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Copyright © 2024 M. R. Barbosa.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos, são produtos de
imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.

Capa: L A Design Editorial

Diagramação: Layce Design

Ilustrações: Lívia @halcyon.artes (casal no campo de lavanda), Aline @heeylline (casal diante da
torre de champanhe), Taíssa @taizinhaart (casal no British Fashion Awards, e casal em cena íntima
+18)

Revisão: M. R. Barbosa

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer
meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido pela lei nº. 9.610./98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Edição Digital | Criado no Brasil.


Sumário

Sinopse
Nota da Autora
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Parte 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Parte 2
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Epílogo
Sobre a autora
Outras obras
Contato
Sinopse

Amor e Ódio - Age Gap – Traição – Divórcio – Segunda chance –


Redenção

Jean-Luc Saint Vincent Laurent, o magnata da mídia, tinha fama de


sedutor, mas não fazia promessas vazias. Ele só precisava de uma mulher
troféu, e não de uma esposa. A escolhida? Uma jovem de 19 anos, de
origem humilde e modelo em ascensão. Ela não saía mais de seus
pensamentos, e nem dos anúncios da marca de cosméticos da irmã dele.
Marie-Claire Leblanc se casou com Jean-Luc por amor, mas viu seu
casamento acabar da noite para o dia devido a uma série de intrigas e mal-
entendidos. Ela não teve outra escolha além de sacrificar a própria
felicidade pelo bem de Benjamin, mas o garoto prodígio não vai medir
esforços para unir os pais novamente.
Jean-Luc vai perceber que cometeu um grande erro, quando quis se
vingar da então esposa, mas talvez ainda houvesse uma chance de
reconquistar a mulher que sempre lhe pertenceu. Mesmo porque, a sua
tentativa de “dar o troco” não saiu com o esperado...
Será que eles estavam destinados a se reencontrar, nos braços um
do outro?
Nota da Autora

Se você chegou até aqui é porque se identifica com a minha escrita,


e essa constatação é muito gratificante! E sendo bem sincera, aguardar um
lançamento meu não é uma tarefa fácil. Precisa ter uma paciência enorme.
Mas é meu trabalho recompensá-la pela longa espera, e não entregar menos
do que merece.
Nossa próxima parada, a cidade mais apaixonante do planeta: Paris.
Adorei fazer esta viagem sem sair de casa, mas se eu puder ir até lá um dia
será superbe!
A primeira versão de Meu Querido Ex-Marido foi escrita em
2004, ou seja, faz 20 anos que o casal se apresentou para mim e me pediu
para contar sua história um tanto conturbada, mas quem nunca vivenciou os
altos e baixos de um relacionamento, não é mesmo? Guardei o meu
caderninho de 96 páginas ao longo desses anos todos! Quem me acompanha
no Instagram já viu meu caderno do Taz, o famoso personagem mal-
humorado de desenho animado. Mas fazendo um retrospecto, pode-se dizer
que se trata de um livro feito praticamente do “zero”, pois não aproveitei
quase nada da versão anterior.
Na versão anterior, o livro tinha narrativa intercalada entre presente
e passado, mas depois de ponderar muito, tomei a decisão de fazer algo
diferente para não comprometer a fluidez do texto. Ainda assim, o meu
estilo de escrita é um pouco mais descritivo. Se você não gosta ou não tem
paciência, talvez este livro não seja para você.
Caso esteja se perguntando se o livro tem ou não plot de traição.
Deixei a questão em aberto para cada leitora tirar sua própria conclusão ao
final da leitura. Não cabe a mim responder, porque cada pessoa tem uma
interpretação diferente sobre os fatos. Mas se este tema for muito sensível
para você, sugiro que não leia, para não se frustrar.
Por questões culturais, os franceses possuem uma maneira de agir
nos relacionamentos que diverge um pouco dos brasileiros. Eles são bem
mais reservados ao lidar com os sentimentos. Esperar que a pessoa amada
perceba, por ela mesma, que está fazendo algo que ele(a) não gosta é um
hábito comum entre os franceses. Só tem um problema: a falta de diálogo
pode gerar muito conflito. Mas, nem tudo se resolve conversando, dentro e
fora dos relacionamentos, por uma série de razões. É como diz aquela
máxima: “Nem tanto ao mar nem tanto à terra”.
Atenção: Do Capítulo 2 em diante, a história vai voltar bastante no
tempo, para melhor entendimento do conflito envolvendo o casal de
protagonistas. Os capítulos narrados no passado não comprometem a
fluidez da narrativa, pois o livro foi dividido em 2 (duas) partes. Esquema:
presente-passado-presente.
Espero de coração que apreciem a leitura, e que o meu casal porreta
de magnifique conquiste cada uma de vocês.
E, por último, mas não menos importante: Sempre que puder,
avalie o e-book lido, atribuindo uma nota de sua preferência, mas
preferencialmente deixando uma opinião sincera. Gratidão!
Com carinho,

Aviso de conteúdo: Contém cenas que podem gerar gatilho


relacionado a traumas psicológicos, distúrbios alimentares (anorexia
nervosa e bulimia), aborto espontâneo, depressão pós-parto e menções de
abuso e importunação sexual de menores (não entra em detalhes gráficos).
Playlist

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“Ela prefere a fuga que os livros oferecem ao invés da companhia dos
humanos... Ela não pode confiar nos humanos, mas pode confiar nos
livros... Porque os livros não podem machucá-la... Ou talvez eles possam!”
“Elle préfère l’échappatoire qu’offre les livres plutôt que la compagnie des
humains… Elle ne peut pas faire confiance aux humains, mais elle peut
avec les livres…parce que les livres ne peuvent pas lui faire du mal… Ou
peut-être aussi!”
Autoria da epígrafe:
Léanne Ansar / @leanneansar
Prólogo

Marie-Claire

Nova York, NY.

Dias atuais...

Eu não vi meu casamento durar até que “a morte os separe”.


Deixei Paris, e todo um passado que não gostava de lembrar
definitivamente para trás.
Por ironia do destino, passei a morar na luxuosa penthouse com
vista para o Central Park, que ganhei de presente de Jean-Luc, no nosso
primeiro aniversário de casamento. Além do status que este tipo de imóvel
representava, e da paisagem de tirar o fôlego, ele se diferenciava dos
demais pelas generosas metragens.
Nós vivemos juntos durante cinco anos. Uma união marcada por
momentos prazerosos, e por outros mais desafiadores, como no dia em que
ele me pediu o divórcio, alegando "diferenças irreconciliáveis", além de ter
incluído no documento uma cláusula impedindo que eu falasse
publicamente sobre os motivos da nossa separação.
Em pensar que eu ainda amo o pai do meu filho...
Tentei afastar as lembranças da noite em que o perdi para sempre,
mas elas orbitavam minha mente num looping sem fim.
Eu recordava nitidamente, quando eu quase tropecei nos meus
próprios pés, enquanto corria atrás de Jean-Luc, no pátio histórico de um
prédio universitário de Paris. Ainda puxei o braço dele para obrigá-lo a
parar e me ouvir, mas ele simplesmente me empurrou. Recuei um passo,
assustada pela agressividade dele, as feições endurecidas como gesso, os
olhos castanhos reluziram em fúria crescente, à medida que o sangue tingia
o rosto másculo.
“Jean, por favor, me deixa explicar. Tudo não passou de um terrível
mal entendido!”
“Me poupe das suas mentiras!”
“Meu amor, me escuta. Por favor. — Tentei puxá-lo novamente
pelos braços, tentando obrigá-lo a me olhar nos olhos e reconhecer a
verdade neles. — Olhe para mim, eu suplico!”
“Me solta, agora!” — exigiu em tom ríspido.
“Não! Você precisa me ouvir!” — Gritei, inconformada, enquanto
as lágrimas escorriam pelo rosto, até cair nos seios parcialmente visíveis
devido ao decote do vestido.
“Já vi — e ouvi — o suficiente por hoje” — murmurou, sorrindo
ironicamente. “Você me dá nojo!” — Ele praticamente cuspiu aquelas
palavras.
Senti meu coração disparar dentro do peito, repentinamente.
Meus devaneios foram interrompidos por uma leve batida na porta.
Benjamin colocou a cabeça na pequena fresta e abriu um sorriso
constrangido, revelando uma “janelinha” entre os dentes. Um dos incisivos
centrais inferiores havia caído recentemente.
O meu filho passou a evitar sorrir em público, mesmo dizendo a ele
que ter um dente a menos tinha lá o seu charme.
Afastei o lençol que cobria metade do corpo e me sentei junto à
cabeceira da cama.
— Não consegue dormir, mon amour?
— Non, maman. — Confirmou, deixando apenas a metade inferior
de seu corpo visível. — Eu tive um sonho horrível... — revelou, baixando a
cabeça, constrangido. — Eu posso dormir com você? — perguntou,
timidamente. Meu menino estava crescendo tão rápido.
Seis anos se passaram em um piscar de olhos, comprovando o
quanto Benjamin era a cópia fiel do pai. Ele tinha o mesmo cabelo
castanho-escuro, de comprimento médio, levemente ondulado nas pontas e
cortado em camadas. O rosto dele tão expressivo e belo, e que ao sorrir,
formava duas covinhas, sem contar os lábios perfeitamente desenhados e
cheios. Herdou até o sinal de nascença, no lado esquerdo do rosto, bem
próximo ao nariz.
Como uma mulher carrega um filho nove meses na barriga, para no
final, ele nascer à imagem e semelhança do pai?
— Mas é claro que sim, mon amour! — Então, eu imediatamente
estendi os braços na direção dele, chamando-o para um abraço. — Me
abrace, mas me abrace bem forte ok? — Ele correu para a cama, deu um
salto e envolveu seus bracinhos ao redor do meu pescoço, agarrando-se a
mim como se sua vida dependesse disso.
Após alguns segundos abraçados, eu o afastei um pouco para olhar
bem fundo nos olhos castanhos.
— Quer me contar como foi este sonho horrível?
— Sonhei que papa veio me buscar, mas de repente começou a
discutir com você. Tudo por minha culpa, porque eu perguntei se você
podia ir com a gente...
Inesperadamente me veio uma sensação horrível, uma espécie de
bolo na garganta insistia em me sufocar, os meus olhos ardiam com as
lágrimas reprimidas.
— Oh, Ben, eu sinto muito... — A voz era quase um sussurro. — Eu
sei que foi um sonho ruim, mas amanhã você nem vai se recordar mais... —
Eu o aninhei contra o peito, e beijei as mechas escuras do topo da cabeça
dele, fazendo o possível para confortá-lo. — O mês vai passar rapidinho,
que você nem vai sentir. Prometo!
Um silêncio pesado se instalou entre nós até que de repente meu
filho estreitou os olhinhos marejados em minha direção, o semblante se
fechou em um misto de tristeza e curiosidade.
— Fala pra mim, maman. Você não ama mais o papai?
— Amo sim, e muito! — Meu corpo estremeceu diante do impacto
daquelas palavras. — Mas o seu pai pensa coisas horríveis de mim...
— Mas eu posso fazer mon papa voltar a gostar de você.
— Non, mon amour. — Neguei com um gesto veemente de cabeça,
e engoli em seco, a minha garganta se movimentou como se estivesse
engolindo pedra. — O seu pai tem todo direito de refazer a vida dele com
outra pessoa. Nós não podemos fazer nada.
— Mas mon papa continua sozinho. Sempre ficou sozinho. Eu juro!
Dei um longo suspiro, antes de encerrar o assunto, de uma vez por
todas.
— Os adultos costumam fazer coisas às escondidas, mon amour. E
ponto final, não se fala mais nisso, ok? Agora vamos dormir. Amanhã é
outro dia.
As palavras saíram atropeladas; palavras estas que me sufocavam
demais.
Eu me acomodei ao lado dele, ajeitando o lençol delicadamente para
cobrir o corpo magro até os ombros.
— Bons sonhos, mon petit génie. — Benjamin adorava quando o
chamava de “meu pequeno gênio”.
A última vez que vi Jean-Luc foi três meses depois da homologação
da sentença de divórcio. Eu tinha acabado de me arrumar para ir trabalhar
na minha empresa. Eu normalmente saía mais cedo de casa e voltava bem
tarde, deixando meu filho aos cuidados da babá dele, que também era
responsável por entregá-lo ao pai.
Aquela era a única maneira de evitar qualquer contato físico com
meu ex-marido, mas, para o meu azar, Jane comeu algo que a fez mal na
ocasião, não me restando outra escolha além de recebê-lo, pessoalmente.
E foi naquele mesmo dia que eu quase fraquejei.
Não satisfeito em foder com meu emocional, Jean tentou foder com
meu corpo, o prensando contra a parede mais próxima, os lábios
ostensivamente sensuais esmagaram os meus, silenciando qualquer protesto
que ameaçasse sair da garganta.
Eu não ofereci qualquer resistência, muito pelo contrário, eu
pressionei meu corpo contra o dele, consumida por um desejo feroz de
senti-lo dentro de mim, mesmo após todos aqueles anos. E apesar de estar
completa e irremediavelmente rendida, não soube lidar bem com a abrupta
interrupção dele. Jean afastou os lábios, emitindo um grunhido frustrado,
depois me deu as costas, e saiu pisando duro pelo corredor.
As vozes de minha empregada e de Benjamin cortaram o ar, —
àquela altura, já denso e carregado de luxúria. Eles estavam próximos o
bastante para abortar qualquer iniciativa de uma rapidinha. Apesar de
conhecer Jean o bastante para saber que nada o faria parar.
Ele transaria comigo ali mesmo, em pé, e à vista de quem quer que
fosse.
Ele só não o fez em respeito ao nosso filho.
Olhei para Benjamin, que parecia ter finalmente pegado no sono, a
julgar pelo ressonar baixo proporcionado pela respiração cadenciada e
serena dele.
Preciso juntar o pouco da dignidade que me resta.
Ficar cara a cara com meu querido ex-marido — de novo — não
vai ser nada fácil.
Capítulo 1

Marie-Claire

Dias atuais...

Passei a andar de um lado para o outro, friccionando o meu braço


adornado pelo bracelete “Love” da Cartier, mais conhecida como a algema
moderna do amor, afinal um parceiro só podia prender o mecanismo estilo
parafuso com a ajuda do outro.
A coceira no pulso esquerdo persistia e me dei conta de que jamais
conseguiria remover a pulseira, sem a minha chave de fenda, que o meu ex
fez questão de esconder. Seu intuito era me manter acorrentada a ele —
tanto mental quanto emocionalmente.
Em pensar que Jean-Luc só comprou aquela joia por pura influência
e insistência de minha parte. Só depois ele admitiu que se sentiu
envaidecido, considerando aquilo como um mecanismo de controle. Mas, a
chave dele também estava bem escondida e ele não a encontraria, jamais.
O toque da campainha me tirou dos pensamentos, mas como a
faxineira estava limpando o hall de entrada, ela mesma se ofereceu para
atender a porta. O meu coração batia descontroladamente dentro do peito à
medida que a fragrância sensual do Dior Sauvage se tornava mais forte e os
passos cada vez mais audíveis.
Virei meu rosto a tempo de ver Jean-Luc parar no limiar da sala
espaçosa.
Seus olhos castanhos brilhavam, enquanto me inspecionava da
cabeça aos pés. Mas não era uma inspeção qualquer. Ele, definitivamente,
me desnudou com aquele olhar poderoso e quente, avaliando o meu vestido
vermelho de manga longa, tocando o chão, seu decote profundo e ousado
terminava logo acima do umbigo.
Engoli em seco, quando subitamente senti uma fisgada violenta no
clitóris.
— Ça va, Jean? — Odiava fazer uma pergunta retórica, mas foi a
primeira coisa que me veio à mente para quebrar aquele silêncio
constrangedor.
— Estou bem, e você?
Eu me limitei a dar um sorriso meio sem graça, confirmando com a
cabeça.
— Presumo que esteja com pressa, mas Ben ainda está se
arrumando... Devia ter solicitado uma autorização de viagem. Eu daria o
documento, sem problema algum.
Como Benjamin já atingiu a idade mínima para viajar sozinho só era
exigido um documento que comprovasse o consentimento do outro
progenitor.
— Você se daria a este trabalho só para não me ver de novo? —
Bastou ouvir aquela pergunta e me veio uma vontade de arrancar aquele
sorriso convencido do rosto.
— Eu não tenho que lhe dar satisfações.
— Eu estava louco para arrancar alguma mísera reação emocional
de você, sabia? — Havia uma satisfação presunçosa em seu tom de voz, o
qual não me passou despercebido.
— Então, meus parabéns! Você acabou de conseguir o que queria.
— Minha voz aumentou uma oitava, meus lábios delinearam um sorriso
cheio de sarcasmo. — Eu vou falar com ele para se apressar logo de uma
vez. — E dizendo isso, eu saí pisando duro em cada degrau, fazendo os
meus sapatos de salto reverberando no assoalho.
Benjamin já nos fez esperar por tempo demais.
Uma vez no quarto dele, bati com força na porta, mas, não houve
resposta.
— Ben, por que está demorando tanto? — Encostei meu rosto na
madeira, respirando fundo, antes de acrescentar: — Seu pai já chegou, mas
precisa ir embora logo.
— Papa subiu com você? Ele também está atrás da porta?
— Como assim? Por que quer saber? — Estranhei ele fazer aquela
pergunta. Mas, de repente, o cheiro provocantemente masculino, invadiu
minhas narinas, embriagando os sentidos.
Um arrepio me percorreu inteira. Era como se o meu corpo
percebesse aquela proximidade magnética antes mesmo dos meus ouvidos
captarem o som de passos. Eu evitava encará-lo, com o sangue fervendo nas
veias, a do pescoço mesmo insistia em latejar. Minha mão direita doía,
enquanto pressionava com força a maçaneta, na vã tentativa de canalizar
meus desejos tempestuosos.
— Eu estou aqui, filho. — O tom rouco da voz dele soou bem
próximo dos meus ouvidos. — Precisa de alguma coisa?
Pensei em dizer que estava farta das traquinagens de Benjamin,
quando de repente senti uma leve pressão na nuca, e ao virar o rosto, notei
os dedos grossos do meu ex-marido emaranhados em meu cabelo, preso em
um rabo de cavalo estiloso.
— O que pensa que está fazendo? — A voz saiu voz fraca e trêmula,
mas cheia de indignação. Jean-Luc ainda tocava nos fios, sentindo a textura
deles, e por alguns instantes reconheci o mesmo brilho ardente no olhar,
mas que logo deu lugar ao vazio e à mais pura indiferença.
Tudo não passou de uma faísca de emoção.
Fugaz e passageira.
— O que você fez com seu cabelo, Marie? — Ele se referia ao fato
de eu ter escurecido os fios, os deixando castanho-escuro, quase preto.
— Você sabe que o meu trabalho exige que eu mude o visual,
quando o contrato das marcas assim o exige. Por um acaso não gostou? —
O nervosismo me fez engasgar, e praticamente atropelar as palavras.
— Sendo bem sincero, eu prefiro o tom natural, mas logo me
acostumo...
Nós dois sustentamos o olhar um do outro, como se um imã
gigantesco nos detivesse, com a sua força esmagadora.
O silêncio foi quebrado pela voz trêmula do nosso filho, que nos
questionou:
— Vocês estão falando de mim, não é?
— Non, de modo algum, querido. Por que pensaria assim?
— Você não quer mais passar as férias comigo, é isso? — perguntou
Jean, encostado no vão da porta.
— É claro que eu quero, papa! Mas a maman bem que podia ir com
a gente...
— Nós já conversamos sobre isso, Ben. — O meu corpo tremia
involuntariamente à medida que a irritação aumentava.
— Très bien... — O menino parecia conformado a princípio, mas
uma ideia lhe ocorreu, de repente. — Posso pedir uma coisa antes, por
favor? Quero que vejam o meu novo experimento! — Algo me dizia que ele
só estava tentando ganhar tempo.
— Benjamin, saia já deste quarto. — Eu me esforcei ao máximo
para não elevar meu tom de voz. — Você sabe muito bem que seu pai e eu
não temos a noite toda.
— Não vejo problema algum em atender a vontade dele, chérie. Se
esta é a única maneira de fazê-lo sair do quarto, então que assim seja. —
Uma expressão matreira se formou no rosto másculo, indicando claramente
que ele se divertia às minhas custas.
— Está bem, Benjamin, você venceu... Agora, abra a porta, s’il te
plaît.
— Mas só podem entrar no laboratório, se estiverem de mãos dadas.
— Agora chega! Você já está exagerando! — Bati nervosa com a
mão espalmada contra a porta. — Mon Dieu! — murmurei, encostando a
testa na madeira, e admitindo a derrota em ter que me submeter aos seus
caprichos.
— Estou sentindo um cheiro de medo no ar...
Eu me virei imediatamente na direção dele, com meu corpo
prensado contra a porta, a frieza da madeira provocou um arrepio até a base
da coluna.
O calor emanado por aquele homem penetrava por cada poro da
pele.
Se o meu ex-marido soubesse o efeito causado pela respiração dele
se mesclando à minha, cada vez mais curta e ofegante, já teria roubado o
pouco do ar que me restava dos pulmões com um beijo profundo e duro.
— Tem medo de terminar o que fizemos da última vez? — A voz
rouca e o tom presunçoso com que ele se dirigiu a mim provocou logo uma
umidade entre as pernas, o clitóris reagiu instantaneamente, pulsando tão
forte quanto às batidas do meu coração.
O som da chave girando na fechadura me tirou daquele estado de
embriaguez envolvente, e a porta finalmente se abriu. Tive que me segurar
no batente da porta para não cair, enquanto respirava bem fundo para
retomar o fôlego.
De repente, Jean deu o maior sorriso do mundo, avançou na direção
do filho, colocou o seu braço em volta dele e o puxou para mais perto de si.
— Por que não mostra logo o que aprendeu nas aulas de ciências?
— E depois que se voltou para mim, ele estendeu sua mão e completou: —
C’est parti?
Hesitei por alguns instantes, mas acabei segurando a mão estendida,
com ar despreocupado e uma naturalidade que, definitivamente, estava
longe de sentir.
Benjamin recebeu o laudo conclusivo de superdotação, com apenas
dois anos e meio, coincidindo com o período da mossa mudança para os
Estados Unidos.
Ele foi aceito recentemente na que era considerada a mais restrita
sociedade de alto QI do mundo. Ele nunca escondeu o desejo de se tornar
um cientista, e já frequentava a escola primária, com boas perspectivas de
ingressar numa universidade, tão logo alcance dez anos de idade.

Meu ex-marido e eu acompanhamos a experiência no


minilaboratório, — uma sala vazia e interligada ao quarto, servia de espaço
para o laboratório funcional — equipado com aparelhos de análises
químicas e biológicas, permitindo ao nosso filho aplicar o conteúdo teórico
aprendido em sala de aula, mas com toda segurança necessária.
Ele apertou minha mão levemente antes de entrelaçar nossos dedos,
um gesto que eu reconhecia tão bem, demonstrando o quanto nós dois
estávamos física e emocionalmente conectados.
As minhas palmas àquela altura já grudavam de tensão e
nervosismo.
Benjamin parecia concentrado na experiência, com seu jaleco, luvas
e óculos de proteção, e manipulando tubos de ensaio, bicos de Bunsen e
béqueres que soltavam uma fumaça colorida.
— Et voilá! — disse ele, assim que finalizou o experimento. —
Gostaram?
Jean-Luc e eu respondemos que sim, ao mesmo tempo em que o
aplaudimos.
— Que bom que gostaram! — Meu pequeno gênio sorria
visivelmente orgulhoso de si mesmo. — Agora sim, nós podemos voltar pra
Paris, papa.
Jean-Luc então cruzou os braços sobre o peito largo, e estreitou os
olhos para mim, com uma expressão impenetrável no rosto.
— Perfeito, mas antes eu preciso tratar um assunto importante com
sua mãe.
Evitei a todo custo ficar a sós com o pai do meu filho.
A pior coisa que podia ter acontecido foi Jane ter entrado de férias
um dia antes, me deixando à própria sorte.
— Eu vou te esperar lá embaixo, papa! — Ben saiu saltitando todo
serelepe.
Jean-Luc esperou o menino sair para se posicionar diante de mim. A
expressão áspera e a frieza do seu olhar me assustaram.
— É isto o que ele quer ser quando crescer? — perguntou ele,
apontando diretamente para a bancada dos instrumentos. — Algum tipo de
cientista?
— Você só soube disso agora? — perguntei, piscando visivelmente
surpresa.
— Eu sempre achei que fosse algo passageiro... Quando eu tinha a
idade dele, eu cismei de ser astronauta, mas isso não quer dizer que eu me
tornaria um astronauta.
— Estou pensando em transferi-lo para outra escola no próximo
ano, voltada exclusivamente para crianças superdotadas. Só que ela está
situada em Los Angeles.
— Você também pensou em saber minha opinião a respeito disso, ou
não? — Um brilho de desconfiança cruzou o olhar dele naquele mesmo
instante. Ele cruzou os braços sobre o peito, antes de completar: — Mas
seja como for, eu tenho outros planos para ele.
— Ah, deixe-me adivinhar: Quer torná-lo seu sucessor no grupo de
mídia?
— Évidemment. Minha educação empresarial começou quando eu
tinha nove anos de idade, na mesa do café da manhã. Achou que com
Benjamin seria diferente?
— Não pode forçá-lo a dedicar uma vida inteira aos negócios da
família.
Ele então agarrou meu queixo com uma das mãos, impondo uma
força gentil.
— Não ouse medir forças comigo, chérie. — Sua voz soou grave,
baixa e ameaçadora. Engoli em seco, tentando desfazer o grande nó que se
formava na garganta.
— Eu sei muito bem do que você é capaz, Jean. Já me deu provas
suficientes disso, lembra-se? — Afastei bruscamente o braço dele e lhe dei
as costas, pisando duro em direção à porta, que para minha surpresa estava
trancada por fora. — Merde!
— O que houve? — perguntou ele, vindo atrás de mim.
— Nosso filho nos trancou aqui dentro, deu para entender? —
Tentei forçar a maçaneta seguidas vezes, mas sem sucesso. Comecei a gritar
na esperança de Benjamin ou a faxineira abrir a maldita porta, mas não
houve resposta alguma. — Mon Dieu!
— Achei que tinha superado o medo de ficar sozinha comigo. — Só
de ouvir aquele riso cruel, e carregado de cinismo daquele homem fez o
sangue subir à cabeça e um instinto feroz se apoderou, me cegando
completamente.
Avancei na direção de Jean-Luc e comecei a empurrá-lo com o
máximo de força possível, mas a pressão exercida não surtiu nenhum efeito
contra a estrutura rígida de seus músculos; ele nem sequer moveu um
centímetro daquele corpo gostoso.
— Allez, Marie! — disse ele, estufando o peito e estendeu os braços.
— Desconta logo toda sua raiva em mim. Não é isso o que eu mereço? —
Quando eu levantei o rosto, notei seus olhos escuros marejados com
lágrimas reprimidas, originárias da raiva e do rancor que ainda nutria por
mim.
— Não sei o que deu em mim, Jean, me desculpe... — murmurei,
passando a mão trêmula pelo cabelo, tomada por um inquietante sentimento
de culpa e remorso.
Tudo o que eu mais queria era que meu ex passasse seu braço em
volta da minha cintura e me puxasse para junto de si de tão necessitada por
um mísero abraço eu estava.
Sem prévio aviso, Jean deu um passo à frente, enquanto que eu
involuntariamente dei um passo para trás, sentindo as costas se chocando
com força contra a porta.
Parecia que minha fantasia estava prestes a se tornar realidade, pois
um dos braços dele serpenteava minha cintura, enquanto um de seus joelhos
separava as pernas já moles de desejo. Ele passou a se esfregar lentamente
por entre a fenda do vestido, a ereção serviu de estímulo para a lubrificação
fluir abundante, encharcando a calcinha.
Um gemido gutural escapou bem no fundo de sua garganta.
Se ele terminasse o que começou da última vez, aquele seria o meu
fim. E, definitivamente, eu não estava preparada para ter uma recaída com
meu ex-marido.
A boca entreaberta dele pairava a poucos centímetros da minha. Ele
passou a roçar meu lábio inferior, depois o superior, só para prolongar
aquela tortura deliciosa.
— Aposto que está há um bom tempo sem fazer sexo. — Um
sorriso presunçoso despontou no canto dos lábios grossos. — Seu corpo já
fala por si só, Marie.
— Você quer que eu admita, não é? Pois bem, eu sinto abstinência
de você. Satisfeito?
— Putain! — Ele praguejou, dando tanta ênfase e profundidade à
voz, que meu coração disparou. — É maravilhoso constatar o poder que eu
exerço sobre você, chérie...
— E quanto a você? Ainda me despreza, mas sempre engole o
orgulho, quando o tesão fala mais alto. Por que não admite que cometeu o
maior erro de sua vida?
Como eu gostaria de poder sentir seu rosto colado ao meu, a voz
revelando uma rouquidão sexy, enquanto dizia junto ao ouvido que jamais
conseguiu me esquecer. Até me fazer acreditar, mesmo que por um instante,
na desculpa de que jamais houve outra mulher na vida dele.
— Meu maior erro foi ter amado você, Marie. — A voz dele saiu
tão cortante quanto uma lâmina afiada, causando um profundo rasgo no
peito.
Nada me preparou para ouvir novamente aquelas malditas palavras.
Os meus olhos ardiam com lágrimas reprimidas, mas eu as sufoquei,
piscando diversas vezes.
— Se tocar em um fio de cabelo meu, eu juro que dou um grito. —
Senti as bochechas queimarem ao notar o brilho lascivo inconfundível de
seus olhos castanhos, que se mantinham totalmente fixos em mim.
Jean apenas soltou um riso de escárnio, ignorando minha ameaça.
— Precisa mesmo sair assim tão provocante? — perguntou, com
uma risadinha irônica. — Como se tivesse uma placa entre os seios escrito:
“Estou disponível?”.
— Até onde eu sei, você perdeu o direito de dar palpite sobre minha
vida — retruquei, um tanto quanto petulante. — Então desfaça este sorriso
insolente do rosto, por favor?
— Para quem dizia me amar, até que você superou rápido...
— Você é orgulhoso demais para reconhecer o vazio que sente,
Jean. Não pensou nas consequências quando decidiu se vingar de mim, mas
ainda chegará o dia em que verei você prostrado aos meus pés, implorando
por perdão.
Uma mudança se operou de imediato no semblante dele.
Parecia desprovido de orgulho e arrogância, a ponto de deixar
transparecer alguma consternação no olhar. Observei o pomo de adão subir
e descer, a boca sensual se entreabriu, mas nenhum som saiu dela.
De repente, o som de uma chave girando na fechadura cortou o
silêncio, e a porta se abriu rapidamente, revelando Benjamin parado ali
parecendo confuso.
— Pelo visto vocês brigaram... Achei que fariam as pazes...
— Nós dois não brigamos, Ben. De onde tirou isso?
— Mas por que estava chorando, maman? — Como sair de uma
saia justa, com uma criança de QI extremamente elevado?
— Acho melhor a gente se apressar — ponderou Jean, consultando
o seu Rolex. — Se despeça logo da sua mãe. — Ele esperou eu me abaixar,
para dar um longo abraço no garoto, e quando eu me levantei, se adiantou
até mim e encostou os lábios no ouvido, dizendo: — Não vai faltar
oportunidade para retomar nossa conversa. À bientôt.
Eu estava furiosa comigo mesma por quase ter fraquejado, mais
uma vez.
Como se não bastasse o meu ex-marido me odiar, havia outro
homem que não mediu esforços em me destruir: Patrick Dupont.
Durante anos, eu não consegui contar para ninguém — nem mesmo
aos meus familiares e amigos próximos — por que eu deixei a agência New
Look Models.
Ficaria terrivelmente sozinha naquela casa pelos próximos trinta
dias.
Não pude evitar a sensação ruim se formando em meu peito.
Observei Jean-Luc se afastar carregando nosso pequeno gênio nos
braços, e senti como se já o tivesse perdido para sempre.
Parte 1
Capítulo 2

Marie-Claire

Paris, França.

Mais de 10 anos antes...


(Passado)

Nasci e fui criada em Lisses, um subúrbio modesto de Paris,


localizado a cerca de 40 quilômetros do distrito comercial da capital
francesa.
Algumas escolas tradicionais funcionavam em regime de semi-
internato, com intervalo de uma hora para o almoço e breves pausas entre as
aulas. E foi justamente em um desses intervalos que minhas colegas do
Liceu Henri-IV e eu percorremos o enorme conjunto de lojas francesas, as
Galeries Lafayette Haussmann.
O local ficou conhecido mundialmente por oferecer uma variedade
de produtos de luxo, embora a loja também tivesse um andar inteiro
destinado às marcas mais populares, com peças em promoção.
Andei lentamente entre as araras de roupas, roçando a ponta dos
dedos nos tecidos, para sentir a maciez e o caimento de cada um deles. Eu
adorava aquele lugar. Qualquer entusiasta pelo mundo da moda perderia a
noção do tempo, apenas admirando as coleções das grifes mais
conceituadas do mundo.
As meninas tinham condições de sair da loja com as mãos cheias de
sacolas, e quanto a mim, eu pensei em inventar algum pretexto para não
gastar nada. Uma delas inclusive já fez piadas maldosas, devido a minha
condição de aluna bolsista. E por falar em Léa Bellucci, eu arrisquei um
olhar na direção dela, parada diante de um espelho de corpo inteiro, usando
um conjunto de blazer e saia tweed na cor rosa.
Por pouco eu não resisti ao impulso de revirar os olhos, e voltei
minha atenção para o vestido longo na cor amarela, um modelo tomara que
caia com detalhes recortados na cintura e bem ajustado ao corpo, deixando
parte do abdome à mostra.
— Este vestido da maison Valentino é esplêndido mesmo. — Uma
das atendentes comentou de forma casual, me tirando abruptamente dos
meus devaneios. — Por que não experimenta?
— Oh, queira me desculpar, mas eu não acho que seja necessário —
murmurei, meio sem jeito. — Eu só estou acompanhando as minhas colegas
do Liceu...
— Você não pode deixar nossa loja, sem antes se olhar no espelho e
ver o quão deslumbrante ficaria nele. — Ela me interrompeu. Havia um tom
de urgência na voz. — E sendo bem sincera, eu acho que este uniforme
escolar esconde um corpo incrivelmente perfeito. Nunca pensou em ser
modelo?
— Eu... Bem... — Comecei a gaguejar, incapaz de articular alguma
palavra, mas a mulher me olhava com tanta expectativa, que me sentiria
mal em recusar a sugestão dela. — Já me fizeram essa mesma pergunta
antes, mas eu sempre falo que ser modelo é algo que jamais me passou pela
cabeça.
A atendente me lançou um longo olhar de cima a baixo, avaliando a
minha aparência, sem a menor cerimônia.
— Aparenta ter mais idade, mas ainda é uma adolescente. Quantos
anos você tem?
— Eu tenho 15 anos — respondi, abrindo um meio sorriso, sem
graça.
— Muitas meninas começam a desfilar nessa faixa etária —
comentou ela, ao erguer o braço para pegar o cabide da arara, e logo em
seguida inclinou a cabeça, esboçando um sorriso amável. — Me
acompanhe, por gentileza. Eu vou te mostrar o provador.
Quando eu fiz menção de protestar, a simpática atendente me puxou
pelo braço, andando depressa até os fundos, o que despertou a atenção das
minhas colegas, que se entreolharam, confusas, e começaram a cochichar
entre si.
Ela puxou a cortina do provador para o lado com uma das mãos,
enquanto segurava o vestido, com a outra.
— Pode ficar à vontade... — A atendente pareceu hesitar por um
instante, ao franzir a testa. — Como você se chama mesmo? — perguntou,
enquanto estendia o cabide em minha direção.
— Meu nome é Marie-Claire...
— Eu me chamo Amélie, então se precisar de mim é só chamar.
— Merci. — Eu agradeci, timidamente, antes de entrar no provador.
Tive o maior cuidado na hora de colocar o vestido, com receio de
arrebentar a costura daquela peça tão delicada, e depois girei de um lado
para o outro, diante do grande espelho, conferindo se estava tudo em ordem.
Nada mal para uma garota franzina e de pernas compridas. —
Pensei em voz alta, ao inclinar a cabeça para o lado, bastante impressionada
com minha imagem.
Alcancei uma fase da vida em que tinha uma relação de amor e ódio
comigo mesma.
Sempre me considerei uma menina sem muitos atrativos, embora as
pessoas costumassem elogiar minha aparência angelical, além do jeito
meigo, recatado e dócil.
O meu rosto mesmo era uma contradição, com um misto de traços
marcantes e suaves, podendo tanto suscitar inocência quanto um ar de
“femme fatale”. Meu cabelo era longo e liso de tonalidade castanho-claro,
os olhos azul-esverdeados a depender da luminosidade, se destacavam por
serem grandes e expressivos, com cílios longos e a sobrancelha grossa, mas
levemente arqueada.
Eu olhava meu reflexo no espelho, mas não conseguia enxergar o
que havia de belo em mim. Talvez perdi um pouco da capacidade de ver a
beleza nas coisas mais singelas, desde que perdi a minha mãe para o câncer.
Ela vinha lutando contra a metástase, e precisou ser internada novamente
para fazer novas cirurgias, mas infelizmente não resistiu e veio a óbito.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao recordar da minha mãe, que
era uma mulher muito batalhadora, e costurava em nossa casa para ajudar
meu pai com as despesas. Marion Bernard não conseguiu realizar o sonho
de montar seu próprio ateliê, mas se sentia orgulhosa por ter transmitido
para mim seus conhecimentos de corte e costura.
Já fiz algumas peças de roupas, mas elas nem se comparavam com o
que ela produzia.
Eu estava tão distraída, que acabei levando um susto ao ouvir a voz
de Amélie.
— Ma chérie[1], precisa de algo mais?
— Não, Amélie, não será necessário... — Passei rapidamente as
costas da mão pelo rosto, para me recompor antes de abrir a cortina. — Eu
acabei de colocar o vestido.
A atendente cruzou os braços, enquanto me olhava de cima a baixo,
trazendo no rosto uma expressão de satisfação genuína.
— Estou bastante impressionada, acredite!
— Você estava certa quando disse que o vestido tinha um caimento
perfeito.
— Mon Dieu! Aí está você! — exclamou uma voz feminina, bem
atrás de mim.
Eu reconheci aquela voz irritante e me virei bruscamente, respirando
bem fundo, para suportar algum comentário maldoso que apenas Léa
Bellucci era capaz de fazer.
— As meninas e eu já estávamos de saída... — O comentário
morreu em seus lábios, dando lugar ao sorriso de puro desdém, quando ela
me avaliou dos pés à cabeça. — Faz ideia de quanto custa esse vestido,
Marie?
— Eu só fiquei curiosa para saber se ficaria bem em mim... Apenas
isso.
Léa pareceu ter ignorado o que eu disse, e estreitou os olhos para
Amélie, com uma expressão de frieza.
— Não desperdice o seu tempo com ela. Existem clientes lá fora
com condições de pagar por ele.
O efeito produzido pelas palavras da garota foi quase instantâneo: o
meu rosto se contorceu e ficou muito vermelho, como se eu tivesse acabado
de levar uma bofetada no rosto.
Abri e fechei a boca várias vezes, mas nenhum som saiu dela, dando
lugar a uma espécie de bolo na garganta, que insistia em me sufocar,
dificultando a passagem de ar para os pulmões, ao mesmo tempo em que
lágrimas quentes e grossas brotavam a ponto de os olhos arderem.
Levantei a barra do longo vestido, e quando fiz menção de dar as
costas para seguiu às pressas para a cabine, a atendente me impediu, ao
segurar firme o meu braço.
— Venha comigo! — ordenou a atendente, enquanto me conduzia
em direção à saída do provador. Depois ela se inclinou para mais perto de
mim, baixando o tom de voz. — Não dê ouvidos a ela, ma chérie. As suas
amigas precisam ver o quanto está deslumbrante.
As quatro meninas me encararam, boquiabertas, em plena área
central da loja.
Eu me enchi de coragem, e fui ao encontro delas, movendo
ritmicamente as pernas como se estivesse desfilando, sem me importar com
os olhares curiosos de clientes e de vendedores, ou com o fato de andar
descalça. De repente, as minhas colegas começaram a saltitar como uma
criança, batendo palmas e gritando “Uh, là là!” em uníssono.
Um leve sorriso se delineou nos meus lábios, mas ele logo se
desfez, quando notei um homem me observando, parado em frente à vitrine
pelo lado de fora da loja.
Voltei correndo para a área dos provadores, mas acabei me
esbarrando em Léa.
— Oups... désolée! — Eu murmurei um pedido de desculpas
apressado, antes de desaparecer de vista, tamanho o meu constrangimento.
Uma vez diante do espelho, eu inclinei o corpo para frente, apoiando
as mãos nos joelhos e respirei bem fundo para retomar o fôlego, quando de
repente meus olhos se detiveram no cabideiro.
O meu uniforme escolar, composto por uma saia pregueada azul-
marinho, camisa branca, além do cardigã, já não estava mais pendurado
nele. Até mesmo o sapato fechado de salto baixo que deixei no canto
simplesmente sumiu. Desapareceu.
— Mon Dieu! — murmurei, com a voz trêmula.
Abri minha mochila depressa, mas não senti falta de nenhum dos
meus pertences pessoais, o que trouxe certo alívio em meio àquela situação
inusitada.
Coloquei a alça da mochila no ombro e atravessei o corredor,
olhando de cabine em cabine; algumas ainda estavam ocupadas, mas não
encontrei nada, nem mesmo nas que estavam livres. Pensei em relatar o
ocorrido à Amélie, mas eu não a encontrei em parte alguma.
— Perdeu alguma coisa, Marie? — perguntou Léa, de algum ponto
atrás de mim.
Ela acenou um adeus, enquanto equilibrava algumas sacolas no
braço e saiu rapidamente da loja, sem olhar para trás.
— Putain! — xinguei, baixinho, sentindo o rosto queimar,
convulsionado pela raiva.
Tentei correr atrás dela, mas nem bem alcancei a saída, o alarme
começou a disparar e um dos seguranças se prostrou em minha frente,
bloqueando a passagem.
— Eu preciso alcançar aquela garota que saiu agora a pouco... —
Gesticulei nervosa, diante do homem que mais parecia uma muralha de
músculos. — Ela pegou meu uniforme no provador e o escondeu de mim de
propósito.
— Mademoiselle não pode sair da loja sem antes comprovar que
pagou pela peça.
— Mas eu pretendia devolver esse vestido assim que recuperasse
minha roupa. — Tentei me desvencilhar, mas ele continuou segurando
firmemente o meu braço. — Por favor, acredite em mim... — Eu supliquei
quase prestes a cair no choro.
— Preciso comunicar o fato à gerência, mademoiselle — Usou um
tom de voz baixo, mas suficientemente incisivo. — Portanto, me
acompanhe para o seu próprio bem.
O segurança fez menção de me levar para dentro da loja, quando
subitamente um homem apareceu, se colocando à nossa frente. Eu
reconheci de imediato o estranho que me observava pelo lado de fora da
vitrine, poucos minutos antes.
Reparei bem no sujeito e pensei que devia ter por volta de trinta e
poucos anos de idade, com sua estatura alta, os cabelos curtos e lisos já
ficando grisalhos nas têmporas, o que lhe conferia certo charme, embora
houvesse algo nele que fazia os pelos do meu corpo se arrepiarem. Talvez
fosse aquela confiança tipicamente masculina ou o ar de superioridade,
causando a impressão de ser temido e obedecido pelos outros.
Senti meu coração parar de bater por uma fração de segundo até
voltar a acelerar de forma incontrolável.
— Pardon, monsieur. — Ele se desculpou pela intromissão, e sorriu
para nós dois, mostrando seus dentes brancos e perfeitamente alinhados. —
Esta jovem não tem culpa se a amiga lhe pregou uma peça.
— Mas ela tentou sair da loja sem pagar pelo vestido, monsieur.
Eu engoli em seco, e passei a encarar o segurança, com um misto de
surpresa e incredulidade, diante de tamanho absurdo.
— Jamais de la vie! O que queria que eu fizesse? — O meu maxilar
se enrijeceu e senti uma onda de indignação irracional me envolver por
inteiro. — Queria que eu saísse praticamente pelada?
— Eu mesmo vou resolver esta situação — informou o
desconhecido, indicando com um gesto que eu deveria acompanhá-lo até o
interior da loja. — Fique calma, mademoiselle. — Ele me ofereceu um
sorriso encorajador, o que de certa forma me tranquilizou um pouco. —
Conversarei com a gerente, e enquanto isso escolha alguma peça de roupa
que queira vestir.
— Mas não posso pagar... Eu nem mesmo tenho cartão de crédito,
monsieur.
— Considere isso um presente. — Ele estreitou os olhos e notei a
sobrancelha se arqueando em um arco perfeito, enquanto sua boca se
curvava ligeiramente em um sorriso enigmático.
— Non, merci. — Tentei recusar, mas ele abanou uma mão e se
adiantou rapidamente até os fundos, me deixando ali parada e sem saber o
que fazer.
De repente, comecei a suar frio e o ar condicionado potencializou
mais a abrupta reação do meu corpo, que estremeceu involuntariamente.
Eu cresci ouvindo dos meus pais para jamais aceitar nada de
estranhos.
Uma vez do lado de fora da Galeries Lafayette, o desconhecido se
virou para mim e estendeu uma sacola de papel em minha direção.
Eu balancei a cabeça vigorosamente, em sinal de recusa.
— Não posso aceitar presentes, assim, nós nem nos conhecemos.
— Mon Dieu, é verdade! — concordou ele, estapeando a própria
testa, o que por pouco não me fez rir. — Ainda não me apresentei
devidamente, mademoiselle. — Então, ele estendeu a mão livre para um
cumprimento formal, com um sorriso estampado no rosto. — Eu me chamo
Patrick Dupont. Muito prazer.
Eu me permiti relaxar um pouco, antes de revelar a ele o meu nome.
— Enchanté, monsieur. Eu me chamo Marie-Claire Bernard
Leblanc. — Aceitei o cumprimento dele. O aperto de mão era firme, porém
caloroso. Eu só não esperava que ele aproveitasse o gesto para passar meus
dedos pela alça da sacola.
— Agora que já nos conhecemos, não há razão para recusar o
presente.
— Esta roupa que comprou já é o suficiente para mim, monsieur. —
Baixei os olhos para o conjunto de blazer e saia em tweed na cor rosa, e que
por sinal era o mesmo que Léa Bellucci comprou.
— De onde veio este conjunto existem muitos outros, chérie. Eu
conheço estilistas renomados que podem disputar entre si a oportunidade de
ver uma bela jovem desfilando suas luxuosas criações.
— Com... Como assim? — Eu murmurei, piscando várias vezes,
sem saber ao certo aonde ele queria chegar com aquele comentário. Então,
inclinei a cabeça ligeiramente para o lado, a testa franzida de desconfiança.
— O que quer dizer com isso?
Patrick enfiou a mão no bolso do blazer, tirou um cartão de visitas
de dentro dele, e o estendeu em minha direção. O pequeno cartão continha
informações como endereço, e-mail e website, além do telefone para
contato, possivelmente da empresa dele.
— Eu sou cofundador da New Look Models, uma agência de
modelos sediada aqui em Paris, mas também com escritórios em cidades
como Miami, Nova York, Milão e Londres.
— Eu bem que desconfiei que estivesse me observando de longe, só
não sei quais são as suas reais intenções... Quer dizer que agora estou em
dívida com monsieur?
— Não estou te cobrando absolutamente nada. Eu realmente fiquei
impressionando com sua desenvoltura ao desfilar naquela loja. Também
possui outros atributos importantes... Garanto que terá um futuro muito
promissor no mundo da moda.
— Mas eu sou apenas uma estudante, monsieur. Acabei de ingressar
no lycée, e ainda nem decidi qual carreira eu devo seguir...
— Quanto a isso pode ficar tranquila. Não precisa interromper os
estudos. — E dizendo isso, ele consultou as horas no refinado relógio de
pulso. — Preciso ir agora, mas insisto para que reflita a respeito, pelo
tempo que quiser. Pode até checar as informações no site, ou mesmo fazer
uma ligação para se certificar de tudo.
Alisei distraidamente com o dedo o papel espesso do cartão, sem
deixar de encarar Patrick longa e friamente, como se pudesse sondar sua
alma. De fato, o homem aparentava certa firmeza e autoridade na maneira
de agir e ainda falava como um legítimo homem de negócios.
— Como você ainda é menor de idade, precisa apresentar uma
autorização dos seus pais ou responsáveis. — Ele voltou a falar, me tirando
abruptamente dos meus devaneios. — Você mora aqui mesmo, em Paris? —
Eu apenas me limitei a assentir com a cabeça, em um movimento tão rápido
que era quase imperceptível. — Então, converse com seus familiares, e
quando tiver uma resposta é só entrar em contato.
— E... Eu nem sei como agradecer, monsieur... — gaguejei,
constrangida, abaixando a cabeça para que ele não visse os meus olhos
marejados de lágrimas.
— A melhor forma de demonstrar sua gratidão é aceitando integrar
o casting da New Look Models, uma das principais agências de modelos do
país — disse ele, mal contendo a empolgação na voz. Patrick realmente
havia enxergado algum potencial em mim, e ter chegado àquela constatação
me emocionou, sobremaneira. — À Bientôt.
Ele se despediu, com um aceno de cabeça e saiu andando em
direção ao manobrista, que já o aguardava com a porta do seu sedã de luxo
aberta.
Jamais imaginei que enfrentar uma situação constrangedora e
humilhante em uma loja de departamentos pudesse me proporcionar
infinitas possibilidades.
Capítulo 3

Marie-Claire

O meu pai, Jacques Leblanc, e eu vivíamos em um pequeno


apartamento, a alguns quarteirões do restaurante onde ele trabalhava há
anos como sous chef, subchefe.
Ele sempre foi um homem muito habilidoso na cozinha, então cresci
cercada pela profusão de sabores, aromas e texturas de pratos deliciosos
como pain au chocolat[2], ratatoiulle, entre outros, mas uma de suas
maiores especialidades era fazer perna de pato à moda antiga.
A gastronomia francesa apesar de ser reconhecida como uma das
melhores do mundo, era um setor altamente estressante, onde apenas uma
pequena parcela de profissionais conseguia receber acima do salário
mínimo, trabalhando até por volta de 21h30, mesmo nos finais de semana.
Eu sempre enxerguei meu pai como um ídolo, e que desde os treze
anos de idade trabalhava incansavelmente para aprimorar suas habilidades
culinárias, sempre se colocando a serviço dos outros e se mantendo fiel à
sua essência. Agora que Jacques alcançou a meia idade, ele tem se
questionado muito sobre sua trajetória, alegando que tem se sentido cada
vez mais sobrecarregado, subvalorizado e mal pago.
Os anos passaram, a maior parte deles lutando para manter uma
condição de sustento digna para nossa família, e ele chegou à constatação
de que abrir seu próprio negócio, um bistrô na cidade, oferecendo um
cardápio refinado a preços relativamente acessíveis, parecia mesmo ser um
sonho distante.
Como filha única, eu passei a nutrir um senso de dever, me
dedicando com afinco aos estudos para no futuro poder retribuir tudo o que
meus pais fizeram por mim.
— No que está pensando, ma sucrette? — Jacques perguntou, me
tirando abruptamente dos meus devaneios. Ele costumava usar termos
carinhoso como “meu doce” ou “minha boneca”. — Mal tocou no Crème
Brûlée... — prosseguiu, com a testa franzida de preocupação. — Se estiver
preocupada por estar sem outro uniforme, du calme. Daremos um jeito
nisso até segunda-feira.
Meu pai era um homem alto e corpulento, calvo, a pele muito
branca com algumas marcas da idade já se fazendo notar no rosto redondo,
a barba quase totalmente grisalha e olhos escuros.
Tinha um temperamento difícil, mas era de uma bondade ímpar.
Não fosse aquele incidente na loja de departamentos ter ocorrido em
um dia de sexta, ele certamente já teria se apresentado na escola, exigindo
da direção alguma medida relacionada à má conduta da minha colega de
classe. Porém, o diretor sempre se eximia da responsabilidade de lidar com
situações de conflito fora do ambiente escolar.
— Agora também já nem importa mais, papa — falei, com um dar
de ombros. — Estou pensando seriamente em fazer uma pausa nos estudos
por um ano ou mais...
Jacques deixou os talheres caírem sobre o prato, provocando um
ruído irritante e desconcertante, tudo ao mesmo tempo.
— Oh, mon dieu! — Ele fez um gesto enérgico, com as mãos
levantadas. — Você ainda não tirou essa ideia da cabeça? Quer mesmo se
tornar modelo profissional?
— O senhor se recorda das vezes em que maman me pedia para
servir de modelo? — Ele me encarou confuso, mas se limitou a balançar a
cabeça, afirmativamente. Naquela época eu costumava andar pela casa
usando as roupas que ela costurava para mim ou para suas clientes, como se
estivesse desfilando. — Eu senti como se a minha autoconfiança tivesse
sido restaurada, quando experimentei aquele vestido — prossegui, mal
contendo a empolgação na voz. — É como se algo dentro de mim quisesse
se expressar livremente, sabe?
— A maneira como você fala já diz tudo, ma chérie. — E dizendo
isso, meu pai estendeu o braço sobre a mesa, cobrindo minha mão na dele, e
a pressionou de leve. — Seu jeito vibrante, energético, e apaixonado, sabe?
Bem típico de uma jovem sonhadora. Aliás, você me faz lembrar muito a
minha versão mais jovem.
— Oh, papa! — Eu murmurei, rindo e chorando ao mesmo tempo.
— Quem dera eu tivesse a sua força de vontade, a sua garra, a sua
determinação...
— Mas você também tem tudo isso dentro de você, mon amour.
— Sabe, eu estive pensando... será que eu posso ter sua permissão
para integrar o casting da agência New Look Models? — Eu me arrisquei
em fazer a pergunta, já com o coração batendo em ritmo acelerado, cheia de
expectativas.
A expressão de seriedade dele me deixou com a respiração
suspensa, ante a possibilidade de receber como resposta o que tanto temia
ouvir.
— Se isso é o que realmente quer para sua vida... — Meu pai baixou
a cabeça e cravou os olhos no prato, mas não a tempo de evitar que eu visse
o brilho das lágrimas se formando neles. — Minha menina cresceu tão
rápido, que até me esqueci de que teria que cortar o cordão umbilical da
dependência, mais cedo ou mais tarde. — Ele voltou a me encarar, e logo
notei um sorriso se insinuando nos cantos dos lábios grossos. — Mas eu
vou te apoiar, incondicionalmente, até o fim dos meus dias.
Afastei a cadeira depressa e dei a volta na mesa para lhe dar um
longo abraço.
— Espero que sinta orgulho de mim, pois eu jamais deixarei de
honrá-lo, papa. — Eu senti a minha garganta se fechar, ao dizer aquelas
últimas palavras.
— Você sempre foi motivo de orgulho para mim, chérie. — Ele
estreitou o olhar para mim, e, quando falou de novo, o tom era tão sério
quanto a expressão em seu rosto. — Mas ainda me preocupo muito com
você. Tenho medo de que seja submetida a situações que fogem do seu
controle, a ponto de não se sentir respeitada ou até mesmo segura...
— Eu não sou ingênua, papa. Eu sei me cuidar — assegurei,
tentando imprimir à voz a firmeza necessária, mas as palavras soaram
pouco convincentes até para os meus próprios ouvidos.
— Só vou me sentir mais aliviado, quando eu acompanhar o
processo de contratação junto aos responsáveis da agência.
— Tenho certeza de que monsieur Dupont vai te deixar a par de
tudo, papa.
Minutos depois, enquanto lavava a louça, escutei meu pai
conversando ao telefone com Patrick Dupont, e ambos combinaram o dia e
horário da reunião que definiria o meu futuro.
— Monsieur Dupont me pareceu ser um homem muito responsável,
mas só ficarei convencido disso quando ele e eu conversarmos cara a cara
— disse meu pai, assim que encerrou a ligação. Depois de hesitar por
alguns instantes, prosseguiu: — Falta pouco pra você realizar seu sonho,
chérie. — A voz dele falhou, os olhos já marejados de lágrimas. Então, ele
estendeu os braços para mim, em um convite silencioso para um abraço.
Não contive o impulso de me aconchegar nos braços dele, e fechei
os olhos, com o rosto apertado contra o peito largo, enquanto as lágrimas
umedeciam seu suéter macio. Somente quando parei de chorar e de soluçar,
eu me afastei um pouco, e esbocei um sorriso que expressava minha mais
profunda gratidão.
— Un immense merci, papa! — Ergui a mão para acariciar
suavemente o rosto dele, sentindo a aspereza da barba bem aparada.
— O que um bom pai deseja para sua filha? — perguntou, mais para
si mesmo e depois disparou, já chorando e rindo ao mesmo tempo: — Que
ela seja muito feliz, fazendo o que mais ama na vida!
Nós dois voltamos a nos abraçar, e ficamos um longo tempo em
silêncio.

Chegou o dia tão esperado da reunião com a equipe da New Look


Models.
Meu pai e eu tivemos que sair de casa muito cedo para pegar o trem
com destino à Paris, em um percurso que levava pouco mais de duas horas.
A agência se situava a poucos passos da Champs-Elysées, na
Avenida George V, considerada uma das vias mais luxuosas da cidade e que
junto com a Av. Champs-Elysées e Av. Montaigne, formavam o Triangle
d'Or – o Triângulo de Ouro, abrigando desde escritórios de advocacia,
passando por empresas internacionais até maisons da alta-costura.
Algumas pessoas passaram por nós, andando apressadas, mas não
deixaram de nos cumprimentar com um gesto de cabeça. Aquela
movimentação frenética dos funcionários pelos corredores era muito
fascinante, bem diferente do Liceu Henri-IV, um dos colégios mais
prestigiados e exigentes da França.
Uma vez no escritório da agência, eu me adiantei em direção à área
da recepção, com o coração batendo tão acelerado, que a impressão que eu
tinha era a de que os tímpanos seriam rompidos a qualquer momento.
— Bonjour. — A recepcionista nos saudou, com um sorriso
simpático nos lábios. — Sejam bem-vindos à New Look Models. Em que
posso ajudá-los?
— Bonjour. — Nós respondemos ao cumprimento, em uníssono,
mas esperei que meu pai prosseguisse por ser menor de idade. — Eu me
chamo Jacques Leblanc e estou acompanhando minha filha, para a reunião
com a equipe de monsieur Dupont.
— Oui! Un instant s’il vous plaît. — Ela voltou seu olhar para a tela
do computador, digitou algo rapidamente, e em seguida pediu nossos
documentos de identidade.
— Merci. — Meu pai agradeceu, e passou a observar o ambiente
com decoração minimalista, mas com móveis de alto padrão, aparentando
certo nervosismo.
A recepcionista pediu para nós aguardarmos que algum assistente
viria nos atender, mas conforme os minutos passavam, a expectativa e a
ansiedade aumentavam, consideravelmente.
Decidi pegar uma das revistas Vogue e cruzei as longas pernas,
balançando-as freneticamente para cima e para baixo, na tentativa de conter
a inquietação, quando de repente eu tive um sobressalto, ao sentir um toque
firme em meu ombro. Era apenas meu pai avisando que precisava ir ao
banheiro, algo que fazia com mais frequência, desde que iniciou o
tratamento contra a hipertensão arterial.
— Pode ir, papa. Estarei aqui, aguardando. — Ele se levantou da
cadeira e me beijou na testa, para depois desaparecer pelo corredor.
Depois de alguns instantes folheando outra revista de moda, eu já
me sentia um pouco entediada, então eu passei a observar um expositor
preso à parede, contendo o material fotográfico da agência. Havia
fotografias de modelos em preto e branco e coloridas, e embora algumas
delas retratassem homens, as mulheres ainda eram a maioria.
Todos eles tinham em comum o fato de serem majoritariamente
jovens.
Continuei vendo as fotos, até que uma voz grave e um pouco rouca
sussurrou em meu ouvido:
— Gostou do composites do nosso casting, ma chérie? — Assim
que eu me virei, eu dei de cara com meu futuro agente, Patrick Dupont.
Não sei se foi a maneira dele falar ou sua aproximação sorrateira,
que acabou causando uma espécie de embrulho no estômago.
Olhei para o corredor, na expectativa de ver meu pai, mas só avistei
um ou outro funcionário passando, apressadamente. Patrick acompanhou a
direção do meu olhar, e enfiou as mãos nos bolsos de sua calça chino preta,
fazendo um sorriso aflorar nos lábios finos.
— Estou bastante ansioso para conhecer o seu pai.
— Ele só foi até o toalete, mas já volta. — Tentei retribuir o sorriso,
sem jeito.
Patrick então se posicionou em frente ao mural e observou cada um
dos rostos de traços muito expressivos de seus jovens talentos, com o peito
estufado de orgulho.
— Muito em breve você verá o seu rosto estampado em um desses
cartões. — Ele comentou, estreitando os olhos em minha direção. Explicou
que o composite nada mais era do que um conjunto de cartões, contendo
informações como nome, idade além de medidas e demais características
físicas dos modelos. — A minha equipe seleciona alguns e envia para os
diretores de elenco, que atuam com moda ou publicidade.
Eu me limitei apenas a anuir com um gesto de cabeça, quando
recordei que a equipe dele enviou um e-mail com informações sobre o tipo
de roupa que eu deveria usar ao me apresentar na agência pela primeira vez.
Foi por isso que eu escolhi um look composto por calça jeans e uma
camiseta básica na cor preta, não passei nenhuma maquiagem no rosto, e
como eu lavei meu cabelo no dia anterior, eu o deixei solto e ao natural.
— Mon Dieu, aí está você! — Meu pai falou, bem atrás de mim. —
Por um momento eu pensei que estivesse em outro lugar.
— Bonjour, monsieur. — Patrick estendeu a mão direita para um
cumprimento, oferecendo a ele o seu melhor sorriso. — Presumo que o
senhor seja Jacques Leblanc, acertei?
— Oui, monsieur! — confirmou meu pai, enquanto agarrava a mão
do agente em um aperto firme. — Enchanté.
— Eu me chamo Patrick Dupont e sou fundador da New Look
Models, agência reconhecida por ter revelado algumas das modelos mais
bem pagas do mundo. — Ele consultou seu relógio e depois juntou os dedos
das mãos, formando um triângulo. — A minha sócia, Désirée Guillaume, já
está à nossa espera junto com nossa equipe. Peço que me acompanhem, por
gentileza.
As apresentações foram feitas, e cumprimentos foram trocados,
antes de todos se sentarem à mesa semioval que ocupava o centro da sala de
reuniões.
Patrick imediatamente tomou a palavra, informando que o modelo
de gestão da agência consistia em conversar com cada talento,
individualmente, e assim definir um plano de carreira que correspondesse às
expectativas de todos os envolvidos.
— A New Look Models atua como intermediária entre modelos e
clientes, ou seja, empresas e produtores que realizam desfiles, eventos,
campanhas publicitárias entre outros trabalhos. — Ele fez uma pausa,
olhando para sua sócia, antes de prosseguir: — Os ensaios serão realizados
aqui mesmo, ao longo dos próximos dias e Désirée ficará responsável por
coordenar a equipe composta por fotógrafo, maquiador e stylist, que
desempenham suas atividades dentro de um estúdio. E por falar nela...
Désirée, você gostaria de acrescentar algo mais?
— Eu primeiramente quero dar as boas-vindas à neoface Marie-
Claire Leblanc. — comentou a mulher, puxando uma salva de palmas.
Senti alguém me puxar na cadeira ao lado, e logo escutei a voz de
Patrick próxima ao ouvido, dizendo que aquele termo se referia aos
modelos em início de carreira.
Não sabia dizer ao certo se ele se sentou ao meu lado de forma
deliberada, mas decidi me esforçar ao máximo para aparentar naturalidade
diante dos profissionais da agência.
— Como sócia-diretora da New Look Models, uma das minhas
principais funções é prestar assistência aos modelos, principalmente às new
faces, que ainda não têm tanta familiaridade com o mercado. — Désirée
tornou a dizer, olhando fixamente para mim, o seu belo rosto iluminado por
um sorriso cordial. — Ainda que todos tenham talento, beleza e aptidão
natural para as passarelas ou para estrelar campanhas publicitárias, a gente
sempre vai enxergá-los como um diamante que precisa ser lapidado.
— Pardon, madame... — Jacques a interpelou, timidamente. — Eu
preciso de garantias quanto às condições de trabalho, já que minha filha
ainda é uma adolescente. Não quero que ela seja submetida a um regime de
trabalho em tempo integral, para não comprometer seus estudos.
— Nós entendemos sua preocupação, monsieur, mas o contrato já
prevê para ela uma jornada menor de trabalho, e tratamento especial ao
longo da carreira. — Patrick explicou, com sua expressão impassível. — As
viagens, por exemplo, se restringirão incialmente aos chamados "mercados
em desenvolvimento", como Tóquio, ou Singapura, que são mais abertos a
novos rostos.
Meu pai e eu trocamos olhares, a incerteza perpassava suas feições.
— Desenvolver um portfólio forte requer tempo, monsieur Leblanc
— complementou a sócia dele, modulando a voz para conquistar sua
confiança. — Nós trabalhamos incansavelmente para as meninas
adquirirem o máximo de confiança e experiência possível e, assim alçarem
voos ainda mais altos.
— Eu não tenho a menor dúvida de que sua filha será disputada
pelos designers mais renomados, tão logo eles coloquem os olhos nela... —
Patrick disse, enquanto tocava suavemente o meu braço. Por mais que o
toque tenha sido rápido, eu quase dei um pulo, como se tivesse acabado de
levar um choque.
A reação imediata dele foi recolher alguns papéis que estavam sobre
a mesa.
— Monsieur Leblanc e eu precisamos discutir ainda os termos do
contrato, e enquanto isso, Désirée pode mostrar à Marie Claire o que
acontece nos bastidores, durante o passeio pela agência.
— Sendo assim, os demais já podem voltar para suas funções... —
comentou a sócia-diretora, ao pegar seu celular e o iPad, e depois se
levantou da cadeira. Ela só voltou a falar, quando nós duas subimos a
escadaria, com seu mármore branco finamente polido, juntamente com
outros integrantes da equipe. — Você vai se reportar a mim, assim como
todas as novatas. Eu vou negociar os trabalhos mais importante, e os cachês
de vocês também.
Era reconfortante saber que meu trabalho seria supervisionado por
uma mulher.
— Já minha assistente vai tirar as suas medidas, e verificar o seu
nível de desinibição, personalidade e, também é claro, a desenvoltura nas
passarelas. — Désirée voltou a falar, e me vi obrigada a acelerar os passos,
para acompanhar seu ritmo.
— Ah, mas eu já estou acostumada a ser uma espécie de
“manequim” da vida real — comentei gesticulando, animadamente, e já
nem parecia mais a garota tímida de minutos atrás. — A minha mãe em
vida era costureira e me pedia para experimentar muitas peças de roupa.
Não foram poucas as vezes em que fui picada por alfinetes, acredita?
Ela se limitou apenas a sorrir, balançando a cabeça de tempos em
tempos.
Conforme as horas passavam, eu me senti mais à vontade naquele
ambiente dinâmico e agitado.
A equipe de Désirée tirou as minhas medidas — busto, cintura e
quadris, se certificando de que eu tinha 1,75 m de altura, com manequim
entre os tamanhos 34 e 36. Houve uma sessão de fotos, acompanhada de
perto pelo meu pai, para compor o chamado book profissional, uma vez que
era por meio dele que os clientes faziam uma pré-seleção das modelos na
hora de contratar para um desfile, editorial ou campanha publicitária.
Depois foi a vez do treinamento individual de passarela, utilizando
saltos altos que cabiam perfeitamente em mim, possibilitando que eu
andasse de um ponto a outro da pista com facilidade. Fui instruída a
caminhar a passos largos, mas sem pressa, movendo levemente os braços e
com as mãos relaxadas. Não pude mover muito os quadris, o movimento
deveria se limitar apenas às pernas, mantendo os ombros relaxados, mas
pisando no chão com confiança e estilo.
Durante o intervalo, o meu pai se aproximou para falar comigo. A
presença dele foi fundamental para elevar minha autoestima.
— Vejo que está se saindo muito bem, ma sucrette! — Ele falou alto
o bastante para todos ouvirem, e por pouco eu não escondi o rosto de
vergonha.
— Eu não gosto quando me chama assim, na frente de estranhos,
papa.
— Mon Dieu! — Ele tomou meu rosto entre as mãos, enquanto me
encarava de modo afetuoso. — Voltou a ficar tímida? Nem parece a Marie
que desfilou com a graça e a leveza de uma verdadeira supermodelo.
Aquele comentário brincalhão dele me fez descontrair um pouco, e
o abracei bem forte, com os olhos já cheios de lágrimas.
Capítulo 4

Marie-Claire

Meses depois...

Conforme os meses passavam, eu participei de diversos


treinamentos na agência e pude desenvolver melhor as minhas
potencialidades, adotando um estilo próprio, tanto nas poses em estúdios
quanto nas passarelas. Porém, não foi nada fácil conseguir os primeiros
trabalhos.
Os castings equivaliam a entrevistas de emprego, então qualquer
modelo em início de carreira precisava passar por muitos deles,
diariamente. Eram filas e mais filas por horas e horas sob um calor
insuportável ou forte temporal, a depender das condições do tempo, apenas
na expectativa de ser uma das escolhidas.
Mesmo com todos os percalços, eu continuei me mantendo otimista,
vislumbrando o dia em que teria a oportunidade de abrir o desfile para os
principais designers internacionais, e me dedicando ao máximo para
aprender novas técnicas.
Quando eu finalmente completei dezesseis anos, — a idade mínima
para pisar nas passarelas — viajei para a Austrália, junto com outras
meninas com quem precisei dividir moradia ao longo de seis semanas.
Voltei para Paris com experiência, mas também com dívidas na
bagagem.
Procurei Désirée nas primeiras horas daquela manhã de segunda-
feira, para saber quando sairia o pagamento pelo meu trabalho na Afterpay
Australian Fashion Week, e ela me disse que não me devia salário nenhum,
pois precisava reembolsar a agência pelos gastos com a viagem, entre
outras despesas iniciais.
— Você não vai receber dinheiro porque está endividada, chérie.
— Mas eu estava contando justamente com esse dinheiro para poder
ajudar nas despesas da casa... — insisti, em voz baixa, temendo que alguém
pudesse nos ouvir.
— Sabe muito bem que precisa se esforçar, se quiser decolar rápido
na carreira e ser mais bem remunerada. Entende o que quero dizer?
Eu assenti com um gesto quase imperceptível de cabeça, me
sentindo culpada por não deter o controle das mudanças em meu corpo,
como o crescimento dos seios e o aumento dos quadris. Como se não
bastasse a frustração por ter trabalhado praticamente de graça na semana de
moda de Sidney, ainda precisava lidar com cada quilo que subia na balança.
Aproveitei o momento em que ela cumprimentava um de seus
funcionários, e disfarçadamente eu enxuguei uma lágrima sorrateira,
tentando ignorar os apelos do estômago, que ainda roncava. Eu me
comprometi a comer apenas duas ou três maçãs por dia até conseguir voltar
a caber nas roupas “tamanho zero” — o tamanho de roupa que não possuía
numeração.
Era de conhecimento geral que as meninas tinham que praticamente
passar fome para ter alguma chance de fazer sucesso ou de ser aceita nos
castings para os desfiles. Até passei a dividir um apartamento modelo com
outras meninas, não apenas para facilitar o deslocamento até a agência,
como também para evitar comer além do necessário.
— Marie, eu lamento dizer isso, mas é você quem tem que caber na
roupa, e não o contrário. — Désirée voltou a falar, me tirando daquele
torpor paralisante. — C’est la vie. — Ela emendou com uma expressão bem
conhecida: “A vida é assim”.
Embora as modelos fossem remuneradas com um salário mesmo, o
valor era drasticamente reduzido, porque a agência subtraía a comissão
padrão de 20%.
— Estou me esforçando ao máximo para controlar meu peso,
acredite — murmurei entredentes, sentindo mais frio do que nunca naquele
corredor, a ponto de os ossos doerem e o corpo tremer de forma
incontrolável.
Às vezes, eu fazia uso de laxantes para perder peso.
— Parece que uma de nossas modelos precisar ser substituída, então
recomendo que você perca uns quilinhos para o editorial da Vogue Itália.
Posso contar contigo, chérie? — Ela aguardou pela resposta, sem esboçar
qualquer expressão.
— Oui. — Eu confirmei com a cabeça, distraidamente.
— Eu não vou poder acompanhar a sessão de fotos no museu
Carnavalet, porque surgiu um compromisso de última hora com um novo
cliente.
De repente, eu escutei a voz de Patrick atrás de mim, o que fez meu
coração acelerar dentro do peito. Eu me virei a tempo de vê-lo se
aproximar, com um largo sorriso no rosto.
Meu agente ainda tinha o costume de tocar meu braço ou minha
mão, mesmo na presença de outras pessoas. Embora ele tivesse assumido
uma postura mais paternalista, desde que comecei a atuar como modelo, eu
considerava estranho o comportamento inadequado e invasivo, ainda mais
pelo fato de eu ser menor de idade.
— Bonjour, mademoiselles. — Ele fez uma mesura bem caricata e
por pouco eu não contive o impulso de revirar os olhos. Depois, ele olhou
para a sócia diretamente antes de completar: — Preciso que se dirija até
minha sala depois, para juntos discutirmos os preparativos da viagem das
meninas à Milão.
— Sem problemas... — Désirée tomou um gole de café e consultou
o relógio. — Marie, você precisa se apressar — disparou ela, com sua voz
aguda. — Não convém chegar atrasada ao seu primeiro compromisso do
dia.
Eu me despedi deles e saí correndo, profundamente chateada
comigo mesma por ter que gastar meus poucos trocados em uma corrida de
táxi até o bairro Le Marais.
Já esperava ver meu salário reduzido pelos próximos meses, após
todos os descontos previstos em contrato, afinal 20% dos ganhos
correspondia à comissão da agência e o resto era deduzido dos impostos.
Paris sempre foi considerada a meca da moda, então qualquer
modelo com potencial para publicidade de passarela, editorial ou de alta
qualidade, se sujeitaria àquelas condições porque era onde se concentrava
as melhores ofertas de trabalho.
Por mais que eu enfrentasse dificuldades financeiras em casa, a
minha situação era menos desfavorável se comparada à de outras jovens
modelos, provenientes de países menos desenvolvidos.
Pelo menos, eu tinha a sorte de ficar mais perto da minha família.
Minutos mais tarde, a equipe do editorial da revista entrou em ação
para a sessão de fotos. Houve várias trocas de roupa, predominando looks
românticos e frescos, com tecidos fluídos, drapeados, decote ombro a
ombro, estampas florais, recortes assimétricos e babados. Um hair stylist
cuidou dos meus cabelos com luzes, despenteando as pontas e aplicando um
spray fixador.
Eu fui escolhida para o ensaio da Marie Claire, e não por
coincidência o meu nome, porque a minha mãe não perdia uma só edição da
renomada revista francesa.
Não sei se foi o flash da câmera, ou a luz do sol incidindo em meus
olhos, mas dependendo da posição em que estava no jardim de um dos
museus mais antigos de Paris, a impressão era a de que a sensação térmica
beirava os 40° C.
O jardim em forma de labirinto dançava diante dos meus olhos,
gerando uma sensação de mal-estar, quase de fraqueza mesmo, enquanto
tentava executar as poses.
Em determinado momento, eu cambaleei um pouco, e quase caí
sobre os arbustos cuidadosamente cortados, não fosse o diretor de arte que
agiu rápido, me impedindo de cair no chão como uma fruta podre.
Murmurei um pedido de desculpas, quando outros profissionais se
juntaram ao redor para ver o estado lastimável em que eu me encontrava.
Desmaiar em uma sessão de fotos, definitivamente, correspondia ao
primeiro item da lista de incidentes constrangedores que qualquer modelo
em início de carreira estava sujeito a enfrentar.
— Você está bem? — Ele me conduziu com toda a delicadeza até a
cadeira mais próxima.
— Senti um pouco de tontura, mas já passou. — O meu rosto
queimava de vergonha, e minhas mãos tremia ao tentar abrir a garrafa de
água mineral oferecida pela assistente dele.
— Você se alimentou direito, antes de vir? — indagou a mulher,
franzindo a testa, com um ar de preocupação no semblante. Neguei com um
movimento leve da cabeça. Meu estoque de lenços de papel acabou e não
tinha trazido nada para evitar que o estômago roncasse durante as sessões
de fotos.
Às vezes eu também ingeria bolas de algodão para não sentir fome.
Um lembrete deprimente dos sacrifícios que fazia, apenas para não
acumular gordura ou calorias no corpo.
— Modelos passam o dia todo, correndo de compromisso em
compromisso, e por descuido acabam se esquecendo de comer ou de beber
água... — o fotógrafo comentou, balançando a cabeça em sinal de censura.
— Pessoal, acho melhor fazer uma pausa agora e retomar daqui a 20
minutos. — O diretor propôs, com os braços cruzados sobre o peito, e
depois voltou sua atenção para a assistente. — E quanto a você, Sophie,
providencie algum lanche para esta jovem.
— Pode deixar! Agora, francamente, as agências deveriam
monitorar de perto as condições de trabalho das modelos, se certificando de
que elas estão se alimentando bem.
— Eu... eu não quero incomodá-los... — Comecei a falar, mas
minha voz saiu tão trêmula, o nervosismo assumiu o controle das emoções,
me fazendo chorar baixinho, achando que tinha estragado tudo.
— Imagina, não é incômodo nenhum. — A assistente se apressou
em dizer, me oferecendo um sorriso simpático. — Fazer uma sessão de
fotos para editorial de moda é muito cansativo e corrido mesmo, mas você
está se saindo muito bem, Marie.
— Vocês têm sido muito amáveis comigo... Nem sei como
agradecer.
— Agradeça valorizando o que tem de melhor e nós cuidaremos do
resto.
Meus lábios delinearam lentamente um esboço fugaz de um sorriso
e depois observei em silêncio a assistente dele se afastar, atravessando o
pátio e desaparecendo pela porta lateral, usada apenas por quem trabalhava
no museu Carnavalet.
— Ouvi dizer que devemos ficar de olho em você nas próximas
temporadas de moda... — o diretor comentou, casualmente, como quem
compartilhava um segredo. — Já tem duas grandes viagens agendadas.
Nada mal para uma principiante.
— Merci...— Agradeci pelo sanduíche de peito de peru que a
assistente me deu, e o devorei, avidamente, quase ao ponto de morder a
língua. — Estou bastante ansiosa e com receio de não estar à altura de
substituir uma top model.
A Vogue era considerada a revista de moda mais importante do
mundo e saber que dificilmente escolheriam uma new face para estampar a
capa, tornava aquela situação fascinante e assustadora, tudo ao mesmo
tempo.
— Acredito que dar destaque para talentos com potencial de sucesso
será a tendência para os próximos anos.
Pouco tempo depois, eu já me sentia bem mais disposta para
retomar os trabalhos. A maquiadora se aproximou para retocar a
maquiagem, enquanto o cabeleireiro arrumava o meu cabelo. Depois foi a
vez dos assistentes do stylist conferir se a roupa sujou ou se ficou
amarrotada, e o fotógrafo repassou as orientações sobre pose, posição e
gestos.
Patrick surpreendeu a todos com sua presença na locação, o que
para mim era bem constrangedor. Apesar de meu agente ter mantido a
expressão séria e compenetrada, durante a sessão de fotos e vídeos, eu notei
um brilho diferente nos olhos castanhos, à medida que seu olhar passeava,
sistematicamente, pelo meu corpo.
Tive que me esforçar ao máximo para desempenhar minha função
da melhor forma possível, uma vez que era desconcertante a maneira como
ele me olhava.
Seria um olhar de admiração, ou algo mais que eu não ousava
identificar?
Todos os meus sentidos estavam em estado de alerta, mas mantive o
sangue frio e direcionei o pensamento nos meus objetivos profissionais, ao
mesmo tempo em que controlava a respiração e fixava o olhar na lente da
câmera.
Quando enfim o produtor encerrou os trabalhos, eu segui
rapidamente até o vestiário improvisado em uma das salas disponibilizadas
pela administração do museu.
Passei os dez minutos seguintes removendo a maquiagem, e só
depois coloquei minha própria roupa, composta por uma camisa de seda
branca, com manga longa, além de calça jeans e sapatilhas pretas.
Andei apressada em direção à saída e parei na calçada, ponderando
sobre qual direção deveria seguir, quando inesperadamente um homem
surgiu bem do meu lado. Eu levei a mão ao peito devido ao susto, pouco
antes de reconhecer o meu agente, Patrick.
— Se quiser, eu posso te dar uma carona... — Ele abriu um largo
sorriso, enquanto colocava seus óculos de sol de alguma grife famosa.
— Agradeço a gentileza. — Eu ajeitei a alça da bolsa que teimava
em escorregar do ombro, ciente de que a palma da mão já suava, mesmo
contra a minha vontade.
— Você foi perfeita na sessão de fotos, Marie — declarou meu
agente, com sua voz um pouco rouca. Ele então me abraçou de modo
efusivo, me deixando em estado de choque e, antes mesmo que eu pudesse
raciocinar, senti a respiração ofegante na altura do ouvido. — Aliás, você
sempre foi perfeita. — O sussurro suave vibrou contra o lóbulo da orelha,
levando meu corpo inteiro a um sutil, mas profundo estremecimento.
Não sabia se era apenas impressão minha, mas podia jurar que os
lábios dele roçaram o canto da minha boca, enquanto a barba por fazer
praticamente raspava a pele. Comecei a tremer, visivelmente e, com a voz
quase falhando, murmurei apenas:
— Eu mudei de ideia... — E dizendo isso, eu saí andando o mais
rápido que pude na direção oposta, sem sequer olhar para trás.
Por mais que entendesse racionalmente o que ele estava prestes a
fazer, eu ainda me sentia confusa e, ao mesmo tempo, envergonhada pela
forma como meu corpo reagiu ao que parecia ser um contato mais íntimo.
Minha interação com o sexo oposto sempre foi muito limitada, e se
restringia aos muros do colégio, mas nenhum colega jamais ousou se
aproximar de mim daquela maneira.
Certo dia, as meninas que eu conheci na fila para o casting, me
perguntaram se algum fotógrafo apresentou algum comportamento
inadequado, como carícias, toques ou até mesmo comentários maliciosos,
enquanto outras me alertaram a não ficar sozinha, em ambiente fechado
com nenhum profissional do setor, por mais conhecido que fosse.
Eu apenas disse a elas a verdade. Eu ainda não sofri assédio no
trabalho.
Pelo menos não que eu me lembre. Mas aquele ‘quase’ beijo...
Fechei os olhos, à medida que o chuvisco começava a encharcar
meu rosto, misturando-se às lágrimas que corriam silenciosamente por ele.
Considerava nojento o fato de que minhas colegas e eu nos
tornamos vulneráveis, pois quase diariamente presenciamos situações
constrangedoras, provocadas por homens com significativa diferença de
idade, muitos deles casados ou com companheiras e filhos.
Não sabia quase nada a respeito da vida pessoal do meu agente, mas
pensando bem, quanto menos eu soubesse, melhor. Aliás, quanto menos
contato eu tivesse com ele, melhor.

Dividir uma moradia com mais cinco meninas, cujos nomes e rostos
mudavam o tempo todo, conforme modelos entravam e saiam da cidade,
não era nada fácil. Eu nem mesmo fiquei surpresa quando, poucos dias
depois, ao voltar do trabalho, encontrei um desastre completo, tanto na
cozinha quanto no quarto compartilhado: Havia louças sujas na pia, restos
de comida no balcão, roupas por toda parte, itens de maquiagem e perfumes
deixados sobre a mesa, além de roupas íntimas e meias sujas jogadas num
canto, que ainda por cima exalavam um odor insuportável.
Elas certamente estavam em algum lugar se divertindo, porque
costumavam ir à balada nos finais de semana.
Ergui o rosto para o teto, soltando um profundo e irritado suspiro,
antes de iniciar a limpeza. Lavei os pratos, arrumei a cozinha, recolhi o lixo,
levando até o final do corredor para depositá-lo no latão. Depois foi a vez
de limpar os móveis e passar o aspirador de pó no chão da sala de estar, e
por fim, tentei diminuir a bagunça do quarto, tirando aquele amontoado de
roupas sujas e as coloquei na máquina de lavar.
Vinte minutos mais tarde, eu já estava de banho tomado e voltei para
a cozinha. Peguei alguns itens na geladeira para fazer um lanche rápido,
pois acordaria bem cedo na manhã seguinte.
Quase dei um pulo de susto, quando a campainha tocou, mas eu
corri para atender, pois já aconteceu de uma ou outra colega se esquecer de
levar a chave consigo. Porém, eu me surpreendi ao ver Patrick, e
imediatamente tentei impedi-lo de entrar, mas ele colocou o pé na porta,
forçando a abertura dela.
— Os seus pais não te ensinaram boas maneiras, chérie?
— Não esperava a sua visita, e muito menos a esta hora. — Cruzei
os braços de forma protetora sobre o peito, enquanto me afastava para lhe
dar passagem. — Além disso, eu já estava me preparando para dormir...
Meu agente deu uma boa olhada ao redor, talvez para se certificar de
que não havia mais ninguém no apartamento.
— Prometo que não vou demorar. — Ele se limitou a dizer, e passou
a esfregar os lábios um no outro, como que para umedecê-los. — Farei a
inspeção de rotina como das outras vezes.
Os olhos escuros dele brilhavam, à medida que passeavam
vagarosamente pelo meu corpo, e me arrependi por ter usado uma camisola
de cetim tão fina que era quase transparente. Os meus cabelos estavam
presos em um coque bagunçado e frouxo, sem contar que ainda tinha o
costume de andar descalça pela casa.
Desviei o olhar de forma abrupta, os pelos do corpo se arrepiaram
tomada por uma sensação repugnante, que vinha bem do fundo da garganta.
— Ótimo! — Fui incapaz de ocultar um tom de irritação na voz. —
Amanhã vou acordar bem cedo.
Patrick saiu abrindo gavetas e armários, procedendo em uma busca
minuciosa por itens proibidos no contrato, como guloseimas, bebidas
alcoólicas, maços de cigarros ou mesmo entorpecentes.
Conferiu até mesmo debaixo das camas, e dos colchões, mas não
havia nada.
— Como você pode ver, nós não fizemos nada de errado.
Patrick pareceu ter ignorado meu último comentário, e se abaixou
para inspecionar a roupa que eu tinha usado naquele dia, ainda jogada na
cama. Ele ergueu minha calcinha com a ponta do dedo e estalou a língua,
baixinho, como se estivesse satisfeito por ser de um modelo recatado.
Naquele instante me subiu uma raiva que eu nem sabia que existia dentro de
mim. Eu atravessei o quarto, depressa, disposta a tirar a peça íntima das
mãos imundas, mas ele me impediu, ao esticar o braço, agitando a peça
íntima no ar.
— Devolva minha calcinha, agora! — exigi, puxando a aba de seu
casaco. — Ou eu... Ou eu...
— Ou eu o quê, chérie? — Sorriu, maliciosamente.
— Eu vou contar a Désirée que você não passa de um assediador.
— Por um acaso você ficou louca? — Ele fez uma careta, depois
ficou sério.
— Vai negar agora que quase me beijou outro dia? — Senti o
sangue fervilhando nas veias, a visão ficou embaçada por causa das
lágrimas que me preenchiam os olhos.
A justificativa veio rápida, carregada de cinismo:
— Se refere à sessão de fotos no museu Carnavalet? Só dei um
beijo no rosto, quando a gente se despediu na saída. O que tem de errado
nisso?
Bufei com desdém, cruzando os braços.
E quantas vezes ele tentou me tocar quando não havia ninguém por
perto?
— Sei de coisas que você nem imagina, Patrick.
— É mesmo, chérie? — Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso. —
Mas que coisas são essas?
— Coisas que vão além do assédio e do abuso... — Senti o
estômago embrulhar, assim que ele levou a calcinha ao nariz e inspirou bem
fundo, antes de enfiá-la no bolso da calça.
Tentava ao máximo manter o autocontrole, mas o coração batia de
forma descompassada, nutrindo a estranha sensação de que algo muito ruim
podia acontecer.
— Eu soube que encorajou modelos a usar drogas como speed e
cocaína antes dos desfiles. E por mais que eu seja menor de idade, ainda
posso denunciá-lo às autoridades.
Só preciso encontrar uma maneira de fazer isso, sem precisar expor
as meninas.
Um gemido de dor escapou da garganta, quando ele segurou meus
braços com toda força. O meu agente praticamente me arrastou pelo quarto
até me prensar contra a parede mais próxima. Tentei me debater de todas as
formas, usando os braços e as pernas, mas aquilo era inútil.
— Me solta, ou eu vou gritar... — A voz saiu pouco mais do que um
sussurro débil. Patrick usou toda sua força para me manter presa contra seu
corpo, sendo que eu mal conseguia respirar, e ainda teve a coragem de
pressionar o quadril contra o meu, apenas para mostrar a grande
protuberância em suas calças.
Virei meu rosto para o lado, com receio de ser beijada à força. Ele
começou a se esfregar em mim de tal forma que por pouco eu não vomitei.
A náusea me subiu à garganta, mas eu me forcei a engolir, em seco.
— Não sabe as coisas que eu gostaria de fazer com você, Marie —
murmurou, junto ao meu ouvido. — Mas ainda insiste em se debater como
um peixe fora d’água.
— Deixe-me em paz — murmurei, as lágrimas embaçavam a minha
visão, enquanto uma onda de revolta me invadia, a ponto de fazer meu
corpo inteiro estremecer.
Soltei um grito, quando ele me agarrou pelo queixo, me forçando a
encará-lo nos olhos.
— Por que você tem que ser sempre tão desobediente, Marie?
— Eu já disse que vou contar tudo! — Ameacei, mas sem muita
convicção.
— As suas colegas não medem forças comigo, pois sabem que têm
muito a perder. Então eu sugiro que pense nelas um pouco mais, antes de
falar o que não deve. Porque se você falar, eu destruo a sua carreira. Fui
claro?
Fiquei pensando a respeito da intensa pressão psicológica que as
meninas e eu sofremos por parte do exército de advogados dele, para que
assinássemos um documento, chamado “Acordo de confidencialidade”.
Aquele contrato evitava o vazamento de informações sigilosas, quando na
verdade abria um perigoso precedente, principalmente para jovens em
início de carreira, submetidas a todo tipo de exploração e abusos no
ambiente de trabalho.
Os segundos se arrastaram no mais profundo silêncio até que Patrick
se afastou e saiu andando, com as mãos enfiadas nos bolsos. De repente, ele
parou no limiar da porta, e se virou para me encarar como se ainda tivesse
algo mais a dizer.
— Não vou fazer nada que você não queira... Pelo menos por
enquanto. — Patrick deixou escapar uma risada abafada que soou sarcástica
demais, a meu ver. — Bonne nuit, ma princesse. Mande lembranças minhas
às meninas, ok?
Le fils de pute não passava de um manipulador inescrupuloso.
Sendo um homem poderoso do ramo, Patrick tinha o costume de
promover festas em sua mansão, acompanhadas de suas modelos favoritas,
que se viam forçadas a entreter não apenas a ele como também a seus
amigos, grande parte deles empresários bem-sucedidos, produtores de
cinema, agentes do governo ou artistas de renome internacional.
Elas acreditavam que era um jantar de negócios; a oportunidade
única de se conectarem com pessoas influentes que levariam suas carreiras
a outro patamar.
Eu recusei o convite, naturalmente, pois jamais me sentiria segura
na casa dele. Tentei convencê-las a não ir ao evento, pois senti uma angústia
muito grande, mas sem sucesso.
As minhas suspeitas se confirmaram, quando uma delas me contou
que não se lembrava direito dos eventos da noite. Havia fortes indícios de
tentativa de abuso, mas ela se recusou a formalizar uma denúncia.
Desconfiamos que Désirée era cúmplice dele, guardando cada mínimo
segredo sujo, apenas para proteger os seus próprios interesses.
Claro que ela faria de tudo para preservar a imagem e a reputação da
empresa.
Minhas colegas e eu preferimos pagar o preço do silêncio a
enfrentar os custos de uma retaliação. Elas pareciam estar conformadas, e
seguiam com suas vidas, como se nada tivesse acontecido. De minha parte,
eu não mediria esforços até ter experiência suficiente para encontrar outra
agência — um lugar onde pudesse me sentir mais segura.
Capítulo 5

Jean-Luc

Cerca de 3 anos depois...

Camille Saint Vincent Laurent, a minha irmã caçula, colocou o iPad


diante de mim e deslizou o dedo pela tela, mostrando o book digital enviado
pela agência New Look Models, que era basicamente uma compilação das
melhores fotos de suas modelos, quando de repente, os meus olhos se
fixaram em um rosto que me era bastante familiar.
A minha mente passou a vagar sem rumo, como um veleiro
navegando pelas águas do Mar Mediterrâneo, e que de tão azuis me faziam
lembrar os olhos expressivos e penetrantes de uma jovem modelo
parisiense.
Só pode ser mesmo quem eu estou pensando.
Eu achava impressionante a semelhança entre a modelo, chamada
Marie Claire Leblanc, e a misteriosa jovem que eu conheci por acaso, após
a mega festa de encerramento da New York Fashion Week, há pouco mais de
três anos.
— Vejo que você também se interessou pela “menina dos olhos” de
pelo menos uma dúzia de designers. — Camille comentou de repente, me
tirando dos devaneios. — Ela inclusive já representou grandes marcas
mundo afora.
O meu pai, Jean-Claude Laurent, era mundialmente conhecido por
manter o controle dos negócios em família, e por isso tinha uma escolha
difícil para fazer, uma vez que faltava pouco para sua aposentadoria:
escolher qual de seus três filhos assumiria o comando da SVL, o maior
conglomerado de mídia da França, com ramificações no setor de
comunicação e entretenimento, música, televisão, cinema, editoração e
publicidade.
O patriarca passou a presidir o conselho de administração do grupo
de mídia, e por eu ser o primogênito, fiquei responsável por assumir o cargo
de CEO interino, conciliando com a gestão da agência EGO Media, uma
das maiores empresas de exploração de publicidade do mundo, e agora
responsável por produzir campanhas para a marca de cosméticos controlada
pela minha irmã, Camille. Eu me comprometi a ajudá-la a escolher a nova
estrela da campanha global da L’Beauté Paris.
Não restava a menor dúvida de que a candidata ideal atendia pelo
nome de Marie-Claire Leblanc.
Eu me recostei na cadeira giratória, enquanto girava minha caneta
Montblanc entre os dedos, sem deixar de observar o belo rosto que me
perseguia nos sonhos.
Aquela jovem modelo se tornou o meu objeto de desejo mais
inconfessável.
— Eu conheço este olhar, Jean — insinuou Camille, dando um tapa
em meu ombro. — Não sei o que está pensando agora, mas acho melhor
esquecer, ouviu bem?
— Sua mente está muito poluída, frangine. — Eu fiz questão de
frisar, com os olhos fixos nela e uma das sobrancelhas, arqueada. — Você
mesma insistiu muito para que eu fizesse uma consultoria da nova
campanha da L’Beauté Paris.
— Sim, isso é verdade, mas também deixei bem claro que eu não
vou aceitar nenhuma modelo que já tenha levado para cama, o que pelo
visto parece ser esse o caso.
— Putain! — Soltei um palavrão, antes de dar um longo suspiro. —
Você não leu os dados pessoais dela? Embora não pareça, esta modelo tem
apenas 19 anos de idade. — Prossegui, com o dedo apontado para a tela do
iPad. — Você alguma vez já me viu acompanhado por mulheres que mal
saíram da adolescência?
— Mas é óbvio que não! — Negou, balançando a cabeça, e me
encarou diretamente nos olhos, embora ainda sustentasse um resquício de
desconfiança nas feições. — Me desculpe por julgá-lo tão mal, mon chéri.
Não sei o que deu em mim, mas tive a estranha sensação de que vocês já se
conheciam, sabe?
Eu virei o rosto de modo brusco, incapaz de sustentar o olhar dela.
— Mas voltando ao assunto, você também não concorda que
estamos diante da garota-propaganda perfeita? — Só mudei o rumo da
conversa para não confirmar as suspeitas dela.
Camille contornou a mesa, puxou uma das cadeiras e se sentou
novamente.
— Na verdade, Marie-Claire Leblanc já ocupava o topo da lista de
preferências, porque sempre recomendou os produtos da minha marca, nas
redes sociais. Além disso, acredito que uma modelo em ascensão pode ser a
nossa melhor escolha, afinal a L’Beauté Paris vai apresentar um novo
conceito ao mercado, muito em breve.
— Queria poder saber mais a respeito dela... — Notei que minha
irmã curvou um dos cantos da boca, em um sorriso malicioso, então eu
rapidamente emendei: — Só quero me certificar de que esta jovem não está
envolvida em nenhum escândalo que possa prejudicar a imagem da
empresa.
— Até onde eu sei, a modelo mantém sua vida íntima reservada.
— A vida amorosa de uma modelo costuma ser amplamente
divulgada na mídia... Talvez exista algo por trás que nós ainda não sabemos.
— Ela não se parece com nenhuma que já esquentou os seus lençóis,
Jean. E por falar nisso, qual delas escolheu para ser a sua futura esposa?
— Não escolhi nenhuma, chérie. A candidata ideal para esposa
precisa ter origem humilde e simples... Uma mulher inteligente e talentosa o
bastante para me entreter, mas não ambiciosa e calculista a ponto de me
trocar por outro homem.
— Você me disse que prefere uma mulher troféu. Qualquer uma
delas serve, não?
— É aí que você se engana! Eu gosto de estar no controle. Elas não
dependem de mim para absolutamente nada.
— Pelo visto, quem mais se encaixa no perfil é a próxima
embaixadora da L’Beauté Paris. — Ela usou um tom falsamente
despretensioso, sem deixar de me encarar nos olhos, atento à menor reação
de minha parte.
— Por que não me conta mais a respeito dela? Só por curiosidade.
Camille contou que Marie fazia parte da nova geração de modelos
francesas, mas ela ainda não atingiu o estrelato, então certamente priorizava
a carreira em detrimento de um relacionamento amoroso.
Não deixei de me perguntar se muitos rapazes davam em cima da
jovem modelo. Só de cogitar algo assim já fazia o sangue ferver nas veias,
me levando a sentir um misto de ciúme e despeito, por não poder torná-la
um alvo do meu interesse.
Sendo um homem bem sucedido e no alto dos meus 32 anos,
considerava um desperdício de tempo e de energia, investir em
relacionamentos com mulheres notoriamente bonitas, mas excessivamente
fúteis.
Eu nem conseguia manter conversas profundas com elas.
Pisquei como se despertasse de um sonho, assim que eu ouvi a voz
de Camille:
— Precisa ver o jeito como ela desfila... Marie-Claire possui um
estilo impressionante e uma expressão facial quase felina.
Ignorei o comentário da minha irmã e abri rapidamente um site de
busca para saber mais a respeito da trajetória profissional daquela beldade.
Um portal de notícias informou que ela inicialmente conciliou os
estudos com os trabalhos aos 15 anos de idade, e no ano seguinte, se
colocou à disposição e em tempo integral para clientes como Valentino,
Giorgio Armani, Calvin Klein, Yves Saint Laurent e Versace. Também foi
capa da Vogue britânica, da Vogue italiana e de várias outras revistas
conceituadas.
Uma vez atingida a maioridade, Marie-Claire conseguiu um feito
digno de nota: assinou um contrato de exclusividade, no valor de 200.000
euros, com a maison Dior.
— Ficou impressionado com o fato dela ter um currículo invejável,
mesmo com tão pouca idade?
— Sem sombra de dúvida! — A minha voz saiu mais empolgada do
que deveria. — Comunique a New Look Models sobre nosso interesse em
negociar um megacontrato de exclusividade com a new face mais
requisitada da agência.
— Isso significa que esta será a maior contratação da marca dos
últimos anos... — Havia incerteza na voz dela, algo que não me passou
despercebido. — Apostar em uma modelo novata me parece um pouco
arriscado, embora ela tenha um potencial gigantesco.
— A agência não vai recusar a oferta, pois a parceria será bastante
vantajosa para todos, Camille. A modelo vai ganhar não apenas o cachê
pela campanha, como também ajudará no processo criativo da marca e
ainda vai levar uma parcela dos lucros.
— Perfeito, então. — Bateu palmas, animada. — Eu posso usar seu
telefone, Jean? Pretendo entrar em contato com Désirée Guillaume, agora
mesmo.
— Pode ficar à vontade, Mille. — Então, eu me levantei e guardei o
celular no bolso da calça, antes de deixar o escritório. — Eu vou aproveitar
essa pausa para sair e fumar um cigarro.

