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Copyright © 2021 Cinthia Freire

Capa:
Thais Alves

Preparaçã o de texto e Diagramaçã o:


Carla Santos

Texto revisado segundo o Novo Acordo Ortográ ico da Lı́ngua


Portuguesa.

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida ou transmitida por


quaisquer meios, sem a permissã o por escrito.
Capa
Folha de Rosto
Ficha Catalográ ica
Epı́grafe
Capı́tulo 1
Capı́tulo 2
Capı́tulo 3
Capı́tulo 4
Capı́tulo 5
Capı́tulo 6
Capı́tulo 7
Capı́tulo 8
Capı́tulo 9
Capı́tulo 10
Capı́tulo 11
Capı́tulo 12
Capı́tulo 13
Capı́tulo 14
Capı́tulo 15
Capı́tulo 16
Capı́tulo 17
Capı́tulo 18
Capı́tulo 19
Capı́tulo 20
Capı́tulo 21
Capı́tulo 22
Capı́tulo 23
Capı́tulo 24
Capı́tulo 25
Capı́tulo 26
Capı́tulo 27
Capı́tulo 28
Capı́tulo 29
Capı́tulo 30
Capı́tulo 31
Capı́tulo 32
Capı́tulo 33
Capı́tulo 34
Capı́tulo 35
Capı́tulo 36
Capı́tulo 37
Capı́tulo 38
Capı́tulo 39
Capı́tulo 40
Capı́tulo 41
Capı́tulo 42
Capı́tulo 43
Capı́tulo 44
Capı́tulo 45
Capı́tulo 46
Capı́tulo 47
Capı́tulo 48
Capı́tulo 49
Capı́tulo 50
Capı́tulo 51
Capı́tulo 52
Capı́tulo 53
Capı́tulo 54
Capı́tulo 55
Capı́tulo 56
Capı́tulo 57
Capı́tulo 58
Capı́tulo 59
Capı́tulo 60
Capı́tulo 61
Capı́tulo 62
Capı́tulo 63
Capı́tulo 64
Capı́tulo 65
Capı́tulo 66
Capı́tulo 67
Capı́tulo 68
Capı́tulo 69
Capı́tulo 70
Capı́tulo 71
Capı́tulo 72
Capı́tulo 73
Capı́tulo 74
Capı́tulo 75
Capı́tulo 76
Capı́tulo 77
Capı́tulo 78
Capı́tulo 79
Capı́tulo 80
Capı́tulo 81
Capı́tulo 82
Capı́tulo 83
Capı́tulo 84
Capı́tulo 85
Epı́logo
Nota da autora
Nota da autora II
Agradecimentos
Obras da autora
Biogra ia
Notas
“Meu coração amou antes de agora? Essa visão rejeita tal pensamento,
pois nunca tinha eu visto a verdadeira beleza antes dessa noite.”
(Romeu e Julieta)
Sons, cheiros e cores se misturam e me cercam, para todos os lados
que olho há uma cacofonia de sensaçõ es entorpecendo meus sentidos,
me deixando tonta, confusa e arrependida.
Acabo de levar um pisã o em meu pé , tento me esquivar, mas nã o
tenho muita escolha, olho em volta em busca de um espaço onde eu
possa me sentar, mas nem mesmo o chã o é uma opçã o, o lugar está
abarrotado de gente, corpos suados, coloridos, agitados, animados,
quentes... quentes demais para o meu gosto.
— Preciso beber alguma coisa. — Continuo minha busca, agora por
algum ponto de venda de bebida, mas nã o vejo nada alé m de um mar de
pessoas, até onde a vista alcança.
— Tem certeza? Se sair daqui, di icilmente vai conseguir voltar e a
pró xima atraçã o vai começar a qualquer instante — Roger, um dos
amigos do namorado da minha irmã , diz olhando para o pulso, muito
provavelmente por força do há bito já que nã o faz ideia de que horas vai
começar a tal da atraçã o. Encaro a antiguidade destoante do resto do
mundo em seu pulso e me obrigo a sorrir gentilmente.
Todo professor de Histó ria tem um reló gio de ponteiro clá ssico no
pulso, foi o que ele me disse a primeira vez que nos vimos, em um dos
encontros malucos que minha irmã arruma para mim sempre que ela
pode.
Mê s passado era um violonista alemã o que estava de passagem pelo
Brasil para um concerto gratuito em Sã o Paulo, mas ele se comportava
como se fosse a orquestra alemã tocando para a rainha. Arrogante e
loiro demais para o meu gosto.
Antes desse, fui em um encontro à s cegas com um cara que ela me
fez conhecer em um desses aplicativos de namoro depois de me dar um
sermã o sobre a vida ser curta demais para eu nã o experimentar algo do
tipo. Aceitei mais para ela parar de falar do que qualquer outra coisa.
Na foto, o rapaz parecia uma versã o mais humilde do Clark Kent,
meio tı́mido e bem bonitinho se diminuı́sse a quantidade de gel no
cabelo. Ao vivo, eu mal conseguia conectar o indivı́duo que só falava de
si mesmo com o cara da foto, eu nem tinha certeza se o seu cabelo era
mesmo daquela cor ou se o cara pintava. Sinceramente, nã o sei qual o
problema das pessoas com sua pró pria aparê ncia. E nem o da minha
irmã com a sua necessidade de me arrumar um namorado.
A verdade é que estou bem assim sozinha, mas, para Suzy, estou
começando a agir como uma professora de literatura centená ria, o
coraçã o consumido pelo amor proibido, trá gico ou sofrido dos
romances que preenchem cada vez mais espaço na minha casa. Sua
missã o, alé m de conquistar uma aliança no seu dedo anelar da mã o
esquerda, é me arrumar um homem, de preferê ncia um como os
romances de banca, que me faça gritar palavras obscenas e que nã o me
deixe com o coraçã o partido no dia seguinte.
Preciso dizer que ela está mais pró xima de conquistar o anel no
dedo.
— Tenho sim — respondo para Roger, que se balança para a frente e
para trá s exageradamente tentando parecer descolado. — E eu nem
gosto muito dessa banda — minto porque na verdade eu nem ao menos
sei qual banda vai tocar. — Acho que vi a Suzy ali atrá s. — Aponto para
um lugar qualquer, vou me encontrar com ela.
— Tudo bem entã o, vou icar bem aqui para a gente nã o se perder.
— Ele parece tã o feliz, que me sinto mal por nã o estar me sentindo
igual.
Entenda, Roger é legal, inteligente e, embora nã o seja bonito, gosto
do seu sorriso, ele faz com que seus olhos se fechem e deixe ele com um
ar de menino, mas é só . Nem uma fagulha, nada, é como se eu tivesse
acabado de reencontrar um irmã o perdido.
Triste eu sei, mas é a verdade.
Começo a abrir passagem entre as pessoas tentando encontrar o
caminho até a tenda que eu tinha visto, a multidã o parece ter triplicado
com o passar das horas e, à medida que o show principal se aproxima,
as pessoas se amontoam cada vez mais perto do palco di icultando a
locomoçã o.
Um idiota me agarra pela cintura e beija minha boca, é um beijo
rá pido, provavelmente uma aposta que o imbecil acaba de ganhar
porque um grupo de outros idiotas pulam e gritam enquanto encaro o
cidadã o que acaba de colar seus lá bios desconhecidos nos meus. Me
sinto de volta a sé tima sé rie e tenho certeza de que o cé rebro desses
imbecis parou de se desenvolver mais ou menos nessa é poca.
— Desculpa, eu precisava fazer isso. — Ele ergue as mã os na frente
do corpo enquanto se afasta com um sorriso presunçoso.
Bonito, mas nã o... de initivamente nã o.
Digo a mim mesma que nã o foi nada demais, ele parece tã o feliz que
me pego sorrindo enquanto toco meus lá bios com a ponta dos dedos e
volto a caminhar relembrando as palavras de Suzy quando
atravessamos os portõ es do festival hoje mais cedo: “Você tem que
prometer para mim, que ao menos hoje você vai viver, sem pensar em
nada, sem amanhã , sem porquê s, sem ró tulos, apenas viva como se
fosse o ú ltimo dia da sua vida”.
Preciso dizer que o ú ltimo dia da minha vida está longe de ser legal,
mas eu ainda estou tentando fazer o que ela pediu.
Depois de me espremer entre mais uma dezena de estranhos, avisto
a tenda bem na frente, um aglomerado de pessoas se amontoa diante
do caixa, braços estendidos, desesperados para serem notados, cé dulas
trocadas por latas de cerveja, copos de á gua e refrigerante. Um caos tã o
grande que me faz pensar o que diabos as pessoas veem de tã o
interessante num lugar como esse.
Olho desanimada para a guerra em busca de algo que aplaque
minha sede e o calor quando sinto, diante de toda a confusã o, um par de
olhos me observar, a princı́pio nã o me importo, muito provavelmente
deve ser mais um idiota com cé rebro atro iado, tento me encaixar na
multidã o, sou empurrada por um grupo de pessoas que nã o se dá conta
da garota pequena atrá s deles e dou um passo para trá s decidindo que
nã o estou com tanta sede assim.
Nesse momento, sinto o olhar dele novamente sobre mim, ele
parece se encaixar perfeitamente nisso tudo, o caos a sua volta nã o o
incomoda, o som da batida eletrô nica que ecoa ao fundo parece
combinar com o ar presunçoso que ele tem no rosto, apoiado na lateral
da tenda, com uma lata de cerveja na mã o, um cigarro nos lá bios que se
movem lentamente em um sorriso meio torto quando nota que o estou
encarando.
E um sorriso debochado, até mesmo um pouco pervertido e o olhar
é o olhar de quem acaba de ser pego fazendo algo errado, mas que nã o
liga, na verdade até mesmo gosta.
Um olhar con iante demais para um rosto tã o jovem, tranquilo
demais para um lugar tã o caó tico, bonito demais para ser ignorado.
Pigarreio e desvio o olhar sentindo meu rosto aquecer e dou graças
a Deus por estar escurecendo rá pido, assim ele nã o pode ver o efeito do
seu sorriso safado, mas parece notar porque seu olhar ainda está ixo
em mim enquanto ele retira o cigarro dos lá bios, como quem retira a
camisa.
— Você está bem? — Ele apoia um pé na parede e descarta a cinza
no chã o enquanto faz a pergunta, seus movimentos sã o tã o con iantes
que me pego hipnotizada pela forma com que os objetos se encaixam
tã o perfeitamente em seus dedos longos.
— Sim — respondo rapidamente sem dar ao meu cé rebro a chance
de pensar duas vezes.
O rapaz olha na direçã o de onde o idiota que me beijou está e me
sinto subitamente envergonhada ao pensar que ele viu o beijo. Quando
ele volta a olhar para mim, seus lá bios nã o parecem mais tã o largos sem
o sorriso.
— Tem certeza?
— Absoluta. — Ergo um pouco o rosto sem compreender o motivo
para que eu esteja tã o na defensiva, ele parece estar tentando ser gentil,
mas sinto-me incomodada, mesmo que ele nem ao menos tenha se
mexido, apenas me observa, como se esperasse que meu rosto entregue
algo mais que minhas palavras.
Olho mais uma vez para a tenda e decido que está na hora de dar o
fora, perdi a vontade de enfrentar essa manada de bú falos por causa de
um copo de á gua, principalmente com esse estranho me encarando
dessa forma.
Passo a mã o na nuca sentindo os ios soltos começarem a grudar na
minha pele ú mida e um desconforto na boca do estô mago, imagens do
sofá do meu apartamento invadem minha mente e a garrafa de á gua
gelada, gratuita e con iá vel que está na minha geladeira me faz desejar
chorar.
Talvez minha irmã tenha razã o, preciso sair mais, eu já nã o sei mais
como agir em um ambiente que nã o seja minha casa ou o meu trabalho,
principalmente se for na presença de um cara bonito.
— Preciso ir — digo já me afastando, mesmo sabendo que ele nã o
perguntou nada e me sinto uma idiota sem graça, o rapaz move a
cabeça em um aceno discreto e volta a colocar o cigarro nos lá bios. O
brilho da ponta ilumina seu rosto dando a ele uma aparê ncia sombria
que faz com que o ar escape dos meus pulmõ es.
Eu sou tã o paté tica...
Dou meia-volta e estou prestes a caminhar em direçã o ao lugar onde
imagino que deixei Roger, espero que Suzy e Xavier já estejam de volta,
a multidã o parece ter triplicado e dou apenas alguns passos quando as
luzes do palco se apagam, gritos ecoam por todos os lados, uma
avalanche de corpos passam por mim, todos desejando estar mais perto
da banda que começa a entrar, cada um em sua posiçã o e, quando o
vocalista envolve o microfone em suas mã os e grita um boa-noite Sã o
Paulo com sua voz rouca, sinto o chã o sob meus pé s estremecer.
Essa nã o... nunca mais vou conseguir voltar para lá .
Dou mais alguns passos para trá s enquanto olho hipnotizada a
banda envolver as milhares de pessoas em sua energia, nã o sou fã deles,
mas preciso admitir, os caras sabem o que estã o fazendo.
A multidã o começa a pular com os primeiros acordes da cançã o, sou
empurrada mais uma vez, me obrigando a me afastar até que sinto
minhas costas se chocarem com um corpo, me desequilibro e sou
amparada por mã os fortes, dedos á geis que se cravam em minha
cintura com força impedindo-me de cair.
— Cuidado — ele sussurra em meu ouvido, sua voz parece suave
diante da cacofonia a minha volta e o calor do seu há lito causa um
arrepio estranho em meu pescoço suado.
Encolho-me e sinto seu sorriso em meu pescoço, nã o me viro, sinto
na forma com que seu sorriso se espalha por minha pele, na forma
con iante com que seus dedos se alojam em minha cintura, no cheiro de
cerveja e cigarro em seu há lito, que eu já sei quem é , mesmo sem ver,
porque, por mais estranho que pareça, eu ainda sinto seu olhar
arrogante sobre mim.
Até que ponto uma pessoa é capaz de ingir ser feliz?
Qual o preço a se pagar em nome da liberdade?
Eu posso responder.
Nã o há felicidade sem liberdade.
Eu sei disso porque nesse momento posso garantir, com a certeza
do sangue que corre em minhas veias e do coraçã o que pulsa em meu
peito.
Sou um prisioneiro.
Mesmo agora, aqui nesse lugar, rodeado de amigos, enquanto sinto o
vento em meu rosto e a cerveja gelada em minha garganta, enquanto a
mú sica enche meus ouvidos e a fumaça meus pulmõ es, sinto o peso dos
grilhõ es em meus tornozelos, o laço em meu pescoço, tã o forte que, à s
vezes, tenho a sensaçã o de que nã o consigo respirar. Eu sei.
Eu sou um prisioneiro.
— Ei, Nuno, onde você está ? — pergunta um dos caras da turma que
está comigo, mas realmente nã o me lembro do que ele estava falando.
Entã o sorrio e volto a colocar o cigarro na boca.
Minha mã e sempre diz que meu sorriso me salva, desde pequeno,
sempre que ela está brava comigo eu sorrio e ela se desmancha. Nã o é
essa a intençã o, claro, mas funciona, principalmente com as garotas.
Ele desiste de descobrir onde estou e volta a conversar com os
outros, um grupo de garotas passam por nó s, eles mexem com elas,
fazendo-as sorrir e eu me perco novamente em minha mente.
A verdade é que nem eu sei a resposta para essa pergunta, onde
estou, nã o faço a mı́nima ideia, com certeza nã o é onde deveria, há
muito tempo nã o sou mais dono de mim e deixei de me importar com
detalhes que nã o posso mudar. Mas nã o ligo, que se foda, hoje nã o é um
dia para pensar, hoje é um dia para se sentir vivo e é isso que eu quero
fazer.
Quero me sentir vivo, jovem, livre para fazer minhas escolhas.
Quero cometer erros, me embriagar, quebrar a cara, quero fazer
merda, me arrepender, chorar e sorrir, quero errar e aprender. Devagar
como tem que ser, atravé s das minhas escolhas.
Será um dia, tempo su iciente para um cara viver uma vida inteira?
Eu espero que sim, porque é tudo o que tenho.
Um dia.
A noite já está caindo, estou exausto e completamente só brio, ao
contrá rio dos outros que, a essa altura, devem estar caı́dos em algum
canto do festival, depois de um dia inteiro bebendo. Para meu
desespero, nã o consigo ser inconsequente, como se estivesse sendo
vigiado, como se a qualquer momento fosse ser pego fazendo algo
errado e levado de volta para o meu cativeiro.
— Aqui está . — O cara da tenda me entrega a cerveja gelada, um
alı́vio para um dia quente e agitado.
Abro-a e tomo um gole enquanto olho em volta imaginando como
vou encontrar quatro imbecis bê bados nesse mar de gente quando
meus olhos caem em uma cena. Nã o é nada demais, ao menos nã o em
um festival de mú sica indie com tantas pessoas espalhadas por aı́,
bebendo, fumando e em busca de diversã o, mas tem algo nessa cena em
especial que chama minha atençã o, talvez seja a forma como ela parecia
tã o alheia ao mundo a sua volta, como se nã o existisse mais nada alé m
dela mesma, ou a forma como o imbecil a agarrou abruptamente, sem
dar a garota chance de se proteger, talvez tenha sido o jeito com que
seus olhos confusos olharam para ele depois que se afastou, ou, quem
sabe, o sorriso sonhador e até um pouco infantil que iluminou seu rosto
enquanto ela se afastava, como se ser beijada por um estranho fosse
algo novo em sua vida.
O fato é que nã o sei ao certo o que me prendeu nessa cena, muito
menos o que me faz continuar olhando para ela, desejando
mentalmente que ela venha até mim, que se aproxime um pouco mais,
que me permita observá -la mais de perto, nã o sei, porra, eu nem ao
menos sei se estou fazendo algum sentido.
Talvez eu nem esteja assim tã o só brio como imaginei, ou talvez essa
cerveja esteja batizada porque, quando vejo que ela está caminhando
em minha direçã o, sinto uma agitaçã o esquisita em meu corpo.
O cé u violeta atrá s dela emoldura seus cabelos que estã o presos em
um rabo de cavalo alto, alguns ios estã o escapando, como se o
penteado já nã o estivesse mais aguentando a agitaçã o do dia.
Imediatamente passo os dedos em meus cabelos ú midos pelo calor
sentindo-me estranhamente tenso.
Ela nã o me nota, melhor assim, posso analisá -la sem parecer um
maluco. Tudo acontece rá pido demais, em um instante estou criando
coragem para ir atrá s dos meus amigos, no outro estou puxando papo
com essa garota linda, sem entender por que me sinto nervoso na sua
presença, nem porquê , de repente, preciso desesperadamente saber o
gosto do seu beijo. E quando ela se afasta faço algo sem pensar.
Eu vou atrá s dela.
A inal de contas, hoje nã o é dia de pensar em nada, hoje é dia de
viver.
E eu preciso viver, porra, eu estou desesperado por viver, nem que
seja só por uma noite.
Amanhã volto a ser apenas um maldito prisioneiro da minha vida.
A banda sobe no palco e a multidã o enlouquece, a garota parece
perdida e assustada, um grupo à sua frente começa a pular ao som da
mú sica e ela perde o equilı́brio, como uma cena ensaiada, ridı́cula
demais para ser narrada, ela cai em meus braços, seu corpo quente
desaba sobre mim e, antes que eu consiga sequer pensar, minhas mã os
estã o sobre ela, segurando-a no lugar, impedindo-a de cair.
Estamos tã o pró ximos que posso sentir o seu cheiro, poeira, suor e
perfume feminino inundam meu olfato e me aproximo desejando
colocar minha boca em sua pele, sentir o sabor salgado dela.
— Cuidado — sussurro, perto o su iciente para sentir ela
estremecer e um sorriso idiota se espalha por minha boca.
O tempo parece pausar nos segundos em que permaneço com as
mã os em sua cintura, alivio um pouco a pressã o com medo de machucá -
la, mas nã o me afasto, espero que ela faça algo, que me empurre, que
siga seu caminho, que nã o olhe para trá s, mas ela nã o faz nada, seu
corpo continua tã o perto do meu que posso sentir o calor emanando da
sua pele e tocando a minha e seu traseiro roçando meu jeans.
Puta merda.
O grupo à sua frente continua alvoroçado e ela dá mais um passo
para trá s, agora suas costas estã o coladas em meu peito, nossos corpos
tã o pró ximos que sei que ela pode sentir o meu coraçã o acelerado.
Viva, Nuno, apenas viva, nã o pense em nada.
Meus dedos se esticam na pele nua da sua cintura, se espalhando
por todos os lados, envolvendo-a em minhas mã os. Ela é tã o pequena,
que sinto que posso segurá -la inteira junto a mim, é o que quero fazer,
mas nã o faço nada, permaneço quieto, absorvendo cada segundo desse
momento, sentindo meu corpo aquecendo de tesã o, meus lá bios
implorando por beijar sua nuca, por passar minha lı́ngua em sua pele,
por provar se ela é tã o saborosa como parece.
Mas eu nã o faço nada.
Eu apenas espero, porque sei que ela quer o mesmo, sinto na forma
como ela se encaixa em meus dedos, como suas costas continuam em
meu peito, como seu traseiro pressiona meu pau, como sua respiraçã o
parece pesada, que seja lá o que estamos fazendo, ambos queremos a
mesma coisa essa noite.
Queremos viver.
Eu nã o consigo respirar...
Enquanto as palavras de Suzy se repetem em minha mente,
enquanto sinto seus dedos se espalharem por minha pele aquecendo-a
a um nı́vel quase insuportá vel, enquanto seu há lito em minha nuca
causa arrepios por meu corpo, eu nã o consigo respirar. E por falar em
corpo, posso sentir o seu, irme e duro, colado ao meu.
Encaixo-me com perfeiçã o nas curvas masculinas do seu corpo,
como se o meu fosse feito para se moldar ao dele, uma peça exata de
quebra-cabeça. Sorrio ao sentir ele se esfregando em mim, é ousado e
um pouco pervertido, mas nã o ligo.
Hoje tudo é permitido.
Ele está em toda a parte e tenho total consciê ncia de cada ponto em
que nossos corpos se colam e, mesmo assim, sinto como se ele nã o
estivesse fazendo absolutamente nada, só está ali, parado atrá s de mim
à espera das minhas açõ es para realizar as suas.
Controlado...
Entã o me aproximo um pouco mais, pressionando meu bumbum em
seu corpo, fazendo com que ele respire fundo em meu pescoço e seus
dedos se contraiam em minha pele.
Sorrio com sua reaçã o enquanto sinto como se ele estivesse me
segurando no lugar, ele parece estar no limite, mesmo assim deixa para
que eu decida o pró ximo passo e, embora eu nã o faça a menor ideia do
que estou fazendo, me movo ao som da mú sica, rebolando devagar,
sentindo as batidas frené ticas disputarem com a força com que meu
coraçã o bate. Suas mã os seguem meu ritmo, ainda coladas em minha
pele, me conduzindo, sinto seu corpo també m se movendo, de um lado
para o outro e fecho os olhos deixando-me levar.
E a coisa mais excitante que já iz na minha vida.
Aqui, no meio de uma multidã o de pessoas, dançando com um
completo estranho, sentindo seus dedos me segurando junto a si,
desejando coisas que só de pensar fazem meu rosto corar.
Ficamos um tempo assim, nos torturando com migalhas de algo que
nenhum dos dois tem coragem de fazer, o mundo a minha volta canta
em coro o refrã o de uma mú sica que nã o saberia dizer qual é nem que a
minha vida dependesse disso, enquanto sinto meu corpo cheio de tesã o
implorar para se aproximar mais dele.
Como anjos de Deus enviados para acelerar as coisas, o grupo a
minha frente me empurra, os dedos que até entã o estavam me tocando
suavemente, me envolvem em um abraço protetor, logo seus lá bios
estã o novamente em meu ouvido e aguardo por sua voz, mas ele nã o diz
nada, embora eu consiga sentir a sua respiraçã o pesada enquanto me
segura junto a si.
A mú sica muda, as pessoas parecem possuı́das, se chocando, se
empurrando, nos empurrando, e a cada toque externo, nos afastamos
mais da multidã o, sei o que estamos fazendo e nã o me importo, quero ir
com ele, quero ver onde isso vai dar, hoje quero ser como minha irmã
pediu: ousada, livre, viva.
Ele conhece a mú sica, seus dedos se movem em minha pele e posso
sentir seu corpo se mexer, pressiono um pouco mais o meu,
provocando-o de uma forma que nem sei de onde vem, mas que me faz
sentir poderosa quando noto a sua ereçã o crescendo atrá s de mim.
Ele apoia seus lá bios na curva do meu pescoço, palavras soltas
escapam de sua boca enquanto canta baixinho, só para mim, fecho
meus olhos e deito minha cabeça em seu peito deixando a mú sica
embalar nossos movimentos.
Seus dedos pressionam meus quadris, me puxando para mais perto,
sinto sua ereçã o aumentar e esfrego minha bunda nela, ele solta um
palavrã o e sorri, mordo o lá bio e estremeço com o erotismo disso tudo,
passo a ponta dos meus dedos por seus braços, sentindo o relevo das
veias masculinas nos antebraços, subo até a dobra do cotovelo e desço
até seus dedos, repito mais algumas vezes, ainda de olhos fechados,
tentando me concentrar em sua boca, em como as palavras se formam
em seus lá bios, em como, à s vezes, a sua lı́ngua toca a minha pele, ou
talvez em seus dedos exigentes ou, quem sabe, em sua ereçã o que
implora por atençã o.
Ainda nã o me virei, ainda nã o vi seu rosto, mas a imagem do seu
olhar arrogante e do seu sorriso presunçoso naquela tenda, preenche
minha mente e desejo que ele esteja estampado em sua boca bonita
nesse momento, se espalhando enquanto ele olha para onde nossos
corpos estã o se esfregando, quero que ele seja permanente nos dias
seguintes, quando ele se lembrar desse momento insano com uma
completa desconhecida em um festival em torno de milhares de
pessoas.
A mú sica muda mais uma vez, sinto quando ele se acomoda e viro o
rosto para ver onde estamos, há uma parede atrá s dele, um mundo de
pessoas à nossa frente e um desejo insano e inexplicá vel entre nó s.
Estou entre suas pernas, sua boca acaricia minha pele, devagar,
subindo e descendo por minha nuca, pela primeira vez desde que eu
quase caı́ sobre ele, uma das suas mã os se afastam do meu corpo para
livrar meu pescoço dos ios ú midos, dando a ele livre acesso para me
beijar.
Sua lı́ngua dança em minha pele, passando por meu pescoço,
chegando a minha orelha, percorrendo todo o caminho até chegar ao
outro lado, enquanto sua mã o segura meu cabelo e a outra escapa da
minha cintura, subindo pela lateral do meu corpo até encontrar o
caminho para dentro da minha camiseta.
Eu deveria parar, estamos em pú blico, eu nem ao menos sei quem
ele é , Jesus Cristo, eu mal vi seu rosto, mas nã o consigo, digo a mim
mesma que estou cometendo uma loucura, como um daqueles tó picos
que todos devem fazer na vida, do tipo plantar uma á rvore, escrever um
livro, transar com um desconhecido em um festival.
Dane-se, eu nã o me importo, nã o agora, talvez quando o show
acabar e ele disser que precisa ir, quando o tesã o passar, quando meu
corpo esfriar, tanto faz, nã o ligo para nada, só para a sua lı́ngua em
minha pele e suas mã os em meu corpo. O resto eu penso depois, terei
uma vida toda para isso.
Seus dedos se enroscam na renda do top que estou usando e sorrio
relembrando de Suzy me dizendo que eu estava sexy com ele. Quero
que ele me ache sexy també m, quero que ele enlouqueça a cada parte
tocada, em cada beijo dado. Quero que ele se esqueça de tudo assim
como eu.
Seus dedos continuam se movendo ousadamente até cobrir todo o
meu seio, e continuam até chegar a meu mamilo, eles se fecham nele,
pressionando-os devagar, deixando-os duros, aumentando a força, me
fazendo choramingar.
Deus...
— Você gosta assim? — ele pergunta, sua voz, rouca e baixa, é tã o
bonita que faz meus joelhos fraquejarem, enquanto esfrega seus dedos
em mim, o tecido aumenta ainda mais o meu prazer.
Movo a cabeça a irmando, empino minha bunda em sua ereçã o,
desejando aliviar a pressã o que estou sentindo e ele geme, arfo de
prazer quando sinto ele chupar minha pele e nã o dou a mı́nima se
amanhã terei que explicar onde foi que consegui esse chupã o. Nesse
momento quero ser marcada por ele, em todos os lugares possı́veis,
enquanto minha mente vaga pelos lugares que ele nã o terá acesso.
O som molhado dos seus lá bios em mim se sobrepõ e a tudo, a
respiraçã o pesada e os gemidos que ele solta a cada investida minha em
sua ereçã o me fazem perder o controle, ergo a mã o e enrosco meus
dedos em seus cabelos, puxando-os para mim.
— Caralho... — ele geme, suspira, enlouquece.
A pressã o aumenta, ele está se esfregando em mim, tentando se
aliviar e sinto que mesmo assim ainda é pouco, quero mais, preciso de
mais, mesmo que eu nã o faça ideia de como fazer isso aqui.
— Eu quero você — ele diz como se pudesse ouvir meus
pensamentos e suas palavras disparam uma descarga de adrenalina em
meu corpo.
— Ah, meu Deus... — sussurro, gemo, choro, digo... nã o sei, nã o faço
ideia do que está acontecendo, nesse momento sou um amontoado de
cé lulas em ebuliçã o, sendo manipuladas pelas mã os e boca desse
estranho e, por mais maluco que pareça, nunca me senti mais viva em
toda a minha vida.
Ela está em todo lugar, me torturando com seu cheiro, me
enlouquecendo com seu gosto, me matando com sua bunda deliciosa
pressionando meu pau.
— Eu quero você — digo, mas nã o reconheço a voz que escapa da
minha boca, é quase animalesca de tanto tesã o. Olho em volta e noto
um grupo de pessoas nos observando, uma das garotas parece excitada
com o que vê , seu sorriso safado me deixa ainda mais duro e gosto
disso, gosto de saber que estamos na frente de uma multidã o, que
minha mã o está em seu seio e mesmo assim ela nã o se importa em ser
tocada por um estranho.
— Ah, meu Deus... — ela choraminga e é o que preciso para tomar
uma decisã o.
Eu preciso dela, agora, ou sou capaz de explodir como a porra de
uma bomba de tesã o bem aqui, no meio dessa merda.
Me afasto apenas o su iciente para respirar fundo e enrosco meus
dedos nos seus, virando-a de frente para mim e, pela primeira vez
desde que ela quase caiu, encaro seu rosto e quase perco o ar com sua
beleza, ela é ainda mais bonita assim de perto, seus olhos parecem
pesados de tesã o, seus lá bios entreabertos imploram para serem
beijados, seu corpo parece prestes a arder de tã o quente sob meus
dedos... meus dedos que ainda formigam com a sensaçã o de tocar seu
seio e meus ouvidos ainda estã o repetindo os gemidos dela enquanto
eu a estimulava.
Linda...
Deus, eu acho que nunca vi nada mais lindo do que essa garota
nesse momento.
Antes que eu consiga sequer pensar, minha outra mã o está em sua
nuca puxando-a para mim, Queens of the Stone Age toca no fundo, a
emoçã o explode em meu peito quando ouço a mú sica ser cantada por
milhares de pessoas, “eu quero fazer com você ...” é o refrã o perfeito
para esse momento, é o que eu quero, e é o que ela quer també m.
Ela se ergue na ponta do pé , com sua boca bonita a centı́metros da
minha, seu há lito aquecendo meu rosto, tã o pequena em minhas mã os,
tã o sexy, suada e descabelada, cheia de desejo; e, quando fecho meus
olhos e minha boca encontra a sua, quando nossas lı́nguas colidem,
aliviadas por inalmente estarem onde desejam, explosõ es de prazer
acontecem no fundo da minha mente, sua mã o livre brinca com minha
camisa, abrindo os botõ es, as pontas dos dedos tocando minha pele
sensı́vel, estremeço de prazer enquanto saboreio a sensaçã o de beijá -la.
Tudo entre nó s é natural, sexy e louco, sinto como se realmente
fosse o ú ltimo dia da minha vida e quero viver cada segundo disso com
essa garota linda. Quando me afasto e volto a olhar para ela, seus olhos
ainda estã o fechados, seu rosto corado e, quando ela volta a me olhar,
parece embriagada de prazer.
— Oi. — Um sorriso orgulhoso surge em meu rosto enquanto passo
os nó s dos dedos em sua bochecha.
— Oi. — Ela inclina a cabeça para a minha mã o e volto a beijá -la,
dessa vez um pouco mais devagar, saboreando a sensaçã o gostosa de
tê -la em minhas mã os, de sentir a ponta dos seus dedos brincando em
meu peito nu, de estarmos diante do mundo e, ao mesmo tempo,
completamente sozinhos.
Desço com meus lá bios por seu queixo, seu maxilar, a curva do seu
pescoço, até chegar a sua orelha.
— Vem comigo? — é uma pergunta, quase um apelo, um desejo,
uma imploraçã o.
Ela se afasta e, por um momento, sinto meu estô mago afundar com
a ideia de ela dizer nã o, de que eu, de alguma forma, tenha quebrado
nosso momento com essa frase idiota, a inal de contas, estarmos na
presença de tantas testemunhas é , de certa forma, uma maneira dela se
sentir segura.
Quero retirar a pergunta, quero voltar a beijá -la, dizer que por mim
tudo bem, que podemos apenas icar abraçados, sentir o cheiro
feminino do seu suor, o peso do seu peito junto ao meu, que quero icar
aqui, a noite inteira, a vida toda, por toda a eternidade.
Até o im da porra da minha vida.
Seus dedos, que ainda estã o em meu peito, sobem deixando um
rastro de calor e ansiedade por onde passam, seus olhos me observam
por um instante, apenas alguns segundos antes de desviarem para onde
sua mã o está , mas para mim é como se uma vida inteira passasse nesse
tempo.
— Vou — ela sussurra, tã o baixinho que só tenho certeza de que
falou porque vejo seus lá bios se movendo.
— Você con ia em mim? — pergunto, ansioso demais para parecer
algué m que mereça con iança. Ela ergue os ombros e sorri.
— Talvez, mas eu con io em mim — ela diz com tanta con iança que
meu pau se agita implorando por essa garota.
O sorriso se alarga em meu rosto, mordo o lá bio enquanto ela se
afasta, puxando-me para seja lá aonde a gente vá , balanço a cabeça
tentando manter os pensamentos em ordem, mas tudo o que consigo
pensar é na forma como ela mexe comigo.
Me afasto da parede e passo por ela, com meus dedos irmes sobre
os seus enquanto abro passagem por entre as pessoas, olho para trá s a
todo momento para garantir que ela ainda está aqui, mesmo que nossos
dedos estejam entrelaçados e caminho sem saber para qual lugar
estamos indo.
Sinto quando ela puxa meu braço e me viro para ela.
— Por aqui. — Ela aponta para uma viela entre duas tendas, é um
lugar mais reservado, mas ainda estamos cercados de pessoas.
Deixo que ela me leve até lá , meu coraçã o parece prestes a explodir,
me sinto um menino, ansioso pelo momento em que vou poder beijá -la
de novo.
— Bem melhor — digo quando ela se apoia na parede e me coloco
na sua frente, com as mã os em volta do seu rosto bonito. — Onde
paramos?
Ela segura as duas partes da minha camisa me puxando para si e o
sorriso bobo volta ao meu rosto quando ela passa a lı́ngua em meu
maxilar.
— Bem aqui — ela sussurra antes de me beijar. Envolve suas mã os
em meu corpo, alojando-as em minhas costas. Arranhando minha pele,
causando um misto de dor e prazer.
— Deus, você vai me matar — sussurro em sua boca enquanto ela
en ia uma perna entre as minhas e ergo a coxa para que possa se
esfregar em mim.
— De forma alguma. — Ela passa a lı́ngua em minha pele, me
provocando da mesma forma que iz minutos atrá s.
Espalmo minha mã o em sua barriga e me surpreendo com o fato de
que ela cobre quase toda a extensã o da sua pele, me pergunto como
pode algué m tã o pequena causar um furacã o tã o grande dentro de mim.
Subo minha mã o por baixo de sua camiseta até chegar ao seu sutiã ,
queria poder vê -la apenas com ele, mas tenho que me contentar com a
sensaçã o da renda em meus dedos, dessa vez afasto-o para que eu
possa tocar seu seio livremente, é seu ponto fraco porque no instante
em que meus dedos tocam seu mamilo seu corpo inteiro amolece e ela
joga a cabeça para trá s gemendo.
Deliciosa demais.
Sua saia sobe à medida que rebola em minha coxa, é quase
insuportá vel vê -la assim cheia de tesã o sem poder me enterrar dentro
dela como desejo. Passo minha mã o livre por sua coxa subindo até
chegar ao local que quero estar.
— Tã o molhada — provoco-a enquanto meus dedos acariciam o
tecido que cobre sua intimidade. — Tudo isso pra mim? — sussurro
antes de deixar um beijo em seu pescoço, mas ela nã o responde, ao
invé s disso, seu corpo se mexe sobre meus dedos, rebolando. — Você
gosta assim? — Empurro a calcinha e en io o dedo mé dio dentro dela,
meu corpo parece prestes a explodir quando ela geme e o sorriso volta
ao meu rosto. — Ou prefere assim? — Adiciono mais um dedo e sinto
suas unhas enterradas em minhas costas se afundarem, com certeza
será um lembrete de que essa noite foi real. — Você quer mais? —
Mordo o ló bulo da sua orelha enquanto pressiono minha ereçã o em seu
quadril.
Começo a mover meus dedos entrando e saindo de dentro dela, cada
estocada carregada de palavras sacanas e beijos molhados, seu pescoço
está todo vermelho e uma mancha começa a se formar na curva onde a
chupei, sua mã o se move até a parte da frente da minha calça e ela me
acaricia por cima do jeans, aumento a pressã o atento a cada respiraçã o
dela e, quando seu corpo começa a convulsionar em meus dedos, cubro
sua boca com a minha, sugando seus gemidos de prazer e enchendo
meu peito de uma sensaçã o estranhamente nova.
E, entã o, eu compreendo o motivo de estar sorrindo.
Estou me sentindo livre.
— Puta merda! você está linda! — Suzy grita exageradamente
quando apareço na sala fantasiada de roqueira sexy como ela pediu.
— Nem fodendo eu saio de casa desse jeito. — Aponto para a
minissaia que mal cobre minha bunda e para a regata rasgada que deixa
o top de renda preto que ela me deu de presente de despedida hoje de
manhã .
E para dar sorte com os homens, foi o que ela disse enquanto me
entregava a sacola da sua loja de lingerie favorita.
— Por que nã o? — Suzy pergunta como se fosse um absurdo.
— Olhe para mim, estou parecendo uma... — respiro fundo sem
querer ofender minha irmã por sua escolha ruim de roupas —
dançarina de bordel de beira de estrada.
— Posso garantir que você nã o se parece com nada disso. — Xavier,
o namorado/quase noivo da minha irmã , aparece na sala apoiando o
ombro na parede e cruzando os braços, me analisando como se eu fosse
um carro que eles estã o pensando em comprar.
Talvez um cavalo de carga seria mais apropriado.
— Viu só , ele é quem está falando. — Suzy ergue as sobrancelhas
vitoriosa.
A campainha toca no mesmo instante e Xavier abre
cumprimentando seus amigos, que vã o conosco nesse festival.
— Uau! — Roger nos olha como se estivé ssemos nuas e puxo a saia
um pouco mais para baixo.
— Eu vou tirar essa merda agora mesmo — resmungo baixinho,
mas nã o consigo sair do lugar, Suzy me segura como fazia quando
é ramos crianças e ela queria nos meter em alguma encrenca.
— Vai nada, você está gostosa e hoje vai se divertir como uma
mulher adulta — ela sussurra em meu ouvido.
— Eu devo cobrar por meus serviços també m?
— Nã o seja ridı́cula, sua roupa nã o de ine o que você é , mesmo
porque, se fosse assim, você estaria usando as roupas da vovó .
Reviro os olhos e pego a camisa de lanela que Xavier largou no sofá
na noite passada e amarro-a na minha cintura.
— Ao menos minha bunda está protegida.
Agora é a vez de Suzy revirar os olhos.
Xavier coloca o braço em meu ombro e me dá um sorriso fraternal.
Gosto dele, alé m de lindo é apaixonado pela praga da minha irmã ; ele é
um cara legal, que a faz feliz e aguenta a cunhada rabugenta em seu
apartamento, e isso é muito mais do que se pode esperar de um
cunhado.
— Ela tem razã o, que tal se divertir um pouquinho hoje? — ele
pergunta.
— Eu me divirto sempre — defendo-me porque é verdade, eu me
divirto, do meu jeito, com minhas roupas confortá veis e minha bunda
protegida do vento.
— Entã o, que tal ser um pouco mais... — ele faz uma careta
charmosa que tenho certeza de que derrete a calcinha da minha irmã
todos os dias e volta a olhar para mim — ousada?
— Eu nã o sou ousada.
— A gente sabe que nã o. — Suzy passa o braço em minha cintura e
bate a ponta do dedo em meu nariz, como se eu fosse uma garotinha. —
Mas hoje você será .
— Nã o sei se consigo.
— Basta você olhar para o espelho e saberá a resposta.
Suzy me vira para o espelho de corpo inteiro que ela tem ao lado da
porta e me vejo ao seu lado, somos pequenas, bem pequenas, abaixo da
mé dia nacional, e isso sempre foi um ponto positivo para mim, é fá cil
passar despercebida quando se tem 1,50m de altura, já Suzy sempre foi
a mais sexy e linda de nó s duas, ela sabe explorar o que tem de melhor
em seu pequeno corpo. Com certeza, minha irmã nã o é algué m que
passa despercebida por aı́.
Embora eu esteja confortá vel com quem eu sou, nunca liguei muito
para isso, gosto de ser discreta e elegante, acho que em toda a minha
vida nunca vi tanta pele exposta sem estar usando um biquı́ni na praia
e resisto à vontade de puxar a regata para cobrir minha barriga.
— Okay, somente hoje, prometo tentar.
Ela deixa um beijo em minha bochecha e se aninha nos braços do
seu namorado.
— Entã o vamos, que o dia promete.
Roger abre a porta e tento ignorar o olhar dele para as minhas
pernas.
E apenas um dia, Stella, só um dia e entã o você poderá voltar a ser a
tranquila e discreta garota de sempre.

Eu ainda nã o consigo respirar direito e dou graças a Deus por sua
coxa estar entre minhas pernas ou tenho a sensaçã o de que poderia
despencar aqui mesmo, bem debaixo do seu nariz.
Seria a situaçã o mais humilhante do mundo.
— Você está bem? — Ele ainda está com a cabeça apoiada na minha,
uma das suas mã os segurando minha cintura e a outra... bem, ela está
bastante ocupada, cuidando das minhas partes mais ao sul.
— Eu... acho que sim — digo ainda sem olhar para ele, estou
começando a recuperar o folego, minha mã o ainda está em sua ereçã o,
que, mesmo sobre o jeans, posso senti-la pulsar em busca de alı́vio, a
outra está dentro da sua camisa, em suas costas, onde com certeza
deixei uma boa lembrança da minha ousadia.
Ele sorri, um daqueles sorrisos arrogantes que o deixa
absurdamente bonito, sua mã o se move devagar, me acariciando e
fazendo meu corpo, ainda sensı́vel depois do orgasmo, estremecer.
— Tem certeza? Você parece tı́mida.
— Eu ico tı́mida depois de... você sabe.
— Gozar? — A palavra sai devagar da sua boca, como se ali fosse
seu lugar.
Respiro fundo e meu coraçã o dispara ao som dessa palavra. Como
pode uma palavra ser tã o sexy? Na verdade, como pode uma pessoa ser
tã o sexy?
— Isso — sussurro, fechando os olhos quando ele passa o nariz por
meu rosto, me acariciando antes de me beijar.
Dessa vez, o beijo é lento, gostoso, um beijo de quem nã o vai a lugar
algum, de quem tem todo o tempo do mundo para explorar a boca um
do outro. Sinto seus dedos saı́rem de dentro de mim e minha calcinha
voltar ao lugar de antes, estou vergonhosamente molhada e tento nã o
pensar nisso enquanto envolvo minhas mã os em seus cabelos sentindo
o suor deixá -los ainda mais bagunçados.
Ele apoia a mã o na parede e se afasta deixando a coxa que serviu de
apoio voltar ao lugar, tudo é tã o sutil que, se eu nã o estivesse atenta a
cada detalhe, nã o teria me dado conta.
Passo minhas mã os por seu peito sentindo a pele lisa e quente sob
meus dedos, paro onde seu coraçã o bate e sinto a agitaçã o dele, isso é
bom, signi ica que nã o sou a ú nica afetada aqui.
Passo a ponta dos meus dedos em seu mamilo e ele se retesa, agora
é a sua vez de sorrir com os lá bios ainda sobre os meus.
— Isso me deixa meio nervoso — ele confessa.
— Nã o gosta?
— Nã o muito — ele responde e gosto de saber algo tã o ı́ntimo sobre
ele, me pergunto quantos parceiros tê m essa facilidade de se
comunicar.
Baixo minha mã o por sua barriga sentindo a irmeza de um corpo
jovem, magro e de inido, ele para de me beijar quando meus dedos
passeiam pelo có s da sua calça e sinto sua pele se arrepiar.
— E disso você gosta? — pergunto enquanto passo a unha em sua
pele.
— Nossa, sim.
Desço um pouco mais chegando ao elá stico da sua cueca e ele
suspira apoiando a cabeça em meu ombro quando abro o botã o da calça
dele.
— Sabe, você nã o precisa fazer isso — ele diz colocando sua mã o
sobre a minha antes que eu consiga abrir o zı́per.
— Mas eu quero. — Viro o rosto para olhar em seus olhos,
desejando nã o encontrar repulsa em seu rosto. — A menos que você
nã o queira.
— Porra, eu... — ele suspira mais uma vez e desço o zı́per sentindo o
volume da sua ereçã o roçar minha pele.
— Me deixa cuidar de você .
— Eu tô tã o duro, que nã o vai demorar muito. — Sua voz se torna
mais rouca quando libero sua ereçã o e começo a acaricia-lo. Ele respira
pelo nariz, tentando manter um controle que nã o quero que ele tenha,
aumento um pouco a pressã o enquanto beijo seu pescoço, nesse
momento gostaria de ter a ousadia de falar sacanagens para ele, mas
nã o consigo, a timidez está quase me impedindo de continuar e preciso
me forçar a lembrar das palavras da minha irmã .
Seja ousada...
E isso que estou fazendo, me desa iando a ultrapassar os meus
limites, me permitindo sentir, me divertir, nã o há nada de errado em
encontrar um cara incrı́vel, sentir uma atraçã o absurda por ele e dar
uns pegas em um festival de mú sica, nã o é mesmo?
Ele apoia a outra mã o na parede, como se estivesse se segurando,
seu rosto agora está enterrado em meu pescoço e, ao contrá rio de mim,
ele nã o conhece a timidez, porque, à medida que vai icando mais
excitado, mais sacanagem sai de sua boca.
— Que mã o gostosa você tem — ele sussurra com a voz rouca
enquanto deixa beijinhos molhados em meu pescoço. — Você tá me
matando... — ele continua, mas a voz parece fraca demais, a respiraçã o
aumenta à medida que ele está quase lá . — Aperta meu pau — ele exige
e faço exatamente como pede. — Ah, porra, eu vou gozar — ele me
avisa e, ao invé s de icar constrangida como eu imaginei que icaria,
sinto-me absurdamente excitada quando ele começa a gozar na minha
mã o. Os sons que escapam da sua garganta causam arrepios em minha
pele e deixam meu corpo em chamas. E eró tico, intenso e indescritı́vel.
Sua mã o sobe por minha garganta e sua boca captura a minha, os
gemidos se misturam com a fome que ele tem em me beijar, continuo
tocando-o, com força, como ele parece gostar. Pouco a pouco, ele vai se
acalmando, suas mã os voltam a me tocar, dessa vez com carinho.
Arrumamos nossas roupas e icamos um tempo assim, abraçados,
satisfeitos e silenciosos, sinto sua respiraçã o se normalizando enquanto
sua boca procura a minha mais uma vez.
— Você é incrı́vel — ele diz depois de um tempo e sorrio me
sentindo orgulhosa e ousada como nunca fui, e provavelmente nunca
mais serei.
— Obrigada.
Fecho os olhos e, pela primeira vez, desde que nos escondemos
nessa viela, volto a ouvir o mundo a nossa volta.
— Nem vimos o show — digo com a cabeça apoiada em seu peito,
bem em cima de onde está o seu coraçã o agitado.
— Seus amigos estã o te procurando?
— Provavelmente sim.
Sinto ele hesitar e uma pontada de tristeza surge em meu peito.
— Você precisa ir?
— Nã o, ainda nã o.
— Nã o queria que essa noite acabasse — ele admite e me ergo para
encarar seu rosto.
— Eu també m nã o.
Ele afasta uma mecha do meu cabelo e deixa um beijo em minha
boca.
— Nã o precisa acabar.
Olho para o seu rosto notando detalhes que o desejo me impediu de
ver antes: seus olhos sã o enormes, as sobrancelhas grossas e
expressivas deixam pouco a imaginar sobre o que ele pensa. Enquanto
sorri ele se parece com um menino arrogante e debochado, mas quando
está sé rio, é atordoante de tã o belo. Seus cabelos precisam de corte,
mas talvez seja exatamente isso que o torna tã o bonito, selvagem,
rebelde.
Ergo minha mã o e toco os ios bagunçados, é a minha vez de
suspirar porque, por mais surreal que tenha sido o nosso encontro, ele
está chegando ao im e nã o há nada que possamos fazer para mudar
isso. Tenho um futuro que me espera fora dos portõ es desse festival e
nã o há nada que possa me desviar dele.
— Eu nã o posso icar — admito sorrindo gentilmente.
— Tudo bem, me dá seu telefone.
— Nã o posso.
— Nã o pode ou nã o quer? — Ele se manté m perto de mim, mas
sinto a surpresa em sua voz.
— Nã o posso.
— Você tem namorado? E casada?
— Deus! Claro que nã o.
— Entã o qual o problema?
— Nã o há problema.
— Entã o você tá me dispensando? — Um sorriso magoado surge
deixando-o sem jeito.
— Eu ainda estou aqui, nã o estou?
— Eu iz algo errado? Te machuquei?
— Nã o, você foi incrı́vel. — Espalmo a mã o em seu peito e acaricio
sua pele.
— Entã o nã o entendo. — Ele continua me observando, alheio ao
meu toque.
— Nã o tente entender.
— Você tem algué m.
— Eu já disse que nã o.
— Certo. Posso ao menos saber seu nome?
— Por que isso agora?
— E proibido saber seu nome?
— Nã o, é só que nã o há necessidade.
— Eu acho bem necessá rio saber o nome da garota que gozou na
minha mã o.
— Nã o seja grosseiro.
— Nã o sou grosseiro, sou realista.
— Você sabe muito mais sobre mim do que um nome.
— Entã o por que esse misté rio?
— Porque há verdades que nã o precisam ser ditas.
— Tipo o seu nome?
— O que é um nome se a lor que chamamos de rosa se outro nome
tivesse, ainda teria o mesmo perfume. — Sorrio ao citar Shakespeare na
esperança de parecer engraçada, mas ele nã o sorri. — E Romeu e Julieta
— explico, mas nem mesmo assim ele sorri.
— Eu sei que é , nã o sou tolo — ele diz e me surpreendo. Nã o é assim
tã o comum rapazes como ele se interessarem por Shakespeare. Sei que
parece preconceituoso, mas é a verdade.
Ele se afasta um pouco, suas mã os deixam minhas costas, seu rosto
se afasta, me analisando, como fez ao me ver pela primeira vez.
— Você está se vingando?
— O quê ?
— Aquele cara, aquele que te agarrou, é seu namorado? E isso, você
está me usando para se vingar dele? — Ele parece realmente ofendido.
— Nã o, eu já disse, nã o tenho namorado.
— Entã o por que diabos nã o pode me dizer o seu nome?
— Jú lia — digo rapidamente. — Meu nome é Jú lia.
— Jú lia? Nã o me diga que seu sobrenome é Capuleto.
Ele sorri, claramente magoado enquanto debocha e noto mais um
traço da sua personalidade, ele usa a ironia quando se sente magoado e
eu o magoei quando deixei claro que essa noite termina aqui. Será que
ele é assim mesmo, tão fácil de ler? Quanto tempo levaria até que eu o
conhecesse ao ponto de ler suas emoções sem precisar que ele abra a
boca?
— Infelizmente, nã o sou uma Capuleto. — Forço um sorriso
entrando em sua brincadeira e me odeio por estar mentindo para ele,
nã o quero estragar essa noite má gica com verdades, hoje quero ser sua
Julieta, passional, impulsiva e apaixonada, por nossa conexã o, pela
quı́mica avassaladora que temos, por seus beijos e toques, por sua voz
e, principalmente, por seu sorriso arrogante e debochado.
— Jú lia... — ele testa meu nome falso mais uma vez e imagino a
sensaçã o de ouvir ele me chamar de Stella. — Sou o Nuno — ele diz
mesmo que eu nã o tenha perguntado.
— Nenhum Montecchio?
— Nã o, mas posso arrumar um se você quiser — ele brinca e sinto o
clima icar mais leve.
— Bonito nome, gosto de Nuno.
— Eu també m gosto de Jú lia.
Ele volta a sorrir e me puxa para mais um beijo, que se torna dois,
trê s, quatro... Nos beijamos como dois adolescentes, sem pressa, sem
preocupaçã o, sem medo, apenas duas pessoas se conectando da forma
mais ı́ntima e delicada que existe.
Quando o beijo termina, ele volta a me abraçar, deito a cabeça em
seu peito e ouço seu coraçã o tranquilo. De onde estamos posso ver as
luzes do palco se acendendo, dando im à noite mais louca e intensa da
minha vida.
— Está acabando — ele diz se referindo ao show.
— Sim, está .
Nuno aperta seus braços em torno de mim, me puxando para mais
perto, fecho os olhos e inspiro o seu cheiro mais uma vez, tento gravar o
som do seu coraçã o, a sensaçã o gostosa de estar em seus braços e a
forma como me senti viva ao seu lado.
Era para ser um dia de liberdade. Durante todo o tempo me senti
livre para fazer o que eu bem quisesse e eu iz, entã o por que estou me
sentindo tã o mal?
Ela ainda está aqui, em meus braços, mentindo para mim como se
eu fosse um moleque idiota e talvez eu seja. Talvez seja isso que ela vê
quando olha para mim, o moleque idiota que meu pai sempre disse que
sou. Talvez ela tenha visto em meus olhos o grande perdedor que é
Nuno D’Agostinni e decidiu que nã o vale a pena.
Nem mesmo um nome.
Jú lia... ela poderia ter dito logo Julieta, seria tã o paté tico quanto.
Estou magoado, embora nã o entenda o motivo. A inal de contas, o
que eu esperava? Que ela me desse seu telefone, que eu ligasse para ela no
dia seguinte, que começássemos um relacionamento? Para quê?
Um prisioneiro tem direito a isso? Será que um punhado de horas ao
lado dessa garota foi o su iciente para que eu me esquecesse de que não
sou o dono do meu destino?
Ela aperta os dedos no tecido da minha camisa e deixa um beijo em
meu peito antes de começar a fechá -la. Quero pedir que pare, que nã o
faça isso, que me deixe como estou, mas nã o consigo, ao invé s disso,
mantenho meus olhos em seus dedos pequenos e delicados e na forma
como eles trabalham rapidamente. Relembro como eles envolveram
meu pau e me deram prazer.
Meu coraçã o ainda nã o voltou ao normal e me odeio por saber que
ela está sentindo ele bater forte na palma da sua mã o, quero tocá -la e
saber se o dela també m está . Mas de que adiantaria? Para qual lugar
quero chegar com isso? Desde quando me tornei um idiota carente?
Otário.
Matteo me mataria se me visse agora, aliá s, por culpa dele estou
aqui, me sentindo o maior trouxa do universo por ter levado um fora
depois de fazer uma garota gozar.
— Prontinho. — Ela dá uma batidinha em meu peito e um sorriso
sem graça. Odeio esse sorriso.
— Valeu, mas acho que pre iro você a tirando — brinco, mas sinto
que o nosso momento passou. Ela esfriou, eu me recolhi na minha bolha
de autopreservaçã o, voltamos a ser dois estranhos.
— Engraçadinho.
Olho em volta sem saber como agir, nã o quero parecer um cara
paté tico, ou ao menos nã o mais do que já fui, está claro que acabou
aqui, entã o por que nã o consigo ir embora?
— Acho que está na hora de ir atrá s dos meus amigos — digo
querendo logo dar um basta nesse clima chato.
— Sim, eu també m preciso voltar para os meus.
— Certo.
Me afasto dela e en io as mã os nos bolsos, é estranho que, embora
eu saiba que minha mã o esteve dentro dela, que seu cheiro ainda está
em meus dedos, agora me sinto tã o ı́ntimo dela como de qualquer outra
garota desconhecida dessa merda de lugar.
— Quer o meu nú mero? — pergunto em uma tentativa humilhante
de que isso nã o seja o im.
— E melhor nã o. — Dá mais do sorriso que odeio.
Onde foi parar a garota safada que rebolou nos meus dedos? E minha
dignidade? Sério, Nuno, que você praticamente implorou? Deus... que
papelão.
— Certo. — Passo a mã o no cabelo e olho para a multidã o que
começa a se dispersar.
— Nuno.
— Beleza, eu já entendi, sem contato.
— Eu... — ela ameaça começar a falar, mas desiste. Respira fundo,
olha em volta, e sinto que nã o valho sequer a sua justi icativa.
— Entã o acho melhor a gente ir, vai dar um puta trabalho encontrar
as pessoas nesse caos. — Odeio que minha voz soe irritada quando ela
parece tã o tranquila.
Jú lia, ou seja lá quem seja, olha para trá s de si e balança a cabeça
concordando comigo.
— E, acho que sim.
— Entã o, tchau.
— Tchau, Nuno.
Nã o consigo repetir o seu nome. Sei que ele nã o é de verdade e nã o
quero ser mais paté tico do que já fui.
Ela dá um passo para trá s e coloca o cabelo atrá s da orelha, em
seguida desvia o olhar para o chã o e se vira, caminhando para longe de
mim, ico parado, observando ela ir embora, com seu corpo pequeno e
sensual se afastando de mim até se perder no meio da multidã o, se
tornando apenas uma lembrança. Sei que a chance de encontrar essa
garota novamente é tã o absurda quanto a de dois adolescentes se
apaixonarem perdidamente em uma noite a ponto de preferirem
morrer a icar separados um do outro.
E isso só me deixa ainda mais chateado.

— Ei, me passa o leite. — Ivan estende a mã o do outro lado da mesa.


O cabelo loiro está amassado de um lado e ele fede a á lcool.
Os caras nã o param de falar sobre ontem à noite, ao menos os que
estã o de pé , metade da turma ainda está dormindo, ou desmaiados, em
coma alcoó lico depois de passarem a noite vomitando e chorando como
um bando de criancinhas.
— O show foi demais, nã o acha, Nuno? — Levi pergunta e balanço a
cabeça sem vontade nenhuma de responder, o pobre coitado do
moleque nã o tem culpa, aliá s, embora nã o sejamos assim tã o pró ximos,
ele é legal, legal até demais para que eu o ignore, mas a verdade é que
mal me lembro do show e acho que nunca mais vou ouvir Queens of the
Stone Age sem lembrar daquela garota. Talvez eu nunca mais ouça.
— O que diabos aconteceu com ele? — outro cara que nã o me
recordo o nome, mas que veio conosco na viagem, pergunta.
— Acho que tá de ressaca — Ivan responde com a boca suja de leite
como se fosse uma criancinha.
— Acho que ele nem bebeu — Levi diz, meio tı́mido, tentando se
enturmar.
— Entã o tá explicado — o idiota sem nome diz.
Todo mundo ri, ergo meus olhos e encaro cada um deles e minha
cara feia é o su iciente para que a zoaçã o pare.
— Ei, Nuno, você tá bem? — outro moleque pergunta. Jonas, eu
acho.
— Acho que vou voltar para a cama, estou exausto de limpar vô mito
e dar banho em marmanjo.
Levanto arrastando a cadeira e ignorando os comentá rios, sinto o
estô mago embrulhar ao perceber que a grande maioria das malas estã o
prontas, nossa fuga está chegando ao im, em breve estaremos de volta
a estrada e, por consequê ncia, à minha prisã o.
A liberdade está chegando ao im.
Entro no quarto e me jogo na cama, ignoro o ronco de um cara
gordo que está dormindo na cama ao lado e a ardê ncia em minhas
costas, fecho os olhos e começo a pensar na responsá vel por elas
estarem assim, nas suas unhas em minha pele, no seu corpo e nos seus
beijos. Nos seus gemidos. Ainda posso sentir seu cheiro e isso é o
su iciente para que meu corpo comece a icar agitado.
Insano.
A cada hora que passa tenho certeza de que o que aconteceu na
noite passada foi casual, fui o fetiche de uma mulher que decidiu que
queria fazer sexo com um estranho, ela nunca teve a intençã o de me
dizer seu nome porque nunca passou por sua cabeça me ver e, por
algum motivo, nã o gosto da sensaçã o de me sentir usado.
Ouço a porta se abrir e nem preciso abrir os olhos para saber quem
é , o colchã o afunda ao meu lado e sei que ele está se preparando para
falar.
— Olha, cara, eu sei que isso tudo é uma merda — Ivan começa.
— Nã o, você nã o sabe — interrompo o seu discurso antes que ele
perca o seu tempo e eu o meu.
— Estive do seu lado desde que eu me recordo, eu sei.
— Nã o, você pode imaginar, mas você nunca vai saber o que é nã o
ser dono da sua pró pria vida. Você sempre teve escolhas, eu nã o.
— Em um ano, muita coisa pode mudar Nuno — ele continua com
seu discurso motivacional.
— Nada mudou nos ú ltimos, o que te faz pensar que mudaria em
um?
— Esperança.
— Bobagem.
— Eu já vi vidas se transformarem em questã o de segundos, nã o
duvide do destino.
— Você tá bem esquisito, o que tá acontecendo?
— Vai se foder, babaca.
— Ufa, por um momento iquei com medo de você se debruçar e, sei
lá , dizer que me ama.
— Sem chance, esse corpinho aqui você nã o vai ter. — Ele dá um
tapinha em minha perna e se levanta. — Agora vê se dorme que tua
cara tá uma merda.
— Grande novidade.
Ele sorri, como sempre faz, como ele mesmo disse, desde que me
lembro ele sempre esteve ao meu lado, aliviando o peso da realidade,
sorrindo mesmo que nã o haja motivos, dividindo as merdas comigo,
como um bom amigo deve fazer.
Esperança, que coisa mais boba. Para que ela serve alé m de nos
fazer criar expectativas, que serã o destruı́das na primeira
oportunidade?
Respiro fundo e deixo que o velho Nuno volte à tona, o cara frio, à s
vezes até mesmo perverso e sem esperança. O cara que mais odeio no
mundo, mas o ú nico capaz de suportar a vida que me foi destinada.
— Meu Deus, você caiu da cama? — Suzy pergunta ao entrar na
cozinha e me ver tirando um bolo do forno.
— Na verdade, eu ainda nã o dormi — admito porque nã o precisa
ser um gê nio para notar isso.
Ainda estou usando as mesmas roupas da noite anterior, nem ao
menos a bota tirei.
— Está ansiosa com a viagem?
— Nã o.
— Já sei, está triste porque vai deixar a maninha aqui.
— Sinceramente? Nã o. — Sorrio e Suzy revira os olhos antes de
abrir a geladeira e pegar o leite.
— Entã o desembucha logo, o que houve para você estar assim?
Coloco a forma e cima da bancada e limpo minhas mã os no pano de
prato, me preparo para começar a falar, porque sei que só vou
conseguir parar quando terminar. Sempre fomos assim, desde
pequenas, nã o há segredos entre nó s, sempre contamos tudo uma para
a outra, desde as coisas mais bobas, até mesmo o desempenho sexual
dos nossos parceiros. Que Xavier nunca saiba, mas eu sei exatamente
como ele gosta de fazer sexo e o tamanho do seu equipamento.
Respiro fundo e me sento em um dos bancos esperando que Suzy
faça o mesmo.
— Ontem conheci um carinha.
— Eu sabia! — ela diz. — Você estava muito calada na volta para
casa, o olhar perdido e meio... descabelada.
— Todo mundo ica meio descabelado depois de um show.
— Mas nã o como você estava. — Ela toma um gole de leite e passa a
lı́ngua no lá bio superior limpando o resquı́cio, exatamente como
quando era criança.
— E como eu estava? — pergunto começando a me preocupar com a
minha aparê ncia. Será que estava tão óbvio assim que eu tinha acabado
de... me satisfazer com um estranho em um cantinho escuro?
— Vai logo, Stella, desembucha, porque, pela sua cara, a coisa foi
boa.
Um sorriso idiota se espalha por meus lá bios enquanto me preparo
para começar a “desembuchar” tudo para Suzy.
— Ele era... meu Deus. — Passo as mã os no rosto sentindo minhas
bochechas arderem com as lembranças das suas palavras sujas em meu
ouvido enquanto me tocava.
— Ai, nã o... pelo amor de Deus! Conta logo, tô icando nervosa.
Começo a contar tudo, desde o princı́pio, desde o momento em que
saı́ para comprar uma cerveja e fui atacada por um idiota, conto como
Nuno parecia destoar de todos a sua volta, como seu sorriso preguiçoso
fez borboletas se agitarem em meu estô mago desde o primeiro olhar,
como foi fá cil para mim me entregar aos seus toques, como nos
desconectamos do mundo e nos demos prazer ali sem nos importar que
houvesse milhares de pessoas à nossa volta. Como eu gostei disso.
— Puta merda! Eu sempre quis fazer sexo em um lugar pú blico. —
Suzy morde o lá bio enquanto ouve cada detalhe das coisas que izemos,
até as palavras que ele sussurrou em meu ouvido.
Falo sem parar, conto cada detalhe, o jeito como eu me senti ao
encaixar minha cabeça em seu peito, a forma como seus braços
pareciam perfeitos em torno do meu corpo, como ele me fez sentir sexy
só com o seu olhar, o quanto seu cheiro era bom e como me senti ao ver
ele gozar tã o livremente. Cada vez que seu nome escapa da minha boca,
um sorriso idiota se forma em meus lá bios, como se o pronunciar
tornasse tudo ainda mais real.
Nuno... Nuno... Nuno...
— Acho que foi a experiê ncia mais sensual da minha vida e eu nem
sequer tirei a roupa — digo ainda suspirando.
— Eu tô começando a achar que també m foi da minha vida e eu nem
ao menos estava lá — Suzy diz com seu ar debochado que sempre me
faz rir.
— Eu nunca imaginei que pudesse haver uma quı́mica tã o... —
Fecho os olhos por um momento e quase posso sentir seu toque em
minha pele.
— Intensa?
— Isso, Intensa.
Essa palavra de ine exatamente meu encontro com Nuno, tudo foi
intenso, desde o momento em que o vi parado me observando, seus
olhos intensos me encarando sem nenhum pudor. Como se já me
conhecessem, como se pudessem ver atravé s das minhas roupas, da
minha pele, da minha alma.
— Ah, minha irmã , estou tã o feliz por você . — Sinto a sinceridade
em seu olhar, Suzy sempre se preocupa demais comigo, talvez seja algo
de irmã mais velha, talvez seja culpa, ou talvez eu seja mesmo uma
pessoa que mereça um pouco de preocupaçã o.
— Eu sei que tá , era o que você queria, né , que eu fosse ousada. —
Ergo os ombros orgulhosa. — Eu fui.
— E mais que isso, estou feliz em saber que você se permitiu viver
uma experiê ncia, que se entregou ao desejo, que nã o teve medo de ser
uma mulher jovem ao menos uma noite.
— Eu sou uma mulher jovem.
— Na turma da terceira idade em que você se relaciona
provavelmente é .
Reviro os olhos para a sua provocaçã o.
— Ele é tã o bonito, Suzy, de um jeito meio exó tico, um rosto clá ssico,
alto, acho que nunca beijei algué m tã o alto.
— Ah, meu Deus, você está apaixonada! — Ela me olha como se eu
fosse uma criancinha falando de um brinquedo desejado.
— Claro que nã o — me apresso a falar. — Mas nã o duvido que seria
algo fá cil de acontecer, se fosse sempre tã o intenso estar com ele, nã o
demoraria para que eu estivesse caindo de amor.
— E quando você vai vê -lo de novo?
Baixo os olhos para as minhas mã os, o peso da culpa pela forma
como o tratei ontem me faz sentir cansada.
Eu sequer olhei para trá s quando o deixei ali, na viela,
completamente sozinho, porque eu sabia que se olhasse, voltaria para
os seus braços, aceitaria a sua proposta, terminaria a noite em sua cama
e depois... só tornaria ainda mais difı́cil dizer adeus.
— Ah nã o, Stella, nã o me diz que você já boicotou o que nem ao
menos começou.
— E por que você acha que fui eu? Nã o poderia ter sido ele?
— Claro que nã o, ele nã o seria louco de te dispensar, olhe para você .
— Ela aponta para a minha roupa. — Até eu me apaixonaria por uma
mulher dessa.
— Você é minha irmã , é sua obrigaçã o ser apaixonada por mim.
— Tá , eu sei, mas você é linda e está terrivelmente sexy com essa
roupa. E, pela narraçã o detalhada dos fatos, esse cara deve estar
tomando banho gelado desde a hora que chegou em casa.
Reviro os olhos sorrindo para o exagero da minha irmã .
— Deixa eu adivinhar, você fez a planilha mental dos pró s e dos
contras enquanto o cara gozava na tua mã o.
— Ele é mais novo que eu — digo o que pensei durante toda a noite,
uma das minhas fantasias mais ı́ntimas, permitir que um garoto me
tocasse, e enquanto ele a realizava, uma parte de mim dizia que era
apenas uma noite, que nã o havia problema algum, enquanto a outra, a
mais responsá vel, gritava que aquilo era errado.
E talvez tenha sido isso que me deixou tã o ousada, nunca iz nada
errado, sempre vivi uma vida cheia de perfeiçã o, tã o monó tona e sem
graça que poderia muito bem passar despercebida. Um grande quadro
branco.
Agora há uma mancha, uma linda e ousada mancha maculando a
perfeiçã o, uma que só eu sei onde está , que guardarei para mim e
lembrarei dela para sempre. O dia em que deixei um garoto me mostrar
o que é prazer.
— Como você sabe? Pelo que você me disse, a ú nica coisa que você
sabe é que ele se chama Nuno.
— Eu sei.
— Estamos cansadas de ouvir as pessoas nos perguntarem se
somos maiores de idade, foi assim a vida inteira e agora você está
julgando o cara pela aparê ncia?
— Nã o é só a aparê ncia, é tudo, dava pra ver no seu olhar, na forma
impulsiva como ele me tocava, no jeito que ele me beijava, como se nã o
tivesse medo de nada. Nã o sei explicar, é algo que se perde com o
passar dos anos, que se apaga diante da responsabilidade do dia a dia.
— E qual o problema se ele for mesmo mais jovem? Xavier é sete
anos mais velho do que eu e ningué m liga.
— Suzy...
— Ah, nem vem com esse discurso patriarcal — ela me interrompe
antes que eu comece a justi icar. Suzy é o tipo de pessoa que odeia
ró tulos, que acredita que o amor nã o deve ser medido e nem
quali icado, que acredita que nossas almas sã o todas iguais e que o que
as cobre sã o apenas carcaças frá geis e mutá veis.
— Eu vou embora, esqueceu? — tento outra justi icativa, já que o
papo de homem mais jovem e mulher mais velha nã o vai colar.
— Para outra cidade e nã o para outro paı́s.
— Eu tenho certeza de que para ele foi só uma curtiçã o, uma mulher
gostosa, uma noite excitante e inconsequente.
— Mas ele queria seu telefone.
— Para mais sexo sem compromisso.
— E você ?
Sinto o coraçã o acelerar ao me lembrar de como foi difı́cil me
afastar dele, dar as costas e nã o olhar para trá s, porque eu sabia que se
izesse isso, a ideia de uma noite ousada iria por terra. Eu queria mais.
Droga, eu ainda quero.
— Foi só uma noite de quase sexo com um estranho.
— E por isso que você passou a noite em claro, na minha cozinha,
tentando ocupar a mente com alguma coisa que nã o seja os dedos
má gicos e o pau de ouro do seu garotinho?
— Quem tem um pau de ouro? — Xavier pergunta entrando na
cozinha com um lado dos cabelos amassados enquanto passa a
camiseta pela cabeça.
— Oi, gostoso — Suzy diz quando ele se inclina puxando seu rosto
para um beijo.
— O que aconteceu com a Stella? — Xavier aponta para minha
roupa.
— Ela fez sexo em pú blico.
— Suzy! Eu nã o iz sexo.
— Minha querida irmã , preciso te contar uma coisa, tudo o que você
me contou se encaixa na categoria sexo.
Xavier ergue uma sobrancelha enquanto me encara como se tivesse
acabado de descobrir que nã o sou mais virgem.
— Pelo amor de Deus, você é insuportá vel, à s vezes, sabia? —
Levanto-me e passo por eles.
— Amor, nunca izemos sexo em pú blico, eu quero — ela diz com a
voz manhosa, que deve fazer meu cunhado escalar o Monte Everest nu
só para fazê -la feliz.
— Como assim, em pú blico? Stella realmente transou na frente de
todo mundo?
— Se você abrir a boca, eu vou te matar! — grito para a minha irmã
enquanto entro no banheiro, ela para de falar imediatamente, mas sei
que é só porque está esperando o chuveiro ser ligado para poder voltar
a falar com ele em paz.
Tranco a porta e me apoio na pia, encarando o rosto da suposta
mulher terrivelmente sexy que me olha no espelho, meu coraçã o ainda
está acelerado e digo a mim mesma que isso é apenas um indicativo de
que eu preciso ter mais sexo selvagem com estranhos.
Talvez eu me torne uma caçadora de desconhecidos por aı́ e um dia
essa noite se torne apenas uma bobagem diante da minha extensa
bagagem de safadezas noturnas.
Passo a mã o em meu rosto e pescoço sentindo o cansaço da noite
em claro me atingir, começo a me despir, primeiro a saia, icando
apenas de calcinha e depois a regata. Me observo no espelho durante o
processo, me permito fantasiar desejando que Nuno estivesse aqui, me
observando com seus olhos lindos e cansados, removendo minha roupa
com seus dedos gentis, acariciando minha pele com seus lá bios
calorosos, me marcando em lugares que só ele poderia ver.
Passo a mã o na renda do sutiã sentindo meus seios sensı́veis,
relembro a forma como ele me tocou e fecho os olhos enquanto repito
seu gesto. Meu corpo se agita com a lembrança, mordo o lá bio enquanto
me acaricio. Suas palavras sujas, seus lá bios, seu corpo... Meus dedos
passeiam por meu corpo, até chegar no lugar onde ele esteve, afasto a
calcinha, apoio uma mã o na bancada e com a outra faço o mesmo que
ele fez.
Mordo o lá bio com mais força quando sinto um orgasmo chegando,
silencioso e solitá rio. Minha respiraçã o acelera, minhas pernas
enfraquecem, mas logo me sinto vazia, nã o é a mesma coisa, nunca será .
Olho para o meu rosto, as bochechas rosadas de excitaçã o, o pescoço
marcado pelos lá bios estranhos na noite anterior, como imaginei que
icaria, a pele do quadril com hematomas causados por seus dedos e me
obrigo a lembrar que, assim como tudo relacionado a ele, vai passar.
— Foi apenas uma noite. — E o que digo para mim mesma enquanto
entro debaixo do chuveiro permitindo que as lembranças sobre ele
comecem a ser lavadas do meu corpo.
A viagem de volta foi um inferno, lenta, barulhenta e irritante. Um
dos carros quebrou e precisamos esperar até que um guincho se
dispusesse a nos socorrer. Foram horas em que tudo o que iz foi pensar
na merda da minha vida, no futuro que me espera e nela.
Nã o ajudou muito o fato de ter começado a chover no meio do
caminho e de eu nã o ter conseguido fumar nem um cigarro sequer
porque as janelas do carro icaram fechadas e um dos caras é asmá tico.
No im das contas, quando estaciono o carro na garagem de casa,
estou uma pilha de nervos, meus ombros estã o doloridos pela tensã o de
dirigir por horas a io depois de uma noite em claro e, apesar de ter a
consciê ncia de que passei praticamente o dia todo na estrada, sinto
como se a viagem nã o tivesse sido longa o su iciente.
Acendo um cigarro e fumo ainda dentro do carro, ligo o som e busco
uma mú sica, ignoro o fato de que Make it wit chu dispara nas caixas de
som, porque a verdade é que ela vem sendo tudo o que tenho ouvido
desde ontem à noite.
Idiota patético.
Apoio a cabeça no encosto e fecho os olhos, deixo que minha mente
volte para aquele beco, ico duro só de lembrar da sensaçã o dela
rebolando nos meus dedos, da minha boca no seu ouvido, da sua mã o
no meu pau. Nã o demora muito para que eu esteja repetindo seus
gestos; minha mã o irme segura minha ereçã o enquanto minha mente
inge que é ela aqui comigo, sua mã o pequena que mal se fecha em
torno dele seguindo meus comandos, o olhar excitado enquanto me
masturbava... gozo com força, sentindo o corpo cheio de tesã o relaxar, o
coraçã o acelerado, a mente repleta de perguntas que nã o consigo
responder.
Sinto como se meu corpo nunca mais fosse voltar ao normal, em
meio a uma excitaçã o estranha, uma agitaçã o em meu estô mago, uma
necessidade de algo que nã o sei o que é .
Puxo uma caixa de lenços e me limpo enquanto termino o cigarro.
Digo a mim mesmo que essa sensaçã o estranha é falta de sexo; por
melhor que tenha sido a noite passada, nã o passou de uma pegaçã o, eu
preciso trepar, é isso, apenas meu corpo implorando por algo que
instiguei a noite inteira, mas que no im nã o tive.
Sexo de verdade, de preferê ncia em uma cama.
Puxo minha mochila do banco de trá s e jogo nas minhas costas.
Enquanto saio, abro o celular e mando uma mensagem para Ivan
perguntando quando será a pró xima festa. Ele responde quase
imediatamente, amanhã tem uma, talvez eu vá , embora a ideia de
conversar com uma das garotas que conheço me deixe ainda mais
exausto.
A casa está escura e imagino que meus pais ainda nã o tenham
voltado do jantar bene icente que tinham essa noite, para a minha
sorte, nã o tô nem um pouco a im de fazer o papel de ilho hoje.
Subo para o meu quarto e vou direto para o chuveiro, tomo um
banho gelado e nem ao menos me seco, apenas enrolo a toalha no
quadril e me jogo na cama, exausto demais para pensar em alguma
coisa e entã o eu apago.

Acordo com o barulho vindo lá de baixo, nã o preciso me esforçar


para saber que meus pais já voltaram e, para variar, estã o brigando.
Estico o braço e pego meu celular, há dezenas de mensagens
aguardando uma resposta, mas a ú nica que eu gostaria que estivesse
aqui nunca terei.
Um sentimento de frustraçã o me atinge quando penso em como a
vida é uma merda, fui naquele festival em busca de diversã o e saı́ de lá
com as bolas azuis de tesã o e uma obsessã o idiota por uma garota que
nã o me quer.
Abro um dos grupos e leio a conversa por cima, a grande maioria é
pornogra ia e idiotices de futebol, busco o que realmente me interessa
até que paro em uma mensagem que chama minha atençã o:
Festa no Pátio do Corvo
hoje, às 22h.

E tudo o que preciso saber.


Olho no reló gio, já sã o quase 22 horas, ligo para Ivan enquanto me
levanto e vou até o armá rio atrá s de roupas.
— E aí, a princesa acordou? — ele fala do outro lado da linha.
— Tô indo no Corvo, passo aı́ em dez minutos.
Puxo uma camisa do cabide e começo a vestir, mas as lembranças
dos seus dedos me despindo fazem os pelos do meu pescoço se
arrepiarem e jogo a camisa no chã o.
— Peraí, você nem sabe se eu tenho algo mais interessante pra fazer.
— Cinco minutos.
Desligo o celular e abro a gaveta, puxo uma camiseta e passo pela
cabeça, visto um jeans e vou até o banheiro, minha cara tá uma merda,
há um vinco do lado esquerdo por causa do travesseiro e meu cabelo tá
uma bagunça, mas nã o dou a mı́nima, passo os dedos por ele e saio
pegando minha carteira e as chaves do carro.
Quando saio do quarto, noto que a discussã o acabou; imagino que
meu pai esteja no escritó rio e minha mã e em seu quarto lamentando a
vida de merda que ela tem ao lado desse babaca.
Odeio essa situaçã o, odeio saber que ele sempre vence as discussõ es
porque ela nã o tem força para lutar contra o grande Antô nio
D’Agostinni, mas, infelizmente, nã o posso fazer nada para mudar suas
escolhas, eu nem ao menos sei se consigo dar conta das minhas.
Quando chego na porta da frente, Ivan já está na calçada me
esperando, assim que aciono o alarme do carro ele atravessa o jardim
que separa as nossas casas e me cumprimenta.
— Que cara é essa?
— Tô irritado, preciso trepar.
— Desculpa, mas nã o tô a im — Ivan brinca e sorrio pela primeira
vez no dia.
— Você pode me passar esse baseado, já vai ajudar. — Estico a mã o
e ele me entrega o cigarro.
— Ei, o que você tem hoje? Ficou calado a viagem inteira. — Ivan
liga o som e procura por algo mais alegre que minhas mú sicas sombrias
e obsessivas.
— Tava cansado — respondo rapidamente.
— Tem alguma coisa a ver com a garota de ontem?
Arrependo-me de ter contado sobre ela para ele; no momento
estava eufó rico e queria dividir com algué m, e esse algué m sempre é
Ivan, mas agora sei que expus algo que poderia ser só meu e me sinto
meio ridı́culo.
— Nã o, isso já passou. — Coloco o baseado na boca e trago para me
impedir de falar mais alguma merda.
— Que bom, por que adivinha quem veio me perguntar se você vai
estar lá no Corvo hoje?
— Quem?
— A gostosa da Gabi.
Sorrio me sentindo mais animado, pergunto para ele o que ela disse
e Ivan conta tudo enquanto dirijo pelas ruas vazias da cidade, na
esperança de que eu esteja com a razã o, eu preciso de sexo e essa noite
promete.
A ú ltima semana voa com todos os preparativos para a minha
partida, Suzy inge que está tudo bem, mas vejo seus olhos marejados
toda vez que acha que nã o estou olhando. Foram dois meses com ela, o
maior tempo juntas desde que ela começou a namorar Xavier e se
mudou para o seu apartamento, dois meses depois. Todo mundo achou
loucura. Como assim, morar juntos com tã o pouco tempo de namoro?
Mas essa é a Suzy, a garota que nã o perde tempo, que tem pressa de
viver e que vive intensamente.
Foram dois meses deliciosos, achei que seria o su iciente, mas agora,
enquanto encho o porta-malas com as minhas coisas, noto que o tempo
nã o tem coerê ncia, passa rá pido demais quando estamos com as
pessoas que amamos e se arrasta quando estamos longe.
Durante esses dias, me peguei pensando sobre isso, enquanto
aproveitava cada segundinho ao lado da minha irmã . Minha mente
vagava pelas sombras escuras de um beco, onde um garoto atrevido e
sedutor me enlouqueceu como nunca nenhum outro homem fez.
Ele esteve em minha mente todas as noites, alimentando as
fantasias sexuais que me deram prazer; em todas elas, fomos mais
alé m... izemos sexo, nos reencontramos, nos apaixonamos, vivemos
uma quente e louca histó ria de amor. E todas as noites, ao fechar meus
olhos, revi seu sorriso bonito, seus olhos intensos, sua voz rouca.
Pelo menos dez vezes por dia pensei nele, me arrependi de nã o ter
pegado o seu telefone, só para depois dizer a mim mesma que foi
melhor assim, porque a garota que ele conheceu nã o existe, foi uma
fantasia criada para agradar minha irmã , que me mostrou um lado da
minha sexualidade que eu nã o conhecia até aquela noite.
Com certeza, Nuno odiaria a verdadeira eu, a Stella, nã o a Jú lia, a
mulher sem graça, que se acomodou na vida porque precisa colocar
suas responsabilidades em primeiro lugar, que tem a literatura como
paixã o e os amores proibidos e trá gicos como inspiraçã o para acreditar
que pode sim existir no mundo amores verdadeiros, mas que nunca
con iou seu coraçã o a um homem a ponto de descobrir se é capaz de
viver um.
Quando penso no olhar cá lido do garoto que conheci aquela noite,
imagino a mulher que ele viu a sua frente, sexy, ciente das suas
necessidades, con iante, destemida. Foi por ela que ele icou louco, foi
por ela que ele se decepcionou quando viu que nosso encontro nã o
teria uma segunda vez. Agora essa garota també m fará parte das
minhas fantasias, levarei comigo a sensaçã o de que ela me permitiu
sentir ao libertar meu lado feminino.
Mas ela nã o sou eu.
— Prontinho! — Suzy coloca a ú ltima sacola no banco do passageiro
e se afasta en iando as mã os nos bolsos do macacã o largo demais em
seu corpo franzino.
Sempre fomos muito pequenas, nossa mã e era ainda menor e nosso
pai adorava dizer que é ramos seus pinguinhos de gente, depois que a
mamã e se foi ele nunca mais nos chamou assim e, à s vezes, acho que
esse era um apelido ı́ntimo dos dois que acabou se estendendo para as
ilhas, mas que, ao perder a sua musa, deixou de fazer sentido.
— Eu venho te ver assim que tiver um feriado longo — prometo.
— Relaxa, vai dar tudo certo. — Ela sorri, mas a pontinha do seu
nariz está vermelha.
— Eu venho, nã o se preocupe. E qualquer coisa que você precisar, já
sabe, é só me ligar.
— Eu já disse que tá tudo bem, nã o precisa se preocupar.
Fecho o porta-malas e vou até ela, puxo minha irmã para os meus
braços e fecho os olhos sentindo o aroma de morango enjoativo dos
seus cabelos. Sempre detestei esse cheiro, mas agora que penso que
nã o vou mais senti-lo no banheiro começo a achar que, na verdade, eu o
amo.
— Eu te amo tanto — sussurro em seus cabelos.
— Ah, sou mesmo apaixonante.
Sorrio enquanto deixo um monte de beijos em sua cabeça e seu
rosto.
— Por favor, come direitinho, nã o ica acordada até tarde e nada de
á lcool.
— Ei, essa fala é minha, eu sou a mais velha aqui.
— Nó s duas sabemos que eu vou fazer tudo isso, sou uma idosa em
um corpo jovem, esqueceu?
— Claro que nã o.
Suzy se afasta dando espaço para que a emoçã o ique sob controle.
Olho para a sacola que ela colocou no banco do passageiro,
reconheço a alça da sua bolsa favorita e puxo-a para fora.
— Nem pense nisso. — Ela ergue a mã o me impedindo de começar a
falar.
— Você enlouqueceu? — Ergo a bolsa que custou quase um mê s de
salá rio dela e uma aventura digna de comé dias româ nticas e que
resultou no bonitã o, que agora divide a sua cama.
— De forma alguma, agora trate de usá -la e cuide bem dela por
mim.
— Eu te odeio. — Puxo-a novamente para os meus braços e desabo
em seu ombro chorando copiosamente.
— Jesus Cristo, é só uma bolsa! Se eu soubesse que você a queria
tanto teria lhe dado no ú ltimo Natal.
Sorrio porque nó s duas sabemos que nã o é só uma bolsa, é todo o
signi icado desse gesto, Suzy sempre foi uma irmã incrı́vel e, por mais
que ela seja cinco anos mais velha, sua alma sempre foi de uma
adolescente alegre e apaixonada pela vida.
— Obrigada — sussurro em seu ouvido, Suzy sorri e nos afastamos
no instante em que Xavier se aproxima com uma caixa nas mã os.
— Estou interrompendo algo?
— Nada demais, só uma demonstraçã o clara de interesse por parte
da minha irmã zinha — Suzy brinca e Xavier faz uma cara de quem nã o
está entendendo nada.
— Para você nã o icar com fome. — Ele me estende a caixa e sinto o
cheiro exalar fazendo meu estô mago roncar.
— Nã o brinca que você comprou coxinha para mim?
— Sua favorita, com cream cheese.
— Eu amo esse cara. Sé rio, Suzy, se você nã o se casar logo com ele,
eu vou pedir teu namorado em casamento.
O sorriso que se espalha pelo rosto da minha irmã faz meu coraçã o
dar uma cambalhota no peito, é lindo, exultante e tã o cheio de amor,
que me pego sorrindo també m.
— O quê ? — Olho para Xavier e ele tem o mesmo sorriso bobo. —
Você s estã o brincando comigo?
— Na verdade, ele já me pediu em casamento.
Olho para a sua mã o, mas nã o há nenhum anel, o que justi ica a
minha incompreensã o. No mesmo instante, Xavier ergue a camiseta e
Suzy desce a alça do macacã o, e entã o está lá , tatuado na pele, duas
alianças entrelaçadas e a data do dia do festival no meio delas.
— Era uma surpresa, desculpa, mas ele me fez prometer nã o contar
nada até fazermos a tatuagem.
Ainda estou de boca aberta, sem acreditar na coisa linda que estou
vendo, os olhos de Suzy transbordam de amor e seus olhos estã o
marejados, Xavier passa o polegar embaixo do olho esquerdo dela
carinhosamente quando uma lá grima fujona escapa.
— Já disse que nã o adianta chorar, agora você nã o vai mais se livrar
de mim.
Ela ergue o rosto para ele e, entã o, eles se beijam.
Sinto meu coraçã o in lar no peito, é disso que estou falando, o amor
de verdade, aquele tranquilo e singular, que acontece todos os dias,
milhares e milhares de vezes no mundo afora, é ele que me faz sorrir e
acreditar que histó rias de amor nã o existem só nos papé is.
Olho pela janela da pequena cafeteria que ica na Avenida Guido
D’Agostinni em homenagem ao meu avô e um dos fundadores da cidade,
nã o é a mais bonita, nem mesmo a maior, mas com certeza é a mais
movimentada da cidade e a minha favorita. Venho aqui desde que era
criança, a lembrança do bolo com chocolate quente é uma das mais
fortes da minha infâ ncia.
Ivan sai do banheiro secando as mã os na calça jeans, seu cabelo tá
molhado e esquisito e penso por um instante se devo ou nã o avisar, mas
esse é o Ivan e, sinceramente, ele nã o liga muito para essas coisas.
— E aı́. — Ele se senta no banco a minha frente e retira o celular do
bolso. Observo seus dedos se movendo rapidamente na tela,
provavelmente marcando de encontrar algué m na clareira onde vai ser
a festa de hoje. — Tem certeza de que nã o quer ir?
— Tenho, tô de boa hoje. — Baixo o olhar para o guardanapo em
minhas mã os e começo a picotá -lo.
— A Cindy já está lá — ele diz ainda digitando. — Tá perguntando se
você nã o vai.
Cindy é nossa amiga desde que me lembro, linda, loira, arrogante,
rica, mimadinha, é o sonho de consumo de metade dos homens dessa
cidade. A outra metade ela já pegou.
— Sem chances.
— Ela disse que a Gabi tá perguntando de você . — Ele ergue seus
olhos da tela.
— Ivan... — Olho para o meu amigo implorando mentalmente para
ele nem começar; para a minha sorte, ele parece entender e desiste de
tentar me fazer sair essa noite.
— Ah, que merda, você també m é foda, viu? — ele resmunga
enquanto passa a mã o no cabelo piorando a situaçã o que já estava ruim.
O problema é que apesar de saber que vai ser legal, que a maioria
dos meus amigos estarã o lá e de as chances de me dar bem essa noite
sã o grandes, eu nã o estou no clima para festas. Principalmente a parte
em me dar bem.
Gabi é linda e gostosa pra caralho, mas o sexo foi tã o morno que, em
alguns momentos, tive a sensaçã o de estar sozinho na cama. Nossa
quı́mica foi tã o ruim que demorei uma eternidade para gozar e quando
tudo acabou, cada um se vestiu em silê ncio, saı́mos do quarto como se
fô ssemos dois estranhos e desde entã o tenho evitado encontrá -la,
sinceramente nã o sei como agir quando vê -la novamente. Sei que
parece meio covarde da minha parte, mas que se foda, nã o tô dando
muita atençã o para isso no momento. Nã o fui e nem serei um babaca
com ela, apenas nã o tô pronto para esse encontro, nã o por enquanto.
Tento ignorar esse fracasso, todos os dias digo a mim mesmo que
tudo bem nã o ter dado certo, nem todas as pessoas conseguem sentir a
mesma conexã o uma pela outra, nã o signi ica que um de nó s tem algum
problema, só nã o temos quı́mica.
Tudo bem, talvez eu esteja com algum problema, deve ser o estresse
e a ansiedade pelas coisas que estã o por vir, ando agitado e dormindo
mal e tenho certeza de que isso está in luenciando meu desempenho.
Tenho certeza de que é isso, é só uma fase, vai passar. Nã o tem
absolutamente nada a ver com uma tal garota que me fez enlouquecer
apenas com as suas mã os em um beco escuro.
Nã o, absolutamente nada a ver.
— Certo, entã o vou indo. — Ivan se levanta, mas continua olhando
para mim com uma cara de piedade que está me fazendo ter vontade de
socá -lo.
— Vai lá , divirta-se e se cuida.
— Tem certeza de que vai icar bem aqui sozinho?
— Sim, você sabe que vou e nã o tô sozinho. — Aponto para o salã o
cheio e meu amigo me mostra seu dedo do meio.
— Certo... — Ele olha para o balcã o, depois olha para o lado de fora
no instante em que mais um carro para na frente da cafeteria.
— Se manda, caralho! — resmungo e ele inalmente começa a se
mexer.
— Qualquer coisa me liga — ele diz mesmo sabendo que nã o vou
ligar. Eu morreria antes de encher o saco do meu amigo por uma
besteira.
Ivan acena para Beth, que está no caixa, e bagunça os cabelos da
garotinha que está pulando no meio do salã o antes de abrir a porta da
cafeteria. Lá fora, um grupo de pessoas estã o se preparando para sair,
conheço a maioria deles, já saı́ com duas das garotas que estã o sentadas
no capô de um Ix35. Em uma noite normal, eu estaria lá com eles, com
um baseado na boca e uma garrafa de vodca na mã o, mas hoje nã o, hoje
só quero icar aqui, comer meu pedaço de bolo, tomar o chocolate
quente, mesmo estando uma noite fresca e icar sozinho com meus
pensamentos.
Hoje é dia de lembrar.
— Noite animada — Beth diz pouco tempo depois, enquanto vemos
os carros se afastarem e o silê ncio inundar a rua à nossa frente.
— Sexta-feira, né ?
— Pois é , algumas coisas nã o mudam nunca. — Ela sorri enquanto
empurra o prato com o pedaço generoso de bolo na minha frente. —
Será que eu errei alguma coisa nessa receita? Nã o me recordo a ú ltima
vez em que você nã o comeu um bolo meu.
— Você nã o erra nunca, o problema sou eu — admito.
— Esse problema tem a ver com garotas ou o motivo é o dia de
hoje?
Pego um pedaço do bolo e coloco na boca. Como disse, está
delicioso, mas parece areia quando desce por minha garganta.
— Nenhum dos dois, você sabe, já faz tanto tempo.
— Sim, seis anos é bastante tempo quando se é tã o jovem.
Balanço a cabeça concordando com ela, seis anos e mesmo assim a
dor parece igual, como se nenhum dia tivesse passado, imagino que
para ela nã o seja tã o diferente, acho que perder algué m que se ama
nunca é simples, nunca passa, nunca.
Conversamos mais um pouco sobre dor, saudade, lembranças, ela
me faz rir quando conta algo dele do qual eu nã o me lembrava e o
tempo passa sem que eu me dê conta. Rael, seu ilho, se junta a nó s, a
cafeteria vai se esvaziando aos poucos, até que sobram apenas eles e eu.
— Acho que vou indo — digo me levantando.
— Deixa eu pegar o bolo da sua mã e. — Beth també m se levanta e
vamos até o balcã o.
— Aqui está . — Ela me entrega a sacola e, dessa vez, nem tento
pagar, ela se recusa a receber meu dinheiro no dia de hoje, é seu jeito de
me dizer que ela sente muito e eu agradeço.
As vezes, tudo o que a gente precisa é saber que algué m zela por
nó s.
Despeço-me dos dois e saio.
Mais uma noite.
Mais um ano.

Apago o cigarro assim que desligo o carro na garagem, as luzes da


sala estã o acesas e imagino que minha mã e esteja assistindo a algum
ilme, talvez eu me junte a ela na frente da TV enquanto ela come seu
bolo.
Entro em casa animado com a ideia de passar um tempinho com a
minha mã e, faz tempo que nã o fazemos isso e acho que ela vai gostar,
chego na sala sorrindo, com a sacola erguida em minhas mã os, mas nã o
é ela que encontro ao me aproximar.
— Ah, é você — digo sem nenhum entusiasmo na voz.
— Desapontado? — meu pai pergunta inclinando-se para a frente,
encarando seu uı́sque no copo.
— Tanto faz, onde está a mamã e?
— Lá em cima, ela resolveu se deitar mais cedo.
— Ela está bem?
Ele inalmente olha para mim, com a expressã o de quem nã o está
nem um pouco a im de responder essa pergunta idiota no rosto.
— Claro que nã o, ningué m está e você sabe disso.
— Eu nã o sei de nada.
— O que você quer dizer?
— Nada, eu nã o quero dizer nada. — Me viro para subir as escadas e
levar o bolo para a minha mã e, mas meu pai tem outros planos para
essa noite e encher o meu saco está entre eles.
— Ei, Nuno, eu nã o terminei de falar.
— Mas eu terminei, fui.
— Pode parar aı́. — Ele levanta o tom de voz o su iciente para que
suas palavras sejam ouvidas até mesmo pelos mortos.
Respiro fundo e me viro novamente, nã o porque me importo com
suas ordens ou porque tenho medo dele, mas porque hoje nã o posso
brigar, só hoje, amanhã posso mandá -lo tomar no cu, hoje nã o.
— Desembucha.
— Olha o respeito, moleque.
— Nem começa com esse papo de respeito, já que isso é algo que
você nã o conhece.
— Eu ainda sou seu pai.
— Que bom que você sabe disso. — Sorrio de um jeito que o irrita.
— Você se acha o esperto, nã o é ?
— Eu? — Aponto o indicador em meu pró prio peito. — Estou longe
de ser, ou nã o moraria na porra da sua casa.
— Acho bom você controlar o seu tom comigo, nã o estou gostando
nada do seu comportamento.
— E o que você sabe sobre meu comportamento? Você mal para em
casa.
— Sei mais do que você imagina.
— E mesmo, interessante.
— O delegado me ligou, disse que uma viatura passou por seu
bando na semana passada, você estava dirigindo na estrada.
— Eu fui cuidadoso.
— Você tem ideia do que aconteceria comigo se você se envolvesse
em um acidente dirigindo um carro sem carta?
— Deixa eu pensar. — Faço uma cara de deboche enquanto injo
estar realmente pensando em algo, ele odeia meu comportamento e
quero que se foda. — Porra nenhuma?
— Engraçadinho.
— O delegado está cansado de me ver dirigindo, aliá s todos os
ilhinhos de papai dessa merda de cidade dirigem carros desde que
saı́ram das fraldas e ningué m nunca ligou para isso.
— Nã o na estrada, porra! — ele se altera e ergo o rosto para que ele
saiba que seus gritos nã o me assustam.
— Eu fui cuidadoso, nã o colocaria minha vida em risco, eu prometi a
mamã e.
— Acho bom mesmo, ao menos isso. Nã o quero mais notı́cias sobre
você e seus amiguinhos imbecis dirigindo na estrada, estamos
entendidos?
Balanço a cabeça sem dar a mı́nima para a sua tentativa de me
ameaçar.
— Beleza, obrigado entã o por ser um pai tã o foda. — Inclino minha
cabeça só um pouquinho e vejo em seus olhos o quanto consegui irritá -
lo com isso. — Posso ir agora?
— Pode.
Ele volta o olhar para seu uı́sque e saio da sala com o estô mago
embrulhado por ter trocado meia dú zia de palavras com ele.
Babaca dos infernos, se ele acha que pode me proibir de algo alé m
do que está sob o controle dele, está muito enganado, nã o esse ano, nã o
enquanto eu puder evitar.
Abro a porta do quarto e encontro minha mã e em sua cama, na
grande TV do outro lado do quarto está passando um reality show
sobre moda que ela ama e em suas mã os está a foto de Matteo.
— Oi, ilho, você chegou cedo hoje.
— Fui à cafeteria da Beth. — Ergo a sacola e ela abre um sorriso
enorme enquanto se afasta para que eu possa me sentar ao seu lado.
— A Beth é mesmo incrı́vel. — Ela pega o pote e o garfo de plá stico e
começa a comer imediatamente.
Tiro meus tê nis e me deito na cama ao seu lado, nenhum dos dois
diz nada, nã o há necessidade, tudo que havia para ser dito já foi, todas
as lá grimas já foram derramadas, agora o que resta é a dor, essa maldita
dor que dilacera nossos coraçõ es e nos faz lembrar todos os dias de que
nem sempre temos o controle de algo.
Ela coloca o porta-retratos entre nó s, o rosto do meu irmã o está
alegre e saudá vel, muito parecido comigo, o mesmo maxilar, a mesma
altura, à s vezes minha mã e diz que fomos feitos na mesma forma
porque Deus gostou do resultado. A diferença entre nó s é que Matteo
era dono da sua pró pria vida, já eu...
Estico meus dedos e acaricio o rosto imortalizado na imagem, ele
tinha exatamente a mesma idade que tenho hoje, aos dezessete anos ele
já se parecia muito mais con iante e feliz do que eu sou e, mesmo assim,
ele foi arrancado de nó s de uma hora para a outra, como se a sua vida
nã o valesse merda nenhuma.
A vida é mesmo uma vadia sem compaixã o e, na grande maioria dos
dias, eu a odeio com todas as minhas forças.
Monte Mancante é excepcional.
Um pequeno vilarejo, com uma das maiores rendas do paı́s, é
praticamente um pedacinho de tudo o que existe de mais bonito no
mundo, escondido no interior de Sã o Paulo, a pouco mais de trê s horas
da capital.
A cidade abriga o Colé gio Santo Egı́dio, um dos mais renomados e
caros complexo educacional do paı́s.
A Universidade Santo Egı́dio possui um dos mais modernos centros
de pesquisa da Amé rica Latina, acima de universidades conceituadas
como a USP.
Apenas um pequeno e seleto grupo de alunos conseguem uma vaga,
isso a torna uma das mais desejadas també m.
Sabe como é , oferta e procura.
Embora a cidade possua, em sua grande maioria, moradores
milioná rios, ela ainda abriga um ar quase que de contos de fadas em
suas ruas calmas.
Assim como nos romances.
As ruas de paralelepı́pedos sã o largas, as casas extravagantes, com
muros baixos e jardins que mais se parecem com exposiçõ es de lores
raras, de tã o belos que sã o. As poucas lojas sã o delicadas, pequenas e
tã o charmosas, que sinto vontade de parar e tirar foto de tudo; há até
mesmo uma catedral gó tica digna de um romance medieval. Quase
posso imaginar Quasimodo morando em sua torre.
Com uma arquitetura clá ssica, referê ncias europeias e muito luxo,
essa cidade se tornou meu sonho de consumo desde que vi uma
maté ria sobre ela em uma revista dedicada aos ricos e suas mansõ es.
Hoje inalmente estou aqui, ainda mais apaixonada por tudo o que,
nos ú ltimos meses, vi atravé s de fotos sobre esse lugar tã o especial,
fundada há quase um sé culo por um grupo de empresá rios europeus
milioná rios que desejavam algo exclusivo e só deles, que remetesse à s
suas origens, o que dá a cidade esse ar de estarmos em uma das ruas de
uma cidade do interior da Holanda.
Até hoje Monte Mancante é praticamente mantida e protegida pelos
ilhos e netos desses fundadores.
E tudo tã o bonito que nã o tenho pressa nenhuma para chegar ao
meu novo lar, me pego imaginando minha vida daqui em diante, quase
posso me ver sentada em uma dessas mesas charmosas, lendo um dos
meus romances, tomando um café , respirando a beleza e a
tranquilidade dessa cidade.
O meu coraçã o acelera ao pensar no futuro, um futuro lindo, cheio
de expectativas e sonhos, muitos sonhos.
Entro na avenida principal e caio na risada ao notar o pequeno luxo
de carros, aliá s, devo ser o centro das atençõ es da cidade com meu
modesto Corsa 2014, que mais se parece um carrinho de brinquedo ao
lado dos enormes e carı́ssimos modelos que passam ao meu lado, a
grande maioria SUVs.
E realmente surreal.
Quem sabe um dia serei eu dirigindo um desses até minha cafeteria
favorita para tomar um café e ler? Sonhar ainda nã o tá custando nada,
né ?
Viro a esquina e sigo o GPS por mais alguns minutos, o lugar é
exatamente como a imobiliá ria havia me informado, a rua inteira
tomada de pequenos edifı́cios de tijolinhos e belos jardins espalhados
por toda a calçada perfeitamente limpa.
Sinto-me em um cená rio de ilme de Natal e tenho medo até de me
mexer e estragar algo que eu com certeza nã o poderei pagar.
Subo as escadas do pré dio de trê s andares com janelas estreitas e
compridas que poderia muito bem estar localizado em uma ruazinha de
Nothing Hill, tamanho seu charme e excentricidade, e entro no pequeno
apartamento que consegui alugar. E um lugar modesto, a poucas
quadras do campus da Santo Egı́dio, o que facilitará a minha vida.
E uma rua exclusiva de dormitó rios para universitá rios,
aparentemente está sempre cheia de jovens e isso foi um ponto positivo
de acordo com Suzy.
“Você precisa mesmo se misturar com jovens, quem sabe a idosa que
vive dentro de você não se contamina com um pouco de imprudência e
comete alguma loucura saudável.”
E incrı́vel que tenha se passado algumas horas desde que a deixei e
mesmo assim eu já esteja com tantas saudades dela e da sua alegria
irritante.
Passo o resto da tarde subindo e descendo, esvaziando o porta-
malas e enchendo a sala de sonhos e expectativas, meu coraçã o
transborda de orgulho e ansiedade e me sinto feliz por ter decidido
tentar aquela vaga.
“O não você já tem, Stella, não custa tentar...”
Foram noites em claro, estudando, pesquisando e sonhando e,
quando recebi o e-mail informando que eu havia passado, abrimos um
vinho caro e ruim e bebemos até chorar.
Era um novo começo, uma nova chance para nó s duas.
Ergo o celular e aponto para o copo de café em minhas mã os,
escolho um â ngulo em que a fumaça se confunda com a paisagem,
capturo a imagem e envio para ela. Tomo um gole enquanto observo os
estudantes, ainda preguiçosos com o im das fé rias, caminhando pelas
ruas de chinelo, short curto e regata.
O celular vibra com a resposta e sorrio enquanto a leio.

Suzy: Por que você não está lá


embaixo conhecendo algum
gato que não seja peludo e
não tenha quatro patas?

Stella: Estou cansada, passei


o dia organizando coisas,
minhas pernas estão me
matando.

Envio e volto a tomar um pouco do café , que ainda está


surpreendentemente quente apesar da distâ ncia entre meu
apartamento e a avenida principal onde ica a cafeteria.

Suzy: Desce um pouco, quem


sabe não esbarra em um
estudante gostosinho.

Minha irmã é insistente.

Stella: Quero dormir cedo.

Volto a olhar para o apartamento.


E bem menor do que o que Suzy divide com Xavier. Na sala mal cabe
um sofá pequeno e uma mesa acoplada à parede com dois banquinhos;
a cozinha é minú scula e, no lugar de uma geladeira, tem um frigobar, o
que me faz pensar que precisarei cozinhar mais; o quarto é o melhor
cô modo do apartamento, tem espaço para uma cama de casal e uma
escrivaninha antiga e supercharmosa, que poderia ter sido usada por
Jane Austen no passado. A vista é linda e me imagino acordando no
inverno com o ar de cidade europeia medieval à minha volta e no verã o
com o aroma das lores em meu nariz.
No geral é um bom lugar, bem iluminado, confortá vel e, o melhor,
poderei caminhar para todo lugar já que ele ica perto da parte
comercial da cidade, o que vai contar como meu exercı́cio fı́sico diá rio.
Conversamos um pouco mais, faço mais algumas fotos do
apartamento e Suzy promete que vai passar um im de semana comigo
qualquer dia desses, nos despedimos algum tempo depois e sinto uma
agitaçã o em meu estô mago com a perspectiva do dia de amanhã .
A noite, ligo para o meu pai e conto a ele como é Monte Mancante.
Ele parece feliz por mim e diz que tem certeza de que me darei bem por
aqui. Depois de terminar a ligaçã o, eu peço uma pizza da ú nica cantina
da cidade e quase choro ao sentir a massa, de receita italiana de acordo
com o dono, se desmanchar na minha boca. Como enquanto assisto Jane
Eyre pela milioné sima vez, enquanto tomo um vinho meio ruim, mas
que deixa um gosto bom de independê ncia na boca.
Deixo tudo pronto para o dia seguinte, a roupa escolhida, o perfume,
a maquiagem, o secador de cabelo, tudo milimetricamente pensado.
Quando me deito, já sã o quase dez da noite e tenho mais uma hora para
ler um pouco: um suspense policial dessa vez; é uma boa leitura,
embora meu amor pelos romances sempre será maior, principalmente
os trá gicos.
Suzy diz que tenho um lado sá dico que se encanta pelo proibido e
que isso é algo que pode me levar a cometer uma loucura.
Acho que talvez ela tenha razã o, no fundo pode ter sido esse o
motivo para que eu nã o tenha dado meu nome para aquele rapaz. Ele
tinha cheiro de perigo, gosto de proibido e eu sabia que, se o visse mais
uma vez, nã o saberia mais como parar.
Ingredientes perfeitos para uma tragé dia.
Como uma viciada em romances que nã o terminam bem, talvez eu
tenha me adiantado a tragé dia e conseguido evitá -la.
E a cada dia que passa tenho mais certeza de que iz a coisa certa.
Gosto da vida tranquila e previsı́vel que levo, é uma boa vida; apesar do
que Suzy diz, me sinto completa, feliz e realizada para algué m tã o
jovem. Conquistei muito mais do que meus colegas e sinto orgulho de
poder ser exatamente quem eu quero ser.
Nesse momento sou feliz com a Stella Almeida de hoje, talvez
amanhã eu sinta falta de algo, mas aı́ é outra histó ria.
E o ú ltimo im de semana antes do im das fé rias, geralmente o mais
divertido de todos, festas quase todos os dias, como uma forma de fazer
com que nos esqueçamos que esse é , para a grande maioria de nó s, o
ano decisivo do resto das nossas vidas.
De onde estou posso ver futuros juı́zes, advogados brilhantes, CEOs,
mé dicos, talvez um ou outro polı́tico, quem sabe um futuro governador
do estado, presidente, um astronauta, um prê mio Nobel...
Mas nã o consigo enxergar ningué m realmente realizado, feliz de
verdade com suas escolhas, nã o vejo nada alé m da pressã o da grana, da
tradiçã o, dos testamentos, das obrigaçõ es, forçando costas jovens
demais para tanta responsabilidade.
E entre eles estou eu, apenas mais um fodido ingindo que é um
ilhinho de papai irresponsá vel, afogando o medo de falhar nas arruaças
imprudentes da juventude, mas que, na verdade, mal consegue respirar
ao pensar que meu futuro inteiro está traçado e nele nã o vejo nada
alé m de um cara infeliz.
Assim como meu pai.
— E aı́, animado para as aulas? — Cindy puxa um papo idiota
enquanto se senta ao meu lado. A saia, curta demais, sobe tanto que
posso ver a renda branca da sua calcinha e um pouco mais. Ela sabe,
mas nã o liga, essa é a Cindy.
— Tanto quanto como se estivesse indo para a forca.
— Acho que a forca seria mais rá pida, uns trê s minutos se você lutar
muito pela vida — ela brinca e sorrio.
Gosto da Cindy brincalhona e leve, estudamos juntos desde o jardim
da infâ ncia, assim como todos os outros que estã o aqui essa noite, algo
comum quando se vive em uma cidade que mais parece uma fortaleza,
onde um grupo de magnatas descartaram suas famı́lias para poderem
encher os rabos de dinheiro por aı́.
A grande maioria dessas pessoas tem a mesma base familiar, casas
imensas, paredes repletas de fotos tiradas por pro issionais renomados,
passaportes dignos de fazer inveja a qualquer viciado em viagens,
mesas enormes que se enchem sempre que o pai está na cidade com
seu grupo de investidores, mas que, na maioria do ano, está vazia,
acumulando poeira.
Famı́lias de porta-retratos.
— Sabe, eu estive pensando, talvez seja especial, talvez a gente
possa levar algo de bom desse ano para lembrar quando tudo for uma
merda — ela diz olhando para os pé s.
— E, pode ser. — Dou de ombros e puxo um cigarro do bolso de trá s,
está meio amassado, mas acendo mesmo assim.
Cindy desvia o olhar para Ivan, que parece tranquilo enquanto
abraça uma garota.
— As vezes, acho que o Ivan vive em outro mundo — ela diz, ainda
olhando para o nosso amigo que, nesse momento, en ia sua lı́ngua na
boca da garota.
— Como assim?
— Ele parece tã o... feliz. — Ela ergue os ombros. — Tã o confortá vel
na pele dele, como se esse mundo fosse realmente feito para ele.
— O Ivan tem sua cota de merda na vida, você sabe, estava lá
quando o mundo dele desmoronou.
— També m estava quando o seu ruiu.
— Sim, eu sei, mas ele sabe lidar melhor com sua vida do que eu.
— Você tá indo muito bem, pelo que tô sabendo. — Cindy dá um
empurrã o em meu ombro.
— Nã o sei do que você está falando.
Ela aponta o queixo na direçã o onde Gabi está e preciso de toda a
minha força de vontade para nã o fazer uma cara feia.
— Nã o tem nada acontecendo.
— Mas aconteceu.
— E daı́? Tô sabendo de você com aquele alemã o neto dos Schrö der.
— Foi só uma noite, ele nem faz meu tipo. — Ela joga uma mecha de
cabelo para trá s e volta a olhar para o casal se pegando do outro lado da
clareira.
— Todo mundo faz seu tipo, Cindy.
Ela sorri e joga o cabelo para trá s.
— Será que um dia a gente vai encontrar algué m que dure mais do
que uma noite?
— Nã o sei, nã o ligo para isso. Por que, você liga?
— Ah, sei lá , à s vezes eu penso.
— Nã o faz isso, pensar é a pior merda da vida, faz a gente se dar
conta de que nã o tem controle de nada.
— Eu gosto de nã o ter controle, de nã o saber como acaba o dia vai
acabar.
— Nã o ter controle me deixa nervoso pra caralho — admito.
— Tudo te deixa nervoso, Nuno. — Ela apoia as mã os para trá s e se
inclina, tenho certeza de que, nesse momento, todo mundo pode ver
sua calcinha, mas é aquilo, ela nã o liga.
— Do que você tem medo? — pergunto um tempo depois.
— De você e do Ivan se afastarem de mim.
— Você sabe que isso nunca vai acontecer, nã o sabe?
Ela dá de ombros e parece tã o tı́mida, que nã o reconheço a Cindy
que tem cada moleque dessa cidade na palma da sua mã o.
— Nã o, mas você anda esquisito.
— Eu estar esquisito nã o tem nada a ver com você .
No instante em que as palavras saltam da minha boca, sei que estou
falando a verdade. Estou esquisito, ansioso, agitado e mais irritado que
o normal, eu achei que tinha algo a ver com o aniversá rio da morte do
Matteo, mas me enganei.
Estico a mã o e descanso-a na coxa dela, Cindy coloca sua mã o sobre
a minha, os dedos se encaixam nos meus. A pele macia e morna é tã o
familiar e reconfortante, que, à s vezes, me pergunto por que a gente
nunca icou junto de verdade.
— Vai icar tudo bem — sussurro olhando dentro dos olhos dela.
— Promete? — Ela parece tã o assustada que por um instante nã o
sei se ela está se referindo a nó s dois ou ao resto das nossas vidas.
— Prometo.
Ela ergue a outra mã o e pega o cigarro colocando-o em seus lá bios.
Sorrio enquanto admiro a forma sexy com que ela traga, entã o ela se
inclina e cola sua boca na minha, soltando a fumaça dentro dela.
— Obrigada — ela diz enquanto solto a fumaça no ar.
— Disponha.
Cindy se levanta, levando meu cigarro com ela, vestindo a fantasia
de garota sexy e poderosa, se juntando a um grupo de meninas e
fazendo o que ela sabe fazer de melhor: ingir.
Já eu nã o consigo mais, o fardo está se tornando pesado demais para
que eu possa carregá -lo.

Estou acostumado a beber. Ao contrá rio do que todo mundo pensa,


nã o sou um adolescente idiota que enche a cara pra pagar de bonzã o,
aprendi a beber em casa, com meu irmã o, aos onze anos. Ele sentou
comigo em uma noite, colocou um monte de copo na minha frente, me
fez experimentar cada um deles e me deu uma aula de como beber.
Naquele dia fui dormir de porre e acordei vomitando, Matteo limpou
tudo e cuidou de mim, depois ele olhou nos meus olhos e disse:
“Nem sempre eu vou estar aqui para limpar as suas merdas, tenha
certeza do que está fazendo e nunca deixe ninguém te embebedar.”
Pouco depois tudo aconteceu, foi tã o rá pido que tive a sensaçã o de
que ele estava se despedindo, me deixando uma lembrança, um
ensinamento.
Nã o costumo icar de porre, as vezes em que enchi a cara foi
totalmente intencional e me assegurei de ter Ivan ao meu lado. Mesmo
assim, todas as vezes em que isso aconteceu, no dia seguinte me senti
um merda, como se eu estivesse decepcionando Matteo de alguma
forma.
E um sentimento horrı́vel, quase uma dor fı́sica, e que me faz evitar
perder o controle.
— Acorda, bonitã o. — Cindy empurra meu ombro e gemo tentando
entender por que diabos ela está na minha cama.
Faço uma varredura mental pela noite passada, nã o bebi, tenho
certeza de que nem ao menos um baseado fumei, estou só brio. Entã o,
por que a trouxe comigo?
Abro os olhos e encontro nã o só ela, mas Ivan e mais duas garotas,
todos arrumados, como bonecos de cera, as garotas impecá veis com os
cabelos perfeitos e tanta maquiagem, que mais parecem prontas para
um ensaio.
— O que diabos é isso? — resmungo me levantando sem dar a
mı́nima para o fato de estar apenas de cueca e com uma ereçã o matinal
totalmente fora de hora.
Otimo, elas vã o ter o que comentar no intervalo.
— Viemos te acordar.
— Pra que isso?
— Achei que você precisava de um incentivo. — Ivan joga minhas
roupas em cima de mim e desvio o rosto as deixando aterrissarem no
chã o.
— Muito gentil da sua parte — digo de cara feia.
Vou para o banheiro e tomo um banho rá pido. Quando desço, meus
amigos já estã o na cozinha tomando o café da manhã que a empregada
preparou, como se já soubesse que terı́amos companhia.
— Vamos!
— Você nã o vai comer? — uma das garotas pergunta.
— Nã o tenho fome de manhã .
Pego as chaves do carro e saio sem olhar para trá s, destravo e entro
enquanto espero que eles façam o mesmo. Durante todo o caminho,
tento me animar com a alegria deles, tento pensar em algo que
justi ique essa empolgaçã o com mais 300 dias em que seremos tratados
como crianças.

Se Hogwarts tivesse uma ilial no Brasil, com certeza seria Santo


Egı́dio.
O complexo educacional é tã o ridı́culo, que tenho certeza de que os
fundadores tinham complexo de pau pequeno, só isso para justi icar a
grana que eles gastaram para criar essa merda.
A escola é a mesma que estudei minha vida inteira, nada mudou, as
mesmas paredes antigas e sombrias, os mesmos corredores longos, as
mesmas salas climatizadas e modernas, os mesmos alunos.
O pior de tudo é saber que, assim que esse ano acabar, só
mudaremos a entrada. O pessoal da universidade entra pelo lado
oposto, nunca nos cruzamos, algo que nã o é difı́cil nesse lugar.
Passamos pelas pessoas cumprimentando-as como se nã o as
vı́ssemos há muito tempo, a maioria voltou de fé rias uma semana atrá s
e quase todos estavam na festa de ontem à noite, nã o há novidade e o
té dio da mesmice quase me dá sono enquanto me arrasto para a sala de
aula.
Vou para o meu lugar de sempre, no fundo, ao lado de Ivan e Cindy,
jogo a mochila no chã o ao meu lado e me acomodo da melhor forma
possı́vel para mais um dia de aula. O burburinho diminui nos
corredores à medida que os professores começam a entrar nas salas,
portas sã o fechadas, o ano letivo inalmente começando.
Cindy está contando algo engraçado sobre a professora de Biologia,
estamos rindo, quando a porta da nossa sala é fechada. O barulho suave
do trinco isola os vinte e dois alunos do resto do mundo, algo banal, que
acontece oito vezes por dia, tã o trivial que nem ao menos me viro para
olhar para a frente.
— Bom dia a todos. — Uma voz feminina chama a atençã o da sala
inteira, ainda estou entretido na conversa e nã o dou atençã o. — Sejam
bem-vindos, sou Stella Almeida e durante esse ano, serei a professora
de Literatura de você s, espero que possamos nos dar muito bem.
Ivan é o primeiro a dar atençã o ao que ela está falando, ele dá uma
cotovelada em minhas costelas.
— Dá uma olhada na gostosa que o Montanari contratou.
— Puta que pariu! — Um cara na nossa frente fala.
— Uau, ela é bonita mesmo! — Cindy suspira ao meu lado.
Finalmente me viro para olhar a tal professora, ela está falando
alguma coisa, sua boca se move, suas mã os gesticulam, seu corpo
pequeno e delicado está envolvido em um vestido suave e elegante que
cobre muito. Seu cabelo, limpo e seco, está preso de uma forma tã o sem
graça que tenho di iculdades em reconhecê -los, talvez seja uma
alucinaçã o, eu devo ter tomado algum barato muito louco na noite
passada, algo poderoso o su iciente para que eu esteja vendo coisas, ou
entã o estou enlouquecendo.
Olho para o horá rio jogado na minha mesa. Primeira aula: literatura;
professora Stella Almeida. Stella, nã o Jú lia. Volto a olhar para a mulher
parada na frente da sala, nã o pode ser...
Ergo a mã o interrompendo a porra da ladainha que ela está falando,
estou tremendo tanto que tenho certeza de que meus amigos sã o
capazes de perceber, meus olhos nã o desviam dela, nem um segundo
sequer, eles passam por seu pescoço, seus seios escondidos no excesso
de tecido, sua cintura ina marcada pelo cinto, volto para o seu rosto no
instante em que ela me nota, ela para de falar, vejo a cor sumir do seu
rosto, seus olhos se arregalarem e ela tentar engolir.
Reconheço cada uma das emoçõ es que ela está sentindo porque sã o
espelhos da minha.
— Sim? — Sua voz sai fraca, quase um sussurro. Sinto vá rios pares
de olhos me encarando, mas nã o ligo, ainda estou tentando entender
que porra é essa que está acontecendo aqui.
— Desculpa, qual o seu nome?
— Como? — ela pergunta, tã o baixo que quase nã o ouço.
— Seu nome, acho que nã o ouvi direito — digo sentindo a raiva
encher minha voz.
Ela demora um instante, tã o longo que tenho a sensaçã o de que
serei ignorado, até que ela fala:
— Stella.
— Stella... — repito sentindo as letras rolarem por minha lı́ngua,
Stella... — Ah, desculpa. — Me inclino para a frente como se tentasse
entender algo, as mã os espalmadas na mesa, numa tentativa de fazê -las
pararem de tremer. — Eu acho que me enganei, pensei ter ouvido você
dizer que se chamava Jú lia.
Ela respira fundo, vejo minhas palavras atingindo-a como lâ minas
a iadas, seus olhos parecem tentar dizer algo, imploram
silenciosamente, mas nã o consigo compreender nada. Entã o faço o que
sei fazer de melhor: eu injo.
E sorrio.
Um zumbido em meu ouvido me impede de ouvir o resto da aula,
me sinto congelado no lugar, o coraçã o batendo como um tambor em
meus ouvidos, o corpo quente, as mã os trê mulas e a respiraçã o difı́cil.
Eu odeio essa sensaçã o, mas a conheço bem, sempre a sinto quando
sou forçado a falar em pú blico, mas, pela primeira vez, a sinto ao ouvir
algué m falando.
Ivan pergunta alguma coisa, mas só movo a cabeça, meus olhos
ainda estã o ixos na mulher lá na frente. Tenho medo de desviar o olhar
e ela desaparecer, ou do efeito do alucinó geno que tomei ontem acabar,
porque essa é a ú nica explicaçã o para que a garota que conheci aquela
noite esteja parada na frente da minha sala de aula se dizendo minha
professora.
A porra da minha professora.
— Nuno, você tá pá lido — Cindy comenta colocando a mã o em meu
pulso. — Está tudo bem?
Puxo meu braço sem me importar se estou sendo grosseiro ou nã o,
nesse momento nã o quero falar com ningué m, nã o posso me distrair,
preciso manter toda a minha atençã o nos seus movimentos ou sinto
que vou enlouquecer.
Analiso-a com cuidado, cada passo dado, cada palavra dita, cada
movimento das suas mã os na esperança de que eu perceba a loucura
disso tudo. Nã o pode ser ela. Nã o é real, nã o, nã o mesmo. Eu ainda
estou chapado, pior, eu fui drogado na noite passada e nã o faço ideia de
quem foi que fez isso comigo.
O tempo passa e me pego acreditando que é apenas uma
coincidê ncia, que ela nã o é a Jú lia, ou seja lá que porra de nome aquela
garota tenha me dado, minha memó ria deve estar me pregando uma
peça, ou minha obsessã o chegou a um nı́vel tã o absurdo que estou
começando a achar semelhança entre ela e outras mulheres.
Stella Almeida.
E o nome que está na folha de horá rios, o nome que está na boca de
nove em cada dez moleques dessa cidade. “Ela é gostosa pra caralho...”,
“a delicinha que vai nos distrair...”, “é nosso prê mio de consolaçã o para
suportar mais um ano nessa merda...”, essas foram algumas das coisas
que ouvi nos ú ltimos dias, enquanto estava ocupado demais pensando
em uma garota que eu tinha certeza de que nunca mais veria.
Ela nã o pode ser a mesma garota, essa mulher sé ria e elegante nã o
pode ser a mesma garota suada e sexy, dona dos meus sonhos e desejos.
Nã o pode, seria cruel demais se fosse. Eu nã o posso ser assim tã o
azarado.
Porra, eu nunca nem ao menos desejei uma professora.
Meus olhos nã o desviam nem um instante sequer, analisando,
comparando o que vejo com as lembranças nubladas pelo tesã o e pela
escuridã o. Noto que ela evita olhar em minha direçã o, mas seus olhos
escapam de vez em quando, como se precisasse ter certeza de que
ainda estou aqui, ela parece ansiosa e nã o para de falar nem um
segundo sequer, talvez com medo de que, ao parar, terá que me
enfrentar na frente da turma toda.
Mas nã o vou fazer isso, nã o sou tã o moleque quanto pareço, eu serei
paciente, esperarei até o im da aula, da porra do dia, da semana, do ano
se for preciso, para poder falar com ela, a só s, para que eu possa
entender o que está acontecendo aqui e constatar que foi apenas um
engano, ou que estou icando louco.
O reló gio parece se arrastar, a aula que sempre foi longa e cansativa
mais parece uma tortura, Stella caminha pela sala, de um lado para o
outro. Posso ouvir o burburinho das pessoas, todos estã o hipnotizados
com ela, nã o os culpo, ela é ainda mais linda a luz do dia, seus olhos
grandes prestam atençã o a tudo e sua boca deliciosa se transforma
quando ela sorri. E com toda essa roupa de professora sé ria, ela é quase
angelical, delicada, tã o pequena que poderia muito bem se misturar
com os alunos e nunca seria notada.
Dez minutos.
Ela inalmente se senta e de onde estou noto ela secar as mã os no
vestido antes de pegar a caneta, ela se atrapalha e derruba-a no chã o,
um imbecil se levanta rapidamente, como se estivesse o tempo todo só
esperando o momento em que poderia ser notado, quero empurrá -lo
para longe quando ela sorri para ele. Filho da puta!
Ela faz algumas anotaçõ es, em seguida agradece a recepçã o e, por
um instante, quase acredito que ela está calma, mas seus olhos se
encontram com os meus e o sorriso esmaece.
Cinco minutos.
Nã o consigo controlar minha perna que balança sem parar, como se
tivesse vida pró pria, Cindy já desistiu de tentar entender o que está
acontecendo e está falando alguma coisa com Madalena, Stella dispensa
a turma e o barulho das pessoas se levantando é quase tã o alto quanto
o do meu coraçã o.
— Cara, tem certeza de que você está bem? — Ivan pergunta.
— Nã o, mas eu vou icar — respondo enquanto me levanto, me
dando conta de que eu sequer abri a mochila.
— O que aconteceu com ele? — Cindy pergunta para Ivan, mas nã o
ouço a resposta. Ela nã o me importa, porque todos os meus sentidos
estã o nela, na mulher à frente da sala, que nesse momento está
encoberta por corpos muito maiores que o dela, dando uma falsa ideia
de que ela é a garota aqui, e nã o o contrá rio.
Caminho pelas carteiras empurrando algumas pessoas quando noto
que ela está saindo da sala. Tento nã o parecer um maluco desesperado
para falar com a professora, mas isso é exigir demais de mim.
Ela caminha apressadamente, quase correndo, os livros
pressionados em seus peitos perfeitos, os olhos ixos na porta, seu
objeto de desejo, mas antes que ela possa alcançá -la, meus dedos sã o
mais á geis e eu a seguro.
— Pode deixar, eu abro pra você , professora.
Ela se assusta e dá um passo para trá s, seu rosto agora está tã o
perto do meu que nã o me resta mais dú vida. E ela.
Seus olhos se ixam no rosto que ela conheceu semanas atrá s. Me
pergunto se ela també m pensou em mim todo esse tempo? Será que
sonhou comigo? Que se pegou desejando minha mã o entre suas
pernas? Será que imaginou que aquela noite a assombraria? Será que
ela está se sentindo tã o perdida quanto eu?
— Obrigada — agradece enquanto passa por mim, o cheiro do seu
perfume faz meu coraçã o acelerar com a lembrança dele misturado
com suor.
— De nada — sussurro, tã o baixinho que só ela é capaz de ouvir.
Saı́mos da sala e, por um instante, tenho a impressã o de que nã o há
mais ningué m a nossa volta, me aproximo um pouco mais, ainda atrá s
dela, entã o me inclino só um pouquinho sentindo o seu cheiro fazer
meu coraçã o acelerar.
— E aı́, pro, tá gostando da cidade? — pergunto, seu passo falha e
preciso me afastar para que ela nã o esbarre em mim.
— Que susto! — Ela coloca a mã o no peito e olha em volta antes de
me ver.
— Calma, sou só eu. — Ergo as mã os e sorrio. Mas ela nã o sorri de
volta, apenas continua andando.
Enquanto ela caminha, posso notar a verdade ó bvia que nã o tinha
percebido aquela noite, ela é mais velha, nã o tã o velha, mas o su iciente
para que seja uma professora. Ela nã o se parece com uma das meninas
da escola, e, embora seja pequena e delicada, há em seu rosto uma
expressã o de con iança que só se conquista com o tempo.
Talvez tenha sido isso que me encantou aquela noite, ela sabia o que
estava fazendo e queria aquilo, nã o foi um ato impulsivo de uma
adolescente que quer quebrar regras, era uma mulher em busca de
alı́vio. De uma aventura.
— Estou indo para a pró xima aula — ela diz ainda mais baixo,
justi icando algo que sequer perguntei, sua cabeça vira de um lado para
o outro, como se estivesse com medo de ser pega fazendo algo errado:
conversando com um aluno.
— Espero que se divirta bastante aqui. Seja bem-vinda, Jú lia... quer
dizer, Stella. — Ajeito a mochila em minhas costas e abro um sorriso
enorme enquanto sinto meu coraçã o agitado no peito, ao mesmo tempo
en io minha mã o livre no bolso do jeans porque tenho certeza de que,
se ela desviar o olhar do meu rosto, vai ver o quanto estou tremendo.
— Obrigada — agradece parecendo aliviada.
Mentirosa.
— Tenha um bom dia, professora. — Pisco e, quando seu corpo
estremece, sei que ela també m tem um monte de perguntas em sua
mente, e tudo bem, teremos dois semestres para resolver isso.
E tempo su iciente para que eu descubra por que diabos o destino
gosta tanto de foder com a minha vida.
Tudo no mundo começou com um sim.
Clarice Lispector disse uma vez, e hoje, enquanto tento manter
minhas funçõ es vitais funcionando, me pego pensando nos sins que me
trouxeram até aqui.
O primeiro de todos, foi o sim que dei a Suzy quando aceitei ir
aquele show; depois, o sim que dei ao garoto atrevido que me impediu
de cair, quando ele me convidou para ir com ele para aquele beco.
Mas antes daqueles sins, vieram outros, muitos anos atrá s: quando
disse sim a professora de Literatura, que me presenteou com um
exemplar surrado de Jardim Secreto e disse que aquele livro mudaria a
minha vida. E ele mudou.
Ou o sim que dei ao responder ao responsá vel por minha entrevista
quando me perguntou se eu estava disposta a iniciar imediatamente.
O sim que dei ao motorista de tá xi quando ele perguntou se eu me
importava que ele dirigisse mais rá pido para nã o perder o vestibular,
que me permitiu estudar e me formar e me tornar professora; a
professora que, milhares de sins depois, está aqui agora.
Tudo começou com um sim, depois outro e outro e outro...
Eu nã o sei ao certo o que estou sentindo, nem posso comparar com
nada que tenha vivido até hoje, o mais pró ximo foi o dia em que minha
mã e morreu; nã o o sentimento de perda, a dor ou o medo, mas a
sensaçã o de sentir meu corpo adormecido, tudo em silê ncio, só o som
do meu coraçã o batendo com força.
E exatamente assim que me senti durante os quarenta minutos em
que iquei trancada naquela sala, sentindo o olhar dele sobre mim,
como se fosse capaz de me despir, me enxergar, me julgar.
Seu olhar, a parte mais bela do seu rosto de menino, aquela que me
atraiu para ele, a mais sincera e expressiva de todas.
Deus do cé u!
Isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto, nã o pode ser real,
por favor, que nã o seja real.
Olho para a lista de chamadas, o nome dele está lá , exatamente
como ele me disse, Nuno Castro D’Agostinni, terceiro ano, turma de
Literatura.
Meu aluno.
Sinto um nó em meu estô mago enquanto meu cé rebro raciocina,
coisas simples, matemá tica bá sica, o su iciente para que eu me dê conta
de que ele é apenas uma adolescente, e eu sou...
Nã o consigo respirar direito, passo pelos alunos que se aglomeram
nos corredores sem im dessa escola imensa, tento me recordar qual
deles me levará até a sala dos professores, mas desisto e entro no
primeiro banheiro que encontro, as garotas param o que estã o fazendo
e olham para mim, entro em um reservado e tranco a porta, me sento
no chã o colocando minha cabeça entre as pernas e tentando respirar.
Minutos se passam sem que eu me mova, desejo poder desaparecer,
sumir desse lugar, dessa realidade monstruosa onde, em algum lugar lá
fora, o garoto com quem tive uma das mais devassas experiê ncias da
minha vida, é meu aluno.
Finalmente me levanto e saio, o banheiro está quase vazio, vou até a
pia e pego um punhado de papel, molho e passo na minha nuca,
bochecha e testa. Uma garotinha pergunta se estou bem, mas nã o
consigo falar, entã o apenas sorrio para ela enquanto sigo molhando
meu rosto, nã o ligo se estou estragando minha maquiagem ou se vou
parecer uma maluca na pró xima aula. Tenho certeza de que foi
exatamente assim que os alunos me imaginaram enquanto eu usava
todas as minhas forças para nã o desmaiar na frente deles.
O tempo passa, mas nã o consigo me mover, olho para a mulher no
espelho enquanto imagens daquela noite rondam minha mente.
“Rebola para mim.”
“Isso, aperta com mais força.”
“Eu vou gozar...”
Fecho os olhos e tento empurrá -las para algum lugar bem no fundo,
desejando poder esquecê -las. Me obrigo a pensar na sala de aula cheia,
vinte e dois pares de olhos atentos a mim, um em especial, de um verde
tã o intenso que senti como se ele pudesse me consumir, como se
naquele momento ele també m estivesse de volta naquela noite,
relembrando tudo o que izemos.
Respiro fundo algumas vezes, devagar, tentando me acalmar, nã o
conseguirei fazer nada se nã o me acalmar, preciso pensar direito, me
colocar na posiçã o de adulta, sé ria e responsá vel que sou, ele é só um
menino e talvez, se conversarmos direitinho, ele pode guardar esse
segredo com ele, ou talvez se eu me recusar a falar sobre isso, se ingir
que nada aconteceu, ele pode entender que aquela noite foi um deslize.
Merda!
Uma ú nica noite, uma ú nica mancha em minha vida perfeita, e agora
sinto que tudo o que iz nã o serviu de nada. No im das contas, meus
atos me assombrarã o para o resto da minha vida.
A porta se abre e me assusto quando uma garota entra e me encara.
— Tá tudo bem aı́?
— Está sim, eu só estou retocando a maquiagem — minto e ela
parece acreditar.
Volto a olhar para o espelho sentindo que meu coraçã o nã o vai
desacelerar, preciso sair e enfrentar o resultado das minhas escolhas.
Eu sou a professora, preciso fazer ele compreender isso, mas antes
preciso me fazer entender isso.
Jogo os papé is no lixo e fecho minha bolsa, me olho mais uma vez no
espelho e tento arrumar os cabelos, vou até a porta e abro. Encontro um
segurança, a coordenadora e mais um grupo de meninas parados na
minha frente.
— Desculpe, senhorita — o homem diz se afastando, nitidamente
sem graça.
— Você está bem, Stella? — a coordenadora pergunta parecendo
preocupada.
— Sim, estou — respondo com a voz fraca demais para passar
credibilidade.
— As meninas te viram no banheiro, disseram que você estava
pá lida. Depois, quando viram que você demorou para sair, acharam
melhor me chamar.
Olho para as garotas tentando reconhecê -las da sala de Nuno, mas
seus rostos se parecem com todos os outros: jovens, lindos, leves, sem
preocupaçõ es.
— Eu tive uma tontura, achei que iria desmaiar, a ansiedade pelo
primeiro dia me fez pular o café da manhã , mas já estou me sentindo
melhor.
— Oh, pobrezinha! Venha, vamos passar na enfermaria e depois
vamos tomar um café . — Ela passa o braço por minha cintura me
puxando. — Meninas, voltem para as suas aulas, a professora Stella já
está bem.
As meninas hesitam um pouco antes de caminhar para a sala no im
do corredor e tenho a certeza de que até o im do dia nã o haverá
nenhuma pessoa nessa escola que nã o esteja sabendo que a professora
passou mal no seu primeiro dia de aula.
Como se minha situaçã o já nã o estivesse ruim o su iciente.
A coordenadora faz exatamente o que disse, me leva até a
enfermaria, uma sala grande equipada com tudo o que tem de mais
moderno, onde uma enfermeira está sentada lendo um romance
sobrenatural.
Ela me examina e constata que minha pressã o caiu, meus
batimentos estã o acelerados e que talvez esteja sobre forte estresse.
Muito sagaz da parte dela descobrir o ó bvio, em seguida vamos até a
sala dos professores, que está quase vazia, e nos sentamos para tomar
café .
— Quando será a sua pró xima aula? — a coordenadora pergunta
enquanto adoça seu café .
— Daqui a vinte minutos.
— Entã o trate de comer. — Ela empurra um bolinho na minha
frente e me forço a comer para que ela ique satisfeita.
— Posso fazer uma pergunta? — digo encarando a xı́cara.
— Claro, ique à vontade.
— Quando fui contratada, havia um professor de Literatura aqui, ele
já se desligou da escola?
— O professor Jairo? Sim, ele foi embora no im do ano passado, nã o
foi fá cil encontrar algué m que atendesse as exigê ncias do diretor, ele
leva a sé rio a qualidade dos pro issionais que trabalham conosco, por
isso, quando soubemos que você havia preenchido todas as
especi icaçõ es, foi um alı́vio. Nossos alunos precisam de algué m
preparada, principalmente os anos inais, que terã o aulas mais
intensivas com a senhorita.
Quase me engasgo com o café enquanto ela fala, tento me imaginar
dando aulas para Nuno, elaborando trabalhos, me aproximando para
esclarecer alguma questã o, citando trechos de romances que amo,
sabendo que ele estará lá , ouvindo tudo.
Jesus amado...
O alerta para a pró xima aula soa e os poucos professores que estã o
na sala se levantam, faço o mesmo agradecendo a ela por ter cuidado de
mim.
Passo o resto do dia agindo como uma fugitiva, caminho apressada
pelos corredores, com os olhos ixos no chã o, o coraçã o agitado com a
perspectiva de vê -lo a qualquer momento. Com o passar das horas
consigo relaxar, mas nã o o su iciente para me esquecer de que ele está
em algum lugar desse edifı́cio, cercado de outros jovens, sorrindo,
conversando, estudando.
E quando o ú ltimo sinal toca, me levanto e caminho até a sala dos
professores, agora lotada com todos eles, cansados por um dia longo de
trabalho, ansiosos para irem para as suas casas.
Vergonhosamente enrolo para ir embora, converso com todos que
me perguntam como foi o meu primeiro dia, agradeço os que se
oferecem para me ajudar em algo caso precise, injo nã o sentir as mã os
suadas e o coraçã o acelerado enquanto ouço o edifı́cio se silenciar
pouco a pouco.
Tenho medo de sair e dar de cara com Nuno à minha espera, tenho
medo de que todos notem como seu olhar me afeta, entã o injo estar
anotando algo em meu plano de aula até que tudo a minha volta se
torne silencioso.
Quando saio da escola, a tarde já está quase no im, o sol está se
pondo, deixando o cé u em um tom alaranjado de tirar o folego, há
poucos grupos de alunos espalhados aqui e ali, nã o faço contato visual
com nenhum deles e rezo para que Nuno nã o esteja em nenhum deles.
Sei que é um pensamento covarde, nada vai mudar o fato de que duas
vezes por semana terei que icar em uma sala de aula com ele.
Ajusto a alça da bolsa em meu ombro e lamento o fato de nã o estar
de carro, seria uma boa forma de me esconder, ao menos por hoje, ao
menos para que eu possa me preparar melhor e decidir como falar com
ele.
Só consigo respirar novamente quando abro a porta do meu
apartamento, já nã o o sinto mais tã o pequeno, na verdade as paredes,
que antes eram quase claustrofó bicas, me parecem deliciosamente
convidativas. Me sinto protegida, acolhida, escondida. Mesmo que seja
por algumas horas.
Amanhã é outro dia, hoje eu só preciso pensar.

