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Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos, são produtos de
imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
Ilustrações: Lívia @halcyon.artes (casal no campo de lavanda), Aline @heeylline (casal diante da
torre de champanhe), Taíssa @taizinhaart (casal no British Fashion Awards, e casal em cena íntima
+18)
Revisão: M. R. Barbosa
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer
meios — tangível ou intangível — sem o consentimento escrito da autora. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido pela lei nº. 9.610./98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sinopse
Nota da Autora
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Parte 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Parte 2
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Epílogo
Sobre a autora
Outras obras
Contato
Sinopse
Para ouvir a playlist de “Meu Querido Ex-Marido” no Spotify, abra o app no seu celular, selecione
buscar, clique na câmera e posicione sobre o code abaixo.
Marie-Claire
Dias atuais...
Marie-Claire
Dias atuais...
Marie-Claire
Paris, França.
Marie-Claire
Marie-Claire
Meses depois...
Dividir uma moradia com mais cinco meninas, cujos nomes e rostos
mudavam o tempo todo, conforme modelos entravam e saiam da cidade,
não era nada fácil. Eu nem mesmo fiquei surpresa quando, poucos dias
depois, ao voltar do trabalho, encontrei um desastre completo, tanto na
cozinha quanto no quarto compartilhado: Havia louças sujas na pia, restos
de comida no balcão, roupas por toda parte, itens de maquiagem e perfumes
deixados sobre a mesa, além de roupas íntimas e meias sujas jogadas num
canto, que ainda por cima exalavam um odor insuportável.
Elas certamente estavam em algum lugar se divertindo, porque
costumavam ir à balada nos finais de semana.
Ergui o rosto para o teto, soltando um profundo e irritado suspiro,
antes de iniciar a limpeza. Lavei os pratos, arrumei a cozinha, recolhi o lixo,
levando até o final do corredor para depositá-lo no latão. Depois foi a vez
de limpar os móveis e passar o aspirador de pó no chão da sala de estar, e
por fim, tentei diminuir a bagunça do quarto, tirando aquele amontoado de
roupas sujas e as coloquei na máquina de lavar.
Vinte minutos mais tarde, eu já estava de banho tomado e voltei para
a cozinha. Peguei alguns itens na geladeira para fazer um lanche rápido,
pois acordaria bem cedo na manhã seguinte.
Quase dei um pulo de susto, quando a campainha tocou, mas eu
corri para atender, pois já aconteceu de uma ou outra colega se esquecer de
levar a chave consigo. Porém, eu me surpreendi ao ver Patrick, e
imediatamente tentei impedi-lo de entrar, mas ele colocou o pé na porta,
forçando a abertura dela.
— Os seus pais não te ensinaram boas maneiras, chérie?
— Não esperava a sua visita, e muito menos a esta hora. — Cruzei
os braços de forma protetora sobre o peito, enquanto me afastava para lhe
dar passagem. — Além disso, eu já estava me preparando para dormir...
Meu agente deu uma boa olhada ao redor, talvez para se certificar de
que não havia mais ninguém no apartamento.
— Prometo que não vou demorar. — Ele se limitou a dizer, e passou
a esfregar os lábios um no outro, como que para umedecê-los. — Farei a
inspeção de rotina como das outras vezes.
Os olhos escuros dele brilhavam, à medida que passeavam
vagarosamente pelo meu corpo, e me arrependi por ter usado uma camisola
de cetim tão fina que era quase transparente. Os meus cabelos estavam
presos em um coque bagunçado e frouxo, sem contar que ainda tinha o
costume de andar descalça pela casa.
Desviei o olhar de forma abrupta, os pelos do corpo se arrepiaram
tomada por uma sensação repugnante, que vinha bem do fundo da garganta.
— Ótimo! — Fui incapaz de ocultar um tom de irritação na voz. —
Amanhã vou acordar bem cedo.
Patrick saiu abrindo gavetas e armários, procedendo em uma busca
minuciosa por itens proibidos no contrato, como guloseimas, bebidas
alcoólicas, maços de cigarros ou mesmo entorpecentes.
Conferiu até mesmo debaixo das camas, e dos colchões, mas não
havia nada.
— Como você pode ver, nós não fizemos nada de errado.
Patrick pareceu ter ignorado meu último comentário, e se abaixou
para inspecionar a roupa que eu tinha usado naquele dia, ainda jogada na
cama. Ele ergueu minha calcinha com a ponta do dedo e estalou a língua,
baixinho, como se estivesse satisfeito por ser de um modelo recatado.
Naquele instante me subiu uma raiva que eu nem sabia que existia dentro de
mim. Eu atravessei o quarto, depressa, disposta a tirar a peça íntima das
mãos imundas, mas ele me impediu, ao esticar o braço, agitando a peça
íntima no ar.
— Devolva minha calcinha, agora! — exigi, puxando a aba de seu
casaco. — Ou eu... Ou eu...
— Ou eu o quê, chérie? — Sorriu, maliciosamente.
— Eu vou contar a Désirée que você não passa de um assediador.
— Por um acaso você ficou louca? — Ele fez uma careta, depois
ficou sério.
— Vai negar agora que quase me beijou outro dia? — Senti o
sangue fervilhando nas veias, a visão ficou embaçada por causa das
lágrimas que me preenchiam os olhos.
A justificativa veio rápida, carregada de cinismo:
— Se refere à sessão de fotos no museu Carnavalet? Só dei um
beijo no rosto, quando a gente se despediu na saída. O que tem de errado
nisso?
Bufei com desdém, cruzando os braços.
E quantas vezes ele tentou me tocar quando não havia ninguém por
perto?
— Sei de coisas que você nem imagina, Patrick.
— É mesmo, chérie? — Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso. —
Mas que coisas são essas?
— Coisas que vão além do assédio e do abuso... — Senti o
estômago embrulhar, assim que ele levou a calcinha ao nariz e inspirou bem
fundo, antes de enfiá-la no bolso da calça.
Tentava ao máximo manter o autocontrole, mas o coração batia de
forma descompassada, nutrindo a estranha sensação de que algo muito ruim
podia acontecer.
— Eu soube que encorajou modelos a usar drogas como speed e
cocaína antes dos desfiles. E por mais que eu seja menor de idade, ainda
posso denunciá-lo às autoridades.
Só preciso encontrar uma maneira de fazer isso, sem precisar expor
as meninas.
Um gemido de dor escapou da garganta, quando ele segurou meus
braços com toda força. O meu agente praticamente me arrastou pelo quarto
até me prensar contra a parede mais próxima. Tentei me debater de todas as
formas, usando os braços e as pernas, mas aquilo era inútil.
— Me solta, ou eu vou gritar... — A voz saiu pouco mais do que um
sussurro débil. Patrick usou toda sua força para me manter presa contra seu
corpo, sendo que eu mal conseguia respirar, e ainda teve a coragem de
pressionar o quadril contra o meu, apenas para mostrar a grande
protuberância em suas calças.
Virei meu rosto para o lado, com receio de ser beijada à força. Ele
começou a se esfregar em mim de tal forma que por pouco eu não vomitei.
A náusea me subiu à garganta, mas eu me forcei a engolir, em seco.
— Não sabe as coisas que eu gostaria de fazer com você, Marie —
murmurou, junto ao meu ouvido. — Mas ainda insiste em se debater como
um peixe fora d’água.
— Deixe-me em paz — murmurei, as lágrimas embaçavam a minha
visão, enquanto uma onda de revolta me invadia, a ponto de fazer meu
corpo inteiro estremecer.
Soltei um grito, quando ele me agarrou pelo queixo, me forçando a
encará-lo nos olhos.
— Por que você tem que ser sempre tão desobediente, Marie?
— Eu já disse que vou contar tudo! — Ameacei, mas sem muita
convicção.
— As suas colegas não medem forças comigo, pois sabem que têm
muito a perder. Então eu sugiro que pense nelas um pouco mais, antes de
falar o que não deve. Porque se você falar, eu destruo a sua carreira. Fui
claro?
Fiquei pensando a respeito da intensa pressão psicológica que as
meninas e eu sofremos por parte do exército de advogados dele, para que
assinássemos um documento, chamado “Acordo de confidencialidade”.
Aquele contrato evitava o vazamento de informações sigilosas, quando na
verdade abria um perigoso precedente, principalmente para jovens em
início de carreira, submetidas a todo tipo de exploração e abusos no
ambiente de trabalho.
Os segundos se arrastaram no mais profundo silêncio até que Patrick
se afastou e saiu andando, com as mãos enfiadas nos bolsos. De repente, ele
parou no limiar da porta, e se virou para me encarar como se ainda tivesse
algo mais a dizer.
— Não vou fazer nada que você não queira... Pelo menos por
enquanto. — Patrick deixou escapar uma risada abafada que soou sarcástica
demais, a meu ver. — Bonne nuit, ma princesse. Mande lembranças minhas
às meninas, ok?
Le fils de pute não passava de um manipulador inescrupuloso.
Sendo um homem poderoso do ramo, Patrick tinha o costume de
promover festas em sua mansão, acompanhadas de suas modelos favoritas,
que se viam forçadas a entreter não apenas a ele como também a seus
amigos, grande parte deles empresários bem-sucedidos, produtores de
cinema, agentes do governo ou artistas de renome internacional.
Elas acreditavam que era um jantar de negócios; a oportunidade
única de se conectarem com pessoas influentes que levariam suas carreiras
a outro patamar.
Eu recusei o convite, naturalmente, pois jamais me sentiria segura
na casa dele. Tentei convencê-las a não ir ao evento, pois senti uma angústia
muito grande, mas sem sucesso.
As minhas suspeitas se confirmaram, quando uma delas me contou
que não se lembrava direito dos eventos da noite. Havia fortes indícios de
tentativa de abuso, mas ela se recusou a formalizar uma denúncia.
Desconfiamos que Désirée era cúmplice dele, guardando cada mínimo
segredo sujo, apenas para proteger os seus próprios interesses.
Claro que ela faria de tudo para preservar a imagem e a reputação da
empresa.
Minhas colegas e eu preferimos pagar o preço do silêncio a
enfrentar os custos de uma retaliação. Elas pareciam estar conformadas, e
seguiam com suas vidas, como se nada tivesse acontecido. De minha parte,
eu não mediria esforços até ter experiência suficiente para encontrar outra
agência — um lugar onde pudesse me sentir mais segura.
Capítulo 5
Jean-Luc
Jean-Luc
Marie-Claire
Cannes, França.
2 meses depois...
Marie-Claire
Jean-Luc
Jean-Luc
Dias depois...
Jean-Luc
4 meses depois...
Marie-Claire
Marie-Claire
Jean-Luc
Jean-Luc
Marie-Claire
Marie-Claire
Meses depois...
Enfim, chegou o dia tão esperado. O que para nós, franceses, era
“Le Jour-J[8]”.
Na verdade, todos os casamentos aconteciam primeiro na Câmara
Municipal e caso o casal desejasse, depois poderiam se casar numa igreja.
Jean e eu fomos até a mairie de Paris dias antes da nossa cerimônia
intimista e tradicional, no sul da França.
Na segunda semana de maio, toda a nossa família seguiu para o
Château de Lumière, localizado em Vallée des Baux, na Provença. A
propriedade datada do século XVIII e pertencente à avó dele tinha cerca de
200 hectares, e era conhecida pelas belíssimas vistas e exuberantes jardins,
além da produção de vinhos brancos, tintos e rosés.
Acordei por volta das 8 horas, quando uma criada apareceu na suíte,
trazendo uma bandeja de café da manhã, seguida de perto pelo mordomo do
château.
O contato com meu futuro marido foi limitado em respeito às
tradições do casamento. Alguns casais decidiam ficar uma semana ou mais
sem se ver, tornando a espera ainda mais emocionante. Havia um clima de
antecipação no ar, pois Jean continuava confinado na ala direita,
possivelmente se preparando para o registro dos bastidores.
Cabia ao fotógrafo captar cada detalhe do traje e do momento em
que ele se arrumaria para a cerimônia.
Nos casamentos franceses, a noiva não era o centro das atenções.
Em vez disso, o foco se voltava mais à união entre as duas famílias.
Tampouco havia damas de honra ou padrinhos — os franceses nem mesmo
tinham uma palavra para eles. O equivalente mais próximo da participação
dos melhores amigos na cerimônia eram as testemunhas. Os noivos
costumavam escolher uma ou duas testemunhas cada, no máximo.
De repente, escutei uma batida de leve na porta. Eu tinha acabado de
finalizar os procedimentos de cuidado com a pele após o banho.
Saí do banheiro amarrando o cinto do robe de cetim branco. Quando
abri a porta, eu me deparei com minha cunhada, acompanhada por um
grupo de profissionais de beleza, como cabeleireiros, manicures,
maquiadores, esteticistas, entre outros.
— Bonjour, Marie! — Camille saudou, expressando toda a sua
empolgação e alegria como de costume. Eu insisti bastante para ela se
arrumar junto comigo, assim tornaria o dia, que se arrastaria
indefinidamente, muito mais agradável para mim. — Pode não parecer, mas
estou bem nervosa. Você já está acostumada a passar longos minutos nesse
processo de estica e puxa cabelo, enquanto outras mãos cuidam da
aplicação de camadas e camadas de maquiagem. Acho isso um porre, chéri.