O edifício-sede do conglomerado de mídia e telecomunicações se


situava na Avenue de Friedland, mais precisamente no oitavo distrito de
Paris, em plena Champs-Élysées e próximo ao Arco do Triunfo.
Parei por um instante na calçada, inalei o ar bem fundo até
preencher bem os pulmões e o soltei devagar, me sentindo plenamente
satisfeito em desfrutar mais um dia do mês de maio, no ápice da primavera.
Havia um estabelecimento do outro lado da rua, chamado Le Café
de Paris, que servia um café expresso de boa qualidade. Eu escolhi uma das
mesas da área externa da cafeteria, e logo um garçom se aproximou,
trazendo seu talão de pedidos nas mãos.
Como todo bom francês, eu não abria mão dos momentos de
descanso em uma mesinha de um café parisiense.
— Bonjour, monsieur. — O funcionário me saudou, educadamente.
— Un café, s'il vous plaît. — Um pedido clássico, seguido de um
agradecimento. Então, eu tirei minha cigarreira e o isqueiro do bolso interno
do blazer risca de giz, e acendi meu primeiro cigarro do dia.
Dei uma longa tragada nele, enquanto tomava minha xícara de café,
mas de repente me veio uma vontade irresistível de rever o book fotográfico
de Marie-Claire Leblanc.
O meu olhar faminto se deteve em cada detalhe da expressão facial
daquela beldade, como que atraído por um imã: desde os formidáveis olhos
azuis, passando pelos lábios carnudos, pintados de vermelho, rosa ou até
mesmo laranja, a depender da roupa que ela usava, sem contar as
sobrancelhas mais grossas e cheias, além do queixo fino e maçãs do rosto
salientes.
Murmurei algo ininteligível, enquanto avançava as páginas do
arquivo, com meu pau já ganhando volume, e pressionando dolorosamente
a cueca.
Eu nunca imaginei que chegaria à conclusão vergonhosa de que
estava completa e irrevogavelmente atraído por uma modelo, treze anos
mais nova.
Voltei a encostar o cigarro entre os lábios, dando uma boa tragada
nele, antes de liberar a fumaça pelas narinas, e passei a observá-la
serpenteando lentamente no ar.
Difícil esquecer o dia em aquela bela jovem cruzou o meu caminho.
O ano era 2012, eu tinha 29 anos na época, e me relacionava
casualmente com um supermodelo norte-americana chamada Kate
Seymour. Nós dois combinamos de sair mais cedo da festa organizada pelo
estilista Jean Paul Gaultier, após seu desfile na ‘New York Fashion Week’.
Quando nós estávamos prestes a deixar o ‘The Ned NoMad Hotel’,
alguém da assessoria de imprensa do evento pediu para Kate permanecer
mais um pouco na festa, a pedido do estilista, que por coincidência
comemorava seu próprio aniversário.
Decidi seguir sozinho até o carro, afinal o motorista já nos
aguardava, na expectativa de nos levar até o aeroporto ‘Terteboro’, local
onde o jato executivo partiria rumo ao Sul da França, onde passaria o
resto do fim de semana na ‘villa’, com vista para a Baía de Cannes.
O interior do veículo de luxo estava escuro, exceto pela fraca
luminosidade emitida pela tela do celular, à medida que conferia meus e-
mails ou retornava as ligações perdidas. De repente, eu escutei um barulho,
mas era apenas o som da trava da porta traseira sendo acionada.
Eu continuei imóvel, sentado no canto do assento, praticamente na
penumbra, até meu motorista dar partida no carro, saindo do local do
evento, e só então eu coloquei meu celular de volta no bolso.
Kate havia elogiado a escolha do traje, um terno de caimento
impecável e que se moldava perfeitamente ao meu corpo atlético.
E por falar na beldade, ela estava estranhamente silenciosa, desde
que entrou no veículo, mas não dei muita importância para o fato e deslizei
no assento, antes de envolver os braços ao redor de sua cintura e a puxei
de encontro ao peito, na ânsia de sentir o calor de nossos corpos contra o
estofado de couro.
Afundei meu rosto na curva do pescoço dela, colando os lábios na
pele macia, e comecei a distribuir beijos quentes e úmidos, entremeados
por mordidas até meus olhos se fecharam de forma momentânea, inebriado
pela mistura deliciosa de suor, feromônio e perfume Chanel.
O corpo dela se arqueou de maneira instintiva, como se ansiasse
poder se fundir no meu, e um suspiro rouco lhe escapou dos lábios, audível
o bastante para fazer o meu pau se contrair, violentamente, contra a cueca
boxer.
Grunhi de prazer, assim que minha mão penetrou nas primeiras
camadas do longo vestido de noite, ansiando poder tocar a parte interna da
coxa firme, mas a atitude seguinte da modelo me pegou completamente de
surpresa.
Primeiro, foi um incrível empurrão, seguido pelo estalido do tapa
ecoando de forma audível dentro do carro.
— Tire as suas mãos de mim! — ordenou ela, com firmeza. Apesar
de ter falado em inglês, notei que seu sotaque era francês. A voz da minha
conterrânea tinha uma inflexão estranha o bastante para acender um
“sinal de alerta” em minha mente.
Demorou alguns segundos até processar o que tinha acabado de
acontecer, mas a sensação de ardência na pele não era nada se comparada
a vergonha que me invadiu. Levei a mão ao rosto, num gesto instintivo,
amaldiçoando a mim mesmo por ter cometido o pior erro da minha vida.
Ela não era quem eu imaginava que fosse.
Um silêncio pesado se instalou, mas nenhum de nós dois ousou se
mexer.
O corpo magro começou a tremer, enquanto o meu se enrijecia,
cada músculo se retesando como o de um animal acuado e frustrado pela
reação inesperada e, ao mesmo tempo, defensiva da parte dela.
— Sinto muito pela forma como me comportei... Não era minha
intenção.
Respirei bem fundo para manter o autocontrole, quando me lembrei
de que todo veículo possuía uma luz interna, localizada no meio do teto, e
agradeci aos céus por existir uma divisória de vidro, separando o banco do
motorista com a dos demais passageiros.
Quando a luz branca preencheu o ambiente, eu me deparei com uma
modelo desconhecida, mas igualmente bela talvez ainda mais bonita do que
minha acompanhante. Eu pisquei, repetidas vezes, considerando se aquela
cena não passava de um pesadelo, enquanto expressivos olhos azuis bem
marcados a lápis me sondavam, inclusive sob os cílios inferiores, embora
estivessem completamente aterrorizados.
— Quem é você, e o que faz aqui? — Disparei duas perguntas em
nosso idioma e à queima-roupa.
— Eu... — gaguejou ela, ao levar a mão trêmula ao peito, dando a
impressão de que mal conseguia respirar direito. — Eu esperava encontrar
outra pessoa, monsieur.
Praguejei baixinho, incapaz de esconder a irritação.
— Deixe-me adivinhar... Seu namorado? — A modelo negou,
balançando a cabeça, sem hesitar. — Quer dizer então que entrou em meu
carro por engano?
O corpo dela, que estava tenso até aquele momento, pareceu relaxar
um pouco.
— Peço desculpas por isso, mas eu posso explicar. Minha agência
contratou um motorista com carro particular para fazer o traslado até o
evento, mas eu só poderia permanecer no local até às 23 horas.
— Restrição quanto ao horário de permanência na festa? Mas por
quê?
Foi então que eu me dei conta de que cometi algo ainda mais grave.
— Eu te abracei, beijei o seu pescoço e faltou pouco para... — As
últimas palavras morreram em minha garganta. — ‘Nom de dieu de
merde’! — Eu xinguei, fechando meus olhos com força, quando de repente
uma onda nauseante de pavor me atingiu. Não contive o ímpeto de segurá-
la pelos ombros, e olhei direto nos olhos dela, antes de fazer a famigerada
pergunta: — Quantos anos você tem?
Nossos rostos estavam tão próximos a ponto de o ar exalado se
mesclar entre si, num frenesi envolvente. Os lábios suculentos dela
pairavam a poucos centímetros dos meus e ainda por cima estavam
entreabertos, no que parecia um convite silencioso para um beijo ardente.
No fundo, eu estava louco para sentir a textura e o sabor deles.
— Tenho 16 anos, monsieur. — Sua voz era quase um sussurro. O
hálito morno e doce contra minha boca causou um espasmo violento em
meu corpo, no que parecia um abalo sísmico decorrente do desejo
descabido por aquela jovem.
— Merde alors! — Eu xinguei, mais uma vez, estranhamente
incomodado e invadido por um misto de impotência e frustração, tudo ao
mesmo tempo, e me deixei afundar no banco macio de couro. — Não que
isso justifique, mas vocês se vestem com as roupas mais caras e sofisticadas
do planeta. Assim fica difícil saber se já são adultas, ou se não passam de
adolescentes...
— É perfeitamente compreensível... — disse ela, enquanto se
aprumava no assento e ajeitava sua roupa elegante.
— Eu nem sei como reparar o meu erro... Pensei que fosse minha
acompanhante, Kate Seymour, e que por coincidência usa esse mesmo
perfume — murmurei quase para mim mesmo, totalmente atordoado com
toda aquela situação. — Espero que não faça mau juízo de mim. Eu não
saio por aí agarrando as pessoas, como se eu fosse algum pervertido.
Perdoe-me, por favor.
— Tudo bem, eu aceito suas desculpas.
De repente, eu senti o celular vibrar no bolso e conferi a mensagem
recebida de Kate Seymour. Como ela não me viu mais no local, acabou
pegando um táxi direto para o aeroporto. Inventei um pretexto qualquer
para tranquilizá-la, garantindo que chegaria a tempo para o embarque.
— Acho melhor informar logo ao motorista onde está hospedada —
Tentei sustentar uma máscara de indiferença, apenas para ocultar a
frustração que sentia por não poder trocar de acompanhante no voo de
retorno.
‘Uma pena que ela seja tão nova. Ela passa uma confiança que
desmente sua idade, algo que indiscutivelmente a torna ainda mais
excitante’.
Dei uma boa inspecionada nela, que usava um vestido clássico de
tonalidade azul, com sua saia volumosa de várias camadas de tule,
conferindo um ar de princesa. O decote deixava o ombro de fora, lhe
conferindo um misto de graciosidade, inocência e sensualidade, e meu
olhar se deteve por mais tempo na leve ondulação dos seios que caberiam
perfeitamente na palma da minha mão.
— Você se importaria de virar o rosto para o lado esquerdo?
A modelo franziu a testa, com a expressão desconfiada, mas fez o
que eu lhe pedi, sem questionar nada, então eu cheguei mais perto dela
para verificar melhor o que parecia ser uma pequena mancha no pescoço.
Reparei que seu longo e liso cabelo louro escuro foi partido de lado e
estava preso em um coque, bem na altura da nuca.
— Merde! — murmurei, rouco, observando a mancha roxa perto da
orelha. — Isso é meio constrangedor...
A marca que eu vi na pele era resultado de um chupão.
Desviei o olhar de forma abrupta e respirei bem fundo, mordendo o
interior da bochecha para conter um grunhido dolorosamente insatisfeito,
provocado pelos testículos rijos e prestes a explodir de tesão.
Ela rapidamente abriu sua bolsa carteira, tirou de dentro dela um
espelhinho, e ficou algum tempo se olhando nele, enquanto pressionava os
dedos trêmulos na região macia. Então, soltou um arquejo de surpresa, que
soou excitante aos meus ouvidos.
— Foi você quem provocou isso em mim. Ficou beijando, chupando
e mordiscando o meu pescoço...
— Veja se não trouxe algum produto que sirva para esconder essas
marquinhas. — Eu retruquei de modo curto, direto e sem transparecer
qualquer emoção, mas por dentro me sentia triunfante, ciente de que ela
jamais se esqueceria daquela noite.
Pensei em dizer algo mais, porém o motorista encostou o carro no
meio-fio, um claro sinal de que havia chegado o momento de me despedir
dela.
— Enfim, nós chegamos ao seu destino.
— Merci, monsieur... — murmurou, visivelmente constrangida. —
Lamento ter causado essa confusão. Transmita a sua namorada as minhas
mais sinceras desculpas.
Pensei em dizer que a colega dela não era minha namorada, mas
me calei.
Aquela informação não significava nada para ela, não faria a
menor diferença.
— Eu me preocupo muito mais com a sua imagem. O jeito é torcer
para nenhum paparazzi ter registrado o que podemos chamar de “carona”.
— Ergui as mãos, formando aspas no ar.
— A mídia não dá a menor importância para modelos em início de
carreira. — Ela falou com um dar de ombros, demostrando indiferença.
Quando a modelo estava prestes a abrir a porta do carro, eu
rapidamente segurei no braço dela, ansiando poder saber pelo menos seu
nome.
— Vai embora sem me dizer como se chama? — Minha voz saiu
baixa, mas com intensidade suficiente para fazer seu corpo esguio
estremecer, sutilmente.
— Eu dispenso as apresentações, monsieur. Afinal, a gente nunca
mais vai se ver de novo. — E dizendo isso, ela abriu a porta, saltou do
carro e saiu correndo, sem olhar para trás.
Alguém na idade dela certamente diria que eu levei um fora
fenomenal.
Sorri, internamente, com a lembrança, enquanto apagava o cigarro
no cinzeiro.
Capítulo 6

Jean-Luc

Eu me espreguicei, longa e preguiçosamente, na suíte de um hotel


de luxo.
A noite anterior superou minhas expectativas, graças a minha atual
parceira de vinte e poucos anos, e filha de um grande financista, Mia
Arquette. Nós dois adquirimos o hábito de reservar diárias para “encontros
discretos”, sempre em hotéis diferentes.
Só então eu percebi que o meu celular vibrava já há algum tempo,
na mesa de cabeceira.
Como Mia ainda estava entregue ao sono profundo, eu afastei o
braço dela do meu corpo, e em seguida me levantei da cama para pegar o
aparelho em cima da mesinha. O identificador de chamadas mostrava o
número de Christian Dufour, o Diretor de Criação da agência EGO Media,
por isso resolvi atender logo de uma vez, mesmo estando sonolento.
— Bonjour, Chris. Espero que tenha um bom motivo para me ligar a
essa hora. — falei sem nem ter prestado atenção ao horário marcado na tela,
mas suspeitava que ainda era cedo demais para sair da cama.
— Bonjour, Jean — murmurou ele, transparecendo nervosismo na
voz. — Lamento incomodá-lo, mas o representante do setor jurídico da New
Look Models insistiu muito para avisar que a sua presença na reunião de
hoje será imprescindível.
Aquele pedido era um tanto inusitado. Eu já tinha participado da
primeira reunião, para discutir as principais diretrizes da campanha da
marca. Camille havia me garantido que a reunião seguinte envolveria
apenas a Diretora de Operações da L’Beauté e os representantes da empresa
de gestão de modelos.
Consultei meu relógio, e constatei que passava das 7h30.
Eu sempre me considerei uma pessoa notívaga, ao contrário da
maioria dos executivos que tinham como hábito levantar antes mesmo de o
sol nascer. Preferia mil vezes ficar acordado até altas horas da madrugada,
quando atingia o pico da produtividade, do que comprometer minha
qualidade do sono.
— Você sabe que eu preciso cumprir uma agenda de trabalho na
SVL hoje.
— Mas eu também sei que nunca marca reuniões muito cedo.
Quando iniciei a dupla jornada, dedicava cerca de oito horas por dia
na SVL Groupe e na agência EGO Media, mas eu fiz algumas mudanças nos
últimos meses, e passei a dedicar meus dias, separadamente, para ambas as
empresas.
Segundas e sextas na agência; terças, quartas e quintas na SVL
Groupe.
— Verei o que posso fazer, Chris — disse, sem muita convicção.
— Isso é um sim ou um não? — perguntou ele, curioso, mas senti
que afastou o celular do ouvido para conversar com alguém, por alguns
instantes e só depois voltou a estar na linha. — Désirée Guillaume acabou
de chegar e está acompanhada pela modelo, Marie-Claire Leblanc.
— Por que não me disse logo que Marie-Claire também estaria
presente? — Acabei deixando escapar uma leve inflexão de impaciência na
voz. — Eu só vou tomar uma ducha rápida e já sigo para aí, ok?
Pensei que uma boa foda seria o bastante para me animar naquela
manhã de quinta-feira, mas a possibilidade de reencontrar a modelo
misteriosa serviria como um estímulo a mais para enfrentar os desafios que
estavam por vir.
Não deixei de me perguntar qual seria a primeira reação dela ao me
reconhecer, e sorri internamente, diante da possibilidade de colocá-la numa
situação constrangedora.
Quando eu estava prestes a ligar o chuveiro, eu escutei a voz melosa
e insinuante de Mia Arquette.
— Eu posso saber quem é essa tal de Marie-Claire?
— Ela foi escolhida para ser a nova embaixadora global da L’Béauté
Paris.
— Você só vai para a agência antes por causa dela, não é?
Comecei a assobiar de olhos fechados, ignorando seu último
comentário, enquanto me ensaboava e sentia a água morna escorrendo pelo
meu corpo.
— Eu te fiz uma pergunta, Jean. Et merde! — Quando mais Mia
ficada irritada mais ela soltava uns merdes na fala. — Por que não me
responde?
Não tinha a menor paciência para tolerar os rompantes e acessos de
ciúme, especialmente vindos de alguém com quem só mantinha encontros
casuais, e quanto mais Mia ficava no meu pé, mais desinteressante ela
ficava, pelo menos aos meus olhos.
— É só mais um projeto como outro qualquer, e embora eu esteja à
frente de vários, eu me sinto responsável pela produção da campanha
publicitária da L’Beauté por consideração a minha irmã.
— Você deu impressão de que já a conhecia e estava louco para vê-
la de novo.
Peguei a toalha do suporte para me secar, e mesmo diante da
expressão contrariada dela, eu me limitei a encará-la com a mesma
imperturbável tranquilidade de sempre.
— Não, eu não a conheço. Era isso o que você queria saber?
— Eu posso ver em seus olhos que você está mentindo para mim,
Jean!
Eu segui em direção ao closet, com Mia praticamente em meu
encalço, demonstrando total descontrole emocional, ao proferir uma série
de xingamentos, por não saber lidar com o barulho ensurdecedor do meu
silêncio.
De repente, a raiva dela tomou proporções maiores, quando me vi na
deprimente tentativa de impedir que seus sapatos Christian Louboutin de
saltos altíssimo, atingissem o meu rosto.
— Quantas vezes vocês já transaram? — perguntou ela por entre
dentes cerrados. — Você está louco para me substituir por uma
desqualificada qualquer, não é mesmo? — esbravejou, avançando para cima
de mim, e pela primeira vez ela desferiu uma série de socos em meu peito,
com os punhos fechados.
— Mia, eu sugiro que se controle, senão eu vou arrastá-la para fora
daqui do jeito que estiver, seja nua ou vestida, me ouviu bem? — falei em
voz baixa, mas suficientemente incisiva.
A mulher encolheu os ombros, impotente, e logo em seguida ela me
deu as costas e começou a pegar as peças de roupa espalhadas em cada
canto do quarto, vestindo nada além do roupão do hotel.
— Dividir você com outra? — Ela me dirigiu um olhar sombrio,
antes de expelir o ar pela boca de forma ruidosa. — Eu não divido nada
com ninguém, Jean.
Por que ela tinha que ser tão carente? — Pensei, enquanto vestia
uma calça chino azul marinho clássica, seguida pela camisa branca, e por
cima um blazer preto.
Não me considerava um executivo convencional, para desespero do
meu pai que sempre se vestia com trajes feitos primorosamente sob medida,
compostos por terno, quase sempre azul-marinho, camisa branca e gravata
escura.
— Acho impressionante como as mulheres, têm a propensão de se
iludirem. — Calcei os tênis cano alto de couro e me levantei de um salto. —
Eu joguei limpo com você, Mia. Sempre deixei claro que era só um lance
casual e nada mais.
— Achei que comigo seria diferente... Que poderia fazê-lo se
comprometer.
— Sinto muito por não corresponder às suas expectativas. Agora
tenho outras prioridades.
— Você não passa de um cafajeste. — Ela praticamente cuspiu
aquelas palavras, antes de pegar um vaso de flores, e já estava prestes a
arremessá-lo em minha direção, quando escutamos uma discreta, mas firme
batida na porta.
— Café da manhã, monsieur — anunciou o funcionário, com sua
voz grave.
Esperei o garçom entrar, com seu carrinho cheio de bandejas, um
aroma delicioso penetrou minhas narinas, mas eu já tinha perdido
completamente o apetite.
— Não precisa ir embora agora, Mia. Fique e desfrute do seu café
da manhã. Adieu! — falei, com os lábios retorcidos em um sorriso cheio de
sarcasmo. Depois, eu me adiantei até o funcionário do hotel, e o
cumprimentei com um leve tapa no ombro, antes de dar algumas notas de
gorjeta. — Merci. Tenha um bom dia!
Eu deixei a suíte presidencial do Shangri-La Paris, mesmo sob os
protestos acalorados da última mulher com quem eu transaria de novo.
O percurso até La Défense, um dos distritos de negócios mais
importante de toda a Europa, durava cerca de quinze minutos. Deixei os
prédios históricos e centenários para trás, e logo avistei os edifícios
espelhados e de formas inusitadas, distribuídas por uma extensa esplanada
de concreto, com suas fontes e esculturas coloridas.
O elevador subiu até o terraço com vista para o horizonte de Paris.
Assim que eu virei à esquerda, me deparei com a logomarca da
agência, um modelo tridimensional feito em aço galvanizado e pintado na
cor vermelha. O lounge possuía uma decoração refinada, com móveis em
madeira escura, espalhados nos 55m², podendo acomodar até 50 pessoas, e
construído especialmente para reuniões de negócios, coquetéis de
lançamentos, almoços, happy hours e confraternizações.
— Bonjour. — Tirei meus óculos de sol, e parei por alguns instantes
para observar melhor as pessoas presentes na reunião.
De um lado, estavam os representantes da L’Beauté: a Diretora de
Operações da marca, Constance Ernaux, o Diretor de Marketing, Julien
Lefèvre, além do Diretor de Relações Institucionais, que já não me
recordava o nome. Do outro, estava um homem de meia idade, que eu
presumi ser o advogado da New Look Models, além da bela e sorridente
jovem que não parava de olhar para mim.
Notei que ela usava um conjunto “all black” composto por calça
social, top frente única, com um decote expondo a parte superior dos seios,
além do blazer longo e acinturado.
O tom rosáceo nas maçãs salientes indicava constrangimento e certa
surpresa.
Aquele, sem sombra de dúvida, era o meu dia de sorte.
A única cadeira vazia ficava justamente ao lado da cadeira dela,
porque o meu braço direito, Christian Dufour, ocupava a cabeceira da mesa.
— Conheça Jean-Luc Saint Vincent Laurent, presidente e CEO
interino da SVL Groupe, fundador da agência de publicidade e demais
empresas de mídia e comunicação. — Christian comentou, assim que eu me
sentei ao lado dela.
Estendi minha mão para um cumprimento formal, mas assim que
sua mão pequena e delicada apertou a minha, uma corrente elétrica
percorreu meu corpo, o levando a um sutil estremecimento.
— Como vai? — Era uma pergunta retórica, mas foi a primeira
coisa que me veio à cabeça, especialmente quando meus olhos insistiam em
se manter fixos no rosto que parecia mais luminoso e belo do que nunca.
— Ça va bien, monsieur — disse ela, confirmando que estava bem.
— Sou Marie-Claire Leblanc.
Pela expressão em seu rosto era óbvio que sabia bem exatamente
quem eu era.
— Eu me chamo Jean-Luc Saint Vincent Laurent. — Prolonguei o
aperto de mão por mais tempo do que o necessário, apenas para desfrutar do
calor que emanava de sua pele sedosa.
— Enchanté, monsieur.
— O prazer é todo meu, mademoiselle.
— Então, agora que estão todos aqui, nós já podemos começar? —
perguntou Christian, me tirando dos devaneios.
— Oui... É claro que podemos — respondeu a modelo, mas ela logo
olhou para mim, buscando por confirmação. Eu apenas assenti em
concordância, trocando um longo olhar com Christian, que daria início à
reunião do dia.
— Como Diretor Executivo de Criação, eu respondo diretamente ao
fundador e CEO da EGO Media, Jean-Luc Saint Vincent Laurent, que
conseguiu estar presente na reunião de hoje, apesar da dupla jornada no
grupo de mídia.
— É impressão minha ou existe mais alguém que deveria estar aqui
presente? — perguntei, curioso, ao me dar conta de que Désirée Guillaume
não se encontrava no local.
— Ela tinha um compromisso urgente e não podia mais esperar... —
Marie-Claire desviou o olhar por um breve instante, na inútil tentativa de
esconder o sorriso tímido se formando nos lábios.
— Camille Laurent também não está presente, mas nos deixou à
frente das negociações para a nova campanha da L’Beauté.
Como bem pontuou Constance, a minha irmã não teria participação
direta em todas as fases da campanha.
Eu logo cedi ao impulso de me inclinar para o lado e sussurrar no
ouvido dela, na expectativa de observar como ela reagiria ao sentir minha
respiração quente junto à sua pele corada.
— Além de ser CEO da L’Beauté Paris, Camille também é minha
irmã.
Ela ficou calada por alguns instantes, olhando diretamente para
minha boca, mas depois soltou um suspiro baixo, mas sexy o bastante para
fazer o meu corpo se agitar, internamente, e piscou os olhos, como que
despertando daquele transe momentâneo.
Escutei um leve pigarro saindo de sua garganta, enquanto levava a
mão ao pescoço, um gesto puramente instintivo, mas significativo o
bastante para constatar que o efeito dos meus lábios contra a pele macia
dela ainda permanecia vívido na memória.
— Participar desta campanha como nova embaixadora global da
L’Beauté Paris é uma honra para mim.
Constance estendeu suas mãos sobre a mesa em direção a modelo,
que as segurou com firmeza, e no instante seguinte, elas já trocavam um
sorriso amável.
— A honra é toda nossa, minha jovem — disse a diretora, com uma
rápida piscadela. — Você será a porta-voz da marca e emprestará sua
imagem para as campanhas de maquiagem, cabelo e cuidados com a pele a
partir do mês de setembro.
De repente, o advogado levantou a mão como se pedisse a palavra e
disse:
— O que mais preocupa a New Look Models é com relação à forma
como as imagens da modelo serão usadas em mídias sociais, entre outros
meios de comunicação.
Ele explicou ainda que os representantes da agência estabeleciam
um período de duração do contrato de exclusividade, e que normalmente
era de até no máximo seis meses.
— Posso responder em seu lugar, Constance? — perguntou o
Diretor de Marketing da L’Beauté. Como ela fez que sim com a cabeça, ele
logo prosseguiu: — Nosso objetivo é discutir a primeira campanha e só
depois negociaremos os termos da renovação do contrato, estabelecendo
algo em torno de duas a três campanhas por ano para a marca.
Christian se levantou da mesa a certa altura da reunião e entregou,
para cada um dos presentes, o material impresso produzido pela nossa
equipe de planejamento e criação, contendo todas informações discutidas
durante o último briefing, garantindo assim que a campanha fosse
executada tal como constava no plano de ação.
— Achei que as filmagens e a sessão de fotos seriam feitas aqui
mesmo, em Paris — comentou Marie-Claire, enquanto folheava o material.
Constance levantou os olhos e a encarou por cima dos óculos, antes
de falar:
— Como se trata do lançamento da linha de maquiagem de verão,
nós aceitamos a sugestão de Jean-Luc, e optamos pelo Sul da França, mais
precisamente a Riviera Francesa.
Desviei o olhar do material para poder complementar a fala dela:
— Este é o melhor período para se estar na Côte d'Azur, e o clima
ameno da primavera vai ajudar nossa equipe de arte, na elaboração do
conceito de design e concepção artística da campanha.
A modelo demonstrava seu interesse pelo assunto, com um levantar
de sobrancelha, e seus olhos azuis brilhavam como safiras expostas à luz,
visivelmente admirada.
— E onde, exatamente, será produzida as peças publicitárias?
— A cidade de Cannes esconde a villa privativa, que servirá como
locação.
— Jean-Luc possui mais residências do que pode morar, ainda mais
por se tratar de um solteirão convicto. — Meu sócio trazia no rosto um
misto de divertimento com presunção.
Lancei um breve olhar na direção dele e fiz uma careta, fingindo
estar ofendido.
Todos ao redor começaram a rir, meio discretamente, exceto a
modelo, que parecia tão desconfortável como eu me sentia naquele
momento.
— Nós podemos continuar de onde paramos... O que acha? —
perguntou Marie-Claire, me tirando daquela situação no mínimo
embaraçosa.
Eu me limitei apenas a confirmar com um gesto de cabeça. Até
tentei retomar a leitura do plano de ação, o que era um desafio e tanto
porque a beleza dela se tornou uma distração tentadora, a qual já não
conseguia mais ignorar.
De repente, escutei o som um inconfundível de uma risadinha, e ao
estreitar os olhos na direção dela, notei que ela não resistiu e também se
divertia às minhas custas.
Nós dois trocamos olhares cúmplices, mal conseguindo conter a
gargalhada.
— Peço que me desculpem — disse ela, em tom humilde.
Algo me diz, porém, que ela e eu partilhávamos do mesmo motivo
para rir, e que estava longe de ser devido ao comentário inconveniente do
meu diretor de criação.
O destino nos prega peças quando menos esperamos, nos levando a
reencontrar um certo alguém, que parece estar intimamente conectado
conosco.
Capítulo 7

Marie-Claire

Cannes, França.

2 meses depois...

Désirée e eu pegamos o trem com destino a Cannes, na estação Gare


de Lyon, nas primeiras horas da manhã, percorrendo um trajeto que durava
em torno de 5 horas e meia.
Não era comum que as modelos viajassem com seus gerentes ou
agentes, mas eles optavam por acompanhá-las em trabalhos ou atribuições
específicas, a depender do quão relevante eles fossem. A minha agente
precisava garantir que as minhas necessidades seriam atendidas durante as
filmagens, e também foi convidada para o tapete vermelho do Festival de
Cannes.
Tanto eu com as demais embaixadoras da marca L'Béauté Paris,
seguiremos juntas até o Palais des Festivals.
Désirée ocupava um dos assentos, equipados com mesa dobrável e
parecia bastante compenetrada, enquanto digitava em seu laptop, mas talvez
tenha sentido o peso do meu olhar, pois ela baixou a tela e me encarou por
cima dos seus óculos estilosos.
— No que está pensando, Marie-Claire?
— Em como fazer essa viagem ao Sul da França parecia um sonho
distante.
Notei um sorriso se insinuando nos cantos dos lábios dela.
— Mas já não é mais, chérie.
— Par la grâce de Dieu! — Juntei as palmas das mãos em sinal de
gratidão.
Ela mesma me disse que estrelar campanhas para marcas de
cosméticos era um marco profissional na carreira de qualquer modelo.
Anunciar para empresas de primeira linha rendia, para modelos e
celebridades, ganhos na faixa de seis a sete dígitos.
Comecei a fazer planos com o futuro pagamento, como
embaixadora da L’Beauté Paris.
Quem sabe eu consiga alugar um apartamento em Nova York,
mesmo que seja extremamente compacto e me custe uma pequena fortuna?
Deixarei Paris para trás daqui a seis meses. Deixarei para trás todo
meu passado.
Deixarei para trás uma agência que possibilitou a realização de um
sonho, quando na verdade era um pesadelo disfarçado.
A minha alma anseia por liberdade.
— Você tem ido ao médico, regularmente? — perguntou Désirée,
me tirando dos meus devaneios.
Eu só me limitei a confirmar, com um gesto da cabeça.
Entrei em uma espiral autodestrutiva nos últimos anos, obcecada em
controlar o meu peso a todo custo.
Quanto mais magra eu ficava, mais empregos eu conseguia. Porém,
as consequências não demoraram a aparecer: a menstruação suspendeu por
longos meses, e meu cabelo caiu muito. Eu me sentia tão fraca, que não
conseguia raciocinar direito durante os estudos, apresentei alucinações e até
cheguei a desmaiar algumas vezes em público.
Aos 17 anos, eu fui diagnosticada com anorexia e bulimia nervosa e
cheguei a pesar 39 kg. O meu pai felizmente nunca tomou conhecimento
das coisas que eu ingeri para poder driblar a fome. Só não usei nenhuma
droga, mas, de resto, fiz muitas coisas que colocaram a minha saúde em
risco.
Se meus agentes detectavam o menor ganho de peso, eles já me
instruíam a fechar a boca, imediatamente.
Com a chegada da L’Beauté como cliente de maior perfil, os meus
agentes tiveram que investir em um plano alimentar e rotina de exercícios
personalizados para mim, pois o contrato previa o acompanhamento de uma
equipe multidisciplinar, envolvendo nutricionistas, psicólogos e médicos. A
determinação constava de uma cláusula, não negociável, firmado com a
agência para a campanha publicitária da empresa.
Como não havia um departamento de RH para modelos, Patrick e
Désirée se viram obrigados a garantir que eu seguiria à risca as orientações
médicas, pois do contrário a marca deixaria de fazer o pagamento do cachê.
E por falar na empresa de cosméticos, eu jamais imaginei que o
destino me colocaria frente a frente com o homem que me agarrou, três
anos antes, em Nova York, e que por sinal era o irmão de Camille Laurent,
a poderosa mulher que me escolheu como nova porta voz de seu império.
Ele parecia sincero, quando disse que me confundiu com outra
modelo.
O interior do carro estava escuro. Eu inicialmente pensei que fosse
meu agente, mas Patrick se apresentou no evento com o rosto liso, e recém
barbeado. E pela primeira vez, eu não senti nojo, nem mesmo repulsa, pelo
homem que me puxou contra seu corpo quente e sólido como uma rocha.
Muito pelo contrário. Eu me vi entregue ao contato mais íntimo, quando
inclinei a cabeça para trás, permitindo que sua boca reivindicasse o meu
pescoço de um jeito duro e possessivo.
A aspereza da barba dele enviou ondas de choque até nas partes
mais sensíveis.
O homem que invadiu meus sonhos quase todas as noites, nos anos
que se seguiram, agora tinha nome e sobrenome: Jean-Luc Saint Vincent
Laurent.
O pai dele controlava uma das maiores empresas de
telecomunicações do mundo. Por ser o primogênito, Jean-Luc era
considerado o sucessor natural e estava sendo preparado para assumir em
definitivo o cargo de CEO da SVL Groupe.
Saí dos meus devaneios, quando o trem parou na estação Cannes-
Voyageurs, e as pessoas começaram a se levantar para sair. Désirée e eu
puxamos as nossas malas de rodinhas pela plataforma, e uma vez do lado de
fora, nós nos deparamos com um homem uniformizado, segurando uma
placa com os nossos nomes escritos nela.
— Esqueci de avisar que Monsieur Laurent colocou um carro com
motorista à nossa disposição — disse ela, bem-humorada. — Parece que ele
já está à nossa espera.
O meu coração disparou de contentamento e excitação, com aquela
notícia.
— Bonjour et bienvenue à Cannes! — O chofer nos cumprimentou,
antes de colocar nossa bagagem no porta-malas.
— Merci. — Respondemos em uníssono e entramos no sedã de
luxo.
A propriedade suntuosa que serviria como hospedagem, se situava
no bairro La Californie, bem no alto de um penhasco, oferecendo uma das
vistas panorâmicas mais incríveis da Riviera Francesa.
— Ouvi dizer que o milionário possui outros imóveis de luxo na
região — comentou Désirée, com a mesma empolgação de quem
compartilhava uma fofoca quente.
— Então ele vai ficar para acompanhar as filmagens? — Eu me
esforcei ao máximo para fingir casualidade, enquanto observava a paisagem
pela janela.
— Eu acho que ele só quer garantir que nós ficaremos bem
instaladas na villa. — Então, após alguns instantes de silêncio, ela tocou
meu braço, e se inclinou em minha direção com expressão séria. — Patrick
me pediu para alertá-la sobre Monsieur Laurent.
— Mas me alertar sobre o quê? — Franzi a testa, confusa.
— Monsieur Laurent é um homem bonito e extremamente sedutor.
Não sei se você sabe, mas ele já se envolveu com diversas modelos... Pelo
menos, até onde eu sei nenhuma delas tinha a sua idade.
— Então, não vejo motivo algum para se preocupar — ponderei,
com um dar de ombros, fingindo uma tranquilidade que estava longe de
sentir.
— Eu não estaria tão certa disso, Marie. — Ela estreitou os olhos
em minha direção, com desconfiança. — Homens como Jean-Luc são
conquistadores natos, e apreciam um bom desafio. Mas acho que não
teremos problemas, desde que mantenha uma distância segura dele,
entendeu?
Balancei rapidamente a cabeça em sinal de concordância, ciente de
que meu rosto já estava ficando vermelho, como se estivesse prestes a pegar
fogo.
— Sorte a minha que eu sou casada, aliás muito bem casada por
sinal, porque eu não resistiria ao charme de monsieur Laurent.
Nós fizemos o resto do trajeto, imersas em um silêncio pesado de
antecipação.

Quando o motorista nos deixou no estacionamento, nós caminhamos


por um grande pátio coberto por um lago de carpas e cachoeiras, que levava
até o hall de entrada.
O mordomo pessoal do milionário nos recebeu, e se disponibilizou a
nos levar a um passeio pela enorme propriedade, com design inspirado na
arquitetura tailandesa. Désirée parecia atenta às informações prestadas pelo
funcionário, mas eu estava mais interessada em observar de cima a baixo,
os detalhes excepcionais de cada ambiente.
Quando nós retornamos ao hall de entrada, eu me separei deles por
alguns instantes, e parei diante de uma réplica gigante do crânio de um
Tiranossauro rex. Não sabia dizer por quanto tempo eu fiquei ali, tentando
entender como alguém tinha um gosto tão peculiar para decoração.
Se bem que analisando melhor a concepção do lugar, parecia que eu
estava em um dos cenários da franquia Jurassic Park.
— Não se preocupe, ele não morde. — Disse uma voz meio rouca e
familiar, bem atrás de mim.
Eu me virei rapidamente, dando de cara com o milionário, olhando
para mim com um sorriso enigmático estampado no rosto. Engoli em seco,
enquanto meus olhos passeavam por aquele corpo sólido e atlético,
moldado pela camisa de linho, com as mangas arregaçadas no antebraço
inchado e cheio de veias grossas, combinada a uma calça chino e mocassins
de camurça.
— Bonjour, monsieur. — Minha voz saiu muito mais trêmula do que
esperava.
Eu estendi a mão para um cumprimento, mas em vez de estender a
dele para um aperto formal, ele inesperadamente segurou a minha, e a levou
aos lábios, beijando-a de leve.
Uma onda de calor me invadiu, e por mais estranho que pudesse
parecer, achei reconfortante receber um gesto de cavalheirismo, típico de
outras épocas.
— Bonjour, mademoiselle. — Os pelos dos meus braços se
arrepiaram, assim que Jean-Luc soprou aquelas palavras contra a pele
sensível. — Seja muito bem-vinda!
— Merci... — Eu agradeci, recolhendo a mão, e mantive ambas
cruzadas atrás das costas, na tentativa de ocultar o nervosismo. — Sua
propriedade é muito bonita.
— Qual parte você gostou mais e por quê? — Ele cruzou os braços
e ergueu uma sobrancelha, curioso, aguardando pela resposta.
— Bem... — Hesitei por alguns instantes, quando me lembrei de um
dos vários terraços panorâmicos da villa, com suas vistas de tirar o fôlego.
— O jardim foi o que mais chamou a minha atenção, por causa do extenso
mirante — respondi enquanto abria os braços, fazia careta e gestos
exagerados. Ele desatou a rir, com seus olhos castanhos ainda fixos em
mim. — Imagina só o privilégio de avistar o mar ao longe, especialmente
durante o pôr do sol, com as luzes cintilantes de Cannes... É algo que enche
nossos olhos.
Ele estava prestes a dizer algo, quando de repente ouvimos o som de
um sininho tocando, não muito distante dali.
— Monsieur! — O mordomo chamou, em voz alta e clara.
— Sim, Louis? — perguntou, sem se virar, pois sua atenção ainda
estava voltada para mim.
— Os demais convidados já chegaram e estão à sua espera na sala
de estar.
— Então mande servir o almoço, Louis! — pediu ele, antes de fazer
um gesto com a mão, indicando que eu deveria segui-lo. — O Christian é
quem cuida do planejamento e acompanha de perto a execução das peças
publicitárias, mas como se trata de uma campanha da L’Beauté Paris, eu me
sinto ainda mais responsável em todos os aspectos.
— Por causa de sua irmã... — Cogitei em voz alta, enquanto subia
os lances de escadas com degraus de mármore, que levavam até a área de
estar.
— Você tem irmãos? — perguntou ele, de repente, aparentando
autêntica curiosidade.
— Não, sou filha única.
— Sorte a sua não ter uma irmã exigente e voluntariosa.
— Ela é uma pessoa difícil de agradar?
— E como! Você nem imagina!
— Se serve de consolo, eu vivo cercada por pessoas com esse
mesmo perfil.
— Não me diga que já fizeram você sentir que não era boa o
suficiente? — Havia incredulidade em seu tom de voz.
Refleti por alguns instantes sobre o que ele disse, e parei de andar,
de repente.
— Eu sinto que esperam que eu seja perfeita — falei de forma
inexpressiva, com o olhar perdido em algum ponto para além do ombro
dele.
— As pessoas deveriam se aceitar como são, mesmo com suas
imperfeições.
— Mas não é assim que as coisas funcionam no mundo da moda.
— Aí estão vocês! — disse Désirée, enquanto andava apressada em
nossa direção. — Espero que Marie-Claire não tenha importunado o senhor
com bobagens.
— De forma alguma — retrucou, em tom gentil, e passou a me
encarar fixamente, com um sorriso enigmático nos lábios. — A nossa
conversa fluiu tão agradavelmente bem que eu até perdi a noção do tempo...
— Então, monsieur Laurent... — Désirée começou a dizer, mas ele a
interrompeu, sem tirar os olhos de mim.
— Pardon. Não me chame de senhor. Me chame apenas de Jean ou
Jean-Luc.
— Tudo bem, se prefere assim... — Désirée deu um sorriso sem
graça, antes de se posicionar ao meu lado, e me segurou pelo braço como se
eu fosse uma criança. — Agora, eu não quero parecer rude, mas todos nós
sabemos que você praticamente só se relaciona com modelos — prosseguiu
ela, o tom de voz quase cortante. — A lista é interminável, melhor eu nem
enumerar aqui. Enfim, você sempre teve uma mulher bonita à sua
disposição, mas com Marie-Claire será diferente. Entende o que quero
dizer?
Sentia-me profundamente envergonhada, mas continuei atenta à
menor reação que comprovasse o interesse dele por mim. No entanto, o
milionário se limitou apenas a arquear uma das sobrancelhas escuras,
enquanto encarava Désirée, atentamente.
Havia um brilho de divertimento e incredulidade no olhar.
Estranho, eu podia jurar que um sorriso irônico despontou dos lábios
dele, antes de assentir de modo quase imperceptível.
O silêncio constrangedor só foi quebrado pelas vozes dos
convidados, e quando o magnata se afastou para cumprimentá-los, eu
aproveitei e puxei minha agente para um canto, louca para dizer todas as
coisas que estavam entaladas na garganta.
— Já sou adulta e sei muito bem como me defender. — Meu corpo
inteiro tremia e precisei respirar bem fundo, antes de prosseguir: — Acho
impressionante como você nunca vê o que está debaixo do seu nariz.
— Do que está falando, Marie-Claire? — Ela parecia,
genuinamente, confusa.
— Existe alguém que deveria temer ainda mais do que qualquer
outro homem.
— Seja mais específica, chérie — insistiu ela, erguendo uma
sobrancelha, com incredulidade
Désirée jamais acreditaria em mim.
Seria a minha palavra contra a de Patrick.
Um homem que ela conhecia há anos, e em quem confiava
cegamente.
— Eu... Eu... — Gaguejei, incapaz de articular palavras em uma
mesma frase.
Salva pelo gongo. — Pensei, assim que o mordomo apareceu,
dizendo que o almoço já estava servido.
Todos conversavam animadamente à mesa, rindo e apreciando os
pratos feitos por um chefe de cozinha renomado, mas eu quase não toquei
na comida, e que diferente da dos demais convidados, fazia parte do
cardápio elaborado por uma nutricionista.
Passei a mexer com o garfo distraidamente no prato de salada,
quando me veio uma vontade irresistível de arriscar um olhar na direção de
Jean-Luc. Tão logo nossos olhares se encontraram, eles se fixaram um no
outro como se um imã gigantesco nos detivesse, com sua força esmagadora.
Sustentei o olhar dele por tempo suficiente para notar que seus olhos
castanhos escuros e penetrantes transmitiam alguma curiosidade juvenil, os
lábios lentamente delinearam um sorriso travesso.
Se os olhos eram mesmo o espelho da alma, eu arriscaria dizer que
não havia maldade naquele homem tão perturbadoramente sexy.
Capítulo 8

Marie-Claire

A natureza presenteou os franceses com um dia ensolarado e a


temperatura mais amena, típica de um dia de primavera.
Decidi fazer a minha corrida matinal, enquanto colocava os meus
fones de ouvido sem fio, para escutar a playlist com as músicas das minhas
bandas favoritas.
De repente, eu parei de correr, tirei a garrafinha do cinto de
hidratação preso à bermuda fitness, e a levei à boca para aplacar um pouco
a sede.
Quando eu já estava prestes a retomar a corrida, uma silhueta
chamou minha atenção.
Avistei ao longe o que parecia ser um homem mergulhando e em
seguida voltando à superfície. E, embora o sol ofuscasse a minha visão, deu
para reconhecer nitidamente Jean-Luc, dando longas braçadas no mar sem
ondas, em direção ao pequeno píer de madeira.
Eu o observei subir ao píer e se secar com o auxílio de uma toalha.
Por alguns instantes, eu me senti incapaz de raciocinar, o atrevimento foi
tanto que passei a medi-lo de cima a baixo, observando as gotículas de água
escorrendo pelo peitoral, passando pelo abdome trincado até se perder na
musculatura da região que formava um V.
Os meus olhos estavam praticamente vidrados, acompanhando o
menor de seus movimentos. O tecido do calção de banho grudou nas coxas
bem torneadas, e se moldaram à bunda firme e um pouco avantajada dele.
Aquela era de fato uma praia privativa, tanto que apenas moradores
e convidados da villa tinham acesso a ela. Cogitei se o milionário queria
manter sua privacidade.
A vergonha atingiu em cheio o meu rosto, afinal a minha
permanência ali não era nada apropriada, então eu virei as costas e saí
correndo, sem nem pensar duas vezes.
Minutos mais tarde, a maquiadora dava os últimos retoques da
maquiagem natural e iluminada, enquanto outro profissional cuidava das
minhas madeixas soltas e levemente bagunçadas, dando um ar mais
despojado ao visual, mas sem abrir mão da elegância. O look escolhido para
a sessão de fotos: um vestido branco de tecido texturizado e levemente
transparente, com mangas longas, decote em V profundo, e fenda lateral.
Segui as orientações do fotógrafo e reproduzi algumas poses,
quando, de repente, uma silhueta surgiu no meu campo de visão. Eu ergui o
olhar a tempo de ver Jean-Luc se aproximar de um dos terraços com vista
panorâmica para o mar de Cannes.
Ele abriu uma garrafa de Evian, e bebeu um longo gole d’água, sem
tirar os olhos de mim. Virei meu rosto e continuei posando para as lentes do
conceituado fotógrafo, aparentando uma naturalidade que estava longe de
sentir, e quando meus olhos encontraram os dele de novo, reconheci o
brilho feroz e animalesco queimando cada célula do meu corpo, enquanto
avançava em direção à minha alma.
Voltei a me concentrar nas poses, mas em determinado momento,
arrisquei um olhar na direção da sacada, mas ele já estava mais lá, o que me
frustrou um pouco.
Durante o intervalo, um garçom apareceu e serviu uma jarra de suco
natural de laranja e sem açúcar. Conversei um pouco com Désirée, mas ela
precisou atender uma chamada de seu celular. Achei que ficaria no sozinha
na área da piscina, até que de repente Jean-Luc se aproximou de mim,
acompanhado pela irmã dele, Camille.
Eu só a conhecia através de fotos dos editoriais de beleza, mas a
mulher exalava beleza e sofisticação por todos os poros. Ela era alta, magra,
com cabelos pretos e lisos cortados na altura dos ombros, emoldurando o
rosto de traços finos, com sobrancelhas, grossas e bem desenhadas, além do
pequeno nariz reto e um queixo levemente pontudo.
— Bonjour. — Saudei os dois, com um rápido aceno de cabeça.
— Bonjour! — repetiu ambos, praticamente ao mesmo tempo.
Camille me avaliou de cima a baixo, com um semblante de
aprovação.
— O meu irmão tinha razão, quando disse que você é ainda mais
bela pessoalmente do que nas fotografias dos editoriais de moda. — Ela deu
um passo à frente e estendeu a mão para um cumprimento formal.
— Oh, merci! — Agradeci, sentindo o rubor se espalhar pelas
bochechas já marcadas pelo blush em tom de pêssego-alaranjado. —
Enchanté, Madame Laurent. — Nós trocamos um aperto de mão firme,
porém caloroso.
— Eu também sou jovem, assim como você, Marie-Claire. — O
belo rosto se iluminou com um sorriso cordial. Depois, ela se inclinou para
a frente com a expressão séria. — Caso não se importe, me chame pelo
primeiro nome, por favor.
— Très bien! — concordei, esfregando as mãos, nervosa.
— Como se sentiu ao saber que se tornou a modelo mais jovem a
entrar para a lista de embaixadoras da L’Beauté Paris?
— Eu me senti tão honrada de ter sido escolhida entre tantas
mulheres incríveis e talentosas, que só pensei em dar o melhor de mim para
merecer esta oportunidade. — A empolgação do meu tom de voz era
evidente. Ser porta-voz de uma marca de cosméticos reconhecida
mundialmente foi a melhor coisa que poderia ter acontecido em minha vida.
Nós sorrimos uma para a outra, como se já nos conhecêssemos de
longa data.
— Camille tem um faro incrível para os negócios, especialmente
para reconhecer uma verdadeira beldade como você, que possui um futuro
promissor pela frente... — Jean fixou os olhos em mim, com uma
intensidade que me fez estremecer.
Pensei em dizer algo, mas me calei ao notar a aproximação da
minha agente, que também cumprimentou a recém-chegada.
— Não imaginei que a encontraria aqui... — comentou minha
agente, estreitando um olhar curioso para a CEO da L’Beauté Paris.
— A minha irmã cancelou todos os compromissos para vir à
Cannes, porque infelizmente não trouxe boas notícias. — Jean-Luc cruzou
os braços sobre o peito, aparentando estar levemente aborrecido, pela
primeira vez, antes de voltar a atenção para a irmã. — Você mesmo conta,
ou eu conto o que aconteceu?
— Eu mesma conto, pode deixar — A irmã dele respondeu de
imediato, torcendo um pouco o canto dos lábios. — Já estava tudo certo
para o ator norte-americano, Axel Madsen estrelar a nova campanha da
L’Béauté, chamada L’Amour Toujours[3].
— Ele foi contratado para ser o par romântico de Marie-Claire na
peça publicitária, mas isso todos nós já sabemos.
— A gente estava aguardando ansiosamente a chegada dele... — Eu
complementei a fala de Désirée, com cautela. — Aconteceu alguma coisa?
— A assessoria entrou em contato, informando que ele sofreu um
pequeno acidente, e está impossibilitado de trabalhar, pelas próximas
semanas. Sendo assim, a melhor forma de lidar com essa situação é utilizar
o "plano b". — Então, ela voltou sua atenção para Jean-Luc, que parecia um
tanto constrangido. — E por “plano b”, eu me refiro ao meu querido irmão
mais velho.
Eu engoli em seco, e passei a encará-la com um misto de surpresa e
incredulidade, diante de tamanho absurdo.
— Não existe a possibilidade de talvez contratar outro ator ou algum
modelo?
— Isso é totalmente inviável, Marie. Existe toda uma logística por
trás dessa campanha, e preciso seguir rigorosamente o cronograma de
lançamento mundial do filme.
— Eu ainda acho essa ideia completamente descabida, Camille. —
Jean-Luc se apressou em dizer, encolhendo os ombros. Havia um tom de
desespero na voz dele, eu podia sentir isso.
— Você, mais do que ninguém, sabe que certas situações exigem
improvisos, Jean. E além do mais, você é um homem bonito, tem pinta de
galã... vai se sair muito bem.
— Tem de haver outra solução. — Désirée insistiu, nervosa.
Sem pensar duas vezes, eu já fui logo dizendo, para resolver de vez
aquele impasse:
— Tudo bem, tudo bem. — Soltei um longo suspiro de resignação.
— Eu estou plenamente de acordo. — Então, fechei meus olhos
momentaneamente, tentando prever quais seriam os desdobramentos
daquela decisão. Que Deus me ajude!
A proposta da nova campanha da marca era contar uma história de
amor de verão, após um encontro casual na praia, entre uma jovem escritora
e um homem extraordinariamente atraente, inteligente, espirituoso, um
verdadeiro bon vivant que mais parecia ter saído das páginas de um de seus
romances.
— Se serve de consolo, não vai haver beijo; entre vocês não vai
haver nada.
Camille foi taxativa, ao fazer aquele comentário, mas eu não poderia
estar mais apreensiva. De todas as pessoas presentes naquela mansão,
apenas minha agente sabia que a tensão sexual existente entre Jean-Luc e eu
era tão forte, que era quase palpável.
Respirei fundo e estreitei os olhos para o meu novo par romântico.
Jean-Luc não parecia ser do tipo que tirava proveito de uma situação
que só o beneficiaria, muito pelo contrário. As sobrancelhas escuras e
grossas se uniram em sinal de preocupação, enquanto me encarava
atentamente, com a expressão interrogativa.
— Você tem certeza disso, Marie? — insistiu ele, como que para se
certificar de que não havia nenhum resquício de dúvida pairando sobre
minha cabeça.
Era a primeira vez que ele me chamava pelo primeiro nome, mas
precisava soar de uma maneira tão sexy?
— Está tudo sob controle, Jean. — Eu assegurei, esboçando um
sorriso tímido.
— Perfeito! — Camille bateu palmas, entusiasmada. — Voltemos
agora ao trabalho!
Désirée e eu pedimos licença aos dois, e nos afastamos da área
externa. Como eu precisava fazer outra troca de roupa para a sessão de
fotos, a minha agente praticamente me puxou pelo braço e falou baixinho:
— Mantenha distância daquele homem para o seu próprio bem.
Você não passaria de mais uma conquista na extensa lista de beldades que já
cruzaram o caminho dele.
Eu ignorei aquele comentário e cedi ao impulso de arriscar um
último olhar na direção dele. Notei um brilho diferente emanando nos olhos
castanhos. Havia algo de fascinante e traiçoeiro neles, a ponto de me
arrastar completamente para as profundezas.

Subi os três lances de escadas, que levavam ao pavimento superior,


mas ao me virar para seguir até o quarto de hóspedes, eu acabei me
esbarrando em Jean-Luc. Deixei escapar um arquejo de surpresa, com as
mãos espalmadas sobre seu peito largo, e mesmo estando quase sem fôlego,
consegui murmurar um pedido de desculpas.
— Pardon, monsieur...
— Eu precisava mesmo falar com você. — E dizendo isso, ele me
puxou delicadamente pelo braço e me conduziu para um canto afastado,
onde ninguém pudesse nos ver, ou mesmo ouvir a nossa conversa.
— Mas preciso tomar uma ducha... — murmurei, assim que minhas
costas nuas tocaram a parede, o coração já martelando furiosamente dentro
do peito. — Estou bem pegajosa, sabe? Uma mistura de suor, protetor solar
e água salgada. Acredita que tem areia até o meu último fio de cabelo?
O milionário se inclinou para frente, o hálito quente soprando em
minha orelha fez uma onda de excitação fluir por cada célula do meu corpo.
— Eu gosto assim, Marie — sussurrou ele, com a voz rouca de
desejo. — Sua beleza natural me provoca e exige de mim um esforço
imenso para não te tomar de novo em meus braços.
Ele nem ousou tocar em mim, pois as mãos estavam espalmadas na
parede, mas aquela perigosa proximidade fez o bico dos seios ficar
intumescido, sob a blusa cropped. O ponto sensível entre as pernas
começou a se contrair, em pulsações agudas e rápidas, servindo de estímulo
para a lubrificação fluir, a ponto de encharcar a parte de baixo do meu
biquíni.
— Nós não podemos... — Supliquei, a voz tão fraca que era quase
um sussurro, ainda embriagada pela fragrância masculina inconfundível do
Sauvage Dior.
— Você tem toda a razão — O milionário exalou o ar, pesadamente,
enquanto se afastava de mim, mesmo relutante. — O que fiz foi errado e
peço desculpas por isso.
Então, uma ideia me ocorreu, ao me lembrar do roteiro da peça
publicitária.
— Se bem que a gente precisa convencer o público de que somos
um casal apaixonado... Talvez a gente devesse ler, juntos, o roteiro. O que
acha?
Mon Dieu! E se eu estiver mesmo apaixonada por ele?
Restava saber como eu poderia explicar para minha terapeuta, que
eu quase cedi às investidas de um homem; o mesmo que me agarrou contra
o banco de um veículo, imaginando que eu fosse outra pessoa, três anos
antes, em Nova York.
O semblante dele mudou, perceptivelmente, passando da confusão
para a curiosidade e depois para uma indisfarçada satisfação, pois mal
escondia o sorriso presunçoso no rosto.
— Encontre-me na adega, que também é uma sala de degustação, às
9 horas.
Franzi a testa e balancei a cabeça, quase que de modo imperceptível.
— Mas eu não posso beber álcool.
— Eu lamentavelmente também não. — Ele riu, debochando de si
mesmo.
De repente, senti os dedos grossos tocarem a lateral do meu rosto
em uma carícia lenta, a ponto de me fazer meus olhos se fecharem. Eu nem
ousei me mexer, ainda inebriada pelo calor, pelo cheiro de seu perfume e
pela virilidade dele.
— Nos vemos mais tarde então? — Ele tocou a ponta do meu nariz
de um jeito brincalhão e provocante.
— Certo, nos vemos mais tarde.
Jean-Luc se virou e saiu andando, com sua postura empertigada e
imponente.
As horas praticamente se arrastaram, mas quando eu segui até a
adega, encontrei Jean-Luc sentado à enorme mesa de madeira rústica,
rodeada por dois bancos compridos e sem recosto. Ele aparentou ter
pressentido minha presença, ao levantar a cabeça, e esboçou um sorriso tão
caloroso que eu quase me desmanchei inteira, como uma manteiga
derretida.
— Devo confessar que, por um momento, eu pensei que não viria.
Seu olhar percorrendo minunciosamente o meu corpo, de cima a
baixo, provocou uma fisgada violenta no clitóris. A sensação era a de que
ele arrancou minha roupa apenas com o olhar. Escolhi um look simples,
composto por short e cropped de cor amarela e com a manga curta e
flutuante, além de um maxi colar branco.
— Eu... Eu sempre cumpro com a minha palavra. — Odiei ter
gaguejado daquela maneira só por estar sentada ao lado dele.
Notei que havia uma tábua de frios, além de pães variados e algum
tipo de doce.
— Pode parecer uma combinação um pouco estranha, mas o suco
natural de uva também harmoniza bem com a tábua de frios — disse ele,
enquanto enchia dois copos.
— Imagina... Está tudo perfeito. — Pigarreei, na tentativa de
disfarçar o nervosismo. — Eu quero te pedir desculpas pela forma como
Désirée falou contigo — prossegui, disposta a ser franca com ele. — Para
ser sincera, ela me aconselhou a manter distância de você. Désirée é um
pouco superprotetora, porque pensa no que é melhor para mim e para a
agência.
— Mas eu não tiro a razão dela. Já namorei várias modelos. — Com
expressão impassível, o magnata baixou o olhar para os meus lábios e
completou: — Só que ao contrário delas, você ainda tem resistido a mim.
A franqueza da resposta me deixou completamente sem palavras.
Eu nem mesmo tive forças para sustentar o olhar fixo dele, os olhos
castanhos escuros me devoravam de todas as formas possíveis.
— Você se recorda que eu te conheci, quando você tinha apenas 16
anos? — Jean-Luc quebrou o silêncio, mas a voz saiu tão fraca, que era
quase um sussurro.
Minhas mãos tremiam, enquanto enrolava a fatia de peito de peru
sobre o pão.
— Se bem me recordo, você agiu como se eu tivesse uma doença
contagiosa, quando soube a minha idade...
— Eu te confundi com outra pessoa... Foi vergonhoso, para dizer o
mínimo.
Do nada me veio um ataque de riso, e levei minha mão à boca,
morrendo de vergonha.
— Preciso admitir que aquela situação foi bem constrangedora.
— Pelo menos você não é mais uma adolescente, Marie. — Ele
ergueu uma das sobrancelhas, e seus lábios se curvaram ligeiramente, em
um sorriso enigmático.
De repente, o som inconfundível de música clássica preencheu o
ambiente.
Era a canção La vie en rose, da consagrada cantora francesa, Édith
Piaf.
— Minha mãe costumava ouvir muito essa música... — A minha
voz embargou e, enxuguei discretamente as lágrimas que insistiam em rolar
pelo meu rosto.
— Dancemos em homenagem a ela, então. — Ele se levantou da
mesa e estendeu a mão direita, esboçando um sorriso acolhedor capaz de
me aquecer por inteiro.
Hesitei por alguns segundos, enquanto olhava admirada para a mão
bem cuidada dele, exibindo um dorso cheio de veias salientes. Eu senti um
frio na barriga, quando seus dedos envolveram os meus, mas me deixei ser
conduzida por ele.
Um arquejo de surpresa escapou da garganta, assim que Jean-Luc
pressionou seu corpo junto ao meu, mantendo uma de suas mãos na parte
inferior das minhas costas.
Nós passamos a dançar, sem pressa, trocando olhares de íntima
cumplicidade.
O contato visual permitia uma conexão a um nível mais profundo,
tanto que meus olhos não se desviaram dos dele, em nenhum momento.
Eles pareciam mais brilhantes do que nunca, transmitindo verdadeira
adoração, e algo mais que eu não ousei identificar.
Eu tinha a nítida sensação de que havia uma atmosfera de
familiaridade.
Era quase como se nós dois estivéssemos conectados, desde outros
tempos.
O meu coração parou de bater por uma fração de segundo, quando
ele se inclinou para frente, o olhar fixo em minha boca, coberta por um
batom coral da marca L’Béauté Paris, enquanto esfregava os lábios um no
outro, para umedecê-los.
— Será que este batom resiste a um beijo ardente? — perguntou ele,
a voz tão rouca fez o ponto sensível, por entre as pernas, se contrair,
dolorosamente.
Quando Jean-Luc estava prestes a capturar meus lábios, eu me
desvencilhei dele modo brusco, sentindo um incômodo aperto no peito, o
coração batia tão descompassado a ponto de quase subir à garganta.
— Não confunda as coisas, Jean. — Minha voz saiu mais ríspida do
que gostaria. — Você tem sido gentil comigo, mas não sei quais são as suas
reais intenções. De minha parte, prevalece o profissionalismo, afinal eu
estou aqui a trabalho e não quero comprometer a minha carreira. Tenho
mais a perder do que você imagina. Bonne nuit.
Eu o observei engolir em seco, fazendo o pomo de adão subir e
descer, enquanto me encarava com consternação no olhar, e então lhe dei as
costas, saindo depressa da sala de degustação e adega.
Uma vez no quarto de hóspedes, encontrei Désirée colocando suas
coisas de volta na mala. Ela parecia bastante transtornada, então perguntei o
que houve. Ela permaneceu em silêncio por alguns instantes, antes de dizer
que precisava voltar para Paris.
— Recebi uma mensagem do meu marido. Nossa filha mais velha
está internada no hospital, pois sofreu uma queda e bateu fortemente a
cabeça.
— Oh, Mon Dieu! — murmurei, deixando o corpo cair pesadamente
na beira da cama. Havia duas camas de solteiro colocadas uma ao lado da
outra. — Sinto muito.
— Felizmente, não foi nada grave, mas os médicos decidiram
mantê-la no hospital para observação. — Ela também se sentou, com um
cotovelo apoiado na perna, e o olhar perdido em algum ponto do quarto. —
Ele disse que a caçula tem chorado muito e que sente a minha falta. Eu vou
pegar o primeiro trem da manhã, mas não se preocupe. Patrick já se
comprometeu a me cobrir no trabalho.
— Ele não precisa vir para cá, certo? — Perguntei, incapaz de
ocultar o tom de pânico na própria voz.
— Mas é claro, chérie. Talvez Patrick esteja presente no Festival de
Cannes daqui a duas semanas.
A resposta que mais temia ouvir embrulhou meu estômago e corri
até o banheiro, achando que poderia vomitar, mas tudo que subiu à garganta
foi um soluço abafado pelas lágrimas. Abri a torneira e joguei água no
rosto, esfregando-o com movimentos rápidos e sucessivos, enquanto
observava meu reflexo no espelho com reprovação no olhar.
Eu jamais esqueceria as palavras da minha amiga, a modelo Inès
Delacroix:
“Coisas ruins acontecem com modelos muito novas, Marie.”
Faltou pouco, muito pouco para que algo de muito ruim acontecesse
comigo.
Tinha apenas 16 anos na época, então imaginava que fazia parte da
natureza de um homem se comportar de maneira inapropriada, quando se
interessava por uma mulher. No entanto, conforme o tempo passava, as
investidas de cunho sexual, e sem o meu consentimento, vindas do meu
chefe, se tornaram cada vez mais frequentes.
Se eu ficava triste com uma rejeição após o casting, ele me
consolava e me dava apoio, dando um abraço mais longo, ou como quando
Désirée gritou a plenos pulmões comigo após o telefonema de um designer,
exigindo satisfação por eu ter chegado atrasada ao show dele. Patrick saiu
em minha defesa, porque sabia que eu corri para o hospital, após ter
recebido a notícia da internação do meu pai. Jacques passou por exames
clínicos que constataram o princípio de um infarto, mas ele recebeu alta
cinco dias depois.
Em suma, os limites do contato físico com meu chefe se tornaram
cada vez mais confusos, e passei a me culpar constantemente, pensando se
eu dei abertura de alguma maneira, a ponto de Patrick confundir as coisas
comigo.
Eu sabia muito pouco sobre relacionamentos. Na verdade, a minha
concepção sobre eles era bem limitada e um tanto idealizada, ainda mais
por fazer parte de uma geração que cresceu lendo contos clássicos sobre
príncipes e princesas.
Patrick usou minha vulnerabilidade a favor dele, já que assumiu
uma função quase paterna, cuidando não apenas de mim e dos meus
interesses, como também de outras modelos, especialmente as iniciantes.
Certo dia, quando eu retornei para a agência, ele veio até mim, e
me puxou com força pelo braço, insistindo em me levar para jantar, afinal
ele tinha conseguido fechar um importante contrato de US$250 mil, que me
tornaria o novo rosto da Dior Joaillerie.
Eu só aceitei porque ele me garantiu que Désirée nos encontraria
no restaurante para comemorar a conquista, mas os minutos passaram e
ela não apareceu no local.
Naquela época, aquela ausência dela me afetou mais do que eu
gostaria de admitir.
Patrick me observou remover o queijo e o molho da salada verde, e
elogiou meu profissionalismo, ressaltando que se sentia orgulhoso de mim
por ter seguido uma dieta rígida. Porém, o meu estômago só embrulhou
mesmo com o comentário seguinte. Ele disse que eu parecia um mulherão,
embora só tivesse dezesseis anos de idade. A minha única reação foi pedir
licença, antes de sair correndo, em direção ao banheiro.
Vomitei todo o jantar naquela ocasião.
Assim que eu voltei para a mesa, ele pediu a conta ao garçom. Eu
mal consegui disfarçar o alívio de poder ir embora, mas eu nem bem
coloquei meus pés na calçada, fiquei tonta e as minhas pernas fraquejaram.
Naquele momento, eu pressenti que algo estava errado, e me lembrei da
sensação de tudo ter girado ao meu redor.
Patrick me amparou em seus braços, e alguém trouxe uma cadeira
para eu poder me sentar. Ele me pediu para respirar fundo até a pressão
arterial se normalizar.
Só percebi minutos depois, o quão horrivelmente nojento o meu
agente era. Nem mesmo os estilistas ousaram tocar o meu corpo, sem o
meu consentimento. Eles sempre me pediram permissão, e até os fotógrafos
com quem trabalhei me tratavam com respeito.
Como a maioria das mulheres, eu fui criada para ser gentil,
educada, subserviente e amável. Além disso, eu sempre fui muito
sonhadora, mas fazer parte daquele mundo de cheio de luxo, festas e
flashes custava caro demais.
Quantas modelos menores de idade não foram vítimas de homens
mais velhos, que se revelavam verdadeiros predadores sexuais?
Odiava me lembrar daquela noite quente de verão de um dia
qualquer de julho, quando passei pela experiência mais degradante da
minha vida, e que estava longe de ser um quase desmaio na calçada de um
dos restaurantes mais sofisticados de Paris.
Patrick insistiu em me dar uma carona, alegando que era muito
arriscado ficar sozinha, pois poderia passar mal de novo. Eu achei que me
sentiria melhor na casa do meu pai, ao invés do minúsculo apartamento
que dividia com mais cinco meninas.
Agora eu me arrependo amargamente daquela escolha.
Não sei se foi o balanço do carro, acelerando pelas ruas de Paris
ou se foi o efeito da vertigem anterior, mas fiquei tão sonolenta, que acabei
dormindo no banco do carona. Despertei apenas quando senti um arrepio
subindo ao longo da lombar, mas meus olhos estavam tão pesados que eu
mal conseguia abrir direito.
Entretanto, mesmo com os olhos semicerrados, eu presenciei o
momento em que Patrick afastou os cabelos do meu rosto, com o intuito de
me beijar nos lábios.
Tentei me endireitar no assento, mas acabei gemendo de dor, e
inesperadamente meu corpo foi projetado para trás. Patrick baixou o
encosto do meu banco e, no instante seguinte, deslizava a mão por dentro
da saia até alcançar minha calcinha. Eu tentei gritar, mas a garganta
travou de um jeito que eu mal conseguia respirar. Então, eu reuni o pouco
da energia que me restava e o empurrei com toda força, e tateei a porta do
carro, à procura da trava. O desespero aumentou, quando eu me dei conta
de que as travas eram automáticas e controladas apenas pelo motorista.
Ele voltou a me agarrar, dizendo coisas como “Você vai gostar”, “É
só um pequeno toque”. E como se Deus iluminasse a minha mente, eu me
lembrei das coisas na bolsa, e vasculhei dentro dela até encontrar um spray
bucal extraforte. Eu mirei diretamente nos olhos dele, que uma vez
atingido, os esfregou furiosamente.
Não perdi mais tempo e apertei tudo que era botão para destravar a
porta.
Saí correndo o mais rápido que as minhas pernas permitiram, sem
sequer olhar para trás.
Semanas depois, eu criei coragem para conversar com outras
modelos, e soube que não tinha sido a única vítima.
Modelos experientes já tinham me alertando sobre o mundo da
moda estar infestado de maus profissionais, que assediavam sexualmente de
jovens menores de idade, especialmente as principiantes. Mas as meninas e
eu poderíamos sofrer algum tipo de retaliação. Denunciar publicamente
nosso agente significaria o fim de nossas carreiras.
Sem provas, ou uma confissão de culpa, Patrick certamente sairia
impune.
Capítulo 9

Jean-Luc

Uma parte das filmagens ocorreu em Antibes, localizada a menos de


30 minutos de Cannes, e conhecida por suas ruas estreitas, de
paralelepípedos e casas históricas.
Foram longas horas encenando com Marie-Claire, e
surpreendentemente eu me senti à vontade para ser eu mesmo, afinal a as
motivações do personagem, e sua personalidade não se diferenciavam em
nada da minha imagem: um homem de muitas mulheres.
Havia uma linha tênue, onde a realidade e a ficção se confundiam.
Após ouvir as instruções do diretor de arte, Marie colocou o
capacete e subiu na garupa da vespa. Depois, passou os braços em torno da
minha cintura, como se a vida dela dependesse disso. Era prazeroso ser
abraçado por ela e sentir o calor do corpo esguio, que se encaixava junto ao
meu, com deliciosa facilidade.
No entanto, as palavras da modelo não me saíram mais da cabeça.
“Tenho mais a perder do que você imagina.”
Por mais que Marie-Claire se esforçasse, ela não era indiferente a
mim.
Estreitei meu olhar sobre ela, ao mesmo tempo em que refletia sobre
o efeito daquele contato tão íntimo. Podia jurar que a modelo estava tão
mexida quanto eu, a julgar pelo brilho dos olhos dela, mas pelo pouco que a
conhecia, sabia que manteria uma postura profissional, para não
transparecer as emoções conflitantes que nutria dentro de si.
Precisei conter ao máximo a ereção que pressionava a calça,
decorrente do tesão reprimido por ela, só de relembrar que na noite anterior
faltou pouco para desfrutar daqueles lábios ostensivamente sensuais, e
talvez ainda intocados. Cada poro de seu corpo parecia sinalizar claramente
que ela se manteve pura e intocada ao longo dos anos.
Saí dos devaneios, ao escutar a voz do diretor gritando: “Atenção,
gravando!”.
Acelerei a vespa pelas ruelas da cidade antiga, seguido de perto pelo
operador de câmera, que se deslocava através dos trilhos montados no chão
de paralelepípedos.
Na cena seguinte, eu me aproximei da modelo, que estava encostada
ao gradil, e prendi uma pequena flor atrás da orelha dela. Marie
instintivamente levou a mão ao cabelo, fazendo com que nossas mãos se
tocassem e se entrelaçassem.
A câmera captava em detalhes a expressão facial, especialmente o
rosto realçado pela maquiagem da L’Beauté Paris. E foi naqueles preciosos
segundos, que o sorriso dela se iluminou ainda mais, possibilitando que eu
me inclinasse para tentar lhe roubar um beijo.
Em pensar que eu estava louco para provar aqueles lábios
suculentos.
A modelo se desvencilhou dos meus braços e saiu correndo, em
direção à bicicleta, montou nela e saiu pedalando, cheia de graça e
elegância, com seu top preto e saia longa estampada. O chapéu estilo Paris,
de aba grande, sendo levado pelo vento deu um toque de romantismo à
cena, então eu me abaixei e o peguei do chão, abrindo um sorriso que era
um misto de ironia, malícia e presunção.
O diretor pediu para repetir a cena, o que me deixou profundamente
satisfeito.
Quem não conseguiu disfarçar seu desagrado foi Patrick Dupont,
que mesmo carregando um semblante impassível, manifestou algum
desprezo ao ver sua agenciada e eu juntos, em perfeita sintonia.
De repente, ouvi a voz do diretor gritar “Corta!”, interrompendo a
tomada.
— Você tem se saído muito bem — elogiou, visivelmente
impressionada.
— Eu devo isso a você, Marie — Meu rosto se iluminou num
sorriso sedutor.
Ela retribuiu o sorriso e, por alguns instantes, os meus olhos ficaram
vidrados no contorno dos lábios carnudos, e ligeiramente entreabertos pela
respiração ofegante, até que de repente a voz de Patrick Dupont se interpôs
entre nós dois:
— Marie-Claire! — Ele fez um gesto com a mão para chamá-la,
impaciente.
A modelo caminhou na direção dele, com a cabeça abaixada. Não
deixei de me perguntar o que aquele sujeito disse para ela, a ponto de fazê-
la se encolher um pouco, e cruzar os braços, as linhas em sua testa franzida
e a mandíbula contraída mal ocultavam o seu desagrado.
Eu estava tão distraído, que me assustei ao ouvir a voz da minha
irmã.
— Patrick não passa de um sujeitinho asqueroso, metido em ternos
Armani. — Ela exibiu uma careta, mas depois ficou séria. — Monsieur
Dupont pode ser bem intimidador quando supervisiona o trabalho das
modelos. Talvez seja implicância minha, mas não consigo fingir que
simpatizo com ele, acredita?
Parei de prestar atenção ao que ela dizia, quando Marie-Claire me
encarou, e mesmo à distância dava para ver um pedido de socorro incutido
nos olhos azuis intensos.
— Acho melhor nós nos juntarmos a eles. — Puxei Camille pelo
braço, enquanto andava na direção dos dois. — Monsieur Dupont, a sua
agenciada é, de longe, a melhor de todas. — Dei tanta ênfase e
profundidade à voz, que o coração até se acelerou.
Merde! Há algo de muito errado. Eu sempre estive no controle de
tudo. Só preciso levar aquela jovem para a cama, e a esqueceria no dia
seguinte.
— Ela é mesmo digna de todos os elogios — concordou Patrick,
com um sorriso forçado.
Camille olhou para o agente com uma expressão de súplica.
— Espero que não se importe se eu monopolizar a atenção da minha
embaixadora. Preciso passar novas instruções para ela agora...
— Perfeitamente, mademoiselle — concordou ele, antes de lançar
um olhar frio em direção à modelo. — Não se esqueça do que conversamos,
Marie.
A jovem se limitou apenas a concordar com um gesto de cabeça, e
acompanhou minha irmã até a estação de trabalho da equipe de filmagens.
Ouvi um pigarro seco, enquanto observava as duas mulheres se
afastar.
— Ela é mesmo fascinante, mas você não é o primeiro e único
homem a colocar os olhos nela, monsieur. — Patrick me encarava com um
profundo desdém estampado no rosto. — E se me permite um conselho, não
perca o seu precioso tempo. Ela não é como as outras... Marie-Claire tem
aversão a homens.
Eu cruzei os braços, cada vez mais convencido de que Patrick não
passava de um calhorda, que rebaixava, desqualificava e discriminava uma
mulher.
Decidi sondá-lo para saber suas reais intenções, em vez de
confrontá-lo, diretamente.
— Acho no mínimo curioso o seu interesse em controlar a vida
íntima das modelos que agencia...
— Eu conheço a jovem, desde que ela tinha 15 anos de idade. O pai
dela tem uma dívida de gratidão por mim, afinal a New Look Models tem
proporcionado contratos muito rentáveis para ela. Pode-se dizer que eu
praticamente me tornei um amigo da família.
Uma sensação incômoda varreu minhas entranhas, e fechei os
punhos com tanta força, a ponto de sentir os ossos estralarem, provocando
dor na junta entre os dedos.
Eu me inclinei para frente, os olhos soltavam faíscas de puro ódio.
— O pai dela está ciente de que te deu carta branca para interferir
nas escolhas dela? Será que ele tomou conhecimento da sua conduta e das
suas reais intenções?
— Como ousa se dirigir a mim desta maneira? — A voz dele elevou
uma oitava, e algumas gotas de saliva quase me atingiram o rosto.
Contive o ímpeto de puxá-lo pelo colarinho da camisa, ao me dar
conta de que nós havíamos atraído a atenção das poucas pessoas presentes
ali.
— Nossa conversa ainda não acabou. — Falei entredentes, e saí
pisando duro no chão de paralelepípedos. Um senso de urgência martelava a
minha cabeça, sem parar.
Talvez devesse protegê-la dele, mas e quem a protegeria de alguém
como eu?

A minha irmã me ajudou a elaborar um plano para manter o agente


de modelos longe de Marie-Claire, no último dia da estadia deles em
Cannes.
Camille inclusive caprichou na arrumação da cesta de piquenique, e
mentiu para a modelo ao dizer que uma equipe estava à espera dela no Port
Vauban para uma nova sessão de fotos da campanha.
De onde eu estava, era possível acompanhar o pequeno fluxo de
pessoas em meio a dezenas de barcos de luxo, ancorados na maior marina
de iates da Europa. Não demorei muito para avistar a modelo, caminhando
ao longo do deck de madeira, com seu maiô servindo como body,
combinado a uma calça larga de seda, chapéu e bolsa de palha, além das
sandálias rasteiras.
Não voltarei a Paris, sem antes fazer a derradeira tentativa de
conquistá-la.
Desci os degraus que levavam à plataforma para dar as boas-vindas
a beldade.
— Bonjour et bienvenue à bord de Le Bateau Ivre! — O nome Le
Bateau Ivre, “O Barco Bêbado”, foi inspirado no poema homônimo de
Arthur Rimbaud.
— Bonjour, Jean. — Marie-Claire levou a mão à testa, em forma de
concha, para proteger o rosto dos raios solares. — Eu esperava encontrar o
fotógrafo e sua equipe. Sabe me dizer se eles estão a caminho daqui?
Eu estendi a mão para ajudá-la a embarcar, antes de responder ao
seu último questionamento.
— Na verdade, se trata de uma sessão de fotos particular em St.
Tropez, com minha própria câmera profissional.
— Você só pode estar brincando! — disse ela, visivelmente
alarmada, assim que pisou na plataforma de popa.
— Não estou, não, ma chérie. — Ainda segurando a mão dela, eu a
levei aos lábios e depositei um beijo no dorso macio, que estremeceu
sutilmente, ao gesto ousado.
— Você ainda insiste em me confundir com outra pessoa.
Impressionante! — Estranhei o tom áspero de sua voz, quando afastou a
mão de modo brusco. O belo rosto se fechou em uma máscara de frieza,
nunca antes visto por mim. — Ainda que me oferecesse muito dinheiro, eu
jamais posaria nua, me ouviu bem? — Os lábios carnudos tremiam,
perceptivelmente.
— Está profundamente equivocada. — Eu me apressei em dizer,
encolhendo os ombros. — Nunca me passaria pela cabeça propor esse tipo
de coisa a você, Marie.
— Você jura? — Inclinou a cabeça ligeiramente para o lado para me
sondar, com desconfiança.
Eu me limitei a assentir, com um gesto veemente de cabeça.
Não queria que ela desse as costas e fosse embora, pensando o pior
de mim.
— Só quero desfrutar ao máximo de sua companhia. Eu juro!—
A bri os braços em um gesto de rendição, na tentativa de desfazer o clima
pesado no ar. — Precisamos comemorar também, afinal nós fizemos um
excelente trabalho.
Os seios pequenos, redondos e perfeitamente proporcionais, subiam
e desciam ao ritmo da respiração agitada, mas logo seus ombros relaxaram,
e as feições duras se suavizaram um pouco, dando lugar a um sorriso
tímido.
— Pelo jeito formamos uma boa dupla mesmo...
— Então, me acompanhe, mademoiselle. — Com um gesto de mão,
eu a convidei a me seguir até o interior da embarcação, prestes a partir rumo
ao charmoso balneário.
Depois de mostrar a cabine, com seu espaço para refeições e
cozinha, eu a levei até deck superior, onde havia um solário na popa e uma
área de bar com piscina de hidromassagem. Indiquei com um gesto o
espaçoso sofá branco de canto, e me sentei ao lado dela, antes de tirar do
balde de gelo a garrafa de vinho Rosé da Provence.
— É um espumante Rosé premium, produzido na Côtes de
Provence, uma área de vinhedos que pertence à minha família há gerações.
— Expliquei para ela, ainda hipnotizado pela beleza do rótulo.
Abri o vinho e despejei o líquido nas duas taças, antes de oferecer
uma delas a Marie-Claire. A mão dela tremeu um pouco, assim que seus
dedos roçaram aos meus de leve.
— Eu tenho que dizer que gostei?
Eu ergui uma sobrancelha, de forma especulativa, sem deixar de
encará-la nos olhos. Logo, a expressão de seriedade se desfez do belo rosto,
que se contorceu como se estivesse se segurando muito para não rir.
— Eu só estava brincando, Jean!— Ela me dirigiu um olhar sedutor,
e logo notei um sorriso travesso delineando os lábios carnudos. — Acho
que será de longe o melhor vinho que já experimentei na vida.
— Aproveitando o clima de descontração, o que acha de fazermos
um brinde?
— Oui! — concordou ela, animadamente. — Um brinde ao nosso
entrosamento. Foi tudo incrível! — Logo, o som do tilintar de taças
preencheu o ambiente.
Levei a taça de vinho aos lábios e observei Marie fazer o mesmo,
com o olhar fixo naqueles fascinantes olhos da tonalidade da água que nos
cercava por todos os lados.
— Engraçado que papa sempre reservava a melhor garrafa para
ocasiões especiais... — Ela esboçou um sorriso, enquanto admirava o
líquido rosa-claro borbulhante. — Ele só me deixava tomar alguns goles,
quando era menor de idade.
— O que o seu pai faz? — Perguntei rapidamente, mal contendo a
curiosidade.
— Ele atua como subchefe no Le Bistrot de l'Etoile. O sous chef
normalmente trabalha por vários anos nesta função até alcançar o posto de
chef executivo.
— Quer dizer então que o seu pai não sabe quando será promovido a
chef?
— Para falar a verdade é um trabalho bem estressante, e nem
sempre é reconhecido. Ele se ressente muito mesmo, sabe? Como se já
tivesse perdido as esperanças.
Ela deixou a taça na mesa de centro, e evitou me encarar, ao baixar a
cabeça e olhar as próprias mãos unidas, enquanto esfregava os polegares,
distraidamente.
Levantei o queixo dela, não lhe dando outra opção além de me
encarar diretamente nos olhos, que brilhavam com lágrimas não
derramadas.
— Você tem uma trajetória profissional formidável, apesar da pouca
idade, Marie. Monsieur Leblanc deve estar muito orgulhoso, e eu ainda digo
mais: É só uma questão de tempo até ajudá-lo a transformar este sonho em
realidade.
— Acha mesmo que isso seja possível? — indagou, deixando
transparecer certa incredulidade na voz.
— Você é plenamente capaz, digna e merecedora de obter tudo o
que deseja.
Apesar de Marie-Claire ter esboçado um sorriso, que iluminou o
belo rosto retangular e de maçãs salientes, achei nítida a expressão de
desalento nos olhos dela. Aqueles olhos azuis-turquesa eram os mais suaves
e inocentes que eu já vi.
Senti meu sangue ferver nas veias, tomado por um senso instintivo
de dever e de proteção, aliado ao desejo egoísta de possuí-la, afinal a minha
carne sempre foi fraca.
O polegar resvalou na boca carnuda, que tremeu de forma
involuntária, como resposta ao toque ousado, assim que passei a deslizar o
dedo, bem devagar. O simples ato de roçar na pele de um lado a outro a fez
ofegar, debilmente, cada arquejo que escapava dos lábios entreabertos fazia
o meu pau pulsar e inchar, pressionando a bermuda, dolorosamente.
— Me diga uma coisa... Seus lábios já foram tocados por alguém
antes? — A modelo negou, balançando a cabeça, sem hesitar, então eu
prossegui com a voz um pouco alterada. — E se eu te disser que estou
louco para ser o seu primeiro... Premier amour.
Senti o toque suave dos dedos dela passeando pelo meu rosto, como
se precisasse memorizar cada detalhe, desde a barba cerrada, sempre por
fazer, com a mandíbula bem estruturada acentuando a aparência de bravo,
passando pelo nariz um pouco longo, as sobrancelhas grossas, mas
perfeitamente desenhadas, sem contar o sinal de nascença no lado esquerdo
do rosto, mais precisamente ao lado do nariz.
— Devo considerar isso um sim? — Uma de minhas mãos
serpenteou ao longo das costas nuas, enquanto a outra agarrava os longos
cabelos, enterrando os dedos bem no fundo neles, antes de puxá-los para
trás, com firmeza.
Não esperei por uma resposta. Mandei à merda aquela antecipação
que era quase uma tortura, reivindicando os lábios pintados de vermelho de
um jeito duro e possesivo. Um gemido abafado se fez ouvir audivelmente,
como se o ar lhe faltasse nos pulmões. Então, eu aprofundei o beijo,
movimentando a língua úmida num ritmo feroz.
A sua língua de encontro à minha era tão quente e convidativa, que
eu não resisti e grunhi de prazer, conforme a puxava delicadamente contra
meu corpo que ardia em chamas.
De repente, nós escutamos um barulho, e interrompemos o beijo.
Seguiu-se um silêncio momentâneo, mas logo nos entreolhamos, e
explodimos numa gargalhada.
— Por um momento eu quase me assustei. — Ela levou a mão ao
peito, precisamente na altura do coração, com um sorriso tímido.
— Tudo indica que o iate parou próximo a uma pequena enseada. —
Eu me levantei de um salto, e a puxei pelo braço. — Vamos nadar um
pouco, Marie.
— Mas eu não sei nadar direito... — protestou ela, oferecendo
alguma resistência, enquanto a conduzia até a popa da embarcação.
— Não precisa ter medo. Jamais deixaria você se afogar. —
Assegurei e, mesmo sob seus protestos, eu a carreguei no colo, descendo
apressadamente os degraus.
Um pequeno arquejo de surpresa escapou dos lábios dela.
— E se tiver tubarões aqui?
Joguei a cabeça para trás, rindo alto. Então essa era a preocupação
dela?
— Deveria se preocupar com outro tipo de predador... Um que
quase te deixou sem fôlego, agora a pouco. — Senti um tapa forte no ombro
e, quando nos entreolhamos, nós desatamos a rir alto.
Marie-Claire permaneceu o tempo todo agarrada ao meu pescoço,
cada músculo de seu corpo estava tenso, uma reação instintiva ao medo de
se afogar.
— Precisa confiar em mim, chérie. — Minha voz saiu abafada
contra o ouvido dela.
Precisava admitir que, pela primeira vez, eu não pensei somente
com a cabeça de baixo, embora ela usasse um maiô bem ajustado ao corpo,
e os mamilos eriçados pela água fria roçavam o meu peito nu, deixando
pouco ou quase nada para a imaginação.
De repente, ela se afastou um pouco e me encarou diretamente nos
olhos.
— Eu me sinto segura com você, apesar de exalar perigo por todos
os poros.
— Mas nós não terminamos aqui e você sabe disso.
Eu a enlacei pela cintura, antes de encostar os lábios na região macia
entre o pescoço e o ombro, traçando com a língua um caminho ardente na
base dele. Escutei um arquejo doce e erótico saindo dos lábios dela, mas
decidi sufocá-lo, capturando o lábio superior primeiro, para chupá-lo de
leve, antes de fazer o mesmo com o inferior.
— Tu es diablement sexy, Marie... — revelei, com a voz
dolorosamente rouca. — Ainda não se deu conta disso?
— Parece o tipo de homem que faz qualquer mulher se sentir
especial e amada, mas que também desaparece quando se cansa dela...
Ergui uma sobrancelha, enquanto a encarava, incapaz de esconder a
surpresa.
— Nenhuma mulher foi capaz de dizer o que pensa de um jeito tão
direto...
— E isso é bom ou ruim? — Marie perguntou, ainda me olhando
com cautela.
— Eu admiro a sua franqueza, chérie. — Segurei o rosto dela entre
as mãos, e notei os olhos azuis cintilando, marejados. — Apenas relaxe e
viva o momento presente, viva o agora. Nada mais importa.
Notei os lábios cheios se abrirem em um sorriso tímido e
esperançoso.
De repente, ouvi um barulho ligeiramente familiar, e levantei uma
sobrancelha, intrigado.
— É o seu estômago ou o meu que está roncando?
— Deve ter sido o meu... Eu estou faminta!
— Então somos dois. — Então, nós nos entreolhamos e rimos.
Ela se apoiou em meu ombro, e tentou nadar junto comigo até o iate,
engolindo água e rindo, na mesma medida. Resisti ao impulso de observar
os movimentos graciosos de sua bunda redonda e gostosa, enquanto subia a
pequena escada lateral da popa.
Marie permaneceu a curta distância, passando a mão pelos cabelos
longos e molhados, para tirar o excesso de água salgada. Os meus olhos não
resistiram em fazer um rápido passeio, observando o maiô encharcado se
moldar às belas curvas dela. O modelo possuía um recorte maior na cava,
deixando à mostra tanto a lateral do busto quanto as costelas, mas meu
olhar se deteve mesmo na região da virilha, destacada por cavas maiores,
além dos seios pequenos e firmes, cujos mamilos endurecidos se
projetavam contra o tecido de malha.
O meu pau já pressionava o calção de banho de tão duro, mal
contendo a ânsia de penetrar bem fundo na boceta apertada, quente e ainda
intocada dela.
Talvez a modelo tenha sentido o peso do meu olhar, pois assim que
seus olhos azuis encontraram os meus, o rubor atingiu as bochechas já
avermelhadas pela exposição ao sol.
— Eu vou pegar logo o cesto de piquenique. — Fiz um sinal em
direção à mesa, constrangido por ter sido pego no flagra.
Uma vez no local, Marie tirou a canga da bolsa de palha e fez que
iria estendê-la no chão, mas se deteve ao constatar que eu não parava de
observar o menor de seus gestos. Ela possivelmente imaginou que se
estendesse o tecido de frente para mim, os seios ficariam parcialmente à
mostra, e se o fizesse de costas, daria uma visão privilegiada de sua bunda
perfeita.
Com um suspiro longo e audível, eu cruzei a pequena distância que
nos separava, disposto a resolver aquele impasse de uma vez por todas.
— Eu mesmo faço isso, não se preocupe. — Fiz questão de frisar,
antes de tomar a canga de suas mãos e a estendi cuidadosamente na areia.
Nós passamos os minutos seguintes fazendo a pequena refeição em
silêncio, mas lancei um olhar curioso à volta, pois não havia praticamente
ninguém na praia.
— É bom diversificar um pouco, mas nada se compara com o
tradicional piquenique provençal, feito às margens de um lago ou à sombra
de uma árvore...
— Sinto falta dos momentos em família, sabe? — comentou ela,
com ar sonhador. — Meus pais costumavam me levar em algum bosque
sombreado próximo à Lisses. Eu me recordo que maman estendia uma
toalha xadrez vermelha na grama, enquanto papa se encarregava de dispor
frutas variadas, baguetes, dois robustos saucissons, um frango assado, além
da torta de carne. Não sei como cabia tanta comida naquela cesta! —
concluiu a fala, desatando a rir e a chorar, tudo ao mesmo tempo.
— Venha até aqui, chérie. — Fiz um gesto com a mão, desejando tê-
la mais perto de mim.
A modelo piscou os olhos, confusa, mas descruzou as pernas
compridas, antes de se levantar do chão. Quando ela se sentou em frente a
mim, passei os braços em volta do pescoço, aninhando-a em meus braços,
enquanto a cabeça dela descansava em meu ombro.
— Faz muito tempo que perdeu sua mãe?
— Aos 11 anos eu já costurava com ela, e aos 14 eu a perdi para um
câncer.
— Eu sei o quanto dói perder alguém que a gente ama. Quando meu
avô, Jean-Baptiste Benjamin faleceu, foi como se parte de mim tivesse se
desintegrado, eu senti um vazio enorme, porque ele era minha maior
referência de vida.
— Achei que o seu pai fosse seu maior exemplo e referencial...
— Jean-Claude apenas cobra de seus filhos nada menos do que a
excelência, mas a cobrança por resultados recai principalmente sobre mim.
Se ele ao menos valorizasse ou reconhecesse os meus esforços...
Ela inclinou o rosto ainda úmido pelas lágrimas, e me encarou,
compassiva.
— Nossos pais são tão diferentes... — murmurou, deixando escapar
algo entre um riso e um arquejo. — Papa apoiou minha carreira desde o
início, e até me levava em alguns castings. As meninas achavam estranho,
afinal elas pareciam muito adultas. Mon Dieu! Eu morria de vergonha, mas,
no fundo, adorava estar sob os cuidados dele.
— Sério? — Joguei a cabeça para trás, rindo alto. — Espero poder
conhecê-lo algum dia.
— Ele é muito ciumento e superprotetor...
— Se eu me tornar o seu primeiro namorado... — As palavras
saíram dos meus lábios com uma naturalidade inesperada. — É algo com o
qual ele terá de se acostumar.
Namorado? Foi isso mesmo que eu acabei de dizer em voz alta?
— Achei que você não gostasse de colocar rótulos...
— Você subverteu a ordem natural das coisas, mon turquoise —
sussurrei, a vibração da voz fez o corpo longilíneo estremecer de leve junto
ao meu. — Eu já namorei dezenas de mulheres, mas sempre acreditei que
elas só se aproximavam de mim por causa de status e fortuna, e não por
quem eu realmente era.
— Os homens só tentaram uma aproximação por causa da minha
aparência. Era como se eles quisessem inflar o próprio ego, sabe?
— Não posso mentir pra você. Já me comportei como eles no
passado. Mas os homens não conseguem enxergar além da aparência, pelo
menos num primeiro momento.
— Você demonstrou um interesse genuíno em me conhecer mais a
fundo. — Ela se virou para mim, e notei uma mudança no semblante, antes
afetuosa para uma mais séria. — Faz ideia da importância disso? — Sem
esperar por uma resposta, prosseguiu: — Se continuar assim, os riscos de
vir a me apaixonar são grandes...
Com um movimento rápido, eu a deitei de costas sobre a areia,
afastando uma de suas pernas para encaixar melhor meu quadril, de modo
que ela sentisse o latejar da ereção dominante, ansiando poder se libertar e
invadir a boceta numa arremetida feroz.
Por um momento eu pensei ter sentido o corpo dela enrijecer
ligeiramente sob o meu, mas continuei deslizando a mão pela perna longa e
torneada, enquanto me apoderava dos lábios entreabertos e trêmulos, com
um beijo longo, faminto e ardente.
— Acho impressionante como nossos corpos se encaixam tão bem,
chérie — murmurei, a boca resvalando na base do pescoço delicado.
— Por favor, Jean, pare. — Foi tudo o que ela conseguiu dizer, em
um fio de voz.
— Parecia estar tão receptiva, agora a pouco... — Eu me afastei um
pouco para encará-la, atônito.
— Acho melhor nós voltarmos. — O belo rosto se contorceu de
tristeza, de repente.
— Eu quase coloquei tudo a perder, não foi? — perguntei,
perscrutando meu olhar sobre ela, com cautela. — Sinto muito por isso, de
verdade. — Eu não consegui sustentar o olhar dela, quando lhe ofereci a
mão para ajudá-la a ficar de pé.
— Quem sabe a gente pode sair mais vezes... Como qualquer casal,
que investe na relação aos poucos, sabe? Eu nunca me relacionei com
ninguém. Nunca mesmo.
A forma com que ela proferiu aquelas palavras me tocou num ponto
sensível.
Eu me tornei o primeiro homem da vida dela. Dei seu primeiro
beijo. E depois?
Era só questão de tempo até ter com exclusividade, cada mínima
parte dela.
Capítulo 10

Jean-Luc

Dias depois...

Depois de um dia longo e estressante, eu tinha o hábito de convidar


uma parceira em potencial, para jantar em algum restaurante sofisticado da
cidade. Ser um bom ouvinte e falar as palavras certas para uma mulher
fazia tudo parecer tão simples quanto pedir ao garçom: L'addition, s'il vous
plait.[4]
Aquela estratégia jamais funcionaria com uma mulher cheia de
crenças ultrapassadas. Uma jovem recatada como Marie-Claire só se
entregaria a alguém quando se sentisse pronta, ou na pior das hipóteses,
quando ela subisse ao altar.
O motorista tinha acabado de abrir a porta do carro, quando senti o
meu celular vibrar. Assim que eu peguei o aparelho, vi o número da minha
irmã piscando na tela.
— Salut, Camille. — Tentei demonstrar algum entusiasmo na voz.
Ela era obcecada em dar palpite sobre minha vida íntima, tanto quanto eu
em relação à vida íntima dela.
— Os agentes de Marie ligaram para mim e insistiram para eu ter
uma conversa séria com você. — Minha irmã falou tão rápido e atropelado,
que foi preciso fazer uma pausa para respirar, antes de prosseguir: — Eu
inclusive passei na EGO Media, mas não te encontrei... Agora também já
nem importa mais. Eles querem que você se pronuncie sobre os rumores de
que estaria vivendo um romance com a modelo deles.
— Não devo nenhuma satisfação aos agentes dela.
— A sua fama de conquistador já é bem notória, Jean. Você sempre
teve preferência por jovens modelos. É perfeitamente compreensível a
preocupação deles.
Cerrei os dentes, socando o banco de couro com o punho fechado,
furioso.
— Eles não podem continuar interferindo na vida dela desta
maneira.
— Sim, eles podem, Jean. Afinal, a reputação da modelo está em
jogo. Se as coisas derem errado no relacionamento, o maior prejudicado
pode ser ela, e não você.
Odiava admitir que a minha irmã caçula estava coberta de razão.
Eu só namorava supermodelos. Todas tinham em comum o fato de
terem uma carreira consolidada, além de possuírem um histórico intenso e
agitado na vida amorosa.
Marie-Claire, ao contrário, era extremamente discreta em sua vida
pessoal.
Jamais faria algo que pudesse prejudicá-la, mas também não podia
aceitar a possibilidade de perdê-la.
O único obstáculo que havia entre ela e eu eram os agentes, Patrick
e Désirée. Eles detinham algum poder sobre a modelo, em parte porque
ganharam a confiança do pai dela. E, para piorar, nós dois ainda nem fomos
apresentados formalmente.
Quando eu levantei a hipótese de conhecê-lo, Marie desconversou,
protelando ao máximo um encontro, porque tinha medo da reação dele.
Ela chegou até a ouvir palavras duras do pai, com relação a mim.
Um homem rico não vai querer se casar contigo!
A voz da minha irmã me tirou dos devaneios.
— Se Marie está mesmo disposta a mudar de agência, o mais
provável é que ela passe a residir nos Estados Unidos... A maior rival da
New Look Models está sediada em Nova York.
Era isso o que eu mais temia, que ela buscasse novas oportunidades
fora do país.
— Já estou ciente disso — murmurei, torcendo os lábios com ar
desgostoso.
— Bem, de qualquer maneira, eu já fiz a minha parte. Quem sabe
ela não se torna minha futura cunhada? — Camille se referia ao contrato
de exclusividade fechado com a modelo em todo território francês.
Como embaixadora da L’Beauté Paris, Marie recebeu um cachê de
pouco mais de € 1 milhão, e todo montante seria destinado à realização do
maior sonho do pai dela.
— Aliás, eu esqueci de comentar com você... O pai dela está
ansioso para me conhecer e inclusive já me convidou para a inauguração
do restaurante dele.
— Isso é novidade para mim.
— Novidade? Quer dizer que não recebeu convite nenhum ainda?
— Acho que vou ter que me esforçar mais para conquistar a
confiança dela.
— Então, boa sorte! Eu também tenho um encontro. — Ela
encerrou a chamada, sem revelar com quem pretendia sair, o que me deixou
ainda mais curioso.
Poucos minutos depois, o veículo passava pela arborizada Avenue
Trudaine, no 9º arrondissement.
Quando o motorista estacionou diante do prédio residencial
histórico, saltei do carro trazendo um ramo de orquídeas nas mãos, e
fazendo o máximo de silêncio possível, subi o lance de escadas até o
segundo andar, considerado o mais “nobre”, afinal não havia elevador no
prédio.
Como eu queria impressionar Marie-Claire, toquei a campainha do
apartamento, fazendo um biquinho, como se estivesse à espera de um beijo.
No entanto, para o meu azar, a porta se abriu e escutei uma voz feminina
que, definitivamente não era a dela:
— Marie, venha até aqui, rápido! — gritou outra jovem, se
segurando para não rir. — Seu namorado acabou de chegar e fez biquinho
pra receber um beijo na boca! — Como não houve resposta, ela se virou e
disse: — Acho que ela não me ouviu, monsieur, mas entre e fique à
vontade.
Lancei um olhar em tono do típico apartamento parisiense de
sofisticação moderada, característico da arquitetura “haussmaniana”, com
tetos altos, molduras de gesso ornamentadas, janelas uniformes até ao chão,
e lareira de mármore.
— Pardon, mademoiselle. — Murmurei um pedido de desculpas,
com o rosto ardendo em brasa. Pensei em dizer que não pretendia
incomodar, quando ouvi alguém gritar de algum cômodo: “Quero saber
quem foi a ‘ratinha’ que comeu meus éclairs [5]doces!”.
— Nem olhe para mim, Anne. — Defendeu-se a modelo, ao se virar
na direção da voz, e levantou as mãos em um gesto de rendição. — Eu não
comi nada.
Outra jovem apareceu, mas se deteve ao me vir parado no hall de
entrada.
— Você sabia que teríamos visita? — Ela apontou para mim com a
cabeça.
— Não está reconhecendo o homem bonito, alto, de olhos castanhos
e cabelos pretos que acompanhou Marie-Claire no Festival de Cinema?
A expressão da outra modelo — antes séria — deu lugar a um
sorriso amável, os seus olhos brilharam em reconhecimento e, se adiantou
em minha direção, antes de estender a mão para um cumprimento formal.
— Enchanté, monsieur. — Ela apertou minha mão, de modo
efusivo. — Eu me chamo Anneliese Schmitt. — E, diante da minha
surpresa, a modelo emendou depressa: — Nasci e fui criada em Québec,
mas atualmente moro aqui, em Paris.
— O prazer é todo meu, mademoiselle. — Retribuí o sorriso, ainda
me sentindo um tanto constrangido por elas terem se referido a mim como
namorado de Marie.
— Vocês já se apresentaram, então agora é a minha vez. — A jovem
que atendeu a porta deu uma cotovelada de leve na colega. Sua mão tremia,
ao esticar o braço para me cumprimentar. — Sou Inès Delacroix. E também
melhor amiga de Marie. Enchanté, monsieur.
De repente, escutei o som característico de sapatos de salto alto, e
me virei a tempo de ver Marie aparecer mais deslumbrante do que nunca,
com seus longos cabelos castanhos repartidos de lado e totalmente presos,
em um coque na altura da nuca.
— Desculpe se demorei um pouco, Jean... — disse ela, meio sem
graça.
— Pode me recompensar com um desfile. Que tal? — Sugeri,
movido por um impulso irresistível. Ela arqueou logo uma sobrancelha e as
meninas riram à gargalhada.
— Com todo prazer, mon chéri — respondeu Marie, com as mãos
na cintura e os olhos faiscando, desafiadores. Meus olhos imediatamente
passearam pelo corpo magro dela, emoldurado por um vestido de seda
tamanho midi, com leve ondulação no busto, caimento fluído e alças finas
cruzadas nas costas.
Era fascinante observá-la desfilar, especialmente o modo como os
pés dela ficavam alinhados, enquanto dava passadas largas e ritmadas,
olhando para frente, e com o queixo levemente abaixado, mas sem deixar
de irradiar aquela confiança quase magnética.
Quando terminou de cruzar o espaço, ela parou, fez uma pose por
dois ou três segundos e girou suavemente o corpo, antes de voltar ao ponto
de partida.
As meninas e eu batemos palmas, efusivamente. Marie-Claire sorria
sem jeito, mas demonstrava estar feliz com a pequena apresentação na
passarela improvisada.
Cruzei a distância que nos separava, na intenção de tascar um beijão
na boca dela, mas me contentei apenas em dar um selinho nos lábios, para
não a constranger na frente das amigas.
— Vejo que já conheceu as meninas... Faltam duas, mas elas não
estão em casa.
— Acho que não vai faltar oportunidade. — Dei um abraço apertado
nela, e expandi as narinas para inalar o aroma de seu perfume La Vie est
Belle, de fragrância floral suave e marcante, o preferido das francesas.
Depois, eu me afastei um pouco, sussurrando em seu ouvido: — Não sei
você, mas eu estou faminto...
— Inès, preciso de um grande favor seu — disse ela, voltando sua
atenção para a amiga. — Coloque as orquídeas em um vaso com água, por
favor. Merci!
— Marie... — Anneliese chamou, com alguma hesitação na voz. —
Eu ainda não sei quem comeu meus éclairs doces.
— Está bem, eu vou contar quem foi... — Uma expressão matreira
tomou conta do rosto dela e, no mesmo instante, eu cheguei à conclusão de
que uma confissão de culpa estava por vir. Sufoquei um riso a tempo. Marie
estava mesmo encrencada. — J'ai mangé.
— Então, foi você! — exclamou Anne, com um tom de voz
ameaçador.
Marie-Claire me puxou tão rápido e com tanta força, que desatei a
rir sem parar, enquanto saíamos do apartamento, praticamente correndo e de
mãos dadas.
O mais engraçado era que sempre evitava todas as demonstrações de
afeto possíveis, mas só de manter a mão entrelaçada na dela já fazia eu me
sentir tão bem. Era como se eu pudesse me conectar com a melhor versão
de mim mesmo.
Como a minha intenção era surpreendê-la, ao invés de seguirmos
direto para o restaurante, peguei a via que levava até a ponta oeste da Ile de
la Cité, mais precisamente até a Pont Neuf, onde havia uma escultura
equestre de Henri IV.
Descendo as escadarias quase escondidas atrás da estátua, e a sete
metros abaixo do nível da rua, encontrava-se o charmoso Square du Vert
Galant. Embora a praça fosse muito pequena, os visitantes apreciavam
fazer piqueniques, enquanto observavam os barcos navegarem o Rio Sena,
especialmente no final da tarde.
— Para onde está me levando, Jean? — perguntou Marie, mal
contendo o riso, ao segurar bem firme a minha mão, conforme descia
cuidadosamente os degraus de pedra.
— Você vai amar este lugar, Marie! Considero como um dos
melhores para curtir o pôr-do-sol.
Atravessamos a pequena praça, e ao alcançarmos as margens do rio
Sena, que garantia uma vista panorâmica do Museu do Louvre e do Hôtel
de la Monnaie, puxei parte dos galhos longos do salgueiro “chorão”, e
esperei Marie passar por baixo sem trombar neles.
— Ainda não conhecia este espaço de lazer da cidade... — Parou
para olhar ao redor, com as mãos unidas atrás das costas. — Jean! Veja,
veja. — Ela apontou para três pequenos cisnes, nadando um atrás do outro
na beirada. — Eles são tão lindinhos!
Eu me aproximei dela, silenciosamente, por trás e a abracei pela
cintura, enquanto observava no céu os tons de laranja dando lugar ao azul-
violeta, indicando que uma noite estrelada e sem nuvens estava por vir.
— Você se lembra do nosso primeiro encontro furtivo? — perguntei,
em um sussurro próximo ao ouvido dela. A modelo riu diante daquela
lembrança. Nós dois procuramos por um canto escondido, no Palais des
Festivals, para um momento íntimo.
— Oui! — confirmou ela, rindo e balançando a cabeça. — A gente
pretendia se beijar longe da vista dos outros, e acabou que nem nos
beijamos direito.
— Parecia aquela parte do roteiro do comercial que gravamos,
lembra-se?
— Fazia tempo que eu não sentia aquela adrenalina, sabe? Mas o
medo de sermos flagrados juntos e, ainda por cima nos beijando, atrapalhou
tudo.
— A vantagem de estar em um lugar com algum fluxo de turistas é
que todos estão entretidos demais para notarem a nossa presença.
Ela virou o rosto, e notei os lábios sensuais se curvarem num sorriso
prazeroso.
— Você tem sido maravilhoso de um jeito que eu nem sei se
mereço, Jean...
— Engraçado, Marie... Eu me questiono o tempo todo se sou mesmo
merecedor de ter uma mulher tão incrível assim ao meu lado.
Notei um brilho diferente nos olhos dela. Parecia que as lágrimas
cintilaram por alguns segundos, mas ela piscou rapidamente, visando
afastá-las.
— Mas agora vamos apenas relaxar e curtir o momento... —
Sussurrei, enquanto cheirava seu pescoço longo e delicado.
Não vou descansar até tê-la em minha cama, inteiramente à minha
disposição.
Observei distraidamente o salão do restaurante Le Meurice,
localizado no hotel-palácio de mesmo nome, e com vista para o Jardin des
Tuileries, com sua decoração suntuosa, caracterizada por afrescos no teto,
enormes lustres de cristal e mobiliário elegante.
O garçom serviu os pratos, a minha conversa com Marie fluiu
maravilhosamente bem, intercalada por uma taça de vinho ou outra, de
acordo com as sugestões do sommelier.
Passei boa parte do jantar pensando numa maneira de lidar com o
turbilhão de sentimentos conflitantes se digladiando dentro de mim. Não
dava mais para negar que o meu interesse estava longe de ser algo
meramente físico.
Justo eu, que não tinha a menor intenção de me apaixonar por ela!
Ça alors!
Tentei escutar atentamente o relato dela sobre as situações inusitadas
e nada glamorosas presenciadas nos bastidores, mas a minha mente insistia
em vagar por aí, sem rumo.
— Esperei horas numa fila gigantesca, junto com outras meninas
para no final do casting o diretor de elenco chegar e dizer: “Pardon,
chérie, mas estamos procurando loiras, ou seja, cabelo loiro, sobrancelha
loira, tudo loiro.” — Marie fez uma pausa para beber água e depois disse:
— Não basta ser super magra, às vezes esperam que as modelos tenham
falha nos dentes, ou sobrancelhas espessas; outras vezes pedem
sobrancelhas descoloridas, sardas no rosto, ou modelos de aparência
andrógena. — Depois, ela levou um pedaço de Baba Au Rhun — um doce
comum na França — àquela boca carnuda, deixando a minha própria
salivando, de tão faminto que estava por um mísero beijo.
Os designers poderiam escolher outras, mas nenhuma se comparava
a ela.
— Será que eu falei alguma coisa errada? — Marie parou de sorrir,
enquanto me encarava com uma combinação de cautela e desconfiança no
semblante.
— Non, non! — Eu me apressei em negar, para desfazer qualquer
mal-entendido. — Sua voz jovial me tranquiliza, sabia? — Inclinei minha
cabeça e mantive um olhar duro e quente direcionado para ela, sem o menor
pudor. — É impressionante como você sempre me surpreende, com seu
jeitinho leve e divertido de ser.
O rosto dela ficou vermelho, mesmo sob a maquiagem muito
elaborada.
— Quando a conversa flui tão bem assim, o tempo passa rápido
mesmo...
— Tem toda razão, chérie — concordei, estreitando os olhos, ao
mesmo tempo sério, pensativo e enigmático. — Para ser sincero, eu estive
pensando sobre a inauguração do restaurante La Ville de Lisses... Estou
ansioso para conhecer o chef Jacques Leblanc, meu futuro sogro. — Um
misto de espanto e incredulidade tomou conta do semblante dela, assim que
ouviu minhas últimas palavras.
Marie-Claire deixou o garfo e a faca escorregarem por entre os
dedos, batendo contra a louça de porcelana branca e, consequentemente,
produzindo um ruído desconcertante.
— Você está mesmo disposto a levar nosso relacionamento a sério,
Jean?
Precisava pensar, e rápido, no que deveria dizer a seguir, eliminando
qualquer resquício de dúvida ou incerteza que a impedia de estar
inteiramente entregue a mim.
— Isso só depende de você... — revelei, com a voz dolorosamente
rouca.
Meu pai impôs condições para assumir o comando do conglomerado
de mídia. Ele deu sequência ao trabalho do meu avô, ao expandir o negócio
para a área da comunicação e me deixou responsável por outro projeto, o de
estender sua influência em outras áreas, como publicidade e marketing.
A ideia de me casar com uma jovem modelo não era de todo ruim.
Havia o fator exclusividade, afinal ela ainda era virgem e eu estava louco
para possuir seu corpo.
Nunca imaginei que no alto dos meus 32 anos cogitaria aquela
possibilidade, mas o cerco estava se fechando e as divergências com meu
pai ainda deixavam um gosto amargo na boca.
Saí dos devaneios, quando senti o toque suave da mão da modelo
sobre a minha, proporcionando uma sensação reconfortante como há muito
tempo não sentia.
— Você é o único homem com quem quero estar, Jean. — A voz
dela saiu fraca, em meio às lágrimas. — Posso apresentá-lo ao meu pai esta
noite mesmo, se quiser.
— E então, o que estamos esperando? — E dizendo isso, eu fiz um
aceno de cabeça para um dos garçons uniformizados, que se aproximou da
nossa mesa, prontamente. — L'addition, s'il vous plait.[6]
No caminho até o subúrbio de Paris, aproveitei para dar uns amassos
nela.
Havia esperado pacientemente a oportunidade de ter aquele corpo
sexy colado ao meu de novo, enquanto encostava o nariz na região entre o
pescoço e o ombro dela, para inalar o cheiro marcante que exalava por cada
poro da pele sedosa.
Um gemido estrangulado quase escapou da garganta, mas eu
imediatamente cobri a boca trêmula e entreaberta dela, esmagando-a de um
jeito duro e possessivo. Marie também se entregava ao beijo numa ânsia
febril, enquanto nossos corpos se comprimiam contra o banco de couro.
Soltei um grunhido, assim que uma de minhas mãos alcançou o
zíper invisível do vestido, enquanto que a outra serpentava pela barra até
puxá-la para cima, ansiando poder a tocar a região íntima — e ainda
intocada dela —, para estimular o clitóris com um ou dois dedos.
Os seios pressionados contra o meu peito subiam e desciam com a
respiração profunda e rápida, mas de repente escutei o que parecia ser um
grito abafado vindo dela.
Afastei os lábios o suficiente para poder olhar nos olhos azuis, que
brilhavam tão intensamente, a ponto de me puxar direto para as profundezas
tempestuosas deles.
— Eu... Eu estou muito confusa, Jean. — A voz saiu trêmula,
quando piscou várias vezes, tentando afastar as lágrimas. — Uma parte de
mim deseja muito um contato mais íntimo, mas a outra... — O belo rosto
assumiu uma expressão sombria, antes de completar: — Não sei bem como
explicar por que eu ainda me sinto tão desconfortável.
— Shh! — Coloquei o indicador no lábio inferior ainda levemente
inchado pelo beijo tórrido, e tracei um caminho seguindo o contorno da
boca, com lentidão deliberada. — Não se martirize por isso, ok? A
paciência é uma virtude, e isso eu tenho de sobra.
Marie se permitiu rir um pouco, embora ainda carregasse uma
profunda tristeza nas feições, e quando fez menção de dizer algo mais, ela
se deteve e olhou pela janela, justo quando o carro parou diante do prédio
que passou a ser sua segunda casa.
— Até que enfim, chegamos! — Ergui as mãos num gesto
exagerado.
— Prepare-se para enfrentar uma fera... Papa Jacques
provavelmente vai te receber empunhando um rolo de massa, ou pior, o seu
cutelo de estimação. — Ela claramente estava se contendo para não
explodir na gargalhada.
— Então ele já sabia que eu viria? — perguntei, com um leve
levantar de sobrancelhas, ao mesmo tempo curioso e incrédulo. — Mon
Dieu! Achei que seria surpresa.
— Eu mandei uma mensagem, quando usei o banheiro do
restaurante. — Ela praticamente me puxou pelo braço enquanto
atravessávamos a rua. — Anda, vamos logo!
Quando Marie-Claire tocou a campainha, afrouxei um pouco o nó
da gravata, na tentativa de me libertar da sensação asfixiante dentro do
peito, mas nada poderia me preparar para o que estava por vir: Ser recebido
por um senhor de meia-idade corpulento, empunhando um de seus
utensílios de cozinha, como se ele fosse uma arma letal.
Será que ele me via como ameaça suficiente para escolher uma faca
de açougueiro, em vez de um simples rolo de massa?
O pai dela finalmente abriu a porta, trazendo nas mãos o que eu
mais temia.
Ele cruzou os braços sobre o peito, enquanto empunhava um cutelo
com lâmina de aço de 9 polegadas. A postura dele lembrava muito a de um
galo, animal símbolo da Seleção Francesa de futebol, e motivo de orgulho
nacional.
— Bonsoir, monsieur. — Saudei, forçando um sorriso simpático.
— Bonsoir... — Os lábios dele formaram uma linha dura.
Eu estendi a mão direita para um cumprimento formal, mas suspendi
a respiração diante do pensamento intrusivo do pai dela decepando-a com
seu cutelo profissional.
— Jean-Luc Saint Vincent Laurent. Enchanté, monsieur. — Soltei o
ar preso nos pulmões, assim que ele usou a mão livre para apertar com tanta
força a minha, a ponto de os ossos estalarem.
— Eu me chamo Jacques Leblanc.
— Eu podia ter trazido uma garrafa de vinho, mas fui pego de
surpresa... — Fiz questão de dizer, enquanto lançava um olhar aflito para a
filha dele.
Marie-Claire abriu um sorriso sem graça, antes de esclarecer os
fatos.
— Para falar a verdade, Jean-Luc quis vir aqui antes, mas eu o
impedi...
— Vocês já comeram alguma coisa? — perguntou Jacques, de
súbito, enquanto encarava ora para a filha ora para mim, as feições ainda
duras como pedra.
Nós nos entreolhamos, visivelmente constrangidos, antes de
responder quase em uníssono:
— Oui... Acabamos de jantar.
— Quer dizer então que vocês dois tinham a opção de comer da
minha comida, mas preferiram ir a um restaurante que ostenta duas ou três
estrelas Michelin? — Ele parecia tão indignado que até chegou a soltar um
suspiro longo e perfeitamente audível.
— Mas o senhor tem estado muito ocupado, com os preparativos
para a inauguração do La Ville de Lisses, papa...
— Mas isso não é desculpa, ma poulette. — Levei mão à boca para
disfarçar o riso. Eu ficaria bem irritado se alguém me chamasse de
“galinha”, embora aquela expressão fosse usada para demonstrar afeição a
uma pessoa. — Espero que vocês não me façam a desfeita de recusar uma
xícara de café... — As feições dele se suavizaram um pouco, e pude ver
algum sinal de divertimento em seu rosto. — Entrez! — Ele virou as costas
e fez um gesto com a mão, indicando que deveríamos segui-lo para dentro
da casa.
Marie e eu nos acomodamos no sofá, enquanto que o pai se sentou
em sua poltrona favorita.
— Escutei minha filha falar muito sobre monsieur... Quer dizer
então que assumiu interinamente o cargo de CEO no grupo de mídia
controlado por seu pai?
— Oui! — Notei pelo canto do olho Marie se levantar, alisando o
vinco imaginário de seu vestido. — Mas eu tenho dividido o meu tempo
entre a SVL Groupe e a EGO Media.
— Eu vou até a cozinha, e enquanto isso vocês podem conversar à
vontade... — Ela se virou e começou a se afastar, mas de repente girou nos
calcanhares e se aproximou da mesa de centro. — Eu vou colocar este
utensílio em um lugar seguro, papa. — E dizendo isso, ela se abaixou e
pegou o cutelo pelo cabo, com todo cuidado do mundo.
Agora, sim, eu já posso respirar mais aliviado.
Esperei a modelo desaparecer no interior da casa, para ir direto ao
ponto.
— Quero muito poder receber a sua bênção, porque eu sou louco
por Marie-Claire... — Senti meu corpo ser varrido por um calor repentino,
mas respirei bem fundo antes de prosseguir: — Eu jamais senti algo tão
intenso assim por nenhuma outra mulher. Para falar a verdade, eu nem
pensava em casamento até conhecê-la, monsieur.
Jacques apoiou um cotovelo no braço da poltrona, e o queixo nas
costas da mão enquanto me estudava atentamente, com seu semblante
inexpressivo.
— Não acho que esteja em condições de dar garantias quanto ao
futuro desta relação, monsieur.
Eu estava mesmo diante de um homem sagaz, que não se
convenceria com meia dúzia de palavras bonitas.
— Sei que pode parecer precipitado falar sobre casamento, mas as
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis. — Dei tanta
ênfase e profundidade à voz, que o meu corpo inteiro estremeceu,
sutilmente.
Parece que nada do que eu falei surtiu algum efeito. Ele olhava para
mim, com as sobrancelhas arqueadas, e um sorriso maroto brotou num dos
cantos da boca.
— A sua fama de bon vivant não facilita nem um pouco as coisas.
Era óbvio que ele colocaria à prova os meus argumentos, pois
sempre fui um homem avesso a compromissos. Por que seria diferente
agora?
— Tenho absolutamente tudo o que um homem sempre desejou ter
na vida, mas sinto que falhei em outros aspectos... — As palavras saíram
com uma naturalidade inesperada. — Evitei me envolver emocionalmente
ao longo de todos esses anos, mas tudo o que eu consegui foi um profundo
vazio no peito.
Jamais imaginei me abrir daquela maneira com alguém que acabei
de conhecer.
Saí abruptamente dos devaneios, assim que senti um toque de leve
no braço.
— Dinheiro não é tudo na vida, monsieur. — Declarou Jacques, em
tom contundente. — Ele pode comprar muitas coisas, exceto o afeto de
alguém.
— Não quero desperdiçar a chance de desfrutar os bons momentos
ao lado dela — murmurei, olhar perdido em um ponto do tapete. —
Imagine um homem como eu alcançando a velhice, lamentando não ter
vivido um grande amor. — Aquela era apenas uma meia-verdade. Nunca fui
um homem dado a sentimentalismos, mas sabia usar o carisma e o poder de
convencimento a meu favor.
— Não tenho muito tempo de vida, mas espero ter a oportunidade
de ver a minha filha realizando todos os seus sonhos. E um deles foi
alcançado graças à Patrick Dupont... — Senti o sangue ferver nas veias,
quando ele mencionou nome do agente de modelos. — Marie é minha única
filha, monsieur Laurent, e também o meu bem mais precioso. Não sei do
que seria capaz se fizessem algum mal a ela.
— Eu soube disso no exato instante em que o senhor atendeu a
porta, empunhando aquele cutelo. Aquilo foi o suficiente para eu quase
mijar nas calças.
Ele deu uma sonora gargalhada, que ecoou por toda sala de estar.
— Vejo que monsieur tem senso de humor... — De repente, ele se
calou e ficou pensativo, mas logo se levantou e estendeu a mão para mim.
— Trés bien... Se minha filha te deu um voto de confiança também terá o
meu, mas espero que faça bom uso disso.
Eu mais que depressa fiquei de pé e apertei a mão estendida, de
modo efusivo.
— Não sabe o quanto significa para mim, poder ouvir essas
palavras... — Fiquei surpreso com meu tom de voz. Soava sinistramente ao
meu ouvido, como se estivesse mesmo apaixonado. E justo por uma mulher
cujo corpo ainda nem desfrutei! — Serei o primeiro namorado dela.
monsieur. Aliás, o único, pois garanto que ainda vou me casar com ela.
Notei pelo canto do olho Marie se aproximar, trazendo nas mãos
uma bandeja.
— Desculpem a demora, mas é que... — A modelo estacou,
visivelmente surpresa, mas não demonstrou ter ouvido minhas últimas
palavras. — Vejo que vocês já estão se dando bem. C'est top! — Seus
lábios delinearam um sorriso de reconhecimento e orgulho.
Ela trocou um longo olhar comigo, enquanto servia as três xícaras
de café.
— Se maman estivesse viva, ela certamente se desmancharia em
lágrimas.
— Minha saudosa esposa era mesmo uma manteiga derretida,
chorava por quase tudo. — Jacques concordou. Seus olhos cintilaram com
as lágrimas contidas.
— A minha avó ficaria orgulhosa se me visse conversando com
vocês... — De repente, me veio uma vontade de fazer aquela estranha
confissão, sem nenhum motivo aparente. Limpei minha garganta, evitando
me deparar com a surpresa nos rostos de Marie e do pai dela. — Ela não
quer partir dessa para melhor, acreditando que seu primeiro neto é um caso
perdido.
— Oh, mon Dieu! — Marie deu uma risadinha e veio se sentar ao
meu lado no sofá, antes de segurar a minha mão. — Mas isso seria uma
lástima. — Seus olhos fixos em mim expressavam o mais puro
divertimento.
Ela deve ter imaginado que usei a minha avó para amolecer o
coração do velho.
Eu apenas me deixei envolver pela sensação prazerosa de
pertencimento.
Passei os minutos seguintes, saboreando o expresso puro,
acompanhado pelas pessoas mais generosas e íntegras que eu já conheci,
em toda minha vida.
— Bem... Agora eu preciso ir. — Eu fiquei de pé e, consultando
meu relógio de pulso, completei: — Já está tarde e não quero mais
incomodá-los... Monsieur Leblanc, foi um prazer conhecê-lo. — Apertei a
mão dele novamente e depois voltei minha atenção para sua adorável filha.
— A gente se fala depois, Marie. — Finalizei.
Ela me acompanhou até a porta e nos despedimos com um selinho
nos lábios.
Caminhava distraidamente pela calçada, quando de repente senti
uma leve pressão no braço direito. Só então eu percebi que me esbarrei em
uma mulher idosa, toda vestida de preto e com um lenço amarrado à cabeça.
Ela era, definitivamente, uma cigana.
Murmurei um pedido de desculpas, e quando fiz menção de me
afastar, ouvi imediatamente a voz baixa, mas audível o bastante para
provocar um tremor inesperado pelo meu corpo.
— Apenas o amor de uma mulher pode te tirar do lodo emocional,
monsieur.
Inclinei minha cabeça ligeiramente para o lado, perscrutando-a com
cautela.
— Se refere a minha atual namorada? — perguntei, franzindo a
testa, intrigado.
A mulher nem se dignou a responder. Ela apenas abriu um sorriso de
canto de boca, exibindo aquela expressão de quem sabia prever o futuro, e
continuou andando, cabisbaixa, os olhos fixos no chão, e o corpo levemente
curvado sobre a bengala.
Eu não parei mais de pensar nas palavras daquela cigana misteriosa.
Capítulo 11

Jean-Luc

4 meses depois...

