Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Capa:
Thais Alves
Eu ainda nã o consigo respirar direito e dou graças a Deus por sua
coxa estar entre minhas pernas ou tenho a sensaçã o de que poderia
despencar aqui mesmo, bem debaixo do seu nariz.
Seria a situaçã o mais humilhante do mundo.
— Você está bem? — Ele ainda está com a cabeça apoiada na minha,
uma das suas mã os segurando minha cintura e a outra... bem, ela está
bastante ocupada, cuidando das minhas partes mais ao sul.
— Eu... acho que sim — digo ainda sem olhar para ele, estou
começando a recuperar o folego, minha mã o ainda está em sua ereçã o,
que, mesmo sobre o jeans, posso senti-la pulsar em busca de alı́vio, a
outra está dentro da sua camisa, em suas costas, onde com certeza
deixei uma boa lembrança da minha ousadia.
Ele sorri, um daqueles sorrisos arrogantes que o deixa
absurdamente bonito, sua mã o se move devagar, me acariciando e
fazendo meu corpo, ainda sensı́vel depois do orgasmo, estremecer.
— Tem certeza? Você parece tı́mida.
— Eu ico tı́mida depois de... você sabe.
— Gozar? — A palavra sai devagar da sua boca, como se ali fosse
seu lugar.
Respiro fundo e meu coraçã o dispara ao som dessa palavra. Como
pode uma palavra ser tã o sexy? Na verdade, como pode uma pessoa ser
tã o sexy?
— Isso — sussurro, fechando os olhos quando ele passa o nariz por
meu rosto, me acariciando antes de me beijar.
Dessa vez, o beijo é lento, gostoso, um beijo de quem nã o vai a lugar
algum, de quem tem todo o tempo do mundo para explorar a boca um
do outro. Sinto seus dedos saı́rem de dentro de mim e minha calcinha
voltar ao lugar de antes, estou vergonhosamente molhada e tento nã o
pensar nisso enquanto envolvo minhas mã os em seus cabelos sentindo
o suor deixá -los ainda mais bagunçados.
Ele apoia a mã o na parede e se afasta deixando a coxa que serviu de
apoio voltar ao lugar, tudo é tã o sutil que, se eu nã o estivesse atenta a
cada detalhe, nã o teria me dado conta.
Passo minhas mã os por seu peito sentindo a pele lisa e quente sob
meus dedos, paro onde seu coraçã o bate e sinto a agitaçã o dele, isso é
bom, signi ica que nã o sou a ú nica afetada aqui.
Passo a ponta dos meus dedos em seu mamilo e ele se retesa, agora
é a sua vez de sorrir com os lá bios ainda sobre os meus.
— Isso me deixa meio nervoso — ele confessa.
— Nã o gosta?
— Nã o muito — ele responde e gosto de saber algo tã o ı́ntimo sobre
ele, me pergunto quantos parceiros tê m essa facilidade de se
comunicar.
Baixo minha mã o por sua barriga sentindo a irmeza de um corpo
jovem, magro e de inido, ele para de me beijar quando meus dedos
passeiam pelo có s da sua calça e sinto sua pele se arrepiar.
— E disso você gosta? — pergunto enquanto passo a unha em sua
pele.
— Nossa, sim.
Desço um pouco mais chegando ao elá stico da sua cueca e ele
suspira apoiando a cabeça em meu ombro quando abro o botã o da calça
dele.
— Sabe, você nã o precisa fazer isso — ele diz colocando sua mã o
sobre a minha antes que eu consiga abrir o zı́per.
— Mas eu quero. — Viro o rosto para olhar em seus olhos,
desejando nã o encontrar repulsa em seu rosto. — A menos que você
nã o queira.
— Porra, eu... — ele suspira mais uma vez e desço o zı́per sentindo o
volume da sua ereçã o roçar minha pele.
— Me deixa cuidar de você .
— Eu tô tã o duro, que nã o vai demorar muito. — Sua voz se torna
mais rouca quando libero sua ereçã o e começo a acaricia-lo. Ele respira
pelo nariz, tentando manter um controle que nã o quero que ele tenha,
aumento um pouco a pressã o enquanto beijo seu pescoço, nesse
momento gostaria de ter a ousadia de falar sacanagens para ele, mas
nã o consigo, a timidez está quase me impedindo de continuar e preciso
me forçar a lembrar das palavras da minha irmã .
Seja ousada...
E isso que estou fazendo, me desa iando a ultrapassar os meus
limites, me permitindo sentir, me divertir, nã o há nada de errado em
encontrar um cara incrı́vel, sentir uma atraçã o absurda por ele e dar
uns pegas em um festival de mú sica, nã o é mesmo?
Ele apoia a outra mã o na parede, como se estivesse se segurando,
seu rosto agora está enterrado em meu pescoço e, ao contrá rio de mim,
ele nã o conhece a timidez, porque, à medida que vai icando mais
excitado, mais sacanagem sai de sua boca.
— Que mã o gostosa você tem — ele sussurra com a voz rouca
enquanto deixa beijinhos molhados em meu pescoço. — Você tá me
matando... — ele continua, mas a voz parece fraca demais, a respiraçã o
aumenta à medida que ele está quase lá . — Aperta meu pau — ele exige
e faço exatamente como pede. — Ah, porra, eu vou gozar — ele me
avisa e, ao invé s de icar constrangida como eu imaginei que icaria,
sinto-me absurdamente excitada quando ele começa a gozar na minha
mã o. Os sons que escapam da sua garganta causam arrepios em minha
pele e deixam meu corpo em chamas. E eró tico, intenso e indescritı́vel.
Sua mã o sobe por minha garganta e sua boca captura a minha, os
gemidos se misturam com a fome que ele tem em me beijar, continuo
tocando-o, com força, como ele parece gostar. Pouco a pouco, ele vai se
acalmando, suas mã os voltam a me tocar, dessa vez com carinho.
Arrumamos nossas roupas e icamos um tempo assim, abraçados,
satisfeitos e silenciosos, sinto sua respiraçã o se normalizando enquanto
sua boca procura a minha mais uma vez.
— Você é incrı́vel — ele diz depois de um tempo e sorrio me
sentindo orgulhosa e ousada como nunca fui, e provavelmente nunca
mais serei.
— Obrigada.
Fecho os olhos e, pela primeira vez, desde que nos escondemos
nessa viela, volto a ouvir o mundo a nossa volta.
— Nem vimos o show — digo com a cabeça apoiada em seu peito,
bem em cima de onde está o seu coraçã o agitado.
— Seus amigos estã o te procurando?
— Provavelmente sim.
Sinto ele hesitar e uma pontada de tristeza surge em meu peito.
— Você precisa ir?
— Nã o, ainda nã o.
— Nã o queria que essa noite acabasse — ele admite e me ergo para
encarar seu rosto.
— Eu també m nã o.
Ele afasta uma mecha do meu cabelo e deixa um beijo em minha
boca.
— Nã o precisa acabar.
Olho para o seu rosto notando detalhes que o desejo me impediu de
ver antes: seus olhos sã o enormes, as sobrancelhas grossas e
expressivas deixam pouco a imaginar sobre o que ele pensa. Enquanto
sorri ele se parece com um menino arrogante e debochado, mas quando
está sé rio, é atordoante de tã o belo. Seus cabelos precisam de corte,
mas talvez seja exatamente isso que o torna tã o bonito, selvagem,
rebelde.
Ergo minha mã o e toco os ios bagunçados, é a minha vez de
suspirar porque, por mais surreal que tenha sido o nosso encontro, ele
está chegando ao im e nã o há nada que possamos fazer para mudar
isso. Tenho um futuro que me espera fora dos portõ es desse festival e
nã o há nada que possa me desviar dele.
— Eu nã o posso icar — admito sorrindo gentilmente.
— Tudo bem, me dá seu telefone.
— Nã o posso.
— Nã o pode ou nã o quer? — Ele se manté m perto de mim, mas
sinto a surpresa em sua voz.
— Nã o posso.
— Você tem namorado? E casada?
— Deus! Claro que nã o.
— Entã o qual o problema?
— Nã o há problema.
— Entã o você tá me dispensando? — Um sorriso magoado surge
deixando-o sem jeito.
— Eu ainda estou aqui, nã o estou?
— Eu iz algo errado? Te machuquei?
— Nã o, você foi incrı́vel. — Espalmo a mã o em seu peito e acaricio
sua pele.
— Entã o nã o entendo. — Ele continua me observando, alheio ao
meu toque.
— Nã o tente entender.
— Você tem algué m.
— Eu já disse que nã o.
— Certo. Posso ao menos saber seu nome?
— Por que isso agora?
— E proibido saber seu nome?
— Nã o, é só que nã o há necessidade.
— Eu acho bem necessá rio saber o nome da garota que gozou na
minha mã o.
— Nã o seja grosseiro.
— Nã o sou grosseiro, sou realista.
— Você sabe muito mais sobre mim do que um nome.
— Entã o por que esse misté rio?
— Porque há verdades que nã o precisam ser ditas.
— Tipo o seu nome?
— O que é um nome se a lor que chamamos de rosa se outro nome
tivesse, ainda teria o mesmo perfume. — Sorrio ao citar Shakespeare na
esperança de parecer engraçada, mas ele nã o sorri. — E Romeu e Julieta
— explico, mas nem mesmo assim ele sorri.
— Eu sei que é , nã o sou tolo — ele diz e me surpreendo. Nã o é assim
tã o comum rapazes como ele se interessarem por Shakespeare. Sei que
parece preconceituoso, mas é a verdade.
Ele se afasta um pouco, suas mã os deixam minhas costas, seu rosto
se afasta, me analisando, como fez ao me ver pela primeira vez.
— Você está se vingando?
— O quê ?
— Aquele cara, aquele que te agarrou, é seu namorado? E isso, você
está me usando para se vingar dele? — Ele parece realmente ofendido.
— Nã o, eu já disse, nã o tenho namorado.
— Entã o por que diabos nã o pode me dizer o seu nome?
— Jú lia — digo rapidamente. — Meu nome é Jú lia.
— Jú lia? Nã o me diga que seu sobrenome é Capuleto.
Ele sorri, claramente magoado enquanto debocha e noto mais um
traço da sua personalidade, ele usa a ironia quando se sente magoado e
eu o magoei quando deixei claro que essa noite termina aqui. Será que
ele é assim mesmo, tão fácil de ler? Quanto tempo levaria até que eu o
conhecesse ao ponto de ler suas emoções sem precisar que ele abra a
boca?
— Infelizmente, nã o sou uma Capuleto. — Forço um sorriso
entrando em sua brincadeira e me odeio por estar mentindo para ele,
nã o quero estragar essa noite má gica com verdades, hoje quero ser sua
Julieta, passional, impulsiva e apaixonada, por nossa conexã o, pela
quı́mica avassaladora que temos, por seus beijos e toques, por sua voz
e, principalmente, por seu sorriso arrogante e debochado.
— Jú lia... — ele testa meu nome falso mais uma vez e imagino a
sensaçã o de ouvir ele me chamar de Stella. — Sou o Nuno — ele diz
mesmo que eu nã o tenha perguntado.
— Nenhum Montecchio?
— Nã o, mas posso arrumar um se você quiser — ele brinca e sinto o
clima icar mais leve.
— Bonito nome, gosto de Nuno.
— Eu també m gosto de Jú lia.
Ele volta a sorrir e me puxa para mais um beijo, que se torna dois,
trê s, quatro... Nos beijamos como dois adolescentes, sem pressa, sem
preocupaçã o, sem medo, apenas duas pessoas se conectando da forma
mais ı́ntima e delicada que existe.
Quando o beijo termina, ele volta a me abraçar, deito a cabeça em
seu peito e ouço seu coraçã o tranquilo. De onde estamos posso ver as
luzes do palco se acendendo, dando im à noite mais louca e intensa da
minha vida.
— Está acabando — ele diz se referindo ao show.
— Sim, está .
Nuno aperta seus braços em torno de mim, me puxando para mais
perto, fecho os olhos e inspiro o seu cheiro mais uma vez, tento gravar o
som do seu coraçã o, a sensaçã o gostosa de estar em seus braços e a
forma como me senti viva ao seu lado.
Era para ser um dia de liberdade. Durante todo o tempo me senti
livre para fazer o que eu bem quisesse e eu iz, entã o por que estou me
sentindo tã o mal?
Ela ainda está aqui, em meus braços, mentindo para mim como se
eu fosse um moleque idiota e talvez eu seja. Talvez seja isso que ela vê
quando olha para mim, o moleque idiota que meu pai sempre disse que
sou. Talvez ela tenha visto em meus olhos o grande perdedor que é
Nuno D’Agostinni e decidiu que nã o vale a pena.
Nem mesmo um nome.
Jú lia... ela poderia ter dito logo Julieta, seria tã o paté tico quanto.
Estou magoado, embora nã o entenda o motivo. A inal de contas, o
que eu esperava? Que ela me desse seu telefone, que eu ligasse para ela no
dia seguinte, que começássemos um relacionamento? Para quê?
Um prisioneiro tem direito a isso? Será que um punhado de horas ao
lado dessa garota foi o su iciente para que eu me esquecesse de que não
sou o dono do meu destino?
Ela aperta os dedos no tecido da minha camisa e deixa um beijo em
meu peito antes de começar a fechá -la. Quero pedir que pare, que nã o
faça isso, que me deixe como estou, mas nã o consigo, ao invé s disso,
mantenho meus olhos em seus dedos pequenos e delicados e na forma
como eles trabalham rapidamente. Relembro como eles envolveram
meu pau e me deram prazer.
Meu coraçã o ainda nã o voltou ao normal e me odeio por saber que
ela está sentindo ele bater forte na palma da sua mã o, quero tocá -la e
saber se o dela també m está . Mas de que adiantaria? Para qual lugar
quero chegar com isso? Desde quando me tornei um idiota carente?
Otário.
Matteo me mataria se me visse agora, aliá s, por culpa dele estou
aqui, me sentindo o maior trouxa do universo por ter levado um fora
depois de fazer uma garota gozar.
— Prontinho. — Ela dá uma batidinha em meu peito e um sorriso
sem graça. Odeio esse sorriso.
— Valeu, mas acho que pre iro você a tirando — brinco, mas sinto
que o nosso momento passou. Ela esfriou, eu me recolhi na minha bolha
de autopreservaçã o, voltamos a ser dois estranhos.
— Engraçadinho.
Olho em volta sem saber como agir, nã o quero parecer um cara
paté tico, ou ao menos nã o mais do que já fui, está claro que acabou
aqui, entã o por que nã o consigo ir embora?
— Acho que está na hora de ir atrá s dos meus amigos — digo
querendo logo dar um basta nesse clima chato.
— Sim, eu també m preciso voltar para os meus.
— Certo.
Me afasto dela e en io as mã os nos bolsos, é estranho que, embora
eu saiba que minha mã o esteve dentro dela, que seu cheiro ainda está
em meus dedos, agora me sinto tã o ı́ntimo dela como de qualquer outra
garota desconhecida dessa merda de lugar.
— Quer o meu nú mero? — pergunto em uma tentativa humilhante
de que isso nã o seja o im.
— E melhor nã o. — Dá mais do sorriso que odeio.
Onde foi parar a garota safada que rebolou nos meus dedos? E minha
dignidade? Sério, Nuno, que você praticamente implorou? Deus... que
papelão.
— Certo. — Passo a mã o no cabelo e olho para a multidã o que
começa a se dispersar.
— Nuno.
— Beleza, eu já entendi, sem contato.
— Eu... — ela ameaça começar a falar, mas desiste. Respira fundo,
olha em volta, e sinto que nã o valho sequer a sua justi icativa.
— Entã o acho melhor a gente ir, vai dar um puta trabalho encontrar
as pessoas nesse caos. — Odeio que minha voz soe irritada quando ela
parece tã o tranquila.
Jú lia, ou seja lá quem seja, olha para trá s de si e balança a cabeça
concordando comigo.
— E, acho que sim.
— Entã o, tchau.
— Tchau, Nuno.
Nã o consigo repetir o seu nome. Sei que ele nã o é de verdade e nã o
quero ser mais paté tico do que já fui.
Ela dá um passo para trá s e coloca o cabelo atrá s da orelha, em
seguida desvia o olhar para o chã o e se vira, caminhando para longe de
mim, ico parado, observando ela ir embora, com seu corpo pequeno e
sensual se afastando de mim até se perder no meio da multidã o, se
tornando apenas uma lembrança. Sei que a chance de encontrar essa
garota novamente é tã o absurda quanto a de dois adolescentes se
apaixonarem perdidamente em uma noite a ponto de preferirem
morrer a icar separados um do outro.
E isso só me deixa ainda mais chateado.
Acordo no sá bado me sentindo pior ainda, tento abrir os olhos, mas
o sol que ultrapassa a ina camada da cortina faz eles doerem e desisto,
puxo o cobertor até minha cabeça e volto a dormir.
Na pró xima vez que acordo, ouço um burburinho de vozes do lado
de fora, é sá bado e meus vizinhos universitá rios parecem felizes e
dispostos a aproveitar o dia, o som está alto demais e minha cabeça dó i
e decido me levantar para comer alguma coisa.
Puxo um moletom da gaveta e en io meus braços nele, me arrasto
pelo apartamento sentindo como se estivesse atravessando os longos e
in initos corredores do palá cio de Versalhes. Quando chego a cozinha,
estou tã o cansada que desisto de comer, procuro um analgé sico para a
minha dor de cabeça, mas me lembro de que tomei o ú ltimo
comprimido no primeiro dia de aula, depois de descobrir que o destino
me odeia.
Vasculho minha caixa de remé dios e sem encontrar nada ú til, tomo
um copo de café de ontem, frio e horroroso, me arrasto de novo para a
cama na esperança de que, se eu dormir mais um pouco, talvez eu
acorde melhor.
Imagens de Suzy chorando, mã es me acusando de ser uma
molestadora de adolescentes, o diretor da escola me pegando aos beijos
com Nuno me fazem ter um sono agitado. Acordo ainda pior, meu corpo
dó i tanto que quase nã o consigo levantar o cobertor, me assusto
quando olho pela janela e noto que está quase anoitecendo.
Meu telefone toca no mesmo instante, é Suzy e sei que se nã o
atender ela vai icar preocupada.
— Pronto — falo esfregando o rosto enquanto me levanto.
— O que está acontecendo? Estou tentando falar com você o dia
inteiro, por acaso o gostosinho tá aí?
— Que horas sã o? — Tiro o telefone do ouvido para ver e me
assusto quando me dou conta de que dormi praticamente o dia inteiro.
— Deus, eu acho que estou com a maior ressaca do mundo.
— Você dormiu? O que diabos tinha nesse vinho?
— Nã o sei, acho que vou na farmá cia comprar um analgé sico, o meu
acabou e minha cabeça está me matando.
— Por favor me dá notícias, estou preocupada.
Desligo o telefone e visto uma legging, pego as chaves do carro e
minha bolsa e me arrasto para fora do apartamento, demoro uma
eternidade para chegar até o carro e mais uma para conseguir achar
uma farmá cia, dou graças a Deus pela vaga em frente a ela estar vazia,
eu nã o faria uma baliza nem se minha vida dependesse dela, o que nã o
está muito longe da verdade.
Quando entro na farmá cia dou de cara com um grupo de garotas
que estã o na sessã o de camisinhas e lubri icantes e parecem animadas
enquanto escolhem, reconheço duas da escola, mas nã o me lembro bem
de que turma elas sã o, nã o me choco, essas garotas devem ter uma vida
sexual bem mais agitada que a minha.
Me debruço no balcã o e aguardo algué m aparecer, sinto quando
uma pessoa para ao meu lado, seus olhos me analisam como se eu fosse
um animal selvagem, talvez minha aparê ncia esteja pior do que eu
imaginava.
— Prontinho, Cindy, aqui está o seu remé dio. — O farmacê utico
estende uma caixa de anticoncepcional para a garota ao meu lado e,
quando me viro para vê -la, sinto meu estô mago vazio embrulhar.
E ela, a garota que está sempre ao lado de Nuno, a mesma que me
disse que ele nã o estava quando iz a chamada na ú ltima aula me
deixando louca de ciú mes e vergonha. Ciú mes, por imaginar o motivo
para ela saber onde ele estava; vergonha, por admitir que tenho ciú mes
de uma garota, mesmo que seja uma das mais lindas que já vi.
Hoje ela está ainda mais bonita com os cabelos soltos e bem
modelados e o corpo magro absurdamente bronzeado em um short que
mal cobre sua bunda.
Onde está todo esse calor?
— Pro, é a senhora? — Madalena, uma das minhas alunas da mesma
turma, me olha com um ar preocupado.
— Sim, acho que sou. — Forço um sorriso engraçado, mas até isso
faz minha cabeça doer.
Droga, o desse lugar precisa estar tão baixo?
— Você está bem? — o homem pergunta e tenho vontade de dar
uma resposta atravessada, mas me contenho.
— Estou com dor de cabeça, preciso de um analgé sico.
O homem me analisa, seus olhos passeando seus olhos por meu
rosto e minhas roupas.
— Você parece febril, já veri icou sua temperatura?
— Eu só estou de re... — Olho para as meninas que continuam do
meu lado me observando, nã o quero falar que estou de ressaca na
frente delas, mas entã o olho para a caixa de anticoncepcional nas mã os
de Cindy e nã o preciso ser um gê nio para saber o motivo dela estar
comprando isso.
Que se dane, eu sou humana, posso nã o transar, ao contrá rio das
minhas alunas, mas ao menos posso dizer que estou bebendo.
— E só uma ressaca terrı́vel.
O cara parece nã o acreditar em mim e estende sua mã o encostando
em minha testa sem meu consentimento.
— Desculpe, mas a senhorita está ardendo em febre.
Febre? Nã o pode ser, eu só estou com frio e dor no corpo e... ah, nã o.
A chuva, a roupa molhada, o porre no chã o do meu apartamento.
Estou com febre, pior, estou gripada.
Cindy discretamente se afasta, como se pudesse pegar, seja lá o que
eu tenha, e se junta a suas amigas do clube do sexo. O homem me
entrega um termô metro e me assusto com a temperatura. Quase 39.
Ele me entrega alguns medicamentos e um pedaço de papel com a
dosagem e horá rios, ele anota o nú mero do seu telefone no papel e me
pede para ligar caso me sinta pior. Provavelmente ele sabe que estou
sozinha nessa merda de cidade.
— Obrigada — digo quando termino de pagar, o homem gentil ainda
me acompanha até o meu carro e me deseja melhoras.
Observo as meninas se juntarem a um grupo ainda maior, carros
que valem mais do que a casa onde nasci estã o estacionados, o som
alto, gargalhadas e vozes. Por um instante invejo esses jovens, a ú nica
preocupaçã o deles é qual a camisinha que vã o usar essa noite.
Volto para casa sentindo meu corpo doer a cada minuto mais, rezo
para que o farmacê utico tenha razã o e que eu ique boa logo, nã o posso
faltar na segunda, tenho duas turmas apresentando trabalhos essa
semana.
Tomo um banho morno e saio do chuveiro tremendo de frio, tomo
os remé dios que ele mandou e caio na cama, exausta demais para
pensar em qualquer coisa que nã o seja dormir, de preferê ncia para
sempre.
Deve ser castigo, só pode, estou sendo castigada por brincar com o
perigo.
O sono vem rapidamente, tã o pesado que adormeço quase que
imediatamente, dessa vez um sono cheio de remé dios, que me permite
descansar melhor.
Acordo algumas horas mais tarde, sobressaltada com um barulho,
primeiro imagino que seja uma briga na rua, depois acho que é um dos
meus vizinhos que deve estar dando uma festa, demoro um instante até
me dar conta de que, na verdade, é o barulho da minha porta.
Tem algué m aqui.
Olho para o celular, há uma mensagem de Suzy, me desejando
melhoras depois que voltei da farmá cia, ela nã o viria até aqui só por
causa de uma gripezinha, entã o só pode ser o farmacê utico.
Será que meu caso é tão grave assim para que ele se disponha a vir
até aqui ver como estou?
Mais uma batida na porta, dessa vez um pouco mais alta e entã o
estremeço quando ouço uma voz:
— Stella, por favor, abra essa porta.
Por um momento imagino ter ouvido algo, nã o pode ser... Deve ser a
febre que está tã o alta que estou delirando.
— Stella, estou icando preocupado — Nuno fala e, pelo som, posso
imaginar ele com o rosto apoiado na porta do outro lado.
Cruzo os braços na frente do corpo enquanto analiso minhas
opçõ es. Se eu nã o responder, ele pode achar que desmaiei e arrombar a
porta, vai ser um escâ ndalo e logo todos vã o estar se perguntando por
que um aluno está na casa da professora em um sá bado à noite. Algo
que nã o vai demorar a acontecer se ele continuar gritando desse jeito
do lado de fora.
Respiro fundo me preparando para abrir a porta e dizer a ele que
estou bem, é simples, ele nã o precisa entrar, basta ver que estou viva e
entã o ele poderá voltar para a sua turma e, quem sabe, ajudar a Cindy a
decidir qual camisinha usar.
— Acho que nunca te vi de tã o mau humor antes — Ivan diz quando
estaciona seu carro na avenida principal, aquela com o nome do meu
avô , onde combinamos de nos encontrar.
Já está lotado e ainda nã o consegui me convencer do porquê estou
aqui. Na verdade, fui praticamente arrastado de casa por Ivan, que se
recusou a me deixar sozinho em um sá bado à noite. Mesmo sabendo do
meu pé ssimo humor.
Ser rejeitado faz isso com as pessoas, acaba com seu humor.
— Nã o enche, eu tô aqui, nã o tô ? — Puxo o maço de cigarro e tiro
um colocando na boca e acendendo.
— Vai por mim, irmã o, estou prezando por sua dignidade.
Se arrependimento matasse, com certeza eu estaria morto.
Ontem quando saı́ da rua de Stella, molhado até os ossos, estava tã o
furioso, humilhado e frustrado que fui direto para a casa de Ivan, aceitei
uma caneca de chocolate quente que sua mã e fez para nó s e acabei
contando tudo para ele. Desde entã o, ele nã o sai do meu lado, dizendo
que está me protegendo de mim mesmo.
— Eu nã o vou atrá s dela — repito pela milioné sima vez.
Ivan olha para mim daquele jeito insuportá vel, a sobrancelha
erguida e aquela porra de cabelo desarrumado caindo na frente do
olho, como quem diz, eu nã o tô nem aı́ para a mentira que você está
dizendo.
Foda-se, eu nã o estou mentindo, nã o mesmo.
— Nó s dois sabemos o que vai acontecer se algué m naquela escola
descobrir que você e a professora tiveram um lance.
Balanço a cabeça sem vontade de voltar nesse assunto, nã o sei por
que Ivan está sendo tã o pé no saco hoje.
— Aliá s, nã o só a escola, a cidade inteira, esse bando de velhos
hipó critas e moralistas seriam capazes de acabar com a carreira dela —
ele completa, como se eu nã o soubesse.
Nã o, Ivan nã o está preocupado de verdade com a carreira da
professora, seu problema sou eu, acho que eu deveria ter me secado
antes de aparecer na porta da sua casa parecendo um cachorro
sarnento chutado, mas, sinceramente, eu nã o estava pensando muito
naquele momento, eu só precisava de algué m que me impedisse de
voltar e falar para Stella o que ela merecia ouvir.
E meu amigo vem fazendo um excelente trabalho.
— Mas que porra, eu já disse que nã o vou mais atrá s dela, caralho!
Abro a porta do carro, mas, antes que eu consiga sair, Ivan segura
me braço me mantendo no lugar. Seus olhos azuis tranquilos me
encaram por baixo da faixa loira de cabelo.
— Eu sei que tô passando dos limites, mas tô realmente preocupado
com você .
— Nã o precisa, já disse.
— Nunca te vi assim por nenhuma garota, eu estou assustado, de
verdade.
— Talvez seja porque ela nã o é como as outras garotas.
Ivan suspira enquanto olhamos para as meninas a nossa frente,
todas lindas, ricas e perfeitas. Felizes demais, com seus sorrisos extra
brancos.
— E claro que é diferente, é a professora, 80% dos caras da escola já
sacaram que ela é diferente.
Nã o gosto do que ele diz e preciso me esforçar para me lembrar de
que ele é meu amigo e nã o meter a porrada no meio dessa sua cara de
playboy rico.
— Vai se foder — digo puxando meu braço, mas ele nã o me solta.
— Se liga, Nuno, é a real, cara, Stella é linda, ningué m aqui é cego,
porra.
— Ela nã o é uma fantasia de punheteiro — defendo-me.
— E o que entã o? O amor da sua vida? Por acaso, você tá
apaixonado por ela?
Abro a boca para dizer que nã o, mas nã o tenho certeza do que dizer,
eu estou apaixonado? Porra, nã o, claro que nã o, eu só estou irritado e
com uma puta dor nas minhas bolas que pretendo resolver hoje
mesmo, assim que conseguir me livrar do pé no saco do meu amigo.
— Ah, nã o, puta merda, Nuno, como você foi se meter nessa?
