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THUNDER BAY – PARTE 3

Por favor, leia as partes 1 e 2 antes desta, e este é um spoiler para a série Devil’s Night.
Aproveite!

DIA DE TODOS OS SANTOS


**ALICE**
Há sangue por todo lugar. Nos meus braços, nas minhas roupas, nas minhas costas e no
meu cabelo, de ter sido pressionada em seu peito…
Seu peito…
Minha. Eu não amei o fato de ele ter me chamado assim tanto quanto amei o que aquilo
prometia.
Que ele voltaria para mim.
Ando para casa, atravesso o rio, passo pela vila e pego à esquerda na escola, indo para as
colinas. Não é nas falésias, mas gosto mais daqui. Elevado, com bastante sombra, quieto…
Entro na casa escura, sem me incomodar de fechar as portas e largo as roupas pelo
caminho. Sinto-o entre as minhas coxas, umedecendo minha pele, e entro no chuveiro, sem
querer me limpar dele ainda, mas congelando da chuva fria.
Preciso do calor.
Lavando-me, começo pelo cabelo, esfrego o interior das minhas pernas e a sujeira debaixo
das unhas. Não tenho certeza de quando aquilo aconteceu, mas me forço a checar o restante do
meu corpo, preocupada com sinais da luta, mas meio que esperando encontrar algo para
fotografar, apenas no caso de ter sido pega. Pelo menos posso provar que foi autodefesa.
Engulo, sentindo a garganta arranhar onde Eric apertou, mas dificilmente me importo
agora.
Tudo que quero sentir é ele. Fecho os olhos, sem ar. Provo-o na minha boca, mesmo
quando não tive chance de tocá-lo com aquela parte minha.
Nunca sentirei nada como aquilo de novo. Não com outra pessoa.
Um som perfura o ar e leva um momento para eu perceber que é meu celular. Desligando
o chuveiro, eu saio e pego uma toalha, enrolando ao meu redor. Vou até a pia do banheiro e olho
para baixo, vendo o mesmo número que me ligou na noite passada.
Atendo e levo ao meu ouvido. Não digo olá, nem ele. Por um momento, é apenas silêncio,
apenas sua respiração fraca do outro lado da linha.
— Eu fui o primeiro — diz, finalmente.
Meu peito desaba com a suavidade de sua voz. Como se sua boca estivesse pressionada na
minha testa.
— Eu podia sentir — continua. — Sua pele se esticando. O jeito que você ficou tensa.
Permaneço em silêncio. Não sei se ele está exultante, mas sei que não sei quem ele é e não
vou ser indulgente com ele.
— Por que você os queria mortos? — pergunta, mudando de assunto.
Eu deveria ter perguntado a mesma coisa a ele. Eu não os queria mortos. Não de verdade.
Há quatro anos, meu irmão pensou que se redimiria com a morte dos cavaleiros. Ele
pensou que seria capaz de respirar. E, talvez, por um momento hoje à noite, eu pensei o mesmo.
Estou cansada de me esconder. De correr. De andar na ponta dos pés.
Mas há sempre mais cavaleiros se erguendo. Nunca acaba.
Não, eu não queria que eles morressem. Eu só quero o que é deles.
— Eles andam por aí, não fazem nada de impressionante — começo — e todo mundo os
adora, mesmo sabendo que machucam pessoas.
São sempre os mais ricos. Os mais bonitos. Os homens.
— Já percebeu como os desejos nunca mudam? — questiono, mas não espero resposta. —
Não importa quanto estudemos, quanto progresso nossa espécie faça, nós não evoluímos de
verdade. Ainda queremos apenas dinheiro, sexo e poder. — Encaro a mim mesma no espelho. —
Eles têm tanta influência e fazem o quê? Bebem e fodem. Milhares de anos de evolução para
beberem e foderem.
Ou praticarem bullying com alguém que tenha menos que eles. Porra, heróis de verdade.
— Qual importa mais para você? — indaga. — Dinheiro, sexo ou poder?
Não consigo deixar de sorrir. Ele sabe que eu evoluí pouco como qualquer outro. Como
qualquer humano, eu sou rasa também.
— Poder — respondo, em um tom firme. — Eu quero poder.
— Por quê?
— Assim eles não podem se livrar de mim nunca.
Não ligo se me odeiam. Podem afastar minha mãe e profanar a memória do meu irmão,
mas vou ficar.
Caminho para o meu quarto e sento na cama, segurando a toalha no corpo.
— Você não me perguntou meus motivos. — Sua voz fica mais grave. — Não está curiosa?
— Estava.
— Não mais?
— Não. — Balanço a cabeça e abaixo o olhar. Odeio como amo falar com ele. — Assim
como não quero ver seu rosto.
Eu poderia facilmente ter pedido para ver o homem no vídeo. Meu rosto estava coberto,
mas o dele não.
