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DIAGRAMAÇÃO |
CAPA
Larissa Chagas
REVISÃO
Mayta Ferreira Machado
LEITURA CRÍTICA
Wendy Rudio
Minha sala de aula está vazia quando eu entro. Drogo fica do lado de
fora, nenhuma palavra sobre entrar saiu de sua boca, então eu apenas me
enfiei aqui sozinha. Na verdade, é bem melhor dessa forma. Controlo a
respiração para que ele não perceba que estou apreensiva.
— Respire fundo. — murmuro para mim mesma, enfiando meu
caderno de anotações na bolsa. — Tudo vai ficar bem.
Ignoro o arrepio que insiste em rastejar pela minha nuca e foco em ir o
mais rápido possível para sair daqui. Estou na melhor porcentagem de alunos
do GEC, e isso não se deve ao fato de eu me sentar nas últimas cadeiras. Sou
a primeira da fila, mas nesse momento o lugar parece estar absurdamente
distante da porta. Como se para piorar as coisas, apenas uma das oito luzes
está acesa, dificultando minha tarefa de reunir o material com agilidade.
Quando finalmente termino e posiciono a alça da minha bolsa no ombro
direito, meu corpo é empurrado contra a parede e eu perco o fôlego. Meu
grito fica preso na garganta ao passo que o ar é roubado dos meus pulmões,
fazendo-me resfolegar. Por um segundo de terror, penso que é Eric. Contudo,
uma palma grande e calejada esfrega a lateral do meu pescoço. A ponta
áspera do polegar faz minhas pálpebras tremularem e um gemido
involuntário escapar por entre meus lábios semiabertos. Retomando a razão,
eu abro a boca e ergo o rosto, somente para dar de cara com Drogo.
— O que você pensa que está fazendo? — eu sibilo.
Ele não responde, o que me deixa ainda mais furiosa.
— Drogo, afaste-se. — ordeno.
— Você não fala a porra do meu nome. — grita, os dentes trincados
com brutalidade. — Sabe por que não deixei essa merda ser apagada, não
sabe?
Agarro seu pulso, mantendo-me firme sob seu olhar colérico.
— Vai se foder. — ladro, deixando cada gota da minha educação
esvair-se. Estou cansada de ser boa e receber esse tipo de coisa.
— Me foder? — sua voz se torna rouca, um ronronado provocante e
sombrio. — Você já fez isso por mim, meu amor.
Suas palavras me penetram de imediato, deixando um rastro amargo
trilhar seu percurso por todo meu paladar.
— O que você quer, afinal? Dinheiro?
Ele ri. Não há traço de humor. No mais, sua risada é facínora, como se
eu tivesse contado uma piada ao próprio diabo.
— Que se dane o seu dinheiro sujo, Andreotti. Eu não dou a mínima
para ele. O que eu quero é foder com você. Eu quero a sua queda. —
vocifera. — Você vai chorar, lamentar, implorar para que eu a deixe em paz,
mas eu não irei. Não até vê-la sentindo o que eu senti.
A ponta de seu polegar se arrasta pelo meu lábio inferior e eu sufoco
estremecer. O olhar que ele tem é de puro desprezo.
— Revide. — elucida, e larga meu pescoço como se eu carregasse
algum tipo de vírus letal. — Afinal, qual é a graça de perseguir uma presa se
ela não lutar?
Drogo pisca para mim, saindo da sala em seguida. Sozinha, com a
cabeça uma completa bagunça, e o coração agredindo minha caixa torácica,
eu esfrego o rosto e desabo na cadeira mais próxima. Eu estou ciente do que
fiz para merecer todo esse ódio que ele carrega, no entanto, passo por um
inferno particular todos os malditos dias desde a infância. Posso ter sido pega
de surpresa desta vez, ainda assim, se ele pensa que vai conseguir me
aterrorizar sempre que quiser, seu raciocínio ultrapassa o errado. Estou farta
de ser uma pobre vítima das circunstâncias.
Eu fui quebrada, mas sou resiliente o suficiente para me reerguer.
Ele quer que eu revide, não quer? Bem, dois podem jogar esse jogo.
Uma das minhas canetas escapa por entre meus dedos e vai parar no
chão. Solto um suspiro resignado ao me curvar a fim de recuperá-la, tomando
cuidado para não ser atingida pelos estudantes que transitam pelo corredor
das fileiras com o intuito de deixar a sala e seguir para o refeitório. As
pessoas por aqui podem ter oceanos de dinheiro, mas é possível contar nos
dedos quantos são educados. E garanto que não chegarei sequer a uma
dezena. Estou voltando a levantar, porém, paro no meio do caminho ao dar de
cara com um par musculoso de pernas diante de mim. Elevo a cabeça em
câmera lenta e meu foco encontra Leo Ballister. Uma expressão libertina
enfeita seu rosto bronzeado e me faz estreitar os olhos.
— Por que você está me olhando como se tivesse segundas intenções?
— resmungo, guardando o restante do material.
— Segundas? — desdenha. — Com você, doçura, seriam mais do que
segundas. Décimas, talvez.
Me sinto aliviada por não haver maldade em seu comentário.
— Você é gato, doçura, mas não faz o meu tipo. — atiro de volta,
mordendo o lábio inferior para não rir alto da careta de incredulidade que
arranca o sorriso presunçoso de seus lábios. Leo espalma uma mão contra o
peito e cambaleia um passo. Um verdadeiro rei do drama. As telas estão
perdendo esse mestre da atuação.
— Soldado Ferido! — reclama. — Como blasfemar desse jeito? Eu sou
o tipo de qualquer garota. E garoto. Sou o tipo universal, caramba.
Perdendo a luta, eu gargalho.
— Sinto muito, garoto californiano. Nada a se fazer. — dou de ombros
e fico de pé. — Agora, diga o que você quer comigo.
— Em primeiro lugar, eu sou francês. — corrige orgulhoso. — Em
segundo, como você sabe que eu ainda não disse o que realmente quero?
— Porque você ainda está aqui, garoto francês.
— Tem razão. Bem, veja, eu arrastei meu corpo sensual de atleta até
você para saber se a senhorita gostaria de me levar para comer alguma coisa.
Sua proposta me faz arregalar os olhos.
— Como em um encontro?
Minhas bochechas pegam fogo quando capturo o vislumbre libertino
que cruza suas feições. Ele inclina o torso para frente e apoia os cotovelos na
minha mesa. Por instinto, e porque a temperatura parece subir trinta graus de
repente, eu me movo para trás, esbarrando em uma das cadeiras sem querer.
O rangido acaba chamando a atenção dos alunos que estão passando do lado
de fora.
Um buraco para que eu enfie minha cabeça dentro. Rápido!
— Bem, — seu timbre é baixo e provocante. No entanto, como se os
últimos cinco segundos fossem somente uma situação fantasiosa, criada pela
minha mente confusa, Leo torna a ficar ereto outra vez e ri de uma maneira
irritantemente fofa. — é que eu estava pensando em comer no refeitório
mesmo. Contudo, aceito um jantar em um restaurante cinco estrelas. — ele
levanta a mão direita como se fizesse um juramento. — Tudo em nome de
uma boa alimentação.
Reviro os olhos com tanta voracidade que posso jurar que toca meu
cérebro. Apesar de tudo, não consigo carregar nem mesmo uma fração
mínima de raiva. Summer estava mesmo sendo sincera: Leo Ballister é uma
coceira agradável. Eu bato em seu abdômen duro como aço com um dos
cotovelos.
— Apenas leve seu traseiro bonito e tonificado para fora, babaca. —
reclamo divertida.
— Ora, ora. Temos uma pervertida aqui? — Leo sorri com empolgação
latente, puxando um dos fones no ouvido de Summer quando ela passa ao
nosso lado. — Você ouviu? A pequena Andreotti estava olhando a minha
bela bundinha tonificada.
— E o que eu tenho a ver com isso? — bufa, arrancando o fone que
restou.
— Não estrague o momento de euforia de alguém! Essa merda pode me
causar problemas psicológicos no futuro, e a culpa será toda sua.
Com um movimento preciso, ela agarra a orelha direita de Leo e o faz
se contorcer, protestando pela dor que a ação abrupta causa.
— Te vejo no refeitório, Bee! — ouço-o gritar ao ser arrastado para
fora da sala no processo.
Cubro a boca com uma mão, rindo baixinho. Guardando meu celular,
me preparo para deixar o local. No instante em que chego ao batente, um
corpo sólido barra minha saída e me faz regredir vários passos. Comprimo os
lábios com irritação ao ver Drogo ocupar minha visão periférica.
Ele empurra a porta sem perder tempo olhando para trás. Com um
baque silencioso, ela se fecha e nos oculta dos alunos que continuam
transitando pelos corredores. Me afasto dele e cruzo os braços acima dos
seios de modo defensivo. Embora eu mantenha uma fachada de dureza, meu
coração está galopando no peito.
— Saia da minha frente. — ordeno.
Sem qualquer sinal de boas maneiras à vista, escuto-o grunhir como um
homem das cavernas:
— Fique longe dele.
Estou inclinada a agarrar uma das cadeiras e jogar contra sua cabeça.
Elas não são pesadas, mas Drogo é ágil, e com certeza, — para minha
infelicidade — seria capaz de me parar no meio do ato. Apesar de cogitar
essa e outras diversas possibilidades, a maioria sendo violenta, eu não
prossigo com nenhuma. Pelo contrário, me vejo recorrendo a uma coisa que
não deveria usar com o canalha diante de mim: educação.
— Desculpe? — eu sopro incrédula. — Por que você acha que pode me
obrigar a parar de falar com o Leo?
Certo. Nós nos conhecemos hoje e eu não sei direito quem ele é, mas
tenho certeza de que eu não corro perigo algum de vida. E mesmo que fosse o
caso, sem dúvidas Drogo tentaria participar do plano para me ferrar ainda
mais rápido.
— Eu não estou falando sobre esse.
Meu raciocínio estala como um chicote no ar, alto e claro.
— Matteo? — sondo com um sorrisinho ousado.
Minha boca se enche de água quando vejo suas narinas dilatarem e uma
veia grosseira saltar de seu pescoço.
— Fique. Longe. — pontua.
— O que você pensa que é? Um cão? E eu sou seu território? —
gargalho, fingindo secar uma lágrima. — Oh, querido, não. Levante a perna e
procure outro lugar para urinar. Minha vida não diz respeito a você e eu falo
com quem eu bem desejar. Fique fora do meu caminho.
Tento passar, mas sou impedida. Irritada, emito um suspiro frustrado.
— Eu sou seu guardião legal. — intervém. — E seu meio-irmão mais
velho. Eu dito as regras, não você. Não dou a mínima para suas vontades. Se
eu disse para ficar longe, você fica. Ponto final.
Um sabor amargo dança em meu estômago, me deixando nauseada.
Tudo o que ele falou não passa de um discurso ridículo e mesquinho — até
mesmo cruel.
Ainda assim, a parte que me acerta como um soco doloroso é sua
segunda frase. Por que diabos eu odeio tanto isso?
Você sabe, minha mente traiçoeira ecoa.
Engulo com dificuldade. Eu me recuso a demonstrar fraqueza. Não vou
dar esse gosto a ele.
— Ser meu meio-irmão não faz nada por você, McAllister. — eu
mordo de volta, projetando minha estrutura para frente de modo a invadir seu
espaço. — Tente pregar essa maldita política de valentão comigo outra vez e
eu o farei se arrepender do dia que você presumiu ser uma boa ideia retornar
para minha vida em busca de vingança. Não brinque comigo, eu não sou mais
quem costumava ser no passado.
Mau humor torce seu rosto.
Sufoco uma respiração ao ser subitamente encurralada contra a porta
por ele. Minha bunda é pressionada no material frio e a sensação gélida me
faz soltar um gemido de surpresa. O que me conforta, no fundo, é ter noção
de que não há como sermos vistos por quem está do outro lado já que a porta
não possui nenhuma parte de vidro ou qualquer brecha que nos deixe sujeitos
aos olhares venenosos dos demais estudantes. Principalmente do trio de
cobras peçonhentas, pois seria como ir para a forca. As mãos de Drogo batem
no metal, uma de cada lado da minha cabeça. É doentio como meu corpo
parece reagir à proximidade do dele. Quero vomitar de repulsa. Não por ele, e
sim por minha causa. Eu tenho tanto nojo de mim que posso provar o gosto
azedo na ponta da língua. Meus pensamentos imundos são jogados para longe
quando a voz dele se faz presente mais uma vez:
— Não me teste. — adverte ameaçador. — Eu não sou amigável
quando estou com raiva.
Coloco a fachada de volta em seu lugar de origem; local que ela nunca
deveria ter saído.
— Você não é amigável. — desdenho, adotando um tom venenoso. —
Ponto final. Agora, saia.
Drogo é o único ser humano na face da Terra com poder de fogo
suficiente para tornar meu raciocínio lento, quase nulo, e eu não posso
permitir que isso aconteça. O problema estoura bem no meio do meu rosto
quando o cretino faz exatamente o contrário. Seu corpo se move um pouco
mais, tornando o meu hiperconsciente de sua presença. Por puro e infeliz
instinto, eu aperto uma perna contra a outra. Percebo meu erro no segundo
que um sorriso tirano faz o canto direito de sua boca se erguer. O verde de
seus olhos escurece.
— O que é isso? Não me diga que está ficando excitada pelo seu meio-
irmão. — a última coisa dita faz meu sangue borbulhar com fúria visceral.
Para minha infelicidade, entretanto, sou incapaz de revidar. Sem
pronunciar qualquer outra mísera sílaba, Drogo se afasta de mim, enfiando as
mãos dentro dos bolsos. O sorriso de antes em plena exibição, e ainda mais
perverso do que estava há poucos segundos.
— Não precisa ficar apreensiva. — ele agarra a maçaneta, deixando
espaço suficiente para passar. — Seu segredinho sujo está seguro comigo.
Mesmo quando o vejo ir embora, não saio de onde estou.
Principalmente depois de escutá-lo finalizar sua ameaça com um por
enquanto.
Ódio puro me consome e eu fecho os punhos.
— Ele vai me pagar caro por isso. — digo para mim mesma.
Este não é um mero desejo, é uma promessa. A qual eu irei cumprir
muito em breve.
Por ter emprestado meu carro à minha irmã, pois ela precisou fazer um
trabalho na casa de uma colega de sala, tenho que recorrer a um Uber. Busco
meu celular dentro da bolsa para chamar um, enquanto passo próximo à pista
de atletismo. Há uma grade de proteção que separa onde eu estou da trilha.
Paro abruptamente ao localizar com o canto do olho uma figura loira que
avança com agressividade até mim, fazendo seu percurso na minha direção
como um tornado.
— Oh, droga. — praguejo, temendo que as grades finas de aço não
sejam suficientes para me proteger de Summer Gautier.
— Você! — ela ladra ensandecida, apontando um indicador para mim.
Sua expressão é assassina e seu colo suado sobe e desce, expondo o quão
ofegante a garota está. — Brooke Andreotti, sua víbora com aparência
angelical, eu vou matá-la, porra!
Pisco com inocência, recorrendo a uma postura passiva.
— O que eu fiz?
A pergunta desperta ainda mais sua fúria latente, mas não permito que
minha máscara escorregue. Mantenho-me fixa em seu rosto ruborizado.
Summer está usando um short minúsculo de ginástica — o qual eu
tenho plena certeza que vai contra todas as regras de vestimenta de qualquer
instituição escolar no mundo — e um top justo, ambas as peças são pretas.
Seu longo cabelo selvagem está preso em um rabo de cavalo no topo de
sua cabeça e não há vestígios de maquiagem adornando sua face úmida.
— Você sabe exatamente o que fez! — acusa, sua fúria vacilando por
um instante.
Ela parece inquieta, de repente, quase desconfortável. Franzo o cenho,
começando a me preocupar.
— Você está se sentindo mal? — eu a sondo, inclinando-me para
frente.
Seus dedos longos e bronzeados agarram as brechas circulares da
grade.
— Estou fodida. — sussurra, mais para si mesma do que para mim.
Abro a boca, paralisando ao escutar um grito tão feroz que é similar a
um rugido. Meus olhos arregalam e os de Summer se fecham com pesar. Em
seguida, ela solta um pequeno gemido sôfrego.
— Barbie surfista! — a voz feroz do treinador se faz presente. — Traga
seu traseiro californiano de volta para a pista. Agora!
— Esqueça o que eu disse, está bem? — sugere. — Prometo não a
matar se você me salvar desse filho da mãe diabólico.
Mordo o lábio inferior em um pedido de desculpas silencioso.
— Andreotti...
— Sinto muito, querida. — suspiro. — Ninguém pode salvá-la de
Sawyer Vaughn.
— Vou contar até dois, Gautier! — ele rosna, o timbre grave ficando
tenebrosamente mais perto e furioso.
Summer choraminga, mas no mesmo instante está correndo de volta
para a pista. Mesmo sozinha, eu não faço menção de sair de onde estou.
Continuo com os olhos voltados para onde os dois estão conversando.
Corrigindo: se atacando verbalmente.
Ele está de frente para mim, então aproveito para inspecioná-lo sem
muito pudor. Podem dizer qualquer coisa sobre sua personalidade explosiva,
mas ninguém poderia ser capaz de ocultar o fato de que ele é absurdamente
sexy. O treinador coloca as duas mãos gigantes nos quadris estreitos, a calça
azul-marinho em seu corpo o deixa ainda mais gostoso. Seus olhos azuis são
como dois cubos de gelo e seu cabelo preto, hoje está coberto por um boné da
mesma cor do uniforme que ele usa, formando uma sombra na frente de seu
rosto. Percebo o modo como seu olhar se volta para Summer ao passo que
ambos parecem se desentender sobre alguma coisa. Ele está irritado, mas há
algo mais em sua postura. Algo que eu jamais o vi direcionar a qualquer outra
estudante ou funcionária do Golden. Me perco nessa constatação, ficando
alheia ao meu redor e os assistindo sumirem da minha vista.
É quando ouço a voz que sempre consegue me fazer ter o desejo de
vomitar tudo o que ingeri. Eu fico em alerta, meus membros tensionam de
imediato e eu giro a cabeça, dando de cara com o diretor.
— O que foi, linda? Por acaso viu um bicho?
Os pelos da minha nuca se arrepiam com aversão, preciso engolir e
prender o fôlego para não regurgitar o que comi no almoço.
— Quase isso.
Sua faceta cruel se fecha com desgosto evidente ao som da minha
resposta.
— Me acompanhe. — ordena. — E não me faça repetir. Do contrário,
irei tampar sua boca e arrastá-la pelos cabelos.
— Faça. — delibero, ódio sobrecarregando meu tom. — E eu gritarei
antes mesmo que você erga os dedos para me tocar.
Eric bufa um sorriso nasalado. Nada além de raiva borbulhando de sua
postura falsamente refinada. Ele é nojento.
— Está me desafiando, Brooke?
Não queria ter que recorrer a essa cartada, mas eu devo. Embora Drogo
não seja meu salvador, ele não permitiria que Carson fizesse mal a mim.
Portanto, preciso usar sua figura em prol da minha segurança. Pelo
menos neste momento.
— Estou dizendo o que vai acontecer se encostar em mim. — aviso. —
McAllister está em algum lugar desse colégio, e é meu guardião legal agora.
Não sei se você notou, mas Drogo não é bem um fã seu. Além do mais, ele
viu o que ocorreu ontem. Você me bateu. Está na mira dele. Quer mesmo
arriscar?
Meu coração está martelando contra a caixa torácica quando finalizo,
bebendo com louvor a maneira como a feição de Eric distorce em choque e
repulsa ao escutar minhas palavras. Ou melhor, minha ameaça implícita.
Quero sorrir vitoriosa, mas me abstenho. Não seria bom cutucar o monstro
sob sua pele com uma vara tão curta. Já deixei claro o bastante para ele, é
hora de recuar e deixá-lo se enforcar com a corda que amarrei ao redor de seu
pescoço.
— Não vai ser bonito quando eu colocar minhas mãos em você,
Brooke. — murmura com um sorriso que o deixa parecer que está me
contando uma piada inocente.
— O que o faz pressupor que o fará?
Suas veias das têmporas dilatam e Carson fica quase um minuto inteiro
quieto.
— Me aguarde. — cospe, dá as costas e se move para longe,
desaparecendo na direção da entrada do colégio.
Um arrepio grosseiro percorre minha espinha e eu solto a respiração
com força, sentindo as pernas oscilarem. Minhas palmas das mãos estão frias
e suadas pelo terror enraizado em meu âmago. Mesmo com todo o
desconforto, me obrigo a erguer a cabeça e enfrentar a realidade. Não escapei
de Eric. Este é somente um curto intervalo de tempo em que o tirei do meu
radar.
Ergo o braço e o apoio contra a grade de proteção, pressionando o rosto
nos ferros com o intuito de me acalmar.
— Sentindo-se mal?
Eu pulo ao som da voz de Drogo surgindo atrás de mim. Não me viro,
permanecendo de costas para ele. Sua presença me asfixiando.
A necessidade de chorar se apodera do meu peito e faz minha garganta
se fechar com um nó sufocante. Exausta demais para dar início a um diálogo
agressivo, eu olho para o céu nublado e inalo o ar frio, enchendo meus
pulmões que estão comprimidos no momento. Tudo o que eu queria era sumir
da Inglaterra. De repente, a possibilidade de ser engolida por um buraco não
me parece tão ruim assim.
Suspiro.
— O que você quer, McAllister?
— Estou verificando.
— Se eu estou mal o suficiente para que você se delicie com o meu
tormento? — antecedo. — A resposta é não. Estou zonza porque estava
sentada e me levantei muito rápido.
Ouço sua respiração pesada, o hálito quente contrastando com a baixa
temperatura do lugar.
— Decidi que estou indo dormir em casa hoje. — ele avisa, soando
entediado.
— Como?
— Você ouviu.
— Você pode ter uma casa para si mesmo. Morando conosco irá
invadir nossa privacidade. — argumento, virando-me para fitá-lo.
Este é um ponto válido, por esse motivo estou recorrendo a ele. Ainda
que nós tenhamos nos conhecido na infância e a amizade que
compartilhávamos houvesse perdurado até a adolescência, não é como se
continuássemos próximos a ponto de dividirmos uma residência.
Mesmo que seja uma mansão, será impossível não esbarrar com ele em
alguma hora do dia.
— Eu tenho. Um trailer. Certamente ele não possui um terço do
tamanho do seu quarto, mas eu gosto. O ponto, Brooke, é que estou enjoado
de viver nele e não pretendo morar sozinho por um bom tempo. Não quando
você ainda é menor de idade e precisa ter uma presença mais adulta no
mesmo lugar em que reside. — contra-ataca.
Empertigo-me.
— Não quero você lá.
— Eu não dou a mínima.
Não rebato. Minhas narinas dilatam durante o tempo que nos
encaramos sem recuar. Nenhum de nós diz qualquer coisa após sua
declaração.
Apesar do impasse silencioso e tórrido que dividimos, não perco a
maneira como seu olhar recai para meus lábios. O gesto desaparece tão
rápido quanto surgiu, pois alguém o chama. Noto que se trata de um dos
jogadores do time de hóquei. Eu não sei o que acabou de ocorrer em sua
postura, porém, o que quer que tenha sido não o agradou nem um pouco. Me
atenho a esse sinal quase imperceptível e guardo-o para mim mesma, fazendo
uma nota mental de que talvez eu continue tendo um certo poder sobre ele
mesmo após o que aconteceu naquele dia.
Ou pode ser apenas um tipo de peça que meu cérebro cansado esteja
pregando. Contudo, eu me agarro a ideia.
Despertando do transe com raiva, Drogo regride um passo e olha por
cima do ombro.
— Estou indo. — responde, voltando a me encarar logo em seguida. —
Vejo você no jantar.
Lambendo os lábios, ele se vira e segue o percurso que vai direto ao
outro atleta.
Somente quando os dois se vão, eu me permito encostar a cabeça contra
a grade de proteção e respirar normalmente.
— Não tem como esse dia ficar pior. — sussurro, esfregando o rosto.
Decido sair de onde estou antes que algo mais exploda na minha face.
Pego meu celular para verificar a hora ao mesmo tempo em que o visor
se ilumina com uma mensagem de Blake. Pressiono a notificação para ler o
curto texto sem desbloquear a tela.
Minha irmã diz que não pegou meu carro, pois decidiu ir com sua
colega de classe no veículo dela. Também cita que tentou entrar em contato
comigo por ligação para avisar, mas eu não atendi. Rolo a tela para cima e
percebo que realmente há duas chamadas perdidas. Faço os cálculos e
constato que deve ter sido quando Eric apareceu para me intimidar.
Eu ligo para Blake, ouvindo sua voz do outro lado da linha no terceiro
toque.
— Ei, por que não me disse antes de ir embora? — reclamo antes que
ela seja capaz de dizer alguma coisa.
— Eu tentei? — escuto-a bufar. — Mas você às vezes é como a droga
do Mestre dos Magos.
Reviro os olhos, suspirando ao andar em direção ao estacionamento
subterrâneo.
— Precisei falar com a Srta. Ramirez na biblioteca. — explico. —
Achei que demoraria menos de cinco minutos, não pensei que teria de ouvir
sua história sobre o bebê que a filha dela acabou de dar à luz.
— Oh, que saco. — minha irmã ri. — A mulher sempre nos pega de
jeito com essas coisas quando precisamos devolver um livro.
— Sim. Enfim, como está o projeto?
Um barulho similar a um farfalhar de vestido se faz presente.
— É um problema. — cochicha mal-humorada. — Alice só fica
navegando no Instagram, procurando o perfil do tal DeLuca.
— Ele possui um?
— Não. Quer dizer, a menos que seja com outro nome, não, não possui.
— Matteo não tem cara de quem curte redes sociais. — divago, tirando
as chaves reservas de dentro da bolsa.
— Eu concordo. Em contrapartida, ela parece não captar essa questão.
Certo, ele é um gato, mas sinistro na mesma intensidade.
— Com base nas suas paixões de filmes e séries, achei que esse fosse
exatamente seu tipo.
Mais uma risada ressoa dela.
— E você está certa. Em um futuro não muito distante, talvez. Estou de
olho no Ballister. — confessa.
— Blake...
— O quê? Estou sendo honesta. — rebate divertida. — Bem, tenho que
ir agora. Vejo você na hora do jantar.
— Se precisar de algo, me ligue, está bem?
Desde que a nossa mãe morreu há alguns anos, eu desempenho um
certo papel materno na vida da minha irmã. Não apenas por termos somente
uma à outra nesse mundo, mas porque sinto essa necessidade na maior parte
do tempo. Para ser honesta, é uma questão automática, quase natural.
— Certo. Eu te amo, Bee.
— Eu também amo você. — respondo, desligando após dizer essas
palavras.
Me apresso ao ver que estou sozinha no local. A maioria dos estudantes
já se foram, somente os atletas continuam no colégio por causa de seus
treinos, pois em breve haverá o início das Olimpíadas Escolares de Inverno.
Além deles, com certeza estão os líderes das salas, pois costumam ficar até
mais tarde também. Chego ao meu carro. Pressionando meu polegar na
digital, abro a porta e jogo minha bolsa no banco do carona. Me preparo para
me sentar, suspirando com exaustão. De repente, uma das luzes do
estacionamento apaga, assustando-me. O mesmo silêncio envolve o
ambiente, contudo, posso captar no ar que houve uma mudança considerável
em determinado aspecto.
— Peguei você, vadia.
Uma mão firme agarra meu cabelo e me puxa para o exterior. Solto um
grito estrangulado ao ser arrastada e erguida. Meu corpo colide contra a
lataria e eu arregalo os olhos, atordoada. Por instinto, levo meus dedos até o
local do aperto, tentando me libertar e falhando miseravelmente no processo.
Angústia me consome assim que ouço um grunhido.
— Achou mesmo que escaparia tão fácil assim de mim?
Meus olhos colidem com os de Eric antes que eu os mova para cima,
procurando as câmeras.
— Esqueça. — vocifera, parecendo saber o que estou procurando. —
Foram desligadas. O que você pensa que eu sou, Brooke? Um amador?
O resquício de esperança que havia em meu interior desaparece ao som
de sua réplica venenosa, a necessidade de chorar me atinge mais uma vez.
