Seu covarde trapaceiro! Summer, você ouviu?
— Nunca ouviu aquele ditado? No ódio e na guerra, Asa de frango, —
Leo canta, estourando o balão que o DeLuca mais novo segura. — vale tudo!
— Ballister! — Summer troveja, indo para onde os dois estão com a
rapidez de uma bala. Sua próxima frase é infeliz: — Deixe as bolas dele em
paz!
É impossível não cair na gargalhada com a ordem. Mesmo Wan, a mais
reclusa de todos que estão presentes, não consegue segurar o ataque de riso.
— Posso apostar, agora, que ele é quem tem mais chances de morrer.
— comenta sem fôlego.
— Oh, definitivamente, não. — Brooke seca os olhos marejados,
pressionando as mãos na barriga para acalmar os espasmos causados pela
risada. — Deus não quer Leo Ballister no Céu, tanto quanto o Diabo não
deseja ter Grayson Cagliari no Inferno.
Ela encosta a cabeça contra minha barriga, enroscando os braços ao
meu redor. É quando me lembro de seu primeiro presente do dia. O segundo
vai ficar para mais tarde. Gosto de presenteá-la, pois suas reações inusitadas
são as melhores. Seus olhos se iluminam até com um simples pedaço de
papel.
— Tenho algo para você. — comento, inspirando seu perfume ao me
inclinar sobre o corpo dela assim que Wangari se afasta e nos deixa sozinhos.
— O que é? — pergunta desconfiada.
— Um dos seus presentes de aniversário.
Sua feição se contorce em uma careta.
— Não é meu aniversário. — contrapõe. — É apenas uma
comemoração tardia. Além do mais, você já me deu um. — ela estica o braço,
mostrando a pulseira cravejada de diamantes que eu a dei na noite da ópera.
— Nenhum presente seria melhor do que esse, amor. Acredite em mim.
Sem esperar que outra palavra escape por entre seus lábios rosados e
bonitos, eu a pego de surpresa, jogando-a por cima de um dos meus ombros e
estapeando sua bunda coberta por um jeans justo. Essa coisa a faz ficar ainda
mais gostosa, o que é um perigo eminente para a minha moralidade.
— Você fica uma delícia com essa roupa, mas prefiro quando está nua.
Não preciso mudar sua posição para saber que as maçãs de seu rosto
estão com uma coloração escarlate. Não importa quanto tempo passe, Brooke
sempre fica envergonhada pelas coisas que digo. A verdade é que não paro de
constrangê-la, porque me excita de um jeito fodido vê-la desse jeito.
— Santa Mãe de Deus!
— Eu poderia trepar com você. Neste instante. — eu falo ao estarmos
longe o suficiente dos demais. As vozes deles não passam de ecos distantes.
— Você é um pervertido! — ela luta para abafar sua ofensa.
— Pervertido, hm? Bem, eu fodo sua doce boceta todo santo dia, meu
amor. Três vezes ou mais. — sorrio cínico. — Eu não sou o único pervertido.
Posso sentir sua carne esquentando, e a percepção faz meu pau inchar
na calça. Eu não brinquei ao dizer que poderia trepar com ela neste instante.
— Drogo!
— Vou fazer você dizer meu nome de um modo mais lento e
desesperado em breve.
— Mas o que é que deu em você? — seu questionamento vem
carregado de luxúria.
A safadinha ficou excitada. Foda-se o fato de que sua família está por
perto. Não dou a mínima para meu futuro assassinato, eu a farei gritar.
— Decidi atrasar seus presentes de aniversário. — estalo meu aviso,
subindo as escadas que levam à suíte. — Porque, agora, vou comer você.

Empurro a porta do quarto com a ponta do pé, usando o calcanhar para


fechá-la, mas não me dou ao trabalho de girar a chave na fechadura.
O corpo de Brooke salta no colchão pelo impacto suave da queda. Eu
havia passado tanto tempo tomando cuidado com seus ferimentos que o
costume de não exceder os limites estava me deixando doente. Foi uma
tortura do caralho. Porém, como faz algumas semanas que não preciso mais
me conter, posso permitir que a besta saia para brincar. Tenho permissão para
foder a mulher diante de mim sem quaisquer amarras ou restrições.
As mãos dela trabalham para desfazer o botão e o zíper de sua calça.
Ao livrar-se do jeans, suas pernas nuas sacodem, mandando-o para longe.
Faço o mesmo com minhas roupas, olhando-a fixamente durante todo o
processo. Quando estou completamente nu e vejo que sua calcinha e sutiã, as
únicas peças que restavam, não são mais um empecilho, meu pau lateja com a
imagem de sua pele desnuda. Os olhos dela adotam um brilho ganancioso e
sua língua sai para lamber os lábios cheios. É o que basta para que eu me
ajoelhe e agarre seus calcanhares, puxando-a para a borda da cama. Os
lençóis se tornam um emaranhado de seda branca assim que suas unhas são
cravadas nele, torcendo-os. Ela sabe o que vem agora, como também sabe o
que deve fazer. Mas não o faz. Porque, mesmo lutando para negar, a
garotinha suja gosta de me ouvir dizendo coisas depravadas.