— Quero passar por você na rua ou nos corredores da escola. Ou sentar atrás de você na
igreja e não saber — conto a ele. — Quero parar atrás de alguém na fila da cafeteria ou sentir
olhos na minha nuca no cinema e não saber se é você e se já transamos alguma vez ou não.
— Mas eu vou saber — devolve. — Toda vez que eu te ver.
— Isso te faz feliz?
— Sim, baby.
Fecho os olhos, a ternura quase inaudível é mais íntima do que eu queria que fosse.
— Gosto de saber que você vai me ver vez ou outra — prossigo — e talvez, em um ano,
cinco ou dez, você vai resolver meu imposto de renda e eu vou sorrir para você do outro lado da
mesa, segurando a mão do meu namorado, e não terei ideia de que você esteve dentro de mim.
Que uma vez, contra uma parede suja de uma casa mal-assombrada, você me segurou, me
apertou e realmente gostou daquilo.
Sua respiração fica mais pesada e eu amo isso mais do que posso admitir. Não quero
saber quem ele é.
— Você me quer aí agora, não é? — sussurra.
Se eu disser que sim, ele virá.
Eu quero dizer sim.
Mas onde está a diversão de fazer as coisas serem fáceis?
— Não — declaro, impassível. — Vejo você amanhã.
Eu me mexo para desligar, mas então ouço sua voz.
— Fique fora do caminho — avisa. — Ainda tenho mais um.
Fico parada. Dorian.
— Não se eu chegar nele primeiro — respondo.
Depois encerro a ligação, desligando o telefone pelo resto da noite.

***

No dia seguinte, acordo mais cedo do que pensei que acordaria. Uma fadiga pesa meu
corpo, mas é um cansaço bom. Uma exaustão que sinto que mereço. Os eventos da noite passada
voltam à tona, e sei que deveria preparar minha história caso alguém pergunte, mas preciso
conversar com a Arden e a Pru primeiro. Preocupação não vai resolver nada e não posso me
sentir assim, mesmo estando inclinada a tal. A dor dentro de mim continua tendo precedência
sobre todo o resto.
A dor é uma lembrança de que ele esteve lá e também uma necessidade de mais. Continuo
passando isso na minha cabeça, meio que me arrependendo por ter dito para ele não me visitar
de novo na noite passada.
Ando até a vila, escolhendo não dirigir hoje, porque é um dia perfeito de 12ºC, o sol está
brilhando e as folhas laranja estão caindo como chuva. Só quero respirar e sentir tudo.
O parque está em pleno funcionamento, crianças correndo para todo lado, e posso sentir
todas as gostosuras à venda nas barraquinhas.
O Dia de Todos os Santos é diferente da Noite do Diabo ou do Halloween. As festividades
começam cedo — um dia de outono perfeito, um carrossel, pretzels quentes, cidra, cervejas
artesanais…
Algumas crianças se alinham para pintura facial, enquanto outras correm para cima e
para baixo de meia, depois de saírem da casa de pula-pulas. O gazebo explode com música, as
pessoas dançando e a água da fonte pintada de laranja para a festa. Em algumas semanas, a
cidade será decorada para a Fire Night, e serão jantares, bebidas e compras, sem parar.
E tenho toda intenção de experimentar tudo este ano.
A brisa de ar frio passa pela minha perna. Estou finalmente usando a saia xadrez marrom
e amarela que comprei durante minha obsessão por dark academia no ano passado, que nunca
tive coragem de usar, porque é muito curta. Um alfinete está segurando e terminei o look com
uma blusa amarelinha, uma meia até o joelho e uma jaqueta de camurça marrom justa. Poucas
pessoas fazem contato visual, provavelmente se perguntando por que estou mostrando a cara na
minha própria cidade, mas encaro de volta, prendendo seus olhares ao passar.
Não ligo mais. Na verdade, eu os desafio.
Paro em um vendedor, dando uma olhada para a esquerda e vendo a Arden e a Pru
conversando e tomando café. Pru está vestida de fadinha.
Sei lá o motivo. Embora seja fofo.
— Um pouco de chocolate quente? — o homem questiona.
Dou as costas, vendo o senhor Grayson sorrir para mim. Ele empurra os óculos pelo nariz.
Ele é um dos poucos que continua sendo legal comigo e tem um filho gato que é uma estrela do
rock. Vários motivos para gostar deste homem.
Examino as guloseimas.
— Na verdade, uma maçã do amor de caramelo.
Sorri de novo e agarra um guardanapo, usando-o para puxar a maçã pelo palito.
Dou algum dinheiro a ele, que vai todo para a caridade, claro, e pego meu lanche.
— É caramelo caseiro — explica. — Coma devagar.
— Vou comer. — Quero provar tudo.