Sou arrastada para o outro lado de onde meu carro está estacionado.
Nunca pensei que fosse amaldiçoá-lo, mas o faço. Por ser uma Range Rover,
o veículo é alto o bastante para nos camuflar. Penso em gritar, entretanto, sei
que ninguém ouviria. O estacionamento subterrâneo é longe de tudo e
dolorosamente abafado.
— Não me machuque. — imploro, minha voz falhando. — Por favor,
não me machuque.
Ele sopra uma risada que faz meu estômago dar um salto.
— Você gosta dos seus novos amigos californianos? — devolve,
ignorando meu apelo.
O medo se apodera do meu peito quando o pensamento de que Eric
possa feri-los nubla minha cabeça.
— Eles não são meus amigos. — sou rápida em dizer, mas não o
convenço.
Seus dedos agarram o cabelo da minha nuca com mais brutalidade
ainda, me deixando fraca e nauseada.
— Sua putinha mentirosa.
Ignoro seu tom ameaçador e giro o rosto, lutando para encará-lo.
Embora a dor seja excruciante por causa do movimento que vai contra a
posição que eu estou, consigo encará-lo. Eric deve ver a fúria em meus olhos,
pois os dele se arregalam em surpresa.
— Fique longe. —aviso.
— Senão o quê? Esqueceu que mesmo que eu não tenha mais sua
guarda legal, ainda possuo poder de fogo para foder sua vidinha de garota
rica? — ele se irrita, trazendo meu rosto para perto do seu. — Acabo com
você em dois tempos, Andreotti.
Meu sobrenome sai com uma potência de ódio corrosiva.
— Não, você não vai. Porque, por algum motivo doentio que
desconheço, você precisa de mim. Diga que não. — desafio.
Seus dentes rangem, indicando que estou certa em meu raciocínio.
Mesmo que eu não saiba o que há, não sou ingênua. Sou útil para Eric em
alguma coisa, é por essa razão que ele sempre me quebra, mas nunca a ponto
de me destruir de vez. E acredito que eu seja punida justamente por este
pretexto.
— Sua versão corajosa me deixa irritado, sabia?
Um grito estridente rasga minha garganta quando sua mão livre se
fecha e acerta minha costela esquerda com um soco. O ar escapa dos meus
pulmões com o golpe brutal. Estou a um passo de vomitar, mas ele desfaz o
aperto em minha nuca para agarrar meu queixo e me forçar a fechar a boca.
Engulo o sabor ácido com dificuldade, meus olhos marejando por causa do
gosto.
— Eu não gosto dela. — sibila, sua saliva espirrando em minha face.
— E gosto menos ainda de seus novos amigos. Mas sabe quem realmente me
deixa enlouquecido quando está perto de você?
Sua mão segura meu maxilar com extrema violência. Por um momento,
chego a pensar que minha mandíbula irá deslocar.
Meu corpo estremece e eu me obrigo a balançar a cabeça em negação
ao saber que Eric espera uma resposta.
— Drogo McAllister. — sua ira transborda como lava. — E você sabe
por que me enfurece tanto, Brooke?
A carne no interior das minhas bochechas lateja quando o aperto se
torna mais intenso, fazendo-as rasparem contra minha arcada dentária.
Mais uma vez, eu nego.
— Porque nenhum irmão deveria olhar para uma irmã do jeito que ele a
olha.
Meus batimentos aceleram com suas palavras, parecendo errar algumas
batidas, mas a realidade volta a me atingir velozmente quando Eric continua:
— Você é minha marionete e eu não quero ninguém mexendo nas suas
cordas além de mim. — declara. — Sabe qual é o maior erro dos jovens de
hoje em dia? Achar que podem escapar de seu inferno particular quando bem
entenderem. Não é assim que funciona. Você errou se chegou a pensar, por
um maldito segundo, que ficaria livre de mim. No fundo, nós dois sabemos,
linda, que essa merda só vai ser possível quando eu estiver morto.
Tento me esquivar, lutando para escapar de suas garras, mas Eric agarra
o topo da minha cabeça, batendo-a na lataria da Range Rover. O impacto me
deixa atordoada por um minuto inteiro, tornando meu ponto de lucidez lento.
Minha visão borra e eu pisco para afastar as lágrimas que se formam por
causa da dor.
— Fique quieta, sua puta! — ordena, fora de si. — O que você quer?
Que eu a machuque? Quer sangue deslizando pelas suas pernas e manchando
suas preciosas cicatrizes?
Meus joelhos vacilam ao passo que minha mente rebobina memórias do
passado, mais precisamente quatro anos. Sinto o estômago embrulhar, o
reflexo de vômito se hospedando em meu paladar. No entanto, não é medo
que se apodera das minhas entranhas, é ódio. Puro e flamejante.
Permito que meus membros amoleçam, deixando brecha para que
Carson sugira que estou perdendo a consciência.
Ele afrouxa o aperto que tem sobre meu queixo para me manter de pé,
evidentemente transtornado pela situação. Quando se contorce para me
sustentar, eu estico os dedos e acerto a lateral de seu rosto ossudo com
minhas unhas. A pele é arranhada e logo o sangue quente surge nas fissuras
superficiais.
— Desgraçada! — ruge, cambaleando para longe e pressionando o
ferimento. — Sua vadia do caralho!
Não espero que outra ofensa role para fora de sua boca imunda antes de
entrar em alerta e me mover em disparada.
Com um estalo de voz maníaco, Eric corre atrás de mim.
Diversos carros continuam espalhados pelo estacionamento pouco-
iluminado, e eu aproveito para colocar esse ponto a meu favor, me
misturando entre os veículos com o intuito de sair do radar. Minhas pernas
formigam pelo esforço da corrida inesperada e meu coração galopa em um
ritmo frenético. Parar de correr está fora de cogitação, então tudo o que eu
faço é lutar para manter a velocidade que adotei para escapar dele. Percebo
que Eric não está mais tão perto de me alcançar, sou mais ágil e veloz.
Aproveito para me curvar na lateral de uma BMW vermelha, camuflando
minha presença. Pressiono as palmas das mãos no aço e observo através da
janela fechada, morrendo para controlar minha respiração e manter a cabeça
em uma altura que me faça ver, mas não ser vista. Capto quando Eric para de
correr, exausto, e busca ao redor.
— Vamos lá, Brooke. — ele ri, o barulho saindo seco. — Pare de se
esconder e eu posso ser um pouco mais bondoso com a sua punição.
O desejo de perder um braço é mais cativante do que acreditar em sua
falsa promessa. Não sou mais a mesma garotinha que confiava em cada
palavra dita pelo diretor refinado. Posso ter que voltar a enfrentá-lo e não
obter uma escapatória como essa, porém, ceder agora não é uma opção.
Voltando a me abaixar, trabalho meu raciocínio para buscar uma saída
que o faça se afastar ainda mais de onde estou. Preciso distraí-lo.
Mordendo o lábio inferior, esfrego o rosto. É simplesmente horrível
tomar uma decisão quando se está encurralada. Ao abrir os olhos, minha
atenção é desviada para o meu pulso pálido quando fito o dourado da pulseira
que estou usando. Sem pensar duas vezes, destranco o pequeno fecho, as
pontas dos meus dedos escorregam várias vezes por causa da umidade
impregnada neles. Na quinta ou sexta tentativa, consigo desprendê-la.
— Apareça, Brooke. Vamos conversar como seres decentes e nos
acertar. — sugere por entre os dentes cerrados. — Eu me exaltei um pouco.
Ele fica de costas. Eu fecho o punho e estico o braço, arremessando o
objeto na direção oposta a que me encontro o mais distante possível. O ruído
o faz entrar em alerta e correr no mesmo segundo para onde o barulho vem.
Tenho certeza de que atingi um carro ou pilar, mas não me importo.
Deitando-me no chão frio e sujo, rolo para debaixo da BMW. Os espaços que
separam os automóveis são curtos, permitindo que eu deslize sem muita
dificuldade de um para o outro. Faço o mesmo movimento vezes o bastante
para que meus cotovelos e joelhos fiquem superficialmente ralados. Não
permito que a ardência me impeça de continuar. Carson volta a se aproximar
de onde estou ao perceber que o estalo não foi nada relevante, o que me deixa
aflita ao vê-lo tão perto. Posso enxergar seus sapatos caros brilhando em
plena exibição. Reúno o máximo de oxigênio que consigo e prendo o fôlego
para não emitir qualquer ruído que chame sua atenção. Um filete de suor
escorre pelo vão dos meus seios e eu me preparo para ser encontrada por ele.
Me preparo para o pesadelo. Contudo, seu celular toca, fazendo-o se
concentrar no aparelho. Com um grunhido, escuto ele atender. Quem quer
que seja, ou o que quer que tenha ocorrido, consegue roubar seu foco sem
muito esforço. Resmungando um “tudo bem, estou chegando” Eric
finalmente se vai. Ouço seus passos se tornando mais e mais longínquos,
indicando seu distanciamento.
Puro alívio inunda meu peito quando constato que estou sozinha e
posso respirar sem restrições. Todo o ar abafado e rarefeito de antes se
dissipa como se fosse embora junto a ele. Piscando para afastar as lágrimas,
eu rolo para o lado e me sento. A pior parte de tudo é o cansaço físico e
mental, estou esgotada, incapaz de encontrar forças para me reerguer ou de
pensar com clareza. Meu fantasma interior escolhe sair para mexer minhas
cordas nesse momento. No modo automático, empurro minhas meias para
que ambas fiquem abaixo dos meus joelhos e uso minhas próprias unhas para
ferir a pele adornada pelas diversas cicatrizes que eu carrego. A dor não me
desperta, apenas me faz mergulhar ainda mais profundamente em meu
tormento. Me deixa ciente da minha realidade: não há uma saída para mim.
Essa é a verdade que eu me recuso a enfrentar.
Estou perdida.
Estou morrendo.
MECANISMO DE DEFESA
Estou evitando Brooke desde que me mudei de vez para a mansão dos
Andreotti.
E ela percebeu. Como não poderia, afinal? Fujo dela como o diabo foge
da cruz. Não quero que tenhamos qualquer mísero tipo de contato, porque
nada de bom pode sair disso. Não se eu perder o controle e colocar para
escanteio minha real motivação. Ela bagunçou meu raciocínio lógico há
alguns dias, portanto fez tudo se tornar um maldito risco. Um campo minado.
Não me arrependo do que fiz com o verme do Petterson naquela madrugada,
mas irrita-me perceber que não estou mais com o ódio habitual que sinto por
Brooke. Não deveria estar acontecendo. Não tão rápido. Estou tomando
atitudes que eu não deveria desde que pisei aqui. Pouco tempo depois de
entrar no GEC, interferi em algo na vida dela sem seu conhecimento. Brooke
é retraída e desconfiada por natureza, mas nada justificava o quão
desconfortável ela ficava na presença de Eric Carson, o diretor. Então, fiz
algumas pesquisas com um velho amigo do Vargas para saber mais sobre ele.
É sempre bom manter um hacker por perto. Stephan me entregou um
pequeno resumo dos investimentos sujos de Carson ao longo dos anos e um
arquivo a respeito de sua fama com estudantes. A última parte era meio vaga,
nada além de boatos. De qualquer modo, decidi fazer uma visita a ele em seu
escritório assim que fui liberado do treino. Não cogitei gastar muita saliva.
Apesar de querer se impor como se fosse um deus, Eric, no fundo, não
passava de uma coisinha covarde do caralho. Sabendo desse ponto, tudo o
que fiz foi entrar em sua sala e ser objetivo. Fique longe, eu disse.
Claro que o bosta de terno iria tentar me enfrentar para não parecer
inferior. Mas foi justamente por prever este tipo de reação que eu cacei a
porra do seu passado imaculado. Não achei nada que pudesse tirá-lo de vez
da direção do Golden Elite College. As provas eram superficiais, o que faria
ser sua palavra contra a minha. E mesmo que eu não suporte sequer olhar
para aquele verme, eu não seria burro de fechar os olhos para a influência que
ele exerce sobre Londres. Conquanto, o que encontrei bastou para que ele não
pretendesse chegar perto de quem eu queria. Queria tê-lo assustado, e
consegui.
Stephan me deu certas cartas para jogar contra ele. Sorrio ao lembrar
da reação de Carson ao ver as fotos que fiz chover em sua mesa.
— Como diabos você conseguiu essas imagens, seu lixo?
Com movimentos rápidos e desesperados, ele jogou as fotos dentro da
lareira. Aproveitei sua instabilidade para correr os olhos pelo escritório
irritantemente organizado. Tive certeza de que o chão era mais limpo que a
coroa da rainha. Ninguém com esse grau de organização maníaco poderia
ser confiável.
— É algo clichê, diretor, mas tenho que alertar. — balbuciei,
arrastando a ponta do indicador pela superfície brilhante de mogno. — Não
sou estúpido. Tenho tantas cópias dessa merda que posso enfeitar até o
último centímetro desse colégio com elas.
Seu rosto estava vermelho e o corpo alto e ossudo sacudia com ira
fulminante. A cena me divertia.
— Está me ameaçando?
— Estou. — garanti, encarando-o. — Oh, e eu disse “até o último
centímetro deste colégio”? — meneio a cabeça, sorrindo com diversão vil. —
Permita-me corrigir, então. Eu posso triplicar a quantidade e enfeitar a
porra do Palácio da Rainha. Se eu achar que é pouco, posso partir para as
sete maravilhas do mundo, e cobrir cada uma delas com sua depravação.
O silêncio se fez presente, apenas confirmando o óbvio. Aquela era
uma batalha perdida. Para ele, claro. Voltando a ficar ereto, continuei:
— Portanto, não arrisque comigo. Eu não sou alguém para subestimar.
Fique. Longe. Dela. — repeti. — Não achei nada que pudesse arrancar de
vez seu traseiro dessa cadeira, confesso. Contudo, se eu obtive essas
fotografias sem muito esforço, tenho certeza de que, se eu cavar um pouco
mais, vou esbarrar em algo grande o bastante para fazê-lo passar seus
próximos cinquenta anos definhando num quarto imundo e minúsculo.
O vermelho em sua face havia se tornado ainda mais vívido.
— Saia do meu escritório. — ele grunhiu com os dentes cerrados,
fervendo.
Eu não saí.
— Não sou um cavalheiro, diretor. Chegue perto de Brooke Andreotti e
eu farei você achar que o Inferno é brincadeira de criança comparado ao
que posso fazer com a sua existência. — declarei meu aviso final, decidindo
finalmente me afastar e deixar a sala.
Afasto a lembrança daquela tarde ao receber meu pedido da garçonete
do drive thru.
— Aqui está. — ronrona, entregando-me o copo com suco de limão. —
Espero que goste, gato.
A fila atrás de mim está vazia. Penso que seria uma boa distração
investir em uma conversa. Todavia, o pensamento é apagado como vela
barata que colocam em bolos de aniversário. Meu celular toca em cima do
banco do carona e o nome do treinador Sawyer aparece no visor.
— Obrigado. — agradeço, devolvendo o tom de flerte. — Tenho
certeza de que irei.
Sem esperar sua resposta, ligo o carro e dirijo para fora do
estabelecimento, parando ao lado do primeiro meio-fio que avisto.
O celular toca outra vez. Começo a pensar em todas as coisas erradas
que eu possa ter feito nas últimas horas, ficando aliviado ao perceber que a
resposta é “nada”. Não tenho medo de homem nenhum, mas qualquer atleta
lúcido teria que ser, no mínimo, masoquista para não temer Sawyer Vaughn.
No terceiro toque, pego o aparelho e atendo.
— Treinador. — falo firme e cauteloso.
— Onde diabos estava seu maldito telefone, McAllister? — seu típico
grunhido explode do outro lado da linha. — Enfiado na porra da sua bunda?
— Desculpe, senhor. Deixei o celular no carro e fui ao banheiro,
quando voltei já tinha perdido uma ligação. — pigarreio. — Algum
problema?
— Sim. — resmunga, soltando uma respiração pesada. — Como atual
capitão do time, preciso que entre em contato com os outros e informe que o
horário do treino dessa tarde foi trocado.
— Para quando?
— Agora. Diga que eu quero o traseiro de cada um dos jogadores do
Golden Elite aqui, dentro do próximo minuto.
— Certo, senhor.
— Barbie Surfista! — ele vocifera, de repente, me obrigando a afastar
o celular do ouvido e estreitar os olhos. — Você não está em uma passarela
de moda da Victoria’s Secret! Comece a alongar suas malditas pernas
curtas!
— Elas não são curtas, seu brutamontes! — uma voz feminina, e
furiosa, troveja. — Eu tenho um metro e setenta e oito!
Sufoco uma risada ao ouvi-los discutir, principalmente quando percebo
que se trata de Summer Gautier.
Dando um gole em meu suco, verifico meu cabelo no retrovisor,
constatando que preciso de um novo corte.
— McAllister! — o treinador berra, me fazendo engasgar com o líquido
e tossir. — Acho bom que esteja falando com seus companheiros, porque se
não estiver, vou fazer cada um de vocês percorrerem todo o colégio até que
suas malditas pernas se partam no meio! Eu fui claro?
Puta que pariu.
— Sim, senhor. Foi claro como um dia ensolarado.
No segundo que a chamada é encerrada, eu entro no grupo do time de
hóquei e ligo para todos — que atendem na velocidade de um foguete.
Duas noites se passaram desde que Drogo saiu de casa sem deixar
sequer nas entrelinhas para onde iria.
Quero me obrigar a não dar a mínima, mas não posso. Não quando
preciso contar essa mentira para mim mesma. Nunca pensei que uma noite de
prazer seria tão danosa. A luxúria é como uma arma carregada às vezes. Com
um suspiro cansado, seguro o pingente do meu colar e inclino a cabeça contra
o tronco da árvore que Summer e eu estamos encostadas, encarando o céu
limpo que aos poucos se torna nublado.
— Então, o que você sugere?
— Um teste de DNA. — diz rapidamente, arremessando a última
pipoca do pacote dentro da boca.
Em seguida, ela fica de pé e limpa a parte de trás do short de ginástica
preto que está usando.
— Não é tão fácil. — contraponho.
Eu não contei nada referente ao que houve entre mim e Drogo na noite
que invadi o quarto dele, apenas resolvi dizer que não sinto que estejamos
ligados por qualquer laço consanguíneo. Precisava colocar para fora, e por
mais irracional que possa parecer, confio em Summer para debater sobre este
tipo de assunto. Diferente de Blake, ela não é uma tagarela. Minha irmã
costuma dar com a língua nos dentes sem nem ao menos notar que o faz.
— Oh, por favor, Bee. É fácil, sim. — devolve, apoiando as mãos na
cintura estreita. — Eu mesma posso fazer, inclusive.
Reviro os olhos, cética.
— Não estamos nos falando há quase dois dias. Então, não é como se
eu pudesse simplesmente chegar e dizer “Ei, Drogo! Você poderia, por favor,
me deixar arrancar um fio de seu cabelo? O quê? Oh, para usar em um teste
de DNA e comprovar que não sou sua meia-irmã!” — enceno, sarcástica.
Desta vez, Summer quem revira os olhos.
— Pedir? — ela estala, arqueando uma sobrancelha. — Eu não quis
insinuar nada referente a pedir, querida. Consiga um taco de beisebol e... Na
verdade, delete isso. Grayson tem um, a Elizabeth, posso ser sorrateira e
pegá-la. Portanto, me dê apenas uma tesoura ou uma seringa com agulha.
— Parece um plano de assassinato. Sendo assim, estou totalmente
dentro. — a voz animada de Leo quebra no ar, nos assustando.
Juro por Deus, esse garoto é como um gato. Silencioso e preciso
quando se trata de atacar. É um pouco assustador.
— Não vamos matar ninguém. — esclareço.
— Não minta para mim, doçura. — ele ronrona, empurrando uma parte
do cabelo castanho atrás da orelha. — Diga-me, quem será a vítima?
— Você. — alfineta Summer, adotando uma postura maldosa. — Se
não falar baixo, cuzão.
Com o canto do olho, vejo alguns estudantes que estão espalhados pelo
jardim atentos a nossa conversa.
— Por acaso compraram ingressos, crianças? — ela grita, cinismo
escorrendo de seu questionamento afiado. No mesmo segundo, todos os
curiosos presentes se apressam para garantir uma certa distância,
desaparecendo assustados. — Foi o que eu pensei!
— Você é uma coisinha diabólica, Gautier. — Leo graceja. —
Rebobinando, bonecas, o que planejam fazer com um taco e uma seringa?
— Nada. — elucido.
É inútil, porque logo após o que digo, Summer despeja:
— Tirar sangue do capitão do time de hóquei.
Começo a repensar minha opinião sobre ela não ser uma tagarela.
— Gostei. Um risco eminente à saúde, porém, muito tentador. Eu
poderia me certificar de nocauteá-lo. — divaga malicioso. — Mas não posso
deixar que aconteça. O GEC está no primeiro lugar da liga estudantil graças
ao McAllister e ao DeLuca, o que faz uma certa pessoa feliz e poupa meu
belo traseiro bronzeado de ser chutado.
— Que pessoa? — indaga Summer, desconfiada.
— O treinador Sawyer.
Sua postura vacila ao som do nome dele, e eu capturo a reação de
imediato. Hora de fazê-la saborear um pouco do próprio veneno.
— Por falar no treinador. — me viro para fitá-la. — Gautier, o que está
achando dos treinos?
Ela abre a boca, depois fecha.
Então, abre novamente, somente para fechar de novo.
— Nada. Tanto faz. — sua resposta balbuciada não faz sentido, o que
me obriga a esconder um sorrisinho vitorioso.
— Muito intensos? — pressiono.
Leo, confuso com nosso diálogo, desiste de o acompanhar e desvia seu
foco para o refeitório, lançando uma piscadela para uma das líderes de torcida
que o encara sem preservar a discrição. Os dois iniciam um flerte, o qual eu
ignoro para me fixar na garota loira que está prestes a ter um colapso diante
de mim.
— Mais do mesmo.
— Realmente?
— Aonde você quer chegar com este interrogatório, Brooke?
Dou de ombros.
— Lugar nenhum.
Uma risada nervosa e irritada escapa dela, desbancando-a.
— Ele é um homem das cavernas que tem prazer em transformar minha
existência num inferno.
— Honestamente, o treinador é bom em desempenhar o papel de
carrasco.
— Carrasco? — estala incrédula. — Ele é mais do que um carrasco. É
um desgraçado sem escrúpulos, diabólico, cretino, infeliz, e muito...
Suas ofensas se perdem no ar, ganhando a atenção de Leo, que nos
assiste com um quê de curiosidade descansando em seu rosto.
— Muito?
— Muito...
— Gostoso? — sugiro como quem nada quer.
— Gostoso. — ela deixa escapar num suspiro lamurioso. Então, seus
olhos se arregalam em puro horror, quase saltando das órbitas. Tudo o que
faço é sorrir. — O quê? Pelo amor de Deus, não! Eu o odeio. O homem é
uma dor constante no meu traseiro. Aliás, como chegamos a este assunto?
— Não faço ideia.
Como se o destino também quisesse ver minha amiga bastante
desconfortável hoje, nada menos que o treinador em carne e osso surge no
meu campo de vista, caminhando com toda sua imponência na direção que
nós três estamos.
Summer não é capaz de notá-lo, pois ainda está de costas. Entretanto,
seu corpo tensiona de súbito assim que Leo e eu saudamos em uníssono:
— Treinador Sawyer.
Meus olhos escorregam dele para ela, e eu tenho que morder os lábios
para manter uma faceta distante ao apreciá-lo de perto. Seus olhos azuis —
quase tão escuros quanto a pintura do céu noturno — são de tirar o fôlego.
Acima da íris esquerda, há uma pequena mancha na cor marrom, dando a ele
uma aura exótica e sensual. Músculos maciços esticam o tecido azul-marinho
do uniforme que cobre sua estrutura. O treinador deve ter pelo menos 1,96m.
Seu farto cabelo castanho foi passado para trás várias vezes, pois está
bagunçando no topo, e a carranca perpétua de ira, sua marca registrada,
contrasta irrevogavelmente bem com seu nariz aristocrático e a sombra de
barba que pincela seu maxilar cerrado.
Parando para pensar, é doloroso saber que muita gente vai morrer sem
ter a oportunidade de fazer sexo com ele.
Afasto esse pensamento quando observo a troca de olhares entre ele e
Summer, no instante em que os dois ficam cara a cara.
— Boa tarde. — resmunga, fixando-se nela em seguida. — Espero que
você ainda não tenha trocado de roupa, Gautier.
Um brilho explícito de desafio se instala em suas íris verdes quando ela
semicerra os olhos, cruzando os braços.
Não perco a veia que salta no pescoço do treinador quando Summer
adota uma postura hostil.
— Qual é o problema? Este short é mais longo do que o anterior.
— É um short? — sua pergunta retórica sai repleta de sarcasmo. —
Achei que fosse uma calcinha.
O queixo dela quase toca o gramado. Sua boca se abre em um “o” de
pura indignação, enquanto Leo e eu ficamos em completo estado de inércia.
— Perdão? — ela brada incrédula.
— Sua bunda está totalmente à mostra.
— Então, pare de olhar, babaca!
Nossas sobrancelhas alcançam a linha do couro cabeludo. Eu sabia,
desde que os dois começaram a se dirigir um ao outro, que não haveria a
mínima possibilidade de acabar bem. Apesar disso, nunca cogitei que o
treinador pudesse apertar tanto o botão de Summer a ponto de fazê-la
explodir desse jeito. As pessoas costumam enlouquecer por causa dele, mas
jamais um estudante chegou tão longe assim.
Espero uma reação ainda pior da parte dele, contudo, a única coisa que
o vejo fazer é respirar devagar, prendê-la com um olhar maligno, e exibir um
sorriso ferino de lobo, fazendo toda a ira que nossa amiga exala, evaporar
como água aquecida.
— Detenção. — ele sentencia, calmo.
Sua versão impassível é mil vezes mais assustadora, constato.
— O quê?
— Você ouviu: detenção. Eu a quero na sala de detenção assim que o
treino da tarde acabar. — completa. — E agradeça por ser somente isso, e
não uma expulsão. Você pode achar que domina esse colégio por causa de
sua riqueza, Gautier, mas não funciona desse jeito. Não comigo.
Permanecemos em silêncio, absorvendo sua declaração. O rosto
bronzeado de Summer está num tom vibrante de vermelho e seu peito sobe e
desce com dificuldade. Todavia, ela não é capaz de argumentar ou se opor,
pois o treinador dá as costas e começa a se mover para longe de nós depois de
pedir licença.
— Não é justo! — atira de volta, exaltada.
— Eu decido o que é ou deixa de ser justo, Barbie Surfista. Por
exemplo, seu uniforme e sua conduta, ambos vão contra todas as regras
possíveis e impossíveis. Troque-o, e adquira um pouco de lucidez no
processo, e não terá que passar por esta situação uma segunda vez.
— Vou entrar em contato com o diretor Carson!
Sua cabeça gira em uma velocidade absurda, como se a menção ao
nome de Eric o causasse um tipo de fúria eminente.
Suas feições contorcidas só reforçam essa ideia. Bem, pelo visto não
sou a única que nutre um sentimento negativo pelo proprietário do colégio.
— Por mim você pode entrar em contato com a rainha. — sibila. —
Você está no meu território. Aconselho-a a não me ameaçar, não é prudente.
A imagem das costas dele é tudo o que recebemos quando o vemos
desaparecer mais à frente.
— Que diabos foi isso? — Leo indaga. — Perdeu a noção, Gautier?
— Estou ferrada. — ela choraminga. — Oh, Deus, eu o odeio tanto!
— Corra atrás do prejuízo. — sugiro, embora possa não ser a melhor
proposta. — Faça um bom treino e tente remediar o estrago. Ninguém quer
tê-lo como inimigo, já vi muitos estudantes saírem do GEC por menos. Você
o chamou de babaca, Summer. É algo corajosamente burro de se fazer.
Seu suspiro é audível e cansado, escancarando seu arrependimento.
— Não o ofendi por querer.
— Tem certeza?
— Leo. — repreendo.
— Desculpa. Enfim, se eu fosse você faria o que a Brooke disse. Aliás,
até onde eu sei, seu treino começa em dez minutos. Por que não se apressa?