Penso na forma como Stella me beijou ontem, em como ela parecia
quase em sofrimento por estar me tocando, como sua boca hesitou
antes de se colar na minha, como meu corpo reagiu a esse ato tã o
simples, um beijo e tudo em mim se acendeu, como a porcaria da pira
olı́mpica, para depois ser rejeitado como se eu fosse um moleque
chorã o implorando por uma migalha.
Sim, meu amigo tem razã o, eu nunca tive nada parecido com
ningué m.
— Eu nã o sei do que você tá falando.
Desço do carro e respiro fundo enquanto jogo o cigarro no chã o, a
noite mal começou e já me sinto exausto. Cindy parece ter um sensor
que avisa nossa presença porque ela já acena para mim.
— Merda, lá vem ela! — resmungo.
— Toma cuidado com o que você vai fazer, a garota tem
sentimentos. — Ivan aparece ao meu lado e tô começando a icar
realmente irritado com ele.
— Até parece, Cindy só tem sentimentos por sua bolsa, no má ximo o
armá rio de sapatos.
Ivan começa a rir, ele melhor do que ningué m aqui, sabe que é
verdade. Nossa amiga gosta de “brincar” com seus brinquedinhos e
todo cara com um pau no meio das pernas aqui nessa cidade, daria um
braço para ser o brinquedinho dela ao menos por uma noite.
Nos aproximamos da turma e posso sentir a empolgaçã o para a
noite, grupos começam a se separar, uns vã o comprar bebida, outros
comida, alguns começam a conversar sobre carros, as meninas estã o
falando sobre roupas, todas essas conversas idiotas me irritam. Estou
agitado, mas de um jeito ruim. Ivan tem razã o, nem eu mesmo estou
conseguindo me suportar até que um assunto chama minha atençã o.
— A professora parecia que estava morrendo — Madalena, uma
garota tı́mida e gentil da nossa sala, está falando. — Tadinha, eu iquei
morrendo de dó .
— E ela mora sozinha, deve ser horrı́vel nã o ter ningué m nessas
horas — fala outra garota que nã o sei o nome.
— Ela é nova na escola, nã o conhece nada por aqui.
— Precisa ver como ela estava. Nã o sei como algué m pode ter
coragem de sair de casa daquele jeito, podia ao menos ter passado uma
escova no cabelo, pelo amor de Deus, ela é professora, né , gente —
Cindy fala se metendo na conversa.
— De quem você s estã o falando? — pergunto olhando para
Madalena.
— A professora Stella, a gente a viu hoje mais cedo lá na farmá cia, a
coitadinha estava ardendo de febre, o Glauco quase se ofereceu para
levar ela pra casa.
Sinto meu coraçã o disparar com a imagem de Stella doente sozinha
naquele apartamento do tamanho de uma caixa de fó sforos. Me recordo
da chuva de ontem e me pergunto se foi por isso que ela adoeceu.
— E ela disse se estava sozinha? — pergunto ignorando o palavrã o
que Ivan resmunga baixinho ao meu lado. Que se foda!
— Quem se importa? Isso nã o é problema nosso — Cindy fala com
tanta naturalidade que todas as suas amigas olham para ela com
reprovaçã o. — O quê , gente? Nã o é mesmo, ela está doente e daı́?
Pessoas icam doentes todos os dias.
— Eu iquei com dó , deve ser muito ruim estar em um lugar
estranho, sozinha e ainda icar doente — Madalena diz e minha
admiraçã o por ela só aumenta. Eu nunca entendi por que ela é amiga da
Cindy, ela é tã o tranquila e tı́mida, que quase desaparece ao lado do
furacã o que é nossa amiga. Talvez seja isso, Maddie só quer passar pela
adolescê ncia o mais invisı́vel possı́vel.
— Quando foi isso? — pergunto mais uma vez.
— Umas duas horas atrá s, está vamos na farmá cia comprando...
umas coisinhas para a noite de hoje — Cindy diz de forma maliciosa e a
garota sem nome ao seu lado sorri. A minha irritaçã o só aumenta.
Os grupos começam a se formar contando quantos cabem em cada
carro e quem vai com quem, os porta-malas lotados de bebida, comida e
todas as merdas necessá rias para a noite, a euforia que emana deles
nã o combina em nada com o meu humor.
— Vamos indo. — Ivan puxa as chaves do bolso e dá um passo em
direçã o ao seu carro. Olho para Madalena vendo uma imagem se formar
em minha mente.
— Maddie, o que você acha de dar um pulo na casa dela, só pra ver
como ela está ? — me dirijo a garota ignorando o olhar de Cindy.
— Você tá de brincadeira, né ? — Ivan pergunta, mas ignoro meu
amigo també m, com meus olhos estã o ixos no rosto da garota a minha
frente. Vejo seus olhos bondosos brilharem com a ideia de ajudar
algué m tã o invisı́vel quanto ela.
— Mas eu nã o sei onde ela mora.
— Eu sei — diz Levi, que se aproximou para ouvir a conversa. —
Meu irmã o tá saindo com uma garota que mora no mesmo pré dio onde
ela mora, ele sempre vê a professora por lá .
— Ah, caralho... — meu amigo resmunga e sigo ignorando-o.
— Otimo, entã o você també m pode vir com a gente — digo porque
assim nã o precisarei explicar como sei onde a professora mora, e
porque sei que Levi sempre foi apaixonado por Maddie e essa é uma
oportunidade para ele se aproximar dela.
Sim, sou um canalha, estou usando meus amigos para me aproximar
de Stella, mas nã o ligo, que se foda, sou um cara com o ego ferido e o
coraçã o machucado, mereço um desconto.
Levi olha para Maddie e ergue os ombros, beleza, pela forma como
ele olha para ela, ele vai aonde ela for.
— Podemos parar no mercado e comprar algumas coisas pra ela
comer — Maddie sugere mais animada em ir ver a professora do que se
estivé ssemos indo para a festa.
Ivan olha para ela como se ela tivesse sugerido comprar drogas.
— Eu gostei dela — ela completa como se precisasse se justi icar
quando Cindy a fuzila com o olhar.
— Beleza, entã o vamos logo.
— Ei, como assim? Você s nã o vã o mais? — Cindy pergunta.
— A gente encontra você s lá — respondo para um dos caras,
ignorando o olhar irritado que Cindy me dá .
— Que maravilha, lá vamos nó s! — Ivan resmunga quando nos
dirigimos para o carro com Maddie e Levi atrá s de nó s.
— Cale a boca, você me deve essa.
— Devo? De quando?
— Da vida, agora vamos logo.
Nuno ergue o olhar da folha, ele parece tã o triste enquanto olha
para a sala silenciosa, que parece nã o entender o que signi ica aquelas
palavras sendo ditas pelos lá bios do garoto mais engraçado e
brincalhã o. Os segundos se arrastam até que ele sorri, um sorriso
debochado e provocante.
Ele vai até minha mesa e deixa a folha de papel amassada em cima
das outras e, antes de voltar a seu lugar, ele olha para mim mais uma
vez. O vazio agora cheio de arrogâ ncia e raiva parecem prestes a me
sufocar.
Entã o eu desvio o olhar.
Já passa das sete e meia da noite e ainda nã o consegui parar sequer
para beber um copo de á gua, estou inalizando as notas que precisam
estar no sistema ainda hoje e quase choro de emoçã o quando
inalmente termino a ú ltima turma.
A folha amassada do garoto que domina meus pensamentos ainda
está ao meu lado, meus dedos tocaram aquelas letras inú meras vezes
enquanto me torturei relembrando da sua narrativa.
Hipocrisia...
Sim, eu sei exatamente o que ele quis dizer com esse poema.
Talvez por isso eu ainda esteja aqui, escondida da realidade, com a
cara no trabalho, tentando me impedir de pensar nele.
Hipocrisia...
Levanto sentindo as pernas formigarem por tanto tempo sentada,
saio da sala de professores em busca de uma má quina de café que
esteja funcionando, a escola está quase vazia e parece tã o maior agora
que toda a cacofonia causada pelos alunos se foi. Pouco a pouco começo
a me sentir mais à vontade dentro dessa fortaleza. Tetos altos e paredes
de pedra já nã o me assustam mais e até mesmo a presença constante
do poder e do dinheiro das famı́lias de Monte Mancante começam a se
tornar quase normal.
Depois de trê s tentativas frustradas de conseguir um café vou até o
banheiro que ica no inal do corredor, nesse momento só o som dos
meus saltos no piso ecoa em meus ouvidos.
Abro a porta e entro, ligo a luz, vou até a pia e abro a torneira
enchendo as mã os com á gua, jogando-a no meu rosto para me refrescar.
Ainda nã o me acostumei com o calor que faz aqui nessa cidade e hoje,
em particular, está um dia abafado demais para o outono, mas de
acordo com todos, mais alguns dias e a temperatura vai começar a
despencar. Assim espero, é difı́cil escolher roupas leves e que nã o
“revelem demais” para usar com as temperaturas na casa dos 38 graus.
Olho para o meu re lexo no espelho, profundas olheiras marcam
meus olhos cansados; meus ombros, que parecem carregar o mundo,
estã o caı́dos, exaustos. Devo ter perdido peso porque a saia está mais
folgada no quadril, meus cabelos estã o soltando do coque que iz hoje
cedo ao sair de casa e me dou conta de que essa é a primeira vez que
me olho desde entã o. Está explicado a forma como o funcioná rio da
limpeza olhou para mim antes que eu entrasse no banheiro, nã o sou a
melhor visã o para um im de turno.
Se Suzy pudesse me ver agora teria uma sı́ncope.
Jogo mais um pouco de á gua no rosto e no pescoço, sentindo o alı́vio
refrescante em minha pele, fecho a torneira e puxo um papel para secar
minhas mã os quando ouço um barulho e me viro olhando para todos os
lados.
— Tem algué m aı́? — pergunto para o banheiro supostamente vazio.
Nã o sou uma pessoa medrosa e nem acredito em baboseiras sobre
fantasmas, mas é natural sentir o coraçã o acelerar ao me dar conta de
que estou sozinha em um edifı́cio com quase 100 anos de idade.
— Tem algué m aı́? — chamo mais uma vez enquanto me obrigo a
caminhar até as cabines empurrando as portas, talvez alguma aluna
engraçadinha esteja tentando me assustar, ou pior, algué m pode estar
precisando de ajuda.
A segunda opçã o começa a se tornar mais pró xima da verdade
quando ouço um som, é um choramingo baixo, como se algué m
estivesse tentando nã o fazer barulho. Entã o meu coraçã o, que a essa
altura está começando a decidir que, talvez, eu deva dar mais atençã o
as histó rias que ouço, acelera quando me dou conta de que o som que
ouço nã o é um choramingo.
Coloco a mã o na boca, chocada com o que estou ouvindo, na ú ltima
cabine do corredor, há duas pessoas e, pelos sons que começam a icar
mais nı́tidos, nã o estã o chorando.
Deus do cé u...
Há duas pessoas transando no banheiro da escola e eu nã o faço
ideia de quem seja. E se for dois professores? E se forem duas
professoras? Há boatos de que a professora de nataçã o e a de mú sica
tê m icado até mais tarde, mas sexo no banheiro? Sé rio?
Me afasto, envergonhada por estar presente em uma cena tã o
ı́ntima, estou preparada para ir embora e apagar isso da minha mente,
nã o quero nem pensar na pró xima vez em que as ver juntas na sala de
reuniõ es.
Mas entã o ouço um som, um gemido, um pouco mais alto dessa vez,
que me faz pensar que talvez nã o sejam duas mulheres, olho
novamente para a porta, com uma sensaçã o ruim na boca do meu
estô mago enquanto tento nã o pensar no motivo para que eu sinta que
conheço esse som, já o ouvi antes, em meu ouvido, em um beco escuro
em uma noite sem nomes.
Começo a me afastar da cabine, como se soubesse que ali dentro há
um monstro, os fantasmas de que tanto se falam, algo terrı́vel capaz de
me assombrar para o resto da minha vida.
Talvez sejam esses os mais assustadores fantasmas.
Tropeço em uma lixeira, ouço risos vindos da cabine e minha
garganta se fecha com constrangimento. Preciso sair daqui, nã o quero
que ele me veja, mas, antes que eu possa sequer me afastar da
montanha de papel sujo que se espalhou pelo chã o, a porta da cabine se
abre e Cindy sai de dentro, arrumando a microssaia.
— Oi, pro, fazendo hora extra? — Ela ergue os cabelos no topo da
cabeça formando um coque enquanto olha para mim sem nem um
pingo de vergonha por ter sido lagrada.
— O que você está fazendo aqui a essa hora? — Cruzo os braços na
frente do peito em uma postura que espero que seja vista como adulta e
autoritá ria, mas que, na verdade, é apenas uma forma de nã o
demonstrar como me sinto.
— Foi mal, pro. Achei que já tinham ido embora — Cindy responde,
com a voz cheia de deboche enquanto passa por mim.
— Amanhã a gente conversa sobre isso, agora eu quero que você vá
direto para sua casa, vou saber se nã o for.
Cindy revira os olhos e sorri, sabendo que nã o tenho autoridade
alguma sobre ela e sai, o barulho da porta sendo fechada ecoa no
corredor silencioso, entã o olho para a cabine e por um instante penso
que talvez eu tenha me enganado, ela poderia estar sozinha, fazendo
sabe lá o quê .
Mas meus pensamentos nã o duram muito, porque a porta se abre e
entã o eu o vejo.
— O que você pensa que está fazendo? — pergunto, a raiva que
sinto manté m minha voz forte e inabalada enquanto encaro o garoto
arrogante que um dia me fez acreditar que algo de bom poderia
acontecer entre nó s.
Nuno sorri, um sorriso torto, sexy e bonito demais para algué m que
nesse momento odeio, ele passa a mã o nos cabelos tentando controlar a
desordem que provavelmente minha aluna fez poucos minutos atrá s
neles.
Ele se aproxima de mim, com seus olhos ixos nos meus enquanto
caminha lentamente em minha direçã o, e, sem que eu possa evitar, meu
corpo se empertiga em antecipaçã o.
Tento nã o notar que sua camisa está um pouco aberta e que ele tem
um vergã o no pescoço, mas é como nã o notar a chegada de um meteoro,
aquecendo e destruindo tudo a sua volta.
Nuno chega bem perto, sua altura me faz erguer o rosto quando ele
para na minha frente, abro a boca para repreendê -lo, mas nã o consigo
falar quando noto que ele está se inclinando sobre mim, seu rosto se
aproximando do meu, pouco a pouco, roubando todo o ar a nossa volta,
deixando-me zonza e sem reaçã o.
— Sexo — ele responde, de um jeito que faz com que eu me pareça
com uma garotinha inexperiente e nã o a professora que deveria ser.
— O quê ? — Minha voz sai como um sussurro fraco e humilhante
dos meus lá bios.
— Você perguntou o que eu estava fazendo. — Ele se inclina um
pouco mais e me afasto apoiando meu corpo contra a parede atrá s de
mim, Nuno alcança a lixeira ao meu lado e joga a camisinha usada fora,
em seguida ele abre a torneira e lava as mã os, o tempo todo
sustentando o meu olhar e um sorriso arrogante nã o sai dos seus lá bios
vermelhos e inchados.
Ele estende a mã o e puxa um papel, seca grosseiramente as mã os e
arremessa a bola, que cai graciosamente na lixeira ao meu lado.
— Boa noite, professora. — Ele pisca para mim enquanto sai e só
quando a porta se fecha deixando-me sozinha aqui dentro é que
percebo que eu nã o estava respirando.
Estou terminando de guardar minhas coisas quando ouço a porta se
fechar bruscamente me fazendo dar um pulo.
— O que... — começo a falar, mas paro no meio da frase. Um Nuno
furioso caminha a passos largos pela sala vazia até parar na minha
frente.
— O que diabos tem na porra da sua cabeça? — ele esbraveja.
— Em primeiro lugar, controle o seu tom ao falar comigo — digo,
erguendo o rosto para olhar para ele.
— Foda-se o meu tom, você nã o tinha o direito de fazer isso.
— Se você nã o for mais claro, nã o poderei ajudá -lo, tenho cento e
vinte e trê s alunos nessa escola, caso você nã o saiba.
— A Cindy nã o tem nada a ver com isso. Se queria se vingar, que
fosse comigo, nã o com ela.
— A Cindy? Por acaso está se referindo ao sexo na cabine do
banheiro da escola? — Cruzo meus braços na frente do peito em uma
postura imponente. — Porque se for, tenho certeza de que ela tem sim
muito a ver com isso.
— Você arrumou um problema para ela.
— Eu nã o, você arrumou. — Aponto o dedo em seu peito sentindo o
sangue começar a ferver em minhas veias com a forma como ele está
tã o irritado por eu ter denunciado eles. O que ele esperava de mim? Que
eu fosse conivente com isso?
— Nã o seja cı́nica, Stella.
— Cı́nica? Sé rio? Você acha mesmo que pode entrar aqui e falar
comigo nesse tom porque ouviu umas verdades na sala do diretor?
Fique feliz por ter sido encontrado por mim, se fosse outro professor
seus pais teriam sidos chamados ontem mesmo. Agora, com licença que
nã o tenho tempo para icar aqui discutindo com alunos.
Recolho minhas coisas e começo a me afastar em direçã o a porta.
— Você quer me enlouquecer? — ele pergunta, ainda irritado, o tom
de voz perigosamente alto.
Nã o respondo, continuo andando, rezando para que ningué m possa
ouvir essa conversa totalmente descabida entre uma professora e seu
aluno.
— E isso, nã o é , você está brincando comigo, me dando migalhas,
me tocando, dizendo que pensa em mim, para depois me dizer que
nada vai mudar e me chutar igual a um cachorro.
— A ú nica coisa que eu quero de você , Nuno Castro D’Agostinni, é o
trabalho que pedi na minha mesa na data certa, só isso. — As palavras
duras queimam minha garganta.
— O que você pensa que eu sou? — Sua pergunta carrega uma dose
de má goa que tento ignorar.
Seja forte, Stella, seja forte.
— Nã o importa o que eu penso ou nã o. — Viro-me para olhar em
seu rosto desolado e sei que é uma pé ssima ideia dar continuidade a
essa conversa, eu deveria apenas sair e deixar ele achar o que quiser a
meu respeito, mas nã o consigo. Droga, eu nã o consigo e isso é horrı́vel.
— Isso nã o tem nada a ver com o que aconteceu entre a gente, eu sou
sua professora e é o meu dever...
— Para o inferno o seu dever, para com isso, Stella. — Ele para bem
na minha frente, me encarando com raiva, dor, tristeza. — Para de
ingir, porra. Você nem ao menos consegue responder a minha
pergunta. — Ele segura meus braços, tocando minha pele, me fazendo
olhar dentro dos seus enormes e tristes olhos verdes.
— Nuno, se afaste! — exijo sem desviar o olhar e ele me solta
imediatamente, passando os longos dedos pelas mechas desordenadas
do seu cabelo.
— Você quer me enlouquecer, é isso.
— Eu apenas iz o que era meu dever como adulta e como sua
professora.
— Para de brincar que nã o se importa, porque eu sei que se
importa, por mais que tente lutar contra essa merda toda, eu sei, eu vi.
— Nuno... — peço, mas minha voz começa a falhar quando ele se
aproxima.
— Eu vi a forma como você olhou para mim ontem. — Caminho
para trá s, deixando uma distâ ncia maior entre nó s, mesmo sabendo que
se algué m entrar aqui, nã o vai importar se ele está na minha frente ou
do outro lado da sala, a tensã o que emana dessa conversa nã o condiz
com nossas posiçõ es. — Eu vi, Stella.
— Você está enganado — digo, mas nem mesmo eu consigo
acreditar nas minhas palavras, elas parecem fracas demais.
A verdade é que ele tem razã o, eu me importo, nã o deveria, mas me
importo, e isso está me matando. Mal dormi essa noite, enquanto me
torturei com imagens, sons, suposiçõ es, pesadelos... uma agonia sem
im me impediu de fechar os olhos. E, quando tentava, era o rosto
satisfeito dele que surgia em minha mente, o gemido rouco que ele
produziu enquanto transava com aquela garota. A forma como ele
sorriu ao passar por mim, como se estivesse satisfeito em me machucar.
E me machucou tanto, que perdi a cabeça.
E quando entrei na sala do diretor hoje pela manhã , mais cedo que o
comum, nã o tive orgulho algum ao descrever a cena que presenciei na
noite anterior, e quando saı́, ciente das puniçõ es que eles levariam, meu
coraçã o ainda nã o batia satisfeito, porque, no fundo, ele tem razã o, eu
me importo. Tanto que, nesse momento, estou envergonhada, mesmo
sabendo que o que eu iz foi o certo, porque eu sei que estava me
vingando do garoto que mandei embora da minha vida, que disse com
todas as letras que nã o o queria. Eu me vinguei e, quando vejo a agonia
em seus olhos, nã o me sinto orgulhosa disso.
— Entã o olhe para mim, Stella. — Ele se aproxima ainda mais, tã o
perto que ica difı́cil respirar com seu aroma de garoto arrogante a
minha volta. — Olhe para mim e diga que você nã o icou louca de
ciú mes.
Rio, um riso engasgado, nervoso e cheio de ira.
— Você é mesmo muito convencido, garoto.
— Sou realista, eu sei o que estou falando — ele diz, mas sua voz
nã o parece a de algué m que acredita nisso.
— Lamento ferir o seu enorme ego adolescente, mas está enganado.
O sorriso torto e arrogante se espalha por seu rosto, odeio esse
sorriso, odeio a forma como ele me envolve, me fazendo enfraquecer
nas minhas escolhas.
— Entã o olha nos meus olhos, Stella. — Ele se inclina um pouco
mais. — Me diz que nã o passou a noite inteira se imaginando naquela
cabine com o adolescente aqui, gemendo meu nome enquanto eu metia
fundo em você . — As ú ltimas palavras sã o sussurradas em meu ouvido
e meu corpo traidor reage de uma forma quase humilhante.
— Afaste-se de mim agora. — Uso toda a minha autoridade e
minhas forças para falar, porque nã o sou mais capaz de me manter tã o
perto dele.
— Admita e eu me afasto — ele provoca.
Espalmo minha mã o em seu peito, aumentando a distâ ncia entre
nó s, Nuno desce o olhar para a minha mã o, como se eu estivesse
fazendo algo errado e, pela forma como ele sorri, está satisfeito com o
que vê . Tento tirá -la, mas ele a segura no lugar, com sua mã o quente e
forte.
— Quer saber a verdade, Stella? — ele diz enquanto seu polegar
acaricia as costas da minha mã o. — Eu passei a noite inteira sonhando
com você , a porra da noite inteira.
Puxo minha mã o para longe, sentindo as suas palavras me
desestabilizarem.
— A Cindy sabe disso?
— A Cindy nã o tem nada a ver com isso. Nosso lance é apenas sexo.
— O nosso lance? Uau! Agora está tudo explicado — ironizo e me
afasto, mas ele entra na minha frente novamente. — Eu preciso ir, nossa
conversa acabou.
— Eu nã o sou um canalha, Stella, eu jamais magoaria uma garota.
— Nossa, que bom saber, nã o foi o que pareceu ontem, nem o que
está parecendo agora.
— Eu nã o sabia que você ainda estava aqui.
— Eu trabalho aqui, as chances de que eu os visse eram grandes.
— Eu nã o sabia, juro pelo meu irmã o. Eu jamais faria algo para te
magoar.
— Nã o me magoou — minto ignorando o fato dele ter citado o
irmã o morto.
— Claro, a inal de contas, sou só um moleque para você .
— Você é o meu aluno, assim como a Cindy.
— Por que você torna tudo tã o difı́cil?
— Porque algué m tem que ser o adulto consciente aqui.
— No caso é você ?
— Claro que sou eu — rea irmo.
— Certo. — Ele dá alguns passos para trá s e passa a mã o na nuca
antes de voltar a falar: — Eu tô cansado desse joguinho, de me rastejar
aos seus pé s igual a um cachorro, de ser rejeitado e, mesmo assim,
passar todas as noites de pau duro pensando em você . Eu devo ter
algum problema, só pode. — Ele ri enquanto encara o teto, parecendo
cansado, envergonhado.
— Nã o, Nuno, você nã o tem problema algum, isso se chama
frustraçã o, vai passar. A Cindy vai te ajudar.
Dou alguns passos e coloco a mã o na maçaneta, estou prestes a girá -
la, quando sinto meu corpo ser pressionado, o corpo grande dele atrá s
do meu, sua respiraçã o em meu ouvido, sua mã o irme em minha
cintura.
— E esse o nome que você dá ao que fez na noite passada pensando
em mim, Stellinha. — Seus dedos passeiam por minha costela, a
excitaçã o diminui minha capacidade de pensar, de respirar. — Entã o
estamos os dois frustrados, mas só você pode resolver isso.
Ouço o barulho das pessoas caminhando pelo lado de fora do
corredor e do meu coraçã o explodindo no meu peito. Fecho os olhos,
buscando em algum lugar dentro de mim, coragem para afastá -lo,
quando tudo o que eu quero é me virar e gritar que odiei vê -lo com
aquela garota, que imaginar outra pessoa tocando-o dó i tanto que mal
consigo respirar e depois beijá -lo, até que seus lá bios se fechem para
qualquer outra mulher.
— Me peça, Stella, e eu nunca mais toco em uma garota, só pedir e
eu sou inteirinho seu — ele sussurra em meu ouvido como se pudesse
ouvir meus pensamentos e meu coraçã o grita para que eu peça. — Uma
ú nica palavra e sou seu.
Seus dedos se aproximam da lateral do meu seio, mas nã o me tocam
e, antes que eu possa sequer pensar em algo, a maçaneta se move, como
um lembrete de que o que estamos fazendo é errado, imoral, sujo. E o
su iciente para que eu volte a razã o.
— Melhor você se apressar, ou vai perder a pró xima aula — digo me
afastando dele. — Tenha um bom dia, Nuno, a gente se vê na semana
que vem. — Abro a porta e esbarro em uma aluna do primeiro ano, ela
sorri e peço desculpas, ainda estou completamente desorientada
enquanto caminho em direçã o a pró xima aula, desejando de verdade
poder sair dessa escola, dessa cidade. Dessa frustraçã o insuportá vel
que é desejar algué m que nã o posso ter.
Mais uma semana inteira se passa, mais uma semana sem ver Stella,
sem ouvir sua voz, sem observar a forma como ela se move diante dos
seus alunos, como uma bruxa seduzindo a todos com sua voz, com seu
amor pelos livros, com seu sorriso lindo e sua beleza estonteante. Uma
semana em que preferi ir ao inferno, em que suportei trabalhar com
meu pai do que ceder à s minhas fraquezas, em que lutei contra mim
mesmo para nã o mandar uma mensagem ou perguntar se estava tudo
bem com ela.
Eu sei que está .
Graças a Maddie, que teve piedade da minha situaçã o e me manté m
informado, todos os dias, mesmo que eu nã o pergunte. Ela apenas me
liga, ou manda mensagem para saber como estou, entã o começa a falar
sem parar até que entã o, como quem nã o quer nada, me conta algo
sobre ela.
Maddie e Stella tê m se tornado pró ximas, mesmo contra todas as
probabilidades, aluna e professora, amigas, mas essa é a Madalena, a
garota sensı́vel que parece enxergar a alma das pessoas.
Quando entro na sala, uma semana depois, a aula já começou, Stella
está de pé , lendo um trecho do livro que estamos trabalhando, paro na
porta e ouço sua voz, é como respirar depois de muito tempo imerso na
á gua, sinto meu corpo inteiro reagir a ela, a sua beleza, a sua gentileza,
a seu sorriso.
— Bom dia, Nuno, seja bem-vindo de volta — ela diz quando nota
que ainda estou na porta, ingindo ser a professora e nã o a responsá vel
por me fazer perder a cabeça. Nenhum pedido de desculpas por ter me
mandado embora mais uma vez, nem um “senti sua falta”, nem mesmo
um olhar de caridade.
Nada.
— Obrigado — me obrigo a dizer.
— Pode entrar. — Ela estende a mã o para a sala e faço o que ela
manda, caminho para o mesmo lugar de sempre, olho para a mesa ao
lado onde Enzo nã o está mais, o desgraçado recebeu uma bolsa de
estudos má gica e a partir do semestre que vem vai para Boston.
Vá com Deus.
Mesmo sabendo que ele nunca mais vai chegar perto dela, sinto uma
agitaçã o ruim ao relembrar aquele dia.
— Entã o vamos abrir no capı́tulo 12. Ana, pode ler até a pá gina 85,
por favor? Em quinze minutos, vamos debater ele.
Sento-me no meu lugar de sempre, mas sinto como se a cadeira já
nã o comportasse mais o meu peso, talvez seja porque nã o sou mais o
mesmo garoto de antes, algo mudou dentro de mim, algo que nã o
consigo controlar.
Ergo meus olhos para a frente da sala, Stella está olhando para mim,
mas desvia assim que nota que notei. Uma semana, muito sexo sem
emoçã o, mau humor, irritaçã o e raiva depois, continuo o mesmo.
Droga, quem eu quero enganar? Nem todo o sexo do mundo, nem
todo o trabalho, nem todo o mau humor será capaz de mudar o que
sinto quando estou na presença dela. E ú nico, inalcançá vel, imutá vel.