Quase caí na gargalhada, mas contive o ímpeto a tempo.
— É aí que você se engana, mon amie. — Estendi a mão e tomei a
dela, que tremia um pouco. — Posso ter desfilado para inúmeras grifes e
posado para fotos desde a adolescência, mas nada me preparou para viver
este momento. Parece que estou vivenciando tudo como na primeira vez,
sabe?
Ela abriu um sorriso tímido, e me puxou para um abraço.
— Assim fico mais aliviada, Marie. — Sua voz saiu abafada em
meu ombro.
Nós duas nos sentamos lado a lado, e enquanto a maquiadora
começava o seu trabalho, o fotógrafo aproveitou para fotografar o vestido e
os acessórios. Uma vez que a maquiagem ganhava forma, ele seguia
mirando sua câmera para fazer o making of.
Como a festa começaria no final da tarde, mas só terminaria nas
primeiras horas do dia seguinte, optei por uma maquiagem brilhante,
deixando a pele mais iluminada, com bochechas coradas, um contorno bem
feito para destacar o formato do rosto, e os olhos levemente marcados com
cílios poderosos.
Nunca pensei que consideraria natural posar para fotos com rolos de
cabelo.
— Já fez algum editorial de noivas antes? — perguntou Camille,
enquanto se servia de outra taça de champanhe.
— Sim. Aos 16 anos de idade. A sessão de fotos para a revista
ocorreu aqui mesmo em Paris, quando posei com vestidos de noiva de
diversas marcas. A ideia principal era criar um look clássico e atemporal, e
o resultado ficou lindo!
— Quem diria que três anos depois você faria um ensaio fotográfico
para o seu próprio casamento? — Ela sorriu e fez um gesto grandioso com a
mão livre.
— Pareço plena por fora, mas por dentro ainda estou tremendo. — E
dizendo isso, eu tomei um longo gole de champanhe, quase esvaziando a
taça.
— Pode parecer um sonho, mas é a pura realidade!
Depois, o cabeleireiro deu início ao penteado levemente preso, por
meio de uma tiara em prata incrustada por cristais, pérolas, pontos de luz e
folhas metalizadas. Camille tinha o cabelo mais curto, na altura do ombro,
então optou pela finalização com babyliss e ondas largas para dar
movimento às madeixas lisas.
— Tu es superbe! — Ela me avaliou de cima a baixo, impressionada
com minha aparência.
— Arrête! — Para (com isso). — Nous sommes magnifiques! —
Fiz questão de frisar, enquanto dois profissionais me ajudavam a colocar o
vestido, projetado exclusivamente por um dos designers mais icônicos do
mundo.
O modelo de alças possuía enfeites de pérolas nos ombros, a
silhueta totalmente alongada e ajustada ao corpo, uma saia semi-sereia, com
as costas expostas e a cauda em tule francês, que se arrastava no chão,
aliando transparência com sofisticação.
Contemplei o meu reflexo no grande espelho de corpo inteiro,
fazendo um esforço enorme para segurar o choro.
Aquele era o dia mais feliz da minha vida.
— Uma pena maman não estar mais entre nós... — Murmurei mais
para mim mesma do que para qualquer uma das pessoas presentes ali. —
Um dos meus maiores sonhos era me casar com um vestido feito por ela,
sabe?
Fiz esforço incomensurável para segurar as lágrimas, mas elas
acabaram deslizando rápidas, volumosas e quentes pelo meu rosto.
Uma batida na porta interrompeu os devaneios.
Deslizei um dedo disfarçadamente pelo canto do olho, assim que
minha sogra entrou no aposento, de braço dado com a mãe dela. Os olhos
das duas senhoras estavam vidrados em mim, e quase não piscavam. Seria
de admiração, talvez?
Margot estava deslumbrante, com seu vestido longo rosé gold todo
drapeado, e a cintura marcada alongava a silhueta dela. Os cabelos grisalhos
levemente presos em um coque proporcionavam leveza e elegância.
— Acho que nunca vi uma noiva tão adorável... Não é mesmo,
maman?
— Absolument! Une princesse! — Madame Yvonne enfatizou, com
orgulho. — Meu neto não poderia ter escolhido uma noiva melhor.
— Sinta-se parte da família, ma chérie. — Margot esboçou um
sorriso amável, mas ligeiramente altivo. No fundo, eu sabia que não era a
nora dos sonhos dela.
— Merci. — Fiz uma leve reverência com a cabeça, de forma
respeitosa.
Minutos mais tarde, eu caminhei até o altar de braço dado com meu
pai, carregando um pequeno ramo de Lírio do Vale como buquê. Mas foi
difícil conter as lágrimas, afinal a minha mãe não estava mais entre nós, e
justo no dia mais significativo de nossas vidas. Mas saber que maman
acompanharia a cerimônia onde quer que ela estivesse já era um alento para
o meu coração apertado de saudade.
Uma mega estrutura foi montada, transformando o jardim em um
verdadeiro espaço de festas. Nem em meus sonhos mais loucos poderia
imaginar que algum dia atravessaria o jardim de um château, ao som de
uma orquestra tocando a marcha nupcial, enquanto distribuía sorrisos
discretos aos convidados presentes, até me posicionar diante do altar e
trocar votos sob o sol se pondo, rodeada pelo perfume da lavanda e pelas
cores vibrantes das flores desabrochando em plena primavera.
Mas o buquê em minhas mãos era real. O olhar de Jean-Luc era real,
seus olhos ainda me acompanhavam completamente vidrados sem perder
um movimento meu sequer. E o sentimento em meu peito era tão real que
parecia transbordar tal qual o champanhe escorrendo nas taças empilhadas
em forma de pirâmide, comum nos casamentos.
A postura imponente do meu noivo garantia que tivesse presença,
graças ao fraque tradicional, composto por paletó longo e cinza escuro,
acompanhado pela calça risca de giz, e colete cinza.
Antes de ser entregue para Jean, o meu pai me beijou na testa de
modo afetuoso. Então, me posicionei a esquerda dele, e de frente para o
celebrante que deu início à cerimônia, proferindo o seguinte discurso:
— Família e amigos, obrigado a todos e todas pela presença nesta
maravilhosa ocasião. Hoje estamos aqui, juntos, para unir Jean-Luc Saint
Vincent Laurent e Marie-Claire Bernard Leblanc, em casamento. — Ele fez
uma pausa, voltando sua atenção para meu noivo. — Jean-Luc Saint
Vincent Laurent, você aceita Marie-Claire Bernard Leblanc como sua
companheira em matrimônio?
— Oui! — respondeu ele, abrindo um amplo sorriso.
— Marie-Claire Bernard Leblanc, você aceita Jean-Luc Saint
Vincent Laurent como seu companheiro em matrimônio?
— Sim, eu aceito — respondi, em alto e bom som.
— Ao longo desta cerimônia, os noivos formalizaram a existência
do vínculo com palavras, e escolheram as alianças como um símbolo de
amor. Ao olharem para elas, lembrem-se do compromisso selado em
compartilhar suas vidas deste dia em diante enquanto viverem.
O celebrante fez um gesto, indicando o momento mais aguardado: a
troca das alianças. Jean-Luc e eu ficamos de frente um para o outro, e
aguardamos o filho de um amigo dele se aproximar, carregando as alianças
da Cartier, que uniam faixas de ouro amarelo, branco e rosa, amarradas em
uma pequena almofada ornamentada.
Quando ele finalmente deslizou o aro no espaço entre os dedos,
senti a mão estremecer sutilmente, de tão sensível que estava àquele toque
carinhoso e ao calor de sua pele.
— Marie-Claire, eu prometo o meu amor agora e para sempre. —
Seus olhos faiscantes reforçavam a firme entonação da voz.
— Jean-Luc, eu prometo o meu amor agora e para sempre — repeti
o discurso, colocando a aliança no dedo anelar esquerdo, com as lágrimas já
embaçando a minha visão.
O celebrante finalizou o rito do matrimônio, permitindo que Jean
cruzasse a pequena distância entre nós, e segurasse o meu rosto entre as
mãos, fazendo um sorriso brotar nos lábios, e aumentando as expectativas
para o que estava por vir.
Meus olhos se fecharam, assim que senti o toque macio dos lábios
na testa.
Aquele simples gesto criava uma conexão que poderia durar a vida
toda.
Nossos familiares formaram um círculo à nossa volta para nos
felicitar pelo matrimônio. Meus sogros, o meu pai, a avó de Jean, os irmãos
dele e minhas amigas, que eram como se fossem da família. Depois foi a
vez dos demais convidados, que eram basicamente alguns gestores do
conglomerado de mídia, além de profissionais da moda.
Cumprimentei cada um deles com abraços e sorrisos, mas este
último morreu nos lábios, assim que uma silhueta familiar surgiu em meu
campo de visão.
Aquilo só podia ser um pesadelo. Era quase inacreditável.
Como Patrick teve a coragem de comparecer à cerimônia, sem ser
convidado?
Meu ex-agente se aproximou, exibindo aquele sorrisinho petulante
de sempre.
— Parabéns aos recém-casados! — disse ele, e para minha surpresa,
se adiantou até mim, com os braços estendidos.
Eu tive que respirar fundo. Bem fundo. Quase retive todo o ar à
minha volta.
Meu corpo inteiro tremia só de sentir aquelas mãos nojentas em
cima de mim.
— Parabéns, Marie — sussurrou rouco em meu ouvido e, então,
acrescentou: — Não pense que está livre de mim.
Fechei meus olhos na tentativa de afastar as memórias ruins
relacionadas a ele, e apesar de ter deixado os braços caídos ao lado do corpo
e as mãos fechadas em punho, os tremores persistiam e o coração já
disparava.
— Merci, Patrick. — Eu me vi forçada a agradecer, mesmo
engolindo em seco. E acrescentei: — Mas não me lembro de tê-lo
convidado para o casamento...
— Você tem toda razão, chérie. — Concordou ele, a voz carregada
de cinismo. — Mas o convite dava direito a um acompanhante, e como o
marido de Désirée teve um compromisso inadiável, ela insistiu muito para
eu vir no lugar dele. Lamento não ter avisado antes.
— D’accord. — Aquiesci, resignada. Entendi que, naquela situação,
não havia nada que eu pudesse fazer para impedi-lo de estar ali.
— Agora é a vez do seu marido... — Notei pelo canto do olho Jean
arquear os cantos da boca, forçando um sorriso, mal ocultando seu
desagrado. — Félicitations! — Patrick puxou Jean-Luc para um abraço
efusivo, provocando nele uma reação de espanto e de desconfiança.
— Merci. — Retribuiu, dando um tapa constrangido nas costas dele.
— Eu vi Marie-Claire desabrochar e se transformar numa das
maiores supermodelos do mundo. — Seus olhos estavam fixos em mim, e
faiscavam cheios de malícia. Virei bruscamente o rosto, que já queimava de
raiva, enquanto as lágrimas desciam pelo canto dos olhos. — Cuide bem
dela, mon chéri! Ela é como uma filha para mim.
Uma sensação nauseante me subiu à garganta, amargo como bile.
— Quanto a isso não precisa se preocupar, Patrick. Eu farei minha
mulher muito feliz. — Quase soltei um pequeno arquejo, ao sentir o braço
de Jean envolver minha cintura, em um gesto claramente possessivo.
— Pode ter certeza de que Jean e eu seremos muito felizes juntos —
assegurei, em tom firme, mas as palavras soaram pouco convincentes até
para os meus próprios ouvidos.
— Marie-Claire! — Ouvi gritarem meu nome não muito distante
dali. Désirée caminhava em nossa direção, exibindo no rosto um sorriso que
era um tanto exagerado. — Meus parabéns! — Ela me puxou para um
abraço afetuoso, o que me encheu de alívio. A presença da minha ex-agente
aliviava um pouco a pressão de interagir com Patrick, ainda que eu
precisasse forçar uma simpatia que estava longe de sentir.
Minha ex-agente estava com uma aparência mais jovem e saudável,
talvez devido à sua gestação de gêmeos aos 42 anos de idade, sendo que ela
já era mãe de três. Dava para notar que o vestido elegante e feito sob
medida, desviava a atenção da barriga proeminente.
— Salut, Désirée! — Eu a cumprimentei com dois beijos no rosto.
— Fico feliz que tenha vindo. — Eu fiz questão de frisar, olhando bem nos
olhos dela e, transmitindo total sinceridade, prossegui: — Sou muito grata
por tudo o que fez por mim. Apesar das diferenças, eu sei reconhecer a
importância do seu trabalho. — A voz saiu mais embargada do que gostaria
e meu rosto ficou banhado de lágrimas. — Você viu em mim um talento que
eu nem imaginava que tinha.
— Mas fui eu quem descobriu você, chérie. — Patrick fez um esgar
de deboche, o que me fez revirar os olhos de puro tédio.
Meus lábios de um tom rosado estavam torcidos num sorriso
forçado.
— Vou me lembrar disso para sempre... — O meu pior pesadelo.
— De minha parte, Marie, eu não guardo rancor... Um pouco de
mágoa, talvez. — Confessou Désirée, rindo um pouco de si mesma. —
Quem trabalha nesta função sabe que modelos vêm e vão... Os ciclos
começam e terminam, mais cedo ou mais tarde. Mas continuo torcendo por
você, e desejo que ambos sejam muito felizes!