Não sabia dizer ao certo o que mais me deixava estressado: se o alto


volume de trabalho para atender às expectativas da minha equipe na agência
EGO Media, além dos membros do Conselho da SVL Groupe, ou se a
pressão familiar para eu me casar com Brigitte Jouvet.
Nunca houve nada entre mim e Brigitte, mas nossos pais eram
amigos de longa data e firmaram um acordo para juntar as maiores fortunas
da França, através do casamento de seus filhos.
Certo dia, os dois planejaram um estúpido jantar de negócios,
quando na verdade era um estratagema para deixar a mim e a socialite
envergonhados diante deles. Eu não esperava encontrá-la no restaurante, a
nossa conversa foi tão estarrecedora, que cheguei mesmo a pensar que a
mulher estava tentada a ceder aos caprichos deles.
O cerco estava se fechando cada vez mais à minha volta.
Apesar de ter apresentado Marie-Claire — como minha namorada
— aos meus pais, nenhum dos dois ficou suficientemente satisfeito com
minha escolha. Eles esperavam me ver casado com uma mulher bem-
nascida como Brigitte, quando na verdade, eu só tinha olhos para a jovem
modelo que ainda era virgem e estava se guardando para mim.
Como eu era o primogênito, meu nome continuava no topo na lista
de sucessão. Já o meu irmão, Cédric, era o segundo mais cotado para
assumir o controle do conglomerado de mídia, e o único a contar com o
apoio dos membros do Conselho, porque esteve mesmo a ponto de se casar,
não fosse o acidente na estação de esqui La Rosière, que ceifou a vida da
noiva, poucos meses antes do casamento.
Cinco anos se passaram e parecia que Cédric jamais superaria a dor
da perda.
Uma vez finalizada a reunião, eu pedi para ele me acompanhar até
meu escritório, para avaliar os desdobramentos do acordo de venda do
segundo maior grupo editorial do país, quando de repente, senti o meu
celular vibrar no bolso da calça.
A afobação foi tanta que eu quase derrubei o aparelho, tamanha era
a expectativa de receber notícias de Marie-Claire.
A modelo entrou em um ritmo alucinante de viagens, desde o início
de setembro e que duraria até o começo de outubro, pelas principais capitais
da moda.
Não pude evitar os pensamentos intrusivos, que me atormentavam
noite e dia. Afinal, entre desfiles, apresentações, eventos especiais, festas e
inúmeros shows paralelos, a minha namorada estaria sob os holofotes,
atraindo muita atenção indesejada. Em outras palavras: homens à espreita
dela como um enxame de abelhas rondando um pote de mel.
Tamborilei os dedos na mesa, antes de abrir o aplicativo de
mensagens.

Minha Turquesa: Sinto que os dias passam


muito devagar, estando longe de você. Pensei que
talvez pudesse estar presente no evento de
encerramento da NYFW...

Uma noite em que ela estaria irresistível, mas também resistente às


investidas.
Em pensar que outras noites se passaram na tentativa de levá-la para
a cama.
Digitei depressa a seguinte mensagem: “Quase nunca estou de
folga, mas me envie a sua programação e verei o que posso fazer, ok?” A
imprevisibilidade era uma das minhas melhores armas de sedução,
funcionava com praticamente todas as mulheres.
— Nunca permita que saibam o seu próximo passo, Cédric. —
Desviei o olhar do celular e olhei para ele, que parecia confuso com meu
último comentário. — Marie espera que eu viaje à Nova York, mas não
quero dizer logo de cara que estou totalmente disponível para ela.
— Nunca imaginei que uma mulher conseguiria fisgar você dessa
maneira.
— Estou correndo contra o tempo, Cédric. Preciso de uma esposa e
Marie-Claire é a candidata perfeita.
Meu irmão apoiou o queixo no punho fechado, em postura
meditativa.
— Você tem certeza de que é isso que quer?
— Você escutou o que eu disse antes? — Soltei um som impaciente
e franzi a testa. — Nosso pai ainda espera que um de nós três se case para
passar o controle do grupo de mídia. Você foi descartado, desde que perdeu
a noiva e prefere o celibato, como deixou claro... E quanto nossa querida
irmã, ela tem mesmo um dedo podre para homens.
Eu vou ter mesmo que me exibir por aí com uma aliança na mão
esquerda.
— E escolheu justo uma modelo de apenas 19 anos de idade? —
Cédric fez uma careta, as sobrancelhas se uniram numa expressão de
descrença.
— Marie-Claire é incomparável a qualquer outra com quem já me
relacionei.
— Você quer dizer, a mais intocável e inacessível delas. — Ele
tentou segurar o riso, mas sem sucesso. — A que escolheu esperar até o
casamento, por assim dizer...
— Não houve um tempo em que a virgindade da mulher pertencia
ao marido dela? — Desviei o olhar e engoli em seco, arrependido do que
disse e fiz um gesto vago com a mão. — Não me olhe com esta cara,
Cédric. Eu sei que fiz um comentário infeliz. — Soltei um longo suspiro,
cansado. — Mas ainda acho o casamento um estorvo. Seria pedir muito ter
apenas uma mulher incrível ao meu lado, sem a necessidade de um dia
esperá-la no altar?
— Uma confissão tão honesta não só me surpreende como também
me diverte, sabia? — Um sorriso matreiro surgiu nos lábios dele, mas seu
rosto ficou sério, de repente. — Mas, vamos supor que ela aceite. Não vai
contar que o casamento tem prazo de validade?
Inclinei a cabeça para trás, apoiando-a no encosto da cadeira
giratória, e olhei para o teto por alguns instantes, antes de responder:
— Ela não precisa saber de nada! — O tom saiu mais ríspido do que
pretendia.
— Isto ainda vai acabar mal... — As sobrancelhas dele se uniram
numa expressão de censura.
— A vida de casado deve ser entediante, mas acho que consigo
suportar por um tempo.
— Pretende continuar se comportando como um cara solteiro?
— Eu não vou traí-la com mulher alguma, se esta for sua única
preocupação.
— Isso é o mínimo que eu esperaria de você.
— Agora, eu só preciso saber como diabos eu consigo o convite
para a New York Fashion Week.
— Camille tem seus contatos no mundo fashion, esqueceu?
— Bem lembrado, Cédric! — então, saquei meu celular do bolso e
fiz a chamada para nossa irmã, que atendeu ao primeiro toque.
A conversa foi breve. Ela informou que apenas um grupo muito
seleto de pessoas tinha o privilégio de sentar na primeira fileira dos desfiles.
Em outras palavras: conseguir um convite de última hora seria praticamente
impossível.
Sendo assim, eu teria que me contentar com o que tinha àquela
altura: o último lugar restante da primeira fila da Semana de Moda de Paris.
— A minha viagem à Nova York já está descartada — comentei
com meu irmão, após encerrar a chamada e joguei o celular sobre a mesa.
— Espero que um buquê de flores silvestres compense a minha ausência...
— Apertei o botão do ramal e esperei a secretária atender. — Salut,
Babette! Pode vir ao meu escritório, por favor?
A porta se abriu no minuto seguinte, e minha eficiente secretária,
entrou.
— Com licença, senhores... Em que posso ajudar?
— Preciso que entre em contato com alguma floricultura
conceituada de Nova York e encomende um buquê bem exuberante para
Marie-Claire. A entrega deve ser feita no camarim, minutos antes do desfile
dela no Lincoln Center.
— Monsieur deseja transmitir alguma mensagem no cartão?
— Bem lembrado! Só um instante... — Escrevi rapidamente numa
folha do bloco de notas os seguintes dizeres: “Infelizmente não pude te
prestigiar, mas estarei contigo em pensamento... Boa sorte, e arrase, ‘mon
amour’. Você é a melhor!”.
Dobrei o papel e o estendi na direção dela. Minha secretária olhou
para a folha e, depois, para mim outra vez, com um sorriso simpático nos
lábios.
— Farei isso agora mesmo. Precisa de algo mais, monsieur?
— Agora que perguntou, pensei se poderia sugerir um lugar especial
para pedir a mão da minha namorada em casamento...
— Um pedido de casamento com vista para a Torre Eiffel é sempre
um clássico, Jean. — Meu irmão comentou, pressionando o indicador
contra os lábios.
— Pode providenciar o anel de noivado que eu cuidarei do resto,
monsieur — disse Babette, com um sorriso amável.
— Sempre tão eficiente... Merci beaucoup!
Em pensar que meu objetivo inicial era levá-la para a cama e
dispensá-la pouco tempo depois, como fiz com tantas outras mulheres.
Porém, desde que eu assumi o cargo de CEO interino da SVL Groupe, o
cerco foi se fechando cada vez mais à minha volta, não restando outra
opção além de me unir com alguém, em matrimônio.
Preciso de uma mulher troféu; não de uma esposa no sentido literal
do termo.

Eu tinha acabado de sair de uma prestigiada joalheria, onde a


atendente havia me ajudado a escolher um anel de noivado, quando recebi
uma ligação inesperada de minha mãe.
— Por que não atendeu minhas ligações, Jean? — Margot
perguntou, aparentemente preocupada. Na verdade, eu havia deixado o
smartphone no silencioso, enquanto estava na loja, e por um descuido
acabei não sentindo o aparelho vibrar no bolso da calça.
— Passei alguns minutos em uma joalheria, escolhendo um anel de
noivado.
— Achei que estava disposto a ir contra a vontade de seu pai. O que
te fez mudar de ideia?
— Eu já encontrei a mulher certa, embora vocês não acreditem.
Então qual é a surpresa? — Não deu para refrear minha impaciência, mas
resolvi modular o tom, antes de prosseguir: — Logo, logo serei um homem
casado, maman. Não era isso o que vocês queriam? — Seguiu-se uma
inspiração profunda do outro lado da linha, e subitamente meu coração se
acelerou. Definitivamente, havia algo errado.
— Temos muito que conversar, mas isso não vem ao caso agora. —
Ela fez uma pausa dramática, antes de sussurrar: — Sua avó está com
aquela ideia fixa de novo... Ela acha que vai morrer a qualquer momento.
Em pensar que dois anos se passaram desde que meus avós
celebraram as bodas de diamante com uma reunião em família, no Château
de Lumière. Mal sabíamos que a união conjugal seria interrompida meses
depois, quando meu avô sofreu um acidente vascular cerebral (AVC).
Minha avó sempre dizia que parte dela também morreu junto com
ele naquele leito de hospital. O impacto da perda foi tão devastador para
ela, a ponto de levá-la a um estado mental agravado por um quadro de
demência e depressão associados.
A situação se tornou desesperadora, quando minha avó
supostamente ingeriu uma dose exagerada de analgésicos de forma
acidental. Os médicos levantaram a hipótese de lapso de memória, pois ela
realmente fazia uso da medicação, mas também suspeitaram que fosse uma
tentativa de suicídio, ainda que de maneira inconsciente.
— A cuidadora comentou alguma coisa? — Pontos pretos dançavam
diante de meus olhos e tudo escureceu, por um instante. — Já chamaram
um médico?
— Ele já esteve aqui, examinou a sua avó e disse que o quadro
clínico permanece estável. Mas ela está insistindo muito em ver todos os
netos, pois quer expressar seus últimos desejos. Eu achei melhor não a
contrariar, Jean. Seus irmãos já estão vindo para cá, e espero que você
também faça o mesmo.
— Chegarei aí em no máximo quinze minutos, ok?
Eu andei praticamente aos tropeços até o veículo estacionado na Rue
du Faubourg Saint-Honoré, considerada a rua comercial mais luxuosa de
Paris, bem ao lado da Place Vendôme. Entrei no carro, com a mente em um
turbilhão de pensamentos, encostei a cabeça no volante, e sem oferecer
nenhuma resistência, eu desabei.
Foi mais forte do que eu.
Sim, eu chorei, por mais vergonhoso que pudesse parecer, tendo em
vista que sempre fui um homem acostumado a reprimir as emoções. Um
homem cujos pais tinham o hábito de se isolar num cômodo ou saíam para
uma caminhada, apenas para chorar em privado, já que um simples choro
sempre foi visto como um sinal de fraqueza.
Yvonne Saint Vincent não perdeu apenas um grande amor. Ela
também perdeu todo o senso de identidade.
Não queria nem pensar na possibilidade de perder mais um ente
querido.
Cheguei à conclusão de que amar alguém tanto assim era perigoso
demais.
Um longo e profundo suspiro escapou dos meus lábios, enquanto
secava as lágrimas com as costas da mão. Liguei o carro de uma vez, e parti
rumo à 16º arrondissement, pela rota Georges-Pompidou, uma rota de 13
quilômetros que cruzava Paris ao longo da margem direita do rio Sena.
Meus pais tiveram a sorte de adquirir um imóvel com um jardim
exuberante, o que era uma raridade no centro de Paris, e perfeita para um
casal cujos filhos já cresceram e se mudaram. A porta principal se abria
para um imponente hall de entrada, descortinando cada detalhe da
decoração tipicamente clássica, mas com algum toque de modernidade.
O silêncio reinava absoluto quando adentrei a sala de estar formal.
Todos pareciam presos nos próprios pensamentos, alheios à minha
presença.
— Bonjour, famille. — Saudei, com um breve aceno. — O trânsito
estava um pouco congestionado, como já era de se esperar... — Olhei em
volta, dando falta do meu pai. Estavam presentes apenas Camille, minha
mãe e Cédric — Jean-Claude ainda não voltou da empresa?
— Ele está no escritório, resolvendo algumas pendências. — Cédric
informou.
A minha mãe piscou os olhos castanhos, afastando as lágrimas, e
então se levantou do sofá.
— Maman quer falar com cada um de vocês a sós, no quarto dela.
Jean por ser o neto mais velho será o primeiro a ter uma conversa com ela,
naturalmente.
Sem pensar duas vezes, eu me aproximei dela e a puxei para um
longo abraço.
— Não se aflija, maman. Vai dar tudo certo. — Eu a estreitei mais
em meus braços, como que para transmitir algum conforto, embora eu
mesmo não pudesse sentir.
Margot se afastou um pouco e olhou para mim, os lábios lentamente
se abriram em um esboço fugaz de sorriso.
— É melhor você ir falar com ela de uma vez, mas não demore, está
bem?
— Aproveitando que estão aqui presentes, eu farei um
comunicado...
— Até imagino o que seja... — Camille me interrompeu, mal
contendo o riso.
— É exatamente isso que você está pensando, ma chérie... —
Confirmei as suspeitas dela, antes de pedir licença e sair da sala. — Excuse
moi.
Havia um lance de escadas acarpetadas, que levava até o pavimento
superior, paralela ao corrimão dourado. Eu me enchi de coragem e subi os
degraus de quatro em quatro, mas hesitei quando alcancei o quarto da
minha avó. Então, respirei bem fundo, com o punho fechado no ar, e
finalmente dei três toques de leve na porta.
Foi a cuidadora dela quem abriu, expressando certo alívio no rosto.
— Entre, monsieur — disse ela, fazendo um gesto com a mão. —
Eu vou deixá-los a sós. Caso precise de mim é só chamar.
— Merci. — Um sorriso brotou nos meus lábios, como gesto de
gratidão. Lancei um olhar pelo espaçoso quarto projetado para evocar uma
atmosfera aconchegante, graças ao papel de parede com nuances de
diferentes tons pastel.
A minha avó estava sentada na poltrona reclinável e, tão logo ela
notou minha presença, os seus olhos se iluminarem em reconhecimento.
Cruzei a distância que nos separava, antes de me ajoelhar e tomei a mão
trêmula, enrugada e cheia de veias dela entre as minhas palmas, que suavam
frio, quando repentinamente, senti um gosto amargo na boca.
— Como está se sentindo, mamie?
— Eu fiquei com o coração apertado, pois não sabia se o veria de
novo, mon chéri. — disse ela, com a voz pastosa por ingerir tantos
remédios. Apesar de Yvonne ter me encarado, o olhar parecia perdido em
algum ponto acima da minha cabeça.
Uma sensação esmagadora me atingiu com a mesma potência de um
soco no estômago.
Não importava quantas vezes eu lhe fazia uma visita: O meu
coração sempre se apertava quando a via assim.
— Não sei quanto tempo ainda me resta de vida... — Ela colocou a
mão sobre o peito, de modo afetado. — Seria pedir muito poder ver os
meus netos felizes? —A cabeça dela pendeu para o lado, quando passou a
observar a paisagem pela enorme janela de vidro. — Cédric ainda não
superou o luto da ex-noiva. Camille só se envolve com gigolôs. E quanto a
você? Só vive para o trabalho, assim nunca vai se comprometer.
Quase esqueci que madame Yvonne costumava falar de um jeito
bem ácido.
— A senhora ainda vai viver muito! — Enfatizei bem as últimas
palavras.
— Chegue um pouco mais perto. Preciso te confidenciar uma coisa.
A última frase me deixou um pouco intrigado, mas eu fiz o que ela
me pediu.
— Eu sonhei com seu avô. — A voz rouca dela ressoou em meu
ouvido, provocando um calafrio ao longo da espinha. — Implorei tanto para
que ele me levasse... Mon amour me pediu para ser forte. Eu sei que ele
vem me buscar. Leve o tempo que for.
— Vai demorar muito tempo, mais do que possa imaginar. A
senhora precisa estar bem para ver seus bisnetos nascerem... — Um soluço
embargou minha voz mais do que eu gostaria. Eu quase atropelei as
palavras seguintes, decidindo ir direto ao ponto: — Também preciso te
confessar uma coisa: Pretendo me casar em breve. — Observei minha avó
me encarar, com indizível assombro. — Eu vou me casar, antes mesmo dos
meus irmãos.
— Eu já conheço a felizarda? — perguntou, o tom de voz denotando
surpresa e incredulidade. Seguiu-se um silêncio momentâneo quando
neguei e, com indisfarçada irritação, ela completou: — Por que eu sempre
sou a última a saber?
— Se serve de consolo, eu nem mesmo contei para os meus pais
ainda. — Dei uma piscadela para ela. — Marie-Claire está em Nova York.
Deve ficar por lá até o final de semana, mas ainda vai passar por outras
capitais da moda, como Londres e Milão...
— Oh, là là! C’est incroyable! — Ela parecia realmente
impressionada. — Há quanto tempo vocês estão juntos?
— Bem... Faz pouco tempo que Marie e eu estamos juntos. —
Passei a esfregar o queixo, pensativo, mas por fim, eu disse: — Uns quatro
meses, talvez.
— Só isso? — Ela disparou a pergunta para mim, visivelmente
incrédula. — Não acha que está indo rápido demais? — Minha avó pareceu
pensar a respeito por um instante e depois desatou a rir. — Vocês, jovens,
vivem sob um senso de urgência tão grande, como se o mundo fosse acabar
amanhã.
Aquela foi a minha vez de rir, definitivamente. Então, eu tirei meu
celular do bolso, abri a galeria e procurei as fotos que havia tirado da
modelo, antes de entregar o aparelho para ela.
— Une jolie femme... — murmurei, enquanto olhava a foto da
minha futura esposa.
Quero tomá-la e possuí-la, desesperadamente.
Após colocar seus óculos para observar melhor a imagem, Yvonne
murmurou algo em voz baixa e estreitou os olhos para mim, o orgulho
transparecendo no olhar.
— Você sempre teve bom gosto, Jean! — Ela estendeu o braço e
passou a roçar as costas da mão ao longo do meu maxilar. — Às vezes, eu
me esqueço de que meu neto tem um coeur d’artichaut[7]!
Aquele comentário inesperado dela me fez soltar uma sonora
gargalhada.
— A senhora só disse isso porque eu sempre me envolvi com
alguém diferente.
— O que não deixa de ser verdade... — Ela ergueu a sobrancelha,
perspicaz. Notei suas feições mudarem e, de repente, ela pareceu ficar
muito séria. — Eu quero que me prometa uma coisa... Se estiver mesmo
determinado a se casar só o faça pelos motivos certos.
Eu me levantei de um salto, assim que ouvi as últimas palavras dela.
— E quais seriam os motivos errados? — perguntei, incapaz de
disfarçar a irritação pela expressão de censura no rosto dela. Sem esperar
pela resposta, eu prossegui: — A senhora sempre me disse que o amor é um
sentimento que se constrói com o tempo.
Minha avó apoiou o cotovelo no braço da poltrona e passou a me
estudar longa e friamente por cima de seus óculos de grau. Eu podia jurar
que ela enxergava até o fundo da alma, como se soubesse de todos os meus
segredos. Era, no mínimo, desconcertante.
De repente, nós dois escutamos uma leve batida na porta. Pressionei
os dedos na testa, incomodado com o rumo da conversa, mas para minha
sorte o tempo se esgotou.
— Bem agora chegou a vez de Cédric. — Eu me aproximei dela, e
beijei suavemente o topo de sua cabeça. — Voltarei assim que puder.
— Não esqueça o que conversamos. — Ela ergueu uma sobrancelha
de divertimento.
— Eu não vou conseguir colocar a cabeça no travesseiro à noite por
sua causa, ma mamie. — Eu brinquei, fingindo seriedade. Minha avó ainda
estava rindo, quando me dirigi até a porta.
— Devo me preocupar com nossa avó? — perguntou meu irmão,
fazendo um sinal com a cabeça em direção à Yvonne, que continuava rindo,
histericamente.
— Non! — Dei um tapa de leve no ombro dele. — Ela aparenta
estar bem.
Senti meu celular vibrar e ao desbloqueá-lo, verifiquei a mensagem
de texto de Marie:
“Estou tão arrasada, Jean! Eu me desequilibrei quando estava
prestes a sair da passarela, sofri uma torção no tornozelo e minha ida à
Londres ainda é incerta.”
Marie-Claire e eu passamos a nos conhecer tão bem ao longo dos
meses, que era quase como se estivéssemos conectados, desde sempre.
Pela primeira vez na vida, um forte aperto comprimiu o meu peito,
ampliando aquela sensação de vazio desconcertante, como se a dor dela
também fosse minha.
Capítulo 12

Marie-Claire

Apesar do incidente na passarela, eu continuei desfilando nos dias


que se seguiram, praticamente à base de analgésicos e antibióticos. Porém,
meu desempenho foi comprometido, e me vi obrigada a buscar atendimento
médico, saindo do pronto socorro com o pé enfaixado e com a certeza de
que estava fora da Semana de Moda de Londres.
Fiquei tão deprimida a ponto de ter evitado contato minhas próprias
colegas de profissão.
Passei os últimos dias na casa do meu pai, que fez questão de
preparar todas as comidas de que eu gostava, mas o peso na consciência foi
tanto que eu corri para o vaso sanitário e vomitei até não sobrar nada dentro
de mim.
Ainda estava dividida entre o medo da recaída e o medo de ganhar
peso, então segui até o consultório da terapeuta, afinal o meu nome
constava entre as mais cotadas para a fashion week de Milão e Paris,
encerrando assim a temporada de desfiles do ano.
Passei a balançar uma das pernas freneticamente, enquanto
aguardava a minha vez de ser chamada, mas levei um susto quando meu
celular vibrou dentro da bolsa. O nome de Jean-Luc apareceu na tela e
mesmo com a respiração suspensa e o coração batendo descompassado,
deslizei o dedo trêmulo, aceitando a chamada.
— Estava mesmo pensando em ligar para você. — Comecei a falar,
com a voz embargada e fechei os olhos, tomada pelo remorso. — Desculpe-
me pela falta de notícias.
— Não sabe o quanto desejei poder ouvir sua voz de novo, Marie.
— Ele parecia genuinamente aliviado. — Faltou pouco para não ir até sua
casa, mas respeitei sua decisão de não querer ver e nem conversar com
ninguém.
— Precisava de um tempo para absorver tudo o que aconteceu nos
últimos dias. — Lágrimas silenciosas rolaram pelo meu rosto, mas eu as
enxuguei de modo brusco.
Escutei uma série de reclamações dos meus agentes, porque as
substituições só eram feitas em circunstâncias excepcionais, uma vez que as
modelos eram reservadas tão perto do horário do show que não havia tempo
hábil para realmente trocá-las por outras.
— Você se sente melhor? Porque tudo o que mais desejo agora é
poder te abraçar, sentir o seu cheiro, o calor de seu corpo sexy, e o doce
sabor de seus lábios.
Só de vislumbrar a cena, eu já sentia o corpo estremecer sutilmente,
a região sensível pulsava como nunca, a lubrificação fluía o suficiente para
molhar a calcinha.
— Sinto muito a sua falta, Jean. — A voz saiu pouco mais que um
sussurro. — Eu dei tudo de mim nos ensaios, não sei bem o que houve... —
Lamentei, bastante entristecida. Eu já estava acostumada a usar saltos tão
absurdamente altos, que jamais me desequilibrei com eles ao longo dos
anos. — Talvez o capacete de 'apicultor' que me fez perder o equilíbrio.
Aquele trambolho atrapalhou minha visão na passarela.
— Incidentes acontecem quando menos se espera, chérie. O
importante é se levantar após cada queda e continuar andando, sempre de
cabeça erguida.
— O meu pai disse a mesma coisa... — Dei um riso contido,
enquanto fungava o nariz, que escorria sem parar. — Acho que chegou a
hora de reagir e dar a volta por cima.
— Essa é minha garota. É assim que se fala! O seu tornozelo já
sarou?
— Tirei a atadura elástica ontem, e embora ainda sinta um pouco de
dor, já consigo firmar o pé no chão sem a ajuda de alguém.
— Eu estava pensando em levá-la para jantar... Quem sabe logo
mais à noite.
— Très bien. — Meu coração se aqueceu com o convite inesperado.
— Quero poder sair e relaxar um pouco. Eu me sinto tão ansiosa sobre
muitas coisas, por exemplo, eu fui escolhida para abrir o desfile da Versace.
Não quero que nada saia errado.
Faltavam dois dias para o desfile da coleção primavera-verão, na
Milan Fashion Week, e também ficaria responsável pelo encerramento da
edição do evento.
— Já deu certo, acredite! — Ele deu ênfase e profundida à voz. —
Ainda digo mais, Marie. Eu conheço um método infalível de relaxamento, e
antes que me pergunte o que é você só saberá mais tarde. — Ele riu do
outro lado da linha. Reconhecia claramente o tom malicioso, aquela
sugestividade provocante na voz, mas eu nem tive a chance de sondá-lo,
porque ouvi chamarem o meu nome, diretamente, da recepção.
— Adoraria saber o que está aprontando, mas eu preciso desligar,
infelizmente.
— Se eu te dissesse, deixaria de ser surpresa, chérie! — E, dizendo
isso, ele desligou. Merde! A curiosidade sempre foi meu ponto fraco.
Eu me levantei e segui devagar até o consultório, as pernas
vacilaram um pouco, com passos inseguros de quem tentava adiava ao
máximo o momento de confrontar as próprias questões internas.
— Bonjour, Marie-Claire. — A terapeuta me saudou de modo
gentil, e na sequência fez um gesto com a mão, indicando o recamier de
couro, no canto da sala.
— Bonjour, et merci. — Retribuí o cumprimento com um sorriso
tímido.
— Pensei que estava viajando a trabalho... — Louise comentou,
casualmente.
— Eu deveria estar em Londres, mas sofri uma queda no último
desfile da Semana de Moda de Nova York. Meu tornozelo ficou
imobilizado por cinco dias, acredita?
— Como você se sentiu, desde então?
— Fiquei arrasada. — Admiti, inclinando a cabeça para o lado de
maneira autodepreciativa. — Eu me cobro bastante, e acredito que todos à
minha volta esperam sempre o melhor de mim, ou seja, nada menos do que
a perfeição.
— A torção no tornozelo te incapacitou temporariamente para o
trabalho? — Ela perguntou com alguma hesitação, enquanto olhava para
meus pés. — Não reparei se seu pé estava imobilizado...
— O médico disse que já posso voltar a trabalhar.
— Mas esta é uma boa notícia, não? — perguntou ela, incerta, ao
notar que eu não parecia muito entusiasmada.
— Ainda me sinto muito mal pelo que aconteceu, Louise. —
Encolhi os ombros, engolindo o choro e enxuguei as lágrimas com as costas
da mão.
— Como seres humanos, nós temos a tendência de supervalorizar as
experiências negativas. E quase sempre esquecemos que é possível extrair
algo de positivo nelas. — A minha terapeuta estava coberta de razão como
sempre.
— Sim, eu entendi… isso é óbvio. Muitas vezes somos nós quem
complicamos tudo.
— Exatamente... — Ela fez algumas anotações em seu caderno,
antes de prosseguir. — Eu vou sugerir um exercício para você fazer no
tempo livre. Procure na internet algum vídeo ou imagem de modelos caindo
ou tropeçando na passarela.
— Mas por que eu deveria fazer isso? — Perguntei, com certa
desconfiança.
— Acho que pode extrair algum aprendizado para a vida, porque
nenhum tombo teve grandes consequências. Acho até que você vai rir muito
disso tudo, sabia?
— Foi um susto horrível. Naquela hora, eu só pensei: “Mon Dieu,
agora é o fim da minha carreira!”.
Ela só abriu um sorriso muito gentil e compassivo e disse:
— Se sua participação nos próximos shows se manteve, então não
há motivo para se preocupar.
— Pensando por esse lado, talvez o tombo não tenha sido de todo
ruim... — Eu baixei o olhar para as mãos unidas sobre o colo, enquanto
esfregava os polegares, distraidamente.
— Há algo mais que deseja me contar? — perguntou ela, com certa
cautela.
Não deixei de me perguntar quanto tempo levaria até ter coragem
suficiente para falar sobre o segundo motivo que me levou a procurá-la,
assim que voltei de viagem.
— Oui... — Aquiesci, nervosamente, mas respirei bem fundo, antes
de prosseguir: — Eu falei sobre o meu agente antes, mas não cheguei a
entrar em detalhe sobre a nossa relação, certo? — Ela apenas confirmou
com um gesto de cabeça. — Bem, qualquer modelo em início de carreira
consegue obter os melhores trabalhos através dele.
— Ele exigiu algo em troca ou apresentou algum tipo de conduta
inoportuna?
— Naquela época, meu agente tinha 38 anos, e eu era apenas uma
adolescente... — Esfreguei os braços, como se sentisse muito frio. — O
meu pai o convidou algumas vezes para jantar em nossa casa, e passou a
tratá-lo como se ele fosse um amigo da família — prossegui, com certa
frieza, e endireitei os ombros, inspirando bem fundo. — Ainda me sinto
muito culpada, Louise... Insisti tanto para entrar na agência que papa
acabou confiando cegamente nele.
— Além de você existem outras vítimas de assédio? Pensa em
denunciá-lo?
— Várias meninas passaram por situações semelhantes, mas
chegamos a um consenso de que denunciá-lo às autoridades, não só
acabaria com as nossas carreiras, como também exporia nossas famílias ao
constrangimento... É pior do que imaginamos.
Minhas colegas e eu temos muito mais a perder do que ela imagina.
Eu ainda podia ouvir as palavras de Patrick ecoando em minha
cabeça: “Se disser qualquer coisa sobre isso, pode ter certeza de que
cuidarei pessoalmente para impedir que participe de entrevistas ou, mesmo,
de possíveis castings.”.
— Não pensou na possibilidade de mudar de agência, Marie?
— Conversei com um advogado e ele achou melhor prorrogar
minha permanência até o final do ano, pois do contrário, seria forçada a
pagar uma multa muito alta.
— O seu agente costuma te acompanhar nessas viagens?
— No geral, ele e Désirée costumam ficar no escritório para
gerenciar as reservas. Mas podem acompanhar as modelos quando coincide
de ter alguma reunião, um evento, ou outros compromissos importantes.
— Vocês dois já tiveram que se hospedar no mesmo hotel?
— Infelizmente, sim... — Confirmei, fechando os olhos com força,
na vã tentativa de esquecer aquela noite. — Foi assustador demais, Louise.
Tive muito medo.
Contei para a terapeuta que Patrick ligou para mim, pedindo para
subir e ver como estava meu tornozelo. Recusei, educadamente, mas ele
continuou insistindo, alegando que já estava no saguão do hotel. Ele ainda
se atreveu a ligar para o meu quarto diretamente da recepção, mas eu tirei o
telefone da tomada, tranquei a porta e me deitei.
Não consegui pregar o olho a noite toda. Passou tantas coisas pela
minha cabeça naquele dia, que eu só rezei para ele não forçar a entrada no
quarto. Não sei como tenho sobrevivido aos assédios. Só me restava varrer
as situações humilhantes, vexatórias e repetitivas para debaixo do tapete,
apenas para manter o emprego.
— E foi justo no dia que tinha tudo para ser inesquecível... —
Relembrei, em voz alta, enquanto enxugava as lágrimas no canto dos olhos.
— Recebi um buquê lindo do meu namorado, minutos antes de levar o meu
primeiro tombo na passarela.
— Pretende contar a ele o que aconteceu? Refiro-me ao que seu
agente fez.
— Non, non — respondi, balançando a cabeça, em negativa. — Eu
não quero envolvê-lo nisso. Tem sido muito difícil lidar com situações de
assédio no trabalho, e seria ainda pior se Jean soubesse, ou mesmo o meu
pai. Uma atitude impensada deles pode custar muito caro. Sempre tive
muito medo... Lembro-me do dia em que passei mal e meu agente ofereceu
carona. Eu literalmente apaguei no carro dele, e quando despertei, senti sua
mão nojenta deslizando por baixo da saia... O desfecho poderia ter sido
pior... Algumas meninas não tiveram a mesma sorte, quando foram até a
casa dele para um jantar com outros membros da indústria. Fiquei
horrorizada com o relato delas.
— E como é a sua relação com seu namorado? Já se sentiu
pressionada a ter relações sexuais?
— Ele sabe que sou virgem, mas tem sido extremamente respeitoso
comigo, um verdadeiro cavalheiro. — Apoiei a cabeça no encosto macio da
poltrona, e dei um longo suspiro, sonhando com o dia que meu pai me
conduziria até o altar, com meu irresistível futuro marido à minha espera,
todo sorridente e orgulhoso. — Eu posso até perder a virgindade antes do
casamento, contanto que seja com o homem que eu amo.
— É mesmo prazeroso estar apaixonada, mas dê tempo ao tempo.
— Eu só me sinto segura e protegida quando estou com ele, Louise.
Acho que o pedido de casamento virá em breve. — Mal pude conter a
empolgação na voz. Só de vislumbrar estar casada com o homem mais
apaixonante que eu já conheci só fez reacender uma fagulha de esperança
no peito.
E se minha vida dependesse disso? Talvez dependesse mesmo.
Nada de ruim pode acontecer comigo, desde que Jean esteja ao meu
lado.
O vento cortante do ar condicionado fez os pelos dos meus braços
eriçarem, seguido por um arrepio ao longo da lombar. Cruzei rapidamente
os braços sobre o peito para me aquecer, mas não pude evitar a sensação
ruim, de mau pressentimento mesmo.
Quando eu saí do consultório, conferi logo as mensagens recebidas e
uma delas me provocou um forte embrulho no estômago. Patrick
comunicou que eu tinha até 24 horas para retirar todas as minhas coisas do
apartamento. A minha vaga seria ocupada por outra modelo, que chegaria a
Paris nos próximos dias.
Precisava entrar em contato imediatamente com meu advogado. Por
sorte, a secretária dele atendeu a chamada já no terceiro toque.
— Bonjour! Eu gostaria de falar com monsieur Lambert... É
possível? — Ela me pediu para aguardar um momento, então escutei a voz
amistosa dele do outro lado da linha.
— Bonjour, Marie. Em que posso ajudá-la?
— Recebi uma mensagem de Patrick. Ele exigiu que eu deixasse o
apartamento-modelo ainda hoje. Assim, sem mais nem menos, acredita?
— Recomendo que converse pessoalmente com seu agente para
saber os motivos. Os apartamentos são controlados pelas agências e
existem regras a serem cumpridas.
— Mas é isso que eu não entendo, doutor. Eu sempre segui as
regras!
As despesas eram descontadas de cachês e assinei um documento
contendo as regras de convivência, logo no primeiro dia.
Para começar, a agência estipulou um toque de recolher, proibindo
chegadas e saídas depois das 22 horas. Além disso, não era permitida a
entrada de pessoas do sexo oposto. Em outras palavras: nada de visitas
íntimas, e até mesmo os familiares precisavam de autorização prévia para
acessar o prédio.
Sempre fui muito cuidadosa, organizada e, as meninas inclusive me
enxergavam como alguém responsável por colocar as coisas em ordem,
durante a convivência.
— Sugiro que mantenha a calma e não tome nenhuma atitude
precipitada, ok? — A voz masculina do outro lado da linha me trouxe de
volta à realidade.
— Très bien... — Respirei fundo e passei a mão pelos cabelos,
apressando o passo até chegar do outro lado da rua. — Também posso
voltar a morar com meu pai.
— Então, me mantenha informado. Boa sorte, Marie. Salut! — E
desligou.
Segui a pé mesmo até Avenue George V, que felizmente ficava a
poucos quarteirões de distância. Com a garganta apertada por causa das
lágrimas, entrei de rompante no escritório do meu agente, que oferecia uma
vista privilegiada da Torre Eiffel.
Quando Patrick notou minha presença na sala, arqueou uma
sobrancelha, curvando ligeiramente os cantos da boca, exibindo seu
habitual sorriso de desdém. De desdém, não. Definitivamente, era algo
quase diabólico.
— Bonjour, mon petit. — A forma como meu agente proferiu
aquelas palavras deixava um gosto de bile na boca, e o meu estômago
embrulhou de puro nojo.
Não pensei duas vezes: Avancei na direção dele, com os punhos
cerrados e o rosto queimando de raiva.
— Por que você me expulsou do apartamento? Eu divido um quarto
com as meninas há mais de três anos e jamais provoquei uma briga ou
causei problemas a elas.
— Cometeu um grande erro, quando permitiu a entrada daquele
imbécile que você chama de namorado. — Ele deixou transparecer certo
despeito na voz, algo que não me surpreendeu em nada. — Nenhum outro
homem além de mim pode entrar lá e você sabe muito bem disso.
— Mas isso foi há quatro meses, Patrick. — Murmurei
inconformada, lutando contra a onda de impotência que já invadia a minha
alma. — Eu me esqueci de avisar a Jean para não subir e as meninas
acabaram permitindo a entrada dele...
Patrick se levantou e agarrou o meu queixo com tanta força, quase a
ponto de me sufocar. Senti as pernas vacilarem, mas mantive as mãos
trêmulas apoiadas na mesa para não perder o equilíbrio. Lágrimas escorriam
vertiginosamente, enquanto tentava desviar inutilmente o rosto para que ele
não me beijasse.
— Achou mesmo que eu beijaria essa sua boquinha linda? — Ele
então soltou uma gargalhada de puro sarcasmo. — Não vai faltar
oportunidade, Marie... Aliás, confesso que já tive o prazer de saborear seus
lábios fartos não faz muito tempo...
— Você só pode estar louco! — Consegui murmurar entredentes,
meus dedos tateavam nervosamente na mesa, à procura de algum objeto
contundente, mas como não consegui alcançar nada, tentaria usar meus
próprios dentes para me defender.
Eu consegui morder a mão dele, mas mordi com tanta força, que
ele quase urrou de dor, recuando um passo e me encarando com a expressão
lívida e furiosa.
— Não esperava lidar com uma cadela raivosa, mas eu gosto disso,
sabia?
— Tem sorte de eu não ter denunciado você por assédio sexual,
Patrick. Mas não pense que ficará impune.
— Devia ser mais sensata e fazer como muitas mulheres que
dormem com seus chefes por medo de comprometerem suas carreiras.
Patrick costumava convidar modelos mais jovens para falar sobre a
carreira, oferecendo um jantar na mansão dele.
— Cale a sua maldita boca! — Vociferei, fazendo com que gotículas
de saliva fossem expelidas, enquanto apontava o dedo em riste para ele. —
Elas podem ter ido até sua casa, na esperança de fazer bons contatos
profissionais, mas foram dopadas e obrigadas a fazer sexo com você e sabe-
se lá com quem mais. — Comecei a entrar em pânico, o meu corpo tremia
involuntariamente à medida que a indignação aumentava.
Até quando seremos silenciadas por homens ricos e poderosos?
A estratégia de nos manter em silêncio servia como arma para no
futuro confundir a opinião pública sobre consentimento, ampliando a
sensação de impunidade, com os verdadeiros culpados amparados pelo
sistema, e seguindo com suas vidas normalmente.
Ele então me chacoalhou, arregalando os olhos e, mais uma vez,
senti medo.
— Eu já te avisei para não se meter comigo, chérie. — A voz dele
saiu baixa, mas com intensidade suficiente para fazer um arrepio gélido
percorrer a espinha. — Sua saída do apartamento de modelos devia ser a
menor das suas preocupações agora. Não ouse fazer nada, pois do contrário
se arrependerá amargamente. E caso este dia chegue, saiba que esquecerei
tudo o que sinto por você.
— Só alguém obcecado e doente seria capaz de agir assim... — Uma
onda de náusea subiu à garganta, o que me fez engolir dolorosamente em
seco.
Um sorriso surgiu no canto de sua boca fina, demonstrando não ter
se ofendido com minhas palavras. Patrick parecia mesmo orgulhoso por
impor medo nas pessoas, especialmente em jovens mulheres, que assim
como eu, estavam hierarquicamente subordinadas a ele.
Arregalei os olhos, quando meu agente passou a língua pelos lábios
e abaixou a cabeça, mas rapidamente virei o rosto para o outro lado e fechei
meus olhos com força, sentindo aquele hálito quente e repugnante soprando
no meu ouvido direito.
— Considere-se uma garota de sorte por eu ter me apaixonado por
você.
Tentei me desvencilhar daquelas mãos que mais pareciam garras,
prendendo meus braços com tanta força a ponto de provocar uma dor aguda
nos ossos.
— Tire suas mãos nojentas de mim! — Eu ameacei, sentindo o rosto
queimar, convulsionado pela raiva. — Eu tenho nojo de você!
Patrick soltou uma risada breve e destituída de humor.
— Aquele magnata só quer brincar com seus sentimentos, assim
como fez com outras modelos. Você não passa de uma conquista a mais da
lista dele, chérie.
Aproveitei que o aperto em meus braços se afrouxou um pouco, e
me desvencilhei dele, desabando na cadeira mais próxima. Estava atordoada
demais para falar.
— Você tem até a meia-noite para retirar suas coisas do
apartamento.
De repente, nós dois escutamos uma batida à porta, seguida pela voz
alterada de Désirée, que falava com alguém ao celular. Ela murmurou algo
ininteligível, antes de encerrar a chamada, e atravessou a sala de forma
intempestiva, parecendo transtornada. Nem mesmo me respondeu quando
lhe cumprimentei, e parou diante de Patrick com a postura altiva, o queixo
empinado e um brilho desafiador nos olhos.
— Patrick, que história é essa de que você continua importunando
as meninas? Eu já te disse que não vou tolerar mais nenhum deslize de sua
parte.
Então, ela estava mesmo envolvida. Por que eu não estou surpresa?
— Não possuo o menor controle do que ocorre em outros tipos de
ambientes e situações, como festas, jantares, ou coquetéis, por isso eu
sugiro que tenha bom senso. Qualquer conduta inadequada pode ser
igualmente prejudicial para os nossos negócios.
Todas as modelos estavam sujeitas aos acordos de confidencialidade
por parte da agência, ainda que fora dos locais de trabalho reais. Estabelecer
networking era uma parte significativa do trabalho na indústria da moda, o
que significava marcar presença em eventos sociais, com personalidades
influentes do mundo inteiro — que incluíam políticos, celebridades e
empresários.
Observei Patrick fazer um sinal para ela, com a expressão
impassível em que só os seus olhos se movimentavam. Quando finalmente
Désirée olhou para o lado, aparentou estar momentaneamente confusa com
a minha presença.
— Oh, bonjour! Eu não esperava encontrá-la aqui hoje, chérie.
Então, já se sente pronta e sem dor para voltar às passarelas?
— Bonjour. — Forcei um sorriso. — Sim, eu me sinto bem melhor
agora.
— Não se esqueça de alinhar os detalhes de suas reservas com a
Chloé.
— Très bien. Se me derem licença... — Eu fiquei de pé e me
apressei em direção à porta, sentindo um profundo aperto no peito.
Fechei a porta e me recostei na madeira, soltando a respiração que
estava presa na garganta.
As meninas estavam certas quando disseram que ele tinha uma
fixação doentia por mim, desde os meus 15 anos de idade. Fui tão ingênua
em acreditar que as atitudes dele eram apenas excesso de zelo, e que se
estendia a todas subordinadas dele.
O contrato com a New Look Models foi prorrogado até o final do
ano. Se eu rescindisse antes do prazo, poderia enfrentar sérias
consequências legais, incluindo penalidades financeiras. Sem contar que
uma saída repentina arruinaria significativamente a minha reputação como
modelo profissional.
Se eu resisti até agora, acho que consigo aguentar um pouco mais.
Capítulo 13

Marie-Claire

À medida que o sol se despedia, lançando sua luz dourada e sombras


suaves na cidade, um cenário de sonho se descortinava diante de mim e de
Jean-Luc a bordo do cruzeiro no Rio Sena, com a magnífica Torre Eiffel ao
fundo.
A embarcação contava com um terraço panorâmico, permitindo que
os clientes desfrutassem de vistas excepcionais ao longo do passeio, mas o
convés principal tinha grandes janelas de vidro, e o ambiente climatizado de
acordo com a estação.
Foi uma grata surpresa rever a família dele, embora eu tivesse
esperado algo mais intimista. Felizmente, as meninas me convenceram a
colocar uma de minhas melhores roupas: um vestido longo off white, com
decote em V, sustentado por alças do mesmo tecido saindo do busto, além
do colar de strass que formava um nó nas costas nuas até alcançar a saia de
modelagem fluída e com fenda lateral. E por falar nas meninas, tanto a
minha melhor amiga, Inès, quanto Anneliese marcaram presença.
Um homem ajudou as duas a embarcar, e quando elas olharam ao
redor, avistaram Jean e eu, parados a certa distância. Ambas se limitaram a
sorrir, enquanto acenavam vigorosamente. Acenei de volta, mas não deixei
de me perguntar o que mais elas esconderam de mim, pois começava a
desconfiar de que havia algo estranho no ar.
— Mon Dieu! Não sabia que elas viriam também. — Estreitei o
olhar na direção de Jean, a sobrancelha grossa dele se arqueou em um arco
perfeito, enquanto me encarava com um sorriso enigmático nos lábios.
— As duas foram muito gentis comigo. É obvio que elas não
ficariam de fora.
— O que você andou aprontando, Jean? — perguntei, olhando bem
no fundo dos olhos castanhos, enquanto deslizava os dedos pela aba do
paletó dele. — Quando disse que nosso jantar seria especial, eu não
imaginava contar com a presença das minhas amigas, e muito menos que no
cardápio teria todos os pratos assinados por papa.
O menu degustação foi elaborado exclusivamente pelo chef Jacques
Leblanc.
Ele inclinou o corpo para frente, mantendo a pegada firme em
minha cintura, o que serviu de estímulo para a lubrificação fluir
intensamente entre minhas pernas.
— Garanto a você que mais surpresas virão ao longo da noite,
chérie. — Aquele aviso rouco junto ao ouvido provocou um arrepio
delicioso pela base da coluna.
— Je t’aime. — “Eu te amo.” A frase mais emblemática, dita pelos
casais mundo afora, saiu dos meus lábios com uma naturalidade inesperada.
No entanto, Jean respondeu do jeito mais desapegado e indiferente
possível:
— Eu também. — Apenas? Tudo bem que nós, franceses, estávamos
acostumados a expressar o amor de outras maneiras, mas custava ele
também dizer o mesmo?
Sacudi levemente a cabeça, sorrindo apreensiva e ainda desconfiada.
Jean-Luc repetiu meu gesto, aparentando estar confuso, o que só fez o
sangue subir pelo meu rosto, o deixando ainda mais vermelho do que já
estava.
— Só isso? — perguntei, arqueando a sobrancelha, sem deixar de
manter a finesse e o savoir-faire. Em outras palavras: O bom e velho jogo de
cintura.
A resposta dele foi automática: “Oui”. E como se isso não bastasse,
ele passou a rir, claramente se divertindo às minhas custas.
— Fils de pute — sussurrei, entre dentes, aproximando o meu rosto
do dele.
A expressão zombeteira deu lugar ao semblante sério, quando ele
disse:
— Eu ainda te adoro. — Jean parecia muito sincero, ao proferir
aquelas palavras, e ainda depositou um beijo em minha testa e, depois um
selinho em meus lábios.
De repente, nós dois ouvimos passos e vozes, vindos em nossa
direção.
— Até que enfim encontrei os pombinhos... — Reconheci a voz de
Camille, e a risadinha curta dela. Mas minha futura cunhada e CEO da
L’Beauté Paris não estava sozinha. A mãe dela parecia constrangida, ao
presenciar aquele clima de intimidade.
— O chef Jacques Leblanc avisou que o jantar já vai ser servido. —
Seguiu-se um silêncio momentâneo, enquanto sentia o peso de seu olhar
sobre mim, de cima a baixo até se fixar nos meus pés, calçados em uma
sandália de salto fino, em couro italiano e com cristais multicoloridos, que
adquiri de um brechó local. — Já está podendo usar saltos altíssimos,
chérie?
— Meus pés estão ótimos, Margot. Além disso, eu já estou pronta
para retomar os trabalhos...
— Ela vai para a Itália amanhã bem cedo. — Jean informou, com
uma admiração que não podia esconder.
— Eu espero poder te encontrar por lá, Marie. — Camille deu uma
piscadela.
— Não me diga que você trouxe o seu novo namorado? —
perguntou o irmão friamente, com os braços cruzados sobre o peito.
— Eu o deixei conversando com papa e Cédric. Acho que eles estão
se dando bem...
— Preciso ver isso com meus próprios olhos! — Ele a encarou com
descrença, em seguida, me puxou pelo braço, e saiu andando em direção ao
convés inferior.
Assim que nós dois adentramos o salão, os poucos convidados já
ocupavam a espaçosa mesa redonda, próxima a janela com a vista
panorâmica do rio Sena, para desfrutarem a refeição ao som de piano e
violino.
Além do todo-poderoso Jean-Claude Laurent e do filho do meio,
também estavam presentes a sogra dele e talvez o futuro genro, caso a filha
caçula não trocasse um amor por outro. Cumprimentei a todos com
cordialidade, quando de repente, o meu pai apareceu todo de branco,
parecendo tão orgulhoso e satisfeito consigo mesmo, que foi impossível
conter as lágrimas.
— Aqui, mon petit, use o meu lenço. — Tomei um susto ao
reconhecer a voz do meu futuro sogro. Ele se posicionou ao meu lado, e
discretamente me entregou o pedaço de tecido, a tempo de não borrar minha
maquiagem.
— Merci, monsieur — murmurei, enquanto enxugava o canto dos
olhos marejados. — Eu me sinto muito honrada em contar com sua
presença neste jantar.
— Você conseguiu um feito e tanto... Conquistou o coração do meu
filho, que sempre foi avesso a compromissos. — O magnata riu diante do
próprio comentário. — Ele ainda foi capaz de... — Não conseguiu concluir
o que queria dizer, pois Jean agarrou meu braço e me fez sair dali, talvez
para evitar que eu ouvisse algo comprometedor.
— Por que fez isso? — sussurrei no ouvido dele, inconformada.
Aquela era a primeira vez em meses que o velho magnata concedeu algum
fiapo de atenção. — Achei muito rude de sua parte sair daquele jeito.
— Meu pai é muito falastrão, chérie. Ele com certeza falaria o que
não deve.
Quando nos aproximamos da avó dele, ela pareceu ter me
reconhecido, apesar dos olhos semicerrados, e rapidamente Cédric a ajudou
a se colocar de pé. Dei um longo abraço nela, e senti as mãos espalmadas
contra minhas costas.
Nós duas ficamos ali, abraçadas, em silêncio, até que ela se afastou
e passou a me olhar com tanta ternura. Um olhar de uma mãe para uma
filha. Um olhar que aquecia a alma.
— Meu neto é mesmo um homem de sorte, muita sorte. —
comentou a idosa, colocando ambas as mãos sobre meus ombros. —
Encontrou uma mulher cuja beleza vem de dentro para fora! — Seu lábio
inferior tremeu perceptivelmente ao sorrir. — Seus pais devem estar
orgulhosos de você. Além de linda também é talentosa.
— Ela é mesmo digna de todos os elogios — disse Cédric, com um
breve sorriso.
— Marie definitivamente exala simpatia e charme por onde passa.
— Jean-Luc envolveu minha cintura com um braço, antes de me puxar para
junto de si. — Confesso que fico até um pouco enciumado...
— Mas isso é uma bobagem! — Yvonne segurou o braço livre dele
e o sacudiu. — Ela só tem olhos para você, tenha certeza disso!
Cédric chegou mais perto de mim e falou baixinho, com a mão
cobrindo a boca:
— Até te conhecer, meu irmão não era tão ciumento assim. — Ele
raramente sorria, mas logo um meio sorriso se formou nos lábios. — Fez
algum tipo de feitiço? — Cédric era igualmente bonito, mas se escondia por
trás da máscara de frieza.
— Devia fazer isso mais vezes, Cédric. — Desenhei um sorriso com
a ponta do dedo. Quem estava por perto e viu meu gesto, caiu na
gargalhada. Até meu futuro cunhado riu. — Tem um ótimo senso de humor.
O jantar transcorreu, agradavelmente. O casal Jean-Claude e Margot
Laurent exaltou as qualidades profissionais do meu pai, avaliando a
possibilidade de ele vir a receber a tão cobiçada estrela do guia Michelin,
no futuro próximo.
— Fico muito honrado pelo reconhecimento, ainda mais vindo de
pessoas tão ilustres. — Meu pai levou a mão ao peito e, ligeiramente se
curvou. — Merci.
— Papa Jacques foi merecidamente o destaque da noite. —
Comentei, em alto e bom som, puxando uma salva de palmas.
Passei alguns instantes olhando para cada uma daquelas pessoas
sentadas à mesa. Engraçado como em tão pouco tempo elas passaram a
fazer parte da minha vida. Tive a sorte de encontrar nelas um porto seguro,
um refúgio para o caso de tudo desmoronar e eu precisar começar de novo.
A voz marcante de Jean me tirou completamente dos devaneios.
— S’il vous plaît! — Ele chamou a atenção de todos batendo com o
talher na taça, então se levantou e limpou a garganta antes de prosseguir: —
Posso ter a atenção de todos? — Um silêncio pairou sobre os convidados.
— Quero propor um brinde.
Os olhos dele vagaram pela mesa enorme até se fixar nos meus, que
se arregalaram de espanto. Meu coração começou a bater descompassado, e
nem mesmo o ar-condicionado foi capaz de aplacar a onda de calor que
percorreu todo meu corpo.
— À mulher mais fascinante que eu já conheci... Marie-Claire
Leblanc. — Só de ouvir Jean mencionar o meu nome de maneira tão
enfática, e com um amplo sorriso no rosto, fez uma emoção nova brotar
certeira no peito.
— Eu... Eu nem sei o que dizer. Se tudo for um sonho, só peço que
não me acorde. — Todos riram diante daquele comentário espirituoso. O
meu pai sempre dizia que a melhor forma de lidar com o nervosismo era
arrancar uma boa risada das pessoas.
— Então, eu peço que me acompanhem agora até o convés superior.
Eu me deixei ser conduzida por Jean-Luc escada acima, e notei que
os responsáveis pelo cruzeiro prepararam uma decoração impecável, com
incontáveis pétalas de rosas espalhadas no deck de madeira, além de velas e
balões em formato de coração. Até mesmo os músicos contratados já
estavam a postos com seus instrumentos de corda, de sopro e de teclado.
— É mesmo o que estou pensando? — perguntei, com a respiração
suspensa.
— Oui, mon turquoise — confirmou Jean, com um sorrisinho nos
lábios. Então me virou para ficar de frente para ele, e segurou minhas mãos
de modo firme, antes de prosseguir: — Você se lembra do nosso passeio de
barco, em Saint Tropez? Eu me recordo de cada segundo do passeio e
também de cada palavra dita pelos seus lábios.
— Por que não refresca a minha memória? — Provoquei, olhando-o
nos olhos, que brilhavam desafiadores. De repente, os pais dele
cochicharam entre si. Já meu próprio pai sacou um lenço para enxugar as
gotas de suor da testa. Parecia nervoso.
Eu me distraí por uma fração de segundo, quando um arquejo de
surpresa escapou dos meus lábios. Jean soltou minha mão e me puxou para
junto de si, mantendo nossos rostos a apenas alguns centímetros de
distância.
— Com todo prazer. — A voz dele saiu como um sopro contra meu
rosto. Um arrepio me percorreu inteira, com a potência daquele timbre, tão
grave e sexy. — Você disse que eu era o tipo de homem que fazia qualquer
mulher se sentir especial e amada, mas que também desaparecia quando se
cansava dela... — Ele arqueou uma sobrancelha e sorriu, presunçoso. —
Sorte a sua, porque eu não vou me cansar de você, Marie. Nunca. — Frisou
bem a última palavra, antes de capturar minha boca em um beijo longo e
suave, selando sua promessa.
Ainda dava para sentir o gosto salgado das lágrimas mesclado a uma
mistura de tabaco com vinho tinto, quando ele inesperadamente se afastou.
Notei um sorriso aflorar nos cantos da boca dele, assim que apoiou um dos
joelhos no chão do convés.
Aquela posição era inconfundível.
Todos os sinais estavam claros e não desconfiei de nada.
Na França, o noivado era celebrado pelas les fiançailles, uma forma
de festa de noivado, que tradicionalmente requeria que o homem
presenteasse a mulher com o anel, momento este em que os pais dos noivos
se encontravam pela primeira vez.
As lembranças daquela noite permaneceriam nítidas, sob a luz ávida
e bruxuleante das luzes de Paris refletindo na água, e iluminando o convés
do Bateau-Mouche.
Capítulo 14

Jean-Luc

Contive o ímpeto de praguejar por ter me atrapalhado um pouco ao


pegar a caixinha de veludo do bolso interno do paletó. As minhas mãos
ainda tremiam quando abri o estojo diante dela para mostrar o solitário de
diamantes fino, sólido, um clássico.
Um fotógrafo estava a postos para registrar a ocasião, da forma mais
discreta possível, tendo ao fundo o maior cartão postal do país com as
famosas luzes piscantes.
Se meus amigos pudessem me ver agora, prostrado de joelhos e
prestes a tomar uma atitude que solteiro convicto nenhum seria capaz de
fazer, me taxariam como louco. Na última vez que os encontrei, falei que
pensava em casamento, mas não queria me casar.
Uma união estável figurava no topo da lista de desprazeres da vida.
Prezava demais minha liberdade.
No entanto, uma femme fatale, com olhos azuis hipnotizantes sob os
cílios espessos e longos continuava me observando, com um sorriso lindo
estampado no rosto. E, para completar, ela ainda trazia aquela expressão de
inocência habitual que me fascinava. Não deixei de me perguntar como
Marie foi capaz de obter de mim algo que eu não daria livremente a mulher
alguma.
Escutei ao fundo o arranjo da canção La Valse d’Amélie, composta
por Yann Tiersen, e executada por cinco músicos, com seus diferentes
instrumentos, para entrar no clima, mas dificilmente conseguiria me
concentrar, pois Marie balançava suavemente o corpo de um lado para o
outro, como se estivesse dançando diante de mim.
Lancei um olhar ansioso à minha volta, e notei que todos pareciam
se divertir às minhas custas, mas engoli em seco e respirei fundo antes de
dizer o que tinha em mente.
— Quero ser seu marido. — Talvez tenha soado impositivo, ou
mesmo autoritário ao dizer aquelas palavras, mas elas expressavam o que
verdadeiramente sentia. Prendi a respiração por alguns segundos, mas logo
um sorriso exultante curvou os lábios cheios e suculentos dela.
— Quero ser sua esposa. — Marie praticamente completou a minha
fala, e estendeu a mão direita, que ficou trêmula e sensível ao toque dos
meus dedos, enquanto encaixava o anel de noivado no anelar.
Com um sorriso triunfante, inclinei a cabeça e beijei cada um dos
dedos de forma lenta, os olhos se semicerraram à medida que os lábios
roçavam a pele macia, o ar quente e úmido exalado por mim provocou um
sutil estremecimento pelo corpo dela.
A minha — agora — noiva se virou e ergueu a mão direita,
mostrando o lindo anel de noivado para todos os presentes, que começaram
a aplaudir, com entusiasmo.
Senti um impulso irresistível de dançar uma valsa, aproveitando a
presença dos músicos, então puxei Marie suavemente, pressionando o corpo
dela junto ao meu e segurei na mão trêmula, enquanto a outra deslizava pela
parte inferior das costas. Pressionei bem os nossos corpos, e passamos a
dançar, sem pressa, trocando um olhar cúmplice.
Depois, um garçom apareceu e passou a servir o Veuve Clicquot
Brut.
Observei Marie esvaziar a taça em dois longos goles, enquanto
concordava e ria, acompanhando a conversa entre minha mãe e Camille.
Depois, ela fez um sinal para o garçom servir outra taça de champanhe.
Esperei por alguns instantes e o chamei a um canto para instrui-lo a não
servir mais bebida, pelo menos por ora.
Comecei a pensar que minha noiva tinha pouca tolerância ao álcool.
— Acho que minha noiva já bebeu o bastante por hoje.
— Perfeitamente, monsieur.
Dei um tapa de leve no ombro dele como forma de agradecimento e
atravessei, silenciosamente, a curta distância que me separava dela. Então,
eu a abracei por trás, causando um leve sobressalto nela.
— Parece que minha adorável noiva se empolgou um pouco a
mais...
— Acho que exagerei um pouquinho, mas mon Dieu... Eu estou tão
feliz!
Pelo canto do olho, notei o garçom se aproximando de Jacques, para
lhe confidenciar algo, e quando este último se virou para me encarar,
esboçou um sorriso de gratidão.
— O efeito que você me causa é coisa de outro mundo, chérie. —
Confidenciei, a puxando para trás, de modo que a bunda dela se chocasse
contra meu quadril. — Você me deixa louco, sabia? — Um gemido
estrangulado escapou da garganta dela, intensificando a fisgada dolorosa
nos testículos, um claro sinal do acúmulo de tesão decorrente de meses sem
sexo. — Estou começando a achar que é descendente de alguma linhagem
de feiticeiras...
— Sérieux? — Ela desatou a rir, cobrindo a boca com a mão. —
Pensando bem, eu já tenho uma vassoura em casa, só me falta um gato
preto...
— Eu posso providenciar isso, mas com uma condição... — Parei de
falar, assim que senti uma leve pressão no tecido da calça. A minha noiva
estava mesmo esfregando o quadril contra o meu pau inchado, um gesto
ousado e, ao mesmo tempo, discreto capaz de elevar o tesão a níveis
insustentáveis.
Quando a modelo ficou de frente para mim, pude ver a excitação
brilhando naqueles olhos azuis como o mar Mediterrâneo.
— O que sugere que eu faça? — perguntou, ao me enlaçar pelo
pescoço, o tom de voz deixava uma insinuação provocante no ar.
Marie era mesmo uma caixinha de surpresas, mas com muitas
delícias dentro.
— Achei que nós podíamos antecipar nossa lua de mel. — Respondi
à queima-roupa, com os lábios se torcendo em um sorriso cheio de
segundas intenções. — Se é que me entende... — Minha voz vacilou, por
um instante, talvez prevendo uma possível recusa, como nas outras vezes.
Só então me dei conta de que retive o ar nos pulmões durante todo aquele
tempo.
— D’accord. — Concordou ela, por fim, sorrindo, sedutoramente. O
olhar dela transmitia sinceridade, e engoli em seco, fazendo o pomo de adão
subir e descer, a sensação era equivalente à de uma bola de pelo atravessada
na garganta.
— Sabe bem a que me refiro, não sabe? — Insisti, olhando bem no
fundo dos olhos dela, à procura de algum sinal de incerteza, ou de dúvida
pairando neles.
Não consegui dormir direito nos últimos dias, em parte devido ao
pedido de casamento, e em parte porque pretendia antecipar nossa primeira
noite juntos. Só precisava olhar nos olhos dela para ter certeza de que
aquela era sua vontade. E enxergar neles o desejo genuíno de entregar para
mim o que tinha de mais precioso: a virgindade.
— Eu já sou sua, Jean. — A voz dela saiu baixa, mas com
intensidade suficiente para fazer o meu corpo inteiro estremecer. — Ainda
não se deu conta disso? — O rubor atingiu as bochechas salientes em cheio,
seus olhos azuis-turquesa cintilaram com lágrimas contidas.
— Vamos sair daqui, agora mesmo. — Sussurrei no ouvido dela,
antes de puxá-la pelo braço, saindo furtivamente do local, sem a menor
cerimônia.
Talvez não fosse digno de merecer tamanha devoção e confiança,
mas passei a desejar dela muito mais do que algumas horas de prazer.
Ansiava forçar meu pau para dentro e para fora da vagina intocada, até
sentir a pressão dos músculos internos me levarem ao limite; ansiava
arrancar cada pequeno som da garganta dela, quer fosse na forma de
gemido quer fosse um grito; ansiava sentir o corpo magro estremecer sob o
meu, se rendendo ao mais profundo êxtase. E assim repetir o processo. De
novo e, de novo.
Daquela noite em diante eu estava condenado a ser um homem de
uma mulher só. Não que eu estivesse reclamando, longe disso. Até porque
eu só tinha olhos para minha futura esposa.

Havia no mercado imobiliário francês um requisito primordial: os


melhores imóveis sempre proporcionavam uma vista panorâmica para a
Torre Eiffel.
Todas as noites, os parisienses que viviam em apartamentos com
vista para a “Dama de Ferro” desfrutavam de um espetáculo mágico: Ao
todo 336 projetores de tom amarelo-laranja e suas mais 20 mil lâmpadas
iluminavam o monumento, piscando de hora em hora.
Tive a sorte de conseguir adquirir a espetacular — e concorrida —
cobertura no 16º arrondissement, com seus 297 m² de área total, e que
abrangia todo 10º andar do edifício. A pièce de résistance da cobertura, o
vasto terraço repleto de vegetação, era um dos maiores da cidade, com suas
árvores altas e plantas exóticas em cada canto.
Marie-Claire ficou encantada com a coleção única de arte
contemporânea.
Havia esculturas, pinturas e outras peças expostas por toda a casa,
graças ao layout de plano aberto.
Fiz questão de mostrar todos os cômodos, a maior parte deles estava
interligada com o terraço, mas deixei por último a suíte principal, com sua
área de estar e mesa de escritório com vista para a Torre Eiffel através de
grandes janelas.
— Estar nesta varanda, me faz lembrar o dia em que passei a noite
no Shangri-La, na companhia de três das minhas colegas de quarto —
comentou ela, observando admirada a luz da Torre Eiffel acesa logo
adiante, encostada à balaustrada.
— Quer dizer então que vocês dormiram juntas? — perguntei,
mantendo meu corpo voltado completamente na direção dela, numa postura
quase relaxada.
— Oui! — Ela desatou a rir, um riso solto e meigo. — A gente quis
comemorar tudo o que conquistamos, e fizemos uma festa do pijama —
prosseguiu, mal contendo a empolgação. — Nós torramos nosso primeiro
maior cachê, com uma estadia na suíte duplex, aquele mesmo do icônico
terraço privativo.
Eu não parava de olhar para ela nem por um segundo sequer.
— Deve ter sido uma noite das garotas muito memorável.
— Eu me senti uma verdadeira madame! — Ergueu as mãos num
gesto teatral, ao frisar bem as últimas palavras.
Como uma mulher física e intelectualmente estimulante me tomou
de assalto daquela maneira? Nenhuma parceira foi capaz de me fazer
investir tempo, recurso, esforço, e atenção tantas vezes assim.
Eu levei todas para a cama já no primeiro encontro, mas Marie-
Claire demonstrou que não cederia tão rápido, porque escolheu esperar pelo
homem certo, mal sabendo que estava diante dele, desde o dia em que
entrou num sedã de luxo por engano.
Ela estava se guardando para mim, e ter chegado àquela
constatação gerou um efeito estranhamente confortável no peito.
— Você pode repetir aquela experiência aqui mesmo, chérie. — E
dizendo isso, inclinei a cabeça até encostar os lábios no ouvido dela. — Não
vai ser exatamente uma festa do pijama porque, você sabe, nós vamos ficar
nus, desde o início... — Um gemido rouco escapou dos lábios suculentos,
assim que passei o braço em volta da cintura fina. — Mas eu garanto que
vai ser divertido e excitante... — Um grunhido insatisfeito escapou, assim
que Marie se desvencilhou de mim abruptamente.
Ela parou por alguns instantes no limiar da porta dupla, talvez para
refletir no que devia fazer a seguir, mas acabou se sentando no recamier aos
pés da cama. Então, lançou um olhar desconcertante em minha direção,
dizendo timidamente:
— Meus pés estão me matando há dias...
Cruzei a pequena distância e me ajoelhei diante dela, que não
ofereceu nenhuma resistência, quando levantei cuidadosamente a perna
direita, para tirar um pé da sandália de salto alto, seguido do outro.
— Qual deles machucou, chérie? — Eu já sabia a resposta, mas quis
ouvir dos lábios dela, talvez assim pudesse desfazer a tensão entre nós dois.
— Este mesmo que você está segurando... — A voz dela saiu fraca,
assim que comecei a massagear dos dedos até o calcanhar, com movimentos
lentos e circulares.
— Sabia que tenho tara por pés? — comentei, abrindo um sorrisinho
maroto nos lábios. — Acho os seus fabulosos e bem proporcionais.
— Jura? — O rubor atingiu as bochechas dela em cheio. — Não
gosto muito... Acho os meus pés grandes demais.
— Você calça que número? — perguntei, olhando bem para ela,
enquanto beijava suavemente as pontas de cada um dos dedos longos.
— 39... — Ela desatou a rir porque meu gesto provocou cócegas
nela. — Já me fizeram calçar um sapato dois números a menos do que o
meu na Semana de Moda. Os meus dedos ficaram esmagados e cheio de
bolhas.
— Oh… ma pauvre belle! — Eu a chamei de “coitadinha” para
provocá-la e, num rápido movimento, a puxei pelas pernas, trazendo seu
corpo esguio junto ao meu.
Um gemido de protesto quase escapou dos lábios, mas eu os
reivindiquei com um beijo duro e possessivo. Grunhi de satisfação, ao sentir
o corpo sexy amolecer em meus braços, a respiração entrecortada pelo
barulho de línguas se esfregando uma na outra, com o senso de urgência
ditando os movimentos, o hálito carregado de resquícios do champanhe se
mesclando ao sabor natural da saliva dela. Putain! Como resistir?
Senti uma mudança sutil nela, assim que interrompeu o beijo, e
passou a me encarar com um brilho intrigado nos olhos.
— Eu realmente quero ser sua, mas...
— Se você ainda não se sente pronta, nada te impede de me pedir
para parar... — Eu me calei, subitamente, ao simples toque do dedo fino em
meus lábios.
— Eu posso terminar de falar? — Ela caiu na risada e eu acabei
rindo também, mas logo suas feições mudaram, dando lugar à seriedade. —
Vai doer muito, não vai?
— Mais do que você imagina. — Eu menti só para ver qual seria a
reação dela. Foi satisfatório ver seus olhos azuis se arregalarem e sua boca
se entreabrir, chocada.
Continuei exibindo uma expressão de quem se regozijava por
dentro.
— Nunca sei se está brincando, ou se está falando sério... — Ela
parecia relutante, mas manteve suas pernas enganchadas em minha cintura,
e os braços em volta do meu pescoço.
— Você confia em mim? — perguntei, louco de curiosidade. Esperei
minha noiva confirmar com um gesto de cabeça, antes de prosseguir: —
Falo isso porque eu mal posso te tocar, intimamente, que já entra em
pânico.
— Está esperando permissão para me tocar? — Os olhos azuis
continuavam fixos em mim, e cintilavam com um brilho oscilando entre a
admiração e o desejo.
— Mas é claro! Imagino que tratam você como um manequim de
plástico...
— Nunca senti que meu corpo fosse meu. — Ela baixou os olhos,
constrangida.
Segurei o queixo dela entre o polegar e dedo indicador, não lhe
dando outra opção além de me encarar diretamente nos olhos.
— Porque essas pessoas fizeram você acreditar que fazia parte do
trabalho. Jamais permita que alguém falte ao respeito contigo, seja lá quem
for.
— A minha terapeuta sabe sobre você...
Aquela confissão me pegou completamente de surpresa.
— Espero que tenha falado bem de mim... — comentei em tom
descontraído.
— Eu contei que só perderia a virgindade com o homem que eu
amo.
— Putain! — murmurei, com um sorriso presunçoso nos lábios. —
Eu posso saber quem é o sortudo?
— Ele me respeita, me adora, me aceita como sou, me protege, e
ainda me pediu em casamento... — Seu rosto adquiriu uma expressão de
fingida inocência.
Um gemido rude irrompeu dos meus lábios, quando Marie pegou
minha mão, fazendo com que resvalasse pela parte interna da coxa. Aquela
era a deixa que faltava para penetrar pela fenda do vestido longo até
alcançar a calcinha rendada.
Minha boca sedenta capturou o lábio superior dela, sugando-o de
leve, antes de fazer o mesmo com o inferior. Um gemido estrangulado
quase escapou de sua garganta, mas eu decidi sufocá-lo, à medida que a
língua forçava passagem, esfregando-os nos dela e exigindo maior acesso.
De repente, ela interrompeu o beijo, e tomou meu rosto entre as
mãos.
— Você acabou de transpor um muro que eu considerava
intransponível...
— Eu me sinto honrado com sua entrega, Marie. Eu farei valer a
pena cada segundo ao meu lado, acredite.
Voltei a capturar a boca entreaberta e trêmula dela de um jeito duro
e possessivo. Senti que ela também se entregava ao beijo numa ânsia febril,
ciente da necessidade de sentir o calor palpitante dos nossos corpos,
agarrados um ao outro.
Marie emitiu murmúrios delirantes de prazer, suas mãos alcançaram
meus cabelos, afundando os dedos neles e exercendo pressão suficiente nos
fios, assim que afastei a peça encharcada para o lado, para tocar na boceta
coberta por pelos ralos. Eu nem bem iniciei uma carícia lenta por toda a
vulva, senti meus dedos ficarem completamente encharcados, e aumentei a
fricção no clitóris inchado e sensível.
— Está tão molhada que meu pau vai preencher você de uma só vez
— murmurei, em tom rouco, enquanto inseria o dedo do meio no canal
vaginal, os músculos internos se contraíram, pulsando e dificultando a
passagem.
— Oh, Jean! — Ela gemeu, arqueando-se contra mim,
completamente rendida e entregue às preliminares. — Preciso de mais...
muito mais. — Suplicou, com a voz soando fraca e melodiosa. — Tire logo
a minha roupa e me possua... Agora!
— Não esperava que fosse tão mandona assim... — Grunhi,
satisfeito por ela estar tão rendida e disposta a se entregar para mim, sem
medo ou reservas.
— Oh, Luc... — Ela pronunciou o meu segundo nome delirando de
prazer. Senti que estava quase gozando com meu dedo médio parcialmente
enfiado na boceta apertada.
— Goza bem gostoso nos meus dedos, mon amour. Depois será a
vez de sentir o meu pau enterrado bem fundo em sua boceta. Allez! —
exigi, arfando de tesão.
Não demorou muito para o corpo dela ser varrido pela onda
avassaladora do orgasmo, estremecendo deliciosamente sobre mim,
enquanto gritava rouca e loucamente.
— Tão minha, putain! — sussurrei, junto ao ouvido dela, enquanto
afundava meu rosto nos fios sedosos e longos para sentir o perfume deles.
A confusão tomou conta do meu semblante, quando senti um leve
empurrão no peito. Marie usou os pés para me afastar dela e engatinhou
pelo colchão, rindo sedutoramente, sem parar. Quando ela ficou de joelhos
na cama, e de costas para mim, lançou um olhar de soslaio, as mãos
tentavam inutilmente alcançar o zíper invisível.
— Por que não me ajuda a tirar o vestido?
— Com todo prazer. — Eu me ajoelhei atrás dela, e afastei as longas
madeixas para o lado. A pele quente e macia se arrepiou ao toque sutil dos
meus dedos.
Fechei meus olhos e encostei os lábios na nuca, depositando beijos
quentes e úmidos, entremeados de mordidas leves ao longo da clavícula, ao
mesmo tempo em que prendia os dedos nas alças, e as fazia deslizar pelos
ombros até desnudar aquele corpo esguio. Meus olhos passeavam por ele,
desde as vértebras salientes, passando pelas costas magras até se fixarem
nos contornos de sua bunda redonda e lisinha, que pareciam implorar por
algumas palmadas.
Ela era tão cobiçada, e tão desejada por sabe-se lá quantos homens.
Mas eu era o único com o privilégio de reivindicar toda e qualquer parte
dela.
Capítulo 15

Jean-Luc

Marie continuava de costas, tentando desajeitadamente se libertar do


vestido. Ela jogou o quadril para trás, empinando bem a bunda, antes de
puxar a peça para baixo, fazendo com que deslizasse pelas longas pernas.
Acompanhei os gestos dela, enquanto tirava o paletó, seguido pela gravata e
pela camisa, vislumbrando o momento em que penetraria por trás e com
força, naquele traseiro gostoso.
Já nem recordava quando foi a última vez que desvirginei uma
mulher, e me sentia cada vez mais dividido entre o desejo de penetrar
fundo, impondo um ritmo duro e rápido, com o desejo de ir devagar para
ela se acostumar com a espessura do meu pau.
Um grunhido escapou da garganta, quando agarrei Marie pela
cintura e a puxei de encontro ao meu corpo febril, para ela sentir minha
poderosa ereção se formando na calça social.
O tremor que perpassou nela também reverberou em mim.
— E se eu te pedir para tirar o resto da minha roupa, você tira? —
Sussurrei, junto ao ouvido dela, e esperei uma confirmação, que veio na
forma de um gesto de cabeça. — Explore o meu corpo como bem entender.
Ele é todo seu, chérie.
Quando Marie se virou, notei um sorriso tímido se insinuando nos
lábios, e mais uma vez os meus olhos percorreram ávidos pelo corpo dela,
de cima a baixo. Contemplei desde os seios redondos e firmes, cobertos
parcialmente por um adesivo para mamilos, passando pela cintura fina, a
barriga sequinha e o quadril tão estreito que podia rodeá-la com uma mão
só, sem contar as longas pernas torneadas.
Após meses de espera e diversas tentativas de levá-la para a cama,
poderia finalmente desfrutar cada centímetro daquele corpo sexy.
Um gemido de prazer escapou dos lábios, assim que minhas mãos
passaram a explorar as curvas delicadas, deslizando pelas belas formas, e
observando a barriga firme se contraindo instintivamente e se expandindo,
conforme o desejo se agitava dentro dela, a pele se arrepiou ao simples
toque exploratório dos meus dedos.
— Você acha que eu engordei? — perguntou, de repente, estreitando
os olhos. Parecia tão insegura, sendo que eu estava desesperado para me
enterrar todo nela.
— Esqueça o que os outros dizem, Marie. Você sempre será perfeita
aos meus olhos. — Enfatizei e sorri para encorajá-la, acrescentando: — Por
que não me diz onde nós estávamos mesmo? — A pergunta morreu nos
lábios, quando senti a mão suada e fria espalmada em meu peito, seguido
por um atrito na pele provocado pelas unhas longas, que deslizavam pelo
abdome até pressionar o volume entre minhas pernas.
— Por que você mesmo não me diz? — Putain! Aquele tom
provocador e inesperado me deixava completamente maluco. De início,
apenas o som da minha própria respiração ofegante se fez ouvir, mas logo
um grunhido animalesco ecoou pelo quarto, conforme ela apalpava, fazendo
pressão de leve com os dedos.
Não pude mais me conter: Agarrei os cabelos dela com uma das
mãos, enterrando os dedos bem no fundo, a ponto de fazê-la estremecer e
ofegar contra os meus lábios, que pressionavam os dela num beijo que
podia ser tudo, menos gentil.
As mãos delicadas alcançaram o cós da calça, e após se atrapalhar
um pouco, Marie finalmente conseguiu desafivelar o cinto, desabotoou a
calça e a puxou para baixo. Sibilei um protesto, quando ela interrompeu o
beijo e se inclinou até se deitar na cama, com as pernas ligeiramente
abertas, e os joelhos levemente dobrados, esperando que eu me livrasse do
resto da roupa.
Com um gesto brusco, eu abaixei a cueca, libertando o meu pau
duro, pulsante e com as veias saltadas. Escutei o que pareceu um gemido
rouco e engasgado, e ao levantar rosto, notei que ela olhava fixamente para
o meu pau avantajado, com a boca entreaberta, numa expressão de espanto.
Ou de medo, talvez.
— Por que não disse que tinha uma Torre Eiffel no meio das pernas?
— Perguntou, num misto de inocência e curiosidade. — C’EST ÉNORME!
Soltei uma gargalhada, enquanto me deitava de lado, e segurei a
mão dela, antes de levá-la ao meu pau rijo, para demonstrar na prática como
fazer uma punheta.
— Se ficou impressionada com o tamanho do meu pau, imagina
quando ele estiver dentro de você...
Marie-Claire ofegava debilmente, enquanto torcia o membro para
cima e para baixo com firmeza, mas sem apertar demais.
— Assim está bom? — perguntou, demonstrando ousadia nos
movimentos, o que não deixava de ser excitante. Ela parecia mesmo
disposta a me agradar na cama.
Um grunhido assustador se fez ouvir, saindo bem no fundo da
garganta, quando olhei nos olhos dela, e disse em tom incisivo:
— Quero ver sua boca gostosa mamando o meu pau — murmurei,
conforme minha mão resvalava por dentro da calcinha úmida. — Mas antes
eu vou chupar com gosto a sua boceta.
Eu a puxei contra mim, incapaz de conter um rosnado animalesco,
quando esmaguei os lábios dela em um beijo sôfrego, penetrante. Senti o
corpo magro amolecer em meus braços, completamente rendida àquela
invasão, o ar exalado com dificuldade se entrecortava com o barulho das
nossas línguas se esfregando uma na outra. A urgência ditava os
movimentos, conforme elas penetravam bem fundo, ressaltando o hálito que
ainda recendia a tabaco e a champanhe.
Só me separei de seus lábios para explorar a região macia entre o
pescoço e o ombro, passando pela clavícula e descendo sem pressa até
atingir a ondulação suave dos seios, produzindo um estremecimento
perceptível nela, que se arqueou toda contra mim, de modo instintivo. Um
gemido escapou dos lábios, assim que abocanhei o primeiro mamilo, que
endureceu ao simples toque da minha língua circulando a aréola.
Minha noiva emitiu murmúrios delirantes de prazer, enquanto
enfiava as mãos em meus cabelos, afundando os dedos neles e os puxando
com força, à medida que prolongava as chupadas numa loucura insana.
— Oh, Jean! — Ela gemeu, arqueando-se contra mim, rendida e
entregue às preliminares. — Eu não vou... Eu não aguento.
Ignorei seus protestos, e concentrei minha atenção no abdome, que
se contraía e se expandia rapidamente, ao ritmo da respiração agitada.
Continuei descendo lentamente, percorrendo um caminho com os lábios,
enquanto minhas mãos se ocupavam em acariciar os contornos suaves da
cintura esguia.
Com um único puxão, rasguei a calcinha de renda e a arremessei, ao
longe. Um gemido alto se fez ouvir, quando passei a língua pela parte
interna da coxa, serpenteando devagar até alcançar o meu objeto de desejo.
Nem bem comecei a estimular os grandes e os pequenos lábios,
senti os dedos se encharcarem, e aumentei a fricção no clitóris inchado e
sensível, intercalando movimentos rápidos, com movimentos mais suaves e
lentos.
Estreitei o olhar para ela, a sobrancelha se arqueando em um arco
perfeito.
— Está tão molhada, e pronta para receber o meu pau, chérie!
Substitui os dedos pela minha boca sedenta, cobrindo a vulva e
sugando o clitóris, a lubrificação natural se espalhava, abundantemente, o
que a levou a ofegar e aumentar a pressão do quadril contra meu rosto, em
um vai e vem cadenciado e constante.
A certa altura, um grito abafado se fez ouvir, indicando claramente o
prenúncio de um orgasmo.
Marie comprimiu mais as longas pernas contra meu rosto, mas dei
continuidade à chupada, saboreando o fluído delicioso que escorria
abundante de sua boceta. Seus gritos chegavam em meus ouvidos como
uma bela sinfonia, enquanto o corpo tremia em convulsões de prazer.
Estiquei meu braço para pegar o preservativo na mesa de cabeceira,
e rasguei o invólucro com os dentes. As minhas mãos tremiam, conforme
desenrolava o látex por todo o pênis, o acúmulo do sangue na região
provocou uma fisgada dolorosa nos testículos.
Somente um esforço sobre-humano me impediria de gozar antes
dela.
Um fio de suor escorreu pela lateral do meu rosto, assim que eu
apontei a glande em direção à vagina quente e úmida, introduzindo nela aos
poucos, embora as paredes internas oferecessem certa resistência, ao se
contraírem, involuntariamente.
— Está doendo, Jean... — Marie-Claire ofegou. — Dói e arde, mas
ao mesmo tempo é tão gostoso...
— Vai doer bem menos se você relaxar... — A voz saiu abafada
contra os cabelos dela e inalei o ar bem fundo só para sentir o cheiro
delicioso do perfume. — Esvazie sua mente e deixe meu pau te preencher,
mon amour. — Senti as unhas longas cravadas nos ombros, enquanto
respirava ofegante, mas ela relaxou um pouco, permitindo que o pênis fosse
mais fundo.
Soltei um grunhido gutural, quando forcei mais a entrada até romper
a membrana frágil, simbolizando o momento mais aguardando por mim em
meses. Meter com tudo naquela boceta apertada foi o suficiente para
arrancar um grito angustiado do fundo da garganta. Putain!
Esperei tanto para fazê-la se entregar a mim; para tomar sua
virgindade; para torná-la minha, somente minha.
Ouvi um gemido de dor, que era quase um lamento, reverberando no
quarto.
— Jean... — Soltou outro gemido, com a estocada incrivelmente
forte do meu pau. — Mon Dieu... Jean-Luc — ofegou, com a voz
estrangulada, enquanto investia novamente dentro dela, as paredes internas
ofereciam alguma resistência à invasão deliciosa.
— Agora que comecei a meter gostoso na sua boceta apertada, nada
vai me fazer parar.
Ela segurou meu rosto entre as mãos trêmulas e capturou meus
lábios de um jeito doce e inocente, movimentando a língua úmida num
ritmo feroz, e como resposta eu entreabri mais os lábios, esfregando-os nos
dela e exigindo maior acesso.
— Eu disse que estava doendo, e não para você parar... —
murmurou a modelo, a voz revelando uma rouquidão sexy, ao apartar
momentaneamente os lábios dos meus.
Afastei as pernas longas para me encaixar melhor, enquanto meu
pau entrava e saía num ritmo forte e contínuo, mas ao mesmo tempo, fundo
e rápido.
De novo, e de novo. Sucessivas vezes.
As minhas bolas batiam contra a pelve dela a cada estocada
violenta, mas gradualmente diminui o ritmo, incapaz de retardar a
ejaculação. Não sei se era impressão minha, mas pensei ter escutado um
estalido, vindo do preservativo, mas estava muito perto de gozar, para
simplesmente parar o ato. Afundei a cabeça no ombro dela, liberando um
rosnado animalesco, sentindo um jato forte e quente preenchendo a
camisinha.
Joguei meu corpo de lado, desabando no colchão macio e passei a
respirar pesadamente, como se tivesse corrido meia maratona. Esperei as
pulsações se normalizarem, para remover o preservativo, e dei um nó nele,
antes de descartá-lo na lixeira.
Fazendo um retrospecto da minha vida íntima, eu costumava encarar
o sexo como uma coisa mecânica, fria, e totalmente desprovida de afeto,
servindo apenas para saciar os meus desejos, sem cobranças, sem
expectativas.
Agora estou planejando uma vida a dois, com uma jovem
sexualmente inexperiente.
Apoiei as mãos na bancada e respirei fundo várias vezes, enquanto
encarava o meu reflexo no espelho.
Não era de se admirar como eu estava empenhando em tornar o sexo
a experiência mais memorável da vida dela. No final de tudo, tive a certeza
de uma coisa: aquela noite me impactou de uma maneira que jamais pensei
ser possível.
Agora só me interessa saber como ela se sente após ter perdido a
virgindade comigo.
Quando voltei para a cama, notei Marie-Claire deitada de lado, seu
corpo nu escondido apenas parcialmente pelo lençol.
Será que eu me comportei como um animal, após meses sem fazer
sexo?
A mão deslizou por seu corpo ainda trêmulo e quente, e a puxei
suavemente de encontro ao meu peito, enquanto fechava os olhos e inalava
profundamente o perfume delicioso que exalava das madeixas muito lisas, a
ponto de embriagar meus sentidos.
— Fui bruto com você? Eu te machuquei? — Meu coração quase
parou, quando ela ergueu o rosto travesso, encostando um dedo em meus
lábios para me calar.
— Você sabia que era minha primeira vez... — Ela continuou me
olhando seriamente, então desatou a rir, ruidosamente. — Minhas pernas
viraram gelatina agora.
— Isso foi só o começo, chérie — Fiz questão de frisar. Então, com
um movimento rápido, rolei para cima dela, e afastei as longas pernas,
louco para me mover pelo interior quente e molhado, até senti-lo se alargar
de novo para me receber tão bem.
Um sutil estremecimento se espalhou pelo meu corpo, quando ela
investiu o quadril contra o meu, um claro sinal de que estava receptiva a
fazer amor de novo.
— Vai me fazer ficar viciada em sexo?
Abri um sorriso malicioso para ela, demonstrando que havia gostado
da ideia.