Os dias seguintes sã o uma sucessã o de tragé dias dignas de uma


comé dia, daquelas em que tudo dá errado na vida da mocinha e só é
engraçado porque nã o é conosco, livros caı́dos no meio da sala de aula,
tropeços no corredor cheio de adolescentes observadores, troca de aula
e por aı́ vai.
Tudo isso porque meu cé rebro só consegue pensar em uma ú nica
coisa: o que vou fazer quando encontrar com ele novamente?
Sim, a parte boa disso tudo, se é que posso chamar isso de bom, é
que ainda nã o o vi, nã o que eu esteja procurando, claro que nã o estou,
vivo desviando olhares, encarando o chã o limpo e os sapatos de todos,
devo ser a professora mais esquisita que esses alunos já tiveram, mas
nã o estou me importando muito com isso no momento.
Estou chegando ao im de mais um exaustivo e longo dia de
trabalho, atravesso o extenso gramado e chego à rua. Há um carro
parado; na frente, com os braços cruzados e uma expressã o sé ria no
rosto, Nuno me observa.
Me sinto em um déjà vu, assim como naquele dia, ele parece saber
que estou indo a seu encontro, mesmo que meu objetivo seja
completamente o oposto, seus olhos parecem cansados, tristes,
sombrios.
— Achei que ia se esconder para sempre — ele diz quando me
aproximo.
— Eu nã o estava me escondendo — minto quando passo por ele
sem parar de andar.
— Vou reformular minha frase entã o, achei que iria me evitar para
sempre. — Ele começa a caminhar ao meu lado.
Arrisco um olhar para seu rosto, mas me arrependo imediatamente,
nã o consigo olhar para ele, nã o aqui, na frente da escola, onde ele é um
aluno e eu, sua professora.
— Olha, Nuno, eu sei que precisamos conversar, mas podemos
deixar para outro dia? — peço me sentindo exausta.
— Nã o sei se consigo.
— Eu preciso de um tempo para assimilar tudo isso.
— Eu já te dei um tempo. — Ele parece tã o calmo. Por que ele está
tã o calmo assim? Deve ser porque ele nã o cometeu nenhum crime, já
eu... só de estar aqui na rua, em um lugar pú blico ao seu lado, me sinto
como uma aliciadora de menores.
— Eu preciso de mais.
— Quanto? — ele pergunta tranquilamente.
— Eu nã o sei, eu preciso pensar.
— Pensar no quê ? Na pró xima mentira?
— Nuno, por favor... — Choramingo.
— O quê ? — Ele para na minha frente me fazendo parar de andar. —
Estou mentindo?
— Está .
— Entã o você se chama Jú lia?
— Nã o, claro que nã o.
— Entã o fala comigo, por que eu preciso saber o que diabos está
acontecendo aqui.
Olho para os dois lados da rua, uma senhora passeia com um
cachorro do outro lado, ela parece alheia a tudo, absorta em sua rotina.
Nuno cruza os braços na frente do corpo, impaciente, ansioso por uma
resposta que nã o posso dar.
— Eu nã o sei o que te dizer.
— Imaginei que nã o saberia.
— Eu... eu sinto muito — digo a ú nica coisa que faz sentido nesse
momento. Eu sinto muito, realmente sinto.
— Sé rio? Sente pelo quê ? Por ter me conhecido? Por ter quase
trepado comigo? Por estar aqui? Por ser minha professora?
— Por tudo — admito sentindo minha garganta apertar. — Se eu
pudesse, eu juro que evitaria esse constrangimento.
— Constrangimento? E isso que você está sentindo?
— Claro, você tem ideia de como me sinto sabendo que sou sua
professora?
— Nã o, eu nã o sei. Você quer falar sobre isso?
— Eu nã o sei. De verdade, nã o faço ideia do que te responder. —
Olho novamente em volta, tremendo de medo de que sejamos vistos e
mal interpretados.
— Quer fazer o favor de olhar para mim?
— Nuno, eu nã o... — Respiro fundo tentando me acalmar. —
Desculpa, mas nã o posso conversar com você , nã o agora.
— Como você acha que eu estou me sentindo? — Ele aponta o dedo
no peito.
— Eu nã o faço ideia, por favor nã o faz isso — imploro, mas ele
parece irredutı́vel em sua decisã o de conversar comigo. Aqui, no meio
da rua, onde qualquer um pode ver.
— Você mentiu pra mim, disse que era uma pessoa que nã o é .
— Eu nã o disse nada, nã o coloque coisas onde nã o existiu, aquela
noite foi apenas um momento, dois estranhos, nada mais do que isso.
Ele espalma a mã o no queixo me fazendo lembrar da sensaçã o boa
de passar minha boca nele, em seguida ele a leva até a nuca onde a
deixa por um instante enquanto me observa.
— Eu tentei te achar — ele confessa. Meus olhos se arregalam em
resposta.
— O quê ? — pergunto porque tenho a impressã o de que nã o
entendi o que ele disse.
— Meu pai conhece o dono do festival, liguei para ele e pedi para me
ajudar a achar uma garota.
— Você está brincando comigo.
— Eu nã o fazia ideia de que poderia existir tantas Jú lias em um
ú nico lugar.
— Jesus Cristo. — Esfrego minha testa sentindo uma dor de cabeça
chegando. Como assim, ele procurou por mim? Isso não pode ser verdade.
— Oitocentos e vinte e quatro Jú lias e nenhuma delas era você .
Claro que nã o, a inal, você nã o era Jú lia.
— Por que você fez isso? — pergunto imaginando que nã o pode ser
pior do que isso.
— Porque eu precisava te encontrar.
— Meu Deus, Nuno, por quê ?
— Porque aquela nã o foi só uma noite para mim, eu nã o fui um
estranho com você , e queria poder te dizer isso, dizer que você nã o saı́a
da porra da minha cabeça, queria conversar com você , saber como está ,
eu queria te ver mais uma vez.
Sinto o chã o se movendo sob meus pé s, ele me procurou, ele pensou
em mim todos esses dias, nã o fui só eu, embora, ao contrá rio dele, eu
estava consciente de que nossa noite seria apenas uma lembrança.
Nada mais.
— Nuno, me escuta, por favor — peço tentando manter a calma que
venho trabalhando todos esses dias. — Por favor.
— Quando disse que nã o queria que a noite acabasse, eu nã o estava
mentindo. Nenhum minuto daquela noite foi mentira para mim.
— Como eu poderia saber?
— Nã o sei, talvez se você nã o tivesse me afastado, a gente ia
conversar, nã o sei. — Ele ergue os ombros parecendo magoado.
— Eu sinto muito, nã o queria ter feito isso com você .
— E agora? — ele faz a pergunta de um milhã o de dó lares e sei que,
mesmo que passasse o resto do ano fugindo dele, nã o saberia como
respondê -la.
E agora? O que vamos fazer?
— Eu nã o sei — respondo a verdade.
— Como você acha que eu vou suportar suas aulas?
— Eu nã o sei — respondo desesperada.
— Como vou icar lá sentado ouvindo você falar, te vendo e sabendo
de tudo o que aconteceu?
— Nuno, para. Vamos dar tempo ao tempo, a gente vai encontrar
uma maneira de colocar uma pedra em cima disso e criar uma relaçã o
boa de aluno e professora.
— O quê ? Você tá brincando comigo? — Nuno gargalha, uma risada
terrivelmente irô nica que me faz estremecer.
Quem eu quero enganar? Nã o tem como existir uma relaçã o boa
entre nó s, ao menos nã o agora.
Olho em volta mais uma vez, um casal passou por nó s e nã o prestei
atençã o. Será que eles acharam estranho estarmos aqui conversando?
Será que eles sabem que sou a professora desse garoto? Sinto minha pele
formigando de nervoso e o estô mago revirando.
— Eu nã o brincaria com algo tã o sé rio.
Ele parece alterado, caminha até o muro e se apoia nele, retira um
cigarro do bolso e coloca nos lá bios, penso em pedir para que ele nã o
faça isso, que é jovem demais para estar fazendo algo tã o nocivo. Mas
nã o digo nada.
Ele traga o cigarro e, em seguida, o tira da boca, exatamente como
fez naquela noite; a diferença é que hoje há um tique em seus dedos que
balançam o cigarro e seu pé bate repetidamente no chã o, mostrando o
quanto ele está nervoso.
Sinto meu corpo inteiro estremecer com a memó ria daquele
primeiro olhar. Como o achei lindo, tã o con iante e arrogante ali diante
daquela tenda, e mesmo naquele momento eu já sabia que ele era
jovem, mas nã o me importei, ao contrá rio, era uma experiê ncia nova
para mim, a inal era apenas uma noite. Nunca mais irı́amos nos ver.
— Você ao menos é maior de idade? — pergunto sentindo as
palavras queimarem na minha garganta quando Nuno olha para mim
como se eu o tivesse ofendido.
— Isso faz diferença?
— Claro que faz.
— Sé rio, Stella? — Ele ergue a mã o esquerda, estendendo dois
dedos na minha frente. — Faz realmente diferença para você saber se
esses dedos sã o de um cara maior de idade ou nã o? Vai mudar o que
eles izeram? Ou o fato da sua mã o ter estado em torno do meu pau?
Sinto meu rosto esquentar com suas palavras, a lembrança dele me
penetrando e da minha mã o lhe dando prazer nã o deveria ser algo tã o
fá cil de alcançar, mas ela vem, me fazendo desviar os olhos porque
tenho a sensaçã o de que ele pode ouvir meus pensamentos.
— Jesus Cristo... — Esfrego meu rosto sentindo como se um carro de
polı́cia fosse parar a qualquer momento e me levar presa.
Um garoto.
O que eu iz?
— Você tem noçã o do que izemos?
— Nã o dou a mı́nima para isso, se é o que você quer saber.
Rio, um riso desesperado ao me dar conta de que ele nem ao menos
tem dezoito anos.
— Eu imagino que nã o, para você será um prê mio, poder contar
para os seus colegas que teve uma noite tó rrida com a professora nova.
— E isso que você acha que vou fazer? — Ele franze o cenho fazendo
uma ruguinha se formar entre seus olhos agora cheios de fú ria. — Você
acha que sou tã o moleque assim?
— Eu nã o sei, nã o consigo pensar, eu só ... — Volto a olhar para a rua
e ouço Nuno soltar um palavrã o.
— Você nã o consegue nem ao menos olhar para mim.
— Eu preciso ir, nã o posso icar aqui.
— Nã o tem pra onde fugir, Stella, amanhã estaremos naquela porra
de escola. Em dois dias, você vai entrar naquela maldita sala e nã o vai
fazer diferença alguma se eu tenho dezessete ou dezoito, porque eu
ainda serei o cara que você conheceu aquela noite.
Ele joga o cigarro no chã o e pisa nele apagando a chama.
— Quando estiver preparada para falar, sabe onde me encontrar,
serei o otá rio sentado no fundo da sala.
E entã o ele se vai, caminhando na direçã o oposta, me deixando
parada, sem saber o que fazer, mesmo ciente de que só existe uma
opçã o. Eu preciso esquecer aquela noite, mas, para isso, tenho que
encontrar uma forma de fazer com que ele compreenda que aquilo foi
um erro.
O maior erro das nossas vidas.
— Stella, você está me ouvindo? — Suzy pergunta do outro lado da
linha enquanto sigo lendo artigos e mais artigos sobre aliciamento de
menor.
Encolho-me diante do notebook, com meu estô mago ainda vazio já
que nã o consigo comer nada, porque dó i enquanto relembro suas
palavras.
“Faz realmente diferença para você saber se esses dedos são de um
cara maior de idade ou não?”
Nã o consigo sequer pensar no que izemos sem que meu estô mago
se revire novamente.
— Stella?
— Oi? — Ergo os olhos para a minha irmã , que me olha do outro
lado do celular.
— Você tem certeza de que ele não falou nada? — ela pergunta com
seu tom tranquilizador, mas ele nã o tem efeito nenhum em mim.
— Suzy, nã o perdemos tempo conversando. — Levanto-me e
caminho até a janela, olho para a rua lá embaixo, a movimentaçã o
noturna já começou e, mesmo que eu saiba que ele nã o sabe onde moro,
meus olhos buscam desesperadamente por ele.
— Uma coisa dessa só podia acontecer com você, né? — ela tenta
suavizar a situaçã o, mas nã o consigo achar graça em nada.
— Suzy, você nã o imagina como foi horrı́vel ter que olhar para ele
naquela sala. Ele parecia prestes a vomitar, as pessoas falavam com ele,
mas sua atençã o estava toda voltada para mim.
Caminho até a cozinha e abro o frigobar, mesmo sabendo que nã o
tenho condiçõ es de comer nada, nesse momento sinto que nunca mais
conseguirei comer na vida. desisto e volto a caminhar até a janela
novamente.
— Ele deve estar magoado depois do que você disse a ele, né?
— Eu nã o estava pensando direito, eu só queria que ele fosse
embora e me deixasse em paz.
Fecho os olhos me sentindo mal por minhas palavras, isso nã o é
verdade, eu nã o queria afastá -lo. No instante em que o vi parado na
frente da escola, me observando, tudo o que eu queria era deitar minha
cabeça em seu peito e ouvir seu coraçã o martelando em meus ouvidos.
Queria que tudo isso fosse apenas um engano e que eu nã o me sentisse
tã o mal por desejar algo tã o simples.
— Você sabe que não é nenhum crime conversar, não sabe? — ela
debocha de mim.
— Eu quase transei com um adolescente, que por sinal é meu aluno.
— Você não sabia disso quando tudo aconteceu.
Ela tem razã o, eu nã o sabia, tinha a impressã o de que ele era sim
mais jovem, mas dezessete anos! Fala sé rio? Desde quando
adolescentes tê m a composiçã o fı́sica de um homem?
— Nuno tem sim um rosto jovem, mas eu tinha certeza de que ele já
havia completado ao menos vinte anos, ainda assim seriam jovens
demais, mas ao menos seria maior de idade — digo me defendendo
para minha pró pria irmã .
— Isso também não é crime, de acordo com a lei, você não fez nada
errado.
— E imoral.
— Cale a boca, Stella.
— Eu nã o consigo imaginar como vai ser dar aula para ele durante
um ano inteiro.
— Você pode fazer a linha professora sexy, tenho certeza de que o
garoto vai enlouquecer. — Ela gargalha do outro lado da linha e
estremeço só de me lembrar a forma como ele olhou para mim, seus
olhos percorrendo meu corpo, me seguindo para onde quer que eu
fosse. Foi perturbador.
— Suzy, quer parar de brincar com algo sé rio! — a repreendo.
— Stella, por favor, eu quero que me ouça.
— Nã o, nem fale — peço enquanto me jogo no sofá , já sabendo onde
ela quer chegar.
— Eu vou te pedir um favor, deixe a vida acontecer, não estou pedindo
para você ir atrás dele, nem nada, muito embora eu acho que você
deveria depois de ter sido uma cadela, só estou pedindo para você não
boicotar a vida.
— De ina boicotar a vida, por favor.
— Não o afaste de você, caso ele tente se aproximar.
— Eu nã o vou beijar um adolescente, Suzy, ao menos nã o
consciente.
— Não estou pedindo para você icar com ele, só não o afaste. A inal
de contas, ele não vai ser adolescente para sempre e eu sei que esse
garoto mexeu com você.
— Isso é um absurdo. — Balanço a cabeça em negaçã o enquanto
encaro as vinte e duas abas abertas do notebook, insatisfeita.
— Eu não duvido que para você possa parecer, mas não é. Acredite em
mim, não é. Shakira e Piquet estão aí para provar que casais com
diferença de idade podem funcionar.
— Ele ainda vai continuar sendo meu aluno.
— De novo, não por muito tempo! — ela rebate, como uma excelente
advogada de defesa.
— Nó s duas sabemos que eu nã o posso perder esse emprego.
— Eu sei, mas deixe as coisas serem o que devem ser.
— O má ximo que poderia acontecer entre nó s seria uma aventura,
ele é jovem, rico, provavelmente em alguns meses estará longe.
— Então viva essa aventura, aproveite, se liberte... — Dou um olhar
que diz de jeito nenhum para Suzy e ela completa: — Assim que ele
deixar de ser uma criança e se tornar um homem, claro — ironiza.
— Isso nã o tem a menor chance de dar certo.
— Ele não pode se apaixonar por você?
— Suzy, ele tem dezessete anos.
— E daí? Você é linda. Pelo que você me contou, ele é uma delícia,
vocês dois tiveram uma química incrível, qual a neura?
— Sou quase dez anos mais velha.
— Bobagem, você passaria fácil por uma das alunas dessa escola
metida a besta.
— Se você visse as meninas daqui, a garota que estava sentada ao
lado dele parecia uma modelo internacional — relembro a forma ı́ntima
com que ela o tocava, o olhar preocupado analisando a expressã o
carrancuda dele e me sinto ridı́cula por sequer estar tendo essa
conversa com minha irmã .
— Mas era para você que ele estava olhando — ela rebate e penso
que Nuno já pode contar com ela para tudo, minha irmã desenvolveu
uma paixã o platô nica por ele só de me ouvir falar.
— Sim, como se ele pudesse me matar com um raio saı́do
diretamente dos seus olhos.
— Bobagem, isso é tesão enrustido.
— Você nã o vai parar, né ?
— Não.
— Entã o eu desisto.
Me jogo para trá s e puxo uma almofada abraçando-a e desejando
que Suzy estivesse aqui para poder me acalmar com seus abraços de
irmã mais velha.
— Só, por favor, me prometa que não vai impedir as coisas de
acontecer — ela diz com a voz sé ria que tanto odeio.
— Eu nã o posso deixá -lo se aproximar.
Suzy bufa do outro lado da linha e sei que ela está perdendo a
paciê ncia comigo.
— Por quê?
— Ele vai partir meu coraçã o, eu já tô sentindo.
— Não tenha medo, viva. E se ele partir teu coração, eu quebro aquele
rostinho lindo dele e depois a gente enche a cara.
— Você nem o conhece.
— Tenho certeza de que ele é lindo. E só pela forma como ele fez seus
olhos brilharem o garoto já tem o meu respeito. — Ela balança a cabeça
enquanto fala fazendo gracinha. — Dezessete anos, hein, quem diria...
Estremeço ao me lembrar de que ele é exatamente isso, um garoto,
que, como tal, está aproveitando todas as oportunidades para curtir a
vida, já eu...
Apoio a cabeça no encosto e suspiro odiando o que vou dizer, mas
sabendo que é necessá rio.
— Eu adoraria poder me dar ao luxo de viver um caso proibido, mas
nó s duas sabemos que o tempo nã o está ao nosso lado.
— Eu quero que o tempo se foda, você vai viver, vai transar
loucamente com esse menino e vai me contar tudo, o resto resolve depois.
Sorrio sabendo que nada disso vai acontecer, no fundo sei que Suzy
está se sentindo culpada por algo que ela nã o poderia evitar, nã o vou
me envolver em um caso com um adolescente, nã o vou correr o risco de
perder o emprego que lutei tanto para conseguir e, com certeza, nã o
vou permitir que Nuno quebre meu coraçã o; ele é o tipo de garoto que
nã o mede esforços e, quando vai embora, nã o deixa nada para trá s.
E eu nã o preciso disso, nã o agora.
— Quer conversar? — Ouço a voz dele antes mesmo de ver o copo
de chocolate quente aparecer na minha frente.
Imagino o quanto eu esteja parecendo ruim para Rael se dispor a vir
até aqui se oferecer para conversar comigo.
Ergo os olhos e sorrio agradecido por seu gesto, eu melhor do que
ningué m sei o quanto isso signi ica, Rael nã o é um cara bom com as
palavras, quase nunca permite que algué m se aproxime o su iciente
para que ele ache que valha a pena perder seu precioso tempo com essa
pessoa. Entã o ter ele aqui na minha frente signi ica que sabe que
preciso conversar, só nã o tenho certeza se quero.
— Pode falar, sou todo ouvidos — ele brinca e balanço a cabeça, de
repente a saudade de Matteo bate forte. Ele e Rael eram grandes
amigos, sempre juntos, ou o má ximo que Rael permitia que Matteo
estivesse, eles se conheciam tã o bem que, à s vezes, eu me pegava com
ciú mes deles. Eu queria ser o amigo do meu irmã o.
Hoje me imagino aqui, com ele ao lado de Rael, me observando
enquanto espera eu falar. Como será que seria nossa relação se ele ainda
estivesse aqui? Será que ele me conheceria a ponto de saber quando
preciso de conselhos? Será que ele teria tempo para mim ou já teria sido
sugado pela ambição do nosso pai?
Será que ele ainda seria o mesmo Matteo que sempre cuidou de mim?
Ergo os ombros sem saber bem por onde começar, puxo um canudo
e coloco no copo, mas nã o consigo beber, meu estô mago parece ter sido
esmurrado.
— Tem cara de ser mulher — Rael diz, me surpreendendo com a
forma direta com que me aborda.
Isso é algo totalmente novo para mim, eu nem estaria aqui se Ivan
nã o estivesse na casa de uma garota, mas como voltar para casa nesse
momento nã o é uma opçã o, aqui é o ú nico outro lugar nessa cidade
onde me sinto em casa. E Rael, com certeza, é o mais pró ximo de Matteo
que posso estar.
— E complicado — digo sentindo-me exausto pela discussã o que
tive com Stella.
Suas palavras ainda me incomodam, e quando vejo estou contando
tudo para o amigo do meu irmã o morto. Deixo de fora a maioria dos
detalhes, mas ele compreende nas entrelinhas o que nã o sou capaz de
dizer, pela forma como ele olha para mim, sinto-me analisado e isso me
incomoda, nã o quero ouvir julgamentos, nem que ele me dê algum tipo
de conselho que seja qualquer coisa para me manter longe dela, na
verdade eu só quero que ele me ouça, para mim já é o su iciente.
— Ela acha que sou um moleque.
— Ela deve estar assustada.
— Eu fui um babaca com ela, estava nervoso e acabei falando o que
nã o deveria. — Balanço a cabeça, tentando pensar em uma maneira de
me desculpar com ela sem parecer ainda mais idiota.
— Dê tempo a ela, nã o a pressione, nã o aja por impulso. Nó s
homens nã o somos muito bons em expressar o que sentimos.
— Tô me sentindo um otá rio, ela fugiu de mim o má ximo que pô de,
acho que ela tem razã o, é melhor deixar para lá . Ela nã o me queria
aquela noite, quando eu era só um estranho, entã o nã o há motivos para
que ela me queira agora que nã o passo de um aluno.
Rael se inclina para a frente, seus olhos sempre tã o atentos me
analisam friamente, compreendo a sua fama de arrogante, para quem
nã o o conhece, para quem nã o sabe todas as merdas que já
aconteceram com esse cara, é fá cil confundir a sua dor com arrogâ ncia.
Mas eu sei o quanto Rael sente, o quanto ele tenta ajudar, mesmo
quando é algo tã o complicado.
— Nã o há uma forma de se proteger. Se você está disposto a
conquistá -la, há um risco de se foder.
— Ela olhou para mim como se eu fosse o pró prio Ebola
materializado na sua frente.
— Pense na situaçã o dela, Nuno. E difı́cil para ela admitir algo
assim.
— Nã o sei.
— A pergunta é : Ela vale a pena?
Penso em Stella, em seus olhos assustados quando ela me viu, na
forma como pareceu magoada quando a ofendi. E embora a razã o me
diga para seguir meu caminho, que tenho coisas mais importantes para
acontecer, outra parte de mim diz o contrá rio.
— Sim, eu acho que vale.
Rael sorri e ergue a sobrancelha e nã o preciso que ele diga nada, eu
já sei a resposta, estou fodido.

O dia seguinte é o pró prio inferno na Terra. Depois de uma noite


inteira revirando na cama, acordo com um pé ssimo humor. Penso em
nã o ir para a escola, mas de que adiantaria fugir se em dois dias estarei
novamente preso em uma sala de aula com ela? Alé m disso, nã o sou
covarde.
Passo o dia inteiro pensando nela, imaginando em que sala ela está ,
a cada aula que termina meus olhos correm pelos corredores lotados de
alunos procurando a igura pequena e delicada em meio à multidã o de
adolescentes barulhentos.
O meu humor só piora com o passar do dia, nã o a vejo em nenhum
lugar e, quando chega ao im da aula de educaçã o fı́sica, estou prestes a
esmurrar uma parede tamanha a minha agitaçã o.
— O que tá acontecendo com você ? — Ivan pergunta enquanto
retira a camisa suada e joga no armá rio.
— Nã o tô num bom dia. — Evito olhar para meu amigo, porque ele
me conhece o su iciente para saber que isso signi ica apenas uma coisa:
briguei com meu pai.
— Teu velho nã o tá na Europa?
Con irmo com a cabeça e quase posso ouvir as engrenagens da
cabeça dele tentando entender.
— Vai me falar o que tá pegando ou eu tenho que pegar minha bola
de cristal?
Olho em volta, a agitaçã o aumenta quando um novo grupo de caras
entram no vestiá rio.
— Depois a gente conversa, aqui nã o.
Estou tirando a toalha da mala quando ouço um papo vindo do
chuveiro, que faz meu sangue ferver.
— Ei, você viu a professorinha de Literatura? — um babaca do
segundo ano fala para o cara que está no boxe do lado.
— Nossa, que delicinha, e aquela bunda gostosa? Já tá até rolando
um bolã o pra ver quem consegue pegar ela.
Nã o vejo o momento em que me levanto, nem como fui parar na
frente dos boxes, mas quando me dou conta, estou fuzilando o
desgraçado que está falando sobre bater punheta pensando na boca
dela em seu pau e, quando estou prestes a partir para cima dele, a mã o
de Ivan está sobre meu bı́ceps me segurando no lugar.
— Mas que porra é essa, Nuno? — ele pergunta sem entender por
que está precisando me afastar de um moleque, que tem a metade do
meu tamanho.
— Eu juro por Deus que, se aquele cara abrir a merda daquela boca
mais uma vez, eu vou arrebentar a cara dele.
Encaro os dois moleques que estã o olhando para nó s como se
fô ssemos os pró prios cavaleiros do apocalipse.
— O que tá olhando? — Ivan rosna para os meninos, que se viram
porque nã o sã o idiotas de enfrentar a nó s dois. Entã o ele me empurra
de volta para os armá rios. — Você vai me contar agora o que tá
pegando.
— Me solta. — Puxo meu braço e passo por ele voltando para a
minha mala e pegando uma roupa limpa, entro no chuveiro e tomo um
banho frio na esperança de que meus â nimos se acalmem. Ivan passa o
tempo todo me observando e só relaxa quando os dois malditos saem
do vestiá rio sem se darem conta de que escaparam de tomar uma surra.
Me troco em silê ncio, sabendo que Ivan nã o vai esquecer o que
aconteceu aqui e, quando saı́mos para o refeitó rio e nos encontramos
com o resto do pessoal, ele parece mais relaxado, mas, mesmo do outro
lado da mesa, seus olhos nã o param de me observar.
— Está sem fome? — Cindy se senta ao meu lado e os olhos de Ivan
passam a analisar a nossa amiga.
— Nã o tô me sentindo bem, acho que peguei uma virose. — Me viro
para ela e faço uma cara de poucos amigos.
Nã o demora muito para que ela arrume uma desculpa e se afaste,
agradeço porque nã o estou a im de papo com ningué m.
O tempo passa, o sinal da pró xima aula toca, me levanto jogando
fora tudo o que nã o comi e saio sem esperar por ningué m, com meus
olhos atentos encarando cada pessoa que passa por mim, procurando
por cabelos castanhos em algum penteado sem graça.
Quando chego ao corredor, eu inalmente a avisto. Ela está entretida
com alguns papé is. Um vestido amarelo discreto e conservador abraça a
curva do seu quadril e agora sei por que aquele maldito estava falando
da sua bunda. Seu cabelo hoje está preso em um rabo de cavalo,
exatamente como na noite em que a conheci, quase posso sentir o sabor
da sua pele suada em minha lı́ngua, e isso é algo perigoso demais para
se pensar em pú blico.
Uma das folhas caem no chã o e, antes que ela possa sequer pensar,
um moleque se abaixa e pega a folha para ela, todos estã o sempre
olhando para a professorinha linda e gostosa, encantados, isso porque
eles nunca sentiram a sensaçã o de colocar as mã os em seu corpo.
Deus... eu tô muito fodido.
Stella cumprimenta um grupo de alunos que passa por ela e
acenam, e quando seus olhos encontram os meus ela para de andar. As
pessoas continuam passando por nó s como se nada tivesse acontecido,
nenhuma dessas pessoas é capaz de sentir a tensã o que emana dessa
troca de olhares, estamos a pelo menos quatro metros de distâ ncia, mas
sinto como se sua mã o pudesse tocar a minha. Ela respira fundo e baixa
o olhar, mas nã o se move, como se esperasse por algo, como se
estivesse lutando contra um desejo proibido. Ou talvez seja apenas os
pensamentos insanos de um moleque imbecil que nã o tem ideia de
como administrar essa situaçã o insuportá vel.
Mantenho meus olhos ixos nela, boa parte dos alunos que passam
sã o maiores que Stella e isso me deixa ainda mais agitado, sua
delicadeza me enlouquece, minhas mã os queimam de vontade de tocá -
la, minha boca se enche de á gua ao pensar na sensaçã o de beijá -la e,
antes que eu possa pensar no que estou fazendo, meus pé s me levam
até ela. Stella nota minha aproximaçã o, mas nã o se mexe, seus olhos se
erguem e pousam em meu rosto, passo a mã o livre no cabelo ainda
ú mido do banho e desvio das pessoas que começam a chegar ainda
preguiçosas por causa da refeiçã o.
Nesse momento, nã o consigo ver nada alé m dela e da minha
necessidade de chegar perto, vejo sua boca se abrir, como se ela
estivesse prestes a dizer algo, mas ela para aberta quando me
aproximo, baixo minha mã o no instante exato em que passo por ela e,
sem que ningué m perceba, resvalo minha mã o na sua. Um toque tã o
sutil, que, por um instante, temo que ela nã o tenha notado, mas entã o
sinto seu braço estremecer e um sorriso idiota se espalha em meus
lá bios.
Ela pode falar o que quiser, mas seu corpo respondeu ao meu toque,
exatamente como na primeira vez. Isso é tudo o que preciso saber por
enquanto.
Eu disse a mim mesma que poderia dar conta, desde a hora em que
acordei depois de uma noite inteira de pesadelos, eu disse que estava
tudo bem. Que eu conseguiria agir com naturalidade na sua presença.
Menti a mim mesma que nã o estava escolhendo minha roupa pensando
no que ele iria achar, ignorei a parte sem-vergonha que ansiava por ser
vista nesse vestido e desejava que ele se recordasse de como foi tocar
meu corpo.
Eu me autossabotei o dia inteiro, enquanto procurava por ele nas
salas e corredores, enquanto buscava em conversas, algo que tivesse a
ver com ele, desejei desesperadamente que algum professor contasse
algo extraordiná rio sobre o aluno Nuno D’Agostinni, mas todos
pareciam nã o se importar com ele.
Como podem nã o ver a forma como ele parece tã o maior que os
outros, com seus ombros largos e seus cabelos rebeldes que estã o
sempre implorando por serem domados, como as pessoas nã o se
sentem afetadas por seu sorriso de lado, pela forma como a mochila
escorrega por seu braço fazendo-o jogá -la de volta no lugar de um jeito
elegante demais para um aluno comum. Como ningué m perde o ar
quando é encarado por esse par de olhos intensos, que parecem
conhecer nossos pecados?
Talvez fosse porque nenhum deles conhecesse o seu beijo, o toque
da sua mã o, a forma como seu olhar é capaz de fazer uma mulher se
sentir nua mesmo diante de uma multidã o.
Ao meio-dia, a frustraçã o foi ganhando um espaço tã o grande em
meu coraçã o, que comecei a me sentir triste, ao invé s de aliviada e
orgulhosa por ter sobrevivido um dia inteiro sem esbarrar com ele por
aı́, sem ver sua boca no pescoço daquela garota linda ou seus olhos
debochados no traseiro de outra garota.
E entã o eu o vejo e tudo o que acreditei que era verdade se desfaz,
como um castelo de cartas, tã o instá vel, que bastou ele olhar para mim
para que tudo desmoronasse; e, quando ele passa por mim, com seu ar
arrogante de garoto rico; seus ombros largos, parecendo ainda maiores,
seus cabelos, que meus dedos conhecem a textura, ú midos do banho;
encobrindo um pouco a força do seu olhar enquanto ele se aproxima e
olho em volta, temendo que algué m esteja olhando quando ele baixa
sua mã o discretamente deixando que seus dedos esbarrem nos meus.
Meu corpo inteiro estremece de ansiedade, de desejo, de medo de
ser vista. Ouço o som do seu riso e quase posso vê -lo se formar, meio de
lado, cheio de arrogâ ncia ao notar a forma como me atingiu.
Preciso de mais alguns segundos para me recuperar e graças a Deus
que ainda estou me adaptando a tantos corredores e salas, porque um
grupo de alunos nota minha expressã o e se aproximam perguntando se
eu estou perdida.
E nunca na minha vida ouvi algo tã o verdadeiro.
Eu estou perdida, completamente perdida.

No im do dia me sinto um pouco frustrada quando saio da escola e


nã o encontro Nuno parado no lugar onde ele estava ontem, é uma
sensaçã o totalmente sem cabimento, já que tudo o que nã o preciso é ter
mais uma discussã o com ele no meio da rua, tivemos sorte ontem, mas
isso nã o signi ica que teremos sempre. Mesmo assim, nã o posso evitar.
Passo no café que os professores indicaram durante a semana, é um
lugar modesto em relaçã o aos outros comé rcios que vi, mas é
aconchegante e tem um aroma que remete a algo familiar, com cheiro
de bolo de vó que me faz sentir saudades de casa.
Um rapaz bonito, mas com cara de poucos amigos, anota meu
pedido. Peço para colocar tudo para viagem e vou para casa sentindo a
brisa do im do dia em meu rosto.
Tento aproveitar a sensaçã o, conhecer um pouco da cidade
enquanto caminho por ruas largas e arborizadas, imagino como seria se
Nuno nã o estivesse aqui, com certeza eu aproveitaria muito mais esses
momentos, sem temer ser confrontada a qualquer momento.
Quando chego no apartamento, meus pé s estã o me matando, tomo
um banho bem quente e, antes que eu possa sequer me condenar, estou
pensando em Nuno, imaginando o que aconteceria se eu cedesse ao
desejo e o beijasse.
Um romance proibido, encontros furtivos, rapidinhas vestidas, o
som do seu gemido ecoando em meus ouvidos durante as aulas.
Nã o demora para que eu esteja gritando seu nome
vergonhosamente e digo a mim mesma que essa será a ú ltima vez. Eu
preciso parar de fantasiar situaçõ es eró ticas se quiser tratá -lo como um
aluno.
Depois do banho estou mais relaxada, coloco minhas coisas
espalhadas pela mesa e começo a preparar minhas pró ximas aulas
enquanto como. Uma chuvinha fresca cai lá fora, o cheiro de verã o
causa um sentimento reconfortante em mim e me sinto mais con iante
de que o pró ximo dia será melhor.

Os dois dias seguintes nã o o vejo em lugar nenhum, a frustraçã o é


tamanha que me pego irritada comigo mesma no im da ú ltima aula,
liberando meus alunos mais cedo.
No terceiro dia, Nuno nã o está presente na sala de aula e a
frustraçã o e o alı́vio se confrontam dentro de mim, uma parte está
aliviada por nã o ter que icar no mesmo lugar que ele por 40 minutos,
mas a outra parte, a mesma que escolhe minuciosamente a roupa e o
perfume que vou usar pela manhã , está tã o decepcionada, que por duas
vezes me pego perdida no meio da aula.
E desconcertante o efeito que esse rapaz tem sobre mim.
Durante toda a minha vida sempre fui apaixonada por histó rias, li
tantas que perdi a conta, amores intensos, avassaladores, mornos,
tristes e engraçados, dramá ticos, com inais tristes e felizes, que me
arrancaram sorrisos e lá grimas.
Nã o existe um romance igual ao outro; por mais parecido que seja o
tema, cada histó ria é ú nica, como uma digital, escrita sob a ó tica de
pessoas que poderiam ser reais. Em alguns me peguei imaginando
como deveria ser sentir algo tã o forte por algué m, aquela eletricidade
que passa de uma mã o para a outra, a forma como os coraçõ es
disparam e as borboletas alçam voos em estô magos femininos.
Eu sempre amei essas descriçõ es exageradamente poé ticas, e
mesmo que eu soubesse que nada parecido existe na vida real, eu me
alimentei desses romances.
Talvez seja in luê ncia dessas histó rias que me fazem questionar
minha sanidade, ou, quem sabe, uma pequena parcela de pessoas no
mundo sofre dessa anomalia româ ntica que faz com que elas explodam
como uma reaçã o quı́mica poderosa, apenas por estar no mesmo
ambiente que a outra.
Ao im do dia, deitada em minha cama, me pego pensando que,
talvez, eu e Nuno sejamos uma dessas pessoas.

Estou no inal do primeiro mê s de aula e uma sensaçã o de vitó ria


me enche de alegria, vi Nuno algumas vezes sem a proteçã o da sala de
aula entre nó s, em uma delas ele estava com Cindy, os dois se olhavam
com a intimidade de quem se conhece a vida toda. Desviei o olhar e me
torturei por dias com essa imagem. Em outra ocasiã o, estava longe, ele
nã o me viu, estava rodeado de adolescentes e desejei capturar aquela
imagem e colar na minha geladeira, como um aviso do porquê devo me
manter longe.
Aquele é o ambiente dele. Entre os seus amigos, todos da mesma
idade, com as mesmas vivê ncias.
Nas aulas, as coisas sã o um pouco mais difı́ceis, mas, assim como eu,
ele parece disposto a nã o chamar atençã o e quase nã o nos olhamos,
mesmo assim é doloroso chamá -lo quando preciso, como se o seu nome
soasse diferente dos outros alunos. E doloroso ouvir sua voz quando ele
lê um trecho do livro que estamos trabalhando, ingir que meu corpo
nã o estremece cada vez que ele sorri de algo que seus amigos dizem, ou
quando seus olhos buscam os meus todas as vezes que a aula termina,
como um pedido silencioso para que eu o note. E doloroso,
insuportá vel, difı́cil e sinto que para ele també m nã o está sendo fá cil ter
esse tipo de relaçã o comigo.
Mesmo assim me surpreendo com a forma como nos adaptamos a
uma rotina silenciosa de trocas de olhares intensos, esbarrõ es sem
querer no corredor, pequenos e sutis sorrisos, coisas bobas, mas que
me fazem suportar mais um dia enquanto penso nas palavras de Suzy
sobre deixar a vida acontecer.
Eu estou tentando.
Na sexta-feira, ao im da aula, decido trabalhar na sala dos
professores, foi a festa dos aniversariantes do mê s e a sala ainda está
repleta de comida e bebida, me sirvo de um pouco e me sento em uma
mesa distante. Trabalho por horas e me sinto feliz por ter algo com que
me distrair. Em uma sexta-feira, tudo o que eu nã o preciso é ir para casa
e icar tendo pensamentos eró ticos com um dos meus alunos.
Antes de ir embora, entro no banheiro dos professores, me sinto
idiota ao observar o decote discreto e sensual da minha camisa branca
no espelho, a renda da combinaçã o aparecendo discretamente, algo que
só quem estiver realmente perto poderá ser capaz de ver.
Sei que estou jogando um jogo perigoso, que manter essa
brincadeira doentia pode me levar a um caminho sem volta, onde a
ú nica perdedora será eu, mesmo assim, nã o consigo me impedir de
continuar.
Quando saio da escola, já está tarde e a chuva ina de verã o cai lá
fora, lamento por nã o ter trazido nenhum guarda-chuva, embora seja
uma caminhada curta, sei que será o su iciente para me molhar. Por
sorte, minha pasta é impermeá vel e todos os meus materiais estã o
seguros nela.
A rua está praticamente vazia, somente eu e mais alguns poucos
desprevenidos caminhando apressadamente, nã o noto quando um
carro se aproxima até que ele está perto o su iciente para que eu me
assuste.
— O que você está fazendo na chuva? — Nuno pergunta por uma
pequena abertura na sua janela.
— Voltando para a minha casa.
— Você vai icar toda molhada.
— Esqueci o guarda-chuva.
O vidro se abre e ele se debruça antes de falar:
— Eu posso te levar. Vem, entra no carro.
Olho para o interior do carro, bancos de couro bege, acessó rios
metá licos e seu cheiro, permeando cada pedacinho do carro, um espaço
pequeno demais para uma pessoa que precisa manter a cabeça no lugar
entrar.
— Nã o precisa, eu nã o moro longe. Mas obrigada — respondo e
continuo caminhando, ignorando as imagens que minha mente cria.
Nuno continua ao meu lado, dirigindo bem devagar, o braço coberto por
uma camiseta branca, agora encharcado de chuva.
— Stella, nã o seja ridı́cula, entra aqui e para com isso.
— Eu já disse que nã o quero sua carona, alé m do mais, nã o vou
entrar em um carro dirigido por um menor, obrigada.
— Stellinha, se eu fosse você parava de icar falando essas coisas —
ele diz em um tom de provocaçã o.
— Pare você de falar essas coisas — sussurro olhando em volta.
Ele ri, e eu odeio o quanto gosto desse som.
— Eu já disse que nã o quero sua carona, obrigada.
Tento aumentar um pouco mais o passo em uma tentativa ridı́cula
de fugir, mas ele nem ao menos se abala e continua ao meu lado.
— Você vai icar resfriada.
— Sou forte e saudá vel, nã o precisa se preocupar, e uma chuvinha
de verã o nã o faz mal a ningué m.
Ele acelera o carro e se afasta, ico aliviada quando noto que
consegui me livrar dele, mas, antes que eu possa inalizar meu
pensamento, Nuno para o carro e desce batendo a porta e caminhando
em minha direçã o.
— O que você está fazendo? — Sinto minha voz falhar com a
imagem à minha frente.
— Caminhando. — Ele ergue as mã os no ar, a chuva molha seu
cabelo e seu rosto jovem e arrogante enquanto ele vem até mim.
Deus misericordioso...
— Você é maluco? Olha só para você , está todo molhado. — Aponto
para a sua camiseta branca.
— Você tem razã o, é só uma chuvinha de verã o, que mal pode ter?
— Ele passa a lı́ngua nos lá bios capturando as gotas que caem em seu
rosto e escorrem até ela.
— Onde você pensa que vai? — resmungo enquanto olho em volta
para a rua completamente vazia.
— Nã o sei, por aı́, estou entediado, acho que um passeio na chuva
pode me ajudar.
— Você nã o está pensando em me acompanhar, né ?
— De forma alguma, mas sabe como é , a rua é pú blica e, como
morador dessa cidade, sou livre para transitar por onde eu bem
entender.
Paro de andar abruptamente e olho para ele, de repente sinto toda a
exaustã o da semana desmoronar por meus ombros, me fazendo sentir
sem forças para manter essa discussã o. Se ele quer me acompanhar até
em casa, entã o tudo bem.
— Você nã o vai parar, né ?
— De andar? Por enquanto nã o. — Ele sorri, um sorriso molhado e
irritantemente lindo que faz minhas pernas fraquejarem.
Isso é injusto demais, nem mesmo nos seriados de TV os estudantes
tê m essa con iança masculina.
— Eu nã o vou te convidar para entrar — digo voltando a caminhar,
aumentando a velocidade dos meus passos e desejando que ele desista
dessa loucura e volte para o seu carro. Para a sua vida. Para o seu
mundo.
— Eu nem ao menos pensei nisso.
Olho para o seu rosto encharcado de chuva, nã o faço ideia de onde
ele pretende chegar com isso, mas eu sei que discutir nã o vai nos levar
a lugar algum, eu nã o preciso convencê -lo a nada, basta que eu seja
irme em minha decisã o e tudo icará bem.
Eu só preciso ser irme.
A inal de contas, o que pode acontecer de errado em duas pessoas
caminhando pelas ruas vazias e molhadas em um inı́cio de noite de
sexta-feira?
Meu coraçã o parece prestes a saltar pela boca.
Isso é ridı́culo, imaturo e vergonhoso.
Dou graças a Deus por ela estar determinada a me ignorar porque
tenho certeza de que, se ela olhasse para o meu peito, poderia ver a
camiseta balançando com a força com que esse imbecil bate.
Cuzã o.
Caminhamos alguns minutos em silê ncio, penso em pedir para levar
sua bolsa, mas tenho medo de parecer forçado, no ú ltimo mê s tudo o
que faço é controlar meus atos: quantas vezes posso olhar para ela sem
parecer um luná tico obcecado, quantos sorrisos posso dar para a
professora sem chamar a atençã o, quantas vezes preciso chamá -la de
gostosa quando vejo um maldito olhar para a sua bunda quando ela
passa por nó s, como se, na verdade, eu nã o quisesse arrancar seus
olhos por notá -la.
Controle...
Tá aı́ algo que eu nã o sabia que tinha, mas que no ú ltimo mê s
descobri que sou um perito, já posso até disputar uma medalha, sou o
campeã o mundial do controle, e hoje, depois de uma semana difı́cil a
vendo interagir com os outros alunos com uma naturalidade que ela
nã o tem comigo, sinto essa minha nova aptidã o ir para a casa do
caralho enquanto caminho ao seu lado.
Porque, na verdade, o que realmente quero é tirar ela da chuva,
colocar ela no meu carro, no meu colo, na minha boca. Agora estou aqui,
encharcado, sentindo minha pele arrepiada, meu coraçã o agitado e meu
pau louco por uma atençã o que nã o vai ter.
E isso aı́, amigã o, a vida é uma merda, supera.
Abro e fecho as mã os tentando relaxar, mas estou tenso pra caralho
e a culpa é toda dessa mulher teimosa que insiste em me afastar dela.
— O que houve ontem para que você faltasse? — ela pergunta
parecendo entediada.
— Ressaca — respondo e ela se vira para mim parecendo chocada.
— Uau, que produtivo!
Sorrio porque sinto que alcancei meu objetivo, claro que nã o estava
de ressaca, mas gosto de provocá -la, de ver ela icar nervosinha, ico
louco quando ela quer dar uma de professora para cima de mim. Meio
metro de mulher, cheia de arrogâ ncia, com esse narizinho empinado...
ah, porra.
Agradeço aos cé us por essa chuva chata, meus hormô nios estã o
precisando.
— Estou brincando, nã o sou tã o irresponsá vel assim.
— Bom pra você — ela diz e lá está ele, o narizinho molhado,
empinado, e minha boca se enche de á gua de vontade de mordê -lo.
Se controla, Nuno...
— Eu só queria te dar um tempo — admito e consigo fazer com que
ela pare de andar.
— O quê ?
— Achei você um pouco tensa na ú ltima aula, entã o te dei um dia de
descanso para você conquistar a turma.
— Ah, obrigada, mas nã o precisava fazer isso — ela diz voltando a
andar, o nariz arrebitado, a expressã o de quem está se esforçando para
parecer tranquila. Baixo os olhos para a sua mã o e noto que ela está
fechada em um punho tã o apertado que os nó s estã o icando brancos.
Me inclino até que meu rosto esteja bem perto do dela e sussurro:
— Relaxa, Stella.
Ela se assusta e dá um passo para o lado se afastando de mim.
— Nã o faça mais isso! — ela me repreende, com os olhos tã o
arregalados que parecem prestes a pular. Eu sorrio.
— Você precisa relaxar na minha presença, vamos nos ver muito ao
longo do ano e nã o quero me sentir mal por te deixar tã o tensa.
— Você nã o me deixa tensa — ela mente e noto seu rosto corar.
— Ah, nã o? Desculpe, acho que me enganei.
Tento colocar as mã os nos bolsos, mas eles estã o molhados e
desisto, passo a mã o pelo cabelo mais uma vez e giro o pescoço de um
lado para o outro, tenso pra caralho eu sei.
— Nuno, eu... — Ela para de andar mais uma vez, os dentes cravados
no lá bio inferior enquanto olha para os dois lados da rua.
— Estamos sozinhos, Stella, ningué m vai te prender por estar
conversando com uma criança, relaxa — tento provocá -la, mas no
fundo sei que estou me magoando. Odeio essa palavra, odeio sequer
imaginar que ela possa vir a me enxergar dessa forma.
Ela respira fundo e me arrependo de ter falado assim.
Se quero provar algo para ela, com certeza nã o será agindo como
um moleque mimado e birrento que nã o teve seu desejo realizado.
— Desculpe, eu...
— Nã o, espera. — Ela ergue a mã o me impedindo de continuar. —
Você tem razã o, eu quero me desculpar por aquele dia.
— Nã o entendi.
Cruzo os braços na frente do corpo ignorando a chuva, que agora
parece ter aumentado, e agradecendo o fato de estarmos realmente
sozinhos na rua, nã o gosto de ver ela tã o agitada e nervosa e isso é algo
que sempre acontece quando está na minha presença. Mesmo diante de
uma sala inteira, a metros e metros de distâ ncia, Stella age como se, a
qualquer momento, algué m pudesse descobrir o nosso segredo.
— Eu nã o deveria ter dito aquilo sobre você se gabar com seus
amigos, foi cruel da minha parte julgar você daquela forma. Eu estava
nervosa e assustada, nã o que isso justi ique, mas eu nã o te conhecia e...
— Stella.
Ela ergue seu rosto para olhar para mim e respira fundo.
— Eu nunca te prejudicaria.
— Eu sei, é que isso tudo é novo para mim e nã o estou sabendo
lidar.
— Entendo.
— Eu nunca, você sabe... — Ela desvia o olhar, seu rosto ica
vermelho e preciso de toda a porra da concentraçã o do mundo todo
para manter as partes rebeldes do meu corpo adormecidas.
Pode trazer a medalha, temos um novo recorde olı́mpico aqui.
— Eu sei, você nunca cometeu um erro tã o grande.
— Isso, quer dizer... — ela se atrapalha com as palavras e mordo o
lá bio para nã o sorrir, mas a verdade é que ela ica linda assim toda
nervosa. Meu Deus, eu tô completamente fascinado por essa mulher.
— Eu nã o quero ser babaca com você — ela diz por im.
— Prometo avisar quando estiver sendo.
Stella sorri, um sorriso tı́mido que me faz querer estender a mã o e
afastar uma mecha do seu cabelo do rosto.
— Podemos começar de novo? Digo, como amigos, claro.
— Nã o sei se posso ser seu amigo, Stella — admito.
— Ah, claro, entendo.
Ela desvia o olhar e minha vontade de beijar a sua boca beira a
loucura.
— E que eu nã o quero que a gente ique com um clima ruim.
— Nã o vamos icar — minto.
— Nã o quero que você se sinta constrangido na minha aula.
— Nã o vou icar.
— Eu só quero que ique tudo bem.
— Vamos dar um jeito nisso — digo, dessa vez, com toda a
sinceridade do meu coraçã o.
— Meu Deus... qual a chance de algo parecido acontecer?
— Cerca de uma em 657 milhõ es?
— Eu aposto que sim. — Stella dá um sorriso sem graça, porque,
embora seja uma situaçã o bizarra, nã o é legal o que aconteceu entre a
gente. Nem um pouco legal.
Voltamos a caminhar, a parte mais tensa da conversa parece ter
icado para trá s, me sinto um pouco mais relaxado també m e começo a
acreditar que talvez possamos contornar essa situaçã o.
— Eu quero que você saiba que eu nã o mudaria nada — admito sem
me importar de parecer ridı́culo. — Nã o me arrependo do que izemos
aquele dia — completo, Stella olha para mim e sorri.
— Eu també m nã o, aquela noite foi importante para mim.
— Para mim també m — digo desejando falar mais, contar sobre
Matteo, dizer a ela o que aconteceu e por que eu estava naquele festival.
— Minha irmã foi pedida em casamento naquela noite.
— Nã o brinca, sé rio?
— Sim. Ela merece muito ser feliz.
— Se ela for parecida com você , ele é um cara de sorte.
— Ela é um milhã o de vezes melhor.
— Impossı́vel.
— Acredite, ela é incrı́vel. A melhor pessoa desse planeta e eu a amo
com todo o meu coraçã o.
— Eu sei como é — digo sentindo-me um pouco melancó lico e com
inveja dela por ter a sua irmã ao seu lado enquanto o meu agora só
existe em meu coraçã o.
Caminhamos um pouco mais, em um momento minha mã o resvala
na sua, ela nã o afasta, preciso me conter para nã o a segurar, puxá -la
para mim, aninhá -la entre meus braços. Stella me olha de soslaio e
tenho a impressã o de que serei assassinado se tocá -la em pú blico.
— Você realmente me procurou?
— Sim, senhora, uma por uma.
— Eu nã o acredito.
— Posso mostrar a lista se quiser. Está lá em casa, como prova da
minha teimosia e obstinaçã o.
— Me desculpe, eu nã o imaginei que te causaria esse transtorno.
— Tudo bem, foi divertido.
Stella ajeita a bolsa no ombro e, sem me preocupar com pieguice ou
nã o, estendo minha mã o e pego a mala.
— Obrigada.
— Disponha. — Ergo a mala no ar sentindo o peso dela. — Isso nã o
tá pesado demais para você ?
— Você é sempre tã o observador?
— Eu me preocupo com você .
— Por quê ?
— Nã o sei responder, Stella, eu só me preocupo.
Sempre fui um cara que preza pela sinceridade, talvez por isso seja
tã o fá cil para mim admitir algo tã o ı́ntimo para ela, a verdade é que eu
nã o consigo parar de pensar nela nem um minuto sequer, mas acho que
ela nã o se sentiria à vontade se eu falasse isso.
— Você dirige aquele carro por aı́, nã o tem medo de ser pego?
— Meu pai é amigo de infâ ncia do delegado, ele nã o me prenderia
nem se eu cometesse um assassinato na frente da delegacia.
— Na verdade, ele nã o poderia te prender nem assim — ela brinca e
começo a rir.
— As vantagens de ser uma criança.
— Isso te magoa?
— Ser uma criança? — pergunto e ela con irma. — Nã o, eu sei que
nã o sou, mas quando você usa a minha idade para me impedir de olhar
para você , me magoa.
— Nuno...
— Tudo bem, você me fez uma pergunta, eu só respondi.
— Quero que saiba que nã o te vejo como uma criança.
— Como você me vê , Stella? — Encaro seu per il sentindo o idiota
do meu coraçã o acelerado.
— Como algué m que eu nã o deveria olhar. — Ela ergue o rosto para
mim confessando.
— Algo proibido... — sussurro.
— Exato.
— Você sabe o que dizem sobre o proibido — provoco-a.
— Por isso preciso usar sua idade para me manter afastada.
— Certo.
A conversa termina de um jeito esquisito, como se admitir a verdade
só tornasse a situaçã o ainda pior. Mais insuportá vel, indigesta, dolorosa.
Viramos uma esquina e reconheço a rua onde estamos.
— Viela dos Universitá rios, é aqui que você mora?
— Pois é .
— Tranque bem a sua porta antes de dormir, se eles souberem que
tem uma professora entre eles, sã o capazes de acender uma fogueira e
te jogar dentro. E nã o importa que seja uma tã o gostosa.
— Nuno! — ela exclama e sorrio.
— Estou brincando, mas sé rio, eu imaginei que você ia querer algo
mais... clá ssico, do tipo varanda e jardim, essas coisas.
Stella para na frente de um edifı́cio, das dezenas de edifı́cios que
formam uma das ruas mais simples e agitadas da cidade.
Nã o costumo frequentar muito essa parte da cidade, alé m de ser
praticamente toda ocupada por universitá rios bê bados e chapados, que
nos consideram os riquinhos soberbos de Monte Mancante, nã o nos
misturamos, eles nã o frequentam as nossas festas e nem a gente as
deles.
Somos como á gua e ó leo.
— Gosto daqui, tem seu charme, me faz sentir como se estivesse em
uma cidadezinha da Europa.
Olho em volta tentando reconhecer ao meu redor, algo que me
lembre de alguma cidade que já visitei. Mas tudo o que vejo é
desordem, barulho e estudantes.
— E, pode ser. Olhando por esse lado, até que parece.
— E tudo o que meu dinheiro pode pagar, entã o.
Franzo o cenho enquanto analiso sua resposta, nã o quero ser
grosseiro e nem falar sobre dinheiro, mas, porra, aquela merda de
colé gio está no ranking dos mais caros do paı́s, se brincar do mundo.
Como diabos uma professora pode falar algo assim? Nã o é possı́vel que
o velho asqueroso dono daquele mausolé u pague mal com a grana que
cobra dos pais.
Observo seu rosto encharcado de chuva, o rı́mel está borrado, o
batom há muito já se foi e ela tem uma expressã o cansada no rosto.
Quero perguntar se ela está precisando de alguma coisa, mas sei que
isso pode parecer ofensivo. Imagens dela sozinha, em uma dessas
caixas de fó sforo, me deixa agitado de um jeito ruim.
— Você vai icar bem? — Dou um passo para mais perto, mas ainda
longe demais para o meu gosto, quero puxá -la pela cintura, quero
apoiá -la na parede e beijá -la até que ela se dê conta de que sou muito
mais do que ela enxerga, que posso ser um homem, que me preocupo
com seu bem-estar, quero mostrar para ela que aquela noite pode ser só
o começo.
— Eu estou bem, Nuno, nã o precisa se preocupar.
— Já disse, nã o posso evitar.
Dou mais um passo, perto o su iciente para sentir seu há lito em
minha pele, causando arrepios por todo o meu corpo, meus olhos
passeiam por seu rosto, enquanto ela veri ica se estamos sendo vistos.
— Estamos sozinhos, Stella.
— Nuno...
Observo ela engolir em seco e meus dedos coçam de vontade de
segurar sua garganta, meus olhos caem em sua camisa, colada ao corpo,
transparente por causa da chuva, noto a renda aparecendo por baixo
dela e me pergunto quantos daqueles babacas desejaram coisas
impró prias com ela hoje.
Merda!
— Promete para mim que, se precisar de alguma coisa, você me
chama?
— Nuno.
— Qualquer coisa, um guarda-chuva, um carregador de malas, um
beijo.
— Jesus Cristo, por favor nã o faz isso.
— Stella, você pode me proibir de te tocar, de me aproximar, mas
nã o pode me impedir de falar a verdade e eu sempre vou falar a
verdade para você .
Ela ergue o rosto em minha direçã o, os olhos cheios de tesã o,
exatamente como na noite em que a conheci. Sei que, se eu tentar beijá -
la, ela nã o vai resistir, mas nã o é isso que eu quero.
Quero que ela me deseje, tã o desesperadamente quanto eu a desejo,
que ela esteja tã o louca por mim que nã o perca um segundo sequer
olhando em volta, quero que ela me veja como o homem que ela viu
naquela noite e nã o como o menino que ela vê na escola.
— Eu nã o fui a aula porque nã o estou preparado para ser visto
como um moleque, nã o vou suportar ser diminuı́do dessa forma, eu
tentei sair da sua maté ria, já fui até o diretor, pedi, implorei, disse que
era uma perda de tempo, mas ele é extremamente rı́gido e negou meu
pedido.
— Por que você fez isso?
— Porque eu sei que, com o tempo, você vai esquecer o cara que
esteve com você naquele dia e tudo o que vai sobrar é o aluno do fundo
da sala, e nã o vou suportar isso.
— Nã o vou te esquecer.
Stella se aproxima um pouco mais, agora já posso sentir os seus
dedos roçando os meus, escondidos dos olhos de qualquer pessoa que
possa passar na rua.
— Vai sim, eu sei que vai. — Baixo o olhar para nossas mã os, seus
dedos passeiam sobre os meus devagar, é uma tortura quase
insuportá vel sentir seu toque e nã o a tocar. — Já está começando.
— Nã o di iculta as coisas — ela sussurra no mesmo instante em que
sua mã o segura a minha, um contraste entre o que ela deseja e o que ela
sabe que deve fazer. Aperto meus dedos em torno dos seus e sinto meu
peito subir e descer com a força com que meu coraçã o bate.
Porra, talvez ela tenha razã o, talvez eu seja mesmo um moleque
idiota que ica agitado com um simples toque de mã os, mas que se foda.
Ela tem esse poder sobre mim, ela tem todo o poder e eu nã o dou a
mı́nima.
— Eu estou completamente louco por você — admito e, quando ela
tenta afastar a sua mã o da minha, eu a seguro um pouco mais forte.
— Nuno, nã o faz assim.
— Eu nã o consigo evitar, mas eu juro que nã o vou fazer nada que
você nã o queira. Nã o vou te olhar por mais de dois segundos, nã o vou
sorrir, nã o vou te tocar, mesmo sabendo que vai ser uma tortura pisar
naquele maldito lugar sabendo que estou tã o perto de você .
Stella passa a lı́ngua nos lá bios e posso sentir o con lito dentro dela,
uma parte quer o que tivemos naquela noite, a outra sabe que precisa
manter distâ ncia, sei que essa é a mais forte, mas preciso me prender à
esperança de que, ao menos uma vez, ela ceda ao desejo.
— Você está todo molhado. — Ela passa a mã o em meu antebraço e
estremeço.
— Nã o dou a mı́nima.
— A chuva aumentou.
— Já disse que nã o dou a mı́nima.
Stella olha para os dois lados da rua mais uma vez, sinto que ela está
decidindo, seu rosto se contorce de dor, é uma escolha difı́cil de fazer. Se
ela me deixar entrar, eu sei onde vamos parar, meu corpo implora por
isso, mas se ela me mandar ir embora eu irei.
— Você escolhe, Stella — sussurro rouco de tesã o, sei que, se ela
olhar para a minha calça, vai notar o quanto estou duro só por estar tã o
perto dela. — Sempre você .
— Nã o é tã o simples assim.
— Claro que é , ou você me quer ou nã o.
— As vezes, as pessoas querem, mas nã o podem.
— Grande merda, nã o dou a mı́nima, eu ainda te quero.
— Tá , entã o a gente sobe e transa, como se o mundo fosse terminar
hoje, mas e amanhã ? Como vou olhar para você na sala de aula? Como
posso ingir que nada aconteceu? Eu nã o consigo, me desculpa. — Ela
fecha os olhos e retira sua mã o, eu a deixo ir porque, no fundo, sei que
ela tem razã o, nã o é tã o simples assim.
Respiro fundo tentando controlar meus impulsos, preciso que ela
tome a atitude, já iz muito mais do que pensei que poderia fazer, o
resto é com ela.
— Relaxa, nã o estou pedindo para fazer nada — sussurro, com a
mã o solta e o rosto inclinado, perto o su iciente para que ela possa me
beijar caso queira.
— Droga — ela resmunga enquanto baixa o olhar para o chã o, o
barulho da chuva se torna quase insuportá vel, sinto o momento em que
ela se aproxima, seus seios roçando meu peito, ela fecha os olhos e
preciso me conter para nã o fazer o mesmo porque preciso olhar para
ela, analisar cada uma das suas açõ es, ver para qual lugar ela está indo
nessa merda toda.
Estou parado, completamente quieto, se pudesse, deixaria até
mesmo de respirar. Seu nariz passeia por meu peito inalando meu
cheiro e minha respiraçã o ica irregular, ela se inclina para trá s,
esticando-se, abaixo minha cabeça, facilitando as coisas para ela.
Tã o pequena e, ao mesmo tempo, tã o dona de mim.
— Eu nã o preciso transar com você , Stella, só preciso saber que
estamos na mesma merda.
— Meu Deus... eu tô perdida — ela sussurra enquanto seus dedos
tocam as pontas dos meus cabelos e esbarram na minha nuca, solto um
gemido quando sua boca toca a minha, é tã o lento, tã o proibido, que
chega a ser doloroso.
— Por favor, Stella, deixa ele fora disso — digo e no instante
seguinte minha boca é invadida por sua lı́ngua e, pela primeira vez
desde aquela noite, sinto toda a agitaçã o do meu corpo se esvair.
E um beijo lento, cheio de tesã o e saudade, um beijo que achei que
nunca mais aconteceria e decido que preciso aproveitar cada segundo
dele.
Solto sua mã o e coloco meus dedos onde eles ansiavam por
estarem: em sua cintura. Aperto-a com força só para ouvi-la gemer. Ah,
porra... meu pau pulsa e esfrego-o em sua barriga enquanto aprofundo
o beijo, sinto sua mã o em meu peito, os dedos contraı́dos, puxando
minha camiseta para si enquanto sua boca me consome, sugando minha
lı́ngua, explorando-me, entregando-se, exigindo.
O beijo mais intenso da minha vida.
Meu coraçã o martela no peito enquanto tento com todas as minhas
forças nã o rasgar suas roupas aqui mesmo. Como se ela pudesse sentir
minha â nsia, o beijo diminui, esfria, se acalma.
Ela começa a se afastar, o beijo diminui, suas mã os caem e solto sua
cintura. dou um passo para trá s e vejo ela passar as costas da mã o na
boca, tento ignorar a pontada que sinto com essa visã o, mas nã o dá
para evitar. Entrego a mala para ela e dou mais um passo para trá s,
passo a mã o na nuca, bem onde seus dedos tocaram, sinto como se o
chã o estivesse afundando, me levando junto e é exatamente isso que eu
desejo: desaparecer.
— Acho melhor você ir — ela implora, como se estivesse se
esforçando para ser educada.
— Claro. — Dou mais um passo e olho para ela mais uma vez, sua
boca está vermelha e suas bochechas també m, ela parece algué m que
acabou de ser beijada com vontade e a expressã o em seus olhos me diz
que ela já se arrependeu.
Caralho, isso dó i.
— Desculpa, Nuno.
— Nã o. — Balanço a cabeça enquanto caminho ainda olhando para
ela. — Nã o faz isso, Stella.
Ela volta a olhar para os dois lados da rua e me viro caminhando
para longe, e nesse momento me dou conta de que durante todo esse
tempo ela esteve ciente do que estava fazendo: dando uma migalha
para um garoto bobo e encantado.
Porque é isso que sou para ela.
— Eu vou direto para o inferno — digo entre lá grimas, agarrada a
segunda garrafa de vinho que comprei em um mercadinho, assim que
fui capaz de fazer minhas pernas me obedecerem.
O dono do mercadinho icou tã o assustado com a minha aparê ncia
que se ofereceu para me ajudar a chegar em casa.
Acho que ele temeu por minha vida ou pela vida de algum morador
inocente que atravessasse meu caminho.
Desde entã o estou sentada no chã o da sala, ainda usando a mesma
roupa molhada, enquanto choro e bebo na frente do celular.
— Não exagera, quem nunca teve uma fantasia erótica com um
garoto? Eu mesma sonhava em dar para aquele menino, ilho do seu Jota,
lembra? — Suzy fala do outro lado da tela, tentando me fazer entender
que nã o sou o monstro que estou me sentindo.
— Eu nã o sei o que houve comigo.
— Eu sei, se chama hormônios, você é uma mulher jovem, linda e que
não faz sexo regularmente — ela continua falando, mas nã o estou mais
aqui, meus pensamentos se voltam para ele, a forma como parecia
entregue, à minha disposiçã o, pronto para aceitar o que eu tivesse para
dar.
Eu precisei reunir tudo de mim para nã o o trazer aqui para cima e
arrancar a sua roupa como uma cadela no cio.
— Eu havia prometido a mim mesma que nã o iria fazer nada errado.
— Ih, isso é a maior furada, essas promessas são como psicologia
reversa.
Apoio a cabeça no sofá atrá s de mim, a roupa ú mida e quente me
incomoda, mas nã o tenho forças para me mexer.
— Você precisava ver a forma como ele me olhou.
— Claro, você cortou o barato do moleque.
— Suzy você nã o tá me ajudando.
— Eu não tô aqui para te ajudar, estou aqui para te acusar.
Passo as costas das mã os nos olhos, limpando a ú ltima onda de
lá grimas.
— Olha para você, é a encarnação da derrota aí jogada no chão,
destruindo seu ígado com esse vinho barato, chorando por um cara que
tá louco por você.
Ele disse isso, ele disse que está louco por mim e eu iquei tã o
apavorada com a força com que meu coraçã o bateu quando ouvi ele
falar aquelas palavras, que me assustei.
— Você quer que eu seja presa?
— Por que você iria? Pelo que eu saiba, foi um ato consensual entre
um homem e uma mulher que se desejam, não há nada de sujo ou ilegal
nisso.
— Isso nã o tem como dar certo.
— Você já está sofrendo, Stella. Pior não tem como icar.
— Eu nã o posso...
— Ah, vá se foder, se você falar isso mais uma vez eu juro por Deus
que vou até aí dar na tua cara.
Inclino a cabeça e olho para a minha irmã , posso ver nos seus olhos
o desespero por saber que nã o vou me permitir essa insanidade. Suzy
está triste, sofrendo por me ver abrir mã o de algo que ela acredita que
seja importante para mim.
Durante toda a nossa vida, Suzy cuidou de mim da maneira que
pô de, abriu mã o de coisas que eram importantes para ela. Com suas
palavras e sua força me deu coragem para que eu pudesse realizar
meus sonhos, fez o que pô de para que eu nunca me sentisse como a
garota ó rfã da escola. Com seu coraçã o puro e lindo, ela doou sua vida
para mim.
E, eu sempre vou doar a minha por ela.
Beijar Nuno foi um erro, um grande e terrı́vel erro. O que sinto por
ele vai alé m das lembranças daquela noite e nã o posso alimentar essa
aventura sexual, isso só vai me desviar dos meus objetivos.
— Você nã o imagina o quanto eu adoraria que você estivesse aqui,
mesmo que fosse para dar na minha cara.
Começo a chorar novamente, o á lcool potencializa a dor que sinto
nesse momento, Suzy seca as suas lá grimas do outro lado da tela e me
sinto uma irmã de merda por fazer ela se sentir culpada quando a ú nica
culpada de tudo aqui sou eu.
Merda de vida... De tanto amar tragé dias româ nticas, acho que estou
prestes a viver a minha pró pria.

Acordo no sá bado me sentindo pior ainda, tento abrir os olhos, mas
o sol que ultrapassa a ina camada da cortina faz eles doerem e desisto,
puxo o cobertor até minha cabeça e volto a dormir.
Na pró xima vez que acordo, ouço um burburinho de vozes do lado
de fora, é sá bado e meus vizinhos universitá rios parecem felizes e
dispostos a aproveitar o dia, o som está alto demais e minha cabeça dó i
e decido me levantar para comer alguma coisa.
Puxo um moletom da gaveta e en io meus braços nele, me arrasto
pelo apartamento sentindo como se estivesse atravessando os longos e
in initos corredores do palá cio de Versalhes. Quando chego a cozinha,
estou tã o cansada que desisto de comer, procuro um analgé sico para a
minha dor de cabeça, mas me lembro de que tomei o ú ltimo
comprimido no primeiro dia de aula, depois de descobrir que o destino
me odeia.
Vasculho minha caixa de remé dios e sem encontrar nada ú til, tomo
um copo de café de ontem, frio e horroroso, me arrasto de novo para a
cama na esperança de que, se eu dormir mais um pouco, talvez eu
acorde melhor.
Imagens de Suzy chorando, mã es me acusando de ser uma
molestadora de adolescentes, o diretor da escola me pegando aos beijos
com Nuno me fazem ter um sono agitado. Acordo ainda pior, meu corpo
dó i tanto que quase nã o consigo levantar o cobertor, me assusto
quando olho pela janela e noto que está quase anoitecendo.
Meu telefone toca no mesmo instante, é Suzy e sei que se nã o
atender ela vai icar preocupada.
— Pronto — falo esfregando o rosto enquanto me levanto.
— O que está acontecendo? Estou tentando falar com você o dia
inteiro, por acaso o gostosinho tá aí?
— Que horas sã o? — Tiro o telefone do ouvido para ver e me
assusto quando me dou conta de que dormi praticamente o dia inteiro.
— Deus, eu acho que estou com a maior ressaca do mundo.
— Você dormiu? O que diabos tinha nesse vinho?
— Nã o sei, acho que vou na farmá cia comprar um analgé sico, o meu
acabou e minha cabeça está me matando.
— Por favor me dá notícias, estou preocupada.
Desligo o telefone e visto uma legging, pego as chaves do carro e
minha bolsa e me arrasto para fora do apartamento, demoro uma
eternidade para chegar até o carro e mais uma para conseguir achar
uma farmá cia, dou graças a Deus pela vaga em frente a ela estar vazia,
eu nã o faria uma baliza nem se minha vida dependesse dela, o que nã o
está muito longe da verdade.
Quando entro na farmá cia dou de cara com um grupo de garotas
que estã o na sessã o de camisinhas e lubri icantes e parecem animadas
enquanto escolhem, reconheço duas da escola, mas nã o me lembro bem
de que turma elas sã o, nã o me choco, essas garotas devem ter uma vida
sexual bem mais agitada que a minha.
Me debruço no balcã o e aguardo algué m aparecer, sinto quando
uma pessoa para ao meu lado, seus olhos me analisam como se eu fosse
um animal selvagem, talvez minha aparê ncia esteja pior do que eu
imaginava.
— Prontinho, Cindy, aqui está o seu remé dio. — O farmacê utico
estende uma caixa de anticoncepcional para a garota ao meu lado e,
quando me viro para vê -la, sinto meu estô mago vazio embrulhar.
E ela, a garota que está sempre ao lado de Nuno, a mesma que me
disse que ele nã o estava quando iz a chamada na ú ltima aula me
deixando louca de ciú mes e vergonha. Ciú mes, por imaginar o motivo
para ela saber onde ele estava; vergonha, por admitir que tenho ciú mes
de uma garota, mesmo que seja uma das mais lindas que já vi.
Hoje ela está ainda mais bonita com os cabelos soltos e bem
modelados e o corpo magro absurdamente bronzeado em um short que
mal cobre sua bunda.
Onde está todo esse calor?
— Pro, é a senhora? — Madalena, uma das minhas alunas da mesma
turma, me olha com um ar preocupado.
— Sim, acho que sou. — Forço um sorriso engraçado, mas até isso
faz minha cabeça doer.
Droga, o desse lugar precisa estar tão baixo?
— Você está bem? — o homem pergunta e tenho vontade de dar
uma resposta atravessada, mas me contenho.
— Estou com dor de cabeça, preciso de um analgé sico.
O homem me analisa, seus olhos passeando seus olhos por meu
rosto e minhas roupas.
— Você parece febril, já veri icou sua temperatura?
— Eu só estou de re... — Olho para as meninas que continuam do
meu lado me observando, nã o quero falar que estou de ressaca na
frente delas, mas entã o olho para a caixa de anticoncepcional nas mã os
de Cindy e nã o preciso ser um gê nio para saber o motivo dela estar
comprando isso.
Que se dane, eu sou humana, posso nã o transar, ao contrá rio das
minhas alunas, mas ao menos posso dizer que estou bebendo.
— E só uma ressaca terrı́vel.
O cara parece nã o acreditar em mim e estende sua mã o encostando
em minha testa sem meu consentimento.
— Desculpe, mas a senhorita está ardendo em febre.
Febre? Nã o pode ser, eu só estou com frio e dor no corpo e... ah, nã o.
A chuva, a roupa molhada, o porre no chã o do meu apartamento.
Estou com febre, pior, estou gripada.
Cindy discretamente se afasta, como se pudesse pegar, seja lá o que
eu tenha, e se junta a suas amigas do clube do sexo. O homem me
entrega um termô metro e me assusto com a temperatura. Quase 39.
Ele me entrega alguns medicamentos e um pedaço de papel com a
dosagem e horá rios, ele anota o nú mero do seu telefone no papel e me
pede para ligar caso me sinta pior. Provavelmente ele sabe que estou
sozinha nessa merda de cidade.
— Obrigada — digo quando termino de pagar, o homem gentil ainda
me acompanha até o meu carro e me deseja melhoras.
Observo as meninas se juntarem a um grupo ainda maior, carros
que valem mais do que a casa onde nasci estã o estacionados, o som
alto, gargalhadas e vozes. Por um instante invejo esses jovens, a ú nica
preocupaçã o deles é qual a camisinha que vã o usar essa noite.
Volto para casa sentindo meu corpo doer a cada minuto mais, rezo
para que o farmacê utico tenha razã o e que eu ique boa logo, nã o posso
faltar na segunda, tenho duas turmas apresentando trabalhos essa
semana.
Tomo um banho morno e saio do chuveiro tremendo de frio, tomo
os remé dios que ele mandou e caio na cama, exausta demais para
pensar em qualquer coisa que nã o seja dormir, de preferê ncia para
sempre.
Deve ser castigo, só pode, estou sendo castigada por brincar com o
perigo.
O sono vem rapidamente, tã o pesado que adormeço quase que
imediatamente, dessa vez um sono cheio de remé dios, que me permite
descansar melhor.
Acordo algumas horas mais tarde, sobressaltada com um barulho,
primeiro imagino que seja uma briga na rua, depois acho que é um dos
meus vizinhos que deve estar dando uma festa, demoro um instante até
me dar conta de que, na verdade, é o barulho da minha porta.
Tem algué m aqui.
Olho para o celular, há uma mensagem de Suzy, me desejando
melhoras depois que voltei da farmá cia, ela nã o viria até aqui só por
causa de uma gripezinha, entã o só pode ser o farmacê utico.
Será que meu caso é tão grave assim para que ele se disponha a vir
até aqui ver como estou?
Mais uma batida na porta, dessa vez um pouco mais alta e entã o
estremeço quando ouço uma voz:
— Stella, por favor, abra essa porta.
Por um momento imagino ter ouvido algo, nã o pode ser... Deve ser a
febre que está tã o alta que estou delirando.
— Stella, estou icando preocupado — Nuno fala e, pelo som, posso
imaginar ele com o rosto apoiado na porta do outro lado.
Cruzo os braços na frente do corpo enquanto analiso minhas
opçõ es. Se eu nã o responder, ele pode achar que desmaiei e arrombar a
porta, vai ser um escâ ndalo e logo todos vã o estar se perguntando por
que um aluno está na casa da professora em um sá bado à noite. Algo
que nã o vai demorar a acontecer se ele continuar gritando desse jeito
do lado de fora.
Respiro fundo me preparando para abrir a porta e dizer a ele que
estou bem, é simples, ele nã o precisa entrar, basta ver que estou viva e
entã o ele poderá voltar para a sua turma e, quem sabe, ajudar a Cindy a
decidir qual camisinha usar.
— Acho que nunca te vi de tã o mau humor antes — Ivan diz quando
estaciona seu carro na avenida principal, aquela com o nome do meu
avô , onde combinamos de nos encontrar.
Já está lotado e ainda nã o consegui me convencer do porquê estou
aqui. Na verdade, fui praticamente arrastado de casa por Ivan, que se
recusou a me deixar sozinho em um sá bado à noite. Mesmo sabendo do
meu pé ssimo humor.
Ser rejeitado faz isso com as pessoas, acaba com seu humor.
— Nã o enche, eu tô aqui, nã o tô ? — Puxo o maço de cigarro e tiro
um colocando na boca e acendendo.
— Vai por mim, irmã o, estou prezando por sua dignidade.
Se arrependimento matasse, com certeza eu estaria morto.
Ontem quando saı́ da rua de Stella, molhado até os ossos, estava tã o
furioso, humilhado e frustrado que fui direto para a casa de Ivan, aceitei
uma caneca de chocolate quente que sua mã e fez para nó s e acabei
contando tudo para ele. Desde entã o, ele nã o sai do meu lado, dizendo
que está me protegendo de mim mesmo.
— Eu nã o vou atrá s dela — repito pela milioné sima vez.
Ivan olha para mim daquele jeito insuportá vel, a sobrancelha
erguida e aquela porra de cabelo desarrumado caindo na frente do
olho, como quem diz, eu nã o tô nem aı́ para a mentira que você está
dizendo.
Foda-se, eu nã o estou mentindo, nã o mesmo.
— Nó s dois sabemos o que vai acontecer se algué m naquela escola
descobrir que você e a professora tiveram um lance.
Balanço a cabeça sem vontade de voltar nesse assunto, nã o sei por
que Ivan está sendo tã o pé no saco hoje.
— Aliá s, nã o só a escola, a cidade inteira, esse bando de velhos
hipó critas e moralistas seriam capazes de acabar com a carreira dela —
ele completa, como se eu nã o soubesse.
Nã o, Ivan nã o está preocupado de verdade com a carreira da
professora, seu problema sou eu, acho que eu deveria ter me secado
antes de aparecer na porta da sua casa parecendo um cachorro
sarnento chutado, mas, sinceramente, eu nã o estava pensando muito
naquele momento, eu só precisava de algué m que me impedisse de
voltar e falar para Stella o que ela merecia ouvir.
E meu amigo vem fazendo um excelente trabalho.
— Mas que porra, eu já disse que nã o vou mais atrá s dela, caralho!
Abro a porta do carro, mas, antes que eu consiga sair, Ivan segura
me braço me mantendo no lugar. Seus olhos azuis tranquilos me
encaram por baixo da faixa loira de cabelo.
— Eu sei que tô passando dos limites, mas tô realmente preocupado
com você .
— Nã o precisa, já disse.
— Nunca te vi assim por nenhuma garota, eu estou assustado, de
verdade.
— Talvez seja porque ela nã o é como as outras garotas.
Ivan suspira enquanto olhamos para as meninas a nossa frente,
todas lindas, ricas e perfeitas. Felizes demais, com seus sorrisos extra
brancos.
— E claro que é diferente, é a professora, 80% dos caras da escola já
sacaram que ela é diferente.
Nã o gosto do que ele diz e preciso me esforçar para me lembrar de
que ele é meu amigo e nã o meter a porrada no meio dessa sua cara de
playboy rico.
— Vai se foder — digo puxando meu braço, mas ele nã o me solta.
— Se liga, Nuno, é a real, cara, Stella é linda, ningué m aqui é cego,
porra.
— Ela nã o é uma fantasia de punheteiro — defendo-me.
— E o que entã o? O amor da sua vida? Por acaso, você tá
apaixonado por ela?
Abro a boca para dizer que nã o, mas nã o tenho certeza do que dizer,
eu estou apaixonado? Porra, nã o, claro que nã o, eu só estou irritado e
com uma puta dor nas minhas bolas que pretendo resolver hoje
mesmo, assim que conseguir me livrar do pé no saco do meu amigo.
— Ah, nã o, puta merda, Nuno, como você foi se meter nessa?
Penso na forma como Stella me beijou ontem, em como ela parecia
quase em sofrimento por estar me tocando, como sua boca hesitou
antes de se colar na minha, como meu corpo reagiu a esse ato tã o
simples, um beijo e tudo em mim se acendeu, como a porcaria da pira
olı́mpica, para depois ser rejeitado como se eu fosse um moleque
chorã o implorando por uma migalha.
Sim, meu amigo tem razã o, eu nunca tive nada parecido com
ningué m.
— Eu nã o sei do que você tá falando.
Desço do carro e respiro fundo enquanto jogo o cigarro no chã o, a
noite mal começou e já me sinto exausto. Cindy parece ter um sensor
que avisa nossa presença porque ela já acena para mim.
— Merda, lá vem ela! — resmungo.
— Toma cuidado com o que você vai fazer, a garota tem
sentimentos. — Ivan aparece ao meu lado e tô começando a icar
realmente irritado com ele.
— Até parece, Cindy só tem sentimentos por sua bolsa, no má ximo o
armá rio de sapatos.
Ivan começa a rir, ele melhor do que ningué m aqui, sabe que é
verdade. Nossa amiga gosta de “brincar” com seus brinquedinhos e
todo cara com um pau no meio das pernas aqui nessa cidade, daria um
braço para ser o brinquedinho dela ao menos por uma noite.
Nos aproximamos da turma e posso sentir a empolgaçã o para a
noite, grupos começam a se separar, uns vã o comprar bebida, outros
comida, alguns começam a conversar sobre carros, as meninas estã o
falando sobre roupas, todas essas conversas idiotas me irritam. Estou
agitado, mas de um jeito ruim. Ivan tem razã o, nem eu mesmo estou
conseguindo me suportar até que um assunto chama minha atençã o.
— A professora parecia que estava morrendo — Madalena, uma
garota tı́mida e gentil da nossa sala, está falando. — Tadinha, eu iquei
morrendo de dó .
— E ela mora sozinha, deve ser horrı́vel nã o ter ningué m nessas
horas — fala outra garota que nã o sei o nome.
— Ela é nova na escola, nã o conhece nada por aqui.
— Precisa ver como ela estava. Nã o sei como algué m pode ter
coragem de sair de casa daquele jeito, podia ao menos ter passado uma
escova no cabelo, pelo amor de Deus, ela é professora, né , gente —
Cindy fala se metendo na conversa.
— De quem você s estã o falando? — pergunto olhando para
Madalena.
— A professora Stella, a gente a viu hoje mais cedo lá na farmá cia, a
coitadinha estava ardendo de febre, o Glauco quase se ofereceu para
levar ela pra casa.
Sinto meu coraçã o disparar com a imagem de Stella doente sozinha
naquele apartamento do tamanho de uma caixa de fó sforos. Me recordo
da chuva de ontem e me pergunto se foi por isso que ela adoeceu.
— E ela disse se estava sozinha? — pergunto ignorando o palavrã o
que Ivan resmunga baixinho ao meu lado. Que se foda!
— Quem se importa? Isso nã o é problema nosso — Cindy fala com
tanta naturalidade que todas as suas amigas olham para ela com
reprovaçã o. — O quê , gente? Nã o é mesmo, ela está doente e daı́?
Pessoas icam doentes todos os dias.
— Eu iquei com dó , deve ser muito ruim estar em um lugar
estranho, sozinha e ainda icar doente — Madalena diz e minha
admiraçã o por ela só aumenta. Eu nunca entendi por que ela é amiga da
Cindy, ela é tã o tranquila e tı́mida, que quase desaparece ao lado do
furacã o que é nossa amiga. Talvez seja isso, Maddie só quer passar pela
adolescê ncia o mais invisı́vel possı́vel.
— Quando foi isso? — pergunto mais uma vez.
— Umas duas horas atrá s, está vamos na farmá cia comprando...
umas coisinhas para a noite de hoje — Cindy diz de forma maliciosa e a
garota sem nome ao seu lado sorri. A minha irritaçã o só aumenta.
Os grupos começam a se formar contando quantos cabem em cada
carro e quem vai com quem, os porta-malas lotados de bebida, comida e
todas as merdas necessá rias para a noite, a euforia que emana deles
nã o combina em nada com o meu humor.
— Vamos indo. — Ivan puxa as chaves do bolso e dá um passo em
direçã o ao seu carro. Olho para Madalena vendo uma imagem se formar
em minha mente.
— Maddie, o que você acha de dar um pulo na casa dela, só pra ver
como ela está ? — me dirijo a garota ignorando o olhar de Cindy.
— Você tá de brincadeira, né ? — Ivan pergunta, mas ignoro meu
amigo també m, com meus olhos estã o ixos no rosto da garota a minha
frente. Vejo seus olhos bondosos brilharem com a ideia de ajudar
algué m tã o invisı́vel quanto ela.
— Mas eu nã o sei onde ela mora.
— Eu sei — diz Levi, que se aproximou para ouvir a conversa. —
Meu irmã o tá saindo com uma garota que mora no mesmo pré dio onde
ela mora, ele sempre vê a professora por lá .
— Ah, caralho... — meu amigo resmunga e sigo ignorando-o.
— Otimo, entã o você també m pode vir com a gente — digo porque
assim nã o precisarei explicar como sei onde a professora mora, e
porque sei que Levi sempre foi apaixonado por Maddie e essa é uma
oportunidade para ele se aproximar dela.
Sim, sou um canalha, estou usando meus amigos para me aproximar
de Stella, mas nã o ligo, que se foda, sou um cara com o ego ferido e o
coraçã o machucado, mereço um desconto.
Levi olha para Maddie e ergue os ombros, beleza, pela forma como
ele olha para ela, ele vai aonde ela for.
— Podemos parar no mercado e comprar algumas coisas pra ela
comer — Maddie sugere mais animada em ir ver a professora do que se
estivé ssemos indo para a festa.
Ivan olha para ela como se ela tivesse sugerido comprar drogas.
— Eu gostei dela — ela completa como se precisasse se justi icar
quando Cindy a fuzila com o olhar.
— Beleza, entã o vamos logo.
— Ei, como assim? Você s nã o vã o mais? — Cindy pergunta.
— A gente encontra você s lá — respondo para um dos caras,
ignorando o olhar irritado que Cindy me dá .
— Que maravilha, lá vamos nó s! — Ivan resmunga quando nos
dirigimos para o carro com Maddie e Levi atrá s de nó s.
— Cale a boca, você me deve essa.
— Devo? De quando?
— Da vida, agora vamos logo.

— Quer parar de me olhar assim?


— Eu tô tentando entender o que diabos você tem na merda da sua
cabeça. — Ivan parece ainda mais irritado.
— Você nã o precisava ter vindo.
— E deixar você sozinho?
Aponto o queixo na direçã o de Maddie e Levi, que estã o
empurrando um carrinho de compras e conversando. Sou um bom
amigo, Levi será eternamente grato por essa ajudinha, eu sei.
— Nã o estou sozinho.
— Eu tô preocupado com você , Nuno, tudo que você nã o precisa
agora é irritar seu pai, nó s dois sabemos que, se essa histó ria vazar, ele
vai explodir pra cima de você .
Me lembro a ú ltima vez que ele explodiu para cima de mim, foi no
inal do ano quando bati o carro do Matteo, ele nem ao menos se
importou se eu estava machucado, seu desespero em ver o carro
amassado era tanto que achei que iria me bater naquele dia, talvez
tivesse sido melhor, ao menos eu sentiria algo alé m do seu desprezo por
mim.
— Você sabe que nã o dou a mı́nima pra ele e pode icar tranquilo,
ela nã o quer nada comigo.
— Entã o pensa na sua mã e.
— Deixa ela fora disso, Ivan — o alerto.
Seguimos Maddie por mais meia hora, ela enche trê s sacolas de
compras e, pela forma tranquila com que eles quase passeiam pelos
corredores, imagino que ela nã o tenha intençã o nenhuma de voltar
para aquela festa, nem Levi.
Entramos no carro de Ivan e deixo que Levi indique o lugar onde ela
mora, injo que nã o vejo o olhar de reprovaçã o do meu amigo a cada
segundo que nos aproximamos e, quando ele estaciona o carro, preciso
respirar fundo para nã o sair correndo.
— Se controla, porra — ele sussurra quando começamos a subir as
escadas, de dois em dois lances.
Diminuo o passo e deixo que Maddie e Levi passem na frente, talvez
se Stella ver que nã o estou sozinho, nã o se sinta mal por receber ajuda.
As escadas parecem nã o ter im e, quando paramos na porta do
apartamento que Levi garante ser o dela, respiro fundo sabendo que
preciso me acalmar.
Maddie toca a campainha, mas nã o consigo ouvir nada.
— Tenta de novo — insisto.
Ela aperta mais uma vez. Nada.
Porra!
Estico minha mã o e aperto a campainha com força, nada.
— Deve estar quebrada — Levi diz.
Afasto Maddie sem me importar se pareço ansioso demais, que se
foda, ela está sozinha e eu nã o faço a menor ideia de como está . Pode
estar desmaiada lá dentro.
— Stella. — Bato a princı́pio devagar. Nada ainda. — Stella, por
favor, abra essa porta! — falo um pouco mais alto. Maddie se aproxima
tentando ouvir alguma coisa.
— Ela pode nã o estar em casa — Ivan fala atrá s de nó s.
— Nã o acho, o carro dela está lá embaixo — Maddie diz.
— Ela pode ter desmaiado — Levi fala e recebe um olhar assustado
de Maddie. Ah, porra.
— Stella! — grito. — Estou icando preocupado.
Ouço passos vindo até nó s, meu coraçã o bate com tanta força, que
tenho a sensaçã o de que ele vai escapar pela boca, ela nã o está
desmaiada. Olho para a fechadura, ouço a porta sendo aberta e, quando
o rosto de Stella surge na minha frente, tenho a certeza de que Ivan tem
razã o. Eu nã o faço a menor ideia do que estou fazendo, mas que se
dane, eu sei que nã o poderia estar em nenhum outro lugar.
Eu quase nunca ico doente, a grande maioria dos remé dios que
tenho na bolsa estã o vencidos sem nunca terem sidos usados. Com
exceçã o de uma dor de cabeça de vez em quando, tenho uma saú de
excelente e sempre me orgulhei disso.
Acho que talvez a mudança de clima, a ansiedade e o cansaço, e todo
o estresse com relaçã o a Nuno tenham derrubado minha imunidade e
agora estou aqui, sentindo cada pedacinho do meu corpo doer, minha
pele em chamas e, para piorar, meu coraçã o parece prestes a pular do
meu peito.
— O que você s estã o fazendo aqui? — pergunto para os quatro
adolescentes parados na porta do meu apartamento.
— Desculpa, professora, mas eu vi você na farmá cia e iquei
preocupada — Madalena, uma garota simpá tica e educada do terceiro
ano, diz parecendo envergonhada.
— E você s nã o tinham... coisas de adolescentes para fazerem em um
sá bado à noite?
— Nuno achou que poderı́amos dar um pulo aqui pra ver como você
está — responde o outro garoto, Levi.
Olho para cada um deles, mas quando meus olhos param em Nuno
sinto como se pudesse ser sugada pela força do seu olhar. Ele parece...
furioso? Apavorado?
— Eu nã o acredito que você s deixaram de sair para vir aqui me ver.
— As palavras soam um pouco emotivas e coloco a culpa na febre. Eu
odeio icar doente.
— As pessoas aqui costumam se preocupar umas com as outras,
sabe como é , coisa de interior — Nuno diz ainda parado na porta, o
corpo grande ocupando tudo a sua volta, tenso, enquanto me analisa
como se estivesse esperando que eu despenque no chã o a qualquer
momento.
Lembro-me, nesse momento, do cabelo oleoso, da pele vermelha e
quente pela febre, das olheiras profundas e, para piorar, a roupa que
estou usando.
Que maravilha, devo ser uma visã o tentadora.
— Muito obrigada. — Tento sorrir.
— Trouxemos algumas coisas para você , por favor, nã o se ofenda,
mas você parecia tã o cansada. Imaginei que nã o tivesse comido nada.
— Madalena aponta para as sacolas que eles estã o carregando e meus
olhos se arregalam.
Eles nã o izeram isso.
— Eu nã o acredito, você s compraram comida para mim?
Agora sim, vou chorar na frente dos meus alunos, que maravilha.
— Podemos entrar? — Nuno pergunta, impaciente e o seu amigo,
Ivan, o olha de cara feia. Ele parece nã o estar gostando nada dessa
comitiva. Otimo, Ivan, entã o somos dois.
— Sim, claro. — Abro mais a porta e me afasto para o grupo passar,
todos os meninos sã o altos demais e até mesmo Madalena é maior do
que eu e, quando eles entram e preenchem o pequeno espaço da minha
sala, sinto-me estranhamente acolhida.
— Maddie disse que você estava com febre — Nuno diz, com a voz
tã o grave e sé ria que ainda nã o tenho certeza se está bravo ou
preocupado. Talvez um pouco dos dois.
— Sim, eu acho que foi a chuva de ontem. — Seus olhos parecem tã o
reveladores, que desvio o olhar e dou graças a Deus por estar com
febre, porque sinto minhas bochechas queimando.
— Você se importa se eu usar a sua cozinha? — a garota gentil
pergunta já erguendo seus enormes e volumosos cachos em um coque
no topo da cabeça.
— Nã o precisa se preocupar. — Tento pará -la, mas sinto que será
em vã o, eles estã o aqui em uma missã o e nada que eu disser vai impedi-
los.
— A gente faz questã o. — Madalena se adianta retirando a sacola da
mã o de Nuno, que nã o desvia o olhar do meu rosto. Me pergunto se só
eu estou notando a forma agitada e nada usual com que ele está agindo
diante da sua professora.
Pelo amor de Deus, em que mundo adolescentes cuidam de uma
professora? Eles deveriam estar torcendo para que eu ique doente por,
sei lá, uma semana? Um mês?
— Se você s querem estragar o im de semana de você s cozinhando
para uma professora doente, entã o iquem à vontade. — Aponto para
onde está a cozinha.
Madalena e Levi levam as sacolas para a cozinha, Ivan se apoia na
porta, parecendo extremamente desconfortá vel com a situaçã o. Nuno
continua parado no meio da sala, olhando para mim como se nã o
existisse mais ningué m no mundo.
— Você nã o deveria estar deitada? — Ele aponta para a porta atrá s
de mim.
— Era o que eu estava fazendo até você s chegarem.
— Se quiser pode voltar, a gente prepara tudo aqui e leva para você
— ele diz.
Olho para Ivan e ele está encarando seu amigo, como se tentasse
entender onde ele perdeu a cabeça. E algo que eu també m gostaria de
entender, porque um garoto lindo como ele, que tem o mundo aos seus
pé s, está aqui, no apartamento de uma mulher que nã o pode lhe
oferecer nada alé m de dor e decepçã o?
— Nã o, eu vou icar aqui com você s.
— Nã o precisa se preocupar, nã o vamos pô r fogo na sua cozinha —
Madalena brinca toda sorridente, espremida entre o garoto negro e
forte e minha minú scula bancada.
— Você nã o parece bem, Stella, por que nã o foi ao hospital? — Nuno
pergunta me obrigando a voltar a olhar para o seu rosto.
— Ele ica a uma hora de estrada, nã o há necessidade. Só estou
resfriada, vou melhorar logo.
— Eu posso te levar, se quiser.
— Nã o precisa, eu vou icar bem.
— Eu já tive resfriados e nã o iquei assim.
— Nuno — Ivan o chama. — A professora está falando que tá tudo
bem.
— Certo. — Ele passa a mã o na nuca e respira fundo, como se
estivesse tentando se controlar, o que está sendo em vã o, já que para
mim Nuno parece mais nervoso a cada instante.
Olho na direçã o de Ivan, o garoto marrento e arrogante parece
prestes a soltar um palavrã o, ao invé s disso, ele puxa o celular do bolso
e coloca o fone de ouvido, como se quisesse nos dar um pouco de
privacidade. Volto a olhar para Nuno, ele está todo arrumado com uma
calça que parece muito confortá vel em seu corpo e uma camisa bonita.
Pela sua roupa, imagino que ele també m estava naquele grupo de
pessoas e me pergunto para onde ele iria? Onde está Cindy? Por que
Madalena aceitou ajudá -lo? Será que todas essas pessoas sabem sobre
nó s?
Meu estô mago se revira com a ideia de que todos esses adolescentes
saibam, preciso me forçar a acreditar que ele vai cumprir sua palavra,
mesmo que as evidê ncias me comprovem o contrá rio.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto tentando nã o parecer
grosseira.
— Eu já disse que me preocupo com você .
— Nuno, você nã o pode fazer isso — falo o mais baixinho possı́vel.
— Por que nã o?
— Você me prometeu.
— Nã o sei o que você está pensando, Stella, mas nã o estou aqui
sozinho. Maddie e Levi sã o bacanas e aquele otá rio ali de cara feia só
está preocupado com a gente. — Ele aponta para o amigo, que continua
encarando o celular, com uma cortina de cabelos loiros cobrindo seu
rosto.
— A gente? Pelo amor de Deus, nã o existe a gente — falo sentindo o
desespero me afetar.
— Que seja, você nã o precisa se preocupar, ningué m vai falar nada.
— Eles sabem? — Aponto para onde Maddie e Levi estã o, de costas
para nó s, sorrindo um para o outro, completamente alheios ao mundo a
sua volta.
— Nã o, mas eles sã o de con iança e, de qualquer forma, nã o estou
fazendo nada errado.
Respiro fundo quando ouço um barulho vindo da cozinha. Merda,
ele tem razã o, nã o há nada para que eu me preocupe. Sã o apenas alunos
sendo gentis com sua professora. Ningué m pode me acusar por receber
um grupo de alunos na minha casa, pode?
Entã o foi isso, Nuno trouxe seus amigos para que eu nã o pudesse
impedi-lo de icar.
— Você pensou em tudo, nã o foi?
— Eu só precisava te ver e usei a Maddie para isso, os outros dois
vieram de brinde.
— Só queria entender o porquê disso tudo.
— Acho melhor parar de tentar, nem tudo na vida tem uma boa
explicaçã o. — Ele passa a lı́ngua no lá bio inferior, seus olhos, tã o
bonitos e intensos, parecem implorar para que eu o ouça, que con ie
nele. Mas sei que con iar é arriscado, e nã o posso me arriscar.
— Nã o sei...
— Apenas aceite, Stella, estamos aqui pra te ajudar.
Deixo meus ombros caı́rem sentindo-me exausta.
— Me desculpe, eu só fui... pega de surpresa.
— Se tivesse sido menos teimosa e aceitado minha carona...
— Pois é , acho que nã o sou mais tã o jovem assim — tento fazer uma
brincadeira, mas a forma como Nuno me olha faz parecer que eu o
ofendi.
— Tô preocupado com você , Stella — ele fala baixinho, observando
meu rosto com seus olhos tristes.
— E só um resfriado, vai passar.
— Estou me sentindo culpado. — Ele dá mais um passo para perto
de mim, Ivan ergue o rosto deixando claro que ele está atento e dou um
passo para trá s.
— Nuno, por favor.
— Eu já disse que nã o vou fazer nada — ele se defende parecendo
magoado e me odeio por me sentir tã o afetada com sua presença.
— Eu já volto. — Dou mais um passo para trá s, porque icar assim
tã o perto dele é quase insuportá vel. Minha cabeça dó i, meus olhos
pinicam com as lá grimas que parecem querer ganhar vida pró pria e
meu coraçã o, chega a ser ridı́culo de tã o forte que bate no meu peito
dolorido.
— Você s podem icar à vontade. Sentem-se, liguem a TV, en im... —
Tento forçar um sorriso na direçã o de Ivan, que nos olha como se
estivé ssemos nos beijando no meio da sala.
Dou as costas e entro no quarto sem saber ao certo o que fazer.
— Nã o é nada demais, Stella, ele nã o está sozinho — digo para mim
mesma na esperança de que meu coraçã o bobo me ouça e se acalme ao
menos um pouquinho.
Mas tudo o que ele consegue ouvir é : “Nuno está aqui, nã o importa
se é errado. Se eu pedi para ele ir embora depois de beijá -lo daquela
forma ontem, ele está aqui e isso é o su iciente para que eu comece a
sorrir”.

Arrumo o cabelo e troco a roupa amassada por outra limpa, é tudo o


que posso fazer por mim hoje.
Madalena e Levi preparam uma sopa horrı́vel, mas que eu tomo
como se fosse a coisa mais gostosa do mundo. Nuno diz que está sem
fome e aceita uma lata de refrigerante; Levi toma a sopa só para
agradar Maddie e sorrio com a forma como ele a observa quando acha
que ningué m está olhando. Eles formam um lindo casal.
Ivan é o mais descon iado de todos, seus olhos nã o desgrudam do
Nuno nem um minuto sequer, e sua postura é tensa, como se estivesse
pronto para enfrentar algum problema a qualquer momento.
Terminamos de comer e eles limpam tudo e ainda deixam meu
frigobar lotado de coisas para que eu nã o me preocupe com nada.
Agradeço mais umas mil e quinhentas vezes e, embora eu esteja
exausta, com dor de cabeça e febre, sinto-me feliz com a presença deles.
— Acho melhor a gente ir agora. — Ivan se levanta olhando para
Nuno em uma conversa que só os dois entendem.
— Você precisa de mais alguma coisa? — Maddie pergunta se
levantando també m.
— Nã o, eu realmente estou me sentindo bem melhor, acho até que a
febre baixou um pouco.
— Que bom que viemos entã o — ela diz com um sorriso satisfeito.
— Eu nem sei como agradecer. — Olho para cada um deles,
terminando com meus olhos parados em Nuno, que já está de pé ao
meu lado, as mã os en iadas nos bolsos da calça e uma carranca que
deixa seu rosto de menino ainda mais bonito.
— Qualquer coisa que precisar, só ligar para a gente. — Maddie
aponta para o celular na mesa onde ela anotou o nú mero de todos.
— Pode deixar, me perdoem por ter estragado a noite de você s.
— Nada que um dez nã o resolva — Levi brinca e leva um tapa no
braço de Maddie me fazendo sorrir.
— Prometo pensar. — Pisco para ele enquanto acompanho todos
até a porta. — Quando estiver bem, farei um jantar para agradecer, com
direito a torta de morango, minha especialidade.
— Ei, professora, eu vou cobrar, hein? — Levi brinca mais uma vez.
Nos despedimos mais uma vez, observo cada um passar pela porta.
Quando Ivan se aproxima seguro seu braço e obrigo-o a olhar para mim.
— Obrigada por estar aqui por ele — sussurro bem baixinho e ele
assente em silê ncio. Nã o sei nem ao certo por que disse isso, mas sinto
que Ivan nã o está aqui porque gosta de mim, mas porque sabe que
Nuno precisa dele.
Nuno é o ú ltimo a sair, mas, antes de passar por mim, ele se inclina e
sussurra em meu ouvido:
— Nã o feche a porta. — Sua voz rouca causa um arrepio assustador
em minha pele.
Ele sai sem olhar para trá s e, enquanto observo os quatro descendo
as escadas, ico com a impressã o de que nã o ouvi direito. Será que ele
realmente disse isso, ou é apenas meu subconsciente me pregando uma
peça, desejando que ele ique aqui mais um pouquinho, como somente
um verdadeiro masoquista é capaz de fazer?
Talvez eu esteja enganada, acho que a febre nã o passou.
Ao contrá rio, ela aumentou.
Tento nã o empurrar todos eles pelas escadas, a agitaçã o dentro de
mim aumenta a cada passo que dou para longe dela. Passei a noite
inteira observando-a, ela nã o está nada bem, mesmo que tenha sorrido
e se esforçado para ouvir cada palavra que foi dita.
Suas bochechas e lá bios estã o tã o vermelhos, que mesmo de longe
consigo sentir a febre. Merda, por que eu não fui mais insistente em fazer
ela entrar no meu carro?
Ivan parece capaz de matar um leã o com suas pró prias mã os, ele
está tã o tenso que evito olhar em sua direçã o.
— O que ela te falou quando está vamos saindo?
— Para que eu te desse um enterro digno quando seu pai te matar.
— Engraçadinho.
— E o que vai acontecer, você sabe, né ?
— Meu pai já me matou. Ivan, você nã o percebe isso? Eu morri junto
com o Matteo.
Ivan solta um palavrã o e desce as escadas passando por Maddie e
Levi. Ele odeia quando eu falo isso, mas é a verdade. Para o meu pai, sou
apenas a lembrança do seu ilho morto. Pior, sou o espelho do seu
fracasso e isso para ele é pior que a morte.
Quando chegamos lá embaixo, ainda estou pensando no que vou
fazer, meus planos nã o foram tã o longe, a ú nica certeza que tenho é de
que nã o vou deixar Stella sozinha essa noite, foda-se se ela nã o me quer.
— Entã o, e agora? — Levi olha para Maddie.
— Algué m aqui quer voltar para aquela festa? — Ela faz uma careta
enquanto olha para cada um de nó s.
— Podemos ir para casa, passar a noite comendo, jogando, vendo
ilmes, sei lá , qualquer uma dessas coisas — Levi ergue os ombros
enquanto sugere.
— A casa do Nuno, claro, vamos passar a noite toda lá — Maddie
complementa o pensamento do moleque.
— Eu nã o vou para a minha casa — admito ainda sem saber o que
vou fazer se Stella nã o me deixar voltar.
— Nó s sabemos, mas, para todos os efeitos, será lá que estaremos.
— E se algué m perguntar por que nã o fomos para a festa, eu tenho
uma boa desculpa. — Levi puxa a mã o de Maddie para junto de si e ela
sorri para ele.
Olho para Ivan, que parece tã o confuso quanto eu.
— Você ... — começo a falar.
— Nã o, ningué m falou nada, mas sou boa observadora. Sobra
bastante tempo para observar as pessoas quando nã o se é notada — ela
diz, mas ao contrá rio do que parece, ela nã o soa ofendida.
— Deus, eu nem sei o que dizer. — Passo a mã o no cabelo meio sem
jeito.
— Cuida da Stella, ela parece algué m que merece — Maddie diz e
imagino que eu nã o seja o ú nico que se preocupa com a Stella aqui.
Olho mais uma vez para Ivan, que parece prestes a surtar.
— Eu desisto, sé rio, vai lá , volta pra tua garota que eu te dou
cobertura.
— Pode contar comigo. — Levi ergue a mã o.
— E eu nem preciso falar, né ? Stella é minha nova pessoa favorita.
— Ela nã o é minha garota, eu só ...
— Tudo bem, é complicado eu sei — Maddie me interrompe.
— Sabe?
— Sou uma consumidora de romances de banca, amores proibidos
sã o meus favoritos.
— Sã o? — Levi parece preocupado e sorrio como um idiota aliviado
por sentir que nã o preciso mais suportar essa merda sozinho.
— Viu só , cuzã o! Você vai ter ajuda para juntar meus pedaços
quando eu morrer. — Dou um soquinho no ombro do meu amigo.
— Vai se foder — Ivan diz enquanto destrava o carro e entra. — Me
liga quando precisar.
Ele entra no carro e me despeço de Maddie e Levi mais uma vez
antes de voltar correndo para dentro do pré dio. Subo as escadas tã o
rá pido, que mal me dou conta de que estou de volta ao seu
apartamento.
A porta está destrancada.
E meu sorriso parece prestes a partir minha boca.
— Stella? — a chamo baixinho fechando a porta.
Ela aparece saindo do quarto, os olhos assustados, me observando
no meio da sua minú scula sala de estar.
— Oi.
— Oi.
Ficamos assim parados um olhando para o outro, em um turbilhã o
de sentimentos fazendo com que eu nã o saiba como agir. Quero ir até
ela e beijá -la, mas tenho medo de ser rejeitado, algo novo para mim.
Sempre fui um cara con iante, sempre me dei bem com as garotas, mas
Stella consegue me fazer sentir inseguro, e eu odeio isso.
— Obrigado. — Aponto para a porta como o idiota que sou.
— Isso nã o muda nada.
Suas palavras nã o me surpreendem, eu já esperava por elas e nã o
me importo.
— Mesmo assim, você deixou a porta destrancada.
Ela aperta os lá bios e eu aperto minhas mã os, porque tudo o que
quero nesse momento é ir até ela e beijá -la.
— Olha, Nuno...
— Nã o quero saber de nada — interrompo-a. — Na segunda você
pode voltar a ser a minha professora e me ignorar, pode me tratar como
o moleque que você acha que sou, pode até nem olhar mais na minha
cara, mas hoje eu vou icar aqui. Se você nã o me quiser aqui dentro do
seu apartamento, eu vou dormir na porta, nas escadas, na rua, onde for,
dane-se, eu nã o vou te deixar aqui doente.
— Por quê ?
— Porque eu sei o quanto é ruim se sentir sozinho.
Ela respira fundo, como se també m se sentisse exausta de tentar
negar a verdade. Nã o conseguimos ser indiferentes à presença um do
outro, esse ú ltimo mê s na escola foi o mais estressante de toda a minha
vida e só de pensar que ainda teremos mais disso me sinto doente.
— Obrigada — ela sussurra e que se foda, eu nã o estou nem aı́ para
nada, vou até ela e seguro seu rosto nas minhas mã os. Ela está tã o
quente que tenho medo do meu toque machucá -la.
— Eu odeio te ver assim. — Passo os polegares em suas bochechas.
— Tã o quente.
— Eu já disse, parece pior do que realmente é . — Ela sorri, mas seu
sorriso nã o é o su iciente para acalmar meu coraçã o, talvez ele nã o
tenha vivido o su iciente para se acostumar com isso, ou talvez ele
tenha lembranças ruins o bastante para nã o conseguir evitar de ter
medo.
— Para mim é mais do que posso suportar. — Inclino-me e deixo um
beijo na sua testa, meus lá bios se aquecem com o toque, meu coraçã o
dispara com a lembrança.
— Você nã o vai facilitar a minha vida, nã o é ?
— De jeito nenhum — respondo e ela me dá um sorriso que
demonstra o quanto está cansada.
Puxo seu corpo pequeno junto ao meu peito e abraço-a, como
desejei fazer a noite inteira. Stella envolve seus braços em minha
cintura me abraçando delicadamente, as pontas dos seus dedos se
espalham por minhas costas. Posso sentir o calor da febre em sua pele
aquecendo meu corpo.
— Eles foram embora?
— Sim.
— O Ivan nã o está gostando disso.
— Ele nã o tem o que gostar.
— E a Maddie e o Levi, o que vã o pensar de mim?
— De acordo com a Maddie, você é a pessoa favorita dela.
— Ela disse isso? — Stella se afasta para me olhar, surpresa, como
se nã o fosse possı́vel algué m gostar dela.
— Sim, e Levi tá tã o louco de amor, que fará qualquer coisa que ela
pedir.
— Ah, meu Deus, eu notei a forma como ele olhava para ela hoje.
— Entã o foi isso.
— O quê ?
— A Maddie deve ter visto a forma como olho para você . Foi assim
que ela descobriu.
— Nuno...
— Shhh... — Coloco o dedo sobre seu lá bio, impedindo-a de falar. —
Vamos combinar o seguinte. — Passo a mã o em seu rosto odiando a
temperatura quente que me avisa a todo momento que ela nã o está
bem.
— O quê ?
— Hoje nã o vamos pensar em nada, vamos apenas icar assim, sem
porquê s, sem será s, sem amanhã , só o hoje.
— Só essa noite.
— Isso, só essa noite.
Ela aperta os lá bios e me pego prendendo a respiraçã o enquanto
espero ela responder:
— Combinado.
— Otimo, agora vem, vou cuidar de você .
Seguro sua mã o e começo a levá -la para o seu quarto.
— Nuno, nã o quero me deitar, dormi o dia inteiro, estou sem sono.
— Entã o vamos ver um pouco de TV. — Vou até o sofá pequeno e me
sento, meu corpo grande ocupa mais da metade do lugar.
— Você é sempre assim?
— Nã o sei, assim como?
— Determinado.
— Nem sempre, faz tempo que deixei de lutar pelo que quero, até
conhecer você — digo a verdade, nã o me lembro mais a ú ltima vez que
ignorei tudo e lutei por algo. Se eu me esforçar bem, vou me dar conta
de que, talvez, eu nunca tenha feito isso de verdade. Sempre deixei que
meu destino me levasse, como um prisioneiro da minha pró pria vida.
Stella se senta ao meu lado e passo o braço pelo encosto dando
espaço para que ela possa se apoiar em mim, mas ela se manté m a uma
distâ ncia segura.
— Você quer ver o quê ? — Ela liga a TV e começa a zapear os canais.
— Qualquer coisa, nã o vou conseguir me concentrar muito em nada
com você assim perto de mim.
— Quer que eu me afaste? — Ela olha para o outro lado da
minú scula sala e balanço a cabeça.
— Claro que nã o. — Passo o braço por sua cintura puxando-a um
pouco mais para perto.
— Nuno...
— Só essa noite, Stella — sussurro nosso acordo em seu ouvido. Ela
relaxa aos pouquinhos, seu corpo pequeno se acomoda ao lado do meu
e um sorriso idiota se espalha em meus lá bios.
Observo Stella passar por dezenas de canais sem se interessar por
nada també m, até que encontra uma comé dia antiga e deixa lá . Ela se
aconchega em mim e gosto da forma como se encaixa tã o
perfeitamente, apoio meu queixo em sua cabeça delicadamente e olho a
cena idiota que se desenrola na TV.
— Aonde você s iam hoje? — ela pergunta, observo sua mã o em
minha coxa e gosto do jeito com que ela parece perfeita ali.
— Em uma festa, em um rancho na cidade vizinha.
— Parece ser algo legal de fazer.
— E divertido, mas hoje nã o estava no barato.
— Posso saber o motivo?
— Sem porquê s, lembra?
— Certo, sem porquê s.
— E se eu fosse, nã o estaria aqui agora.
— Claro, você tinha uma missã o.
— E, eu tinha, e eu nã o troco ela por nada. — Ela se vira para mim e
sorri, parecendo surpresa. — O quê ? Você nã o acredita?
— Me desculpa, é difı́cil para mim entender.
— Entã o nã o tente, só aceita, ao menos por hoje acredite em mim.
— Tudo bem.
Meus olhos caem em sua boca vermelha, quente, linda.
Nunca senti tanta vontade de beijar uma mulher antes, chega a ser
doloroso estar assim ao seu lado sem poder puxá -la para o meu colo e
beijá -la até que ela perceba que nã o sou um moleque. A verdade é que
nunca senti o que sinto por Stella. Esse desejo de provar quem sou, de
ser mais, de ser digno da sua atençã o, é tã o confuso, intenso,
assustador.
Stella volta a se acomodar em meus braços e icamos um tempo
assistindo a TV, meu corpo está tenso por estar ao lado dela e nã o
poder fazer nada, sinto que ela també m nã o está confortá vel, mas nã o
preciso de mais nada, eu estou aqui essa noite e já é mais do que eu
imaginei que poderia ter.
— Você realmente gostou daquela sopa? — pergunto quando o
ilme termina. Os cré ditos subindo, a mú sica alegre de fundo, e nó s dois
aqui, parados, como se temê ssemos nossas açõ es.
— Nã o, mas se contar isso para a Maddie eu juro que te reprovo.
— Aı́ você teria que me suportar por mais um ano.
— Acho que nã o seria uma boa ideia entã o.
— També m acho.
Ela sorri e meu peito se enche de uma sensaçã o esquisita de paz. Me
inclino e deixo um beijo em seus cabelos e ela puxa minha mã o para o
seu colo.
— Gosto da sua mã o, ela é bonita.
— Isso porque você ainda nã o viu meu pé . — Ergo o pé na altura da
mesinha de centro e ela solta uma gargalhada, que a faz parecer uma
garotinha, sorrio completamente encantado com a sua capacidade de
estar tã o linda mesmo estando doente.
— O que foi? — pergunta quando nota a minha cara de idiota
admirando-a.
— Você é tã o linda.
— Ah... — Ela baixa o olhar e, puta merda, nem nos meus mais
insanos sonhos, pude imaginar que sentiria tanto tesã o por uma garota
tı́mida.
— Quando te vi naquele festival, caminhando no meio da multidã o,
alheia a tudo, eu quase perdi o ar, eu iquei louco por você . — Passo
meus dedos por seus cabelos, afastando uma mecha do seu rosto.
— Eu també m iquei louca quando te vi, todo arrogante com aquele
cigarro na boca, como se fosse o dono do mundo. Eu quis te beijar na
mesma hora.
— E mesmo assim foi embora.
— Eu tenho o há bito de fugir do que me assusta.
— Eu te assustei?
— Nã o você , mas o que você causou em mim.
— E por isso que me mandou embora ontem? Você estava
assustada?
— Eu estou sempre assustada quando estou perto de você .
— Mesmo agora?
Ela balança a cabeça, con irmando, com seus braços cruzados sobre
o peito, em uma tentativa irracional de se proteger.
— Principalmente agora.
— Nã o precisa ter medo, Stella.
— Nã o posso evitar.
— Entã o pare de pensar, só essa noite vamos voltar a ser aqueles
estranhos no festival.
Ela sorri, provavelmente se lembrando de algo.
— Você vai me destruir, garoto.
— Eu juro por Deus que nã o tenho essa intençã o — digo encarando
seus lá bios. — Vem cá . — Passo minha mã o em seu pescoço e a trago
para junto de mim, ela vem sem questionar, seu corpo se molda ao meu
quando a sento em meu colo, desejando poder provar para ela que nã o
precisa ter medo. Eu posso cuidar dela, nã o sou só um menino. — Vai
icar tudo bem — eu prometo.
— A gente vai dar um jeito — ela diz deitando a cabeça na curva do
meu pescoço e fecho meus olhos sorrindo ao notar o que ela disse.
A gente.
Só essa noite, só essa noite, só essa noite...
E o que estou repetindo para mim a cada toque, a cada olhar, a cada
vez que meu coraçã o bate por ele.
Só essa noite.
Observo seu rosto jovem e bonito, tã o sereno, as sobrancelhas
espessas, o nariz grande e masculino, os lá bios levemente abertos, o
maxilar marcado, o queixo, minha parte favorita depois dos olhos, que
nesse momento estã o fechados, dormindo.
Estico minha mã o e toco levemente seu rosto, afasto uma mecha do
cabelo, contorno seus lá bios, admiro a tranquilidade do seu sono. Como
se nada pudesse alcançá -lo, machucá -lo, nem mesmo eu.
Eu sei que o certo seria acordá -lo, que eu deveria mandá -lo para
casa, Deus... o certo seria eu nem ao menos recebê -lo, mas agora estou
aqui, enroscada em seus braços, sentindo o seu cheiro, o movimento
suave do seu peito subindo e descendo enquanto ele dorme no meu
sofá .
Nunca imaginei que seria tã o difı́cil me impor a um garoto, nunca
pensei que eu poderia estar assim, no colo de um. Aos 27 anos, eu tinha
certeza de que estaria em busca de um homem mais maduro, com suas
experiê ncias de vida, viagens, pro issã o, relacionamentos antigos,
conversas sobre economia e polı́tica, ideologias de vida e tudo mais. Até
a noite do festival era exatamente isso que eu sempre busquei em um
homem, as marcas charmosas em seu rosto, a barba levemente grisalha.
Sempre tive uma queda por homens mais velhos.
Mas entã o por que estou aqui, sentindo-me zonza de excitaçã o ao
notar como me encaixo perfeitamente em seu corpo grande e forte?
Sorrindo como uma adolescente boba observando o tamanho da sua
mã o, que ainda descansa em minha coxa, relembrando a forma como
ele me tocou aquela noite e como durante tantas noites ele veio sendo
meu objeto de desejo, o alı́vio do meu prazer solitá rio.
E agora está aqui, apenas um menino, com seus olhos inexperientes,
sua voz rouca e sensual, seu atrevimento, sua impulsividade, cuidando
de mim, dizendo que se importa, que nã o vai me deixar sozinha.
Ah, Nuno, Nuno, Nuno...
Se você soubesse o quanto temo icar sozinha.
Seguro sua mã o e a levanto colocando-a no sofá , retiro uma perna
do seu colo, mas antes que eu possa me mexer sua outra mã o, que ainda
está na minha cintura, me aperta.
— Achei que você estava dormindo.
— Tenho o sono leve — ele sussurra ainda de olhos fechados e o
sorriso bobo aumenta em meu rosto. — Aonde você vai? — A voz rouca,
a mã o em minha cintura, o corpo masculino abaixo do meu... Me sinto
tonta com todas as sensaçõ es que Nuno me desperta.
— Tomar o remé dio, está na hora — digo, sentindo minha
capacidade de icar em pé fortemente abalada.
Nuno abre os olhos com di iculdade, mesmo tendo apenas a luz da
TV acesa.
— Por que me deixou dormir?
Ele se ajeita, segurando-me junto a si.
— Eu nã o tive coragem de te acordar, estava bonitinho.
Ele franze o nariz comprovando o que eu acabo de dizer, Nuno com
cara de sono é a coisa mais bonitinha do mundo.
Ele estende a mã o e passa por meu pescoço, meu rosto, minha testa.
— Você nã o está mais quente.
— Eu disse que ia passar.
— E, você disse, mas achei que ia demorar mais um pouquinho. —
Ele parece um pouco decepcionado e arregalo os olhos surpresa.
— Estava achando que ia icar sem minha aula essa semana?
— Eu nem cheguei tã o longe, só achei que icaria um pouco mais de
tempo aqui.
— Nó s dois sabemos que você já icou tempo demais.
— E, eu sei. — Ele me observa com seus olhos tristes e profundos e
preciso reunir todas as minhas forças para nã o beijá -lo.
Um barulho chama a nossa atençã o e Nuno ergue a sobrancelha.
— Acho que aquela sopa horrorosa nã o foi su iciente — ele brinca
quando meu estô mago ronca.
— Você está com fome?
— Morrendo.
— Gosta de macarrã o com molho branco?
— Eu como qualquer coisa — ele responde e um burburinho agita
meu corpo com a forma como essa frase pareceu pervertida para mim.
— Perfeito, mas depois você vai embora, combinado? — digo
porque nã o con io em mim mesma se esse garoto continuar aqui me
olhando dessa forma maliciosa.
— Sim, senhora.
Levanto-me do seu colo e vou para a cozinha, pego os
medicamentos que estã o no armá rio e um copo de á gua, tomo
enquanto observo Nuno parar meio sem jeito na porta.
— Precisa de ajuda? Eu nã o sei fazer nada, mas posso ajudar se me
disser o que fazer.
— Que tal pegar as panelas ali em cima? — Aponto para o armá rio e
ele entra na minha minú scula cozinha, seu corpo alto e grande resvala
no meu enquanto ele se move, parando atrá s de mim para pegar o que
estou pedindo. Tã o intimamente perto, familiar, delicioso.
— Essas? — pergunta pressionando levemente seu corpo no meu e
já nã o tenho mais certeza de nada.
— Uhum...
Ele sorri, satisfeito com sua provocaçã o, e tento me concentrar no
que estou fazendo. Nunca em toda a minha vida preparar uma refeiçã o
foi algo tã o torturante.
Durante todo o tempo, nossos corpos se tocam, braços e pernas,
quadris e bunda, nossos olhos se encontram e desviam como se
soubessem que isso é errado, estamos brincando com fogo e eu sei que
a ú nica a ser queimada serei eu.
Ele é só um menino vivendo uma aventura. Já eu sou uma mulher
com muito o que perder, alé m da minha sanidade.
Uma hora depois estamos sentados no sofá , cada um segurando um
prato de macarrã o com muito molho, Nuno en ia o má ximo que
consegue na boca e me pego observando o jeito como ele come.
— Está uma delı́cia — ele diz entre uma garfada e outra e, mesmo
que meu estô mago esteja cheio, ainda o sinto se revirar a cada palavra
de duplo sentido que sai da boca de Nuno.
— E a minha especialidade.
— O que mais você gosta de fazer?
— Ler.
— Poxa, se você nã o falasse eu nunca adivinharia.
Solto uma gargalhada e me inclino no sofá , segurando o prato em
meu colo enquanto giro o macarrã o no garfo.
— Eu nã o sou uma pessoa de muitos gostos, eu gosto de cozinhar,
de conversar com a minha irmã , de ilmes velhos e de lojas de discos.
— Lojas de disco?
— Sim, aquelas lojas antigas com pilhas e pilhas de discos antigos.
— E o que você faz com eles? Você nã o parece ter um toca-discos
por aqui? — Ele olha em volta à procura de um.
— Eu nã o compro discos, eu só gosto de olhar, ver as capas, ler os
tı́tulos.
— Por quê ?
— Nã o sei, apenas gosto, me distrai. Principalmente os duplos, com
letras de mú sica.
— Isso é esquisito.
— E nada, é legal, deveria fazer um dia.
— Se você prometer ir comigo.
Sorrio porque nã o posso incentivá -lo a me convidar para algo assim,
eu nã o saberia lidar com Nuno ao meu lado, mexendo em discos,
ouvindo mú sicas, lendo letras que falam de um amor que nã o podemos
viver.
Deus...
Eu nunca fui muito fã de tortura, mas estou me tornando uma
especialista nisso.
— Me conta da sua irmã . — Ele enche a boca de macarrã o.
— A Suzy é cinco anos mais velha, ela é minha melhor amiga, é
divertida e engraçada, corajosa e muito determinada, e me ouve sempre
que preciso. Ela tem os melhores conselhos do mundo.
— Ela sabe de mim?
Balanço a cabeça mesmo sabendo que nã o deveria deixar que ele
saiba sobre algo assim, é o mesmo que dar a ele esperanças. Mesmo
assim, nã o consigo mentir.
— Sim, ela sabe.
— E qual o conselho que ela te deu?
— Minha irmã é diferente de mim, para ela eu levo a vida muito a
sé rio.
— E você leva?
— Nã o tenho mais dezessete anos, preciso levar.
Nuno baixa o olhar para o prato e me arrependo de ter dito isso.
— Desculpa, eu nã o quis dizer isso.
— Tudo bem. Eu nã o posso mudar quem eu sou, Stella, e pelo jeito
nã o terei oportunidade de mostrar que nã o sou um moleque, né ?
— Eu preciso desse emprego, Nuno.
— Eu nunca faria nada que te prejudicasse.
— Só de estarmos aqui, já estou correndo um grande risco de me
prejudicar.
— Ningué m sabe que estou aqui.
— E se te virem saindo?
— Eu sei me tornar invisı́vel. — Ele me dá o seu sorriso de lado, que
tanto adoro, e por algum motivo que nã o consigo compreender, eu
con io nele.
Desisto de comer o macarrã o e coloco o prato na mesinha e volto a
me apoiar no sofá .
— Você sempre tem resposta para tudo?
— Nã o, mas eu me esforço.
Balanço a cabeça e mudo de assunto.
— E você , o que gosta de fazer, alé m de cuidar de professoras
doentes?
— Na verdade, esse é um hobby novo, ainda estou testando.
O sorriso se espalha por meu rosto e sinto um aperto no meu peito,
nã o quero que essa noite acabe, nã o quero que ele vá embora.
— E entã o?
— Alé m de babá de professora? Nada demais, eu cresci aqui nessa
cidade minú scula, conheço cada pedra desse chã o, cada pessoa que
mora aqui, reconheço os que nã o sã o daqui, os que estã o só de
passagem por curiosidade, os que vieram para estudar, eu posso até
dizer quem vai se dar bem ou nã o. En im, nã o tenho muito o que contar.
— Isso nã o é verdade, você deve ter muita coisa.
— Nã o que seja interessante para contar a uma mulher que tem
como hobby analisar vinis antigos.
Volto a sorrir e ele coloca seu prato, agora vazio na mesinha, e pega
o meu.
— Você nã o deveria fazer isso — digo quando ele leva o garfo à
boca.
— O quê ? Desperdiçar comida?
— Comer do meu prato.
— Stella, você en iou sua lı́ngua na minha boca, seja lá o que você
tem, se eu tivesse que pegar, já tinha pegado.
Meu coraçã o acelera com suas palavras, imagens do nosso beijo
invadem minha mente e desvio o olhar porque é quase insuportá vel
olhar para ele nesse momento.
— Me desculpe, eu nã o queria te deixar sem graça.
— Tudo bem, você tem razã o, né ?
Ele pisca para mim e coloca mais macarrã o na boca e eu juro por
Deus que é a coisa mais sexy que eu já vi uma pessoa fazer. Nuno puxa a
latinha de refrigerante para o seu colo e me inclino para abrir o lacre.
— Você tem irmã os?
— Sim, Matteo.
— Matteo e Nuno, seus pais sã o italianos?
— Meu pai, a famı́lia D’Agostinni ajudou a fundar essa cidade.
— A avenida.
— Exatamente, homenagem ao meu avô .
— Uau, isso deve ser legal!
— Nã o, aqui a grande maioria tem algum parente importante para a
cidade, a gente nã o liga muito para isso. Maddie é ilha de um
importante polı́tico, o pai do Levi tem uma mineradora, os pais do Ivan
sã o designers de uma grande marca internacional.
— E você s?
— Somos netos do cara que deu nome à avenida mais importante da
cidade.
— Ela é a ú nica, Nuno.
— Viu só ? A mais importante.
Sorrio e ele toma um gole de refrigerante, que, nesse momento, é o
equivalente a ele começar a se despir.
— Meu pai é dono de uma indú stria farmacê utica, a Fremitus,
conhece?
Arregalo os olhos sem acreditar que sua famı́lia é dona de uma das
maiores farmacê uticas do paı́s.
— Sim, claro, tem uns dois remé dios dele no meu armá rio.
— De acordo com o ú ltimo levantamento, oito em cada dez casas
tê m medicamentos da Fremitus — ele desdenha e imagino que nã o seja
algo que se importe tanto.
— E o Matteo é mais velho ou mais jovem? — mudo novamente de
assunto porque quero saber mais sobre ele.
— Ele era mais velho.
— Era?
Nuno balança a cabeça, a expressã o se torna mais triste ao falar do
irmã o.
— Ele morreu quando eu tinha onze anos.
— Ah, Nuno, eu sinto muito.
— Relaxa, acontece o tempo todo, as pessoas morrem. — Suas
palavras frias fazem meus pelos se arrepiarem.
— Você quer falar sobre isso? — Pouso minha mã o em seu braço e
Nuno a observa antes de falar.
— Nã o.
— Certo, entã o me fala um pouco mais sobre você .
— Está curiosa pelo moleque? — Ele ergue uma sobrancelha de um
jeito que deveria ser proibido e que tenho certeza de que é , ao menos
para mim.
— Sim, estou — admito e noto um sorriso tı́mido em seu rosto.
— Deixa eu pensar. — Ele ergue o rosto e a vontade que tenho de
beijar o seu pescoço e de abraçá -lo e dizer que tudo bem icar triste sã o
quase insuportá veis. — Eu gosto do silê ncio, de beber, mas nã o de icar
bê bado, gosto de andar por aı́, de ver a cidade do alto, de ser o moleque
do interior, de icar em casa com meus amigos jogando videogame. —
Ele ergue o ombro e baixa o olhar para a lata em suas mã os. — Como
pode ver, nada de interessante.
— Eu discordo.
Ele volta a me olhar com seus lá bios apertados, como se estivesse se
controlando para nã o dizer algo, ou talvez, fazer. Sinto a tensã o
aumentar ao ponto de icar insustentá vel estar assim, sentada no sofá ,
com meu joelho encostando no seu, o nó do seu dedo brincando com o
meu, tudo tã o sutil e ao mesmo tempo tã o intenso.
— Acho melhor levar essas coisas para a cozinha, senã o ica horrı́vel
de lavar. — Me levanto e pego os pratos ignorando o suspiro que ele dá .
— Certo. — Nuno me ajuda a levar tudo para a cozinha, e limpamos
a sujeira que izemos juntos, é fá cil estar ao seu lado, ele é divertido e
engraçado e me faz rir diversas vezes enquanto conta algo engraçado
que fez com seus amigos.
Quando inalmente terminamos, nã o sei como agir, preciso mandá -
lo embora, acabar com isso antes que seja tarde, que eu me jogue em
seus braços e use uma desculpa qualquer para justi icar meus atos.
Porque eu sei que, quando o dia nascer e eu tiver que sair desse
apartamento onde ele parece estar em toda parte, vou me arrepender
dos meus atos.
Caminhamos em silê ncio para a sala, ele en ia as mã os nos bolsos,
eu cruzo meus braços no peito, olho para os meus pé s, sem saber como
falar tchau depois de tudo.
— Stella — ele me chama, quebrando o silê ncio desagradá vel. —
Posso te fazer uma pergunta?
— Claro.
— Se eu nã o fosse seu aluno, eu teria alguma chance com você ?
Ergo meus olhos e o observo me olhando à espera de uma resposta.
— Por que está perguntando isso?
— Eu gostaria de saber o que te impede de icar comigo, o trabalho
ou a idade.
Os dois.
— Você nã o está pensando em fugir da escola, nã o é ?
— Nã o, meu pai me mataria se eu izesse algo parecido.
— Otimo, continue assim, nã o faça nenhuma bobagem.
— Eu juro que estou tentando, Stella.
Nuno se aproxima, dou um passo para trá s mantendo uma distâ ncia
segura entre nó s, ele ergue o braço e me preparo para ser tocada por
ele.
— Sem febre — ele sussurra parecendo aliviado, com sua mã o
enorme em minha testa.
— Novinha em folha.
— Nada como uma sopinha deliciosa, nã o é mesmo?
Estremeço exageradamente e ele sorri, mas nã o é o sorriso
divertido de antes, é um sorriso triste, de quem sabe que, quando eu
abrir essa porta, voltaremos a ser proibidos um para o outro.
O aluno e a professora.
O menino e a mulher.
— Eu nã o vou icar aqui igual um cachorrinho para sempre, Stella.
— Eu sei, nem quero que ique.
— Uma hora, eu vou cansar.
— Eu sei, e está tudo bem.
— Que bom saber.
Ele me olha por um instante, talvez esperando que eu diga que eu o
quero, que se dane a diferença de idade ou o fato dele ser meu aluno,
que tudo bem segurar minha mã o na rua e me beijar na frente de seus
amigos.
Mas eu nã o digo. Porque nã o posso fazer isso.
— Obrigada ter cuidado de mim essa noite — mudo o assunto
encerrando a noite.
— Disponha, sempre.
Nuno se inclina, passando o braço pela minha cintura. Sinto minha
pulsaçã o acelerar com meus olhos ixos nos dele. Fecho os olhos, na
expectativa do que virá a seguir.
Ele vai me beijar, e eu quero isso, só um beijo e entã o ele poderá ir.
Só um beijo e nada mais.
— Stella — ele me chama, com a voz rouca e tã o perto que posso
sentir o seu há lito quente em meu rosto.
— Hum...
— A porta.
Abro os olhos e noto que estou apoiada nela, Nuno está com a mã o
na maçaneta e meu rosto começa a aquecer de tanta vergonha.
— Claro, desculpa. — Dou um passo para o lado e o sorriso que se
forma em seu rosto poderia iluminar a cidade inteirinha.
— Tchau, Stella — ele diz enquanto abre a porta.
— Tchau, a gente se vê segunda — digo ainda sem graça.
— Claro, a gente se vê .
Ele passa pela porta fechando-a e estourando a nossa bolha. Nosso
momento acabou e, mesmo que eu nã o tenha feito absolutamente nada
demais, sinto-me como se tivesse acabado de cometer um crime.
Com certeza deve ser um crime sentir o que sinto por uma pessoa
que eu nã o posso tocar.
Faz exatamente meia hora que estou sentada no sofá olhando para o
meu celular, estou exausta de lutar contra a razã o, um combate intenso
e diá rio, em que preciso convencer a mim mesma de que nã o posso me
aproximar desse garoto, nã o sou con iá vel para isso. Mas todas as
noites durmo frustrada por saber que nã o estou conseguindo evitar.
Seja uma busca nos corredores da escola, uma olhada em sua
direçã o durante a aula, seja um sorriso que capturo e quero guardar só
para mim, ou um toque proibido, eu sempre estou procurando algo
dele. Como uma incendiá ria, brincando com fogo.
Dez minutos depois justi ico o fato de que já passa das quatro da
manhã e nã o é seguro para um garoto andar sozinho por aı́, para poder
ligar para ele. Busco o nú mero que Madalena salvou para mim e aperto.
Mal consigo ouvir o toque da chamada, tamanha a força com que meu
coraçã o está batendo.
E ridı́culo.
O telefone toca até cair na caixa postal, levanto-me e vou até a
janela, como se pudesse avistá -lo. A rua está completamente deserta e
imaginar Nuno andando por aı́ faz com que o macarrã o revire em meu
estô mago. E se tiver acontecido alguma coisa com ele?
Estou prestes a sair, decidida a ir atrá s dele, mesmo sem fazer ideia
de onde ele está , quando meu telefone toca. Mal espero o primeiro
toque terminar e já atendo.
— Nuno? — quase nã o reconheço minha voz, tamanho o meu
desespero.
— Stella, o que houve? — Ele parece preocupado e só de ouvir sua
voz rouca do outro lado da linha sinto minhas pernas amolecerem e me
sento na mesinha de centro.
— Graças a Deus! — exalo, quase chorando de alı́vio.
— Eu tô icando preocupado, aconteceu alguma coisa?
— Nã o, eu só ... ah, meu Deus... — Respiro fundo tentando controlar
as emoçõ es que parecem prestes a entrar em ebuliçã o.
— Stella, por favor, fala logo.
— Você nã o atendeu ao telefone e eu iquei pensando em você
andando sozinho por aı́ a essa hora... — nã o termino de falar, só de
pensar nessa possibilidade já sinto meu coraçã o voltar a acelerar.
— Ficou preocupada com seu aluno favorito? — ele brinca e posso
ouvir o tom divertido em sua voz.
— Nã o faça brincadeiras com isso, nã o é engraçado.
— Sim, senhora — ele continua com um ar de deboche.
Ele está bem, isso é tudo o que importa.
— Onde você está ?
— No Ivan, por quê?
Tento ignorar o alı́vio descabido que sinto por saber que ele nã o
está no tal rancho, é ridı́culo porque ele pode estar em qualquer lugar
com qualquer pessoa, já que eu o coloquei praticamente para fora.
— Fico nervosa em imaginar você andando por aı́ sozinho a essa
hora.
— Stella, você tá brincando, né?
— Nã o, ó bvio que nã o.
— O que poderia acontecer comigo? Morrer de coração partido no
meio da rua? — ele continua brincando.
— Engraçadinho, eu estou falando sé rio.
— Acredite, Stella, eu também.
Ignoro seu comentá rio porque é tudo o que posso fazer, seria errado
demais dizer a ele que o meu coraçã o també m está partido, mas que sei
que iz a coisa certa. Ele é um menino, nã o está pensando direito, mas
eu nã o, eu sou uma mulher, sei exatamente que nã o há outra opçã o.
— Bom, agora que já sei que você está bem, vou dormir.
— Stella... — ele me chama mais baixinho, como se estivesse falando
algo escondido de algué m.
— Oi. — Aperto o telefone no rosto, como se pudesse ouvi-lo melhor
assim.
— Obrigado por se preocupar comigo.
— Você se preocupou comigo també m. — admito.
— É diferente.
— Nã o é nã o.
Ouço ele suspirar e minhas mã os começam a suar, é só uma
conversa, sem grandes riscos ou provas que possam ser usadas contra
mim. Mesmo assim me sinto como uma criminosa, cometendo um
delito grave ao dizer a verdade para ele.
— Por favor, diga que não está preocupada comigo porque sou seu
aluno.
Fecho os olhos e digo a mim mesma: “é só essa noite, Stella. Só essa
noite”.
— Nã o estou.
— Bom saber disso. — Sua voz parece um pouco mais rouca e meu
corpo estremece com o som.
— Boa noite, Nuno.
— Boa noite, Stella.
Desligo o telefone, e apoio o aparelho no meu peito, bem em cima do
coraçã o, que bate fora do compasso, como se pudesse proteger nossa
conversa do mundo.

No domingo acordo bem melhor, ainda um pouco preguiçosa e


lenta, provavelmente por causa dos medicamentos, entã o me permito
icar o dia inteiro jogada no sofá , digo a mim mesma que é porque
preciso estar bem para amanhã , mas a verdade é que a simples ideia de
sair na rua e dar de cara com algum dos amigos de Nuno me causa
calafrios.
O que é uma grande bobagem já que amanhã terei que enfrentar
todos eles na escola.
As oito da noite, estou assistindo a um ilme quando meu telefone
toca. Tento nã o icar ansiosa, mas é impossı́vel depois da noite passada.
— Pronto.
— Oi. — Duas letras e o meu coraçã o dispara.
Que idiota eu sou se penso que posso me proteger dele.
— Oi — respondo e sorrio.
Me sinto ridı́cula, com esse joguinho de lerte infantil, mas també m
me sinto viva, suspirando e sorrindo, como há muito tempo nã o me via
fazer.
— Eu só liguei pra saber como você está.
— Estou ó tima.
— Sem febre?
— Sem febre.
— Certo. — Ouço o som de mú sica e risadas ao fundo e imagino que
seja por isso que ele parece estar sussurrando ao telefone. Ele nã o está
sozinho. — Então tá, eu... vou indo, o pessoal está me esperando.
— Mais uma festa no rancho? — me odeio assim que as palavras
escapam da minha boca, mas a curiosidade é maior do que tudo.
— Não, de uma das meninas, tá rolando uma festa na piscina. — Ele
nã o fala o nome, també m nã o pergunto, tenho certeza de que, quanto
menos eu souber, melhor será para mim.
— Ah... que legal, divirta-se. — O sorriso idiota se desmancha e me
sinto afundar no sofá .
— Eu estou.
— Que bom, isso é muito bom.
— A gente se vê amanhã. — Uma alegria descabida enche sua voz de
provocaçã o, que injo ignorar.
— Boa noite, Nuno.
— Boa noite, Stella.
Ele desliga a chamada e sinto uma coisa esquisita em meu peito,
uma agitaçã o perigosa, uma dorzinha que nã o tem absolutamente nada
a ver com o resfriado do im de semana.
“Uma hora, eu vou cansar...”
Ele nã o estava brincando e acho que estou começando a me
queimar.
— A gente se vê amanhã .
Na segunda-feira tento ingir que nã o estou ansioso para vê -la, mas,
assim que estaciono o carro, sinto a já familiar agitaçã o em meu corpo e
preciso me controlar para nã o sair correndo. Isso é ridı́culo.
Ontem na festa passei o tempo todo de mau humor e só consegui
sorrir quando ouvi a sua voz no telefone, nem mesmo Ivan foi capaz de
me irritar depois disso e desde entã o estou assim, contando os minutos
para vê -la novamente.
Trê s aulas depois ela entra na sala, usando uma blusa de renda e
uma saia justa, que deixa sua bunda ainda mais gostosa. Ela me dá um
sorriso discreto enquanto se dirige aos outros alunos e sei que vou
passar os pró ximos quarenta minutos seguintes de pau duro e
completamente obcecado por ela.
Que maravilha de vida.
— Se controla, mano. — Ivan puxa a manga da minha camisa
chamando minha atençã o. — Daqui a pouco vã o perceber a sua cara de
idiota babando na professora.
— Como se eu fosse o ú nico, né ? — defendo-me sentindo meu
sangue ferver ao imaginar as merdas que esse bando de imbecis estã o
pensando enquanto ela escreve na lousa, o movimento faz seu quadril
se mover sutilmente. — Aquele ali parece prestes a bater uma punheta
bem aqui na frente de todo mundo. — Aponto para um idiota do outro
lado da sala.
— Mas nenhum deles está parecendo um cã o de guarda.
— Vai à merda.
Finjo estar lendo o livro que ela pediu, mas minha mente está
viajando, pensando em té cnicas de castraçã o em massa e em como
fazer para icar a só s com ela novamente. Stella passeia pelas mesas
analisando o que está sendo escrito, o sorriso lindo e gentil sempre em
seus lá bios enquanto conversa com os alunos, noto seu corpo se
aproximando de onde estou sentado, o cheiro do seu perfume inunda
meu olfato enquanto ela se inclina.
— Como vai o trabalho? — ela pergunta baixinho, com os olhos
ixos no meu caderno.
— Como você está ? — ignoro sua pergunta porque nã o dou a
mı́nima para essa merda.
— Novinha em folha. — Ela sorri, mas esse sorriso nã o tem nada a
ver com aquele que ela me deu em sua casa, esse é um sorriso
mecâ nico, que ela aprendeu a dar para todo mundo.
— Otimo. — Sustento seu olhar por um instante, para mim é apenas
um segundo, mas, quando sinto um chute no meu pé , percebo que Ivan
tem razã o, eu preciso me controlar.
Minha mã o coça de vontade de segurá -la pela nuca e beijá -la, de
desmanchar esse cabelo, de subir sua saia e debruçá -la em uma dessas
mesas, de fazer com que ela implore meu nome. Estou louco por essa
mulher e nã o sei o que fazer para mudar isso.
— Acho melhor você começar, Nuno, quero vinte linhas até o im da
aula. — Stella bate a ponta da caneta na capa do livro, que ainda está
fechada, e exige ao se afastar, com seu tom de professora que faz meu
pau pulsar de desejo.
Ela se aproxima da mesa da frente, se inclinando da mesma forma,
para falar com o outro aluno, um garoto folgado pra caralho que nunca
se interessa por aula alguma porque sabe que a grana do seu pai é alta
su iciente para fazer com que seu boletim seja excepcional, mas que,
mesmo assim, pergunta coisas como se de uma hora para a outra
tivesse se tornado um CDF.
Ainda estou agitado só por ter trocado um punhado de palavras com
ela e começo a pensar que meu ano vai ser uma merda, eu
simplesmente nã o consigo me concentrar em nada que ela fala e nem
ao menos sei o que tenho que fazer.
Estou prestes a me virar para perguntar a Madalena sobre o
exercı́cio quando meus olhos sã o atraı́dos para algo caı́do no chã o.
Um celular.
Inclino-me para pegar, estranhando o fato dele estar no meio do
corredor e de ningué m ter se dado conta disso até entã o, mas, antes que
eu possa resgatá -lo, Enzo, um dos garotos que se senta ao meu lado, se
inclina. Seu olhar apavorado chama a minha atençã o, sua cabeça se
move rapidamente, em um pedido silencioso para que eu nã o faça isso,
mas sou mais rá pido que ele e puxo o celular para mim.
— Ei, devolve isso. — Enzo, o aparentemente dono do celular,
estende a mã o exigindo que eu o obedeça.
Pé ssima ideia.
Viro a tela para mim, no instante em que Enzo se levanta em um
rompante derrubando a cadeira e vindo em minha direçã o.
— Devolve essa porra! — ele grita e me levanto. O sangue aquece
minhas veias, o mundo a minha volta perde o foco e o ó dio me cega.
— Vem pegar se tiver coragem, seu ilho da puta.
— O que está acontecendo aqui? — Stella se vira exigindo que, seja
lá o que for, pare imediatamente quando inalmente noto o que tem na
tela.
Tarde demais.
— Seu desgraçado! — digo ao mesmo tempo em que meu punho
acerta sua cara com tanta força que ele cai em cima da mesa.
Avanço para cima dele e acerto seu rosto mais duas vezes, o maldito
sequer se defende e mal sinto a mã o que tenta segurar meu braço, nem
os gritos a nossa volta.
— Nuno, pelo amor de Deus, o que é isso? — Stella tenta me parar,
mas nã o consigo. Tudo o que vejo na minha frente é a imagem gravada
no celular, e o rosto sujo de sangue do maldito responsá vel por isso.

Nã o consigo sequer erguer o rosto, tenho certeza de que, se olhar


para a cara dele de novo, serei capaz de matá -lo.
— Aqui, ponha isso em sua mã o. — A enfermeira me entrega um
saco de gelo, mas nã o sinto dor. Só ó dio.
— Obrigado — agradeço, mas minha voz está tã o rouca que é difı́cil
falar.
A porta da enfermaria se abre e o diretor entra, ao seu lado estã o a
conselheira familiar e Stella, ela parece ainda menor, com os olhos
tristes e envergonhados, os braços cruzados à frente do corpo, como se
assim pudesse se proteger de olhares doentes.
Infelizmente nã o.
Ela olha para Enzo e em seguida para mim, odeio ver ela agindo
como se a culpa fosse dela, por ser bonita demais. Odeio estar aqui,
como uma criança de castigo depois de ter feito algo errado, odeio o
olhar em seu rosto que faz com que eu me sinta um merda. No fundo,
ela tem razã o, sou apenas um moleque, mesmo que eu tenha defendido-
a. Eu ainda assim nã o passo de um moleque.
— Os senhores sabem que esse colé gio nã o tolera violê ncia, em
hipó tese alguma — o maldito do diretor começa a falar e meus dedos
clamam por calar a sua boca.
— Eu nã o iz nada, esse maluco que me atacou. — Enzo tem a cara
de pau de se defender segurando um saco de gelo em seu olho
esquerdo.
— Você nã o fez nada? — grito me levantando sem nem ao menos
me dar conta. — Seu ilho da puta.
— Nuno — Stella me chama e volto meu olhar para ela.
Pé ssima ideia.
— Ei, vamos nos acalmar — o diretor pede, o covarde sabe que terá
que dar explicaçõ es para o pai de Enzo. — Nuno! — ele grita meu nome,
ignorando por completo o que o desgraçado fez.
— Esse ilho da puta tava ilmando a Stella e você manda eu me
acalmar? E sé rio isso?! — grito ignorando o olhar a lito dela.
— Eu nã o vi as imagens por respeito a Srta. Almeida. — Ele olha de
mim para Enzo, como se duvidasse qual dos dois é o dono do aparelho.
— Mas estou profundamente envergonhado com esse tipo de
comportamento aqui na nossa instituiçã o.
Enzo baixa o olhar para o chã o, seu rosto parece icar ainda mais
vermelho e meu punho se fecha imediatamente, louco de vontade de
voltar para a sua cara.
O diretor continua falando sobre é tica e moral, sobre respeito e blá -
blá -blá .
Balela, todo mundo aqui está cansado de saber o que realmente
importa nessa escola: dinheiro.
E Enzo tem o su iciente para que esse assunto se encerre aqui
mesmo, nessa enfermaria. Que se foda se Stella foi desrespeitada diante
da sala inteira.
— Os seus pais já foram chamados — o diretor Montanari se dirige
a Enzo, que choraminga igual o ilho da puta covarde que é . — E você ,
pode voltar para casa, está dispensado por hoje. — Ele se vira para
mim. — Consegue dirigir?
Con irmo com a cabeça porque nã o tenho certeza se sou capaz de
falar algo.
Levanto-me e estou prestes a sair da sala quando sinto o olhar de
Stella sobre mim, ela parece desolada, pequena, desprotegida, como um
pedaço de carne jogado na jaula dos leõ es famintos e eu nã o posso fazer
porra nenhuma para impedir que ela seja devorada.
Saio da enfermaria louco de raiva, com meu coraçã o explodindo no
peito, a garganta ardendo com todas as coisas que nã o posso falar.
Caminho pelo corredor tã o vazio e silencioso, que tenho certeza de que
meu coraçã o podia ser ouvido por qualquer um.
Entã o, eu ouço seus passos. Pé ssima ideia, Stella, pé ssima ideia.
— Nuno, espera — ela fala, mas nã o consigo parar, preciso ir para o
mais longe possı́vel dessa enfermaria ou serei capaz de voltar lá e
inalizar o que comecei na sala de aula. — Nuno, por favor — ela chama
de novo e meu corpo idiota para sob seu comando, como um cachorro
adestrado.
— O que você quer?! — esbravejo sabendo que é apenas um re lexo
da minha raiva.
— Eu quero ter certeza de que você está bem — ela responde
parando a poucos passos de distâ ncia.
— Bem? Aquele maldito estava ilmando a sua bunda, eu estou bem
longe de estar bem.
— Nuno...
— Nem começa, se você for dizer alguma coisa para defender aquele
ilho da puta é melhor parar por aı́.
— Ei, vai com calma, eu nã o estou nem aı́ para ele.
Esfrego o rosto sentindo o sangue aquecendo minha pele.
— Droga!
— Você precisa se acalmar, Nuno — ela tenta mais uma vez.
— Se eu nã o tivesse visto, a essa altura todos os caras dessa escola
estariam batendo uma pra você , e pode colocar professores nessa porra
també m.
— Eu sei, sou muito grata, mas estou preocupada com você . — Ela
aponta para a minha mã o que está começando a inchar. — Está
doendo?
— Isso? — Ergo o punho. — Nã o é nada perto da raiva que estou
sentindo.
— Por isso eu quero que você me prometa que vai tentar nã o fazer
mais isso, eu estou acostumada a lidar com babacas. Mas nã o vou
suportar te ver arrumando confusã o, se machucando por minha causa.
— Por quê ? Que diferença faz para você , sou só um aluno, um
adolescente cheio de hormô nios, brigar é o que fazemos o tempo todo.
— Por que você está sendo um idiota?
— Porque você nã o entende, aqueles ilhos da puta nã o vã o parar.
— Deixa eles.
— Gozarem olhando a tua bunda? Se depender de mim, nã o vai
rolar.
— E você vai bater em cada garoto que tentar me fotografar? Em
cada um que me chamar de gostosa?
Respiro fundo quando noto onde ela quer chegar, nã o importa em
quantos caras eu bata, no im a ú nica coisa que vou conseguir é atrair
atençã o para nó s dois.
— Porra!
— Prometa para mim que nã o vai mais se machucar por minha
causa.
— Nã o vou prometer.
— Você sabe que nã o vou suportar te ver machucado.
— Nã o, Stella, eu nã o sei de porra nenhuma e estou meio cansado
de tentar adivinhar o que se passa na sua cabeça.
Estamos sussurrando, a uma distâ ncia segura para que nã o pensem
nada de errado, apenas um aluno malcriado e uma professora
preocupada, mas sinto como se estivé ssemos gritando para todo
mundo ouvir nossa histó ria só rdida.
— Eu compreendo. — Ela cruza novamente os braços na frente do
corpo e tento me acalmar, ela nã o tem culpa, ela é a vı́tima aqui e estou
furioso por ela.
Passo a mã o no cabelo ignorando a dor em meus dedos.
— Me desculpe, eu ainda estou louco de raiva e nã o deveria falar
assim com você .
— Nã o deveria, mas eu entendo, você está cheio de adrenalina, só
queria agradecer por ter me defendido.
— Nã o precisa, eu faria isso com qualquer mulher em seu lugar, o
que aquele ilho da puta fez... — Respiro fundo e fecho os olhos
tentando relaxar. Quando os abro, Stella está mais perto, ainda longe o
su iciente para que nada de errado possa ser visto, mas o su iciente
para que ela possa tocar minha mã o machucada. — Só de imaginar
fotos suas por aı́ sem sua autorizaçã o...
— Nuno, por favor se acalma.
Ela suspira, como se preparasse para dizer algo importante e
imediatamente me ajeito.
— Escuta bem o que eu vou te falar... — Ela está com os olhos
baixos, encarando seus dedos que acariciam os nó dulos vermelhos dos
meus. — Você nunca será só um aluno para mim, por mais que eu lute
contra isso, por mais que eu saiba que é errado, todos os dias, quando
acordo, meu primeiro pensamento é te ver. Isso nã o é algo que eu pense
sobre meus alunos. — Ela olha em volta, continuamos sozinhos, mas
ouço a voz do diretor dentro da enfermaria lambendo o rabo do garoto
riquinho.
— Mesmo assim, isso nã o muda nada, nã o é ? — constato o que ela
acaba de dizer.
— Nã o — ela sussurra, e sinto como se o meu rosto fosse golpeado.
— E o que aconteceu aqui hoje só prova o que eu já sabia.
— E o que você sabia?
— Somos de mundos diferentes, Nuno. Se a gente tentasse, só
irı́amos nos machucar e nó s dois sabemos quem ia sair mais ferido
nessa histó ria.
— Bobagem, você tá usando isso como justi icativa para me afastar.
— Sim estou. — Ela me encara enquanto fala, seus olhos da cor de
chocolate estã o cheios de tristeza e convicçã o e me pergunto o que ela
enxerga nos meus, provavelmente dor e decepçã o.
— Certo, só , por favor, tente nã o vir mais para a escola vestida
assim. Infelizmente, nem todos aqui sabem respeitar as pessoas.
Preciso de todo o meu controle para me virar e ir embora, sem
esperar por nada que valha a pena.
Como o grande idiota que sou.
A raiva age como combustı́vel em minhas veias, porque sei que nada
acontecerá , ningué m mexe com Enzo, ningué m quer problemas com o
ilho do juiz, nã o aqui nessa cidade de merda, onde a hipocrisia é a
palavra de ordem.
Essa constataçã o só faz com que minha raiva aumente e a vontade
de fazer a minha justiça seja tã o forte que eu precise respirar fundo e
pensar nela. Ningué m entenderia por que um aluno está tã o furioso por
causa de algo assim, a grande maioria nã o compreende porque eu nã o
estou na ila à espera daquele vı́deo. Estã o me odiando por ter cortado
o barato deles, e que se foda, nã o ligo.
Puxo o alarme e destravo o carro, me dou conta de que deixei
minhas coisas na sala e tudo bem, Ivan pega para mim depois. Entro,
ligo o ar-condicionado e o som Fear of the dark explode nos alto-
falantes e em meus ouvidos, silenciando as palavras dela.
Você nunca será só um aluno para mim...
Respiro com força e o coraçã o ainda batendo forte enquanto
relembro o toque da sua mã o na minha. A porra de um simples toque e
já estou aqui, completamente transtornado, louco de raiva porque nã o
posso fazer nada alé m de ingir que sou um bom garoto e que aceito o
fato de ser proibido para ela quando, na verdade, eu quero mais é que
tudo se foda.
Uma batida na janela me assusta e ergo os olhos para encontrar
Cindy parada ao meu lado, ela aponta para a porta e destravo-a
permitindo que entre.
— Trouxe suas coisas. — Ela joga a mochila no banco de trá s
enquanto entra sem nem ao menos pedir.
— Valeu.
— Como você está ? — Ela olha para o meu rosto, provavelmente em
busca de algum hematoma, o que seria normal caso Enzo nã o fosse um
cuzã o e revidasse.
— Eu tô bem.
— Poxa, justo a aula que nã o estou acontece algo — ela brinca, mas
seu sorriso se desfaz quando nota que nã o estou sorrindo. — Você está
suspenso?
— Você sabe que ele nã o me suspenderia nem que eu tivesse
matado aquele babaca.
— Entã o, o que houve?
Abro a boca para responder, mas o que eu poderia dizer? Que estou
frustrado, confuso, assustado, louco de ciú mes? Como posso explicar
para ela algo que nem eu mesmo sei o que é ?
Entã o nã o falo nada.
Cindy se deixa cair no assento, batucando nas coxas nuas ao som de
Iron Maiden.
— Cara, a professora está arrasada, coitadinha, é tã o injusto que a
culpa ainda caia em cima da mulher, como se ela tivesse culpa de ser a
ú nica professora gostosa nessa escola, que mais parece um asilo.
O rosto de Stella surge em minha mente, a vergonha por ter tido sua
intimidade invadida e por saber que será motivo de comentá rios estava
estampado nele e isso só me deixa mais fodido.
— Cindy, eu nã o tô a im de falar disso.
— Claro, eu entendo, quer dar uma volta?
— Você nã o tem aula?
— E desde quando a gente segue as regras? — Ela me dá um dos
seus sorrisos devassos e ligo o carro, sem me importar em estar
fazendo algo que vai deixar Ivan puto da vida, mas sabendo que nesse
momento é a ú nica coisa capaz de me distrair a nã o icar aqui nesse
estacionamento esperando as aulas acabarem para esbarrar naquele
babaca e continuar de onde paramos.
Ou pior, implorar para Stella me querer e isso eu já decidi: nã o vou
fazer mais.

Cindy é uma garota legal quando quer, mimada e esnobe mesmo


quando nã o quer e muito engraçada quando sabe que um amigo precisa
de distraçã o.
Hoje preciso de toda a distraçã o do mundo.
— E sabe aquela minha prima que mora em Mô naco? — Ela passa a
lı́ngua no sorvete que escorre pela casquinha enquanto balança as
pernas como uma criança.
— Sei, aquela que icou apaixonada pelo Ivan?
Cindy desvia a atençã o do sorvete e me olha como se nã o soubesse
do que estou falando.
— Ela nã o icou apaixonada por ele.
— Nã o sei, mas o Ivan icou bem louco por ela.
Cindy revira os olhos parecendo irritada.
— Ivan é um idiota, ele fez aquilo só para me provocar. Ele sabia que
eu nã o queria que ele icasse com ela.
— Por que ele nã o poderia icar com ela?
— Porque ele també m estava transando com aquela insuportá vel do
segundo ano.
— E daı́? Nã o é como se eles fossem namorados.
— Mas isso nã o é certo.
— Falou a garota que já transou com metade da cidade.
— Nã o estamos falando de mim aqui. — Ela passa a lı́ngua no
sorvete enquanto ergue os ombros, na sua pose de patricinha e começo
a rir.
— Você adora irritar o coitado.
— Era só um lance de pele. Eu estava querendo poupar o tempo
dele.
Nã o é o que me lembro, sei que eles tiveram um rolo de verã o,
durou menos de trinta dias, mas foi o su iciente para Ivan icar de
quatro pela garota, passei o ano inteiro rindo da cara dele, naquela
é poca eu nã o conseguia entender como algo assim poderia acontecer
em tã o pouco tempo.
Hoje sei que precisa apenas de um momento, um instante, apenas o
su iciente para que sua pele reconheça a dela, que a quı́mica faça a sua
parte, acordando as molé culas em uma explosã o tã o intensa e, ao
mesmo tempo, tã o silenciosa que ica difı́cil acreditar que foi real.
Coisa de pele, talvez seja realmente isso que aconteceu comigo e
com a Stella, sendo assim, em alguns meses, eu estarei livre disso, e
poderei ser o Nuno de antes. Assim como meu amigo superou.
— Foi bom para o cara, ele precisava se distrair um pouco.
Cindy se vira para mim, subindo o pé descalço pelo capô do carro.
— As vezes, as pessoas precisam de uma distraçã o, para suportar a
realidade.
— Sim, à s vezes é tudo o que elas tê m.
Ela me dá um sorriso que conheço bem enquanto joga o sorvete fora
e engatinha pelo capô do carro até montar em meu colo.
— Que tal me deixar te distrair um pouco hoje? — Ela passa suas
unhas em meus braços e, por mais que eu nã o esteja na mesma que ela,
meu corpo reage imediatamente, a inal de contas, sou um cara saudá vel
com uma garota gostosa montada em meu colo, me provocando.
— Eu nã o tô legal, Cindy.
— Eu sei, por isso tô aqui.
— Eu nã o te trouxe aqui para me aproveitar de você . — Viro o rosto
quando ela se inclina e beija meu pescoço.
— Eu sei, relaxa — ela sussurra.
Me sinto um pouco mal quando meu pau começa a acordar, como se
eu fosse o ilho da puta do qual Ivan me acusa. Durante um bom tempo,
eu e Cindy nos divertimos fazendo algumas coisinhas sujas e erradas
por aı́, mas depois da ú ltima suspensã o prometemos que nos
comportarı́amos e que nos tratarı́amos como amigos.
— Se a gente transar, nã o vai mudar nada.
Na verdade, essas palavras ainda se parecem com as mesmas que
Stella disse para mim, nã o importa, nada nunca vai mudar.
— Eu sei — ela sussurra com a boca bem perto do meu ouvido. —
Eu també m tô precisando me distrair um pouquinho. — Por mais que
eu saiba que o certo seria perguntar se ela quer conversar, sei que, à s
vezes, tudo o que a gente quer é ingir que aquilo nã o existe.
Subo minha mã o por sua coxa até chegar a sua bunda enquanto ela
me beija e abre minha camisa, estamos ao ar livre, nossa pequena, rica
e hipó crita cidade aos nossos pé s, o som da mú sica ecoando do lado de
dentro do carro e das nossas tristezas em nossos coraçõ es enquanto
usamos o sexo como uma rota perigosa de fuga dos nossos problemas.