Ela o fuzila com um olhar afiado.
— É horrível ter que confessar que você tem razão, Ballister. —
anuncia, depositando um beijo em nossos rostos. — Obrigada. Vejo vocês
depois.
Nós dois ficamos sozinhos quando Summer corre para longe.
— Bem, vamos para a sala, doçura. Temos aula da Meany Ranheta. —
recorda, descendo para o refeitório.
Ele apelidou a Sra. Keith, nossa professora de Estudos Sociais, dessa
forma. O pretexto é que, para Leo, a voz da mulher é tão irritante quanto a da
personagem do pica-pau.
Viro-me para pegar meu bloco de notas que está no gramado, quando
uma cena na entrada do vestiário das líderes de torcida prende minha atenção.
Estreito os olhos, o vinco entre minhas sobrancelhas enrugando à medida que
percebo de quem se trata.
Matteo DeLuca e Avalon Montgomery.
Os dois parecem estar trocando farpas, mas não faço ideia do que
dizem, pois estão ao longínquo e se enfrentam com cautela. Ele a encurrala,
descansando a mão esquerda ao lado da cabeça dela e pressionando a direita
na altura da cintura. Resfolego, chocada ao vê-la tentar acertar o rosto dele
com um tapa. Com uma calma chocante, DeLuca a segura ainda no ar e...
beija Avalon.
— Santa Mãe de Deus! — engasgo, num sussurro.
— Brooke? — Leo chama em sincronia com o ato, embora esteja
alheio. — Vamos logo. Parece até que você ficou fora de órbita no último
minuto.
— Hm. — quase gaguejo. — Lembrei que tinha algo para fazer e me
perdi no tempo, tentando lembrar do que se tratava. Enfim, podemos ir.
— Conseguiu lembrar?
— Não. Tenho certeza de que irei, em breve.
— Se você diz. — ele estende um braço, oferecendo-o para que eu
entrelace o meu.
Antes de aceitá-lo, dou uma última olhada para onde Avalon e Matteo
estavam. No entanto, não há sinal de nenhum dos dois. Pensei que os únicos
que se odiavam visceralmente eram Leona e o tal Grayson, mas vejo que há
segredos em excesso sob a superfície. Os californianos não são somente
caóticos, são diabólicos. Principalmente os mais estoicos e sofisticados deles.
No final das contas, é como dizem. São nas águas mais pacíficas que o
verdadeiro perigo se esconde.
Eric Carson pode querer me matar em breve, e até mesmo obter êxito
nisso. Mas não pretendo facilitar. Não mais.
Este é o pensamento que decreto em minha mente ao parar o carro na
frente de casa, depois de rodar com ele por quase duas horas inteiras. Me
automediquei com alguns analgésicos, o bastante somente para amenizar um
pouco a dor na minha têmpora. Inclinando o corpo na direção do banco
traseiro, pego o cachecol preto que deixo jogado ali para casos de emergência
e o posiciono envolta do meu pescoço, ocultando as marcas impressas em
minha garganta. Agora, estão mais evidentes. Sei que terei de recorrer à
maquiagem para esconder por pelo menos uns dois dias. O estrago não foi tão
absurdo graças à gola alta do uniforme, está apenas avermelhado. Apesar da
exaustão física e do emocional abalado, decido que não vou mais jogar as
coisas para debaixo do tapete por achar que é o melhor a se fazer, porque não
é. Nunca é uma saída prudente, embora pareça. Quanto mais você esconde
algo por medo, mais aquilo volta e te assombra. Pesco o pó de dentro da
bolsa e dou algumas batidinhas em minha face, cobrindo de maneira parcial o
inchaço que as lágrimas causaram. Por fim, prendo meu cabelo em um rabo
de cavalo, respirando fundo. Por enquanto, terei que voltar a encaixar a
máscara de atriz.
— Você consegue. — digo a mim mesma, observando meu reflexo no
retrovisor. — Você consegue. É mais forte do que todo esse tormento.
Erguendo a cabeça, abro a porta e saio. Uso o antebraço sobre a testa
para me proteger da chuva fina. Cessou bastante, porém, continua caindo.
Me atrapalho para digitar a senha do portão de entrada. Assim que a luz
em vertical é convertida de vermelho para verde e os portões se abrem, eu me
preparo para entrar.
— Olá, ma chérie.
Meu coração para de bater imediatamente. Essa voz. Eu a reconheceria
mesmo se estivesse no meio de uma multidão barulhenta.
— Jax? — sussurro, meus lábios se entreabrem quando nossos olhares
se cruzam e eu dou de cara com o herdeiro dos Gaillard.
O sorriso preguiçoso que eleva um dos cantos de sua boca traz
inúmeras lembranças do passado à tona, inclusive a daquela tarde.
— Bee, você está linda.
Então, algo surge além de mim, o fazendo desviar a atenção para o que
quer que seja. O sorriso dele, como se fosse possível, fica ainda mais largo.
Virando-me, acompanho a mesma linha visual. É quando localizo, em
meio à chuva, a figura colérica de Drogo se aproximando como um torpedo.
— E lá vamos nós.
Essa é a última frase que Jaxon consegue proferir antes que Drogo
feche o punho e acerte um soco brutal no maxilar de seu ex-melhor amigo.
CALIFÓRNIA?
EU DETESTO ESPERAR.
Não. Eu detesto pra caralho esperar.
Meu foco está fixo nas minhas mãos durante os incontáveis minutos
que eu as fecho e abro, sentado em uma das cadeiras do corredor vazio. Perdi
as contas da quantidade de vezes que me levantei e andei de um lado para o
outro com o intuito de aliviar a maldita onda de ansiedade. A porra do
tiquetaqueado dos ponteiros ressoa em meu cérebro, badalando de forma
irritante e sem qualquer pausa. O ruído incessante contribui para o aumento
da minha impaciência. Hoje estou mais raivoso do que o normal, e tudo
porque tenho que aguardar. Estou a um passo de arrancar a porcaria do
relógio da parede para quebrá-lo em dois. Talvez, assim, eu possa finalmente
ter um pouco de paz.
Com um suspiro profundo de irritação, descanso a cabeça contra o
gesso e fecho os olhos. Em silêncio, começo a contar até cem de trás para
frente. Era uma rota que eu seguia quando era mais novo e tinha o desejo de
esmurrar a cara de algum endinheirado que mexia comigo.
Meu pai quem me ensinou. Às vezes, funcionava. Todavia, dava muito
mais errado do que certo. Bem, acredito que o importante era tentar.
Esfrego as palmas úmidas no tecido da minha calça. O uniforme parece
ainda mais apertado do que o normal em meus membros. Faz cinco dias que
retornamos à Londres, e ontem Brooke e eu tomamos a decisão de fazer um
teste de DNA. Neste exato instante, estou aguardando a chegada dela no
laboratório para vermos o resultado. Cheguei primeiro porque fui dispensado
do treino. Pescando o celular do bolso, verifico o aplicativo de conversas.
Arrastando o polegar pelo teclado, escrevo uma nova mensagem para
perguntar onde minha garota se enfiou. Antes mesmo que eu possa finalizar,
passos ecoam pelo corredor vazio.
Desvio a atenção do aparelho, erguendo o rosto. Me levanto ao vê-la
entrar no recinto com uma expressão gritante de nervosismo e expectativa.
Seu ritmo apressado é tão cômico que alivia minha fúria, obrigando-me a
esquecer, por um minuto inteiro, que estou irritado.
— Então? — indaga ansiosa.
— Mesma coisa.
Brooke desaba na cadeira ao lado.
— Eu estou apreensiva. Tentei ficar calma, só que parece ser
impossível. Eu sinto que vou vomitar a qualquer instante. — admite.
Repito seu movimento, segurando seus dedos nos meus ao me sentar.
Entre eles está escorregadio por causa do suor frio que os rodeia.
— Você não precisa ficar assim. — asseguro. — Com todo esse medo.
Não faz nada bem.
— Mas, Drogo, se der negativo, você não será um Andreotti. — seus
dentes prendem o lábio inferior e ela o mastiga sem nem perceber.
— Que se dane, meu amor. Não dou a mínima para o dinheiro. O que
eu tenho pode me manter suficientemente bem. Não se preocupe.
Sua testa enruga em confusão quando Brooke gira a cabeça para me
encarar. De um jeito bizarro, posso pressentir a pergunta que virá.
Não tenho problema algum em dizer o que fiz ao longo desses últimos
anos para sobreviver, embora a merda toda fosse clandestina. Eu estaria
mentindo se dissesse que não sinto falta das brigas, porém, coloquei outra
coisa em meu foco. A questão é que, agora, essa outra coisa seguiu um rumo
que eu não estava prevendo. Temos uma longa história, uma grande carga
que foi carregada por ambos, e que me fez repensar tudo de ruim que eu
havia planejado quando aquela advogada toda engomadinha me procurou,
meses atrás. Pode parecer algo repentino e sem fundamento para qualquer
outra pessoa de fora que venha a observar nossa relação atual. Não para nós
dois, porém. A verdade é que, para Brooke e eu, levou tempo. Tempo demais.
Esta é uma segunda chance que nos foi dada e que eu não pretendo
desperdiçar. E foda-me se tiver alguma coisa a ver com pena, como ela
pensou. Nunca, porra.
— Você tem uma Lamborghini, veste roupas boas e tem até um Rolex.
— diz, e não capto maldade em seu comentário. — Seus pais não eram
pobres, contudo, também não eram ricos o bastante para que você tivesse
uma vida com tamanha regalia. Como você tem dinheiro para bancar tudo?
Esfrego a nuca devagar, acomodando-me de modo preguiçoso e
relaxado no assento.
— Eu era o melhor no que eu fazia.
— O que você fazia? — inquire, e eu desvio o olhar com despretensão,
coçando o maxilar. Ao não dar uma explicação, Brooke resmunga: — Drogo.
— Podemos falar sobre esse assunto outra hora.
— Por quê?
— Porque este não é um local apropriado.
Seus lábios formam um bico de insatisfação.
O gesto me faz ter um desejo quase enlouquecedor de beijá-la. Eu fui
capaz de provar esses lábios, mas acho que uma, duas ou três vezes jamais
serão o suficiente. Por um segundo, me pego pensando se Brooke sente o
mesmo. É um pensamento que me deixa inquieto por não saber a resposta. Eu
não irei, de nenhuma maneira existente, pressioná-la para saber se é um
desejo unilateral ou não.
Na noite em que estávamos na piscina, ainda na Califórnia, tivemos um
longo diálogo sobre como seria entre nós daquele momento em diante.
Seu único pedido foi que eu fosse paciente com suas decisões. E eu
pagarei alguém para me espancar até a morte se a sua vontade não for
respeitada.
Observo-a prender seus fios loiros e sedosos em um rabo de cavalo
como se fosse o gesto mais fascinante do mundo. Na verdade, acho que é. A
gravata de seu uniforme está parcialmente desalinhada, então eu ajeito.
— Passou maquiagem no pescoço? — pergunto.
— Sim. — pigarreia. — Há dias em que eu costumo passar um
pouquinho.
Concordo com um aceno rápido, voltando a me recostar no assento.
— Ei! Não pense que irá escapar do interrogatório. — a porra de um
arrepio percorre minha coluna quando ela sussurra: — Não terminamos
ainda.
— Acredite em mim quando eu digo que já estava imaginando isso. —
balbucio, levando o dorso de sua mão à boca e depositando um beijo nele.
Ela sopra uma risadinha pelo nariz, revirando os grandes e vívidos
olhos azuis. Notei que, ultimamente, eles estão brilhando com mais
frequência.
Gosto disso.
— O que foi? — questiona desconfiada. — Você está me olhando de
um modo estranho.
— E que tipo de estranho seria? — interrogo, adotando um tom cínico.
— Bom ou ruim?
— Hum. — divaga, fingindo escolher, mas logo sorri. — Eu ainda não
consegui decidir.
Nossos sorrisos desaparecem ao som da porta diante de nós abrindo.
Uma mulher de uniforme branco e cabelo raspado, com tatuagens até o
pescoço, sai de dentro da sala. É a mesma que pegou as amostras necessárias
para o exame de DNA. Seus olhos pretos desviam em nossa direção e eu vejo
a sombra de um sorriso elevar um dos cantos de sua boca adornada por um
batom escuro. Ela é jovem. Eu diria que está na casa dos trinta.
Brooke é a primeira a levantar.
— Olá. — saúda, apertando nossas mãos com firmeza. — Como vão?
— Bem, e você?
— Muito bem, obrigada. Eu demorei um pouco mais para finalizar,
pois houve um pequeno imprevisto. Nada que possa ser prejudicial. —
antecede. — Porém, por causa disso, a recepção não o teve em mãos para
entregar a vocês ainda.
— Ah, sem problemas. Quanto tempo mais irá demorar?
Quase posso ver o coração de Brooke pulsando em sua garganta. Ela se
esforça ao máximo para não evidenciar o nervosismo que sente, falhando.
Mantenho um aspecto neutro, embora esteja no mesmo barco. É
ridículo, porque sabemos que não somos meios-irmãos, conquanto, a
sensação que nos envolve não nos faz enxergar esse ponto com clareza. A
mulher explica que o resultado está sendo encaminhado para a recepção
agora e que teremos que o buscar lá dentro de alguns minutos, informando
também que só seria necessário permanecer com ela, caso fosse preciso dar
alguma explicação final. O que não foi o caso, tendo em conta que tudo saiu
perfeitamente esclarecedor. Ou seja, todo esse tempo que esperei sentado
nesse corredor foi inútil. Reviro os olhos ao cair na real. Hospitais e esses
locais similares não são minha praia, portanto, não sei como funciona o
processo para determinada coisa.
Começo a entender o motivo de Brooke ter mandado um emoji com a
expressão confusa quando perguntou se eu estava na recepção e eu neguei.
A culpa não foi minha. Passei lá antes de vir para cá e não tinha nada.
Então, achei melhor aguardar aqui. Afinal de contas, era o único local vazio.
Durante o diálogo, permaneço quieto, apenas observando. No final, ambas
voltam a apertar as mãos e eu faço o mesmo em seguida, agradecendo.
— Por que ficou tão calado? — ouço-a questionar ao seguirmos para
fora do corredor.
— Eu não tinha nada de importante para acrescentar. — explico, dando
de ombros.
— Surpreendente.
— Desculpe? Você, por acaso, está debochando de mim? — indago, de
modo retórico.
Ela solta uma risadinha suave, segurando meu pulso enfaixado com
suas mãozinhas.
— Foi o que pareceu? — seu tom é condescendente.
— Foi exatamente o que pareceu. — retruco irônico.
O envelope continua lacrado.
E eu não faço a mínima ideia sobre o lugar em que estamos indo.
Brooke pediu para escolher o lugar onde gostaria de abri-lo e eu aceitei
sem contestar, ainda que o desejo de ver a confirmação fosse maior. Fecho a
porta do banco do motorista da minha Gallardo assim que a vejo saltar para o
interior, acomodando-se no assento após descer o teto solar. Dou a volta,
apoiando uma mão na lataria para pular dentro. O conversível balança com o
movimento e eu ignoro a careta de desagrado que enfeita suas feições. Ajudo-
a com o cinto de segurança, passando o meu depois, e descanso um cotovelo
na janela, esfregando o lábio inferior.
Não estou receoso quanto ao fato de que não estou no controle, e muito
menos por se tratar do meu carro — embora eu tenha ciúmes dele, pois sei o
quão difícil foi o conseguir — e tudo porque Brooke sempre dirigiu bem. O
sentimento de apreensão que carrego comigo é devido a outra coisa.
— Relaxe. Seu bebê está em boas mãos. — escuto-a garantir,
observando o retrovisor ao manobrar para fora da vaga e acelerar em direção
à estrada.
Ajusto a aba do boné que uso, me permitindo achar graça de seu
comentário.
— Estou relaxado.
— Se você diz. — dá de ombros. — Ah, tem uma venda na minha
bolsa. Pode pegá-la, por favor?
Olho-a com desconfiança, mas faço o que ela pede, pegando a bolsa
dos meus pés e abrindo.
Não demoro muito para ver o tecido preto em um dos bolsos na parte
interna. Fecho o zíper com uma carranca. Posso sentir onde vamos chegar.
— O que pensa que vai fazer?
Minha pergunta não indica uma dúvida ingênua, obviamente. Estou
interrogando-a somente para confirmar minha teoria evidente.
— Eu? Nada. Você? Colocá-la.
Sua réplica soa tão doce e meiga enganaria qualquer pessoa. Qualquer
pessoa, menos eu.
Com uma sobrancelha arqueada em cinismo, verifico sua face
ruborizada, a qual está fixa na pista à frente. Brooke morde o lábio inferior
com o intuito de prender o riso, e luta para manter uma fachada de
indiferença. Por um minuto inteiro, noto o vislumbre de felicidade que banha
suas íris. A imagem faz algo em meu peito, um sentimento satisfatório. Estou
tentando ao máximo deixá-la à vontade. Ainda que isso implique em ter que
aceitar esse tipo de coisa. Não dou a mínima para o que os demais irão achar
futuramente, se vão ou não olhar de maneira estranha para nós dois. Agora,
temos um ao outro, e isto é o mais importante.
— Não sei. — divago, analisando a venda. — Devo confiar em você?
Ela bufa uma risadinha de incredulidade, estapeando a minha perna.
— Você pode, por favor, parar de falar besteira e colocar de uma vez
por todas? — seu timbre mandão é equivalente ao de um hamster furioso.
— Estou pensando.
— Drogo! — berra descrente.
Não vou dizer em voz alta, mas, porra, adoro como meu nome rola para
fora de sua boca. Ele costumava ser um problema para mim na infância.
— Está bem, está bem. — cedo, esticando o tecido e passando-o na
frente dos meus olhos. Em seguida, dou um nó na parte traseira. —
Satisfeita?
— Sim. Vê alguma coisa?
— Eu não estou enxergando um palmo, mulher. — resmungo minha
resposta, dando os retoques finais para não incomodar. — Vai demorar?
— Acho que não.
— Brooke. — profiro em tom de repreensão, virando a cabeça como se
pudesse olhá-la.
Sufoco a vontade de revirar os olhos com sua justificativa, escutando o
som de indignação que ela emite ao bater sua língua contra o céu da boca.
— É que já faz alguns anos.
— O quê? — brado.
— Estou brincando!
Aperto a ponte do nariz, frustrado por estar fora de qualquer resquício
de controle aqui. Eu sei que cometi pecados inconcebíveis em vida, mas
estou começando a achar que pela paciência que estou tendo agora, quando
chegar minha hora de partir, eu poderei passar pelos portões do Céu.
— Você é uma coisinha má.
— Sou uma garotinha cruel.
Eu tento raciocinar, pensando nas possibilidades de locais que podem
indicar nosso destino. Entretanto, nenhum em específico me vem à mente.
Brooke sempre guardou segredos muito bem. Portanto, recorrer à
manipulação ou chantagem está completamente fora de cogitação. Ela não
vai cair em nenhuma armadilha que eu criar, estou ciente. Então, tudo o que
me resta fazer é me abster de um interrogatório e esperar.
Tamborilo os dedos em minha coxa, me forçando a concentrar os
pensamentos em um ponto que não seja esse. Do contrário, vou ter um
infarto.
Sinto as narinas dilatarem com o excesso de voracidade que eu coloco
ao respirar. Ouço o chiado que Brooke emite ao se mexer no assento.
— Quanto tempo mais? — inquiro, após vários minutos se passarem.
— Minha bunda está ficando quadrada.
— E você possui o título de capitão do time de hóquei? — alfineta
irônica.
— Sua língua afiada está se tornando um problema.
— Você diz? Porque, bem, eu estou adorando usá-la.
A interação que dividimos parece não ser real. Quero dizer, menos de
uma semana atrás eu estava sendo um bastardo do caralho.
As coisas que falei para Brooke desde que voltei à Kensington são
dignas de arrancar minhas bolas sem anestesia. Eu fui um filho da puta,
embora não tenha feito um terço do inferno que planejei. Tive inúmeras
chances, confesso. Ainda assim, nunca fui adiante. Não em todas elas, pelo
menos. Boa parte do que eu disse foi da boca para fora, não importa o quão
verdadeiro parecesse. Eu queria me convencer de que era a realidade. Não
era. O maldito peso em minha consciência não é devido ao que houve na
Califórnia, e sim porque Brooke nunca mereceu ser alvo de situações ruins,
mesmo as mais ínfimas. Tento mandar esses pensamentos negativos que me
corroem para o fundo da mente, porém, é uma tentativa sem sucesso. Eu
queria não apenas poder consertar tudo, e sim apagar cada evento infeliz
como se fosse uma letra incorreta escrita a lápis em um caderno. O sabor
amargo dos rastros de culpa vai me perseguir até o dia da minha morte.
— Brooke. — começo rouco.
Interrompo o que pretendia falar ao registrar sua euforia repentina,
anunciando que chegamos. A Lamborghini para de se mover gradativamente,
e o barulho de seu cinto sendo retirado logo depois, além do vento forte que
vem de fora, é todo o barulho que circula em meus ouvidos. Inspiro seu
perfume de menina doce quando ela se inclina na minha direção, seus cabelos
roçando em meu peito através do tecido do uniforme o faz parecer diminuir
alguns números. Eu cerro a mandíbula, fechando os punhos para esmagar a
vontade de segurá-la contra mim sem aviso prévio.
Meu cinto é desprendido do suporte.
— Você ia dizer alguma coisa?
Eu quero ver seu rosto, é a verdadeira confissão que queima na ponta
da minha língua e que eu quase permiti que escapasse.
— Nada.
— Tem certeza? — insiste.
— Sim. Podemos ir ou não?
A resposta para o que eu pergunto não vem de imediato. Suponho que
Brooke esteja pensando em algo, tendo em conta que sua cabeça não para.
Apesar do silêncio que recai entre nós, seu corpo não se mexe para criar uma
certa distância. Pelo contrário, ela permanece imóvel.
Sua respiração cálida sopra em um ritmo cadenciado na pele exposta do
meu peito, onde eu desabotoei propositalmente mais cedo.
Se qualquer outra garota estivesse nessa mesma posição, seria uma
situação irrelevante. Não me afetaria. Com Brooke, porra, não funciona
assim. Ela torna tudo tão difícil que, ainda que se trate da tarefa mais simples
de ser executada, eu não me vejo conseguindo raciocinar da forma correta.
O sonido que se inicia indica a quebra de contato que dividimos
parcialmente. O calor que emanava de sua presença antes se dissipa, similar a
fumaça no ar. É doentio o modo como meu corpo reage. A sensação que
tenho é de estar viciado em uma droga e assisti-la ser tirada do meu alcance.
Estou fodido.
— Claro. — concorda por fim, e abre a porta. — Vou dar a volta e te
ajudar a sair.
— Não precisa. — antecedo, tateando meu lado em busca da maçaneta.
— Precisa. Não vai ser legal se você tropeçar e cair de cara. O lugar
está muito decadente, é fácil ocorrer. Aconteceu comigo da última vez.
— Você me trouxe para uma armadilha mortífera, então? — desdenho.
— Quase isso.
A risadinha que ela produz é abafada, mas me faz esboçar um sorriso.
A porta do carona é aberta e eu a tenho me instruindo enquanto me segura.
— Devagar para não se ferir e...
— Não estou operado. — alerto solenemente. — Diga onde eu tenho
que pisar e eu irei. Não vai ser legal se eu tropeçar e cair em cima de você.
— Eu morro.
— De fato.
O solo é cheio de buracos, o que me dá a impressão de estar mancando
ao me movimentar sobre ele. O vento, aqui, parece ser mais violento e glacial
do que no resto da cidade. Por esse motivo, pressuponho estarmos em um
local alto. Não há sons de outros veículos ou burburinhos de pessoas, e o
aroma também não me é familiar. Não que seja desagradável, mas cheira
como terra úmida e velharia. O canto de pássaros ao longínquo é trazido pela
brisa que circula o ambiente. Consigo perceber que estamos cercados por
algumas árvores, pois escuto o farfalhar das folhas. Eu poderia dizer, mesmo
com os olhos vendados, que este é o lugar ideal para um filme de terror, e a
coruja ao fundo só enfatiza a ideia. Não é uma floresta. Fica evidente porque,
embora tenha pequenas crateras, o piso não é de terra. E não foi preciso
desviar das árvores ou pisar em cascalhos. Na verdade, é concreto. O que é
bom, o tênis que estou usando é branco, seria uma dor no rabo ter que lavá-lo
por estar coberto de lama.
Estou a um passo de perguntar se nunca chegaremos quando Brooke,
como se lesse meus pensamentos, anuncia que podemos parar de andar.
— Não tire ainda.
— Caramba, mulher. — reclamo, e espero uma réplica para o meu
comentário mal-humorado, todavia, ela não se dá ao trabalho de morder a
isca.
— Eu vou tirar para você. — avisa, posicionando-se atrás de mim.
Ela deve subir em alguma coisa, pois fica da minha altura, ou um pouco
maior. Suas mãos trabalham com pressa para desfazer o nó que eu dei.
Apertei apenas o suficiente para que o tecido não ficasse escorregando
no meu rosto, o que a faz terminar a tarefa em uma fração de segundos. Não é
difícil notar que o ar foi embebedado pela empolgação genuína dela. O que
eu não consigo entender é a razão de Brooke estar tão empolgada. Então, a
venda é retirada. Eu pisco para recuperar o foco, estreitando os olhos. E,
foda-se, porque finalmente compreendo o motivo de sua euforia.
Nós estamos onde nos conhecemos.
EM OUTRAS VIDAS
A EXPECTATIVA ME SUBJUGA.
Não pretendia vir para a residência, agora em ruínas, que Drogo e eu
nos conhecemos na infância. Foi uma ideia de última hora, nada programada.
Eu venho todos os anos por pelo menos uma vez no ano desde 2010.
Estamos em 2018.
Os proprietários, por um motivo que desconheço, simplesmente
pararam de cuidar do lugar. Ao vê-lo decair com o passar do tempo e notar
que o tinham deixado ao relento, eu pensei em fazer algo a respeito. No
entanto, acreditei que isso seria como mexer no que não deveria. Não era
certo. Então, optei por deixar o processo natural fazer seu trabalho. É
estranho que ninguém tenha feito algo com o terreno. Embora a casa seja
longe da cidade, mais próxima do campo, e sua localização não chegue nem
perto de atrativa, é um local reconfortante, mesmo em seu estado deplorável
atual. Não sou o tipo de pessoa que precisa estar cercada por luxo, o simples
me encanta. Além do mais, apesar dos pesares, eu me sinto protegida aqui.
Meu corpo inteiro está rígido atrás de Drogo, enquanto espero, com o coração
martelando em meu peito, qualquer coisa que ele possa vir a dizer.
Minhas mãos inquietas, as quais abro e fecho por causa do nervosismo
a cada nanossegundo, começam a exalar suor frio. Odeio ficar nervosa.
Sinto a pulsação tão acelerada que as vibrações são enviadas direto para
os meus ouvidos, ricocheteando neles. Eu esqueço como devo respirar.
Memórias do nosso passado, de quando éramos crianças, jovens e inocentes,
envolvem meu cérebro como um cobertor grande e aveludado. Por muito
tempo, desejei poder trazer de volta toda a inocência que eu possuía naquela
época, quis recuperar a bondade que costumava ter. Porém, no fim, eu
entendi que a inocência, no mundo em que vivemos hoje, não é uma bênção.
Pelo contrário, é uma maldição. E pode nos matar.
Meu fôlego engata por um curto período.
— Brooke?
A voz de Drogo afasta os devaneios que começam a me engolir sem
que eu note. Suas íris verde-floresta me encaram com uma intensidade
dolorosa.
— Me desculpe. Eu...
— Você está bem?
Ele deve ver que saí de órbita, porque franze o cenho ao me questionar.
Suas mãos estão segurando meus ombros e o contato me deixa arrepiada.
Oh, merda. Eu devo ter estragado tudo. Essa é a pior parte de se perder
nos próprios pensamentos quando se é uma pessoa com traumas. É feio.
Tristeza se aloja em minha garganta de repente, como se um nó invisível a
tomasse, roubando minha fala. Me recuso a chorar, piscando com força.