Acordei bem cedo na manhã seguinte, disposto a proporcionar um


café da manhã especial para Marie, antes levá-la até o Charles de Gaulle,
onde partiria o voo com destino a Milão. Aproveitei que ela dormia para ir a
uma pequena boulangerie de bairro para comprar alguns itens,
especialmente pães porque a preparação era artesanal.
Na mesa de café da manhã dos franceses, não podia faltar baguette,
coberto por farinha e, também algumas vezes, por grãos, além de croissants,
o saboroso pain au chocolat, e claro, as tradicionais geleias a base de frutas.
Todos acompanhados por uma boa xícara de café, com leite ou creme, ou
até mesmo chá, e chocolate quente.
Estava distraído, contemplando a arrumação feita na mesa do
terraço, quando de repente uma silhueta esguia surgiu na contraluz, bem no
limiar da porta de vidro.
— Bonjour. — Saudou minha noiva, encostada no batente da porta,
e com uma perna dobrada descansando sobre a outra. Ela usava apenas um
roupão felpudo, e tinha uma toalha em volta da cabeça, como um turbante.
— Eu vim atraída pelo cheiro maravilhoso, que já está me dando água na
boca — completou, enquanto se aproximava de mim, e rapidamente
contornei a mesa e puxei uma cadeira para ela poder se sentar.
— Bonjour, chérie. — Dei um selinho em seus lábios antes de
voltar ao meu lugar. — Como está se sentindo?
— Eu estou toda assada e dolorida, sabia? — reclamou, fazendo
uma careta. — Logo eu, que faço um desfile atrás do outro, quase não estou
me aguentando em pé!
O sorriso dela acabou se transformando num riso solto e lindo de se
ver.
— Ma pauvre petite... — Sufoquei um riso a tempo, embora
encarasse minha noiva com ar zombeteiro. — Logo você se acostuma! —
Eu me endireitei na cadeira e ostentei um sorriso presunçoso. — Mas coma
bem para repor as energias. Bon appétit!
— Eu vou a vários casting a pé todos os dias — comentou,
enquanto se servia de chocolate quente. — Tudo é muito corrido, quase não
dá para comer direito...
— Seus agentes continuam te induzindo a manter um peso muito
abaixo do seu peso saudável? — perguntei, com a testa franzida de
indignação. Aquilo era realmente preocupante.
— Nem tanto... Agora eu me cuido mais porque já fui anoréxica, e
também desenvolvi bulimia... Os médicos disseram que continuo em
remissão, ou seja, ainda há um alto risco de recaída. — Explicou, enquanto
pegava um croissant e o ergueu na altura do rosto, com ar pensativo. —
Apesar de sempre ter sido magra, eles continuavam me pedindo para
emagrecer mais. — Observei Marie mergulhar um pedaço do quitute em
seu chocolate quente, com as mãos cruzadas diante da boca, o ar pensativo.
— Talvez leve a vida inteira até estar curada, mas pelo menos posso comer
um croissant, sem me sentir tão culpada assim. — Deu uma dentada nele, e
o mastigou com os olhos fechados, emitindo um som de satisfação genuína.
Já imagino o estrago que fizeram no inconsciente dela.
Marie-Claire tinha apenas 15 anos, quando foi lançada como
modelo, e não levou muito tempo para a menina cheia de sonhos dar lugar a
mulher com uma visão distorcida do próprio corpo. Eu bem que gostaria de
poder tirá-la para sempre daquela vida, mas não tinha o direito de fazer isso.
— Por que está me olhando assim, Jean? — perguntou ela, me
encarando com um misto de desconfiança e divertimento, após perceber que
eu não parava de observá-la, com ar pensativo e sério. — Molhar o
croissant na bebida quente é uma mania bem francesa. — Mergulhou outro
pedaço e o levou aos lábios de novo. — Humm... J'adore!
Joguei minha cabeça para trás e ri à gargalhada.
Aquele senso de humor inocente dela me deixava ainda mais
excitado.
— Não tenho este hábito, mas para tudo existe uma primeira vez,
não é?
— Você sentiu pena de mim? — Sua expressão ficou triste, de
repente.
— Por que eu sentiria isso? — Eu perguntei quase me engasgando
com a comida. — Todos nós temos nossas próprias lutas internas, Marie.
A modelo cobriu a minha mão com a dela, e a segurou firme,
enquanto me encarava fixamente, os seus olhos azuis cintilavam marejados,
cheios de admiração.
— Sempre tive a certeza de que me casaria com o homem certo.
Como ela se sentiria se soubesse que merece alguém melhor do que
eu?
Nunca pensei em manter uma mulher por mais tempo em minha
vida. Meu foco era outro: Estar preparado tecnicamente para assumir a
liderança do grupo de mídia, dando continuidade ao legado do meu pai. Ele
planejava se aposentar daqui a um ano e meio, mas alterou o plano original
de sucessão, dando oportunidade a todos os filhos de ocuparem a
presidência, desde que cumprissem todos os requisitos.
Consegui expandir o negócio para o setor de comunicação, além de
outras áreas como publicidade e mídia, fazendo com que o valor de
mercado ultrapassasse os 10 bilhões de euros.
Eu sempre fui ambicioso, mas não a ponto de atender as exigências
absurdas dele, mas conforme o tempo foi passando, fundei a minha própria
agência de publicidade, enquanto que o meu irmão ficou noivo e assumiu a
liderança daquela disputa. Quanto à Camille, ela continuava firme no páreo,
embora envolvida em outro ramo, pois a L’Beauté Paris se tornou um
grande sucesso no mercado mundial de cosméticos.
Apesar de Cédric ter dito que não pretendia assumir como CEO, sua
noiva conseguiu convencê-lo a mudar de ideia. Os dois fizeram muitos
planos para o futuro, mas, lamentavelmente, o sonho deles foi interrompido
após o trágico acidente, o levando a transferir para mim a responsabilidade
de ocupar interinamente o cargo.
Jean-Claude Laurent foi taxativo ao dizer que seu sucessor(a) devia
estar casado(a), mas nenhum dos meus irmãos arrumou alguém com quem
pudessem se casar.
Um casamento, sendo de fachada ou não, fatalmente podia levar
qualquer homem à ruína.
Tomei a decisão de me casar com Marie; não de formar uma família
com ela.
Eu me sentia incapaz de amá-la de qualquer maneira, e uma vez
pedido o divórcio, voltaria a ser o bon vivant de sempre. E quanto a
modelo? Teria uma conta bancária recheada de vários dígitos e, o caminho
livre para buscar a verdadeira felicidade.
Meu peito se apertou, só de imaginar minha futura-ex-esposa nos
braços de outro homem.
— Falei alguma coisa errada? — O olhar dela se estreitou, a
desconfiança tomando conta das feições. — Estava falando contigo, mas de
repente ficou tão calado...
— Precisamos definir onde vamos passar nossa lua de mel. —
Desconversei, tomando um longo gole de café. — Se estiver planejando
uma longa viagem, talvez seja melhor deixar para outra ocasião, chérie. Eu
não posso sair do país agora...
— Nós dois estamos no mesmo barco. — Ela abriu um sorriso,
visivelmente aliviada. — Eu já te contei que pretendo mudar de agência,
certo? Então, eu prefiro ficar por aqui mesmo, porque ainda tenho um
monte de coisas para resolver.
— Você está mesmo pensando em se mudar para Nova York? —
Sem perceber, minha respiração estava presa, o coração batia acelerado
dentro do peito enquanto aguardava uma resposta.
Ela ficou em silêncio por alguns instantes, enquanto cortava a
baguete em fatias diagonais e, só depois de espalhar a geleia em uma delas
que inclinou a cabeça e me encarou, sorrindo com ar zombeteiro.
— Isso foi antes de me tornar noiva do homem que está me olhando
agora com cara de espanto! — respondeu, em tom espirituoso. Depois se
debruçou sobre a mesa, apoiando os cotovelos nela, com as mãos unidas e
os dedos entrelaçados. — Mas, falando sério, daqui por diante o meu lar
será onde você estiver.
Bati na minha própria coxa, assumindo uma relaxada postura na
cadeira.
— Sente aqui, chérie — A voz saiu rouca, e suficientemente
incisiva.
O meu pau já pulsava dolorosamente, pressionando a cueca.
Eu nem esperei Marie contornar a mesa, e já fui logo puxando seu
braço com força para acomodá-la em meu colo, arrancando um gritinho de
prazer dela. Olhei fixamente para os lábios cheios pairando a poucos
centímetros dos meus, ligeiramente entreabertos num convite silencioso
para um beijo. Então, eu a beijei com tamanha intensidade, como se um
primitivo sentimento de posse e controle irradiasse dentro em mim.
Talvez não conseguisse deixá-la ir, o que seria um grande erro.
Capítulo 16

Marie-Claire

A Semana da Moda de Milão começou — a terceira parada da turnê


de um mês — trazendo com ela os maiores designers da moda italiana.
O segundo dia marcaria o meu retorno após ter torcido o tornozelo e
ficado de fora da temporada de moda de Londres, abrindo a coleção
primavera-verão da Versace.
A grife apostou em looks compostos por vestidos longos de alcinhas
bem finas, com outros de modelagem curta e bem justada ao corpo,
mesclando desde estampas animal print em patchwork, passando por toques
de alfaiataria e fechando com o militarismo, com muita transparência,
barrigas de fora, amplos decotes e fendas generosas.
Como não tinha muito tempo a perder, mas também não queria sair
do hotel de cara lavada, nem vestindo qualquer coisa para ir trabalhar, optei
pelo conjunto composto de saia jeans midi de cintura alta, jaqueta jeans e
blusa branca estilo regata e, para completar, uma bota com textura animal,
para fazer um contraponto ao look básico.
Parei diante do espelho de corpo inteiro, para inspecionar minha
barriga. Passei a mão sobre o abdome, pressionando a pele de leve com a
ponta dos dedos, garantindo que não havia uma gordurinha sequer nele,
quando, de repente, escutei uma leve batida na porta.
— Serviço de quarto, signora — Alguém chamou do outro lado.
Quando abri a porta, me deparei com o concierge segurando um
buquê de flores e uma caixa de presente, com um cartão preso à fita de
seda. Soube imediatamente de quem era: Jean-Luc.
Eu jamais deixaria de me surpreender com meu futuro esposo. Até o
menor gesto dele ficaria marcado para sempre em minha memória.
— Grazie! — Agradeci, falando em italiano. O funcionário me
entregou os presentes e então fechei a porta com o pé, o meu coração batia
descompassado no peito, ante a expectativa de ler o bilhete e descobrir qual
era o conteúdo da caixa de luxo.
Levantei a tampa dela, e logo um sorriso de contentamento brotou
nos lábios, ao me deparar com dezenas de macarons sortidos. O macaron
era basicamente um doce francês com recheios diversos e textura crocante,
que derretia na boca de tão macia. Uma verdadeira delícia!
— Humm... — murmurei, ao dar a primeira mordida enquanto abria
o pequeno envelope branco, e li o conteúdo do cartão, em voz alta. — Ma
chérie fiancée... Ele iniciou o texto, me tratando por “minha querida noiva”.
Très romantique! — prossegui, rindo e chorando ao mesmo tempo. — A
primeira surpresa do dia já está em suas mãos: flores e macarons. A
segunda está a caminho e vai direto para o seu braço. Aguarde novas
instruções. ‘Je t’adore’. Jean-Luc.
O que será que ele está aprontando? — Pensei, enquanto inalava
profundamente o perfume das flores.
Como Jean-Luc contratou um veículo com motorista para ficar à
minha disposição, decidi aproveitar as horas inicias da manhã, com um
rápido passeio pela cidade, e depois almoçaria em um restaurante, que
servia pratos típicos de rápida execução.
Só não esperava ser abordada por um fotógrafo na saída do hotel.
— Eu vi que surgiram uns boatos de que você foi pedida em
casamento por um dos homens mais ricos da França. É verdade? — Ele
apontou para mim suas lentes, mas levei a mão ao rosto de modo instintivo,
incomodada com aquela abordagem.
— O que espera que eu diga? — Meu tom foi um pouco cortante,
embora muito mais calmo do que esperava naquela situação.
— Você pode confirmar esses rumores?
Não me sentia suficientemente preparada para responder aquela
pergunta.
Para minha sorte, o motorista já estava a postos e abriu a porta
traseira.
— Grazie. — Eu agradeci, enquanto me acomodava no banco de
couro, com os olhos arregalados de espanto, e o coração aos pulos, quase
saindo pela boca. — Se continuar assim, eu não terei outra opção além de
contratar um guarda-costas...
— Acho bom fazer isso logo, signora. — comentou, com a testa
franzida de preocupação, enquanto me lançava um olhar aflito através do
espelho retrovisor interno.
Observei distraidamente a paisagem pela janela, no percurso até a
Piazza VI Febbraio, local onde foi montando um espaço grandioso para o
show da Versace.
Continuei balançando as pernas, freneticamente, a minha ansiedade
estava a mil, porque era a primeira vez em muitas temporadas que a grife
deixava seu tradicional endereço, na Via Gesù.
Aquele seria, sem sombra de dúvida, um megadesfile.
Saí dos devaneios, ao sentir o meu celular vibrar dentro da bolsa. Eu
o peguei, sentindo meu estômago se contraindo de expectativa, desejando
ver uma nova mensagem de Jean, quando na verdade era um correio de voz,
enviado pela minha agente.
Só então eu me dei conta de que havia três chamadas não atendidas.
As ligações caíram direto na caixa postal. Esperei o correio de voz
carregar, então escutei a voz aguda dela: “É verdade que vai se casar? Isso
ainda pode te custar caro. Aquele homem pode arruinar sua reputação, a
sua carreira, ou até mesmo a sua vida”.
— Mon Dieu! — Revirei meus olhos e resmunguei. — Quanto
exagero! — Apaguei o correio de voz, mas tomei um susto quando surgiu
uma notificação de nova mensagem de texto.
Meu coração gelou e acelerou na sequência, ao ler a prévia da
mensagem.
Número desconhecido: Pode mudar de agência, pode até mudar seu
estado civil...
Abri o aplicativo para ler o resto da mensagem, que dizia: (...), mas
não vai se ver livre de mim, assim tão facilmente.
Apaguei a mensagem de Patrick, mas o arrependimento veio logo
em seguida. Aquela era uma prova do assédio que eu vinha sofrendo, e
excluí-la do aparelho foi uma tremenda burrice.
— Merde! — Praguejei baixinho, encostando a cabeça no banco,
com as lágrimas se formando nos cantos dos olhos. Respirei fundo,
sucessivas vezes, para retomar o autocontrole. — Falta pouco para este
pesadelo acabar — ponderei esperançosa, apesar de as palavras terem soado
pouco convincentes até para os meus próprios ouvidos. Eu sabia, bem lá no
fundo, que Patrick encontraria uma maneira de me infernizar.
— A não ser... — Murmurei pensativa, com o cotovelo apoiado na
junção entre a porta e a janela do carro. — A não ser que eu apresente uma
queixa formal contra ele.
Apesar de não confiar no sistema judiciário francês, eu estava
decidida a procurar um advogado trabalhista para mover uma ação legal,
antes de comunicar o caso à agência. As meninas tinham o direito de se
manterem em silêncio, mas eu mesma tomaria as providências, custe o que
custasse.
Os avanços físicos de Patrick nunca deram em nada, mas aquelas
tentativas insistentes e intermináveis me exauriam as forças, chegando a um
nível insustentável.
— Chegamos, signora. — Anunciou o motorista, assim que
estacionou o veículo.
Pisquei meus olhos como se tivesse despertado de um transe.
— Au revoir! — Abri a porta e saltei, com um largo sorriso, pois
havia um grupo numeroso de fotógrafos, repórteres e profissionais da moda,
presente no local.
Usaria a minha máscara social de sempre, para mascarar o meu
humor, que mudou da água para o vinho, desde que eu li aquela mensagem
ameaçadora. Afinal, era meu dever desempenhar o trabalho para o qual fui
contratada, aparentando uma imagem de glamour e de autoconfiança na
passarela, sob o brilho ofuscante dos holofotes.

À medida que adentrava o espaço, eu cumprimentava cada uma das


pessoas conhecidas com um aceno de cabeça. Foi reconfortante rever
colegas e profissionais queridos. Senti falta daquele vai e vem agitado dos
bastidores, onde um exército de pessoas trabalhava freneticamente, para
garantir que o show fosse um sucesso.
Bastou eu me sentar à penteadeira equipada com espelho, para
alguns profissionais da beleza se revezarem diante de mim, munidos com
seus produtos e acessórios, garantindo que a minha aparência final estivesse
de acordo com o look apresentado.
Finalizado o trabalho dos maquiadores e cabeleireiros, segui até o
camarim, onde ficava outra equipe de backstage.
Havia diversas araras com roupas da coleção penduradas em cabides
espalhados pela sala. Duas fileiras de saltos altos, modelo plataforma,
estavam alinhadas nas prateleiras, para serem combinadas com roupas
específicas. Um grande quadro de avisos estava afixado com fotos das
modelos, pela ordem de apresentação.
Uma das minhas fotos aparecia em primeiro, segurando uma bolsa
de mão que fazia parte de um dos looks de abertura: uma jaqueta de
alfaiataria cáqui com um cinto ajustado ao corpo sobre um micro short. E
para encerrar o show da Versace, usaria um longo vestido esvoaçante feito
de chiffon estampado, de alças e com fenda na altura da coxa, com destaque
para o decote que deixava apenas um dos seios à mostra, graças à
transparência da renda preta.
Após uma rápida troca de roupa, eu me juntei a dezenas de outras
modelos, que também aguardavam ansiosamente o início do show. Posamos
para os fotógrafos, que documentavam o trabalho das equipes de cabelo e
maquiagem enquanto assistentes circulavam pelo local, gritando pedidos
naquele frenesi caótico de sempre.
— Você tirou a sorte grande mesmo, hein, querida? — Uma das
meninas comentou, com um sorrisinho maroto nos lábios. Eu pisquei os
olhos, confusa. Ela então levantou a mão direita, mostrando o anelar vazio,
enquanto que o meu foi preenchido por um solitário de diamantes. —
Precisava ver com meus próprios olhos... Parabéns!
— Obrigada. — Senti meu rosto queimar de imediato. — Tudo
aconteceu tão rápido. Minha cabeça está a mil por hora, acabei de ficar
noiva!
— Não me diga Marie-Claire! — Escutei a voz de Donatella, bem
atrás de mim. Ela falava um inglês carregado de charme italiano. — Eu não
acreditei, quando me contaram. Você vai mesmo se casar?
Eu me virei a tempo de observar a designer, vindo em minha
direção, com seu look casual chique. O cabelo num tom loiro platinado
radiante emoldurava o rosto marcado por procedimentos estéticos, os olhos
bem marcados com lápis preto eram a sua marca registrada.
Houve uma pausa embaraçosa, pois eu não sabia o que fazer, mas
ela tomou a iniciativa de cumprimentar a mim e a outra modelo, com um
“beijo no ar”, ou seja, a boca dela não chegou a tocar nossa bochecha, de
fato.
— É um prazer revê-la! — disse, presenteando-a com meu melhor
sorriso. — Sim, é verdade — confirmei logo em seguida. — Meu
namorado... — prossegui, antes de me corrigir: —… Melhor dizendo, o
meu noivo, me pediu em casamento ontem e nem tive tempo de avisar a
ninguém, acredita?
— Você está tão radiante! Dá para ver de longe que tirou a sorte
grande. — Sorri igual a uma boba, por dentro eu explodia de felicidade. —
Agora, mudando de assunto, vocês duas estão lindíssimas! — Seus olhos
brilhavam de orgulho.
— Obrigada. — Minha colega e eu agradecemos em uníssono.
De repente, um assistente se aproximou, timidamente, e disse que
foi abordado por um empresário estrangeiro, interessado em ocupar um dos
assentos da primeira fileira.
Não era incomum um VIP aparecer em cima da hora e sem avisar,
exigindo um lugar na primeira fila para um show já lotado.
— Eu consultei a lista de convidados, mas o nome dele não constava
nela.
No geral, parte dos lugares era reservada para a imprensa, a outra
parte para os compradores e o restante para os demais convidados, em sua
maioria celebridades.
— E quem é ele, afinal? — perguntou a designer, plantando as mãos
na cintura. O responsável pelas relações públicas da marca cochichou algo
no ouvido dela.
A modelo e eu trocamos olhares, como que dizendo: Que mistério é
esse?
Os dois pediram licença e se afastaram. Pronto.
Foi o suficiente para ficar intrigada, mas a minha atenção se
desviou, no instante em que outras modelos se aproximaram todas
sorridentes, querendo ver de perto o meu anel de noivado, enquanto me
desejavam felicidades e faziam um milhão de perguntas.
— Eu soube que não desfilou na Semana de Moda de Londres... —
comentou uma delas, demonstrando pesar ao apoiar uma das mãos em meu
ombro. — Que chato...
— Fiquei arrasada, muito mal mesmo. Mas vida que segue...
— Agora vai ter que desfilar com um salto enorme... — disse outra,
olhando diretamente para os meus pés. Apesar da altura vertiginosa, a
sandália estilo plataforma de dezoito centímetros auxiliava na compensação
e não exigia muito dos pés.
— Por incrível que pareça não me incomoda em nada. Meu
tornozelo está ótimo.
— Perdoem-me — disse Kate Seymour. Não fiquei surpresa em
rever a ex-parceira de Jean-Luc, só não esperava falar diretamente com ela
a respeito dele. — Não pude deixar de ouvir a conversa de vocês... — Ela
se explicou, meio sem graça. — Quer dizer, então, que Jean-Luc vai mesmo
se casar, afinal. — Prosseguiu. Havia certo despeito na voz, que nem ao
menos soube disfarçar. — E a escolhida foi... Você.
Lancei um olhar para as meninas e algumas desviaram o olhar,
constrangidas.
O sentimento de frustração dela era até compreensível. Um homem
como Jean — que dizia não querer compromisso de maneira alguma —,
podia fatalmente cruzar com uma mulher capaz de despertar seus
sentimentos mais profundos. E a partir daí, ele mudava de ideia, se tornando
o homem mais romântico do mundo.
— Acho que foi o contrário, Kate. — Rebati, de forma respeitosa.
— Na verdade, eu não fui escolhida por ele. Eu o escolhi, dando a ele total
liberdade para definir o que sente.
Ela me deu um sorriso torto, e arqueou a sobrancelha de forma
desdenhosa.
— Vamos lá, meninas! Assumam suas posições — ordenou o
produtor, cortando as conversas paralelas.
Soltei o ar que estava preso em meu peito, assim que a modelo me
deu as costas, então assumi o meu lugar na fila, e girei a cabeça de um lado
para o outro, fazendo um leve alongamento para liberar um pouco a tensão
acumulada.
— Vai lá e arrase! — Ele deu um passo para o lado, para liberar a
passagem.
Eu finalmente adentrei o auditório iluminado apenas pelos refletores
que caíam sobre mim como jorros de luz. O silêncio foi quebrado apenas
pela batida eletrônica da música Transition by Underground Resistance —
que falava sobre encontrar forças para ignorar os que nos colocavam para
baixo e seguir na direção dos nossos sonhos.
Respirei fundo para me concentrar, e caminhei pela passarela,
segurando a bolsa de mão, em passadas largas e ritmadas, com um pé na
frente do outro, sempre mantendo os olhos fixos em um ponto adiante, os
ombros ligeiramente para trás e o queixo levemente abaixado, irradiando
uma confiança quase magnética, habilidade adquirida com anos de prática,
para captar a atenção do público.
Algumas pessoas apontavam os celulares para mim, tentando
disfarçadamente tirar fotos, mas continuei atravessando o longo corredor,
com outra modelo me seguindo a certa distância, quando inesperadamente
um rosto familiar apareceu no meu campo de visão.
Pouco antes de dobrar à esquerda, o meu coração palpitou enquanto
contemplava o belo rosto de traços marcantes.
Eu mal podia acreditar no que via: Jean estava sentado, exatamente
na fileira bem à minha frente, acompanhado pela irmã dele. Passado o susto
inicial, respirei bem fundo para relaxar e manter a naturalidade, no caminho
de volta ao backstage.
Havia sempre uma ou duas pessoas a postos para ajudar a me vestir
nos bastidores. A troca de roupa tinha que ser rápida, visto que a maioria
dos desfiles durava em média de 10 minutos a 15 minutos.
Precisei retocar a maquiagem e ajeitar o cabelo, que continuava
mais solto e volumoso, antes de voltar ao espaço atrás do palco principal.
Não se passaram cinco minutos e liberaram minha passagem, então
caminhei pela passarela, com a mesma desenvoltura de antes, mas lidando
com o efeito causado pelo olhar de Jean, que me avaliava de cima a baixo,
os seus lábios se moviam, dizendo a palavra “gostosa”.
A pulsação no meu clitóris se intensificou, o que serviu de estímulo
para a lubrificação fluir, umedecendo a calcinha, justamente quando usava o
vestido de alcinhas longo de chiffon esvoaçante, com ampla fenda lateral,
decote ousado e detalhes em tule que deixava um dos seios totalmente à
mostra.
Fiz um esforço sobre-humano para aparentar uma naturalidade que
estava longe de sentir, mas reconhecer aquele brilho de satisfação e orgulho
despontando dos olhos castanhos fez o meu peito transbordar de alegria,
uma alegria quase infantil.
No entanto, o show não acabava na caminhada final. Depois que
todas se juntavam pela última vez na passarela, mostrando seus looks ao
público, a equipe dos designers se encarregava de guardar as peças da
coleção, para mantê-las em perfeitas condições.
Eu vesti minha roupa o mais depressa que pude, mal contendo a
ansiedade de poder rever Jean no auditório, mas não o encontrei em parte
alguma. Pelo menos, eu tive a sorte de avistar minha futura cunhada, junto a
um grupo composto por editores de moda e jornalistas. Acenei
discretamente para ela, que pediu licença e se aproximou de mim com um
sorriso amável no rosto.
— Marie-Claire! — disse Camille, estendendo os braços para um
abraço afetuoso, e riu como se soubesse o motivo de eu ter aparecido ali. —
Eu sei exatamente por que veio até aqui — prosseguiu, confirmando minhas
suspeitas. — Mas eu preciso dizer antes que você estava fabulosa naquele
vestido. Deixou muitos convidados de queixo caído, inclusive eu, chérie. —
Ela acrescentou uma piscadela ao sorriso. — Você precisava ter visto como
Jean reagiu ao te ver. Os olhos dele estavam vidrados, como se estivesse em
transe. Nem mesmo piscou, acredita?
— Mas ele não deveria estar aqui? — Olhei ao redor com uma
mistura de cautela e expectativa. — Alguém avisou a Donatella que havia
um homem querendo ocupar um dos assentos da primeira fileira... Seu
irmão não me disse que viria a Milão.
— Eu estou tão surpresa quanto você, Marie. — A sua voz
transmitia sinceridade. — Jean simplesmente apareceu e usou todo seu
charme para conseguir trocar de lugar. Mas no final do show disse que
precisava sair, sei lá, para tomar ar fresco.
— Mandei uma mensagem de texto para ele, mas não tive nenhum
retorno...
— Você sabe que meu irmão é conhecido por ser um pouco...
Imprevisível.
— Só um pouco? — Retruquei, a voz transparecendo irritação. —
Bem, então se despeça dele por mim. Eu preciso voltar para o hotel.
Amanhã começa tudo de novo.
— Você parece... Não sei. Triste, talvez. — Estreitou os olhos cheios
de preocupação, enquanto alisava meu braço com delicadeza, como que
para me transmitir algum consolo. Desviei o olhar, porque as lágrimas já se
formavam e não queria demonstrar minha insegurança. — Meu irmão
cancelou todos os compromissos do dia e tomou um avião para vir a tempo
de te ver desfilar esta noite, Marie — reforçou ela, me oferecendo um
sorriso encorajador. — Ele vai voltar, confie em mim.
— Eu sei disso, Mille. Mon Dieu! — Eu me permiti rir um pouco da
situação. — Senti minhas pernas fraquejarem quando o vi na primeira
fileira. Não foi nada fácil manter o carão e a postura na passarela. Ele nem
imagina o efeito que causa sobre mim.
De repente, eu ouvi o que parecia ser o som de alguém pigarreando,
seguido pela voz meio rouca e familiar, bem atrás de mim:
— Achei que suas pernas estavam bambas e doloridas, mas por
outro motivo. — Eu me virei a tempo de notar seus profundos olhos
castanhos se detendo longamente em minha boca.
Jean esfregou os lábios um no outro, como forma de umedecê-los e
por pouco não me arrancou um gemido, quando passou os braços ao redor
da cintura, e me puxou para junto de si, dando mais um selinho do que um
beijo propriamente dito.
De todo modo, ainda havia algumas pessoas conversando ao redor.
Eu o enlacei pelo pescoço e rocei minha boca na dele de forma
suave. Senti seu peitoral pressionado contra os meus seios intumescidos e
eriçados ao simples contato contra a estrutura rígida de seus músculos.
— Da próxima vez pedirei aos produtores para riscarem o seu nome
da lista.
— Agora está sendo injusta comigo — murmurou ele junto ao
ouvido, o hálito frio e com cheiro de menta inebriou meus sentidos.
Permaneci em silêncio por alguns instantes, mas depois murmurei,
queixosa:
— Você nem respondeu minha mensagem...
— Só deixei o auditório porque queria fumar um pouco.
— Parece que estou sobrando aqui — disse Camille, fingindo
aborrecimento. — Vou deixar os pombinhos a sós. Divirtam-se! —
completou, antes de jogar um beijo em nossa direção e se afastar.
— Eu só queria agradecer e dizer que amei as flores e os macarons.
— Mas ainda falta a segunda surpresa... Deixei no meu quarto de
hotel.
— Melhor a gente se apressar então, porque eu estou ansiosa para
saber do que se trata. — E dizendo isso, eu puxei meu noivo pelo braço,
andando em direção à saída.
Passava das 23 horas quando nós dois chegamos ao hotel, localizado
bem no coração da cidade. E embora estivesse hospedada em outro local, eu
já estava preparada para passar a noite com ele. Coloquei uma peça de
roupa a mais na bolsa, além de um par de sapatos, e uma roupa íntima.
A suíte espaçosa contava com área de estar separada e revestimento
em carvalho, além do terraço e sala de jantar. Entrei no banheiro para tomar
uma ducha rápida, enquanto Jean pedia nosso jantar através do serviço de
quarto.
Eu enxaguei meu cabelo e comecei a me ensaboar, quando
inesperadamente senti uma mão ainda quente e úmida, envolvendo a minha
cintura por trás. Nem precisei abrir os olhos, cada célula do meu corpo
estava consciente da presença de Jean-Luc naquele espaço, que apesar de
caber perfeitamente duas pessoas, parecia reduzido à metade de seu
tamanho.
Ele pressionava os seus quadris de tal forma, que eu pude sentir o
volume do pau se chocando contra a minha bunda, deixando-me
completamente sem fôlego. Precisei me agarrar à parede para me apoiar, as
minhas pernas ameaçavam ceder sob a estrutura rígida de seus músculos.
O cheiro da minha excitação se misturava ao vapor do chuveiro, o
clitóris pulsava só de imaginar meu noivo me comendo por trás.
Senti os lábios dele roçando a têmpora, fazendo a respiração quente
e ofegante bater de encontro ao meu ouvido direito. O meu coração
acelerou, vibrando de antecipação decorrente do tesão, que já se elevava a
níveis insustentáveis.
— Pensei em me servir de você antes do jantar, chéri. — Fechou o
registro do chuveiro com uma das mãos, enquanto que a outra resvalava
entre as pernas, escorregando até meu ponto sensível e inchado. Então, ele
iniciou uma carícia deliciosa nos grandes e pequenos lábios, estimulando
ainda mais a lubrificação natural.
— Então, me fode bem gostoso! — exigi, com a voz rouca e
urgente.
Soltei um grunhido de dor, assim que senti a ardência se espalhar na
minha nádega direita. Jean estapeou minha bunda, enquanto agarrava um
seio seguido do outro, e os pressionou devagar, arrancando um gemido
rouco saído do fundo da garganta.
A minha mão tremia ao tatear o quadril dele em busca do membro
duro e sólido como uma rocha. Passei a pressioná-lo delicadamente,
masturbando-o ainda de costas para ele, quando escutei um rosnado suave,
junto ao meu ouvido.
— Empina bem essa bunda pra mim, amour.
Arrebitei bem o bumbum, deixando-o completamente à disposição
dele.
À medida que Jean introduzia o pênis, senti as paredes internas se
contraírem, involuntariamente. Ele se moveu em um ritmo lento, a
princípio, mas aos poucos foi se intensificando, imprimindo um ritmo forte
a cada estocada e impulsionando o pau cada vez mais fundo na boceta,
enquanto agarrava os meus cabelos longos e os torcia em um rabo de
cavalo. Meus gemidos logo deram lugar aos gritos, uma vez que ele
penetrava sucessivas vezes, as bolas batendo contra a parte de trás das
coxas, a respiração curta e irregular se misturava aos gemidos roucos dele,
num frenesi alucinante.
— Não para, por favor! — supliquei, diante da intensidade daquele
prazer.
— Amarguei uma longa espera pelo momento em que enterraria o
meu pau bem fundo nessa boceta gostosa. — A voz dele saiu num rosnado,
ofegante, enquanto mordia o lóbulo da minha orelha.
Esvaziei a mente de todos os pensamentos, completamente entregue
àquela sensação deliciosa que antecedia o orgasmo. Senti meu corpo
flutuar, com a onda de prazer evoluindo numa crescente até ser sacudida por
espasmos violentos, ao mesmo tempo em que sentia um jato quente e longo
de gozo me preencher, internamente.
Capítulo 17

Marie-Claire

Meses depois...

Enfim, chegou o dia tão esperado. O que para nós, franceses, era
“Le Jour-J[8]”.
Na verdade, todos os casamentos aconteciam primeiro na Câmara
Municipal e caso o casal desejasse, depois poderiam se casar numa igreja.
Jean e eu fomos até a mairie de Paris dias antes da nossa cerimônia
intimista e tradicional, no sul da França.
Na segunda semana de maio, toda a nossa família seguiu para o
Château de Lumière, localizado em Vallée des Baux, na Provença. A
propriedade datada do século XVIII e pertencente à avó dele tinha cerca de
200 hectares, e era conhecida pelas belíssimas vistas e exuberantes jardins,
além da produção de vinhos brancos, tintos e rosés.
Acordei por volta das 8 horas, quando uma criada apareceu na suíte,
trazendo uma bandeja de café da manhã, seguida de perto pelo mordomo do
château.
O contato com meu futuro marido foi limitado em respeito às
tradições do casamento. Alguns casais decidiam ficar uma semana ou mais
sem se ver, tornando a espera ainda mais emocionante. Havia um clima de
antecipação no ar, pois Jean continuava confinado na ala direita,
possivelmente se preparando para o registro dos bastidores.
Cabia ao fotógrafo captar cada detalhe do traje e do momento em
que ele se arrumaria para a cerimônia.
Nos casamentos franceses, a noiva não era o centro das atenções.
Em vez disso, o foco se voltava mais à união entre as duas famílias.
Tampouco havia damas de honra ou padrinhos — os franceses nem mesmo
tinham uma palavra para eles. O equivalente mais próximo da participação
dos melhores amigos na cerimônia eram as testemunhas. Os noivos
costumavam escolher uma ou duas testemunhas cada, no máximo.
De repente, escutei uma batida de leve na porta. Eu tinha acabado de
finalizar os procedimentos de cuidado com a pele após o banho.
Saí do banheiro amarrando o cinto do robe de cetim branco. Quando
abri a porta, eu me deparei com minha cunhada, acompanhada por um
grupo de profissionais de beleza, como cabeleireiros, manicures,
maquiadores, esteticistas, entre outros.
— Bonjour, Marie! — Camille saudou, expressando toda a sua
empolgação e alegria como de costume. Eu insisti bastante para ela se
arrumar junto comigo, assim tornaria o dia, que se arrastaria
indefinidamente, muito mais agradável para mim. — Pode não parecer, mas
estou bem nervosa. Você já está acostumada a passar longos minutos nesse
processo de estica e puxa cabelo, enquanto outras mãos cuidam da
aplicação de camadas e camadas de maquiagem. Acho isso um porre, chéri.
Quase caí na gargalhada, mas contive o ímpeto a tempo.
— É aí que você se engana, mon amie. — Estendi a mão e tomei a
dela, que tremia um pouco. — Posso ter desfilado para inúmeras grifes e
posado para fotos desde a adolescência, mas nada me preparou para viver
este momento. Parece que estou vivenciando tudo como na primeira vez,
sabe?
Ela abriu um sorriso tímido, e me puxou para um abraço.
— Assim fico mais aliviada, Marie. — Sua voz saiu abafada em
meu ombro.
Nós duas nos sentamos lado a lado, e enquanto a maquiadora
começava o seu trabalho, o fotógrafo aproveitou para fotografar o vestido e
os acessórios. Uma vez que a maquiagem ganhava forma, ele seguia
mirando sua câmera para fazer o making of.
Como a festa começaria no final da tarde, mas só terminaria nas
primeiras horas do dia seguinte, optei por uma maquiagem brilhante,
deixando a pele mais iluminada, com bochechas coradas, um contorno bem
feito para destacar o formato do rosto, e os olhos levemente marcados com
cílios poderosos.
Nunca pensei que consideraria natural posar para fotos com rolos de
cabelo.
— Já fez algum editorial de noivas antes? — perguntou Camille,
enquanto se servia de outra taça de champanhe.
— Sim. Aos 16 anos de idade. A sessão de fotos para a revista
ocorreu aqui mesmo em Paris, quando posei com vestidos de noiva de
diversas marcas. A ideia principal era criar um look clássico e atemporal, e
o resultado ficou lindo!
— Quem diria que três anos depois você faria um ensaio fotográfico
para o seu próprio casamento? — Ela sorriu e fez um gesto grandioso com a
mão livre.
— Pareço plena por fora, mas por dentro ainda estou tremendo. — E
dizendo isso, eu tomei um longo gole de champanhe, quase esvaziando a
taça.
— Pode parecer um sonho, mas é a pura realidade!
Depois, o cabeleireiro deu início ao penteado levemente preso, por
meio de uma tiara em prata incrustada por cristais, pérolas, pontos de luz e
folhas metalizadas. Camille tinha o cabelo mais curto, na altura do ombro,
então optou pela finalização com babyliss e ondas largas para dar
movimento às madeixas lisas.
— Tu es superbe! — Ela me avaliou de cima a baixo, impressionada
com minha aparência.
— Arrête! — Para (com isso). — Nous sommes magnifiques! —
Fiz questão de frisar, enquanto dois profissionais me ajudavam a colocar o
vestido, projetado exclusivamente por um dos designers mais icônicos do
mundo.
O modelo de alças possuía enfeites de pérolas nos ombros, a
silhueta totalmente alongada e ajustada ao corpo, uma saia semi-sereia, com
as costas expostas e a cauda em tule francês, que se arrastava no chão,
aliando transparência com sofisticação.
Contemplei o meu reflexo no grande espelho de corpo inteiro,
fazendo um esforço enorme para segurar o choro.
Aquele era o dia mais feliz da minha vida.
— Uma pena maman não estar mais entre nós... — Murmurei mais
para mim mesma do que para qualquer uma das pessoas presentes ali. —
Um dos meus maiores sonhos era me casar com um vestido feito por ela,
sabe?
Fiz esforço incomensurável para segurar as lágrimas, mas elas
acabaram deslizando rápidas, volumosas e quentes pelo meu rosto.
Uma batida na porta interrompeu os devaneios.
Deslizei um dedo disfarçadamente pelo canto do olho, assim que
minha sogra entrou no aposento, de braço dado com a mãe dela. Os olhos
das duas senhoras estavam vidrados em mim, e quase não piscavam. Seria
de admiração, talvez?
Margot estava deslumbrante, com seu vestido longo rosé gold todo
drapeado, e a cintura marcada alongava a silhueta dela. Os cabelos grisalhos
levemente presos em um coque proporcionavam leveza e elegância.
— Acho que nunca vi uma noiva tão adorável... Não é mesmo,
maman?
— Absolument! Une princesse! — Madame Yvonne enfatizou, com
orgulho. — Meu neto não poderia ter escolhido uma noiva melhor.
— Sinta-se parte da família, ma chérie. — Margot esboçou um
sorriso amável, mas ligeiramente altivo. No fundo, eu sabia que não era a
nora dos sonhos dela.
— Merci. — Fiz uma leve reverência com a cabeça, de forma
respeitosa.
Minutos mais tarde, eu caminhei até o altar de braço dado com meu
pai, carregando um pequeno ramo de Lírio do Vale como buquê. Mas foi
difícil conter as lágrimas, afinal a minha mãe não estava mais entre nós, e
justo no dia mais significativo de nossas vidas. Mas saber que maman
acompanharia a cerimônia onde quer que ela estivesse já era um alento para
o meu coração apertado de saudade.
Uma mega estrutura foi montada, transformando o jardim em um
verdadeiro espaço de festas. Nem em meus sonhos mais loucos poderia
imaginar que algum dia atravessaria o jardim de um château, ao som de
uma orquestra tocando a marcha nupcial, enquanto distribuía sorrisos
discretos aos convidados presentes, até me posicionar diante do altar e
trocar votos sob o sol se pondo, rodeada pelo perfume da lavanda e pelas
cores vibrantes das flores desabrochando em plena primavera.
Mas o buquê em minhas mãos era real. O olhar de Jean-Luc era real,
seus olhos ainda me acompanhavam completamente vidrados sem perder
um movimento meu sequer. E o sentimento em meu peito era tão real que
parecia transbordar tal qual o champanhe escorrendo nas taças empilhadas
em forma de pirâmide, comum nos casamentos.
A postura imponente do meu noivo garantia que tivesse presença,
graças ao fraque tradicional, composto por paletó longo e cinza escuro,
acompanhado pela calça risca de giz, e colete cinza.
Antes de ser entregue para Jean, o meu pai me beijou na testa de
modo afetuoso. Então, me posicionei a esquerda dele, e de frente para o
celebrante que deu início à cerimônia, proferindo o seguinte discurso:
— Família e amigos, obrigado a todos e todas pela presença nesta
maravilhosa ocasião. Hoje estamos aqui, juntos, para unir Jean-Luc Saint
Vincent Laurent e Marie-Claire Bernard Leblanc, em casamento. — Ele fez
uma pausa, voltando sua atenção para meu noivo. — Jean-Luc Saint
Vincent Laurent, você aceita Marie-Claire Bernard Leblanc como sua
companheira em matrimônio?
— Oui! — respondeu ele, abrindo um amplo sorriso.
— Marie-Claire Bernard Leblanc, você aceita Jean-Luc Saint
Vincent Laurent como seu companheiro em matrimônio?
— Sim, eu aceito — respondi, em alto e bom som.
— Ao longo desta cerimônia, os noivos formalizaram a existência
do vínculo com palavras, e escolheram as alianças como um símbolo de
amor. Ao olharem para elas, lembrem-se do compromisso selado em
compartilhar suas vidas deste dia em diante enquanto viverem.
O celebrante fez um gesto, indicando o momento mais aguardado: a
troca das alianças. Jean-Luc e eu ficamos de frente um para o outro, e
aguardamos o filho de um amigo dele se aproximar, carregando as alianças
da Cartier, que uniam faixas de ouro amarelo, branco e rosa, amarradas em
uma pequena almofada ornamentada.
Quando ele finalmente deslizou o aro no espaço entre os dedos,
senti a mão estremecer sutilmente, de tão sensível que estava àquele toque
carinhoso e ao calor de sua pele.
— Marie-Claire, eu prometo o meu amor agora e para sempre. —
Seus olhos faiscantes reforçavam a firme entonação da voz.
— Jean-Luc, eu prometo o meu amor agora e para sempre — repeti
o discurso, colocando a aliança no dedo anelar esquerdo, com as lágrimas já
embaçando a minha visão.
O celebrante finalizou o rito do matrimônio, permitindo que Jean
cruzasse a pequena distância entre nós, e segurasse o meu rosto entre as
mãos, fazendo um sorriso brotar nos lábios, e aumentando as expectativas
para o que estava por vir.
Meus olhos se fecharam, assim que senti o toque macio dos lábios
na testa.
Aquele simples gesto criava uma conexão que poderia durar a vida
toda.
Nossos familiares formaram um círculo à nossa volta para nos
felicitar pelo matrimônio. Meus sogros, o meu pai, a avó de Jean, os irmãos
dele e minhas amigas, que eram como se fossem da família. Depois foi a
vez dos demais convidados, que eram basicamente alguns gestores do
conglomerado de mídia, além de profissionais da moda.
Cumprimentei cada um deles com abraços e sorrisos, mas este
último morreu nos lábios, assim que uma silhueta familiar surgiu em meu
campo de visão.
Aquilo só podia ser um pesadelo. Era quase inacreditável.
Como Patrick teve a coragem de comparecer à cerimônia, sem ser
convidado?
Meu ex-agente se aproximou, exibindo aquele sorrisinho petulante
de sempre.
— Parabéns aos recém-casados! — disse ele, e para minha surpresa,
se adiantou até mim, com os braços estendidos.
Eu tive que respirar fundo. Bem fundo. Quase retive todo o ar à
minha volta.
Meu corpo inteiro tremia só de sentir aquelas mãos nojentas em
cima de mim.
— Parabéns, Marie — sussurrou rouco em meu ouvido e, então,
acrescentou: — Não pense que está livre de mim.
Fechei meus olhos na tentativa de afastar as memórias ruins
relacionadas a ele, e apesar de ter deixado os braços caídos ao lado do corpo
e as mãos fechadas em punho, os tremores persistiam e o coração já
disparava.
— Merci, Patrick. — Eu me vi forçada a agradecer, mesmo
engolindo em seco. E acrescentei: — Mas não me lembro de tê-lo
convidado para o casamento...
— Você tem toda razão, chérie. — Concordou ele, a voz carregada
de cinismo. — Mas o convite dava direito a um acompanhante, e como o
marido de Désirée teve um compromisso inadiável, ela insistiu muito para
eu vir no lugar dele. Lamento não ter avisado antes.
— D’accord. — Aquiesci, resignada. Entendi que, naquela situação,
não havia nada que eu pudesse fazer para impedi-lo de estar ali.
— Agora é a vez do seu marido... — Notei pelo canto do olho Jean
arquear os cantos da boca, forçando um sorriso, mal ocultando seu
desagrado. — Félicitations! — Patrick puxou Jean-Luc para um abraço
efusivo, provocando nele uma reação de espanto e de desconfiança.
— Merci. — Retribuiu, dando um tapa constrangido nas costas dele.
— Eu vi Marie-Claire desabrochar e se transformar numa das
maiores supermodelos do mundo. — Seus olhos estavam fixos em mim, e
faiscavam cheios de malícia. Virei bruscamente o rosto, que já queimava de
raiva, enquanto as lágrimas desciam pelo canto dos olhos. — Cuide bem
dela, mon chéri! Ela é como uma filha para mim.
Uma sensação nauseante me subiu à garganta, amargo como bile.
— Quanto a isso não precisa se preocupar, Patrick. Eu farei minha
mulher muito feliz. — Quase soltei um pequeno arquejo, ao sentir o braço
de Jean envolver minha cintura, em um gesto claramente possessivo.
— Pode ter certeza de que Jean e eu seremos muito felizes juntos —
assegurei, em tom firme, mas as palavras soaram pouco convincentes até
para os meus próprios ouvidos.
— Marie-Claire! — Ouvi gritarem meu nome não muito distante
dali. Désirée caminhava em nossa direção, exibindo no rosto um sorriso que
era um tanto exagerado. — Meus parabéns! — Ela me puxou para um
abraço afetuoso, o que me encheu de alívio. A presença da minha ex-agente
aliviava um pouco a pressão de interagir com Patrick, ainda que eu
precisasse forçar uma simpatia que estava longe de sentir.
Minha ex-agente estava com uma aparência mais jovem e saudável,
talvez devido à sua gestação de gêmeos aos 42 anos de idade, sendo que ela
já era mãe de três. Dava para notar que o vestido elegante e feito sob
medida, desviava a atenção da barriga proeminente.
— Salut, Désirée! — Eu a cumprimentei com dois beijos no rosto.
— Fico feliz que tenha vindo. — Eu fiz questão de frisar, olhando bem nos
olhos dela e, transmitindo total sinceridade, prossegui: — Sou muito grata
por tudo o que fez por mim. Apesar das diferenças, eu sei reconhecer a
importância do seu trabalho. — A voz saiu mais embargada do que gostaria
e meu rosto ficou banhado de lágrimas. — Você viu em mim um talento que
eu nem imaginava que tinha.
— Mas fui eu quem descobriu você, chérie. — Patrick fez um esgar
de deboche, o que me fez revirar os olhos de puro tédio.
Meus lábios de um tom rosado estavam torcidos num sorriso
forçado.
— Vou me lembrar disso para sempre... — O meu pior pesadelo.
— De minha parte, Marie, eu não guardo rancor... Um pouco de
mágoa, talvez. — Confessou Désirée, rindo um pouco de si mesma. —
Quem trabalha nesta função sabe que modelos vêm e vão... Os ciclos
começam e terminam, mais cedo ou mais tarde. Mas continuo torcendo por
você, e desejo que ambos sejam muito felizes!
Pelo canto do olho, notei minhas amigas me observando a certa
distância e, como elas acenaram insistentemente, eu pedi licença aos três e
me afastei, apressando os passos para poder me juntar a elas.
— Estamos tão felizes por você, Marie! — Anne foi a primeira a me
dar um abraço, seguida de perto pelas outras meninas. Todas elas estavam
radiantes, cada qual usava um vestido que realçava seus corpos magros e
longilíneos.
— Ainda não consigo acreditar que Patrick teve a coragem de
aparecer aqui. — Inès comentou, olhando na direção dele, com a expressão
dura e sombria.
— Ele só está aqui porque nós não tivemos coragem o suficiente
para romper com o silêncio — murmurei, enquanto observava Patrick levar
a taça aos lábios e beber um grande gole de champanhe.
Impossível manter contato visual com ele, sem sentir o estômago
embrulhar.
O olhar fixo dele em nossa direção deixava um recado claro: ele
sairia impune de todas as acusações. Patrick era impiedoso demais, e
tentaria nos atingir de alguma forma, até conseguir nos deixar vulneráveis e
impotentes.
Um tremor sacudiu meu corpo ao relembrar o dia em que ele me
disse que poderia usar alguma coisa contra mim, mas eu não conseguia
pensar em nada.
Podia ser até um blefe. Mas também podia não ser.
Só havia um jeito de descobrir.
— Chega! — Meu tom de voz as assustou, mas eu encarei cada uma
delas, seriamente, antes de prosseguir: — Isso já foi longe demais, meninas.
Precisamos tomar alguma atitude. Acham justo deixá-lo impune? Acham
justo sermos silenciadas? Acham justo que ele nos traumatize e continue
nos ameaçando pelo resto de nossas vidas?
— Você prometeu que não faria nada, Marie... — Uma delas voltou
a estampar o mesmo olhar aflito de antes.
— Não quero correr o risco de arruinar a minha vida, a minha
carreira... Mon Dieu! — Outra modelo ponderou, balançando
energicamente a cabeça. — Esquece isso.
— A corda sempre arrebenta para o lado mais fraco. — Uma
terceira colega também se opôs, veementemente. — Não vou correr este
risco, mas não vou mesmo!
Olhei para Inès e Anneliese, que desviaram o olhar, resignadas.
— E vocês duas não vão dizer nada? Também preferem ficar de
braços cruzados?
Anneliese quebrou o silêncio e representou todas ao dizer baixinho:
— Agora você se sente protegida e segura, porque se casou com um
homem poderoso em todos os aspectos, Marie. — Baixei minha cabeça,
evitando sustentar o olhar dela. Merde! Anne tocou em um ponto muito
delicado. — Lamento ter que dizer isso, mas as meninas têm toda razão.
— Muitas de nós têm 20 anos ou menos, e ajudamos famílias
inteiras — disse outra modelo, baixando os olhos para mim. — Quando
você coloca tudo isso na balança, dá para entender por que é tão difícil
denunciar os abusos...
— Eu entendo o receio de vocês porque assinamos aquele
documento, mas estou farta de ser silenciada e não poder compartilhar com
ninguém o que aconteceu.
Observei detidamente cada uma delas, para checar se conseguiria
convencê-las a voltar atrás na decisão, mas elas pareciam irredutíveis. Meu
coração se apertou como se estivesse dentro de um moedor de carne.
— Très bien. — Murmurei, encolhendo os ombros, ainda que
aquelas palavras me fizessem sentir um calafrio na espinha. — Patrick disse
que tem algo contra mim, mas eu nem imagino o que seja. Talvez isso me
traga sérios problemas no futuro.
— Este é mais um motivo para não fazer absolutamente nada.
— Acho melhor você não contar nada para o seu marido, Marie. —
Recomendou Inès, com ar pensativo. — Existem coisas mais importantes
com que se preocupar agora.
Embora eu não quisesse admitir, a minha melhor amiga estava certa.
Dois anos se passaram, e ainda me recuperava de um transtorno
alimentar severo. Agora que eu me casei, não parava de pensar na
possibilidade de ter um filho. O meu médico tratou muitas pacientes com
anorexia, mas nenhuma delas conseguiu engravidar. Ele foi taxativo ao
dizer para mim certa vez: “Não tenha esperanças, minha jovem”.
Mas eu não me daria por vencida, jamais.
— Não posso permitir que aquele fils de pute estrague a minha
noite. — Meus olhos ardiam, cheio de lágrimas não derramadas. — Eu
mereço, sim, ser feliz!
— Désirée já está vindo, meninas. — Anne falou com uma
expressão alarmada no olhar. — Agora temos que ir, antes que ela desconfie
de alguma coisa.
— Vocês vão ficar para o jantar de recepção? — perguntei, com a
respiração suspensa. Elas confirmaram com um gesto de cabeça.
— As meninas e eu combinamos de fazer fila para pegar seu buquê.
— Inès riu timidamente, esfregando a nuca. — Nós estamos solteiras, mas
não estamos desesperadas... — Como eu fiz uma careta incrédula, ela logo
admitiu: — Só um pouquinho.
— Então, a gente se fala mais tarde — prossegui, dando um abraço
e um beijo na bochecha de cada uma. — Divirtam-se na festa, façam isso
por mim. Je vous aime[9]!
Minutos mais tarde, meu pai e eu abrimos a pista de dança com a
tradicional valsa. Jacques me conduziu pelo salão, rodopiando e seguindo o
ritmo da música, todo sorridente e orgulhoso por presenciar a realização de
mais um sonho: ver a filha casada.
― Como faço para tirar essa ruga de preocupação em sua testa, ma
petite? ― Meu pai perguntou, me encarando com a cabeça ligeiramente
inclinada para trás.
— Mon Dieu! — Dei um sorriso, contrariada. Pelo visto uma
sombra de tristeza ainda pairava sobre meu rosto. — Está tão perceptível
assim, papa?
— Non, mas eu te conheço muito bem, e sei que deve haver algo
errado. Não tenha medo de compartilhar comigo as suas angústias, os seus
medos e receios, Marie.
— Eu só me lembrei dela, papa. — Tentei imprimir um tom firme
na voz, mas ela saiu trêmula e quase inaudível. — Pensei no quanto minha
mãe ficaria feliz em me ver vestida de noiva, e dançando a valsa com o
senhor neste lugar maravilhoso! — Encolhi os ombros e senti mais lágrimas
surgirem em meus olhos. — Apenas isso.
Aquela era uma meia verdade e meia mentira.
— Ela certamente diria: Jacques, como nossa filha cresceu tão
rápido assim?
— Troquei fraldas outro dia e agora ela já é uma mulher casada! —
Acrescentei, imitando o jeito de minha mãe falar. — Acho que maman
ficaria radiante.
Nós olhamos um para o outro e começamos a rir, no meio do salão.
Depois de alguns minutos, meu pai concedeu a vez para Jean-Luc,
que me conduziu até o meio da pista de dança, para terminarmos a valsa
como marido e mulher.
Ele posicionou o braço direito na parte inferior das costas, enquanto
o esquerdo segurava a minha mão no ar. Pressionei o meu corpo junto ao
dele, e assim nós dois começamos a dançar; ele dando um passo para frente,
enquanto eu dava um passo para trás, sem pressa. Houve vezes em que ele
me fez girar em torno do meu próprio eixo, e me puxava para junto de si,
com nossos rostos bem próximos um do outro permitindo uma intensa troca
de olhares, os lábios quase se encostando, o ar quente saindo das narinas
dele se misturava ao meu em um frenesi louco.
Eu estava tão distraída, que por pouco o meu coração não saiu pela
boca, quando Jean encostou os lábios ao meu ouvido e sussurrou com sua
voz grave:
— Mal posso esperar para que fiquemos a sós, Marie.
— Por que a pressa? — Eu comprimi os lábios na tentativa de
sufocar o riso, enquanto alisava a lapela do sobretudo. — Logo chegará o
momento que será só nosso.
Pelo canto do olho, notei a aproximação de Cédric, que estava
acompanhado pelo pai. Assim que Jean viu os dois, parou de dançar e abriu
um sorriso, curioso.
— La fontaina à Champagne! — Anunciou meu sogro,
animadamente.
A torre era montada com taças coupe, também conhecida como
Maria Antonietta ou seio de princesa, uma vez que alguns historiadores
diziam que a peça foi moldada nos seios da rainha. Se aquilo era verdade ou
não, pouco importava. A tradição da fonte de champanhe tornava tudo
ainda mais especial e mágico.
Nós dois nos posicionamos diante da torre de taças, que por sinal
estava repleta delas, e despejamos o champanhe na taça mais alta que, ao
transbordar, enchia as de baixo, e assim, sucessivamente, criando um efeito
magnífico. Nosso gesto foi acompanhado pelas palmas e gritos de alegria
de todos os presentes.
Jean-Luc e eu nos entreolhamos em um momento de cumplicidade
mútua, e encerramos a tradição bebendo um gole da bebida diretamente na
taça do topo, tomando o devido cuidado para não desmantelar a torre
cuidadosamente criada.
Batemos palmas, sorrimos um para o outro, e nos beijamos
apaixonadamente.
— L’amour de ma vie... — Sussurrei contra os lábios dele. — Te
amo!
— Eu também amo você, mon turquoise.
O segundo beijo durou tanto, que nós dois ficamos sem fôlego. A
nossa empolgação foi tanta que esbarramos na mesa, fazendo com que as
taças tremessem e caíssem umas sobre as outras, derramando champanhe na
fina toalha bordada de linho.
— Como vocês são desastrados. — Camille balançou a cabeça com
um ar zombeteiro.
— Não fique com inveja, frangine — comentou Cédric, de forma
despretensiosa, usando uma gíria usada em referência à irmã. — Logo
também chegará sua vez.
— Não estou achando a menor graça, Cédric. — Ela colocou as
mãos na cintura, lançando um olhar de deboche para o irmão. — Estou
solteira, mas não sozinha. E é isso, ponto final!
Nós explodimos numa gargalhada quando ela terminou de falar.
Eu guardaria aquela experiência para sempre em minha memória.
Capítulo 18

Marie-Claire

Abri meus olhos pesados de sono, em meio à claridade parcial que


fazia no quarto. Um arrepio delicioso percorreu meu corpo, ao sentir a
pressão doce e suave dos lábios grossos na pele. Eu nem precisaria virar o
rosto para saber que meu marido resolveu me acordar, cobrindo meu ombro
com beijos molhados naquela manhã de domingo.
— Acorda logo, sua dorminhoca! — disse ele, roucamente junto ao
ouvido, enquanto mordiscava o lóbulo da minha orelha. — Precisamos nos
esconder... Allez!
Soltei um arquejo, inconformada, então me virei, ficando de barriga
para cima e me espreguicei, bem devagar. Notei com admiração as marcas
de expressão no canto dos olhos dele, que esboçava um sorriso meio bobo,
e meio travesso.
— Se esconder de quem? — Franzi a testa, confusa. — Do que você
está falando, Jean?
— Minha avó convenceu a todos de que nós dois devemos seguir
outra tradição entre os recém-casados. Se chama, “la virée des mariés”.
— Eu nunca ouvi falar disso. Mas, por que a gente tem que se
esconder?
— É um ritual muito antigo, e que caiu em desuso ao longo do
tempo. A minha avó insistiu muito, e meus irmãos já estão ansiosos para me
pregar uma peça. — Ele então se levantou, vestiu um pijama, seus cabelos
negros caíam sobre a testa, o rosto ainda inchado de sono. Admirei sua
excelente forma física, e meu clitóris reagiu instantaneamente, pulsando tão
forte quanto às batidas do meu coração. — Acho melhor a gente se
apressar... Vista logo o seu robe, chérie. — Exigiu.
— Agora, eu nem sei se quero saber o que eles vão fazer com a
gente.
— Você diria algo como: “Eca, que nojo!” — disse ele, seus olhos
brilhando com prazer travesso.
— Jura? — Afastei o lençol e deslizei para fora da cama. Vesti meu
robe de seda, amarrando a faixa na cintura e me virei para ele, antes de
fazer a famigerada pergunta: — Mas você vai me contar, não vai?
Ele balançou a cabeça, trazendo uma expressão fingida de seriedade
no rosto.
— Não quero estragar a surpresa de madame Yvonne, chérie.
— Não gosto de surpresas, ainda mais quando elas não passam de
pegadinhas. — Decidi ocupar uma das poltronas estofadas, e cruzei as
pernas longas e bem torneadas, decidida a continuar ali até estar
suficientemente convencida. — Eu não vou a lugar algum, Jean. Não vou
me esconder de ninguém e ponto final.
Engoli em seco, quando Jean cruzou a pequena distância, me puxou
pelo braço e me forçou a ficar de pé, antes de me carregar nos ombros
largos.
— Você é bem teimosa! Ça alors! — Ele se exasperou, com a voz
grave, enquanto andava apressadamente até a porta. Eu quase gritei,
pensando em mandá-lo parar e me colocar de volta no chão, mas ele logo
emendou: — Quer mesmo saber? — perguntou, respondendo a própria
pergunta, logo em seguida. — Eles vão invadir o nosso quarto e depois nos
forçarão a engolir alguma mistura nojenta que fizeram, usando bebidas e as
sobras do jantar. E, detalhe: Esta “iguaria” é servida em um pot de
chambre...
— Um penico? — perguntei, a voz saiu abafada por estar de cabeça
para baixo, o meu coração batia alto contra os tímpanos. — Você só pode
estar brincando!
O riso alto do meu marido ecoou pelos corredores do Château de
Lumière.
O grupo àquela altura já tinha escutado o som e não nos daria a
menor chance de procurar um lugar para se esconder.
— Eles vão nos alcançar! — Minha voz sai esganiçada, a garganta
seca ansiava por um longo gole de água. — Pretende me carregar o
caminho todo? Mon Dieu! — Suspirei de alívio, quando Jean parou de
andar e me pôs cuidadosamente no chão.
— Agora me escute — pediu ele, em voz baixa. — A tradição diz
que devemos ficar bem escondidos, mas não ao ponto de nunca sermos
encontrados.
Passei as mãos pelos cabelos já desgrenhados, e o encarei um tanto
sem jeito.
— Você já tem algum lugar em mente?
Ele sorriu, ao estender a mão para mim. E, juntos, nós corremos o
mais rápido que pudemos pelas dependências da propriedade luxuosa. Só
paramos de correr, quando alcançamos a outra ala do castelo, a parte mais
antiga, onde ficava a Sala do Calabouço.
Havia uma escultura na rocha, que possibilitava a entrada para uma
passagem subterrânea.
Nós dois descemos a escada de pedra, atravessamos o corredor mal-
iluminado e paramos diante de uma porta de madeira maciça.
Cruzei os braços sobre o peito, instintivamente, assim que um
arrepio gelado percorreu ao longo da espinha.
No fundo, eu estava apavorada com a possibilidade de ter que tomar
alguma sopa, diretamente do tal pot de chambre. Por mais que fosse uma
peça requintada, nada mudava o fato de ela ter sido usada por sabe-se lá
quantos antepassados dele, antes de ser destinada àquele ritual de
casamento bizarro.
Um penico, ainda que um penico nobre, ainda era um penico.
— Tem certeza de que eles não vão conseguir nos achar?
— Nós vamos ficar escondidos aqui o tempo que for necessário,
mas os meus irmãos conhecem tão bem o château quanto eu.
Passei a mão pelo pescoço e fiz uma careta de nojo.
— Não esperava comer algo tão inusitado no café da manhã...
— Acredite, não será tão ruim assim, mon turquoise. — Jean me
puxou para junto de si e me beijou daquele jeito duro, que me arrancava o
fôlego. De repente, senti suas mãos grossas desamarrando o robe, mas eu o
detive e me afastei, com certa relutância.
— Ainda estou um pouco atordoada com tudo isso, entende?
— Lamento te dizer isso, mas temos mesmo que consumir a “sopa
no penico” — disse ele, fazendo as aspas no ar com os dedos. A expressão
solene logo se tornou zombeteira, quando ele piscou para mim, e
completou: — Mas é por uma boa causa, mon amour...
Por uma boa causa? Eu achava aquilo de um mau gosto
inacreditável.
Apoiei as mãos na cintura, em postura desafiadora, uma sobrancelha
se arqueou, enquanto exibia um sorriso incrédulo.
— Assim, só por curiosidade mesmo, mas que boa causa seria essa?
— Este ritual é muito importante, pois serve para reanimar os
noivos após a noite de núpcias... — explicou, ao me puxar gentilmente para
junto de si. Havia um brilho de malícia nos olhos. Não resisti e grunhi de
prazer, ao sentir aquelas mãos fortes deslizando por minha cintura, ávidas
por penetrar na abertura do robe de seda. — E, cá entre nós, precisamos
mesmo recarregar as baterias... Não acha?
— Aqui não, Jean — Aquele era um protesto esfarrapado e meio
mentiroso.
Não sei como os meus pés se moveram, andando para trás tão
rapidamente até sentir as minhas costas pressionadas contra a parede mais
próxima. Soltei um gemido, assim que ele investiu o quadril contra o meu,
de modo que eu sentisse seu pau rijo e grosso, pulsando no mesmo ritmo
dos meus batimentos cardíacos.
— Aqui sim, chérie. — Jean rosnou, impaciente. Àquela altura, os
meus mamilos já estavam eriçados, e ofeguei debilmente, quando senti uma
de suas mãos puxando minha perna para cima, o que me fez sustentá-la ao
redor da cintura dele.
Eu me segurava a Jean com tanta força a ponto de os dedos
afundarem na carne macia do ombro. Um grito seco escapou dos lábios,
assim que senti seus dedos escorregando para dentro da boceta recém-
depilada. Foi então que eu me dei conta de que havia me esquecido de
colocar a calcinha.
Ofeguei, assim que meu marido enfiou dois dedos ali de uma vez,
conferindo se eu estava encharcada o suficiente para aguentar a invasão
deliciosa do pau dele.
— Me fode bem gostoso, Jean... Agora mesmo! — Eu praticamente
implorei, ronronando como uma gata no cio.
Um arquejo doce e erótico saiu dos meus lábios, quando ele
pressionou a boca na curvatura do meu pescoço, marcando a pele quente
com chupões e subindo por toda a lateral dele até alcançar a orelha. Depois,
ele fez o caminho inverso, percorrendo a bochecha até encontrar minha
boca ligeiramente entreaberta.
O único som que prevalecia naquela sala subterrânea era o da nossa
respiração agitada, mesclada ao barulho do beijo, conforme nossas línguas,
mornas e úmidas, se esfregavam uma na outra, em uma dança lenta e
erótica.
Nós estávamos mesmo prestes a nos deixar levar pelo instinto
primitivo, transando ali mesmo, de pé, numa câmara fria e mal iluminada.
Jean me segurava pela bunda e pincelou a glande por toda a vulva
úmida e quente, só para prolongar aquela tortura deliciosa. Arfei
debilmente, quanto ele penetrou de uma só vez.
Meu coração quase saiu pela boca, ao ouvir um murmúrio baixo de
satisfação, que era quase um rosnado.
— Toda minha, só minha! — O timbre rouco de sua voz penetrava
por cada poro da minha pele, os olhos castanhos vidrados de excitação
estavam fixos em mim.
Era mais do que possessividade. Eles expressavam sua devoção por
mim.
Respirei fundo e pesadamente, com o suor escorrendo pelo rosto, à
medida que o pau entrava e saía de dentro de mim. Mas ele gradualmente
diminuiu o ritmo, talvez imaginando que seria incapaz de retardar a
ejaculação, enquanto gemia bem gostoso ao meu ouvindo, dizendo o quanto
pertencíamos um ao outro.
Aquela voz bem rouca e grave alimentava as minhas fantasias, o
meu corpo começou a flutuar, com o prazer evoluindo numa crescente, até
não poder aguentar mais. Meus dedos afundaram nos cabelos dele,
puxando-os com força, enquanto os espasmos me sacudiam, violentamente.
Joguei a cabeça para trás, gritando o nome dele, completamente em
êxtase, ao mesmo tempo em que Jean esporrava até a última gota de sêmen.
Nós dois permanecemos em silêncio, ambos suados e ofegantes, a
respiração pesada e irregular dele se mesclava à minha, nosso coração batia
num só ritmo, ao mesmo tempo forte e descompassado, que era como
música para os meus ouvidos.
De repente, nós ouvimos passos na escada, seguido por um estalido
na maçaneta. A pesada porta de carvalho se abriu com um rangido,
revelando a silhueta de três pessoas: meus cunhados e a minha sogra.
Aquela câmara cheirava fortemente a sexo. E para completar, de
onde eles estavam era possível ver a bunda de Jean toda exposta, a calça
abaixada até o joelho. E a minha pose de frango de padaria, com as pernas
bem abertas só piorava tudo.
— Oh là là! Quelle surprise! — Camille quebrou o silêncio
constrangedor, enquanto segurava cuidadosamente o pot de chambre com as
duas mãos.
Meu marido rapidamente puxou sua calça de flanela para cima,
praguejando.
— Putain de bordel de merde!
— Mon Dieu! — Margot sussurrou e cobriu a boca, horrorizada.
— Não esperava ter a visão da porra da bunda do meu irmão... —
resmungou Cédric, balançando a cabeça. — Isso que eu chamo de péssima
forma de começar o dia.
Camille não se conteve e caiu na gargalhada, enquanto Jean e eu
tentávamos nos recompor, visivelmente sem graça.
— Sinto muito... — Foi tudo o que consegui dizer num tom quase
inaudível.
Tudo o que eu mais queria era enfiar minha cabeça no buraco mais
próximo e sumir.
— Da próxima vez, por favor, batam na porta, ao invés de irem
entrando assim, ok? — E dizendo isso, Jean passou o braço ao redor dos
meus ombros, e me estreitou de encontro ao peito, de forma protetora. —
Me desculpe pelo constrangimento, Marie — sussurrou, enquanto
acariciava meu cabelo lentamente. — A culpa foi toda minha.
— Na verdade, a culpa foi nossa, mas não vamos falar mais sobre
isso, ok? — Camille se aproximou, segurando o pot de chambre, como se
ele fosse uma relíquia. — Achamos que vocês devem estar famintos,
pobrezinhos.
— Seu sogro nos ajudou a preparar uma sopa deliciosa, Jean! —
disse Cédric, caindo na gargalhada.
— Saber que o meu pai cozinhou não muda em nada o fato de ela
ser servida em um penico, Cédric — retruquei cruzando os braços,
claramente inconformada.
— Quanto às regras, a noiva bebe primeiro, depois o noivo e, por
fim, os convidados presentes. — Margot contemporizou, ao cruzar os
braços sobre o peito.
— Gostaria de fazer as honras, mon chéri? — Camille direcionou a
pergunta para o irmão, erguendo a sobrancelha e sorrindo de maneira
sugestiva.
Jean-Luc pegou a concha, mexeu o caldo espesso e escuro, e antes
mesmo que eu pudesse protestar, já foi logo estendendo o utensílio cheio
em minha direção.
— Abra essa boquinha linda. — Ordenou meu marido, enquanto
segurava meu queixo com a mão livre. Eu não vi outra saída além de abrir
os lábios e sorver aquela gororoba, engolindo-a pela metade, e fazendo uma
careta, sem tirar os olhos dele. — Ça a été?
Fiz que sim com a cabeça, passando a língua suavemente em meus
lábios, para saborear o restinho da sopa que escorreu pelo canto da boca.
O sabor único e a textura suculenta me deixaram verdadeiramente
satisfeita.
— Mon Dieu, c’était délicieux!
— Seu pai foi muito bonzinho com você... — Camille comentou,
com uma expressão zombeteira no rosto. — Porque se dependesse da nossa
criatividade, a mistura resultante das sobras do casamento seria a coisa mais
intragável do planeta.
— Agora é a minha vez, chérie... — Jean abriu bem a boca,
esperando que eu repetisse o seu gesto. Então, mergulhei a concha de prata
no penico, enchendo-a bem antes de estendê-la na direção dele, que
saboreou o caldo, fechando os olhos e murmurando algo ininteligível.
Quando voltou a falar, era como se sussurrasse: — Ficou muito bom
mesmo!
— Também quero experimentar! — Camille saltitou toda
entusiasmada.
— Agora eu fiquei com água na boca, acredita? — admitiu Cédric,
sorrindo.
No entanto, quando os dois avançaram em nossa direção, Jean
correu para o lado oposto, segurando o pot de chambre nas mãos, agindo
como uma criança travessa.
Margot e eu caímos na gargalhada, diante daquela cena divertida.
Capítulo 19

Marie-Claire

Saí atrás de Jean, pisando duro no assoalho de pedra, bastante


inconformada com a recusa dele em me incluir no time que escalou junto
com alguns convidados. A vasta propriedade abrigava instalações de lazer
como piscina, um campo de tênis e de futebol.
— Você está sendo machista, me excluindo desse jeito. — Tentei
puxar o braço dele para fazê-lo parar de andar, mas ele se esquivou e
continuou andando até a sala de estar. — Eu já disse que sei jogar futebol.
Merde!
— Nem pensar! Meus amigos têm um estilo de jogo mais agressivo.
Você, no máximo, pode assistir à partida, como se estivesse no estádio
torcendo pelo PSG[10].
— Você não percebe o absurdo que está dizendo? — perguntei
indignada, mas não dei tempo para ele responder, porque àquela altura eu já
estava espumando de raiva. — Eu era a capitã do meu time, jogava no
ataque e no meio-campo, participei de vários torneios de futebol juvenil
durante o Liceu. Não acho justo que me deixe de fora.
Ele finalmente parou de andar e se virou, ficando de frente para
mim.
— E ser a única mulher do time? Querida, você só pode estar
brincando.
Com os braços cruzados e o rosto impassível, eu dei de ombros.
— E daí? Eu não vejo problema algum nisso.
— Se está tão disposta a praticar um esporte, por que não chama
Camille? E juntas jogam uma partida de tênis. — Seu rosto exibiu uma leve
expressão de deboche.
— A essa altura, ela e o namorado estão percorrendo os vinhedos...
— Então dei mais um passo, e sorri para ele com uma expressão astuta. —
Se acha que vai me jogar para escanteio você está muito enganado.
— Você não vai ao jogo e ponto final!
— O que está acontecendo aqui? — Reconheci a voz da minha
cunhada, Camille. Quando eu me virei, notei as feições dela se contraírem,
confusa. — Ouvi mencionarem o meu nome... O que houve?
— Achei que estava passeando com seu novo namorado.
— Pierre desistiu de ir, porque Cédric o chamou para integrar o time
dele.
— Mas que excelente notícia! — Jean parecia visivelmente aliviado
por finalmente ter encontrado uma forma de se livrar de mim. — Vocês
podem se divertir, juntas. Agora eu preciso ir. Tenho que me reunir com o
pessoal no campo. Au revoir!
Ele sorriu de modo forçado, se virou e saiu praticamente correndo.
— Seu irmão não quer me ver no campo. — Cruzei os braços, com
a testa franzida.
— Mas por que Jean te impediria de assistir à partida? — Camille
piscou várias vezes, mas logo sua expressão mudou quando esbocei um
sorriso maroto nos lábios. — Quem diria que uma menina franzina e tão
delicada, jogaria bola nas aulas de educação física? — Ela então bateu
palmas, animadamente. — Agora que eu quero ver!
— Sou uma esportista nata, chéri. — Eu imediatamente estufei o
peito, orgulhosa. — E você vai acompanhar na primeira fileira, como se
estivesse em um desfile.
— Mas se pretende se juntar a eles precisa de um bom disfarce.
Conheço o temperamento de Jean e sei que vai ficar furioso se te
reconhecer. Mas deixe isso comigo, chéri!
Minutos depois, eu segui sozinha para o campo, usando chuteiras,
um par de meias, aquele calção bem largo até o joelho, além da camiseta
surrada e uma faixa que servia para comprimir os seios. Camille conseguiu
até mesmo um bigode postiço e uma peruca revelando um corte de cabelo
muito masculino, para não dar a menor margem para dúvida.
Ela só chegaria ao local, quando a partida começasse, para não
levantar suspeitas. Quando finalmente avistei o grupo numeroso, que estava
reunido no meio do campo, eu me aproximei devagar, tentando limpar a
garganta para impostar bem a voz.
— Será que dá para incluir mais um neste jogo?
Os homens se viraram e passaram a me encarar fixamente, tanto
pela curiosidade quanto pelo desdém, afinal, eu não passava de um rapaz
alto, de canela fina e com um corpo franzino de quem acabou de sair da
adolescência.
— Qual é o seu nome, garoto? — Escutei a voz rouca e marcante do
meu marido, que se materializou repentinamente ao meu lado.
— Eu me chamo Louis. — Aquele foi o primeiro nome que me veio
à mente.
— Vá procurar sua turma! — Um deles gritou, em tom agressivo.
Eu me virei na direção daquela voz grossa. Eu não me lembrava de tê-lo
visto na recepção de casamento, mas possivelmente era algum gestor da
SVL Groupe ou talvez da EGO Media.
Cuspi no chão, antes de responder, de forma petulante:
— Engraçado, eu não estou vendo nenhum garoto por aqui. — Olhei
para os lados só para reforçar a ironia. Alguns homens riram, enquanto
outros continuaram sérios, observando qual seria a reação do convidado.
— Você não passa de um moleque insolente, que não provou a que
veio ainda. — Ele quase rosnou, então puxou a bola das mãos do colega,
com rapidez, e o jogou em minha direção, mas eu não pensei duas vezes:
matei a bola no peito e sai fazendo embaixadinhas, alternando de um pé
para o outro, sob um burburinho animado entre aqueles que pareciam ter
duvidado da minha capacidade.
No entanto, a melhor parte foi, sem dúvida, observar Jean pelo canto
do olho e o flagrar me olhando de cima a baixo, com as mãos apoiadas na
cintura, e a postura imponente de quem reconhecia que estava diante de um
adversário à altura.
De repente, Cédric se adiantou em minha direção, e deu um tapa
amigável no ombro.
— Estou realmente impressionado, garoto! — Ele estreitou os olhos
para mim e completou: — Oh, là là! Parece que hoje é seu dia de sorte. O
meu time estava desfalcado até você chegar. — Depois, esfregou o queixo,
pensativo. —Você trabalha aqui no château?
— Uhum... — Confirmei, ciente de que não havia mais volta.
— Très bien. — Ele sorriu satisfeito, e bateu palmas para chamar a
atenção de todos. — Chega de conversa, pessoal! C’est parti?
— Vamos ganhar de goleada! — Foi a vez de Jean vibrar,
convencido.
Os minutos seguintes foram marcados por uma sucessão de dribles,
passes longos, passes com a parte externa do pé e chutes, bem como o
chamado l'étoile — afastamento ao longo das pontas de uma estrela
imaginada. Mas a situação chegou ao limite, quando a marcação se tornou
rígida demais, os caras avançavam contra mim e faziam muitas faltas,
mesmo na entrada da área, tornando violenta a disputa pela posse da bola.
Eu estava exausta demais para me queixar com a arbitragem.
Sem contar que eles não faziam ideia de quem eu era de verdade.
Quando eu finalmente fiquei cara a cara com o goleiro, chutei bem
forte, mas ele espalmou a bola para escanteio. No minuto seguinte, Cédric
se preparou para a cobrança, a defesa do time de Jean falhou porque eu me
adiantei logo, subindo mais alto do que todos eles, e cabeceei com precisão,
direcionando a bola para dentro da rede.
Gooool. Gooool. Gooool!
Saí gritando a plenos pulmões pelo campo, e me emocionei, quando
os jogadores do meu time me abraçaram.
No segundo tempo, eu dominei a bola rebatida por Cédric, e mesmo
pressionada pela marcação, continuei avançando em direção à área
adversária. Quando me preparava para mandar um chute potente, fui
surpreendida por Jean que esticou a perna para me derrubar, cometendo a
falta.
Caí praticamente de barriga para baixo, meio atordoada, mas de
repente vi uma silhueta familiar se materializando ao meu lado.
Meu cunhado estendeu o braço e me ajudou a levantar do chão.
— Algum problema? — Ele estreitou os olhos, preocupado.
— Non! — Eu neguei, engolindo em seco e tentei remover a grama
grudada no rosto e nos braços. — Eu estou ótimo! — Resolvi mentir, apesar
de àquela altura ter começado a sentir uma pontada no baixo ventre.
Foi uma sensação estranha, mas nada me impediria de fazer o gol de
desempate, mesmo que no último minuto. Contudo, o estrago já estava
feito, o meu rendimento caiu drasticamente na reta final da partida.
O jogo acabou empatado em 1 x 1, no tempo normal.

Voltei rapidamente para casa, afinal eu precisava tomar banho e


trocar de roupa, antes de o meu marido retornar. Já sentada na banheira, abri
o chuveiro com uma das mãos, deixando a água morna fluir diretamente
sobre a cabeça, enquanto o corpo inteiro tremia violentamente.
As dores fortes no abdômen não cessaram ao final da partida.
Uma onda de letargia se abateu sobre mim, mas peguei o sabonete e
comecei a ensaboar os seios, o pescoço, e a cintura, passando pelas costas,
pelas coxas e partes íntimas, com movimentos lentos e circulares. De
repente, notei um filete de sangue escorrendo pela perna e se diluindo na
água, o que me fez agarrar com força as laterais da banheira.
Observei a cena horrorizada, o único som que prevaleceu no
ambiente foram as batidas aceleradas do meu coração.
O sangue pingava entre as pernas, em coágulos espessos, então eu
rapidamente desliguei o chuveiro, girando o registro com a mão trêmula, e
comecei a apalpar minhas coxas à procura de algum corte ou mesmo um
arranhão, qualquer outra coisa que justificasse aquele sangramento
repentino.
— A não ser que... — Falei em voz alta, mas o resto da frase morreu
nos lábios. Sacudi a cabeça, tentando afastar os pensamentos terríveis que
assaltaram a minha mente. Toquei na barriga lisinha e dura, as lágrimas
quentes e grossas fizeram os olhos arderem, o que me obrigou a fechá-los
com força.
Tentava processar o turbilhão de sentimentos e os desdobramentos
daquela descoberta, quando senti algo agarrado à saída da vagina. Enfiei
dois dedos nela e puxei a massa disforme com o máximo de cuidado
possível. O saco gestacional e todo seu conteúdo deslizaram para fora,
incluindo o feto sem vida.
Senti minha garganta se fechando, os meus joelhos ameaçavam
ceder, mas rapidamente me recostei na parede e apoiei a mão nela, sentando
de novo na banheira.
— Não, não pode ser! — Eu me negava a aceitar o que meus olhos
presenciavam, mas estava tudo ali, na palma da minha mão. Soltei um grito
rouco de dor, inconformada por não ter sentido nenhum sintoma, nem
mesmo ganhei peso. Nada mudou.
Passei a acreditar que jamais conseguiria ter filhos.
Estava acostumada com a ausência ou irregularidade da
menstruação, e os médicos me fizeram acreditar que eu fiquei estéril. Não
houve um só dia que eu não me culpasse por ter prejudicado o meu corpo
ao ponto de a concepção ser improvável ou até mesmo impossível.
Eu sempre sonhei em ser mãe.
Aquele sonho ganhou força com a celebração do meu casamento.
Olhei para o que seria um bebê em formação, boiando no líquido
amniótico, com a respiração entrecortada pelos soluços que insistiam em
irromper da garganta de forma incontrolável.
Tomei um susto quando a porta do banheiro se abriu, mas inspirei
bem fundo, erguendo o olhar no instante em que Jean entrou de rompante.
— Escutei o seu grito e fiquei preocupado — disse ele, ao se
agachar ao lado da banheira. — O que houve, Marie?
Eu só me limitei a estender a palma da mão ensanguentada e ainda
sustentando o pequeno ser sem vida e, que até então, estava se
desenvolvendo dentro de mim.
Observei as mudanças nas feições dele, que passou da confusão,
para o receio, depois para a assimilação, e culminando em um duro choque
de realidade. Jean desabou no chão frio e passou a mão pelo cabelo liso e de
comprimento médio, soltando um profundo gemido de dor.
Quando ele se virou para me encarar de novo, uma máscara de dor e
revolta nublou suas feições, perceptivelmente.
— Tenho medo de te perguntar isso, mas... — Ele se calou por um
instante, talvez pensando na melhor maneira de formular a pergunta que
tinha em mente: — O que você está segurando nas mãos seria o nosso
bebê? — Ele apontou o dedo trêmulo para minhas mãos, e exigiu com a voz
alterada. — Responda de uma vez, Marie!
A expressão nos olhos dele me fez sentir um calafrio na espinha.
Sequer me passou pela cabeça que talvez ele não quisesse ter filhos.
Minha respiração ficou irregular, e me debrucei na borda da
banheira como um animal acuado, ficando de costas para ele, e me
contorcendo de dor. Mas aquela não era uma dor qualquer. Era a dor mais
dilacerante de todas, porque atingia diretamente na alma.
— Ele... — Jean voltou a falar, mas a voz falhou, e lentamente virei
a cabeça para encará-lo. Uma lágrima desceu solitária pelo belo rosto. —
Ele estava dentro de você este tempo todo? — Eu só me limitei a confirmar
as suspeitas dele com um gesto de cabeça, e os ombros encolhidos, sentindo
o peso daquela revelação aterrorizante.
De repente, Jean me puxou para junto de si, e estreitou meu corpo
nu e encharcado de encontro ao peito largo.
Caí num choro convulso, os soluços irrompiam da garganta,
enquanto me agarrava a ele com o máximo de força possível. Eu ainda me
sentia terrivelmente culpada pela gravidez ter sido interrompida.
— Me desculpe... — Eu soluçava e falava as palavras com
dificuldade. — Mas eu não desconfiei de nada. Eu juro! — Dei livre curso
às lágrimas, uma sensação de completo desamparo se abateu sobre mim
com a força de um tsunami.
— Shhh, não fale mais nada, amour. Tudo vai ficar bem. Você vai
ver.
O que eu fiz de errado? Será que eu não sou digna de ser mãe?
Aquele pensamento me devastou mais do que imaginei ser possível.
Parei de chorar, repentinamente, e levantei meu rosto banhado em
lágrimas, tomada pelo mais profundo remorso.
Não achava justo esconder o que tinha feito horas atrás.
— Se eu tivesse feito o que me pediu, talvez nada disso tivesse
acontecido... — confessei, com voz entrecortada pelos soluços, cada vez
mais intensos e fortes.
— Do que está falando, Marie? — Ele franziu a testa, confuso.
— Eu me infiltrei entre os jogadores e participei da partida. — Eu
engoli em seco, com o coração batendo descompassado no peito e
acrescentei: — Eu era o Louis.
— Depois falamos sobre isso, ok? — Um longo suspiro de
reprovação escapou dos lábios carnudos, e ele se colocou de pé, antes de
pegar o meu roupão. — Eu vou te levar para o pronto-socorro para te
examinarem.
Observei com admiração meu marido colocar uma toalha em volta
do meu cabelo úmido, em seguida me ajudou a vestir o roupão, e ainda me
carregou no colo. Uma vez no quarto, ele pegou algumas roupas limpas, e
ainda me fez sentar diante da penteadeira para secar os cabelos com o
auxílio de um secador.
Um silêncio pesado se fez presente, mas resolvi quebrá-lo de uma
vez por todas.
— Os médicos me disseram que eu não poderia engravidar, por
causa do impacto da anorexia em meu organismo... Eu estava obcecada em
controlar meu peso, fiz muitas coisas mesmo para emagrecer...
— Mas de alguma maneira você conseguiu engravidar. — Ele então
se ajoelhou ao meu lado, segurou minha mão e a beijou suavemente. —
Talvez, o seu desejo de ser mãe foi mais forte do que tudo.
Eu tentei sorrir, mas meus lábios travaram numa linha dura.
Jean estava sendo tão cuidadoso comigo, sendo que eu nem merecia.
Ainda me sentia culpada por ter agido de maneira inconsequente, ao jogar
aquela partida, culminando em um aborto espontâneo.
Uma vez no hospital de Aix-en-Provence, no coração da região
Provençal, passei pela consulta médica, e posteriormente pela curetagem,
para retirar qualquer resíduo que tenha ficado da concepção.
O médico só permitiu a entrada do meu marido após o
procedimento.
— Eu nem suspeitava de uma gravidez, doutor. Meu corpo sempre
foi magro e não apresentei nenhum sintoma. — Eu me esforçava muito para
não cair no choro. — Cravei uma luta constante contra a bulimia e anorexia
há mais de três anos, e apesar de ter conseguido me alimentar melhor, eu já
esperava ter alguma dificuldade para engravidar.
— Foi por isso que não usou nenhum método contraceptivo?
— Como nós dois éramos noivos, a gente acabou se descuidando.
— Jean abriu um meio sorriso, visivelmente constrangido. Foi reconfortante
sentir o toque suave da mão dele, que sussurrou: — Bem, Marie e eu
acabamos de nos casar.
— Nossa, meus parabéns! — O médico não disfarçou a surpresa. —
Mas voltando ao assunto, a sua esposa perdeu o bebê com 11 semanas de
gestação, monsieur. Sugiro que continue o acompanhamento médico para
garantir uma futura gestação saudável e tranquila. Isto é claro, se ainda
quiserem ter filhos...
Jean e eu nos entreolhamos, confusos, sem saber o que dizer, ou
como agir.
— Vocês terão tempo de sobra para pensar. Aproveitem a lua de
mel.
A minha mão suava, quando Jean segurou nela e entrelaçou nossos
dedos, no caminho até a saída da clínica.
— Não quero que pense a respeito de ter um filho agora, ok? — Eu
estava ofegante, devido ao fato de ter prendido o ar, até então. — Eu só
tenho 20 anos, e além disso, nós acabamos de nos casar. Ainda me sinto
muito culpada pelo que aconteceu...
Ele parou de andar e se posicionou à minha frente, mas eu me
desviei dele e continuei seguindo pelo corredor até a saída da clínica.
Não pretendia tocar mais naquele assunto.
Foi doloroso demais presenciar o bebê em desenvolvimento, sendo
expulso do meu corpo, e caindo direto na palma da minha mão.
Aquela cena ficaria marcada para sempre em minha memória.
Quase soltei um grito, quando senti puxarem o meu braço por trás.
No fundo, eu só desejava sentir aqueles braços fortes me
envolvendo em um longo abraço, o colo subia e descia rápido pelos soluços
que me subiam à garganta, de forma incontrolável. Caí num choro convulso
por algum tempo, mas me afastei um pouco e respirei bem fundo, cada vez
mais decidida a não vivenciar aquela perda de novo.
— Eu tenho muito medo de... — Eu me calei, quando ele encostou o
dedo nos lábios e murmurou: “Shh”.
— Eu não posso me colocar no seu lugar, mas me solidarizo com
sua dor. — Então, ele fez uma pausa, olhando bem no fundo dos meus
olhos, e disse em seguida: — Aconteceu porque tinha que acontecer. Não
seja tão dura consigo mesma. Onde está aquela mulher destemida, que sabe
jogar futebol pra caralho? — Até ri um pouco diante de seu último
comentário, embora ainda carregasse uma profunda tristeza nas feições.
Meu coração quase parou quando ele voltou a falar, com a voz
rouca:
— E nada nos impede de quem sabe tentar, futuramente, mas do
jeito certo.
Notei um brilho diferente emanando nos olhos castanhos. Parecia
que as lágrimas cintilaram por alguns segundos, mas ele piscou
rapidamente, visando afastá-las, talvez na tentativa de disfarçar as emoções
conflitantes.
Será que Jean estava dividido entre querer, ou não, ser pai?
Capítulo 20

Jean-Luc

1 ano e meio depois...

Removi lentamente as peças de roupa, um arrepio subiu ao longo da


espinha assim que pisei no chão gelado do banheiro com os pés descalços.
Então, abri o chuveiro, permitindo que a água morna caísse direto sobre
minha cabeça.
Espalhei um pouco de shampoo pelo cabelo, massageando os fios de
modo brusco, e depois ensaboei cada parte do corpo, enxaguando e
tornando a me ensaboar, mantendo a cabeça jogada para trás a todo instante,
enquanto uma mistura de espuma e água corrente escorria intensamente
pelo meu rosto.
Honestamente, eu não acreditava em casamentos, mas a ideia do
divórcio também não me agradava em nada. Havia os riscos financeiros,
sem contar o desgaste mental que um processo litigioso acarretava junto a
um tribunal, nos casos de partilha de bens e guarda dos filhos. Filhos.
Em pensar que jamais me passou pela cabeça ser pai. Mas, no
fundo, eu sabia que algo dentro de mim havia mudado, desde o dia em que
vi Marie prostrada no chão do banheiro do château, devastada pela perda
precoce do bebê que nenhum de nós dois esperava ter tão cedo.
Ter presenciado a minha esposa entregue a um estado de extrema
fragilidade emocional, só fez aflorar aquele instinto feroz de proteção. Só
que agora eu entendia que era bem mais do que isso. Vê-la naquele estado
me fez muito mal; quase custou minha sanidade.
Eu sempre fui um homem que evitava lidar com as próprias
emoções, e mais ainda com as de outra pessoa. Mas, naquele dia em
específico, eu só queria expurgar toda dor que ela sentia, transferindo-a
totalmente para mim, o que era praticamente impossível.
Senti uma espécie de estremecimento, como seu o meu corpo
quisesse sinalizar algo que o meu consciente ainda não conseguia processar.
A quem eu estava tentando enganar, afinal?
Eu me apaixonei pela única mulher por quem não deveria sentir
absolutamente nada; A mulher com quem me casei já pensando em me
separar; A mulher que serviria apenas como esposa troféu; A mulher que
me fez usar um bracelete ridículo — e indestrutível — da Cartier; A mulher
que, por algumas semanas, carregou um filho meu no ventre.
Quatro vezes seguidas.
O primeiro bisneto que Yvonne tanto pediu, nos raros momentos de
lucidez, parecia um sonho distante. Putain!
Jamais senti algo tão intenso, assim, por nenhuma outra uma mulher
antes.
Era visceral demais, profundo demais, íntimo demais. Aquele
sentimento despertou em mim um senso excepcionalmente forte de dever, o
que me levou a tirar uma licença temporária do cargo de CEO, para que de
alguma forma, eu pudesse ajudá-la a passar por todo turbilhão de
tratamentos e perdas gestacionais consecutivas.
Durante praticamente o último ano e meio, minha mulher passou por
muitas idas e vindas com especialistas, que prescreveram uma medicação
específica para induzir a ovulação, aumentando assim as chances de uma
gravidez natural. Mas apesar de contar com acompanhamento psicológico,
Marie decidiu recuar, colocando o seu maior sonho em pausa.
Por tempo indeterminado.
O chuveiro continuava ligado e a água caía sobre mim, enquanto
tentava assimilar o turbilhão de sentimentos conflitantes que se digladiavam
entre si, numa disputa tola em que não havia vencedores.
Justo eu que achava que estava no controle de tudo. Eu estava
fodido.
Fechei o registro do chuveiro, abri a porta do box, em seguida puxei
uma tolha, antes de prendê-la à cintura. Notei meu bracelete de ouro maciço
e cravejada de diamantes, cintilando na altura do pulso direito, mesmo à luz
ténue do ambiente.
A pulseira Cartier Love, também chamada de “a algema moderna
do amor”, foi projetada por um joalheiro francês, como um símbolo de
compromisso entre os casais apaixonados. A peça só podia ser retirada com
a ajuda de outra pessoa, utilizando uma chave de fenda específica que
acompanhava a joia.
Marie-Claire e eu combinamos de guardar a chave, separadamente,
por questões de segurança, pois apenas um de nós podia abrir o mecanismo
do bracelete do outro. Em outras palavras: ela podia abrir o meu, mas eu
não podia abrir o dela. E vice-versa.
Decidi tomar uma dose de uísque, enquanto aguardava por ela, que
preferiu ficar sozinha em uma suíte vizinha, porque estava nervosa demais
com o evento da noite, no Royal Albert Hall. Ela estava concorrendo ao
prêmio de Modelo do Ano, no Fashion Awards 2018.
Faz alguns meses que seu novo agente, Bob Donovan, contratou um
guarda-costas, porque ela se sentia muito exposta pela imprensa, desde os
consecutivos abortos espontâneos. Mas, a simples ideia de ver um estranho
acompanhando minha mulher nas viagens a trabalho só me deixou ainda
mais revoltado.
Não tive outra escolha além de remanejar minha agenda de
compromissos, garantindo minha presença naquela premiação.
De repente, uma batida na porta do quarto me trouxe de volta à
realidade. Senti uma pontada aguda de felicidade, quando me deparei com
minha mulher toda deslumbrante.
Deixei os meus olhos passearem pelo corpo sexy, perfeitamente
emoldurado por um vestido longo verde-esmeralda da Valentino Haute
Couture.
O look exclusivo possuía um decote em forma de coração, além da
fenda generosa e um grande laço preso à cintura. Os cabelos compridos e
partidos ao meio, caíam sobre as costas, deixando colo e pescoço à mostra.
Ela ainda ostentava acessórios brilhantes, sapatos pontiagudos e uma bolsa
de noite prateada.
Meu pau começou a pulsar e a inchar, pressionando a cueca.
Não pensei duas vezes e a puxei logo para dentro do quarto, e fechei
a porta com um pé só, antes de pressioná-la contra a parede mais próxima.
Meus lábios esmagaram aquela boca macia de um jeito duro e possessivo,
minha língua abria um caminho no interior quente e úmido, provando o
hálito doce e sugando tudo para mim, quase sem fôlego.
As minhas mãos percorreram avidamente o corpo dela de cima a
baixo, desde os ombros, passando pelos braços e descendo pelas costelas e
sua cintura fina, até espalmar a bunda, com força. Marie-Claire ofegou em
resposta ao toque ousado, pressionando os dedos ao longo das minhas
costas, enquanto arqueava o quadril de encontro ao meu, num claro sinal de
que desejava se se submeter aos próprios instintos.
O cheiro dela ainda me levaria à loucura. Aquele odor de fêmea
preenchia as minhas narinas, a cada vez que respirava fundo e pesadamente
contra a pele macia.
— Não me diga que está no período fértil? — perguntei, me
afastando um pouco para encará-la nos olhos, o meu coração batia depressa,
cheio de expectativas.
Marie passou a medir a temperatura corporal todas as manhãs, e
registrava os estágios da ovulação, muco cervical, além da duração do ciclo,
em um aplicativo.
Tivemos relações dois dias antes da ovulação e dois dias depois.
— Sim, mas isso não muda nada, Jean. Talvez seja melhor desistir...
— E me impedir de fazer um filho em você? — A declaração
inesperada causou um abalo em meu corpo, o levando a um profundo e
indescritível estremecimento.
— Acha que podemos tentar de novo?
— Quantas vezes for preciso! — Assegurei, com a voz rouca e
carregada de emoção. — Você sabe que eu sempre consigo tudo o que
quero.
— Mas eu pensei que não desejava realmente ser pai... — Havia
incerteza na voz dela, e meu coração parou de bater por uma fração de
segundo, até voltar a acelerar.
Eu precisava agir, e rápido. Segurei o rosto dela e reivindiquei seus
lábios com um beijo duro e implacável, a minha língua exigente invadia o
interior úmido, saboreando a textura e o doce sabor deles, como alguém
sedento em encontrar água no deserto. Grunhi de satisfação, ao arrancar um
gemido de sua garganta, não lhe dando outra opção além de corresponder
com a mesma impetuosidade.
De repente, senti que ela estremeceu de leve antes de se afastar, e
me encarou, com um brilho intrigado nos olhos.
— A gente tem um evento para ir agora, amor. Não temos tempo
para isso.
Inclinei minha cabeça para trás, rindo bem alto.
— Vai ser aqui e agora, chérie. — Exigi, deixando escapar uma leve
inflexão de impaciência na voz. — Quero sentir o meu pau socando sua
boceta gostosa até gozar, esporrando nela até a última gota. Assim, todos
poderão sentir o meu cheiro impregnado em você.
— Eu mesma não seria capaz de esperar nem mais um minuto.
Grunhi, satisfeito, quando Marie enroscou as pernas ao redor da
minha cintura. Então, eu a carreguei nos braços e segui até a poltrona mais
próxima.
Eu me sentei numa postura relaxada, após baixar a calça e a cueca
boxer, e observei minha mulher prender os dedos nas laterais da calcinha de
renda para baixá-la, com os olhos semicerrados. Ri muito quando ela se
contorceu toda para remover a peça, sem amassar seu vestido de noite.
A minha respiração saía ofegante, à medida que aumentava o
estímulo em toda a extensão do pau, e depois o torci para cima e para baixo.
Relaxei ainda mais no sofá, a boca ligeiramente entreaberta proferia
o nome dela, em um sussurro rouco.
Quando Marie finalmente subiu em meu colo, abriu mais as pernas,
e apontou a glande em direção à vagina quente e úmida. Deixei escapar um
gemido estrangulado ao sentir as paredes internas se contraindo
involuntariamente, resistindo à invasão do meu pau.
Agarrei sua bunda gostosa, e forcei seu quadril para baixo, me
enterrando profundamente nela. Eu não resisti e fechei minha mão ao redor
do pescoço delicado, incapaz de refrear a vontade de apertá-lo de modo
firme, enquanto rugia de prazer.
— Putain, amour, que delícia, assim eu vou gozar rápido... —
murmurei, as minhas mãos suavam, enquanto segurava bem firme a cintura
esguia, realizando os movimentos de subida e de descida, fodendo a boceta
dela, sem delicadeza alguma.
Os seios pequenos e firmes já ameaçavam saltar pelo decote do
vestido, à medida que o meu pau entrava e saía pelo interior quente e
úmido, exigindo de mim um esforço quase sobre-humano para não gozar
antes da hora. Suor brotava intensamente por todos os poros, a respiração
saía irregular a cada segundo, enquanto meu corpo era varrido por um
frenesi alucinante.
— Não vou aguentar por muito tempo, Jean. — Notei os primeiros
espasmos sacudirem o corpo dela, um claro prenúncio do orgasmo.
Não demorou muito para Marie-Claire gozar, estremecendo sobre
mim, e gemendo bem alto o meu nome. Na sequência, eu explodi dentro de
sua boceta, soltando um urro grave, à medida que um jato quente e longo a
preenchia, tornando a concepção possível, mais uma vez.
Esperei os batimentos cardíacos dela se normalizarem, antes de
segurar seu belo rosto entre as mãos e olhei bem no fundo dos olhos azuis-
turquesa penetrantes, tomado por uma emoção nova e indescritível.
— Você parece preocupada. — Hesitei, então decidi perguntar,
cautelosamente: — Fiz algo que te chateou, amour?
— Seja sincero, Jean. Você acha que eu engordei?
— Mas quem te disse isso? — indaguei, mas não esperei pela
resposta. — Quer saber? Deixe que falem. Eu vou preferir muito mais
quando vir aquela saliência... — Fiz um gesto eloquente com as mãos, antes
de espalmá-las na barriga dela, mesmo sob o vestido de noite. — Você
sabe...
— Saliência? Não entendi... — Piscou os olhos, parecendo confusa.
— A sua barriga vai ficar tão sexy quando conceber um filho meu...
— Não quero me iludir, achando que isso será possível algum dia.
— Nós vamos gerar um filho, juntos, não importa quanto tempo
leve.
Um sorriso despontou nos lábios carnudos, cobertos por um batom
vermelho da L’Beauté Paris. Um sorriso esperançoso entre lágrimas.
Talvez eu pudesse aprender a amá-la algum dia.
Pudesse o quê? — Censurei aquela voz interna, que me
atormentava. Mas e se eu já a amasse?

Todos os fotógrafos se voltaram para minha mulher e eu, assim que


nós pisamos no tapete vermelho da cerimônia do British Fashion Awards. O
evento acontecia no mês de dezembro e nomeava os profissionais que
fizeram a diferença na indústria da moda.
Marie concorria com outras cinco modelos ao prêmio de “Modelo
do Ano”.
Ela se adiantou até o backdrop, um tipo de painel, com o nome do
evento, que atuava como base para fotos de celebridades no tapete
vermelho. Depois, os organizadores pediram para eu me posicionar ao lado
dela, e endireitei a postura, estufando o peito e mantendo o braço
constantemente ao redor do ombro nu.
— Mais uma vez, Senhorita Leblanc! — gritou um dos fotógrafos
do evento.
— É senhora Laurent, ok? — Eu gritei de volta, corrigindo a fala
dele.
Eu mal conseguia disfarçar o orgulho por prestigiar a única mulher
que viria a amar na vida; eu diria até que passei a amá-la mais do que a mim
mesmo. Afinal, eu larguei todos os meus compromissos, peguei um avião e
vim até Londres só para estar ao lado de Marie no que poderia ser um dos
momentos mais importantes de sua carreira.
— Não se esqueça do que nós dois combinamos... — Sussurrei
rouco e suave, com os lábios bem próximos ao ouvido dela. — Seu novo
adereço está no bolso interno do paletó, só esperando o momento certo para
adornar o seu lindo pescoço.
— Não sei se tenho essa coragem toda não.
— Devia ter pensado nisso antes da fazer aquela aposta dias atrás,
amour.
Nós passamos a desafiar um ao outro, como forma de apimentar a
relação.
— Você tem me provocado desde que chegamos aqui, Jean. — A
excitação na voz era palpável. Apesar de Marie estar com os ombros para
trás, os braços ao longo do corpo, e uma perna à frente da outra, eu podia
jurar que o desejo crescia entre suas pernas, se contraindo até doer.
— Aposto que sua calcinha está bem molhada agora... — Ergui a
sobrancelha e sorri de maneira sugestiva.
Nós nos encaramos por uma fração de minuto, sem dizer uma só
palavra. Havia um brilho de desejo feroz nos olhos dela, coisa que
certamente não passaria despercebido para ninguém ali.
— Talvez eu nem seja a escolhida... — disse ela, com falsa
modéstia.
— Seria uma lástima consolá-la e ainda causar um tumulto, na
premiação. Mas tudo bem... Estou me preparando psicologicamente para
encarar este desafio.
Gostaria desesperadamente de poder fumar. No fundo, eu estava
ansioso para saber qual seria o desfecho de tudo aquilo.
Quando nós começamos a subir os degraus da casa de espetáculos,
fomos abordados por um repórter, que pediu para Marie conceder uma
entrevista, antes da cerimônia.
— Não é surpresa para ninguém que é a grande favorita ao cobiçado
prêmio de Modelo do Ano. Então, quais são as suas expectativas?
— Minhas expectativas? — Ela deu de ombros, respondendo à
pergunta dele: — Acho que são as melhores possíveis. Mas estou
concorrendo com nomes de peso, como Kayla Banks[11], Kate Seymour...
Todas elas são fortes candidatas ao prêmio.
— Está sendo bem modesta, amour. — Cochichei para ela, que
sorriu, timidamente, enquanto olhava para nossas mãos entrelaçadas.
— É notória a lenda de que monsieur Laurent só namorava modelos.
— O repórter então lançou um olhar astuto para mim. — Sendo assim, o
senhor pode nos dizer como é estar casado com uma modelo?
Não me surpreendeu em nada o rumo daquela entrevista ter mudado.
A mídia inglesa era notoriamente conhecida por seu humor ácido,
adotando uma linguagem exagerada e muitas vezes sensacionalista, mas
como um profundo conhecedor dos meios de comunicação, eu já estava
habituado a lidar com profissionais que usavam o constrangimento como
arma para manipular a opinião pública.
— Marie é absolutamente linda de morrer, e me sinto honrado em
ter sido escolhido para ser seu primeiro amor — respondi, sem deixar de
olhar para ela, que fixou seus olhos azuis-turquesa em mim, com a mesma
intensidade hipnotizante de sempre. — Estar casado é uma experiência
única e transformadora, especialmente quando se encontra a pessoa certa.
Não tenho a menor dúvida de que encontramos um no outro o complemento
perfeito. Eu quero passar o resto da minha vida ao lado dela.
Proferi a frase que relutei tanto em dizer, mas a voz soou baixa e
com a intensidade de um abalo sísmico, capaz de provocar um perceptível
tremor pelo corpo.
— Espero que não sejam um desses casais que se casam e se
separam muito rápido... — O repórter voltou a falar, em tom irônico, o que
fez meu coração disparar, o sangue fervilhava nas veias, a respiração saía
ofegante pelas narinas, o meu rosto se manteve contraído, com a mandíbula
cerrada. — Veja bem, Marie-Claire tem apenas 20 anos e toda a vida pela
frente, monsieur. Não se sente ameaçado por outros homens?
— Como eu não sentiria ciúme de alguém que é tão admirado
publicamente? — Eu ainda estava incomodado, mas me esforcei ao máximo
para não exteriorizar nada. — Apesar de minha mulher estar cercada por
outros homens igualmente bem-sucedidos, nenhum deles se atreveria a dar
em cima dela. Ninguém toca no que me pertence, entendeu?
— A confiança é a base de qualquer relacionamento. Meu marido
confia em mim tanto quanto eu confio nele. Às vezes bate aquela
insegurança porque ele é assediado por outras mulheres, enquanto que eu
sou assediada por outros homens, mas nada disso abala nosso casamento.
— A voz dela ressoou com tanta convicção, capaz de provocar uma onda de
calor por todo o meu corpo.
— Apesar de ter deixado a New Look Models, você tem trilhado
uma carreira fantástica e duradoura na moda. Como se se sentiu ao saber
que seu ex-agente deu entrevistas, falando negativamente a seu respeito?
Você se arrependeu de sua decisão?
Notei uma mudança sutil, porém perceptível no semblante dela, que
respirou fundo por alguns instantes, com o maxilar contraído e os lábios
apertados numa linha dura.
— Eu não estava feliz lá e não me arrependo de nada. Encerrei um
capítulo com as pessoas que me agenciaram, sem mágoas. Não esperava
que Patrick dissesse coisas horríveis de mim. Só eu sei o que eu passei...
Só eu sei o que eu passei. — Repeti mentalmente sua última frase.
Talvez fosse impressão minha, mas senti uma nota de pânico na voz
dela.
O jornalista a encarou, arqueando a sobrancelha, a um só tempo
curioso e incrédulo.
— Se importaria de falar um pouco mais sobre este assunto?
— Eu já falei tudo que tinha pra dizer. — A resposta saiu de forma
apressada.
— Agora pensando na vida depois da passarela, quais são os seus
planos?
— Já querem se livrar de mim? Ainda não pensei nisso. — Ela deu
uma breve risada. — Mas respondendo a sua pergunta, eu só quero poder
olhar para trás, e relembrar tudo o que fiz dos 15 aos 27 anos e dizer que
cumpri bem com a minha missão.
— Ah, que excelente notícia! Mas mudando de assunto, todos já
sabem que você passou por quatro abortos espontâneos... Eu imagino que
deve ter sido difícil lidar com esses acontecimentos, mas vocês dois ainda
planejam ter um bebê?
Eu faria questão de frisar que desistir não era uma opção.
— Nós não perdemos completamente as esperanças.
— Sim, exatamente — Ela concordou com a cabeça e, com uma
careta, enxugou outra lágrima. — Por sorte, eu ainda posso engravidar de
forma natural, mas tem sido um processo bem difícil. Tem dias que a última
coisa que gostaria de fazer seria aparecer na frente das câmeras, mas não
posso me entregar ao desânimo. Então, eu resisto ao máximo direcionando
o foco em meu trabalho e em meus objetivos.
De repente, uma pessoa da produção do evento se aproximou,
fazendo um sinal para ele encerrar a entrevista.
— Nós continuaremos torcendo por vocês! Aproveitem a noite.
Nós nos sentamos na espaçosa mesa do Royal Albert Hall, que já
contava com cerca de quatro mil convidados, entre celebridades, estilistas e
modelos, que conversavam animadamente.
A certa altura da cerimônia, uma cantora que também era atriz e
modelo, subiu ao palco para anunciar a vencedora da categoria Modelo do
Ano. Procurei a mão da minha mulher por baixo da mesa e a apertei com
força, para transmitir boas energias. As minhas próprias mãos suavam, tanto
de receio quanto de nervoso.
“Com uma influência que transcende a passarela, este prêmio
celebra o impacto global da modelo que conquistou a indústria nos últimos
doze meses. E a modelo do ano é... Marie-Claire Leblanc!”
— Mon Dieu... Eu ganhei? — Ela cobriu o rosto com as mãos,
emocionada.
— Oui, mon amour! — Confirmei, dando um beijo rápido nos
lábios suculentos. Então, eu enfiei logo a mão no bolso interno do paletó, e
retirei de lá o tal adereço que eu tanto desejei ver naquele pescoço macio,
delicioso, e marcado por chupões.
Era uma gargantilha de ouro branco, que mais parecia uma
“coleira”, com o meu nome cravejado em brilhantes.
— Só você mesmo para me fazer usar isto, Jean. — Minha mulher
comentou, rindo, e deu um leve empurrão em meu braço. — Coloque isso
de uma vez, antes que eu mude de ideia.
— Todos já sabem que você é minha, mas não custa nada reforçar,
não é? — Fechei delicadamente a gargantilha em torno do pescoço dela,
sob os olhares curiosos e confusos das pessoas presentes. — Vai lá, Modelo
do Ano, arrase e mostre a quem você pertence. — Dei um tapa de leve
naquela bunda redonda, assim que ela se levantou da cadeira.
Para minha surpresa, Marie exibia a joia no pescoço com muito
orgulho, enquanto se dirigia até o palco. Ela inclusive acenou para alguns
convidados, com um sorriso exultante, antes de subir os degraus e receber o
seu troféu facetado, feito de cristal Swarovski. Dava para notar que suas
mãos tremiam levemente, ao segurar o microfone diante dos lábios, em
meios aos aplausos da plateia numerosa.
— É uma honra poder receber este prêmio, e representar um grupo
notável de mulheres talentosas. — Ela deu início ao discurso, lançando um
olhar na direção da plateia, e fez uma pausa para respirar, antes de
prosseguir: — Eu quero agradecer primeiramente ao júri do British Fashion
Council e também a todos os profissionais homenageados que tanto
contribuíram para a indústria. Mas, o agradecimento especial vai mesmo
para o meu pai, Jacques. Ele se sacrificou muito por mim ao longo da vida.
Papa é, sem dúvida, o maior responsável por eu estar aqui hoje. — Então,
seus olhos marejados se detiveram longamente em mim, antes de
acrescentar: — E, por último, mas não menos importante, tem o meu grande
amor. Não precisaria ostentar uma joia com o nome dele para provar minha
fidelidade e a minha devoção absoluta, mas como sou uma mulher de
palavra... Voilà! — Exclamou, abrindo os braços em um gesto teatral.
Os convidados foram praticamente à loucura. Aplaudiram e
assobiaram. E quanto a mim, eu dei uma piscadela para ela e tomei um
longo gole de champanhe, mal contendo a satisfação por ter sido
mencionado no discurso.
— Mas meu marido merece esta homenagem, pois tem sido um
companheiro incrível, nos dias bons e ruins. — Marie voltou a falar, mas
em tom sério daquela vez. — Tenho passado por uma fase bem delicada,
com problemas para engravidar, mas ele não apenas me consola como
também me estimula e me incentiva a não desistir. — Então, enxugou
discretamente uma lágrima, que escorria pelo canto dos olhos. — Os meus
dias são mais leves e descontraídos ao lado dele. Sempre disse diversas
vezes que tudo ficaria bem, que as coisas iam se resolver... — Fez uma
pausa, e, ainda empunhando o troféu, apontou diretamente para mim e
completou: — L’amour de ma vie, obrigada.
Quando achei que Marie-Claire estava prestes a deixar o palco, ela
fez gesto com a mão, indicando que tinha algo mais a dizer:
— Gostaria de encerrar o meu discurso, lembrando a todos de que as
mulheres têm o direito de se sentirem seguras, onde quer que elas que
trabalhem. Meninas, vocês não estão sozinhas! Continuem lutando por
dignidade e respeito. Se cuidem!
Tomei a iniciativa de aplaudi-la de pé, profundamente orgulhoso, e
todos os demais presentes seguiram o meu exemplo.
A verdade é que eu já amo minha esposa e não posso mais viver sem
ela.
Capítulo 21

Jean-Luc

Semanas depois...