Pelo canto do olho, notei minhas amigas me observando a certa
distância e, como elas acenaram insistentemente, eu pedi licença aos três e
me afastei, apressando os passos para poder me juntar a elas.
— Estamos tão felizes por você, Marie! — Anne foi a primeira a me
dar um abraço, seguida de perto pelas outras meninas. Todas elas estavam
radiantes, cada qual usava um vestido que realçava seus corpos magros e
longilíneos.
— Ainda não consigo acreditar que Patrick teve a coragem de
aparecer aqui. — Inès comentou, olhando na direção dele, com a expressão
dura e sombria.
— Ele só está aqui porque nós não tivemos coragem o suficiente
para romper com o silêncio — murmurei, enquanto observava Patrick levar
a taça aos lábios e beber um grande gole de champanhe.
Impossível manter contato visual com ele, sem sentir o estômago
embrulhar.
O olhar fixo dele em nossa direção deixava um recado claro: ele
sairia impune de todas as acusações. Patrick era impiedoso demais, e
tentaria nos atingir de alguma forma, até conseguir nos deixar vulneráveis e
impotentes.
Um tremor sacudiu meu corpo ao relembrar o dia em que ele me
disse que poderia usar alguma coisa contra mim, mas eu não conseguia
pensar em nada.
Podia ser até um blefe. Mas também podia não ser.
Só havia um jeito de descobrir.
— Chega! — Meu tom de voz as assustou, mas eu encarei cada uma
delas, seriamente, antes de prosseguir: — Isso já foi longe demais, meninas.
Precisamos tomar alguma atitude. Acham justo deixá-lo impune? Acham
justo sermos silenciadas? Acham justo que ele nos traumatize e continue
nos ameaçando pelo resto de nossas vidas?
— Você prometeu que não faria nada, Marie... — Uma delas voltou
a estampar o mesmo olhar aflito de antes.
— Não quero correr o risco de arruinar a minha vida, a minha
carreira... Mon Dieu! — Outra modelo ponderou, balançando
energicamente a cabeça. — Esquece isso.
— A corda sempre arrebenta para o lado mais fraco. — Uma
terceira colega também se opôs, veementemente. — Não vou correr este
risco, mas não vou mesmo!
Olhei para Inès e Anneliese, que desviaram o olhar, resignadas.
— E vocês duas não vão dizer nada? Também preferem ficar de
braços cruzados?
Anneliese quebrou o silêncio e representou todas ao dizer baixinho:
— Agora você se sente protegida e segura, porque se casou com um
homem poderoso em todos os aspectos, Marie. — Baixei minha cabeça,
evitando sustentar o olhar dela. Merde! Anne tocou em um ponto muito
delicado. — Lamento ter que dizer isso, mas as meninas têm toda razão.
— Muitas de nós têm 20 anos ou menos, e ajudamos famílias
inteiras — disse outra modelo, baixando os olhos para mim. — Quando
você coloca tudo isso na balança, dá para entender por que é tão difícil
denunciar os abusos...
— Eu entendo o receio de vocês porque assinamos aquele
documento, mas estou farta de ser silenciada e não poder compartilhar com
ninguém o que aconteceu.
Observei detidamente cada uma delas, para checar se conseguiria
convencê-las a voltar atrás na decisão, mas elas pareciam irredutíveis. Meu
coração se apertou como se estivesse dentro de um moedor de carne.
— Très bien. — Murmurei, encolhendo os ombros, ainda que
aquelas palavras me fizessem sentir um calafrio na espinha. — Patrick disse
que tem algo contra mim, mas eu nem imagino o que seja. Talvez isso me
traga sérios problemas no futuro.
— Este é mais um motivo para não fazer absolutamente nada.
— Acho melhor você não contar nada para o seu marido, Marie. —
Recomendou Inès, com ar pensativo. — Existem coisas mais importantes
com que se preocupar agora.
Embora eu não quisesse admitir, a minha melhor amiga estava certa.
Dois anos se passaram, e ainda me recuperava de um transtorno
alimentar severo. Agora que eu me casei, não parava de pensar na
possibilidade de ter um filho. O meu médico tratou muitas pacientes com
anorexia, mas nenhuma delas conseguiu engravidar. Ele foi taxativo ao
dizer para mim certa vez: “Não tenha esperanças, minha jovem”.
Mas eu não me daria por vencida, jamais.
— Não posso permitir que aquele fils de pute estrague a minha
noite. — Meus olhos ardiam, cheio de lágrimas não derramadas. — Eu
mereço, sim, ser feliz!
— Désirée já está vindo, meninas. — Anne falou com uma
expressão alarmada no olhar. — Agora temos que ir, antes que ela desconfie
de alguma coisa.
— Vocês vão ficar para o jantar de recepção? — perguntei, com a
respiração suspensa. Elas confirmaram com um gesto de cabeça.
— As meninas e eu combinamos de fazer fila para pegar seu buquê.
— Inès riu timidamente, esfregando a nuca. — Nós estamos solteiras, mas
não estamos desesperadas... — Como eu fiz uma careta incrédula, ela logo
admitiu: — Só um pouquinho.
— Então, a gente se fala mais tarde — prossegui, dando um abraço
e um beijo na bochecha de cada uma. — Divirtam-se na festa, façam isso
por mim. Je vous aime[9]!
Minutos mais tarde, meu pai e eu abrimos a pista de dança com a
tradicional valsa. Jacques me conduziu pelo salão, rodopiando e seguindo o
ritmo da música, todo sorridente e orgulhoso por presenciar a realização de
mais um sonho: ver a filha casada.
― Como faço para tirar essa ruga de preocupação em sua testa, ma
petite? ― Meu pai perguntou, me encarando com a cabeça ligeiramente
inclinada para trás.
— Mon Dieu! — Dei um sorriso, contrariada. Pelo visto uma
sombra de tristeza ainda pairava sobre meu rosto. — Está tão perceptível
assim, papa?
— Non, mas eu te conheço muito bem, e sei que deve haver algo
errado. Não tenha medo de compartilhar comigo as suas angústias, os seus
medos e receios, Marie.
— Eu só me lembrei dela, papa. — Tentei imprimir um tom firme
na voz, mas ela saiu trêmula e quase inaudível. — Pensei no quanto minha
mãe ficaria feliz em me ver vestida de noiva, e dançando a valsa com o
senhor neste lugar maravilhoso! — Encolhi os ombros e senti mais lágrimas
surgirem em meus olhos. — Apenas isso.
Aquela era uma meia verdade e meia mentira.
— Ela certamente diria: Jacques, como nossa filha cresceu tão
rápido assim?
— Troquei fraldas outro dia e agora ela já é uma mulher casada! —
Acrescentei, imitando o jeito de minha mãe falar. — Acho que maman
ficaria radiante.
Nós olhamos um para o outro e começamos a rir, no meio do salão.
Depois de alguns minutos, meu pai concedeu a vez para Jean-Luc,
que me conduziu até o meio da pista de dança, para terminarmos a valsa
como marido e mulher.
Ele posicionou o braço direito na parte inferior das costas, enquanto
o esquerdo segurava a minha mão no ar. Pressionei o meu corpo junto ao
dele, e assim nós dois começamos a dançar; ele dando um passo para frente,
enquanto eu dava um passo para trás, sem pressa. Houve vezes em que ele
me fez girar em torno do meu próprio eixo, e me puxava para junto de si,
com nossos rostos bem próximos um do outro permitindo uma intensa troca
de olhares, os lábios quase se encostando, o ar quente saindo das narinas
dele se misturava ao meu em um frenesi louco.
Eu estava tão distraída, que por pouco o meu coração não saiu pela
boca, quando Jean encostou os lábios ao meu ouvido e sussurrou com sua
voz grave:
— Mal posso esperar para que fiquemos a sós, Marie.
— Por que a pressa? — Eu comprimi os lábios na tentativa de
sufocar o riso, enquanto alisava a lapela do sobretudo. — Logo chegará o
momento que será só nosso.
Pelo canto do olho, notei a aproximação de Cédric, que estava
acompanhado pelo pai. Assim que Jean viu os dois, parou de dançar e abriu
um sorriso, curioso.
— La fontaina à Champagne! — Anunciou meu sogro,
animadamente.
A torre era montada com taças coupe, também conhecida como
Maria Antonietta ou seio de princesa, uma vez que alguns historiadores
diziam que a peça foi moldada nos seios da rainha. Se aquilo era verdade ou
não, pouco importava. A tradição da fonte de champanhe tornava tudo
ainda mais especial e mágico.
Nós dois nos posicionamos diante da torre de taças, que por sinal
estava repleta delas, e despejamos o champanhe na taça mais alta que, ao
transbordar, enchia as de baixo, e assim, sucessivamente, criando um efeito
magnífico. Nosso gesto foi acompanhado pelas palmas e gritos de alegria
de todos os presentes.
Jean-Luc e eu nos entreolhamos em um momento de cumplicidade
mútua, e encerramos a tradição bebendo um gole da bebida diretamente na
taça do topo, tomando o devido cuidado para não desmantelar a torre
cuidadosamente criada.
Batemos palmas, sorrimos um para o outro, e nos beijamos
apaixonadamente.
— L’amour de ma vie... — Sussurrei contra os lábios dele. — Te
amo!
— Eu também amo você, mon turquoise.
O segundo beijo durou tanto, que nós dois ficamos sem fôlego. A
nossa empolgação foi tanta que esbarramos na mesa, fazendo com que as
taças tremessem e caíssem umas sobre as outras, derramando champanhe na
fina toalha bordada de linho.
— Como vocês são desastrados. — Camille balançou a cabeça com
um ar zombeteiro.
— Não fique com inveja, frangine — comentou Cédric, de forma
despretensiosa, usando uma gíria usada em referência à irmã. — Logo
também chegará sua vez.
— Não estou achando a menor graça, Cédric. — Ela colocou as
mãos na cintura, lançando um olhar de deboche para o irmão. — Estou
solteira, mas não sozinha. E é isso, ponto final!
Nós explodimos numa gargalhada quando ela terminou de falar.
Eu guardaria aquela experiência para sempre em minha memória.
Capítulo 18
Marie-Claire
Marie-Claire
Jean-Luc
Jean-Luc
Semanas depois...
Bastou o dia chegar ao fim para me dar conta de que passaria mais
uma noite sozinho na mansão que passou a ser meu novo lar, desde que
Marie e eu nos casamos.
A propriedade datada do início do século XX ficava na Villa
Montmorency, um condomínio fechado e exclusivo, na região do Quartier
d’Auteuil, no 16.º arrondissement, local onde as casas podiam ser
compradas por alguns milhões de euros.
Minha mulher cumpria uma série de compromissos comerciais que
iam além de estampar capas de revista ou desfilar para as maiores casas de
moda. Ela estava em Nova York para promover sua própria linha de roupas,
em parceria com outras marcas.
Aliás, foi justamente a imprevisibilidade de horários e próximos
passos dela, especialmente após dividir seu tempo entre Paris e Nova York,
que contribuiu para a nossa primeira crise conjugal.
Enfiei a mão no bolso do paletó, tirei um cigarro da carteira e o levei
diretamente à boca ressecada pelo clima seco. Segurei o isqueiro com a mão
livre e observei distraidamente a chama amarela e trêmula se formar, dando
lugar a uma fumaça branca.
Dei uma longa tragada, enquanto observava a paisagem soberba à
minha frente, através do amplo terraço que mais parecia um oásis, com seu
canteiro de flores e plantas de diversos tipos. Aquele espaço era,
definitivamente, o meu santuário pessoal.
Conferi as notificações no celular quando eu saí do banho, mas elas
se restringiam a e-mails de investidores e clientes da SVL Groupe e da EGO
Media. Marie-Claire não enviou nenhuma mensagem de texto; ela nem
mesmo tentou ligar para mim.
O silêncio da mulher que eu amo era ensurdecedor demais.
O mais perto que cheguei de receber alguma notícia dela foi através
da mídia.
Fotógrafos registraram o momento em que Marie saiu de um veículo
SUV acompanhada por um segurança, enquanto se dirigia para a
inauguração da loja de sua marca de roupas. O jornal destacava o visual
bastante discreto dela, que consistia em um suéter de malha branco largo e
uma saia maxi de couro preta.
Camille também estava presente, assim como a modelo, Inès
Delacroix.
No entanto, uma das fotos chamou logo a minha atenção. Minha
mulher sorria para a câmera, seus cabelos longos estavam presos em um
coque e quase não havia resquícios de maquiagem no rosto, mas o braço do
guarda-costas — apoiado levemente nas costas dela —, saltava aos olhos de
quem quisesse ver.
Senti os músculos do maxilar se retesarem, com o ciúme
consumindo cada célula do corpo, atingindo direto na alma.
Eu devia ter dispensado os serviços dele, quando tive a
oportunidade.
— Sou eu quem devia cuidar da minha mulher, e mais ninguém!
Merde!
Dei uma longa e profunda tragada, sentindo a fumaça percorrendo o
pulmão, enquanto assimilava uma verdade inconveniente: a possessividade
e o ciúme assumiram proporções gigantescas nos últimos dias.
Talvez aquele tenha sido o principal motivo pelo qual Marie se
distanciou de mim.
Ela sabia que eu a magoaria seriamente se perdesse o autocontrole.