Ando até Arden, dando uma mordida e observando Pru girar para as mesas onde as
pessoas estão comendo, fingindo flertar com um garoto que não é o McGivern.
Mas ela não está flertando com o garoto. Ela está flertando com Alexander Vos, nosso
jovem novo professor de matemática. Ele está sentado a algumas mesas de distância, tomando
cerveja com o técnico de basquete e dois pais de jogadores.
Mordo o lábio para esconder o sorriso. Ele está tendo muita dificuldade para não olhar
para ela a cada dois segundos.
Ela é boa. Vai foder aquele homem.
— Vai me dizer o que está acontecendo? — Arden questiona e eu paro ao seu lado.
Dou outra mordida, olhando em sua direção ao mastigar.
— Quer mesmo saber?
Solta uma risada que parece nervosa.
— Dorian, Eric, Slater e McGivern estão todos desaparecidos.
Dou outra mordida.
— Está sentindo a falta deles?
Ela não diz nada por um momento. Todo mundo na escola teve sua vez de enfrentar o
desafio dos cavaleiros. As pessoas os respeitam, porque era uma tradição, mas ninguém
realmente gostava deles. Incluindo Arden.
Exalo, fechando os olhos e inclinando a cabeça de novo, a brisa em meu rosto. Respiro de
novo, sentindo o cheiro do vento, das chaminés funcionando na cidade, da comida e das
possibilidades.
— Sentiu o cheiro disso? — Inspiro. — Gostaria de estar em outro lugar?
Viro os olhos para ver que ela me encara com uma suavidade e uma paz que não costumo
encontrar.
E talvez algo mais.
Ela gira a cabeça, encarando Katya Radcliffe, a loira que também lança olhares para
Arden. O braço do namorado dela está ao redor do pescoço, mas Arden parece que está
começando a não ligar mais que a garota tenha alguém.
— Você deveria se divertir — comento. — Com namorado ou sem, aquele olhar é todo para
você.
Katya pede licença e sai do grupo, andando até Sticks, provavelmente para usar o
banheiro.
Arden suspira, observando-a.
— Acho que você está certa. Dane-se. — Ela joga o café na lixeira. — Observe o que vou
fazer com aquela garota bela, recatada e do lar.
Ela me lança um sorriso e gira, seguindo a loira, seu próprio rabo de cavalo balançando
por cima do número nas costas de sua camisa gigante de hóquei. Ela usa como se fosse vestido,
bem curtinho, sem calça nem nada, apenas meias pretas de nylon e tênis Chucks de cano alto.
Pego minha maçã e vou para o carrossel, pulando bem quando ele começa. Subo em um
cavalo, dando outra mordida e vendo o mundo começar a acelerar ao meu redor.
E, sem perder tempo, outro corpo sobe atrás, cavalgando comigo.
Seguro o sorriso. Sabia que ele estaria aqui.
— Não consigo acreditar que você foi estúpida o suficiente para mexer com a gente.
Meu rosto desaba, ouvindo uma voz diferente.
Olho para cima, encontrando Dorian Castle no espelho do teto, sentado atrás de mim. Seu
rosto está pintado como uma caveira, como outros na vila, pelo Día de los Muertos, e acho que é
por isso que Arden achou que não o tinha visto. Ele está se disfarçando.
Medo envolve meu estômago, porque, pela primeira vez, estou percebendo que não queria
que fosse ele na noite passada.
Por favor, que não tenha sido ele.
Jogo a cabeça para trás, me recuperando.
— Não posso levar todo o crédito.
— Assim como o seu irmão? — dispara. — Ele também não matou, né? Sou o próximo?
Começo a respirar um pouco mais fácil. Ele não é quem está matando os amigos. O que
significa que ele não estava comigo na casa mal-assombrada.
Pisco devagar e com força, aliviada. Não foi ele.
— Diga onde eles estão — exige.
— Onde você estava? — lanço de volta. — Ninguém te viu desde a Noite do Diabo.
Quando ele não fala, olho por cima do ombro para ele e sei com certeza.
— Você estava se escondendo — murmuro. Ele viu algo no campo de milho que o
assustou, então permaneceu escondido. Covarde. Mandou Slater e Eric para fazer o trabalho
sujo na noite passada, enquanto ficou fora de vista.
Encaro-o de frente.
— Quando sua irmã e as irmãs dela trancaram Ava Moffit naquela cela e Mane a salvou
antes que pudessem machucá-la, os cavaleiros o feriram — conto. — Não com socos. Ele poderia
ter aguentado. Ele era forte.
Seguro a barra com uma das mãos, aproveitando o passeio, apesar de sua presença. A
última vez que andei num desses tinha onze anos.
— Eles o drogaram — continuo, incerta do quanto ele sabe sobre o que aconteceu —, o
fizeram assistir o que faziam com Loren e ameaçaram vir atrás de mim se ele não olhasse.