— Abra as pernas. — meu olhar faminto encontra o seu. — Deixe-me
ver o quão encharcada você está, minha menina.
Ela obedece prontamente, dando-me plena visão de sua entrada
escorregadia. A pressão que mantenho em suas coxas, quando penetro a
língua em sua boceta quente, a faz soltar um suspiro entrecortado, elevando
os quadris. Meto com mais força, arrancando um gemido alto dela ao arrastar
meu polegar pelo seu ponto sensível e rosado. Brooke tenta apertar uma coxa
na outra. Eu não permito, entretanto. Trilho dois dedos, aumentando a tortura.
Deslizo a mão livre para longe e levo sua umidade até a parte de trás.
Massageio sua entrada dolorosamente apertada, abrindo passagem.
Brooke para de retrair-se aos poucos, permitindo que eu a foda lá. Meu
dedo quase é estrangulado e a sensação é deliciosa. Puxando-o de volta ao ter
seu corpo se contorcendo e a cabeça dela tombando, decido concentrar-me
em fazê-la gozar. Cuidarei de seu segundo buraco mais tarde.
Os tremores que a tomam indicam seu orgasmo. Sou capaz de dizer o
momento exato em que ela chega ao limite, porque sua boceta aperta com
ferocidade e eu sinto seu gosto em meu paladar. Afasto a língua e tiro os
dedos, que brilham com sua excitação, chupando cada um deles.
— Oh, Deus...
— Sempre vai ser meu sabor favorito. — rosno, virando-a de costas e
dando um tapa forte em sua bunda ao deixa-la suspensa. Brooke choraminga.
Seguro meu pau grosso, abrindo sua boceta macia para me deliciar
com o quão avermelhada sua carne ficou. Ela pinga nos lençóis, marcando-
os.
— Drogo. — implora, empinando contra mim.
— Você fez uma sujeira. — estalo a língua, arrastando vagarosamente
a cabeça espessa em sua entrada lisa. Está levando tudo de mim não entrar.
— Por favor. — soluça, e sua voz arrastada me faz retesar o maxilar
para não perder o que resta do meu controle. Apenas mais um pouco, baby,
me dê.
— Por favor?
— Me foda.
E eu fodo, porra.
Brooke grita ao ter meu pau esticando sua boceta por trás. Agarro seus
quadris com ambas as mãos ao me enterrar profundamente dentro dela.
Erguendo-o, colo seu corpo no meu. Ela se perde em seu segundo orgasmo
com rapidez, gemendo alto o bastante para que eu tenha certeza de que
qualquer pessoa dentro ou fora desta casa possa ouvir. Eu ainda a tenho
tremendo à medida que aumento o ritmo das estocadas quando suor começa a
se acumular nas pontas do meu cabelo. Seus seios balançam com violência
sobre o colchão ao passo que ela volta a fincar as unhas no tecido branco com
um aperto mortal. Capturo seu queixo, virando o rosto ruborizado dela. O
beijo que iniciamos é caótico e necessitado, e nenhuma outra coisa seria
capaz de demonstrar o desejo e a paixão que sinto por essa mulher. Nenhuma,
além da que eu digo ao parar de beijá-la.
— Case-se comigo. — eu peço, cobrindo sua mão delicada com a
minha. — Case-se comigo, Brooke.
— Você está me pedindo em casamento, — sufoca sem fôlego. —
enquanto faz amor comigo?
— É. — inclino a cabeça, soltando um rosnado gutural. A situação é
fodidamente inusitada, confesso. Mas qualquer momento, com ela, é
momento.
— Drogo. — suspira. — Você é louco.
— Por você. — é tudo o que eu falo.
E é verdade. Eu traria o mundo abaixo se fosse preciso, bastaria um
pedido seu. Cometi muitos erros e, foda-se, fui um completo filho da puta em
muitas ocasiões. Perdi tempo demais me obrigando a odiá-la quando era
evidente que isso jamais seria possível. Declarações estão longe de ser o meu
forte, e embora Brooke saiba que eu a ame, ela não faz ideia da intensidade. É
doentio o que eu seria capaz de fazer para ela. Por ela.
Se eu vivesse um milhão de vidas, em todas eu a amaria.
— Sim! — soluça, sua respiração falhando. Eu noto que as manchas
nos lençóis, agora, são de suas lágrimas. — Sim, eu aceito!
Eu nunca pensei que tais palavras, um dia, poderiam me fazer gozar.
Elas fazem, entretanto. Jorro toda minha porra dentro dela ao mesmo tempo
em que seu corpo entra em êxtase pela terceira vez. Nós nos perdemos juntos.
Seu calor corporal misturando-se ao meu é uma sensação inigualável.