Recordava perfeitamente as palavras de um grande amigo meu: “O
lado ruim de estar com uma modelo é que sempre haverá alguém tentando
tirá-la de você”.
— Só espero que ele esteja errado... — Falei em voz alta, antes levar
a taça de vinho tinto aos lábios e bebi seu conteúdo de um só gole, aliviado
em poder sentir a bebida queimando a garganta e fervilhando o estômago.
Aquela dose lavou minha alma.
De repente, senti meu celular vibrar no bolso da calça. Fiz o
desbloqueio de tela e toquei no ícone do aplicativo de mensagens. Vi o
nome de Camille aparecer e imediatamente prendi a respiração, tomado
pela ansiedade, ao correr os olhos pelo texto.
Marie se queixou de muita dor nas costas. Acho que o analgésico
não está mais fazendo efeito. Eu vou levá-la até o pronto-socorro do Mount
Sinai Hospital.
Apenas me limitei a digitar uma resposta curta, mas senti que algo
estava errado, embora não soubesse exatamente o que podia ser.
Por favor, me mantenha informado. À plus.
Eu não vou ficar aqui nem um minuto a mais. — Pensei, enquanto
acessava minha lista de contatos, até encontrar o número da minha
secretária. Ela era a eficiência em pessoa e atendeu minha chamada já no
segundo toque.
Àquela altura eu já estava em meu quarto, colocando algumas peças
de roupas em uma bolsa de viagem.
— Allô, Babette. Desculpa incomodá-la, mas preciso que cancele
todos meus compromissos e entre em contato com o piloto. Preciso voar
imediatamente para Nova York. Minha mulher passou mal e foi levada às
pressas para um pronto-socorro.
— Fique tranquilo, Jean. Ele estará à sua disposição assim que
você chegar.
O Paris – Le Bourget era o aeroporto executivo mais movimentado
da Europa, a cerca 11 km a nordeste do centro da cidade.
Eu nunca tinha dirigido tão rápido, ou de maneira irresponsável em
toda a minha vida. Só queria poder chegar ao aeroporto alguns minutos
antes do voo, passar pelo terminal privado e embarcar rapidamente no jato
executivo para uma viagem sem escalas.
Conferi se havia alguma nova mensagem da minha irmã, antes da
decolagem. Ela não quis entrar em detalhes sobre o estado de saúde da
minha mulher. Apenas informou que após uma consulta rápida, os médicos
mandaram Marie voltar para casa.
Aquela viagem de 7 horas e 40 minutos pareceu ter durado uma
eternidade.
O motorista já estava a minha espera, quando desembarquei no
Aeroporto de Teterboro, em New Jersey. Ele abriu a porta traseira do sedã
de luxo, e fez um gesto para que eu pudesse entrar. Eu o cumprimentei com
um breve aceno de cabeça e me acomodei no confortável banco de couro.
Tirei o celular do bolso para conferir as notificações, mas elas se
restringiam a chamadas perdidas de Cédric e de Camille. Decidi retornar
primeira a ligação da minha irmã, que atendeu aliviada em poder finalmente
ouvir minha voz.
— Jean-Luc, ainda bem que você atendeu! Tentei ligar pra você
diversas vezes, mas sem sucesso.
— Tive que desligar o aparelho, Mille. Acabei de chegar à Nova
York. Minha mulher está com você? Vou levar alguns minutos para chegar a
Central Park South.
— Non, non! Peça ao motorista para te deixar no Mount Sinai. Três
horas depois de voltarmos, a dor se intensificou e tive que levá-la de novo
para o hospital.
— Mas o que realmente está acontecendo? Não me esconda mais
nada!
— Após a coleta de uma amostra de urina, os médicos informaram
que ela estava grávida. Corrigindo: Ela ainda está esperando um menino.
O bebê está posicionado na parte de trás, perto da costela. Foi um choque
imenso!
Seria mesmo possível ela estar grávida?
— Eu vou mesmo ter um filho? — perguntei, com a voz engasgada.
Meu coração se comprimiu no peito, nutrindo um sentimento de dúvida e de
incerteza. — Tem certeza do que está dizendo?
Não queria alimentar falsas esperanças.
Seria insuportavelmente doloroso lidar com mais uma perda
gestacional.
— Parece inacreditável, mas é praticamente um milagre. As dores
que ela sentia foram na verdade as contrações. E parece que é gravidez
avançada, de sete meses. Ainda continua com 4 cm de dilatação, então o
bebê deve nascer nesta madrugada ou nas primeiras horas da manhã.
— Putain! Estou a caminho, não se preocupe. À bientôt! — Encerrei
a chamada, antes de falar com meu motorista: — Preciso chegar ao Mount
Sinal Hospital o mais rápido possível!
Agora era a vez de ligar para o meu irmão e, assim, transmitir a
notícia:
— Meu filho vai nascer a qualquer momento, Cédric. — As
palavras saíram atropeladas, enquanto segurava com a mão livre o encosto
do banco do carona.
— Ce n’est pas possible! — Ele parecia ter duvidado por um
instante, mas logo emendou, soando cauteloso: — Jean, mon ami, você está
falando sério mesmo?
— Nunca falei tão sério em toda a minha vida!
— Quelle surprise! Mas a Marie já retornou da viagem? Em qual
hospital ela está? Já deu a notícia para os nossos pais?
— Camille já está cuidando de tudo, não se preocupe. Eu acabei de
chegar à Nova York, mas ainda não sei se chegarei a tempo de ver o meu
filho nascer.
— Vai dar tudo certo. Você vai ver. Seu sortudo, meus parabéns!
O motorista acelerou o carro o máximo que pôde. Tive sorte, porque
dificilmente havia congestionamento na estrada durante a madrugada, senão
uns poucos carros transitando em ambas as direções.
Jean-Luc
2 anos depois...
Jean-Luc
Dias depois...
Marie-Claire
Meses depois...
Durante trinta dias do mês e duas vezes por ano, a semana de moda
e as pessoas envolvidas nela eram parte da minha família. Então não foi
nenhuma surpresa a repercussão da notícia do meu retorno, após um hiato
de dois anos longe das passarelas.
A gravidez inesperada — e também silenciosa — trouxe com ela um
período cheio de desafios. Eu dei entrada no hospital com muitas dores nas
costas, quando na verdade estava em trabalho de parto.
Segui normalmente com minha rotina agitada nos meses que
antecederam o parto, sem desconfiar que uma gestação estava em curso.
Não senti nenhum sintoma, a barriga não despontou por causa do meu
biotipo, confundi o sangramento de nidação com menstruação, perdi peso
para o circuito de moda e ignorei outros sinais como o movimento fetal,
confundindo-o com movimentos intestinais.
Jamais me passou pela cabeça que havia um bebê chutando dentro
de mim.
Também senti muita culpa por tê-lo exposto a tanta coisa, mesmo
não sabendo da gravidez. Eu bebi durante a gestação inteira, trabalhei
bastante, fiz exercícios de alto impacto, além de ter seguido uma dieta
extremamente restritiva.
Tinha tudo para dar errado, poderia vivenciar mais um aborto
espontâneo no total de cinco ou pior, alguma intercorrência relacionada à
malformação fetal, mas felizmente Benjamin nasceu saudável, com 1,7
quilos e 40 centímetros.
Não houve intercorrências graves durante os dias de internação dele,
mas o ganho de peso foi bem lento.
Sair do hospital sem meu filho, após receber alta foi extremamente
doloroso. Queria ter permanecido 24 horas por dia na UTIN,
acompanhando seu progresso, e estabelecendo um vínculo maior com ele,
mas não pude ficar o dia inteiro no hospital. As semanas se arrastaram
indefinidamente, mas Jean permaneceu ao meu lado, na medida do possível,
dividindo seu tempo entre Nova York e Paris.
Benjamin se desenvolveu bem, apesar de eu não ter produzido leite
materno o suficiente. Não foi nada fácil desconstruir a crença de que não
era merecedora de prover o alimento para o meu filho, porque eu fui
incapaz de nutrir meu próprio corpo para recebê-lo.
Já no puerpério pouca coisa mudou. Senti um profundo vazio, era
mais uma sensação de “não pertencimento” e “não adequação” àquela nova
realidade, mesmo estando rodeada de pessoas queridas.
Ser mãe sempre foi o meu maior sonho e parecia que arrancaram
meu senso de identidade materna. Qualquer mulher tinha o direito de
idealizar a si mesma como mãe, de preparar o enxoval, de planejar a
decoração de um quarto infantil, de fazer uma lista com possíveis nomes, de
fazer um bom pré-natal, entre tantas possibilidades.
Enfrentei por quase um ano a depressão pós-parto, os meus
sentimentos de amor, afeto e carinho pareciam inacessíveis, sem nenhuma
razão aparente. O choro do bebê me causava pânico, eu tremia inteira de
medo, a minha vontade era a de sair correndo, de sumir por um tempo. Não
podia ficar sozinha com ele em hipótese alguma.
Margot se mudou temporariamente para a mansão e me ajudou nos
momentos mais difíceis.
Não estabeleci aquele vínculo imediato com Benjamin, e me irritei
profundamente com a demora, porque sempre disseram que as mulheres
sentiam logo aquele amor profundo pelos seus bebês.
E como se não bastasse o aspecto emocional, tive que lidar também
com problemas físicos como infecção do trato urinário, além da diástase
retal, contribuindo para a perda de libido. Eu evitei até mesmo coisas
simples de casal como preliminares, carícias, abraços e beijos.
Fiquei quase três anos sem fazer sexo com o meu marido. Também
como eu sentiria desejo se a minha mente estava em um turbilhão de
pensamentos, causados pelo transtorno de ansiedade e baixa autoestima? Se
eu ganhava a vida com minha aparência e meu corpo não voltou a ser como
era antes da gestação, assim tão rápido?
Também enfrentei o dilema de voltar ou não ao trabalho, ciente da
pressão existente ao redor. Uma modelo precisava estar em sua melhor
forma após o parto, conciliando campanhas e editoriais com as passarelas e,
ainda conseguir ser uma boa mãe no final do dia.
Pelo menos aquele malabarismo todo me fez recobrar o ânimo antes
perdido.
Não fiz cirurgia plástica, mas contei com a ajuda de uma
fisioterapeuta especializada no tratamento da diástase retal.
Estendi o meu tapete de ioga no chão da varanda e me deitei de
barriga para cima, com os braços paralelos ao tronco, minhas pernas
elevadas e semiflexionadas, dando início a uma série de contrações
abdominais.
A minha mente vagou a anos-luz dali, recordando o primeiro dia de
exercícios, quando me deparei com algo que fez o meu coração gelar.
Parecia que havia uma espécie de alienígena, tentando abrir caminho para
fora da minha barriga. Lembrei também das palavras da minha médica ao
dizer que “Não há nada que possa fazer, a menos que faça uma
abdominoplastia”.
Por mais que eu fosse uma mulher vaidosa, a simples menção à
cirurgia plástica já me causava enjoo.
Camille, ao contrário de mim, já tinha se submetido a
procedimentos estéticos, e me incentivou a procurar um dos melhores
cirurgiões do mundo. Após uma avaliação criteriosa, ele chegou à
conclusão de que minha diástase era visivelmente menor, se comparado ao
de muitas pessoas que sofriam do mesmo problema.
Levei meses, mas consegui recuperar o tônus da região abdominal.
De repente, o celular começou a vibrar insistente. Olhei de relance
para a tela, cogitando ignorar a chamada, mas logo reconheci o número do
meu advogado.
— Bonjour, Marie. — A voz grave dele ressoou em meu ouvido,
provocando um calafrio ao longo da espinha. — Por que não me contou
que pretende tornar público o assédio sexual sofrido no passado? Não
achou suficiente compartilhar relatos anônimos recebidos em sua rede
social?
Patrick não cedeu à pressão para liberar antigas agenciadas da
obrigatoriedade legal de manter o sigilo sobre o acordo, que incluía
cláusulas que as impediam de relatar detalhes das “atividades pessoais,
sociais ou comerciais” dele.
— Mas agora eu já sou reconhecida internacionalmente, doutor. Não
acho justo me calar por tanto tempo, quando existem outras vítimas além de
mim e que ainda continuam na agência.
Nós compartilhamos informações umas com as outras, e sabia que
de alguma maneira a imprensa tomaria conhecimento e podia querer
investigar isso mais a fundo.
— Qualquer manifestação pública pode resultar em ação legal,
embora ache pouco provável que isso aconteça. Seria como admitir culpa,
em certo sentido.
Eu levantei a cabeça e olhei para o teto, deixando escapar um longo
suspiro.
— O meu maior erro foi ter aceitado um acordo de indenização...
Parecia a melhor opção para mim na época ter deixado uma parte
sombria da minha vida para trás, sem ter que revisitá-la constantemente, nas
sessões de terapia.
Cogitei realmente em processar a New Look Models, mas o acordo
de confidencialidade se tornou um fardo pesado demais para carregar.
Modelos trabalhavam como prestadores de serviços independentes e tinham
poucas proteções legais. Recebi um pagamento pelo meu silêncio, que se
estendia até às pessoas próximas, que jamais puderam saber o motivo de
minha saída, “por respeito à privacidade dos envolvidos”.