Quando estaciono o carro na frente de casa, já está escuro, estou


exausto, faminto e me sentindo sujo. Durante todo o tempo enquanto
metia nela, tudo o que eu pensava era no corpo de Stella, era nela que
eu estava entrando, era ela quem choramingava a cada estocada, era
sua pele em minhas mã os e, quando gozei, precisei de tudo de mim
para nã o gritar o seu nome. Foi como se eu estivesse me vingando dela,
usando minha amiga para provar para aquela mulher que nã o preciso
dela, ignorando meu coraçã o machucado pela rejeiçã o e o sentimento
de vazio que icou quando acabou porque nã o era ela, como o grande
garoto mimado que sou.
Eu estou muito fodido mesmo.
Entro em casa e encontro minha mã e na cozinha, ela está incrı́vel,
usando um vestido esvoaçante e saltos que a deixam maior que a
grande maioria das mulheres que conheço, ela é a ú nica pessoa que
consegue ser linda e elegante mesmo cantarolando uma mú sica
enquanto dança e mexe alguma coisa no fogã o.
Minha mã e é uma das mulheres mais in luentes de Monte Mancante,
na verdade de toda a Sã o Paulo, fundadora de dezenas de instituiçõ es
de caridade. Desde que Matteo morreu, vem usando o trabalho como a
fuga para a sua dor. Entã o, vê -la assim, sorridente, cozinhando, é quase
tã o raro quanto o Halley.
— Hum... dia feliz? — Paro atrá s dela e deixo um beijo em sua
bochecha.
— Nuno, eu nã o te vi chegar. — Ela me olha surpresa, como se nã o
me visse há muito tempo. — Como você está ? — Ela passa a mã o
carinhosamente em meu rosto. — O diretor ligou hoje à tarde.
— Eu imaginei. — Baixo o olhar para a minha mã o relembrando a
forma violenta com que bati em Enzo. — Ele ia distribuir aquilo para a
escola inteira, mã e, eu nã o poderia deixar.
— Eu sei, meu amor, e estou tã o orgulhosa por saber que você nã o
estava no grupo dos que veriam o vı́deo.
— Obrigado por estar do meu lado.
— Eu sempre estarei.
— E muito importante para mim saber disso.
Ela dá dois tapinhas em meu rosto e se vira para mexer novamente
o molho e pegar a taça de vinho.
— Ouvi dizer que essa tal professora é quase da idade de você s.
— Ela é bem jovem e tã o pequenininha, que quase se perde no meio
dos alunos. — Noto como meu sorriso se espalha com facilidade e me
obrigo a icar sé rio novamente.
Será que ela entenderia se soubesse o motivo para eu ter icado tão
bravo? Será que me defenderia se soubesse que tudo o que iz foi porque
estou louco pela professora, com quem tive uma noite intensa alguns
meses atrás? Será que ela aceitaria Stella? Que, além de mais velha, não
faz parte do nosso ciclo social?
Abro a boca, pronto para começar a falar, mas desisto porque nã o
vou suportar a decepçã o caso minha mã e nã o concorde com meus
sentimentos, ela é preciosa demais para que eu me decepcione.
— A Marie disse que ela é lindı́ssima.
Marie é a mã e da Cindy e melhor amiga da minha mã e, uma famosa
estilista, ilha de um dos fundadores da cidade, e se ela disse que
algué m é bonito, é quase como um atestado de beleza universal. Nã o
que eu precisasse da sua aprovaçã o, soube que Stella era linda no
instante em que a vi.
— Se nã o fosse, com certeza aquele idiota nã o teria perdido tempo
com ela.
Minha mã e balança a cabeça e bebe um gole de vinho.
— Homens... desde sempre pensando com o lado errado do corpo.
— Ela sorri, mas ainda nã o consigo achar graça. — Deixa eu ver essa
mã o. — Ela segura e passa a ponta dos seus dedos com carinho na pele
esfolada. — Você machucou muito ele?
— Nã o tanto quanto queria — admito e minha mã e ergue os olhos
para mim, analisando meu rosto em busca de algo.
Por favor, mã e, nã o me decepcione.
— Cuidado, ilho, nã o faça nada que te prejudique, por favor — ela
diz com cautela, e sinto em suas palavras mais do que apenas a
preocupaçã o por uma briga de moleques. — Nã o aja por impulso.
— Nã o farei, mã e, nã o se preocupe. Nã o sou irresponsá vel.
— Muito bem. — Ela dá uma batidinha em meu rosto e sorri. —
Uma mã e sempre se preocupa, Nuno. Sempre.
Minha mã e faz questã o de cuidar da minha mã o, ela passa pomada e
envolve meus dedos com uma faixa. Ela me faz mais perguntas sobre a
briga, com seus olhos atentos a minha mã o enquanto ouve o meu lado
da histó ria, ela acredita em mim e isso é tudo o que preciso. E sempre
agradá vel estar com ela, nunca há julgamentos e crı́ticas e, mesmo
quando ela me repreende, sou capaz de sentir o seu amor.
Estamos terminando o curativo quando meu pai entra na cozinha,
como um grande buraco negro, sugando toda a alegria da noite.
— Estava mesmo esperando por você . — Ele coloca a pasta em cima
da bancada enquanto diz com seu ar autoritá rio de sempre.
— Oi, pai.
— Onde diabos você estava com a cabeça, Nuno? — Sua voz começa
a se alterar e nem me surpreendo, já sabia que seria assim.
— Antô nio — minha mã e o chama, mas ele sequer desvia o olhar.
Olhe para sua esposa, preste atenção no que você está fazendo com
ela, seu bosta.
— Você nunca vai parar de aprontar, moleque?
— Eu estava defendendo a professora.
— Ah, que se dane a porra da professora! — ele esbraveja e sinto
todo o meu corpo enrijecer. — O juiz Zimmermann nã o gostou nada de
ver o ilho dele espancado e eu nã o gostei nada de saber que foi o meu
ilho quem fez isso.
— Pai, ele estava cometendo um crime.
— Nã o seja dramá tico, moleque, mulheres gostosas foram feitas
para serem admiradas e, se ela nã o quisesse isso, que se comportasse
melhor.
— Respeita a minha mã e, porra! — grito e ele dá um passo para a
frente. Sei que é apenas a sua forma de amedrontar minha mã e, sei que
ele nã o seria louco de me bater, eu nã o me importaria em revidar.
— Pelo amor de Deus, você s dois tratem que parar com isso? —
minha mã e exige, colocando-se entre nó s.
— Eu tenho tanto nojo de pessoas como você — digo ainda
encarando seu rosto, tã o parecido com o meu. Sinto meu punho doer e
me dou conta de que ele está fechado com tanta força que dó i.
— E você só me decepciona.
Ele olha para mim, daquele jeito que vem fazendo desde o dia em
que Matteo se foi, como se eu fosse a sua maldiçã o, o tapa na cara do
destino, a sua lembrança eterna de que até mesmo Antô nio Castro
D’Agostinni é capaz de falhar.
Eu sou a prova disso.
Sempre se espera demais de uma mulher.
Primeiro se esperava que ela fosse uma moça perfeita, que gerasse
muitos ilhos, que soubesse tocar piano, bordar, falar francê s e se portar
bem na presença dos outros.
Entã o se esperava que elas falhassem, ao usar calça, ao dizer nã o a
um casamento arranjado, ou até mesmo ao ser abandonada. Uma
mulher nã o poderia dirigir, nã o poderia votar, nem pensar, uma mulher
nã o poderia trabalhar e nem mesmo se divorciar.
Mesmo assim, a mulher ainda insistiu em lutar, mas nunca, em
hipó tese alguma, ela poderia ser bonita.
A beleza é o algoz da mulher.
Ser bonita enfraquece, emburra, cala, a beleza desmente, diminui,
ridiculariza.
Lutei minha vida inteira para conquistar meus objetivos, estudei,
me formei, iz cursos sobre literatura estrangeira, cuidei do meu pai, da
minha irmã e de mim, comprei meu carro, paguei minhas contas e
venci. Passei meses disputando a vaga de professora na escola mais
cara e exigente do paı́s, ganhei atravé s do meu conhecimento, do meu
cé rebro.
Mas sou bonita demais para ser respeitada, seja no olhar incré dulo
de um diretor ao ouvir que nã o fui capaz de conter a desordem na sala
de aula, pelos pais que nã o tê m certeza se uma mulher tã o jovem e
bonita pode ser a professora de uma das mais conceituadas escolas do
paı́s. E, principalmente, pelos alunos que, ao ver uma mulher bonita,
ignoram a autoridade de sua posiçã o.
A inal de contas, durante sé culos e sé culos, a mulher sempre foi
vista como um objeto manipulá vel, usá vel e descartá vel.
E exatamente assim que estou me sentindo enquanto aguardo ser
chamada na sala do diretor, sendo olhada como se fosse a culpada pela
secretá ria, que deveria estar ao meu lado.
— O Sr. Montanari pediu para que você entre — ela diz sem olhar
para mim, como se eu estivesse nua.
Faço o que ela pede, o diretor está sentado atrá s da sua mesa,
olhando para alguns papé is e sequer ergue os olhos quando entro.
— Pode se sentar, Srta. Almeida. — Ele mal olha em minha direçã o e
me sinto suja e envergonhada. Como poderei dar aula depois do que
houve hoje? E se Nuno nã o tivesse visto? O que seria de mim com um
vı́deo desses circulando entre meus alunos?
Me sinto enojada ao pensar que, mesmo nos dias de hoje, uma
mulher ainda nã o é capaz de ser respeitada nem mesmo em seu local
de trabalho.
Ele demora um tempo até terminar de ler, seja lá o que for, me
pergunto por que ele me chamou aqui se está tã o ocupado e imagino
que seja uma forma de puniçã o e constrangimento.
— Se o senhor quiser, posso voltar quando estiver livre.
Ele ergue os olhos inalmente e força um sorriso.
— Eu já terminei.
Droga, serei mandada embora, é um absurdo que, mesmo sendo a
vı́tima, ainda esteja aqui nessa sala prestes a ser chutada. E entã o o que
será de mim e de tudo que planejei quando mudei minha vida inteira
para essa cidade? Terei que voltar para Sã o Paulo e todos os meus
sonhos irã o por á gua abaixo.
Como olharei para Suzy depois disso?
— Senhorita Stella, estive em reuniã o com os pais do aluno Enzo
Zimmermann, eles estã o profundamente chocados com a violê ncia
sofrida por seu ilho, o garoto quebrou o nariz, nesse momento está
sendo removido para Sã o Paulo onde fará uma cirurgia.
Respiro fundo e uso todo o meu autocontrole para nã o falar nada
errado, eu nã o posso falar que ele mereceu o que recebeu, eu preciso
desse emprego.
— Eu sinto muito, foi tudo muito rá pido e nã o fui capaz de conter o
Nuno.
Meu coraçã o acelera apenas por pronunciar seu nome e dou graças
a Deus que há uma mesa entre nó s ou tenho certeza de que ele poderia
notar.
— Eu sei, imagino que tenha sido, Nuno é um bom garoto, mas tem
rompantes de descontrole emocional, é natural desde a morte do irmã o,
mas nã o posso tolerar esse tipo de violê ncia.
— Compreendo e concordo, violê ncia é intolerá vel.
Me odeio por estar concordando com ele, o que Nuno fez nã o foi
certo, mas o que Enzo fez é ainda pior e, mesmo assim, ele está sendo
tratado como a vı́tima.
— O que me fez te chamar aqui é a conversa que tive com o juiz e
sua esposa, eles estã o muito abalados e preocupados com... você sabe,
possı́veis desdobramentos desse caso.
— Desdobramentos?
O diretor parece levemente desconfortá vel enquanto estende a folha
que estava lendo até agora para mim.
— Eles querem garantir a integridade fı́sica e emocional do ilho
deles, com a certeza de que nã o haverá nenhum problema com a
senhorita.
— O que é isso? — Seguro a folha em minhas mã os, mas nã o consigo
ler, estou nervosa demais para isso. — Eu nã o entendo.
— Só uma mera formalidade para que todos iquem tranquilos, a
senhorita só precisa assinar onde está o seu nome e tudo se encerra
aqui. — Ele aponta a caneta no local onde há um X.
— Mas por quê ? Fui eu quem tive meu corpo ilmado contra a
minha vontade no meio da sala de aula.
— Coisa de crianças, ele nã o fez por mal.
Abro a boca para responder, mas o olhar que ele me direciona me
diz que nã o é uma boa ideia.
— Senhorita Stella, convenhamos, todos aqui sabemos que a
senhorita é ... — Ele pausa analisando a escolha de palavras. — Uma
mulher incrivelmente interessante, é natural o encantamento de um
garoto.
Encantamento? É assim que ele vai chamar o que houve aqui?
— Nã o se preocupe, ningué m aqui irá culpá -la de nada.
— Me culpar? De ser mulher?
— A senhorita precisa compreender que...
— Nã o, senhor, eu nã o compreendo, poderia me explicar melhor por
que estou assinando um documento que protege o garoto que ilmou
minhas partes ı́ntimas durante a aula?
— Como eu disse, é apenas formalidade, a famı́lia Zimmermann é
muito in luente e odiariam ver o nome deles envolvido em escâ ndalo,
entã o se puder, por gentileza, assine esse documento, hoje foi um longo
e difı́cil dia para todos nó s, vamos acabar logo com isso para que
possamos todos ir para casa descansar.
Meu corpo treme enquanto pego a caneta que ele me entrega,
minhas mã os suadas tê m di iculdade em segurar a Mont Blanc.
— Vai ser melhor para todos nó s. — Ele me dá um sorriso que diz:
“você nã o tem escolha”.
Entã o engulo o choro, a dignidade, a raiva, a vergonha, tento nã o
pensar em nada, nã o adianta, nã o importa que eu estivesse
completamente vestida e composta, nem que eu nunca tenha dado
sequer uma brecha, nã o importa se estou magoada e humilhada, ele é o
ilho de um juiz, rico e poderoso, e eu sou apenas uma professora.
Pobre, mulher, jovem e bonita. Descartá vel.
Penso em Suzy, no seu sorriso debochado e em todos os seus
sonhos.
E mesmo que eu nã o deva, penso em Nuno, na forma como ele
estava furioso quando saiu da enfermaria, em como ele parecia prestes
a se partir ao meio quando o toquei, em como ele quase destruiu o
rosto do rapaz, porque provavelmente já sabia qual lado dessa histó ria
iria prevalecer.
Assino o papel usando tudo de mim para nã o demonstrar meus
sentimentos, em seguida entrego para ele, mantendo o contato visual
durante todo o tempo.
— Prontinho, está tudo certo, muito obrigada por sua compreensã o
em ajudar, senhorita Stella.
— O aluno Nuno será punido?
— Já tive uma reuniã o com seu pai, ele garantiu que isso nã o irá
mais se repetir, talvez ele ique um ou dois dias em casa para esfriar a
cabeça.
— Certo, estou liberada?
— Claro.
Levanto-me, mas antes que eu chegue até a porta o diretor me
chama novamente.
— Eu havia me esquecido, o Sr. Zimmermann pediu que eu
entregasse isso a senhorita. — Ele me estende um envelope azul-
marinho com um brasã o dourado.
— O que é isso?
— Por favor, receba, é um pedido de desculpas pela má conduta do
ilho dele.
Olho para o envelope por mais alguns segundos, a bile sobe pela
minha garganta, me sinto doente e apavorada com essa situaçã o.
— Eu tenho alguma opçã o?
— Acho que nã o seria de bom tom negar o pedido de desculpas de
um juiz. — Sua voz me deixa enojada, estendo a mã o e pego o envelope,
com a certeza de que nã o importa o que tenha aqui dentro, eu nunca
abrirei.
Essa escolha eu posso fazer.

Quando chego em casa, corro para o banheiro e tomo um banho


longo e doloroso, choro o tempo inteiro e, quando termino, ainda me
sinto suja e usada.
Nã o conto a Suzy o que aconteceu, estou envergonhada demais para
isso, entã o evito sua ligaçã o, é o que farei nos dois dias seguintes, digo
que estou cansada demais para conversar.
Ela acredita.
Voltar a escola no dia seguinte foi uma das piores coisas que já iz na
vida, mantive minha cabeça erguida e meu sorriso gentil, mesmo
quando ouvia alguma coisa ou quando uma garota me olhava com
tristeza. Foi difı́cil dar aula, foi ainda mais difı́cil entrar na sala dos
professores e encontrar olhares de julgamentos e maliciosos.
Mesmo quando eles sorriem de forma amistosa, é como se o assunto
fosse algo proibido e me pergunto quantos envelopes azuis foram
distribuı́dos ontem.
Alguns dias depois, volto para a sala onde tudo aconteceu, é tã o
difı́cil que sinto minhas mã os trê mulas e um vislumbre de um ataque de
pâ nico me atingir e preciso ser forte para poder abrir a porta e entrar.
Enzo nã o está , nem Nuno.
Mas a ausê ncia deles nã o me impede de relembrar o que aconteceu.
Nã o me recordo muito da aula, ajo mecanicamente e peço um
trabalho extra para ser feito em dupla, assim mantenho eles distraı́dos.
Meus olhos percorrem a sala e param na mesa vazia de Nuno, relembro
a forma como ele pareceu voar para cima do garoto, a fú ria em seus
olhos, a força do seu punho.
“Nuno é um bom garoto, mas tem rompantes de descontrole
emocional, é natural desde a morte do irmão...”
Tento nã o pensar nele, na sua ausê ncia, no que ele está fazendo
enquanto nã o está aqui. Será que foi punido em casa? Será que alguém
cuidou dos seus ferimentos? Será que ele está com raiva de mim?
Afasto todos esses pensamentos da minha mente, já tenho minha
cota de problemas e nã o preciso icar imaginando quais os tipos de
episó dios que Nuno teve nessa escola. Isso nã o é da minha conta.
Assim que se entra no pré dio principal do Colé gio Santo Egı́dio, há
duas obras de arte que separam os edifı́cios do centro universitá rio e da
escola. Uma branca e outra vermelha, uma com traços suaves e
delicados e outra com curvas sinuosas e agressivas, elas se unem no
topo, mesclando a base para o futuro desses alunos.
Esperança e Coragem.
Todos os dias, quando olho para elas, me obrigo a lembrar que
foram exatamente essas duas coisas que me trouxeram até aqui, a
coragem de enfrentar meus medos e inseguranças e a esperança de
poder conseguir realizar algo que sonhei a minha vida inteira.
E sã o elas que ainda me manté m aqui, dia apó s dia, ignorando os
desejos do meu coraçã o e me obrigando a acreditar que estou fazendo o
que é certo.
A esperança e a coragem.
Os dias passam, o tempo ameniza o constrangimento e as coisas
começam a icar mais tolerá veis, mesmo assim ainda nã o é fá cil
conviver com fofocas e burburinhos, nã o tenho vontade nenhuma de
almoçar ao lado daqueles professores, nem de enfrentar os olhares dos
alunos no pá tio externo, entã o me refugio no ú nico lugar que tenho
certeza de que está vazio nesse horá rio: a biblioteca.
Desde entã o venho fazendo desse lugar quase esquecido, o meu
cantinho de paz e tranquilidade. No silê ncio quase reconfortante, me
sinto segura. Suzy diz que estou sendo covarde, que preciso enfrentar
esse bando de fofoqueiros de cabeça erguida.
E fá cil falar quando se está do outro lado do estado e nã o precisa
lidar com adolescentes, eles sabem ser crué is quando querem e os de
Monte Mancante tê m doutorado no quesito crueldade.
Ela nã o sabe de tudo, claro que nã o. Suzy viria até aqui, quebraria a
cara de todos os envolvidos e me arrastaria de volta para Sã o Paulo, de
volta à estaca zero. Por isso, se depender de mim, ela nunca saberá .
Finalizo meu almoço, leio mais um pouco de um romance novo que
peguei na biblioteca semana passada, aguardo até o meu horá rio
terminar e me levanto, carregando comigo a tristeza de ter que lidar
com algo que nã o é minha culpa, mas que torna minha vida nessa
cidade insuportá vel.
Para uns se chama covardia, para mim é coragem, de seguir, mesmo
quando meu coraçã o pede para desistir.
Todas as quartas, um misterioso poeta espalha textos por toda a
escola, PI é o seu pseudô nimo e, ao que tudo indica, ningué m sabe
quem é essa pessoa, nem mesmo se é um homem ou uma mulher, um
aluno, um professor ou qualquer outro funcioná rio. Apenas se espera
ansiosamente por seus textos.
Acho que, no fundo, as pessoas gostam de ter o que comentar, seja
sobre a ousadia do poeta que, na ú ltima quarta, conseguiu deixar um
texto na sala do diretor, ou sobre o poema polê mico da semana passada.
O fato é que PI é como uma celebridade, algué m que as garotas
idealizam e que os garotos invejam, e graças a ele ou ela, tive a ideia de
fazer meus alunos criarem seus pró prios textos como parte da nota do
bimestre.
Entro na sala do terceiro ano ingindo uma alegria que nã o sinto,
achei que, com o passar dos meses, eu me acostumaria, que icaria mais
fá cil aceitar o fato de que tenho sentimentos proibidos por um dos
meus alunos, mas ainda nã o aconteceu a má gica que tanto espero.
Apesar disso, já nã o me sinto tã o incomodada com os olhares que
recebo, nem mesmo tenho di iculdade em falar, minhas pernas nã o
estã o mais bambas, e meu coraçã o... bom, esse já desisti de tentar fazer
entender que nã o adianta bater tã o forte. Apenas aceito-o.
Coloco minhas coisas na mesa e cumprimento os alunos, pergunto
como está indo a leitura do mê s e sorrio com as reclamaçõ es, depois de
alguns anos como professora, você aprende a lidar com tanta
choradeira, no fundo eu os compreendo, nã o é fá cil ser tã o jovem e já
ter que escolher o resto da sua vida.
Leio o ú ltimo texto de PI enquanto todos me ouvem em silê ncio, ao
terminar me pergunto se ele está aqui, se sabe que a escola inteira está
escrevendo textos baseados em suas palavras, se era esse o seu objetivo
ou se está com seu ego abalado por saber que há outros pensamentos
sendo compartilhados.
Peço para que os alunos comecem a apresentaçã o e me sento no
canto da sala para observá -los criar.
Essa é minha parte favorita, explorar e encontrar o poeta dentro de
cada um.
Olho rapidamente na direçã o de Nuno, desde o episó dio com Enzo
as coisas se tornaram ainda mais difı́ceis ente nó s. Insuportá veis, à s
vezes.
Já nã o há mais olhares furtivos, nem toques discretos, os sorrisos
desapareceram e di icilmente consigo manter a sua atençã o durante as
aulas, é como se agora ele tivesse se libertado da responsabilidade de
ser o cara que conheci aquela noite e izesse questã o de mostrar quem
ele é de verdade: um adolescente rico e mimado.
Ou talvez a brincadeira de correr atrá s da professora tenha
inalmente chegado ao im e a parte sensata do meu cé rebro se sente
aliviada e orgulhosa por eu nã o ter cedido as suas investidas.
Mas nã o vou falar sobre a outra parte do meu cé rebro, a que sente a
sua falta todos os dias. E humilhante até mesmo pensar sobre.
O tempo passa e os alunos se revezam na frente da sala, há algumas
poesias muito boas, como a de Maddie e a de Joana, uma garota que tem
me falado sobre seu desejo em escrever livros no futuro, há as que
arrancam gargalhadas de todos e as que sã o tã o sujas, que preciso pedir
para que deixem a folha na minha mesa que analisarei depois.
Pouco a pouco, eles vã o se revezando até que olho na lista para o
seu nome e sinto como se nã o fosse mais capaz de respirar.
— Nuno, é a sua vez. — Encaro o garoto no fundo da sala e vejo ele
se levantar preguiçosamente, seus amigos fazem gracinhas enquanto
ele passa por cada um, seu corpo grande e elegante se move
sensualmente por entre as ilas. Nuno se aproxima e passa por mim até
chegar à frente da sala.
Ele enrosca a mã o nos cabelos bagunçando as mechas de um jeito
sexy, em seguida seus olhos grandes e intensos passeiam por toda a sala
até pousar em Cindy, que olha para ele com admiraçã o.
E meu peito dó i.
— Bom, vamos lá — ele pigarreia e coça a parte de trá s do pescoço,
suas bochechas ganham um tom rosado e ele se parece um pouco
desconfortá vel, mas em nenhum momento ele olha para mim. — Ele se
chama, Hipocrisia — Nuno diz enquanto retira um pedaço de papel
amassado do bolso de trá s do jeans e o abre.
Meu coraçã o, que já está agitado, parece prestes a saltar pela boca
quando Nuno olha em minha direçã o, nã o há sorrisos, nem deboche,
nã o há sequer a raiva que parece sempre presente quando ele olha para
mim.
Nã o há nada. E isso me apavora.
Nuno desvia o olhar e encara seus amigos no fundo da sala, Ivan
move a cabeça e Cindy parece a lita, como se soubesse de algo. Ele
passa a lı́ngua no lá bio de um jeito debochado e mexe o pescoço de um
lado para o outro antes de começar:

“Acordo com seu braço a me sufocar,


O sol brilha lá fora,
Mas nem mesmo ele é capaz de me enganar,
Agora somos só nós, eu, a dor e ela.

Sorrio, mas não há graça


Respiro, mas não há vida
Choro, mas não há farsa
Agora somos só nós, eu, a dor e ela.

A noite chega trazendo as sombras para meu descanso


Não há mais nada que esconder.
Retiro o sorriso do rosto e coloco na mesa ao lado
Agora somos só eu e você.

Ela já foi se deitar,


amanhã volta, junto com o sol
para um bom-dia me dar
com seus braços a me sufocar

E então voltaremos a ser três


eu, ela e você.”

Nuno ergue o olhar da folha, ele parece tã o triste enquanto olha
para a sala silenciosa, que parece nã o entender o que signi ica aquelas
palavras sendo ditas pelos lá bios do garoto mais engraçado e
brincalhã o. Os segundos se arrastam até que ele sorri, um sorriso
debochado e provocante.
Ele vai até minha mesa e deixa a folha de papel amassada em cima
das outras e, antes de voltar a seu lugar, ele olha para mim mais uma
vez. O vazio agora cheio de arrogâ ncia e raiva parecem prestes a me
sufocar.
Entã o eu desvio o olhar.

Já passa das sete e meia da noite e ainda nã o consegui parar sequer
para beber um copo de á gua, estou inalizando as notas que precisam
estar no sistema ainda hoje e quase choro de emoçã o quando
inalmente termino a ú ltima turma.
A folha amassada do garoto que domina meus pensamentos ainda
está ao meu lado, meus dedos tocaram aquelas letras inú meras vezes
enquanto me torturei relembrando da sua narrativa.
Hipocrisia...
Sim, eu sei exatamente o que ele quis dizer com esse poema.
Talvez por isso eu ainda esteja aqui, escondida da realidade, com a
cara no trabalho, tentando me impedir de pensar nele.
Hipocrisia...
Levanto sentindo as pernas formigarem por tanto tempo sentada,
saio da sala de professores em busca de uma má quina de café que
esteja funcionando, a escola está quase vazia e parece tã o maior agora
que toda a cacofonia causada pelos alunos se foi. Pouco a pouco começo
a me sentir mais à vontade dentro dessa fortaleza. Tetos altos e paredes
de pedra já nã o me assustam mais e até mesmo a presença constante
do poder e do dinheiro das famı́lias de Monte Mancante começam a se
tornar quase normal.
Depois de trê s tentativas frustradas de conseguir um café vou até o
banheiro que ica no inal do corredor, nesse momento só o som dos
meus saltos no piso ecoa em meus ouvidos.
Abro a porta e entro, ligo a luz, vou até a pia e abro a torneira
enchendo as mã os com á gua, jogando-a no meu rosto para me refrescar.
Ainda nã o me acostumei com o calor que faz aqui nessa cidade e hoje,
em particular, está um dia abafado demais para o outono, mas de
acordo com todos, mais alguns dias e a temperatura vai começar a
despencar. Assim espero, é difı́cil escolher roupas leves e que nã o
“revelem demais” para usar com as temperaturas na casa dos 38 graus.
Olho para o meu re lexo no espelho, profundas olheiras marcam
meus olhos cansados; meus ombros, que parecem carregar o mundo,
estã o caı́dos, exaustos. Devo ter perdido peso porque a saia está mais
folgada no quadril, meus cabelos estã o soltando do coque que iz hoje
cedo ao sair de casa e me dou conta de que essa é a primeira vez que
me olho desde entã o. Está explicado a forma como o funcioná rio da
limpeza olhou para mim antes que eu entrasse no banheiro, nã o sou a
melhor visã o para um im de turno.
Se Suzy pudesse me ver agora teria uma sı́ncope.
Jogo mais um pouco de á gua no rosto e no pescoço, sentindo o alı́vio
refrescante em minha pele, fecho a torneira e puxo um papel para secar
minhas mã os quando ouço um barulho e me viro olhando para todos os
lados.
— Tem algué m aı́? — pergunto para o banheiro supostamente vazio.
Nã o sou uma pessoa medrosa e nem acredito em baboseiras sobre
fantasmas, mas é natural sentir o coraçã o acelerar ao me dar conta de
que estou sozinha em um edifı́cio com quase 100 anos de idade.
— Tem algué m aı́? — chamo mais uma vez enquanto me obrigo a
caminhar até as cabines empurrando as portas, talvez alguma aluna
engraçadinha esteja tentando me assustar, ou pior, algué m pode estar
precisando de ajuda.
A segunda opçã o começa a se tornar mais pró xima da verdade
quando ouço um som, é um choramingo baixo, como se algué m
estivesse tentando nã o fazer barulho. Entã o meu coraçã o, que a essa
altura está começando a decidir que, talvez, eu deva dar mais atençã o
as histó rias que ouço, acelera quando me dou conta de que o som que
ouço nã o é um choramingo.
Coloco a mã o na boca, chocada com o que estou ouvindo, na ú ltima
cabine do corredor, há duas pessoas e, pelos sons que começam a icar
mais nı́tidos, nã o estã o chorando.
Deus do cé u...
Há duas pessoas transando no banheiro da escola e eu nã o faço
ideia de quem seja. E se for dois professores? E se forem duas
professoras? Há boatos de que a professora de nataçã o e a de mú sica
tê m icado até mais tarde, mas sexo no banheiro? Sé rio?
Me afasto, envergonhada por estar presente em uma cena tã o
ı́ntima, estou preparada para ir embora e apagar isso da minha mente,
nã o quero nem pensar na pró xima vez em que as ver juntas na sala de
reuniõ es.
Mas entã o ouço um som, um gemido, um pouco mais alto dessa vez,
que me faz pensar que talvez nã o sejam duas mulheres, olho
novamente para a porta, com uma sensaçã o ruim na boca do meu
estô mago enquanto tento nã o pensar no motivo para que eu sinta que
conheço esse som, já o ouvi antes, em meu ouvido, em um beco escuro
em uma noite sem nomes.
Começo a me afastar da cabine, como se soubesse que ali dentro há
um monstro, os fantasmas de que tanto se falam, algo terrı́vel capaz de
me assombrar para o resto da minha vida.
Talvez sejam esses os mais assustadores fantasmas.
Tropeço em uma lixeira, ouço risos vindos da cabine e minha
garganta se fecha com constrangimento. Preciso sair daqui, nã o quero
que ele me veja, mas, antes que eu possa sequer me afastar da
montanha de papel sujo que se espalhou pelo chã o, a porta da cabine se
abre e Cindy sai de dentro, arrumando a microssaia.
— Oi, pro, fazendo hora extra? — Ela ergue os cabelos no topo da
cabeça formando um coque enquanto olha para mim sem nem um
pingo de vergonha por ter sido lagrada.
— O que você está fazendo aqui a essa hora? — Cruzo os braços na
frente do peito em uma postura que espero que seja vista como adulta e
autoritá ria, mas que, na verdade, é apenas uma forma de nã o
demonstrar como me sinto.
— Foi mal, pro. Achei que já tinham ido embora — Cindy responde,
com a voz cheia de deboche enquanto passa por mim.
— Amanhã a gente conversa sobre isso, agora eu quero que você vá
direto para sua casa, vou saber se nã o for.
Cindy revira os olhos e sorri, sabendo que nã o tenho autoridade
alguma sobre ela e sai, o barulho da porta sendo fechada ecoa no
corredor silencioso, entã o olho para a cabine e por um instante penso
que talvez eu tenha me enganado, ela poderia estar sozinha, fazendo
sabe lá o quê .
Mas meus pensamentos nã o duram muito, porque a porta se abre e
entã o eu o vejo.
— O que você pensa que está fazendo? — pergunto, a raiva que
sinto manté m minha voz forte e inabalada enquanto encaro o garoto
arrogante que um dia me fez acreditar que algo de bom poderia
acontecer entre nó s.
Nuno sorri, um sorriso torto, sexy e bonito demais para algué m que
nesse momento odeio, ele passa a mã o nos cabelos tentando controlar a
desordem que provavelmente minha aluna fez poucos minutos atrá s
neles.
Ele se aproxima de mim, com seus olhos ixos nos meus enquanto
caminha lentamente em minha direçã o, e, sem que eu possa evitar, meu
corpo se empertiga em antecipaçã o.
Tento nã o notar que sua camisa está um pouco aberta e que ele tem
um vergã o no pescoço, mas é como nã o notar a chegada de um meteoro,
aquecendo e destruindo tudo a sua volta.
Nuno chega bem perto, sua altura me faz erguer o rosto quando ele
para na minha frente, abro a boca para repreendê -lo, mas nã o consigo
falar quando noto que ele está se inclinando sobre mim, seu rosto se
aproximando do meu, pouco a pouco, roubando todo o ar a nossa volta,
deixando-me zonza e sem reaçã o.
— Sexo — ele responde, de um jeito que faz com que eu me pareça
com uma garotinha inexperiente e nã o a professora que deveria ser.
— O quê ? — Minha voz sai como um sussurro fraco e humilhante
dos meus lá bios.
— Você perguntou o que eu estava fazendo. — Ele se inclina um
pouco mais e me afasto apoiando meu corpo contra a parede atrá s de
mim, Nuno alcança a lixeira ao meu lado e joga a camisinha usada fora,
em seguida ele abre a torneira e lava as mã os, o tempo todo
sustentando o meu olhar e um sorriso arrogante nã o sai dos seus lá bios
vermelhos e inchados.
Ele estende a mã o e puxa um papel, seca grosseiramente as mã os e
arremessa a bola, que cai graciosamente na lixeira ao meu lado.
— Boa noite, professora. — Ele pisca para mim enquanto sai e só
quando a porta se fecha deixando-me sozinha aqui dentro é que
percebo que eu nã o estava respirando.
Estou terminando de guardar minhas coisas quando ouço a porta se
fechar bruscamente me fazendo dar um pulo.
— O que... — começo a falar, mas paro no meio da frase. Um Nuno
furioso caminha a passos largos pela sala vazia até parar na minha
frente.
— O que diabos tem na porra da sua cabeça? — ele esbraveja.
— Em primeiro lugar, controle o seu tom ao falar comigo — digo,
erguendo o rosto para olhar para ele.
— Foda-se o meu tom, você nã o tinha o direito de fazer isso.
— Se você nã o for mais claro, nã o poderei ajudá -lo, tenho cento e
vinte e trê s alunos nessa escola, caso você nã o saiba.
— A Cindy nã o tem nada a ver com isso. Se queria se vingar, que
fosse comigo, nã o com ela.
— A Cindy? Por acaso está se referindo ao sexo na cabine do
banheiro da escola? — Cruzo meus braços na frente do peito em uma
postura imponente. — Porque se for, tenho certeza de que ela tem sim
muito a ver com isso.
— Você arrumou um problema para ela.
— Eu nã o, você arrumou. — Aponto o dedo em seu peito sentindo o
sangue começar a ferver em minhas veias com a forma como ele está
tã o irritado por eu ter denunciado eles. O que ele esperava de mim? Que
eu fosse conivente com isso?
— Nã o seja cı́nica, Stella.
— Cı́nica? Sé rio? Você acha mesmo que pode entrar aqui e falar
comigo nesse tom porque ouviu umas verdades na sala do diretor?
Fique feliz por ter sido encontrado por mim, se fosse outro professor
seus pais teriam sidos chamados ontem mesmo. Agora, com licença que
nã o tenho tempo para icar aqui discutindo com alunos.
Recolho minhas coisas e começo a me afastar em direçã o a porta.
— Você quer me enlouquecer? — ele pergunta, ainda irritado, o tom
de voz perigosamente alto.
Nã o respondo, continuo andando, rezando para que ningué m possa
ouvir essa conversa totalmente descabida entre uma professora e seu
aluno.
— E isso, nã o é , você está brincando comigo, me dando migalhas,
me tocando, dizendo que pensa em mim, para depois me dizer que
nada vai mudar e me chutar igual a um cachorro.
— A ú nica coisa que eu quero de você , Nuno Castro D’Agostinni, é o
trabalho que pedi na minha mesa na data certa, só isso. — As palavras
duras queimam minha garganta.
— O que você pensa que eu sou? — Sua pergunta carrega uma dose
de má goa que tento ignorar.
Seja forte, Stella, seja forte.
— Nã o importa o que eu penso ou nã o. — Viro-me para olhar em
seu rosto desolado e sei que é uma pé ssima ideia dar continuidade a
essa conversa, eu deveria apenas sair e deixar ele achar o que quiser a
meu respeito, mas nã o consigo. Droga, eu nã o consigo e isso é horrı́vel.
— Isso nã o tem nada a ver com o que aconteceu entre a gente, eu sou
sua professora e é o meu dever...
— Para o inferno o seu dever, para com isso, Stella. — Ele para bem
na minha frente, me encarando com raiva, dor, tristeza. — Para de
ingir, porra. Você nem ao menos consegue responder a minha
pergunta. — Ele segura meus braços, tocando minha pele, me fazendo
olhar dentro dos seus enormes e tristes olhos verdes.
— Nuno, se afaste! — exijo sem desviar o olhar e ele me solta
imediatamente, passando os longos dedos pelas mechas desordenadas
do seu cabelo.
— Você quer me enlouquecer, é isso.
— Eu apenas iz o que era meu dever como adulta e como sua
professora.
— Para de brincar que nã o se importa, porque eu sei que se
importa, por mais que tente lutar contra essa merda toda, eu sei, eu vi.
— Nuno... — peço, mas minha voz começa a falhar quando ele se
aproxima.
— Eu vi a forma como você olhou para mim ontem. — Caminho
para trá s, deixando uma distâ ncia maior entre nó s, mesmo sabendo que
se algué m entrar aqui, nã o vai importar se ele está na minha frente ou
do outro lado da sala, a tensã o que emana dessa conversa nã o condiz
com nossas posiçõ es. — Eu vi, Stella.
— Você está enganado — digo, mas nem mesmo eu consigo
acreditar nas minhas palavras, elas parecem fracas demais.
A verdade é que ele tem razã o, eu me importo, nã o deveria, mas me
importo, e isso está me matando. Mal dormi essa noite, enquanto me
torturei com imagens, sons, suposiçõ es, pesadelos... uma agonia sem
im me impediu de fechar os olhos. E, quando tentava, era o rosto
satisfeito dele que surgia em minha mente, o gemido rouco que ele
produziu enquanto transava com aquela garota. A forma como ele
sorriu ao passar por mim, como se estivesse satisfeito em me machucar.
E me machucou tanto, que perdi a cabeça.
E quando entrei na sala do diretor hoje pela manhã , mais cedo que o
comum, nã o tive orgulho algum ao descrever a cena que presenciei na
noite anterior, e quando saı́, ciente das puniçõ es que eles levariam, meu
coraçã o ainda nã o batia satisfeito, porque, no fundo, ele tem razã o, eu
me importo. Tanto que, nesse momento, estou envergonhada, mesmo
sabendo que o que eu iz foi o certo, porque eu sei que estava me
vingando do garoto que mandei embora da minha vida, que disse com
todas as letras que nã o o queria. Eu me vinguei e, quando vejo a agonia
em seus olhos, nã o me sinto orgulhosa disso.
— Entã o olhe para mim, Stella. — Ele se aproxima ainda mais, tã o
perto que ica difı́cil respirar com seu aroma de garoto arrogante a
minha volta. — Olhe para mim e diga que você nã o icou louca de
ciú mes.
Rio, um riso engasgado, nervoso e cheio de ira.
— Você é mesmo muito convencido, garoto.
— Sou realista, eu sei o que estou falando — ele diz, mas sua voz
nã o parece a de algué m que acredita nisso.
— Lamento ferir o seu enorme ego adolescente, mas está enganado.
O sorriso torto e arrogante se espalha por seu rosto, odeio esse
sorriso, odeio a forma como ele me envolve, me fazendo enfraquecer
nas minhas escolhas.
— Entã o olha nos meus olhos, Stella. — Ele se inclina um pouco
mais. — Me diz que nã o passou a noite inteira se imaginando naquela
cabine com o adolescente aqui, gemendo meu nome enquanto eu metia
fundo em você . — As ú ltimas palavras sã o sussurradas em meu ouvido
e meu corpo traidor reage de uma forma quase humilhante.
— Afaste-se de mim agora. — Uso toda a minha autoridade e
minhas forças para falar, porque nã o sou mais capaz de me manter tã o
perto dele.
— Admita e eu me afasto — ele provoca.
Espalmo minha mã o em seu peito, aumentando a distâ ncia entre
nó s, Nuno desce o olhar para a minha mã o, como se eu estivesse
fazendo algo errado e, pela forma como ele sorri, está satisfeito com o
que vê . Tento tirá -la, mas ele a segura no lugar, com sua mã o quente e
forte.
— Quer saber a verdade, Stella? — ele diz enquanto seu polegar
acaricia as costas da minha mã o. — Eu passei a noite inteira sonhando
com você , a porra da noite inteira.
Puxo minha mã o para longe, sentindo as suas palavras me
desestabilizarem.
— A Cindy sabe disso?
— A Cindy nã o tem nada a ver com isso. Nosso lance é apenas sexo.
— O nosso lance? Uau! Agora está tudo explicado — ironizo e me
afasto, mas ele entra na minha frente novamente. — Eu preciso ir, nossa
conversa acabou.
— Eu nã o sou um canalha, Stella, eu jamais magoaria uma garota.
— Nossa, que bom saber, nã o foi o que pareceu ontem, nem o que
está parecendo agora.
— Eu nã o sabia que você ainda estava aqui.
— Eu trabalho aqui, as chances de que eu os visse eram grandes.
— Eu nã o sabia, juro pelo meu irmã o. Eu jamais faria algo para te
magoar.
— Nã o me magoou — minto ignorando o fato dele ter citado o
irmã o morto.
— Claro, a inal de contas, sou só um moleque para você .
— Você é o meu aluno, assim como a Cindy.
— Por que você torna tudo tã o difı́cil?
— Porque algué m tem que ser o adulto consciente aqui.
— No caso é você ?
— Claro que sou eu — rea irmo.
— Certo. — Ele dá alguns passos para trá s e passa a mã o na nuca
antes de voltar a falar: — Eu tô cansado desse joguinho, de me rastejar
aos seus pé s igual a um cachorro, de ser rejeitado e, mesmo assim,
passar todas as noites de pau duro pensando em você . Eu devo ter
algum problema, só pode. — Ele ri enquanto encara o teto, parecendo
cansado, envergonhado.
— Nã o, Nuno, você nã o tem problema algum, isso se chama
frustraçã o, vai passar. A Cindy vai te ajudar.
Dou alguns passos e coloco a mã o na maçaneta, estou prestes a girá -
la, quando sinto meu corpo ser pressionado, o corpo grande dele atrá s
do meu, sua respiraçã o em meu ouvido, sua mã o irme em minha
cintura.
— E esse o nome que você dá ao que fez na noite passada pensando
em mim, Stellinha. — Seus dedos passeiam por minha costela, a
excitaçã o diminui minha capacidade de pensar, de respirar. — Entã o
estamos os dois frustrados, mas só você pode resolver isso.
Ouço o barulho das pessoas caminhando pelo lado de fora do
corredor e do meu coraçã o explodindo no meu peito. Fecho os olhos,
buscando em algum lugar dentro de mim, coragem para afastá -lo,
quando tudo o que eu quero é me virar e gritar que odiei vê -lo com
aquela garota, que imaginar outra pessoa tocando-o dó i tanto que mal
consigo respirar e depois beijá -lo, até que seus lá bios se fechem para
qualquer outra mulher.
— Me peça, Stella, e eu nunca mais toco em uma garota, só pedir e
eu sou inteirinho seu — ele sussurra em meu ouvido como se pudesse
ouvir meus pensamentos e meu coraçã o grita para que eu peça. — Uma
ú nica palavra e sou seu.
Seus dedos se aproximam da lateral do meu seio, mas nã o me tocam
e, antes que eu possa sequer pensar em algo, a maçaneta se move, como
um lembrete de que o que estamos fazendo é errado, imoral, sujo. E o
su iciente para que eu volte a razã o.
— Melhor você se apressar, ou vai perder a pró xima aula — digo me
afastando dele. — Tenha um bom dia, Nuno, a gente se vê na semana
que vem. — Abro a porta e esbarro em uma aluna do primeiro ano, ela
sorri e peço desculpas, ainda estou completamente desorientada
enquanto caminho em direçã o a pró xima aula, desejando de verdade
poder sair dessa escola, dessa cidade. Dessa frustraçã o insuportá vel
que é desejar algué m que nã o posso ter.

Cumprimento a bibliotecá ria e vou para uma das mesas de trabalho,


pego um café em uma das má quinas espalhadas pela biblioteca e
escolho a mesa mais isolada de todas para me sentar, nã o tenho fome,
nem mesmo consigo me concentrar em ler nada, tudo o que eu mais
queria era poder desaparecer desse lugar, voltar para o mundo real,
onde as pessoas sã o classi icadas por seu cará ter e nã o por sua conta
bancá ria.
Onde os adolescentes nã o mexem com o meu imaginá rio, onde um
garoto arrogante e irritante nã o faz meu coraçã o perder as batidas com
suas palavras sujas.
Maldito Nuno.
Ouço o barulho de passos, mas nã o me viro para ver quem é , seja lá
quem for, estou no meu horá rio de almoço e nã o quero conversar com
ningué m. Ainda sinto meu corpo tremendo com a conversa que tive
com Nuno hoje mais cedo. Se é que aquilo pode ser chamado de
conversa.
A pessoa se aproxima e para ao meu lado, estou prestes a mandá -la
embora quando ergo o rosto e sorrio aliviada ao notar quem é .
— Maddie.
— Oi, professora, se importa? — Ela aponta para a cadeira a minha
frente.
— Claro, pode se sentar.
A garota gentil e delicada, apaixonada por romances e que cuidou
de mim quando eu estava doente, se senta e, pela primeira vez no dia,
nã o me sinto mal na presença de uma pessoa.
— Como você está se sentindo? — Ela junta as mã os na mesa,
nitidamente nervosa e nã o tenho certeza sobre o que está falando.
— Estou bem — minto porque nã o faz sentido dividir meus
sentimentos com ela.
— Eu estou aqui para você , sei que talvez você nã o queira, mas caso
precise conversar... — ela ergue os ombros e sorri — você tem meu
nú mero.
— Obrigada, Maddie, mas nã o posso tirar você do seu grupo de
amigos e te encher com meus problemas de adulto.
— Qual é , Stella, nã o me trate como se eu fosse uma criança, é
ofensivo.
— Me desculpe, nã o foi minha intençã o.
— E eu nã o tenho um grupo de amigos, mal suporto a metade dos
alunos dessa escola e a outra metade nem sabe que eu existo.
— Acho que tem um rapaz que sabe.
Maddie ica vermelha e sorrio feliz com a simplicidade de poder
amar sem culpa.
— O que quero dizer é que vou adorar ser sua amiga, se você nã o se
importar.
— Você se importaria em ser amiga da sua professora?
— Eu já sou considerada esquisita por trocar festas por livros, nã o
tem como piorar. — Ela ergue os ombros e sorrimos.
— Entã o, será um prazer ter uma amiga tã o gentil e inteligente
como você .
— E nã o se esqueça de que sei fazer uma sopa incrı́vel.
— Acredite, nunca vou esquecer.
Maddie mexe nas contas de sua pulseira, como se estivesse
arrumando a melhor forma de dizer o que realmente veio aqui para
falar.
— Sabe, o Nuno é um bom menino.
— Foi ele quem pediu para que você viesse aqui me falar isso?
— Claro que nã o, Nuno cortaria um braço fora antes de pedir ajuda
a algué m. — Ela revira os olhos e sorri. — Mas você sabe, ele está
prestes a enlouquecer com tudo isso.
— Eu lamento por tudo, mas nã o posso mudar nada — digo, mas
Maddie nã o parece acreditar em mim.
— Ele é um bom menino de verdade, por favor nã o acredite em tudo
que ele fala ou no que dizem. Aqui gostam de rotular as pessoas com o
que elas enxergam por fora, é trabalhoso demais ver o que tem atrá s da
fachada.
— Compreendo a sua dedicaçã o em limpar a barra do seu amigo,
mas eu realmente nã o tenho nada a ver com o temperamento dele, o
Nuno extrapolou todos os limites.
— Ele está chateado demais, Stella. Desde o ocorrido com o Enzo,
ele tá insuportá vel e você nã o tem ideia do que ele tem passado.
— Talvez ele deva conversar com a Cindy, eles parecem se dar muito
bem. — Assim que termino de falar quero me matar. Qual a necessidade
de deixar o meu ciú me dominar minhas palavras? Por que nã o consigo
icar calada quando o assunto é Nuno?
— A Cindy? Acredite em mim, nã o é como você está pensando.
— Como disse, nã o é da minha conta. — Odeio parecer grosseira
com ela, mas preciso mudar de assunto ou vou começar a choramingar
minhas frustraçõ es com minha aluna.
— Posso te pedir um favor? — Maddie pergunta.
— Claro, o que você quiser.
— Nã o desiste dele.
— Um professor nunca desiste dos seus alunos.
— Por favor, Stella, nã o me subestime.
Ergo os olhos para garantir que estamos sozinhas, meu coraçã o
acelera e penso ter ouvido errado, ela nã o pode estar falando o que
acho que está . Nã o é possı́vel.
— Como?
Maddie revira os olhos impaciente com a minha pergunta.
— Eu sou mais inteligente do que parece, sei o que tá acontecendo,
alé m do mais, aquela noite quando ele voltou da sua casa, ele acabou
contando.
— O que ele contou?
— Nã o muito, mas nem precisava. O Nuno tá diferente.
— Diferente como? — pergunto, como se eu precisasse de mais
motivos para tornar a minha vida nessa escola um inferno.
— Desde que você chegou, ele tem estado mais agitado, estressado e
aé reo. Quando você entra na sala, ele muda. E como se um holofote se
acendesse diante de você e ele mal respira durante a sua aula.
— Por que você acha que eu tenho algo a ver com isso?
— Conheço o Nuno desde criança, e posso garantir que já vi ele com
muitas garotas, mas nunca o vi olhar para ningué m como ele olha para
a professora.
— Você disse bem, sou sua professora, nada mais do que isso.
— Sim, eu sei e ele també m sabe, mas isso nã o signi ica nada, a
gente nã o manda nos sentimentos.
— Eu nã o tenho nada para oferecer a um adolescente.
— Você se engana, Stella, você tem tudo o que ele precisa nesse
momento.
Sei que estou cometendo um erro, essa conversa nã o poderia estar
acontecendo, mas estou exausta de me sentir sozinha e nesse momento
preciso dividir um pouco das minhas angú stias, mesmo que seja com
uma adolescente.
— Eu nã o posso, você me entende?
— Mas você quer, nã o é ?
— Isso faz alguma diferença?
Maddie abre um sorriso enorme, o maior de todos que já vi essa
garota tı́mida e astuta dar.
— Isso faz toda a diferença do mundo.
O sinal toca avisando que o horá rio do almoço deles terminou,
Maddie se levanta com um sorriso de quem tá aprontando alguma
coisa.
— Obrigada pelo papo, é sempre muito bom conversar com você .
— Obrigada.
— Ah, e nã o se esqueça, você nos prometeu um jantar. — Ela pisca
para mim e sai me deixando sozinha novamente, ainda falta mais uma
hora até que eu precise voltar. Entã o uso esse tempo para fazer o que
uma amante de livros mais gosta de fazer: sonhar.
Morar em uma cidade pequena signi ica nã o ter muitas opçõ es de
lazer, principalmente quando se é jovem. Nã o há vida noturna, nem
mesmo um shopping ou um cinema, tudo ica nas cidades vizinhas o
que para mim é o mesmo que sair da minha casa para assistir TV na
casa do vizinho, que, no meu caso, é o Ivan. Ou seja, um saco.
Mas eu preciso sair um pouco, dirigir, sentir o vento no meu rosto,
agir como um adolescente, extravasar a frustração que sinto desde o dia
em que ela me deixou naquela sala de aula completamente rendido,
como o grande idiota que sou.
De novo...
Vai passar, Nuno...
Essas foram as palavras que me izeram sair de casa em um sá bado
chuvoso, depois de uma semana inteira trancado, comendo, dormindo e
pensando um monte de merda que nunca vã o me levar a lugar algum.
Vai passar...
Estou insuportavelmente frustrado, irritado, cansado e de pé ssimo
humor, sou a pior companhia nesse momento e mesmo assim, ainda
estou aqui, na porra de um shopping lotado de pessoas, crianças e
barulho.
Que maravilha!
— Dá pra você arrumar essa cara? — Ivan en ia uma pipoca em
minha boca enquanto sorri e começo a achar que Cindy tem razã o. Ivan
vive em outro mundo. Só pode.
— Acho que já endureceu, nã o tem mais como arrumar, se ele sorrir
vai trincar como aqueles bonecos de cera. — Maddie, a responsá vel por
eu estar aqui, diz e recebe um olhar que poderia parti-la no meio caso
eu tivesse esse dom.
— E saudade da escola — Levi, o pau-mandado dela, me provoca e
sinto um rosnado se formar em minha garganta.
— O combinado era ver um ilme e eu iz o que você s pediram.
— Você reclamou o ilme inteiro — Ivan fala de boca cheia.
— Era ruim.
— Nada que tenha a Gal Gadot é ruim, absolutamente nada — meu
amigo continua. — Eu levaria um tiro por aquela mulher.
— Eu adoraria que você levasse, assim calava a porra da boca —
resmungo e eles riem, eu devo ter me tornado um piadista e nã o tô
sabendo porque tudo o que eles fazem desde que chegamos aqui é rir.
— A poltrona e a comida també m estavam ruins, Nuno? — Maddie
pergunta parecendo se divertir à minha custa, ela era mais legal quando
parecia a garota tı́mida e invisı́vel. Ao menos, nã o enchia meu saco.
— Ruim també m. — Apoio o rosto no meu punho enquanto observo
um garoto idiota correndo atrá s de uma bola de ar, deve ser um treino
para quando crescer se tornar idiota e correr atrá s de mulheres.
Parabé ns, pais, você s estã o fazendo um excelente trabalho.
— Cara, você nem se esforçou. — E a vez do Levi e ele está icando
bem corajoso, tenho que admitir.
— Eu nã o disse que iria me esforçar, eu disse que viria e você s me
disseram que seria rá pido. — Olho para o reló gio e bufo. — Que
caralho, já estamos aqui há quase quatro horas — justi ico meu mau
humor, mas a verdade é que Levi tem razã o, nã o quero me esforçar.
Quero Stella, na minha cama, debaixo de mim, suas pernas elegantes
em meu quadril, quero ela gemendo meu nome, implorando por meu
pau, quero ela dizendo que me quer, desesperadamente, que nã o
consegue dormir à noite porque nã o para de pensar em mim.
Quero ela sofrendo, assim como estou.
Merda, tantas mulheres no mundo... eu fui escolher logo a ú nica que
nã o posso ter para desejar, a ú nica que olha para mim como se eu fosse
um inseto insigni icante e descartá vel.
Porra de vida.
— A culpa foi do Ivan que inventou de chamar a Cindy — Levi diz.
— Agora temos que esperar ela comprar metade do shopping —
Maddie resmunga revirando os olhos. — E você s nem foram obrigados
a icar escolhendo maquiagem com ela.
— També m nã o entendi por que ela está aqui, todo mundo sabe que
a Cindy adora essa merda de lugar, isso aqui é tipo a Disney para ela —
digo sentindo meu humor piorar a cada minuto que passa.
— Ela estava lá em casa, me viu saindo e quis saber para onde, o que
queriam?
— Que você mentisse? — Maddie provoca.
— Que nã o trouxesse ela — digo.
— Ele nã o faria isso — Levi, o corajoso, provoca ainda mais.
— Qual é ? A Cindy é nossa amiga, porra, por que eu a deixaria para
trá s? — Ivan, o banana, se defende e meu saco está prestes a estourar,
entã o me calo.
Maddie olha para mim, com o ar de reprovaçã o estampado em seu
rosto. Ela sabe o que tá rolando entre mim e a Cindy e nã o faço ideia do
porquê , à s vezes acho que Madalena é algum tipo de bruxa porque ela
parece saber de tudo.
Ela nã o acha certo o que estamos fazendo e, sinceramente, nã o dou
a mı́nima para o julgamento das pessoas, nã o sou o primeiro e nem
serei o ú ltimo cara do mundo a fazer sexo casual com uma amiga.
Ningué m entende o nosso acordo, mas tudo está muito claro entre
nó s, ela sabe que estou fodido e eu sei que ela está me usando, nã o
pergunto o motivo. Na boa, mal tô dando conta das minhas merdas, mas
já disse a ela que estou aqui, caso ela precise de algo mais do que meu
pau.
Por enquanto ele tá fazendo um bom serviço.
Estar com Cindy me deu algo no que pensar alé m da obsessã o
doentia que estava desenvolvendo por Stella. Depois do que aconteceu
com Enzo percebi o perigo que ela está correndo e, depois da nossa
conversinha na sala, vi como estou descontrolado emocionalmente.
Nunca me senti assim antes, nunca estive na posiçã o de implorar
nada para uma mulher e sinto como se isso me desestabilizasse, Stella
desconecta todos os ios da minha sanidade, isso nã o pode ser bom
para ningué m, principalmente porque nã o é como se ela estivesse na
mesma.
Ela me quer, eu sei disso. Ainda ouço o eco da sua voz me dizendo
que todos os dias ela se veste para mim, que pensa em mim e nã o me vê
como aluno, ainda relembro a forma como ela me olhou quando me viu
saindo daquela cabine, quando tudo o que eu queria era poder
desaparecer, a forma como seus olhos caı́ram em minha camisa aberta,
com a dor da decepçã o nublando o brilho deles.
Nã o sou louco, eu sei que ela me quer, mas ela é mais contida, mais
ciente das coisas que estã o em risco e para mim saber disso nã o basta,
eu preciso de mais, preciso dela, e do jeito que eu estava, só podia
terminar de um jeito.
Stella demitida e escorraçada da cidade e minha frustraçã o me
fazendo perder a cabeça.
Ivan nã o diz nada, para dizer a verdade nem sei se ele sabe. Sempre
que Maddie começa a falar, ele dá o fora, como se o assunto o
incomodasse de alguma forma. Ele anda irritado e calado, coisas que
nã o condizem muito com o seu temperamento, e hoje é a primeira vez
em dias que o vejo sorrir, sei que estou sendo um amigo de merda, sei
que Ivan tá com algum problema, mas nã o consigo fazer ele conversar
comigo, geralmente um de nó s está irritado demais para isso e nã o
tenho condiçõ es de brigar com mais ningué m, principalmente ele.
A verdade é que eu preciso dele, mais do que é humanamente digno
de admitir. Ivan é meu irmã o, meu companheiro, meu melhor amigo e
saber que ele está ao meu lado, mesmo que nã o diga nada, me ajuda a
nã o enlouquecer.
— Você tem razã o, a gente nã o deixa ningué m pra trá s — admito me
sentindo um bosta por estar tratando meus amigos dessa forma.
— Nem mesmo a Cindy — Ivan completa, com seus olhos claros me
encarando por baixo das mechas loiras.
— Nem a Cindy — bufo e todos riem.
E, eu de initivamente virei um piadista.

— Quer conversar? — Cindy pergunta ainda deitada, nua em minha


cama, enquanto analisa suas unhas.
Se a quantidade de vezes que estamos transando for proporcional
as merdas que estamos carregando, posso garantir que nossa grande
ideia nã o está ajudando nenhum dos dois.
— Nã o, tô de boa. — Retiro o cigarro da sua boca e coloco na minha.
— Tem certeza? Hoje você está mais calado que o normal.
— Eu fui muito grosso com você ? — Olho para seu rosto sentindo
uma pontada de culpa ao me imaginar machucando-a de alguma forma.
Sei que estamos nos usando, mas eu seria capaz de cortar minhas bolas
fora antes de fazer algo que ela nã o queira.
— Nã o, você foi ó timo. — Cindy se senta ao meu lado puxando o
lençol para cobrir seus seios. — Eu só senti você um pouco mais tenso.
— Nã o é nada que você possa se preocupar. — Solto a fumaça no ar
e ico observando-a se mover de um lado para o outro até desaparecer.
— E a Stella, né ? — ela pergunta com tanta naturalidade, que me
viro para observar seu rosto.
— Por que está perguntando isso? — odeio o quanto minha voz soa
mais alta, mesmo que eu tente evitar.
— Eu vejo a forma como ela te olha. Eu vi o jeito que ela estava no
banheiro.
— Nada a ver, ela só icou chocada como todos os outros
professores.
— Nã o era choque, era má goa, eu poderia apostar que ela chorou.
— Nã o fala merda, nada a ver — digo sentindo meu peito se
comprimir ao imaginar Stella chorando.
— E outro dia você falou o nome dela — ela diz sem nenhuma
má goa, ao contrá rio, há até mesmo um sorriso em seus lá bios.
— Disse nada, você está me zoando.
— Disse sim, aquele dia, na piscina.
— Merda! — Tiro o cigarro da boca e coloco no cinzeiro, esfrego o
rosto sem saber como explicar algo para ela, sei que nã o devo nenhuma
satisfaçã o, mas nã o sou um canalha. — Eu estava bê bado.
— Nã o estava nã o.
— Porra, Cindy, por que nã o me deu um chute no saco? — Me sinto
envergonhado e chateado. — Desculpe, eu nã o deveria ter feito isso.
— Relaxa, Nuno, nó s dois sabemos que isso aqui é só um quebra
galho.
— Nunca disse isso de você .
— Eu sei, você é incrı́vel e eu amo ser a garota que está aqui, mas foi
bom saber o motivo do seu comportamento, estou preocupada.
— Nã o precisa, eu estou bem.
— Você nã o está bem e, sinceramente, eu acho que ela també m nã o
está . Ela sabe?
— Do que você está falando.
— Ela sabe o que você sente?
— Sabe — admito porque se estamos nessa relaçã o, nã o há motivos
para mentir para ela.
— E ela també m te ama?
Amar? Que piada, ela sequer se importa comigo, para ela sou apenas
um moleque vivendo uma paixonite regada a hormô nios.
— Amor? De onde você tirou isso?
— Eu te conheço, Nuno, e sinto, quando estamos juntos, que nã o é
comigo que você gostaria realmente de estar. E como se você estivesse
tentando apagar algo com esse sexo bobo que estamos fazendo, mas a
verdade é que nã o está ajudando.
— Eu posso dizer o mesmo de você , isso signi ica que você ama
algué m?
Ela desvia o olhar, seu rosto enrubesce e me surpreendo com a
verdade estampada bem na minha frente.
— Ah, porra, você tá trepando comigo para foder a cabeça de
algué m, nã o é ?
— Claro que nã o.
— Eu o conheço? Por favor, diz que nã o.
— Nã o seja idiota, Nuno, se nã o quer falar da sua professora tudo
bem, mas nã o venha jogar pra cima de mim. — Ela se levanta afastando
o lençol e começando a vestir suas roupas.
— Desculpe, eu nã o quis te irritar, mas é que vai ser estranho se eu
conhecer o cara. — Volto a pegar o cigarro e trago. — Se for algum cara
legal, a gente vai ter que parar, Cindy, nã o vou fazer isso com algué m
que eu conheço.
Ela me olha feio e ergo as mã os em defesa.
— E uma garota? Pode chamá -la da pró xima vez — brinco.
— Vai se foder.
Cindy joga o travesseiro em cima de mim e caio na gargalhada.
A vida é mesmo muito louca, Cindy Fontainelles, a garota mais fria
de Monte Mancante, está apaixonada.
Pelo jeito, nã o sou o ú nico a nã o saber lidar com essas merdas do
coraçã o.

Mais uma semana inteira se passa, mais uma semana sem ver Stella,
sem ouvir sua voz, sem observar a forma como ela se move diante dos
seus alunos, como uma bruxa seduzindo a todos com sua voz, com seu
amor pelos livros, com seu sorriso lindo e sua beleza estonteante. Uma
semana em que preferi ir ao inferno, em que suportei trabalhar com
meu pai do que ceder à s minhas fraquezas, em que lutei contra mim
mesmo para nã o mandar uma mensagem ou perguntar se estava tudo
bem com ela.
Eu sei que está .
Graças a Maddie, que teve piedade da minha situaçã o e me manté m
informado, todos os dias, mesmo que eu nã o pergunte. Ela apenas me
liga, ou manda mensagem para saber como estou, entã o começa a falar
sem parar até que entã o, como quem nã o quer nada, me conta algo
sobre ela.
Maddie e Stella tê m se tornado pró ximas, mesmo contra todas as
probabilidades, aluna e professora, amigas, mas essa é a Madalena, a
garota sensı́vel que parece enxergar a alma das pessoas.
Quando entro na sala, uma semana depois, a aula já começou, Stella
está de pé , lendo um trecho do livro que estamos trabalhando, paro na
porta e ouço sua voz, é como respirar depois de muito tempo imerso na
á gua, sinto meu corpo inteiro reagir a ela, a sua beleza, a sua gentileza,
a seu sorriso.
— Bom dia, Nuno, seja bem-vindo de volta — ela diz quando nota
que ainda estou na porta, ingindo ser a professora e nã o a responsá vel
por me fazer perder a cabeça. Nenhum pedido de desculpas por ter me
mandado embora mais uma vez, nem um “senti sua falta”, nem mesmo
um olhar de caridade.
Nada.
— Obrigado — me obrigo a dizer.
— Pode entrar. — Ela estende a mã o para a sala e faço o que ela
manda, caminho para o mesmo lugar de sempre, olho para a mesa ao
lado onde Enzo nã o está mais, o desgraçado recebeu uma bolsa de
estudos má gica e a partir do semestre que vem vai para Boston.
Vá com Deus.
Mesmo sabendo que ele nunca mais vai chegar perto dela, sinto uma
agitaçã o ruim ao relembrar aquele dia.
— Entã o vamos abrir no capı́tulo 12. Ana, pode ler até a pá gina 85,
por favor? Em quinze minutos, vamos debater ele.
Sento-me no meu lugar de sempre, mas sinto como se a cadeira já
nã o comportasse mais o meu peso, talvez seja porque nã o sou mais o
mesmo garoto de antes, algo mudou dentro de mim, algo que nã o
consigo controlar.
Ergo meus olhos para a frente da sala, Stella está olhando para mim,
mas desvia assim que nota que notei. Uma semana, muito sexo sem
emoçã o, mau humor, irritaçã o e raiva depois, continuo o mesmo.
Droga, quem eu quero enganar? Nem todo o sexo do mundo, nem
todo o trabalho, nem todo o mau humor será capaz de mudar o que
sinto quando estou na presença dela. E ú nico, inalcançá vel, imutá vel.
Talvez Cindy tenha razã o.
Essa porra que comprime meu peito nã o é normal.
Eu tô mesmo muito fodido.
Uma semana e mesmo assim bastou sentir seus olhos sobre mim
que tudo voltou.
A agitaçã o em meu estô mago, o nervosismo, a palpitaçã o. A certeza
depois do que aconteceu com Enzo, de que eu precisava me manter
longe.
Tudo foi por á gua abaixo no instante em que ele apareceu na porta,
me observando com seus olhos de predador, a mochila no ombro, os
cabelos bagunçados de sempre, tã o bonito que é quase impossı́vel nã o
olhar para ele.
E tã o cruel, algué m proibido nã o deveria ser tã o desejá vel.
Passo a aula inteira evitando seu olhar, sei que estou
completamente fora do normal e imagino se todos conseguem sentir a
diferença, Maddie tem um sorriso româ ntico nos lá bios durante toda a
aula, lembranças das nossas conversas na biblioteca no horá rio do
almoço, dela me dizendo que eu nã o posso desistir dele e que Nuno é
um bom garoto me fazem desejar olhar para ele, mas a todo momento
digo a mim mesma que aqui sou sua professora.
Quando a aula inalmente termina sinto o alı́vio me invadir. A sala é
preenchida com o som das cadeiras sendo arrastadas e dos alunos
começando a encher o corredor. Olho para o fundo da sala, Cindy está
sorrindo de algo que Ivan diz e sinto uma pontada de algo que me
recuso a acreditar que seja ciú me. Quando noto suas mã os sobre o
braço de Nuno, desvio o olhar porque nã o posso sequer pensar nisso,
nã o tenho esse direito.
Eles se levantam, sua mã o toca a cintura dela. Quando ela esbarra
em uma mesa, meus olhos masoquistas acompanham a forma como a
ponta dos dedos dele se encaixam em um pedacinho de pele que está à
mostra. Finjo estar arrumando minhas coisas, mas noto quando eles
começam a deixar a sala, um por um, passando por mim e se
despedindo.
— Nuno, você pode esperar um instante por favor? — pergunto e os
trê s olham para mim como se eu tivesse dito que queria fazer sexo com
ele.
Deus, será que sou tão óbvia assim?
— Precisamos falar sobre as aulas que você perdeu — completo
para que nã o sobre nenhuma dú vida, nem para eles, nem para mim.
— Claro — ele responde, com seus olhos ixos em mim, a lı́ngua
passeando por seis lá bios enquanto aguarda seus amigos seguirem seus
caminhos até a pró xima aula.
— Tchau, pro — Maddie diz erguendo a mã o no ar sorrindo, Cindy
morde o lá bio inferior enquanto analisa o seu... sabe lá Deus o que eles
sã o e sinto minhas bochechas arderem com a ideia de que ela esteja
pensando algo errado.
Baixo o olhar para a minha mesa, ignoro o coraçã o acelerado com a
expectativa de estar a só s com ele, até que ouço o som da porta sendo
fechada. O clic alto de algo errado ecoa pelas paredes e fazem os pelos
do meu corpo se arrepiarem.
Entã o é essa a sensaçã o que as pessoas sentem quando estã o em
perigo? E essa a adrenalina que faz com que encarem situaçõ es
adversas com um sorriso?
Acho que inalmente os compreendo.
Nã o preciso erguer o rosto para saber que estamos inalmente
sozinhos, sinto o seu olhar sobre mim, quente, lento, sedutor, um olhar
que me dominou desde a primeira vez que me viu, que tem o poder de
me hipnotizar, de me fazer esquecer o certo e o errado, um olhar que
ainda será a minha perdiçã o.
— Prontinho, agora sou todo seu — ele diz, com a voz provocante
do garoto que parece saber como me desestabilizar e sinto um frio em
minha espinha com a forma como as palavras tê m um tom sensual.
Ergo os olhos em sua direçã o, ele ainda está na porta, com a mã o na
maçaneta, a mochila nas costas, uma camisa leve e um jeans de
caimento perfeito que fazem ele parecer maior.
— Você está bem? — pergunto ansiosa por saber que estamos
trancados nessa sala, mesmo que isso seja algo comum, acontece o
tempo todo. Todos os dias professores conversam com seus alunos,
perguntam sobre suas vidas, se preocupam.
E totalmente aceitá vel. Normal.
— Por que, sentiu minha falta, professora? — Ele dá aquele sorriso
torto provocante e sinto que foi uma pé ssima ideia, nã o temos
condiçõ es de ter uma conversa civilizada.
— Nã o, só gostaria de saber o motivo para tantas faltas.
— Mas você sabe, sexo no banheiro, lembra?
— A Cindy voltou há trê s dias.
— Eu nã o sou a Cindy.
— E eu nã o serei condescendente com isso.
— Stella, Stella, está preocupada comigo? — Ele joga a mochila ao
lado da porta, como uma barreira entre nó s e o resto do mundo e
começa a caminhar, bem devagarinho. — Meu celular continua o
mesmo, sabia? — Ele cruza as mã os em frente ao peito, com a
arrogâ ncia tã o peculiar em seu rosto. — Se queria tanto saber onde eu
estava, era só ligar.
— Nã o seja ridı́culo, estou tentando ser pro issional. — Encaro os
papé is ainda espalhados em minha mesa.
— Está ? Tem certeza, Stella?
— Já disse que você precisa esquecer aquilo.
— Sim, tô ligado, até porque você pode se masturbar pensando no
moleque aqui, mas nã o pode me ligar para saber como estou porque é
contra as regras, nã o é mesmo, professora?
A força das suas palavras e a forma como elas soam frias e cheias de
má goa me deixa sem ar.
— Achei que já havı́amos passado dessa fase, Nuno — digo sentindo
o coraçã o batendo em meus ouvidos.
— Passamos? Nã o sei, você nunca decide o que quer, uma hora tá
me tocando, como se precisasse de mim; na outra, tá me escorraçando
como se eu fosse um idiota qualquer. Me diz para superar e depois pede
para eu icar aqui nessa sala com você , sozinhos. Você quer me fazer
perder a cabeça, é isso, nã o é ? Você se diverte com a minha agonia.
— Isso nã o é verdade, você nã o sabe como estou me sentindo.
— E, eu realmente nã o sei, quer me contar?
— Nã o.
— Deixa eu adivinhar, você nã o pode.
— Notei hoje como você e a Cindy estavam mais... pró ximos —
desvio o assunto como a boa covarde que sou entrando em seu
joguinho sujo, jogando em sua cara que ele nã o está em agonia como ele
disse.
— E, ela tem sido uma boa amiga, temos trepado bastante.
— Muito maduro seu comentá rio.
— Vamos combinar, nada que eu disse vai mudar sua mentalidade.
— Nã o, nã o vai, mas estou feliz em saber que você s estã o bem —
minto descaradamente, nesse momento estou me sentindo uma idiota
louca de raiva por ele nã o desmentir minhas suspeitas.
— Bom, eu també m. Ao menos algué m aqui está tentando superar
a... como é que você chamou? Ah, lembrei, frustraçã o.
— Nã o tenho nada para superar, acho mesmo que você s combinam,
ela é uma garota incrı́vel e linda.
— E, eu sei, mesma idade e essa merda toda, tô ligado em como você
pensa. Mas, en im, nã o foi para falar sobre as minhas trepadas que você
me pediu para icar, né ?
— Nã o, com certeza nã o, eu pedi para que icasse para
conversarmos sobre seus trabalhos atrasados.
— Que mentira. — Ele sorri e começo a me arrepender de ter
pedido para que ele icasse, é impossı́vel manter um diá logo com ele.
— O que você quer de mim? — pergunto furiosa. — Por Deus, será
que você nã o viu o que aconteceu aqui? Eu quase fui demitida e nem ao
menos iz nada. O que você acha que vai acontecer se souberem que
estou tendo esse tipo de conversa com um aluno?
— E por que você acha que algué m precisa saber de algo?
— Essa é uma cidade pequena, Nuno.
— Acredite, pro, eu sou muito bom em esconder as coisas — Nuno
sussurra, sorrindo torto, dando ê nfase à s suas palavras sujas.
— Voltando ao trabalho... — digo desviando o olhar da sua boca. Ele
se empertiga, como se inalmente estivesse se dando conta do que
estamos fazendo.
— Você tem razã o, entã o vamos logo acabar com isso que eu tenho
que ir para a pró xima aula.
— Sim, claro, eu só ... — Ergo o rosto quando noto ele se aproximar
lentamente, seus olhos nunca deixam de olhar para os meus, cheios de
fú ria. Lindo, tã o lindo que dó i olhar para ele. — Eu separei uns... — O ar
parece ter desaparecido quando ele se inclina sobre a minha mesa e
espalma as mã os na borda.
— Hum... — Ele baixa o rosto. O verde dos seus olhos estã o intensos
sobre os cı́lios longos e escuros, a pele dourada do sol, os lá bios
rosados, provocantes, tã o beijá veis. — O que você estava dizendo,
Stella?
— Eu, é ... — limpo a garganta e obrigo-me a desviar o olhar do seu
rosto me atrapalhando enquanto procuro a pasta que separei com os
relató rios, estendo-a para Nuno, que continua me olhando como se
estivesse se divertindo. — Aqui estã o, você pode me entregar na
pró xima segunda, assim terá o im de semana inteiro para terminar de
ler o livro e fazer os relató rios que pedi.
— Sei. — Ele pega a pasta e joga-a na mesa, ainda sem deixar de
olhar para mim. — Olhe para mim — ele exige e ergo o rosto em sua
direçã o. — Você é uma covarde, Stella.
— Já fui chamada de coisa pior.
— Vai mesmo passar o resto do ano se satisfazendo com
lembranças, quando poderı́amos continuar de onde paramos?
— Isso nã o é coragem, é loucura. — Encaro seus olhos cheios de
raiva, tenho certeza de que, se algué m entrar na sala nesse momento,
poderá sentir a tensã o que nada tem a ver com uma professora e um
aluno.
— E qual o problema de um pouco de loucura na sua vida?
— Eu já tive a minha cota de loucura aquela noite.
— Sé rio? Aquilo foi o su iciente para você ? — Ele se inclina, roçando
seu nariz em uma mecha do meu cabelo. — Porque, para mim, aquilo
nã o foi nem a metade do que eu gostaria de fazer com você — ele
sussurra tã o perto que nã o consigo respirar.
— Agora você tem a Cindy. — Minha voz fraqueja quando sinto o
cheiro dele assim tã o perto.
— Nã o brinca comigo, Stella, eu posso acreditar que você tá com
ciú mes.
— Claro que nã o — sussurro.
— Tem certeza? Porque eu acho que vi você olhando para nó s dois.
— Seus lá bios passam a milı́metros de distâ ncia do meu ouvido.
— Você s sã o meus alunos, nada demais.
— Você ainda se lembra, Stella? — Ele passa a ponta dos dedos por
meu pescoço e estremeço fechando os olhos. — Se lembra de como é
ter eles entre as suas pernas?
Ele se aproxima um pouco mais, os lá bios agora a centı́metros dos
meus, sugando minha sanidade, meu ar, minha razã o.
— Olha para mim, Stella — ele exige e ergo meus olhos encarando
os seus, tã o perto que chega a ser desconcertante assim na luz do dia
olhar para ele. — Você grita meu nome quando goza? — Sua boca está
tã o perto, que sinto seu há lito quente em minha pele. — Diz pra mim,
Stella, você grita o nome do moleque enquanto goza? Você vai fazer isso
hoje à noite? Porque eu vou chamar seu nome quando gozar essa noite,
Stella.
Estou vergonhosamente excitada com as palavras sujas que ele
sussurra em meu ouvido, com seu toque, com seu cheiro. E quase
insuportá vel me manter imó vel enquanto meu corpo clama por ele em
uma espiral de desejo que beira a loucura e, quando balanço a cabeça
con irmando sua pergunta, Nuno respira fundo, como se ele estivesse
aguardando por isso há muito tempo.
— Droga, Stella, eu estou icando louco de tanto tesã o. — Seus
lá bios agora estã o no meu pescoço, roçando minha pele, me fazendo
suspirar. — Por que di icultar as coisas?
— Talvez porque eu seja mesmo uma covarde — admito e sinto o
sorriso se formando em seus lá bios quentes.
— Nã o tem problema, sou corajoso por nó s dois. — Nuno deixa um
beijo suave na curva do meu pescoço e se afasta bruscamente. Me
assusto com a sensaçã o de perda, como se a bolha de desejo se
rompesse, ele pega a pasta sobre a mesa, com o sorriso torto em seus
lá bios enquanto observa o que fez.
— Segunda-feira, certo? — Ele a ergue no ar e nã o tenho mais
certeza se ele está falando do trabalho, da Terceira Guerra Mundial ou
de nó s.
— S-sim — me obrigo a dizer.
— Pode deixar, providenciarei tudo.
Ele pisca para mim, debochado, enquanto vira as costas e sai da sala
me deixando completamente fora de mim.
Como a grande covarde que sou.
— O que foi aquilo na sala da Stella? — Cindy gira a garrafa de á gua
em cima da mesa enquanto espera a minha resposta.
— Ela queria me entregar o trabalho para compensar a semana. —
Aponto para a pasta em cima da mesa como prova. Ela nã o diz nada,
mas a forma como me olha é a certeza de que nã o acredita em mim.
— O quê ?
— Nada. — Cindy sorri e balança a cabeça. — Sabe, eu gosto da
Stella, ela é linda e inteligente, nã o me surpreende que você esteja
caidinho pro ela. Agora ela, uau!
— O quê ? Vai dizer que nã o me acha interessante? — Empurro-a
com meu ombro.
Cindy encara minha virilha descaradamente, seus olhos sobem por
meu peito e param em meu rosto, como a garota safada que é .
— Você sabe muito bem o que acho de você , nã o vou icar aqui
levantando a sua bola.
— Entã o qual o problema?
— Sei lá , eu nã o consigo imaginar a Stella com um garoto. Ela tem
cara de mulher que se envolve com homens bem mais velhos, tipo vinte
anos a mais, sabe?
— Nã o, eu nã o sei, e ela nã o é assim.
— Ela gosta de garotos gostosinhos, entã o? — Ela segura meu rosto
entre o polegar e o indicador me provocando.
— Para com isso. — Afasto sua mã o do meu rosto e me levanto
desistindo de terminar de comer.
— Ei, Nuno, eu estava brincando! — Cindy grita, mas nã o ligo.
Continuo andando, ignorando a insegurança que sinto com suas
palavras, me obrigando a me concentrar no que aconteceu naquela sala
de aula e no que diz meu coraçã o: ela nã o é assim.

— Eu te procurei por todo canto, o que deu em você ? — pergunto


me sentando ao lado de Ivan na sala da sua casa.
— Tava por aı́ — ele responde sem olhar para mim.
— Tava no Nick?
— E, ele precisava de ajuda com algumas coisas e você sabe como
ele é , odeia pedir.
— Por que nã o me chamou? Faz tempo que nã o o vejo e você sabe
que adoro ir à casa do Nick, como ele tá ?
— Tá bem.
Silê ncio... nã o do tipo que traz paz, mas daquele irritante, que grita
que tem alguma merda errada.
— Que porra tá acontecendo? Você nunca vai no seu irmã o sem
mim.
— Nada, nã o nasci grudado com você — ele responde como se
realmente nã o fosse nada demais desaparecer desse jeito, faz dias que
mal nos vemos a nã o ser na escola, algo que nã o acontece há muito
tempo. E o fato dele ter passado tanto tempo no Nick signi ica que tá
fugindo de alguma coisa, é isso que ele sempre faz quando quer um
tempo, a diferença é que, na maioria das vezes, eu tô junto ou ao menos
sei o motivo.
— O que tá pegando? — insisto.
— Nada. — Ele bebe um gole da sua cerveja e volta a olhar para o
jogo de futebol que tá passando na TV.
— Nada o caralho, tô preocupado com você .
— Tá mesmo? Sé rio? Achei que você tava ocupado demais entre
provocar a Stella e comer a Cindy.
— O que tá acontecendo? — Começo a sentir uma sensaçã o
estranha enquanto tento entender o que diabos aconteceu entre a
gente. Quando foi que perdi o timing do meu amigo? Desde quando Ivan
tá segurando suas merdas sozinho e por que diabos estamos nos
tratando dessa forma?
— Já disse, nada.
Ele parece disposto a nã o continuar essa conversa e me pergunto
onde foi que eu vacilei, porque tenho a sensaçã o de que ele está
incomodado com alguma coisa e com certeza nã o é a Stella, entã o só
pode ser...
Uma bola de fogo se instala na boca do meu estô mago, olho para a
TV, para o cachorrinho metido a besta da sua mã e que está dormindo
ao seu lado, olho para as paredes que conheço tã o bem. Está tudo ali,
como sempre foi, entã o por que me sinto como se estivesse em uma
casa estranha?
— Ah, caralho, você ...
— Nã o, Nuno, eu nada, já disse que estou bem, tá tudo bem, só , por
favor, me deixa ver a porra do jogo. — Ele desvia o olhar da TV por um
instante, seu rosto parece sereno e seus olhos tranquilos me encaram
por um segundo, mas é tudo uma farsa. — Resolve tuas paradas, nã o se
preocupa comigo.
Ivan volta a olhar para a TV, tudo nele demostra tranquilidade e
con iança, mas sou seu amigo, o conheço bem, ou ao menos acho que
conheço, já que ele está escondendo algo de mim.
— Acho que a gente precisa conversar, olha...
— Caralho! Eu nã o quero conversar com você , porra! — ele explode
e sinto como se ele tivesse me esmurrado, acho que preferia se tivesse,
ao menos teria liberado sua raiva.
— Certo. — Esfrego minha nuca sentindo uma agitaçã o ruim. — Tô
indo nessa, odeio segredos e nã o tô a im de icar aqui tendo esse papo
com você . Quando achar que está pronto para conversar comigo me
avisa.
Levanto e saio da sala sentindo a nossa relaçã o estremecida pela
primeira vez na vida e, antes que eu consiga atravessar o jardim que
separa nossas casas, meu celular vibra com uma mensagem de Cindy.
Otimo! Eu preciso mesmo falar com ela.
Estou sentado no capô do carro, na frente da casa dela, enquanto
fumo o terceiro cigarro desde que cheguei aqui, já passa da meia-noite
quando vejo as luzes do farol do seu carro. Uma hora atrasada.
— Oi. — Cindy sorri enquanto bate a porta do seu Honda e caminha
em minha direçã o.
— Preciso conversar com você . — Desço do capô e caminho até ela.
— Pode ser na sua casa, meus pais estã o com visita, nã o quero ter
que dar explicaçõ es.
— Nã o quero transar, Cindy, quero conversar.
— Ah. — Ela parece decepcionada. — Entã o vamos lá para os
fundos.
Cindy me leva para a parte de trá s da sua casa, espero até ela se
sentar em uma cadeira e me sento em outra à sua frente.
— O que houve?
— Estou preocupado com o Ivan — sou direto.
— O que aconteceu com ele?
— Eu nã o sei, ele nã o quer falar, mas está estranho, distante, e
sempre que pergunto ele desconversa. Achei que você soubesse.
— E por que eu saberia?
Sorrio com a ironia disso, todos nó s temos nossas merdas, cada um
carrega consigo o seu drama particular, como um daqueles seriados
ruins que as meninas adoram. Mas, na realidade, é mais difı́cil admitir
os erros e nã o quero acreditar que estou fazendo algo errado com meu
amigo.
— Nã o sei, me diga você ?
— Eu? Nã o estou falando direito com o Ivan faz um tempo.
O mal-estar que senti o dia inteiro começa a aumentar enquanto as
peças se encaixam.
— Ah, caralho, e por que eu nã o tô sabendo disso?
— Por que eu deveria te contar? Você sabe como o Ivan é .
— Nã o, eu nã o sei, comigo ele sempre foi de boa.
— Ele estava sendo um babaca.
— Porra, Cindy. — Olho para seu rosto bonito, debochado e sexy, me
pergunto desde quando e por que, em nome de Deus, ningué m falou
nada para mim. Começo a me sentir doente só de pensar no que estou
fazendo e por um instante desejo um milagre, daqueles capazes de
santi icar algué m para que eu esteja enganado. Mas eu sei que nã o
estou.
— O que houve, Nuno? Estou icando preocupada.
— Você .
— Como?
— Eu acho que o problema do Ivan é você .
— Tá maluco? Por que seria? O que eu iz para ele?
— Nó s dois. — Aponto o dedo entre mim e ela. — Estamos
transando de novo.
Lembro da ú ltima vez que iquei com Cindy, Ivan misteriosamente
decidiu fazer uma viagem pela Europa e sumiu por dois meses. Quando
voltou começou a tratar nossa amiga mal e entã o... droga, droga, merda,
eu sou um idiota, estava lá , sempre esteve, eu sou um maldito idiota!
— Ah nã o pira, Nuno, que histó ria é essa?
Nã o sei por que nã o pensei nisso antes, Ivan e Cindy perderam a
virgindade juntos aos treze anos, foi esquisito e eles quase nunca falam
sobre isso. Meu amigo nunca se apaixonou. Quando achou que poderia
acontecer algo, Cindy boicotou o lance dele, como eu pude nã o ver isso
antes? Essa birrinha, essa mania de se provocar, é claro, porra, meu
amigo está louco de ciú mes.
Ele ama essa garota, sempre amou.
— Ivan está chateado, ele se fechou, nã o fala comigo, tá se isolando
lá no Nick e brigou com você .
— E por que você acha que eu tenho algo a ver com isso? — ela
pergunta e nã o respondo, nã o há necessidade. Ela deve saber melhor do
que eu. — Nã o, nã o, nã o, de jeito nenhum, você está maluco, essa
professora está acabando com a sua sanidade e agora você quer acabar
com a minha.
Cindy começa a icar nervosa e o que parecia estranho para mim
antes, agora parece a coisa mais ó bvia do mundo. Deus do cé u, esses
dois...
— Ei, olhe para mim. — Seguro seus braços forçando-a a me
encarar. — Você está me escondendo alguma coisa?
— Para, Nuno.
— Cindy, por favor, responde, foi por minha causa que você s
brigaram?
— Isso faz diferença? — Ela me encara com seu ar de menina
mimada, mas posso ver o medo em seus olhos.
— Porra, claro que faz. O Ivan... meu Deus, ele é o melhor cara do
mundo.
— Eu sei que ele é . — Sua voz diminui, como se fosse difı́cil para ela
admitir.
— Entã o por que você nã o se resolve com ele logo de uma vez?
— Mentiroso, você nunca me deixaria chegar perto do seu amigo,
ele é precioso demais para uma garota fú til e vazia como eu.
— Ei, você també m é minha amiga, que papo é esse?
— Eu sei como as coisas funcionam, eu sou a garota fá cil que todo
mundo come e ningué m quer.
— Nã o fala merda, Cindy.
— Você tá me comendo para esquecer a mulher que nã o te quer.
— E você tá me usando para esquecer o meu amigo.
Ela nã o responde e solto seu braço porque a raiva que sinto é tanta,
que sou capaz de machucá -la.
— Cindy, nã o brinca com ele, o Ivan nã o merece ser machucado e eu
juro por Deus que eu acabo com você se ele se magoar mais.
— Relaxa. Ivan, o frio e poderoso Ivan, nã o é atingı́vel. E mais fá cil
ele estar chateado porque você está esquisito.
— Otimo. — Me levanto sentindo que nossa conversa acabou. — E
nosso lance já era, a partir de hoje você é como uma irmã para mim.
— Eu imaginei. — Ela encara os saltos enquanto sorri.
— Cuidado, eu vou icar de olho em você .
— Ui, isso é para que eu tenha medo?
— Isso é para que você se toque e pare de fazer merda. Chega com
essa porra, Cindy, você tem o melhor cara do mundo, nã o desperdiça
isso.
— Nuno — ela me chama quando começo a me afastar.
— Oi.
— Eu nã o sou boa para o Ivan, nã o precisa se preocupar, eu nunca
vou chegar perto dele.
— E o que eu digo para a Stella todas as vezes em que ela me manda
embora.
— Ela vai ceder. Ela tá caidinha por você .
— E o que digo para mim mesmo todas as vezes que me sinto um
bosta.
Retiro um cigarro do bolso de trá s e acendo enquanto caminho em
direçã o ao meu carro, me sinto como se tivesse acabado de acordar de
uma ressaca violenta, tonto, com o estô mago revirado e sem entender
merda nenhuma do que aconteceu.
Porra, Ivan, onde diabos você estava com a cabeça para me esconder
algo tão importante assim?
E, à s vezes a vida se parece muito com aquelas merdas de seriados,
cheia de dramas e desencontros. Só espero que, nesse caso, a gente
encontre o nosso inal feliz, o mais rá pido possı́vel.
A ú ltima aula do dia foi cancelada e, embora seja apenas terça-feira,
eu já estou exausta, mal consigo pensar em como chegarei até sexta, o
ritmo de trabalho aqui é intenso, a pressã o é grande e, para ajudar,
saber que Nuno está por aı́, distribuindo seu sorriso torto para todas as
garotas depois de ter mexido comigo daquela forma nã o facilita em
nada. E como se nã o fosse o bastante, o mundo parece nã o ter pena de
mim porque nesse momento desaba uma tempestade lá fora.
De jeito nenhum que vou tomar chuva novamente.
— Parece que estamos presos aqui dentro. — Tony, o professor
novo de Fı́sica, para ao meu lado e ica observando o estacionamento
debaixo d’á gua. — Aposto que é algo planejado para que voltemos ao
trabalho.
Tony é legal, um pouco mais jovem que a maioria dos professores
por aqui, charmoso, em excelente forma fı́sica e com um sorriso que
faria Suzy criar mil fantasias sexuais, ele já virou o queridinho das
garotas e sinceramente nã o as culpo. Ele é realmente o tipo de
professor que faz com que Newton seja idolatrado pelos alunos. Alé m
do mais, Tony é um dos poucos professores que nã o me olham como se
eu fosse uma coitadinha, o que imagino, tenha a ver com o fato dele ter
chegado faz pouco mais de uma semana e nã o ter ouvido o pior das
fofocas sobre o caso do vı́deo.
Ele olha para mim e sorri e me sinto meio sem graça.
Já ouvi algumas histó rias sobre mim e ele por aı́, ico impressionada
com a criatividade dos alunos dessa escola e com a facilidade com que
fofocas ganham força, deve ser uma coisa de cidade de interior, nã o
importa, por mais rica que seja, o fetiche por falar da vida dos outros é
maior que status social.
O ruim é que toda vez que olho para ele ico lembrando das coisas
que ouvi, sobre como formamos um belo casal e tudo mais.
— Aula cancelada també m? — ele pergunta com seu sorriso
charmoso.
— Pois é , mas acho que vou ter que voltar lá para dentro.
— Eu estou de carro, se quiser posso te dar uma carona.
— Imagina, nã o precisa.
— Tem certeza? — Ele me olha com expectativa.
— Tenho sim, tenho aula para preparar, acho que vou aproveitar o
silê ncio e me livrar logo disso.
— Viu só , como eu disse, faz parte de um complô .
— Entã o acho melhor você correr antes que te vejam por aqui
parado.
— Acho que vou mesmo, tem certeza de que vai icar bem?
— Sim, eu tenho meu esconderijo secreto. — Sorrio e no mesmo
instante me arrependo porque tenho a impressã o de que essa conversa
parece mais com um lerte do que qualquer coisa. — Eu vou indo. Bom
descanso, Tony.
— Até amanhã , Stella — ele diz antes de sair para a chuva.
Observo-o caminhar elegantemente pelo estacionamento, a chuva
faz com que os contornos das suas costas iquem evidentes, expondo a
sua boa forma que faz tanto sucesso.
As lanternas de um Sedan de luxo se acendem quando ele se
aproxima, Tony retira a bolsa do ombro e a joga no banco do passageiro
antes de entrar, viro as costas e caminho em direçã o ao outro lado do
complexo, o lugar onde ica meu refú gio secreto, enquanto me pego
pensando no quanto de todas essas fofocas Nuno já ouviu e se isso o
incomodou. Uma pequena e ridı́cula parte de mim se sente vingada, e
um sorriso bobo se forma em meu rosto quando imagino Nuno com
ciú mes.
Entro na biblioteca quase vazia e suspiro aliviada. Nã o há lugar
melhor para se perder do que entre os livros. Sempre que dá , fujo para
cá , se tornou um há bito, meu momento particular, o lugar mais
silencioso da escola, apesar de que é triste saber que a biblioteca é tã o
pouco explorada, aqui há ediçõ es incrı́veis de clá ssicos de dezenas de
nacionalidades, histó rias dos mais diversos gê neros, mas nenhum aluno
interessado em ler.
Isso faz com que eu me sinta protegida, isolada, invisı́vel.
Ao menos por uma hora.
Assim que entro, Esther, a bibliotecá ria, me cumprimenta, ela já está
acostumada em me ver aqui quase todos os dias e acho que isso faz com
que nã o se sinta tã o solitá ria.
Hoje tem quatro alunos, provavelmente matando as ú ltimas aulas,
ingindo que estã o fazendo alguma pesquisa de trabalho. Pego meu café
e me sento à mesa, que já se tornou minha, no fundo do salã o, onde
consigo ter uma boa visã o do lugar, mas de onde quase nã o sou vista.
Coloco os fones de ouvido e abro o livro que estou usando como
material de trabalho com meus alunos do primeiro ano, faço anotaçõ es
importantes para a pró xima aula, tó picos bacanas que trazem os
clá ssicos para a atualidade, mostrando que mesmo com um sé culo de
diferença, a sociedade evoluiu muito pouco quando a questã o é o
coraçã o.
O tempo passa, a chuva lá fora forma uma melodia gostosa, estou
tã o imersa nas ideias de pautas para debate que nã o noto quando
algué m se aproxima, até que uma pasta pousa na minha frente.
— Puta que pariu — digo, um pouco mais alto que um sussurro,
assustada.
— Uau, que boca suja. — Nuno está parado a minha frente, o sorriso
de sempre em seus lá bios enquanto ele me encara. — Isso sã o modos
de uma professora, Stella? — ele sussurra enquanto puxa uma cadeira e
a gira de costas, se sentando nela e apoiando seus braços no encosto.
— O que você está fazendo aqui? — Olho em volta à procura de mais
algué m que possa ter ouvido o que eu disse, mas estamos
aparentemente sozinhos.
— A aula acabou e como está chovendo achei que seria bom vir aqui
pegar um livro.
Pego o celular e me surpreendo quando me dou conta de que já se
passou quase duas horas desde que cheguei aqui, a biblioteca está
completamente vazia agora, até mesmo Esther se foi e as luzes suaves
de leitura começam a iluminar a sala.
— Você nã o lê , Nuno.
— Nã o, nã o leio, você tem razã o. — Ele enruga o nariz.
— Entã o, o que você está fazendo aqui?
Ele puxa as mangas do moletom e o puxa pela cabeça, retirando-o,
nã o há nada de errado nisso, mesmo assim olho em volta, como se ele
estivesse se despindo bem aqui. Nuno volta a apoiar as mã os no
encosto da cadeira e o queixo nos braços enquanto me olha com esse
jeito debochado que me tira do sé rio.
— Vim te ver.
— Você faltou a aula ontem.
— E, faltei.
— E melhor começar a frequentar as aulas, nã o vou passar a mã o na
sua cabeça.
— Pre iro suas mã os em outro lugar. — Ele pisca e reviro os olhos.
— Você nã o vai parar com isso?
— Nã o posso, estou viciado na sua carinha quando falo essas coisas,
você tem ideia do quanto ica linda?
— Como você sabia que eu estava aqui? — pergunto ignorando sua
cantada barata.
— Nossa, Stella, quantas perguntas, parece até que estamos fazendo
algo errado. — Ele morde a boca me provocando e me esforço para
manter meus olhos nos seus.
— Nuno...
— Stella...
Respiro fundo e desvio o olhar para a pasta que está entre nó s. Nã o
posso entrar no seu joguinho, sei muito bem onde vamos parar se
continuarmos. Eu excitada e frustrada e ele no meio das pernas da
Cindy.
Nã o, obrigada.
— Espero que você tenha usado seu tempo livre para fazer alguma
coisa. — Abro a pasta e me surpreendo quando vejo que todas as folhas
estã o preenchidas. — Você já terminou?
— Quase, falta uma, o ú ltimo conto, nã o consegui entender. — Ele
vira a folha e aponta para algum lugar qualquer. — Putz, acho que me
enganei, parece que terminei mesmo. Viu só , nã o sou só um rostinho
bonito. — Ele olha para mim por baixo das mechas bagunçadas do seu
cabelo e sorri.
— Você poderia ter deixado para me trazer na pró xima aula.
— Achei melhor nã o, tenho a impressã o de que você nã o iria me
pedir para icar depois da aula, estou errado?
— Nã o, está certı́ssimo. — Empurro a pasta de volta para ele. — Me
entregue na pró xima aula, como todo os outros alunos.
— Mesmo eu nã o sendo como eles?
— Exatamente.
— Mas entã o eu nã o poderia estar assim com você .
— Assim como? — Sinto o ar começar a entrar com di iculdade em
meus pulmõ es quando ele se inclina para a frente se aproximando um
pouco mais.
— Assim.
Baixo o olhar para a pasta aberta, sua letra masculina, irme e
caó tica, tã o parecida com sua personalidade.
— Por que você está tornando tudo tã o insuportá vel? — pergunto, a
voz ridiculamente fraca.
— Porque é exatamente como se sinto, é insuportá vel para mim,
quero que seja para você .
— Você sabe que nã o podemos fazer isso.
— Nã o podemos, nã o podemos... é só o que ouço você dizer.
— Porque é a verdade, nã o podemos.
— Ainda nã o ouvi você dizendo que nã o quer. Diga, Stella, diga que
nã o me quer e me levanto daqui e vou embora.
Abro a boca, mas nada sai, como posso dizer isso? E como pedir
para uma pessoa faminta rejeitar um prato de comida, um sedento
dizer nã o para um copo refrescante de á gua. Impossı́vel, doloroso,
desesperador.
Estamos sozinhos, a chuva lá fora parece uma cançã o aconchegante,
que torna tudo ainda mais intenso. Quero tocá -lo desesperadamente,
quero dizer para ele todas as coisas que fantasio na segurança da minha
casa, quero dizer que ontem gritei seu nome enquanto me dava prazer,
quero beijá -lo até me faltar o ar.
Estico meus dedos lentamente, ultrapassando a barreira imaginá ria
que crio sempre que estou perto dele, Nuno continua me olhando,
implorando por qualquer coisa que eu possa dar, um olhar, um sorriso,
uma migalha... esperança.
Olho em volta, o coraçã o batendo tã o forte que ica difı́cil respirar.
— Olhe para mim, Stella, eu estou aqui, nã o olhe em volta — ele
pede.
Fecho os olhos por um instante, criando coragem, as pontas dos
meus dedos tocam as suas, quentes, grandes, fortes, estremeço só de
lembrar que esses dedos já estiveram dentro de mim, que ele foi o
ú ltimo cara que me tocou. Nossa, faz tanto tempo que, à s vezes, parece
que foi em outra vida e mesmo assim a lembrança é tã o forte que
parece que nunca vou esquecer.
Passo por cada dedo chegando ao dorso da sua mã o, sinto seus
olhos me observando enquanto analiso, maravilhada, cada detalhe, a
forma como os ossos longos se destacam, a pele dourada de sol, as veias
masculinas, proeminentes, uma cicatriz bem pequena no nó dulo de um
dos dedos que me deixa curiosa, como será que ela veio parar aqui?
— Gosto das suas mã os — sussurro, como uma con issã o perigosa
que nã o se deve fazer, enquanto meus dedos continuam tocando-o,
subindo por seu punho, devagar, absorvendo cada detalhe.
— E eu gosto de você , Stella — ele diz, també m baixinho, també m
confessando algo que é proibido.
— Você nã o gosta de mim, Nuno, você gosta disso. — Subo por seu
antebraço, até chegar ao seu bı́ceps. — Dessa sensaçã o de desejar o que
nã o pode ter, do medo de sermos vistos, do perigo.
Ele coloca a sua mã o sobre a minha, os dedos grandes encobrem os
meus enquanto seus olhos continuam ixos em meu rosto.
— Nã o ligo para o que você acha, eu sei o que eu quero e o que sinto.
Seu polegar faz cı́rculos na pele sensı́vel do meu pulso causando
uma eletricidade por todo o meu corpo. Subo minha mã o por seu
bı́ceps, sentindo o calor da sua pele sob meus dedos, a força do mú sculo
do seu corpo de garoto cheio de desejo.
Afasto-me e fecho o livro que estou lendo, ignoro minhas mã os
trê mulas e o suor que começa a deixá -las molhadas, levanto fazendo um
barulho maior que o normal, Nuno olha em volta e faço o mesmo, mais
por força do há bito porque estamos completamente sozinhos na
biblioteca escurecida pela noite, que chegou mais cedo por causa da
tempestade que continua. Nã o há nada que justi ique meu ato, se
formos pegos agora, é o meu im, mesmo assim nã o hesito nem por um
instante.
Me afasto da mesa desejando que ele compreenda o que estou
fazendo, que ele venha até mim, que nã o me deixe pensar demais,
porque tenho certeza de que se eu pensar, por um segundo sequer no
que estou fazendo, vou desistir.
Vou até a estante de clá ssicos e coloco o livro no lugar, meus dedos
tremem enquanto sinto quando ele se aproxima, icando atrá s de mim.
Sobe sua mã o por meu braço, até chegar a minha mã o, que ainda está
irme sobre o livro, como se ele fosse a ú nica coisa que está me
mantendo em pé .
— Eu te quero, Stella. — Ele inclina o rosto, sussurrando essas
palavras em meu ouvido, sua mã o se enrosca na minha, sei o que ele
está fazendo, tenho plena consciê ncia de tudo ao meu redor, dos
funcioná rios circulando pelo pré dio, do cheiro de livros velhos a nossa
volta, das mesas vazias, do eco da chuva acima de nó s. Do meu coraçã o
dolorosamente desesperado para que esse garoto atrevido faça o que
nã o tenho coragem de fazer.
Inclino o pescoço para o lado e fecho os olhos, sentindo seu nariz
passear por minha pele. Ele beija um cantinho perto do meu ombro e
estremeço. Ele sorri com os lá bios em minha pele.
— Covarde — Nuno sussurra. — Minha pequena covarde. — Sua
lı́ngua brinca com meu desespero acarinhando minha pele.
Ele me vira de frente, seus olhos cansados e intensos olham para a
minha boca, como um aviso para que eu possa me proteger, mas eu nã o
quero, quero ser beijada por ele aqui, escondido de todos, com tanto
medo que sinto que meu coraçã o vai parar a qualquer momento. Quero
ser beijada como se ele precisasse disso para viver, como nos romances
que tanto amo; um beijo proibido, aquele que pode ser a minha ruı́na,
mas també m pode ser a minha salvaçã o.
— Sua ú ltima chance, professora. — Ele segura meu rosto em suas
mã os, passeando os polegares por minhas bochechas quentes, ele passa
a lı́ngua nos lá bios e solto um suspiro em antecipaçã o que o enche de
orgulho, e entã o o sorriso lindo dele está lá , meio torto, meio
provocante, vitorioso, um sorriso de quem sabe que venceu e que valeu
a pena a luta e, antes que eu possa sequer pensar se minha carreira vale
por esse beijo, ele se inclina sobre mim, sua boca se aproxima da minha
e me surpreendo com a delicadeza com que ele me beija, seus lá bios se
colam nos meus, movendo-se lentamente, sem pressa, sua lı́ngua toca
minha boca pedindo permissã o para entrar enquanto sua mã o se
enrosca em meu cabelo desmanchando o coque com uma rapidez, que
me faz acreditar que ele calculou como fazer isso o tempo todo. E
quando abro minha boca, ele me penetra com força, se colocando sobre
mim, explorando cada canto em um beijo lento, forte e sensual.
Sinto cada cé lula do meu corpo explodir em um prazer que nunca
senti ao ser beijada, coloco a culpa no medo, ele deve ser um aditivo
poderoso ao prazer, porque sinto como se Nuno estivesse me
possuindo. E isso, preciso acreditar que seja isso, estou com medo de
ser pega, de me entregar, de admitir o que nã o quero aceitar.
Nã o posso admitir a verdade, muito embora, lá no fundo, eu saiba.
Estou completamente louca por meu aluno.
No momento em que Maddie me contou sua estranha mania de
almoçar sozinha na biblioteca senti meu sangue ferver, nã o é justo que
ela se esconda como se estivesse fazendo algo errado e a ideia de Stella
sozinha nesse lugar, rodeada de livros velhos e solitá rios, me faz querer
arrebentar a cara de cada um dos moleques idiotas que falam alguma
merda sobre seu corpo, de cada comentá rio, em cada palavra
desrespeitosa que é proferida para ela.
Para completar meu martı́rio, desde a chegada do novo professor
que as fofocas sobre eles nã o param e meu coraçã o pulsa de raiva,
ciú mes, insegurança, medo... porra, tenho tanto medo que nã o sei como
agir. A simples ideia de ver Stella e aquele almofadinha do caralho
juntos, seus sorrisos e toques, sua boca bonita, porra, nã o dá , eu vou
enlouquecer se isso acontecer porque nã o vou poder fazer nada,
absolutamente nada, alé m de sofrer como um maldito condenado.
Quando vim até ela, nã o tinha ideia do que fazer, é sempre assim,
Stella me atrai como um mosquito é atraı́do pela luz, nã o ligo se vou me
queimar, apenas sigo seus comandos involuntá rios. Eu precisava estar
perto dela, provar para o meu coraçã o que tudo nã o passa de boatos,
que ela sequer olhou para aquele babaca, que ela me quer, que seus
sorrisos e sua boca sã o para mim.
E o que faço, quando ela se levanta e vai até as prateleiras, em um
convite tı́mido e secreto, eu me levanto e sigo-a. Como o mosquito
idiota que sou.
Talvez ela tenha razã o, talvez seja essa coisa de nã o poder tocá -la
que me deixa maluco, talvez seja a ideia de que debaixo dessas roupas
formais e sé rias, tem uma garota que deixou um completo estranho
masturbá -la em um festival. Mas nã o acredito que seja só isso, porque,
se fosse, meu coraçã o nã o estaria prestes a pular pela boca, minhas
mã os nã o estariam formigando de desejo, meus instintos nã o estariam
gritando para protegê -la.
Eu a quero desesperadamente, quero meu pau enterrado nela,
quero ouvi-la gritar quando a possuir, quero sua boca em minha pele,
quero comer macarrã o e ouvi-la falar sobre lojas de disco.
Eu quero Stella, a mulher devassa, a professora tı́mida, a garota
divertida.
E mesmo agora, com seu rosto em minhas mã os, sentindo as batidas
do seu coraçã o sob meus dedos, mesmo agora, enquanto a beijo, ainda
sinto um desespero quase doloroso, porque sei que nã o é o bastante. E
o meu medo é de que eu nunca tenha o su iciente.
Desço meus lá bios por seu pescoço e deixo um beijo bem em cima
de onde seu coraçã o bate.
— Nuno... — ela me chama, baixinho. Ah, porra, como eu amo ouvir
ela me chamando... Sua mã o se enrosca em meus cabelos, a outra em
minhas costas, por baixo da camiseta, onde ela esteve aquela noite,
onde sempre deveria estar.
— Estou aqui. — Beijo a curva do seu pescoço tentando manter a
calma, desço um pouco mais. Devagar, só meus lá bios tocando sua pele,
provocando-a, enlouquecendo-a, devolvendo um pouquinho do que ela
faz comigo todos os dias.
Ela se apoia na prateleira e ergo o rosto para garantir que nada vá
cair, preciso manter uma parte minha atenta, mesmo sabendo que
estamos seguros aqui dentro.
Subo minha mã o por seu corpo, enquanto continuo depositando
beijos por sua pele, mato minha vontade e aperto sua cintura puxando-
a para mim, subo até seu seio e o acaricio por cima do tecido ino da
camisa, beijo a curva que se sobressai no decote e ela me puxa para si.
Sua boca busca a minha em um desespero que faz meu pau pulsar, sinto
a garota devassa que conheço bem tomando o lugar da professora.
Volto a beijá -la, dessa vez com mais força, deixando que ela sinta o
quanto a quero, movo meu quadril, empurrando minha ereçã o em sua
barriga, ela geme. Suas mã os ainda em minhas costas, sobem e descem,
fazendo com que eu queira arrancar a sua roupa.
E a coisa mais louca que já senti na minha vida.
— Você me deixa louco — sussurro enquanto me esfrego nela. — Eu
vou morrer, Stella, e a culpa vai ser sua.
Ela sorri, de olhos fechados, o lá bio inferior entre os dentes
enquanto abro o botã o da sua camisa, a renda branca do sutiã
envolvendo-o me faz querer arrancá -lo com os dentes, puxo a peça para
baixo expondo seu seio perfeito para mim, meus dedos a provocam,
acariciando seu mamilo, deixando-a ainda mais excitada e, quando o
abocanho, passando minha lı́ngua no lugar onde antes estavam meus
dedos, sinto Stella segurar um gemido. Chupo-a com força, sugando-a,
torturando-a, preparando-a para mim.
Baixo o outro lado do sutiã e faço o mesmo com o outro seio, ela
segura meus cabelos em suas mã os. Sua respiraçã o está baixinha, curta,
dolorosamente excitada, enquanto termino de abrir sua camisa, e
minhas mã os se movem por seu corpo até chegar as suas coxas.
— Abra para mim, Stella — peço quando minha mã o ergue a barra
da sua saia.
Ela afasta as pernas e entã o estou no paraı́so, meus dedos roçam o
tecido ú mido da sua excitaçã o e meu pau dó i de desespero por ela.
— Sempre molhadinha. — Mordo sua orelha quando puxo sua
calcinha para o lado e afundo o dedo mé dio dentro dela. — Stella...
Stella... — gemo seu nome quando começo a entrar e sair. — E assim
durante a aula també m? Quando você está citando Machado de Assis?
Você está pronta para mim enquanto inge ser a professora discreta?
— Nuno... — ela choraminga em minha boca com o rosto retorcido
de prazer quando me beija enquanto meu dedo a fode.
— O que foi, você quer mais? — pergunto quando ela começa a
rebolar e, quando acrescento mais um, ela geme baixinho. — Tã o linda,
minha covarde safada — provoco-a e ela deita a cabeça em meu ombro
quando aumento a força com que entro dentro do seu corpo pequeno.
Stella me puxa para si enquanto suas mã os trabalham em minha
calça com desespero, acabando com a minha tortura ao me liberar.
A chuva ainda cai lá fora, a tempestade nos dá uma proteçã o extra,
as luzes baixas da biblioteca nos protegem. Estamos nos tocando, nos
beijando, nos perdendo em uma luxú ria insana, preciso de todas as
minhas forças para continuar atento à nossa volta, mesmo que seja
quase impossı́vel quando seus dedos pequenos me envolvem e
começam a me masturbar.
Um trovã o rompe no cé u, tudo escurece a nossa volta, as luzes de
emergê ncia se acendem, Stella para de se mover, me aproximo
protegendo-a com meu corpo, icamos assim, parados, com a boca dela
em meu peito, sua mã o em meu pau, nossos coraçõ es explodindo no
peito, à espera de algo.
Os segundos se passam e nada acontece, ainda estamos a só s.
— Acho que até mesmo Deus nos quer juntos — digo quando me
dou conta de que ningué m pode nos ver aqui, em uma biblioteca
deserta, no inı́cio da noite, no mais completo escuro.
— Entã o acho que nã o devemos desperdiçar essa chance. — Ela tira
meus dedos de dentro dela e odeio nã o poder ver seus olhos quando
sinto sua boca chupando-os.
— Puta que pariu, Stella. — Minha voz sai rouca e sinto que posso
gozar a qualquer instante.
— Eu quero você , Nuno — ela diz em meu ouvido e, por um
instante, acho que estou sonhando, só pode ser um sonho. — Agora.
Nã o preciso que ela diga mais nada, meu corpo domina a minha
mente e afasto-me puxando a camisinha de dentro da carteira que jogo
no chã o, sem me importar onde ela caiu. Tudo o que preciso nesse
momento é dela.
— Entã o tira a sua calcinha — ordeno e ela se afasta, abaixando a
peça enquanto visto a camisinha. Subo sua saia até que ela esteja
embolada na sua cintura e ergo-a em meu colo apoiando suas costas na
prateleira. — Você nã o tem ideia do quanto sonhei com isso — sussurro
enquanto a penetro, ouvindo seu gemido baixo enquanto sua boca
procura pela minha.
Stella é menor do que eu imaginava e tento ser delicado, abaixando-
a devagar, sentindo seu corpo se expandir para receber o meu e,
quando meu pau está inteiro dentro dela, quero rosnar como um
animal e preciso respirar fundo para nã o passar vergonha. Nunca estive
tã o excitado em toda a minha vida e por tudo que é mais sagrado,
preciso me controlar. Nã o consigo vê -la direito, mas posso sentir seu
cheiro, ouvir sua respiraçã o, sentir suas mã os puxando meus cabelos,
suas unhas em minha pele e me concentro nisso para continuar.
— Nossa, você é tã o gostosa — digo quando começo a me mover,
com meus dedos cravados em sua bunda, apertando-a enquanto me
empurro para dentro dela. Stella está calada e isso me deixa louco,
quero saber o que ela está pensando, quero ouvir ela dizer algo sujo,
preciso saber que ela está tã o perdida nessa porra quanto eu. — Stella,
fale comigo — peço no desespero por nã o poder ver seu rosto.
— Eu estou aqui — ela choraminga.
— Você gosta assim? — Aumento a força com que a penetro,
imaginando seu corpo pequeno recebendo o meu pau.
— Ah, meu Deus, sim, sim.
Apoio seu peso na prateleira para poder ir mais fundo, o som dos
nossos corpos se chocando me deixa louco, quero vê -la
desesperadamente para ter certeza de que isso é real, que estamos
mesmo transando na biblioteca, em uma noite de tempestade, como
dois criminosos, escondendo o que sentimos do mundo, de nó s.
— Nuno... eu... ah... — Ela crava as unhas na minha pele segurando-
se em mim quando nossos corpos começam a icar suados.
— Isso, me machuca, Stella — peço. — Quero você marcada na
minha pele.
Ela me arranha, a queimaçã o em minha pele faz meu pau inchar,
estou prestes a gozar.
— Isso, assim. Mais forte, vai — digo aumentando as estocadas,
sinto seu corpo me apertando, o seu orgasmo se aproximando e,
quando ela en ia o rosto em meu pescoço e abafa um grito de prazer,
explodo dentro dela, sentindo a minha liberaçã o, tã o forte, que preciso
me apoiar na estante para nã o desmoronar com ela em meus braços.
Preciso de um momento para me recuperar, saio de dentro dela
devagar, sentindo-me vazio no instante em que a deixo. E uma sensaçã o
estranha, assustadora e tento nã o pensar no que isso signi ica.
— Você está bem? — pergunto com os lá bios em seus cabelos
beijando-a enquanto recupero meu fô lego e me pergunto por que ainda
estou com medo.
— Uhum.
— Vou te pô r no chã o — aviso antes de abaixá -la devagar
lamentando já ter acabado.
Nã o quero soltá -la, nã o quero que ela tire suas mã os de cima de
mim, nã o quero que acabe, entã o eu a abraço, puxando-a para o meu
peito, deixando que ela sinta meu coraçã o de moleque batendo com
força, e desejando que ela sinta o mesmo, que saiba e que ela queira.
Porque nã o importa o que diga.
Ele bate por ela.
Nã o existe nada mais ı́ntimo que se despir para algué m, o ato de
revelar seu corpo, partes suas que você escolheu expor para aquela
pessoa é como desnudar sua alma.
Estar nu é estar vulnerá vel.
E nesse momento, embora eu ainda esteja com minhas roupas no
corpo, me sinto completamente vulnerá vel, sem saber como agir.
Um dos motivos para que eu odeie sexo casual nã o é permitir que
algué m que eu nã o ame veja minhas celulites ou aquela gordurinha que
eu nã o consigo me livrar, nã o é saber que aquela pessoa para sempre
vai saber a cor do meu mamilo ou os sons que faço quando gozo.
E o momento do im, depois que o prazer acaba e que voltamos a ser
apenas duas pessoas que se curtiram, aquele breve instante em que os
olhares se desviam, quando as roupas sã o colocadas de volta no lugar,
quando tudo se torna passado.
E essa perda de conexã o que tanto odeio, que me faz desistir de
buscar prazer só porque meu corpo precisa.
Quando Nuno sai de dentro de mim sinto o inı́cio do im, ele se
afasta delicadamente, seu corpo ainda está tremendo quando ele me
coloca no chã o e dou graças a Deus por estar escuro o su iciente para
que eu nã o o veja se arrumando.
Mas nã o é isso que ele faz, ao contrá rio, Nuno me puxa para os seus
braços. Nossas roupas ainda estã o emboladas, sua ereçã o pulsa entre
nó s, como se ainda desejasse mais, como se ele ainda nã o estivesse
pronto para o im.
Eu nã o estou e, sinceramente, eu já sabia que seria assim, no
instante em que eu provasse seu beijo novamente, que sentisse seu
corpo dentro do meu, que o ouvisse gozar, quando eu cedesse ao desejo
e deixasse ele se aproximar, eu sabia, nunca mais seria igual.
Passo o nariz em seu peito sentindo o seu cheiro, ouvindo seu
coraçã o agitado, ignorando o medo do arrependimento que ameaça
surgir, isso nã o é hora para isso, preciso curtir cada segundo, à noite
terei muito tempo para pensar nas consequê ncias.
— Stella? — ele me chama, com os lá bios ainda em meus cabelos. A
voz ainda rouca de desejo, mas tã o gentil que me surpreendo.
Quando é que ele vai deixar de me surpreender?
— Hum...
— Você está me deixando preocupado, eu iz alguma coisa errada?
Sim, você fez, tudo está errado e eu não sei o que vou fazer agora para
voltar a ser sua professora.
— Nã o, você foi ó timo. — Deixo um beijo em seu peito e me afasto
para ver seu rosto nas sombras da noite. Seu cabelo tá uma bagunça e
imaginar as marcas que deixei em seu corpo faz meu coraçã o acelerar.
— Você está tã o quieta.
— Eu sou quieta depois do sexo.
— Certo.
— Você está bem? — pergunto um pouco ansiosa demais.
— Eu estou ó timo e você ? — Sinto o sorriso em sua voz.
— Estou ó tima.
Maravilhada seria a palavra mais pró xima da realidade, confesso
que nã o esperava algo tã o... intenso, a inal de contas ele é só um garoto,
imaginei que seria mais inexperiente, afobado, talvez até inseguro, mas
no instante em que ele me tocou, tudo o que a sociedade de ine como
errado, tudo o que eu penso sobre nó s e o que nos separa se apagou e
só restou um homem e uma mulher, ardendo de desejo um pelo outro.
— Preciso me limpar — ele avisa e deixa um beijo em meus cabelos
antes de se afastar e lá está ele. O momento inal, aquele em que
voltamos a ser apenas Nuno e Stella outra vez.
Aproveito para arrumar minha roupa, a constataçã o do que izemos
deixa minhas mã os trê mulas enquanto coloco meu sutiã no lugar e
fecho minha camisa. Um princı́pio de pâ nico ameaça me atingir, mas
nã o posso fazer isso agora, ele nã o merece sentir que estou
arrependida, mesmo porque na verdade nã o estou.
E isso me apavora.
Tento encontrar minha calcinha, me abaixo para procurar melhor,
mas nã o a acho em nenhum lugar.
Nã o consigo respirar...
— O que está fazendo, Stella? — Nuno se abaixa ao meu lado, sua
voz suave me deixa mais nervosa.
— Procurando minha calcinha — digo apavorada, tateando por
todos os cantos em busca da peça fujona.
Respira, Stella...
— Ei, nã o tem problema. — Ele envolve minha cintura e me puxa
para junto de si. — Deixa ela aı́ — ele pede com a voz doce em meu
ouvido.
— Você está maluco? E a minha calcinha.
— A menos que tenha seu nome escrito nela, pode ser a calcinha de
qualquer garota, deixa, quero você assim, sem ela — ele sussurra a
ú ltima parte da frase em meu ouvido enquanto acaricia minha
intimidade com a ponta dos dedos, me deixando tonta novamente.
Respira, Stella, respira...
— Por favor — ele pede e me viro para beijá -lo relembrando as
palavras de Suzy.
Viva, Stella, viva.
— Ah, Stella...
Ele me toca suavemente, os dedos sobem e descem pela minha
fenda, me fazendo estremecer e esquecer da calcinha, do meu nome, de
colocar ar em meus pulmõ es. E entã o estou novamente pronta para ele,
ridiculamente molhada e excitada, implorando para que ele pare de me
torturar e me penetre, sua lı́ngua brinca com minha boca, causando
uma euforia que faria qualquer viciado implorar por ele.
Mas entã o, como uma obra do destino, uma luz suave vinda da mesa
chama nossa atençã o nos lembrando de que existe um mundo lá fora.
Um mundo que nã o compreenderia o motivo para que estejamos assim,
no chã o de uma biblioteca. O aluno e a professora.
— Porra. Preciso atender. — Ele se levanta estendendo a mã o para
me ajudar a levantar també m.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto parando ao seu lado, o
coraçã o aos pulos enquanto pego meu celular para ver se tem alguma
mensagem.
Talvez a polı́cia, provavelmente vindo me prender por atentado ao
pudor.
— Nã o, é que eu esqueci de avisar a Maddie que estamos bem — ele
responde com uma tranquilidade de quem diz que o cé u é azul.
— A Maddie sabe que estamos aqui? — engasgo com as palavras
enquanto observo a luz da tela iluminar seu per il e ver o sorriso
arrogante e lindo se formando em seus lá bios.
— Eles estã o nos dando cobertura — Nuno responde ainda olhando
para a tela e digitando algo.
— Eles? Ah, meu Deus, eles quem?
— Calma, medrosinha. — Nuno se inclina e deixa um beijo em
minha boca. — Nossos amigos.
Amigos...
— Nossos amigos? Eles sabem que estamos aqui fazendo sexo?
Estou perdida. — Apoio-me na mesa sentindo que posso desmaiar a
qualquer instante.
Jesus Cristo, o que eu iz?
— Ei, eu disse a eles que iria te entregar o trabalho. — Nuno ergue
uma sobrancelha arrogantemente enquanto olha para mim.
— Durante todo esse tempo?
— Talvez minha dú vida fosse muito difı́cil de esclarecer. — Ele me
dá aquele olhar provocante e sinto minhas pernas amolecerem.
— Isso nã o é engraçado, Nuno. — Ele me puxa pela cintura e beija
minha boca de um jeito que me faz esquecer meu nome. — O que eu
faço com você , hein? — pergunto, meio mole pelo beijo.
— O que você quiser, professora. — Ele puxa meu lá bio inferior com
força enquanto suas mã os se movem até minha bunda. — Sou todinho
seu.
— Nuno, para! — o repreendo como se eu inalmente me desse
conta de que estamos em um pré dio pú blico, mais precisamente na
escola onde trabalho e onde ele é o aluno.
— Nã o consigo. — Ele beija meu pescoço.
— Nuno, as câ meras. — Olho em volta como se, por algum milagre,
tivesse adquirido visã o noturna.
— Relaxa, medrosa, nã o tem câ meras aqui.
— Como nã o tem?
Paro para pensar nisso pela primeira vez desde que cheguei aqui,
sempre presumi que todas as escolas tivessem câ meras de segurança.
— Até tem, estã o instaladas por todos os cantos, mas nunca foram
ligadas. — Sua boca ainda passeia por minha pele enquanto ele fala, o
calor do seu há lito me causa arrepios.
— Como você sabe? — Tento empurrá -lo, mas ele nã o se afasta.
— Grana, baby, muita grana, nenhum dos pais de Monte Mancante
estã o interessados em ver seus preciosos ilhos sendo ilmados. —
Nuno inalmente se afasta, como se falar nisso o incomodasse de
alguma forma. — Eles tê m muito a perder e o diretor está com o rabo
bem cheio de grana, entã o relaxa. — Ele passa a mã o em minha nuca e
me puxa para um beijo rá pido. — Estamos totalmente protegidos aqui.
Fico sem palavras ao pensar no que ele disse, se o poder dessas
famı́lias chega a esse nı́vel, o que aconteceria se descobrissem que uma
professora está transando com um dos seus ilhos?
A cadeia começa a parecer uma ideia bastante româ ntica nesse
momento.
— Stella, respira — Nuno fala enquanto responde alguma coisa que
pre iro nã o saber o que é , no celular.
— Precisamos sair daqui — digo como se descobrisse que estou em
um ilme de terror, Nuno nã o se afasta e empurro seu peito com toda a
determinaçã o que tenho fazendo-o resmungar.
Arrumamos nossas coisas com di iculdade, usamos nossos celulares
para garantir que nada icou para trá s, ele coloca sua mochila nas costas
e me ajuda a pegar o resto das minhas coisas. Tento encontrar minha
calcinha mais uma vez, mas Nuno pede para que eu a deixe para trá s,
como uma lembrança do que izemos aqui. Nã o posso negar que isso é
bastante eró tico e me deixa excitada.
Deus! O que esse garoto está fazendo comigo?
Caminhamos todo o espaço que nos leva até a porta em silê ncio,
com o meu corpo em alerta o tempo todo. A sensaçã o de estar sendo
vigiada por olhos invisı́veis me causam um mal-estar que só se agrava
com o fato de estar nua por baixo da saia.
— Está tudo bem?
— Estou sem calcinha — sussurro o mais baixinho possı́vel.
— Ah, Stella, nã o faz isso, que vou icar duro.
— Jesus Cristo, eu tô falando sé rio.
— Shhh... eu també m estou, mas deixa Ele fora disso — ele brinca e
estende a mã o para abrir a porta. — Está pronta?
— Nã o — admito sabendo que, quando sairmos, seremos
novamente a professora e o aluno e o que houve aqui icará apenas nas
nossas memó rias.
Nuno abre a porta no instante em que a energia volta, como um
lembrete do universo de que o que izemos aqui foi algo proibido.

Nuno nã o mentiu, eles estã o mesmo à nossa espera.


Em uma parte distante do corredor, de um lado Maddie e Levi
sentados, um ao lado do outro, vendo algo no celular como se
estivessem em um parque ao ar livre, alheios a tudo, do outro está Ivan
de pé , fumando um cigarro, com os olhos ixos em Nuno, que caminha a
uma boa distâ ncia de mim.
— Meu Deus, eu quero morrer — digo baixinho enquanto nos
aproximamos.
— Para com isso, Stella, eu já passei uma noite na sua casa.
— Nó s nã o izemos nada de errado aquela noite.
— Nem hoje.
— Eu devo estar com uma cara horrı́vel.
— De quem acabou de ser fodida em uma biblioteca — ele se inclina
e sussurra em meu ouvido.
Paro de andar e olho para ele, sinto o sangue deixar meu rosto.
— Está falando sé rio?
Nuno estende a mã o e tenho vontade de afastá -lo, mas nã o há
ningué m aqui alé m de nó s e dos seus amigos, que ainda estã o longe o
su iciente para nã o ouvirem.
— Tô .
— Nuno... — choramingo em desespero, ele arruma uma mecha do
meu cabelo, seus olhos grandes, intensos, percorrendo meu rosto como
se estivesse me vendo nua.
— Pronto, tá perfeita, linda, nem parece que está sem calcinha. —
Ele tenta nã o sorrir, mas escapa de seus lá bios e quero repreendê -lo,
mas estou agitada demais porque tenho total consciê ncia disso.
E bom ver Nuno sorrir, é bom saber que eu sou a responsá vel por
seu sorriso e que eu com certeza terei um em meu rosto por um longo
perı́odo, sempre que me lembrar desse dia.
Ele segura minha mã o e, embora eu saiba que nã o podemos, eu
permito, só por um momento, ingir que somos um casal de verdade.
— E aı́? — Nuno olha para cada um deles quando nos aproximamos,
e meus olhos pousam em Maddie, ela olha para mim como se pudesse
explodir de alegria. E eu de vergonha.
— Tudo tranquilo — Levi fala se levantando e ajudando a namorada
que vem até mim.
— Ivan — Nuno o chama e ele ergue o rosto encarando o grupo à
sua frente. — Valeu por ter icado.
— Onde mais eu estaria. — Ele se afasta da parede puxando a
mochila do chã o e colocando-a nas costas. — Vamos nessa.
— O que acham de ir na Beth? — Maddie pergunta olhando para
todos.
— Acho que vou deixar você s — digo tentando soltar a mã o de
Nuno, me sentindo deslocada no meio deles.
— O quê ? Nem pensar! — Maddie segura minha mã o livre. —
Vamos lá , Stella, por favor.
Olho para Nuno, que parece estar prestes a me implorar.
— Eu sei que você está com fome. — Ele pisca para mim e quero que
um buraco se abra para que eu possa me en iar dentro.
— Vamos, pro, o Nuno vai icar insuportá vel se você nã o for — Levi
provoca.
Entã o olho para Ivan, ele sempre parece tenso demais na minha
presença, como se estivesse se preparando para lutar, como se previsse
que algo ruim vai acontecer e talvez ele seja a ú nica pessoa sã desse
grupo. Seus olhos encontram os meus e ele bufa.
— Nã o olhe assim para mim — ele resmunga.
— Eu só vou se você quiser — digo, sorrindo para ele.
— Ah, caralho. — Ivan olha para Nuno e posso jurar que eles se
conversam só com essa troca de olhares. Nuno ergue os ombros e Ivan
bufa. — Vamos logo, eu tô morrendo de fome.
Ivan se afasta, caminhando com o cigarro entre os lá bios, os cabelos
loiros rebeldes e o ar de perigo de sempre, Maddie e Levi vã o logo atrá s
e por im eu e Nuno. Quando chegamos à porta, nossas mã os se soltam,
nos afastamos e percebo que ainda estamos naquele estranho processo
de se vestir.
Nã o sei onde pô r as mã os, elas parecem nã o se encaixar em nenhum
lugar, formigam de vontade de segurar a sua, de tocá -la, de trazê -la para
perto de mim. Estou nervoso e tudo o que consigo pensar é que Stella
está aqui, comigo, caminhando ao meu lado, sorrindo de algo que Levi
falou.
Sem calcinha.
Merda!
Olho em volta à procura de algué m que possa nos ver, embora nã o
estejamos fazendo nada demais, somos apenas um estranho grupo de
alunos e uma professora que é visto saindo tarde da escola depois de
icarem presos por conta de uma tempestade. Nada demais, a nã o ser
pelo fato de que um deles ainda sente o cheiro de sexo em suas mã os e
seu coraçã o bate com tanta força, que é até difı́cil respirar.
Caminhamos pelo estacionamento desviando das poças de á gua que
se formaram por todos os lados, Stella se desequilibra em uma delas e
estendo minha mã o segurando-a pelo cotovelo.
— Você está bem? — Me aproximo pegando a sua bolsa e odeio a
forma como ela se afasta sutilmente do meu toque, como se fosse
errado ter minhas mã os sobre ela.
— Sã o esses saltos, eles enterraram na lama — ela diz sem olhar
para mim.
Abaixo o olhar para seus pé s, ela é tã o pequena que, mesmo com
eles, ainda tive que me inclinar para beijá -la. Porra, daria tudo para ter
visto-a naquela biblioteca com a saia enrolada na cintura, e esses saltos,
gemendo baixinho enquanto eu estava dentro dela.
— Se quiser pode tirar.
— Nã o posso.
— Por quê ?
— Porque nã o.
— Otima resposta.
Ela sorri e en io as mã os nos bolsos da calça ou vou acabar
puxando-a para mim e beijando-a aqui mesmo. Que se foda o mundo.
— Nuno, pare de me olhar assim — ela me repreende.
— Desculpa, nã o consigo — sussurro.
— Trate de se esforçar mais, por favor.
— Nã o tem ningué m aqui.
— Eu ico nervosa.
— Ah, Stellinha, tã o covarde — brinco para disfarçar minha
ansiedade e, pela forma como ela sorri, noto que nã o sou o ú nico que
nã o sabe como agir.
Odeio que nã o tivemos tempo para nada, que nã o consegui dizer a
ela que foi incrı́vel, mil vezes melhor do que imaginei, que ainda estou
meio bobo e que esse sorriso idiota nã o vai sair do meu rosto tã o cedo.
Sempre achei que nossa primeira vez seria em um quarto, com uma
cama para que ela pudesse se aninhar em meu peito depois e entã o
conversarı́amos sobre qualquer coisa, mas Stella praticamente saiu
correndo daquela biblioteca e agora estamos cercados de pessoas.
E eu nem posso tocá -la.
Maddie destrava o carro e Ivan abre a porta de trá s entrando com
sua cara de merda.
— Todos os adolescentes dessa cidade dirigem? — Stella pergunta
surpresa.
— E algumas crianças també m — digo.
— Você tá brincando. — Ela arregala os olhos, como se nã o fosse
capaz de acreditar no que digo.
— Nã o tô nã o, eu comecei aos doze.
— Que loucura.
— Você nã o viu nada. — Maddie abre a porta do passageiro e
aponta para Stella. — Pro, ique à vontade.
— Obrigada, querida.
Ela entra e vou para o banco de trá s.
— Aonde vamos? — Levi pergunta enquanto Maddie sai do
estacionamento.
— Na Beth, né .
— O que é Beth? — Stella pergunta.
— E o melhor café da cidade — Maddie responde.
— Oba, adoro café ! — Stella diz animada.
— Claro que adora, todo leitor que se preze ama café .
Elas se olham como se Maddie tivesse acabado de dizer a coisa mais
incrı́vel do mundo e continuo sorrindo.
Como o moleque bobo que sou.

— Oi, Beth, já está fechando? — Maddie pergunta quando nos


aproximamos do café , que está com as portas quase fechadas.
— A chuva acabou destelhando a casa e Rael está tentando
consertar — ela começa a explicar. — Como nã o tinha ningué m resolvi
fechar mais cedo pra tentar ajudar com alguma coisa, mas você s podem
entrar — ela diz abrindo a porta do café .
— Estragou muita coisa? — pergunto preocupado.
Beth é uma das melhores pessoas que conheço nessa cidade e a
prova de que a vida nem sempre é justa, pois, apesar de trabalhar dia e
noite, ela nã o tem nem metade da grana que a empregada lá de casa
ganha.
— Ainda nã o consegui ver, estava cuidando do café . — Ela parece
a lita e sei bem o motivo, Rael está sozinho lá atrá s, provavelmente no
telhado, nã o é algo que nenhuma mã e goste, muito menos Beth.
— A gente pode ir lá dar uma olhada — Ivan diz olhando para mim.
— Mas você s vieram aqui para comer e estã o acompanhados, nã o é
justo. — Beth aponta para Maddie e Stella.
— O que nã o é justo é deixar o Rael se foder sozinho — Ivan diz e
recebe um olhar feio de Maddie.
— Olha a boca, Ivan!
Beth sorri.
— Já conhece a Stella? — Maddie a apresenta.
— Sim, ela já veio aqui algumas vezes. Como vai, querida?
— Estou bem, obrigada. Se quiser, posso ajudar em algo — Stella diz
e olho para os saltos em seus pé s.
— Nem pensar nisso — Beth responde envergonhada.
— Estamos indo lá — Ivan avisa enquanto se afasta com Levi.
— Você se incomoda de esperar um pouco aqui com a Maddie? —
pergunto a Stella.
— De forma alguma, eu realmente posso ajudar se for preciso.
— Só ica aqui com a Maddie, já voltamos. — Toco sua mã o
rapidamente e, mesmo sabendo que estamos sozinhos, olho em volta
por puro há bito.
Deixo as meninas no salã o com Beth e me junto aos outros lá atrá s,
pelo jeito a chuva foi mais forte do que eu imaginava e demoramos mais
de uma hora removendo telhas e limpando o estrago.
— Eu nã o tinha ideia de que tinha sido tã o forte — digo depois de
inalmente conseguir ajudar Rael a arrumar o buraco no telhado.
— Estava ocupado com a professora, né , totalmente compreensı́vel
— Levi brinca e tenho vontade de mandá -lo à merda.
— Ei, cara, respeita a Stella! — Ivan o repreende mais irritado que o
normal.
— Ei, foi mal — Levi diz envergonhado. — Eu nã o quis desrespeitar,
entã o é sé rio isso entre você s? — Olha para mim como se nã o
conseguisse imaginar como poderia ser.
— Nã o sei. — Ergo os ombros me sentindo frustrado. — Ela acha
que nã o podemos icar juntos por causa do lance da escola, da minha
idade e tal.
— Entã o você s estã o só se curtindo? — Levi pergunta ignorando o
olhar feio de Ivan.
— Acho que sim. — Odeio a pontada de tristeza que surge em
minha voz quando penso no que aconteceu hoje e tento encaixá -lo
nessa expressã o.
Curtiçã o...
Nã o é isso que Stella é para mim, talvez naquela noite sim, mas hoje
é muito mais que isso, mesmo que eu nã o consiga nomear ainda o que
sinto quando estou perto dela, tenho certeza de que nã o é curtiçã o.
Rael, que está observando nossa conversa, franze o cenho. O rosto
carrancudo e sé rio de sempre, parece prestes a se partir ao meio
enquanto analisa tudo, como se ele fosse muito mais velho do que
realmente é . Dos trê s, ele é o mais novo, mas Matteo sempre disse que
Rael precisou amadurecer mais cedo que o resto dos moleques da idade
deles, e que isso fez com que ele perdesse a leveza da adolescê ncia. Me
pergunto se daqui a cinco anos també m terei essa carranca em meu
rosto e se Stella se importaria com isso. Talvez seja algo a meu favor.
— Que merda, cara, você s combinam e a professora é tã o legal —
Levi continua.
— Nã o quero pensar sobre isso, deixa rolar — minto porque a
verdade é que tudo o que eu faço é pensar nisso.
— Cuidado, Nuno, o coraçã o nã o compreende alguns termos — Rael
diz surpreendendo a todos com seu tom de voz alto e grave, enquanto
fecha um saco de lixo e joga na caçamba da caminhonete.
— Tô ligado, valeu. — Tento ser o mais relaxado possı́vel, mas sinto
que ele sabe o que está dizendo, com certeza ele sabe.
Precisamos de mais meia hora até terminarmos tudo. Com a ajuda
das meninas, Beth monta uma mesa no quintal e enche de coisas
gostosas, estamos famintos, sujos e exaustos, mas basta olhar para
Stella do outro lado sentada ao lado de Maddie e Beth, conversando e
sorrindo, leve sem o peso de se sentir errada ou inferior, que me sinto
bem.
Olho em volta e encontro Ivan sentado em um banco debaixo de
uma á rvore, ele está calado e sé rio e só de lembrar da nossa ú ltima
conversa, de que algo está acontecendo com ele, me sinto mal.
Vou até o meu amigo e me sento ao seu lado puxando a camiseta
pela cabeça e limpando o rosto.
— Belo primeiro encontro pra você s. — Ele aponta o queixo para
onde Stella está e sorrio.
— As coisas entre nó s nunca sã o normais.
— Quem liga para essas merdas, né ?
— Pois é .
Ivan també m está se limpando, a camiseta embolada nas mã os, o
rosto sujo e os cabelos molhados, parece algué m que trabalhou o dia
inteiro e imagino que eu nã o esteja muito melhor.
— Estou preocupado com você — digo encarando um corte que iz
no dedo.
— Nã o tem nada pra se preocupar — ele responde rá pido demais e
sei que é mentira.
— Você nunca escondeu nada de mim.
— Porque nã o é comigo.
— Entã o é com quem?
— Já disse, nã o é comigo.
— Está tudo bem com o Nick e com o Zach, certo?
— Meus irmã os estã o ó timos.
— Seus pais?
— Como dois adolescentes em eterna lua de mel. — Ele faz uma
cara irritante e sorrio. Na verdade, a famı́lia de Ivan nã o é perfeita,
muitas coisas aconteceram e eles precisaram se adaptar, a diferença
entre a famı́lia dele e a minha é algo bem simples, mas que faz toda a
diferença: amor.
Eles superam suas merdas juntos, sofrem juntos, choram e sorriem
em volta da mesa, compartilham seus medos e comemoram suas
vitó rias. E algo que deveria ser normal, mas que nem todos tem.
Entã o tenho certeza do que se trata.
— E a Cindy?
Ivan me encara por baixo dos cabelos ú midos de suor.
— Já disse, nã o é nada. — Seu tom diz exatamente o contrá rio.
— Por favor me promete que, quando icar muito difı́cil, você vai me
procurar?
Ivan me encara por um instante antes de passar sua camiseta de
volta pela cabeça.
— Acho melhor você aproveitar esse momento e icar com a tua
garota, aqui você s estã o seguros, ningué m vai julgar nada.
— Eu sei.
— Vai lá , ela está olhando para cá .
Meu amigo se levanta caminhando em direçã o a mesa, se juntando a
Levi e Rael, sem responder a minha pergunta.
Passamos a hora seguinte ajudando Beth a preparar comida para os
meninos, alimentar quatro rapazes famintos dá mais trabalho do que
imaginei. Estou nervosa e nã o faço ideia do que ela está pensando ao
ver uma professora no meio de seus alunos, nem ao menos sei o que
responder caso ela pergunte, mas nã o consigo encontrar nada alé m de
gentileza em seus olhos.
— O que está achando da cidade? — ela pergunta enquanto coloca
pratos e talheres na mesa improvisada, que montamos no belo quintal
que ela tem na á rea interna do café onde ica a sua casa. E um lugar
lindo e aconchegante, que me faz pensar em uma vilinha do interior de
alguma cidade mı́stica.
— Eu ainda nã o tive muito tempo de conhecê -la, mas estou
gostando, é uma bela cidade. Aliá s, sua casa é incrı́vel, nunca imaginei
que, por trá s do café , pudesse existir algo assim.
Beth olha em volta com um brilho apaixonado no olhar e o sorriso
que parece ser uma marca registrada sua.
— E um bom lugar para se viver — ela responde em um suspiro
satisfeito e imagino o quanto ela deve amar seu lar.
Beth olha na direçã o de Nuno, ele está sentado com Ivan debaixo de
uma grande á rvore, do outro lado do quintal, ambos parecem exaustos
e estã o distraı́dos em uma conversa que parece ı́ntima demais para o
resto de nó s.
— Imagino que você s icaram presos na escola com essa
tempestade.
— Sim, icamos e eles me convidaram para comer, nã o me deixaram
recusar — respondo sentindo a voz trê mula.
Beth sorri, sei que ela nã o acredita na minha mentira, e se levar em
conta o modo como Nuno olha para mim a cada dois segundos, até
mesmo o Papa do outro lado do mundo é capaz de sentir que algo está
acontecendo.
— O Nuno é um garoto muito especial — ela diz olhando para ele
agora sem camisa, o rosto sujo e os cabelos desgrenhados, mesmo
assim, tã o lindo que me falta o ar.
— Todos eles sã o.
— O irmã o dele era o melhor amigo do Rael. — Ela me dá um
sorriso triste. — Quando ele icou doente, a cidade inteira adoeceu
junto, foi muito triste o que aconteceu com o nosso Matteo.
— Posso imaginar. — Olho para o garoto do outro lado do jardim
enquanto imagens de um Nuno pequeno, chorando a morte do irmã o,
inundam minha mente e fazem meu coraçã o doer por ele.
— Em uma cidade pequena, a dor de um se torna a dor de todos —
ela completa. — A dor da famı́lia deles foi terrı́vel, Nuno sofreu mais do
que um garotinho deveria suportar, foi tudo muito rá pido e, quando ele
se foi, nenhum deles se recuperou, nem mesmo meu Rael que se fechou
ainda mais. — Beth olha para o ilho, que, nesse momento, está com um
sorriso raro e enorme em seu rosto aristocrá tico e belo, ele realmente
parece algué m que perdeu algo, o seu olhar carrega uma tristeza que
parece capaz de nos engolir e, apesar de tudo, o torna ainda mais
bonito. Misterioso. Exó tico. — Posso te dar um conselho, menina? — ela
se aproxima, falando bem baixinho, mesmo que estejamos sozinhas.
— Claro.
— Seja feliz, a vida é curta demais para se privar de algo. — Beth
segura minha mã o. — Só tenha cuidado.
— Eu juro que estou tentando, mas nã o consigo ver como isso
poderia ser possı́vel.
— Confesso que no começo iquei preocupada que fosse apenas
uma brincadeira de menino, mas nã o é , basta olhar para ele e ver que
algo mudou. Você mudou.
— Há muita coisa em jogo.
— Você s tê m uma boa equipe. — Ela dá um tapinha em minha mã o
e pisca para mim. — Isso conta muito.
Olho para Maddie e Levi, sentados juntos como sempre; e para Ivan,
que parece prestes a matar algué m. Depois olho para Nuno e sorrio,
incapaz de conter a excitaçã o por poder olhar para ele sem medo.
— Acho que temos sim.
— Eu gostei de você desde a primeira vez que te vi, gostei ainda
mais quando vi meu menino sorrir, agora posso dizer com certeza que
minha casa é sua, para o que precisar, sempre que quiser.
— Obrigada.
— Só nã o machuque meu menino, ele já teve dor demais em sua
vida.
— Se depender só de mim, eu jamais farei isso.
— Boa garota. — Ela se levanta quando Nuno se aproxima.
Caminhando devagar, como um felino prestes a dar o bote. Ela estende a
mã o no peito dele, dando um tapinha carinhoso e Nuno se inclina
depositando um beijo em seus cabelos, daquele jeito que faz qualquer
ser humano se render.
— Oi — ele diz ao se aproximar.
— E aı́, cansou de salvar o mundo? — Sorrio igual uma boba quando
ele para na minha frente me obrigando a erguer o rosto.
— Acho que por hoje já deu.
Ele se senta ao meu lado; o cheiro de suor, terra e chuva se mistura
com o seu cheiro e me faz ter vontade de beijá -lo.
— Você nã o deveria ter tirado a camiseta — digo sentindo meu
rosto esquentar e o dele se iluminar com o sorriso torto que se espalha.
— Por quê ?
— Deus, todo mundo pode ver as marcas na sua pele. — Quero
morrer de tanta vergonha enquanto ele olha por sobre o ombro e
depois para mim, como se estivé ssemos sozinhos.
— E perder a chance de me exibir?
— Jesus Cristo, me leve agora! — choramingo escondendo o rosto
entre minhas mã os e ouvindo a risada deliciosa que ele me dá .
— Relaxa, eu disse que foi minha gata.
— E você tem uma gata?
— Nã o. — Ele continua sorrindo e respiro fundo me obrigando a
relaxar. — O que achou da Beth?
— Ela é maravilhosa, e faz bolinhos incrı́veis.
— Sim, ela é .
— E ela te ama muito.
— Nã o conte para o Rael, mas acho que sou seu favorito — ele
continua brincando, tã o leve e belo que me sinto meio bobona
admirando-o.
Nuno puxa minha mã o para o seu colo, enroscando nossos dedos de
forma natural, como um casal.
— Nuno, nã o... — Tento me afastar, olho para todas as pessoas, em
busca de algum olhar de reprovaçã o, mas cada um deles está entretido
com outras coisas, nã o há ningué m olhando para nó s.
— Estamos seguros aqui — ele sussurra. — Eles sã o nossos amigos.
Nossos amigos... essa frase faz o meu coraçã o palpitar de emoçã o,
nã o sei como cheguei nesse ponto em que posso considerar esses
adolescentes nossos amigos, mas nã o estou em condiçõ es de reclamar,
eles nos protegeram hoje na escola, até mesmo Ivan permaneceu ao
nosso lado sem questionar e isso já é muito mais do que qualquer um
fez por mim até hoje.
— Acho que você tem razã o. — Relaxo e permito que ele me puxe
para mais perto.
— Claro que tenho. — Ele sorri e deixa um beijo em minha cabeça.
— Como você está ?
— Como uma mulher se sentiria se estivesse sem calcinha.
— Ah, porra... nã o fala isso pra mim.
Seus olhos ganham um brilho que já conheço bem, Nuno morde a
boca e imagino que ele faça isso quando quer me beijar e nã o pode,
sinto meu rosto esquentar e a certeza de que precisamos dar um jeito
de nã o icar parecendo dois idiotas sempre que estivermos juntos ou
logo nosso segredo será descoberto.
— Vai comer, você deve estar faminto. — Empurro seu ombro e
Nuno desce seu olhar para o meu corpo de um jeito que deve ser
proibido em pú blico.
— Você nã o faz ideia.

Comemos, bebemos, conversamos.