Ouço-o engolir, mas só isso.
— Ele ficou sentado no funeral — prossigo —, vendo os pais de Loren soluçarem. Bebeu
todas nas semanas após, a ponto de eu esperar por ele por metade da noite para me certificar de
que ele tinha chegado em casa vivo. Ele se recusava a olhar para os nossos pais ou para mim, até
uma noite em que perdeu a cabeça, destruiu o quarto, quebrou troféus, janelas e móveis, que eu
chorei, gritei com ele e… — Lágrimas brotam dos meus olhos, pensando como eu não poderia
ajudá-lo. — E ele estava tão longe que é como se não me visse quando estendeu a mão para me
bater. Mas aí… ele parou antes e caiu de joelhos, abraçando-me com tanta força… Nossos pais
tiveram que arrancar os braços dele de mim para que me soltasse.
Odeio o veneno que o infectou.
— Ele era um fantasma quando Loren Foster morreu — quase sussurro. — No dia depois
que ele destruiu o quarto, foi para a quadra bem cedo e Thunder Bay teve sua melhor vitória da
década.
Todo mundo estava muito feliz. A energia no jogo era incomparável.
— E naquela noite — continuo —, os bombeiros arrastaram quatro corpos para fora do
carro dele, incluindo o seu. — Faço uma pausa, pensando sobre como ele já sabia o que ia fazer
quando entrou em quadra naquele dia. Em como jogou sua melhor partida, porque sabia que
seria a última. — Estou feliz que seu irmão esteja morto. Ele levou o meu primeiro.
Dorian muda atrás de mim, inclina-se para frente conforme o carrossel gira, e sussurra
em meu ouvido:
— Mas o seu não está morto.
E então eu ouço vozes, como se fosse uma gravação.
— Ai, meu Deus — uma mulher diz. — Isso é parte da casa mal-assombrada?
Olho para frente, percebendo quase imediatamente que é o vídeo que o homem fez na
noite passada. Dorian o tinha.
— Quem liga? — o cara responde. — Deu uma olhada naquilo? Sei o que vamos fazer hoje
à noite, baby.
A mulher dá uma risadinha.
— Jesus, isso é excitante — continua. — A garota parece familiar?
— O rosto dela está coberto, idiota.
Dorian passa o braço pela minha cintura, segurando o telefone, mas eu não olho. Não
quero saber.
— Sash, você está bem? — o cara brinca, e assumo que ele está falando com a segunda
garota que estava lá.
— Esse cara — comenta. — Ele não parece familiar para vocês?
— Ele não parece familiar para você? — Dorian provoca em meu ouvido, erguendo cada
vez mais o telefone até meus olhos irem para a tela tão rápido que não consigo parar.
Meu irmão me segura em seu peito, envolvendo os braços em mim e fechando os olhos
para beijar minha bochecha.
Eu nunca te mataria. Vejo seus lábios se movendo quando ele sussurra as palavras que
ainda sinto em meus ouvidos.
Fecho os olhos, suor descendo pela minha testa. Ouço um barulho, minha maçã do amor
caindo.
— Quem você achou que era? — Dorian questionou. — Tudo que ele já fez foi para te
proteger.
Eu… Eu não…
Mane.
— Ai, meu Deus — murmuro, tentando não tremer.
— Leve-me até ele — Dorian ordena.
Ele acha que eu sei onde encontrá-lo e não quero admitir que não sei. Iria me fazer
parecer uma idiota, e ele simplesmente amaria.
— Não — respondo, encontrando minha voz.
O carrossel diminui.
— Então vamos trazê-lo até nós. — Ele desce e se vira para mim. — Tenho certeza de que
ele está assistindo.
Fico sentada, encarando, o brinquedo continuando a diminuir. Assim que para, ele estica
a mão para que eu a pegue.
— Desça do carrossel — exige.
Não tenho que ir. Eu poderia gritar agora mesmo. Todo mundo começaria a rir, ignorar, e
amanhã voltaríamos à mesma merda onde ele e alguns novos cavaleiros que são tão facilmente
substituídos tornariam o restante do ano bem mais miserável para mim.
E para Arden e Pru. Seria uma guerra.
De jeito nenhum, porra.
Erguendo-me nos estribos, passo a perna para fora do cavalo e pulo, seu sorriso gentil e
falso ao pegar minha mão como um namoradinho e me guiar para fora do brinquedo.
Cruzamos a rua, passamos pela Taverna White Crow e andamos até a catedral. Ele aperta
meus dedos e não sei se sinto os olhos do Mane em nós ou se estou só torcendo por isso, mas
Dorian me leva para dentro da igreja e fecha a porta.