Bastou o dia chegar ao fim para me dar conta de que passaria mais
uma noite sozinho na mansão que passou a ser meu novo lar, desde que
Marie e eu nos casamos.
A propriedade datada do início do século XX ficava na Villa
Montmorency, um condomínio fechado e exclusivo, na região do Quartier
d’Auteuil, no 16.º arrondissement, local onde as casas podiam ser
compradas por alguns milhões de euros.
Minha mulher cumpria uma série de compromissos comerciais que
iam além de estampar capas de revista ou desfilar para as maiores casas de
moda. Ela estava em Nova York para promover sua própria linha de roupas,
em parceria com outras marcas.
Aliás, foi justamente a imprevisibilidade de horários e próximos
passos dela, especialmente após dividir seu tempo entre Paris e Nova York,
que contribuiu para a nossa primeira crise conjugal.
Enfiei a mão no bolso do paletó, tirei um cigarro da carteira e o levei
diretamente à boca ressecada pelo clima seco. Segurei o isqueiro com a mão
livre e observei distraidamente a chama amarela e trêmula se formar, dando
lugar a uma fumaça branca.
Dei uma longa tragada, enquanto observava a paisagem soberba à
minha frente, através do amplo terraço que mais parecia um oásis, com seu
canteiro de flores e plantas de diversos tipos. Aquele espaço era,
definitivamente, o meu santuário pessoal.
Conferi as notificações no celular quando eu saí do banho, mas elas
se restringiam a e-mails de investidores e clientes da SVL Groupe e da EGO
Media. Marie-Claire não enviou nenhuma mensagem de texto; ela nem
mesmo tentou ligar para mim.
O silêncio da mulher que eu amo era ensurdecedor demais.
O mais perto que cheguei de receber alguma notícia dela foi através
da mídia.
Fotógrafos registraram o momento em que Marie saiu de um veículo
SUV acompanhada por um segurança, enquanto se dirigia para a
inauguração da loja de sua marca de roupas. O jornal destacava o visual
bastante discreto dela, que consistia em um suéter de malha branco largo e
uma saia maxi de couro preta.
Camille também estava presente, assim como a modelo, Inès
Delacroix.
No entanto, uma das fotos chamou logo a minha atenção. Minha
mulher sorria para a câmera, seus cabelos longos estavam presos em um
coque e quase não havia resquícios de maquiagem no rosto, mas o braço do
guarda-costas — apoiado levemente nas costas dela —, saltava aos olhos de
quem quisesse ver.
Senti os músculos do maxilar se retesarem, com o ciúme
consumindo cada célula do corpo, atingindo direto na alma.
Eu devia ter dispensado os serviços dele, quando tive a
oportunidade.
— Sou eu quem devia cuidar da minha mulher, e mais ninguém!
Merde!
Dei uma longa e profunda tragada, sentindo a fumaça percorrendo o
pulmão, enquanto assimilava uma verdade inconveniente: a possessividade
e o ciúme assumiram proporções gigantescas nos últimos dias.
Talvez aquele tenha sido o principal motivo pelo qual Marie se
distanciou de mim.
Ela sabia que eu a magoaria seriamente se perdesse o autocontrole.
Recordava perfeitamente as palavras de um grande amigo meu: “O
lado ruim de estar com uma modelo é que sempre haverá alguém tentando
tirá-la de você”.
— Só espero que ele esteja errado... — Falei em voz alta, antes levar
a taça de vinho tinto aos lábios e bebi seu conteúdo de um só gole, aliviado
em poder sentir a bebida queimando a garganta e fervilhando o estômago.
Aquela dose lavou minha alma.
De repente, senti meu celular vibrar no bolso da calça. Fiz o
desbloqueio de tela e toquei no ícone do aplicativo de mensagens. Vi o
nome de Camille aparecer e imediatamente prendi a respiração, tomado
pela ansiedade, ao correr os olhos pelo texto.
Marie se queixou de muita dor nas costas. Acho que o analgésico
não está mais fazendo efeito. Eu vou levá-la até o pronto-socorro do Mount
Sinai Hospital.
Apenas me limitei a digitar uma resposta curta, mas senti que algo
estava errado, embora não soubesse exatamente o que podia ser.
Por favor, me mantenha informado. À plus.
Eu não vou ficar aqui nem um minuto a mais. — Pensei, enquanto
acessava minha lista de contatos, até encontrar o número da minha
secretária. Ela era a eficiência em pessoa e atendeu minha chamada já no
segundo toque.
Àquela altura eu já estava em meu quarto, colocando algumas peças
de roupas em uma bolsa de viagem.
— Allô, Babette. Desculpa incomodá-la, mas preciso que cancele
todos meus compromissos e entre em contato com o piloto. Preciso voar
imediatamente para Nova York. Minha mulher passou mal e foi levada às
pressas para um pronto-socorro.
— Fique tranquilo, Jean. Ele estará à sua disposição assim que
você chegar.
O Paris – Le Bourget era o aeroporto executivo mais movimentado
da Europa, a cerca 11 km a nordeste do centro da cidade.
Eu nunca tinha dirigido tão rápido, ou de maneira irresponsável em
toda a minha vida. Só queria poder chegar ao aeroporto alguns minutos
antes do voo, passar pelo terminal privado e embarcar rapidamente no jato
executivo para uma viagem sem escalas.
Conferi se havia alguma nova mensagem da minha irmã, antes da
decolagem. Ela não quis entrar em detalhes sobre o estado de saúde da
minha mulher. Apenas informou que após uma consulta rápida, os médicos
mandaram Marie voltar para casa.
Aquela viagem de 7 horas e 40 minutos pareceu ter durado uma
eternidade.
O motorista já estava a minha espera, quando desembarquei no
Aeroporto de Teterboro, em New Jersey. Ele abriu a porta traseira do sedã
de luxo, e fez um gesto para que eu pudesse entrar. Eu o cumprimentei com
um breve aceno de cabeça e me acomodei no confortável banco de couro.
Tirei o celular do bolso para conferir as notificações, mas elas se
restringiam a chamadas perdidas de Cédric e de Camille. Decidi retornar
primeira a ligação da minha irmã, que atendeu aliviada em poder finalmente
ouvir minha voz.
— Jean-Luc, ainda bem que você atendeu! Tentei ligar pra você
diversas vezes, mas sem sucesso.
— Tive que desligar o aparelho, Mille. Acabei de chegar à Nova
York. Minha mulher está com você? Vou levar alguns minutos para chegar a
Central Park South.
— Non, non! Peça ao motorista para te deixar no Mount Sinai. Três
horas depois de voltarmos, a dor se intensificou e tive que levá-la de novo
para o hospital.
— Mas o que realmente está acontecendo? Não me esconda mais
nada!
— Após a coleta de uma amostra de urina, os médicos informaram
que ela estava grávida. Corrigindo: Ela ainda está esperando um menino.
O bebê está posicionado na parte de trás, perto da costela. Foi um choque
imenso!
Seria mesmo possível ela estar grávida?
— Eu vou mesmo ter um filho? — perguntei, com a voz engasgada.
Meu coração se comprimiu no peito, nutrindo um sentimento de dúvida e de
incerteza. — Tem certeza do que está dizendo?
Não queria alimentar falsas esperanças.
Seria insuportavelmente doloroso lidar com mais uma perda
gestacional.
— Parece inacreditável, mas é praticamente um milagre. As dores
que ela sentia foram na verdade as contrações. E parece que é gravidez
avançada, de sete meses. Ainda continua com 4 cm de dilatação, então o
bebê deve nascer nesta madrugada ou nas primeiras horas da manhã.
— Putain! Estou a caminho, não se preocupe. À bientôt! — Encerrei
a chamada, antes de falar com meu motorista: — Preciso chegar ao Mount
Sinal Hospital o mais rápido possível!
Agora era a vez de ligar para o meu irmão e, assim, transmitir a
notícia:
— Meu filho vai nascer a qualquer momento, Cédric. — As
palavras saíram atropeladas, enquanto segurava com a mão livre o encosto
do banco do carona.
— Ce n’est pas possible! — Ele parecia ter duvidado por um
instante, mas logo emendou, soando cauteloso: — Jean, mon ami, você está
falando sério mesmo?
— Nunca falei tão sério em toda a minha vida!
— Quelle surprise! Mas a Marie já retornou da viagem? Em qual
hospital ela está? Já deu a notícia para os nossos pais?
— Camille já está cuidando de tudo, não se preocupe. Eu acabei de
chegar à Nova York, mas ainda não sei se chegarei a tempo de ver o meu
filho nascer.
— Vai dar tudo certo. Você vai ver. Seu sortudo, meus parabéns!
O motorista acelerou o carro o máximo que pôde. Tive sorte, porque
dificilmente havia congestionamento na estrada durante a madrugada, senão
uns poucos carros transitando em ambas as direções.

Eu fui preenchido por uma onda de alívio, quando alcançamos a


primeira rua transversal para a Tenth Avenue, já na ilha de Manhattan. O
Mount Sinai Hospital se situava entre as ruas 58 e 59. Uma vez no elevador,
eu subi até o 12º andar, e me aproximei do balcão de informações, com o
coração batendo tão acelerado, que a impressão que eu tinha era a de que os
tímpanos seriam rompidos a qualquer momento.
Será que cheguei a tempo de ver o meu filho nascer?
— Boa noite... — saudei a recepcionista, quase sem fôlego. — Uma
paciente de nome Marie-Claire Leblanc Laurent deu entrada neste hospital.
Eu sou o marido dela.
A recepcionista então digitou algo no computador, e depois estreitou
os olhos, me encarando com uma expressão imperturbável no rosto.
— Não se preocupe, Sr. Laurent. A sua esposa está sendo
monitorada de perto por uma equipe de obstetras, neonatologistas e
intensivistas. Pode aguardar na sala de espera, que fica no corredor à
esquerda. A enfermeira vai te passar todas as instruções.
Agradeci pelas informações, enquanto colava o adesivo de visitante
junto ao peito. Atravessei o corredor andando apressado, mas ao alcançar a
sala de espera, um homem surgiu repentinamente, bloqueando a passagem.
Pelo visto o guarda-costas da minha esposa não me reconheceu,
afinal eu optei por um look casual sofisticado, combinando moletom preto
com capuz, calça preta e tênis de cano alto preto.
Ele deu um passo à frente e apoiou a mão pesada em meu ombro.
— Se identifique, por favor — exigiu ele, em tom ríspido. — Só é
permitida a presença de familiares neste recinto.
Observei o sujeito com atenção, que devia ter mais de um 1,90m de
altura, com porte atlético, os cabelos bem cortados no estilo militar, a pele
branca, mas bronzeada. Parecia um típico galã norte-americano de filmes de
ação.
Afastei a mão dele forma brusca, dominado por uma fúria cega.
— Marie-Claire é minha esposa, ok? Ela é minha mulher! — E
dizendo isso, levei a mão à cabeça, baixando rapidamente o capuz para
mostrar meu rosto atraente, anguloso e com maxilar bem definido, algo que
o sujeito só conhecia por meio de fotografias.
O rosto dele ficou ainda mais pálido, enquanto me encarava com
assombro.
— Peço desculpas, monsieur, mil desculpas, mas eu não o
reconheci...
— Acho que nós não fomos devidamente apresentados ainda. —
Sacudi da manga do casaco uma poeira imaginária, antes de estender a mão
para um cumprimento formal.
— Eu me chamo Bruce Staden, ao seu dispor, monsieur. — Ele
apertou minha mão com firmeza. — Sua esposa tem sofrido assédio dos
paparazzi, desde que esteve aqui pela primeira vez. E ainda tentaram causar
transtornos quando retornamos. Esses tabloides infiltram fotógrafos em
velórios e até nos hospitais. A esta altura já sabem por que ela está
internada.
— Pelo visto você tem feito um bom trabalho... Agradeço pelas
informações, Bruce. Se me der licença, preciso ver como minha mulher está
agora.
De repente, eu ouvi uma voz feminina me chamar e olhei para o
lado a tempo de ver minha irmã, que se adiantou e me puxou para um longo
abraço.
— Estou tão feliz por você estar aqui, Jean... Achei que não
chegaria a tempo.
— Nunca confiei tanto nos meus instintos, Mille. Cruzei o Atlântico
para estar aqui agora, porque no fundo eu já sabia que vivenciaria algo
muito importante. Eu finalmente vou ser pai! — comentei, andando de um
lado para outro, mas um pensamento intrusivo assaltou minha mente, então
olhei bem para ela: — Mas será que está tudo bem mesmo?
— Vai dar tudo certo, Jean. Eles vão ficar bem.
— Sete meses é um período bem considerável. Não é possível que a
gravidez tenha passado tão despercebida assim todo esse tempo.
— Ela me disse que menstruou normalmente nos últimos meses,
mas sua barriga continuou lisa, como de costume. O médico nos contou que
a maioria das mulheres já apresenta um barrigão visível, e conseguiam
sentir o bebê se mexendo também. Mas Marie foi taxativa ao dizer que não
desconfiou de nada.
De repente, ouvimos uma voz masculina bem atrás de nós, que
disse:
— Ter uma gestação silenciosa não é algo tão raro assim. —
Camille e eu nos viramos a tempo de ver o obstetra se aproximar, trazendo
uma prancheta nas mãos. — Pode ter sido uma resposta inconsciente a uma
situação que a gestante não conseguia lidar, levando em conta o histórico de
abortos espontâneos.
Eu cumprimentei o médico com um aceno de cabeça, antes de me
apresentar.
— Eu acabei de chegar, doutor. Eu me chamo Jean-Luc Saint
Vincent Laurent, e sou marido da gestante.
— Sou Mark Wolfman, médico ginecologista e obstetra deste
hospital.
Ele explicou ainda que qualquer indício que levasse a uma
confirmação da gravidez foi negado e rejeitado pelo inconsciente dela,
evitando assim um possível conflito emocional, ou seja, o medo de
vivenciar aquela experiência traumática novamente.
— Não é possível esperar um pouco mais? Até o bebê estar
plenamente desenvolvido?
— Levando em conta as condições de saúde dela, não. Quem sofre
de algum tipo de transtorno alimentar possui uma preocupação exagerada
com o corpo. Sua esposa foi influenciada por fatores específicos da
profissão dela e não se alimentou adequadamente, nos últimos meses. Isso
quer dizer que o bebê teve restrição de crescimento intrauterino. Nós
evitaremos ao máximo uma intercorrência, com a indução do parto.
— Eu quero muito poder estar ao lado dela, doutor. — A voz saiu
em um sussurro. — Eu não sabia que a situação tinha chegado a este ponto.
— Tudo parecia girar à minha volta, quando subitamente senti um toque
gentil em meu braço. Ergui o olhar em meio às lágrimas e me deparei com
um sorriso encorajador do médico.
— Sei que se sente apreensivo neste momento, mas ela está sendo
assistida por especialistas altamente experientes. Como faltam poucos
minutos para a cesariana de emergência, a visita deve ser rápida. Só pode
entrar uma pessoa por vez.
Como a minha presença no parto já estava garantida, achei melhor
deixar minha irmã e Inès ter algum contato com Marie, antes da cirurgia.
Naquele ínterim, uma enfermeira apareceu, trazendo uma roupa especial,
algo imprescindível para o acesso ao centro cirúrgico.
Havia dois médicos, incluindo o obstetra, enfermeiros, ou seja, toda
equipe médica e multidisciplinar. Eu encontrei minha esposa deitada na
mesa operatória e me sentei no banco ao lado dela, para acompanhar a
cesariana de perto.
Marie virou o rosto e piscou os olhos lacrimejantes, como se
custasse a acreditar que eu pudesse mesmo estar ali presente, no momento
mais significativo de nossas vidas.
— Como está se sentindo, amour? — perguntei, buscando a mão
dela por baixo do lençol, e a segurei bem firme, transmitindo algum
conforto.
— Um pouco entorpecida por causa da anestesia, mas no geral estou
bem — murmurou, rindo e chorando ao mesmo tempo. — Por um momento
eu pensei que não conseguiria ver o parto. — Ela estava tão fraca, que a voz
era quase um sussurro.
Inclinei o meu corpo para frente e encostei os lábios ao ouvido dela,
fazendo o hálito quente contra a orelha lhe provocar um leve
estremecimento.
— Eu não perderia o nascimento do nosso filho por nada deste
mundo.
— O bebê se formou atrás do meu osso pélvico, o que explica por
que minha barriga não ficou visível...
Apesar de ter mantido um peso considerado “normal” e voltado a
menstruar novamente, os médicos classificaram a condição dela como
recuperada e não curada da doença. Com o estado mental fragilizado, ela
pode ter passado por uma recaída.
Como eu pude ser tão egoísta a ponto de ignorar os sinais?
Eu jamais me perdoaria se as vidas de ambos estivessem em risco.
— Me desculpe, por favor. — Um soluço embargou minha voz mais
do que eu gostaria. — Eu... Eu deveria ter percebido... E também agi tão
mal com você.
— Sobre o bebê? — Ela quase se engasgou com as palavras, mas
não esperou por uma resposta e acrescentou na sequência: — Você não
tinha como saber. Nem eu...
— Não me refiro à gravidez. Eu me refiro às suas recaídas. Nós
fizemos um juramento, Marie. Juramos dividir nossas dores, as angústias,
as alegrias, ou seja, absolutamente tudo. Não acho justo que tenha passado
por tudo isto sozinha.
— Eu senti que havia perdido o controle de novo... Tive muita
vergonha.
— Shh. Mas já passou. — Fiz questão de frisar, enquanto acariciava
suavemente a lateral do rosto sem maquiagem, mas tão extraordinariamente
belo. — Tem um lindo garotinho se preparando para vir ao mundo. Vamos
escolher logo um nome para ele.
— Mon Dieu! É muita informação para assimilar em pouquíssimo
tempo — comentou Marie, com um lampejo de ironia divertida. — Qual
você prefere, amour?
— Jean-Baptiste Benjamin. Em homenagem ao meu avô.
— Outro nome composto na família? — Ela exibiu uma careta que
expressava mais dor do que outra coisa. — Non, non. Ele vai se chamar
Benjamin, apenas.
— Estão ansiosos para ver o bebê? — perguntou o obstetra em tom
bem-humorado. — Só sei falar uma palavra em francês. Sabe qual é? — E
para nossa alegria ele ergueu o recém-nascido para que Marie e eu
pudéssemos ver melhor. — Voilà!
A alegria de ver meu filho nascendo, me fez transbordar em
lágrimas, uma emoção nunca antes sentida. Benjamin representava uma
nova forma de amar.
O amor de um pai para com o filho.
Quando o bebê saiu do nosso campo de visão, observei a expressão
de Marie mudar da alegria para a aflição, mas eu rapidamente inclinei
minha cabeça e a beijei na testa, enquanto ajeitava o volumoso cabelo que
se desprendeu da touca hospitalar.
— Relaxe, amour... Benjamin logo estará em nossos braços.
Horas mais tarde, na UTIN, eu pude tocar no bracinho dele, e senti a
pele fina e frágil entre meus dedos, enquanto contemplava o rosto angelical
coberto pela máscara, uma sonda gástrica passava pela boca entreaberta, e o
peito coberto por eletrodos ligados a um aparelho, subia e descia de forma
espaçada.
— Que dizer então que você estava escondido dentro da barriga da
maman esse tempo todo? — Bastou eu falar com ele, que já foi logo
abrindo os olhinhos a minha procura, e quando encostei o indicador na
mãozinha, ele segurou meu dedo tão forte, quase como se não quisesse
largar nunca mais.
Pisquei os olhos rapidamente, mas não pude evitar que eles ficassem
marejados. Senti meu peito ser preenchido por uma sensação de paz e, uma
alegria sem precedentes.
Capítulo 22

Jean-Luc

2 anos depois...

Desde os quatro meses, quando Benjamin pronunciou sua primeira


palavra, Marie e eu percebemos que fomos agraciados pelo Universo com
um menino prodígio.
Benjamin teve uma educação normal através de estímulos por meio
de livros, jogos lúdicos e desenhos, recomendados para as crianças de um
modo geral. Porém, quando ele completou dois anos de idade, começou a
chamar atenção de familiares e conhecidos pela maneira como se
comunicava no dia a dia.
Ele já formulava frases completas, e com verbos na conjugação
certa, algo não tão comum, especialmente naquela faixa etária. Uma vez
meu sogro, que por sinal acabou de receber sua terceira estrela no guia
Michelin, quis saber do neto o que tinha achado da comida, ouvindo um
sonoro e bem pronunciado: “A comida não estava boa, estava délicieux!”. E
por falar em Jacques, ele inclusive comemorou suas cobiçadas três estrelas
bebendo vinho rosé o dia inteiro.
Marie e eu nos sentamos no espaçoso sofá da área de estar, e
observamos nosso filho completar o número que faltava em cada operação
matemática em uma lousa branca, presa a um cavalete de madeira.
— Qual é o número que somado com vinte e três é igual a sessenta e
sete?
— 44. — respondeu ele, com sua voz calma, pausada e baixa, ao
estacar a mão em direção ao espaço em branco, para anotar o valor.
— E como você chegou a este resultado?
Benjamin virou o rosto para encarar a mãe todo sorridente, com seus
dentinhos à mostra e respondeu sem hesitar:
— Trop facille (muito fácil). — Ele respondeu, mas logo voltou a
escrever no quadro de novo, para demonstrar como chegou naquele valor,
dizendo: — Sessenta e sete... menos vinte e três... é igual a... quarenta e
quatro.
— Bravo! — Marie e eu dissemos em uníssono, e com uma salva de
palmas.
Nosso filho continuou resolvendo outras operações matemáticas
básicas, quando Marie de repente se levantou assustada, consultando seu
fino relógio de pulso.
— Mon Dieu! As horas passaram tão rápido. Já passa das 11:00. —
Ela se adiantou até Benjamin e o pegou no colo, que passou a gritar e a se
debater em seus braços, dizendo que não estava com sono: — Mon amour,
mas já passou do horário... Amanhã você continua o jogo, ok? — Ele
continuou chorando, enquanto falava palavras desconexas, parecendo
inconsolável.
Eu me levantei de um salto, decidido a ajudar minha mulher naquela
tarefa.
— Amour, deixe que eu cuido disso. — Eu avancei na direção dela,
e peguei nosso filho gentilmente no colo, antes de seguir em direção às
escadas. Milagrosamente, ele parou de chorar, mas ainda soluçava com o
rosto pressionado em meu peito. Então, olhei para Marie por sobre o ombro
e disse: — Me espere lá no quarto, não demoro...
O fato de a gravidez ter sido “silenciosa”, aliado ao histórico de
anorexia e bulimia pré-gravidez, pois seu corpo não se adaptou
nutricionalmente para a vinda do bebê, fizeram com que o vínculo entre
mãe e filho não acontecesse de forma imediata.
O instinto materno só se fortaleceu com o tempo, como tinha que
ser.
Grandes obras de arte abstrata e de cores vibrantes enfeitavam as
paredes das escadas e dos corredores. A casa inteira respirava arte.
O quarto dele também era decorado no estilo Art Déco e
proporcionava uma vista deslumbrante de Paris, em meio à vegetação
frondosa ao redor da propriedade.
Havia alguns brinquedos espalhados pelo chão, junto às portas de
correr envidraçadas, mas o destaque ficava mesmo para a selva abstrata
com suas folhas exóticas e animais, em fundo branco e no tom pastel.
Benjamin sempre teve dificuldade para pegar no sono, mas gostava
de me ouvir contar histórias antes de dormir. Por isso, eu me aproximei da
estante, os meus dedos percorreram as lombadas até encontrar o livro
escolhido: O Pequeno Príncipe. A clássica fábula que arrebatou corações
pelo mundo inteiro e de todas as idades, sobre um piloto e um menino de
cabelos loiros que “caiu do céu” no meio de um deserto.
— Eu vou contar uma história para você dormir, mas precisa
escovar os dentes antes.
Esperei Benjamin subir na torre de aprendizagem, e abri a
nécessaire, separando os itens de higiene correspondentes. O mais
engraçado era que ele só me deixava ajudá-lo a escovar os dentes se eu
desse minha escova para ele “escovar” os meus também. Aquilo era
inacreditável.
— Nós combinamos que você só vai escovar os da frente e eu os de
trás, ok?
— Oui, papa! — Ele então, levantou a mão direita e começou a
escovar os dentes de leite da melhor forma possível, enquanto cantava com
a boca cheia de creme dental: — Brosse, brosse, brosse. Brosse, brosse,
brosse. Je me brosse les dents. [12]
— Brosse, brosse, brosse, brosse. Je les brosse souvent[13]. — Entrei
na brincadeira, cantarolando a continuação da música de Passe Partout,
chamada Brosse, brosse, brosse.
Uma vez finalizada a escovação, carreguei Benjamin de volta ao
quarto e o acomodei na cama espaçosa. Depois, eu me sentei na beirada e
passei a folhear algumas páginas até alcançar o capítulo XII, mais
precisamente na cena que o pequeno príncipe se despedia da raposa.
— E voltou, então, à raposa: “Adeus, disse ele...” “Adeus, disse a
raposa.” “Eis o meu segredo.” “É muito simples: só se vê bem com o
coração.” “O essencial é invisível para os olhos”.
— Eu não entendi... — murmurou Benjamin, colocando uma de
suas mãos sobre o livro aberto. — Me explica, papa! — Estreitei os olhos
na direção dele, com ar pensativo.
— Talvez a raposa queria dizer que nosso coração enxerga mais
além, e ele nunca se engana. Já nossos olhos podem, sim, nos enganar.
— Ah, entendi! — Seus olhos brilharam, cheios de compreensão. —
Continue, papa.
Somente quando Benjamin começou a pegar no sono, minha voz foi
baixando até ler o seguinte trecho: “Tu te tornas eternamente responsável
por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...”.
— Durma bem, mon génie. — Sussurrei, enquanto ajeitava o lençol
sobre ele.
Encontrei Marie sentada na cama, mexendo no celular. Havia uma
pequena ruga de preocupação entre as sobrancelhas grossas, mas
perfeitamente delineadas.
— Você estava lendo um livro pra ele? — perguntou, sem desviar o
olhar da tela.
— Oui. — Eu confirmei ao me aproximar da cama king size. — O
Pequeno Príncipe. — Puxei o lençol e me esgueirei por baixo, para me
aconchegar nela, os braços por cima de sua cintura esguia, e nossas pernas
entrelaçadas.
Marie rapidamente deixou o aparelho sobre a mesinha de cabeceira,
e se aninhou em meus braços, com um ronronar baixo e manhoso, o calor
que emanava da pele, gerou uma sensação reconfortante e envolvente junto
à agradável fragrância do perfume dela.
Um leve frescor vibrante invadiu minhas narinas e, inalei bem
fundo, completamente embriagado.
— Aconteceu alguma coisa, mon amour? — Ela prontamente
negou, com um gesto quase imperceptível de cabeça. — Seja como for, se
eu puder ajudar, não hesite em dizer... Sabe que sempre pode contar comigo
— murmurei, os meus dedos deslizavam pelas costas dela, percorrendo a
coluna de cima a baixo numa carícia lenta.
Senti seu corpo se retesar, quando a mão resvalou nas curvas suaves
do quadril. Ela se remexeu inquieta e afastou suavemente meu braço, os
seios subiam e desciam ao ritmo da respiração curta e rápida.
— Não começa Jean... — murmurou ela, me dirigindo um olhar
cortante. O tom foi levemente ameaçador, o que me surpreendeu
sobremaneira. Uma máscara de dor e tristeza nublou suas feições, mas ela
desviou o olhar, e mordeu o lábio inferior, possivelmente para conter o
choro. — Você no fundo pensa como todos eles que eu sei.
— Nós já conversamos sobre isso, amour. Essas pessoas estão
infelizes consigo mesmas, mas no fundo enxergam você como um exemplo
de superação. Elas só não reconhecem isso, porque são incapazes de
enfrentar suas próprias inseguranças.
Marie se referia aos comentários recebidos na publicação de um
tabloide, após imagens de uma sessão de fotos de sua linha de moda praia
ter sido vazada pelos paparazzi, gerando um intenso debate online com
críticas pesadas sobre seu corpo, que sofreu uma diástase abdominal no
pós-parto. Algumas de suas fotos chamaram atenção devido ao espaço
maior entre os músculos da região do abdômen, condição considerada rara.
Foi simplesmente chocante ver até mesmo algumas mulheres
concordarem, com falas ácidas como: “Outro corpo arruinado depois de
ter um bebê”.
— Já se passaram dois anos, quando finalmente criei coragem para
voltar a usar trajes de banho… — Seu rosto estava contraído,
transparecendo grande mágoa e ressentimento. — Será que eles gostavam
mais de mim antes? A minha versão toda esquálida, com costelas e ossos
aparentes?
— Não permita que pessoas extremamente maldosas tirem a sua
paz, Marie. Elas criticam desde mulheres que perdem peso após a gravidez,
até as que ganham alguns quilos a mais...
A sociedade estava cada vez mais doente.
Não suportava mais vê-la se martirizando, colocando
inconscientemente o controle de sua vida nas mãos de terceiros. Então,
saquei meu celular do bolso dianteiro da calça moletom, louco de vontade
de rebater pelo menos uma parte daquelas críticas.
— Vou responder à altura cada ofensa online dirigida a você, agora
mesmo.
— E perder seu tempo com essa gente? Non, isso não tem mais
importância, amour... Além disso, você desativou todas as suas redes
sociais, lembra-se?
— Mas eu faço questão de reativar. Eles mexeram com a pessoa
errada.
Abri a publicação que Marie repostou no perfil e comecei a ler os
comentários considerados relevantes pela rede social, que diziam coisas
como: “Nossa, qualquer maiô ficava bom em você, mas agora que
engravidou já não fica mais”; “Não sabia que uma modelo podia ficar
“tão larga” após a gravidez (risos)”; você era conhecida no mundo da
moda por sua barriga negativa, mas que decepção!”, entre outros.
Digitei a seguinte resposta: “Minha mulher tem lutado para se
sentir em paz com o próprio corpo há anos. Então, eu sugiro que parem de
criar uma imagem dela que não é real. Eu realmente espero que vocês
obtenham a ajuda de que precisam”.
Mas também havia pessoas que saíram em defesa dela, dizendo o
quanto ela era linda e inspiradora, além de terem-na aconselhado a não
responder aos ataques.
— Missão cumprida! — Falei, enquanto deixava meu celular na
mesinha de cabeceira, e só depois virei o corpo dela gentilmente sobre o
colchão para deixá-lo sob o meu. — Acho que agora podemos retomar de
onde paramos... — murmurei, roçando meus lábios nos dela e os forçando a
abrir de modo nada gentil.
Ela deixou escapar um suspiro de angústia, as mãos espalmadas
contra meu peito exerciam uma pressão, ao mesmo tempo, leve e firme, na
tentativa de me afastar.
— Não consigo... Pelo menos, não hoje. Sinto muito.
— Leve o tempo que achar necessário, amour. — Eu me esforcei ao
máximo para não deixar a frustração transparecer na voz. Depois, dei um
beijo na testa dela, e rolei de volta para meu lado da cama,
ajeitando bruscamente o travesseiro sob minha cabeça.
O silêncio se fez presente no quarto, cada um perdido em seus
próprios pensamentos.
Minha mulher tem me evitado, por mais tempo do que havia
previsto.
A fase do puerpério foi bem desafiadora para ela, com a mente em
um turbilhão de pensamentos, que iam desde achar que não era uma boa
mãe, passando pela pressão de retornar ao trabalho, e culminando na
incerteza de que talvez seu corpo não voltasse a ser como era antes.
Todas aquelas questões têm interferido na retomada da vida sexual
dela, que ainda lidava com momentos em que se olhava no espelho e se
achava horrível, com outros em que vomitava no banheiro entre as
refeições. Nem as sessões semanais de terapia foram suficientes para mudar
sua percepção distorcida sobre si mesma.
Marie voltou à forma antes mesmo de nosso filho dizer “maman” e
“papa”.
— Jean? — Virei meu rosto para encará-la, confuso. A expressão de
seriedade dela me deixou com a respiração suspensa. — Às vezes eu me
pergunto se Ben me considera uma boa mãe...
— Você é a melhor mãe que nosso filho poderia ter. Nunca duvide
disso.
— Não sei o que seria de mim sem você, Jean. — Eu rapidamente
me virei, ficando de frente para ela, assim que ouvi suas últimas palavras.
— Talvez eu nem seja mais uma mulher desejável e...
— Putain, Marie! Você gerou um filho meu, o MEU FILHO!
— Mas o meu corpo mudou, e talvez perca o interesse... — Eu a fiz
se calar, quando rapidamente baixei o lençol, descobrindo-a até a cintura, e
revelando seu pijama de seda.
Soltei um grunhido de satisfação, pois ela não ousou se mexer, nem
mesmo respirou direito, enquanto resvalava minha mão por baixo da
camisa, alcançando sua barriga e, mais precisamente, a linha da cesárea, já
bem cicatrizada e quase imperceptível.
— Seu corpo abrigou um ser lindo e muito inteligente por sete
meses. — Escutei um arquejo doce e erótico saindo dos lábios carnudos,
assim que meus dedos traçaram contornos suaves na cintura, na pequena
saliência e no baixo-ventre. — Eu vou venerá-lo pelo resto da minha vida,
Marie. Quando me quiser dentro de você, basta dizer.
Notei um brilho diferente nos olhos dela. As lágrimas cintilaram por
alguns segundos, mas ela piscou rapidamente, e esboçou um meio sorriso
esperançoso, na tentativa de disfarçar as emoções conflitantes.
Quando eu já estava prestes a pegar no sono, senti uma
movimentação sorrateira bem à minha frente. Não precisei abrir meus olhos
para saber que minha mulher se moveu para mais perto de mim, empinando
sua bunda firme, redonda, e depois a roçou para a frente e para trás,
estimulando o meu pau, que àquela altura já se contorcia dentro da cueca
boxer, inconformado por não estar dentro dela.
Segurei na cintura fina, puxando-a para perto de mim, dando a ela
um incentivo a mais para continuar se esfregando contra meu púbis.
— Quer me fazer perder o controle, me provocando desse jeito?
— Eu só vou parar quando você me foder com os dedos. — Sua voz
soou como o ronronar de uma gata no cio.
Uma de minhas mãos afundou nos cabelos dela; a outra foi parar no
cós da calça-pijama, e logo pude sentir sua boceta inchada e insaciável
encharcando meus dedos. Rosnei contra o ouvido dela, conforme dedilhava
os grandes e os pequenos lábios, estimulando ainda mais sua lubrificação
natural. Depois foi a vez do clitóris, intercalando movimentos rápidos e
sucessivos, com outros, mais suaves e lentos.
Um gemido grave e longo ecoou pelo quarto, ao enfiar dois dedos
na entrada da vagina, penetrando bem devagar para estimular seus músculos
internos, que se contraíram dolorosamente, dificultando a passagem.
Minha mulher parecia cada vez mais entregue, seu rosto já quente e
vermelho de tesão, enquanto ofegava longa e profundamente, pela boca
entreaberta, sua garganta emitia um ruído semelhante a gemidos sufocados.
— Oh, Jean, que delícia... —Àquela altura, os primeiros espasmos
sacudiam o corpo magro, indicando claramente o prenúncio de um
orgasmo.
Deixei escapar um grunhido animalesco, conforme os dedos
penetravam mais profundamente na vagina, arrancando sons de sucção
vindos direto do canal vaginal, atordoando os meus sentidos. Eu me
permitir um pequeno vislumbre do meu pau preenchendo-a e colocando um
fim ao "jejum de sexo".
— Vamos, amour, goze bem gostoso nos meus dedos.
Ela agarrou meu cabelo, com um dos braços para trás e puxou os
fios com força, arrancando um grunhido de mim, enquanto se remexia em
minha mão lambuzada, seu corpo foi varrido por espasmos violentos.
Como eu queria poder gozar, com o meu pau enterrado bem fundo
da boceta pulsante, inchada, e toda minha... Putain!
Capítulo 23

Jean-Luc

Dias depois...

Cheguei à zona de La Défense, conhecido pelos arranha-céus mais


altos da área urbana de Paris, por volta das 8 horas, daquela manhã de
segunda-feira.
Quando apertei o botão correspondente ao andar das salas da
diretoria, eu me encostei à parede espelhada, o rosto erguido na direção do
teto, e contei mentalmente até dez, na vã tentativa de controlar a onda de
frustração que fervilhava no íntimo.
Como eu fui tolo em acreditar que sairia de casa com o ânimo
renovado, após bater uma punheta no banho, mas o arrependimento deixou
um gosto amargo na boca e se sobrepôs ao prazer de fantasiar meu pau
entrando e saindo da boceta de minha esposa.
— Mas que merde! — Fechei os punhos com tanta força, a ponto de
sentir os ossos estralarem, provocando dor na junta entre os dedos.
A famigerada abstinência. Uma fase que devia ter durado dias, após
o parto de Benjamin, mas que se arrastou indefinidamente, me fazendo
amargar uma longa — e torturante — espera pelo dia em que minha mulher
voltaria a fazer amor comigo.
Precisava desesperadamente voltar a transar; eu me contentaria até
mesmo em "dar uma rapidinha", contanto que eu pudesse extravasar todo
aquele tesão acumulado. Mas a retomada da minha vida sexual dependia
exclusivamente dela e da aceitação do próprio corpo recém-transformado
pela maternidade.
Caminhei, pisando duro pelo corredor que levava até minha sala,
quando de repente me esbarrei em uma mulher elegante, que vinha em
sentido contrário.
— Pardon — Murmurei um pedido de desculpas, com a cabeça
abaixada. — Eu estava distraído...
— Na verdade a culpa foi toda minha. — Eu reconheci de imediato
a voz sedutora e aquele sotaque estadunidense típico. Era a supermodelo
Kate Seymour. — Bonjour.
Não escondi a surpresa em rever minha ex-parceira.
— Não sabia que estava em Paris e muito menos que a encontraria
aqui hoje.
— Eu me atrasei um pouco para a reunião com o Christian e acabei
me perdendo...
— Não conseguiu encontrar a sala de reuniões?
Ela confirmou com um gesto de cabeça, com ar de fingida
inocência. Kate exalava sedução por todos os poros e me olhava fixamente,
transparecendo segundas intenções.
— Eu vou estrelar a nova campanha de beleza da Givenchy. O
estúdio criativo interno da marca e sua agência de publicidade vão atuar em
conjunto...
— O Chris é quem está à frente do planejamento e execução da peça
publicitária, mas desde já te parabenizo e desejo muito sucesso neste novo
trabalho.
— Merci... — Ela sorriu agradecida, e me deu uma piscadela. —
Você se importa se eu passar mais tarde em sua sala? Prometo não tomar
muito o seu tempo...
A minha surpresa inicial logo deu lugar a mais profunda
desconfiança.
— Que eu me lembre, não existe nenhuma conversa pendente entre
a gente.
Kate estreitou os olhos para mim, sua sobrancelha bem desenhada se
arqueou em um arco perfeito, enquanto a boca pintada se retorcia num
sorriso enigmático.
— Os homens têm a memória curta mesmo, impressionante! —
Percebi uma nota de ironia na voz dela. — Pode me dizer, pelo menos, onde
fica a sala de reuniões?
— No fim do corredor, à direita... — Ela nem esperou eu terminar
de falar e já saiu pisando duro e, apressadamente, em cima daqueles sapatos
de salto enormes.
O inimigo se apresentava de muitas formas, quase sempre na figura
de alguém do passado, ou mais especificamente, na forma de uma mulher
loira, que combinava a feminilidade da saia lápis, com um blazer risca de
giz.
Continuei acompanhando o modo como Kate andava pelo corredor,
com a postura ereta e confiante, embora desprovida de elegância e
graciosidade, dois atributos que Marie-Claire tinha de sobra.
A minha mulher tinha o estilo único e um jeito peculiar de desfilar.
Era incomparável a qualquer outra modelo de sua geração.
Conforme os minutos passavam, revisei os relatórios, desenvolvi
campanhas de marketing de desempenho, além de ter recebido um dos
maiores clientes da agência EGO Media. O executivo precisava criar uma
estrutura interna capaz de atender o conjunto de marcas do seu
conglomerado de luxo.
De repente, o telefone do escritório tocou. Era minha secretária.
— Jean, eu gostaria de saber se estava aguardando a visita de Mlle.
Seymour.
— Eu não esperava, mas agora que ela está aqui pode deixá-la entrar
— respondi, deixando escapar uma leve inflexão de impaciência na voz. —
Merci.
O que diabos ela quer comigo, afinal?
Continuei sentado na cadeira presidente, mantendo as mãos
cruzadas sob o queixo, e a expressão imperturbável.
Kate entrou na sala ostentando um sorriso cheio de malícia.
— Por um momento, eu cheguei a pensar que não me receberia em
sua sala.
— Vontade não me faltou, mas como sou um perfeito cavalheiro...
— Fiz um gesto vago com a mão, indicando uma das cadeiras estofadas. —
Por favor, sente-se, Kate.
Ela me lançou um olhar demorado e penetrante, antes de se sentar e
cruzou uma de suas longas pernas, a fenda da saia subiu mais do que
deveria.
— Por que não me diz logo o que tem para me contar? — Eu me
recostei na cadeira, peguei uma caneta esferográfica de luxo, e a girei
lentamente entre os dedos.
— Marie-Claire está mesmo ensaiando um retorno às passarelas?
— Não que eu saiba. — Eu prontamente neguei, com um gesto de
cabeça. — Ela está afastada há mais de dois anos... Tem se dedicado
exclusivamente à família e ao próprio negócio.
— Há muito burburinho nos bastidores, Jean. Estão dando como
certa a volta dela. Você devia ler as colunas sociais mais vezes. — Ela então
tirou seu celular da bolsa e depois de acessar algum site, mostrou sua tela
para mim. — Veja por si mesmo.
Eu quase deixei o aparelho cair, quando meus dedos roçaram os
dela.
O texto falava sobre o possível retorno de Marie-Claire às passarelas
— depois de um hiato de dois anos, preenchido com seus empreendimentos
no segmento de moda e beleza, além de ter feito alguns trabalhos pontuais
em campanhas e editoriais.
Lancei um olhar cortante para ela, enquanto estendia seu aparelho
de volta.
— Minha mulher é livre para fazer o que quiser da vida dela.
A modelo arqueou as sobrancelhas, com um trejeito de boca forçado
e insolente, mal ocultando a satisfação em fazer fofoca sobre a vida alheia.
Ela nunca escondeu sua antipatia pela colega de profissão, e tinha o
costume de fazer intriga nos bastidores. Marie me contou que algumas
meninas diziam que Kate se fazia de amiga, quando na verdade desejava
ver as concorrentes se saírem mal no desfile.
A rivalidade entre mulheres, mesmo que inconsciente, só reforçava
os estereótipos de gênero, quando na realidade todas eram vítimas de um
sistema que só as desumanizava e as explorava.
Claro que também tive a minha parcela de culpa. Eu nunca soube
lidar bem com as minhas próprias emoções, e muito menos com as de outra
pessoa. Ignorei completamente as dores de uma mulher, que se sentiu
preterida e descartada no passado.
— Tem mais ou menos duas semanas que ela foi vista saindo da
clínica de um dos cirurgiões plásticos mais respeitados do mundo. — Kate
se levantou de um salto da cadeira e contornou a mesa, antes de se debruçar
com o celular em punho.
Senti meu corpo inteiro se enrijecer, os ombros ficaram tensos,
como que em estado de alerta. Seu perfume doce invadiu minhas narinas.
Tive que afrouxar o nó da gravata com a súbita falta de ar, então respirei
bem fundo, desviando o olhar, constrangido.
Aquela proximidade era inquietante demais.
— Por que não verifica por si mesmo? Leia a matéria, Jean!
— Você é muito tola, Kate. Não devia ocupar seu precioso tempo
com intrigas.
— A sua esposa age pelas suas costas e você não tem o mínimo de
curiosidade?
— Vamos acabar logo com isso! — Tirei o celular de sua mão,
achando que ela voltaria a se sentar, mas continuou debruçada sobre mim,
sem a menor cerimônia.
Lutei com todas as minhas forças para que meus olhos não me
traíssem, desviando a atenção da tela para o decote da blusa e os seios que
saltavam para fora.
Li rapidamente o texto da coluna de fofoca, que falava sobre Marie-
Claire ter sido surpreendida por um paparazzo, quando deixava a clínica de
um renomado cirurgião plástico de Paris.
— A supermodelo Marie-Claire Leblanc deixou a clínica do Dr.
Olivier Masson, aumentando os rumores sobre seu retorno às passarelas, a
poucos meses da temporada de moda. Ela entrou rapidamente no carro,
acompanhada pela cunhada e CEO da L’Beauté Paris e, não quis dar
entrevistas. — Reli o texto em voz alta, e em seguida devolvi com um gesto
brusco o celular a Kate, disposto a encerrar logo a conversa. — Agora você
já pode ir embora.
Apoiei o cotovelo sobre o braço da cadeira, e o queixo no punho
fechado.
Marie sempre foi obcecada com sua aparência desde nova, mas o
período do pós-parto afetou a autoestima dela, sua insegurança tomou
proporções maiores e mais inquietadoras. Ela até mesmo passou a evitar
dividir o banheiro comigo, talvez achando que tomar banho junto terminaria
em sexo, sendo que eu só queria preservar os momentos de intimidade.
A busca pelo corpo perfeito parecia não acabar nunca. Tentei
alertá-la da necessidade de não abandonar o tratamento, mas Marie pelo
visto buscava soluções rápidas para o problema da diástase abdominal.
— Marie-Claire fez mesmo cirurgia plástica? — perguntou ela, me
tirando abruptamente dos meus devaneios. — Desconfio que sim, porque
você não me pareceu nada surpreso.
Eu estava prestes a contradizê-la, quando de repente a porta se abriu
em um rompante, e minha esposa entrou na sala, seguida de perto pela
babá, que empurrava o carrinho de bebê, com Benjamin dentro. A jovem
parecia constrangida demais para dizer qualquer coisa além de bonjour.
Marie encarava ora para mim ora para Kate. O semblante dela
mudou, perceptivelmente, passando da incredulidade para irritação e depois
para certa curiosidade.
— Bonjour. Espero não estar atrapalhando vocês. — O tom era
despretensioso, mas ainda assim, transparecia uma fingida naturalidade.
— Bonjour, chérie — Kate saudou a colega, com sua habitual
cordialidade fingida, enquanto endireitava a postura, e ajeitava o decote
discreto da blusa. — Espero que esteja bem... Talvez não acredite, mas sinto
muito a sua falta. Aqueles esbarrões pelos bastidores... — Ela deu uma
breve risada. — Entende o que quero dizer?
— Eu também digo o mesmo! — Um sorriso enviesado despontou
nos lábios cheios de minha mulher.
— Ela já estava de saída, Marie. — Anunciei, estreitando os olhos
para a modelo, em uma expressão ameaçadora. — Au revoir, Kate. Tenha
um bom dia!
— Então, a gente se vê qualquer dia desses... Au revoir. — Pegou a
bolsa em cima da cadeira e andou em direção à porta com a mesma empáfia
de sempre, mas se deteve, parando bem ao lado da babá e olhou
detidamente para meu filho que dormia no carrinho, comentando: —
Engraçado, ele puxou mais a você, Jean. — Então, lançou um olhar mordaz
em direção à Marie, que a observava com os braços cruzados, a expressão
grave mal disfarçava seu aborrecimento.
— Oui... Benjamin se parece fisicamente com meu marido. —
Marie frisou bem as últimas palavras, e completou: — Mas a inteligência,
ele herdou de mim, sabia?
— Mais inteligente do que eu... — Refleti por um momento, então
contraí o rosto em uma careta. — Mon amour, também não precisava me
humilhar desse jeito.
— Agora eu fiquei curiosa, chérie! — A modelo parecia
genuinamente interessada, se despindo daquela arrogância anterior, e
nutrindo até alguma simpatia. — O que uma criança de 2 anos faz de tão
excepcional assim?
— Nosso filho aprendeu a ler sozinho, faz operações básicas de
matemática e já consegue falar algumas frases em inglês. — Marie
respondeu, direcionando o olhar para Benjamin, com um misto de orgulho e
admiração.
— Parabéns para vocês dois. — Parecia inacreditável, mas Kate se
expressou de forma tão sincera e honesta a ponto de comover sua colega,
que virou o rosto, para enxugar disfarçadamente as lágrimas. Então, acenou
em despedida e foi embora.
Marie aproveitou a saída de Kate para pedir à babá que nos deixasse
a sós, pois tinha um assunto em particular para conversar. Depois, ela se
aproximou de mim, com postura desafiadora e imponente.
A comoção anterior se dissipou com a mesma rapidez com que
surgiu.
— Não me diga que Kate estava tratando de assuntos profissionais
com você.
— Ela estava em reunião com Christian e a equipe dele, antes de vir
aqui.
— E vocês dois conversaram sobre o quê? — Ela perguntou num
tom falsamente despretensioso, enquanto me encarava nos olhos, atenta à
menor reação de minha parte.
Eu me limitei apenas a encará-la com uma expressão imperturbável
no rosto.
— Se eu revelar o teor da conversa, você vai querer discutir e brigar,
sendo que este não é o lugar e nem o momento mais apropriado para isto,
Marie.
As sobrancelhas dela se arquearam, enquanto fazia um esgar de
deboche.
— Peço desculpas por tomar seu tempo. Seu filho e eu só viemos
fazer uma visita. Tenha um bom dia.
Quando Marie fez menção de virar as costas, eu rapidamente me
levantei e a puxei pelo braço, com firmeza. Um gemido escapou dos lábios
dela, assim que nossos rostos ficaram a centímetros um do outro.
Quando ela levantou o rosto, notei seus olhos brilhando com
lágrimas não derramadas, o que provocou um tremor involuntário por todo
o meu corpo.
— Putain, Marie. Você quer mesmo que eu fale agora? Pois bem, eu
vou satisfazer a sua curiosidade. — Hesitei por um momento, então, com
um suspiro cansado, completei: — Kate está mais bem informada sobre sua
vida do que eu, que sou seu marido. — Minha voz saiu mais grave, ao frisar
as últimas palavras.
— Como assim? — Piscou os olhos, que já estavam úmidos, um
tanto confusa. — Ela sabe mais sobre mim do que você? Mas isso não faz o
menor sentido.
Intensifiquei o aperto no braço fino, arrancando dela um gemido de
dor.
— Por que não me contou que fez um procedimento estético?
Marie continuou me encarando diretamente nos olhos, e percebi que
havia mais dor e remorso neles do que alguém conseguiria suportar.
— Só não te contei porque não tinha certeza se conseguiria fazer...
— A voz falhou, interrompendo a fala, mas depois prosseguiu: — Passei
apenas por uma consulta e não levei a ideia adiante. O cirurgião é
conhecido por dizer ‘não’ para os pacientes que não precisam de cirurgia.
Afrouxei o aperto no braço dela, ressentido por tê-la pressionado
tanto por uma confissão. Talvez Marie quisesse tanto aquela cirurgia que
nem esperava uma recusa da parte dele.
— Até que enfim, um profissional sensato. Acredite, foi melhor
assim.
— Ele me examinou e depois perguntou o motivo de eu ter ido até
lá. — Ela revirou os olhos, suspirando dramaticamente. — Quando eu falei
que algumas pessoas me incentivaram a fazer, ele disse “Melhor trocar seus
admiradores”. Eu ainda insisti, dizendo: “Mas e se meu agente me pedisse
para fazer?”, ele respondeu: “Troque de agente, simples assim!”. Não
contente com a resposta, eu rebati: “E se fosse o amor da minha vida,
também me pediria para me livrar dele?”.
— Ele te pediu para se livrar de mim também? — perguntei,
desconfiado. Ela me deu empurrão de leve, tentando conter o riso.
— O cirurgião apenas riu, dizendo: “Sem comentários”. Mas eu
falei que só estava brincando. Você jamais me pediria algo assim.
Um súbito silêncio se instalou na sala, e nos olhamos longamente
por alguns instantes, até que de repente, caímos nos braços um do outro.
Inalei o ar bem fundo, só para sentir o cheiro delicioso de seu
perfume.
— Eu desejei tanto sentir o seu corpo pressionado ao meu
novamente, amour.
— Me desculpe... — A voz dela saiu abafada, o seu rosto ainda
pressionando contra meu peito. — Pensei que me recriminaria por querer
uma intervenção cirúrgica.
Eu me afastei apenas o suficiente para encará-la diretamente nos
olhos, um tanto surpreso com aquela declaração. Sempre fiz o melhor que
pude para lidar com as inseguranças, os medos e as angústias dela,
especialmente durante o pós-parto.
— Por mais que eu reprove, eu jamais te impediria de exercer um
direito seu, Marie. Sinta-se livre para procurar outro especialista.
— Eu realmente desisti da abdominoplastia. — Ela fez uma pausa
breve, sorrindo e chorando ao mesmo tempo. — Também não adiantaria
nada porque se eu engravidar de novo teria que passar por uma nova
correção. Mas isso nem me passou pela cabeça porque eu fiquei tão
obcecada em resolver logo o problema, que...
Nem quis esperar Marie concluir a frase e já fui logo perguntando,
ansioso:
— Será que eu entendi direito, amour? Você pensa em ter mais um
filho? — Suspendi a respiração, enquanto aguardava uma resposta ao meu
questionamento.
— Quero ter, sim, futuramente, mas se você não quiser, por mim
tudo bem.
Perdi um tempo precioso, me mantendo ocupado e distante, mas
respeitei o espaço dela, dando o tempo necessário para resolver suas
próprias questões.
Jamais me passou pela cabeça aumentar nossa família, porque não
sentia que ela estava disposta a gerar um novo bebê.
— Vou entender se não quiser, Jean... — Não lhe dei tempo de
completar a frase.
Avancei mais um passo, e segurei seu belo rosto entre as mãos,
impondo o silêncio com um beijo duro e profundo, saboreando seu hálito
quente e doce, conforme minha língua invadia o interior úmido, como
nunca antes. Grunhi, satisfeito em poder arrancar um gemido de sua
garganta, enquanto correspondia com a mesma intensidade, suas mãos se
agarraram à aba do meu paletó, me puxando ainda mais contra si.
Meus testículos se contraíam dolorosamente, e o meu pau que já
ansiava poder se libertar da cueca boxer, se contorceu numa pulsação
latejante, mas logo interrompi o beijo e olhei bem no fundo dos olhos dela.
— Pode ser daqui a alguns meses ou daqui a alguns anos, não
importa. Você decide, sempre.
Capítulo 24

Marie-Claire

Meses depois...

Durante trinta dias do mês e duas vezes por ano, a semana de moda
e as pessoas envolvidas nela eram parte da minha família. Então não foi
nenhuma surpresa a repercussão da notícia do meu retorno, após um hiato
de dois anos longe das passarelas.
A gravidez inesperada — e também silenciosa — trouxe com ela um
período cheio de desafios. Eu dei entrada no hospital com muitas dores nas
costas, quando na verdade estava em trabalho de parto.
Segui normalmente com minha rotina agitada nos meses que
antecederam o parto, sem desconfiar que uma gestação estava em curso.
Não senti nenhum sintoma, a barriga não despontou por causa do meu
biotipo, confundi o sangramento de nidação com menstruação, perdi peso
para o circuito de moda e ignorei outros sinais como o movimento fetal,
confundindo-o com movimentos intestinais.
Jamais me passou pela cabeça que havia um bebê chutando dentro
de mim.
Também senti muita culpa por tê-lo exposto a tanta coisa, mesmo
não sabendo da gravidez. Eu bebi durante a gestação inteira, trabalhei
bastante, fiz exercícios de alto impacto, além de ter seguido uma dieta
extremamente restritiva.
Tinha tudo para dar errado, poderia vivenciar mais um aborto
espontâneo no total de cinco ou pior, alguma intercorrência relacionada à
malformação fetal, mas felizmente Benjamin nasceu saudável, com 1,7
quilos e 40 centímetros.
Não houve intercorrências graves durante os dias de internação dele,
mas o ganho de peso foi bem lento.
Sair do hospital sem meu filho, após receber alta foi extremamente
doloroso. Queria ter permanecido 24 horas por dia na UTIN,
acompanhando seu progresso, e estabelecendo um vínculo maior com ele,
mas não pude ficar o dia inteiro no hospital. As semanas se arrastaram
indefinidamente, mas Jean permaneceu ao meu lado, na medida do possível,
dividindo seu tempo entre Nova York e Paris.
Benjamin se desenvolveu bem, apesar de eu não ter produzido leite
materno o suficiente. Não foi nada fácil desconstruir a crença de que não
era merecedora de prover o alimento para o meu filho, porque eu fui
incapaz de nutrir meu próprio corpo para recebê-lo.
Já no puerpério pouca coisa mudou. Senti um profundo vazio, era
mais uma sensação de “não pertencimento” e “não adequação” àquela nova
realidade, mesmo estando rodeada de pessoas queridas.
Ser mãe sempre foi o meu maior sonho e parecia que arrancaram
meu senso de identidade materna. Qualquer mulher tinha o direito de
idealizar a si mesma como mãe, de preparar o enxoval, de planejar a
decoração de um quarto infantil, de fazer uma lista com possíveis nomes, de
fazer um bom pré-natal, entre tantas possibilidades.
Enfrentei por quase um ano a depressão pós-parto, os meus
sentimentos de amor, afeto e carinho pareciam inacessíveis, sem nenhuma
razão aparente. O choro do bebê me causava pânico, eu tremia inteira de
medo, a minha vontade era a de sair correndo, de sumir por um tempo. Não
podia ficar sozinha com ele em hipótese alguma.
Margot se mudou temporariamente para a mansão e me ajudou nos
momentos mais difíceis.
Não estabeleci aquele vínculo imediato com Benjamin, e me irritei
profundamente com a demora, porque sempre disseram que as mulheres
sentiam logo aquele amor profundo pelos seus bebês.
E como se não bastasse o aspecto emocional, tive que lidar também
com problemas físicos como infecção do trato urinário, além da diástase
retal, contribuindo para a perda de libido. Eu evitei até mesmo coisas
simples de casal como preliminares, carícias, abraços e beijos.
Fiquei quase três anos sem fazer sexo com o meu marido. Também
como eu sentiria desejo se a minha mente estava em um turbilhão de
pensamentos, causados pelo transtorno de ansiedade e baixa autoestima? Se
eu ganhava a vida com minha aparência e meu corpo não voltou a ser como
era antes da gestação, assim tão rápido?
Também enfrentei o dilema de voltar ou não ao trabalho, ciente da
pressão existente ao redor. Uma modelo precisava estar em sua melhor
forma após o parto, conciliando campanhas e editoriais com as passarelas e,
ainda conseguir ser uma boa mãe no final do dia.
Pelo menos aquele malabarismo todo me fez recobrar o ânimo antes
perdido.
Não fiz cirurgia plástica, mas contei com a ajuda de uma
fisioterapeuta especializada no tratamento da diástase retal.
Estendi o meu tapete de ioga no chão da varanda e me deitei de
barriga para cima, com os braços paralelos ao tronco, minhas pernas
elevadas e semiflexionadas, dando início a uma série de contrações
abdominais.
A minha mente vagou a anos-luz dali, recordando o primeiro dia de
exercícios, quando me deparei com algo que fez o meu coração gelar.
Parecia que havia uma espécie de alienígena, tentando abrir caminho para
fora da minha barriga. Lembrei também das palavras da minha médica ao
dizer que “Não há nada que possa fazer, a menos que faça uma
abdominoplastia”.
Por mais que eu fosse uma mulher vaidosa, a simples menção à
cirurgia plástica já me causava enjoo.
Camille, ao contrário de mim, já tinha se submetido a
procedimentos estéticos, e me incentivou a procurar um dos melhores
cirurgiões do mundo. Após uma avaliação criteriosa, ele chegou à
conclusão de que minha diástase era visivelmente menor, se comparado ao
de muitas pessoas que sofriam do mesmo problema.
Levei meses, mas consegui recuperar o tônus da região abdominal.
De repente, o celular começou a vibrar insistente. Olhei de relance
para a tela, cogitando ignorar a chamada, mas logo reconheci o número do
meu advogado.
— Bonjour, Marie. — A voz grave dele ressoou em meu ouvido,
provocando um calafrio ao longo da espinha. — Por que não me contou
que pretende tornar público o assédio sexual sofrido no passado? Não
achou suficiente compartilhar relatos anônimos recebidos em sua rede
social?
Patrick não cedeu à pressão para liberar antigas agenciadas da
obrigatoriedade legal de manter o sigilo sobre o acordo, que incluía
cláusulas que as impediam de relatar detalhes das “atividades pessoais,
sociais ou comerciais” dele.
— Mas agora eu já sou reconhecida internacionalmente, doutor. Não
acho justo me calar por tanto tempo, quando existem outras vítimas além de
mim e que ainda continuam na agência.
Nós compartilhamos informações umas com as outras, e sabia que
de alguma maneira a imprensa tomaria conhecimento e podia querer
investigar isso mais a fundo.
— Qualquer manifestação pública pode resultar em ação legal,
embora ache pouco provável que isso aconteça. Seria como admitir culpa,
em certo sentido.
Eu levantei a cabeça e olhei para o teto, deixando escapar um longo
suspiro.
— O meu maior erro foi ter aceitado um acordo de indenização...
Parecia a melhor opção para mim na época ter deixado uma parte
sombria da minha vida para trás, sem ter que revisitá-la constantemente, nas
sessões de terapia.
Cogitei realmente em processar a New Look Models, mas o acordo
de confidencialidade se tornou um fardo pesado demais para carregar.
Modelos trabalhavam como prestadores de serviços independentes e tinham
poucas proteções legais. Recebi um pagamento pelo meu silêncio, que se
estendia até às pessoas próximas, que jamais puderam saber o motivo de
minha saída, “por respeito à privacidade dos envolvidos”.
Não pude desabafar com ninguém, nem mesmo com Jean-Luc, que
já nutria certa antipatia pelo meu ex-agente. Também omiti a verdade do
meu pai. Quando o Guia Michelin concedeu as três estrelas, ele fez um
jantar especial no bistrô. Patrick compareceu como um de seus convidados
mais ilustres. Eu me lembrei de tê-lo visto bajulando meu pai, e se
intitulando um dos responsáveis pelo seu sucesso.
A noite mais torturante da minha vida ficou marcada por três idas
consecutivas ao banheiro.
O ato de colocar para fora não apenas o alimento, mas também as
palavras não ditas.
— Marie, você está me ouvindo? — A voz do meu advogado me
tirou dos devaneios. Eu me limitei apenas a murmurar um “Oui”. — A
produção de provas, em se tratando de assédio sexual, sempre é difícil, e
você ainda não conseguiu convencer outras vítimas a denunciá-lo.
Especialmente novas vítimas, porque o prazo prescricional para
assédio sexual era de apenas seis anos.
— Então o que sugere que eu faça? Patrick me disse que usaria algo
contra mim. Mas eu não faço a menor ideia do que seja.
— Tem certeza de que não há nada que ele possa usar contra você?
— Ele pode estar blefando, mas também pode ter lá um fundo de
verdade.
— Melhor se resguardar, então. E, por favor, não tome decisões sem
me consultar antes. D’accord?
— Sim, tudo bem. A gente se fala depois... Salut. — E desliguei.
De repente, eu escutei a porta que dava acesso à varanda se abrir e
então a babá apareceu, seguida por Benjamin, que correu em minha direção,
cheio de energia. Eu fiquei de joelhos no tapete de yoga, com os braços
estendidos, ansiando poder dar um abraço bem apertado nele.
— Que tal a gente sair para um passeio hoje? O dia está tão lindo!
— Super! Allez zou! — concordou meu filho, saltitando
alegremente.
— C’est parti! — Em um movimento rápido, eu carreguei Benjamin
no colo, e fiquei de pé, para em seguir dar as instruções para a babá: —
Agnès, você pode pegar as coisas dele, por favor? Eu vou só colocar uma
jaqueta e os óculos escuros.
— Perfeitamente, senhora. — Ela era uma mulher de meia-idade, os
cabelos já grisalhos nas têmporas, de estatura mediana e pele clara, cujo
rosto expressava, simultaneamente, ternura e autoridade.
Benjamin começou a agitar os braços e as pernas, mal contendo o
entusiasmo.
O motorista já estava à minha espera na garagem, junto com Bruce
Staden.
Mesmo sob as lentes escuras dos óculos de sol, ainda podia sentir o
peso do olhar penetrante do meu segurança, que passou a avaliar o meu
corpo, minunciosamente. Merde! Eu devia ter trocado de roupa. Ainda
usava o look fitness, composto por um sutiã esportivo, calça legging preta e
tênis de alto desempenho.
O top destacava o contorno dos seios, os mamilos já duros por causa
do frio pareciam dois faróis cegando-o momentaneamente, mas ele piscou
por alguns instantes, antes de baixar o olhar para o meu abdome tonificado,
até se deter na curva perfeita do quadril.
Um brilho diferente espreitava a íris verde, o qual eu não ousaria
identificar.
Bruce Staden passou a trabalhar integralmente para mim e me
tratava com o maior respeito possível. Mas ele ainda era um homem. E
como todo homem, se sentiria tentado a olhar para trás quando passasse por
uma mulher atraente na rua.
As modelos naturalmente atraíam os olhares por onde passavam,
fossem de cobiça, desejo, admiração ou até mesmo de inveja. Eu precisei
criar uma couraça desde os 15 anos de idade, quando o meu corpo de
menina-mulher passou a estar sob o escrutínio de fotógrafos, agentes,
estilistas, entre outros profissionais da indústria.
Os dois homens me cumprimentaram com um aceno de cabeça.
— Eu vou fazer um passeio com meu filho, mas será aqui perto
mesmo.
— Quer que eu os acompanhe?
— Acho que não será necessário. — Respondi, sorrindo
timidamente.
— Está certa disso? — Ele franziu a testa como se percebesse a
minha incerteza.
— O meu filho não sairá de perto de mim, não se preocupe. — Pelo
canto do olho notei a aproximação da babá que carregava o meu filho nos
braços.
— Se a senhora insiste... — murmurou, enquanto abria a porta da
minivan preta.
— Preciso que fique à disposição, porque irei a um evento logo mais
à noite... Não sei se o meu marido vai conseguir chegar a tempo para me
acompanhar. Tudo bem?
— Perfeitamente. — Bruce então segurou a porta para que eu
pudesse passar, mas rapidamente virei o meu corpo de lado, antes de subir
os dois degraus acarpetados da van, e me acomodei na primeira fileira.
Se eu subisse de frente, minha bunda ficaria toda projetada para trás.
Bruce se despediu de Benjamin acenando do outro lado da janela, e
meu filho também fez o mesmo.
Nós passamos primeiro em uma boulangerie local para comprar pão
fresco, queijo e frutas e depois seguimos até Bois de Boulogne, a segunda
maior zona verde de Paris, onde famílias podiam estender um cobertor e
saborear uma boa refeição, enquanto as crianças se divertiam.
— Sente-se aqui no meu colo, Ben. — Bati as mãos de leve nas
coxas, antes de ajeitar meu menino entre as pernas, e envolvi seu ombro
estreito em um abraço apertado. — Tem algum lugar que queira ir hoje?
Não parece muito animado...
— Oui, maman! — Confirmou, estreitando os olhos luminosos para
mim. — Cité des Sciences.
— Impressionante como ele nunca se cansa de ir para a Cidade das
Ciências. — Agnès comentou, apoiando as mãos na cintura numa espécie
de desafio descontraído.
— A gente só tem 1 hora e meia para visitar a exposição... —
ponderei enquanto consultava o meu relógio de pulso, calculando quanto
tempo tinha para ir até o museu e depois voltar para casa e me arrumar para
o evento. — O que você acha, Agnès?
— Vamos logo, mamãe! — disse ele impaciente, ao se levantar, e
me puxou pelo braço. Apesar de ser um pouco distante da cidade, valia a
pena passar o dia, observando meu filho explorar o espaço na companhia de
outras crianças de sua idade.
Nós três caminhamos à beira do lago, observando a movimentação
intensa ao redor. Algumas pessoas passeavam de barco, outras praticavam
slackline, tentando se equilibrar em cima de uma corda esticada entre duas
árvores, e ainda havia quem simplesmente apreciava a vista ou brincava
com seus animais de estimação.
— Marie, até que o parque não está tão cheio assim, concorda? —
comentou Agnès, enquanto empurrava o carrinho de bebê.
— Verdade... — murmurei, distraidamente, no exato instante em
que senti alguém se esbarrar em mim. Proferimos um pedido de desculpas
ao mesmo tempo e, quando nossos olhares se encontraram, o
reconhecimento mútuo foi imediato.
— Désirée Guillaume? — Ela aparentava estar igualmente surpresa
e demonstrou isso ao arregalar os olhos.
— Quelle surprise! Faz um algum tempo que não nos vemos... —
Ela então estreitou os olhos para o carrinho de bebê e perguntou: — Seu
filho é mesmo muito bonito. Quantos anos ele tem?
— É uma pessoinha de dois anos e meio com altas habilidades.
Notei a sobrancelha dela se arqueando em um arco perfeito,
enquanto sua boca se curvava ligeiramente em um sorriso enigmático.
— Sinta-se privilegiada, chérie.
— E seus filhos estão com você? Ah, ali estão eles! — Acenei para
as duas crianças, paradas a uma curta distância, acompanhadas pela babá.
— Não esperava revê-la antes da festa da L’Beauté Paris, mas acho
que não terei outra oportunidade para falar a sós com você.
A minha cunhada promovia um mega evento, celebrando mais um
ano como parceira oficial da semana de moda de Paris, e às vésperas do
desfile de moda da marca.
— Agnès, você pode nos deixar a sós por alguns instantes?
— Mas é claro, Marie... Eu vou aguardá-la no carro, então.
Eu me inclinei junto ao carrinho e dei um beijo na testa de
Benjamin, dizendo:
— Promete que vai me esperar no carro, com toda a paciência do
mundo? Se você se comportar vai ganhar o seu sorvete favorito, na volta
para casa. O que acha?
— Oui, maman! — confirmou, balançando a cabeça e me
repreendeu com um olhar, suas sobrancelhas unidas numa linha fina. — Eu
sou muito bonzinho. Vou me comportar, juro.
— Eu sei disso, mon petit génie — falei, fazendo cócegas nele, que
passou a se debater, rindo à gargalhada. — A gente se vê depois. Não
demoro.
Observei os dois se afastar, seguindo em direção à saída do parque.
— Então, Désirée... — Tomei a iniciativa de romper o silêncio,
curiosa, ao cruzar os braços sobre o peito. — O que você tem de tão
urgente para falar comigo?
— Eu soube que você mobilizou outras meninas a denunciar
anonimamente assédios sofridos na indústria, com uma campanha chamada
“Exponha seus porcos”.
— Exatamente. Quem sabe assim as autoridades possam investigar
os suspeitos e responsabilizá-los pelos seus atos nojentos?
— Não acha que já tem problemas demais para resolver não, chérie?
— perguntou, em voz baixa e num tom que soou ameaçador demais. Engoli
em seco, tentando desfazer o grande nó que se formava em minha garganta.
— Faz ideia das consequências que isso pode trazer para sua vida?
— Você ainda consegue ser pior do que todos eles. — Eu lhe lancei
um olhar de puro desprezo.
Seus lábios vermelhos e cheios de botox delinearam um sorrisinho
mordaz.
— É muita hipocrisia de sua parte expor uma agência que te
proporcionou tantas coisas. Se você estava tão descontente assim, por que
continuou trabalhando para nós?
— Porque eu amo o que faço, e tenho o direito de lutar por
condições dignas de trabalho. Ainda existem pessoas sérias neste meio,
apesar de tudo.
— A imprensa tem feito perguntas demais. Patrick e eu cuidamos da
sua carreira durante cinco anos. Sabia que nós podemos abrir um processo
contra você?
— Eu já recolhi dezenas de depoimentos nas últimas semanas. É só
questão de tempo para mover uma ação coletiva. Não pense que serei a
única a prestar queixa.
— Aí que você se engana. Duvido que consiga formar um exército
de justiceiras. Elas não são supermodelos como você, e ainda têm algumas
contas a mais pra pagar.
As lágrimas já ameaçavam rolar pelo meu rosto, tomada por uma
onda de ressentimento e indignação, a ponto de o sangue ferver nas veias.
Inclinei minha cabeça para o lado, e a encarei com um levantar de
sobrancelhas — a um só tempo —, curiosa e incrédula.
— Parece que sua fidelidade a Patrick é mesmo inabalável. Eu andei
pensando muito sobre o que me disseram uma vez... — Coloquei minha
mão no queixo, fingindo estar pensativa. — Será que vocês dois são
amantes até hoje? — Eu nem precisava de uma resposta, pois seu olhar
alarmado já me dizia tudo.
Patrick já era divorciado há alguns anos, enquanto que Désirée
enfrentou algumas crises no casamento, embora ela nunca tenha chegado a
se separar realmente.
Os músculos tensos de seu rosto, marcado por linhas finas de
expressão, contrastavam com sua aparente calma e indiferença.
— E quanto a você, Marie? Vai me dizer que nunca traiu o seu
marido?
— Mas que absur... — Tentei protestar, mas fui interrompida por
ela.
— Veja bem, chérie. Eu não me surpreenderia, afinal, os rumores
envolvendo o clã Saint. Vincent Laurent são sempre abafados pela
imprensa. Mas também, o seu sogro e seu marido controlam grandes fatias
dos meios de comunicação...
— Cale a sua maldita boca! — Ameacei, sentindo o rosto queimar,
convulsionado pela raiva. Ela tinha a sorte de estarmos em um lugar
público, pois do contrário, sentiria bem o peso da minha mão. — Eu amo
meu marido. Jamais seria infiel a ele .
— Acho comovente sua honestidade, Marie. — Percebi uma nota de
ironia na voz dela. — Como pode ser tão linda, e tão extremamente tola, ao
mesmo tempo?
— Como assim? — A minha voz saiu trêmula e quase inaudível.
— Você poderia ter sido uma boa menina... — O que diabos ela quis
dizer com isso? — Eu nunca vou entender essa obsessão doentia que
Patrick tem por você. Nem imagina do que ele é capaz... À bientôt. —
Désirée me dirigiu um olhar carregado de cinismo, antes de virar as costas e
sair andando, sem sequer olhar para trás.
Quer dizer então que, na visão dela, eu devia ter cedido às
investidas dele, quando tinha apenas 15 anos? Ainda mais com um homem
com idade para ser o meu pai?
De repente, a bile subiu à garganta, então corri até a lixeira mais
próxima do parque para vomitar, mas nada saiu além de suco gástrico,
deixando um gosto terrivelmente amargo na boca.
Capítulo 25

Marie-Claire

Tirei o cabide do suporte e observei atentamente o vestido Atelier


Versace. O modelo longo feito em organza e manga drapeada deixava
pouco para a imaginação. Era bem transparente e com detalhes que iam
desde o busto até o comprimento, formando um bordado repleto de cristais
Swarovski. O vestido em tonalidade nude se ajustava às minhas curvas, sua
saia longa se arrastava no chão e tinha uma fenda na altura da coxa.
Havia mais pessoas no 'quarto da beleza': Agnès, Benjamin, o
maquiador, o cabeleireiro e minha stylist, uma ex-editora que ajudava suas
clientes na escolha dos melhores looks para grandes eventos mundo afora.
Eu confiava nela de olhos fechados, mas não custava nada ter uma segunda
opinião.
Como Jean ainda não voltou de Cannes Lions, o maior e mais
prestigiado festival de publicidade do mundo, só restava contar com
Camille e seu olhar apurado para as tendências do momento.
Agnès mostrava para meu filho os quadros de moldura branca,
dispostas em uma das paredes, com todas as capas de revista em que fui
retratada ao longo dos anos.
— Gostou dessa? — Ela apontou para uma das minhas imagens,
mais precisamente da época em que usava um corte de cabelo Chanel.
Benjamin respondeu um sonoro “sim”, com os olhos brilhando de
admiração.
— Também gostei dessa capa, chéri! — Meu cabeleireiro comentou
se expressando de um jeito afetado que lhe era tão característico. — Eu
acho que ela passa aquele conceito de doçura e encanto próprio de uma
menina-mulher.
— Mas maman é linda de qualquer jeito, sabia?
— Sim, eu sei disso. Cuido das madeixas dela há anos, mon p'tiot[14].
Você nem sonhava nascer!
Todos caíram na gargalhada, até mesmo Benjamin.
Camille finalmente atendeu a chamada de vídeo, na verdade alguém
atendeu por ela, porque estava no meio de três pessoas que faziam o seu
penteado, sua maquiagem e ainda cuidavam de suas unhas.
— Eu não acredito! Parece que você está mais adiantada do que eu,
Marie!
— Acho que é impressão sua, mon amie. Sempre falta alguma coisa.
E minha make será mais simples, com olhos esfumados, lábios em tom
nude e cílios longos.
— Meu sobrinho está aí com você? Escutei a voz dele ao fundo...
Eu me posicionei ao lado de Agnès, que ainda carregava meu filho,
esticando o braço o máximo possível para enquadrar a todos, na câmera
frontal.
— Já estava morrendo de saudade, mon trésor! — Camille então
soltou beijos no ar para ele. — Olha só como sua tia está linda esta noite!
— Fez uma pose afetada, seus lábios pintados numa cor próxima ao laranja
formavam um biquinho, o queixo fino todo empinado e, para completar,
piscava os cílios longos, espessos e escuros.
— Você é maravilhosa, tata! E está muito chique.
— Un immense merci, mon amour!
— Quero que você veja o meu vestido... — Eu me dirigi até o lado
oposto e apontei a câmera para o modelo assinado por Donatella Versace.
— O que achou?
— Oh là là! — Ela aproximou o rosto da tela para ver melhor os
detalhes do bordado de cristal Swarovski. — Vai ficar estonteante nele,
Marie! Acho melhor levar um dos babadores de Benjamin. Meu irmão vai
passar a festa inteira babando por você!
Risadinhas discretas se espalharam pelo cômodo, diante do
comentário dela.
— Ainda nem sei se Jean vai conseguir chegar a tempo para ir à
festa...
De repente, nós ouvimos o som de alguém pigarreando, seguido
pelo barulho da porta se abrindo, revelando quem eu tanto aguardava
naquela noite.
Jean colocou a cabeça para dentro do quarto e disse, com sua voz
grave e sexy:
— Excuse-moi. Escutei alguém falar o meu nome. Posso entrar?
— Claro que sim! — disseram todos, em uníssono.
— Papa! — Quando a babá colocou Benjamin no chão, ele já foi
logo correndo na direção do pai. — Você voltou! Você voltou!
— Eu disse que viria o mais rápido possível. — Jean abriu um largo
sorriso para o filho, antes de carregá-lo no colo e lhe deu um beijo no topo
da cabeça, cheia de cachinhos escuros. Só então reparei que segurava uma
estatueta dourada em forma de leão, conhecida entre os publicitários como
“Leão de Cannes”. — Ego Media ganhou novamente o prêmio máximo,
mas também vencemos em outras cinco categorias!
Uma salva de palmas se seguiu, acompanhada por assobios
estridentes.
— Parabéns, papa! — Benjamin deu um beijo estalado no rosto do
pai, que sorriu feito um bobo.
— Félicitations! — Todos os presentes parabenizaram meu marido,
em uníssono.
Jean agradeceu e logo se fez um silêncio pesado de antecipação. Ele
lançou um olhar curioso para minha equipe e, então, fez uma pergunta no
mínimo estranha.
— Vocês podem, por favor, me deixar a sós com minha esposa? —
Ele então passou nosso filho para os braços de sua inseparável babá.
Eu engoli em seco, com o coração batendo tão descompassado, a
ponto de quase não conseguir respirar direito.
— Ainda nem terminei de me arrumar... — murmurei, ao baixar o
olhar para o robe de seda cor-de-rosa. — E você precisa tomar um banho e
trocar de roupa, amour.
— Mas já começaram a cuidar da maquiagem e do cabelo...
Correto?
— Sim, monsieur. — Confirmaram os profissionais. Eles se
entreolharam confusos, sem saber como reagir àquela situação. — Já
finalizamos, praticamente...
O meu cabelo ganhou centímetros consideráveis graças à extensão
de clips, e estavam presos em um rabo de cavalo alongado e reto, caindo no
meio das costas.
— Mas às vezes é necessário fazer algum retoque... — A minha
stylist interveio a favor deles, pensando que talvez pudesse dissuadir meu
marido.
Mal sabia ela que, Jean enxotaria todos eles dali, sem nem pensar
duas vezes.
— Mas a gente separa sempre uns 20 minutinhos, no máximo. — O
maquiador se apressou em dizer, usando um tom mais conciliador.
Havia toda uma preparação para estar nos eventos mais importantes
do mundo e meu marido sabia bem disso, mas sempre dava um jeito de
interromper porque, nas palavras dele, “quero que todos sintam o meu
cheiro impregnado em você aonde quer que vá”.
Bastou seu olhar sombrio cruzar com o meu para ser atingida por
uma fisgada violenta no clitóris. Era evidente que Jean não sairia dali sem
satisfazer sua vontade de tomar o que era dele; até que seu pau estivesse
enterrado até o talo, entrando e saindo de dentro de mim como se sua vida
dependesse disso.
Como se fosse a última foda de nossas vidas.
Um pressentimento muito ruim me invadiu, de repente, trazendo
com ele um arrepio gélido na nuca, que se dissipou, tão rápido quanto havia
surgido.
— Vocês podem nos deixar a sós por alguns minutos? — perguntei,
com a respiração suspensa por uma fração de segundo, cheia de ansiedade.
Todos concordaram e saíram rapidamente do quarto.
Eu me virei para ele, colocando as mãos nos quadris, um brilho de
divertimento surgiu nos olhos, enquanto balançava a cabeça numa censura
fingida. Eu estava plena por fora, mas por dentro meus órgãos preparavam
um verdadeiro abalo sísmico. Meu coração batia tão rápido, como se a
qualquer momento rompesse os tímpanos, totalmente consciente da névoa
de luxúria densa que pairava naquele quarto.
— Impressionante como consegue mandar todos embora, só para
ficar sozinho comigo... A gente vai acabar se atrasando para a festa da
L’Beauté, de novo.
— Pode me chamar de egoísta, porque é isso o que eu sou, mon
amour. — Ele cruzou a pequena distância que nos separava e me puxou
para junto de si. Uma de suas mãos serpenteava minhas costas, enquanto a
outra ainda segurava a estatueta dourada. — Só vai sair daqui quando
estiver impregnada com meu cheiro. — O atrito da barba contra a lateral do
meu rosto enviou ondas de pulsação rápidas e agudas até meu centro de
prazer.
Jean passou a mordiscar o meu lábio inferior, enquanto eu sugava
seu lábio superior. Uma mistura de pastilha de menta e cigarro, mesclado à
fragrância sensual do Dior Sauvage invadiu minhas narinas, me levando a
impulsionar meu quadril contra a calça dele, enlouquecida pela ereção
pulsante roçando gostoso entre minhas pernas.
— A gente não tem muito tempo, Jean. — A voz saiu rouca e baixa,
enquanto virava de costas e o puxei bem firme pela gravata. — Me fode
rápido e com força... Allez! — Exigi, esfregando minha bunda de um jeito
tão gostoso, que seu pau respondeu ao estímulo de imediato, pulsando
violentamente contra a cueca boxer.
— Então fecha os olhos e não se mexa... — Um gemido
estrangulado quase escapou da garganta. Não tinha sido um pedido, mas
sim, uma ordem. Embora não soubesse o que ele tinha mente, aquela
imposição só me deixou ainda mais excitada.
— Eles já estão fechados, amour. — A respiração entrecortada e
quente contra minha nuca provocou um sutil estremecimento ao longo da
espinha. De repente, escutei um ruído de algo sendo puxado, seguido pela
suavidade do tecido que deslizou pela minha testa. — Está mesmo
vendando meus olhos? — Arfei meio engasgada. Mon Dieu!
Àquela altura, eu fui invadida por uma onda de calor subindo o
estômago, acompanhada pelo eriçar dos pelos da nuca e do bico dos seios.
Senti uma de suas mãos resvalando para dentro do meu robe de seda, até
alcançar o tecido rendado do sutiã. Ele espalmou um seio seguido do outro,
massageando e apertando sem a menor delicadeza. Os mamilos ficaram
durinhos e sensíveis, enquanto Jean deslizava levemente o dedo à volta das
aréolas, prolongando aquela tortura deliciosa.
— Está me torturando, Jean... — Choraminguei de forma manhosa.
Meu clitóris já pulsava como nunca, ante a expectativa do que estava por
vir.
— Eu amarguei uma longa espera só para sentir meu pau enterrado
bem fundo em sua boceta inchada e tão minha, amour. — Sussurrou ele,
próximo ao ouvido, enquanto me pressionava de encontro ao peito, que
irradiava calor. — Aposto que está bem molhada agora...
Soltei um arquejo, assim que seus dedos percorreram meu abdome
até desfazer o nó do robe. Eu me sentia tão vulnerável por estar apenas de
calcinha e sutiã, especialmente quando ele prendeu meus braços atrás das
costas para me imobilizar.
Adorava ser surpreendida com uma pegada firme por trás.
— Por que não implora para que eu te foda contra o espelho? — Ele
encostou seus lábios na curva do meu ombro, dando beijos quentes e
úmidos, entremeados por mordidas leves.
— Mas é você que está louco para me comer por trás...
Como resposta àquela provocação, Jean me empurrou para frente e
logo senti a superfície fria do espelho de corpo inteiro roçando os meus
seios, minha barriga, e minhas coxas, fazendo a lubrificação natural fluir
cada vez mais na calcinha rendada.
— Eu vou socar tão rápido e forte, que os seus gritos se farão ouvir
por todos que estão te esperando lá fora. Ouviu bem? — Gemi de novo,
com meu rosto ainda pressionado contra a parede espelhada. Jean puxava o
meu cabelo com uma mão e estapeava a minha bunda com a outra, forte o
bastante para causar uma ardência na pele.
— Você está falando demais e fazendo de menos... — Ouvi uma
espécie de rosnado saindo de sua garganta, em resposta ao meu
atrevimento.
— Empina essa bunda gostosa pra mim, amour.
Eu que não me atreveria a desobedecê-lo, levando em conta que só
recentemente rompi com o jejum de quase três anos sem sexo. Arrebitei
bem o traseiro, deixando-o completamente à disposição dele, que num
único movimento baixou minha calcinha até os joelhos e arrancou o fecho
do sutiã.
Meus olhos permaneciam vendados, mas os ouvidos continuavam
atentos ao menor de seus gestos. A minha boceta já estava tão encharcada e
receptiva à invasão deliciosa do pau dele, que vibrava em espasmos
violentos, como eu jamais senti antes.
— Afaste mais as pernas, mon amour... — De repente, eu senti as
mãos dele espalmarem a carne macia dos glúteos, passando pela parte
interna da coxa, até alcançar a vulva, recém-depilada e sensível. — Eu
quero que você goze com os meus dedos atolados em sua boceta... — Ele
aumentou a pressão dos dedos pela vulva, friccionando os pequenos lábios
e o clitóris, alternadamente.
Meu corpo inteiro se contorceu, tomado pela onda avassaladora que
antecedia o orgasmo.
— Oh, mon Dieu... — Choraminguei, manhosa, enquanto tentava
em vão juntar as pernas, os músculos tremiam de maneira perceptível.
— Assim mesmo, goze bem gostoso, amour. — Soprou rouco em
meu ouvido, enquanto os espasmos me sacudiam, violentamente.
Balbuciei algo ininteligível, quando me esbarrei em um banquinho,
mas usei ele de apoio, deixando a perna arreganhada, mal contendo a
ansiedade de sentir a invasão deliciosa do pau rijo e pulsante.
— Essa espera está me consumindo... Me fode logo! — protestei
inconsolável. Jean riu contra minha orelha, claramente se divertindo às
minhas custas.
Pensei que minha alma sairia do corpo, quando ele apontou a
glande em direção à vagina quente e úmida, entrando de uma só vez e
preenchendo-a até o limite. Afastei mais as pernas, enquanto meu marido
socava o pau grosso sem dó, arrancando gemidos delirantes, e cada vez
mais altos, bem no fundo da garganta.
— Mete com força, amour... Isso, plus fort! — sussurrei ofegante, o
suor já se espalhava pela lateral do rosto, fazendo alguns fios do aplique
grudar na pele.
Uma das mãos grossas espalmava um dos seios, enquanto a outra
segurava o meu quadril com firmeza, o único som que prevalecia no quarto
era o de suas bolas batendo contra minha bunda, conforme seu pau entrava
e saía, repetidas vezes. Mas Jean gradualmente diminuiu o ritmo, ciente de
que seria incapaz de retardar a ejaculação.
— Você vai gozar junto comigo, não vai? — Era tudo o que
esperava ouvir.
— Oh, Jean... — Ergui o braço direito, passando a mão por trás do
pescoço dele, com os dedos afundando nos fios lisos e espessos, e os puxei,
com força. — Oui!
Senti meu corpo flutuar, com a onda de prazer evoluindo numa
crescente até ser sacudido em espasmos violentos, ao mesmo tempo em que
ele urrava em prazer absoluto, explodindo dentro de mim num gozo
prolongado.
Nós dois não conseguimos parar de rir, enquanto tentávamos
recuperar o fôlego. Passados alguns instantes, Jean me virou para ficar de
frente para ele, em seguida passou o braço ao redor da cintura esguia e me
puxei de modo firme contra si.
Um arrepio varreu todo meu corpo, assim que escutei o que parecia
ser um grunhido meio assustador, seguido pela pressão implacável dos
lábios grossos contra os meus, que estavam entreabertos e trêmulos, a
língua sedenta dele abria caminho pelo interior úmido e me devorava
inteira, me roubava o fôlego, tomava tudo de mim.
Ele interrompeu o beijo, e me encarou, com um brilho intrigado nos
olhos.
— Eu sei que você vai usar aquele vestido sexy que deixa pouco
para imaginação. — A expressão sombria e impenetrável do rosto dele
acionou logo um sinal vermelho em minha mente. — Não vão faltar
homens cobiçando o que é meu. Aquele seu guarda-costas americano...
— Está com ciúme? — perguntei, piscando os olhos, incrédula. —
Jean, isso definitivamente não combina com você. Eu estou nua e
vulnerável aqui, enquanto que você só se despiu pela metade. Quer prova
de amor maior do que essa?
— Me perdoe, por favor... Não tive a intenção de ofendê-la. — Senti
a lufada de ar quente sobre o meu rosto, fazendo os pelos dos braços
eriçarem, e um arrepio percorreu minha coluna.
Quando ele estava prestes a me beijar, eu desviei o rosto,
bruscamente, e comecei a recolher as minhas peças íntimas do chão.
— Preciso que chame o pessoal de volta. Talvez este evento não
signifique nada para você, mas para Camille significa muito. E caso não
saiba, eu tenho orgulho de ser embaixadora da L’Beauté Paris.
— Tive um dia cheio, apenas isso. Embora não justifique, falei sem
pensar.
— Você realmente deve estar muito cansado depois desta viagem.
Não precisa mais me acompanhar... Eu prefiro ir sozinha mesmo. —
Trêmula e atrapalhada, abri a nécessaire e tirei o batom, reaplicando
somente nos cantos da boca.
Eu observei o reflexo dele no espelho, que instantes atrás ficou
marcado pelo suor do meu corpo, proveniente de uma rapidinha
memorável. Desviei bruscamente o olhar, a garganta se fechou, trazendo
com ela uma sensação asfixiante no peito. Os meus olhos ardiam com as
lágrimas reprimidas, mas eu as sufoquei piscando diversas de vezes.
— E não se preocupe. O seu cheiro está impregnado em minha pele
e qualquer homem sentiria isso num raio de dez quilômetros.
Arrisquei um olhar na direção do meu marido, um homem tão
seguro de si e poderoso, sendo motivado por ciúme. Seu pomo de adão
subiu e desceu quando engoliu em seco e virou as costas, me deixando
sozinha ali, totalmente perdida em pensamentos.

Temos uma ilustração explícita dessa cena...


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@autora.mrbarbosa

Jean pelo visto levou a sério o que eu disse e não virá mesmo. —
Pensei comigo mesma, bebendo o champanhe de um gole só.
Coloquei a taça vazia na bandeja de um garçom que passava por
mim e acabei pegando mais uma só por impulso, mesmo ganhando um
olhar reprovador de Camille, que por sinal estava deslumbrante com seu
vestido Schiaparelli amarelo-canário. O modelo, em cetim de seda e
organza, tinha mangas volumosas e transparentes alcançando o chão,
destacando as plumas bordadas, além de um ousado recorte no busto e saia
de comprimento midi toda bordada com strass.
Minha cunhada fez o possível para eu não me sentir sozinha entre
seus convidados.
— Ainda não acredito que Jean-Luc vai me fazer a desfeita de não
vir à festa por causa de um ciúme bobo... — Ela deixou escapar um suspiro,
inconformado e perfeitamente audível.
— Ele deve estar se arrumando ainda, chérie — ponderou o
namorado, que devia ter dez anos a menos do que ela. Pierre Bourdieu
trazia aquela jovialidade marota no sorriso e no olhar. — E veja bem, a
festa está apenas começando... — completou enquanto passava os dedos no
cabelo curto, cacheado e de tonalidade ruiva. — Relaxe.
— Eu já tentei ligar inúmeras vezes, mas só deu caixa postal... Ele
também nem retornou minhas mensagens. Merde! Mas que homem
orgulhoso, francamente.
Um músculo se retesou no maxilar, mas eu emiti um suspiro
profundo, embora o longo sopro de ar não fosse capaz de me estabilizar.
Pensei ter visto Patrick entre os convidados, assim que eu cheguei, mas
talvez eu tenha me enganado. Désirée apareceu acompanhada pelo marido,
um renomado advogado e parlamentar, cotado como favorito para assumir o
cargo de primeiro-ministro.
— Talvez Jean quisesse colocar nosso filho para dormir, antes de
vir, quem sabe? — Dei ênfase e profundidade à voz, mas um leve tremor
me percorreu da cabeça aos pés, trazendo consigo uma sensação incômoda
bem no fundo da alma.
Pelo menos Bruce Staden se mantinha por perto, garantindo minha
segurança.
Passei os minutos seguintes agindo praticamente no piloto
automático: posei para fotos, junto com outras embaixadoras da L’Beauté
Paris, concedi entrevistas para os jornalistas presentes no local, e ainda
conversei com alguns profissionais da moda.
Quando perguntada sobre a ausência do meu marido, eu apenas
respondia: “Jean-Luc acabou de voltar de Cannes Lion, que é a maior
premiação do setor de publicidade e marketing, então ele decidiu ficar em
casa com nosso filho”.
Não me conformava em fingir uma aparente naturalidade, quando
no fundo amargava um arrependimento brutal por ter dispensado a
companhia do homem que eu amo.
O tempo não se arrastaria indefinidamente durante as conversas
tediosas, o seu braço forte em volta da cintura serviria como uma âncora,
me trazendo de volta à realidade.
Já estava a caminho do banheiro, quando subitamente senti o celular
vibrar dentro da bolsa carteira. Minha mão tremia, enquanto segurava o
aparelho e desbloqueei a tela, desfrutando meio segundo de satisfação, até
que me deparo com uma notificação de mensagem.

Número desconhecido: Encontre-me no jardim


da universidade em dez minutos. Tenho algo de
seu interesse.

Cogitei ignorar e excluir a mensagem, mas mudei de ideia. Eu


precisava ter certeza se minhas suspeitas estavam certas. Não seria a
primeira e nem a última vez que Patrick tentava se comunicar comigo,
usando um número não identificado.
Digitei rapidamente a seguinte resposta:

Eu: Será que é quem eu estou pensando?

Segundos depois, uma nova notificação surgiu na tela.

Número desconhecido: Veja por si mesma.

Eu: Não posso sair assim. Meu segurança não


tira os olhos de mim.