— Sim. — digo, finalmente, mas não sei se estou sendo honesta ou
não.
A carranca que distorce o rosto bonito dele, camuflado de maneira
parcial pela luz da noite, indica seu descontentamento pela réplica que eu
cedo.
Eu consegui transformar algo que deveria ser bom em uma coisa ruim.
Talvez, trazê-lo para cá, tenha sido a pior escolha que eu poderia fazer.
— Não minta para mim.
O aviso vem após um curto intervalo de silêncio de ambas as partes.
Meus lábios ressecam graças as lufadas de ar que produzo ao som de sua voz.
Penso em sustentar a resposta, manter o “sim”. A farsa sai tão transparente
que não a vejo como um erro, é natural. Contudo, não quero fazer isso. A
mentira tende a ser a pior saída quando se trata de usá-la com alguém que
pode enxergar através de você.
Eu não quero ter que mentir para o Drogo sempre que estiver confusa
ou com medo. Fiquei presa dentro da bolha que criei por muito tempo, não
posso continuar indo de encontro ao que me destrói. É um mecanismo de
defesa nocivo, e estou cansada de ser constantemente arrastada para ele.
Desistindo, permito que a verdade role para fora:
— Eu me perdi em minha mente. — explico. — E não queria parecer
uma esquisita, então, menti. Estou tentando, juro, só que é uma luta árdua.
Confessar tira um peso enorme das minhas costas. É libertador, e eu
não me arrependo nem um pouco de mostrar meu lado desarmado para ele.
Drogo inspira devagar, envolvendo-me em seus braços. É como estar
dentro de uma fortaleza. O calor que seu corpo emana é tudo o que eu
preciso. Enterro o rosto na curva de seu pescoço, fechando os olhos ao inalar
seu perfume. A presença dele afasta cada uma das sensações ruins.
— Vai ficar tudo bem. — sussurra sua garantia, acariciando meu
cabelo. — É normal esse tipo de coisa ocorrer. Suas memórias são de anos
atrás, no entanto, você tornou as lembranças ainda mais frescas ao falar sobre
elas. Foi um ato corajoso, é evidente, mas também arriscado para você
mesma.
— Não sei o que pensar ao certo. — admito, suspirando. — Estou
confusa, mesmo que eu saiba o que quero. Você entende?
— Vai passar em breve. Dê tempo ao tempo e não tente fazer mais do
que é possível no momento. Você não precisa ter pressa alguma, Brooke.
Suas palavras são calmas e certeiras, diminuindo a chuva tórrida de
ideias sem fundamento que nubla meu cérebro e me deixa apreensiva.
Eu ergo a cabeça, procurando suas íris em meio à fraca penumbra que
nos envolve. Ao ter nossos olhos colidindo fixamente, sustento seu olhar. Em
geral, é necessário inclinar a cabeça para cima se eu quiser encará-lo, por
causa da diferença gritante entre nossas alturas. Agora, porque estou na parte
mais alta de um dos bancos que adornam o lugar, não preciso me esforçar
muito para que nós dois fiquemos cara a cara.
— Eu vou. — afirmo, e sei que não preciso dizer outra coisa para que
ele acredite. — Ficarei bem, contanto que você esteja comigo.
Seu sorriso contido me surpreende, enviando uma maré de arrepios que
percorre toda minha coluna. Não estou acostumada com esse lado dele.
— Em cada parte do caminho, meu amor.
Pego-me observando cada detalhe que o compõe. Seus fios loiros, mais
escuros do que os meus, estão bagunçados nas laterais por causa da venda, e
o topo está alto o bastante para que eu enterre meus dedos. A ideia tentadora
estala em minha cabeça. Sem me impedir, faço o que tenho vontade. A
maciez de seu cabelo roça nas pontas frias, fazendo-me soprar baixinho com
o toque vagarosamente despretensioso. O movimento de vai e vem é
reconfortante. Depois de alguns segundos, empurro as mãos para trás e as
descanso em sua nuca, usando os polegares para acariciar os fios curtos.
— Você sente que é real? — meu queixo treme. — Você e eu? Esse...
momento?
— Sim.
— Eu também. Gostaria de poder congelá-lo. — declaro, o meu tom é
baixo, mas sei que fui ouvida, pois suas íris verdes escurecem de súbito.
É desejo. Puro e flamejante.
Eu passei tanto tempo sem experimentar a sensação de ser desejada por
alguém que eu quase poderia deixar passar. Quase. Eu não deixo, embora.
Drogo está se segurando, e eu jamais o julgaria. Não somos como a maioria
das pessoas. Não somos normais, sequer estamos perto disso. Contudo,
também não podemos permitir que nossos medos nos controlem ou definam.
Não sabemos como será o dia de amanhã, e não fazemos a mínima ideia se a
vida ainda estará conosco ou terá nos deixado, tampouco se estaremos
realizados com nossas ações e feitos. Então, por que temer?
— Abra. — murmuro.
Ele umedece os lábios.
— Tem certeza?
Aceno, concordando. Porém, quando sua mão se move para a parte
inferior do blazer dele e eu assisto o envelope branco sendo puxado, eu o
paro. Drogo inclina a cabeça levemente para o lado, estudando minhas
feições. Nenhuma sílaba deixa sua boca para contestar meu gesto abrupto.
Meus olhos se enchem com lágrimas pesadas. Eu o amo, é verdade,
como jamais amarei outro homem, mas há coisas que devem ser esclarecidas.
Precisamos ser racionais.
— Não importa qual seja o resultado dentro desse envelope porque,
para mim, meu coração está certo. Nós dois não somos ligados pelo sangue.
— começo, aproximando nossos lábios até que uma linha invisível seja a
única coisa que nos separa. Inspiro seu perfume, enchendo meus pulmões
com seu cheiro masculino. A primeira lágrima rola pela minha face e eu a
seco com rapidez. — Entretanto, se formos meios-irmãos, acabaremos aqui.
— Não somos. — diz cético.
— Acabaremos aqui.
O músculo de sua mandíbula pulsa com força. Ele vira o rosto,
deslizando a ponta da língua no canto de sua boca num frenesi de
descontentamento.
Seria mais do que errado. E apesar de todas as coisas que fizemos, eu
não poderia levar adiante. É diferente quando a ignorância faz parte do jogo.
— Certo. — delibera insatisfeito. — No entanto, se não for o caso, e
com certeza não vai ser, todos saberão que você é minha. E eu a beijarei hoje.
— O quê?
— Eu concordei com seu pedido, não? — contrapõe, tornando a me
fitar. — Mas nunca disse que o acataria sem usar uma moeda de troca. É o
que eu desejo. Você. Cada parte sua, levando o tempo que for. — sentencia.
— Não me importo se terei que esperar. Tratando-se de você, eu sou
paciente.
Mesmo com as dezenas de emoções que me cercam agora, eu as
mantenho sob a superfície, não aceitando que elas escapem e me controlem.
Por mais distorcido que possa parecer, eu gosto da voracidade em sua
confissão, porque aquece até as partes desconhecidas do meu âmago. Eu
sorrio, pois é absurda sua ideia de achar que o contrário já ocorreu. Eu
sempre fui dele. Sempre. Nada no universo seria capaz de mudar isso.
A verdade é que, almas gêmeas, às vezes, ainda que não estejam
destinadas a permanecerem juntas, jamais deixarão de ser almas gêmeas.
Em outras vidas, Drogo e eu fomos namorados. E em outras, noivos.
Estivemos casados em alguma delas, também. E nós dois fomos amantes.
É nisso que eu acredito.
— Está bem. — aquiesço, não revelando meus últimos pensamentos.
— Você pode ir em frente.
Assisto, desta vez sem interrompê-lo, Drogo pegar o envelope e o
rasgar sem qualquer cerimônia.
O que me deixa aflita é o quão inexpressiva sua expressão se torna. Ele
fica quieto por uma longa passagem de tempo, e por um instante eu penso se
os segundos e minutos simplesmente paralisaram. Eu mordo o lábio inferior,
inquieta, enquanto aguardo com o coração na mão sua resposta.
Nada vem. Nem mesmo um mísero vislumbre que indique ou não uma
ligação consanguínea.
Tento decodificar seu rosto, todavia, é um ato vão. O que eu recebo é
uma tela em branco. Sem suportar a quietude repentina instalada, eu brado:
— Por Deus, fale alguma coisa!
De repente, sem aviso prévio, suas pálpebras se fecham com ferocidade
e ele inclina a cabeça para cima.
Eu congelo. Mas, como antes, seus olhos ficam na altura dos meus. O
sorriso que Drogo esboça é feroz.
— Obrigado, porra. — grunhe.
E me beija.
Nossos lábios se chocam com uma fúria impetuosa, enviando uma
sensação febril que vai direto para o meu núcleo. A mão dele agarra minha
nuca, mantendo-me sob seu domínio. Assim que sua língua empurra seu
caminho para dentro, eu gemo. Seus dedos encaixam na parte de trás do meu
pescoço à medida que eu arrasto as unhas pelo peito dele, ultrapassando o
tecido do uniforme e trilhando seu percurso para o interior.
Entro em combustão quando minha língua é chupada com violência.
Meu corpo é puxado para o dele e eu envolvo sua cintura com as pernas ao
ser suspensa em seus braços. Minha intimidade esfrega contra sua barriga e
eu arfo com o contato. Estou começando a ficar sem fôlego, mas não me
atrevo a partir o beijo. Os botões da minha camisa interna se abrem quando a
fricção entre nós se intensifica. Meus seios são esmagados pelo seu peitoral
maciço. Há raiva, paixão, temor e luxúria refletindo nesse beijo, e cada um
dos sentimentos me desestabiliza ao se misturarem. É impiedoso, cru. Minha
boca é esmagada pela sua, e eu me vejo refém da brutalidade impregnada no
homem que me toma sem se conter. Nós pegamos fogo. Enlouqueço pelo que
estou recebendo, porque ele me trata do modo que anseio, e não como se eu
fosse uma boneca de porcelana prestes a quebrar, uma coisa frágil que precisa
de cuidados e delicadeza. Tudo meu grita por tudo dele. Apoio uma mão em
seus ombros, levando a outra até sua nuca.
— Não pare. — imploro, choramingando, à medida que me esfrego em
sua estrutura descaradamente. Eu preciso dele. Deus, preciso dele agora.
— Não. — estala, envolvendo meu cabelo por entre os dedos antes de
puxá-lo para me encarar. — Não aqui. — avisa, como se lesse minha mente.
Meus olhos estão nublados de desejo, e mesmo que minhas vontades
implícitas sejam negadas, sei que é o certo. Não estou pensando com lucidez.
Minha intimidade carente lateja em protesto, obrigando-me a engolir em
seco. Eu luto para manter-me coerente e entender que foi a melhor decisão.
Devagar, eu assinto. Demora um pouco para que minha respiração
volte ao normal e o calor que sinto irradiando pelo corpo comece a se esvair.
Drogo esfrega a ponta do nariz na lateral da minha cabeça, inalando
meus fios desgrenhados. Em seguida, segura meu olhar no seu, deslizando de
modo vagaroso a ponta da língua quente e úmida sobre meus lábios inchados.
A umidade em minha calcinha me fazendo contorcer quando meu centro
pressiona contra sua barriga. Uma nova onda de calor se espalha pelas maçãs
do meu rosto, capturando sua atenção de águia imediatamente. Suas íris são
tomadas por um brilho mais escuro, e mais forte do que o último, quando
seus dedos caem entre nossos corpos, tateando para baixo. Eu não preciso
raciocinar para saber qual foi seu intuito, porque fica evidente quando Drogo
ergue a mão, levando-a ao nariz e cheirando.
Prendo a respiração.
— Você, Brooke, cheira como minha.
— Eu sou sua.
A resposta o faz sorrir com ferocidade.
— Sim. — rosna possessivo. — Você é.
— Bee! — ouço alguém chamar do corredor enquanto coloco os livros
e meu bloco de notas dentro do armário.
Inclino o corpo para trás, segurando a porta ao fazer uma busca
minuciosa pelo recinto.
A figura radiante de Summer trilha seu caminho até mim, rebolando
como uma modelo da Victoria’s Secret, com Leo ao seu lado.
— Bom dia, menina bonita. — entoa, atraindo a atenção dos outros
alunos. — Nós temos uma novidade espetacular para contar.
Que Deus me ajude.
Eu coloco a combinação no cadeado, posicionando a bolsa no ombro ao
terminar, e aguardo ambos se aproximarem de vez. Fecho a cara ao ver
Grayson atrás deles. Parecendo farejar minha presença, ele gira o rosto na
minha direção, lambendo o canto da boca como se estivesse em um
restaurante e meu traseiro fizesse parte do menu. Adoto uma careta explícita
de desprezo, rolando os olhos ao assistir as garotas que ocupam o corredor
salivando pelo anticristo tatuado.
Oh, por favor. O cara tem uma expressão perpétua de que rouba doces
de crianças. Como elas podem olhá-lo como se quisessem casar com ele?
Além do mais, Grayson flerta com qualquer um. Embora eu não tenha
ouvido boatos — não ainda — voltados para suas conquistas sexuais.
Bem, o lado razoavelmente positivo é que não estudamos na mesma
sala. Seria insuportável ter que aturar sua existência por tanto tempo.
Desvio meu foco dele ao ver a figura imponente de Matteo DeLuca
mais atrás. Os dois sempre estão juntos, ainda que sejam como vinho e
gasolina. No entanto, eu não diria que são amigos, não como Gautier e Leo.
Há uma vibração hostil emanando de ambos toda vez que eles estão
próximos. A única que não está por perto, hoje, é Leona.
Para ser sincera, eu não a vejo desde ontem, quando as aulas
começaram, e lembro agora que a flagrei saindo antes do horário devido.
Ballister está girando uma bola de futebol americano em seu indicador,
focado ao extremo em manter o equilíbrio.
— Bom dia. — saúdo, sendo envolvida por um abraço rápido da minha
amiga quando ela para diante de mim. — Ei, onde está sua prima?
— Hum, ela vai chegar um pouco mais tarde. — ele explica, parando o
que faz ao ouvir a pergunta. — Algo como uma consulta médica de rotina.
— Entendo. Como estão?
— Estou muito bem
— Eu estou péssima.
Suas respostas distintas e despejadas ao mesmo tempo me fazem
enrugar o nariz. Eu cruzo os braços, soltando um suspiro.
— O que aconteceu, Summer?
— Ei, ei! — o outro reclama, arqueando uma sobrancelha. — E eu?
Não irá questionar por qual motivo eu estou radiante?
— O dela é mais importante. — esclareço o óbvio.
— Está bem. Porém, ouça, sim? Você não pode me tirar do centro das
atenções, doçura. Eu sou leonino, é como matar uma fada.
Abro a boca, mas fecho-a ao ver Grayson parar subitamente ao meu
lado. DeLuca, como sempre, é indiferente ao que o cerca e segue seu
percurso um pouco mais afastado em absoluto silêncio. Volto a adotar uma
postura hostil. Ignorando sua presença, foco em Summer. O problema é que,
agora, Grayson exibe uma carranca profunda de irritação. Meus olhos caem
para o livro em sua mão, O Médico e o Monstro. Ele o aperta com tanta força
que as pontas de seus dedos se tornam purpúreas sobre a capa dura. A parte
mais bizarra é quando ele move a cabeça. E me cheira.
— Qual é o seu problema? — chio, torcendo o nariz.
— Trocou de perfume?
Seu questionamento soa glacial e impaciente, atípico do usual. Os
demais parecem não perceber esse detalhe, mas eu me agarro nele.
Não é todo dia que tenho a oportunidade de vê-lo se comportando sem
qualquer mínimo resquício de cinismo ou depravação.
— Não é da sua conta, babaca. — rebato num tom baixo, franzindo o
cenho com desprezo. — Leve sua merda para longe de mim.
Ele não se distancia.
Eu deveria ter pensado melhor. Todavia, mirei na resposta que estava
queimando para sair. Mordo o interior da bochecha, inexpressiva por fora.
Não tenho sua réplica de imediato, o que faz um rastro de apreensão pairar
em cima de mim como uma nuvem carregada.
Summer e Leo trocam olhares antes de darem um passo à frente. Eu
poderia ouvir uma agulha caindo no chão neste instante.
— Vá embora. — ela pede, retirando os óculos de sol. — Procure outra
pessoa para atormentar.
— Não é, hein? — assobia, ignorando-a. Então, me fitando, completa:
— Esse seu perfume novo é uma porcaria. Ofende o meu olfato. Jogue fora.
Ele se aproxima ainda mais, vagarosamente, invadindo meu espaço.
Minha pulsação acelera e eu paro de respirar. A expressão cruel em seu rosto
é sinistra. Leo se aproxima e abre a boca, parando ao som grave da voz
masculina que se faz presente no ambiente.
— Cagliari.
Matteo o chama, soando como um aviso. Grayson estala a língua contra
o céu da boca, irritado, e se afasta logo em seguida. DeLuca faz o mesmo.
O que foi isso?
— Nada para ver aqui. Circulando. — Summer grita para os estudantes
que ainda estão enraizados no corredor. — Ignore-o. Gray é problemático.
Ela e Ballister agem tão normalmente diante da cena bizarra que
acabou de acontecer que me pergunto o quão normal esse tipo de coisa deve
ser.
— Ele age dessa maneira com todos. Não leve para o pessoal. Aliás,
seu cheiro está ótimo — meu amigo diz. — Eu posso jurar que já o senti
antes.
É quando a realidade me atinge como um tapa. O perfume! Me torno
eufórica, abstraindo os sentimentos anteriores.
Pressiono uma mão contra a boca, emito uma risadinha, sentindo as
bochechas esquentarem com prazer genuíno. Sua atitude foi maldosa, é
verdade, mas não dou a mínima para esse ponto. Se fosse outra pessoa, e
outra situação, como minha roupa ou cabelo, eu estaria furiosa. No entanto,
tudo o que se apodera do meu cérebro é satisfação. A fúria de Grayson teve
uma razão, e essa razão me entregou de bandeja seu calcanhar de Aquiles.
Até os mais diabólicos têm pontos fracos.
Agora, eu sei o dele.
Porque esse é o perfume que Leona usa.
Um baile de máscaras na mansão dos DeLuca.
Essa era a novidade.
Pela primeira vez, não senti vontade de recusar um convite. Eu deveria
estar desconfiada do quão boa minha vida parece nos últimos dias, mas não
me preocupo em ocupar a mente com pensamentos negativos. Eric está
afastado temporariamente do GEC por motivos que desconheço.
No fundo, eu sei que não vai durar por muito mais tempo, contudo, vou
aproveitar cada segundo de liberdade que me resta fora de seu alcance.
Eu suspiro, lembrando que nem tudo é um mar-de-rosas. Blake voltou a
falar comigo, todavia, apenas frases curtas. Eu quero mudar isso, e sei que ela
também, o problema é que minha irmã é orgulhosa demais para dar o braço a
torcer — mesmo que esteja errada.
Eu termino de colocar a gargantilha de diamantes, a joia que mais
estimo em minha vida, pois era a favorita da minha mãe, e verifico meu
reflexo no espelho uma última vez antes de deixar o quarto e seguir para o
corredor vazio. Blake saiu muito antes de mim e Drogo ainda não está em
casa. Na verdade, eu não acredito que ele pretenda voltar hoje. Assim como
nós duas, ele foi convidado, mas recusou. “Mundos diferentes” foi seu
argumento raivoso quando eu o pedi para aceitar o convite e ir. Em sua
mente, os outros o tratariam como um cachorro sarnento. Eu gostaria de
poder ter dito que não seria dessa forma. Infelizmente, seria. Conheço a elite
de Londres bem o bastante para saber que tentariam humilhá-lo. Apenas
tentariam, porque eu jamais permitiria. O problema é que Drogo não
entendeu isso. No fim, acabamos nos desentendendo e ele saiu sem dar
explicações. Eu mandei uma mensagem — ou mais — e não recebei
nenhuma resposta. No fundo, talvez seja melhor eu não saber seu paradeiro.
Posicionando a máscara branca em meu rosto, abro a porta e saio. Inalo
a brisa glacial, enchendo meus pulmões com ela.
Leo está me esperando com uma mão enfiada no bolso e o corpo
encostado em seu Mercedes Classe G. O terno preto que ele veste abraça com
maestria seu corpo musculoso. O cabelo castanho-escuro foi penteado para o
lado e permanece lá com a ajuda de uma camada vigorosa de gel.
Ao me aproximar, eu sorrio. Não é falso, estou feliz de poder ver um
rosto amigável depois de um dia tão complicado quanto o de hoje.
— Muito bonito. — elogio.
— O retrato de um homem de negócios, hm? — lança, ajustando a
gravata borboleta. — A personificação de um membro da realeza. Um
gostosão.
— Eu já entendi. — gracejo, interrompendo-o ao pressentir que estes
seriam apenas o começo de seus adjetivos nada convencionais. — Vamos?
— Claro, doçura. — concorda, abrindo a porta do carona. — A
propósito, Bee, você está magnífica. Essa cor combina com você, realça seus
olhos.
Observo o vestido azul-marinho no modelo tomara que caia. Optei por
um estilo princesa com corpete liso. Minhas curvas foram realçadas, em
específico a região dos seios, graças ao decote em formato de coração. Fiz
uma mudança no meu cabelo, também. No lugar do típico liso, escolhi deixá-
lo ondulado e caindo sobre um dos ombros. Esta é a primeira vez que me
sinto realmente bem dentro de uma roupa luxuosa escolhida por mim mesma.
E estou ainda mais feliz pelo fato de que fui eu que decidi cada peça, joia e
penteado. Em geral, quando ocorrem eventos de gala e eu sou convidada,
minha irmã é quem me ajuda com toda a produção. Por não estarmos nos
falando, tive que fazer tudo sozinha. E gostei do resultado.
— Leo?
— Sim?
— Estou guardando algo faz algum tempo e queria contar a alguém
que... — faço uma breve pausa, tomando coragem para concluir. — eu
confio.
Suas íris brilham ao final da minha frase, similares a fogos de artifício
no Ano Novo. É como dizer ao seu cachorrinho, depois de passar horas preso
no trabalho e finalmente chegar em casa, que você vai passear com ele. Bato
uma mão na testa, percebendo meu erro ao tê-lo me encarando eufórico. A
verdade é que, além de Summer, ele é a segunda pessoa que criei um laço de
amizade que ultrapassa qualquer lógica. Eu gosto dos dois. Muito. E confio
para fazer minha confissão. Uma das coisas que preciso fazer para aceitar as
mudanças que planejo iniciar em minha vida é permitir que meus amigos
enxerguem através da fachada que ergui para me proteger antes que eu saia
por completo dela.
Eu me tornei extremamente cuidadosa e desconfiada, mas nunca tive
medo de ninguém além de Sebastian e Eric.
Meus traumas não me fizeram temer seres humanos, somente eles.
Sendo assim, não preciso continuar escondida no lugar escuro da minha
mente.
Ainda que, para isso, eu precise fazer algo que me amedrontou por
vários anos: me abrir.
— Não quero apressá-la, — Leo interrompe meu devaneio. — mas
estou quase tendo um orgasmo de euforia. Por favor, Bee, acabe com a
tortura.
Respiro fundo.
— Drogo e eu fizemos um teste de DNA. — informo, preparando-me.
— Não somos meios-irmãos.
— Isto era óbvio. — declara condescendente. — Agora, diga-me. Me
conte seus segredinhos sujos.
— Fique quieto e me deixe falar, pode ser?
— Oh, perdão. A palavra é sua. — ronrona, um sorriso travesso em
seus lábios cheios e convidativos.
Certo. Eu posso fazer isso. Respire fundo, Brooke, e conceda entrada
para a nova garota que você disse que seria.
Suor frio embebeda minhas palmas. Organizo meus pensamentos,
ignorando os que podem me engolir, e descanso as mãos em cima do colo,
contando até dez de trás para frente. O tecido ameniza a transpiração,
substituindo o desconforto por alívio. A umidade se dissipa aos poucos. Meu
amigo espera pacientemente, e eu agradeço por não ser pressionada. Seu
cheiro de loção pós-barba e perfume caro misturados, me acalmam. Percebo,
neste momento, que embora nossa amizade não seja de longa data — mesmo
que pareça — eu não seria capaz de escolher alguém melhor.
Ballister é calmo e um ótimo ouvinte, apesar de ser muito extrovertido.
Ele é do tipo que sempre irá ceder seu ombro caso haja a necessidade, e ainda
que seu lado fofoqueiro componha boa parte de sua personalidade
exuberante, ninguém guardaria tão bem um segredo quanto o grandalhão ao
meu lado. E acredito que essa parte seja de família. Nem mesmo em cem
anos eu conseguiria agradecer sua prima da forma devida. Minha pulsação
adota um ritmo sereno, e eu me orgulho em saber que sou a responsável por
me tranquilizar. No passado, eu jamais conseguiria.
— Eu o amo. — desabafo. Agora, vem a parte difícil. A qual não meço
palavras ao dizer: — E eu gostaria de ir... para os finalmentes com ele.
Leo se engasga.
Eu me engasgo.
Uma crise de tosse nos atinge ao mesmo tempo. Meus olhos marejam
em sincronia com os seus, ardendo.
A declaração saiu sem que eu sequer pudesse formular de modo
adequado como dizê-la. Eu não pensei que soaria desse jeito. Santa Mãe de
Deus!
As maçãs do meu rosto esquentam como se eu estivesse com febre.
Fecho os punhos, arrastando o vestido no processo, e os encaro, atordoada.
Não dava para ser bonito. A verdade é que eu sempre quis ser vista como
uma garota desejada, saber qual é a sensação sem me sentir... suja.
Não anseio dar esse passo com Drogo apenas pelo sentimento que nutro
por ele, e sim porque não me imagino fazendo amor com outro homem.
— Caralho! — Leo pigarreia. — Oh, cara, eu não estava esperando por
uma confissão dessa... magnitude. Vamos por partes. Primeiro: ele sabe?
— Acredito que sim. — empurro a vergonha para debaixo do tapete,
erguendo a cabeça. — O problema é que, bem, eu não sei como deixar claro.
— Então, diga. — conclui simplesmente. — A melhor maneira de fazer
outra pessoa saber o que você quer, é dizendo o que você quer. Sem rodeios.
É quando a realidade me estapeia. Nós, seres humanos, estamos tão
acostumados a dificultar tudo que, às vezes, não notamos que a resposta para
nossos problemas é simples e fácil.
Seguro o queixo dele, depositando um beijo barulhento em sua
bochecha. Ainda sem concordar ou discordar em voz alta de seu conselho,
passo o cinto de segurança, ajustando-me confortavelmente no banco. Eu
inalo a brisa gélida que adorna o interior do automóvel, inspirando o aroma
limpo. Leo não reage de primeira, quase como se tivesse parado no tempo
para raciocinar sobre o que acabou de acontecer.
Meu amigo pisca, atônito.
— Você é o melhor. — anuncio, colocando minha máscara. —
Obrigada.
O que eu falo parece fazer seu cérebro voltar a funcionar de súbito. Seu
rosto se ilumina com uma expressão presunçosa.
A impressão que tenho é de que acabei de dar uma pistola d’água para
uma criança travessa. Porcaria de boca grande. Eu criei um monstro, e
consigo vê-lo prestes a sair da jaula que o aprisionava. Mas é tarde demais
para arrependimentos.
— Repita. — exige, colocando a máscara.
— Cale a boca e dirija.
— Não até que você repita.
— Eu não vou.
— Sendo assim, não iremos a lugar nenhum.
— Ballister. — profiro seu nome em tom de aviso, calmo e sinistro,
meu olhar assassino caindo em sua direção com uma lentidão mortífera.
O cafajeste estremece e se encolhe, no entanto, não recua.
— Nada feito. — ele morde. — Vamos, doçura, quanto mais rápido
terminar com isso, mais rápido chegaremos à festa. É pegar ou largar.
Massageio as têmporas.
Vai ser uma longa noite.
longa.
Mas hoje é um dia em que estou radiante, ainda que a temperatura
esteja alta. Porque, pela primeira vez, eu piso na instituição do Golden Elite
College sem minhas típicas meias. Hoje, minhas pernas estão desnudas. E eu
me sinto incrivelmente poderosa.