Embora esteja aberta hoje para turistas e fotos, todo mundo lá fora está aproveitando o
clima. Não vai demorar até a neve começar e tudo que existe na parte de baixo desta cidade estar
coberto pelo silencioso inverno.
Ele me guia, passando pelo confessionário e subindo as escadas. Uma posição elevada
para ver Mane chegando.
— Fico me perguntando o que vai acontecer na escola amanhã — comento, ele me
puxando. — Quando quatro cavaleiros não aparecerem de novo.
Desde que Dorian morra como os outros.
Mas ele responde:
— Eles saberão a quem culpar.
Olho em volta, não vendo ninguém além de nós.
— Não acho que Mane se importa.
Mane estava no vídeo. Hoje à noite, todo mundo saberá que ele está em casa e, quando os
assassinatos chegarem aos jornais, não vai demorar muito até terem uma curta lista de
suspeitos, meu irmão no topo.
Mas todos que o rejeitarem publicamente irão comemorar em privado, porque ele nos
protegeu. Ele não vai cair por nada.
— Ele ainda é um fantasma — digo. — E amanhã… será uma lenda. Uma história que
contaremos às crianças.
Paramos na galeria, uma porta à direita e um espaço bem grande onde os assentos
costumavam ficar. Na lateral, dá para ver a parte debaixo até a nave, uma grade na altura da
cintura para proteger de quedas.
Dorian me solta.
— Não tenho medo dele, Alice — declara. — Ou de você.
Ele coloca a mão para trás, por baixo do casaco, e puxa uma lâmina com ponta serrilhada.
— E de mim? — alguém diz.
Olho por cima dos ombros para ver Arden subindo o último degrau de onde acabamos de
vir. Ela está com o celular na mão, posicionado para pedir ajuda se precisarmos.
Ou talvez ela esteja gravando o áudio.
Uma figura gira à frente, vindo do outro lado da galeria, e vejo Pru dançando como uma
pequena maníaca com a máscara de Mane no rosto.
— Ele definitivamente não tem medo de mim — diz, brincando. — É por isso que eu
carrego esses aqui.
E puxa dois palitos que seguram seu cabelo para cima, brandindo uma lança de prata em
cada mão enquanto os cachos pretos caem ao redor de seu rosto.
Encontro os olhos de Dorian, vendo sua respiração engatar por um segundo.
— Abaixe-se — ordeno.
Ele não vai vencer.
Mas simplesmente dá uma risadinha.
— É sério? — Então rosna, agarrando-me pelo pescoço e puxando-me para si. Ofego. —
Você vai estar me chupando na minha mesa antes de as aulas sequer começarem amanhã —
esbraveja no meu rosto.
Corre a língua pelos meus lábios, cortando minha respiração ao umedecer minha pele.
— Ah! — grito, empurrando-o para longe.
Movo-me para chutá-lo, as garotas correndo para ajudar. Ele ergue a faca, pronto, mas…
Uma corda desliza ao redor de sua cabeça, outro corpo se aproxima e, quando vejo,
Dorian está caindo do outro lado do corrimão, a corda patinando sobre a borda.
Respiro com dificuldade, encarando Mane lá parado, seu cabelo castanho-escuro
bagunçado pelo capuz. Ele segura a corda e suspende Dorian pelo lado. Meu irmão se vira, me
encara e, por um momento, acho que não percebe que Pru ou Arden estão ali.
Ele não parece muito diferente.
Mas, ainda assim, totalmente diferente. É a primeira vez que o vejo em quatro anos.
Agora com vinte e dois, ele está mais preenchido, seriedade enchendo seus olhos azuis
com algo mais feroz e mais forte, mas sempre com um toque de inocência que não consigo
explicar.
Como se ele fosse uma criança que não consegue controlar o que está dentro de si.
— Ai, meu Deus. — Arden ofega. Olho para ela, vendo quando percebe que é Mane parado
ali.
Ele solta, ficando de pé enquanto Dorian cai no chão, e eu corro para a grade, olhando por
cima com minhas amigas.
Dorian está caído lá, tentando se mover. Não vejo nenhum sangue, exceto o que está na
panturrilha de sua calça jeans. Ele quebrou a perna.
Viro-me para confrontar Mane, mas já o vejo desaparecendo pelas escadas. Corro até ele.
— Mane.
Ele não para.
— Mane! — sufoco o choro na minha voz, mas escapa de todo jeito.
Ele para agora, mas não se vira.
Encaro suas costas, sem palavras. Mas que porra! Eu não fazia ideia de onde ele esteve
por quatro anos, e ele aparece para causar outro alvoroço nessa cidade e…
Vou até ele, lembrando-me de quão pequena costumava me sentir ao seu redor. Quão
segura.
Ele ainda é alto, mas não sou mais tão pequena. É diferente.
Sem uma palavra, ele continua até a porta, puxando o capuz e saindo para a rua.