Talvez Cindy tenha razã o.
Essa porra que comprime meu peito nã o é normal.
Eu tô mesmo muito fodido.
Uma semana e mesmo assim bastou sentir seus olhos sobre mim
que tudo voltou.
A agitaçã o em meu estô mago, o nervosismo, a palpitaçã o. A certeza
depois do que aconteceu com Enzo, de que eu precisava me manter
longe.
Tudo foi por á gua abaixo no instante em que ele apareceu na porta,
me observando com seus olhos de predador, a mochila no ombro, os
cabelos bagunçados de sempre, tã o bonito que é quase impossı́vel nã o
olhar para ele.
E tã o cruel, algué m proibido nã o deveria ser tã o desejá vel.
Passo a aula inteira evitando seu olhar, sei que estou
completamente fora do normal e imagino se todos conseguem sentir a
diferença, Maddie tem um sorriso româ ntico nos lá bios durante toda a
aula, lembranças das nossas conversas na biblioteca no horá rio do
almoço, dela me dizendo que eu nã o posso desistir dele e que Nuno é
um bom garoto me fazem desejar olhar para ele, mas a todo momento
digo a mim mesma que aqui sou sua professora.
Quando a aula inalmente termina sinto o alı́vio me invadir. A sala é
preenchida com o som das cadeiras sendo arrastadas e dos alunos
começando a encher o corredor. Olho para o fundo da sala, Cindy está
sorrindo de algo que Ivan diz e sinto uma pontada de algo que me
recuso a acreditar que seja ciú me. Quando noto suas mã os sobre o
braço de Nuno, desvio o olhar porque nã o posso sequer pensar nisso,
nã o tenho esse direito.
Eles se levantam, sua mã o toca a cintura dela. Quando ela esbarra
em uma mesa, meus olhos masoquistas acompanham a forma como a
ponta dos dedos dele se encaixam em um pedacinho de pele que está à
mostra. Finjo estar arrumando minhas coisas, mas noto quando eles
começam a deixar a sala, um por um, passando por mim e se
despedindo.
— Nuno, você pode esperar um instante por favor? — pergunto e os
trê s olham para mim como se eu tivesse dito que queria fazer sexo com
ele.
Deus, será que sou tão óbvia assim?
— Precisamos falar sobre as aulas que você perdeu — completo
para que nã o sobre nenhuma dú vida, nem para eles, nem para mim.
— Claro — ele responde, com seus olhos ixos em mim, a lı́ngua
passeando por seis lá bios enquanto aguarda seus amigos seguirem seus
caminhos até a pró xima aula.
— Tchau, pro — Maddie diz erguendo a mã o no ar sorrindo, Cindy
morde o lá bio inferior enquanto analisa o seu... sabe lá Deus o que eles
sã o e sinto minhas bochechas arderem com a ideia de que ela esteja
pensando algo errado.
Baixo o olhar para a minha mesa, ignoro o coraçã o acelerado com a
expectativa de estar a só s com ele, até que ouço o som da porta sendo
fechada. O clic alto de algo errado ecoa pelas paredes e fazem os pelos
do meu corpo se arrepiarem.
Entã o é essa a sensaçã o que as pessoas sentem quando estã o em
perigo? E essa a adrenalina que faz com que encarem situaçõ es
adversas com um sorriso?
Acho que inalmente os compreendo.
Nã o preciso erguer o rosto para saber que estamos inalmente
sozinhos, sinto o seu olhar sobre mim, quente, lento, sedutor, um olhar
que me dominou desde a primeira vez que me viu, que tem o poder de
me hipnotizar, de me fazer esquecer o certo e o errado, um olhar que
ainda será a minha perdiçã o.
— Prontinho, agora sou todo seu — ele diz, com a voz provocante
do garoto que parece saber como me desestabilizar e sinto um frio em
minha espinha com a forma como as palavras tê m um tom sensual.
Ergo os olhos em sua direçã o, ele ainda está na porta, com a mã o na
maçaneta, a mochila nas costas, uma camisa leve e um jeans de
caimento perfeito que fazem ele parecer maior.
— Você está bem? — pergunto ansiosa por saber que estamos
trancados nessa sala, mesmo que isso seja algo comum, acontece o
tempo todo. Todos os dias professores conversam com seus alunos,
perguntam sobre suas vidas, se preocupam.
E totalmente aceitá vel. Normal.
— Por que, sentiu minha falta, professora? — Ele dá aquele sorriso
torto provocante e sinto que foi uma pé ssima ideia, nã o temos
condiçõ es de ter uma conversa civilizada.
— Nã o, só gostaria de saber o motivo para tantas faltas.
— Mas você sabe, sexo no banheiro, lembra?
— A Cindy voltou há trê s dias.
— Eu nã o sou a Cindy.
— E eu nã o serei condescendente com isso.
— Stella, Stella, está preocupada comigo? — Ele joga a mochila ao
lado da porta, como uma barreira entre nó s e o resto do mundo e
começa a caminhar, bem devagarinho. — Meu celular continua o
mesmo, sabia? — Ele cruza as mã os em frente ao peito, com a
arrogâ ncia tã o peculiar em seu rosto. — Se queria tanto saber onde eu
estava, era só ligar.
— Nã o seja ridı́culo, estou tentando ser pro issional. — Encaro os
papé is ainda espalhados em minha mesa.
— Está ? Tem certeza, Stella?
— Já disse que você precisa esquecer aquilo.
— Sim, tô ligado, até porque você pode se masturbar pensando no
moleque aqui, mas nã o pode me ligar para saber como estou porque é
contra as regras, nã o é mesmo, professora?
A força das suas palavras e a forma como elas soam frias e cheias de
má goa me deixa sem ar.
— Achei que já havı́amos passado dessa fase, Nuno — digo sentindo
o coraçã o batendo em meus ouvidos.
— Passamos? Nã o sei, você nunca decide o que quer, uma hora tá
me tocando, como se precisasse de mim; na outra, tá me escorraçando
como se eu fosse um idiota qualquer. Me diz para superar e depois pede
para eu icar aqui nessa sala com você , sozinhos. Você quer me fazer
perder a cabeça, é isso, nã o é ? Você se diverte com a minha agonia.
— Isso nã o é verdade, você nã o sabe como estou me sentindo.
— E, eu realmente nã o sei, quer me contar?
— Nã o.
— Deixa eu adivinhar, você nã o pode.
— Notei hoje como você e a Cindy estavam mais... pró ximos —
desvio o assunto como a boa covarde que sou entrando em seu
joguinho sujo, jogando em sua cara que ele nã o está em agonia como ele
disse.
— E, ela tem sido uma boa amiga, temos trepado bastante.
— Muito maduro seu comentá rio.
— Vamos combinar, nada que eu disse vai mudar sua mentalidade.
— Nã o, nã o vai, mas estou feliz em saber que você s estã o bem —
minto descaradamente, nesse momento estou me sentindo uma idiota
louca de raiva por ele nã o desmentir minhas suspeitas.
— Bom, eu també m. Ao menos algué m aqui está tentando superar
a... como é que você chamou? Ah, lembrei, frustraçã o.
— Nã o tenho nada para superar, acho mesmo que você s combinam,
ela é uma garota incrı́vel e linda.
— E, eu sei, mesma idade e essa merda toda, tô ligado em como você
pensa. Mas, en im, nã o foi para falar sobre as minhas trepadas que você
me pediu para icar, né ?
— Nã o, com certeza nã o, eu pedi para que icasse para
conversarmos sobre seus trabalhos atrasados.
— Que mentira. — Ele sorri e começo a me arrepender de ter
pedido para que ele icasse, é impossı́vel manter um diá logo com ele.
— O que você quer de mim? — pergunto furiosa. — Por Deus, será
que você nã o viu o que aconteceu aqui? Eu quase fui demitida e nem ao
menos iz nada. O que você acha que vai acontecer se souberem que
estou tendo esse tipo de conversa com um aluno?
— E por que você acha que algué m precisa saber de algo?
— Essa é uma cidade pequena, Nuno.
— Acredite, pro, eu sou muito bom em esconder as coisas — Nuno
sussurra, sorrindo torto, dando ê nfase à s suas palavras sujas.
— Voltando ao trabalho... — digo desviando o olhar da sua boca. Ele
se empertiga, como se inalmente estivesse se dando conta do que
estamos fazendo.
— Você tem razã o, entã o vamos logo acabar com isso que eu tenho
que ir para a pró xima aula.
— Sim, claro, eu só ... — Ergo o rosto quando noto ele se aproximar
lentamente, seus olhos nunca deixam de olhar para os meus, cheios de
fú ria. Lindo, tã o lindo que dó i olhar para ele. — Eu separei uns... — O ar
parece ter desaparecido quando ele se inclina sobre a minha mesa e
espalma as mã os na borda.
— Hum... — Ele baixa o rosto. O verde dos seus olhos estã o intensos
sobre os cı́lios longos e escuros, a pele dourada do sol, os lá bios
rosados, provocantes, tã o beijá veis. — O que você estava dizendo,
Stella?
— Eu, é ... — limpo a garganta e obrigo-me a desviar o olhar do seu
rosto me atrapalhando enquanto procuro a pasta que separei com os
relató rios, estendo-a para Nuno, que continua me olhando como se
estivesse se divertindo. — Aqui estã o, você pode me entregar na
pró xima segunda, assim terá o im de semana inteiro para terminar de
ler o livro e fazer os relató rios que pedi.
— Sei. — Ele pega a pasta e joga-a na mesa, ainda sem deixar de
olhar para mim. — Olhe para mim — ele exige e ergo o rosto em sua
direçã o. — Você é uma covarde, Stella.
— Já fui chamada de coisa pior.
— Vai mesmo passar o resto do ano se satisfazendo com
lembranças, quando poderı́amos continuar de onde paramos?
— Isso nã o é coragem, é loucura. — Encaro seus olhos cheios de
raiva, tenho certeza de que, se algué m entrar na sala nesse momento,
poderá sentir a tensã o que nada tem a ver com uma professora e um
aluno.
— E qual o problema de um pouco de loucura na sua vida?
— Eu já tive a minha cota de loucura aquela noite.
— Sé rio? Aquilo foi o su iciente para você ? — Ele se inclina, roçando
seu nariz em uma mecha do meu cabelo. — Porque, para mim, aquilo
nã o foi nem a metade do que eu gostaria de fazer com você — ele
sussurra tã o perto que nã o consigo respirar.
— Agora você tem a Cindy. — Minha voz fraqueja quando sinto o
cheiro dele assim tã o perto.
— Nã o brinca comigo, Stella, eu posso acreditar que você tá com
ciú mes.
— Claro que nã o — sussurro.
— Tem certeza? Porque eu acho que vi você olhando para nó s dois.
— Seus lá bios passam a milı́metros de distâ ncia do meu ouvido.
— Você s sã o meus alunos, nada demais.
— Você ainda se lembra, Stella? — Ele passa a ponta dos dedos por
meu pescoço e estremeço fechando os olhos. — Se lembra de como é
ter eles entre as suas pernas?
Ele se aproxima um pouco mais, os lá bios agora a centı́metros dos
meus, sugando minha sanidade, meu ar, minha razã o.
— Olha para mim, Stella — ele exige e ergo meus olhos encarando
os seus, tã o perto que chega a ser desconcertante assim na luz do dia
olhar para ele. — Você grita meu nome quando goza? — Sua boca está
tã o perto, que sinto seu há lito quente em minha pele. — Diz pra mim,
Stella, você grita o nome do moleque enquanto goza? Você vai fazer isso
hoje à noite? Porque eu vou chamar seu nome quando gozar essa noite,
Stella.
Estou vergonhosamente excitada com as palavras sujas que ele
sussurra em meu ouvido, com seu toque, com seu cheiro. E quase
insuportá vel me manter imó vel enquanto meu corpo clama por ele em
uma espiral de desejo que beira a loucura e, quando balanço a cabeça
con irmando sua pergunta, Nuno respira fundo, como se ele estivesse
aguardando por isso há muito tempo.
— Droga, Stella, eu estou icando louco de tanto tesã o. — Seus
lá bios agora estã o no meu pescoço, roçando minha pele, me fazendo
suspirar. — Por que di icultar as coisas?
— Talvez porque eu seja mesmo uma covarde — admito e sinto o
sorriso se formando em seus lá bios quentes.
— Nã o tem problema, sou corajoso por nó s dois. — Nuno deixa um
beijo suave na curva do meu pescoço e se afasta bruscamente. Me
assusto com a sensaçã o de perda, como se a bolha de desejo se
rompesse, ele pega a pasta sobre a mesa, com o sorriso torto em seus
lá bios enquanto observa o que fez.
— Segunda-feira, certo? — Ele a ergue no ar e nã o tenho mais
certeza se ele está falando do trabalho, da Terceira Guerra Mundial ou
de nó s.
— S-sim — me obrigo a dizer.
— Pode deixar, providenciarei tudo.
Ele pisca para mim, debochado, enquanto vira as costas e sai da sala
me deixando completamente fora de mim.
Como a grande covarde que sou.
— O que foi aquilo na sala da Stella? — Cindy gira a garrafa de á gua
em cima da mesa enquanto espera a minha resposta.
— Ela queria me entregar o trabalho para compensar a semana. —
Aponto para a pasta em cima da mesa como prova. Ela nã o diz nada,
mas a forma como me olha é a certeza de que nã o acredita em mim.
— O quê ?
— Nada. — Cindy sorri e balança a cabeça. — Sabe, eu gosto da
Stella, ela é linda e inteligente, nã o me surpreende que você esteja
caidinho pro ela. Agora ela, uau!
— O quê ? Vai dizer que nã o me acha interessante? — Empurro-a
com meu ombro.
Cindy encara minha virilha descaradamente, seus olhos sobem por
meu peito e param em meu rosto, como a garota safada que é .
— Você sabe muito bem o que acho de você , nã o vou icar aqui
levantando a sua bola.
— Entã o qual o problema?
— Sei lá , eu nã o consigo imaginar a Stella com um garoto. Ela tem
cara de mulher que se envolve com homens bem mais velhos, tipo vinte
anos a mais, sabe?
— Nã o, eu nã o sei, e ela nã o é assim.
— Ela gosta de garotos gostosinhos, entã o? — Ela segura meu rosto
entre o polegar e o indicador me provocando.
— Para com isso. — Afasto sua mã o do meu rosto e me levanto
desistindo de terminar de comer.
— Ei, Nuno, eu estava brincando! — Cindy grita, mas nã o ligo.
Continuo andando, ignorando a insegurança que sinto com suas
palavras, me obrigando a me concentrar no que aconteceu naquela sala
de aula e no que diz meu coraçã o: ela nã o é assim.
Ela termina, com sua voz suave que parece hipnotizar cada aluno ao
ponto de que tenho dú vidas se algué m aqui está respirando. Eu,
sinceramente, nã o estou.
Ergo os olhos e ela desvia os seus rapidamente, Stella pigarreia e
sorri para uma garota, entã o deposita a folha em sua mesa e volta a
olhar para a sala. A postura sé ria e elegante de professora que fascina a
todos e que enche meu coraçã o de má goa.
Olhar para ela dó i, tanto que, à s vezes, sinto-me doente.
— O que você s entenderam sobre esse poema? O que acham que PI
está querendo dizer? — ela pergunta como se ele fosse um dos
escritores dos quais ela está acostumada a trabalhar.
— Que ele é um gay enrustido — Glauco, um engraçadinho idiota,
responde arrancando uma gargalhada da sala toda.
— E, pelo comportamento de você s, ele tem toda a razã o de se
manter “enrustido”, nã o é mesmo? — Ela cruza os braços na frente do
peito enquanto fuzila Glauco com o olhar e a sala ica em silê ncio. —
Nã o aceitarei mais esse tipo de comentá rio em minha aula, estamos
entendidos? — ela completa olhando para todos e recebe um sim em
coro.
— Eu acho que ele quer dizer que nem sempre aquilo que vemos é a
verdadeira face de uma pessoa — Maddie responde arrancando um
sorriso enorme de Stella.
— Muito bem, Madalena. — Ela olha em volta, evitando o fundo
onde estou. — Mais algué m?
Ergo minha mã o, sentindo o coraçã o querendo saltar pela boca
quando ela olha para mim.
— Sim, Nuno?
— Talvez ele queira dizer que a grande maioria das pessoas nã o
estã o realmente interessadas em saber a verdade, é mais fá cil maquiar
com o que lhe convé m.
Seu rosto endurece diante da minha resposta, é tã o sutil que tenho
certeza de que ningué m vê , mas logo ela veste a porra da capa de
professora e me responde.
— Muito bem, Nuno, mais algué m? — Ela volta a olhar para a sala,
mas ningué m responde, entã o ela continua. — Vamos aproveitar esse
tó pico e quero que você s me apresentem um personagem que é mal
interpretado, ou que é negligenciado, por seus atos. Pode ser de um
ilme ou sé rie, mas se for de um livro vã o ganhar pontos extras.
O burburinho a minha volta começa e o grito silencioso da minha
raiva é abafado pelas vozes vazias dos meus colegas de sala.
Parabé ns, Nuno, você é um otá rio.
Stella ergue o rosto no exato instante em que entro na cafeteria,
seus olhos percorrem todo o salã o até pousarem em mim cheios de
expectativa e tento me lembrar qual foi o motivo para que eu tenha
aceitado vir até aqui alé m do fato de que eu já estava prestes a
enlouquecer.
Saudades, seu cuzã o, você está morrendo de saudades dessa mulher.
— Oi — ela diz quando me sento na sua frente, estamos cercados de
pessoas, em um lugar pú blico, distantes o su iciente para que ningué m
faça deduçõ es, mesmo assim me sinto errado por estar aqui, talvez seja
porque passei o dia remoendo as palavras daquele tal de PI, me
machucando, me diminuindo, me punindo. — Obrigada por ter vindo.
— Ela desvia o olhar.
— Eu nã o costumo fugir das coisas. — Encaro seu rosto esperando o
momento em que ela vá me olhar, mas ela manté m os olhos baixos.
Covarde do caralho!
— Você nã o leu minhas mensagens.
— Eu estava com raiva.
— Já se passaram doze dias — ela diz como se eu precisasse que
algué m me lembre.
— Nã o era um bom momento para conversar.
— Entendo — ela diz, e odeio o silê ncio que se estende entre nó s,
enquanto há milhares de palavras engasgadas em minha garganta.
— O que você quer, Stella? Achei que aquele dia você tinha sido bem
clara — digo porque alguma coisa precisa ser dita ou vamos passar a
noite inteira aqui, sentados, olhando para a mesa até que ela abra um
buraco e nos engula.
— Eu nem sei por onde começar.
— Que tal pelo começo? — Meu tom soa um pouco rude, mas dane-
se, foi ela quem me magoou.
— O começo, certo. — Ela coloca uma mecha de cabelo atrá s da
orelha e morde o lá bio, como se fosse difı́cil começar a falar e aperto
minhas mã os com força tentando me acalmar. — Eu sempre fui uma
garota muito certinha, sempre levei a vida muito a sé rio. Enquanto a
maioria das garotas estavam transando, eu estava estudando, a vida
sempre foi muito dura para mim e eu me acostumei com isso. Meus
relacionamentos sempre foram normais.
— Certo — digo, sentindo que nada de bom vai sair dessa conversa,
é agora que ela vai me chutar de vez da sua vida e vou ter que implorar
para o meu pai me tirar dessa porra de escola. Que maravilha!
— Acho que, alé m da Suzy, ningué m nunca me viu sequer beijando
em pú blico.
— Eu acho que você está enganada, posso contar fá cil umas oitenta
mil pessoas — digo, sem nenhum traço de humor na minha voz e
inalmente ela ergue o rosto.
— Até aquele dia eu era uma pessoa muito reservada, convicta das
minhas verdades e que sempre levou o trabalho a sé rio e, por causa
disso, Suzy me implorou para que eu me permitisse viver uma aventura,
ao menos uma vez na vida.
Balanço a cabeça sem a menor vontade de ouvir esse blá -blá -blá de
merda.
— Eu sempre tive muito orgulho da mulher que me tornei, e entã o
você chegou e minha vida virou uma bagunça. Me pego fazendo coisas e
sentindo coisas que sempre considerei erradas. — Ela desvia o olhar e
noto o quanto ela ensaiou todas as coisas que está falando. — Coisas
que sei que sã o erradas.
— Quer que eu chame a polı́cia? — ironizo e ela me lança um olhar
triste.
— Você nã o faz ideia do que me custa tudo isso, na maior parte do
tempo estou lutando para que ningué m note a forma como me sinto
quando estou perto de você e... — Ela respira fundo, como se estivesse
exausta de ingir o tempo todo.
— Você tem vergonha de mim, Stella?
— Nã o, claro que nã o — ela nega, mas seus olhos nã o me encaram.
— Nã o tenho vergonha de você , tenho vergonha do que estou fazendo
— ela admite, seus olhos castanhos cheios de tristeza ainda nã o me
olham. — De ter cedido à s suas investidas, de estar em uma relaçã o que
sempre julguei errada.
— Errada? O que tem de errado em duas pessoas estarem juntas?
— Nó s dois, Nuno, é errado, você sabe disso.
— Nã o, eu nã o sei. A meu ver nã o estou fazendo nada de errado, eu
quero estar com você , e você , aparentemente, todas as vezes em que
esteve comigo, foi porque quis, nã o foi?
Ela balança a cabeça.
— O que izemos... — ela volta a respirar fundo e, caralho, como
meu peito dó i, porra de coraçã o fraco. — Foi imoral, Nuno.
— Como? — pergunto porque me custa acreditar no que estou
ouvindo. — Entã o, você acha que estar comigo é imoral? Porque sou
mais novo? O problema é esse? A porcaria do seu preconceito com a
nossa diferença de idade? — uso tudo de mim para manter a voz o mais
baixa possı́vel.
— Nó s transamos na escola, Nuno — ela sussurra enquanto me
encara.
— Merda...
— Você nã o vê o que está acontecendo, eu nã o sou uma aluna, nã o
posso me dar ao luxo de viver uma aventura eró tica com você . — Ela
passa a mã o nos cabelos, parecendo quase desesperada. — Você nã o é
apenas mais novo do que eu, você é meu aluno, vem de uma famı́lia de
pessoas que jamais te aceitariam com algué m como eu.
— E eu tenho cara de quem liga para o que as pessoas pensam?
— Nã o é assim tã o simples, Nuno. — Ela olha pela janela para um
casal que acaba de chegar com um ilho. Sem perceber, ela sorri e
imagino que na sua cabecinha idiota e arcaica o ideal de famı́lia nã o tem
um moleque dez anos mais novo que ela como seu marido.
— Eu posso simpli icar as coisas, você quer dar um chega nisso
tudo? — sinto a voz falhar enquanto faço a pergunta, seus olhos escuros
parecem tristes e assustados e odeio ver o con lito neles. — E para isso
que você me chamou aqui? Para dizer que sou algo imoral e que você
nã o me quer mais? Okay, recado dado. — Começo a me afastar, pronto
para recolher o que resta da minha dignidade e me levantar.
— Nã o! — ela diz, um pouco mais alto. — Eu deveria, mas nã o é o
que eu quero — ela sussurra, tã o baixinho, que nem tenho certeza do
que ouvi, mas entã o seu dedo se enrosca no meu, bem devagarinho, por
trá s do pote de açú car e ergo os olhos para ver se algué m está olhando
para nó s, como se fosse um ato criminoso tocar a pessoa que se gosta.
Nó s somos errados...
— O que você quer entã o, Stella? Me diga e eu faço. Mas, pelo amor
de Deus, nã o me torture desse jeito porque eu nã o sei mais o que fazer.
— Tente me entender.
— Você me magoou, depois de transar comigo. — Baixo o tom de
voz, mesmo que nã o tenha ningué m perto. — Nã o estou muito disposto
a tentar entender seus motivos agora.
— Eu sei que estou errada — ela admite.
— Sim, você está .
— Eu me arrependi no instante em que as palavras saı́ram da minha
boca, estou me sentindo pé ssima desde entã o.
— Que bom saber. Mas isso nã o muda o fato de que você acredita
que o que fazemos é errado.
— O que izemos na escola é errado — ela rea irma.
— Certo, nã o faremos mais.
— Eu sou uma covarde como você diz, mas eu preciso que você
entenda que isso — ela balança o dedo entre nó s — é a maior loucura
que já cometi na minha vida. Há muita coisa em risco, muita coisa que
nã o diz respeito só a mim. Se descobrirem, eu vou perder tudo, você
tem ideia de que nunca mais conseguirei um emprego em escola
alguma?
— Você nã o vai perder tudo — digo, mas nem eu mesmo consigo
acreditar nas minhas palavras, de repente me vejo por seus olhos, um
garoto apaixonado, ansioso, impulsivo, que, no auge do desespero, seria
capaz de prometer o mundo para ela, mas, que na verdade, mal
consegue se sustentar sozinho.
— Nuno... — Ela baixa o olhar e, por Deus, eu posso jurar que ela
está chorando.
— Eu sei que nã o tenho nada para te oferecer, que sou só um
menino, sei que fui inconsequente ao te levar naquela sala, mas eu nã o
iz por mal, nã o era para me exibir, eu só queria você .
— Eu sei. — Ela balança a cabeça.
— Droga, Stella, eu odeio te ver assim, sofrendo, sempre angustiada,
olhando para os lados, sussurrando, como se estar comigo fosse algo
ruim. Algo do qual você nã o consegue se livrar. Nã o era assim que
queria estar com você .
— Eu sei.
— Eu vou entender se você nã o me quiser mais, juro, vou morrer
por dentro, mas vou entender — digo as palavras mais difı́ceis da
minha vida e me assusto com o quanto elas sã o reais, eu vou entender.
— O que aconteceu aquele dia foi um re lexo das coisas que ouvi, só
estava chateada, insegura, enciumada, nã o foi culpa sua, nó s dois
quisemos, e no im eu nã o soube lidar com meus erros e acabei te
magoando.
— Eu gosto de me expor, me excita pensar que algué m pode ver o
que estou fazendo, aquele dia no festival, enquanto te tocava, vi vá rias
pessoas olhando para nó s, isso me deixou louco de tesã o. A Cindy é
igual a mim, por isso a gente fazia essas coisas.
— E você achou que eu fosse igual — ela constata e con irmo
balançando a cabeça.
— Naquele dia sim, claro que eu iquei louco, a nossa quı́mica me
trouxe até aqui, mas nã o é por isso que eu continuo, estar com você nã o
é para me exibir, é muito mais do que isso — admito e estou prestes a
falar mais do que devo, de admitir mais, de abrir meu coraçã o e mostrar
para ela o que tem aqui dentro. — Eu odeio me sentir como estou me
sentindo agora e nã o quero ter que icar provando para você que isso
nã o é uma brincadeira para mim. Nã o é fá cil ouvir as merdas que ouvi
aquele dia, nã o é fá cil para mim me sentir inseguro, Stella. Eu nã o quero
me sentir assim.
— Eu sei.
— Se o problema é eu ser seu aluno, amanhã mesmo eu saio da
escola e a gente pode assumir essa merda para todo mundo. Se for
minha grana, foda-se, eu nã o dou a mı́nima para a maior parte das
coisas que meu pai faz, mas se o problema for a minha idade, eu nã o
posso fazer nada, alé m de te deixar em paz. E isso que você quer? Que
eu dê o fora da sua vida?
— Claro que nã o quero.
— Entã o você precisa ser mais clara e falar o que quer, porque eu
nã o tô conseguindo te entender.
— Você — ela diz, sem titubear, sem desviar o olhar e tenho certeza
de que, nesse momento, nã o temos nada de comum entre um aluno e
uma professora. — A ú nica coisa que eu quero é você , Nuno.
Sinto o ar escapando dos meus pulmõ es, levando consigo o peso que
carreguei comigo nesses ú ltimos doze dias.
— Entã o para com isso, deixa rolar, Stella, tá tã o gostoso, a gente se
entende tã o bem. Nã o estraga isso com essas merdas que a sociedade
impõ e. Quando estamos juntos, nã o há diferenças entre nó s e isso é o
que importa, o resto que se foda.
— E o que estou tentando fazer.
— E aceita que você está saindo com um moleque.
— Ah, meu Deus! — Ela esfrega o rosto e me divirto com o
constrangimento bobo dela.
— Um moleque que te deixa vermelhinha, excitada e louca de
ciú mes, inclusive — provoco-a sentindo meu sorriso se espalhar.
Ela ergue os olhos para mim e a forma como me encara faz com que
meu coraçã o exploda no peito. Meu Deus, eu tô muito perdido por essa
mulher.
— Ah, Stella, você nã o tem ideia do quanto eu quero te beijar nesse
momento.
— Eu tenho sim, porque també m quero o mesmo.
Olho para Beth, que está olhando para nó s. Seus olhos desviam para
a porta que dá para o fundo da sua casa e Stella se levanta.
— Te espero lá dentro. — Ela sai em direçã o ao balcã o. Antes de
entrar, ela fala algo para Beth e abre a porta.
Olho em volta analisando tudo, a cafeteria está quase vazia e a rua,
tranquila. Espero alguns minutos e me levanto, passo por Beth e ela
sorri para mim enquanto abro a porta que me leva para o jardim da sua
casa.