Número desconhecido: Aproveite algum


momento de distração dele e não demore!
Fils de pute! O que diabos ele quer de mim, afinal?
Avistei meu guarda-costas a curta distância, sempre atento aos
paparazzi.
Consegui abrir caminho entre o grupo de pessoas que conversava
alegremente no salão, e me aproximei discretamente de Camille, que
concedia uma entrevista junto à Diretora de Operações da L’Beauté Paris.
Não demorou cinco minutos, e fiz um sinal discreto com a mão, para ela
sair de perto da mulher, assim poderia conversar a sós com ela.
— Aconteceu alguma coisa, Marie? Você está tão pálida... — A voz
dela saiu baixa, quando se inclinou para frente, assumindo uma postura
confidencial. — Conseguiu falar com meu irmão?
Franzi a testa e balancei a cabeça, quase que de modo imperceptível.
— O celular dele só dá caixa postal e não responde minhas
mensagens.
— Chéri, me parte o coração ver você assim tão aflita. — O toque
suave de sua mão em meu ombro provocou um leve, mas perceptível tremor
pelo meu corpo. — Acho isso um absurdo e uma falta de consideração
enorme! Ele ainda vai se ver comigo.
— Depois eu me entendo com Jean-Luc, ok? Ele é a menor das
minhas preocupações, agora.
Jean sempre usou o silêncio de forma intencional, após uma
discussão.
— Se eu puder te ajudar de alguma forma...
— Preciso que mantenha Bruce Staden fora do meu alcance.
— Mas por quê? — Camille quase gaguejou, enquanto me encarava
com os olhos arregalados de espanto.
— Apenas faça o que estou te pedindo, por favor — respondi,
deixando escapar uma leve inflexão de impaciência na voz. — Só preciso
ficar sozinha um pouco... — Menti, deliberadamente, olhando bem nos
olhos dela, sem pestanejar.
— Está me escondendo algo? Se você me prometer contar tudo
depois...
Não tinha mais tempo a perder.
Murmurei um pedido de desculpas para ela e lhe dei as costas, mas
acabei me esbarrando em uma mulher. Era a supermodelo norte-americana,
Kate Seymour.
— Pardon... — Eu me desculpei com ela, fazendo um gesto
impaciente com a mão. — Pode me dar licença, Kate?
A minha colega estreitou os olhos para mim, franzindo a testa,
desconfiada.
— Mas para onde você está indo com tanta pressa assim, Marie?
— Eu não posso falar sobre isso agora. Com licença...
Ela abriu e fechou a boca várias vezes, mas, finalmente, se virou de
lado para me dar passagem. Eu caminhei depressa em direção aos fundos, o
som da música eletrônica e de pessoas conversando diminuiu gradualmente
até desaparecer, quase por completo.
Parei de andar, de repente, e olhei para os lados, com o coração
batendo descompassado no peito. Não havia ninguém por perto, e pensei
por um momento se fiz certo em sair do salão de festas para me encontrar
com Patrick, tendo em vista o lugar escolhido por ele: um jardim
parcamente iluminado por alguns postes de luz.
Quando eu estava prestes a dar meia volta e ir embora, um vulto
surgiu repentinamente das sombras, próximo a uma árvore.
— Aonde pensa que vai, Marie-Claire? — O tom grave e ameaçador
dele foi o suficiente para fazer o meu corpo se contrair e enrijecer de medo.
Respirei bem fundo, reunindo a coragem necessária para encarar o
homem, que já tentou abusar de mim no passado.
Capítulo 26

Marie-Claire

Patrick usava um terno Armani azul-escuro, com padronagem


xadrez, e sapatos de couro envernizado, mas o que mais me chamou
atenção foi seu Rolex de ouro brilhando em seu pulso esquerdo. Seus
cabelos lisos e curtos estavam mais grisalhos do que eu me lembrava, a
barba por fazer escurecia seu maxilar anguloso, realçando aquele charme e
virilidade que — para os homens —, só se alcançava com a idade.
— Por que não diz logo o que quer, e me deixa em paz?
— Désirée me contou que você incentivou outras modelos a
compartilhar anonimamente relatos de abuso e assédio sexual...
Modelos e ex-modelos dividiram suas experiências comigo, mas os
nomes dos acusados, inclusive o de Patrick, foram ocultados, por questões
de segurança e sigilo.
— Ficaria surpreso com o número de mulheres que fizeram
acusações contra você. Mas é só o começo de um longo processo judicial
que será movido muito em breve.
— Só porque elas fizeram um desabafo em sua rede social não
significa que apresentarão formalmente uma denúncia.
— Talvez algumas delas não queiram se manifestar, e tudo bem.
Não as julgo. Mas de minha parte, eu formalizarei uma queixa. Você ficou
intocável por tempo demais.
— Pretende reviver uma situação provocada por você mesma, em
um processo judicial, que tem tudo para não dar em nada? Já se passaram
tantos anos...
— O quê? — perguntei, meio engasgada, lançando um olhar
perplexo para o meu ex-agente. — Está insinuando que eu mesma
provoquei? Eu só aceitei a sua carona porque eu passei mal. Você se atreveu
a tocar nas minhas partes íntimas e, ainda por cima, trancou as portas, me
impedindo de deixar o veículo. Não fosse o spray pra garganta... — Um
soluço embargou minha voz mais do que eu gostaria. — Você podia ter me
estupra...
— Que absurdo! — Ele me interrompeu, de modo cortante. —
Assim você me ofende, chérie. Eu já te disse diversas vezes que não faria
nada que você não quisesse. — Fiquei enojada com seu tom paternalista.
— Como pode ser tão cínico? — perguntei em voz baixa,
entredentes. Ele fez menção de dar um passo em minha direção, mas parou
de imediato, quando elevei meu tom de voz, praticamente cuspindo as
palavras: — Não toque em mim! Você me dá nojo.
— Você faz ideia de com quem está se metendo? — O esboço de
um sorriso delineou os lábios finos, as mãos displicentemente enfiadas nos
bolsos da calça social.
A boca dele se retorceu em um sorriso cruel para ser mais exata.
— Sim, eu sei muito bem com quem estou lidando. Pode ser um
homem poderoso na indústria da moda francesa, com acesso aos melhores
advogados, mas nada vai me impedir de buscar que se faça justiça.
— E se eu te disser que possuo um material comprometedor sobre
você? — perguntou, tirando o aparelho do bolso do paletó, e prosseguiu
sem tirar os olhos da tela. — Mudaria alguma coisa entre nós dois? Quem
sabe podemos chegar a um acordo... Ah, achei algumas imagens, quer dar
uma olhada?
Uma onda de raiva me consumiu, então rapidamente apanhei o
celular das mãos dele para visualizar as fotos. Elas se resumiam a poses
sensuais, usando calcinha e sutiã em tule e renda com leve transparência.
Em outras, eu aparecia de camisola branca rendada e também com um body
bem cavado no quadril.
Eu me lembrava vagamente da sessão de fotos para uma campanha
de lingerie, quando eu tinha entre 15 e 16 anos. Fiquei receosa de fazer
aquele ensaio, mas o fotógrafo era muito influente no ramo, trabalhou com
algumas das modelos mais famosas do mundo, e soube conduzir bem a
situação.
Como modelo iniciante, às vezes tinha dúvidas quanto ao que era
considerado um pedido “normal” de um fotógrafo, mas jamais participaria
em sã consciência de uma sessão fotográfica envolvendo nudez.
Désirée apenas dizia que eu não podia ficar inibida, afinal as
modelos faziam várias trocas de roupa na frente de dezenas de pessoas,
fossem homens ou mulheres. E ainda me aconselhava a evitar dizer “não”,
para não parecer grosseira, porque ninguém gostava de trabalhar com gente
difícil.
Eu só tinha que tratar todos bem, esbanjar sensualidade e ainda
distribuir sorrisos nos estúdios e passarelas mundo afora.
Aparentemente, não havia nada de errado com aquelas fotos.
— Ele foi respeitoso comigo o tempo todo, Patrick. — disse,
devolvendo o celular para ele, com um gesto brusco. — Você estava lá e
acompanhou o ensaio do início ao fim.
— Ah sim, acabei de me lembrar. Não são imagens, mas sim,
vídeos, chérie. — Ele mexeu no aparelho e depois ergueu o braço,
reproduzindo um vídeo antigo.
Levei minha mão ao pescoço de maneira instintiva, e engoli em
seco, tentando inspirar profundamente, mas quase me engasguei, enojada.
Observei meu cabelo longo caindo de forma exuberante pelos
ombros, os lábios carnudos e bem desenhados estavam entreabertos, e os
olhos semicerrados, indicavam que eu estava semiconsciente.
Eu não reconheci aquela gravação, e muito menos me recordava de
estar deitada displicentemente no sofá, usando o mesmo body e com um dos
seios à mostra, quando fazer topless para uma sessão de fotos era algo
impensável na época.
Convites não faltaram para eu fazer um ensaio nua, mas eu recusei
todos eles.
Será que eu fui dopada? Por que eles fizeram isso comigo?
Tentei manter a calma, mas a cena mudou de repente, mostrando
uma mão repugnante e nojenta percorrendo o meu corpo, sem o meu
consentimento, do quadril até a cintura, e voltando a subir para apalpar os
seios — na verdade, ele brincava com eles.
— Você já viu o bastante — disse Patrick, abruptamente, colocando
o celular de volta no bolso.
— Por que fizeram comigo? — Avancei sobre Patrick, esmurrando
o peito dele, com uma força que o impressionou. — Anda, fala logo! —
Exigi, as gotículas de saliva atingiram em cheio seu rosto. — O que
aconteceu naquele ensaio, desgraçado?
Seria possível ser drogada, mesmo com um copo de água, e não
saber disso?
Ele tentou me segurar pelos braços, mas eu me desvencilhei, dando
um passo para trás, tomada por um sentimento horrível. Era um misto de
medo, arrependimento, preocupação e vergonha, mas não impus nenhuma
resistência às emoções conflitantes, permitindo que as lágrimas reprimidas
fluíssem livremente pelo meu rosto.
Eu me esforçava ao máximo para me concentrar, e extrair da mente
algum fiapo de memória daquele dia pavoroso.
— Não me lembro... Não me lembro de quase nada porque eu
apaguei...
— Por favor, Marie, sejamos razoáveis — ponderou ele, com os
lábios torcidos em um sorriso cheio de sarcasmo. — Você não vai querer
que algum membro de sua família, especialmente o seu filho, tenha acesso a
esse e outros vídeos explícitos, certo?
— Teria mesmo a coragem de me expor dessa maneira? —
perguntei, suspendendo a respiração por um instante.
Ele se limitou a me encarar com uma expressão imperturbável no
rosto.
— Isso só depende de você, chérie. E quanto ao grande chef Jacques
Leblanc...
Uma máscara de dor e revolta nublou minhas feições,
perceptivelmente.
— Você deu a sua palavra ao meu pai, lembra-se? Quantas vezes
você frequentou a casa dele, se dizendo guardião de sua filha adolescente?
Papa não podia me acompanhar em todos os ensaios, e você se
comprometeu a estar em alguns, garantindo que nada de ruim aconteceria
comigo. Quando ele souber quem você é de verdade...
Ele deu uma risada breve e destituída de humor, o que acabou me
assustando.
— Infelizmente eu vou perder um grande amigo, mas estou disposto
a pagar o preço. E quanto a você, Marie? Não seria melhor poupar sua
família?
Após sofrer um infarto, o meu pai implantou stents e um marca-
passo, passava por acompanhamento médico periódico e tentava controlar o
estresse. Enfrentar determinadas situações só agravaria ainda mais o seu
estado de saúde.
Apesar de ter apenas 2 anos e meio, Benjamin já tinha seu próprio
tablet, e mesmo que seu uso fosse limitado a apenas alguns minutos por dia,
quem podia garantir que ele não teria acesso ao conteúdo explícito? Ainda
por cima, imagens produzidas quando eu ainda era menor de idade, e sem o
meu consentimento?
Os efeitos seriam devastadores na cabeça de uma criança.
Fechei os punhos até sentir dor na junta entre os dedos.
— Très bien. Você venceu! — murmurei, sentindo uma onda de
impotência varrendo a minha alma. — Não vou mais levar a denúncia
adiante. Está satisfeito?
— Sempre tão sensata, chérie. Eu posso te dar um abraço?
Antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, Patrick se
adiantou e já foi logo me abraçando, seus braços pareciam tentáculos ao
redor do meu corpo, que paralisou e tremeu de medo, os braços esticados
para baixo e os punhos cerrados não ousaram fazer nenhum tipo de
movimento.
— Sinto falta daquela garota doce, meiga e ingênua pela qual me
apaixonei...
A minha boca se abriu e fechou várias vezes, mas nenhum som saiu
dela. Era como se um grito de indignação ficasse entalado em minha
garganta, dificultando a passagem de ar para os pulmões.
Mon Dieu! O que eu fiz para alguém me tratar ou me agarrar
assim?
Talvez fosse a maneira como eu me comportava ou como eu me
vestia, mas algo dentro de mim se recusava a acreditar que fosse minha
culpa.
— Solte-me, por favor — implorei, os olhos ardiam com as
lágrimas. — O que quer de mim?
— Quero que você seja boazinha como suas outras colegas... —
murmurou, com o hálito repugnante soprando em meu ouvido. Só de sentir
sua enorme ereção, já me subia uma forte ânsia de vômito.
Um grunhido rouco se fez ouvir no jardim, em resposta à excitação
dele. Senti sua língua pegajosa percorrendo um caminho da minha orelha
até quase o canto da boca. Eu nem consegui gritar, pois Patrick me apertou
ainda mais em seus braços, a ponto de provocar um estalo nos ossos. Minha
boca foi esmagada pela dele, que bateu contra os dentes, em um beijo
excessivamente rude e violento.
Não sei de onde tirei forças para manter os meus lábios fechados,
enquanto Patrick tentava enfiar a língua, sua saliva nojenta escorria
abundante pelo meu queixo. Uma forte ânsia de vômito revirou minhas
entranhas absurdamente, os meus braços continuavam presos e imóveis
contra seu corpo atlético.
Eu estava quase me entregando à vertigem, quando inesperadamente
escutei o que parecia ser o som de passos furtivos bem atrás de mim.
— Atrapalho o casal? — Perguntaram, num tom assustadoramente
baixo.
Reconheci imediatamente o dono daquela voz: Jean-Luc.
Patrick se afastou de mim com certa relutância, permitindo que eu
pudesse finalmente respirar. Levei a minha mão trêmula aos lábios
dolorosamente inchados pelo beijo, tomada por um turbilhão de
sentimentos, que iam desde o medo, passando pela dor excruciante e pela
culpa, até culminar em raiva e impotência.
— Por favor, não parem por minha causa — comentou Jean-Luc,
com indisfarçado desdém.
Criei coragem para encarar o meu marido diretamente nos olhos, e
percebi que havia mais dor neles do que alguém conseguiria suportar.
— Não é nada disso que você está pensando! — Aquela famigerada
frase foi dita por impulso, mesmo com o coração entalado na garganta.
Ele apenas cerrou a mandíbula, enquanto me observava da cabeça
aos pés com um olhar de desprezo.
— Ta gueule! — (Cala a boca!) Uma máscara de dor e revolta
nublou suas feições, perceptivelmente. — De todas os homens com quem
podia me trair, tinha que escolher justo esse fils de pute? — Fez um gesto
com o queixo, na direção de Patrick, que se manteve calado. Depois, cerrou
os punhos e me deu as costas, se afastando rapidamente.
Fiz menção de ir atrás dele, mas senti alguém me puxar pelo braço,
com força.
— Seja uma boa menina, e todos saem ganhando. Deixe que ele vá
embora.
Consegui me desvencilhar do meu ex-agente, e saí correndo atrás do
meu marido, que felizmente não havia se distanciado muito. Gritei o nome
dele diversas vezes, mas ele continuou acelerando os passos pelo pátio do
prédio histórico.
Quase tomei um susto, quando repentinamente Bruce Staden se
colocou em minha frente, bloqueando a passagem.
— Onde a madame esteve esse tempo todo? Aconteceu alguma
coisa?
— Eu não posso falar sobre isso agora. Preciso ir atrás do meu
marido.
Ele estreitou os olhos, parecendo desconfiado, mas não me impediu
de sair.
Quando finalmente alcancei Jean, puxei o braço dele para obrigá-lo
a parar, mas ele me empurrou, emitindo um grunhido irritado. Recuei um
passo, assustada pela agressividade dele e observei as feições endurecidas
como gesso, os olhos castanhos reluziram em fúria crescente, à medida que
o sangue tingia o rosto másculo.
— Jean, me deixa explicar. Tudo não passou de um terrível mal
entendido!
— Me poupe das suas mentiras!
— Amour, por favor, me escuta. — Tentei puxá-lo novamente pelos
braços, e forçá-lo a me olhar nos olhos e reconhecer a verdade contida
neles. — Olhe para mim, eu suplico!
— Eu já falei para me soltar! — Ele tentava se desvencilhar de mim,
mas usei toda minha energia para continuar agarrada a ele, num ato de
desespero.
— Não vou soltar até que me ouça! — Lágrimas escorriam
abundantes pelo meu rosto até cair nos seios parcialmente visíveis pelo
decote do vestido.
— Não me obrigue a partir pra violência, Marie. — Eu me arrependi
de não ter dado importância àquela ameaça. Sua atitude seguinte me
assustou. Meu corpo cambaleou para trás com o empurrão. — Fique bem
longe de mim! — Ele espumou de raiva, as gotículas de saliva atingiram em
cheio o meu rosto. — Você me dá nojo! — Ele então entrou no carro e
fechou a porta com força, dando a partida e arrancando a toda velocidade.
Comecei a correr, mas subitamente parei, cobrindo o meu rosto com
o braço direito, enquanto uma densa e asfixiante nuvem de poeira se
elevava no ar.
O meu coração se apertou no peito, batendo tão descompassado, que
eu quase podia senti-lo subir à garganta.
Como ele se atreve a pensar o pior de mim?
Pensar que eu fui infiel, que eu traí nosso amor. E justo com quem?
Com o homem que eu mais desprezava na vida e que minutos antes me
beijou à força?

Eu mal terminei de tomar o café da manhã, no dia seguinte, e já


senti logo uma vontade súbita de vomitar. Corri até o banheiro, enquanto
tentava desajeitadamente prender o meu cabelo em um coque frouxo. Eu
me ajoelhei diante do vaso sanitário, levantei a tampa e coloquei para fora
uma mistura de bile com secreções intestinais.
Quando eu enfim reuni coragem para me levantar do chão, eu fui até
a pia e abri a torneira para lavar o rosto, esfregando-o de forma rápida e um
tanto brusca. Depois de secá-lo com a toalha, contemplei o meu reflexo no
espelho, com reprovação no olhar.
Os olhos inchados e lacrimejantes, além da maquiagem borrada da
noite anterior, ressaltavam a expressão de abatimento e cansaço, como se
em poucas horas eu tivesse envelhecido dez anos.
A minha aparência não estava nada animadora naquela manhã. Mon
Dieu!
Com as duas mãos apoiadas na bancada, eu inclinei o corpo para a
frente, mantendo a cabeça baixa a todo instante, tomada pela vertigem que
me invadia, sem o menor controle. Respirei o mais fundo possível, tentando
me libertar da angústia crescente no peito.
Não sei por que persistia a sensação de que algo muito ruim estava
prestes a acontecer.
Foi um duro golpe passar a madrugada toda acordada, esperando o
retorno de Jean-Luc, para no final constatar que ele dormiu fora de casa.
Liguei para ele diversas vezes, mas só deu caixa postal. Verifiquei se havia
alguma nova mensagem e nada. Pensei até em ligar para a assistente pessoal
dele, mas mudei de ideia no último minuto.
Telefonei para os meus sogros, para Cédric, Camille, e até Christian,
assim que amanheceu. Porém, nenhum deles teve contato com Jean nas
últimas horas e nem mesmo faziam ideia de seu paradeiro. Pela forma como
meu marido deixou o evento da L’Beauté Paris — naquela que era a pior
noite da minha vida —, ele parecia mesmo disposto a fazer alguma loucura.
Será que o ódio o levaria até as últimas consequências, com um
pedido de divórcio?
Uma batida na porta me tirou completamente dos devaneios.
Agnès colocou a cabeça pela fresta, enquanto carregava o meu filho
nos braços.
— Benjamin não parou de perguntar pelo pai, desde que acordou. —
Ela então olhou em volta e deu um longo suspiro. — Então monsieur
Laurent ainda não voltou?
Eu me limitei apenas a balançar a cabeça em negativa, e mordi meu
lábio inferior, me esforçando ao máximo para conter um choro inoportuno.
Benjamin não merecia me ver naquele estado.
— Bonjour, maman! — disse ele, quando eu o peguei nos braços, e
lhe dei um beijo estalado no rosto. — Onde está mon papa? — Ele esfregou
os olhos, ainda sonolento.
— Eu realmente não sei, mon amour... — respondi, fazendo uma
careta de dor.
— Você parece triste, maman. — Seus olhos inocentes se fixaram
nos meus, e eu fiz o possível para desfazer aquela impressão, esboçando um
meio sorriso.
— Só estou um pouco cansada, mas logo passa. Sabe o que eu andei
pensando? Se não gostaria de ver a mamãe trabalhar hoje... O que acha?
A última vez que eu levei meu filho aos bastidores de um desfile
diurno, ele praticamente roubou a cena. Os profissionais demonstraram
interesse em saber o nível de genialidade dele, com alguns testes rápidos de
leitura, escrita e até mesmo cálculos.
— Quero muito ir, sim! — Seu sorriso já marcava as covinhas nas
bochechas.
— C'est parfait! — Eu o rodopiei rapidamente no ar, antes de passá-
lo para os braços da babá. — Agora, trate de tomar o seu café, mon génie —
prossegui enquanto acariciava seus cachinhos pretos. — A gente se vê
daqui a pouquinho, ok? Preciso terminar de me arrumar — completei,
dando um beijinho estalado na testa dele.
Agnès inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, me sondando com
o cenho franzido de preocupação.
— Será que monsieur não vai ficar chateado, Marie?
— Hoje é sábado. Talvez ele nem esteja em Paris e só deve voltar à
noite...
— D’accord. Com licença. — Ela girou nos calcanhares e se
apressou, andando em direção à porta.
Uma vez sozinha, eu segui até o banheiro e me despi, entrando na
banheira esmaltada e em seguida, abri o chuveiro, deixando a água morna
cair diretamente sobre a minha cabeça.
Fechei o registro, e deslizei o meu corpo devagar até deixá-lo
submerso na água. Por um instante, eu pensei se não seria melhor suspender
a respiração, exigindo o máximo que os meus pulmões pudessem suportar,
até a dor física se sobrepor a qualquer outra. Depois de um tempo que
pareceu durar uma eternidade, eu finalmente me apoiei nas bordas e ergui
meu corpo, inspirando pela boca o mais profundamente possível.
Apertei os olhos e os mantive fechados, mas as lágrimas começaram
a descer pelas bochechas, se misturando às gotículas de água que escorriam
pela testa.
Uma súbita pontada de dor me atingiu, mas tentei ao máximo
retomar o autocontrole, respirando bem fundo algumas vezes até
gradualmente parar de chorar e de soluçar.
Só espero que este pesadelo termine até o fim do dia.
Capítulo 27

Marie-Claire

O motorista estacionou o veículo a poucos metros de uma das mais


belas mansões de Paris, localizada na 51 rue de l'Université. A coleção
primavera-verão de uma estilista muito querida por todos, seria apresentada
nos salões dourados da propriedade.
Meu coração disparou no peito, quando um bando de repórteres e
cinegrafistas se acotovelou diante da mini van, apontando suas câmeras e
estendendo os microfones, ávidos pela oportunidade de registrar minha
chegada.
— Mon Dieu! — Engoli em seco e pigarreei para limpar a garganta.
— Eu não estou em condições de dar entrevistas.
Bruce Staden olhou para mim por sobre o ombro, a expressão muito
mais séria do que de costume.
— Acho melhor a babá sair primeiro com seu filho. Eu ficarei na
retaguarda.
Aguardei meu guarda-costas fazer a volta e abrir a porta, enquanto
colocava os meus óculos escuros, não apenas para proteger os olhos dos
flashes das câmeras, mas também para evitar me sentir tão exposta e
vulnerável diante dos paparazzis.
Eu nem bem saltei do veículo, eles começaram a gritar o meu nome
bem alto.
— Marie-Claire Leblanc! — Os fotógrafos apontavam suas lentes
diretamente para o meu rosto, mas levei a mão à testa de modo instintivo,
incomodada com aquela abordagem. — Você e seu marido foram flagrados
discutindo na saída do evento da L’Beauté Paris. O que tem a nos dizer
sobre isso?
— O que espera que eu diga? — Meu tom foi um pouco cortante,
embora muito mais calmo do que esperava naquela situação. — Todo
mundo sabe que nenhum casamento é perfeito.
— Por favor, senhores, sem mais perguntas. — Bruce interviu,
afastando o homem que estava ao meu lado, enquanto abria caminho até a
entrada lateral da mansão.
Uma máscara de pura indiferença se formou nas feições marcantes,
aparentando ser um muro impenetrável, vestido com um terno feito sob
medida e os óculos escuros ocultando seus sombrios olhos verdes.
Quando nossos olhares se encontraram, eu acenei com a cabeça em
sinal de gratidão, pouco antes de adentrar o local, acompanhada apenas por
Agnès e meu filho.
Estar nos bastidores de um desfile de moda era como estar em um
formigueiro, com dezenas de pessoas ocupadas correndo em todas as
direções. O backstage nada mais era do que um espaço bem amplo, com
mesas, cadeiras, espelhos e araras, contendo os looks separados com o
nome das modelos escaladas para o desfile.
Quando eu me sentei diante do espelho, três pessoas me cercaram e
deram início aos trabalhos. Profissionais experientes manipulavam o meu
cabelo e aplicavam a maquiagem, de acordo com a paleta exclusiva da
marca: creme, caramelo e pêssego.
Só minutos depois, encontrei o meu empresário norte-americano,
Bob Donovan, conversando animadamente com Benjamin e Agnès. Ele
fazia alguns truques de mágica para distrair o meu menino nos bastidores
do desfile.
— Por que não me avisou que viria? — perguntei, parando bem
atrás dele.
Bob girou sobre os calcanhares e esboçou um amplo sorriso,
enquanto estendia os braços em minha direção.
— Ora, ora, se não é a minha estrela de primeira grandeza. — Ele
me deu um abraço afetuoso, então me fitou nos olhos e confidenciou, em
voz baixa: — Fiquei bastante preocupado, Marie. Você não retornou as
mensagens e nem atendeu minhas ligações. Achei que cancelaria sua
participação no show.
— Estou há oito anos na indústria e eu nunca faltei, cancelei ou
cheguei atrasada a um trabalho, Bob. — Minha voz soou mais ríspida do
que eu gostaria. Soltei um longo suspiro, enquanto as lágrimas ameaçavam
brotar nos olhos, mas eu pisquei depressa para afastá-las, endireitei a
postura, e respirei bem fundo para não fraquejar. — Me perdoe, por favor.
Eu estou passando por alguns problemas pessoais...
— Sim, eu sei disso. — Ele coçou a cabeça, constrangido, e o
escutei pigarrear, antes de prosseguir: — Eu soube que o seu filho não
parou de perguntar pelo pai, que continua incomunicável... — Fez uma
pausa, parecendo ponderar o que diria a seguir: — Veja bem, Marie, o quer
que tenha acontecido entre vocês, talvez seja melhor me informar logo,
antes que os rumores comecem a surgir.
Algumas vezes, eu percebia os olhares curiosos de alguns
profissionais, por isso eu me limitei apenas a deixar a hipótese no ar.
— Prefiro não entrar em detalhes, pelo menos não agora.
— Claro... eu entendo perfeitamente. — A expressão dele se
suavizou um pouco, quando voltou a me encarar, incapaz de conter a
curiosidade. — Conseguiu comer alguma coisa antes de vir?
Será que o pessoal não usou maquiagem o suficiente para esconder
as olheiras e a palidez do meu rosto?
— Eu até tomei café da manhã, mas o meu estômago não aceitou
muito bem...
Quase dei um salto, quando senti o meu celular vibrar no bolso do
roupão. Nem mesmo pensei em olhar a tela para ver quem era, tamanha era
a esperança de ouvir a voz do meu marido no outro lado da linha. Mas, para
o meu azar ela pertencia a outro homem, e ter que escutá-la de novo me
causava calafrios.
Um lembrete claro de que tudo o que aconteceu na noite anterior era
real.
— Bonjour, chérie. — Patrick depois murmurou algo ininteligível
para quem estava ao seu lado, possivelmente uma mulher, mas eu não lhe
dei tempo de prosseguir.
— O que você quer? — Perguntei, sentindo uma onda nauseante me
dominar.
— Apenas te manter informada sobre os últimos acontecimentos. —
Ele fez uma pausa eloquente, antes de disparar as palavras à queima-roupa.
— O seu marido te traiu. Foi visto com outra modelo no Shangri-La. —
Jean costumava reservar a suíte presidencial para encontros íntimos, no
passado. — É só ligar os pontos. Tudo indica que ele evitou a saída
principal e saiu pela porta lateral do hotel. A amante saiu cinco minutos
depois. — A minha mão tremia tanto que eu mal conseguia segurar o
aparelho, mas pressionei os dedos nele até sentir dor, enquanto as lágrimas
ameaçavam brotar nos olhos.
Uma profunda revolta assumiu o controle a partir dali. Meu sangue
já borbulhava nas veias, enquanto a minha mente projetava uma visão de
Jean e sua suposta amante deitados na cama, gabaritando obscenamente o
Kama Sutra, como dois animais no cio.
— O que houve, chérie? Ficou muda? — Ele soltou um riso de puro
escárnio.
— Você conseguiu o que queria. — Sussurrei com amargura,
encolhendo os ombros, impotente. — Meus parabéns. — O som da
chamada encerrada reverberou no ouvido. O desgraçado desligou na minha
cara, sem revelar a identidade da outra mulher.
Observava distraidamente a movimentação das modelos, estilistas,
voluntários, e demais profissionais da moda, percorrendo os corredores,
enquanto aguardava a minha vez de ser chamada para o ensaio. De repente,
eu avistei Kate Seymour e só então eu me dei conta de um detalhe
inusitado: Ela havia chegado atrasada ao primeiro desfile do dia.
Decidi arriscar um olhar na direção dela, mas senti o meu coração
disparar. Kate me olhava de um jeito estranho, como se estivesse
profundamente entristecida ou angustiada. Ela entreabriu os lábios,
demonstrando estar prestes a falar algo, mas acabou fazendo um movimento
negativo com a cabeça e virou as costas, andando na direção oposta.
Se o meu marido foi mesmo capaz de me trair, fosse com Kate
Seymour ou com qualquer outra mulher, apenas como um ato vingança, eu
jamais o perdoaria.
Girei a cabeça para aliviar um pouco a tensão nos músculos do
pescoço, e respirei fundo algumas vezes na vã tentativa de recobrar o
controle sobre mim mesma. Eu ainda precisava dar o meu melhor para as
pessoas presentes, independente de qualquer coisa.
Para minha sorte, a ausência de sorrisos era valorizada no mundo da
moda, me permitindo suprimir as minhas emoções, e não podia ser
diferente, o meu coração acabou de se partir em mil pedaços.

Quando eu finalmente voltei para casa, a empregada se aproximou


de mim e confidenciou que Jean-Luc tinha chegado ainda a pouco e subiu
direto para o quarto principal.
— A senhora não me disse que ele ia viajar — informou ela, com ar
perplexo.
— Como assim? Ele te pediu para arrumar alguma mala? —
perguntei, com a respiração suspensa. Ela confirmou com um gesto de
cabeça. Senti um enorme aperto no peito, devido àquela surpreendente
revelação. — Por favor, não me diga que ele já saiu...
— Acredito que não, senhora. O carro dele continua lá fora.
— Tudo bem... Agradeço pela informação. — Então, voltei minha
atenção para Agnès, que permanecia parada no hall de entrada, aguardando
por instruções. — Por favor, coloque o meu filho para dormir, enquanto
converso com meu marido. — Benjamin havia pegado no sono no retorno
para casa, e ainda dormia nos braços dela.
Nós subimos juntas as escadas, mas nos separamos quando dobrei o
corredor à esquerda, seguindo direto para a suíte principal com passos duros
e determinados.
Eu só quero que ele me diga que tudo não passou de uma grande
mentira.
Conhecia Patrick bem o bastante, e sabia que ele seria capaz de
fazer qualquer coisa para infernizar a minha vida, distorcer os fatos e me
fazer acreditar em algo que não aconteceu. Ele já tentou interferir em vida
pessoal antes, e não seria diferente depois daquele beijo repugnante, que
deixou os meus lábios machucados. Nem água com sabão ou o enxaguante
bucal foram suficientes para remover da pele aquela depravação maldita.
Preferia mil vezes perguntar a Jean diretamente do que amargar
aquela dúvida que já corroía a minha alma.
Encontrei o meu marido no quarto, e por alguns instantes,
permaneci em silêncio com o corpo apoiado no batente da porta, as minhas
pernas trêmulas ameaçavam ceder, enquanto observava ele ir de um lado
para o outro, tirando algumas roupas penduradas em cabides e as colocando
em uma grande mala de rodinhas.
Se Jean pressentiu minha presença ali, não fez a menor questão de
demonstrar.
Presenciar aquela cena só fez potencializar ainda mais a minha dor.
— Então é assim que um casamento acaba, não é mesmo? —
Perguntei para mim mesma, em voz alta, pois precisava colocar em palavras
tudo o que estava sentindo. — Sem ter uma conversa olho no olho, sem dar
a outra parte o benefício da dúvida, sem considerar os sentimentos dela e as
consequências de um término?
— Não, chérie, eu não preciso que você me diga como se sente —
contrapôs ele com uma frieza esmagadora. Depois se virou para mim, com
uma das mãos apoiada no quadril, e perguntou: — E sabe por quê? —
Apenas balancei a cabeça em negativa, com a respiração suspensa, e o
coração martelando no peito. — Porque eu não ligo a mínima!
Olhei para baixo, respirando fundo e pesadamente, enquanto as
lágrimas escorriam pelo rosto e se juntavam ao queixo, caindo direto no
piso de linóleo.
— Você não percebe que está sendo injusto comigo? — perguntei
sentindo um bolo se formando na garganta.
Ele continuou enfiando as roupas na mala sem dizer nada, um claro
sinal de que se fecharia no maldito tratamento de silêncio. Então, eu me
aproximei dele e me prostrei de joelhos, segurando-o pela cintura com
força, o rosto pressionado contra a solidez do abdome, enquanto as lágrimas
molhavam sua fina camisa de linho.
— Estou tentando explicar, desde ontem, que tudo não passou de
um terrível mal-entendido. Por favor, acredite em mim! — Supliquei, a voz
quase inaudível.
Um gemido de dor escapou dos meus lábios, assim que meu marido
me segurou pelos ombros, me forçando a levantar do chão, e encarei seus
olhos escuros arregalados, em um misto de angústia e fúria indescritível.
— Eu não acredito em nada do que sai da sua boca. — Gotículas de
saliva voaram, atingindo em cheio o meu rosto.
— Mas você nem quis me escutar... — A voz saiu abafada devido
ao choramingo, o muco escorria do nariz e se juntou às lágrimas cada vez
mais abundantes.
Quando ele estava prestes a fechar a mala, eu a puxei depressa,
jogando-a no chão.
— Você seria capaz de me trair, Jean? Por mais que me doa fazer
essa pergunta, eu ainda prefiro saber de toda a verdade.
Jean-Luc deu de ombros involuntariamente e abriu um sorriso
amargo.
— Mas que diferença isso faz? — Ele preferiu a saída mais covarde
de todas. Rebater com outra pergunta. Depois, apontou o dedo em riste para
mim. — Nada muda o fato de que você é a maior culpada. Você e essa sua
ambição desmedida. — Franzi minha testa, sem entender aonde ele queria
chegar. — Por que me olha assim? Vai se fazer de inocente agora? Aposto
que Patrick ajudou a alavancar sua carreira em troca de "favores sexuais".
Você não passa de uma alpinista social cínica e traidora! — As últimas
palavras foram ditas com uma expressão de nojo.
Uma onda de raiva descomunal me dominou, e desferi um tapa no
rosto do meu marido pela primeira vez, em cinco anos.
— Como se atreve a insinuar uma coisa dessas? — O meu corpo
tremia de raiva, desapontamento e mágoa. — Você não sabe de nada! Não
imagina tudo o que eu passei esses anos todos. Você ainda vai se arrepender
por ter pensado o pior de mim!
— Meu único arrependimento foi ter me casado com você! — Fez
um gesto de desdém com a mão, direcionado primeiramente a mim e depois
para o lado esquerdo. — Agora está livre para ficar com quem você quiser.
Mas saiba que nunca vai encontrar alguém como eu.
— Sim. — Confirmei balançando a cabeça e fiz uma careta de
desgosto. — Tem toda razão. Não vou encontrar ninguém no mundo como
você — prossegui, com um tom de voz mais brando. — Mas isso não
importa, Jean. E sabe por quê? Porque eu ainda tenho o meu filho. Ele é o
único homem da minha vida a partir de agora.
Jean-Luc passou a mão pelo cabelo preto ondulado e estreitou os
olhos, transparecendo ressentimento e algo mais que não ousei identificar,
pois não consegui sustentar o olhar dele por mais tempo.
Respirei bem fundo, para ganhar coragem e resolver aquele embate
de uma vez.
— Très bien... — Usei uma das mãos para enxugar o rosto banhado
em lágrimas. —Você vai ter o que deseja. Prepare os papeis do divórcio.
— Pois é isso mesmo o que eu farei... — Sua voz vacilou
ligeiramente, mas ele logo se empertigou, reassumindo o controle e
completou: — Quero me ver livre de você!
— Então você realmente me traiu? — Minha voz saiu embargada
por estar novamente à beira de um acesso de choro. — Por que não admite
logo de uma vez?
O simples vislumbre de outra mulher se esfregando em meu marido
naquela suíte de hotel, ainda me causava um profundo enjoo. Era o
equivalente a uma sentença de morte.
Até podia sentir o odor de um cadáver em decomposição pairando
no ar.
— A única pessoa que você devia julgar infiel a você, no fim das
contas... — Ele fez uma pausa proposital, antes de completar, com uma
frieza implacável e acusatória. — É você mesma, Marie.
— N... Não sei se eu entendi bem... — Engasguei, e não consegui
forçar mais nenhuma palavra.
— Entenda como quiser. — Sua voz saiu fria e cortante como
lâmina afiada.
— Você não me ama mais... Eu vejo isso nos seus olhos.
— Você só enxerga aquilo que te convém, Marie.
— Quer saber de uma coisa? Dane-se! — Eu bradei, com certa
impaciência. — Quem vai sair desta casa sou eu! — E dizendo isso, eu
segui até o armário, tirei algumas peças de roupa e as coloquei numa bolsa
de viagem. — E Benjamin vai comigo!
— Se estiver pensando em me privar do convívio com ele...
— Eu jamais impediria você de visitar nosso filho. Não se
preocupe... — Eu girei nos calcanhares e me apressei em direção à porta,
mas parei de súbito ao me dar conta de que faltava tirar as joias que me
conectavam a ele. — Ah, já ia me esquecendo...
Assumi uma expressão altiva e segura, quando parei diante de Jean,
tirando a aliança junto com o anel de noivado do dedo. Então, peguei a mão
dele e coloquei as joias na palma suave e fria. Foi um toque rápido, mas
intenso o bastante para estimular um leve tremor pelo meu corpo, que era
um misto de medo e prazer.
Era insano o poder que ele ainda exercia sobre mim.
Recuei instintivamente um passo, ainda assustada e com o coração
batendo tão furiosamente, que parecia prestes a sair pela boca.
Estendi meu braço esquerdo e fiz um sinal com a cabeça, desviando
o olhar.
— Agora é a vez do bracelete... — Senti minhas bochechas
queimarem, mas continuei fingindo uma naturalidade que estava longe de
sentir. Aquela era a “algema do amor”, e precisava da ajuda dele para abrir
o mecanismo. Jean usava a dele no pulso direito, permitindo um
alinhamento perfeito, desde que as mãos ficassem entrelaçadas.
Eu logo pude ouvir um grunhido inconformado e perfeitamente
audível dele.
— Já nem me lembro onde eu guardei a chave de fenda.
— Não pode estar falando sério. — Inclinei a cabeça, com um
levantar de sobrancelhas, a um só tempo curiosa e incrédula. — Você falou
que deixaria no cofre.
— Eu disse isso, mas não está mais lá. — Aquela era uma mentira
deslavada. — Devo ter perdido, não sei... — Ele deu de ombros, simulando
indiferença.
— Quer dizer que nós vamos ficar presos um ao outro? — Torci
minha boca em uma expressão de desdém. — Não pense que vou entregar a
sua chave, sem antes devolver a minha...
Ele deu um sorriso cruel, demonstrando não se importar muito com
aquilo.
Engoli em seco e virei as costas, decidida a sair dali de uma vez por
todas, mas parei novamente, quando me ocorreu dar um último aviso ao
meu marido. Com a mão ainda na maçaneta, arrisquei um último olhar na
direção dele, e respirei bem fundo.
— Eu vou te esquecer, nem que seja a última coisa que eu faça.
— Boa sorte com isso — disse ele de modo petulante. —Você vai
precisar.
Convivi com Jean por tempo suficiente para saber que ele não
mediria esforços para o processo de divórcio se arrastar indefinidamente.
Seu desejo de vingança não conhecia limites. Ele provou isso quando
decidiu se jogar nos braços de outra mulher.
Agora, só me restava ser forte o bastante para lutar por aquilo que
me era de direito, ainda que resultasse em longas idas e vindas na Justiça.
Quando o divórcio não era amigável, mas sim contencioso, especialmente
nos casos em que um dos cônjuges se sentia forçado a pedir o divórcio por
culpa, o processo podia durar três anos ou mais.
Ser forte o bastante para resistir por mim e pelo único ser que me
mantém eternamente ligada a ele: Benjamin.
Nosso menino prodígio.
Capítulo 28

Marie-Claire

Chegou o momento da despedida entre pai e filho. Alguns


empregados nos observavam, a certa distância, ainda cochichando entre si.
Não consegui sustentar o olhar especulativo daquelas pessoas, que
certamente desconheciam o motivo de minha partida, e mantive a cabeça
abaixada, sentindo as lágrimas escorrendo sem cessar pelo rosto.
Jean pegou o menino no colo, passou a mão pelos cabelos
encaracolados dele, bagunçando-os um pouco, enquanto tentava se explicar,
mas uma vez:
— A mamãe e o papai precisam morar em casas diferentes agora,
Ben.
— Mas por quê? — Seu belo rosto se contraiu num muxoxo
inconformado.
— Desculpe, mas terá que ser assim. — Percebendo a falta de tato
dele para lidar com toda aquela situação, achei melhor me intrometer na
conversa:
— Ben, você é extremamente inteligente, mas existem situações na
vida que para uma criança na sua idade, ainda é um pouco difícil de se
entender.
— Vocês brigaram, não foi? — perguntou, esfregando seus olhos
marejados. — Não minta para mim, maman!
— Seu pai e eu decidimos seguir caminhos diferentes, Ben. A partir
de hoje cada um terá a sua própria casa. Ele vai continuar morando aqui,
mas eu não, apenas isso.
— Você poderá vir me visitar sempre que quiser, pois estarei sempre
por perto.
Contive o soluço, vindo do fundo do peito, com uma tosse forçada.
— Nós precisamos ir agora, chéri.
— Eu vou sentir tanto a sua falta, papa! Vai ser muito triste não te
ver todos os dias... Não te ver mais ao lado da mamãe...
— Mas a gente vai poder se falar por chamada de voz e de vídeo
diariamente.
— Não é a mesma coisa... — A voz dele falhou, o que o levou a
fazer uma pausa para respirar fundo, encolhendo os ombros, resignado. —
Mas vou me acostumar.
— Você é um menino muito especial, sabia? — disse Jean,
emocionado. — Je t’aime. — Ele deu um beijo na testa do filho, em
seguida, o colocou de volta no chão.
— Também te amo, papa. — Com um olhar relutante para trás,
Benjamin acenou um adeus, enquanto segurava a mão da babá, que o levou
até a mini van estacionada.
Quando eles se afastaram, eu dei um passo à frente, hesitante, e
parei diante de Jean-Luc.
— Duvido que consiga colocar a cabeça no travesseiro à noite,
sabendo que causou um grande estrago em minha vida e na vida do nosso
filho.
— As olheiras sob seus belos olhos azuis dizem o contrário, chérie.
É você quem não consegue dormir com tanto peso na consciência.
Uma dor aguda atingiu em cheio a minha alma, fazendo o corpo
inteiro tremer de forma incontrolável. Apertei os olhos e os mantive
fechados, mas as lágrimas começaram a descer, vertiginosamente.
Jamais me senti tão humilhada em toda minha vida.
Fiz menção de me afastar, mas os dedos grossos dele se fecharam
em torno do meu braço, com firmeza.
— Não se esqueça de que está proibida de se manifestar
publicamente sobre nossa separação...
— D’accord! — concordei, impaciente, sentindo o rosto pegar fogo,
e com o coração batendo tão furiosamente, que parecia prestes a sair pela
boca. — Algo mais?
— Só me casei com você por conveniência. — A voz dele vacilou
por um momento, depois mudou de tom, soando bem menos convicto. —
Nada mais que isso.
As minhas sobrancelhas se arquearam, a surpresa dando lugar a
mais profunda amargura.
— Se esqueceu de me contar esse detalhe, antes de me levar ao
altar? — Afastei a mão dele do meu braço de forma brusca, e ergui minha
mão, com a palma voltada para cima, para mantê-lo longe de mim. —
Esqueça. Isso já não importa mais! — E dizendo isso, saí andando
apressadamente, em direção ao carro.
Eu me deparei com Bruce Staden nos observando a uma distância
segura. Seus sombrios olhos verdes se estreitaram de preocupação por me
ver chorando baixinho.
— Caso ele tenha te machucado... — Ele começou a dizer, ao tirar,
disfarçadamente, um lenço do bolso.
— Non. — Neguei, com um gesto veemente de cabeça. —
Agradeço a gentileza, mas não precisa. Está tudo sob controle...
— Queira me desculpar, mas madame podia ter evitado toda essa
situação. E não digo isso para que se sinta mal por ter enfrentado seu ex-
agente sozinha, mas para que se liberte da necessidade de sacrificar a sua
vida, a sua felicidade...
— Sei exatamente o que está pensando, mas não adianta, Jean não
vai me escutar. — Eu o interrompi, antes de sentar no banco de trás, junto
com meu filho e a babá.
Pretendia ficar na casa do meu pai até conseguir colocar a minha
vida em ordem.

Quando finalmente papa Jacques retornou do trabalho, eu me limitei


a conversar trivialidades à mesa do jantar, mas nem assim consegui aliviar a
tensão que sentia.
Comecei a mexer distraidamente com o garfo no “Gratin de Chou-
fleur”, ou couve-flor gratinada, pensando no quão estúpida eu fui durante
todos aqueles anos.
Eu me casei com Jean por amor, mas pelo visto nunca houve
reciprocidade da parte dele. O meu marido nunca sentiu nada por mim, ele
nunca me amou de verdade. Jean-Luc tratou nosso casamento como um
meio para um fim bem específico: Atender aos anseios do pai de sucedê-lo
no comando do conglomerado de mídia.
Ele me via como um de seus troféus expostos nas prateleiras do
escritório.
— Aconteceu alguma coisa? — Jacques perguntou, me tirando
abruptamente dos meus devaneios. — Você mal tocou na comida, ma
sucrette... — Ele torceu um pouco os lábios, demonstrando certo
desapontamento. — Aliás, vocês três não comeram direito esta noite.
O meu pai não dispensava uma mesa farta, nem mesmo para um
simples jantar em família, mas a grande variedade de pratos dispostos à
minha frente não abriu meu apetite.
— Me perdoe, papa — murmurei, com os olhos marejados. —
Estou sem fome.
— E você, mon petit chou... — Ele direcionou sua atenção para o
neto, o chamando de “meu pequeno repolho”. — O que acha de pular para a
parte da sobremesa?
— Eu não quero comer mais nada, papi — resmungou Benjamin, de
braços cruzados e com um muxoxo. — Papai brigou com a mamãe, e a
gente saiu de casa.
O meu coração se apertou no peito e bateu tão descompassadamente
a ponto de senti-lo subir à garganta. Os meus olhos começaram a arder, mas
eu pisquei com força, para afastar aquelas lágrimas traiçoeiras.
— Eu posso colocar o Ben para dormir agora. — Agnès sugeriu
depressa, olhando timidamente para mim, em busca de aprovação. —
Assim vocês ficam mais à vontade.
— Mas você ainda nem terminou de comer...
— Eu posso comer alguma coisa mais tarde, Marie. Não se
preocupe. — Ela afastou sua cadeira para trás, pediu licença e se levantou.
Depois, carregou meu filho nos braços, e que para minha surpresa não
chorou, nem mesmo ofereceu alguma resistência.
— E cadê o meu beijo de boa noite? — perguntei, me permitindo rir
um pouco.
— Mon Dieu! Onde eu estava com a cabeça? — A babá esperou eu
me levantar para poder me despedir dele, com um beijo estalado na
bochecha.
— Até amanhã, mon génie. Durma com os anjos.
— Bonne nuit, maman! — Ele murmurou em meu ouvido, assim que
eu inalei profundamente seu cheirinho maravilhoso de bebê.
— Vai ficar tudo bem... Eu prometo! — Sussurrei de volta, com a
voz embargada.
Meu pai e eu seguimos até a sala de estar, e pela primeira vez em
muitos anos, ele me fez deitar no colo, e passou a afagar meus cabelos
longos como nos velhos tempos.
— Eu nem sei por onde começar... Parece que estou vivendo um
pesadelo.
— Não quero que se sinta pressionada a contar tudo agora...
— Jean acha que eu fui infiel, papa — revelei, engolindo em seco, a
sensação era equivalente à de uma bola de pelo atravessada na garganta. —
Juro pela memória de minha mãe que eu jamais faria isso! — Minha voz
saiu embargada por estar à beira de um acesso de choro. — Eu o amo tanto
que chega até a doer! Dói muito amar alguém que na primeira oportunidade
foi à forra e se jogou nos braços de outra mulher...
Jacques se afastou um pouco para poder me olhar diretamente nos
olhos.
— Mas essa acusação é muito séria! Você tem certeza disso, Marie?
Soltei uma risada breve e destituída de humor.
— E se eu te dissesse que um grande amigo seu foi capaz de me
beijar à força na noite passada? Também questionaria se eu tinha certeza,
porque se trata de uma acusação muito séria? — Fui incapaz de esconder a
ironia na voz. — Aliás, o que Patrick fez comigo no passado deixaria
qualquer um enojado...
Havia pavor e suspeita refletidos nos olhos dele.
Fechei os meus olhos com força, sentindo uma pontada aguda no
peito. Era como se algo dentro de mim sinalizasse que ainda não era o
momento certo.
Não podia relatar para o meu pai tudo o que sofri no passado
daquela maneira.
Agora, mais do que nunca, eu preciso ser cuidadosa, prezando pela
saúde dele.
O meu coração disparou, quando ele tomou meu rosto entre as
mãos, me forçando a encará-lo diretamente nos olhos.
— Patrick teve a coragem de te beijar à força? — Seus olhos
pareciam querer saltar das órbitas, o rosto estava lívido de pavor. — Não
quero que me esconda nada, eu não quero ser poupado de nada. Eu só
preciso saber a verdade, minha filha. Por mais dolorosa que seja!
— Ele sempre foi obcecado por mim... Sempre. No começo, tocava
discretamente o meu braço, a minha perna, até mesmo as minhas mãos... Eu
não via maldade porque você confiava nele, então eu pensei que ele só fazia
isso para chamar atenção, sabe? Só depois eu percebi que ele passou a fazer
isso com muita frequência.
— Quer dizer então ele sempre foi inconveniente com você? —
Apenas confirmei com um gesto quase imperceptível de cabeça. — Você
era só uma menina, mon Dieu!
— Certo dia, ele me levou até um restaurante sofisticado, porque
queria comemorar comigo o contrato com a Dior Joaillerie. Ele disse que
Désirée estava lá nos esperando, mas foi tudo mentira. Não sei até hoje o
que me fez mal naquele jantar... Não ingeri nenhuma bebida alcóolica,
papa! Eu quase desmaiei na calçada!
— Nom de Dieu! — Ele abriu os braços num gesto inconformado.
— Por que escondeu isso de mim, Marie? Não percebeu a gravidade da
situação, minha filha? Você devia ter ligado para mim! Eu teria largado tudo
no trabalho só para ir te buscar.
— O meu maior erro foi ter confiado nele, papa. Patrick garantiu
que me levaria até sua casa... Mon Dieu! Se eu soubesse que uma calçada
imunda era mais segura do que o carro dele...
Havia mais dor e arrependimento nos olhos do meu pai do que
alguém conseguiria suportar. Virei meu rosto na hora, incapaz de sustentar o
olhar dele por mais tempo.
— Não me diga que ele... — A pergunta morreu nos lábios, antes
mesmo que Jacques pudesse formulá-la, mas eu sabia exatamente o que se
passou pela cabeça dele.
— Non! — Eu me apressei em negar, mas sem muita convicção.
Então, eu respirei bem fundo, criando coragem para contar tudo, de uma
vez por todas. — Não tenho certeza, fiquei desacordada durante um tempo
— desabafei, fungando um pouco por causa dos soluços, e logo o meu
corpo começou a tremer, em espasmos. — Acordei com a mão dele enfiada
entre minhas pernas, os dedos tocando minha intimidade... — Eu
rapidamente levei a mão à boca, na tentativa de contornar a ânsia de
vômito. Respirei bem fundo, engolindo aquele quase vômito, e depois
completei: — Aquele desgraçado baixou o encosto do banco do carona,
enquanto dizia “Seja boazinha”, “Vai ser legal”, “Você vai gostar” ...
Não consegui mais me conter.
Desabei aos prantos, cobrindo o meu rosto entre as mãos. Eu mal
conseguia respirar direito, os soluços subiam à garganta,
incontrolavelmente. Só parei de chorar e de soluçar, quando meu pai
envolveu meu corpo trêmulo com seus braços fortes.
— Shh, shh — sussurrou ele, enquanto afagava minhas costas, com
suavidade.
— Nunca me arrependi tanto em toda minha vida, papa. — A minha
voz saiu abafada, com meu rosto ainda pressionando contra o ombro largo
dele.
— Mas eu fui o maior responsável por seu infortúnio, Marie. — A
voz dele vacilou, como se estivesse se controlando para não chorar. —
Confiei o meu maior tesouro, e minha única filha, a ele... Aquele
desgraçado acabou com a nossa família. Você era só uma menina cheia de
sonhos... Mon Dieu! Eu nunca vou me perdoar por isso.
Eu rapidamente me afastei um pouco, a fim de olhá-lo nos olhos, e
notei seu semblante ficando cada vez mais transtornado, então segurei o
rosto dele com firmeza entre as mãos, disposta a tirar os maus pensamentos
da cabeça dele, custe o que custasse.
— Papa, olha para mim, e me escuta! — A minha voz soou
estranhamente dura, firme e categórica. — O senhor não tem culpa de nada.
Não quero que se martirize. Eu consegui evitar que o pior acontecesse
naquela noite. Eu juro pela memória de maman!
Há cerca de um mês, as lembranças da sessão de fotos começaram a
vir à tona com mais intensidade. Ainda não sentia que deveria revelar ao
meu pai que fui dopada em um dos meus primeiros trabalhos como modelo.
Fiquei tonta, desorientada e sem controle total do meu corpo.
O fotógrafo precisou sair por alguns minutos, me deixando a sós
com Patrick, que se prostrou ao meu lado e contou sobre suas fantasias
sexuais, respirando pesadamente e falando baixinho ao meu ouvido. Mas
não me lembrei de tudo, porque eu acordava, via sua mão imunda em cima
de mim e voltava a dormir. E assim se repetiu, indefinidamente.
Fiquei profundamente abalada pelos fragmentos trazidos à
consciência.
Tive a estranha sensação de que ele chegou até mesmo a se
masturbar.
“Olhe para mim, chérie. Eu quero que você veja o quanto me
excita.”
Patrick se sentiu ainda mais poderoso, achando que eu queria estar
ali, assistindo parte de seu exibicionismo e que eu correspondia aos
sentimentos dele.
No dia seguinte, eu já não sabia se aquilo era real ou fruto de
minha imaginação, porque na época seguia uma dieta muito restritiva, eu
nem me alimentava direito. Tanto o fotógrafo quanto Patrick alegaram que
eu estava muito fraca e que cuidaram de mim o tempo todo.
Sacudi minha cabeça para afastar as lembranças ruins do passado.
— Eu acabei acreditando naquelas mentiras! — Deixei escapar, em
voz alta.
— Me parte o coração saber que Patrick te assediou sexualmente,
sabe-se lá há quanto tempo, Marie! — Eu me assustei ao ouvir a voz grave
do meu pai. — Você me disse que seu marido pensa que esse homem é seu
amante. Como ele pode julgá-la dessa maneira?
— Patrick estava na festa da L’Beauté Paris e me pediu para
encontrá-lo no jardim da universidade... Eu não devia ter ido ao encontro
dele, mas tive muito medo. Não sei o que me passou pela cabeça... Cometi
um erro de tê-lo enfrentado sozinha. Ele se atreveu a me agarrar e ainda por
cima me beijou. Foi horrível!
— Então Jean-Luc presenciou tudo?
— A forma como Jean reagiu... — Sacudi a cabeça na tentativa de
afastar as lembranças pavorosas, mas respirei bem fundo, antes de
prosseguir: — Eu nunca o vi daquele jeito antes, papa. Ficou tão cego pelo
ódio que começou a me insultar, dizendo que tinha nojo de mim. Ele me
acusou de ter sido infiel. Insinuou que eu fiz sexo com Patrick para
impulsionar minha carreira. Nunca pensei que ele pudesse descer tão baixo.
Não apenas me magoou profundamente, como também me traiu naquela
mesma noite!
— Ma pauvre petite... — murmurou ele, enquanto passava o polegar
pelo meu rosto para secar as lágrimas. — Dói muito saber que você passou
por tudo isso sozinha.
— Eu fui enganada, eu fui traída, eu fui injustiçada... — Enumerei
com os dedos, ofegando descontrolada, quase sem ar. — Jean nunca me
amou de verdade, e inclusive já pretendia se separar de mim. Mas, por quê?
Por que ele fez isso comigo? Por que ele me usou? Por que ele me
enganou? Por que ele mentiu? — Aquelas palavras saíram dos lábios com o
mesmo impacto de vários misseis disparados no ar.
Passei a bater com os pés no chão, tomada por uma onda súbita de
fúria.
— Odeio ele com todas as minhas forças! — Gritei baixinho,
fazendo com que algumas gotículas de saliva fossem expelidas pela boca.
— Odeio, odeio, odeio!
Meu pai prontamente me puxou para um abraço, pressionando
minha cabeça em seu peito, não me dando outra escolha além de dar vazão
à imensa vontade de chorar.
Capítulo 29

Marie-Claire

Muitos meses depois...

Na França havia duas categorias principais de divórcio: o


contencioso e o divórcio por consentimento mútuo.
O divórcio litigioso era decidido pelo juiz do tribunal de família,
prolongando consideravelmente a duração do processo. O meu advogado e
o de Jean-Luc entraram com um pedido de divórcio por culpa,
considerando que ele e eu nos acusamos mutuamente de infidelidade, com a
exigência de uma indenização aos olhos da lei.
Foi muito difícil ganhar a causa, pois não consegui obter provas
suficientes contra meu marido. Jean, por sua vez, tentou sustentar a
acusação através de testemunhas falsas, que fizeram parecer que eu era a
pior pessoa do mundo. Obviamente que a lei impedia que crianças
testemunhassem a favor ou contra um dos pais.
Como o juiz indeferiu o processo baseado em culpa, nossos
advogados apresentaram outro pedido de divórcio, com base no princípio da
alteração definitiva da relação matrimonial, uma vez que Jean e eu
deixamos de viver juntos há mais de 1 ano.
Quase dois anos depois, o juiz finalmente proferiu a sentença.
Eu permaneci de pé e com os braços cruzados, aguardando a
chegada do meu advogado, para formalizar o Ato de Aquiescência perante o
Juiz do Tribunal de Família.
Jean também assinaria o documento de “aquiescência” à sentença.
Nenhum de nós dois pretendia recorrer da decisão.
De repente, o barulho de passos rígidos e rápidos chamou a minha
atenção, e virei o rosto a tempo de ver Jean-Luc entrar na sala,
acompanhado pelo advogado.
O meu coração errou algumas batidas, ao reencontrá-lo pela
primeira vez, em meses. A prática de meditação, corrida, yoga e técnicas de
respiração profunda, não foram suficientes para minimizar o impacto
emocional do reencontro com o pai do meu filho.
Pelo menos, ele parecia estar tão inseguro quanto eu. Assim que
notou minha presença, ele passou a me encarar completamente atônito e em
silêncio. Senti o meu rosto corar, queimando por dentro. Seu olhar era
lascivo, obsceno, e indecoroso ao extremo.
Àquela altura, eu me sentia invadida por uma onda de calor subindo
o estômago, acompanhada pelo eriçar dos pelos da nuca e do bico dos seios.
Modéstia à parte, eu realmente estava vestida para matar, ou melhor
dizendo, para enterrar alguém. Usava um vestido preto de manga longa,
com o comprimento um pouco abaixo dos joelhos, bem ajustado ao corpo, e
com decote em “V” profundo, revelando discretamente o contorno dos
seios.
Queria mesmo impressionar o meu agora ex-marido e fazê-lo
perceber o grande erro que cometeu. E pelo visto, deu certo.
Jean continuou me observando com a boca ligeiramente entreaberta,
como se estivesse prestes a dizer algo, as narinas dilatadas e o maxilar
rígido pelo esforço sobre-humano que fazia para ocultar o efeito que minha
presença causou nele. Suas feições, contraditoriamente, transpareciam um
misto de pesar e orgulho, ou de arrependimento e remorso. Talvez todos
eles, ao mesmo tempo.
Tudo pareceu congelar à nossa volta. Eu mesma nem ousei respirar
direito naquele recinto. Jean não moveu um só músculo de seu corpo
atlético, embora ainda direcionasse um olhar duro e penetrante em minha
direção.
Reconhecer o brilho ardente e inconfundível dos olhos deles serviu
de estímulo para a lubrificação fluir entre as minhas pernas.
— Bonjour, Marie-Claire — disse uma voz masculina atrás de mim,
o que me tirou abruptamente dos devaneios. — Je suis désolé. — Meu
advogado pediu desculpas, com visível constrangimento. — Não era minha
intenção fazê-la esperar, mas tive um pequeno contratempo...
— Sem problemas doutor... O importante é que estamos todos aqui,
agora.
Um funcionário apareceu logo em seguida, comunicando que o
acesso à sala de audiências já estava liberado. Cumprimentei Jean-Luc com
um gesto quase imperceptível de cabeça, antes de ocupar uma cadeira,
exatamente diante dele.
Fiquei de frente para meu ex, fingindo uma serenidade que estava
longe de sentir, com as mãos unidas sobre a mesa, cobrindo parcialmente a
minha bolsa-carteira.
A voz do juiz parecia distante. Olhava distraidamente para as mãos
grandes, — cobertas de veias que quase saltavam aos olhos, e com unhas
bem cuidadas —, entrelaçadas sobre o móvel. Ele sempre teve a mania de
esfregar os polegares um no outro, seu bracelete brilhando no punho evocou
em mim antigas lembranças, mas especificamente, da noite em que fizemos
um pacto.
Entre uma taça e outra de vinho, nós dois abrimos as caixas de
veludo vermelho, cada qual contendo o bracelete de ouro maciço, de
formato oval e que se dividia em dois arcos, parafusados por uma pequena
chave de fenda que o acompanhava.
“Se a gente perder essas chaves, estamos fodidos!” — disse ele, na
ocasião.
“Acho que só seria um problema se a gente se divorciasse...”
“O nosso amor é indestrutível, assim como esses dois braceletes.”
“Isso significa que nós nunca vamos nos separar... Certo?”
Meu marido girou a chave de fenda nos parafusos da joia, unindo os
arcos em meu pulso, e depois respondeu, olhando dentro dos meus olhos:
“Jamais de la vie, mon amour!”
“Oh, Jean...”. — Aquelas foram as únicas palavras que consegui
articular, porque meus lábios foram capturados pelos dele, de um jeito duro
e possessivo.
Ainda podia sentir, mesmo anos depois, o impacto daquele beijo
carregado de luxúria, posse e controle, com sua língua se movendo em
minha boca ditando o ritmo numa ânsia febril.
Jean tomou tudo para si, em sua insaciável sede, parecia que não ia
parar mais.
De repente, senti um toque suave em minha mão e fiquei surpresa ao
ver que Jean foi capaz de estabelecer um contato físico comigo à vista de
todos.
— Você está se sentindo bem? — perguntou, inclinando a cabeça
ligeiramente para o lado para me sondar, com o cenho franzido de
preocupação. — O juiz acabou de te fazer uma pergunta...
A minha irritação por ele só aumentou porque eu fui incapaz de
suprimir qualquer tipo de sentimento.
— Je m'excuse, Excelência. Repita a pergunta, por favor.
— Já confirmei com seu então cônjuge e ele não deseja contestar a
decisão de divórcio. A senhora tem alguma objeção a fazer?
— Nenhuma, Excelência... — respondi, com a voz saindo um pouco
mais embargada do que gostaria. — Eu já tomei minha decisão, e concordo
com a sentença.
— Sendo assim, ambos já podem assinar a declaração de
aquiescência.
O magistrado passou o documento para o advogado, que em seguida
entregou para Jean-Luc. A mão dele tremia perceptivelmente, enquanto
segurava a caneta esferográfica de luxo, pairando a poucos centímetros do
papel.
Pareceu hesitar por uma fração de segundo, talvez considerando se
deveria voltar atrás. Mas já era tarde demais. Seus olhos sombrios se
desviaram do documento e encontraram os meus, e podia jurar que estavam
marejados, mas as lágrimas se dissiparam tão rápido quanto surgiram.
Eu desviei o olhar, quase chorando ao me lembrar que Benjamin
manteve as esperanças até o último minuto, torcendo pela nossa
reconciliação. Mas o pai era orgulhoso demais para admitir que cometeu um
grande erro e uma grave injustiça.
Quando o documento chegou em minhas mãos, eu me endireitei na
poltrona, e respirei bem fundo, antes de assinar na linha correspondente ao
meu nome.
— Decreto o divórcio do casal Jean-Luc Saint Vincent Laurent e
Marie-Claire Bernard Leblanc.
Até imaginava as manchetes dos jornais: “Jean-Luc Saint Vincent
Laurent e Marie-Claire Leblanc, estão oficialmente divorciados”.
Meu coração quase saiu pela boca, ao escutar a voz do juiz
novamente.
— No que tange às disposições sobre a guarda de Benjamin Leblanc
Laurent, fica determinada a autoridade parental conjunta, com résidence
habituelle na casa de um dos pais. — Ele fez uma pausa solene, então
prosseguiu: — Como o menor já reside com a mãe, o outro progenitor tem
direito a visitas e pernoites em finais de semana alternados, além de metade
das férias escolares. — Depois, tirou os óculos de leitura e cruzou as mãos,
antes de olhar para todos os presentes. — Vocês estão dispensados. Boa
sorte.
Como já estava à um passo de cair num choro convulso, eu me
levantei da cadeira com algum esforço, sentindo a garganta travada por uma
súbita falta de ar.
Hesitei por alguns instantes, indecisa sobre a melhor forma de me
despedir, sem que minha voz falhasse.
Preferi ir direto ao ponto para acabar de vez com toda aquela
humilhação.
— Com licença, senhores... — Respirei bem fundo, piscando os
olhos para afastar as lágrimas que já borravam a minha visão. — Adieu. —
Mantive minha cabeça erguida, enquanto andava a passos largos, em
direção à saída, sem nem olhar para trás.
Fechei a porta e me recostei na madeira, soltando a respiração bem
devagar e me controlando ao máximo para não perder o controle das
minhas emoções.
Considerava terrivelmente injusto o modo como Jean conduziu
aquele término.
Dizer que houve um acordo financeiro em troca de favores sexuais,
e justo com o homem que passei a odiar com todas as minhas forças?
Se ele soubesse que eu suportei em silêncio episódios seguidos de
má conduta sexual no ambiente de trabalho. Mas eu estava impedida de
revelar os horrores que enfrentei no passado, porque o curso das
investigações contra meu ex-agente corria em segredo de justiça.
Como se não bastasse Patrick passar a mão em minhas partes
íntimas, ele também me beijou à força e admitiu ter colocado alguma droga
na minha água, durante uma sessão de fotos.
O cúmplice dele, um fotógrafo mundialmente famoso, não apenas
me fotografou nua, como também gravou vídeos meus, e em poses
sexualmente explícitas, quando ainda era uma adolescente novata no ramo.
Uma sequência de fatos, os quais tive que conviver ao longo de
todos aqueles anos. Um segredo que, se revelado, poderia destruir bem mais
do que o meu casamento.
Não era apenas minha reputação que estava em jogo.
Eu sacrifiquei a minha vida particular para garantir o bem-estar de
Benjamin. Mas também tive a minha parcela de culpa, quando nosso
casamento entrou em crise, ao dar atenção para os meus próprios
problemas, em detrimento daquilo que Jean precisava, na época: a
intimidade sexual. E quando pensei que havia superado os conflitos
internos, reacendendo a chama da paixão e fortalecendo o vínculo entre nós
dois, eis que tudo desabou novamente.
No fundo eu sempre soube, mas ouvir Jean revelar que só se casou
comigo por conveniência, não o tornava apenas um mentiroso, mas também
um traidor. E não me referia apenas por ele ter supostamente me traído com
outra mulher, mas também por ter fingido que me amava durante todos
aqueles anos.
Ainda que ele implore o meu perdão, eu jamais vou perdoá-lo.
Parte 2
Capítulo 30

Jean-Luc

Dias atuais...

Meu mundo desmoronou, quando me divorciei da mulher que


julgava não amar.
Passei os três últimos anos lutando contra mim mesmo, em meio a
um turbilhão de emoções conflitantes, que variavam entre o amor e o ódio
por Marie-Claire, o que só aflorou o meu lado mais sombrio, que se
alimentava da busca desenfreada pelo prazer com outras mulheres. Mas,
para sorte dela e azar o meu, eu falhei.
Eu falhei, completa e miseravelmente, quando tentei desfrutar do
sexo.
E verdade seja dita, esperar que um homem mantenha o celibato
após um término — por mais que ainda estivesse envolvido
emocionalmente pela ex, — era no mínimo, o equivalente a acreditar em
Papai Noel. Eu tentei praticar o “Sexorcisme”, mas tive problemas de
ereção já nas primeiras tentativas, e acabei desistindo.
Meu pau não reconhecia outra boceta que não fosse da minha ex-
mulher. Ele só se enchia de sangue e ficava duro apenas na presença da mãe
do meu filho.
Odiava reconhecer que nenhuma outra foi capaz de suprir minhas
necessidades.
Levei o copo aos lábios e tomei mais um gole de uísque, enquanto
acessava rapidamente o aplicativo de notas do meu celular, para digitar
mais um lembrete, que podia incluir em um livro de memórias ou algo do
tipo, no futuro próximo:

˂Notes

“Os homens só se apaixonam uma vez na vida, e depois partem


miseravelmente em busca de alguém que ocupe o lugar da mulher que nunca
conseguiu esquecer.” Putain! Como se isso fosse possível. |
Atenção:

A pessoa amada pode te trair com quem você menos espera. Certifique-se de
dar o troco, na primeira oportunidade.

Fiz o bloqueio da tela e enfiei o aparelho de volta no bolso da calça.


A imprensa dizia que eu voltei a ser o bon vivant de antes, ao marcar
presença nos melhores shows, eventos, festas, exposições e festivais,
sempre muito bem acompanhado. Mas os fofoqueiros de plantão não
imaginavam que tudo não passava de uma farsa.
O tipo de coisa que qualquer homem faria após o término de um
relacionamento, porque ao contrário das mulheres, os homens eram
motivados pelo ego e não pelo coração.
Tentei esquecer minha ex e seguir em frente com minha vida, mas
não havia um só dia em que eu não pensasse nela. Não havia um só dia que
não repassasse aquela cena infeliz.
Aquele encontro furtivo foi como uma bomba explodindo em minha
frente.
Marie e Patrick não estavam apenas se beijando; eles estavam
devorando um ao outro. Era algo que praticamente beirava ao desespero,
como quando dois amantes se reencontravam depois de muito tempo, e se
entregavam a uma noite de prazer.
Deixei o evento da L’Beauté Paris, determinado a ir para cama com
qualquer outra mulher e, mesmo agora ainda não me lembrava de quase
nada. Eu estava tão consumido pelo ódio, que eu só pensava em me vingar
de Marie, custe o que custasse.
As lembranças daquela noite iam e vinham, me atormentando
constantemente.
O meu raciocínio era o seguinte: Se eu fui traído, por que não trair
também? Na verdade, aquilo se encaixava mais como uma vingança do que
uma traição. A fidelidade era uma via de mão dupla, valendo para os dois, e
uma vez rompido o acordo, automaticamente, o outro estaria livre para
fazer o que bem entendesse. Simples assim.
Eu me lembrava de ter ligado para Kate, que prontamente saiu da
festa e se encontrou comigo no bar do hotel. Mas nem toda bebida do
mundo seria suficiente para me fazer cometer uma estupidez.
Quem já bebeu em um dia triste, — ainda mais pelo término de um
relacionamento —, sabe que um bom porre resulta sempre numa cena
ridícula, patética e vergonhosa.
Como conseguiria convencer Marie de que não fui infiel? Como
comprovaria que não houve uma traição propriamente dita? A princípio
houve, sim, o intuito de provocar nela a mesma dor, vergonha e
humilhação, mas a sensatez prevaleceu naquela noite.
E embora tenha voltado atrás no plano de vingança, o estrago já
estava feito.
Ainda assim, eu sinto que devo lutar até a morte para esclarecer as
coisas.
Tomei o restante da bebida num gole só e fiz uma careta,
sinalizando para o bartender que o copo precisava ser preenchido de novo.
Observei distraidamente o líquido dourado e transparente dançando entre as
pedras de gelo, a sensação de déjà vu resgatava o momento em que fui ao
Le Botaniste, um bar escondido dentro do hotel Shangri-La.
Nunca em toda minha vida bebi tanto como naquela noite. Eu sequei
uma garrafa inteira de uísque, porque não conseguia nem cogitar a ideia de
voltar para casa.
De repente, um toque suave no ombro me tirou dos devaneios, e
então olhei para o lado, sem conseguir disfarçar a surpresa ao ver Camille e
o namorado, Pierre.
— Jean! — Minha irmã arqueou as sobrancelhas, enquanto sorria
para mim.
— Bonsoir, Jean-Luc. — O noivo dela me cumprimentou com um
aceno de cabeça.
— Eu não esperava encontrá-lo aqui, mon frangin.
— Foi um dia estressante na empresa, e ainda tive que dar uma
atenção especial ao meu filho entre um momento e outro... — Como os
olhos dela brilharam de divertimento, achei melhor esclarecer qualquer
mal-entendido. — E antes que você me pergunte, Marie continua em Nova
York. Ela só viria se tivesse algum compromisso...
— Tranquille! — Ela riu tanto que teve que se sentar. — Então quer
dizer que Benjamin vai passar o período inteiro das férias aqui, em Paris?
O recesso escolar durava entre dois meses e meio a 3 meses durante
o verão, fosse nos Estados Unidos, França, ou qualquer outro país do
hemisfério norte.
— Não tenho certeza. — Levei o copo de novo aos lábios, e
aguardei o uísque descer pela garganta, até queimar o estômago e, depois,
prossegui: — Marie e eu não conversamos sobre isso, quando busquei
Benjamin. Ela disse que tinha um compromisso, e caprichou tanto no
visual, que meu pau ficou duro. Putain! Ficou duraço! — expliquei,
sentindo um gosto estranho na boca, o gosto ácido do orgulho ferido. — Só
demorei para sair porque Ben aprontou de novo. Ele nos deixou trancados
no laboratório, acredita? Minha ex e eu confinados naquele espaço
minúsculo, sabe-se lá por quanto tempo...
Camille quase se engasgou com seu coquetel e passou a me encarar
com um misto de surpresa e incredulidade no rosto.
— C’est pas possible! Vocês dois tiveram uma recaída?
— Não rolou nada porque ela me insultou, e daí iniciamos uma
discussão.
Camille e Pierre se entreolharam, e logo explodiram numa sonora
gargalhada.
— Já chega! — Eu os repreendi, fingindo seriedade. — Vamos
mudar de assunto.
Os dois levaram alguns instantes para se recompor, seus rostos ainda
contorcidos com o riso abafado.
— Très bien — disse Camille, enquanto endireitava sua postura na
banqueta alta, e com uma expressão falsamente solene, comentou: — Nós
temos uma novidade para te contar. Na verdade, você vai ser o primeiro a
saber. Nossos pais vão me matar por isso, mas quem se importa?
— Não está dizendo isso por eu ser o primogênito... Está?
— Ah, deixa de ser bobo! — Ela deu um tapa de leve em meu
braço. — Você sempre foi meu irmão favorito — completou com aquela
voz manhosa.
— Agora fiquei curioso... Qual é a grande novidade?
— Veja por si mesmo, mon frangin. — E dizendo isso, a minha irmã
estendeu a mão direita, para mostrar o anel fino de ouro, rodeado por
pequenos diamantes. — Estou noiva! Pierre e eu vamos nos casar daqui a
um mês!
Aquela notícia realmente me pegou de surpresa.
Camille era muito imprevisível, eu nunca sabia o que esperar dela.
Também pudera: Uma jovem de 32 anos com um excelente tino para os
negócios, ao liderar a expansão da indústria cosmética no país, era presença
constante nas listas anuais do Business of Fashion, Fortune e Forbes.
Minha irmã sempre foi muito bonita, costumava atrair facilmente a
atenção dos homens, mas acima de tudo prezava pela liberdade. Houve uma
época em que ela só queria aproveitar a vida, experimentar e expandir os
horizontes.
Colecionou muitos amores, mas também, muitos erros e muitas
decepções.
— É para valer mesmo, certo? — Deixei escapar um riso de
incredulidade. Os dois se entreolharam constrangidos, e depois
confirmaram com um gesto de cabeça. — Então, meus parabéns...
— Chega a ser comovente o seu entusiasmo com a notícia, Jean. —
Percebi uma nota de ironia na voz dela.
— Sinto muito. Não foi minha intenção... Fico feliz por vocês, de
verdade.
— Acho que a ocasião pede um brinde, mes amis! — Pierre
comentou, desfazendo o clima pesado, com seu jeito descontraído de
sempre. Depois, ergueu seu copo de cerveja e aguardou Camille e eu
repetirmos o gesto, com um amplo sorriso.
Erguemos nossos copos e brindamos à felicidade dos noivos.
— Écoutez! — Não sei se foram as doses do melhor uísque escocês,
mas senti que devia dar um bom conselho, para quem estava começando
naquela coisa de via a dois. — Eu serei franco com vocês... — prossegui,
balançando o dedo indicador no ar. — Escutem bem o que vou dizer. Eu
honestamente acho o casamento uma instituição falida.
Eles apenas inclinaram a cabeça para o lado, me encarando com
certo pesar.
— Eu só falo isso por experiência própria. — Eu tornei a falar,
demonstrando algum ressentimento, e depois me levantei, contornando a
área externa do balcão para abraçá-los por trás. — Mas com vocês será
diferente!
— Ah, eu quase ia me esquecendo, Jean. — Minha irmã se virou
para mim, com uma expressão suplicante no rosto. — Você e Marie-Claire
serão minhas testemunhas... E não aceito recusas. Eu sei que se divorciaram
em meio a muitas intrigas, mas isso não vem ao caso. Eu os amo
igualmente, e você sabe disso.
Ergui as sobrancelhas grossas em sinal de descrença.
— Quer dizer que eu vou ter que passar a cerimônia inteira ao lado
da minha ex-mulher?
— Mas é claro que sim! Vocês se comprometeram comigo quanto a
isto, Jean.
— Nós não levamos muito a sério... — Então, abri um sorriso
constrangido.
— Sei que não existe mais aquela pressão para eu me casar, mas eu
realmente me sinto pronta para dar este passo, e preciso que vocês
testemunhem nossa união, juntos.
Soltei um suspiro de resignação, convencido de que seria doloroso
repassar todo o rito do matrimônio, acompanhado pela única mulher que
deu sentido à minha vida.
— Humm... — murmurou Camille entre um gole e outro de gin. —
Só tem um detalhe: Será no mesmo local onde você e Marie trocaram
alianças e juras de amor eterno. Que ironia do destino, não acha? —
completou, num tom falsamente despretensioso.
Minha irmã e Pierre desataram a rir, e meu esforço em gargalhar
com eles só resultou em uma careta estúpida, dando aos dois mais um
motivo para zombarem de mim.
— Ok, vocês venceram! — ironizei, erguendo o copo de uísque. —
Não é nenhuma novidade que eu sou completamente louco pela minha ex-
mulher. — Bebi o restante de uma só vez, saboreando a intensidade
daquelas palavras, antes de me levantar da mesa para poder me despedir
deles. — Agora eu preciso ir. Divirtam-se!
— Nossa, mas já vai embora assim tão rápido? — protestou
Camille, com um muxoxo. — Então, mande um beijo enorme para
Benjamin! Quero levá-lo para passear, assim que tiver um tempo livre. Mas
aviso antes, ok? Se cuida, irmão... À bientôt!
Uma vez dentro do carro, eu me acomodei no banco de trás e
respirei fundo, apoiando a cabeça no encosto.
— Onde monsieur deseja ir agora? — perguntou o motorista,
enquanto me encarava pelo espelho retrovisor interno.
— Preciso buscar meu filho na casa dos meus pais — respondi,
enquanto tirava meu celular do bolso, para conferir se havia alguma nova
mensagem.
Passei os últimos meses, tentando entrar em contato com Kate
Seymour, mas sem sucesso. Não me limitei apenas a mandar mensagens de
texto. Até minhas ligações e e-mails ficaram sem resposta.
Ela não tomou nenhuma atitude, nem mesmo se pronunciou sobre os
rumores, que a apontavam como o pivô do fim do meu casamento.
Seu silêncio sobre o assunto era visto como uma confissão de culpa.
Preciso que ela se manifeste publicamente, confirmando a minha
versão dos fatos.
Passei a deslizar o polegar sobre a tela do celular, lendo as últimas
notícias, distraidamente, quando me deparei com algo profundamente
perturbador.

EL PARIS – Um renomado agente de modelos francês está sendo


investigado por má conduta sexual.
A modelo francesa, que teve a sua identidade preservada, alegou que Patrick
Dupont tocou suas partes íntimas, em duas ocasiões, quando tinha entre 15 e 16
anos. Na segunda vez, ele contou com a ajuda de um fotógrafo mundialmente
conhecido, que não teve o seu nome revelado. A suposta vítima declarou ainda ter
sido dopada por ambos, quando posou para uma campanha de lingeries, com fotos
íntimas tiradas sem o seu consentimento.
O advogado de Dupont informou em nota que seu cliente "rejeita totalmente
os atos de que foi acusado", mas uma fonte próxima ao caso confirmou que uma
investigação preliminar foi iniciada no ano anterior, mas a denúncia foi indeferida
já na primeira instância.
Com o prazo de prescrição ultrapassado, a jovem pretende entrar agora com
uma ação civil e espera que outras colegas estejam dispostas a apresentar queixa. A
informação foi confirmada por um funcionário judicial.

— Putain de bordel de merde! — Praguejei, tamanha era minha


indignação.
Será que a minha ex-mulher era uma das supostas vítimas de
Patrick Dupont?
Passei a mão trêmula pelo cabelo, e me inclinei para a frente,
segurando o encosto do banco do motorista.
— Jules, eu preciso que me leve a outro lugar antes. É urgente!
Espero estar enganado, caso contrário, não sei do que serei capaz.
Capítulo 31

Jean-Luc

Só havia uma pessoa com a qual poderia falar àquela hora: Jacques
Leblanc.
Meu ex-sogro se mudou para o 6º arrondissement de Paris, após
inaugurar o seu segundo restaurante, localizado convenientemente no térreo
do prédio onde ele morava.
O Saint-Germain-des-Prés era um bairro elegante, conhecido por
suas lojas e estabelecimentos de luxo, além de ser o local de muitos cafés
famosos.
Subi correndo o lance de escadas até o segundo andar, com o
coração batendo loucamente dentro do peito. Toquei a campainha de modo
insistente, e logo seguiu-se o som metálico de tranca se abrindo.
Quando Jacques finalmente abriu a porta, os meus olhos
imediatamente se detiveram no utensílio de cozinha que eu conhecia tão
bem: o cutelo de 9 polegadas.
Parecia ter envelhecido mais de dez anos, desde a última vez que o
vi.
— Bonsoir, Jacques. — Saudei, forçando um sorriso simpático. —
Faz tempo que não o vejo, empunhando o seu cutelo de estimação... —
comentei, tentando soar o mais natural possível. — Benjamin ficou na casa
dos meus pais... — informei, na tentativa de desfazer aquela tensão no ar.
— Depois me diz quando pode ir visitá-lo.
— Não acredito que tenha vindo aqui só para me dizer isso —
murmurou ele, com cara de poucos amigos. Depois, deu um longo suspiro,
e completou, de modo seco e direto: — Agradeço a informação, mas já falei
com meu neto mais cedo.
— Na verdade, eu vim até sua casa por outro motivo — admiti, sem
ocultar a ansiedade na voz. — Será que nós dois podemos conversar?
Prometo não tomar muito o seu tempo...
— Claro! — Ele logo fez um gesto com a mão livre, indicando que
eu devia entrar. Depois, seguiu até uma poltrona e se sentou, colocando o
cutelo cuidadosamente em cima da mesa de centro. — Por favor, sente-se.
— Ele então, apontou para o espaçoso sofá.
— Serei breve e por isso eu vou direto ao ponto. — Eu tirei meu
celular do bolso e mexi nele por alguns instantes, antes de me inclinar para
mostrar a tela. — Preciso que leia esta matéria do jornal Le Paris.
A mão dele tremia, enquanto segurava o aparelho, mas fiquei
intrigado com o fato de ele não ter esboçado nenhuma reação, como se
aquela notícia não o abalasse em nada.
— O que o senhor tem a me dizer sobre isso? — Sem esperar pela
resposta, eu disparei: — Não está surpreso em saber que, o homem que
frequentava a sua casa e dizia ser seu amigo, pode responder a um processo
por assédio e abuso sexual?
Meu ex-sogro deixou escapar um suspiro perfeitamente audível.
— Você conjugou os verbos no tempo correto, no passado, Jean —
disse ele, estendendo o braço para me devolver o celular. — Não tenho
contato com Patrick já faz uns três anos ou mais...
— O senhor, como pai, deveria estar revoltado com esse fils de pute.
— E ainda insisti, me esforçando ao máximo para não parecer rude. — A
sua filha foi uma das vítimas dele, ou não? Ela te disse alguma coisa a
respeito?
— Qual é o seu interesse neste assunto, Jean? — perguntou ele, com
extrema frieza. — Que eu me lembre, você não possui mais nenhum
vínculo com minha filha. Já não bastou tudo o que fez no passado? Quando
a acusou injustamente de ter sido infiel?
Meu ex-sogro continuava exibindo aquela expressão imperturbável
de sempre, o que só contribuía para o meu descontrole emocional. O meu
corpo tremia involuntariamente à medida que a irritação por ele aumentava.
— Mas isso também me diz respeito! — gritei, sentindo a paciência
se esgotar com tamanha indiferença. — Eu só me separei dela por causa
daquele desgraçado!
Uma máscara de dor e revolta nublou as feições do velho,
perceptivelmente. Ele fez menção de se levantar, mas deixou seu corpo
avantajado na beira da poltrona, e se inclinou para a frente, sem deixar de
me encarar nos olhos.
— Só espero que você fique tão atormentado pela culpa quanto eu.
— O que quer dizer com isso? — Minha voz falhou e emiti um
pigarro seco. — Então, Marie sofreu mesmo um abuso? — Dizer aquelas
palavras em voz alta me deixou profundamente enjoado. — Por favor,
Jacques, me responda logo de uma vez!
— Queira me desculpar, mas você não está em condições de exigir
nada.
— Falarei com ela se for preciso, mas não vou desistir de ir a fundo
neste caso.
— De jeito nenhum! — Ele fez um gesto enérgico com a mão, ao se
levantar de um salto. — Acho melhor você respeitar a decisão dela de
querer falar ou não sobre este assunto. — Depois, se apressou em direção à
porta, e ao abri-la me dirigiu um olhar resignado e carregado de tristeza. —
Não tenho forças para discutir contigo. Já carrego o peso do arrependimento
dia após dia. Mas logo chegará a sua vez também.
Senti meu corpo pesado sobre as pernas, amargando a derrota ao
ficar de pé.
Se ele soubesse como eu me arrependi de ter desprezado a única
mulher que eu amei — e continuo a amar, completa e incondicionalmente.
Talvez eu tenha cometido o maior erro da minha vida.
— E se eu tiver sido injusto com ela? — Desviei o olhar, me
esforçando ao máximo para conter as lágrimas, que ameaçavam nublar
minha visão.
— O ódio te cegou de uma maneira que endureceu seu coração, mas
talvez não seja tarde para você. — Ele ainda parecia ressentido, mas
demonstrou algum fiapo de compaixão por mim. — Agora, se não se
importa, eu preciso que se retire... Bonne nuit.
Um músculo se retesou na mandíbula, quando eu emiti um suspiro
profundo, mas o longo sopro de ar foi incapaz de me estabilizar.
— Eu realmente sinto muito por isso... — Senti meu rosto queimar,
enquanto engolia o orgulho ferido e andei depressa, ansioso para sair dali,
de uma vez por todas.
Quando eu estava a caminho da casa dos meus pais, outra lembrança
daquela noite infame me veio à mente.
Eu andei pelo corredor do hotel, — bebendo champanhe
diretamente do gargalo da garrafa de Dom Pérignon, enquanto carregava
Kate em meu ombro —, em direção à suíte presidencial.
Quando eu a coloquei de volta ao chão, ela me enlaçou pelo
pescoço, com a intenção de me beijar na boca, mas eu virei meu rosto para
o lado, e me afastei bruscamente dela.
"Eu ainda sou casado, Kate. E ainda amo a minha esposa." —
Imprimi um tom de firmeza inabalável na voz, causando um profundo abalo
em meu corpo.
Ela fechou os olhos por um momento, e os abriu em seguida, a
incredulidade anterior se transformando em indignação.
“Imbécile! Você me trouxe até aqui para quê, então?”
“Eu ainda não sei, ok?” — Eu quase gritei, profundamente
aborrecido. “Só queria infligir em minha esposa toda a dor que senti
quando a vi nos braços de Patrick.”
“Ah... Vocês, homens, não sabem de nada. Não conseguem enxergar
o óbvio.”
Kate desatou a rir da desgraça alheia, feito uma hiena.
Aquela gargalhada triste e vazia dela me assombrou, desde então.

No dia seguinte, eu ainda estava sentado à mesa, lendo o jornal Le


Monde, enquanto tomava o café da manhã, quando de repente notei uma
silhueta feminina emergindo pela porta.
Reconheci Agnès, imediatamente, mas estranhei a ausência do meu
filho, o que era bem estranho, pois Benjamin tinha o costume de acordar
cedo, mesmo durante as férias escolares.
— Bonjour, monsieur, desculpe o incômodo... — disse ela,
enquanto segurava uma bandeja nas mãos.
— Bonjour. — Saudei a babá de modo gentil, e mergulhei o
croissant na xícara de chocolate quente, um hábito adquirido por influência
da minha ex-mulher. No fundo, eu sempre gostei de ser fortemente
influenciado por ela. — Meu filho continua dormindo?
— Benjamin vai me odiar por isso, mas o senhor precisa saber que
ele acordou se sentindo mal. Ele está suando muito e com o estômago
doendo, por isso eu fui até a cozinha e preparei um chá de hortelã.
Por que eu tinha a estranha sensação de que ela estava mentindo?
Preciso saber se foi um fingimento da parte dele, como das outras
vezes.
— Neste caso, talvez seja melhor eu levá-lo logo ao médico... —
Ela não me deixou terminar a frase.
— Non, monsieur! O chá será suficiente...
Limpei os lábios com o guardanapo de tecido, antes de me levantar
da mesa.
— Então, deixe que eu mesmo levo para ele. — Fiz questão de
dizer, usando um tom de voz baixo, mas suficientemente incisivo.
Agnès relutou um pouco, mas depois cedeu, me entregando a
bandeja.
— Très bien... — murmurou, visivelmente constrangida. — Se
precisar de mim, monsieur, é só chamar.
Eu subi as escadas e atravessei o corredor, com suas obras de arte
abstrata e de cores vibrantes espalhadas pelas paredes, evocando aquela
sensação de que a casa inteira respirava arte. Depois, abri cuidadosamente a
porta do quarto, iluminado apenas pela luz suave da luminária de teto, que
projetava um lindo céu estrelado.
O único som que prevalecia no quarto era o ressonar baixo,
proporcionado pela respiração cadenciada e serena da criança.
De imediato, não dava para saber até que ponto era verdade ou se se
tratava apenas de um fingimento.
Benjamin ainda considerava o divórcio como algo temporário,
acreditando na possibilidade de Marie e eu voltarmos a viver juntos. O
período de adaptação à nova realidade foi bem difícil, o meu filho
apresentou altos e baixos emocionais, como queda no desempenho escolar,
maior isolamento, tristeza, e falta de apetite, mas o acompanhamento
psicológico o ajudou a superar algumas questões internas.
Deixei a bandeja na pequena mesa de canto, antes de pegar o
controle remoto. As cortinas blackout se abriram, revelando portas de vidro
largas, descortinando a paisagem exuberante através do belo terraço. A
natureza presenteou os parisienses, com um dia ensolarado e temperatura
mais amena, típica de final de primavera.
Benjamin emitiu um murmúrio inconformado, ainda deitado de lado
e com a cabeça parcialmente coberta pelo lençol. Notei que havia uma
pequena poça formada por um líquido escuro e gosmento, possivelmente de
bile com secreções intestinais.
— Bonjour, papa... — disse ele, com a voz arrastada.
Cruzei meus braços sobre o peito e lancei um olhar sério para o
intimidar.
— Bonjour, mon génie. Agnès me contou que você parece
indisposto hoje, por isso eu fiz questão de trazer uma xícara de chá para
você tomar.
Ele fez que não com a cabeça e inclinou parte do corpo para fora da
cama, apertando a barriga e emitindo uma série de sons guturais, como se
estivesse prestes a vomitar.
— Pauvre petit! Pelo visto é mais sério do que pensei. — Tirei
rapidamente o meu celular do bolso, fingindo fazer uma ligação, com a
testa franzida e o ar compenetrado. — Eu vou marcar logo uma consulta
com seu médico...
— Non! — Negou, com veemência, me pegando completamente de
surpresa. — Mas não é nada grave, papa — prosseguiu, afastando o lençol
para o lado e se sentou na beirada da cama. — Já falei com a mamãe por
vídeo chamada e ela me disse que tem alguns assuntos pra resolver. Só não
quer ficar aqui. Ela vai dormir no hotel...
Eu ergui minha cabeça e olhei para o teto, deixando escapar um
longo suspiro, antes de voltar a encará-lo.
Benjamin demostrava ser tão genial quanto frágil, que chegava a
doer no fundo do peito.
— Marie vai antecipar a vinda dela por sua causa? — Franzi a testa,
com uma expressão de incredulidade.
O menino fez que sim com a cabeça e desviou o olhar, aparentando
algum remorso. Não, definitivamente, não era remorso. Arrependimento
talvez era o que mais se encaixava nas feições dele.
Se Benjamin planejou trazer a mãe de volta através de uma
simulação, tal como um ator, francamente, aquela mentira viria mesmo a
calhar, no fim das contas.
Atravessei o quarto e me sentei ao lado dele na cama, antes de
segurar o queixo fino e virei seu rosto, não dando outra opção além de me
encarar diretamente nos olhos.
— Talvez eu tenha cometido o maior erro da minha vida, Ben —
desabafei, sentindo que minha voz saiu mais embargada do que gostaria. —
Agora eu reconheço que a ausência dela me afeta e muito!
Eu julguei Marie mal. Muito mal. Não há um dia sequer que eu não
pense nela.
— Posso te fazer uma pergunta? — disse ele, me tirando
completamente dos devaneios. — Mas não é a mesma pergunta que eu fiz
pra ela, ok?
— Mas é claro! — respondi, sem titubear, incapaz de esconder a
curiosidade.
— Você alguma vez amou a mamãe? Por favor, não minta! — Seus
olhos castanhos continuavam fixos em mim, como se quisesse sondar os
mistérios da alma.
— Putain! — Só depois percebi que havia soltado um palavrão na
frente dele. Mas que se dane! Eu estava farto de lutar contra um sentimento
que só se fortaleceu com o tempo. — Eu ainda amo muito aquela mulher!
— Meu corpo estremeceu diante do impacto daquelas palavras. Desviei o
olhar de forma abrupta, e passei a encarar minhas próprias mãos unidas,
enquanto mexia os polegares. — Amo tanto que chega até a doer...
De repente, percebi que meus dedos estavam sujos, com algum pó
branco. Desconfiado, levei o dedo ao nariz para cheirar e imediatamente
senti um cheiro muito doce, típico de algum produto de beleza.
O que diabos ele passou no rosto?
— Mas ela me disse a mesma coisa, papa! — Benjamin disparou,
me tirando dos devaneios. — Se vocês dois ainda se gostam, por que não
voltam a ficar juntos?
Não dei muita atenção ao último comentário dele.
As crianças costumavam enganar os pais para faltar às aulas; o meu
filho aparentemente simulou passar mal, na tentativa de induzir a mãe a
retornar para nossa casa, tomando para si a responsabilidade de salvar um
casamento que deixou de existir.
Eu me levantei de um salto e segui direto até o banheiro para poder
confirmar minhas suspeitas. Levantei a tampa do vaso sanitário e olhei
atentamente para dentro, notando que um terço dele estava cheio de água,
misturada a restos de algum alimento.
Meu filho podia ter vomitado ali antes, ou usou algo para simular o
vômito, então esquadrinhei o ambiente todo, dando atenção especial aos
armários e gavetas além da lixeira, mas não encontrei nada.
Ele era inteligente demais para deixar rastros, ou indícios de suas
artimanhas.
— Por que você saiu correndo daquele jeito, papa? — Benjamin me
dirigiu um olhar cheio de desconfiança, ainda enrolado no lençol.
Eu me aproximei dele, em seguida me abaixei e sussurrei em seu
ouvido:
— Quero que lave bem o rosto, agora mesmo. — Meu tom de voz
foi incisivo o suficiente para fazê-lo virar a cabeça e me olhar, com um
misto de arrependimento, medo e raiva.
Observei meu filho subir no pequeno banco de apoio para alcançar o
lavatório, e coloquei um pouco do sabonete líquido facial na palma de sua
mão. Ele espalhou o conteúdo na pele e depois abriu a torneira para
enxaguar o rosto, uma mistura de água e espuma desceu pelo ralo, levando
com ela os resquícios do produto que ele usou.
— Tome, use esta toalha. — Estendi o tecido felpudo na direção
dele, ansioso para ver aquele rostinho meigo voltar a ganhar cor, e a palidez
desaparecer. — Oh, là là! Deixou de ser fantasminha!
Meu filho riu como se tivesse ouvido a piada mais engraçada do
mundo.
— Você devia se envergonhar por mentir, Ben. Agnès te ajudou
nisso?
— Oui! — confirmou, com um gesto de cabeça. — Ela me deu um
pó branco para passar no rosto. Acho que é maquiagem.
Estreitei os olhos para ele, com os braços cruzados, e a expressão
severa.
— Forjou o vômito também?
— Usei a sobra da sopa de ontem — admitiu, com aquela típica
petulância infantil. — Devia ter visto a reação de maman. Ela sempre cai
nos meus truques!
— Está na hora de agir como um garoto responsável pelos seus atos.
Não pensou na possibilidade de ficar doente de verdade e ninguém
acreditar?
— Eu sempre fiz a mamãe acreditar, não só a mamãe, mas toda a
família.
Benjamin já simulou febre, enxaqueca, dores de estômago, náusea e
cólicas, mas também diarreia, e erupção cutânea.
Já tentei alertar Marie diversas vezes sobre o comportamento dele,
mas ela sempre dizia que era algo inconsciente, uma resposta emocional ao
nosso divórcio, acarretando na somatização de dores ou doenças nele.
— O orgulho nem cabe mais no peito, não é? — perguntei, incapaz
de conter a ironia na voz. — Você preparou todo um cenário digno de
Palma de Ouro — Eu me referia ao troféu mais cobiçado do Festival de
Cannes. — Meus parabéns! — E dizendo isso, abri o armário que fica
debaixo da pia, e peguei um dos produtos de limpeza do banheiro, além de
luvas, um balde com água e pano limpo. — Agora, você vai remover aquela
poça imunda que deixou no chão do seu quarto.
Benjamin me fuzilava com o olhar, mas não se atreveria a me
desobedecer.
Ele calçou as luvas que cobriam quase todo seu braço, e se ajoelhou
no chão. Seu rosto antes pálido pela maquiagem deu lugar ao vermelho
raivoso, enquanto passava o pano úmido no piso de linóleo.
— Parfait! — Vibrei, com entusiasmo. — Agora é a vez do pano
seco. — Aguardei meu filho concluir a tarefa, que não se limitou à limpeza
do chão. Ele tinha seis anos de idade e já conseguia arrumar a própria cama
sozinho. — Très bien... Para finalizar, você vai tomar um banho para ficar
fresquinho e cheiroso.
— Mas a mamãe precisa me ver meio sujo e nojento, papa! — Seu
rostinho angelical assumiu um ar de revolta. — Ela precisa se convencer de
que estou doente.
Apoiei as mãos no quadril, dando um suspiro perfeitamente audível.
— A sua mãe já pensa o pior de mim, e você quer piorar ainda mais
as coisas?
Havia tristeza no olhar dele e uma lágrima sorrateira escorreu pelo
seu rosto.
— Foi tudo culpa minha, não foi? Eu nem devia ter nascido...
Eu imediatamente me prostrei de joelhos diante dele, e envolvi seu
corpo franzino em meus braços, de modo afetuoso. Senti o peito subindo e
descendo ao ritmo da respiração entrecortada pelos soluços que subiam à
garganta, de forma incontrolável.
Não quis impedi-lo de extravasar as emoções, acumuladas no
coraçãozinho. Por isso, eu aguardei com toda paciência do mundo, o meu
filho parar de chorar e soluçar. Então, eu me afastei um pouco, apenas o
suficiente para encará-lo diretamente nos olhos.
— Quero que me escute bem, ok? — Pedi, enquanto segurava o
rosto, banhado em lágrimas, entre as mãos, com firmeza. — Nunca mais
pense assim! Você não faz ideia da importância que tem em nossas vidas.
Foram tantas tentativas, que nós dois chegamos a pensar que ter um filho
era algo improvável... Quando sua mãe passou mal em Nova York, ela nem
cogitava estar grávida. — Conforme explicava sentia a minha própria voz
falhando, e precisei fazer uma pausa para respirar um pouco. — Foi um
susto daqueles! Eu peguei o jatinho na mesma hora, enquanto sua tia
permanecia ao lado dela, acompanhando tudo.
— Mas você não me viu nascer, papa? — Ele esfregou os olhos
ainda marejados, para conter as lágrimas.
— Oui! Não perderia seu nascimento por nada deste mundo! — Eu
meio que sorria e chorava, ao mesmo tempo. — Sabe aquela dor de
estômago que você fingiu sentir mais cedo? — Observei a reação dele, que
transparecia um misto de confusão e curiosidade no semblante. — A dor da
sua mãe, sim, era real. O médico disse que a causa era um bebezinho
escondido na costela, e é isso! Você se tornou nosso pequeno milagre.
— “O essencial é invisível para os olhos”. — Ele recitou
orgulhosamente a famosa frase de Saint-Exupéry.
— Você me pediu pra explicar a fala da raposa, lembra-se? Eu disse
que nosso coração nunca se engana. Já nossos olhos podem, sim, nos
enganar.
— Maman acha que você deixou seus olhos te enganarem, papa —
comentou Benjamin, com a expressão séria. Aquele olhar fixo e inquisitivo
me fez virar o rosto, profundamente incomodado. — Ela chorou muito,
porque você fechou seu coração. Fechou tanto que não conseguiu enxergar
mais nada.
— Acredita que seu avô Jacques falou algo parecido comigo ontem?
— comentei, com o olhar perdido em algum ponto do quarto.
Até que ponto ele sabia da verdade?
Marie-Claire e eu fizemos um acordo mútuo, visando proporcionar
ao nosso filho um ambiente sadio. Ele não precisou tomar partido a favor de
um, e em detrimento do outro, como forma de poupá-lo de qualquer trauma
decorrente do processo de divórcio. E mesmo ao longo de pouco mais de
três anos separados, eu continuei empenhado em jamais falar mal de uma
mãe para um filho.
Só não sabia se ela faria o mesmo por mim, especialmente na hora
da raiva.
— Acho que nunca te contei, mas já escutei a conversa dele com
maman.
Inclinei minha cabeça ligeiramente para o lado para sondá-lo, com
cautela.
— Mas quanto tempo tem isso? — perguntei, suspendendo a
respiração por um instante. — Sobre o que eles conversaram? — Disparei
outra pergunta, meio engasgado.
— Eu não lembro muito bem... — Meu filho franziu a testa, num
esforço para se lembrar. — Ah, lembrei agora! A gente estava morando
com o vovô! Mamãe falou sobre os homens maus... Eles foram cruéis com
ela, por isso ficou com medo...
— Homens? No plural mesmo? — Franzi a testa, um tanto surpreso
e confuso.
Benjamin confirmou, com um gesto de cabeça.
— Foi tão triste, papa... eu nunca tinha visto le papi chorar daquele
jeito.
Um músculo do maxilar se tencionou, uma onda de fúria inundou
minhas veias.
Quais as chances de ter sido uma mera coincidência?
Precisava confirmar se Marie era a modelo por trás da denúncia, no
jornal Le Paris, de um crime praticado pelo ex-agente dela, possivelmente
já prescrito, mas com investigação ainda em curso por envolver um número
maior de vítimas.
Senti uma vontade irresistível de acabar com a vida daquele
desgraçado, usando as minhas próprias mãos.
Capítulo 32

Jean-Luc

Suportar agressão sexual era uma das piores, senão a pior coisa que
poderia ter acontecido com minha ex-mulher. Sem contar as imagens e
vídeos explícitos registrados, aos 15 anos de idade — e estando
desacordada, — junto com à ameaça de divulgação na internet, colocando
em risco não apenas sua carreira, como também toda a sua vida.
Eu não era o magnata da mídia à toa. Tinha acesso às informações
privilegiadas, e não levei mais do que dois dias para checar as fontes junto à
promotoria de Paris, confirmando a identidade da modelo que rompeu com
o silêncio, sendo a primeira a prestar queixa contra Patrick Dupont.
Minha ex-mulher preferiu o anonimato por medo de sofrer
represálias.
Ainda me sentia péssimo por ter desconfiado que a ascensão rápida
dela na carreira tinha acontecido graças a algum envolvimento íntimo com
o ex-agente.
Cometi uma grande injustiça com a mulher que sempre foi a razão
da minha vida, e não ficaria de braços cruzados, aguardando alguma
punição dos agressores, quando o prazo prescricional para assédio na
França se restringia até no máximo três anos.
O processo movido por Marie não levaria necessariamente a um
julgamento.
Mantive o meu cotovelo apoiado no braço da cadeira giratória e o
queixo no punho fechado, refletindo sobre os desdobramentos de mais uma
notícia estarrecedora: O lendário fotógrafo, Sébastien Lévy, também estava
sendo investigado por má conduta sexual.
O provável cúmplice de Patrick, chamou as alegações das supostas
vítimas de mentiras e calúnias. Além dele, alguns estilistas, diretores de
elenco e outros profissionais da indústria foram mencionados nas denúncias
anônimas recebidas por Marie em suas redes sociais.
Os meus irmãos também estavam à frente de empresas que já
contrataram os trabalhos dos profissionais acusados de assédio sexual, por
isso passei boa parte da manhã reunido com eles além de nossos principais
gestores, no edifício-sede da SVL Groupe.
Decidi quebrar o silêncio incômodo, que havia caído sobre a sala de
reuniões.
— Acho lamentável que tantas jovens sejam inseridas num ramo
altamente sexualizado, com pouca supervisão e sem a proteção profissional
devida.
— Outras grandes empresas também anunciaram que não vão mais
trabalhar com o fotógrafo — disse Christian, desviando o olhar da tela e
olhando fixamente para cada um dos gestores presentes.
— Os fotógrafos sempre foram tratados como deuses no mundo da
moda — comentou Camille, ao se endireitar na cadeira. — Eles costumam
fazer o que querem, e podem mesmo, porque ninguém os impede.
As notícias de assédio e abuso sexual terem vindo à tona
massivamente nos últimos dias, deixou colegas e parceiros de negócios num
estado de dúvida — ou de negação.
— Mas é revoltante demais! Esses predadores sexuais
desempenharam vários trabalhos para a Ego Media. Esses vermes
assediaram sexualmente Mar... digo tantas jovens modelos. — Eu me
corrigi depressa, evitando cometer a indiscrição de mencionar o nome da
minha ex-mulher. Aquele era um assunto muito delicado.
— Mas a gente não tinha como saber, Jean. — Cédric ponderou,
com ar grave. — Nós estamos falando de profissionais com uma carreira
sólida no mundo inteiro.
Sébastien Lévi, por exemplo, era dono de uma agência influente que
representava fotógrafos, diretores criativos e estilistas.
— Eu já tinha implementado novas medidas, visando diversificar o
quadro de profissionais na L’Beauté. Nenhum deles trabalhou para mim
recentemente.
— Já comuniquei aos clientes da Ego Media que Lévy foi cortado
das campanhas publicitárias. — Foi a vez de Christian falar, após desviar a
atenção do tablet.
Não pensei duas vezes e bati com o punho fechado na mesa,
surpreendendo-os.
— Eu ainda acho que isso não muda nada. — Deixei escapar uma
leve inflexão de impaciência na voz. — Ainda vou promover a ruína de
todos eles! — desabafei, me deixando levar por uma fúria incontida,
enquanto um tremor violento me percorria o corpo. — Pretendo fazer com
que, tanto Dupont quanto Lévi, pensem quem nem os seus melhores
advogados serão capazes de restaurar a imagem deles.
— Parece que isso está bem perto de acontecer, Jean. — Cédric
virou a tela do seu laptop em minha direção.
Eles fizeram declarações por meio de seus advogados, alegando
terem conquistado uma reputação sólida junto à indústria da moda, e
pediram o fim do que chamaram de “campanha infame da mídia”.
— Eles estão se defendendo o melhor que podem mas vão fracassar.
Quando a reunião terminou, cerca de vinte minutos depois, os
executivos saíram da sala e me deixaram a sós com meus irmãos.
De repente, um desejo irresistível de fumar me invadiu.
Foi tão intensa a vontade que era quase como se uma força
esmagadora pressionasse o meu peito, dificultando a passagem de ar para os
pulmões. Então, eu me levantei rapidamente, tirando o paletó e afrouxei o
nó da gravata, antes de seguir até a janela mais próxima.
— Posso imaginar como está se sentindo, frangin... — O toque
suave da mão de minha irmã sobre meu ombro provocou um leve, mas
perceptível tremor no corpo todo. — Ainda se sente mal por ter sido injusto
com ela, não é mesmo? — perguntou Camille, estreitando seus olhos
castanhos grandes e expressivos em mim.
Pelo canto do olho, notei Cédric se posicionando ao meu lado, e ele
também tocou meu ombro de leve, um gesto capaz de proporcionar algum
conforto em meio ao caos que minha vida se transformou nos últimos anos.
— Me sinto um tremendo canalha, Camille! Eu praticamente
chamei Marie de alpinista social, cínica e traiçoeira. Quando eu flagrei os
dois se beijando, cogitei que ela tinha sido capaz de fazer sexo com o
agente, em troca de contratos lucrativos de modelagem, especialmente para
sua marca de cosméticos.
— Eu tentei te alertar diversas vezes que tudo não passou de um
terrível mal-entendido. Você é um publicitário experiente e também está
inserido na indústria da moda há anos. Quem nunca escutou rumores sobre
casos de violência sexual, nos bastidores?
— Mas, a gente nunca espera que algo assim aconteça com uma
pessoa próxima, Camille... — ponderou Cédric, com a expressão séria.
— Eu não devia ter feito uma acusação tão grave contra ela. Era o
meu dever protegê-la, putain! Marie tem motivos de sobra pra me odiar.
— Se refere ao que fez naquela noite? — perguntou meu irmão,
estreitando um olhar curioso em minha direção. Aquela era a primeira vez
que Cédric tocava no assunto.
— Não me lembro de muita coisa. Eu estava no bar do hotel,
quando Kate apareceu e conversamos um pouco. Eu só pensava em me
vingar de Marie e a bebida serviu como combustível para inflamar ainda
mais todo ciúme e todo ódio que já sentia dela. Vocês sabem que as duas
nunca se deram bem, mesmo sendo colegas de profissão... Merde!
Aquela revelação era amarga e dolorosa, mas também trazia algum
alívio.
— Vocês, homens, amam ver duas mulheres disputando o coração
de vocês. — Minha irmã revirou os olhos e suspirou de forma dramática. —
Acho rivalidade feminina tão démodé.
— Kate subiu comigo até a suíte presidencial, mas eu juro que não
rolou nada mais íntimo entre nós.
— Uma pena que os rumores não ajudaram em nada... — Cédric
contraiu o rosto numa expressão de censura. — Você inicialmente foi visto
sozinho no bar, mas depois seguiu até a suíte, acompanhado pela modelo.
No dia seguinte, fizeram o check-out separados e deixaram o hotel com
poucos minutos de diferença. Sendo bem sincero, parece que tudo está
conspirando contra você, Jean.
Eu me deixei levar pelo orgulho ferido, agindo como um perfeito
canalha.
A vontade de revidar a traição que julguei ter sofrido fez tudo sair
de controle.
Kate preferiu se isolar em seu rancho em Montana, se recusando a
dar declarações para a imprensa, e tem se mantido afastada das passarelas e
dos principais eventos de moda.
Parecia que ela foi diagnosticada com uma doença autoimune.
Avancei mais um passo e encostei minha testa na janela,
pressionando o punho fechado contra o vidro com tanta força, a ponto de
sentir dor na junta entre os dedos.
Não há nada que eu me arrependa mais do que ter usado Kate como
instrumento de vingança.
— Ela se recusou a ir embora, e ainda ameaçou fazer um escândalo.
Àquela altura nós dois já tínhamos entornado uma enorme garrafa de
champanhe. A merda toda já estava feita. Mas, eu volto a repetir que não a
beijei e muito menos transei com ela. — Fiz questão de garantir, com toda
convicção.
— Então, cada um foi para um canto da suíte e dormiu, apenas?
Meu rosto se contraiu pelo esforço mental de vasculhar na memória
algo bem específico. Já me sentia esgotado tanto física quanto
emocionalmente, mas respirei bem fundo para me concentrar, esvaziando a
mente até acessar o seu nível mais profundo.
— Como ela se mostrou irredutível em deixar a suíte, eu resolvi
ignorar a presença dela. Lembro de ter me dirigido até o sofá, tirei o meu
paletó e os sapatos e me deitei, talvez para refletir sobre tudo o que tinha
acontecido... Depois eu apaguei, simples assim.
— Só não entendo uma coisa nessa história toda... — Camille
franziu a testa, com ar pensativo. — Por que você fez Marie acreditar que
tinha sido infiel com ela?
Eu me virei para ficar de frente para os dois, e então olhei
atentamente, primeiro para Camille e depois para Cédric.
— Acho que pesou o fato de estar com o orgulho ferido... Eu só
pensava em me vingar. Talvez eu não mereça, mas preciso me redimir e
recuperar minha família.
De repente, o telefone na mesa de reuniões tocou, interrompendo
nossa conversa, e não pensei duas vezes em atender, na expectativa de
receber a confirmação da chegada do atual agente da minha ex-mulher.
— Bonjour, Babette! — Saudei, com a respiração suspensa.
— Bonjour, Jean. — Retribuiu o cumprimento. — Monsieur
Donovan está à sua espera.
— Merci. Estarei aí em cinco minutos. — Eu desliguei, voltando a
atenção para os meus irmãos. — Bob Donovan está na cidade e mesmo com
a agenda concorrida, se comprometeu a vir até aqui. Preciso descobrir qual
é a relação dele com Patrick Dupont.
— Os dois são colegas de profissão, e obviamente são vistos como
homens poderosos, ou mesmo intocáveis... — Camille ponderou, franzindo
a testa, e imprimindo um tom de preocupação à voz. — Acha mesmo que
vale a pena conversar com ele? Duvido muito que Donovan queira se
comprometer, por mais que seja um concorrente.
— É aí que você se engana, chérie. — Esbocei um sorriso sagaz de
canto de boca. — Todos eles possuem fraquezas e vulnerabilidades... —
prossegui, colocando meu laptop dentro da pasta de couro, e segui em
direção à porta. — Agora eu preciso ir até minha sala, mas a gente vai
continuar discutindo este assunto em outro momento. Salut.
Só espero que Bob Donovan não se oponha em colaborar comigo.
Ele frequentava os mesmos círculos sociais e devia reconhecer a
forma como Patrick e Sébastien exerciam sua influência para assediar
sexualmente de jovens modelos.