Drogo não apenas me mostrou o que eu me recusei a enxergar durante
anos, ele também me permitiu ver beleza no que, para mim, não passava de
uma fraqueza. Isto é liberdade, e é exatamente o que o amor faz por você: ele
te liberta.
Todas as amarras que me prenderam por todo esse tempo não existem
mais. Eu quebrei cada uma das correntes. Agora, posso caminhar sem medo.
Os olhares de choque, horror e espanto que os alunos espalhados por toda a
extensão do GEC me dão, não diminuem minha força.
Ajusto meus óculos escuros de sol, sentindo a brisa rarefeita bater em
meu rosto e sacudir meus fios soltos e selvagens. De cabeça erguida, faço
meu trajeto em direção às Três Torres. O caminho é longo, e parece ainda
mais distante neste momento, mas eu não me importo. Rebolando, continuo.
Eu decidi entrar atrasada propositalmente, apenas para que todos os
estudantes fora das salas me vissem chegando.
Sem desviar o olhar para os lados com o intuito de verificar o
julgamento alheio, paro na frente do meu armário. Lanço a combinação no
cadeado e o destranco, abrindo em seguida. Pego os livros respectivos às
aulas que terei essa manhã e fecho novamente, agarrando um tablete de
chicletes sabor menta antes e colocando um dentro da boca. No fundo, a
verdade é que estou terrivelmente dolorida. Meus membros latejam e eu vi,
depois do banho que tomei mais cedo, inúmeras marcas em minha pele. No
começo, eu surtei. Eu quase acordei Drogo para soltar os cachorros em cima
dele, mas desisti ao vê-lo dormindo. O homem parecia um deus grego
inconsciente. Desistindo do meu ataque de fúria, o qual não passava de puro
charme, pois eu não poderia estar mais feliz, fui para o meu quarto e
organizei meu uniforme. Então, tomei um café da manhã rápido e esperei na
esquina a hora exata para me atrasar. Todo o burburinho que estava
ocorrendo antes da minha entrada triunfal cessa. Seria tão fácil ouvir uma
agulha caindo no chão brilhante, penso. Eles não sabem ser discretos,
contudo, eu não estou dando a mínima para toda a fofoca que vai rolar. Os
diversos boatos sobre minhas cicatrizes. Porque, no fim, é somente isso o que
boatos são: boatos.
Portanto, que se dane. Esta é a minha nova versão, e ela não foi feita
para se importar com o que as cadelas e os babacas ricos irão falar.
A dor que sinto entre minhas coxas é bem-vinda, pois me faz entender
que sou capaz de suportar qualquer coisa de queixo erguido, sem titubear.
Voltando a cruzar o corredor para chegar na sala, passo pelo grupinho
infernal de Avalon. A questão é que ela não está no meio das cobras.
Cameron, por outro lado, está. E deve pensar que se tornou a líder por causa
da ausência da Montgomery, porque ela simplesmente chama meu nome com
seu tom peçonhento. Eu ignoro, é claro. No entanto, ela não para por aí.
— O que foi, Andreotti? — zomba, estas palavras bastam para que suas
amigas comecem a rir, chamando a atenção dos demais para sua pergunta
debochada. — Tirou as meias e as enfiou nos ouvidos? — fala alto o
suficiente para que todos ouçam — Eu estou falando com você, sua
aberração.
Eu me viro com fogo nos olhos, embora não adote uma expressão
assassina.
— Do que você me chamou?
O sinal toca no mesmo instante em que ela abre a boca coberta por uma
camada gordurosa de gloss. Meio segundo depois, como se fosse invocada, a
Sra. Dolls, supervisora do colégio, aparece no corredor nos mandando ir
direto para as salas ou irá aplicar sua famigerada suspensão temporária. É a
única coisa que me impede de dar continuidade ao que a víbora diz. Com os
olhos estreitados, dou uma última olhada nela, saindo logo após.
— Não acabamos, Andreotti! — grita, levando uma bronca da Sra.
Dolls.
E ela está certa.
Para ser honesta, eu estava com muito medo da reação dos meus novos
amigos. Tive receio de que eles me olhassem estranho, eu ficaria arrasada.
Todavia, nenhum deles o fez. Na verdade, eles sequer abriram a boca
para fazer um interrogatório. Nem mesmo Blake, mas eu vi que ela estava se
mordendo por dentro quando passou por mim assim que o intervalo começou.
Estamos no refeitório, Summer, Ballister e eu, os três conversando sobre a
época de Halloween. Leo, claro, quer dar uma festa inesquecível na noite das
bruxas.
— É, mas ainda estamos em agosto. — contra-ataco. — Por que está
tão empolgado com uma coisa que vai demorar para acontecer?
Ele revira os olhos.
— Agosto só é bom porque é o mês do meu aniversário. — conclui. —
Eu nunca vi um mês que parece tanto ter trezentos e sessenta e cinco dias.
— É a bênção dele. — a frase vem de Summer, que está mordendo um
dos morangos em sua tigela.
— Bênção? — estala, descrente, e a fuzila com um olhar indignado. —
Uma maldição, você quis dizer.
— Tanto faz. — ela sacode os ombros. — Não me importo com meses
que passam na velocidade de uma lesma. Acabando um dia, tudo certo.
Verifico meu celular ao ver uma notificação na tela. Uma mensagem do
Drogo. Antes mesmo de abri-la, estou sorrindo como uma garotinha.
Grande erro. Leo e Summer, como se possuíssem um tipo de radar
diabólico, capturam minha reação de imediato. Os dois se inclinam sobre a
mesa, na minha direção para ser mais específica. Fingindo não perceber,
digito a resposta, dizendo que aceito ir com ele — seja lá o destino escolhido
— hoje à noite.
Bloqueando o aparelho, eu o coloco em cima da mesa com o visor para
baixo. Erguendo uma sobrancelha, lanço um olhar questionador para ambos.
— Comece a falar. — eles ordenam em uníssono.
— Perdão?
— Nem fodendo. — Gautier balança a cabeça. — Não me venha com
teatro. Sou filha de uma atriz, esqueceu? Eu reconheço essa merda de longe.
Faço um biquinho, erguendo as mãos em rendição.
— Eu realmente não sei o que vocês querem saber.
Leo ergue três dedos, abaixando um ao passo que repete a mesma
conclusão — sussurrada, graças a Deus — depois de citar determinados
pontos.
— Se você sorri ao receber uma mensagem, significa que pretende ou
fez sexo. Se responde essa mensagem assim que termina de ler, significa que
pretende ou fez sexo. — pontua, imitando-me no gesto da sobrancelha. A
diferença é que a dele está insinuando obscenidades subliminarmente. — Por
fim, doçura, se você coloca o celular para baixo após seguir todos esses
passos, o que é uma ação sorrateira, devo confessar. — cochicha, apoiando-se
nos cotovelos para se aproximar de mim, finalizando: — Significa que você,
com certeza, pretende pra caralho fazer sexo. Ou, foda-me, você já fez.
Eu fico chocada.
Sorrindo, Summer o elogia e os dois batem as mãos, comemorando a
esperteza infeliz dele. Agilizo minha mente para formular uma resposta
coerente. Estou perto de refutá-lo, mas paro assim que Cameron Delgado e as
duas garotas que estavam com ela antes, certamente substitutas de Avalon e
Kristy, pois nenhuma das duas veio ao colégio hoje, entram no refeitório
como se fossem proprietárias do lugar. Sufoco a vontade de revirar os olhos.
Por um momento, penso que ela vai passar direto por nós e seguir para sua
mesa de costume, bem longe de onde estamos. Contudo, Cameron não segue
o percurso que imaginei que faria. Pelo contrário, e para minha consternação,
ela para de andar e se vira para mim com uma lentidão irritante. Sua atenção
cai para Ballister, porém, não dura muito lá. Girando o rosto com uma
expressão de desgosto, seu foco escorre para onde estou sentada. O problema
da garota é supor que comanda o GEC quando Avalon falta. Não é o caso.
Ela não é poderosa ou inabalável aqui. É como qualquer um. Arrastando a
unha sobre a superfície lisa, Cameron indaga de um jeito desnecessariamente
arrastado:
— Se machucou, querida?
Eu sei o que ela quer dizer com a pergunta. Absorvo cada gota da
insinuação maldosa que ela profere. Todavia, não caio em seu joguinho
maldoso. Para ser sincera, sempre que tinha a oportunidade, principalmente
na frente de outros estudantes, Delgado tinha prazer em me infernizar. A
questão é que seu hobby de me atormentar havia cessado no último ano. Não
faço ideia do que possa ter ocorrido para que, agora, ela decida pegá-lo do
túmulo. Me ajusto na cadeira, olhando para meus amigos com uma feição que
indica que não preciso que eles me defendam.
Não apenas os dois, mas todo o restante dos californianos — até
mesmo Grayson, embora eu deteste admitir — nutrem essa coisa de instinto
protetor. É similar à maneira que lobos agem, e eu tenho que admitir que é
uma coisa estranhamente reconfortante. Entretanto, estou cansada de precisar
que alguém me defenda. Eu sou capaz de fazer isso. Eu tenho que ser. Do
contrário, estarei dentro de uma sombra perpétua da qual jamais poderei sair.
Noto que, assim como foi no corredor, os alunos que ocupam o refeitório nos
assistem sem qualquer discrição.
— Posso perguntar o mesmo? — divago complacente. — Porque sua
queda deve ter sido feia. Quero dizer, para ficar com essa cara, uh, bem
difícil.
Nem mesmo toda a coleção de sapatos que minha irmã tem,
conseguiria pagar a carranca súbita de choque e horror que torce o rosto de
Cameron.
Gargalhadas e chiados surpresos ecoam por todo o local. Summer gira
o torso para o lado, enquanto Leo se engasga, cobrindo a boca.
— O que você acabou de dizer?
— O que você acabou de ouvir.
As cobaias dela paralisam, sem reação. As duas não parecem garotas
ruins, apenas o típico tipo que almeja ser popular e segue as mais influentes
ao receber uma brecha, por mais humilhante que possa ser. Aposto minha
Range Rover que ambas serão descartadas quando o alarme de saída tocar.
Cameron bate as mãos na mesa, mas não me assusto com o gesto abrupto.
Mantendo meu olhar vazio e inexpressivo sobre ela, — um que aprendi
observando o DeLuca — eu cruzo os braços acima dos seios. Eu detesto
brigar, especialmente com mulheres. Rivalidade feminina, por qualquer
motivo, é tão infeliz. No entanto, no meu ponto de vista, em casos de
bullying, é necessário revidar.
Os valentões não ligam para o lance de violência não se resolver com
violência. Então, bem, por que nós, as vítimas, deveríamos nos importar?
Eu passei muito tempo sendo tratada como pária somente por ser como
eu sou. Sendo assim, está na hora de dar um pouco de voz a mim mesma.
Cameron ri, é seco e sem humor, e vejo a raiva tornando suas
bochechas vermelhas.
— Qual foi o pacto que você fez, Andreotti? — divaga alto o bastante
para que todos a ouçam. — As meias em troca de uma dose de coragem?
O coro de risadas de antes volta a reverberar pelo refeitório. Leo é o
primeiro a adotar uma postura hostil. Summer não demora para fazer o
mesmo. Mais uma vez, eu os acalmo sem proferir uma única palavra.
Bocejando, chacoalho uma mão em descaso na direção dela, sem me abalar.
— É tudo? — questiono entediada. — Você terminou?
Novamente, sua boca se abre, esbanjando indignação. Porém, algo
passa em seu olhar. O vislumbre de alguma coisa maldosa. Coloco-me em
alerta. Conheço-a bem o suficiente para saber que, das três, Cameron sempre
foi a mais venenosa. E por puro prazer. Ela tem um tipo de fetiche em
degradar.
— Soube que sua irmã saiu da linha na viagem que vocês fizeram. —
ronrona, e eu aperto os punhos. — O McAllister foi o único que ela não
fodeu, não foi? Hum, talvez seja apenas questão de tempo? — meu corpo
inteiro ondula. Não paro para verificar a reação dos meus amigos, permaneço
fixa nela. Então, vem a gota que faz o balde transbordar: — Sua mãe tem
sorte de estar morta. Pelo menos, ela não precisa saber que a filha é uma puta.
Eu faço antes mesmo de raciocinar. Em um segundo, estou do lado
oposto de Cameron, no outro, estou engatinhando sobre a mesa e agarrando
seu cabelo com ambas as mãos com uma fúria que borra toda minha vista.
Eu grito, ela grita, e outros estudantes devem gritar também, porque
todo o barulho que explode ao meu redor, além das bandejas e copos que
derrubo, são gritos histéricos. Meu corpo colide contra o dela e nós duas
caímos no chão com um baque alto e seco. Fecho o punho e acerto sua
cabeça.
— Saia de cima de mim! — berra, todavia, eu não paro.
Eu a esmurro sem parar para pensar nas consequências. Meu único
desejo, neste exato segundo em que arranco os fios de seu cabelo, é socá-la
mais. Sou uma pessoa calma, realmente. Mas nunca, nunca, aceito falarem da
minha mãe. Isso é o que acontece quando se atrevem a quebrar essa regra. Os
braços dela se agitam no ar, tentando me atingir, um deles até consegue
acertar um soco em minha costela. Nada capaz de me parar, embora.
Agarrando os dois, ergo as pernas e os coloco debaixo delas, roubando seus
movimentos. Cameron se contorce sob mim, lutando para escapar em meio a
diversos pedidos de ajuda e alguns xingamentos agudos e furiosos. Nenhuma
outra pessoa vem ao seu socorro ou sequer me puxa para longe. Estapeio a
lateral de seu rosto com tanta violência que a cabeça dela gira para o lado
como se possuísse uma mola embutida. Sou como uma animal feroz e
incontrolável em cima dela. Meus ataques não perdem o ritmo ou diminuem,
embora meus membros doloridos protestem. Eu jogo a dor física para o fundo
da mente, me concentrando na cólera que me envolve como brasa. Eu a
estapeio, desfiro socos, arranho.
— Nunca mais abra sua boca imunda para falar da minha mãe! —
grito, sobrepondo seu choro de desespero.
— Saia de cima de mim, sua desgraçada! Psicopata! Você está
estragando todo o meu rosto, sua cadela louca!
Saltando de cima dela, agarro seu cabelo. Cameron berra quando eu a
arrasto com dificuldade até a mesa e empurro seu rosto borrado na superfície.
Com os dentes rangendo de ódio, abaixo o meu na altura do dela, sussurrando
em um rosnado:
— Da próxima vez, — ofego, meus fios desgrenhados grudando no
meu rosto. — pense muito bem antes de ofender a minha família, sua vaca.
Com a mão livre, pego o único copo intacto que ficou sobre a mesa sem
sair quando avancei para cima dela, o que contém suco de limão, e o
destampo. Derramo o líquido na cabeça dela sob os berros entrecortados e
escandalosos que escapam de sua boca ao passo que ela tenta, em vão,
sacudir-se para sair do meu aperto. Cameron agarra a borda, impulsionando-
se para trás. Como todas as tentativas anteriores, todavia, essa também é um
fracasso. Ballister e Gautier, lado a lado agora, assistem a cena do lado
oposto. Eles sabem que não devem interferir. Não sou uma pessoa injusta,
estamos no um a um. E ela foi a responsável por apertar meu botão, o mínimo
que deve fazer é suportar as consequências.
— O erro dos valentões é achar que todos os retraídos não reagem às
provocações. — finalizo, soltando-a. — Não é assim. Agradeça por eu estar
de bom-humor. Do contrário, eu teria arrancado cada fio desse seu cabelo.
Não volte a falar da minha família. E, se tem amor a vida, fique longe de
mim.
Afastando a franja do rosto, ajusto meu uniforme no corpo e deixo o
refeitório com Leo e Summer no meu encalço, cercada por olhares
arregalados. Ao pisar do lado de fora, os gritos no interior estouram como
fogos de artifício.
— Puta que pariu. — Ballister é o primeiro a quebrar nosso silêncio,
assobiando.
— Eu pensei em interferir. — minha amiga informa. — Mas Cameron
mereceu.
— Sabe, ela é gata. — ele declara e nós duas o encaramos com
desgosto. — O quê? É verdade. O problema é que também é uma coisinha
bem cruel.
— Eu não gosto de brigar. Na verdade, nunca briguei na vida. —
suspiro. — Só que ela não apenas mereceu, ela implorou para que eu
explodisse. — diminuo o tom de voz. — Mais cedo, me chamou de
aberração. Eu escutei, embora tivesse preferido que não. Por favor, não
sintam pena de mim.
Ambos me olham com o vão entre as sobrancelhas franzido.
— Por que diabos sentiríamos? — ela bufa com um sorriso,
envolvendo um braço ao redor dos meus ombros e me puxando para perto. —
Se estiver falando essa besteira por causa das cicatrizes, é ridículo. Todos
temos cicatrizes, Brooke. A diferença é que umas são mais visíveis do que as
outras.
Não preciso raciocinar muito para entender o que Summer quis dizer. O
ponto é que cada um de nós possui traumas e marcas causadas por eles.
Sejam físicas ou emocionais.
— É bom ter amigos. — eu sorrio, enrolando-me na cintura dos dois.
— Podem me acompanhar até a sala do diretor? Tenho que confessar o que
fiz.
— Claro, doçura.
— Podem dizer que não estavam por perto quando tudo aconteceu. —
asseguro firmemente. — Para que ele não comece com um interrogatório.
— Tá brincando? — resmunga. — Veja, Bee, fui uma garota da parte
suja da Califórnia. Na verdade, sempre serei. Comi areia da praia no café da
manhã, almoço e jantar. Até na sobremesa. No dia que eu mentir por medo,
jogue meu corpo em um caixão e o enterre, porque eu estarei morta.
O diretor interino não foi tão cruel quanto eu achei que seria. No mais,
ele foi severo na medida esperada.
Ao fim das perguntas e de seus sermões, aguardei em silêncio uma
suspensão. Contudo, ela não veio. Bem, ele citou uma expulsão caso algo
similar ocorresse novamente, mas garanti que não iria. Então, tive sinal verde
para ir embora. Relaxada, abro a porta e saio. Não estou suportando as dores
em meus músculos e o suor que gruda em meu corpo. Preciso de um banho.
Cameron passa por mim no instante em que eu chego na esquina do
corredor. A pequena bolsa de gelo pressionada no canto inferior de sua boca
evidencia o quão feio o hematoma ficou. Se fosse antes, eu me sentiria mal
pelo que fiz. Todavia, não sou mais a garota que suportava suas maldades.
Olho para outro ponto, seguindo meu curso em sozinha e em silêncio. Meus
amigos tiveram que sair mais cedo, e Drogo não está no GEC. Porém, com
base nas inúmeras ligações feitas de seu celular enquanto eu estava presa
aqui, eu posso dizer, sem sombra de dúvidas, que ele já sabe.
Decido ir direto para o estacionamento. Chegando na vaga em que meu
carro está, abro a porta e entro, jogando a bolsa no banco do carona. Fiquei
tanto tempo naquela sala que as duas últimas aulas passaram sem que eu
sequer percebesse. Ballister foi quem levou minha bolsa para que eu não
tivesse que voltar para pegá-la. Ele sabia que eu estava cansada em excesso e
me ajudou. Envio uma mensagem para Drogo, avisando que passarei na loja
de conveniência antes de ir para casa. Não aguardo resposta, pois sei que a
equipe de hóquei foi para Cambridge, ouvi as garotas falando no corredor.
Reclamando, para ser mais exata. Lembro de como ele cuidou de mim na
madrugada. Me deu um banho — como disse que faria — e comprimidos
para dor. Além de uma massagem. Por um momento, eu pensei que estivesse
no paraíso. No fundo, eu realmente estava. Meu paraíso particular. Mal vejo a
hora de vê-lo novamente.
O homem é incansável e não foi uma tarefa fácil me adaptar ao seu
ritmo voraz. Não sou experiente, mas sei que irei me sair melhor com o
tempo.
Um sorriso bobo curva meus lábios à medida que dirijo em direção ao
posto de gasolina. Posso sentir as maçãs do rosto esquentando com as
memórias. As coisas que ele me falou. Deus do céu, eu quase tive uma
síncope quando fui colocada na frente daquele espelho e ele disse... aquilo.
Assim que estaciono o carro no beco ao lado da loja de conveniência, meu
celular toca, dissipando meus devaneios lascivos.
Franzo o cenho ao ver o nome da minha irmã no identificador de
chamadas. Blake voltou a falar comigo, embora se trate somente do básico.
Mas nunca mais entrou em contato por meio de ligação. Esqueço totalmente
da briga com Cameron e foco apenas em problemas que podem ter ocorrido.
— O que houve? — indago ao atender, sem dar chance a ela. — Você
está bem?
— Hãn? — Blake grita do outro lado da linha. — Eu quem deveria
perguntar isso!
— Eu estou bem. Nada demais. — dou de ombros, entrando no
estabelecimento. O sino no topo da porta faz um pequeno barulho quando
passo por ela e começo a me mover por entre as prateleiras de doces e
salgados. Por sorte, o lugar está vazio. Além da funcionária, sou a única
pessoa.
— Fala sério, Brooke. Você não é de brigar. O que te deu para
avançar em cima da Cameron? Quero dizer, deve ter sido uma coisa muito
fodida mesmo.
— E foi. — é tudo o que eu revelo enquanto pego alguns M&M’s e
dois pacotes de Fini. Por último, pego um pote de sorvete de Ovomaltine.
Com tudo o que preciso em mãos, sigo para o caixa. A garota tatuada e
de cabelo verde do outro lado do balcão larga a revista que está lendo,
voltando-se para mim. Ela masca um chiclete de forma audível, e a música
em seus fones de ouvidos é tão alta que posso ouvi-la de onde estou.
— Você precisa me falar o que aconteceu. Ela te machucou? Você está
ferida? Eu vou te encontrar em casa assim que sair dessa reunião chata do
conselho. — Blake balbucia, fazendo-me lembrar da ligação que esqueci por
alguns instantes. Devagar, eu passo o que comprei, escutando os ruídos de
bip.
— Estou bem. — repito. — Não, ela não me machucou. Na verdade,
Cameron nem teve a oportunidade de encostar num fio de cabelo meu.
— Tem certeza?
— Sim. — confirmo. — Ouça, volte para a reunião e quando você
chegar em casa nós conversamos, certo? Preciso ir. Estou um pouco ocupada.
— Certo, certo. E onde você está agora? Na farmácia?
— Não. Estou perto de casa.
— Tudo bem. Te vejo mais tarde. Se precisar, me liga.
— Você também. Até mais. Beijo. — eu desligo.
— Quatorze libras. — informa, embalando as coisas.
Pesco uma nota de cinquenta libras e entrego à atendente, esperando o
troco em silêncio.
— Aqui está. — anuncia. — Obrigada.
Recebendo o troco, eu pego as sacolas e agradeço, me encaminhando
para o lado de fora. A garota vira a placa de fechado logo depois que vou
embora. No beco, estou prestes a entrar no carro quando um homem surge de
repente. Com o susto de sua voz quebrando a quietude, eu pulo.
Suas roupas estão sujas e não passam de farrapos. Ele tem uma barba
grande coberta por uma camada gordurosa de comida, e o gorro em sua
cabeça possui diversos furos. Ao vê-lo abrir a boca e exibir um sorriso, noto
que seus dentes estão amarelos e um dos molares não está presente.
A aparência dele está longe de ser um problema, o que não gosto é a
maneira como seus olhos ostentam um brilho predatório, mal-intencionado.
Meus batimentos cardíacos aceleram assim que o vejo diminuir o
espaço que nos separa, lambendo a boca sem desviar o foco de onde estou.
— Não vai responder? — pigarreia, reunindo saliva e cuspindo no
chão.
Eu não respondo e ele se aproxima mais. A parte ruim é que, quanto
mais o estranho chega perto, mais eu recuo, afastando-me do meu carro. De
repente, ele ergue uma mão enluvada e estapeia o capô. Eu estremeço dos pés
à cabeça e minha reação o faz gargalhar de modo estrepitante.
— Você quer dinheiro?
Ele torce o nariz.
— Uma coisinha que veio da parte boa da cidade? — canta, coçando a
barba. — O que tem nas sacolas? Não vou perguntar uma terceira vez.
Minhas pálpebras tremem e lágrimas ameaçam rolar pelo meu rosto
quando noto que não há ninguém, além de nós dois, no local.
Estou em perigo.
Sua língua volta a sair para lamber os lábios. Meu reflexo de vômito
ganha vida no momento que o assisto levar uma mão até a virilha e apertar.
— Você tem um cheiro bom, garota. Sua pele também deve ser boa.
Deve ser macia, não é, bonequinha? Eu poderia morder você agora mesmo.
— Fique longe. — sibilo, encontrando minha voz.
— Ela fala, então. — zomba. — Fique quieta ou vou cortar você com a
faca que tenho no bolso. Se você não quer isso, entre no carro e me obedeça.
Eu arfo, horrorizada. Minhas pernas enraízam no concreto. Incapaz de
trabalhar meu cérebro em busca de uma fuga, eu me preparo para o pior.
É quando desvio o olhar para um ponto além dele. Na esquina,
entrando no beco, está ninguém menos que o filho do diabo.
Grayson Cagliari.
Ele, como eu, ainda está usando o uniforme do Golden Elite College.
Entretanto, os botões da camisa interna estão abertos e a gravata se foi. Um
taco de basebol preto, e decerto pesado, descansa em seu ombro. A mão livre
dele carrega o que parece ser um... galão de gasolina?
Levando um indicador ao lábios, os quais ostentam um sorriso sinistro
que faz meus pelos arrepiarem, ele faz sinal para que eu fique em silêncio.
Não demora muito para que sua estrutura grandiosa pare a alguns
milímetros atrás do verme. O qual não o vê chegando, mas com certeza o
sente. Sem emitir qualquer ruído de aproximação, ele usa o pé esquerdo para
acertar uma rasteira no desgraçado, que cai como um saco de batatas no chão.
Os gritos de dor e agonia que rasgam sua garganta por causa do golpe,
ressoam por todo o beco.
Ao rolar e erguer a cabeça, seus olhos encontram os dele. Grayson bate
a língua contra o céu da boca, circulando o indivíduo como um predador.
— Quer dizer que o show de horrores gosta de atacar garotas, hein?
— Seu filho da puta. — estrebucha, abraçando os joelhos. — Quem é
você?
Cagliari ri, usando a ponta do tênis branco para cutucar o corpo do
miserável. Colocando pressão no gesto, e não lhe dando outra saída que não
seja se contorcer e parar de usar os braços como meio de proteção. Em
choque, permaneço parada, atenta a cada movimento que o loiro executa.
— Sou a porra de um filme de terror. — declara, estalando o pescoço.
Levando o galão vermelho até a boca, ele o destampa com os dentes,
cuspindo a tampa para longe antes de encharcar o estranho com o líquido.
O homem grita e se contorce, tentando escapar, mas leva outro golpe.
Dessa vez, com o taco. Cubro a boca com uma mão ao assistir, horrorizada,
toda a cena se desenrolar. Eu nunca presenciei alguém ferindo outra pessoa
com tanto prazer quanto estou vendo neste segundo.
Descartando a embalagem vazia da gasolina, ele balança o taco em sua
mão. Choramingando e ensopado, o maldito nojento implora por piedade.
— Você não parece tão assustador agora. — divaga, apreciando seu
feito ao circulá-lo. — Olhe para mim, seu porco velho.
Sua ordem é acatada prontamente. Ele grita de modo estridente quando
o taco é empurrando contra seus testículos, esmagando-os.
— Pare! Pare! — implora, sufocando com o próprio vômito. — Vai
estourar minhas bolas!
A imagem é horrível e faz meu estômago revirar. Minhas pernas viram
geleia e preciso me apoiar na parede para não ceder e cair no concreto.
— Ouça com atenção, pois eu detesto repetir. — Grayson estala,
pegando um isqueiro do bolso interno e o acendendo. — Se você ao menos
cogitar a ideia de pisar aqui. Se sonhar, mesmo que sem querer, com seu
corpo inútil e patético caminhando por essas ruas, eu vou te caçar e vou te
torturar. Por fim, vou fazer um casaco com a sua pele e o vender na Deep
Web. Toda a porra de processo vai ser tão lenta e doentia que você vai
implorar pela morte. Vou fazê-lo comer seu próprio intestino. — finaliza
debochando.