Fico um pouco confuso e frustrado quando me deparo com Maddie,
Levi, Ivan e Cindy sentados em uma grande mesa.
— O que você s estã o fazendo aqui? — Olho para Stella e, em
seguida, volto a olhar para eles.
— Eu havia prometido um jantar em agradecimento aquele dia,
lembra?
— Isso é sé rio?
— E sim. — Ela abre um sorriso enorme enquanto segura minha
mã o e me puxa para onde meus amigos estã o. — E um pedido de
desculpas també m — ela diz baixinho e tudo o que consigo fazer é
sorrir para essa mulher linda e cheia de con litos, que luta contra seus
fantasmas para poder segurar a minha mã o assim na frente dos meus
amigos e, sem pensar duas vezes, seguro seu rosto em minhas mã os e a
puxo beijando sua boca linda ao som de palmas e assobios.
— Nuno! — Ela espalma a mã o em meu peito.
— Que se foda, acho melhor se acostumar, porque eu ainda vou te
beijar muito em pú blico — sussurro em seu ouvido e ela ica ainda mais
vermelhinha e linda.
— Vai logo, Nuno, eu tô morrendo de fome. — Levi esfrega a barriga
cortando nosso barato e Maddie olha feio para ele.
Sento-me em uma cadeira ao lado de Stella, a mesa está lotada de
comida, que ela jura ter feito sozinha. Me sinto um pouco confuso,
cheguei aqui com a certeza de que ia levar um pé na bunda e estou
sentado ao lado dos meus amigos e da minha garota, comendo, rindo e
conversando.
Stella nã o para de sorrir e de me olhar, à s vezes sua mã o espalma
minha coxa ou segura a minha e sempre que posso, beijo-a na boca, no
pescoço, na palma da sua mã o. Nã o dou a mı́nima se estou parecendo
um idiota apaixonado, porque, na verdade, é exatamente isso que eu
sou. Louco, apaixonado e rendido por essa mulher.
Uma hora depois, Maddie e Levi se levantam dizendo que precisam
ir, Ivan atende uma chamada e diz que tem um encontro deixando Cindy
completamente transtornada enquanto confessa ter lembrado de uma
festa na cidade vizinha que ela foi convidada e, entã o, somos só eu e
Stella.
Passo meu braço por sua cintura e puxo-a para o meu colo assim
que icamos a só s.
— O que achou do jantar?
— Nã o sei, nã o consegui me concentrar com sua mã o sobre mim a
noite inteira. — Passo o nariz em sua pele e ela estremece.
— Exagerado.
— Estava uma delı́cia. Assim como você . — Beijo a curva do seu
pescoço.
— Me perdoa.
— Claro, eu també m estava errado, fui imprudente.
— Nã o vamos mais fazer isso.
— Nã o.
— Vamos nos comportar — ela diz, mas seus olhos estã o em minha
boca.
— Sim, sua ciumenta de merda.
Stella sorri e seu rosto ica vermelho.
— Isso é tã o ridı́culo.
— Eu nã o acho. — Seguro seu rosto em minhas mã os. — A gente só
se importa com quem signi ica alguma coisa, Stella.
— Sim.
— Eu sei que nã o temos nenhum compromisso e que você nunca me
pediu nada, mas quero que você saiba que, desde aquela noite na
biblioteca, nã o estou saindo com ningué m — admito e seus olhos se
arregalam.
— Sé rio?
— Sim, sou seu — digo com os lá bios perto dos dela, Stella toca as
laterais do meu corpo, me deixando louco de tesã o quando suas unhas
arranham minha pele.
— Só meu?
— Todinho seu e de mais ningué m, até o dia que você nã o me quiser
mais.
— També m sou só sua.
— Entã o repete, por favor.
— Sou só sua.
— De novo — peço, sentindo meu pau ganhar vida embaixo da sua
bunda. Stella se inclina para a frente, com os lá bios deliciosos se
movendo sensualmente.
— Só sua.
Um sorriso idiota se espalha por meu rosto, ela olha para a minha
boca, a respiraçã o já icando curta e, antes que ela diga qualquer coisa,
a beijo, e sinto como se ela estivesse esperando por esse momento
durante os ú ltimos doze dias, ou talvez seja apenas o re lexo do que
estou sentindo e, sinceramente, por mim tudo bem. Preciso aprender a
viver o momento, e nesse momento ela está aqui, me pedindo
desculpas, me beijando e dizendo que é minha.
Isso é tudo o que importa.
Vivemos em uma sociedade extremamente machista, poré m isso é
algo que, para mim, nunca teve qualquer impacto negativo, sou livre
para explorar minha sexualidade desde o dia em que descobri que essa
coisa entre minhas pernas tem outra inalidade alé m de mijar.
O garoto se masturba, a garota nã o pode se tocar; o garoto precisa
trepar, a garota precisa se guardar; o cara pode ter vá rias mulheres em
uma noite, a mulher que faz isso é puta; o cara pode ter milhares de
fantasias. Que espé cie de homem nunca se imaginou comendo a
professora, a dentista, a empregada, a secretá ria?
Faz parte. Homem é assim mesmo.
Se um homem pegar uma mulher mais velha, é fodão; se pegar a
novinha, é o cara; se namorar uma só , é o bom partido; se pegar geral, é
o esperto.
O mundo foi desenvolvido para a ostentaçã o masculina.
Mas aquela noite, enquanto ouvia Stella confessar seus medos, suas
â nsias, enquanto me dava conta de que assumir algo comigo custava
muito mais para ela do que se fosse ao contrá rio, eu compreendi o
quanto essa porra de mundo é uma hipocrisia de merda.
Hoje sei que, se formos descobertos, serei o casinho ridı́culo de uma
mulher sexualmente frustrada, ou o garoto inocente seduzido e usado
por uma interesseira, que está tentando dar um golpe na fortuna do
meu pai. Sou a imoralidade de uma professora que nã o respeita a
inocê ncia da juventude, como se Stella fosse alguma espé cie de
aliciadora de garotinhos indefesos.
E responsabilidade dela pô r limites entre nó s, proteger o garoto, se
manter respeitá vel, ı́ntegra, decente, honrada.
Como se o fato de que ela possa ter se interessado por mim, pelo
que sou quando estou com ela, fosse algo inadmissı́vel.
Aquela noite nã o consegui dormir, as horas se passaram enquanto
eu caminhava pela casa vazia, repassando as suas palavras, lembrando
dos seus beijos, permitindo que ela dominasse cada pedaço do meu
coraçã o.
Que se foda essa porra de mundo!
No dia seguinte, quando a vi caminhando pelos corredores da Santo
Egı́dio, compreendi, pela primeira vez, o que ela vem tentando me dizer
todo esse tempo, o quanto as paredes antigas e poderosas daquele
colé gio eram representativas. Estar comigo para Stella é lutar
diariamente contra seu pró prio preconceito, re lexos de uma sociedade
machista, é dizer a si mesma que transar com um garoto nã o faz dela
uma pro issional inferior, que deixar que um garoto dez anos mais novo
a conquiste, nã o signi ica que ela nã o é bem resolvida.
Ao contrá rio.
Estar comigo é a maior prova que Stella poderia dar a sociedade que
ela é dona de si, do seu corpo, das suas escolhas e que, se ela me acha
digno de ter seu corpo ou seu coraçã o, é porque eu sou um cara de
sorte.
Um ilho da puta de muita sorte.
E meus sentimentos por ela chegaram a uma proporçã o tã o grande,
que já nã o consigo mais controlá -los.
Tento manter uma rotina saudá vel nas semanas seguintes, estudo
como um desgraçado para compensar os dias perdidos, me reú no com
meus amigos depois das aulas, acompanho minha mã e em dois jantares
que fariam a fogueira parecer uma diversã o de criança, troco duas
frases com meu pai e, por um milagre, nã o brigamos. Faço planos
ridı́culos para um futuro que nã o sei se um dia existirá , tento nã o matar
cada um dos caras que chamam Stella de gostosa quando ela passa por
nó s nos corredores e, principalmente, evito ao má ximo olhar para ela
por mais de dois segundos.
A grande maioria das vezes falho miseravelmente, em especial nas
duas ú ltimas tarefas.
Digo a mim mesmo que preciso me controlar, que nã o posso fazer
papel de moleque querendo quebrar a cara de todo mundo, que o que
temos é algo muito maior do que uma punheta adolescente e que ela
me quer. Foi o que ela disse na ú ltima noite, quando gemeu meu nome
antes de gozar.
Pensar nisso faz um sorriso idiota e convencido se formar em minha
cara. Preciso aceitar que essa relaçã o exige muito mais dela do que de
qualquer outra garota, mas, à s vezes, é difı́cil, porque uma parte de mim
quer poder puxá -la toda vez que cruzamos no corredor, e beijá -la para
que todos vejam que estamos juntos. Quero dizer que nã o era Cindy que
esteve comigo na biblioteca no mê s passado, que Stella é muito mais do
que a româ ntica professora de Literatura, é uma mulher intensa, sexy,
linda.
E isso é algo que estou tendo que aprender.
Stella passa por mim, meu coraçã o idiota acelera quando seus olhos
se erguem em minha direçã o, é só um pouquinho, mas o seu rosto cora
provavelmente ao se lembrar da noite passada e uso toda a minha
concentraçã o para nã o icar duro, algo que venho ganhando habilidade
nos ú ltimos meses.
Ela se vai e viro para observar sua bunda gostosa com a desculpa de
que é isso que todos os moleques fazem quando ela passa. Algué m fala
algo sobre como ela rebola enquanto anda e que ela faz isso para
enlouquecer os alunos, evito erguer os olhos, já tenho mortes demais
em minhas fantasias para lidar por hoje.
O sinal toca, Stella entra na sala e caminho em direçã o a minha
pró xima aula enquanto penso que o semestre está quase chegando ao
im, mais alguns meses de tortura e Stella nã o será mais a minha
professora.
Nunca sonhei tanto em me livrar de um professor em minha vida.
— Tá sabendo da ú ltima fofoca sobre a professora Stella? — uma
garota que está na minha frente comenta com sua amiga e acende o
alerta em minha cabeça.
Pelo jeito, meu sexo com Cindy já é coisa do passado, també m sei
que nã o pode ser nada sobre nó s, temos tomado todo o cuidado
possı́vel e mal nos cumprimentamos dentro da escola, Stella começou a
vir de carro para o trabalho e isso facilita nossos encontros e nunca
estamos sozinhos em pú blico, o que é um saco, mas é o que temos para
o momento.
Entã o só pode ser uma coisa...
— Com o gostoso do Tony? — a outra garota fala e as duas dã o
risadinhas idiotas que fazem meu sangue ferver.
Maldito ilho da puta!
— Ouvi dizer que eles estã o se pegando — uma das duas fala e, por
mais que eu saiba que nã o é verdade, nã o consigo evitar meu coraçã o
idiota de ser afetado com essa fofoca de merda.
— Ela nã o é nada boba, já traçou o ú nico professor gato da escola e
pra gente só resta esses moleques idiotas.
— Ele é muito gato mesmo, na aula passada ele me deu um sorriso
que fez minhas pernas amolecerem. — Elas sorriem e reviro os olhos
sem paciê ncia.
Esbarro meio que sem querer nas meninas e elas olham para trá s.
— Foi mal aı́, só mais um moleque idiota passando — Pisco para
elas que sorriem um pouco sem graça. quando notam que ouvi tudo.
Elas se derretem em uma conversa que me deixa nervoso e tudo o que
consigo pensar é nas palavras de Cindy sobre Stella algum tempo atrá s.
“Ela parece o tipo de mulher que gosta de homens mais velhos.”
Se existe alguma coisa mais insuportá vel que a porra da
insegurança, eu desconheço.
Quando chego a quadra avisto Ivan sentado na arquibancada
sozinho, ele encara algo do outro lado e sigo seu olhar, nã o me
surpreendo quando vejo seu objeto de admiraçã o. Cindy está usando
um short de malha que mal cobre sua bunda conversando com um
grupo de garotas vestidas da mesma forma. Nã o há um ú nico moleque
que nã o olhe para elas e sei que esse é o objetivo, já fui um desse e,
sinceramente, nã o os culpo. Olho para Cindy mais uma vez, agora com
mais atençã o, à luz do dia, sem a nuvem do desejo, noto o quanto ela
está magra, sei que as meninas se ligam muito nisso e Cindy sempre foi
bastante paranoica com beleza, criada e cercada pela busca eterna pela
perfeiçã o, apesar de ser linda, mas a forma como as costelas dela estã o
aparentes me deixa meio incomodado.
— Ei, mano, te procurei pela escola inteira. — Sento-me ao lado de
Ivan, que continua olhando para Cindy. Ela desvia o olhar para onde
estamos e ergue a mã o em um aceno. — O que tá pegando entre você s
dois? — pergunto enquanto ergo a mã o para cumprimentá -la.
— Nã o sei, me conta aı́ você ?
— Ei, que papo é esse?
— Você sabe muito bem do que estou falando, a escola inteira ainda
tá falando da porra da trepada de você s na biblioteca.
— Qual é , Ivan, nó s dois sabemos que nã o foi ela — sussurro
encarando os olhos cheios de raiva do meu amigo enquanto sorrio da
ceninha ridı́cula de ciú mes que ele sequer sabe que está fazendo.
— E que diferença isso faz, se para todo mundo você tá comendo-a?
— Sinto a acusaçã o em sua voz.
— Você sabe que nã o tô e isso que importa, e foi ela quem decidiu
me ajudar, eu nã o pedi nada.
— Claro que ela fez, ela vai fazer qualquer coisa pra limpar a tua
barra e deixar você viver tua aventura.
— Cuidado com o que você fala, Ivan — o alerto sentindo uma
sensaçã o ruim dessa conversa.
— Foda-se, eu tô de saco cheio dessa porra!
Ivan se levanta e seguro seu braço. Pé ssima ideia, o olhar que ele me
dá é o su iciente para que eu o solte no mesmo instante.
— Eu nã o gosto de como as coisas estã o estranhas entre nó s —
digo.
— Se eu começar a numerar todas as coisas que eu nã o estou
gostando aqui, nã o vou parar nunca mais.
— Vá em frente, desembucha logo, que tô perdendo a paciê ncia com
essa porra.
Ivan dá uma risadinha sarcá stica antes de falar:
— Bem-vindo ao meu mundo.
Ele começa a descer as escadas, e antes que eu possa pensar, estou
seguindo meu amigo, odeio o clima de merda que estamos vivendo e
nã o faço a menor ideia de como resolver isso, mas nã o ligo, vou resolver
e vai ser agora.
— Nã o me dê as costas, caralho — digo segurando seu braço mais
uma vez e, quando Ivan se vira, me preparo porque já sei o que vai
acontecer, ele vem se controlando há muito tempo e se é isso que meu
amigo precisa para extravasar a raiva que sente, entã o eu darei o que
ele quer.
— Me solta, porra! — Ivan esbraveja um segundo antes do seu
punho acertar a minha cara, o soco me pega de surpresa pela força com
que ele atinge meu rosto, perco o equilı́brio e cambaleio para trá s, mas
antes que eu possa cair, Ivan me segura puxando-me pela camiseta e me
mantendo em pé . — Nunca mais me provoque — ele fala, o rosto a
centı́metros do meu, o olhar que conheço há tanto tempo, cheio de fú ria
e de algo mais, algo doloroso que está matando meu melhor amigo e
que ele jamais terá coragem de admitir.
Ele ama a Cindy.
Entro na sala dos professores disposta a ser rá pida e invisı́vel, só
preciso bater o cartã o e sair sem ser vista por ningué m, mas esbarro em
uma parede de mú sculos no instante em que entro e o susto me faz
soltar um gritinho.
— Opa! — Tony segura meu braço e quero morrer de raiva quando
noto que todos na sala olham para nó s, como se fosse um daqueles
esbarrõ es româ nticos.
Droga, nã o... nã o, nã o.
— Desculpa, eu estava um pouco distraı́da.
— Imagina, está vamos mesmo falando de você — Paola diz sorrindo
timidamente.
— Falando de mim? — Olho em volta sem saber se realmente quero
saber o que estavam falando.
— Sim, o nosso happy hour, se esqueceu? — Tony, que ainda está ao
meu lado, completa.
— Nosso? — pergunto já me sentindo um pouco atordoada.
— Sim, você se esqueceu? A gente combinou outro dia. — Dé bora se
aproxima passando o braço em torno do meu. — Você disse que iria.
— Acho que eu disse que iria pensar.
— Ah, vamos lá , Stella, é só um pouco de diversã o — ela insiste
como se fô ssemos melhores amigas.
Olho em volta e me sinto mal quando vejo que todos estã o
esperando por minha resposta, até mesmo Esther, a quem devo um
pedido de desculpas silencioso por profanar seu templo sagrado,
parece eufó rica.
Por im digo a mim mesma que nã o há problema algum em passar
umas horinhas ao lado dessas pessoas com quem trabalho todos os dias
e de quem conheço tã o pouco. Mesmo que algumas delas já tenham
falado de mim pelas costas.
— Tudo bem, mas eu preciso estar em casa à s nove.
— Algum compromisso? — Tony pergunta parecendo intrigado.
— Nã o, na verdade é que eu combinei de ligar para a minha irmã .
— E tem um horá rio especı́ ico para isso?
— Tem sim, ela dorme cedo — respondo já me arrependendo de ter
aceitado sair com esse cara.
— Oba! Entã o vamos lá dar uma arrumada no visual, tirar essa cara
de professora e mostrar as mulheres que existem dentro de nó s —
Dé bora diz e um coro de uhul me surpreende enquanto sou empurrada
por um grupo de mulheres eufó ricas para dentro do banheiro feminino.
E que Deus me ajude.
— Arruma essa gravata, Nuno! — meu pai exige sem nem ao menos
olhar para mim. Se olhasse veria as olheiras em volta dos meus olhos,
culpa de mais uma noite praticamente se dormir, regada a energé tico e
café . Com certeza, isso faz uma gravata torta parecer bobagem.
— Eu gosto assim — respondo olhando pela janela para a rua
movimentada da cidade, incapaz de me impedir de agir como o babaca
que sou. Um babaca exausto.
— Teremos uma reuniã o com investidores importantes em uma
hora, já nã o basta esse hematoma em seu rosto?
— Posso manter os ó culos de sol se quiser. — Aponto para o meu
rosto e dou um sorriso debochado, que sei que fará seu sangue
esquentar.
— Nã o me provoque, Nuno, arruma essa porra.
Sorrio e volto a olhar pela janela, ignorando suas ordens. Foda-se se
me pareço com algué m que passou a noite na farra. Se ele quer que eu
seja visto, entã o serei, do meu jeito.
O dia já se foi quando me jogo no banco de trá s do carro que meu
pai mandou me buscar, estou tã o cansado que apago no mesmo
instante e acordo com o motorista cutucando minha perna para que eu
acorde.
— Chegamos, senhor — ele diz um pouco sem graça na frente do
hotel de luxo onde estamos hospedados. E deprimente a forma como
ele olha para mim, posso sentir a sua pena me envolvendo, como um
vé u de humilhaçã o.
— Merda, valeu. — Saio do carro segurando o paletó e a gravata nas
mã os e me arrasto pelo hotel, tudo o que quero é me jogar na cama e
apagar.
Quando entro no quarto, há comida na mesa à minha espera e pelo
cheiro deve ter acabado de chegar, estou faminto, mas o cansaço é
maior e pre iro tomar logo um banho, assim, se eu adormecer em cima
da comida, ao menos estarei limpo.
Como tudo o que me mandaram, com certeza escolha do meu pai, e
por um instante me sinto até um pouco grato por ele ter se preocupado
comigo, carê ncia é mesmo uma merda. Quando termino, mal consigo
me arrastar até a cama e me jogo, apagando no mesmo instante.
Algum tempo depois sinto a presença de algué m ao meu lado, dedos
acariciam meus cabelos e nã o consigo abrir meus olhos, sinto o cheiro
adocicado de perfume feminino, mas nã o reconheço de quem seja, forço
meus olhos a abrirem e estou prestes a chamar por ela quando avisto
meu pai, em pé ao lado da cama, os cabelos levemente desalinhados, e
uma camisa cara sem gravata, o equivalente a um traje informal para
ele.
— Finalmente, achei que ia precisar chamar um mé dico para te
acordar.
Pisco algumas vezes e olho ao redor, trê s garotas estã o sentadas na
minha cama, uma ruiva espetacular, a dona do perfume doce, está ao
meu lado, suas mã os em meus cabelos alisando-os com uma intimidade
irritante.
— Que porra é essa? — Sento-me afastando a mã o da garota.
— Um presentinho para mostrar o quanto estou feliz. — Ele aponta
para as garotas como se elas fossem um objeto. — Preciso te
parabenizar, Nuno, hoje você foi incrı́vel. Os investidores icaram
surpresos com seu desempenho na reuniã o.
— Você pagou garotas para mim?
— Você nã o precisa icar com todas se nã o quiser, basta escolher
uma.
— Eu nã o quero garotas.
— Como assim, nã o quer? — Ele me olha como se eu tivesse
acabado de falar algo absurdo.
— Você entendeu o que eu disse.
— A ú nica coisa que entendi é que você está recusando trê s lindas
mulheres.
— Você é muito babaca e se acha que pode me tratar como um lixo e
depois resolver tudo colocando uma garota no meu pau? Vai icar para
avaliar minha performance també m?
— Nã o seja ridı́culo, estou te tratando como um homem, nã o sabia
que você nã o gostava de mulheres.
— Nã o preciso que você escolha as minhas garotas, eu faço isso
sozinho e nunca precisei pagar para nenhuma delas abrirem as pernas
para mim, ao contrá rio de você que até hoje precisa pagar para ter uma
famı́lia, mesmo que seja a porra de uma farsa.
— Isso signi ica que sua mã e é uma prostituta?
— Seu ilho da...
— Cuidado com o que você diz, Nuno — me repreende.
— O que mais você quer de mim? Eu iz tudo o que você pediu.
— Eu sei e por isso elas estã o aqui, para te ajudar a relaxar depois
de um dia tã o exaustivo.
— Eu nã o quero uma trepada, eu quero que você pare de me punir.
— Punindo? Eu estou preparando você para o mundo.
— Entã o olhe para mim. — Levanto-me e estendo meus braços, nã o
dou a mı́nima se estou quase nu na frente dessas garotas
desconhecidas. — Olha para mim, porra, me enxergue, veja quem eu
sou de verdade.
— Ah, por favor, Nuno, pare de drama, eu nã o vou icar aqui
passando a mã o na sua cabeça, estou te tratando como um homem que
um dia vai herdar uma das maiores empresas desse paı́s.
— Eu só queria que você me tratasse como um ilho.
— Essa é a funçã o da sua mã e — ele diz, com os olhos ixos nos
meus.
Dou as costas e saio do quarto, preciso me afastar do meu pai ou
vou acabar cometendo um crime e aı́ sim, estarei em uma prisã o. A
diferença é que essa ao menos terá um prazo para acabar.
Quando volto para o quarto, agora vestido e menos irritado,
encontro uma das garotas sentadas em um poltrona, é a morena, a
menor de todas, a mais quietinha e que mais se parece com Stella e
sinto meu coraçã o parar de bater por um instante.
— Olha, me desculpa se eu fui grosseiro, nã o quis ofender você e
suas amigas.
— Nã o ofendeu, relaxa. — Ela se levanta e arruma o decote da blusa,
que mostra mais do que eu gostaria de ver. — Seu pai pediu para que eu
icasse e te entregasse isso. — Ela estende o envelope com a logo do
hotel.
— O que é isso?
— Eu nã o faço ideia, só estou fazendo o que ele me pediu.
Abro o envelope sob o olhar atento da garota à minha frente, e sinto
tudo à minha volta desaparecer quando reconheço no texto escrito a
letra masculina do meu pai.
“Resolvi pedir para a Júlia icar. Já que você não escolheu nenhuma,
achei que iria preferir a morena pequena e sem graça, é seu tipo favorito,
não é? As frágeis e indefesas... Ao menos nisso somos iguais, gostamos de
dominar. Divirta-se, ela foi paga para isso.”
Leio a frase mais vezes do que se pode imaginar que seja normal, o
te amo se destaca como se estivesse pulsando na tela, assim como sinto
pulsando em meu peito. Olho para meu rosto no espelho, o sorriso
idiota está lá e imagino se todo mundo é capaz de ver o quanto estou
apaixonado. Que se foda, espero que sim, nã o ligo.
Seco o rosto na toalha que tem o cheiro dela, o que é uma pé ssima
ideia, saio do banheiro e entro no quarto, pego as paraferná lias que
Suzy usou ontem e volto para a sala.
— E aı́, como você está ? — pergunto enquanto ela zapeia os canais.
— Entediada, e você ? — Ela franze o cenho quando vê que estou
com as mã os cheias. — O que diabos você pensa que está fazendo?
— Cuidando de você . — Pisco para ela e dou o meu melhor sorriso.
— Nem fodendo.
— Desculpa, cunhadinha, mas eu prometi para a Stella. — Ergo os
ombros enquanto me ajoelho colocando tudo em cima da mesinha. — E
o seguinte, eu nã o sei nada sobre essas coisas aqui, entã o você vai ter
que me ensinar.
— Você tá me zoando, né ?
— Nã o tô nã o, e olha. — Puxo o celular do bolso do moletom, — A
Stella me deu o telefone de um tal de Xavier, conhece?
— Aquela ilha da puta.
— Ei, nã o fala mal da minha garota.
Suzy se joga nas almofadas, mas um sorriso surge em seu rosto
cansado.
— Sabe, eu gosto de você , moleque — ela diz olhando para mim.
— Que bom, porque você vai ter que me aturar, pretendo icar por
um bom tempo.
Estou exausta, dolorida por ter passado a noite cuidando de Suzy e
as poucas horas de sono, esmagada pelo enorme corpo de Nuno,
mesmo assim estou feliz. As lembranças da noite passada vê m e vã o
como ondas de emoçã o, que colocam um sorriso bobo em meus lá bios.
Algo perigoso quando se está dando aula na mesma escola onde o
responsá vel por seu sorriso bobo estuda.
Estuda...
Deus do cé u, será que um dia olharei para essa situaçã o e acharei
natural? Será que um dia vou aceitar que me rendi, que estou
perdidamente apaixonada pelo meu aluno com naturalidade? Tenho
quase certeza de que nã o.
Isso nã o signi ica que nã o aceito, tudo bem, já aceitei, nã o adianta
lutar contra fatos, estou apaixonada e esse im de semana vazio e
estranho só me fez entender o quanto ele é importante para mim,
mesmo assim, isso nã o torna nada mais fá cil. Ao contrá rio, é ainda mais
complicado olhar para esses alunos e pensar que Nuno, o homem que
me deu prazer na noite passada e que é o dono do meu coraçã o, é um
deles. O que me consola é saber que estamos chegando no im do
semestre, e entã o teremos apenas mais seis meses.
Os seis meses mais longos da minha vida.
A sala está silenciosa, os alunos concentrados na leitura, os olhos
ixos nas pá ginas, imersos em uma viagem criativa ao universo utó pico
da histó ria, um dos meus momentos favoritos do dia, o que me faz ter
certeza de que escolhi a carreira perfeita. Disseminar o amor aos livros
é tudo o que sempre iz, ainda criança, na adolescê ncia, e agora, posso
dizer com absoluta certeza que farei isso até o ú ltimo dia da minha
vida.
Volto a me dedicar as anotaçõ es que estou fazendo, preparando os
pró ximos tó picos que serã o debatidos sobre essa leitura e como trazer
um enredo centená rio para os dias de hoje, algo fá cil, mas que sempre
gera um bom debate, quando meu celular vibra em cima da mesa
chamando a atençã o de alguns alunos mais curiosos.
Romeo é o nome que surge na tela, meu coraçã o dispara quando me
levanto chamando a atençã o do restante da sala.
— Só um instante — digo sem esperar ouvir a voz do outro lado da
linha. — Pessoal, preciso atender, é urgente, continuem até a pá gina
208, já volto.
Saio da sala ouvindo um murmú rio baixo atrá s de mim, fecho a
porta e volto a colocar o telefone no ouvido.
— Oi. — Minha voz sai baixa e trê mula porque sei que, se ele está
ligando, algo aconteceu.
— Desculpa te atrapalhar — Nuno começa, a voz ainda mais baixa
que a minha deixando os pelos da minha nuca arrepiados.
— O que houve?
— É a Suzy, ela não está nada bem.
O tempo que levo para sair da sala, ir até a diretoria, justi icar minha
saı́da, caminhar até o estacionamento e dirigir até minha casa é de vinte
minutos, um recorde se levar em conta o tamanho dos longos
corredores dessa escola.
Quando entro no edifı́cio, Nuno está sentado no ú ltimo degrau, de
onde estou posso vê -lo, o rosto ainda cansado, carregado de
preocupaçã o, os ombros curvados e as mã os fechadas na frente do
rosto enquanto ele me observa subir as escadas. Olho para o pote ao
seu lado, repleto de cinzas de cigarro e respiro fundo para nã o falar
tudo o que sinto vontade ao ver ele fumando mesmo depois de
conhecer a Suzy, o olhar que dou para ele está carregado de todas as
palavras que nã o posso dizer agora, minha prioridade é minha irmã .