Saindo de seu interior, eu a viro e fico por cima dela. Brooke me olha
através das pálpebras úmidas e pesadas. Meu sêmen escorrendo devagar por
entre suas coxas trêmulas traz à tona o meu lado primitivo. Usando dois
dedos, empurro o esperma grosso dentro de sua boceta novamente. Ela
estremece e se prepara para falar algo, mas eu a impeço quando tateio
debaixo do travesseiro acima de sua cabeça e pego a pequena caixa preta de
veludo. Deveria ser de um modo cordial, todavia, não há nada cavalheiresco
correndo em minhas veias. Apoio-me em meus joelhos e ela se senta,
boquiaberta ao ver o anel com um diamante solitário no topo. Todo meu
dinheiro guardado que consegui com as lutas, usei para comprá-lo.
— É lindo. Obrigada. — murmura, fungando quando o coloco em seu
dedo. Então, ela sorri, seus ombros oscilando. — Principalmente por não ser.
Sua última frase me pega de surpresa e eu franzo o cenho.
— Por não ser o quê?
Segurando meu rosto, ela pressiona os lábios nos meus ternamente.
Seus olhos azuis se iluminam.
— Meu meio-irmão diabólico.
OUTUBRO DE 2018

DEVERIA SER APENAS UMA NOITE qualquer no cinema.


Mas claro que não foi. E tudo por culpa de Leo Ballister e seu traseiro

californiano bêbado.
O filho da puta, que havia acabado de se recuperar de uma cirurgia,
achou que seria uma ideia brilhante roubar o cachorro do vizinho dele.
No momento em que tivemos que nos mover para dentro de uma cela
na delegacia de Kensington, eu poderia dizer com convicção que não foi.
Porra. Eu sabia que estava muito fodido, porque Brooke com certeza
iria me matar.
Essa merda não vai dar certo, é o primeiro pensamento que tenho ao
escutar Leo, depois que deixamos a sala do cinema, falar que devemos dar
uma parada no Snake para tomar algumas. Eu não estou com a mínima
vontade de beber, além do mais, ainda que seja um pub que funcione até às
cinco da manhã, está um pouco tarde para colocar os pés nele. No entanto, o
cuzão está usando a carta de piedade para todo mundo por causa do que
ocorreu no teatro mais de um mês atrás. Ou seja, estou sendo obrigado a
ouvi-lo dizer que, como sou o escolhido do dia, preciso ceder ao seu pedido.
— Ballister, — resmungo, passando o cinto de segurança. — é melhor
descansar. Você me fez assistir àquela porcaria de filme que durou duas
horas.
Ele se ajusta no banco do carona e fecha a porta.
— A noite é um playground, companheiro, e eu sou uma criança
serelepe.
— Se você é uma criança, não deveria querer encher a cara. — ladro.
— Qual é? Eu passei mais de um mês sem ingerir qualquer gota de
álcool. Estou com uma cicatriz do tamanho do tronco de uma árvore na
minha barriga sarada e não transo há tanto tempo que, se eu gozar, não vai
sair esperma, e sim teias. Eu vou ser a porra do Homem-Aranha peniano,
cara.
Aperto a ponte do nariz, desistindo de uma réplica. O bastardo não vai
parar até beber, estou ciente quanto a isso. Sendo assim, só me resta aceitar e
terminar com tudo de uma vez. Quanto mais rápido, melhor. Aceitando meu
destino, manobro o jipe dele para fora da vaga e pego a estrada que leva ao
Snake. Por causa do horário tardio, não enfrentamos trânsito. A pista escura
está vazia e pelo menos eu o tenho calado durante o trajeto. Realmente terei
que aturá-lo por mais algumas horas e não adianta protestar. Summer e
Brooke foram as únicas que, até agora, passaram pelo que eu estou passando.
No dia delas, eu ri. Jamais poderei expressar o quão arrependido estou. O
mundo quando decide girar, é uma cadela insensível.
— O que vai beber? — pergunta de repente.
— Nada.
— O quê? — ele chia horrorizado. — Por qual motivo? A gente deixa o
carro lá e chama um Uber.
— Eu só não irei. Pode encher a cara, mas eu não quero. — assim que
chegamos ao pub, estaciono o veículo no beco ao lado e salto do carro,
verificando meu celular. Envio uma mensagem para Brooke avisando onde
estamos neste momento já que não estava nos planos virmos para cá. Sua
resposta não vem de imediato. Entretanto, por saber que foi entregue, não
fico esperando. Enfio o aparelho no bolso. Leo está bem atrás de mim,
tirando algumas selfies para postar em seu Instagram. Ele é do tipo que não
pode viver qualquer coisa sem registrar. Então, seu feed está cheio de suas
atividades diárias, conquistas, pratos de comida saudáveis, paisagens e fotos
de animais de rua. O cara tem até um destaque inteiro voltado para o tempo
em que ficou no hospital. E eu juro por Deus que essa aba tem mais de cem
fotos.
— Ei, McAllister, vem aqui. — ele chama. — Tira uma foto comigo.
— Não.
— Por favor.
— Sai fora.