Eu, bem, jogo o rosto para o lado e vomito ao final da ameaça. —
Estamos entendidos?
Não sei o que é dito. Se ele apenas acena ou se realmente diz alguma
coisa. Meus ouvidos estão zunindo durante os incontáveis segundos em que
coloco tudo o que comi mais cedo para fora, acertando a lata de lixo
esverdeada em que, não me importando com a sujeira no momento, eu me
apoio. Grayson aparece ao meu lado, sua altura e músculos sobrepondo
minha estatura pequena. Eu pisco quando ele estende um lenço na minha
direção.
— Você está uma porcaria. — resmunga. — Limpe a boca e venha
comigo, vou te levar até o seu carro para que você saia desse buraco de
merda.
Hesitante, faço o que ele diz. Eu poderia relutar, mas não o faço. Pelo
amor de Deus, apesar de sua insanidade recente, eu fui salva de ser atacada.
Não estou em posição de ser uma cadela.
Sem olhar para o homem no chão, e sem querer saber qual será o seu
destino quando eu sair daqui, sigo para o veículo com Grayson ao meu lado
como um cão de guarda. Destravo a porta e entro, surpresa por ele ter
recuperado as sacolas que derrubei. Meus dedos estão rígidos quando agarro
o volante, a umidade das palmas tornando tudo escorregadio. Secando-as em
meu uniforme, respiro fundo. Ao menos o pior não chegou a acontecer. Este
é um dos dias em que não se deve sair da cama de modo algum. Achei que
depois de toda a tempestade o arco-íris viria. E veio, para ser sincera. Eu só
não imaginava que viriam outras tempestades.
— Hm, obrigada. — murmuro. — Você me salvou.
— Consegue dirigir? — pergunta, ignorando o agradecimento.
Respirando fundo e cansada demais para dizer qualquer coisa, eu só aceno.
— Consigo. — desconverso. — Estou bem.
Grayson estuda meu rosto, mas não insiste. Não é como se ele fosse um
cavalheiro, afinal. Sou grata pela ajuda, mas sei reconhecer a realidade.
— Dê o fora daqui.
Faço uma careta para o que ele pretende fazer. Grayson não precisa
estar furioso para fazer coisas desumanas, sua imprevisibilidade é o perigo.
Não que já não soubesse o quão volátil e desajustada sua mente pode ser.
Contudo, agora tenho imagens vívidas dando voltas em minha cabeça. Eu não
ficaria surpresa se, de repente, aparecessem cartais de procurado na cidade
com seu rosto impresso neles. Ele não é a pessoa que está a um passo ou dois
do penhasco que leva à completa insanidade. Grayson é a pessoa que já pulou
nele. Sua mente é um completo abismo caótico.
— Você vai...
— Matar o show de horrores? — completa, e eu concordo. — Se eu
tivesse que matar, ele estaria morto. Não me importo com testemunhando.
Para ser honesto, gosto bastante. No entanto, não decidi ainda o que farei.
Não sou o que podem chamar de homem de palavra, este é o Matteo.
— Então, é um sim?
— É um você não quer saber. Faça o que mandei e dê o fora,
Andreotti. Tenho certeza de que não quer ver a maneira como costumo me
divertir.
— Você tem problemas, Cagliari. — murmuro abismada, e incapaz de
segurar o que queima na ponta da minha língua. — Sérios problemas.
— Todos temos. A diferença entre mim e o resto dos seres humanos
que compõem essa sociedade, é que eu deixo minha merda sair para brincar.
Meu olhar escorrega para baixo e eu vejo uma mancha de sangue na
barra de sua camisa branca. Não pertence ao homem, porque ele não sangrou.
Além do mais, a mancha escarlate já ressecou. Não quero saber o que houve.
Ainda assim, a curiosidade fala mais alto e eu o questiono.
— Você se machucou? — suas íris seguem o mesmo trajeto para o qual
eu olho. Uma covinha surge em sua bochecha quando ele sorri.
Enxergo o perigo que descansa em seus orbes verdes e voláteis. Apesar
de ter me salvado, Grayson não é uma boa pessoa.
Ele é um vilão, uma névoa densa e nociva para qualquer um que se
perder dentro dela. Suas roupas na moda e higiene excêntrica, assim como os
sorrisos brancos e limpos, não bastam para esconder a natureza vil que paira
sobre ele como uma sombra diabólica. As atitudes galanteadoras e sua aura
sensual que, em conjunto com seu rosto esculpido e corpo atlético, poderiam
estampar milhares de revistas de moda, são suas armadilhas. É fácil atrair-se
pelo que é bonito. Além do mais, Grayson é mutável. Adapta-se às situações
como se possuísse inúmeras camadas.
Mas ninguém, em sã consciência, quer estar no foco dele. Porque ele é
um psicopata.
E sua resposta, sussurrada enquanto seu corpo se afasta da Range
Rover com uma calma calculada, é o alerta que eu preciso para me lembrar.
— Este sangue não é meu, querida.
LIGAÇÕES PERIGOSAS
“Romper os grilhões
Balançar através das cadeias
Não há nenhum opressor
Ninguém para culpar, além de você”
— Kings | Tribe Society
de volta para casa. Mesmo agora, enquanto estou penteando meu cabelo
ainda úmido, não sou capaz de me concentrar por inteira nesta simples tarefa,
do que houve depois que eu saí da loja de conveniência. Sinto meu corpo dez
vezes mais pesado do que estava no início, mas não estou cansada o
uma camisola vermelha de seda. Por fim, pego o robe que faz parte da peça e
o visto, dando um laço na cintura. Verifico meu celular, entretanto, não vejo
E eu fico.
Não consigo apagar as coisas que ouvi de Eric durante o tempo que
estive em sua sala. As atrocidades que ele cuspiu com um prazer torpe e
distorcido permanecem rodando em minha cabeça e me fazem temer qualquer
passo que meus amigos possam vir a dar. Eu poderia estar atenta a outra
pessoa, minha irmã, Drogo, Leo ou Summer, mas não posso simplesmente
me forçar a ignorar a última coisa que escapou de seus lábios imundos.
Avalon e eu estamos longe de sermos amigas. Ainda assim, eu jamais
permitiria que ele a machucasse para me atingir. Coloco como missão
principal ficar observando-a até que as aulas do dia terminem e seu motorista
particular venha buscá-la. O que facilita meu trabalho, é o fato de que, graças
a aula de educação física, minha sala e a dela irão se unir para compartilhar as
atividades práticas. Sempre é desse modo, e agora eu agradeço por isso.
O treinador Sawyer está gritando ordens para os garotos, mandando-os
darem mais uma volta ao redor da pista de corrida e pararem de reclamar.
Quando ele utiliza seu maldito apito, fazendo nossos ouvidos zunirem,
Summer e eu pulamos de onde estamos nos aquecendo.
Ela faz cara feia.
— Eu tenho tanta vontade de enfiar esse apito no...
— Gautier. — advirto.
— O quê? Eu não ia falar nada demais. — justifica.
— Você ia, sim. — acuso, semicerrando os olhos.
Com um sorriso sacana, ela arrasta a ponta da língua nos dentes
superiores.
— Eu ia.
Solto uma risadinha. Para que ninguém perceba que há algo de errado,
decido agir da forma mais natural e relaxada possível, sem brechas para
suspeitas. Terminando o aquecimento, pego minha garrafa de água e me
encaminho para a pista de corrida antes dela. Montgomery deve estar em sua
segunda volta, e é admirável que mesmo com o suor brilhando por todo seu
corpo, ela continue com uma aparência impecável. Focada no trajeto à sua
frente, Avalon fala comigo sem virar o rosto. Apesar da pele com um leve
rubor por causa do esforço, noto que seus lábios estão esbranquiçados e ela
parece um pouco pálida. Meus pés formigam e fico nervosa de imediato.
Estou ficando paranoica e isso pode acabar atrapalhando meu raciocínio.
— Está se sentindo bem? — questiono como quem nada quer depois de
responder com educação seu cumprimento.
— Estou ótima. — arfa, mantendo uma respiração regular, seu rabo de
cavalo loiro balançando para todos os lados.
— Tem certeza?
— Por que eu não teria, Andreotti? — Avalon sorri. — Enfim, soube
do seu desentendimento com a Cameron ontem.
Solto o ar pela boca, me concentrando na pista.
— E quem não soube? — ironizo, aumentando a velocidade para que
fiquemos lado a lado. — Foi a notícia do dia.
— Estamos em um colégio de elite que mais parece um internato de
meio período. As coisas aqui se espalham como fumaça ao vento.
— Acho que é assim em qualquer lugar.
— Não. — ela nega. — Aqui é muito pior. Não somos apenas crianças
ricas, Brooke. Somos filhos de magnatas, políticos, multibilionários e toda
essa besteira similar que comanda o país e a economia dele. Por causa disso,
não nos importamos com as consequências ou punições do que fazemos ou
falamos, porque sempre iremos nos safar delas. E ainda conseguimos colocar
a vítima como culpado e tomar o lugar dela. — conclui, encarando-me.
— Você pode ter razão. — concordo, após refletir sobre o que ouço.
— Eu tenho. — ronrona ao completarmos uma volta. — E você sabe.
O cansaço começa a vencê-la quando chegamos a metade da nova
volta. Avalon me diz para continuar, mas eu recuso e a faço companhia.
Paramos debaixo de uma árvore gigante que fica do lado oposto de
onde alguns dos garotos do time de hóquei estão, somente uma mureta nos
separa. Eles conversam empolgados sobre algo que não faço ideia, pois não
consigo escutar. Drogo está conversando com o treinador, acompanhado por
Matteo, a poucos metros de distância. Destampo a garrafa e beberico uma
quantidade mínima, o suficiente para umedecer meus lábios ressecados. Meu
peito sobe e desce, e há rastros pegajosos de suor o banhando por inteiro.
Apoio-me nos joelhos, lutando para recobrar minha respiração regular. Eu
odeio fazer exercícios.
— Quem não parece bem, é você. — escuto-a alfinetar, dando um gole
em sua água.
— Eu estou ótima. — minto. — Sendo honesta, me sinto radiante como
um girassol.
— Se você for desmaiar, me avise para chamar alguém. — adverte
maldosa. — Fiz as unhas recentemente e seria um incômodo danificá-las.
— Eu imagino. — retruco usando o mesmo tom sarcástico, então rolo
os olhos ao ver para onde os dela estão fixos. — Você pode ao menos
disfarçar?
Mas ela não disfarça. Pelo contrário, fita de modo ainda mais descarado
a figura distante de Matteo.
— Sabe, por mais que eu não goste do crápula, vejo um lado positivo
em dormir com ele. — Avalon constata, maliciosa, observando DeLuca
treinar.
Vou me arrepender de perguntar. Contudo, abstraio essa informação e
permito que a curiosidade fale mais alto, dando voz aos meus pensamentos.
— E qual é?
— Você não precisaria ter receio de ir à cozinha de madrugada por
cogitar a possibilidade de ser perseguida por um demônio. Afinal de contas,
já teria um na cama. — ao fim de sua frase maldosa, eu pressiono a palma na
boca, abafando uma risada, pois acho muito errado rir de seu comentário.
Poucos minutos depois, retornamos à corrida para a última volta.
Avalon, ao meu lado, tem um ritmo lento, totalmente diferente do anterior.
Eu sei do seu cansaço por ter corrido bastante, embora não esteja indo com o
máximo de sua velocidade. Todavia, ela não me parece nada bem.
— Quer dar uma nova pausa? — sugiro preocupada. Seus lábios estão
com o dobro de palidez e o suor que começa a encobri-la se torna excessivo.
Com um aceno rápido, minha sugestão é recusada. O nervosismo que
senti antes volta a me comer viva. Desta vez, todavia, ele corrói meus ossos.
Eu estou a um passo de forçá-la a parar de correr quando, subitamente, seus
olhos reviram. Toda a cena parece ocorrer em câmera lenta.
Avalon sufoca. E cai.
DIABÓLICOS — PARTE I
força para cima que nada além da parte branca está visível. Lágrimas borram
Eu sabia que seria difícil ignorar meus amigos na sala de aula, mesmo
me sentando afastada de todos. Mas não foi só difícil, foi quase impossível.
Permaneci quieta o tempo todo, evitando olhares e expressões
chamativas. Adotei uma fachada impenetrável em que não permiti brechas
para que alguém pudesse enxergar além. O problema é que, como eu já
previa, nenhum deles parece cogitar desistir fácil. Principalmente o Drogo.
Foi desprezível e cruel a maneira como o deixei e fugi, recusando suas
ligações e deletando suas mensagens nos últimos dias. Posso ver que ele está
surtando pelo modo como sua mão aperta a caneta. Se a pobre coitada tivesse
uma alma, ela já estaria voando por aí.
Quando o sino ecoa pela torre, nos liberando para irmos embora, eu sou
a primeira aluna a levantar, recolher os materiais e deixar o local. Porém, não
sigo direto para a saída. Me misturo na multidão, indo contra à maré de
estudantes, e corro para onde fica o banheiro feminino. As caixas de som
presas nos topos das paredes, como acontece em todo final de aula, começa a
tocar música. O problema é que parece que o destino resolveu se divertir com
a minha cara hoje, porque a canção que enche os corredores barulhentos nada
menos é do que Don’t Come Close, a qual tocou na noite da boate quando
estávamos na Califórnia. Lembranças proibidas rodeiam minha cabeça e eu
luto para as manter distantes, falhando miseravelmente. Com raiva, empurro
a porta do banheiro e entro, agradecendo o fato de que sou a única pessoa
ocupando o ambiente. Jogando a bolsa em cima do lavabo, ligo a torneira e
molho a mão, passando-a nas laterais do pescoço. Me sinto irritada, e para
completar, ainda estou incerta sobre como devo agir de agora em diante. Não
sei por onde começar. Ser sozinha sempre foi ruim, mas eu me convencia do
contrário. É um martírio saber que, depois de experimentar a sensação de
alegria, vou ter que voltar ao início de tudo. A mesma amarga solidão do
passado. Eu sei que é necessário, mas isso não impede de doer.
Respiro profundamente, reunindo uma quantidade exorbitante de ar em
meus pulmões. Ao erguer o rosto e olhar para o espelho, eu solto um grito.
Drogo está apoiado contra a porta fechada, os braços cruzados acima do
peito. Seus ombros largos tomam conta de cada centímetro da soleira, e sua
feição carrega um semblante nada amigável. Inclinando a cabeça para o lado,
ele me estuda antes de se desencostar e dar um passo à frente. O olhar dele
contorna meus lábios, esgueirando-se até o meu rosto com uma letargia que
aquece meu núcleo, deixando-me sutilmente inquieta.
Prendo o fôlego ao tê-lo pairando sobre mim.
— Diga-me o que aconteceu. — apesar da calma em seu tom de voz, a
frase é uma exigência.
— Nada. — minto, e Drogo se aproxima ainda mais. Seu cheiro dança
em meu olfato como uma punição, lembrando-me que não posso ser quem
costumava. Endireito minha postura, encaixando a máscara de indiferença. —
O que você quer? Que eu repita o que falei? É isso?
— O que eu quero, — anuncia. — é que você pare de ser a porra de
uma mentirosa. Medo não justifica sua reação. Você se escondeu durante
cinco dias. Me beijou, disse que me amava, mas que acabou. Então, se foi.
Agora, está de volta, e não passa de um fantasma. O que você está tentando
fazer? Nos afastar? Ficar sozinha? — seus olhos escurecidos me sondam
como os de um lobo. — Porque, se for, não é assim que funciona.
— Você está certo. Não justifica. — concordo, sem responder suas
perguntas. — Eu estava em pânico, precisava ficar longe. Fui uma covarde,
admito. Mas esses dias em que estive sozinha, afastada de todos, percebi que
eu havia me precipitado. Ficar ao seu lado não era o que eu queria. —
deposito o máximo de veracidade na confissão. — Você não vê? Tragédias
acontecem quando estamos juntos. Mesmo que não sejam nossa culpa. Parece
que nós dois, desde que tudo aconteceu em Los Angeles, bagunçamos a
ordem natural das coisas. Além do mais, nunca daria certo. Como você disse,
mundos diferentes. Pretendo ir embora de Londres quando terminar o
colegial. Então, o melhor a se fazer é fingir que nunca aconteceu.
Eu acho que essa é a desculpa mais ridícula que eu poderia dar. Na
verdade, é mais do que ridícula. É vergonhosa, mesquinha. Eu sou capaz de
usar argumentos melhores, mais coerentes. Todavia, não consigo raciocinar
estando tão próxima dele. Sua presença me desestabiliza. Preciso sair daqui.
Minhas palmas ficam pegajosas com suor frio à medida que o nervosismo faz
seu caminho pela minha garganta, envolvendo-a com um nó firme. Drogo
esfrega o rosto, recuando um passo. Suas lufadas de ar saem violentas e
efêmeras, tão fortes que ricocheteiam em meus ouvidos. O aceno frenético
que sua cabeça faz ao balançar em negação é o sinal que me faz entender que
acabei de dissipar o último resquício de seu autocontrole.
— Que se foda. — ele cospe, rindo sem humor ao voltar a me encarar.
— Você quer mesmo que eu acredite em toda essa bobagem de merda?
— Não dou a mínima para o que você deseja ou não acreditar. Dentro
de alguns meses, não vamos mais lembrar dessa ilusão que nós dois criamos.
Nossas vozes sobem alguns decibéis, reverberando pelo banheiro. A
mandíbula dele tensiona, trincando com tanta brutalidade que seus dentes
rangem. Eu permaneço fincada onde estou, lutando para não deixar que a
máscara de cadela escorregue. Drogo me conhece o bastante para capturar
qualquer deslize que eu venha a cometer. E será uma catástrofe colocar tudo a
perder por não controlar minhas emoções.
— O que aconteceu? — estala furioso. — Por que está levantando
muros para me afastar quando já passou por cima dos que havia erguido?
Suas palavras são como um tapa forte em minha face.
— Porque eu não quero mais você. — murmuro.
— Mentira, porra! — seu rugido me faz pular. — Eu já falei, Brooke.
Eu a conheço. Portanto, pare de contar essas mentiras do caralho e seja
honesta.
Sufoco a vontade de abraçar meu próprio corpo. Meu desejo é de me
jogar em seus braços e chorar todas as minhas angústias, meus medos. Mas
eu não posso. Não se eu quiser que ele fique seguro. Eric é muito pior do que
demonstra e eu sei que seria capaz de matá-lo sem pensar duas vezes.
Ficamos em um impasse silencioso. Seu peito sobe e desce em um ritmo
voraz enquanto ele leva as mãos para a parte de trás da cabeça e as deixa lá,
andando de um lado para o outro. Essa conversa vai ficar cada vez pior se
continuar se estendendo. Pegando minha bolsa do lavabo, torno a fitá-lo.
— O que eu preciso fazer para que você acredite que eu não te quero
mais? — proponho, desprovida de emoção. — Diga e eu farei.
Drogo morde o lábio inferior. Um sorriso facínora torce sua boca
quando os braços dele se abrem numa provocação e eu o ouço proferir sua
sentença.
— Parta meu coração.
Seco a lágrima solitária que desliza de um dos meus olhos sem que eu
perceba. Mantendo minha expressão séria ao sustentar seu olhar, sussurro:
— Como você quiser.
colossal. Quero dizer, eu não somente o detestava com todas as forças, como
durante dias.
E, neste instante, estou permitindo que ele me beije.
Muito pior, estou gostando de ser beijada por ele.
Bom Senhor, estou correspondendo ao beijo dele.
Nada no mundo poderia ter me preparado para isso. Seu gosto é
viciante, menta e vodca, e o modo como ele chupa minha língua é
enlouquecedor. Sua mão continua na parte de trás do meu pescoço,
mantendo-me sob seu domínio. Nossas bocas estão pressionadas uma na
outra com ganância. É mais do que desejo, é necessidade. Porque, no fundo,
não somos realmente nós que estamos beijando um ao outro.
Sua língua é possessiva sobre a minha e Grayson me toma com tanta
brutalidade que chega a ser doloroso. Eu não me importo. É uma punição
bem-vinda. Bebo cada gota de sua raiva, preparando-me para enterrar os
dedos em seu cabelo.
Entretanto, a oportunidade é roubada de mim. Porque, num minuto,
nossos corpos estão colados, e no outro tudo o que eu toco é o nada.
Meus olhos se abrem.
E o que eles captam é a figura enfurecida de Drogo puxando-o para
fora da hidromassagem e acertando um soco em seu rosto.
Alguns dos convidados que estão ao redor da piscina saem correndo
para ver a confusão. Meus pés molhados derrapam no piso e eu agarro a
borda para não cair quando saio, endireitando o biquíni. Corro na direção
deles, afastando as pessoas que começam a formar um círculo.
— Larga ele! — grito desesperada ao ver o corte nos lábios do
Grayson. Drogo está fora de si, e nada de bom pode vir disso. Cacete, o que
eu fiz?
Os dentes do Cagliari estão cobertos de sangue quando ele ri, virando o
rosto e cuspindo. O deboche explícito serve somente para piorar a situação
caótica. Ao não ver DeLuca ou Leo por perto, disparo até a cozinha,
empurrando todos os corpos que vejo pela frente em busca de algum jogador
do time de hóquei. Adrenalina corre em minhas veias, fazendo o sangue
bombear nos meus ouvidos. A música, agora alta, me deixa ainda mais aflita.
Tem alguém com um microfone abafado e barulhento na pista de dança
improvisada que fica no meio da sala. É tudo uma bagunça.
Furiosa, subo na pista e roubo o microfone do garoto ruivo e magro que
canta alguma música que desconheço, bêbado até o último fio de cabelo.
— Onde está o time de hóquei? — berro, ignorando os olhares
arregalados em surpresa que se viram para me encarar.
Cerca de cinco caras com quase dois metros de altura, próximos à
entrada, erguem as mãos. Dois deles estão beijando garotas, e o restante está
bebendo, mas todos param o que fazem e prestam atenção em mim. Eu
reconheço um, Bjorn Kovac, é por ele que eu grito para vir comigo.
Eu poderia recorrer a outras pessoas, mas ninguém está interessado em
separar dois homens gigantes de uma briga. Eles querem assistir.
Volto para a área do lounge com um grupo de brutamontes fervendo
em meus calcanhares, e sequer preciso apontar para algum lugar, pois todos
voam para separar a briga ao ver a multidão. Estou com as mãos unidas na
frente do rosto, rezando para que ninguém tenha morrido. Com base nos
berros e grunhidos primitivos que começam a ecoar nas vozes de ambos,
percebo que os dois estão vivos, apesar dos ferimentos que ostentam. Meu
coração encolhe na caixa torácica. Eu sabia que ele ficaria com raiva, no
entanto, jamais nesse nível de descontrole. Me sinto enjoada.
— Me soltem, porra! — Drogo se debate ao ser agarrado por dois dos
jogadores e ter o corpo arrastado para longe. — Não acabou, Cagliari!
Grayson abre os braços, ainda de costas para onde estou, vestígios de
grama e sangue por toda sua estrutura tatuada.
— Eu não vou esquecer, companheiro, — ele cospe, indignado. — que
você me pegou pelo pescoço como se eu fosse a porra de uma galinha!
Culpa me corrói, fazendo-me sentir péssima. Sei que é exatamente o
que eu queria, seu ódio. Mas era somente para uma pessoa: eu. Respingou
mais do que imaginei, e isso me deixa péssima.
A grama úmida farfalha sob meus pés descalços quando encurto a
distância entre mim e Grayson, posicionando-me diante dele com traços de
culpa em meu rosto. Há sangue escorrendo de sua narina esquerda e um corte
profundo estampa seu lábio inferior. Sem contar nos do supercílio e
bochechas. Em breve, tenho certeza de que haverá uma coloração bizarra
tomando os arredores de seu olho esquerdo. Apesar dos ferimentos, ele ri.
— Preocupada? — zomba, afastando os fios loiros da testa suada e
cuspindo a mistura de sangue e saliva. — Porque, se estiver, é bem inútil.
— Eu sinto muito. — me desculpo, um gosto amargo dançando em
minha garganta seca. — Não imaginei que tomaria essa proporção.
— Sente muito pela briga? — sua atenção cai para os meus lábios
inchados e ele ergue a sobrancelha que está ferida. — Ou pelo beijo?
Meus ombros caem em desistência. Grayson é tão complexo que se
torna impossível manter um diálogo por muito tempo.
— Ambos. — suspiro. — Se um não ocorresse, o outro também não
aconteceria. Sendo assim, você não estaria neste estado ferrado.
Seu sorriso se alarga, tornando-se sinistro. Por instinto e
autopreservação, recuo um passo. Seu corpo se projeta sobre o meu.
— Este é o ponto. Eu estou sempre ferrado. — enfatiza. — Eu gosto de
estar ferrado. A dor, para mim, é uma fonte torcida de prazer. Então, querida,
não sinta. Desculpas são supérfluas. E as pessoas que costumam pedi-las, são
as que mais tornam a repetir o erro que as levou a se desculparem. — ele
segura uma mecha úmida do meu cabelo e cheira, depois solta. — Portanto,
evite. É irritante e desnecessário. Agora, com sua licença, tenho que tomar
um banho. Se eu não tirar essa sujeira do corpo, vou acabar matando alguém.
— assobia. — E nós dois sabemos que eu não estou brincando.
Eu me viro com o intuito de entrar na casa para procurar Drogo e
verificar seu estado, somente para ter certeza de que o estrago não foi tão
gigante quanto minha visão fez parecer à medida que o puxaram para longe.
No entanto, paro ao ver Blake com o olhar fixo onde eu estou. O semblante
de decepção que cobre suas feições é tão evidente que se torna palpável.
Meus lábios se separam para chamá-la, abrindo-se lentamente por estarem
ressecados. Eu não tenho chance de articular nada. O chão parece desaparecer
debaixo dos meus pés ao passo que corro atrás dela quando raiva faz seus
ombros ondularem e minha irmã arremessa o copo que segura no deck de
madeira, desaparecendo na entrada. A sala está menos cheia, por isso se torna
mais fácil passar pelos convidados. Ignoro o fato de que ainda estou só de
biquíni e cruzo a porta, saindo.
— Blake, espera! — estou sem fôlego ao chamar seu nome, diminuindo
o ritmo quando chego na calçada. Ela já está perto da fileira de carros
estacionados no meio-fio, seguindo para sua BMW. Meus olhos esquentam
com lágrimas, o frio da noite agride meu corpo, mas não me importo com
outra coisa que não seja fazê-la me escutar. O problema é que eu não faço
ideia do que dizer para consertar tudo. — Por favor. Por favor, Blake.
Eu paro a cerca de trinta centímetros de sua figura, pulando ao escutar
o baque seco de sua mão acertando a janela. Assim como eu, ela também está
com lágrimas nos olhos. A diferença é que o meu choro é de culpa, e o dela é
de raiva. Mordo os lábios, prendendo ambos entre os dentes.
— Por favor? — explode. — Por favor? Você, realmente, está apelando
para mim, porra? — eu não respondo, qualquer frase que eu pudesse vir a
formular para usar neste momento, seria ridícula e pioraria a situação. —
Você fez uma sacanagem comigo, Brooke, e eu te entendi. Compreendi seu
lado e seu pânico. Eu quase fui atropelada e você simplesmente fugiu e
desapareceu por dias. Sabe como eu me senti? Um lixo! Engoli a dor para ser
uma pessoa altruísta, uma boa irmã. Pensei “Eu estou apavorada, mas ela está
mais. Tudo bem, eu consigo me reerguer sozinha.”, porque você viu de perto
a Avalon em um estado horrível, e eu tentei facilitar tudo. Suportei estar, todo
esse tempo, sendo feita de idiota, achando que o Drogo era nosso meio-
irmão, quando você sabia que não era e não me falou merda nenhuma! —
acusa. — O que você fez antes, foi egoísta. Mas essa noite? Você foi uma
vadia. Pelo visto, a existência do Cagliari não a enoja tanto quanto pensei. Do
contrário, você não estaria quase trepando com ele na frente de todo mundo
como uma cadela no cio. Hoje, Brooke, você morreu para mim. — cospe,
abrindo a porta da BMW. — Eu te odeio.