Quase corro atrás, mas ouço Arden gritar atrás de mim.
— Mas que droga!
Viro para tentar explicar, mas, quando o faço, ela não está olhando para mim. Está
encarando o chão onde Dorian caiu, Pru ao seu lado. Aproximo-me, vendo a mesma coisa que
elas.
Dorian se foi, a corda também.
Apenas algumas manchas de sangue de sua perna.
O quê? Eu estava parada na saída mais próxima. Ele quebrou a perna. Não saiu daqui
sozinho.
O que está acontecendo?
— Voltem para o parque — oriento. — Reunião no laboratório de química do terceiro
andar amanhã, seis e meia.
— Você está bem? — Arden indaga. — Seu irmão…
— Vá.
Ela cala a boca, olha para Pru, pega sua mão e as duas saem.
Sigo, mas não consigo ficar. Este é o último lugar que quero estar. Preciso de respostas.
Preciso encontrar Mane. Onde ele tem estado? Não quer falar comigo? Ele disse que eu
era dele na noite passada.
Deixo o parque e caminho. Dou uma volta pela cidade — Coldfield, a marina, o Coldfield
Inn, para ver se ele está hospedado. Ligo para o número que ele costumava falar comigo nas
últimas duas noites, mas não tenho resposta.
Procuro na escola, mesmo que esteja fechada por causa do fim de semana, mas não vejo
nenhuma evidência de luzes e não há carros no estacionamento. Eu verificaria com amigos, se
ele ainda tivesse algum.
Depois de algumas horas, empurro minha porta da frente, a raiva crescendo. Incapaz de
parar de pensar em maneiras de tirá-lo do seu esconderijo.
Vou encontrá-lo.
Passo pelo saguão, mal notando o fogo queimando na fogueira da sala até sentir o cheiro.
Viro a cabeça, o crepitar chegando aos meus ouvidos ao procurar por Mane, mas não é
ele. Quatro figuras enchem a sala, todas vestidas em ternos pretos.
Deixo o celular cair.
Michael Fane vira e olha para mim de onde está, em frente ao fogo. Kai Mori se inclina na
parede perto a ele. Will Grayson está sentado em cima do grande piano e Damon Torrance está
em uma das cadeiras ao redor da mesa de café.
Mas que porra!
Michael abotoa o paletó, abordando-me.
— Não fomos formalmente apresentados. — Estende a mão. — Sou Michael.
— Sei quem são todos vocês — declaro, dando um passo para trás ao olhar ao redor da
sala para todos os cardeais.
Na minha casa.
Nascida e criada nesta cidade, porém nunca tive uma conversa com essas pessoas. E elas
aparecem agora?
Exalo, sem saber se quero rir ou chorar. Claro.
— Vocês estão por trás disso tudo, não estão? — pergunto.
Sinto Damon se erguer da cadeira e ouço Will pular do piano. Lentamente, eles se
aproximam.
Nego com a cabeça, encarando Michael.
— Eu deveria saber. — Aperto a mandíbula. — Tudo é um jogo para vocês. Um jogo de
tabuleiro. Nós somos as peças, vocês são o tabuleiro.
— Nós somos a mesa — Kai retruca, nivelando meu olhar com seus olhos escuros.
Will vira e começa a me circular.
— Há muitos tabuleiros.
Todos se mexem e não tenho certeza se estão sincronizando um ritmo, mas parece mais
ameaçador.
— Há quatro anos, seu pai nos pediu para mandar Mane para Blackchurch — Michael me
conta. — Conhece o lugar?
— Ouvi coisas. — Mantenho os pés enraizados, tentando seguir seus olhos ao se moverem
ao meu redor.
— Garanto que todas são verdades — Will oferece.
Olho para cada um ao passar.
— Então foi lá que ele esteve?
— Não. — Michael nega. — Decidimos que Mane não merecia aquilo.
— Porque ele matou três garotos, vocês acharam que ele merecia a morte? — questiono. —
Como se fossem vocês que decidisse? Como se fossem deuses?
— Está dizendo que eles não mereciam? — Kai pergunta.
Encaro-o com um olhar feroz.
— Estou dizendo que a redenção não é uma possibilidade? Vocês não se perguntam se as
pessoas podem voltar à vida normal após um crime? — Arqueio uma sobrancelha. — Quer dizer,
além de vocês mesmos?
Todo mundo sabe que Kai, Will e Damon passaram um tempo na prisão uma vez. Eles se
redimiram, não foi?
Mas do nada Michael para e lança um olhar para Kai antes de encontrar meus olhos de
novo.
— Acho que você não nos entendeu direito — diz. — Não protegemos Mane porque ele
vingou Loren Foster. Nós protegemos Mane, porque ele estava disposto a se sacrificar no
processo. — Pausa. — Ele pensou que morreria com eles, Alice.