— Fala sério, você tem que ser um bom amigo, seu filho da puta.
— Eu não sou seu amigo. — rebato.
— Você é noivo da minha melhor amiga, então, também é meu amigo.
— De onde você tirou essa porcaria?
— Acabei de inventar. Porém, faz sentido, não faz?
Eu nego.
— Se fosse desse jeito, as pessoas não teriam amigos que odeiam seus
namorados. — concluo.
— Meros seres humanos não-evoluídos, o que não é o nosso caso. —
adverte complacente.
— Cale a boca e pare com a sessão de paparazzi. — ordeno. — Vamos
entrar logo.
— Cara, você é uma dor na bunda. Como alguém tão rabugento como
você conseguiu conquistar o doce de garota que é a nossa pequena Brooke?
Decido, em vez de respondê-lo, empurrar a porta de entrada e ignorá-
lo. Leo flerta com alguns caras e garotas logo nos primeiros passos.
— O Snake parece estar com um público melhor agora. — comenta
sacana.
— Mesma coisa de sempre. — digo, embora concorde com ele. Depois
das mudanças que ocorreram na estrutura do local, pessoas novas
apareceram.
— Mentiroso. — cantarola convencido. — Eu estou certo e você sabe.
Não me admira que o lugar esteja lotado. Aproveitando que a mesa que
costumo ficar quando venho aqui está desocupada, largo meu corpo em uma
das cadeiras. O móvel faz um rangido tão alto e barulhento quando nós dois
nos sentamos que todas as pessoas presentes no recinto são capazes de ouvir.
Ergo dois dedos para Reed, o garçom das sextas-feiras, assim que o localizo
trotando por entre as mesas. Ballister pede um balde tamanho “M” de red ale
e eu fico com uma garrafa de água gelada. Bebo metade do líquido numa
única golada ao tê-la em mãos. Minha garganta está mais seca do que o
deserto do Atacama. Abrindo as pernas, relaxo no assento duro e
desconfortável. Tiro a jaqueta que uso e a descanso no encosto da cadeira.
— Ah, que saudades! — ouço-o gemer, degustando a cerveja com uma
rapidez preocupante. Ele toma duas em um intervalo de oito minutos de uma
para a outra. — Puta que pariu. As cervejas inglesas são as melhores. Ou
talvez eu esteja pensando assim porque há muito tempo não bebo nada?
Seu devaneio particular me faz questionar sua linha de lucidez atual. Eu
sei que, em geral, ela já é delicada, mas parece ter piorado neste instante.
— Vai com calma. — aconselho. — Já faz um tempo que você não
bebe. Seu organismo pode estar enferrujado e absorver tudo num ritmo
fodido.
— O que você quer dizer? — balbucia desdenhoso, e dá mais um gole
ganancioso na bebida. — Eu me sinto ótimo. Minhas forças estão renovadas.
Esfrego os olhos com o polegar e o indicador.
É como estar numa festa de aniversário e dizer para uma criança não
comer os doces. O que eu falar vai entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Mesmo com essa constatação óbvia, decido preveni-lo. Leo é inconsequente.
E eu, infelizmente, sou o único capaz de raciocinar por aqui.
— Quero dizer que você pode acabar ficando bêbado pra caralho em
pouquíssimo tempo, e eu não estou nada a fim de cuidar do seu rabo
alcoolizado.
— Cara, pode ficar suave. — o bostinha ri, removendo a tampa da
próxima cerveja que pretende ingerir com os dentes. — Eu não vou ficar
bêbado.
Ele ficou bêbado.
Foda-se. Bêbado seria muito pouco para definir seu estado de
embriaguez atual. Eu preciso passar um de seus braços sobre meus ombros
para poder carregá-lo para fora do pub. A parte menos fodida é que somos
praticamente do mesmo tamanho e ele perdeu uma quantia razoável de peso
por causa da cirurgia. Do contrário, eu iria preferir esmagar minhas bolas a
ter que servir de sua âncora. São quase cinco da manhã quando finalmente
consigo empurrar sua estrutura para dentro do carro. Ao menos uma coisa é
positiva em Leo: ele é o tipo de bêbado quieto e reflexivo.
Seu olhar vagueia para fora da janela, parecendo distante de tudo e
todos, à medida que saímos da área vazia do Snake e pegamos a principal.
— Querido, para onde nós estamos indo? — murmura, a voz suave e
arrastada, entretanto, diferente da enrolação bêbada habitual. É chocante.
— Sua casa. — respondo, parando no sinal quando o vejo ficar
vermelho. Apoio um cotovelo na janela e espero a luz mudar para verde.
— Está bem, amor.
— Jesus Cristo. — suspiro.
— Hm, escuta, preciso contar um segredo. — confessa, relaxando
contra o banco. — Da última vez que eu fiquei tão bêbado assim, — ao
menos ele sabe e assume. — acabei tatuando o nome de um dos meus amigos
na virilha. Doeu como o inferno. — lamenta pesaroso. — Se ele um dia
souber...