Os soluços que transmito são irreconhecíveis, capazes de estrepitar por
todo o quarteirão. Meu choro é tão alto e violento que minha barriga dói com
o esforço que imponho ao me abraçar para abafar o barulho. Toda minha
visão está borrada e eu não consigo enxergar um palmo sequer com clareza.
Pressionar as mãos sobre a boca para diminuir os ruídos ensurdecedores não
serve de nada. Nenhum gesto pode aplacar meu estado atual. As coisas se
tornam um borrão escuro e meus membros parecem se converter em chumbo.
Contudo, mantenho-me de pé. Estou sufocando, sendo engolida viva pelas
mentiras que criei. Eu luto para lembrar que é o melhor a ser feito, e que tem
que ser desse modo, por mais monstruoso que possa parecer, mas é difícil
caminhar sobre um rio de lava com pés descalços. Grito para mim mesma,
em meu subconsciente, que tudo o que eu fiz terá sido em vão se eu desistir.
Não posso pensar em jogar tudo para o alto, mesmo que as palavras que eu
ouça me destruam.
Não sei ao certo quanto tempo se passou quando eu finalmente engulo
meu sofrimento e decido que está na hora de desligar de vez as emoções.
Com dedos rígidos, seco o rastro gelado e pegajoso de lágrimas que mancha
meu rosto. Embora meus olhos estejam inchados, sou capaz de enxergar a
calçada. Eu retorno para dentro da residência e sigo até o deck lotado, onde
deixei minhas roupas. Na volta, sou parada por Summer. A única pessoa que
estimo e ainda não magoei. Bem, é uma questão de tempo. E um tempo que
está muito, muito próximo. Ela ergue um braço com a intenção de me tocar.
A comoção repentina no interior da casa indica que as pessoas que faltavam
chegar, chegaram. Não ansiando criar mais conflitos e inimigos futuros,
porque todos eles são unidos demais para aceitar que magoem qualquer um
do bando, decido que sairei pelos fundos.
— Você quer conversar? — pergunta, enfiando o polegar livre no bolso
frontal do short branco que usa.
— Por que eu iria querer?
Minha pergunta sugerida numa entonação cortante de indiferença a faz
piscar em surpresa, voltando a abaixar o braço ao desistir de me alcançar.
— Está assim por causa do Evento das Famílias Principais?
Foram tantas coisas acontecendo que acabei esquecendo da festa que
ocorre todo ano, no dia do meu aniversário. Um evento tão falso quanto as
pessoas que o frequentam. O intuito é agradecer às doações da ONG fundada
por eles com Ópera, discursos e champanhes. Como se eles se importassem
com pessoas carentes. A razão pela qual permaneço marcando presença é
somente pela minha mãe. Ela foi uma das fundadoras e sempre fazia questão
de nos levar. Não apenas para que víssemos, mas porque os herdeiros
precisam dar um pequeno discurso anual.
Ótimo. Estar diante de dezenas de ingleses falsos é mesmo o que eu
mais preciso para completar o Pacote Desgraça em minha vida miserável.
— Eu vejo que foram convidados. — sugiro, sem nenhuma
empolgação.
— Sim. Os nossos pais contribuíram esse ano.
— Que bom. — digo, e ela suspira, inconformada.
— O que aconteceu?— queixa-se. — Fizemos algo que a deixou
chateada? Porque, as coisas que você fez ultimamente, Brooke... Esta não é
você.
— As coisas que ando fazendo ultimamente, não dizem respeito a
ninguém. E eu agradeceria se não voltasse a se meter onde não foi chamada,
Summer. — interrompo, dando as costas. Antes de ir embora, olho-a por
cima do ombro. — Ah, e esta sou eu, sim. Em uma versão melhorada.
“Meu coração,
Eu sempre gostei do seu nome, Brooke. Ele é puro, mas também muito
forte e poderoso. Assim como você, querida.
Nós duas vimos o lado feio da vida cedo demais. E não foi nossa culpa. Não
pedimos para enfrentá-lo. Então, eu quero que saiba, antes de continuar,
que eu sei o que aconteceu. Eu a vejo. Você é muito parecida comigo,
portanto, acredito que também terá um mecanismo de defesa. O meu é
escrever. O primeiro não foi tão bonito. Ele deixou marcas. Então, espero
que siga um caminho distinto. Mas se não seguir, eu sei que você será
capaz de se reerguer um dia. Eu tenho fé em você. Porque você é minha
filha. E nós duas temos mais do que sangue correndo em nossas veias, nós
temos vontade de viver.
Saiba que parte meu coração estar nesta sala, vendo-a próxima à janela,
quieta enquanto assiste a chuva cair, e não poder te abraçar e dizer que
tudo não passou de um pesadelo e que você está segura. Porque eu estaria
mentindo.
Hoje pretendo livrá-la de seu tormento. Farei de tudo para conseguir. Eu
não terei medo.
Antes de ir, no entanto, você tem que saber algumas coisas.
Há quinze anos, eu conheci o amor da minha vida. Não falo de Sebastian.
Foi tragicamente lindo. E apesar de tudo o que ocorreu, não me arrependo.
Se existir outra vida, espero encontrá-lo nela.
Eu o conheci na Itália, em uma das típicas festas importantes que eu
constantemente tinha que comparecer. Deus, eu odiava aquilo.
Mas aquela noite foi diferente, eu senti no ar. Quando coloquei os olhos
nele, eu o amei. Foi meu maior acerto, e meu maior erro.
Sebastian descobriu o que eu havia feito, e sua punição foi desumana, me
destruiu. Dois meses depois, quando retornamos à Inglaterra, eu descobri
que estava grávida. No momento em que você e sua irmã nasceram, eu
sabia que algo não estava certo.
Blake era idêntica à Sebastian, olhos verdes, cabelos pretos. Diferente de
você. Seus olhos eram tão azuis que pareciam refletir minha alma neles, os
fios loiros, similares a um campo de trigo, e um pequeno e quase
imperceptível sinal perto da boca, abaixo do lábio inferior.
Você, Brooke, era o reflexo do homem que eu mais amei em minha vida.
Gêmeas. Mas de pais diferentes.
Sebastian soube, e ainda assim a amou mais do que amou seu próprio
sangue. Eu não conseguia entender. Porém, estava aliviada em saber que
ele não era uma ameaça. Isto é, até que ele se tornou. Eu o vi em seu
quarto uma noite, querida. E eu sinto muito. Eu sinto tanto, tanto.
Por causa disso prometo que, hoje, eu irei consertar tudo.
Esta é a parte que você precisa prestar muita atenção. Sebastian tem um
amante: Eric Carson.
Ele provavelmente vai tentar feri-la, pois não poderá fazer comigo. Por ser
melhor amigo de Sebastian, ele o colocou como guardião de vocês. Eu
consegui alterar uma parte sem ser descoberta e coloquei outra pessoa no
lugar. Seja paciente.
Estou deixando munição suficiente para que você destrua Eric, caso seja
necessário. Não hesite, Brooke. Nunca hesite.
Seu pai sabe o que pretendo fazer, também sabe que não deve me impedir.
É a minha decisão. E sei que, por mais que o dilacere, ele a respeitará. Da
mesma forma que vai respeitar o último pedido que fiz; esperar que você o
procure, e não o contrário.
Porque preciso que esteja preparada. Preciso que tenha conhecimento das
palavras dentro desta carta primeiro.
Há uma bomba no barco em que Sebastian e eu estaremos, eu a coloquei
lá. Ele não irá escapar, e eu também não. É como deve ser.
Eu te amo. Eu a amarei até a última batida em meu peito. Eu a amarei
além dela. Além de tudo e qualquer pessoa, meu coração.
Sua existência é o que não me faz carregar arrependimentos. Porque você é
fruto do amor mais profundo e verdadeiro que eu senti, Brooke.
Você não é filha de Sebastian Andreotti. Você é filha de Michael DeLuca.”
máscaras. Eu achei que seria a última, também. É esquisito como tudo pode
mudar de um minuto para o outro. Apesar de não ter uma vida dentro dos
estou agora, cinco dias atrás, eu não iria conseguir chegar perto dos portões
pretos que reluzem do lado oposto, evidenciando a ferocidade que banha cada
mínima parte da mansão DeLuca — não sem tropeçar em meus próprios pés
conhecendo bem, eu diria que todos ao mesmo tempo. A antiga Brooke era
uma farsa dizer o contrário. Não é como se fosse algo esperado, uma coisa
comum, banal. Mas eu deixei de ser a garotinha receosa que tinha pavor de
Michael e Diego estão comigo. Drogo também deveria, era o que ele
desejava. Todavia, pedi para que verificasse Blake em nossa casa. Por mais
que nós duas não estejamos em nosso melhor momento, não posso permitir
que a segurança dela corra risco por minha causa. Muitas pessoas já se
machucaram, e não sei se há algum capanga de Eric andando por aí, apenas
esperando uma brecha. Portanto, é melhor prevenir. Além do mais, Logan
Knife, um dos homens que trabalham para Michael, e que eu soube ser o
braço direito de Diego, está o acompanhando por via das dúvidas.
— Vamos entrar. — o segundo avisa.
Eu não sei bem como me sinto, ou o que irá, de fato, acontecer. Meus
sentimentos estão conturbados e, sendo sincera, nada parece verdade agora.
Michael me disse que seus homens pegaram Eric assim que ele tentou
deixar o teatro pela saída dos fundos, próxima aos camarins. Sua repulsa por
Carson vem de anos atrás, desde o tempo em que ele conheceu Sebastian na
Itália. Não sei ao certo como ocorreu, mas algo relacionado a uma união nos
negócios entre os pais deles quando ambos estavam vivos. A verdade é que
ele, pelo que explicou, tem as mãos em coisas ilegais.
Mafiosos.
Meu pai biológico e meu tio, assim como sua família, a minha família.
Todos inseridos no berço da máfia. É bizarro e chocante. Entretanto, é real.
Desperto do meu transe ao ouvir um rangido suave. A porta pesada se
abre e o cheiro instalado no galpão me golpeia no instante em que entramos
no denominado Abatedouro, nauseando-me. É uma mistura entre vômito,
urina e suor. O ar é rarefeito e acerta-me como um sopro abafadiço. Uma
lareira está acesa, também. O odor pútrido não incomoda Michael ou Diego,
e sei que é porque os dois estão mais do que acostumados a pisar aqui. Me
assusta, mas não recuo. Qualquer outra pessoa em meu lugar estaria
morrendo para fugir. Eu não estou. Nada além de sedenta por retaliação.
Meu olhar percorre o local com iluminação precária. Observo uma
mesa auxiliar de cirurgia no canto inferior, o inox brilha para mim. Eu capto
vários objetos cirúrgicos sobre a superfície. Imaginar para que eles servem,
antes, faria meu estômago embrulhar. Neste momento, tudo o que faço é me
perder no modo como o bisturi reluz. Meu olfato começa a se adaptar ao
mau-cheiro, diminuindo a náusea, embora eu evite respirar fundo.
Quando tomo coragem para encarar o centro do galpão, eu o vejo. Com
os pulsos unidos e acorrentados por uma corrente grossa que está presa em
uma das vigas, está Eric Carson. Meu pior pesadelo desde os quinze anos de
idade. Seu corpo magro está embebedado de sangue ressecado e brilha com
rastros de suor. Um círculo amarelado no meio de sua cueca branca, que
agora está encardida, deixa claro o que houve. Ele se mijou todo.
Lembranças do que esse homem foi capaz de fazer comigo me
assaltam, enviando-me em uma espiral momentânea do passado. A qual é
apagada quando Diego, usando luvas pretas de couro, similares as que
cobrem as minhas mãos e as de Michael, arranca os fones de proteção que
descansam nos ouvidos de Eric. Sua estrutura sacode em um solavanco, e
antes que ele possa entender o que aconteceu, a venda em seus olhos é
arrancada.
Carson pisca freneticamente, forçando a visão a adaptar-se à luz
repentina que acerta seus olhos. Enrugando o nariz e respirando com
dificuldade, seu olhar voa em direção à porta. Onde estou. Ele grita por cima
do tecido em sua boca, mas nada faz sentido, pois são meros ganidos
ininteligíveis.
Eu tomo coragem para avançar um passo.
— Muito desconfortável para você? — repito as mesmas palavras que
ele usou comigo algum tempo atrás, minha entonação saindo cruel, facínora.
Por mais que a situação me assuste, preciso fazer isso sem a presença
de ambos.
— Eu gostaria de ficar sozinha com esse verme.
Michael permanece com uma expressão resguardada, enquanto Diego
hesita por alguns segundos. Retirando a mordaça, afasta-se de Eric.
— Se precisar, estaremos do lado de fora. — intervém, afastando-se.
Meu pai olha para mim por alguns segundos com uma certa intensidade
em suas íris distintas. Como se quisesse me lembrar, por meio desse olhar,
quem eu realmente sou e qual o sangue que corre em minhas veias. É o
sangue dele. Porque eu sou uma DeLuca. Sempre fui, eu só não sabia.
— Sabe, Carson, — Michael começa. — eu nunca gostei de você.
Quando meus homens colocaram as mãos no seu corpo inútil e imundo
naquele teatro, eu pensei “Finalmente vou ensiná-lo uma lição.” Mas, bem,
não irei. — há uma pausa. — Eu, não. Brooke é minha filha e você sempre
soube, é por isso que a odiou tanto, não é? Porque uma traição com seu
amado Sebastian Andreotti era inaceitável. Ainda assim, ocorreu. Estou
ciente que minha menina seja capaz de dar a você uma morte épica. Portanto,
a menos que ela peça, eu não irei, de modo algum, interferir. Meu aviso é que
não abra sua boca para pedir misericórdia, porque não terá. Hoje, você vai
entender que tocar nos meus filhos não é apenas burrice, é suicídio.
A maneira como suas palavras são proferidas, e principalmente a calma
e a convicção imposta nelas, faz minha corrente sanguínea borbulhar.
Eric ofega, enraivecido, suas narinas dilatando como as de um touro
bravo.
— Acha mesmo que ela vai ter coragem? — berra, salivando.
— Eu não sou o tipo de homem que acha nada, Carson. Ou eu tenho
certeza, ou não. E, sendo honesto, neste momento estou com a primeira
opção.
Sem proferir outra sílaba, a cabeça de Michael se move em um aceno, o
qual eu retribuo. Ele e Diego saem do galpão, fechando a porta e me
deixando com quem foi meu maior tormento. A diferença é que, agora,
nossas posições foram invertidas. Eu não sou mais a presa, sou a caçadora.
— Você tinha razão. — Eric cospe. — Eu deveria ter te matado quando
tive a chance. Olhe a dor no rabo que você se tornou para mim, sua putinha.
Eu não respondo. Os gestos que executo ao andar até o atiçador e
pressionar a ponta dele no fogo da lareira são enganosamente fleumáticos.
Minha mão se fecha ao redor do cabo e eu observo, sob os gritos e ofensas
que vêm dele, o quão pontiagudo é. Na extremidade há uma bifurcação, onde
um dos lados é reto e afiado, e o outro é moldado de forma côncava. Corro o
polegar ao longo da pequena argola no início. Meu olhar é de ódio, mas
permito que se perca na ação, apreciando a mudança de cor no material. Por
enquanto, não pretendo matá-lo. Não. Eu quero fazê-lo sofrer.
Eu o farei gritar.
— Eu sabia, — falo por cima de seus berros, que diminuem ao som da
minha voz. — que você não estava transformando minha vida em um inferno
por puro prazer. Quer dizer, — sorrio, mas é vazio de humor. — você estava.
Mas eu sempre soube, Carson, que havia um motivo por trás de tudo.
— Você é uma aberração! — grita, contorcendo-se.
Paro em sua frente com o atiçar apontado para ele.
— Sou. — concordo. — E farei questão de mostrar.
Não importam as palavras que ele pretendia berrar como réplica,
porque tudo o que sai de sua boca é um ganido de agonia quando penetro o
atiçador em sua coxa direita. Eric se engasga com a própria saliva,
contorcendo-se como um animal moribundo. Seus braços se agitam e as
correntes no teto emitem um rangido barulhento. Mantenho a ponta dentro de
sua carne, segurando com firmeza e apreciando a maneira como o sangue
vívido escorre da ferida aberta. A imagem é doentia e me enoja, similar a um
filme de horror, mas, por mais bizarra que seja, me satisfaz. Esperei por
muito tempo para fazê-lo grunhir como um porco e pagar por toda a
crueldade causada. Nenhum sentimento racional é capaz de sobrepor a sede
de vingança que me toma. Não é somente por mim, é por todas as pessoas
que amo e fui obrigada a assistir serem machucadas.
Esse desgraçado não se sentiu mal ao me atormentar ou os ferir. Sendo
assim, eu me recuso a ter um estômago fraco tratando-se de machucá-lo.
Puxo o objeto, somente para enfiá-lo em sua outra perna. O grito que
reverbera dele é ainda mais desesperado e maníaco do que o anterior. Seus
músculos se retraem por puro reflexo, e o chiado que sua carne faz quando
puxo devagar o atiçador, se mistura aos seus uivos estridentes. Meu nariz
arde e sei que estou prestes a chorar. Não quero dar o gosto da minha
fraqueza a ele. Embora não sejam lágrimas de tristeza, ainda são lágrimas.
Contudo, por mais que eu tente esconder, Eric se agarra à brecha da minha
ruptura, deliciando-se enquanto arfa e estremece pela tortura.
— Eu disse, — estala, suor escorrendo por seu peito sujo e desnudo. —
que você não teria coragem. É fraca demais, boa demais. Sempre foi, Brooke.
— seu tom é cantado, similar a uma canção infernal. — Eu te disse que vi o
dia em que você e sua irmãzinha foram concebidas? Como aconteceu? Como
foram gêmeas de pais diferentes? É porque Michael fodeu sua linda mãe e
logo depois Sebastian a estuprou. Ela implorou para que ele parasse. Chorou,
soluçou. Eu deveria ter gravado seus gritos. — seu rosto gira para me olhar
por cima do ombro. — Foram de outro mundo.
Calor ferve em meu corpo à medida que sua revelação desumana rola
para fora, vibrando em meus ouvidos como um disco arranhado. Eu não tento
mais impedir que as lágrimas deslizem, pois elas o fazem com uma violência
excruciante. Minha visão borra e eu ofego, tomada pela fúria. Meus
movimentos são agitados quando volto a jogar a ponta do atiçador no fogo
que crepita na lareira. O ar se torna dez vezes mais abafado, pesado como
concreto. Minha saliva parece areia quando engulo, arranha minha garganta.
Tropeçando em meus próprios pés para chegar à mesa cirúrgica, agarro um
dos bisturis. Ao retornar para perto dele, posiciono-me bem atrás. Não há
mais hesitação em mim, nada que não seja ira.
Eu cravo a lâmina cortante em suas costas, formando um “X” sangrento
que marca quase toda a região. A ponta é tão afiada que corta sua carne com
facilidade. As coisas que Eric diz somem no galpão quando seus berros
estouram. Em seguida, sua cabeça pende para baixo. O vômito que jorra de
sua boca se lança no piso, sujando sua barriga, e o odor de urina espalha-se
pelo ambiente quando ele volta a se mijar, o líquido amarelado escorrendo
por entre suas pernas. Todos os xingamentos proferidos se tornam lentos,
arrastados. Localizo onde começa a corrente que prende seus pulsos, vendo-a
enrolada ao redor de uma válvula. Não é fácil desenrolar, eu levo alguns
minutos. Todavia, assim que termino, tenho o corpo ensanguentado de
Carson caindo em seu próprio sangue e mijo com um baque alto e seco. Volto
a agarrar o atiçador, me movendo em sua direção. Tudo o que enxergo é uma
bagunça nojenta. Meu peito sobe e desce com lufadas intensas, um véu
vermelho borrando meu campo visual.
— Rasteje! — ordeno, meu tom é mortífero enquanto o persigo
devagar ao passo que ele estica um braço, depois o outro, lutando para se
arrastar.
Eu o assisto conseguir chegar até a porta de aço. Mesmo que ele
pudesse abri-la, seria inútil. Seu destino é a morte, não há qualquer
absolvição. Portanto, eu dou o que ele merece. Erguendo um pé, pressiono a
sola da minha bota em suas costas feridas, embalando-a com seu sangue
imundo. Eu piso com mais força e ele chora. Seus membros oscilam e Eric
arfa quando, usando o mesmo pé, eu empurro seu corpo debilitado para cima,
tirando-o de bruços. Seus lábios estão esbranquiçados, e seus olhos se
encolhem para me encarar pairando sobre ele como uma sombra ceifadora.
— Você não é assim... linda. — sufoca. — Não é um monstro. — o que
ele diz, me lembra as palavras de Grayson. Então, eu as recito calmamente:
— Todos nós somos monstros. Eu só estou colocando o meu para
brincar. — meu foco o vasculha com lentidão. — Você profanou a memória
da minha mãe, fez coisas horríveis para as pessoas que eu estimo e tentou me
usar como se eu fosse sua maldita marionete. Mas eu nunca fui, Eric.
Troco o atiçador de uma mão para a outra sem desviar meus olhos dos
dele. Eu quero ver o exato segundo em que a vida deixará seu corpo, em que
sua alma podre não passará de lixo inerte, um nada ao vento. Eu quero
assistir cada mísero segundo, porque eu mereço apreciar a morte dele.
Meus dedos se enroscam no objeto com mais força. As correntes
rangem fracamente quando o verme tenta, em vão, lutar para se mexer e
escapar.
— Você lembra? — eu assobio baixinho. — Lembra quando eu disse,
naquele dia, que você morreria pelas minhas mãos? Eu não estava blefando.
— as íris dele cintilam com um brilho aterrorizado. Do tipo que você sabe
que chegou ao limite, onde não há mais lugar para correr. Não lhe resta
absolutamente nada a não ser seu destino. A vingança, em si, é boa. Contudo,
nada se compara a vingança lenta, aguardada com paciência. Seu sabor é
doce. — Todos os dias, eu acordava pensando que aquela seria a data em que
eu finalmente te mataria, o inferno acabaria. Este dia chegou.
— Você, Brooke, é uma vadia.
— Sou a vadia que vai te matar. — seguro a corrente que ainda prende
seus pulsos e a enrosco em sua garganta, apertando o ferro pesado o mais
forte que sou capaz. Carson se contorce para se livrar do aperto que o asfixia.
Recordo-me do meu pescoço sendo segurado no teatro, sua tentativa frustrada
de me enforcar. — Não é tão satisfatório quando é você no lugar, não é? Está
começando a ficar sem fôlego? Seu raciocínio está lento? Bagunçado? —
sorrio. — Eu quero que você dê um recado a Sebastian Andreotti assim que o
encontrar no Inferno: diga que eu o mandei se foder.
Raiva contorce sua feição abatida e ele tenta me cuspir, mas a saliva sai
fraca e seca, e acaba acertando sua própria face. Uma bela porcaria patética.
Descanso o atiçador em seu peito, fazendo-o rugir e se mexer
freneticamente pela queimadura que a ponta afiada causa ao penetrar em sua
carne.
— Você será igual a mim! Depois que cruzar a linha, — Eric brada
enfurecido, em meio a um rio de lágrimas e jatos de saliva. — não poderá
voltar!
Curvando meu corpo sobre o seu de modo parcial. Nossos olhares
colidem, e eu sei que será a última vez. Porque, agora, finalmente irá ter um
fim.
— Eu não pretendo voltar. — sussurro, descendo sua cueca e agarrando
seu pau pequeno, úmido e amolecido. Com os dedos enluvados, puxo-o para
cima. Capturo o bisturi que descansa em meu bolso traseiro com a mão
direita, e com a esquerda cerro a base ornada por pelos pubianos.
Seus gritos estrepitosos ecoam por todo o lugar, os orbes revirando pela
dor. Quando termino, tenho seu pênis ensanguentado. O qual eu enfio dentro
de sua boca com violência, enterrando fundo. Mais um engasgo, mais vômito,
mais espasmos. Descartando as luvas, fico de pé e murmuro:
— Eu deveria ter gravado seus gritos. — coloco a ponta do atiçador em
seu peito, lágrimas queimando em meus olhos. — Foram de outro mundo.
Sem outra palavra, envolvo ambas as mãos no ferro, cravando
profundamente em sua carne. Um barulho estranho ressoa e sangue quente
espirra, acertando minhas roupas e rosto. A cabeça dele pende para o lado. Eu
sei. Eu sinto com todas as minhas forças que meu maior pesadelo terminou.
Eric Carson está morto.
Eu sabia que algo estava errado assim que recebi aquela ligação.
Brooke pode atuar para todo mundo e fazer eles acreditarem nas coisas que
ela diz, porque a garota é boa nisso. Ela usou uma máscara para esconder a
verdade durante muito tempo. Mas comigo não funciona. Como eu sempre
disse, posso ver através dela mesmo que nós dois não estejamos cara a cara.
E por causa disso, no instante em que a chamada foi encerrada, eu decidi que
iria até o apartamento de sua irmã de qualquer maneira. Eu só não cheguei
mais rápido porque um pequeno acidente na estrada — nada grave, todavia
— me obrigou a esperar alguns minutos por uma liberação. No momento em
que a tive, segui direto para o hotel.
O gerente parecia preocupado quando entrei, nervoso como o inferno, e
não hesitou em subir comigo para verificar o apartamento ao me ouvir dizer
que eu era o irmão mais velho delas. Mentir foi irritante, contudo, necessário.
O homem estava suando como um porco quando entramos no elevador. E eu
não tardei a compreender que ele, do mesmo modo que eu, sabia que alguma
coisa estava errada. E, porra, não poderíamos estar mais certos. Ainda no
corredor, eu recebi uma ligação de um número desconhecido. Ninguém falou
nada do outro lado da linha, entretanto, logo depois um vídeo foi enviado,
uma gravação amadora, obviamente feita pela câmera de um celular, que
mostrou Blake atirando em Leo Ballister quando ele a confrontou sobre Eric
Carson no teatro. Eu não entendi porra nenhuma de início, porém, minha
mente estalou com o provável perigo que Brooke estava correndo. O gerente,
atrás de mim, estava tão nervoso que se atrapalhou com as chaves. Eu não
pude esperar, então arrombei.
A primeira visão que eu tive do interior ao invadi-lo foi o retrato exato
de um pandemônio. O local estava destruído, um completo caos. Cacos de
vidro espalhados por todo o lugar, mobília quebrada, sofá revirado. A pior
parte foi o sangue. A trilha de respingos pelo assoalho me fez sentir um medo
que eu jamais havia sentido. Imaginei tantas coisas, as mais fodidas. No
entanto, nada me preparou para a cena real. Meu estômago revirou.
A figura de Blake, caída em cima de sua irmã, parecia um filme de
terror sangrento ao vivo. Pude sentir o coração parar por um minuto inteiro,
talvez mais. O pânico me paralisou, roubou meu raciocínio, e eu só fui capaz
de o esvair ao ver que Brooke, embora inconsciente, ainda respirava.
A porra do problema foi que eu não sabia por quanto tempo.
Um estilhaço estava cravado acima de seu peito esquerdo, próximo ao
ombro, não muito profundo. Todavia, o sangue escorria do ferimento como
se fosse uma maldita fonte. Ela também tinha inúmeros cortes superficiais,
arranhões e hematomas recém-formados espalhados pelo rosto, colo e braços.
Ao me aproximar delas e empurrar sua irmã para longe, pude ver um bisturi
cravado na lateral de seu pescoço. A causa da morte de Blake.
Era Brooke ou ela. E olhando para minha garota deitada nesta cama de
hospital, eu não poderia ser mais grato por não ter sido a primeira opção.
Hoje, faz três dias desde que tudo aconteceu. Brooke permanece
sedada, porque os médicos disseram que seria a melhor opção após os
resultados dos diversos exames aos quais ela foi submetida saírem. Seu corpo
e cérebro estavam exaustos demais, beirando um colapso. Era arriscado
mantê-la acordada, forçando atividades cerebrais estando no limite do limite.
Eu entendo que é para o seu bem, mas, porra, ainda que ela não corra
qualquer risco de vida, eu me sinto péssimo por não ter conseguido evitar um
terço sequer das coisas que ela precisou suportar. Eu carrego uma certa culpa.