— Onde ela está ? — pergunto ao me aproximar, sem saber por que
ele está aqui e nã o lá dentro com ela.
— Está dormindo, mas a febre nã o baixou. — Ele se levanta,
en iando as mã os nos bolsos da calça e só entã o percebo que ele está
novamente com as roupas que veio na noite passada.
De perto ele parece ainda pior, como se as poucas horas de sono nã o
fossem su icientes para restabelecer sua isionomia e o cansaço fosse
como um peso extra, encurvando-o. Nuno parece assustado, o olhar
perdido, como se ele se sentisse... culpado por algo.
— Eu preciso ir pra casa. — Ele en ia as mã os nos bolsos da calça,
nitidamente nervoso e uma pontada irritante de decepçã o invade meu
coraçã o.
— Tudo bem, obrigada por ter cuidado dela.
— Nã o precisa agradecer, acho que nã o consegui fazer muito. — Ele
ergue os ombros e desvia o olhar para a porta aberta.
— Nã o tem muito o que fazer — digo tentando tranquilizá -lo. Nuno
me observa por um instante, como se estivesse prestes a dizer algo,
depois se afasta, recolhendo o pote e jogando no lixo.
— Vou indo. — Ele se afasta e passo por ele sem tocá -lo, sem beijá -
lo, mesmo que seja tudo o que eu mais desejo nesse momento, poder
envolver meus braços em seu pescoço, puxá -lo para mim, sentir seu
cheiro, me sentir em paz.
Mas nã o faço nada, tudo é arriscado e sabemos disso, até mesmo
essa troca de olhares, aqui no meio das escadas pode ser visto por
algué m e, como se lesse meus pensamentos, ele desvia o olhar para a
rua antes de voltar a olhar para mim, com seus olhos cansados e tristes
se despedindo em silê ncio.
Nuno desce as escadas correndo, como se estivesse com pressa para
alguma coisa, uma parte de mim se sente triste por ele ter ido embora,
em meus sonhos achei que irı́amos icar mais um pouco juntos, que
jantarı́amos e conversarı́amos, que Suzy estaria melhor e que, no im,
passaria a noite em seus braços novamente, nã o me importaria de
dormir mais uma vez no meu pequeno sofá , desde que fosse com ele.
Mas tudo o que tenho é a realidade, e nela, Nuno vai embora e minha
irmã nã o está nada melhor, ao contrá rio, como em uma terrı́vel
brincadeira do destino, me dizendo que nã o posso me desviar da minha
prioridade, ela está pior, e minha prioridade é ela.
Entro em casa e corro para o quarto, Suzy está encolhida na cama,
com uma expressã o cansada, toco sua testa, ela está tã o quente que
minha garganta se fecha, meço sua oxigenaçã o, está baixa, baixa demais
para uma garota que está tã o longe dos hospitais.
Droga, Suzy, como deixamos isso acontecer?
Nã o tenho tempo para lamentar, abro o armá rio e puxo minha bolsa
de viagem, jogo algumas coisas dentro e começo a ligar para Xavier, ele
atende no primeiro toque sua voz nervosa e ansiosa indica que ele já
estava esperando por essa ligaçã o, aviso que estamos voltando para Sã o
Paulo, nã o preciso falar que ela piorou, ele compreende no meu tom de
voz e pragueja. Sinto tanto por ele, sei o quanto é difı́cil amar algué m
tã o frá gil, sei o que é se sentir impotente diante da dor, de desejar com
todo o nosso coraçã o poder fazer algo e nã o poder, é desolador.
— Por favor, ica calmo, ela vai precisar de você .
— Não me pede isso, Stella — ele diz com a voz tã o triste, que nem
ao menos se parece com ele.
— Desculpa, mas eu vou pedir sim, em no má ximo trê s horas
estaremos aı́.
— Por favor, dirige com cuidado, traz minha pestinha de volta — ele
a chama do apelido carinhoso e meus olhos se enchem de lá grimas
porque a garota que está delirando de febre na minha cama nã o se
parece em nada com a sua “pestinha”.
— Pode deixar.
Desligo o telefone e começo a arrumar todas as coisas de Suzy,
demoro um pouco para guardar os equipamentos e medicaçõ es, há
coisas espalhadas por toda a casa e imagino que tenha sido Nuno que
espalhou tudo, ainda estou terminando de montar as malas quando a
porta se abre e Nuno aparece, como se nunca tivesse saı́do.
— O que você está fazendo aqui?
— Ela acordou? — ele pergunta sem responder.
— Nã o, eu estou indo pra Sã o Paulo. Ela precisa de atendimento.
Ele começa a colocar as coisas no lugar com agilidade. Quando
terminamos de guardar tudo, ele me puxa pela cintura e me beija.
— Agora sim, oi — ele diz baixinho e uma onda de alı́vio me
domina, como se só seu abraço já fosse capaz de me deixar tranquila.
— Oi. — Passo a mã o em seu rosto barbeado e limpo e sorrio. —
Acho que você bateu o recorde mundial de banho mais rá pido.
— Acho que ter o carro da minha cunhadinha ajudou um pouco —
ele brinca balançando as chaves na minha frente, mas nã o há humor
nas suas palavras.
— Claro, a Suzy.
— A pró pria.
— Deixa eu adivinhar, Ivan já estava com o chuveiro ligado.
— Quase isso. Mas a roupa já estava separada. — Ele sorri e se
abaixa para pegar todas as coisas.
— Por que você nã o me falou?
— Porque você provavelmente diria que nã o precisa.
— Sim, eu diria.
— Viu como eu te conheço? — Ele pisca para mim e sorrio sentindo
a emoçã o nublar meus olhos. — Estou descendo com isso.
Abro a boca para dizer a ele aonde ir, mas nã o preciso, ele sabe
exatamente o que precisa ser feito, como se já estivesse acostumado
com isso. Como se sempre estivesse aqui ao meu lado.
Pego as outras bolsas e desço atrá s dele, Nuno está colocando as
coisas no carro e, nesse momento, nã o dou a mı́nima se algué m vai nos
ver enchendo um porta-malas como um casal. Nã o há espaço para
outras preocupaçõ es.
Subimos para o apartamento, Nuno vai até meu quarto, onde Suzy
continua completamente imó vel, ele se abaixa ao seu lado e passa seus
braços por baixo do pescoço e joelhos dela, erguendo-a delicadamente,
é angustiante ver uma mulher de 33 anos parecer tã o pequena e frá gil.
— Ela tá muito quente — ele diz olhando para o rosto adormecido
da minha irmã .
— Vamos logo, ela precisa de um mé dico.
Nuno desce com Suzy nos braços, sigo atrá s dele, enquanto atendo a
segunda ligaçã o de Xavier, ele está tã o nervoso que mal consegue falar,
penso em mentir, mas temos um trato entre nó s de sempre dizer a
verdade e a verdade é que Suzy nã o está nada bem.
— Prometo que chegaremos o mais rá pido possı́vel — é tudo o que
posso dizer para tranquilizá -lo e desligo.
Quando chegamos no carro, Nuno acomoda Suzy no banco de trá s e
se vira para mim.
— Você vai com ela.
— Como? Quem vai dirigindo?
— Eu, claro.
— Nuno, você ...
— Nem começa, Stella, entra logo nesse carro, que nã o temos tempo
a perder.
— Mas...
— Con ie em mim, eu já disse, dirijo desde os doze. — Ele me dá um
sorriso arrogante enquanto aguarda com a porta aberta, esperando-me
entrar, quando passo por ele e me acomodo ao lado de Suzy, ele fecha a
porta e dá a volta no carro, se colocando no banco do motorista.
— Você está bem?
— Nã o, mas vou icar assim que Suzy estiver em um hospital.
— Se você quiser, posso falar com meu pai, ele pode dar um jeito
nisso.
— Nã o precisa, eles sabem o que fazer com ela em Sã o Paulo.
Ele olha para Suzy mais uma vez e sei que ele faria qualquer coisa
por mim, até mesmo pedir algo para seu pai, com quem teve um im de
semana terrı́vel. Essa certeza me deixa um pouco mais apaixonada pelo
garoto corajoso e destemido que ele é .
— Entã o vamos levar essa teimosa para Sã o Paulo.
Nuno liga o carro e sai, o ar con iante que ele exala ao passar pelas
ruas da cidade dirigindo o meu carro como se tudo estivesse sob
controle me deixa impressionada. Esse é o tipo de reaçã o que nã o se
espera de algué m tã o jovem.
Me concentro em Suzy, em seu pequenino, barulhento e quente
corpo em meus braços e em como ela piorou tã o rapidamente, isso me
apavora e me faz pensar que seu tempo está acabando e estou
negligenciando a sua saú de enquanto vivo minha histó ria de amor
proibida.
Nuno permanece quieto durante todo o trajeto, dirigindo dentro dos
limites de velocidade, para o meu desespero. Seus olhos sempre atentos
buscam os meus vez ou outra, como uma pergunta silenciosa.
Uma hora depois paramos no posto de gasolina para abastecer.
Nuno desce do carro e vem até nó s, ele observa Suzy se mexer
desconfortavelmente em meu colo.
— Quer que eu pegue algo para você ? — Ele se inclina ao meu lado
no banco enquanto o carro é abastecido.
— Nã o, obrigada.
— Vou pegar uma á gua, tudo bem?
Faço que sim e observo meu menino incrivelmente especial se
afastar. Nesse momento enquanto ele tenta parecer tranquilo, me
transmitindo uma segurança que jamais recebi de ningué m, sinto meu
coraçã o transbordar de amor. Se eu nã o tivesse certeza dos meus
sentimentos, seria nesse momento que eu saberia que o amo. Com todo
o meu coraçã o.
Ainda estou observando Nuno caminhando quando Suzy se mexe ao
meu lado, ela começa a tossir e preciso ajudá -la quando ela começa a
sufocar, é desesperador.
— Suzy, por favor, respira — peço tentando manter a calma quando
ela parece prestes a perder a consciê ncia. — Suzy! — grito seu nome
enquanto bato em suas costas com a mã o em concha. — Suzy, por favor,
respira — imploro descontrolada, o funcioná rio do posto vem até nó s e
pergunta se está tudo bem, mas nã o respondo, estou concentrada na
minha irmã .
Continuo batendo em suas costas enquanto ela tosse quase sem ar,
Nuno se aproxima correndo, com seus olhos grandes arregalados. A
á gua é jogada no chã o quando ele afasta o rapaz e se ajoelha ao nosso
lado.
— O que houve? — ele pergunta assustado, mas nã o digo nada, nã o
posso, nã o quero falar em voz alta o que está acontecendo, que ela está
se afogando.
Suzy se curva jogando o corpo para a frente e a sustento em meus
braços, Nuno se coloca ao meu lado, seus braços sustentando os meus,
ambos segurando-a.
— Seja corajosa, por favor, seja corajosa — digo repetidamente
enquanto ela tosse com tanta força que seu rosto ica arroxeado. —
Vamos lá , coloque para fora — incito-a ainda batendo em suas costas
até que ela começa a vomitar. — Isso, muito bem, muito bem — digo
sentindo o alı́vio me inundar quando seu rosto começa a voltar a cor
normal e ela volta a respirar.
Entã o viro meu rosto para o peito de Nuno e começo a chorar, de
medo, de alı́vio, de gratidã o.
Foi só um susto, mais um.
Só nã o sei até quando.
Abro a porta bem devagar, mas o barulho que ela faz é alto o
su iciente para fazer com que ele se vire para mim.
Fico um instante parado, olhando para aquela pessoa deitada na
cama alta e cheia de coisas esquisitas que me assustam, não o conheço,
seu rosto inchado não se parece em nada com o rosto bonito que estou
acostumado a ver todos os dias, a boca rachada não tem nada igual a que
me provocava no café da manhã me chamando de Tampinha; os braços,
inos e manchados, não são os mesmo que ingiam perder para mim na
queda de braço.
Esse não é o meu irmão.
Mesmo assim, ao olhar para ele, encontro algo que me faz
permanecer, seus olhos. São eles que me encorajam a entrar, são eles que
me fazem acreditar que essa pessoa estranha que olha para mim do outro
lado do quarto ainda é o mesmo que admiro e desejo tanto ser igual.
— Ei, Tampinha, perdeu o sono? — ele diz com a máscara barulhenta
sobre seus lábios.
A verdade é que não consigo dormir com o barulho que a máquina
faz, nem com os acessos de tosse que ele tem, nem com o entra e sai de
enfermeiras o tempo todo em seu quarto.
Não consigo dormir, porque não consigo me sentir em casa, porque
tenho medo de que, ao fechar os olhos, ele vá embora e me deixe aqui
sozinho, não durmo porque estou com raiva dele, por não conseguir
melhorar, mesmo o papai fazendo de tudo.
— Nuno, está tudo bem com você? — Ele retira a máscara.
Não vejo motivo para responder essa pergunta idiota, claro que não
está nada bem, odeio sentir medo e ultimamente é tudo o que tenho.
— Nuno — ele me chama e aperto meus dedos uns nos outros. — Você
está com medo? — ele pergunta, não quero falar a verdade, mas nunca
menti para ele.
É o nosso acordo, nunca mentir, porque a mentira esconde tudo o que
é bom e certo.
Não quero esconder o que é bom e certo do meu irmão, então abaixo
minha cabeça e falo bem baixinho, desejando que ele não consiga ouvir:
— Sim.
Mantenho meus olhos nas meias em meus pés, não quero olhar para
ele, estou envergonhado porque sei que deveria ser mais forte, mas não
consigo.
Ouço o ranger da cama quando ele se move e ergo os olhos, Matteo se
levanta e caminha devagar até onde estou, ele arrasta um suporte de
remédio junto e me pergunto por que todos esses remédios não
conseguem fazer ele icar melhor.
— Você não deveria se levantar. — Aponto para o seu corpo magro e
ele me dá um sorriso largo, mas esquisito, cheio de dor.
— A gente gosta de descumprir as regras às vezes, não é?
Matteo vem até mim, sua mão ossuda bagunça meu cabelo e é quase
como antigamente.
— Vamos lá, acho que teu problema é fome.
Meu irmão sai do quarto arrastando aquele negócio junto, quero
mandá-lo voltar para a cama, dizer que pare com isso, que o papai vai
brigar com a gente, mas não consigo, sinto falta de estar assim com ele,
então o sigo até a cozinha, onde me sento e observo meu irmão pegar o
leite e o cereal e encher um pote como se estivéssemos nos arrumando
para ir à escola.
— Aproveita que tô de bom humor, hein. — Ele coloca o pote na
minha frente e se senta.
— Não tô com fome.
— Finge que está e come, pirralho.
— Não sou mais um bebezinho para você me tratar assim! —
resmungo irritado.
— Não mesmo, e eu ico feliz em saber, o papai e a mamãe vão
precisar que você seja um homem forte e corajoso.
— Você também pode ser forte e corajoso.
— E eu sou, já viu quantas picadas eu levei? — Matteo me estende um
dos braços e desvio o olhar porque não gosto de ver ele machucado.
— Seja mais — digo, quase implorando.
— Estou tentando, pirralho.
— Tente mais.
— Prometo que vou. — Sua voz falha e olho para o seu rosto
estranho, Matteo empurra o pote um pouco mais e sorri. — Agora come.
— Por que eu deveria fazer isso?
— Porque é melhor sentir raiva com a barriga cheia.
— Não estou com raiva! — resmungo.
— Tá sim, eu também estou.
— Está?
— Você não imagina o quanto. — Ele olha bem dentro dos meus
olhos, daquele jeito que só um irmão mais velho consegue fazer sem
deixar a gente sem graça. — Me desculpe por fazer você se sentir assim.
— Sua voz soa triste e meus olhos pinicam. mexo o cereal no pote, mas
não consigo comer, minha garganta tá estranha.
— Hoje a mamãe e o papai estavam brigando de novo — mudo de
assunto, porque não gosto quando o Matteo fala assim comigo, pre iro
quando ele me chama de cuzão.
— Eu ouvi, mas não se preocupe com isso.
— Você acha que eles vão se separar?
— Eu espero que não.
— A mamãe disse que o papai não está pensando direito.
— As pessoas não pensam direito quando estão nervosas.
— Mas o papai conhece todos os remédios do mundo, uma hora ele
vai achar um que te cure — repito a frase que digo para mim mesmo
todos os dias.
— Ei, moleque, pare de se preocupar com coisas de adulto.
— Eu não consigo.
— Tente.
— Estou com medo — admito mais uma vez, agora olhando em seus
olhos.
— Nuno, aprenda uma coisa, não importa o quanto você esteja com
medo, ele não vai mudar nada, mas se você for corajoso, a dor perde a
força sobre você.
— Como um escudo?
— Exatamente, a coragem é o escudo da alma, não o abaixe nunca.
Promete?
— Prometo.
— Ele está te ajudando?
— Você não imagina o quanto. — Ele aponta para o pote. — Agora
come, cuzão. — Ele sorri, igual ele fazia quando ainda não estava doente
e, então, eu sorrio também, enquanto en io uma colher de cereal mole na
boca.
Estou apavorado.
Meu corpo treme tanto que mal consigo me mover, meus olhos
intercalam, entre a pista à minha frente e a mulher encolhida no banco
de trá s, no seu rosto quase sem cor, nos seus lá bios arroxeados.
Nã o consigo desviar, eles se parecem demais com os de Matteo.
E entã o, como um ilme antigo, escondido em um canto escuro da
minha mente, os momentos inais do meu irmã o se desenrolam na
minha mente, imagens que me obriguei a esquecer por serem dolorosas
demais, promessas que iz e que nã o consegui cumprir.
A gente se vê daqui a pouco, Tampinha...
Sua mã o fechada sobre a minha, a pulseirinha do hospital em nossos
punhos, a cor dos seus olhos, o sorriso... a esperança de poder salvá -lo.
Pisco com força algumas vezes evitando as lá grimas de caı́rem, por
Deus, nã o posso desabar, nã o agora quando ela precisa tanto de mim,
nã o quando quero ser o seu escudo.
Volto a olhar pelo retrovisor, Stella está silenciosa ao lado de Suzy,
os olhos inchados de tanto chorar estã o atentos à s necessidades da
irmã enquanto dirijo tentando nã o nos colocar em perigo, mas
desejando desesperadamente ir mais rá pido.
Mais um hora e estaremos lá .
A voz eletrô nica do GPS nos dá as coordenadas e sigo seus
comandos automaticamente, minha camiseta está ú mida das lá grimas
de Stella e meu coraçã o destruı́do pela sensaçã o angustiante de
impotê ncia. Tudo que iz foi sustentá -la em meus braços enquanto ela
chorava, me sentindo fraco e incapaz de dizer nem mesmo uma maldita
palavra.
O tempo se arrasta e, sem que ela veja, acelero um pouco mais
tentando chegar logo.
Olhos na pista, coraçã o em pedaços, mente a mil, mã os geladas.
Quando chegamos ao hospital, mal tenho tempo de parar o carro e
Stella desce correndo, o desespero em seu rosto é como uma lâ mina em
minha garganta, me sufoca, me imobiliza. Um gatilho que me lembra o
quanto somos impotentes em um momento como esse.
Desço e abro a porta de trá s, com cuidado pego Suzy em meus
braços, ela parece mais leve a cada segundo e, mesmo fraca e ardendo
em febre, seus olhos me observam por um instante e o sorriso que ela
me dá parte o meu coraçã o.
— Você é o cara — ela sussurra, com a voz rouca e frá gil, a mã o
pequena dando batidinhas em meu rosto.
— E eu sou. — Forço um sorriso enquanto caminho com ela para
dentro do hospital.
— Cuida dela para mim — Suzy sussurra em meu ouvido.
— Tá querendo se livrar da responsabilidade, né , engraçadinha?
Um homem surge ao lado de Stella, ele é alto, ainda maior que eu e
seus olhos apavorados me fazem saber de quem se trata antes mesmo
que ele se aproxime.
— Teu cara chegou — digo para Suzy.
— Ele sempre chega. — Ela sorri.
Um enfermeiro se aproxima com uma cadeira de rodas, Stella
começa a falar sobre sua condiçã o com o rapaz, Xavier se ajoelha na
frente de Suzy fazendo perguntas idiotas, enquanto ele a toca com
cuidado e carinho, fazendo com que um sorriso apaixonado ilumine o
rosto dela. E quase constrangedor de ver.
Volto para o carro e pego a bolsa de Stella, sei por experiê ncia que
ela sequer está pensando direito e, se depender da expressã o do
namorado de Suzy, ele está ainda pior. Quando volto para o hospital,
Stella está falando com uma enfermeira e sua irmã já se foi.
Quando me vê chegando, ela vem até mim, o olhar que ela me dá faz
com que eu me sinta importante, especial, e quando seus braços se
fecham em minha cintura, sinto o suspiro que ela dá por inalmente ter
conseguido trazer sua irmã a tempo.
— Ela vai icar bem — digo, com meus lá bios em seus cabelos, meus
braços em sua volta e um desejo quase sufocante em meu coraçã o de
que eu esteja certo.
Ela precisa icar bem.
Xavier nã o me deixa icar com ela, como um cã o de guarda,
desesperado e assustado, ele praticamente me expulsa do hospital, já
sabemos que a estadia será longa, pneumonia sempre é algo grave na
sua situaçã o.
Entã o depois de fazê -lo me prometer mil vezes que vai me dar
notı́cias, deixo que Nuno me leve embora. Dou o endereço do
apartamento deles e seguimos em silê ncio até lá . Tento dizer algo,
agradecer por ele estar aqui, pedir desculpas por tê -lo colocado nessa
situaçã o, sei lá , qualquer coisa, mas estou tã o apavorada que sei que,
quando eu abrir a minha boca, vou começar a chorar de novo, e tudo o
que nã o preciso agora, é perder o controle.
Observo a cidade que nunca dorme pela janela, quase seis meses
sem vir aqui me faz perceber o quanto ela é acelerada, cheia,
barulhenta, algo que, embora tenha feito parte da minha vida, agora me
parece exagerado.
Olho para o garoto tranquilo ao meu lado, seus olhos cansados me
analisam em silê ncio, sei que ele tem mil perguntas a fazer, mas seus
lá bios estã o selados desde o momento em que digitou o endereço no
GPS e, pelo que conheço dele, icará assim até que eu comece a falar.
Meia hora depois chegamos no apartamento de Suzy e Xavier,
subimos o elevador de mã os dadas, o cansaço e a exaustã o fazem com
que nem ao menos nos demos conta de quã o importante esse gesto
simples e natural é . Sei que vou repassar cada segundo dessa noite
depois quando tudo estiver bem, mas nesse momento nã o consigo.
Entã o deixo que Nuno me leve para dentro do apartamento
desconhecido para ele, olho em volta me recordando a ú ltima vez em
que estive aqui, cheia de sonhos e esperança de que começaria uma
nova fase da minha vida, uma onde eu nã o precisaria contar moedas no
im do mê s para que Suzy possa icar bem.
— Você está com fome? — ele pergunta olhando para a tela do
celular.
— Nã o, só estou cansada.
— Pizza ou hambú rguer? — ele pergunta ainda olhando para o
celular.
— Nã o estou com fome, Nuno.
— Vamos de pizza entã o — ele diz daquele jeito fofo e mandã o, que
faz um sorriso se espalhar em meus lá bios mesmo diante do cansaço.
Caminho até onde ele está e espalmo minhas mã os em seu peito
fazendo com que ele olhe para mim.
— Obrigada — sussurro.
— Eu pedi de alho com espinafre — ele brinca e meu peito se in la
de tanto amor.
— Eu amo espinafre. — Ele enruga o nariz de um jeito fofo e se
inclina para beijar minha testa.
— Como você está ?
— Um pouco tensa, mas sei que agora vai icar tudo bem, já estamos
acostumados, sabe?
— Eu poderia ter feito algo para evitar?
— Claro que nã o, nem pense nisso.
— Difı́cil nã o pensar. Ela poderia...
— Shhh... — Coloco o dedo sobre seus lá bios impedindo-o de
terminar a frase que assombra minha vida. — Nã o vá por aı́, de
verdade, nã o se culpe, nã o havia nada que você pudesse fazer. Suzy é
assim, à s vezes nem ela mesmo percebe quando tudo começa a icar
ruim.
— Foi muito rá pido.
— Ela está morrendo, Nuno, pouco a pouco a ibrose está levando-a
de mim.
Ele nã o diz nada, posso ver o medo em seus olhos, como um
fantasma de um passado que ele nã o quer lembrar.
— Quanto tempo até a pizza chegar? — mudo de assunto.
Nuno olha para o aplicativo no celular.
— Quarenta minutos.
— O que acha de tomarmos um banho? — pergunto olhando dentro
dos seus olhos sexys e intensos.
Nuno olha para o corredor, talvez tentando adivinhar qual dessas
portas é a que nos leva ao banheiro, nã o espero por sua resposta,
seguro sua mã o e o levo até a ú ltima delas, o apartamento deles é
pequeno, mesmo assim é trê s vezes maior que o meu e o banheiro,
grande o su iciente para que possamos tomar banho juntos sem
precisar nos esbarrar.
Tiramos nossas roupas em silê ncio e entramos no box juntos, a á gua
quente relaxa nossos mú sculos e passamos um bom tempo curtindo a
sensaçã o, Nuno lava minhas costas, salpica beijos carinhosos em meu
ombro, me sinto cuidada, amada, protegida por um garoto que, até seis
meses atrá s, eu jamais imaginaria que poderia ser capaz. Viro-me de
frente para ele e começo a beijá -lo, nã o penso muito no que estou
fazendo, apenas beijo-o com todo o meu desespero, como se precisasse
desse beijo para aplacar a minha tristeza, o meu medo, a minha dor.
— Eu preciso de você — peço, enquanto seguro seu pau em minha
mã o, tocando-o como ele gosta.
— Stella... — ele me chama enquanto minha boca passeia por seu
peito. — Stella... — ele repete enquanto sua ereçã o começa a crescer em
minha mã o, provando que estou atingindo o que quero.
— Me come — sussurro em seu ouvido, sentindo meu corpo inteiro
se arrepiar com minha ousadia. Nuno me afasta, seus olhos carregados
de tesã o me observam por um instante.
— Por quê ?
— Porque eu preciso — admito sentindo o coraçã o acelerar com
essa verdade. Eu preciso dele, muito mais do que pude imaginar até
hoje. — Por favor.
Ele acaricia meu rosto com os nó s dos dedos, esperando, analisando
meu pedido enquanto o masturbo, aumentando a força, exatamente
como ele gosta enquanto ergo-me na ponta dos pé s e beijo seu queixo,
seu maxilar, seus lá bios.
— Stella... tem certeza?
— E a ú nica certeza que tenho nesse momento, quero você , Nuno,
quero você dentro de mim.
Ele me vira de costas empurrando meu rosto no azulejo enquanto
sua outra mã o separa minhas pernas.
— Tem certeza? — ele pergunta mais uma vez e balanço a cabeça
con irmando. Nuno nã o é gentil e agradeço por isso, nã o quero
gentileza, quero sexo duro e sujo, e ele me dá o que tanto preciso.
— Mais forte — peço quando ele hesita e ele faz exatamente como
peço.
Transamos em silê ncio, apenas o som das suas estocadas e dos
meus gemidos colidem com o som da á gua que cai ao nosso redor. Sinto
falta das suas palavras sujas, dos seus beijos, do seu toque, Nuno
manté m as mã os na parede e sua boca nã o chega nem perto da minha
enquanto ele me penetra com força me fazendo gritar e, quando goza,
sinto seu corpo vacilar, suas costas tremer, sua pele sensı́vel se arrepiar,
sinto o peso do meu pedido quando ele apoia a cabeça em minhas
costas ainda em silê ncio, o silê ncio que ele tanto odeia e que permanece
enquanto choro. Eu o amo com todo o meu coraçã o quando seus braços
me envolvem, quando ele deixa um beijo casto em meus cabelos,
quando ele me diz que tudo vai icar bem, deixando claro que isso foi
por mim, apenas por mim.
Nos trocamos e voltamos para a sala ainda quietos, arrumo a
bagunça que Xavier deixou pelo caminho porque sei que ele nã o vai ter
cabeça para arrumar e Suzy vai surtar quando voltar para casa.
Organizaçã o é algo importante para ela, talvez seja por nã o ter controle
sobre a sua pró pria vida.
Quando a pizza chega devoramos rapidamente, estamos famintos
demais e o silê ncio faz a massa pesar em meu estô mago, Nuno nã o olha
para mim e tenho a sensaçã o de que ele está escondendo algo que ele
acha que nã o sou capaz de lidar. E como a grande covarde que sou, eu
injo que nã o noto porque tenho medo de que tudo isso tenha sido
demais para ele.
A receita perfeita para uma grande merda.
Limpamos a cozinha, guardamos o que sobrou, ligo para Xavier, e
ele me diz que Suzy está sendo medicada. Sei que será uma longa noite
para eles, assim como tantas outras que já tivemos e me sinto um pouco
errada por nã o estar lá com ela, apesar de saber que esse momento
tudo o que ela quer é a mã o dele sobre a sua.