— Ele? — eu quase relincho com uma risada, porque pela maneira
como Leo se referiu, deve ser o DeLuca ou o Cagliari. Isso está cada vez
melhor.
O sinal fica verde e eu acelero, dobrando a esquina que leva à casa
dele. É como um condomínio aberto, pois trata-se de uma rua bem-cuidada.
Sigo de ré para facilitar minha saída. Eu pretendo dormir com Brooke hoje, e
sei que já está amanhecendo, mas uns minutos a mais não farão diferença.
— Sim. — choraminga culpado, e tampa o rosto com as mãos grandes.
Faço uma careta perversa, ansiando saber de quem se trata. É bom estar
ciente dos podres das pessoas, mas apenas para ter uma moeda de troca caso
seja necessário barganhar. Sou um cara prevenido, nada mais. As pontas dos
meus dedos formigam com a necessidade crescente da fofoca.
Quando eu me tornei um dos caras do time? Pelo visto, esse tipo de
coisa é mesmo contagiosa. Kovac me alertou, ainda assim, preferi não dar
bola.
— Então, — começo, desligando o motor. — qual o nome tatuado? —
a pergunta fica no ar por um bom tempo, o silêncio pairando no interior.
Ballister pensa um pouco, mas eu sei que ele quer falar. Ele vai falar.
No entanto, sua cabeça gira e, como se a bebida em sua corrente sanguínea
não passasse de um delírio, o cara abre a porta e arrasta seus quase dois
metros pelo gramado da casa da frente, tropeçando nos próprios pés ao
correr. Eu não tenho tempo de reagir com coerência, pois quando o flagro
gritando com um homem, seu vizinho, por causa do cachorro de pequeno
porte que está sob seu domínio, dizendo que o pertence, eu sei que uma
cagada colossal está prestes a explodir bem no meio das nossas caras.
Primeiro, porque Leo já falou desse seu cachorro, Leslie II, um milhão
de vezes, e o bicho morreu há anos. E segundo, porque eu conheço o homem.
Denis Portmann. A porra de um policial.

Estou dentro de uma cela de prisão porque Leo, embriagado, tentou


sequestrar o cachorro de um policial por pensar que fosse seu falecido cão.
Apoiando os braços no meio das grossas barras de ferro, penso que eu
deveria estar aqui por um motivo realmente justo. Talvez um assassinato.
Girando a cabeça por cima do ombro, olho para sua figura inconsciente.
O desgraçado está dormindo há dez minutos, como se fosse a porra da Bela
Adormecida, no banco de cimento que fica suspenso na parede. Mais da
metade de seu corpo fica para fora, desafiando a gravidade. A ideia de
cometer um homicídio nunca pareceu tão tentadora. Confesso estar inclinado
a esganá-lo. Eu sabia que ele estava sendo bom demais para um bêbado.
Ballister resmunga algo ininteligível e deixa um braço cair, soltando
roncos suaves. Não sei como ele mesmo ainda não caiu no chão de linóleo
marcado por pegadas empoeiradas de sapatos. Admira-me sermos os únicos
ocupando o pequeno espaço, e me admira mais ainda o fato de que há
somente um policial no recinto. Solto uma respiração profunda ao assistir ele
enfiar uma rosquinha, a terceira ou quarta, dentro da boca suja e murcha.
— Quanto tempo mais, senhor? — questiono ao Policial Rosquinhas,
referindo-me ao telefone que tenho direito. Ele havia dito que eu tinha que
esperar a ligação atual ser encerrada, mas já faz dez minutos. Que porra é
essa? Uma chamada para colocar os assuntos em dia? Pelo amor de Deus.
Ele limpa os lábios grudentos com as costas da mão direita e verifica o
relógio em seu pulso. O acessório está tão apertado que me pergunto se ele
não tem ciência de que está fodendo sua circulação sanguínea. O homem
parece calcular o tempo, e irrita-me o odor enjoativo que cobre o ambiente.
— Cinco minutos. — responde.
— É assim para todos? — alfineto, usando um tom cínico que
visivelmente o desagrada.
Antes que ele possa responder, conquanto, alguém abre a porta e entra
na sala. Denis, o oficial que Leo iniciou a confusão sobre o cachorro, e que
nos trouxe para cá, olha na nossa direção com uma sobrancelha arqueada.
Seu foco passando de mim e caindo para o meu companheiro de cela e futuro
cadáver. Ele faz uma careta. Estou esperando a porta ser fechada, mas há
mais pessoas cruzando-a. Meu semblante, esbanjando tédio e chateação,
muda abruptamente quando vejo Brooke e Diego DeLuca, seu tio, logo atrás.
Ela voa para onde eu estou e empurra os braços finos, cobertos por um suéter
rosa por entre as barras, agarrando meu rosto. Estou tão atônito com suas
aparições repentinas que fico longos segundos apenas olhando-a.
— Você está bem?
Eu pisco.
— O que faz aqui?