A noite ica agradavelmente suave depois da tempestade, uma brisa
fresca deixa nossas peles geladas e os grilos cantam ao fundo, é tã o
perfeito que tenho medo de piscar e descobrir que esse dia nã o passou
de um sonho.
Ouço mais histó rias do que imaginei que um grupo de adolescentes
poderia ter para contar. Ao contrá rio do que acreditei, nã o me sinto
deslocada, nem tã o velha como me sinto quando estou na sala de aula,
aqui sou acolhida e respeitada por essas pessoas que julguei antes
mesmo de conhecê -las.
Ivan até sorri e me surpreendo com o quanto ele é tı́mido, por baixo
da sua pose de bad boy tem um garoto que mataria Suzy do coraçã o se
ela o conhecesse na adolescê ncia. Levi é engraçado, leve e faz todos
rirem com suas histó rias. Maddie é inteligente e sensata, posso jurar
que, por baixo dessa carcaça, há uma alma antiga que já viveu muitas
vidas. Rael é observador e calado, quase nã o fala, embora seus olhos
estejam sempre atentos a tudo a sua volta como um animal selvagem.
Nuno nã o solta minha mã o, como se soubesse que nosso tempo
nesse refú gio secreto é curto e, que, quando sairmos por aquela porta,
de volta à vida real, precisaremos nos distanciar e só de pensar nisso
sinto meu peito doer.
— Vem cá . — Ele se levanta no meio de uma discussã o sobre ilmes
antigos que está bastante divertida.
— Ei, onde você está indo? — pergunto quando ele me puxa em
direçã o ao outro lado do jardim.
— Para longe desse monte de gente que nã o para de falar. — Ele
sorri parecendo mais o menino que realmente é enquanto caminhamos
pelo jardim, passando por uma construçã o pequena e uma garagem
onde avisto dois carros antigos. As vozes vã o icando cada vez mais
distantes, até que Nuno me puxa encostando-me em uma parede e
beijando minha boca. Sou surpreendida pela força do seu beijo e do
desejo que eu estava de poder tocá -lo, passo minha mã o por suas costas
porque preciso sentir o calor da sua pele e a sensaçã o do seu corpo
sobre o meu. Nuno retesa quando toco uma parte sensı́vel onde há um
arranhã o que iz mais cedo.
— Desculpa, acho que te machuquei — sussurro com a sua boca
ainda sobre a minha.
— Nã o se desculpe, eu gosto e fui eu quem pedi. — Ele volta a me
beijar, sua ereçã o pressiona minha barriga. A falta da calcinha me deixa
mais exposta e nervosa.
— Nuno, se algué m aparecer... — Olho para o lado esperando que
um dos seus amigos surja a qualquer momento.
— Eles sabem que precisamos de um pouco de privacidade — Nuno
diz antes de voltar a me beijar e tento nã o pensar muito sobre isso.
Nossas mã os afoitas se movem por nossos corpos, como se izesse
dias que nã o nos tocamos, nossas bocas sã o incapazes de parar um
segundo sequer, duelam entre si. Me sinto uma adolescente eufó rica e
cheia de tesã o e tenho medo desse sentimento maluco que me faz
perder o chã o quando estou com Nuno.
Quando inalmente nos acalmamos, ele segura meu rosto em suas
mã os, seus olhos cansados me observam enquanto seus polegares
fazem cı́rculos preguiçosos em minha bochecha. Adoro estar assim,
apenas olhando para ele, sem pensar em nada, sem medo, sem culpa.
— No que você está pensando? — pergunto observando um vinco
se formar entre seus olhos.
— Que essa noite está acabando e eu já estou icando puto da vida.
Passo a ponta dos dedos em seus cabelos afastando uma mecha,
toco seu rosto bonito e me sinto um pouco boba com o quanto ele mexe
comigo.
— Ela precisa acabar, Nuno.
— Eu odeio a nossa condiçã o.
— Nã o odeie. Se nã o fosse por ela, jamais nos encontrarı́amos
novamente.
Ele apoia sua testa na minha, fecho os olhos absorvendo os
instantes inais, está tarde, amanhã todos nó s precisamos estar de pé
cedo e preciso de um tempo para me recompor. Só de pensar no dia de
amanhã , meus pelos se arrepiam e afasto todos os pensamentos para
longe.
— Quero te pedir um favor — digo ainda sem coragem de olhar em
seus olhos.
— O que você quiser.
— Nã o me machuque — sussurro e me sinto ridı́cula quando as
palavras saem da minha boca.
— Como assim? — Ele se afasta, seus olhos grandes e confusos
olham para mim sem entender o que estou falando.
— Eu sei que isso que está acontecendo é uma loucura, sei que você
é jovem e logo vai estar...
Nã o consigo terminar de falar, sua boca me cala em um beijo
doloroso, bruto, magoado, Nuno me puxa para si, me segurando com
força, como se temesse me perder.
Sou uma confusã o de sentimentos e, nesse momento, coloco a culpa
no estresse de viver mentindo para todos, mas no fundo, enquanto
meus braços se enroscam no corpo alto e magro desse garoto,
desejando poder sustentá -lo comigo por mais tempo, sei que estou me
enganando. E difı́cil para mim aceitar o que está acontecendo, que estou
aqui, sentindo meu coraçã o bater por um garoto que nem ao menos
chegou à maioridade, que me quer como se eu fosse a coisa mais
importante do mundo e que nã o tem medo de expressar seus
sentimentos, enquanto eu mal consigo admitir os meus para mim
mesma.
Quando Nuno se afasta, passando as mã os nos cabelos, sinto que há
algo sé rio em seu rosto, ele olha para os dois lados, como se precisasse
ter certeza de que ningué m vai aparecer antes de voltar a olhar para
mim.
— Nunca mais me trate como um moleque, Stella.
— Nuno...
— Nã o, Stella, chega dessa merda, eu tô cansado dessa porra toda.
— O que você quer que eu diga?
— Nã o sei, só pare de me tratar assim, de achar que nã o tenho
maturidade, isso me magoa.
Esfrego meu rosto sentindo-me perdida, assustada e com medo do
que estou sentindo.
— Sei que você tem muito a perder, que você acha que tudo isso é
apenas diversã o para mim, que logo vou me cansar de pegar a
professora, mas nã o é .
— Nã o?
— Nã o, você nã o é só uma trepada na biblioteca, nem a fantasia de
mulher mais velha. — Ele ri um riso nervoso — Por favor, você nem é
assim tã o mais velha que eu, olhe para você . Qualquer um pode te
confundir com uma das alunas daquela merda de escola. — Ele aponta
para mim. — Tenho certeza de que é mais natural que... metade das
alunas de Santo Egı́dio. — Ele passa a mã o em meu rosto, desce por
meu pescoço e se fecham em meu seio. — Tã o pequena, tã o... linda.
— Eu preciso entender o que está acontecendo.
— E tã o importante assim para você saber o que está acontecendo?
Você teria essa mesma insegurança se eu fosse mais velho?
— Nuno...
— Ah, que se foda! Nã o precisa responder, eu já sei. — Ele se afasta
e me sinto vazia sem sua presença.
— E complicado para mim, Nuno, tenho muita coisa em jogo,
preciso saber onde estou me metendo.
— E para mim? Você acha que é fá cil? Amanhã ter que olhar para
você e ingir que nã o te ouvi gozar? Ver aquele ilho da puta do Tony te
olhando como se pudesse te comer ali mesmo e ingir que nã o ligo?
Você tem ideia das coisas que ouço e tenho que icar calado?
— Nuno, por favor... — Escondo o rosto na mã o, sentindo suas
palavras atingirem aquele pontinho que tanto estou ingindo nã o ouvir
dentro de mim, chamado consciê ncia.
— Nã o é fá cil para mim també m, eu tô dando tudo de mim para que
você me enxergue. Que você acredite em mim. Mas parece que dou um
passo para frente e trê s para trá s.
— Isso nã o é verdade. — Encaro-o me surpreendendo com a sua
dor.
— Você nã o con ia em mim.
— Como nã o? Olhe para mim. Olha o que izemos na biblioteca da
escola, e agora estou aqui, no quintal da casa dos seus amigos, rodeada
por alunos que sabem que estou te beijando, se isso nã o é con iar, Nuno,
eu nã o sei mais o que é .
Ele olha para o cé u e solta um palavrã o, parece tã o cansado e
abatido, que quero pedir desculpas, mas nã o abro mais minha boca,
tenho medo do que pode sair dela. Entã o cruzo meus braços e imploro
para o meu coraçã o que ele pare de bater tã o rá pido, nã o sei quanto
tempo uma pessoa pode aguentar.
— Sabe, Stella, aquela noite em que nos conhecemos, eu estava ali
pelo Matteo, aquela era a banda favorita dele e ele me prometeu que, no
dia que eles viessem ao Brasil, ele me levaria no show dos caras.
Durante cinco anos, eu guardei essa promessa comigo e, embora eu
acreditasse que seria bacana homenageá -lo, no im das contas, foi uma
merda, me senti sozinho e angustiado a maior parte do tempo, eu
queria dar o fora e, quando eu te vi, foi tã o estranho como parecia que
você estava ali para mim. — Nuno sorri, meio envergonhado por estar
admitindo algo tã o ı́ntimo. — No dia seguinte sonhei com o Matteo, foi
a primeira vez desde que ele morreu que eu sonhei com meu irmã o, ele
parecia o mesmo, como se tivé ssemos a mesma idade e eu contei para
ele que conheci uma garota incrı́vel, foi tã o real, ele me disse para nã o
deixar você escapar. E o que eu venho tentando desde entã o.
— Foi por isso que você me procurou?
— Sim. Entã o para de achar que isso que tá acontecendo é só uma
fantasia de moleque, porque nã o é .
— Ah, Nuno... — Puxo-o pela mã o trazendo-o para perto de mim, ele
nã o me abraça, mas permite que eu o envolva em meus braços em torno
de si, sinto as lá grimas em meus olhos enquanto tento compreender a
ligaçã o entre ele e seu irmã o morto. — Me perdoe — sussurro com os
lá bios em seu pescoço. — Por favor, me perdoe.
— Eu só queria que você soubesse que serei capaz de morrer antes
de te machucar.
Ergo o rosto e olho para ele, Nuno inalmente me abraça, ele ainda
parece magoado e mesmo assim faz um carinho em meu rosto. O toque
dos seus dedos em minha pele me faz sorrir.
— Eu també m — digo antes de beijar seu queixo. — Mas isso nã o
signi ica que nã o vamos nos machucar.
— A gente vai dar um jeito — ele promete com a con iança de
algué m que acredita no que diz.
— Temos uma boa equipe — repito a frase que Beth me falou.
— Temos sim. — Ele olha em meus olhos, que nesse momento estã o
repletos de sentimentos por esse garoto bonito. — Nã o chora, Stella —
ele pede, o vinco que se aprofunda entre seus olhos, deixa-o com uma
aparê ncia mais madura, quando uma lá grima escapa do meu olho.
— Eu espero que o Matteo goste da garota que você escolheu.
— Eu tenho certeza de que sim, ele tinha bom gosto.
Sorrio enquanto ele passa o polegar embaixo dos meus olhos
limpando a lá grima fujona.
— Eu quero você , Stella, nã o me importo se tiver que ser assim,
escondido de todos até que estejamos livres, eu aceito qualquer coisa,
desde que eu saiba que terei você por mim está tudo bem.
— Estou com medo, Nuno — admito.
— Eu sei, você é uma covarde — ele me provoca, mas o sorriso que
tanto amo nã o está em seus lá bios.
— Sim eu sou, mas isso nã o muda o que sinto — admito ignorando
o perigo de me deixar levar.
— Isso é o que importa.
Ele me abraça, e nesse momento nã o quero pensar no futuro, tenho
medo de que ele seja curto demais. Eu quero aproveitar o hoje, porque
ele é tudo o que temos de verdade.
Jogo o cigarro no chã o e piso nele, algué m passa por mim e me
cumprimenta, sorrio mais por há bito, já que nã o faço ideia do que
falaram, nem ao menos quem foi, estou agitado demais, a noite passada
pareceu nã o ter im, desde o momento em que deixamos Stella em casa
até a hora em que parei o carro no estacionamento de alunos dez
minutos atrá s, foi como se tivessem se passado dias e nã o apenas
algumas horas.
Minha cabeça gira com milhõ es de merdas e odeio a forma como me
sinto exatamente como o moleque que Stella me chama, tento evitar,
digo a mim mesmo que a conversa que tivemos ontem foi su iciente
para que ela entenda que nã o vou machucá -la, mas tudo o que vejo sã o
seus olhos escuros implorando para que eu nã o seja um babaca. Droga!
Nã o posso julgá -la, é o mesmo que pedir para que o segurador
acredite que, apesar de ser jovem, nã o sou imprudente no volante; as
estatı́sticas dizem o contrá rio e tudo o que posso fazer é provar que sou
a exceçã o.
Caminho em direçã o à escola, há funcioná rios arrumando os
estragos da noite, telhas soltas, á rvores caı́das, folhas, lama e muita
sujeira por todos os lados. Um verdadeiro caos que me deixa aliviado
por saber que nã o sou só eu que sinto como se um furacã o tivesse
passado por mim.
Assim que entro, a primeira coisa que faço é procurar por ela, nã o
nos falamos desde que a deixei em casa, Stella nã o gosta de mensagens
escritas e, por mais que eu odeie, sei o motivo, mensagens sã o provas e
ela precisa se precaver. Digo a mim mesmo que nã o signi ica que ela
nã o con ia em mim, ela só nã o quer dar sorte ao azar.
A imagem dela chorando ontem me tirou o sono, Stella está
apavorada e, por mais que seja difı́cil aceitar, percebi como ela foi se
distanciando pouco a pouco, sempre olhando para os lados, o sorriso
tenso nos lá bios, e quando chegamos na sua rua e ela soltou a minha
mã o foi como levar um soco bem no meio do meu estô mago... Merda,
pensar que isso é tudo o que podemos ter me deixa enjoado.
— E aı́, sumido? — Cindy se aproxima sorrindo, mas, apesar da sua
suposta alegria matutina, ela tem olheiras profundas em seu rosto.
— Você está bem? — pergunto preocupado.
— Claro, por que nã o estaria?
— Parece cansada.
— A noite foi boa. — Ela pisca para mim, mas nã o consigo acreditar.
— Tá virada?
— Uhum, mas tô de boa.
— Se cuida, Cindy.
— Ih, já tá icando careta?
— Nã o brinca com isso, é sé rio, você nã o parece bem.
— Fica tranquilo, eu sei me cuidar. — Ela coloca um chiclete na boca
e me oferece outro.
— Nã o, valeu.
— E você , onde se meteu? O pessoal estava te procurando ontem.
— Estava no Rael, o telhado dele quebrou, fomos ajudar.
— Ah, droga! Eles estã o bem?
— Estã o sim.
— O Ivan estava com você ?
— Sim, por quê ?
— Ah... é que o pessoal també m estava atrá s dele. — Ela parece
aliviada e uma parte minha quer entender o que está acontecendo com
esses dois, mas nã o tenho energia para isso agora. Eles que se
entendam.
Olho em direçã o à sala do segundo ano, onde sei que Stella dará aula
agora, tento nã o pensar no quanto soa assustador eu saber seus
horá rios. Vejo ela se aproximando, o rosto sé rio enquanto observa algo
no celular, os alunos abrem passagem para ela passar, Stella sorri e
agradece sem se dar conta dos olhares de admiraçã o. Tã o linda, tã o
minha...
— Ela é linda, né ? — Cindy, que ainda está ao meu lado, comenta e
mal consigo mover a cabeça concordando.
Stella ergue os olhos pouco antes de entrar na sala, é rá pido, só um
movimento discreto e nossos olhos se encontram, ela sorri quando
abaixa o olhar, mas tudo em seu rosto já mudou. Como se me ver fosse o
su iciente para que ela se iluminasse.
Imagino que eu deva estar da mesma forma, porque é exatamente
assim que estou me sentindo: uma parte aliviada, por ela nã o ter
evitado olhar para mim; a outra, agitada por nã o poder ir até ela e beijá -
la.
— Ah, meu Deus do cé u, você s precisam parar com isso — Cindy
fala.
— Do que você está falando?
— Esse olhar, você quase tirou a roupa dela aqui, bem no meio do
corredor.
— Cale a boca, você tá muito doidona.
Tento passar por ela e entrar na sala, mas Cindy segura minha
camiseta me mantendo no lugar.
— Rolou, né ? — Ela olha em meus olhos enquanto pergunta como
se fosse simples assim admitir que transei com a nossa professora.
— Do que você está falando?
— A Maddie me contou por cima. — Ela faz uma cara de quem sabe
mais do que eu gostaria.
— Nã o enche, Cindy.
Retiro sua mã o do meu peito e entro na sala pensando em como
fazer para olhar para Stella de outra forma se, no fundo, tudo o que
mais quero é exatamente isso: poder tirar a sua roupa.

Para minha sorte, as duas aulas seguintes sã o um inferno, mas ao


menos tenho algo em que pensar que nã o seja uma forma de poder
estar a só s com ela novamente. E, quando Stella entra na sala se
desculpando pelo atraso, preciso me obrigar a lembrar de agir
naturalmente, o que seria o equivalente a tentar impedir o sol de
brilhar. Impossı́vel.
Ela manté m sua postura de professora e mal olha em minha direçã o,
por um lado me sinto ofendido por seu desprezo; enquanto por outro
lado, o mais sensato, estou aliviado por ela conseguir essa façanha.
Abro o livro, ouço o que ela diz, tento realizar as atividades, mas
tudo o que consigo pensar é nela gemendo enquanto eu entrava e saı́a
de dentro dela, em como sua pele é macia e quente, o seu cheiro é
delicioso e sua voz, nã o essa, autoritá ria, alta e fria, mas a que só eu
nessa sala conheço, baixinha, manhosa e quente, é linda.
— Com licença, professora Stella. — Jade, a coordenadora, abre a
porta interrompendo a aula. — Preciso que você libere o Nuno.
Stella olha para mim antes de responder.
— O Nuno? — Ela parece um pouco nervosa e, sinceramente, eu
també m. — C-claro, pode ir. — Ela me dá um sorriso simpá tico e me
levanto enquanto meus colegas começam a me provocar.
— Er... Nuno, o que você fez de errado dessa vez? — Um dos
moleques pergunta quando passo por ele.
— Aposto que é sobre o boato que tá rolando nos corredores sobre
uma misteriosa calcinha — outro fala, mas nã o tenho tempo para
perguntar nada. De repente, sinto como se tudo a minha volta perdesse
o foco, nã o olho para Stella, apenas mantenho a minha pose de
arrogante que tá acostumado a se envolver em tretas.
— Acho que o diretor tá apaixonado por mim, por isso ele ica
arrumando desculpas para ver minha carinha linda — brinco enquanto
passo pelas mesas arrancando algumas risadas, Maddie parece
preocupada e ergo os ombros sem ter ideia do que fazer.
Porra, se ela sabia, por que nã o me avisou?
— Já volto. — Pisco para Stella e ela revira os olhos como se eu fosse
apenas um aluno atrevido, é uma encenaçã o, posso notar na forma
como ela aperta o livro sobre seu peito, que está tã o nervosa quanto eu.
Saio da sala ao lado de Jade, ela manté m os braços cruzados na
frente do corpo como se fosse uma carcereira. Assobio uma cançã o
qualquer, só para que ningué m note o quanto estou tenso.
— O que tá pegando? — pergunto com um sorriso.
— Nã o sei, o diretor só me pediu para te chamar.
— Nossa, quanto misté rio!
Fazemos o resto do caminho até a sala dele em silê ncio e, quando
chegamos, ele está conversando com uma moça da limpeza e com
Esther, a bibliotecá ria.
— Ah, porra. — Paro na porta já sabendo exatamente o motivo para
estar aqui.
— Prontinho, Nuno, acho que o misté rio acabou — Jade diz, com um
sorriso idiota, parecendo satisfeita com a minha cara e me odeio por
nã o ter pensado em nada que pudesse me preparar para esse momento.
— Olá , Nuno, entre — Montanari diz e faço o que ele manda
sentando-me à sua frente.
— E aı́. — Cruzo a perna e me apoio no encosto relaxadamente.
— Eu gostaria que o senhor explicasse o que signi ica isso? — Ele
aponta para a calcinha de renda de Stella e tento manter a respiraçã o
sob controle quando olho para a peça.
— Até onde eu sei, isso é uma calcinha, o senhor sabe, aquela peça
que as mulheres usam por baixo da roupa.
— Engraçadinho você .
— Só estou respondendo o que o senhor perguntou.
— E sobre isso? — Ele aponta para a minha carteirinha escolar, com
a porra da minha cara de idiota estampada ao lado do meu nome. Olho
para ela e em seguida para ele, agora sem nenhuma gracinha. Com
certeza ela deve ter caı́do da minha carteira e eu nã o percebi.
Maravilha.
— O que o senhor quer que eu diga?
— O que diabos você tem na cabeça, garoto?
— Eu acho que pre iro nã o responder, talvez o senhor nã o goste de
saber.
— Na biblioteca, Nuno? Você passou de todos os limites — ele
aumenta o tom de voz e odeio a forma como ele se parece com meu pai
nesse momento.
— Vai me dizer que o senhor nunca fez algo parecido quando tinha
minha idade? — Dou um sorriso sarcá stico, mas que esconde o pavor
que estou sentindo.
Relaxa, Nuno, nã o tem como ningué m saber.
— Eu quero o nome da garota.
— Ah, desculpa, mas nã o vai rolar.
Ele se inclina para a frente, seus dedos perto demais da renda,
fazem meu coraçã o acelerar.
— Eu nã o pedi, garoto, eu estou mandando.
— Sem chance.
— Se você nã o me disser agora, vou ser obri... — ele começa a falar,
mas somos interrompidos quando a porta se abre.
— Opa! Cheguei. — Cindy entra mascando seu chiclete e com um
sorriso safado enquanto se aproxima passando sua mã o em meu
ombro. — Ah, aqui está ! — Ela estica o braço e pega a calcinha
balançando-a no ar. — Viu, Nuno, eu disse que tinha perdido aqui na
escola. — Cindy empurra meu ombro e sorrio desejando abraçá -la.
— E, você disse.

— Posso saber que porra você tem na cabeça? — pergunto para


Cindy assim que somos dispensados da sala do diretor, cada um com
uma advertê ncia nas mã os. A segunda em um mê s. Meu pai vai icar
orgulhoso de mim.
— Nada, por quê ?
— Você tomou uma advertê ncia.
— E, mais uma para a minha coleçã o. — Ela balança o papel no ar
ingindo que nã o se importa, quando nó s dois sabemos que ela vai se
encrencar por causa disso.
— Cindy — a chamo e seguro-a pelo braço fazendo-a parar.
— Eu sei, você me deve a vida.
— Mais ou menos isso.
— Tá , de nada.
— Mas por quê ?
— Porque eu gosto da professora, gosto do jeito que ela olha para
você e gosto do jeito que você olha para ela.
— Que histó ria é essa?
— Uhum, é isso aı́. — Ela volta a andar e me apresso a icar do seu
lado. — Alé m do mais, algué m precisa ser feliz nessa porra de escola.
Entã o faça por merecer.
— Eu tô tentando.
— Biblioteca, quem diria, hein, ousada essa professora.
Mordo o lá bio inferior para nã o falar nada, mas Cindy parece capaz
de ouvir meus pensamentos. Ou talvez de ler minha expressã o de
idiota.
— Dizem que as com cara de santa sã o as mais devassas. — Ela
pisca, sabendo que está me provocando. — Toma, guarda como
recordaçã o. — Ela joga a calcinha em minha direçã o e sai em disparada,
entrando no banheiro feminino.
— Eu te adoro! — grito na porta.
— E, eu sei! — ela grita de volta e saio com a calcinha de Stella no
bolso da minha calça e um sorriso idiota.

A noite está tranquila, o vento suave move os cabelos dela de um


lado para o outro e, por mais que eu esteja louco para tocá -la, me
mantenho distante observando-a caminhar de um lado para o outro. O
farol do carro iluminando a pequena nuvem de poeira em torno dela a
faz parecer uma igura mı́stica.
— Ei, agora tá tudo bem — tento falar pela milioné sima vez, mas ela
parece nã o me ouvir.
— Nuno, você está suspenso pela segunda vez no mê s, isso está
longe de estar tudo bem.
— Nã o seja exagerada, eu nã o estou suspenso, só levei uma
advertê ncia.
— Mais uma.
— E daı́?
— A Cindy nã o fez nada para ter sido advertida.
— Foi uma escolha dela.
— Jesus, isso é tã o errado — ela choraminga esfregando o rosto nas
mã os.
— Vem cá . — Estico a mã o e ela olha em volta, mesmo sabendo que
nã o há ningué m aqui alé m de nó s dois, antes de segurar minha mã o. E
um há bito que nã o conseguimos nos livrar.
Estamos em um ponto pouco conhecido da cidade, uma clareira na
reserva lorestal conhecida como Olho do Dragã o. onde eu costumava
trazer algumas garotas para transar, nã o que eu tenha dito isso para
Stella, mas, pela cara que ela fez quando parei o carro aqui, me faz
imaginar que ela saiba.
— Tá tudo sob controle. — Seguro seu rosto em minhas mã os
enquanto olho dentro dos seus olhos. — Como eu disse, ningué m
encontrou seu nome escrito, nunca vã o imaginar que aquela minú scula
calcinha deliciosa é da professora de Literatura.
— Isso nã o é engraçado.
— Nã o mesmo, só eu sei o quanto precisei me concentrar na cara
feia do diretor para nã o icar duro naquela sala.
Stella bufa e se afasta novamente.
— Você leva tudo na brincadeira. — Ela cruza os braços na frente do
peito e olha para mim como faz na sala de aula.
— Que merda, Stella, o que você quer que eu faça? Que me
desespere? Aconteceu, porra, a gente já sabia que uma hora iam achar.
— Agora a escola inteira tá falando que você e a Cindy estavam
transando na biblioteca.
— E qual o problema? — pergunto e ela me olha de cara feia. —
Espera aı́? Você está com ciú mes? — Um sorriso enorme brota em meu
rosto e quero beijá -la até fazer ela sorrir també m.
— Nã o seja ridı́culo.
— E um absurdo tã o grande assim se importar comigo?
— Eu me importo com você , muito.
— Entã o qual o problema?
— E desagradá vel icar ouvindo coisas.
— Que tipo de coisas?
— Nuno quer parar? — ela me repreende.
— Nã o posso, você está com ciú mes de mim.
— Eu nã o estou com ciú mes.
— Nã o? Olha pra mim e diz isso de novo.
— Droga, Nuno. — Ela cobre o rosto com as mã os e foda-se se tá
puta comigo, eu vou até ela e a seguro em meus braços. — As suas
aventuras com a Cindy foi o assunto do dia, eu nã o imaginei que seria
tã o difı́cil de ouvir — ela diz com o rosto em minha camiseta.
— Entã o estamos quites, porque ontem precisei ouvir uma idiota
falar que te viu aos beijos com o Tony na sala de aula.
— Você está brincando?
— Nã o tô nã o e tenho certeza de que aquele pau no cu deve estar
amando as fofocas que tá rolando por aı́.
— Odeio fofocas, é tã o baixo inventar histó rias sobre as pessoas.
— Nã o dou a mı́nima para o que dizem, o importante é que nó s dois
sabemos o que aconteceu naquela biblioteca e com certeza foi mil vezes
mais interessante que qualquer fofoca — falo com a boca em seus
cabelos, desejando que ela relaxe para que possamos aproveitar nosso
tempo fazendo algo mais interessante que brigar. — Sem contar que,
enquanto estã o nos ligando a outras pessoas, nunca vã o pensar em nó s
dois juntos.
— Você é ardiloso, garoto.
— Você nã o tem ideia do quanto.
— Eu nã o sei como nã o perceberam minha cara na hora que a Cindy
se levantou e foi atrá s de você .
— Eu imagino, eu també m iquei com cara de idiota quando ela
entrou na sala do diretor.
— Eu me senti uma cadela, deixando que ela tomasse a culpa de
tudo no meu lugar.
— Nã o se sinta.
— Isso nã o está certo, Nuno.
— Ei, relaxa, ela sabia o que estava fazendo.
— Já tem gente demais envolvida, isso nã o vai dar certo.
— Calma, medrosa, somos apenas adolescentes cheios de tesã o e
sem nenhum pudor — sussurro em seu ouvido e Stella estremece. — E
a Cindy jamais faria algo para me prejudicar.
Stella se afasta para olhar em meu rosto.
— Porque ela te ama — ela constata erroneamente.
— Nã o desse jeito que sua cabecinha já está pensando.
— Ah, nã o?
— Claro que nã o, crescemos juntos, nã o tem nada que ela nã o faria
por mim ou pelo Ivan, e vice-versa.
— Tem certeza?
— Absoluta. E quer saber? Eu acho que ela está apaixonada pelo
Ivan.
— O Ivan?
— E uma longa histó ria, nenhum dos dois admitem, mas eu percebi
quando... — paro de falar no instante em que percebo que ia falar
demais. — En im, nã o há nada com que se preocupar.
Stella respira fundo, como se inalmente começasse a relaxar e sinto
que essa conversa chegou ao im.
— Agora dá pra parar de pirar e vir aqui, ciumentinha?
Ela faz o que peço e me inclino para beijar a sua boca, algo que
desejei fazer desde o momento em que Stella saiu do carro de Maddie e
entrou no meu uma hora atrá s. Odeio esses esquemas para que
possamos nos ver, odeio nã o poder sair por aı́ com ela ao meu lado, mas
se o ú nico modo de icar com ela é tendo que pedir ajuda para os meus
amigos, eu vou aceitar feliz.
— Tá mais calma? — pergunto algum tempo depois e Stella balança
a cabeça con irmando. — Otimo. Nã o quero perder tempo brigando.
— Nem eu — ela diz, passeando o nariz por meu pescoço.
— Tava com saudades.
— A gente se viu ontem.
— Tem certeza? Acho que faz um mê s. — Beijo seu pescoço. —
Talvez mais.
Stella se arrepia inteira quando passo minha lı́ngua por sua pele e
puxo-a com força fazendo-a sentir meu pau pronto para ela.
— Fica tranquila que ningué m nunca imaginaria que a garota que
fodeu comigo em pé naquela biblioteca poderia ser a discreta e tı́mida
Stella Almeida. — Viro-a de costas para mim e beijo seu pescoço
sentindo-a relaxar. — A garota safada que gosta de ouvir sacanagem
enquanto transa. — Passo o dente no seu ombro fazendo-a arfar. — Que
me deixa duro quando rebola essa bunda gostosa no meu pau. —
Aperto seu quadril puxando-a para a minha ereçã o e ela faz exatamente
o que estou falando. — Ah, Stella, se você soubesse como iquei quando
vi a sua calcinha na mesa daquele velho nojento. — Coloco minha mã o
por baixo do seu vestido subindo por suas coxas até chegar onde quero.
— Precisei me segurar para nã o arrancá -la de lá para que ningué m
mais a visse, só eu. — Acaricio sua intimidade, esfregando meu dedo no
algodã o encharcado e sentindo Stella se desmanchar.
— Nuno... — ela choraminga meu nome, me fazendo perder a
cabeça enquanto a inclino para a frente apoiando-a no capô do carro,
imaginando-a debruçada em sua mesa, sobre seus livros.
— Minha pequena medrosa, tã o deliciosa. — Ergo seu vestido,
desejando ter trazido a calcinha de renda para que ela pudesse usá -la
enquanto eu estiver dentro dela. — Tã o minha — sussurro em seu
ouvido enquanto abro suas pernas para poder ter mais acesso a ela. —
Tã o dona de mim. — Beijo a pele do seu ombro enquanto a fodo com
meus dedos. — Tã o perfeita...
Stella inclina o rosto e segura o meu me beijando cheia de tesã o, me
afasto para poder pegar a camisinha, ela me ajuda a vesti-la dessa vez
enquanto a luz dos faró is ilumina nossos atos. A excitaçã o de estar ao ar
livre, de poder ser visto, me deixa ainda mais duro enquanto ela volta a
se apoiar no capô e me olha sobre seu ombro, em um convite silencioso
para que eu a penetre.
— Faça amor comigo — ela pede e, como o idiota que sou, me
prendo a palavra que desejo falar, fazendo dela o alicerce para os
nossos atos.
— Ah... porra, Stella... — Cravo meus dedos em seu quadril e gemo
quando entro nela, sentindo seu corpo apertado retesar com a minha
presença bruta. — Você nã o precisa ter ciú mes, nã o tem mais ningué m.
— Seguro-a pela cintura, apoiando meu rosto em seu ombro, sentindo
meu pau pulsando dentro dela enquanto meto com força. — Eu estou
louco por você — digo, desejando falar mais, admitir para ela aquilo
que venho sentindo crescer em meu peito dia apó s dia. —
Completamente louco.
— Nuno... — ela choraminga meu nome, sinto seu corpo pequeno se
contrair a cada investida lenta e dura, torturando-a no processo.
— Eu estou aqui. — Saio deixando-a louca de tesã o só para entrar
novamente, metendo com força, exigindo tudo que ela tem para me dar,
desejando poder marcá -la como minha para que ningué m mais tenha
dú vidas de que sou eu o homem que a faz gemer, odiando o fato de que
isso é apenas uma fantasia, loreada pelas sombras da noite.
Transamos como dois selvagens, a loresta a nossa volta nos permite
gritar sem medo de sermos vistos, e quando inalmente gozo, travo
meus dentes em seu ombro, em uma tentativa quase insana de me
impedir de dizer a verdade.
Eu estou apaixonado por ela.
Faça amor comigo...
Eu ainda nã o acredito que disse isso.
Na verdade, eu ainda nã o sei por que essa palavra pareceu tã o
pouco apropriada, como se estivesse me declarando para ele, pior,
como se estivesse admitindo em voz alta algo que me nego a aceitar.
Eu nã o acredito que iz sexo ao ar livre, apoiada em um carro
ouvindo coisas que só de lembrar fazem meu rosto corar e meu corpo...
meu Deus. Será que com ele tudo será assim? Intenso demais, louco
demais, quente demais. Eu nã o acredito que estou deixando Nuno
mexer comigo dessa forma, a forma como o ciú me me dominou hoje é
assustador. Me sinto em um labirinto, sem saber para onde ir, nem ao
menos se quero encontrar a saı́da.
Nesse momento estou bem onde estou aqui, com ele deitado em
minha barriga, seus cabelos fazendo có cegas em minha pele nua, o seu
cheiro impregnado em minha pele enquanto uma mú sica gostosa toca
no som do carro. E a minha versã o particular de paraı́so. E eu nã o quero
que acabe nunca.
— Você está tã o quieta.
— Estou pensando.
— Posso saber no quê ?
— Na prova da semana que vem.
— Está falando sé rio? — Ele se inclina para olhar para mim e sorrio.
— Achei que tinha feito um bom trabalho por aqui e você pensando na
escola?
— Eu estou brincando. — Passo a mã o em seus cabelos
desmanchando as ondas macias. — Você fez um excelente trabalho.
— Enquanto estiver comigo, por favor, tente nã o pensar naquele
lugar — ele pede.
— Enquanto estou com você , nã o consigo pensar em muita coisa,
Nuno — confesso.
— Entã o somos dois. — Ele sorri e volta a fumar, a ponta se ilumina
e dá a ele um ar de perigo que agita minhas entranhas, nunca me senti
assim antes, tã o sensual, tã o excitada, mesmo depois de um orgasmo
tã o intenso que me fez gritar e depois icar envergonhada.
Nã o sou uma mulher inexperiente, já tive alguns parceiros e,
embora nã o seja muito fã de sexo casual, tive uma quantidade boa de
sexo, alguns realmente bons, daqueles de deixar um sorriso bobo nos
lá bios por um tempo, mas nunca algo parecido com o que sinto quando
estou com Nuno, o simples toque dele já é capaz de me deixar ardendo
de desejo e quando fazemos sexo... é como se o mundo inteiro se
dissolvesse ao nossos pé s.
Nuno parece relaxado e me pergunto se ele també m se sente assim
comigo. Seu corpo grande esparramado no cobertor, a cabeça em minha
barriga, tã o perfeito que tenho medo de me mover e ele sumir, como um
sonho bom.
— Posso saber por que você tem um cobertor no seu porta-malas?
— pergunto olhando para o cé u repleto de estrelas, que parecem
luzinhas de Natal iluminando a noite, sem acreditar que esse é o mesmo
cé u nublado e sem graça que ilumina a noite de Sã o Paulo.
Assim como tudo nessa cidade, o cé u parece mais lindo, menos real,
como uma fantasia em que tudo pode acontecer, até mesmo garotas
tı́midas e sonhadoras se apaixonarem por garotos quentes e proibidos.
— Sou um cara prevenido — ele responde enquanto solta a fumaça
no ar e até mesmo isso ica sexy nele.
Eu estou realmente muito ferrada.
— Hum, interessante...
— O quê ? — ele sorri cheio de orgulho.
— Nada, só faltou uma garrafa de vinho.
— Posso providenciar para a pró xima vez.
A pró xima vez... Meu estô mago se agita com a ideia de estar aqui
novamente com ele, de me permitir viver essa experiê ncia louca, de
deixar que ele me possua com tamanha intensidade. Até quando
levaremos isso adiante? Até quando aguentarei brincar de roleta russa
com o destino? Nã o sei e nesse momento eu só quero viver, até onde for
possı́vel.
— Combinado.
Nuno descarta a bituca em um pote que ele trouxe e se ergue vindo
até mim, ele se deita ao meu lado, a mã o espalmada em minha barriga
enquanto seus lindos e intensos olhos me observam por baixo dos
cabelos desordenados.
— Como você está ? — Seus dedos brincam em minha pele e
estremeço quando ele toca o elá stico da minha calcinha.
— Um pouco dolorida.
— Eu te machuquei? — A expressã o preocupada em seu rosto é tã o
bonita, que me ergo para beijar a sua boca com gosto de nicotina.
— Nã o, foi só um pouco intenso demais — admito embora eu tenha
gostado da experiê ncia de ter sido possuı́da com tanta força e desejo,
meu corpo está sensı́vel.
— Ah, merda... me desculpe. — Ele tenta tirar a mã o, mas seguro-o
no lugar.
— Tudo bem, foi diferente, eu gostei.
Seus dedos descem um pouco mais até se instalarem no meio das
minhas pernas, ainda sensı́vel e seu toque, mesmo suave, me faz
estremecer.
— Diferente signi ica que você nunca tinha feito nada assim? —
Uma sobrancelha grossa e arrogante se ergue.
— Ao que tudo indica, diferente é isso aı́ — digo de olhos fechados
enquanto seus dedos sobem e descem lentamente por cima do algodã o.
— Bom saber. — Sua voz soa mais rouca enquanto ele me provoca.
— Você é um garoto muito criativo — digo, ou acho que digo,
porque logo minha boca é coberta pela sua, e seu corpo está sobre o
meu e mesmo que ele esteja se segurando para nã o me machucar, sinto
o peso dele sobre mim e meu corpo se acende novamente.
— Tudo para a minha garota covarde. — Ele sorri e me surpreendo
com o quanto gosto de ouvir ele me chamar assim. Passo meus braços
em volta do seu pescoço sentindo meu coraçã o repleto de sentimentos
por esse menino lindo e safado.
— Obrigada — sussurro ainda olhando em seus olhos.
— Por quê ?
— Por me trazer aqui, por me fazer sentir especial, por tudo isso,
nunca vou me esquecer.
— Essa é a intençã o. — Ele beija minha boca. — Te encher de
lembranças boas. — Beija meu pescoço. — Até que se torne
insuportá vel — beija meu seio — me deixar. — Beija minha barriga. —
E aceite... — Nuno se coloca no meio das minhas pernas, abrindo-as
com seus ombros largos. Ergue seu rosto para me observar enquanto
seus grandes e preguiçosos olhos verdes me deixam sem ar — que aqui
é o meu lugar.
Ele afasta a minha calcinha para o lado, e entã o fecho meus olhos e
me concentro na sua lı́ngua, no toque dos seus dedos, na forma como
ele se encaixa tã o bem em mim, dentro de mim, no meu coraçã o.

A biblioteca está fechada, como uma forma de punir os alunos por


usá -la para prá ticas libidinosas e, sem saber, o diretor alcançou seu
objetivo, me obrigar a almoçar com meus colegas de trabalho.
— Eu nã o sei onde esses adolescentes vã o parar — diz Sô nia, a
professora de Mú sica.
— Imagina só onde mais eles devem estar fazendo essas coisas. —
Paola, a de Matemá tica, arruma os ó culos no lugar e noto seu rosto
corar.
— Tenho certeza de que ela já fez algo parecido — Tony sussurra ao
meu lado e me viro para olhar para ele. Me recordo da forma como
Nuno estava transtornado ao comentar sobre as fofocas que estã o
fazendo sobre nó s e preciso me esforçar para nã o perguntar se ele sabe
de algo.
— Por que você acha isso?
— Toda vez que ica nervosa, ela arruma os ó culos.
— Talvez ela esteja nervosa de imaginar a cena.
— Eu aposto em lembranças. — Ele abocanha um grande pedaço do
seu sanduı́che e sorrio ao imaginar a tı́mida e desengonçada Paola
sendo pressionada contra uma estante de livros.
— Só sei que aqueles dois sã o fogo e palha, ano passado eles foram
pegos no estacionamento. — Má rcia, a professora de Espanhol, fala
chamando minha atençã o. Tento me manter neutra, nunca faço
comentá rios sobre nada e nem me meto nas fofocas, nã o seria digno da
minha parte já que sou a responsá vel por, pelo menos, parte das ú ltimas
delas.
Mas a imagem de Nuno e Cindy sendo pegos em lagrante no
estacionamento me deixa nervosa a ponto de abrir minha boca.
— Nuno e Cindy?
— Sim, eles adoram se expor — responde Dalton, o professor de
Educaçã o Fı́sica. — Teve uma vez que eles foram vistos nus na quadra.
— Nus?
— Nã o totalmente, ele estava sem a parte de cima e ela, bem você
sabe como é ?
Nã o, eu nã o sei, quero dizer, mas infelizmente nã o é verdade, eu sei
sim, o su iciente para sentir meu rosto aquecer ao imaginar Dalton
vendo Nuno e Cindy em uma situaçã o tã o ı́ntima, nem me importo se
Tony achar que estou tendo alguma lembrança.
— Entã o eles estã o juntos há bastante tempo? — Tony pergunta
parecendo interessado nas histó rias promı́scuas dos nossos alunos.
— Ah sim, sempre estã o se agarrando por aı́, mas essa menina é
meio maluquinha, ela nã o se prende a ningué m. Tanto faz estar com ele
como estar com outro.
— Ousada essa garota, hein? — Tony diz.
Ciú mes, um dos sentimentos mais horrı́veis de se sentir, capaz de
nos cegar, de fazer migalhas se transformarem em monstros, apetites
sumirem e professoras perderem a voz.
— Mas ela estava com aquele outro garoto semana passada —
algué m diz, mas já nã o ouço mais nada, minha mente está longe, em um
universo paralelo, onde eu nã o existo e Nuno e Cindy estã o juntos,
fazendo coisas que deixam professoras coradas.
— O que acha, Stella? — Dé bora, a professora de Biologia, pergunta.
— Desculpa, o que disse?
— Estamos planejando um happy hour amanhã .
— Ah... acho que nã o posso.
— Por que nã o? Você já nã o foi na ú ltima vez — ela insiste e Paola se
junta.
— Vamos, Stella, nã o é possı́vel que você nunca se divirta. — Tony
empurra meu ombro de leve, seu sorriso charmoso me faz rir de raiva,
algo que nunca imaginei que poderia ser possı́vel.
— Eu vou pensar, prometo — digo para que eles parem de insistir,
mas no fundo acho que pode ser uma boa ideia, a inal de contas, nã o
seria nada mau ter um pouco de vida social, minha sanidade precisa
disso.
Ser professora de adolescentes requer equilı́brio emocional e saber
manter a distâ ncia que separa o adulto do aluno. Durante os todos os
anos em que lecionei, nunca tive problemas em me manter do outro
lado do muro, algo que para mim sempre necessitou de muito esforço,
Nuno tem razã o ao dizer que é fá cil me confundir com uma aluna, e isso
me obrigou a manter uma postura rı́gida diante de meus alunos para
que eles sempre me vissem como a autoridade em sala.
Sei que isso que aconteceu entre mim e Nuno jamais aconteceria
caso eu o conhecesse em uma sala de aula, aqui eles sã o intocá veis, algo
que trato com todo o respeito do mundo e que jamais vi com outros
olhos e essa certeza é algo que uso para aliviar meu coraçã o quando a
culpa bate forte.
E ela bate, sempre.
Apesar de tudo, gosto da relaçã o amigá vel que sempre tenho com
minhas turmas, é necessá rio quando se é professora de uma maté ria
que quase nenhum deles gosta. Ensinar literatura é ensinar a amar
histó rias contadas em uma era em que as histó rias sã o vistas em
episó dios de quarenta minutos que sã o devorados e esquecidos, quase
ningué m hoje em dia tem tempo para se sentar com um livro na mã o,
nem disposiçã o para imaginar um cená rio vitoriano ou um universo
distó pico. Compartilhar o amor por livros é uma batalha á rdua, mas que
me enche de satisfaçã o a cada novo leitor conquistado. Quando um
aluno me conta que leu um livro e gostou é como ver um novo mundo
se abrir, cheio de novas oportunidades.
— Tchau, professora — um grupo de alunos fala ao passar por mim
no corredor.
— Tchau, pessoal, até semana que vem.
Desvio de um grupo e viro o corredor para descer as escadas
quando vejo Nuno. Ele está conversando com seus amigos, seus olhos
se erguem quando me vê e aceno para todos antes de descer as escadas
sem olhar para trá s.
Eu odeio isso, odeio a forma como me sinto errada ao me deparar
com ele no meio dos outros alunos, como se uma parte dentro de mim
gritasse para que eu perceba que ele é apenas um adolescente e que é o
meu dever ensinar a ele que isso que está acontecendo entre nó s é
errado, odeio como sempre noto onde suas mã os estã o, se ele olha para
uma garota por muito tempo, se ele se encaixa bem perto dela, me
torturando com a certeza de que, por mais que sempre que estamos
juntos seja incrı́vel, eu sei, no fundo eu sei que isso nã o é certo. Nó s nã o
somos certos.
— Stella — ouço meu nome, mas continuo andando. — Stella — ele
me chama, agora um pouco mais perto, desvio do caminho para a sala
dos professores e vou para a á rea de artes onde os corredores estã o
quase sempre vazios quando Nuno segura meu braço me fazendo parar
de andar.
— Ei, o que houve? — Ele se coloca na minha frente, me soltando,
mas mantendo seus olhos em mim.
— Nada, por quê ?
— Nã o sei. Quando te chamei, você nã o parou.
— Eu estou trabalhando, nã o posso parar para cada aluno que me
chama no corredor — digo um pouco brusca e Nuno olha em volta,
parecendo nã o entender o porquê estou tratando-o dessa forma.
— Uau, certo. — Ele dá um passo para trá s e passa a mã o no peito,
como se sentisse dor.
Parabéns, Stella, você é uma cadela.
— Droga, me desculpe. — Passo a ponta dos dedos entre meus
olhos tentando me acalmar.
Nuno olha em volta, mas os ú nicos dois alunos estã o a alguns
metros de distâ ncia e nã o notam nada demais na nossa interaçã o.
— Vem comigo — ele diz baixinho antes de caminhar na minha
frente, os olhos sempre atentos observando cada cantinho antes de
virar à direita em um longo e escuro corredor, sigo-o també m olhando
em volta, o coraçã o acelerado com medo de que algué m me veja
seguindo um aluno.
Assim que me viro, sou puxada com força e empurrada em uma
espé cie de armá rio, está escuro e prendo o ar quando sinto o corpo dele
sobre o meu.
— Desde quando eu me tornei qualquer aluno? — Ele se manté m
pró ximo, o rosto tã o perto do meu.
— Você sabe que nã o é — sussurro, sentindo minha voz trê mula e
seu corpo relaxando.
— O que houve? Algum problema com alunos?
— Nã o.
— Entã o foi algum professor? Aquele idiota?
— Nã o, claro que nã o, eu só estou cansada, hoje foi um dia difı́cil —
respondo e sinto seu peito in lar e se esvaziar, como se ele estivesse
aliviado.
— Droga, Stella, estou com saudades — ele sussurra com a boca a
centı́metros do meu pescoço. O calor do seu há lito deixa meu corpo
aceso com uma rapidez assustadora. — Louco de saudades.
— Nuno, pare — sussurro tentando olhar acima do seu ombro,
empurro-o, mas ele continua explorando minha pele com a boca.
— Você quer que eu pare? — ele diz, com sua mã o espalmada em
minha barriga, aguardando por meu sinal. — Stella?
Apoio minha cabeça na parede, tento pensar em todas as coisas
erradas que estamos fazendo, mas tudo o que consigo é me concentrar
nas coisas que ouvi durante todo o dia, em como ele nã o se parece em
nada com o resto dos alunos dessa escola, no peso de sua mã o sobre
mim, em como seus dedos sã o longos, como seu corpo parece tã o
grande e delicioso, em como eu estava com saudades dele.
Puxo sua camiseta e meus pensamentos sã o silenciados por sua
boca, que me beija desesperadamente enquanto ele esfrega a sua
ereçã o em minha barriga.
— Eu poderia te comer agora — ele diz, encontrando o caminho
entre minhas pernas, acariciando-me com as pontas dos seus dedos, me
embriagando, me fazendo perder a noçã o do que é certo e errado. —
Você deixaria, professora?
O som da palavra sendo sussurrada em meu ouvido é como um
aditivo provocante para meu desejo, puxo sua nuca obrigando-o a se
abaixar e beijo seu pescoço enquanto sinto seus dedos me estimulando.
— Sempre pronta, minha medrosa. — Ele morde o ló bulo da minha
orelha enquanto empurra um dedo dentro de mim. — Sempre
deliciosamente pronta.
Aperto meus olhos enquanto deixo que ele me toque, sua boca volta
a se colocar sobre a minha quando começo a gemer, mais um segundo
dedo me penetra, entrando e saindo com força, me obrigando a segurar
em seus ombros para nã o desabar.
— Escuta só — ele diz bem baixinho. — Está ouvindo as pessoas
caminhando lá fora?
Ouço o som da movimentaçã o nos corredores, risadas femininas,
gritos masculinos, a algazarra de todos os dias, enquanto, dentro de um
quartinho minú sculo, cercados de produtos de limpeza, uma professora
é tocada por um aluno.
— Nuno... — solto seu nome em meio a uma onda de excitaçã o que
me faz estremecer.
— Você gosta disso? Gosta de estar aqui comigo?
E uma pergunta insana, estamos nos arriscando, a qualquer
momento algué m pode entrar e nos ver aqui, seria o im da minha
carreira, do meu respeito, mesmo assim, a cada palavra que ele diz, a
cada estocada dos seus dedos dentro de mim, a cada beijo da sua boca,
eu me sinto mais loucamente excitada, entã o, sem pensar em
absolutamente nada, movo minha cabeça em um sim rá pido e
silencioso.
— Tã o safada, minha Stellinha. — Ele sorri satisfeito com o que está
acontecendo antes de me beijar.
Mal consigo vê -lo nesse momento, apenas a luz fraca do corredor
me permite enxergar a sua sombra. Enquanto ouço o som da camisinha
sendo aberta, tenho plena consciê ncia do que está acontecendo, mesmo
assim nã o o paro como deveria fazer.
Nuno me vira de costas, apoiando meu rosto na parede á spera e
pressiona seu corpo enorme contra o meu. Suas mã os trabalham na
minha calcinha, afastando-a; erguendo o meu quadril, segura-me
enquanto me penetra.
Fecho os olhos sentindo a pressã o do seu corpo se movendo contra
o meu, a dureza do seu membro me invadindo ao som da sua
respiraçã o, o seu cheiro, seus sons. Mordo o lá bio quando um orgasmo
chega mais rá pido do que eu poderia imaginar ser capaz.
Nuno me segura pela cintura, enquanto fala coisas sujas em meu
ouvido e me penetra com força.
Nã o demora muito para que ele goze, tã o rá pido e tã o intenso, que
me sinto um pouco perdida quando ele sai de dentro de mim. Entã o
icamos em silê ncio, com a cabeça dele apoiada em meu ombro, as
nossas respiraçõ es pesadas em nossos peitos, a culpa e o medo
tomando o lugar que antes era apenas desejo e prazer.
Ele deixa um beijo em meus cabelos antes de se afastar, nos
arrumamos rapidamente, o peso da realidade do que acabamos de fazer
me invade enquanto tento arrumar meu cabelo. Tenho certeza de que
estou um desastre e nã o faço ideia de como farei para sair de dentro
desse lugar. Nuno me puxa pela cintura e tenta me beijar, mas viro o
rosto, sem compreender ao certo por que estou tã o irritada.
— O que houve? Eu te machuquei?
— Você e a Cindy já transaram aqui? — pergunto, as palavras fogem
da minha boca antes mesmo que eu possa impedi-las.
— O quê ? — Retesa seu corpo e me afasto ingindo arrumar alguma
coisa. Estou irritada, enciumada, cheia de vergonha e raiva de mim por
ter me colocado nessa situaçã o, que nem ao menos me importo com o
que estou fazendo.
— Responde à pergunta.
— Mas que porra de pergunta é essa?
— Responde.
— Nã o, claro que nã o.
— Por que claro que nã o? Se transaram até mesmo na quadra, um
quartinho escuro nã o seria tã o absurdo assim, ou seria?
— O que está acontecendo, Stella? — Ele parece confuso quando se
apoia na parede à minha frente, os braços cruzados na frente do peito.
— De onde você tirou essas merdas?
— De onde eu tirei? E mentira? Mas, pensando bem, é uma pergunta
idiota, já que aqui ningué m poderia ver você s, nã o é ?
Nuno solta um palavrã o e passa a mã o nos cabelos, posso sentir o
cheiro de sexo que nos envolve e meu estô mago se contorce. O silê ncio
preenche tudo a nossa volta tornando as batidas do meu coraçã o quase
ensurdecedoras, enquanto me dou conta de que estou perdendo o
controle da situaçã o.
— Quem te contou isso? — ele pergunta, agora na minha frente,
com sua voz carregada de raiva.
— Quem nã o contou, né ? Seria mais fá cil citar quem nã o comenta
sobre você s.
— E sé rio, você vai continuar dando ouvidos a fofoca?
— Isso nã o é fofoca, sã o fatos contados por vá rias pessoas
diferentes.
Nuno apoia a cabeça na parede, perto demais para que eu possa
ouvir sua respiraçã o pesada, enfurecida, para que eu sinta a sua
presença grande e poderosa, para que eu sinta o quanto ele me domina.
Eu estou perdendo o controle.
— Hoje, o professor de Educaçã o Fı́sica falou que você s foram pegos
na quadra. — Viro o rosto para olhar para ele. — Eles narram as
aventuras de você s como atos inconsequentes de crianças, você tem
ideia de como me sinto ao saber que agora sou eu quem estou dando
uma rapidinha com você em um quartinho escuro? — Minha voz soa
tã o baixa, fraca, envergonhada, que sinto vontade de chorar.
Eu estou perdendo o controle.
Nuno balança a cabeça negando, sinto seus olhos em mim, me
observando antes de perguntar:
— Você ainda me vê como um adolescente inconsequente, Stella?
Ele se afasta enquanto espera por minha resposta.
Os segundos passam enquanto peso a gravidade do que vou falar,
nã o quero magoá -lo, mas també m nã o é justo comigo me sentir tã o mal
assim, nem posso impedi-lo de saber o que estou sentindo. Eu prometi
que seria sincera, é o que vou ser.
Balanço a cabeça, em um sim silencioso que apaga o brilho do que
acabamos de fazer aqui dentro e me machuca. Ouço a respiraçã o
pesada dele enquanto a verdade enche seu coraçã o de menino de
má goa.
— Certo — ele diz, baixinho.
— Me desculpe, acho que isso tudo é mais do que posso lidar —
sussurro, mas ele desvia o olhar para o chã o enquanto en ia as mã os
dentro do bolso.
— Eu te disse coisas que nunca tive vontade de falar para garota
nenhuma, já tentei te provar de todas as formas que com você é
diferente, nã o consigo parar de pensar em você um minuto sequer,
quero te tocar o tempo inteiro, essa merda insana que me faz perder o
ar só por estar perto de você , estou completamente louco e morrendo
de medo do que tô sentindo, mas nã o posso te obrigar a acreditar em
mim, Stella, isso só depende de você . Tudo o que posso fazer é me
mostrar, o resto é com você .
— Eu sei.
— Que bom que você sabe.
Nuno se afasta da parede e por um instante acho que ele vai me
beijar, me assusto com o quanto desejo isso e com a certeza de que eu
nã o farei nada para impedi-lo caso ele venha até mim, mas ele nã o vem.
— Tô atrasado para a pró xima aula. — Nuno me dá as costas e abre
a porta, o som do mundo invade o nosso pequeno esconderijo. — A
gente se vê por aı́ — ele diz sem olhar para mim e entã o vai embora.
Sinto o gosto amargo das ú ltimas palavras e, pela primeira vez na
minha vida, odeio ser quem eu sou.
Mais um dia de aula, mais um dia em que eu ganho uma batalha
contra a minha vontade de jogar tudo para o alto e dar o fora dessa
porra, sei que, se quisesse fazer isso, nã o seria reprovado, meu pai daria
um jeito e, no im do ano, eu estaria com o diploma em minhas mã os e
as portas da universidade abertas para mim. Só mais um playboyzinho
mimado fazendo o que quer na vida.
Vantagens de fazer parte de uma das famı́lias de fundadores cheia
da grana.
A verdade é que, nesse momento, odeio esse lugar, como nunca
odiei nada nessa vida, nem mesmo o escritó rio do meu pai, nem o
quarto do hospital onde Matteo morreu. Odeio estar nessa sala, odeio
me sentir pequeno, odeio saber que no fundo nã o importa o que eu
faça, sou o que sou.
Um adolescente rico e inconsequente.
Stella ergue o papel amarrotado que encontrou no chã o do corredor
essa manhã . Ela ama essas merdas do PI, e faz questã o de ler todas,
imagino o tamanho do ego desse ilho da puta, seja lá quem for, ao
saber que está sendo reverenciado pela professora de Literatura.
Demorei quase a metade da aula para conseguir erguer a cabeça e
mais um pouco para olhar para ela, Stella está usando uma camisa
branca fechada e uma calça de alfaiataria, seus cabelos estã o presos em
um rabo de cavalo baixo e suas longas unhas essa semana estã o
pintadas de vermelho.
Odeio me dar conta de que estou prestando atençã o na cor do
esmalte dela, assim como odeio o fato de que estou contando os dias
desde a ú ltima vez que a toquei, doze no total. Odeio que Stella seja
quase tã o infantil quanto eu, ou pior, que talvez eu seja mesmo um
adolescente mimado, porque desde aquele dia em que ela duvidou do
que sinto, de novo, que venho evitando-a, nã o encaro seu rosto quando
ela olha para mim, nã o respondo quando ela me chama no im da aula,
nã o abro as dezenas de mensagens enviadas.
A verdade é que nã o sei se tenho mais medo de ser chutado ou de
saber que basta ela estalar os dedos que estarei lá , pronto para ser
humilhado mais uma vez, como o grande idiota que sou.
E é por isso que, no instante em que ela olha para mim, desvio o
olhar para a folha em branco do meu caderno, puxo uma caneta do
estojo de Cindy e começo a desenhar formas geomé tricas enquanto
ouço ela ler a porra do poema misterioso da semana:
“Nem tudo é o que parece ser.
Há sorrisos que escondem dor
Tristezas que pedem companhia
Há palavras que re letem o silêncio
E silêncios que gritam socorro
Há olhares que sussurram vazios
Há luzes que cegam e escuridão que ilumina
Tudo é uma questão de ponto de vista
E de questão de querer ver
Mesmo porque
Nem tudo é o que parece ser.”

Ela termina, com sua voz suave que parece hipnotizar cada aluno ao
ponto de que tenho dú vidas se algué m aqui está respirando. Eu,
sinceramente, nã o estou.
Ergo os olhos e ela desvia os seus rapidamente, Stella pigarreia e
sorri para uma garota, entã o deposita a folha em sua mesa e volta a
olhar para a sala. A postura sé ria e elegante de professora que fascina a
todos e que enche meu coraçã o de má goa.
Olhar para ela dó i, tanto que, à s vezes, sinto-me doente.
— O que você s entenderam sobre esse poema? O que acham que PI
está querendo dizer? — ela pergunta como se ele fosse um dos
escritores dos quais ela está acostumada a trabalhar.
— Que ele é um gay enrustido — Glauco, um engraçadinho idiota,
responde arrancando uma gargalhada da sala toda.
— E, pelo comportamento de você s, ele tem toda a razã o de se
manter “enrustido”, nã o é mesmo? — Ela cruza os braços na frente do
peito enquanto fuzila Glauco com o olhar e a sala ica em silê ncio. —
Nã o aceitarei mais esse tipo de comentá rio em minha aula, estamos
entendidos? — ela completa olhando para todos e recebe um sim em
coro.
— Eu acho que ele quer dizer que nem sempre aquilo que vemos é a
verdadeira face de uma pessoa — Maddie responde arrancando um
sorriso enorme de Stella.
— Muito bem, Madalena. — Ela olha em volta, evitando o fundo
onde estou. — Mais algué m?
Ergo minha mã o, sentindo o coraçã o querendo saltar pela boca
quando ela olha para mim.
— Sim, Nuno?
— Talvez ele queira dizer que a grande maioria das pessoas nã o
estã o realmente interessadas em saber a verdade, é mais fá cil maquiar
com o que lhe convé m.
Seu rosto endurece diante da minha resposta, é tã o sutil que tenho
certeza de que ningué m vê , mas logo ela veste a porra da capa de
professora e me responde.
— Muito bem, Nuno, mais algué m? — Ela volta a olhar para a sala,
mas ningué m responde, entã o ela continua. — Vamos aproveitar esse
tó pico e quero que você s me apresentem um personagem que é mal
interpretado, ou que é negligenciado, por seus atos. Pode ser de um
ilme ou sé rie, mas se for de um livro vã o ganhar pontos extras.
O burburinho a minha volta começa e o grito silencioso da minha
raiva é abafado pelas vozes vazias dos meus colegas de sala.
Parabé ns, Nuno, você é um otá rio.
Stella ergue o rosto no exato instante em que entro na cafeteria,
seus olhos percorrem todo o salã o até pousarem em mim cheios de
expectativa e tento me lembrar qual foi o motivo para que eu tenha
aceitado vir até aqui alé m do fato de que eu já estava prestes a
enlouquecer.
Saudades, seu cuzã o, você está morrendo de saudades dessa mulher.
— Oi — ela diz quando me sento na sua frente, estamos cercados de
pessoas, em um lugar pú blico, distantes o su iciente para que ningué m
faça deduçõ es, mesmo assim me sinto errado por estar aqui, talvez seja
porque passei o dia remoendo as palavras daquele tal de PI, me
machucando, me diminuindo, me punindo. — Obrigada por ter vindo.
— Ela desvia o olhar.
— Eu nã o costumo fugir das coisas. — Encaro seu rosto esperando o
momento em que ela vá me olhar, mas ela manté m os olhos baixos.
Covarde do caralho!
— Você nã o leu minhas mensagens.
— Eu estava com raiva.
— Já se passaram doze dias — ela diz como se eu precisasse que
algué m me lembre.
— Nã o era um bom momento para conversar.
— Entendo — ela diz, e odeio o silê ncio que se estende entre nó s,
enquanto há milhares de palavras engasgadas em minha garganta.
— O que você quer, Stella? Achei que aquele dia você tinha sido bem
clara — digo porque alguma coisa precisa ser dita ou vamos passar a
noite inteira aqui, sentados, olhando para a mesa até que ela abra um
buraco e nos engula.
— Eu nem sei por onde começar.
— Que tal pelo começo? — Meu tom soa um pouco rude, mas dane-
se, foi ela quem me magoou.
— O começo, certo. — Ela coloca uma mecha de cabelo atrá s da
orelha e morde o lá bio, como se fosse difı́cil começar a falar e aperto
minhas mã os com força tentando me acalmar. — Eu sempre fui uma
garota muito certinha, sempre levei a vida muito a sé rio. Enquanto a
maioria das garotas estavam transando, eu estava estudando, a vida
sempre foi muito dura para mim e eu me acostumei com isso. Meus
relacionamentos sempre foram normais.
— Certo — digo, sentindo que nada de bom vai sair dessa conversa,
é agora que ela vai me chutar de vez da sua vida e vou ter que implorar
para o meu pai me tirar dessa porra de escola. Que maravilha!
— Acho que, alé m da Suzy, ningué m nunca me viu sequer beijando
em pú blico.
— Eu acho que você está enganada, posso contar fá cil umas oitenta
mil pessoas — digo, sem nenhum traço de humor na minha voz e
inalmente ela ergue o rosto.
— Até aquele dia eu era uma pessoa muito reservada, convicta das
minhas verdades e que sempre levou o trabalho a sé rio e, por causa
disso, Suzy me implorou para que eu me permitisse viver uma aventura,
ao menos uma vez na vida.
Balanço a cabeça sem a menor vontade de ouvir esse blá -blá -blá de
merda.
— Eu sempre tive muito orgulho da mulher que me tornei, e entã o
você chegou e minha vida virou uma bagunça. Me pego fazendo coisas e
sentindo coisas que sempre considerei erradas. — Ela desvia o olhar e
noto o quanto ela ensaiou todas as coisas que está falando. — Coisas
que sei que sã o erradas.
— Quer que eu chame a polı́cia? — ironizo e ela me lança um olhar
triste.
— Você nã o faz ideia do que me custa tudo isso, na maior parte do
tempo estou lutando para que ningué m note a forma como me sinto
quando estou perto de você e... — Ela respira fundo, como se estivesse
exausta de ingir o tempo todo.
— Você tem vergonha de mim, Stella?
— Nã o, claro que nã o — ela nega, mas seus olhos nã o me encaram.
— Nã o tenho vergonha de você , tenho vergonha do que estou fazendo
— ela admite, seus olhos castanhos cheios de tristeza ainda nã o me
olham. — De ter cedido à s suas investidas, de estar em uma relaçã o que
sempre julguei errada.
— Errada? O que tem de errado em duas pessoas estarem juntas?
— Nó s dois, Nuno, é errado, você sabe disso.
— Nã o, eu nã o sei. A meu ver nã o estou fazendo nada de errado, eu
quero estar com você , e você , aparentemente, todas as vezes em que
esteve comigo, foi porque quis, nã o foi?
Ela balança a cabeça.
— O que izemos... — ela volta a respirar fundo e, caralho, como
meu peito dó i, porra de coraçã o fraco. — Foi imoral, Nuno.
— Como? — pergunto porque me custa acreditar no que estou
ouvindo. — Entã o, você acha que estar comigo é imoral? Porque sou
mais novo? O problema é esse? A porcaria do seu preconceito com a
nossa diferença de idade? — uso tudo de mim para manter a voz o mais
baixa possı́vel.
— Nó s transamos na escola, Nuno — ela sussurra enquanto me
encara.
— Merda...
— Você nã o vê o que está acontecendo, eu nã o sou uma aluna, nã o
posso me dar ao luxo de viver uma aventura eró tica com você . — Ela
passa a mã o nos cabelos, parecendo quase desesperada. — Você nã o é
apenas mais novo do que eu, você é meu aluno, vem de uma famı́lia de
pessoas que jamais te aceitariam com algué m como eu.
— E eu tenho cara de quem liga para o que as pessoas pensam?
— Nã o é assim tã o simples, Nuno. — Ela olha pela janela para um
casal que acaba de chegar com um ilho. Sem perceber, ela sorri e
imagino que na sua cabecinha idiota e arcaica o ideal de famı́lia nã o tem
um moleque dez anos mais novo que ela como seu marido.
— Eu posso simpli icar as coisas, você quer dar um chega nisso
tudo? — sinto a voz falhar enquanto faço a pergunta, seus olhos escuros
parecem tristes e assustados e odeio ver o con lito neles. — E para isso
que você me chamou aqui? Para dizer que sou algo imoral e que você
nã o me quer mais? Okay, recado dado. — Começo a me afastar, pronto
para recolher o que resta da minha dignidade e me levantar.
— Nã o! — ela diz, um pouco mais alto. — Eu deveria, mas nã o é o
que eu quero — ela sussurra, tã o baixinho, que nem tenho certeza do
que ouvi, mas entã o seu dedo se enrosca no meu, bem devagarinho, por
trá s do pote de açú car e ergo os olhos para ver se algué m está olhando
para nó s, como se fosse um ato criminoso tocar a pessoa que se gosta.
Nó s somos errados...
— O que você quer entã o, Stella? Me diga e eu faço. Mas, pelo amor
de Deus, nã o me torture desse jeito porque eu nã o sei mais o que fazer.
— Tente me entender.
— Você me magoou, depois de transar comigo. — Baixo o tom de
voz, mesmo que nã o tenha ningué m perto. — Nã o estou muito disposto
a tentar entender seus motivos agora.
— Eu sei que estou errada — ela admite.
— Sim, você está .
— Eu me arrependi no instante em que as palavras saı́ram da minha
boca, estou me sentindo pé ssima desde entã o.
— Que bom saber. Mas isso nã o muda o fato de que você acredita
que o que fazemos é errado.
— O que izemos na escola é errado — ela rea irma.
— Certo, nã o faremos mais.
— Eu sou uma covarde como você diz, mas eu preciso que você
entenda que isso — ela balança o dedo entre nó s — é a maior loucura
que já cometi na minha vida. Há muita coisa em risco, muita coisa que
nã o diz respeito só a mim. Se descobrirem, eu vou perder tudo, você
tem ideia de que nunca mais conseguirei um emprego em escola
alguma?
— Você nã o vai perder tudo — digo, mas nem eu mesmo consigo
acreditar nas minhas palavras, de repente me vejo por seus olhos, um
garoto apaixonado, ansioso, impulsivo, que, no auge do desespero, seria
capaz de prometer o mundo para ela, mas, que na verdade, mal
consegue se sustentar sozinho.
— Nuno... — Ela baixa o olhar e, por Deus, eu posso jurar que ela
está chorando.
— Eu sei que nã o tenho nada para te oferecer, que sou só um
menino, sei que fui inconsequente ao te levar naquela sala, mas eu nã o
iz por mal, nã o era para me exibir, eu só queria você .
— Eu sei. — Ela balança a cabeça.
— Droga, Stella, eu odeio te ver assim, sofrendo, sempre angustiada,
olhando para os lados, sussurrando, como se estar comigo fosse algo
ruim. Algo do qual você nã o consegue se livrar. Nã o era assim que
queria estar com você .
— Eu sei.
— Eu vou entender se você nã o me quiser mais, juro, vou morrer
por dentro, mas vou entender — digo as palavras mais difı́ceis da
minha vida e me assusto com o quanto elas sã o reais, eu vou entender.
— O que aconteceu aquele dia foi um re lexo das coisas que ouvi, só
estava chateada, insegura, enciumada, nã o foi culpa sua, nó s dois
quisemos, e no im eu nã o soube lidar com meus erros e acabei te
magoando.
— Eu gosto de me expor, me excita pensar que algué m pode ver o
que estou fazendo, aquele dia no festival, enquanto te tocava, vi vá rias
pessoas olhando para nó s, isso me deixou louco de tesã o. A Cindy é
igual a mim, por isso a gente fazia essas coisas.
— E você achou que eu fosse igual — ela constata e con irmo
balançando a cabeça.
— Naquele dia sim, claro que eu iquei louco, a nossa quı́mica me
trouxe até aqui, mas nã o é por isso que eu continuo, estar com você nã o
é para me exibir, é muito mais do que isso — admito e estou prestes a
falar mais do que devo, de admitir mais, de abrir meu coraçã o e mostrar
para ela o que tem aqui dentro. — Eu odeio me sentir como estou me
sentindo agora e nã o quero ter que icar provando para você que isso
nã o é uma brincadeira para mim. Nã o é fá cil ouvir as merdas que ouvi
aquele dia, nã o é fá cil para mim me sentir inseguro, Stella. Eu nã o quero
me sentir assim.
— Eu sei.
— Se o problema é eu ser seu aluno, amanhã mesmo eu saio da
escola e a gente pode assumir essa merda para todo mundo. Se for
minha grana, foda-se, eu nã o dou a mı́nima para a maior parte das
coisas que meu pai faz, mas se o problema for a minha idade, eu nã o
posso fazer nada, alé m de te deixar em paz. E isso que você quer? Que
eu dê o fora da sua vida?
— Claro que nã o quero.
— Entã o você precisa ser mais clara e falar o que quer, porque eu
nã o tô conseguindo te entender.
— Você — ela diz, sem titubear, sem desviar o olhar e tenho certeza
de que, nesse momento, nã o temos nada de comum entre um aluno e
uma professora. — A ú nica coisa que eu quero é você , Nuno.
Sinto o ar escapando dos meus pulmõ es, levando consigo o peso que
carreguei comigo nesses ú ltimos doze dias.
— Entã o para com isso, deixa rolar, Stella, tá tã o gostoso, a gente se
entende tã o bem. Nã o estraga isso com essas merdas que a sociedade
impõ e. Quando estamos juntos, nã o há diferenças entre nó s e isso é o
que importa, o resto que se foda.
— E o que estou tentando fazer.
— E aceita que você está saindo com um moleque.
— Ah, meu Deus! — Ela esfrega o rosto e me divirto com o
constrangimento bobo dela.
— Um moleque que te deixa vermelhinha, excitada e louca de
ciú mes, inclusive — provoco-a sentindo meu sorriso se espalhar.
Ela ergue os olhos para mim e a forma como me encara faz com que
meu coraçã o exploda no peito. Meu Deus, eu tô muito perdido por essa
mulher.
— Ah, Stella, você nã o tem ideia do quanto eu quero te beijar nesse
momento.
— Eu tenho sim, porque també m quero o mesmo.
Olho para Beth, que está olhando para nó s. Seus olhos desviam para
a porta que dá para o fundo da sua casa e Stella se levanta.
— Te espero lá dentro. — Ela sai em direçã o ao balcã o. Antes de
entrar, ela fala algo para Beth e abre a porta.
Olho em volta analisando tudo, a cafeteria está quase vazia e a rua,
tranquila. Espero alguns minutos e me levanto, passo por Beth e ela
sorri para mim enquanto abro a porta que me leva para o jardim da sua
casa.
Fico um pouco confuso e frustrado quando me deparo com Maddie,
Levi, Ivan e Cindy sentados em uma grande mesa.
— O que você s estã o fazendo aqui? — Olho para Stella e, em
seguida, volto a olhar para eles.
— Eu havia prometido um jantar em agradecimento aquele dia,
lembra?
— Isso é sé rio?
— E sim. — Ela abre um sorriso enorme enquanto segura minha
mã o e me puxa para onde meus amigos estã o. — E um pedido de
desculpas també m — ela diz baixinho e tudo o que consigo fazer é
sorrir para essa mulher linda e cheia de con litos, que luta contra seus
fantasmas para poder segurar a minha mã o assim na frente dos meus
amigos e, sem pensar duas vezes, seguro seu rosto em minhas mã os e a
puxo beijando sua boca linda ao som de palmas e assobios.
— Nuno! — Ela espalma a mã o em meu peito.
— Que se foda, acho melhor se acostumar, porque eu ainda vou te
beijar muito em pú blico — sussurro em seu ouvido e ela ica ainda mais
vermelhinha e linda.
— Vai logo, Nuno, eu tô morrendo de fome. — Levi esfrega a barriga
cortando nosso barato e Maddie olha feio para ele.
Sento-me em uma cadeira ao lado de Stella, a mesa está lotada de
comida, que ela jura ter feito sozinha. Me sinto um pouco confuso,
cheguei aqui com a certeza de que ia levar um pé na bunda e estou
sentado ao lado dos meus amigos e da minha garota, comendo, rindo e
conversando.
Stella nã o para de sorrir e de me olhar, à s vezes sua mã o espalma
minha coxa ou segura a minha e sempre que posso, beijo-a na boca, no
pescoço, na palma da sua mã o. Nã o dou a mı́nima se estou parecendo
um idiota apaixonado, porque, na verdade, é exatamente isso que eu
sou. Louco, apaixonado e rendido por essa mulher.
Uma hora depois, Maddie e Levi se levantam dizendo que precisam
ir, Ivan atende uma chamada e diz que tem um encontro deixando Cindy
completamente transtornada enquanto confessa ter lembrado de uma
festa na cidade vizinha que ela foi convidada e, entã o, somos só eu e
Stella.
Passo meu braço por sua cintura e puxo-a para o meu colo assim
que icamos a só s.
— O que achou do jantar?
— Nã o sei, nã o consegui me concentrar com sua mã o sobre mim a
noite inteira. — Passo o nariz em sua pele e ela estremece.
— Exagerado.
— Estava uma delı́cia. Assim como você . — Beijo a curva do seu
pescoço.
— Me perdoa.
— Claro, eu també m estava errado, fui imprudente.
— Nã o vamos mais fazer isso.
— Nã o.
— Vamos nos comportar — ela diz, mas seus olhos estã o em minha
boca.
— Sim, sua ciumenta de merda.
Stella sorri e seu rosto ica vermelho.
— Isso é tã o ridı́culo.
— Eu nã o acho. — Seguro seu rosto em minhas mã os. — A gente só
se importa com quem signi ica alguma coisa, Stella.
— Sim.
— Eu sei que nã o temos nenhum compromisso e que você nunca me
pediu nada, mas quero que você saiba que, desde aquela noite na
biblioteca, nã o estou saindo com ningué m — admito e seus olhos se
arregalam.
— Sé rio?
— Sim, sou seu — digo com os lá bios perto dos dela, Stella toca as
laterais do meu corpo, me deixando louco de tesã o quando suas unhas
arranham minha pele.
— Só meu?
— Todinho seu e de mais ningué m, até o dia que você nã o me quiser
mais.
— També m sou só sua.
— Entã o repete, por favor.
— Sou só sua.
— De novo — peço, sentindo meu pau ganhar vida embaixo da sua
bunda. Stella se inclina para a frente, com os lá bios deliciosos se
movendo sensualmente.
— Só sua.
Um sorriso idiota se espalha por meu rosto, ela olha para a minha
boca, a respiraçã o já icando curta e, antes que ela diga qualquer coisa,
a beijo, e sinto como se ela estivesse esperando por esse momento
durante os ú ltimos doze dias, ou talvez seja apenas o re lexo do que
estou sentindo e, sinceramente, por mim tudo bem. Preciso aprender a
viver o momento, e nesse momento ela está aqui, me pedindo
desculpas, me beijando e dizendo que é minha.
Isso é tudo o que importa.
Vivemos em uma sociedade extremamente machista, poré m isso é
algo que, para mim, nunca teve qualquer impacto negativo, sou livre
para explorar minha sexualidade desde o dia em que descobri que essa
coisa entre minhas pernas tem outra inalidade alé m de mijar.
O garoto se masturba, a garota nã o pode se tocar; o garoto precisa
trepar, a garota precisa se guardar; o cara pode ter vá rias mulheres em
uma noite, a mulher que faz isso é puta; o cara pode ter milhares de
fantasias. Que espé cie de homem nunca se imaginou comendo a
professora, a dentista, a empregada, a secretá ria?
Faz parte. Homem é assim mesmo.
Se um homem pegar uma mulher mais velha, é fodão; se pegar a
novinha, é o cara; se namorar uma só , é o bom partido; se pegar geral, é
o esperto.
O mundo foi desenvolvido para a ostentaçã o masculina.
Mas aquela noite, enquanto ouvia Stella confessar seus medos, suas
â nsias, enquanto me dava conta de que assumir algo comigo custava
muito mais para ela do que se fosse ao contrá rio, eu compreendi o
quanto essa porra de mundo é uma hipocrisia de merda.
Hoje sei que, se formos descobertos, serei o casinho ridı́culo de uma
mulher sexualmente frustrada, ou o garoto inocente seduzido e usado
por uma interesseira, que está tentando dar um golpe na fortuna do
meu pai. Sou a imoralidade de uma professora que nã o respeita a
inocê ncia da juventude, como se Stella fosse alguma espé cie de
aliciadora de garotinhos indefesos.
E responsabilidade dela pô r limites entre nó s, proteger o garoto, se
manter respeitá vel, ı́ntegra, decente, honrada.
Como se o fato de que ela possa ter se interessado por mim, pelo
que sou quando estou com ela, fosse algo inadmissı́vel.
Aquela noite nã o consegui dormir, as horas se passaram enquanto
eu caminhava pela casa vazia, repassando as suas palavras, lembrando
dos seus beijos, permitindo que ela dominasse cada pedaço do meu
coraçã o.
Que se foda essa porra de mundo!
No dia seguinte, quando a vi caminhando pelos corredores da Santo
Egı́dio, compreendi, pela primeira vez, o que ela vem tentando me dizer
todo esse tempo, o quanto as paredes antigas e poderosas daquele
colé gio eram representativas. Estar comigo para Stella é lutar
diariamente contra seu pró prio preconceito, re lexos de uma sociedade
machista, é dizer a si mesma que transar com um garoto nã o faz dela
uma pro issional inferior, que deixar que um garoto dez anos mais novo
a conquiste, nã o signi ica que ela nã o é bem resolvida.
Ao contrá rio.
Estar comigo é a maior prova que Stella poderia dar a sociedade que
ela é dona de si, do seu corpo, das suas escolhas e que, se ela me acha
digno de ter seu corpo ou seu coraçã o, é porque eu sou um cara de
sorte.
Um ilho da puta de muita sorte.
E meus sentimentos por ela chegaram a uma proporçã o tã o grande,
que já nã o consigo mais controlá -los.

Tento manter uma rotina saudá vel nas semanas seguintes, estudo
como um desgraçado para compensar os dias perdidos, me reú no com
meus amigos depois das aulas, acompanho minha mã e em dois jantares
que fariam a fogueira parecer uma diversã o de criança, troco duas
frases com meu pai e, por um milagre, nã o brigamos. Faço planos
ridı́culos para um futuro que nã o sei se um dia existirá , tento nã o matar
cada um dos caras que chamam Stella de gostosa quando ela passa por
nó s nos corredores e, principalmente, evito ao má ximo olhar para ela
por mais de dois segundos.
A grande maioria das vezes falho miseravelmente, em especial nas
duas ú ltimas tarefas.
Digo a mim mesmo que preciso me controlar, que nã o posso fazer
papel de moleque querendo quebrar a cara de todo mundo, que o que
temos é algo muito maior do que uma punheta adolescente e que ela
me quer. Foi o que ela disse na ú ltima noite, quando gemeu meu nome
antes de gozar.
Pensar nisso faz um sorriso idiota e convencido se formar em minha
cara. Preciso aceitar que essa relaçã o exige muito mais dela do que de
qualquer outra garota, mas, à s vezes, é difı́cil, porque uma parte de mim
quer poder puxá -la toda vez que cruzamos no corredor, e beijá -la para
que todos vejam que estamos juntos. Quero dizer que nã o era Cindy que
esteve comigo na biblioteca no mê s passado, que Stella é muito mais do
que a româ ntica professora de Literatura, é uma mulher intensa, sexy,
linda.
E isso é algo que estou tendo que aprender.
Stella passa por mim, meu coraçã o idiota acelera quando seus olhos
se erguem em minha direçã o, é só um pouquinho, mas o seu rosto cora
provavelmente ao se lembrar da noite passada e uso toda a minha
concentraçã o para nã o icar duro, algo que venho ganhando habilidade
nos ú ltimos meses.
Ela se vai e viro para observar sua bunda gostosa com a desculpa de
que é isso que todos os moleques fazem quando ela passa. Algué m fala
algo sobre como ela rebola enquanto anda e que ela faz isso para
enlouquecer os alunos, evito erguer os olhos, já tenho mortes demais
em minhas fantasias para lidar por hoje.
O sinal toca, Stella entra na sala e caminho em direçã o a minha
pró xima aula enquanto penso que o semestre está quase chegando ao
im, mais alguns meses de tortura e Stella nã o será mais a minha
professora.
Nunca sonhei tanto em me livrar de um professor em minha vida.
— Tá sabendo da ú ltima fofoca sobre a professora Stella? — uma
garota que está na minha frente comenta com sua amiga e acende o
alerta em minha cabeça.
Pelo jeito, meu sexo com Cindy já é coisa do passado, també m sei
que nã o pode ser nada sobre nó s, temos tomado todo o cuidado
possı́vel e mal nos cumprimentamos dentro da escola, Stella começou a
vir de carro para o trabalho e isso facilita nossos encontros e nunca
estamos sozinhos em pú blico, o que é um saco, mas é o que temos para
o momento.
Entã o só pode ser uma coisa...
— Com o gostoso do Tony? — a outra garota fala e as duas dã o
risadinhas idiotas que fazem meu sangue ferver.
Maldito ilho da puta!
— Ouvi dizer que eles estã o se pegando — uma das duas fala e, por
mais que eu saiba que nã o é verdade, nã o consigo evitar meu coraçã o
idiota de ser afetado com essa fofoca de merda.
— Ela nã o é nada boba, já traçou o ú nico professor gato da escola e
pra gente só resta esses moleques idiotas.
— Ele é muito gato mesmo, na aula passada ele me deu um sorriso
que fez minhas pernas amolecerem. — Elas sorriem e reviro os olhos
sem paciê ncia.
Esbarro meio que sem querer nas meninas e elas olham para trá s.
— Foi mal aı́, só mais um moleque idiota passando — Pisco para
elas que sorriem um pouco sem graça. quando notam que ouvi tudo.
Elas se derretem em uma conversa que me deixa nervoso e tudo o que
consigo pensar é nas palavras de Cindy sobre Stella algum tempo atrá s.
“Ela parece o tipo de mulher que gosta de homens mais velhos.”
Se existe alguma coisa mais insuportá vel que a porra da
insegurança, eu desconheço.
Quando chego a quadra avisto Ivan sentado na arquibancada
sozinho, ele encara algo do outro lado e sigo seu olhar, nã o me
surpreendo quando vejo seu objeto de admiraçã o. Cindy está usando
um short de malha que mal cobre sua bunda conversando com um
grupo de garotas vestidas da mesma forma. Nã o há um ú nico moleque
que nã o olhe para elas e sei que esse é o objetivo, já fui um desse e,
sinceramente, nã o os culpo. Olho para Cindy mais uma vez, agora com
mais atençã o, à luz do dia, sem a nuvem do desejo, noto o quanto ela
está magra, sei que as meninas se ligam muito nisso e Cindy sempre foi
bastante paranoica com beleza, criada e cercada pela busca eterna pela
perfeiçã o, apesar de ser linda, mas a forma como as costelas dela estã o
aparentes me deixa meio incomodado.
— Ei, mano, te procurei pela escola inteira. — Sento-me ao lado de
Ivan, que continua olhando para Cindy. Ela desvia o olhar para onde
estamos e ergue a mã o em um aceno. — O que tá pegando entre você s
dois? — pergunto enquanto ergo a mã o para cumprimentá -la.
— Nã o sei, me conta aı́ você ?
— Ei, que papo é esse?
— Você sabe muito bem do que estou falando, a escola inteira ainda
tá falando da porra da trepada de você s na biblioteca.
— Qual é , Ivan, nó s dois sabemos que nã o foi ela — sussurro
encarando os olhos cheios de raiva do meu amigo enquanto sorrio da
ceninha ridı́cula de ciú mes que ele sequer sabe que está fazendo.
— E que diferença isso faz, se para todo mundo você tá comendo-a?
— Sinto a acusaçã o em sua voz.
— Você sabe que nã o tô e isso que importa, e foi ela quem decidiu
me ajudar, eu nã o pedi nada.
— Claro que ela fez, ela vai fazer qualquer coisa pra limpar a tua
barra e deixar você viver tua aventura.
— Cuidado com o que você fala, Ivan — o alerto sentindo uma
sensaçã o ruim dessa conversa.
— Foda-se, eu tô de saco cheio dessa porra!
Ivan se levanta e seguro seu braço. Pé ssima ideia, o olhar que ele me
dá é o su iciente para que eu o solte no mesmo instante.
— Eu nã o gosto de como as coisas estã o estranhas entre nó s —
digo.
— Se eu começar a numerar todas as coisas que eu nã o estou
gostando aqui, nã o vou parar nunca mais.
— Vá em frente, desembucha logo, que tô perdendo a paciê ncia com
essa porra.
Ivan dá uma risadinha sarcá stica antes de falar:
— Bem-vindo ao meu mundo.
Ele começa a descer as escadas, e antes que eu possa pensar, estou
seguindo meu amigo, odeio o clima de merda que estamos vivendo e
nã o faço a menor ideia de como resolver isso, mas nã o ligo, vou resolver
e vai ser agora.
— Nã o me dê as costas, caralho — digo segurando seu braço mais
uma vez e, quando Ivan se vira, me preparo porque já sei o que vai
acontecer, ele vem se controlando há muito tempo e se é isso que meu
amigo precisa para extravasar a raiva que sente, entã o eu darei o que
ele quer.
— Me solta, porra! — Ivan esbraveja um segundo antes do seu
punho acertar a minha cara, o soco me pega de surpresa pela força com
que ele atinge meu rosto, perco o equilı́brio e cambaleio para trá s, mas
antes que eu possa cair, Ivan me segura puxando-me pela camiseta e me
mantendo em pé . — Nunca mais me provoque — ele fala, o rosto a
centı́metros do meu, o olhar que conheço há tanto tempo, cheio de fú ria
e de algo mais, algo doloroso que está matando meu melhor amigo e
que ele jamais terá coragem de admitir.
Ele ama a Cindy.

— Pelo amor de Deus, Nuno, o que houve? — Stella se joga em meus


braços assim que entra, meu coraçã o ainda está disparado e o sangue
pulsa no hematoma inchado em meu rosto quando ela o toca com
cuidado.
— Acho que mexi com o cara errado — brinco, mas sorrir dó i e
desisto.
Olho para a porta da sala vazia no segundo andar do pré dio de artes
onde estamos, Levi está mexendo no celular e sei que Maddie está lá
fora em algum lugar vigiando, temos pouco tempo, logo Stella precisará
voltar para a aula e eu... bom, terei mais alguns dias de descanso para
pensar na porra da minha vida.
Meu pai vai amar isso.
— Por que ele te bateu? — Ela me olha como se sentisse dor por
mim, estico minha mã o para acariciar seu rosto e um mal-estar me
invade ao imaginar como me sentiria se visse outro cara tocando-a,
pior, se fosse meu amigo.
Porra, Ivan.
— Porque eu mereci.
— Mas ele é seu amigo.
— Por isso mesmo, eu mereci mais.
— Eu nã o entendo.
Olho para a porta mais uma vez, me certi ico de que Levi está
concentrado no que seja lá que ele esteja vendo, volto a olhar para
Stella. No instante em que ela soube da briga mandou mensagem para
Maddie dizendo que precisava me ver, quando viu o estado do meu
rosto pude identi icar o pavor em seu olhar, preciso acalmá -la dizendo
que estou bem, mesmo que eu esteja longe de estar bem. Eu magoei
meu amigo e isso nã o é algo que se cure com um olho roxo.
Olho para as suas mã os em meu peito e gosto de como ela parece
segura aqui comigo. Lembro da conversa daquelas garotas idiotas sobre
o tal professor, nã o quero ser babaca ou pagar de moleque inseguro,
preciso con iar em Stella, assim como ela con ia em mim, é a ú nica
chance de fazer essa merda dar certo. Entã o guardo meus ciú mes e
minhas inseguranças para mim, ela nã o precisa saber o quanto tenho
medo dela colocar na balança os pró s e os contras de trocar um cara
como Tony por um moleque que briga na escola como eu perceber a
merda que está fazendo.
— O Ivan é um cara bacana, eu juro que você nã o o conheceu em
uma boa fase.
— Eu quero acreditar nisso.
— A gente vai se entender.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer?
Passo a lı́ngua nos lá bios sabendo que nã o deveria fazer isso, é
arriscado, mas o perigo só me faz desejá -la ainda mais, a ideia de que
podemos ser pegos soa como um aditivo para o meu desejo e seguro
sua cintura puxando-a para mais perto.
— Me beija — sussurro em seu ouvido e Stella estremece.
Ela segura minha nuca sem receio, seus dedos brincam com meus
cabelos, algo tã o simples, mas que me deixa louco, seus lá bios roçam os
meus, delicadamente. Como se temesse me machucar, ela me beija com
cuidado e aprofundo o beijo fazendo com que meu rosto doa.
Dor e perigo... eu poderia gozar fá cil se ela continuar.
O beijo termina rá pido demais, ela se afasta, arrumando a roupa,
seus olhos caem em meu machucado e seus dedos tocam novamente a
pele dolorida.
— Queria poder fazer algo — ela sussurra com aquela expressã o de
dor.
— Deixa a porta aberta — peço e ela sorri.
— Você nã o vai icar de castigo?
— Eu precisaria de um pai para isso, o meu está bem longe daqui. —
Nã o digo a verdade, que, mesmo quando ele está aqui, nã o é capaz de
me ver, que ele nã o se importa comigo, que tanto faz se eu aparecer em
casa machucado ou sem um olho. Ele vai icar puto, xingar, esbravejar,
falar que sou irresponsá vel, mas nada disso tem a ver comigo, é apenas
o re lexo da sua frustraçã o por ter icado com o ilho errado.
— Nã o fala assim.
— Deixa pra lá — digo me sentindo cansado dessa merda.
— Preciso ir. — Ela me dá um beijo rá pido e se afasta. — Estará
aberta. — Ela me dá um sorriso tı́mido enquanto se afasta saindo da
sala.
E enquanto observo ela ir embora sinto meu peito se encher de
paixã o, desejo e a certeza de que, se eu estiver certo, esse soco doeu
muito mais em Ivan do que em mim porque essa noite estarei com a
minha garota, já o meu amigo provavelmente vai curar sua frustraçã o
no corpo de alguma mulher que nã o signi ica nada para ele e eu sei o
quanto isso é ruim.
Nã o consigo tirar a imagem de Nuno machucado da minha mente.
Como professora de adolescentes, já vi mais brigas, sangue e
testosterona do que gostaria, mas dessa vez foi diferente.
No momento em que o deixo naquela sala vazia e saio, mal consigo
olhar para os lados, como se qualquer um que olhasse em meu rosto
pudesse ver o quanto eu estava transtornada por ter que deixá -lo
sozinho. Nã o foi apenas a briga, mas o fato de ter brigado com seu
melhor amigo, Nuno estava destruı́do e isso me destruiu també m.
Passo o restante do dia completamente dispersa, erro o livro na
turma do primeiro ano, esqueço de corrigir os trabalhos da quinta aula
e, na sexta, estou com uma dor de cabeça tã o insuportá vel, que mal
consigo sorrir quando os alunos se despedem.
Tudo o que consigo pensar é que Nuno está se perdendo, mais uma
advertê ncia, mais uma vez os olhos da escola inteira voltados para ele.
O garoto problema, o temperamental, o pervertido, o bad boy. Isso é
pé ssimo para nó s dois.
Sinto a agitaçã o nos olhares de Levi, Maddie e até mesmo de Cindy,
que desvia o olhar quando me vê aproximando dela no corredor.
— Posso falar com você um pouco? — peço chamando-a para
dentro de uma sala já vazia enquanto os corredores estã o cheios de
alunos loucos pelo im do dia.
— Claro. — Ela entra com seu ar de superioridade, que incomodaria
até mesmo a Miss Universo, mas que, aos poucos, venho notando que é
uma espé cie de escudo para proteger quem ela é . Cindy se senta em
uma das mesas da frente cruzando as pernas e olhando para mim. —
Fala aı́.
Vou até a porta e a fecho dando-nos mais privacidade, apoio-me na
mesa ao seu lado me sentindo ridı́cula por deixar que uma garota de 17
anos me incomode e começo:
— Há um tempo venho tentando pensar na melhor forma de
conversar com você , e depois do episó dio da... você sabe, da biblioteca,
eu me sinto na obrigaçã o de te chamar para essa conversa.
— Relaxa, Stella, eu iz o que tinha que ser feito, você sabe, eu, o
Nuno e o Ivan temos uma conexã o, eu morreria por qualquer um deles.
Ignoro a pontada de ciú mes me atingir quando imagens de Cindy
saindo daquele banheiro invadem minha mente.
— Tenho certeza de que eles també m pensam o mesmo de você —
digo sabendo que é verdade, principalmente Ivan que, ao que tudo
indica, tem um sentimento secreto por ela.
Cindy ergue os ombros e me dá um sorriso que para qualquer um
poderia ser visto como convencido, mas noto um traço de algo mais
nele, como se ela se orgulhasse dessa amizade.
— A verdade é que eu nã o planejei me aproximar do Nuno. Nunca
pensei em me envolver com ele.
— E, eu tô ligada, ouvi os murmú rios dele sobre sua rejeiçã o.
— Nã o sei ao certo qual o tipo de relaçã o sua com ele antes de... —
limpo a garganta me sentindo um pouco embaraçada por estar tendo
essa conversa com minha aluna, mas sei que é necessá rio. — Nó s —
completo sentindo minha voz diminuir.
— Uau! Direta você , hein. — Ela morde a boca por dentro enquanto
inge nã o estar incomodada com minha pergunta. Entã o ela descruza as
pernas só para cruzar de novo do outro lado. — Olha, Stella, vou ser
mais direta ainda, meu lance com o Nuno era puramente sexual, a gente
tem os mesmos gostos e se entendia, somos amigos entã o nunca rolou
um clima chato depois, mas era só isso, nunca tivemos um
relacionamento de verdade e no dia em que você chegou eu soube que
nosso rolo tinha chegado ao im e tudo bem.
— Obrigada. — Dou um sorriso sincero para a garota à minha frente
e me surpreendo quando ela se estica e segura minha mã o.
— Nã o sou a melhor amiga do mundo, tenho meus defeitos e sã o
muitos, na maioria das vezes estou machucando as pessoas que mais
amo só porque eu nã o sei como lidar com elas, mas eu posso te garantir
uma coisa, eu conheço o Nuno, como a palma da minha mã o e sei que
ele tá apaixonado por você .
O sorriso idiota se espalha por meus lá bios, eu nã o deveria me
sentir tã o feliz assim com essas palavras, na verdade deveria estar
apavorada, mas nã o consigo, tudo o que vejo na minha frente é Nuno
com seu sorriso bonito dizendo que nã o há outra garota, só eu.
— Obrigada, Cindy, por tudo o que você tem feito por nó s, pelo
Nuno, por ter assumido a culpa na histó ria da biblioteca.
— Relaxa, a culpa cairia nas minhas costas de qualquer jeito, eu só
adiantei o trabalho, alé m do mais, é minha cara fazer algo assim. — Ela
pisca para mim encerrando o assunto.
— Mesmo assim obrigada — repito mais uma vez.
— Só vou te pedir um favor, nã o machuca ele, meus pais odiarã o me
ver sendo expulsa da escola por partir a cara da professora.
A gargalhada que sai da minha garganta é rá pida e surpreende a nó s
duas, Cindy ergue as sobrancelhas enquanto me levanto pegando
minhas coisas.
— Fica tranquila, eu já fui ameaçada antes, seu amigo chegou antes.
— Pisco para ela e vou até a porta abrindo-a e aguardando até que
Cindy passe por ela.

Entro na sala dos professores disposta a ser rá pida e invisı́vel, só
preciso bater o cartã o e sair sem ser vista por ningué m, mas esbarro em
uma parede de mú sculos no instante em que entro e o susto me faz
soltar um gritinho.
— Opa! — Tony segura meu braço e quero morrer de raiva quando
noto que todos na sala olham para nó s, como se fosse um daqueles
esbarrõ es româ nticos.
Droga, nã o... nã o, nã o.
— Desculpa, eu estava um pouco distraı́da.
— Imagina, está vamos mesmo falando de você — Paola diz sorrindo
timidamente.
— Falando de mim? — Olho em volta sem saber se realmente quero
saber o que estavam falando.
— Sim, o nosso happy hour, se esqueceu? — Tony, que ainda está ao
meu lado, completa.
— Nosso? — pergunto já me sentindo um pouco atordoada.
— Sim, você se esqueceu? A gente combinou outro dia. — Dé bora se
aproxima passando o braço em torno do meu. — Você disse que iria.
— Acho que eu disse que iria pensar.
— Ah, vamos lá , Stella, é só um pouco de diversã o — ela insiste
como se fô ssemos melhores amigas.
Olho em volta e me sinto mal quando vejo que todos estã o
esperando por minha resposta, até mesmo Esther, a quem devo um
pedido de desculpas silencioso por profanar seu templo sagrado,
parece eufó rica.
Por im digo a mim mesma que nã o há problema algum em passar
umas horinhas ao lado dessas pessoas com quem trabalho todos os dias
e de quem conheço tã o pouco. Mesmo que algumas delas já tenham
falado de mim pelas costas.
— Tudo bem, mas eu preciso estar em casa à s nove.
— Algum compromisso? — Tony pergunta parecendo intrigado.
— Nã o, na verdade é que eu combinei de ligar para a minha irmã .
— E tem um horá rio especı́ ico para isso?
— Tem sim, ela dorme cedo — respondo já me arrependendo de ter
aceitado sair com esse cara.
— Oba! Entã o vamos lá dar uma arrumada no visual, tirar essa cara
de professora e mostrar as mulheres que existem dentro de nó s —
Dé bora diz e um coro de uhul me surpreende enquanto sou empurrada
por um grupo de mulheres eufó ricas para dentro do banheiro feminino.
E que Deus me ajude.

A cidade de Monte Mancante é considerada uma das menores do


estado, eu poderia descrevê -la como um grande condomı́nio particular,
com casas que mais parecem saı́das de um ilme româ ntico. Diversã o
por aqui é considerada coisa sé ria e é o que con irmo quando estaciono
meu carro no estacionamento do ú nico bar decente e adulto da cidade.
— Uau! — Olho para a fachada rú stica e elegante, cercada de
luzinhas do bar.
— Espero que tenha algum homem solteiro decente, estou
precisando transar — Esther fala e todas nó s olhamos para ela como se
só entã o nos dé ssemos conta de que, embora seja tı́mida e discreta, ela
també m é uma mulher com necessidades.
— O quê ? Vai me dizer que você s també m nã o estã o? — Ela olha
para cada uma de nó s com uma cara de quem está realmente
precisando muito.
Tento nã o pensar em Nuno, mas é quase tã o natural quanto respirar
e meu coraçã o acelera em expectativa para estar com ele outra vez.
Só algumas horinhas, Stella...
— Eu já tenho meu alvo. — Dé bora olha para mim como se pudesse
me mandar um aviso secreto.
— Tony? — pergunto enquanto desço do carro, rezando para que eu
tenha entendido bem.
— Claro, e acho que ele també m está bem interessado em mim —
ela diz com um ar de quem já ganhou essa.
Penso em perguntar entã o, por que ando ouvindo fofocas com meu
nome e o de Tony pelos corredores, mas desisto, acho que nã o é uma
boa ideia irritá -la. alé m do mais, seria ó timo se ela realmente o isgasse,
à s vezes me sinto um pouco incomodada com a forma como ele sempre
está me tocando quando fala comigo.
— Que ó timo, Dé bora. — Dou um sorriso mentiroso em sua direçã o
e Paola que parece totalmente desconfortá vel sem seus ó culos, sorri
para mim.
Entramos no bar e me surpreendo com o quanto ele está cheio para
um dia de semana, uma mú sica suave toca ao fundo, vozes se espalham
por todo o salã o com iluminaçã o discreta, no canto direito avisto uma
mesa de bilhar e há até mesmo um espaço que imagino que seja para
dança no fundo. E um lugar bonito e aconchegante.
Nos acomodamos em uma mesa no canto esquerdo e logo somos
servidos com canecas grandes de cerveja artesanal, uma cortesia de
boas-vindas de Ruth, a dona do bar, que nos recebe com um sorriso
amistoso nos lá bios exageradamente vermelhos. Todos parecem nos
conhecer, o que ainda é meio estranho e um pouco perturbador, mesmo
depois de tanto tempo morando aqui, já que nã o conheço ningué m, mas
no geral sã o bem atenciosos.
A noite é mais agradá vel do que eu poderia imaginar, conversas
impessoais, experiê ncias embaraçosas em salas de aula, uma ou outra
histó ria fracassada de relacionamentos e muita risada. Tony parece
bastante gentil com todas, o que deixa Dé bora bastante frustrada e, em
mais de uma ocasiã o, tenho a sensaçã o de que seus olhos passam
tempo demais em mim.
— E você , Stella, o que conta de interessante? — ele pergunta
depois de uma histó ria sobre o antigo namorado de Esther, que me faz
imaginar que ele queira que eu fale sobre isso també m.
— Nada demais, no geral sou uma pessoa bem normal.
Todos sorriem, mas o sorriso de Tony parece um pouco mais,
particular.
Dalton, o professor de Educaçã o Fı́sica, conta pela milioné sima vez o
que aconteceu na quadra entre Nuno e Ivan, tento icar de fora da
conversa e odeio a forma como esses adultos julgam seus alunos de
forma tã o deliberada, à s vezes tenho a sensaçã o de que eles esquecem
que, embora seja adolescentes, todos eles sã o pessoas com sentimentos
e con litos.
Por sorte, Tony nã o parece nem um pouco a im de dar mais atençã o
ao assunto e começa a falar sobre o Campeonato Paulista e a conversa
toma outro rumo, dividindo a mesa entre homens e mulheres quando
um cara da mesa vizinha se junta a conversa de futebol. Olho para o
celular pela dé cima vez na noite, nã o há nenhuma mensagem de Nuno,
embora ele saiba que pre iro ligaçõ es. Faltam dez para as nove e
começo a me sentir ansiosa para ir embora, nã o quero que ele chegue lá
e perceba que nã o estou. O olhar triste que ele tinha hoje cedo me faz
imaginar que ele esteja chateado e que talvez precise de mais do que
apenas algumas horas de sexo.
— Sua irmã ? — Tony pergunta.
— O quê ?
— Você está olhando para o celular a noite toda, é a sua irmã ?
— E, estou um pouco preocupada com ela — digo e infelizmente
nã o deixa de ser uma verdade, estou sempre preocupada com Suzy e
nã o há mal algum em admitir isso, mesmo que pareça fora de contexto.
— Algo que posso ajudar? — Ele apoia o braço no encosto da minha
cadeira e me afasto um pouco para evitar que seus dedos toquem
minhas costas.
— Nã o, infelizmente nã o.
— Uma pena, você parece a lita.
— Acho que estou cansada, hoje foi um dia bastante difı́cil para
mim.
— Imagino, essa escola nã o é das mais fá ceis de se trabalhar.
— Pois é , acho que vou indo, estou com um pouco de dor de cabeça.
— Se quiser posso te acompanhar, nã o é bom dirigir por aı́ assim.
— Tenho certeza de que chegarei em casa bem. — Dou um sorriso
forçado em sua direçã o enquanto evito o olhar de Dé bora do outro lado
da mesa.
— Entã o posso te acompanhar até lá fora?
— Acho que seria melhor se você icasse aqui, estã o todos se
divertindo.
— Por favor, faço questã o.
Nã o sei mais o que responder, entã o me despeço de todos e saio
com um Tony insistente e um pouco invasivo ao meu lado. Quando
chego ao meu carro, tenho a sensaçã o de que deveria ter exigido que ele
icasse lá dentro, é uma pé ssima ideia icar a só s com um homem em
um lugar tã o deserto. Soa ı́ntimo demais.
— Obrigada por me acompanhar, acho que vou indo. — Destravo o
carro, mas, antes que eu possa entrar, Tony me segura pelo braço.
— Stella, espera, nossa, parece até que eu vou te agarrar, calma.
— Na verdade, você já está agarrando. — Olho para sua mã o em
meu braço e ele me solta imediatamente.
— Desculpe. — Ele ergue as mã os em um gesto exagerado e nã o
gosto da forma como ele faz parecer que estou sendo dramá tica; para
dizer a verdade, nesse momento nã o gosto de nada nele.
— Preciso ir, boa noite.
Tony parece sem graça quando passa a mã o pela barba por fazer e
olha em volta, faço o mesmo rezando para que nã o apareça ningué m
que possa entender errado essa situaçã o bizarra, tudo o que nã o
preciso é de mais fofoca.
— Eu só queria dizer que espero que a gente possa sair outras
vezes.
— Claro, sempre que possı́vel, eu acompanharei o happy hour de
você s.
— E nosso.
— Como?
— O happy hour é nosso, de todos nó s.
— Sim, claro, nosso. — Forço um sorriso e sinto o celular vibrar em
minha mã o.
— Acho que sua irmã inalmente está te ligando.
— Pois é , acho que sim. — Tento nã o parecer tã o eufó rica com a
ideia de que Nuno já esteja em casa me esperando.
— Entã o eu vou deixar você ir. — Ele dá um passo para trá s e abro a
porta jogando a bolsa no banco do passageiro.
— Até amanhã , Tony.
— Até amanhã , Stella.
Entro no carro e saio do estacionamento, sentindo-me aliviada
quando avisto o bar icando distante, pego o celular e abro a mensagem
ansiosa por poder me encontrar com Nuno em breve.
Romeo: Desculpa, não vou
poder ir.

E a mensagem que me aguarda e que faz um buraco se abrir em meu


estô mago.

Júlia: Você está bem?

Envio a mensagem e continuo dirigindo, me sentindo frustrada e


um pouco preocupada. Assim que chego em casa, fecho a porta e pego o
celular ansiosa para saber o que houve, mas ainda nã o há mais
resposta.
Saio do banho e enrolo a toalha em volta da cintura enquanto puxo
o celular para ver se tem alguma mensagem. Abro no seu nome, ou no
que eu injo que seja o dela, Júlia, uma brincadeira com o nome que ela
me disse quando nos conhecemos.

Júlia: Te espero às 9, a porta


está aberta.

O sorriso idiota faz meu rosto doer e a sensaçã o me deixa mais


excitado, dor e desejo sempre foram a minha coisa favorita no sexo, mas
com Stella tudo parece ainda mais forte, intenso, louco.
Hoje a terei sem pressa, sem roupa, sem medo de ser visto, de todas
as formas possı́veis, eu a farei minha, deixarei seu corpo dolorido de
prazer, marcado, adorado... Mostrarei para ela que també m posso
ensiná -la coisas que tenho certeza de que a tı́mida e româ ntica Stella
nã o conhece.
Ah, porra.
Preciso me acalmar ou nã o conseguirei nem ao menos chegar ao seu
quarto. Abro a gaveta e con iro se tenho camisinhas o su iciente, preciso
conversar com ela sobre isso, odeio ter que usar camisinha com ela,
quero sentir Stella sem interferê ncia de nada e, se ela topar, talvez hoje
será o primeiro dia.
Termino de me secar e vou para o quarto, a agitaçã o me faz pensar
em mil coisas, estou tã o feliz que nem ao menos me importo com a dor
constante em meu rosto, o inchaço faz a pele pulsar, mas no instante em
que ergo meus olhos sinto a sombra da minha vida desligando o
interruptor da felicidade.
— Mas que porra! — resmungo segurando a toalha no lugar. — O
que você tá fazendo aqui no meu quarto?
— Essa ainda é minha casa e, pelo que eu me lembre, posso entrar
em qualquer lugar.
— Nã o aqui.
— E mesmo? Quem vai me proibir?
Respiro fundo tentando me acalmar, nã o vale a pena brigar com ele
agora, tenho um encontro em menos de duas horas e tudo o que preciso
é que ele volte para o lugar de onde veio e me deixe em paz.
— O que você quer, pai? — Odeio a forma como me sinto
desconfortá vel em conversar com ele, principalmente assim, sem roupa,
com a cabeça em outro lugar, pego totalmente de surpresa. — Posso ao
menos me trocar?
— Pode.
Puxo a primeira coisa que encontro no caminho até o banheiro,
tento ignorar a sensaçã o desagradá vel que faz meus pelos se
arrepiarem e visto a calça de moletom, volto para o quarto e observo
meu pai mexendo nas minhas coisas, observo irritado a forma como ele
abre e fecha as gavetas como se eu fosse um criminoso.
— A maconha tá na terceira gaveta — digo cruzando os braços para
que ele nã o note como estou tremendo. — Se quiser posso enrolar um
baseado para você relaxar um pouquinho — provoco-o.
Ele sorri, um sorriso debochado que diz o quanto ele nã o dá a
mı́nima para porra nenhuma. A inspeçã o continua, uma das gavetas cai
no chã o e ele nã o se importa em recolher as coisas, elas icam lá ,
esparramadas, como um lembrete do que ele é capaz de fazer com a
minha vida.
— Fiquei sabendo que o Zimmermann mandou o ilho dele para os
Estados Unidos.
— Eu quero que o ilho dele se foda. — “E você també m”, acrescento
mentalmente.
— Ele me disse que pagou uma boa grana para a professorinha icar
calada.
Aperto meus dedos com força, mas nã o consigo fazer nada com
minha respiraçã o, que começa a sair com di iculdade ao ouvir a forma
desprezı́vel como ele fala da Stella. Quero avançar para cima dele e
exigir que ele a trate com respeito, mas sei que isso é exatamente o que
ele quer, ver minha reaçã o a Stella.
— Eu tenho certeza de que ele fez.
— E grana su iciente para que ela vá embora.
— Pelo jeito, ele nã o a surpreendeu. — Dou de ombros tentando
nã o entrar no seu joguinho. Conheço a Stella, sei que dinheiro nenhum
no mundo pode pagar seu cará ter.
— Ela é esperta, sabe que está no meio dos homens mais ricos do
paı́s, nã o vai se contentar com pouco — ele diz como se estivesse
falando de uma vigarista.
— O que você quer?
Ele abre mais uma gaveta sem responder minha pergunta, muito
embora eu saiba exatamente o que ele quer, me enlouquecer. Ele mexe
nas coisas e ergue uma cartela de camisinhas, olha para mim e sustento
seu olhar.
— Segurança em primeiro lugar. — Abro um sorriso cı́nico e
nervoso, mais torto que o normal, mas nem sei se ele me conhece o
su iciente para reconhecê -lo.
— Certo. Eu odiaria ter que limpar mais uma das suas merdas. —
Ele joga a cartela de volta na gaveta e sinto meu estô mago embrulhar
com a forma como ele fala da minha vida, como se fosse apenas algo
que ele pode controlar. Nã o duvido que, se uma garota icasse grá vida,
ele seria capaz de en iar um cheque com tantos zeros na mã o dela que
eu nã o teria nem mesmo tempo de pensar.
— Fala logo o que você quer, tenho compromisso.
— Nã o, você nã o tem, nã o hoje.
— Como é ?
— Eu recebi mais uma ligaçã o da escola, a terceira em menos de um
mê s.
— Ah, qual é , desde quando você liga para o que eu faço ou deixo de
fazer?
— Desde quando as suas açõ es atrapalham a porra da minha vida!
— ele grita e esmurra a cô moda, a força do seu punho derruba algumas
coisas que estavam em cima dela, olho para a porta imaginando minha
mã e aparecendo a qualquer instante. — A mamã e nã o está aqui para te
proteger hoje. — Ele olha para mim cheio de fú ria e me endireito,
porque nem fodendo vou deixá -lo me bater.
— Nã o preciso que ela me proteja, só nã o quero que ela veja o bosta
de marido que ela tem.
Ele ri novamente, e odeio tanto o seu riso que sinto meu coraçã o
martelando no peito.
— O bosta de marido que paga sua vida fú til, que permite que ela
faça o que bem quiser, que deixa o ilhinho dela foder com metade das
mulheres da cidade e com a minha vida.
— Eu nã o tenho mais como me desculpar com você , nã o posso
mudar quem eu sou, nem o destino do Matteo.
— Nã o fale no Matteo. — Ele avança para cima de mim, sua voz ecoa
em meu cé rebro e me faz recuar como um garotinho.
Detesto a forma como seu ó dio me afeta, saber que no fundo eu me
envergonho por nã o ser como meu irmã o morto, o ilho ideal, o
herdeiro do seu impé rio, o seu substituto, detesto ainda mais que ele
nã o veja nada em mim que faça com que se orgulhe.
Talvez eu nã o tenha mesmo nada que ele possa se orgulhar.
— Nã o fale comigo se nã o quiser me ver falar do meu irmã o.
— Você nã o tem o direito de falar dele. — Ele empurra o dedo em
meu peito e, por mais que eu seja um homem, seu toque dó i porque sei
que ele quer fazer mais do que isso, ele quer me machucar, quer me
bater, me esmurrar até toda a sua raiva passar.
— Eu tenho todo o direito, nã o há nada que você possa fazer contra
isso.
— Seu... — ele nã o termina a frase, mas já conheço todas as suas
ofensas e elas nã o me incomodam mais.
— Vai, fala. Me chama de assassino, joga na minha cara que o Matteo
nã o está aqui por minha culpa, se isso te deixa feliz, se te faz sentir
melhor. Fala logo, derrama a porra do teu ó dio no ú nico ilho que te
sobrou.
Ele olha bem para mim, seus olhos vermelhos de ó dio me encaram,
observando meu rosto tã o de perto que tenho di iculdades de sustentar
seu olhar. Sei que ele está vendo o hematoma, sei també m que
provavelmente sabe que foi Ivan quem me bateu e que eu nã o revidei,
ele sabe tudo da minha vida, e isso faz com que eu deseje proteger
Stella com ainda mais força, porque nã o vou permitir que ele chegue
perto dela.
— Sexta-feira tenho uma viagem de negó cios, você vem comigo.
— Nã o, eu nã o vou! — rebato e ele avança um pouco mais, nunca o
vi tã o perto de me bater e mesmo agora nã o tenho medo, até desejo que
ele coloque para fora toda a raiva que sente de mim.
— Você vai, ou eu vou transformar seu ú ltimo ano de escola em um
verdadeiro inferno.
Sinto meu sangue gelar e toda a cor sumir do meu rosto, nã o quero
dar a ele o benefı́cio de saber que me tem nas mã os, mas nã o consigo
respirar, nã o quando ele começa a sorrir.
— Você nã o tem o direito de fazer isso.
— Seu moleque idiota, por que você acha que essa cidade existe?
Por que gostamos de viver aqui? Ou por que é mais fá cil controlar o que
possuı́mos, se restringirmos o perı́metro?
— Eu nã o sou um dos seus bens que você pode controlar.
— Nã o, infelizmente você nã o é , ao contrá rio, você é a erva daninha
da minha vida.
— Sempre há um jeito de resolver esse problema. — Coloco o
indicador na boca e injo apertar um gatilho, ele sequer se move diante
da cena e imagino quantas vezes já deve ter me imaginado morto. —
Fala sé rio, você adoraria poder fazer isso, nã o é ? — devolvo o sorriso
frio que ele me deu e sinto seu corpo inalmente se afastar do meu.
— Nã o diga tolices, seu imbecil. — Ele se afasta completamente
desnorteado, é a primeira vez na vida que o vejo assim, seus olhos caem
no chã o, como se estivesse saindo de um transe e notasse a bagunça
que fez. — Partimos na sexta, ao meio-dia. Esteja pronto, você sabe que
odeio atrasos.
— Eu nã o vou — repito como o moleque idiota que sou.
— Você me fez uma promessa no tú mulo do seu irmã o.
— Nã o é esse o acordo, tenho esse ano.
— Nã o tem mais, sua atitude com o ilho do juiz me fez perder um
grande contrato, está na hora de começar a pagar por seus erros.
— Pai, por favor! — imploro, me sentindo fraco e ridı́culo, mas a
simples ideia de estar em um jatinho com meu pai me deixa enjoado.
— Pare de choramingar como um fracote e arrume essa bagunça,
sua mã e vai icar louca quando vir isso.
Ele sai do quarto, triunfante, enquanto me deixa aqui com as costas
apoiadas na parede e um buraco em meu estô mago do tamanho do soco
que ele nã o foi capaz de me dar. Olho em volta enquanto me curvo
sentindo meu corpo inteiro doer, uma reaçã o totalmente emocional que
me leva de volta a seis anos atrá s, quando eu era só um garotinho,
assustado, ardendo em febre, perdido entre a vida e a morte, desejando
poder ser o su iciente para curar a dor de um pai.
Ivan para o carro a alguns metros de distâ ncia e de onde estamos
posso ver Nuno sentado no capô do seu carro, o corpo curvado, o brilho
do cigarro em seus lá bios e a escuridã o da noite a sua volta.
Estamos em silê ncio, mas sinto que Ivan tem muito a me falar, foi ele
quem bateu à minha porta meia hora atrá s e disse que Nuno precisava
de mim, algo sobre uma discussã o acalorada com seu pai, gritos e coisas
quebradas. Ivan nã o é muito de falar e, pelo jeito, a situaçã o entre ele e
Nuno ainda nã o está legal, sinto como se ele estivesse me usando para
fazer algo que nã o é capaz no momento. E tudo bem, eu estou aqui para
o que ele precisar. Entã o Ivan me trouxe em segurança, garantindo que
ningué m nos viu, a inal de contas, já passa das duas da manhã e, a essa
hora, quase ningué m está nas ruas.
— Posso te pedir um favor? — ele fala encarando o volante.
— Claro, o que você quiser.
— Se ele te disser que nã o quer mais te ver, nã o dê atençã o, ele tá
mais assustado do que vai demonstrar.
— Por que está falando isso?
— O pai dele é um merda e o Nuno sente uma necessidade
insuportá vel de agradar aquele ilho da puta como se devesse algo para
ele.
— Tem alguma coisa a ver conosco?
— Nã o, é desde a morte do Matteo.
— Entendo.
— Entã o, só nã o desiste dele, nã o agora, ele precisa de você — Ivan
admite enquanto encara a igura escurecida do seu amigo a nossa
frente.
— Claro, nã o vou desistir.
— Otimo.
— Agora é a minha vez de te pedir um favor. — Seguro o pulso dele
fazendo-o olhar para mim.
— Fala aı́.
— As grandes tragé dias acontecem por falta de diá logo, nã o deixa o
Nuno de fora do que está te a ligindo, seja lá o que for, ele é teu amigo e
quer te ajudar.
— Quem disse que ele pode?
— Deixa ao menos ele tentar, à s vezes só de ouvir já é uma grande
ajuda.
Ivan me observa por um tempo, seus olhos claros, sempre
escondidos por baixo das mechas loiras agora parecem proteger seus
segredos do mundo a sua volta. Ele apenas meneia a cabeça levemente,
como se nã o fosse capaz de me prometer algo tã o difı́cil.
— Vai lá , cuida do meu amigo, por favor.
Ivan destrava a porta encerrando nossa conversa.
— Você tem meu celular. Qualquer merda, só me chamar, eu vou
estar por perto.
— Pode deixar, vai dar tudo certo.
Desço do carro e um vento gelado faz com que eu me arrependa de
nã o ter colocado uma blusa, Ivan vai embora e, sem a luz dos seus
faró is, tudo à minha volta é escuridã o, medo e dú vida. Caminho devagar
sentindo meu coraçã o acelerado ao imaginar o que acontece com esses
garotos que, para o resto do mundo, aparentam ter tudo, mas que
carregam em seus olhos uma tristeza que nunca vi antes.
Caminho devagar, o volume da mú sica impede que Nuno ouça
minha aproximaçã o até que eu esteja quase ao seu lado.
— Se Maomé nã o vai a montanha...
Nuno desvia o olhar da cidade e me observa por um instante, seus
olhos passam por mim e, em seguida, ele olha para trá s como se
esperasse encontrar mais algué m.
— Sou só eu — respondo à pergunta que nã o foi feita.
— Ivan?
— Sim — respondo e Nuno balança a cabeça. — Ele está
preocupado com você .
— Eu imagino. Para te buscar em casa a essa hora deve estar
achando que vou me matar. — Ele sorri e volta a fumar, soltando a
fumaça lentamente no ar.
— E eu també m estou — admito me sentindo um pouco boba agora
que estou aqui na sua frente. Nuno parece bem, um pouco solitá rio, mas
talvez ele só nã o quisesse me ver, talvez estejamos indo rá pido demais
com tudo isso e ele só quis desacelerar um pouco, talvez a conversa
com seu pai o tenha feito perceber exatamente isso.
— Eu estou bem, Stella, o Ivan nã o precisava ter te trazido até aqui a
essa hora — ele responde, mas nã o olha para mim, o que só alimenta as
minhas inseguranças.
— Que bom, entã o acho que é melhor eu deixar você sozinho. — Me
viro para ir embora, mas nã o dou nem um passo sequer, porque Nuno
me segura pelo braço me mantendo no lugar.
— Ei, calma. — Ele escorrega sua mã o por meu braço até chegar a
minha mã o.
— Você nã o parece me querer aqui — digo, mais magoada do que
gostaria de estar.
— Desculpe, eu só estou irritado, mas nã o é com você , eu juro.
— Você nã o respondeu minhas mensagens, iquei realmente
preocupada.
— Eu sei, vem cá . — Ele me puxa para o meio das suas pernas e vou
porque disse a verdade, pensei mil coisas quando ele nã o me respondeu
e, agora que estou aqui, estou tã o aliviada que nã o ligo para mais nada.
Nuno beija meus cabelos e me aninha em seus braços, passo os
meus em torno do seu corpo e espero um instante até que ele decida
falar.
— Desculpe nã o ter ido — ele fala, com os lá bios ainda em meus
cabelos. — Nã o seria uma boa companhia.
— Eu nã o te quero só quando você estiver bem, Nuno.
— Obrigado.
— Eu achei que você e o Ivan... — nã o termino de falar, ainda
estremeço só de lembrar do machucado em seu rosto e imaginar ele e
Ivan brigando me deixou nervosa.
— Eu adoraria que ele tivesse vindo falar comigo.
— Achei que você s tinham se resolvido.
Nuno me solta e se afasta para que eu possa me sentar ao seu lado.
— Nã o, ele nem ao menos responde minhas mensagens, acho que
isso ainda nã o foi su iciente. — Aponta para o seu rosto e dá um sorriso
triste enquanto observa a ponta do cigarro como se fosse algo incrı́vel.
— Pelo jeito, nã o sou um cara fá cil de perdoar.
— Ou talvez seja doloroso demais brigar com você — digo tentando
animá -lo, é horrı́vel ver Nuno tã o chateado, sem o seu deboche habitual
ou o seu olhar malicioso.
— Geralmente, depois de brigar com meu pai eu vou para a casa
dele. — Ele traga uma ú ltima vez e joga a bituca lá embaixo.
Apoio meus pé s no para-choque e me encolho quando uma nova
ventania bagunça meus cabelos, Nuno parece notar meu desconforto e
puxa o moletom pela cabeça.
— Toma. — Ele me estende o moletom.
— E você ?
— Eu estou bem, veste logo, nã o quero você gripada de novo.
— Nã o foi tã o ruim, você cuidou de mim, lembra?
Ele inalmente me dá um sorriso.
— Eu lembro de cada uma das vezes em que estivemos juntos,
Stella.
— Que bom, porque sou considerada um arquivo ambulante pela
minha irmã .
— E mesmo? — Ele ergue uma sobrancelha.
— Sim, eu me lembro de coisas de quando era bem pequena.
— E, eu sei bem como é . O foda é quando a gente só quer esquecer,
mas a porra toda continua aqui. — Ele bate o indicador na lateral da
cabeça e me recordo do que Ivan disse sobre seu pai.
— Conversar as vezes ajuda, sabia? — digo.
— Nã o quero te aborrecer com as minhas merdas, Stella.
— Nã o me aborrece se eu puder te ajudar.
Ele olha para mim, seu rosto parece cansado, os olhos inchados e
nã o quero pensar que ele tenha chorado, dó i meu coraçã o imaginar que
algué m o magoou de tal forma.
— Veste o casaco — ele manda e, por mais que eu nã o esteja
habituada a receber ordens, seu tom de voz baixo e suave me excita.
— Nã o quer mais cuidar de mim?
— Quero sim, mas de outra forma e de qualquer maneira, nã o
estarei aqui no im de semana para te fazer macarrã o.
— Nã o?
— Meu pai tem planos para mim.
— Que legal, isso deve ser bom, nã o é ?
— Nã o, é uma merda.
Visto o moletom sentindo o calor do seu corpo e o seu cheiro ainda
nas ibras do tecido. Nuno me puxa para mais perto e deixa um beijo
rá pido em meus lá bios.
— Obrigado — ele sussurra carinhosamente e volta a se afastar.
— Entã o, você está chateado porque vai viajar com o seu pai?
— Nã o, estou chateado porque nã o tenho opçã o, ele me obrigou.
— Como assim?
— E simples, ele manda e eu obedeço — ele responde com tanta
raiva, que imagino o tipo de relaçã o entre eles. Lembro do que Ivan
disse sobre ele se sentir na obrigaçã o de agradar seu pai. — Por que
você acha que essa cidade parece um lugar sem lei perdido no interior
de Sã o Paulo?
— Eu nã o sei, nunca pensei nessa cidade assim.
— Sabe o signi icado do nome? — ele pergunta e nego com a
cabeça. — Monte Perdido, ausente. Monte Mancante é o descarte de
tudo que os homens mais ricos desse paı́s nã o querem, mas nã o podem
se livrar. E a nossa prisã o particular.
— Nuno, ele é seu pai.
— Nã o, Stella, ele nã o é meu pai, ele era o pai do Matteo. Eu sou
apenas a imagem da sua falha.
— Por que diz isso?
Nuno respira fundo, como se fosse algo doloroso para ele sequer
pensar nisso, ele desvia o olhar novamente para a cidade adormecida e
me pego pensando o que aquelas mansõ es lá embaixo escondem: luxo,
poder e dinheiro mascarando dor, tristeza e solidã o.
— Quando tinha a minha idade, o Matteo foi diagnosticado com um
tipo raro e muito agressivo de leucemia, tudo aconteceu muito rá pido e
seu corpo nã o reagia a quase nada. Meu pai o levou para os melhores
mé dicos, deu a ele acesso a tudo o que a medicina tem de melhor, mas
nada fez efeito, ele foi icando mais fraco e mais doente a cada dia que
passava, foi horrı́vel.
— Oh, Nuno, eu posso imaginar.
— Eu tinha onze anos quando meu pai resolveu tentar o
transplante, estava pronto pra isso, já tinha conversado com o Matteo, e
nã o tinha medo, ao contrá rio, eu só queria que ele icasse curado. Ele
era tudo para mim, muito mais que um irmã o.
— Eu sei que você queria. — Estico minha mã o e toco a sua, fazendo
carinho na sua pele fria enquanto sinto meu coraçã o se desmanchar por
ele.
— Foi um saco todo o processo, uma porrada de exames e
tratamentos, tantos medicamentos que eu me sentia enjoado a maior
parte do tempo, entã o eu adoeci, eu nunca icava doente, era um
moleque forte pra caralho, mas justo quando meu irmã o mais precisou
de mim, eu adoeci, era só uma porra de nome estranho,
citomegalovírus, uma bobagem, que nã o signi ica nada para a grande
maioria das pessoas, mas para mim podia ser perigoso por causa da
minha imunidade. Os mé dicos falaram com o meu pai, eles queriam
adiar o transplante para que eu me recuperasse, mas meu irmã o estava
morrendo, ele nã o podia esperar, e meu pai assinou a autorizaçã o.
— Mesmo com você doente?
— Sim, o Matteo era a prioridade, ele precisava da minha medula. —
Nuno ergue as pernas e apoia o queixo no joelho e, nesse momento, ele
se parece muito mais o menino que é do que o homem por quem meu
coraçã o está partido nesse momento.
— E mesmo assim seu pai permitiu?
— Nã o, ele exigiu. Os mé dicos falaram de todos os riscos e ele
passou por cima de tudo. Deve ter jogado a sua grana na cara das
pessoas, que é o que ele sempre faz quando quer algo. Nã o havia
escolha para mim, eu precisava salvar o Matteo e tudo bem, eu nã o
tinha ideia do que estava acontecendo e, por im, o transplante foi feito,
mas infelizmente nã o pegou e ele morreu.
— Oh, Deus...
— Eramos 80% compatı́vel. — Sua voz foi sumindo enquanto ele
observava o horizonte e nesse momento perdi completamente a
capacidade de falar.
— Ningué m tinha como prever, Nuno, infelizmente — digo, mas as
palavras soam vazias.
— Ningué m quer pensar nos 20% quando se embarca nisso, a gente
só pensa que as chances sã o maiores, a esperança pode ser uma vadia
cruel as vezes.
— Sim, eu sei bem como é .
— Eu piorei, a infecçã o se alastrou e iquei entre a vida e a morte, os
mé dicos dizem que foi um milagre eu ter sobrevivido. — Ele apoia a
testa no antebraço, escondendo seu rosto de mim. Me inclino para a
frente e apoio meu rosto em suas costas desejando poder compartilhar
a sua dor comigo. — Minha mã e quase perdeu os dois ilhos naquele
hospital.
— Eu sinto muito.
— Meu pai enriqueceu produzindo drogas que salvam milhõ es e
milhõ es de vidas no mundo todo, mas nã o foi capaz de salvar a vida do
seu pró prio ilho, isso tirou toda a humanidade que ele tinha, e o que
sobrou foi a sombra do pai que um dia ele foi.
Quero dizer alguma coisa que possa consolá -lo, mas nã o faço ideia
do quê . Cresci em uma famı́lia cheia de amor e nã o consigo imaginar
meus pais tendo que escolher entre mim e a Suzy. Nã o tenho dú vidas
que um dilema desses é capaz de destruir uma famı́lia.
— Desde entã o, sempre que ele olha para mim o que vê é a certeza
do seu fracasso. — Ele vira o rosto para mim. — Eu fracassei com meu
irmã o e com meu pai.
— Você nã o teve culpa de nada.
— Nã o é assim que ele pensa, eu tirei dele tudo o que ele tinha de
mais precioso.
— Você també m é precioso, tenho certeza de que, se ele tivesse
perdido você , ele morreria junto.
— Ele já me disse que, se pudesse, trocaria a minha vida com a do
Matteo.
— Tenho certeza de que foi no calor da emoçã o.
— Você desejaria a morte de algué m que você ama mesmo no calor
da emoçã o?
— Deus... Nuno, claro que nã o.
— Entã o, você nã o sabe do que estou falando.
Eu mal suporto imaginar Nuno sendo machucado dessa forma pela
pessoa que deveria amá -lo incondicionalmente. E tudo tã o triste, muito
pior do que eu poderia imaginar, e me sinto impotente diante da
histó ria que ele acaba de me contar.
— Hoje ele me ameaçou.
— Como assim?
— Ele chegou no meu quarto, fez um teatrinho para me assustar e
disse que, se eu nã o izer o que ele quer, vai transformar minha vida em
um inferno, como se ela já nã o fosse.
— Você acha que ele sabe sobre nó s? — Sinto o meu estô mago se
revirar com a ideia de que seu pai saiba de algo. Agora nã o se trata mais
só de mim, das minhas escolhas, estamos construindo algo só lido e
cada dia que passa Nuno se torna mais importante para mim, nã o posso
me afastar dele. Mesmo que eu quisesse, estar com Nuno é um caminho
sem volta.
— Nã o, eu tomo todo o cuidado possı́vel, ningué m nunca viu nada
que pudesse ser usado contra nó s.
— Entã o o que você acha que ele sabe?
— Que algo importante está acontecendo na minha vida, algo
su iciente para que ele possa usar contra mim.
Sinto meu coraçã o disparar quando ele diz isso, ser importante para
algué m como Nuno faz com que eu queira jogar tudo para o alto e
assumir o que sinto por ele. E um sentimento assustador, de querer que
ele ique bem, de tirar essa tristeza do seu olhar e ver aquele sorriso
torto que tanto amo em seu rosto novamente.
— Em breve, ele vai perder todo o poder sobre mim e vai usar tudo
que puder para me prender a ele.
— O que você quer que eu faça? — pergunto sabendo que, se ele
pedir que eu me afaste, eu farei isso, mesmo sabendo que vai me
destruir.
Mas Nuno nã o fala nada, ele apenas me olha por um instante, com
seus grandes e tristes olhos verdes cheios de emoçã o, que me
consomem.
— Me beija — ele pede depois de um tempo. Seu braço em torno do
meu ombro me puxa para si, colo minha boca na sua com uma urgê ncia
quase dolorosa enquanto o envolvo em meus braços, Nuno me puxa
para o seu colo e quero beijá -lo até poder tirar toda a dor do seu
coraçã o. — Ele sabe que você recebeu grana do Zimmermann — ele diz
enquanto me aperta junto de si e sinto-me suja ao ouvi-lo falar dessa
maneira, como se eu tivesse feito algo errado quando, na verdade, eu fui
a vı́tima.
— Eu nã o tive escolha, també m fui ameaçada.
— Eu sei, eles sã o só rdidos, Stella, essa gente usa poder e dinheiro
para manipular as pessoas.
— Eu nunca descontei o cheque.
— Eu imaginei.
Aperto meus braços em torno dele desejando poder tirá -lo daqui e
levá -lo para algum lugar onde ningué m possa machucá -lo.
— Ah, Nuno, eu sinto tanto — sussurro em sua boca enquanto suas
mã os me apertam junto de si.
— Nã o foi isso que planejei para nó s essa noite — ele diz com o
rosto em meu pescoço, parecendo tã o chateado que meu peito dó i por
ele.
— Nã o tem problema, estou feliz em estar aqui.
— Estou feliz que você veio — ele diz, ainda me abraçando.
— Você está gelado. — Passo minhas mã os em seus braços quando
um vento forte o faz estremecer, ele se afasta e me dá um sorriso torto
que tanto amo.
— Você pode me esquentar se quiser.
— Entã o me leva para o carro — sussurro em seu ouvido e ouço
Nuno suspirar, como se estivesse inalmente aliviado por dividir sua
histó ria comigo.
Nuno me ergue em seus braços e se levanta, nã o há muito o que ser
dito, ele está magoado e eu estou apavorada. Seu pai descon ia de algo e
mesmo que nã o tenha como saber que sou eu, ele tem uma carta na
manga para usar contra o Nuno, e já começou o seu joguinho.
Custo a acreditar na histó ria que ele me contou, nã o consigo
imaginar um pai escolhendo entre um ilho e o outro, é cruel demais e
ningué m merece passar por isso, muito menos Nuno. Pre iro acreditar
que é apenas a percepçã o distorcida de um garoto magoado e de um pai
autoritá rio e desesperado.
Entã o, tudo o que faço é enroscar minhas pernas em sua cintura,
meus braços em volta do seu pescoço e deixar que ele me leve para o
seu carro enquanto cubro seu rosto triste e gelado de beijos.
Nuno me coloca no banco e dá a volta sentando-se do outro lado. Me
sinto aquecida no instante em que ele fecha as portas e desliga o som
apoiando a cabeça no encosto do banco e olhando para mim.
— Acho que essa ruguinha aqui nã o combina com você . — Esfrego o
dedo entre seus olhos ignorando o inchaço de quem chorou e ele os
fecha por um instante.
— Eu nã o sou sempre um pé no saco — ele diz como se precisasse
justi icar tudo o que tem passado.
— Eu nã o achei mesmo que você seria sempre um engraçadinho,
seria insuportá vel.
— Eu achando que estava te seduzindo com meu charme — ele
brinca, mas o sorriso nã o chega a seus olhos, que parecem tã o cansados
e tristes.
— Você me seduziu assim. — Passo a ponta dos dedos sobre seu
olho direito, subo pela curva do seu nariz e desço pelo olho esquerdo.
— Com esses olhos lindos, quando você me olhou, eu já nã o tinha mais
opçã o, estava completamente rendida.
— Bom saber, porque foi exatamente assim comigo.
— A verdade, Nuno, é que, quando eu descobri quem você era,
iquei apavorada porque sabia que seria uma luta perdida.
— Você é incrı́vel, sabia?
— E você ainda nã o viu nada. — Pisco para ele sorrindo e Nuno me
puxa para o seu colo enquanto arrasta o banco para trá s me encaixando
perfeitamente em seu colo, as pernas de cada lado do seu quadril. Ele
ergue a mã o e acaricia meus cabelos, puxando-os para trá s enquanto
observa meu rosto.
— Odeio te ver assim tã o triste — admito.
— Agora que você está aqui nã o parece tã o ruim.
— Bom saber. — Me inclino e deixo um beijo em queixo perfeito. —
Entã o deixa eu cuidar de você — sussurro e ele assente se rendendo
enquanto beijo sua boca lentamente, saboreando seu gosto e sentindo
suas mã os descerem por minha coluna, se enroscando na barra do
moletom grande demais e puxando-o para cima, a camiseta vai junto e
entã o estou apenas de sutiã .
Destravo o fecho e retiro-o enquanto Nuno me observa, seus olhos
caem para meus seios nus e sinto-os enrijecerem sob seu olhar, pego
sua mã o e espalmo-a em um deles, depois faço o mesmo com a outra e
fecho meus olhos me entregando à sensaçã o de ser tocada por ele,
Nuno acaricia meus mamilos, seus dedos puxa-os delicadamente, me
estimulando e causando uma sensaçã o deliciosa no meio das minhas
pernas.
— Tã o linda. — Ele liga a luz interna do carro iluminando suas mã os
em meu corpo e olho para fora mesmo sabendo que nã o há ningué m
aqui. — Tã o deliciosamente linda, minha pequena covarde. — Ele sorri
e faço o mesmo porque gosto quando ele me chama assim, nã o me sinto
covarde, ao contrá rio, nesse momento me sinto capaz de lutar contra o
mundo só para vê -lo feliz, me sinto ousada e sexy montada no colo
desse garoto atrevido, com meus seios expostos, sendo acariciada
enquanto rebolo em sua ereçã o.
Nuno abaixa o banco e se deita, com os olhos atentos em meu corpo,
as mã os habilidosas demais para algué m tã o jovem fazendo um belo
trabalho em meus seios já sensı́veis.
— Nuno...
— Oi, minha gostosa. — Ele aperta um pouco mais e sinto uma dor
prazerosa. — Choraminga pra mim, vai — ele pede e algo em sua voz
faz com que eu ique completamente molhada. Ele ergue o quadril,
forçando sua ereçã o em minha intimidade e me inclino para trá s me
expondo para ele. — Tira essa calça, Stella, quero você nua no meu colo.
Com a ajuda dele me desfaço da calça e da calcinha, e quando volto a
sentar no seu colo, ele abaixa o elá stico da calça de moletom apenas o
su iciente para liberar a sua ereçã o. Ele se acaricia, subindo e descendo
a mã o em sua ereçã o enquanto seus olhos se mantê m em meu rosto.
— Pega a camisinha. — Ele aponta para o porta-luvas e me estico
para abri-lo, pego o pacote e rasgo enquanto Nuno se toca e me
observa. — Agora coloca no meu pau — ele pede e envolvo sua ereçã o
com o preservativo e, quando termino, ele se ergue e beija minha boca.
— Agora vem pra mim.
Ele segura seu pau na mã o enquanto me olha como se eu fosse a
mulher mais linda do mundo, e nesse momento, enquanto me acomodo
sobre ele, descendo devagarinho sob sua ereçã o, sentindo meu corpo se
esticar para recebê -lo, gemendo e ouvindo ele dizer o quanto sou
gostosa, me sinto exatamente assim, linda, poderosa, sexy e capaz de
fazê -lo se esquecer das dores do mundo, ao menos por um tempo. Nã o
é apenas sexo, é meu corpo dizendo a ele que estou aqui, que quero lhe
fazer bem, que quero vê -lo feliz, ao menos por um instante, ao menos
enquanto estamos assim, conectados, da forma mais ı́ntima que duas
pessoas podem estar.
Nuno crava seus dedos em minha bunda, puxando-me para cima e
para baixo, apoio minhas mã os no teto, enquanto permito que me
possua com força. E selvagem e um pouco agressivo, sinto cada
estocada indo fundo dentro de mim enquanto ele geme alto, como se
estivesse sentindo dor e prazer empurrando seu quadril com força
contra o meu. Nã o demora até que o carro esteja completamente
embaçado, balançando e quente, nossos corpos suados deslizam um
sobre o outro, o sexo chega a um nı́vel em que nã o há mais palavras a
serem ditas, ele fecha os olhos, se permitindo desligar de tudo e
observo a beleza do seu rosto retorcido de prazer enquanto me toco,
aumentando minha excitaçã o.
— Stella, vou gozar — ele me avisa quase sem voz. — Vem comigo
— pede gemendo. Suas estocadas se tornam mais brutas e rebolo,
buscando meu pró prio prazer. — Stella! — ele grita meu nome no
instante em que um orgasmo intenso faz seu corpo enrijecer. Ele se
ergue abocanhando um dos meus seios, chupando-o enquanto continua
me movendo para cima e para baixo. — Vem, linda, goza pra mim —
exige. — Grita meu nome — pede instantes antes dos seus dentes
incarem em meu mamilo causando um misto de dor e prazer e entã o
eu gozo, gritando seu nome como ele pediu, segurando-me em seus
ombros, sentindo meu corpo inteiro se desfazer em milhõ es de
pedacinhos, meu prazer se misturar ao seu e tudo à nossa volta perde a
importâ ncia.
Nuno me segura junto a si enquanto se livra da camisinha, seus
braços estã o em volta da minha cintura quando ele se deita levando
meu corpo nu junto ao seu. Ainda estamos ofegantes, suados, trê mulos,
mas é como se, nesse momento, nada pudesse nos machucar, estamos
na nossa bolha particular e sagrada e quero manter ele assim em meus
braços o má ximo de tempo possı́vel.
— Eu estou completamente nua — sussurro com os lá bios em seu
pescoço algum tempo depois.
— Eu estou vendo. — Ele ergue o rosto e olha para mim. — Aliá s,
linda bunda você tem. — Sinto sua mã o subindo por ela, cravando os
dedos na carne macia, apertando-a com um pouco de força.
— Você está completamente vestido. — Ergo-me para olhar em seus
olhos.
— Eu acho que gosto disso. — Ele me dá um sorriso safado e me
inclino para morder a sua boca.
— Eu quero você sem roupa també m.
— Nah, acredite, nã o tem nada aqui tã o interessante assim.
— Eu discordo. — Enrosco as mã os em sua camiseta e ele ergue o
tronco me permitindo puxá -la por sua cabeça, em seguida é a vez da
sua calça, e me surpreendo quando noto que ele nã o usa cueca. Puxo-a
por suas pernas com di iculdade e entã o estamos os dois
completamente nus.
— Satisfeita? — Ele ergue uma sobrancelha.
Olho para o seu corpo esparramando no banco, Nuno é grande e,
embora seja magro, seu corpo é bem de inido nos lugares certos, dando
a ele um ar elegante e sensual que me deixa com á gua na boca.
— Bastante — respondo e, quando meus olhos caem em sua ereçã o,
um sorriso se forma em meus lá bios.
— Já está pronto para mim? — Toco-o lentamente, só com a ponta
dos meus dedos descendo e subindo por seu comprimento duro e
macio.
— Eu estou sempre pronto pra você , Stella — Nuno responde rouco
de tesã o.
— Eu gosto assim — provoco-o aumentando um pouco mais a
pressã o e, quando ele fecha os olhos, inclino-me colocando-o na minha
boca.
— Ah, caralho Stella. — Ele ergue o rosto, seus olhos atentos
observam minha boca sugando-o.
— Você gosta assim? — pergunto me sentindo ousada.
— Eu gosto de qualquer coisa que você faça, Stella. — ele responde
com a voz tã o fraca, que quase nã o o ouço quando aumento um pouco
mais a força com que o chupo. — Puta que pariu, você vai me matar —
ele geme, mantendo meu cabelo longe do rosto para que ele possa me
ver. Os olhos com um brilho exó tico me faz aumentar a pressã o.
Concentro-me nele, na sua ereçã o que mal cabe em minha boca, nos
sons que saem da sua a cada estocada dele em minha garganta, é
delicioso ver ele se perder, gemendo meu nome enquanto acaricia meu
rosto e diz o quanto sou linda.
— Chupa com força — pede e aumento a pressã o, sentindo-o inchar
em minha boca. Sinto os primeiros jatos em minha garganta no instante
em que seu corpo começa a estremecer, ele joga a cabeça para trá s,
gemendo meu nome e me sinto realizada. E a imagem mais sexy e
bonita que já vi na vida.
Nuno se desmancha em minha boca em um orgasmo forte e, quando
seu corpo se acalma, ele me puxa para o seu colo, me aninhando entre
suas pernas, com seus braços em volta do meu corpo, me segurando
junto a si. Sinto seu coraçã o acelerado, sua respiraçã o pesada, sinto
seus lá bios em meus cabelos deixando beijos delicados enquanto a
exaustã o derruba-o e, quando tudo se acalma, ouço algo que faz meu
coraçã o parar de bater.
— Eu te amo... — ele sussurra, um instante antes de cair em um
sono pesado e profundo, e digo a mim mesma que foi apenas um
espasmo emocional, uma reaçã o isioló gica ao que izemos essa noite.
Eu preciso acreditar nisso, ou nã o serei capaz de deixá -lo quando a
hora chegar, porque eu sei que ela vai chegar.
Tento abrir os olhos, mas estou exausto, sei onde estou, sinto o
couro do banco embaixo de mim e o peso do seu corpo sobre o meu,
sinto o cheiro de sexo em toda parte e a calmaria que vem logo apó s o
orgasmo.
Ouço uma mú sica no rá dio, baixinha, ouço ela cantarolando, seus
dedos brincando em meu peito, sinto uma paz que só posso descrever
como sendo o paraı́so e nã o quero me mexer, nã o quero que acabe.
Stella canta o refrã o errado, mas é tã o bonitinho que nã o consigo
conter um sorriso bobo, ela se levanta e abro os olhos assustado com a
sú bita onda de vazio que sinto quando ela se afasta de mim. Estou
completamente dependente dessa mulher e, apesar de saber que isso
nã o é saudá vel, nã o me importo com nada.
— Você estava acordado esse tempo todo? — ela pergunta, mas mal
consigo me concentrar nas suas palavras, porque estou impactado com
o que vejo, Stella, descabelada, nua, linda, em meu colo.
E real, nã o um sonho bobo que me faz acordar no meio da noite
para bater uma, é ela, aqui, comigo. Me amando com seu corpo, com sua
boca, com seu coraçã o.
Imagens da sua boca linda em volta do meu pau enchem minha
mente e meu corpo começa a despertar.
— Nuno! — Ela bate em meu peito chamando a minha atençã o.
— Oi?
— Eu nã o acredito que estou falando sozinha.
— Desculpe, eu nã o consigo me concentrar em mais nada com você
assim. — Passo a ponta dos dedos pela lateral do seu corpo e ela
estremece, reconheço o desejo em seus olhos, na forma como ela passa
a lı́ngua nos lá bios e em como seus mamilos se arrepiam.
— Você estava rindo de mim.
— Claro que nã o, só estou feliz.
— Feliz, é ? — Ela morde o lá bio e puxo-a para um beijo, que se
torna dois e depois trê s. Nossos corpos começam o processo de se
procurar em um frenesi que nunca senti com nenhuma outra garota.
Stella se acomoda sobre meu pau, pronta para descer, quando me dou
conta de que estamos esquecendo de algo.
— Porra, a camisinha. — Seguro-a no lugar fechando os olhos para
me controlar.
— Nuno — ela me chama, a voz baixinha já louca de tesã o.
— No porta-luvas — peço, mas ela nã o se mexe, abro os olhos e ela
está olhando para mim, as mã os apoiadas no banco ao lado da minha
cabeça.
— Eu uso anticoncepcional.
A. Frase. Da. Porra. Da. Minha. Vida.
— Meus exames estã o okay — digo tentando nã o parecer tã o
afobado. — O professor exige para que possamos fazer atividades
fı́sicas.
— Os meus també m, exigê ncia da escola.
— Entã o... — Mantenho minhas mã os em sua cintura, segurando-a
no lugar, com meu coraçã o aos pulos aguardando o momento em que
ela dirá sim.
— Nã o precisamos dela, a menos que você queira. — E entã o eu a
solto, permitindo que seu corpo pequeno e apertado deslize sobre o
meu lentamente, como uma tortura deliciosa que nã o quero que acabe
nunca, sem nenhuma merda entre nó s.
Fecho os olhos e sinto Stella deitar-se em meu peito, nossos corpos
unidos, insaciá veis, fazemos amor devagar, como se tivé ssemos todo o
tempo do mundo, sou delicado e gentil, abraçando-a e beijando-a
devagar, é lento e tortuoso, mas quando gozo, enchendo-a com meu
prazer, sinto como se nã o houvesse mais nenhum pedaço do meu corpo
capaz de se mexer. Stella vem logo em seguida em um orgasmo
manhoso, que faz meu coraçã o errar as batidas e preciso de todo o
controle do mundo para nã o falar o que sinto por essa mulher incrı́vel.
Ficamos mais um tempo assim, deitados, incapazes de nos mover.
Sua mã o em meus cabelos, as minhas em suas costas e bunda, nã o
quero sair de dentro dela; e, pela forma como ela parece relaxada,
també m nã o quer que eu que eu vá a lugar algum.
— Está tudo bem por aı́? — pergunto depois de algum tempo, o
silê ncio de Stella me deixa um pouco agitado e me pergunto se isso tem
mais a ver com o fato dela ser uma mulher quieta na cama ou por me
sentir um pouco inseguro. A verdade é que nã o gosto de admitir, mas,
à s vezes, sinto o peso dos dez anos que nos separa quando ela ica
assim, como se, por algum maldito motivo, eu precisasse me lembrar o
tempo todo que ela teve outros homens e que talvez ela possa me
comparar com eles, mas entã o me obrigo a lembrar que é aqui que ela
está , montada no meu pau, gritando meu nome e empurro toda essa
porra de insegurança para o fundo da minha mente, onde guardo todas
as minhas merdas. Um lugar bem cheio por sinal.
— Uhum... — ela geme e sorrio afastando o cabelo do seu rosto.
— Ei, preguiçosa, nã o vai dormir, hein.
— E você quem estava dormindo. — Stella apoia o queixo em meu
peito e olha para mim.
— Eu estava descansando os olhos.
— Aham. — Ela afasta uma mecha do meu cabelo, passeando seus
dedos por meu rosto enquanto me observa. — Como você está ?
— Melhor.
— Que bom.
— Obrigado por vir.
— De nada. — Ela beija meu peito e volta a deitar sobre ele. —
Como era o Matteo? Me fala sobre ele.
Me ajeito para que ela possa icar em uma posiçã o confortá vel
enquanto penso em meu irmã o, algo estranho para se fazer depois do
sexo, confesso.
— Ele um cara incrı́vel, ou eu achava que era, a inal eu tinha só onze
anos, entã o para mim tudo que ele fazia era incrı́vel. Gostava de rock e
morria de medo de ilme de terror, nã o assistia nem sob tortura; era
alto e magro assim como eu, mas os cabelos eram mais escuros e os
olhos castanhos. Acho que tenho uma foto dele no meu celular.
Stella pega o aparelho e abro o Instagram, nã o tem muita coisa nova
lá e logo acho a foto que estou procurando, nela Matteo ainda está
saudá vel, os cabelos escuros um pouco mais curtos, o sorriso do qual
me recordo, largo e gentil.
— Ele era lindo. — Stella passa a ponta dos dedos sobre o rosto dele
e sinto um nó em minha garganta.
— As garotas gostavam dele.
— Tenho certeza de que sim. — Ela me entrega o celular e travo a
tela porque é doloroso demais olhar para essa imagem feliz e saudá vel
e pensar que ele nã o está mais aqui.
— A Beth disse que ele e o Rael eram amigos.
— Melhores amigos, Rael nunca foi um cara muito fá cil de se lidar,
você sabe.
— Posso imaginar.
— Mas o Matteo sabia como lidar com ele, meu irmã o era assim, ele
enxergava o que ningué m mais via, foi assim com o Rael, foi assim com
o Nick, ele foi um dos poucos que ainda icaram lá depois que a vida
dele se transformou em um inferno. E o Nick foi um dos ú ltimos a sair
de perto do Matteo quando tudo icou uma merda. Trê s fodidos
insepará veis.
— Quem é Nick?
— Irmã o do Ivan.
— O Ivan tem um irmã o?
— Dois, mais velhos, uns pé no saco, mas sã o gente boa. O Nick
mora em uma chá cara na divisa da cidade, é um cara fechado, nã o deixa
ningué m se aproximar e depois que o Matteo se foi, ele só piorou. E fá cil
estar ao lado das pessoas quando elas estã o felizes, o verdadeiro teste é
quando ela nã o tem mais nada pra te oferecer, Matteo continuou até
quando pô de e, quando ele se foi, seus amigos ruı́ram.
— O Rael parece mesmo uma pessoa bem triste.
— Ele é um cara forte, que apanhou muito da vida, aprendeu a se
defender se fechando para o mundo.
— Ele pareceu ser uma boa pessoa.
— Ele é tudo o que sobrou do Matteo para mim. E como se fosse um
irmã o.
— Eu vi a forma como ele observava você s conversando, acho que
ele també m pensa o mesmo quando te vê . Você s formam um grupo
muito bonito.
— Espero que sim, todos eles sã o importantes para mim. — Enrosco
o dedo em uma mecha de cabelo dela enquanto conversamos, é tã o
natural estar assim com ela, mesmo nesse carro apertado e
desconfortá vel. Nus.
— E sua mã e?
— Ela é legal, você iria gostar da dona Violeta. — Imagino Stella e
minha mã e juntas, conversando e se dando bem, é uma coisa boa a se
pensar. — Ela é tudo que tenho e acho que sou tudo o que ela tem, à s
vezes a vejo me observando e penso o quanto deve ser assustador para
ela pensar que, a qualquer momento, tudo pode acontecer de novo.
— Nã o fala assim, Nuno, nem de brincadeira — ela exige, parecendo
irritada.
— Mas é a verdade, Stella, o Matteo tinha a minha idade quando
morreu, até entã o ele nunca havia pegado nem mesmo um resfriado.
Era um cara saudá vel e, um dia, puf... nã o era mais.
— Nã o podemos pensar assim, ningué m pode prever quando vai
acontecer.
— Diga isso para a minha mã e, ela quase perdeu dois ilhos em um
mê s, é natural que ela seja meio paranoica.
— Ela deve ter icado arrasada.
— Ela mudou muito depois que ele morreu, na verdade tudo
mudou, meus pais mal se falam, ele quase nunca tá em casa, nem sei
por que ela continua nessa merda.
— Ah, Nuno, eu nã o deveria ter entrado nesse assunto, nã o quero
que você ique chateado.
— Relaxa, nã o tô , vou te mostrar minha gata. — Destravo o celular e
abro a galeria, pego uma das ú ltimas fotos que tirei com ela na piscina,
foi há alguns meses.
— Deus, deveria ser proibido duas pessoas nascerem com esses
olhos — ela diz enquanto observa a foto.
— Ela é muito linda.
— Assim como você .
— Entã o você me acha lindo, é ?
— Nã o ique convencido.
Puxo seu rosto e deixo um beijo rá pido em sua boca. O olhar que ela
me dá é tã o doce, que a beijo mais uma vez só para garantir.
— Tenho certeza de que minha mã e vai te amar no dia que te
conhecer.
Stella baixa o olhar e o sorriso se desmancha do seu lá bio.
— E como você pode ter certeza? — ela diz, mas nã o sinto irmeza
em suas palavras.
— Ela vai.
— Você esquece que nã o somos um casal comum? Nem todo mundo
aceitaria de boa uma mulher mais velha com seu ilho.
— Foda-se, minha mã e nã o liga para isso, ela te amaria mesmo que
você tivesse trê s olhos só pelo simples fato de que você me faz feliz.
— Entã o eu te faço feliz?
— Pra caralho.
Seguro seu rosto em minhas mã os e volto a beijá -la, Stella se
enrosca em meu pescoço e sinto como se ela pudesse me segurar
inteiro dentro do seu abraço, é assustador e um pouco desconcertante.
— Ei, sua safada, precisamos nos vestir! — Bato em sua bunda
gostosa e a afasto mesmo sabendo que nã o é o que quero.
— Que horas sã o?
— Quase cinco. — Aponto para o cé u do lado de fora do carro e
Stella se mexe em meu colo.
— Vem, se veste logo. — Puxo o moletom e jogo em seu colo
sorrindo quando ela fala um palavrã o. — Cuidado, sou louco por
mulher da boca suja.
— Você é um pervertido, Nuno.
— Descobriu meu fraco. — Pisco enquanto coloco a calça e puxo a
camiseta por minha cabeça, ajudo Stella a se vestir e abro a porta
ignorando a lufada de ar gelado que nos atinge.
— Que frio, Nuno — ela resmunga quando a levo para a frente do
carro, colocando-a entre minhas pernas e abraçando-a.
— Shhh... deixa de ser rabugenta, mulher, olha para frente. Prometo
que vale a pena. — Aponto para o horizonte e Stella ergue os olhos,
sinto seu peito se encher de ar quando ela nota o que estou falando. —
Bom dia, chorona. — Beijo seus cabelos e aperto-a mais desejando
poder icar assim com ela para sempre.
— Nuno, é lindo. — Ela suspira para a imagem à nossa frente, o cé u
um misto de lilá s e alaranjado, empurrando para longe a escuridã o da
noite, aos nossos pé s a nossa pequena cidade, com suas luzes ainda
acesas, desperta preguiçosamente para mais um dia.
— Esse é meu momento favorito do dia, quando Monte Mancante
ainda está dormindo. Sempre que posso, estou aqui para ver isso.
— Acho que nunca vi nada tã o lindo — ela diz ainda olhando para o
horizonte.
Viro-a para mim e a afasto um pouquinho, seus cabelos estã o um
caos, emaranhados e sua boca ainda está inchada, seu corpo parece
ainda menor debaixo do meu moletom e nã o consigo ver mais nada
alé m dessa mulher linda em meus braços.
— Acredite, nem eu.
Stella sorri e me beija, sei que ela acha que estou só tirando onda,
mas é verdade, assim como é verdade o que meu coraçã o carrega
dentro dele e que implora para que eu diga.
— Acho que tô apaixonado por você — confesso, sem pensar, sem
medo, sem dú vidas, sem esperar nada em troca. Digo porque nesse
momento, enquanto a seguro junto a mim, no meu lugar favorito,
depois dela ter transformado uma noite de merda em uma das
melhores da minha vida, é tudo o que posso dizer. Essa coisa louca que
sinto por essa mulher é o que me faz acreditar que eu posso descer,
trocar de roupa e enfrentar mais um dia ao lado do meu pai, porque sei
que, quando eu voltar, ela estará aqui nos meus braços novamente, se
arriscando ao escolher icar comigo, jogando tudo o que ela conquistou
fora ao decidir que eu valho a pena.
— Nuno... — ela exala como se eu tivesse dito algo errado, mas que
se foda se ela nã o acredita em mim ou se nã o sente o mesmo, eu sei que
é isso, talvez mais, talvez a ame, mas ainda nã o me sinto pronto para
admitir nem mesmo para mim.
— Você duvida?
— Eu... eu nã o sei, eu acho...
— Que é muito cedo? Justo você a mulher dos romances? Dos
amores que acontecem em uma noite? Por que é tã o difı́cil acreditar
que eu estou apaixonado por você ?
— Eu nã o sei, talvez eu só esteja assustada.
— Essa palavra te assusta? Posso mudá -la, posso, sei lá ... dizer que
te odeio se te izer sentir melhor. Conheço uma garota que uma vez me
falou que nomes e rosas e blá -blá -blá nã o muda porra nenhuma.
— Essa versã o de Romeu e Julieta é nova para mim.
— Essa é a versã o em que o Romeu é inteligente e os dois icam
vivos no inal.
— Acho que gosto mais dessa.
Stella inalmente sorri, mas seus olhos ainda estã o carregados de
algo que nã o consigo identi icar. Medo? Dú vida? Arrependimento?
— Te odeio, Stella, como nunca odiei ningué m em toda a minha vida
— falo com meus lá bios em sua testa.
— Eu també m — ela sussurra, com suas mã os frias brincando em
minha nuca.
— Eu nã o preciso que você diga.
— Eu sei, mas eu preciso, porque estou cansada de nã o admitir o
que sinto.
— Olha pra mim. — Ergo seu queixo e encaro seu rosto. — Você tem
certeza?
— Absoluta, eu estou apaixonada por você e, mesmo que eu nã o
faça ideia do que vai acontecer quando a gente descer, eu nã o ligo,
porque eu sei que faria tudo de novo.
— Ah, minha pequena covarde. — Ergo-a do chã o e beijo sua boca,
desejando poder retirar todas as palavras que ela disse e deixar apenas
a que realmente importa.
Ela está apaixonada por mim; e o resto, eu quero que se foda.
Estamos em silê ncio desde que entramos no carro. A mã o dela em
minha nuca, brincando com meus cabelos enquanto dirijo, parece algo
tã o natural. Gosto da sensaçã o de tranquilidade que sinto quando ela
me toca, como se fosse o certo a ser feito e todo o resto fosse bobagem.
Será que é assim que as pessoas se sentem quando estão
apaixonadas? Ou sou apenas um tolo?
Sempre estive cercado de garotas, a minha vida inteira fui tocado
por elas, já transei com um bom nú mero e mesmo assim nunca senti
essa sensaçã o, estou ciente de cada toque dela, de cada parte do seu
corpo que se gruda no meu, o sexo com Stella nã o é só minha busca por
prazer, é uma necessidade insana de estar mais perto, de sentir ela por
todos os lados, de ouvi-la.
E assustador pra caralho.
Avisto Maddie sentada no capô do seu carro assim que chego ao
estacionamento da fá brica abandonada que ica na divisa da cidade, um
lugar quase esquecido, principalmente a essa hora do dia, perfeito para
nó s.
— Aquela ali é a Madalena? — Stella se inclina para a frente como se
assim pudesse ver melhor.
— A pró pria.
— Jesus amado, o que ela está fazendo aqui a essa hora da manhã ?
— Veio te buscar.
— Você tá brincando? — Ela olha para mim como se fosse um
absurdo.
— Nã o tô nã o.
— Isso nã o é certo, Nuno! Tirar a garota da cama a essa hora.
— Por que nã o, se a ideia foi dela?
— Mas...
— Mas, mas, mas... Para de tentar entender os sentimentos das
pessoas, Stella. Aceita e ponto.
Stella se joga no assento como uma garotinha birrenta e sorrio
enquanto me aproximo de Maddie, ela nos vê e fecha o livro que estava
lendo. Nunca vou entender a Maddie, sempre com a cara en iada em um
livro, como se a vida naquelas pá ginas fosse muito melhor que a real.
— Vamos? — Puxo a mã o de Stella forçando-a a olhar para mim.
— O que eu faço com você s, hein.
— Um dez em Literatura já ajudaria bastante — brinco.
Stella abre a porta e desce, faço o mesmo e nos encontramos com
Maddie.
— Olá , bom dia. — Ela pula do carro com um sorriso alegre demais
para essa hora da manhã .
— Meu Deus, Madalena, eu nem sei como te pedir desculpas.
— Imagina, eu precisava mesmo de um tempinho para terminar
esse livro. — Ela ergue a capa no ar. — Levi nunca me deixa ler em paz.
— Os Maias? Um dos romances mais triste que já li, é ó timo.
— Como pode algo triste ser ó timo?
— A beleza está exatamente nisso, no proibido, na dor de nã o poder
ter aquilo que se deseja — Maddie diz com um tom sonhador.
— Acredite em mim, nã o é tã o bonito assim quando é real. — Olho
para Stella e seu sorriso se desfaz imediatamente, seus olhos estã o
carregados de ternura, como se tentassem me tranquilizar de alguma
forma.
Só mais alguns meses, Stella, só mais alguns meses e vou poder
mandar a porra da sociedade para o quinto dos infernos.
— Precisamos ir agora, temos meia hora para levar a Stella em casa
e voltar para a escola.
— Me desculpe por ter te dado esse trabalho — Stella diz sem graça.
— Nã o foi trabalho nenhum, de verdade — Maddie diz e sei que ela
está sendo sincera. Quando ela me mandou a mensagem avisando que
Ivan estava ocupado e que ela viria buscar Stella nã o soube o que dizer,
iquei surpreso por sua atitude e feliz em nã o estar sozinho.
— Vem cá . — Puxo Stella para um abraço que gostaria que durasse a
vida inteira, mas que me obrigo a ser rá pido. — Relaxa, covarde. —
Seguro seu rosto em minhas mã os, o sol ilumina seus olhos escuros
cansados por ter passado uma noite em claro.
— Como se fosse fá cil.
— Quem liga para isso? O difı́cil é muito melhor, olhe para nó s. —
Beijo sua boca, a ponta do seu nariz e seus olhos, sem dar a mı́nima que
Maddie possa nos ver. — Tenho certeza de que somos melhores que
esses personagens bobos aı́. — Aponto para o livro.
— Por favor, você s precisam ser, eu nã o aceito outra coisa — Maddie
diz.
— E tã o ruim assim? — Ambas balançam a cabeça con irmando. —
Você s sã o estranhas pra caralho.
— Somos leitoras, nã o tente nos entender — Maddie justi ica.
— Por favor, manda notı́cias — Stella pede parecendo a lita.
— Pode deixar.
— Se cuida.
— Pode deixar.
— Nã o demore, vou sentir saudades.
— Nã o mais do que eu — sussurro em seu ouvido antes de deixar
um beijo em seu pescoço, que faz Stella estremecer e se afastar.
— Nuno — ela me repreende e mordo o lá bio para nã o rir da sua
expressã o envergonhada.
— Precisamos ir — Maddie diz já dentro do carro.
Stella me beija mais uma vez antes de entrar no carro.
— Valeu, Maddie, de verdade. Tô te devendo uma.
— Pode deixar que vou cobrar.
A garota tı́mida e calada, que sempre esteve ao meu redor por anos,
mas que quase nunca era vista por nã o ser como Cindy ou as outras,
sorri para mim, um sorriso leal, sincero, que faz com que eu me sinta
um bosta por nã o ter olhado para ela antes. Maddie é o tipo de pessoa
que vale a pena ter do nosso lado, nã o só por tudo o que ela vem
fazendo por nó s, mas por ela sempre ter esse sorriso sincero.
Observo o carro se afastar enquanto penso em todas as pessoas que
nunca prestei atençã o, em como as vezes deixamos de conhecer gente
legal só por nã o se “encaixar” na nossa turma e penso em algué m que
com certeza seria um bom amigo. Isso se ele se deixasse alcançar.
Sinto-me meio babaca por tudo o que já iz na vida e me forço a
pensar que nunca é tarde para resolver nossas merdas.
E por falar em merdas...
Entro no carro e pego meu celular, abro a caixa de mensagens, mas
nã o há nada de relevante, só as mesmas coisas de sempre, festas para o
im de semana, zoeira dos amigos e uma mensagem de Stella.