Uma vez em minha sala, indiquei uma das poltronas para o agente
se sentar. E quanto a mim, eu preferi continuar de pé, fingindo recolher
meus papeis sobre a mesa.
— Bonjour, Jean-Luc. — O empresário me cumprimentou, com um
aceno de cabeça. — Confesso que fiquei surpreso com seu contato, mas me
diga em que posso ajudá-lo.
— Está metido no ramo da moda faz muito tempo, non? —
perguntei, fingido casualidade.
Um brilho de desconfiança cruzou o olhar do homem naquele
mesmo instante.
— Por que a pergunta? Continuo sem entender aonde quer chegar.
Ele estava claramente na defensiva. O que também não era de se
surpreender.
Caminhei lentamente até a área de estar e me sentei diante dele, na
poltrona oposta.
— Relax, Donovan. Perguntei só por curiosidade mesmo.
— Então acho melhor ir direto ao ponto, Jean — ponderou, soltando
um suspiro pesado. — O que quer saber? É sobre Patrick Dupont?
Eu apenas me limitei a lançar um olhar inexpressivo na direção dele.
— Vou considerar o seu silêncio como um “sim”. — Depois de
esticar um dos braços ao longo do encosto do sofá, ele voltou a me encarar,
e prosseguiu: — Eu conheço aquele patife, até mais do que gostaria. —
Depois, inclinou o corpo para a frente, sem tirar os olhos dos meus, o rosto
assumiu uma expressão tão séria que eu imediatamente me endireitei na
cadeira, receoso do que ele poderia dizer a seguir. — Ouça bem, Jean.
Marie não teve escolha. — Notei que sua expressão se suavizou um pouco,
ao falar da minha ex-mulher. — Não queira estar na pele dela, e nem de
nenhuma outra mulher.
Um músculo se retesou no maxilar, quando eu emiti um suspiro
profundo, mas o longo sopro de ar foi incapaz de me estabilizar.
— Quero que você me conte tudo o que esse desgraçado fez contra
ela.
— Infelizmente, eu não vou poder te ajudar. — Ele balançou a
cabeça em negativa. — Sugiro que fale diretamente com sua ex-esposa
sobre isso.
— Entendo... — murmurei, olhando distraidamente para algum
ponto da sala. — Eu posso ao menos saber como Patrick tem se saído
impune durante todos esses anos? Ele com certeza não tem agido sozinho, e
usou de todos os meios possíveis para garantir que essas jovens mulheres
permaneçam em silêncio.
— Mas a indústria da moda não é muito diferente da indústria do
entretenimento. — Ele cruzou uma perna por cima da outra e recostou-se na
poltrona. — Marie assinou contratos plurianuais com renovação automática
para a New Look Models. Isso acabou dificultando a saída dela, no passado.
Inclinei o corpo para a frente, com os cotovelos apoiados no colo, e
o queixo descansando nos dedos entrelaçados, mantendo uma postura
reflexiva.
— Aquele infeliz conseguiu conquistar a confiança do meu ex-
sogro, e ainda por cima se tornou um grande amigo dele. — Eu olhei para
Bob, com a expressão cada vez mais sombria. — Patrick não apenas
arruinou a vida dela, causando traumas irreparáveis, como também destruiu
nossa família. O meu filho ainda se culpa pela nossa separação.
Aliás, eu fui o maior responsável pelo sofrimento deles.
Quanta dor teria sido evitada, se eu tivesse acreditado na mulher
que eu amo?
Eu praticamente a abandonei no momento em que ela mais
precisava de mim.
— Não desista de tê-la de volta, Jean. — Ele me deu tapinha no
braço, para me transmitir algum apoio.
— Sinto muito pelo desabafo... — Eu me desculpei, deixando
escapar um longo suspiro. — Falar sobre este assunto é sempre muito
difícil. Eu só queria poder voltar no tempo e ter a chance de reparar o meu
erro.
— Se serve de consolo, Marie-Claire ainda te ama. — O agente de
modelos esboçou um meio-sorriso que estava mais para uma careta, e
completou: — Espero poder ajudá-lo de alguma forma... Você sabe que
sempre estou às ordens.
— Você pode me ajudar, sim. Quanto mais contratos assinar, mais
Marie permanecerá na cidade. A minha irmã já fez a parte dela, com a
renovação do contrato de exclusividade para a L’Beauté Paris. Sem contar
outras marcas interessadas em fechar contratos importantes para alguns
editoriais de moda e campanhas publicitárias.
— Você quer complicar ainda mais a minha vida? — Uma
expressão matreira se formou no rosto dele naquele mesmo instante. —
Marie já estava reduzindo sua presença nas passarelas e anunciou que vai
desfilar pela última vez durante a Paris Fashion Week deste ano. Ela quer se
dedicar mais ao filho e a outros projetos pessoais.
— Mas isso não é nenhuma novidade! — Soltei uma risada sem
graça. — Marie sempre dizia que planejava se “aposentar”, quando
alcançasse 27 anos de idade.
— Até comentei com sua ex que o divórcio lhe fez bem, porque ela
nunca antes estampou tantas capas de revista e estrelou tantas campanhas
como nos últimos anos...
Eu cocei o queixo, pensativo, enquanto olhava fixamente para Bob
Donovan.
— Para o seu próprio bem, eu vou fingir que não escutei esse seu
comentário.
— Não posso garantir nada, mas eu vou tentar convencê-la a aceitar
os trabalhos paralelos...
— Sabia que podia contar com você, Donovan. Aceita beber alguma
coisa?
— Não, obrigado. Mas voltando ao assunto de antes, não há a menor
dúvida de que nós dois temos um inimigo em comum, agora.
— Como aquele desgraçado conseguiu fazer tantas vítimas? — Bati
com o punho fechado no braço da cadeira, dando vazão à raiva que já me
consumia sem o menor controle.
— Patrick tinha o costume de promover festas em sua mansão,
acompanhado de suas modelos favoritas, que se viam forçadas a entreter
não apenas a ele como também aos amigos influentes.
— Minha atitude em relação ao seu colega vai depender muito do
que você sabe. — Voltei a falar, numa postura confidencial. Depois, bati
com o dedo na testa franzida. — Essa dúvida está martelando a minha
cabeça sem parar.
— O que quer saber?
— Será que minha ex-mulher já foi pressionada a fazer sexo com
ele?
— Não posso afirmar e nem negar nada — ponderou ele com ar
pensativo. — Estamos falando de um setor que emprega adolescentes, em
sua maioria. E nós sabemos que eles são mais vulneráveis a todo tipo de
abuso e exploração.
— Merde! — Praguejei, passando a mão trêmula pelo rosto. — Eu
não vou sossegar até ver Patrick Dupont apodrecer atrás das grades. — O
meu maxilar se enrijeceu e senti uma onda de indignação irracional me
envolver por inteiro. — Vamos deixar a Justiça resolver, mas sem deixar de
fazer a nossa parte também, é claro.
O agente de modelos balançou lentamente a cabeça, em
concordância.
— Sei bem a que se refere, Jean... — Ele então passou os dedos
sobre os lábios, fechando-os com um sinal de zíper. — A minha boca é um
túmulo!
Senti uma vontade irresistível de acabar com a vida daquele
desgraçado, usando as minhas próprias mãos.
Capítulo 33

Jean-Luc

A agência New Look Models se situava a poucos passos da Champs-


Elysées, na Avenida George V, considerada uma das vias mais luxuosas da
cidade.
Estacionei o veículo à sombra de uma árvore, dando uma boa olhada
ao redor, enquanto removia o cinto de segurança. Depois, tirei meus óculos
escuros, saltei para fora do carro, e caminhei até a entrada do prédio
neoclássico de cor creme.
Uma vez no escritório da agência, eu me aproximei da recepção,
exibindo o meu melhor sorriso para a atendente.
— Boa tarde. — Saudei a mulher, cordialmente.
A recepcionista retribuiu o cumprimento, com um gesto de cabeça.
— Como vai, monsieur Laurent? Em que posso ajudá-lo?
— Posso falar com monsieur Dupont? — Tentei fazer minha voz
soar convincente, para despertar alguma comoção nela. — Tenho um
assunto urgente a tratar com ele, por isso não agendei uma visita... — Ainda
torci a boca e suspirei, fingindo algum pesar. — Sinto muito. Imagino que
ele esteja bastante ocupado...
— Eu vou verificar. Un instant s’il vous plaît. — Ela ligou para o
ramal da secretária, disse o que era, aguardou alguns segundos e voltou a
me encarar, seriamente. — Ele saiu da agência já faz alguns minutos...
Eu já estava quase mal dizendo a minha falta de sorte, quando de
repente avistei a sócia dele se aproximando da recepção, na companhia de
sua assistente.
— Désirée Guillaume! — Minha voz se eleva com a empolgação.
— Bonjour.
— Oh là là! Quelle surprise! — Désirée tentou parecer
entusiasmada em me ver, mas seu semblante denunciava certa apreensão
com a minha visita repentina. — Comment ça va?
— Estou bem melhor agora... — Soltei um suspiro teatral, antes de
completar, usando todo meu charme para tentar desarmar a mulher. — Será
que podemos conversar?
— Eu já estava quase de saída, mas sei que você não viria até aqui
se não fosse importante. — A agente de modelos pareceu refletir por um
momento, enquanto sorria para mim de forma sedutora. — Por que não me
acompanha até minha sala? — Depois, voltou sua atenção para a assistente,
dizendo: — A gente se fala depois, Chloé. À Bientôt!
— Merci. — Eu fiz questão de agradecer a gentileza, enquanto
seguíamos pelo extenso corredor.
— Confesso que não esperava sua visita. Tem acontecido tantas
coisas anormais ultimamente...
— Se refere à conduta deplorável do seu sócio? — Eu estreitei os
olhos, aguardando a reação dela.
Désirée estacou de repente, e girou sobre os calcanhares. Achei
estranho o fato de seus olhos terem se fixado num ponto logo atrás de mim.
Eu virei minha cabeça, a tempo de flagrar Patrick saindo furtivamente de
sua sala. Não pensei duas vezes e avancei como um raio na direção dele e o
puxei com força pelo braço, para impedi-lo de ir embora.
— Aonde você pensa que vai, imbécile? — Minha voz saiu tão
baixa e ameaçadora, que o infeliz até estremeceu de medo.
A sócia dele correu em seu auxílio e ainda teve a audácia de tentar
soltar minha mão, que ainda prendia firmemente o braço dele.
— Monsieur, soltei-o agora! — exigiu ela, visivelmente furiosa. —
Eu não vou permitir nenhuma confusão por aqui. Me ouviu bem?
Fiz o que ela me pediu, mesmo a contragosto, reunindo todo meu
autocontrole.
— Não vou sair daqui enquanto não conversar com ele.
— Très bien... — murmurou Patrick, ao passar a mão pela manga de
seu blazer, irritado com os vincos que se formaram por minha causa. —
Pode deixar que eu cuido disso, Désirée — completou, sem tirar os olhos de
mim.
A mulher inclinou a cabeça para o lado, com o cenho franzido de
preocupação.
— Você tem certeza, Patrick? Não pode se arriscar dessa maneira...
— Está tudo sob controle... Agora nos deixe a sós, por favor.
A mulher revirou os olhos, e suspirou profundamente, antes de ir
embora.
Quando Patrick voltou sua atenção para mim, usou um tom baixo,
mas suficientemente incisivo.
— Eu vou deixá-lo entrar em minha sala, mas se tentar algo contra
mim, chamarei imediatamente os seguranças.
— Por que eu não estou surpreso? Você não passa de um covarde!
Depois que a porta se fechou, Patrick seguiu até sua mesa e se
sentou. Fez um gesto com a mão, indicando que eu devia me sentar em uma
das cadeiras estofadas, mas achei melhor ficar de pé, para abreviar ao
máximo minha permanência naquele lugar.
— Não pretendo perder o meu tempo aqui, por isso eu vou direto ao
ponto.
— Talvez ainda não saiba, mas a última vez que Marie esteve em
minha sala, se mostrou muito arrependida por ter permitido sua entrada no
apartamento...
Meu corpo se retesou, um músculo do maxilar endureceu,
perceptivelmente.
— Aonde você quer chegar com tudo isso? — Eu o encarei
atentamente, meus olhos lançavam chispas de ódio.
— Ela foi obrigada a se retirar de lá. — Ele respondeu, com
indisfarçado cinismo. — Foi realmente uma pena, porque as meninas
gostavam da companhia dela. Mas regras são regras. Elas não podiam
receber visitas de homens... independente de quem for.
— Eu nunca soube deste fato... — Divaguei, com ar pensativo.
— Há tantas outras coisas que sua ex-mulher escondeu de você...
Uma fúria irracional se apoderou de mim, e avancei sobre aquele
infeliz, agarrando-o pelo colarinho da camisa social e o obriguei a ficar de
pé, com o corpo pressionado contra o tampo da mesa.
— Começando pelas coisas horríveis que fez contra ela, não é
mesmo? — Vociferei, fazendo as gotículas de saliva saírem da boca.
Patrick ainda tentou se desvencilhar, mas eu era muito mais forte do
que ele.
— Você não é muito diferente de mim, meu caro. — A voz dele saiu
fraca e fina, e notei um fio de suor brotar no alto de sua testa. — Brincou
com os sentimentos dela até se cansar, e ainda por cima a traiu com uma de
suas ex, na primeira oportunidade!
Eu o empurrei com toda força, fazendo-o cair sentado na cadeira de
rodinhas.
— Nunca traí a minha mulher, seu verme!
Ele deixou escapar um sorriso de escárnio, enquanto massageava a
nuca.
— Ela já deixou de ser sua há anos! — Cuspiu aquelas palavras com
desdém.
— Sim, você está certo. — Tive de admitir, com amargura. — Mas
ainda vou ter a minha mulher de volta. — A minha voz ressoou com tanta
convicção, a ponto de sentir uma onda reconfortante varrendo todo o meu
corpo.
— Você se esqueceu apenas de um detalhe: ela te odeia tanto quanto
odeia a mim. — Ele ironizou, os lábios retorcidos em um sorriso cheio de
sarcasmo.
— Marie-Claire e eu vamos superar tudo isso. Nós temos uma
história juntos.
Patrick bateu palmas em sinal de escárnio e, se levantou de um
salto.
— Que discurso comovente! Quase chorei de emoção. — Seu rosto
exibia uma expressão de deboche. — Mas você é um publicitário, Jean, e
sabe como influenciar as pessoas, não é mesmo? — prosseguiu, pegando
um papel dobrado de dentro do bolso, e o estendeu em minha direção. — O
que acha de dar uma olhada no meu comunicado à imprensa? Será que eu
encontrei o tom certo? Seja sincero, por favor!
Aquele homem era um doente. O que diabos pretendia com aquele
teatro todo?
Como a curiosidade falou mais alto, eu peguei a folha com um gesto
brusco. Mas eu me senti cada vez mais enojado, conforme lia o texto,
palavra por palavra.
Patrick dizia se sentir completamente chocado e triste com as
acusações, e ainda por cima resumiu o fato a um “acidente de
percurso”. Também se mostrou esperançoso em poder voltar a trabalhar
com a modelo, reforçando que a parceria entre eles rendeu contratos
milionários, e finalizou o comunicado lamentando que suas atitudes tenham
sido “tiradas de contexto”.
Aquele desgraçado demonstrou ser mais audacioso do que eu
pensava. Ele não faria uma declaração dessas se não tivesse a menor
possibilidade de sair impune.
Amassei bem o papel e o atirei sobre a mesa, num rompante de
irritação.
— Parece que o escândalo de assédio sexual não manchou sua
reputação...
— Toda essa coisa de assédio é uma grande bobagem! — Fez um
gesto de puro desdém, com uma das mãos. — O Lévy já trabalhou para
dezenas de designers de luxo, além de ter fotografado para as principais
revistas de moda. E quanto a mim, eu continuo sendo o dono de uma
prestigiada agência parisiense, cujas modelos são reconhecidas no mundo
todo. A investigação não vai dar em nada, quer apostar?
Cruzei meus braços sobre o peito, uma sobrancelha se ergueu, ao lhe
lançar um olhar frio.
— Mas é claro... — murmurei, com um esgar de desprezo. — Você
além de oferecer promessas de sucesso e riqueza, ainda convenceu os pais
das modelos de que seria uma espécie de protetor delas... Algumas ainda se
sentem acuadas, enquanto outras, como Marie-Claire, romperam com o
silêncio e agora buscam por justiça.
O agente de modelos irrompeu, repentinamente, numa gargalhada
sarcástica.
— No fundo, aquela vadia gostava das investidas, mas optou em se
fazer de difícil. — Um sorriso insolente se delineou em seus lábios. —
Lévy apostou comigo que eu não conseguiria tirar a virgindade dela, e
realmente não pude fazer nada, além de me masturbar enquanto ela dormia
só para me realizar sexualmente. — Meu sangue começou a ferver nas
veias, tomado pelo peso daquela revelação deprimente. — Devia me
agradecer por ter mantido a pureza dela, Jean.
Patrick queria que eu o agredisse, desde o início, e até consegui me
segurar, jurando me vingar dele de outra maneira, mas depois do que acabei
de ouvir, a vontade de esmurrá-lo até a morte só aumentou,
consideravelmente.
Esperei tempo demais, para ter o prazer de quebrar a cara daquele
desgraçado.
Parti para cima dele com os punhos cerrados, e dei um soco direto
naquela boca maldita. Patrick cambaleou para trás, desnorteado pelo golpe,
mas eu rapidamente o puxei pela gola do paletó, disposto a lhe dar um
último aviso.
— Não tem ideia de com quem se meteu, e nem imagina do que sou
capaz.
Ele respirava pesadamente pela boca entreaberta. Um filete de
sangue escorria do canto do lábio inferior.
— Quebrou um pedaço do meu dente, fils de pute. — E dizendo
isso, enfiou o dedo na boca, tateando o interior dela, e depois apontou o
dedo em riste em minha direção, sustentando o olhar de modo animalesco.
— Você ainda vai se arrepender!
Um instinto feroz revirou minhas entranhas.
Eu já estava prestes a desferir outro murro, mas Patrick avançou
para cima de mim, travando um embate corpo a corpo. Ele usou toda sua
força para me empurrar contra a mesa de carvalho, e quando cerrou o punho
para revidar a agressão, eu imediatamente retraí o queixo de forma que
apenas uma parte do lábio superior e do nariz fossem atingidos.
Senti o gosto metálico do sangue na língua, mas me atraquei com
ele para sair de cima da mesa, empurrando-o com toda força no chão.
— Nós estamos quites, seu verme! — vociferei, enquanto apertava o
nariz com dois dedos, na tentativa de estancar o sangue.
— Exijo que saia da minha sala agora mesmo, senão chamarei os
seguranças.
Ele ainda estava deitado de lado no chão, tentando se levantar, mas
usei meu pé para chutar as costelas dele, sem usar muita força.
— Não ouse tocar num fio de cabelo da minha mulher de novo, me
ouviu bem, fils de pute?
Girei sobre os calcanhares e saí pisando duro pela sala, xingando
baixinho.
Eu não vou sossegar até ver esse desgraçado apodrecer atrás das
grades.
Capítulo 34

Jean-Luc

Subi os três lances de escadas, que levavam ao pavimento superior


da mansão, mas ao me virar para seguir até o meu quarto, acabei me
esbarrando em alguém que veio no sentido contrário.
Um arquejo de surpresa escapou dos lábios de minha ex-mulher, e
senti um arrepio percorrer a lombar, quando suas mãos macias espalmaram
o meu peito.
— P-pardon... — Ela murmurou um pedido de desculpas, quase
gaguejando.
O rubor que atingiu as bochechas dela deu lugar a uma palidez
acentuada, assim que seu olhar se deteve no hematoma em meu rosto, além
do pequeno corte no lábio superior e na crosta formada pelo sangue
coagulado, saindo do nariz.
— Oh là là, quel désastre! — murmurou Marie, assustada. — O que
aconteceu? Você andou brigando? — Disparou uma pergunta atrás da outra,
me fazendo lembrar de minha mãe, quando eu arrumava alguma confusão
na escola.
— Não foi nada... — Soltei um longo suspiro, e completei: — Estou
ótimo!
— Você acabou de apanhar e está me dizendo que não foi nada?
— E quem foi que disse que eu apanhei? — perguntei, deixando
escapar uma leve inflexão de impaciência na voz. — Fiz um estrago muito
maior no rosto dele.
Um brilho de desconfiança cruzou o olhar dela naquele mesmo
instante.
— Mas de quem você está falando?
— Prefiro não dizer... — Minha voz saiu mais ríspida do que
gostaria, mas completei na sequência, um pouco mais contido. — Acho
melhor assim, Marie.
Eu fiz menção de sair, antes que ela me fizesse mais perguntas, mas
subitamente senti um puxão firme em meu braço, e voltei a encará-la,
intrigado com o fato de minha ex ter demonstrado alguma preocupação
comigo.
A expressão no rosto dela se suavizou, assim que os nossos olhares
se encontraram, o que sem dúvida fez reacender uma fagulha de esperança
no peito.
— Você precisa dar um jeito nisso, Jean... — Marie começou a falar,
parecendo hesitante e depois desviou o olhar, constrangida. — Vou pegar o
kit de primeiros socorros. — Ela fez que ia se afastar, mas eu fui mais
rápido e bloqueei a passagem.
— Pode usar o que kit que ficou em nosso quarto... — Eu deixei
escapar um breve gemido, e me corrigi depois, meio sem graça. — Quero
dizer, no quarto principal.
— Très bien... Não quero que Benjamin te veja nessas condições.
— O meu rosto ficou desfigurado, por acaso? — perguntei,
cruzando os braços, na defensiva.
Ela sufocou um riso e fez uma careta descontraída.
— Você apanhou feio e não quer admitir. — Ela girou nos seus
calcanhares e andou graciosamente em direção à suíte, como se estivesse
desfilando. — Allez! Ande logo que eu não tenho a noite toda.
Quando eu alcancei Marie, enfiei as mãos nos bolsos da calça social,
e estreitei um olhar curioso na direção dela.
— Benjamin estava ansioso demais com seu retorno... — comentei,
com fingida casualidade, antes de perguntar como quem não queria nada:
— Desistiu mesmo de ficar no hotel?
— Sim, pelo menos por enquanto... Sabe o que me preocupa?
Benjamin agora tem feito o possível para ficar doente de verdade...
— Já tentei conversar com ele sobre isso, mas não adiantou nada.
Ben continua achando que essa é a melhor maneira de chamar nossa
atenção — ponderei, com um encolher de ombros. — Mas você sempre
será bem-vinda aqui, Marie. — Dei tanta ênfase e profundidade à voz, que
o meu corpo reagiu de imediato, estremecendo sutilmente. — Pode ficar o
tempo que quiser.
Minha ex-mulher me encarou por alguns instantes, com a cabeça
inclinada levemente para o lado na tentativa de me sondar, a testa franzida
em desconfiança.
— Nossa, por essa eu não esperava! Não precisa fingir para mim,
Jean.
Parei à porta do quarto e suspirei bem fundo, colocando a mão na
maçaneta.
— Por que eu fingiria, chérie? Sua presença nesta casa faz toda a
diferença... para o nosso filho, é claro! — Completei depressa, ciente de que
minha ex se manteria na defensiva, mas eu não me daria por vencido, assim
tão facilmente. — E falando em nosso filho, você sabe me dizer se ele já
jantou? — Desconversei, mudando completamente de assunto.
— Ele continua no quarto porque quer ver toda a família reunida à
mesa. — Percebi uma nota de ironia na voz dela.
Quando Marie-Claire finalmente se deu conta de que havia entrado
no quarto que compartilhamos durante cinco anos, não deixou de observar
cada detalhe do cômodo todo mobiliado com extremo conforto e requinte.
Tudo permaneceu da maneira como ela deixou há pouco mais de
três anos.
Ela lançou um olhar ao redor, como se visse tudo pela primeira vez.
Os olhos azuis-turquesa brilhavam num contentamento nostálgico, o
grande lustre de cristal pendurado no teto só acentuou ainda mais a
intensidade.
Como ela ainda estava de costas, não notou que eu me posicionei
bem atrás dela.
— O quarto está exatamente como você deixou. — O timbre rouco
de minha voz junto ao ouvido a fez estremecer, sutilmente. Em seguida,
fechei os olhos e inclinei a cabeça, recostando o nariz nos cabelos dela
antes de inspirar profundamente, sentindo o aroma suave exalado por eles.
— O seu cheiro está por toda parte... Deixe-me adivinhar: você está usando
agora o L’Amour Toujours.
— Como sabe que é o perfume da L’Beauté Paris?
— Nós gravamos o comercial dele juntos, lembra-se?
— Eu vou providenciar logo os itens de primeiros socorros. Fique
aí, que eu já volto! — Ela bem que tentou disfarçar, mas percebi que se
impressionou com meu último comentário, após enxugar as lágrimas, da
forma mais discreta que conseguiu, enquanto caminhava até o banheiro.
Levantei um dos punhos, discretamente, em um gesto triunfante.
Tão natural quanto a luz do dia era a certeza de que Marie ainda me
amava.
Não sabia bem o que fazer com minhas mãos, enquanto permanecia
sentado, olhando de frente para minha ex-mulher, que embebia o algodão
no antisséptico para passar sobre o ferimento, um gesto cuidadoso que me
sensibilizou, sobremaneira.
— Seu nariz continua alinhado, Jean. Talvez não houve uma fratura,
mas ainda acho que deve consultar um médico nas primeiras 24 horas, caso
o inchaço perdure.
Os nossos olhares se detiveram um no outro, os rostos tão próximos,
que podia sentir a respiração curta e ofegante se mesclando entre si,
vibrando de antecipação.
— Agradeço sua preocupação... — Quase soltei um gemido de dor,
assim que ela pressionou a gaze dentro da cavidade nasal. — Putain! O que
deu em você, mulher?
Um brilho de divertimento surgiu nos olhos dela, enquanto
balançava a cabeça de um lado para o outro, fingindo severidade.
— Como espera que eu trate os ferimentos? Mantenha a sua boca
fechada. Ninguém mandou caçar problema onde não tem.
— Você devia me agradecer por isso. Patrick não fará mais nenhum
mal a você.
O meu comentário irritou Marie profundamente. Ela se levantou de
um salto, uma expressão sombria e agitada perpassou seu rosto, o que só fez
aumentar o meu arrependimento.
— Você e Patrick brigaram por minha causa?
— Não pense que me deve algo por isso. — Fiz uma pausa, olhando
bem no fundo dos olhos dela, respirei bem fundo e disse em seguida: —
Sou eu quem lhe deve algo. Aliás eu devo muitas coisas a você, a começar
por um pedido de desculpas.
Ela murmurou alguma coisa ininteligível, e fechou os olhos, o seu
rosto se contorceu de tristeza de repente, me fazendo sentir um estranho
aperto no peito.
— O que te faz pensar que precisa se desculpar comigo, Jean?
Inclinei o corpo para frente, apoiando os cotovelos nas pernas e
cobri meu rosto com as mãos, pensando na melhor maneira de tocar no
assunto que só causava grande sofrimento nela.
— Eu disse coisas horríveis pra você. Fiz acusações graves, quando
na verdade você só foi uma vítima. — Não resisti e lancei um olhar
suplicante na direção dela. — E ainda me sinto muito mal com tudo isso —
prossegui, sentindo o mais profundo remorso corroendo a alma. — Não
consigo nem imaginar como passou por todo esse sofrimento sozinha,
Marie. Podia ter confiado em mim... Por que não me contou nada?
— Como ousa falar em confiança? — Rebateu, fazendo um gesto
com as mãos, as palmas voltadas para cima, e os ombros encolhidos. —
Justo você que não confiou em mim? Aliás, não quis nem mesmo ouvir a
minha versão dos fatos! Você só decretou que eu era amante de Patrick e
ponto! — As palavras saíram amargas de sua boca, o que me fez desviar o
olhar, completamente envergonhado. — Agora me diz, o que te fez mudar
de ideia? — O impacto de sua voz era o equivalente a uma adaga cravada
no peito.
Inclinei a cabeça para o lado de maneira autodepreciativa, ao fitá-la
nos olhos.
— Por ironia do destino, eu fui o último a saber, não é mesmo? —
Minha voz falhou um pouco ao formular a pergunta, mas não esperei pela
resposta. — Logo eu, que sou considerado o magnata da mídia francesa...
— prossegui, fazendo um gesto vago com as mãos. — Não fazia ideia de
que você estava por trás da notícia que abalou o mundo da moda nos
últimos dias.
A expressão dela se suavizou um pouco, trazendo uma sensação
reconfortante.
— Acho que a imprensa só preservou minha imagem, em respeito à
sua família.
— Ainda assim, eu precisava confirmar que você foi assediada e
abusada sexualmente por ele. Putain! Saí feito um louco nos últimos dias,
disposto a arrancar aquela dúvida do peito. Falei com seu pai, com Bob
Donovan, e por último, com Patrick.
— Mas, é claro... Homens como você só confia em outros homens.
— O quê? — murmurei, piscando várias vezes, visivelmente
confuso. — Não, isso não tem nada a ver! — Eu me levantei de um salto,
sentindo um incômodo aperto no peito. — Você está enganada, amour...
Eu já estava prestes a avançar na direção dela, mas parei no instante
em que vi sua mão direita erguida, impedindo qualquer tentativa de
aproximação.
— Cale a sua maldita boca! — Esbravejou Marie, quase cuspindo,
então ergueu os dedos para enumerar todos os erros cometidos por mim, no
passado. — Perdeu o direito de me chamar de amor, quando disse que eu
não passava de uma traidora e mentirosa; Segundo: quando foi à forra, se
jogando nos braços de outra mulher. E terceiro: Quando deixou bem claro
que nunca me amou, e que só se casou comigo por conveniência. — Seu
belo rosto àquela altura já estava banhado em lágrimas. — Veja só, meu
querido ex-marido: não me faltam motivos para desprezar você.
A situação se inverteu, me levando a sentir na pele os efeitos
causados pelo ódio que nutri por ela ao longo dos últimos anos.
Ergui os olhos para o teto, tomado por uma letargia que paralisava o
corpo, a dor por ter ferido a pessoa que eu mais amava na vida era
excruciante demais.
Senti a garganta arranhar, quando forçadamente engoli em seco.
— Mas eu preciso que me ouça, Marie! — Falei entredentes, usando
todo meu autocontrole. — Eu realmente quis me vingar de você naquela
noite, mas... — Tentei explicar, mas fui interrompido por ela, de maneira
abrupta.
— Você me fez ficar de joelhos neste quarto, implorando para ser
ouvida, e espera que eu escute o que tem a dizer? — questionou ela, em um
súbito rompante de irritação. — Aquela foi a pior noite da minha vida, Jean
— prosseguiu, com a voz embargada e quase inaudível. — Não consegui
dormir naquela noite, imaginando que tinha sofrido um acidente... Sei lá...
— Enxugou o nariz com as costas da mão. — Você entrou como um louco
naquele carro... E depois ainda tive que inventar um pretexto para
Benjamin. Mon Dieu! — Uma máscara de dor e tristeza nublou suas
feições, mas ela endireitou a postura, soltando um suspiro audível. — Como
eu pude ser tão estúpida? Pensei o pior dos cenários, quando na verdade
você estava bem melhor do que eu.
Suas últimas palavras saíram tão duras quanto uma lâmina afiada.
— Sinto muito... — declarei, incapaz de disfarçar a comoção na
voz.
Marie parou diante de mim e lançou um olhar amargurado, mas eu
baixei minha cabeça e fechei os olhos com toda força, impedindo-a de ver
as lágrimas quentes se formando neles.
Eu nunca fiquei tão vulnerável na presença dela, mas a dor já me
consumia tanto, que extravasaria a qualquer momento, colocando todo meu
autocontrole à prova.
— O que você fez comigo foi cruel demais! — Senti meu corpo
enrijecer com o impacto daquelas palavras. — Eu precisei trabalhar naquele
mesmo dia, enquanto você aproveitava o seu dia de folga na companhia de
sua amante. Sabe quem deu a notícia em primeira mão? Ele mesmo,
Patrick. — Concluiu, soltando um riso duro e destituído de humor.
Um músculo se contraiu no maxilar só por ela ter mencionado o
nome daquele desgraçado.
— Por essa você não esperava, não é mesmo? — Ela voltou a falar,
com um leve sarcasmo na voz. — Pois eu também não...
Um grito de surpresa escapou dos lábios dela no exato instante em
que me prostrei de joelhos no chão, a enlaçando pela cintura, e com o rosto
colado à barriga lisinha, os braços apertavam seu corpo magro com força
redobrada, impedindo-a de sair.
— Eu juro que não aconteceu nada entre mim e Kate! — As
palavras saíram abafadas, e me esforcei ao máximo para lidar com a
respiração, curta, irregular e rápida. — Eu te amo tanto, Marie! Até mais do
que possa imaginar, mais do que a mim mesmo!
— Jean, me solta! — Exigiu, ao tentar afastar meus braços ainda
presos à cintura esguia dela.
— Precisa acreditar em mim, amour — insisti, deixando escapar um
arquejo rouco e desesperado. — Sei que cometi muitos erros, mas jamais
seria infiel a você.
Não sei como reuni coragem para erguer o rosto convulsionado de
lágrimas, e fitei minha ex-mulher nos olhos, completamente desprovido de
orgulho e arrogância a ponto de deixar as emoções aflorarem, como o mar
revolto indo de encontro às rochas em dias de tempestade.
Notei o que parecia um esboço de sorriso aflorando nos lábios
carnudos, como se nutrisse alguma satisfação em me ver ajoelhado a seus
pés em postura de súplica.
— Houve um tempo em que desejei te ver de joelhos, implorando
pelo meu perdão. Mas agora nada disso faz sentido. E sabe por quê? Porque
eu não me sinto vingada o suficiente.
Ela confessou com imperturbável naturalidade, mas também não
era para menos. A minha sede de vingança ultrapassou todos os limites,
quando magoei a única pessoa que mais amei na vida: a mãe do meu filho.
— Preciso reparar meu erro, ainda que o preço a pagar seja te perder
para sempre. — Eu dei tanta ênfase e profundidade à voz, que o corpo dela
reagiu de imediato, estremecendo sutilmente.
— Acho melhor você tomar um banho para esfriar a cabeça. — Ela
conseguiu se desprender do aperto forte em sua cintura, e depois andou
apressada em direção à porta. — Te vejo depois.
Será que aquele era um forte indício de que nem tudo estava
perdido, afinal?

Benjamin se recostou na cadeira e passou a tamborilar os dedos na


mesa, produzindo um som tão irritante quanto desconcertante, em virtude
do silêncio pesado que se instalou entre Marie e eu durante o jantar.
— Você pretende ir à festa promovida pelo meu pai? — perguntei,
não apenas para satisfazer a curiosidade, como também para desfazer
aquela tensão no ar.
Jean-Claude decidiu celebrar oficialmente sua aposentadoria, no dia
do seu 71º aniversário, embora eu já estivesse à frente de seu império de
mídia há mais de cinco anos. Na verdade, aquele evento marcaria sua saída
definitiva como membro do conselho.
— A sua mãe me mandou um convite, mas eu ainda não decidi se...
— Mas o vovô e a vovó vão ficar muito tristes se você não for,
maman! — protestou Benjamin, o seu rostinho angelical assumiu um ar de
inconformismo e rebeldia.
Ela encarava ora para mim, ora para nosso filho, com os olhos tão
arregalados, que até me deu vontade de rir, mas eu me contive a tempo,
enfiando uma garfada de comida na boca, sem dizer absolutamente nada.
— Não estou te pedindo muito, maman. — disse ele, com um
sorriso manhoso.
Marie fechou os olhos e assentiu, soltando um longo suspiro.
— Très bien... Eu vou comparecer, mas em consideração ao meu ex-
sogro.
Passei a observar distraidamente a empregada servir o crème brûlée
como sobremesa, considerando a possibilidade de provar à minha ex-
mulher que merecia uma segunda chance, em algum momento durante a
festa na mansão dos meus pais.
— Pretende ir acompanhada? — perguntei, casualmente, ao estreitar
um olhar curioso na direção dela.
Pude ouvir o barulhinho da crosta de açúcar queimado se partindo
ao meio, assim que Marie-Claire afundou furiosamente a colher de prata no
ramekin.
— Évidemment! — Percebi uma nota de ironia na voz dela. — Eu
vou comigo mesma.
Nosso filho quase se engasgou, quando começou a rir, mas acabou
tossindo.
— Pobrezinha! — Benjamin estava claramente zombando da mãe.
Eu olhei para ele no mesmo instante, franzindo a testa, em uma expressão
de censura fingida.
— Eu vou sozinho também, apesar de minha mãe transformar tudo
em um baile de gala. E você sabe que não podemos ir a um baile sem
acompanhante...
— Você só vai sozinho porque quer... Sempre esteve rodeado de
belas mulheres e pode muito bem escolher qualquer uma delas.
Observei minha ex-mulher levar uma colherada de crème brûlée à
boca, seus lábios sensuais se mexiam lentamente, mas ela logo engoliu,
fazendo uma careta. Não que a sobremesa estivesse ruim, mas sim, pelo
remorso de ter feito aquele comentário.
— Isso foi antes de eu me casar com você, Marie. — A minha voz
soou tão grave e clara, que ela até me encarou por um instante, com olhos
arregalados, como se temesse acreditar que aquela era a mais pura verdade.
Pensei em dizer algo mais, porém me calei, e desviei o olhar, para
que ela não visse as lágrimas se formando em meus olhos.
Eu me deixei levar pelo orgulho ferido e agora estou sozinho.
— A gente bem que podia ir ao circo esta noite, papa! — pediu
Benjamin repentinamente, ao ficar de pé e depois passou a saltitar
alegremente em volta da mesa.
— Para quem dizia estar doente, você parece muito bem disposto,
Ben — comentei, cruzando os braços, com os olhos fixos nos dele e uma
das sobrancelhas, arqueada. — Mais bem disposto do que eu, inclusive.
Ele se posicionou atrás de minha cadeira e se inclinou, sussurrando
ao ouvido:
— Deve ser porque eu não levei uma surra, papa. — Meu filho caiu
na risada, seguido pela mãe, que claramente também se divertia às minhas
custas.
Com um rápido movimento, puxei Benjamin pelo braço, obrigando-
o a se sentar em meu colo, então comecei a fazer cócegas nele, que passou a
se debater, gargalhando sem parar.
— Papa, pare com isso — dizia, entre uma risada e outra. —
Maman, faça alguma coisa... qualquer coisa! — suplicou, ofegante, se
encolhendo todo contra a mesa.
— Bati muito, mas também apanhei. Que isso sirva de lição pra
você, quando pensar em brigar com algum coleguinha, entendeu?
Marie balançou a cabeça, em fingida censura, enquanto se levantava
da cadeira.
— Eu vou pegar logo o casaco dele. Enquanto isso, me esperem no
carro, ok?
— Você vai com a gente também? — perguntei, tentando disfarçar
um sorriso, diante da possibilidade de desfrutar algumas horas com ela e
nosso filho juntos, como uma família que sempre fomos.
— Faço questão de ir junto. Não quero que nosso filho adoeça de
novo. — Ela fez um gesto de aspas no ar com os dedos, e completou em
seguida, com uma piscadela: — E muito menos prolongar a minha estadia
nesta casa. Entendeu?
Como o garoto ainda estava em meu colo, inclinei meu rosto, e
sussurrei junto ao ouvido dele:
— Boa sorte na sua próxima tentativa, espertinho.
— Não perca as esperanças, papa. A gente vai voltar a ser uma
família de novo.
Meu filho abriu um sorriso tão afetuoso e encorajador, que foi
impossível conter as lágrimas. Eu o puxei para mais perto de mim e beijei o
topo de sua cabeça, uma sensação reconfortante me preencheu,
internamente.
— Talvez você ainda não saiba, mas a iniciativa da separação partiu
de mim... — revelei, olhando distraidamente para além da sala de jantar.
Então, pisquei várias vezes para sair do transe repentino, e baixei os olhos,
completando em um fio de voz: — A sua mãe sofreu muito por minha
causa, Ben. Eu nunca me arrependi tanto em toda minha vida. Se pelo
menos eu pudesse voltar no tempo! Nós éramos tão felizes juntos...
Ben estreitou os olhos para mim, cauteloso e curioso ao mesmo
tempo.
— Mas você já pediu desculpas pra ela, papa?
— Eu pedi perdão de joelhos, mas acho que ela nunca vai poder me
perdoar.
— Maman tem um bom coração e ainda te ama muito.
— Ela vai acabar encontrando alguém melhor do que eu...
— Ela me disse que eu sou o homem da vida dela agora, papa. Eu,
somente eu.
— Você é muito convencido mesmo! — falei, enquanto bagunçava
o cabelo dele. — Agora, levante-se porque temos um espetáculo para
assistir.
Benjamin saiu correndo pela casa, com um sorriso largo estampado
no rosto.
Corri para alcançá-lo, cada vez mais convencido de que nem tudo
estava perdido.
Aquela noite seria, sem dúvida, um divisor de água em nossas vidas.
Nós três juntos, curtindo um espetáculo circense, como uma grande
família feliz.
Capítulo 35

Jean-Luc

Situado perto de Filles du Calvaires, no 11º arrondissement de Paris,


o Cirque d'Hiver funcionava num prédio histórico circular, adornado com
colunas coríntias, uma cúpula impressionante além de frisos de afrescos. O
auditório com suas cadeiras de veludo vermelho criava uma atmosfera
intimista para os parisienses e visitantes.
Marie, Benjamin e eu fomos conduzidos pelos recepcionistas
uniformizados com librés, um tipo de uniforme com galões vermelhos e
dourados, pelas fileiras de assentos. Optei pela primeira cadeira vaga,
enquanto que meu filho se apressou logo em ocupar a do lado oposto,
restando apenas a poltrona do meio, justamente ao lado da minha.
Minha ex-mulher permaneceu de pé e com as mãos apoiadas na
cintura, seu semblante fechado não escondia o nervosismo.
— Acho melhor você se sentar entre seu pai e eu, mon chéri.
— Não saio daqui por nada, maman — retrucou ele, adotando um
leve ar de desafio.
— Por que não se senta logo e relaxa? — Sorri, internamente,
observando o queixo fino se contrair, os lábios avermelhados pelo frio e
muito beijáveis apertados numa linha dura. — Prometo não mover um
músculo até o final do espetáculo.
— Merde! — Ela praguejou baixinho, enquanto lançava um olhar
impaciente ao redor do auditório.
Minha ex-mulher realmente não tinha outra opção. As fileiras já
estavam cheias de adultos e crianças, além de alguns casais sem filhos,
ansiosos para o show começar.
Benjamin não se conteve e começou a rir, quando ela vagarosamente
se acomodou na cadeira do meio, mantendo a postura ereta e as pernas
unidas, para nenhuma parte do corpo roçar no meu, embora estivesse
usando um sobretudo longo de cashmere, naquela noite fria de outono.
Notei pelo canto do olho Marie levar um punhado de pipoca à boca,
o som de sua mastigação se perdia em meio a todos os outros ruídos do
local.
De repente, uma tosse seca se fez ouvir, e virei meu rosto a tempo
de vê-la se engasgando com a pipoca que acabara de colocar na boca. Abri
rapidamente uma garrafa de água mineral, a estendendo na direção dela,
que agradeceu, antes de beber um gole para limpar a garganta.
— Se sente melhor agora, Marie? — Senti seu belo rosto queimar,
enquanto tocava o queixo com a ponta dos dedos, para esquadrinhar suas
feições.
— Não aconteceu nada demais. Mas agradeço sua preocupação,
Jean.
Nós dois sustentamos o olhar um do outro, naqueles poucos
instantes como se o tempo tivesse parado. Os olhos azuis se encheram de
lágrimas, mas ela logo piscou para enxugá-las e se ajeitou na cadeira,
desviando a atenção para o picadeiro.
— Eu estive pensando, por que a gente nunca trouxe nosso filho ao
circo?
— Só agora percebeu isso, papa? — Benjamin perguntou com certa
ironia divertida na voz.
— Meus pais me levaram uma única vez... Eu odiei porque o
palhaço ficou gritando e fazendo movimentos bruscos, assustando todo
mundo. Quase me borrei toda!
Benjamin e eu nos entreolhamos e explodimos numa sonora
gargalhada.
— Eu não lembro de ter frequentado circo nenhum durante a
infância...
— Não é possível! — Ela continuou olhando para mim, piscando,
incrédula.
— Shh! — Nosso filho nos interrompeu, colocando um dedo nos
lábios, e com um olhar de censura cravado em nós dois, completou: —
Façam silêncio vocês dois, por favor. O espetáculo já vai começar.
Cobri a boca com uma das mãos, sussurrando no ouvido dela, com a
voz rouca:
— Às vezes eu me esqueço que colocamos no mundo um “mini
adulto”. — Olhei para Marie de soslaio, e logo notei um sorriso se
insinuando nos cantos dos lábios.
Nosso filho tinha apenas seis anos de idade, mas já se comunicava e
se expressava melhor do que muitos adultos por aí.
Um grupo de acrobatas abriu o show, executando números aéreos,
usando trapézios fixos, além de longos tecidos suspensos no teto, e a lira —
aquele equipamento semelhante a um grande bambolê — mantendo os
espectadores totalmente vidrados.
— Fantastique! — disse Marie-Claire, mal contendo a empolgação
na voz.
Minha ex-mulher parecia bastante entusiasmada, mas quando os
palhaços entraram correndo no picadeiro, interagindo entre eles e com a
plateia, seu lindo rosto se transformou por completo, dando lugar a uma
expressão variando entre o medo e vergonha.
Ela tirou rapidamente o sobretudo e o pendurou no banco à sua
frente.
As mãos delicadas tremiam muito, mas não de frio, e antes que eu
me desse conta já tinha tomado a mão dela na minha, entrelaçando os dedos
e os apertando de leve, desejando que aquele simples contato pudesse
transmitir algum conforto e proteção.
A manga do meu paletó subiu um pouco, permitindo que o bracelete
ficasse à mostra, juntamente com o dela, as mãos entrelaçadas formavam
um alinhamento perfeito.
Inclinei minha cabeça ligeiramente para o lado, perscrutando-a com
cautela.
Ela mantinha os olhos fechados e a boca entreaberta, emitindo um
gemido silencioso, enquanto meu polegar acariciava o dorso de sua mão
esquerda.
— Você prefere sair daqui e voltar mais tarde? — perguntei,
imprimindo um tom rouco à voz. Ela apenas balançou a cabeça em
negativa, de modo quase imperceptível.
— Não precisa... — Sussurrou com sua voz doce e aveludada. — Eu
vou ficar bem, Jean.
— Você confia em mim? — Ela fez que sim com a cabeça, seu rosto
ainda mais aflito, enquanto as lágrimas escorriam sem parar dos olhos
azuis. — Então, encoste a cabeça em meu ombro, feche os olhos e tente não
pensar em mais nada. Não vou deixar que mexam com você.
— Merci. — Tentou esboçar um sorriso de agradecimento, mas não
conseguiu.
A minhas costas ficaram tensas quando ela encostou a cabeça em
meu ombro, deixando seu corpo quente se encostar no meu, que estremeceu
perceptivelmente ante o contato, nossas mãos entrelaçadas eram um
lembrete silencioso do pacto que fizemos no passado.
A promessa de amar um ao outro por toda a eternidade.
— Você nem imagina o quanto desejei poder sentir de novo o calor
de sua pele, além do seu cheiro delicioso que sempre aguça os meus
sentidos, Marie. — A minha voz saiu como um sopro contra o cabelo longo
e solto, cascateando sobre os ombros dela.
Aquele ar de desamparo e aparente fragilidade só fez aflorar os
meus instintos mais primitivos, eu não mediria esforços para garantir que
nada e nem ninguém fizesse mal a ela.
— Eu daria minha vida por você se fosse preciso, apenas para te ver
bem.
Marie se afastou um pouco, apenas o suficiente para erguer seus
olhos marejados de lágrimas para mim, parecendo surpresa pela forma
como proferi aquelas palavras.
— Seria mesmo capaz de sacrificar sua própria vida?
— Minha vida deixou de fazer sentido, desde que nos separamos.
Eu faria qualquer coisa, a maior loucura que se possa imaginar, só para ter
você de volta.
Por um momento eu pensei que ela fosse dizer algo, mas se
endireitou rapidamente na cadeira, assim que um dos palhaços passou pela
fileira de trás e pegou a pipoca da minha mão em um gesto tão rápido, que
nem tive tempo de reagir.
A plateia desatou a rir, seguido pelo meu filho, que se divertia às
minhas custas.
— Ainda bem que ele deu as costas e está se afastando. — Marie
mal escondia o alívio na voz, mas o palhaço deve ter escutado, pois girou
sobre os calcanhares e caminhou em nossa direção todo serelepe
novamente.
Ele ainda teve a audácia de subir no assento bem atrás de mim,
enquanto dizia:
— Ainda quer comer pipoca, monsieur? Então abra bem a boca!
Apenas dei de ombros e sorri para ele, disposto a entrar na
brincadeira.
— Vai mesmo fazer o que ele pediu? — indagou minha ex-mulher, o
tom de voz denotando surpresa e incredulidade ao mesmo tempo.
— Por que não? — Eu sorri, envaidecido por ser o centro das
atenções e me endireitei na cadeira, antes de inclinar minha cabeça para
trás, abrindo bem a boca para capturar a pipoca.
O palhaço jogou um único grão em minha boca, mas nem deu tempo
de engolir, pois ele virou a embalagem, despejando boa parte do conteúdo
diretamente em meu rosto.
Seguiu-se uma gargalhada geral, quando ele saltou para o chão e
saiu correndo.
Benjamin não parava de rir ao meu lado; Marie pareceu ter
esquecido o medo de palhaço, pois deu um risinho matreiro, cobrindo a
boca com a mão, para disfarçar.
— Por um momento eu pensei que a presença do palhaço tornaria as
coisas mais difíceis para mim, mas você entrou na brincadeira, deixando
tudo mais leve e descontraído. Eu nem sei como agradecer, Jean... — Um
esboço de sorriso denunciou algum contentamento e um certo alívio nas
feições delicadas.
Um senso de urgência bateu forte em meu peito, quase me levando a
abraçá-la, mas eu me contive a tempo para não comprometer minha
tentativa de reaproximação.
— Acho que nosso filho nunca se divertiu tanto... Nós dois devemos
fazer isso mais vezes. É sempre bom relembrar os velhos tempos.
Notei um brilho diferente no olhar dela. Seria de admiração, talvez?
Eu fui praticamente exposto ao ridículo naquela noite, mas me
sentia satisfeito por ter contribuído para o divertimento deles.
O meu pai não era conhecido apenas pela sua perspicácia
empresarial, como também pela filantropia e por ser um ávido colecionador
de artes. Ele recentemente fez uma vultosa doação em dinheiro ao fundo de
reconstrução da Catedral de Notre-Dame.
O lugar escolhido para festejar o aniversário do patriarca não
poderia ser outro senão a mansão histórica que levou mais de dez anos para
ser revitalizada, localizada no 8º arrondissement de Paris, na margem
esquerda do Sena.
Talvez estivesse nos planos dele colocar a propriedade de 1.207 m²,
que incluía 12 quartos, 12 banheiros, sala de jantar e salão de baile, além da
biblioteca com estantes do chão ao teto e ampla sala de leitura, abrigando
exemplares antigos e raros, fazendo de sua coleção particular a segunda
maior da França.
A fachada da residência era feita de calcário e apresentava detalhes
esculpidos, enquanto que a porta da frente de bronze maciço era ladeada por
duas esculturas de leões.
Marie e eu chegamos ao local em carros distintos, mas o que mais
chamou minha atenção foi a ausência do guarda-costas norte-americano,
Bruce Staden. Levantei a mão sinalizando para o segurança que estava mais
próximo dali, e ele rapidamente se aproximou de minha ex-esposa, abrindo
caminho entre a horda de jornalistas que se acotovelavam ao redor, com
seus microfones e câmeras apontados em sua direção.
Ela tinha deixado claro que não queria ser vista comigo, evitando
dar margem a rumores de uma possível reconciliação, o que não deixava de
ser meia-verdade ou talvez meia-mentira, a depender do desfecho da noite
que tinha tudo para ser decisiva em nossas vidas.
Minha ex-mulher demonstrou ter sentido minha presença, assim que
olhou para trás, como que para se certificar de que eu a seguia logo atrás,
apesar de os fotógrafos terem se amontoado ao nosso redor, dificultando a
passagem.
— Marie-Claire! — Gritaram várias vozes, ao mesmo tempo. —
Você e seu ex-marido foram visto juntos na saída do Cirque d'Hiver. Isso
seria um forte indício de uma reconciliação? — Uma repórter indagou,
tentando se fazer ouvir no meio do grupo.
— Nós dois mantemos uma boa convivência em respeito ao nosso
filho.
— Isso significa que perdoou a traição? — o repórter de outro
tabloide perguntou, apontando o microfone na direção dela.
— Não tenho o que perdoar. Estou em uma fase da vida onde a paz
é minha maior prioridade.
Aquela declaração me pegou de surpresa, apesar de Marie ter sido
discreta, quando o assunto era o nosso divórcio, optando em não fazer
comentários negativos a meu respeito, talvez para não comprometer a
minha imagem.
Àquela altura, a equipe de segurança do meu pai já tinha conseguido
contornar a situação, afastando os jornalistas do caminho que levava até a
entrada da residência.
Eu me aproximei cada vez mais até chegar perto dela, aproveitando
a oportunidade para reparar melhor no look da noite. Minha ex-mulher
escolheu um vestido bordô glamoroso, com manga longa transparente, bem
ajustado às curvas e caindo em cascata até o chão. Mas os meus olhos se
detiveram por mais tempo no decote profundo, realçando seus seios e na
fenda ousada na altura da coxa direita.
Seus cabelos longos pintados de preto caíam em ondas suaves pelas
costas.
— Você se saiu maravilhosamente bem, Marie.
Ela estreitou os olhos e notei a sobrancelha se arqueando em um
arco perfeito, enquanto sua boca, que parecia ainda mais carnuda, se
curvava ligeiramente em um sorriso enigmático pelo efeito do batom
escuro.
O meu pau que já doía de tanto tesão, se contorceu dentro da cueca
boxer.
— Talvez porque eu fui considerada uma vítima e você o vilão da
história.
Os rumores da suposta traição foi um prato cheio para os meus
desafetos, que também disputavam o domínio dos meios de comunicação
no país.
Ela roubou a cena e as primeiras páginas dos jornais, quando
apareceu no Tribunal Judicial de Paris, usando o seu “vestido de vingança”,
que deixava parte dos seios visíveis, embora o ambiente tivesse um padrão
de vestimenta, para manter o decoro.
— Por que você demitiu aquele seu guarda-costas americano? —
perguntei, apenas para mudar de assunto. — Como é mesmo o nome dele?
— Eu completei logo em seguida, como se finalmente tivesse me lembrado.
— Bruce Staden. Acertei?
— Mas ele não foi demitido. Bruce pediu para sair, alegando
motivos profissionais, mas acho que ele se sentiu muito pressionado quando
a imprensa o apontou como pivô do fim do nosso casamento.
— Você pode contratar uma equipe de segurança completamente
nova...
— Mas, eu perdi um dos melhores profissionais do ramo.
Sinceramente, acho isso um absurdo!
— Quem diria que ele seria a última pessoa capaz de nos fazer
separar...
Marie soltou uma risada destituída de humor, e parou de andar, se
posicionando à minha frente, uma expressão sombria cruzou seu rosto
naquele mesmo instante.
— Você mesmo se encarregou disso, quando usou sua ex para me
atingir.
— Nunca houve mais nada entre mim e Kate Seymour. — Fiz
questão de assegurar, olhando no fundo dos olhos dela, que por sua vez
arqueou as sobrancelhas para mim, ainda meio desacreditada.
— Você agiu de forma premeditada e ainda espera que eu acredite,
que simplesmente voltou atrás no último minuto?
— Mas, foi exatamente isso o que aconteceu. Pensei em usá-la para
me vingar de você, pois estava com muita raiva quando te vi aos beijos com
Patrick, mas não tive coragem de levar isso adiante.
Como eu poderia trair a mulher que sempre amei? — Pensei,
comigo mesmo, sentindo um profundo estremecimento se espalhar
sutilmente pelo corpo.
— O problema foi justamente a intencionalidade, Jean — ponderou,
em tom firme e a seriedade marcou seu semblante. — E não me refiro à
traição em si, mas essa necessidade de limpar sua honra de homem, sem se
importar com o sofrimento alheio foi o que mais doeu em mim —
prosseguiu, imprimindo à voz um tom de mágoa e tristeza. — A vida de
Benjamin nunca mais foi a mesma, e você sabe muito bem disso.
— Nosso filho sabe que não teve culpa de nada, e também já me
perdoou. E quanto a você, Marie? Não foi suficiente eu ter me ajoelhado a
seus pés? — Tentei avançar na direção dela, mas me detive onde estava,
assim que ela ergueu a mão direita. — Você já não me ama mais. Putain! —
Então, levantei o olhar para o céu, como se estivesse à procura de um sinal.
— É por isso que não me aceita de volta em sua vida...
Era preferível afirmar logo de uma vez a ouvir aquilo dos lábios
dela.
Ela abriu a boca para dizer algo, quando de repente Benjamin
apareceu correndo ao nosso encontro, acompanhado pela minha mãe, que
estava muito elegante com seu vestido longo de noite na cor preta e discreto
decote em V.
— Maman! — gritou meu menino, saltitando de alegria.
— Sentiu tanto assim a nossa falta? — Marie sorriu, enquanto se
abaixava para dar um longo abraço nele, seguido por um beijo estalado na
bochecha.
— Papa! — Ele riu, quando o peguei no colo e comecei a bagunçar
o cabelo dele. — Não pareço um homenzinho com este traje? — perguntou,
sem falsa modéstia, ao estufar o peito ao mesmo tempo em que segurava a
lapela do terno com as duas mãos.
— Essa roupa caiu muito bem em você mesmo.
Nem bem o coloquei de volta no chão, ele rapidamente voltou para
os braços da mãe, que conversava animadamente com a ex-sogra.
Aproveitei o momento para me juntar as duas, e cumprimentei
minha mãe com um beijo suave na testa.
— Meu neto não parou de perguntar o horário que vocês iam chegar
aqui. A ansiedade dele estava a mil.
— Posso até imaginar. — Enfiei minhas mãos nos bolsos num gesto
automático e, de repente, senti as alianças de casamento. Eu mantive as
joias guardadas na esperança de um dia poder anular o divórcio e assim
renovar os votos feitos há mais de oito anos.
Tenho esperado muito por isso.
— Parece que Benjamin fez as honras e está conduzindo Marie para
dentro do salão de baile... — comentou Margot, me tirando abruptamente
dos meus devaneios.
— Ele tem orgulho de dizer que é o único homem da vida dela
agora, acredita? — murmurei, enquanto caminhava de braço dado com ela,
em direção ao salão de baile.
Nós quatro nos juntamos, ao redor de uma mesa redonda, junto com
nossos familiares, enquanto outros convidados se sentavam à medida que
iam chegando ao local.
— Por que você e sua esposa estão afastados, mon chéri? —
perguntou minha avó, olhando de mim para Marie-Claire, a confusão era
evidente em seu semblante. — Eu posso trocar de lugar com ela, sem
problema nenhum...
Yvonne sofria de leve demência e transtorno de bipolaridade.
Uma hora ela se sentia deprimida, na outra, eufórica. Durante a fase
de tristeza e abatimento se tornava ainda mais reclusa, e sem vontade de
falar com ninguém. Já na hipomania, havia uma falsa sensação de
estabilidade, mais que ainda requeria cuidados. Em questão de horas ela
passava da euforia à agitação, e às vezes, para o isolamento.
— Não precisa se incomodar, mamie. Marie está muito bem-
acompanhada.
E de fato a minha ex-mulher estava em boa companhia, com nosso
filho sentado à direita dela e Camille à esquerda, que por sua vez tinha o
noivo bem ao lado.
Seria doloroso demais relembrá-la de que meu casamento acabou há
mais de três anos.
— Colocando a conversa em dia com a cunhada... Sei... —
murmurou Yvonne, com ar pensativo. Depois, ela voltou a me encarar,
dando uma piscadela. — Mas acho que meu bisneto ficaria feliz em trocar
de lugar com você. — Então, ergueu um dedo trêmulo para fazer um sinal,
chamando a atenção do menino. — Benjamin, poderia vir aqui por favor?
Ele se levantou, e contornou a mesa rapidamente para se postar
entre nós dois.
— Estou às suas ordens, mamie. — Tocou a lateral da cabeça com a
mão, em um gesto de continência bem caricato, arrancando a risada de
todos.
— Por que não se senta ao meu lado, mon chéri? — Um esboço de
sorriso surgiu nos cantos de sua boca, ao apontar com a cabeça para mim e
depois para Marie.
— Ah, eu já entendi seu plano, mamie... — sussurrou Benjamin,
com uma expressão matreira no rosto. Ele então apoiou o braço no encosto
da minha cadeira, e se inclinou para sussurrar ao ouvido: — O que está
esperando, papa? Levanta logo. Allez!
— Aposto que sua mãe vai me ignorar quando me vir sentado ao
lado dela.
— Imagine o tanto de coisas que pode fazer por baixo da mesa... —
Como minha avó e eu franzimos a testa, intrigados, ele logo se apressou em
explicar: — Pode dar um chute no pé dela. Ou quem sabe, brincar de fazer
cócegas!
— Vou considerar sua sugestão, Ben. — Dei tapinha no ombro dele,
e me levantei da cadeira, respirando bem fundo.
Eu me sentei ao lado de Marie, que bufou de maneira desdenhosa,
cruzando os braços, na defensiva.
— Sabia que encontraria uma maneira de ficar ao meu lado, como
se fosse minha sombra.
Desviei o olhar para o garçom servindo Champanhe Dom Pérignon
e agradeci com um gesto de cabeça.
— Eu estava muito bem acompanhado, chérie. Só não entendo por
que Benjamin insistiu tanto para trocar de lugar comigo. — Aquela era uma
mentira deslavada e ela sabia disso.
— Mas você é muito cínico mesmo, Jean — disse Camille, em tom
de falsa censura e completou, voltando sua atenção para a ex-cunhada. —
Marie, acho melhor você se acostumar, porque a especialidade de qualquer
ex é desgraçar com a nossa cabeça.
Meu irmão estreitou os olhos para mim, mal conseguindo conter o
riso.
— Não se preocupe, Cédric, a sua hora vai chegar — murmurei,
desdenhoso, virando o copo de uma vez só na boca, a bebida desceu
queimando a garganta.
— E passar por essa humilhação? — Ele riu, enquanto apoiava a
mão com firmeza em meu ombro. — Eu agradeço, mas dispenso, Jean!
De repente, Margot surgiu por trás de onde o marido estava sentado
e lhe falou ao ouvido, possivelmente avisando sobre o momento do
discurso. Meu pai então fez um sinal discreto com a cabeça, apontando para
Camille, Cédric e eu, um claro sinal de que nós três devíamos nos juntar a
ele no palco.
Eu me levantei, ajeitando a gravata borboleta, munido de uma
resolução inabalável.
Os minutos seguintes seriam cruciais e meu discurso seria no estilo
ou “tudo ou nada”.
Precisava derrubar todas as barreiras emocionais de minha ex.
Será que existe uma chance de reconquistar a mulher que sempre
me pertenceu?
Capítulo 36

Jean-Luc

Havia uma orquestra completa, tocando música clássica.


Fez-se um silêncio geral, todos os convidados se voltaram para nós
quatro, quando nos posicionamos no palco. Jean-Claude logo pegou um
microfone e anunciou:
— Esta noite vocês terão um privilégio único. Hoje eu completo 71
anos de idade, e encerro um ciclo de quase quarenta anos à frente da SVL
Groupe. Tanto Jean-Luc quanto Cédric demonstraram grande aptidão para
continuar o meu legado, preparando um terreno fértil para as futuras
gerações. Cédric assumirá o comando do maior grupo editorial francês, uma
conquista mais do que merecida, já que foi o maior articulador da aquisição.
E quanto a Jean-Luc, ele que sempre foi tão inflexível quanto eu nos
negócios, continuará liderando o grupo de mídia, enquanto consolida a
EGO como referência no mercado publicitário. Quero finalizar destacando
os méritos de minha filha caçula, Camille, que demonstrou ser uma
empreendedora nata, quando fundou a L’Beauté Paris, considerada a marca
de beleza número um no mundo. Parabéns, Jean-Luc e Cédric! Parabéns,
Camille!
Ao final do discurso, todos os convidados aplaudiram de pé, com
entusiasmo.
Esperei meus irmãos abraçarem Jean-Claude, e logo pude me
adiantar na direção dele, que estendeu os braços e me puxou para um
abraço efusivo e caloroso.
— Joyeux anniversaire, papa! — Minha voz saiu abafada contra o
peito dele.
— Merci, meu filho querido! — Ele deu tapinhas em minhas costas.
— Agora é a minha vez de falar... Me deseje sorte. Acho que vou
precisar.
Ele passou a olhar para mim com a testa franzida, visivelmente
confuso.
— O que você está pensando em fazer, Jean?
— Espere e verá, meu velho! — respondi, com algum otimismo, ao
pegar o microfone da mão dele e avancei para a frente do palco, respirando
fundo algumas vezes para me encher coragem, antes de pedir a atenção de
todos. — Espero conseguir expressar em palavras tudo o que eu sinto esta
noite. — Eu comecei o discurso, lançando um olhar em torno do grande
salão. — Meu pai sempre foi a minha maior referência de vida, e para mim
é um privilégio poder sucedê-lo no comando da empresa. — Depois, lancei
um olhar na direção dele, com um amplo sorriso nos lábios. — Quero
desejar parabéns ao senhor, e dizer que tenho muito orgulho do seu legado.
— Vida longa à Jean-Claude Laurent! — Gritou Cédric, em alto e
bom som.
Seguiu-se uma salva de palmas entusiasmadas dos convidados.
— Agora, se me permitem, eu quero homenagear uma pessoa que
também contribuiu para eu assumir definitivamente o cargo de CEO do
grupo de mídia. — Então, apontei diretamente na direção de Marie-Claire.
— A minha ex-esposa, que sempre me apoiou e esteve ao meu lado nos
momentos difíceis.
Todos os rostos se voltaram na direção dela, um burburinho se fez
ouvir em algumas mesas, mas logo o silêncio voltou a reinar, assim que
meu pai intercedeu, dizendo:
— Peço a todos que façam silêncio, por favor. — Sua voz baixa e
grave reverberou pelo salão de baile.
— Não é surpresa para ninguém que Marie-Claire aproveitou o
discurso de premiação no evento de moda para demonstrar sua gratidão por
mim. — Voltei a falar, lançando um olhar penetrante para ela, que me
observava a curta distância com os olhos cheios de lágrimas. — Agora
chegou a minha vez de retribuir, e quem sabe poder reparar um grande erro
do passado. — Fiz uma breve pausa, respirando fundo mais uma vez. —
Meu único erro foi ter ido embora naquela noite, sem dar a ela a menor
chance de se explicar, sem dar a ela o benefício da dúvida. Mas a situação
se inverteu e de suposto traído, eu passei a ser um suposto traidor. Nosso
casamento que já estava em crise, acabou de vez. — Olhei para a biqueira
do meu sapato com ar pensativo, antes de prosseguir. — Todos os dias eu
me faço a seguinte pergunta: Como duas pessoas que se amavam tanto
deixaram de confiar um no outro?
Mesmo à distância, consegui acompanhar o menor de seus gestos.
Ela moveu os lábios dizendo “você sabe que perdeu”, e involuntariamente
fiz um esgar de pura frustração.
— Eu sou muito bom em fazer leitura labial. — Todos riram, como
se eu tivesse feito alguma piada. — Minha ex-mulher acabou de dizer:
“Você sabe que perdeu”. — Olhei bem nos olhos dela, esboçando um
sorriso presunçoso. — Sim, mon amour. Eu reconheço que te perdi da
forma mais estúpida possível. Mas você me conhece bem e sabe que nunca
me dou por vencido.
Seguiu-se um burburinho, em seguida alguém gritou:
— A maior loucura que um homem pode fazer por amor!
— Ninguém nunca se humilhou por mim desse jeito antes. — Ouvi
a voz de Camille bem atrás de mim. Virei meu rosto, imediatamente,
repreendendo-a com o olhar.
— “Ex”. Duas letras. Um prefixo que carrega um grande estigma,
especialmente por simbolizar que uma pessoa deixou de ser algo na vida de
outra. Não sei se marquei a sua vida, mas você marcou a minha, Marie.
Vivemos tantas coisas juntos... Nós fizemos um filho que nos enche de
orgulho a cada dia. — Eu acenei com a mão para Benjamin, que retribuiu
com um sorriso exultante. — Ainda que você não me ame mais, eu sempre
te amarei. — Minha voz enfraqueceu, e fechei os olhos por alguns instantes,
mas ao abri-los e lançar um último olhar na direção dela, notei que a cadeira
estava vazia.
Marie continua escapando das minhas mãos como a areia do mar
que escorre por entre os dedos.

Quando estava prestes a procurar minha ex-mulher pela casa inteira,


eu me deparei com Désirée, que estava acompanhada pelo marido, o novo
primeiro-ministro da França.
Um brilho malicioso apareceu de repente nos olhos dela.
— Faz tempo que não presencio um discurso carregado de paixão,
monsieur.
Forcei um sorriso de agradecimento e voltei minha atenção para o
político.
— Por favor, mande meus cumprimentos ao presidente Macron,
monsieur. É uma pena ele não ter vindo, e justo nesta ocasião tão especial...
Adoraria poder revê-lo.
— Não faltará oportunidade. — O homem sorriu com simpatia e
apertou minha mão de modo firme. — Parabéns pela conquista, Jean-Luc.
Ela é mais do que merecida. Tem feito um excelente trabalho à frente da
SVL Groupe.
— Merci... — Agradeci, com um leve aceno de cabeça. De repente,
senti que alguém se esbarrou em mim, e ao virar o rosto constatei que era
meu filho, Benjamin.
— Papa! — disse ele, puxando com firmeza minha calça. A testa
dele estava franzida, demonstrando preocupação no semblante.
— O que houve, mon génie? — perguntei, piscando visivelmente
surpreso.
— A maman está te esperando na biblioteca, e parece estar muito
brava!
Escutei uma risadinha abafada vinda de Désirée, que não disfarçou a
satisfação pelo meu constrangimento, mas ela logo se recompôs, fazendo
carinho na cabeça dele.
— Acho você tão adorável, Benjamin! Se importa de nos fazer
companhia?
— Eu posso ficar um pouco com eles, papa? — O rosto dele se
iluminou de expectativa. Eu me limitei a dizer "sim", sorrindo da maneira
mais convincente possível.
Tive receio de deixá-lo aos cuidados da única mulher que não me
inspirava confiança, mas como os filhos dela estavam presentes e tinham
pouca diferença de idade, talvez aquela interação fizesse bem a ele, no final
das contas.
— Então fiquem à vontade. Se me derem licença, preciso ir ao
encontro dela...
— Boa sorte com isso, Jean. — Désirée esboçou um sorrisinho de
canto de boca. — Você vai precisar.
A extensa escadaria de mármore possuía balaustradas decorativas de
ferro forjado e latão com tetos altos que possivelmente alcançavam 17
metros de altura.
Subi de dois em dois degraus, e atravessei um longo corredor,
apreciando a opulência dos detalhes decorativos, como os caixilhos das
janelas, preservando a integridade histórica da residência, enquanto que o
mobiliário conferia um ar clássico e ao mesmo tempo contemporâneo.
Girei a maçaneta da porta dupla de carvalho, que dava acesso à sala
de leitura, mas ela estava trancada. Aquilo só significava uma coisa:
Benjamin estava aprontando mais uma das suas, com o intuito de promover
uma reconciliação que parecia impossível.
Havia outra maneira de acessar a biblioteca, mais precisamente
através de uma estante de livros que se projetava de uma parede falsa,
revelando uma escada em espiral conectada ao mezanino. Tudo projetado
para não atrapalhar o alinhamento dos livros que faziam parte da decoração.
Poucas pessoas da família sabiam como entrar e sair discretamente da sala
de leitura.
Quando acionei a alavanca, um papel dobrado ao meio caiu no chão,
bem diante dos meus pés. Curvei-me para pegá-lo, imaginando se tratar de
um bilhete escrito pelo meu filho. Um sorriso maroto brotou dos meus
lábios, assim que li o conteúdo.
“Espero que você e a maman se entendam dessa vez!”
Coloquei o papel dentro do bolso e empurrei a parede falsa, que se
deslocou, revelando a passagem secreta. Subi silenciosamente os degraus de
madeira, e avistei Marie percorrendo as prateleiras que iam do chão ao teto
abobadado, com seus afrescos em motivos florais.
Minha ex-esposa parecia tão distraída olhando as lombadas dos
livros, que nem percebeu minha aproximação e, sorrateiramente, estendi
meu braço direito e peguei o exemplar de um dos meus romances favoritos,
assim que me posicionei atrás dela.
— Os Miseráveis, de Victor Hugo, uma clássica história de
redenção. — Minha voz saiu tão rouca e baixa, que era quase um sussurro
contra a lateral do rosto dela.
Marie soltou um arquejo de surpresa, um som que soou
particularmente excitante aos meus ouvidos.
— Jean... — Ela estreitou os olhos arregalados de espanto para mim.
— O que está fazendo aqui?
— Não sei se você já leu este livro, mas o protagonista carrega o
meu nome.
Ela se virou, ficando de frente para mim, e cruzou os braços atrás
das costas.
— Você ainda não respondeu a minha pergunta.
— Benjamin avisou que você queria falar comigo a sós, mas parece
que fomos vítimas de mais uma travessura dele, não é mesmo?
— Ele me fez vir até aqui, porque queria me mostrar uma passagem
secreta. E boba do jeito que sou, acreditei nele. Não existe nenhuma saída
escondida em uma parede falsa.
Precisei me segurar para não rir. Jamais estragaria aquela
oportunidade única de estar à sós com a mulher da minha vida, e assim
poder finalmente me acertar com ela.
— Pelo menos, nós vamos fazer companhia um ao outro... Vamos,
anime-se!
— Não queria ficar presa de novo com você. — Pareceu
arrependida por ter sido rude, pois logo emendou, apontando para o
calhamaço que eu segurava: — Não me lembro de ter lido este livro antes...
— Os Miseráveis conta a história de Jean Valjean, um homem
condenado a dezenove anos de prisão, porque roubou um pedaço de pão
para alimentar a si e aos sobrinhos. O livro aborda todo tipo de injustiça que
o ser humano é capaz de causar a si e a seus semelhantes.
— Pode me dizer qual trecho te fez refletir mais? — A expressão
dela se suavizou um pouco, fazendo com que um brilho de curiosidade
aparecesse nos olhos azuis.
— Putain! O livro tem vários... São mais de mil páginas! — Eu
esfreguei o queixo, pensativo por um momento. — Vou citar uma frase
simples: “A maior felicidade da vida é termos a convicção de que somos
amados.”
— Interessante, mas quero ser surpreendida. Passe o livro para mim,
por favor? — Ela abriu em uma página aleatória e então começou a ler, em
voz alta: — “Pobres daqueles que só amam corpos, formas e aparências. A
morte levará tudo deles. Procure amar almas, você as encontrará de novo.”
Oh là là! Essa frase me acertou em cheio, como um soco no estômago.
— Eu me senti tão atraído pelo seu corpo, que só com o tempo eu
percebi outros atributos muito mais valiosos... — admiti, esboçando um
meio sorriso de canto de boca. — Sua autenticidade, a sua delicadeza, a sua
doçura, generosidade, sem contar a intensidade, entrega e paixão em tudo o
que faz. — Abri os braços em um gesto teatral, antes de completar: —
Chérie, tu es magnifique...
Notei logo os lábios dela se curvando em um esgar de ironia.
— Você fala exatamente aquilo que uma mulher quer ouvir.
Fechei os olhos, com os braços caídos ao longo do corpo e soltei um
longo suspiro, sentindo um misto de impotência e frustração, tudo ao
mesmo tempo.
— O que mais quer que eu faça, Marie? O que mais tenho que fazer
para provar que você é a única mulher da minha vida? Eu praticamente abri
meu coração diante de todas aquelas pessoas. Nada do que eu falei naquele
palco foi suficiente para você?
— Como eu posso esquecer que esteve a ponto de me trair, Jean?
— Eu jamais te pediria algo assim, Marie. Eu sei que esquecer é
impossível, mas e quanto ao perdão? Você é capaz de me perdoar? —
Minha voz era quase um sussurro rouco, desesperado por uma resposta
definitiva que arrancasse de vez aquela angústia do peito. — A gente pode
retomar uma vida a dois, como Benjamin sempre desejou.
Ela colocou o livro de volta na prateleira e se manteve de costas,
acariciando suavemente a lombada do livro, evitando assim me encarar nos
olhos, pois sabia que só encontraria neles aquilo que se recusava a enxergar:
a verdade, somente a verdade.
Dei um passo à frente, encostando minha mão direita na dela, e
tracei um contorno suave pela base do dedo anelar. Grunhi, satisfeito em
notar seu corpo estremecendo sob o meu, em resposta ao leve roçar dos
meus dedos na pele macia.
— Sua aliança e o anel de noivado estão dentro do meu bolso,
aguardando ansiosamente o dia em que voltarão a preencher este espaço
vazio, mon amour.
— Por que está fazendo isso? Por quê? — Parecia travar uma luta
interna, como se as emoções conflitantes se digladiassem dentro de si para
assumir o controle.
— Je t'aime, je t'aime, oh, oui je t'aime. [15]— Cantarolei baixinho o
início da controversa canção Je t'aime... moi non plus, de Serge Gainsbourg
e Jane Birkin.
Inverti propositalmente a ordem, esperando que ela cantasse junto
comigo.
Quando Marie se virou, ela se encostou ainda mais na estante, antes
de cruzar uma perna na outra, exatamente onde a fenda do vestido se abria
escandalosamente.
A simples visão de sua longa perna nua provocou uma fisgada
violenta nos testículos.
— Moi non plus — Ela sussurrou, me olhando nos olhos com aquela
expressão sexy de fingida inocência. Ao pé da letra, aquela frase significava
"Eu, não mais", mas também podia ser "Não mais que eu".
Havia claramente um duplo sentido, o que tornava tudo ainda mais
excitante.
Passei os braços ao redor da cintura dela e a puxei de modo firme
contra mim, de modo que ela sentisse o latejar de desejo insatisfeito,
causado pela ereção dominante entre minhas pernas.
— Oh, mon amour... — Minha voz saiu rouca, e com uma
intensidade que a fez estremecer lindamente em meus braços.
Um gemido estrangulado quase escapou dos lábios suculentos, mas
eu decidi sufocá-lo, cobrindo a boca entreaberta e trêmula dela de um jeito
duro e possessivo. Senti que ela também se entregava ao beijo numa ânsia
febril, vibrando pela necessidade de sentir o calor palpitante dos nossos
corpos, pressionados contra aquela estante sólida e repleta de livros antigos.
Senti que ela estremeceu de leve antes de interromper o beijo, e me
encarou com um brilho intrigado nos olhos.
— Faz mais de três anos que ninguém me toca... — Uma lágrima
solitária escorreu pela lateral do rosto muito vermelho e quente dela.
— Eu realmente não transei com ninguém depois de você. Quanto
mais eu tentava ir para a cama com outras mulheres, mais eu broxava. Você
me arruinou para todas elas.
Marie mordeu o lábio inferior, desviando o olhar, parecendo não
estar suficientemente convencida.
— Espera mesmo que eu acredite nisso?
— Putain. — Resmunguei, chamando a atenção dela, que voltou a
me encarar, um tanto confusa. — Meu pau só reconhece a sua boceta e de
mais ninguém. Não era isso o que queria ouvir? — murmurei de encontro
aos lábios inchados e entreabertos, roçando-os com uma lentidão
deliberada. — Nem imagina o quanto esperei para estar dentro de você.
Estou tão duro agora, que dói para um caralho não poder forçar passagem
na boceta que de tão apertada, se contrai e oferece resistência a mim...
Senti uma puxada na lapela, seguido pela pressão das unhas longas,
como se travasse uma batalha para não se entregar aos desejos
tempestuosos, que a deixavam completamente fora de si.
— Então me fode duro e rápido — exigiu ela, sua voz soando como
um ronronar de uma gata no cio, enquanto resvalava a mão no cós da minha
calça, para liberar de uma vez o meu pau pulsante e já inchado de desejo. —
Talvez esta seja a última vez.
— Isso é o que você diz, mon amour... — Bufei desdenhoso, só para
provocar.
Um gemido estrangulado ecoou da garganta dela, assim que meus
dedos tocaram a vulva lisinha e abundantemente encharcada. Então, dei
início a uma carícia lenta pelas dobras macias, aumentando a fricção para
estimular o clitóris inchado e sensível, antes de levar dois dedos aos lábios,
para sentir o doce sabor dos fluidos dela.
— Fils de pute... — Ela me xingou, entredentes, e puxou minha
calça e a cueca para baixo, revelando o membro rijo, pulsante e com as
veias saltadas.
Grunhi como um animal, quando Marie iniciou uma deliciosa
punheta, alisando desde a glande e por toda a extensão, antes de torcê-lo
para cima e para baixo com firmeza. Agarrei os cabelos dela com uma das
mãos, enterrando os dedos bem fundo a ponto de fazê-la estremecer e
ofegar contra os meus lábios, que pressionavam os dela num beijo
agressivo, faminto e desesperado.
Ela enlaçou as pernas ao redor da minha cintura, sustentando o peso
de seu corpo magro sobre o meu, ambos ainda pressionados à estante de
madeira maciça.
Posicionei o membro rijo em sua abertura, mas me detive por alguns
instantes, olhando bem fundo dos olhos azuis que brilhavam como duas
pedras preciosas.
— Tem certeza de que é isso o quer? Porque eu vou te foder tão
profundamente, que vai sentir a pressão do meu pau batendo no colo do
útero.
Senti logo as dobras de sua vulva pulsando violentamente contra
minha glande, a lubrificação natural escorria sem parar, lambuzando-o por
toda a extensão.
— Quer que eu implore? Me fode com força, por favor. Eu suplico!
Um gemido estrangulado escapou de sua garganta já na primeira
investida, a ponto de reverberar assustadoramente pelas paredes da
biblioteca.
Suspendi a respiração, quando seus olhos azuis se fixaram em meu
rosto.
— Meu querido ex-marido... — Sua voz saiu fraca, era quase um
sussurro débil. — Primeiro, você fez o meu coração sangrar; agora penetrou
tão fundo quanto uma adaga afiada. Não vou te pedir para parar. Apenas
tome tudo de mim... Eu ainda sou sua, eu sempre fui sua.
Capturei a boca trêmula e inchada novamente, de um jeito duro e
possessivo, a respiração curta e irregular entrecortada pelo barulho do beijo,
a língua se esfregava na dela, a urgência ditava os movimentos, conforme
penetrava mais fundo, o hálito carregado de champanhe se mesclava ao
sabor natural da saliva dela.
As estocadas se aprofundaram, o belo rosto ficou vermelho e
contorcido de prazer, suas unhas enterradas em meu ombro pressionavam a
carne, mesmo sob o tecido do paletó. Soltei um gemido estrangulado ao
sentir a boceta se contraindo involuntariamente, a cada investida dura e
violenta.
Como eu era mais alto do que ela, bastou inclinar um pouco o rosto
na direção do vale entre os seios, para abocanhar um mamilo seguido do
outro, que endureceu ao simples contato dos meus lábios grossos, chupando
profunda e lentamente a carne macia.
Um som parecido com um rosnado escapou da garganta, assim que
passei a língua ao redor da aréola, circulando-a até fazer o corpo dela se
arquear, de maneira instintiva.
— Oh, Jean... — Marie sussurrou, seus seios balançavam ao ritmo
da respiração ofegante, enquanto gozava e se contorcia lindamente em meus
braços.
Não demorou para os gemidos darem lugar aos gritos, enquanto
minhas bolas batiam contra a pelve dela a cada estocada dura e firme, mas
gradualmente diminui o ritmo, e liberei um gemido rude, enquanto
esporrava nela até a última gota de sêmen.
Nós dois permanecemos em silêncio, ambos suados e ofegantes,
enquanto nosso coração batia num só ritmo, ao mesmo tempo forte e
descompassado.
— Não sabia que ter uma recaída com o ex era tão bom...
Quer dizer que ela ainda encarava nossa reaproximação como uma
recaída?
— Você é uma péssima mentirosa, Marie. Por que não admite que
ainda me ama? Por que não admite que sentiu falta da pressão do meu pau
batendo em sua boceta?
— Mas eu só quis matar minha vontade...
De repente, um barulho metálico cortou o ar, seguido de passos
precipitados na escada, revelando a silhueta de duas pessoas: Cédric e
Camille. Eu rapidamente puxei minha calça social para cima, praguejando
entredentes.
— Putain de bordel de merde!
— Oh là là! — Camille vibrava, entusiasmada. — Acho que nós já
vimos esta cena antes, Cédric.
— Jean-Luc com a bunda de fora de novo... Putain!
Minha irmã não se conteve e caiu na gargalhada, enquanto Marie-
Claire tentava se recompor, visivelmente sem graça.
— Você acha que os dois voltaram a ficar juntos ou tudo não passou
de uma recaída?
— Por que não falam o que estão fazendo aqui? — Perguntei de
modo cortante.
Meus irmãos se entreolharam parecendo temerosos, e logo um
silêncio pesado de antecipação se fez presente, quebrado apenas pelo som
de um relógio antigo de parede.
— Benjamim disse que está com muita dor de barriga — respondeu
Camille, o tom era tão sério quanto a expressão em seu rosto. — Talvez
tenha comido alguma coisa que fez mal...
— Não deve ter sido nada demais, frangine.
— Mas nosso sobrinho parecia estar muito mal mesmo, Cédric. —
As sobrancelhas dela se uniram numa expressão clara de censura. — Ainda
bem que Dr. Maurice veio para a festa e já está examinando-o na sala de
estar.
— E se tudo não passar de um fingimento? Não seria a primeira vez
que...
— Eu prefiro acreditar no meu filho acima de qualquer coisa,
Cédric.
— O nosso filho. — Eu tive de corrigi-la de modo seco e direto.
Marie saiu pisando duro e atravessou o mezanino, sem sequer olhar
para trás.
Eu me apressei na direção dela, sentindo que alguma coisa estava
errada.
Meu irmão duvidava que Benjamin estivesse mesmo doente, mas
algo me dizia que não se tratava de mais uma das travessuras dele.
Espero estar errado desta vez.
Capítulo 37

Marie-Claire

Margot dirigiu um olhar consternado para Jean e eu, assim que abriu
amplamente a porta dupla da sala de estar.
— Estranhei a ausência de vocês dois... Por que demoraram tanto
para descer?
— Benjamin nos deixou trancados na biblioteca. Não tinha outra
saída.
— Podiam ter saído normalmente pela passagem secreta. Jean não te
mostrou?
Estreitei os olhos para meu ex-marido, mal escondendo a irritação
por ter sido enganada por ele.
— Parece que ele quis esconder essa informação de mim.
— Nós viemos, assim que Camille nos contou o que aconteceu —
disse Jean, se dirigindo à mãe apenas para mudar de assunto. — E então, o
que o médico lhe disse?
— Tudo indica que tenha sido uma intoxicação alimentar.
— Excusez-moi — Pedi licença e adentrei rapidamente a sala, com o
coração martelando furiosamente dentro do peito.
Encontrei Benjamin no sofá espaçoso, e felizmente parecia estar
consciente.
Quando me abaixei ao lado dele, notei que o corpo magro estava
banhado de suor, o seu belo rosto estava extremamente pálido e os lábios
finos sem cor alguma.
— Mon amour, me parte o coração te ver assim... — Murmurei,
passando suavemente a mão ao longo do cabelo escuro e ondulado.
— Eu vou apertar o seu abdome, ok? — informou o médico,
apontando para a barriguinha dele. — Caso sinta alguma dor, me avise. —
Mas nem bem Dr. Maurice começou a apertá-la com as pontas dos dedos,
meu menino soltou logo um gemido agudo.
— Ai! Está doendo muito... — Ele se queixou, com o rosto
contorcido de dor.
— Não seria melhor levá-lo para um hospital ou pronto-socorro? —
Jean estava parado bem atrás de mim, e pela entonação da voz parecia mais
nervoso do que eu.
— Já chamei uma ambulância, monsieur. Deve chegar a qualquer
momento.
— Maman... papa... — Ele já não conseguia mais falar direito,
como se sua língua estivesse enrolada dentro da boca. — Eu quero... água...
— Eu me assustei, quando vi a saliva se acumulando nos cantos dos lábios.
Depois, começou a convulsionar de forma violenta, como se estivesse tendo
um ataque epiléptico.
— Mon Dieu! — Cobri a boca com a mão, me levantando de um
salto, profundamente amedrontada. — Faça alguma coisa, doutor. Parece
que está piorando...
O médico mais que depressa posicionou o corpo dele de lado para
evitar que ele se sufocasse com a própria saliva.
Eu dei um passo para trás, cambaleando, mas Jean me puxou contra
seu corpo quente e sólido, um gesto que tanto me fez falta nos últimos anos.
Como poderia resistir em ser abraçada por ele? O calor que emanava de
seu corpo era tão reconfortante e perturbador, mas ainda assim não me
contive e desabei aos prantos, com a sensação de impotência e angústia
transpassando a minha alma.
— Nosso filho vai ficar bem, Marie. — A voz dele era quase um
sussurro contra meu cabelo, suas mãos deslizavam ao longo de minhas
costas, afagando-as suavemente.
— A criança já teve convulsão outras vezes?
Um ligeiro tremor sacudiu meu corpo, tomado por um mau
pressentimento. Eu me esforcei ao máximo para me recompor, e assim
poder responder aquela pergunta.
— Nosso filho nunca passou por isso antes, doutor.
De repente, escutei uma batida súbita e forte na porta, seguida pela
voz de Margot, anunciando a chegada dos paramédicos. Eles entraram às
pressas no local e acomodaram meu menino na maca, antes de encaixarem a
máscara de oxigênio sobre o nariz e a boca dele.
— Por que Benjamin está inconsciente? — Eu tentei imprimir um
tom firme na voz, mas ela saiu trêmula e quase inaudível.
— Qual dos dois pode nos acompanhar na ambulância?
Jean e eu trocamos olhares, sem dizer uma só palavra, em mútua
cumplicidade.
— Você pode ir com eles, que eu seguirei no meu carro logo atrás.
— disse ele, por fim, tentando dar um sorriso encorajador.
Quando eu fiz menção de me virar para sair da sala, senti Jean me
puxar gentilmente pelo braço, antes de colocar o paletó de corte impecável
sobre meus ombros. Pensei que a intenção dele fosse apenas proteger o meu
corpo do ar frio da noite, mas também pretendia esconder meus seios que se
sobressaíam do decote profundo do vestido.
Fechei os olhos de forma momentânea, assim que a fragrância de
seu perfume mesclado ao cheiro natural de homem quando ficava excitado,
preencheu minhas narinas.
— Eu esqueci totalmente o decoro... Mon Dieu. Obrigada pela
gentileza.
Ele me olhou por um breve instante, seus dedos roçaram de leve os
meus, fazendo uma descarga eléctrica me percorrer dos pés à cabeça e
eriçando cada poro da pele.
— Nosso pequeno gênio é forte e vai sair dessa, você vai ver.
Quando alcancei o limiar da porta, a minha ex-sogra me deteve, ao
segurar firme o meu braço, e notei que seu rosto pálido carregava uma
grande tristeza.
— Nós nos encontraremos lá tão logo seja possível, ma chérie. Se
cuida!
Eu apenas me limitei a assentir com a cabeça, em um movimento
tão rápido que era quase imperceptível.
— Un immense merci, Margot. — Pousei minha mão na dela, com
firmeza.
Acompanhei os paramédicos até a entrada da residência, quando um
vento cortante me atingiu de súbito, provocando um arrepio ao longo da
espinha. Meu corpo inteiro tremia, enquanto enfiava os braços pelas
mangas do paletó, mas logo o toque acetinado do forro espalhou um calor
reconfortante por cada poro da pele.
Todos os procedimentos foram tomados na ambulância durante o
trajeto até o hospital mais próximo do 8º arrondissement de Paris. No
caminho, mantive as minhas mãos unidas com força diante da boca,
rezando uma prece fervorosa pela saúde do meu filho.
Segurei na mãozinha fria dele com delicadeza, lutando contra uma
onda de impotência que já invadia a minha alma. Meu menino ainda estava
desacordado, e sua pressão arterial parecia estar bem abaixo do normal.
Uma nova torrente de lágrimas fluía pelos olhos já injetados, com
meu peito sacudindo em espasmos violentos, à medida que os soluços
brotavam da garganta.
Nunca desejei tanto que tudo não passasse de mais uma travessura
dele.
Benjamin fingia estar doente quando passava as férias ou os finais
de semana com Jean, coincidindo exatamente com minha agenda de
trabalhos na cidade. Ele não mediu esforços para me reaproximar do pai,
que se trancava durante horas no escritório, pois não queria correr o risco de
me ver na casa que um dia também foi meu lar.
Ele mentiu tanto nas últimas vezes que ninguém poderia imaginar
uma hospitalização, ainda mais naquelas circunstâncias.
Quando recebi a chamada de vídeo do meu filho pela última vez,
desconfiei que tudo não passava de um fingimento, mas embarquei para
Paris mesmo assim, tendo em vista a proximidade da data do meu
depoimento como testemunha de um novo processo movido contra Patrick.
Eu fui a primeira a quebrar o silêncio sobre o caso e felizmente não
fui a última.
No início da semana recebi uma ligação do meu advogado,
informando que a ação inicialmente arquivada pela Promotoria de Paris, foi
finalmente confiada a um juiz de instrução. Senti um grande alívio quando
soube que pelo menos outras três modelos também deram seus depoimentos
à Justiça.
Meu ex-agente se sentiu vitorioso já na primeira instância, mas a
investigação foi retomada graças ao Tribunal de Apelação.
Patrick prometeu se vingar de mim por ter incentivado outras
meninas a prestar queixa. Acabei não dando muita importância às ameaças,
mas quando soube que Jean o confrontou na agência a ponto de partirem
para a violência física, pensei se aquilo não seria suficiente para um plano
de vingança que atingisse não apenas a mim, mas também ao meu ex-
marido.
Meu coração parou de bater por uma fração de segundo.
Passei a mão trêmula pelos cabelos, tomada por um pressentimento
muito ruim em relação àquilo tudo.
— O que pode ter acontecido com ele? — A minha voz falhou um
pouco, o que me fez engolir em seco, com desconforto.
— Apresentou um quadro de intoxicação aguda, resultante da
ingestão de alguma substância. Pode acontecer de uma criança ingerir
acidentalmente, mas no caso dele certamente foi algo provocado...
— Vocês estão falando de envenenamento? — Não sei como eu
consegui formular aquela pergunta. — Nossa família achou que foi
intoxicação alimentar...
— Somente os exames podem confirmar ou descartar de vez a
suspeita de envenenamento.
— Mas o meu filho vai ficar bem? Por favor, não mintam para mim.
— Minha voz saiu sufocada, áspera e cortante, tudo ao mesmo tempo.
— Nós faremos tudo o que pudermos para salvá-lo, senhora.
O veículo cruzando a pista a toda velocidade aliada a informação
passada pelo paramédico me deixou muito tonta e enjoada. Inclinei o corpo
para a frente, mantendo a cabeça abaixada, para não ceder a vertigem que já
me invadia, sem o menor controle.

Permaneci na sala de espera, andando de um lado para o outro,


aflita, enquanto aguardava o boletim médico sobre o estado de saúde do
meu filho, que chegou a ser encaminhado para uma unidade de Terapia
Intensiva para ser entubado.
Também estavam presentes Jean-Luc, Camille, Cédric e os pais
deles.
— Deve ter havido algum mal-entendido — comentou Jean-Claude,
quebrando o silêncio pesado que se instalou a sala. — Não acredito que
alguém tenha feito uma monstruosidade dessas com meu neto. E justo no
dia do meu aniversário... Mon Dieu!
— Ele tem um futuro brilhante pela frente... — murmurou Camille,
com a voz embargada pelo choro. — Agora segue internado, em estado
grave.
— Acho tudo isso um grande absurdo! — Margot também parecia
incrédula. — Quem seria capaz de fazer mal a uma criança tão inocente
como Benjamin?
Jean se aproximou discretamente de mim, assumindo um tom
confidencial:
— Está pensando o mesmo que eu? — Suas feições ainda estavam
endurecidas pela dor e revolta. — Se essa hipótese for confirmada... Nem
sei do que sou capaz.
As lágrimas se acumulavam em meu nariz, e já ameaçavam escorrer
pelos lábios, mas ele rapidamente me ofereceu um lenço limpo e
cuidadosamente dobrado.
— Aquele desgraçado conseguiu nos atingir da pior forma possível.
— Fechei os olhos de forma momentânea e dei um longo suspiro, na
tentativa de afastar a sensação incômoda que vinha me atormentando, desde
então. — Só não entendo uma coisa, Jean. Como ele provocaria uma
intoxicação em nosso filho se nem estava presente na festa?
Jean fez menção de dizer algo, quando de repente ouvimos a voz de
Margot me chamando.
— Marie, tenho um recado de Désirée para você. Ela me pediu para
agradecer por ter deixado Benjamin brincar com os gêmeos, e para mantê-la
informada sobre o estado de saúde dele.
Uma onda de revolta e indignação começou a penetrar pelas
entranhas, mas respirei bem fundo, na tentativa de me acalmar.
— Como assim me agradecer? — Pisquei várias vezes, visivelmente
confusa. — Eu fiquei trancada na biblioteca durante um bom tempo. Não
dei permissão a ninguém.
— Fui eu quem deu permissão para Benjamin brincar com os filhos
dela.
— Merde! — Praguejei, em um súbito rompante de irritação. — Por
que não me falou sobre isso antes? — Minha voz saiu baixa, mas
suficientemente incisiva.
Jean se limitou a dar de ombros, mostrando indiferença.
— Eu já nem me lembrava mais desse detalhe, Marie.
— Não devia ter confiado nosso filho a essa mulher. E se ela estiver
por trás disso?
Ele me lançou um olhar de censura, como se eu tivesse dito algum
absurdo.
— Essa é uma acusação muito séria, chérie. Désirée também é mãe.
Ela não faria mal a uma criança. Talvez Patrick pagou alguém para fazer
isso... Enfim, são apenas suposições.
— Eu não ficaria surpresa, afinal ela sempre acobertou tudo o que
Patrick fez.
— Mas a situação agora é diferente. Nós estamos falando de um
crime contra a vida.
— Será que você não entende? — Levantei as mãos para o ar num
gesto brusco. — Désirée pode ser capaz de qualquer coisa, por fidelidade
cega ao amante dela.
— Por favor, parem de discutir — interrompeu a mãe dele, em tom
cortante. — Aqui não é o local e nem o momento certo para isso.
Saí pisando duro pela sala e me aproximei do meu ex-cunhado,
ocupando a cadeira vazia ao lado dele.
— Estamos todos nervosos, maman — ponderou Cédric, tentando
apaziguar os ânimos. — Marie. — Senti um toque suave em meu braço,
então estreitei os olhos para ele, visivelmente aborrecida. — Eu sei que fiz
um comentário infeliz na biblioteca, mas estou muito arrependido. —
Sondei suas feições por um longo momento, cada vez mais convencida da
sinceridade de suas palavras. — Sinto muito mesmo. Me perdoe, por favor.
— Eu aceito suas desculpas, Cédric. Você ficou desconfiado, o que é
natural, se levarmos em conta tudo o que aconteceu nos últimos anos.
— O problema é que nenhum de nós acreditou nele — revelou
Camille, uma expressão de remorso cobriu as feições dela, como se
estivesse assumindo a culpa. — Benjamin nos viu primeiro e contou que
sentia muita ânsia de vômito e dor de estômago.
— A gente só não levou a sério porque ele admitiu que trancou você
na biblioteca e depois mentiu para que Jean fosse ao seu encontro.
— Se maman não tivesse chamado o Dr. Maurice para prestar
socorro, talvez as coisas saíssem ainda mais do controle...
— Dizem que intuição de mãe nunca falha. E pelo visto a de uma
avó também não. — Foi meu ex-sogro quem fez aquele último comentário,
olhando para a mulher com genuína admiração.
Jean-Luc acompanhou a conversa sem tirar os olhos de mim. Não
sei como eu reuni coragem e sustentei o olhar dele, embora ciente de que as
batidas aceleradas do meu coração se faziam ouvir facilmente naquela sala.
Por que ele ainda insistia em achar que minhas suspeitas eram
infundadas?
Fechei meus olhos, relembrando o momento em que presenciei meu
filho paralisado no sofá, todo molhado de suor, tentando pedir água, mas a
língua parecia estar travada, seus braços e pernas tremiam
descontroladamente, sem contar a espuma branca saindo pelo canto dos
lábios.
Quando me permiti sentir algum alívio, na chegada escutei os
paramédicos dizerem que ele precisava ser intubado, imediatamente. O meu
desespero só aumentou ao acompanhar à distância o meu filho sendo levado
até o setor de internação de emergência.
Se eu não tivesse cedido às investidas de Jean, nada disso teria
acontecido.
O tempo que passei na biblioteca foi suficiente para Désirée colocar
algum veneno na comida ou na bebida de Benjamin, que mesmo em
pequena quantidade, podia causar danos irreversíveis.
Parecia inacreditável como aquela mulher foi capaz de cometer um
ato tão sórdido contra uma criança indefesa.
Eu nunca pensei que Désirée desceria tão baixo, especialmente após
ter nutrido um profundo respeito e admiração por ela no início da minha
carreira. Só anos depois eu descobri seu envolvimento amoroso com
Patrick, justificando o “pacto do silêncio” estabelecido entre eles, com
relação aos casos de assédio e violência sexual.
O que fizeram com meu filho era desumano demais.
— Ma sucrette. — Reconheci a voz do meu pai, o que me tirou
abruptamente dos meus devaneios. Ele quase tropeçou em um móvel,
quando avançou em minha direção. — Sinto muito pela demora, mas eu
vim o mais rápido que pude. O que houve?
— Papa! — Eu me joguei nos braços dele, com o rosto apertado
contra o peito largo, enquanto as lágrimas umedeciam o suéter macio de
cashmere. — Eu vou contar tudo, mas antes preciso muito que me abrace
bem forte.
Senti as mãos grossas pressionando delicadamente minhas costas, e
me rendi ao aconchego que só o abraço dele era capaz de me proporcionar.
Todos esperavam pelo que pareceram horas, até que um médico
apareceu e nos encarou com seriedade através das lentes dos óculos de
armação delicada.
Nós nos levantamos de um salto, um silêncio pesado de antecipação
se fez presente, quebrado apenas pela batida acelerada do meu coração.
— Boa noite. Eu me chamo Mathieu Gervais e sou Chefe do
Serviço de Emergência Pediátrica deste hospital. — Ele então me encarou,
como que tentando se lembrar de onde me conhecia. — A senhora é a mãe
do paciente Benjamin Leblanc Laurent?
— Sim, sou eu. — Ergui minha mão direita, que tremia
perceptivelmente. — Marie-Claire Leblanc.
— Eu sou o pai dele, doutor — emendou Jean, dando um passo à
frente, antes de perguntar, em um fio de voz: — Ele já está fora de perigo?
— O paciente deu entrada na Terapia Intensiva com um quadro
bastante complicado, mas já foi sedado e intubado, e tem respondido bem
ao tratamento.
— Já fizeram o exame toxicológico? — Meu ex-marido pareceu
apreensivo ao fazer aquela pergunta ao médico. — Nós suspeitamos que
Benjamin foi envenenado...
— Ele apresentou sintomas típicos de uma intoxicação aguda, por
isso coletamos uma amostra de sangue para detectar a substância utilizada e
a quantidade.
— Quanto tempo ele vai ficar internado, doutor? — perguntei,
sentindo as minhas mãos suarem e meu coração quase saltava pela boca.
— Com base no progresso do paciente e sua atual condição, tudo
indica que receberá alta nos próximos dias. O hospital permite que os pais
sejam os acompanhantes, mas sob revezamento. Os demais familiares
podem realizar visitas nos horários estabelecidos.
Como as informações passadas foram suficientes, ele pediu licença
e se retirou da sala.
Margot foi a primeira a se adiantar para me dar um abraço de
despedida.
— Você e meu filho precisam definir como será esse revezamento
para que possam dormir, descansar e se alimentar adequadamente nos
próximos dias.
— Sim, claro. Agradeço a preocupação. Manterei vocês informados.
Depois foi a vez do meu pai, que abriu uma sacola, contendo algum
lanche enrolado no papel manteiga.
— O que temos aqui, papa? — perguntei, com um sorriso maroto
nos lábios.
— Croque monsieur. — O “senhor crocante” nada mais era do que
um sanduíche gratinado feito com fatias de brioche, molho béchamel,
queijo gruyére, e presunto, tudo levado ao forno porque ficava crocante por
fora e macio por dentro.
— Oh, c'est un amour, papa! Eu já estava mesmo com fome.
Obrigada.
— Espero que tenha trazido mais de um croque monsieur, meu
sogro. — Jean arqueou uma das grossas sobrancelhas, e deixou escapar um
leve sorriso, ao frisar bem as últimas palavras.
— Ouviu o que seu ex-marido acabou de falar? — Meu pai estreitou
o olhar na direção dele, adotando um ar levemente desafiador.
— Já escutou aquela famosa frase: “Sogros são para a vida inteira”?
— Preciso concordar com meu filho, Jacques. — Jean-Claude
colocou uma de suas mãos em meu ombro, e a outra no ombro do meu pai.
— Eu sempre vou considerar Marie-Claire como minha nora. Espero que a
gente volte a ser uma grande família...
— Agora, mais do que nunca, todos nós devemos nos manter
unidos. — Margot me lançou um olhar esperançoso, pois eu era a única
pessoa capaz de unir nossas famílias novamente. — Não se esqueçam de
que Benjamin é nosso único neto.
— Entendo o seu ponto de vista, mas... — Jacques não conseguiu
concluir a fala. Alguém pigarreou alto e fez cessar a conversa.
Camille se adiantou para me dar um longo abraço apertado e
reconfortante.
— Eu conversei com Pierre, e decidimos adiar a cerimônia para
daqui a alguns meses. Não consigo nem pensar em casamento nessas
circunstâncias.
— Mon Dieu! — Cobri a boca com uma das mãos, sem esconder a
surpresa. — Você me disse que faltavam apenas duas semanas... Sinto
muito por isso. Desculpe ter causado esse transtorno a vocês dois.
— Non, Marie! Não vou permitir que se sinta culpada pelo o que
aconteceu.
— Eu poderia ter evitado — murmurei, sentindo as lágrimas
embaçando a minha visão, enquanto lutava contra a onda de indignação que
fazia o meu corpo ferver.
— C’est impossible — interrompeu Cédric, balançando a cabeça em
negativa. — O seu ex-agente já planejava se vingar de você de um jeito ou
de outro, Marie.
— Meu irmão tem toda razão. Ele só estava esperando o momento
certo.
— Acho melhor a gente ir agora. Qualquer novidade nos avise,
imediatamente.
Concordei com um gesto de cabeça, esboçando um ligeiro sorriso de
gratidão.
Meu ex-marido ainda permanecia na sala, quando os demais se
foram, nos deixando a sós. Ele parecia pouco à vontade ali, seus olhos se
desviaram dos meus, como se adiasse ao máximo o momento da despedida.
Capítulo 38

Marie-Claire

Fiz menção de tirar o paletó para devolvê-lo, mas ele me deteve,


balançando a cabeça com veemência.
— Ah, eu quase ia me esquecendo de te entregar uma coisa. — Ele
falou, de repente, estapeando a própria testa. Depois se aproximou da
pequena mesa de canto e pegou uma bolsa de viagem marrom, antes de
estendê-lo em minha direção. — Eu demorei para chegar aqui, porque
passei em casa antes e arrumei esta sacola com itens essenciais como
carregador de celular, documentos, garrafa de água, máscaras descartáveis,
gel para as mãos, além da toalha de banho e itens de higiene pessoal.
— Lembrou de incluir também uma peça de roupa para eu poder
trocar? — Um soluço embargou minha voz mais do que eu gostaria, os
olhos marejados não me deixavam mentir.
O gesto dele foi tão amoroso e gentil, capaz de aquecer um ponto
particularmente sensível, que eu nem mesmo sabia que ainda existia dentro
de mim.
— Essa parte ficou com Camille... Depois me diz se faltou alguma
coisa.
— É muita gentileza sua, Jean. — Meus dedos roçaram de leve os
dele, uma descarga eléctrica me percorreu dos pés à cabeça, eriçando cada
poro da minha pele.
— Benjamin vai ficar feliz em saber que os esforços dele não foram
em vão.
— Aquela recaída foi um erro, um deslize. Não significou nada para
mim. — Aquela afirmação não soou convincente nem para os meus
próprios ouvidos.
— Erro mesmo é você insistir que aquilo não significou nada.
Odiava a percepção de que mesclada à raiva também havia o desejo,
proporcionando um golpe direto em meu amor-próprio. Precisava enterrar
aquela sensação ambígua bem no fundo do meu ser, antes que a capacidade
de pensar racionalmente diminuísse.
— Acho melhor você voltar para casa... — Virei o rosto, e fechei os
olhos com força, incapaz de sustentar o olhar dele por mais tempo. — Eu
ligo se tiver alguma notícia.
Escutei quando meu ex-marido soltou um longo suspiro de
exasperação.
— Então me deixa pelo menos te dar um abraço? — Seu olhar
suplicante parecia querer implorar, como quando se prostou de joelhos
diante de mim, para me pedir perdão.
Jean aguardou o que pareceu uma eternidade pela resposta.
Como eu poderia ficar indiferente, e justo quando me sentia tão
fragilizada?
Eu acabei abrindo os braços para ele, enquanto fazia que “sim” com
a cabeça, os meus olhos se encheram de lágrimas, o coração até errou as
batidas, ansiando poder sentir o calor reconfortante de seu corpo atlético e
viril.
De repente, senti um frio no estômago, seguido pelo arrepio subindo
ao longo da lombar, cada célula do meu corpo parecia vibrar em
expectativa, quando ele enfim cruzou a distância que nos separava, e me
envolveu em um abraço apertado.
— Marie... — sussurrou meu nome, rouco, enquanto afagava meu
cabelo.
Uma espécie de torpor me envolvia, completamente embriagada
pelo cheiro e pela virilidade do único homem capaz de transpor todas as
minhas defesas emocionais, as mesmas que eu ergui em torno de mim, após
o término da nossa união conjugal.
Um término que eu não superei completamente, mesmo após mais
de três anos.
Eu tentei de todas as formas arrancá-lo não apenas da minha mente,
como também do meu coração, mas falhei miseravelmente, pois meu
destino estava entrelaçado ao dele de modo indissolúvel.
— Ainda estou muito confusa... — Então, eu me afastei dele, dando
um passo para trás, mesmo relutante.
— Quando as coisas começaram a dar errado entre a gente? — A
voz saiu dolorosamente rouca, e com uma intensidade que me fez
estremecer. — Eu juro pela vida do nosso filho que eu nunca fui infiel,
Marie.
Olhei no fundo dos olhos do meu ex-marido, avaliando se deveria
— ou poderia — acreditar nele, mas ainda me sentia muito confusa, o lado
racional insistia em se sobrepor ao emocional, quando me veio à mente
imagens dele e de Kate Seymour saindo do mesmo hotel, embora com
alguns minutos de diferença.
O silêncio prolongado dela sobre o caso só me deixou com muito
mais dúvidas.
— Acho melhor você voltar com eles, Jean. Eu vou ficar bem.
Eu o observei engolir em seco, fazendo o pomo de adão subir e
descer, impotente, pouco antes de virar as costas e me deixar entregue aos
meus pensamentos.
Os dias praticamente se arrastaram, desde a internação do meu filho.
A polícia deu início a uma investigação preliminar, para apurar as
causas da intoxicação, mas só chamaram Désirée para prestar depoimento
na condição de testemunha, pois não havia provas concretas de que houve
um envenenamento, de fato.
O jantar servido na festa passou por análises, mas nada foi
encontrado.
Patrick certamente planejou tudo nos mínimos detalhes, optando por
alguma substância sem odor ou sabor, para Désirée diluir em alguma bebida
não alcóolica servida ao meu filho, causando sintomas semelhantes aos de
uma intoxicação alimentar grave.
Não fosse a presença de Dr. Maurice na festa, talvez meu filho nem
tivesse sobrevivido. Ele também foi até a delegacia depor, informando que a
suspeita de envenenamento foi levantada com base nos sintomas que
progrediram muito rapidamente. Relatou ainda que algumas substâncias não
apareciam nos exames laboratoriais, por isso o resultado dos testes
realizados no hospital foi inconclusivo.
O médico indicou um laboratório externo para a realização de novos
testes, mas talvez levaria dias, ou até mesmo semanas, para sair os
resultados.
Eu já estava a caminho do hospital para trocar de lugar com Jean-
Luc, quando recebi dele a notícia que eu tanto esperava ouvir: Nosso filho
foi transferido para um quarto individual. Houve uma melhora significativa
no quadro clínico, mas ele ainda seria submetido a novos exames, para
avaliar se o corpo voltou a sua funcionalidade normal.
Não parava de rir e chorar, ao mesmo tempo, enquanto dirigia pela
Boulevard périphérique, considerada uma das autoestradas mais
movimentadas da Europa.
O meu celular vibrou no console do carro e, enquanto reduzia a
velocidade diante de um sinal vermelho, dei uma rápida olhada na tela. Era
uma notificação de nova mensagem de texto.