— O oficial Portmann é um velho conhecido da família DeLuca. Ele
entrou em contato com meu pai e disse o que havia acontecido minutos
depois que os trouxe para a delegacia. — explica, segurando uma risada. Eu
busco a figura do policial por cima de sua cabeça. Não preciso chamar sua
atenção, pois ele está com o olhar fixo em mim. — Pelo menos é uma área de
detenção e não há outros presos por aqui. — divaga em voz alta.
— Desculpe, senhor. — eu me antecipo, assim que Brooke se cala. —
Porém, o senhor nos deteve mesmo sabendo da nossa ligação com os
DeLuca?
— Apenas seguindo o protocolo. — informa, o sorrisinho sacana que
faz seus lábios tremerem me diz que ele queria mesmo era alguém para ferrar.
Quer dizer, não que Ballister tenha sido um pobre inocente, todavia,
não tinha necessidade alguma de tamanho exagero. Fala sério, o cara estava
bêbado como um gambá. Apesar de seu tamanho, não era uma ameaça em
potencial, porque em nenhum momento ele tentou usar força física.
— Bem, — Diego pigarreia. — vamos, crianças.
— Na hora. — Leo, que estava no sono da morte até dois minutos atrás,
balbucia, ficando de pé ao meu lado. Eu o encaro como se não o enxergasse.
— Nunca mais saio com você. — ladro, enquanto ando para fora da
cela.
— Nunca diga nunca, querido. — cantarola, titubeando. O tio de
Brooke o ajuda a se mover. Nós dois ficamos um pouco mais distantes deles.
Semicerro os olhos ao dar de cara com a luz vibrante do sol. Acabei
esquecendo totalmente que estava amanhecendo quando a merda toda
ocorreu.
— Você está brava? — pergunto, abrindo a porta do motorista de sua
Range Rover para que ela entre.
Sua resposta vem assim que me sento no banco do carona. Não gosto
do sorriso que curva o canto de sua boca. Parece que ela engoliu um
unicórnio e está prestes a vomitar litros de arco-íris. Nunca é bom quando
Brooke está muito feliz, porque sempre implica em algo que aniquila a minha
paz. Adoro vê-la feliz, mas acabo saindo no prejuízo quando acontece dessa
maneira. Eu, ainda que de modo involuntário, fiz parte de uma dor de cabeça,
e ela deveria estar soltando fogo pelo nariz, enfurecida, e não parecendo que
apostou tudo o que tinha num cassino e ganhou o quádruplo do valor.
Passo o cinto de segurança.
— Não. — ronrona meiga.
— Por que está desse jeito?
Sua mão delicada sai para afagar minha nuca e ela inclina o corpo para
me beijar. Minha desconfiança não se esvai por causa de seu gesto afetuoso.
— Não faça isso. — reclamo, soltando um suspiro. — Estou com
germes da prisão.
— Eu estava com germes do hospital quando acordei da sedação e você
me beijou. — revida, não deixando brechas para que eu seja capaz de rebater.
— De qualquer forma, são águas passadas. Não mude de assunto. —
delibero, prendendo-a com um olhar intrigado. — Eu fiz uma pergunta.
— Não posso estar com raiva, amor.
— Por que não?
— Porque vou falar algo que iremos fazer e você não vai ficar nem um
pouco feliz. — fala, nada culpada. — Contudo, como sou o amor da sua vida,
você aceitará de bom grado. — ronrona. — Lembra quando você quase
cometeu um assassinato na semana passada porque um cara me olhou e
piscou? — indaga, e eu exibo uma careta de desgosto. — Sendo que ele
estava fazendo aquilo por causa de um inseto que havia entrado em seu olho?
— Lembro. — resmungo, tive um ataque de fúria e avancei em cima do
cara. Por sorte, me afastaram antes que eu pudesse fazer um grande estrago.
— Você parece um pinscher possuído às vezes. — comenta. — Então,
eu tomei as providências devidas para esses seus ataques de violência
gratuitos.
— Quais providências? — engulo em seco ao flagrar seu sorriso
falsamente angelical tornar-se ainda maior e mais radiante quando minha
garota diz:
— Terapia.
“Oh, poupe sua compaixão comigo
Todo mundo quer ser meu inimigo”
— Enemy | Imagine Dragons & J.I.D

ANTES DOS DEZOITO ANOS, fui jogado no Manson — um


hospital psiquiátrico — pelo bosta que, um dia, eu chamei de pai.
Como se não bastasse toda a merda que eu havia passado em suas mãos
na infância, ele me condenou ao pior dos tormentos na adolescência.
O hospital não passava de uma casa de horrores, onde eu fui torturado
de inúmeras maneiras diferentes todos os dias em que estive lá. Ainda assim,
as atrocidades as quais eu fui submetido enquanto estive preso naquele
inferno não passaram de brincadeira de criança quando comparadas ao que
Gage Cagliari havia feito comigo durante toda minha existência. Os abusos
físicos e psicológicos serviram apenas para alimentar a besta em meu interior.