Não pude desabafar com ninguém, nem mesmo com Jean-Luc, que
já nutria certa antipatia pelo meu ex-agente. Também omiti a verdade do
meu pai. Quando o Guia Michelin concedeu as três estrelas, ele fez um
jantar especial no bistrô. Patrick compareceu como um de seus convidados
mais ilustres. Eu me lembrei de tê-lo visto bajulando meu pai, e se
intitulando um dos responsáveis pelo seu sucesso.
A noite mais torturante da minha vida ficou marcada por três idas
consecutivas ao banheiro.
O ato de colocar para fora não apenas o alimento, mas também as
palavras não ditas.
— Marie, você está me ouvindo? — A voz do meu advogado me
tirou dos devaneios. Eu me limitei apenas a murmurar um “Oui”. — A
produção de provas, em se tratando de assédio sexual, sempre é difícil, e
você ainda não conseguiu convencer outras vítimas a denunciá-lo.
Especialmente novas vítimas, porque o prazo prescricional para
assédio sexual era de apenas seis anos.
— Então o que sugere que eu faça? Patrick me disse que usaria algo
contra mim. Mas eu não faço a menor ideia do que seja.
— Tem certeza de que não há nada que ele possa usar contra você?
— Ele pode estar blefando, mas também pode ter lá um fundo de
verdade.
— Melhor se resguardar, então. E, por favor, não tome decisões sem
me consultar antes. D’accord?
— Sim, tudo bem. A gente se fala depois... Salut. — E desliguei.
De repente, eu escutei a porta que dava acesso à varanda se abrir e
então a babá apareceu, seguida por Benjamin, que correu em minha direção,
cheio de energia. Eu fiquei de joelhos no tapete de yoga, com os braços
estendidos, ansiando poder dar um abraço bem apertado nele.
— Que tal a gente sair para um passeio hoje? O dia está tão lindo!
— Super! Allez zou! — concordou meu filho, saltitando
alegremente.
— C’est parti! — Em um movimento rápido, eu carreguei Benjamin
no colo, e fiquei de pé, para em seguir dar as instruções para a babá: —
Agnès, você pode pegar as coisas dele, por favor? Eu vou só colocar uma
jaqueta e os óculos escuros.
— Perfeitamente, senhora. — Ela era uma mulher de meia-idade, os
cabelos já grisalhos nas têmporas, de estatura mediana e pele clara, cujo
rosto expressava, simultaneamente, ternura e autoridade.
Benjamin começou a agitar os braços e as pernas, mal contendo o
entusiasmo.
O motorista já estava à minha espera na garagem, junto com Bruce
Staden.
Mesmo sob as lentes escuras dos óculos de sol, ainda podia sentir o
peso do olhar penetrante do meu segurança, que passou a avaliar o meu
corpo, minunciosamente. Merde! Eu devia ter trocado de roupa. Ainda
usava o look fitness, composto por um sutiã esportivo, calça legging preta e
tênis de alto desempenho.
O top destacava o contorno dos seios, os mamilos já duros por causa
do frio pareciam dois faróis cegando-o momentaneamente, mas ele piscou
por alguns instantes, antes de baixar o olhar para o meu abdome tonificado,
até se deter na curva perfeita do quadril.
Um brilho diferente espreitava a íris verde, o qual eu não ousaria
identificar.
Bruce Staden passou a trabalhar integralmente para mim e me
tratava com o maior respeito possível. Mas ele ainda era um homem. E
como todo homem, se sentiria tentado a olhar para trás quando passasse por
uma mulher atraente na rua.
As modelos naturalmente atraíam os olhares por onde passavam,
fossem de cobiça, desejo, admiração ou até mesmo de inveja. Eu precisei
criar uma couraça desde os 15 anos de idade, quando o meu corpo de
menina-mulher passou a estar sob o escrutínio de fotógrafos, agentes,
estilistas, entre outros profissionais da indústria.
Os dois homens me cumprimentaram com um aceno de cabeça.
— Eu vou fazer um passeio com meu filho, mas será aqui perto
mesmo.
— Quer que eu os acompanhe?
— Acho que não será necessário. — Respondi, sorrindo
timidamente.
— Está certa disso? — Ele franziu a testa como se percebesse a
minha incerteza.
— O meu filho não sairá de perto de mim, não se preocupe. — Pelo
canto do olho notei a aproximação da babá que carregava o meu filho nos
braços.
— Se a senhora insiste... — murmurou, enquanto abria a porta da
minivan preta.
— Preciso que fique à disposição, porque irei a um evento logo mais
à noite... Não sei se o meu marido vai conseguir chegar a tempo para me
acompanhar. Tudo bem?
— Perfeitamente. — Bruce então segurou a porta para que eu
pudesse passar, mas rapidamente virei o meu corpo de lado, antes de subir
os dois degraus acarpetados da van, e me acomodei na primeira fileira.
Se eu subisse de frente, minha bunda ficaria toda projetada para trás.
Bruce se despediu de Benjamin acenando do outro lado da janela, e
meu filho também fez o mesmo.
Nós passamos primeiro em uma boulangerie local para comprar pão
fresco, queijo e frutas e depois seguimos até Bois de Boulogne, a segunda
maior zona verde de Paris, onde famílias podiam estender um cobertor e
saborear uma boa refeição, enquanto as crianças se divertiam.
— Sente-se aqui no meu colo, Ben. — Bati as mãos de leve nas
coxas, antes de ajeitar meu menino entre as pernas, e envolvi seu ombro
estreito em um abraço apertado. — Tem algum lugar que queira ir hoje?
Não parece muito animado...
— Oui, maman! — Confirmou, estreitando os olhos luminosos para
mim. — Cité des Sciences.
— Impressionante como ele nunca se cansa de ir para a Cidade das
Ciências. — Agnès comentou, apoiando as mãos na cintura numa espécie
de desafio descontraído.
— A gente só tem 1 hora e meia para visitar a exposição... —
ponderei enquanto consultava o meu relógio de pulso, calculando quanto
tempo tinha para ir até o museu e depois voltar para casa e me arrumar para
o evento. — O que você acha, Agnès?
— Vamos logo, mamãe! — disse ele impaciente, ao se levantar, e
me puxou pelo braço. Apesar de ser um pouco distante da cidade, valia a
pena passar o dia, observando meu filho explorar o espaço na companhia de
outras crianças de sua idade.
Nós três caminhamos à beira do lago, observando a movimentação
intensa ao redor. Algumas pessoas passeavam de barco, outras praticavam
slackline, tentando se equilibrar em cima de uma corda esticada entre duas
árvores, e ainda havia quem simplesmente apreciava a vista ou brincava
com seus animais de estimação.
— Marie, até que o parque não está tão cheio assim, concorda? —
comentou Agnès, enquanto empurrava o carrinho de bebê.
— Verdade... — murmurei, distraidamente, no exato instante em
que senti alguém se esbarrar em mim. Proferimos um pedido de desculpas
ao mesmo tempo e, quando nossos olhares se encontraram, o
reconhecimento mútuo foi imediato.
— Désirée Guillaume? — Ela aparentava estar igualmente surpresa
e demonstrou isso ao arregalar os olhos.
— Quelle surprise! Faz um algum tempo que não nos vemos... —
Ela então estreitou os olhos para o carrinho de bebê e perguntou: — Seu
filho é mesmo muito bonito. Quantos anos ele tem?
— É uma pessoinha de dois anos e meio com altas habilidades.
Notei a sobrancelha dela se arqueando em um arco perfeito,
enquanto sua boca se curvava ligeiramente em um sorriso enigmático.
— Sinta-se privilegiada, chérie.
— E seus filhos estão com você? Ah, ali estão eles! — Acenei para
as duas crianças, paradas a uma curta distância, acompanhadas pela babá.
— Não esperava revê-la antes da festa da L’Beauté Paris, mas acho
que não terei outra oportunidade para falar a sós com você.
A minha cunhada promovia um mega evento, celebrando mais um
ano como parceira oficial da semana de moda de Paris, e às vésperas do
desfile de moda da marca.
— Agnès, você pode nos deixar a sós por alguns instantes?
— Mas é claro, Marie... Eu vou aguardá-la no carro, então.
Eu me inclinei junto ao carrinho e dei um beijo na testa de
Benjamin, dizendo:
— Promete que vai me esperar no carro, com toda a paciência do
mundo? Se você se comportar vai ganhar o seu sorvete favorito, na volta
para casa. O que acha?
— Oui, maman! — confirmou, balançando a cabeça e me
repreendeu com um olhar, suas sobrancelhas unidas numa linha fina. — Eu
sou muito bonzinho. Vou me comportar, juro.
— Eu sei disso, mon petit génie — falei, fazendo cócegas nele, que
passou a se debater, rindo à gargalhada. — A gente se vê depois. Não
demoro.
Observei os dois se afastar, seguindo em direção à saída do parque.
— Então, Désirée... — Tomei a iniciativa de romper o silêncio,
curiosa, ao cruzar os braços sobre o peito. — O que você tem de tão
urgente para falar comigo?
— Eu soube que você mobilizou outras meninas a denunciar
anonimamente assédios sofridos na indústria, com uma campanha chamada
“Exponha seus porcos”.
— Exatamente. Quem sabe assim as autoridades possam investigar
os suspeitos e responsabilizá-los pelos seus atos nojentos?
— Não acha que já tem problemas demais para resolver não, chérie?
— perguntou, em voz baixa e num tom que soou ameaçador demais. Engoli
em seco, tentando desfazer o grande nó que se formava em minha garganta.
— Faz ideia das consequências que isso pode trazer para sua vida?
— Você ainda consegue ser pior do que todos eles. — Eu lhe lancei
um olhar de puro desprezo.
Seus lábios vermelhos e cheios de botox delinearam um sorrisinho
mordaz.
— É muita hipocrisia de sua parte expor uma agência que te
proporcionou tantas coisas. Se você estava tão descontente assim, por que
continuou trabalhando para nós?
— Porque eu amo o que faço, e tenho o direito de lutar por
condições dignas de trabalho. Ainda existem pessoas sérias neste meio,
apesar de tudo.
— A imprensa tem feito perguntas demais. Patrick e eu cuidamos da
sua carreira durante cinco anos. Sabia que nós podemos abrir um processo
contra você?
— Eu já recolhi dezenas de depoimentos nas últimas semanas. É só
questão de tempo para mover uma ação coletiva. Não pense que serei a
única a prestar queixa.
— Aí que você se engana. Duvido que consiga formar um exército
de justiceiras. Elas não são supermodelos como você, e ainda têm algumas
contas a mais pra pagar.
As lágrimas já ameaçavam rolar pelo meu rosto, tomada por uma
onda de ressentimento e indignação, a ponto de o sangue ferver nas veias.
Inclinei minha cabeça para o lado, e a encarei com um levantar de
sobrancelhas — a um só tempo —, curiosa e incrédula.
— Parece que sua fidelidade a Patrick é mesmo inabalável. Eu andei
pensando muito sobre o que me disseram uma vez... — Coloquei minha
mão no queixo, fingindo estar pensativa. — Será que vocês dois são
amantes até hoje? — Eu nem precisava de uma resposta, pois seu olhar
alarmado já me dizia tudo.
Patrick já era divorciado há alguns anos, enquanto que Désirée
enfrentou algumas crises no casamento, embora ela nunca tenha chegado a
se separar realmente.
Os músculos tensos de seu rosto, marcado por linhas finas de
expressão, contrastavam com sua aparente calma e indiferença.
— E quanto a você, Marie? Vai me dizer que nunca traiu o seu
marido?
— Mas que absur... — Tentei protestar, mas fui interrompida por
ela.
— Veja bem, chérie. Eu não me surpreenderia, afinal, os rumores
envolvendo o clã Saint. Vincent Laurent são sempre abafados pela
imprensa. Mas também, o seu sogro e seu marido controlam grandes fatias
dos meios de comunicação...
— Cale a sua maldita boca! — Ameacei, sentindo o rosto queimar,
convulsionado pela raiva. Ela tinha a sorte de estarmos em um lugar
público, pois do contrário, sentiria bem o peso da minha mão. — Eu amo
meu marido. Jamais seria infiel a ele .
— Acho comovente sua honestidade, Marie. — Percebi uma nota de
ironia na voz dela. — Como pode ser tão linda, e tão extremamente tola, ao
mesmo tempo?
— Como assim? — A minha voz saiu trêmula e quase inaudível.
— Você poderia ter sido uma boa menina... — O que diabos ela quis
dizer com isso? — Eu nunca vou entender essa obsessão doentia que
Patrick tem por você. Nem imagina do que ele é capaz... À bientôt. —
Désirée me dirigiu um olhar carregado de cinismo, antes de virar as costas e
sair andando, sem sequer olhar para trás.
Quer dizer então que, na visão dela, eu devia ter cedido às
investidas dele, quando tinha apenas 15 anos? Ainda mais com um homem
com idade para ser o meu pai?
De repente, a bile subiu à garganta, então corri até a lixeira mais
próxima do parque para vomitar, mas nada saiu além de suco gástrico,
deixando um gosto terrivelmente amargo na boca.
Capítulo 25
Marie-Claire
Jean pelo visto levou a sério o que eu disse e não virá mesmo. —
Pensei comigo mesma, bebendo o champanhe de um gole só.