Júlia: A cada dia que vivo,


mais me convenço de que o
desperdício da vida está no
amor que não damos, nas
forças que não usamos, na
prudência egoísta que nada
arrisca e que, esquivando-se
do sofrimento, perdemos
também a felicidade. A dor é
inevitável, o sofrimento é
opcional.
Lembre-se disso quando achar
que está di ícil.
Obrigada pela noite
maravilhosa.
Volta logo, a porta estará
aberta.
Sua Júlia.
Sorrio igual um idiota enquanto leio pela terceira vez o poema, pela
primeira vez me senti bem em dividir minhas merdas com algué m.
Stella me ouviu, me consolou e me amou como se pudesse arrancar
toda a dor do meu coraçã o, e por alguns instantes, enquanto estava
dentro dela, me esqueci completamente do mundo a minha volta, do
fardo que tenho que carregar, da culpa, da vergonha, tudo o que era
capaz de pensar era nela.

Romeo: Obrigado pela noite,


foi incrível para mim.
Deixe a porta aberta, logo
estarei de volta.

Jogo o celular no banco do passageiro, ligo o carro e saio, tenho algo


importante a fazer e nã o posso esperar mais nem um minuto.

A Hilux preta ainda está estacionada na garagem, ao lado do sedan


de luxo da sua mã e, quando para o carro na minha garagem, claro,
estamos fora da escola e se o conheço bem, e eu sei que conheço, Ivan
deve estar enfurnado em algum lugar, se corroendo em silê ncio por
todas as merdas que vem fazendo.
Desço do carro e atravesso o jardim que separa nossas casas,
contorno a lateral da sua e entro pelo jardim. Tudo está no mais
absoluto silê ncio já que seus pais estã o viajando em uma das milhares
de lua de mel que esses dois vivem inventando. Desde que Zach se
casou e que Nick decidiu que nã o suportava mais viver aqui, a casa de
Ivan se tornou uma gigantesca caixa de lembranças de uma famı́lia que
um dia foi feliz e que hoje quase nã o se encontra mais.
Isso faz com que eu me sinta ainda pior por deixar que nossa
situaçã o chegasse ao ponto em que estamos, algué m precisa dar o
braço a torcer nessa merda e se tem que ser eu, foda-se, entã o serei.
Subo as escadas e vou direto para o terceiro andar, onde icam os
quartos vazios de Zach e Nick e o quarto do meu amigo, bato duas
vezes, mas nã o ouço resposta e abro a porta, há uma garota nua
esparramada na sua cama, ela está de costas e nã o consigo reconhecê -
la, a ú nica coisa que tenho certeza é de que nã o é a Cindy, ela quase
nunca dorme nas camas que ela fode e com toda a certeza, a de Ivan é
uma das poucas que ela nã o frequenta, ao menos nã o mais. Isso me
deixa um pouco decepcionado, eles precisam se resolver logo e nã o vai
ser fodendo outras garotas que Ivan vai mudar isso.
— O que você está fazendo aqui? — A voz de Ivan surge atrá s de
mim, fecho a porta e me viro.
— Ei, foi mal, nã o sabia que estava acompanhado.
Ivan nã o se parece com algué m que transou a noite inteira, apesar
do chupã o em seu pescoço e de algumas marcas de unha em seu peito
branquelo, seu rosto está fechado e as olheiras em seus olhos
demonstram que ele també m nã o dormiu essa noite.
— Tudo bem, vamos dar o fora daqui.
Ele passa a mã o em um agasalho e desce as escadas e faço o mesmo
acompanhando meu amigo até que estamos do lado de fora, entramos
na edı́cula que por anos foi nosso esconderijo. Quando moleques
brincá vamos por horas aqui dentro, já trouxemos uma porrada de
garotas, já icamos bê bados e chapados, já choramos e sorrimos,
sustentei meu amigo quando ele achou que seu irmã o tinha morrido, e
ele fez o mesmo comigo quando o meu se foi. Se há no mundo um lugar
melhor para termos essa conversa, esse lugar é esse.
Ivan caminha até o frigobar, pega uma lata de Coca-Cola e joga uma
para que eu a pegue no ar.
— Preciso icar só brio — justi ica e se joga na poltrona velha do seu
pai que nã o combina com absolutamente nada da sua casa, mas que ele
nã o deixa sua mã e jogar fora porque diz que dá sorte.
Sento-me no sofá e abro a latinha, o barulho do gá s saindo parece
quase ensurdecedor tamanho o silê ncio que há entre nó s.
— Valeu por ter levado a Stella até mim — começo ainda encarando
a lata em minhas mã os.
— Relaxa, ela tava pilhada e eu sabia que você precisava dela.
Tomo um gole, mas para desentalar o que quero falar e encaro o
rosto do meu amigo, Ivan está me olhando e icamos um instante assim,
só nos analisando, cada um com suas merdas, somos pé ssimos em
compartilhar nossos problemas verbalmente e, por mais que eu saiba
que isso é ruim, até hoje sempre funcionou, nos en iá vamos entre as
pernas de uma garota ou enchı́amos a cara, vı́nhamos para cá ,
jogá vamos videogame ou assistı́amos a algum ilme e arrastá vamos a
merda para debaixo do tapete, mas agora nã o dá mais, precisamos
começar a agir como adultos se quisermos ser tratados como tal.
— Tua cara tá uma merda.
— Acredite em mim, a sua nã o tá lá essas coisas. — Seus olhos se
demoram um pouco mais no hematoma.
— Isso aqui? Sinceramente, Ivan, você já foi melhor que isso —
brinco, mas ele nã o sorri.
— Eu nã o queria ter feito isso, foi mal — ele diz, baixinho, como se
admitir isso fosse algo vergonhoso.
— Eu sei, mas você precisava.
Ele nã o nega, mas desvia o olhar.
— Eu preciso pedir desculpas.
— Nã o tem nada pra pedir.
— Porra, Ivan, por que você deixou as coisas chegarem a esse
ponto? Se eu soubesse, nunca...
— Nã o sei do que você está falando — ele me interrompe e se
levanta indo até o balcã o onde está o cinzeiro e um maço de cigarros.
— Por que você está tentando esconder isso de mim? — pergunto
ainda no mesmo lugar, observando meu amigo, que nunca foi de fugir
de nada, en iar a porra de um cigarro na boca só para nã o ter que me
responder.
Aguardo paciente enquanto ele traga e solta a fumaça no ar, quero
mandá -lo se foder e dar o fora daqui, estou exausto e ainda terei uma
noite do cã o tendo que suportar meu pai, mas sou seu amigo, preciso
aguentar isso por ele e se é o silê ncio que ele vai me dar, entã o eu vou
aceitar.
— Eu nã o tenho pressa, posso esperar.
Ivan ergue os ombros e depois deixa eles caı́rem como se
carregassem o mundo.
— O que você quer que eu diga? — ele pergunta sabendo que nã o
vou a lugar nenhum até ele falar qualquer coisa que seja.
— Desde quando?
— Desde sempre, sei lá , nunca parei para pensar nisso — ele
desdenha.
— Desde sempre? Que porra é essa, Ivan? Por que nã o me contou,
merda, eu nunca teria chegado perto dela se eu soubesse.
— Eu nã o sou o tipo de cara que ica controlando ningué m e você
sabe disso.
— Mas ao menos eu nã o teria entrado nessa com ela.
— Isso nã o faz diferença, se nã o fosse você seria qualquer outro,
nã o é nada demais.
— Como nã o é nada demais?
— Nã o é , porra, eu nã o ligo, nã o vou icar pagando de otá rio
sofrendo por uma garota que tá cagando pra mim.
— Meu Deus, entã o você é mais otá rio do que imagina.
Ivan me olha como se pudesse enfeitar o outro lado da minha cara
mesmo a essa distâ ncia.
— Do que você está falando?
— Merda... — Nã o sei como contar ao meu amigo que a garota que
ele ama estava transando comigo para esquecê -lo. — Olha, Ivan, con ia
em mim, ela nã o está cagando para você .
— Que se foda, de verdade, eu nã o me importo.
— Se nã o se importasse mesmo, nã o estaria com esse mau humor
insuportá vel, trepando com um monte de mulher casada, louco para
arrumar uma treta que pode prejudicar seus pais. Se você realmente
estivesse de boa, eu nã o estaria com esse enfeite na minha cara.
— Se continuar me irritando vai ter outro.
— Ivan — o chamo e ele se vira para olhar para mim. — Se isso for
te fazer se sentir melhor, eu aguento mais um, tenho certeza de que
meu pai vai amar ter que explicar o olho roxo do ilho para aquele
bando de ilho da puta em Sã o Paulo, mas eu sei que nã o é assim que
você vai resolver essa histó ria.
Ivan ri, mesmo que nó s dois saibamos que isso é uma merda.
— Fala com ela.
— E complicado, Nuno.
— E a Cindy, cara, nossa amiga.
— Nã o é bem assim.
— Você s já conversaram sobre isso? — pergunto e Ivan nega com a
cabeça. — Olha, cara, eu sei que nã o é fá cil, você acha que é fá cil para
mim? Eu nem ao menos posso olhar para a Stella em pú blico — digo
sentindo-me um pouco mais seguro para falar sobre essas coisas de
relacionamento agora que admiti meus sentimentos para ela.
— Eu imagino, mas você s estã o indo bem, a Stella tá muito a im de
você . — O sorriso que se espalha em seu rosto carrancudo faz o meu
crescer. — Quem diria, a professora Stella apaixonada por você , o maior
idiota que conheço.
— Vai se foder. — Jogo uma almofada em sua direçã o e ele ergue o
braço protegendo o cigarro enquanto cai na gargalhada.
E bom rir com Ivan, me sinto em casa quando estamos bem, como se
o mundo estivesse girando da maneira correta novamente.
— Como a sua mã e lidou com a sua briga? — ele muda de assunto.
— Ela nã o estava em casa, nã o sabe de nada.
— Imaginei, pelos gritos ela só podia estar fora. Filho da puta
covarde.
— Filho da puta...
Ele volta a fumar e o conheço tã o bem que consigo ler as suas
emoçõ es pela forma como ele age, isso me faz perguntar por que nunca
me dei conta do que estava acontecendo entre ele e Cindy.
— A Stella é uma boa garota.
— Ela é . — Tento nã o sorrir, mas meu lá bios se movem sozinhos.
— Você s precisam tomar muito cuidado, qualquer pessoa mais
atenciosa vai se ligar logo.
— E, eu sei, estou contando os dias para poder me formar e me
livrar dessa merda de escola — digo ingindo que esse é o ú nico
problema que nos impede de icar juntos.
— Só se cuida, Nuno, por favor.
— Pode deixar.
Ivan amassa o resto do cigarro no cinzeiro e toma um longo gole do
seu refrigerante, em seguida ergue o celular e balança no ar.
— Que horas você viaja?
— Meio-dia.
— Tá a im de dar um pulo lá no Nick?
— Porra, demorou. — Levanto e sigo Ivan até a saı́da, ele nã o diz
mais nada sobre a Cindy, mas sei que as coisas serã o diferentes a partir
de agora, ele pode contar comigo e sabe disso.
— Ei, e a garota?
— E a Jé ssica do segundo — ele diz com um ar de diversã o nos
lá bios enquanto coloca os ó culos escuros e pega as chaves do carro.
— Porra, Ivan, a Jé ssica, namorada do Tiago?
— A pró pria.
— Você tá querendo arrumar merda pra tua cabeça, bro?
— Relaxa, ela veio sozinha, nã o tenho o que me preocupar. — Ele
destrava as portas e entramos.
Finjo que acredito no que ele está dizendo, mas sei que é mentira,
Ivan tá brincando com fogo, o problema é que nã o sei se estarei perto o
su iciente para evitar de ele se queimar.
Trabalhar foi quase uma tortura, depois de uma noite de sexo e
quase nenhum sono, passo o dia bocejando e um pouco letá rgica, mas o
pior de tudo é saber que Nuno nã o está aqui, e ainda pior, que ele estará
em breve viajando com o seu pai.
Precisei me controlar para nã o falar tudo o que sinto sobre esse
babaca asqueroso que ele chama de pai, como pode algué m ter a
coragem de colocar um garotinho em risco? Pude sentir a dor em suas
palavras quando ele disse que era culpado pela morte do irmã o. Em
toda a minha vida nunca vi nada mais cruel. E pensar que ele acredita
nisso porque seu pai falou é ainda pior.
O dia se estende por quase uma eternidade, na hora do almoço
acabo adormecendo na mesa com minha refeiçã o praticamente
intocada e me esquivo de perguntas que nã o tenho nenhuma intençã o
de responder, na minha aula vaga me pego sorrindo igual uma boba
enquanto leio uma mensagem de Nuno, ainda sinto o cheiro dele em
mim e, por mais que eu saiba que nã o, temo que algué m possa
descobrir o que izemos essa noite.
A verdade é que estou apaixonada por esse garoto intenso de olhos
profundos e lá bios capazes de me fazer perder a capacidade de falar. E
assustador e lindo e nã o quero mais pensar no futuro, nem em todas as
coisas que podem dar errado, eu mereço viver esse momento, e é o que
quero fazer.
Quando chego em casa mal consigo me arrastar até o banheiro,
tomo um banho longo e bem quentinho, coloco uma camiseta
confortá vel e me jogo no sofá com uma pizza inteira, que sei que nã o
vou conseguir comer.
Estou quase adormecendo quando ouço o barulho de algué m
batendo na porta e me levanto em um pulo, porque nã o tem muitas
pessoas que podem vir a minha casa, e uma delas a essa hora deveria
estar em um jatinho particular com seu pai.
— Quem é ? — pergunto sem ter certeza se quero realmente saber.
Se for Nuno, algo grave pode ter acontecido e estremeço só de imaginá -
lo brigando com seu pai novamente.
— Abre logo, quero fazer xixi. — Ouço sua voz, mas nã o consigo
acreditar que ela está aqui.
— Suzy?
— Vai logo, estou quase molhando minhas calças.
Abro a porta correndo e minha irmã se joga em meus braços em um
abraço rá pido.
— Onde é o banheiro? — Ela se afasta dando pulinhos no mesmo
lugar.
— No im do corredor — respondo surpresa demais enquanto olho
para o corredor de fora, esperando por Xavier. — Onde está seu noivo?
— Vou até a ponta da escada e olho para a porta da rua, ele deve estar
retirando as malas que Suzy exageradamente trouxe.
— Está em Sã o Paulo, pintando o apartamento.
— Cadê ele? — Viro-me e encontro Suzy fechando a calça jeans bem
no meio do corredor.
— Meu Deus, Stella, você precisa con iar mais nas pessoas. — Ela
volta para o apartamento e olho mais uma vez para a porta antes de
seguir atrá s dela.
— Ele nã o deixaria você vir até aqui sozinha.
— Quem ele pensa que é para me proibir de algo? Xavier tem amor
a sua vida.
— Você dirigiu sozinha até aqui?
— Foram só trê s horas. Na verdade, quatro porque tive que parar o
tempo todo.
— Meu Deus, eu nã o acredito que você foi tã o imprudente.
— Eu mandei mensagem a cada meia hora e Xavier me fez parar
duas vezes para poder ver a minha cara, inclusive. — Ela ergue o celular
no ar. — Está me ligando nesse exato minuto. — Ela aceita a chamada
de vı́deo e me sento colocando uma almofada em meu colo ao me dar
conta de que estou apenas de calcinha. — Oi, amor, já cheguei, estou
viva e com todos os membros no lugar — ela brinca mesmo sabendo
que odeio quando ela faz isso.
— Isso não é engraçado — ouço Xavier falar do outro lado da linha,
como se ele lesse minha mente.
— Oi, cunhado. — Aceno para ele quando ela vira o celular para
mim.
— Pelo amor de Deus, dá um jeito na sua irmã. — ele parece bravo e
Suzy revira os olhos diminuindo a gravidade do seu ato.
— Eu achei que você faria esse serviço.
— Eu tento, mas ela é impossível.
— Bem-vindo ao fantá stico mundo dos otá rios. — Olho feio para
Suzy, que parece nã o se dar conta do quanto seu comportamento
imprudente nos deixa irritados.
— Tá bom, chega de falarem de mim.
Eles conversam por mais alguns minutos, Suzy pede desculpas
algumas vezes, o que me faz pensar que ele está realmente muito
magoado e, entã o, ela inalmente desliga a chamada e se vira como se
estivesse em busca de algo.
— Entã o, cadê ?
— Cadê o quê ?
— O responsá vel por te manter em cativeiro sem direito a
comunicaçã o? — ela fala ainda olhando em volta exageradamente. —
Aliá s, estou surpresa que você ainda esteja andando, eu juro que
imaginei que iria te encontrar amarrada na cama, nua.
— Engraçadinha.
— Engraçadinha? Você me mandou a ú ltima mensagem há cinco
dias me dizendo que tinha algo a me contar sobre o boyzinho e até
agora nada.
Ela tem razã o, tudo que disse a ela sobre Nuno foi que estava
icando insuportá vel lidar com a tensã o sexual que existia entre nó s e
depois disso venho evitando suas ligaçõ es e me esquivando de tudo que
diz respeito a ele, pelo simples motivo que nã o sei como contar a ela
que nã o sei brincar de me divertir.
— Nã o tem ningué m aqui, sou só eu.
— E ele?
— Está viajando com o pai.
— Droga, eu achei que iria pegar você s de surpresa.
— Acredite, você me pegou.
— Nã o queria ver você , queria ver ele, ter uma conversa de irmã
mais velha, perguntar as intensõ es e tal.
— Nã o seja ridı́cula, Suzy. — Jogo uma almofada em sua direçã o,
mas ela pega no ar.
— O quê ? Eu preciso fazer meu papel, estive sonhando com isso a
vida inteira.
— Você nã o estava mesmo achando que iria chegar aqui e perguntar
quais as intençõ es dele, né ?
Suzy inalmente se joga ao meu lado no sofá e estica suas pernas
sobre meu colo.
— Claro que nã o, eu só precisava ver a cara dele, saber se o estrago
do lado de lá é tã o grande quanto o do lado de cá .
— Do que você está falando? — Afasto suas pernas e me levanto,
sem fazer a menor ideia de onde estou indo.
— Ah, Stellinha, você é tã o teimosa que, à s vezes, me irrita. — Suzy
pega a almofada e coloca na cabeça afofando-a. — Por que nã o admite
logo que está apaixonada?
— O quê ?
— Você está apaixonada por esse boyzinho.
— Para de chamar ele assim.
— Nené m? — ela me provoca.
— Ridı́cula. O nome dele é Nuno.
— Ah, Nuno, Nuno, Nuno... o que você fez com a minha irmã zinha,
hein?
Vou até a cozinha e preparo um chá para nó s duas, Xavier liga mais
uma vez para perguntar algo sobre a cor da tinta e Suzy vai para o
quarto conversar com ele, pego o celular enquanto a aguardo voltar e
sorrio quando vejo que há uma mensagem de Nuno, abro e é uma foto
dele puxando a gravata, como se estivesse se enforcando, seus cabelos
estã o penteados para trá s e ele se parece muito mais velho que seus
dezessete anos, absurdamente lindo, poderoso e rico, mesmo fazendo
graça.

Romeo: Me mate, por favor.

Júlia: De jeito nenhum, você


me deve um beijo.

Envio me sentindo como se estivesse fazendo algo errado, sei que


essas mensagens sã o perigosas, que o fato dele ter mudado meu nome
nã o é garantia de nada, se qualquer um ligar para mim vai saber quem
realmente é a Jú lia, mas ao mesmo tempo em que é perigoso, sinto uma
onda de excitaçã o me envolver por saber que estamos fazendo algo
escondido. Acho que estou começando a me contaminar com o fetiche
dele por coisas perigosas e sujas.

Romeo: Pode deixar, pagarei


com muito prazer, vou te
beijar inteira até você gritar
meu nome.
Sinto meu corpo inteiro formigar enquanto leio sua mensagem, é
fá cil imaginar Nuno falando esse tipo de coisa em meu ouvido,
enquanto tira minha roupa, minha lucidez, minha razã o.
— Olha aı́, tá vendo? — Suzy para na minha frente e nã o faço a
menor ideia de como ela veio até aqui sem que eu notasse.
— O quê ? — Escondo o celular em meu peito como se fosse uma
adolescente pega fazendo coisa errada.
— Sua cara, aposto que é ele. Deixa-me ver. — Suzy estende a mã o
para pegar meu celular e me afasto.
— De jeito nenhum.
— Ah, meu Deus, ele tá falando sacanagem, nã o é ? Esses garotos
adoram falar besteira.
— Para de falar assim, me sinto uma pedó ila aliciando menores de
idade.
— Para isso você teria que ter seduzido o garoto, subornado em
troca de algo, mas, pelo que vejo, a seduzida aqui é você , maninha —
Suzy continua a brincar.
— Cale a boca!
O celular vibra enquanto minha irmã dispara em falar bobagens que
me deixam vermelha.

Romeo: Júlia, você está aí?

Nuno manda mais uma mensagem.

Júlia: Estou sim, minha irmã


está aqui comigo.
— E ele? O que ele está falando? Já te mandou uma foto do
equipamento dele em açã o? — Ela se debruça no balcã o tentando ver a
mensagem. — Eu queria que o Xavier me mandasse uma, mas ele se
recusa.
— Jesus Cristo, o que deu em você ?

Romeo: Sério? Poxa, que


legal, manda um beijo.

— Ele te mandou um beijo.


— Ah, que fofo, deixa eu mandar um á udio. — Suzy puxa o celular
da minha mã o e desisto. Sei que ela vai arrumar um jeito de ler essa
conversa depois de qualquer maneira, entã o pre iro que seja comigo ao
seu lado. — Oi, gatinho, atravessei Sã o Paulo só pra te conhecer e você
fugiu de mim, estou chateada.
Suzy solta o microfone e Nuno começa a ouvir a mensagem ridı́cula
imediatamente, quero me en iar em um buraco quando vejo que ele
está gravando uma mensagem també m.
Suzy pisca para mim enquanto espera.

Romeo: Não seja por isso,


podemos resolver esse
problema agora mesmo.

Assim que terminamos de ouvir a mensagem, meu celular começa a


tocar.
— Ah, meu Deus, ele nã o fez isso.
— Gosto assim, novinho de atitude. — Suzy pega o celular da minha
mã o e aceita a chamada imediatamente.
— Oi. — O rosto lindo e cansado de Nuno surge do outro lado da
linha, usando uma camisa branca amarrotada e aberta até metade do
peito, os cabelos completamente desalinhados enquanto ele acena para
a minha irmã .
— E aı́, cunhadinho — ela fala arrancando um sorriso torto e tı́mido
dele.
— E aí, cunhada, então você foi até esse im de mundo só para me ver?
— Ele se acomoda em um sofá e inclina o corpo para a frente segurando
o celular com as duas mã os enquanto conversa com Suzy, como se
fossem velhos amigos.
— Nah, eu só estava in lando seu ego, eu vim ver a minha irmã zinha,
que anda ocupada demais para ligar para mim. Você por acaso sabe o
motivo?
Dessa vez, Nuno solta uma gargalhada tã o gostosa que me pego
sorrindo.
— Eu não faço ideia, deve ser montando trabalhos e escolhendo os
piores livros do mundo para torturar seus alunos.
— E isso mesmo, Stella? — Ela vira o celular para mim e Nuno
morde o lá bio quando me vê .
— E aí, covarde, como você está? — Sua voz baixa um pouco, como se
ele nã o se importasse que tenha mais algué m ouvindo o que ele diz.
— Estou bem, e você ? Como foi o seu dia?
— Um inferno, mas tudo bem, faz parte do incrível pacote que é estar
com meu pai. — Nuno passa a mã o nos cabelos desmanchando as
mechas e volta a olhar para mim. — Estou com saudades — ele diz, sem
medo, sem dú vidas, sem pausas. Daquele jeito direto e intenso que
destruiu todas as minhas barreiras e me tornou essa massa ambulante
de desejo.
— Eu també m — admito, sentindo o sorriso de Suzy se espalhar.
Conversamos por mais alguns minutos, Suzy faz Nuno rir mais do
que eu já vi desde que o conheci e me pergunto o quanto ele é feliz já
que, mesmo cercado de tantos amigos, ele nã o se parece uma pessoa
alegre.
— Eu vou deixar você tomar um banho, a gente se vê . — Suzy se
despede e passa o telefone para mim.
— Valeu, cunhada, se eu não conseguir chegar a tempo, a gente
marca outro dia.
— Combinado. — Ela se levanta e vai para o quarto dando um
pouco de privacidade para que possamos nos despedir.
— Você parece cansada.
— Eu nã o dormi nada essa noite.
— É, eu também, mas valeu cada segundo.
— Sim, valeu.
— Obrigado pelo poema.
— Nã o é meu, só achei que cabia.
— É perfeito. — Nuno ergue o rosto como se algué m tivesse chegado
e quando ele volta a falar comigo, toda a leveza do seu rosto se foi e ele
volta a ser o garoto que conheço. — Preciso ir, a gente se fala.
— Tchau.
Ele desliga a chamada rapidamente, como se temesse que nos visse.
Passo um tempo apenas olhando para a tela agora vazia do celular,
tentando adivinhar o que ele está passando, se está bem, se seu pai o
machuca de alguma forma e por que ele nã o pode se negar a fazer as
coisas que seu pai exige. Quando ergo o rosto, Suzy está novamente
parada na minha frente, os braços cruzados na frente do peito e um
olhar que nã o tem nada de engraçado.
— Agora você entende? — pergunto jogando o celular na mesinha.
— Uau, ele é realmente incrı́vel.
— Ele é .
— E maduro.
— Você nã o tem ideia. Todos eles sã o, como se fossem obrigados a
amadurecerem mais cedo para aprenderem a lidar com as
responsabilidades de serem ilhos de quem sã o. — Suzy se senta na
minha frente.
— Ele parece bastante apaixonado, os olhinhos dele brilham
quando olha para você .
— Ah, Suzy... Estou com tanto medo.
— Por quê ?
— Por quê ? Você acha mesmo que o pai dele vai aceitar isso assim
tã o fá cil? O Nuno nem ao menos tem a chance de escolher seu futuro.
— Entã o você deveria ter dito isso para o seu coraçã o.
— E o que vai ser de mim quando ele me deixar? — admito pela
primeira vez em voz alta o meu maior medo.
— Mas quem disse que ele vai te deixar?
— Nã o sou boba, em alguns meses ele se forma, com certeza vai
estudar fora como a grande maioria e seu pai tem mil planos para ele e
eu?
— Você tem mil planos para você , tem sua carreira que está indo
superbem, tem seu doutorado para começar e, se for pra ser, um dia
você s vã o se encontrar novamente lá na frente.
— E se nã o der certo?
— Tsc, tsc... Lamentá vel que justo você , a garota dos romances,
tenha tã o pouca fé no amor.
— Esse é o problema, a gente nunca sabe o quanto ele é capaz de
suportar.
— Nã o, esse é o verdadeiro segredo, a gente nunca sabe o quanto
ele é capaz de suportar, geralmente é muito mais do que imaginamos,
Xavier é a prova viva.
Jogo-me no encosto do sofá e fecho meus olhos, imaginando um
futuro em que Nuno é um homem bem-sucedido, lindo e apaixonado
por mim. Imagino pousando meus dedos em sua gravata cara, sua mã o
em meu corpo; adormecendo em seus braços e acordando ao seu lado.
Preciso admitir, nã o é um sonho ruim de se imaginar, embora seja
perigoso, mas esse é o problema de se permitir sonhar, estou
começando a icar viciada nesse tipo de coisa.
Dizem que a primeira regra para nã o se afogar é manter a calma, o
desespero faz com que o oxigê nio vá embora mais rapidamente, a
pessoa para de pensar e nã o se dá conta de que está acelerando a sua
morte, o medo é o assassino da vida.
Eu queria dizer que nã o tenho medo, de verdade, trabalho essa
merda na minha mente todos os dias, nã o quero ter medo de nada, o
pior que pode me acontecer é descansar dessa porra toda e isso até que
nã o me parece uma ideia tã o ruim.
Morrer pode ter suas vantagens.
Mas a verdade é que tenho medos que me assombram, medos que
me fazem fraquejar, desviar o olhar, ingir que nã o importam, medos
tã o grandes que sinto que estou sufocando, morrendo, me perdendo.
Entã o tento nã o pensar neles, empurro-os para o fundo da minha
mente, tã o escondidos que, à s vezes, até eu mesmo me esqueço deles,
até que meu pai entra em meu quarto, invadindo minha privacidade
sem dar a mı́nima para isso, me fazendo desligar a chamada com Stella
praticamente na sua cara, com medo de que ele a veja enquanto joga
uma pasta na mesa a minha frente.
— Ei, você nã o pode entrar assim! — digo enfurecido me
levantando e guardando o celular no bolso da calça.
— Estude, amanhã temos uma reuniã o e preciso que você esteja a
par.
— O que é isso? — Olho para a pasta, o logotipo de uma empresa
bioquı́mica alemã estampa a capa e olho para o meu pai. — Alemã o?
Sé rio?
— Você precisa praticar.
— Eu preciso é dormir, estou praticamente virado e você nã o me
deu um minuto de paz o dia inteiro.
— Nã o tenho nada a ver com o que você faz nas suas horas vagas.
— Claro que nã o, você tá cagando para o que eu faço.
— Nã o seja dramá tico, Nuno.
— E a verdade. — Jogo a pasta na mesinha e me afasto indo até o
frigobar e pegando uma lata de refrigerante.
— Amanhã , à s seis, esteja pronto para o café , saı́mos à s sete e meia
e você sabe que odeio atrasos.
— Vai se ferrar! — digo de costas para ele, em um ato infantil e
rebelde, enquanto bebo um longo gole do refrigerante, sabendo que
esse será apenas o primeiro, porque, por mais que eu resmungue, no
im das contas, vou passar a porra da noite debruçado nesses papé is,
estudando até decorar cada maldita linha porque, no fundo, a ú nica
coisa que quero é surpreendê -lo. Agradá -lo, provar para ele que posso
ser tã o bom quanto o Matteo, que ele nã o icou com o pior, que eu ainda
valho a pena. Como a porra de um cachorrinho carente.
Ouço o barulho da porta se fechando e vou até a mesa, pego os
papé is e folheio aquele monte de informaçõ es chatas, retiro a roupa e
ico só de cueca sabendo que banho só depois que eu terminar. Estou
com a cabeça pesada, cansado pra caralho, irritado e, mesmo assim,
começo a ler o relató rio.
As vezes, me pego pensando em como seria a minha vida se Matteo
ainda estivesse aqui, seria ele nesse terno caro que tanto odeio, seria
ele ouvindo essas conversas chatas que faz o café da manhã revirar em
meu estô mago, ele estaria participando, compartilhando suas ideias,
dividindo suas opiniõ es, ele seria amado, respeitado mesmo com tã o
pouca idade, seria o herdeiro perfeito, Matteo nasceu para isso, ele
amava esse cheiro de poder, fazia parte dele, estava em seu coraçã o.
Já o meu coraçã o nesse momento está vazio.

— Arruma essa gravata, Nuno! — meu pai exige sem nem ao menos
olhar para mim. Se olhasse veria as olheiras em volta dos meus olhos,
culpa de mais uma noite praticamente se dormir, regada a energé tico e
café . Com certeza, isso faz uma gravata torta parecer bobagem.
— Eu gosto assim — respondo olhando pela janela para a rua
movimentada da cidade, incapaz de me impedir de agir como o babaca
que sou. Um babaca exausto.
— Teremos uma reuniã o com investidores importantes em uma
hora, já nã o basta esse hematoma em seu rosto?
— Posso manter os ó culos de sol se quiser. — Aponto para o meu
rosto e dou um sorriso debochado, que sei que fará seu sangue
esquentar.
— Nã o me provoque, Nuno, arruma essa porra.
Sorrio e volto a olhar pela janela, ignorando suas ordens. Foda-se se
me pareço com algué m que passou a noite na farra. Se ele quer que eu
seja visto, entã o serei, do meu jeito.

A sensaçã o de se afogar nã o pode ser pior do que a que tenho no


instante em que entramos no pré dio da Fremitus, uma das maiores
farmacê uticas do paı́s, o impé rio que herdarei um dia, se meu pai nã o
me matar antes. O dia, como esperado, é um inferno, a reuniã o dura
duas horas e meu pai me obriga a fazer uma das coisas que mais odeio
na vida: falar em pú blico.
E sempre a mesma coisa, sinto o pâ nico se instalar, a falta de ar, o
suor nas palmas das mã os, erro palavras, me esqueço de nú meros e
ignoro quando um dos velhos sentados à mesa segura um sorriso
ingindo pigarrear. Se eu estivesse na escola, eu o mandaria se foder,
quebraria sua cara, tiraria esse sorriso escroto da sua boca murcha com
meu punho, mas aqui preciso manter a linha, sou o herdeiro dessa
porra toda e todos estã o olhando para mim, como se eu fosse um
palhaço de circo, imagino o que eles estã o pensando, que meu pai está
tentando me consertar, que ele é um homem incrı́vel por ter forças para
lidar com um moleque inconsequente, que nã o sabe sequer arrumar a
porra de uma gravata. Um rebeldezinho sem causa. Culpa do mimo da
mã e. Excesso de atençã o. Grana, com certeza é a grana.
Depois da apresentaçã o ridı́cula, passo o resto da manhã na sala que
meu pai me deu de presente ano passado, tem até a porra de uma
plaquinha na porta com meu nome e tudo mais, ela é maior do que a
grande maioria das salas desse andar, mas me sinto enclausurado
sempre que entro aqui. A parte boa é que estou a dois andares de
distâ ncia dele e nã o preciso ouvir a sua voz.
Preparo um relató rio sobre a apresentaçã o, faço anotaçõ es e checo
listas como se eu fosse a sua maldita secretá ria. Nã o consigo almoçar,
estou estressado demais e tenho certeza de que vou vomitar se tentar
comer algo.
Quando todos saem para o almoço, entro no banheiro e me escondo
em uma das cabines, puxo o celular e mando uma mensagem para
Stella. E aterrorizante o alı́vio que sinto só de falar com ela.

Romeo: Dormiu bem?

Fico olhando para a tela como um idiota esperando que ela


responda, sã o quase duas da tarde e imagino que ela esteja passeando
pela cidade com sua irmã .
Ela responde logo em seguida, como se estivesse me esperando o
que só aumenta o meu sorriso.

Júlia: Apaguei, estava


exausta. E você?
Romeo: Praticamente virado,
estou exausto.

O telefone toca imediatamente e fecho os olhos sentindo um alı́vio


por saber que ela se importa comigo.
— Saudades da minha voz covarde? — brinco.
— Por que você não dormiu? Aconteceu alguma coisa?
Conto a ela sobre a reuniã o e como tive que decorar toda a pauta em
alemã o, nã o quero parecer um coitadinho e uso um pouco de humor
para quebrar o gelo, mas Stella nã o parece disposta a acreditar em mim.
— Ele está te maltratando?
— Nada que eu nã o esteja acostumado, tortura pintada com notas
de cem. — Sorrio apoiando a cabeça na parede ina que separa uma
cabine da outra e tento nã o fechar os olhos, tudo o que nã o preciso é
que o ilho do dono da porra da empresa seja encontrado dormindo em
um banheiro. — Me conta o que você está fazendo.
— Estou criando coragem para levar a Suzy para conhecer a cidade.
— Achei que já tivesse ido.
— Estava enrolando.
— Eu gostei da sua irmã , ela parece divertida.
— Ela também gostou de você.
— Isso é bom. — Meus olhos queimam e fecho-os por alguns
segundos.
— Nuno. — Ouço a voz de Stella ao fundo e me obrigo a abrir os
olhos.
— Conversa comigo, eu estou prestes a dormir dentro do banheiro.
Ela sorri e bocejo sentindo o cansaço me vencer.
— Lava o rosto com água gelada enquanto te conto o que a Suzy fez
na última viagem que izemos juntas.
— Otimo, estou precisando de uma dose de loucura. — Abro a
cabine e vou até a pia, lavo o rosto enquanto deixo o celular no viva-voz.
Stella e Suzy falam juntas, uma atropelando a outra, e me fazendo
gargalhar. E por alguns minutos me sinto relaxado, quase como um cara
normal.

Na parte da tarde tenho que acompanhar uma vistoria da fá brica


com um dos gerentes de produçã o onde passo a maior parte do tempo
balançando a cabeça para o que ele diz enquanto minha mente viaja até
Stella, em como ela simplesmente me ligou no instante em que eu disse
que estava com sono e como ela começou a falar sem parar porque
sabia que eu precisava me manter acordado.
— Alguma dú vida? — o cara de ó culos pergunta parado na minha
frente.
— Nã o, nenhuma.
— Entã o podemos seguir para a pró xima etapa. — Ele abre uma
porta e entramos em uma sala completamente branca, o cheiro de
produtos quı́micos me deixa enjoado e sei que estou aqui como uma
forma de puniçã o por meus atos rebeldes; se for o caso, eu nã o me
arrependo de nada, principalmente de ter quebrado o nariz daquele
ilho da puta. Se pudesse faria mais.
Mesmo assim me mantenho irme e sigo com o circo pelo tempo que
for necessá rio, o pobre homem designado para me acompanhar, já
começa a dar sinais de exaustã o, ele parece confuso e um pouco
perdido, provavelmente nã o está entendendo o motivo de ter sido
escalado para passar o sá bado de folga pagando de babá do ilho do
dono.
Pois é , meu amigo, a vida nem sempre é justa.

O dia já se foi quando me jogo no banco de trá s do carro que meu
pai mandou me buscar, estou tã o cansado que apago no mesmo
instante e acordo com o motorista cutucando minha perna para que eu
acorde.
— Chegamos, senhor — ele diz um pouco sem graça na frente do
hotel de luxo onde estamos hospedados. E deprimente a forma como
ele olha para mim, posso sentir a sua pena me envolvendo, como um
vé u de humilhaçã o.
— Merda, valeu. — Saio do carro segurando o paletó e a gravata nas
mã os e me arrasto pelo hotel, tudo o que quero é me jogar na cama e
apagar.
Quando entro no quarto, há comida na mesa à minha espera e pelo
cheiro deve ter acabado de chegar, estou faminto, mas o cansaço é
maior e pre iro tomar logo um banho, assim, se eu adormecer em cima
da comida, ao menos estarei limpo.
Como tudo o que me mandaram, com certeza escolha do meu pai, e
por um instante me sinto até um pouco grato por ele ter se preocupado
comigo, carê ncia é mesmo uma merda. Quando termino, mal consigo
me arrastar até a cama e me jogo, apagando no mesmo instante.
Algum tempo depois sinto a presença de algué m ao meu lado, dedos
acariciam meus cabelos e nã o consigo abrir meus olhos, sinto o cheiro
adocicado de perfume feminino, mas nã o reconheço de quem seja, forço
meus olhos a abrirem e estou prestes a chamar por ela quando avisto
meu pai, em pé ao lado da cama, os cabelos levemente desalinhados, e
uma camisa cara sem gravata, o equivalente a um traje informal para
ele.
— Finalmente, achei que ia precisar chamar um mé dico para te
acordar.
Pisco algumas vezes e olho ao redor, trê s garotas estã o sentadas na
minha cama, uma ruiva espetacular, a dona do perfume doce, está ao
meu lado, suas mã os em meus cabelos alisando-os com uma intimidade
irritante.
— Que porra é essa? — Sento-me afastando a mã o da garota.
— Um presentinho para mostrar o quanto estou feliz. — Ele aponta
para as garotas como se elas fossem um objeto. — Preciso te
parabenizar, Nuno, hoje você foi incrı́vel. Os investidores icaram
surpresos com seu desempenho na reuniã o.
— Você pagou garotas para mim?
— Você nã o precisa icar com todas se nã o quiser, basta escolher
uma.
— Eu nã o quero garotas.
— Como assim, nã o quer? — Ele me olha como se eu tivesse
acabado de falar algo absurdo.
— Você entendeu o que eu disse.
— A ú nica coisa que entendi é que você está recusando trê s lindas
mulheres.
— Você é muito babaca e se acha que pode me tratar como um lixo e
depois resolver tudo colocando uma garota no meu pau? Vai icar para
avaliar minha performance també m?
— Nã o seja ridı́culo, estou te tratando como um homem, nã o sabia
que você nã o gostava de mulheres.
— Nã o preciso que você escolha as minhas garotas, eu faço isso
sozinho e nunca precisei pagar para nenhuma delas abrirem as pernas
para mim, ao contrá rio de você que até hoje precisa pagar para ter uma
famı́lia, mesmo que seja a porra de uma farsa.
— Isso signi ica que sua mã e é uma prostituta?
— Seu ilho da...
— Cuidado com o que você diz, Nuno — me repreende.
— O que mais você quer de mim? Eu iz tudo o que você pediu.
— Eu sei e por isso elas estã o aqui, para te ajudar a relaxar depois
de um dia tã o exaustivo.
— Eu nã o quero uma trepada, eu quero que você pare de me punir.
— Punindo? Eu estou preparando você para o mundo.
— Entã o olhe para mim. — Levanto-me e estendo meus braços, nã o
dou a mı́nima se estou quase nu na frente dessas garotas
desconhecidas. — Olha para mim, porra, me enxergue, veja quem eu
sou de verdade.
— Ah, por favor, Nuno, pare de drama, eu nã o vou icar aqui
passando a mã o na sua cabeça, estou te tratando como um homem que
um dia vai herdar uma das maiores empresas desse paı́s.
— Eu só queria que você me tratasse como um ilho.
— Essa é a funçã o da sua mã e — ele diz, com os olhos ixos nos
meus.
Dou as costas e saio do quarto, preciso me afastar do meu pai ou
vou acabar cometendo um crime e aı́ sim, estarei em uma prisã o. A
diferença é que essa ao menos terá um prazo para acabar.
Quando volto para o quarto, agora vestido e menos irritado,
encontro uma das garotas sentadas em um poltrona, é a morena, a
menor de todas, a mais quietinha e que mais se parece com Stella e
sinto meu coraçã o parar de bater por um instante.
— Olha, me desculpa se eu fui grosseiro, nã o quis ofender você e
suas amigas.
— Nã o ofendeu, relaxa. — Ela se levanta e arruma o decote da blusa,
que mostra mais do que eu gostaria de ver. — Seu pai pediu para que eu
icasse e te entregasse isso. — Ela estende o envelope com a logo do
hotel.
— O que é isso?
— Eu nã o faço ideia, só estou fazendo o que ele me pediu.
Abro o envelope sob o olhar atento da garota à minha frente, e sinto
tudo à minha volta desaparecer quando reconheço no texto escrito a
letra masculina do meu pai.

“Resolvi pedir para a Júlia icar. Já que você não escolheu nenhuma,
achei que iria preferir a morena pequena e sem graça, é seu tipo favorito,
não é? As frágeis e indefesas... Ao menos nisso somos iguais, gostamos de
dominar. Divirta-se, ela foi paga para isso.”

Olho para a garota sem compreender o que está acontecendo aqui.


— Está tudo bem? Você está pá lido.
— Qual o seu nome? — pergunto ainda olhando para as palavras no
papel. Quando ela nã o responde, ergo o rosto e volto a perguntar. —
Qual o seu nome?
A garota parece assustada e odeio a forma como ela foi jogada no
meio dessa merda toda.
— Meu nome é Jú lia — ela responde e preciso me sentar, porque, de
repente, sinto como se estivesse afundando. E, por mais que eu saiba
que preciso manter a calma, nã o consigo, o medo está me dominando.
Assim que desligo o telefone, uma sensaçã o ruim me invade, Nuno
parecia exausto do outro lado da linha e imaginar que ele tenha
passado a noite inteira estudando para agradar aquele pai faz meu
estô mago se revirar.
Por sorte, Suzy me obriga a sair de casa e passamos uma tarde
agradá vel andando pelas ruas tranquilas e elegantes da cidadezinha,
tirando fotos, comendo e nos distraindo.
— Esse lugar é incrı́vel. — Suzy se joga em uma das cadeiras da
cafeteria da Beth. — Combina tã o bem com você .
— Combina?
— Sim, parece um daqueles cená rios de romances europeus
totalmente sem pé nem cabeça, mas que deixa o coraçã o quentinho e
que você ama.
Sorrio ao imaginar um roteiro adaptado em Monte Mancante, o
Oscar de melhor fotogra ia estaria garantido.
— E exatamente assim que me sinto aqui.
— Olá , Stella. — Beth se aproxima com seu sorriso gentil de sempre.
— Olá , Beth, essa é minha irmã , Suzy. Ela veio me visitar e eu
precisava trazê -la para conhecer o melhor café de Sã o Paulo.
Beth sorri timidamente, ela é uma bela mulher apesar de pouca
vaidade, tem os olhos castanhos expressivos e as sobrancelhas perfeitas
e arrogantes iguais à s de Rael e imagino que deve ter sido uma jovem
linda, de fazer com que os garotos ricos dessa cidade perdessem a
cabeça.
— Entã o vou trazer o café especial para você s.
Ela se vai com nosso pedido e Suzy continua tagarelando sobre a
cidade e sobre mim, olho para o celular mais uma vez, desejando que
Nuno me responda, mas ele continua em silê ncio.
— E aı́? — Suzy pergunta apontando para o celular.
— Nada, deve estar atolado de trabalho.
— Ele parecia bem cansado ontem.
— Nuno teve uma briga horrı́vel com o pai antes de viajar. Eu sinto
que ele tem uma necessidade de ser visto por ele, sabe? Como se ele
precisasse da aprovaçã o do pai para suprir a falta do irmã o.
— Todo garoto nessa idade quer a aprovaçã o do pai na mesma
medida que quer desa iá -los, faz parte do amadurecimento. O seu
garoto está descobrindo o lugar dele nesse mundo doido de Deus.
— Eu só gostaria que ele me respondesse. — Suspiro ainda olhando
para o celular enquanto me recordo de como ele parecia magoado na
nossa ú ltima noite juntos.
— Você acha que o pai dele pode machucá -lo?
— Suzy, assim você nã o me ajuda.
— E, você tem razã o, entã o vamos mudar de assunto. — Ela ergue
os olhos e vejo um brilho em seu rosto. — Acho que essa cidade é mais
interessante do que eu imaginava.
Viro-me e encontro Rael organizando alguns bolos no balcã o. Como
sempre, ele está alheio a tudo à sua volta, com algumas mechas de
cabelo caindo em seu rosto, escondendo-o do resto do mundo sem se
dar conta dos olhares das mulheres que babam em sua beleza elegante
e misteriosa.
— Esse é o Rael, ilho da Beth.
— E que ilho, hein. — Suzy suspira dramaticamente quando ele
passa a mã o nos cabelos casualmente e começo a rir.
— Ele era o melhor amigo do irmã o do Nuno.
— O falecido?
— Exato.
Conto tudo o que sei sobre Rael e minha irmã se surpreende com
sua histó ria e o quanto ele parece forte mesmo depois de tudo. De
acordo com Suzy, isso o deixa ainda mais sexy e misterioso e nã o posso
discordar, essas palavras de inem o Rael, sexy e misterioso.
— Quem vê ele assim, nem imagina sua histó ria — ela diz ainda
babando no rapaz.
— A grande maioria das pessoas sabem esconder bem seus
problemas.
— E por falar em problema, tem um nené m lindo vindo em nossa
direçã o, que cheira a problema — Suzy diz encarando o guardanapo a
sua frente, viro-me curiosa para descobrir quem deixou minha irmã
corada, algo raro para qualquer um, e nã o me surpreendo ao encontrar
Ivan, com sua carranca habitual, a luz da tarde iluminando seus cabelos
loiros bagunçados.
— E aı́ — ele diz ao se aproximar olhando para Suzy e para mim.
— Oi, essa é a Suzy, minha irmã . Suzy, esse é o Ivan, melhor amigo
do Nuno.
— Oi — minha irmã fala em uma voz derretida e ergo a sobrancelha
enquanto tento conter um sorriso. Ivan acena meio sem jeito e volta a
olhar para mim enquanto puxa uma cadeira virando-a ao contrá rio e se
senta.
— Está tudo bem? — pergunto preocupada.
— Sim, eu só te vi aqui e quis falar um oi. — Ele parece um pouco
tı́mido e quase posso ouvir os pensamentos pervertidos de Suzy.
— Você falou com o Nuno?
— Nã o, por quê ? Aconteceu alguma coisa?
— Ele parecia cansado a ú ltima vez que falei com ele e nã o responde
minhas mensagens. — Conto tudo para Ivan, ele nã o parece surpreso e
isso me deixa ainda mais angustiada.
— Você sabe, o pai dele é um pé no saco — ele tenta manter a voz
neutra, mas já o conheço o su iciente para sentir a raiva embutida nela.
— Ele obriga o Nuno a fazer essas coisas? — Suzy pergunta,
debruçada sobre a mesa.
— Quase sempre, mas, na maioria das vezes, Nuno se voluntaria. Na
cabeça doentia dele, acha que tem que seguir os passos do Matteo,
como uma forma de se redimir e o pai dele aguça as ideias do moleque
porque gosta de controlar ou sei lá que merda doentia se passa na
porra daquela cabeça. — Ivan parece furioso enquanto balança a
cadeira para frente e para trá s.
— Ei, menino, olha a boca. — Beth se aproxima com nossos pedidos
e dá um tapinha carinhoso na cabeça dele.
— Só estou falando a verdade. — Ivan passa os dedos nos cabelos
causando um mini-infarto na minha irmã que nã o desvia os olhos dele.
— Nã o julgue a dor de um pai — Beth surpreendentemente defende
o pai de Nuno, atraindo os olhares de todos.
— Ele é pai do Nuno també m. — Ivan parece ainda mais irritado
enquanto defende o amigo e vejo bolhinhas de amor escapando dos
olhos da minha irmã .
— Eu sei, querido, mas só ele sabe a dor que carrega no peito. O que
aconteceu com a famı́lia deles foi algo muito sé rio, do qual ningué m se
recuperou totalmente. Eu sei o que estou falando, há dores que sã o tã o
profundas que é menos doloroso conviver com suas sequelas do que
tentar tratá -las. — Ela desvia o olhar rapidamente para a entrada da
cafeteria e observo a cena que ela admira compreendendo o que ela
quer dizer. — Vamos apenas torcer para que tudo se acerte entre ele e o
Nuno, Violeta merece um pouco de paz naquele coraçã o e é o que nos
resta a fazer. — Ela acaricia os cabelos revoltos de Ivan fazendo-o
parecer ainda mais jovem. Um lindo e bicudo menino.
— Vou trazer um café especial para você també m. — Ela belisca a
bochecha dele deixando-a vermelhinha e Ivan sorri, o primeiro sorriso
sincero desde que ele chegou.
— Que se foda, eu odeio aquele cara — ele diz assim que ela se
afasta e volta a picotar o guardanapo destruı́do em suas mã os e imagino
que Ivan tenha muitas histó rias para contar.
Ouvimos um barulho de pessoas entrando na cafeteria, Ivan é o
primeiro a olhar em direçã o à porta e, pela expressã o em seu rosto,
imagino que nã o seja algué m de quem ele goste muito.
Cindy gargalha de algo que um rapaz diz, ele se parece com um
universitá rio, arrogante e bonito e, pela forma como sua mã o se
enrosca na cintura dela, devem ser mais que amigos. Ela olha em
direçã o a nossa mesa e acena para nó s, ouço o som da cadeira de Ivan
sendo arrastada.
— Acho que vou nessa. — Ele parece transtornado e olho
novamente para Cindy, seus grandes e expressivos olhos estã o ixos no
garoto loiro e mal-humorado à minha frente e me pergunto se ela
entrou aqui só para provocá -lo.
Pé ssima ideia, loirinha, isso nã o vai terminar bem.
— Ei, você nã o vai deixar de tomar o seu café , nã o é ? — Pouso
minha mã o sobre a sua e ele me olha como se eu estivesse prestes a
machucá -lo.
— Eu preciso ir, meu irmã o está me esperando. — Ele aponta para o
celular como se isso fosse uma boa justi icativa.
— Ivan, nã o dê esse prazer a ela.
— Nã o sei do que você está falando — ele se defende.
— Entã o diga a seu irmã o que você vai demorar mais alguns
minutos — Suzy diz e imagino que até mesmo ela já tenha notado o
quanto Cindy mexeu com Ivan.
Ele olha feio para a minha irmã , mas Suzy inge nã o notar.
— Se liga, moleque, você precisa de umas aulinhas de como lidar
com mulheres. Se quiser, eu mesma posso te ensinar. — Arregalo os
olhos e Suzy se apressa a explicar: — Com teorias, apenas teorias. —
Suzy pisca para Ivan e sinto seu corpo relaxar enquanto ele sorri para a
minha irmã .
— Acho que gostei da sua irmã . — Ele aponta o polegar na direçã o
dela.
— Todos gostam, nené m — ela diz enquanto gira o anel de noivado
no dedo. — Todos gostam.

A noite, Ivan combina de nos levar em uma festa. Tento, de todas as


maneiras, impedir Suzy de aceitar, mas é mais fá cil impedir a chuva de
cair no chã o.
As dez da noite, estacionamos na entrada do bar onde vim semana
passada com o pessoal da escola, está relativamente cheio se levarmos
em conta o tamanho da cidade e me obrigo a lembrar que existem
universitá rios que moram aqui, embora a maioria dos dormitó rios
estejam localizados na cidade vizinha onde as baladas sã o bem mais
agitadas.
— Uau, até que isso aqui tá animado — Suzy diz ao descer do carro,
o sorriso em seu rosto faz valer a pena todas as orientaçõ es que
tivemos que ouvir de Xavier quando ele soube que sua amada noiva iria
sair.
— Essa cidade tem seus encantos.
— Eu já posso nomear no mı́nimo trê s.
— Trê s?
— Ivan delı́cia, Rael gostoso e o melhor café do mundo. — Ela ergue
um dedo para cada um enquanto fala.
— Suzy, você nã o tem vergonha? Ele poderia ser seu ilho.
— Mas nã o é . E outra, eu só estou admirando a obra do nosso bom
Senhor, estou muito satisfeita com o meu pedaço particular do paraı́so.
Empurro-a enquanto caminhamos gargalhando para a entrada do
bar. De onde estamos, já posso ouvir a mú sica alta e sinto a energia
animada do lugar começar a me atingir.
— Vamos lá conhecer o resto da sua turma de adolescentes.
— Você vai adorar todos eles.
— Se forem a metade do Ivan, eu tenho certeza de que vou — ela diz
e caio na gargalhada novamente.
Assim que entramos avisto a mesa onde eles estã o, Maddie é a
primeira a erguer o braço acenando para nó s, Levi está ao seu lado,
entretido em alguma coisa no celular, e Cindy está do outro,
bebericando um coquetel colorido, que imagino que esteja batizado.
— Eu posso odiar aquela loira?
— De jeito nenhum, ela é uma boa garota e eu até acho ela bem
parecida com você .
— Parecida comigo? De jeito nenhum, eu nã o seria tã o burra de
deixar aquele pedacinho loiro do cé u escapar das minhas mã os.
— Eles ainda vã o se acertar — digo enquanto nos aproximamos.
— Estou me sentindo uma adolescente outra vez — Suzy diz e a
alegria em sua voz é contagiante.
Sentamo-nos à mesa deles, conversamos, damos risadas e, mais
uma vez, me surpreendo com a maturidade dessa turma, que a
princı́pio vi como um bando de crianças, mas que, aos pouquinhos, me
mostraram que sã o muito mais receptivos que os que consideramos
adultos.
— Preciso de uma bebida de gente grande. — Suzy se levanta e me
puxa seguindo para o balcã o que está lotado de pessoas.
Ruth está lá e nos recebe com um sorriso enorme nos lá bios e duas
cervejas da casa.
— Essa é por minha conta. — Ela pisca seus enormes cı́lios escuros
enquanto empurra duas canecas em nossa direçã o.
— Cara, eu gostei desse lugar — Suzy diz enquanto beberica sua
cerveja e observa as pessoas à nossa volta.
— Olha só que surpresa, Stella. — Tony, que está ao nosso lado, se
vira de frente para nó s com um sorriso.
Cumprimento-o e apresento Suzy, agradeço a Deus por ter me dado
uma irmã tã o inteligente porque ela percebe na hora quem ele é e seu
sorriso se desfaz imediatamente.
— E o que você está achando da nossa cidadezinha? — ele tenta
puxar papo com Suzy, mas ela parece tã o interessada quanto um
pedaço de madeira estaria.
— Interessante.
Tony nos apresenta o seu amigo, que també m está de visita esse im
de semana e tenho quase certeza de que gente chata atrai gente chata
porque seu amigo é tã o desagradá vel, que me dá sono.
Demoramos quase meia hora até conseguirmos nos livrar deles, e
vamos ao banheiro, aproveito enquanto Suzy está lá dentro e mando
uma mensagem para Nuno, já passa da meia-noite e até agora ele nã o
respondeu a mensagem que mandei à s oito da noite. Digo a mim
mesma que só estou fazendo isso porque estou preocupada e que se ele
estivesse bem eu també m estaria.
E essa constataçã o me assusta porque é a mais pura verdade, ver
Nuno sorrir me faz sorrir, e quando o vi chorar, foi como se um pedaço
do meu coraçã o tivesse se partido com a sua dor. Um sentimento tã o
forte e bonito, que, nesse momento enquanto olho para a foto dele
estampada na tela do celular, tenho certeza de uma coisa.
Nã o importa o quanto eu lute, o quanto eu diga a mim mesma que
nã o posso ou nã o quero viver esse momento, que Nuno é muito jovem
ou que nã o teremos futuro, isso tudo sã o apenas palavras, um eco
profundo de uma sociedade machista em que durante sé culos, sempre
foi bem-visto o relacionamento entre homens mais velhos e mulheres
mais jovens, mas que o contrá rio é ridicularizado e diminuı́do, como se
uma mulher nã o merecesse o amor de um homem mais jovem. E eu,
vergonhosamente, enraizei por toda a minha vida esse tipo de
preconceito; e o pior, acreditei que era a verdade, sem imaginar que um
dia um garoto rebelde e sarcá stico seria capaz de me provar o
contrá rio.
E hoje eu sei, no fundo do meu coraçã o, lá no cantinho, onde Nuno
se instalou, que nã o importa se temos dez ou vinte anos de diferença,
nem se sou sua professora ou se ele é absurdamente rico, se sou
ridı́cula por me sentir insegura ao lado dessas garotas incrı́veis, porque
tudo isso sã o apenas ró tulos que sentimentos nã o reconhecem e que
perdem completamente o sentido quando o amor inalmente vence.
Ando de um lado para o outro na frente do quarto onde meu pai
supostamente deve estar, sã o quase cinco da manhã e a porra da porta
está trancada. Abro e fecho a mã o, mexo o pescoço de um lado para o
outro e tento, com todas as minhas forças, manter a calma, mas isso é
quase impossı́vel.
O papel pesa em minha mã o, a textura arranha minha pele, as
palavras esmurram meu estô mago, fazendo com que a raiva aumente
em um looping in inito.
— O senhor está precisando de alguma coisa? — um dos
funcioná rios pergunta ao passar por mim.
— Que o meu pai abra a porra da porta — respondo nã o dando a
mı́nima para o escâ ndalo que estou prestes a fazer.
— O senhor perdeu o seu cartã o?
— Nã o, mas vou perder a cabeça se essa porta nã o se abrir.
— Podemos descer e providenciar outro — ele diz educadamente.
— Nã o, eu nã o vou sair daqui.
— Quer que eu chame o gerente?
— Eu quero que algué m ligue lá e mande ele abrir a porta ou vou
começar a fazer um escâ ndalo. — Aponto para a porta ignorando a
forma como meus dedos tremem.
— Sim, senhor, só um instante e já vamos resolver isso. — Ele dá
alguns passos para trá s. — O senhor quer uma á gua?
— Eu quero essa porra dessa porta aberta agora.
— Sim, senhor — ele diz e se afasta, volto a caminhar de um lado ao
outro, dois passos para cá , dois para lá , os olhos ixos na porta,
imaginando o que diabos vou falar quando ele inalmente abrir.
Que ele se enganou? Que a deixe em paz? Que não se meta na minha
vida? Isso soa paté tico até mesmo para meus pensamentos.
Meu pai é um homem extremamente inteligente, frio e calculista. Ele
jamais faria uma jogada dessa se nã o tivesse certeza do que está
falando, provavelmente ele tem fotos e vı́deos nossos, só Deus sabe o
que ele viu.
Jesus Cristo...
Stella vai me matar, ela con iou em mim, se entregou a uma bosta de
um moleque que prometeu a ela que era seguro viver uma aventura,
que nada de ruim poderia acontecer, sem se dar conta de que sou a
pró pria desgraça andando e respirando. Eu estava tã o desesperado por
ela, que poderia prometer até mesmo o cé u, e agora estou prestes a
transformar a sua vida em um inferno.
Maravilha.
Me agacho apoiando os cotovelos nas coxas e esfrego meu rosto,
imagens de Stella decepcionada, assustada, brigando comigo, invadem
minha mente.
Se acalma, Nuno. Se acalma, caralho.
Ouço o barulho de passos e me levanto rapidamente, a porta se abre
e a garota ruiva que estava no meu quarto na noite passada sai, seus
olhos se encontram com os meus e ela desvia o olhar aparentemente
sem graça.
Eu deveria me chocar ao ver uma garota de programa sair do quarto
do meu pai, deveria sentir ó dio, repulsa, nojo, mas nã o sinto nada, nã o
me surpreende, nã o me envergonha, nada. O casamento dele é uma
farsa, ele dorme no quarto de hó spedes há mais de dois anos e, tirando
os eventos em que eles sã o obrigados a se tocarem, eu nunca o vejo ao
lado dela.
Eu nã o deveria acreditar que ele honra a sua esposa, é pedir demais
para Antô nio D’Agostinni.
A garota passa por mim e me dá um sorriso tı́mido, infelizmente nã o
estou em condiçõ es de ser educado com a garota que esquentou a cama
da merda do meu pai, entã o apenas espero que ela saia e empurro a
porta com força, fazendo com que ela bata na parede.
— Ei, acordou de mau humor? — ele pergunta, mesmo sabendo que
nã o vou responder. — Pelo jeito, nã o iz a melhor escolha, você parece
bastante irritado — provoca enquanto me olha ainda na cama.
— O que signi ica isso? — Jogo o papel no colchã o e ele sequer
desvia o olhar de mim.
— Desaprendeu a ler, Nuno? Achei que aquela escola serviria para
algo alé m de foder garotas, a inal de contas é a mais cara do paı́s.
— Nã o estou com paciê ncia para o seu sarcasmo, o que é isso? —
Aponto para o papel.
Ele se levanta e dou graças a Deus por estar vestido, já é o su iciente
saber que meu pai passou a noite traindo a minha mã e, nã o preciso ver
mais nada. Ele veste o roupã o do hotel por cima do pijama brega e caro
que está usando e caminha até uma mesa, sentando-se tranquilamente
na cadeira, como se estivesse se preparando para uma reuniã o de
negó cios e nã o para conversar com seu ilho.
— Sente-se e comporte-se como um homem, Nuno. — Ele aponta
para a cadeira à sua frente.
— Foda-se! — exijo enquanto caminho de um lado para o outro,
estou pilhado, tã o agitado, que mal consigo respirar. Se eu me sentar
nessa cadeira sou capaz de avançar no meu pai, ou, ainda pior, chorar
como o moleque fraco que ele acha que sou. — Eu só quero saber o que
você quer de mim?
— Eu? Que merda de pergunta é essa?
— Eu já te prometi que vou fazer tudo o que você quer, nã o
prometi? — Inclino-me apoiando as mã os no encosto da cadeira
enquanto olho para ele. — Eu estou aqui, cumprindo minha promessa,
sem reclamar, e vou continuar, em nome do Matteo. O que mais você
quer?
— E você acha que estou te chantageando? — ele pergunta e quase
se parece magoado.
— E o que você sabe fazer de melhor.
— Dessa vez, você se enganou, nã o é culpa minha se você cometeu
um erro, Nuno.
— Do que você está falando?
Meu pai abre a gaveta e retira uma pasta preta de dentro dela, ele a
joga sobre a mesa e ela aterrissa na minha frente. Tenho medo de abrir
e ver o que ele sabe, nã o tenho mais nada para barganhar, esse homem
tem tudo de mim, meu futuro, meus sonhos, minha vida, nã o posso
deixar que ele roube a ú nica coisa que conquistei sozinho.
— O que é isso?
— Eu recebi essa pasta na semana passada. — Ele se inclina para a
frente e aponta para o logo. — Reconhece?
Meu estô mago se revira enquanto vejo as iniciais, olho para o meu
pai sem entender o que diabos está acontecendo e por que essa pasta
está nas suas mã os.
— Nã o estou entendendo.
— Primeira regra da vida adulta, Nuno, existem homens que sã o
intocá veis. — Sua mã o sobre a pasta reforça a verdade das suas
palavras.
— O que você queria que eu izesse? — pergunto sabendo que nã o
adianta mais tentar esconder nada.
— Nã o mexesse com aquele merdinha.
— Eu nã o sou covarde, nã o deixaria ele a expô r daquela forma.
— E você a expô s para o ú nico homem que nã o podia.
— Aquele desgraçado estava ilmando-a! — me exalto.
— Foda-se, e daı́? Meia dú zia de punhetas nã o fariam mal a
ningué m.
— O caralho! — grito, odiando a forma como estou descontrolado
enquanto ele parece inabalá vel.
— Que merda, Nuno! Do que adiantou você pagar de macho batendo
no maldito ilho do Zimmermann? O que você ganhou com isso?
Respeito? Uma transa?
— Nã o fale assim dela. — Esmurro a mesa e meu pai fecha os olhos,
demonstrando, pela primeira vez, que sente alguma coisa, mesmo que
seja té dio.
— Eu nã o estou aqui para julgar seu tesã o, já tive sua idade e sei
bem como é ter uma mulher mais velha esquentando a nossa cama. Eu
me senti imbatı́vel cada vez que estava dentro de uma dessas.
— Me poupe das suas histó rias só rdidas, eu nã o quero saber, nã o
me interessa e nã o sou como você .
— Uma pena, me pouparia de alguns problemas.
— Só me diz o que você quer que eu faça — digo já me sentindo
enojado por saber que estou preparado para o que ele quiser. — Qual o
preço para que você a deixe em paz?
— Eu? Nuno, você ainda nã o entendeu que isso — ele ergue a pasta
no ar — nã o tem nada a ver comigo? O Zimmermann está se lixando se
você tá comendo a porra da professora ou nã o.
— Entã o, o que ele quer com isso?
— Me atacar.
— Como?
— Abra a porra da pasta, eu vou tomar meu café e, quando você
tiver terminado de ler e estiver em condiçõ es de conversar, venha até
mim.
Ele se levanta, jogando novamente a pasta em minha direçã o. Pego-a
porque sei que nã o adianta evitar, seja lá o que tem aqui dentro, diz
respeito nã o só a mim, mas a Stella també m; e se for preciso barganhar
o resto de dignidade que me sobrou para protegê -la, eu vou fazer.
Preciso de um pouco mais de uma hora para ler tudo o que aquele
maldito reuniu, fotos minhas e de Stella conversando, nossas mã os
dadas no corredor vazio da escola e até mesmo uma de beijo que dei
quando tinha certeza de que ningué m estava vendo.
Anexado a tudo isso há documentos, relató rios e até mesmo o
histó rico escolar e os diplomas de Stella, mas o que mais chama a
minha atençã o é um envelope com informaçõ es mé dicas.
Minhas mã os tremem enquanto tento abrir o envelope sem saber se
estou preparado para o que vou encontrar ali dentro.
— Fibrose Cı́stica é uma doença complicada — meu pai interrompe
a minha leitura e dou graças a Deus porque nã o estou conseguindo
entender mais nada. — Tratamento caro, remé dios de alto custo,
isioterapia, alimentaçã o, cuidados extras que, à s vezes, impedem as
pessoas de manterem uma vida normal, trabalhar, estudar, essas coisas.
Sinto minhas pernas amolecerem e agradeço por nã o ter nada em
meu estô mago ou estaria vomitando aqui mesmo nesse exato
momento.
— Ele nã o pode fazer isso.
— Stella é uma garota dedicada e esforçada, acredite, eu passei a
admirá -la depois de ler toda a sua histó ria.
— Eu ainda nã o entendi nada, você pode me explicar? Porque tenho
certeza de que esse trabalho todo nã o tem nada a ver com a merda de
um nariz quebrado — peço sem um pingo de paciê ncia.
Meu pai se aproxima e puxa a cadeira ao meu lado sentando-se de
frente para mim.
— Nã o, Nuno, nã o tem, assim como ele nã o despachou o moleque
dele para os Estados Unidos só por causa de um orgulho ferido.
— Entã o começa a falar agora porque eu tô perdendo a paciê ncia.
Meu pai respira fundo e baixa o olhar para o tapete em uma posiçã o
de submissã o que poucas vezes o vi fazer.
— Ele está usando você para me atingir.
Preciso de um pouco mais de tempo do que o normal para entender
o que ele quer dizer.
— Coitado, chegou cinco anos atrasado — ironizo.
— Infelizmente nem tudo é como você pensa.
— Entã o pode começar a contar, tenho todo o tempo do mundo. —
Cruzo os braços na frente do meu peito sentindo meu coraçã o
acelerado.
— Alguns anos atrá s, ele se envolveu com uma garota.
— Entã o é uma prá tica comum entre você s — debocho, mas meu
pai ignora.
— Ela era menor de idade, e ele a engravidou, claro que ele jamais
permitiria que ela tivesse o bebê e a obrigou a fazer um aborto. A garota
teve complicaçõ es e morreu.
— Jesus Cristo, eu a conhecia? — Começo a fazer uma lista mental
de todas as garotas que conheço e das que desapareceram nos ú ltimos
tempo, mas meu pai é mais rá pido.
— Nã o, ela era uma menina pobre da zona rural, muito bonita e,
infelizmente, fá cil de manipular.
— Deixa eu adivinhar, ele achou que poderia comprar o silê ncio dela
com a porra do seu maldito dinheiro.
— Infelizmente nã o deu tempo.
— Você s me dã o nojo.
— A questã o é que ele precisou de ajuda e eu o ajudei, com isso o
Zimmermann se sentiu ameaçado, a inal de contas um juiz envolvido
com um caso tã o grave como a morte de uma menor em um
procedimento ilegal pode acabar com a carreira dele. E uma carta muito
poderosa para algué m como eu ter nas mã os.
— E você o chantageou — digo começando a compreender.
— Ainda nã o precisei, mas ele tem ambiçõ es polı́ticas e precisa se
certi icar de que nada vai atrapalhar seus planos. Ele sempre esteve de
olho em você , Nuno. — Meu pai me olha com tanta tristeza, que começo
a achar que a privaçã o de sono está me fazendo ver coisas. — Sempre
em busca de um deslize, de algo que pudesse usar contra mim, agora
ele tem algo para barganhar.
— Meu caso com uma professora, tá falando sé rio? — Sorrio sem
acreditar que ele está mesmo comparando minha histó ria com um
assassinato. — E você está preocupado com a Stella?
— Nã o, infelizmente nã o ligo para essa garota, mas me preocupo
com você .
— E desde quando você se preocupa comigo?
— Por mais difı́cil que seja para você entender, nã o gosto que
mexam com a minha famı́lia.
— Famı́lia? Porque você nã o parecia preocupado com a minha mã e
essa noite.
— Minha histó ria com a sua mã e nã o te diz respeito.
— O caralho que nã o, tudo que machuca minha mã e me diz respeito
e você está no topo da lista.
— Sua mã e me odeia, Nuno, ela nã o me perdoou pelo que iz com
você .
— Que bom saber que ao menos algué m se importou comigo nessa
famı́lia de merda.
— Eu estava desesperado — ele se altera, a dor em seu olhar me
machuca de uma forma insuportá vel porque eu a conheço, a sinto, e ao
mesmo tempo a invejo.
— Eu nã o quero entrar nesse assunto. Nã o me importo mais com
suas escolhas.
— Minhas escolhas me custaram a mulher da minha vida e meus
dois ilhos. Eu perdi você s no dia em que assinei aquela maldita
autorizaçã o.
— Você nã o parece algué m preocupado das consequê ncias dos seus
atos.
— Você tem razã o, mas eu estava cego pela dor.
— Eu també m era seu ilho — digo e me odeio no instante em que
as palavras saltam da minha boca porque se parecem muito mais com
um pedido para que ele me note, do que com uma crı́tica.
— Eu sei, Nuno, eu sei que te perdi també m.
— E mesmo assim nã o se importa em nos obrigar a ingir que
somos uma famı́lia.
— Nã o, eu nã o ligo em chantagear a sua mã e para que ela continue
comigo, porque eu nã o vou suportar se ela me deixar.
— Isso é a sua versã o doentia de amor?
— Eu lamento muito se você nã o acredita em mim — ele continua
calmo, triste e até mesmo humilde. Nã o sei quem é esse cara que está
vomitando esse monte de baboseiras para mim como se eu fosse
acreditar em suas palavras quando seus atos sempre me mostraram
outra realidade.
— Eu vi o quanto você lamenta.
— Eu sei que você me acha um maldito, mas nã o estou aqui hoje
para falar sobre minha relaçã o com a sua mã e, essa conversa é sobre
você e sua professorinha.
— Nã o a diminua — exijo e ele sorri, toda a má scara de homem de
coraçã o partido se desfaz e ele volta a ser o pai que conheço, com quem
sei lidar.
— Deus do cé u, você está apaixonado por ela, nã o está ?
— Isso nã o é da sua conta.
— Infelizmente é , porque o que vai acontecer daqui para a frente
será de inido pelo quanto ela vale para você .
— A Stella nã o é uma mercadoria, você nã o pode tratá -la como trata
a mamã e ou eu, nã o vou permitir que você a chantageie.
— Você tem ideia do valor do cheque que o Zimmermann deu para a
sua... Stella?
— Nã o importa. — Sinto minha voz fraquejar.
— Ela poderia viver muito bem com aquele dinheiro, resolveria seus
problemas e mesmo assim ela continua lá .
— Ela nã o é uma prostituta.
— Sim, ela nã o é , Nuno.
— Se eu soubesse... — Balanço a cabeça sentindo-me mal por
colocá -la nessa situaçã o, que, por minha culpa, sua vida foi revirada e
transformada em um punhado de papel que está sendo usado como
chantagem.
— Filho — ele me chama, sua voz grave e sé ria ecoa dentro de mim
e ergo o rosto imediatamente. Quero dizer que ele nã o tem o direito de
me chamar de ilho dessa forma, como se estivesse preocupado comigo,
mas estou tã o cansado, que tudo o que faço é olhar para o seu rosto. —
Vamos dar um jeito nisso.
— Nã o preciso da sua ajuda, em alguns meses eu me formo e ela nã o
será mais a minha professora.
— Se o caso de você s vazar, Stella Almeida estará arruinada, os
jornais sensacionalistas adorarã o uma histó ria imoral e suja sobre o
colé gio mais bem prestigiado do paı́s, ela nunca mais arrumará um
emprego na vida.
— Eu ainda nã o entendi por que você se importa? — pergunto
confuso demais para conseguir raciocinar sozinho.
— Já errei demais com você .
— Está tentando se redimir das suas merdas?
— Eu sinto muito que minhas merdas tenham chegado em você .
— Esse é o problema, pai. Suas merdas sempre respingaram em
mim, você só nã o tinha se dado conta até entã o.
Eu nã o fazia a menor ideia do que estava fazendo enquanto Ivan me
trazia até aqui. Nem agora, enquanto bato em sua porta, incapaz de
parar o tremor em minha perna, ou a agitaçã o em meu peito. A ú nica
certeza de que tenho é a de que eu preciso tocá -la, desesperadamente.
Preciso ter a certeza de que vamos dar um jeito nessa merda, preciso
olhar em seus olhos e decidir se devo contar ou nã o, preciso dela, da
sua boca, da sua voz, do seu toque.
Ela.
Ouço o barulho das chaves e respiro fundo tentando nã o parecer um
maluco e, quando a porta se abre, há uma pequena igura parada à
minha frente, mas nã o sã o os olhos castanhos doces que me observam,
é um olhar a iado e divertido, sexy demais para algué m desse tamanho.
— Finalmente — ela diz como se estivesse à minha espera e abre
espaço para que eu entre, olhando em volta à procura de Stella. — Ela
nã o está .
Ouço a porta se fechar e uma sensaçã o estranha de pâ nico me
invade.
Nã o posso me sentir acuado por essa mulher que deve ter a metade
do meu peso, mas é exatamente como me sinto enquanto seus olhos me
analisam descaradamente.
— Menino, o que dã o na mamadeira de você s aqui nessa cidade,
hein? — Ela balança a cabeça enquanto seus olhos passam por meu
corpo e sinto um constrangimento ridı́culo me invadir, nunca fui tı́mido,
nã o diante de uma mulher bonita, mas essa faz com que eu me sinta
exatamente como ela falou.
Um menino.
E odeio me sentir assim.
— Onde está a Stella? — Passo a mã o na nuca colocando a culpa do
meu desconforto na exaustã o e nã o no fato de que ela ainda está me
observando, agora com o dedo mindinho na boca.
Deus, essa mulher me dá medo.
— Já disse.
— Nã o, você disse que ela nã o está , mas nã o disse onde ela está .
— Hum... — Ela inclina a cabeça para o lado e solto um palavrã o
irritado quando um sorriso se espalha por seu rosto. — Agora entendi.
— Entendeu o quê ?
— Nervosinho você , né .
— Você quer, por favor, parar de olhar assim para mim?
— Garoto, você tem ideia do estrago que fez com a minha irmã ?
— Nã o sei do que você está falando. — Olho em volta sentindo-me
meio claustrofó bico nesse apartamento minú sculo sendo escaneado
por essa doida, que parece estar olhando atravé s das minhas roupas.
— Por que diabos você nã o respondeu a porra das mensagens?
— Eu nã o tive tempo.
— Ah, qual é , eu sei muito bem que você s adolescentes vivem no
celular.
— Você vai mesmo me tratar como criança? — Tento nã o icar
irritado, mas Suzy nã o colabora.
— Senta aı́, vamos aproveitar esse tempinho para conversarmos um
pouco. — Ela se joga no sofá e puxa as almofadas liberando espaço.
Sento-me ao seu lado e o desconforto só aumenta com a
proximidade, ela se vira para mim e apoia a cabeça na mã o fechada
enquanto sorri.
— Gostei de você .
— Você nem me conhece.
— A gente conhece melhor as pessoas atravé s do que elas fazem aos
outros, sabia?
— Nã o, nã o sabia.
— Você mexeu com a minha irmã de um jeito que nenhum outro
cara conseguiu. Isso diz muito sobre você .
Nã o posso evitar um sorriso orgulhoso quando ela fala isso. Nã o sou
um cara inseguro, mas é sempre bom ouvir algo assim.
— Eu sabia que ela estava perdida quando ela falou sobre você a
primeira vez, mas confesso que, lá no fundinho, eu tinha um pouquinho
de medo de que minha doce irmã zinha fosse um passatempo para você ,
sabe como é , coisa de... — olho feio em sua direçã o e ela nã o completa a
frase que, com certeza, vai me deixar mais irritado do que já estou.
— Ela nã o é — me apresso a falar, ofendido por ela achar isso de
mim. — Nã o sou um moleque — completo e ela ergue a sobrancelha em
um arco perfeito.
— Sim, eu já percebi. — Ela aponta seu dedo ino e comprido em
meu rosto, a ponta tocando o alto da minha bochecha. — Você está
apaixonado por minha irmã .
— Ela te disse isso? — Tento proteger meus sentimentos dessa
doida, é estranho ouvi-la falar isso com tanta certeza.
— Nã o, sã o os seus olhos, eles falam antes que sua boca se abra,
aliá s, cuidado com eles.
— Por quê ? — pergunto um pouco confuso.
— Eles sã o sinceros demais.
— Você nã o sabe o que está falando.
— Acredite em mim, bebê , eu sei.
— Por quê ?
— Porque quando se tem a sua idade...
— Ah, por favor, nem começa com esse papo de idade.
— E nã o vou, você nã o se parece com um moleque, Nuno. — Ela
aponta mais uma vez para os meus olhos. — Você se parece com
algué m que carrega um fardo grande demais em suas costas.
— Entã o qual é a sua? Nã o entendi.
— Abaixa a guarda, cunhadinho, — Ela pousa as suas mã os sobre as
minhas enquanto fala. — Eu estou aqui para ajudar você s.
Franzo o cenho quando um acesso de tosse a impede de falar, ela se
curva em busca de ar e, quando tento me aproximar, ela estende a mã o
me impedindo. Levanto-me correndo e vou até a cozinha, pego um copo
e encho de á gua da torneira mesmo, dane-se. Quando chego a sala, ela
está com a cabeça baixa, o rosto em um tom pá lido de rosa, puxando o
ar com força, como se ele fosse algo pesado demais para algué m tã o
pequena. Lembro-me dos relató rios, de tudo o que li e me sinto agitado
por nã o saber o que fazer. Espero até que ela se acalme, rezando para
que seja breve.
— Tome. — Estendo o copo em sua direçã o quando a tosse
inalmente melhora e ela o aceita.
— Obrigada — ela sussurra, e meu coraçã o afunda no peito
enquanto observo-a se restabelecer.
Lembro-me de Stella, do quanto ela sorri quando fala da irmã , de
como ela a ama, lembro dela dizendo que esse emprego é importante
para ela, e do meu pai falando como essa doença pode ser debilitante e,
por im, lembro de Matteo, a quem quase dei minha vida e mesmo que,
fracassado, sei que, se pudesse escolher, eu faria isso novamente.
— Você precisa que eu faça algo?
— Faça valer a pena, Nuno.
Ela ergue o rosto e me dá um sorriso enorme, daqueles que a gente
dá para os amigos, para as pessoas que sabemos que podemos con iar.
E um sorriso lindo, quase tã o bonito quanto o de Stella, e isso é o
su iciente para que eu tenha certeza de uma coisa: nã o importa o que o
meu pai diga, nem as ameaças que vou ter que suportar.
Eu nã o posso permitir que nada prejudique essa garota.
— Pode deixar, eu vou fazer.
— Prazer, sou a Suzy.
— Eu sou o Nuno e o prazer é todo meu.
Olho pela milé sima vez para o celular enquanto aguardo na ila do
supermercado, nada.
Sei que nã o deveria estar tã o nervosa, mas nã o consigo parar de
pensar que Nuno nunca fez isso; ao contrá rio, sou eu quem sempre
briga com ele por mandar mensagens, o que torna seu silê ncio ainda
mais preocupante.
O celular toca e quase o derrubo na â nsia por notı́cias dele.
— Alô — atendo, a voz um pouco alta demais para um lugar pú blico.
— Por favor não esquece de trazer sorvete de pistache. — E Suzy, me
pedindo mais uma coisa pela dé cima vez desde que saı́ de casa.
— Nã o vou levar sorvete para você , Suzy.
— Você está parecendo a mamãe! — ela resmunga.
— E você está agindo como se ainda tivesse dez anos.
Suzy bufa e depois de mais um pouco de argumentaçã o em vã o,
desiste e desliga. Mal termino a chamada e o telefone toca novamente.
— Alô .
— A Suzy está melhor? — E Xavier, pela terceira vez no dia; e,
embora eu saiba que ele está apenas preocupado, nã o consigo evitar de
revirar os olhos.
— Sim, ela só precisa icar um pouco quietinha, pare de se
preocupar tanto, eu sei como cuidar dela.
— Droga, eu sabia que não devia ter deixado ela fazer essa viagem
sozinha, mas essa mulher é teimosa demais. — Ouço meu cunhado
resmungar por cerca de dez minutos. A cada um, imagino Nuno
tentando me ligar sem sucesso e a ansiedade cresce dentro de mim,
mas nã o posso encerrar a chamada, Xavier está preocupado e sei
exatamente como é se sentir impotente diante de uma crise.
Cresci vendo minha irmã adoecer sem poder fazer nada para
impedir, à s vezes perdia noites de sono com suas crises de tosse e,
mesmo tendo que ir para a escola no dia seguinte cansada, nunca me
senti digna de reclamar. Era ela quem sofria, era ela quem perdia sua
juventude, impedida de fazer as mais simples tarefas enquanto tinha
uma á rdua e desagradá vel rotina de terapias e medicaçõ es. Suzy é uma
guerreira, meu maior orgulho, viveu uma vida limitada e já superou em
quase dez anos as expectativas que os mé dicos deram para ela, a cada
aniversá rio comemorado, um misto de emoçã o e angú stia sempre
esteve entre nó s, o medo de que, a qualquer momento, ela possa piorar
e que nã o poderemos fazer nada, nos deixa assim. Paranoicos.
E por isso, ouço Xavier reclamar o quanto Suzy é teimosa e
insuportá vel porque, no fundo, sou capaz de reconhecer cada traço do
medo em sua voz.
— Fica tranquilo, eu a deixei quietinha em casa e vim comprar umas
coisas, já vou passar na farmá cia e vou cuidar dessa teimosa.
— Obrigado, Stella, sua irmã é tudo o que tenho de mais precioso —
ele diz, um pouco aliviado e sorrio emocionada com sua declaraçã o.
— Eu sei, ela també m é o meu bem mais precioso.
— Qualquer coisa me liga.
— Pode deixar, ica bem.
— Só quando essa baixinha teimosa estiver em casa.
Balanço a cabeça já prevendo a briga que eles vã o ter porque, por
mais que Suzy saiba que icamos preocupados, ela odeia ser tratada
como uma doente. Desligo a chamada e olho para o celular mais uma
vez enquanto coloco as compras no porta-malas.
Nada.
Penso em ligar, mas desisto, nã o posso correr o risco de ter a
chamada atendida por seu pai, ou pior ainda, por algum aluno que
reconheça a minha voz, caso ele já esteja de volta, entã o me concentro
em Suzy e digo a mim mesma que ele sabe lidar com esse pai, ele estava
aqui antes de mim, e sobreviveu. Nuno é esperto, ele vai icar bem.
Preciso dirigir até a cidade vizinha para encontrar os medicamentos
que Suzy precisa, o que deixa Xavier desesperado por saber que ela está
sozinha há tanto tempo, quando volto para casa já está de noite e minha
cabeça começa a doer de tanta preocupaçã o.
E meu celular ainda está em silê ncio.
Começo a dizer para mim mesma que amanhã o verei na escola e
que o mais importante agora é cuidar de Suzy, estou com as mã os
ocupadas com as sacolas enquanto subo as escadas e sinto o celular
vibrando no bolso da minha calça. Abro a porta de casa ansiosa por
poder ver quem é , mas minha ansiedade se dissipa no instante em que
vejo Nuno sentado no sofá , seu corpo grande esparramado
confortavelmente ao lado da minha pequena irmã , o sorriso torto do
qual senti tanta falta nesses trê s dias se espalha no seu rosto enquanto
ele ouve atentamente algo que Suzy fala.
Os dois se viram para mim e Nuno se levanta parecendo nervoso.
— Stella.
— Nuno.
Suzy me dá uma piscadinha e nã o preciso de palavras para entender
que ela aprova o garoto ao seu lado, o que nã o me surpreende, porque
Nuno tem esse poder, de conquistar as pessoas com seu olhar sensual e
seu sorriso de menino.
— Trouxe o que te pedi? Estou morta de fome. — Minha irmã é a
primeira a falar, quebrando o silê ncio aliviado, que se estende por
tempo demais entre nó s.
— Trouxe, menos o sorvete — respondo ainda olhando para ele.
— Aff, coisa chata! — ela resmunga.
— Deixa eu te ajudar. — Ele vem até mim e recolhe as sacolas que
ainda estã o em meus braços.
— Como você está ? — pergunto para Suzy quando ela tem um
acesso de tosse.
— Estou bem, nada de novo por aqui.
— Seus remé dios estã o aqui. — Estendo a sacola para a minha irmã ,
que me olha como se eu tivesse dito que acabei de roubar a oferta da
igreja.
— Valeu. — Ela recolhe a sacola, tã o sem graça, que sinto vontade
de chacoalhá -la. Quantas vezes já tivemos essa conversa? Quantas vezes
já deixei claro para ela que farei tudo o que estiver ao meu alcance para
dar a ela o melhor que o meu dinheiro puder comprar?
Suzy olha para Nuno parado ao meu lado e respira fundo,
provavelmente engolindo seu orgulho ferido.
— Acho que tá na hora da nebulizaçã o, eu vou para o quarto.
— Vou preparar alguma coisa para você .
— Relaxa, vou descansar um pouco. — Suzy se vira para Nuno e
abre um sorriso enorme. — Adorei te conhecer, gatinho.
— O prazer foi todo meu.
Reviro os olhos enquanto Nuno sorri para a minha irmã daquele
jeito que faz calcinhas derreterem, observamos ela entrar no quarto e
fechar a porta e entã o somos apenas nó s dois. Nuno leva as compras
para a cozinha e sigo atrá s dele, o alı́vio de ver que ele está bem me
impede de pensar no quanto ele parece distante enquanto observo-o
colocar as sacolas em cima da bancada.
— Eu nã o vi seu carro, quem te trou... — Nã o consigo terminar de
falar, sou surpreendida por suas mã os em meu rosto, puxando-me para
si e calando todas as minhas angú stias com sua boca e, nesse momento,
me esqueço de qualquer coisa que estava falando e tudo o que faço é
enroscar meus dedos em sua camisa, em uma tentativa vã de me
manter em pé .
Nuno me beija como se precisasse garantir que somos reais, que
ainda estamos bem, que esses trê s dias nã o mudaram nada, ou talvez
seja eu quem o beijo dessa forma, com fome e saudade, uma saudade
insana para uma mulher como eu.
Isso nã o pode ser bom, nada tã o intenso é bom.
E assim que tudo acontece, nas tragé dias româ nticas, quando os
personagens estã o tã o imersos em seus sentimentos, que nã o
conseguem enxergar o perigo, que a morte passa a ser algo atraente
diante da possibilidade de uma realidade futura sem a pessoa amada.
E o princı́pio da loucura, e mesmo assim, eu nã o tenho medo de
continuar.
Subo minhas mã os por seus braços, seus ombros, meus dedos
percorrem seu pescoço e se enroscam em seus cabelos. Preciso senti-lo,
preciso tocá -lo, preciso tê -lo.
Seus beijos se espalham por meu rosto, descem por meu pescoço,
onde ele salpica beijos delicados em minha pele antes de se afastar,
seus lindos e intensos olhos verdes me observam e só entã o noto o
quanto ele parece cansado.
— O que izeram com você , hein. — Passo a ponta dos dedos por
baixo dos seus olhos e ele os fecha por um instante, como se meu toque
fosse capaz de aplacar seu cansaço.
— Senti sua falta, covarde — ele sussurra ignorando minhas
palavras, esticando os lá bios em um sorriso provocante, que faz meu
coraçã o derreter.
— Entã o estamos quites — digo e ele abre os olhos, devagar. Suas
pá lpebras se erguendo, como as cortinas de uma peça teatral, me
permite enxergar atravé s das suas ı́ris.
Nuno se inclina e deixa um beijo longo em meus cabelos antes de se
afastar novamente, ele parece aliviado por estar aqui e por um instante
sinto um mau pressentimento.
— Acho que estou apaixonado por sua irmã — ele diz enquanto
suas mã os passeiam por meus cabelos.
— Limites, Nuno, ela é uma mulher comprometida.
— E, iquei sabendo.
— E sem contar que ela é quinze anos mais velha que você .
— Você sabe que tenho um fraco por mulheres mais velhas. — Ele
morde o lá bio inferior e meu estô mago se retorce de desejo.
— A Esther está livre.
— Será que ela topa sexo na biblioteca?
— Acho que pode ser seu maior fetiche.
Nuno ri, uma risada linda que faz seus olhos se fecharem e seu
pomo de adã o se mover, me ergo na ponta dos pé s e beijo-o bem ali,
fazendo com que sua pele se arrepie.
— Você parece algué m que acaba de chegar da guerra.
— Eu posso ter acabado de ser convocado para uma. — Sua voz
assim como seu rosto e sua postura, parece cansada, mais rouca que o
normal, lenta, sem â nimo.
— Quer conversar? — pergunto preocupada.
— Acho que agora eu preciso te beijar, o má ximo que eu puder,
antes que eu possa desmaiar de sono.
— Entã o acho melhor a gente voltar para a sala, nã o sei se consigo
carregar você caso desmaie.
Nuno olha em volta da minha minú scula cozinha, suas mã os agora
em torno do meu quadril, gosto de como ele está sempre me tocando,
como se nã o suportasse manter suas mã os longe de mim por muito
tempo.
— Eu havia me esquecido do quanto essa cozinha é pequena.
— Talvez você seja grande demais.
— Tenho certeza de que tenho o tamanho certo para você . — Ele me
dá um meio sorriso, que diz exatamente o que sua frase signi ica, e
sinto meu rosto esquentar.
— Vamos sair daqui, acho melhor nã o arriscar.
Nuno passa o polegar na minha bochecha, seu toque deixa minha
pele ainda mais quente.
— Tã o covarde, minha Stella — ele brinca e me sinto derreter sob
seu toque, de um jeito novo, que me faz perder o chã o.
Deixo que Stella me leve para a sala, eu a deixaria me levar para o
inferno se ela quisesse, e o pior, iria feliz da vida.
Você está apaixonado...
Devo ter a maior cara de otá rio da face da Terra para que seja assim
tã o ó bvio, ou talvez Suzy tenha algum tipo de sexto sentido e realmente
seja capaz de enxergar atravé s dos olhos das pessoas, tanto faz. Estou
cansado demais para pensar nisso, hoje eu só preciso estar nos braços
dela, amanhã é outro dia.
Me jogo no sofá e puxo Stella para o meu colo, o peso do seu corpo
em minha coxa é reconfortante, seus olhos me observam com atençã o e
começo a acreditar que essa coisa de enxergar a verdade pode ser algo
de famı́lia. Sinto como se ela pudesse me ver por inteiro, tudo o que
tenho de escondido: meus medos, desejos, sentimentos.
Stella se inclina para a frente e fecho os olhos quando sinto seus
lá bios tocando os meus delicadamente, sinto o seu cheiro preencher
meus pulmõ es, afastando todo o cansaço que estava sentindo há apenas
alguns minutos. Passo os dedos sobre sua coxa, desejando poder me
livrar dessa calça jeans, enquanto sua lı́ngua acaricia o interior da
minha boca em um beijo que desejo que dure para sempre.
Minha mã o sobe por seu quadril, se encaixa na curva perfeita da sua
bunda e a puxo para mais perto, meu pró prio corpo começa a acordar,
morto de saudades dela. Stella suspira quando sente minha ereçã o
pressionando sua bunda e nunca desejei tanto ter o dom de derreter
peças de roupa.
Sua boca desce por meu pescoço e inclino a cabeça para trá s
apoiando-a no encosto, sentindo seus lá bios delicados em minha pele, é
como estar no paraı́so. O meu paraı́so.
Suas mã os safadas começam a entrar por dentro da minha camiseta,
mas ela para no instante em que outro acesso de tosse começa. Stella
retesa, seu rosto virado na direçã o do quarto, atenta como uma leoa,
pronta para defender a cria, mesmo que essa seja da sua altura e cinco
anos mais velha, a crise aumenta e, antes que eu possa sequer pensar,
estou levantando-me, com Stella ao meu lado.
Ela corre até sua irmã e meu estô mago se revira com a expressã o
preocupada em seu rosto, deixo-a entrar e permaneço na porta, nã o
quero interromper e, na verdade, estou um pouco assustado, nã o
conheço sua doença, nã o sei a gravidade dela, nem como lidar com
algué m que a possui.
Tenho medo de atrapalhar, entã o ico parado, com a cabeça apoiada
na parede, escutando Stella brigar com sua irmã por ela ser teimosa,
mesmo com a voz rouca de tanto tossir, Suzy responde e me pego
sorrindo porque ela é o tipo de pessoa que nã o aceita bronca com
facilidade. Ivan ia adorar conhecê -la.
Fecho os olhos e me forço a lembrar de Matteo, à s vezes preciso me
concentrar muito para me lembrar de algo, as memó rias mais antigas
estã o perdidas e odeio saber que um dia ele se tornará uma imagem
congelada em um porta-retratos.
Stella vai até o banheiro, pega alguma coisa e volta para o quarto,
antes de entrar sua mã o toca a minha, um gesto simples e breve, mas
que signi ica que ela ainda me quer aqui.
O tempo passa e volto para o sofá , as vozes se silenciam, a tosse
diminui, o barulho do nebulizador para. Olho em volta, me recordando
a primeira vez em que estive aqui, era Stella quem estava doente, ela
parecia tã o pequena, ardendo em febre, sozinha, me perguntei por que
ela escolheu esse bairro dentre tantos tã o melhores, casas dignas de
revista, um pequeno pedaço de algo perdido no mundo dentro de Sã o
Paulo, e mesmo assim ela resolveu escolher um dormitó rio estudantil,
onde o barulho nunca tem im.
A Santo Egı́dio é a escola mais cara do paı́s, com certeza ela deve
receber um salá rio que condiz com o tı́tulo da instituiçã o, nã o é status,
nunca foi. Vir para cá , escolher essa escola, esse im de mundo, nunca
foi por ser a melhor, mas por ser a que paga melhor.
A raiva cresce dentro de mim, pinicando minhas veias como agulhas
em meu sangue, encaro a porta frá gil que a protege de um bando de
gente que nã o conheço, estudantes chapados, bê bados, que sabem que
aqui dentro vive uma mulher linda e sozinha, um chute e esse pedaço
de madeira está no chã o e entã o...
— Tem algué m aı́? — Stella me chama, de volta ao meu colo, com a
mã o espalmada em meu rosto.
— Desculpa, estava distraı́do.
— Percebi.
Olho para a porta do quarto, agora fechada.
— Ela vai icar bem — Stella diz como se soubesse que preciso
saber.
— Ela nã o parece bem.
— Suzy tem Fibrose Cı́stica, ela produz uma quantidade enorme de
muco que cobre seus pulmõ es e o sistema digestivo, à s vezes ela precisa
de ajuda para se livrar deles. Hoje nã o está sendo um dia muito bom.
— Tem cura?
— Nã o, na verdade. — Stella respira fundo, como se fosse doloroso
para ela falar sobre isso. — E uma doença gené tica.
— Você també m tem?
— Nã o, mas meus ilhos podem vir a ter.
Olho para o seu rosto enquanto ela fala sobre um futuro que parece
assustá -la, ela até mesmo tenta sorrir, mas sua boca se contorce de um
jeito estranho e, quando ela desvia o olhar, sei que nã o é fá cil para ela
ver a irmã assim; eu já estive no seu lugar e, embora eu fosse apenas
um menino assustado, eu sei o que o medo faz com a gente. Porra, é
difı́cil para mim ver Stella assim.
— Eu sinto muito.
— Eu já estou acostumada, cresci sabendo que, apesar de mais
velha, era ela quem precisava de cuidados.
— Ela é durona.
— Ela é terrı́vel, à s vezes até mesmo o noivo dela precisa se curvar
para Suzy, e olha que ele é um homem ainda maior que você .
— Eu o compreendo. — Coloco uma mecha do seu cabelo atrá s da
orelha e ganho um sorriso lindo dela.
— Nã o é fá cil ver ela assim.
— Nunca é .
— O tempo passa e nã o ica melhor.
— As vezes, quando Matteo estava muito doente, eu pedia para
Deus dividir a dor dele comigo, sentava-me ao seu lado e icava
esperando acontecer, era desesperador.
— Eu sei como é .
— Eu faria qualquer coisa para nã o ver ele sofrer.
Ela balança a cabeça, com seus olhos marejados e os lá bios
apertados enquanto compreende o que digo. E estranho me sentir
compreendido por algué m, saber que ela compartilha do mesmo
sentimento sufocante de nã o poder fazer nada. E assustador ver como,
apesar de todas as nossas diferenças, temos algo em comum, algo que
une pessoas, algo que só quem já viveu algo parecido sabe como lidar.
— Eu tento, todos os dias eu faço o meu melhor para ela. — Stella
olha para a porta e solta um suspiro. — Qualquer dia pode ser o ú ltimo.
— Para todos nó s, Stella.
— Mas isso se torna ainda mais assustador quando parece um
letreiro luminoso em cima daqueles que a gente ama.
— Eu sei, eu vivi isso.
Uma lá grima fujona escapa dos seus olhos e ela seca rapidamente,
desviando o rosto para o outro lado.
— Ei, tá tudo bem chorar. — Seguro seu queixo e faço-a olhar para
mim. — Nã o se esconda de mim.
— Eu nã o sou assim, nã o sou fraca e nem ico chorando, mas é que...
eu só queria uma pausa, um descanso para nó s.
— E, tô ligado, mas nem sempre dá pra ter a professora sexy
sentada no seu colo.
Stella sorri, mas a pontinha do seu nariz ainda está vermelha e sei
que ela está segurando as lá grimas.
— Tudo isso aqui é por ela, né ? — Aponto para a minú scula sala,
que mal cabe o sofá onde estamos.
— Ela precisa de tratamento e nã o pode mais trabalhar. — Ela ergue
os ombros inalizando o ó bvio. — Meu dinheiro ajuda no tratamento.
— Ela parece tã o bem. Se nã o fosse a tosse, e a palidez, eu nã o diria.
— Cada ano é uma vitó ria, mas també m é um passo mais perto de
um colapso. — Sua voz enfraquece mais uma vez.
— Por que nã o me contou, Stella? — Sinto a má goa em minha voz
por saber que ela nã o me achou merecedor de saber algo tã o grave.
— Nã o tive a oportunidade de contar.
— Como nã o? Você teve milhõ es de oportunidades. Quando
perguntei por que você escolheu morar aqui por exemplo, bastava dizer
que era porque sua irmã doente precisava de ajuda inanceira.
— Eu nã o costumo falar da minha vida particular com me... — ela
para de falar, mas já é tarde demais.
— Com seus alunos? Principalmente com um moleque mimado, né ?
— Meu corpo enrijece e a má goa faz minha voz soar mais dura. — O
playboyzinho rico que nã o sabe o que é precisar de dinheiro.
— Eu nã o disse isso.
— Nã o, mas foi o que pensou. Será que um dia você vai me
considerar um homem? — pergunto, ofendido.
— Que absurdo de pergunta é essa?
— Eu estou falando sé rio, Stella, eu preciso saber, porque nã o vou
suportar ser tratado assim por muito tempo.
— Nã o seja tolo, eu estou aqui, nã o estou?
— Sim, sentada no meu pau, pronta pra trepar comigo em qualquer
lugar, para aliviar o seu desejo, sim está , mas e depois?
— Eu nã o acredito no que você está falando. — Ela se levanta e
começa a andar de um lado para o outro. — Você está mesmo me
acusando de usar você ? — pergunta, nitidamente irritada.
— Sou um moleque, nã o sou? Um moleque com um pau grande,
claro.
— Você está me ofendendo, sabia?
— Ah, é ? — Me levanto e vou até ela. — E como você acha que me
sinto descobrindo que sua irmã tem uma doença grave, por acaso?
— Nã o foi nada disso.
— Eu contei sobre o Matteo, eu abri minhas merdas para você ,
Stella.
— Eu sei. — Ela esconde o rosto nas mã os e meu peito dó i quando
ela nã o tenta se defender.
— Eu merecia um pouco mais de cré dito, você nem me deu a chance
de provar que eu era capaz.
— Nuno.
— Já chega, acho melhor eu ir embora, eu tô exausto e se eu icar
vou acabar falando merda.
Caminho até a porta, mas nã o tenho coragem de abri-la, sei que as
coisas mudaram, entrar aqui sabendo de tudo foi uma coisa, hoje saio
conhecendo a realidade de Stella, a dor da sua irmã e sei que as chances
de que, se eu sair, vou deixá -la para sempre, sã o enormes e isso me
apavora.
Me apavora o sentimento assustador, o medo de perdê -la, a
necessidade de ser o cara que ela precisa. Me apavora saber que por
mais que eu fale, grite, implore, nã o posso fazê -la me aceitar como sou.
Apoio a cabeça na madeira, sinto o peso do mundo inteiro em
minhas costas, estou exausto e sem forças para nada, nã o quero falar,
tenho medo das pró ximas açõ es e nã o me movo, sei que de cabeça
quente só se faz merda, entã o mantenho meus olhos fechados.
Esperando, sabe lá o quê .
Sinto seus dedos em minhas costas, pouco antes de sentir seu corpo
se aproximar do meus e seus braços me rodearem enquanto ela apoia a
cabeça em mim. Meu coraçã o de menino idiota acelera.
— Me perdoe — ela sussurra, as palavras me machucam ainda mais,
porque signi ica que eu nã o estou enganado, ela realmente me trata
como um consolo para o seu desejo.
Aperto os olhos desejando por tudo no mundo poder sumir,
desaparecer, para nã o ter que ter essa conversa, nã o precisar voltar
para a minha casa, nã o encarar meu amigo, nã o ver a tristeza no olhar
da minha mã e, nã o admitir para o meu pai que ele tinha razã o, que sou
um tolo apaixonado.
— Eu sei que estou errada — ela continua, baixinho, como uma
con issã o vergonhosa. — Sei que eu nã o con iei em você , talvez você
tenha razã o e eu achei que meus problemas fossem muito adultos para
você . — Suas mã os se apertam a minha volta à medida que ela fala,
como se soubesse que posso escapar. — Quando você me contou sobre
o Matteo, nã o era o momento certo para falar da Suzy, você estava
arrasado e tudo o que eu queria era tirar a tristeza do seu coraçã o, nã o
acrescentar mais.
Tiro suas mã os de cima de mim e me viro para olhar para ela, cruzo
os braços na frente do peito, me sinto pequeno, magoado e ridı́culo,
mas ao menos ela está sendo sincera e preciso dar esse voto de
con iança a ela.
— Por favor me entenda — ela implora, com o cansaço evidente em
seus olhos.
— Eu juro por Deus que estou tentando, mas tá difı́cil, Stella.
— Essa é a minha realidade. — Ela aponta em direçã o ao quarto
onde sua irmã dorme. — Uma vida de medo, de noites em claro, de
remé dios caros e consultas. Eu cresci com a certeza de que um dia eu
teria que cuidar dela. Suzy é minha responsabilidade, nã o é justo levar
isso para você .
— Porque sou o playboy riquinho incapaz de compreender, já
entendi.
— Nã o é isso.
— E exatamente isso que você está me mostrando, que sou bom
para a sua cama, mas nã o para a sua vida.
— Quando te vi na escola a primeira vez, cercado por aqueles
adolescentes, sorrindo, tã o confortá vel na sua pele, tive a noçã o do
abismo que nos separa, mas quando você se aproximou de mim,
quando permiti que você me mostrasse quem você é , eu entendi por
que, mesmo rodeado de adolescentes, você parecia diferente.
— Do que você está falando?
— A perda amadurece as pessoas, perder o Matteo modi icou você .
— E você descobriu isso essa noite?
— Nã o, eu percebi há algum tempo, mas sá bado, quando você me
ligou preocupado, cheio de responsabilidades que nã o condizem com o
que eu imaginei que seria a vida de um garoto rico como você , eu tive a
certeza.
— Mesmo assim continua me tratando como um moleque.
— Nã o é verdade, eu nã o te trato como um moleque, eu só nã o sei
compartilhar minha vida, cresci sendo mais madura do que as outras
meninas, me obriguei a ser forte e lutar por Suzy, eu te excluı́ porque
nã o sabia como agir.
— Você tem uma habilidade imensa de me magoar, de me fazer
sentir pequeno e inú til. Meu pai adoraria te conhecer, ele vem se
esforçando para isso durante anos.
— Nuno... — Ela dá um passo para mais perto, desvio o olhar, nã o
quero que ela me toque, me sinto sujo e usado, como um moleque
idiota implorando pela atençã o da mulher mais velha.
Stella sente minha rejeiçã o e se afasta, continuo olhando para o
lado, incapaz de me mexer, de olhar em seus olhos, porque nã o con io
na minha capacidade de manter minha dignidade.
— Eu entendo a sua má goa, você tem razã o em nã o querer olhar
para mim, e se você sair por essa porta e nunca mais quiser me ver eu
vou compreender, vai doer, muito mais do que eu imaginei que doeria.
Sim, eu diminuı́ o que temos, eu tentei transformar você no que o resto
do mundo vê , em um menino rico, lindo e charmoso, uma aventura,
sexo proibido. Mas eu falhei, Nuno, eu falhei miseravelmente na minha
tentativa de nã o permitir que você se tornasse importante para mim e
quando eu te disse aquele dia, que estava apaixonada por você , eu nã o
menti, entã o, antes de ir embora, eu quero que você saiba que eu te
admiro demais, que tenho orgulho de você , porque, mesmo com tudo
isso que aconteceu na sua vida, nã o se tornou um babaca, nem deixou o
sorriso ir embora do seu rosto. E que você conseguiu, você rompeu
minhas barreiras e roubou o meu coraçã o. Entã o, se você for embora,
saiba que está levando-o com você .
Continuo olhando para o lado, as mã os fechadas em punho, sobre
meu peito. Suas palavras ecoam em meu cé rebro; a dor, a má goa, o
medo e a paixã o duelam em meu coraçã o. Entã o me lembro do meu pai,
do seu arquivo sobre ela, das coisas que ele me disse e volto a olhar
para ela.
— Eu nã o sou covarde, já disse — digo enquanto noto seus olhos
repletos de culpa.
— Sim, você disse.
— Nem sou moleque para ir embora assim.
— Nã o, você nã o é . — Ela se aproxima um pouco mais. — E sabe por
que eu sei disso? — ela pergunta e nego com a cabeça enquanto tento
nã o me deixar abalar quando ela abre meus braços e se coloca entre
eles. — Porque eu nã o me apaixonaria por um.
Sinto o sangue pulsando em meus ouvidos enquanto ouço ela
repetir que tem sentimentos por mim e, quando ela espalma sua mã o
em meu peito, tenho a certeza de que ela está sentindo meu coraçã o
vibrando em todo o meu corpo.
— Eu me apaixonei por você , Nuno, pela sua coragem, por sua
determinaçã o, por seu amor ao Matteo. Me apaixonei pela forma como
você olha para a Beth e como respeita o Rael, como se ele fosse uma
memó ria viva do seu irmã o. Eu me apaixonei pela amigo que você é
para o Ivan, e a forma respeitosa com que você trata a Cindy. Eu me
apaixonei por seu jeito de me fazer sentir segura em seus braços; eu me
apaixonei por você , por seu sorriso de menino, por seu olhar de
homem, por seu abraço caloroso e hoje, quando abri a porta e te vi aqui,
sentado ao lado da minha irmã , sorrindo tã o confortá vel, eu tive a
certeza de que eu me apaixonei pelo ú nico homem que já desejei nessa
vida.
— Nã o faz isso, Stella.
— Por favor, nã o vá embora — ela implora, com suas mã os
agarradas na minha camisa, como se tentasse me segurar. — Por favor,
me perdoa, ica comigo.
Respiro fundo sem saber o que dizer, surpreso por suas palavras.
— Puta que pariu...
— Eu me apaixonei por essa boca imunda també m. — Ela segura a
gola da minha camisa e me puxa. — Por todas as imundı́cies que ela
sussurra em meu ouvido enquanto você me possui. — Seus dedos
brincam em minha pele, causando arrepios em todo o meu corpo. —
Agora você pode, por favor, me beijar?
Ela morde o lá bio nervosa e posso sentir seu corpo inteiro
tremendo, como se admitir isso tudo tivesse exigido demais dela.
— Nunca mais esconda nada de mim.
— Nã o vou.
— Nã o importa o quanto você ache que eu nã o vou aguentar, nã o
esconda.
Estou desesperado por essa mulher, e a simples ideia de um dia
perdê -la me faz sentir doente, em um sentimento avassalador, que me
lembra o medo que tinha de perder Matteo.
Seguro seu rosto em minhas mã os, erguendo-o, os dedos afundando
em sua pele, a necessidade de tê -la me sufocando, quero dizer o mesmo,
que a amo, que estou enlouquecendo por sua culpa, quero dizer que ela
nã o se preocupe, que posso cuidar dela, da Suzy e de quem mais for
preciso, nã o tenho medo de nada, desde que ela esteja assim, nas
minhas mã os, olhando para mim dessa forma, eu sou capaz de qualquer
coisa por ela.
— Sim, senhor, agora me beija.
— Repete.
— Pode me beij... — nã o a deixo terminar, envolvo sua cintura e
puxo-a para mim enquanto ela me beija com uma força que comprova o
que ela disse.
A gente vai dar um jeito no resto. Assim que eu contar tudo a ela,
vamos dar um jeito, juntos, como deve ser, como será daqui em diante.
Tolo daquele que se acha capaz de controlar o coraçã o.
O meu já nã o me pertence mais, e desisto de tentar ingir nã o saber
que é esse garoto lindo o dono do ó rgã o que pulsa desesperadamente
em meu peito e que só sente alı́vio, quando seus braços se enroscam em
meu corpo e sua boca cala meus medos.
E sã o tantos...
Nesse momento enquanto Nuno me beija, sou feita de medos, de
Suzy piorar, de perder meu emprego e nã o ser capaz de dar a ela a
segurança que ela merece, de amar, de nã o amar, de ver Nuno abrir essa
porta e ir embora, de nã o conseguir fazer ele entender que, contra
todas as minhas vontades, sou completamente louca por ele. Tenho
medo de sonhar, de viver, de perder.
Medo, medo, medo.
Ainda estou de olhos fechados quando o beijo termina. Tenho medo
de abri-los, de encarar seus lindos olhos tristes. Tenho medo de me
afastar, de ouvir o que ele tem a dizer. Nã o vou suportar ver ele ir
embora, vou implorar, mesmo sabendo que nã o devo.
Seus lá bios tocam minha testa em um beijo cheio de signi icados,
me sinto pequena envolta em seus braços, com seu cheiro em meu
nariz. O medo golpeia meu peito, gritando em minha mente o quanto
esse garoto é importante para mim.
— Eu sei que você deve estar magoado — digo com os lá bios em seu
peito, as mã os em suas costas, segurando-o comigo, como se precisasse
desse toque para viver.
— Sim, eu estou — ele diz baixinho, enquanto seu coraçã o forte bate
pesado em meus ouvidos.
— Eu entendo e aceito o que você tiver para me dar. — Meus dedos
passeiam pelos mú sculos magros das suas costas em uma carı́cia lenta
e despretensiosa, Nuno está tenso, frio e distante, sei que mereço isso,
mesmo assim nã o é fá cil sentir. Me afasto para olhar em seus olhos, há
olheiras profundas escurecendo-os, deixando o verde ainda mais
intenso, como neon brilhando no escuro, quase sobrenatural. — Diz
alguma coisa, por favor.
Nuno relaxa seu abraço, deixando um espaço que mais se parece um
abismo entre nó s, ele respira fundo e seus ombros desabam, exaustos,
enquanto ele morde a boca, decidindo o pró ximo passo.
— Eu odeio falar em pú blico, me sinto nu, exposto, vulnerá vel de
uma forma que me adoece. — Sua voz parece ainda mais cansada à
medida que ele fala. — Esse im de semana foi ainda pior do que eu
imaginava. Meu pai me obrigou a fazer uma apresentaçã o para um
grupo de investidores alemã es, eu odeio alemã o, minha pronú ncia é
uma bosta e me senti ridicularizado, humilhado. Meu corpo tremia
tanto, que achei que icaria doente. — Ele suspira, parecendo ainda
mais cansado enquanto fala. — Quando tudo terminou, corri para o
banheiro e vomitei o café da manhã . Mesmo assim, eu iz o que tinha
que ser feito e nenhum deles sequer suspeitou o quanto eu estava
apavorado — ele fala lentamente, com uma calma assustadora e
imagens dele sendo obrigado a se submeter a esse tipo de coisa por seu
pai me deixa enojada.
— Eu sinto muito — digo, sentindo as palavras vazias.
— Eu odeio sentir medo, por isso luto contra ele o tempo todo, sabe
por quê ?
— Nã o.
— Porque nã o adianta ter medo, ele nã o impede nada de acontecer
e eu já perdi coisas demais na minha vida para deixar que o medo me
paralise, foi por isso que lutei por você , porque eu te quis desde o
primeiro dia e sabia que, mesmo apavorado, nã o podia deixar de tentar.
Eu sei por experiê ncia pró pria que a dor, por maior que seja, nã o mata.
Mas ela enfraquece, paralisa e nesse momento eu estou completamente
paralisado. — Estendo a mã o e toco seu rosto, sentindo a barba por
fazer pinicar meus dedos e odiando ouvir essas palavras saı́rem da sua
boca, um garoto da sua idade nã o deveria ter uma visã o tã o triste da
vida.
— O que te causa dor, Nuno?
— Você , Stella.
Balanço a cabeça sentindo suas palavras machucarem meu coraçã o,
ele tem razã o, eu iz isso com a gente, eu o coloquei em uma posiçã o de
inferioridade, o iz duvidar do que sinto, do seu valor e da sua
importâ ncia para mim.
— Eu sinto muito por fazer você se sentir assim.
— Eu també m — ele diz, tã o triste, que sinto como se ele pudesse se
partir ao meio a qualquer momento. — Eu estou farto disso tudo, te
tentar provar algo que nenhum outro homem precisaria, de me esforçar
para saber da sua vida enquanto você nunca se esforçou para saber da
minha.
Lá grimas enchem meus olhos enquanto suas palavras me
machucam, sua voz é doce e gentil e ele está apenas sendo sincero, mas
é como se elas cortassem minha pele, tamanha a verdade delas.
— Você tem razã o — digo porque nã o há o que falar. — Eu fui
horrı́vel com você . Mas agora você sabe o motivo.
— Nã o coloque a culpa na Suzy, ela nunca pediu para você fazer isso
— ele diz com tanta convicçã o que só posso imaginar que eles tiveram
uma boa conversa na minha ausê ncia.
— Ela se preocupa comigo — digo encarando a sua camisa, ixando
meus olhos em um amassado bem perto de onde está seu coraçã o,
imaginando que seja assim que ele está nesse momento, machucado,
amassado, dolorido. — Mas eu nã o posso ser negligente.
— Estar comigo é negligê ncia para você ?
— Colocar meu emprego em risco é .
— Certo, entã o acho que encerramos aqui.
— Nã o, deixa eu falar. — Seguro sua mã o quando ele ameaça se
afastar mais uma vez. — E arriscado, perigoso e por muito tempo eu
tive medo, eu vivi uma vida onde nunca iz nada errado, porque precisa
ser perfeita para a Suzy.
Nuno ri.
— Bem que ela disse.
— O que ela disse? — pergunto um pouco irritada.
— Que você está se escondendo atrá s da condiçã o dela para nã o
precisar me encarar.
— Ela disse isso?
— Sim e eu acho que ela tem razã o.
— Eu acabei de admitir o que sinto por você .
— Isso nã o basta, Stella, palavras sã o só palavras, eu preciso sentir.
— Por que está fazendo isso comigo?
— Porque nã o é justo comigo, eu preciso sentir que nã o estou só
nessa. Eu estou cansado, Stella, e preciso saber que posso contar com
você .
— Eu nã o sou perfeita, Nuno.
— Eu odeio a perfeiçã o. Sou cercado por ela, nã o vê ?
Con irmo com a cabeça enquanto encaro sua mã o sobre a minha.
— Eu tive uma discussã o horrı́vel com meu pai, descobri coisas que
nã o queria, me senti fraco e incapaz de controlar a minha pró pria vida.
Nã o durmo há trê s noites; estou uma merda, tã o cansado, que icar de
pé está custando tudo de mim. Mesmo assim, a primeira coisa que iz
quando coloquei os pé s nessa cidade foi vir para cá , porque eu
precisava te ver, sentir você , ouvir seu riso.
— Por que eu, Nuno? Uma covarde incapaz de lutar pelo que quer.
— Uma covarde — ele repete, mas nã o há humor na sua voz, nem
mesmo carinho, nã o é o apelido sensual que ele usa enquanto está
lertando comigo, é a realidade feia do que eu sou. — Mas nã o posso
mandar no meu coraçã o.
— Nã o, isso é tolice.
— Uma puta tolice. — Ele ergue a mã o e passa o polegar em minha
bochecha. O seu toque é tã o delicioso que fecho meus olhos me
entregando a sensaçã o de estar em sua mã o. — Olha pra mim — ele
pede, erguendo meu queixo com o indicador. — Você precisa con iar em
mim, Stella, porque, mesmo que as coisas iquem complicadas, eu nã o
vou embora.
— Eu nã o quero que você vá . Mesmo que eu nã o faça ideia do que
vai acontecer amanhã , eu nã o ligo, porque eu sei que faria tudo de novo.
Só , por favor, nã o ica bravo comigo se o medo do futuro me assustar.
Ele me olha por tanto tempo, que começo a achar que disse algo
errado, o silê ncio causa um desconforto em meu estô mago, nã o consigo
ler sua expressã o, é algo que me deixa agitada e preocupada e, quando
estou prestes a falar, Nuno sorri, um sorriso bonito, contido, que o deixa
com uma aparê ncia mais velha.
— E importante para mim saber disso — ele diz, a voz cheia de
alı́vio. — Pode ter medo, desde que nã o solte a minha mã o.
— Eu nã o vou soltar — digo sentindo do fundo do meu coraçã o que
estou sendo sincera.
Nuno puxa meu rosto e me beija, e eu me sinto tola por ter tido
tanto medo, no im das contas ele tem razã o, o medo nã o impede nada
de acontecer, mas ele pode apagar o brilho das coisas.
Se depender de mim, de hoje em diante, nã o terei mais medo de
nada.
Suzy tem uma noite terrı́vel, nada muito diferente do habitual. Nuno
ica ao meu lado o tempo todo, perguntando se precisa de algo,
buscando medicamentos e á gua para mim. Ele nunca entra no quarto,
nos dando privacidade. Mas sempre que saio, ele está lá , no corredor,
apoiado na parede, com um sorriso gentil nos lá bios, tã o cansado que
mal consegue se manter em pé .
— Por que você nã o se deita um pouquinho no sofá ? — pergunto
depois de atender minha irmã , desejando que, dessa vez, ela consiga
descansar um pouco.
— Porque, se eu deitar, eu vou dormir. — Sua voz soa tã o rouca, que
mal o compreendo.
— Acho que nã o seria má ideia, você está pé ssimo.
— Nã o quero te deixar sozinha.
— Nã o gosto de te ver assim. — Me aproximo pousando a mã o em
seu peito.
— Eu vou icar bem.
Desço minha mã o por seu braço e enrosco meus dedos nos seus.
— Acho que está na hora de cuidar de você .
Nuno baixa o olhar para nossas mã os e um brilho de algo bom surge
em seus olhos.
— A sua irmã .
— Ela vai dormir um pouco, agora é a hora de cuidar do meu
moleque. — Estico-me e deixo um beijo em sua boca. — Vem. — Puxo-o
para o banheiro sem perguntar nada. Assim que ele entra, fecho a porta
e passo a chave.
— Por precauçã o — digo enquanto o empurro delicadamente até o
vaso sanitá rio. — Sente-se — peço e ele obedece, desabando sobre a
tampa fechada.
Passo meus dedos por seu rosto, dando um pouco de atençã o as
olheiras sobre seus olhos.
— Eu posso odiar o seu pai? — digo acariciando sua pele e sentindo
ele se derreter sob meu toque fechando seus olhos.
— Nã o sei se seria inteligente — ele diz ainda de olhos fechados.
— Nã o quero ser inteligente essa noite.
— Entã o pode — ele sussurra enquanto meus dedos escovam seus
cabelos, puxando-os para trá s e beijo sua boca.
Desço minhas mã os por sua nuca, passo por seus ombros e
chegando a seu peito começo a desabotoar sua camisa.
— Você está tã o lindo — digo quando me ajoelho na sua frente
puxando a camisa para fora da calça.
— Eu achei que você tinha dito que eu estava pé ssimo.
— Você ica ainda mais lindo quando está pé ssimo. — Desa ivelo o
cinto.
— Eu odeio essas roupas — ele diz abrindo os olhos e observando
meus dedos trabalharem.
Retiro a camisa descartando-a no chã o e deixo um beijo em seu
peito antes de começar a tirar o sapato e as meias.
— Se você odeia, entã o eu as odeio. — Me levanto e estendo a mã o
para ele.
Nuno se levanta e puxo sua calça, deixando-o só de cueca na minha
frente, seu corpo belo, grande e magro parece exausto, assim como seu
rosto e minha raiva por seu pai só aumenta.
Puxo meu short e minha camiseta, icando apenas de lingerie, seus
olhos caminham por meu corpo devagar, mas nã o há malı́cia no seu
olhar, só admiraçã o.
— Vem. — Estendo a mã o e o chamo, Nuno a segura e abro o box
entrando no pequeno espaço, que mal cabe uma pessoa e esperando
que ele me acompanhe.
Quando Nuno entra e fecha o vidro, nos prendendo dentro desse
espaço minú sculo, olho para o seu rosto à espera de algo, mas ele nã o
faz nada, essa noite será minha chance de me redimir, eu preciso provar
para esse menino que ele é valioso para mim, que seu corpo e sua alma
sã o amadas da mesma forma.
Abro o chuveiro e deixo a á gua molhar seu corpo, observo-a cair em
sua pele, encharcar seus cabelos, lavar o seu cansaço, pego a bucha e a
encho de sabonete lı́quido, começo a lavar o seu corpo devagar o
sentindo se retesar com o meu toque, Nuno encosta na parede para me
dar mais espaço, cuido de cada pedaço dele com amor e dedicaçã o,
meus olhos buscam os seus a cada toque, esperando que ele possa
sentir o meu cuidado.
Pego o xampu e me aproximo para lavar seus cabelos, ele se ajoelha
para que eu alcance o topo da sua cabeça e massageio o seu couro
cabeludo, começando pela parte da frente e seguindo até a nuca, Nuno
geme quando meus dedos pressionam uma parte atrá s da sua cabeça,
relaxando sobre meus cuidados.
— Está gostando? — pergunto quando ele apoia a cabeça entre
meus seios e suas mã os se fecham em meus quadris.
— Uhum — é tudo o que ele responde, repito mais uma vez e, entã o,
enxaguo. A espuma se espalha por seus ombros largos e nã o consigo
evitar uma onda de excitaçã o quando ele beija minha barriga.
— Agora só falta o condicionador — digo me virando para pegar o
vidro na prateleira.
— Dane-se o condicionador. — Nuno se levanta e avança em minha
direçã o. Suas mã os rá pidas seguram meu rosto e sua boca se cola na
minha em um beijo cheio de desejo. Empurro seu peito afastando-o
com di iculdade.
— Nuno, espera — digo ofegante enquanto ele me olha por baixo
das mechas molhadas. — Hoje você me acusou de te usar e...
— Stella.
— Deixa eu falar, é importante. — Mantenho minha mã o em seu
peito. — Aquilo que aconteceu entre nó s no festival foi uma espé cie de
desa io.
— Desa io?
— Suzy queria que eu provasse a ela que poderia me divertir sem
pensar tanto, ao menos uma vez na vida.
— E eu fui seu ato irresponsá vel.
— Sim — digo e um sorriso safado surge em seus lá bios.
— Bom saber.
— Nã o sou assim, nã o faço sexo casual e ele nunca foi uma forma de
relaxar para mim. — Nuno continua me observando sem entender o
que estou falando. — Sexo é entrega, é dedicaçã o, é doaçã o. — Acaricio
seu peito sentindo-o se expandir sobre meu toque. — Talvez, naquela
noite, meu corpo já tivesse reconhecido o seu. Só assim posso explicar o
que aconteceu entre nó s.
— Gosto disso — ele diz enquanto uma vaidade masculina ilumina
seu rosto de menino.
— Sempre que permito que você esteja dentro de mim, estou me
doando a você , quero me sentir bem, mas també m quero que você se
sinta bem.
— Eu me sinto.
— E se eu nã o digo nada quando tudo acaba é porque eu ainda nã o
sei lidar com a força do que sinto por você . Porque até hoje, eu nunca
havia feito amor dessa maneira, e isso ainda me assusta um pouco.
— Eu també m — ele admite enquanto tira minha mã o do seu peito
e me puxa pela cintura. — Nunca havia feito amor, Stella, de nenhuma
maneira. Nunca havia me importado tanto com a necessidade de uma
garota antes, e, quando você nã o diz nada, eu ico apavorado porque
acho que estou te perdendo, que você nã o curtiu, que fui... sei lá ,
comparado com outro. No fundo, odeio admitir, mas sempre tenho a
sensaçã o de que você está prestes a me deixar.
— Ao contrá rio, Nuno, cada vez que você está dentro de mim, você
me ganha um pouquinho.
Nuno passa a mã o em meu rosto, seus olhos cheios de desejo me
observam, os cı́lios escuros, molhados, emolduram seu rosto perfeito e,
nesse momento nã o consigo imaginar uma pessoa mais apaixonada do
que eu ou um homem mais lindo que ele.
— Eu quero você , Stella — ele sussurra — Só você , mais nada, nem
ningué m. — Ele continua enquanto desce com beijos por meu pescoço.
— Deus do cé u, eu quero tanto você , que dó i — ele confessa, com a voz
rouca e cansada que tanto amo.
— Eu sou sua — sussurro as palavras que tantas vezes sã o mal
compreendidas, mas que signi ica muito mais do que apenas me
entregar a ele, signi ica que o desejo, nã o só com o meu corpo, mas
també m com o meu coraçã o e que, nesse momento, nã o há no mundo
outra pessoa que eu queira para compartilhar a minha vida. Admitir
isso é uma prova de amor. — Faça amor comigo — peço enquanto tiro
meu sutiã .
Nuno me vira de costas, seu corpo grande e molhado se coloca
sobre o meu, suas mã os sã o rá pidas ao se desfazerem da minha
calcinha e da sua cueca, suas pernas afastam as minhas, me colocando
em uma posiçã o deliciosamente vulnerá vel. Espalmo minhas mã os nos
azulejos quando ele se aproxima, beijando meu ombro e sussurrando
palavras sujas em meu ouvido.
— Te odeio, covarde — ele diz no instante em que me penetra.
Lentamente, suas mã os seguram meu quadril. Com seu rosto em meu
pescoço, salpica beijos molhados em minha pele. — Tanto que você
nem imagina — ele completa antes de começar a se mover, rá pido,
forte, intenso, o som dos nossos gemidos sã o abafados pela á gua que
continua caindo, enquanto nos entregamos a um amor
incompreendido, mas tã o forte que nã o somos mais capazes de ingir
que ele nã o existe.

— Tem certeza de que isso aqui é do seu cunhado? — Nuno aponta


para o moletom, que cai em seu quadril estreito e, embora ele tenha um
sorriso divertido no rosto, sei que está desconfortá vel, imaginando que
seja de outro homem.
Ah, se ele soubesse que nenhum icou tempo su iciente para ter
roupas suas espalhadas por minha casa.
— Absoluta, se quiser podemos acordar a Suzy e ela te con irma —
digo observando seu corpo ainda ú mido, seminu na minha frente.
— Nã o sei se quero a Suzy me olhando com o moletom do noivo
dela, principalmente quando estou usando só isso. E esquisito pra
cacete.
Nuno tı́mido é a coisa mais linda que já vi na vida e a vontade que
tenho de pular em seu colo e voltar a fazer o que começamos naquele
banheiro é quase insuportá vel, mas ele parece prestes a adormecer em
pé e, entã o, o puxo para a cozinha e o obrigo a comer um sanduı́che de
queijo antes de levá -lo para o sofá .
— Melhor? — pergunto quando me sento em seu colo, odiando o
fato de nã o ter outra cama onde ele possa se deitar, acariciando seus
cabelos e vendo seus olhos tendo di iculdade em permanecerem
abertos.
— Estou limpo e alimentado, acabei de comer minha mulher
molhada em um banheiro que mal cabe uma pessoa. — Ele molha os
lá bios e sinto um formigamento entre minhas pernas quando ele fala
minha mulher, sinto como se ele estivesse experimentando essa palavra
pela primeira vez e gosto de como ela soa sexy em sua boca. — Nã o
poderia querer mais nada — ele completa com a voz meio grogue de
sono.
— Talvez uma cama.
— Uma cama seria incrı́vel — ele diz, as palavras escorregando
lentamente da sua boca.
Nuno fecha os olhos por um momento, sua respiraçã o começa a
icar mais leve e acho que ele adormeceu, mas quando me movo
tentando sair, ele segura minha cintura me obrigando a sentar
novamente.
— Nã o vá — ele pede.
— Você precisa descansar, Nuno.
— Eu só preciso de você — ele diz, ainda de olhos fechados e me
inclino para beijar a sua boca.
— Eu estou aqui.
— Entã o ique — ele pede abrindo os olhos com di iculdade.
Saio do seu colo e me deito no canto, deixando todo o espaço para
ele, Nuno se acomoda em meus braços, com seu rosto em meu pescoço,
suas pernas enroscadas nas minhas, sua mã o em minha cintura. Nunca
estive mais desconfortá vel em minha vida, mas no instante em que ele
suspira, inalmente se entregando ao sono, tudo deixa de importar, me
concentro no som da sua respiraçã o e observo seu rosto relaxar pela
primeira vez desde que o vi essa noite. Beijo seus cabelos molhados e
apoio minha bochecha neles, e entã o fecho meus olhos, permitindo-me
sentir, pela primeira vez na vida, amada por algué m especial.
Acordo com o som de mú sica, mas a voz que canta nã o é nada
a inada. Tateio em busca de um travesseiro só para perceber que nã o
estou na minha casa. Abro os olhos devagar e a primeira coisa que noto
é um teto desconhecido e, em seguida, que Stella nã o está ao meu lado
e, por im, que nã o foi uma boa ideia dormir nesse sofá . Sento-me e
mexo o pescoço resmungando quando sinto os mú sculos duros, assim
como outras partes involuntá rias do meu corpo.
— Bom dia, bebê . — Suzy entra na sala e puxo um livro para cobrir
a ereçã o que se estica no moletom.
— Bom dia, onde está a Stella?
— Trabalhando. — Ela vai para a cozinha e dou graças a Deus
porque o livro nã o é capaz de cobrir meu peito e a forma como Suzy me
olha me deixa um pouco... sem graça. — E você , bebê , faltou à aula,
tinha alguma dobradinha hoje? Matemá tica? Eu odiava matemá tica com
toda a minha alma, é por isso que eles sempre fazem esse joguinho sujo.
Ela continua a falar entre um acesso de tosse e outro, ouço o
barulho de panelas, pego meu celular na mesinha e me surpreendo
quando vejo que já passa do meio-dia.
— Stella pediu para nã o te acordar — ela fala me assustando. —
Disse que você precisava descansar um pouco.
— Jesus Cristo. — Pego o livro novamente, mas me atrapalho.
— Fica tranquilo, é involuntá rio, eu sei, já estou acostumada, meu
noivo acorda assim todos os dias. — Ela pisca para mim e volta para a
cozinha. — Você come omelete? E a ú nica coisa que sua namorada me
permite fazer, é isso ou sopa.
— Eu aceito omelete! — grito já dentro do banheiro, pouco antes de
fechar a porta e me apoiar nela.
Porra, Stella, podia ao menos ter me avisado.

— Na verdade, chamar isso aqui de omelete é bondade, né ? —


Encaro o mexido de ovo com uns matos esquisitos que Suzy joga no
meu prato e ela começa a rir.
— Nã o seja um chorã o, come que faz bem pra saú de.
Suzy se senta à minha frente, na pequena mesa de jantar. De onde
estou posso notar a forma como ela puxa o ar, e o barulhinho que a sua
respiraçã o faz. Observo o tamanho do seu prato e me pergunto como
algué m que come tanto consegue ser tã o magra.
— Acredite, eu preciso de muitas calorias.
— E o que sã o todos esses remé dios? — Aponto para a caixinha que
ela abre e vira para mim.
— Isso aqui é o que me permite viver.
— E aı́, como funciona? — Aponto o garfo em sua direçã o.
— Fluidi icantes, enzimas para ajudar na digestã o, vitaminas...
— Caramba, é muita coisa.
— E, mas já me acostumei, nasci assim, à s vezes é como uma gripe,
à s vezes é como uma pneumonia, à s vezes é uma pneumonia. — Ela
ergue os ombros tirando o peso da sua condiçã o. — Essa é a ú nica vida
que tenho, entã o preciso vivê -la da melhor maneira possı́vel.
— Eu sinto muito.
— Relaxa, nã o é culpa de ningué m. — Ela coloca um punhado de
remé dios na boca e bebe um copo de á gua, sinto minha garganta
arranhar só de olhar. — Aliá s, obrigada por ontem — ela diz com um
sorriso tã o natural, que nem parece que está doente.
— Nã o iz nada.
— Você icou do lado dela.
— Nã o tinha outro lugar em que eu poderia estar.
— Você realmente gosta dela, né ?
— Eu amo a sua irmã .
— Uau, ama?
— Sim.
— Você sabe que sou um peso morto na vida dela, nã o sabe?
— Nã o acho que ela te veja assim.
— E, ela nã o vê , mas eu sou.
— Nã o ligo.
— Eu vou icar bem doente — ela diz, com a voz fria de quem nã o
tem medo do futuro.
— Já disse, nã o me importo. — Me inclino sobre a mesa, chegando
mais perto dela. — Se está tentando me assustar, pode parar.
— Só quero que você saiba que a realidade da Stella é bem diferente
das garotinhas que você conhece.
— Talvez seja isso que me atraiu nela, nã o gosto das garotinhas.
— Minha irmã deixou de viver muita coisa para cuidar de mim.
— Por isso você a fez ir à quele festival?
— Eu tento, à s vezes uso minha saú de para chantageá -la.
— Preciso te agradecer entã o.
— Nã o ouse magoá -la, eu juro que corto tuas bolas foras.
— Nã o tenho a menor intençã o de magoar a sua irmã , eu seria um
imbecil se izesse isso. Eu tô apaixonado por ela.
— Moleque, você é determinado, hein.
— Por favor, nã o me chame de moleque se quiser que tenhamos
uma boa relaçã o.
— Bebê ?
— Nem fodendo.
— Bebezinho... — Ela faz uma vozinha de criança e aperto os lá bios
tentando nã o rir.
— Nem tente.
Suzy ri e logo uma onda de tosse recomeça. Apesar de ter passado a
noite ouvindo-a tossir e expectorar, nã o me sinto mais confortá vel com
isso, é angustiante pensar que ela nunca teve outra opçã o de vida e que
isso nunca vai melhorar, ao contrá rio, só tende a piorar.
— Você está bem? Precisa de algo?
— Você vai me fazer essa pergunta toda vez que eu tiver um acesso
de tosse?
— Talvez sim, nã o sei.
— Puta que pariu.
— Vai, come. — Aponto para o seu prato e ela ergue a sobrancelha
em um alerta silencioso, que ignoro.
Suzy enche a boca com o suposto omelete e faço o mesmo.
Comemos em silê ncio enquanto ouço o barulho das noti icaçõ es em
meu celular como uma mú sica de fundo.
— Nã o vai ver quem é ?
— Stella sabe onde estou, o resto nã o tem pressa.
— Nem a sua mã e?
— Ela nunca sabe onde estou, nã o faz diferença.
— Quer falar sobre isso?
— Acho que nã o, é um papo chato demais.
— Nada é mais chato do que uma garota doente.
— Acredite, minha vida é chata pra caralho.
Suzy continua mexendo na sua comida, mas noto que ela nã o está
comendo mais, me pergunto se devo obrigá -la a comer e se ela aceitaria
ordens de um moleque. Provavelmente nã o.
— Achei que você e sua mã e tivessem uma relaçã o legal.
— Eu amo minha mã e, mas isso nã o signi ica que eu concordo com
tudo o que ela faz.
— Entendo.
O celular vibra com uma chamada, nó s dois olhamos para ele e Suzy
ergue a sobrancelha.
— Atende, ou nã o vã o parar de te encher o saco.
— Que tal comer esse troço aı́? — Aponto para o seu prato e ela olha
para o meu, agora vazio.
— Bem que a Stella disse que você é mandã o, hein. — O olhar que
ela me dá faz um sorriso satisfeito estampar minha cara.
— Stella disse que sou mandã o? — Coloco o braço no encosto da
cadeira ao meu lado enquanto espero a resposta. Suzy me olha com um
ar descon iado.
— Nem começa a jogar esse seu charme de cafajeste, pra mim é
tudo coisa de criança.
— Assim você me ofende. — Coloco a mã o no peito e pisco para ela,
provocando-a.
— Aff, você nã o presta, garoto! Tadinha da minha irmã .
— Por que tadinha?
— Com essa carinha linda, você consegue tudo.
— Talvez minha cara nã o seja tã o linda assim, porque eu nã o ando
conseguindo nada — confesso.
— Aı́ que você se engana. — Ela se levanta carregando seu prato
pela metade e encerrando nossa conversa, olho para a tela do meu
celular. Abro as mensagens, sã o tantas que nem perco o meu tempo,
Ivan sabe exatamente onde estou e isso é tudo o que importa, abro a
caixa da Júlia e digito uma mensagem.