Abaixo o olhar por um momento, lembrando como se fosse ontem. Mane não podia lidar
com o que viu. Não podia lidar com o fato de não ter impedido. Ele queria matar todo mundo
naquele carro, incluindo a si mesmo.
— Sabe quão poucas pessoas experimentam aquele tipo de desespero? — Damon
finalmente diz. — E então retornam disso?
— O chamado do vazio… — Will sussurra, pensando em voz alta.
Olho para cima e encontro seus olhos.
— Mane é um lobo — Kai explica. — Ele mordeu o próprio braço para se livrar de uma
armadilha.
Michael continua:
— Ele lembra a esta cidade que viver em uma prisão da sua dor é tão bom quanto a morte
e a única maneira de sair disso é gritar.
— Gritar… — Will ecoa.
Minha respiração engata. Como é que eu sei exatamente sobre o que eles estão falando
agora?
— E é por isso que vocês não o pararam nos últimos três dias — digo, mais para mim
mesma.
Michael inclina a cabeça.
— Queria que o parássemos?
Não sei. Não consigo pensar. Eles iam me matar naquele labirinto. Fui tão estúpida.
Nunca achei que iriam tão longe. Se Mane não estivesse lá…
Mas isso é demais.
— O que você quer que façamos? — Michael pergunta de forma honesta, sem me desafiar.
Como um pai.
Encaro o chão. Estou feliz por estar segura, mas…
Não vou admitir em voz alta. Não para eles.
— Vocês não são crianças — Kai fala. — Mas se querem as chaves do castelo, precisam
merecer. Você sabe bem disso.
Eu sei. Não posso voltar a ser quem eu era na manhã de sexta, antes de a Noite do Diabo
começar. Quero mais do que senti nos últimos três dias, mas isso não será dado a mim. Tenho
que tomar.
Mas por que eu?
— A Escola Preparatória de Thunder Bay é o que alimenta o futuro desta cidade —
Michael diz. — E merece algo melhor que Dorian Castle, Eric Feldman, Slater Ciccone e
McGivern Ellison.
— Levante os olhos. — Uma voz dura penetra meus ouvidos. Lanço o olhar para frente,
Damon focado em mim. — Nunca afaste o olhar.
Estreito-os, tirando a preocupação das minhas sobrancelhas e substituindo com algo a
mais. Por que eles estão me preparando?
Mas assim que o pensamento surge na minha cabeça, eu percebo.
Criar, preparar, educar, erguer…
— Vocês têm filhas que estão crescendo. — Minha voz é baixa, porém séria. — Este
momento é sobre isso.
Eles querem alguém que trilhe o caminho. Um exemplo para suas crianças seguirem
quando começarem a entrar na escola em alguns anos. Não apenas um legado de estupradores e
idiotas, como McGivern, Eric, Dorian e Slater.
Mas Michael nega com a cabeça, um olhar pensativo no rosto.
— Esperamos muito tempo por você — explica. — Antes mesmo de termos filhas.
— Você é uma de nós — Kai oferece. — Muitos não eram.
Olho em volta, encontrando seus olhares. Estou tentando não me sentir tão animada de
ter a atenção deles. Um monte de gente quer isso.
Eles se movem em direção à porta e Will tira algo do bolso. Ele segura uma chave mestra,
uma fita azul-royal de veludo amarrada na ponta.
— Os portões de Coldfield serão trocados à meia-noite. — Ele me entrega a chave. — Por
dez meses.
Atiro o olhar para ele, pegando o presente distraidamente.
— Você terá toda diversão que sua imaginação permitir — explica. — Use bem.
O quê?
Fecho os dedos ao redor do metal enferrujado, um baque atingindo meu coração.
Ele sorri, mostrando uma fileira brilhante de dentes brancos que o fazem parecer ter uns
sete anos.
— E vá até a Escola dos Depravados quando chegar lá — avisa. — Há uma sala adjacente
com uma porta no chão. A verdadeira Coldfield.
Meu rosto cai um pouco, mas apenas porque sinto que há muito que eu pensei saber
sobre eles e agora não consigo esperar por tudo que eu não sabia. O que fica no piso inferior?
Os quatro começam a andar, Will e Damon passando por mim primeiro, Michael e Kai
depois. Mas, antes que saiam, abro a boca.
— Onde está Mane?
Ouço-os pararem e viro, vendo Michael se voltar para mim. Ando na direção, deslizando a
chave no bolso na minha jaqueta.
— Eu vou vê-lo de novo?
Um sorriso aparece, mas ele tenta esconder, como se soubesse de algum segredo que eu
não sei.
— Tenho certeza de que você pode encontrar uma forma de atrai-lo — provoca. — Você é
esperta.
— É por isso que te escolhemos — Damon adiciona.
Franzo a sobrancelha, lançando um olhar.