Quando desligo, Nuno está me observando, seus olhos parecem tã o
tristes e cansados, repletos de segredos que nã o conheço e dos quais
tenho medo. Engatinho até onde ele está , do outro lado do sofá , ele
afasta suas pernas à minha espera e, quando me coloco no meio delas,
ele me envolve com seus braços.
— Está se sentindo melhor? — ele pergunta enquanto afasta uma
mecha molhada do meu cabelo.
— Sim. Ela está em boas mã os.
— Otimo — ele diz, com a voz rouca de exaustã o.
— E você ?
— O que tem eu?
— Está chateado?
— Eu deveria?
— Me desculpe, Nuno. — Afasto-me para olhar em seus olhos.
— Pelo quê ?
— Por ter pedido para você transar comigo daquele jeito.
— Por que pediu aquilo? — Ele franze o cenho, confuso.
— Eu estava chateada.
— E me usou para se punir.
— Eu sinto que te magoei.
— Um pouco, nã o gostei do que izemos.
— Por que nã o disse nã o?
— Porque nã o consigo dizer nã o para você .
— Nã o quero que ique triste comigo.
— Entã o cuidado com o que você pede para mim.
Meu coraçã o dó i com a sinceridade das suas palavras e a tristeza em
sua voz, ele parece distante e melancó lico. Mesmo assim, beija minha
boca delicadamente e me puxa para um abraço que me enche de
carinho.
— Eu odeio te ver triste — ele diz como uma con issã o. — Se tiver
algo que eu possa fazer, qualquer coisa que seja, para que você se sinta
bem, entã o eu vou fazer.
— Diga nã o quando nã o estiver feliz.
— Se você estiver feliz, eu estarei feliz. — Ergo o rosto para
observar o menino sincero e bonito, que nã o tem medo das palavras. —
Mas nã o me peça mais isso, por favor, nã o quero me sentir usado.
— Me perdoe, nã o farei mais.
— Certo. — Ele me abraça e me deixo ir.
— Eu te amo — admito.
— Eu també m te amo.
Planto um beijo carinhoso em sua bochecha, Nuno sorri
timidamente e me aninho em seus braços encaixando meu rosto na
curva do seu pescoço.
— Acho que você deveria dormir — Nuno sussurra, os dedos
passeando por meus cabelos em uma carı́cia delicada e sem intençõ es.
— Nã o consigo, estou agitada demais.
— Entã o vamos conversar.
Me ajeito em seu colo e começo a passar meus dedos por seu braço,
sentindo a maciez dos pelos tocando minha pele.
— Faltam seis meses para o ano acabar — digo encarando uma
pintinha em seu antebraço.
— Os mais longos da minha vida.
— Tecnicamente, mais quatro meses de aula.
— Os mais longos da minha vida — ele repete e sorrio sentindo um
frio em minha barriga ao pensar no futuro.
— E entã o estaremos livres.
— Livres, gosto dessa palavra. — Ele beija meus cabelos e fecho os
olhos antes de fazer a pró xima pergunta: — Quais seus planos para o
ano que vem?
— Eu nã o faço ideia — ele responde com a voz vazia, triste.
— Como nã o faz? Deveria estar se preparando para o vestibular. —
Me afasto para olhar em seus olhos.
— Nã o importa. — Ele ergue os ombros parecendo mais triste a
cada frase dita, como se o futuro fosse uma banalidade.
— Como nã o, Nuno? Você deve ter algum sonho, nã o tem?
— A ú ltima vez que quis alguma coisa, eu ainda estava na fase em
que precisava escolher entre astronauta e bombeiro ou algo do tipo.
— Por quê ? — pergunto, mas já nã o tenho mais certeza se quero
saber a resposta.
— Sonhar é perigoso, Stella.
— Sonhar nos mantê m vivos.
— Entã o talvez eu já nã o esteja mais. — Ele me dá um sorriso torto,
mas nã o consigo achar graça na sua brincadeira. — Se perguntassem ao
Nuno de onze anos, o que ele gostaria de ser quando crescesse, a
resposta seria igual o meu irmã o, eu o amava. — Ele me dá um sorriso
tı́mido enquanto fala. — Nã o, eu acho que eu o idolatrava.
— E ele?
— Ele me amava també m, com certeza me apoiaria em qualquer
coisa que eu quisesse ser, seja astronauta, bombeiro. Uma vez ganhei
um telescó pio e ele passou a noite comigo olhando as estrelas, disse o
nome de todas e eu o achei o cara mais inteligente do mundo. Anos
depois, descobri que ele tinha inventado a maioria das coisas, mas,
naquela noite, eu o achei o má ximo.
— Ele tinha o seu humor entã o.
— Ele era pior que eu.
— Acho impossı́vel.
— Ela era a minha alegria. Todos os dias, ele me levava à escola e me
obrigava a fazer o meu dever de casa. Você sabe, meu pai nunca esteve
em casa tempo su iciente para isso e minha mã e sempre esteve
ocupada com outras coisas, é ramos nó s dois um para o outro. Eu o
seguia como um discı́pulo e, quando o Matteo morreu, a vida perdeu o
sentido para mim e eu acho que parei de sonhar. — Nuno encara suas
unhas, enquanto seus olhos se perdem em lembranças dolorosas. — Eu
me sentia mal em ver meus pais chorando dia e noite, eu me
perguntava o que eu poderia fazer para aliviar a dor deles, me sentia
culpado, infeliz.
— Ah nã o, Nuno... — lamento já deduzindo o rumo dessa histó ria.
— Eu queria tanto que meu pai nã o achasse que icou com o pior
ilho, que prometi a ele que seria como o Matteo. — Nuno encara
nossas mã os unidas enquanto fala, com um sorriso envergonhado. —
Claro que ele nã o acreditou em mim, eu era só um pirralho chorã o e
bobo, mas, conforme eu fui crescendo, todas as vezes que podia, eu
reforçava a ele que faria o que ele quisesse.
— Por quê ?
— Porque eu queria ser o ilho que ele perdeu.
— Mas você nã o é o Matteo.
— Eu sei que nã o, isso é o pior, porque eu sei que, por mais que eu
faça, nunca serei ele.
— E você queria ser amado como o Matteo foi.
Nuno balança a cabeça, a con irmaçã o o deixa ainda mais sem graça.
— Pois é , nã o deu muito certo. — Ele ergue os ombros e me olha por
baixo dos cabelos desgrenhados.
— Você nã o pode fazer isso.
— As vezes, a gente se entrega a algo com tanta força, que nã o
consegue mais achar um motivo forte para reagir.
— E a sua vida, ela por si só já deveria ser um bom motivo.
— Sinceramente, Stella, eu nã o ligo, desde que seja apenas a minha,
por mim tanto faz.
— E você pretende fazer qual faculdade?
— Administraçã o, Quı́mica, Relaçõ es Exteriores, ainda nã o tenho
certeza.
— O que o seu pai escolher.
— Exatamente.
— Isso está errado, Nuno, você nã o pode ser infeliz para agradar o
seu pai.
— E o que eu devo fazer?
— Diga que nã o quer, que tem outros sonhos.
— Mas eu nã o tenho, Stella, meu sonho era poder trazer meu irmã o
de volta, restaurar a minha famı́lia, voltar a ser o pirralho que
acreditava em estrelas.
— Entã o descubra seus sonhos, volte a olhar as estrelas, encontre
nelas um objetivo de vida.
Ele ergue o rosto e olha para mim, vejo um brilho de tristeza
iluminando seu rosto jovem e triste.
— Meu objetivo hoje é te fazer feliz.
— Entã o busque algo que te faz bem, uma pessoa infeliz é incapaz
de fazer algué m feliz, isso é uma utopia. Uma hora você vai ruir e eu nã o
vou suportar te ver sofrendo, seja feliz e eu serei també m.
Nuno segura meu rosto em suas mã os, os lá bios se movem como se
fosse falar algo, ele me olha por um tempo, entã o balança a cabeça e
seja lá o que se passa por ela se vai.
— Chega de falar de mim, me conte algo sobre você .
Nã o consigo pensar em nada, minha mente ainda está tentando
absorver tudo o que ele acabou de falar, mesmo assim, me obrigo a
dizer algo:
— Eu nunca vi a neve.
— Sé rio? — Con irmo com a cabeça e ele volta a olhar para nossas
mã os. — Acredite, nã o é tã o legal como parece.
— Quase tudo nessa vida é assim, superestimado.
— Pois é .
— Eu amo o Natal — continuo quando vejo seus olhos se
suavizarem.
— Você parece uma menininha, só falta dizer que acredita em papai
Noel.
— Nã o, mas gosto da imagem que ele representa. — Seus olhos se
estreitam e um sorriso debochado estampa seu rosto.
— Que imagem?
— A de sonhar.
— Viu só ? Uma menininha.
— Talvez eu seja, Suzy costuma dizer que uma parte minha nã o
cresceu, deve ser por ela que você se apaixonou.
— Nã o, pode ter certeza de que eu me apaixonei pela mulher.
Sinto meu rosto aquecer quando ele fala de mim dessa forma. Passo
minha mã o por seu maxilar forte e bonito, admiro cada detalhe do seu
rosto de garoto e me pego surpresa com a forma como me sinto ao seu
lado, talvez seja isso, Nuno extrai de mim a menina sonhadora que Suzy
sempre me acusa de ser.
— Tenho ciú mes da Cindy — admito, meus dedos ainda tocando sua
pele e, quando suas sobrancelhas se erguem, me sinto meio idiota por
ter falado isso.
— A Cindy ainda? Você só pode estar brincando.
— Nã o, eu estou falando a verdade. Tenho ciú mes de todas as
meninas de Santo Egı́dio.
— Por que você teria ciú mes de algué m?
— E por que eu nã o teria?
— Porque você é a dona do meu coraçã o. — Ele se aproxima, com
seus lá bios bem perto do meu ouvido. — E do meu pau.
Reviro os olhos, mas nã o consigo impedir um sorriso imenso de
surgir em meus lá bios.
— A Cindy te conhece — explico, me achando mais boba a cada
segundo, mas talvez seja mesmo. Estar apaixonada nos torna irracional,
boba.
— O Ivan també m me conhece.
Dou a ele um olhar que diz exatamente sobre o que estou falando e
ele balança a cabeça, ainda sem acreditar.
— Eu sei, é idiota, mas nã o posso controlar.
— E por causa do sexo?
— Nã o, o sexo por si só é apenas um ato, como comer quando se
tem fome.
— E nem sempre se come aquilo que se deseja — ele diz com um
sorriso safado.
— Nã o, nem sempre.
— Entã o o que é que a deixa assim?
— A cumplicidade, a con iança, a certeza de que ela estará lá por
você e vice-versa. — Olho para Nuno, mas ele nã o parece acreditar
muito no que eu digo. — Tá , eu també m nã o gosto de pensar que ela já ...
— Respiro fundo, sabendo que nã o vou falar a verdade, que odeio
imaginar ele se entregando aos braços de outra garota. — Você sabe.
— Eu odeio o Tony.
— O quê ? — pergunto surpresa.
— Odeio a forma como ele olha para você , odeio as fofocas que
rolam nos corredores, odeio como, à s vezes, minha mente idiota me faz
acreditar como ele poderia ser um cara melhor para você .
— E como ele poderia ser melhor?
— Nã o sei, eu mando minha mente se foder antes dela continuar a
argumentar.
Começo a rir e entã o o beijo.
— Nó s somos ridı́culos, nã o somos?
— Totalmente. — Ele passa a lı́ngua no lá bio inferior, um sorriso
divertido se forma enquanto ele me puxa para mais perto de si. —
Posso te falar uma coisa? — ele sussurra como uma con idê ncia em
meu ouvido.
— Todas que você quiser.
— Eu nunca disse que amo uma garota antes de você .
— Você está dizendo isso para que eu nã o tenha ciú mes?
— Nã o, eu gosto de saber que você tem ciú mes, equilı́brio à s vezes é
bom, eu passo metade do meu tempo me sentindo um idiota, lutando
para provar que nã o sou um moleque, gosto de saber que você se sente
um pouco insegura també m.
— Acredite, eu me sinto.
— Só nã o duvide nunca do quanto eu te amo.
— Isso já deve bastar, né .
— Espero que sim, porque eu seria capaz de qualquer coisa por
você .
— Me desculpe, eu nã o deveria ter dito isso, é ridı́culo e injusto.
— Por favor, Stella, sempre seja sincera comigo.
— Mesmo que eu seja uma idiota?
— Se for para dizer que nã o me quer com nenhuma outra garota,
entã o ique à vontade para ser a mulher mais idiota do mundo — ele
brinca.
— Eu serei.
Nuno ergue meu queixo e me olha dentro dos olhos.
— E nã o se esqueça do que eu vou falar agora: eu sempre farei o
melhor por você , mesmo que talvez pareça que nã o. — Ele parece sé rio
demais enquanto fala olhando dentro dos meus olhos.
— Por que você está falando isso?
— Só quero que você me prometa que nã o vai esquecer disso.
— Eu nã o vou.
— Otimo. — Ele me beija, dessa vez um beijo longo e cheio de
desejo que acende cada pontinho dentro de mim, como luzinhas de
Natal, iluminando a garota boba e apaixonada que sou.
Odeio falar, sobre meus sentimentos, meus medos, minhas dú vidas,
sinto sempre que o dinheiro e o status nublam o que me a lige, como se
fossem apenas birra de um moleque mimado, poré m hoje estou mais
sensı́vel que o normal, uma simples trepada me deixou me sentindo
mal e sei o motivo, estou acumulando todas as merdas do mundo
dentro de mim. Enquanto abro meu coraçã o para Stella, ela me observa
em silê ncio, quase como se fosse capaz de sentir a minha dor, respeita
minha histó ria, me incita a falar, me faz sentir importante. Algo raro
para algué m que sente que morreu no dia em que nã o foi capaz de
salvar seu irmã o.
E a primeira vez que falo sobre isso com algué m alé m de Ivan que
conhece minha histó ria, me sinto leve e respeitado, acima de tudo, me
sinto amado, como nunca me senti antes. Stella me olha com admiraçã o,
paixã o, desejo, ela me olha como um homem sonha ser olhado por uma
mulher, como se eu fosse o ú nico e, porra, eu quero ser.
Observo Stella se mover pelo quarto, a luz do abajur ilumina as
curvas suaves do seu quadril, seus seios sem o sutiã balançam
sensualmente, a bunda que tanto amo implora por minhas mã os. Eu
poderia passar a vida aqui admirando-a com um sorriso idiota.
Estamos no quarto de hó spedes, um lugar completamente estranho
para mim, uma cama que nã o conheço, mesmo assim me sinto em paz,
como se esse fosse o meu lugar. Até esse momento nunca me imaginei
desejando estar assim com nenhuma garota, estou exausto e cada
mú sculo do meu corpo reclama, meus olhos ardem com o sono
acumulado, meu peito dó i com todas as lembranças dolorosas que
revivi essa noite, estou tenso e minha cabeça tá uma droga com todas as
coisas que estou escondendo dela por saber que esse nã o é o momento,
Stella já tem merda demais para lidar hoje, mesmo assim o sorriso nã o
sai dos meus lá bios. Estou feliz, absurdamente feliz.
Percebo entã o como a felicidade é algo relativo, que nã o tem nada a
ver com o lugar onde estamos, ou o que possuı́mos.
— Você está com uma cara de safado — ela diz me olhando sobre o
ombro.
— Se você tivesse a mesma visã o que eu, també m estaria.
Stella ergue uma sobrancelha.
— E se você estivesse aqui, garanto que teria uma visã o muito
melhor.
— Tudo é uma questã o de perspectiva.
Ela revira os olhos e volta a mexer nas gavetas.
— O que você acha de parar de mexer em tudo e vir para cá ? — Bato
no colchã o ao meu lado chamando sua atençã o.
— Eu só preciso organizar a bolsa da Suzy, amanhã de manhã nã o
vou me lembrar de tudo que preciso levar.
Ela continua concentrada em encontrar o que a sua irmã precisa,
abro as mensagens e encontro uma da minha mã e perguntando se
estou bem. Respondo dizendo que estou e que nã o se preocupe, é tudo
o que ela quer saber e é tudo o que tenho para dar a ela. Ivan també m
mandou uma, querendo saber como estã o as coisas. Respondo em duas
linhas e é o su iciente, ele sabe que, quando eu voltar, contarei tudo.
Sempre foi assim, uma vida inteira de tragé dias é o su iciente para
saber que, à s vezes, nã o dá para guardar tudo para si, eu tenho Ivan e
ele tem a mim.
Há mensagens de Maddie, Beth e Cindy, respondo a cada uma com
uma frase curta, uma sensaçã o boba enche meu coraçã o ao lembrar da
expressã o tı́mida de Stella ao admitir seus ciú mes por minha amiga.
Sei que parece estranho, geralmente nã o gosto de garotas pegajosas
e inseguras, mas Stella nã o é qualquer garota e saber que ela se
incomoda com minha histó ria com Cindy me faz sentir especial. Nã o é
como se ela fosse me impedir de estar perto da Cindy, ela sabe que a
amo e que estarei lá por minha amiga sempre, e tenho certeza de que,
se um dia Cindy precisar de mim, Stella será a primeira a me incentivar
a ajudá -la. Mesmo assim gostei de ouvi-la falar, talvez tenha a ver com o
fato que de estou completamente apaixonado por ela, isso torna suas
inseguranças especiais, pedacinhos de demonstraçã o de afeto.
— Maddie te mandou um beijo — digo enquanto respondo
mensagens.
— Diz que mandei outro, e que quero o relató rio na sexta-feira.
— Desculpe, mas nã o mando recado de professora.
Stella me olha com surpresa e um ar divertido.
— Mas eu nã o sou qualquer professora. — Ela vem até a cama e se
ajoelha sobre mim, engatinhando até meu colo. — Sou? — pergunta
quando se senta em meu quadril, os cabelos caem em cascatas em
torno do seu rosto lindo e, mesmo morto de cansado, sinto meu corpo
acordar.
— Tsc, tsc, tsc... que coisa feia, professora tentando seduzir um
aluno.
Ela retira o celular da minha mã o e o joga na cama enquanto rebola
o quadril e fecho os olhos tentando manter o controle. Nã o posso ser
assim tã o fá cil para ela, é humilhante.
— Eu acho que tentando nã o é bem a palavra. — Stella se inclina
sobre mim, o cheiro do sabonete que esfreguei em seu corpo inunda
meus sentidos, seus lá bios em meu ouvido sussurram as palavras, me
provocando. — Nã o é , Nuno?
Giro na cama, colocando-a sobre mim, Stella dá um gritinho agudo
que silencio com um beijo duro, ela enrosca suas mã os em meu pescoço
e as pernas em meu quadril, me prendendo com seu corpo pequeno.
Estou completamente rendido a essa mulher e ela nem faz ideia disso.
Ficamos assim, nos olhando por um momento, meus braços
estendidos ao lado da sua cabeça, nossos peitos subindo e descendo
com a força da nossa respiraçã o. Stella passa a mã o em meu rosto, seus
olhos percorrem o mesmo caminho que seus dedos enquanto admiro a
beleza da mulher que tem meu coraçã o na palma da sua mã o.
— Eu nã o sei o que teria feito sem você essa noite — ela sussurra
enquanto sua mã o desce por meu pescoço e se enrosca em meu cabelo.
— Você daria um jeito. — Tento diminuir a importâ ncia do que iz,
porque nã o sei lidar com a forma como ela me olha, cheia de gratidã o.
— Sim eu daria, mas você sabe do que estou falando.
— Se for do banho, eu sei — brinco e me inclino para deixar um
beijo em sua boca.
— Nunca serei capaz de agradecer. — Ela continua ignorando
minhas tentativas de diminuir a importâ ncia.
— Nã o há necessidade de agradecer, Stella, eu estou onde quero, iz
por você , pela Suzy, mas principalmente por mim.
— Por quê ?
— Porque eu só me sinto em paz quando estou com você .
Ela me puxa para um beijo cheio de paixã o e me deixo levar,
sustentando o peso do meu corpo enquanto sinto a maciez das suas
coxas em meu quadril, e a forma como seu corpo pequeno se encaixa
tã o bem embaixo do meu, permitindo que sua lı́ngua provoque os
cantos mais ı́ntimos da minha boca.
— Sabe o que estou pensando? — ela pergunta enquanto beijo seu
pescoço, a necessidade de estar dentro dela cresce à medida que seu
corpo se esfrega no meu.
— Hum... — Incapaz de afastar minha boca da sua pele, sinto seus
dedos me arranhando e gemo de prazer quando penso nas marcas que
ela deixará amanhã .
— Que é a primeira vez em que estamos em uma cama — ela
responde e ergo o rosto para olhar para ela.
— Entã o acho que precisamos comemorar — brinco e, quando ela
se ergue para me beijar novamente, tudo a minha volta se apaga, a dor,
o cansaço, o medo, o passado e, principalmente, o futuro.
Acordo com o som da sua voz ao telefone, preciso de um instante
para me lembrar onde estou, viro-me na cama e nã o a encontro em
lugar algum, Stella está na sala, a voz alterada enquanto fala com
algué m.
Olho para o chã o e nã o encontro a bolsa de Suzy no lugar onde ela
deveria estar, puxo o celular e solto um palavrã o quando noto a hora,
trê s noites em claro izeram um bom estrago em mim porque nã o
consigo lembrar a ú ltima vez em que dormi tanto.
Levanto e visto a calça irritado, saio em direçã o a sala e a encontro
sentada no sofá , com um monte de papel a sua frente enquanto ela
digita algo no telefone. Stella nem ao menos nota a minha presença,
alheia a tudo a sua volta enquanto balança a cabeça como se nã o
compreendesse por que um mais um sã o dois.
Observo-a morder o cantinho da unha, os olhos passeiam por contas
e boletos, papé is hospitalares e um mundo de coisas que nã o faço ideia
do que seja, mas que é grave o su iciente para que ela pareça
desesperada, seus olhos se erguem quando ela me vê chegar e me sento
na mesinha à sua frente, tentando ignorar os papé is.
— Oi — ela diz forçando um sorriso, mas seu nariz está vermelho e
seus olhos inchados indicam que ela chorou enquanto eu dormia,
maravilha.
— Por que nã o me acordou?
— Você estava cansado.
— Você també m. — Ergo os ombros sem aceitar sua justi icativa.
— Eu nã o consigo dormir.
— Sã o quase uma da tarde, Stella — digo mais irritado do que
gostaria.
— Eu nã o percebi a hora, estava ocupada.
— Onde estã o as coisas da Suzy?
— Eu levei para ela.
A raiva nubla minha visã o.
— E por que nã o me chamou? Eu poderia te ajudar.
— Nã o quis te incomodar. — Ela desvia o olhar, limpando o nariz
com as costas das mã os.
— Você nunca incomoda, Stella. — Minha voz sai baixa, rouca do
sono. — Quantas vezes mais vou precisar dizer isso?
— Eu sei, desculpa.
— Nã o peça desculpas se tiver a intençã o de fazer novamente —
digo a cada frase, sentindo a raiva aumentar.
Ela começa a recolher os papé is como se eu nã o fosse capaz de
reconhecer a fonte das suas lá grimas e a raiva explode dentro de mim.
— Está tudo bem? — pergunto apontando o queixo para a bagunça
que ela está fazendo.
— Sim — ela diz baixinho, como se mentir estivesse exigindo tudo
dela.
— Stella. — Seguro suas mã os, forçando-a a olhar para mim. —
Quer fazer o favor de olhar para mim? — exijo e ela solta um suspiro
longo e profundo, com os ombros exaustos desabando.
— Eu tive uma discussã o com o Xavier.
Olho novamente para a pilha de papé is, meus olhos se prendem na
folha de cima, uma conta hospitalar, alta o su iciente para fazer
qualquer pessoa icar nesse estado.
— Ele te magoou?
— Ele está nervoso, todos estamos.
— Ele te fez chorar? — pergunto com a voz fria enquanto imagino
meu punho socando a cara do maldito que a machucou.
— Nã o, quer dizer, nã o de propó sito.
— Stella, você está fazendo de novo! — a repreendo.
— O quê ?
— Nã o me deixe de fora.
— Ou o quê ? Você vai lá bater nele como fez com o Enzo? — Sua voz
é suave apesar da lembrança.
— Nã o, mas nã o vou deixar que ele te magoe.
— Nã o foi nada disso. — Ela me dá um sorriso falso, que me faz
desejar bater ainda mais naquele otá rio. — Ele só estava me
escondendo algumas coisas tentando me proteger, mas acabei
descobrindo.
— Entã o me conte o que foi porque nã o estou gostando de como
você me parece.
— Ele acha que estou fazendo mais do que posso.
Seus olhos marejados voltam a olhar para a pilha de papé is,
responsá vel por suas lá grimas e quero queimar cada uma delas.
— E você está ?
— Nã o, eu acho que nã o.
— Você acha?
— Eu aceitei esse cargo na escola para isso, Nuno. — Ela segura a
pilha em suas mã os. — Para poder ajudar o Xavier, é desleal o que ele
está fazendo.
— Ele se preocupa com você , Stella, e ele nem viu onde você está
morando, porque, se visse, tenho certeza de que faria pior.
— Nã o é comigo que ele tem que se preocupar, é com a Suzy, é ela
quem precisa de cuidado.
— E quem cuida de você ?
— Eu nã o preciso — ela responde rapidamente, como uma frase
pronta, decorada, que, de tanto repetir, escapa dos seus lá bios antes
mesmo que ela pense.
— Claro que nã o, você é a Mulher-Maravilha.
— Estou acostumada a isso.
— Talvez seja por isso que você está desmoronando desse jeito. —
Ela ergue os olhos vermelhos. — Todo mundo precisa de cuidado, Stella
— digo, sentindo meu coraçã o dolorido dentro do peito.
— Eu só preciso respirar um pouquinho — ela diz em meio a mais
uma onda de lá grimas, que começam a escorrer por seus olhos. — Só
um pouquinho, já vai passar.
— Porra, Stella...
E é nesse momento, enquanto a puxo para meu colo, segurando-a
junto a mim, ouvindo o soluço escapar da sua garganta, enquanto a
pilha de papé is cai no chã o, que descubro o verdadeiro signi icado
desse sentimento louco e poderoso que corre em minhas veias.
Amar é isso, é cuidar de quem é importante, é colocar a necessidade
do outro acima da sua, é nã o ter medo de fazer uma escolha, mesmo
que isso signi ique o im dos seus sonhos.
O dia passa voando, ou talvez seja a minha mente que se perdeu no
meio das horas. Tudo o que consigo fazer é pensar em nú meros, os
nú meros impressos nas folhas de papel que encontrei por acaso
enquanto arrumava a sala, os nú meros que Xavier e Suzy esconderam
de mim durante todos esses meses, me fazendo acreditar que tudo
estava sob controle quando, na verdade, eles nunca estiveram em pior
situaçã o. Os nú meros de dias que estã o levando minha irmã embora aos
pouquinhos.
Era para eles estarem pagando as prestaçõ es do apartamento, no
entanto, estã o afundando em dı́vidas hospitalares e empré stimos. Me
sinto traı́da, enganada, exausta. Tudo o que iz, a escolha de me afastar
de Suzy, de aceitar esse cargo, o medo de perder meu emprego, tudo
isso para ser excluı́da na primeira oportunidade.
— Você quer conversar? — Nuno pergunta enquanto dirige.
— Nã o.
— Stella, icar assim nã o ajuda em nada.
— Eles mentiram para mim — digo ainda olhando para o trâ nsito
caó tico de Sã o Paulo, relembrando o quanto sempre odiei os horá rios
de pico.
— As vezes, as pessoas mentem. Isso nã o signi ica que eles nã o se
importam com você . As vezes, a mentira é a ú nica opçã o.
— Eles me izeram acreditar que estava tudo sob controle quando
nã o estava.
— E o que você poderia fazer para mudar isso? — Ele parece um
pouco mais irritado enquanto divide sua atençã o entre o trâ nsito e
nossa conversa.
— Eu nã o sei, eu daria um jeito. — Esfrego minhas tê mporas,
sentindo uma onda de dor de cabeça me atingir.
— Talvez seja por isso que eles nã o te contaram.
— Como assim?
— Eles nã o querem que você dê um jeito.
— Você nã o sabe o que está dizendo — digo na defensiva.
— Eu posso nã o saber o que é viver com uma doença, mas eu sei o
que é carregar um fardo e isso nã o é algo que eu queira para algué m
que eu ame — ele diz com a certeza de quem sabe o que está falando.
— Droga! — esbravejo. — Isso nã o é justo, logo agora que tudo
estava indo bem — choramingo, me odiando por nã o ter sido mais
atenta. Se eu tivesse prestado mais atençã o...
— Pare com isso, Stella, ningué m está te culpando, tenho certeza de
que eles sabem que você já fez mais do que já pode.
— Mas eu prometi.
— Nem sempre podemos cumprir nossas promessas.
Olho para o seu rosto sentindo suas palavras atingirem meu
coraçã o, nã o quero chorar, embora meus olhos estejam inchados, sinto
que quanto mais choro, pior me sinto. Ao invé s disso, me inclino sobre o
banco e deixo um beijo carinhoso em sua bochecha.