Romeo: Então eu sou


mandão? Você vai ter que me
explicar isso depois.

Coloco o celular na mesa e pego mais um pouco da gororoba que


Suzy preparou, olho a hora e sei exatamente onde Stella está nesse
momento, no im da aula do segundo ano. Sorrio, como o bobo
apaixonado que sou e como enquanto relembro o banho que tomamos
juntos, me perguntando como seria se estivé ssemos a só s, como deve
ser ter uma noite inteira com ela, sem medo, sem pressa, sem segredos.
Termino de comer e levo tudo para a cozinha, arrumo a bagunça que
Suzy fez e lavo a louça, o lugar é pequeno, mas isso nã o torna a bagunça
menor e passo um bom tempo nela. Quando chego na sala, Suzy está
falando no celular, pelo jeito mole que sua voz soa, é o seu noivo.
Pego meu celular e vejo que tenho uma mensagem nova.

Júlia: Mandão, muito


mandão, e eu adoro isso.
Como estão as coisas por aí?

O sorriso que se espalha por meu rosto faz minhas bochechas


doerem, passo a lı́ngua no lá bio enquanto escrevo uma resposta.

Romeo: Está tudo bem, sua


irmã fez uma coisa estranha
que ela chamou de omelete,
mas não comeu quase nada,
acho que ela está tentando me
envenenar.

A mensagem é lida imediatamente, provavelmente Stella está no


horá rio de almoço, na sala dos professores, com aquele babaca do Tony.

Júlia: Como você está?

Romeo: De pau duro e com


saudades.
Imagino a cara da Stella lendo isso na frente de um monte de gente,
icando vermelhinha e, por um momento, me sinto um pouco babaca.
Que se foda, nã o gosto daquele cara.
Vou para o banheiro enquanto espero ela me responder, é estranho
trocar mensagens safadas com sua namorada na frente da irmã
assustadora dela.
O telefone toca e fecho a porta para atender.
— Você não pode me mandar esse tipo de mensagem quando estou
trabalhando — ela diz, mas noto o riso em sua voz.
— Você nã o pode dizer que gosta de algo em mim e achar que vou
icar numa boa. — Apoio a cabeça na parede e encaro meu re lexo no
espelho.
— Se for assim, você vai viver... assim, para sempre.
— Com todo o prazer.
Stella se mexe e ouço o barulho de alunos passando, algué m a
cumprimenta e sinto uma sensaçã o esquisita por saber que ela está
rodeada de pessoas enquanto estou aqui, longe dela.
— Onde você está agora?
— Indo para a próxima aula.
— Devia ter me acordado, queria te ver se arrumando — falo baixo.
Minha voz soa mais rouca de tesã o.
— Você me atrasaria.
— Você sabe que sei ser rá pido quando precisa — digo e ouço Stella
rir.
— Pelo amor de Deus, quer parar com isso — ela me repreende
baixinho. — Você estava exausto.
— Você també m estava.
— Sabe, você ica lindo dormindo no meu sofá — ela fala baixinho e
imagino que esteja em algum lugar vazio, pois nã o ouço mais o barulho
de ningué m.
— Entã o você icou se aproveitando de mim enquanto dormia.
— Preciso dizer que você tem um sono bem pesado.
— Caralho... o que você fez comigo? — pergunto enquanto me ajeito
no moletom e ela começa a rir.
— Se eu disser vou ter que te matar.
— Só se for de tesã o.
Stella ri e faço o mesmo me sentindo meio bobo de amor.
— Como está a Suzy? — ela pergunta um tempo depois, mudando
totalmente o assunto e agradeço, nã o posso icar duro agora. Abro a
porta e olho para a sala, Suzy ainda está no celular.
— Ela tá tossindo bastante e a respiraçã o tá esquisita, barulhenta.
Stella respira fundo e imagino o quanto ela está preocupada.
— Ela está no meio de uma crise, odiei ter que deixar vocês hoje.
— Fica tranquila, só me falar o que tenho que fazer.
— Você não precisa fazer isso.
— Nã o, mas eu quero, nã o vou deixá -la aqui sozinha.
— Obrigada.
— Me agradeça depois, com sua boca gostosa. — Sorrio e imagino
seu rosto icando vermelho.
— Com todo o prazer. Tenho que ir. Até mais.
— Até .
Ela desliga e vou até a pia, jogo uma á gua no rosto para tentar
acalmar os â nimos. Se vou icar aqui o dia inteiro com a minha cunhada,
preciso me manter o mais relaxado possı́vel.
A tela se acende com uma mensagem.
Júlia: Obrigada por cuidar
dela para mim, prometo
agradecer mais tarde, te amo,
sua Júlia.

Leio a frase mais vezes do que se pode imaginar que seja normal, o
te amo se destaca como se estivesse pulsando na tela, assim como sinto
pulsando em meu peito. Olho para meu rosto no espelho, o sorriso
idiota está lá e imagino se todo mundo é capaz de ver o quanto estou
apaixonado. Que se foda, espero que sim, nã o ligo.
Seco o rosto na toalha que tem o cheiro dela, o que é uma pé ssima
ideia, saio do banheiro e entro no quarto, pego as paraferná lias que
Suzy usou ontem e volto para a sala.
— E aı́, como você está ? — pergunto enquanto ela zapeia os canais.
— Entediada, e você ? — Ela franze o cenho quando vê que estou
com as mã os cheias. — O que diabos você pensa que está fazendo?
— Cuidando de você . — Pisco para ela e dou o meu melhor sorriso.
— Nem fodendo.
— Desculpa, cunhadinha, mas eu prometi para a Stella. — Ergo os
ombros enquanto me ajoelho colocando tudo em cima da mesinha. — E
o seguinte, eu nã o sei nada sobre essas coisas aqui, entã o você vai ter
que me ensinar.
— Você tá me zoando, né ?
— Nã o tô nã o, e olha. — Puxo o celular do bolso do moletom, — A
Stella me deu o telefone de um tal de Xavier, conhece?
— Aquela ilha da puta.
— Ei, nã o fala mal da minha garota.
Suzy se joga nas almofadas, mas um sorriso surge em seu rosto
cansado.
— Sabe, eu gosto de você , moleque — ela diz olhando para mim.
— Que bom, porque você vai ter que me aturar, pretendo icar por
um bom tempo.
Estou exausta, dolorida por ter passado a noite cuidando de Suzy e
as poucas horas de sono, esmagada pelo enorme corpo de Nuno,
mesmo assim estou feliz. As lembranças da noite passada vê m e vã o
como ondas de emoçã o, que colocam um sorriso bobo em meus lá bios.
Algo perigoso quando se está dando aula na mesma escola onde o
responsá vel por seu sorriso bobo estuda.
Estuda...
Deus do cé u, será que um dia olharei para essa situaçã o e acharei
natural? Será que um dia vou aceitar que me rendi, que estou
perdidamente apaixonada pelo meu aluno com naturalidade? Tenho
quase certeza de que nã o.
Isso nã o signi ica que nã o aceito, tudo bem, já aceitei, nã o adianta
lutar contra fatos, estou apaixonada e esse im de semana vazio e
estranho só me fez entender o quanto ele é importante para mim,
mesmo assim, isso nã o torna nada mais fá cil. Ao contrá rio, é ainda mais
complicado olhar para esses alunos e pensar que Nuno, o homem que
me deu prazer na noite passada e que é o dono do meu coraçã o, é um
deles. O que me consola é saber que estamos chegando no im do
semestre, e entã o teremos apenas mais seis meses.
Os seis meses mais longos da minha vida.
A sala está silenciosa, os alunos concentrados na leitura, os olhos
ixos nas pá ginas, imersos em uma viagem criativa ao universo utó pico
da histó ria, um dos meus momentos favoritos do dia, o que me faz ter
certeza de que escolhi a carreira perfeita. Disseminar o amor aos livros
é tudo o que sempre iz, ainda criança, na adolescê ncia, e agora, posso
dizer com absoluta certeza que farei isso até o ú ltimo dia da minha
vida.
Volto a me dedicar as anotaçõ es que estou fazendo, preparando os
pró ximos tó picos que serã o debatidos sobre essa leitura e como trazer
um enredo centená rio para os dias de hoje, algo fá cil, mas que sempre
gera um bom debate, quando meu celular vibra em cima da mesa
chamando a atençã o de alguns alunos mais curiosos.
Romeo é o nome que surge na tela, meu coraçã o dispara quando me
levanto chamando a atençã o do restante da sala.
— Só um instante — digo sem esperar ouvir a voz do outro lado da
linha. — Pessoal, preciso atender, é urgente, continuem até a pá gina
208, já volto.
Saio da sala ouvindo um murmú rio baixo atrá s de mim, fecho a
porta e volto a colocar o telefone no ouvido.
— Oi. — Minha voz sai baixa e trê mula porque sei que, se ele está
ligando, algo aconteceu.
— Desculpa te atrapalhar — Nuno começa, a voz ainda mais baixa
que a minha deixando os pelos da minha nuca arrepiados.
— O que houve?
— É a Suzy, ela não está nada bem.

O tempo que levo para sair da sala, ir até a diretoria, justi icar minha
saı́da, caminhar até o estacionamento e dirigir até minha casa é de vinte
minutos, um recorde se levar em conta o tamanho dos longos
corredores dessa escola.
Quando entro no edifı́cio, Nuno está sentado no ú ltimo degrau, de
onde estou posso vê -lo, o rosto ainda cansado, carregado de
preocupaçã o, os ombros curvados e as mã os fechadas na frente do
rosto enquanto ele me observa subir as escadas. Olho para o pote ao
seu lado, repleto de cinzas de cigarro e respiro fundo para nã o falar
tudo o que sinto vontade ao ver ele fumando mesmo depois de
conhecer a Suzy, o olhar que dou para ele está carregado de todas as
palavras que nã o posso dizer agora, minha prioridade é minha irmã .
— Onde ela está ? — pergunto ao me aproximar, sem saber por que
ele está aqui e nã o lá dentro com ela.
— Está dormindo, mas a febre nã o baixou. — Ele se levanta,
en iando as mã os nos bolsos da calça e só entã o percebo que ele está
novamente com as roupas que veio na noite passada.
De perto ele parece ainda pior, como se as poucas horas de sono nã o
fossem su icientes para restabelecer sua isionomia e o cansaço fosse
como um peso extra, encurvando-o. Nuno parece assustado, o olhar
perdido, como se ele se sentisse... culpado por algo.
— Eu preciso ir pra casa. — Ele en ia as mã os nos bolsos da calça,
nitidamente nervoso e uma pontada irritante de decepçã o invade meu
coraçã o.
— Tudo bem, obrigada por ter cuidado dela.
— Nã o precisa agradecer, acho que nã o consegui fazer muito. — Ele
ergue os ombros e desvia o olhar para a porta aberta.
— Nã o tem muito o que fazer — digo tentando tranquilizá -lo. Nuno
me observa por um instante, como se estivesse prestes a dizer algo,
depois se afasta, recolhendo o pote e jogando no lixo.
— Vou indo. — Ele se afasta e passo por ele sem tocá -lo, sem beijá -
lo, mesmo que seja tudo o que eu mais desejo nesse momento, poder
envolver meus braços em seu pescoço, puxá -lo para mim, sentir seu
cheiro, me sentir em paz.
Mas nã o faço nada, tudo é arriscado e sabemos disso, até mesmo
essa troca de olhares, aqui no meio das escadas pode ser visto por
algué m e, como se lesse meus pensamentos, ele desvia o olhar para a
rua antes de voltar a olhar para mim, com seus olhos cansados e tristes
se despedindo em silê ncio.
Nuno desce as escadas correndo, como se estivesse com pressa para
alguma coisa, uma parte de mim se sente triste por ele ter ido embora,
em meus sonhos achei que irı́amos icar mais um pouco juntos, que
jantarı́amos e conversarı́amos, que Suzy estaria melhor e que, no im,
passaria a noite em seus braços novamente, nã o me importaria de
dormir mais uma vez no meu pequeno sofá , desde que fosse com ele.
Mas tudo o que tenho é a realidade, e nela, Nuno vai embora e minha
irmã nã o está nada melhor, ao contrá rio, como em uma terrı́vel
brincadeira do destino, me dizendo que nã o posso me desviar da minha
prioridade, ela está pior, e minha prioridade é ela.
Entro em casa e corro para o quarto, Suzy está encolhida na cama,
com uma expressã o cansada, toco sua testa, ela está tã o quente que
minha garganta se fecha, meço sua oxigenaçã o, está baixa, baixa demais
para uma garota que está tã o longe dos hospitais.
Droga, Suzy, como deixamos isso acontecer?
Nã o tenho tempo para lamentar, abro o armá rio e puxo minha bolsa
de viagem, jogo algumas coisas dentro e começo a ligar para Xavier, ele
atende no primeiro toque sua voz nervosa e ansiosa indica que ele já
estava esperando por essa ligaçã o, aviso que estamos voltando para Sã o
Paulo, nã o preciso falar que ela piorou, ele compreende no meu tom de
voz e pragueja. Sinto tanto por ele, sei o quanto é difı́cil amar algué m
tã o frá gil, sei o que é se sentir impotente diante da dor, de desejar com
todo o nosso coraçã o poder fazer algo e nã o poder, é desolador.
— Por favor, ica calmo, ela vai precisar de você .
— Não me pede isso, Stella — ele diz com a voz tã o triste, que nem
ao menos se parece com ele.
— Desculpa, mas eu vou pedir sim, em no má ximo trê s horas
estaremos aı́.
— Por favor, dirige com cuidado, traz minha pestinha de volta — ele
a chama do apelido carinhoso e meus olhos se enchem de lá grimas
porque a garota que está delirando de febre na minha cama nã o se
parece em nada com a sua “pestinha”.
— Pode deixar.
Desligo o telefone e começo a arrumar todas as coisas de Suzy,
demoro um pouco para guardar os equipamentos e medicaçõ es, há
coisas espalhadas por toda a casa e imagino que tenha sido Nuno que
espalhou tudo, ainda estou terminando de montar as malas quando a
porta se abre e Nuno aparece, como se nunca tivesse saı́do.
— O que você está fazendo aqui?
— Ela acordou? — ele pergunta sem responder.
— Nã o, eu estou indo pra Sã o Paulo. Ela precisa de atendimento.
Ele começa a colocar as coisas no lugar com agilidade. Quando
terminamos de guardar tudo, ele me puxa pela cintura e me beija.
— Agora sim, oi — ele diz baixinho e uma onda de alı́vio me
domina, como se só seu abraço já fosse capaz de me deixar tranquila.
— Oi. — Passo a mã o em seu rosto barbeado e limpo e sorrio. —
Acho que você bateu o recorde mundial de banho mais rá pido.
— Acho que ter o carro da minha cunhadinha ajudou um pouco —
ele brinca balançando as chaves na minha frente, mas nã o há humor
nas suas palavras.
— Claro, a Suzy.
— A pró pria.
— Deixa eu adivinhar, Ivan já estava com o chuveiro ligado.
— Quase isso. Mas a roupa já estava separada. — Ele sorri e se
abaixa para pegar todas as coisas.
— Por que você nã o me falou?
— Porque você provavelmente diria que nã o precisa.
— Sim, eu diria.
— Viu como eu te conheço? — Ele pisca para mim e sorrio sentindo
a emoçã o nublar meus olhos. — Estou descendo com isso.
Abro a boca para dizer a ele aonde ir, mas nã o preciso, ele sabe
exatamente o que precisa ser feito, como se já estivesse acostumado
com isso. Como se sempre estivesse aqui ao meu lado.
Pego as outras bolsas e desço atrá s dele, Nuno está colocando as
coisas no carro e, nesse momento, nã o dou a mı́nima se algué m vai nos
ver enchendo um porta-malas como um casal. Nã o há espaço para
outras preocupaçõ es.
Subimos para o apartamento, Nuno vai até meu quarto, onde Suzy
continua completamente imó vel, ele se abaixa ao seu lado e passa seus
braços por baixo do pescoço e joelhos dela, erguendo-a delicadamente,
é angustiante ver uma mulher de 33 anos parecer tã o pequena e frá gil.
— Ela tá muito quente — ele diz olhando para o rosto adormecido
da minha irmã .
— Vamos logo, ela precisa de um mé dico.
Nuno desce com Suzy nos braços, sigo atrá s dele, enquanto atendo a
segunda ligaçã o de Xavier, ele está tã o nervoso que mal consegue falar,
penso em mentir, mas temos um trato entre nó s de sempre dizer a
verdade e a verdade é que Suzy nã o está nada bem.
— Prometo que chegaremos o mais rá pido possı́vel — é tudo o que
posso dizer para tranquilizá -lo e desligo.
Quando chegamos no carro, Nuno acomoda Suzy no banco de trá s e
se vira para mim.
— Você vai com ela.
— Como? Quem vai dirigindo?
— Eu, claro.
— Nuno, você ...
— Nem começa, Stella, entra logo nesse carro, que nã o temos tempo
a perder.
— Mas...
— Con ie em mim, eu já disse, dirijo desde os doze. — Ele me dá um
sorriso arrogante enquanto aguarda com a porta aberta, esperando-me
entrar, quando passo por ele e me acomodo ao lado de Suzy, ele fecha a
porta e dá a volta no carro, se colocando no banco do motorista.
— Você está bem?
— Nã o, mas vou icar assim que Suzy estiver em um hospital.
— Se você quiser, posso falar com meu pai, ele pode dar um jeito
nisso.
— Nã o precisa, eles sabem o que fazer com ela em Sã o Paulo.
Ele olha para Suzy mais uma vez e sei que ele faria qualquer coisa
por mim, até mesmo pedir algo para seu pai, com quem teve um im de
semana terrı́vel. Essa certeza me deixa um pouco mais apaixonada pelo
garoto corajoso e destemido que ele é .
— Entã o vamos levar essa teimosa para Sã o Paulo.
Nuno liga o carro e sai, o ar con iante que ele exala ao passar pelas
ruas da cidade dirigindo o meu carro como se tudo estivesse sob
controle me deixa impressionada. Esse é o tipo de reaçã o que nã o se
espera de algué m tã o jovem.
Me concentro em Suzy, em seu pequenino, barulhento e quente
corpo em meus braços e em como ela piorou tã o rapidamente, isso me
apavora e me faz pensar que seu tempo está acabando e estou
negligenciando a sua saú de enquanto vivo minha histó ria de amor
proibida.
Nuno permanece quieto durante todo o trajeto, dirigindo dentro dos
limites de velocidade, para o meu desespero. Seus olhos sempre atentos
buscam os meus vez ou outra, como uma pergunta silenciosa.
Uma hora depois paramos no posto de gasolina para abastecer.
Nuno desce do carro e vem até nó s, ele observa Suzy se mexer
desconfortavelmente em meu colo.
— Quer que eu pegue algo para você ? — Ele se inclina ao meu lado
no banco enquanto o carro é abastecido.
— Nã o, obrigada.
— Vou pegar uma á gua, tudo bem?
Faço que sim e observo meu menino incrivelmente especial se
afastar. Nesse momento enquanto ele tenta parecer tranquilo, me
transmitindo uma segurança que jamais recebi de ningué m, sinto meu
coraçã o transbordar de amor. Se eu nã o tivesse certeza dos meus
sentimentos, seria nesse momento que eu saberia que o amo. Com todo
o meu coraçã o.
Ainda estou observando Nuno caminhando quando Suzy se mexe ao
meu lado, ela começa a tossir e preciso ajudá -la quando ela começa a
sufocar, é desesperador.
— Suzy, por favor, respira — peço tentando manter a calma quando
ela parece prestes a perder a consciê ncia. — Suzy! — grito seu nome
enquanto bato em suas costas com a mã o em concha. — Suzy, por favor,
respira — imploro descontrolada, o funcioná rio do posto vem até nó s e
pergunta se está tudo bem, mas nã o respondo, estou concentrada na
minha irmã .
Continuo batendo em suas costas enquanto ela tosse quase sem ar,
Nuno se aproxima correndo, com seus olhos grandes arregalados. A
á gua é jogada no chã o quando ele afasta o rapaz e se ajoelha ao nosso
lado.
— O que houve? — ele pergunta assustado, mas nã o digo nada, nã o
posso, nã o quero falar em voz alta o que está acontecendo, que ela está
se afogando.
Suzy se curva jogando o corpo para a frente e a sustento em meus
braços, Nuno se coloca ao meu lado, seus braços sustentando os meus,
ambos segurando-a.
— Seja corajosa, por favor, seja corajosa — digo repetidamente
enquanto ela tosse com tanta força que seu rosto ica arroxeado. —
Vamos lá , coloque para fora — incito-a ainda batendo em suas costas
até que ela começa a vomitar. — Isso, muito bem, muito bem — digo
sentindo o alı́vio me inundar quando seu rosto começa a voltar a cor
normal e ela volta a respirar.
Entã o viro meu rosto para o peito de Nuno e começo a chorar, de
medo, de alı́vio, de gratidã o.
Foi só um susto, mais um.
Só nã o sei até quando.
Abro a porta bem devagar, mas o barulho que ela faz é alto o
su iciente para fazer com que ele se vire para mim.
Fico um instante parado, olhando para aquela pessoa deitada na
cama alta e cheia de coisas esquisitas que me assustam, não o conheço,
seu rosto inchado não se parece em nada com o rosto bonito que estou
acostumado a ver todos os dias, a boca rachada não tem nada igual a que
me provocava no café da manhã me chamando de Tampinha; os braços,
inos e manchados, não são os mesmo que ingiam perder para mim na
queda de braço.
Esse não é o meu irmão.
Mesmo assim, ao olhar para ele, encontro algo que me faz
permanecer, seus olhos. São eles que me encorajam a entrar, são eles que
me fazem acreditar que essa pessoa estranha que olha para mim do outro
lado do quarto ainda é o mesmo que admiro e desejo tanto ser igual.
— Ei, Tampinha, perdeu o sono? — ele diz com a máscara barulhenta
sobre seus lábios.
A verdade é que não consigo dormir com o barulho que a máquina
faz, nem com os acessos de tosse que ele tem, nem com o entra e sai de
enfermeiras o tempo todo em seu quarto.
Não consigo dormir, porque não consigo me sentir em casa, porque
tenho medo de que, ao fechar os olhos, ele vá embora e me deixe aqui
sozinho, não durmo porque estou com raiva dele, por não conseguir
melhorar, mesmo o papai fazendo de tudo.
— Nuno, está tudo bem com você? — Ele retira a máscara.
Não vejo motivo para responder essa pergunta idiota, claro que não
está nada bem, odeio sentir medo e ultimamente é tudo o que tenho.
— Nuno — ele me chama e aperto meus dedos uns nos outros. — Você
está com medo? — ele pergunta, não quero falar a verdade, mas nunca
menti para ele.
É o nosso acordo, nunca mentir, porque a mentira esconde tudo o que
é bom e certo.
Não quero esconder o que é bom e certo do meu irmão, então abaixo
minha cabeça e falo bem baixinho, desejando que ele não consiga ouvir:
— Sim.
Mantenho meus olhos nas meias em meus pés, não quero olhar para
ele, estou envergonhado porque sei que deveria ser mais forte, mas não
consigo.
Ouço o ranger da cama quando ele se move e ergo os olhos, Matteo se
levanta e caminha devagar até onde estou, ele arrasta um suporte de
remédio junto e me pergunto por que todos esses remédios não
conseguem fazer ele icar melhor.
— Você não deveria se levantar. — Aponto para o seu corpo magro e
ele me dá um sorriso largo, mas esquisito, cheio de dor.
— A gente gosta de descumprir as regras às vezes, não é?
Matteo vem até mim, sua mão ossuda bagunça meu cabelo e é quase
como antigamente.
— Vamos lá, acho que teu problema é fome.
Meu irmão sai do quarto arrastando aquele negócio junto, quero
mandá-lo voltar para a cama, dizer que pare com isso, que o papai vai
brigar com a gente, mas não consigo, sinto falta de estar assim com ele,
então o sigo até a cozinha, onde me sento e observo meu irmão pegar o
leite e o cereal e encher um pote como se estivéssemos nos arrumando
para ir à escola.
— Aproveita que tô de bom humor, hein. — Ele coloca o pote na
minha frente e se senta.
— Não tô com fome.
— Finge que está e come, pirralho.
— Não sou mais um bebezinho para você me tratar assim! —
resmungo irritado.
— Não mesmo, e eu ico feliz em saber, o papai e a mamãe vão
precisar que você seja um homem forte e corajoso.
— Você também pode ser forte e corajoso.
— E eu sou, já viu quantas picadas eu levei? — Matteo me estende um
dos braços e desvio o olhar porque não gosto de ver ele machucado.
— Seja mais — digo, quase implorando.
— Estou tentando, pirralho.
— Tente mais.
— Prometo que vou. — Sua voz falha e olho para o seu rosto
estranho, Matteo empurra o pote um pouco mais e sorri. — Agora come.
— Por que eu deveria fazer isso?
— Porque é melhor sentir raiva com a barriga cheia.
— Não estou com raiva! — resmungo.
— Tá sim, eu também estou.
— Está?
— Você não imagina o quanto. — Ele olha bem dentro dos meus
olhos, daquele jeito que só um irmão mais velho consegue fazer sem
deixar a gente sem graça. — Me desculpe por fazer você se sentir assim.
— Sua voz soa triste e meus olhos pinicam. mexo o cereal no pote, mas
não consigo comer, minha garganta tá estranha.
— Hoje a mamãe e o papai estavam brigando de novo — mudo de
assunto, porque não gosto quando o Matteo fala assim comigo, pre iro
quando ele me chama de cuzão.
— Eu ouvi, mas não se preocupe com isso.
— Você acha que eles vão se separar?
— Eu espero que não.
— A mamãe disse que o papai não está pensando direito.
— As pessoas não pensam direito quando estão nervosas.
— Mas o papai conhece todos os remédios do mundo, uma hora ele
vai achar um que te cure — repito a frase que digo para mim mesmo
todos os dias.
— Ei, moleque, pare de se preocupar com coisas de adulto.
— Eu não consigo.
— Tente.
— Estou com medo — admito mais uma vez, agora olhando em seus
olhos.
— Nuno, aprenda uma coisa, não importa o quanto você esteja com
medo, ele não vai mudar nada, mas se você for corajoso, a dor perde a
força sobre você.
— Como um escudo?
— Exatamente, a coragem é o escudo da alma, não o abaixe nunca.
Promete?
— Prometo.
— Ele está te ajudando?
— Você não imagina o quanto. — Ele aponta para o pote. — Agora
come, cuzão. — Ele sorri, igual ele fazia quando ainda não estava doente
e, então, eu sorrio também, enquanto en io uma colher de cereal mole na
boca.

Estou apavorado.
Meu corpo treme tanto que mal consigo me mover, meus olhos
intercalam, entre a pista à minha frente e a mulher encolhida no banco
de trá s, no seu rosto quase sem cor, nos seus lá bios arroxeados.
Nã o consigo desviar, eles se parecem demais com os de Matteo.
E entã o, como um ilme antigo, escondido em um canto escuro da
minha mente, os momentos inais do meu irmã o se desenrolam na
minha mente, imagens que me obriguei a esquecer por serem dolorosas
demais, promessas que iz e que nã o consegui cumprir.
A gente se vê daqui a pouco, Tampinha...
Sua mã o fechada sobre a minha, a pulseirinha do hospital em nossos
punhos, a cor dos seus olhos, o sorriso... a esperança de poder salvá -lo.
Pisco com força algumas vezes evitando as lá grimas de caı́rem, por
Deus, nã o posso desabar, nã o agora quando ela precisa tanto de mim,
nã o quando quero ser o seu escudo.
Volto a olhar pelo retrovisor, Stella está silenciosa ao lado de Suzy,
os olhos inchados de tanto chorar estã o atentos à s necessidades da
irmã enquanto dirijo tentando nã o nos colocar em perigo, mas
desejando desesperadamente ir mais rá pido.
Mais um hora e estaremos lá .
A voz eletrô nica do GPS nos dá as coordenadas e sigo seus
comandos automaticamente, minha camiseta está ú mida das lá grimas
de Stella e meu coraçã o destruı́do pela sensaçã o angustiante de
impotê ncia. Tudo que iz foi sustentá -la em meus braços enquanto ela
chorava, me sentindo fraco e incapaz de dizer nem mesmo uma maldita
palavra.
O tempo se arrasta e, sem que ela veja, acelero um pouco mais
tentando chegar logo.
Olhos na pista, coraçã o em pedaços, mente a mil, mã os geladas.
Quando chegamos ao hospital, mal tenho tempo de parar o carro e
Stella desce correndo, o desespero em seu rosto é como uma lâ mina em
minha garganta, me sufoca, me imobiliza. Um gatilho que me lembra o
quanto somos impotentes em um momento como esse.
Desço e abro a porta de trá s, com cuidado pego Suzy em meus
braços, ela parece mais leve a cada segundo e, mesmo fraca e ardendo
em febre, seus olhos me observam por um instante e o sorriso que ela
me dá parte o meu coraçã o.
— Você é o cara — ela sussurra, com a voz rouca e frá gil, a mã o
pequena dando batidinhas em meu rosto.
— E eu sou. — Forço um sorriso enquanto caminho com ela para
dentro do hospital.
— Cuida dela para mim — Suzy sussurra em meu ouvido.
— Tá querendo se livrar da responsabilidade, né , engraçadinha?
Um homem surge ao lado de Stella, ele é alto, ainda maior que eu e
seus olhos apavorados me fazem saber de quem se trata antes mesmo
que ele se aproxime.
— Teu cara chegou — digo para Suzy.
— Ele sempre chega. — Ela sorri.
Um enfermeiro se aproxima com uma cadeira de rodas, Stella
começa a falar sobre sua condiçã o com o rapaz, Xavier se ajoelha na
frente de Suzy fazendo perguntas idiotas, enquanto ele a toca com
cuidado e carinho, fazendo com que um sorriso apaixonado ilumine o
rosto dela. E quase constrangedor de ver.
Volto para o carro e pego a bolsa de Stella, sei por experiê ncia que
ela sequer está pensando direito e, se depender da expressã o do
namorado de Suzy, ele está ainda pior. Quando volto para o hospital,
Stella está falando com uma enfermeira e sua irmã já se foi.
Quando me vê chegando, ela vem até mim, o olhar que ela me dá faz
com que eu me sinta importante, especial, e quando seus braços se
fecham em minha cintura, sinto o suspiro que ela dá por inalmente ter
conseguido trazer sua irmã a tempo.
— Ela vai icar bem — digo, com meus lá bios em seus cabelos, meus
braços em sua volta e um desejo quase sufocante em meu coraçã o de
que eu esteja certo.
Ela precisa icar bem.
Xavier nã o me deixa icar com ela, como um cã o de guarda,
desesperado e assustado, ele praticamente me expulsa do hospital, já
sabemos que a estadia será longa, pneumonia sempre é algo grave na
sua situaçã o.
Entã o depois de fazê -lo me prometer mil vezes que vai me dar
notı́cias, deixo que Nuno me leve embora. Dou o endereço do
apartamento deles e seguimos em silê ncio até lá . Tento dizer algo,
agradecer por ele estar aqui, pedir desculpas por tê -lo colocado nessa
situaçã o, sei lá , qualquer coisa, mas estou tã o apavorada que sei que,
quando eu abrir a minha boca, vou começar a chorar de novo, e tudo o
que nã o preciso agora, é perder o controle.
Observo a cidade que nunca dorme pela janela, quase seis meses
sem vir aqui me faz perceber o quanto ela é acelerada, cheia,
barulhenta, algo que, embora tenha feito parte da minha vida, agora me
parece exagerado.
Olho para o garoto tranquilo ao meu lado, seus olhos cansados me
analisam em silê ncio, sei que ele tem mil perguntas a fazer, mas seus
lá bios estã o selados desde o momento em que digitou o endereço no
GPS e, pelo que conheço dele, icará assim até que eu comece a falar.
Meia hora depois chegamos no apartamento de Suzy e Xavier,
subimos o elevador de mã os dadas, o cansaço e a exaustã o fazem com
que nem ao menos nos demos conta de quã o importante esse gesto
simples e natural é . Sei que vou repassar cada segundo dessa noite
depois quando tudo estiver bem, mas nesse momento nã o consigo.
Entã o deixo que Nuno me leve para dentro do apartamento
desconhecido para ele, olho em volta me recordando a ú ltima vez em
que estive aqui, cheia de sonhos e esperança de que começaria uma
nova fase da minha vida, uma onde eu nã o precisaria contar moedas no
im do mê s para que Suzy possa icar bem.
— Você está com fome? — ele pergunta olhando para a tela do
celular.
— Nã o, só estou cansada.
— Pizza ou hambú rguer? — ele pergunta ainda olhando para o
celular.
— Nã o estou com fome, Nuno.
— Vamos de pizza entã o — ele diz daquele jeito fofo e mandã o, que
faz um sorriso se espalhar em meus lá bios mesmo diante do cansaço.
Caminho até onde ele está e espalmo minhas mã os em seu peito
fazendo com que ele olhe para mim.
— Obrigada — sussurro.
— Eu pedi de alho com espinafre — ele brinca e meu peito se in la
de tanto amor.
— Eu amo espinafre. — Ele enruga o nariz de um jeito fofo e se
inclina para beijar minha testa.
— Como você está ?
— Um pouco tensa, mas sei que agora vai icar tudo bem, já estamos
acostumados, sabe?
— Eu poderia ter feito algo para evitar?
— Claro que nã o, nem pense nisso.
— Difı́cil nã o pensar. Ela poderia...
— Shhh... — Coloco o dedo sobre seus lá bios impedindo-o de
terminar a frase que assombra minha vida. — Nã o vá por aı́, de
verdade, nã o se culpe, nã o havia nada que você pudesse fazer. Suzy é
assim, à s vezes nem ela mesmo percebe quando tudo começa a icar
ruim.
— Foi muito rá pido.
— Ela está morrendo, Nuno, pouco a pouco a ibrose está levando-a
de mim.
Ele nã o diz nada, posso ver o medo em seus olhos, como um
fantasma de um passado que ele nã o quer lembrar.
— Quanto tempo até a pizza chegar? — mudo de assunto.
Nuno olha para o aplicativo no celular.
— Quarenta minutos.
— O que acha de tomarmos um banho? — pergunto olhando dentro
dos seus olhos sexys e intensos.
Nuno olha para o corredor, talvez tentando adivinhar qual dessas
portas é a que nos leva ao banheiro, nã o espero por sua resposta,
seguro sua mã o e o levo até a ú ltima delas, o apartamento deles é
pequeno, mesmo assim é trê s vezes maior que o meu e o banheiro,
grande o su iciente para que possamos tomar banho juntos sem
precisar nos esbarrar.
Tiramos nossas roupas em silê ncio e entramos no box juntos, a á gua
quente relaxa nossos mú sculos e passamos um bom tempo curtindo a
sensaçã o, Nuno lava minhas costas, salpica beijos carinhosos em meu
ombro, me sinto cuidada, amada, protegida por um garoto que, até seis
meses atrá s, eu jamais imaginaria que poderia ser capaz. Viro-me de
frente para ele e começo a beijá -lo, nã o penso muito no que estou
fazendo, apenas beijo-o com todo o meu desespero, como se precisasse
desse beijo para aplacar a minha tristeza, o meu medo, a minha dor.
— Eu preciso de você — peço, enquanto seguro seu pau em minha
mã o, tocando-o como ele gosta.
— Stella... — ele me chama enquanto minha boca passeia por seu
peito. — Stella... — ele repete enquanto sua ereçã o começa a crescer em
minha mã o, provando que estou atingindo o que quero.
— Me come — sussurro em seu ouvido, sentindo meu corpo inteiro
se arrepiar com minha ousadia. Nuno me afasta, seus olhos carregados
de tesã o me observam por um instante.
— Por quê ?
— Porque eu preciso — admito sentindo o coraçã o acelerar com
essa verdade. Eu preciso dele, muito mais do que pude imaginar até
hoje. — Por favor.
Ele acaricia meu rosto com os nó s dos dedos, esperando, analisando
meu pedido enquanto o masturbo, aumentando a força, exatamente
como ele gosta enquanto ergo-me na ponta dos pé s e beijo seu queixo,
seu maxilar, seus lá bios.
— Stella... tem certeza?
— E a ú nica certeza que tenho nesse momento, quero você , Nuno,
quero você dentro de mim.
Ele me vira de costas empurrando meu rosto no azulejo enquanto
sua outra mã o separa minhas pernas.
— Tem certeza? — ele pergunta mais uma vez e balanço a cabeça
con irmando. Nuno nã o é gentil e agradeço por isso, nã o quero
gentileza, quero sexo duro e sujo, e ele me dá o que tanto preciso.
— Mais forte — peço quando ele hesita e ele faz exatamente como
peço.
Transamos em silê ncio, apenas o som das suas estocadas e dos
meus gemidos colidem com o som da á gua que cai ao nosso redor. Sinto
falta das suas palavras sujas, dos seus beijos, do seu toque, Nuno
manté m as mã os na parede e sua boca nã o chega nem perto da minha
enquanto ele me penetra com força me fazendo gritar e, quando goza,
sinto seu corpo vacilar, suas costas tremer, sua pele sensı́vel se arrepiar,
sinto o peso do meu pedido quando ele apoia a cabeça em minhas
costas ainda em silê ncio, o silê ncio que ele tanto odeia e que permanece
enquanto choro. Eu o amo com todo o meu coraçã o quando seus braços
me envolvem, quando ele deixa um beijo casto em meus cabelos,
quando ele me diz que tudo vai icar bem, deixando claro que isso foi
por mim, apenas por mim.
Nos trocamos e voltamos para a sala ainda quietos, arrumo a
bagunça que Xavier deixou pelo caminho porque sei que ele nã o vai ter
cabeça para arrumar e Suzy vai surtar quando voltar para casa.
Organizaçã o é algo importante para ela, talvez seja por nã o ter controle
sobre a sua pró pria vida.
Quando a pizza chega devoramos rapidamente, estamos famintos
demais e o silê ncio faz a massa pesar em meu estô mago, Nuno nã o olha
para mim e tenho a sensaçã o de que ele está escondendo algo que ele
acha que nã o sou capaz de lidar. E como a grande covarde que sou, eu
injo que nã o noto porque tenho medo de que tudo isso tenha sido
demais para ele.
A receita perfeita para uma grande merda.
Limpamos a cozinha, guardamos o que sobrou, ligo para Xavier, e
ele me diz que Suzy está sendo medicada. Sei que será uma longa noite
para eles, assim como tantas outras que já tivemos e me sinto um pouco
errada por nã o estar lá com ela, apesar de saber que esse momento
tudo o que ela quer é a mã o dele sobre a sua.
Quando desligo, Nuno está me observando, seus olhos parecem tã o
tristes e cansados, repletos de segredos que nã o conheço e dos quais
tenho medo. Engatinho até onde ele está , do outro lado do sofá , ele
afasta suas pernas à minha espera e, quando me coloco no meio delas,
ele me envolve com seus braços.
— Está se sentindo melhor? — ele pergunta enquanto afasta uma
mecha molhada do meu cabelo.
— Sim. Ela está em boas mã os.
— Otimo — ele diz, com a voz rouca de exaustã o.
— E você ?
— O que tem eu?
— Está chateado?
— Eu deveria?
— Me desculpe, Nuno. — Afasto-me para olhar em seus olhos.
— Pelo quê ?
— Por ter pedido para você transar comigo daquele jeito.
— Por que pediu aquilo? — Ele franze o cenho, confuso.
— Eu estava chateada.
— E me usou para se punir.
— Eu sinto que te magoei.
— Um pouco, nã o gostei do que izemos.
— Por que nã o disse nã o?
— Porque nã o consigo dizer nã o para você .
— Nã o quero que ique triste comigo.
— Entã o cuidado com o que você pede para mim.
Meu coraçã o dó i com a sinceridade das suas palavras e a tristeza em
sua voz, ele parece distante e melancó lico. Mesmo assim, beija minha
boca delicadamente e me puxa para um abraço que me enche de
carinho.
— Eu odeio te ver triste — ele diz como uma con issã o. — Se tiver
algo que eu possa fazer, qualquer coisa que seja, para que você se sinta
bem, entã o eu vou fazer.
— Diga nã o quando nã o estiver feliz.
— Se você estiver feliz, eu estarei feliz. — Ergo o rosto para
observar o menino sincero e bonito, que nã o tem medo das palavras. —
Mas nã o me peça mais isso, por favor, nã o quero me sentir usado.
— Me perdoe, nã o farei mais.
— Certo. — Ele me abraça e me deixo ir.
— Eu te amo — admito.
— Eu també m te amo.
Planto um beijo carinhoso em sua bochecha, Nuno sorri
timidamente e me aninho em seus braços encaixando meu rosto na
curva do seu pescoço.
— Acho que você deveria dormir — Nuno sussurra, os dedos
passeando por meus cabelos em uma carı́cia delicada e sem intençõ es.
— Nã o consigo, estou agitada demais.
— Entã o vamos conversar.
Me ajeito em seu colo e começo a passar meus dedos por seu braço,
sentindo a maciez dos pelos tocando minha pele.
— Faltam seis meses para o ano acabar — digo encarando uma
pintinha em seu antebraço.
— Os mais longos da minha vida.
— Tecnicamente, mais quatro meses de aula.
— Os mais longos da minha vida — ele repete e sorrio sentindo um
frio em minha barriga ao pensar no futuro.
— E entã o estaremos livres.
— Livres, gosto dessa palavra. — Ele beija meus cabelos e fecho os
olhos antes de fazer a pró xima pergunta: — Quais seus planos para o
ano que vem?
— Eu nã o faço ideia — ele responde com a voz vazia, triste.
— Como nã o faz? Deveria estar se preparando para o vestibular. —
Me afasto para olhar em seus olhos.
— Nã o importa. — Ele ergue os ombros parecendo mais triste a
cada frase dita, como se o futuro fosse uma banalidade.
— Como nã o, Nuno? Você deve ter algum sonho, nã o tem?
— A ú ltima vez que quis alguma coisa, eu ainda estava na fase em
que precisava escolher entre astronauta e bombeiro ou algo do tipo.
— Por quê ? — pergunto, mas já nã o tenho mais certeza se quero
saber a resposta.
— Sonhar é perigoso, Stella.
— Sonhar nos mantê m vivos.
— Entã o talvez eu já nã o esteja mais. — Ele me dá um sorriso torto,
mas nã o consigo achar graça na sua brincadeira. — Se perguntassem ao
Nuno de onze anos, o que ele gostaria de ser quando crescesse, a
resposta seria igual o meu irmã o, eu o amava. — Ele me dá um sorriso
tı́mido enquanto fala. — Nã o, eu acho que eu o idolatrava.
— E ele?
— Ele me amava també m, com certeza me apoiaria em qualquer
coisa que eu quisesse ser, seja astronauta, bombeiro. Uma vez ganhei
um telescó pio e ele passou a noite comigo olhando as estrelas, disse o
nome de todas e eu o achei o cara mais inteligente do mundo. Anos
depois, descobri que ele tinha inventado a maioria das coisas, mas,
naquela noite, eu o achei o má ximo.
— Ele tinha o seu humor entã o.
— Ele era pior que eu.
— Acho impossı́vel.
— Ela era a minha alegria. Todos os dias, ele me levava à escola e me
obrigava a fazer o meu dever de casa. Você sabe, meu pai nunca esteve
em casa tempo su iciente para isso e minha mã e sempre esteve
ocupada com outras coisas, é ramos nó s dois um para o outro. Eu o
seguia como um discı́pulo e, quando o Matteo morreu, a vida perdeu o
sentido para mim e eu acho que parei de sonhar. — Nuno encara suas
unhas, enquanto seus olhos se perdem em lembranças dolorosas. — Eu
me sentia mal em ver meus pais chorando dia e noite, eu me
perguntava o que eu poderia fazer para aliviar a dor deles, me sentia
culpado, infeliz.
— Ah nã o, Nuno... — lamento já deduzindo o rumo dessa histó ria.
— Eu queria tanto que meu pai nã o achasse que icou com o pior
ilho, que prometi a ele que seria como o Matteo. — Nuno encara
nossas mã os unidas enquanto fala, com um sorriso envergonhado. —
Claro que ele nã o acreditou em mim, eu era só um pirralho chorã o e
bobo, mas, conforme eu fui crescendo, todas as vezes que podia, eu
reforçava a ele que faria o que ele quisesse.
— Por quê ?
— Porque eu queria ser o ilho que ele perdeu.
— Mas você nã o é o Matteo.
— Eu sei que nã o, isso é o pior, porque eu sei que, por mais que eu
faça, nunca serei ele.
— E você queria ser amado como o Matteo foi.
Nuno balança a cabeça, a con irmaçã o o deixa ainda mais sem graça.
— Pois é , nã o deu muito certo. — Ele ergue os ombros e me olha por
baixo dos cabelos desgrenhados.
— Você nã o pode fazer isso.
— As vezes, a gente se entrega a algo com tanta força, que nã o
consegue mais achar um motivo forte para reagir.
— E a sua vida, ela por si só já deveria ser um bom motivo.
— Sinceramente, Stella, eu nã o ligo, desde que seja apenas a minha,
por mim tanto faz.
— E você pretende fazer qual faculdade?
— Administraçã o, Quı́mica, Relaçõ es Exteriores, ainda nã o tenho
certeza.
— O que o seu pai escolher.
— Exatamente.
— Isso está errado, Nuno, você nã o pode ser infeliz para agradar o
seu pai.
— E o que eu devo fazer?
— Diga que nã o quer, que tem outros sonhos.
— Mas eu nã o tenho, Stella, meu sonho era poder trazer meu irmã o
de volta, restaurar a minha famı́lia, voltar a ser o pirralho que
acreditava em estrelas.
— Entã o descubra seus sonhos, volte a olhar as estrelas, encontre
nelas um objetivo de vida.
Ele ergue o rosto e olha para mim, vejo um brilho de tristeza
iluminando seu rosto jovem e triste.
— Meu objetivo hoje é te fazer feliz.
— Entã o busque algo que te faz bem, uma pessoa infeliz é incapaz
de fazer algué m feliz, isso é uma utopia. Uma hora você vai ruir e eu nã o
vou suportar te ver sofrendo, seja feliz e eu serei també m.
Nuno segura meu rosto em suas mã os, os lá bios se movem como se
fosse falar algo, ele me olha por um tempo, entã o balança a cabeça e
seja lá o que se passa por ela se vai.
— Chega de falar de mim, me conte algo sobre você .
Nã o consigo pensar em nada, minha mente ainda está tentando
absorver tudo o que ele acabou de falar, mesmo assim, me obrigo a
dizer algo:
— Eu nunca vi a neve.
— Sé rio? — Con irmo com a cabeça e ele volta a olhar para nossas
mã os. — Acredite, nã o é tã o legal como parece.
— Quase tudo nessa vida é assim, superestimado.
— Pois é .
— Eu amo o Natal — continuo quando vejo seus olhos se
suavizarem.
— Você parece uma menininha, só falta dizer que acredita em papai
Noel.
— Nã o, mas gosto da imagem que ele representa. — Seus olhos se
estreitam e um sorriso debochado estampa seu rosto.
— Que imagem?
— A de sonhar.
— Viu só ? Uma menininha.
— Talvez eu seja, Suzy costuma dizer que uma parte minha nã o
cresceu, deve ser por ela que você se apaixonou.
— Nã o, pode ter certeza de que eu me apaixonei pela mulher.
Sinto meu rosto aquecer quando ele fala de mim dessa forma. Passo
minha mã o por seu maxilar forte e bonito, admiro cada detalhe do seu
rosto de garoto e me pego surpresa com a forma como me sinto ao seu
lado, talvez seja isso, Nuno extrai de mim a menina sonhadora que Suzy
sempre me acusa de ser.
— Tenho ciú mes da Cindy — admito, meus dedos ainda tocando sua
pele e, quando suas sobrancelhas se erguem, me sinto meio idiota por
ter falado isso.
— A Cindy ainda? Você só pode estar brincando.
— Nã o, eu estou falando a verdade. Tenho ciú mes de todas as
meninas de Santo Egı́dio.
— Por que você teria ciú mes de algué m?
— E por que eu nã o teria?
— Porque você é a dona do meu coraçã o. — Ele se aproxima, com
seus lá bios bem perto do meu ouvido. — E do meu pau.
Reviro os olhos, mas nã o consigo impedir um sorriso imenso de
surgir em meus lá bios.
— A Cindy te conhece — explico, me achando mais boba a cada
segundo, mas talvez seja mesmo. Estar apaixonada nos torna irracional,
boba.
— O Ivan també m me conhece.
Dou a ele um olhar que diz exatamente sobre o que estou falando e
ele balança a cabeça, ainda sem acreditar.
— Eu sei, é idiota, mas nã o posso controlar.
— E por causa do sexo?
— Nã o, o sexo por si só é apenas um ato, como comer quando se
tem fome.
— E nem sempre se come aquilo que se deseja — ele diz com um
sorriso safado.
— Nã o, nem sempre.
— Entã o o que é que a deixa assim?
— A cumplicidade, a con iança, a certeza de que ela estará lá por
você e vice-versa. — Olho para Nuno, mas ele nã o parece acreditar
muito no que eu digo. — Tá , eu també m nã o gosto de pensar que ela já ...
— Respiro fundo, sabendo que nã o vou falar a verdade, que odeio
imaginar ele se entregando aos braços de outra garota. — Você sabe.
— Eu odeio o Tony.
— O quê ? — pergunto surpresa.
— Odeio a forma como ele olha para você , odeio as fofocas que
rolam nos corredores, odeio como, à s vezes, minha mente idiota me faz
acreditar como ele poderia ser um cara melhor para você .
— E como ele poderia ser melhor?
— Nã o sei, eu mando minha mente se foder antes dela continuar a
argumentar.
Começo a rir e entã o o beijo.
— Nó s somos ridı́culos, nã o somos?
— Totalmente. — Ele passa a lı́ngua no lá bio inferior, um sorriso
divertido se forma enquanto ele me puxa para mais perto de si. —
Posso te falar uma coisa? — ele sussurra como uma con idê ncia em
meu ouvido.
— Todas que você quiser.
— Eu nunca disse que amo uma garota antes de você .
— Você está dizendo isso para que eu nã o tenha ciú mes?
— Nã o, eu gosto de saber que você tem ciú mes, equilı́brio à s vezes é
bom, eu passo metade do meu tempo me sentindo um idiota, lutando
para provar que nã o sou um moleque, gosto de saber que você se sente
um pouco insegura també m.
— Acredite, eu me sinto.
— Só nã o duvide nunca do quanto eu te amo.
— Isso já deve bastar, né .
— Espero que sim, porque eu seria capaz de qualquer coisa por
você .
— Me desculpe, eu nã o deveria ter dito isso, é ridı́culo e injusto.
— Por favor, Stella, sempre seja sincera comigo.
— Mesmo que eu seja uma idiota?
— Se for para dizer que nã o me quer com nenhuma outra garota,
entã o ique à vontade para ser a mulher mais idiota do mundo — ele
brinca.
— Eu serei.
Nuno ergue meu queixo e me olha dentro dos olhos.
— E nã o se esqueça do que eu vou falar agora: eu sempre farei o
melhor por você , mesmo que talvez pareça que nã o. — Ele parece sé rio
demais enquanto fala olhando dentro dos meus olhos.
— Por que você está falando isso?
— Só quero que você me prometa que nã o vai esquecer disso.
— Eu nã o vou.
— Otimo. — Ele me beija, dessa vez um beijo longo e cheio de
desejo que acende cada pontinho dentro de mim, como luzinhas de
Natal, iluminando a garota boba e apaixonada que sou.
Odeio falar, sobre meus sentimentos, meus medos, minhas dú vidas,
sinto sempre que o dinheiro e o status nublam o que me a lige, como se
fossem apenas birra de um moleque mimado, poré m hoje estou mais
sensı́vel que o normal, uma simples trepada me deixou me sentindo
mal e sei o motivo, estou acumulando todas as merdas do mundo
dentro de mim. Enquanto abro meu coraçã o para Stella, ela me observa
em silê ncio, quase como se fosse capaz de sentir a minha dor, respeita
minha histó ria, me incita a falar, me faz sentir importante. Algo raro
para algué m que sente que morreu no dia em que nã o foi capaz de
salvar seu irmã o.
E a primeira vez que falo sobre isso com algué m alé m de Ivan que
conhece minha histó ria, me sinto leve e respeitado, acima de tudo, me
sinto amado, como nunca me senti antes. Stella me olha com admiraçã o,
paixã o, desejo, ela me olha como um homem sonha ser olhado por uma
mulher, como se eu fosse o ú nico e, porra, eu quero ser.
Observo Stella se mover pelo quarto, a luz do abajur ilumina as
curvas suaves do seu quadril, seus seios sem o sutiã balançam
sensualmente, a bunda que tanto amo implora por minhas mã os. Eu
poderia passar a vida aqui admirando-a com um sorriso idiota.
Estamos no quarto de hó spedes, um lugar completamente estranho
para mim, uma cama que nã o conheço, mesmo assim me sinto em paz,
como se esse fosse o meu lugar. Até esse momento nunca me imaginei
desejando estar assim com nenhuma garota, estou exausto e cada
mú sculo do meu corpo reclama, meus olhos ardem com o sono
acumulado, meu peito dó i com todas as lembranças dolorosas que
revivi essa noite, estou tenso e minha cabeça tá uma droga com todas as
coisas que estou escondendo dela por saber que esse nã o é o momento,
Stella já tem merda demais para lidar hoje, mesmo assim o sorriso nã o
sai dos meus lá bios. Estou feliz, absurdamente feliz.
Percebo entã o como a felicidade é algo relativo, que nã o tem nada a
ver com o lugar onde estamos, ou o que possuı́mos.
— Você está com uma cara de safado — ela diz me olhando sobre o
ombro.
— Se você tivesse a mesma visã o que eu, també m estaria.
Stella ergue uma sobrancelha.
— E se você estivesse aqui, garanto que teria uma visã o muito
melhor.
— Tudo é uma questã o de perspectiva.
Ela revira os olhos e volta a mexer nas gavetas.
— O que você acha de parar de mexer em tudo e vir para cá ? — Bato
no colchã o ao meu lado chamando sua atençã o.
— Eu só preciso organizar a bolsa da Suzy, amanhã de manhã nã o
vou me lembrar de tudo que preciso levar.
Ela continua concentrada em encontrar o que a sua irmã precisa,
abro as mensagens e encontro uma da minha mã e perguntando se
estou bem. Respondo dizendo que estou e que nã o se preocupe, é tudo
o que ela quer saber e é tudo o que tenho para dar a ela. Ivan també m
mandou uma, querendo saber como estã o as coisas. Respondo em duas
linhas e é o su iciente, ele sabe que, quando eu voltar, contarei tudo.
Sempre foi assim, uma vida inteira de tragé dias é o su iciente para
saber que, à s vezes, nã o dá para guardar tudo para si, eu tenho Ivan e
ele tem a mim.
Há mensagens de Maddie, Beth e Cindy, respondo a cada uma com
uma frase curta, uma sensaçã o boba enche meu coraçã o ao lembrar da
expressã o tı́mida de Stella ao admitir seus ciú mes por minha amiga.
Sei que parece estranho, geralmente nã o gosto de garotas pegajosas
e inseguras, mas Stella nã o é qualquer garota e saber que ela se
incomoda com minha histó ria com Cindy me faz sentir especial. Nã o é
como se ela fosse me impedir de estar perto da Cindy, ela sabe que a
amo e que estarei lá por minha amiga sempre, e tenho certeza de que,
se um dia Cindy precisar de mim, Stella será a primeira a me incentivar
a ajudá -la. Mesmo assim gostei de ouvi-la falar, talvez tenha a ver com o
fato que de estou completamente apaixonado por ela, isso torna suas
inseguranças especiais, pedacinhos de demonstraçã o de afeto.
— Maddie te mandou um beijo — digo enquanto respondo
mensagens.
— Diz que mandei outro, e que quero o relató rio na sexta-feira.
— Desculpe, mas nã o mando recado de professora.
Stella me olha com surpresa e um ar divertido.
— Mas eu nã o sou qualquer professora. — Ela vem até a cama e se
ajoelha sobre mim, engatinhando até meu colo. — Sou? — pergunta
quando se senta em meu quadril, os cabelos caem em cascatas em
torno do seu rosto lindo e, mesmo morto de cansado, sinto meu corpo
acordar.
— Tsc, tsc, tsc... que coisa feia, professora tentando seduzir um
aluno.
Ela retira o celular da minha mã o e o joga na cama enquanto rebola
o quadril e fecho os olhos tentando manter o controle. Nã o posso ser
assim tã o fá cil para ela, é humilhante.
— Eu acho que tentando nã o é bem a palavra. — Stella se inclina
sobre mim, o cheiro do sabonete que esfreguei em seu corpo inunda
meus sentidos, seus lá bios em meu ouvido sussurram as palavras, me
provocando. — Nã o é , Nuno?
Giro na cama, colocando-a sobre mim, Stella dá um gritinho agudo
que silencio com um beijo duro, ela enrosca suas mã os em meu pescoço
e as pernas em meu quadril, me prendendo com seu corpo pequeno.
Estou completamente rendido a essa mulher e ela nem faz ideia disso.
Ficamos assim, nos olhando por um momento, meus braços
estendidos ao lado da sua cabeça, nossos peitos subindo e descendo
com a força da nossa respiraçã o. Stella passa a mã o em meu rosto, seus
olhos percorrem o mesmo caminho que seus dedos enquanto admiro a
beleza da mulher que tem meu coraçã o na palma da sua mã o.
— Eu nã o sei o que teria feito sem você essa noite — ela sussurra
enquanto sua mã o desce por meu pescoço e se enrosca em meu cabelo.
— Você daria um jeito. — Tento diminuir a importâ ncia do que iz,
porque nã o sei lidar com a forma como ela me olha, cheia de gratidã o.
— Sim eu daria, mas você sabe do que estou falando.
— Se for do banho, eu sei — brinco e me inclino para deixar um
beijo em sua boca.
— Nunca serei capaz de agradecer. — Ela continua ignorando
minhas tentativas de diminuir a importâ ncia.
— Nã o há necessidade de agradecer, Stella, eu estou onde quero, iz
por você , pela Suzy, mas principalmente por mim.
— Por quê ?
— Porque eu só me sinto em paz quando estou com você .
Ela me puxa para um beijo cheio de paixã o e me deixo levar,
sustentando o peso do meu corpo enquanto sinto a maciez das suas
coxas em meu quadril, e a forma como seu corpo pequeno se encaixa
tã o bem embaixo do meu, permitindo que sua lı́ngua provoque os
cantos mais ı́ntimos da minha boca.
— Sabe o que estou pensando? — ela pergunta enquanto beijo seu
pescoço, a necessidade de estar dentro dela cresce à medida que seu
corpo se esfrega no meu.
— Hum... — Incapaz de afastar minha boca da sua pele, sinto seus
dedos me arranhando e gemo de prazer quando penso nas marcas que
ela deixará amanhã .
— Que é a primeira vez em que estamos em uma cama — ela
responde e ergo o rosto para olhar para ela.
— Entã o acho que precisamos comemorar — brinco e, quando ela
se ergue para me beijar novamente, tudo a minha volta se apaga, a dor,
o cansaço, o medo, o passado e, principalmente, o futuro.
Acordo com o som da sua voz ao telefone, preciso de um instante
para me lembrar onde estou, viro-me na cama e nã o a encontro em
lugar algum, Stella está na sala, a voz alterada enquanto fala com
algué m.
Olho para o chã o e nã o encontro a bolsa de Suzy no lugar onde ela
deveria estar, puxo o celular e solto um palavrã o quando noto a hora,
trê s noites em claro izeram um bom estrago em mim porque nã o
consigo lembrar a ú ltima vez em que dormi tanto.
Levanto e visto a calça irritado, saio em direçã o a sala e a encontro
sentada no sofá , com um monte de papel a sua frente enquanto ela
digita algo no telefone. Stella nem ao menos nota a minha presença,
alheia a tudo a sua volta enquanto balança a cabeça como se nã o
compreendesse por que um mais um sã o dois.
Observo-a morder o cantinho da unha, os olhos passeiam por contas
e boletos, papé is hospitalares e um mundo de coisas que nã o faço ideia
do que seja, mas que é grave o su iciente para que ela pareça
desesperada, seus olhos se erguem quando ela me vê chegar e me sento
na mesinha à sua frente, tentando ignorar os papé is.
— Oi — ela diz forçando um sorriso, mas seu nariz está vermelho e
seus olhos inchados indicam que ela chorou enquanto eu dormia,
maravilha.
— Por que nã o me acordou?
— Você estava cansado.
— Você també m. — Ergo os ombros sem aceitar sua justi icativa.
— Eu nã o consigo dormir.
— Sã o quase uma da tarde, Stella — digo mais irritado do que
gostaria.
— Eu nã o percebi a hora, estava ocupada.
— Onde estã o as coisas da Suzy?
— Eu levei para ela.
A raiva nubla minha visã o.
— E por que nã o me chamou? Eu poderia te ajudar.
— Nã o quis te incomodar. — Ela desvia o olhar, limpando o nariz
com as costas das mã os.
— Você nunca incomoda, Stella. — Minha voz sai baixa, rouca do
sono. — Quantas vezes mais vou precisar dizer isso?
— Eu sei, desculpa.
— Nã o peça desculpas se tiver a intençã o de fazer novamente —
digo a cada frase, sentindo a raiva aumentar.
Ela começa a recolher os papé is como se eu nã o fosse capaz de
reconhecer a fonte das suas lá grimas e a raiva explode dentro de mim.
— Está tudo bem? — pergunto apontando o queixo para a bagunça
que ela está fazendo.
— Sim — ela diz baixinho, como se mentir estivesse exigindo tudo
dela.
— Stella. — Seguro suas mã os, forçando-a a olhar para mim. —
Quer fazer o favor de olhar para mim? — exijo e ela solta um suspiro
longo e profundo, com os ombros exaustos desabando.
— Eu tive uma discussã o com o Xavier.
Olho novamente para a pilha de papé is, meus olhos se prendem na
folha de cima, uma conta hospitalar, alta o su iciente para fazer
qualquer pessoa icar nesse estado.
— Ele te magoou?
— Ele está nervoso, todos estamos.
— Ele te fez chorar? — pergunto com a voz fria enquanto imagino
meu punho socando a cara do maldito que a machucou.
— Nã o, quer dizer, nã o de propó sito.
— Stella, você está fazendo de novo! — a repreendo.
— O quê ?
— Nã o me deixe de fora.
— Ou o quê ? Você vai lá bater nele como fez com o Enzo? — Sua voz
é suave apesar da lembrança.
— Nã o, mas nã o vou deixar que ele te magoe.
— Nã o foi nada disso. — Ela me dá um sorriso falso, que me faz
desejar bater ainda mais naquele otá rio. — Ele só estava me
escondendo algumas coisas tentando me proteger, mas acabei
descobrindo.
— Entã o me conte o que foi porque nã o estou gostando de como
você me parece.
— Ele acha que estou fazendo mais do que posso.
Seus olhos marejados voltam a olhar para a pilha de papé is,
responsá vel por suas lá grimas e quero queimar cada uma delas.
— E você está ?
— Nã o, eu acho que nã o.
— Você acha?
— Eu aceitei esse cargo na escola para isso, Nuno. — Ela segura a
pilha em suas mã os. — Para poder ajudar o Xavier, é desleal o que ele
está fazendo.
— Ele se preocupa com você , Stella, e ele nem viu onde você está
morando, porque, se visse, tenho certeza de que faria pior.
— Nã o é comigo que ele tem que se preocupar, é com a Suzy, é ela
quem precisa de cuidado.
— E quem cuida de você ?
— Eu nã o preciso — ela responde rapidamente, como uma frase
pronta, decorada, que, de tanto repetir, escapa dos seus lá bios antes
mesmo que ela pense.
— Claro que nã o, você é a Mulher-Maravilha.
— Estou acostumada a isso.
— Talvez seja por isso que você está desmoronando desse jeito. —
Ela ergue os olhos vermelhos. — Todo mundo precisa de cuidado, Stella
— digo, sentindo meu coraçã o dolorido dentro do peito.
— Eu só preciso respirar um pouquinho — ela diz em meio a mais
uma onda de lá grimas, que começam a escorrer por seus olhos. — Só
um pouquinho, já vai passar.
— Porra, Stella...
E é nesse momento, enquanto a puxo para meu colo, segurando-a
junto a mim, ouvindo o soluço escapar da sua garganta, enquanto a
pilha de papé is cai no chã o, que descubro o verdadeiro signi icado
desse sentimento louco e poderoso que corre em minhas veias.
Amar é isso, é cuidar de quem é importante, é colocar a necessidade
do outro acima da sua, é nã o ter medo de fazer uma escolha, mesmo
que isso signi ique o im dos seus sonhos.
O dia passa voando, ou talvez seja a minha mente que se perdeu no
meio das horas. Tudo o que consigo fazer é pensar em nú meros, os
nú meros impressos nas folhas de papel que encontrei por acaso
enquanto arrumava a sala, os nú meros que Xavier e Suzy esconderam
de mim durante todos esses meses, me fazendo acreditar que tudo
estava sob controle quando, na verdade, eles nunca estiveram em pior
situaçã o. Os nú meros de dias que estã o levando minha irmã embora aos
pouquinhos.
Era para eles estarem pagando as prestaçõ es do apartamento, no
entanto, estã o afundando em dı́vidas hospitalares e empré stimos. Me
sinto traı́da, enganada, exausta. Tudo o que iz, a escolha de me afastar
de Suzy, de aceitar esse cargo, o medo de perder meu emprego, tudo
isso para ser excluı́da na primeira oportunidade.
— Você quer conversar? — Nuno pergunta enquanto dirige.
— Nã o.
— Stella, icar assim nã o ajuda em nada.
— Eles mentiram para mim — digo ainda olhando para o trâ nsito
caó tico de Sã o Paulo, relembrando o quanto sempre odiei os horá rios
de pico.
— As vezes, as pessoas mentem. Isso nã o signi ica que eles nã o se
importam com você . As vezes, a mentira é a ú nica opçã o.
— Eles me izeram acreditar que estava tudo sob controle quando
nã o estava.
— E o que você poderia fazer para mudar isso? — Ele parece um
pouco mais irritado enquanto divide sua atençã o entre o trâ nsito e
nossa conversa.
— Eu nã o sei, eu daria um jeito. — Esfrego minhas tê mporas,
sentindo uma onda de dor de cabeça me atingir.
— Talvez seja por isso que eles nã o te contaram.
— Como assim?
— Eles nã o querem que você dê um jeito.
— Você nã o sabe o que está dizendo — digo na defensiva.
— Eu posso nã o saber o que é viver com uma doença, mas eu sei o
que é carregar um fardo e isso nã o é algo que eu queira para algué m
que eu ame — ele diz com a certeza de quem sabe o que está falando.
— Droga! — esbravejo. — Isso nã o é justo, logo agora que tudo
estava indo bem — choramingo, me odiando por nã o ter sido mais
atenta. Se eu tivesse prestado mais atençã o...
— Pare com isso, Stella, ningué m está te culpando, tenho certeza de
que eles sabem que você já fez mais do que já pode.
— Mas eu prometi.
— Nem sempre podemos cumprir nossas promessas.
Olho para o seu rosto sentindo suas palavras atingirem meu
coraçã o, nã o quero chorar, embora meus olhos estejam inchados, sinto
que quanto mais choro, pior me sinto. Ao invé s disso, me inclino sobre o
banco e deixo um beijo carinhoso em sua bochecha.
— Você tem razã o — digo me esforçando para acreditar nessas
palavras.
— Eu sei, eu sempre tenho. — Ele pisca para mim e, por um
momento, sinto meu coraçã o um pouco mais leve.

Ainda é estranho andar de mã os dadas com Nuno em um lugar


pú blico, minha mente grita para que eu solte e mesmo sabendo que
estamos seguros, olho em volta sempre que ele me toca. Odeio isso,
odeio me sentir errada em amá -lo, odeio a insegurança de estar em um
relacionamento proibido.
Onde está toda a magia dolorosa dos romances que leio? Onde foi
parar o encantamento das migalhas? Um toque leve de mã os, uma troca
de olhar, uma frase indireta que nos rouba o ar, histó rias que, ao serem
escritas no papel, nos deixam suspirando, mas quando se torna real,
mostra como a necessidade de estar com quem se ama pode ser tã o
dolorosa ao ponto de que a ideia de amanhã nã o poder segurar sua mã o
enquanto caminhamos me faz nã o querer soltá -lo nunca mais.
— Você está bem? — pergunto quando entramos no elevador e ele
me enlaça puxando-me para junto de si.
Sinto que Nuno també m tem a mesma necessidade de me tocar o
tempo todo, sua mã o nã o se afasta de mim nem mesmo quando está
dormindo.
— Sim — ele responde, com a cara fechada que se tornou seu novo
normal desde que ele voltou. E como se ele tivesse envelhecido uns dez
anos na ú ltima semana.
A porta se abre e saı́mos, abraçados, seu corpo grande envolto no
meu, aquecendo-me e me fazendo sentir confortá vel ao seu lado, algo
perigoso demais.
Quando chegamos ao quarto, Suzy está no meio de uma sessã o de
isioterapia e Xavier está a nossa espera do lado de fora, ele parece
cansado e chateado e desvia o olhar quando nos aproximamos.
Nos cumprimentamos e ele nos passa as atualizaçõ es sobre a Suzy,
sei que nã o vamos conversar aqui, que as coisas que precisam ser ditas
nã o cabem em um corredor de hospital enquanto a pessoa que amamos
está se recuperando de mais uma pneumonia.
Mesmo assim, o clima é quase insuportá vel.
— Vou pegar um café , você quer? — Nuno me pergunta
completamente sem graça.
— Nã o, obrigada.
Ele faz a mesma pergunta para Xavier, que nega e entã o icamos
sozinhos.
— Stella.
Ergo os olhos e noto ele observando Nuno entrar no elevador.
— Acho melhor você nã o falar nada.
— Eu quero que você saiba que nã o izemos por mal, a Suzy queria
te contar, mas nunca encontramos um momento certo e, entã o, você se
envolveu com ele e...
— O que o Nuno tem a ver com o fato de você s mentirem para mim?
— Cruzo os braços na frente do corpo, completamente na defensiva.
Xavier respira fundo, o cansaço cobra seu preço.
— Suzy te conhece, ela sabe o quanto você lutou para nã o aceitar o
garoto. — Ele aponta para onde Nuno foi e sinto uma vontade insana de
proteger o que temos, mesmo que ele ainda nã o tenha dito nada.
— E? Ainda nã o entendi o que ele tem a ver com tudo isso.
— Ela teve medo de você usá -la como um motivo para nã o se
envolver — ele diz, e sinto a verdade das suas palavras como um algoz
do meu coraçã o, porque ele tem razã o, claro. Como a grande covarde
que sou, colocaria mais esse obstá culo para justi icar a distâ ncia entre
mim e Nuno.
Um mal-estar terrı́vel me faz abraçar meu corpo, sinto que posso
vomitar a qualquer momento, a vergonha queima minha garganta e as
lá grimas voltam a pinicar meus olhos. Respiro fundo tentando
encontrar uma resposta á cida, algo que prove a ele que nã o há motivos
para que eles izessem isso, mas a verdade é que ele tem razã o, eu
usaria isso contra Nuno, assim como usei tudo o que fui capaz até
agora.
— Stella.
— Por favor, nã o fale comigo agora — peço, ainda incapaz de
respirar sem chorar.
— Me perdoe, por favor.
Balanço a cabeça enquanto abaixo o rosto, dando graças a Deus por
meus cabelos esconderem as lá grimas que escapam dos meus olhos,
seco-as rapidamente porque elas nã o merecem cair, nã o aqui, nã o na
frente dele.
— Ele é um bom garoto — Xavier fala, como se pudesse consertar
algo com um elogio.
Ergo meu rosto e encaro o homem a quem con iei minha irmã , sei
que ele nã o faz por mal, na verdade, como Nuno disse, à s vezes mentir é
a ú nica opçã o. Ele está certo. Eu sou uma maldita covarde, incapaz de
admitir que meu medo é maior que meus sentimentos.
— Ele é muito mais do que um garoto — respondo ainda secando
meu rosto.
Xavier me dá um sorriso triste enquanto concorda com a cabeça.
— Eu sei.
— Eu o amo — admito. — Como nunca imaginei amar algué m.
O sorriso aumenta em seu rosto cansado e triste e as lá grimas
rebeldes voltam a escapar.
— Eu só quero que você nã o trate esse sentimento como algo banal.
O amor é delicado, Stella, precisa de cuidado e atençã o, nunca o deixe
de lado, por nada. — Xavier estende a mã o e seca uma lá grima fujona.
— E o mais importante, nã o tenha medo.
— Nã o é tã o simples, nó s dois sabemos.
Ele olha para a porta fechada antes de voltar a falar:
— Você nã o imagina o quanto ela falou dele essa noite, Suzy
morreria se soubesse que você deixou de viver por causa dela.
— Eu sei, aliá s, se ele está aqui hoje é por causa dela.
— Entã o viva, Stella, você deve isso a ela.
Balanço a cabeça concordando. Ele segura meu rosto em suas mã os
e passa os polegares grosseiramente em meu rosto.
— No im das contas, somos homens de sorte.
— Nem tanto assim. — Sorrio em meio as lá grimas.
— Eu sei que somos, e sei que ele sabe disso.
— Como você pode saber?
— Só de ver a forma como ele olha para você .
— E como ele me olha?
— Como se você carregasse o seu mundo.
A porta se abre e nos afastamos, seco meu rosto enquanto olho para
Xavier em um agradecimento silencioso.
Assim que entramos no quarto, Suzy olha para mim, sei que ela está
vendo meus olhos inchados e meu nariz vermelho, ó timo, ela merece.
— Eu ainda nã o morri — ela diz, com a voz cansada de quem já teve
sua cota de tortura do dia.
— Acho bom continuar nã o morta por um bom tempo — digo sem
um pingo de humor, enquanto a abraço.
Meus braços a envolvem como se ela fosse uma criança, com certeza
ela já perdeu uns dez quilos desde que adoeceu, uns trê s de ontem para
hoje. Odeio vê -la assim, tã o pequena e indefesa no meio dessa cama,
odeio a força com que a ibrose consegue arrancar sua vida, suas forças,
sua alegria.
— Está voltando para Monte Mancante? — Ela passa a mã o em meu
rosto, analisando cada pedacinho dele.
— Sim, saı́ correndo ontem, faltei hoje, amanhã preciso estar na
aula.
— Me perdoe por ter lhe causado tanto transtorno.
— Ah, Suzy, por favor, né ? — a repreendo sentando-me ao seu lado e
ignorando o chiado em sua respiraçã o. Ela sempre parece pior depois
da isioterapia.
— Onde está o nené m? — Ela olha para a porta. — Nã o me diga que
você chutou o garoto?
— O que diabos você s dois pensam de mim? — Olho para Xavier e
para a minha irmã sentindo toda a raiva, por terem mentido para mim,
diminuir agora que estou aqui com eles.
— Você sabe bem o que penso sobre você , estou cansada de dizer.
— Ele foi pegar um café .
Suzy ergue uma sobrancelha enquanto olha para mim, nó s duas
sabemos que, na verdade, ele nos deu espaço para o caso de
precisarmos ter uma conversa. O que Nuno nã o sabe é que minha
covardia nã o se limita apenas aos meus sentimentos com ele.
— Posso te dizer uma coisa? — minha irmã pergunta enquanto se
ajeita na cama, percorrendo com o olhar o corpo grande do seu noivo,
que está de costas para nó s, atendendo uma ligaçã o.
— Desde quando você precisa de autorizaçã o para falar?
— Desde que percebi que você precisa de um empurrã o para
começar a viver.
— Eu vivo, Suzy.
— Nã o, Stella, você nã o vive. Você existe.
— E qual a diferença?
— Viver é se arriscar.
— Eu estou vivendo.
— Entã o continue, voe.
— Nã o faça isso, eu vou despencar. — Começo a chorar novamente
e, quando Suzy seca minhas lá grimas, desabo de vez.
Suzy me envolve em seus braços. Enterro meu rosto em seu peito
frá gil e barulhento, enquanto imploro mentalmente para que ela nã o
fale mais nada.
— Shhh... minha pequenininha, nã o tenha medo de viver. — Ela
beija meus cabelos enquanto me embala. — A vida é curta e linda,
acenda a luz, veja em volta, sinta, ouça, toque, inale.
— Eu nã o quero ter essa conversa.
— Eu preciso que você faça isso, ou quando eu morrer, daqui a
muitos anos, claro, vou me sentir uma incompetente por nã o ter feito
um bom trabalho com você . — Ela me puxa para poder olhar
novamente em meus olhos.
— Você é a melhor irmã do mundo.
— Entã o me prove isso, me obedeça.
Um sorriso involuntá rio escapa dos meus lá bios enquanto ela me
olha. Odeio quando ela faz isso, quando parece tã o forte, como se nada a
apavorasse, como se o futuro estivesse a um passo atrá s dela, sempre
tenho a sensaçã o de que está me preparando para algo que nã o quero,
mas que sei que um dia vai acontecer.
— Nã o minta mais para mim! — exijo ainda chorando e ela balança
a cabeça.
— Sabe, eu entendo você , de verdade, eu sei que faria o mesmo se
fosse eu aı́ no seu lugar. — Ela olha para Xavier, que está nos
observando, provavelmente nã o entendendo nada o que a pessoa do
outro lado da linha diz. — Eu sei que somos assim, irmã s leoas que
colocam a necessidade da outra acima da nossa, mas quero que pense
um pouquinho em você .
— Eu...
Ela coloca o dedo em meus lá bios me silenciando.
— Sabe como eu soube que ele era o homem da minha vida? — ela
diz voltando a olhar para Xavier.
— Nã o.
— Na primeira vez em que ele me viu aqui. — Ela sorri, com um
olhar apaixonado para o seu noivo. — Ele nã o teve pena de mim, nem
titubeou, ele simplesmente olhou para mim e perguntou: “o que eu
preciso fazer?”.
Olho para o seu noivo, seu rosto já tã o conhecido é uma má scara de
tensã o, as sobrancelhas quase unidas na tentativa de ouvir o que
estamos conversando.
— Eu vi esse olhar no seu garoto ontem, é por esse tipo de olhar que
vale a pena a gente correr riscos.
— Eu sei.
— Entã o nunca coloque ele na mesma balança que eu.
— Suzy...
— Ele merece um lugar só dele.
— Eu sei — digo secando minhas lá grimas. — Ele merece.
— E por falar em homens lindos e gostosos... — Suzy se vira para a
porta onde Nuno está parado, com as mã os enterradas nos bolsos,
enquanto ele olha para mim. — Pode entrar, gatinho.
— Como você está ? — Nuno pergunta e Suzy solta uma das suas
gracinhas enquanto estende a mã o para ele, fazendo-o se aproximar da
cama, o sorriso alegre e feliz está de volta aos seus lá bios levemente
arroxeados, como se estivé ssemos em um quarto de hotel, e nã o em um
hospital.
Stella ainda tem a pontinha do nariz avermelhada quando saı́mos do
hospital, mas ela parece mais leve, como se chorar tivesse tirado o peso
do seu coraçã o.
Ela pega as chaves e entra no carro sem falar nada, dá a partida e
começa a dirigir.
— O que foi? — pergunta quando nota que estou olhando.
— Estou aqui tentando imaginar como você consegue respirar
assim tã o perto do volante — provoco-a porque é engraçado e
bonitinho vê -la dirigindo.
— Engraçadinho, eu sou uma excelente motorista.
— Nã o consigo imaginar algo que você nã o seja boa. — Me
aproximo e deixo um beijo em seu pescoço, estou feliz em ver ela
sorrindo depois de dois dias intensos.
Quando cheguei na porta do quarto da Suzy, senti uma angú stia
conhecida ao vê -la debruçada sobre a irmã , chorando, como se
estivesse se despedindo dela.
Porque é isso que a gente faz quando algué m que a gente ama
adoece, a gente tenta se despedir aos pouquinhos achando que assim,
quando o grande dia chegar, vai doer menos.
Grande merda de mentira.
— Se afaste, Nuno D’Agostinni. — Ela empurra meu peito e me
afasto sorrindo quando noto seu braço todo arrepiado.
— O quê ? Nã o resiste ao meu charme?
— Nã o — ela responde, encarando a estrada à sua frente com os
olhos castanhos que tanto amo.
Respiro fundo, a palavra enche meu peito idiota e apaixonado de
emoçã o, estico minha mã o e enrosco meus dedos nos dela que
descansam no câ mbio. Ela baixa o olhar para as nossas mã os unidas e
depois o ergue para encarar meu rosto. Há tanta coisa escrita nessa
troca de olhares, tanta emoçã o, tanto alı́vio, tantos sentimentos, que
nã o penso duas vezes e me inclino para deixar um beijo rá pido em sua
boca.
Uma buzina nos traz de volta à realidade e Stella briga comigo.
— Olha só ! Você está me distraindo — ela resmunga de um jeito
bonitinho.
— Desculpe, eu nã o resisto — admito e ela sorri satisfeita.
— Para qual lugar estamos indo? — pergunto um tempo depois
ainda segurando sua mã o.
— Vou te levar em um dos meus lugares favoritos. — Stella pisca
para mim.
— Por acaso tem algo a ver com uma cama?
— Cale a boca. — Ela gargalha.
— Teria se fosse o meu — justi ico.
— Com certeza uma cama nã o está na minha lista de lugares
favoritos.
— Sé rio? Precisamos praticar mais o uso da cama entã o.
Stella dirige por quase vinte minutos enquanto falo sacanagens que
a deixam vermelha e desconcertada, gosto de provocá -la, gosto de ver a
professora tı́mida corar e me lembrar de como ela ica quando a toco.
Chegamos a uma rua comercial, há lojas por todos os lados e,
quando descemos, eu a puxo para perto de mim, pondo o meu braço em
volta dos seus ombros, enquanto ela põ e o dela em volta da minha
cintura. E estranho e gostoso poder tocá -la dessa forma, e aproveito
cada segundo disso, nã o quero pensar em como as coisas serã o quando
voltarmos para casa.
— Para qual lugar estamos indo? Por favor, nã o me diga que
estamos indo fazer compras.
— Claro que nã o, relaxe, eu disse que te levaria em um dos meus
lugares favoritos. — Stella se afasta e segura minha mã o, puxando-me
enquanto caminha quase saltitando de alegria, tã o diferente da mulher
que encontrei chorando hoje de manhã , que me pego sorrindo també m.
Passamos por dezenas de lojas, entramos em uma rua estreita e tã o
escondida, que tenho certeza de que só quem conhece o lugar sabe que
ela existe, Stella cumprimenta um senhor que vende pipoca e outro que
está organizando algumas cadeiras no meio da calçada. Esse lugar faz
parte da mulher que ainda nã o conheço, da Stella que nã o está na sala
de aula, nem cuidando da sua irmã . E quero conhecê -la també m, porque
com certeza eu já a amo.
Chegamos na frente de uma portinha pequena, uma escada estreita
e meio suspeita nos leva ao andar de cima e, antes que eu possa sequer
perguntar algo, a mú sica enche o ambiente, o cheiro de mofo invade
meu olfato e sei onde estamos.
— Bem-vindo ao meu lugar favorito do mundo. — Stella estende o
braço para a ampla e caó tica loja de discos.
— Bem que você disse, nada de camas — brinco e ela sorri.
— Exatamente.
Ela me puxa por entre as dezenas de ileiras de prateleiras lotadas
de LPs, um caos organizado que me faz sentir como se estivé ssemos em
uma cá psula do tempo, levados direto para a dé cada de 80, The Doors
toca nos alto-falantes e estico minha mã o para tocar algumas capas
como uma criança em uma loja de brinquedos.
E incrı́vel.
Stella caminha até o fundo da loja onde um senhor de longos
cabelos brancos, presos em um rabo de cavalo, a envolve em seus
braços tatuados.
— Minha menina, por que nã o me disse que viria? — Ele beija seus
cabelos e ela parece realmente como uma menina, ainda menor envolta
nos braços da personi icaçã o de algum personagem de Woodstock.
— Eu nã o estava planejando. Precisei vir para Sã o Paulo, a Suzy teve
uma crise.
— Como ela está ?
— Agora está bem, está no hospital — ela encerra a conversa com
um menear de ombros, que me faz acreditar que ele as conhece bem.
Será o seu pai? Droga, Stella, poderia ter ao menos me preparado!
Stella se afasta e estende a mã o segurando a minha antes de voltar a
olhar para o homem.
— Quero que conheça uma pessoa. — Ela olha para mim, nã o
consigo de inir o seu olhar, sinto uma pontada ridı́cula de insegurança
nos segundos antes dela falar. — Esse é o Nuno. — Ela volta a olhar
para ele. — Esse é o Marvin.
Marvin, nã o pai.
— Olá . Como vai, Marvin? — Estendo minha mã o livre para o
homem, que a aperta com força demais para algué m da sua idade.
— E aı́, garoto.
— Lugar bonito você tem.
— Obrigado — ele diz cheio de orgulho enquanto passa seus olhos
pelo lugar. — Fique à vontade, amigos da minha pequena sã o sempre
bem-vindos — Marvin diz com gentileza, mas a palavra desce amarga
por minha garganta.
— Obrigado.
Ele continua conversando com Stella, perguntando mais
informaçõ es sobre Suzy, me afasto para dar a eles privacidade, olhando
as capas e relembrando o dia em que Stella me contou sobre esse lugar.
Me perco um pouco entre capas conhecidas e outras que nunca vi, abro
as que chamam minha atençã o, leio tı́tulos de mú sicas, tiro LPs do
encarte. E algo incrı́vel e ao mesmo tempo nostá lgico, como se izesse
parte de uma vida que eu nem sequer vivi.
Sinto suas mã os em minhas costas, deslizando por ela de um jeito
ı́ntimo demais para se fazer com um amigo.
— E aı́, o que está achando? — Stella apoia o queixo em meu braço
enquanto olha para o LP em minha mã o.
— Interessante — digo sentindo a palavra sair um pouco rude.
Sua mã o continua dançando em minhas costas, causando um
desconforto em meu coraçã o, quero afastá -la, como uma criança
enciumada, mas me mantenho quieto.
— Que igura esse Marvin, hein. — Olho para onde ele está nos
observando e me pergunto o que ele está pensando ao ver a forma
como Stella me toca.
— Ele é o melhor amigo do meu pai.
— Sé rio? Seu pai també m é assim?
— Nã o, meu pai é o completo oposto do Marvin, ele é mais como eu.
— Certinho.
— Isso, o certinho, mas com um excelente gosto musical.
— Isso sem dú vida.
— Vem cá , quero te mostrar uma coisa. — Ela tira o LP da minha
mã o e me leva para uma parte nos fundos da loja. Marvin está em uma
espé cie de cabine, que imagino que seja seu escritó rio; e, pela forma
como as pilhas de papé is se acumulam, deduzo que a ú ltima faxina
tenha sido na é poca em que os festivais de rock eram coisas de
desajustados.
Stella abre uma cortina de veludo vermelha e entramos em uma
pequena e caó tica sala, há apenas um pequeno sofá de um verde militar
gasto e um aparelho de som todo em madeira, com tantos botõ es, que
nã o consigo sequer imaginar onde se liga ele. As paredes estã o repletas
de recortes de revistas e jornais, todos sobre shows e festivais. E um
verdadeiro caos, mas é acolhedor de uma forma esquisita.
Stella se abaixa puxando um LP da pilha, como se ela soubesse
exatamente o que estava procurando, ela o vira e deixa que o disco
preto deslize até sua pequena mã o, como se tivesse feito isso sua vida
inteira. Em seguida, ela o coloca no toca-discos e, com delicadeza, leva a
agulha até o local onde ela o quer. O disco chia nos alto-falantes
enquanto ela se levanta e vem até mim me puxando pela mã o.
— Eis o meu pedacinho particular do paraı́so — ela diz baixinho
enquanto a mú sica começa a tocar.
— Eu jamais imaginaria algo assim — admito enquanto tento evitar
me deixar levar por seus olhos castanhos.
— Sé rio? Foi aqui que cresci, envolta de mú sica, passava minhas
tardes livres ajudando o Marvin e, quando as coisas icavam difı́ceis
demais, eu me trancava aqui e ouvia meus discos favoritos. — Ela passa
a ponta dos seus dedos por baixo da minha camiseta enquanto se move
de um lado para o outro ao som de Band on the run.
— Você costumava trazer seus amigos aqui? — indago sentindo
seus dedos subindo e descendo por minha pele, derrubando minhas
defesas, enfraquecendo qualquer que seja a minha tentativa de me
manter distante.
— Na verdade, nunca trouxe nenhum.
— Hum... entã o, sou o primeiro?
— Eu nã o disse que você era meu amigo — ela diz com a boca em
meu queixo, dando beijinhos e mordidas nele, fazendo meu corpo
traidor se agitar.
— Nã o, você nã o disse. — Abaixo o rosto enquanto envolvo sua
cintura com minhas mã os e a puxo para mais perto. — Mas també m nã o
disse que nã o sou.
— Isso te incomoda?
— Eu achei que nã o iria, mas incomodou — admito com os lá bios
em sua testa.
— Esse é meu lugar especial, Nuno, Marvin nunca conheceu
nenhum rapaz, nunca me viu com ningué m, isso diz muito mais para ele
do que uma palavra, um ró tulo. Estar aqui com você , na minha cá psula
particular do tempo, é tudo o que ele precisa para saber o quanto você é
importante para mim — ela diz ainda se movendo de um lado para o
outro. — Mas se quiser posso dizer a ele o que você é para mim.
— E o que sou para você ? — Ergo minha mã o e seguro uma mecha
do seu cabelo, enrolando-a em meus dedos.
— Meu tudo — ela diz com tanta certeza que meu coraçã o idiota
acelera no peito, de medo, insegurança e amor, um amor tã o forte que
sinto a garganta fechar com a perspectiva do que nos espera quando
sairmos daqui e a simples ideia de perder isso. Puxo-a para mais perto,
beijando seus cabelos enquanto a mú sica fala sobre algué m que nã o
quer ser encontrado nunca mais. Escondido em um lugar de onde nã o
quer mais sair.
Se eu pudesse, icaria aqui com ela para sempre, envolto nessa paz
esquisita que sinto enquanto nos movemos atrapalhados de um lado
para o outro.
— Eu amo você , Stella — admito com todo o meu coraçã o inseguro
de menino.
— E, tô ligada — ela diz com uma voz descolada que me faz sorrir.
— També m te amo, moleque.
— Obrigado por ter me trazido aqui.
— Obrigada por ter vindo comigo até aqui. — Suas palavras dizem
muito mais do que eu posso imaginar.
Inclino-me e capturo seus lá bios em um beijo delicado, cheio de
sentimentos, envolto por cançõ es, caos, memó rias e sentimentos, um
beijo que deixa claro que seja lá o que acontecer conosco quando
sairmos daqui, nunca nada mais será o mesmo.
Poucas coisas na vida me desestabilizam.
Poucas vezes olhei de fato para algo ao ponto de me colocar no
lugar, até hoje só duas pessoas tinham esse poder sobre mim: minha
mã e e Ivan.
Stella alcançou um lugar ao lado da minha mã e, tã o alto e poderoso
que me assusto com a força com que me importo com ela.
Passamos uma tarde inteira dentro daquela pequena sala, sentado
naquela poltrona, com ela em meu colo, ouvindo mú sica, dando uns
amassos que me deixaram com as bolas doloridas ouvindo Stella falar
sobre sua adolescê ncia. Foi um dia inesquecı́vel, estar ali me fez
conhecer um pouco mais da Stella e eu adorei tudo o que vi.
Marvin nos fez prometer voltar mais vezes e me disse que vai trazer
umas coisas legais, nã o faço ideia do que sejam essas coisas, mas se a
recompensa for mais um tempo no seu quartinho psicodé lico, eu topo.
Agora estamos voltando para casa e enquanto vemos a cidade icar
para trá s, ao som de uma playlist que Stella disse ter preparado com
tudo o que ouvimos hoje, o cansaço começou a cobrar seu preço, o
silê ncio cheio de pensamentos entre nó s, e entã o, sem que eu possa
impedir, a imagem da minha pequena covarde debruçada sobre sua
irmã , chorando copiosamente, enquanto era consolada por Suzy, faz
meu peito afundar e uma onda de pâ nico me consumir.
Eu sei exatamente a dor que faz com que Stella se perca em sua
mente, sei como é o peso das noites em claro. Mesmo muito jovem, eu
tinha a consciê ncia de que os dias eram ú nicos e que eles nã o voltavam
mais.
Stella sabe disso.
Eu vi, pela forma como seu corpo estava rı́gido ao sair daquele
hospital, como seus olhos inchados se recusaram a olhar para trá s
quando se despediu de sua irmã , como ela parece longe, mesmo
estando a um braço de distâ ncia de mim. Como ela preencheu a tarde
com lembranças e mú sica e agora, enquanto estamos voltando, uma
parte dela se recrimina por deixá -la para trá s.
— Você quer que eu dirija? — Passo a ponta dos dedos no braço
dela sentindo-a se encolher com meu toque, como se só agora notasse
minha presença. Odeio a sensaçã o de impotê ncia que sinto ao vê -la
assim, odeio saber que uma das causas do seu problema é algo que nã o
faz falta em minha vida e que, provavelmente, nunca fará : grana.
Mas odeio ainda mais saber que, mesmo podendo diminuir sua
angú stia, ela nunca aceitaria minha ajuda, meu dinheiro, o dinheiro da
minha famı́lia, é com certeza algo fora de questã o.
— Nã o, obrigada, estou bem. — Ela se vira para mim, os olhos
inchados escondidos por trá s dos ó culos escuros, o sorriso sem graça
nos lá bios, emoldurando suas palavras mentirosas.
— Tem certeza? — pergunto, a lito, triste, cheio de lembranças, que
por anos procurei nã o pensar.
— Tenho sim, tenta descansar um pouco. — Ela pousa a mã o em
minha coxa, em um pedido gentil para que eu a deixe em paz.
Tiro meus fones do bolso do moletom e coloco-os nos ouvidos,
escolho uma mú sica e viro meu rosto para a estrada.
As vezes, o melhor que podemos fazer por algué m é nos afastar.

Passamos o resto da viagem em silê ncio, em um momento acabo


adormecendo e, quando me dou conta, estamos chegando a sua rua. Já é
tarde, quase nã o há ningué m nas ruas e mesmo sabendo que nã o seria
prudente sermos vistos chegando juntos, depois de um dia inteiro fora,
estamos cansados demais para pensar.
Ainda nã o quero estourar a bolha, me separar, evitar seu toque. E
doloroso até mesmo pensar nisso e me sinto um covarde por nã o ser
capaz de lutar para poder ter esse privilé gio.
Desço do carro e ergo o capuz, mais por há bito do que por proteçã o,
nesse momento quero que tudo se foda, pego nossas coisas e subo as
escadas com Stella ao meu lado, nossos dedos se resvalam
acidentalmente e enrosco minha mã o na sua, puxando-a para perto de
mim.
Entramos em seu apartamento juntos, me sinto em um déjà vu, já
vivi esse momento, o silê ncio, o cansaço, as palavras guardadas, a dor, o
medo... lembro-me de como cheguei aqui no domingo, enfurecido com
meu pai, pronto para contar a Stella seu plano só rdido e implorar para
que ela aceitasse minha oferta, estava pouco me lixando para nada,
tudo o que eu queria era ela, e estava disposto a tudo para tê -la, até
mesmo ir embora se fosse o que ela quisesse.
Entã o Suzy me recebeu com seu sorriso debochado, com suas
brincadeiras e a gentileza que me fez sentir importante, ela me
envolveu em sua teia de alegria, me fez sentir em casa, parte de algo, o
namorado de Stella. Acompanhei de perto a evoluçã o que li nos
prontuá rios que meu pai conseguiu sabe-se lá como, vi a mulher
sorridente se afogar em seu pró prio muco, desfalecer, perder a
oxigenaçã o; vi a morte de perto mais uma vez. Pior, vi o estrago que ela
poderia fazer com Stella e, entã o, percebi que estava sendo egoı́sta,
querendo que ela me escolhesse.
Hoje sei, cada uma das vezes em que Stella me disse nã o, cada uma
das vezes que ela me rejeitou, nã o foi por nã o me querer, nunca foi.
Todas elas foram por sua irmã , e que hipó crita eu seria se nã o
compreendesse suas escolhas, porque, se eu pudesse, faria qualquer
coisa para ter Matteo de volta.
Tã o corajosa, minha pequena covarde.
Hoje eu entendo. Por mais que eu a ame, por mais que eu a queira,
isso vai alé m de nó s dois. E mesmo com a certeza de que o que sinto por
ela é amor, a cada segundo que passa, desde o momento em que saı́mos
daquele hospital, tenho mais convicçã o de que estou fazendo a coisa
certa. Como um condenado à morte em seu ú ltimo dia, quero aproveitar
cada segundo desse momento, quero gravar tudo em minha mente, em
meu coraçã o.
Stella entra e joga tudo em um canto, ela olha em volta, como se
estivesse procurando por algo que nã o deveria estar aqui. Paro atrá s
dela e afasto seus cabelos deixando um beijo carinhoso em seu ombro.
— Você está cansada, o que acha de um banho? — digo enquanto
massageio suas costas. Ela apoia a cabeça em meu peito e fecha os
olhos, se deixando levar por minhas mã os.
— Acho que você tem razã o. — Ela se vira para mim, circulando
minha cintura com os braços. — Você vem?
— Nã o, pode ir — digo da forma mais delicada possı́vel.
— Você acha que...
— Nã o, nã o é isso — interrompo-a antes que ela entenda errado e
Stella vai para o banheiro, mas deixa a porta aberta em um convite
silencioso que decido ignorar, vou até o sofá e me sento. O cansaço dos
ú ltimos dias faz minhas costas protestarem.
Inclino-me para a frente, ignorando o meu coraçã o que bate com
força à medida que o tempo passa. Esfrego meu rosto e fecho os olhos,
deixo que o som do chuveiro se sobressaia aos gritos em minha mente,
implorando para que eu nã o faça isso, inalo o cheiro do sabonete que
ela passa em seu corpo desejando gravá -lo em minha mente, sinto o
calor do vapor envolvendo o apartamento inteiro enquanto relembro
das palavras de Suzy, do choro doloroso de Stella, da expressã o
apavorada no rosto de Xavier. Merda! Nenhum homem deveria se sentir
tã o incapaz diante da mulher que ama, mas é exatamente como ele
parecia enquanto observava Suzy naquela cama: inú til, incapaz, fraco.
Stella começa a cantarolar uma cançã o desa inada, que faz um
sorriso se esgueirar por meus lá bios e, enquanto admiro o corpo nu e
saudá vel da mulher que amo, envolto em fumaça e calor, cansada e
cheia de merdas na cabeça, tentando lavar um pouco da frustraçã o e da
decepçã o com á gua quente, sabã o e mú sica ruim, enquanto ouço sua
voz desa inada aquecer meu peito dolorido, compreendo um pouco a
loucura do meu pai, o silê ncio da minha mã e, a tristeza que me
transformou em um homem antes mesmo de ser um garoto.
A dor da perda é uma maldiçã o que destró i a vida daqueles que
sobrevivem a ela.
Eu nã o quero que Stella a sinta, nã o agora, nã o quando sei que
posso evitá -la, suspendê -la, ao menos por um tempo, entã o nesse
momento, com o coraçã o dolorido, mas ciente do que é preciso, afasto
toda e qualquer dú vida que poderia me impedir de tomar a decisã o que
sei que vai mudar tudo entre nó s, mas que vai protegê -la, ao menos por
um tempo, de algo que ningué m mais pode fazer, só eu.

— Você quer tomar um banho? — Stella pergunta enquanto


desembaraça os cabelos com os dedos e me olha parada na entrada da
sala.
— Nã o, obrigado.
— Está com fome?
— Nã o — sussurro, com meus olhos presos na curva do seu quadril
e na calcinha que ela está usando.
— Está tudo bem? — pergunta preocupada e balanço a cabeça
con irmando. — Você quer alguma coisa?
— Você — digo, tã o baixo que nã o tenho certeza se ela é capaz de
ouvir, mas, quando um sorriso sexy surge em seus lá bios, eu me ajeito
no sofá e olho para ela. — Quero que você tire sua camiseta — peço e
ela me obedece, puxando-a pela cabeça e jogando-a no chã o. Observo
seu corpo bonito, tã o pequeno que, à s vezes, me assusto com as coisas
que ele faz comigo.
— Agora quero que você acaricie seus seios — digo enquanto coloco
meus dedos em volta da ereçã o que cresce em minha calça e observo
Stella fazer exatamente o que peço.
Ela fecha os olhos e se apoia na parede, enquanto se toca e sinto a
porra do meu coraçã o se partir com a ideia de que algo de ruim possa
acontecer com ela.
— Mais forte, Stella — mando enquanto abro minha calça e libero
meu pau, acariciando-o com força enquanto observo seus dedos
trabalhando em seus mamilos, é a coisa mais linda que já vi na minha
vida e preciso de toda a minha concentraçã o para nã o gozar em minha
mã o. — Agora eu quero que você tire a calcinha — exijo e ela me
obedece, chutando a peça para longe e icando completamente nua.
Seus olhos caem na ereçã o em minha mã o e a expressã o em seu rosto é
de puro desejo.
— E agora, o que mais você quer? — ela pergunta enquanto seus
dedos se perdem em sua intimidade.
— Vem cá , senta no seu moleque.
Stella morde o lá bio enquanto caminha até onde estou, observando
meu pau, que pulsa implorando por ela. Continuo me tocando, subindo
e descendo a mã o com força enquanto ela para na minha frente.
— Vem — a chamo e ela se ajoelha, uma perna de cada lado. Ergo-
me para abocanhar um dos seus seios enquanto ela se acomoda sobre
mim, um gemido manhoso escapa da sua boca enquanto ela desce,
lentamente, as mã os em meus ombros. Com as minhas em sua cintura,
apoio a cabeça no encosto e deixo que ela me monte. Hoje sou todo
dela, farei como ela quiser, devagar, rá pido, duro, lento, suave, nã o
importa, eu só quero aproveitar esse momento, com todo o cuidado,
com toda a atençã o, com tudo o que tenho.
— Assim?
— Isso, exatamente assim — digo incapaz de tirar meus olhos de
onde nos unimos, seu corpo delicado recebe o meu, cheio de desejo e
carinho.
A amo como se fosse o ú ltimo dia da minha vida, como se precisasse
gravar cada segundo desse momento, cada beijo, cada sussurro, cada
gemido, a amo devagar, com força e nã o demoro para gozar. Mesmo
assim nã o paro, meu corpo continua, sem pressa, porque sei que
preciso desse tempo para entender que amar é sacri icar, é doar, é
escolher o melhor.
Amo-a durante toda a noite, no sofá , em pé , em sua cama, como
quem se despede; e quando ela goza pela ú ltima vez, choramingando
em meu pescoço, enroscada em mim, tã o pequena e delicada, tã o
relaxada e confortá vel, encaixo meu rosto em seus cabelos e sinto uma
dor desconhecida, tã o insuportá vel, que dou graças a Deus quando ela
se acalma e adormece, porque já nã o sou mais capaz de impedir esse
sentimento con litante de escapar por meus olhos.
O despertador me acorda de um sono pesado e sem sonhos, meu
corpo ainda tem as marcas das mã os de Nuno e um desconforto que me
faz sorrir ao lembrar do que izemos ontem à noite, primeiro no sofá e
depois em minha cama.
Meu moleque...
Levanto-me sorrindo como uma tola, quando deveria estar
preocupada com a facilidade com que me acostumei a ter esse menino
em minha cama, em meu corpo, em meus pensamentos, em meu
coraçã o.
Me arrasto pelo quarto enquanto vejo as mensagens de Suzy, tem
até uma foto dela dividindo a cama hospitalar com Xavier que me faz
sorrir ainda mais e sentir que as coisas estã o inalmente se acalmando,
dentro do possı́vel. Abro a porta e procuro por Nuno, mas ele nã o está
em lugar algum e, embora uma pontada de decepçã o ameace surgir,
digo a mim mesma que ainda somos proibidos um para o outro e que
ele deve ter saı́do ainda de madrugada para evitar ser visto, já que a
essa hora as ruas estã o cheias de estudantes indo para a escola e para a
faculdade e seria praticamente impossı́vel para ele sair sem ser notado.
Tomo um banho rá pido lamentando lavar o cheiro dele da minha
pele, visto uma roupa bonita e comportada que esconde o conjunto de
lingerie preta. Imagens de uma rapidinha no quartinho de limpeza
invadem minha mente e me deixam excitada e ansiosa para vê -lo
novamente mesmo sabendo que nã o vai acontecer.
Deus, nem parece que passamos a noite juntos.
Dirijo até o café da Beth e sou recebida com um sorriso caloroso,
que me faz entender o motivo para que eu me sinta tã o bem aqui, é
como se estivesse em casa, vivendo em uma grande e amorosa famı́lia,
todos já me conhecem, do dono da quitanda ao frentista do ú nico posto
de gasolina, do farmacê utico ao açougueiro, nã o sou só mais uma
pessoa, sou Stella, professora Stella, ou Stellinha, no caso de Beth.
Ela me pergunta com carinho sobre Suzy enquanto se divide com
Rael para atender a demanda da manhã , conversamos um pouco
enquanto ela prepara meu pedido e seu ilho observa nossa conversa
em silê ncio. Preciso desviar das pessoas na saı́da enquanto sinto uma
ansiedade gostosa em meu estô mago ao pensar que, em alguns
minutos, verei Nuno novamente.
Eu estou mesmo muito apaixonada.
Pela primeira vez, depois de uma crise, uma das piores que minha
irmã já teve, me senti amparada, nã o só pelos braços dele, mas por todo
o cuidado que Nuno teve comigo, sempre à frente das minhas
necessidades, sempre em busca de algo que me confortasse. Nunca me
senti assim antes, já tive namorados que se afastaram ao saber a
condiçã o dela, outros que sequer foram capazes de me ajudarem em
uma crise, enquanto meu menino se mostrou um homem incrı́vel,
acredito que o fato dele saber a dor de perder um irmã o tenha uma
grande in luê ncia na forma como lidou com tudo.
Isso só fortalece a certeza que tenho de que o que torna um homem
maduro, tem muito mais a ver com as experiê ncias de vida que ele tem
do que com os anos que ele vive.
E por falar em homens...
Estaciono o carro em uma das vagas destinadas aos professores e
me apresso a sair sem olhar para os lados, carrego minha pasta em uma
mã o e o café quentinho que Beth preparou para mim na outra. Estou
tã o concentrada em nã o derrubar nada, que nã o percebo a presença de
algué m ao meu lado.
— Bom dia, Stella.
Ergo o rosto e encontro o sorriso sedutor de Tony, que me olha por
baixo dos seus elegantes ó culos de sol.
— Bom dia. — Sorrio discretamente e volto a olhar para a frente, a
escola ainda está vazia, somente alguns poucos alunos já estã o
presentes alé m do corpo docente, que começa a se apressar para pegar
os melhores croissants na mesa de café .
— Está tudo bem? — ele pergunta, como quem nã o quer nada.
— Está sim.
— Fiquei sabendo que você deixou a escola à s pressas e faltou
ontem, iquei preocupado.
— Eu nã o sei por que eu ainda me choco com a fofoca dessa escola.
— Nã o é fofoca — ele responde, parecendo magoado. — Eu
realmente iquei preocupado, principalmente porque as pessoas falam.
— Eu posso imaginar, mas, como pode ver, estou bem. Obrigada,
Tony.
— Stella — ele me chama como se nã o estivesse andando ao meu
lado e paro para olhar em sua direçã o. — Eu te iz algo?
— Nã o, por que pergunta?
— Te sinto um pouco arisca comigo.
Respiro fundo decidindo nos segundos que tenho, se devo ou nã o
ser sincera.
— Me desculpe se é essa a impressã o, eu só estou um pouco
preocupada, minha irmã passou mal e tive que viajar à s pressas para
Sã o Paulo, mas agora está tudo bem, obrigada por perguntar — digo me
sentindo um pouco mal por mentir, mas a verdade é que nã o vejo muito
sentido em dizer que sua abordagem me incomoda. Para todos os
efeitos, sou uma mulher solteira; e ele, um homem atraente. Que mal
poderia haver em tentar uma aproximaçã o?
Para minha sorte, Paula se aproxima e caminhamos os trê s pelos
longos e gé lidos corredores, a cada passo, olho em volta à procura do
verdadeiro responsá vel por me manter alheia à s investidas de Tony,
mas ainda é muito cedo, mesmo que meu coraçã o apaixonado discorde.
Meus olhos desviam por entre os alunos enquanto caminho nos
corredores a cada troca de aula, em busca do rapaz alto que se destaca
entre a maioria, mas, para minha surpresa, nã o o encontro. Tento nã o
pensar nos mil e um motivos para que ele nã o tenha vindo, cansaço é o
principal de todos, já que Nuno nã o vem dormindo bem desde a
semana passada.
No horá rio do almoço mando uma mensagem, mas ela sequer chega
indicando que o celular está desligado e as outras opçõ es mais
assustadoras começam a ganhar força à medida que o dia passa e ele
permanece desligado.
Para minha sorte, a parte da tarde passa rapidamente, e mal espero
chegar ao estacionamento para tentar ligar para Nuno, só para ter a
certeza de que algo muito estranho está acontecendo, porque o celular
dele continua desligado.

Uma semana.
E o tempo que leva para que eu perca a minha falsa paciê ncia, para
que eu comece a acreditar que algo terrı́vel pode ter acontecido. A ú nica
coisa que ainda me impede de enlouquecer é Suzy. Em meio ao caos, ela
inalmente voltou para casa. Ainda está se recuperando, com o pulmã o
fraco e sete quilos mais magra, seu rosto está uma droga e ela quase
sempre está cansada demais, mas está em casa e, em meio a tanta
notı́cia ruim, ver a minha irmã se recuperando, lutando para viver,
sorrindo mesmo tã o frá gil, é algo que me fortalece.
Mesmo assim, nem ela é capaz de me acalmar, no fundo, até ela está
preocupada com o desaparecimento de Nuno.
Uma semana é o tempo que demora para que meu coraçã o grite que
algo nã o está bem, para que minha preocupaçã o com o aluno que nã o
vem à aula passe a ser notada por todos. Para que eu comece a perder a
cabeça.
— Algué m tem notı́cias do Nuno? — pergunto para a turma, com os
olhos ixos na folha à minha frente, incapaz de enxergar algo enquanto
meu coraçã o parece bater em meus ouvidos.
Quando ningué m responde, ergo o rosto e meus olhos voam direto
para o fundo da sala, para o garoto marrento e descabelado que tem os
olhos cobertos por uma densa mecha loira.
— Ivan? — o chamo me aproveitando do fato de estarmos na sala de
aula para conseguir sua atençã o, já que todas as vezes em que tentei
falar com ele fora daqui, ele me ignorou.
— Por que eu saberia? — ele pergunta, com a voz perigosamente
baixa, os braços cruzados na frente do peito, como se estivesse me
desa iando a falar. Como se estivesse me culpando de algo que nã o faço
a menor ideia do que seja.
— Por que ele é seu amigo, nã o é ? — respondo com mais uma
pergunta cheia de signi icados.
— Eu nã o faço ideia — ele responde sucinto.
Olho para Cindy sentada do outro lado da sala, ela parece mais
magra a cada dia que a vejo, como se fosse possı́vel; e, dessa vez,
começo a achar que sua magreza já nã o é mais tã o saudá vel.
— Nem olha pra mim — ela responde na defensiva e, antes que eu
olhe para Maddie, me obrigo a lembrar de que sou sua professora e que
minha preocupaçã o nã o deve ser tã o evidente.
— Bom, se o virem avise-o que ele precisa me entregar o trabalho
sobre Modernismo até o im da semana que vem ou vai icar sem nota
— digo rabiscando qualquer coisa no papel para que ningué m note o
tremor em minhas mã os.
Quando a aula termina arrumo minhas coisas e saio sentindo-me
exausta. Passo pelos corredores sem a menor vontade de ser simpá tica,
esbarro sem querer em um aluno e minhas coisas se espalham por
todos os lados.
— Merda, desculpa — me repreendo imediatamente enquanto me
abaixo para recolher as coisas. O garoto faz o mesmo, os braços longos e
os dedos repletos de tatuagens reú nem os papé is sem pronunciar uma
palavra sequer.
Mal consigo ver seu rosto, escondido debaixo dos cabelos
compridos e desalinhados, mas, quando ele me estende o material
recolhido, vejo os piercings em suas orelhas e no lá bio e me recordo.
Dominic Calazans, segundo ano, um dos alunos mais quietos e
misteriosos que já tive, sempre o vejo sozinho pelos cantos, rabiscando
em seu caderno, observando as pessoas por baixo dos seus cabelos,
mas é a primeira vez que o vejo assim tã o de perto, e me surpreendo
com a tristeza que vejo em seus suaves olhos claros.
— Obrigada — digo com um sorriso amistoso, mas ele nã o diz nada,
nem sorri, apenas se levanta, seu corpo magro e imenso se move entre
os outros alunos, afastando-se com a habilidade de quem se acostumou
a ser aquele que todos aprenderam a chamar de sombra.
Avisto Ivan saindo do banheiro masculino e caminho até ele, nã o
dou a mı́nima se está de mau humor ou sabe lá o que esteja pensando,
ele vai me dar uma resposta agora.
— Ivan — o chamo e ele para de andar virando-se para mim, mas
assim que nota que sou eu, solta um palavrã o e começa a caminhar
novamente, como se nã o fosse nada demais. — Você quer, por favor,
parar de agir como um moleque idiota? — digo sem me importar que
algué m possa nos ouvir.
Ivan para de andar, seu corpo nã o tã o alto quanto Nuno ou Dominic,
mesmo assim ainda maior que o meu, se retesa como se estivesse
magoado com a minha ofensa. Quando ele se vira, seus olhos percorrem
tudo a nossa volta antes de se voltar para mim.
— Eu nã o vou te dar a resposta que gostaria em respeito ao imbecil
do meu amigo.
— Eu nã o te chamaria assim se você nã o se comportasse como tal.
— Ergo o rosto enquanto respondo, anos de sala de aula me ensinaram
a nã o demonstrar fraqueza diante de uma cara feia.
E Ivan é bom na arte de amedrontar professores.
— Eu nã o tenho nada para te falar.
— Mentira, você sabe onde ele está , você sabe o motivo do seu
sumiço. Se existe algué m nesse mundo que sabe onde está o Nuno é
você .
Ivan ergue uma sobrancelha desa iadoramente.
— Isso nã o muda o fato de que eu nã o tenho nada para te falar. —
Sua voz soa debochada.
— Por favor — peço, baixinho, sem me importar por estar
parecendo desesperada, eu realmente estou. — Ele desapareceu no
meio da noite, desligou o celular, nã o vem à aula, eu nã o posso ir atrá s
dele, ou já teria ido.
— E, você nã o pode — ele desdenha.
— Como ele está ?
— Você nã o vai me fazer falar, Stella, nem que rasteje na frente da
escola inteira.
— O que eu iz? — tento outra pergunta na esperança de que ele
possa esclarecer alguma coisa.
— Se apaixonou por um cara fodido — ele responde e, quando um
grupo de meninas passam por nó s, com os olhos ixos no garoto bonito
e perigoso à minha frente, Ivan aproveita para encerrar nossa conversa.
— Preciso ir embora, tenho muito o que fazer.
Ele se vira e começa a caminhar.
— Ivan — o chamo, fazendo-o parar mais uma vez. — Só diz para
ele que estou preocupada.
— Ele sabe, esse é o problema, ele sabe de tudo.
Entã o ele se vai, me deixando no meio do corredor, com o coraçã o
apertado e a certeza de que, seja lá o que está acontecendo, eu sou a
culpada.

Estou na ú ltima mesa da biblioteca, de frente para a estante onde eu


e Nuno izemos amor pela primeira vez. E estranho pensar em amor
enquanto relembro a forma como ele me possuiu aquele dia.
E estranho até mesmo pensar nisso cercada de alunos.
Estou esfarelando um bolinho que Esther me deu, nã o consigo
comer. As palavras de Ivan continuam martelando minha mente
enquanto tento, mais uma vez, entrar em contato com ele.
Chega a ser ridı́culo a quantidade de mensagens que se acumulam
sem sequer serem entregues, me sinto a covarde que Nuno sempre me
acusou de ser, incapaz de ir atrá s dele, sem saber se algo grave
aconteceu com o garoto que esteve ao meu lado quando precisei.
Observo Maddie se aproximar, feliz por ela ter aceitado meu convite;
ao menos ela ainda me olha com carinho, sem julgamentos. Ao se
aproximar, ela coloca suas coisas na cadeira ao lado e meus olhos
passam rapidamente pela lombada do romance que ela está lendo:
Caçadora de Estrelas.
— E uma histó ria linda e dilacerante.
— E realmente incrı́vel, tenho certeza de que Gabriel vai fazer a Eva
aprender algumas coisinhas — ela diz olhando rapidamente para o
livro enquanto se senta na minha frente.
— A dor muda as pessoas — digo olhando para o livro, me
lembrando de tudo o que Nuno viveu, o que eu vivi, as pessoas que nos
tornamos por causa das nossas dores. — Ele está bem? — pergunto
ansiosa por uma resposta que possa acalmar meu coraçã o.
— Nã o — ela diz, com os olhos carregados de tristeza encarando
seus dedos entrelaçados em cima da capa e sinto minha garganta
fechar.
— O que aconteceu com ele? Por que nã o me responde? Por que
Ivan e Cindy estã o tã o furiosos comigo?
— Eu nã o posso explicar, eu prometi a ele que nã o falaria nada, ele
sabe que você vai icar preocupada.
— Preocupada? Estou apavorada, ele desapareceu da minha casa há
uma semana e ningué m me diz o que está acontecendo.
— Só , por favor, tenta icar tranquila, o Nuno vai voltar quando
estiver pronto para isso.
— E quando será isso? Quando ele reprovar e tiver que passar mais
um maldito ano aqui dentro?
— Eu nã o sei. — Sua voz soa triste, como se ela estivesse
relembrando algo que nã o pode falar.
— Entã o nã o me peça para icar tranquila, nã o enquanto eu nã o
souber o que está acontecendo.
Maddie respira fundo e sinto uma onda de frustraçã o me atingir
quando me dou conta de que ela nã o vai me dizer o que está
acontecendo. Nuno tem amigos leais, até demais para meu gosto.
— Ivan sabe o que aconteceu?
Maddie balança a cabeça con irmando.
— Ele está cuidando do Nuno?
Ela con irma mais uma vez.
— E por isso que ele me olha como se pudesse me matar.
— Acho que ele adoraria te matar.
— Deus, o que eu iz? Eu nã o entendo, está vamos bem e entã o ele
desapareceu e...
— Stella. — Maddie segura meu braço me fazendo parar de falar. —
Para de tentar entender, nã o foi nada que você fez.
— Entã o por que estou sendo punida?
— Isso é algo que você vai ter que esperar o tempo dele para saber.
E enquanto observo seus olhos doces me encarando, como se
implorassem para que eu compreenda o que ela nã o pode me falar, a
constataçã o de algo, que até entã o nã o havia me passado pela cabeça,
surge.
Algué m descobriu nosso segredo.
Uma semana atrás...

O cé u começa a escurecer, levando consigo a certeza de que sou o


covarde de que tanto acusei Stella.
O celular permanece desligado, o silê ncio a minha volta, que deveria
me acalmar, me deixa angustiado, sinto o ó dio em cada cé lula do meu
corpo, e nã o quero deixá -lo ir embora, preciso desse sentimento, ele me
fortalece, manté m meu rabo aqui, no topo da cidade, enquanto ela está
lá embaixo, perdida, sem saber o que está acontecendo, porque fui
embora no meio da noite, sem deixar nenhuma explicaçã o.
Passei o dia inteiro imaginando seus passos, as dú vidas rolando em
sua mente, os olhos atentos nos corredores à minha procura, as
mensagens que ela questionou durante o dia, chegando, a frustraçã o de
saber que nã o serã o respondidas.
A decepçã o de ter entregado seu coraçã o para um moleque idiota,
ter acreditado em suas palavras, para depois ser abandonada dessa
forma. Um homem de verdade nã o fugiria no meio da noite, ele icaria,
conversaria, enfrentaria o que fosse necessá rio.
Um homem de verdade teria outra escolha.
Meus dedos tamborilam no capô do carro, o cigarro começa a
queimar minha pele, lembrando-me da sua existê ncia, jogo-o dentro do
copo agora quase cheio de bitucas, sem dar a mı́nima se estou me
entupindo de nicotina.
Lembranças de momentos com Matteo se misturam com os ú ltimos
dias, os olhos tristes de Stella, o sorriso corajoso de Suzy, o cheiro
nauseante do hospital, a angú stia do Xavier, passo e repasso minhas
escolhas até que elas se tornam tã o irmes quanto rocha em minha
mente.
Ouço o som dos passos, antes mesmo deles chegarem até mim. Nã o
me movo, nem mesmo um mú sculo, apenas continuo olhando para o
cé u, sentindo o coraçã o machucado batendo.
— Vai, levanta — Ivan diz ao se aproximar, mas nã o faço nada.
— Nuno — Cindy me chama baixinho enquanto se senta no capô e
se inclina. Seu rosto abatido se aproxima, o cheiro do seu xampu caro,
tã o familiar, inunda meu olfato e quero pedir para ela se afastar, mas
nã o faço nada.
— E aı́, Romeo. — Ouço a timidez na brincadeira de Maddie, mas
nã o a vejo, ela provavelmente está a uma distâ ncia segura.
— O que você andou fazendo aqui, hein? — Os dedos inos e
delicados de Cindy tocam meu rosto, me obrigando a desviar o olhar do
cé u e encarar seus olhos tristes.
— Nã o vou transar com você , Cindy... — Minha voz rouca faz minha
garganta arder. — Nunca mais — completo e ela desvia o olhar para
Ivan, é tã o rá pido que tenho certeza de que o imbecil ao meu lado
sequer notou, mas eu vi o brilho da tristeza, a dor de amar algué m que
nã o pode, a culpa, a solidã o. Tudo.
— Vai se foder, seu idiota! — Ela sorri e a covinha em sua bochecha
se aprofunda, deixando-a mais parecida com a menininha que um dia
ela foi.
— Eu já tô fodido — sussurro e ela acaricia meus cabelos de um
jeito que uma irmã faria, se eu tivesse uma.
— Oh, pobrezinho, nã o me faça odiar aquela vaca — Cindy me
provoca.
— Vai logo, porra, levanta dessa merda! — diz meu amigo cheio de
fú ria, empurrando o meu pé com o seu, quando, na verdade, tudo o que
ele queria era que seu punho beijasse meu rosto por falar assim com
sua garota. Sim, ele pode nã o admitir, pode lutar contra isso, brigar com
o mundo, arrebentar a minha cara milhõ es de vezes, mas a verdade é
que ela é a sua garota, a dona da merda do seu coraçã o bondoso, dos
seus pensamentos, das suas noites em claro, da sua preocupaçã o e, à
medida que os anos estã o se passando, está icando mais difı́cil para ele
esconder isso.
— Acho melhor você levantar e ligar seu celular — Maddie diz e
viro o rosto para olhar para ela, com os braços de Levi em torno do seu
ombro, mantendo-a junto de si e, pela primeira vez em minha vida,
tenho inveja dele.
— Como ela está ? — pergunto para a garota que se tornou uma
amiga para Stella, só para poder me torturar um pouco mais, porque sei
como ela está .
— Preocupada.
Desvio o olhar, nã o posso perguntar mais nada, nã o se eu quiser
manter meu plano.
— Preciso de á lcool — digo para Ivan, como se estivesse
implorando por um copo de á gua.
— Mais? — Cindy indaga.
— Entã o se levanta daı́ — Ivan exige.
Faço o que ele pede e o mundo gira a minha volta, resultado de um
dia inteiro de tristeza regada a cigarro, á lcool e culpa. Olho para cada
um dos rostos que me observam, atentos a qualquer necessidade de um
garoto com o coraçã o partido, mesmo sem saber o motivo, todos que
estã o aqui conhecem, sentiram, viram a tristeza de perto, ao menos
uma vez na vida. Eles a conhecem quase tã o bem quanto eu.
— Você s nã o tê m nada melhor pra fazer nas merdas das vidas de
você s? — Encaro cada um deles enquanto espero a resposta.
— E perder seu showzinho, Nuno Castro D’Agostinni? — Cindy diz
com um ar de deboche que me irrita e que faz o peito de Ivan in lar
como um pombo.
— Sabe o que somos? — pergunto para ningué m em especial
enquanto tento me manter sentado. — Um bando de ilhos da puta,
amaldiçoados, escravos dos nossos sobrenomes e da merda da nossa
linhagem.
— Tá , tá , que se foda, agora vem logo que tô sem paciê ncia para
bê bados. — Ivan segura meu braço me ajudando a descer do capô , ele
joga as chaves do seu carro para Cindy enquanto me leva ao banco do
passageiro e caminha até o lado do motorista. Ivan dirige em silê ncio,
sem acusaçõ es, sem perguntas, apenas com a sua presença ao meu lado
enquanto me leva para casa.
E assim o dia mais difı́cil da minha vida pó s-Matteo termina, no
silê ncio da minha culpa, na solidã o de um coraçã o partido, na certeza
de que, mesmo sentindo como se meu peito estivesse em chamas, iz a
coisa certa.

Eu odeio icar bê bado, odeio a falta de equilı́brio do meu corpo,


odeio as risadas sem motivo, as emoçõ es à lor da pele, odeio me sentir
sem controle da minha vida. Mas é tudo o que posso fazer para aplacar
a minha dor. Entã o eu bebo.
Nos dois dias seguintes é tudo o que iz: beber, vomitar, chorar,
dormir, acordar de ressaca, beber mais, brigar com meus amigos,
rejeitar a ajuda deles, ser um completo idiota, ter pena de mim, odiar o
mundo. Odiar meu pai. Odiar a Stella, a Suzy e o Matteo, só para beber
um pouco mais e começar tudo de novo.
Um looping de desgraça que parecia nã o ter im, e que eu rezava
para que nã o tivesse, porque, quando eu estava só brio, meu coraçã o
teimoso implorava por ela e eu nã o podia ouvi-lo.
Entã o bebi, como nunca iz em toda a minha vida, com a supervisã o
de Ivan que me arrastou para a casa do seu irmã o, que, inclusive, fez jus
ao seu apelido de monstro e se mostrou um pé na bunda tã o
insuportá vel, que uma noite me deixou dormir do lado de fora, na cama
do Zero, seu maldito, meloso e babã o Golden Retriever.
No terceiro dia de degradaçã o, Nick desiste de mim e chama
Zacharias, o mais velho dos dois irmã os Schweitzer. Quando o
grandalhã o chega, estou tã o bê bado que mal tenho tempo de ver, ele me
ergue como se eu nã o fosse nada, e me joga debaixo da á gua fria,
enquanto me manda reagir se quiser ser respeitado.
O problema é que nã o me importo mais com isso.
Zach me deixa chorar tudo o que o á lcool permite, até meu corpo
secar, enquanto ele observa em silê ncio, a á gua lavar o porre e a
vergonha do meu corpo, sem pressa, sem julgamento, apenas um
homem lamentando a dor de um garoto. Quando inalmente paro de
lutar e aceito que ele nã o vai embora, me troco, tomo os analgé sicos
que ele me dá , depois deixo que ele me coloque dentro do seu carro e
me leve de volta para a minha casa.
— O Nick nã o precisava ter mandado você me buscar, bastava pedir,
eu iria embora.
— Nã o foi o Nick, ele te aguentaria até o im da vida se fosse
necessá rio.
— Entã o quem foi?
— Sua mã e está preocupada. — A voz grave e poderosa do irmã o
mais velho do meu melhor amigo parece golpe de machado em minha
cabeça.
— Ela sabia onde eu estava — digo olhando pela janela, sentindo o
sol torturar meus olhos, como minú sculos al inetes.
— Na casa do monstro da cidade?
— Minha mã e conhece o Nick, ela sabe que todos esses boatos sã o
mentirosos — defendo-o mesmo sabendo que o Zach tá cagando para
esses apelidos maldosos que as pessoas deram ao Nick.
Quem o conhece sabe que, por baixo de toda a casca grossa, existe
um cara que nã o aceita o que o destino lhe concedeu e por isso decidiu
largar tudo e viver isolado do mundo.
— Isso nã o muda o fato dele nã o ser capaz de cuidar de ningué m —
Zach continua.
— Eu nã o preciso que ningué m cuide de mim. — Encaro o rosto
carrancudo dele.
— Agindo como um bebê chorã o, você nã o está conseguindo
convencer ningué m.
— Certo — encerro a conversa, nã o quero ser grosseiro com Zach,
eu o admiro e respeito demais para isso, entã o me calo e volto a olhar
para a estrada enquanto ele me leva de volta para casa.
Quando Zach para o carro na frente da minha casa, nã o me
surpreendo ao ver tudo fechado, as luzes apagadas, o silê ncio que
permeia as paredes da mansã o que eu deveria chamar de lar, mas que
mais se parece com uma prisã o. Nenhuma mã e a lita à minha espera,
nenhum pai preocupado, nada, apenas tijolos e vidros.
— Pronto, missã o cumprida, já pode voltar para a sua mulher. —
Abro a porta do carro, desço e bato-a como o moleque imbecil que sou.
Caminho em direçã o à entrada, en io as mã os nos bolsos quando
avisto uma igura sentada no ú ltimo degrau, o corpo curvado, os
cabelos loiros caindo na frente do rosto.
— Dá o fora daqui — digo ao passar por Ivan.
Ele suspira e solta um palavrã o, mas nã o me dou ao trabalho de
olhar para trá s, continuo caminhando até chegar à porta, está trancada,
como imaginei, a senha para destrancar está no meu celular, o mesmo
que esqueci desligado na casa do Nick.
Porra.
Ivan passa por mim, seu braço se estica enquanto ele digita os
có digos que nunca precisei decorar porque ele sabe de cor, sinto a
presença de Zach atrá s de nó s e a raiva aumenta quando meu amigo
abre a porta e o cheiro familiar de casa enche meus pulmõ es.
— O que você s dois querem? — Olho de um para o outro,
encontrando as semelhanças entre eles, como o vinco que parece nunca
se desfazer entre suas sobrancelhas e os olhos absurdamente claros e
frios. — Se certi icar de que vou para a cama no horá rio certo? Querem
limpar a minha bunda també m?
— Cale a boca e entra, porra! — Ivan fala sem paciê ncia.
— Ei, você s dois podem parar com isso. — Zach passa por nó s e
entra, seu corpo enorme se move confortavelmente pela minha casa
escura, como se fosse a sua.
Talvez seja a memó ria das inú meras vezes em que ele resgatou
Matteo, Rael e Nick das bebedeiras e confusõ es que eles se metiam e ele
era o ú nico responsá vel por manter os trê s amigos vivos.
E hoje, o que sobrou?
Um monstro que vive isolado do mundo.
Um cara silencioso que sobreviveu a mais tragé dias do que um ser
humano pode suportar.
E um rapaz morto.
Grande trabalho, Zach, infelizmente nem todo o cuidado do mundo é
capaz de nos proteger do destino, esse ilho da puta maldito sempre
arruma um jeito de foder com tudo.
Jogo-me no sofá enquanto ouço Zach mexendo nas coisas da cozinha
da minha mã e, Ivan se senta de frente para mim, uma perna cruzada
sobre a outra e o olhar cheio de raiva em minha direçã o enquanto
destró i suas unhas, uma das manias que ele tem desde criança e que
Cindy odeia.
— Trê s dias, Nuno — ele diz, como se eu nã o estivesse contando.
— E daı́? — resmungo.
— Ela tá pirando, cara, todo mundo tá notando.
— Nã o posso fazer nada. — Ergo os ombros desejando nã o pensar
no que estou fazendo com ela. A simples ideia de que Stella esteja
magoada por minha causa me causa um nó no estô mago, que me faria
vomitar aqui mesmo caso eu tivesse algo para pô r para fora alé m da
minha dor.
— Foda-se, eu nã o sou o maior fã dessa histó ria, mas, sé rio, o que
você tá fazendo com ela...
— O que você faria pelo Nick? — interrompo-o.
— O quê ? — Ivan pergunta sem entender.
— O que você seria capaz de fazer pelo seu irmã o?
Vejo seu rosto se modi icar à medida que ele se dá conta do que
estou falando. Ivan ergue o rosto, os olhos buscando o irmã o mais
velho, que nos observa de longe, antes de responder:
— Tudo, você sabe.
— Sim, eu sei, eu també m faria tudo pelo Matteo e tenho certeza de
que o brutamontes ali atrá s també m faria tudo por você s dois. Como ele
fez, como ainda faz.
— Por você també m, seu otá rio! — Zach resmunga lá detrá s e meu
coraçã o dolorido se mexe no peito.
— O que isso tem a ver com a Stella? — Ivan se inclina para a frente,
os olhos ixos nos meus enquanto tenta entender o que estou falando.
Puxo um cigarro do bolso de trá s da minha calça, desamasso e
acendo enquanto meu amigo me observa, o cheiro de café começa a
preencher todo o ambiente e me acomodo no sofá enquanto solto a
fumaça no ar, misturando-a ao aroma marcante da bebida.
— A Stella tem uma irmã — começo a falar.
— Eu sei, eu a conheci, meio maluca, mas parece gente boa.
— Ela está morrendo — digo quando Zach chega na sala com a
garrafa té rmica na mã o e trê s copos de uı́sque na outra.
— Ah, caralho... — Ivan se joga para trá s, enquanto en ia a mã o nos
cabelos e, embora eu saiba que nã o preciso falar mais nada, eu conto
toda a histó ria, desde o momento em que arrebentei a cara do babaca
do Zimmermann até a manhã em que deixei Stella sozinha na cama
como um maldito covarde.
A medida em que tudo começa a se encaixar, vejo o olhar de fú ria se
espelhar no rosto dos dois irmã os, deixando-os como uma có pia iel um
do outro e a certeza de que Zach disse a verdade: ele faria qualquer
coisa por mim. Inclusive, arrebentar a cara do meu pai.
A casa ainda está escura quando a porta se abre e meus pais entram,
eles estã o conversando como duas pessoas civilizadas, os olhos dele
brilham enquanto presta atençã o em algo que ela diz, minha mã e nem
se dá conta de que o maldito e poderoso Antô nio D’Agostinni come na
palma da sua mã o.
Esse homem seria capaz de qualquer coisa por ela, até mesmo usar
o pró prio ilho para chantageá -la. E o que ele vem fazendo desde que
Matteo morreu, ele me usa como moeda de troca para que ela nã o o
deixe porque ele sabe que ela nã o me deixaria nunca.
Minha mã e é a primeira a perceber que algo está diferente, talvez
tenha sido o cheiro de café recé m-coado ou os cigarros fumados
enquanto eu contava tudo para os meus amigos. Ela acende a luz e olha
em volta, a expressã o preocupada dá lugar ao alı́vio quando ela me vê
sentado no sofá .
— Ah, graças a Deus você voltou — ela exala, parecendo aliviada por
me ver depois de quase uma semana e vem em minha direçã o. — Eu
estava preocupada. — Ela se senta ao meu lado, o cheiro do seu
perfume favorito enche meu coraçã o de alegria.
— Eu disse onde estava — respondo encarando o homem ainda
parado na porta, tentando entender que tipo de amor esquisito é esse
que ele sente.
— Sim, mas isso nã o me impede de icar preocupada, sou sua mã e
— ela completa enquanto passa a mã o em meu cabelo, como se eu fosse
um garotinho. — Você está tã o abatido, o que andou fazendo todos
esses dias? — pergunta preocupada.
— Onde você s estavam? — Desvio do carinho exagerado da minha
mã e e ela se retesa com a pergunta.
— Em um jantar bene icente — ela responde enquanto ele entra na
sala retirando o paletó e afrouxando a gravata.
Meus olhos analisam cada detalhe do homem que ameaça destruir a
vida de pessoas que nã o faz ideia de quem seja, mas que se dispõ e a
doar milhares em nome de posiçã o social e status.
Grande ilho da puta!
— Acho que vou tomar um banho — digo me levantando.
— Você jantou?
— Nã o.
— Quer que eu prepare alguma coisa para você ? — Ela parece
realmente preocupada com o meu estado porque suas mã os logo estã o
sobre mim novamente.
— Estou sem fome.
— Mas você ...
— Deixa o moleque em paz, Violeta! — ele exige fazendo-a se calar.
Ergo meu rosto em direçã o a ele, o sangue ferve em minhas veias, a
exaustã o, a dor, a tristeza, a saudade, me fazem dar um passo em sua
direçã o.
— Fala direito com ela — digo no instante em que minha mã e
segura meu braço.
— Eu falo com a minha esposa como bem entender.
— Nã o, nã o fala nã o, porque eu nã o vou deixar.
— E mesmo, Nuno?
— Filho, por favor — minha mã e pede, apertando meu braço. —
Hoje nã o — ela sussurra e respiro fundo enquanto encaro o rosto triste
dela. — Você acabou de chegar.
— Certo — digo ainda olhando para ela. — Acho que vou aceitar um
sanduı́che. — Comprimo os lá bios em uma tentativa frustrada de sorrir
e o sorriso que se espalha por seu rosto é su iciente para que eu me
sinta mal por ter dito nã o a ela.
Ela caminha pela longa sala de estar, passa por ele e seu ombro
estreito esbarra no braço dele, sei que foi um aviso, um pedido discreto
para que ele pegue leve comigo. Sua forma silenciosa de dizer, nã o mexa
com ele.
Observo meu pai encher um copo de uı́sque e se retirar para o seu
escritó rio enquanto minha mã e coloca ingredientes na bancada e fala
sobre pessoas que nã o me importam, ouço a porta ser fechada e obrigo
meus pé s a me levarem até a cozinha.
Sento-me em um dos bancos e observo a mulher elegante, usando
joias que poderiam comprar uma casa, preparar um sanduı́che para seu
ilho, como se fosse a coisa mais importante do mundo.
— Como está o Nick? — ela pergunta enquanto passa o requeijã o
em uma fatia de pã o.
— Você sabe, irritado com o mundo, rabugento e insuportá vel como
sempre.
Ela balança a cabeça sabendo que o que digo nã o chega nem perto
de de inir o que o Nick sente. Assim como eu, ela també m sabe que no
fundo ele é um cara bom, só está meio perdido, mas, sinceramente,
quem nã o está ?
— E o Zach?
— Tá bem. — Cruzo os braços sobre a pedra fria e me inclino para a
frente.
— Foi ele quem mexeu na minha cafeteira?
— Provavelmente.
Ela sorri e me lembro de quando ele e os meninos passavam as
noites de sá bado aqui, inventando receitas e sujando tudo, deixando-a
louca e me fazendo passar a noite no banheiro vomitando de tanto
comer.
A gente nã o faz ideia de quanta riqueza há em algo tã o simples, até
que tudo se torne apenas lembranças.
— Você quer picles? — ela pergunta me trazendo de volta.
— Mã e — a chamo fazendo-a parar o que está fazendo e olhar para
mim.
— Sim?
— Você ainda o ama?
Seu cenho se franze enquanto ela analisa a minha pergunta.
— Como?
— Seja sincera, você ainda ama o meu pai?
— Isso nã o é algo que eu deva falar com você .
— Por favor, nã o sou mais criança, me diga se ainda há alguma
chance para ele.
— Nã o importa mais. — Ela balança a cabeça e volta a montar o
lanche.
— Claro que importa, é a sua vida, é o seu futuro.
— Nã o, Nuno, tudo o que importa aqui é você , é por você , sempre
por você . — Ela empurra o prato em minha direçã o e se vira abrindo a
geladeira. — Você prefere refrigerante ou suco? Tem aquele de laranja
que você adora.
Quando nã o respondo, ela se vira para mim, com a garrafa de suco
na mã o. Ela bufa porque sabe que nã o vou desistir até ela responder a
minha pergunta. Infelizmente, nesse ponto sou como o meu pai:
teimoso pra caralho.
— Quando o Matteo morreu, eu achei que iria morrer junto. — Ela
manté m os olhos ixos nos meus enquanto relembra aquele dia. — Foi
uma dor tã o grande, que, por um instante, eu nã o conseguia respirar,
era como se meu corpo estivesse sendo rasgado ao meio, eu chorei,
gritei, neguei a verdade, nã o aceitei, foram os piores minutos da minha
vida. — Ela enche o copo de suco, observando o lı́quido com um olhar
triste. — Entã o você piorou e eu pensei: “nã o pode ser, eu nã o posso
perder meu garotinho també m”. — Um soluço escapa de seus lá bios e
ela ergue a mã o, como se pudesse segurar a emoçã o com a ponta dos
dedos. — Eu me agarrei a você e segurei sua mã ozinha e rezei. Durante
dias, eu nã o conseguia sequer tirar meus olhos de seu rostinho, como
se, a qualquer distraçã o, o destino pudesse vir e levar você de mim. —
Ela estende a mã o e toca a minha. — No dia em que você abriu os olhos,
eu iz uma promessa em nome do seu irmã o, que eu faria qualquer
coisa por você .
— Entã o é isso? Você está aqui nessa merda por mim? Você é feliz
assim?
— Eu sou feliz em qualquer lugar em que você esteja.
— Nã o é isso que eu quero.
— Eu sei. — Ela aperta minha mã o. — Mas a gente precisa se
adaptar ao que tem, nã o é mesmo?
— Nã o sei.
Minha mã e estende a mã o até meu rosto e acaricia minha pele como
costumava fazer quando eu era pequeno.
— Pare de se preocupar comigo, eu estou bem — ela diz em meio a
um sorriso forçado.
— Nã o consigo parar de me preocupar com quem eu amo, mã e.
— Eu sei, ilho, mas nem sempre a gente pode mudar as escolhas
das pessoas, à s vezes só nos resta aceitar.
E com essa resposta eu compreendo o que ela quer dizer, ele nã o a
deixaria me levar com ela antes, e mesmo agora, ele ainda tem controle
sobre nó s a ponto de me impedir de ir embora, a ponto de fazer com
que ela permaneça ao seu lado, linda, como uma rainha imponente e
poderosa, mas oca por dentro, apenas uma farsa, como tudo em sua
vida, uma bela e cara mentira.
A porta do escritó rio continua fechada, mas a luz fraca do abajur me
garante que ele continua lá dentro. Demoro cerca de dez minutos para
decidir se devo ou nã o entrar, passei as ú ltimas duas horas tentando me
acalmar, dizendo a mim mesmo que, se eu quiser levar isso adiante,
preciso agir como ele, com frieza e clareza, com inteligê ncia e, acima de
tudo, sem emoçã o.
Mas, no instante em que abro a porta, sinto todo o meu autocontrole
me deixar, porque sempre que ele me olha com seu ar superior, como se
eu fosse um mero soldado em seu jogo de poder, eu perco o controle
das minhas emoçõ es.
— Nada como um banho para lavar a ressaca — ele diz ainda
olhando para mim, parado na porta. — Decida logo, Nuno, ou entra, ou
sai. Nã o ique aı́ parado.
Respiro fundo e entro no escritó rio, ele é maior que a casa inteira de
Stella, mas me sinto enclausurado quando a porta se fecha atrá s de
mim.
— Já falei com o diretor sobre suas faltas, está tudo sob controle.
— Eu tô pouco me lixando para isso — digo ainda na porta, com as
mã os fechadas em punho ao lado do meu corpo.
— Eu també m pedi para ele abonar a falta da professorinha, até
pedi para ele dar uma semana de folga para ela, mas a jovem parece ser
honesta demais e nã o aceitou. — Ele balança a cabeça de um jeito que
nã o gosto e o sangue sobe por meu pescoço até chegar ao meu rosto.
— Nã o fale dela — exijo baixinho, tentando manter minha voz
controlada.
— Eu a vi, de longe, quando estava saindo da sala do Carlos. E uma
bela mulher, Nuno.
— Nã o. Fale. Dela. — Minha voz sai um pouco mais ameaçadora
enquanto caminho até a sua mesa, apoiando minhas mã o na madeira.
Meu pai ergue o rosto para poder olhar para mim. Mesmo nessa
posiçã o, sua arrogâ ncia parece capaz de me engolir.
— O que você quer, Nuno? Por acaso mudou de ideia com relaçã o a
minha proposta?
— Tenho algumas exigê ncias.
— Exigê ncias? E você acha que está em posiçã o de me exigir alguma
coisa?
— Ou você as aceita, ou em seis meses pode dar adeus a essa famı́lia
de faz de conta que você costuma ingir ser perfeita; eu vou destruir seu
castelinho de areia. Vou embora daqui e nã o dou a mı́nima se tiver que
limpar chã o para comer.
— Eu devo ter medo?
— Nã o, basta me ouvir atentamente e, entã o, você terá o que quiser
de mim.
— Sem reclamaçõ es?
— Sem nenhuma reclamaçã o, eu serei o ilho perfeito.
O sorriso que se espalha em seu rosto faz o sanduı́che que comi
duas horas atrá s se revirar em meu estô mago, mas ignoro o mal-estar
enquanto me sento de frente para ele e começo a falar a minha lista de
exigê ncias. Ele me ouve atentamente sem me interromper em nenhum
momento e, quando inalmente termino, ele se acomoda em sua
cadeira, com os braços cruzados sobre a mesa e o olhar curioso sobre
mim.
— Essas sã o as suas exigê ncias?
— Sim. Nã o abro mã o de nenhuma delas.
Meu pai olha para o papel onde anotei tudo o que quero e, por um
instante, penso que ele vai me mandar à merda.
— Por que tudo isso, Nuno?
— Porque é isso que se faz quando se ama algué m — digo enquanto
me levanto. — Amar é deixar ir, pai, mas nã o vou tentar te fazer
entender isso, vai alé m da sua capacidade humana.
Viro-me e começo a caminhar em direçã o a porta quando ouço sua
voz.
— Nuno — ele me chama quando abro a porta e me viro para onde
ele está . — Estou orgulhoso de você .
— Que bom, pena que nã o posso dizer o mesmo de você .
— Eu prometo que vou tentar fazer com que você se orgulhe de
mim.
— Eu duvido.
Saio fechando a porta com a certeza de que o que disse é verdade:
amar nã o tem absolutamente nada a ver com o que ele faz com a minha
mã e.
Amar é abrir mã o, é escolher viver um casamento infeliz, é lutar
pela felicidade do outro, mesmo que para isso, tenha que pagar um
preço alto.
As vezes tã o alto, que é preciso nã o pensar muito no que se está
fazendo ou a coragem nos deixa.
Na semana seguinte me deparo com um atestado informando que o
aluno Nuno Castro D’Agostinni está dispensado das aulas pelo pró ximo
mê s, meu coraçã o perde algumas batidas enquanto tento aparentar
indiferença ao pedaço de papel que tem o peso do mundo todo em
minhas mã os.
— Esses ilhinhos de papai estã o sempre se metendo em confusã o
— algué m do outro lado da mesa diz.
— Provavelmente, o pai está afastando-o para abafar alguma crise
— ouço outra pessoa dizer e sinto o mundo girar a minha volta quando
me dou conta do que eles estã o falando. Olho para a porta esperando
que algué m chegue e me peça para esvaziar meu armá rio e assinar
minhas contas, estou zonza e provavelmente tã o pá lida quanto um
defunto enquanto o falató rio a minha volta continua.
Estou arruinada, é só uma questã o de tempo para que eles me
mandem embora.
— Um mê s, uau, dessa vez o moleque deve ter feito algo realmente
sé rio.
Meu estô mago revira, meus olhos perdem o foco, sinto o café da
manhã se agitando em meu estô mago e, antes que eu consiga sequer
respirar, estou correndo em direçã o ao banheiro, onde coloco tudo para
fora.
Um mê s, Nuno... um mê s inteiro sem saber o que será de nó s.