Coloquei a taça vazia na bandeja de um garçom que passava por
mim e acabei pegando mais uma só por impulso, mesmo ganhando um
olhar reprovador de Camille, que por sinal estava deslumbrante com seu
vestido Schiaparelli amarelo-canário. O modelo, em cetim de seda e
organza, tinha mangas volumosas e transparentes alcançando o chão,
destacando as plumas bordadas, além de um ousado recorte no busto e saia
de comprimento midi toda bordada com strass.
Minha cunhada fez o possível para eu não me sentir sozinha entre
seus convidados.
— Ainda não acredito que Jean-Luc vai me fazer a desfeita de não
vir à festa por causa de um ciúme bobo... — Ela deixou escapar um suspiro,
inconformado e perfeitamente audível.
— Ele deve estar se arrumando ainda, chérie — ponderou o
namorado, que devia ter dez anos a menos do que ela. Pierre Bourdieu
trazia aquela jovialidade marota no sorriso e no olhar. — E veja bem, a
festa está apenas começando... — completou enquanto passava os dedos no
cabelo curto, cacheado e de tonalidade ruiva. — Relaxe.
— Eu já tentei ligar inúmeras vezes, mas só deu caixa postal... Ele
também nem retornou minhas mensagens. Merde! Mas que homem
orgulhoso, francamente.
Um músculo se retesou no maxilar, mas eu emiti um suspiro
profundo, embora o longo sopro de ar não fosse capaz de me estabilizar.
Pensei ter visto Patrick entre os convidados, assim que eu cheguei, mas
talvez eu tenha me enganado. Désirée apareceu acompanhada pelo marido,
um renomado advogado e parlamentar, cotado como favorito para assumir o
cargo de primeiro-ministro.
— Talvez Jean quisesse colocar nosso filho para dormir, antes de
vir, quem sabe? — Dei ênfase e profundidade à voz, mas um leve tremor
me percorreu da cabeça aos pés, trazendo consigo uma sensação incômoda
bem no fundo da alma.
Pelo menos Bruce Staden se mantinha por perto, garantindo minha
segurança.
Passei os minutos seguintes agindo praticamente no piloto
automático: posei para fotos, junto com outras embaixadoras da L’Beauté
Paris, concedi entrevistas para os jornalistas presentes no local, e ainda
conversei com alguns profissionais da moda.
Quando perguntada sobre a ausência do meu marido, eu apenas
respondia: “Jean-Luc acabou de voltar de Cannes Lion, que é a maior
premiação do setor de publicidade e marketing, então ele decidiu ficar em
casa com nosso filho”.
Não me conformava em fingir uma aparente naturalidade, quando
no fundo amargava um arrependimento brutal por ter dispensado a
companhia do homem que eu amo.
O tempo não se arrastaria indefinidamente durante as conversas
tediosas, o seu braço forte em volta da cintura serviria como uma âncora,
me trazendo de volta à realidade.
Já estava a caminho do banheiro, quando subitamente senti o celular
vibrar dentro da bolsa carteira. Minha mão tremia, enquanto segurava o
aparelho e desbloqueei a tela, desfrutando meio segundo de satisfação, até
que me deparo com uma notificação de mensagem.
Marie-Claire
Marie-Claire
Marie-Claire
Marie-Claire
Jean-Luc
Dias atuais...
˂Notes
A pessoa amada pode te trair com quem você menos espera. Certifique-se de
dar o troco, na primeira oportunidade.
Jean-Luc
Só havia uma pessoa com a qual poderia falar àquela hora: Jacques
Leblanc.
Meu ex-sogro se mudou para o 6º arrondissement de Paris, após
inaugurar o seu segundo restaurante, localizado convenientemente no térreo
do prédio onde ele morava.
O Saint-Germain-des-Prés era um bairro elegante, conhecido por
suas lojas e estabelecimentos de luxo, além de ser o local de muitos cafés
famosos.
Subi correndo o lance de escadas até o segundo andar, com o
coração batendo loucamente dentro do peito. Toquei a campainha de modo
insistente, e logo seguiu-se o som metálico de tranca se abrindo.
Quando Jacques finalmente abriu a porta, os meus olhos
imediatamente se detiveram no utensílio de cozinha que eu conhecia tão
bem: o cutelo de 9 polegadas.
Parecia ter envelhecido mais de dez anos, desde a última vez que o
vi.
— Bonsoir, Jacques. — Saudei, forçando um sorriso simpático. —
Faz tempo que não o vejo, empunhando o seu cutelo de estimação... —
comentei, tentando soar o mais natural possível. — Benjamin ficou na casa
dos meus pais... — informei, na tentativa de desfazer aquela tensão no ar.
— Depois me diz quando pode ir visitá-lo.
— Não acredito que tenha vindo aqui só para me dizer isso —
murmurou ele, com cara de poucos amigos. Depois, deu um longo suspiro,
e completou, de modo seco e direto: — Agradeço a informação, mas já falei
com meu neto mais cedo.
— Na verdade, eu vim até sua casa por outro motivo — admiti, sem
ocultar a ansiedade na voz. — Será que nós dois podemos conversar?
Prometo não tomar muito o seu tempo...
— Claro! — Ele logo fez um gesto com a mão livre, indicando que
eu devia entrar. Depois, seguiu até uma poltrona e se sentou, colocando o
cutelo cuidadosamente em cima da mesa de centro. — Por favor, sente-se.
— Ele então, apontou para o espaçoso sofá.
— Serei breve e por isso eu vou direto ao ponto. — Eu tirei meu
celular do bolso e mexi nele por alguns instantes, antes de me inclinar para
mostrar a tela. — Preciso que leia esta matéria do jornal Le Paris.
A mão dele tremia, enquanto segurava o aparelho, mas fiquei
intrigado com o fato de ele não ter esboçado nenhuma reação, como se
aquela notícia não o abalasse em nada.
— O que o senhor tem a me dizer sobre isso? — Sem esperar pela
resposta, eu disparei: — Não está surpreso em saber que, o homem que
frequentava a sua casa e dizia ser seu amigo, pode responder a um processo
por assédio e abuso sexual?
Meu ex-sogro deixou escapar um suspiro perfeitamente audível.
— Você conjugou os verbos no tempo correto, no passado, Jean —
disse ele, estendendo o braço para me devolver o celular. — Não tenho
contato com Patrick já faz uns três anos ou mais...
— O senhor, como pai, deveria estar revoltado com esse fils de pute.
— E ainda insisti, me esforçando ao máximo para não parecer rude. — A
sua filha foi uma das vítimas dele, ou não? Ela te disse alguma coisa a
respeito?
— Qual é o seu interesse neste assunto, Jean? — perguntou ele, com
extrema frieza. — Que eu me lembre, você não possui mais nenhum
vínculo com minha filha. Já não bastou tudo o que fez no passado? Quando
a acusou injustamente de ter sido infiel?
Meu ex-sogro continuava exibindo aquela expressão imperturbável
de sempre, o que só contribuía para o meu descontrole emocional. O meu
corpo tremia involuntariamente à medida que a irritação por ele aumentava.
— Mas isso também me diz respeito! — gritei, sentindo a paciência
se esgotar com tamanha indiferença. — Eu só me separei dela por causa
daquele desgraçado!
Uma máscara de dor e revolta nublou as feições do velho,
perceptivelmente. Ele fez menção de se levantar, mas deixou seu corpo
avantajado na beira da poltrona, e se inclinou para a frente, sem deixar de
me encarar nos olhos.
— Só espero que você fique tão atormentado pela culpa quanto eu.
— O que quer dizer com isso? — Minha voz falhou e emiti um
pigarro seco. — Então, Marie sofreu mesmo um abuso? — Dizer aquelas
palavras em voz alta me deixou profundamente enjoado. — Por favor,
Jacques, me responda logo de uma vez!
— Queira me desculpar, mas você não está em condições de exigir
nada.
— Falarei com ela se for preciso, mas não vou desistir de ir a fundo
neste caso.
— De jeito nenhum! — Ele fez um gesto enérgico com a mão, ao se
levantar de um salto. — Acho melhor você respeitar a decisão dela de
querer falar ou não sobre este assunto. — Depois, se apressou em direção à
porta, e ao abri-la me dirigiu um olhar resignado e carregado de tristeza. —
Não tenho forças para discutir contigo. Já carrego o peso do arrependimento
dia após dia. Mas logo chegará a sua vez também.
Senti meu corpo pesado sobre as pernas, amargando a derrota ao
ficar de pé.
Se ele soubesse como eu me arrependi de ter desprezado a única
mulher que eu amei — e continuo a amar, completa e incondicionalmente.
Talvez eu tenha cometido o maior erro da minha vida.
— E se eu tiver sido injusto com ela? — Desviei o olhar, me
esforçando ao máximo para conter as lágrimas, que ameaçavam nublar
minha visão.
— O ódio te cegou de uma maneira que endureceu seu coração, mas
talvez não seja tarde para você. — Ele ainda parecia ressentido, mas
demonstrou algum fiapo de compaixão por mim. — Agora, se não se
importa, eu preciso que se retire... Bonne nuit.
Um músculo se retesou na mandíbula, quando eu emiti um suspiro
profundo, mas o longo sopro de ar foi incapaz de me estabilizar.
— Eu realmente sinto muito por isso... — Senti meu rosto queimar,
enquanto engolia o orgulho ferido e andei depressa, ansioso para sair dali,
de uma vez por todas.
Quando eu estava a caminho da casa dos meus pais, outra lembrança
daquela noite infame me veio à mente.
Eu andei pelo corredor do hotel, — bebendo champanhe
diretamente do gargalo da garrafa de Dom Pérignon, enquanto carregava
Kate em meu ombro —, em direção à suíte presidencial.
Quando eu a coloquei de volta ao chão, ela me enlaçou pelo
pescoço, com a intenção de me beijar na boca, mas eu virei meu rosto para
o lado, e me afastei bruscamente dela.
"Eu ainda sou casado, Kate. E ainda amo a minha esposa." —
Imprimi um tom de firmeza inabalável na voz, causando um profundo abalo
em meu corpo.
Ela fechou os olhos por um momento, e os abriu em seguida, a
incredulidade anterior se transformando em indignação.
“Imbécile! Você me trouxe até aqui para quê, então?”
“Eu ainda não sei, ok?” — Eu quase gritei, profundamente
aborrecido. “Só queria infligir em minha esposa toda a dor que senti
quando a vi nos braços de Patrick.”
“Ah... Vocês, homens, não sabem de nada. Não conseguem enxergar
o óbvio.”
Kate desatou a rir da desgraça alheia, feito uma hiena.
Aquela gargalhada triste e vazia dela me assombrou, desde então.
Jean-Luc
Suportar agressão sexual era uma das piores, senão a pior coisa que
poderia ter acontecido com minha ex-mulher. Sem contar as imagens e
vídeos explícitos registrados, aos 15 anos de idade — e estando
desacordada, — junto com à ameaça de divulgação na internet, colocando
em risco não apenas sua carreira, como também toda a sua vida.
Eu não era o magnata da mídia à toa. Tinha acesso às informações
privilegiadas, e não levei mais do que dois dias para checar as fontes junto à
promotoria de Paris, confirmando a identidade da modelo que rompeu com
o silêncio, sendo a primeira a prestar queixa contra Patrick Dupont.
Minha ex-mulher preferiu o anonimato por medo de sofrer
represálias.
Ainda me sentia péssimo por ter desconfiado que a ascensão rápida
dela na carreira tinha acontecido graças a algum envolvimento íntimo com
o ex-agente.
Cometi uma grande injustiça com a mulher que sempre foi a razão
da minha vida, e não ficaria de braços cruzados, aguardando alguma
punição dos agressores, quando o prazo prescricional para assédio na
França se restringia até no máximo três anos.
O processo movido por Marie não levaria necessariamente a um
julgamento.
Mantive o meu cotovelo apoiado no braço da cadeira giratória e o
queixo no punho fechado, refletindo sobre os desdobramentos de mais uma
notícia estarrecedora: O lendário fotógrafo, Sébastien Lévy, também estava
sendo investigado por má conduta sexual.
O provável cúmplice de Patrick, chamou as alegações das supostas
vítimas de mentiras e calúnias. Além dele, alguns estilistas, diretores de
elenco e outros profissionais da indústria foram mencionados nas denúncias
anônimas recebidas por Marie em suas redes sociais.
Os meus irmãos também estavam à frente de empresas que já
contrataram os trabalhos dos profissionais acusados de assédio sexual, por
isso passei boa parte da manhã reunido com eles além de nossos principais
gestores, no edifício-sede da SVL Groupe.
Decidi quebrar o silêncio incômodo, que havia caído sobre a sala de
reuniões.
— Acho lamentável que tantas jovens sejam inseridas num ramo
altamente sexualizado, com pouca supervisão e sem a proteção profissional
devida.
— Outras grandes empresas também anunciaram que não vão mais
trabalhar com o fotógrafo — disse Christian, desviando o olhar da tela e
olhando fixamente para cada um dos gestores presentes.
— Os fotógrafos sempre foram tratados como deuses no mundo da
moda — comentou Camille, ao se endireitar na cadeira. — Eles costumam
fazer o que querem, e podem mesmo, porque ninguém os impede.
As notícias de assédio e abuso sexual terem vindo à tona
massivamente nos últimos dias, deixou colegas e parceiros de negócios num
estado de dúvida — ou de negação.