Désirée: “Os gêmeos não param de perguntar


por Benjamin. Como ele está? Um filho é o bem
mais precioso que temos. E por ele fazemos
qualquer tipo de sacrifício.”

Sentia meu sangue ferver nas veias, revoltada com a ousadia


daquela mulher.
Conectei meu celular de imediato ao sistema de alto-falante e fiz
uma ligação. Ela atendeu no terceiro toque, uma risada cínica soou do outro
lado da linha.
— Eu vou direto ao ponto com você. — Falei rápido, quase sem
respirar direito. — Nós duas mantivemos uma relação cordial até aqui, mas
agora as coisas mudaram. Se tocar um só fio de cabelo do meu filho de
novo, eu juro que acabo com sua vida!
— Ma chérie, você guarda muito ódio em seu coração. — Aquela
voz melodiosa dela me causou um forte embrulho no estômago. — Foi
justamente esse sentimento que te prejudicou no passado, lembra-se? Por
que não passa uma borracha por cima disso tudo? O que passou, passou.
Senti meu coração disparar, latejando forte nas têmporas, assim que
pisei no freio, fazendo o carro parar um segundo antes de o sinal amarelo
passar para o vermelho.
— Não vou descansar até ver Patrick pagar por todo o mal que fez
ao meu filho.
— Talvez ainda não saiba, mas Patrick se afastou da agência e
buscou ajuda médica porque precisava se tratar. Também pudera: Você
contribuiu para ele adoecer.
Uma onda de revolta e indignação começou a penetrar nas
entranhas, mas respirei bem fundo, na tentativa de me acalmar.
— Ah, agora eu que sou a culpada? Culpada pela psicopatia dele?
Um psicopata perverso e narcisista saindo de cena, para não
comprometer sua imagem, e justo quando acumulava mais denúncias de
crimes sexuais.
— O único tratamento que ele precisa é ir direto para a prisão e
apodrecer lá.
— Eu soube que se tornou testemunha do processo movido por
outra modelo, mas isso não vai dar em nada. Nem perca o seu tempo,
chérie.
— Como pode ter tanta certeza assim, Désirée? — perguntei, com
cautela.
— Seu ex-marido está tentando se reconciliar com você? — Ela
abruptamente mudou de assunto. — Não se fala em outra coisa nessas
colunas de fofoca... Achei o discurso dele muito comovente, mas tudo não
passa mais uma vez de uma grande mentira.
— Você e Patrick tentaram controlar a minha vida no passado, mas
isso acabou.
— Não sei se voltaremos a nos falar... Eu vou viajar com minha
família. Então só vou te dar um conselho: Não hesite em abrir mão de
certas coisas, quando a vida e a felicidade de seu filho estiverem em jogo.
Você já fez isso antes, e pode fazer de novo. — Ela desligou, fazendo o som
metálico de chamada encerrada reverberar no ouvido direito.
— Maldita seja! — Gritei, batendo com o punho fechado sobre o
volante.
Estacionei meu carro em uma das vagas para visitantes, e saí
batendo a porta com força, antes de correr para a entrada principal do setor
de urgências pediátricas. No caminho fui abordada por alguns jornalistas
presentes, mas me recusei a dar declarações.
— A polícia não confirma e nem descarta que seu filho foi vítima de
envenenamento... O que tem a nos dizer sobre o caso?
— Não quero falar sobre o assunto. — Era perceptível o meu tom
grosseiro.
Se o segurança da unidade de saúde não tivesse intervido em meu
auxílio, com certeza ainda estaria encurralada na entrada.
Uma vez na recepção, a recepcionista me entregou uma pulseira,
liberando o meu acesso às dependências do hospital pediátrico.
Segurei minha bolsa firmemente contra o peito, e me encostei à
parede espelhada, contando mentalmente até dez para conseguir me
acalmar. As portas do elevador se abriram, descortinando a movimentação
frenética dos profissionais de saúde pelos corredores.
Abri a porta do quarto cuidadosamente para não fazer barulho, e me
deparei com a cena mais linda que já vi em toda minha vida: Jean ajudando
nosso filho a comer, levando uma colher até a boca dele, dizendo “Olha o
aviãozinho!”.
Benjamin engolia tudo, fazendo uma careta que podia ser tanto pelo
sabor desagradável da comida, quanto pela vergonha de ser tratado como
um bebê.
A segunda opção parecia combinar mais com o temperamento do
meu filho.
Os dois pareciam não ter notado minha presença ali, pois deram
continuidade às provocações, tornando tudo uma grande brincadeira.
— A maman não me trata como uma criança. — Resmungou,
enquanto tentava pegar a colher da mão do pai, que o impedia rindo à
gargalhada.
— Não pense que se tornou um adulto só porque entrou para a
sociedade internacional de superdotados, Ben.
— Se a enfermeira entrar aqui, vai achar que sou só um menino. Ela
disse que sou muito inteligente pra minha idade.
— Não me diga que você... — Jean interrompeu a frase, quase se
engasgando de rir, quando o filho desviou o olhar, com o rosto todo
vermelho. — Ficou encantado por ela, seu danadinho! — completou
fazendo cócegas na barriga dele.
Eu fechei a porta atrás de mim e me encostei nela, cruzando os
braços.
— Benjamin puxou ao pai mesmo, definitivamente.
Os dois passaram a me encarar como se tivessem sido pegos em
flagrante.
— Que cheiro é esse, Ben? — perguntou Jean, com a testa franzida,
ao levantar a cabeça para cheirar o ar.
Estranhei aquela pergunta, porque não sentia odor estranho nenhum.
Benjamin imitou o pai, apertando os olhos para parecer sério.
— Sinto cheiro de ciúme. — Ele deu uma risadinha, claramente se
divertindo às minhas custas.
A minha única reação foi revirar os olhos, enquanto me aproximava
do leito, mas algo chamou minha atenção. O meu coração batia tão
descompassado que quase podia senti-lo subir à garganta, assim que meu
olhar recaiu no laptop do meu ex-marido. O equipamento estava aberto em
cima da mesa de cabeceira, com uma proteção de tela inusitada: uma foto
tirada espontaneamente por um espectador do Cirque d’Hiver.
Ele registrou o momento em que nós três disputamos quem
conseguia equilibrar uma tira de algodão-doce entre o nariz e o lábio
superior, como se fosse um bigode.
Senti a garganta se fechar ainda mais, lágrimas se formaram em
meus olhos.
— Eu já nem me lembrava mais dessa imagem... — Menti,
deliberadamente.
— Aquele senhor disse que a ideia de registrar nossa brincadeira
partiu da esposa...
— Ela deve ter pensado que nós éramos uma família.
Benjamin passou a encarar ora para mim e ora para o pai, parecendo
confuso.
— Mas nós não éramos uma família? — Percebi um lampejo de
tristeza no olhar dele.
— Na verdade, nós nunca deixamos de ser, Ben. — Jean respondeu
o filho, enquanto olhava diretamente para mim. Senti minhas bochechas
queimarem ao notar o brilho lascivo inconfundível de seus olhos castanhos.
— Vai dizer que estou errado?
— Para de iludir nosso filho, Jean — murmurei, entredentes,
incapaz de esconder a irritação. — Só serviu para deixá-lo ainda mais
confuso.
— Achei que vocês dois tinham feito as pazes naquela noite...
— Por que ele pensou isso? — Estreitei um olhar na direção de
Jean, minhas feições se suavizaram um pouco, aparentando muito mais
desconfiança do que raiva.
— Eu pedi para mon papa te encontrar na biblioteca, maman. Eu sei
que ele entrou pela passagem secreta. Só não sei por que vocês demoraram
tanto pra sair de lá...
Um rubor tomou conta do meu rosto, e instintivamente umedeci os
lábios.
— A gente demorou mesmo, e sabe por quê? — Tentava ganhar
tempo, pensando em um pretexto bem convincente para ele. — Porque a
gente procurou nossos livros favoritos. Você sabe que seu avô tem uma
coleção gigantesca. Perdi até a noção do tempo.
— Você é uma péssima mentirosa, Marie. — Havia uma satisfação
presunçosa no tom de voz de Jean, o qual não me passou despercebido. —
Que mal há em dizer a verdade? Ele tem todo o direito de saber. — Então,
inclinou sua cabeça na direção dele, fingindo dizer algo confidencial: —
Benjamin, a verdade é que sua mãe e eu nos beijamos.
— Foram muitos beijos? — perguntou ele, com um sorriso travesso
no rosto.
Jean e eu nos entreolhamos, constrangidos, e depois soltamos uma
boa risada.
— Não acho que foram só beijos, não. — Seus olhos espertos
corriam de mim para o pai, pois ficamos em lados opostos do leito. —
Vocês fizeram coisas de adulto!
— Shh! — Pressionei um dedo sobre os lábios. — Você quer que
seu pai e eu sejamos expulsos daqui? — Ele negou com a cabeça, sorrindo.
— Então, fale mais baixo.
— Eu achei mesmo que ia morrer naquele dia... — A descontração
inicial deu lugar à seriedade naquele rosto tão meigo. Ergui minha mão e
passei a acariciar seu cabelo revolto e ondulado, com suavidade. — Sabem
o que eu pedi ao papai do céu? Pedi pela minha saúde e, em troca, jurei
nunca mais fingir estar doente.
— Nunca duvidei, nem por um minuto, que você estava se sentindo
mal, Ben.
— Você se recorda se comeu ou bebeu algo que parecia diferente do
normal? — A expressão de seriedade de Jean-Luc me deixou com a
respiração suspensa, ante a expectativa de finalmente poder confirmar
minhas suspeitas.
— Eu só bebi água e um coquetel infantil preparado pelo moço do
bar. — Ele apertou os olhos, e franziu a testa, fazendo um grande esforço
para se lembrar. — Qual era mesmo o nome que Désirée falou? Ah, sim! Le
bébé au lait.
— Os gêmeos também beberam o coquetel? — Foi minha vez de
perguntar.
— Oui, maman! — confirmou ele, com um gesto de cabeça. — Mas
o meu ficou doce demais, e não consegui beber tudo...
— Acredite, querido, foi melhor assim... — Murmurei, assumindo
uma expressão pensativa.
Senti uma onda de alívio, seguido rapidamente pela raiva contida.
Aquela desgraçada agiu de maneira premeditada para não levantar
suspeita.
As crianças naturalmente eram mais cautelosas em relação aos
alimentos. E no caso de Benjamin, ele nunca teve predileção por doces, o
que sem dúvida ajudou a evitar um desfecho ainda pior.
Imagine se ele tivesse tomado o conteúdo todo do copo?
Sacudi minha cabeça, afugentando aquele pensamento nefasto.
— Foi essa bebida que me fez parar aqui, neste hospital?
— Os médicos ainda não confirmaram, mas não vamos mais falar
sobre isso, ok? O importante é que agora você está bem, e logo poderá
voltar para casa conosco.
— Nós três vamos morar juntos de novo? — perguntou ele, batendo
palmas com entusiasmo. — Por favor, diga que sim!
— Não! — Eu respondi de imediato, para não alimentar falsas
esperanças. — Eu tenho alguns compromissos aqui, em Paris, mas Nova
York sempre foi o nosso lar.
— Papa, faça alguma coisa... — murmurou Benjamin, puxando a
barra do paletó dele, de modo insistente. — Qualquer coisa! — Fez um
último apelo, se contendo para não chorar.
Engoli em seco, tentando eliminar o nó na garganta, e desviei o
olhar, sentindo as lágrimas quentes descendo silenciosamente pelo meu
rosto.
— Fui muito injusto com sua mãe no passado, Ben. Esse foi o único
erro que eu cometi, e do qual me arrependo muito.
— Se a maman ainda não consegue te perdoar, não fique triste. Eu já
te perdoei por ela, papa. — Então, o menino estendeu a palma da mão na
direção dele. — Agora, me dê a sua mão, por favor. — Jean fez o que ele
pediu, visivelmente intrigado e surpreso.
Benjamin puxou a mão direita do pai, justamente a que ostentava o
bracelete da Cartier. Aquela joia ainda marcava meu pulso, selando um
juramento de amor eterno.
Faz mais de quatro anos que eu tento tirá-la do meu braço, mas sem
sucesso.
Quando eu fui até a loja da marca, o atendente não conseguiu
remover, pois o fecho especial só abria por meio de uma chave de fenda
específica, que era vendida junto com a pulseira. A minha chave ficou com
Jean, que se recusou a me devolver, mas a dele permaneceu comigo, desde
então.
— Maman, agora é a sua vez — disse Benjamin, me tirando dos
devaneios. Quando eu fiz menção de estender meu braço direito, ele
rapidamente balançou a cabeça em sinal de reprovação. — Eu quero a sua
mão esquerda. — Exigiu. Um sorriso misterioso curvava seus lábios.
Não devia ter arriscado um olhar na direção de Jean. Eu o flagrei me
encarando atentamente, com a expressão mais cínica do mundo. Senti as
bochechas queimarem ao notar o brilho lascivo inconfundível de seus olhos
castanhos, totalmente fixos em mim.
— Fils de pute. — Eu falei baixinho o palavrão, sílaba por sílaba.
— Mon amour. — Ele também sussurrou, a rouquidão sexy da voz
serviu de estímulo para a lubrificação intensa fluir, encharcando a calcinha.
— Obedeça a seu filho.
Respirei bem fundo para me encher de coragem e estendi o braço
esquerdo.
— Agora eu quero que vocês segurem a mão um do outro.
Meu coração disparou, a palma da mão já suava frio, o contato da
pele quente e firme da mão grande do meu ex só me deixava com uma
vontade irresistível de chorar.
— Papa merece uma segunda chance, maman. Perdoe por você, por
mim e por ele também. Assim nós seremos uma família feliz de novo.
O meu olhar se cruzou com o de Jean, as nossas mãos continuavam
entrelaçadas, enquanto sentia o polegar acariciando o dorso, delicadamente.
— Lamento muito o sofrimento e a dor que lhe causei esses anos
todos...
— Mas eu também tenho minha parcela de culpa. Senti tanto medo
que omiti muitas coisas de você, mas só fiz isso para proteger nosso filho.
Mas me diz se adiantou alguma coisa? — Lancei um olhar ao redor do
quarto, soltando um profundo suspiro.
O processo movido contra Patrick corria em segredo de justiça há
quase quatro anos, por isso a imprensa demorou para associar meu nome
como principal denunciante.
— Será que algum dia você será capaz de me perdoar, Marie? —
Notei que os olhos castanhos cintilavam com um brilho afetuoso e ardente.
Eu podia jurar que pareciam implorar silenciosamente pelo meu
perdão.
— Eu já te perdoei, Jean... — Pai e filho abriram um sorriso enorme
para mim. Desviei o olhar e fechei os olhos com força, sentindo uma súbita
pontada no peito. — Mas espero que compreenda que eu ainda preciso de
tempo para pensar se devemos voltar a ser um casal... — completei bem
devagar, escolhendo as palavras certas.
— Espero o tempo que for preciso para ter você de volta, Marie. —
Ele segurou minha mão e a levou aos lábios, beijando cada um dos dedos de
forma lenta e suave, seu hálito quente e úmido provocou um sutil
estremecimento por todo meu corpo.
— Se serve de consolo, eu ainda amo você. — Um sorriso matreiro
delineou meus lábios, enquanto enxugava as lágrimas com a mão livre.
Benjamin não se conteve e começou a bater palmas e a rir,
alegremente.
— Agora, eu quero que vocês dois se abracem.
Eu coloquei as mãos na cintura, enquanto estreitava um olhar para
Benjamin, fingindo severidade.
— Está se aproveitando de sua condição para nos dar ordens?
— Évidemment — confirmou com a cabeça, de um jeito bem
presunçoso.
Meus olhos procuraram os de Jean, que nos observava em silêncio,
com uma expressão zombeteira no rosto.
— Você prefere que eu vá até aí te abraçar, ou... — Eu comecei a
dizer, meio sem graça, mas fui logo interrompida por ele.
— Eu mesmo irei até você, Marie. — E dizendo isso, meu ex-
marido contornou o leito e me puxou para junto de si, os braços envolveram
meus ombros, cuidadosamente. — Não vou desistir de você, por mais que
insista em se afastar de mim.
Continuei agarrada a ele, com meu peito subindo e descendo no
ritmo dos soluços entrecortados pelas lágrimas, que escorriam sem parar,
umedecendo o terno.
Por amor a Jean, eu o perdoei de todo meu coração, mas como
poderia reconstruir uma vida a dois, quando os fantasmas do passado
continuavam à espreita?
Capítulo 39

Marie-Claire

Dias depois...

Assim como eu, outras cinco modelos também se pronunciaram


publicamente pela primeira vez, durante uma coletiva de imprensa naquela
tarde de terça-feira.
A surpresa foi ainda maior, quando avistei Kate Seymour entre
nossas colegas. A presença dela não foi sequer cogitada, porque ela fez uma
longa pausa na carreira por razões médicas, se mantendo longe dos
holofotes, em sua fazenda em Montana.
Atuais e antigos gestores da New Look Models desmentiram os
fatos, alegando que as acusações de assédio e violência sexual contra
Patrick Dupont, eram falsas e difamatórias. Até a ex-mulher saiu em defesa
dele numa entrevista para um jornal local, afirmando que, nas palavras dela:
"Patrick seria incapaz de abusar de uma mulher."
Um juiz de instrução decidiu mantê-lo em liberdade sem supervisão
judicial. Meu ex-agente então buscou refúgio em sua casa de campo, nos
arredores de Nice, porque não queria se mostrar ao público.
Eu me posicionei entre as cinco mulheres, três delas dividiram o
apartamento comigo no passado, e observei os mais de vinte jornalistas
presentes, diante da sede da Polícia Judiciária de Paris.
— Será que a gente poderia conversar a sós mais tarde?
Estreitei o olhar para Kate, intrigada, mas confirmei com um gesto
de cabeça.
— Não esperava que você fosse depor como uma das testemunhas...
— Eu pensei em contar toda a verdade para a imprensa desde o
início, mas sofri muitas ameaças. Você não foi a única a ter problemas com
Patrick.
Algo me dizia que a modelo se referia a outro assunto. Ela até fez
menção de dizer mais alguma coisa, mas só não o fez porque deram início
ao pronunciamento.
— Essa é primeira entrevista que concedem para a imprensa sobre o
caso Dupont. Por que demoraram tanto para denunciá-lo por assédio e
abuso sexual?
— Acho que as minhas colegas aqui presentes foram muito
corajosas. — disse a vítima mais recente de Patrick, a modelo Charlotte
Bouquet, que acabou de atingir a maioridade. — Não fosse por elas talvez
eu nem tivesse conseguido romper com o silêncio.
— Falar sobre abuso envolve muitos riscos, como perda de
contratos, por exemplo. — Uma modelo com quem dividi apartamento
também se pronunciou. — Mas não podemos mais nos intimidar. É preciso
que todos se manifestem para romper com este ciclo de violência, não
apenas no mundo da moda, como em outros segmentos também.
— A contribuição de Charlotte tem sido fundamental e faz toda a
diferença — A minha mão tremia perceptivelmente, quando segurei o
microfone diante dos lábios. — Ela fez o que muitas de nós deveríamos ter
feito no início da carreira — prossegui, lançando um olhar de gratidão para
ela. — Manter o silêncio beneficiou apenas ao nosso agressor, que continua
vivendo a vida dele como se nada tivesse acontecido.
Sem contar que trouxe muito mais dor e sofrimento para nossas
famílias.
Muitas outras perguntas foram feitas, mas fiquei ansiosa mesmo em
ouvir Kate.
— Não achei que pudesse estar aqui hoje, mas eu viria de qualquer
forma. — Kate finalmente se pronunciou, bastante emotiva. — Eu tomei a
coragem de formalizar uma denúncia, por mais que o fato esteja prescrito
aos olhos da justiça francesa. Eu tinha apenas 17 anos, quando conheci meu
agressor. Ele me fez promessas, apresentou pessoas importantes da
indústria, durante um jantar em sua mansão... Vivi momentos de terror.
Parem de normalizar o assédio sexual! — Alguém gritou de longe.
Avistei um grupo de mulheres segurando cartazes com os dizeres:
“rebellez-vous” (“se rebele”), “non c'est non” (“não é não”), “balance ton
porcs” (“denuncie os porcos”), entre outros.
— A minha pergunta agora é para Marie-Claire Leblanc — disse
outro jornalista presente. — Há rumores de um suposto caso de assédio
sexual, o primeiro deles envolvendo também um dos fotógrafos mais bem
pagos da atualidade. Isso é verdade?
— Sim. Aconteceu em um estúdio, quando eu tinha entre 15 e 16
anos de idade, embora eu não me lembre de quase nada... — Senti um
grande nó na garganta, mas mantive o autocontrole, encorajada pelas
mulheres que se dispuseram a estar ali para nos apoiar. — Me fizeram
acreditar que eu desmaiei como das outras vezes em que fiquei sem comer
para perder peso, quando na verdade, eles colocaram alguma substância na
garrafa de água que me ofereceram no intervalo.
Seguiu-se um burburinho entre os presentes, em seguida alguém
gritou:
— Por que não chama os porcos pelo nome?
— Só vou falar quando minha advogada me orientar a fazê-lo, se for
o caso.
Imediatamente me veio à memória o vídeo gravado por Patrick,
causando um forte embrulho no estômago, à medida que as imagens se
desenrolavam em minha mente.
Jamais esqueceria o efeito causado pela visão daquelas mãos
nojentas apalpando meus seios expostos, seu comportamento oscilando
entre a mera contemplação e o puro exibicionismo.
A melhor maneira de lidar com o abuso e a violência sexual é não
ficar calada.
— Eu também vivenciei algo semelhante, no início da carreira. —
Foi a vez de Anneliese se pronunciar. — Existe uma cultura na indústria de
tolerar tudo o que fazem com as modelos, especialmente as mais jovens que
são mais suscetíveis ao assédio.
— É bom deixar claro que nós não queremos desestimular ninguém
a seguir este sonho. — Inès ressaltou, em outro ponto importante. — Nós
queremos, sim, fazer valer os nossos direitos, lutando por um ambiente de
trabalho livre de assédio e violências.
Uma vez terminada a entrevista coletiva, deixei o tablado com os
joelhos trêmulos e as palmas das mãos suando, mas sentindo um grande
alívio por ter contribuído de alguma maneira para dar voz às mulheres que
não conseguiram se apresentar à Justiça.
Houve muitas críticas às autoridades locais sobre a forma como
lidaram com as investigações de assédio e abuso sexual envolvendo
menores de idade, pois os casos de grande repercussão não resultaram em
nenhum tipo de punição aos agressores.
De repente, senti alguém tocar o meu ombro de leve, e ao levantar o
rosto eu me deparei com Kate Seymour, acompanhada pelas nossas colegas.
Todas elas ensaiaram um sorriso encorajador nos lábios.
— Marie, eu sei que não foi fácil para você estar aqui hoje. —
Percebi um lampejo de tristeza no olhar de Anneliese. — Imagino como
deve ter sido difícil lidar com a hospitalização do seu filho...
— Benjamin felizmente recebeu alta na semana passada. Nós dois
voltaremos para Nova York amanhã pela manhã, bem cedo.
Kate se inclinou em minha direção, adotando uma postura
confidencial.
— Ficou mesmo comprovado que foi uma tentativa de assassinato?
— Vocês acreditam que a polícia não quis instaurar um inquérito
para investigar as causas da intoxicação? O delegado disse que não havia
indícios seguros de que meu filho foi envenenado.
— Mon Dieu! Mas isso é um absurdo! — Anneliese disparou, em
um súbito rompante de irritação.
— Isso não me surpreende nem um pouco. Désirée não ajudaria
Patrick se não tivesse a certeza de que ficaria impune.
— Também o que vocês esperavam? — Inès perguntou, baixando o
tom de voz. — Ela se casou com o primeiro-ministro da França.
— Parece que este pesadelo nunca vai acabar... — murmurei,
pressionando dois dedos na têmpora esquerda, a minha cabeça começou
a latejar, insistentemente. — Ele realmente cumpriu com a ameaça, porque
eu consegui que um juiz de instrução reabrisse o caso, encorajando tanto
vocês como outras vítimas a prestar queixa.
— Ainda acho que o fato de Jean ter agredido Patrick só piorou
ainda mais as coisas... — Inès cobriu a boca com a mão, ao se dar conta de
que falou mais do que devia.
— Por essa eu não esperava! — disse Anne caindo na risada. —
Provocar a ira daquele sujeito trouxe consequências, mas não vamos negar
que a surra foi bem merecida.
— Marie, ouvi rumores de que você voltou com seu ex-marido. É
verdade?
— Mas é claro que não! — Franzi a testa, fingindo estar ofendida.
— A conversa está ótima, mas tenho um compromisso daqui a
meia-hora.
— Eu também preciso ir embora agora, Marie. Por favor, não deixe
de dar notícias sobre Benjamin, ok?
— Foi muito gratificante rever vocês. — Dei um longo abraço em
Inès, Anneliese, e Marine, que falaram algumas palavras de conforto e me
pediram para tomar cuidado.
As minhas colegas foram embora, me deixando a sós com Kate
Seymour.
— Acho muito arriscado você circular pela cidade, sem nenhum
segurança por perto. — Ela lançou um rápido olhar na direção do guarda-
costas parado a curta distância.
— Só estou aqui de passagem, Kate. Eu tenho minha vida em Nova
York.
— Claro, eu entendo perfeitamente. — Ela baixou os olhos,
constrangida. Parecia que ia dizer mais alguma coisa, mas logo se conteve.
Seria por medo ou cautela?
Fiquei em silêncio por alguns instantes, reunindo coragem para
fazer a pergunta que não me saía mais da cabeça.
— Por que só resolveu me procurar agora, Kate? — Pensei que
minha voz soaria rude até para os meus próprios ouvidos, mas na verdade
ela voz soou apenas cansada e fraca, como se eu já nem me importasse mais
com nada.
— Você sabe que eu fui diagnosticada com uma doença autoimune
rara. Não há cura para a síndrome, mas existem tratamentos que podem
atrasar sua progressão.
— Eu me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais, mas não
queria acreditar que era tão grave assim...
— Quando eu soube que o seu filho estava internado, com suspeita
de envenenamento, pensei que talvez não fosse tarde demais para esclarecer
as coisas.
— Acho melhor a gente ir para um lugar mais reservado, Kate. —
Tentei ignorar as pontadas de preocupação que pareciam vir da coluna,
enquanto olhava ao redor.
Os policiais fizeram o possível para manter os paparazzi atrás das
grades de isolamento.
— Existe um bistrô aqui perto e que pertence ao meu pai. Chama-se
La Ville de Lisses. Podemos nos encontrar lá, o que acha?
— Perfeito, Marie! À bientôt. — Então, ela virou as costas e saiu
andando, enquanto forçava um rebolado que lhe era tão característico.
O meu motorista já estava a minha espera, e abriu a porta traseira do
sedã de luxo, sinalizando com um gesto para que eu pudesse entrar. Eu me
acomodei no confortável banco de couro, antes de fechar os olhos e soltei
um longo suspiro cansado.
— Para onde nós vamos agora, madame?
— La Ville de Lisses. Merci.
O meu pai se orgulhava de oferecer o melhor da gastronomia
francesa a um preço acessível, e embora fosse necessário fazer uma reserva
com antecedência, ele sempre disponibilizava uma mesa em algum espaço
mais reservado.
Um maître muito simpático nos conduziu até a mesa mais afastada,
em seguida entregou os menus e, após pedir licença educadamente, se
retirou, nos deixando a sós.
— Você está mesmo pensando em largar a carreira, Kate?
— O diagnóstico da síndrome me fez repensar muitas coisas, sabe?
Agora minha maior prioridade é o meu bem-estar físico e mental. Só vou
trabalhar em campanhas grandes, daquelas irrecusáveis mesmo.
— A lição que fica é que nenhum sonho vale a nossa segurança... —
murmurei, olhando distraidamente além do ombro da modelo.
— Mas você também está ensaiando uma aposentadoria, não? Ouvi
dizer que pretende fazer uma única aparição durante a semana de moda de
Paris deste ano.
— Não são rumores, não. Essa é a mais pura verdade. Quero me
dedicar 100% às minhas duas empresas. Agora tenho a minha própria linha
de roupas, chamada Actuel Femme e de produtos para cuidados com a pele,
a Clichy Organic.
— Se alguém me dissesse que estaria sentada à mesa de um
restaurante com você, falando sobre planos para o futuro, eu certamente não
teria acreditado. — Kate abriu um largo sorriso para mim.
Era a primeira vez que a via sorrir daquele jeito tão genuíno e
honesto.
Eu acabei retribuindo o sorriso de modo espontâneo e afetuoso.
— Também pudera: Nós nunca fomos próximas uma da outra —
ponderei, observando o garçom servir as entradas e as bebidas. — Mas eu
ainda acho que tanto a mídia quanto as pessoas à nossa volta criaram uma
rivalidade que nunca existiu.
— No que diz respeito ao trabalho, não. Até porque eu já era uma
veterana na indústria, enquanto que você era só uma iniciante. — Ela levou
o garfo à boca e me encarou com uma expressão indecifrável no rosto. —
Eu me refiro a outros aspectos da vida mesmo...
— Ah, claro! Você se refere ao meu ex-marido — comentei, com os
olhos fixos nela e uma das sobrancelhas arqueada.
— Fiquei ressentida quando te vi no desfile, ostentando aquele anel
de noivado. — Ela limpou os lábios com o guardanapo, antes de prosseguir:
— Imagine a seguinte situação: uma mulher se relaciona com um homem
durante um tempo, mesmo ciente de que ele tinha aversão ao casamento.
Um belo dia ele termina com ela e, três ou seis meses depois, esse mesmo
cara fica noivo de outra. Como você reagiria a isso, Marie?
— Se ele nunca me fez promessas, isso não me afetaria em nada.
— Eu duvido que seja tão evoluída assim. — Percebi uma nota de
ironia na voz. — Qualquer mulher espera que o seu parceiro a peça em
casamento algum dia — prosseguiu, apoiando o cotovelo na mesa e
pousando o queixo na mão, seus olhos verdes brilhavam enigmáticos. — Eu
realmente achei que a escolhida seria eu e não você...
— Jean só se casou comigo por conveniência. Ele já planejava se
separar de mim e esperou o momento certo para isso.
— Então foi conveniente para ele ter presenciado seu beijo com
Patrick? — perguntou, girando distraidamente a taça de vinho tinto.
— Você sabe muito bem que Patrick me agarrou à força.
— Me desculpe. Eu me expressei mal, Marie. Ele não passa de um
abusador.
— A forma como ele saiu daquela festa... Ninguém sabia o
paradeiro dele. Benjamin perguntou pelo pai o tempo todo, eu pensei até em
acionar a polícia, quando na verdade ele foi direito para o bar encher a cara.
— Desviei o olhar e fechei os olhos com força, sentindo uma súbita pontada
no peito. — Jean podia pelo menos ter esperado se divorciar de mim, antes
de te levar para a cama.
— Eu juro que não aconteceu nada! Mas não vou dizer que foi por
falta de vontade. Jean é o único homem que eu amei na vida. Quando ele
me pediu para encontrá-lo no hotel, eu nem pensei duas vezes. Eu já sabia
que vocês estavam passando por uma crise no casamento, então imaginei
que era só questão de tempo até se divorciarem.
— Achei que nunca teria a oportunidade de saber a sua versão da
história...
— Fazia tempo que não o via tão bêbado. Dizia o tempo todo que
foi traído e por isso queria se vingar, mas quando me levou para a suíte,
tudo mudou. Parecia outra pessoa. Antes vingativo e rancoroso; depois
amargurado, deprimido, conformado... Acho que ele realmente te ama,
porque se recusou a me beijar e foi direto para o sofá da sala. No dia
seguinte, não trocou uma palavra comigo, praticamente nem olhou na
minha cara.
Eu me limitei a encará-la com uma expressão imperturbável no
rosto
— Muita coisa teria sido evitada se você tivesse antecipado esta
conversa.
— Eu lamento profundamente, mas eu passei por momentos
terríveis. — Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela virou o rosto,
bruscamente. — A pressão veio de todos os lados, sem contar as ameaças
de Patrick. Achei que tinha chegado no meu limite. Hoje a única coisa que
quero é poder viver em paz.
— Mon Dieu... — murmurei, ao estender o braço por cima da mesa
para tocar a mão trêmula e fria dela. — Sinto muito, Kate, sinto muito
mesmo.
— Não poderia voltar para casa, sem antes desfazer todo esse mal-
entendido. E também te devo um pedido de desculpas. Você não sabe o
quanto me arrependo de ter omitido a verdade. Jean-Luc sempre foi fiel a
você. Ele merece uma segunda chance.
Levei a taça de água aos lábios, bebendo apenas um gole pra limpar
a garganta.
Quem dera as coisas fossem tão fáceis, assim, bastando apenas
perdoar, deixando para trás todo o ressentimento causado por aqueles que
me fizeram algum mal.
— Fiquei até com pena dele, quando me procurou feito um louco,
na tentativa de desmentir os rumores de traição. — Ela enxugou as lágrimas
que tinham surgido novamente nos olhos. — Mas como eu disse antes,
Patrick não me deu outra escolha.
— Très bien. — Fechei os olhos e assenti, soltando um longo
suspiro. — Aceito suas desculpas, Kate. Não quero mais guardar nenhuma
mágoa dentro de mim.
Insistir em alimentar os sentimentos ruins só me impediria de
vivenciar a verdadeira felicidade.
— Aquele sujeito sempre foi obcecado por você... — Seu rosto
assumiu uma expressão sombria, de repente. — Ele nunca quis que você e
Jean se reconciliassem. Disse que se você não fosse dele também não seria
de nenhum outro homem...
A expressão nos olhos dela me fez sentir um calafrio ao longo da
lombar.
— Tenho medo de que ele tente fazer algo contra meu filho de novo,
Kate.
— Contrate novos seguranças, mesmo que volte para Nova York.
— Eu já tinha planejado fazer isso, mas... — Não consegui concluir
a fala. Me assustei com o celular vibrando, insistentemente, dentro da bolsa.
Chamada não identificada.
Recusei na hora, mas uma notificação de nova mensagem saltou na
tela, no mesmo instante, fazendo meu coração disparar, martelando
furiosamente dentro do peito.

Número desconhecido: Um carro já está à sua


espera e você vai entrar nele.
Segundos depois, uma nova notificação surgiu na tela.

Número desconhecido: Eu vou ligar de novo e


você vai atender. Do contrário, uma daquelas
imagens será “vazada” nas redes sociais.
Imagine a reação do seu filho?

No minuto seguinte, o meu celular tocou de novo, fazendo o meu


coração disparar, latejando forte nas têmporas. Respirei bem fundo para
manter o autocontrole e não entrar em pânico.
— Se importa se eu atender? É urgente... — A minha voz falhou um
pouco, o que me fez engolir em seco, com desconforto. Ela apenas
concordou com um gesto de cabeça. Parecia subitamente desconfiada, seu
rosto assumiu uma expressão mais sombria.
A voz masculina — e familiar — do outro lado da linha soou
ameaçadora.
— Agora se despeça da modelo e faça o que eu mandei. Putain!
— O que houve, Agnès? — Menti, deliberadamente. — Benjamin
ainda não almoçou? Ele só vai comer quando eu chegar? Merde... — Então,
soltei um suspiro longo e impaciente. — D’accord. Avise a ele que estou a
caminho. Salut! — E desliguei.
— Acho melhor você se apressar, Marie... — disse Kate, com um
sorriso gentil.
— Obrigada pela sinceridade, Kate. Foi muito bom conversar com
você.
— Apesar das nossas diferenças, eu realmente desejo que seja muito
feliz. E estimo melhoras para o seu filho. — Kate parecia sincera em sua
preocupação.
— Também desejo o mesmo para você. Au revoir! — Então, eu me
levantei e saí apressada em direção à porta, mas acabei me esbarrando em
uma cadeira, sem querer.
Uma vez do lado de fora, eu procurei com o olhar pelo veículo
mencionado por Patrick, até que de repente uma van preta de luxo apareceu,
com seus vidros escuros, que me impediam de ver quem estava no interior
dele.
A porta se abriu, mas apenas pela metade, e uma mão enluvada
surgiu, me ajudando a entrar no veículo. Eu me acomodei no confortável
assento de couro e, com visível esforço, reuni coragem para encarar o
homem sentado à minha frente.
— Não imagina como estou feliz em te ver de novo. — Patrick
quebrou o silêncio, seu cinismo disfarçado de amabilidade. — E você?
Sentiu muito minha falta?
— Por que tentou envenenar meu filho, Patrick? — Consegui fazer
a pergunta que tanto me assombrou, com a voz embargada pelas lágrimas.
— Por que ele e não eu?
— Sabia que tomaria a decisão certa. — Meu sangue entrou em
ebulição, consumida pela raiva que sentia por ele ter desviado o assunto. —
Uma mãe faz qualquer sacrifício pela saúde e pelo bem-estar de seu filho, e
com você não seria diferente.
— Deixe o meu filho fora disso! — Eu quase gritei, batendo com
força o meu punho no assento de couro.
— Por que não relaxa um pouco? — Ele inclinou o corpo para a
frente e estendeu a mão, com um sorriso insolente no rosto. — Agora, me
passe o seu celular.
Patrick abriu o casaco preto de lã, revelando um revólver presp à
cintura.
Meu coração parou de bater por uma fração de segundo até acelerar
de forma incontrolável. Um arrepio gélido percorreu meu corpo, a angústia
e o desespero se juntaram ao arrependimento por ter cometido a loucura de
confrontá-lo sozinha.
Ele seria mesmo capaz de me matar?
Tirei meu celular de dentro da bolsa, o meu polegar tremia
perceptivelmente, enquanto digitava a senha para desbloquear a tela, e
poder entregá-lo para ele.
— A gente vai dar um passeio. Espero que o seu ex-marido se junte
a nós dois. — Então, seus olhos se desviaram dos meus, e fez sinal de
positivo com a cabeça.
Já estava prestes a virar o rosto, quando repentinamente tudo ficou
escuro. Eu me debati às cegas, enquanto o comparsa dele cobria minha
cabeça com um capuz preto.
— Por favor, Patrick, não faça isso. — Minha voz saiu fraca e débil.
O tecido espesso aumentou a sensação de sufocamento, eu mal
conseguia respirar, mas tentei ao máximo inspirar pelo nariz, sugando
qualquer fiapo de ar existente.
No que depender dele, a chance de continuar viva até o fim do dia
era mínima.
Capítulo 40

Jean-Luc

Deixei a reunião com os principais executivos das empresas que


faziam parte da SVL Groupe, após discutir o plano de aquisição de um novo
grupo que detinha o controle do jornal Le Paris, um dos jornais mais
antigos da França, além de uma produtora de cinema, participações em
outras três TVs regionais, e emissoras de rádio.
De repente, o meu irmão mudou o rumo da conversa, trazendo à
tona questões pessoais, que ainda não estavam bem resolvidas.
— Quer dizer então que Marie vai mesmo voltar para Nova York
amanhã?
— As férias de Benjamin já estão acabando, Cédric. Acredita que
ela já trocou nosso filho de escola quatro vezes? Eu só queria que ele
tivesse uma infância normal.
— Mas uma coisa não anula a outra, Jean. Ele pode levar a vida
como uma criança normal, enquanto frequenta uma escola para
superdotados.
— Talvez tenha razão... Ele já estuda em uma instituição privada
que oferece uma experiência educacional única. Visitei as instalações uma
vez e fiquei realmente impressionado.
Expliquei ao meu irmão que o espaço era gigantesco, com seus
laboratórios de Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática, sala de
artes cênicas, centro de mídia, sala de jantar, sala de xadrez, além de contar
com um terraço ao ar livre e instalações recreativas.
— Acho pouco provável que Benjamin continue seu legado...
— O problema é que Marie tem feito muitos planos pra ele, como
colocá-lo em uma faculdade de prestígio, assim que ele completar 10 anos.
Não acha isso uma loucura?
— Loucura ou não, pouco importa. Vocês precisam se acertar logo
de uma vez.
— Eu só tenho até as 23h59 desta terça-feira para convencê-la a
voltar pra mim.
— Posso saber o que tem em mente, espertinho? — Ele perguntou,
inclinando a cabeça ligeiramente para o lado para me sondar, curioso.
— Babette está me ajudando nisso — respondi, dando tapinha de
leve no ombro dele. — Reservou um spa naquele hotel-palácio próximo ao
Château de Versailles. Marie acha que Jules vai levá-la até a sede da
L’Beauté Paris. Ela nem imagina o que lhe espera!
— Depois de tudo o que Marie passou, ela merece tirar um tempo só
para si.
— Mas o melhor mesmo ainda está por vir, Cédric. Quero encerrar a
noite com um jantar excepcional, a bordo de um cruzeiro no rio Sena.
— Vai pedi-la em casamento de novo, e no mesmo lugar de três
anos atrás?
— Exatamente! — respondi, mal contendo a empolgação na voz. —
E você também devia se inspirar em mim e fazer alguma loucura para
reconquistar aquela sua namorada... como é mesmo o nome dela?
— Anaïs Monet. — Um sorrisinho matreiro surgiu no canto dos
lábios. — Só saímos juntos algumas vezes. Não foi nada sério... eu estaria
traindo a memória de Elisa.
— Elisa nos deixou há anos. Por que não se permite encontrar um
novo amor?
— Anaïs e eu somos incompatíveis. Ela é tão teimosa quanto... —
Cédric não conseguiu completar a frase. Um som metálico e insistente
cortou o ar, interrompendo nossa conversa.
Eu logo me dei conta de que era meu celular vibrando no bolso da
calça então o puxei rapidamente para olhar o visor. Era uma mensagem de
texto. De Marie-Claire.

Mon Amour: Me encontre em Goussainville


Vieux-Pays, imediatamente.

Devido à proximidade com o aeroporto Charles de Gaulle, muitos


habitantes abandonaram Goussainville Vieux-Pays, também conhecida
como "cidade fantasma".
O que minha ex-esposa estava fazendo naquele lugar?
— Marie acabou de mandar uma mensagem, pedindo para eu me
encontrar com ela naquele vilarejo abandonado, em Goussainville.
— Como assim? — Piscou algumas vezes, aturdido. — Que história
é essa?
O aparelho vibrou de novo. Era uma foto temporária de visualização
única.
Meus olhos se fixaram na imagem dela amordaçada e com os braços
amarrados atrás das costas, e os tornozelos presos nas pernas da cadeira.
Notei também que seu cabelo longo e liso estava ensopado, mas não sabia
dizer se pela chuva ou se pelo suor.
Outra mensagem apareceu na tela e meu coração quase parou.

Mon Amour: Não envolva a polícia. Venha


sozinho ou sua ex-mulher morre.

Digitei depressa a resposta: Já estou a caminho. Não se atreva a


tocar nela!
Engoli em seco, tentando eliminar o nó da garganta, ao mesmo
tempo em que lágrimas quentes e grossas brotavam, fazendo os meus olhos
arderem. Um turbilhão de sentimentos me invadiu, que iam do medo,
passando pela dor, raiva e impotência.
Não satisfeito em tentar envenenar meu filho, ele agora sequestra a
minha ex?
— Surgiu um compromisso urgente, Cédric. Preciso ir agora. — Eu
quase gritei, enquanto corria escada abaixo.
O percurso até a região de Île-de-France durava no máximo
quarenta minutos.
Digitei freneticamente o número de Agnès, mas caiu direto na caixa
postal.
— Mas que inferno! — praguejei, ao apertar a chave do carro para
destravar as portas. Tentei o número do meu motorista, felizmente ele
atendeu no segundo toque. — Devia ter entrado em contato comigo, Jules.
Por que minha ex-mulher não está com você?
— Tentei ligar antes para o senhor, mas só dava caixa postal. Ela
decidiu almoçar na companhia de uma amiga, então pensei que elas
passariam a tarde juntas.
— Mas que amiga é essa, Jules? — Minha voz saiu mais ríspida do
que pretendia. Com um longo suspiro, passei a massagear os nós de tensão
na nuca, na tentativa de me acalmar. — Você pode descrever como ela é
fisicamente pelo menos?
— Uma mulher loira, alta e elegante, parecida com aquela sua ex-
parceira... — Ele fez uma breve pausa, como se estivesse tentando puxar a
informação da memória. — Tem um forte sotaque americano...
— Kate Seymour. — Eu o interrompi, impaciente. Nada daquilo
fazia sentido.
Por que ela resolveu fazer sua primeira aparição pública — em três
anos —, justo aqui em Paris?
— Devo dizer que não a reconheci no início, mas tenho certeza de
que era ela.
— Então as duas saíram juntas do restaurante? — perguntei, com a
respiração suspensa.
— Marie-Claire saiu sozinha e entrou em uma van preta. A amiga
saiu poucos minutos depois e entrou em outro veículo. Achei tudo aquilo
muito estranho, monsieur.
Um músculo se retesou no maxilar, após emitir um suspiro
profundo, mas o sopro de ar foi incapaz de me estabilizar.
— Très bien... — Fiz menção de desligar, mas hesitei. — Jules, eu
preciso que leve o meu filho e a babá dele pra casa dos meus pais. Ainda
não sei a que horas volto.
A Villa Montmorency era um condomínio fechado, com restrito
controle de acesso, mas não me sentia seguro em mantê-los sozinhos por
tanto tempo naquela casa. Pelo menos meus pais cuidariam dele, na minha
ausência.
— Deseja algo mais, monsieur?
— Non... Obrigado pelas informações. — Desliguei, e em seguida
tentei entrar em contato novamente com Agnès. Aliviado, soltei o ar preso
nos pulmões, assim que ouvi a voz dela. — Bonjour. Arrume as suas coisas
e as do meu filho também, Agnès. Vocês vão passar a noite na casa dos
meus pais. Jules vai chegar aí a qualquer momento.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou ela, parecendo hesitante.
— Marie-Claire já está ciente disso? Tentei falar com ela, mas parece que
o celular está desligado.
— Não posso explicar agora, porque a vida dela corre perigo. —
Escutei a mulher falar baixo no outro lado da linha, algo incompreensível.
— Não posso envolver a polícia nisso, por favor. Não conte nada a ninguém
sobre o que conversamos, ok?
— Mon Dieu... Só espero que tudo corra bem... Se cuide. — E
desligou.
Joguei displicentemente o aparelho sobre o console, antes de dar a
partida no carro, e pisei fundo no acelerador.
Era impossível prever os desdobramentos do sequestro, mas minha
mente insistia em prever o pior cenário possível.
Dirigi pelas ruas desertas, observando as fachadas dos prédios
repleta de pichações, algumas portas foram fechadas com tábuas, sem
contar as casas de tijolos caindo aos pedaços, e cercadas pelo matagal
denso.
No passado, todos os aviões decolavam na única pista a menos de
um quilômetro de distância do vilarejo. O barulho era ensurdecedor para os
moradores, especialmente quando o lendário Concorde ainda operava e
cujos potentes motores roncavam diariamente, balançando as janelas das
casas. Muitos partiram para não voltar.
Agora restavam apenas alguns moradores que ainda davam vida
àquele lugar.
Estacionei o veículo na praça, próximo à igreja Saint-Pierre-et-
Saint-Paul, monumento histórico datado do início do século XX. A sua
grande torre sineira, com decorações esculpidas em pedra, ainda resistia
como recordação do grandioso passado histórico.
Quase dei um salto, quando senti meu celular vibrar no bolso da
calça.
Reconheci o número da babá, mas ao atender fui surpreendido pela
voz de Benjamin do outro lado da linha.
— Ben? — Comecei a suar frio, o meu coração disparou na mesma
hora. — Aconteceu alguma coisa? Você está se sentindo mal?
— Papa, procurei meu tablet, mas não encontrei. Veja se está aí no
seu carro, por favor.
Minha respiração se manteve suspensa, mas soltei o ar bem devagar,
uma onda de alívio varreu meu corpo, ao me dar conta de que o motivo da
ligação dele era outro.
Inspecionei rapidamente o interior do veículo até encontrar o
aparelho e o carregador dele, no canto do banco traseiro. Imediatamente
fechei os olhos, um só pensamento me ocorreu que poderia salvar a minha
vida e a de Marie. Deixando o GPS ativado, a minha família poderia
acionar a polícia que, por sua vez, rastrearia o tablet, encontrando a
localização exata de onde eu estava, com a ajuda da rede móvel.
— Seu tablet está aqui — respondi, distraído, enquanto ligava o
aparelho. — Se você estranhar minha demora, peça ao seu avô para rastrear
minha localização, ok?
— Por que está me dizendo isso, papa? — perguntou ele, com voz
trêmula. — Não consigo falar com a mamãe... Você sabe para onde ela foi?
— Não aconteceu nada, apenas faça o que eu te pedi. — Minha voz
saiu ríspida e autoritária, o que me deixou profundamente arrependido.
Então, encostei minha cabeça no volante, por um momento, e após um
longo suspiro, completei: — Tudo vai ficar bem.
Vasculhei o porta-luvas e tirei de dentro dele um bloco de notas e
uma caneta, para anotar um bilhete de socorro, com os seguintes dizeres:
Chame a polícia. Minha mulher e eu estamos sendo mantidos reféns no
antigo casarão. Prendi o papel no limpador de para-brisa, e quando já
estava descendo a rua, notei que havia um tapume todo pichado em volta da
construção em ruínas, mas por sorte havia uma pequena abertura na lateral.
Patrick com certeza usou Marie como isca para me atrair até ali, e
assim poder se vingar pela surra que levou no escritório dele semana atrás.
Uma vez transpassada a entrada lateral, eu me detive por alguns
instantes contemplando o terreno com reprovação olhar, e a julgar pelo
farfalhar dos meus passos na grama, o local estava perturbadoramente
silencioso. Silencioso até demais.
A mansão de Goussainville, ou o que restou dela, ainda detinha
certa imponência, apesar de ter se deteriorado pela ação do tempo e dos
vândalos que arrancaram portas, janelas e telhados, além de terem pichado
frases em parte da fachada.
Quando dei os primeiros passos, senti uma pontada súbita e
excruciante na base da nuca, um grito de dor escapou bem no fundo da
garganta, a visão ficou turva, me fazendo cambalear lentamente para o lado
direito até cair no chão com um baque surdo.
Uma chuva fina caía sobre o rosto, as pálpebras tremiam e embora
tenha lutado contra a vertigem com todas as minhas forças, tudo depois
disso virou apenas um borrão.

Eu pisquei algumas vezes, ainda tentando me acostumar com a


claridade ao redor, quando de repente uma silhueta masculina surgiu no
meu campo de visão. Reconheci de imediato o ex-agente de modelos. Seus
olhos saltavam faíscas de puro ódio, enquanto me encarava, com o corpo
um pouco curvado para a frente.
— Finalmente chegou o momento mais aguardado: o nosso acerto
de contas.
Outro homem surgiu, apontando o revólver em minha direção, mas
eu não fazia mínima ideia de quem ele era. Tinha a estatura alta, com bíceps
e tríceps pronunciados, a cabeça toda raspada, uma espessa barba cobria o
rosto de pele clara, suas tatuagens iam do pescoço até os pulsos.
— Vejamos o que trouxe consigo — disse ele, ao se agachar ao meu
lado.
Ele revistou todos os meus bolsos, tirando deles a minha carteira, o
celular, um maço de cigarros, um isqueiro, além da chave do carro. Ainda
teve a audácia de acender um deles e tragou profundamente, espalhando a
fumaça ao redor. Quanto ao aparelho, removeu o chip e o jogou no chão,
pisando nele com um calcanhar até quebrar a tela.
— Não entendo por que Marie ainda te ama. — Patrick mal
escondia o despeito na voz. — Você não passa de um fraco, covarde e ainda
por cima é infiel.
— Acabou de descrever a si mesmo, seu desgraçado! — Um
segundo depois, senti o impacto de um chute forte próximo à minha costela,
o que me fez urrar de dor. Meu rosto se contorceu pela dor intensa, que
atravessava todo meu ser naquele momento.
Eu inesperadamente escutei o que parecia ser um grunhido. Apesar
de estar machucado, eu consegui me sentar no chão, olhando para os lados à
procura de Marie. Meu coração quase parou quando a vi sentada e
amordaçada a um canto, os fios longos e escuros estavam grudados no rosto
todo vermelho e encharcado de suor.
Ela estava tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe que chegava a
doer no fundo do peito.
— Afinal, Patrick, o que você realmente quer com tudo isso? —
Pressionava a lateral do corpo com uma das mãos, para me certificar se
havia fraturado alguma costela.
— Quero reivindicar o que é meu, algo que já devia ter feito há
muito tempo.
O outro criminoso confirmou com um gesto de cabeça, enquanto
lançava um olhar carregado de luxúria para minha ex-mulher, com um
sorriso torto de canto de boca.
— E você está convidado para assistir nosso ato de camarote. Não é
mesmo, Simon?
Os dois se entreolharam entre si e explodiram numa gargalhada
impiedosa.
Um sentimento de raiva mesclado à impotência começou a
borbulhar dentro de mim. Eu estava cada vez mais convicto de que Patrick
tinha como único intuito submetê-la às suas vontades, mediante violência,
concretizando assim a sua vingança, e atingindo emocionalmente a mim
também no processo.
— Nem ouse tocar nela! — Vociferei, profundamente enojado. —
Eu não vou permitir, me ouviu bem?
Fiz menção de avançar na direção de Patrick, mas o tal Simon
desferiu um golpe rápido e forte contra meu rosto, usando o cabo de sua
arma. O impacto me fez cair no chão e levei a mão à boca, tossindo sangue
dolorosamente, enquanto me esforçava ao máximo para conseguir respirar.
— E quem foi disse que eu preciso da sua permissão, Jean-Luc? —
Notei seus lábios se curvando em um esgar de ironia. — Amarre os braços e
pés deste infeliz! — ordenou, ao estender uma corda na direção do
comparsa.
Simon pressionou o joelho com força na parte inferior de minhas
costas e, em seguida, puxou meus braços para trás, passando a corda em
volta deles e os prendeu bem firme. Embora eu tenha tentado me debater, na
tentativa de impedi-lo de amarrar os tornozelos, Patrick se abaixou,
apontando o cano da arma na lateral do meu rosto.
— Não tente bancar o herói, Jean. — Esbravejou, quase cuspindo.
— Mas se preferir, eu posso dar a Benjamin a triste notícia de que ficou
órfão de pai aos 6 anos.
— Mas não era essa a sua intenção, infeliz? Acabar de vez com
minha vida?
— Preciso que ainda esteja vivo, para ver como uma mulher deve
ser tratada.
Sabia que o impacto de suas palavras seria brutal, mas foi a
seriedade fria e cruel dele que mais me chocou, as entranhas passaram a
revirar, o embrulho no estômago pesava como chumbo, trazendo com ele
uma forte ânsia de vômito.
Não consegui mais me segurar, e vomitei diretamente no sapato
italiano dele.
— Putain de bordel de merde! — Praguejou, olhando horrorizado
para a poça formada pela mistura de bile com secreções intestinais. Depois,
passou a esfregar o bico fino, limpando a sujeira no meu sobretudo. —
Cubra a boca dele com fita adesiva. Agora!
Patrick virou as costas e se dirigiu lentamente até onde Marie estava
amarrada.
Comecei a tatear o chão, mesmo com as mãos amarradas, em busca
de algum objeto cortante, mas sem deixar de observar a cena que se
desenrolava à minha frente. Quando o ex-agente tirou o lenço da boca dela,
Marie ofegou, tossindo profundamente, as lágrimas escorriam cada vez
mais rápido pelas bochechas rosadas.
Ele abaixou até o nível dos olhos dela, os lábios torcidos num
sorriso diabólico.
— Espero que esteja pronta para me satisfazer de todas as formas
possíveis.
— Você me dá nojo, Patrick. — A voz dela era quase um sussurro
débil. Então, inclinou o corpo para a frente, e cuspiu no rosto dele,
expressando toda a sua revolta.
O ex-agente tirou um lenço do bolso interno de seu casaco e limpou
os respingos de saliva do rosto, e inesperadamente agarrou o queixo dela de
forma agressiva.
A risada maldosa dele ecoou pelas paredes em ruínas, como
resposta.
— Sempre tão petulante e insolente... Não sabe o quanto isso me
excita, chérie.
Continuei tateando o chão à esmo, até que de repente consegui
agarrar um pedaço de vidro afiado, o qual usei para cortar a corda, enquanto
o comparsa dele continuava acompanhando de perto aquela espécie de
tortura sádica. Desamarrei os meus tornozelos e engatinhei no chão à
procura de algum galho ou toco de madeira, robusto e grande o bastante
para derrubar uma pessoa.
— Ok, você venceu, Patrick. — Escutei Marie dizer em voz alta e
enérgica, talvez percebendo toda minha movimentação atrás dele. — Faça o
que quiser de mim.
— Ora, vejam só! Ela parou de resistir. É assim que eu gosto... —
disse ele, enquanto acariciava o queixo dela com uma das mãos e,
segurando o revólver, com a outra.
O desespero me consumia por dentro, só de imaginar as mãos
imundas de Patrick tocando o corpo dela.
Um músculo do maxilar se contraiu com o ranger de dentes, mas
tentei concentrar minha atenção no que realmente importava naquele
momento: desarmar o comparsa dele.
Não havia mais tempo a perder.
Com um pedaço de pau nas mãos, eu parti para cima do sujeito para
agredi-lo, desferindo um golpe forte nas costas, derrubando-o no chão e a
arma acabou caindo junto com ele. Quando ele fez menção de pegá-la, eu
rapidamente chutei o mais longe possível de seu alcance.
— Se eu fosse você não tentaria nenhuma gracinha — disse,
entredentes, antes de chutá-lo com força no rosto e, depois, logo abaixo do
abdômen.
Um som ligeiramente familiar cortou o ar. Eu me detive ali por
alguns instantes, escutando com atenção, a esperança já se formava no
peito, à medida que a viatura se aproximava.
— Putain! Esse desgraçado chamou a polícia — murmurou o
comparsa, ainda se contorcendo de dor no chão. — Nós precisamos fugir!
— Não vim até aqui pra desistir agora. Vou mantê-la como refém.
— Só passando por cima do meu cadáver! — Vociferei e,
imediatamente avancei na direção dele, agarrando-o pelo casaco e com um
soco certeiro no rosto, fazendo com que caísse no chão, o revólver se
soltou, tombando ao lado dele.
Fechei o punho de novo e esmurrei o queixo dele outras três vezes,
descarregando todo o ódio que sentia dentro de mim.
— Agora eu tenho a chance de acabar com você, seu desgraçado!
— rosnei, entredentes, fechando os punhos com força, até sentir dor na
junta entre os dedos.
Um instinto feroz me cegou completamente.
Não pensaria duas vezes em fazer justiça, usando as minhas próprias
mãos.
— Não vale a pena sujar suas mãos com um crápula desses, Jean. —
Parecia que ela tinha lido a minha mente. Sua voz soou grave e baixa,
expressando seu desespero.
Ele riu expondo seus dentes ensanguentados. O riso maldoso
reverberou em meus ouvidos o suficiente para provocar um calafrio ao
longo da espinha.
De repente, um movimento súbito atraiu meu olhar, e virei meu
rosto a tempo de ver o comparsa dele fugindo em disparada. Bastou desviar
minha atenção por uma fração de segundo, que inesperadamente senti um
objeto frio e metálico no meio do peito.
O som de um “click” fez meu coração bater mais forte contra os
tímpanos.
Não ousei me mexer e nem respirei direito, quando meus olhos se
fixaram nos dele, os quais eram desprovidos de qualquer humanidade.
— Você não é capaz de sujar as próprias mãos, Jean, mas eu sim.
— Patrick, me escuta! Eu faço o que você quiser, mas abaixe essa
arma — suplicou Marie, chorosa, enquanto tentava se arrastar ainda presa à
cadeira velha.
De repente, nós escutamos uma voz metálica que parecia ter saído
de um megafone em algum ponto do terreno abandonado.
— Solte os reféns, agora mesmo! Não tem como escapar.
— Agora já é tarde demais, chérie. Ele encostou o dedo no gatilho,
mas rapidamente empurrei o braço dele, mudando o trajeto do disparo.
Entrei numa disputa feroz pela posse da arma.
Marie gritava, nos pedindo para parar, enquanto nós dois rolávamos
pelo chão cheio de entulho e mato do casarão em ruínas. Continuei
segurando firme a mão dele, o cano frio ora ficou apontado para mim e ora
para Patrick. Seus olhos estavam arregalados, mas por trás da raiva cega,
havia um lampejo de medo neles, o qual não me passou despercebido.
Patrick efetuou outro disparo, e embora eu tenha tentado me desviar
novamente, senti uma sensação estranha, mais como uma ardência mesmo,
seguido por uma onda de calor invadindo meu corpo. Só quando a
adrenalina baixou, que eu percebi um filete de sangue escorrendo pela pele,
indicando que o tiro acertou meu ombro de raspão.
Nossos rostos estavam próximos, a ponto de sentir o bafo quente da
respiração se mesclando um no outro, um fio de suor rolou pela lateral do
meu rosto, enquanto lutava para impedir que o dedo dele apertasse o gatilho
de novo.
Não havia outra escolha possível, quando era a minha vida que
estava em jogo.
No meio daquela disputa ensandecida, ainda consegui ver pelo canto
do olho os policiais invadindo o casarão em ruínas. Patrick murmurou algo
ininteligível, e inesperadamente virou o cano do revólver, apontando-o
diretamente para o próprio peito.
— Solte-o agora mesmo! — Um dos agentes gritou, mas já era tarde
demais.
O estampido seco da arma de fogo me obrigou a fechar os olhos
com força.
Tomado pelo torpor paralisante, desabei pesadamente ao lado do
corpo inerte, envolto em uma poça de sangue. Não ousei me mexer, nem
sequer respirava direito, o meu corpo inteiro doía, como se tivesse levado
uma surra.
— Jean, por favor, fale comigo. — Escutei a voz dela aos prantos.
— Meu mari... o meu ex-marido precisa de um médico! — Ela se corrigiu,
depressa, ao gritar para os policiais.
— Os paramédicos já estão vindo — gritou um dos policiais.
As minhas pálpebras tremiam, a vertigem já ameaçava alterar a
consciência e, mesmo com os olhos semicerrados, consegui olhar na
direção dela, no exato instante em que um dos policiais de aproximou,
desamarrando seus pulsos e, depois, deu a volta para desamarrar os
tornozelos.
O belo rosto ainda convulsionado pelas lágrimas, empalideceu
perceptivelmente.
— Ele machucou a senhora? — perguntou ele, sondando-a com um
olhar atento.
Marie se limitou apenas a negar, com um gesto de cabeça, e uma vez
libertada, rapidamente se prostrou de joelhos ao meu lado, suas mãos
tremiam sem parar, pairando a poucos centímetros do meu ombro, talvez
indecisa se devia conferir a extensão do ferimento.
— Aguente firme, mon amour. Eu não posso te perder agora!
— Acho que não escutei direito... — Menti, descaradamente,
desejando poder ouvir de seus lábios que ainda me amava. — Quer dizer
que não me odeia mais? É isso?
— Como poderia odiar o grande amor da minha vida? Eu nunca te
odiei de verdade.
— Eu daria a minha vida por você. Jamais me perdoaria se Patrick
tivesse...
— Shh... — Ela colocou o dedo indicador nos meus lábios. — Não
diga mais nada. Todo este maldito pesadelo já acabou. O que importa agora
é garantir que você fique bem.
— Senhora, os paramédicos precisam fazer o trabalho deles agora.
— Très bien... — concordou, atordoada, quando eles a ajudaram a
se levantar.
Baixei os olhos para o corpo do ex-agente de modelos coberto por
um lençol.
Pensei que ficaria satisfeito ou pelo menos aliviado por achar que
Patrick teve o fim que merecia, mas na verdade a morte de alguém como ele
era injusta e inútil. No fundo, eu já sabia que ele nunca seria julgado pelo
que fez contra Marie-Claire e outras mulheres.
Aquele desgraçado era vaidoso demais para aceitar ser trancafiado
numa cela.
Quando olhei para ela, o meu coração palpitou num ritmo acelerado.
Senti sua mão tocar a minha, os dedos magros exerciam uma pressão suave
e reconfortante.
Marie e eu merecemos a chance de ser felizes, dando início a uma
nova vida a dois.
Capítulo 41

Jean-Luc

Saint-Rémy-de-Provence.

Meses depois...

Minha irmã caçula finalmente realizaria o grande sonho da vida


dela: Se casar.
Ela optou por uma cerimônia mais intimista em pleno verão europeu
e na época das lavandas, tendo como pano de fundo a fachada iluminada do
histórico Château de Lumière.
De início, Camille pretendia celebrar a ocasião em dose dupla,
subindo ao altar lado a lado com Marie-Claire, mas esta última se recusou a
tirar o protagonismo da cunhada. Aliás, eu admirava muito esse
desprendimento e sua vontade de compartilhar comigo um momento tão
aguardado, mas ela merecia ter um dia só dela.
Marie e eu vivemos juntos durante cinco anos, e mesmo após o
divórcio conturbado, nós não conseguimos nos desvincular totalmente,
porque no fundo sabíamos que a nossa história estava mal resolvida.
Parei diante do espelho de corpo inteiro, para colocar as abotoaduras
nos punhos da camisa, a gravata ainda pendia solta em torno do pescoço, e
o paletó estava pendurado nas costas de uma poltrona.
Senti que alguém se aproximava, mas ao me virar notei que era
Marie-Claire.
A mera visão dela usando um vestido longo e sem alças em tom
rosado, combinado a uma capa removível, sua saia com pregas assimétricas
se ajustavam ao corpo curvilíneo, revelando a fenda na altura da coxa que
se estendia em uma cauda arrebatadora, foi suficiente para o meu pau
enrijecer, pressionando dolorosamente a cueca.
Ela caminhou cautelosamente em minha direção, na ponta dos pés
descalços, enquanto segurava um par de sandálias de salto alto.
— Para vir sorrateira assim pra cima de mim... aposto que precisa da
minha ajuda.
— Como adivinhou? — perguntou, sua voz revelando fingida
inocência. — Preciso que me ajude a afivelar as tiras da sandália... —
completou, com um sorriso maroto nos lábios volumosos. Depois, me
puxou pela gola da camisa e tomou a minha boca em um beijo rápido.
Pude sentir a umidade de sua língua, tão quente e convidativa, que
eu não resisti e grunhi de prazer, puxando provocativamente o lábio inferior
dela com os dentes.
— Senta logo aí, sua manhosa — ordenei, deslizando uma das mãos
pelas costas dela, e depois desferi um tapa forte em sua bunda, arrancando
um arquejo de dor nela.
— Doeu, sabia? — rebateu, batendo com o punho de leve em meu
peito.
Eu me agachei na frente dela, apoiando o pé macio em meu joelho e
beijei lenta e prazerosamente cada um dos dedos longos, antes de encaixar a
sandália, ajustando a fivela. Fiz o mesmo com o pé esquerdo, e quando
estava prestes a apoiá-lo no chão, Marie afastou as longas pernas,
proporcionando uma visão tentadora da região íntima recém depilada.
As dobras rosadas e inchadas de sua boceta se abriam como pétalas
em flor.
— Esqueci de vestir a calcinha, amour. — Aquela era uma mentira
deslavada.
Havia um brilho desafiador e pervertido nos olhos dela, o que
provocou uma onda deliciosa de calor por todo o meu corpo.
— Você quer mesmo me provocar? — Perguntei. A voz saiu
dolorosamente rouca.
Comecei a engatinhar na direção dela como um cão sedento por
água, mas soltei um gemido frustrado, ao sentir a sola de sua sandália de
salto fino batendo forte contra meu rosto.
— Veja como ela está molhada... — murmurou, enquanto iniciava
uma carícia nos grandes e pequenos lábios, estimulando mais a lubrificação
natural que já encharcava os dedos.
Observar o menor dos gestos dela só fez o sangue correr direto para
o meu pau.
Soltei uma risada breve, que era quase um rosnado.
Já estava chegando ao meu limite.
— Não se deve negar água a quem tem sede. — Eu protestei,
respirando bem fundo, o coração começou a bater alto contra os tímpanos.
— Você não fez ainda o que eu te pedi, mon chéri — Ela me olhou
tão solenemente que eu tentei vasculhar minha memória à procura de algo
que pudesse ter feito de errado. — Marcar reuniões com os diretores das
escolas especializadas em superdotação.
Mal contive um suspiro de alívio.
— Eu posso ligar para Babette, mas ela vai dizer que minha agenda
está cheia de reuniões importantes.
— Coloque a sua família à frente de sua agenda. Entendeu? —
exigiu, com aquele tom autoritário que me deixava louco de raiva e de
tesão, tudo ao mesmo tempo.
Ela descobriu um novo prazer: Me submeter às suas vontades como
meio de controle.
Eu sempre fui muito dominante nos negócios e na vida sexual
também, mas inverter os papeis de vez em quando tinha lá suas vantagens.
— Se tirar o seu lindo pezinho do meu rosto... — Seus pés deixaram
meu rosto, mas foi direto contra o peito, pressionando-o até arrancar um
gemido rouco dos meus lábios.
— Vou aprontar uma para você, chéri, me aguarde.
Procurei na lista de contatos o número da minha secretária, e
felizmente ela atendeu a chamada já no terceiro toque.
— Bonjour, Jean. Em que posso ser útil?
— Salut, Babette! — Saudei, ainda prostrado de joelhos e tentando
não olhar muito para as dobras protuberantes da boceta exposta da minha
mulher.
— Estou te ouvindo... — A voz apreensiva dela me tirou do
devaneio erótico.
— Então, eu preciso que remaneje os horários das reuniões menos
importantes, e entre em contato com a direção de algumas escolas. Eu
mesmo vou visitar cada uma delas.
— Eu posso ser útil em algo mais?
— Por enquanto não. Merci, Babette. — Encerrei rapidamente a
chamada e enfiei o aparelho de volta no bolso da calça social.
Meus olhos se voltaram para Marie, com as mãos apoiadas na
cintura e o peito estufado. O canto de sua boca carnuda se curvou
discretamente, esboçando um sorriso triunfante.
Passei a língua pelos lábios, embora minha boca já salivasse de
antecipação.
— E agora? Está satisfeita? — Soltei um pigarro seco, ao me dar
conta de que falei num tom rouco, quase emocionado.
— Oui, mon amour... Agora, vem saciar minha vontade de gozar em
sua boca.
Marie abriu mais as pernas, deixando sua boceta completamente à
minha disposição.
Escutei um gemido alto, conforme traçava um caminho pela parte
interna da coxa, os meus lábios beijavam devagar cada centímetro de pele
até alcançar a virilha, mas resisti ao impulso de cair de boca naquela boceta
gostosa logo de cara.
Os meus dedos resvalaram por entre as dobras inchadas e molhadas,
iniciando uma carícia lenta e, só depois aumentei a fricção no clitóris
inchado e sensível.
— Nem imagina o quanto sua boceta está encharcada. — Enfiei os
dedos indicador e médio, que escorregaram pelo interior quente e úmido,
penetrando-a freneticamente. O meu pau àquela altura já insuportavelmente
duro, ansiava poder trocar de lugar com eles.
— Me chupa logo, Jean — A voz dela saiu fraca, quase um sussurro
débil. — Está me torturando... — Quase choramingou, ao cravar as unhas
com força em meus ombros.
— Quem mandou me provocar? Agora vai ter o que merece. —
Meus dedos socavam a boceta gulosa, estimulando sua lubrificação, os sons
vaginais cortavam o ar, rivalizando com os gemidos dela.
Quando finalmente mergulhei o rosto entre as pernas, capturei com
minha boca sedenta os grandes e os pequenos lábios, chupando-os com
vontade, a lubrificação natural aumentava à medida que minha língua
exigente pincelava a boceta, sugando até a última gota. Senti Marie contrair
as pernas contra meu rosto, os músculos estremeciam involuntariamente.
Aquele cheiro dela ainda me levaria à loucura, à medida que
respirava fundo e pesadamente contra sua boceta.
— Oh, Jean... — ofegou, com a voz estrangulada de desejo. Àquela
altura, eu notei os primeiros espasmos sacudirem o corpo dela, seguido de
um grito, indicando claramente o prenúncio de um orgasmo.
Senti um puxão no cabelo, até pensei que Marie arrancaria alguns
fios dele, enquanto jogava a cabeça para trás, liberando um gemido
estrangulado bem no fundo da garganta. Meus braços envolviam com
firmeza as pernas bem torneadas e trêmulas dela, impedindo-a de escapar.
Eu ergui meu corpo ao encontro do dela, envolvendo-a em um
abraço apertado, e esperei até sua respiração se normalizar.
— Quando entrou aqui, com a carinha mais inocente do mundo,
sabia que estava louca pra gozar na minha cara.
— Agora é a minha vez de te satisfazer — sussurrou junto ao meu
ouvido, se arqueando contra a solidez do meu corpo, o calor de sua pele
gerou uma sensação reconfortante no peito. — Quero te fazer gozar bem
gostoso. — Sua voz parecia o ronronar de uma gata no cio.
Uma vez de pé, eu puxei as pernas dela, mantendo-as elevadas a 90º
e usando os meus ombros como apoio, pois já não sentia mais dor naquela
região. O ferimento causado pelo projetil que passou de raspão durante o
confronto com Patrick cicatrizou bem ao longo dos meses.
Um fio de suor escorreu pela lateral do meu rosto, assim que eu
apontei a glande na vagina quente e úmida, introduzindo nela aos poucos,
embora as paredes internas oferecessem certa resistência, se contraindo em
torno do meu pau, quase o esmagando involuntariamente.
— Me fode mais fundo... mais rápido! — Exigiu, mantendo as mãos
agarradas ao encosto da poltrona, enquanto os seios, que ameaçavam saltar
para fora do decote, chacoalhavam violentamente.
Não demorou muito para sentir a boceta se contrair e relaxar, os
gemidos logo deram lugar aos gritos, enquanto minhas bolas batiam contra
a pelve dela a cada estocada firme e profunda, mas gradualmente diminui o
ritmo, incapaz de retardar a ejaculação.
A sensação que eu tinha era de que nós estávamos prestes a nos
fundir um no outro.
— Oh, Jean... — Ela conseguiu dizer entre gemidos roucos,
tremendo com a força avassaladora de seu orgasmo.
Um rosnado gutural escapou da garganta, quando meu pau tocou o
colo do útero, e estremeci completamente em êxtase, o meu esperma jorrou
dentro dela em jatos quentes e longos, ampliando aquela sensação
indescritível de completude e de realização plena.
Nós permanecemos em silêncio e abraçados, ambos suados e
ofegantes.
— Merde! Eu deixei seu vestido todo amarrotado, amour.
— E você vai ter que trocar de camisa. — Ela roçou sua boca em
minha orelha, provocando um arrepio ao longa da espinha. — Por que essa
daí já está encharcada de suor.
Nós dois nos entreolhamos com uma expressão que dizia: Estamos
muito fodidos. Então, explodimos numa gargalhada gostosa.

Minutos mais tarde, Marie e eu assumimos nossa posição ao lado do


celebrante.
Lancei um longo olhar na direção do noivo e ele parecia rígido e
estranhamente sério. Aquele comportamento não combinava em nada com a
personalidade brincalhona e atrevida dele, mas talvez fosse o nervosismo
não apenas pela cerimônia em si, mas também pela espera da noiva.
E por falar nela, Camille finalmente apareceu e caminhou de braço
dado com nosso pai, ao som de uma orquestra tocando a marcha nupcial,
enquanto distribuía sorrisos discretos aos numerosos convidados presentes
na cerimônia.
Ela estava radiante em seu vestido branco de noiva, todo bordado de
renda ao longo do comprimento, a saia bem ajustada ao corpo, se abria até
culminar na cauda estilo sereia.
Tudo parecia conspirar a favor daquele momento tão especial, mas
nem bem o celebrante começou a conduzir os noivos nos votos
matrimoniais, aconteceu algo inimaginável.
— Família e amigos, agradeço pela presença nesta maravilhosa
ocasião. Hoje estamos aqui, juntos, para unir Camille Saint Vincent Laurent
e Pierre Bourdieu, em casamento.
Então, o celebrante olhou atentamente para o noivo, antes de fazer a
pergunta mais aguardada por todos:
— Pierre Bourdieu, você aceita Camille Saint Vincent Laurent como
sua companheira em matrimônio?
O noivo pareceu hesitar por alguns instantes, e inesperadamente
balançou a cabeça em negativa.
— Eu não aceito. — As palavras dele saíram duras e rápidas, num
tom indiferente.
O semblante de minha irmã mudou, perceptivelmente, passando da
confusão para a curiosidade e depois para o assombro, conforme encarava
ora para o noivo ora para o celebrante.
Àquela altura, a situação pavorosa ganhou proporções ainda
maiores, quando os cochichos e dúvidas se transformaram em um enorme
burburinho entre os convidados.
Inclinei o meu corpo e encostei os lábios no ouvido de Marie-Claire,
o hálito quente batendo contra a orelha provocou um leve, mas perceptível
estremecimento nela.
— Quem ele pensa que é para agir dessa maneira? Abandonar a
minha irmã no altar?
— Calma, Jean... Ele vai ter que se explicar. Deve haver alguma
explicação.
— Não acredito no que acabei de ouvir! — Bufei, visivelmente
indignado.
Como ela pode me pedir calma numa hora dessas?
— Mas o que deu em você, Pierre? — perguntou o pai dele,
cruzando os braços sobre o peito.
— Como ousa rejeitar a minha filha no altar? — Meu pai fez
menção de avançar na direção do infeliz, mas Cédric o impediu
rapidamente, ao segurá-lo firme pelo braço.
Camille estreitou o olhar na direção de Pierre, piscando, confusa,
como se custasse a acreditar que seu futuro marido foi mesmo capaz de
dizer “não” no altar.
— O que está acontecendo, Pierre? — A voz dela saiu pouco mais
que um sussurro.
— Sinto muito, chéri... — murmurou ele, ao se posicionar diante
dela e tomar as mãos trêmulas nas suas, com delicadeza. — Mas não quero
me casar tão cedo, sou muito novo, entende?
As lágrimas ameaçavam rolar pelo belo rosto, mas Camille piscou
com força, enquanto torcia o canto da boca em um sorriso irônico que
parecia dizer: Quer saber? Foda-se.
— E você só se deu conta disso agora, ou achou conveniente me
expor ao ridículo? — Ele fez menção de responder, mas minha irmã o
impediu, ao erguer o dedo indicador, pensativa. — Não quero ouvir aquele
papo de “você merece alguém melhor”. Acabou para mim também, Pierre.
— E dizendo isso, ela lhe deu as costas e se posicionou diante das pessoas
presentes na cerimônia. — Preciso de um minuto da atenção de todos, por
favor. — Camille voltou a falar, em alto e bom som. — Como não haverá
mais casamento, os convidados do noivo podem se retirar, agora mesmo.
Seguiu-se um burburinho geral, mas os familiares e amigos do noivo
se levantaram ao mesmo tempo de suas cadeiras e, saíram da área externa
decorada em tons de brancos e dourado envelhecido, dando um toque de
sofisticação em meio à vegetação exuberante.
Quando enfim só restaram nossos parentes e amigos mais próximos,
ela continuou:
— Eu não quero tornar este evento um enterro. — O tom de voz
dela me surpreendeu, sobremaneira. Camille revelou uma faceta espirituosa
e, aparentemente, descontraída. — Ninguém morreu aqui hoje, então vamos
celebrar a união de um casal que se separou por uma circunstância infeliz,
mas que agora pode finalmente recomeçar. Marie-Claire e Jean-Luc.
Ela nos encarou de soslaio, então jogou a cabeça para trás e riu de
forma contagiante.
— Vamos esquecer o que se passou antes, ok? Porque eu escolhi
seguir em frente. O slogan da L’Beauté Paris e também meu lema de vida
diz o seguinte: "Você nasceu para brilhar". — Camille agitou seu ramo de
flores silvestres no ar, alegremente. — Celebremos, então, pessoal! — Ela
encerrou seu discurso sob muitos aplausos.
Minha irmã fez inúmeras coisas que se tornaram notícia nos
principais jornais do país, mas um grande gesto de desprendimento
superava todos os outros, sem sombra de dúvida.
— Camille é a pessoa mais autêntica e altruísta que eu já conheci —
comentou Marie, ao enxugar as lágrimas discretamente com um lenço de
seda.
Com um suspiro contrafeito, enfiei as mãos nos bolsos da calça
social, pensativo.
— Celebrar nosso casamento nessas circunstâncias... Isso não faz o
menor sentido.
— Sim, vocês ouviram bem! — disse uma voz feminina bastante
familiar. Minha irmã estava parada atrás de mim, com as mãos apoiadas na
cintura. — Este é o momento ideal para repetirem os votos que fizeram
anos atrás. Aproveitem, mes amours, a festa agora é de vocês.
— Tem certeza de que é isso mesmo que quer, Mille?
— Vocês têm a missão de salvar este dia pavoroso! E não aceito
recusas, Jean.
— Lamento muito que tenha passado por tudo isso... — murmurou
Marie, baixando os olhos, constrangida.
Camille se inclinou na direção dela, como se quisesse fazer uma
confidência:
— Para falar a verdade, eu nem gostava tanto assim dele. — Então
deu de ombros.
— Mas você acha que este vestido combina com a cerimônia? — A
testa de Marie se franziu levemente, enquanto inspecionava a própria roupa,
parecendo indecisa.
— Você sempre arrasa, não importa o look, Marie. Agora assumam
os seus lugares! — Ela estava prestes a se afastar, mas, subitamente se
deteve e se virou, com um sorriso enigmático nos lábios. — Tem uma
pessoinha que vai adorar levar as alianças de vocês...
Camille acenou um tchauzinho para Marie e eu, enquanto andava
em direção ao altar.
— Minha cunhada é mesmo uma caixinha de surpresas.
— É por isso que eu a amo tanto... — Observei minha irmã se
afastar, depois voltei minha atenção para Marie. Não resisti e tomei o rosto
da minha mulher entre as mãos, e me inclinei para a frente, selando nossos
lábios em um profundo e urgente beijo. — Agora que nós estamos prestes a
nos casar de novo, será que já posso te chamar de minha esposa?
— Mas você sabe que eu sempre fui sua, e que você sempre foi
meu... — murmurou, ao passar os dedos sobre meu rosto, suas longas unhas
provocavam um sutil estremecimento pelo meu corpo, conforme traçavam
um caminho por toda a extensão da barba. Então, sussurrou a letra da nossa
canção favorita. — Je t'aime, je t'aime (Eu te amo, eu te amo). Oh, oui je
t'aime (Oh, sim eu te amo).
— Moi non plus. — Sussurrei de volta o trecho seguinte: “Não mais
que eu”.
Nós dois sustentamos o olhar um do outro, em mútua cumplicidade.
Minutos depois, Jacques me entregou sua adorável filha, após selar
um beijo afetuoso na testa dela. Então, Marie e eu ficamos diante do
celebrante que deu início à nova cerimônia.
— Família e amigos, obrigado a todos e todas pela presença nesta
maravilhosa ocasião. Hoje estamos aqui, para unir mais uma vez o casal
Jean-Luc Saint Vincent Laurent e Marie-Claire Bernard Leblanc, em
casamento. — Então fez uma pausa, voltando sua atenção para mim. —
Jean-Luc Saint Vincent Laurent, você aceita Marie-Claire Bernard Leblanc
como sua companheira em matrimônio?
— Mas é claro que sim! — respondi, com um largo sorriso no rosto.
— Marie-Claire Bernard Leblanc, você aceita Jean-Luc Saint
Vincent Laurent como seu companheiro em matrimônio?
— Sim, eu aceito — respondeu ela, em alto e bom som.
— Ao longo desta cerimônia, os noivos formalizaram a existência
do vínculo com palavras, e escolheram as alianças como um símbolo de
amor. Ao olharem para elas, lembrem-se do compromisso selado em
compartilhar suas vidas deste dia em diante enquanto viverem.
O celebrante fez um gesto, indicando o momento mais aguardado
por todos: a troca das alianças. A emoção tomou conta de mim e meus
olhos se encheram de lágrimas, ao ver Benjamin se aproximando do altar,
carregando uma pequena almofada ornamentada, com o mesmo par de
alianças que Marie e eu usamos ao longo de cinco anos de união.
Todos os convidados se levantaram de suas cadeiras e aplaudiram
com entusiasmo.
— Sabia que sou muito sortudo, papa? — disse meu pequeno gênio,
assim que parou diante de mim e estendeu as alianças. — Meus amiguinhos
não viram seus pais casarem.
— Fico feliz por você pensar assim, Ben. — Eu carreguei meu
menino no colo e baguncei seus cabelos sedosos, antes de colocá-lo de volta
no chão. — Aliás foi você quem tornou tudo isso possível. É nosso cupido
número um! — Ele logo desatou a rir do meu comentário, revelando as
covinhas no rosto.
Minha mulher sorriu com a mão na boca, depois se agachou e deu
um beijo estalado na bochecha dele.
— Meu coração se enche de orgulho, mon génie. Obrigada por não
ter desistido de mim e do seu pai.
Aquela declaração me emocionou sobremaneira. Me veio à memória
um comentário feito por ela meses antes, quando me contou que sentiu
medo de reatar comigo porque achava que nossa relação não daria certo e
também não queria frustrar nosso filho.
Quando eu finalmente coloquei a aliança de volta no espaço entre os
dedos, senti a mão dela estremecer sutilmente sob meu toque carinhoso.
Uma emoção indescritível me dominou, a ponto de os meus olhos
ficarem marejados.
— Marie-Claire, eu prometo o meu amor agora e para sempre.
— Jean-Luc, eu prometo o meu amor agora e para sempre — Ela
repetiu o discurso, enquanto colocava a aliança em meu dedo, com a mão
trêmula.
Uma vez finalizado o rito do matrimônio, eu me adiantei até Marie e
segurei o rosto dela entre as mãos, passando o polegar pelas lágrimas
sorrateiras que teimavam em descer pelo belo rosto.
— Enfim, casados novamente! — Então dei um beijo afetuoso, mas
não menos ardente, nos lábios dela.
Olhei para o lado e vi Benjamin correndo em nossa direção todo
sorridente. Marie ergueu nosso filho nos braços, e passou as pernas dele ao
redor de sua cintura, com firmeza.
— Parece que foi ontem que nós voltamos a ser uma família.
— Será que eu estou vivendo um sonho, maman? Se for eu nem
quero mais acordar!
Mas não, aquilo não era um sonho, era bem real porque Marie e eu
decidimos recomeçar a relação de coração aberto, e dispostos a perdoar e
deixar tudo o que passou pra trás.
Epílogo

Marie-Claire

3 meses depois...

O sétimo dia da semana de moda de Paris foi escolhido para marcar


minha despedida oficial das passarelas.
Eu estaria mentindo se dissesse que não sentiria falta da rotina
agitada, mas as prioridades mudaram ao longo de mais de treze anos de
carreira. E apesar dos desafios enfrentados, e das situações ruins que passei,
eu só conseguia sentir gratidão pelas conquistas alcançadas.
Aquela menina cheia de sonhos deus lugar a uma mulher mais
madura e independente. Ela aprendeu a não tolerar o desrespeito, a cuidar
da mente, do corpo e das emoções, a lutar por melhores condições de
trabalho, a valorizar o tempo em família e, por último, mas não menos
importante: a perdoar, se reconciliando com seu passado.
À medida que adentrava o Palais de Tokyo, eu cumprimentava cada
uma das pessoas conhecidas com um aceno de cabeça. Foi reconfortante
rever colegas e profissionais queridos. No fundo, eu adorava aquele vai e
vem frenético dos bastidores, onde um exército de pessoas trabalhava
freneticamente, para garantir que a apresentação das coleções fosse um
sucesso.
Era praticamente impossível caminhar pelos corredores sem esbarrar
em alguém.
Bastou eu me sentar à penteadeira equipada com espelho, para
alguns profissionais da beleza se revezarem diante de mim, munidos com
seus produtos e acessórios, garantindo que a minha aparência final estivesse
de acordo com o look apresentado pelo estilista.
— Desculpem o atraso, pessoal. Hoje eu acordei me sentindo muito
mal...
— Muito enjoo? — perguntou o maquiador. Eu apenas confirmei
com um gesto de cabeça. Ele e os demais profissionais trocaram olhares
cúmplices. Quando ele voltou a falar, parecia repentinamente sério. — Você
não é mais uma novata nas passarelas, para ficar nervosa antes de um show,
então esse seu enjoo tem tudo para ser outra coisa...
— Mas hoje não é um dia qualquer, Louis. Marie está se despedindo
das passarelas.
— Eu também acho que ela está grávida — comentou outro
profissional, com um leve levantar de sobrancelhas.
— Será que isso é possível? — murmurei, encarando meu próprio
reflexo no espelho, o penteado escolhido era um coque estilo anos 1920,
com ondas bem marcadas no topo da cabeça.
Tive a sorte de conceber Benjamin anos atrás, mas não sei se
conseguiria levar uma segunda gestação adiante.
Ouvi de médicos que tinha ficado infértil por causa da anorexia no
passado, mas o meu corpo se recuperou e menstruei novamente, embora
outras colegas que passaram por isso não tiveram a mesma sorte.
Considerava um milagre que meu corpo tenha voltado ao normal.
De repente, um assistente se aproximou, timidamente, trazendo nas
mãos um belíssimo buquê de flores, e informou que era para mim. Agradeci
a ele, mal contendo a ansiedade de ler o que estava escrito no cartão
dobrado.

Mon Amour,
Esteja atenta aos sinais de uma possível gravidez :

Pequena saliência na barriga ✓


Seios um pouco maiores e aréolas mais escuras ✓
Aversão a cheiros fortes ✓
Enjoo matinal ✓
Isso só para citar alguns que observei.

OBS: Deixei a caixinha do teste de gravidez dentro do buquê.

Todos os profissionais dos bastidores olharam para mim, cheios de


expectativa.
— Vocês não foram os únicos a suspeitar que estou grávida... —
Quebrei finalmente o silêncio, ao balançar a caixa com o teste de farmácia,
com um sorrisinho maroto nos lábios marcados por um batom preto.
— Se o seu marido desconfia, as chances aumentam para 99,9%.
— O banheiro fica logo ali... — O hairstylist apontou na direção
oposta, enquanto segurava uma escova de cabelo na mão. — Então se
apresse, chérie, porque todo mundo aqui quer matar a curiosidade.
Encorajada pelos profissionais do desfile, eu andei depressa até o
banheiro feminino mais próximo. As minhas mãos tremiam, ao girar a trava
da fechadura da única cabine vazia.
Levou uns cinco minutos até que eu sentisse vontade de fazer xixi,
talvez devido à ansiedade em poder conferir o resultado antes de realizar o
exame laboratorial.
Aguardei o resultado com o coração batendo descompassado dentro
do peito. Eu nem conseguia pensar na hipótese de engravidar novamente até
pouco tempo atrás. Também não fazia ideia de como meu filho reagiria com
a notícia de uma provável gravidez.
Quando eu peguei a caneta do teste para conferir o visor digital, os
meus olhos imediatamente se fixaram na palavra: “Grávida”.
Coloquei uma das mãos sobre a barriga em um gesto involuntário,
sentindo os olhos se encherem de lágrimas, e sorri internamente, com o
coração transbordando de emoção.
Contrariando todos os prognósticos médicos, estou mesmo
esperando mais um filho.
Queria tanto poder contar a Benjamin que ele vai ganhar um
irmãozinho ou uma irmãzinha, mas precisava cumprir primeiro com meu
dever de entrar na passarela para mostrar a coleção outono-inverno da
maison Valentino. O designer priorizou a cor preta no desfile, mas com
muitas texturas e detalhes em rosetas, babados, bordados e rendas.
Uma vez de volta ao camarim, eu ergui meu braço, balançando
alegremente o bastão.
— Estou grávida! — Anunciei, em alto de bom som. — Isso não é
maravilhoso?
Eu logo fui rodeada por modelos, cabeleireiros, maquiadores,
assistentes, coordenadores, e tantos outros profissionais, que me abraçaram,
desejando felicidades e boa sorte.
Havia diversas araras com roupas da coleção penduradas em cabides
espalhados pela sala. Duas fileiras de saltos altos, modelo plataforma,
estavam alinhadas nas prateleiras, para serem combinadas com roupas
específicas. Um grande quadro de avisos estava afixado com fotos das
modelos, pela ordem de apresentação. A minha aparecia em primeiro,
usando um vestido de noite preto sem mangas, com uma fenda generosa e
decote gigantesco até o umbigo.
Após uma rápida troca de roupa, eu me juntei a dezenas de outras
modelos, que também aguardavam ansiosamente o início do show. Mas
primeiro, eu posei para os fotógrafos no backdrop, enquanto assistentes
circulavam pelo local, gritando pedidos naquele frenesi caótico de sempre.
— Allez, meninas! Assumam suas posições — ordenou o produtor,
de repente.
Soltei o ar que estava preso em meu peito, e assumi meu lugar na
fila, o primeiro.
— Vai lá e arrase, chérie! — Então deu um passo para o lado,
liberando a passagem.
Eu finalmente adentrei o espaço ricamente iluminado, enquanto
tocavam músicas de Sade ao fundo, e caminhei pela passarela, com
passadas largas e ritmadas, sempre um pé na frente do outro, e o olhar fixo
em algum ponto adiante. Meus ombros estavam voltados ligeiramente para
trás e o queixo levemente abaixado, irradiando uma confiança quase
magnética.
Algumas pessoas apontavam as câmeras de seus celulares em minha
direção, mas continuei atravessando o longo corredor, com outras modelos
me seguindo a certa distância, quando inesperadamente um rosto familiar
apareceu no meu campo de visão.
O meu coração palpitou, assim que meus olhos focaram no homem
alto e atraente.
Mas para minha surpresa Jean-Luc não estava sozinho.
Benjamin também ocupava a tão cobiçada primeira fileira, ao lado
do pai e de uma renomada jornalista de moda. A editora chefe da Vogue fez
questão de estar presente na minha despedida das passarelas. Impossível
não notar entre os convidados a lendária e elegante mulher.
Passado o susto inicial, eu respirei bem fundo para relaxar e manter
a naturalidade, no caminho de volta ao backstage. Mas com a proximidade
do encerramento do desfile, eu voltei para o salão vestindo um último look,
acompanhada por quem assinava a coleção da marca, além das minhas
colegas de profissão.
Jean me avaliou de cima a baixo de novo, os olhos castanhos
cintilavam em um misto de admiração e fúria ardente. Senti o calo subir,
atingindo em cheio o meu rosto, quando acompanhei o movimento dos
lábios carnudos dizendo a seguinte frase: “sua gostosa”.
Meu marido sabia como atiçar o meu desejo apenas com o olhar, e
imediatamente o ponto sensível entre as pernas se contraiu em pulsações
dolorosas, curtas e rápidas.
Fiz um esforço sobre-humano para aparentar uma naturalidade que
estava longe de sentir, mas reconhecer o brilho de satisfação e orgulho
despontando dos olhos castanhos de Benjamin fez o meu peito transbordar
de alegria. Por pouco, não consegui conter as lágrimas.
A minha última caminhada pela passarela teve direito a acenos para
o público, que se levantou de seus lugares para uma calorosa salva de
palmas.
Benjamin correu ao meu encontro, e prontamente me abaixei com os
braços estendidos, para envolvê-lo num forte abraço.
— Tu es magnifique, maman! — murmurou orgulhoso, ao estufar o
peito.
— Merci, mon petit génie. — Comecei a chorar, enquanto cobria os
rostos deles de beijos estalados.
— Será que eu também vou ganhar tantos beijos assim? — Suspendi
a respiração por uma fração de segundo, quando reconheci a voz marcante
do meu marido.
Uma vez de pé, fiz um sinal em forma de coração com as mãos na
altura do abdome.
O olhar dele recaiu sobre minha barriga parcialmente à mostra
graças à transparência sutil da renda.
— Está esperando mais um filho meu, mon amour?
— A maman está grávida, papa? — perguntou Benjamin na maior
empolgação.
— Você terá um irmãozinho ou irmãzinha muito em breve. Isso não
é incrível?
— Estou tão feliz, maman!
Jean ergueu nosso filho no colo, ostentando um sorriso bobo nos
lábios, e mesmo com o braço ocupado, ele ainda conseguiu capturar meus
lábios em um longo e profundo beijo.
— Você tem recebido muitas homenagens hoje, mas foi um ser tão
pequeno, que está sendo gerado em seu ventre, quem realmente te deu o
maior presente...
— Você tem toda razão, amor. — Segurei o rosto dele entre as mãos,
louca de vontade de tascar outro beijo naqueles lábios grossos.
Em pensar que foi justamente um vestido da maison Valentino que
selou o meu destino para sempre.
As meninas do Liceu tinham condições de sair das lojas com as
mãos cheias de sacolas, e quanto a mim, eu só fazia acompanhá-las com
algum pretexto pronto na ponta da língua para justificar não comprar nada.
Mas naquele dia, em específico, eu não deixei a Galeries Lafayette de mãos
vazias.
Assinei um contrato com uma das maiores agências de modelos do
país.
E o resto era história.
Uma história marcada por dores, sofrimento e angústia, mas também
por conquistas, alegrias e muito amor. Um amor que transbordava, curando
todas as minhas feridas emocionais.

FIM!

Não se esqueça de atribuir uma nota de sua preferência, mas se


possível, também escreva uma opinião sincera sobre o livro.
Gratidão!
Sobre a autora

M. R. Barbosa é o pseudônimo utilizado por Mariana Ribeiro, que


escreve desde a adolescência, quando criava histórias de próprio punho em
cadernos pequenos, e inspirada em romances de banca. Não sabe ainda ao
certo de onde vem a sua inspiração, mas as ideias costumam surgir em sua
mente quando ela menos espera em um insight rápido e tem a absoluta
convicção de que escrever é a sua missão de alma.
Ela já possui dois livros de ficção histórica, lançados de forma
independente na Amazon, mas usando o nome Mariana Ribeiro. Confinada
com o Chefe marcou a sua estreia em Ficção Contemporânea/Hot.
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futuros leitores. Obrigada!
[1]
“Minha querida”.
[2]
Uma espécie de pãozinho feito com massa folhada e recheio de chocolate.
[3]
Tradução: “Amor Sempre.”
[4]
Traduzindo para o português: "Traga a conta, por favor!"
[5]
Clássico da confeitaria francesa, popularmente conhecido como “bomba”, no Brasil.
[6]
Traduzindo para o português: "Traga a conta, por favor!"
[7]
Uma expressão muito utilizada pelos franceses, para designar alguém que se apaixona muito
facilmente, e que no sentido literal significa: “coração de alcachofra”.
[8]
Traduzindo para o português: “O Dia D”.
[9]
Traduzindo para o português: Eu amo vocês.
[10]
Paris Saint-Germain Football Club.
[11]
Protagonista do livro com previsão de lançamento: Dez/2024.
[12]
Tradução: “Escovo, escovo, escovo. Escovo, escovo, escovo. Eu escovo meus dentes”.
[13]
Tradução: “Escovo, escovo, escovo. Escovo, escovo, escovo. Eu os escovo com frequência.”.
[14]
Tradução: Meu pequenino.
[15]
Tradução literal: “Eu te amo, eu te amo, oh sim, eu te amo.”

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