Eu aprendi, após algum tempo, a gostar. Transformei dor e agonia em minhas
amantes mais deliciosas.
Eu fui torcido além da reparação, e tudo porque meu doador de
esperma pressupôs que me jogar naquele buraco imundo amenizaria a
natureza deturpada que adotei como estilo de vida quando perdi o meu anjo.
A pessoa que eu mais amei e, também, a que mais me amou. Minha mãe.
Errado, errado, errado. Tão errado, porra. Você, pai, fodeu o que já
era muito fodido.
Sendo honesto, eu tentei me consertar uma vez. Ser uma aberração
aceitável.
Na época em que desejei mudar essa linha, busquei ajuda por conta
própria e acabei chegando ao Dr. Malcolm Parrish, um psiquiatra novo em
Los Angeles. De fato, ele foi um bom médico, no começo. Me auxiliava, me
ouvia e prestava atenção em mim como se eu fosse algo espetacular, raro. O
problema foi quando a primeira semana se passou e logo depois veio a
segunda. Na posterior, o doutor se tornou uma coisinha estranha.
Ele começou a invadir meu espaço mais do que deveria. Eu não gostava
de homens me tocando e ele o fez.
Entrar na minha cabeça não estava sendo o suficiente, o chupador de
pau mole queria entrar no meu rabo.
— Fique de costas, Grayson. Vai ser bom — ele sussurrava, ofegando,
ao mesmo tempo que trabalhava para se livrar de suas calças antes de vir para
cima de mim.
Mas não foi bom.
Não para ele. O filho da puta velho não me estuprou, e tudo graças a
sua caneta; a qual sempre descansava no bolso de seu uniforme branco. A
única coisa que precisei fazer foi esticar os dedos e pegá-la. Segurei a base e
a empurrei no pescoço dele. O golpe foi uma obra-prima. Seu sangue
espirrou em meu rosto, grosso e quente, mas não me incomodou. Na verdade,
eu apreciei pra caralho. Contei cinco segundos para que seu corpo
ensanguentado caísse e começasse a estrebuchar sobre o carpete imaculado
que cobria o piso. Os protestos saíam ininteligíveis durante os instantes em
que ele se engasgava com o próprio sangue, tentando puxar o objeto com
dedos roliços e escorregadios. Seus ganidos eram música para os meus
ouvidos, e eu me deleitei com o som como se estivesse ouvindo a Nona
Sinfonia de Beethoven. Lembro que, ao desviar minha atenção para outro
ponto, andei devagar até a escrivaninha e vasculhei suas gavetas à procura do
maço de cigarros caros que ficava em uma delas. Pegando-o, dei algumas
batidas no fundo da caixa e capturei um. Depois que o enganchei por entre os
lábios e usei o isqueiro guardado em meu bolso para acender, voltei a encarar
o porco decrépito. Naquele exato minuto, eu o assisti com um sorriso genuíno
e olhos brilhantes de prazer. Observá-lo fez algo crescer dentro de mim; sujo
e doentio. Eu fiquei inclinado a usar seu sangue como lubrificante para bater
uma.
Balancei a cabeça e desisti. No lugar, degustei o sabor da nicotina,
soprando a fumaça pelo nariz. Aquela merda não era nova, eu havia
experimentado pela primeira vez com treze anos, na mesma noite em que
perdi a virgindade com a filha mais velha do pastor. Um novo sorriso, mais
depreciativo do que o anterior, torceu o canto da minha boca quando
relembrei o ato indecente que protagonizamos na cama dele.
Com o pensamento fervendo em minha mente, joguei um calcanhar
sobre o outro e abri a braguilha da calça, puxando meu pau duro para fora.
Não fiz uso de quaisquer cerimônias para me masturbar, apenas o movi com
brutalidade, recordando como foi ter fodido o rabo de Louise Mills. Emiti um
grunhido gutural de irritação por ter que ir mais rápido para cuidar do monte
de lixo no consultório. Eu fiz questão de jorrar cada gota da minha porra em
cima dos relatórios que estavam em sua mesa, relatórios do meu caso. Sequei
a palma úmida no couro aveludado da poltrona e empurrei meu pau para
dentro das calças outra vez. Deslizando uma mão até meu tênis branco, puxei
um pequeno canivete que sempre mantinha comigo. Pude sentir minhas
pupilas dilatando com a excitação. Agachando-me nos calcanhares, usei a
lâmina para levantar seu pau flácido, similar a um cogumelo triste. O último
sorriso que eu dei foi, sem dúvidas, fodidamente macabro. Os movimentos do
Dr. Parrish, que antes estavam frenéticos, haviam se tornado lentos. Não
demoraria para que o filho da puta batesse as botas. Agarrei seu cabelo
escuro e suado, erguendo a cabeça dele, e aproximei meus lábios de seu
ouvido, assobiando as últimas palavras que ele seria capaz de escutar:
— Você nunca toca no diabo e vive.