— Gostaria de trocar de lugar com você. — sussurro contra o dorso de
sua mão delicada e ferida, segurando-a mesmo depois de depositar um beijo.
— Precisa descansar, filho. — é a primeira coisa que escuto Michael
DeLuca, pai biológico de Brooke, me dizer ao abrir a porta do quarto e entrar.
Reclino-me na poltrona, esfregando o queixo.
— Terei tempo suficiente para descansar, senhor. — justifico, pegando
a xícara fumegante de café. — Já que as aulas foram suspensas por uns dias.
A sujeira que envolvia Carson foi jogada aos ventos. Agora, todos
sabem como ele, de fato, era. E as atrocidades que cometia. Achei que seu
negócio era foder com alunos — no sentido literal da coisa toda — e nada
mais. As fotos que eu havia jogado em sua cara há algumas semanas, no dia
em que invadi seu escritório, eram recortes de um vídeo amador, o qual foi
uma dor de cabeça encontrar, em que ele trepava com um aluno do GEC.
Descobri recentemente que esse mesmo rapaz havia morrido de forma
misteriosa ano passado. Sem dúvidas o dedo daquele porco esteve no meio.
Eu tenho passe livre para soltar o vídeo na internet, é claro, apenas para
ferrar mais com sua imagem suja, porém, decidi manter no escuro por causa
do garoto.
Lembro-me da noite do Evento das Famílias Principais, quando o vi
com as mãos no pescoço de Brooke. Eu quis matá-lo. Eu ia. Por um descuido,
o filho da puta conseguiu escapar. Tudo ficou ainda mais feio assim que ela
disse o que havia passado durante anos sem que ninguém desconfiasse.
Paro no tempo, lutando para controlar minha pulsação. Embora não
tenha sido eu, pelo menos deram um fim na existência dele. O mesmo com
Blake. A história do que ocorreu no hotel foi completamente distorcida e
encoberta para não causar um alarde maior. Preferi não saber o que os
DeLuca fizeram. Minha cabeça já está ferrada o bastante. Essa merda toda é
confusa e surreal, do tipo que quanto mais se sabe ou pensa, pior fica. Então,
logo, eu continuo completamente no escuro quanto aos acontecimentos, mas
sei que Eric e sua irmã gêmea infernal não são mais um problema. Os jornais
estão fervendo, em específico com a notícia do pai biológico da minha garota
ser quem é.
Por desgraça, eu descobri que sou mesmo filho de Sebastian Andreotti.
Michael e eu tivemos muito tempo para conversar e eu soube, através dele,
que a minha mãe, pouco antes de se casar com meu pai, que havia trabalhado
para sua família numa certa época, — falo sério quando digo que, porra,
Michael DeLuca é onipresente — foi noiva do verme cadavérico. Bem, não
dou a mínima, minha figura paterna sempre será Ryan McAllister.
O resto dos detalhes não passam de um borrão, porque foi a minha
vontade. Eu desisti de cavar mais fundo em busca de respostas e conclusões.
De qualquer forma, o que ficou evidente foi que a família DeLuca tem
um grande domínio sobre a polícia e os jornais prestigiados da Inglaterra.
Não fomos interrogados, não há investigações, também tem o fato de que
publicaram somente o que lhes foi conveniente. É tanta coisa debaixo do
tapete que é melhor não juntar as peças. Além do mais, meu cérebro não está
filtrando nada, então todas as informações que recebo não me abalam.
Tudo o que me importa, neste momento, é que Brooke fique bem. O
mundo pode permanecer de ponta-cabeça, contanto que eu a tenha sã e salva.
Ajustando o sobretudo para se sentar em uma das poltronas, Michael
anuncia:
— Você precisa saber de uma coisa. — concentro-me nele, me
preparando para mais uma revelação de estourar os miolos. — Sawyer
Vaughn, seu treinador, não é um treinador. Seu nome verdadeiro é Dante
Casini, ele foi melhor amigo da mãe da Brooke na infância e adolescência.
Viajou para os Estados Unidos para se tornar um federal, e conseguiu. Dante
voltou à Inglaterra para trabalhar em um caso. Nesse meio-tempo, fui capaz
de convencê-lo a trabalhar para mim. Por razões que não importam agora, o
FBI o afastou por um certo período. Meu pedido foi que, como ele ficaria
distante por alguns anos, encontrasse uma brecha para ficar de olho na minha
filha. Por ter Carson na lista de inimigos desde a época de Blair, ele aceitou.
— noto o vislumbre de decepção e revolta em seus orbes dissemelhantes. —
Infelizmente, nós não conseguimos proteger nenhuma delas.
— Eu sei como se sente. — murmuro, desviando meu olhar para o anjo
desacordado em cima da cama. — Compartilhamos do mesmo sentimento.
Apesar de não ter sido diretamente nossa culpa, é impossível esvair a
sensação. Poderíamos ter sido um pouco melhores. Embora perto, não fomos
capazes de enxergar. Ainda que eu dissesse que poderia ver através da
fachada que Brooke se empenhava em erguer, não pude notar tão além.
— Mas não deveria. — a voz de Michael me faz retornar ao agora. —
Você é jovem demais para carregar um fardo tão pesado. Preocupe-se com o
momento atual, não com o passado. Ele deve ser enterrado. Todos vocês são
novos demais para serem acorrentados por lembranças antigas. Portanto,
permita que elas sigam seu caminho para uma direção oposta. Deixe qualquer
peso para alguém mais velho, filho. Estamos acostumados.
Eu não tenho tempo para contrapor, porque antes que meu cérebro
possa formular um retorno, eu o vejo levantar. Sua mão camuflada por uma
luva preta bate em meu ombro num gesto firme e amigável. Por educação, eu
fico de pé. É difícil achar alguém do meu tamanho, o treinador e o Ballister
são os únicos, mas Michael consegue equiparar-se conosco. Pressuponho que
o homem esteja na casa dos quarenta, porém, sua vaidade evidente não o faz
parecer ter mais do que trinta e cinco anos. Espero chegar em sua idade com,
pelo menos, metade da aparência que ele ostenta.
— É mais fácil falar, senhor. — é tudo o que digo, e minha resposta o
faz exibir um sorriso quase imperceptível.
Seu celular toca assim que eu termino de falar.
— Eu sei, garoto. — pegando o aparelho e o silenciando, ele se vira e
inclina o torso, depositando um beijo no topo da cabeça de Brooke e
sussurrando palavras que eu acredito serem em italiano. Não é uma língua
que eu compreenda, então não faço ideia do que foi dito. — Preciso atender.
— informa. — Asa e Wangari, meus filhos mais novos, virão aqui pela
manhã. Aproveite a chegada deles para descansar um pouco.
— Desculpe. — antecipo-me. — Mas não pretendo sair do lado dela.
Eu não quero ser desrespeitoso, mas é o meu desejo. Espero que compreenda.
Ele fica em silêncio por alguns segundos, parecendo absorver minha
frase.
— Acredite, eu compreendo muito bem. — assegura. — Permanecerei
no prédio. Se precisar de alguma coisa, avise.
— Claro. — concordo, apertando sua mão estendida.
— E me deixe ser o segundo a saber que minha menina acordou. — seu
aviso explícito é envolto por uma entonação sarcástica. — Até mais, filho.
Aceno em concordância.
Ballister aparece na entrada assim que a porta é aberta. Já passa das
onze da noite, e ele não deveria estar aqui. Em específico porque, mesmo que
seja capaz de se locomover, não deve forçar muito o corpo, ainda que se
mova com a lentidão de uma tartaruga. Ele está usando uma camisola
hospitalar e arrasta consigo um suporte para soro. Seu torso está levemente
curvado por causa da cirurgia e a pele dele carrega um tom pálido. Apesar
disso, o sorriso sacana de sempre eleva um dos cantos de sua boca ressecada.
A experiência de quase morte parece nunca ter acontecido.
— Ei, tio. — cumprimenta divertido.
— Filho, o que está fazendo aqui?
— Fugindo da Dolores, minha enfermeira sanguinária. Eu juro por
Deus que aquela velha dos infernos quer drenar todo o meu sangue. —
reclama.
Michael prefere não estender o assunto, então apenas beija sua testa e
pede com licença. Ao ficarmos sozinhos, eu esfrego o rosto e cedo passagem.
Ele cheira a talco de bebê e xampu floral, sem contar o fato de que seu
cabelo castanho escuro tem um penteado que me lembra o do Superman.
— Como estamos, McAllister?
— Nada ainda.
Seu suspiro é longo e dramático.
— Eu menti. — comenta de repente. — Estou aqui para confessar que
amo a Brooke e que, quando ela acordar, vou lutar com tudo o que tenho para
tê-la. Você sabe, cara, não podemos parar a paixão que arde em nosso peito
quando encontramos o amor. Eu quero essa garota, e eu a terei.
Eu pisco, chocado. Pela primeira vez desde que o conheci, Leo não tem
o semblante habitual de diversão. Pelo contrário, sua cara é de seriedade.
— De que merda você está falando? — sibilo, chocado demais para me
mover e incapaz de acreditar que sua confissão súbita seja mesmo sincera.
Há uma pausa. Um silêncio profundo corta o ar.
Por fim, o bostinha arqueia uma sobrancelha, segurando uma risadinha.
Ele tem uma certa sorte de estar neste estado, do contrário, eu o mataria.
— Eu te peguei de jeito, não foi? — comemora. — Essa merda foi
épica. Estou cogitando a carreira de ator e fiz um teste com você. O que me
diz?
— Eu digo para você dar o fora daqui antes que eu decida gastar meu
réu primário. — alerto, rangendo os dentes.
Sua mão livre se eleva em rendição. Eu não o expulsei de verdade, mas
acredito que ele já tenha cumprido com seu intuito de encher o saco alheio.
Ou somente tenha decidido que a enfermeira Dolores não é mais uma
assassina em potencial pronta para coletar litros de sangue de seu corpo.
— Já vou, já vou. — anuncia, e eu me arrependo de observá-lo afagar o
cabelo da Brooke ao alcançá-la, pois a parte de trás de sua vestimenta se abre
parcialmente, revelando suas nádegas bronzeadas. Aperto a ponte do nariz,
fechando os olhos. Ao abri-los, sua figura está diante de mim.
— Até outra hora, rival. — ele se despede, passando pela soleira.
— Ballister, — rosno. — eu posso ver a porcaria do seu traseiro.
O bastardinho olha para trás com a intenção de confirmar o que eu
digo. Ao constatar que tenho razão, o sorriso de antes volta a se fazer
presente.
— Por nada, garotão. — e se vai.
Filho da puta.
Minha cabeça está explodindo quando fecho a porta. Talvez eu
realmente devesse dormir um pouco. Por mais que estar nessa situação seja
um tormento, sei que não há nada que eu possa fazer a não ser continuar
esperando. Ergo a cabeça ao escutar o relógio marcar meia-noite em ponto.
Um novo dia. Mais um deles.
— Ei, estranho. — uma voz tênue, suave como brisa fresca, ecoa pelo
cômodo. Eu me viro e meu coração para durante um minuto inteiro quando
vejo um par de íris azuis me observando com ternura. Eu nunca choro. Mas,
foda-se, meus olhos se enchem com lágrimas. — Sentiu minha falta?
É dia primeiro de outubro e eu sinto que, embora o mês tenha acabado
de começar, eu vou enlouquecer.
A pior coisa que Brooke poderia ter feito, principalmente por ter sido
uma sugestão de ninguém menos que Leo, foi aceitar fazer uma pequena festa
de aniversário para ela.
Quero arrancar meus ouvidos e cometer a porra de dois homicídios, e
um deles irá implicar na minha morte certa, pois trata-se de um DeLuca.
— Eu já disse que é melhor balões azuis com fitas douradas, seu
miserável! — Ballister brada, prestes a ter um colapso nervoso.
— E eu já falei que balões dourados com fitas azuis combinam mais,
seu poço de fezes! — grita Asa, irmão mais novo de Brooke.
Os dois continuam brigando no meio do jardim de entrada da casa que
Michael escolheu dar a ela de presente pelos dezoito anos.
Tudo o que almejo é pegar as cabeças de ambos e bater uma contra a
outra até que o resultado seja um traumatismo craniano duplo.
— Não se atreva, verme insolente. Eu sou o melhor amigo dela!
— E eu sou o irmão, seu saco de esterco!
Essa, sem dúvidas, é a briga mais nojenta e desnecessária do ano.
— Chega! — Summer brada repentinamente, ao parar do meu lado e
ver a cena que os dois sem-cérebro protagonizam. Ela coloca ambas as mãos
na cintura estreita e semicerra os olhos, parecendo um dragão prestes a cuspir
fogo. — Nós vamos fazer metade de cada. Uma parte dos balões será azul
com fitas douradas e a outra será dourada com fitas azuis. — decreta
cirúrgica. — Eu fui específica o bastante ou terei que ser um pouco mais?
— Estamos totalmente de acordo. — o mais novo concorda.
O aniversário de Leo também foi em agosto, mas ele não gosta de
comemorá-lo por motivos pessoais, então seus amigos respeitam sua decisão.
A velocidade de recuperação dele ultrapassou o surpreendente, e
chocou a equipe médica, inclusive. O cara é um atleta, porém, foi
impressionante.
— Eles ainda estão brigando? — a voz de Brooke surge no ar,
chamando minha atenção para sua presença. — Já faz o quê? Duas horas e
meia?
— Chato. Eu achei que teríamos ao menos um cadáver quando
voltássemos. — Wangari, sua irmã, ronrona num tom maldoso.
As duas tinham saído para comprar bebidas. Uma conversa é iniciada
entre as três garotas, e eu me concentro em Brooke e nas suas risadas alegres.
Não está sendo tão fácil quanto aparenta. Algumas noites são árduas,
em específico as madrugadas, quando durmo com ela e sou acordado por um
de seus pesadelos sobre Blake. Ela grita pela irmã e chora ao recordar do que
aconteceu, das coisas que fez. As lembranças, mesmo não possuindo tanta
intensidade quanto nas primeiras noites, continuam sendo uma carga difícil
de ser carregada, ainda que as sessões de terapia dela ajudem.
Mas eu sei que, mais cedo ou mais tarde, minha garota vai conseguir
sair de vez desse buraco. Estamos trabalhando para que isso ocorra em breve.
— Você não ousaria! — a acusação nada discreta de Asa me puxa de
volta para a realidade. — Seu covarde trapaceiro! Summer, você ouviu?
— Nunca ouviu aquele ditado? No ódio e na guerra, Asa de frango, —
Leo canta, estourando o balão que o DeLuca mais novo segura. — vale tudo!
— Ballister! — Summer troveja, indo para onde os dois estão com a
rapidez de uma bala. Sua próxima frase é infeliz: — Deixe as bolas dele em
paz!
É impossível não cair na gargalhada com a ordem. Mesmo Wan, a mais
reclusa de todos que estão presentes, não consegue segurar o ataque de riso.
— Posso apostar, agora, que ele é quem tem mais chances de morrer.
— comenta sem fôlego.
— Oh, definitivamente, não. — Brooke seca os olhos marejados,
pressionando as mãos na barriga para acalmar os espasmos causados pela
risada. — Deus não quer Leo Ballister no Céu, tanto quanto o Diabo não
deseja ter Grayson Cagliari no Inferno.
Ela encosta a cabeça contra minha barriga, enroscando os braços ao
meu redor. É quando me lembro de seu primeiro presente do dia. O segundo
vai ficar para mais tarde. Gosto de presenteá-la, pois suas reações inusitadas
são as melhores. Seus olhos se iluminam até com um simples pedaço de
papel.
— Tenho algo para você. — comento, inspirando seu perfume ao me
inclinar sobre o corpo dela assim que Wangari se afasta e nos deixa sozinhos.
— O que é? — pergunta desconfiada.
— Um dos seus presentes de aniversário.
Sua feição se contorce em uma careta.
— Não é meu aniversário. — contrapõe. — É apenas uma
comemoração tardia. Além do mais, você já me deu um. — ela estica o braço,
mostrando a pulseira cravejada de diamantes que eu a dei na noite da ópera.
— Nenhum presente seria melhor do que esse, amor. Acredite em mim.
Sem esperar que outra palavra escape por entre seus lábios rosados e
bonitos, eu a pego de surpresa, jogando-a por cima de um dos meus ombros e
estapeando sua bunda coberta por um jeans justo. Essa coisa a faz ficar ainda
mais gostosa, o que é um perigo eminente para a minha moralidade.
— Você fica uma delícia com essa roupa, mas prefiro quando está nua.
Não preciso mudar sua posição para saber que as maçãs de seu rosto
estão com uma coloração escarlate. Não importa quanto tempo passe, Brooke
sempre fica envergonhada pelas coisas que digo. A verdade é que não paro de
constrangê-la, porque me excita de um jeito fodido vê-la desse jeito.
— Santa Mãe de Deus!
— Eu poderia trepar com você. Neste instante. — eu falo ao estarmos
longe o suficiente dos demais. As vozes deles não passam de ecos distantes.
— Você é um pervertido! — ela luta para abafar sua ofensa.
— Pervertido, hm? Bem, eu fodo sua doce boceta todo santo dia, meu
amor. Três vezes ou mais. — sorrio cínico. — Eu não sou o único pervertido.
Posso sentir sua carne esquentando, e a percepção faz meu pau inchar
na calça. Eu não brinquei ao dizer que poderia trepar com ela neste instante.
— Drogo!
— Vou fazer você dizer meu nome de um modo mais lento e
desesperado em breve.
— Mas o que é que deu em você? — seu questionamento vem
carregado de luxúria.
A safadinha ficou excitada. Foda-se o fato de que sua família está por
perto. Não dou a mínima para meu futuro assassinato, eu a farei gritar.
— Decidi atrasar seus presentes de aniversário. — estalo meu aviso,
subindo as escadas que levam à suíte. — Porque, agora, vou comer você.
californiano bêbado.
O filho da puta, que havia acabado de se recuperar de uma cirurgia,
achou que seria uma ideia brilhante roubar o cachorro do vizinho dele.
No momento em que tivemos que nos mover para dentro de uma cela
na delegacia de Kensington, eu poderia dizer com convicção que não foi.
Porra. Eu sabia que estava muito fodido, porque Brooke com certeza
iria me matar.
Essa merda não vai dar certo, é o primeiro pensamento que tenho ao
escutar Leo, depois que deixamos a sala do cinema, falar que devemos dar
uma parada no Snake para tomar algumas. Eu não estou com a mínima
vontade de beber, além do mais, ainda que seja um pub que funcione até às
cinco da manhã, está um pouco tarde para colocar os pés nele. No entanto, o
cuzão está usando a carta de piedade para todo mundo por causa do que
ocorreu no teatro mais de um mês atrás. Ou seja, estou sendo obrigado a
ouvi-lo dizer que, como sou o escolhido do dia, preciso ceder ao seu pedido.
— Ballister, — resmungo, passando o cinto de segurança. — é melhor
descansar. Você me fez assistir àquela porcaria de filme que durou duas
horas.
Ele se ajusta no banco do carona e fecha a porta.
— A noite é um playground, companheiro, e eu sou uma criança
serelepe.
— Se você é uma criança, não deveria querer encher a cara. — ladro.
— Qual é? Eu passei mais de um mês sem ingerir qualquer gota de
álcool. Estou com uma cicatriz do tamanho do tronco de uma árvore na
minha barriga sarada e não transo há tanto tempo que, se eu gozar, não vai
sair esperma, e sim teias. Eu vou ser a porra do Homem-Aranha peniano,
cara.
Aperto a ponte do nariz, desistindo de uma réplica. O bastardo não vai
parar até beber, estou ciente quanto a isso. Sendo assim, só me resta aceitar e
terminar com tudo de uma vez. Quanto mais rápido, melhor. Aceitando meu
destino, manobro o jipe dele para fora da vaga e pego a estrada que leva ao
Snake. Por causa do horário tardio, não enfrentamos trânsito. A pista escura
está vazia e pelo menos eu o tenho calado durante o trajeto. Realmente terei
que aturá-lo por mais algumas horas e não adianta protestar. Summer e
Brooke foram as únicas que, até agora, passaram pelo que eu estou passando.
No dia delas, eu ri. Jamais poderei expressar o quão arrependido estou. O
mundo quando decide girar, é uma cadela insensível.
— O que vai beber? — pergunta de repente.
— Nada.
— O quê? — ele chia horrorizado. — Por qual motivo? A gente deixa o
carro lá e chama um Uber.
— Eu só não irei. Pode encher a cara, mas eu não quero. — assim que
chegamos ao pub, estaciono o veículo no beco ao lado e salto do carro,
verificando meu celular. Envio uma mensagem para Brooke avisando onde
estamos neste momento já que não estava nos planos virmos para cá. Sua
resposta não vem de imediato. Entretanto, por saber que foi entregue, não
fico esperando. Enfio o aparelho no bolso. Leo está bem atrás de mim,
tirando algumas selfies para postar em seu Instagram. Ele é do tipo que não
pode viver qualquer coisa sem registrar. Então, seu feed está cheio de suas
atividades diárias, conquistas, pratos de comida saudáveis, paisagens e fotos
de animais de rua. O cara tem até um destaque inteiro voltado para o tempo
em que ficou no hospital. E eu juro por Deus que essa aba tem mais de cem
fotos.
— Ei, McAllister, vem aqui. — ele chama. — Tira uma foto comigo.
— Não.
— Por favor.
— Sai fora.
— Fala sério, você tem que ser um bom amigo, seu filho da puta.
— Eu não sou seu amigo. — rebato.
— Você é noivo da minha melhor amiga, então, também é meu amigo.
— De onde você tirou essa porcaria?
— Acabei de inventar. Porém, faz sentido, não faz?
Eu nego.
— Se fosse desse jeito, as pessoas não teriam amigos que odeiam seus
namorados. — concluo.
— Meros seres humanos não-evoluídos, o que não é o nosso caso. —
adverte complacente.
— Cale a boca e pare com a sessão de paparazzi. — ordeno. — Vamos
entrar logo.
— Cara, você é uma dor na bunda. Como alguém tão rabugento como
você conseguiu conquistar o doce de garota que é a nossa pequena Brooke?
Decido, em vez de respondê-lo, empurrar a porta de entrada e ignorá-
lo. Leo flerta com alguns caras e garotas logo nos primeiros passos.
— O Snake parece estar com um público melhor agora. — comenta
sacana.
— Mesma coisa de sempre. — digo, embora concorde com ele. Depois
das mudanças que ocorreram na estrutura do local, pessoas novas
apareceram.
— Mentiroso. — cantarola convencido. — Eu estou certo e você sabe.
Não me admira que o lugar esteja lotado. Aproveitando que a mesa que
costumo ficar quando venho aqui está desocupada, largo meu corpo em uma
das cadeiras. O móvel faz um rangido tão alto e barulhento quando nós dois
nos sentamos que todas as pessoas presentes no recinto são capazes de ouvir.
Ergo dois dedos para Reed, o garçom das sextas-feiras, assim que o localizo
trotando por entre as mesas. Ballister pede um balde tamanho “M” de red ale
e eu fico com uma garrafa de água gelada. Bebo metade do líquido numa
única golada ao tê-la em mãos. Minha garganta está mais seca do que o
deserto do Atacama. Abrindo as pernas, relaxo no assento duro e
desconfortável. Tiro a jaqueta que uso e a descanso no encosto da cadeira.
— Ah, que saudades! — ouço-o gemer, degustando a cerveja com uma
rapidez preocupante. Ele toma duas em um intervalo de oito minutos de uma
para a outra. — Puta que pariu. As cervejas inglesas são as melhores. Ou
talvez eu esteja pensando assim porque há muito tempo não bebo nada?
Seu devaneio particular me faz questionar sua linha de lucidez atual. Eu
sei que, em geral, ela já é delicada, mas parece ter piorado neste instante.
— Vai com calma. — aconselho. — Já faz um tempo que você não
bebe. Seu organismo pode estar enferrujado e absorver tudo num ritmo
fodido.
— O que você quer dizer? — balbucia desdenhoso, e dá mais um gole
ganancioso na bebida. — Eu me sinto ótimo. Minhas forças estão renovadas.
Esfrego os olhos com o polegar e o indicador.
É como estar numa festa de aniversário e dizer para uma criança não
comer os doces. O que eu falar vai entrar por um ouvido e sair pelo outro.
Mesmo com essa constatação óbvia, decido preveni-lo. Leo é inconsequente.
E eu, infelizmente, sou o único capaz de raciocinar por aqui.
— Quero dizer que você pode acabar ficando bêbado pra caralho em
pouquíssimo tempo, e eu não estou nada a fim de cuidar do seu rabo
alcoolizado.
— Cara, pode ficar suave. — o bostinha ri, removendo a tampa da
próxima cerveja que pretende ingerir com os dentes. — Eu não vou ficar
bêbado.
Ele ficou bêbado.
Foda-se. Bêbado seria muito pouco para definir seu estado de
embriaguez atual. Eu preciso passar um de seus braços sobre meus ombros
para poder carregá-lo para fora do pub. A parte menos fodida é que somos
praticamente do mesmo tamanho e ele perdeu uma quantia razoável de peso
por causa da cirurgia. Do contrário, eu iria preferir esmagar minhas bolas a
ter que servir de sua âncora. São quase cinco da manhã quando finalmente
consigo empurrar sua estrutura para dentro do carro. Ao menos uma coisa é
positiva em Leo: ele é o tipo de bêbado quieto e reflexivo.
Seu olhar vagueia para fora da janela, parecendo distante de tudo e
todos, à medida que saímos da área vazia do Snake e pegamos a principal.
— Querido, para onde nós estamos indo? — murmura, a voz suave e
arrastada, entretanto, diferente da enrolação bêbada habitual. É chocante.
— Sua casa. — respondo, parando no sinal quando o vejo ficar
vermelho. Apoio um cotovelo na janela e espero a luz mudar para verde.
— Está bem, amor.
— Jesus Cristo. — suspiro.
— Hm, escuta, preciso contar um segredo. — confessa, relaxando
contra o banco. — Da última vez que eu fiquei tão bêbado assim, — ao
menos ele sabe e assume. — acabei tatuando o nome de um dos meus amigos
na virilha. Doeu como o inferno. — lamenta pesaroso. — Se ele um dia
souber...
— Ele? — eu quase relincho com uma risada, porque pela maneira
como Leo se referiu, deve ser o DeLuca ou o Cagliari. Isso está cada vez
melhor.
O sinal fica verde e eu acelero, dobrando a esquina que leva à casa
dele. É como um condomínio aberto, pois trata-se de uma rua bem-cuidada.
Sigo de ré para facilitar minha saída. Eu pretendo dormir com Brooke hoje, e
sei que já está amanhecendo, mas uns minutos a mais não farão diferença.
— Sim. — choraminga culpado, e tampa o rosto com as mãos grandes.
Faço uma careta perversa, ansiando saber de quem se trata. É bom estar
ciente dos podres das pessoas, mas apenas para ter uma moeda de troca caso
seja necessário barganhar. Sou um cara prevenido, nada mais. As pontas dos
meus dedos formigam com a necessidade crescente da fofoca.
Quando eu me tornei um dos caras do time? Pelo visto, esse tipo de
coisa é mesmo contagiosa. Kovac me alertou, ainda assim, preferi não dar
bola.
— Então, — começo, desligando o motor. — qual o nome tatuado? —
a pergunta fica no ar por um bom tempo, o silêncio pairando no interior.
Ballister pensa um pouco, mas eu sei que ele quer falar. Ele vai falar.
No entanto, sua cabeça gira e, como se a bebida em sua corrente sanguínea
não passasse de um delírio, o cara abre a porta e arrasta seus quase dois
metros pelo gramado da casa da frente, tropeçando nos próprios pés ao
correr. Eu não tenho tempo de reagir com coerência, pois quando o flagro
gritando com um homem, seu vizinho, por causa do cachorro de pequeno
porte que está sob seu domínio, dizendo que o pertence, eu sei que uma
cagada colossal está prestes a explodir bem no meio das nossas caras.
Primeiro, porque Leo já falou desse seu cachorro, Leslie II, um milhão
de vezes, e o bicho morreu há anos. E segundo, porque eu conheço o homem.
Denis Portmann. A porra de um policial.