— Mas é revoltante demais! Esses predadores sexuais
desempenharam vários trabalhos para a Ego Media. Esses vermes
assediaram sexualmente Mar... digo tantas jovens modelos. — Eu me
corrigi depressa, evitando cometer a indiscrição de mencionar o nome da
minha ex-mulher. Aquele era um assunto muito delicado.
— Mas a gente não tinha como saber, Jean. — Cédric ponderou,
com ar grave. — Nós estamos falando de profissionais com uma carreira
sólida no mundo inteiro.
Sébastien Lévi, por exemplo, era dono de uma agência influente que
representava fotógrafos, diretores criativos e estilistas.
— Eu já tinha implementado novas medidas, visando diversificar o
quadro de profissionais na L’Beauté. Nenhum deles trabalhou para mim
recentemente.
— Já comuniquei aos clientes da Ego Media que Lévy foi cortado
das campanhas publicitárias. — Foi a vez de Christian falar, após desviar a
atenção do tablet.
Não pensei duas vezes e bati com o punho fechado na mesa,
surpreendendo-os.
— Eu ainda acho que isso não muda nada. — Deixei escapar uma
leve inflexão de impaciência na voz. — Ainda vou promover a ruína de
todos eles! — desabafei, me deixando levar por uma fúria incontida,
enquanto um tremor violento me percorria o corpo. — Pretendo fazer com
que, tanto Dupont quanto Lévi, pensem quem nem os seus melhores
advogados serão capazes de restaurar a imagem deles.
— Parece que isso está bem perto de acontecer, Jean. — Cédric
virou a tela do seu laptop em minha direção.
Eles fizeram declarações por meio de seus advogados, alegando
terem conquistado uma reputação sólida junto à indústria da moda, e
pediram o fim do que chamaram de “campanha infame da mídia”.
— Eles estão se defendendo o melhor que podem mas vão fracassar.
Quando a reunião terminou, cerca de vinte minutos depois, os
executivos saíram da sala e me deixaram a sós com meus irmãos.
De repente, um desejo irresistível de fumar me invadiu.
Foi tão intensa a vontade que era quase como se uma força
esmagadora pressionasse o meu peito, dificultando a passagem de ar para os
pulmões. Então, eu me levantei rapidamente, tirando o paletó e afrouxei o
nó da gravata, antes de seguir até a janela mais próxima.
— Posso imaginar como está se sentindo, frangin... — O toque
suave da mão de minha irmã sobre meu ombro provocou um leve, mas
perceptível tremor no corpo todo. — Ainda se sente mal por ter sido injusto
com ela, não é mesmo? — perguntou Camille, estreitando seus olhos
castanhos grandes e expressivos em mim.
Pelo canto do olho, notei Cédric se posicionando ao meu lado, e ele
também tocou meu ombro de leve, um gesto capaz de proporcionar algum
conforto em meio ao caos que minha vida se transformou nos últimos anos.
— Me sinto um tremendo canalha, Camille! Eu praticamente
chamei Marie de alpinista social, cínica e traiçoeira. Quando eu flagrei os
dois se beijando, cogitei que ela tinha sido capaz de fazer sexo com o
agente, em troca de contratos lucrativos de modelagem, especialmente para
sua marca de cosméticos.
— Eu tentei te alertar diversas vezes que tudo não passou de um
terrível mal-entendido. Você é um publicitário experiente e também está
inserido na indústria da moda há anos. Quem nunca escutou rumores sobre
casos de violência sexual, nos bastidores?
— Mas, a gente nunca espera que algo assim aconteça com uma
pessoa próxima, Camille... — ponderou Cédric, com a expressão séria.
— Eu não devia ter feito uma acusação tão grave contra ela. Era o
meu dever protegê-la, putain! Marie tem motivos de sobra pra me odiar.
— Se refere ao que fez naquela noite? — perguntou meu irmão,
estreitando um olhar curioso em minha direção. Aquela era a primeira vez
que Cédric tocava no assunto.
— Não me lembro de muita coisa. Eu estava no bar do hotel,
quando Kate apareceu e conversamos um pouco. Eu só pensava em me
vingar de Marie e a bebida serviu como combustível para inflamar ainda
mais todo ciúme e todo ódio que já sentia dela. Vocês sabem que as duas
nunca se deram bem, mesmo sendo colegas de profissão... Merde!
Aquela revelação era amarga e dolorosa, mas também trazia algum
alívio.
— Vocês, homens, amam ver duas mulheres disputando o coração
de vocês. — Minha irmã revirou os olhos e suspirou de forma dramática. —
Acho rivalidade feminina tão démodé.
— Kate subiu comigo até a suíte presidencial, mas eu juro que não
rolou nada mais íntimo entre nós.
— Uma pena que os rumores não ajudaram em nada... — Cédric
contraiu o rosto numa expressão de censura. — Você inicialmente foi visto
sozinho no bar, mas depois seguiu até a suíte, acompanhado pela modelo.
No dia seguinte, fizeram o check-out separados e deixaram o hotel com
poucos minutos de diferença. Sendo bem sincero, parece que tudo está
conspirando contra você, Jean.
Eu me deixei levar pelo orgulho ferido, agindo como um perfeito
canalha.
A vontade de revidar a traição que julguei ter sofrido fez tudo sair
de controle.
Kate preferiu se isolar em seu rancho em Montana, se recusando a
dar declarações para a imprensa, e tem se mantido afastada das passarelas e
dos principais eventos de moda.
Parecia que ela foi diagnosticada com uma doença autoimune.
Avancei mais um passo e encostei minha testa na janela,
pressionando o punho fechado contra o vidro com tanta força, a ponto de
sentir dor na junta entre os dedos.
Não há nada que eu me arrependa mais do que ter usado Kate como
instrumento de vingança.
— Ela se recusou a ir embora, e ainda ameaçou fazer um escândalo.
Àquela altura nós dois já tínhamos entornado uma enorme garrafa de
champanhe. A merda toda já estava feita. Mas, eu volto a repetir que não a
beijei e muito menos transei com ela. — Fiz questão de garantir, com toda
convicção.
— Então, cada um foi para um canto da suíte e dormiu, apenas?
Meu rosto se contraiu pelo esforço mental de vasculhar na memória
algo bem específico. Já me sentia esgotado tanto física quanto
emocionalmente, mas respirei bem fundo para me concentrar, esvaziando a
mente até acessar o seu nível mais profundo.
— Como ela se mostrou irredutível em deixar a suíte, eu resolvi
ignorar a presença dela. Lembro de ter me dirigido até o sofá, tirei o meu
paletó e os sapatos e me deitei, talvez para refletir sobre tudo o que tinha
acontecido... Depois eu apaguei, simples assim.
— Só não entendo uma coisa nessa história toda... — Camille
franziu a testa, com ar pensativo. — Por que você fez Marie acreditar que
tinha sido infiel com ela?
Eu me virei para ficar de frente para os dois, e então olhei
atentamente, primeiro para Camille e depois para Cédric.
— Acho que pesou o fato de estar com o orgulho ferido... Eu só
pensava em me vingar. Talvez eu não mereça, mas preciso me redimir e
recuperar minha família.
De repente, o telefone na mesa de reuniões tocou, interrompendo
nossa conversa, e não pensei duas vezes em atender, na expectativa de
receber a confirmação da chegada do atual agente da minha ex-mulher.
— Bonjour, Babette! — Saudei, com a respiração suspensa.
— Bonjour, Jean. — Retribuiu o cumprimento. — Monsieur
Donovan está à sua espera.
— Merci. Estarei aí em cinco minutos. — Eu desliguei, voltando a
atenção para os meus irmãos. — Bob Donovan está na cidade e mesmo com
a agenda concorrida, se comprometeu a vir até aqui. Preciso descobrir qual
é a relação dele com Patrick Dupont.
— Os dois são colegas de profissão, e obviamente são vistos como
homens poderosos, ou mesmo intocáveis... — Camille ponderou, franzindo
a testa, e imprimindo um tom de preocupação à voz. — Acha mesmo que
vale a pena conversar com ele? Duvido muito que Donovan queira se
comprometer, por mais que seja um concorrente.
— É aí que você se engana, chérie. — Esbocei um sorriso sagaz de
canto de boca. — Todos eles possuem fraquezas e vulnerabilidades... —
prossegui, colocando meu laptop dentro da pasta de couro, e segui em
direção à porta. — Agora eu preciso ir até minha sala, mas a gente vai
continuar discutindo este assunto em outro momento. Salut.
Só espero que Bob Donovan não se oponha em colaborar comigo.
Ele frequentava os mesmos círculos sociais e devia reconhecer a
forma como Patrick e Sébastien exerciam sua influência para assediar
sexualmente de jovens modelos.
Uma vez em minha sala, indiquei uma das poltronas para o agente
se sentar. E quanto a mim, eu preferi continuar de pé, fingindo recolher
meus papeis sobre a mesa.
— Bonjour, Jean-Luc. — O empresário me cumprimentou, com um
aceno de cabeça. — Confesso que fiquei surpreso com seu contato, mas me
diga em que posso ajudá-lo.
— Está metido no ramo da moda faz muito tempo, non? —
perguntei, fingido casualidade.
Um brilho de desconfiança cruzou o olhar do homem naquele
mesmo instante.
— Por que a pergunta? Continuo sem entender aonde quer chegar.
Ele estava claramente na defensiva. O que também não era de se
surpreender.
Caminhei lentamente até a área de estar e me sentei diante dele, na
poltrona oposta.
— Relax, Donovan. Perguntei só por curiosidade mesmo.
— Então acho melhor ir direto ao ponto, Jean — ponderou, soltando
um suspiro pesado. — O que quer saber? É sobre Patrick Dupont?
Eu apenas me limitei a lançar um olhar inexpressivo na direção dele.
— Vou considerar o seu silêncio como um “sim”. — Depois de
esticar um dos braços ao longo do encosto do sofá, ele voltou a me encarar,
e prosseguiu: — Eu conheço aquele patife, até mais do que gostaria. —
Depois, inclinou o corpo para a frente, sem tirar os olhos dos meus, o rosto
assumiu uma expressão tão séria que eu imediatamente me endireitei na
cadeira, receoso do que ele poderia dizer a seguir. — Ouça bem, Jean.
Marie não teve escolha. — Notei que sua expressão se suavizou um pouco,
ao falar da minha ex-mulher. — Não queira estar na pele dela, e nem de
nenhuma outra mulher.
Um músculo se retesou no maxilar, quando eu emiti um suspiro
profundo, mas o longo sopro de ar foi incapaz de me estabilizar.
— Quero que você me conte tudo o que esse desgraçado fez contra
ela.
— Infelizmente, eu não vou poder te ajudar. — Ele balançou a
cabeça em negativa. — Sugiro que fale diretamente com sua ex-esposa
sobre isso.
— Entendo... — murmurei, olhando distraidamente para algum
ponto da sala. — Eu posso ao menos saber como Patrick tem se saído
impune durante todos esses anos? Ele com certeza não tem agido sozinho, e
usou de todos os meios possíveis para garantir que essas jovens mulheres
permaneçam em silêncio.
— Mas a indústria da moda não é muito diferente da indústria do
entretenimento. — Ele cruzou uma perna por cima da outra e recostou-se na
poltrona. — Marie assinou contratos plurianuais com renovação automática
para a New Look Models. Isso acabou dificultando a saída dela, no passado.
Inclinei o corpo para a frente, com os cotovelos apoiados no colo, e
o queixo descansando nos dedos entrelaçados, mantendo uma postura
reflexiva.
— Aquele infeliz conseguiu conquistar a confiança do meu ex-
sogro, e ainda por cima se tornou um grande amigo dele. — Eu olhei para
Bob, com a expressão cada vez mais sombria. — Patrick não apenas
arruinou a vida dela, causando traumas irreparáveis, como também destruiu
nossa família. O meu filho ainda se culpa pela nossa separação.
Aliás, eu fui o maior responsável pelo sofrimento deles.
Quanta dor teria sido evitada, se eu tivesse acreditado na mulher
que eu amo?
Eu praticamente a abandonei no momento em que ela mais
precisava de mim.
— Não desista de tê-la de volta, Jean. — Ele me deu tapinha no
braço, para me transmitir algum apoio.
— Sinto muito pelo desabafo... — Eu me desculpei, deixando
escapar um longo suspiro. — Falar sobre este assunto é sempre muito
difícil. Eu só queria poder voltar no tempo e ter a chance de reparar o meu
erro.
— Se serve de consolo, Marie-Claire ainda te ama. — O agente de
modelos esboçou um meio-sorriso que estava mais para uma careta, e
completou: — Espero poder ajudá-lo de alguma forma... Você sabe que
sempre estou às ordens.
— Você pode me ajudar, sim. Quanto mais contratos assinar, mais
Marie permanecerá na cidade. A minha irmã já fez a parte dela, com a
renovação do contrato de exclusividade para a L’Beauté Paris. Sem contar
outras marcas interessadas em fechar contratos importantes para alguns
editoriais de moda e campanhas publicitárias.
— Você quer complicar ainda mais a minha vida? — Uma
expressão matreira se formou no rosto dele naquele mesmo instante. —
Marie já estava reduzindo sua presença nas passarelas e anunciou que vai
desfilar pela última vez durante a Paris Fashion Week deste ano. Ela quer se
dedicar mais ao filho e a outros projetos pessoais.
— Mas isso não é nenhuma novidade! — Soltei uma risada sem
graça. — Marie sempre dizia que planejava se “aposentar”, quando
alcançasse 27 anos de idade.
— Até comentei com sua ex que o divórcio lhe fez bem, porque ela
nunca antes estampou tantas capas de revista e estrelou tantas campanhas
como nos últimos anos...
Eu cocei o queixo, pensativo, enquanto olhava fixamente para Bob
Donovan.
— Para o seu próprio bem, eu vou fingir que não escutei esse seu
comentário.
— Não posso garantir nada, mas eu vou tentar convencê-la a aceitar
os trabalhos paralelos...
— Sabia que podia contar com você, Donovan. Aceita beber alguma
coisa?
— Não, obrigado. Mas voltando ao assunto de antes, não há a menor
dúvida de que nós dois temos um inimigo em comum, agora.
— Como aquele desgraçado conseguiu fazer tantas vítimas? — Bati
com o punho fechado no braço da cadeira, dando vazão à raiva que já me
consumia sem o menor controle.
— Patrick tinha o costume de promover festas em sua mansão,
acompanhado de suas modelos favoritas, que se viam forçadas a entreter
não apenas a ele como também aos amigos influentes.
— Minha atitude em relação ao seu colega vai depender muito do
que você sabe. — Voltei a falar, numa postura confidencial. Depois, bati
com o dedo na testa franzida. — Essa dúvida está martelando a minha
cabeça sem parar.
— O que quer saber?
— Será que minha ex-mulher já foi pressionada a fazer sexo com
ele?
— Não posso afirmar e nem negar nada — ponderou ele com ar
pensativo. — Estamos falando de um setor que emprega adolescentes, em
sua maioria. E nós sabemos que eles são mais vulneráveis a todo tipo de
abuso e exploração.
— Merde! — Praguejei, passando a mão trêmula pelo rosto. — Eu
não vou sossegar até ver Patrick Dupont apodrecer atrás das grades. — O
meu maxilar se enrijeceu e senti uma onda de indignação irracional me
envolver por inteiro. — Vamos deixar a Justiça resolver, mas sem deixar de
fazer a nossa parte também, é claro.
O agente de modelos balançou lentamente a cabeça, em
concordância.
— Sei bem a que se refere, Jean... — Ele então passou os dedos
sobre os lábios, fechando-os com um sinal de zíper. — A minha boca é um
túmulo!
Senti uma vontade irresistível de acabar com a vida daquele
desgraçado, usando as minhas próprias mãos.
Capítulo 33
Jean-Luc
Jean-Luc
Jean-Luc
Jean-Luc
Marie-Claire
Margot dirigiu um olhar consternado para Jean e eu, assim que abriu
amplamente a porta dupla da sala de estar.
— Estranhei a ausência de vocês dois... Por que demoraram tanto
para descer?
— Benjamin nos deixou trancados na biblioteca. Não tinha outra
saída.
— Podiam ter saído normalmente pela passagem secreta. Jean não te
mostrou?
Estreitei os olhos para meu ex-marido, mal escondendo a irritação
por ter sido enganada por ele.
— Parece que ele quis esconder essa informação de mim.
— Nós viemos, assim que Camille nos contou o que aconteceu —
disse Jean, se dirigindo à mãe apenas para mudar de assunto. — E então, o
que o médico lhe disse?
— Tudo indica que tenha sido uma intoxicação alimentar.
— Excusez-moi — Pedi licença e adentrei rapidamente a sala, com o
coração martelando furiosamente dentro do peito.
Encontrei Benjamin no sofá espaçoso, e felizmente parecia estar
consciente.
Quando me abaixei ao lado dele, notei que o corpo magro estava
banhado de suor, o seu belo rosto estava extremamente pálido e os lábios
finos sem cor alguma.
— Mon amour, me parte o coração te ver assim... — Murmurei,
passando suavemente a mão ao longo do cabelo escuro e ondulado.
— Eu vou apertar o seu abdome, ok? — informou o médico,
apontando para a barriguinha dele. — Caso sinta alguma dor, me avise. —
Mas nem bem Dr. Maurice começou a apertá-la com as pontas dos dedos,
meu menino soltou logo um gemido agudo.
— Ai! Está doendo muito... — Ele se queixou, com o rosto
contorcido de dor.
— Não seria melhor levá-lo para um hospital ou pronto-socorro? —
Jean estava parado bem atrás de mim, e pela entonação da voz parecia mais
nervoso do que eu.
— Já chamei uma ambulância, monsieur. Deve chegar a qualquer
momento.
— Maman... papa... — Ele já não conseguia mais falar direito,
como se sua língua estivesse enrolada dentro da boca. — Eu quero... água...
— Eu me assustei, quando vi a saliva se acumulando nos cantos dos lábios.
Depois, começou a convulsionar de forma violenta, como se estivesse tendo
um ataque epiléptico.
— Mon Dieu! — Cobri a boca com a mão, me levantando de um
salto, profundamente amedrontada. — Faça alguma coisa, doutor. Parece
que está piorando...
O médico mais que depressa posicionou o corpo dele de lado para
evitar que ele se sufocasse com a própria saliva.
Eu dei um passo para trás, cambaleando, mas Jean me puxou contra
seu corpo quente e sólido, um gesto que tanto me fez falta nos últimos anos.
Como poderia resistir em ser abraçada por ele? O calor que emanava de
seu corpo era tão reconfortante e perturbador, mas ainda assim não me
contive e desabei aos prantos, com a sensação de impotência e angústia
transpassando a minha alma.
— Nosso filho vai ficar bem, Marie. — A voz dele era quase um
sussurro contra meu cabelo, suas mãos deslizavam ao longo de minhas
costas, afagando-as suavemente.
— A criança já teve convulsão outras vezes?
Um ligeiro tremor sacudiu meu corpo, tomado por um mau
pressentimento. Eu me esforcei ao máximo para me recompor, e assim
poder responder aquela pergunta.
— Nosso filho nunca passou por isso antes, doutor.
De repente, escutei uma batida súbita e forte na porta, seguida pela
voz de Margot, anunciando a chegada dos paramédicos. Eles entraram às
pressas no local e acomodaram meu menino na maca, antes de encaixarem a
máscara de oxigênio sobre o nariz e a boca dele.
— Por que Benjamin está inconsciente? — Eu tentei imprimir um
tom firme na voz, mas ela saiu trêmula e quase inaudível.
— Qual dos dois pode nos acompanhar na ambulância?
Jean e eu trocamos olhares, sem dizer uma só palavra, em mútua
cumplicidade.
— Você pode ir com eles, que eu seguirei no meu carro logo atrás.
— disse ele, por fim, tentando dar um sorriso encorajador.
Quando eu fiz menção de me virar para sair da sala, senti Jean me
puxar gentilmente pelo braço, antes de colocar o paletó de corte impecável
sobre meus ombros. Pensei que a intenção dele fosse apenas proteger o meu
corpo do ar frio da noite, mas também pretendia esconder meus seios que se
sobressaíam do decote profundo do vestido.
Fechei os olhos de forma momentânea, assim que a fragrância de
seu perfume mesclado ao cheiro natural de homem quando ficava excitado,
preencheu minhas narinas.
— Eu esqueci totalmente o decoro... Mon Dieu. Obrigada pela
gentileza.
Ele me olhou por um breve instante, seus dedos roçaram de leve os
meus, fazendo uma descarga eléctrica me percorrer dos pés à cabeça e
eriçando cada poro da pele.
— Nosso pequeno gênio é forte e vai sair dessa, você vai ver.
Quando alcancei o limiar da porta, a minha ex-sogra me deteve, ao
segurar firme o meu braço, e notei que seu rosto pálido carregava uma
grande tristeza.
— Nós nos encontraremos lá tão logo seja possível, ma chérie. Se
cuida!
Eu apenas me limitei a assentir com a cabeça, em um movimento
tão rápido que era quase imperceptível.
— Un immense merci, Margot. — Pousei minha mão na dela, com
firmeza.
Acompanhei os paramédicos até a entrada da residência, quando um
vento cortante me atingiu de súbito, provocando um arrepio ao longo da
espinha. Meu corpo inteiro tremia, enquanto enfiava os braços pelas
mangas do paletó, mas logo o toque acetinado do forro espalhou um calor
reconfortante por cada poro da pele.
Todos os procedimentos foram tomados na ambulância durante o
trajeto até o hospital mais próximo do 8º arrondissement de Paris. No
caminho, mantive as minhas mãos unidas com força diante da boca,
rezando uma prece fervorosa pela saúde do meu filho.
Segurei na mãozinha fria dele com delicadeza, lutando contra uma
onda de impotência que já invadia a minha alma. Meu menino ainda estava
desacordado, e sua pressão arterial parecia estar bem abaixo do normal.
Uma nova torrente de lágrimas fluía pelos olhos já injetados, com
meu peito sacudindo em espasmos violentos, à medida que os soluços
brotavam da garganta.
Nunca desejei tanto que tudo não passasse de mais uma travessura
dele.
Benjamin fingia estar doente quando passava as férias ou os finais
de semana com Jean, coincidindo exatamente com minha agenda de
trabalhos na cidade. Ele não mediu esforços para me reaproximar do pai,
que se trancava durante horas no escritório, pois não queria correr o risco de
me ver na casa que um dia também foi meu lar.
Ele mentiu tanto nas últimas vezes que ninguém poderia imaginar
uma hospitalização, ainda mais naquelas circunstâncias.
Quando recebi a chamada de vídeo do meu filho pela última vez,
desconfiei que tudo não passava de um fingimento, mas embarquei para
Paris mesmo assim, tendo em vista a proximidade da data do meu
depoimento como testemunha de um novo processo movido contra Patrick.
Eu fui a primeira a quebrar o silêncio sobre o caso e felizmente não
fui a última.
No início da semana recebi uma ligação do meu advogado,
informando que a ação inicialmente arquivada pela Promotoria de Paris, foi
finalmente confiada a um juiz de instrução. Senti um grande alívio quando
soube que pelo menos outras três modelos também deram seus depoimentos
à Justiça.
Meu ex-agente se sentiu vitorioso já na primeira instância, mas a
investigação foi retomada graças ao Tribunal de Apelação.
Patrick prometeu se vingar de mim por ter incentivado outras
meninas a prestar queixa. Acabei não dando muita importância às ameaças,
mas quando soube que Jean o confrontou na agência a ponto de partirem
para a violência física, pensei se aquilo não seria suficiente para um plano
de vingança que atingisse não apenas a mim, mas também ao meu ex-
marido.
Meu coração parou de bater por uma fração de segundo.
Passei a mão trêmula pelos cabelos, tomada por um pressentimento
muito ruim em relação àquilo tudo.
— O que pode ter acontecido com ele? — A minha voz falhou um
pouco, o que me fez engolir em seco, com desconforto.
— Apresentou um quadro de intoxicação aguda, resultante da
ingestão de alguma substância. Pode acontecer de uma criança ingerir
acidentalmente, mas no caso dele certamente foi algo provocado...
— Vocês estão falando de envenenamento? — Não sei como eu
consegui formular aquela pergunta. — Nossa família achou que foi
intoxicação alimentar...
— Somente os exames podem confirmar ou descartar de vez a
suspeita de envenenamento.
— Mas o meu filho vai ficar bem? Por favor, não mintam para mim.
— Minha voz saiu sufocada, áspera e cortante, tudo ao mesmo tempo.
— Nós faremos tudo o que pudermos para salvá-lo, senhora.
O veículo cruzando a pista a toda velocidade aliada a informação
passada pelo paramédico me deixou muito tonta e enjoada. Inclinei o corpo
para a frente, mantendo a cabeça abaixada, para não ceder a vertigem que já
me invadia, sem o menor controle.
Marie-Claire
Marie-Claire
Dias depois...
Jean-Luc
Jean-Luc
Saint-Rémy-de-Provence.
Meses depois...
Marie-Claire
3 meses depois...
Mon Amour,
Esteja atenta aos sinais de uma possível gravidez :
FIM!
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[1]
“Minha querida”.
[2]
Uma espécie de pãozinho feito com massa folhada e recheio de chocolate.
[3]
Tradução: “Amor Sempre.”
[4]
Traduzindo para o português: "Traga a conta, por favor!"
[5]
Clássico da confeitaria francesa, popularmente conhecido como “bomba”, no Brasil.
[6]
Traduzindo para o português: "Traga a conta, por favor!"
[7]
Uma expressão muito utilizada pelos franceses, para designar alguém que se apaixona muito
facilmente, e que no sentido literal significa: “coração de alcachofra”.
[8]
Traduzindo para o português: “O Dia D”.
[9]
Traduzindo para o português: Eu amo vocês.
[10]
Paris Saint-Germain Football Club.
[11]
Protagonista do livro com previsão de lançamento: Dez/2024.
[12]
Tradução: “Escovo, escovo, escovo. Escovo, escovo, escovo. Eu escovo meus dentes”.
[13]
Tradução: “Escovo, escovo, escovo. Escovo, escovo, escovo. Eu os escovo com frequência.”.
[14]
Tradução: Meu pequenino.
[15]
Tradução literal: “Eu te amo, eu te amo, oh sim, eu te amo.”