Sem qualquer hesitação, estiquei seu pau ao limite e o cortei fora,
empurrando-o dentro de sua boca para abafar os murmúrios desesperados que
rasgaram sua garganta ao passo que seu corpo convulsionava. Então, logo em
seguida, ele não era nada mais que um cadáver sangrento.
Eu não sei quanto tempo se passou para a porta do consultório ser
aberta e alguém entrar. Talvez uma hora, talvez seis, talvez dez. O que me
recordo com clareza foi de ouvir a voz de Gage e o choro da recepcionista.
No mesmo dia, eu me vi usando um uniforme encardido e sendo arrastado
pelos corredores imundos de um hospital psiquiátrico. O assassinato foi
encoberto porque, apesar de ser um mafioso por debaixo dos panos, Gage era
conhecido pelo império multimilionário e a reputação de magnata no ramo
imobiliário. Ele jamais permitiria que seu filho deturpado arruinasse sua vida
perfeita. Em meu período de estadia no Manson, eu sempre ficava no
Pesadelo, uma cela vazia, sem janelas ou algo além de um mictório pútrido,
para onde os pacientes mais difíceis de lidar eram levados. O lugar me
lembrava uma solitária. Mas bem pior.
As pílulas que aqueles maníacos de uniforme empurravam na minha
goela não me incomodavam, porém, os tratamentos dos fins de semana, os
quais incluíam afogamento e choque, foderam o resto da minha sanidade.
Minha percepção do que era paz vinha à tona somente quando eu era jogado
no Pesadelo, pois era o único momento no qual eu me permitia recordar do
passado. Antes de tudo explodir no meio da minha cara e me dilacerar vivo.
Ainda que eu vivesse um tormento constante nas mãos do meu genitor, eu fui
um bom garoto. Eu era amável, complacente e gentil. Não apenas pela minha
mãe. Também era por causa dela. Tudo para ela. Sempre ela. Leona Van
Acker.
Mantive meu tormento distante de seus olhos, porque ela não deveria
saber de nada. Eu a amei com tudo o que tinha quando sequer sabia o que era
amor. Cada resquício de altruísmo que havia em mim, era direcionado para
ela. Contudo, nada foi o bastante. Do contrário, ela não teria fodido — no
sentido literal da palavra — com Gage; o monstro que destruiu minha vida e
a da minha mãe até que não houvesse outra escolha a não ser pedir a morte
para levá-la. No momento em que deixei o Manson, que finalmente coloquei
os pés fora dele, eu percebi que não possuía mais compaixão, empatia ou
misericórdia. Nada além de crueldade e insanidade estavam enraizadas em
meu interior. Eu fui entregue aos demônios, mas os fiz meus aliados mais
íntimos para que eu pudesse pagar na mesma moeda tudo o que me fizeram.
Eu queria dor, carnificina.
Depois que Gage foi assassinado e eu tive minha vingança roubada,
Leona se tornou a primeira da lista para arruinar. Minha prioridade. Eu nunca
desejei sua morte, era carta fora do baralho. O que eu ansiava era vê-la ruir,
desejava saborear sua agonia e me banhar em sua infelicidade.
E a melhor chance que eu recebi para fazê-la estar sob o meu domínio
de uma vez por todas, foi levando um maldito tiro para salvar a sua vida.
Mas que se foda.
Ela havia me transformado no Diabo.
Eu daria a porra do Inferno em troca.
DIABOLIC STEPBROTHER se tornou um best-seller da Amazon e eu não
devo esse feito somente a mim. Eu o escrevi, é verdade, mas no caminho de
sua criação muitas pessoas me ajudaram, apoiaram e me deram toda força do
mundo para não desistir. Foi exaustivo, no entanto, valeu a pena.
Eu jamais seria capaz de agradecer a todos da maneira devida. De
qualquer modo, o que importa é que vocês sabem que amo cada um e sempre
serei eternamente grata.
Quero agradecer em especial à minha mãe, minha maior apoiadora e o
amor da minha vida. Minhas meninas do CG — o melhor grupo da vida —,
minha melhor amiga, Fel; eu te amo. Mayta e Pamella que estiveram
colocando as mãos em DS desde a primeira vez. Pam, você me ajudou de
tantas formas que eu poderia fazer uma página inteira voltada para você,
espero que saiba disso. Karen, que foi meu braço direito e esquerdo.
E, principalmente, minhas leitoras. O sucesso não teria acontecido sem
vocês, diabolicats. Portanto, muito obrigada. Victoria Leite, Gabriela
D’Alessio, Wendy Rudio, Jacky Nunes, Aléxia Dias, Lu Giolo e Camila
Sardinha — nosso amor e ódio valem mais do que amor puro.
Agradeço, também, a toda a galera do Wattpad que fez essa obra
estourar na plataforma em pouco tempo. Guardarei para sempre cada
comentário incrível, cada mensagem carregada de carinho e cada incentivo,
pois foram essenciais. Absolutamente tudo começou ali e eu nunca vou
esquecer.
Vocês foram meu ponto de partida.

Com todo meu coração,


Luana.

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