Will ri, os três saindo pela porta, mas Kai para ao meu lado.
— Pru Constin — diz, abotoando o paletó. — Ela me preocupa. — Olho para ele, que me
devolve o olhar; calmo, mas autoritário. — Certifique-se que ela está trancada — avisa. — Ela é
fraca.
— Não é. — Ergo os ombros. — Não interfira.
Não sou um experimento ou empregada deles. A Escola Preparatória de Thunder Bay é
minha agora.
Ele parece entender, porque acena apenas uma vez.
— Tudo bem. — Puxa as mangas de seu paletó, arrumando-as. — Você tem o comando
agora. Espero que consiga mantê-lo.
Sorrio comigo mesma para o seu pequeno desafio, ouvindo-o sair e fechar a porta por trás
de si. Eles querem que eu me dê bem, mas Kai está se certificando que eu saiba que se insistir
em autonomia completa, estarei por conta própria de verdade.
O que está tudo bem para mim. Não vou seguir os passos de ninguém. Assim como eles
não o fizeram quando estavam na escola.
A chave pesa em meu bolso e respiro fundo, meus pulmões absorvendo mais ar do que já
fizeram. Mal posso esperar. O que vou encontrar?
Voltando para o saguão, pego o telefone e clico no número nas minhas chamadas
recentes. Mando uma mensagem.
“Onde você está?”
Encaro a tela, dou um passo para subir as escadas, mas ouço um barulho de notificação
em algum lugar no segundo piso.
Ergo a cabeça.
Meu coração para, o sorriso conhecedor de Michael antes de sair surgindo na minha
mente.
Corredores escuros surgem no topo das escadas, levando para os quartos, um escritório,
um sótão e um estúdio renovado que nosso pai me fez durante meu breve período de aulas de
tecido acrobático.
O quarto do Mane ainda está intocado.
Ele está aqui.
Lentamente subo as escadas. Digito:
“Você não vai sair?”
Outra notificação, essa mais alta por eu estar mais acima. A mensagem aparece como
“lida”. Mando outra:
“O que acontece quando nosso pai voltar para casa?”
O que Mane fará? O que vai acontecer entre nós?
Meu telefone vibra, uma resposta finalmente chegando. Encaro, minhas mãos
subitamente tremendo de medo.
“Ele não voltará para casa.”
O quê?
Outra mensagem chega:
“Não até a Fire Night.”
Exalo, preocupada por um momento. Fire Night é daqui a sete semanas — a celebração do
solstício de inverno de Thunder Bay. Ele explica:
“Negócios.”
E então lembro que vi algumas ligações perdidas esta manhã do nosso pai.
Provavelmente, é por isso que ele estava ligando. Calor se espalha pela minha barriga,
percebendo o que isso significa.
Mane é meu guardião até lá.
Ordeno a ele:
“Saia.”
O som vem da minha direita e eu olho para o corredor, três portas para a direita, uma
para a esquerda, e uma grande bem no fim do corredor. Ela está aberta, o cômodo lá dentro
escuro como um breu.
Mas ele não responde.
Mando outra mensagem.
“Vou sair. Chego tarde em casa.”
Então sorrio.
“E vou pegar seu moletom emprestado.”
Sua notificação soa e deslizo o celular para dentro da jaqueta antes de tirar do corpo.
Jogando no chão, lentamente descarto sapatos, saia e camisa, andando de meia pelo corredor
até o banheiro e deixando uma trilha de peças pelo caminho.
Seus olhos queimam minhas costas de onde sei que ele me encara no quarto escuro do
final do corredor. Deixo o sutiã cair no chão e deslizo a calcinha pelas pernas. Segurando a
maçaneta, sorrio para mim mesma ao entrar no banheiro, deixando a luz apagada, pois o brilho
da tarde, que vem da janela, é suficiente para guiar meu caminho. Tiro as meias, ligo o chuveiro,
amarro o cabelo e entro.
Sete semanas. De noites frias, fogueiras e uma casa grande com muitos quartos, tendo-o
para mim mesma quando não há ninguém para arrancar seus braços de mim desta vez.
Em um momento, a porta do banheiro se abre de novo, uma sombra aparecendo na
parede de azulejos na minha frente, e arrepios se espalham pelo meu corpo quanto mais perto
fica. A porta do chuveiro se abre e ele está lá, cobrindo minhas costas, o queixo esfregando o
topo da minha cabeça.
Ele posiciona as duas mãos na parede à minha frente, arrastando os lábios pela minha
têmpora.
— Você não vai chegar em casa tarde — sussurra.
E não consigo evitar o sorriso ao me apoiar nele.
Sete.
Semanas.

FIM.

Espero que todos tenham tido um ótimo feriado e estou ansiosa pelas festividades que
virão. Obrigada por lerem!

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