Quinze dias.
Nenhuma ligaçã o, nenhuma mensagem, nenhum contato a nã o ser
os trabalhos que me sã o entregues por Ivan, todos nos dias certos. Evito
olhar para as pastas que repousam em minha mesa na presença dos
meus alunos, tenho medo de que algué m veja a forma como meu
coraçã o acelera apenas por ver sua caligra ia ruim no topo da folha.
Em uma sexta-feira gelada e muito silenciosa inalmente crio a
coragem da qual Nuno me acusa de nã o possuir e vou até o lugar onde
tenho a certeza de que o encontrarei. Graças a Maddie que me deu a
dica que ele estaria aqui essa noite.
Aqui em cima é ainda mais frio e me encolho lamentando nã o ter
colocado mais uma blusa, envolvo o cachecol e coloco o capuz enquanto
caminho até a clareira onde por tantas vezes estivemos juntos. Afasto as
lembranças de todas as vezes em que nos amamos, todas as palavras,
todos os beijos, as coisas proibidas que evito pensar, nã o é para isso que
estou aqui, só preciso saber o que está acontecendo e entã o poderei
aceitar as suas escolhas.
Como imaginei, avisto seu carro antes mesmo de vê -lo, Nuno está
sentado no capô como sempre, a fumaça do seu cigarro se espalha pelo
ar, há uma garrafa ao seu lado e ele parece perdido em seus
pensamentos, alheio a tudo a sua volta, como se estivesse em outro
universo.
Mas quando me aproximo noto que seus cabelos, rebeldes e
desgrenhados, as mechas castanha-claras, que tanto amava enroscar
meus dedos, desapareceram, dando lugar a um corte formal, a parte
superior cheia, a inferior, bem rente ao couro cabeludo, quase raspado.
Essa é apenas a primeira das mudanças que encontro no rapaz que tem
me evitado nas ú ltimas semanas.
Nuno está usando um sobretudo de lã cinza, os ombros largos
parecem ainda maiores dentro da peça cara e elegante, em seu pulso
um reló gio enorme se destaca da manga da camisa branca e, quando ele
se vira para me olhar, vejo a gravata desfeita em torno do seu pescoço.
Ele me olha como se nã o me conhecesse e é nesse momento que
tenho a certeza de que venho tentando ignorar todos esses dias de
silê ncio.
A aventura do menino que se encantou pela professora acabou. Ele
se foi, o brilho do seu olhar, seu sorriso jovem e a leveza dos seus
ombros se foi. O que vejo a minha frente é o protó tipo do que seu pai
almejou, é a có pia do seu irmã o morto, a prisã o da qual ele tanto temia.
— Oi — digo, tentando manter a voz irme, mas falhando
miseravelmente.
— Oi — ele responde ainda me observando, talvez sem acreditar no
que está vendo.
O silê ncio se estende entre nó s e começo a sentir a falsa coragem
prestes a me deixar, entã o me forço a falar:
— Eu esperei você me responder.
Nuno balança a cabeça enquanto traga o cigarro.
— Nã o deu, estava ocupado — ele responde fazendo eu me sentir
paté tica.
— Estou vendo. — Aponto para as suas roupas e ele desvia o olhar
para si, como se só entã o se desse conta do que está usando. — Você se
acertou com seu pai?
— O que você quer, Stella? — Nuno desliza do capô e vem até mim,
de pé ele parece ainda mais elegante, caro, poderoso, uma ré plica
juvenil do que ele será em alguns anos, quando se afundar na ganâ ncia
do seu pai e isso dó i tanto, que dou um passo para trá s porque é quase
insuportá vel olhar para ele assim.
— Eu precisava te ver.
— Por quê ? Nã o icou claro para você ? — Sua voz é tã o fria quanto o
vento, que parece lâ minas cortando a minha pele, e me encolho um
pouco com suas palavras.
— Nã o, eu precisava te ver, para arrancar qualquer resquı́cio de
esperança.
Ele ergue os braços, abrindo-os bem, seus olhos frios e tristes nã o
desviam dos meus nem um segundo sequer e a tristeza que seu ato me
causa faz com que se torne difı́cil respirar.
— Agora você já viu.
— Você está feliz?
— Isso nã o importa.
— Isso é tudo o que importa, Nuno. Olhe para você , fantasiado com
essas roupas ridı́culas que nã o condizem com quem você é .
— Quem eu sou, Stella? Alguns meses de trepadas te deram essa
resposta?
— Eu nã o sei quem você é , mas eu sei que isso que estou vendo era
tudo o que você temia.
— Tolices, Stella, apenas tolices.
— Nã o sã o tolices.
— Tem certeza? — Ele ergue uma sobrancelha desa iadora.
— Foi algo que iz? Eles descobriram? E isso? Você está me
protegendo? Nã o precisa, eu nã o me importo com esse emprego,
vivemos sem ele até hoje, podemos nos virar sem ele.
“Só nã o posso continuar sem você ”, completo mentalmente.
Minha pergunta parece mexer com ele e Nuno desvia o olhar
enquanto en ia uma das mã os nas mechas curtas desmanchando o
penteado elegante.
— Acho melhor você ir embora, tá muito frio, nã o quero que ique
doente.
— Você se importa? — me aproveito do seu comentá rio, em um
apelo para que ele relembre daquele dia.
— Stella, por favor — ele pede, com os olhos ixos em algo no chã o,
que parece mais interessante do que eu.
— Só me responde.
— Por quê ?
— Eu preciso saber.
— Você precisa ir embora.
— Eu vou, vou te deixar em paz, assim que você me responder o que
aconteceu. Por favor, me conta, nã o é justo que...
— A vida nã o é justa! — ele grita me fazendo estremecer e entã o
fecha os olhos enquanto aperta a base do seu nariz com a mã o que
ainda segura o cigarro. Ele parece tã o exausto, que tenho vontade de
tocá -lo, de dizer que vai icar tudo bem, que vamos dar um jeito nisso
juntos. — Por favor, Stella, nã o quero te magoar.
— Tarde demais, Nuno.
Ele volta a olhar para mim, sinto todas as palavras que ele nã o é
capaz de falar na forma como ele me implora silenciosamente, sinto a
verdade escondida por baixo das suas roupas caras e elegantes, da sua
fachada fria, da mã o trê mula que segura o cigarro.
— Eu só queria entender o que houve — insisto.
— Eu cansei, sabe como é , moleque é assim mesmo. — Nuno ergue
os ombros teatralmente.
— Nã o seja ridı́culo, nó s dois sabemos que nã o é verdade.
Nuno retira o celular do bolso e vejo a tela iluminada com a
chamada, sinto uma pontada de dor ao ver ele atender seja lá quem for
enquanto dezenas de mensagens minhas permanecem intocadas na
caixa de mensagem.
— Já estou a caminho — ele responde secamente antes de desligar
seja lá quem for o pobre coitado que se prestou a ligar para ele. —
Preciso ir. — Ele joga o cigarro no chã o e ajeita o sobretudo. Nã o me
movo, nã o consigo dizer adeus, nã o consigo entender onde está o
garoto por quem me apaixonei, para quem entreguei o meu coraçã o,
que lutou por mim.
Nuno me dá as costas e começa a andar em direçã o ao carro, sinto a
distâ ncia começar a doer, como uma ferida que se abre a cada passo
que ele dá para longe de mim.
— Você sempre me chamou de covarde, mas, no im, quem é o
covarde aqui?
Ele para de andar, seu corpo enorme se enrijece, fazendo-o parecer
ainda maior, ele baixa a cabeça, mas nã o se vira.
— As vezes, sã o as nossas semelhanças que nos atraem. — Ele
respira fundo, como se buscasse coragem para acabar com essa
conversa. — Tchau, Stella.
E tudo o que ele diz antes de entrar no carro, e entã o ele se vai,
passando por mim como se eu nã o fosse nada, como se tudo o que
vivemos nã o tivesse passado de uma brincadeira de criança, uma
aventura de garoto, um capricho de um playboyzinho que sempre teve
tudo o que sempre quis.
E eu sou a idiota que acreditou por um momento que poderia ser
amor.
O rompimento de um casal sempre foi minha parte favorita em um
romance, aquela dor da distâ ncia, os pensamentos e divagaçõ es que
sempre amei grifar para reler como se fossem partes preciosas, os
reencontros proibidos, as trocas de olhares cheios de palavras nã o ditas
que fazem meu coraçã o transbordar pela histó ria.
Eu amo sofrer lendo um bom romance, porque sei que no im tudo
icará bem, que só a morte será capaz de separar duas almas que
nasceram uma para a outra. E poé tico, lindo, lı́rico, especial.
Talvez por isso tenha doı́do tanto o ver ir embora naquela noite
gelada, talvez por isso ainda doa todas as vezes em que eu relembro
cada uma das palavras ditas com tanta frieza, como as frases grifadas
dos meus romances favoritos.
A ú nica diferença é que na realidade nã o tem como prever quando
uma histó ria termina, nã o há pá ginas para contar, nem aquela
espiadinha no inal para acalmar o coraçã o dolorido por uma briga
horrorosa, é apenas o dia a dia nos mostrando que nada vai mudar.
E a cada dia que passa sinto que aquela noite pode ter sido o nosso
im.
Com o passar dos dias tudo voltou ao normal, a sua ausê ncia na
escola parou de ser comentada, as pessoas se acostumaram, seguiram
em frente. Seus amigos continuam sorrindo, brincando enquanto sua
carteira continua vazia, ningué m olha para ela, como se sempre tivesse
estado assim.
Mas para mim, todas as vezes em que olho para a carteira vazia no
fundo da sala, é um lembrete doloroso daquela noite, o garoto vestido
de homem, obrigado a cumprir uma promessa que nã o é sua, ingindo
suportar algo por amor a seu irmã o morto. Seu olhar triste e frio, a
forma como ele parecia tã o solitá rio naquela colina fria, faz com que
meu coraçã o doa por ele.
Nuno está sofrendo e, infelizmente, nã o posso fazer nada para
ajudá -lo.
No im das contas somos duas almas aprisionadas em promessas
que estamos dispostos a cumprir, mesmo que isso cobre um preço alto
demais.
Os dias passam, o semestre termina, amanhã é o ú ltimo dia de aula e
entã o teremos um recesso aguardado tanto pelos alunos quanto pelos
professores. Serã o apenas duas semanas para o corpo docente, mas o
su iciente para que eu possa me afastar um pouco, limpar minha mente
de tudo o que me lembra Nuno. Descansar.
— Amanhã será nosso ú ltimo happy hour, você vai, né ? — Má rcia
pergunta animada.
— Vou tentar ir, prometo. — Sorrio para a professora gentil, que
vem se tornando uma boa companhia para os dias solitá rios corrigindo
trabalhos e lançando notas até tarde da noite.
— Imagina, você vai sim, todos nó s vamos, nã o tem desculpa. —
Tony se aproxima passando o braço por meu ombro com uma
intimidade que me incomoda.
— Como disse, vou tentar. — Retiro seu braço e todos sorriem como
se estivé ssemos realmente brincando.
Tony continua invasivo, embora eu tenha compreendido que é o seu
jeito, ainda me irrita a forma como ele sempre está tocando as pessoas
como se fosse algo natural. Ele é chato e desagradá vel, mas é charmoso,
elegante e tem um traseiro que faz as mulheres quebrarem o pescoço
toda vez que ele passa. Ele vem ganhando cada vez mais o coraçã o das
garotas e isso é algo que me deixa preocupada, tudo o que nã o preciso é
de uma adolescente com o coraçã o partido por causa de um homem
como Tony.
Termino de organizar minhas coisas, me despeço de todos e vou
para casa. Há alguns dias me propus a parar de olhar em volta toda vez
que saio da escola como se Nuno estivesse em algum lugar à minha
espera e fosse aparecer a qualquer momento. Nã o é saudá vel essa
expectativa e, caso ele realmente queira falar comigo, sabe exatamente
onde estou. Se nã o me procurou mais é porque nã o tem o que ser dito.
Chego em casa exausta, tomo um banho e coloco uma roupa
confortá vel, decidida a trabalhar até tarde para poder entregar todas as
notas até o im do dia de amanhã ; se tudo der certo, entrarei de fé rias
nos pró ximos dias e poderei passar um bom tempo sem olhar para
provas e tabelas de notas e faltas.
O celular toca e corro para atender sabendo exatamente quem é .
Hoje é dia de chamada de vı́deo com minha irmã e, mesmo que eu
nã o esteja nem um pouquinho a im de conversar, sei que devo atendê -
la ou é capaz dela bater à minha porta em algumas horas como fez da
ú ltima vez.
— Oi, Suzy. — Me jogo no sofá ajustando a câ mera para que ela veja
apenas meu rosto.
— Meu Deus do céu, você está mais magra — ela fala inclinando-se
para a frente como se assim pudesse me ver melhor.
— Nã o enche, eu ainda estou me recuperando da infecçã o estomacal
que tive.
Minto, como venho mentindo para ela desde que comecei a perder
peso, ela nã o precisa saber que mal como por causa da porcaria de um
coraçã o partido, é ridı́culo até mesmo pensar nisso e é o tipo de
informaçã o que nã o vai acrescentar nada nas nossas vidas alé m de
deixá -la preocupada, coisa que nã o quero que aconteça.
— Você precisa ir ao médico.
— Eu fui, ele me receitou umas vitaminas que já estou tomando.
— Que vitaminas? Será que conheço?
— Ah, Suzy, nã o me lembro de cabeça, acho que nã o conhece —
desconverso e minha irmã continua me olhando como se esperasse que
eu me atrapalhasse a qualquer momento. — E aı́, animada para as
pró ximas semanas? — mudo de assunto rapidamente porque, se ela
continuar me olhando assim, com certeza vou me atrapalhar. Nã o sou
boa em mentiras e, principalmente, para Suzy.
— Nossa, nem fala, já iz um roteiro de tudo o que vamos fazer, você
não vai descansar um segundo sequer.
Um sorriso enorme surge em meus lá bios enquanto ouço Suzy
contar o roteiro de fé rias que ela preparou para nó s duas enquanto faz
a sua nebulizaçã o, sua animaçã o é contagiante e logo estamos
combinando roupas para os dias de cinema, jantar e museus. Eu amo a
energia dela, a forma como ela consegue fazer um simples passeio no
parque ou um sorvete no im de tarde parecer algo espetacular; à s
vezes, me pego pensando se isso tem algo a ver com o fato dela ter
nascido com a certeza de que sua vida seria breve ou se é uma
caracterı́stica da minha irmã . Acho que tem um pouco dos dois.
A verdade é que, se todos nó s pensá ssemos no quanto a vida é
breve, talvez desacelerá ssemos um pouco a pressa para chegar lá , e
prestá ssemos um pouco mais de atençã o no que tem aqui, a nossa volta.
Essa é uma das liçõ es que aprendi com minha irmã . Aproveitar o
hoje.
— Suzy, nã o vamos conseguir fazer tudo isso em tã o pouco tempo.
— Vamos sim, já está tudo organizado.
— Nã o quero você se cansando.
— Nem eu vou deixar — Xavier diz e Suzy revira os olhos como uma
menininha de sete anos.
— Nem comecem vocês dois. — Ela balança o nebulizador no ar
irritada.
— Como você está ?
— Eu estou ótima, já até engordei meio quilo.
— Isso é ó timo, agora só faltam seis e meio — provoco-a.
— Aliás, tenho uma notícia maravilhosa para te dar — minha irmã
diz no instante em que Xavier aparece por trá s dela no sofá se
aconchegando.
— O que é ?
— Sabe aquele tratamento experimental que a gente viu no ano
passado que estava sendo testado lá nos Estados Unidos?
— Sim claro.
Lembro-me com clareza da maté ria que Suzy viu na internet sobre
um novo tratamento que promete dar mais liberdade para os
portadores de Fibrose Cı́stica, lembro-me de todas as contas que
izemos para contabilizar os gastos para que Suzy pudesse ir para lá e
como sonhamos com um milagre, porque só assim conseguirı́amos a
grana necessá ria para custear tudo.
— Pois é, ontem recebi um e-mail do hospital dizendo que fui
selecionada para participar de um grupo exclusivo de brasileiros que vão
participar desse tratamento aqui no Brasil.
Dou um pulo do sofá segurando o celular com tanta força, que meus
dedos icam esbranquiçados.
— Você está brincando comigo?! — grito eufó rica demais para
conseguir me manter deitada.
— A princípio achei que era uma pegadinha, alguém querendo
roubar meus órgãos ou sei lá, mas então dois dias depois eu recebi um
telefonema do hospital perguntando se eu havia recebido o e-mail. Eu vou
precisar passar por uma série de exames e talvez eu até tenha que ir para
os Estados Unidos, ainda não sei, mas eu tô topando qualquer coisa, até
injeção na testa.
Começo a gritar do lado de cá enquanto minha irmã grita do lado de
lá como duas malucas que acabam de se dar conta de que ganharam na
Mega-Sena sozinhas.
— Suzy, meu Deus, era o nosso sonho. — Lá grimas se acumulam em
meus olhos enquanto olho para o rosto vermelho da minha irmã do
outro lado da tela.
— Não faz isso, Stella — ela pede com o olhar emocionado.
— O quê ?
— Não chora.
— Como nã o chorar? E tudo o que a gente queria.
— Ainda é só um teste, pode não dar em nada.
— Mas pode dar. Vai dar! — digo com toda a esperança que carrego
dentro do meu coraçã o.
— Tudo vai icar mais fácil. — Suzy baixa o olhar para as mã os e
odeio o sorriso que se forma em seus lá bios, porque é a marca da sua
vergonha por se sentir um fardo para mim. — Você vai poder relaxar um
pouco, parar de se preocupar tanto, vai ter uma equipe enorme
trabalhando e eu serei bem assistida.
— Vai sim, você vai ter uma qualidade de vida muito melhor, isso é
tudo o que importa.
Minha irmã respira fundo, como se um peso enorme saı́sse de seus
ombros com a perspectiva desse tratamento.
— Você vai poder ir atrás do seu garoto. — Ela pisca para mim e é a
minha vez de baixar o olhar envergonhada.
— Nã o se preocupe com isso.
— Claro que me preocupo, eu me apaixonei por aquele moleque, o que
posso fazer se não aceito outro no lugar dele?
— Esquece isso, Suzy, acabou — digo, a vergonha faz minhas
bochechas esquentarem à medida que a verdade sai da minha boca.
— Que história é essa?
— Eu coloquei meu orgulho de lado como você me disse para fazer
e fui atrá s dele, e ele praticamente me deixou falando sozinha.
Suzy afunda no sofá , a desilusã o estampa seu rosto enquanto ela me
olha com aquela cara de quem está prestes a dizer algo que vai me fazer
sentir ainda pior.
— Mas você...
— Suzy nã o! — a repreendo. — Nada de tentar justi icar, ele nã o me
quer, talvez tenha sido apenas um caso, uma aventura como você
sempre falou, a culpa foi minha, eu que loreei demais — digo tentando
tirar o peso da verdade.
— Não é possível, eu nunca me engano.
— Dessa vez você se enganou, mas tudo bem, já passou. Foi bom
enquanto durou. Agora me conta tudo sobre o tratamento, quando você
começa, como chegaram até você . Conta tudo.
E pela hora seguinte rimos, sonhamos, compartilhamos,
agradecemos a Deus pela oportunidade de mais uma chance de vida
para a minha irmã , e isso é tudo o que preciso.
Finalmente uma notı́cia boa para aquecer meu coraçã o machucado
e triste.

As sete horas da manhã do meu primeiro dia de fé rias, estaciono o


carro na frente da cafeteria e desço, ela ainda nã o está aberta, mas Beth
está a minha espera conforme me prometeu, com um copo té rmico e
uma sacola nas mã os.
— Obrigada, Beth, eu nem acredito que acordou tã o cedo para isso.
— Imagina, eu já estou de pé desde as quatro, tenho uma
encomenda enorme para entregar hoje, preparar seu café foi um prazer,
depois me diz se gostou. — Ela abre um sorriso cheio de orgulho
enquanto me entrega tudo.
— Tenho certeza de que está maravilhoso como tudo que você faz.
Estou me despedindo dela quando a porta dos fundos se abre e vejo
um Rael descabelado, com os olhos inchados e sem camisa entrar na
cafeteria.
— Porra! Eu nã o sabia que estava com visita. — Ele dá um passo
para trá s e espalma a mã o no peito nu nitidamente sem graça por ter
sido pego desprevenido.
— Na verdade, a Stella está de passagem, ela veio buscar o pedido
antes de viajar — Beth explica enquanto ele puxa uma camiseta e
começa a vestir.
— Entã o o café especial era para ela? — ele pergunta e sua mã e
acena com a cabeça.
— Bom, entã o boa viagem — ele diz com seu sotaque, que o deixa
parecendo um estrangeiro tentando falar portuguê s.
— Obrigada.
Ele está prestes a se virar para ir embora quando ouço algué m o
chamando, todos se viram para a igura que está parada na porta, os
ó culos escuros escondendo seu olhos, os cabelos desordenados, uma
camiseta de manga longa meio amassada e uma calça de moletom, uma
aparê ncia relaxada exatamente como um garoto da sua idade deve
parecer.
— Eu vim buscar as encomendas — Nuno fala ainda segurando a
porta.
— Bom dia, Nuno. Rael já estava separando as caixas, entre. — Beth
vai até ele, deixa um beijo em seu rosto e fecha a porta. — Você já
conhece o caminho. — Ela aponta para a porta por onde seu ilho
entrou, mas Nuno continua parado no mesmo lugar, com o rosto tenso,
como se nã o soubesse o que fazer.
— Oi — digo sentindo a saudade que estava dele explodir em meu
peito.
— Olá , Stella.
Beth olha para nó s enquanto limpa as mã os no avental.
— Eu vou lá atrá s terminar uns detalhes antes que o Rael feche as
caixas, iquem à vontade.
Ela se vai e tudo o que sobra é um enorme e constrangedor silê ncio
entre nó s.
— Você está bem? — me forço a falar.
— Sim e você ?
— Estou bem.
— Vi seu carro lá fora, está indo embora?
— Vou para Sã o Paulo, icar um pouco com a Suzy.
— Ela está bem?
— Sim, está ó tima.
Sinto uma vontade imensa de contar a ele sobre o tratamento novo,
mas tenho certeza de que ele nã o se importa com isso e desisto.
— Que bom.
— E.
Nuno limpa a garganta, coça a parte de trá s curta do cabelo e desvia
o olhar para o salã o vazio.
— Acho melhor eu ir lá atrá s ajudar o Rael.
— Claro, eu també m preciso ir, tenho algumas horas de estrada pela
frente.
— Certo.
— E, certo.
Ele respira fundo e faço o mesmo segurando o copo té rmico junto
ao meu peito, agradecendo o calor do café , já que sinto como se o meu
peito fosse congelar com a frieza dessa conversa.
Ele caminha na minha direçã o, os passos longos e irmes. Enquanto
se aproxima, meu coraçã o explode no peito com a perspectiva do que
vai acontecer, ele para ao meu lado, seu ombro quase toca o meu, sinto
o cheiro do seu perfume e a saudade dó i no meu peito, nã o me viro, nã o
vou suportar ver ele assim tã o perto e nã o poder tocá -lo, apenas abaixo
minha mã o ao lado do meu corpo e permaneço quieta no mesmo lugar,
encarando o chã o à minha frente, esperando que ele faça alguma coisa.
E entã o eu sinto, tã o suave que quase nã o posso acreditar, tã o forte
que meu corpo inteiro estremece, tã o signi icativo que preciso apertar
meus lá bios para nã o dizer nada.
Seus dedos resvalam nos meus, bem devagar, apenas as pontas
quentes e irmes sobre as minhas como uma lembrança do que um dia
fomos.
— Stella... — ele sussurra, bem baixinho, ainda de costas para mim.
— Oi.
— Por favor. se cuida — ele pede.
— Por que está falando isso?
— Porque eu ainda me preocupo com você — ele diz e fecho meus
olhos para impedir as lá grimas de caı́rem enquanto seus dedos se
entrelaçam nos meus segurando-os por um instante, como se
precisasse garantir que eu pudesse senti-los.
E entã o ele me solta e o vazio que senti por todas essas semanas
longe se intensi ica, me deixando desamparada, sozinha, fria.
Ouço o barulho dos seus passos, do balcã o sendo aberto, da porta se
fechando atrá s de mim, ouço o som da esperança, essa fagulha
traiçoeira que sempre encontra uma fresta para se esgueirar em um
coraçã o cansado de sofrer.
Idiota!
Se pudesse me socaria nesse exato momento, enquanto obrigo meus
pé s a me afastarem dela, depois de fraquejar na sua presença.
Eu sabia que nã o conseguiria, aquele dia em que ela foi até mim, eu
quase implorei para que ela me perdoasse, que nã o izesse perguntas,
que icasse longe de mim, enquanto uma parte enorme do meu coraçã o
só queria poder puxá -la para os meus braços e beijá -la até que ela
nunca mais duvidasse do que sinto por ela.
E agora, depois de semanas dizendo a mim mesmo que estou
fazendo a coisa certa ao me manter afastado, bastou um olhar para que
eu desmoronasse igual um amontoado de areia.
Minha mã o ainda formiga pelo toque, meu nariz ainda sente o
cheiro adocicado do seu perfume e meu coraçã o idiota e burro, ainda
soca meu peito implorando por algo que nã o posso dar a ele.
Quando chego a cozinha, Beth está colocando os ú ltimos potes
dentro das caixas e Rael está fechando-as, Greta brinca com uma
bolinha ao seus pé s, me junto a ela na tentativa de disfarçar meus
sentimentos, concentrando-me na arte de jogar a bolinha e pegá -la de
volta.
Nã o demora para o meu celular apitar no bolso e, embora eu saiba
que nã o é ela, hesito um pouco em atender.
— Oi, estou aqui na Beth — respondo, sentindo a garganta arranhar.
— Estamos todos aqui. — Desligo a chamada e volto a colocar o
telefone no bolso ou nã o tenho certeza de que sou capaz de me impedir
de ligar para Stella e pedir para que ela nã o vá a lugar algum ou, pior,
que me leve junto.
Deus, eu preciso parar.
Beth olha para mim como se fosse capaz de ler meus pensamentos e
sorri.
— Ela é uma boa menina.
— Eu sei, é exatamente por isso. — Jogo a bola na parede e pego-a
repetidas vezes para nã o terminar a frase.
Rael desvia o olhar para onde estou, a carranca em seu rosto diz que
ele nã o concorda comigo, mas como é seu costume, ele nã o diz nada,
apenas me observa fazer papel de idiota bem no meio da cozinha da sua
mã e.
Um tempo depois, a minha mã e chega, as caixas estã o todas
fechadas e, enquanto eu e Rael enchemos o porta-malas da pick-up do
Ivan com bolos que serã o distribuı́dos durante o evento que minha mã e
vai comandar essa semana, elas conversam sobre o passado. Me
impressiono com o brilho no olhar da minha mã e e o sorriso quase
juvenil nos lá bios de Beth enquanto elas falam de coisas que eu nã o
sabia.
— Antô nio, quase quebrou o braço levantando essa viga. — Minha
mã e ergue o olhar para o telhado que consertamos na ú ltima
tempestade, na noite em que eu e Stella icamos juntos pela primeira
vez, parece que faz tanto tempo.
— Eles eram tã o teimosos, Marcos achava que era capaz de
construir qualquer coisa. — Beth olha para as paredes e Rael para ao
meu lado, com seus olhos ixos na expressã o da sua mã e.
— Eles todos eram, Marcos nã o quis o dinheiro deles, entã o eles
ajudaram com o que podiam.
Ouço minha mã e falar sobre aqueles amigos como se fossem outras
pessoas, nã o consigo imaginar o todo-poderoso Antô nio D’Agostinni
erguendo uma viga de madeira e enchendo uma laje, nem mesmo para
ajudar seu amigo.
Rael esbarra em um copo e o derruba no chã o, cacos de vidro se
espalham por todos os lados, é o im da conversa, dos sorrisos, do
brilho no olhar, como se, em um passe de má gicas, elas se dessem conta
de que esse mundo nã o existe mais.
— Precisamos ir, mã e — digo quando terminamos de limpar tudo,
Rael se recolhe para a garagem onde está seu Opala barulhento, ele se
en ia debaixo dele e sei que é uma forma de esconder seus sentimentos.
Beth nos acompanha até a porta e minha mã e promete vir visitá -la
mais vezes para um café , elas se despedem e entramos no meu carro
enquanto um funcioná rio do centro comunitá rio leva o carro de Ivan.
— Você está bem? — pergunto enquanto dirijo pelas ruas da cidade,
que sempre acreditei conhecer todas as histó rias.
— Estou sim, e você ? — Ela pousa a mã o sobre a minha, que
descansa no câ mbio.
— Eu nã o sabia que o meu pai ajudou a construir essa casa.
— Tem muita coisa sobre seu pai que você nã o sabe, Nuno.
— Por que nunca me contou?
— Porque você nunca se interessou em saber.
— Como? — pergunto confuso com a forma como ela fala.
— Quando me apaixonei por seu pai, ele era assim como você , talvez
mais como o Matteo. Ele era sorridente e sonhador, acreditava que tudo
era possı́vel e, quando a Beth icou grá vida e o Marcos saiu de casa, ele
nã o pensou duas vezes em ajudá -lo. Assim como todos os outros
garotos, eles se colocaram à disposiçã o para ajudá -los, Marcos nã o
aceitou nada que pudesse vir dos pais deles, entã o só sobrou os braços
fortes.
— Eu nunca imaginei.
— Antô nio també m já foi jovem e acreditou poder mudar o mundo.
Ele era um sonhador, ilho, só que a vida infelizmente nã o foi tã o boa
assim com o coraçã o dele.
Nã o tenho mais nada para falar, imagino-me em uma situaçã o
similar e nã o tenho dú vidas de que teria meus amigos ao meu lado, e,
por um momento, um profundo respeito por Marcos e Beth enchem
meu coraçã o, alé m de admiraçã o por meu pai.
— Cuidado, ilho — minha mã e diz, chamando minha atençã o.
— Com o quê ?
— Com o seu coraçã o. Nã o deixe que o orgulho crie raı́zes nele, esse
é um dos sentimentos mais difı́ceis de se livrar depois que se instala
dentro de nó s.
— Nã o sou orgulhoso, mã e.
— E sim, ilho, você nã o está enxergando as coisas que está fazendo.
— E o que estou fazendo? — pergunto um pouco na defensiva.
— Deixando que o ó dio comande seus passos.
— Isso nã o é verdade — defendo-me.
— Otimo, que bom saber. — Ela faz um carinho em minha nuca e
nosso assunto termina, nã o quero falar sobre minhas escolhas com a
minha mã e, nesse momento nem eu tenho certeza se elas sã o corretas.

O clube de campo de Monte Mancante é frequentado por magnatas


e celebridades. E um dos lugares que mais detesto, mas é onde rola as
melhores festas e, à s vezes, sou obrigado a comparecer.
Hoje é um desses dias.
O clube está lotado, todos os ilhos que estavam fora por algum
motivo, hoje estã o aqui. Avisto meus amigos de longe, Cindy está com
uma turma que nã o gosto muito, ela se aproxima segurando uma
bebida.
— E aı́, sumido. — Ela bagunça meu cabelo e afasto sua mã o
fazendo cara feia. — Gostei do penteado novo, icou mais sexy.
— E aı́, Cindy — ignoro suas brincadeiras e pego seu copo tomando
um gole da bebida, doce demais para o meu gosto.
— Vai rolar uma festinha particular no iate de um amigo, vamos?
— O Ivan vai?
— Eu já chamei, mas ele disse que tem compromisso. — Ela revira
os olhos e aperto os lá bios para nã o sorrir. Cara, é tã o paté tico esse
joguinho deles dois.
— Eu també m tenho, vou passar essa.
— Vai pegar alguma coroa també m?
— Eu nã o, por quê ? Tá com ciú mes da Solana?
— Eu nã o, aquela mulher tem tanto silicone, que se jogar na á gua
ela boia.
— Ela é bem gostosa — provoco-a.
— Vai se foder, Nuno!
— Nã o, obrigado, mas vou icar com sua bebida. — Me afasto
ignorando os palavrõ es que a minha amiga dispara em minha direçã o,
ainda estou sorrindo enquanto passo pelas pessoas espalhadas pelo
salã o e avisto meu pai sozinho, apoiado em uma janela olhando algo.
Lembro-me das palavras da minha mã e sobre deixar o ó dio dominar
minha vida e vou até ele. Me aproximo e inclino-me na janela assim
como ele, bebo um gole da bebida ruim e encontro o que chamou a
atençã o do meu pai.
Ela está conversando com um grupo de amigas, inclusive Marie, mã e
da Cindy. Seus cabelos estã o soltos e o vento os move para todos os
lados, deixando-a com um ar mais jovem. Mesmo nã o sendo mais uma
garota, Violeta Castro D’Agostinni ainda é uma mulher linda. A prova
disso é que estou cansado de ver homens de todas as idades virando o
pescoço quando minha mã e passa.
— Hoje ela estava contando uma histó ria interessante sobre você —
digo ainda sem olhar para ele, nã o sei se consigo continuar se o izer.
— Que histó ria? — meu pai pergunta curioso.
— Sobre o dia em que você quase quebrou seu braço tentando
levantar uma viga.
Meu pai ri, um riso alto o su iciente para chamar atençã o do grupo
de mulheres à nossa frente. Minha mã e olha em nossa direçã o e
imagino que ela nã o esteja entendendo nada do que está acontecendo.
— Era uma viga bastante pesada.
— Eu nã o sabia disso, quer dizer, nã o sabia que você ajudou o pai do
Rael.
— Marcos e eu é ramos grandes amigos, assim como você e o Ivan, o
Matteo e o Rael, eu faria mais se o desgraçado nã o fosse tã o orgulhoso,
mas, naquela é poca, é ramos jovens e nã o sabı́amos o que está vamos
fazendo.
Olho para o homem que durante toda a minha vida vi como algo
inalcançá vel, tã o poderoso e aterrorizante, que jamais parei para
pensar que um dia ele foi um garoto assim como eu. Olho para o seu
rosto me lembrando das palavras da minha mã e, um dia ele foi
sorridente e sonhador e imagino como seria se ele ainda pudesse voltar
a ser assim.
— Ela ainda te ama — digo fazendo com que ele me olhe confuso.
— O que disse?
— A mamã e te ama, pai.
— Por que está falando isso? — Sua voz parece falhar quando ele
olha na direçã o da esposa.
— Porque eu vi os olhos dela brilhando enquanto falava de você .
Vejo seu peito se expandir enquanto ele absorve minhas palavras,
vejo a emoçã o em seu rosto quando ele balança a cabeça, nã o querendo
acreditar em algo tã o perigoso: esperança.
— Você nã o sabe o que está falando.
— Acredite, eu sei. Passei um bom tempo pensando se você merecia
saber disso. — Tomo mais um gole da bebida antes de desistir dela e
colocar o copo em uma mesa. — Chama ela pra dançar.
Meu pai ri e me irrito com a sua falta de credibilidade em mim.
— Eu danço com sua mã e em todas as festas que vamos.
— Chame-a para dançar, só você s dois, converse com ela sobre algo
só de você s dois, lembre-a de quando eram jovens. Aproveite, ela está
bem emotiva hoje.
Ele se vira e olha para mim, com uma ruga forte de preocupaçã o
entre seus olhos enquanto tenta avaliar o que estou fazendo.
— Por que está dizendo essas coisas?
— Você está fazendo a sua parte no nosso acordo, achei que poderia
te dar uma mã ozinha.
— Isso é um jogo, Nuno?
— Nã o, pai, eu só quero ver a minha mã e feliz. — Me afasto puxando
o maço de cigarro e tirando um. — E vamos combinar, você pode ser um
excelente empresá rio, mas nã o tem o menor jeito com mulheres.
— Eu poderia provar que você está errado.
— Acho melhor aceitar a minha dica. — Olho para a minha mã e e de
volta para ele. — Vai logo, antes que ela desista de te esperar.
Coloco o cigarro na boca e puxo o isqueiro, acendo-o e trago
enquanto caminho em direçã o ao estacionamento. Preciso dar o fora
daqui, ou vou começar a encher a cara e chorar por uma mulher que
nã o tenho o direito de amar.
Ao menos nã o agora.
A viagem até a pacata cidade onde meu pai mora dura menos do
que gostaria ou talvez eu apenas nã o tenha visto o tempo passar
enquanto beberico o melhor café do mundo e repasso obsessivamente
o que aconteceu dentro daquela cafeteria.
“Eu ainda me preocupo com você.”
Tento nã o icar criando teorias ridı́culas para justi icar o que Nuno
fez, mas quando se tem no peito um coraçã o bobo, que foi alimentado a
vida inteira com romances açucarados, é impossı́vel nã o tentar ler nas
entrelinhas.
E eu já li um livro inteiro dentro delas.
Sorrio igual boba toda vez que olho para a minha mã o e relembro a
forma ı́ntima com que ele a segurou, como sempre foi, como se a
necessidade de me tocar fosse quase insuportá vel, como é para mim.
Me pego pensando em todas as coisas que devem ter acontecido,
chego à conclusã o de que Nuno está tentando me proteger, com certeza
é isso, ele está com medo de que eu perca meu trabalho, talvez ele
esteja sendo chantageado e, enquanto ele tenta segurar tudo em suas
costas sozinho, estou aqui me lamentando por ele nã o responder
minhas mensagens.
O jogo parece ter virado.
Preciso me convencer mil vezes do porquê nã o posso dar meia-volta
e voltar para Monte Mancante, preciso me acalmar e acalmar meu
coraçã o com a certeza de que Nuno estará lá quando eu voltar e nã o
importa, mesmo que eu tenha que ir até a sua casa, nó s vamos ter uma
conversa, nem que seja para que ele termine de machucar o meu
coraçã o.
E muito melhor um coraçã o partido do que a dú vida.
Nã o sou uma mulher infeliz, longe disso, sempre amei minha vida
tranquila e organizada, tendo Suzy como meu principal objetivo, nã o
tenho muito tempo livre para diversã o e tudo bem. Nem todo mundo
precisa de uma vida agitada para ser feliz, na verdade a minha
felicidade é bem mais fá cil de ser conquistada, um bom livro, uma
xı́cara de café e um sofá confortá vel.
Mas enquanto dirijo os 400km que me separam do meu pai, me
pego pensando sobre isso, sobre a caixa onde en iei tudo o que sou, a
falta de ambiçã o e de planos para o futuro.
Pela primeira vez, isso me incomoda um pouco, o fato de que minha
vida inteira está voltada para as necessidades da minha irmã , algo que
ela sempre deixou claro o quanto detesta que eu faça. E entã o eu
compreendo o pavor que sempre vi em seus olhos quando ela fala de
mim, porque sabe que, se um dia ela se for, nã o restará mais nada, eu
estarei só e minha vida nã o terá mais sentido algum.
Enquanto entro no estacionamento da casa de repouso onde meu
pai vive há mais de dez anos, ainda estou re letindo sobre minha vida, a
fragilidade do meu futuro e como fui relapsa com a minha felicidade.
Suzy tem razã o, ela sempre tem.
Assim que chego à recepçã o, sou recebida por Lú cia, uma das
enfermeiras que cuidam do meu pai. Ela me cumprimenta com um
abraço carinhoso, me faz as perguntas de sempre, enquanto
caminhamos pelos corredores claros e bem iluminados.
Durante grande parte da minha vida me sinto culpada por permitir
que meu pai, o homem que mais amo na vida, viva aqui, em um lugar
que nã o é o seu lar, que nã o tem suas memó rias, onde nada é seu de
verdade, foi a sua escolha. Com a idade chegando e os problemas
naturais de saú de aparecendo, ele foi icando mais preocupado com a
sobrecarga em cima de mim e, quando fui para a faculdade, ele nã o
podia mais cuidar de si e sabia que eu já tinha mais do que uma garota
de dezoito anos podia dar conta. Vir para cá foi escolha dele, enquanto
passamos meses visitando lugares como esse, onde pessoas na terceira
idade que nã o foram abandonados, mas que nã o querem viver uma vida
sozinhos, podem se reunir e compartilhar suas histó rias, suas vidas, seu
futuro.
Mesmo assim sinto que eu poderia ter feito mais, que fui uma má
ilha, à s vezes choro pensando em como tudo podia ser diferente, mas
no momento em que coloco os pé s no jardim, que ouço o canto dos
pá ssaros e o cheiro das roseiras que estã o espalhadas por todos os
lados, que vejo as pessoas bem cuidadas e felizes que vivem aqui, sinto
meu coraçã o se acalmar, porque esse é exatamente o lugar que eu
gostaria de estar se fosse ele.
— Como ele está ? — pergunto quando chegamos ao jardim lorido,
ensolarado e aconchegante.
— Está ó timo, na semana passada fez os exames anuais e
aparentemente está tudo bem, em breve o mé dico vai mandar os
relató rios para você — Lú cia responde cheia de orgulho.
— Ele me prometeu que iria se comportar.
— E está , ele caminha todos os dias e está até mesmo comendo
legumes. — Ela ri como se estivesse falando de uma criança e nã o de
um homem de setenta anos, mas a verdade é que nã o vejo muita
diferença.
Avisto a cabeleira branca do meu pai de longe, o sorriso se espalha
em meu rosto ao notar que ele está sentado junto com outros trê s
homens, um deles aparentemente jovem demais para viver em uma
casa de repouso, mas com o tempo eu descobri que nem sempre as
pessoas precisam envelhecer para se sentirem deslocadas na sociedade.
Eles estã o jogando dominó e a gargalhada que ele dá indica que está se
saindo bem.
— Senhor Almeida, olha quem veio te ver — Lú cia diz tocando o
ombro dele carinhosamente.
Meu pai se vira e seus olhos acinzentados se ixam em mim.
— Stella — ele me chama de um modo carinhoso, que me faz
lembrar de quando era pequena, enquanto estende a mã o para mim.
— Vejo que está mostrando seus dotes para os seus amigos. — Me
inclino e abraço-o, sentindo o cheiro tã o familiar da sua colô nia
almiscarada.
Ele ri, um riso grave e um pouco cansado, mas ainda muito bonito.
— Vejam só que coisa mais linda a minha ilha. — Ele se volta para
os seus amigos me apresentando como se eu fosse um trofé u.
— Olá , pessoal. — Aceno para todos e me ajeito ao lado do meu pai
enquanto observo eles jogarem, é reconfortante ver como eles
conseguem se divertir e sorrir, sem o peso do mundo em suas costas
encurvadas e cansadas. Observo os rostos enrugados, os olhos
cansados, os cabelos ralos e brancos, imagino todas as histó rias de vida
que permeiam essa mesa, sé culos de amores, perdas e vitó rias que me
fazem fortalecer a fé de que a vida pode ser bonita e bem vivida.
Algum tempo depois, nos levantamos e começamos a caminhar pelo
lindo jardim, as mã os á speras do meu pai seguram as minhas enquanto
ele observa a movimentaçã o ao seu redor.
Explico para ele por que Suzy nã o veio dessa vez, conto as
novidades sobre o tratamento e a internaçã o, deixo de fora a parada
respirató ria que ela teve no caminho e as contas atrasadas que
encontrei na gaveta, é a minha hora de entregar a ele apenas as partes
boas da vida, assim como ele fez conosco durante toda a sua vida.
Ele me ouve atentamente, faz as perguntas necessá rias para que
possa compreender melhor e sorri quando mostro uma foto recente de
Suzy e Xavier.
— Ela parece bem — ele diz distanciando o celular para poder
enxergar melhor.
— Ela está , agora tá tudo bem.
— Eu gosto desse rapaz, gosto de como ele olha para a sua irmã .
— Xavier ama a Suzy, ela está feliz.
— Você está ? — ele pergunta tã o repentinamente, que preciso de
um tempo para pensar na resposta.
— Sim, estou.
— Tem certeza, Stella? — Seus olhos cinza me analisam como
sempre fez, como um pai que precisou criar suas ilhas sozinho por
quase toda a vida aprendeu ao longo dos anos.
— Sim, pai — respondo, mas minha voz soa mais frá gil.
— Você está mais magra, ilha.
— Eu tive uma infecçã o intestinal. — Minha voz piora a cada
mentira, odeio isso, nunca fui boa em enganá -lo e algumas coisas nã o
mudam.
Ele me entrega o celular e volta a andar até se sentar em um banco,
faço o mesmo e icamos um minuto em silê ncio, olhando em volta.
— Lú cia me disse que você tem caminhado todos os dias — mudo
de assunto.
— Ela me obriga, nã o tenho opçã o.
— E importante, ela se preocupa com o senhor.
— Ela gosta de encher a minha paciê ncia isso sim.
Sorrio com o tom rabugento com que ele fala.
— Algué m tem que cuidar de você enquanto estou longe.
— E quem cuida de você , ilha?
Ele se vira para mim, com a preocupaçã o deixando seu rosto triste.
— Eu estou bem, pai, ainda nã o preciso que algué m cuide de mim.
— Todos nó s precisamos.
— Eu cuido de mim mesma.
— Que solitá rio é viver assim.
— Estou acostumada, o senhor sabe.
— Sei, mas nã o gosto.
— Posso vir morar aqui com o senhor, o que acha? — brinco, mas
ele nã o sorri.
— Daqui a cinquenta anos, talvez.
— Esse é o plano.
— Suzy me disse que você havia encontrado algué m. Onde está esse
ilho de uma mã e que está fazendo você sofrer?
Me surpreendo com o tom da sua voz e me apresso a explicar.
— Ningué m está me fazendo sofrer, pai, eu estou apenas... — respiro
fundo e resolvo que, talvez, contar a verdade seja a melhor soluçã o —
analisando minhas opçõ es. Com esse tratamento da Suzy, nã o vou me
preocupar tanto com ela e posso pensar um pouco em mim.
— Já nã o era sem tempo.
— O senhor sabe que eu me preocupo com ela.
— Eu sei, mas me preocupo com você també m, uma vida solitá ria é
quase tã o triste quanto uma vida limitada.
— Nã o sou solitá ria, pai.
— E triste.
— Nã o sou nã o. — Sorrio para reforçar minhas palavras, mas o
sorriso parece falso.
— Me fale sobre ele.
— Já disse, pai, nã o é nada.
— Stella, nã o subestime a inteligê ncia de um velho.
Respiro fundo sabendo que é em vã o tentar esconder algo dele,
principalmente porque tenho certeza de que Suzy já falou o su iciente
para que ele já saiba sobre Nuno. Aquela ilha da mã e me paga.
— Foi só um namorico, já passou.
— Um namorico que custou uns bons cinco quilos da minha menina.
— Eu estava ocupada trabalhando, a escola é bastante exigente e a
grade muito extensa, eu acabava me esquecendo de comer.
— Nome, Stella — ele corta meu blá -blá -blá .
— Nuno.
— Nuno... — ele repete o nome como se precisasse testar se ele é
merecedor de ser pronunciado por meus lá bios. — Bonito nome,
italiano imagino.
— A famı́lia do pai dele é .
— Conheci alguns italianos, gente boa, mas muito turrona, geniosos
esses italianos, e falam alto, bem alto. — Ele faz uma careta, que me
arranca um sorriso.
— Ele é bem genioso, um pouco turrã o e, quando ri, o quarteirã o
inteiro é capaz de ouvir sua risada. — Sinto meu coraçã o se encher de
saudades de ouvir Nuno gargalhar, é uma das coisas mais lindas de se
ver, seu rosto parece se iluminar, pena que, nas ú ltimas vezes em que o
vi, ele sequer sorriu.
— E qual o problema, ele é professor?
Desvio o olhar para as minhas mã os e uma imagem surge em minha
mente, nã o a do menino no fundo da sala olhando para mim, me
desa iando a encará -lo, nem a do rapaz que me sussurrou juras de amor
nas vezes em que estivemos juntos, mas sim a do homem corajoso que
carregou Suzy em seus braços enquanto ela lutava por sua vida.
— Nã o, é meu aluno — confesso com o coraçã o batendo forte em
meu peito e a certeza de que, por mais difı́cil que seja admitir, eu o amo,
como nunca imaginei amar algué m na minha vida.
Meu pai ergue a sobrancelha, em uma clara demonstraçã o de
surpresa da sua parte, mas nã o diz nada, ao menos nada que seja capaz
de me envergonhar.
— Um menino?
— Nã o, ao contrá rio, um homem. O mais nobre que já conheci.
— Ele machucou você , ilha?
— Nã o, pai, ele foi adorá vel, o senhor iria gostar dele.
— Entã o, o que houve com esse nobre menino-homem?
— Nã o podemos icar juntos, a escola me expulsaria se descobrisse
e seu pai é um cara muito rico e in luente. — Ergo os ombros exausta só
de pensar. — Muito complicado, tinha muito em risco.
— A vida é complicada, ilha.
— O senhor sabe que nã o posso arriscar a minha carreira, essa vaga
é importante demais.
— Para quem, Stella, para você ?
— Pai...
— Você precisa parar de se preocupar com os outros.
— Você s nã o sã o os outros, sã o as pessoas mais importantes do
mundo para mim.
— E esse rapaz? Ele é o quê ?
— O vislumbre de um futuro que nã o vai acontecer.
— Stella... — Ele se vira para mim e segura a minha mã o me
obrigando a olhar para ele. — Escute bem o que eu vou te falar, nã o
conheço esse rapaz, mas Suzy me contou algumas coisas sobre ele, o
su iciente para acreditar que ele seja mais do que você está tentando
me esconder.
— Nã o estou escondendo.
— Deixe-me falar! — ele me repreende. — Nã o gosto da ideia de
você se envolvendo com um rapaz tã o jovem, mas sua irmã disse que
estou tendo uma mentalidade arcaica. — Ele balança a mã o no ar
enquanto fala. — Bom, eu já sou um velho e nã o posso mudar o meu
jeito de pensar. Se ele vale a pena ou nã o, é algo que só você pode
decidir, mas quero que você me ouça bem, a ú nica coisa que me importa
de verdade é ver você feliz, seja com esse rapaz ou com um homem
mais velho, tanto faz, ilha.
— Eu sei, pai, obrigada.
— Eu pre iro morrer a me sentir um estorvo em sua vida e tenho
certeza de que Suzy també m pensa a mesma coisa.
— O senhor nã o é , nem ela.
— Otimo, entã o pare de sentir medo, minha menina. — Meu pai
espalma a mã o em meu rosto e acaricia minha pele. — Eu nã o quero te
ver assim triste.
— Nã o estou triste, pai. — Coloco minha mã o sobre a sua.
— Está sim, ilha, e o que me chateia é saber que você nã o sabe
reconhecer a tristeza, mesmo que ela esteja bem na sua frente. Isso
deixa claro o tipo de vida que a minha menina está levando, o tipo de
vida que eu nã o quero para você .
Tento sorrir, mas nesse momento volto a ser a garotinha frá gil e
assustada e faço algo que sei que vou me odiar por ter feito quando for
embora, mas que, nesse momento, é tudo o que eu preciso fazer: eu
choro.
Ainda estou chorando quando chego à casa de Suzy, ela está na
porta me esperando com uma garrafa de vinho em uma mã o e uma
caixa de chocolates na outra, os braços abertos e um pedido de
desculpas nos lá bios.
Choro até a caixa de chocolate esvaziar, até o vinho secar, até xingar
minha irmã de todos os palavrõ es que conheço, até que as palavras do
nosso pai deixem de me machucar.
— Acho que nunca me senti tã o mal em toda a minha vida — admito
encarando a pilha de papel higiê nico usado a minha frente.
— Ele nã o fez por mal, você sabe.
— Eu sei, mas, à s vezes, a verdade dó i, e hoje ele me mostrou uma
verdade que nã o gostei de ver.
Suzy segura minhas mã os entre as suas e me encara enquanto fala.
— Entã o encare ela de frente e veja o que está ao seu alcance para
mudá -la.
Balanço a cabeça incapaz de dizer alguma coisa e me deixo ser
abraçada, à s vezes é tudo o que a gente precisa.

As duas semanas que passo com Suzy voam, por incrı́vel que pareça,
ela conseguiu; fomos a todos os lugares que ela havia planejado,
terminando com uma tarde em um spa onde saio me sentindo
revigorada e pronta para correr atrá s da minha felicidade.
No caso, um garoto de 1,85m, cabelos castanhos e lindos e
sonolentos olhos verdes que parecem carregar o mundo.
Ao menos, o meu mundo.
— Ele tá gato mesmo com esse corte, hein? — Suzy diz enquanto
continua stalkeando todos os amigos que seguem Nuno no Instagram
em busca de novidades sobre ele.
— Você quer parar de fazer isso? Está me dando nervoso —
resmungo, mas nã o consigo parar de olhar a foto onde Nuno está em
uma festa ao lado de pessoas que nã o conheço, ele nã o parece nem um
pouco interessado na foto, mesmo assim dá um sorriso torto de lá bios
fechados que faz meu coraçã o derreter.
— Preciso ver o que meu cunhadinho anda fazendo — Suzy justi ica
enquanto abre fotos atrá s de fotos encontrando mais duas desse
mesmo dia, uma dele com os pais, uma dele de per il, sorrindo
enquanto conversa com algué m.
— Você vai acabar curtindo uma dessas sem querer e eu juro que
vou matar você .
— Ops, acho que curti — ela diz e cai na gargalhada quando meus
olhos se arregalam.
— Você me paga! — Jogo-me em cima dela, puxando o celular da
sua mã o enquanto rimos de doer a barriga.
— Eu te amo — ela diz um tempo depois, ainda ofegante depois de
uma crise de tosse.
— Sorte sua porque eu te odeio — respondo olhando para o teto,
pensando em tudo o que essa frase representa para mim.

Ainda estou olhando para a tela do celular enquanto caminho pelos


corredores quase vazios do colé gio, a maioria dos alunos ainda estã o de
fé rias, espalhados pelas estaçõ es de esqui das Cordilheiras dos Andes
ou algo do tipo.
Estou respondendo uma mensagem de Suzy, rindo de suas
palhaçadas, quando ouço um som vindo de uma das salas, paro
imediatamente, sentindo meu coraçã o quase pular pela boca com o déjà
vu que sinto.
Para a minha sorte, a porta se abre e Cindy sai de dentro da sala, o
rosto, uma má scara de frieza e tranquilidade, enquanto sua mã o segura
irme a alça da mochila.
— Stella. — Ela inclina o rosto e me dá um sorrisinho cı́nico que já
conheço.
— Oi, Cindy, tudo bem?
— Tudo ó timo e você ?
— Otima també m. — Olho para a porta que ainda está aberta, mas
nã o consigo ver ningué m de onde estou.
— Estava dando um tempo pra nã o ter que encontrar um carinha
que nã o tô mais a im, sabe como é . — Ela pisca para mim enquanto
solta a porta e, por mais que eu saiba que ela está mentindo, nã o tenho
o menor interesse de saber quem é o cara com que ela estava se
pegando lá dentro.
— Quem está aı́ dentro? — pergunto sem paciê ncia para suas
historinhas.
— Ningué m — ela debocha da minha cara.
— Cindy, isso aqui é uma escola, nã o é lugar para esse tipo de coisa.
— Nã o sei do que você está falando.
— Nã o faça mais isso, ou nã o vou hesitar em te mandar para ter
uma conversinha com o Montanari mais uma vez.
Ela revira os olhos, mas nã o se abala com minha ameaça.
— Relaxa um pouco, Stellinha, a vida passa rá pido demais para a
gente icar se estressando com bobagens. — Ela ajeita a mochila e puxa
o cabelo que icou preso na alça, é o su iciente para que eu possa ver a
marca de um chupã o em seu pescoço.
— Nã o estou aqui para relaxar, estou aqui para fazer o meu
trabalho.
— Tem certeza? — Ela ergue uma sobrancelha e nã o preciso que
diga mais nada, é claro que a ú ltima pessoa nessa escola que tem
condiçõ es de dar algum sermã o nela sou eu, entã o respiro fundo e digo.
— Nã o faça mais isso, é sé rio.
Entã o me afasto seguindo meu caminho para a sala dos diretores,
sentindo o peso da hipocrisia em minha mã o quando meu celular vibra
com a mensagem que esperei o dia inteiro para receber.

Romeo: Podemos nos


encontrar na Beth daqui a
meia hora.

Olho em volta com a certeza de que qualquer um é capaz de ver o


que essas simples palavras fazem a meu coraçã o.
Sim, Cindy, você tem razã o, a vida é breve demais, e por isso estou
correndo atrá s do que realmente importa para mim.

Sã o quase sete da noite quando estaciono o carro na frente da


cafeteria, alguns grupos de pessoas estã o espalhados pela calçada
tomando um chocolate quente para espantar o frio de agosto enquanto
conversam como se estivessem em algum encontro, fecho meu casaco e
caminho em direçã o a entrada, tentando nã o parecer tã o ansiosa
quanto estou.
Beth está no balcã o enlouquecida com tantos pedidos, mas acena
para mim assim que entro. Vou até uma mesa do fundo e me sento à
espera dele, olho pela milioné sima vez para a mensagem que mandei
ontem, assim que cheguei em casa, depois de lutar contra meus
fantasmas por duas semanas.
Júlia: Não consigo parar de
pensar no que você me disse a
última vez que nos
encontramos.
Se for verdade, me encontre
amanhã. Precisamos
conversar.
Sua Júlia.

Me odeio por me sentir tã o insegura, por ter medo de estar sendo
invasiva, odeio a forma como minhas mã os estã o suadas e como meu
coraçã o bate com tanta força.
É só ele, Stella, o Nuno, o garoto por quem você se apaixonou, o
homem a quem você entregou seu coração.
Repito essas palavras milhares de vezes enquanto intercalo meu
olhar entre a porta e o celular. Dez minutos depois começo a me sentir
desconfortá vel, nã o sei mais o que estou fazendo aqui, e se eu tiver
entendido as coisas de forma errada? E se ele estava apenas sendo o
Nuno de sempre, gentil e educado?
Respira, Stella, respira.
Tomo um gole do chocolate quente que Rael me trouxe há alguns
minutos, mas ele tem um gosto amargo, olho para a porta mais uma vez
na esperança de que seja ele, mas é Maddie. Ela entra, olha em volta
provavelmente à procura de Levi, quando me vê , ela acena e sorrio
enquanto a vejo se aproximar.
— Oi, Stella. — Ela puxa uma cadeira e se senta, droga.
— Tudo bem? Está esperando o Levi?
— Na verdade vim te ver.
— Eu? — Respiro fundo e começo a pensar em algo educado para
falar, mas Maddie se adianta.
— O Nuno me pediu para vir.
Suas palavras abrem um buraco em meu peito, preciso de alguns
segundos para compreender o que ela quer dizer com ele a mandou
aqui.
— Como assim? — Olho para a porta, na esperança de que isso seja
apenas uma pegadinha ou sei lá . — Ele vai se atrasar?
— Nã o, Stella, ele nã o vem.
— Como nã o vem? — Olho para o celular e me sinto ridı́cula quando
me dou conta do que está acontecendo. — Ele te mandou no lugar dele
— constato.
— Na verdade, ele nã o poderia vir, mesmo que quisesse, Nuno nã o
está no Brasil.
— Como nã o? Onde ele está ?
— Olha, eu odeio estar aqui, odeio a forma como você s estã o, de
verdade, Stella, se eu pudesse fazer algo para ajudar você s, eu faria,
mas...
— Ei, tudo bem, Maddie, você fez muito mais do que eu jamais
imaginei que poderia ter, foi uma grande amiga quando mais precisei,
nã o se sinta mal, foi melhor assim para nó s dois.
— Você nã o entende.
— Nã o há o que entender, ele nã o está aqui, sequer me falou que
nã o viria, me fez esperar por algo.
— Ele te ama, Stella, meu Deus, é tã o lindo ver a forma como ele fala
de você , ele te ama tanto.
— Mesmo assim, ele nã o está aqui. — Baixo o rosto e engulo o nó
que se forma em minha garganta. — Mas nem todos os amores foram
feitos para serem vividos, nã o é isso que aprendemos nas tragé dias
româ nticas? — Forço um sorriso a se espalhar por meu rosto, mas as
lá grimas pinicam meus olhos.
— Nesse momento, eu odeio as tragé dias româ nticas — Maddie diz
enquanto passa o punho no nariz e funga.
Sorrio sentindo uma dor nova em meu peito, a dor que achei que
estava preparada para sentir, mas que, mesmo assim, me assusta com a
força com que ela me acerta em cheio: a dor do coraçã o partido.

Estou sentada no meu sofá , tentando com todas as minhas forças


nã o ter pena de mim mesma, enquanto leio a carta que Nuno me enviou
atravé s da Maddie pela segunda vez. Minhas mã os ainda tremem e há
duas poças de lá grimas manchando o papel.

“Minha pequena covarde,


Antes de mais nada, eu quero que você me perdoe, por ter ido embora
da sua cama naquela noite, por ter te tratado daquela forma na clareira,
por ter te feito acreditar que a culpa em algum momento foi sua.
A culpa não é sua, nem minha para falar a verdade, não há culpados
nessa história, há apenas a vida, seguindo seu curso, mostrando que nem
sempre podemos ter aquilo que queremos.
Se fosse assim, Matteo ainda estaria aqui, Suzy não estaria contando
seu tempo de vida, eu não estaria do outro lado do mundo e você não
estaria aí, lendo essa merda e chorando.
Eu sei que você está chorando.
Lembra quando te disse que sempre vou fazer o melhor para você?
Acredite, Stella, eu estou fazendo, isso é o melhor para você, para a sua
carreira, para a sua vida, é o melhor para mim também, estou tentando
me entender com meu pai, não é tão fácil, mas tem dias que a gente até
consegue sorrir, um passo de cada vez, né?
Quero que você saiba de outra coisa, te conhecer me mudou, me
transformou em um cara diferente, envelheci dez anos nesses meses em
que estivemos juntos, foram os meses mais incríveis da minha vida e todas
as noites, quando me deito na cama, ainda me lembro de cada momento
que passamos juntos.
Pessoas especiais mudam a nossa vida.
Você mudou a minha, espero que eu tenha mudado a sua, para
melhor.
Não faça perguntas para Maddie, ela não tem respostas, ninguém
tem, nem mesmo o Ivan. Ele só está bravo porque não concorda com
nada, como sempre.
Seja feliz, sorria bastante, aquele bando de zé punheta morre por um
sorriso seu. Por favor, não use camisa branca em dias de chuva e nunca se
incline em uma mesa sem antes olhar quem está atrás de você.
E o mais importante de tudo, não se sinta culpada, se eu pudesse
voltar e fazer tudo de novo mil vezes eu faria.
Isso não é um adeus, mas vou entender se for.
Te odeio com toda a força do meu coração de moleque.”

Estou chorando quando termino de ler a carta, se eu fechar os olhos,


ainda posso ouvir a sua voz falando em meu ouvido essas palavras.
Te odeio, Stella, como nunca odiei alguém em toda a minha vida.
Um soluço rasga meu peito e puxo uma almofada para o meu colo,
nunca me senti tã o sozinha em toda a minha vida e, por mais que ele
diga que eu nã o devo me sentir culpada, é tudo o que consigo fazer, me
sentir culpada, por ter permitido que aquele garoto entrasse em meu
coraçã o e me izesse conhecer um amor tã o bonito, só para depois
arrancá -lo de mim.
Acordo ao som de uma confusã o do lado de fora do apartamento,
nã o é algo que me surpreenda, a diferença é que, na maioria das vezes,
a bagunça começa depois da meia-noite quando os estudantes
começam a voltar para casa bê bados e agitados, mas quando olho no
reló gio ainda sã o nove e meia.
Um instante depois, algué m bate na minha porta.
— Stella, abra a porta. — Uma voz familiar me faz levantar do sofá ,
embora eu ainda nã o consiga reconhecer quem seja. — Vai logo, quero
fazer xixi.
— Fala baixo — outra voz retruca e, dessa vez, sei quem é .
Vou até a porta e a abro me surpreendendo ao encontrar Maddie,
Cindy e Levi parados do outro lado.
— Graças a Deus, com licença — Cindy diz aliviada.
— A porta de frente! — digo quando ela passa correndo por mim.
— Ela tá tomando um chá esquisito que faz ela ir ao banheiro igual
uma grá vida — Maddie justi ica.
— Entrem. — Indico a sala enquanto passo as pontas dos dedos
embaixo dos meus olhos. — O que você s estã o fazendo aqui?
— Será que algum dia seremos recebidos de outra forma? — Levi
pergunta com seu tom brincalhã o de sempre.
— Me desculpe, é que...
— Nã o liga para ele — Maddie diz se sentando no sofá e puxando o
seu namorado junto.
— Aconteceu alguma coisa com o Nuno? — pergunto sentindo as
pernas tremerem só de imaginar.
— Relaxa, pro, ele tá ó timo. — Cindy aparece ainda arrumando a
roupa.
— Entã o? — Olho para cada um deles esperando a resposta.
— A gente veio te fazer companhia. — Cindy se senta ao lado de
Levi, que passa o outro braço por seu ombro, e ico por um instante
tentando entender o que eles estã o fazendo aqui.
— Vieram?
— A Maddie achou que você ia precisar depois da... ai! — Levi
resmunga quando Cindy dá um tapa em sua cabeça e Maddie dá um em
seu abdô men. — Isso é agressã o, você s sabiam? — Ele esfrega a cabeça
e as meninas reviram os olhos.
— Sororidade — Cindy diz piscando para mim e sorrio quando me
dou conta de que eles estã o aqui para que eu nã o me sinta triste.
— Entã o, já comeram? — pergunto puxando o cardá pio da pizzaria
e deixando que um sorriso enorme se espalhe por meu rosto.
As vezes, a gente só precisa aceitar que existem pessoas especiais na
nossa vida.

— Esse ilme é uma droga! — Levi resmunga esparramado no meu


sofá .
— E nada, até que eu gostei — Maddie diz sentada ao meu lado no
chã o.
— Ah, fala sé rio, o ilme é mesmo ruim, a gente tá assistindo só
porque o ator é gatinho — diz Cindy, que ainda está revirando o pedaço
de pizza no prato.
— Se liga, loira, esse moleque deve pesar uns dez quilos — ele diz,
ainda indignado, quando as letrinhas começam a subir.
— E daı́, você se surpreenderia se soubesse o que eu sei sobre os
caras magros — Cindy o provoca e eles começam uma discussã o sobre
corpos masculinos, que pre iro nã o participar.
Recolho o lixo e levo para a cozinha, ainda rindo das barbaridades
que Cindy fala; seu humor á cido é engraçado e torna a noite leve. Hoje
penso no quanto foi ridı́culo da minha parte ter ciú mes dela, Cindy é
uma força da natureza, e isso a torna uma garota incrı́vel e, à s vezes,
mal interpretada.
— Como você está ? — Maddie se junta a mim colocando os copos
dentro da pia.
— Feliz que você s vieram — admito.
— Foi ideia da Cindy.
— Jura? — pergunto surpresa.
— Uhum, ela disse que o Nuno nã o merecia que você icasse mal por
ele e que, se depender dela, você nã o vai icar.
Sorrio ao imaginar a loira diabó lica sentada no chã o do meu
apartamento falando algo desse tipo.
— Eu posso imaginá -la falando isso.
Termino de lavar os pratos e Maddie seca, acompanhamos a briga
entre Levi e Cindy na escolha do pró ximo ilme, já passa da meia-noite e
nã o faço ideia de que horas eles pretendem ir embora e, sinceramente,
nã o quero que eles vã o.
— O Nuno disse que você nã o sabe de nada, é verdade?
— Sim, a famı́lia dele está meio que de fé rias, ou algo do tipo, nã o
falaram nada para ningué m, o Ivan tá furioso porque nem para ele o
Nuno contou.
Fico feliz ao saber que Nuno está viajando com sua famı́lia, espero
que de alguma forma quando eles voltarem que sejam tudo diferente e
que ele possa descobrir o que realmente quer nesse mundo como o
Nuno, e nã o a sombra do seu irmã o morto.
— Imagino, Ivan já está furioso há algum tempo.
Maddie olha para a sala e volta a olhar para mim.
— Acho que ele ainda vai icar por mais um tempo.
— Espero que nã o muito, eles precisam se resolver.
— Concordo, mas como fazer quando duas pessoas sã o tã o teimosas
que nã o admitem sequer que se gostam?
— Boa pergunta.
No sá bado vou ao cinema com Maddie e Cindy. Assistimos uma
adaptaçã o de um romance que acabou de sair, Levi se recusa a nos
acompanhar e Ivan nem atende a chamada de Cindy, passamos um dia
gostoso e me surpreendo com o quanto nos damos bem, na maior parte
do tempo nã o me sinto mais velha que elas, nem errada por ter amigas
dez anos mais novas do que eu, o que faz com que eu me sinta ainda
pior quando penso em todas as barreiras que impus ao meu
relacionamento com Nuno por causa da nossa diferença de idade.
Se a idade nã o interfere nas minhas relaçõ es de amizade, nã o
deveria interferir nas amorosas.
Na segunda, quando chego à escola, me sinto um pouco melhor, sei
que o tempo é o melhor remé dio para esse tipo de coisa e decidi que
vou esperar, seja lá o que o Nuno esteja fazendo, ele me disse para
con iar nele, e eu vou.
Estou me preparando para a minha ú ltima aula do dia quando vejo
uma cena que chama a minha atençã o, nã o deveria a inal de contas, nã o
há nada demais no fato de um aluno e um professor estarem
conversando, se nã o fosse pela forma como a garota sorri e enrola a
mecha do cabelo nos dedos enquanto olha para Tony de um jeito que
nã o tem absolutamente nada a ver com fó rmulas e leis.
Eles estã o tã o imersos na conversa, que nem ao menos se dã o conta
quando me aproximo.
— Olá , Tony. — Sorrio para a garota que nã o sei o nome e ela
empalidece.
— Stella? — Ele tenta parecer tranquilo, mas seu sorriso nervoso o
entrega.
— Como vai?
— Estou aqui explicando para a Dé bora uma questã o que ela está
com di iculdade.
— Eu imagino, cá entre nó s, nunca fui muito boa com nú meros —
brinco, mas a menina nã o sorri, ela olha para Tony e para mim como se
tivesse sido pega fazendo algo errado.
Nesse momento espero que os boatos sobre nó s dois tenham
chegado a ela.
— E-eu preciso ir. — A garota dá um passo para trá s. — Tchau.
— Tchau, querida. Ah, Dé bora... — a chamo e ela se vira para olhar
para mim. — Acho que tem um grupo de estudo todas as quintas no
pré dio do laborató rio, vai te ajudar e deixar o professor Tony mais
aliviado. — Pouso minha mã o delicadamente no pulso dele e Tony me
olha alarmado.
— Ah, sim, vou procurar. Obrigada, pro.
A garota se vai, quase correndo, e me viro para Tony, que tem o
pescoço vermelho.
— També m preciso ir para a minha aula. — Começo a me afastar,
mas Tony segura meu braço me mantendo no lugar.
— O que foi isso?
— Acho que o certo seria eu te fazer essa pergunta, nã o é ?
— Nã o estou entendendo o seu tom.
— E eu nã o entendi o que foi aquilo. — Aponto para a direçã o de
onde a garota foi. — Eu estou torcendo para que esteja enganada e
aquela garota nã o estava se insinuando para você .
— Ah qual é , Stella, esses adolescentes vivem se insinuando para
nó s.
— Você tem ideia do que aconteceria se o Montanari te visse tendo
esse tipo de interaçã o com uma aluna? — tento manter o foco da
conversa no que aconteceu e nã o na hipocrisia das minha palavras.
— Nã o, eu nã o sei, você pode me explicar? Tem alguma dica para me
dar Stella? — Seu tom faz um frio se espalhar pela minha espinha e
puxo meu braço me soltando.
— Eu... só estou tentando te ajudar. — Mantenho meu olhar irme,
rezando para que ele nã o seja capaz de notar a forma como suas
palavras me atingem.
— Acredite, Stella, eu nã o preciso da sua ajuda. — Ele sorri e se
afasta. — Boa aula, professora.
Tony passa por mim, o ar de arrogâ ncia que muitas vezes tentei ver
como algo charmoso me deixa nauseada, observo-o se afastar enquanto
tento me acalmar.
Deus do céu, o que ele quis dizer com aquilo?
Estamos em uma cantina pouco conhecida pelos turistas que
visitam Roma, algo muito comum para os moradores que fazem
questã o de manter algumas preciosidades só para si.
A mesa está lotada de pessoas, a maioria parentes distantes, primos
que nunca vi, tios dos quais nã o me recordo, um ou outro amigo da
é poca de adolescente do meu pai, quando ele vinha passar as fé rias na
Itá lia, no palco uma banda animada canta uma mú sica agitada, minha
mã e está feliz, talvez seja efeito do á lcool, ou talvez ela esteja realmente
fazendo o que a terapeuta familiar indicou e permitindo-se curar.
E graças a ela que estamos aqui, nessa viagem que tem como
inalidade resgatar a nossa famı́lia, é pelo sorriso bonito dessa mulher
que estou aqui, gastando meu italiano meia boca, me dividindo entre o
tio Antonello e a tia Gê nova, sorrindo para histó rias que nã o entendo
enquanto como sem parar.
Meu pai está do outro lado da mesa, sem a sua companheira gravata,
vestindo apenas uma camisa de linho com os primeiros botõ es abertos
e o cabelo um pouco fora do lugar, ideia minha que ele aceitou sem
questionar.
Preciso dizer que Antô nio D’Agostinni é um homem bonito quando
nã o está sendo um maldito babaca, é até mesmo um cara legal. E
estranho, mas nos ú ltimos dias tivemos longos diá logos sobre coisas
que nunca conversamos: ilmes, livros e mú sicas. Trivialidades que
deveriam ser comuns entre pais e ilhos.
E engraçado pensar que precisamos sair da nossa casa para
conseguirmos nos enxergar de verdade.
Ele olha para ela, em seguida para mim, como se eu fosse o pai e ele
o ilho, como se nã o izesse ideia de como encontrar o caminho até o
coraçã o da sua mulher novamente e, pelo que vejo, ele nã o sabe e está
apavorado com isso.
Faço um meneio de cabeça para a pista e ele segue com o olhar, vejo
seu rosto mudar quando ele entende o que estou sugerindo, entã o meu
pai vira o resto do vinho e se levanta chamando a atençã o da velharada
a sua volta.
— Violeta — ele a chama com seu tom de voz imperativo, marca
registrada da sua herança italiana. Ela olha para ele, de pé , encarando-a,
o sorriso se esvaindo do seu rosto pela insegurança. — Me concede o
prazer de dançar com você ?
Coloco a minha taça na boca para nã o sorrir do esforço do meu pai,
mas é quase impossı́vel quando noto que a mã o estendida está
tremendo.
Dio Santo!
— Antô nio, eu... eu nã o sei dançar isso. — Ela olha para a pista onde
casais estã o dançando uma dança tı́pica.
— Nem eu, vamos aprender juntos. — Ele sorri, e me inclino
tocando meu ombro no da minha mã e.
Ela olha para mim e sorrio em um pedido silencioso para que ela
tenha misericó rdia desse pobre homem.
Se permitam recomeçar...
— Per favore1 — ele pede, em um italiano perfeito que faz ela
suspirar.
Ai, cacete, esse é o ponto fraco dela.
— Está bem. — Minha mã e se levanta, fazendo com que a italianada
toda se agite batendo palmas.
Observo com um sorriso, meus pais se aproximando, ainda nã o é o
que eles precisam, há um longo caminho pela frente, meu pai precisa
mostrar a ela que seu amor ainda está vivo, minha mã e precisa escolher
se perdoa todos os anos em que viveram como inimigos, é a histó ria
deles, eu nã o posso intervir. Sinceramente, nesse momento sequer sei
se quero.
Alguns meses atrá s se me perguntassem se eu icaria feliz de ver
eles juntos, eu diria que era mais fá cil o inferno congelar do que isso
acontecer.
E, acho que o inferno já nã o deve ser um lugar tã o quente assim.
Estamos hospedados em Tivoli, uma cidade pró xima a Roma,
famosa por sua Villa Adriana, um dos mais bem conservados sı́tios
arqueoló gicos do Impé rio Romano, mas que, apesar de ser uma cidade
turı́stica, ainda tem uma quietude interiorana que transmite paz. A casa
é linda, fresca, aconchegante e tem cheiro de pã o caseiro e uvas frescas.
Estou sentado na varanda, ouvindo os grilos enquanto tomo mais
um gole do vinho que peguei na despensa, estou levemente alto, mas
ainda completamente lú cido, sinto a cabeça leve e o coraçã o
melancó lico de um jeito bom enquanto ouço uma rá dio local tocando
uma mú sica italiana que nã o conheço e penso, pela milioné sima vez no
dia, como seria estar aqui com Stella.
Ouço algué m se aproximando e tenho tanto medo de encontrar
algum tio vindo de sei lá onde, querendo conversar sobre coisas que
nã o entendo, que permaneço quieto olhando para o belo jardim à
minha frente.
Ele arrasta a pesada cadeira de ferro até se sentar ao meu lado, ouço
o barulho do vinho sendo derramado em uma taça e um logo gole antes
dele começar a falar:
— Eu dei o meu beijo debaixo daquela á rvore. — Meu pai aponta
para algum lugar na escuridã o à nossa frente. — Foi no verã o dos meus
treze anos.
Viro-me para olhar para ele, que ainda está usando a roupa que
escolhi para o jantar dessa noite, mas a camisa agora está para fora da
calça. Um homem comum, com seu ilho comum, em uma noite comum.
— Onde está a mamã e?
— Ela foi se deitar, está com um pouco de dor de cabeça.
— Ela bebeu muito essa noite.
— Sim.
— Eu nã o me lembro de ter visto ela sorrir tanto algum dia.
— Já faz muito tempo, mas ela sorria muito quando a conheci.
— Você s conversaram?
— Estamos conversando, vai ser um longo caminho para nó s. — Ele
encara a taça em sua mã o parecendo cansado.
— Contou a ela sobre as mulheres que teve durante esses anos?
— Sim, ela sabe sobre tudo.
Balanço a cabeça orgulhoso por ele ter sido honesto com ela, era
uma das exigê ncias do nosso acordo, essa viagem, nó s trê s juntos, as
verdades expostas, as idas à terapia familiar. O recomeço.
— Certo.
— Eu preciso te falar uma outra coisa.
— Pode falar.
Ele respira fundo e começo a me sentir nervoso, um sentimento
ruim agita meu estô mago cheio de vinho.
— Eu quero que você entenda que meus erros nã o justi icam nada.
— Certo.
— E que se eu pudesse voltar atrá s e desfazer meus erros eu
voltaria.
— Isso é tolice, nó s dois sabemos.
Ele concorda com um meneio de cabeça, respira fundo mais uma
vez, buscando coragem e me deixando ainda mais agitado.
— O Zimmermann nã o te ameaçou.
Sinto meu corpo inteiro retesar e um arrepio horrı́vel percorrer
meu corpo.
— O que você disse?
— Ele nã o chantageou você , ilho, ele sequer sabe sobre você s,
quem levantou tudo aqui fui eu. — Seus olhos estã o baixos quando
termina de falar e me sinto um pouco zonzo, como se, de repente,
estivesse muito bê bado e essa conversa toda nã o izesse o menor
sentido.
E nã o faz.
— De que porra você está falando? — altero meu tom de voz,
dominado por um medo insano de que tudo o que iz até agora foi em
vã o.
— Stella nã o está correndo nenhum perigo.
— Eu nã o entendo... — Levanto-me e começo a andar de um lado
para o outro sentindo que o ar, de alguma forma, icou mais pesado. —
Por que você fez isso? — Sinto a palavra escapar da minha boca, mas
nã o tenho certeza de mais nada.
— Porque eu tive medo.
— Medo? Você me chantageou por medo?! — grito e meu pai
respira fundo com uma calma surpreendente, que nã o combina em
nada com ele.
— Medo de te perder, de perder a sua mã e, de desmoronar sozinho
sem minha famı́lia.
— Seu ilho da puta — resmungo incapaz de respirar direito com a
raiva que borbulha em meu peito.
— Eu nã o me orgulho disso, Nuno.
— E por causa dos seus medos, eu perdi a Stella — constato, ainda
me sentindo meio adormecido, incapaz de reagir com mais a inco.
— Nã o, Nuno, ao contrá rio, eu protegi você s.
— Quem tirou aquelas fotos?
— Nã o importa mais.
— O caralho que nã o, quem foi?
— Clá udia.
— A secretá ria? — pergunto e ele con irma balançando a cabeça,
parecendo ao menos envergonhado. — Deus do cé u! — Esfrego meus
cabelos e rosto desejando acordar desse pesadelo.
— Você nã o imagina o que as pessoas sã o capazes de fazer por
dinheiro.
— Ao contrá rio, eu sei exatamente o que eles podem fazer — digo
ainda me sentindo inerte. — Entã o tudo aquilo foi mentira? A histó ria
da garota morta?
— Nã o, infelizmente nã o foi mentira, mas ele nã o está realmente
preocupado. De certa forma, fui condescendente ao ajudá -lo.
— Jesus Cristo. — Me jogo de volta na cadeira, sem forças sequer
para brigar.
Meu pai mentiu para mim, mais uma vez, e isso só faz com que o
buraco que estamos tentando fechar com essa viagem e nosso acordo
se abra um pouco mais.
— Eu nã o me orgulho do que iz, Nuno, nã o foi um meio bonito, mas
chegamos aqui, estamos juntos, caminhando em busca de algo melhor.
Quando descobri sobre a irmã dela, eu soube que era a ú nica forma de
poder te manter perto de mim agora que você está prestes a completar
dezoito anos.
— Uma prisã o emocional — completo e ele balança a cabeça.
— Como eu disse, nã o me orgulho dos meus mé todos, mas ao
menos agora a garota está sendo bem atendida, e assim será até o im
da sua vida, conforme combinamos, e a Stella... — ele busca meus olhos,
enquanto fala devagar, testando minhas emoçõ es. — Ela está segura,
ningué m vai chantageá -la.
— Como você pode ter certeza?
— Porque existem homens que sã o intocá veis, Nuno, e eu sou um
deles. — Suas palavras soam mais suaves do que jamais ouvi. Ele parece
tã o envergonhado que, por mais que eu queira, nã o consigo sentir raiva,
talvez seja efeito do á lcool, ou talvez seja apenas a constataçã o de que
anos de brigas e ó dio nã o nos levaram a lugar algum, e, no fundo, ele
tem razã o, Suzy está protegida, Stella també m e, se esse foi o preço que
precisei pagar, eu o aceito, sem reclamar.
— E por isso que você está aqui agora, esse momento foi planejado?
Você esperou até o ú ltimo minuto para diminuir as suas chances de ser
rejeitado.
— Sou um empresá rio de sucesso, Nuno, aprendi a usar o tempo ao
meu favor, um estrategista sabe o momento certo de usar suas cartas.
— Mesmo com seu ilho — completo magoado.
— Principalmente sobre os assuntos mais importantes da sua vida.
— Você pode ser um grande empresá rio, mas é um pai horrı́vel e,
nesse momento, nã o tenho mais respeito algum por você .
— Eu compreendo e aceito o que você tem pra me dar.
— Certo. — Balanço a cabeça e termino de tomar o restante do
vinho sentindo o lı́quido descer por minha garganta e queimando
minhas veias com a dor da decepçã o.
— Você tinha razã o quando disse que a verdade é a melhor coisa.
Estava me matando mentir para você , foi difı́cil, mas agora nã o há mais
segredos entre nó s. — Um sorriso tı́mido se espalha por seu rosto e é
tã o estranho vê -lo tı́mido, que me pego pensando o quanto do meu
pró prio pai eu realmente conheço.
— Obrigado por contar, mesmo que eu nã o acredite em você sobre
nã o ter segredos — digo me dando conta do alı́vio de saber que nã o há
ningué m investigando Stella, bisbilhotando sua vida, que ela está
segura, livre para ser quem ela quiser. A professora, a irmã cuidadosa, a
amiga iel. A mulher da minha vida.
— Nã o posso te obrigar a acreditar em mim.
— Nã o, nã o pode.
— Você deve me odiar agora. — A voz dele está tã o baixa e triste,
que mal reconheço meu pai diante de mim.
— Odiar é cansativo, pai, e ando exausto demais.
Ele me olha por um tempo, como se precisasse compreender o que
estou guardando para mim, mas o que eu disse é a verdade, estou
cansado disso tudo, nã o quero mais brigar. Tudo o que iz minha vida
inteira foi brigar, reagir, lutar... e onde cheguei? O que conquistei? Nada,
absolutamente nada.
— Sua mã e me disse isso ontem.
— Entã o siga seu conselho, ela é uma mulher sá bia.
— Sim ela é — ele diz, ainda sorrindo. — E você está se tornando
um homem incrivelmente sá bio, ilho.
— E o que acontece quando paramos de tentar lutar contra o que
nã o podemos vencer.
— Eu tenho muito orgulho de você .
Nã o digo nada, sequer encaro seu rosto, nesse momento a ú ltima
coisa que sinto é orgulho de mim. Um dia iz uma promessa a uma
mulher, de que jamais a machucaria, e, graças a covardia do meu pai, eu
nã o fui capaz de cumprir minha promessa. Orgulho é uma palavra que
desconheço nesse momento.
— Eu imaginei que essa conversa seria mais á cida do que está
sendo — ele diz quando nota o silê ncio que se estendeu entre nó s.
— Alguns meses atrá s essa conversa já estaria encerrada.
— Foi por ela, nã o foi? Foi por aquela mulher que você se tornou o
homem que está se controlando para nã o me dar aquilo que eu mereço.
— O verdadeiro amor transforma as pessoas — digo ainda sem
olhar para ele.
— Para o bem e para o mal — meu pai completa e ergo os olhos
para encarar seu rosto triste, sabendo exatamente o que ele quer dizer
com isso.
— Eu sinto muito por você .
— Obrigado, ilho.
Sinto a amargura da palavra ilho em meus ouvidos, uma parte de
mim quer exigir que ele nã o me chame assim, mas uma outra parte,
aquela que Ivan sempre diz que é defeituosa, ainda se aquece ao som
dessa palavra. O bem e o mal duelam entre si, cabe a mim escolher o
que quero que se enraı́ze em meu peito.
— Nó s vamos icar mais um pouco — ele muda de assunto.
— Aqui?
— Nã o, vamos para a Gré cia, onde passamos nossa lua de mel, eu
havia prometido isso a ela há muitos anos, mas entã o Matteo nasceu e...
— Ele ergue os ombros, como se nã o existisse palavras para explicar a
vida. Na verdade, nã o há . — O tempo passou.
— E, ele passa.
Esvazio a garrafa e tomo mais um gole do meu vinho, saboreando a
acidez da uva em minha boca, sei que, se continuar, em breve nã o
estarei mais tã o só brio, mesmo assim bebo porque sinto que nesse
momento preciso da leveza de um bom vinho.
— Sabe, Nuno, aquele dia em que você bateu o carro do Matteo... —
ele começa a falar chamando minha atençã o. — Eu nunca tive tanta
vontade de te bater como naquele dia — ele diz com tanta emoçã o na
voz, que meu coraçã o magoado dispara.
— Tô ligado, e por que nã o bateu?
— Porque eu prometi a sua mã e, quando você s nasceram, que eu
nunca machucaria você s.
— Existem muitas maneiras de se machucar algué m, pai.
— Eu sei, ilho, hoje eu sei.
— Eu nã o queria fazer aquilo, aquele carro era o amor verdadeiro
do Matteo.
Meu pai sorri e meu coraçã o dó i.
— Eu odiava aquele Camaro barulhento e velho. — Meu pai
continua sorrindo enquanto provavelmente relembra alguma
discussã o. — Mas ele amava aquela droga.
— Rael disse que vai arrumar, você sabe, para ele també m é
importante.
— Sei, ilho, ele me disse que vai, mas nã o se trata do carro.
— Nã o?
— Nã o, na verdade nã o foi porque você destruiu a lembrança do seu
irmã o, e sim porque ver aquele carro amassado me lembrou do quanto
a sua vida é frá gil e... — ele para de falar, com a voz embargada por uma
emoçã o que desconheço vinda dele. Viro minha cadeira para icar de
frente para ele, meus joelhos tocam os seus enquanto agarro a taça
desejando que ela estivesse cheia. Deus, nunca precisei tanto beber na
minha vida. — Eu iquei apavorado porque se você morresse, ilho,
nunca saberia o quanto é importante para mim. — Ele estende o braço,
sua mã o segura meu pulso com força, como se temesse que eu pudesse
fugir se me soltasse, o polegar se move para frente e para trá s em uma
carı́cia desajeitada, que me conforta como se eu ainda fosse um
garotinho.
— Eu nã o morri e continuo sem saber — digo e odeio a fragilidade
das palavras que escapam da minha boca.
— Eu sei... — Ele balança a cabeça aceitando. — Eu sou um velho
turrã o e orgulhoso, que se viu cego pelo ó dio e pelo luto, e toda as vezes
em que você me enfrentava eu me fechava mais e mais na milha bolha e
toda a vez que eu queria que você entendesse que tudo o que eu fazia
era por você , eu me atrapalhava e acabava te machucando mais. Era
uma forma de machucar a sua mã e, porque eu queria que ela me
amasse, mas nã o sabia como e, no im, eu acabava ainda mais
machucado, sozinho, infeliz.
— A gente já se machucou bastante, pai.
— Sim, eu sei, eu iz tudo errado, nã o fui um bom pai para você , nã o
soube lidar com minhas perdas. — Ele balança a cabeça, com os olhos
tã o parecidos com os do meu irmã o ixos nos meus. — Mas eu quero
mudar, ilho, eu preciso mudar antes que meu tempo acabe.
— Isso é bom.
— Sobre aquela promessa tola que me fez, eu quero que você saiba
que eu nunca quis que você fosse o Matteo, sei que, à s vezes, falei coisas
horrı́veis para você que te izeram acreditar nisso, mas eu nunca quis
isso. Eu quero você , meu garoto dos olhos bonitos e do sorriso tı́mido,
quero meu menino, o menino corajoso que quase perdi naquele
hospital. Eu quero meu Nuno. — Sua mã o sobe até minha nuca onde ele
a espalma puxando-me para perto de si. — Eu te amo, ilho, nã o quero
que você saia daqui essa noite sem ter a certeza de que esse coraçã o
duro que bate aqui dentro é seu, da sua mã e e do seu irmã o, é por você s
trê s que ele bate, é por você s que ele sempre vai bater.
Pisco tentando afastar as lá grimas que ameaçam cair, milhares de
coisas nã o ditas estã o entaladas em minha garganta, mas sei que esse
nã o é o momento, teremos uma vida inteira para reparar nossos erros,
hoje nã o quero isso, també m nã o quero chorar, nã o quero que ele veja o
garotinho amedrontado que sempre fui para ele, quero que veja o
homem que me tornei durante a nossa jornada, quero que saiba que
estou aqui para ele, para a minha mã e, para a nossa famı́lia.
— Obrigado por me dizer todas essas coisas, pai, isso é importante
para mim — admito no instante em que ele me puxa para um abraço,
que demorou seis anos para acontecer, mas que tem o poder de curar
dois coraçõ es que estavam perdidos, ansiando por esse momento.

Estou terminando de arrumar minha mala quando ouço ela entrar.


— Vim aqui ver se você nã o estava precisando de alguma ajuda. —
Minha mã e se senta e começa a dobrar camisetas que estã o
amontoadas, nã o sã o muitas, mesmo assim, minha mala parece um
caos.
— Estava prestes a largar tudo e ir embora só com uma mochila.
Ela sorri enquanto arruma tudo daquele jeito que só as mã es sabem
fazer.
— Admita, você faz de propó sito, só para que eu possa arrumar —
ela brinca enquanto vai até o banheiro conferir se nã o deixei nada para
trá s. — Pegou seus documentos? Oculos escuros? Os fones de ouvido?
— Está tudo na mochila. — Abro-a e dou uma olhada só para
garantir.
— Que horas é seu voo?
— As duas. — Olho no reló gio para conferir que ainda estou com
tempo para uma ú ltima conversinha.
— Maravilha, seu pai disse que vai te levar — ela continua falando,
só para ingir que nã o está nervosa, mas a verdade é que dona Violeta
Castro odeia viagens de qualquer espé cie, mas principalmente as de
aviã o.
— Mã e — a chamo e ela desvia o olhar da mala agora fechada sobre
a cama. — Preciso saber uma coisa muito importante antes de sair
daqui. — Ela me olha com curiosidade e um pouco de preocupaçã o. —
A senhora está feliz?
— Que pergunta é essa, Nuno?
— A pergunta mais importante para mim, preciso saber se você está
aqui porque quer realmente isso, ou porque acha que é o melhor para
mim.
— Filho, uma mã e sempre vai pensar no que é melhor para o seu
ilho, faz parte do que somos, nã o posso ser feliz se você nã o for.
— Eu nã o serei feliz se souber que você está tentando algo com um
cara que nã o ama só para que eu ique bem. Se essa for a sua intençã o,
pode arrumar a sua mala e voltar para o Brasil comigo, porque nã o vai
rolar.
Minha mã e sorri, um sorriso largo e bonito que faz seu rosto se
iluminar. Deus, eu amo tanto esse sorriso.
— Meu menino lindo. — Ela acaricia meus cabelos desarrumando-
os do jeito que ela gosta de fazer. — Eu vi você s dois conversando
ontem.
— Era algo que a gente precisava há muito tempo.
— Essa noite ouvi seu pai chorar pela primeira vez desde que seu
irmã o morreu, mas dessa vez nã o era um choro de perda, era um choro
de emoçã o. — Ela continua mexendo no meu cabelo.
— Que bom.
— Eu tenho tanto orgulho de ser a sua mã e, sabia? — Balanço a
cabeça con irmando, porque por toda a minha vida ouvi ela dizer isso, e
talvez tenha sido isso que tenha me dado forças para me tornar o
homem que sou hoje.
Minha mã e me puxa para baixo, até que meu rosto esteja
acomodado em seu ombro, envolvo-a em meus braços, sentindo o
cheiro reconfortante do seu perfume, fecho meus olhos e deixo que ela
me embale por alguns instantes, como se eu ainda fosse o seu
garotinho.
— Apesar de tudo, dessa vez estou lutando por mim — ela sussurra,
a mã o em meu cabelo, segurando-me junto a si. — Pela primeira vez,
desde que o Matteo nos deixou, estou olhando para a vida por uma
nova perspectiva, e graças a você , ilho.
Afasto-me para olhar em seus olhos.
— A mim?
— Sim, ilho, você ajudou seu pai mesmo depois de tudo.
— Eu tinha uma escolha a fazer, acho que escolhi o caminho certo, o
do perdã o.
— Estou orgulhosa do homem que você está se tornando — ela diz
emocionada e sinto minha garganta fechando. — Stella é uma mulher
de sorte.
— Espero que sim.
— Vai dar tudo certo, ilho.
— Vai ser o que tiver que ser — digo afastando toda a esperança do
meu coraçã o, porque, nesse momento, ela é perigosa e traiçoeira.
A porta se abre e meu pai entra assustado, olhando para a minha
mã e e para mim.
— Está tudo bem?
— Está sim — ela responde limpando as lá grimas.
— E só a mamã e com saudades de mim — brinco ainda meio sem
jeito.
— Uma mã e sempre está com saudades dos seus ilhos. — Ela se
estica na ponta do pé e deixa um beijo em minha bochecha. — Te amo,
ragazzo2.
— Te amo, mamma3. — Beijo seus cabelos e coloco a mochila nas
costas enquanto meu pai pega a mala.
— Está tudo aqui? — ele pergunta e con irmo com a cabeça, entã o
ele se inclina e pousa seus lá bios nos da minha mã e, um gesto simples,
delicado e cheio de signi icados, que enche meu coraçã o de esperança.
Assim como a sutil mudança das estaçõ es, pouco a pouco meu
coraçã o parece compreender que a pior fase passou. Do calor do verã o
a frieza do inverno, sinto que estou chegando à neutralidade da
primavera. E isso é bom.
O peso perdido é recuperado, o sorriso leve volta a meu rosto, as
noites de happy hour com os colegas de trabalho se dividem com as de
cinema e pizza com minhas alunas e amigas, as tardes frias de leituras e
do chocolate quente dã o lugar ao frappuccino suave e refrescante, e
assim como os casacos pesados se vã o, deixando meus ombros mais
leves, a sensaçã o de que nada dura para sempre se foi. Nuno passa de
uma lembrança dolorosa a uma saudade gostosa.
Meio dramá tico eu sei, mas o que posso fazer se respiro poesia e
drama?
E a primeira vez que visto algo mais leve em meses, o inverno em
Monte Mancante é quase tã o severo quanto o de Campos do Jordã o,
estou tã o pá lida que o vermelho da peça me deixa parecendo uma
morta. Mas amo esse vestido, é um dos meus favoritos, clá ssico de
bolinhas com saia rodada. Me sinto bonita, como uma mocinha de um
ilme europeu e, por um breve instante, penso em Nuno, na forma como
ele me olhava sempre que eu entrava na sala de aula, como se pudesse
ver atravé s das roupas que eu usava, da minha pele, da minha alma.
Estou animada depois de um im de semana cheio, sorri tanto que
achei que acordaria com o maxilar doendo, sá bado foi dia de cerveja
grá tis no Danke e nunca vi aquele lugar tã o cheio, universitá rios e
riquinhos de Monte Mancante se misturaram com moradores das
cidades vizinhas e até mesmo algumas pessoas das fazendas, que quase
nunca se misturam, apareceram.
Quando chego à escola já nã o sinto mais aquela angú stia por saber
que Nuno nã o estará lá . Mesmo assim, ainda nã o consigo deixar de
erguer os olhos quando passo pelos corredores, meus olhos viciados,
em busca do garoto alto, de sorriso torto e olhar intenso.
E só um há bito que nã o consigo me desfazer, mas que nã o me
machuca mais.
E assim os dias se tornam semanas, e tudo o que sei sobre Nuno
está relacionado a escola, suas faltas estã o abonadas e seus trabalhos
sã o enviados por e-mail, um acordo entre seu pai e a diretoria da Santo
Egı́dio, que, provavelmente, envolve uma quantia imoral de zeros em
um cheque.
Aprendi a aceitar isso como algo bom. Como ele disse na carta, se
afastar de mim é a sua maneira de me proteger de mim mesma, porque,
do jeito que está vamos indo, nã o demoraria para que algué m nos
descobrisse, nossa conexã o era forte demais para icar escondida.
O tratamento da Suzy chegou a fase dois, e ela está se preparando
para viajar para os Estados Unidos, onde icará por um bom tempo. O
hospital está custeando tudo, inclusive as acomodaçõ es dela e de um
acompanhante e estou tã o feliz que tenho até medo de que tudo isso
seja um sonho.
Talvez seja apenas o equilı́brio do universo, aquela coisa, azar no
amor...

O inı́cio da primavera é marcado por uma data muito importante no


calendá rio o icial de Monte Mancante. A Festa dos Fundadores é o
evento mais esperado do ano na cidade e, desde o começo da semana, é
tudo o que se fala, seja na escola, no supermercado, na padaria, no café .
E contagiante ver a empolgaçã o das pessoas, durante trê s dias
inteiros, há eventos por todos os lados, festivais de comidas, danças
tı́picas, mú sicas e brincadeiras dos paı́ses de cada fundador. O complexo
Santo Egı́dio ica aberto para que todos possam circular por seus
corredores antigos, rever obras de arte que contam um pouco da
histó ria desse pedacinho de terra tã o peculiar e matar a saudade da
é poca em que um dia foram alunos.
E agradá vel e passo uma boa parte do meu tempo livre circulando
pela cidade, comendo, sorrindo e conversando com os moradores, que
sempre tê m uma histó ria para contar; é engraçado como as raı́zes
dessas pessoas sã o fortes, algo que se perde um pouco em uma grande
capital como Sã o Paulo.
Nuno e seus pais estã o de volta, foi o que ouvi falar, embora eu ainda
nã o o tenha visto, já que ele segue sem frequentar as aulas presenciais.
Tudo o que sei sobre ele é que Nuno mudou. Cindy é a que mais fala,
apesar de nã o saber quase nada, e pelo que ela contou, ele está
trabalhando com seu pai de initivamente e, de acordo com ela, por
vontade pró pria. Me recordo do rapaz triste que vi no topo daquela
colina, debaixo das roupas caras e rezo para que ela tenha razã o, eu nã o
suportaria saber que ele está infeliz.
Digo a mim mesma que nã o estou procurando por ele a cada passo
que dou, em cada grupo de jovens que vejo, em cada mesa, em cada
carro, a expectativa para revê -lo aumenta, conforme os dias de festa se
vã o sem que nenhum dos representantes da famı́lia D’Agostinni
apareça.
No sá bado é o dia da grande festa inal e toda a regiã o se preparou
para esse evento, um grandioso baile de gala encerra as festividades e,
de acordo com as pessoas com quem conversei, é uma das mais
badaladas de todo o paı́s. Com certeza, se eu fosse mais ligada em
celebridades já teria ouvido falar sobre ela. Estou nervosa e ansiosa
enquanto observo como tudo parece tã o bonito, elegante e caro.
— Entã o, o que está achando disso tudo? — pergunto para Tony,
parando ao seu lado.
— Estou achando meio exagerado. — Ele aponta para o smoking,
traje obrigató rio da noite, que está usando. — Me sentindo em uma
daquelas festas de quinze anos, sabe? — responde sorridente enquanto
tenta equilibrar uma espé cie de pastel alemã o de gosto duvidoso que
uma mã e de aluno fez questã o que ele provasse, porque era uma receita
centená ria da sua famı́lia.
Pelo jeito, Tony nã o está conquistando apenas as alunas.
Razã o pelo qual ele é um dos ilustres convidados da noite, o que o
deixou quase tã o tenso quanto eu, imagino.
— Eu sei sim, adorava aquelas festas.
— Vai me dizer que você teve uma?
— Ah nã o, mas fui em algumas e sempre me diverti muito.
— E daqui você gosta? — pergunta de forma desinteressada antes
de abocanhar o pastel e, pela cara que faz, tenho razã o com relaçã o ao
gosto.
— Gosto, no começo foi um pouco difı́cil me acostumar,
principalmente quando até o dono da farmá cia sabe seu nome e você
nã o faz ideia de quem é ningué m.
— Nossa, nem me fala, ontem estava voltando para casa e ouvi
algué m me chamando, era uma mulher em um SUV, e, por mais que eu
tenha tentado me lembrar de onde a conhecia, meu cé rebro nã o me
ajudou e tive que perguntar seu nome.
— Acredite, até o padre já sabe quem é você — digo e, apesar de
Tony sorrir, sei que estou falando a verdade.
— Desde que nã o conheça os meus pecados, está tudo bem — ele
volta a brincar e sorrio meio sem graça quando o assunto parece ter
acabado.
Ainda me sinto um pouco mal ao seu lado. Depois daquele dia,
nunca mais o vi conversando com nenhuma aluna e ele até mesmo se
desculpou comigo pela forma como me tratou, mesmo assim, ainda me
sinto desconfortá vel na sua presença.
Ficamos observando a movimentaçã o ao nosso redor, a escola
parece um grande palá cio medieval, pessoas em trajes carı́ssimos
circulam de um lado para o outro, garçons deslizam pelo salã o com
bandejas de prata recheadas de aperitivos de gosto duvidoso. Todos
estã o comendo, sorrindo e conversando, exatamente como imagino que
seria uma festa daquela é poca, é lindo ver tantas luzes cores e sons no
lugar que, na maior parte do tempo, é recheada de jovens estudantes.
— Aliá s, você está lindı́ssima essa noite — Tony diz chamando
minha atençã o enquanto me entrega uma taça nova de champanhe.
— Obrigada, você també m está muito elegante.
— Tenho uma missã o essa noite.
— Nem me fala. — Reviro os olhos relembrando o momento em que
o diretor nos convocou para uma reuniã o com a equipe responsá vel
pela festa.
No momento eles izeram parecer algo simples, até mesmo
engraçado, mas agora me sinto um pouco nervosa, desconfortá vel.
— O que me ajuda é saber que ao menos você estará do meu lado —
ele diz e sorrio sentindo um leve tremor de antecipaçã o.
— Stella! Eu quase nã o te reconheci — Clá udia, uma das secretá rias
do diretor Montanari, diz ao se aproximar, me abraçando e dando dois
beijinhos antes de cumprimentar Tony, o que acho que tenha sido o
motivo real da sua aproximaçã o.
— Isso é bom ou ruim? — brinco me sentindo um pouco
envergonhada.
A verdade é que, desde a hora em que cheguei, que tudo o que eu
quero é poder voltar para casa e trocar esse vestido por algo mais...
minha cara.
Mas, para variar, dei ouvidos a minha irmã e comprei um vestido
ousando e sexy, que deixa minhas costas nuas e a sensaçã o de que
qualquer um pode ver meus seios. Isso porque, de acordo com ela, hoje
à noite eu sou Stella Almeida, a mulher mais desejada de Monte
Mancante, nã o a tı́mida e sem graça professora de Literatura.
— Eu estou quase com inveja, você está linda — a garota simpá tica
diz enquanto seus olhos passeiam pela peça em meu corpo.
— Viu só , eu tenho razã o — Tony diz e nã o tenho coragem de olhar
para ele, tenho certeza de que vou evaporar de tanta vergonha. — Você
está incrı́vel essa noite, nã o que nos outros dias nã o esteja.
— Eu entendi, obrigada — respondo sentindo o rosto queimar de
vergonha.
Logo somos cercados por um grupo de professores e funcioná rios
do colé gio animados, sou apresentada a alguns professores
universitá rios e começamos a conversar, tento ingir que toda vez que
olho em volta, nã o estou procurando por Nuno, mas a verdade é que me
sinto frustrada a cada elogio que recebo, quando a ú nica pessoa que eu
gostaria que me visse parece nã o estar presente.
— Algué m já disse que você está linda? — Maddie para ao meu lado,
segurando uma taça de champanhe.
— Já ! E você , algué m já disse que está incrı́vel? — Me viro para
admirar o vestido maravilhoso dela.
— E de uma amiga minha, estudante de moda aqui da Santo Egı́dio.
— Ela dá uma voltinha timidamente e sorri enquanto admiro suas
curvas generosas, que quase sempre estã o escondidas em suas roupas
leves e discretas.
— Pobre, Levi, deve estar passando mal com esse vestido — brinco
e o sorriso em seu rosto aumenta.
— Ele també m nã o está nada mau com aquele traje. — Maddie
aponta a taça para um local e, quando me viro, encontro Levi, Ivan e
mais dois garotos conversando, todos em seus smokings que os fazem
parecer mais com poderosos homens de negó cios do que alunos. —
Você també m nã o acha que o mundo seria um lugar muito mais
interessante se os homens se vestissem assim todos os dias?
— Com certeza, muito mais.
Sorrimos enquanto observamos os garotos por mais um tempo.
— Está se divertindo? Deve ser tudo uma loucura para você , nã o é ?
— Maddie pergunta.
— Confesso que esperava algo mais simples, eu acho até que vi uma
atriz por aı́.
— Com certeza isso aqui tá cheio de celebridades, polı́ticos, gente
poderosa, nã o se assuste se achar que conhece algué m, com certeza já o
viu em alguma novela.
— Que loucura.
— Hoje é a noite de gala da cidade, dia das famı́lias fundadoras
angariarem fundos para diversas instituiçõ es e de esvaziar os bolsos
dos ricaços da regiã o. — Ela olha em volta e sigo seu olhar, nã o conheço
a grande maioria dos homens que vejo essa noite e imagino que sejam
convidados de honra.
— Estou feliz em saber que a festa tem um bom motivo.
— Na verdade, o motivo é aparecer, medir fortuna, fazer negó cios,
ingir que as famı́lias sã o felizes, uma grande festa de farsa, mas tá
valendo. — Ela ergue os ombros como se aquilo fosse algo banal, o que,
no caso dela, deve realmente ser. Pelo que conheço de Maddie, a garota
discreta que odeia chamar atençã o, isso aqui é tã o terrı́vel para ela
como está sendo para mim.
Nã o demora muito para que Levi se junte a Maddie, seus olhos
negros parecem brilhar diante da beleza de é bano da sua namorada, e
ela també m parece prestes a derreter diante dele, é um casal de tirar o
fô lego e me sinto feliz por vê -los tã o apaixonados.
— Uau, professora! — uma voz masculina chama nossa atençã o e
me viro para encontrar Pablo, um aluno do segundo ano que adora
fazer brincadeirinhas fora de hora nas minhas aulas.
Cumprimento-o e ignoro o olhar lascivo que ele me dá , tenho a
sensaçã o de que o garoto está embriagado, mas nã o tenho certeza. Em
uma cidade em que crianças dirigem carros, nã o me surpreendo com
mais nada.
A mú sica muda quando o mestre de cerimô nia nos indica o centro
da pista de dança, Levi puxa Maddie pela mã o e rejeito o convite de
Pablo, que me convida para dançar.
Tento me manter o mais discreta possı́vel e começo a cogitar ir para
outro lugar até que sinto o toque de uma mã o em minhas costas. Fecho
os olhos sentindo uma familiar sensaçã o de euforia quando ele se
aproxima um pouco mais, aperto os lá bios sabendo que nã o preciso me
virar para ver quem é . Meu coraçã o já o reconheceu.
— Me concede essa dança, Julieta? — ele pergunta, com a voz rouca
e baixa em meu ouvido preenchendo cada cantinho do meu coraçã o e
fazendo um riso nervoso surgir em meus lá bios enquanto as pontas dos
seus dedos tocam a pele nua das minhas costas. Tento manter a
respiraçã o tranquila, mas é impossı́vel quando sinto seus dedos
começarem a subir por minha espinha.
Penso em dizer nã o, depois de dois meses longe, Nuno nã o pode
simplesmente chegar e me pedir uma dança, mas no instante em que
me viro para rejeitá -lo, perco toda a coragem. Ele está divino, usando
um smoking como todos os outros homens essa noite, mas Nuno parece
ter nascido para usar algo assim, belo, imponente, elegante, que abraça
seu corpo alto de forma impecá vel. Seus cabelos sempre desordenados,
hoje estã o penteados para trá s, deixando seu rosto bonito à mostra, o
queixo masculino bem-marcado está barbeado, os lá bios provocantes
em um sorriso torto, parecem implorar por serem tocados e seus olhos,
esses olhos que me devoram enquanto aguardam por uma resposta,
que já nã o tenho mais coragem de dar, parecem capazes de enxergar
minha alma. Assim como sempre foi.
Deus, quanta saudades senti de ser vista por esses olhos.
— Por favor, só uma dança — ele pede com a mã o estendida, como
um verdadeiro cavalheiro dos romances de é poca que tanto amo. — Só
essa noite — ele completa como na noite em que esteve em meu
apartamento, quando, inocente, acreditei que poderia me proteger
desse garoto astuto.
— Só uma dança — digo ao permitir que ele segure minha mã o e o
sorriso torto, o mais belo do mundo, surge novamente. — Você está
pronto para isso? — pergunto, me referindo à carta que ele me
escreveu há mais de dois meses.
— Eu estou de initivamente pronto para isso — ele responde,
enquanto se inclina para deixar um beijo casto em meus dedos, que
fazem meu estô mago se revirar. — Obrigado — ele sussurra, seus dedos
longos e fortes envolvem os meus diante de toda a populaçã o de Monte
Mancante, e enquanto permito que ele me leve para o meio da pista,
ignoro os olhares que recebo, nã o quero saber o que estã o pensando.
Nã o hoje, nã o nesse momento.
E só uma dança com um dos meus alunos, digo a mim mesma,
poderia ser qualquer um, nã o estamos fazendo nada de errado, enfatizo
quando Nuno para e me puxa delicadamente para icar de frente para
ele. E só uma dança, em danças os homens tocam as mulheres, a irmo
quando sinto sua mã o enorme se espalhar por minhas costas nuas, as
pessoas se olham quando dançam, tento me convencer quando percebo
que nã o sou capaz de enxergar mais nada a minha volta.
E só uma dança, nada mais do que isso.
Heartbreak Anniversary começa a tocar em uma voz masculina tã o
suave, que sinto como se pudesse lutuar aqui mesmo, nos braços de
Nuno.
— Respira, Stella — Nuno diz, sorrindo como em tantas outras
vezes, enquanto se move de um lado para o outro me levando consigo.
— Eu estou respirando. — Tento ingir que estou calma, mas tenho
certeza de que ele é capaz de sentir minha ansiedade.
— Sei... — O sorriso aumenta e me pego imaginando o homem
incrı́vel que ele vai se tornar um dia. Se ainda menino tem essa força
capaz de sugar um universo inteiro para dentro de seu olhar, tenho
pena das mulheres que passarem por seu caminho daqui a dez anos.
— Você dança muito bem para...
— Deixa eu adivinhar, um... adolescente? — ele brinca.
— Nã o era bem isso que eu ia dizer. — Sorrio porque ele parece tã o
leve, que quero curtir esse momento.
— Nem só de festivais de rock vive um morador de Monte
Mancante.
— Percebi.
— Minha mã e adora dançar e, como meu pai trabalha demais, à s
vezes sou convocado a acompanhá -la em seus jantares bene icentes,
entã o fui obrigado a aprender — ele explica enquanto dançamos.
— E foi ela quem te ensinou?
— A pró pria.
— Ela está aqui?
— Sim, está , e nesse momento está olhando para nó s dois — ele diz
e quero me virar para vê -la, mas ele aumenta a pressã o em minhas
costas, me impedindo de me mover. — Você nã o vai conseguir ver. —
Nuno abaixa o olhar para encarar meus olhos. — Pequenina demais
para isso.
Reviro os olhos e ele dá uma gargalhada deliciosamente elegante.
— Nã o olhe em volta... — ele sussurra e, mais uma vez, me vejo
sendo levada de volta para aquele dia em que ele me disse a mesma
coisa na biblioteca.
— As pessoas devem estar olhando.
— Nã o dou a mı́nima para o que os outros pensam. — Ele olha para
o meu rosto e isso me deixa completamente desarmada.
— Isso nó s dois já sabemos.
— Eu vi você conversando com o Tony.
— Somos os convidados de honra.
— Tô sabendo — ele diz ainda me conduzindo de um lado para o
outro. — Como você está se sentindo?
Começo a rir, porque Nuno ciumento é fofo.
— Eu estou bem.
— Tem certeza? — pergunta parecendo realmente preocupado.
— Tenho sim.
— Certo.
Ele nos move mais um pouco, seguindo o ritmo da mú sica. Fecho
meus olhos por um instante me deixando levar, é uma sensaçã o boa,
tranquila, estranha porque sei que estou cometendo um erro, um
grande erro. Parece que sempre que estou com ele é assim, um erro
atrá s do outro, todos na â nsia de estar perto.
— Senti sua falta — ele diz, como uma con issã o proibida.
— Entã o por que foi embora? — As palavras saem antes que eu
possa pensar.
— Porque foi preciso.
— Palavras vazias, Nuno.
— E tudo o que posso te dizer hoje.
— E, pelo jeito, é tudo o que terei por um bom tempo.
Um vinco surge entre seus olhos, como se fosse doloroso para ele
me negar qualquer coisa, sei que esse nã o é o lugar, nem o momento,
para termos esse tipo de conversa. Sei també m que estamos passando
de todos os limites com essa intimidade exacerbada entre aluno e
professora, mas estou farta de tudo, de ingir, de esconder o que sinto
por ele, de aceitar migalhas. De ter meu direito de ser feliz proibido.
— Essa noite nã o.
— Tudo bem — encerro a conversa e volto a dançar.
— Engraçadinho. — Espalmo minha mã o em seu peito dando um
tapinha leve e ele olha para onde ela está nesse momento.
— Você está linda. — Sua voz soa baixa, como uma con issã o de algo
que ele esperou muito tempo para dizer e nã o consigo evitar o sorriso
satisfeito em meu rosto quando noto que passei a noite inteira
aguardando por isso. Seus olhos passeiam pelo meu decote e sinto
como se o tecido estivesse cobrindo demais, quero que ele veja tudo,
que sinta a saudade que está me torturando enquanto tenho total
ciê ncia de todas as suas partes que me tocam.
— Meu vestido nã o chega aos pé s dos que estã o aqui essa noite.
— Nã o faço ideia, nã o vi nenhum outro, só o seu.
Baixo o rosto sentindo o impacto das suas palavras em meu corpo,
tento olhar em volta, mas Nuno volta a me puxar para mais perto,
exigindo minha atençã o por completo.
— Você tem costas lindas. — Ele se inclina e sussurra enquanto
acaricia minha pele discretamente.
— Pare de falar essas coisas, estamos no meio da cidade.
— Pare de icar vermelha quando eu digo essas coisas. — Ele volta a
molhar os lá bios e desvio o olhar da sua boca tentadora. — Alé m do
mais, essa dança é minha, Stella, e, enquanto ela durar, eu vou falar tudo
o que eu tiver vontade, depois você poderá dançar com quem quiser.
— Quem disse que eu quero dançar com outra pessoa? — confesso
e sinto seu peito estufar quando ele respira fundo, satisfeito com minha
resposta.
— Isso é ó timo. — Seus dedos se movem devagar por minha pele,
tã o sutil que mal consigo notar, como se ele estivesse lutando contra um
desejo que vem reprimindo por todo esse tempo, como no dia em que
segurou minha mã o na cafeteria. E lento e sensual, uma tortura quase
insuportá vel para nó s dois.
— Achei que você nã o viria essa noite.
— Estava procurando o seu moleque, Stella?
— Nã o, é que eu vi os outros meninos e...
— Admita, Stella, ao menos uma vez admita que você estava
esperando por mim.
— Por quê ? O que isso vai nos trazer de bom?
— Porque ao menos hoje mereço um pouco de carinho em meu ego
machucado.
— Merece?
— Você nã o faz ideia do quanto.
Respiro fundo sentindo que todas as nossas conversas acabam
levando a lugar algum, assuntos proibidos para uma noite de falsos
sorrisos.
— Quando escolhi esse vestido, estava pensando em você — admito,
sentindo meu corpo inteiro aquecer com essa a irmaçã o. — Quando
arrumei meu cabelo, lembrei que você gosta de puxá -lo para o lado
para beijar meu pescoço quando me possui, o perfume que estou
usando é o mesmo que usei no festival. Porque, por mais que eu inja
que te esqueci, no fundo eu ainda mantenho a porta aberta. Entã o sim,
eu estava esperando por você , eu ainda estou esperando.
Nuno move a cabeça devagar, absorvendo minhas palavras
enquanto observa meus cabelos, meu decote, minha boca. Sinto seu
corpo tenso, seus dedos me apertam irme, sua boca se abre e depois se
fecha, como se ele precisasse se conter para nã o cometer uma loucura
bem aqui, diante de toda a sociedade de Monte Mancante.
E eu quero que ele cometa, eu quero desesperadamente que ele
cometa essa loucura.
— Você nã o tem ideia do quanto que estou me controlando para nã o
te beijar nesse momento — ele sussurra.
— Eu tenho, Nuno.
Ele me puxa para o seu peito, como se precisasse me manter bem
junto de si e me deixo levar, apoio minha bochecha em cima do seu
coraçã o que bate tã o forte quanto o meu, Nuno apoia a sua em meus
cabelos e, por mais que eu saiba que essa cena é ı́ntima demais, me
permito icar, ao menos por um instante assim e imaginar como seria
poder abraçá -lo sem medo de ser julgada.
— Eu adoro essa mú sica — confesso enquanto nos movemos, bem
devagar, de um lado para o outro.
— Que bom, porque fui eu quem escolhi.
— Você está brincando comigo? — Me afasto para encarar seus
olhos.
— Nã o, Stella, eu nunca brinco com você — ele responde, parecendo
tã o sé rio que me perco nas palavras enquanto o cantor continua
falando sobre uma garota que foi embora, deixando o coraçã o do rapaz
destruı́do.
Heartbreak...
Nuno volta a me puxar para o seu peito, mas paramos de nos mover.
A letra da mú sica faz sentido, machuca meu coraçã o com a sua verdade,
fecho os olhos desejando poder estar em outro lugar, poder dizer a ele
que sinto muito, que nã o precisamos mais lutar contra essa conexã o
que nos atrai.
A mú sica acaba, mas nã o nos mexemos, sua mã o continua em
minhas costas, seu rosto em meus cabelos, minha mã o enroscada com
força em sua camisa, amassando o tecido caro. Estou usando tudo de
mim para nã o chorar, nã o posso fazer isso, ningué m vai entender,
porque uma mulher como eu poderia se sentir assim por um garoto
como ele.
E só uma mú sica, é só uma dança, é só um garoto.
Vai passar.
Essa foi a mentira que contei para mim naquele festival, é a que
continuo contando, quando ica insuportá vel, mesmo que eu saiba que
ela nã o funciona, nã o mais. Talvez, se eu for sincera, vou me dar conta
de que ela nunca funcionou.
— Eu te odeio, moleque, com todo o meu coraçã o — digo, em uma
con issã o dolorosa de fazer quando sinto que nosso momento acabou.
— Daqui a meia hora, no segundo andar do pré dio de Artes — ele
sussurra em meu ouvido, em um convite sujo para algo que ele adora.
Nã o é um recomeço. E só essa noite.
Nuno é o primeiro a se afastar, no instante em que sua mã o deixa
minhas costas sinto um frio arrepiante percorrer meu corpo. Ele sorri,
eu sorrio, mas nã o há graça em nada. Nossa dança acabou.
— Obrigado a todos — o cantor agradece, mas continuamos
parados no meio da pista, olhando um para o outro. — Uma salva de
palmas para o nosso aniversariante da noite, Nuno Castro D’Agostinni
— ele pede e, entã o, o pá tio é preenchido por palmas, gritos e assobios,
mas nã o nos mexemos, continuamos nos olhando, como se nada mais
existisse.
— Hoje... — começo a falar, mas nada de ú til sai da minha garganta.
— Pois é , nada mais ridı́culo que nascer no dia do aniversá rio da
cidade, nã o acha? — ele diz enquanto agradece o cumprimento de um
homem e se inclina para ser abraçado por uma garota. — Obrigado pela
dança, professora, mas agora preciso ir. Tenho que comemorar a minha
maioridade com meus amigos.
Nuno pisca para mim e sai com o sorriso arrogante em seus lá bios.
Enquanto ele caminha, parando a cada instante para ser abraçado e
beijado, uma mulher alta e elegante o aguarda do outro lado do pá tio,
ele a envolve em um abraço demorado e ela o beija com tanto carinho,
que nã o resta mais dú vidas, é a sua mã e. Ela estava mesmo nos vendo o
tempo todo.
Ela diz algo para ele, que move a cabeça concordando; e, quando ele
se afasta, seus amigos o puxam pela lapela do smoking levando-o com
eles para longe de mim.
Foi preciso tudo de mim para suportar esperar pelo dia de hoje.
Desde a hora que acordei, com minha mã e me enchendo de beijos
como se eu fosse um garotinho de dez anos, ao abraço sem jeito do meu
pai, até o momento em que entrei no meu quarto e vi o smoking
pendurado na porta do guarda-roupa.
Estudei todos os meus movimentos, ensaiei minhas falas, como um
ator em cena, fazendo o que sei fazer de melhor: ingir.
Fingi ser o ilho ansioso e feliz ao lado do meu pai enquanto ele
falava sem parar sobre investimentos em pesquisas e desenvolvimento
no setor farmacê utico no paı́s. Fingi ser o ilhinho da mamã e enquanto
suas amigas safadas encaravam meu corpo imaginando uma trepada
comigo. Fingi ser o amigo que Ivan merece depois de tê -lo deixado de
fora da minha vida nos ú ltimos meses, enquanto ouvia ele falar de uma
garota que ele estava pensando em chamar para a after party, mesmo
sabendo que, no fundo, a ú nica garota que ele queria era a que estava
des ilando pelo salã o com um vestido praticamente transparente, que
nã o deixava nada a imaginaçã o.
Fingi me sentir confortá vel na pele do garoto rico, ignorando os
lashes das câ meras das revistas de fofoca chiques, que, com certeza,
estavam ali porque foram pagas para falar bem das dondocas da cidade.
Fingi que a taça em minha mã o era a primeira da noite, quando, na
verdade, era a quinta e o que tinha dentro nã o era o champanhe caro e
ruim pra caralho que estava sendo servido, e sim a bebida que meus
amigos trouxeram. Um prelú dio do que nos esperava.
Fingi que nã o contei cada um dos caras que olharam para Stella
quando ela passou, com seu vestido justo no corpo, deixando ó bvio que
seus seios estavam livres e suas costas implorando por serem tocadas
por minhas mã os.
Mã os essas que estã o doloridas tamanha a força com que as mantive
fechadas, enquanto imaginava quantos socos seriam necessá rios para
levar aquele professorzinho maldito para a UTI de um hospital.
Nã o sou idiota, sei que todos olham. Como nã o olhar, se ela é tã o
linda e tã o alheia a sua sensualidade? E quase como se ela vestisse um
personagem só para enlouquecer o imaginá rio masculino.
Nã o há nada mais sexy do que o desejo de tirar uma mulher como
Stella do sé rio, fazê -la gritar, gemer, rebolar... E apenas eu, o moleque
inconsequente de Monte Mancante, sou o ú nico aqui nessa porra de
festa que sabe como fazer isso.
Dois meses friamente calculados, me mantendo o mais longe
possı́vel pelo simples motivo de que eu sabia que, quando eu a visse,
tudo iria ruir, todos os motivos para que eu tivesse me mantido
afastado, todas as estraté gias para que nenhuma fagulha de maldade
pudesse tocá -la iriam por á gua abaixo.
Tudo isso pelo simples toque da minha mã o em sua pele; e, quando
ela confessou que se vestiu essa noite para mim, o moleque
desesperado, louco de saudades, rugiu como um animal selvagem,
mandando para a casa do caralho o bom senso e seja lá o que mais que
tenha me mantido irme essa noite.
E enquanto me afasto dela, injo que estou bem, que essa dança nã o
foi nada demais, que nã o estou precisando arrastar meu rabo para
longe dela, quando tudo o que mais quero é colar a minha mã o em suas
costas e nã o soltá -la nunca mais.
Tudo dó i dentro de mim, porque, no im das contas, todo o esforço
durou apenas quatro minutos. Quatro malditos minutos e eu nem falei a
metade do que eu queria.
No instante em que minhas mã os tocaram as costas nuas dela, meu
corpo reconheceu o seu, tã o perto, seus seios pressionaram meu peito,
seus olhos me observaram com desejo, seu cheiro me convidou para
perder a cabeça.
E eu me esqueci de tudo, de todas as palavras que ensaiei, de todo o
controle, das pessoas a nossa volta, do meu pai do outro lado do salã o,
dos conselhos que ele me deu. Falta pouco, Nuno, não perca a cabeça.
Porra... qualquer um ali pode ver a forma como eu estava
completamente fascinado pela mulher em meus braços, o que era
totalmente esperado de um homem jovem e saudá vel. Um moleque
cheio de hormô nios.
O que nã o era normal era a forma como a minha professora olhava
para mim, como se estivesse implorando por meu toque, os lá bios
vermelhos entreabertos, como se estivesse com di iculdade de respirar
sem minha boca sobre a sua.
Merda!
— Por que você s nã o arrancaram as roupas um do outro e treparam
ali mesmo? — Ivan indaga enquanto caminhamos por entre as pessoas
em busca da saı́da mais pró xima.
— Vai se foder! — é tudo o que consigo dizer porque meu coraçã o
ainda está acelerado de raiva por saber que estou deixando-a.
Ivan ri, o que me deixa ainda mais estressado enquanto continuo
obrigando meus pé s a me levarem para fora dessa merda de lugar.
— Se mais algué m duvidava de algo essa noite foi o su iciente para
que nã o reste mais dú vida — meu amigo diz e, antes que eu possa me
virar para perguntar o que ele viu, sinto um braço puxando-me.
Puta que pariu!
Os minutos seguintes sã o um amontoado de abraços, beijos,
brincadeirinhas cheias de verdades, uma mã o em meu peito, lashes em
meus olhos, fotos e mais fotos.
Percorro todo o salã o em busca dela, mas nã o a encontro em lugar
nenhum e a ansiedade para me livrar de toda essa baboseira faz minha
pele pinicar. Demoro mais de meia hora para conseguir me livrar de
todos, Ivan consegue me arrastar para uma saı́da e preciso me
controlar para nã o sair correndo até o pré dio de Artes.
Tudo está vazio, apenas as luzes de emergê ncia iluminam os
corredores coloridos e caó ticos dessa parte, nã o há ningué m, nem
mesmo os seguranças, todo mundo está concentrado na festa que
acontece no pré dio principal.
Subo os degraus de dois em dois, sentindo a gravata me sufocar, o
terno quente demais, o ar pesado em meus pulmõ es. E quando viro à
esquerda e avisto, no inal do corredor escuro, a pequena silhueta da
dona do meu coraçã o, que parece prestes a pular do meu peito, um
sorriso idiota se espalha por meu rosto.
Stella está andando de um lado para o outro, as mã os em seus
quadris, parece ansiosa e quando nota a minha presença ela resmunga
alguma coisa que nã o consigo ouvir, tudo o que faço é caminhar até ela,
sentindo meu corpo inteiro me puxar em sua direçã o, como um polo
negativo atraı́do pelo positivo.
— Graças a Deus, eu... — começa parecendo aliviada, mas nã o a
deixo continuar, nã o posso, nã o dá mais para esperar. No instante em
que chego perto dela, minhas mã os se encaixam em seu pescoço e a
puxo para mim, minha boca a silencia e tudo dentro do meu peito se
acalma.
Beijo-a com a força de um desesperado, como se precisasse desse
beijo para viver, beijo-a com toda a saudade que grita em meu peito, o
medo que senti de nunca mais beijá -la, com meu coraçã o de moleque,
ardendo de paixã o, doloroso, confuso, ainda tentando entender tudo o
que aconteceu, implorando para que ela possa sentir que estou
sofrendo por nã o estar com ela.
Stella enrosca seus dedos em meus cabelos curtos, minha mã o se
enrosca em sua cintura enquanto caminho sem desgrudar minha boca
da sua, em direçã o a uma das salas vazias.
— Nuno... — ela me chama quando fecho a porta com o pé .
Stella nã o me afasta, nem olha em volta, ela sequer parece ciente de
onde estamos, toda a sua concentraçã o está em mim, na minha boca, no
meu corpo. Isso faz com que eu tenha vontade de gritar para todos
nessa porra ouvirem que nã o importa o que digam, ela me ama, me
odeia, me deseja, me quer.
O resto, eu quero que se foda.
Empurro-a até o centro da sala, minhas mã os passeiam por seu
corpo perfeito, meus dedos se enroscam na alça do seu vestido. Nossas
bocas ainda se tocam.
— Você quer me matar, Stella — digo com os lá bios em seu pescoço
quando derrubo uma das alças, deixando o tecido cair e expondo um
dos seus seios. — Puta merda — digo quando derrubo a outra alça,
decidindo entre fechar meus olhos e me entregar a sua boca, que beija
como se fosse me devorar, ou continuar olhando-a. — Muito melhor
assim — digo me afastando para olhar para a beleza dessa mulher.
Vou até ela e a empurro até que suas pernas se choquem com a
mesa. Stella sorri, o olhar safado diz que ela sonhou com isso tanto
quanto eu.
— E aqui que você me quer? — ela diz apoiando as mã os na
madeira.
— Eu te quero em todos os lugares, Stella. — Inclino-me para a
frente, puxando-a para que ela se sente. — Aqui. — Beijo sua boca. —
Em uma cama. — Beijo seu maxilar. — Em um carro. — Beijo seu
pescoço. — Na parede. — Desço até seu seio direito. — Em cima de
mim. — Vou até o esquerdo. — Debaixo de mim. — Volto até sua boca.
— Mas nã o existe um lugar que eu te queira mais do que aqui. —
Espalmo minhas mã os em suas coxas, abrindo-as o má ximo que posso.
— Na porra dessa mesa. — Meus dedos se enroscam no tecido delicado
e encharcado da lingerie que ela tá usando, esfrego meus dedos nela,
sentindo o seu corpo se remexer.
— Nã o sou mais sua professora — ela sussurra com di iculdade.
— Nem eu o seu aluno — digo em seu ouvido quando en io dois
dedos dentro dela arrancando um gemido gostoso de sua boca. —
Sempre molhada para mim.
Stella apoia as mã os atrá s de si, empinando seus seios enquanto a
toco com força e velocidade, minha boca ora em seu ouvido, dizendo
coisas que a faz se desmanchar em minha mã o, ora em sua boca,
sugando seus gemidos.
— Minha pequena covarde — sussurro em seu ouvido quando ela
começa a rebolar em meus dedos, seu corpo se prepara para um
orgasmo que nã o tenho intençã o nenhuma de lhe dar.
Saio de dentro dela bruscamente, deixando-a sem ar, os lá bios
inchados dos beijos duros, estã o entreabertos, ofegantes enquanto ela
se dá conta do que estou fazendo.
— Eu nã o estive com ningué m depois de você — digo enquanto
desabotoo o cinto.
— Nem eu — ela sussurra enquanto suas mã os trabalham em
minha calça. — E ainda estou tomando anticoncepcional — ela diz,
enquanto desliza meu pau para fora da minha calça. Seus dedos
delicados e pequenos o esfregam, com força, como gosto.
— Estou louco de saudade — confesso enquanto observo-a
trabalhar em mim. — Deus... eu preciso de você , Stella — digo abrindo-
a um pouco mais. — Preciso de você agora, ou vou morrer — sussurro
me aproximando um pouco mais, deixando que ela me guie para o meu
lugar favorito da galá xia: entre suas pernas.
— Entã o vem — ela sussurra maliciosa enquanto me enterro dentro
do seu corpo pequeno, apertado e delicioso e, quando estou
completamente encaixado dentro dela, sinto como se nada no mundo
fosse capaz de nos separar.
E má gico, poderoso, assustador.
— Feliz aniversá rio, meu moleque — ela sussurra segurando-me
junto a si, seus dentes machucam minha pele, me enchendo de tesã o
enquanto seus dedos abrem minha camisa para poder tocar minha pele.
Seus olhos ardem de desejo em uma safadeza que nunca vi antes.
Seguro seu rosto em minhas mã os, ainda sem me mexer, meu pau
pulsa, implora por alı́vio enquanto olho dentro dos seus olhos
castanhos, olhos medrosos de quem sempre se conteve, mas que agora
está aqui, exposta, entregue a um moleque que a ama mais do que tudo
nesse mundo.
— Eu sou um moleque, o seu moleque, louco por você — sussurro
quando começo a me mover. — Alucinado, perdidamente apaixonado
— continuo enquanto ela me segura pelo quadril. — Você é a dona do
meu coraçã o, Stella, só você . — Me empurro dentro dela. — Só você —
repito quando sai. — Nã o quero mais ningué m — confesso quando
meto novamente, fazendo-a gemer com a força com que a possuo. —
Nã o preciso de mais nada — repito meus movimentos. — Desde que eu
tenha você — inalizo a ú ltima frase com sentido que sou capaz de
pronunciar antes de me entregar ao desejo.
Nã o demoro muito, estou excitado demais, louco de saudade depois
de dois meses longe dela, Stella vem comigo, choramingando em minha
boca enquanto seu corpo se desmancha de prazer em volta do meu.
E quando gozo, dizendo que a amo, sinto-me repleto de uma
calmaria que só os braços dessa mulher sã o capazes de me transmitir e
que é tudo o que eu preciso.
— Nuno — ela me chama, ofegante, exausta, extasiada de prazer.
Estou completamente apoiado nela, meu corpo grande e pesado
prende-a na mesa, meu pau satisfeito sai dela aos pouquinhos, minha
boca está colada em seu pescoço.
— Hum... — gemo sabendo que preciso me mexer, mas sem querer.
Ela sorri, e beija minha boca enquanto acaricia minhas costas. — Nã o
me peça para sair daqui, por favor.
— Eu també m nã o quero.
— Otimo, entã o vamos icar aqui.
— Nuno — ela diz sorrindo, feliz. A mã o espalmada em meu peito
me afasta delicadamente.
— Nã o posso, nã o consigo — digo, agora totalmente fora dela.
Stella beija meus cabelos, meus olhos, meu rosto.
— Temos todo o tempo do mundo depois, mas agora precisamos ir.
— Ela beija minha boca carinhosamente.
Faço o que ela pede, indo contra o desejo do meu corpo, que começa
acordar para um segundo round que nã o terá . Ela arruma a alça do
vestido e fecha a perna se dando conta de que sua calcinha está
destruı́da.
Delicada demais para um cara faminto como eu.
Ajudo-a a descer da mesa, limpo-a o má ximo que posso com o lenço
que acho no bolso, ela parece um pouco tı́mida e envergonhada, como
se inalmente se desse conta do que acabamos de fazer.
— Você está bem? — pergunto como sempre faço quando
terminamos, o seu silê ncio me deixa um pouco agitado.
Stella olha em volta da sala vazia, com seus dentes cravados no lá bio
inferior enquanto ela analisa as palavras seguintes. Sua cabeça se move
de um lado para o outro e começo a achar que iz algo errado.
— Eu nã o quero mais isso, Nuno — ela diz, e nã o tenho certeza se
estou ouvindo direito. — Nã o quero sexo proibido, nã o quero te sentir
gozar enquanto diz que me ama e depois ter que agir como se nã o
fô ssemos isso tudo, é demais para mim, eu achei que daria conta, mas
nã o dou.
— Shhh... por favor, nã o fala isso.
— Você disse, só essa noite, mas eu nã o quero só isso, eu quero
mais, eu quero poder sair de mã os dadas dessa sala e beijar a sua boca
para todo mundo ver, eu quero que você me toque, que sua mã o esteja
em minha cintura e seus olhos em meu corpo, quero que todos vejam
como é bonito ser amada por você , como é bonito te amar.
Puxo-a para um beijo desesperado, sentindo o coraçã o afundando
no peito enquanto compreendo o que ela quer, sabendo que ainda nã o
posso lhe dar.
— Só trê s meses, Stella, só mais trê s meses e, entã o, vamos poder
fazer tudo isso e muito mais, vamos poder contar para o mundo a
histó ria de um amor proibido que foi mais forte do que tudo, que lutou
e venceu, que nã o teve medo de nada.
Ela me observa por um instante, os olhos correndo por meu rosto,
como se tentasse encontrar alguma dú vida, alguma brecha que a faça
duvidar.
Nã o há , Stella, nã o há .
— Nã o sei se aguento esperar.
— Aguenta sim, você é a mulher mais forte que conheço.
— Só trê s meses — ela diz, precisando reunir suas forças.
— Só trê s meses, minha medrosa, só trê s meses — repito beijando
seus cabelos antes de me afastar.
Stella ri, um riso nervoso enquanto caminha para longe de mim, me
apoio na mesa onde minutos atrá s me entreguei a ela e a possuı́,
observo-a abrir a porta, e antes dela sair eu a chamo.
— Stella. — Ela se vira e olha para mim. — Você ica tã o linda sem
calcinha — brinco e lá está ele. O sorriso que amo. Tı́mido, covarde,
delicioso. Meu. Só meu.
Só trê s meses e, entã o, nã o vou soltá -la nunca mais.
Assim como um mar depois da agitaçã o, começo a sentir os efeitos
do que acabamos de fazer no instante em que Stella fecha a porta, a
letargia pó s-sexo começa a me deixar mole e uma angú stia invade meu
coraçã o enquanto as palavras dela dançam em minha mente.
Eu não quero mais isso...
Fecho o punho em cima do meu coraçã o, jovem demais para tantas
escolhas, velho demais para sentir tanto medo.
O celular vibra em meu bolso, é uma mensagem de Ivan.

Ivan: Onde você está? Acabei


de ver a Stella, está tudo bem?
Olho em volta me sentindo um pouco mal, acabei de comer a mulher
que eu amo em cima de uma mesa como se ela fosse a porra de uma
garota qualquer, sem dizer nada sobre o meu sumiço, sem pedir perdã o
por tê -la machucado.
Eu a possuı́ como um animal, desejando marcá -la para que todos os
homens dessa festa saibam que ela é minha, em uma urgê ncia juvenil
de mostrar a ela o quanto a amo. Ainda estava cego de desejo quando
ela me mostrou a sua má goa, ainda estava louco de desejo, a querendo
mais, enquanto ela se dava conta de que isso é tudo o que um moleque
pode dar a ela.
Sexo duro, sujo e imoral.
Nã o está tudo bem e nesse momento, enquanto arrumo minha
roupa e me dirijo ao banheiro para limpar uma mancha na minha calça,
sinto um buraco em meu peito. Nã o está tudo bem.
O celular vibra mais uma vez.

Ivan: Quer que eu vá aí?

Ele insiste e solto um palavrã o enquanto digito de volta.

Nuno: Não.

Quando chego ao salã o principal logo avisto a cabeleira loira e


caó tica de Ivan, ele está à minha espera. Os olhos tranquilos que
carregam um mundo de emoçõ es me observam enquanto caminho até
ele.
— Que caralho, Nuno! Faz um tempã o que a Stella chegou, eu estava
icando preocupado.
Olho para o meu amigo sem um pingo de vontade de dizer nada.
— Ela també m nã o estava com uma cara muito boa, você s
brigaram?
— Desde quando você virou fofoqueiro?
Ele dá um passo para trá s, como se notasse que está invadindo um
espaço que nã o gosta de compartilhar, passei dezoito anos da minha
vida sem saber que ele era apaixonado por nossa amiga, nã o tenho
obrigaçã o de falar da minha vida amorosa com ele.
— Foi mal, eu só estava preocupado. — Ele passa a mã o no cabelo
mais uma vez e desvia o olhar para o palco onde o leilã o já começou.
— Vamos dar o fora daqui — peço sentindo meu coraçã o agitado de
um jeito ruim, nem fodendo vou icar e assistir a essa palhaçada toda. E
demais para mim.
— Demorou, vou só avisar a Maddie que você chegou. — Olho feio
para ele e Ivan ergue os ombros. — Ela estava preocupada — ele
justi ica e reviro os olhos enquanto caminho em direçã o a saı́da,
puxando um cigarro do bolso, para acender assim que colocar meus pé s
fora daqui, e me dando conta de que, à s vezes, ter amigos que importam
com a gente é um caralho.
Nã o consigo dar sequer um passo antes de ouvir minha voz sendo
chamada, resmungo mais um palavrã o e ignoro-o, mas ele me segura,
impedindo-me de sair.
— Onde você pensa que vai? — Sua voz é tranquila, mas sua mã o
segura meu braço com força.
— A gente tem uma festa nos esperando — Ivan diz em meu lugar, o
sorriso quase angelical de bom menino no rosto, escondendo o que de
fato ele é .
— Nuno tem obrigaçõ es — meu pai diz e sinto meu rosto perder a
cor.
— Ah nã o, por favor, hoje nã o! — imploro e odeio a forma fraca
como minha voz soa.
— Já conversamos sobre isso, Nuno, vamos logo para terminar logo
— ele diz, enquanto me observa, esperando que um pouco de sanidade
volte a minha mente confusa.
— Eu nã o posso fazer isso — admito.
— Vamos lá , ilho, é só uma brincadeira, você sabe.
— Nã o é uma brincadeira para mim e nã o será para ela.
Ouço Ivan praguejar e meu pai desvia o olhar para ele, como se
ainda fosse o moleque que sujava os bancos dos seus carros de sorvete.
— Eu estarei do seu lado — ele diz baixinho, um pouco tı́mido já
que esse tipo de relaçã o entre nó s ainda é algo novo e estamos nos
adaptando. Sinto o olhar de Ivan e a mã o do meu pai em meu peito. —
Eu prometi, lembra? — ele reforça me fazendo respirar fundo e fazer
algo que nã o estou muito acostumado a fazer.
Acreditar nele.
— Certo.
— E lá vamos nó s — Ivan diz puxando o celular do bolso
novamente, provavelmente mandando alguma mensagem para os
nossos amigos.
Deixo que meu pai me leve e avisto minha mã e nos esperando, a
expressã o nervosa em seu rosto é o su iciente para que eu vista
novamente a fantasia de ilho perfeito e obrigue meus lá bios a se
esticarem em um sorriso que ela adora.
— Você está bem? — Ela pousa sua mã o em meu rosto, os dedos
carinhosos me transmitem uma paz que só ela é capaz, e dentro de mim
uma força que nã o sei explicar de onde vem, emerge fazendo com que
meus pé s consigam se mover.
— Sim, vamos? — Estendo a mã o para ela e envolvo-a na curva do
meu braço enquanto subimos as escadas do palco improvisado, meu pai
do meu lado, sua mã o em minhas costas, como um sinal silencioso de
que, a partir de hoje, nã o estou mais sozinho.
Sinto os olhares, o silê ncio, o tremor em minha mã o, o sangue
pulsando forte em minhas veias, sinto o ar escapando dos meus
pulmõ es, minhas pernas fraquejando, sinto a vergonha entalada em
minha garganta à medida que caminhamos para a multidã o de pessoas
que nos esperam.
— Eu estou aqui, ilho — ela diz baixinho, só para mim, e sorrio em
agradecimento.
— Eu sei, mã e. — Ergo sua mã o e a beijo, antes de me afastar, indo
até onde o cerimonialista me espera.
Somos um bando de milioná rios, que nã o tem onde en iar toda a sua
grana, e que adora um motivo para esfregar isso na cara do mundo. E
como nã o poderia ser diferente, a cada ilho que completa dezoito anos,
uma grande festa bene icente é realizada, para arrecadar fundos para
alguma causa que ocupe o tempo ocioso das esposas mal-amadas
enquanto seus maridos estã o por aı́, ganhando mais grana que nã o
terã o onde en iar.
Um doentio e imundo cı́rculo vicioso.
O idiota da vez sou eu e, para a minha grande infelicidade, nasci no
dia mais importante da cidade, fazendo de todos os meus aniversá rios,
os piores dias da minha vida.
Quando Matteo era vivo, era mais fá cil, ele fazia piada da minha
di iculdade de falar em pú blico dizendo que isso era uma coisa de
criança, que passaria com o tempo, que ele me ensinaria os macetes e
eu me tornaria um orador maravilhoso.
Tudo baboseira.
Ele me deixou e a verdade é que o tempo só me tornou ainda pior.
Uma coisa sobre a vida que aprendi nesse meu pouco tempo nesse
mundo é que nem todos os traumas sã o superados, à s vezes eles só
precisam ser aceitos e compreendidos.
Talvez um dia eu consiga compreender porque, embora eu nã o seja
um cara tı́mido, quando todos param para me ouvir, me sinto de novo
aquele garotinho que segurava a mã o do irmã o e acreditava em
promessas vazias.
O cara começa a falar sobre a tradiçã o de doar os presentes do
aniversariante para causas bene icentes, todos os anos meus presentes
sã o grana, que é enviada para algué m que precisa, isso é a ú nica coisa
que me faz subir aqui.
Ele me entrega o microfone com um sorriso gentil, preciso falar
sobre a instituiçã o escolhida dessa vez, já tenho tudo gravado em minha
mente e assim que começo a falar, olho no meio da multidã o de pessoas
afoitas para jogar sua grana para o ar e mostrar quem tem mais, e lá
está ela, alheia a podridã o a sua volta, os olhos ixos em mim, tã o linda,
tã o desesperadamente linda.
Respiro fundo e peço a tudo que é mais sagrado no mundo para que
eu nã o faça nenhuma merda, nã o me engasgue, nem gagueje, nem
troque os nomes como iz no ano passado.
E entã o começo a falar todo o texto decorado, meus olhos ixos no
fundo do pá tio, em ningué m em especial, uma das poucas té cnicas que
Matteo me ensinou quando eu era criança.
Sinto o suor escorrendo por minhas costas, as mã os escorregadias
tê m di iculdades de segurar o microfone e respiro aliviado quando
inalizo minha parte, agradecendo a cada um dos moradores e
convidados de Monte Mancante.
— Obrigado por estarem aqui essa noite, e por fazerem desse o meu
aniversá rio mais especial. Vamos lá , pessoal, coloquem suas mã os nos
bolsos e mostrem o tamanho da sua generosidade — brinco e todos
sorriem da baboseira que falei, entrego o microfone para o meu pai, que
está ao meu lado, e dou um passo para trá s, passando a mã o no cabelo.
Agora só falta meu pai apresentar o grande prê mio da noite e entã o
estou livre para dar o fora daqui.
— Boa noite, meus amigos — ele começa, a voz grave e com um leve
sotaque de quem passou o ú ltimo mê s usando seu segundo idioma. —
Como todos aqui sabem, essa é uma noite especial, meu ilho completa
dezoito anos, a idade que seu irmã o Matteo faria, uma semana depois
da sua morte, caso nã o tivesse nos deixado tã o cedo.
Ele respira fundo e baixa o rosto e, como se nã o fosse possı́vel, me
sinto ainda pior.
— Matteo estaria orgulhoso de você , ilho — ele diz, olhando para
mim com um sorriso emocionado. — Eu estou e tenho certeza de que
todos que estã o aqui presentes també m estã o. — Ele olha para a minha
mã e, mas nã o desvio o olhar dele, porque sei que ela está chorando e
tenho certeza de que, se eu olhar para ela, vou desmoronar bem aqui.
— Eu quero aproveitar essa noite tã o especial para te dizer que todos
os dias quando acordo, é por você s que sigo em frente.
Ouço minha mã e soluçar e engulo o nó em minha garganta, meu pai
estende a mã o e ela a segura, se deixando levar até ele, meu pai a abraça
e beija seus cabelos enquanto diz algo e uma explosã o de aplausos
ecoam nas paredes frias e antigas de Santo Egı́dio.
— E para comemorarmos o dia do meu ilho, vamos aos nossos
convidados de honra da noite. — Ele sorri e olha para o diretor
Montanari. Desvio o olhar para a multidã o e avisto Stella e Tony, sendo
trazidos para o palco, como gados indo ao abatedouro, tento ignorar a
mã o protetora dele nas costas dela, tento ignorar os olhares dos velhos
milioná rios em seu corpo, tento ignorar a parte infantil dentro de mim
que quer arrancá -la disso tudo e levá -la para longe dessa cidade podre.
Fecho o punho e tento manter a calma, digo a mim mesmo que estou
sendo observado pela cidade inteira e nã o posso reagir a nada, já
passamos dos limites com aquela dança.
— Como já sabem, o lance será um jantar com a nossa querida
professora Stella Almeida e outro para o nosso prestigiado professor
Tony Ferraz, nossos novos e impressionantes professores dessa escola
tã o especial.
Vejo Stella se aproximando, ela sobe no palco e meu pai a recebe
com um sorriso gentil, Tony continua ao seu lado, sua mã o continua em
suas costas enquanto ele diz algo em seu ouvido e ela sorri, um sorriso
nervoso, o tı́pico sorriso que ela sempre dá quando está acuada.
— Uma salva de palmas para a nossa bela e excepcional professora
Stella Almeida e seu elegante e charmoso colega Tony Ferraz — meu pai
diz e, como se pudesse sentir minha agitaçã o, Stella desvia o olhar para
mim, seus olhos tentam me dizer que está tudo bem. Mas eu sei que nã o
está , ao contrá rio, está bem longe disso.
O resto do leilã o é o pior tipo de tortura que já presenciei na vida, os
convidados se divertem enquanto os lances sobem com uma velocidade
que deixaria a Bolsa de Valores constrangida. Stella se manté m ao lado
de Tony, o sorriso gentil e constrangido nos lá bios enquanto ela ouve
sua companhia ser vendida como uma mercadoria.
Algum tempo depois, Jorge Pacheco, um fazendeiro, dono de uma
das maiores fazendas de gado de corte, inalmente dá o ú ltimo lance, o
velho deve ter uns duzentos anos e, mesmo assim, o sorriso em seu
rosto, enquanto ele sobe para pegar seu “prê mio”, é o de um garoto
prestes a perder a virgindade.
Solana Andrade de Miranda é a ganhadora do jantar com Tony e nã o
perco meu tempo tentando traduzir o que diabos tem no olhar dela ao
se aproximar e beijá -lo no rosto como se fossem velhos amigos. Só
espero que Ivan nã o ligue para isso.
Stella o cumprimenta e agradece a generosidade, a mã o enrugada
do maldito, toca sua pele nua e quero cobri-la, para que ele nã o possa
tocá -la. Meu pai me chama à frente, eu agradeço a Stella, que me olha
com tristeza, e, em seguida, cumprimento o velho maldito, faço o
mesmo com Tony e Solana, nã o consigo lembrar o que disse, nem
mesmo o que eu falo ao me despedir de todos, tudo a minha volta está
escuro, e minha vontade de gritar é tanta que preciso engolir o nó que
se forma em minha garganta diversas vezes.
Quando inalmente desço do palco, me sinto enjoado e tonto, nã o
me preocupo em ser educado com as pessoas que me parabenizam
quando eu sequer fui capaz de proteger a mulher que amo dessa
brincadeira só rdida.
— Vamos dar o fora daqui. — Ivan surge ao meu lado, com a mã o
em meu braço, me puxando consigo como um guarda costas furioso.
— Eu preciso falar com a Stella. — Continuo olhando em volta.
— Depois, agora preciso te tirar daqui antes que você faça alguma
merda e a prejudique ainda mais.
— Eu vou matar aquele ilho da puta.
— O cara tá tã o velho, que nem sei se vai estar vivo até o jantar.
Relaxa, Nuno.
Sei que Ivan está tentando aliviar a situaçã o, mas sua brincadeirinha
só aumenta a raiva dentro de mim, e, apesar de querer fazer aquele
velho engolir a sua dentadura, sei que ele tem razã o, nã o posso fazer
nada por ela agora, estou nervoso demais e qualquer coisa que eu
disser pode piorar as coisas, entã o deixo que ele me leve daqui.
Dominic Calazans, um dos ilhos de Monte Mancante, se aproxima
de nó s, nã o posso dizer que é meu amigo. Dom nã o é amigo de
ningué m, mas o conheço há tanto tempo quanto Ivan, calado e
esquisito, ele está sempre à margem, observando, como uma sombra à
espreita, ansiando para capturar algué m que esteja tã o fodido quanto
ele.
Hoje sou eu.
Dom é ainda mais alto que eu, mais magro e pá lido como um
fantasma, seus cabelos hoje estã o organizados, provavelmente obra da
sua mã e, e os piercings em seu rosto reluzem a arrogâ ncia do seu
sorriso.
— Tá rindo do quê ?! — esbravejo mesmo sabendo que ele nã o tem
culpa de nada.
— Calma aı́, cara, eu tava rindo de uma piada que ouvi ali atrá s. —
Ele passa a lı́ngua pelo piercing em seu lá bio e aponta para um lugar
qualquer e Ivan volta a puxar meu braço.
— Vamos embora, Nuno. — Ivan volta a me puxar.
— Aquele velho realizou o desejo de 80% dos homens dessa cidade
hoje...
Meu punho se fecha em torno da sua camisa e pressiono-o na
parede, o impacto da sua cabeça vazia se chocando no concreto atrai a
atençã o de algumas pessoas que estã o perto, mas nã o me viro para ver
quem sã o.
— Fale mais uma palavra e eu faço você engolir cada um desses
pedaços de metal que você tem na porra do seu corpo imundo aqui
mesmo — rosno em seu rosto, tã o perto que meu nariz está colado ao
seu e posso sentir o cheiro de á lcool em seu há lito.
Dominic é ilho do delegado, introspectivo e misterioso. De dia, é o
garoto ideal, com as melhores notas da escola; conduta impecá vel é a
sua regra má xima. Como ilho do homem mais respeitado da cidade,
precisa ser perfeito, um olho roxo nã o vai ser bem-visto pelo seu pai,
que sabe o lugar certo onde deixar as marcas dos seus castigos.
Poré m, à noite, Dominic se torna o sombra, o cara perigoso, que
adora uma boa briga e que, misteriosamente, quase nunca vence uma,
mesmo sendo forte o su iciente para quebrar no meio metade dos caras
que conhecemos, há tantas histó rias sobre ele que já nã o sei mais em
qual acreditar e, sinceramente, nesse momento nã o estou com
disposiçã o para perder tempo com esse saco de bosta.
Dom sorri, uma mecha longa do seu cabelo cai no rosto enquanto
ele passa a lı́ngua mais uma vez no piercing, puxando-o para dentro da
boca, estou furioso e Dom conhece meu soco, já brigamos mais vezes do
que se pode contar, mesmo assim ele parece quase... feliz em me
provocar.
Talvez eu nã o seja o ú nico com problemas aqui hoje.
— Ei, cara, perdeu o juı́zo, porra! — Ivan me puxa com força,
afastando-me do cuzã o, que parece a porra de um psicopata enquanto
olha para mim.
— Nã o fala dela. — Aponto o dedo em direçã o à cara de merda dele.
— Nunca mais fala assim dela, nã o na minha frente, e reza para que eu
nã o ique sabendo o que você anda falando nas minhas costas, ou eu
vou fazer as surras do teu pai parecerem brincadeira de criança.
Dominic passa a mã o no cabelo, puxando o elá stico e perdendo-o
novamente antes de me responder.
— Se quiser terminar essa conversa, sabe onde me encontrar. — Ele
ergue a sobrancelha e en ia as mã os nos bolsos enquanto passa por
mim.
— Merda, Nuno, o que diabos você está fazendo? — Ivan me envolve
pela cintura, me puxando para longe, outros caras chegam, tentando
maquiar a confusã o. — E o Dom, porra, desde quando você cai nas
coisas deles?
Uma coisa sobre os garotos riquinhos de Monte Mancante é que
todos adoram uma merda, mas nenhum deles gosta de dar aos seus
pais muniçã o contra si mesmo. Sendo assim, gostamos de nos
comportar quando estamos na presença deles ou ingir que nos
comportamos.
Me deixo levar para longe, protegido por outros rapazes que
encobrem a confusã o, Ivan passa o braço por meu ombro e sorri para
uma coroa gostosa, que o encara quando passamos por ela; Ivan
sempre foi o preferido das casadas frustradas da cidade. Discreto e com
essa cara de bom menino, é mais fá cil o cé u se abrir e Jesus descer do
que um dos maridos convencidos imaginar que ele esquenta suas
camas quando eles estã o fora. E isso é uma das coisas que ele mais
gosta de fazer. Foder mulheres casadas e infelizes.
Saı́mos do colé gio e afasto o braço do meu amigo, Ivan acende um
baseado e passa para mim sabendo que preciso me acalmar enquanto
destrava as portas do seu Hilux sujo de barro.
— Nuno — ouço meu nome e me viro para encontrar Levi e Maddie.
Eles se aproximam e ela se estica na ponta do pé enquanto envolve
meu pescoço em um abraço gentil e carinhoso.
— Como você está ? — indaga preocupada.
— Bem — minto.
— A Stella pediu para te dizer que ela está bem.
— Onde ela está ? — Olho em volta na esperança de encontrá -la.
— Ela está lá dentro com o diretor, está assinando a papelada da
doaçã o, mas estava bem tranquila e me pediu para vir aqui te acalmar.
— Aquele ilho da puta! — resmungo caminhando de um lado para
o outro, tentando me acalmar, mas sem sucesso.
— Eu disse...
— Nem começa. — Ergo a mã o silenciando Ivan.
Maddie passa a mã o em minhas costas, em uma tentativa de me
acalmar.
— Ela disse que nã o tem hora para ir embora, mas que, assim que
puder, entra em contato com você .
Sinto uma forte dor de cabeça surgindo e começo a me sentir
sufocado com tanta atençã o, entã o en io as mã os em meu bolso e retiro
as chaves do M3 estacionado ao lado do carro de Ivan, ele parece reluzir
diante dos outros veı́culos, o interior ainda está com os plá sticos nos
bancos e sorrio ao pensar na ironia disso, vou precisar.
— Aonde você vai? — Maddie pergunta parecendo preocupada.
— Ele vai esfriar a cabeça — Ivan responde, já sabendo o meu
destino.
Eu preciso quebrar a cara de algué m, infelizmente nã o vai ser a do
Tony, nem daquele velho imundo.
Dom precisa de ajuda, seja lá o que aconteceu, entã o é hora de unir
o ú til ao agradá vel.
Talvez eu seja mais seu amigo do que possa imaginar.
Estou voltando para o salã o depois de assinar a carta referente ao
jantar bene icente junto com Tony e os compradores, minha mã o ainda
está em punho sobre meu estô mago, como se pudesse me impedir de
vomitar a qualquer momento.
Uma explosã o de sentimentos queima em minha garganta, foi só um
jantar, mas sinto como se tivesse acabado de vender meu corpo para
essa cidade, um sentimento opressor que me faz desejar baixar a
cabeça quando passo pelas pessoas que sorriem para mim.
Olho em volta em busca de Nuno, mas ele nã o está em parte alguma,
sei que precisamos conversar, ele tem coisas a me contar, explicaçõ es a
fazer, també m preciso ser mais clara sobre o que disse naquela sala, eu
estava falando a verdade, nã o quero mais isso.
Nã o da forma que estamos.
Meu corpo ainda está dolorido, daquele jeito bom que nos lembra
que algo forte aconteceu, algo que vai alé m de um simples ato sexual,
quando Nuno me colocou naquela mesa e me possuiu como se quisesse
marcar o meu corpo com o seu, me entreguei como se realmente
precisasse ser marcada por ele, eu estava desesperada, ao ponto de nã o
me dar conta do que está vamos fazendo, pior, de desejar exatamente
aquilo.
Deus do cé u...
— Stella? — ouço algué m me chamando e, por um instante, temo
por meus pensamentos terem sido tã o altos que possam ser ouvidos.
— Sim? — respondo ao me virar e dar de cara com Violeta
D’Agostinni.
— Tudo bem, querida? — pergunta com um sorriso discreto e
elegante.
— Claro, tudo ó timo.
Tirando o fato da minha calcinha provavelmente estar no bolso do
seu ilho, claro.
— Acho que ainda nã o tivemos tempo de nos conhecer o icialmente.
— Ela me estende a sua mã o ina e delicada e nã o posso evitar de notar
o imenso diamante que descansa ao lado da sua aliança. — Sou Violeta,
mãe do Nuno — ela enfatiza, como se eu nã o soubesse.
— Sou Stella. — Nã o digo professora do Nuno, é demais para mim.
Aperto sua mã o e tento nã o me sentir constrangida por estar
conversando com a mã e do garoto que acabou de me possuir em uma
sala de aula.
— Eu queria agradecer a sua gentileza por apoiar nosso projeto.
— Imagina, foi uma honra ter sido convidada — tento parecer
convincente.
— Queria també m te agradecer.
— Agradecer?
— Meu ilho é um menino incrı́vel, mas desde a morte do irmã o ele
se fechou de uma forma que ningué m consegue alcançá -lo, apesar de
manter uma vida social comum para um jovem da sua idade.
Sinto meu rosto esquentar quando me dou conta do que ela está
falando. Ela sabe, meu Deus, ela sabe e está aqui, sorrindo para mim
como se fosse algo lindo.
— Violeta, eu quero que saiba... — começo a tentar me explicar
mesmo sabendo que nã o há o que eu diga que possa fazer sentido.
— Nã o se preocupe, nã o sou o tipo de mulher que gosta de ró tulos,
eu vivi muita coisa na minha vida para tentar engessar a felicidade em
padrõ es. — Ela olha em volta, dessa vez de um jeito mais enfá tico. —
Vivo em uma sociedade sufocante pela minha posiçã o e tudo o que eu
sempre quis era que meu ilho encontrasse o seu lugar no mundo.
— Nã o sou o lugar do seu ilho — digo sentindo-me envergonhada.
— Nã o, nem deve, é responsabilidade demais para uma pessoa, mas
é a mã o que ele segurou para procurar por ele e isso é tudo que o meu
garoto precisa.
— Entã o, você nã o acha que sou uma oportunista?
— Stella, eu sei que nas suas mã os tem um cheque capaz de resolver
todos os seus problemas para o resto da sua vida.
— Eu nã o sou comprá vel.
— Eu sei, e te admiro ainda mais por isso. — Ela sorri, um sorriso
enorme que me faz lembrar dele.
— Nã o sei o que dizer, eu... — Respiro fundo sentindo-me
emocionada.— Eu amo seu ilho, nã o espero que você compreenda o
que sinto, sinceramente antes de conhecer o Nuno eu mesma nã o
compreenderia o que uma mulher como eu poderia ver em um garoto,
passei esses nove meses tentando entender esse sentimento, mas nã o
posso mais mentir. Eu o amo, admiro seu ilho, sou apaixonada por seu
coraçã o bondoso e por sua honestidade, eu amo como me tornei uma
pessoa melhor atravé s desse sentimento e, por mais que eu saiba que
muita gente vai nos julgar, estou pronta para suportar o que for por ele.
Violeta pisca, nitidamente emocionada, enquanto sua mã o segura a
minha.
— Isso é tudo o que uma mã e quer ouvir. Nã o se preocupe, Stella. Se
depender de mim, nada nem ningué m vai te machucar, é uma promessa
de uma mã e que viu seu ilho sorrir depois de passar uma vida
chorando.
Aperto meus lá bios tentando manter a compostura, nã o posso
chorar e quando Violeta passa o indicador embaixo do seu olho
esquerdo delicadamente noto que ela també m está se contendo.
— Gostaria muito de tomar um café com você um dia desses — ela
diz quando um grupo de mulheres se aproximam desejando sua
atençã o.
— Será um imenso prazer — encerro essa estranha e emocionante
conversa com Violeta.
E enquanto ela se afasta, rodeada por mulheres que sorriem para
ela, como se fosse a pró pria princesa de Monte Mancante, me pego
pensando no que ela disse sobre Nuno.
Olho para as minhas mã os, sorrindo ao imaginá -las sobre as dele,
caminhando por essa cidade, sem medo de amar.
Quando chego em casa já passa das trê s da manhã , meu celular
continua desligado dentro da clutch, jogada em cima da mesa, nã o
posso lidar com nada que nã o esteja dentro de um frasco de analgé sicos
nesse momento.
Retiro os sapatos e vou até a cozinha, pego dois comprimidos e
tomo, desejando que eles tenham o poder de me fazer apagar até que o
mal-estar em meu estô mago e a angú stia em meu peito passem. Retiro
o vestido sentindo-me suja enquanto caminho até o banheiro e tomo
um banho quente e longo, esfrego minha pele enquanto tento apagar a
sensaçã o desagradá vel daquele homem imundo me olhando como se eu
fosse uma mercadoria.
“Não há nada de errado em jantar com uma jovem tão atraente e
ainda ajudar em uma causa tão nobre, não é?”
As palavras do tal de Jorge, enquanto assiná vamos os documentos
do leilã o me deixaram com uma sensaçã o ruim, eu sabia que, se nã o
aceitasse, seria mal interpretada e agora terei que passar duas horas da
minha vida na companhia daquele homem.
Deus salve as criancinhas...
Termino de tomar o banho, mas minha cabeça ainda parece prestes
a ruir, meu corpo ainda pinica nos lugares em que fui indesejadamente
tocada e odeio o fato de que aquelas mã os asquerosas tiraram o prazer
e a memó ria de outras mã os.
Minha mente me leva até Nuno, em como ele parecia transtornado,
tenso, furioso. Seu olhar naquele palco nã o se parecia em nada com o
olhar faminto e arrogante do rapaz que me possuiu naquela sala de
aula, enquanto uma cidade inteira se divertia ao nosso redor, eu sabia o
motivo, a exposiçã o dele no palco. Falar em pú blico tem o poder de
descascar o rapaz sexy e con iante que conheço e deixa Nuno exposto,
nu, diante de toda a cidade.
Ele poderia matar aqueles homens apenas com a força do seu olhar.
Ouço um som na porta da frente e, por um instante, penso em nã o
atender, mas entã o me lembro de que Maddie me disse que Nuno estava
fora de si quando deixou a festa e desde entã o nã o consegui mais falar
com ele. Antes de pensar duas vezes, corro até ela e a abro.
Nuno está lá , parado, o smoking destruı́do, sujo de terra e... Meu
Deus! Há sangue salpicado por toda parte, em suas mã os e roupa,
manchando a camisa que antes era branca. Meus olhos se arregalam e
coloco as mã os na boca, incapaz de impedir o soluço que se forma
enquanto busco por machucados em seu rosto.
— O-o que houve com você ? — sussurro incapaz de falar
decentemente.
— Nã o é meu — ele responde, com a voz rouca, sé ria, triste, tã o
triste que nã o consigo entender como algué m tã o jovem pode ter tanta
tristeza em seu coraçã o.
— O quê ? — pergunto sem saber para onde olhar. — Suas mã os...
— Stella — ele me chama fazendo com que eu olhe para seu rosto.
— O sangue nã o é meu — ele completa com uma tranquilidade que nã o
condiz com sua aparê ncia.
— Como nã o? Olhe para você . — Sinto as lá grimas começarem a se
formar em meus olhos enquanto aponto para sua roupa destruı́da.
— Shhh... vem cá . — Ele entra em meu apartamento e me puxa para
os seus braços enquanto fecha a porta com seu pé . — Está tudo bem, eu
nã o estou machucado — ele sussurra em meus cabelos, a mã o
machucada enterrada neles enquanto agarro sua camisa em minhas
mã os me obrigando a acreditar em suas palavras, mesmo que a imagem
à minha frente diga outra coisa.
— Entã o de onde é esse sangue? — Me afasto, apalpando seu corpo,
ainda procurando o buraco de onde saiu aquilo.
— De outra pessoa.
— Você brigou com o Tony? — Me afasto olhando em seus olhos,
notando um machucado em seu maxilar e um arranhã o em seu pescoço.
Nuno desvia o olhar negando e coloco a mã o em seu rosto obrigando-o
a olhar para mim. — Você nã o bateu naquele anciã o, nã o é ?
Ele me dá um riso cheio de sarcasmo e nega mais uma vez.
— Entã o quem foi?
Ele nã o responde.
— Nuno, você está me deixando nervosa.
— Nã o é como você está pensando — ele diz, com aquela voz
tranquila.
— De que outra forma se tira sangue de algué m, Nuno? — Cruzo
meus braços em frente ao peito, sentindo um mau pressentimento
enquanto imagino o que aconteceu.
— Nã o posso explicar agora. Você nã o entenderia.
— Foi por minha causa?
Nuno olha para os nó s dos seus dedos esfolados e começa a remover
uma pele de um deles enquanto hesita em me responder.
— Nuno.
— Nã o. Nã o vim aqui para isso, Stella.
— Entã o por que veio?
— Seu celular está desligado.
— Eu desliguei, mas pedi para Maddie te dizer que eu estava bem,
ela nã o disse?
— Disse, mas eu precisava te ver.
— Eu estou bem.
— Está mesmo? — Suas sobrancelhas se unem em uma carranca
triste.
— Nã o quero que você se sinta mal por nada, Nuno.
— Como nã o me sentir mal, quando você foi leiloada igual uma...
— Nuno, por favor, eu já disse, estou bem.
Ele balança a cabeça, incapaz de acreditar no que digo e caminha até
a parede apoiando-se nela, os cabelos completamente desarrumados e
um pequeno hematoma no canto do seu maxilar sã o os ú nicos indı́cios
de uma briga. Ele parece um guerreiro elegante vindo de um combate
vitorioso... Seria uma imagem linda, se ele nã o estivesse tã o triste.
Nuno esfrega o rosto e solta um gemido baixinho, me pergunto
quem é a pessoa que sofreu a sua fú ria e como será que ele está ? Espero
que bem, na medida do possı́vel.
— Você nã o precisa ir, Stella — ele diz tã o angustiado, que tenho
vontade de abraçá -lo novamente.
— Está tudo bem — minto e aperto meus dedos em minhas costelas
para me impedir de ir até ele. — Eu assinei uma espé cie de contrato.
— Foda-se essa merda, eu dou um jeito.
— Eu preciso ir.
— Por favor, nã o vá .
— E apenas um jantar, e o dinheiro vai ajudar muitas crianças.
— Nã o tem problema, eu pago — ele diz com a arrogâ ncia de quem
sabe que dinheiro nunca vai ser o problema da sua vida.
— Nã o se trata do seu dinheiro, Nuno.
— Entã o o quê ? Você quer jantar com aquele velho babã o?
— Eu prometi, diante da cidade inteira, nã o vou voltar atrá s na
minha palavra porque você está chateado. Eu sinto muito, mas nã o vou.
Ele respira fundo e seus ombros desabam, como se ele estivesse
cansado demais até mesmo para ter essa discussã o.
— Entã o vá com algué m, com a Maddie ou alguma outra pessoa que
você goste.
— Por quê ?
— Eu nã o con io naquele homem, Stella, e se ele te desrespeitar eu
nã o sei o que sou capaz de fazer.
— Foi por isso que você arrumou uma briga? Você precisava bater
em algué m e, como nã o poderia ser nele, entã o encontrou algué m
disposto para isso?
Ele baixa o olhar para seus punhos enquanto con irma.
Caminho até onde ele está e ergo seu rosto para poder olhar em
seus olhos, eles estã o vermelhos e Nuno desvia o olhar.
— Você deve estar me achando um monstro.
— Claro que nã o, eu só estou preocupada.
Ele me olha por um tempo, a expressã o em seu rosto se suaviza aos
poucos, até que seus lá bios se movem só um pouquinho.
— Você nã o tem ideia do quanto os moleques dessa cidade sã o
fodidos.
— Eu tenho até medo de tentar entender — digo quando baixo
minha mã o até a sua. — Posso? — Aponto para as suas mã os e ele as
estende para mim, a esquerda está em pior estado, há um talho enorme
em um dos nó dulos e um lı́quido claro começa a se formar. — Isso deve
estar doendo. — Passo a ponta dos dedos em um machucado menor,
mas ele nem ao menos se move. Ainda posso sentir a fú ria emanando
do seu corpo, como se ele ainda estivesse pronto para continuar de
onde parou.
— Nã o está .
— Mas vai doer, vou pegar as coisas e fazer um curativo. — Dou um
passo, mas Nuno me segura pela mã o me puxando para perto de si.
— Eu nã o preciso de curativo — ele diz, baixinho, enquanto me
encara como se pudesse me devorar. — Eu só preciso de você . — Ele
segura meu rosto em suas mã os.
Abro a boca, mas nã o consigo formular nem ao menos uma frase, já
foi difı́cil me afastar dele naquela pista, diante da cidade inteira, ingir
que nã o tı́nhamos estado juntos naquele palco e agora aqui, onde
ningué m pode nos ver, sinto como se inalmente pudesse respirar
aliviada.
Nuno passa um braço por minha cintura, sua mã o se fecha em
minha camiseta, puxando-a enquanto ele apoia a testa na minha.
— Eu nã o tô aguentando mais... — ele sussurra, com os olhos
fechados, enquanto passa a mã o livre em meu rosto, o polegar em
minha bochecha, e os outros dedos em minha nuca. — Eu odeio tudo
isso, Stella, odeio nã o poder falar para todo mundo que você é minha,
que sou seu, que o que temos é mais do que só um desejo de moleque
pela professora.
— Eu també m — sussurro, sentindo minhas forças se esvaı́rem à
medida que seus dedos acariciam minha pele.
Meu coraçã o se enche de admiraçã o por ele e o puxo para mim, mas
antes que nossas bocas se toquem, ele se afasta, só um pouquinho, o
su iciente para que eu precise me aproximar um pouco mais e entã o ele
passa seu nariz em meu rosto, seus lá bios brinca com os meus, se
afastando sempre que me aproximo, e entã o um sorriso delicioso se
forma neles, expondo seus dentes e me deixando louca de desejo.
Agarro sua camisa com as duas mã os e me inclino, antecipando seu
movimento e o beijando. Nuno geme assim que nossas bocas se tocam,
e quando minha lı́ngua invade sua boca, ele se derrete, permitindo que
eu o beije com todo o meu desejo.
Sua mã o em minhas costas se abre apenas para se fecharem
novamente, como se ele estivesse se contendo. O beijo se torna afoito,
cheio de gemidos, lı́nguas e estalos, um beijo de quem precisa garantir
que nada mudou, que ainda estamos aqui, um para o outro.
— Stella... — ele sussurra meu nome quando o beijo termina,
apoiando a bochecha na minha, faço o mesmo, chamando-o, como se
precisasse ter certeza de que ele é real, é meu assim como ele disse e
que estou novamente em seus braços, porque nã o adianta, por mais que
eu fuja, é sempre aqui que acabo terminando.
Quando nossas respiraçõ es se acalmam, ele inalmente abre seus
olhos, nã o parecem os olhos de um jovem rico com o mundo aos seus
pé s, eles se parecem com os olhos de um anciã o, que carrega em sua
alma a tristeza de uma vida sem escolhas.
— Eu precisava muito desse beijo.
Passo minha mã o em seu rosto, acaricio cada pedacinho dele, o
maxilar marcado, os lá bios rosados do beijo, o machucado que faz ele
apertar um pouco os olhos.
— Feliz aniversá rio, Nuno Castro D’Agostinni. — Ele sorri quando
digo seu nome completo.
— Agora já posso ser preso.
— Entã o, cuidado, nã o cometa nenhuma loucura.
— Me desculpa — ele solta ainda encarando suas mã os.
— Pelo quê ?
— Eu nã o devia ter te tratado daquela forma, você tem razã o em
icar chateada comigo, eu tenho tanto para conversar com você , mas
iquei louco de ciú mes e saudade, foi ridı́culo eu sei, mas nã o posso
mudar o que sou, e eu ainda sou um idiota imaturo que nã o sei lidar
com essa situaçã o — ele fala sem respirar, como se precisasse colocar
tudo para fora antes que perca a coragem.
— Todos somos imaturos no amor, Nuno — digo espalmando minha
mã o em seu peito e sentindo um pedaço do meu coraçã o se acalmar
com sua con issã o porque eu precisava ouvir isso dele.
O cheiro de banho refresca meu coraçã o, o toque dos seus dedos
alivia minha dor, mas ainda sinto uma onda de eletricidade percorrendo
meu corpo desde o momento em que deixei Dom no Refúgio dos Sonhos,
sangrando e gemendo. Sozinho.
“Felizes os que ainda podem resolver suas batalhas com diálogos.”
Foi o que aquele maluco me disse, entre um gemido e um sorriso
meio maligno, quando praticamente me chutou para fora, depois de me
dar um ú nico murro que ainda está doendo pra caralho.
Assim que toda a minha raiva se esvaiu, o remorso me destruiu,
talvez seja essa a arma do Dom, ele nã o revida porque sabe que a dor
que nos faz sentir por tê -lo machucado é ainda pior.
Só nã o é pior do que a que sinto por causa dela.
Olho para Stella ajoelhada entre minhas pernas no seu minú sculo
banheiro, sua mã o trabalha em um curativo enquanto relembro suas
palavras, nã o a vejo imatura, insegura. Covarde sim, mas nã o imatura.
— Está tudo bem? — pergunta quando termina o curativo.
— Nã o — admito enquanto acaricio seu rosto.
— Você só está cansado e confuso — Stella continua mascarando
meus atos com palavras bobas. — Amanhã se sentirá melhor.
— Nã o estou confuso, Stella, tampouco cansado. Eu estou irritado
por saber que você foi usada essa noite, estou louco de ciú mes daquele
pé no saco, estou chateado porque bati em um garoto que nã o me fez
nada e, mesmo sabendo que ele precisa de ajuda, eu o deixei lá sozinho.
Stella franze o cenho enquanto ouve o que digo e odeio como ela
parece ler meus pecados enquanto faz isso, odeio como me sinto
repleto deles essa noite.
— Eu o conheço?
Penso em dizer nã o, mas nã o quero, chega de mentiras, chega de
esconder coisas por achar que seria o melhor.
— Sim, ele é um dos seus alunos, o Dominic Calazans.
Stella se senta sobre suas pernas enquanto se esforça para se
lembrar quem é , nã o é difı́cil se esquecer dele, Dom faz questã o de
parecer invisı́vel para todos.
— O Dominic... — Ela passa a ponta dos dedos no lá bio inferior
enquanto pensa. — Mas o Dominic do segundo ano? — Con irmo com a
cabeça. — Ele é tã o quieto e...
— Estranho.
— Eu nã o disse isso.
— Mas é o que ele é , sempre foi. A cada dia que passa, ele parece
que tá piorando. Com todos aqueles piercings e as tatuagens, é como se
ele estivesse mandando uma mensagem, ique longe de mim.
— Onde ele está ?
— No Refúgio dos Sonhos. — Ela faz uma cara de quem nã o sabe do
que estou falando e completo: — Mais um dos lugares secretos que os
jovens de Monte Mancante gostam de usar para fazer coisas erradas.
— Isso é tã o ridı́culo. — Ela se levanta recolhendo as coisas e
sorrindo.
— O que podemos fazer? Somos um bando de adolescentes
entediados.
— Sã o um bando de adolescentes ridı́culos. — Ela abre o armá rio e
pega uma sacola colocando as coisas que usou para limpar minha mã o
dentro. — Vamos lá ver o Dominic. — Ela me estende a mã o e demoro
um pouco para entender o que está fazendo.
— Nã o sei se é uma boa ideia — digo segurando-a junto a mim.
— Vamos lá . Se ele nã o quiser ajuda, a gente volta pra casa. — Ela
acaricia meus cabelos e um burburinho se forma em meu estô mago
com a sua frase.
— Por que está fazendo isso?
— Porque isso está te matando e nã o quero te ver assim.
Apoio minha cabeça entre seus seios e respiro fundo.
— Obrigado — sussurro e ela beija meus cabelos.

As ruas da cidade estã o desertas depois da grande noite dos


fundadores, ainda há bandeirinhas espalhadas por todos os lados e
toda aquela bagunça que sobra depois de uma festa. Olho para Stella ao
meu lado, confortavelmente linda sentada no banco do meu carro. Ela
olha para fora, alheia ao fato de que sua mã o está espalmada no apoio
de braço, bem ao lado da minha.
Sem pensar duas vezes, cubro-a com a minha chamando sua
atençã o, ela olha para as nossas mã os e, por um instante, acho que ela
vai se afastar, mas ela apenas sorri e suspira.
Quando chegamos no Refúgio, Stella coloca o capuz do moletom e
abaixa a cabaça, andando praticamente nas minhas costas.
— O que você está fazendo? — pergunto sorrindo quando passamos
por um grupo de chapados, que nã o seriam capazes de reconhecer a
pró pria mã e se precisassem.
— Tem alunos meus aqui — ela responde baixinho e a puxo para o
meu lado envolvendo meu braço em sua cintura.
— Minha pequena covarde — sussurro em seus ouvidos e deixo um
beijo sobre o capuz. — Nã o há ningué m aqui que possa te reconhecer, a
burguesia de Monte Mancante nã o gosta do Refúgio, aqui é o lugar de
quem quer ser invisı́vel.
— Dominic faz parte da burguesia da cidade.
— Nã o, Stella, ele é um dos invisı́veis.
Quando chegamos ao local onde o deixei, tudo o que resta dele é um
terno sujo de sangue jogado em um canto, olho para ele e meu
estô mago se embrulha, aperto minha mã o esquerda me sentindo
aliviado quando a dor a invade, eu a mereço por ter feito isso com ele.
— Ele se foi — Stella diz ainda olhando para o local.
— Ele sempre faz isso.
— Nã o é a primeira vez que você s se agridem? — ela pergunta
confusa e nego envergonhado. — Eu nã o entendo.
— Nem tente, ningué m entende.
— Você gosta dele? — pergunta ainda tentando entender.
— Ele é um de nó s, Stella.
— Entã o por que você o machuca?
— Porque ele precisa disso.
Ela suspira, as perguntas param e eu agradeço, nã o sei se tenho
condiçõ es de responder mais alguma coisa sem que pareça que somos
todos malucos.

No meio do caminho de volta para o seu apartamento mudo a rota e


acabamos estacionando na clareira, a noite está chegando ao im, logo o
dia vai amanhecer e preciso terminar a nossa conversa antes que o sol
ilumine meus segredos.
Puxo o cobertor do porta-malas e seguro sua mã o.
— Vou icar te devendo o vinho — brinco sobre uma conversa que
tivemos aqui há algum tempo.
— Tudo bem, ica pra pró xima. — Ela sorri e me prendo em sua
promessa para nã o perder a coragem.
Estendo o cobertor no chã o e ajudo Stella a se sentar, sento-me na
sua frente, respirando fundo e tentando pensar em como começar, mas
com a certeza de que antes que o dia nasça, ela saberá de tudo o que iz.
— Eu deveria ter feito isso logo quando cheguei, mas nã o tinha
cabeça para nada sabendo da palhaçada que seria essa noite, me
desculpe por ter demorado tanto.
— Você está me deixando preocupada.
— Eu só quero que ouça tudo até o im antes de tirar suas
conclusõ es, tá ?
Ela assente e eu começo.
— Lembra daquela viagem que iz com meu pai?
Stella está atenta, com seus olhos ixos em mim, as mã os
descansando sobre suas pernas cruzadas, sua expressã o tranquila me
transmite con iança.
— Sim, você nã o estava nada bem.
— Exatamente, naquele dia meu pai me chantageou. — Sinto o peso
da palavra machucar meu peito, como cutucar uma ferida que está
inalmente cicatrizando.
Conto a ela tudo sobre o que ele falou aquele dia, a histó ria do
Zimmermann com a garota morta, conto sobre o dossiê que, naquele
dia, acreditei ter sido montado por ele, conto sobre o histó rico
hospitalar de Suzy e a foto que foi tirada de nó s dois na escola.
Stella espalma a mã o na frente dos lá bios abertos, estarrecida com
tudo o que ouve e, como prometido, nã o diz nada.
— Quando cheguei na sua casa aquele dia, eu estava disposto a te
contar tudo, estava pronto para ir embora de Monte Mancante com
você , estava certo de que isso seria o melhor, nã o estava nem aı́ para
nada, eu só queria você . — Passo meus dedos em sua mã o, porque
preciso senti-la enquanto falo. — Mas, entã o, a Suzy abriu a porta e
quase me matou com seu jeito explosivo. — Ambos sorrimos ao
lembrar da maluca da Suzy. — Entã o eu entendi tudo, entendi por que
você tinha tanto medo de ser vista comigo, de perder seu emprego, de
ter nosso caso exposto. Eu saı́ da minha bolha e vi a nossa histó ria por
seus olhos.
Stella aperta os lá bios e balança a cabeça nitidamente emocionada.
— E quando a Suzy passou mal, meu Deus, Stella... Eu vivi aquilo
tantas vezes com o Matteo. Cada vez que ele piorava e minha mã e
chorava, o medo que eu sentia era tã o grande, que eu me encolhia no
canto do quarto de olhos fechados, porque achava que, se eu nã o o
visse, nã o seria real.
Ela estende a mã o, segurando a minha entre as suas enquanto as
lá grimas escapam dos seus olhos.
— Eu sei que nã o tinha nada que eu pudesse fazer, mas hoje eu
posso, Stella, hoje eu nã o sou mais aquele garotinho assustado. — Seus
olhos se arregalam quando ela começa a se dar conta do que estou
falando. Meu coraçã o martela no peito com tanta força, que nã o tenho
certeza se vou sobreviver a essa noite. — Parecia que tudo estava
conspirando para aquilo, as contas atrasadas, você chorando em meus
braços, o pavor nos olhos do Xavier.
— Nã o, nã o, nã o... — Ela começa a balançar a cabeça, afastando suas
mã os das minhas.
— Quando voltamos, eu já nã o era mais o mesmo, tinha a convicçã o
de que, se dependesse de mim, você nunca mais choraria.
— Você nã o pode me proteger disso, Nuno — ela diz, com a voz
embargada.
— Sim eu posso, e por isso fui embora da sua cama daquele jeito. Se
eu icasse e você olhasse para mim desse jeito, eu nã o conseguiria
seguir em frente, eu precisava manter o foco.
— Por isso você se afastou da escola?
— Por isso me afastei de tudo o que me lembrava você . — Volto a
segurar as suas mã os. — Eu sou covarde quando o assunto é você , Stella
— admito e ela sorri. — Fui até meu pai e iz um acordo: o tratamento
da Suzy em troca do que ele quisesse de mim. E como você deve
imaginar, ele topou na hora, claro.
Sorrio enquanto forço a má goa para o fundo do meu coraçã o,
dizendo a mim mesmo que já passou.
— O que ele te pediu? Por favor, Nuno, nã o quero que você faça nada
que possa destruir a sua vida.
— Eu a destruiria feliz se isso garantisse que você estaria feliz.
— Eu jamais estaria feliz com algo assim. — Passo a mã o em seu
rosto, sentindo-me mais aliviado.
— Ele me pediu para ajudá -lo a conquistar a minha mã e.
Stella parece tã o surpresa quanto eu iquei no dia em que ele me
falou isso. Nã o foi para que eu assumisse meu cargo na fá brica, que era
o que eu tinha certeza de que ele pediria.
— Meu pai ainda ama a minha mã e, ele é completamente
apaixonado por ela, mas estava desesperado porque sabia que, quando
eu completasse dezoito anos, ia dar o fora e ela iria junto, entã o
combinamos que ele teria até o im do ano para conseguir, começamos
uma terapia familiar, estamos tratando o luto, que, de acordo com a
terapeuta, nã o soubemos lidar, izemos uma viagem em famı́lia como
parte do acordo. Estamos engatinhando.
— Eu nã o acredito que você fez tudo isso por mim.
— Claro que iz, mas no im das contas, ao escolher ajudar a Suzy,
acabei ajudando minha famı́lia també m.
— Eu nã o sei o que dizer, ainda estou em choque com tudo o que
ouvi.
— Você nã o está chateada?
— Chateada? Ningué m nunca fez nada tã o lindo assim por mim.
Graças a você , a Suzy está fazendo esse tratamento novo que vai
melhorar a sua qualidade de vida. Como eu poderia estar chateada?
— Eu sei — digo sorrindo timidamente.
— Você tem ideia de que deu a minha irmã a chance de viver mais?
— Era meu sonho dar ao Matteo mais tempo de vida. Se posso fazer
isso por ela, sinto que estou fazendo por ele també m.
Stella engatinha até estar sentada no meu colo, envolvo sua cintura
em meus braços e a aperto junto a mim.
— Obrigada — ela agradece ainda emocionada. — Por mais
diferentes que possamos parecer por fora, no fundo, somos duas almas
iguais, que amam igual, que dariam suas vidas por aqueles que sã o
importantes para nó s — ela sussurra, com seus braços enroscados em
meu pescoço fazendo aquele carinho em minha nuca que tanto amo. —
Somos almas gê meas.
— Você só nasceu um pouquinho antes de mim.
— Isso explica tudo.
— O quê ?
— Eu estava esperando você nascer — ela responde, antes da sua
boca se colar na minha.
E enquanto me sinto sugado por essa coisinha em meu colo, linda,
sexy e dona do meu coraçã o, sinto um alı́vio enorme por inalmente ter
me livrado disso tudo, agora está tudo bem.
Finalmente.
Há um hematoma na lateral do seu corpo que me incomoda, ele nã o
está tã o ileso como me disse, passo meus dedos por ele e Nuno geme
aumentando a pressã o com que me penetra. Ele gosta da dor, o excita
quase tanto quanto o perigo de ser pego e, sinceramente, tudo que o
excita, me excita.
Abro minhas pernas, dando a ele mais espaço, Nuno inclina-se sobre
mim, com seus lá bios em meu pescoço enquanto ele mete fundo, e diz o
quanto sou gostosa. Nã o demoro para gozar, é suave e profundo, mais
lento e duradouro que o normal, como se estivé ssemos inalmente
aliviados, nã o há nenhum peso sobre nó s, nenhuma culpa, nem medo,
só amor, desejo, prazer.
Imagino que seja por causa de tudo o que ele me contou, saber dos
sacrifı́cios que ele estava disposto a fazer para me proteger, para
proteger a minha irmã , me faz querer chorar aqui mesmo.
E é o que faço.
Enquanto gozo, sentindo-o aumentar o ritmo, indo mais forte, se
entregando ao prazer de me possuir, abraço esse garoto lindo e especial
com meus braços e minhas pernas e choro, choro de amor, de emoçã o,
de gratidã o por ele ter me encontrado naquele lugar enorme, lotado de
pessoas.
Almas gê meas.
Assim como nas histó rias de amor fantasiosas, elas sempre se
encontram, se reconhecem, se conectam, com tanta força e sem
explicaçã o, que é impossı́vel separá -las.
E nesse momento somos um, de corpo e alma; e quando ele goza,
forte e belo, me pressionando com seu corpo grande e pesado, urrando
de prazer, beijando meus cabelos, me erguendo em seus braços, me
segurando junto a seu corpo molhado de suor, eu observo cada detalhe
dele. Quero me recordar desse momento para sempre, do seu rosto de
menino exausto, relaxado, enquanto ele se move lentamente, liberando-
se dentro de mim. Suas mã os grandes em minhas costas, me seguram,
seu corpo, meu porto seguro, me dá conforto. E atrá s de nó s, no
horizonte, mais um dia começa a surgir, como um lembrete de que a
vida continua, e que ela pode ser linda.
A minha é , porque encontrei a maior riqueza que ela possui: o amor.
— Estou com fome — ele diz enquanto acaricia meus cabelos
puxando uma mecha para cima e soltando-a.
Ergo-me de seu colo incré dula.
— Dessa vez, eu juro que é de comida — ele responde com meu
sorriso torto.
— Que bom saber, porque eu acho que nã o tenho mais forças para
nada — digo me referindo as trê s vezes em que Nuno me possuiu.
E nem estou contando com aquela da sala de aula.
— També m estou esgotado — ele diz cheio de orgulho.
— Você disse que ele nã o te bateu — digo enquanto toco o
hematoma.
— Ele nã o bateu, eu caı́ sobre um pedaço de madeira.
Obrigo-me a lembrar de Dominic, mas tudo o que me vem à mente é
o garoto misterioso e assustador que se senta no fundo da sala, com
seus dedos tatuados e os cabelos sempre presos em um rabo de cavalo,
que parece que foi feito à s pressas, e do dia em que ele me ajudou a
recolher meu material. E um garoto lindo, mas há uma tristeza tã o
grande em seu olhar que é quase impossı́vel encará -lo por muito
tempo, como se pudesse ser sugada para as profundezas da sua alma.
— Ele nã o deveria estar se formando esse ano? — pergunto me
recordando do quanto ele é alto.
— Sim, mas ele vive sumindo, há boatos de que ele estava internado,
outros dizem que estava preso. O pai dele é um desgraçado, que só fode
com ele; e a mã e uma maluca, que mais parece a esposa do padre.
— Estou preocupada com esse garoto — admito apoiando meu
queixo em seu peito.
— Todos estamos. — Nuno se ajeita me puxando para cima do seu
corpo. — Mas podemos nã o falar sobre isso agora? — pede ainda
chateado.
— Claro.
— Olha. — Ele aponta para o cé u sentando-se e me viro apoiando
minhas costas em seu peito para ver a beleza do espetá culo do nascer
do dia em Monte Mancante.
— Eu nunca vou me acostumar com isso.
— Vai sim, porque eu pretendo te trazer aqui muitas vezes.
— Quantas?
— Se depender de mim, até o im da minha vida.
Viro-me para olhar em seu rosto, assustada com a força das suas
palavras, mas com a certeza de que ele nã o está mentindo.
— E isso que você quer?
— Isso é a minha ú nica certeza no momento.
— Quando você tiver cinquenta anos, eu serei uma velha de
sessenta.
— Eu já te disse que adoro mulheres mais velhas? — ele brinca.
— Todo mundo vai nos julgar.
— Nã o ligo.
— Muitos vã o me chamar de interesseira.
— Que se fodam todos.
— Eu vou ter crises de ciú mes.
— Eu vou icar louco de tesã o e te comer até te provar que sou só
seu.
— Eu posso ter ilhos com ibrose.
— A gente vai dar conta, Stella, de tudo. — Nuno segura minha mã o,
entrelaçando os nossos dedos. — Desde que você esteja comigo, eu dou
conta de tudo.
Me inclino e capturo seus lá bios, o beijando pela milioné sima vez
desde que chegamos, e mesmo assim, sinto como se o beijasse pela
primeira vez.
— Espera. — Afasto-me dele lembrando de algo muito importante.
— Você disse que o Zimmermann sabe sobre nó s e que chantageou seu
pai, mas ele ainda tem nosso segredo, e se ele contar? — pergunto sem
saber se quero a resposta, à s vezes tudo o que a gente quer é se manter
dentro da nossa bolha perfeita.
Eu quero, mesmo sabendo que nã o posso.
Nuno sorri passando a lı́ngua no lá bio inferior enquanto me
observa.
— Eu pensei que você nã o iria perguntar nunca — ele diz satisfeito.
— Na minha ú ltima noite na Itá lia, meu pai me contou toda a verdade
sobre seu plano brilhante, maligno e desesperado.
Franzo o cenho sem entender nada, mas Nuno me explica como seu
pai usou nosso segredo como um subterfú gio para reconquistar a sua
famı́lia.
— Ele sabia que nã o tinha nada para barganhar, que você era meu
calcanhar de Aquiles.
— Uau! — é tudo o que digo, ainda chocada e aliviada.
— Ainda dó i pensar que ele te usou para me alcançar e que deixou
para me contar no ú ltimo dia da viagem, mas eu prometi a minha mã e
que iria perdoá -lo.
— E você vai — digo con iante porque sei que, dentro desse peito,
bate o coraçã o mais puro e lindo que já conheci.
Por mais que ele nã o admita, Nuno sonhava com isso, ter sua famı́lia
de volta, ser reconhecido por quem ele é , sentir que seu pai se importa
com ele.
— Estamos no caminho — ele diz, com um sorriso meio tı́mido.
— Isso signi ica que nã o tem ningué m nos chantageando?
— Melhor, isso signi ica que nã o há ningué m que possa nos
chantagear.
— Como você pode ter tanta certeza? — pergunto me lembrando do
que ele falou a respeito da nossa foto.
— Porque existem homens que sã o intocá veis. E Antô nio
D’Agostinni é um deles.

As vezes, a felicidade que tanto sonhamos parece algo tã o distante


que, quando acontece de verdade, é difı́cil reconhecer, entã o icamos
procurando algo para provarmos a nó s mesmos que era mentira, que
nos enganamos, que foi bom demais para ser verdade.
Foi o que iz durante todo o domingo.
Na hora em que acordei, com os longos e pesados braços dele em
torno da minha cintura, com seu corpo grande e sua ereçã o matinal em
minhas costas, quando vi ele parado na porta da minha cozinha, com os
cabelos molhados e minha toalha em torno da sua cintura, quando
izemos amor devagarinho, na minha cama, e depois adormecemos,
sem pressa, sem medo.
Quando discutimos sobre começar um seriado novo ou assistir a um
ilme velho.
Ele ganhou, claro, porque eu sei que nã o vou conseguir me
concentrar em nada, minha mente ica indo e vindo, repassando nossa
conversa, me questionando sobre a veracidade de tudo, tentando
compreender que Suzy ter essa chance foi graças a esse menino.
Quem diria...
Já passa das nove da noite quando a campainha toca, Nuno está no
quarto, em minha cama, completamente nu e relaxado, meio sonolento.
Me levanto e visto uma roupa enquanto ele resmunga que nã o quer
vestir aquela calça. Antes de sair me viro para admirá -lo subindo o
zı́per.
Ah... se ele soubesse como ica lindo, só com essa calça e o peito
marcado por minhas unhas.
— O que foi? — ele pergunta quando me vê parada na porta
admirando-o.
— Você é insuportá vel, sabia? — digo e ele baixa o olhar para seu
abdô men onde passa a mã o nas marcas que deixei.
— E, me contaram. — Ele sorri. A campainha toca de novo. Eu
resmungo.
Ivan, Maddie e Levi estã o na porta. O primeiro com sua carranca
habitual enquanto passa por mim entregando uma mochila, que
imagino que Nuno deve ter pedido; os outros dois, com pizza e
refrigerantes nas mã os.
O dia nã o poderia terminar de um jeito melhor, nem que eu o
descrevesse, como nas cenas inais daqueles romances que deixam o
coraçã o quentinho.
E perfeito demais.
Tiros e explosõ es ecoam pelas paredes da sala, um palavrã o escapa
da boca de Ivan e ele se joga para trá s no instante em que a frase SE
FODEU surge na tela de 60 polegadas.
— Desiste, cara, você é muito ruim. — Levi gargalha da irritaçã o do
meu amigo.
— Que nada, eu só estou entediado — Ivan responde, mas seu rosto
começa a icar vermelho, algo que acontece sempre que ele ica puto. O
que nã o acontece muito, só quando ele perde em algum jogo ou quando
Cindy está por perto.
Hoje é um desses dias.
— O que diabos você s homens tê m na cabeça quando decidem fazer
uma merda dessa? — Maddie resmunga enquanto puxa um pedacinho
de pele da minha mã o esquerda. A maioria dos machucados estã o
cicatrizados, graças aos cuidados diá rios que Stella vem tendo com
minha mã o.
Dominic, eu te devo uma.
— Isso porque você nã o viu a cara do Dom — respondo fazendo
uma careta quando uma pontada de dor surge.
— Bando de imbecis, isso que você s sã o. — Cindy se joga ao meu
lado no sofá , espiando o trabalho minucioso de Maddie em minha mã o.
— Todo mundo sabe que o Dom tem problema, o cara é pancada da
cabeça. — Ivan joga o controle no chã o e se levanta indo até o frigobar e
pegando cerveja para todos. — Agora você , nã o consigo entender por
que continua fazendo isso.
— Eu sei até onde ir; se for outro, tenho medo do Dom nã o saber
parar, consegue entender agora? — Olho para seus olhos injetados de
raiva e ignoro o silê ncio que se estende na sala.
Todo mundo aqui tá cansado de saber disso, nã o sei quando foi que
começamos essa estranha relaçã o, mas sempre que ele tá muito mal, é a
mim que recorre, poré m, sempre que falo a respeito disso, recebo de
volta esse monte de olhares chocados. Entã o é algo que nã o costumo
compartilhar com meus amigos.
— Qual é a dele, hein? Será que o Dom é aqueles tipos que só gozam
quando apanha? — Cindy se acomoda nas almofadas, erguendo uma
perna e apoiando o braço no joelho enquanto fala.
— Nã o sei, diz aı́ você , o cara precisou apanhar pra gozar? — Ivan
solta e paro com a garrafa no meio do caminho enquanto olho de um
para o outro.
Ivan e Cindy sempre tiveram essa mania de se atacarem, crescemos
assim, à s vezes até duvidei da amizade deles, mas bastava Cindy se
meter em qualquer problema que Ivan era o primeiro a ir lá resolver. Se
ela pedisse um picolé de limã o à s trê s da manhã , o banana arrumava
um, mesmo que na manhã seguinte provocasse-a até fazê -la chorar.
Era uma coisa deles, uma relaçã o esquisita que funcionava bem, ele
sabia como mexer com o emocional dela e Cindy, com o passar dos
anos, aprendeu a mexer com o dele. O problema é que essa brincadeira
está começando a icar perigosa, porque hoje eu sei que o que eles
sentem um pelo outro é mais complicado do que amizade de amigos.
— Vai se foder, Ivan, eu nã o transei com o Dom.
— Nã o é o que dizem — ele continua, antes de beber um longo gole
da cerveja.
— Qual é o teu problema, hein? — ela se irrita.
— Meu problema? Nenhum, só te iz uma pergunta. Se nã o quer
compartilhar com a gente, beleza, nã o precisa se irritar. — Ele dá um
sorrisinho que faz com que Cindy fale mais alguns palavrõ es e se vira
para pegar alguns pacotes de salgadinho.
— Você já transou com o Dom? — Me viro para perguntar para ela,
baixinho para que meu amigo nã o ouça.
— Claro que nã o, a gente já se pegou, mas ningué m transa com o
Dominic, ao menos nã o que eu saiba. — Ela bebe um gole da cerveja,
seus pensamentos viajam por algum lugar que nã o faço questã o de
saber.
— Dizem que ele é gay — Levi fala enquanto dirige
desgovernadamente pela cidade.
— Cale a boca! — Maddie dá um tapa na cabeça do namorado
derrubando seu boné .
— Ai, Madalena. Porra, olha o que você me fez fazer! — Ele aponta
para a tela, mas Maddie nã o dá atençã o.
— Bem-feito.
— Mas é o que os caras falam.
— Os caras sã o uns babacas e falam demais — Cindy fala.
— E se ele for? Qual o problema? — Maddie o defende.
— Nenhum, só tô falando o que falam por aı́.
— O Dom é esquisito, mas merece respeito, ao menos da nossa
parte, que o conhecemos desde pequeno — ela o defende.
— Você já transou com ele? — Ivan se vira, com as mã os carregadas
de salgadinhos enquanto encara uma Maddie furiosa.
— Isso nã o é da sua conta — ela responde irritada.
— Transou ou nã o transou? E só uma pergunta.
— Qual é o problema desse cara? — Cindy pergunta olhando para
mim, mas meus olhos estã o ixos em Levi, nos seus dedos que apertam
o controle remoto do videogame como se pudesse quebrá -lo e na
velocidade com que ele se ergue do chã o. A grande igura masculina
encurrala meu amigo no canto da sala. Me preparo para intervir,
embora eu ache que Ivan está implorando por um soco hoje.
— Fala assim com ela mais uma vez e será a ú ltima da sua vida —
Levi rosna, como um grande urso negro prestes a devorar a presa.
— Você s dois querem parar! — Maddie exige sem sair do lugar. —
Eu nã o preciso de nenhum homem me defendendo, Levi, volta aqui —
ela o chama, mas seu namorado parece em transe enquanto olha para
Ivan.
— Você s homens sã o tã o ridı́culos as vezes. — Cindy revira os olhos.
— Ei, você s dois, vamos parar, já chega de criancice — tento
amenizar as coisas.
— Eu nã o falei por mal, caralho, só iz uma pergunta. — Ivan se
afasta de Levi jogando pacotes de salgadinho para cada um de nó s.
— Nã o, eu nã o transei com o Dom, mas minha irmã já icou com ele
algumas vezes, mas nã o chegaram lá que eu me lembre, ela nã o é de
falar muito, você s sabem. — Maddie parece meio sem graça ao falar da
sua meio-irmã , elas nã o se dã o muito bem e sã o tã o diferentes que, à s
vezes, me esqueço de que elas nasceram dos mesmos pais.
— Conheço uma garota que já icou com ele, mas nã o passou de um
boquete, e, pelo que ela falou, o cara é bem equipado, entã o nã o sei qual
o problema — Cindy diz enquanto descasca o esmalte da unha.
— Vai ver é disso que o cara gosta, uma boa chupada as vezes é
melhor que uma trepada meia boca. — Ivan larga a garrafa vazia em
cima da mesa de centro e começa a calçar o tê nis, ignorando o olhar que
dou para ele. — Por falar nisso, preciso ir.
— Aonde você vai? — Cindy pergunta.
— Trepar. Quer vir? — ele a provoca e Maddie revira os olhos.
— Nã o, obrigada, tenho alergia a silicone e lá tex — ela responde e
Ivan pisca provocando-a do jeito esquisito de sempre deles dois.
Quando Ivan sai, a tensã o na sala diminui, Maddie termina de passar
pomada em minha mã o, mesmo contra a minha vontade, e Cindy se
junta a Levi, que ainda está mal-humorado por causa de Ivan, para um
jogo de luta.
— O que ele tem hoje? — Levi pergunta.
— Brigou com o Nick — é tudo o que eu preciso dizer, todos eles
sabem o quanto Ivan ica mal sempre que briga com seu irmã o.
— Como a Stella está ? — Maddie pergunta enquanto guarda as
coisas na caixinha de primeiros socorros.
— Fingindo que está bem, mas nã o está — respondo, odiando a
lembrança dela hoje cedo quando a deixei em seu apartamento.
— Eu imagino, pobrezinha, ela estava tã o sem graça na ú ltima aula.
— Graças a Deus que eu nã o estava lá ou seria capaz de quebrar a
cara dos imbecis que izeram gracinha com ela.
Apesar de termos nos acertado, decidi nã o voltar mais a escola, meu
pai conseguiu um termo para que eu completasse os estudos a
distâ ncia, vai ser melhor assim, cada dia ica mais difı́cil olhar para
Stella e ingir que sou seu aluno.
— Ah, qual é , gente, nã o é como se ela fosse dar para o velho,
mesmo porque eu tenho quase certeza de que ele nã o funcionaria
mesmo que visse a pro pelada na sua frente — Cindy diz.
O sangue ferve em minhas veias com a imagem de Stella sem roupa
na frente daquele homem, na verdade, na frente de qualquer pessoa.
— Cindy, dá um tempo — Maddie pede.
— Tudo bem, eu já tô acostumado, quando ela entra no modo vaca,
ningué m tira — respondo e Cindy se vira mostrando a lı́ngua para mim.
— Relaxa, gostosã o, aquela mulher tá caidinha por você .
Levi dá um golpe especial que derruba a bonequinha da nossa
amiga e termina a partida com ela caı́da no chã o. Ele sorri e ergue o
punho no ar, revigorado por ter calado a boca da Cindy, ao menos por
alguns segundos.

Ploc!
Um estalo do chiclete de Ivan faz com que eu olhe de cara feia para
ele.
— O quê ? — Ele ergue os ombros sem entender nada e, se depender
de mim, vai continuar. Nã o estou com saco para conversar hoje,
principalmente com Ivan, que está um pé no saco o dia todo.
Ploc!
— Você quer parar, porra?! — esbravejo e Ivan se encolhe.
Volto a olhar para a televisã o, o jogo nã o me atrai, para dizer a
verdade sequer me recordo de quem está jogando. Nã o enxergo nada a
minha frente, só a imagem de Stella, naquele restaurante, com aquele
velho maldito.
— Relaxa, Nuno, é só um jantar — Ivan diz enquanto responde algo
no celular.
— Nã o, nã o é só um jantar, é a minha garota sendo vendida para um
velho maldito.
A porta da sala se abre e Cindy entra, usando um vestido minú sculo
que mal cobre seus seios e um salto que a deixa quase do tamanho de
Ivan, que se remexe desconfortavelmente ao meu lado.
— Levantem suas bundas sujas daı́, temos compromisso. — Ela
balança alguns convites no ar. — Vamos lá , meninos, nã o me ouviram?
— Sem chance. — Ivan se acomoda deitando-se e voltando a mexer
no celular.
— Nã o tô a im, Cindy — respondo tentando ser mais educado do
que meu amigo.
— Tem certeza? Porque tenho aqui alguns convites para um jantar
muito especial — ela diz olhando para os papé is em sua mã o. — Ouvi
dizer que uma das mesas custou uma fortuna.
Levanto em um pulo e puxo o papel da sua mã o.
— Onde você conseguiu isso?
— O dono é amigo do namorado da minha mã e, foi facinho. Agora
corre, você tem dez minutos. — Ela pisca para mim e volta a olhar para
Ivan.
— Nem pensar, eu nã o...
Ele nã o consegue terminar de responder, Cindy arranca o celular da
sua mã o e o encara com seu olhar que diz “você vai fazer o que eu
mando” e, como sempre, desde que o mundo é mundo, Ivan faz
exatamente o que ela pede.

— Custava você ter vestido a roupa que eu falei? — Cindy resmunga


enquanto esperamos a hostess voltar.
— Eu disse que nã o tava a im de vir — Ivan responde e olho feio
para ele. Dirigimos duas horas para chegar até aqui e, por causa da sua
teimosia, fomos impedidos de entrar, o motivo: é proibido entrar no
Rêves D’anges, um dos restaurantes mais badalados do paı́s, de
moletom.
— Cara, tua transa deve ter sido muito ruim. — Ela olha para as
unhas enquanto balança o pé .
Eu sei bem o que é isso, nã o é a garota o problema, nem a transa em
si, o problema é que ele nã o está comendo a pessoa certa, e mesmo que
a Margot Robbie se materialize na frente dele, ainda assim vai ser uma
bosta.
— Nã o tem nada a ver com a minha transa, eu só nã o gosto de ser
obrigado a fazer algo que nã o quero — ele responde como um moleque
mimado.
— Mas eu nã o...
— Já chega você s dois. — Olho de um para o outro me sentindo, de
repente, muito mais velho que eles. — Eu já aguentei essa briga idiota
por toda a viagem. Se você s nã o pararem com isso, eu juro que vou
embora.
— Eu tava quieto, foi ela que...
Olho feio para Ivan, que ergue as mã os.
— Tá na hora de você s dois se sentarem e resolverem essa porra.
— Nã o tenho nada que resolver com esse idiota! — Cindy rebate.
— Entã o para de se incomodar com os buracos onde ele en ia a
merda do pau dele.
— Ei, olha lá como você fala do meu pau — Ivan se defende.
— Senhores. — A garota aparece interrompendo a nossa conversa.
— Podem me acompanhar? — Ela aponta para o salã o enquanto olha
para Ivan e faço o que ela pede, sentindo meu coraçã o acelerar ao
pensar que falta pouco para que eu a veja.
Calma, Nuno, mantenha a calma.

A cadeira pinica, a comida está fria e meu humor está fazendo o


Grinch parecer um doce de pessoa. Mas ao menos Ivan e Cindy estã o em
silê ncio.
Olho na direçã o da mesa onde Stella e Jorge estã o. Para o bem da
minha saú de mental, Stella está usando um conjunto de terno que deixa
bem claro que aquele jantar é algo extremamente pro issional, mesmo
assim ele parece animado enquanto conta alguma coisa para ela, de
onde estamos nã o consigo ver o seu rosto, mas, pela sua postura e a
forma como seus pé s balançam, imagino que ela nã o veja a hora de ir
embora.
Tony está em outra mesa, usando um terno elegante que o deixa
parecendo a porra dos CEOs que a mulherada deseja, ele gargalha
enquanto Solana conta algo.
— E por isso que você nã o queria vir? — Cindy pergunta, com seus
olhos ixos na mulher que esquenta a cama do nosso amigo. Ivan ergue
os olhos por baixo do cabelo desarrumado e oleoso de quem nã o toma
banho há muito tempo.
— Tá de sacanagem com a minha cara, né ? — Ele sequer olha na
direçã o da mesa onde ela está . — Você nã o vai comer isso? — Ivan
aponta para o prato à minha frente e nego. — Tem certeza? Tá uma
delı́cia.
— Pode icar. — Empurro meu prato na sua direçã o, ele o pega e
en ia uma colherada generosa na boca, que faz com que Cindy diga um
palavrã o. — Sé rio, você s dois estã o regredindo. — Balanço a cabeça.
— Nuno, relaxa, você está parecendo um psicopata. — Cindy chuta
meu pé por baixo da mesa e me obrigo a respirar, ela tem razã o. Droga,
eu nem ao menos deveria estar aqui, ela me disse que icaria bem e eu
deveria acreditar.
Meu celular vibra em meu bolso no mesmo instante em que Stella se
levanta. Logo um garçom se aproxima puxando a cadeira dela, observo-
a olhar em volta, como se sentisse minha presença e, quando seus olhos
se encontram com os meus, a expressã o em seu rosto se suaviza e um
sorriso discreto surge em seus lá bios.
— Coitada da Stella, caidinha por você — Cindy diz enquanto bebe
mais um gole da á gua com gá s.
Stella desvia o olhar e caminha em direçã o ao banheiro, retiro o
celular do meu bolso e vejo a mensagem.

Júlia: Banheiro, agora.

Antes mesmo que eu possa pensar no que estou fazendo, me levanto


e vou atrá s dela.
Assim que chego à parte privativa do banheiro vejo o momento em
que ela entra em um deles, a porta se fecha devagar, olho em volta e,
quando tenho certeza de que ningué m está olhando, entro e tranco a
porta.
Stella está lá , parada no meio do banheiro, seu rosto corado,
provavelmente por saber que estamos fazendo algo errado, seu peito
sobe e desce com força enquanto ela olha para mim, a renda discreta da
sua blusa ondula sobre seus seios.
— Me desculpe, eu sei que nã o deveria, mas... — Nã o consigo
terminar de falar, Stella avança para cima de mim. Com sua boca sobre a
minha, sua mã o em minha camisa, seu corpo pressionando o meu
contra a porta, a maçaneta machuca minhas costas. Mas que se foda,
tudo o que consigo pensar é que ela está aqui, me devorando como se
eu fosse o prato principal e o resto é resto.
Cravo meus dedos em sua bunda e ergo-a do chã o, Stella circula
meu quadril com suas pernas sem deixar de me beijar nem um segundo
sequer, essa versã o destemida dela me deixa louco e preciso de tudo de
mim para nã o perder a cabeça.
— Stella... — gemo seu nome enquanto ela passa sua lı́ngua por meu
lá bio. — Ah, caralho, você vai me matar — digo quando ela morde meu
pescoço, e meu pau ganha vida instantaneamente. — Puta merda...
Stella ri e estou decidindo se quero segurá -la em meu colo ou se
quero colocá -la no chã o para poder explorar seu corpo quando ela
interrompe o beijo para olhar para mim.
— Oi. — Ela passa a lı́ngua nos lá bios inchados do beijo e decido
que nã o quero soltá -la nunca mais, o resto que se foda.
— Você está bem?
Stella passa os dedos em meus cabelos enquanto olha para mim.
Ajusto-a nos meus braços, familiarizando-me com o seu peso.
— Sim, estou ó tima.
— Ele está te respeitando?
— Claro que está , inclusive está me dando dicas incrı́veis de criaçã o
de gado. — Ela ri e o som do seu riso faz meu coraçã o se acalmar.
— Eu quero que você saiba que vir aqui nã o foi ideia minha.
— Eu sei. — Ela beija minha boca.
— Sabe?
— Uhum. — Me dá mais um beijo.
— Como você sabe?
— Cindy me perguntou o que eu achava. — Seus dentes puxam meu
lá bio inferior.
— Ela fez isso?
— Uhum. — Ela passa a lı́ngua em meu queixo e sinto que posso
gozar aqui mesmo. — Você tem bons amigos.
— Entã o você nã o está me achando um psicopata? — pergunto e
Stella cai na gargalhada, ela inclina a cabeça para trá s e seus seios se
erguem icando a uma distâ ncia perfeita do meu rosto.
Quero beijá -los.
— Nã o.
Ficamos nos olhando. Milhares de coisas estã o entaladas na minha
garganta, quero pedir desculpas mais uma vez, quero dizer que me
senti doente o dia inteiro só em pensar que ela estava aqui, quero
segurá -la junto a mim nesse banheiro chique de um restaurante
exclusivo e fodê -la até que ela se esqueça de quem é , ignorando o fato
de que existe um mundo inteiro lá fora, mas, ao invé s disso, coloco-a no
chã o delicadamente, beijo sua boca, seu nariz, seus olhos e seus cabelos
antes de me afastar, ajeito minha calça e sorrio satisfeito quando ela
nota a minha ereçã o, quero que ela saiba, que sinta, que goste. Quero
tantas coisas, que mal consigo organizá -las na minha mente.
E bom, ruim, confuso, assustador.
— Eu preciso voltar. — Ela arruma o terno enquanto olha para a
frente da minha calça.
— Certo.
Stella coloca a mã o na maçaneta, mas, ao invé s de abri-la, ela se vira
para mim e passa a lı́ngua no lá bio, como se estivesse pensando em
fazer algo muito errado.
Ah, caralho!
— Cinco minutos — ela sussurra enquanto caminha até uma cabine.
— E só o que preciso. — Começo a abrir minha calça enquanto me
aproximo, meu corpo pressiona o seu enquanto ela empina a sua bunda
em minha direçã o. — Minha pequena covarde — sussurro em seu
ouvido enquanto abaixo sua calça e afasto sua calcinha encontrando
com facilidade o caminho da minha perdiçã o.
Ainda estou sorrindo, sentindo minhas bochechas quentes e o
coraçã o disparado, algo que vem se tornando comum desde que eu e
Nuno nos tornamos... namorados? Ainda nã o consigo acreditar nisso, já
faz quase um mê s e tudo o que consigo fazer é sorrir e suspirar pelos
cantos.
E morrer de vergonha.

Júlia: Romeo, você não pode


fazer isso!
Mando a mensagem enquanto olho mais uma vez o videozinho que
ele me enviou, sã o apenas alguns segundos, mas os segundos mais
quentes e provocantes que já vi em toda a minha vida. Sua mã o linda e
forte está em torno da sua ereçã o, enquanto ele se toca para mim.

Romeo: Você disse que estava


com saudades.

E, eu disse, mas nã o acreditei quando ele respondeu me dizendo


que mandaria algo para aliviar. Faz uma semana que nã o nos vemos,
Nuno está em Sã o Paulo com seu pai e tudo o que temos sã o algumas
trocas de mensagens suja e agora isso.
Acredite, Nuno, nã o aliviou nada.

Júlia: Só para você saber,


agora iquei com mais
saudades.

Envio a mensagem e ouço algué m entrando no banheiro, olho para o


reló gio e con iro a hora, sã o quase seis da tarde e quase todos foram
embora, exceto as turmas de Arte e os times de futebol, que estã o se
preparando para as temporadas inais do ano.

Romeo: Falta pouco para


terminar aqui. Se tudo der
certo, no im de semana
estarei em casa pronto para
matar a sua saudade.
Estou no meio da sua frase quando ouço a porta se abrir e um som
que faz a minha pele se arrepiar.
E um choro baixinho.
Travo o celular guardando-o no bolso da minha calça e saio,
preocupada com seja lá quem estiver chorando desse jeito, mas no
instante em que começo a abrir a porta da cabine, outra pessoa entra
no banheiro fazendo com que eu congele no lugar.
— Cindy — Tony a chama baixinho enquanto fecha a porta
trancando-a e indo até ela.
— Vai embora daqui. — Ela empurra seu peito quando ele tenta se
aproximar enquanto seca o rosto borrado com as costas das mã os.
— Shhh... nã o faz assim. — Ele a puxa pela nuca, mas Cindy resiste.
— Me solta, Tony.
— Ou o quê ? Me diz, o que você vai fazer? Vai me negar? Esqueceu o
nosso acordo?
— Eu já disse para me soltar. — Ela o empurra agora com um pouco
mais de força e, quando ele se inclina para tentar beijá -la, ela lhe dá um
tapa na cara.
— Sua vadiazinha barata. — Ele a empurra com tanta força, que
Cindy perde o equilı́brio e bate as costas na bancada de má rmore
soltando um grito agudo.
E o su iciente para que eu saia de onde estou.
— O que diabos está acontecendo aqui? — Corro até onde ela está ,
me ajoelhando ao seu lado. Cindy empalidece quando me vê e Tony a
olha como se pudesse agredi-la apenas com o olhar. E talvez ele possa,
porque sinto como se ela diminuı́sse em meus braços.
— Saia daqui agora. — Aponto para a porta e ele continua olhando
para ela. — Tony, é melhor você ir embora — aumento o tom de voz.
— Stella, nã o — Cindy pede baixinho, assustada, fragilizada. Em
nada se parece com a garota atrevida e con iante que aprendi a amar
nos ú ltimos meses.
— O que disse? — Olho para ela sem acreditar. — Tony, você quer
fazer o favor de sair daqui?
Ele inalmente desvia o olhar de Cindy para mim.
— Nã o se meta onde nã o deve, Stella.
— Você está dentro de um banheiro feminino, agredindo uma aluna
minha.
Ele parece prestes a dizer algo, quando Cindy o interrompe:
— Eu falo com você mais tarde — ela diz, ainda em um tom de voz
que nã o se parece com o seu.
Ele olha para mim e em seguida para ela, de inindo se deve ou nã o
acreditar em suas palavras e, entã o, ele se vai. A porta é batida com
força, nos fazendo estremecer com o impacto.
— Você consegue se levantar? — pergunto passando meu braço em
sua cintura e, quando Cindy geme, noto que nã o há como movê -la, nã o
sou forte o su iciente para erguê -la em meus braços. — Preciso chamar
ajuda, você pode esperar um instante? — ameaço me mover, mas ela
segura minha mã o.
— Nã o precisa — ela diz, mas seu rosto está lı́vido de dor e começo
a temer que ela tenha se machucado feio.
— Um minutinho e já volto.
Levanto-me e saio correndo, o coraçã o disparado em meu peito
implora por uma explicaçã o que nã o posso dar. Corro pelos corredores
agora vazios até que encontro um grupo de garotos, suados e cansados,
que conversam sobre o jogo que acabou há pouco. No meio deles,
gargalhando de algo que foi dito, está Ivan.
Nã o preciso dizer nada, no instante em que ele me vê , o garoto
birrento e mal-humorado, se afasta dos seus colegas e vem até mim.
— Você está bem? — Ele para na minha frente, enquanto me
observa com suas duas fendas azuis.
— Eu preciso de ajuda.
— O que houve? — Seu corpo se retesa, enquanto ele olha em volta
à procura do perigo.
— E a Cindy.
— O que tem ela? — Sua voz soa mais agitada.
— Preciso que você venha comigo.
Viro-me e começo a correr sem olhar para trá s, Ivan corre ao meu
lado, com o rosto vermelho pelo esporte enquanto ele passa na minha
frente.
— No banheiro, pró ximo corredor — digo sentindo os passos dos
outros alunos atrá s de mim enquanto observo Ivan disparar no
corredor, o atrito das chuteiras no piso causa um barulho alto demais.
Ouço o barulho da porta sendo aberta e, quando entro, encontro-o
debruçado sobre ela, que está choramingando.
— Preciso te levantar, baby — ele diz baixinho, com os olhos
assustados atentos na garota em suas mã os, e, quando Cindy olha para
ele, é como se todo o resto do mundo desaparecesse.
— Vamos, meninos, deem espaço para ele passar — digo
empurrando o grupo que se acumula na porta enquanto Ivan ergue
Cindy em seus braços. Ao fundo, afastado de todo o resto, encontro
Dominic. Ele olha a cena rapidamente e se afasta, como se nã o se
importasse com nada.
Um grito chama a minha atençã o e, quando me viro, vejo Cindy
chorando e é como se Ivan estivesse sentindo a sua dor.
Os meninos abrem espaço, formando um corredor para que ele
passe com ela em seus braços, com os passos irmes e rá pidos enquanto
lamento o fato dessa escola ser tã o grande.
— Vamos levá -la à enfermaria — peço, mas Ivan continua
caminhando, com o corpo pequeno e frá gil de Cindy em seus braços.
— Nã o, vou levá -la ao hospital — ele diz sem vacilar nem um
instante sequer.
— Vou voltar para pegar as coisas dela — aviso e, quando me viro,
um garoto me entrega a bolsa.
— Eu acho que é dela, professora.
Pego a bolsa e agradeço, me apresso para alcançar Ivan, que já está
quase no estacionamento quando vemos um Renegade preto frear com
tudo. Dominic está no volante, os ó culos escuros me impedem de ver
seus olhos, mesmo assim nã o é difı́cil de ler a sua expressã o fria.
Ele destrava as portas e outro garoto corre para abrir a porta de trá s
onde Ivan se senta com Cindy nos braços. Abro a porta da frente e puxo
o cinto no instante em que Dom acelera nos levando para longe da
escola.
— Para o hospital, Dom, depressa, ela tá com muita dor! — Ivan
grita enquanto Cindy chora e eu tento fazer meus dedos pararem de
tremer.

Duas costelas quebradas, hematomas em todo o seu corpo e um


exame de corpo de delito depois, Cindy está adormecida em sua cama,
cercada por sua mã e e seus avó s, que vieram em um jatinho particular
do Rio de Janeiro direto para cá . Ivan está andando de um lado para o
outro como um touro enfurecido, ainda com as chuteiras sujas de
grama e a camisa do time da Santo Egı́dio, as mã os fechadas em punho
enquanto tenta nã o quebrar a cara de qualquer um que passa pela sua
frente enquanto Dominic continua em silê ncio, sentado no canto do
corredor, observando tudo, como uma sombra discreta e insigni icante.
Maddie e Levi chegaram há pouco e estã o sentados na recepçã o com os
corpos inclinados para a frente, os punhos em frente dos lá bios, como
se estudassem algo realmente intrigante no piso branco.
E eu estou aqui, em uma sala de vidro, sendo interrogada pelo
diretor pela milioné sima vez, como se eu fosse a responsá vel pelo que
aconteceu.
— Vamos preparar algo para a mı́dia — o assessor de marketing da
escola começa a falar com ele enquanto atende um dos trê s celulares
que carrega com ele.
— Já estou terminando de preparar a carta aos pais — Clá udia diz,
mas seus olhos escapam de vez em quando do notebook para mim,
como uma mensagem silenciosa de que ela sabe que Tony nã o é o ú nico
adulto a manter relaçõ es sexuais com alunos naquela escola.
Meu estô mago se retorce quando me recordo do vı́deo em meu
celular, a hipocrisia disso tudo, quem sou eu para estar aqui nessa sala
delatando um colega de trabalho, mesmo que nesse momento Tony
tenha se tornado mais um criminoso do que um professor.
A sala já minú scula se torna insuportavelmente claustrofó bica
quando o delegado de Monte Mancante chega acompanhado de dois
policiais, uma sensaçã o ruim sobe por minha garganta e me faz
levantar.
— Preciso ir ao banheiro — aviso quando saio da sala correndo em
direçã o a porta da frente. Noto a igura magra e alta de Dominic se
levantar em um pulo e Ivan se virar em minha direçã o, mas nã o consigo
falar, fecho a porta e me jogo em frente ao vaso sanitá rio, começo a
vomitar no mesmo instante em que as primeiras lá grimas deixam meus
olhos.

Já passa das onze da noite quando saı́mos da delegacia. Durante


todo o tempo, Tony me olhava como se pudesse me matar ali mesmo e,
sinceramente, eu sequer reagiria. Falei para o delegado Calazans tudo o
que havia dito antes para o diretor. Cinco vezes.
Agora estou aqui, caminhando pelos corredores assustadores do
colé gio que acreditei que seria o divisor de á guas em minha vida dez
meses atrá s, sem saber o que será de mim quando essa noite terminar.
Ouço o burburinho de vozes antes mesmo que eu possa me
aproximar. A á rea administrativa do colé gio é a ú nica iluminada e,
mesmo de onde estou, posso sentir a tensã o na voz das pessoas que
conversam.
Quando entro, avisto Montanari sentado em sua mesa imponente, o
rosto cansado de quem sabe que terá muito trabalho pela frente para
ser feito, muitos panos quentes, muita grana, muita mentira e sujeira.
Nuno tinha razã o, nã o há como construir algo bom em cima de
mentiras e, por mais que estejamos tentando, há uma grande mentira,
algo que, em meu coraçã o, maquiei como algo belo, mas que na verdade
nã o é .
Eu errei, me deixei seduzir por um adolescente.
Isso é tudo o que a sociedade vai ver quando descobrir o que iz,
ningué m vai perder tempo se perguntando se o que sentimos um pelo
outro é verdadeiro, eu iz com Nuno, posso fazer com outros.
O mal-estar volta e aperto o punho sobre meu estô mago enquanto
pigarreio para que ele possa me ver parada na porta da sua sala. Fui eu
quem o chamei para uma reuniã o de emergê ncia, eu sabia que
precisava disso imediatamente.
— Stella, entre — ele diz se levantando.
— Me desculpe a hora, mas eu preciso muito falar com você e nã o
posso esperar. Nem mais um minuto.
Montanari olha para o canto da sala, de onde estou nã o consigo ver
o que chama a sua atençã o, até que a igura alta, imponente e arrogante
de Antô nio D’Agostinni surge na minha frente.
— Olá , Stella, está vamos mesmo falando de você — ele diz no
instante em que Nuno aparece atrá s dele, com as mã os nos bolsos de
um elegante e sombrio terno, deixando claro o que ele disse outro dia
sobre homens intocá veis.
Ele está se tornando um.
Uma vez, quando é ramos crianças, um rottweiler avançou em Cindy.
Ela icou apavorada, com tanto medo, que sua voz desapareceu. Ela nã o
conseguia sequer se mover e, se nã o fosse por Ivan, ela teria sido
destruı́da ali, bem no meio da rua. Nunca vi uma pessoa tã o assustada,
nã o até hoje. O olhar em seu rosto era exatamente o mesmo que vejo
quando Stella chega à sala de Montanari. Ela está apavorada, pá lida e há
olheiras inchadas sobre seus olhos cansados, indicando que ela chorou.
Quero ir até ela, abraçá -la e dizer que tudo vai icar bem, mas nã o
posso.
Porra! Estou tã o farto dessa merda, farto de nã o poder tocá -la, estou
farto de icar me controlando quando parece que todos a minha volta
estã o com o foda-se ligado.
— Stella — a chamo e meu pai me olha, em um lembrete silencioso
para que eu nã o esqueça tudo o que ele disse enquanto voá vamos de
volta para casa, que eu me controlasse e que con iasse nele.
Con iar no meu pai sobre Stella é o meu maior desa io, mas estou
me esforçando.
O doutor Conrado estava nos esperando na pista de pouso assim
que chegamos e de lá ele já começou a trabalhar no caso. Stella está
protegida, pela lei e pelo meu pai.
— Eu vou pegar um café . — O diretor se levanta quando nota que
ningué m diz nada e sai da sala acompanhado do advogado.
— Eu preciso fazer algumas ligaçõ es. — Meu pai olha diretamente
para mim e movo a cabeça lentamente, para que ele saiba que estou
bem.
Stella envolve os braços em volta da cintura, tã o pequena e frá gil no
meio da sala. Ela dá um sorriso sem graça para o meu pai, que toca seu
ombro antes de sair, e, quando a porta se fecha e somos apenas nó s
dois, vou até ela e a puxo para os meus braços.
— Graças a Deus — sussurro com meus lá bios em seus cabelos,
aliviado por poder tocá -la.
— A Cindy... — Stella começa a falar enquanto tenta se afastar, mas
um soluço corta sua voz e entã o ela desaba em meus braços. Um choro
dolorido escapa dos seus lá bios e a aperto junto a mim enquanto digo
repetidamente que tudo vai icar bem.
Eu con io nisso. Eu preciso con iar.
Aguardo até que ela se acalme e a ajudo a se sentar no sofá , vou até
o frigobar e pego uma á gua para ela, Stella está destruı́da e quero matar
aquele desgraçado por ter feito isso com ela.
E eu nem estou pensando na Cindy.
— Ele a empurrou, eu poderia ter evitado, mas estava tã o assustada
e...
— Ei, pare com isso, Stella, nã o foi sua culpa.
— Ela quebrou duas costelas — Stella diz antes de voltar a chorar.
— Como algué m é capaz de machucar uma garota como a Cindy? — ela
pergunta aos prantos.
— Maldito, eu sabia que ele nã o era con iá vel! — resmungo
enquanto me lembro da forma como ele sempre olhou para Stella. Nã o
era um olhar de admiraçã o ou desejo, era um olhar sujo, que me
incomodava.
— Eles acham que ela pode ter sido... — Stella respira fundo, como
se fosse difı́cil demais para ela falar em voz alta. — Eles acham que ele a
forçou a fazer algo.
O ó dio explode em meu cé rebro quando me dou conta do que ela
está falando.
— O quê ?
— Nuno, o Ivan, meu Deus do cé u, eu estou com medo do que ele
pode fazer. Ele estava completamente descontrolado, parecia um
animal selvagem acuado.
— Ele ainda está no hospital. Levi, Maddie e Dom estã o lá com ele.
— Ergo o celular. — Maddie está me dando notı́cias.
— Ele nã o pode icar sozinho.
— Ele nã o icará , agora, por favor, se acalma — peço.
Stella me conta tudo o que aconteceu, entre uma pausa e outra para
chorar, como se só de se lembrar fosse o su iciente para desabar. A raiva
toma todo o meu corpo, enquanto vejo-a quebrar na minha frente, tento
nã o pensar em Ivan. Deus, meu amigo deve estar completamente
destruı́do, mas nesse momento nã o posso me concentrar em mais nada,
sei que ele está seguro enquanto nossos outros amigos estã o com ele,
nesse momento toda a minha atençã o está voltada para Stella. E para o
medo que parece cravado em meus ossos.
— Ela vai icar bem — digo abraçando-a mais uma vez.
— Seu corpo sim, mas me preocupo com sua cabeça, e se ele...
— Shhh... por favor, Stella, nã o se torture com coisas que você nã o
pode lidar agora.
— Nã o posso, Nuno, isso é grave demais. Amanhã a cidade inteira
vai falar sobre isso, em cada esquina, em cada casa, o professor que
abusou da aluna.
— Stella, para — peço, quando me dou conta do que ela está
fazendo.
— Nã o posso. Me desculpe, mas nã o posso. — Ela se afasta
limpando o rosto, com a voz irme de quem já tomou a sua decisã o.
— Pode sim, você pode, nó s podemos — digo, o desespero faz
minha voz soar mais alta que o normal.
— Eu estava na delegacia, contando tudo o que aconteceu,
enquanto, no meu bolso, meu celular parecia pesar uma tonelada, com
todas as nossas mensagens. — Ela esfrega o rosto e olha para a porta
antes de continuar. — Eu estava vendo um vı́deo ı́ntimo seu quando
tudo aconteceu. Que espé cie de mulher imunda eu sou, se acho que
posso continuar com isso?
— Você está comparando o que temos com o que aconteceu? — Meu
peito dó i quando ela abaixa o olhar para seu colo.
— No im das contas, somos adultos fazendo sexo com adolescentes,
Nuno. Nã o sou diferente dele.
— Eu te amo, Stella, nunca foi só sexo, você sabe, nã o faz isso, nã o
diminui o que temos.
— As pessoas nã o vã o se importar com isso, você sabe. Elas vã o ver
a professora que seduziu o aluno.
— Eu quero que eles se fodam.
— Nã o é assim, a gente nã o pode agir como se nã o se importasse
com nada, porque, no fundo, a gente se importa. Eu mal consigo encarar
os pais que passam por mim achando que sou uma mulher digna de ser
chamada de professora.
— Nã o faz isso, Stella, por favor.
— E a verdade, Nuno. — Ela volta a chorar, um choro doloroso que
parte meu coraçã o machucado ao meio.
— Você nã o é digna por quê ? Diante de quem? Do juiz que
engravida garotas? Dos pais que traem suas mulheres? Das mã es que
recebem garotos em suas camas? Vai tomar no cu, bando de hipó critas
do caralho! — me exalto e ela passa as costas das mã os no rosto, com os
olhos ainda mais inchados.
— Nã o posso encobrir meus erros com os erros dos outros, nã o é
assim que funciona.
— Entã o é por isso que você está aqui? — Ela con irma balançando
a cabeça. — Você vai jogar seu trabalho fora por causa daquele ilho da
puta?
— Nã o, eu vou fazer o que minha consciê ncia manda, vou pagar
pelos meus erros.
Meus olhos pinicam com as lá grimas que querem escapar deles, mas
nã o deixo que caiam, ao invé s disso pisco e desvio o olhar.
— Entã o, no im das contas, eu sou um erro para você .
— Nuno, por favor.
Ela tenta segurar meu braço, mas me afasto levantando-me do sofá ,
com as mã os na nuca, tentando nã o surtar.
— Eu nunca mais conseguiria erguer a minha cabeça depois do que
aconteceu. Ouvindo as fofocas nos corredores enquanto eu sei que
també m iz algo errado — ela justi ica.
— Ningué m vai fazer nada com você , meu pai já resolveu tudo com
o Montanari.
— E como eu vou olhar para ele amanhã ?
— Stella, para. Eu nã o fui abusado por você , a gente se ama, caralho,
para com isso.
— Mas eu sei, aqui dentro eu sei o que izemos, Nuno. Eu venho
maquiando meus erros, colocando a culpa no que sentimos, mas isso é
errado, nã o posso admitir que seu pai limpe meus erros, eles sã o meus,
devo pagar por eles.
Viro-me para ela, meu rosto carregado de tristeza enquanto a ouço
diminuir nossa histó ria a algo sujo.
— Nã o, Stella, nã o chama o que a gente fez de erro. — As lá grimas
que agora nã o consigo mais segurar escapam por meu rosto e ela se
levanta vindo até mim, desvio para o outro lado quando ela se
aproxima.
— Meu menino. — Ela espalma a mã o em meu rosto, com as
lá grimas de volta em seus olhos enquanto ela limpa as minhas, me
olhando como se eu fosse um tolo por nã o enxergar as coisas como ela.
— Eu te amo tanto, por favor, nã o duvide disso nunca, porque você foi a
coisa mais bonita que já me aconteceu.
— Entã o nã o termine comigo por causa daquele maldito, nã o fale
como se o que izemos fosse algo nojento, nã o nos compare porque nã o
existe nada parecido.
— Você con ia em mim? — Balanço minha cabeça, temendo o que
ela está prestes a dizer, mas sabendo que aceitarei o que ela decidir
mesmo que isso me destrua por dentro. — E tudo o que importa. — Ela
me dá um sorriso, seus dedos ainda descansam em meu rosto quando
ela se inclina e beija minha boca. Um beijo delicado, suave, lento, um
beijo cheio de culpa que parte meu coraçã o.

“A mentira esconde tudo que é bom e certo.”


Foi o que ela me disse antes de me pedir para sair. Repetindo as
palavras que Matteo um dia me disse.
E agora estou no corredor vazio e escuro, sentando-me no chã o,
sentindo meu mundo inteiro desabar enquanto a mulher da minha vida
está lá dentro, pedindo demissã o do cargo dos seus sonhos, como uma
detenta se entregando apó s cometer um crime.
O crime de me amar.
Me amar destruiu sua carreira, a envergonhou, encheu seu coraçã o
de tristeza e eu nã o posso fazer porra nenhuma para evitar. Nã o que
meu pai nã o tenha pedido, ele tentou argumentar, garantiu que nada de
ruim aconteceria a ela, mas Stella foi enfá tica ao dizer que nã o
precisava de ajuda.
Ouço o som dos sapatos caros do meu pai quando ele se aproxima e
se senta ao meu lado, até ele está um bagaço, depois de um longo dia de
trabalho e uma noite exaustiva que parece nã o ter mais im.
— Cadê a Stella? — Ergo os olhos para o im do corredor.
— Está lá dentro com o Montanari e o Conrado, ele está redigindo a
carta de demissã o.
As palavras rasgam meu peito e respiro fundo buscando o ar que
parece pesado demais para meus pulmõ es.
— Sua mã e está com a Marie, ela a levou para o hospital — ele diz
enquanto arregaça as mangas da sua camisa, mudando de assunto.
— A Cindy está bem? — Viro-me para olhar para ele.
— Ainda dormindo.
— Certo. — Baixo a cabeça e encaro o piso gasto, tentando nã o
pensar no que a Stella falou sobre aquele maldito tê -la machucado de
outras formas. — O senhor sabe do Ivan? Ele vai pirar, pai.
— Fica tranquilo, ilho, estamos todos de olho nele.
— Eu nã o acredito que isso tudo aconteceu, faltando tã o pouco para
esse pesadelo de ano acabar. — Puxo os cabelos, esfrego o rosto,
resmungo de frustraçã o.
— Stella nã o aceitou nenhuma proposta.
— Eu imaginei que ela faria isso.
— Tentei fazê -la aceitar um cheque, mas ela disse que se sentiria
ofendida se eu tentasse algo assim.
— Essa é a Stella, pai, ela jamais aceitaria qualquer coisa que a
impedisse de erguer a cabeça.
— Ela é uma mulher incrı́vel, Nuno.
— Ela é , e por minha causa, ela perdeu tudo.
— Qual é , ilho, você sabe que ela nã o perdeu tudo, nã o vou deixar
que isso aconteça — ele diz com a arrogâ ncia de quem já está
planejando os pró ximos passos.
— Ela nã o quer que ningué m dê um jeito, ela quer seguir a vida dela
e eu vou ter que deixá -la ir.
— Filho, você ainda nã o entendeu o que ela está fazendo? — Olho
para ele confuso. — Stella está , nesse exato momento, assinando o
direito de te amar livremente.
— O que disse?
— Esse é o sacrifı́cio dela por você , sua prova de amor, e do seu
cará ter. — Ele esfrega minha nuca enquanto uso tudo de mim para nã o
surtar. — Stella nã o vai a lugar algum, nã o sem você .
Ficamos um tempo em silê ncio, os dois, lado a lado, enquanto
aguardamos Stella assinar todos os documentos que o doutor Conrado
está analisando minuciosamente.
Algum tempo depois, ouço os passos dela e me levanto. Estou tã o
tenso que todo o meu corpo dó i e, quando ela para na minha frente, nã o
se parece mais com a mulher que vi nessa escola durante os ú ltimos
dez meses, entrando na sala de aula, evitando meu olhar, caminhando
de cabeça baixa pelos corredores. Ela se parece exatamente como a
garota suada, linda e sexy por quem me apaixonei naquela noite, em um
festival de rock.
— Pronto, acabou — Stella exala satisfeita. — Você pode me levar
para casa? — ela diz, sorrindo, enquanto me estende a mã o.
— Passei minha vida toda esperando por isso — digo enquanto me
levanto e seguro a mã o que ela me estende.
— Sr. Agostinni, obrigada por tudo — ela diz sorrindo para o meu
pai, que está de pé ao meu lado.
— Você nã o me deixou fazer nada.
— Nã o é verdade, o seu advogado fez um excelente trabalho.
— Ele está a suas ordens.
— Obrigada.
— Tchau, Stella, até breve.
— Tchau, pai.
— Tchau, ilho. — Ele sorri e me afasto, caminhando pelos
corredores vazios do colé gio onde vivi toda a minha vida, segurando a
mã o da minha mulher. Um gesto tã o simples, que é realizado milhares
de vezes por dia, todos os dias, no mundo inteiro, mas que representa
tanto para nó s, duas mã os unidas, dedos entrelaçados que signi icam a
liberdade de poder amar e ser amado.
Algo que, se depender de mim, será repetido para o resto das nossas
vidas.

A á gua quente leva embora toda a tensã o da noite, o silê ncio entre
nó s é quase insuportá vel, mas nã o há nada para ser dito e quando nos
deitamos na cama, enroscados um no outro, a pele quente do banho,
com o cheiro de paz nos envolvendo, tudo o que quero é poder
acreditar que o pior já passou.
— Você está bem? — sussurro em seus cabelos.
— Acho que nunca me senti tã o bem — ela responde enquanto faz
carinho em meu braço que descansa em sua cintura. — O que será que
vai acontecer com ele?
— Acredite em mim, você nã o vai querer saber. — Ela parece
estremecer com minhas palavras.
— Ele a machucou, Stella, as pessoas aqui nã o costumam perdoar
esse tipo de coisa.
— Eu sei, amor.
Sinto meu coraçã o bobo se agitar no peito ao som da palavra.
— E você nunca me machucou. — Beijo seus cabelos mais uma vez.
— Ao menos nã o isicamente. — Ela vira o rosto para mim e beijo sua
boca ainda sem acreditar que estou aqui, com ela em meus braços.
— Estou feliz que você veio — ela diz, suspirando um tempo depois.
— Eu sabia que você ia pilhar.
— Eu nem sei como consegui ir até o Ivan — ela diz e me recordo de
toda a histó ria que ela me contou, sei que deveria estar com ele nesse
momento, mas Stella també m precisa de mim, precisa saber que nã o fez
a escolha errada ao deixar tudo para trá s por mim.
— Nã o pensa nisso agora.
— E quase impossı́vel — ela diz antes de bocejar.
— Dorme, amanhã temos uma vida inteira para planejar.
— Uma vida inteira? — Ela se vira para mim, erguendo o rosto.
— Pelo menos uns cinquenta anos — brinco e ela sorri antes de
deixar um beijo em meu queixo e outro em meus lá bios para depois se
aconchegar em meus braços e fechar seus olhos.
Seguro-a junto a mim, mas nã o consigo dormir, algo em meu
coraçã o me deixa em alerta, agitado demais para me permitir desligar.
Como uma premoniçã o de que algo nã o está certo.

O dia mal amanheceu quando meu celular vibra em cima da mesa de


cabeceira nos despertando, viro para atender ainda meio sonolento e,
no instante que ouço sua voz do outro lado da linha, descubro o que
estava errado esse tempo todo.
— Pronto?
— Nuno, é o Ivan — Maddie diz meio chorosa e é o su iciente para
que Stella se levante ao meu lado.
— O que ele fez? — pergunto já me levantando.
— Ele foi atrás do professor Tony. — Quando ela termina de falar, já
estamos de pé , vestindo nossas roupas e correndo em direçã o ao meu
carro.
Nenhuma uma palavra é dita, nenhum de nó s precisa, sabemos
exatamente o que isso signi ica.
Meu amigo explodiu.

Quando chegamos à delegacia, o caos está instalado. Maddie está na


porta à nossa espera e, assim que nos aproximamos, ela segura a mã o
de Stella.
— E melhor você nã o entrar — ela diz puxando Stella para longe.
— Mas e o Nuno? — Ela olha para mim, sem entender nada.
— Ele vai icar bem, vem comigo. — Maddie se afasta levando Stella
com ela.
— Tony tá jogando toda a merda no ventilador — Levi diz enquanto
entramos na delegacia.
— Eu quero que ele se foda, Stella pediu demissã o ontem à noite.
— Ela o quê ? — Levi arregala os olhos.
— E uma longa histó ria, onde está o Ivan? — Olho em volta à
procura do meu amigo e nã o preciso da sua resposta, avisto a cabeleira
loira desordenada do outro lado da sala.
— Caralho, o que o Dom tá fazendo aqui? — pergunto ao ver o
moleque magro e alto ao lado do meu amigo.
— Acredite, ele foi o cara que salvou o maldito de morrer nas mã os
do Ivan.
Agora é a minha vez de arregalar os olhos.
— Sé rio?
— Você sabe como ele é , adora uma boa briga — Levi ainda
consegue fazer graça quando tudo o que eu vejo é o caos em que se
tornou a vida do meu amigo.
Me aproximo de Ivan, ele está sentado, o corpo inclinado para a
frente, as mã os sujas de sangue, cruzadas, enquanto ele encara o chã o
na companhia do seu guardiã o silencioso. Olho para Dom, que parece
um anjo das sombras, ele pisca lentamente em um cumprimento
discreto antes de olhar para a sala onde provavelmente seu pai está .
Seu corpo está tenso e os punhos fechados com tanta força, que seus
nó dulos estã o brancos.
— Valeu por ter icado com ele — agradeço erguendo o punho para
Dom.
— Relaxa — ele responde como se nã o tivesse feito nada demais
enquanto me cumprimenta. — Agora que você chegou, vou dar o fora
daqui. — Ele se afasta da parede puxando o maço de cigarro do bolso
de trá s e acendendo um enquanto caminha para fora da delegacia.
Antes de sair, ele solta uma baforada de fumaça na direçã o da porta
fechada, um ato meio infantil de rebeldia que eu compreendo, no fundo,
à s vezes somos mesmo um bando de moleques. Ajoelho-me na frente
de Ivan, espalmando minha mã o em suas costas.
— O combinado era ningué m fazer merda sozinho, lembra? —
brinco, mesmo sabendo que corro o grande risco de levar um soco bem
no meio da cara, mas tudo o que Ivan faz é erguer o rosto e olhar para a
porta fechada atrá s de mim.
— Assim que aquela porta se abrir eu vou matar aquele cara — ele
diz, com a voz baixa e ameaçadora.
— Você nã o vai, porra nenhuma.
— Eu vou.
— A Cindy precisa de você , é nisso que você vai se concentrar.
— Você nã o viu o que ele fez com ela.
— Nã o, eu nã o vi, graças a Deus porque o sombra nã o ia dar conta
de segurar nó s dois e estarı́amos agora atrá s das grades, quer dizer, eu
estaria e você ia se foder, porque nã o sabe viver sem mim.
Ivan me dá um sorriso breve e dolorido.
— Vai se foder, Nuno — ele resmunga e respiro aliviado.
— Você tá liberado?
— Sim, meu pai tá lá dentro com o Calazans e o desgraçado.
— Entã o vamos embora daqui. — Me levanto e estendo a mã o para
ele, que olha para a porta mais uma vez. — Por favor, Ivan, nã o me
obrigue a te arrastar daqui porque eu vou fazer.
— Eu ajudo. — Levi para do meu lado, deixando claro que Ivan nã o
tem escolha.
— Cadê a Stella?
— Se a conheço bem, deve estar na Beth, tomando um daqueles
café s que ela adora. — Passo o braço pelo ombro do meu amigo
enquanto caminhamos em direçã o a saı́da onde Levi nos espera. —
Pensando bem, acho que você deveria ir para casa tomar um banho.
— Eu disse que ele tava fedendo mais que um gambá — Levi brinca
e Ivan lança um olhar mortal em sua direçã o.
Saı́mos da delegacia rindo e provocando Ivan, ingindo que está
tudo bem, que isso foi apenas uma briguinha, tentando tirar o peso do
que aconteceu essa noite e nã o pensar que, nesse momento, tem uma
garota hospitalizada por causa de um babaca imundo que nã o soube
respeitar os limites.
Caminhamos pelas ruas vazias de Monte Mancante, eu de um lado,
Levi do outro, a igura de Dom nas sombras como sempre, nos observa
de longe, querendo se aproximar, incapaz de dar esse passo.
Ivan se deixa levar, talvez porque ele saiba que nã o há mais nada
que um garoto possa fazer, talvez porque seus punhos já estejam
satisfeitos, provavelmente porque ele sabe que eu tenho razã o. Cindy
vai precisar dele e está na hora de aceitar sua missã o, de tirar a capa
que cobre seus sentimentos e se colocar ao lado dela.
Vai ser uma longa jornada, sinto que isso é só o começo da sua
histó ria; e se ele precisar, estarei ao seu lado, assim como ele esteve ao
meu.
Suzy sempre diz: “aproveite os bons momentos da vida, agarre-se a
eles com força, saboreie-os. Eles sã o como sorvete no verã o, derretem
rapidamente”.
O meu momento acabou no instante em que vi aqueles garotos
caminhando pelas ruas desertas da cidade, Nuno de um lado, Levi do
outro, Dominic do outro lado da rua, a ponta acesa do cigarro
iluminando seu rosto sombrio. E no meio de tudo, como uma pequena
partı́cula de caos, Ivan.
Ele estava destruı́do, seus olhos injetados de ó dio, suas mã os
inchadas pela agressã o e, quando ele olhou para mim, a culpa foi como
um punhal em meu peito, rasgando minha alma, dilacerando o resto de
dignidade que me sobrou.
No fundo, eu era a culpada daquilo.
Mas foi só no dia seguinte que tive a con irmaçã o, ao visitar Cindy,
ao ouvir ela dizer que Tony a ameaçou, ao perceber que aquela garota
foi machucada para proteger os atos imorais de uma adulta, eu soube
que nã o poderia icar mais nem um minuto sequer em Monte Mancante.
Nã o era só Tony que merecia ser punido.
Nuno nã o aceitou bem a minha decisã o, na verdade ele nã o aceitou
de jeito algum e nesse momento a sua jovialidade se sobressaiu a sua
maturidade, deixando claro para mim o garoto que ele ainda é apesar
de, no meu coraçã o, ele ser o homem da minha vida. Ele simplesmente
nã o concordou com minhas justi icativas, rebateu tudo o que eu disse,
se enfureceu, gritou, amaldiçoou e izemos aquilo que as pessoas fazem
quando a emoçã o toma o lugar da razã o: nos magoamos.
Ele me chamou de covarde e, pela primeira vez, essa palavra me
machucou porque eu sabia que nã o tinha nada a ver com o apelido
carinhoso que ele me deu, eu o chamei de moleque e vi a dor em seus
olhos quando percebeu que eu estava fazendo de novo, colocando nossa
idade entre nó s. Gritamos um com o outro, dissemos palavras que nã o
nos orgulhamos, choramos, pedimos perdã o, dissemos que nos
amamos, prometemos que nada é mais forte do que nossos
sentimentos. Mas ele ainda nã o consegue me olhar nos olhos e isso está
me matando.
— Onde você quer que eu coloque isso? — Maddie me mostra uma
sacola com algumas coisas que estavam no banheiro.
— Pode colocar ali. — Aponto para uma mala que está aberta e ela
faz o que peço.
— Stella, essa é a sacola de doaçã o? — Levi pergunta apontando
para uma caixa no meio do pequeno corredor.
— Isso mesmo, está escrito na frente da caixa.
Ivan caminha de um lado para o outro, descendo coisas e
organizando-as no porta-malas. As mã os enfaixadas ainda sã o um
lembrete da noite em que ele quase matou um homem.
E na porta, com as mã os en iadas nos bolsos e uma expressã o que
carrega toda a má goa que o iz sentir, está Nuno, me olhando como
quem ainda espera por uma mudança de plano.
Passo por todas as coisas que ainda estã o sendo organizadas e paro
na sua frente, ele nã o se move, nã o diz nada, apenas me olha, com tanta
tristeza que sinto um aperto em meu peito.
— Me perdoa — digo, com a mã o espalmada em seu peito, sentindo
seu coraçã o acelerado sobre meus dedos.
Ele olha para onde meus dedos o tocam e depois volta a olhar para
mim, a frieza em seu rosto me diz que ele ainda nã o está pronto para
isso.
Nuno se afasta da parede, vai até a mala que ainda está aberta, a
fecha e a ergue, fazendo o mesmo com outra. Quando ele passa por
mim, nã o há troca de olhares, nem dedos que se tocam, nem
brincadeiras que me deixam sorrindo.
Nã o há absolutamente nada.
— Ele vai icar bem — Maddie diz me abraçando.
— Cuida dele para mim — peço ainda olhando para a porta aberta.
— Fica tranquila, ele nã o está sozinho. — Levi se aproxima com um
sorriso carinhoso.
— Eu nunca vou poder agradecer tudo o que você s izeram por nó s.
— Nã o precisa se sentir assim conosco, Stella, nó s sabemos a
verdade, nó s vimos acontecer, foi real e nã o tem nada a ver com o que
houve com Cindy — Maddie tenta me acalmar.
— Aliá s, quando ela souber que você está fugindo da cidade vai icar
furiosa — Levi completa e toma uma cotovelada da namorada.
— Nã o estou fugindo, só preciso me perdoar para poder ser capaz
de enxergar tudo isso com outros olhos — justi ico as mesmas palavras
que disse a Nuno quando tomei a decisã o de deixar Monte Mancante.
— Entã o nã o demore muito, vamos sentir sua falta — diz a doce
garota que me recebeu com um sorriso e o coraçã o livre de
julgamentos.
— També m vou sentir a falta de você s — digo no instante em que
Nuno aparece. A expressã o de dor em seu rosto parte meu coraçã o ao
meio enquanto Maddie e Levi pegam as ú ltimas caixas e descem, nos
deixando sozinhos.
— Acho que agora acabou. — Olho em volta me referindo aos meus
pertences, mas sentindo que Nuno nã o entendeu da mesma forma.
— Ei, olha pra mim — peço e ele faz o que peço.
Aproximo-me passando meu dedo entre suas sobrancelhas,
desejando desfazer o vinco que parece ter se tornado permanente nos
ú ltimos dias.
— Nã o me odeie — sussurro enquanto meu dedo passeia por seu
rosto bonito, descendo por seus olhos, seu nariz, sua boca.
Ele fecha os olhos enquanto respira fundo, com milhares de coisas
nã o-ditas enquanto passo meus braços por seu corpo que tanto amo já
sentindo uma saudade quase sufocante dele.
— Você sabe que eu nã o consigo — ele sussurra ainda de olhos
fechados e aproveito esse momento para fazer algo que sei que só vai
tornar a despedida ainda pior.
Ergo-me na ponta dos pé s e aproximo meu rosto do seu, puxo-o
para mim, sabendo que, se ele nã o se inclinar, nã o o alcanço, suas mã os
se instalam em minha cintura e entã o o beijo. Um beijo de pedido de
desculpa, por tê -lo machucado, por nã o ser capaz de icar, por ser a
covarde de quem ele sempre me acusou.

O tempo é uma coisa engraçada, ele cura, mas també m potencializa


aquilo que realmente importa. Como a saudade que sinto de casa, do
cheiro do café da Beth, da movimentaçã o de todas as manhã s nos
corredores do pré dio, do sorriso de Maddie, das brincadeiras bobas de
Levi, da arrogâ ncia linda de Cindy e até mesmo do mau humor fofo de
Ivan. Sinto falta do silê ncio observador de Rael, do ar de misté rio e
tristeza de Dom. Sinto falta daquele pedacinho escondido do mundo, ao
lado dos garotos que aprendi a amar, comendo pizza e vendo ilme
velho enquanto ouço eles brigarem entre si.
Mas, acima de tudo, sinto falta do meu coraçã o disparado no peito a
cada mensagem recebida do nome falso, informando que ele estava a
caminho, sinto falta de abrir a porta e dar de cara com seu sorriso torto,
das suas mã os lindas sempre arrumando um jeito de estarem em meu
corpo, da sua boca suja sobre a minha, me falando coisas que me fazem
derreter, sinto falta dos sons que ele faz quando está se movendo
dentro de mim.
Sinto falta de mim, da pessoa que sou quando estou com ele e sinto
tanta falta dele, que já nã o sei mais quem eu sou.
E enquanto permito que o tempo, tã o adorado nos versos poé ticos
de quem conhece as feridas do amor, cure o meu coraçã o
envergonhado, me dou conta de que Nuno tinha razã o.
Somos almas gê meas, e nã o importa o tempo que passar, sempre
daremos um jeito de nos reconectar.
Não há dor que dure para sempre.
E o que está escrito no post que fez com que eu parasse de girar a
tela do Instagram obsessivamente sem me prender a nada em especial.
Grande mentira de merda!
E o que digito e apago antes de enviar, seja lá quem for o imbecil que
escreveu isso, muito provavelmente nunca sentiu uma dor de verdade,
ou nã o estaria falando isso. A dor é algo que se instala em nosso peito,
como um novo ó rgã o, se encaixando ali, entre o coraçã o e o pulmã o, à s
vezes ela aumenta de tamanho, di icultando um de bater ou o outro de
se encher de ar, outras vezes ela se torna tã o grande que mal se
consegue respirar.
Hoje é um desses dias.
O garçom coloca o pedaço de bolo e o café na minha frente, mas nã o
é o bolo da Beth, nem o café especial que só ela tem; se fosse, ela
saberia que no frio eu pre iro chocolate quente, e que no dia de hoje, eu
adoraria que ela pudesse se sentar ao meu lado e me contar alguma
coisa que me izesse sorrir, ou talvez Rael pudesse se juntar a nó s e me
fazer chorar com uma das suas histó rias que faz esse ó rgã o intruso
apertar meu coraçã o.
Ao invé s disso estou aqui, completamente sozinho, enquanto tento
nã o congelar o meu rabo nessa cafeteria sem graça, esmigalhando essa
massa gosmenta que eles chamam de bolo e tento nã o rosnar para
ningué m. Uma tarefa e tanto vindo de um cara como eu.
O telefone toca e sorrio ao ver seu rosto na tela, ignoro a forma
como meu coraçã o bobo acelera e atendo.
— E aí, gatinho lindo — Suzy fala do outro lado da linha e me sinto
feliz ao ouvir sua voz. Ela se tornou uma boa amiga, o que pode parecer
estranho já que ela tem idade para ser minha mã e e é irmã da mulher
que partiu meu coraçã o.
— E aı́, gatinha — brinco tentando me conter e nã o chamá -la de
cunhada, algo que demorou um tempo até que eu conseguisse parar de
fazer.
— Tô sabendo que hoje você tá na bad — ela diz como se fosse algo
natural.
— Ela te contou? — pergunto sem falar seu nome, ainda dó i
pronunciá -lo, é como passar limã o em um corte que parece ter
cicatrizado.
— Que importa quem me contou, o importante é que estou aqui
gastando meus créditos para ligar para você, me dê mais con iança, bebê.
Um sorriso se espalha por meu rosto, algo que só ela consegue fazer
ultimamente, e vem fazendo com muita frequê ncia. Com seu jeito
despretensioso, Suzy é a fagulha de alegria que me faz acreditar que
tudo pode mudar, que essa merda dessa dor pode diminuir. Só preciso
ter paciê ncia e acreditar que o que tivemos, é maior do que a dor, é a
linha que me une a uma parte da minha vida que me modi icou para
sempre, que me fez ver que, à s vezes, amar é deixar ir, é acreditar que o
que é de verdade nunca muda.
E o meu io de esperança.
Conversamos por alguns minutos, ela me atualiza sobre Stella, me
faz jurar que eu nunca vou contar para ela que tenho uma aliada em sua
trama cruel de me manter afastado. Devo muito do que sou hoje a essa
mulher impulsiva e durona. Se nã o fosse por Suzy, eu nã o estaria aqui
agora.
E ela quem me contou como foi que Stella passou o ú ltimo ano, já
que ela nã o atende minhas ligaçõ es e mal responde minhas mensagens.
De acordo com a Suzy, Stella vem alternando seu tempo entre estar
enfurnada na loja de discos do Marvin ou com seu pai, graças a sua
necessidade obsessiva de cuidar das pessoas. Suzy acha que talvez seja
porque ela já nasceu conduzida a isso. Ela precisa cuidar de algué m. Eu
acho que Stella é covarde demais para admitir que precisa cuidar da sua
pró pria vida e se esconde atrá s dos problemas dos outros.
Talvez um dia ela tenha misericó rdia de mim, eu estou precisando
dos seus cuidados. Deus, eu estou tã o desesperado que eu imploraria,
se ela sequer me ouvisse, nã o daria a mı́nima se estaria fazendo papel
de otá rio, eu a amo e esse tempo longe só me deu certeza de que a amo
cada dia mais.
Suzy ainda está nos Estados Unidos, o tratamento está indo bem,
apesar da sua idade avançada para algué m com ibrose e seus pulmõ es
castigados, sabemos que nã o há muito o que fazer, essa é uma doença
progressiva, e, apesar de ser uma merda, ela está bem melhor hoje do
que quando chegou lá . Isso nos faz acreditar que cada dia em que essa
tagarela está viva é um milagre e que precisa ser vivido.
Desligo a chamada prometendo que vou dar um jeito de visitá -la em
breve. E uma promessa que quero cumprir assim que puder.
Maddie é a pró xima a me ligar, sua voz suave e tranquila me deixa
com saudades de casa, posso ouvir Levi resmungando ao fundo e sorrio
quando ele solta uma gargalhada bem tı́pica do garoto feliz e sorridente
que ele é . Maddie també m faz parte do clube “loucos por Stella” e me
atualiza sobre ela sempre que pode. A amizade delas cresceu muito
nesse ú ltimo ano e, como Maddie continua em Santo Egı́dio, ica fá cil ir
até Sã o Paulo de vez em quando. Na ú ltima vez em que elas se viram,
minha amiga até conseguiu fazer Stella tirar uma foto, é a que está no
protetor de tela do meu celular. Stella estava com um sorriso triste,
tı́mido, e vazio, me comprovando aquilo que eu já sabia. Essa merda de
distâ ncia nã o está fazendo bem para nenhum de nó s dois.
— Como você está? — ela faz a pergunta idiota de sempre e eu dou a
resposta que todos querem ouvir.
— Bem — minto.
— Nuno... não me ajuda icar preocupada com você aí do outro lado
do mundo — ela diz, sempre tã o mais madura do que os seus dezenove
anos.
— Nã o precisa, você já tem uma criança insuportá vel pra terminar
de criar aı́.
— Ei, o telefone tá no viva-voz, seu otário, e eu tô te ouvindo! — Levi
grita e a saudade quase me sufoca. — Sou dois meses mais velho que
você, só pra constar.
— Falou, tiozã o — brinco. — Eu amo você s, estou com saudades —
digo, sem me importar se estou parecendo meloso.
— A gente também te ama — Maddie responde.
— Eu não amo esse italianinho de merda, não — Levi me provoca.
— Ma vaffanculo va!4 — xingo e ele cai na gargalhada.
— É para isso que teu velho tá gastando uma fortuna, italianinho?
— Cale a boca, Levi! — Maddie o repreende. — Fica bem, Nuno, ela
precisa saber que você está conseguindo, você sabe, né? — ela diz e
balanço a cabeça, sem me dar conta de que ela nã o pode me ver. Graças
a Deus, tenho certeza de que estou deplorá vel.
— Tudo bem.
— Se cuida, bro, a gente te quer de volta logo — Levi completa.
— Prometo voltar no meio do ano — me despeço dos meus amigos
e entã o desligo a chamada.
O café está insuportá vel de frio e o bolo já irreconhecı́vel no prato,
estou prestes a pedir que o garçom me traga outro quando o celular
vibra na mesa. E uma mensagem do Ivan, como em quase todas que
trocamos no ú ltimo ano. Ela é breve, irritada e me enche de saudade e
culpa.

Ivan: E aí, mano? Espero que


você esteja bem, que esse ano
seja mais fácil que no ano
passado e que, no próximo,
estejamos juntos novamente.
Tô contigo, sempre.

Passo um tempo olhando para as palavras, ele nã o está aqui e isso é
uma merda, sinto sua falta, quase tanto quanto sinto de Stella. Sinto
falta das suas provocaçõ es, da sua mania de encher as redes sociais de
fotos da porra da sua barriga branquela, sinto falta do seu olhar
bondoso, até mesmo do seu silê ncio enquanto fumá vamos e jogá vamos
videogame. Eu nunca mais joguei videogame e mal suporto o cheiro da
cerveja que ele gosta. Eu sabia, quando decidi vir para cá , que o
magoaria, e apesar de ter deixado um pedaço de mim com esse
moleque, eu precisava me afastar de tudo ou iria enlouquecer ou talvez
cometer um assassinato. Ele sabia disso e nó s dois sabemos que Ivan
jamais sairia de Monte Mancante, de perto de seus irmã os, e
principalmente de Cindy. Ela ainda precisa dele, mesmo que nã o
reconheça isso.
Tiro uma foto do aeroporto e envio para ele.

Nuno: Estou bem, esperando


meus coroas chegarem.

Ivan: Show.

E assim terminamos nosso diá logo, talvez na pró xima semana ele
me fale alguma coisa vazia, é sua forma de dizer que mesmo que nã o
consiga ser o mesmo de antes, ele ainda está aqui. Isso já basta,
precisamos aprender a reconhecer aquilo que as pessoas sã o capazes
de nos dar, isso é tudo o que ele tem no momento. E eu aceito na
esperança de que um dia possamos voltar a ser como antes.
Já Cindy nã o fala comigo há alguns meses, ela ainda está chateada e
se sentindo culpada por tudo o que aconteceu, ela foi a ú nica que vi
desde que saı́ de casa, enquanto estava passando pela Itá lia com sua
mã e. Tomamos um café , trocamos meia dú zia de palavras, ela sequer
olhou em meus olhos e, quando se foi, senti como se um elefante
imenso tivesse se retirado das minhas costas.
Foi a coisa mais triste que já aconteceu entre nó s.
Isso é tudo o que Cindy tem para oferecer para o mundo por
enquanto, uma carcaça linda de uma garota vazia.
Estamos todos tentando nos reconstruir, uns indo melhores que
outros, mas todos seguindo na mesma direçã o, na esperança de se
tornar um adulto bom, forte, corajoso, com sonhos e objetivos e com o
mı́nimo de cicatrizes possı́veis.
Dom é o ú nico de nó s que insiste em nã o manter contato, nã o tem
redes sociais e nem WhatsApp. A ú ltima vez que o vi foi na noite
anterior a minha viagem, nos encontramos no Refúgio dos Sonhos,
naquela noite nã o nos machucamos. Com meia dú zia de palavras,
implorei para ele se cuidar, mas tenho certeza de que uma á rvore morta
me ouviria melhor. E seu jeito, aprendi a lidar com ele durante toda a
minha vida. Sei que, embora pareça frio e distante, ele també m precisa
de algué m que esteja lá para ele, mesmo que seja do seu modo estranho
de ser. Ivan e Levi estã o lá , eles me prometeram nã o deixar o sombra da
cidade sozinho, Ivan tem uma dı́vida de gratidã o com ele e isso me
deixa um pouco mais aliviado.
Um aviso nos alto-falantes me faz erguer a cabeça, o voo dos meus
pais acaba de aterrissar e me sinto um pouco animado com a
possibilidade de vê -los depois de tanto tempo, parece meio bobo depois
de tudo o que vivemos, tanta má goa, tantas palavras duras, tanta dor,
mas, no fundo, esse sentimento louco que une pais e ilhos é assim, sem
explicaçã o, ó dio e amor caminhando juntos, em uma mistura de
emoçõ es que nã o existe em nenhum outro relacionamento e que,
embora seja confuso, nesse momento é tudo o que me manté m de pé .
Quem diria que um dia meu pai seria meu suporte. A vida é mesmo
uma coisa muito louca.
Peço a conta, pago e saio em direçã o ao setor de desembarque, tento
encontrar eles entre as pessoas que saem, rostos atentos, em busca de
algo. O sensor abre a porta e entã o eu a vejo. A princı́pio, imagino que
seja apenas minha mente saudosa, me pregando mais uma peça, algo
que acontece sempre por aqui, à s vezes paro quando avisto uma garota
baixinha, de cabelos negros caminhando pelas ruas de Milã o, até ela se
virar e eu me dar conta de que nã o é ela, nunca é .
Meu celular toca me tirando dos meus devaneios e vejo o rosto do
meu pai na tela.
— Pai? — pergunto confuso, enquanto observo a garota
caminhando, com os olhos atentos, olhando em volta, em busca de algo,
de uma pessoa, de mim.
— Provavelmente você está se perguntando o que está acontecendo,
não é? — Ele sorri daquele jeito tã o dele. — Desculpa, ilho, não deu
para ir, mas acho que você vai gostar da pessoa que mandamos no nosso
lugar. É o nosso último pedido de desculpas, para que você não se esqueça
de que estamos ao seu lado, sempre. Não foi fácil convencer essa garota,
nunca vi pessoa mais medrosa, mas tenho certeza de que valeu a pena. A
gente te ama, ilho, seja feliz e seremos também — ele diz, com a voz
emocionada, tã o longe de mim, enquanto meus olhos acompanham um
pedacinho de gente erguendo o rosto no meio da multidã o,
completamente perdida. Medrosa... minha pequena covarde.
— Obrigado, pai, eu amo você s — digo nã o querendo chorar, antes
de guardar o celular e me apoiar na coluna, cruzando os braços na
frente do peito, respirando fundo, sentindo que, se essa porra de
coraçã o bater mais forte que isso, eu vou morrer, bem aqui, no saguã o
de um aeroporto, de amor.
Ela se desvencilha das pessoas e para quando inalmente me avista,
noto como seu peito se ergue, aliviada por inalmente me encontrar, e
entã o ela caminha daquele jeito que me enlouquecia todas as vezes em
que ela passava por mim nos corredores do colé gio agitando meu
coraçã o de garoto, fazendo com que o mundo a minha volta se perca e
só sobre ela. A minha alma gê mea, minha dona absoluta, a mulher da
minha vida.
— Ciao5 — ela diz em um italiano ruim, quando para na minha
frente, com o rosto corado, os lá bios, a morada da minha paz,
apertados, ansiosos, lindos... Deus, tã o lindos que mal consigo pensar.
— Ciao, il mio codardo6 — respondo, com meu italiano agora
perfeito, mantenho meus braços cruzados para nã o agarrá -la aqui
mesmo, no meio do aeroporto, e beijá -la como o maluco que sou por
essa mulher.
— Codardo, hein? — Ela ergue a sobrancelha, mas noto como seu
lá bio inferior treme, mesmo enquanto ela sorri, como se estar aqui
estivesse exigindo tudo dela.
— O que está fazendo aqui, Stella?
— Me disseram que você precisava de um pedaço do bolo da Beth,
mas nã o me deixaram embarcar com ele.
— Admita, você estava com saudades de um moleque.
O sorriso que se espalha por seus lá bios nervosos faz meu coraçã o
in lar no peito e uma agitaçã o boa se estender por todo o meu corpo, é
como um dia de sol depois de um longo e gelado inverno. Ela dá um
passo, mais um, mais um, até parar bem na minha frente, com seus
olhos ixos nos meus, sem desviar, sem medo de nada, sem se importar
com quem esteja nos vendo assim tã o perto, sem medo, nem culpa,
apenas ela.
Nã o mais uma professora e seu aluno.
Nem uma mulher e o adolescente.
Apenas duas almas cansadas e apaixonadas, se reencontrando
depois de um longo tempo de espera.
E entã o ela ergue seu corpo empinando o rosto em minha direçã o.
— Cale a boca e me beija, moleque atrevido. — Ela morde o lá bio e
passo minha mã o em sua nuca, puxando-a para junto de mim, como
sonhei durante todas as noites dos ú ltimos 15 meses enquanto me
aliviava desejando aplacar um pouco da saudade que sentia dela e,
quando minha boca se junta a sua, em um beijo que, com certeza, faz
com que cabeças se virem para nó s, sinto como se um interruptor se
ligasse dentro de mim, iluminando as sombras que ela havia deixado
quando foi embora.
E entã o meu coraçã o bate.
E meu pulmã o se enche de ar.
E a vida volta a parecer como um ilme bom, daqueles que ela ama e
que a faz derreter em meus braços. Exatamente como faz nesse
momento.
As coisas estã o inalmente se acertando, como a poeira que se
dissipa depois que a terra é remexida. Provando que sempre se pode
recomeçar. E o que estamos fazendo. Recomeçando.
Stella está tã o feliz que, à s vezes, acho que ela poderia voar. E ela
voa.
Para os meus braços, todas as noites desde que ela chegou, à s vezes
no carro, no chuveiro, na cama, em uma esquina escura onde ningué m
pode nos ver, quando a adrenalina a deixa tã o louca de tesã o quanto eu.
Stella gosta do perigo e isso é só mais uma das coisas que amo nessa
mulher.
Deus e como eu a amo, à s vezes me sinto um pouco tolo diante dela,
ainda tenho medo de que ela note o quanto sou imaturo e me dê um pé
na bunda, imagino que seja uma insegurança normal para um moleque
que conquistou o coraçã o da professora, que teve que lutar para ter
seus sentimentos valorizados, mais do que o normal para qualquer
pessoa, mas que logo passa quando ela diz o quanto me ama. E ela diz
sempre.
Em duas semanas ela começa uma nova fase da sua vida, está
ansiosa pra caralho e já tem algumas noites que a vejo acordar de
madrugada e ir para a sala. Quando pergunto o que ela está fazendo,
Stella diz que está fugindo para o mundo dos livros, que eles a acalmam.
Ainda nã o sei como Romeu e Julieta pode acalmar algué m.
Sinceramente assisti a um remake moderno com o Leonardo Di Caprio
esses dias, a agonia do desencontro daquele casal azarado do cacete
sempre me deixa nervoso e pensativo. Como pode, apenas uma
informação desencontrada acabar com um amor assim?
Poderia ter acontecido comigo e com Stella.
Acontece todos os dias por aı́, pessoas se perdem de suas almas
gê meas, um segundo atrasado, um recado nã o dado, um telefone
esquecido, uma estaçã o de metrô , um show que deixou de ir... vidas
inteiras em busca de algo que nunca vã o encontrar.
Fomos os que tiveram sorte, mesmo contra tudo, contra o
preconceito de um amor que por muitos pode ser considerado errado,
a inal de contas eu era um garoto.
Porra, eu ainda sou e Stella faz questã o de frisar isso sempre que se
senta no meu pau, enquanto se derrete inteira. Sorrio ao me lembrar de
como gosto quando ela diz que sou seu moleque enquanto geme
baixinho em meu ouvido.
Em duas semanas, nossas vidas vã o virar de ponta cabeça, ela será a
nova aluna de pó s-graduaçã o em Literatura clá ssica, eu o veterano da
Universidade de Milã o, uma das melhores em Farmá cia, pois é , nã o é
por imposiçã o do meu pai ou por culpa. Hoje estou aqui porque quero
mudar vidas, trazer conforto para quem sofre, esperança para quem
tem tã o pouco, no im das contas o garoto que sonhava com estrelas
descobriu que a vida real també m pode ter magia.
Meu pai me queria em Santo Egı́dio, como meus amigos ainda estã o
lá cursando a universidade, perto da Fremitus, onde eu poderia ajudá -lo
a administrar o nosso impé rio, mas ele entendeu que eu nã o poderia
estar em um lugar onde Stella nã o fosse bem-vinda. Ele respeitou
minha decisã o e me deu todo o apoio.
Esse foi o motivo para que eu escolhesse Milã o ao invé s de Oxford
ou Harvard, sabe como é , Itá lia, um carinho no ego do coroa. E ele
merece esse carinho, depois de ter feito tanto por nó s. Depois de ter
convencido Stella a usar o dinheiro daquele cheque imundo.
“Faça de uma coisa ruim algo bom.”
Foi o que ele disse a ela e deu certo, claro que deu, meu pai nã o é
Antô nio D’Agostinni por nada. Determinaçã o é coisa de famı́lia.
Esse é o nosso castigo, por ter quebrado regras, por ter escolhido o
nosso amor ao invé s das convençõ es sociais, e tudo bem, estamos
dispostos a pagar por isso, poderia ser pior. Um dia quem sabe, a gente
volte, quando as pessoas tiverem um caso pior para julgar ou quando
pararem de me ver como o pobre menino seduzido pela professora.
Ahhh... se eles soubessem o que esse pobre menino fez para
conquistar essa mulher...
E agora estamos aqui, nã o é a melhor opçã o. As vezes, ainda me
pego ressentido com o fato de que, por mais que eu saiba que Stella
nunca me assediou, que, ao contrá rio, fui eu quem a seduziu, para o
resto do mundo, ela é e sempre será a adulta irresponsá vel. E por isso
que ela desistiu de dar aula. Stella é sua pró pria carrasca e disse que
nunca mais se sentiria à vontade na frente de uma sala de aula.
Eu respeito sua decisã o, foram semanas brigando e dizendo que ela
nã o tinha que fazer isso, mas ela estava decidida. Desde aquela noite em
que ela pediu demissã o, ela já sabia que nunca mais pisaria em uma
sala de aula, ao menos nã o como professora. Eu só a quero feliz, e longe
de palavras que possam machucá -la. Sinceramente, eu nã o ligo, nã o dou
a mı́nima para o que pensam sobre nó s. Mas ela se importa, muito.
Prometemos um ao outro que nunca vamos deixar esse tipo de coisa
interferir na nossa relaçã o, que só nó s dois sabemos o quanto o nosso
amor é forte pra caralho, mas toda vez que vejo algué m olhar para a
gente, toda vez que a vejo abaixar a cabeça, tenho vontade de gritar.
Bando de ilhos da puta!
A sociedade ainda tem muito o que aprender, muito o que evoluir,
aceitar aquilo que é diferente, respeitar o que nã o concorda, entender
que nã o há crime em amar, nosso amor é tã o real e verdadeiro quanto o
que um cara dez anos mais velho sente por sua garota.
O amor nã o tem idade. Nem classe social, nem cor ou sexo.
As vezes, sinto que estamos regredindo ao invé s de evoluir. Julgar é
o maior prazer humano. Somos um bando de juı́zes da vida alheia,
ignorando a sujeira embaixo dos nossos pé s.
Hipocrisia que fala, né ?
En im, deixa para lá , nã o vou mudar o mundo com meus
pensamentos, e sinceramente, nesse momento, tenho coisa melhor para
me ocupar.
Sinto ela se aproximar de mim, roçando as pontas dos seus dedos
nos meus, em um carinho tã o ı́ntimo que me faz sorrir. E uma coisa
boba, mas que representa nosso amor, como o selinho que casais dã o ao
se encontrar.
A gente se toca.
— Oi. — Ela sorri erguendo seu rosto. Tã o linda, minha pequena
covarde.
— Oi — respondo como o bobo apaixonado que sou.
Stella morre de medo de que um dia eu a ache velha e sem graça.
Prestes a completar trinta anos, ela está cada dia mais linda e gostosa,
embora passe tempo demais falando sobre quando estiver com trinta.
Ah, se ela soubesse que meu pau nã o se levanta mais nem pela Mulher-
Maravilha, minha musa, talvez ela parasse com isso. Mas nã o digo nada,
porque, sinceramente, amo quando ela ica ciumenta e insegura, ico
louco de tesã o. Me julguem, sou um moleque.
— Acredita que fui procurar um banheiro e me deparei com uma
salinha de material de limpeza? — ela diz, mordendo o lá bio enquanto
brinca com a minha gravata, o vermelho da sua pele se destaca sobre a
maquiagem exagerada.
E meu pau iel se agita.
— Ah, Stellinha, tã o safada minha mulher — sussurro em seu
ouvido antes de beijar a sua boca, diante de todo o salã o de festa.
Adoro fazer isso, beijá -la, abraçá -la, tocá -la na frente de todos.
Depois de tudo, de nã o poder sequer olhar para ela sem o medo de ser
visto, é quase má gico poder fazer isso. Talvez a liberdade seja
realmente má gica.
— Mas você s dois nã o cansam nunca? — Suzy surge do nada
puxando a cauda do seu vestido branco exagerado, que a faz parecer
ainda menor.
— Eu esperei dois anos para poder beijar meu namorado em
pú blico — Stella justi ica enquanto se aninha em meus braços,
protegendo minha ereçã o do olhar atento da sua irmã .
Dessa vez, nã o posso justi icar dizendo que é uma ereçã o matinal.
— E agora você s pretendem passar o resto da vida compensando
esses dois anos?
— Esse é o plano. — Me inclino e deixo um beijo no ombro de Stella.
— Você s sã o nojentos — Suzy bufa nos fazendo rir.
— E vamos combinar, quem resiste a um homem de terno? — Stella
brinca puxando minha gravata e Suzy me olha daquele jeito, que ainda
me dá medo.
— Eu que o diga. — Ela olha para Xavier, que está do outro lado do
salã o conversando com um grupo de pessoas. — Casei-me com o
homem mais lindo do mundo. Desculpa, Nuno, mas verdades nem
sempre sã o fá ceis de ouvir — Ela espalma sua mã o em meu rosto como
se eu fosse um garotinho e solto uma gargalhada.
Suzy inalmente realizou seu sonho, ou talvez, tenha realizado o
sonho do seu noivo. Sinceramente, nunca vi um homem chorar tanto
em um casamento. No fundo, todos sabemos o motivo, mas hoje nã o é
um dia de pensar nisso, Suzy está feliz, nó s estamos felizes.
— Desde que sua irmã nã o concorde com você , eu posso viver com
isso.
Ela segura nossas mã os juntas. O anel de brilhantes que dei para
Stella no ú ltimo Natal reluz em seu dedo anelar. Está com a mã o
minú scula sobre a minha do jeito que amo.
— Eu estou realizada, você s sabem, né ? — Ela olha para nó s
daquele jeito que só quem nos conhece bem consegue olhar.
— Sim, sabemos — respondo, ainda com o queixo apoiado no
ombro de Stella.
— Eu vou falar uma coisa e quero que me ouçam. — Suzy pisca
algumas vezes e Stella retesa.
— Suzy... — ela a repreende.
— Cale a boca, preciso falar logo. — Ela respira fundo e volta a olhar
para as nossas mã os. — Sejam felizes, a vida é breve demais. Nã o
tenham medo, nã o olhem para o lado, nã o deem ouvidos à maldade.
Pessoas infelizes nã o gostam de pessoas felizes. Fiquem longe deles,
sigam em frente, de cabeça erguida, com um sorriso nos lá bios e seus
sonhos em mã os. Acreditem, você s conseguem, sonhos nã o precisam
ser coisas grandiosas e inalcançá veis, só precisam ser especiais. Olhem
para mim. — Ela aponta para o seu vestido e depois para Xavier, que
está olhando para nó s. — Eu consegui, qualquer um consegue realizar
seus sonhos, basta nã o desistir deles.
Ela pisca para Stella, que se vira em meus braços para olhar para
mim.
— Viu só , covarde, valeu a pena nã o desistir de mim — digo antes
de deixar um beijo em seu nariz.
— Eu te odeio — ela diz emocionada quando olha para a sua irmã .
— Você s dois, eu odeio você s.
— Tá , tá , nem pense em chorar. O papai já me fez chorar todo o
caminho até a igreja, já gastei minha cota do dia. — Suzy a puxa dos
meus braços levando-a para o centro da pista.
— Faz tempo que sonho com esse momento. — O Sr. Almeida, o pai
delas, para ao meu lado, com as mã os cruzadas na frente do corpo
pequeno e franzino enquanto os olhos cinzentos brilham ao admirar as
duas.
— Elas estã o felizes — digo ainda admirando minha Stella
emocionada.
— Sim, elas sempre foram muito felizes, dentro do mundinho que
ambas criaram, ainda pequenas, quando Stella nã o tinha ideia da
gravidade da doença da irmã mais velha. Ela sempre foi a luz da vida da
Suzy.
— Ela é a luz da minha vida també m — admito enquanto vejo a luz
re letir o brilho do diamante em seu dedo, sonhando com o dia em que
será ela usando um vestido branco.
— Você é um garoto muito inteligente — ele brinca e me viro para
olhar para ele.
— Sim eu sou. — Sorrio orgulhoso por saber disso.
A luz indireta da pista ilumina as duas irmã s, tã o pequenas em
tamanho e tã o grandes em garra e coragem, duas gigantes de um metro
e meio, dançando de um lado para o outro. Suzy gargalhando enquanto
Stella chora, como sempre foi.
A emoçã o e a explosã o.
Duas partes de um todo.
Assim como sã o os irmã os.
Assim como sã o almas gê meas.
Suzy manteve esse sorriso em seus lá bios por toda a sua breve vida,
ela tinha um jeito especial de enxergar tudo, aproveitando até mesmo
os dias ruins, agradecendo tudo até o im. Ela nos deixou dois anos
depois da noite em que realizou seu sonho nos braços do homem da
sua vida, e que gargalhou enquanto rodopiava em um salã o com sua
irmã .
Seu sorriso foi a ú ltima coisa a se apagar em seu rosto, como sua
prova de gratidã o por sua vida, até o ú ltimo suspiro dos seus pulmõ es
cansados, até que esse mundo nã o fosse mais capaz de suportar a sua
luz e ela se tornasse a nossa estrela particular.
Suzy se foi, mas, graças a ela, aprendi que a morte nem sempre é
sobre a dor. Com ela aprendi que é apenas uma etapa e que, por mais
que a gente tenha uma vida inteira para se preparar para ela, nunca é
fá cil. Nã o foi com Matteo, nem com ela. Mas a morte també m é sobre
viver, sobre aproveitar o dia de hoje, porque ele é tudo o que temos; é
perdoar aqueles que nos machucam, porque nem sempre sabemos o
tamanho da vastidã o de seus coraçõ es, é amar aqueles que nã o
conseguem nos amar de volta, é proteger aqueles que nã o conseguem
pedir ajuda, é apoiar quem nã o pode seguir adiante. E perceber o valor
do ar que entra em nossos pulmõ es e no sangue que enche nossas veias.
Suzy se eternizou em nossos coraçõ es, em nossas vidas e na de
todos aqueles que, porventura, tem o prazer de ouvir sobre sua histó ria.
Assim como nos romances que Stella tanto ama.
Hoje compreendo sua adoraçã o por eles.
As histó rias sã o vidas eternas que recomeçam sempre que algué m
abre um livro, eternizando personagens, nã o importa quando foi
escrita.
Essa é a magia da vida, cada vez que ela é lembrada, sua alma
renasce, assim como a de Matteo.
Assim como um dia seremos eu e Stella.
O aluno e a professora.
Muitos anos depois...

Fecho a tampa do marca-texto e retiro os ó culos sentindo uma


pontada de dor de cabeça ameaçar surgir, nã o faço ideia de quantas
horas estou aqui enfurnada nesse escritó rio, em um lindo e ensolarado
dia de sol, ignorando as risadas e conversas porque tenho um prazo a
cumprir e ele se esgota em duas horas.
Olho para o reló gio me dando conta de que já passa das oito da
noite, passo o olho na folha à minha frente, a ú ltima das 323 que
completam o novo best-seller de PI. Estou empolgada demais, sei que
esse é o seu melhor trabalho e que será um estrondo de vendas, os
direitos internacionais para a publicaçã o em mais dez paı́ses já foram
encaminhados para os advogados analisarem e na semana que vem
temos algumas reuniõ es com as equipes de marketing.
Será um longo e brilhante caminho que, ao que tudo indica,
terminará nas telas do cinema.
Mas por hoje chega.
Digito uma mensagem rá pida informando que o arquivo revisado
está a caminho da editora e desligo tudo no instante em que Violeta
bate na porta antes de abrir só um pouquinho.
— Já terminei. — Ergo os braços em rendiçã o e ela sorri.
— Nuno está uma fera com você — ela diz ainda sem entrar no
escritó rio e sorrio ao me lembrar das quatro vezes em que ele entrou
aqui hoje, com aquele bico lindo que faz quando está bravo.
— Eu sei, mas eu precisava, tinha que entregar esse arquivo ainda
hoje. — Levanto-me e me dirijo à porta, estico a coluna sentindo-me um
pouco cansada e com as costas doloridas.
— Você está abusando, Stella. — Ela estica a mã o e segura a minha
enquanto caminhamos pela mansã o da famı́lia D’Agostinni.
— Por favor, nã o diga nada a seu ilho, ele já está no limite de jogar
meu notebook fora — peço quando solto um gemido baixinho sentindo
os efeitos de ter passado as ú ltimas doze horas sentada. E, acho que
abusei mesmo.
— Como se precisasse, ele é capaz de ler suas necessidades antes
mesmo de você pensar nelas.
Sorrio sentindo meu coraçã o se encher de amor por meu lindo, mal-
humorado e apaixonado marido.
— Onde eles estã o?
— Lá atrá s no jardim.
— Vou lá tentar me redimir.
Deixo Violeta na cozinha, seu lugar favorito sempre que está em
casa, e caminho em direçã o a parte dos fundos, tiro os sapatos sentindo
o piso frio massagear meus pé s cansados. Os vejo assim que me
aproximo das portas de vidro, estã o todos deitados na grama fria, Nuno
de um lado, Antô nio de outro e o nosso pequeno no meio.
— Como chama aquela, papai? — Ele aponta o dedinho para o cé u,
que parece uma pintura, salpicado de estrelas brilhantes essa noite.
— Aquela se chama... Plinius — Nuno diz e seguro um sorriso
enquanto observo-os reviver um momento que foi tã o importante para
ele, imaginando que, de alguma forma, Matteo també m está presente
aqui.
Romeo solta uma gargalhada deliciosa, que faz meu coraçã o
explodir no peito e todo o cansaço ir embora.
— E aquela, Romeo, você sabe qual é ? — Antô nio pergunta e mal
posso acreditar que aquele homem deitado no chã o, sujo de grama,
desgrenhado e sorridente, é o dono de uma das maiores indú strias
farmacê uticas do mundo.
— Eu sei, o papai me falou. E a estrela do titio Matteo. — Meu
garotinho aponta para um ponto qualquer no cé u.
— E aquela? — é a vez do meu marido perguntar.
— A titia Suzy? — ele diz todo orgulhoso como sempre ao se referir
à s estrelas que nomeamos com os nomes dos nossos irmã os, foi o nosso
jeito de homenageá -los e de mantê -los perto de nó s e da nossa famı́lia.
Sempre que a saudade aperta, olho para o cé u e imagino que, de algum
lugar, ela está me vendo realizar meus sonhos.
— Muito bem, garoto, já pode pegar sua mochila e partir para a
NASA — Nuno brinca e Romeo se levanta dando pulinhos de emoçã o
quando nota meu pai se aproximando. Ele repete tudo o que o pai falou
para o avô e meu pai sorri apaixonadamente enquanto ouve.
Romeo se vira e entã o me vê . E, como em todas as vezes, me sinto a
mulher mais poderosa e importante do mundo.
— Mamã e! — ele grita enquanto corre em minha direçã o. — O
papai disse que posso ir para a Nasa, nã o é incrı́vel? — Romeo se joga
em meus braços e ergo seu corpinho em meu colo.
— Entã o você está mesmo pensando em me deixar, mocinho? —
Ajeito uma mecha escura do seu cabelo, que ameaça esconder seus
lindos e preguiçosos olhinhos verdes, enquanto admiro a perfeiçã o do
seu rostinho, metade meu, metade dele, a uniã o do nosso amor.
— Só um pouquinho, depois eu volto — ele justi ica enquanto
brinca com um pedacinho de grama que estava grudado em sua blusa.
— E como faço com a saudade do meu bebê ?
— Eu nã o sou mais bebê ! — Romeo resmunga no instante em que
Nuno, Antô nio e meu pai se aproximam.
— Você está bem? — meu marido pergunta enquanto se inclina
para beijar a minha boca.
— Estou ó tima.
— Bom, isso é muito bom, porque eu estava prestes a te arrancar de
lá de dentro — ele diz sem humor em sua voz e sou obrigada a dar um
beijo em sua boca enquanto ouço meu pai e meu sogro reclamarem que
estou abusando.
— Eu estou bem, nã o se preocupem.
— Ei, garotinho, se você nã o é mais um bebê , o que está fazendo no
colo da sua mã e, hein? — Antô nio estende os braços e Romeo se joga
para o avô , começando uma brincadeira de luta, que me deixa nervosa,
mas que, de acordo com Nuno, faz parte da liberaçã o de hormô nios
masculinos.
— Está muito cansada? — Nuno pergunta enquanto seu polegar
acaricia minha pele, estou exausta, tenho certeza de que, se tomar um
banho e me deitar, apago no mesmo instante, mas a ideia de estar
sozinha com ele é maior do que o cansaço.
— Nã o.
— O que acha de darmos uma volta? — ele diz enquanto passa os
braços em volta da minha cintura, me puxando para perto de si.
— Uma pausa para um café ?
— Nã o era isso que eu tinha em mente. — Ele beija meus cabelos e
faço um beicinho dramá tico.
— Eu preciso de um café .
— Nem sei se a Beth está aberta, olha a hora. — Ele ergue o pulso
olhando para o reló gio que ganhou do seu pai no seu trigé simo
aniversá rio, era de seu avô e ele tem muito orgulho de andar por aı́ com
ele. No fundo, ele se tornou um belo exemplar italiano da famı́lia.
— Ela sempre tem um café para mim, principalmente agora. —
Aponto para a barriga que está começando a crescer e Nuno olha para
ela com seu sorriso torto e bobo de sempre.
— Esse moleque vai nascer mais agitado que o Romeo, você sabe,
nã o é ?
— Eu gosto dos moleques agitados. — Pisco para ele enquanto
Nuno se afasta estendendo a mã o para mim.
— Entã o vamos logo, manda mensagem para ela avisando que
estamos passando lá .
Meu marido mandã o diz enquanto me puxa pelo braço, sem me dar
chance de sequer dizer tchau para Romeo. Provavelmente quando
voltarmos, ele estará dormindo.

— O que acha de Andreas? — ela pergunta enquanto passa a mã o


na barriga ainda pequena.
— Nã o sei. — Testo o nome enquanto dirijo pelas ruas tranquilas de
Monte Mancante, nã o digo a ela, mas ainda sinto falta daqui, e estou
empolgado para podermos inalmente nos mudar, antes do bebê nascer,
nossa casa está quase pronta e já posso me ver trazendo os meninos
para passear nos lugares onde cresci. Andreas...
— Eu gosto de Andreas — ela continua.
— Melhor do que Darcy. — Faço uma careta, que arranca uma
gargalhada gostosa dela.
— Eu nã o iria colocar o nome do Romeo de Darcy de verdade.
— Nã o tenho tanta certeza, pre iro acreditar que salvei nosso ilho
de um futuro terrı́vel.
— Darcy é um dos homens mais amados da literatura mundial se
você nã o sabe — ela justi ica pela milioné sima vez.
— Diga isso para um adolescente que sofre bullying no vestiá rio aos
dezesseis anos.
— Nã o seja ridı́culo.
— Eu mesmo faria bullying com ele — provoco-a e ela me dá um
sorriso debochado.
Passamos o resto do caminho falando sobre nomes de meninos,
uma das partes mais difı́ceis de ser pais, é uma responsabilidade
assustadora pra caralho e com certeza o nome dele só será escolhido
quando vermos seu rosto, assim como foi com Romeo.
Estaciono o carro e afasto o banco para relaxar, Stella geme ao
terminar o café , injo que nã o vejo o cansaço em seu rosto, mas as
olheiras estã o lá , gritando “algué m para essa mulher!” em seu rosto.
Esse é o problema, quem consegue parar essa mulher?
Mas sei bem como é se sentir realizado com algo, cinco anos atrá s
foi a minha vez de passar meses longe de casa, viajando o mundo com
minhas pesquisas sobre novos medicamentos para auxiliar no
tratamento de ibrose cı́stica, depois mais viagens para participar de
congressos, entrevistas, palestras.
A Fremitus foi a primeira farmacê utica a produzir um medicamento
mais e icaz na reduçã o da produçã o de muco nas vias respirató rias,
trazendo mais conforto e aumentando em até vinte anos a expectativa
de vida dos doentes.
Ah, Suzy, como eu gostaria que você estivesse aqui para ver isso.
Foi bem na é poca em que Romeo nasceu, eu estava desesperado
para icar com eles, mas Stella sabia que eu tinha que seguir meu
caminho, ela me apoiou, mesmo sabendo que precisava de mim.
Agora é a minha vez de apoiá -la.
Em algumas semanas ela vai estar envolvida com todo tipo de mı́dia,
viagens e reuniõ es que vã o deixar a minha esposa enlouquecida, mas
que é a sua vida.
Stella se tornou uma importante agente literá ria, ela é responsá vel
pela carreira de quatro dos maiores escritores nacionais, incluindo PI, o
fenô meno do momento. Junto com Maddie e mais um só cio, ela fundou
a Sogni D’oro7 uma das mais importantes editoras do paı́s dos ú ltimos
dez anos e casa dos best-sellers de PI. Ela acreditou em suas palavras,
quando elas nã o passavam de textos misteriosos espalhados pelos
corredores da Santo Egı́dio há dezessete anos. E ela ainda continua
acreditando.
Porra, uma vida inteira se passou desde o dia em que um
adolescente impulsivo se apaixonou por sua professora e olha só aonde
chegamos.
— No que você está pensando? — ela pergunta ao apoiar a cabeça
em meu ombro com a voz suave e cansada.
— No dia em que te comi em cima da mesa dos professores —
provoco-a e ela ergue o rosto.
— Mentira, né ? — ela pergunta parecendo chocada.
— O que posso fazer, isso ainda é o meu maior fetiche, sabe como é ,
coisa de moleque.
Stella revira os olhos e a puxo para perto de mim, beijando sua boca
com o sabor do café que ela tanto ama.
— Você nã o é mais um moleque, engraçadinho. — Ela acaricia
minha barba por fazer, depois sobe seus dedos pequenos por meus
cabelos, puxando a grama que está presa nele.
— Fale isso para meu pau — sussurro em seu ouvido antes de
passar minha lı́ngua por seu pescoço, fazendo-a se remexer e cair na
gargalhada.
— Hum... pensando bem, eu gosto dele assim. — Ela abaixa a mã o,
massageando minha ereçã o enquanto me olha com seu ar de
atrevimento que me deixa duro.
— Muito bom, porque ele será seu por pelo menos mais uns
sessenta anos.
— Acho que sessenta tá bom. — Ela sobe e desce a mã o apertando-o
como só ela sabe fazer.
— Stella, minha estrela... — sussurro tentando nã o fechar os olhos
quando ela começa a beijar meu queixo, deixando mordidinhas
dolorosamente deliciosas.
— Estou com saudades do meu marido.
— Você está cansada.
— Você sabe que o sexo me relaxa.
— O bebê , nã o quero te machucar aqui nesse espaço pequeno. —
Aponto para o espaço entre meu colo e o volante, tentando ser um
cavalheiro e meu pau protesta.
— Temos todo o espaço do mundo lá fora. — Ela passa a lı́ngua por
minha pele.
Fecho os olhos me recordando da primeira vez em que disse que a
amava, está vamos aqui nesse mesmo lugar, o sol nascendo ao longe,
iluminando Monte Mancante, enquanto um menino apavorado
descobria o signi icado de amar algué m.
Foi um dos dias mais especiais da minha vida.
— Seu desejo é uma ordem. — Puxo-a pelo pescoço, beijando-a com
força, enquanto deixamos que nossos corpos façam aquilo que já estã o
acostumados a fazer: se tocam.
— Aproveite, em breve nã o terei mais tanta disposiçã o. — Ela se
afasta, abrindo a porta do carro e sai. Seus olhos me observam
enquanto ela se inclina, apoiando as mã os no capô . Desço do carro já
louco de desejo, abrindo a calça e bombeando meu pau. Stella empina o
quadril, me dando espaço para que eu possa me encaixar, e quando a
penetro, sentindo a deliciosa sensaçã o de estar em casa, ela geme, se
derretendo toda em meus braços.
E má gico, intenso, ú nico, como sempre foi.
Antes de terminar, me inclino e beijo seu ombro, sentindo-a gozar,
relaxando aos pouquinhos. E meu momento favorito, saber que estar
comigo ainda é algo especial para ela mesmo depois de tantos anos,
tantas di iculdades, tantos desa ios e quando gozo, sentindo a explosã o
de hormô nios me impulsionar, desejando ir mais fundo, marcando-a
como minha, sinto como se a vida nã o pudesse ser mais perfeita.
E nã o pode.
Ela é simples, corrida, cansativa, na maioria dos dias eu sinto como
se nã o soubesse o que estou fazendo, mas eu consegui, lutei pela
mulher que eu amava e, como prê mio, ganhei os bens mais preciosos da
minha vida, nossos ilhos, em breve conheceremos o rostinho do nosso
novo moleque e, quem sabe daqui a um ano, consigo convencê -la de
tentarmos a nossa menininha. Vai ser uma tarefa difı́cil, mas um
D’Agostinni nã o desiste nunca.
Stella se vira para mim, ainda ofegante, o rosto corado, cansado, tã o
lindo como da primeira vez que o vi, no meio daquela multidã o.
— Te odeio — ela diz com um sorriso safado.
— Bom, isso é muito bom, minha pequena covarde — respondo
antes de me inclinar para beijá -la, sentindo meu coraçã o de moleque
explodindo no peito com o tamanho do amor que sinto por essa mulher.
A vida é boa, Suzy tinha razã o, é nesses pequenos detalhes que
estã o a felicidade, naqueles que nã o dependem do dinheiro, como um
im de semana na casa dos pais, o olhar de admiraçã o de um ilho, a
amizade de um amigo, um orgasmo no topo da cidade, nos braços da
mulher amada.
A vida é boa, e eu me esforço todos os dias para fazer valer a pena.
Olá , querido leitor.
Escrever Nuno foi um grande desa io.
Acho que o maior de toda a minha carreira, nã o pela histó ria em si,
já que é um tema bastante comum, o famoso clichê aluno/professora,
nem por ter me tirado da zona de conforto, trazendo a você s cenas mais
quentes e um garoto que adora falar e fazer coisas que deixaram essa
autora aqui corada.
Mas o que me pegou de jeito foi exatamente a inversã o de papé is, a
mulher mais velha e o garoto mais novo. Sempre vemos o professor e a
aluna e nunca o contrá rio, e foi aı́ que percebi que esse livro nã o era
simplesmente uma histó ria clichê com uma pitada sensual.
Era um tabu.
Homens mais velhos sempre foram bem-vistos com mulheres mais
novas, mas quando se trata do contrá rio nã o é a mesma coisa, e uau!
Como me surpreendi ao notar que as coisas nã o eram tã o simples
assim, Stella foi e sempre será julgada, por mim, pela sociedade, por
alguns leitores que nã o concordarã o com ela, mas principalmente por
ela. O preconceito está enraizado dentro de nó s, faz parte da nossa
histó ria, de sé culos e sé culos de uma sociedade machista.
E enquanto escrevia esse livro, tive o apoio de muitas pessoas, mas
de duas em especial, que foram primordiais para o desenrolar da
trama: Cleane Aquino e Vanessa Paraiso, duas advogadas incrı́veis que
tenho a honra de chamar de amigas e que tiveram toda a paciê ncia do
mundo em me explicar milhõ es de vezes que, em nenhum momento,
houve algum ato ilı́cito, acreditem, elas analisaram cada ato de Stella e
Nuno, essa era a minha maior preocupaçã o, a certeza de que em
nenhum momento eles cometeram um crime. Mesmo assim, eu sabia
que, para Stella, nã o havia como se perdoar por seus atos, ela se puniu
e, diante disso, nã o há questionamento, ela pagou por seu erro.
E aos poucos, enquanto Stella se rendia a seu amor por esse garoto
determinado e apaixonante, me vi diante de questõ es que me izeram
pensar muito. Por que tantos ró tulos, por que tantos julgamentos?
Quem somos nó s para decidir quem devem ou nã o amar? Por que um
homem tem liberdade de escolher e a mulher tem que ser escrava de
uma ditadura moral?
Nuno nã o é só um clichê , é um questionamento sutil sobre a posiçã o
da mulher na sociedade, sobre o peso de suas escolhas, seja a cor do
seu batom, o tamanho da sua saia ou o homem que ela escolhe para
dividir sua vida.
E vi meu coraçã o doer por saber que, na realidade, nã o seria
diferente, e ao mesmo tempo me encher de orgulho por ter passado por
cima de todos os meus medos para dar voz a essa histó ria linda.
Eu tenho tanto orgulho desse moleque ardiloso e dessa garota
covarde, apaixonada por romances proibidos. Amores esses, tã o belos
nas telas e nas folhas de papel, mas tã o dolorosos na vida real.
E, para mim, Stella e Nuno sã o reais, eu sofri com eles, eu amei com
eles, eu tive medo por eles, eu quis guardá -los em um potinho e
proteger esse amor tã o bonito e tã o puro do resto do mundo.
Eu espero de coraçã o que você s també m saiam dessa leitura com
um novo olhar para coisas que, à s vezes, parecem simples, mas que
acabam engessando nossa percepçã o da vida e com o coraçã o cheio de
amor por essa turminha.
Carrossel de Sentidos foi um tı́tulo bem difı́cil de escolher para essa
sé rie, mas ele representa muito bem o que cada um dos cinco livros
signi ica.
Um carrossel de emoçõ es, de sentimentos, de medos, dores, culpas,
recomeços, perdã o e amor, muito amor.
Cada um desses cinco amigos tem algo para contar para você s, algo
especial que começou com Nuno, Stella e Suzy e que continua com Ivan
e Cindy, Rael, Dom e Nick, e estou ansiosa para apresentar suas
histó rias e novos personagens a você s.
Em Nuno, Suzy tem um papel muito importante, ela nã o foi
escolhida com ibrose por acaso, só para deixar a histó ria um pouco
mais emocionante, essa garota impulsiva e apaixonada pela vida,
representa o ar, o oxigê nio, tã o fundamental para a nossa vida, tã o
representativo para o primeiro dos cinco sentidos que serã o entregues
a você s (alerta de spoiler!).
Todo o tratamento que Suzy fez é ictı́cio, o medicamento que Nuno
desenvolveu també m, assim como a Fremitus, o colé gio Santo Egı́dio e
Monte Mancante que foram criados para essa sé rie, mas sonho com o
dia em que ningué m precise mais viver com a expectativa de que a
pró xima vez que respirar nã o seja a ú ltima.
E cá estamos nó s mais uma vez!
Esse é aquele momento em que repasso cada uma das palavras que
escrevi nesse livro, a primeira vez em que pensei em Nuno e Stella, a
escolha dos nomes, a paixã o pelo avatar (Lorenzo Zurzolo, meu
italianinho lindo!), a recepçã o das primeiras pessoas a ter contato com
eles. Minhas betas.
Hoje meu primeiro agradecimento vai a você s, a cada uma de você s
que, durante os ú ltimos dois anos, acompanharam meu desespero por
nã o conseguir terminar nenhum livro, por ter abandonado Rael
praticamente na metade, por nã o me conectar com nada. Hoje eu sei o
motivo.
Era para ser.
Nuno tinha que vir antes, tinha que me contar sua histó ria, me
apresentar Monte Mancante, me fazer apaixonar por seus olhos
preguiçosos e intensos e por seu sorriso torto, me preparar para o meu
maior desa io como escritora.
Obrigada Rebeca, Solange, Pamela, Tati, Cleane e Vanessa, você s sã o
meu suporte nos dias difı́ceis e minha alegria nos dias bons.
Obrigada, Raiza Varella e Francine Locks, você s sã o o sal da minha
vida, tã o parecidas e tã o diferentes de mim; a parte que me falta em
ousadia, eu encontro em você s.
Thais Alves, minha irmã de coraçã o, que se apaixonou por Nuno na
primeira linha, que fez essa capa tã o linda. Eu nã o me canso de dizer,
você conhece meus meninos, e Nuno nã o poderia ser mais perfeito.
A Deus, meu tudo, eu sou tã o grata por Ele me permitir fazer o que
faço, sem Deus nã o sou nada e minha fé é a luz da minha vida,
principalmente agora que estamos vivendo dias tã o complicados.
Meu marido querido, que me apoia e me ajuda tanto, estou tã o
orgulhosa de te ver com um livro nas mã os. Viu só ? Nunca é tarde para
se apaixonar pela literatura. Ainda nã o sei se quero que você leia meus
livros, preciso me preparar para esse momento.
Maythe e Sophia, a razã o da minha vida, que delı́cia ver você s
crescendo e saber que se orgulham de mim. Eu me orgulho muito mais
de você s, obrigada por serem as melhores ilhas do mundo.
Ao meu grupo de leitores, em especial as Nunetes, que estã o
acompanhando Nuno desde o Wattpad, que se apaixonaram e apoiaram
Nuno e Stella desde o comecinho, que vibraram com o primeiro beijo,
que gritaram igual inal de copa do mundo na cena da biblioteca, que
criaram mil teorias e me izeram sorrir, Deus permita que essa energia
linda de você s se espalhem e toquem os coraçõ es de todos os leitores.
E por ú ltimo, meu muito obrigada a você leitor que escolheu ler
Nuno, que chegou até aqui. Meu mais profundo muito obrigada a quem
lê a nota de autora, espero que, nesse momento, você esteja com o
coraçã o quentinho, apaixonada por Nuno e Stella e louca de vontade de
conhecer a histó ria dos outros meninos.
Esse é só o começo de nossa nova jornada e estou ansiosa para
caminhar com você ao meu lado.

Ahhh, antes de ir embora, que tal deixar a sua avaliaçã o para que
mais pessoas possam conhecer e se apaixonar por essa turma tã o
especial?
Conheça outras obras da autora, que estã o à venda na Amazon e
també m pelo Kindle Unlimited:

SÉRIE SEGREDOS:

1 - Meu erro
1.5 - Minha (conto)
2 - Minha rendiçã o
2.5 - Meu (conto)
3 - Meu refú gio
3.5 - Nosso (conto)
4 - Minha cura
4.5 - Seu (conto)

SÉRIE CARROSSEL DE SENTIDOS:

1. Nuno

Volumes únicos:

Antes dos vinte


Con ie em mim
Só hoje
Um milhã o de promessas
Um novo amanhecer
Ao seu lado: Coletâ nea de contos da quarentena
Cinthia Freire é uma escritora apaixonada por romances, adora as
mil formas com que uma histó ria de amor pode ser contada e a magia
por trá s disso.
Autora de livros que sempre carregam uma carga dramá tica e um
tema social pertinente, mas que tem como lema o famoso felizes para
sempre. A inal de contas, essa é a principal missã o de um romance:
deixar o coraçã o quentinho.
Se quiser saber mais, siga a autora no Instagram
(@cinthiafreireautora), que ela vai adorar conversar com você .
1)
Por favor, em italiano.

2)
Rapaz, em italiano.

3)
Mã e, em italiano.

4)
Vá se foder! em italiano.

5)
Olá , em italiano.

6)
Olá , minha covarde, em italiano.

7)
Sonho de ouro, em italiano.

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