— Você tem razã o — digo me esforçando para acreditar nessas
palavras.
— Eu sei, eu sempre tenho. — Ele pisca para mim e, por um
momento, sinto meu coraçã o um pouco mais leve.
Uma semana.
E o tempo que leva para que eu perca a minha falsa paciê ncia, para
que eu comece a acreditar que algo terrı́vel pode ter acontecido. A ú nica
coisa que ainda me impede de enlouquecer é Suzy. Em meio ao caos, ela
inalmente voltou para casa. Ainda está se recuperando, com o pulmã o
fraco e sete quilos mais magra, seu rosto está uma droga e ela quase
sempre está cansada demais, mas está em casa e, em meio a tanta
notı́cia ruim, ver a minha irmã se recuperando, lutando para viver,
sorrindo mesmo tã o frá gil, é algo que me fortalece.
Mesmo assim, nem ela é capaz de me acalmar, no fundo, até ela está
preocupada com o desaparecimento de Nuno.
Uma semana é o tempo que demora para que meu coraçã o grite que
algo nã o está bem, para que minha preocupaçã o com o aluno que nã o
vem à aula passe a ser notada por todos. Para que eu comece a perder a
cabeça.
— Algué m tem notı́cias do Nuno? — pergunto para a turma, com os
olhos ixos na folha à minha frente, incapaz de enxergar algo enquanto
meu coraçã o parece bater em meus ouvidos.
Quando ningué m responde, ergo o rosto e meus olhos voam direto
para o fundo da sala, para o garoto marrento e descabelado que tem os
olhos cobertos por uma densa mecha loira.
— Ivan? — o chamo me aproveitando do fato de estarmos na sala de
aula para conseguir sua atençã o, já que todas as vezes em que tentei
falar com ele fora daqui, ele me ignorou.
— Por que eu saberia? — ele pergunta, com a voz perigosamente
baixa, os braços cruzados na frente do peito, como se estivesse me
desa iando a falar. Como se estivesse me culpando de algo que nã o faço
a menor ideia do que seja.
— Por que ele é seu amigo, nã o é ? — respondo com mais uma
pergunta cheia de signi icados.
— Eu nã o faço ideia — ele responde sucinto.
Olho para Cindy sentada do outro lado da sala, ela parece mais
magra a cada dia que a vejo, como se fosse possı́vel; e, dessa vez,
começo a achar que sua magreza já nã o é mais tã o saudá vel.
— Nem olha pra mim — ela responde na defensiva e, antes que eu
olhe para Maddie, me obrigo a lembrar de que sou sua professora e que
minha preocupaçã o nã o deve ser tã o evidente.
— Bom, se o virem avise-o que ele precisa me entregar o trabalho
sobre Modernismo até o im da semana que vem ou vai icar sem nota
— digo rabiscando qualquer coisa no papel para que ningué m note o
tremor em minhas mã os.
Quando a aula termina arrumo minhas coisas e saio sentindo-me
exausta. Passo pelos corredores sem a menor vontade de ser simpá tica,
esbarro sem querer em um aluno e minhas coisas se espalham por
todos os lados.
— Merda, desculpa — me repreendo imediatamente enquanto me
abaixo para recolher as coisas. O garoto faz o mesmo, os braços longos e
os dedos repletos de tatuagens reú nem os papé is sem pronunciar uma
palavra sequer.
Mal consigo ver seu rosto, escondido debaixo dos cabelos
compridos e desalinhados, mas, quando ele me estende o material
recolhido, vejo os piercings em suas orelhas e no lá bio e me recordo.
Dominic Calazans, segundo ano, um dos alunos mais quietos e
misteriosos que já tive, sempre o vejo sozinho pelos cantos, rabiscando
em seu caderno, observando as pessoas por baixo dos seus cabelos,
mas é a primeira vez que o vejo assim tã o de perto, e me surpreendo
com a tristeza que vejo em seus suaves olhos claros.
— Obrigada — digo com um sorriso amistoso, mas ele nã o diz nada,
nem sorri, apenas se levanta, seu corpo magro e imenso se move entre
os outros alunos, afastando-se com a habilidade de quem se acostumou
a ser aquele que todos aprenderam a chamar de sombra.
Avisto Ivan saindo do banheiro masculino e caminho até ele, nã o
dou a mı́nima se está de mau humor ou sabe lá o que esteja pensando,
ele vai me dar uma resposta agora.
— Ivan — o chamo e ele para de andar virando-se para mim, mas
assim que nota que sou eu, solta um palavrã o e começa a caminhar
novamente, como se nã o fosse nada demais. — Você quer, por favor,
parar de agir como um moleque idiota? — digo sem me importar que
algué m possa nos ouvir.
Ivan para de andar, seu corpo nã o tã o alto quanto Nuno ou Dominic,
mesmo assim ainda maior que o meu, se retesa como se estivesse
magoado com a minha ofensa. Quando ele se vira, seus olhos percorrem
tudo a nossa volta antes de se voltar para mim.
— Eu nã o vou te dar a resposta que gostaria em respeito ao imbecil
do meu amigo.
— Eu nã o te chamaria assim se você nã o se comportasse como tal.
— Ergo o rosto enquanto respondo, anos de sala de aula me ensinaram
a nã o demonstrar fraqueza diante de uma cara feia.
E Ivan é bom na arte de amedrontar professores.
— Eu nã o tenho nada para te falar.
— Mentira, você sabe onde ele está , você sabe o motivo do seu
sumiço. Se existe algué m nesse mundo que sabe onde está o Nuno é
você .
Ivan ergue uma sobrancelha desa iadoramente.
— Isso nã o muda o fato de que eu nã o tenho nada para te falar. —
Sua voz soa debochada.
— Por favor — peço, baixinho, sem me importar por estar
parecendo desesperada, eu realmente estou. — Ele desapareceu no
meio da noite, desligou o celular, nã o vem à aula, eu nã o posso ir atrá s
dele, ou já teria ido.
— E, você nã o pode — ele desdenha.
— Como ele está ?
— Você nã o vai me fazer falar, Stella, nem que rasteje na frente da
escola inteira.
— O que eu iz? — tento outra pergunta na esperança de que ele
possa esclarecer alguma coisa.
— Se apaixonou por um cara fodido — ele responde e, quando um
grupo de meninas passam por nó s, com os olhos ixos no garoto bonito
e perigoso à minha frente, Ivan aproveita para encerrar nossa conversa.
— Preciso ir embora, tenho muito o que fazer.
Ele se vira e começa a caminhar.
— Ivan — o chamo, fazendo-o parar mais uma vez. — Só diz para
ele que estou preocupada.
— Ele sabe, esse é o problema, ele sabe de tudo.
Entã o ele se vai, me deixando no meio do corredor, com o coraçã o
apertado e a certeza de que, seja lá o que está acontecendo, eu sou a
culpada.
Quinze dias.
Nenhuma ligaçã o, nenhuma mensagem, nenhum contato a nã o ser
os trabalhos que me sã o entregues por Ivan, todos nos dias certos. Evito
olhar para as pastas que repousam em minha mesa na presença dos
meus alunos, tenho medo de que algué m veja a forma como meu
coraçã o acelera apenas por ver sua caligra ia ruim no topo da folha.
Em uma sexta-feira gelada e muito silenciosa inalmente crio a
coragem da qual Nuno me acusa de nã o possuir e vou até o lugar onde
tenho a certeza de que o encontrarei. Graças a Maddie que me deu a
dica que ele estaria aqui essa noite.
Aqui em cima é ainda mais frio e me encolho lamentando nã o ter
colocado mais uma blusa, envolvo o cachecol e coloco o capuz enquanto
caminho até a clareira onde por tantas vezes estivemos juntos. Afasto as
lembranças de todas as vezes em que nos amamos, todas as palavras,
todos os beijos, as coisas proibidas que evito pensar, nã o é para isso que
estou aqui, só preciso saber o que está acontecendo e entã o poderei
aceitar as suas escolhas.
Como imaginei, avisto seu carro antes mesmo de vê -lo, Nuno está
sentado no capô como sempre, a fumaça do seu cigarro se espalha pelo
ar, há uma garrafa ao seu lado e ele parece perdido em seus
pensamentos, alheio a tudo a sua volta, como se estivesse em outro
universo.
Mas quando me aproximo noto que seus cabelos, rebeldes e
desgrenhados, as mechas castanha-claras, que tanto amava enroscar
meus dedos, desapareceram, dando lugar a um corte formal, a parte
superior cheia, a inferior, bem rente ao couro cabeludo, quase raspado.
Essa é apenas a primeira das mudanças que encontro no rapaz que tem
me evitado nas ú ltimas semanas.
Nuno está usando um sobretudo de lã cinza, os ombros largos
parecem ainda maiores dentro da peça cara e elegante, em seu pulso
um reló gio enorme se destaca da manga da camisa branca e, quando ele
se vira para me olhar, vejo a gravata desfeita em torno do seu pescoço.
Ele me olha como se nã o me conhecesse e é nesse momento que
tenho a certeza de que venho tentando ignorar todos esses dias de
silê ncio.
A aventura do menino que se encantou pela professora acabou. Ele
se foi, o brilho do seu olhar, seu sorriso jovem e a leveza dos seus
ombros se foi. O que vejo a minha frente é o protó tipo do que seu pai
almejou, é a có pia do seu irmã o morto, a prisã o da qual ele tanto temia.
— Oi — digo, tentando manter a voz irme, mas falhando
miseravelmente.
— Oi — ele responde ainda me observando, talvez sem acreditar no
que está vendo.
O silê ncio se estende entre nó s e começo a sentir a falsa coragem
prestes a me deixar, entã o me forço a falar:
— Eu esperei você me responder.
Nuno balança a cabeça enquanto traga o cigarro.
— Nã o deu, estava ocupado — ele responde fazendo eu me sentir
paté tica.
— Estou vendo. — Aponto para as suas roupas e ele desvia o olhar
para si, como se só entã o se desse conta do que está usando. — Você se
acertou com seu pai?
— O que você quer, Stella? — Nuno desliza do capô e vem até mim,
de pé ele parece ainda mais elegante, caro, poderoso, uma ré plica
juvenil do que ele será em alguns anos, quando se afundar na ganâ ncia
do seu pai e isso dó i tanto, que dou um passo para trá s porque é quase
insuportá vel olhar para ele assim.
— Eu precisava te ver.
— Por quê ? Nã o icou claro para você ? — Sua voz é tã o fria quanto o
vento, que parece lâ minas cortando a minha pele, e me encolho um
pouco com suas palavras.
— Nã o, eu precisava te ver, para arrancar qualquer resquı́cio de
esperança.
Ele ergue os braços, abrindo-os bem, seus olhos frios e tristes nã o
desviam dos meus nem um segundo sequer e a tristeza que seu ato me
causa faz com que se torne difı́cil respirar.
— Agora você já viu.
— Você está feliz?
— Isso nã o importa.
— Isso é tudo o que importa, Nuno. Olhe para você , fantasiado com
essas roupas ridı́culas que nã o condizem com quem você é .
— Quem eu sou, Stella? Alguns meses de trepadas te deram essa
resposta?
— Eu nã o sei quem você é , mas eu sei que isso que estou vendo era
tudo o que você temia.
— Tolices, Stella, apenas tolices.
— Nã o sã o tolices.
— Tem certeza? — Ele ergue uma sobrancelha desa iadora.
— Foi algo que iz? Eles descobriram? E isso? Você está me
protegendo? Nã o precisa, eu nã o me importo com esse emprego,
vivemos sem ele até hoje, podemos nos virar sem ele.
“Só nã o posso continuar sem você ”, completo mentalmente.
Minha pergunta parece mexer com ele e Nuno desvia o olhar
enquanto en ia uma das mã os nas mechas curtas desmanchando o
penteado elegante.
— Acho melhor você ir embora, tá muito frio, nã o quero que ique
doente.
— Você se importa? — me aproveito do seu comentá rio, em um
apelo para que ele relembre daquele dia.
— Stella, por favor — ele pede, com os olhos ixos em algo no chã o,
que parece mais interessante do que eu.
— Só me responde.
— Por quê ?
— Eu preciso saber.
— Você precisa ir embora.
— Eu vou, vou te deixar em paz, assim que você me responder o que
aconteceu. Por favor, me conta, nã o é justo que...
— A vida nã o é justa! — ele grita me fazendo estremecer e entã o
fecha os olhos enquanto aperta a base do seu nariz com a mã o que
ainda segura o cigarro. Ele parece tã o exausto, que tenho vontade de
tocá -lo, de dizer que vai icar tudo bem, que vamos dar um jeito nisso
juntos. — Por favor, Stella, nã o quero te magoar.
— Tarde demais, Nuno.
Ele volta a olhar para mim, sinto todas as palavras que ele nã o é
capaz de falar na forma como ele me implora silenciosamente, sinto a
verdade escondida por baixo das suas roupas caras e elegantes, da sua
fachada fria, da mã o trê mula que segura o cigarro.
— Eu só queria entender o que houve — insisto.
— Eu cansei, sabe como é , moleque é assim mesmo. — Nuno ergue
os ombros teatralmente.
— Nã o seja ridı́culo, nó s dois sabemos que nã o é verdade.
Nuno retira o celular do bolso e vejo a tela iluminada com a
chamada, sinto uma pontada de dor ao ver ele atender seja lá quem for
enquanto dezenas de mensagens minhas permanecem intocadas na
caixa de mensagem.
— Já estou a caminho — ele responde secamente antes de desligar
seja lá quem for o pobre coitado que se prestou a ligar para ele. —
Preciso ir. — Ele joga o cigarro no chã o e ajeita o sobretudo. Nã o me
movo, nã o consigo dizer adeus, nã o consigo entender onde está o
garoto por quem me apaixonei, para quem entreguei o meu coraçã o,
que lutou por mim.
Nuno me dá as costas e começa a andar em direçã o ao carro, sinto a
distâ ncia começar a doer, como uma ferida que se abre a cada passo
que ele dá para longe de mim.
— Você sempre me chamou de covarde, mas, no im, quem é o
covarde aqui?
Ele para de andar, seu corpo enorme se enrijece, fazendo-o parecer
ainda maior, ele baixa a cabeça, mas nã o se vira.
— As vezes, sã o as nossas semelhanças que nos atraem. — Ele
respira fundo, como se buscasse coragem para acabar com essa
conversa. — Tchau, Stella.
E tudo o que ele diz antes de entrar no carro, e entã o ele se vai,
passando por mim como se eu nã o fosse nada, como se tudo o que
vivemos nã o tivesse passado de uma brincadeira de criança, uma
aventura de garoto, um capricho de um playboyzinho que sempre teve
tudo o que sempre quis.
E eu sou a idiota que acreditou por um momento que poderia ser
amor.
O rompimento de um casal sempre foi minha parte favorita em um
romance, aquela dor da distâ ncia, os pensamentos e divagaçõ es que
sempre amei grifar para reler como se fossem partes preciosas, os
reencontros proibidos, as trocas de olhares cheios de palavras nã o ditas
que fazem meu coraçã o transbordar pela histó ria.
Eu amo sofrer lendo um bom romance, porque sei que no im tudo
icará bem, que só a morte será capaz de separar duas almas que
nasceram uma para a outra. E poé tico, lindo, lı́rico, especial.
Talvez por isso tenha doı́do tanto o ver ir embora naquela noite
gelada, talvez por isso ainda doa todas as vezes em que eu relembro
cada uma das palavras ditas com tanta frieza, como as frases grifadas
dos meus romances favoritos.
A ú nica diferença é que na realidade nã o tem como prever quando
uma histó ria termina, nã o há pá ginas para contar, nem aquela
espiadinha no inal para acalmar o coraçã o dolorido por uma briga
horrorosa, é apenas o dia a dia nos mostrando que nada vai mudar.
E a cada dia que passa sinto que aquela noite pode ter sido o nosso
im.
Com o passar dos dias tudo voltou ao normal, a sua ausê ncia na
escola parou de ser comentada, as pessoas se acostumaram, seguiram
em frente. Seus amigos continuam sorrindo, brincando enquanto sua
carteira continua vazia, ningué m olha para ela, como se sempre tivesse
estado assim.
Mas para mim, todas as vezes em que olho para a carteira vazia no
fundo da sala, é um lembrete doloroso daquela noite, o garoto vestido
de homem, obrigado a cumprir uma promessa que nã o é sua, ingindo
suportar algo por amor a seu irmã o morto. Seu olhar triste e frio, a
forma como ele parecia tã o solitá rio naquela colina fria, faz com que
meu coraçã o doa por ele.
Nuno está sofrendo e, infelizmente, nã o posso fazer nada para
ajudá -lo.
No im das contas somos duas almas aprisionadas em promessas
que estamos dispostos a cumprir, mesmo que isso cobre um preço alto
demais.
Os dias passam, o semestre termina, amanhã é o ú ltimo dia de aula e
entã o teremos um recesso aguardado tanto pelos alunos quanto pelos
professores. Serã o apenas duas semanas para o corpo docente, mas o
su iciente para que eu possa me afastar um pouco, limpar minha mente
de tudo o que me lembra Nuno. Descansar.
— Amanhã será nosso ú ltimo happy hour, você vai, né ? — Má rcia
pergunta animada.
— Vou tentar ir, prometo. — Sorrio para a professora gentil, que
vem se tornando uma boa companhia para os dias solitá rios corrigindo
trabalhos e lançando notas até tarde da noite.
— Imagina, você vai sim, todos nó s vamos, nã o tem desculpa. —
Tony se aproxima passando o braço por meu ombro com uma
intimidade que me incomoda.
— Como disse, vou tentar. — Retiro seu braço e todos sorriem como
se estivé ssemos realmente brincando.
Tony continua invasivo, embora eu tenha compreendido que é o seu
jeito, ainda me irrita a forma como ele sempre está tocando as pessoas
como se fosse algo natural. Ele é chato e desagradá vel, mas é charmoso,
elegante e tem um traseiro que faz as mulheres quebrarem o pescoço
toda vez que ele passa. Ele vem ganhando cada vez mais o coraçã o das
garotas e isso é algo que me deixa preocupada, tudo o que nã o preciso é
de uma adolescente com o coraçã o partido por causa de um homem
como Tony.
Termino de organizar minhas coisas, me despeço de todos e vou
para casa. Há alguns dias me propus a parar de olhar em volta toda vez
que saio da escola como se Nuno estivesse em algum lugar à minha
espera e fosse aparecer a qualquer momento. Nã o é saudá vel essa
expectativa e, caso ele realmente queira falar comigo, sabe exatamente
onde estou. Se nã o me procurou mais é porque nã o tem o que ser dito.
Chego em casa exausta, tomo um banho e coloco uma roupa
confortá vel, decidida a trabalhar até tarde para poder entregar todas as
notas até o im do dia de amanhã ; se tudo der certo, entrarei de fé rias
nos pró ximos dias e poderei passar um bom tempo sem olhar para
provas e tabelas de notas e faltas.
O celular toca e corro para atender sabendo exatamente quem é .
Hoje é dia de chamada de vı́deo com minha irmã e, mesmo que eu
nã o esteja nem um pouquinho a im de conversar, sei que devo atendê -
la ou é capaz dela bater à minha porta em algumas horas como fez da
ú ltima vez.
— Oi, Suzy. — Me jogo no sofá ajustando a câ mera para que ela veja
apenas meu rosto.
— Meu Deus do céu, você está mais magra — ela fala inclinando-se
para a frente como se assim pudesse me ver melhor.
— Nã o enche, eu ainda estou me recuperando da infecçã o estomacal
que tive.
Minto, como venho mentindo para ela desde que comecei a perder
peso, ela nã o precisa saber que mal como por causa da porcaria de um
coraçã o partido, é ridı́culo até mesmo pensar nisso e é o tipo de
informaçã o que nã o vai acrescentar nada nas nossas vidas alé m de
deixá -la preocupada, coisa que nã o quero que aconteça.
— Você precisa ir ao médico.
— Eu fui, ele me receitou umas vitaminas que já estou tomando.
— Que vitaminas? Será que conheço?
— Ah, Suzy, nã o me lembro de cabeça, acho que nã o conhece —
desconverso e minha irmã continua me olhando como se esperasse que
eu me atrapalhasse a qualquer momento. — E aı́, animada para as
pró ximas semanas? — mudo de assunto rapidamente porque, se ela
continuar me olhando assim, com certeza vou me atrapalhar. Nã o sou
boa em mentiras e, principalmente, para Suzy.
— Nossa, nem fala, já iz um roteiro de tudo o que vamos fazer, você
não vai descansar um segundo sequer.
Um sorriso enorme surge em meus lá bios enquanto ouço Suzy
contar o roteiro de fé rias que ela preparou para nó s duas enquanto faz
a sua nebulizaçã o, sua animaçã o é contagiante e logo estamos
combinando roupas para os dias de cinema, jantar e museus. Eu amo a
energia dela, a forma como ela consegue fazer um simples passeio no
parque ou um sorvete no im de tarde parecer algo espetacular; à s
vezes, me pego pensando se isso tem algo a ver com o fato dela ter
nascido com a certeza de que sua vida seria breve ou se é uma
caracterı́stica da minha irmã . Acho que tem um pouco dos dois.
A verdade é que, se todos nó s pensá ssemos no quanto a vida é
breve, talvez desacelerá ssemos um pouco a pressa para chegar lá , e
prestá ssemos um pouco mais de atençã o no que tem aqui, a nossa volta.
Essa é uma das liçõ es que aprendi com minha irmã . Aproveitar o
hoje.
— Suzy, nã o vamos conseguir fazer tudo isso em tã o pouco tempo.
— Vamos sim, já está tudo organizado.
— Nã o quero você se cansando.
— Nem eu vou deixar — Xavier diz e Suzy revira os olhos como uma
menininha de sete anos.
— Nem comecem vocês dois. — Ela balança o nebulizador no ar
irritada.
— Como você está ?
— Eu estou ótima, já até engordei meio quilo.
— Isso é ó timo, agora só faltam seis e meio — provoco-a.
— Aliás, tenho uma notícia maravilhosa para te dar — minha irmã
diz no instante em que Xavier aparece por trá s dela no sofá se
aconchegando.
— O que é ?
— Sabe aquele tratamento experimental que a gente viu no ano
passado que estava sendo testado lá nos Estados Unidos?
— Sim claro.
Lembro-me com clareza da maté ria que Suzy viu na internet sobre
um novo tratamento que promete dar mais liberdade para os
portadores de Fibrose Cı́stica, lembro-me de todas as contas que
izemos para contabilizar os gastos para que Suzy pudesse ir para lá e
como sonhamos com um milagre, porque só assim conseguirı́amos a
grana necessá ria para custear tudo.
— Pois é, ontem recebi um e-mail do hospital dizendo que fui
selecionada para participar de um grupo exclusivo de brasileiros que vão
participar desse tratamento aqui no Brasil.
Dou um pulo do sofá segurando o celular com tanta força, que meus
dedos icam esbranquiçados.
— Você está brincando comigo?! — grito eufó rica demais para
conseguir me manter deitada.
— A princípio achei que era uma pegadinha, alguém querendo
roubar meus órgãos ou sei lá, mas então dois dias depois eu recebi um
telefonema do hospital perguntando se eu havia recebido o e-mail. Eu vou
precisar passar por uma série de exames e talvez eu até tenha que ir para
os Estados Unidos, ainda não sei, mas eu tô topando qualquer coisa, até
injeção na testa.
Começo a gritar do lado de cá enquanto minha irmã grita do lado de
lá como duas malucas que acabam de se dar conta de que ganharam na
Mega-Sena sozinhas.
— Suzy, meu Deus, era o nosso sonho. — Lá grimas se acumulam em
meus olhos enquanto olho para o rosto vermelho da minha irmã do
outro lado da tela.
— Não faz isso, Stella — ela pede com o olhar emocionado.
— O quê ?
— Não chora.
— Como nã o chorar? E tudo o que a gente queria.
— Ainda é só um teste, pode não dar em nada.
— Mas pode dar. Vai dar! — digo com toda a esperança que carrego
dentro do meu coraçã o.
— Tudo vai icar mais fácil. — Suzy baixa o olhar para as mã os e
odeio o sorriso que se forma em seus lá bios, porque é a marca da sua
vergonha por se sentir um fardo para mim. — Você vai poder relaxar um
pouco, parar de se preocupar tanto, vai ter uma equipe enorme
trabalhando e eu serei bem assistida.
— Vai sim, você vai ter uma qualidade de vida muito melhor, isso é
tudo o que importa.
Minha irmã respira fundo, como se um peso enorme saı́sse de seus
ombros com a perspectiva desse tratamento.
— Você vai poder ir atrás do seu garoto. — Ela pisca para mim e é a
minha vez de baixar o olhar envergonhada.
— Nã o se preocupe com isso.
— Claro que me preocupo, eu me apaixonei por aquele moleque, o que
posso fazer se não aceito outro no lugar dele?
— Esquece isso, Suzy, acabou — digo, a vergonha faz minhas
bochechas esquentarem à medida que a verdade sai da minha boca.
— Que história é essa?
— Eu coloquei meu orgulho de lado como você me disse para fazer
e fui atrá s dele, e ele praticamente me deixou falando sozinha.
Suzy afunda no sofá , a desilusã o estampa seu rosto enquanto ela me
olha com aquela cara de quem está prestes a dizer algo que vai me fazer
sentir ainda pior.
— Mas você...
— Suzy nã o! — a repreendo. — Nada de tentar justi icar, ele nã o me
quer, talvez tenha sido apenas um caso, uma aventura como você
sempre falou, a culpa foi minha, eu que loreei demais — digo tentando
tirar o peso da verdade.
— Não é possível, eu nunca me engano.
— Dessa vez você se enganou, mas tudo bem, já passou. Foi bom
enquanto durou. Agora me conta tudo sobre o tratamento, quando você
começa, como chegaram até você . Conta tudo.
E pela hora seguinte rimos, sonhamos, compartilhamos,
agradecemos a Deus pela oportunidade de mais uma chance de vida
para a minha irmã , e isso é tudo o que preciso.
Finalmente uma notı́cia boa para aquecer meu coraçã o machucado
e triste.
As duas semanas que passo com Suzy voam, por incrı́vel que pareça,
ela conseguiu; fomos a todos os lugares que ela havia planejado,
terminando com uma tarde em um spa onde saio me sentindo
revigorada e pronta para correr atrá s da minha felicidade.
No caso, um garoto de 1,85m, cabelos castanhos e lindos e
sonolentos olhos verdes que parecem carregar o mundo.
Ao menos, o meu mundo.
— Ele tá gato mesmo com esse corte, hein? — Suzy diz enquanto
continua stalkeando todos os amigos que seguem Nuno no Instagram
em busca de novidades sobre ele.
— Você quer parar de fazer isso? Está me dando nervoso —
resmungo, mas nã o consigo parar de olhar a foto onde Nuno está em
uma festa ao lado de pessoas que nã o conheço, ele nã o parece nem um
pouco interessado na foto, mesmo assim dá um sorriso torto de lá bios
fechados que faz meu coraçã o derreter.
— Preciso ver o que meu cunhadinho anda fazendo — Suzy justi ica
enquanto abre fotos atrá s de fotos encontrando mais duas desse
mesmo dia, uma dele com os pais, uma dele de per il, sorrindo
enquanto conversa com algué m.
— Você vai acabar curtindo uma dessas sem querer e eu juro que
vou matar você .
— Ops, acho que curti — ela diz e cai na gargalhada quando meus
olhos se arregalam.
— Você me paga! — Jogo-me em cima dela, puxando o celular da
sua mã o enquanto rimos de doer a barriga.
— Eu te amo — ela diz um tempo depois, ainda ofegante depois de
uma crise de tosse.
— Sorte sua porque eu te odeio — respondo olhando para o teto,
pensando em tudo o que essa frase representa para mim.
Me odeio por me sentir tã o insegura, por ter medo de estar sendo
invasiva, odeio a forma como minhas mã os estã o suadas e como meu
coraçã o bate com tanta força.
É só ele, Stella, o Nuno, o garoto por quem você se apaixonou, o
homem a quem você entregou seu coração.
Repito essas palavras milhares de vezes enquanto intercalo meu
olhar entre a porta e o celular. Dez minutos depois começo a me sentir
desconfortá vel, nã o sei mais o que estou fazendo aqui, e se eu tiver
entendido as coisas de forma errada? E se ele estava apenas sendo o
Nuno de sempre, gentil e educado?
Respira, Stella, respira.
Tomo um gole do chocolate quente que Rael me trouxe há alguns
minutos, mas ele tem um gosto amargo, olho para a porta mais uma vez
na esperança de que seja ele, mas é Maddie. Ela entra, olha em volta
provavelmente à procura de Levi, quando me vê , ela acena e sorrio
enquanto a vejo se aproximar.
— Oi, Stella. — Ela puxa uma cadeira e se senta, droga.
— Tudo bem? Está esperando o Levi?
— Na verdade vim te ver.
— Eu? — Respiro fundo e começo a pensar em algo educado para
falar, mas Maddie se adianta.
— O Nuno me pediu para vir.
Suas palavras abrem um buraco em meu peito, preciso de alguns
segundos para compreender o que ela quer dizer com ele a mandou
aqui.
— Como assim? — Olho para a porta, na esperança de que isso seja
apenas uma pegadinha ou sei lá . — Ele vai se atrasar?
— Nã o, Stella, ele nã o vem.
— Como nã o vem? — Olho para o celular e me sinto ridı́cula quando
me dou conta do que está acontecendo. — Ele te mandou no lugar dele
— constato.
— Na verdade, ele nã o poderia vir, mesmo que quisesse, Nuno nã o
está no Brasil.
— Como nã o? Onde ele está ?
— Olha, eu odeio estar aqui, odeio a forma como você s estã o, de
verdade, Stella, se eu pudesse fazer algo para ajudar você s, eu faria,
mas...
— Ei, tudo bem, Maddie, você fez muito mais do que eu jamais
imaginei que poderia ter, foi uma grande amiga quando mais precisei,
nã o se sinta mal, foi melhor assim para nó s dois.
— Você nã o entende.
— Nã o há o que entender, ele nã o está aqui, sequer me falou que
nã o viria, me fez esperar por algo.
— Ele te ama, Stella, meu Deus, é tã o lindo ver a forma como ele fala
de você , ele te ama tanto.
— Mesmo assim, ele nã o está aqui. — Baixo o rosto e engulo o nó
que se forma em minha garganta. — Mas nem todos os amores foram
feitos para serem vividos, nã o é isso que aprendemos nas tragé dias
româ nticas? — Forço um sorriso a se espalhar por meu rosto, mas as
lá grimas pinicam meus olhos.
— Nesse momento, eu odeio as tragé dias româ nticas — Maddie diz
enquanto passa o punho no nariz e funga.
Sorrio sentindo uma dor nova em meu peito, a dor que achei que
estava preparada para sentir, mas que, mesmo assim, me assusta com a
força com que ela me acerta em cheio: a dor do coraçã o partido.
Nuno: Não.
Ploc!
Um estalo do chiclete de Ivan faz com que eu olhe de cara feia para
ele.
— O quê ? — Ele ergue os ombros sem entender nada e, se depender
de mim, vai continuar. Nã o estou com saco para conversar hoje,
principalmente com Ivan, que está um pé no saco o dia todo.
Ploc!
— Você quer parar, porra?! — esbravejo e Ivan se encolhe.
Volto a olhar para a televisã o, o jogo nã o me atrai, para dizer a
verdade sequer me recordo de quem está jogando. Nã o enxergo nada a
minha frente, só a imagem de Stella, naquele restaurante, com aquele
velho maldito.
— Relaxa, Nuno, é só um jantar — Ivan diz enquanto responde algo
no celular.
— Nã o, nã o é só um jantar, é a minha garota sendo vendida para um
velho maldito.
A porta da sala se abre e Cindy entra, usando um vestido minú sculo
que mal cobre seus seios e um salto que a deixa quase do tamanho de
Ivan, que se remexe desconfortavelmente ao meu lado.
— Levantem suas bundas sujas daı́, temos compromisso. — Ela
balança alguns convites no ar. — Vamos lá , meninos, nã o me ouviram?
— Sem chance. — Ivan se acomoda deitando-se e voltando a mexer
no celular.
— Nã o tô a im, Cindy — respondo tentando ser mais educado do
que meu amigo.
— Tem certeza? Porque tenho aqui alguns convites para um jantar
muito especial — ela diz olhando para os papé is em sua mã o. — Ouvi
dizer que uma das mesas custou uma fortuna.
Levanto em um pulo e puxo o papel da sua mã o.
— Onde você conseguiu isso?
— O dono é amigo do namorado da minha mã e, foi facinho. Agora
corre, você tem dez minutos. — Ela pisca para mim e volta a olhar para
Ivan.
— Nem pensar, eu nã o...
Ele nã o consegue terminar de responder, Cindy arranca o celular da
sua mã o e o encara com seu olhar que diz “você vai fazer o que eu
mando” e, como sempre, desde que o mundo é mundo, Ivan faz
exatamente o que ela pede.
A á gua quente leva embora toda a tensã o da noite, o silê ncio entre
nó s é quase insuportá vel, mas nã o há nada para ser dito e quando nos
deitamos na cama, enroscados um no outro, a pele quente do banho,
com o cheiro de paz nos envolvendo, tudo o que quero é poder
acreditar que o pior já passou.
— Você está bem? — sussurro em seus cabelos.
— Acho que nunca me senti tã o bem — ela responde enquanto faz
carinho em meu braço que descansa em sua cintura. — O que será que
vai acontecer com ele?
— Acredite em mim, você nã o vai querer saber. — Ela parece
estremecer com minhas palavras.
— Ele a machucou, Stella, as pessoas aqui nã o costumam perdoar
esse tipo de coisa.
— Eu sei, amor.
Sinto meu coraçã o bobo se agitar no peito ao som da palavra.
— E você nunca me machucou. — Beijo seus cabelos mais uma vez.
— Ao menos nã o isicamente. — Ela vira o rosto para mim e beijo sua
boca ainda sem acreditar que estou aqui, com ela em meus braços.
— Estou feliz que você veio — ela diz, suspirando um tempo depois.
— Eu sabia que você ia pilhar.
— Eu nem sei como consegui ir até o Ivan — ela diz e me recordo de
toda a histó ria que ela me contou, sei que deveria estar com ele nesse
momento, mas Stella també m precisa de mim, precisa saber que nã o fez
a escolha errada ao deixar tudo para trá s por mim.
— Nã o pensa nisso agora.
— E quase impossı́vel — ela diz antes de bocejar.
— Dorme, amanhã temos uma vida inteira para planejar.
— Uma vida inteira? — Ela se vira para mim, erguendo o rosto.
— Pelo menos uns cinquenta anos — brinco e ela sorri antes de
deixar um beijo em meu queixo e outro em meus lá bios para depois se
aconchegar em meus braços e fechar seus olhos.
Seguro-a junto a mim, mas nã o consigo dormir, algo em meu
coraçã o me deixa em alerta, agitado demais para me permitir desligar.
Como uma premoniçã o de que algo nã o está certo.
Passo um tempo olhando para as palavras, ele nã o está aqui e isso é
uma merda, sinto sua falta, quase tanto quanto sinto de Stella. Sinto
falta das suas provocaçõ es, da sua mania de encher as redes sociais de
fotos da porra da sua barriga branquela, sinto falta do seu olhar
bondoso, até mesmo do seu silê ncio enquanto fumá vamos e jogá vamos
videogame. Eu nunca mais joguei videogame e mal suporto o cheiro da
cerveja que ele gosta. Eu sabia, quando decidi vir para cá , que o
magoaria, e apesar de ter deixado um pedaço de mim com esse
moleque, eu precisava me afastar de tudo ou iria enlouquecer ou talvez
cometer um assassinato. Ele sabia disso e nó s dois sabemos que Ivan
jamais sairia de Monte Mancante, de perto de seus irmã os, e
principalmente de Cindy. Ela ainda precisa dele, mesmo que nã o
reconheça isso.
Tiro uma foto do aeroporto e envio para ele.
Ivan: Show.
E assim terminamos nosso diá logo, talvez na pró xima semana ele
me fale alguma coisa vazia, é sua forma de dizer que mesmo que nã o
consiga ser o mesmo de antes, ele ainda está aqui. Isso já basta,
precisamos aprender a reconhecer aquilo que as pessoas sã o capazes
de nos dar, isso é tudo o que ele tem no momento. E eu aceito na
esperança de que um dia possamos voltar a ser como antes.
Já Cindy nã o fala comigo há alguns meses, ela ainda está chateada e
se sentindo culpada por tudo o que aconteceu, ela foi a ú nica que vi
desde que saı́ de casa, enquanto estava passando pela Itá lia com sua
mã e. Tomamos um café , trocamos meia dú zia de palavras, ela sequer
olhou em meus olhos e, quando se foi, senti como se um elefante
imenso tivesse se retirado das minhas costas.
Foi a coisa mais triste que já aconteceu entre nó s.
Isso é tudo o que Cindy tem para oferecer para o mundo por
enquanto, uma carcaça linda de uma garota vazia.
Estamos todos tentando nos reconstruir, uns indo melhores que
outros, mas todos seguindo na mesma direçã o, na esperança de se
tornar um adulto bom, forte, corajoso, com sonhos e objetivos e com o
mı́nimo de cicatrizes possı́veis.
Dom é o ú nico de nó s que insiste em nã o manter contato, nã o tem
redes sociais e nem WhatsApp. A ú ltima vez que o vi foi na noite
anterior a minha viagem, nos encontramos no Refúgio dos Sonhos,
naquela noite nã o nos machucamos. Com meia dú zia de palavras,
implorei para ele se cuidar, mas tenho certeza de que uma á rvore morta
me ouviria melhor. E seu jeito, aprendi a lidar com ele durante toda a
minha vida. Sei que, embora pareça frio e distante, ele també m precisa
de algué m que esteja lá para ele, mesmo que seja do seu modo estranho
de ser. Ivan e Levi estã o lá , eles me prometeram nã o deixar o sombra da
cidade sozinho, Ivan tem uma dı́vida de gratidã o com ele e isso me
deixa um pouco mais aliviado.
Um aviso nos alto-falantes me faz erguer a cabeça, o voo dos meus
pais acaba de aterrissar e me sinto um pouco animado com a
possibilidade de vê -los depois de tanto tempo, parece meio bobo depois
de tudo o que vivemos, tanta má goa, tantas palavras duras, tanta dor,
mas, no fundo, esse sentimento louco que une pais e ilhos é assim, sem
explicaçã o, ó dio e amor caminhando juntos, em uma mistura de
emoçõ es que nã o existe em nenhum outro relacionamento e que,
embora seja confuso, nesse momento é tudo o que me manté m de pé .
Quem diria que um dia meu pai seria meu suporte. A vida é mesmo
uma coisa muito louca.
Peço a conta, pago e saio em direçã o ao setor de desembarque, tento
encontrar eles entre as pessoas que saem, rostos atentos, em busca de
algo. O sensor abre a porta e entã o eu a vejo. A princı́pio, imagino que
seja apenas minha mente saudosa, me pregando mais uma peça, algo
que acontece sempre por aqui, à s vezes paro quando avisto uma garota
baixinha, de cabelos negros caminhando pelas ruas de Milã o, até ela se
virar e eu me dar conta de que nã o é ela, nunca é .
Meu celular toca me tirando dos meus devaneios e vejo o rosto do
meu pai na tela.
— Pai? — pergunto confuso, enquanto observo a garota
caminhando, com os olhos atentos, olhando em volta, em busca de algo,
de uma pessoa, de mim.
— Provavelmente você está se perguntando o que está acontecendo,
não é? — Ele sorri daquele jeito tã o dele. — Desculpa, ilho, não deu
para ir, mas acho que você vai gostar da pessoa que mandamos no nosso
lugar. É o nosso último pedido de desculpas, para que você não se esqueça
de que estamos ao seu lado, sempre. Não foi fácil convencer essa garota,
nunca vi pessoa mais medrosa, mas tenho certeza de que valeu a pena. A
gente te ama, ilho, seja feliz e seremos também — ele diz, com a voz
emocionada, tã o longe de mim, enquanto meus olhos acompanham um
pedacinho de gente erguendo o rosto no meio da multidã o,
completamente perdida. Medrosa... minha pequena covarde.
— Obrigado, pai, eu amo você s — digo nã o querendo chorar, antes
de guardar o celular e me apoiar na coluna, cruzando os braços na
frente do peito, respirando fundo, sentindo que, se essa porra de
coraçã o bater mais forte que isso, eu vou morrer, bem aqui, no saguã o
de um aeroporto, de amor.
Ela se desvencilha das pessoas e para quando inalmente me avista,
noto como seu peito se ergue, aliviada por inalmente me encontrar, e
entã o ela caminha daquele jeito que me enlouquecia todas as vezes em
que ela passava por mim nos corredores do colé gio agitando meu
coraçã o de garoto, fazendo com que o mundo a minha volta se perca e
só sobre ela. A minha alma gê mea, minha dona absoluta, a mulher da
minha vida.
— Ciao5 — ela diz em um italiano ruim, quando para na minha
frente, com o rosto corado, os lá bios, a morada da minha paz,
apertados, ansiosos, lindos... Deus, tã o lindos que mal consigo pensar.
— Ciao, il mio codardo6 — respondo, com meu italiano agora
perfeito, mantenho meus braços cruzados para nã o agarrá -la aqui
mesmo, no meio do aeroporto, e beijá -la como o maluco que sou por
essa mulher.
— Codardo, hein? — Ela ergue a sobrancelha, mas noto como seu
lá bio inferior treme, mesmo enquanto ela sorri, como se estar aqui
estivesse exigindo tudo dela.
— O que está fazendo aqui, Stella?
— Me disseram que você precisava de um pedaço do bolo da Beth,
mas nã o me deixaram embarcar com ele.
— Admita, você estava com saudades de um moleque.
O sorriso que se espalha por seus lá bios nervosos faz meu coraçã o
in lar no peito e uma agitaçã o boa se estender por todo o meu corpo, é
como um dia de sol depois de um longo e gelado inverno. Ela dá um
passo, mais um, mais um, até parar bem na minha frente, com seus
olhos ixos nos meus, sem desviar, sem medo de nada, sem se importar
com quem esteja nos vendo assim tã o perto, sem medo, nem culpa,
apenas ela.
Nã o mais uma professora e seu aluno.
Nem uma mulher e o adolescente.
Apenas duas almas cansadas e apaixonadas, se reencontrando
depois de um longo tempo de espera.
E entã o ela ergue seu corpo empinando o rosto em minha direçã o.
— Cale a boca e me beija, moleque atrevido. — Ela morde o lá bio e
passo minha mã o em sua nuca, puxando-a para junto de mim, como
sonhei durante todas as noites dos ú ltimos 15 meses enquanto me
aliviava desejando aplacar um pouco da saudade que sentia dela e,
quando minha boca se junta a sua, em um beijo que, com certeza, faz
com que cabeças se virem para nó s, sinto como se um interruptor se
ligasse dentro de mim, iluminando as sombras que ela havia deixado
quando foi embora.
E entã o meu coraçã o bate.
E meu pulmã o se enche de ar.
E a vida volta a parecer como um ilme bom, daqueles que ela ama e
que a faz derreter em meus braços. Exatamente como faz nesse
momento.
As coisas estã o inalmente se acertando, como a poeira que se
dissipa depois que a terra é remexida. Provando que sempre se pode
recomeçar. E o que estamos fazendo. Recomeçando.
Stella está tã o feliz que, à s vezes, acho que ela poderia voar. E ela
voa.
Para os meus braços, todas as noites desde que ela chegou, à s vezes
no carro, no chuveiro, na cama, em uma esquina escura onde ningué m
pode nos ver, quando a adrenalina a deixa tã o louca de tesã o quanto eu.
Stella gosta do perigo e isso é só mais uma das coisas que amo nessa
mulher.
Deus e como eu a amo, à s vezes me sinto um pouco tolo diante dela,
ainda tenho medo de que ela note o quanto sou imaturo e me dê um pé
na bunda, imagino que seja uma insegurança normal para um moleque
que conquistou o coraçã o da professora, que teve que lutar para ter
seus sentimentos valorizados, mais do que o normal para qualquer
pessoa, mas que logo passa quando ela diz o quanto me ama. E ela diz
sempre.
Em duas semanas ela começa uma nova fase da sua vida, está
ansiosa pra caralho e já tem algumas noites que a vejo acordar de
madrugada e ir para a sala. Quando pergunto o que ela está fazendo,
Stella diz que está fugindo para o mundo dos livros, que eles a acalmam.
Ainda nã o sei como Romeu e Julieta pode acalmar algué m.
Sinceramente assisti a um remake moderno com o Leonardo Di Caprio
esses dias, a agonia do desencontro daquele casal azarado do cacete
sempre me deixa nervoso e pensativo. Como pode, apenas uma
informação desencontrada acabar com um amor assim?
Poderia ter acontecido comigo e com Stella.
Acontece todos os dias por aı́, pessoas se perdem de suas almas
gê meas, um segundo atrasado, um recado nã o dado, um telefone
esquecido, uma estaçã o de metrô , um show que deixou de ir... vidas
inteiras em busca de algo que nunca vã o encontrar.
Fomos os que tiveram sorte, mesmo contra tudo, contra o
preconceito de um amor que por muitos pode ser considerado errado,
a inal de contas eu era um garoto.
Porra, eu ainda sou e Stella faz questã o de frisar isso sempre que se
senta no meu pau, enquanto se derrete inteira. Sorrio ao me lembrar de
como gosto quando ela diz que sou seu moleque enquanto geme
baixinho em meu ouvido.
Em duas semanas, nossas vidas vã o virar de ponta cabeça, ela será a
nova aluna de pó s-graduaçã o em Literatura clá ssica, eu o veterano da
Universidade de Milã o, uma das melhores em Farmá cia, pois é , nã o é
por imposiçã o do meu pai ou por culpa. Hoje estou aqui porque quero
mudar vidas, trazer conforto para quem sofre, esperança para quem
tem tã o pouco, no im das contas o garoto que sonhava com estrelas
descobriu que a vida real també m pode ter magia.
Meu pai me queria em Santo Egı́dio, como meus amigos ainda estã o
lá cursando a universidade, perto da Fremitus, onde eu poderia ajudá -lo
a administrar o nosso impé rio, mas ele entendeu que eu nã o poderia
estar em um lugar onde Stella nã o fosse bem-vinda. Ele respeitou
minha decisã o e me deu todo o apoio.
Esse foi o motivo para que eu escolhesse Milã o ao invé s de Oxford
ou Harvard, sabe como é , Itá lia, um carinho no ego do coroa. E ele
merece esse carinho, depois de ter feito tanto por nó s. Depois de ter
convencido Stella a usar o dinheiro daquele cheque imundo.
“Faça de uma coisa ruim algo bom.”
Foi o que ele disse a ela e deu certo, claro que deu, meu pai nã o é
Antô nio D’Agostinni por nada. Determinaçã o é coisa de famı́lia.
Esse é o nosso castigo, por ter quebrado regras, por ter escolhido o
nosso amor ao invé s das convençõ es sociais, e tudo bem, estamos
dispostos a pagar por isso, poderia ser pior. Um dia quem sabe, a gente
volte, quando as pessoas tiverem um caso pior para julgar ou quando
pararem de me ver como o pobre menino seduzido pela professora.
Ahhh... se eles soubessem o que esse pobre menino fez para
conquistar essa mulher...
E agora estamos aqui, nã o é a melhor opçã o. As vezes, ainda me
pego ressentido com o fato de que, por mais que eu saiba que Stella
nunca me assediou, que, ao contrá rio, fui eu quem a seduziu, para o
resto do mundo, ela é e sempre será a adulta irresponsá vel. E por isso
que ela desistiu de dar aula. Stella é sua pró pria carrasca e disse que
nunca mais se sentiria à vontade na frente de uma sala de aula.
Eu respeito sua decisã o, foram semanas brigando e dizendo que ela
nã o tinha que fazer isso, mas ela estava decidida. Desde aquela noite em
que ela pediu demissã o, ela já sabia que nunca mais pisaria em uma
sala de aula, ao menos nã o como professora. Eu só a quero feliz, e longe
de palavras que possam machucá -la. Sinceramente, eu nã o ligo, nã o dou
a mı́nima para o que pensam sobre nó s. Mas ela se importa, muito.
Prometemos um ao outro que nunca vamos deixar esse tipo de coisa
interferir na nossa relaçã o, que só nó s dois sabemos o quanto o nosso
amor é forte pra caralho, mas toda vez que vejo algué m olhar para a
gente, toda vez que a vejo abaixar a cabeça, tenho vontade de gritar.
Bando de ilhos da puta!
A sociedade ainda tem muito o que aprender, muito o que evoluir,
aceitar aquilo que é diferente, respeitar o que nã o concorda, entender
que nã o há crime em amar, nosso amor é tã o real e verdadeiro quanto o
que um cara dez anos mais velho sente por sua garota.
O amor nã o tem idade. Nem classe social, nem cor ou sexo.
As vezes, sinto que estamos regredindo ao invé s de evoluir. Julgar é
o maior prazer humano. Somos um bando de juı́zes da vida alheia,
ignorando a sujeira embaixo dos nossos pé s.
Hipocrisia que fala, né ?
En im, deixa para lá , nã o vou mudar o mundo com meus
pensamentos, e sinceramente, nesse momento, tenho coisa melhor para
me ocupar.
Sinto ela se aproximar de mim, roçando as pontas dos seus dedos
nos meus, em um carinho tã o ı́ntimo que me faz sorrir. E uma coisa
boba, mas que representa nosso amor, como o selinho que casais dã o ao
se encontrar.
A gente se toca.
— Oi. — Ela sorri erguendo seu rosto. Tã o linda, minha pequena
covarde.
— Oi — respondo como o bobo apaixonado que sou.
Stella morre de medo de que um dia eu a ache velha e sem graça.
Prestes a completar trinta anos, ela está cada dia mais linda e gostosa,
embora passe tempo demais falando sobre quando estiver com trinta.
Ah, se ela soubesse que meu pau nã o se levanta mais nem pela Mulher-
Maravilha, minha musa, talvez ela parasse com isso. Mas nã o digo nada,
porque, sinceramente, amo quando ela ica ciumenta e insegura, ico
louco de tesã o. Me julguem, sou um moleque.
— Acredita que fui procurar um banheiro e me deparei com uma
salinha de material de limpeza? — ela diz, mordendo o lá bio enquanto
brinca com a minha gravata, o vermelho da sua pele se destaca sobre a
maquiagem exagerada.
E meu pau iel se agita.
— Ah, Stellinha, tã o safada minha mulher — sussurro em seu
ouvido antes de beijar a sua boca, diante de todo o salã o de festa.
Adoro fazer isso, beijá -la, abraçá -la, tocá -la na frente de todos.
Depois de tudo, de nã o poder sequer olhar para ela sem o medo de ser
visto, é quase má gico poder fazer isso. Talvez a liberdade seja
realmente má gica.
— Mas você s dois nã o cansam nunca? — Suzy surge do nada
puxando a cauda do seu vestido branco exagerado, que a faz parecer
ainda menor.
— Eu esperei dois anos para poder beijar meu namorado em
pú blico — Stella justi ica enquanto se aninha em meus braços,
protegendo minha ereçã o do olhar atento da sua irmã .
Dessa vez, nã o posso justi icar dizendo que é uma ereçã o matinal.
— E agora você s pretendem passar o resto da vida compensando
esses dois anos?
— Esse é o plano. — Me inclino e deixo um beijo no ombro de Stella.
— Você s sã o nojentos — Suzy bufa nos fazendo rir.
— E vamos combinar, quem resiste a um homem de terno? — Stella
brinca puxando minha gravata e Suzy me olha daquele jeito, que ainda
me dá medo.
— Eu que o diga. — Ela olha para Xavier, que está do outro lado do
salã o conversando com um grupo de pessoas. — Casei-me com o
homem mais lindo do mundo. Desculpa, Nuno, mas verdades nem
sempre sã o fá ceis de ouvir — Ela espalma sua mã o em meu rosto como
se eu fosse um garotinho e solto uma gargalhada.
Suzy inalmente realizou seu sonho, ou talvez, tenha realizado o
sonho do seu noivo. Sinceramente, nunca vi um homem chorar tanto
em um casamento. No fundo, todos sabemos o motivo, mas hoje nã o é
um dia de pensar nisso, Suzy está feliz, nó s estamos felizes.
— Desde que sua irmã nã o concorde com você , eu posso viver com
isso.
Ela segura nossas mã os juntas. O anel de brilhantes que dei para
Stella no ú ltimo Natal reluz em seu dedo anelar. Está com a mã o
minú scula sobre a minha do jeito que amo.
— Eu estou realizada, você s sabem, né ? — Ela olha para nó s
daquele jeito que só quem nos conhece bem consegue olhar.
— Sim, sabemos — respondo, ainda com o queixo apoiado no
ombro de Stella.
— Eu vou falar uma coisa e quero que me ouçam. — Suzy pisca
algumas vezes e Stella retesa.
— Suzy... — ela a repreende.
— Cale a boca, preciso falar logo. — Ela respira fundo e volta a olhar
para as nossas mã os. — Sejam felizes, a vida é breve demais. Nã o
tenham medo, nã o olhem para o lado, nã o deem ouvidos à maldade.
Pessoas infelizes nã o gostam de pessoas felizes. Fiquem longe deles,
sigam em frente, de cabeça erguida, com um sorriso nos lá bios e seus
sonhos em mã os. Acreditem, você s conseguem, sonhos nã o precisam
ser coisas grandiosas e inalcançá veis, só precisam ser especiais. Olhem
para mim. — Ela aponta para o seu vestido e depois para Xavier, que
está olhando para nó s. — Eu consegui, qualquer um consegue realizar
seus sonhos, basta nã o desistir deles.
Ela pisca para Stella, que se vira em meus braços para olhar para
mim.
— Viu só , covarde, valeu a pena nã o desistir de mim — digo antes
de deixar um beijo em seu nariz.
— Eu te odeio — ela diz emocionada quando olha para a sua irmã .
— Você s dois, eu odeio você s.
— Tá , tá , nem pense em chorar. O papai já me fez chorar todo o
caminho até a igreja, já gastei minha cota do dia. — Suzy a puxa dos
meus braços levando-a para o centro da pista.
— Faz tempo que sonho com esse momento. — O Sr. Almeida, o pai
delas, para ao meu lado, com as mã os cruzadas na frente do corpo
pequeno e franzino enquanto os olhos cinzentos brilham ao admirar as
duas.
— Elas estã o felizes — digo ainda admirando minha Stella
emocionada.
— Sim, elas sempre foram muito felizes, dentro do mundinho que
ambas criaram, ainda pequenas, quando Stella nã o tinha ideia da
gravidade da doença da irmã mais velha. Ela sempre foi a luz da vida da
Suzy.
— Ela é a luz da minha vida també m — admito enquanto vejo a luz
re letir o brilho do diamante em seu dedo, sonhando com o dia em que
será ela usando um vestido branco.
— Você é um garoto muito inteligente — ele brinca e me viro para
olhar para ele.
— Sim eu sou. — Sorrio orgulhoso por saber disso.
A luz indireta da pista ilumina as duas irmã s, tã o pequenas em
tamanho e tã o grandes em garra e coragem, duas gigantes de um metro
e meio, dançando de um lado para o outro. Suzy gargalhando enquanto
Stella chora, como sempre foi.
A emoçã o e a explosã o.
Duas partes de um todo.
Assim como sã o os irmã os.
Assim como sã o almas gê meas.
Suzy manteve esse sorriso em seus lá bios por toda a sua breve vida,
ela tinha um jeito especial de enxergar tudo, aproveitando até mesmo
os dias ruins, agradecendo tudo até o im. Ela nos deixou dois anos
depois da noite em que realizou seu sonho nos braços do homem da
sua vida, e que gargalhou enquanto rodopiava em um salã o com sua
irmã .
Seu sorriso foi a ú ltima coisa a se apagar em seu rosto, como sua
prova de gratidã o por sua vida, até o ú ltimo suspiro dos seus pulmõ es
cansados, até que esse mundo nã o fosse mais capaz de suportar a sua
luz e ela se tornasse a nossa estrela particular.
Suzy se foi, mas, graças a ela, aprendi que a morte nem sempre é
sobre a dor. Com ela aprendi que é apenas uma etapa e que, por mais
que a gente tenha uma vida inteira para se preparar para ela, nunca é
fá cil. Nã o foi com Matteo, nem com ela. Mas a morte també m é sobre
viver, sobre aproveitar o dia de hoje, porque ele é tudo o que temos; é
perdoar aqueles que nos machucam, porque nem sempre sabemos o
tamanho da vastidã o de seus coraçõ es, é amar aqueles que nã o
conseguem nos amar de volta, é proteger aqueles que nã o conseguem
pedir ajuda, é apoiar quem nã o pode seguir adiante. E perceber o valor
do ar que entra em nossos pulmõ es e no sangue que enche nossas veias.
Suzy se eternizou em nossos coraçõ es, em nossas vidas e na de
todos aqueles que, porventura, tem o prazer de ouvir sobre sua histó ria.
Assim como nos romances que Stella tanto ama.
Hoje compreendo sua adoraçã o por eles.
As histó rias sã o vidas eternas que recomeçam sempre que algué m
abre um livro, eternizando personagens, nã o importa quando foi
escrita.
Essa é a magia da vida, cada vez que ela é lembrada, sua alma
renasce, assim como a de Matteo.
Assim como um dia seremos eu e Stella.
O aluno e a professora.
Muitos anos depois...
Ahhh, antes de ir embora, que tal deixar a sua avaliaçã o para que
mais pessoas possam conhecer e se apaixonar por essa turma tã o
especial?
Conheça outras obras da autora, que estã o à venda na Amazon e
també m pelo Kindle Unlimited:
SÉRIE SEGREDOS:
1 - Meu erro
1.5 - Minha (conto)
2 - Minha rendiçã o
2.5 - Meu (conto)
3 - Meu refú gio
3.5 - Nosso (conto)
4 - Minha cura
4.5 - Seu (conto)
1. Nuno
Volumes únicos: