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Laços de um

Sequestro
Ana Cecília Brun — 2015 (todos os direitos reservados)
Dedicado a todos os meus leitores e todas as minhas leitoras do Wattpad!
Índice
Pr ó l o g o

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

C a p í t u l o 10

C a p í t u l o 11

C a p í t u l o 12

Epílogo

Sobre a autora
Prólogo

Acordo de súbito. Sinto minhas pálpebras pesadas, o corpo mole, a visão turva. Recobro os
sentidos vagarosamente. Quando recupero o tato, percebo não apenas que um pedaço de fita adesiva
tampa minha boca, mas que minhas mãos e meus pés estão amarrados com algo áspero; corda, talvez.
Meu coração dispara, uma onda de terror me atravessa o corpo inteiro e logo minha sonolência
esvaece, deixando-me em estado de completo alerta sensorial. Onde estou? E por quê?

Olho ao meu redor. A escuridão é quase completa; a única fonte de luminosidade vem pelas
frestas da porta do cômodo em que estou. Percebo pelos contornos dos móveis que estou em um
quarto. Um vento frio e tempestuoso atravessa as frestas de algum tipo de janela atrás de mim. Junto
com o farfalhar de muitas árvores, percebo o som assustador de vários pássaros emitindo seus ruídos
noturnos. É noite, sim, disso sei. Ao meu lado, há uma cama, mas por que não estou nela? Tiraram
meus sapatos, mas meu vestido está intacto. Tento me levantar, mas as amarras nos meus pés não me
permitem. Tento gritar, mas minha boca está fechada e minha energia é pouca. O que aconteceu
afinal?

Folheio as páginas da minha memória. Do que me lembro? Saí de casa com meus pais, que
insistiram até a exaustão que eu fosse com eles à festa de inauguração da VisualiZe, a mais nova
agência de publicidade do meu pai. Lembro-me de que eu não estava me sentindo muito bem, mas fui
mesmo assim. Coloquei meu vestido dourado favorito, brincos de pérola e as sandálias que mamãe
me deu no Natal do ano passado. O motorista nos esperava na porta da mansão. Mamãe e papai já
estavam prontos e me esperavam, apressados, reclamando da minha demora. Fui até eles; entramos
todos na Limusine e partimos em direção ao local onde aconteceria o evento, no teatro da Avenida
Oitava.

Era uma noite morna e estrelada; tudo parecia conspirar a favor daquela festa que eu queria
evitar. Quando descemos do carro, fomos bombardeados com flashes que vinham de câmeras de
todas as direções. Papai é um homem conhecido no ramo publicitário; cada inauguração é sempre um
espetáculo à parte. Minha cabeça logo começou a doer. Eu não devia ter saído de casa... Acompanhei
meus pais de braços dados pela entrada do teatro, posando para fotos por mais de um minuto. Depois
entramos. Eu não me sentia muito bem...

— Tudo bem, Alice? — minha mãe me perguntou.

— Está, sim... — não era verdade.

Meu pai tomou a dianteira e nos conduziu. Em outro ambiente, havia mesas exuberantemente
decoradas para quem quisesse se sentar, e era para lá que eu queria ir, mas ainda não era a hora. Meu
pai, Nestor, subira no palco para agradecer a presença de todos e discursava sobre a importância
daquele evento e a vinda de todos àquela festa. Minha cabeça parecia leve, eu não conseguia me
concentrar muito bem. Sentei-me em uma das cadeiras do teatro e aguardei o encerramento daquele
discurso interminável que meu pai fazia.

Lembro-me de que, em dado momento da festa, fui ao bar pedir um copo d’água para tomar uma
aspirina e ver se eu melhorava. Eu devia ter ficado em casa... Durante o um ou dois minutos que
fiquei em pé, encostada no balcão, um homem extremamente elegante parou ao meu lado e me
perguntou com uma voz da qual eu não me esqueceria nem na insânia:

— Está tudo bem, moça?

Olhei-o de cima a baixo rapidamente pelo menos três vezes. Ele vestia terno e gravata como
quase todos os homens da festa, mas não se parecia com nenhum deles. Tinha a pele clara, cabelos
perfeitamente penteados para trás, olhos verdes como esmeraldas lapidadas, barba cerrada e um
sorriso no canto dos lábios que levaria qualquer mulher aonde ele quisesse. Alto, ombros largos,
braços torneados sob o tecido justo do paletó, que lhe descia pelo tronco e modelava a silhueta de
maneira a não deixar dúvidas de que, debaixo de todo aquele pano, existia um corpo de homem
talhado pelas mãos de Hefesto.

— Eu estou bem — respondi, tentando não fitar tão profundamente aqueles olhos hipnotizantes.

— Eu estava te olhando no teatro, você me pareceu um pouco zonza — ele respondeu, tornando
óbvio que ele vinha me observando.

— Foi só um mal estar, já vou tomar um remédio e logo passa. Obrigada pela preocupação —
respondi, admirada com a cortesia daquele que devia ser o homem mais lindo que eu já vira em
carne e osso.

— Se importa se eu te fizer companhia? — ele perguntou.

— Imagina — respondi, ainda um tanto encantada, apesar do mal estar.

Essa é a última coisa de que me lembro. Acordei neste quarto escuro e ainda não sei como vim
parar aqui. O que é este lugar? Tem mais alguém aqui? Tento gritar, mas não consigo; não tenho força
o bastante para me fazer ouvir com essa fita tampando a minha boca. Observando o espaço ao meu
redor, noto que a cama ao meu lado pode me ser útil. Arrasto-me sentada pelo chão arenoso de tacos
e me posiciono de forma a deixar meus dois pés na direção da viga lateral do móvel. Começo a
chutar a madeira com os dois pés. O som da madeira se chocando contra a parede insistidas vezes se
faz ouvir em bom volume, e logo a porta do cômodo em que eu me encontro se abre.

Um fecho de luz branco-esverdeada invade e toma conta de parte do cômodo. Na porta, um


indivíduo de pé, bloqueando a luz de forma que ele consegue ver meu rosto, mas eu não o dele.

— Já acordou? — ele pergunta.

Meu coração parece explodir dentro do meu peito. Instintivamente, me arrasto de volta e me
encosto contra a parede, como se ela pudesse me proteger de alguma coisa. Não respondo ao que ele
questiona.
— Posso acender a luz? — ele pergunta, mas eu também não respondo.

Ele a acende. Fecho os olhos e protejo meu rosto da claridade, que me machuca a visão. Ele
permanece parado por alguns segundos, mas depois ouço seus passos se aproximando. Luto contra a
luz e tento manter meus olhos abertos para conseguir enxergá-lo. Não consigo. Tomada pelo pânico,
começo a chorar quando me dou conta de que ele está a um passo de mim. Observando minha reação,
ele retrocede os passos e apaga a luz novamente, dizendo:

— É melhor esperar seus olhos se acostumarem à claridade.

Volto a abrir os olhos e agora eles enxergam menos ainda, vítimas do clarão repentino. O homem
se aproxima novamente e se ajoelha diante de mim. Luto contra os meus sentidos para controlar
minha visão e meu choro.

— Está tudo bem, não precisa chorar — ele diz de forma macia.

O efeito não é muito certeiro. Estou de mãos, pés e boca atados em um quarto escuro em um
lugar desconhecido; não é tão fácil manter a calma.

— Olha só — ele diz —, eu vou tirar a fita da sua boca, mas você precisa me prometer que vai
ser uma boa menina e não gritar, senão eu vou ser obrigado a te machucar, e eu não quero fazer isso,
tudo bem? — ele pergunta com brandura.

Aquiesço sem ponderar. Mesmo se eu quisesse, não teria forças para gritar. Com muito cuidado,
ele retira a fita da minha boca, fazendo-me suspirar profundamente aliviada.

— Isso... Boa menina.

Com os olhos mais acostumados à baixa luminosidade, fito a imagem do homem à minha frente e
o reconheço num estalo.

— Você!... O homem do bar!

Ele sorri.

— Sim, Alice, sou eu.

Eu sabia que aquela voz aveludada me era familiar de alguma forma.

— O que está acontecendo? — pergunto com a voz trêmula.

— Isto é um sequestro, Alice.


Capítulo 1

— Sequestro? — pergunto, incrédula.

— Uhum...

— Mas... mas por quê?

— Que pergunta é essa? — aquele homem diz com voz sarcástica. — Porque é isso que eu faço:
sequestrar pessoas. E você é minha vítima.

— Onde eu estou? Que lugar é este? Quem é você? Onde estão meus pais? Por que eu? O que
você quer?

Ele sorri.

— Você faz perguntas demais. Está com fome? O que gosta de comer?

De fato, meu estômago dói de fome, e também sinto sede, e preciso ir ao banheiro.

— Eu quero falar com os meus pais! — respondo, ignorando as perguntas dele.

— Você vai, mas não agora — ele se levanta. — Posso acender a luz agora? — ele caminha em
direção ao interruptor e acende a luz novamente.

A claridade invade o quarto mais uma vez e agora me permite ter uma melhor ideia de onde me
encontro. Um quarto mofado e úmido; a cama, porém, está impecavelmente posta. Há um cubículo
próximo àquela parede; deve ser um banheiro. Minhas sandálias estão ao lado da cama; minha bolsa,
em cima de uma cadeira. Pela porta aberta, vejo uma mesa de cozinha; aquela deve ser a copa; a luz
branco-esverdeada é da televisão da sala, sintonizada em algum canal que eu não consigo distinguir
por causa do som chiado e do barulho das folhas das árvores, que parecem estar em guerra atrás de
mim. Ele me olha. Seu olhar é sereno e seus lábios parecem sempre sorrir; não posso confiar nesse
homem; ele já disse que pode me machucar se eu não cooperar. Não tenho para onde correr; pareço
estar no meio de uma floresta ou de qualquer lugar onde não haja qualquer vestígio de civilização.

— Posso pegar seu celular? — ele pergunta, olhando em direção à minha bolsa.

Por que ele pergunta? Eu jamais diria que sim e não teria a menor condição de impedir que ele o
fizesse. Por que ele está sendo gentil comigo? E por que não consigo tirar os olhos dos olhos dele?

— O que você quer? — pergunto, nervosa.

— Quero me certificar de que ninguém vai te ligar por enquanto. Em breve você vai falar com
os seus pais; nós vamos negociar, eles vão pagar o dinheiro do seu resgate, você vai voltar para casa
e vai ficar tudo bem; você só precisa colaborar comigo e nada de mau há de te acontecer.
— O que você sabe sobre mim? Por que eu?

Ele pega meu celular dentro da minha bolsa e a fecha novamente, não tocando em nada além do
aparelho.

— Seu pai é um homem conhecido, poderoso, cheio da grana... Tenho certeza que o que eu vou
pedir por você não vai ser nada para ele, mas muito para mim.

— Então liga pra ele e acaba logo com isso!

Ele sorri mais uma vez.

— Você está muito apressada... Ainda não devem ter sentido sua falta. Vamos esperar um pouco,
sim? — ele se aproxima de mim e se agacha à minha frente, me olhando no fundo da alma com
aqueles olhos aterrorizantemente verdes. — Você não me respondeu se está com fome.

— Estou... — resmungo.

— Certo. Eu vou preparar alguma coisa pra você comer, tudo bem?

— Você não vai me soltar? — ainda estou com as mãos e pés atados.

— Infelizmente não — ele responde. — Preciso, antes, saber se posso confiar em você... Se
você continuar sendo uma boa menina, prometo que solto seus pés depois do jantar.

Ele sorri o tempo todo, e isso me aterra ainda mais. O que esse homem quer de mim? Por que
está sendo tão gentil? Por que está fazendo isso comigo? Ele se levanta e sai do cômodo, deixando a
porta aberta. Dirige-se à cozinha, de onde ouço barulho de plástico; talvez sacolas de supermercado.
Olho ao meu redor, procurando alguma coisa que me possa ser útil para me livrar das amarras.
Percebo que ele me amarrou com cordas de sisal; posso cortá-las, utilizando o objeto certo. Mas no
quarto não há nada que possa fazer isso por mim, e ainda não consigo me mover.

— Você prefere carne vermelha ou frango? — ele pergunta, da cozinha.

Que tipo de pergunta é essa? Por que o filho da mãe não faz qualquer coisa e me traz de uma
vez? Por que insiste em ser cavalheiro comigo?

— Tanto faz — respondo, sem muita força.

— Você gosta de arroz com feijão mesmo? Sei que você é rica, mas não sei fazer comida chique.

— Tanto faz — repito.

Começo a temer novamente. Essa cena é repetida; já vi isso em vários filmes. O psicopata se faz
de bonzinho, trata a refém com toda a atenção fingindo um sequestro e, depois, a tortura até a morte.
Meu Deus! Eu não posso morrer assim! Me ajuda! Olho para os lados novamente, ainda procurando
alguma maneira de me livrar destas amarras, mas sei que não há nada que eu possa usar. O desespero
começa a tomar conta de mim pela segunda vez. Respire, Alice; respire... Pense em alguma coisa!
Você precisa fugir!

Gasto minutos pensando no que posso fazer para escapar deste lugar, mesmo não sabendo onde
estou. Pelo barulho das árvores, estou no meio do nada. Preciso sair daqui e correr; sei disso, mas
não sei para onde correr... Pense, Alice, pense!

— Ei! — chamo-o.

Ele volta ao quarto limpando as mãos em um pano de prato.

— Preciso ir ao banheiro — digo.

— Ah! — ele exclama como se tivesse se esquecido de algo muito óbvio. — Claro! — ele
prontamente deixa o pano de prato sobre a cama e caminha até mim, que permaneço sentada na
mesma posição no chão de tacos. — Com licença... — ele se abaixa, passa o braço esquerdo por
detrás dos meus joelhos e o direito pelas minhas costas, me erguendo no ar como se eu fosse feita de
plumas.

Prendo minha respiração involuntariamente. Estou nos braços deste desconhecido... e os braços
dele são tão... fortes! Não consigo olhá-lo; fecho meus olhos e espero que ele me leve até o cubículo,
que, conforme eu suspeitara, é um banheiro. Há um vaso sanitário, uma pia e um chuveiro. Tudo aqui
é feito de madeira... Espero que a água desse chuveiro não seja fria, porque preciso de um banho. Ele
me coloca sentada sobre o vaso e me ajuda a passar minhas mãos amarradas pela parte posterior do
meu corpo, de forma que eu consiga me movimentar melhor. Destaca e dobra dois pedaços de papel
higiênico para que eu use quando terminar e os deixa em cima da pia.

— Isso é o bastante? — ele pergunta; eu confirmo com a cabeça.

Ele sai da cabine e fecha a porta. Posiciono-me na privada e enterro meu rosto em minhas mãos.
Não posso crer que isso esteja me acontecendo. Por que eu? Eu não quero morrer; eu não posso
morrer agora! Tenho a vida inteira pela frente...! Será que meus pais já sentiram minha falta? Onde
eles estão agora? Estão me procurando? Que dia é hoje? Como esse cara conseguiu me trazer até
aqui?

Dou descarga, limpo-me e empurro a porta do banheiro com os pés. Ele sabe que eu não consigo
andar, portanto logo aparece com o pano de prato sobre o ombro e, mais uma vez, me pega no colo.
Dessa vez, coloca-me sobre a cama, que tem aparência velha, mas cujo colchão é bastante
confortável.

— Está muito apertado aí nos pés? — ele me pergunta.

Fuzilo-o com os olhos, tentando lê-los de alguma forma e entender o que esse homem quer de
mim.

— Quem é você? — pergunto, começando, agora, a me incomodar profundamente com todo esse
cavalheirismo.

— Eu não me apresentei, não é? Me desculpe. Eu tenho muitos nomes, mas pode me chamar de
Martin. E você é Alice. Alice Borges, filha de Nestor Borges, certo? — ele se sentou ao meu lado,
olhando-me com admiração.

Não respondi. “Martin”. É óbvio que ele não me diria o verdadeiro nome dele. Que idiota que
eu sou. Olho para o chão, observando o caminho infinito dos tacos, buscando me concentrar em
qualquer coisa que não o olhar penetrante daquele homem sobre mim.

— Eu estou bem, pode voltar pra cozinha — digo, áspera feito lixa.

Ele não replica. Levanta-se devagar e volta para a cozinha, ainda deixando a porta do quarto
aberta; a luz agora desligada. O cheiro de cebola frita começa a invadir o cômodo e meu estômago
parece brigar com as minhas vísceras dentro de mim. Estou realmente faminta! Na televisão ecoa o
último noticiário do dia. Já deve passar da meia-noite agora... e eu ainda não sei onde estou nem o
que esse homem quer comigo. Deito-me de lado com as pernas para fora da cama sem travesseiros,
esperando que a comida fique pronta. Ainda fraca, quase cochilo outra vez, mas logo volto à
consciência plena com o chamado dele:

— Está pronto.

Olho em direção à porta. Ele entra com o prato de comida em uma mão e um copo de suco em
outra. Sento-me na cama e olho em direção a ele. A comida cheira maravilhosamente bem. Ele deixa
—não: Martin deixa o copo de suco no chão e se inclina em minha direção. Então me dou conta de
que ele vai me dar comida na boca.

— Pode parecer estranho, eu sei, mas, por enquanto, precisa ser assim — ele se justifica antes
mesmo de eu protestar.

Não estou em posição de reclamar; meu estômago ruge de fome e estou à mercê desse homem;
melhor fazer o que ele quer. Martin desfiara o frango; agora coloca uma quantidade razoável de
comida no garfo e leva à minha boca. Pelo menos ele não está fazendo nenhuma piadinha. Abro a
boca, ele coloca o garfo, eu mastigo, ele espera em silêncio, me oferece suco, eu recuso,
continuamos.

— Você tem os olhos da sua mãe — ele diz enquanto mastigo.

Devolvo-lhe o olhar, cada vez mais furiosa. Meu medo dá lugar à irritação pela impertinência
desse bandido.

— Você sabe que vai sair daqui preso, não é? — digo, desafiadora.

Ele meneia a cabeça em tom de dúvida. Coloca mais um pouco de comida no garfo e me
alimenta novamente.

— Não sei... Você está lidando com um profissional, senhorita. Já disse: colabore comigo e
nada vai acontecer a ninguém aqui.

— Você sequestrou a senhorita errada — respondo. — Meu pai é um homem muito poderoso;
quando eu estiver em liberdade, você vai ou para a cadeia ou para debaixo da terra.

Martin sorri aquele mesmo sorriso dissimulado e descrente.

— Gostei de você — diz. Enquanto mastigo a garfada da vez, ele continua: — Você é abusada,
me desafia; não se faz de coitada, não está berrando nem chorando desesperada... É sexy.

Meu coração congela dentro de mim. Ele disse “sexy”? Me chamou de sexy e de abusada? Isso
só pode ser brincadeira! Quem ele pensa que é?

— Você está muito encrencado quando sair daqui, Martin; muito encrencado.

— Tudo bem; pode deixar que eu sei me cuidar. Por enquanto só coma, em silêncio, de
preferência.

Atrevido! Canalha! Me mandando calar a boca! Respiro fundo, conto até dez, vinte, trinta e
cinco. A comida está acabando; minha fome também.

— Como você me trouxe para cá? — pergunto, desobedecendo a ordem de permanecer em


silêncio.

— Hum... Você não estava se sentindo muito bem na festa; ofereci te levar para casa; você
aceitou. No caminho, o pozinho mágico que eu coloquei dentro da sua água antes de a gente sair do
teatro fez efeito. Te deixei no carro, passei no mercado para comprar algumas coisas e te trouxe aqui
junto comigo. Fácil como tirar doce da boca de criança.

Não me lembro de nada disso.

— Que dia é hoje? — pergunto.

— Ainda é domingo; só se passou uma noite desde seu sequestro; não devem ter sentido sua
falta ainda.

— Eu quero falar com meus pais.

— Você vai, na hora certa.

Ele me oferece o copo de suco; dessa vez eu aceito. É de laranja, meu favorito, mas falta um
pouco de açúcar.

— Eu trouxe algumas roupas para você ficar aqui por enquanto e não sentir frio; venta muito à
noite; não quero que você adoeça. Daqui a pouco você vai dormir; eu já separei dois travesseiros e
um cobertor, também, não se preocupe.
— Eu não estou com sono. Eu quero falar com os meus pais.

— Ah, eu coloquei um remedinho no seu suco, logo logo você vai apagar.

— Desgraçado! Me tira daqui, seu monstro!

— Shh... Relaxa: amanhã você vai estar inteira, é só que não posso confiar em você ainda.
Espero que me entenda.

— Socorro! — grito, desesperada.

— Não precisa gritar; estamos no meio do nada; não tem ninguém para te ouvir aqui.

Volto a chorar. Sinto-me uma idiota, rendida, nas mãos desse criminoso. Choro copiosamente, e
ele continua me olhando com aqueles olhos verdes que parecem ler minha alma.

— Sinto muito — ele diz. — Vai ficar tudo bem.

— Me deixa ir embora, por favor... — sinto meu corpo começar a enfraquecer novamente e me
lanço em direção a Martin, implorando por piedade.

Tento golpeá-lo com as minhas mãos atadas, mas não tenho forças. Ao sentir meu toque contra o
corpo dele, Martin se retrai, como se não quisesse encostar-se a mim. Ele não me tocaria? Meu
Deus! Sim! Ele poderia me tocar! Esse homem está me dopando; ele pode me violentar a qualquer
instante! Eu preciso sair daqui!

Novamente, sinto meus olhos anuviarem, minhas pálpebras pesarem mais do que eu consigo
suportar, até que, envolta em um torpor incontrolável, adormeço pela segunda vez.
Capítulo 2

Acordo novamente. Céus! Esse remédio que ele me deu é bom mesmo! Dormi a noite inteira
feito uma anjinha, uma anjinha de pedra, e acordei de uma vez, pronta para outra. Sinto-me
extremamente confortável e, por um instante, dou-me conta de que estou no quarto de madeira, ainda
sequestrada. Suspiro. Ao esticar minhas pernas, percebo que Martin cumpriu o que prometera: tirou
as amarras do meu pé. Ah! que alívio! Consigo mexer as pernas e me movimentar quase livremente,
que as minhas mãos permanecem amarradas, embora ele tenha mudado o tipo de nó e agora eu tenha
o quê? vinte ou trinta centímetros de espaço entre um pulso e outro. Bem melhor.

Estou coberta por um edredom e há dois travesseiros sob minha cabeça: do jeito que eu gosto!
Parece até que ele adivinhou! Espreguiço-me demoradamente. O som dos pássaros lá fora parece
mais amigável agora; o quarto está semi-iluminado pela luz do sol que entra pelas frestas da janela.
Levanto-me. A amarra na minha mão agora não é de corda, mas de algum tipo de material
emborrachado, e está um pouco apertada, mas meu sangue circula. Caminho até o banheiro. Sobre a
pia, uma escova de cabelo, pasta e escova de dentes. Sobre o vaso sanitário, uma toalha de banho,
bucha, sabonete, xampu e condicionador. Abro a torneira do chuveiro e sinto um alívio profundo ao
tocar a água morna. Prendo minha crina num coque, escovo os dentes e saio do cubículo. A porta do
quarto está trancada. Em meio ao silêncio do cômodo e da casa, ouço um ruído característico, mas
difícil de identificar, vindo do outro lado da janela. Caminho até lá e estreito meus olhos entre os
frisos para me deparar com esta cena que desestabiliza todos os meus sentidos:

Do lado de fora da casa, Martin está cavando a terra. Não; ele não está “cavando” a terra,
Alice: ele está cavando a terra sem camisa. Meu Deus! Quem é esse homem?! Não! Que homem é
esse?! Martin retira a terra do solo com uma pá enferrujada e joga os pequenos montes para o lado. O
sol da manhã reflete em seu corpo suado e evidencia seus músculos, que parecem ter sido talhados às
mãos de Míron! Seu peito é largo, rijo, com pelos simetricamente distribuídos, que descem por seu
abdome irresistivelmente definido e morrem no cós da calça de sarja dobrada na altura do joelho. Os
movimentos se repetem: ele pega a terra com a pá, joga para o lado, pega mais um pouco, joga para o
lado novamente, e, a cada vez que faz isso, consigo ver cada um dos músculos de seu tronco
flexionando sob a pele, que transpira—Oh! Não! Pare! Deus! Ele está limpando o suor da testa! Seu
bíceps se contrai e logo me explica o porquê de ele ter conseguido me carregar com tamanha
facilidade... Esses braços! Ai! Ele vai entrar em casa!

Saio da janela e respiro fundo. Estou com fome de novo. Ouço os passos e os assobios de
Martin na cozinha e decido que é hora de chamá-lo. Espero um ou dois minutos para que ele tenha
tempo de ir ao quarto se vestir... Ok.

— Martin! — chamo com voz firme.

Ele não responde, mas para de assobiar. Depois recomeça... Ouço barulho de chaves... Ele deve
estar trancando a casa para que eu não fuja, é claro, afinal estou sem minhas amarras dos pés. Em
seguida, ele abre a porta do meu quarto.
Deus! Deus, onde Você está?! Ele não se vestiu! Senhor!

— Bom dia, senhorita — ele me cumprimenta. — Dormiu bem?

Sinto meu rosto arder em rubor. Meneio a cabeça afirmativamente e permaneço parada no
mesmo lugar, sem dar um passo. Martin se afasta de mim e caminha em direção à geladeira.

— Estava te esperando acordar para fazer o café. O que você costuma comer de manhã? — ele
pergunta.

— Qualquer coisa — respondo, absurdamente constrangida.

Sento-me à mesa de madeira — por que tudo aqui é de madeira? — e observo-o examinar
cuidadosamente o interior da geladeira. Deus! Ele não se dá conta de que está sem camisa e que
essa... visão... está me... desconsertando? Ai! Ele vem para perto da mesa e para bem ao meu lado,
colocando manteiga, leite e geleia sobre a mesa. Não vou olhar, não vou olhar, não vou olhar...
Merda! Não dá para não olhar! Observo gotas esparsas de suor descerem pelos gomos largos de seu
abdome e desaparecerem nos últimos pelos abaixo do umbigo. Sua respiração é leve; seu cheiro é
másculo... ai de mim!

— Você toma café preto? — ele pergunta. Confirmo com a cabeça.

Ele se vira novamente e vai em direção ao fogão. Agora o observo de costas. Consigo ver a
linha imaginária que divide seus trapézios e o bumbum carnudo que preenche a calça justa. Pai
Eterno! Valei-me!

— Você pode tomar um banho enquanto faço o café, se quiser — ele diz. — Vou deixar umas
peças de roupa em cima da cadeira.

Aceito prontamente. Caminho até o sofá e percebo uma mala aberta, cheia de roupas femininas e
masculinas. Ele comprou isso tudo? De fato, as peças femininas parecem ser mais ou menos do meu
número... Ele andou me observando para saber que número eu visto? Ele não pode ser tão esperto
assim. Bom, não importa agora; só preciso tirar esse vestido do corpo. Ele disse que vai deixar em
cima da cadeira, né? Tudo bem. Volto para o quarto; encosto a porta e entro no cubículo. Ligo o
chuveiro e deixo a água morna cair sobre mim. Começo a me ensaboar tentando enganar a mim
mesma e ignorar o fato de que estou sentindo... coisas por esse homem—pelo corpo dele. Pare,
Alice! Você está sequestrada! Ele pode te fazer mal!... E pare com isso! Não se toque! Você está
tomando banho em um cativeiro!

Enxugo-me com a toalha felpuda. Sinto-me nova depois do banho! Saio do cubículo e vejo que
Martin deixou um chinelo lilás na porta do banheiro também. Esse cavalheirismo está me dando nos
nervos! Troco de roupa. Visto, muito desajeitadamente, de baixo para cima, uma blusinha tomara que
caia (ele não vai soltar minhas mãos?). Está um pouco apertada e eu detesto esse rosa choque, mas...
Ai ai. Procuro uma calça ou short ou bermuda dentro da mala; não quero deixar minhas pernas à
mostra para esse bandido. Ou quero?... Argh! Não tem nada que me sirva dentro dessa mala... Ah!
Achei uma minissaia! Ótimo. Não gosto de minissaia, mas não estou podendo fazer exigências (essa
calcinha também não está muito confortável...).

Saio do quarto e volto para a cozinha, onde Martin, agora vestido, toma café me escaneando da
cabeça aos pés. Evito manter contato visual. Sento-me na cadeira de frente à dele.

— O que foi? — pergunto, pois o olhar dele me sufoca.

Ele sorve lentamente o café da xícara e me responde:

— Você é a mulher mais linda que eu já sequestrei.

Meu coração dispara. Ai, meu Deus! Esse homem vai me matar: ou do coração ou de verdade!
Preciso sair daqui!

— Você deve dizer isso a todas antes de matá-las — digo, servindo-me de um pouco de café.

Ele continua me fitando, agora com um sorriso de canto na boca.

— É verdade — ele responde.

Oi? Espere aí...! Arregalo os olhos e fico completamente paralisada. Martin continua:

— Você não me ouviu cavando a terra agora há pouco? Aquela vai ser sua cova...

Meu coração entala na garganta, pulsando aos duzentos por segundo. Ele quer mesmo me matar!
Não consigo dizer nada, só manter meus olhos horrorizados sobre Martin, que, de repente, explode
em gargalhada, espremendo os olhos.

— É brincadeira! — exclama entre risos.

Uma onda de fúria me atravessa da cabeça aos pés.

— Filho da mãe! Cretino! Idiota! Eu vou acabar com você, seu monstro!

Tendo apenas os pés livres, chuto as canelas dele por debaixo da mesa, e, quanto mais o acerto,
mais ele ri da minha cara de otária indefesa e inofensiva. Ele se controla e para de rir; eu continuo
possessa.

— Você é muito teimosa. Já falei que nada vai te acontecer se você se comportar, mas você
insiste nessa ideia de que eu vou te matar.

— Você é um bandido! Não dá para acreditar em você!

— Assim você me ofende. Prefiro que me entenda como um homem de negócios.

— Pare de falar, Martin; não quero ouvir sua voz.

Que homem insuportável! Tomo uma xícara de café e como um pedaço de pão doce. Ele deve ter
saído muito cedo e ido a algum lugar comprar essas coisas. Isso quer dizer que existe um carro ou
uma moto por aqui. Se eu conseguir sair de dentro da casa, talvez eu consiga fugir — isso se for de
carro e eu ainda conseguir fazer ligação direta, que moto eu não sei pilotar. Por que não aprendi?

— O que você estava cavando? — pergunto. Já que não é minha cova, alguma coisa há de ser.

— Vou plantar uma árvore ali.

Excelente: além de tudo, agricultor. Eu mereço.

— Daqui a pouco nós vamos falar com os seus pais. Eles já devem estar com saudade.

Não respondo. Daqui a pouco colocam a polícia atrás de mim. Se isso acontecer, estou frita. Ou
estou assistindo televisão demais ou esses casos de sequestro envolvendo polícia acabam mal em
101% das vezes.

Certo. Não há nada que eu possa fazer agora, há? Creio que não. Resta-me esperar, então
espero. Martin toma seu café e me oferece a televisão da sala para assistir. O que eu realmente quero
é que ele tire esse negócio do meu braço, mas isso não parece ser uma opção por enquanto. Vou para
a sala e sintonizo em qualquer morning show. Pela janela da sala, observo que não estamos em uma
floresta, mas em algum tipo de fazenda ou casa de campo. Aqui deve ser o esconderijo dele... Não
ouso me aproximar e olhar com mais cuidado; melhor não fazer movimentos bruscos.

Algum tempo passa. O programa na tevê não é ruim; me mantém entretida. Logo Martin passa
por mim e entra em um quarto, o dele, provavelmente. Volta para a sala e caminha para outro lado da
casa com uma toalha sobre o ombro. Acho que vai tomar banho.

Estou sozinha na sala. Por que ele me deixou sozinha? As janelas da casa não têm grade; eu
poderia sair correndo facilmente. Mas ele sabe que eu não tenho para onde correr, é claro, a menos
que eu corra tanto que acabe encontrando alguma estrada e consiga carona com um desconhecido
solidário. Até parece que você tem esse fôlego, Alice. Ele te deixou sozinha com a porta trancada e a
janela aberta porque sabe que você não vai fugir. Certo, ele parece saber mais sobre mim do que eu
suponho.

Ouço o barulho do chuveiro ligar. Muito bem: agora tenho alguns minutos de liberdade, que
aproveito para explorar a casa. Sala, copa e cozinha dividem o mesmo espaço, praticamente. A porta
do quarto em que estou dá na copa. Na cozinha há outra porta, que leva a um corredor, onde há o
banheiro e outro cômodo, este trancado. A porta do banheiro está fechada, mas, olhando para a
maçaneta, noto o buraco da fechadura e sinto um desejo avassalador de olhar por ela e ver Martin do
outro lado. Não, Alice! Acorda! Esse homem te sequestrou! Você não pode querer vê-lo pelado!...
Mas... mas... ele é tão lindo...! E ninguém vai ficar sabendo disso, vai? Já que é assim... Argh! Por
que meu coração está batendo tão forte? Martin não é o primeiro homem nu que eu vou ver na vida.
Quer saber? Dane-se: eu vou olhar.

Inclino meu corpo para baixo, em direção ao buraco da fechadura... Posiciono-me e... Droga!
Ele fechou a cortina! Droga! Droga! Xingo aos sussurros e volto para a sala. Sento-me no sofá,
profundamente frustrada. Poucos minutos depois, ele sai do banheiro e passa por mim assobiando,
com uma toalha verde amarrada na cintura, com os cabelos ainda pingando da cabeça ao tronco...
Esse homem não tem noção de quão atraente ele é ou está fazendo isso tudo de propósito? Seja lá
qual for o motivo, é melhor que ele pare, pelo bem da minha sanidade.

— Vamos falar com papai e mamãe? — ele pergunta assim que volta para a sala enquanto veste
uma camiseta regata e me dá os últimos segundos de visão de seu torso desnudo.

— Você é a criatura mais detestável que eu já conheci — digo. “Papai e mamãe”? Babaca!
Debochando de mim como se eu fosse uma qualquer!

— Olha lá como fala comigo, hein? Posso mudar de ideia e usar aquele buraco lá fora pra outra
coisa hoje.

— Canalha! Monstro! Bandido!

— Estou vendo que vou ter que te amordaçar de novo...

— Não!

— Então fique quietinha e não me irrite, que eu acordei de bom humor hoje — Martin mexe em
um celular que não é o meu (aliás, o que ele fez com o meu celular?). — Vamos lá. Qual é o número
do papai?

Digo o número e Martin disca, sentando-se ao meu lado com as pernas cruzadas e braço
esticado ao longo do encosto. Meu pai demora a atender.

— Nestor Borges?... Aqui é Martin. Estou ligando para negociar a liberdade da sua filha... Sim,
um sequestro... Calma, ela está aqui do meu lado... Tudo bem... — Martin coloca o telefone na minha
orelha.

— Pai?

— Alice! Você está bem?! Ele te machucou?! Te fez alguma coisa?!

— Calma, pai, está tudo bem; não me aconteceu nada; ele só quer o dinheiro do resgate.

Quando digo isso, Martin tira o telefone do meu ouvido e volta a falar:

— Viu como sua filha é esperta?... Ela está inteira. Ainda... Não, não: se envolver a polícia, a
situação pode piorar... Você não quer receber uma orelha ou um dedo da sua filha por correio,
quer?... Ah, é? Então espere aí.

Martin deixa o telefone em cima do sofá e caminha até o quarto. Meu peito arde de temor. Meu
Deus! Não! Não!!! Ele está com uma tesoura enorme na mão e vindo em minha direção! Começo a
gritar desesperadamente. Pulo do sofá, mas ele, mais alto e mais forte que eu, praticamente me agarra
no ar, fazendo-me cair sob ele no chão de madeira.
— Não, Martin! Não! Por favor! Pelo amor de Deus! Não!!!

Sinto o metal gelado encostar em minha orelha e grito ainda mais intensamente, completamente
imobilizada. Sinto meu estômago revirar e fecho os olhos com força, esperando que o sangue escorra
debaixo de mim e a dor aguda me atravesse a alma. Mas nada disso acontece. Martin sai de cima de
mim, volta ao sofá e pega o celular novamente:

— Ouviu?... Eu não sou homem de ameaças, Nestor; acho melhor negociarmos logo antes que eu
corte outro dedo...

Filho da puta! Me fez gritar só para o meu pai achar que ele cortara mesmo um dedo meu!

— ...Quero 150 mil dólares, em notas de 20, 50 e 100. Não numeradas, é claro... Esse é meu
valor final... Amigo, eu sei de tudo isso; só quero a grana... Já falei: nada de polícia... Você está um
pouquinho alterado; melhor conversarmos outra hora, sim?... Eu entro em contato.

Desligou o celular. Continuo no chão, parecendo uma idiota, chorando de susto. Martin vem em
minha direção e me oferece ajuda para eu me levantar. Nego, sentindo-me duplamente imbecil, tanto
por chorar por algo que ele nem me fez quanto por ele pensar que eu não consigo me levantar
sozinha. Apesar de que tudo é mais difícil com as mãos atadas.

— Desculpa — ele pede.

— Me deixa!

— Eu quero, mas seu pai não ajudou.

Martin me puxa pelo braço e me levanta num impulso só. Acabo me atrapalhando com o
equilíbrio e trombando contra o corpo dele, que me segura pelos braços. Nossos corpos a menos de
trinta centímetros. Ele me olha no fundo dos olhos e eu nos dele, ainda chorosa.

— Desculpa. Não queria te fazer chorar.

Finge que vai cortar minha orelha e diz que não queria me fazer chorar?!... Não respondo.
Abaixo meus olhos, desviando-os dos dele. Ele seca minhas lágrimas com o polegar e continua:

— Eu não vou cortar nenhum dedo nem orelha sua; eu não estragaria uma mulher tão bonita
fazendo isso.

É a segunda vez que ele me fala que sou bonita. Por que está fazendo isso? Droga! Ele se afasta.

— Vou ter que falar com o seu pai outra hora. Pensei que ele seria mais imediato.

De fato, meu pai não é assim tão fácil de dobrar. Por que eu, Cristo? Tantos homens ricos no
mundo! Por que eu?!

— Não tem muito o que fazer por aqui — Martin diz. — Tem televisão para assistir, no meu
quarto tem uns livros e uns DVDs também; na geladeira tem comida; pode comer quando quiser. Ah:
pode me ajudar com a árvore também, enquanto não preciso usar o buraco para te enterrar.

Engraçadinho. Cretino, ordinário, insuportável!

— A casa é sua.

Martin sai da casa e vai cuidar da terra. Sento-me no sofá e suspiro. Sinto que esta aqui será
uma longa, longa estadia...
Capítulo 3

Certo. Devem ser o quê? Dez e meia, onze horas agora? Onde esse cretino colocou meu celular?
Não consigo nem saber as horas! Ele saiu daqui; foi lá cuidar da árvore... O que eu posso fazer
agora? Ele podia tanto soltar minhas mãos... Droga. Levanto-me. Aproveitando a ausência dele,
entro no quarto de Martin e dou uma bisbilhotada básica. Tudo muito arrumadinho, diga-se de
passagem. Cama de casal, lençol branco esticadinho sobre ela, guarda-roupas grande, uma estante de
livros... Livros! Vamos ver o que tem de bom por aqui. Edgar Allan Poe, Freud... “A Interpretação
dos Sonhos”. Por que ele tem Freud na estante? Hum. Eça de Queirós, Bukowski, Henry Miller...
Nossa! Esse cara gosta de umas coisas eróticas, hein? Hum... “Novo Testamento”. Ha! Que ironia!...
Isso porque ele falou que também tinha uns DVDs, né? Imagino o que deve ser... Mas eles não estão à
vista. Melhor eu não ficar fuçando, senão posso, além de encontrar, deixá-lo irritado por estar
mexendo nas coisas dele sem autorização.

O guarda-roupa. Olho pela porta do quarto e ainda ouço o barulho da pá trabalhando lá fora,
então não tem problema eu dar uma olhadinha aqui. Abro a porta e encontro o móvel quase vazio. É
claro, Alice, esta casa é apenas um cativeiro; ele não deve passar mais do que uma semana seguida
aqui; é lógico que tem pouca roupa. Umas camisas de manga comprida — as que ele deve lavar
depois de trazer as reféns das festas de gala para cá —, calça jeans, calça social, um sapato ali,
cinto, perfume... Nada demais. Gavetas; adoro gavetas! Abro a primeira. Ai, meu Deus! Ai meu
Deus! Cuecas! Senhor! Cuecas brancas, cuecas pretas, cuecas boxer, cuecas, cuecas... Pare, Alice!
Você já o viu sem camisa; querê-lo só de cueca já é demais! Feche essa gaveta!

Suspiro fundo. É melhor eu sair deste quarto, que o meu coração já está batendo forte aqui.
Muito bem. O que é que eu tenho para fazer agora? Já tomei banho, não estou com fome, não tô com
saco para televisão, não quero ler... Ei, o Martin deixou a porta da sala aberta. Será que ele se
importa se eu sair da casa e respirar um pouco de ar fresco? Não, né? Se ele se importasse, teria
deixado a porta fechada, eu acho. Ah, vou arriscar; o máximo que pode acontecer é ele me dar uma
pazada na cara. Caminho até a porta e desço os dois degraus que separam a casa da natureza.
Olhando para fora, parece que estou numa fazenda. Há um caminho de terra à minha frente, e esse
leva a algum lugar que, em algum momento, decerto acabará na estrada, mas, como não consigo
enxergar a estrada daqui, presumo que esse caminho é longo, bem longo. Isto é, se isto aqui for
mesmo uma fazenda, porque essa assunção é meramente minha. Dou a volta pelo lado contrário da
casa e vejo que há uma garagem. Dentro dela, uma caminhonete bem antiga... Ford F-250 XL... Isso
não deve nem vender mais. Mas é um carro bonito. A pintura ainda está conservada e parece que
houve reformas aqui... Por que ele tem uma caminhonete? Bom, não importa. Continuo circulando a
casa. Ao fundo, duas estacas de madeira fincadas no chão e um fio de arame ligando as duas. Um
varal, claro. Por todo lado que eu olho, só vejo grama, céu, árvore, horizonte, pássaros cantando...
Estou começando a sentir falta da civilização. Meu pai bem que podia abrir a mão logo e pagar esse
dinheiro para eu poder voltar para casa e acabar logo com essa tortura... Tá bom, não está sendo
exatamente uma tortura — muito pelo contrário —, mas eu tenho mais o que fazer; não posso ficar
por conta de um sequestrador gostoso (eu não disse isso).
Continuo caminhando; não tem nada de bom aqui no fundo da casa. Quando chego do outro lado,
encontro Martin ainda mexendo com a terra. Agora já não está mais cavando, mas afofando o solo,
parece. Ao lado dele, uma muda de árvore. Ele me olha sem interromper o que estava fazendo antes
da minha chegada. Fico parada observando a cena; ele fica parado me observando; ambos em
silêncio.

— Que foi? — ele pergunta.

— Nada, ué. Tô só olhando.

— Pode olhar.

Sinto meu rosto enrubescer. Ele sorri, decerto percebendo minha reação. Desvio o olhar e volto
a mirar o horizonte, protegendo os olhos da claridade com as mãos.

— Por que você vai plantar mais uma árvore? — pergunto. — As que tem aqui já não são o
bastante?

— Elas estão longe. Quero uma sombra pra esta janela — ele responde, apontando com a
cabeça para a janela do quarto no qual estou instalada.

— Mas até essa árvore ficar grande o bastante pra cobrir essa janela...

— Eu não tenho pressa.

Sinto que estou conduzindo uma conversa muito imbecil; é melhor eu mudar de assunto.

— Quando você vai falar com o meu pai de novo? Estou ficando cansada disso aqui, já.

— Já? Mas você acabou de chegar... — Martin se levanta, encostando a pá à parede da casa.

— Já. Quero ir embora, quero dormir na minha cama, quero minhas mãos livres.

— Você está se comportando bem; acho que posso te soltar... Mas já sabe, né? Se pisar na bola
comigo, não prendo só suas mãos, mas também seus pés e te amordaço de novo.

— Não precisa me ameaçar; eu sei de tudo isso.

— Ótimo. Daqui a pouco a gente vai lá dentro e corta isso.

Finalmente! Nem acredito que vou poder esticar meus braços! Ah! Que alívio!... Me encosto
contra a parede e fico observando Martin terminar de fazer o que está fazendo. Ele é todo cuidadoso;
deve ter calculado bem a distância entre a árvore e a parede para que aquela cresça o bastante para
fazer sombra e não encostar nesta... Ele ajunta a terra com a mão, arremata com uma pá menor,
depois se levanta de novo, bate uma mão contra a outra para tirar o excesso de terra, me olha mais
uma vez e sorri.
— Pronto. Daqui a uns anos, quando você voltar aqui, seu quarto já vai ter sombra natural.

— Idiota.

Ai, que homem irritante! Só sabe rir da minha cara. Também pudera: deve ser altamente
divertido ter alguém à mercê da sua boa vontade e do seu poder. Ainda bem, ainda bem que eu fui
parar nas mãos de um sequestrador de boa fé. Imagina se esse cara decide que quer se divertir
mesmo comigo e me molesta, me maltrata, me bate, me mata?... Sorte eu ter vindo parar nas mãos de
um que só parece querer o dinheiro do meu pai. E sorte ele ser lindo desse tanto. Ou azar. Acho que
mais azar do que sorte.

Martin caminha para dentro da casa novamente, e eu vou atrás. Na cozinha, ele lava as mãos
para tirar a terra e pega um facão, vindo em minha direção.

— Não se mexa — ele diz, empunhando o objeto na direção do meu rosto.

— Essas brincadeirinhas já estão perdendo a graça, Martin — digo, entediada.

— Desculpa. Eu perco a refém, mas não perco a piada — ele responde, cortando a amarra do
meu pulso. Ah! Que alívio!

— Muito obrigada! — digo com toda a minha sinceridade.

— Não há de quê.

Martin caminha até a cozinha novamente e guarda a faca numa gaveta, trancando esta à chave em
seguida. É claro que ele não deixaria objetos cortantes assim de fácil acesso, né? Esperto, muito
esperto.

— Sente-se melhor?

— Sim, muito melhor, nossa!

Não fui irônica. Não sabia que ter os braços amarrados por quase três dias seria tão horrível
assim. Meus pulsos estão marcados e vermelhos por essa corda emborrachada, mas logo passa; não
vai ser problema.

— Muito bem — Martin enxuga as mãos na roupa depois de guardar a faca. — Quando quiser
almoçar, tem comida na geladeira. Se quiser ler, assistir a um filme, tem livros e TV no meu quarto
— Martin se joga no sofá e se ajeita, esticando-se horizontalmente sobre o estofado. — Acho que
hoje à noite vou te levar pra conhecer um lugar.

— Que lugar?

— Um lugar.

— Você e seus mistérios...


— Não tem mistério nenhum, é só um lugar aonde eu gosto de ir de vez em quando e quero te
levar. A menos que você queira passar todos os dias do seu sequestro aqui dentro dessa casa. Pra
mim não vai ser sacrifício nenhum.

Ficar o tempo todo olhando para ele deitado no sofá também não me seria sacrifício nenhum,
mas ele não precisa saber disso. Suspiro... Caminho em direção ao sofá de dois lugares e também me
deito. Ficamos nós dois, na sala, em silêncio, assistindo às notícias da manhã enquanto os minutos
sem fim deste lugar tão bucólico passam lentamente, um após o outro...

Acabei cochilando. Que horas são? Esse negócio de não saber nem que horas são está me dando
nos nervos! Por que não tem nenhum relógio pendurado nas paredes desta casa? Vou sugerir ao
Martin que compre um, porque deixar as reféns sem sequer saber a hora é muito ruim. Espreguiço-
me, levantando-me do sofá. Martin não está mais deitado no de três lugares; não ouço ruídos por
perto. Caminho, ainda sonolentinha, pela casa. Falando assim, parece que tem muito espaço para
andar por aqui, não é? Até parece. Com dois passos, estou no quarto; com três, na cozinha; voltando
quatro, estou no outro quarto; esquivando dois metros à esquerda, estou no corredor. Deve ser fácil
morar aqui, não? Não precisa se preocupar com a limpeza da casa, que com duas passadas de rodo
em cada direção já está tudo limpo!

Não encontro Martin. Aproximando-me do corredor onde fica o banheiro, ouço um barulho de
torneira ligada em algum lugar (que não é o banheiro) e decido ir procurar, afinal não tenho nada
mais interessante para fazer por aqui, tenho? Qualquer som diferente é motivo o bastante para eu me
entreter (?).

Contorno a casa novamente após sair de dentro dela e me dou conta de que o barulho vem da
água que cai da torneira onde Martin lava suas roupas, lá nos fundos. Sigo. Encosto-me à parede e
fico observando a cena com uma expressão de... de nada, na verdade. Ele me olha enquanto esfrega
uma camiseta branca no tanquinho de pedra, fixado à parede de fora da cozinha.

— É a segunda vez que você me olha assim hoje — Martin diz, e é verdade.

— “Assim” como? — tive que me fazer de desentendida.

— “Assim” com essa cara de tédio. Desse jeito você me ofende. Pensei que minha companhia
fosse mais agradável.

— Você tem a mínima ideia de quão insuportável você é? — pergunto, irritada com o sarcasmo
infinito, ininterrupto, detestável desse homem.

— Você acha?

— Eu sei.

— Hum... O último que esteve aqui veio parar aqui justamente por causa dessa minha
insuportabilidade.

— O último? Pensei que você só sequestrasse mulheres.

— Sequestro quem tem dinheiro, ora. Não sou tão criterioso.

— E quem foi o último?

— Paolo Sanfilippo, um estilista italiano. Conhece?

— Não... E qual foi a tática?

— A mesma de sempre: bebida, sonífero, sequestro.

— E você bancou o cavalheiro preocupado para cima dele também? — meu tom era de
deboche.

— Mais ou menos. Ele não foi tão fácil quanto você.

— O que houve?

— Ele estava acompanhado de amigos. Quando o abordei no bar, ele não me deu muita
confiança — Martin pendurou a peça branca no varal. Pegou outra dentro de um cesto e voltou a
esfregar. — Só consegui distraí-lo e tirá-lo de perto dos amigos depois de dar um beijo nele.

— Oi?

Não, meu Deus! Um homem lindo desse não pode ser gay! Por tudo que é mais sagrado! Não,
não, não, não!

— O quê?

— Você o beijou na boca? É isso que está me dizendo?

— Exato.

— Você é gay?

— Não, mas ele era e eu precisava tirá-lo de perto dos outros de alguma forma. Esse foi o jeito
mais fácil.

Meu Deus! Imagina esse homem beijando outro na boca! Senhor! Que... que... tesão!

— E você gostou? — fiquei curiosa.

— Beijo é beijo; quase tudo igual. Mas homem não é minha praia; respeito muito os
homossexuais, mas prefiro uma vagina--
Eu não ouvi o que ele disse depois disso. Uma onda de constrangimento tomou meu corpo por
completo quando ouvi aquele “vagina” e daí fiquei cega, surda e muda. “Prefiro uma vagina...”!
Deus, tende piedade de mim!... Meneio a cabeça afirmativamente quando Martin se cala, sem saber
ao certo o que ele havia dito.

— Você não é lésbica, é? — ele pergunta como se estivesse dando continuidade ao assunto que
eu perdera durante meu lapso de surdez.

— Não, não, sou bem hetero.

Martin sorri. Por que estou aqui no fundo da casa observando-o lavar roupa enquanto discutimos
sexualidade sendo que ainda estou de minissaia e mini blusa?

— Pode vestir algo mais confortável agora que está com as mãos soltas — ele pareceu ler meu
pensamento.

Ótima ideia. Saio de perto dele e volto para dentro da casa. A mala de roupas ainda está no
mesmo lugar onde ele pusera. Dou uma vasculhada rápida e logo vejo que não tem muitas opções.
Não sou dondoca nem nada, mas essas roupas aqui eu não uso nem para ficar em casa... Acabo
vestindo uma camisa social masculina que me cai feito um vestido e uma calça legging. Pelo menos a
camisa tampa minha bunda; já é alguma coisa. Agora que saiu “vagina” de dentro da boca desse
homem, é melhor não arriscar. Não que eu acharia... ruim... se ele... fizesse... algo comigo, mas... Ah!
Cale a boca, Alice!

•○•

As horas passam, infindáveis. Não há nada para fazer aqui. Li meia dúzia de contos do Poe,
ajudei Martin a fazer o almoço (leia-se “temperei a salada”), lavei a louça por vontade própria, tirei
a mesa (sorte que minha mãe me ensinou a fazer essas tarefas domésticas, hein?), pedi a Martin que
me emprestasse um filme para assistir na sala... Ele tem uma mala de DVDs (acredita que são todos
originais?) e, por incrível que pareça, só tem um pornô, que, na verdade, é tão cult que chega a ser
um descaso chamá-lo de “pornô”: “Atrás da Porta Verde”. Um clássico! Já assisti quando fiz um
curso de Cinema. Mas preferi um clássico da Disney hoje: “A Branca de Neve” de 1937. Uma das
melhores animações já feitas, sabia? Sabia. Martin, pelo visto, é bastante eclético: compra filmes
para o gosto de todos os reféns possíveis: tem filme de ação, de aventura, de suspense, terror, e umas
comédias românticas que eu ainda quero assistir, se for ficar por aqui por mais algum tempo—não,
Alice! Você vai voltar para casa logo, logo!

A tarde passa. Martin está sempre fazendo alguma coisa. Depois do almoço, me ajudou com a
louça, depois foi para o quarto ler, depois foi lavar mais roupas, depois encerou o carro, depois foi
cuidar da árvore que plantou, depois foi dar uma volta perto das árvores que fazem barulho à noite,
depois parou à porta da sala e ficou olhando para o céu, depois assistiu a uns minutos de filme
comigo, depois foi para o quarto arrumar umas gavetas... Sinto que estou o atrapalhando. Não, não é
que eu estou o atrapalhando, é que meu pai não está colaborando e isso obriga Martin a ficar aqui.
Tenho certeza de que ele queria estar em algum outro lugar, agora, gastando o dinheiro que ele ganha
com os outros reféns, ou, sei lá, viajando para Las Vegas ou para alguma ilha paradisíaca... Mas não:
está aqui, comigo — incolor, insípida e inodora — esperando o dinheiro do meu resgate. Ele poderia
dormir, também; dormir é sempre bom... Mas, se ele dormir, ele corre o risco de eu sair correndo e
tentar fugir—o que, provavelmente, eu faria mesmo; afinal, por mais cavalheiro que ele esteja sendo
até o presente momento, não tenho garantia nenhuma de que ele não vai me matar caso meu pai não
decida dar logo esse dinheiro. Todavia, por mais insuportável que esse cara seja, não posso negar
que 1) ele me atrai e 2) estou muito curiosa para conhecê-lo. Digo, conhecer o ser humano por trás
dessa ironia e desse sarcasmo todo. Não que um sequestrador seja a melhor pessoa para fazer esse
tipo de análise, mas, poxa, ele é a única pessoa que há por aqui. Estou sentindo falta da humanidade,
já.

Na falta do que fazer, sento-me sobre um dos degraus que separam a casa do chão de terra e
observo o sol se pôr no horizonte. Apesar de tudo, não posso negar, também, que a visão que se tem
daqui é linda. O sol banhando o céu com diferentes tons de vermelho, laranja e amarelo; os
passarinhos cantando e voando e começando a procurar seus ninhos naquelas árvores a metros daqui;
a brisa da tarde que entra pela porta e refresca o ar... Essas coisas não existem na cidade; só aqui.
Suspiro fundo... Acho que vou pedir para o Martin me emprestar meu celular. Queria tirar uma foto
desse cenário para postar no Instagram depois, um dia, mas sem que ninguém precisasse saber que eu
estava em um cativeiro quando o fiz.

— Vamos? — Martin aparece atrás de mim feito uma assombração e pergunta. Olho-o por cima
do ombro.

— Vamos aonde? — pergunto.

— Aonde eu falei que nós iríamos hoje, ora.

Já tinha até me esquecido disso. Assinto com a cabeça e me levanto, limpando o bumbum com as
palmas das mãos enquanto caminho casa adentro. Não posso sair com esta roupa; preciso me trocar.
Dou mais uma olhada dentro da mala de roupas, que agora coloquei sobre a cama, e procuro alguma
coisa que sirva... Mas, pera.

— Aonde nós vamos? Que roupa eu devo colocar?

— Blusa e calça jeans; um vestido curto; qualquer coisa; não é nenhum evento de gala — ele
responde de dentro do quarto dele.

Certo. Deixa eu ver... Calça jeans não tem do meu número, isso eu já sei... Essas camisas
masculinas... não dá pra usá-las fora daqui... Não... não... também não... calcinha... sutiã... hum...
Essa blusa? Será? Acho que... não, também não... Olha, um vestido!... Não faz muito meu estilo, mas
deve servir; pelo menos combina com a minha sandália!... Visto-o. É um vestido floral folgado, com
mangas largas e um cinto de pano na cintura... Cadê um espelho? Não tem espelho nesta casa, Cristo!
— Martin! — chamo. — Onde tem espelho aqui?!

— No banheiro do corredor!

Ah, pode ser isso; não visitei aquele banheiro ainda. Caminho até lá e dou de cara comigo
mesma. Como estou horrível! Martin está me vendo assim todos os dias e ainda me acha linda?! Pelo
amor de Cristo! Que cabelo é esse, Alice?! Que cara de quem dormiu com maquiagem desde o dia
em que nasceu é essa?! Deus amado! Olho para os lados e vejo um tipo de nécessaire aberta, com
umas escovas, pentes e um creme por perto. Urgh! Detesto creme de pentear! Mas, espere aí, acho
que isso aqui é gel... É gel?... Sim. Menos mau. Não vou ter tempo nem produtos o suficiente para dar
jeito nesta juba agora, então acho melhor fazer uma trança e passar um pouco de N. Y. Looks nestes
fios mais arrepiados aqui. Ótimo, excelente ideia. Faço isso depois de puxar um rabo de cavalo, em
seguida, faço uma trança única, que deixo cair sobre o meu ombro. Acho que estou pronta. Faltou o
perfume, mas... bem, não posso exigir tanto assim, não é?

Volto para a sala e encontro Martin me esperando. Ele veste uma camisa gola polo, calça jeans e
sapato. A barba dele está crescendo; já não está mais cerrada como no primeiro dia em que o vi...
Por que ele tem que ser tão bonito, meu Deus?

— Pronta? — ele pergunta. Confirmo com a cabeça.

Saímos da casa, que ele sequer tem o trabalho de trancar — afinal, quem é que vai encontrar
este lugar no meio do nada? Caminhamos em direção à caminhonete dele e ele abre a porta para mim.
Que cavalheiresco. Entro e observo o interior do automóvel. Nada demais. Um tocador de CDs, uns
papéis amassados por cima do painel, nada demais. Martin entra e bate a porta. Dá partida no carro,
que tem um motor bem barulhento, engata a marcha ré e manobra para sairmos da garagem e, depois,
da... preciso dar um nome a essa casa. “A Casa”, vai. Saímos de dentro da garagem e ele logo liga o
rádio, que começa a tocar uma música country americana que deve ser mais velha do que nós dois
juntos. Martin começa a cantarolar junto:

— Mommas, don’t let your babies grow up to be cowboys…

Acho que não posso falar nada. Não que a música seja ruim, mas, bem, parece que estamos no
velho oeste. Martin dirige por um ou dois minutos antes de chegarmos a uma estrada de terra que
finalmente leva à estrada de asfalto, onde não passa nenhum carro para contar história. Começa a
escurecer aos poucos. Ele segue a estrada e as músicas são todas do mesmo estilo, e ele parece saber
a letra de cada uma.

— Jolene, Jolene, Jolene, Joleeeeene... I’m begging of you, please, don’t take my maaan…

Por que ele sabe cantar essas coisas, meu Deus?... Ele dirige sem tirar os olhos da estrada; só
cantarola as canções automaticamente. Não falo nada.

— By the time I get to Phoenix, she’ll be rising...

O repertório é vasto; meu silêncio continua. Um ou dois carros passam por nós ao longo dos
minutos de viagem, e eu me pergunto aonde será que eles vão. Aonde será que eles vão? Será que
estão indo ou voltando? Ai, que coisa nostálgica que é a estrada! E esse country dos anos sessenta
não está ajudando a melhorar o sentimento. Aliás, aonde nós estamos indo? Martin já está a umas
seis ou sete músicas na estrada e, por enquanto, nenhum sinal de civilização.

Uns caminhões começam a passar pela visão. Acho que estamos chegando a algum lugar. Martin
diminui a velocidade e pega uma rampa de acesso que sai da autoestrada e dá em... uma cidade?
Hum... Parece que sim... Mas este lugar é pequeno demais para ser uma cidade. Parece mais um
vilarejo ou povoado ou... não sei. Mas tem asfalto nas ruas, e pessoas andando, e comércio, e casas...
Deus do céu! Que terror! Todo mundo deve saber da vida de todo mundo aqui!... Um mercado... Uma
farmácia... Uma loja de roupas... Uma pousada!... Um bar... Martin estaciona.

— Chegamos.

— Espera, este é o lugar especial que você falou?

— Não falei que o lugar era especial, falei que era um lugar aonde eu gosto de ir... Mas não
deixa de ser especial — ele desce da caminhonete e abre a porta para que eu desça do outro lado.

— Eu consigo abrir a porta sozinha — digo, descendo do veículo.

— De nada.

— Que lugar é este?

— Aqui é a vila onde eu nasci; chama-se Amistad.

Olha só! Ele nasceu! Às vezes acho que esse cara é filho de chocadeira, mas, pelo visto, ele tem
pais... Hum... As pessoas na rua me parecem normais. Quer dizer, não estão vestindo roupas de
caubói nem nada... Olha, que legal! Não tem prédios aqui! Dá para ver o céu inteiro, de qualquer
parte!-- Ai, Jesus! Martin segura a minha mão e entra no bar. Ele está segurando a minha mão! Vamos
entrar no bar de mãos dadas! O que as pessoas vão achar?!

Entramos. Olha! Existe bastante gente nesta vila! Só aqui neste bar deve ter umas quinze
pessoas! Não, não, não é bem um bar, está mais para um saloon, o que explica bastante as músicas
que Martin ouvia dentro do carro, que são praticamente as mesmas que estão tocando aqui agora,
embora as daqui sejam um pouco mais animadinhas. Há mesas de madeira dispostas em vários
lugares, uma jukebox no fundo do salão, uma mesa de sinuca ali, um balcão, um barman atrás dele
secando uns copos, uma adega atrás do barman, homens, mulheres, pessoas conversando, rindo,
algumas dançando num espaço destinado a isso perto da jukebox... Muito... aconchegante, eu diria.

— Você bebe? — Martin me pergunta.

— Sim. Gim-tônica, por favor.

Martin caminha de mãos dadas comigo até o garçom e pede as bebidas, depois nos conduz até
uma mesa no meio do salão, onde nos sentamos e esperamos o garçom.
— Por que me trouxe aqui? — pergunto.

— Pensei que talvez quisesse sair um pouco de casa...

— Por que está sendo gentil comigo? Por que não me deixa trancada no quarto o tempo inteiro e
me leva comida duas ou três vezes por dia? Por que parece fazer de tudo para me agradar?

Martin sorri.

— Não seja tão presunçosa; você não é tão especial; sou gentil com todos os meus reféns. Você
não é a primeira que eu trago aqui, e, provavelmente, não vai ser a última.

Droga! Mas... “Droga!” por quê? Por que eu esperava que ele respondesse outra coisa? Por que
eu queria que ele dissesse que eu sou especial? Ou que ele me trouxe aqui por eu ser a mulher mais
linda que ele já sequestrou? Argh! O garçom traz as bebidas. Beberico meu gim-tônica e Martin, uma
lata de Budweiser. Mantenho o silêncio. Não sei o que conversar com esse homem; para tudo ele tem
uma resposta sarcástica e esquiva. Ele me olha com aquele olhar de sempre, mas eu procuro desviar.
Ainda bem que tem bastante gente aqui para olhar.

— Você é especial, só não é o motivo da minha gentileza — ele emenda. Pensei que já tivesse
encerrado o assunto.

— Agora é tarde; não adianta tentar consertar.

— Não é algo muito educado dizer a alguém que esse não é especial. Desculpa.

— Não precisa se desculpar. Não estou aqui para ser especial.

— Você já foi sequestrada antes? Está se comportando bem demais para o meu gosto.

O sequestrador facilita, convenhamos. Quem é que pensaria em se comportar mal passando o dia
ao lado de um homem como você, Martin? Fala sério.

— Não. Só não há muito que eu possa fazer nessa situação, não acha?

— Você poderia gritar para qualquer um aqui dizendo que foi sequestrada e que está sob o meu
poder, por exemplo. É claro que isso geraria consequências graves, mas não deixa de ser uma
possibilidade.

— Hum... Você não está me fazendo mal nenhum; sou disciplinada; não vai me doer esperar meu
pai pagar o dinheiro do resgate para eu poder ir embora e ficar livre de você...

Martin sorri pela milésima vez e toma mais um gole de cerveja. Acho que eu poderia ter não
dito essa, hein? Mas tudo bem: estou vingada. Ninguém mandou dizer que não sou especial!

— Você é inteligente. Gosto disso — ele diz, e eu não respondo, apenas arqueio as
sobrancelhas.
Passamos boa parte do tempo tendo esses diálogos entrecortados. A música que toca na jukebox
não me incomoda, mas também não me anima. Martin parece estar pensativo o tempo todo, mas
também não deixa de depositar olhares sobre mim, que me sinto despida sempre que os meus olhos
encontram os dele. Quisera eu ser despida por-- Pare, Alice!

— Vem — Martin se levanta e dá dois passos em minha direção, estendendo-me a mão quando
para ao meu lado. — Vamos dançar.

— O quê? — eu ouvi isso que eu ouvi?

— Dançar, vamos dançar.

Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Tá, tudo bem; respira fundo. Aceito a oferta (não que eu pudesse
ou quisesse recusar). Martin me toma pela mão e nos leva até o local onde mais dois ou três pares
dançam ao som do country sessentista que toca o tempo todo. Ele passa a mão pelas minhas costas e
me puxa para perto de si. Sinto meu coração disparar e o dele bater próximo ao meu ouvido quando
deito minha cabeça no peito largo dele. Nossos corpos estão tão próximos...! Passo minha mão
esquerda pelo ombro dele e nós damos nossas outras mãos bem como entrepomos nossas pernas, que
nos fazem mover em círculos lentamente ao som de alguma música que eu não conheço, é claro.

He said I'll love you 'til I die… She told him you'll forget in time… As the years went slowly
by… She still preyed upon his mind…

Martin respira devagar; eu também. Fecho os olhos e penso que eu deveria ter conhecido esse
homem em outra circunstância, e que ele não deveria ser um bandido, e que, por mais insuportável
que ele seja, não há como negar que ele tem feito o possível para minha estadia no cativeiro ser o
mais confortável possível... Quantas vezes já falei isso? Não posso reclamar de nada, vai; já vi
filmes em que coisas piores acontecem. E ele dança bem. Ok, nós não estamos dançando: estamos
rodando em círculos no ritmo da música, mas ele não pisou no meu pé nenhuma vez — nem eu no
dele.

Dançamos umas três músicas; depois Martin nos afasta e me sorri um sorriso mais inocente.

— Quer ir embora?

— Acho que sim...

Saímos do bar depois de ele pagar a conta, mas não vamos embora imediatamente. É noite; já dá
para ver as estrelas despontando no céu.

— Quer dar uma volta pela cidade? — ele oferece.

Eu aceito. De fato fiquei curiosa para saber o que é este lugar. Há mais bicicletas, motos e
caminhonetes do que carros “normais” passando pelas ruas. As pessoas caminham sem pressa e sem
medo, assim como nós dois, e parecem estar sempre voltando para casa. Não se deve ganhar muito
dinheiro aqui; talvez essas pessoas trabalhem em alguma cidade maior aqui perto e voltem para cá
para dormir. Não posso dizer que estamos no centro da cidade, porque aqui não é uma cidade e
parece não ter centro. Estamos apenas num lugar que me parece... movimentado, eu diria, embora
“movimento” também não seja uma palavra muito adequada. Mas é um lugar aprazível, não posso
negar, e bastante urbanizado: todas as ruas têm asfalto, as casas são bem cuidadas, as travessias têm
faixas de pedestre, os semáforos funcionam... Não tem nada caipira; é só uma cidade com proporções
severamente reduzidas. Em vinte minutos ou menos de caminhada, conheci boa parte das coisas que
existem aqui. Sinto a curiosidade de perguntar a Martin algo sobre a vida dele, já que ele me disse
que nasceu aqui, mas acho que ele não me responderia... Vou guardar minha curiosidade e manter meu
silêncio.

Voltamos para a caminhonete e, de lá, vimos embora para a Casa novamente.

— Obrigada pelo passeio — digo, assim que entramos.

— De nada — Martin responde, indo em direção ao próprio quarto e tirando a camisa no meio
do caminho (dessa vez não me atrevo a olhar).

Vou para o meu quarto, tiro as sandálias e coloco novamente minhas chinelas lilás.

— Acho que está na hora de ligarmos pro papai de novo — Martin diz, passando pela porta do
meu quarto em direção à cozinha.

Eba! Finalmente!

— Eu acho melhor você deixar eu falar com ele — saio do quarto, escorando-me no batente da
porta. — Aliás, melhor ainda: acho melhor você me deixar falar com a minha mãe. Meu pai não é
muito bom pra resolver essas coisas.

Martin dá de ombros.

— Você que sabe.

Ótimo. Vamos até a sala e nos sentamos no sofá. Ele pega o aparelho celular dentro do bolso da
bermuda e disca o número do meu pai, que devia estar salvo na lista de chamadas recentes. Fico
atenta, aguardando que meu pai atenda à ligação.

— Boa noite, Nestor; aqui é o Martin novamente... Espero que você esteja mais calmo agora...
Está aqui... Não, o dedo que eu cortei já até nasceu de novo... É claro que eu não cortei dedo nenhum,
amigo... Tá aqui do meu lado... Não; eu quero falar com a... — ele me olha, esperando que eu diga o
nome da minha mãe.

— Agnes.

— Agnes. Quero falar com a dona Agnes...

Silêncio por alguns instantes.


— Boa noite, dona Agnes... Está aqui ao meu lado, não precisa se preocupar... Tá bom.

Martin me passa o telefone.

— Alô, mãe.

— Alice! Como você está? — ela parece preocupada, mas menos desesperada do que meu pai.

— Tá tudo bem, mãe; ele não fez nada comigo.

— Ele está te alimentando direito? Está te machucando, fazendo algo contra sua vontade?

— Não, mãe, pode ficar tranquila; estou me comportando, como ele pediu, e nada de ruim vai
me acontecer, só que o papai tem que colaborar. Martin só quer o dinheiro. Conversa com o papai;
150 mil não é nada pra ele. Ele paga o resgate, eu saio daqui e tudo fica bem.

— Tudo bem, eu vou tentar conversar com o seu pai e resolver isso o mais rápido possível, meu
amor. Aguenta firme! — ela diz em tom choroso.

Martin pega o celular de volta.

— Sua filha sabe o que diz... Não precisa chorar, ela vai sair daqui sã e salva se o seu marido
cooperar... Eu não quero machucar a Alice, mas nunca se sabe quando vai ser necessário, não é?... Eu
sei... Eu entendo, eu realmente entendo... Sim, converse com ele... Eu volto a fazer contato em breve
—e nada de polícia, é sempre bom lembrar... Ok... Até logo.

Martin desliga o telefone e me olha, soltando um suspiro em seguida.

— Por isso eu amo as mulheres.

Reviro os olhos e solto um bufo. Martin se levanta e vai pro quarto.

— Agora nos resta esperar. Vou tomar um banho e preparar o jantar. Você me ajuda?

— Com o banho ou com o jantar? — Deus do céu! Por que eu falei isso?!

Martin não responde; só dá aquele sorriso de sempre, ao qual já estou até me acostumando,
quando passa por mim com a toalha sobre o ombro indo em direção ao banheiro. Ufa!...

— Eu já volto.

Deito-me no sofá e ligo a televisão. Mais uma noite que chega e que vai passar. E eu aqui. E
esse homem ali. Daqui a pouco vai estar pelado. E eu vou estar aqui. Pague esse resgate logo, pai,
pague esse resgate logo...
Capítulo 4

Sete dias... Há uma semana estou nesta Casa, na companhia solitária de Martin, longe da minha
família, do meu trabalho, dos meus amigos, da minha vida... Ai ai. Meu pai não está facilitando.
Martin entrou em contato ontem e Nestor Borges se encontra resistente, e cada vez mais ameaça ligar
para a polícia. Praticamente quem faz as negociações agora sou eu: Martin liga, me passa o celular,
eu converso e tento convencer o senhor meu pai de que é melhor ele entregar logo o dinheiro para
acabarmos com isso de uma vez. Mas é difícil; Martin só apoia o cotovelo no sofá e escuta minha
conversa. Minha mãe também não foi muito boa ao tentar persuadir meu pai, mas sei que ela se
esforça. Fosse eu no lugar do Martin, já teria perdido a paciência. Por que meu pai está fazendo isto
durar mais do que o necessário, meu Deus? Ele tem o dinheiro; é só isso que o Martin quer! Até eu já
estou ficando de saco cheio, viu?...

Como desde o primeiro dia em que acordei aqui, Martin continua sendo cortês comigo. A única
coisa que ele tem feito como sequestrador é trancar a porta quando me deito para dormir, para se
assegurar de que eu não vou tentar fugir, já que a janela do quarto aqui é intransponível. Martin a
construiu de forma que entre ar e claridade, mas que ela nunca se abra... Ele é esperto; fez as coisas
de forma muito bem pensada... Mas ainda estamos em regime de estranhamento. Ele é gentil comigo e
eu sou uma cavala com ele. Mas não faço por maldade, é que ele é realmente insuportável. Eu sei, eu
sei: ele é lindo, gostoso, cavalheiro, mas, argh! Não dá para manter um diálogo com ele! Ele sempre
tem uma respostinha esperta para disparar em qualquer situação! Isso me irrita! Estou há dias longe
da civilização, das minhas amigas, do convívio social! Preciso de um pouco de diálogo, poxa!

Parece que nos conhecemos há uma vida inteira. É estranho isso de familiaridade, não? Uma
pessoa é estranha até o momento em que você se familiariza com ela. Nos dois primeiros dias,
Martin me era um completo estranho, mas, agora que me acostumei à presença e ao jeito indigesto de
ele ser, parece que o conheço de uma eternidade, mesmo não sabendo absolutamente nada sobre ele,
e ele, da mesma forma, sem saber muito sobre mim. Nós não conversamos sobre quase nada que não
seja relacionado a almoço, janta, meu pai, resgate, minha mãe, dinheiro... Eu ainda não consegui
descobrir em que fim de mundo fica esta casa. Não sei se ainda estamos em Veredas, se saímos da
cidade, se saímos do estado, se só estamos longe... Sei que nunca ouvi falar daquela cidade, ou vila,
Amistad. Como é que eu vou embora daqui depois? São tantas perguntas sem resposta...

Saio de dentro da casa e caminho em direção aos fundos. Não vejo Martin por perto. As nuvens
estão negras e o céu está imenso. A grama rasteira balança e produz aquele ruído gostoso, que acalma
os ouvidos... Mas, se essa chuva toda cair, vai ser uma tormenta. Desde cedo o clima está assim... Eu
não lido muito bem com chuva. Cadê ele? As roupas estão penduradas no varal, a caminhonete está
guardada na garagem, os outros cômodos da casa estão vazios... Ele não sairia daqui sem o carro
nem me deixaria sozinha assim tão fácil.

Olho para os lados, embora não haja muito o que olhar. O único lugar que minha visão alcança e
eu ainda não visitei são aquelas árvores. Não há o bastante para dizer que ali é uma mata fechada ou
uma floresta, mas também não são poucas as árvores — e elas fazem um barulho razoável à noite.
Será que eu me atrevo a ir até lá?... Mas e se o Martin aparecer aqui e me vir indo para aquelas
bandas e achar que eu estou tentando escapar?... É melhor tentar chamá-lo antes, não?

— Martin! — exclamo.

Espero alguns segundos. Nenhuma resposta. Continuo chamando, sem retorno. Bom, já que é
assim, nada me impede de ir até lá procurá-lo, não é?

Assim o faço. Caminho pelo chão de terra que logo se transforma em grama e sigo em direção às
árvores, que parecem ser mais próximas da visão do que dos meus passos: devem estar a uns
duzentos metros daqui!

Elas são grandes, têm troncos enormes... Caminho por entre as duas primeiras, que formam uma
espécie de portal, e continuo chamando Martin, que não responde. Desvio de pedras e folhas e galhos
secos e dá para dizer que isto aqui é uma mata, sim, porque não consigo chegar ao outro lado nunca.
Logo me canso da busca sem resultados. Quando decido voltar para trás, começo a ouvir um assovio.
E não é só um assovio: é o assovio da melodia de alguma música que eu conheço, mas não consigo
identificar de imediato. Só pode ser ele assoviando, suponho.

Caminho em direção ao som e não demoro muito a encontrá-lo no meio das árvores parecendo
procurar alguma coisa.

— O que você est--

Martin se vira abruptamente em minha direção.

— Puta que pariu, Alice! Quer me matar do coração?!

Eita! Eu não queria assustá-lo.

— Desculpa! — peço enquanto ele se recompõe.

— Tudo bem — Martin respira fundo. — O que você está fazendo aqui?

— Eu perguntei primeiro.

— Mas quem manda aqui sou eu.

Bufo.

— Vim te procurar. Não me ouviu te chamar?

— Não. Estou procurando gravetos para fazer uma fogueira mais tarde. Quer me ajudar?

Na verdade não, mas as opções de entretenimento são poucas por aqui, então acabo aceitando.

— Pega uns tipo esse — ele me mostra um que acabara de encontrar.


Confirmo com a cabeça e começo a procurar. Então ele quer fazer uma fogueira. Hum... Por que
será? Com essa chuva que está armando, não sei se essa seria uma boa ideia. Mas é claro que não
vou contestá-lo, afinal “quem manda aqui é ele” e eu não estou em posição de reclamar. Continuo
procurando os gravetos. Não tem muitos por aqui, apesar dessas árvores enormes... Por que ele não
arruma um machado e corta essas árvores quando precisar de alguma? Isso economizaria muito
tempo de procura, não? Homens... Martin começa a assoviar novamente aquela mesma música que eu
conheço mas ainda não consigo identificar.

— Eu conheço essa música — digo.

— Mesmo?

— Sim, só não consigo me lembrar qual é... Assovia mais.

Martin continua assoviando e o som do assovio se confunde com o dos pássaros cantando alto
perto de nós e com o barulho das folhas caídas pelo chão enquanto procuramos os gravetos. Droga!
Que raiva quando alguém assovia uma música e você sabe que conhece mas não sabe de onde!

— Ai, que raiva! Me conta! — digo, desistindo de tentar adivinhar.

— Eu não lembro o nome da música, só da cantora... Ela tem um nome parecido com o seu.

— Alice?... Alice… Ali-- Goldfrapp, Alison Goldfrapp! Eat Yourself!

Isso! Yes! Ah, que alívio!

— Muito bem.

— Nossa, Goldfrapp! Adoro eles! De onde você conhece essa música? É uma das minhas
preferidas do Seventh Tree!

— Não, não, só conheço umas músicas, não sou fã de carteirinha nem nada.

— Eles são demais, e o clipe dessa música tem tudo a ver com a gente, aqui, agora, já viu?! Tem
umas cenas no meio do mato, e depois ela vai para um bar cantar junto com a banda, e o lugar é meio
parecido com aquele bar em Amistad, e tem aquela guitarra meio distante, cheia de reverb, um clima
meio de nostalgia, sabe?! E--

Martin parou para me observar falar. Quando percebo o sorriso no rosto dele, enrubesço.

— Eu não conheço o clipe — ele diz. — Um dia eu procuro no YouTube.

Sinto-me uma palhaça instantaneamente. Mas, poxa! Pela primeira vez eu encontro alguma coisa
em comum entre mim e esse homem, e pela primeira vez surge uma possibilidade de diálogo sobre
alguma coisa que não seja este sequestro, e pela primeira vez ele não me dá uma resposta
atravessada! Ok, ele já me deu outras respostas não-atravessadas antes, mas
— De que tipo de música você gosta? — ele pergunta, ainda procurando gravetos.

Oh! Ele deu continuidade no assunto!

— Ah, ouço muita coisa, é difícil explicar — não consigo disfarçar minha empolgação por estar
tendo uma conversa sobre alguma coisa do meu interesse. — Gosto de Goldfrapp, Strokes,
Supergrass.

— Supergrass é muito maneiro.

— Ai, jura que você conhece?!

— Conheço demais; era minha banda favorita dos anos noventa! Aquela música...

— Alright!

— Isso!

— We are young! We run green!...

— ...Keep our teeth — nice and clean!

— See our friends — see the sights — feel aaalright!...

Começamos a cantar e dançar no meio das árvores. Alright! Melhor música dos anos noventa
inteiros! E Martin sabe a letra de cor e eu também! Meu Deus! Ainda bem que não tem ninguém
vendo isso! Estamos nós dois, ridículos, aqui, cantando e rindo, fazendo coreografias absurdas e
tocando instrumentos imaginários enquanto procuramos gravetos para montar uma fogueira — aliás,
acho que não estamos mais procurando nada, porque parece que temos o bastante para fazer a
fogueira — não que eu saiba quanto graveto é necessário para se fazer uma fogueira, mas é que o
Martin parou de procurar e agora estamos seguindo de volta para a casa.

Entramos e colocamos os gravetos num canto da sala. Ufa! Suei!

— Que horas são? — pergunto. — Você devia colocar um relógio em algum lugar aqui, pros
reféns ao menos saberem as horas!

Ele sempre tem um relógio no pulso.

— São cinco e vinte. E eu nunca pensei nisso... Bem observado. Vou providenciar o quanto
antes.

Esperamos escurecer um pouco. Por volta das sete da noite, fomos lá para fora começar a
montar a dita cuja.
Saímos de dentro da casa e fomos para fora, perto do tanquinho, ainda onde tem terra. O sol se
pôs há algum tempo, mas o céu ainda não está completamente escuro. Martin pegou os gravetos que
buscáramos mais cedo na “mata” e os colocou perto da grama, empilhados. Trouxe também uma
toalha para nos sentarmos e um saco de marshmallows que devia estar guardado na dispensa. Ajudo-
o colocando as toalhas sobre o chão de terra. Ele logo se ajoelha para acender o fogo.
Entendidíssima de fogueiras que sou (não), fico só observando, com as pernas dobradas, abraçando
meus joelhos.

Em um minuto, as chamas começam a arder. Martin se senta à minha diagonal, com as pernas
cruzadas; abre o saco de marshmallows e me entrega um palito de churrasco, que ele também
trouxera; coloca o pacote entre nós dois, espeta uma bolinha com o palito e deixa assar assim.

Me sinto parte de qualquer filme californiano sobre praias e surfistas que já tenha sido
produzido na face da Terra, com a exceção de que não estamos na praia. Nunca havia
comido marshmallow na brasa, mas é surpreendentemente bom, embora a textura me seja um pouco
estranha; meio puxento, sei lá. Mas é gostoso. Para beber, Martin trouxe refrigerante para mim e
cerveja para ele (ele já sacou que eu não sou muito amiga de cerveja).

— Um brinde? — ele propõe, falando com a boca cheia, enquanto enche um copo de
refrigerante para mim.

— A quê?

— Não sei... À liberdade.

— Muito engraçado.

— À Goldfrapp? Ao Supergrass? A nós?

— Sem brinde, vai — Martin me entrega o copo e eu espero ele pegar a latinha para batermos o
copo contra a lata. — Saúde.

— Saúde!

Tomo um gole de guaraná e observo Martin olhar o céu. As fagulhas que a labareda solta
passeiam ligeiras pelo ar e o som dos gravetos crepitando enquanto são consumidos pelas chamas
ocupa nossos ouvidos. Penso que eu deveria estar em casa agora, quietinha no meu quarto, olhando
meu Facebook com atenção depois de um dia de trabalho... Ai, meu serviço... Deve estar todo
atrasado me esperando...

— O que você fazia antes de ser bandido? — pergunto, já que o assunto me vem à mente?

— Você e esse vocabulário pobre...

— Tá bom: antes de ser um “homem de negócios”.

— Ah! Bem melhor!... Eu trabalhava em um banco.


— E como decidiu mudar de profissão?

— Lendo. Descobri que sequestro pode ser um negócio altamente lucrativo, especialmente
quando se trabalha sozinho. Comecei a estudar minhas próprias táticas e... voilà: aqui estamos.

De fato: dá pra ver que ele é um homem muito inteligente, estudado. E elegante. Se entrou nessa
vida de crime, é porque sabia muito bem o que estava fazendo. E, pelo visto, aprendeu direitinho a
exercer o ofício, porque, pelo que conversamos, ele já sequestrou pelo menos meia dúzia de pessoas
e nunca foi pego por isso: sempre conseguiu os resgates sem causar muitos danos às vítimas e saiu
intacto. Comigo, pelo visto, não vai ser diferente.

— Quantos anos você tem? — por que não perguntei isso antes?

— 31... E você?

Olha só! Nossa diferença de idade é pouca! Agora que a barba dele está maiorzinha, ele parece
ter mais idade do que de fato tem: uns 34, eu diria.

— 27...

— E você? Faz o quê? — ele pergunta.

— Sou publicitária; trabalho pro meu pai.

— Faz sentido... Sei não; seu pai tá com cara de quem tá aprontando.

— Como assim?

— Ele está resistindo demais ao pagamento. Desconfio que ele esteja aprontando alguma.

— Não, de jeito nenhum! Deixei bem claro que não é pra ele falar com a polícia, você também,
minha mãe também, acho que ele não faria nada que pudesse me prejudicar.

— Assim espero.

Continuamos comendo e bebendo, conversando pouco, olhando para a fogueira iluminar o céu
que começa a escurecer de vez. Um trovão ecoa ao longe.

— Vai chover, hein? — ele diz.

— Ai, nem me fale! Eu morro de medo de chuva! — confesso sem medir muito as palavras.

— Relaxa, a casa aqui é segura; nada vai cair em cima da sua cabeça.

Continuamos sentados à beira das chamas, olhando para o céu, que fica cada vez mais escuro,
sentindo o vento frio que sopra e me arrepia a espinha, fazendo com que eu me encolha ainda mais.
As árvores ali chacoalham violentamente, criando um som apavorante. Outro trovão ecoa, e,
segundos depois, vejo um raio riscar o céu furiosamente, o que me faz pular de susto.

— Cê quer entrar? — Martin pergunta e eu aceito imediatamente.

Não contávamos muito com essa chuva. Os marshmallows estavam gostosos... Levantamo-nos.
Ajudo Martin a recolher as coisas e nem nos damos o trabalho de apagar o fogo, porque logo a chuva
vai dar jeito nisso. Algumas peças de roupa e de cama ainda estão no varal. Martin as recolhe e, ao
som de mais um trovão, que parece ter caído bem ao lado da casa, as gotas esparsas começam a cair,
uma após a outra. Começo a roer minhas unhas. Droga!

Martin entra. Acabou se molhando um pouco, mas conseguiu salvar as roupas. Ele as coloca
sobre o sofá e fecha a porta da sala, passando uma tramela em seguida. Fecha também as janelas da
sala e do próprio quarto (a do meu está sempre fechada, então...)

— Pronto; acho que estamos a salvo agora.

Logo virou noite densa e a chuva virou tempestade. As vigas de madeira que compõem esta casa
parecem estar prontas para voar e destruir todo o trabalho que tiveram para colocá-las no lugar. O
vento sopra com uma velocidade que eu não me lembro de ter visto em algum outro momento da
minha vida. Martin não parece minimamente preocupado.

— Bom — ele diz —, o melhor lugar para se ficar durante uma tempestade é sobre a cama,
então estou indo pra minha, tá?

— Tá...

Oh, meu Deus... E agora? Decido fazer o mesmo. Vou até meu quarto, escoro a porta e me enfio
debaixo do edredom. A janela daqui treme vigorosamente com o vento e esse barulho parece penetrar
a minha alma. A casa está praticamente imersa na escuridão; não existem abajures aqui, e Martin nem
para acender uma luz! Droga!

Os trovões continuam rugindo e a chuva parece estar caindo a trinta centímetros da minha
cabeça. Me enfiar debaixo do edredom não resolve nada! Porcaria! Aguento firme. Os minutos
passam e o único som que se ouve na casa é o da natureza, além do da janela do meu quarto e da
porta da sala, que parece estar sendo arrombada, pelo barulho. Ai, meu Pai... Os clarões invadem o
quarto pelas brechas da janela e me aterrorizam ainda mais, até que um trovão que eu posso jurar ter
caído bem do outro lado desta parede reverbera pelo ar e me faz literalmente pular da cama. Não vou
ficar sozinha neste quarto de jeito nenhum!

Caminho até o quarto de Martin e bato na porta, que já está aberta.

— Martin? — chamo.

— Hum?

— Posso ficar aqui com você?


— Por quê? O que houve?

— Ai, não faça perguntas! Só não quero ficar sozinha no quarto com esse temporal que está
caindo.

Ele ri da minha cara, é lógico.

— Claro.

Ele chega para lá e deixa espaço o bastante para eu me deitar. Assim o faço: levanto o edredom
e me ponho debaixo dele, cobrindo-me até a cintura, enquanto a chuva continua castigando a estrutura
da casa do lado de fora. Martin parece não se importar, ao passo que eu pareço um cãozinho sem
dono procurando abrigo em qualquer canto seco. Mais um trovão estoura e eu me encolho
involuntariamente.

— Relaxa, Alice! — Martin diz, notando, agora, que minha tensão não é exagero nem frescura.

Não respondo. Vejo que ele agora está preocupado.

— Alguma coisa que eu possa fazer por você? — ele pergunta, mas acho que não há nada que
ele possa fazer, de fato.

— Não; eu vou ficar quietinha aqui; logo passa.

Assim espero, mas o ambiente não ajuda. A janela do quarto dele está fechada, mas o vento a
atravessa com facilidade. A porta da sala é logo ali, e o barulho que ela faz é apavorante, sem contar
a falta de luminosidade, que deixa tudo um pouco pior. Cadê a minha mãe? Cadê meu quarto, de onde
eu nem vejo a chuva cair? Droga!

Uma rajada de vento gélido permeia toda a casa e produz um som apocalíptico, que acelera meu
coração e me faz, infantilmente, me virar para o rumo de Martin, levando meu rosto ao encontro do
ombro dele, que se mantinha imóvel a maior parte do tempo.

— Ei! Calma, moça! Não vai acontecer nada, relaxa!

Seu tom é de cuidado. Num ato de proteção, ele passa seu braço sob meu pescoço e eu
prontamente busco abrigo no ombro dele, passando um braço pela barriga dele, que leva a mão ao
meu cabelo, afagando-o enquanto diz qualquer coisa para tentar me tranquilizar. Só então percebo
que estamos deitados praticamente abraçados e que Martin está fazendo carinho no meu cabelo. Isso
não devia estar acontecendo! Mas eu estou muito assustada e não vou ficar sozinha naquele quarto de
jeito nenhum, então é melhor eu me aquietar por aqui mesmo.

O abraço dele me acalma um pouco. Dentro de alguns minutos, a chuva começa a acalmar e se
tornar menos ameaçadora. Todavia, estar aqui no abraço de Martin é muito confortável; não sei se
quero voltar para o meu quarto.

— Está mais calma? — ele pergunta.


— Um pouco... — resmungo.

— Não quer voltar pro seu quarto?

— Não...

Martin está de camiseta e bermuda de sarja; estou com aquele mesmo vestido com que fui a
Amistad. Ainda sinto um pouco do cheiro da cerveja que ele tomava antes de entrarmos, cheiro esse
que se mistura ao cheiro próprio dele próprio e o torna absurdamente másculo... Para, Alice! Isso
não é hora de pensar essas coisas! Martin mexe uma perna, e a minha, acidentalmente, coloca-se
sobre a dele. Sinto os pelos da perna dele roçarem contra a minha pele (ainda bem que aqui tem Veet
aliás! Já pensou se, além de descabelada todos os dias, eu ainda estivesse peluda?!), e isso me faz
sentir... coisas. Esse homem todo aqui do meu lado, me abraçando, esta casa escura, Martin não
sendo insuportável pela primeira vez... Ai, meu Deus...

Sem querer querendo, acaricio o peito dele, esquecendo-me momentaneamente de que estou ao
lado do homem que me sequestrou. Martin não reage... Por que estou fazendo isso? E por que não
quero parar?... Continuo o afago, agora descendo a mão alguns centímetros, parando na região do
abdome, que sinto inflar e contrair no ritmo da respiração de

— O que você está fazendo, Alice?

Congelo imediatamente. Ai! Ele percebeu! Droga! Droga!!

— Desculpa — respondo, afastando-me dele.

— Não quero que se desculpe: quero uma explicação.

Ai, meu pai! Que homem inconveniente!

— Argh, Martin! Você sabe muito bem o que eu estava fazendo; não venha tentar me--

Antes que eu conclua minha reclamação, Martin me encobre com seu corpo e me cala com um
beijo que me faz perder não só a fala, mas o fôlego. Com o susto, arregalo meus olhos antes de fechá-
los e sentir o gosto de Martin na minha boca. Ele me beija com profundidade, como se quisesse me
dizer que estava esperando longamente por esse momento. Não posso dizer que eu
estava esperando por esse momento, mas também não posso negar que fantasiara com ele mais de
uma vez, e agora minha fantasia proibida vinha à vida.

Enlaço o pescoço de Martin com meus braços e sinto seu corpo pressionar o meu. Cada perna
sua está posta de um lado de mim, por isso logo sinto seu membro rijo contra a parte interna das
minhas coxas. E Martin me beija, e eu o beijo tanto quanto, e seu beijo é melhor do que eu poderia
imaginar: tem gosto de homem, de vontade, de desejo!

Enquanto me beija, Martin leva uma mão ao meu seio esquerdo, ainda por cima do tecido do
vestido. Meu Deus! Nós... vamos transar!... Sim! Sim! Martin rompe nosso beijo para explorar meu
pescoço e minha orelha, o que me faz espremer os olhos e soltar um gemido forte de prazer. Meu
Deus! Esse homem...! Ele se agacha e tira a camiseta, deixando nu seu tronco, que não consigo ver
pela baixa luminosidade, mas consigo sentir pressionado contra o meu. Dentro de poucos segundos,
Martin desliza o tecido do meu vestido pelo meu corpo e em dois segundos estou seminua. Ele beija
meu corpo por toda parte, sempre percorrendo o caminho de cima a baixo. Agarro seus cabelos
enquanto sinto seus lábios famintos me saborearem. Suas mãos agora saem de sobre mim para
abaixarem minha calcinha. Meu rosto enrubesce, mas estou extasiada de prazer, não posso pará-lo
agora!

Martin me puxa pelas coxas com força, levando meu sexo ao encontro do rosto dele. Percebo-
me contorcer de dentro para fora quanto sinto sua língua rápida e quente me penetrar e me explorar
com urgência. Solto um urro de prazer e puxo os cabelos de Martin, pressionando-o contra mim, o
que o faz me lamber e chupar com ainda mais vigor. Não consigo ordenar meus pensamentos: tudo
acontece ao mesmo tempo dentro da minha cabeça; a única certeza é a de que eu preciso desse
homem dentro de mim! E assim Martin o faz: me penetra com um dedo enquanto estimula meu clitóris
com a língua. Meu Deus!... Sinto que vou me desintegrar e virar poeira cósmica quando ele coloca o
segundo dedo e faz movimentos circulares de vaivém enquanto me lambe, chupa, suga, cospe,
massageia, recomeça...!

Martin se levanta e, finalmente, tira a bermuda e a cueca. Sei que seu membro está rígido como
uma pedra e que tem um tamanho proporcional ao do dono, o que me faz salivar. Mas Martin está tão
ávido quanto eu e acaba não me dando a chance de saboreá-lo: ele se vira para o guarda-roupas,
pega um preservativo, coloca-o, volta para a cama e me penetra sem cerimônia. Quando sinto seu
pênis pulsante preencher minha vagina até seus pelos púbicos tocarem os meus, solto outro gemido
forte e arranho as costas de Martin feito uma leoa. Ele urra ao pé do meu ouvido e me penetra
repetidas vezes com ainda mais força. Seus movimentos são cadenciados e precisos: cada estocada
me faz delirar mais do que a anterior. Aos poucos, Martin aumenta o ritmo, metendo com vontade
com o rosto enterrado no meu pescoço.

Agora ele se agacha, sem sair de mim, e coloca uma de minhas pernas sobre seu ombro,
segurando-a com uma mão e me penetrando com ainda mais intensidade. Não resisto por muito tempo
e logo sinto o orgasmo tomar conta dos meus sentidos como uma explosão estelar. Martin percebe,
pela minha feição indisfarçável, que atingi o ponto alto do prazer, então para, mas não sai de mim:
volta a me beijar, mas, dessa vez, com mais vagareza. Abraço-o e aproveito meu estado de completo
relaxamento para saborear seu beijo, com o qual eu fantasiara secretamente e agora tinha ao alcance
dos meus lábios, e devo reconhecer que minhas expectativas foram superadas à enésima potência.

Após minutos desse beijo minucioso, Martin recomeça, novamente deitado sobre mim. Pegando-
me pela cintura, ele nos rola sobre a cama e para sob mim. Apoio-me na cabeceira do móvel, sentada
sobre ele, enquanto ele me penetra sem que eu precise me mexer; sinto apenas seus movimentos
pélvicos que levam seu pênis rijo para dentro e para fora de mim num ritmo ágil, que logo faz a
chama do meu desejo reacender. Quando dou por mim, estou montada em Martin como Lady Godiva,
cavalgando sem pudor, com as unhas cravadas no peito dele, gemendo alto enquanto as mãos dele
exploram o meu corpo.

Agora Martin se senta; ainda estamos engatados. Ele puxa meu cabelo e faz minha cabeça pender
para trás, deixando todo o meu pescoço livre para a boca dele explorar, e é isso que ele faz. Seu
órgão viril pulsa dentro de mim; posso sentir cada centímetro de sua extensão. O suor de Martin se
encontra com o meu e nós dois nos tocamos, desesperados. Ele me joga novamente contra a cama e
volta a me penetrar com força, o que me faz perder a noção da realidade. Já não tenho forças para
reagir: apenas deixo Martin fazer de mim o que quiser quando sinto o oxigênio abandonar minha
cabeça no momento em que o segundo orgasmo me atravessa, arremessando-me para outra dimensão
de sensações.

Um urro feroz e selvagem marca o gozo de Martin, que em seguida praticamente desfalece ao
meu lado, ofegante, acabado. Este deve ter sido o sexo mais intenso e inesperado e maravilhoso de
toda a minha vida. Não olho para o lado, mesmo que a escuridão não me permita ver os olhos verdes
desse homem, mas ouço-o se levantar e sair do quarto. Cubro-me até a cintura. Que horas são?
Quanto tempo isso durou? Por que Martin saiu do quarto? Com a luz que vem da cozinha, procuro
meu sutiã. Sinto que não deveríamos ter feito isso... Ai, Cristo! Martin volta ao quarto, nu, e se deita
ao meu lado novamente. Sinto meu corpo retesar quando seu olhar profundo para sobre o meu, que
agora o vê com clareza.

— Desculpa... — ele diz, e essa parece ser a coisa mais sincera que ele já disse desde que o
conheci.

— Por quê?

— Isso não devia ter acontecido. A culpa foi minha.

— Não, Martin, eu comecei; a culpa não foi sua, pare com isso.

Poxa! Não quero que ele fique pensando que me estuprou, né? Mas...

— Você é incrível — ele diz.

Não, Martin, não diga essas coisas que me fazem sorrir!

— Você também é...

Ele sorri. Sorrimos os dois. Oh, não! Ele me beija, e me abraça, e beija meu pescoço, e se deita
sobre mim, e meus olhos se fecham, e lá vamos nós de novo...!
Capítulo 5

A chuva parou. Também, depois de uma madrugada inteira de água caindo do céu, já era hora...
Mas espera aí: eu não estou no meu quarto... Martin está do meu lado!... Meu Deus! É mesmo! Nós
transamos ontem! Mais de uma vez! Ele ainda dorme. Que horas são? Onde estão os relógios desta
casa? Por que eu transei com esse homem?! Onde eu estava com a cabeça?! Isso não podia ter
acontecido!

Calma, Alice; controle-se. Levanto-me da cama sem fazer barulho e saio do quarto. Prendo meu
cabelo em um rabo de cavalo e começo a andar pela casa em círculos. Vou até meu quarto e olho
pelas frestas da janela. O sol já nasceu, mas ainda está fraco. O solo já começou a secar e os
pássaros cantam timidamente. Este seria um belo dia para ficar em casa dormindo e fazendo nada!
Vou até o banheiro-cubículo e escovo meus dentes. Ainda não acredito que transei com o homem que
me sequestrou! E agora? Com que cara eu vou olhar para ele?! E não foi qualquer fodinha casual,
não: foi intenso!

Saio do quarto e vou até a cozinha. Abro a geladeira e sinto um frio me percorrer. Claro: estou
pelada. Melhor eu me vestir antes que Martin acorde e me veja assim. Volto ao meu quarto, que não é
exatamente meu, e coloco meu vestido de festa dourado, que Martin teve o cuidado de lavar,
novamente. Agora sim! De volta à geladeira, pego uma caixa de leite e margarina; depois, umas
bolachas de água e sal no pacote de dentro do armário. Pego um copo no escorredor de pratos, sirvo-
me com o leite e me sento à mesa ao som de um longo e profundo suspiro. Abro o pote de margarina
e besunto as bolachas pacientemente, comendo-as enquanto fito o nada... Como é que eu fui deixar
isso acontecer? Eu devia ter resistido! Aliás, resistido não: eu devia ter ficado quieta na minha e não
inventado de passar a mão no cara só porque ele estava todo gostoso deitado ao meu lado me
protegendo da tempestade... Burra! Como você foi burra, Alice! Agora esse insuportável te tem na
palma da mão duas vezes!... Cadê meu pai? Quando é que ele vai pagar esse resgate? Uma
pena eu não ter esse dinheiro sobrando, senão eu mesma já teria pagado meu próprio resgate ao
Martin para ficar livre deste cárcere. Olha para estas unhas! O Martin bem que poderia ter me levado
a uma manicure em Amistad — se é que existem manicures lá —, porque eu estou parecendo uma
mulamba... E esta juba, que há mais de uma semana não sabe o que é xampu e condicionador de
qualidade? Tem tantas pontas duplas aqui que, olha... Sem contar que eu estou sentindo falta da
humanidade, da civilização, do meu Facebook, do Criminal Case... As pessoas já devem saber da
minha situação. Merda! Já estou vendo que vão me bombardear com perguntas e comentários, e, pior
ainda: que eu vou sentir falta do Martin quando isto tudo acabar, e que eu vou brigar muito com meu
pai quando eu sair daqui, porque nad

Espere aí.

Alice! Alice! Acorda! O Martin está dormindo, a chave da porta da sala está na maçaneta! Essa
é a hora de você fugir! O que você está fazendo aqui comendo bolacha de água e sal e filosofando
sobre a vida, sendo que já poderia estar chegando à estrada uma hora dessas?! Rápido, mulher!!!
Levanto-me de supetão. Que tonta que eu sou! Por que estou aqui perdendo tempo?! Meu
coração dispara. É agora! Mas calma; pensa um pouco, antes. Vou até o quarto e vejo se há algo que
eu deva levar comigo. Pego minha bolsa, mas meu celular não está dentro dela, é claro. Tudo bem:
meus documentos, pelo menos, estão. Minha sandália, minhas bijuterias... Rápido, Alice! O que
mais?!... Nada, né? Okay. Acho que é isso. Pronto, não fica pensando muito: hora de partir!

Caminho descalça até a porta da sala e a abro com todo cuidado, para não fazer qualquer
barulho. Antes de sair, porém, olho pela última vez para dentro do quarto de Martin. À pouca luz,
observo-o dormir sonoramente por alguns segundos. Adeus, Martin... Obrigada pela gentileza!...
Afasto-me da porta do quarto dele e torno à da sala. Vejo o céu nublado surgir à minha frente e o
chão de terra se estender para além de onde meus olhos alcançam. É dada a hora. Então corro; corro
como nunca corri antes; corro pela minha vida, sem olhar para trás. Meus pés descalços marcam a
terra úmida com as minhas pegadas e me levam rumo a qualquer lugar.

Solo e grama se confundem, assim como os meus passos, que se entrecruzam e me levam ao
chão. Droga! Devo estar fora de forma; meu fôlego já está esgotado, assim como minhas forças, mas
não posso parar. Prossigo, com menos velocidade, mas sem parar. A Casa já sumiu do meu campo de
visão, percebo ao olhar para trás, e logo avisto o início da estrada de terra por que passamos quando
fomos a Amistad. Estou chegando a algum lugar!... Mas já não tenho forças para correr.

Caminho esbaforida. Lá na frente, a mais três ou quatro minutos de corrida de distância, vejo um
carro passar pela estrada de asfalto. Isso, Alice! Só mais um pouco! Você está quase lá! Acelero o
passo. Continuo minha trajetória às duras penas; havia me esquecido de quão exaustivo é correr.
Mais um pouco e eu estou na estrada!

Ouço um ronco de motor soar atrás de mim. Isso! Obrigada, Deus! Olho para trás e me preparo
para pedir socorro a quem quer que esteja passando, mas meu coração logo entala na minha garganta
quando reconheço aquela caminhonete branca. Martin!

Não, Deus, não! Por favor!

Tiro forças do fundo da minha alma e volto a correr em direção à estrada, mas a caminhonete é
mais rápida do que eu jamais poderia ser, e logo Martin me alcança, fechando-me com uma manobra
que me leva ao chão pela segunda vez.

Ele caminha em minha direção pisando duro e aproveita minha estadia no chão para amarrar
minhas mãos atrás das minhas costas.

— Não, Martin! Por favor!

Logo sou calada com um pedaço de fita adesiva na boca e imobilizada com uma amarra nos
calcanhares. Tento grunhir e gritar e emitir qualquer som na leda esperança de alguém me ouvir ao
longe, mas é inútil: o que me resta é chorar copiosamente e temer pelo que Martin pode fazer agora.

— Eu devia saber — ele diz enquanto me pega como se eu fosse uma peça de boi sendo
descarregada no açougue. — Eu devia saber...
Martin me coloca no banco do passageiro e fecha a porta, entrando do outro lado em seguida.
Encolho-me como consigo; ele manobra a caminhonete com fúria, voltando à Casa a toda velocidade.

— Então é isso — ele diz sem me olhar. — Eu te dou conforto, comida, cuidado, te trato com
toda gentileza, te levo pra sair, até transo com você, Alice! E é assim que você me agradece.

Consigo sentir a raiva em cada sílaba que ele pronuncia. Com a boca vedada, não posso
responder, embora o que ele disse seja verdade.

— Eu fui um idiota! — ele prossegue. — É lógico que você ia tentar me seduzir e fugir no dia
seguinte. É lógico!

Não! Não, Martin, isso não é verdade!

— E eu caí feito um patinho no seu plano... Tsc tsc tsc... Como eu fui idiota, meu pai! Como eu
fui idiota!

Quanto mais ele repete isso, mais eu choro. Não é verdade, Martin! Eu não transei com você
para fugir! Eu estava a fim! Fugir foi só uma ideia! Pare de falar assim!...

Chegamos de volta à Casa. Martin guarda o carro na garagem e me pega do lado do passageiro,
colocando em seu outro ombro minha bolsa, que ele resgatara quando caí pela segunda vez. Estou
completamente rendida. Reagir para quê? E como? Estou suja de terra e as lágrimas secam sobre o
meu rosto, deixando-o ressecado. Entrando em casa, Martin me joga na cama do meu quarto como se
eu fosse um saco de batatas e fecha a porta, sem me desamarrar ou tirar a fita da minha boca. Só faço
chorar, e começo a ter dificuldade para respirar conforme meu nariz entope por causa do choro.
Minha ideia genial foi por água abaixo... Perdi tudo que eu havia conquistado até aqui... Martin deve
estar me odiando... Pensar essas coisas só me faz chorar mais. Pare de chorar, Alice!... Não consigo
me movimentar muito bem, nem tento; agora só quero que isso tudo acabe logo, porque não sei se vou
suportar o olhar de fúria e decepção do Martin sobre mim... E por que eu estou me importando tanto
com isso? Por que estou me sentindo uma traidora, uma herege? Eu só tentei escapar! Não cometi
nenhum crime, mas aqui dentro de mim é como se eu tivesse sido condenada à forca.

Martin volta ao quarto. Não consigo olhá-lo nos olhos. Afasto meu rosto da luz que vem da copa
e espero que ele faça algo. Aproximando-se de mim, ele tira a fita da minha boca, o que me faz puxar
um longo fôlego. Não ouso falar nada. Em seguida, ele tira as amarras dos meus braços e dos meus
pés.

— Por que está fazendo isso? — pergunto, com a voz ainda chorosa, pois me deixar
completamente livre para ir e vir depois de uma tentativa de fuga era a última coisa que eu esperava
que ele fizesse.

— Não fale comigo a menos que eu fale com você.

Ótimo. Perfeito. Agora ele vai me matar com silêncio. Deus, isso tem que acabar logo, isso tem
que acabar logo...
— Daqui a pouco nós vamos ligar pros seus pais e é bom eles começarem a se mexer, porque
agora eu já não tenho motivos pra te poupar de nada — ele termina de soltar meus pés e se levanta.
Saindo do quarto, diz: — E vá tomar um banho, que você está imunda.

Martin bate a porta com rispidez e a tranca. Sento-me na cama devagar, começando a sentir as
dores da minha corrida desesperada, e volto a chorar, desta vez em silêncio. Droga! Mil vezes
droga!... Levanto da cama e sigo a recomendação cruel de Martin: entro no cubículo, ligo o chuveiro
e deixo a água morna me lavar por fora e por dentro. Força, Alice, força...

Ai, se arrependimento matasse... se arrependimento matasse...! Por que é que eu fui inventar de
fugir?! Idiota! Não, Alice, também não é assim: apesar de não parecer, isto aqui ainda é um
sequestro; o que você fez foi tentar escapar para poupar sua vida, sua integridade física; não seja tão
dura com você mesma. O problema é que agora Martin está puto e achando um monte de coisa
errada. Onde já se viu pensar que eu transei com ele só para tentar seduzi-lo e fugir depois?! Um
absurdo; simplesmente um absurdo. Imagina se agora ele estiver mesmo disposto a me fazer algum
mal, caso meu pai continue demorando a liberar esse dinheiro logo? Tsc... Droga. Agora estou aqui,
trancada desde manhã. Não adianta gritar nem tentar fazer nada, já me conformei. E o que eu posso
fazer? A culpa é minha afinal... Se eu tivesse ficado na minha e não tido a ideia genial de sair
correndo, estaríamos, sei lá, transando agora. Tem isso também. Aquele homem dentro de mim... Ai,
meus sais! Posso nem lembrar.

Suspiro. Nunca passei tanto tempo deitada em toda minha vida. Aqui é assim: durmo, acordo,
tomo café com Martin. Acaba o café, deito no sofá da sala e assisto TV até acabar o noticiário local.
Martin sempre arruma algo para fazer; eu não. Bem que ele poderia ter me levado a Amistad ou a
qualquer outra vila dessas que eu desconheça... Depois, pego algum livro para ler e vou ler deitada.
Já devo ter lido todos os contos de Poe; agora leio trechos da Bíblia — deitada — antes de dormir.
Isso quando a gente não assiste nenhum filme na sala: deitados. Sem contar que a gente transou, né?
Coisa que também se faz na horizontal. Agora estou aqui, deitada, esperando alguma coisa acontecer.
Estou ouvindo barulhos na cozinha. Deve ser ele separando as panelas para fazer o almoço... Parece
que os barulhos estão mais fortes do que o de costume, como se ele estivesse colocando as coisas
sobre a pia com força, com... raiva. De mim. Argh! Odeio que fiquem com raiva de mim sem que eu
tenha a chance de me explicar!

Passam-se os minutos. A porta se abre. É ele. Levanto meu tronco automaticamente, no susto, e
espero que Martin diga algo, mas ele não diz; apenas me dispara um olhar e volta para lá. Posso sair
daqui, será? Ele não falou nada... Decerto sim, né?... Bom, vamos esperar mais um pouco; a cama
ainda está confortável.

— O almoço está pronto — ele diz em tom ríspido, voltando à porta do meu quarto para dar o
recado.

Não estou morta de fome, mas vou à cozinha; melhor não contrariá-lo mais por hoje. Chego a
passos lentos. De costas para mim, Martin monta seu prato e, quando termina, dirige-se ao sofá da
sala. Filho da puta. Ele nunca come no sofá da sala; está fazendo isso só para me deixar com
remorso. Tudo bem. Pego um prato no escorredor e me sirvo da macarronada à bolonhesa que ele
preparou com toda sua raivinha; deve ter temperado com arsênio!

Sento-me à mesa. A televisão está ligada no noticiário e, coincidentemente o bastante, falam


sobre um sequestro, que não é o meu, claro. Geralmente o almoço é quando temos algum diálogo
mais relevante, mas hoje só se ouve a voz da apresentadora do jornal; parecemos duas crianças de
mal. Ai ai... Sem muita fome, como o pingo de comida que pus no prato em poucos minutos. Pego a
jarra de suco na geladeira e torno a me sentar, saboreando a bebida artificial lentamente. Deixo o
copo entre minhas mãos e observo as imperfeições da mesa através da transparência do vidro. Logo
Martin passa ante os meus olhos e deixa a louça dentro da pia; pega a jarra à minha frente e enche um
copo de suco, que bebe em três goles; pega meu prato vazio e também o leva à pia; abre a torneira e
põe-se a lavar a louça em silêncio.

— Então é isso? Vai ter greve de silêncio agora? — pergunto, irritada e incomodada.

— Não fale comigo a menos que eu fale com você — ele sequer se dá o trabalho de se virar
para mim.

— Senão...? Vai fazer o quê? Me bater?

— Cale a boca.

— Você não me mande calar a boca, seu troglodita! — digo entre os dentes.

— Eu não vou pedir duas vezes.

— Que saco, Martin! Eu quero c--

— Cale a boca, Alice! Eu não quero ouvir sua voz!!!

Meu coração dispara e meus olhos se arregalam. Fico paralisada. O grito de Martin ecoa pela
casa e me assusta terrivelmente. Lágrimas ameaçam verter dos meus olhos aterrados, que fitam os de
um Martin furioso. Essa é a primeira vez que ele grita comigo. Perco o chão quando gritam comigo, e
dessa vez não é diferente. A única coisa que consigo fazer é me levantar, voltar para o quarto e
fechar a porta. Seguro as lágrimas. Ogro! Estúpido! Bandido! Eu não vou chorar porque esse cara
gritou comigo, não vou, não vou, você não vai, Alice. Respira fundo. Isso...

O jeito é voltar para a cama e esperar. Ele disse que hoje vai falar com os meus pais de novo.
De hoje não pode passar: preciso convencer meu pai a pagar esse dinheiro logo, porque o rumo que
isso aqui está tomando não me agrada nada, nada...

Ouço Martin lavar a louça. Que ódio! Por que ele está me tratando assim? Por que não deixa eu
tentar me explicar? Eu sei que agi mal, mas poxa! Me deixa explicar! Me d

— Vamos — Martin diz ao abrir a porta do meu quarto.

Respiro fundo. Sem dizer nada, saio da cama e caminho em direção ao sofá da sala, onde
sempre acontecem as infinitas negociações. Martin se senta ao meu lado, mantendo a distância, pega
o celular e disca o número do meu pai. Aguardo ele atender, soltando um bufo de enfado. Lá vamos
nós de novo...

— Boa tarde, Nestor... Sou eu... Quando é que nós vamos resolver isso?... Eu estou começando a
perder a paciência com você...

Martin é um frouxo; não sabe nem ameaçar. Sinto que esse diálogo não vai levar a lugar algum,
como os outros cinco ou seis que já devem ter acontecido. Cansada dessa situação, decido que é
melhor começar a usar outras táticas. Em silêncio, estendo a mão esperando que Martin me entregue
o celular. Hora de colocar o modo atriz em ação.

— Espere aí...

Martin me passa o telefone e eu entro em cena, aproveitando-me do meu estado de nervos à flor
da pele.

— Pai?

— Oi, minha filha...!

— Pai, você tem que me tirar daqui.

— Filha, me escuta:

— Não, pai, me escuta você: eu estou com fome, com frio, machucada,

— Machucada?! Esse desgraçado te encostou a mão?!

— Ele está começando a cumprir as ameaças, pai, você tem que pagar esse resgate... Estou há
duas noites dormindo pelada, trancada num quarto, comendo só pão e leite... Me tira daqui, pai... —
digo tudo isso com voz chorosa e lágrimas verdadeiras nos olhos.

— Alice! — sinto a voz dele vacilar.

Antes que ele responda, devolvo o telefone a Martin, que me fita com um olhar indecifrável.

— Você ouviu... Eu avisei... Já fiz meu preço... Hum... Não, nada disso... Só depende de você,
amigo; o tempo está passando... Hum... Não me interessa... Quanto??... Tá, pode ser... Você vai deixar
esse dinheiro na entrada de uma estrada de terra no quilômetro 62 da Rota 203... Hoje à meia noite...
Quando eu for buscar, sua filha vai estar comigo; se eu sentir cheiro de polícia, ela morre,
entendeu?... Depois a gente fala sobre isso... Faz a sua parte que eu faço a minha... Sem drama...
Amanhã a gente se fala. Tenha um bom dia.

Martin desliga o telefone e volta a me olhar daquele jeito. Desvio o olhar; não quero ouvir o que
quer que ele possa querer dizer me olhando assim.
— Amanhã você vai embora — ele diz.

Graças a Deus... Precisei mentir para fazer meu pai ceder e pagar logo esse maldito resgate. Que
raiva!

— Você foi esperta — Martin diz em tom de quem não quer admitir que foi menos esperto do
que uma refém, com as pernas esticadas, sobrepostas, olhando para o chão de tacos.

Meneio a cabeça afirmativamente. Não quero conversar depois de ele ter gritado comigo. Aliás,
não quero ficar no mesmo cômodo que ele, então me levanto e volto para o quarto — não tem nem
para onde fugir nesta casa! Acho que vou dar uma volta no meio das árvores para refrescar as ideias
e fazer o tempo passar mais rápido. Segura a onda, Alice; por bem ou por mal, amanhã esse pesadelo
acaba...

É hoje, finalmente... Não consigo explicar tampouco descrever o que estou sentindo. Parece que
estou acordando de uma longa noite de sono, sem saber onde estou ou para onde vou. Vou para casa,
é lógico, mas e depois? É estranho dizer isto, mas é como se o Martin já fizesse parte da minha
vida... E agora eu vou embora e nós provavelmente nunca mais nos veremos e, ao mesmo tempo em
que é um alívio saber que eu vou ter minha vida de volta e fazer o que eu quiser quando eu quiser na
hora que eu quiser, também é estranho imaginar que nós não teremos mais esses diálogos esdrúxulos
acompanhados de ameaças que ele é bom demais para cumprir... Porque eu sei que Martin é um
homem bom. Poxa! Ele poderia ter feito qualquer coisa comigo, mas nunca me desrespeitou de
maneira nenhuma. É só uma pena eu não ter tido a chance de conhecer o homem por trás da máscara
de sequestrador gentil... E é outra pena que ele continue achando que eu fiz o que eu fiz com má
intenção... Ai ai... A vida nem sempre ou quase nunca é justa.

Ontem ele saiu. Pelo que entendi da conversa pelo telefone, meu pai deixaria o dinheiro em
alguma estrada de terra e Martin, depois, pegaria a mala. Só que Martin disse que eu estaria junto e
que me mataria se visse polícia... É claro que tenho (quase) certeza de que ele não faria nada contra
mim, mas de fato pensei que eu o acompanharia até o local do crime, mas... não; fiquei bem quieta
aqui; só o vi saindo quando já estava bem escuro (isso de não saber as horas me irrita
profundamente) e voltar uns quarenta (?) minutos depois. E acho que essa tal estrada não deve ser a
estrada de terra que pegamos para vir para cá; ele não seria tolo de pedir para o meu pai deixar o
dinheiro perto do local do cativeiro. Voltou com uma mala, que deixou dentro do quarto e trancou a
porta — como se eu pudesse entrar lá e roubar o dinheiro dele, né? Por favor. Depois foi dormir...
Dormir. O ser humano é incrível, né? Eu jamais conseguiria sair de casa à meia noite para pegar
dinheiro de crime e, depois, voltar para casa, entrar no quarto e simplesmente dormir... Continuei no
meu quarto, trancada, sem fazer nada até o amanhecer... Apesar do alívio por estar prestes a ir
embora, a ansiedade não me deixa; e, por mais que eu sinta sono, consigo dormir só quando já estou
exausta de ficar acordada...

Tomamos café hoje cedo, pouco após o aparecer do sol. Ainda estávamos sob o vigor da lei do
silêncio. Também, não tínhamos muito para conversar; não é como se fosse rolar uma festa de
despedida para mim. Comemos sem pressa. Eu ainda estava incerta do que aconteceria a seguir, mas
não me atrevi a perguntar, já que eu não devia falar se ele não falasse comigo antes. Ele não parecia
ter passado a madrugada acordado, feito eu. Não fizemos muito contato visual; tenho procurado ficar
de cabeça baixa quando perto dele... O clima não estava nada bom; era melhor não me fazer sentir
pior tentando olhá-lo nos olhos.

Saímos da casa agora há cerca de uma hora. Ele não trouxe a mala de dinheiro consigo; apenas
devolveu meus pertences e fechou a porta da sala; entramos na caminhonete e agora estamos viajando
para algum lugar que eu não sei onde é, assim como não sei qual é o próximo passo. Hoje o rádio
está desligado e ele não está cantando. O céu não está bonito, as nuvens não estão brancas e o frio
está chegando. Passamos por Amistad há alguns minutos, mas esta estrada não é a que leva a Veredas.
Acho que estou triste... Eu só queria esclarecer as coisas.

Entramos em mais uma dessas cidadezinhas que só Martin conhece. Olho para a tela do celular e
percebo que o código de área é de outro estado. Conforme adentramos o local, fica claro que
estamos em um lugar bastante interiorano. Não vejo nenhum prédio com mais de quatro andares; há
árvores por todos os lados; as casas não têm muros altos nem cercas elétricas; aqui o céu já está bem
mais claro; há mulheres varrendo as calçadas e crianças brincando no meio da rua. Enquanto observo
essas cenas do cotidiano interiorano, Martin dirige pelas ruas de pedra até parar em uma praça que
leva a uma estação ferroviária.

— Pronto. Acabou — ele diz.

Olho pela janela e noto que não há nem três pessoas no meu campo de visão. Não sei até que
ponto isso é bom ou ruim, pois estou usando um vestido de festa e salto alto no meio de uma praça no
meio do nada.

— Liga pro seu pai e fala pra ele te buscar na estação de trem de Alboena. Se ele vier rápido,
deve chegar aqui em duas horas ou menos.

Ouço as instruções em silêncio. Queria olhar os olhos de Martin pelos últimos segundos, mas
algo dentro de mim me diz para não fazer isso. Pela visão periférica, vejo que ele também não olha
para mim, mas para frente; sendo assim, concluo que é inútil devanear e achar que essa história vai
ter um fim redondinho, com todas as arestas aparadas. Mas também, o que importa? Acabou: vou
voltar para casa e Martin vai continuar existindo apenas dentro de mim.

— É só isso. Pode ir: está livre.

Respiro fundo e meneio a cabeça em afirmação. É hora de voltar à vida e acordar deste sonho
estranho; é hora de renascer. Abro a porta da velha caminhonete branca e desço. Troco o último olhar
com Martin e com esse nos despedimos sem dizer qualquer palavra. O motor do veículo ruge, Martin
acelera e logo se perde em qualquer esquina desta cidade, deixando vazio um pedacinho do meu
peito.

Giro em torno de mim mesma e observo o redor do lugar em que estou. Uma praça... Alice
Borges: publicitária, sequestrada, libertada e deixada à espera de seu pai-salvador em Alboena.
Alboena... De onde Martin conhece esses lugares? Solto um longo suspiro. Caminho lenta e
pacientemente em direção à estação de trem enquanto disco o número de Nestor. A grande praça,
vazia, parece me observar. Uma pessoa ou duas caminham em direção à plataforma de embarque e as
árvores produzem um barulho gostoso de primavera enquanto o sinal de tom apita no meu ouvido.

— Alô?! Alice?!

— Oi, pai... Sou eu.

— Filha! Onde você está?!

— Estou numa cidade chamada Alboena, na estação de trem... Pode vir me buscar: estou livre.

— Cadê o sequestrador?! Você está bem?! Está machucada?!

— Não, pai, está tudo bem; Martin já foi embora; só vem me buscar, tá bom? Vou te esperar aqui
na estação.

— Eu estou indo! Aguenta firme!

“Aguentar firme”. De aguentar firme eu precisei enquanto ele se recusou a pagar o que Martin
queria... Solto o trigésimo suspiro do dia. Caminho a passos arrastados em direção à plataforma de
embarque da estação; melhor esperar sentada, na sombra. Ainda bem que quase não há pessoas aqui
para presenciar meu estado de lástima. Por que eu fui deixar me envolver por Martin? Por que fui
para a cama com ele? Por que ele não me deu a chance de tentar me explicar? Que droga! As coisas
podiam ser tão diferentes... Mas agora acabou; não adianta ficar remoendo; chega!

Sento-me em um banco de concreto frio e olho ao redor. Uma senhora, vestindo um lenço na
cabeça, agasalho cor de salmão, saia escura florida, meias brancas e chinelos de dedo, me olha de
volta e sorri enquanto tricota uma roupa infantil. Mais à frente, um rapaz de pouca idade dorme
encostado à parede da estação. O silêncio é quase completo; só a natureza se pronuncia. Ao longe, o
som modesto do pouco movimento da cidade passa de raspão pelos ouvidos. O trem passa diante de
nós e logo quebra o silêncio com o barulho coordenado de suas engrenagens girando, e solta fumaça,
e leva pessoas a algum lugar... Ninguém desce nem entra; apenas olhamos juntos a passagem breve
dos vagões e logo todos voltamos a nós mesmos. Os minutos passam, um atrás do outro, e, de olhos
fechados, revivo em flashes os momentos mais marcantes... A primeira vez que o vi... O bar em
Amistad... Nós cantando entre as árvores... A fogueira... As conversas atravessadas... Aquele
sarcasmo insuportável... O sorriso permanente... Ai, Deus... Acho que preciso de um psicólogo, um
tratamento, um tiro na cara. Martin definitivamente me partiu o coração sem sequer tentar. E eu não
deveria estar me sentindo mal, mas estou em pedaços... Quanto tempo um coração partido leva para
consertar?

Um barulho gradativo começa a se aproximar. O vento se intensifica e as árvores da praça são


arrebatadas por correntes de ar. Olhando para o céu atrás de mim, vejo um helicóptero se
aproximando do solo. Só pode ser meu pai! Levanto-me e caminho em direção ao centro da praça.
Meu celular toca. É ele. Sem atender ao telefone, começo a abanar em direção à aeronave, que logo
pousa no meio da praça, atraindo os olhares de quem estava aguardando o trem e de mais dois ou três
curiosos à distância. Nestor desce do táxi aéreo e vem em minha direção correndo.

— Minha filha!

Trocamos um abraço forte. Meu pai repete agradecimentos em voz alta e me segura
desesperado.

— Calma, pai, já acabou; eu estou bem.

Ele continua repetindo os agradecimentos por mais alguns instantes e eu infelizmente não
consigo retribuir toda essa preocupação, afinal ele já viu que está tudo bem, não?

— Vem, vamos embora!

Seguimos em direção ao helicóptero e entramos sem demora. Ele poderia muito bem ter vindo
de carro, mas não vou reclamar: acabou chegando bem mais rápido. O piloto vai à frente e eu e meu
pai vamos atrás. Levantamos voo e seguimos em direção a Veredas. Meu pai segura a minha mão e
me enche de perguntas, às quais eu não presto muita atenção.

— Por que você demorou tanto, pai? — pergunto eu, interrompendo-o do falatório.

— Como assim? Eu vim o mais rápido que eu pude.

— Não, pai, por que demorou tanto pra pagar o resgate.

— Ah... — ele se posiciona no assento e mede as palavras por algum tempo antes de começar a
responder: — Eu estava seguindo recomendações.

— Que recomendações, pai? Com quem o senhor falou?

— Bem, eu tenho um conhecido que trabalha na polícia e ele acab

— Quantas vezes eu e o Martin dissemos pra não colocar a polícia no meio disso, pai?! —
pergunto, furiosa.

— Alice! Aquele homem queria 150 mil dólares! Você acha que eu daria esse dinheiro todo
assim de mão beijada para um bandido?! Tive que pedir ajuda a quem entende de sequestros e
negociar, ora!

— Não tinha o que negociar, pai! Ele deixou claro que não queria polícia envolvida! Alguma
coisa poderia ter acontecido comigo! Eu poderia estar morta agora!

Ele se ajeitou na poltrona e abaixou o rosto.

— Eu sei — disse em voz baixa, — me desculpe... Ele te machucou muito? Te maltratou?

— Não, não; ele me tratou super bem, estou inteira.


— Mas você não disse que estava dormindo pelada no chão e sobrevivendo a pão e água?

— Era mentira.

— Mentira?! Por que você mentiu isso pra mim, Alice?

— Porque senão eu ficaria lá pra sempre, e agora estou vendo que mentir foi a melhor escolha,
porque, como o senhor teve a brilhante ideia de colocar polícia na história, quanto mais tempo eu
ficasse lá, mais risco eu correria.

— Não posso crer nisso — ele diz em tom inconformado.

— Pai, a gente acabou de inaugurar mais um escritório da VisualiZe; com uma campanha você
recupera esse dinheiro que o Martin faturou; vamos parar de se preocupar com dinheiro e agradecer
a Deus por eu estar aqui sã e salva.

O assunto acabou. Meu próprio pai muito mais preocupado com o dinheiro que gastou para me
tirar do cativeiro do que com o meu bem estar, vê se eu mereço uma coisa dessas.

Dentro de mais alguns instantes, o táxi aterrissa no heliporto do prédio em que o novo escritório
foi aberto. Desembarcamos e seguimos direto para o elevador de serviço. Descemos para o
estacionamento, ainda em meio silêncio; entramos no carro do meu pai, que pede que eu vá no banco
de trás para que ninguém me veja — o que sugere que mais pessoas estejam sabendo do meu
sequestro —, e, finalmente, vamos para casa.

Assim que me vê atravessar o portão de entrada e descer do carro, minha mãe vem correndo em
minha direção, de braços abertos, chorando.

— Alice, minha filha!

Estou muito insensível ou estão todos exagerando? Não é para tanto, gente, calma: eu estou bem,
já passou! Retribuo seu abraço apertado, feliz por estar de volta.

— Graças a Deus! Graças a Deus! Ai! Graças a Deus! — é tudo que ela diz.

Procuro confortá-la e repetir, as mesmas inúmeras vezes, que já acabou e está tudo bem. Depois
chegam os empregados, que também fazem a mesma cena, e eu me sinto uma regressa da guerra com
toda essa atenção exagerada. Aguardo todos me abraçarem e darem as graças a Deus e me soltarem
de uma vez para que eu possa entrar.

— A senhora precisa de alguma coisa, dona Alice?! — pergunta Celeste enquanto subo para o
quarto para fugir desse alvoroço todo.

— Não, Celeste, obrigada; tá tudo bem. Vou só tomar um banho, tá?

— Tá bom, se precisar de qualquer coisa, é só me chamar!


— Obrigada.

Acho que consegui despistar todo mundo. Abro a porta do quarto devagar e contemplo o meu
templo de privacidade. Ah, que saudade eu estava desta cama! Ah! Que saudade desta TV, deste
relógio, destes travesseiros, deste edredom, deste silêncio, destas paredes de tijolo e cimento, desta
decoração, deste computador, destas coisas todas! Ah! Que maravilha é voltar para casa!... Ah, meu
chuveiro quentinho! Meu xampu! Meu condicionador! Meu sabonete! Meus itens de perfumaria! Meus
cremes! Ah! Obrigada, Senhor!... Ah, que água quentinha! A gente só sabe o quanto é bom estar em
casa depois de voltar para casa, não é, não? Céus! Como eu senti falta disso tudo sem nem me dar
conta! Pequenas coisas do cotidiano a que a gente não dá valor até o momento em que as perde.
Nunca pensei que fosse me sentir tão feliz só por ouvir o barulho deste chuveiro ligando! só por
sentir o cheirinho do meu xampu! só por observar a disposição dos móveis do meu quarto!...

Saio do banho e visto meu pijama de seda preferido. Eu deveria começar a recolocar minha
vida nos eixos hoje, mas, já que estão todos bastante preocupados com o meu “estado”, acho que não
vai fazer mal eu tirar o dia para ficar em casa à toa, curtindo as minhas coisas, vai? Não, né? Ótimo.
Vou aproveitar, então, para tirar um cochilo desde já, que eu dormi muito pouco, acordei muito cedo
e mereço aproveitar a minha cama e os meus travesseiros. Hoje à noite ou amanhã eu volto à vida,
agora não; agora é hora da soneca. Boa noite, Alice.
Capítulo 6

Nossa! Acho que meu psicológico ainda está abalado... Acordei pensando que ainda estava na
Casa e que este meu quarto era cenário de algum sonho estranho do qual eu não acordara
completamente. Mas estou em casa, sim... Ah, minha casa! Que horas são? Agora posso ver que horas
são! 13:02. Puts! Dormi pra cacete, hein? Meu estômago logo confirma essa máxima, porque o
buraco que parece haver na minha barriga ruge ferozmente. Será que meu pai e minha mãe já
almoçaram? Melhor eu largar de preguiça e sair desta cama logo, por mais maravilhosa que ela
esteja.

Levanto-me. O que tenho que fazer hoje, mesmo?... Ah, nada, né? Combinei comigo mesma que
ficaria aqui em casa curtindo meu estresse pós-traumático. Mas não quero ficar à toa o dia inteiro.
Acho que amanhã já consigo voltar ao trabalho, e nossa! Não quero nem imaginar o tanto de coisas
que estão lá no escritório me esperando voltar... E não quero nem pensar no tanto de perguntas que
vão me fazer quando me virem entrando por aquela porta. Ai, céus. “Nossa! Mas como isso foi
acontecer?!”, “Você conhecia o cara?”, “Ele te maltratou?”, “Você ficou trancada em um cômodo?”,
“Ele cortou algum dedo seu?”, “Por que seu pai demorou tanto para pagar o resgate?”, “Como ele
era?”, “Você se lembra do local onde ficou?”, “Nossa! Você precisa ir à polícia fazer uma
denúncia!”... Como as pessoas são futriqueiras, não? Pagar minhas contas que é bom, tenho certeza
que ninguém vai querer... Falando em pagar contas, preciso conversar com a Mi! Ela vai adorar
saber dessa história toda... Acho que vou pedir para o meu pai contratar um assistente para dar conta
do serviço que está me esperando. Que dia da semana é hoje, mesmo? Terça. Acho que dá para
chamar a Mi para comer alguma coisa à noite, depois do expediente.

Chegando à copa da casa, encontro a mesa vazia.

— Oi, dona Alice! Eu já estava indo chamar a senhora! — Celeste me cumprimenta.

— Oi, Celeste... Cadê todo mundo?

— Seu Nestor já voltou pro escritório e a sua mãe deu uma saída e deve voltar logo, logo.

— Hum... Todo mundo já almoçou então.

— Já, sim. Quer que eu prepare alguma coisa para a senhora?

— Não, não, pode deixar; eu me viro na cozinha com o micro-ondas. Obrigada, Celeste.

Acho que está passando da hora de eu sair da casa dos meus pais. Tenho dó desses empregados.
Imagina que serviço estranho esse de ganhar dinheiro para ficar bajulando os patrões, tratando como
se fossem crianças. A cozinha é logo ali, poxa, eu posso me virar sozinha. Mundo estranho. Vejamos
o que comeram de bom nesta mansão no dia de hoje. Abro as panelas, que ainda estão sobre o fogão.
Arroz, feijão, frango grelhado, batatas assadas... Hum! Disso eu não posso reclamar: estava com
saudades da comida daqui de casa. Martin era legal e tudo, mas o feijão dele não era muito gostoso.
Abro a geladeira e pego a caixa de suco de uva e um pirex com salada de alface. Sirvo-me da bebida
e coloco a comida para esquentar no micro-ondas por um minuto e meio. Sento-me à mesa e observo
minhas unhas por um instante. É mesmo! Preciso de uma manicure para ontem! Não posso voltar ao
serviço amanhã com esta aparência. Será que consigo um horário com a Cláudia amanhã depois do
almoço?... Não; acho que vai ficar muito em cima da hora. Tá, essa semana eu mesma passo meu
esmalte, uma lixa e tá ótimo. E este cabelo cheio de pontas duplas?! Meu Deus! Guardai-me para que
eu nunca mais seja sequestrada, porque o estrago na minha aparência foi grande!

O micro-ondas apita e logo o cheiro da comida quente penetra minhas narinas. Levanto-me, pego
garfo e faca, volto à mesa e logo me ajeito, sentindo o estômago roncar mais um pouco. Que fominha!
Começo a comer, saboreando cada mastigada vagarosamente... Hum!... Muito, muito bom; o feijão da
Celeste é imbatível. Este frango também tá uma delícia! Hum!... Uns dias atrás, uma hora dessas, eu
estaria na Casa, ou almoçando ou fazendo alguma coisa pós-almoço com o Martin. Isto é, antes de a
gente se desentender, né? Droga... O que será que ele está fazendo agora? Será que ainda está com
raiva de mim? Mas acho que, no final das contas, foi bom isso ter acontecido, sabe? Veja bem: e se
eu não tivesse tentado fugir e estivesse lá ainda, agora? Tudo bem, a gente teria feito sexo mais vezes
— o que não sei até que ponto seria bom ou ruim —, mas também tenho a impressão de que estou em
liberdade agora só porque ele ficou bravinho e resolveu apelar um pouco mais nas ameaças pro meu
pai, o que me fez ter a genial ideia de dizer que eu estava dormindo pelada no chão — aliás, eu
arrasei com essa, fala sério. Situações desesperadoras pedem medidas desesperadas, não é? É, sim,
Alice, pare de graça. O que importa é que tudo isso agora é passado. “Passado” assim: acabou hoje,
mas hoje cedo já é passado. Até o segundo em que você acabar de ter este pensamento já vai ser
passado, ó! Pensa... Pensa... Oops! Acabou o pensamento: passado! A Celeste temperou esta salada
com azeite sabor limão? Argh! Detesto azeite sabor limão.

Termino de comer. Que silêncio esta casa, gente. Aproveito para lavar o prato e os talheres que
sujei. Minhas unhas já estão todas ferradas mesmo, não vai me custar nada. Subo para o meu quarto e
percebo que ainda estou vestindo meus trajes de dormir. Abro a porta do meu guarda-roupas para me
trocar e dou uma olhada analítica na minha imagem de corpo inteiro refletida no espelho da porta do
móvel. Alice Borges... você está a-ca-bada. Deus te livre! Vamos fazer alguma coisa quanto a isso,
mulher! Olha essas olheiras! Olha essa cara de quem foi para a guerra e voltou perneta! E esse
cabelo?! Esse cabelo... Esse cabelo eu acho que eu vou cortar, hein? Toco os fios e me admiro por
alguns instantes. Será que eu corto? Acho que sim... Acho que cortar o cabelo é uma boa forma de se
exorcizar; estou precisando de um exorcismo dos últimos dez dias da minha vida. Mas como vou
cortar? Será que eu ficaria bem de franja? Eu poderia fazer um corte estilo Paola Bracho, para me
sentir poderosa e má, com aquela risada bem sarcástica, HAHAHAHAHA! Ou, talvez, algo tipo
Sandra Bullock, mais séria e profissional... Ou mais curto ainda, estilo Milla Jovovich em Resident
Evil! Ou Vitoria Beckham! Gente, quantas possibilidades! Não, espera: vamos ligar para a Milena
antes e ver se a gente consegue sair hoje à noite.

Pego meu celular sob o travesseiro e busco o telefone dela na agenda. Chamando.

— Alice?

— Oi, Mi!
— Alice, amiga! Como que você dá um susto desses na gente, mulher?!

— Ai, nem me fale, Mi: quase morri, por muitos motivos.

— Como assim? O que houve? Ai, meu Deus! Você precisa me contar essa história direito! Onde
você tá?

— Eu tô aqui em casa; não fui trabalhar hoje. Você tá aí no escritório do centro?

— Tô, sim.

— Sai que hora?

— Lá pelas seis, eu acho.

— Quer dar uma saída depois, pra gente conversar?

— Claro!

— Tá. Você tá de carro?

— Não, vim com o Marcos de carona hoje.

— Ah, ótimo; me espera lá embaixo, então, que eu te pego; não quero que ninguém aí me veja
hoje; não tô preparada pra interrogatório ainda.

— Tá bom, te mando WhatsApp quando estiver saindo, pode ser?

— Pode. A gente se vê mais tarde então.

— Tá bom. Beijo!

— Beijo.

Desligamos. Ótimo: já tenho programa para hoje. Amanhã a vida recomeça definitivamente.
Acho que vou aproveitar a tarde para atualizar minhas redes sociais e informar todo mundo que já
acabou o drama e que eu já estou em casa e que já está tudo bem. Será que está todo mundo sabendo?
Pelo jeito que a Milena falou, parece que sim... Droga. Sento-me à minha escrivaninha e abro o
laptop. Quando ele conclui sua inicialização, a primeira aba que abro é o Facebook, e boom! Doze
mensagens privadas não lidas, cinquenta e três notificações. Checo cada mensagem. “Oi, Alice!
Espero que esteja tudo bem com você! Força”; “Alice, Deus é maior! Acredite, vai dar tudo certo!”;
“Alice, titia está com saudades, fica bem, tá?!”; “Amiga, tô rezando muito por ti! Boa sorte”; “Força,
Alice”; “Alice, onde você deixou aqueles papéis?”... Cristo Redentor! Abro as notificações. Mesma
história: inúmeras mensagens de encorajamento e mais alguns convites para jogos em flash e
marcações para festas no sábado e fotos de gatinhos em que fui marcada... Vou ter que escrever um
discurso de retorno aqui. Vamos lá: início, Status, “No que você está pensando?”:
Olá, pessoal!

Aqui é a Alice e venho informar que já estou em casa e está tudo bem. Peço a todos que
fiquem tranquilos, pois nada de mau me aconteceu, graças a Deus. Volto ao trabalho ainda esta
semana e deixo o que passou para trás. Obrigada, de coração, a todos que torceram por mim e
enviaram vibrações positivas. Um beijo!

Só isso, né? Sem demagogia, vai. “Publicar”. Povo exagerado. Abro minha caixa de e-mails e,
como era de se esperar, ela está abarrotada, tanto de serviço quanto de mensagens de boas vindas.
Meu pai já deve ter dado a notícia ao pessoal da agência, falando que eu estou de volta... Não tem
problema; eles acabariam sabendo, mais hora, menos hora. Não vou me dar o trabalho de responder
todos senão não saio daqui nem hoje nem tão cedo e eu tenho mais o que fazer, como assistir aos
canais do YouTube que eu assisto depois que chego do serviço. Devo ter perdido um monte de coisa
legal. Vamos lá dar uma olhada!

— Alice.

Olho para a porta do meu quarto. Meu pai. Ele não estava trabalhando?

— Oi, pai.

— Tem visita pra você.

— Quem?

— Dr. Evaristo.

— Quem é Dr. Evaristo?

— O investigador que cuidou do seu caso, conhecido meu da polícia.

Reviro meus olhos.

— Isso é mesmo necessário?

— É claro. Você acha que eu vou deixar esse bandido se safar assim tão facilmente? Vou atrás
dele até o fim.

Solto um longo suspiro. Meu pai, sempre com essa mania de se meter nas coisas que ele deveria
deixar para lá. Tudo bem, tudo bem. Levanto-me da cama, ajeito a roupa no corpo e desço as escadas
até a sala, onde Evaristo me espera sentado, de terno e gravata, com um bloco de anotações em mão e
pernas cruzadas horizontalmente. Ao me ver, ele se levanta, esboça um sorriso e me olha com um
olhar amigável.

— Como vai, Alice? — cumprimenta-me estendendo a mão, que eu aperto em retorno.

— Eu vou bem, e o senhor?


— Vou ótimo, mas pode me chamar de “você”.

Sorrio sem expressão. Sento-me a um espaço de distância dele no sofá de três lugares, apoiando
o cotovelo no encosto do móvel, com o corpo virado para o rumo dele, de forma a ficarmos de frente
um para o outro. Ele saca uma caneta de dentro do paletó e, cruzando as pernas para o lado oposto,
diz:

— Vou te fazer umas perguntas; você me responda o que se lembrar, tudo bem?

— Uhum...

— Certo... — ele pigarreia, limpando a garganta. — Você saberia me dizer, mais ou menos,
como se deu esse sequestro? Digo, onde você estava, o que estava fazendo...

— Hum... — eu sei a resposta, mas acho que vou ter que mentir algumas coisas; eu não quero
que ele encontre o Martin. — Eu estava na festa de inauguração da filial de uma das agências do meu
pai, a VisualiZe, na Avenida Oitava... Fui ao bar, não estava me sentindo bem; esse homem se
aproximou de mim, se apresentou, me fez companhia e, em algum momento, deve ter colocado algum
tipo de sonífero na minha bebida... Essa é a última coisa de que me lembro; depois acordei em um
quarto escuro e já era o cativeiro.

— E como era esse cativeiro?

— Uma casa, um tipo de casa de fazenda, pequena, no meio do nada.

— O sequestrador falou o nome de alguma cidade?

— Não, não; não sei se é aqui em Veredas ou em outra cidade ou estado.

— Ele tinha nome? o sequestrador.

— Hum... Não sei se é o nome verdadeiro, mas ele disse se chamar Martin — essa não dá para
mentir, porque meu pai sabe.

— E como ele era, fisicamente?

— Hum... — aqui eu vou ter que mentir tudo. — Mais ou menos da minha altura, sem barba,
cabelo baixo, raspado; vestia terno e gravata no dia... Um pouco gordinho, bem educado. Devia ter
uns 40 anos, no máximo... Pensei que fosse algum sócio do meu pai, por isso dei conversa.

— Entendi... — Evaristo faz suas anotações. Será que ele está percebendo que eu estou
mentindo? Se estiver, estou lascada... Não pode mentir para a polícia, né? Apesar de que meu pai não
disse se esse Evaristo está em atividade na polícia ou se está só ajudando... — Alguma outra coisa
relevante de que se lembre?

— Hum... — penso por um instante. Acho que agora é um bom momento para eu dizer alguma
verdade. — Bom, hoje de manhã nós fomos para uma cidadezinha chamada Alboena para que o meu
pai pudesse me buscar. Saímos do cativeiro e fomos até essa cidade; meu pai veio de táxi aéreo.

— E qual era o carro do sequestrador?

— Uma caminhonete br-- preta — puts! Quase falei “branca”!

Evaristo me olha com olhos inexpressivos e continua suas anotações. Acho que dessa vez não
deu para disfarçar o ato falho. Ai, meu Deus! Ele não pode saber que eu estou mentindo!

— Bom — ele se levanta —, caso se lembre de mais alguma coisa, é só me ligar — ele me
entrega um cartão de visitas com seu nome e telefone. Guardo-o e agradeço. — A gente se fala — ele
me estende a mão novamente; despeço-me:

— Até mais, e obrigada pela atenção.

Acompanho-o até a saída. Fecho a porta e logo meu pai aparece na sala.

— E aí? — ele pergunta.

— E aí ele me fez umas perguntas e eu respondi. Ainda estou brava porque o senhor colocou a
polícia no meio disso.

Nestor se aproxima de mim e coloca as mãos nos meus ombros, friccionando-os.

— Tudo pela sua proteção, minha filha. Não posso correr o risco de, além de perder dinheiro,
perder você. Já pensou se alguma coisa te acontecesse?

— Esse risco ficou bem maior depois que o senhor chamou esse cara, não acha?

Ele meneou a cabeça negativamente com um sorriso de “Eu sei o que estou fazendo” nos lábios.

— Vai ficar tudo bem. Você volta para o trabalho esta semana?

— Sim, quero voltar amanhã mesmo.

— Não quer voltar semana que vem?

— Não, não; tem muita coisa lá me esperando; não posso protelar minha volta.

— Bom, você que sabe. Por falar em trabalho, depois tenho uma proposta pra te fazer. Mas é
coisa de trabalho, vamos deixar para falar sobre isso amanhã, lá no escritório.

— Hum. O senhor não devia estar lá agora?

— Devia, mas resolvi sair mais cedo pra ver se você estava bem, se precisava de alguma
coisa... E pra trazer o Evaristo, também.

— Estou bem, sim. Vou sair com a Milena à noite e amanhã tudo volta ao normal.
Meu pai sorri, acariciando meu rosto.

— Então tá bom — ele confere o relógio. — Vou aproveitar que estou aqui e ir buscar sua mãe.
Até mais tarde, meu amor — ele beija minha testa.

— Até.

Nestor sai pela porta da frente e eu volto para o quarto. Meu pai é um homem muito
intransigente: quando coloca alguma ideia na cabeça, não há quem tire. Detesto isso nele! Mas é meu
pai, né?... Paciência. Só acho que ele não deveria ter colocado a polícia no meio, porque, apesar de
tudo, não quero que o Martin seja prejudicado. Ele foi bom para mim; bom até demais... E acho que
agora posso ir para o YouTube assistir o que eu perdi nesses dias todos. Acho que vou até preparar
uma pipoca, ou pegar um pouco de sorvete — será que ainda tem na geladeira? Ai, como é bom ficar
em casa à toa!

Termino de me arrumar em frente ao espelho. Passo um batom vermelho e prendo meus cabelos
em um coque simples. Será que esta roupa está muito exagerada? Este batom não está muito
vermelho? Estou só indo ali encontrar a Milena, não sei se carece essa produção toda... Ah, deixa,
vai: há mais de uma semana eu não me arrumo feito uma mulher de verdade; hora de aproveitar! Mas
este salto está muito alto, sim, melhor colocar um menor. Camisa branca, calça preta, batom
vermelho: sempre dá certo. Ótimo; acho que já estou pronta. Pego minha bolsa sobre a cama, o
celular sob o travesseiro, desligo o laptop e saio do meu quarto.

— Vai sair, minha filha? — minha mãe pergunta em tom estranho.

— Vou, sim, com a Milena... Por quê?

— A gente ainda nem teve tempo de conversar direito!...

— Ahm... — é verdade, não posso negar; parece que estou evitando as pessoas aqui de casa
desde que voltei. Por quê? — A gente conversa depois que eu voltar, tá? Prometo.

Dona Agnes torce os lábios e meneia a cabeça afirmativamente. Dou-lhe um beijo na cabeça e
me despeço com um sorriso. Saio pela porta da frente e um motorista se prontifica a me levar aonde
quer que eu vá. Desde quando nós temos um motorista particular?

— Você é o...? — pergunto.

— Jairo, senhora. Aonde vamos?

— Não, não vamos a lugar nenhum; eu vou sair com uma amiga, é só isso.

— Não quer que eu te leve? São recomendações do seu pai, senhora.


Claro que são recomendações do meu pai. Quem senão ele para achar que eu sou uma donzela
indefesa e só porque um malfeitor decidiu, de todas as mulheres do mundo, me sequestrar, não posso
sair de casa desprotegida para não acontecer a mesma coisa de novo?

— Não, Jairo; está tudo bem. Eu não devo demorar, e depois eu converso com meu pai, mas
obrigada.

Dispensando o serviço do motorista, caminho até a garagem, que abriga os carros de todos nós
numa parte exterior da casa; abro o portão com o controle e entro no meu carro. Que saudade dele!
Coloco minha bolsa no banco do passageiro, olho-me pelo retrovisor mais uma vez e, então, saio de
casa. Atravesso o caminho que leva até o portão de entrada e, depois, sigo pelas ruas da cidade até o
escritório central da VisualiZe, meu local de trabalho, ao qual feliz ou infelizmente eu retornarei
amanhã.

Eu já havia me esquecido de como é o trânsito nesta cidade... Pelo menos disso eu não podia
reclamar enquanto estava na Casa: apesar de não ir a lugar algum, quando ia, era pela estrada e não
tinha essa palhaçada de sair da primeira marcha, ir para a segunda, voltar para a primeira, parar,
esperar o semáforo abrir, engatar a primeira, segunda, parar, esperar tudo de novo. Acho que vou me
mudar para Amistad ou para a outra cidade... qual é mesmo o nome? Albumina? Alboena? Alboena.
Quem precisa desse tanto de carros na rua, meu Deus? Ou então vou apostar numa proposta mais
proletária e começar a usar o transporte público, assim economizo tempo e dinheiro de uma só vez,
olha que barganha! Mas a cidade é linda. Adoro os prédios, e ver as pessoas andando para lá e para
cá também é ótimo; é a vida acontecendo! Ai, vai fechar! Corre, filho da mãe! Vai que dá tempo,
idiota!... Fechou! Nesta cidade a gente tem que dirigir por si e pelos outros!... Suspiro. O que está
tocando no rádio agora? Tsc, esqueci de pegar meu pen drive com as músicas que eu gosto. Vejamos.

…All I know is I’m lost without you, I’m not gonna lie... How am I gonna be strong without
you? I need you by my side…

Gente! Essa música tocava quando eu estava no colégio! Eu lembro!

…I keep trying to find my way, but I all I know is I’m lost without you...

Eu era apaixonada por aquele menino, como era mesmo o nome dele?... Ah, não lembro. Tempo
em que eu era feliz e não sabia. Eu sabia essa letra de cor, agora já me esqueci também. Vou cantando
os trechos que me vêm à memória enquanto continuo nesta bendita avenida, ainda sem passar dos
trinta quilômetros por hora. Talvez se eu virar ali na próxima eu consiga pegar um atalho ou algum
trecho que tenha menos trânsito e consiga chegar mais rápido, porque, ó! já estou quase atrasada.

Espero o próximo semáforo abrir e entro à direita. Não sei se foi a melhor ideia do mundo... A
esta hora, todas as ruas estão igualmente superlotadas e todos os motoristas estão igualmente lerdos.
Nota mental: não marcar compromissos por volta das 18:00. Tudo bem, basta um pouquinho de
paciência. O celular vibra dentro da minha bolsa. Aproveito a próxima parada para checar e...

“Já estou te esperando!”


Como suspeitei.

“A caminho!”, respondo.

Mais alguns minutos se passam e finalmente consigo chegar ao meu destino. Milena abre a porta
do passageiro e entra no carro.

— Amiga! — diz, estendendo o som das vogais e se inclinando em minha direção para um
abraço.

— Oi, Mi! — respondo, também prologando as vogais. — Que saudade!

— Eu também! Nossa! Parece que faz um mês que a gente não te vê! Tá todo mundo louco pra
saber o que aconteceu!

— Ué, gente, aconteceu o que aconteceu. Poderia ter sido com qualquer um, só que foi comigo.
Dá essa bolsa aqui.

Coloco minha bolsa e a de Milena no banco traseiro e me preparo para tirar o carro da vaga em
que parei.

— Aonde a gente vai? — ela pergunta.

— Pensei em comida japonesa, pode ser?

— Pode!

— Tá... Mas me fala de você antes de a gente falar de mim, vai. Como passou esses dias? O que
eu perdi?

Saio da vaga em que parei e ganho a avenida de novo, essa que parece fervilhar de carros, onde
preciso esperar quase cinco minutos para uma boa alma me dar passagem e me deixar me enfiar no
meio de outros dois carros — argh! esta cidade!

— Comigo tá tudo bem, graças a Deus. Nada de especial aconteceu durante sua ausência,
infelizmente... E você? Nossa, amiga, eu fiquei tão preocupada!

— Como você soube, aliás? — pergunto sem tirar os olhos do trânsito.

— Seu pai tentou esconder, né? mas chegou uma hora que não deu; agora o escritório inteiro tá
sabendo, ó. Amanhã cê vai ter bastante explicação pra dar.

— Ai, que ódio. Mas é tudo culpa dele, cê sabe? Ele resistiu o quanto pôde pra pagar esse
bendito resgate.

— Mas por quê? Era muito alto o valor?


— Não; nada que a gente não consiga em um mês... Mas é que ele inventou de colocar um
conhecido dele da polícia pra participar das negociações e aí deu merda.

Parece que as pessoas se interessam mesmo por esse assunto, né? Não temos outra coisa mais
interessante para conversar? A vida dessa gente não parou por minha causa, parou? Ninguém nunca
ouviu falar de sequestro antes? Que preocupação! Que exagero! Acho que não estou acostumada com
toda essa chuva de atenção para cima de mim.

Chegamos ao restaurante escolhido. “Toca de Tóquio”. Quem teve essa ideia genial para batizar
este estabelecimento? Brilhante! E o serviço é ótimo. Entramos. Vamos conversando enquanto nos
servimos. Não sei o que quero hoje... O sushi e o sashimi estão com uma cara ótima!... Acho que vou
pegar um pouco de cada e um rolinho primavera também... e um hot roll skin. Mas vou comer com
refrigerante; não estou com vontade de suco hoje. Isso, ótimo, senão acabo ficando gorda. Espero
Milena se servir e nos direcionamos a uma mesa vazia no segundo piso do restaurante. Sentamos. Ah,
como é bom comer o que a gente quer na hora que a gente quer com quem a gente quer!

— E o que mais? — Milena pergunta.

— O que mais o quê?

— Ah, sei lá. Onde você ficou? Como era o cara? Ele era legal? Te tratou bem? Te tratou mal?
Usava máscara? Te ameaçou com arma? Essas coisas.

— Ai, Mi... — esse era o tipo de pergunta que eu esperava que ela não fizesse... Mas acho que
vai me fazer bem dividir essas coisas com pelo menos uma pessoa. Se não for com a Milena, não vai
ser com mais ninguém... — Ele era... ai...

Faltam-me as palavras.

— Era o quê?!

— Era lindo. Não, lindo é o Brad Pitt. Aquele homem era... — suspiro. — Não tenho nem
palavras pra descrever, Mi.

— SÉRIO?! — Milena praticamente gritou, arregalando os olhos. — Mentira! Como assim?!

— Não dá nem pra explicar, amiga. Pensa num cara lindo e multiplica por três. E ele não era só
lindo: me tratou super bem, me levou pra conhecer uma cidade vizinha lá; a gente fez uma fogueira,
fomos “buscar lenha na floresta”...

— Ah, não! Assim eu quero ser sequestrada também!

Dou risada.

— Mas ele me irritava, apesar de tudo. Muito sarcástico, sabe? Sempre com uma resposta na
ponta da língua, pronto pra tirar um sarro de mim.
— Mas pera aí. Vocês ficaram amigos, é isso? Falou pra ele te adicionar no Face depois que
você saiu? — Milena ri, batendo palmas.

— Não, idiota. Mas, ai... — eu vou ter que contar. Olho para os lados para me certificar de que
ninguém está me ouvindo; tampo a lateral da minha boca com uma mão e digo em voz baixa: — A
gente transou.

— NÃO ACREDITO! — Milena dá outro grito, praticamente pulando na cadeira, tampando a


boca com as duas mãos. — ALICE! É sério isso?! — ela se inclina em minha direção, segurando a
beirada da mesa com as duas mãos e me olhando com olhos arregalados.

— Muito sério.

— Sua louca! Como isso foi acontecer?!

— Ah, aconteceu... — trato de comer logo antes que Milena me encha com mais perguntas e não
me deixe matar minha vontade. Sinalizo com a mão para que ela me espere mastigar e ela bebe seu
guaraná ávida, esperando ansiosamente pelo meu relato de vítima estúpida. — Estava chovendo no
dia. Você sabe que eu não lido muito bem com chuva... E, como a casa em que eu fiquei era
praticamente uma choupana no meio do mato, parecia que o telhado ia cair em cima da minha cabeça
a qualquer momento, por isso acabei indo pro quarto dele pedir abrigo. É claro que ele caçoou um
pouco da minha cara antes de dizer que eu podia ficar... Depois, com aquele tanto de homem do meu
lado, deitado, eu senti... coisas, naturalmente. Fui fazer um carinho nele e, quando vi, puft! A gente
estava dando uns amassos intensos.

Milena mal pisca, com os olhos lacrimejantes de emoção e a boca escancaradamente aberta,
feito uma criança ouvindo uma história muito emocionante.

— Eu tô chocada — ela diz, colocando uma mão sobre o peito.

— Mas as coisas não acabaram bem, não — digo, limpando a boca com um guardanapo e
tomando mais um gole de coca. — Na manhã seguinte me bateu uma louca e eu decidi fugir. Saí
correndo sem rumo, esperando chegar na estrada e alguém me encontrar e me dar uma carona pra
qualquer lugar.

— E aí?

— E aí eu devo ter feito algum barulho e ele acabou acordando e veio atrás de mim e me
encontrou... Pouco depois disso meu pai aceitou pagar o resgate e eu vim embora hoje.

— Vocês não fizeram as pazes?

— Claro que não, né? Vou fazer as pazes com um sequestrador? Ele era lindo, gostoso e tudo
mais, mas pô: é um bandido, né?

— É, tem razão... — Milena suspira. — Mas nossa, amiga, que história — ela apoia a cabeça
sobre o punho cerrado.
Meneio a cabeça afirmativamente, ainda comendo meu rolinho. A parte boa de ficar ouvindo a
história é que quem ouve acaba de comer primeiro. Nossa conversa segue mais superficialmente. Ah,
Martin, Martin... Onde será que você está agora? O que será que está fazendo? Será que está falando
sobre mim para alguém assim como eu estou falando de você? Será que você vai continuar pensando
em mim assim como eu ainda não parei de pensar em você?

Mudamos de assunto. Milena está conhecendo um cara... É o mesmo de quem ela falava antes de
eu ser sequestrada, mas ele é tão devagar que, desde a última vez que tive notícias, as coisas estão
exatamente as mesmas. Que falta de iniciativa a desses homens de hoje em dia, não?... Bom, damos
um tempinho para a comida descer e, depois, vamos embora. Entramos no meu carro; deixo Milena
em casa.

— A gente se vê amanhã? — ela pergunta.

— Aham; amanhã eu volto pro batente.

— Tá bom, amanhã a gente continua a conversa, então. Beijo!

— Beijo.

Ganho as ruas da cidade novamente. Ah, me esqueci de que agora tenho que conversar com a
minha mãe... Espero que ela não me faça perguntas minimamente parecidas com as da Milena; prefiro
deixar essa história de Martin só entre nós duas. Suspiro... Ah, vida: de volta a você... Engato a
primeira marcha e volto para casa sem pressa, preparada para o próximo interrogatório.

Chego ao lar cedo; ainda não são nove da noite. Guardo o carro na garagem e entro. Ouço uma
conversa indistinta vindo da cozinha e caminho até lá.

— Oh, minha filha! Que bom que chegou! — minha mãe diz.

— Oi, mãe. Oi, pai.

— Oi, Alice... Senta aqui com a gente.

Assinto com a cabeça. Os dois estão jantando. Caminho até a geladeira e me sirvo de um pouco
de suco. Sento-me ao lado da minha mãe e tiro os sapatos, deixando-os ao lado dos meus pés.

— Não vai jantar? — Nestor me pergunta.

— Não; eu estava com a Milena agora há pouco, a gente comeu na rua.

Ambos aquiescem em silêncio e continuam comendo sem fazer muito contato visual. Sinto que
estão esperando que eu diga alguma coisa em relação ao sequestro, mas eu realmente não estou a fim
de falar sobre isso. Já tive que contar toda a história para a Milena, amanhã, no trabalho, vou ter que
contar para o pessoal, agora tenho que contar para os meus pais... Argh! Que saco! Mas tenho certeza
que daqui a pouco minha mãe puxa esse assunto; estou devendo essa conversa a ela.
— A gente ficou tão preocupado, Alice... — viu só?

— É, eu imagino... Mas já acabou, né? Tá tudo bem agora; ninguém se feriu nem morreu nem
nada.

— Eu estive conversando com o Evaristo hoje — meu pai diz —, ele vai se empenhar em
descobrir o paradeiro desse sequestrador; pode ficar tranquila.

Como se eu estivesse deveras interessada em ver o Martin atrás das grades, lindo daquele jeito,
sendo maltratado por outros bandidos dentro de uma cadeia...

— Tomara, mesmo, que ele consiga encontrá-lo — minha mãe reafirma, limpando a boca com o
guardanapo. — Você se lembra de ter visto esse homem alguma outra vez, Alice?

— Não, nunca tinha o visto antes... Eu estava lá no bar, me sentindo um pouco mal, e ele
simplesmente apareceu.

Tento não me estender muito no assunto e ser o mais lacônica possível nas respostas. Minha mãe
está curiosa, com razão, mas meu pai já deve ter contado a ela bastante coisa, afinal a maioria das
negociações era feita diretamente com ele; dona Agnes entrava só como mediadora e amolecedora de
corações rijos. Ainda assim, respondo todas as perguntas que ela me faz de forma minimamente
satisfatória, para não alongar a conversa, mas também não deixá-la sem saber do que quer. Ao
parecer que o assunto se deu por encerrado, preparo-me para subir para o meu quarto quando meu
pai diz:

— Eu ia deixar para falar sobre isto amanhã, mas, já que tocamos no assunto... — toma um gole
de suco. — Eu quero que você seja diretora de mídia da agência nova da VisualiZe.

O quê?

— Oi?!

— Parabéns, minha filha! — minha mãe acaricia meu ombro e sorri, como se já soubesse da
novidade.

— Sim. Você esteve nos contatos e na supervisão desde que se formou; acho que agora está na
hora de subir um passo e se tornar diretora.

— Pai! Isso é muita responsabilidade! Eu não sei se estou preparada pra isso!

— É claro que está. Você é Alice Borges, filha de Nestor Borges, dono de uma das maiores
agências de publicidade deste país. É claro que você está preparada — Nestor gesticula com as
mãos como se eu tivesse acabado de dizer uma asneira tremenda. — Você me viu fazer isso a vida
inteira, acho que está mais do que na hora de começar a fazer sozinha.

Estou em choque. Essa era a última notícia que eu esperava receber pelas próximas cinco
encarnações. Eu, diretora de mídia! Meu Deus!... Fico sem reação. Meus pais continuam jantando
como se a notícia fosse banal.

— Hum — meu pai continua —, mas não precisa ir para o novo escritório logo amanhã, não:
você tem suas coisas lá na filial do centro; e também as pessoas estão preocupadas com você por
lá... Amanhã seu dia vai ser um dia de entrevista — ele ri e chacoalha os ombros.

Mal posso esperar. Mal posso esperar... Ainda preciso digerir a notícia. Atônita, mantenho-me
calada, sem dar continuidade no assunto, sem me levantar, sem beber meu suco, sem esboçar
qualquer outra reação... Apenas olho para o meu pai com olhos de quem acabou de ser jogada no
meio da maré alta sem saber nadar.

— Mas a gente conversa melhor sobre isso no escritório; pode ir fazer suas coisas em paz
agora.

Sim, acho que essa é a melhor opção por enquanto.

•○•

Primeiro dia de volta, grandes emoções. Mal acredito que dormi na minha própria cama depois
de mais de uma semana... Uma noite inteira de sono sabendo que, ao abrir os olhos, eu estaria no meu
quarto, na minha cama, na minha casa... E agora essa notícia do meu pai, de que eu vou ser diretora
de mídia da filial nova. Imagina, eu, diretora de mídia... Isso significa que eu vou ser a chefe do
setor; que eu vou trabalhar para o meu pai mas, dentro da agência, não vai ter ninguém acima de mim.
Imagina! Eu, belíssima, soberana, mandando em todos!... Não, Alice, pare com isso, você sabe que
não é assim. É verdade que sempre vi meu pai trabalhando com isso, mas daí a eu pegar o serviço
para fazer sozinha é outra história; vou precisar de toda a ajuda possível. Acho que vou começar a
juntar minhas coisas hoje mesmo e, amanhã ou depois, me mudar para o escritório novo. Quem serão
os funcionários novos? Mal posso esperar para conhecê-los!... E o que será que o Martin está
fazendo agora?

E por que ele se enfia no meio de todos os meus pensamentos?! Argh!

Termino de tomar meu café e saio de casa. Bem que eu poderia esperar meu pai, né?... Mas não,
não, melhor eu ir à frente, porque ele sempre chega pelo menos uma hora depois de mim e hoje eu
quero agilizar as coisas e dar logo todas as explicações que eu precisar dar de uma só vez. E eu
ainda tenho que dar uma bronca em seu Nestor por causa dessa história de motorista particular! A
notícia de ontem me pegou de surpresa e me fez esquecer, mas de hoje não passa.

— Bom dia, Jairo.

— Bom dia, dona Alice!

— Estou indo trabalhar, ok? — digo, apressada, sem dar ao motorista a chance de dizer
qualquer coisa.

— Ok, dona Alice, bom trabalho! — ele acena.

Um chuchu, esse Jairo; tem uma carinha tão simpática! Entro no carro e me preparo
psicologicamente para enfrentar o trânsito maravilhoso desta belíssima comarca de Veredas. Saio de
casa e dirijo pacientemente pelas ruas e avenidas movimentadas que me separam do escritório, já
pensando em que caminhos terei que fazer em breve para chegar ao meu novo local de trabalho. Ele
fica na zona sul... O trajeto vai ser completamente contrário ao que eu estou fazendo agora, o que
pode ser bom, levando-se em conta que talvez os motoristas por lá sejam mais espertos e mais
educados e me deixem entrar quando eu der seta. Filho da mãe! Mas acho que não vai ter problema,
não: a distância é praticamente a mesma, pensando bem. E a zona sul é mais sossegada do que o
centro, talvez eu consiga até sair mais cedo de vez em quando... Pena que não vou poder levar a
Milena comigo. Tomara que meus novos colegas de trabalho — digo, meus novos súditos — sejam
legais (brincadeira, Alice, brincadeira, vamos manter a humildade e nada de deixar o poder subir à
cabeça.)!

Cumprimento o fiscal do estacionamento do prédio e procuro pela minha vaga, que durante
tantos dias ficou desocupada. Estou de volta para você, baby! Desço do carro, pego minha bolsa e
caminho em direção ao elevador, adentrando-o. Olho-me no espelho e ajeito o cabelo, o batom e a
roupa. Hum... Acho que este seria um excelente momento para tirar uma selfie, não?... Não, melhor
não: selfie no elevador já deu o que tinha que dar, né? Opa, chegamos! A porta se abre. Saio do
elevador, caminho pelo corredor e, assim que alcanço o saguão da recepção, ouço um “Êêê!” que
logo vira dois que logo viram três que logo viram dez que logo viram um uníssono de “Êêê!”s e
aplausos e assobios e então percebo que isso tudo se dá pela minha chegada ao recinto. Sinto meu
rosto arder em vermelhidão e um sorriso de doer o maxilar tomar conta de mim, assim como meus
olhos começam a lacrimejar involuntariamente. Todos começam a gritar: “A-li-ce! A-li-ce! A-li-ce!”
e eu começo a rir de nervosismo. Milena surge do meio das pessoas e vem me recepcionar com um
abraço. Depois vêm os outros e me sufocam com calor humano. Que surpresa mais... inusitada!

— A gente só não fez um bolo porque sabe que você toma café em casa! — Milena me diz, ainda
me abraçando.

Contenho as lágrimas e espero que todos me abracem o quanto querem. Recomponho-me em


seguida e todos se afastam aos poucos, deixando espaço para que eu faça algum tipo de discurso. Ah,
não, pelo amor de Deus! Discurso não!

— Nossa, gente! — digo, verdadeiramente emocionada. — Obrigada! É bom ver vocês de novo
também!

— E pode ficar tranquila que eu já relatei sua história pra todo mundo, pra você não precisar
repetir mil vezes como foi que tudo aconteceu — Milena diz em tom de brincadeira e todos riem.

— Hahaha! Muito obrigada!

Um alívio, né? Concorde comigo. Aos poucos o frisson se desfaz e eu, então livre, consigo
caminhar até a minha sala, que deve ter sido organizada por alguém, o que me deixa um tanto quanto
irritada, pois minha bagunça é sagrada e nela ninguém toca. Sento-me e solto um longo suspiro...
Certo. Por onde devo começar? Estou até com medo de abrir minha caixa de e-mails... Ai, Deus!
Acho que vou pedir férias. Muitos e-mails... Sim, muitos e-mails. Acho que hoje vou passar o dia
todo os respondendo. Espero que alguém por aqui tenha tido o tato de avisar aos clientes mais
urgentes que eu estava simplesmente sequestrada e não tive tempo de desempenhar a parte do serviço
que cabe somente a mim. Meu pai deve ter feito isso por mim, ah, se deve!... Bom, mãos à obra,
Alice!
Capítulo 7

Nada como ter a vida cotidiana de volta... Uma manhã respondendo e-mails, uma tarde com duas
reuniões e uma hora extra com meu pai falando como serão as coisas no novo escritório... Vou ser
chefe de departamento, eu já disse isso, não é? Meio que ainda não consigo acreditar. Não sei se sou
boa dando ordens; nunca tive essa oportunidade. Não quero virar uma Margaret Tate, pelo amor de
Deus! Quero ser uma chefa legal. Pelo que meu pai disse, vou ter assistentes e um supervisor de
mídia para me ajudar no que eu precisar, e ele também vai aparecer por lá de vez em quando para
dar um apoio moral.

— Como foi o dia hoje, Alice? — minha mãe me pergunta enquanto jantamos.

— Foi bom... O pessoal fez a maior festa quando eu cheguei, achei o máximo.

— Não te fizeram muitas perguntas?

— Não, não, a Milena tratou de deixar todo mundo informado pra evitar o bombardeio hoje, mas
se ela não tivesse feito isso...

Meu pai nos observa sem falar muito. Aproveito a rememoração e pergunto:

— Por falar em perguntas, por que o senhor contratou um motorista particular, pai?

Ele demora algum tempo para responder, ainda mastigando demoradamente a garfada que pusera
na boca.

— Para sua segurança. É bom não ficar dando sopa depois do que aconteceu.

— Mas o que aconteceu não teve nada a ver com eu sair de casa de carro sozinha, coisa que eu
faço desde que tirei minha habilitação!

— Prevenção, minha filha. Quando tiver seus filhos, você vai entender.

Melhor não discutir, mas que ele saiba que eu é que não vou fazer uso desse motorista; se quiser,
ele que faça. Ou minha mãe—especialmente minha mãe, que fica em casa a maior parte do tempo e,
quando sai, não gosta muito de dirigir. Pronto, perfeito: deixa o motorista para ela que de mim eu
cuido. Humf!

Terminado o jantar, subo para o meu quarto, tomo um banho, coloco minha roupa de dormir e
ligo o laptop para dar uma última olhada nas atualizações do dia. No feed de notícias do Facebook,
pelo menos, nada de muito interessante... Olha! A ex do meu ex está grávida!... Misericórdia! Como
ela engordou! Quem será o pai?... Milena postando fotos com o paquera dela, hum!... “Tenha fé, que
Deus, sabe o que faz”... E você pelo visto não sabe que não se separa sujeito de predicado com
vírgula, especialmente em frases de efeito na Internet... Olha só! Ritinha foi para a Itália!... Sorte a
dela... “Vende-se Super Albumina Probiótica 500g, Tratar Inbox!!”. Albumina... Albumina... Não é
esse o nome daquela cidade? Não! Alboena! Alboena. Alboena... Vamos ver o que o Google diz
sobre Alboena.

google.com alboena pesquisar

“Prefeitura Municipal de Alboena-SP”, “Alboena – Wikipédia, a enciclopédia livre”. Vejamos o


que diz a Wikipédia. “Alboena é um município brasileiro localizado no estado de Minas Gerais, na
mesorregião do Sul e Sudoeste de Minas. Sua população estimada em 2005 era de 13.157 habitantes.
A área é de 317,2 km² e a densidade demográfica, de 41,47 hab/km².” Ou seja, um ovo. 13.157
habitantes deve ter este bairro em que a gente mora... Bom, vejamos a outra cidade, Amistad.

google.com amistad cidade pesquisar

“Maria Soledad (cidade) – Wikipédia, a enciclopédia livre: ... Maria Soledad possui algumas
comunidades distantes da cidade como Amistad; com 973 habitantes, Cascada; com 1346 habitantes e
Consolación, com 1037 habitantes.” Maria Soledad... Hum. “Maria Soledad é um município
localizado no estado de São Paulo, na mesorregião de Campinas.” Esse pessoal foi colonizado por
espanhóis? Por argentinos? Mexicanos? Por que têm tudo nome espanhol? Eu, hein?... E por que é
que eu estou procurando isso?... Agora entendo por que tudo fica no meio do nada. Esses lugares
estão todos no interior do interior do interior do país, embora nada esteja a mais de 400 km daqui. É
claro que Martin fez tudo de caso pensado; não iria me levar para um lugar em que alguém
provavelmente me procuraria. Muito bem, Martin, muito bem, você é um homem muito inteligente.
Mas agora é hora de parar com essas pesquisas e ir dormir, que amanhã o dia começa cedo.

•○•

Quando chego à cozinha para tomar meu café, meu pai já está à minha espera. Lendo o jornal do
dia, ele me olha e me cumprimenta.

— Ué, já de pé? — pergunto.

— Sim, quero que você vá comigo até a filial nova hoje pra conhecer o prédio, as pessoas e
tudo mais.

Hum. Até que não é má ideia. Tomamos café juntos, mas sem conversar muito. Tenho a
impressão de que meu pai está sempre à espreita, prestes a fazer algum movimento esperto, como
colocar câmeras para me vigiar ou me fazer perguntas para tentar descobrir se eu sei de mais alguma
coisa que possa levá-lo ao Martin. Espero que isso seja coisa da minha cabeça. Procuro agir
naturalmente, como se tudo estivesse muito bem—e de fato está, ora! Com o celular em mão,
atualizo-me das notícias do dia enquanto tomo uma xícara de café com leite. Meu pai deveria fazer o
mesmo; as pessoas ainda leem jornal impresso! Isso me espanta. Este pão hoje não está muito bom...
Meio cru, parece. Detesto pão branco! Mania dessas pessoas de não deixarem o negócio tostar um
pouco, para ficar moreninho! Olha só, meu post de volta à casa! Mais de cem curtidas... incluindo de
pessoas que não falam comigo desde o colégio!... Eita, povinho sem noção!

— Vamos de carona comigo? — meu pai pergunta, levantando-se da mesa.

— Tá, pode ser.

Pego minha bolsa e saímos de casa. Seguindo em direção ao carro dele, ele diz em tom de
brincadeira:

— Vai prestando atenção no caminho!

É verdade; não sei exatamente o trajeto mais rápido para chegar ao novo escritório... E lá vamos
nós. Meu pai dirige muito bem, mas acho que ele tem paciência demais. Gosto de sair me enfiando no
meio dos carros e ultrapassar quem quer que esteja no meu caminho para chegar logo aonde eu
preciso, mas esta cidade não colabora... Apesar de que, pensando bem, o que será que se passa na
vida dessas pessoas que param ao nosso lado e ficam buzinando, como se meu carro pudesse levitar,
não é? Talvez eu esteja no caminho delas, não o contrário. Mas o motivo que leva alguns motoristas a
não entenderem que ligar a seta é um sinal de que ou eu vou virar ou estou educadamente pedindo
licença para entrar está além da minha compreensão. Meu pai é mais certinho, dirige sempre do lado
certo da pista e quase não dá seta para se enfiar no meio dos outros, mas não é culpa minha que eu
tenha que ultrapassar pela direita e tentar voltar para a faixa certa antes da curva, ora! As pessoas é
que são muito lentas.

Bem, creio que o caminho para o escritório novo seja menos longo, porque demoramos sete
minutos a menos em relação ao que eu demoraria para chegar ao escritório do centro — isso porque
é meu pai dirigindo; comigo há de ser mais rápido ainda. Ele entra no estacionamento do prédio e
estaciona na vaga que em breve será minha. O prédio parece ter um pouco menos de andares do que
o do centro, mas a localização é muito boa! Descemos do carro e caminhamos em direção ao
elevador. Sinto um frio na barriga: estou prestes a ser apresentada a um tanto de pessoas que eu não
conheço e que eu vou chefiar daqui em diante!

Ok, vamos nessa. Entramos no elevador e aguardamos a parada no sétimo andar. Caminho ao
lado do meu pai com postura ereta, tentando parecer extremamente segura de mim. Quando o veem
chegar, todos os olhares se voltam para nós. O andar deste prédio é menor do que o do escritório do
centro, o que é bom, eu acho. E esta decoração... Quem meu pai contratou para dar conta disto? Tudo
bastante modernoso, diferente da outra filial, que parece um escritório de filme americano. As coisas
aqui são mais... atuais? Planejadas? Não sei. Mas é tudo muito bonito, embora laranja, lilás e verde
não sejam exatamente minhas três cores favoritas. Aquele vaso também, não sei se eu o colocaria
ali...

— Pessoal, bom dia! — meu pai cumprimenta a todos e eu desperto do meu breve devaneio.

Todos se calam e continuam nos olhando. Todas as pessoas do escritório estão aqui? Parece que
sim... Que amontoado de gente! Quantas caras novas!
— Quero apresentar a vocês Alice, minha filha e nova diretora de mídia desta agência — ele
diz em tom orgulhoso, acolhendo-me em um abraço lateral.

Todos me sorriem e acenam e me cumprimentam e eu sorrio de volta, acenando com a mão.

— Hoje eu só a trouxe para conhecer vocês, mas em breve ela estará aqui e vocês vão ter tempo
de se apresentar melhor. Alice, quer falar alguma coisa? — ele se dirige a mim.

Na verdade não, mas acho que é minha obrigação, não é?

— Bom... — pigarreio, tentando ganhar mais tempo para pensar no que dizer. — Meu nome é
Alice, eu trabalho com o meu pai desde que entrei na faculdade... Estou vindo do escritório do centro
e o cargo que eu vou ocupar aqui é novidade pra mim, então eu conto com a colaboração de todos
vocês!... É isso, eu acho.

Todos me aplaudem. Por que estão aplaudindo, Deus? Não precisa dessa demagogia toda,
galera; meu pai é o dono disto aqui mas ele é um cara legal; não vai demitir nenhum de vocês, que
certamente acabaram de ser contratados, se não me aplaudirem.

— Com licença, gente, vou levar Alice à sala dela.

O pequeno amontoado de pessoas se dispersa e cada um segue para seu canto. Alguns vão para
os computadores, dispostos em mesas espalhadas aleatoriamente ao longo do salão, outros vão para
salas com portas de vidro, outros andam para lá e para cá, mexendo em impressoras, fazendo
ligações, tirando cópias; outros falam ao telefone; outros estão em pé no balcão do refeitório
tomando café... Nenhuma novidade. Minha sala fica em uma parte, em um cômodo um pouco mais
reservado: nada de portas de vidro: porta de madeira. Tudo muito branco e muito bem iluminado.
Tenho que tirar o chapéu para seu Nestor: ele acertou em tudo por aqui. Entramos na minha sala e
essa me é apresentada mais uma vez:

— Aqui vai ser seu espaço...

Olho ao redor. À minha frente, atrás da mesa, uma janela com uma vista maravilhosa para a zona
sul da cidade. Paro em frente ao vidro e fico olhando para fora aqui de cima.

— É tudo muito bonito — digo, lançando um olhar rápido ao meu pai antes de tornar a olhar
para fora.

— Sim, sim, é sim, e espero que você não deixe sua mesa muito bagunçada! — ele diz.
Engraçadinho. — Ah, tem alguém que você precisa conhecer — meu pai se encosta ao batente da
porta e chama: — Edgar, venha cá!

Viro-me em direção à porta e ouço:

— Bom dia, seu Nestor!

— Bom dia, Edgar. Quero que conheça a Alice, sua nova chefa!
Então Edgar surge.

— Opa! Bom dia, dona Alice!

Dona Alice.

— Sem “dona”, pelo amor de Deus!... — peço, dando uma risada baixa.

Edgar ri de volta e me estende a mão. Edgar. Hum... Deve ter quantos anos? Vinte e três? Vinte e
quatro no máximo? Como meu pai te conheceu?

— Edgar vai ser seu supervisor de mídia, filha.

Supervisor de mídia? Por que você está ocupando uma posição tão alta com tão pouca idade?
Sabe quantos anos eu levei para o meu pai me oferecer o cargo de supervisora de mídia?... Você
deve ser muito bom no que faz, mesmo. Deve ser bom em outras coisas também, estou vendo: é bem
gatinho, preciso admitir. Sorriso alinhado, camisa engomadinha, quase colada no corpo, colocada
para dentro da calça justa; cinto de couro legítimo, sapatos bem lustrados, sarado sem exagero...
Deve ir à academia três, quatro vezes por semana? Ou pratica algum esporte? Pela voz, não toma
bomba—ótimo! Detesto esses homens anabolizados. Talvez, se você tivesse uns seis ou sete anos a
mais, eu te desse mole em algum momento da minha vida, mas acho que você vai dar ibope por aqui,
garoto.

— Vai ser um prazer trabalhar com a senhora — ele diz, ainda segurando minha mão.

— Pode me chamar de “você”, por favor.

— Ah, desculpe! Educação de casa!

Hum, ainda mora com a mamãe. Que fofuxo. Não respondo às últimas palavras, apenas sorrio e
encerro nosso aperto de mão demorado porque olhar para ele está fazendo muito bem às minhas
vistas e é melhor pararmos logo com isto antes que comece a ficar constrangedor.

— Vamos conhecer o resto do prédio — meu pai diz, abrindo passagem para que eu saia da
minha futura sala.

Assim o faço; Edgar vem logo atrás. Edgar... assim com o Allan Poe, que eu li à exaustão na
Casa. Será que os pais dele o batizaram assim de propósito? Meu pai continua me mostrando o
escritório, mas não tem muito a ser visto. É um local agradável, do tamanho da nossa necessidade,
bem decorado, bem localizado... Tem de tudo para eu ser feliz por aqui—inclusive um colírio para
os meus olhos. Feitas todas as apresentações, deixamos o prédio e seguimos para a filial do centro.
Acho que quero fazer essa minha mudança logo, logo...!

•○•
Engraçado, né? A vida... Passa rápido que nem uma picadinha. Parece que foi um dia desses que
eu estava na festa de inauguração do escritório em que trabalho agora, onde um cara lindo e
perfumoso me dopou e me sequestrou... Um mês. Um mês depois, estou eu aqui, sentada no meu novo
escritório, chefe de departamento, cheia de trabalho para fazer, cheia de planos impossíveis para o
final de semana e sem tempo nem para sair com a Milena para tomar um café... Mas não posso
reclamar, não: ser diretora de mídia está sendo uma experiência ótima! Estou aprendendo muito com
o meu pai—com o pessoal aqui, de modo geral... A equipe toda é muito unida e me dá muito apoio. E
tem o Edgar também... Ah, o Edgar... Ele merece um parágrafo à parte.

Eu ainda estou me perguntando onde foi que meu pai encontrou essa pérola. A gente andou
conversando bastante nesses trinta dias. Ele tem vinte e três anos, conforme eu havia suposto. Um
menino ainda, mas muito competente. “Competente” não, porque competente muita gente é: esse
menino é um gênio! Praticamente saiu da faculdade e já está aqui trabalhando como meu supervisor...
E ele é incansável, além de ser muito prestativo. E muito bonito também, não dá para negar. Este
corpinho maroto ele conquistou à base de natação, ele me disse (não com essas palavras, é claro).
Ele é um querido; já gosto muito dele. E ele parece gostar de mim também. Na verdade ele parece
gostar de mim um pouco demais... Dia desses nós ficamos aqui fazendo hora extra depois que o
pessoal já tinha ido embora e sei lá, acho que rolou um clima... Não “um clima” daqueles de tensão
sexual, mas aquele de desconforto que você sente quando está ao lado de alguém que está nitidamente
a fim de você e você não necessariamente corresponde... Feliz ou infelizmente, eu sou a parte que
não corresponde. Ele é um anjo, mas ainda é muito imaturo, apesar dos atributos bastante varonis que
tem. Sempre sorridente, sempre disposto a me ajudar no que eu peço e preciso...

Falei com a Milena sobre ele. Não que ele seja pauta na minha vida, mas é que a Milena sabe de
tudo. Ela, aliás, está à beira de um namoro com um bofe gatíssimo — o mesmo que eu vi nas fotos um
dia desses — e não poderia estar mais feliz. É tão bom ver as pessoas felizes em seus
relacionamentos, não é? Ah, como eu queria sentir essa felicidade!... Mas minha vida tem estado
muito corrida e eu não sei se estou pronta para um relacionamento agora ou tão cedo. Sinto que parte
de mim ainda está lá na Casa, longe daqui, deste escritório, do meu trabalho, dos meus
pensamentos... Mesmo tendo passado um mês, eu me lembro como se fosse hoje do dia em que
Martin me beijou... E me dói pensar que aquele foi o nosso último beijo, assim como a noite que
passamos juntos também foi única e última... Ah, Martin... Suspiro fundo. Estive pesquisando na
Internet, sabe? Acho que estou carente, e acho que meu nível de carência está me causando um leve
retardo mental. Semana passada eu pesquisei no Google: “É normal se apaixonar pelo
sequestrador?”. Sabe quando te dá uma louca e sua cabeça formula umas perguntas bem idiotas, que,
provavelmente, você foi a única pessoa no mundo a se perguntar? Então, quando isso acontece, eu
sempre pergunto ao Google, que ele sempre tem respostas sábias para tudo. O interessante, porém,
foi que, em resposta ao meu questionamento, praticamente todos os resultados apontavam para uma
dita síndrome chamada Síndrome de Estocolmo.

Fui consultar a Wikipédia, é claro. As linhas gerais foram: “é o nome dado a um estado
psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a
ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor”. E o pior, o pior de
tudo é que essas palavras não poderiam estar mais certas, especialmente o que diz respeito a
“sentimento de amor”. Talvez seja um pouco hiperbólico eu dizer que amei ou amo o Martin, mas é
inegável que ele ainda vive dentro de mim, mesmo depois de todos esses dias sem vê-lo... Eu acho
que eu deveria procurar um tratamento psicológico. Já que isso é uma síndrome, é claro que tem cura,
não é? Deve ter—tem que ter!... Mas não sei se quero me curar. Aliás, não sei nem se tenho essa
síndrome de verdade. Primeiro porque eu não me apaixonei pelo Martin (ou me apaixonei?)... Bom,
não sei. Mas o xis da questão é que eu me apaixonaria por ele em qualquer situação da minha vida.
Ele poderia ser o porteiro do escritório, o balconista da padaria, o pedreiro da obra da outra
esquina, o advogado da família, um amigo de um amigo... Eu me apaixonaria por ele em cada uma
dessas circunstâncias; amaria todos os Martin que eu conhecesse... Meu azar foi me deixar envolver
pelo Martin que me sequestrou e que é um fora-da-lei... “Martin”. Qual será o nome verdadeiro dele?
E por que “Martin”? Será que tem a ver com toda essa coisa espanhola que há por trás de Amistad,
lugar onde ele nasceu? Humf. Talvez seja bom mesmo eu não saber o nome real dele, assim são
menos motivos para eu me apegar a alguém que já não está mais presente na minha vida.

O que tenho que fazer hoje? Tenho reunião marcada para depois do almoço, é isso mesmo?...
Nossa! Parece que já estou cansada dessa minha nova função! Não, não da minha nova função; do
meu trabalho, da minha vida, dos meus sentimentos, disso tudo... Sinto que não sou mais a mesma
Alice Borges, mulher moderna e independente, dona de si—ok, Alice, menos: você é uma mulher-
padrão de classe média alta sem talentos magníficos nem superpoderes nem nada—talvez um gosto
estético acima da média e um senso de humor um pouco instável, por vezes ácido e suavemente
negro, mas nada de extraordinário. Depois do expediente eu bem que poderia sair um pouco, ir ao
shopping fazer umas compras... Não, compras não; não gosto de fazer compras. Talvez ir ao Café
Paris e tomar um cappuccino com chantili! Hum! Ou ainda

— Alice?

A nuvem do meu pensamento se desfaz de uma vez só. Levo um susto e dou um pulinho da
cadeira, que giro em direção à porta ao ouvir a voz de Edgar me chamando.

— Oi!

Ele entra na sala, sempre sorridente, sempre bem vestido, cada dia mais gatinho.

— O pessoal da Acrópole ligou desmarcando a reunião das duas.

Ah, que notícia maravilhosa!

— Sério?! — pareço surpresa, mas na verdade estou aliviada. Não sei se consigo disfarçar
minha satisfação ao receber a boa nova (ainda que eu não consiga, não importa; o Edgar já me
conhece o bastante para saber que eu sou de ferro e tenho meus maus dias).

— É; disseram que ligam de novo, depois, pra remarcar e tal...

— Tá, tá ótimo. Obrigada.


Ajeito meu cabelo e me endireito na cadeira para voltar ao trabalho; não posso me dar o luxo de
ficar sentada olhando a cidade pela janela e velejando pelas ondas do pensamento assim, feito uma
tonta, por minutos a fio enquanto as pessoas ao meu redor trabalham sem cessar. (In)Disposta a
despertar dos devaneios e colocar meu serviço em ordem, movo o mouse para reativar a tela do
computador e logo minha caixa de e-mails aparece à minha frente. Edgar permanece parado no
mesmo lugar, como se quisesse falar alguma coisa. Olho para ele por alguns segundos e ele não diz
nada.

— Que foi? — pergunto.

Ele se inquieta mais um pouco. Dá um passo para lá, outro para cá, meia volta, outra meia volta
e diz, com uma mão no bolso e a outra ajeitando um botão da camisa, que não precisa de ajuste, mas
mantém sua mão esquerda ocupada.

— É que... eu estava pensando... — faz uma pausa. Continuo observando-o com atenção. —
Será que... talvez... a gente poderia sair hoje, à noite, pra... sei lá, comer uma pizza, ir ao cinema,
jantar?...

Espere aí.

— Você está me convidando pra sair, é isso? — pergunto, incrédula e surpresa.

As bochechas de Edgar ficam rubras como uma maçã e ele ri de nervoso, desviando o olhar do
meu.

— É, acho que sim.

Não o respondo imediatamente. Continuo analisando sua postura inquieta enquanto pondero a
oferta. O que esse menino quer comigo? Está tentando puxar meu saco imaginário ou está me
cantando? Quer sair comigo como amigo, como colega de trabalho, como namorado?... Comer uma
pizza pode ser boa ideia, e faz tempo que eu não saio com ninguém além da Milena. O que eu tenho
para fazer hoje à noite? Os e-mails já estão respondidos, os filmes em cartaz talvez sejam bons, pizza
de calabresa também é ótimo, jantar... Hum... talvez; depende de onde. O que eu ganho saindo com
ele? E o que perco? Ele é um cara bonito, fofo, inteligente, só é mais novo... É meu supervisor de
mídia; eu sou diretora. Ele não é exatamente inferior a mim, vai, só ocupamos posições diferentes em
um organograma... Mas, ainda assim, a gente trabalha no mesmo escritório! Já pensou se isso vira
fofoca e amanhã está todo mundo sabendo? Mas e se souberem? Qual é o problema? Não é como se
eu quisesse ou precisasse esconder de alguém. Apesar de ele ser mais novo, eu não teria vergonha de
apresentá-lo como um cara com quem estou saindo — muito pelo contrário, tenho certeza de que
muitas ficariam com inveja, isso sim. Além do mais, meu pai é dono disto aqui, né? Estou meio que
acima da lei; não dito as regras, mas tenho certa autonomia para descumpri-las. O que será que a
Milena diria disso? O que será que ela faria?

— Ué, pode ser — respondo sem concluir meus pensamentos.

Edgar sorri um sorriso de uma orelha à outra.


— Ah, que bom! — outro riso de nervoso. — Que hora eu te pego? Às oito está bom?

Me pegar, é? Hum... Escolha suas palavras direito, rapaz!

— Sim, tá ótimo... Você sabe onde eu moro?

— Sei, sei sim. Já olhei no sistema.

Como ele é rápido!

— Tudo bem, então... Não se atrase — digo em tom de brincadeira.

— Pode deixar!

Edgar sai da sala e me deixa sozinha com o meu serviço novamente. Vou sair com o Edgar...
Pego o meu celular e envio um WhatsApp para Milena dando a notícia. “Edgar me chamou para sair.
Aceitei!” Vamos ver o que ela diz. Há quanto tempo eu não saio com alguém, haha! Acho que já estou
nervosa por antecipação... Mas com que roupa eu vou? Edgar tem carro ou moto? Bom, ele deve vir
de carro, não? Levar uma mulher da minha estirpe para sair de moto não é nada romântico, concorde
comigo. Mas e depois? Ai, Deus! Eu já me esqueci de como é sair com um cara! “Arrasou, amiga!
Depois me conta tudo!”, Milena responde. Acho que vou ter que fazer mais uma das minhas perguntas
idiotas para o Google: “Como se comportar em um primeiro encontro?”.

Espero que eu não esteja muito perua. Acho que devo tirar estes brincos; estão muito pesados, e
este batom, muito vermelho... Ou não? Melhor não exagerar, né? senão fica parecendo que eu sou
mãe do cara—tá bom, não é para tanto. Talvez seja melhor apostar em um look mais clean. Tiro o
Louboutin e coloco uma sandália mais discreta. Creio que o vestido preto esteja bom: nem muito
curto nem muito senhora. O batom pode ficar; é só tirar o excesso e passar um pouco de gloss.
Cabelo solto ou preso? Ou coque? Eu não ia cortar o cabelo? Por que não fiz isso ainda? Bom, ele
está quase sempre solto, mesmo, melhor deixar assim. Levo bolsa ou só uma carteira? Aonde será
que nós vamos? Ai, Deus! Decida-se logo, mulher, que já são quinze para as oito!

Acabo de me arrumar logo antes que eu me atrase. Nada de muitas bijuterias, nada de muito
batom, nada de muito perfume, nada de muito nada; melhor eu ir dignamente arrumada e só, sem
exageros. Tô bonita, espelho? Sim, né? Obrigada. Oito horas em ponto. Meu celular vibra.
“Cheguei”, Edgar diz. Nisso que dá ficar enrolando para se arrumar! “Já vou”, respondo. Desço as
escadas rapidinho e encontro minha mãe no meio do caminho.

— Ué, vai sair? — ela me pergunta.

— Vou... É um encontro, na verdade.

— Namoradinho novo?

Com vinte e sete anos, minha mãe ainda acha que eu tenho namoradinhos.

— Não sei... Um colega do escritório; não sei o que ele quer comigo ainda. Vamos ver.
— Tá bom, vai lá. Divirta-se!

— Obrigada.

Saio pela porta apressada e caminho até a entrada da casa. Vejo, pelo portão, Edgar me
esperando em um Honda Civic. Os pais dele devem ser endinheirados também, hein? Abro a porta e
a luz do carro se acende; Edgar me olha. Uau! Ele caprichou no visual, devo admitir.

— Boa noite! — ele me cumprimenta com um sorriso e um beijo no rosto assim que entro no
carro. — Você está linda!

— Obrigada. Você também está.

Edgar liga o carro e dá partida. Ele está visivelmente empolgado por eu estar ao lado dele,
percebo. Devo me sentir constrangida ou lisonjeada? Esqueci de perguntar ao Google como se
comportar no primeiro encontro. Há muito tempo não tenho primeiros encontros... Ele está cheiroso,
hum...

— O que você gosta de comer? — ele pergunta.

— Ah, eu como de tudo um pouco; não tenho muita frescura.

— Tá... Vou fazer um estrogonofe pra gente então, pode ser? — ele me olha.

Oba! Estrogonofe! Adoro!

— Claro! Adoro estrogonofe! — soo mais empolgada do que deveria. Preciso me conter.

Edgar continua sorrindo. Se ele vai fazer estrogonofe, então é claro que nós vamos para a casa
dele. Enquanto ele dirige, conversamos bastante, mas ele não fala muito sobre si. O ruim de sair com
colegas de trabalho é que sempre o assunto acaba girando em torno do escritório ou de coisas
relacionadas a isso. Não deveria ser parte do passeio não falar sobre trabalho? Mas tudo bem, não
tem problema; Edgar é um bom companheiro e é bom tê-lo como aliado para resolver os pepinos que
vão aparecendo e às vezes eu não consigo resolver sozinha.

Chegamos à casa dele. Um apartamento na zona oeste, perto da faculdade onde me formei. Ele
mora sozinho, suponho pela bagunça que ele me pede para não reparar. É claro que eu vou reparar—
o que não quer dizer que vou julgar ou criticar ou qualquer coisa, até porque euzinha não sou a
pessoa mais organizada desta Terra. Edgar fecha a porta atrás de mim e tira o paletó, adiantando-se
até a cozinha. Arregaça as mangas e me convida para me sentar à copa.

— Você bebe vinho? — ele pergunta.

— Claro.

Edgar abre a porta do bar de uma estante da sala e tira de dentro dele uma garrafa de vinho e
duas taças. Serve-me um pouco de vinho branco e caminha até a cozinha estilo americano, de onde
podemos conversar sem perder o contato visual. Sobre um dos armários, há um rádio, que ele liga em
baixo volume.

— Eu aprendi essa receita com a minha mãe há alguns anos, mas a fiz poucas vezes, e

Paro de prestar atenção na conversa de Edgar quando o rádio começa a tocar os acordes de uma
música que eu conheço de algum lugar. A percepção disso me deixa atenta às palavras que o
intérprete está prestes a cantar.

Jolene, Jolene, Jolene, Joleee-e-eeene... I’m begging of you, please, don’t take my man…

Não, Deus, não, por favor, essa música não! Não faz isso comigo!

— ...eles se separaram quando eu estava no colégio, mas depois acabaram voltando a namorar e
eu fiquei...

Não consigo prestar mais atenção nele. Essa música... Raios! Essa música é a música do Martin,
daquela maldita caminhonete branca, do caminho pr’aquela porcaria de vila espanhola-latino-
argentina-mexicana de mil habitantes!

— ...Mas você sabia que o segredo do estrogonofe é flambar a carne com um cálice de
conhaque?

…I had to have this talk with you; my happiness depends on you and whatever you decide to
do, Jolene…

— Alice?

— Hum?!

— Eu tô falando com você.

Argh, droga!

— Desculpa, eu me distraí com a música. O que você perguntou?

— Estou dizendo que o segredo do estrogonofe é flambar a carne com conhaque, já ouviu falar
disso?

— Ah, é mesmo?... Não, não conhecia essa.

Paro de dar ouvidos à música e tento me concentrar na conversa de Edgar, que corta o frango em
pedaços na pia, olhando para mim por cima dos ombros. Dentro de mais um ou dois minutos a
música acaba, graças a Deus. Bebo um longo gole de vinho e consigo estabelecer um diálogo mais
decente com Edgar, que sinto estar se esforçando bastante para ser agradável comigo. Acho que eu é
que estou sendo inconveniente aqui... Vamos, Alice, esforce-se!
A noite passa. Será que estou bebendo vinho demais? Sinto que estou ficando meio... leve.
Edgar conversa muito, sobre tudo: sobre ele, sobre mim, sobre a vida, sobre o trabalho, sobre
política, sobre economia, sobre futebol, sobre cinema, sobre música, sobre teatro, sobre culinária,
sobre os pais, sobre meu pai, sobre o clima, sobre a faculdade, sobre os planos para o futuro. Eu
mais balanço a cabeça em concordância do que participo do diálogo efetivamente. Às vezes, por um
segundo ou outro, eu paro e me pergunto o que é que eu estou fazendo aqui, mas depois me lembro de
que aceitei o pedido dele para sair. A comida estava maravilhosa. O que quer que a mãe dele tenha o
ensinado a fazer, pelo visto ele aprendeu direitinho: deve ter sido um dos melhores estrogonofes que
eu já comi na vida! E este vinho também está muito bom, e a conversa dele, embora profusa, também
é agradável.

— Então... — ele diz.

Estamos sentados no sofá da sala. O rádio da cozinha foi desligado e só se ouvem, agora, o
nosso silêncio e os carros que passam lá fora. Olho-o nos olhos, esperando que ele continue o que
começou a dizer, e ele se ajeita no sofá, ficando acidentalmente um pouco mais próximo de mim.

— Eu fiquei muito feliz por você ter aceitado meu convite hoje — ele prossegue.

Tomo um gole de vinho e sinto um frio na barriga ao ouvir aquelas palavras. Aonde você quer
chegar com essa conversa, Edgar?

— Imagina, foi ótimo! A comida estava ótima, o vinho... Tá tudo ótimo — respondo acanhada,
voltando a beber nervosamente o vinho da taça.

Edgar sorri; senta-se de lado no sofá, com uma perna dobrada sob a outra, e passar um braço
por detrás de móvel; seu joelho encosta no meu.

— Você é uma mulher muito bonita, sabia?

Sabia. Levanto as sobrancelhas e esboço um sorriso, grata pelo cumprimento inesperado.

— Obrigada. Você também é um cara bonito.

Acho que essa eu poderia ter não dito. Em movimentos lentos e sutis, Edgar se aproxima de
mim, tira delicadamente a taça da minha mão, inclina seu rosto para a direita e, de olhos fechados,
encosta seus lábios nos meus. Meu coração palpita. Ai, Deus! E agora?!... Resta-me corresponder, eu
acho. Edgar me beija devagar e com cuidado; leva uma mão ao meu rosto e se aproxima mais de
mim, praticamente deitando seu corpo sobre o meu. Abraço-o desajeitada e o corpo dele parece cada
vez mais se apossar do meu, o que começa a me fazer sentir... coisas.

Sem dizer mais palavras, Edgar toca meu seio e me faz arfar ao sentir o que está prestes a
acontecer. Com o rosto ainda próximo ao meu, ofegante, ele começa a tirar a própria camisa,
revelando seu corpo esculpido por debaixo do tecido. É tudo muito rápido; não tenho tempo o
bastante para olhar tanto quanto eu queria. Logo ele me toma pelos braços, fazendo-me levantar do
sofá, e emenda seu movimento em mais um beijo intenso, que me sufoca e desnorteia. Caminhando
sem ver para onde, sou guiada pelos passos dele até o quarto, onde ele me deita delicadamente sobre
a cama, dando-me uma visão plena de seu tronco exposto. Meu Deus! Nós vamos transar!

Ele tira a própria calça e vem por cima de mim, deslizando as mãos pelas minhas coxas de
forma a levantar meu vestido até a altura da minha cintura. Termino de tirar a peça sozinha, jogando-a
para o nosso lado. Tiro minhas sandálias enquanto ele me beija sofregamente. Deixo-me levar pelos
movimentos delicados e ligeiros dele. Envolvo-o com minhas pernas e logo sinto seu órgão rígido
contra mim. Agarro-o forte pelos cabelos enquanto ele beija meu pescoço, meu lóbulo, meus seios, e
desce o caminho do meu torso até encontrar meu sexo. Afastando minha calcinha com cuidado, ele
me beija na intimidade, fazendo-me gemer de olhos fechados. E, de olhos fechados, um flash de
memória me arrebata e me leva para outra dimensão: Martin.

Tomada por um novo fôlego, seguro a cabeça de Edgar contra mim com ainda mais força; ele
parece entender bem do que está fazendo. Em um piscar de olhos, sinto seu membro rígido me
invadir de forma rápida e certeira, causando-me espasmos. Edgar me penetra com rapidez, em um
ritmo descompassado, ávido, apressado, ao mesmo tempo em que tenta me beijar. Ainda de olhos
fechados, sinto-me tomada por uma força que me impede de reagir aos estímulos que recebo. Agarro-
me ao lençol e deixo que Edgar faça o que quiser com meu corpo, incapaz de controlar meus
pensamentos desconexos e vontades indizíveis.

•○•

Acordo sem saber bem onde estou. Olho para o lado e percebo o corpo de Edgar disposto
desajeitadamente sobre a cama, com um braço para fora e costas descobertas. Esfrego meus olhos e
recupero a memória: eu estou na casa dele. E nós transamos a noite passada... Ai, Deus... Preciso ir
embora daqui antes que ele acorde. Pela claridade que entra pelo vidro da janela da sala, já
amanheceu há algum tempo. Sem fazer barulho, desço da cama e me visto novamente. Calço minhas
sandálias, pego minha bolsa e saio de fininho, antes que ele perceba. Ajeito meu cabelo dentro do
elevador e tento não pensar em absolutamente nada do que aconteceu ontem. Saio do elevador e me
dou conta de que vim no carro do Edgar. Droga. Caminho até o porteiro do prédio e, com meu melhor
sorriso, peço:

— Bom dia! Você poderia me fazer a gentileza de chamar um táxi?

— Mas é claro!

Ouço o senhorzinho chamar o táxi e aviso que vou esperar lá fora. Tentando fingir para mim
mesma que tudo está muito, muito bem, caminho para fora do prédio e aguardo o táxi, que demora
mais do que o de costume para chegar, o que me irrita profundamente, sem motivos. Não quero ficar
sozinha comigo mesma neste momento. Vamos, táxi, chegue logo! O que foi que você fez, Alice? O
que foi que você fez?! Você transou com o Edgar, sua louca! Você não deveria ter feito isso! Ah, o
táxi chegou!

Entro no carro e peço para o motorista me levar para casa. Preciso de um banho. Preciso
escovar os dentes, preciso tirar essa roupa, tirar essa sandália, Alice! Você não poderia ter feito isso!
Calma, respira fundo; você precisa digerir, processar, assimilar o que aconteceu; não há nada de tão
ruim assim em fazer sexo! O problema... O problema é... Cadê a Milena? Eu preciso conversar com
ela. Ainda dentro do táxi, mando um WhatsApp: “Mi, preciso te ver hoje, urgente. Almoço?”.
Aproveito o celular na mão para tentar me distrair e me esquivar dos pensamentos que eu não quero
ter, mas logo chego em casa, tomo um banho, troco de roupa, deito-me novamente e é inevitável:
todos esses pensamentos vêm e me jogam na cara o que eu quero negar: Martin.

Desde que aquela bendita música tocou, eu só consegui pensar no Martin. Não consegui me
entregar ao Edgar porque não era nele que eu estava pensando; não era ele que eu queria beijar, não
era na casa dele que eu queria estar, não era o corpo dele que eu queria dentro do meu, não era da
boca dele que eu queria ouvir que sou linda, não era o suor dele que eu queria sentir contra o meu,
não era nos braços dele que eu queria adormecer, não era ao lado dele que eu queria acordar; eu só
queria o meu Martin ali, comigo... Deus! Por que eu? Por que comigo? Sou tomada por uma tristeza
profunda, assustadora ao reconhecer para mim mesma todas essas verdades veladas. Meu coração
ainda não se desvencilhou da lembrança daquela Casa, daquele homem—não do sequestro; ser
privada da minha liberdade por pouco mais de uma semana abalou em quase nada a minha realidade,
mas ontem eu percebi que viver trinta dias sem o Martin me tirou do meu eixo gravitacional, e parece
que eu não consigo encontrar meu caminho de volta para mim...

— Eu tenho que dar um jeito nisso, Mi — digo quando termino de comer.

— Amiga, você precisa se tratar, sério. Isso não é normal!

— Não, Milena, você não tá entendendo: o negócio não é uma fantasia louca de mulher solteira
que se envolve com um sequestrador e fica lesada da cabeça. Ontem, transando com o Edgar, eu mal
consegui gozar! Eu não tinha condições físicas de estar fazendo aquilo com ele!

— Mas, Alice, você tem que entender que, por mais maravilhoso que esse Martin possa ser, ele
não existe mais na sua vida; acabou! E outra: ele é um bandido! A polícia deve estar atrás dele—seu
pai tá atrás dele, Alice!

— Eu sei! eu sei! mas... — interrompo-me por alguns segundos, levando uma mão à boca,
olhando para qualquer lugar no nada enquanto organizo minhas ideias. — Mas... às vezes eu sinto
tanto a falta dele que penso que ela vai me consumir, sabe? — meus olhos marejam
involuntariamente. — Parece que ela vai se materializar na minha frente e me destruir de dentro pra
fora.

— Ô, amiga... — Milena acaricia meu braço, preocupada. Não há muito que ela possa fazer por
mim, coitada. — Procura um psicólogo, Alice; de verdade. Nem tanto por causa dessa síndrome, mas
pra você poder conversar mesmo, se abrir com alguém que vai saber o que te falar melhor do que
eu... Pensa bem.

Balanço a cabeça afirmativamente, secando minhas lágrimas antes que elas comecem a querer
cair.

— Eu já pensei bem, Mi... Mas não é um psicólogo que eu vou procurar, não: eu vou procurar o
Martin.

— Oi?

— Eu vou procurar o Martin.

— Alice, cê tá maluca?

— Milena, eu não vou ter paz na vida, nunca mais, se eu não pelo menos tentar encontrar esse
homem.

— Mas, Alice, isso é loucura!

— Não tem problema; que me chamem de louca.

— Mas você não sabe nada sobre ele! Não sabe nome, não sabe endereço, não sabe onde ele
mora, não sabe nada!

— Eu sei onde ele nasceu; ele me levou até lá um dia. É uma cidade, uma vila, um distrito, sei
lá; é um lugar que tem mil habitantes. Em um lugar de mil habitantes, pelo menos uma pessoa tem que
saber quem ele é.

— Tá, e como você vai fazer isso? Vai chegar e perguntar “Oi, eu tô procurando um cara lindo,
alto, forte, sarado, de olhos verdes, você conhece alguém com esse perfil?”?

— Exatamente.

— Argh, não! Eu não posso acreditar nisso, Alice. Me desculpe — Milena balança a cabeça em
reprovação e se recosta à cadeira. Aproximo-me da mesa e seguro as duas mãos dela.

— Amiga, eu tenho que fazer isso, nem que seja pra fracassar. Eu sinto que, se eu não tentar,
esse parágrafo vai ficar sempre aberto na minha vida. Eu posso muito bem chegar lá e dar com a cara
na porta, mas eu preciso tentar.

Milena me olha, tentando me entender. Sei que não é fácil.

— Eu já pensei em tudo, da hora que saí da casa do Edgar até agora. Hoje mesmo eu vou ter
uma conversa com o meu pai e dizer que preciso de umas férias. “Férias” não, preciso de uma
semana de folga. Se dentro de sete dias eu não conseguir nada, nenhum vestígio, nenhuma pista,
nenhum rastro, eu volto pra casa e dou um jeito de seguir meu rumo e tentar esquecer que esse homem
um dia existiu.

— Ai, Alice... — Milena está visivelmente preocupada com a minha teimosia. — Sei lá, isso
parece perigoso... Pensa bem!

— Já tá decidido. Se tudo der certo, segunda-feira eu estou saindo de viagem.

— Tá, mas e o Edgar?

— Ele é um anjo, não tem culpa de nada... Não sei ainda o que vou fazer em relação a ele. Hoje
eu saí da casa dele antes de ele acordar; não nos falamos ainda, mas acho que vou mandar uma
mensagem mais tarde, pra dar uma satisfação, pelo menos.

— Bom — Milena dá de ombros e solta um suspiro —, você já é adulta; sabe o que faz... Não
vai adiantar eu ficar aqui tentando te dissuadir.

Adulta sim, certa do que faço... Talvez não tanto quanto eu gostaria. Mas preciso arriscar,
preciso, sim; preciso de paz de espírito, preciso tirar isso da cabeça, preciso seguir minha vida sem
essa pedra no meu caminho.

Minha conversa com Milena não vai muito longe; logo nos despedimos e voltamos para nossas
casas. Pouco após minha chegada, meu celular vibra e apita. Olho e é um WhatsApp do Edgar. Ele
alterou a foto de exibição... Ai, por que você tem que ser tão lindinho, Edgar? Seria tão mais fácil se
você fosse feio e chato e babaca... “Boa tarde, linda. Espero que esteja tudo bem contigo. Adorei a
noite de ontem. Bjão”. Pena que eu não posso dizer exatamente o mesmo... “Oi Ed, desculpa ter saído
sem mais nem menos, acho que comi demais e acordei meio indisposta. Também adorei a noite. Esse
final de semana eu tenho que resolver umas coisas, mas segunda-feira a gente se fala. Bj”. Não posso
dar muita confiança para ele, mas também não posso fazer a fria e desalmada e dar um pé nele assim
no dia seguinte. Melhor eu ir empurrando com a barriga enquanto der.

Logo anoitece. O dia foi de muito pensamento. Milena me falou para pensar e foi exatamente o
que fiz da hora em que acordei até agora. Em muitas coisas ela está certa: estou dando um tiro no
escuro, me metendo em uma situação com a qual talvez eu não saiba exatamente como lidar;
precisando de ajuda profissional, prestes a cometer uma loucura... Mas o que de grave pode me
acontecer? Não é como se o Martin fosse fazer algo contra mim ou tentar me sequestrar de novo... Eu
não tenho medo dele nem motivos para ter. Já fiz minhas pesquisas e aprendi a chegar a Amistad. Lá
é minha galinha dos ovos de ouro; é onde alguma coisa precisa acontecer.

Durante o jantar, aproveitando a presença da minha mãe à mesa, inicio o assunto:

— Pai, eu estava pensando... Será que tem como eu tirar uma semana de férias?

Acho que eu deveria ter dito isso em tom mais ameno. Meus pais me olham de um jeito
preocupado que eu queria evitar.

— É claro que tem, mas... aconteceu alguma coisa?


Agora que eles já perceberam meu tom, não custa dar uma dramatizada.

— Não sei... Acho que eu preciso viajar, dar uma espairecida, descansar a mente... Eu saí do
sequestro e já voltei logo pro trabalho, não sei se fiz bem...

— Eu entendo — meu pai diz de um jeito compreensivo. — Acho que eu devia ter dado mais
tempo antes de te passar a direção de mídia do escritório.

— Não, não é esse o problema; é minha cabeça que tá bagunçada... Acho que uns dias longe
daqui vão me fazer bem.

— Eu também acho, minha filha — minha mãe diz, acariciando minha mão sobre a mesa. —
Você precisa descansar mesmo.

Torço os lábios num meio sorriso.

— Bom, por mim não tem problema — meu pai encerra. Sorrio novamente, tentando disfarçar
minha empolgação.

— Aquele menino, o Edgar, ele é muito bom — digo. — O senhor pode deixá-lo encarregado
enquanto eu estiver fora, assim as coisas não ficam paradas por minha causa.

— Você é quem manda agora; se você confia nele pra isso, eu também confio.

Gente?! Mas esta conversa está me saindo muito melhor do que a encomenda!

— Certo... Segunda-feira eu passo no escritório, deixo todo mundo avisado e já parto, então,
tudo bem? — pergunto.

— Mas assim tão depressa? — minha mãe interpela.

— É, eu já tenho tudo mais ou menos programado.

— E pra onde você vai?

— Acho que vou ficar na casa de uma amiga no interior, em Maria Soledad, conhece?

— Não, nunca ouvi falar.

— Não é muito longe daqui. Acho que vai me fazer bem dar uma fugida desse clima de
metrópole.

Meu pai e minha mãe concordam comigo em tudo e não põem qualquer condição ou empecilho
no meu pedido. Será isso um sinal dos céus? Ou será que está sendo tudo bom demais para ser
verdade? Será que eu estou fazendo a coisa certa, meu Deus? Ai, ai...

Na segunda-feira, chego ao escritório um pouquinho mais tarde do que o de costume. Passei o


final de semana enfurnada no meu quarto, pesquisando absolutamente qualquer menor informação que
o Google pudesse me oferecer sobre Maria Soledad e Amistad. O que consegui acumular é pouco,
mas deve bastar. Já tenho todo o itinerário traçado e espero que dê tudo certo. Chegando ao
escritório, convido todos do departamento de mídia para uma reunião breve e imediata. Quando me
vê, Edgar abre um sorriso do tamanho do rosto, mas não dou chance de ele falar qualquer coisa
comigo a sós. Logo o pessoal de setor chega à sala de reuniões e eu aviso:

— Pessoal, eu vou sair hoje de viagem pra resolver uns problemas pessoais e volto na segunda
que vem. Enquanto isso, minhas responsabilidades vão ficar a cargo do Edgar, porque eu vou estar
incomunicável.

Todos, incluindo Edgar, me olham com umas caras assustadas. Qual é o espanto? São só sete
dias, e ele dá conta muito bem do meu serviço e do dele. E ele vai ser pago por isso, é lógico. Acerto
os detalhes técnicos mais importantes e deixo o mais nebuloso possível que “negócios pessoais” são
esses que eu estou indo resolver. Quando encerro a reunião, Edgar permanece na sala depois que os
outros saem. Acho que devo algumas satisfações a ele.

— Oi — ele diz com um sorriso, aproximando-se de mim um passo.

— Oi — respondo com um sorriso forçado. — Desculpa eu ter sumido esse final de semana e
precisar sumir agora de novo, deixando essa bomba na sua mão.

— Imagina, tá tudo bem... Mas aconteceu alguma coisa grave? Tem algo que eu possa fazer por
você?

Reencarnar no corpo do Martin.

— Não, não, tá tudo bem, sim, eu só preciso de uns dias fora pra resolver algumas coisas e
depois tudo se acerta. Tudo bem pra você assumir a direção esses dias? Se for muito pesado, eu
posso pedir pro meu pai mandar alguém do outro escritório pra

— Relaxa, tá tranquilo — Edgar segura minha mão. — Eu te espero.

Oh ow. Espera o quê? Não espere nada de mim, não, rapaz, por favor; não sei se vou poder te
oferecer o que você quer depois que eu voltar... Apesar de que minha ida não está me dando garantia
de nada.

— Então a gente se fala quando eu voltar — finalizo, soltando a mão dele delicadamente.

— Tá bom... Boa viagem — ele me beija no rosto e se afasta.

— Obrigada. Bom... trabalho pra você.

Com um último sorriso e um aceno militar, ele sai da sala. Pronto: acho que já está resolvida a
parte burocrática. Agora é respirar fundo, pegar o carro e botar o pé na estrada.
Capítulo 8

Certo, certo: é chegada a hora da verdade. Agora somos eu e você, mapa. E o carro e a estrada
também, é claro. Já fiz um check up no possante, estudei bastante sobre Maria Soledad, avisei o
pessoal do escritório, passei a perna nos meus pais, ouvi bronca da Milena, arrumei as malas, só
falta ir. Saindo do escritório, passo na filial do centro para dar tchau à Milena e ao meu pai antes de
pegar a estrada.

— Cuidado, hein, amiga? — Milena me recomenda aos sussurros.

— Vai dar tudo certo, não precisa se preocupar.

— Vou ficar aqui torcendo por você, seja lá no que isso der. Me mantém informada, tá?

— Tá bom.

Trocamos um último abraço de despedida e sigo para o escritório do meu pai, que fala com
alguém ao telefone energicamente. Fico olhando pelo lado de fora até ele me notar; não quero
atrapalhar a conversa. Dou duas batidas na porta e ele gesticula que é para eu entrar, mas recuso o
chamado e apenas aceno para dar a entender que estou de partida. Ele me mostra o polegar e eu lhe
mando um beijo pelo vidro, seguido de um “tchau” correspondido.

Dou meia volta e saio pelo corredor. Pego o elevador e refaço pela ducentésima vez o caminho
do Google Maps até Maria Soledad. Eu imprimi o mapa? Verifico minha bolsa. Imprimi, sim. Tenho
que pegar a pista no sentido a Campinas e seguir reto toda vida até começarem a aparecer as placas
que indicam para que lado está Maria Soledad... É isso, né? Ótimo. Entro no meu carro e coloco
alguma música de viagem para tocar. Se a estrada estiver boa, devo chegar mais ou menos às duas,
três da tarde. Acho melhor parar em algum restaurante no meio do caminho para não ficar esse tempo
todo sem comer, né? Não sei se aguento passar tantas horas à base de barrinha de cereal e água.

Saindo do prédio, é hora de viver alguns minutos de purgação mental e espiritual no trânsito
desta cidade, justo hoje que meus nervos estão à flor da pele. Aliás, é melhor eu já ir pensando desde
já o que eu vou fazer primeiro. Pois bem: primeira coisa, me hospedar. Procurei em toda parte por
um hotel em que eu pudesse me hospedar em Amistad, mas não encontrei. Quero crer que isso tenha
acontecido só porque a cidade é um ovo, porque, claro, há de haver ao menos uma pousada por lá
onde eu possa ficar, né? Não quero ficar indo e vindo da cidade maior porque meu tempo é curto e eu
não gosto de zanzar por lugares que eu não conheço direito (ou não conheço de jeito nenhum, no
caso). Depois disso, vou ter que dar umas voltas pela cidade para usar todo o poder da minha
intuição e tentar descobrir onde pode haver uma alma que possa conhecer o Martin. E depois...
depois é partir para a busca. Como eu vou descrevê-lo sem parecer uma idiota? Vou dizer que ele é
alto, forte, olhos verdes, muito gato... não, isso não. Uns trinta anos, barba por fazer—se ele ainda
tiver uma barba. Isso não descreve muita coisa, mas já deve ser o bastante para uma cidade de mil
habitantes. Sem contar que é quase impossível que ele esteja lá: o mais provável é que eu encontre
alguém que possa me colocar em contato com ele. Já é alguma coisa, eu acho. Mas se eu não
conseguir nada... Bom, vamos não pensar nessa possibilidade. Eu poderia passar no bar em que a
gente foi, hein? Alguém lá talvez saiba quem ele é... Excelente. Olha só, já estamos saindo do
perímetro urbano; aqui os motoristas começam a ficar mais espertos. Pois muito bem, vamos adiante
pelos próximos duzentos quilômetros, se este mapa estiver certo.

•○•

A viagem correu bem, graças a Deus. A estrada é boa, a vista é fantástica em alguns pontos e até
tirei algumas fotos quando parei para almoçar naquele restaurante que infelizmente fica no meio da
estrada, porque nunca comi uma feijoada tão boa em toda a minha vida! Não sei se fiz bem em comer
quanto eu comi, porque está fazendo um calor desgraçado por aqui e meu sistema digestório não é o
mais eficaz da cidade. Com um pouco de dificuldade, essa justificada pela minha inabilidade de às
vezes obedecer a comandos arbitrários como o do mapa que me diz para virar à esquerda quando a
placa da estrada me diz para seguir reto, acabei encontrando a cidade de Maria Soledad com atraso
—mas encontrei. Um lugar bem bonitinho, por sinal. Preciso explorar mais o interior do estado; estou
vendo que tem muita coisa por aqui que me agrada e eu estou perdendo meu tempo indo para a praia
sempre que surge uma oportunidade. Nem tudo na vida é praia, né?

Faço uma parada rápida na farmácia para comprar um remédio para digestão e aproveito para
perguntar como chegar em Amistad. O atendente me explica o caminho, que ele sabe de cor
(vantagens de se morar em um ovo). Não sei se vou conseguir chegar lá sozinha e de primeira, mas
vamos lá. De volta ao carro, repito mentalmente e depois em voz alta, enquanto dirijo, as instruções
que recebi:

— Segue a avenida principal—que só pode ser esta, porque não acho que há mais outra avenida
principal por aqui... Passa pela rotatória e continua na avenida até a próxima rotatória, que deve ser
esta... Continua... Vai pela avenida até o final e vira à direita quando chegar à rodovia, depois de
passar pela ponte... Vai pela rodovia, que logo aparece uma placa falando onde eu estou...
Amistad! Yes!

Ufa! Tá vendo como é bom seguir as recomendações à risca quando não se sabe o que fazer?
Cheguei em Amistad! Ai, que nervoso!... Calma, Alice, você precisa achar um hotel agora. Bom, sei
que não vai existir nenhum Hilton aqui, mas pelo menos um quartinho há de haver em algum canto.

Em velocidade baixa, circulo pelas ruas da cidade. Por que tudo aqui parece ser uma releitura
moderna do Velho Oeste? Que coisa estranha!... Olha só! É este o bar em que a gente foi aquela vez!
Ótimo! Mas não é disso que eu preciso agora. Continuo circulando. Eu acho que os desenvolvedores
do CityVille do Facebook se inspiraram aqui para criar o jogo, viu? O “centro” deste lugar é do
tamanho da minha casa.

Saindo da parte comercial, entro numa rua onde há algumas casas—são tão bonitinhas!—e logo
avisto uma um pouco maior com uma placa que lê “Pousada dos Bandeirantes”.
Achei! É aqui mesmo. Paro na porta e desço do carro. Entro e pergunto ao recepcionista:

— Boa tarde!... Tem vaga?

Ele me olha com uma cara interrogativa, então me dou conta da minha pergunta idiota. É claro
que tem vaga, né, Alice? Olha o tamanho desta cidade.

— Tem sim, senhora.

— Ahm, ótimo. Eu vou querer um quarto, então.

— Documentos, por favor.

Ele faz meu check in e eu aproveito para estacionar na vaga para clientes. Desço minhas malas,
trago-as comigo e concluo o processo. R$ 80 a diária! Com R$ 80 em Veredas não dá para se
hospedar nem debaixo da ponte! Quarto com ar condicionado, antena parabólica, micro-ondas; café
da manhã à parte... Mas também, quantas pessoas deve haver hospedadas aqui? Eu, eu mesma e Irene,
suponho.

Depois de me acomodar no meu quarto e começar a avisar a todo mundo que cheguei sã, salva e
encalorada, troco de roupa e me deito um pouco. Cansei de dirigir; deixa eu descansar meus pezinhos
um pouco antes de começar minha busca. Ligo o ar condicionado (obrigada, Deus, por ter escolhido
fecundar o espermatozoide que um dia se tornou a criatura que inventou o ar condicionado),
esparramo-me sobre a cama feito batatinha quando nasce e fecho os olhos.

Acabo cochilando. Acordo assustada, pensando que já é outro dia, outra hora, outro lugar. Uma
conferida rápida no celular e eu me localizo. “Maria Soledad, 18:26”—você não cochilou, você
entrou em coma, Alice. Ótimo, ótimo: hora de começar a agir. Dou uma arrumada no cabelo, enxaguo
o rosto e saio do quarto. O homem da recepção ainda está lá. Será que ele é daqui? Será que não
sabe de algo que me possa ser útil?

— Moço, deixa eu te perguntar — “moço” é gentileza minha. — Você é daqui, da região?

— Sou sim, senhora.

— Por acaso você não conhece um homem alto, forte, bonito, de olhos verdes, cara meio
fechada...?

— Xih, a senhora descreveu os últimos dez que passaram por aqui.

— Sério? — esta cidade está bem frequentada, hein?!

— É que semana passada teve rodeio em Soledad, aí se hospedaram uns peão desse porte por
aqui, mas já foram tudo embora.

Argh! Assim não adianta. Agradeço-o pela resposta e saio da pousada. O céu já começou a
escurecer. Perdi o pôr do sol... Deve ser bonito vê-lo daqui! Entro no carro e faço o caminho de
volta até o bar em que eu e Martin fomos. Aliás, acho que posso deixar esse carro estacionado na
pousada o tempo todo, porque mal dá tempo de alcançar os quarenta por hora e pronto, cheguei. “Bar
do Jerônimo”. Não tinha reparado nesse nome quando vim aqui da outra vez. Entro. Olho para os
lados, escolhendo um lugar para ficar. Nos bancos do balcão, dois ou três sentados; atrás do balcão,
um barman diferente do que o que eu me lembro da outra vez; nas mesas, uns caubóis, provavelmente
retardatários do tal rodeio... E, ao olhar para a última mesa do canto do salão, uma rajada de
adrenalina me cruza o estômago e morre na garganta. É ele, meu Deus! É ele!

Meu coração bate aos pulos. Santo Deus!... É ele, é ele! E agora? O que eu faço? Finjo que não
o vi, por enquanto? Peço uma bebida primeiro? Vou direto lá e o chamo? Deus, me ajuda, me ajuda!
Caminho devagar e logo meus braços começam a formigar; minhas mãos ficam dormentes, minha
boca fica seca, minhas pernas parecem enfraquecer e o chão parece se mover contra mim. A música,
as pessoas, o ambiente, o calor, tudo sumiu do meu redor: a única coisa que consigo enxergar são as
costas de Martin à minha frente... Eu vou lá, eu vou lá! Vai, Alice, coragem! Você já chegou até aqui!

Sigo em direção à mesa, que parece ficar cada vez mais longe conforme eu ando em direção a
ela. Seguro uma mão com a outra e entreponho meus dedos, tentando conter o nervosismo. Estou a
três passos de distância!...

— Martin...!

Com a cabeça baixa, ainda de costas para mim, ele não me responde de primeira.

— Martin? — repito.

Então ele se vira lentamente, ou talvez a lentidão seja só dentro da minha cabeça. Quando seus
olhos encontram os meus, sinto meu coração despedaçar em um milhão de estilhaços.

— Falou comigo, moça?

Você não é o Martin... Levo alguns segundos para me recuperar do susto e do quase colapso
nervoso que o alarme falso me proporciona.

— Não, não; desculpa, pensei que você fosse outra pessoa...

Droga, droga, droga, droga, droga! Que lástima! Achei que eu estivesse tão perto!... Ele me
cumprimenta com um aceno e eu volto para a entrada do bar. Esse deve ser um desses tais de peão
que o homem da pousada falou... Tsc. Em frente ao balcão novamente, peço uma cerveja. Não gosto
de cerveja, mas ah, dane-se. Nem me dou o trabalho de sujar o copo: bebo no gargalo. Os caras que
estavam no balcão quando eu cheguei já foram embora; agora só há o barman atrás do balcão e
ninguém mais perto de mim. Miro as garrafas de bebida à minha frente e começo a indagar se ter
vindo aqui foi realmente uma boa ideia... Quais são as chances de você encontrar o Martin aqui,
Alice? Pensa bem. O cara é um sequestrador! Ele está com 150 mil dólares em mãos agora! Por que
é que ele ainda estaria aqui neste fim de mundo agora? O que ele teria para fazer aqui que fosse
melhor do que viajar para onde ele quisesse? Conhecer o mundo, ir para Míconos, para Ibiza,
comprar uma caminhonete mais decente!... É óbvio, é lógico que ele não está aqui, Alice.
— Hey!

Interrompida de meus pensamentos, olho para o lado e vejo um homem parado, com o cotovelo
escorado no balcão, me olhando. Dou meu sorriso mais desinteressado como resposta ao
cumprimento e torno a olhar para as garrafas.

— Posso te pagar outra cerveja?

Argh, não posso crer...

— Não, moço, obrigada, a minha ainda tá cheia — levanto a garrafa como se estivesse
brindando e agradecendo pela oferta.

— Uma mulher tão bonita como você, aqui neste bar, bebendo sozinha... Que desperdício!

Tomo mais alguns goles da bebida enquanto analiso bem o fulano ao meu lado. Magro demais.
Se tivesse uns dez quilos, bem distribuídos, a mais, talvez fosse minimamente interessante. Esse
certamente é um peão remanescente, porque nada explica este chapéu de caubói aqui dentro. Camisa
de flanela para dentro da calça, cinto de fivela, calça mais justa do que as minhas, bota de couro...
Tudo errado.

— Eu tô procurando uma pessoa; tô aqui só de passagem.

— Hum... “Procurando uma pessoa”. Será que eu ganho uma recompensa se te ajudar a
encontrar?

— Nenhuma. Sinto muito.

Por que esses caras têm tanta dificuldade para entender quando uma mulher não está a fim?

— Olha lá, hein? Você não sabe o que tá perdendo...

— Amiguinho, olha só: — respiro fundo, conto até dez e solto um bufo de impaciência. — Eu
vim aqui procurar um cara... um cara que me sequestrou, sabe? É, parece loucura, mas ele me
sequestrou e a gente acabou transando e eu tô muito apaixonada por ele... E ele é bem gostoso—não:
ele é um pedaço de mau caminho, um mau caminho inteiro, ida e volta. E ele nasceu aqui, acredita? E
é só por isso que eu voltei pra este inferno de cidade: pra tentar me encontrar com ele. Então, seja lá
o que eu “estiver perdendo”: eu não estou interessada. Nem um pouco. Nem um pouquinho-inho-
zinho.

Ele me olha com uma expressão impagável, como se eu tivesse acabado de dizer algo terrível.

— Você precisa se tratar, moça. Procura um médico, tá?

— Pode deixar — pisco um olho e levanto minha garrafa novamente, dando um sorriso cínico
antes de ele ir embora e me deixar em paz. Homens...
Passo cerca de uma hora e meia no bar, quieta, sozinha, bebendo uma cerveja atrás da outra,
totalizando duas garrafas. Pedi a tal de Budweiser que o Martin tomou quando viemos aqui, e até que
ela não é ruim... O barman está limpando o balcão bem à minha frente. Ele me lembra alguém...
Parece muito alguém que eu já devo ter visto em algum momento da minha vida. Cabelos grisalhos,
barrigudo, cara séria, mas não muito; tem um jeitão de vovô rock ‘n roll...

— Mais alguma coisa, moça? — ele me pergunta quando percebe que eu estou o olhando
indiscretamente. Cadê seus modos, Alice?

— Não, tô só achando seu rosto familiar.

Ele sorri e continua limpando. Aproveitando que já puxei assunto mesmo, demos continuidade à
minha CSI: Amistad.

— O senhor é daqui da cidade?

— Sou, sim.

— Eu tô procurando um homem...—não, não: não “Eu tô procurando um homem” porque tô


solteira: eu estou procurando uma pessoa.

— Foi o que eu entendi, moça, não se preocupa.

Nota mental: parar de corrigir minhas ambiguidades involuntárias.

— Ele é alto, forte, olhos verdes, uma cara meio amarrada...

— Assim complica, hein? Ele não tem nome?

— Tem, mas eu não sei...

— Nem um apelido?

— Não... — eu poderia me explicar melhor e talvez facilitar as coisas, mas é melhor


economizar detalhes. — Ele é um homem adulto já, deve ter uns trinta anos; e ele é muito bonito,
desses bonitos difícil de ver na rua... Eu só sei que ele nasceu aqui... A gente se encontrou aqui neste
bar, por isso pensei que talvez você o conhecesse...

O homem franziu a testa e continuou limpando o balcão, parecendo filtrar minhas informações
para ver se conhecia alguém com as características que eu listei.

— Olha, até tem um cara, sim, viu? boa pinta e tal... — ele diz.

— É? E você sabe o nome, endereço, alguma coisa?


— Não... Ele sempre vem aqui sozinho; nunca tá acompanhado de ninguém, não... Sempre pede
uma Budweiser e senta nessa mesa aí do meio.

Meu Deus! É isso! É ele! É o Martin!

— Isso! — dou um grito e boa parte do bar olha para mim. Recomponho-me e falo em voz
baixa, para só o barman ouvir: — Isso, é ele mesmo! Você o conhece? Sabe onde ele mora? Sabe
alguma coisa?!

— Olha, moça, eu não sei... Desde que eu trabalho aqui, ele só entra, bebe, dá uma mexida no
celular e vai embora.

— Quando foi a última vez que ele veio aqui? Você sabe, mais ou menos?

— Ah... Não sei... Uns quinze dias, no máximo.

Quinze dias foi um dia desses! Ele pode estar por perto ainda! Ai meu coração!

— E o que mais? O que mais você sabe?

— A senhora é da polícia ou alguma coisa, moça?

— Não, não, não; é que... — que desculpa eu uso? Pensa rápido, Alice! — É que eu trabalho
numa agência de publicidade e preciso de um modelo pra fazer uma campanha pra uma marca de
cuecas, e eu conversei com esse cara aqui uma vez e ele é exatamente o que a gente precisa, daí
resolvi voltar em Amistad pra ver se eu o reencontrava, mas tá bem difícil.

— Bom, aqui é um lugar pequeno, né? E esse cara tá sempre por aqui, então... Se você tiver
tempo, vai procurando pela cidade; uma hora você deve encontrar.

Pois é, amigo, mas o negócio é que eu não tenho tempo para ficar procurando homem por aí,
pela cidade: tenho hoje mais cinco dias para encontrar ou não encontrar o Martin e seguir a minha
vida. Mas essa notícia de que ele esteve aqui recentemente—isto é: assumindo que de fato é dele que
estávamos falando o tempo todo—faz acender uma centelha de esperança no meu coraçãozinho
desenganado.

— Vou te pedir um favor, pode ser? — pergunto, vasculhando minha carteira e me levantando
para ir embora.

— Pode.

Pego um cartão de visita meu e entrego para o barman.

— Se, por acaso, esse homem aparecer por aqui de novo, por favor, me liga. Pode ligar
qualquer dia, a qualquer hora. Eu vou estar na cidade até sábado à tarde.

Ele segura o cartão e lê meu número, balançando a cabeça afirmativamente.


— Tá, pode deixar, eu ligo, sim.

— Muito obrigada, viu? — dou a mão a ele e aperto a dele com as minhas duas. — Você me
ajudou bastante!

— De nada, moça; tamo às ordens.

Acho que não tenho mais o que fazer neste bar por enquanto. Saio do local, entro no carro e
aproveito o calor (?) para dar uma voltinha pela “cidade”. Tem umas casinhas realmente bonitinhas
por aqui... Quem inventou esta cidade, hein? Tinha bom gosto, a pessoa. Acho que vou construir uma
casa aqui para eu vir passar as férias quando não estiver a fim de olhar para a cara de ninguém. Olha!
Tem uma praça aqui! Que bonitinho, cidade do interior: depois que o sol se põe, as pessoas vêm para
a praça. Cheia dos casais de namoradinhos adolescentes paquerando nos bancos, ah! Que saudade!...
“Saudade” modo de dizer, né, Alice? que namorar na praça não é do meu tempo. E tem esta igreja
também, é claro... Acho que devo vir à igreja. Rezar; confessar; tô muito pecadora: vindo pro meio
do nada atrás de bandido, transando com os brotinhos no primeiro encontro... Não, também não é
assim: a gente transou no primeiro encontro, mas não era a primeira vez que a gente se via, né? Poxa.
Edgar é meu colega de trabalho e a gente já teve tempo para se conhecer muito bem—não, “muito
bem” não; talvez “suficientemente bem”—também, não importa, agora já foi. Acho que vou falar com
o padre mesmo assim. Mas só se ele não tiver cara de pedófilo e já for um pouco idoso, porque
padre e pessoas mais velhas sempre têm credibilidade; sendo ele as duas coisas ao mesmo tempo,
então, tão confiável quanto Cassandra.

Bom, vou ficar nesta praça um tempinho; comprar uma pipoca para dar aos pombos enquanto
sinto a brisa da noite. Depois eu volto para a pousada e penso no que fazer amanhã. E que não venha
nenhum menor de idade me paquerar pensando que eu estou à disposição, porque já me basta o outro
que me abordou no bar... Só me faltava ele dar uma de Chitãozinho e Xororó e dizer que deixaria de
ser caubói por mim... Haja paciência.

Às vezes eu me esqueço do quanto é bom dormir em um quarto com ar condicionado... Acho que
as pessoas que não passaram por essa experiência não tiveram uma vida plena na Terra. Acordo com
a baixa claridade que entra pelos furinhos da janela. Pego o celular debaixo do travesseiro e dou uma
olhada nas minhas redes sociais antes de me levantar. Só faltou ter wi-fi aqui para ser tudo perfeito,
mas... não posso exigir tanto assim. Milena me mandou mensagem, minha mãe também, WhatsApp
está parado... Facebook idem, Instagram idem—aliás, preciso tirar umas fotos aqui, pelo menos para
guardar de recordação. Respondo as notificações mais relevantes e me levanto.

Após fazer minha higiene matinal, pergunto ao moço da recepção, que agora é outro, onde é
servido o café e vou até o local, apenas para descobrir que o serviço já foi encerrado. Tsc, droga!
Não se pode nem acordar tarde em paz durante as férias! Bom, paciência; isso me obriga a procurar
por algum lugar aqui onde se sirva um café decente... Temos tempo e dinheiro; basta colocar seus
óculos e ir, Alice!

Decido sair a pé. Desta vez, sigo pelo lado do centro da cidade oposto ao que eu fui ontem.
Caminhando tranquilamente pelas ruas quase silenciosas e cheias de natureza, sentindo este calor da
manhã deste sol que já está a pino, chego ao lado inexplorado em menos de quinze minutos de
caminhada. Aqui deve ser o calçadão, que está mais para calçadinha, da cidade. Tem certeza que este
lugar não é nenhuma cidade cenográfica da Globo? Seguindo pelo espaço aberto, onde há pessoas
caminhando sempre tranquilamente, encontro um café muito ajeitadinho chamado “Café Petit”, e o
nome tem tudo a ver com o espaço: pequeno e confortável. Peço dois pães de queijo pequenos e uma
xícara de cappuccino enquanto programo o itinerário de hoje. Saindo daqui, devo passar na igreja e
torcer para que o padre esteja lá. Vou conversar com ele e...? Não sei; vou conversar com ele e só.
Dependendo do que ele disser, eu vejo quais vão ser os próximos passos.

Enquanto penso nessas coisas todas, comendo, bebendo e fuçando o Facebook ao mesmo tempo,
Edgar, de quem eu sequer me lembrava da existência, posta uma música sertaneja qualquer,
acompanhada dos seguintes versos: ... ... ... Não, deixa para lá: melhor nem reproduzir essa breguice.
E não quero ser pretensiosa nem nada, mas quero acreditar do fundo da minha alma que isso não
tenha sido para mim, porque a última coisa de que eu preciso agora é um homenzinho galanteador
arrastando asa para o meu lado. Mas vai ser bom ele tomar esse tempo de distância de mim para
superar a mágica da minha power vagina sobre ele—não acredito que eu pensei essas palavras.

Termino de tomar meu café e saio em direção à praça seguindo a passos lentos o trajeto
enquanto uma brisa gostosa tenta inutilmente refrescar o ar quente. A igreja está à minha frente, a
alguns metros de distância, e em direção a ela eu sigo. A porta está aberta diante à escadaria, que
subo pé por pé. Dentro do local, um grupo de pessoas sentadas em círculo perto do altar: cinco
pessoas—seis com o padre. Ao me perceberem dentro do recinto, todos me olham, o que me deixa
ligeiramente ruborizada. Sento-me longe dessas pessoas e permaneço em silêncio. Eles continuam a
fazer o que faziam antes da minha chegada. Parece ser um estudo de livro, não sei bem; não fui de
frequentar a igreja quando menina. O padre é um senhor muito bonitinho. É mais novo do que eu
pensei que fosse; deve ter a idade do meu pai, mais ou menos. Fala muito manso. Fosse eu ouvindo
histórias bíblicas embaladas por essa voz tão sossegada, dormiria em um estalar de dedos.

Eles demoram algum tempo para acabar. Depois de uns quarenta minutos de espera, as pessoas
começam a se levantar e ir embora. Faço o mesmo — não para ir embora, mas para ir falar com o
padre. Aliás... Que ideia estapafúrdia, hein, Alice? Procurar o padre para falar sobre um assunto tão
banal quanto esse...?!

— Bom dia, filha! — ele me cumprimenta muito simpaticamente quando o alcanço.

— Bom dia, padre... — faltam-me as palavras. O que eu digo primeiro?

— Posso te ajudar?

— Ahm... Pode, pode sim. Eu... O senhor é daqui? Conhece a região?

— Nascido e criado.

— Ah... É que eu tô procurando uma pessoa...


— Uma pessoa...?

— Um homem que eu encontrei aqui... Ele é alto, forte, olhos verdes, uns trinta anos, muito,
muito bonito... Ele tem uma caminhonete branca, a pele mais ou menos da cor da do senhor...

O padre me olha com um sorriso bastante paternal, ouvindo-me com atenção.

— Eu sei de quem você tá falando — ele diz sem hesitar.

— Ai! Jura?! — soa mais alto do que deveria.

— Bom, não existem muitos homens com esse perfil aqui... Amistad é uma cidade minúscula,
você sabe, o pessoal aqui é bem simples.

— E o senhor sabe como eu posso encontrá-lo?

— Olha... — ele ajeita os óculos no rosto. — Ele vem se confessar quase sempre... Você já
visitou o cemitério daqui?

— Não — por que eu haveria de visitar um cemitério?

— Eu sempre o vejo no cemitério às quintas-feiras de manhã, quando estou vindo pra cá pro
primeiro grupo de estudos.

Meu Deus! Que dia é hoje? Terça! Quinta-feira é depois de amanhã!

— O senhor sabe se ele veio quinta-feira passada?

— Olha, não sei se são todas as quintas sem falta, mas é sempre quinta por volta das oito, nove
da manhã. A menos que ele venha outros dias e eu não tenha reparado.

Meu coração falta sair pela boca. Quinta-feira! Dois dias!

— E onde fica esse cemitério? — pergunto.

— Dois ou três quarteirões depois da praça, à direita, saindo pela rua de trás daqui. O cemitério
parece um parque cercado de grades, com as lápides no chão; é facinho encontrar.

— Entendi — uma onda de euforia toma conta de mim. Acalme-se, Alice, que até agora as
pessoas só estão te dizendo que sabem de quem você está falando, mas ninguém sabe te dar nenhuma
informação precisa!

— Tá bom... Muito obrigada, viu? O senhor me ajudou bastante!

Seguro as mãos do padre com as minhas e as aperto com toda minha gratidão. Saio da igreja me
sentindo um pouquinho mais animada. Mas então quer dizer que ele visita um cemitério todas as
quintas-feiras?... Isto é, se for ele mesmo. Mas por que será? Quem será que está enterrado aqui que
ele se dá o trabalho de ir ver semanalmente? Ah, Martin, Martin... Você que me aguarde.

○•○

Tomo meu café da manhã sem pressa. Eu deveria ter acordado mais cedo; hoje é quinta-feira,
tenho coisas a fazer... Acho que vou passar em Maria Soledad e comprar uma lata de cera para
passar na caminhonete, que precisa de um banho também... Aliás, “de um banho” não, ela precisa de
ir pro ferro velho, isso sim... Mas talvez seja melhor que ela esteja judiada, mesmo, assim eu posso
economizar uma grana até ter o suficiente para comprar alguma coisa melhor. Ou talvez eu venda tudo
que eu tenho e vá embora deste país de uma vez, que eu sou bom demais para ficar aqui vivendo de
sequestrar mocinhas da high society.

Saio da casa e entro na minha velha companheira caminhonete. Agora são oito e meia da manhã.
Até eu chegar a Maria Soledad, já vão ser mais de nove horas... Tudo bem, dá tempo de eu passar no
cemitério ainda de manhã... Ou é melhor eu ir ao cemitério antes de ir a Soledad? Não, cara, não faz
sentido: este lado da estrada leva a Amistad antes de Soledad; é melhor passar no cemitério antes,
assim eu termino tudo que tenho que fazer antes do almoço e posso voltar para casa e continuar meu
serviço. Certo, vamos lá, então.

Pego a estrada em direção a Amistad. Por que o clima tem estado tão quente ultimamente? Acho
que vou acabar tendo que vender esta caminhonete velha... Que falta faz um ar condicionado. Ligo o
rádio e coloco meu bom e velho country para tocar e me acompanhar durante o caminho para a
cidade, como sempre. O que vamos ouvir hoje, hein? Hum...Vejamos. Acho que vamos de... Bill
Anderson. Talvez o tocador de CD seja a única coisa que funciona direito neste carro velho.
Cantarolo sozinho enquanto dirijo prestando pouca atenção no trajeto, que já sei de trás para frente,
de olhos vendados. Ouço um barulho estranho, porém, o que acaba me fazendo voltar a atenção ao
carro e à pista. De onde vem esse som? E por que eu não... Ah, merda! Esqueci de abastecer antes de
sair com esta joça da última vez! Merda!... Não, gasolina, por favor, não acabe agora, que o próximo
posto não está a menos de sete quilômetros daqui... Aguenta firme, vai, por favor, por favor, só mais
vinte minutinhos...

Meus pedidos são em vão. Minha adorável caminhonete começa a dar solavancos e engasgadas,
até que esmorece e para definitivamente, deixando-me sozinho no meio desta estrada deserta. Puta.
Que. Pariu. Solto um bufo de nervosismo e desço do carro. E agora? O que eu vou fazer?... Droga.
Droga, droga, droga! mil vezes!... Debaixo deste sol, sem um chapéu, sem um boné, vendo as ondas
de calor subirem pelo asfalto, suando por todos os lados, vou ser obrigado a andar sete quilômetros
até chegar ao próximo posto e comprar uma garrafinha pet de gasolina? É pra acabar com a vida de
qualquer cidadão de bem... Bom, eu não sou exatamente um cidadão de bem, reconheço, talvez isso
seja Deus me castigando. Tudo bem, Deus: Você está certo e eu estou errado; mea culpa, mea
maxima culpa.

Rendido e sem ter outra opção senão encarar o acostamento desta pista vazia pela próxima hora
e meia, tomo coragem, pego um cantil que sempre levo na traseira da caminhonete e o levo comigo
caminho adiante. Uma hora e meia de caminhada nos aguarda... Ah, vida! Aqui se faz, aqui se paga,
não é mesmo? Não vou reclamar, não vou reclamar, não vou reclamar... (Caralho, viu?!) Resignado,
caminho, passo a passo, um pé na frente do outro pé, um atrás do outro, vai este e volta aquele, um,
dois, “Marcha, soldado!”, devagar e sempre, às bicas de suor, com a testa franzida, olhos apertados,
ardendo, juntas dos joelhos reclamando, por todo o caminho que me separa do posto de gasolina
mais próximo, que, assim como tudo aqui perto, parece estar abandonado às moscas. Demoro, mas
chego, uma hora e trinta e sete minutos depois. Um frentista me olha com cara de caipira, mascando
uma haste de trigo, com as pernas cruzadas em cima de uma cadeira.

— Amigo, você pode encher este cantil pra mim com gasolina comum, por favor? — pergunto,
arfando, esbaforido por causa da minha longa caminhada.

Com cara de pouco caso, ele me olha e se levanta, indo em direção à bomba de gasolina.
Enquanto ele a enche, um homem desconhecido, vestindo camisa social e calça (neste calor), surge
ao meu lado, voltando de dentro da loja de conveniência, e observa a cena em frente ao próprio
carro, parado na bomba vizinha.

— Acabou a gasolina no meio da estrada, campeão? — ele me pergunta.

— Acabou. Eu devia ter enchido o tanque, mas acabei me esquecendo...

— Seu carro tá pra que lado?

— Pra lá — aponto à minha esquerda.

— Eu tô indo pr’aquele lado, quer uma carona de volta até o carro?

Poxa, cara! Jura por Deus?!

— Ah, cara, eu vou aceitar, sim! Tive que andar mais de hora e meia pra chegar aqui!

— Puts! Nesse calor dos infernos, isso faz até mal! Eu te levo lá, sem problema.

Amigo, se você fosse uma mulher eu te daria um beijo na boca agora!—se você aceitasse, é
claro (quem é que me recusaria?). Tá vendo, Deus?! Me fazer andar esse tanto debaixo deste calor
foi penitência demais! Mas está tudo bem: eu Te perdoo desta vez. Espero o frentista terminar de
encher meu cantil, pago pelo combustível e entro no Golzinho do cara que me ofereceu carona. Ele
todo engomadinho e eu pingando suor... Que vergonha.

Vamos conversando durante boa parte do caminho. É muito difícil quando as pessoas me
perguntam com que eu trabalho... Sempre respondo que trabalho “com viagens”, porque sempre achei
essa resposta um eufemismo muito bonito para se falar que é caminhoneiro. Mas também posso ser
representante comercial, ora. Ou agente de viagens. Ou taxista. O cara (Roberto, o nome. Nisso eu
tenho vantagem: posso falar que me chamo Martin para todo mundo!) tem uma loja de tecidos em
Campinas e família em algum lugar por aqui e não sei por que as pessoas têm essa mania de contar a
vida inteira delas em vinte minutos, especialmente para quem elas não conhecem. Mas é bom ouvir
as pessoas, eu não ligo, não, só queria ter essa habilidade e esse tanto de história para contar em tão
pouco tempo.

Chegamos à minha Ford, velhinha e imprestável. Roberto me espera encher o tanque com o
pingo de gasolina que comprei e só vai embora depois de se certificar de que o carro ligou e que vai
ficar tudo bem. Agradeço profusamente pela gentileza e, depois de um aperto de mão, volto para o
meu possante. Agora sim estamos bem... Acho que vou precisar de uma breve mudança de planos por
aqui: voltar àquele posto, colocar mais um pouco de combustível e depois passar em Soledad para
terminar de encher o tanque, porque R$ 3,43 em um litro de gasolina tá impossível!

Assim o faço. Sigo caminho até o posto, abasteço um pouco, tiro o suor pregado do rosto e
debaixo da camisa e volto para a estrada, indo para Maria Soledad para terminar de abastecer.
Aproveito o ensejo e, além de comprar a cera que eu estava pensando em comprar, passo no
mecânico e dou uma geral na caminhonete para ver se não tem mais nada em situação de risco. Pelo
visto, não. Ótimo.

O ruim de vir aqui é que eu sempre arrumo coisas para fazer. Passo pelas lojas, compro coisas
de que não preciso, passo pelo mercado, compro cerveja, petiscos, Cheetos; passo pelo centro da
cidade e compro filmes pirata; passo pela única banca de jornal que vende livros e compro mais uns
exemplares... Minha coleção do Poe está quase completa, mas nunca encontro uma edição boa por
estas bandas de cá. Nesta visita, acabo comprando só uma revista Quatro Rodas para ver o que tem
de bom no mercado atualmente. Talvez trocar de carro seja mesmo uma medida necessária num futuro
breve. Por fim, volto à minha velha amiga de quatro rodas, que me guia às minhas obrigações diárias.

Já são mais de onze horas... Ô, tempinho esperdiçado esse que eu gastei andando até o posto! Eu
já devia ter feito tudo que eu tinha para fazer... Tsc, paciência. Sigo de Soledad a Amistad sem
pressa. Estaciono o carro na garagem e desço. Entro em casa, tiro toda a minha roupa, deixo tudo
caído no primeiro canto que encontro e volto para o lado de fora, onde tomo um banho de mangueira.
Ainda bem que aqui não corro o risco de ninguém me ver fazendo isso... Não que eu me importaria se
alguém visse, mas... Privacidade. De “banho” tomado, troco de roupa e visto algo mais respeitável:
agora é hora de ir ao cemitério.

Saio caminhando e, cerca de treze minutos depois, chego ao cemitério de Amistad, que se
parece bastante com um parque cheio de túmulos. Nunca entendi por que não existem muros aqui.
Caminho devagar por entre as lápides até encontrar aquela que visito todas as quintas-feiras que
posso... Ajoelho-me e leio o nome dele em voz baixa, como sempre: “Maurício Vieira Zago”... E aí,
meu irmão? Como você tá?... Espero que esteja bem desde a última vez que te vi aqui. E espero que
você não esteja bravo comigo... Eu sei que, se estivesse vivo, você brigaria comigo eternamente por
eu fazer o que eu faço, mas... A vida é feita de escolhas, não é? Nem todas são certas, mas a gente se
responsabiliza por elas mesmo assim... Mas vamos mudar de assunto, que esse nós discutimos quase
toda semana.

Sento-me sobre a grama e converso com meu irmão em pensamento. Às vezes sinto tanto a sua
falta... Maurício... Meu melhor amigo. Por que você teve que morrer tão cedo, hein? Você era um
cara tão bom, tão inteligente... Tsc. Merda... Espero que esteja tudo bem aí no paraíso. Conversa com
Deus, dá um jeito de ele facilitar a minha vida, pelo menos por hoje, pode ser? Quando o dia começa
mal, ele vai mal até o fim... Saí de casa e o carro acabou a gasolina; tive que andar mais de uma hora
e meia até o posto para reabastecer; sorte que um camarada me levou de volta ao carro e me
economizou mais uma hora e meia de pernada. Não fosse por ele, talvez eu nem tivesse vindo te
visitar hoje, porque o calor aqui tá infernal!

Permaneço no cemitério por cerca de meia hora. O projeto de sombra que se estende da árvore
próxima à lápide não é o suficiente para refrescar o clima abafado. Despeço-me de Maurício em
pensamento e saio do cemitério. Talvez eu devesse passar pela igreja hoje... Deus não tá de bem
comigo; melhor eu ir fazer as pazes com Ele.

Sigo os quarteirões que separam a praça da igreja do cemitério a passos lentos. Subo as escadas
com o sol escaldante ardendo sobre as minhas costas e entro. Quase ninguém por aqui... Caminho
pelo corredor em direção ao altar. Este lugar me faz sentir tão bem...! Há quanto tempo eu não
confesso? Acho que vou vir aqui amanhã ou depois ver se o padre

— Martin?!

Um susto de morte se alastra pelo meu corpo na velocidade do pensamento. Ninguém jamais me
chamou de “Martin” fora do sítio. Quem é? Caralho! A polícia! Pode ser alguém da polícia! Me
encontraram!... Com o coração instantaneamente disparado, olho para trás em terror, temendo
descobrir quem me chama pelo nome proibido. Mas quando meus olhos pousam sobre a emissária do
meu nome secreto, o terror se transforma em pânico e o ar me parece escapar dos pulmões, assim
como o sangue congela em minhas veias:

— Alice...?!
Capítulo 9

Minhas pernas tremem e as lágrimas inundam meus olhos antes mesmo que ele diga qualquer
coisa além do meu nome. Estamos quase sozinhos na igreja. O padre não se encontra e apenas duas
pessoas rezam na primeira fileira, mas elas não nos olham quando chamo o nome de Martin mais alto
do que deveria ter chamado. Meus pensamentos são desconexos e minha emoção toma conta de mim
de uma maneira que me tira da minha racionalidade.

— O que você está fazendo aqui?! — ele pergunta.

Ele parece tão perplexo quanto eu. Sua pergunta ecoa na minha cabeça repetidas vezes, mas não
consigo responder: um choro entalado fecha minha garganta e paralisa minhas cordas vocais,
impedindo-me de produzir qualquer som que possa me justificar. Os olhos verdes dele engolem os
meus, e seu semblante atordoado me petrifica ainda mais; o tempo parece ter parado ao nosso redor.
Martin!...

— Eu te encontrei...! — sussurro finalmente, sem forças, e no mesmo segundo levo minha mão à
boca, silenciando-a para abafar o som do choro que vem convulsivo.

Ele se aproxima. Seus olhos marejados se tornam ainda mais verdes; sua proximidade me torna
ainda mais vulnerável; a consciência de que estou em frente ao homem por quem me apaixonei de
forma bestial me arrebata e me faz me lançar aos braços dele, que me segura e nada diz.

— Alice... — ele murmura em tom incrédulo.

Ouvir aquela voz, de cujo timbre eu já quase havia me esquecido, chamar meu nome só faz
piorar minha angústia... Mas... por que estou tão angustiada? Por que estas lágrimas estão caindo dos
meus olhos com tanta abundância? Isso não devia estar acontecendo! Eu já estava conformada, eu já
tinha aceitado!... Eu passei três horas andando entre as lápides daquele cemitério e ele não veio! Eu
sabia que ele não viria! Mas agora ele está aqui! Por que eu estou chorando?! Por que

— Vamos sair daqui — ele diz.

Tentando me controlar na medida do possível, saímos da igreja. Procuro esconder meu rosto no
ombro de Martin, que me abraça lateralmente de forma gélida, como se estivesse preocupado que
alguém fosse perceber o que realmente estava acontecendo, e nós dois seguimos rumo aonde ele me
leva sem dizer qualquer outra palavra. Minutos depois, então, dou-me conta de que estamos no Café
Petit, onde tenho vindo esses dias. Vamos para uma mesa ao fundo do local e, antes de eu me sentar,
sigo até o banheiro para lavar o meu rosto e tentar controlar essas emoções que se apossaram de mim
de forma tão incontrolável. Seco as últimas lágrimas, ajeito meu cabelo e volto à mesa, onde a
atendente conversa com Martin. Quando me sento, ela sorri.

— O mesmo de ontem? — ela me pergunta. Já nem me lembro do que pedi ontem, mas confio na
memória dela e confirmo com a cabeça, ainda um pouco encabulada.
Martin pede um suco de laranja e a atendente se retira. Martin está à minha frente. Ele está à
minha frente olhando para mim, buscando meus olhos, que não se mostram.

— O que você está fazendo aqui, Alice?

Respiro fundo e tomo a coragem necessária para encará-lo e ter essa conversa, finalmente.
Controle-se, Alice: você está aqui para isso! Você cumpriu a sua missão! Precisa se acalmar!

— Eu... eu vim te procurar.

— Como assim “veio me procurar”? Por que você “veio me procurar”?

As palavras frias me atingem e machucam, mas tento permanecer forte, embora as lágrimas das
quais eu acabara de me livrar pareçam querer voltar a escorrer dos meus olhos.

— Você me deixou em Alboena, eu voltei pra casa, minha vida continuou, mas... — controlo
minha respiração e meneio a cabeça querendo não admitir o que estava prestes a dizer a seguir: —
Mas você não saía da minha cabeça e isso já estava se tornando um inferno, por isso eu decidi vir
aqui, nesta cidade, porque eu sei que você nasceu aqui e...

— O que você sabe sobre mim? Com quem você conversou?

Ele está agitado. A atendente volta, trazendo o suco de Martin e uma xícara de cappuccino com
pães de queijo, exatamente o que comi ontem. Aproveito os instantes de silêncio para dar um gole na
bebida, uma mordida no pão de queijo e ter tempo para organizar meus pensamentos. Com a voz
ainda embargada, explico:

— Eu falei com o cara da pousada em que eu estou... falei com o barman daquele lugar em que
você me levou enquanto eu... estava com você... falei com o padre... Todo mundo sabe que você
existe, mas ninguém sabe falar nada sobre você. A única coisa que eu soube, que o padre me disse, é
que você vai ao cemitério todas as quintas de manhã... E hoje, num golpe de sorte, fui até lá... Te
esperei por três horas, mas você não apareceu... Depois voltei à igreja e já estava quase voltando
para a pousada quando te vi entrar e...

Interrompo-me. As lágrimas teimam em cair. Martin me olha fixamente.

— Eu acabei de sair do cemitério — ele diz. — Meu carro teve problemas e... — ele para por
um segundo. — Você não devia estar aqui, Alice. Isso é um erro! Você não devia ter me procurado!

— Eu tinha que te procurar, Martin! — exclamo, o que faz Martin olhar para os lados e me
censurar, bronqueando-me para falar mais baixo. — Você sabe o que é pensar em uma pessoa o dia
inteiro? o tempo inteiro? Martin: você está na minha cabeça, no meu trabalho, na minha casa, nos
meus sonhos, quando eu acordo, antes de eu dormir, quando eu converso com outros caras, quando eu
vejo qualquer homem de olhos verdes passando na rua, você tomou conta de mim de uma forma que

— Alice: não. — ele me interrompe cruelmente. — Isso não pode existir, isso não pode
acontecer, isso não pode... — outra pausa, essa para dizer algo que ele não diz.
— Martin...

— Não me chama desse nome.

— Eu não sei seu nome!

— Não sabe e não vai saber — a calma com que ele diz todas essas coisas me fere
profundamente. — Escuta bem o que eu vou dizer porque eu só vou dizer uma vez: seja lá o que
esteja acontecendo na sua vida; seja lá o que te deu na cabeça pra você vir aqui me procurar: foi um
erro. Você veio me procurar e conseguiu: me encontrou; espero que esteja feliz. Agora, assim que
sair daqui, você vai voltar pra sua cidade, voltar pra sua casa, voltar pra sua família, pros seus
amigos, pro seu trabalho, pro raio que a parta, e vai esquecer que você me viu aqui.

— Mas — não posso falar o nome dele. — Por que você tá me tratando assim?! Eu pensei que a
gente...

— Pensou errado. Você foi só uma mulher que eu sequestrei; não foi a primeira e não vai ser a
última—muito pelo contrário: já estou pesquisando quem vai ser a próxima, e já sei que, dessa vez,
eu não vou cometer o mesmo erro que eu cometi com você. Ter ido pra cama com você aquela noite
foi o pior erro da minha vida, e eu não estou disposto a fazer a mesma burrice outra vez. Fui claro?

Não tenho o que responder. Cada palavra chega aos meus ouvidos como um tiro, que aos poucos
minam minhas esperanças e quaisquer ilusões que eu possa ter construído ao imaginar que vir a esta
cidade resolveria alguma coisa.

— Agora eu vou levantar e vou embora daqui — Martin se levanta; abre a carteira, deixa uma
nota de vinte sobre a mesa e diz suas últimas palavras: — Sua busca chegou ao fim. Adeus.

Rapidamente, ele sai do café sem nem ter encostado em seu suco e me deixa sozinha à mesa.
Sem palavras, sem esperanças, sem misericórdia, sem ar, sem chão. Resto-me eu a mim mesma.
Permaneço catatônica, sentada, com os mesmos olhos vítreos inundados de lágrimas que se recusam
a cair. Todas as cores desaparecem ante a mim; minha ilusão de arco-íris é destruída por uma nuvem
negra de angústia e decepção que agora chove sobre minha alma nua. Sem ter outra coisa a fazer, saio
do café e sigo de volta para a pousada, onde me tranco no quarto pelo resto da manhã, da tarde e da
noite.

Dormir foi uma luta. O calor já não era mais problema, pois o ar condicionado dava conta de me
manter fria. As lágrimas que eu economizei durante toda a vida vieram em profusão, com juros e
multas por atraso. Meu coração parecia bombear ácido pelas minhas veias; a dor que tomou conta de
mim era quase física. Não liguei para ninguém. Não mandei mensagem para a Milena, não falei com
os meus pais, não entrei no Facebook, não fiz absolutamente nada: deitei sobre a cama quando
cheguei e sobre ela me prostrei até cair no sono, o que demorou a acontecer, mas aconteceu.

Acordei junto com o sol. Meu estômago estava vazio e doía, mas eu não sentia vontade de
comer. Talvez Martin estivesse certo... Isso tudo foi um grande erro; eu não deveria ter vindo atrás
dele. Ou talvez eu simplesmente não devesse tê-lo encontrado... Poderia ter sido melhor conservar
tudo o que aconteceu na minha memória. Também, não foi uma grande história de amor: foi uma
paixão, uma “paixonite aguda”, como diria minha mãe, que veio e se instalou no meu coração e,
como qualquer outra, iria embora, cedo ou tarde; eu poderia ter esperado. Agora fica essa sensação
de mágoa, de rejeição, de tristeza quase tangível... Talvez seja mesmo hora de eu ir embora.

Ele estava certo em tudo que disse afinal: foi tudo um erro. Ter transado com ele foi um erro, ter
tentado fugir do cativeiro foi um erro, ter pensado em procurá-lo foi um erro, ter feito essa viagem
foi um erro, tê-lo encontrado foi um erro, estar aqui nesta cidade agora é um erro... Eu preciso voltar
para casa, para as pessoas que realmente se importam comigo e me querem bem. Preciso de um
colo... Preciso da minha mãe. Não quero mais estar aqui... Acho melhor eu aprontar minhas malas e
procurar o rumo de casa ainda hoje. Mas, antes, é melhor assistir o sol nascer por mais um tempo...

Acabo cochilando novamente. Assim como no primeiro dia, quando acordo desse “cochilo” já é
tarde demais para tomar café por aqui. Ainda bem que no valor da diária não está incluso o café,
porque, até hoje, só usufruí do serviço uma vez... Não tem problema: fui muito bem acomodada aqui;
eles merecem o dinheiro que estou pagando, de qualquer forma. Ciente de que já é tarde para fazer o
desjejum na pousada, sigo a pé até o Café Petit, que também foi uma excelente descoberta. Adentro a
loja e a mesma moça dos outros dias me atende.

— Bom dia... — cumprimento sem muito ânimo.

— Bom dia! Vai querer o de sempre?

Pedir a mesma coisa duas vezes é o suficiente para tornar essa coisa “o de sempre”?

— Sim, pode ser...

— Pode se sentar; eu levo na mesa pra você.

Agradeço e caminho em direção à mesa ao lado daquela em que me sentei ontem. “Ontem”...
Quero pensar que essa palavra não existe, pelo menos até eu ir embora daqui. Se eu pegar a estrada
depois do almoço, ainda chego a tempo de conversar com a Milena e contar a ela toda a tragédia que
se deu nesta cidade fantasma... A atendente deixa a xícara ao meu lado e os pães de queijo à minha
frente.

— Tá tudo bem com o Miguel? — ela me pergunta.

— Miguel? Quem é Miguel? — respondo, aérea.

— O Miguel, ué, que estava aqui com você ontem... Vocês deixaram o dinheiro da conta em cima
da mesa e foram embora tão rápido! Pensei que tivesse acontecido alguma coisa...

Uma luz se acende na minha cabeça. Miguel... Miguel! Então é esse o nome verdadeiro dele!
Essa mulher o conhece!
— Ah, você conhece o Miguel? — pergunto, ainda abatida, mas curiosa, já começando a pensar
em um trilhão de coisas que não vão acontecer.

— Claro! Conheço ele há anos, ele vem sempre aqui!...

Ela o conhece! Ela o conhece “há anos”! Arregalo os olhos ao ouvir essa informação. Seguro-a
pelo braço desajeitadamente e peço que ela se sente ao meu lado. Não tem ninguém além de mim no
café, então ela se senta, assustada com o meu jeito desesperado.

— O que você sabe sobre ele? — pergunto.

— Como assim? Eu conheço ele faz um tempo, ele vem sempre aqui, mas a gente não é amigo
íntimo nem nada; a gente só conversa...

— O que mais? O que mais?!

— Ué, não sei... Ele não fala muito, né? Assim — ela sorri, desconsertada —, ele é muito
bonito, né? então é sempre bom conversar com ele... Mas é só isso. Mas por quê? Você é namorada
dele? Qual é o seu nome mesmo?

— Não, não sou namorada dele, não...; sou... tsc, ah, não sou nada. Meu nome é Alice.

— Alice?... Alice da onde? Alice publicitária?

Levanto uma sobrancelha.

— Não sei... Eu trabalho numa agência de publicidade, sim — respondo, desconfiada.

— Ah! — ela exclama e bate uma palma na outra. — Miguel já falou demais de você!

Oi?

— Como assim?

— Ué, você não é a Alice que ficou com ele uns dias e depois voltou pra cidade?

Não é bem essa a história.

— Sou (?).

— Nossa! Ele falou demais de você! Menina, ele ficou tão triste depois que você foi embora!
Nunca vi um homem daquele tamanho com uma carinha tão ruim...

Um nó de marinheiro começa a se formar na minha cabeça. Mas que história é essa?

— Mesmo? O que foi que ele disse?

— Bom, eu não me lembro muito bem, né? Mas ele disse que te conheceu numa festa e depois
vocês passaram uns dias juntos... Só que aí você teve que voltar pra sua cidade e ele ficou muito
triste, porque parece que ele tava gostando de você mesmo, né?

Uma nuvem de sentimentos começa a ebulir dentro de mim. Gostava muito de mim? Ficou muito
triste? Um homem daquele tamanho, com uma carinha tão ruim por causa de mim? Para depois vir
dizer que fui só mais uma mulher que ele sequestrou, e que estava planejando sequestrar a próxima, e
que era para eu ir embora e esquecer que ele existiu, porque tudo foi um erro? Meus olhos voltam a
lacrimejar, mas dessa vez não de dor: de ódio.

— Então — corto o assunto pelo toco; não quero mais ouvir uma palavra do que essa mulher
possa ter a me dizer. Quem esse cara pensa que é para fazer isso comigo? Fui só “mais uma”? Então
agora ele que me aguarde para ver quem é mais uma. — Eu vim pra cá essa semana pra tentar
conversar com ele, mas ele ainda tá meio magoado... Homens: você sabe como eles são, né?

— Sei; ô, se sei! — ela ri.

— Será que é fácil encontrar o endereço dele? Ele ficou meio chateado ontem, eu queria
conversar com ele pessoalmente, com mais calma...

— Claro! Eu tenho aqui! — ela se levanta e volta para trás do balcão, fazendo meu coração ir
de setenta a cem em dois segundos ao me dar aquela afirmação. — Ele sempre liga aqui pra entregar
na casa dele, sabe? — ela pergunta enquanto procura o endereço dele em uma pilha com um monte de
notinhas fiscais e outros papéis. — É esse aqui, ó: Rua Antonieta Azevedo, número 20.

Antonieta Azevedo, 20. Antonieta Azevedo, 20. Antonieta Azevedo, 20.

— Tá... Pra que lado fica, mais ou menos?

— Ó: você pega aqui a rua da praça, da igreja, e vai pela esquerda por uns três quarteirões.
Essa rua é uma sem saída, perto da fábrica de sapato; a casa dele é uma das últimas.

Ouço as informações com atenção. Antonieta Azevedo, 20, rua sem saída, perto da fábrica de
sapatos. Agradeço à moça inúmeras vezes, engulo meu café, deixo um pão de queijo para trás e saio
do local pisando duro. Meu sangue ferve nas minhas veias e meu coração parece bater na minha
garganta. Uma sensação de rancor, de desamor, de ira toma conta dos meus pensamentos. Por que
esse desgraçado mentiu para mim? Por que está agindo comigo assim, me fazendo de idiota? Ah, mas
ele me paga, ah se ele me paga.

Caminho às cegas, seguindo mecanicamente as instruções que a atendente me deu. Paro para
prestar a atenção devida no trajeto só quando vejo o que parece ser uma fábrica de calçados ao
longe. Começo, então, a procurar os nomes das ruas nas placas. Todas são sem saída... Não tem
ninguém por perto para me dizer qual daquelas é a que eu procuro. Olho de placa em placa até
encontrar uma, bem desgastada, colada na parede de uma casa sem pintura: “Antonieta Azevedo”.
Achei. É uma rua pequena, deve ter meia dúzia de casas. E a de Martin é uma delas. Sigo a passos
rápidos, ofegantes, até parar em frente ao número 20. Uma casa como outra qualquer. Tudo fechado...
Só falta ele não estar aqui. Não tem campainha; as janelas estão fechadas; o portão da garagem é
fechado, não consigo ver nada. Entro pelo portãozinho de grades que separa a rua da porta de
entrada, atravesso a pequena trilha ladeada por um projeto de jardim e bato três vezes à porta de
madeira. Aguardo. Meus pés inquietos pisam contra o chão repetidas vezes enquanto espero que
alguém apareça. Nada. Bato mais três vezes. Cruzo meus braços para disfarçar o nervosismo e tomo
meu tempo para ensaiar todo o discurso de ódio que eu tenho para disparar contra Martin, que não
atende esta maldita porta. Bato mais uma vez e, antes de minha mão suspensa no ar para dar a
terceira batida acertar a porta, essa se abre rapidamente.

Os olhos de Martin congelam em frente aos meus, mas estou tomada por uma aura de fúria tão
esmagadora que não tenho capacidade de sentir nada além de ódio. Entro na casa rápido feito um
relâmpago, percebendo que ele ainda procura meios para reagir à minha invasão ao espaço dele, e
atiro minha bolsa sobre o primeiro sofá que vejo.

— Alice, eu já não te falei pra ir embora?

— Cale a boca, Martin, quem vai falar agora sou eu—aliás, não, não: Martin é um nome
proibido, não é, Miguel?

O olhar dele se arregala ainda mais. Martin fecha a porta atrás de si e se aproxima de mim,
visivelmente atordoado, mas tentando manter aquela calma insuportável.

— Como você encontrou minha casa? Como sabe o meu nome?

— Como você tem coragem de fazer isso comigo, Martin—ou Miguel? Você me sequestra, você
transa comigo, você vira minha vida de cabeça pra baixo, depois você fala sobre mim com uma
garçonete e agora me pede pra esquecer que você existe, que foi tudo um erro, que eu fui o pior erro
da sua vida?!

— Alice...

— “Alice” porra nenhuma! Eu vim pra essa porcaria de cidade feito uma idiota pra te procurar e
quando eu finalmente te encontro tudo que você tem pra me oferecer é desprezo, falando que eu sou
uma qualquer quando na verdade você foi chorar as pitangas pra uma garçonete dizendo que ficou
triste depois que eu fui embora?

— Alice, me escuta.

— Eu não quero te escutar, Martin—ou Miguel! Eu quero que você ouça, eu quero que você
ouça muito bem—não: eu quero você sinta a raiva que eu tô sentindo! Ontem eu chorei o dia inteiro
depois que você me disse aquilo tudo naquele café. Eu estava disposta a ir embora hoje e esquecer
isso tudo até que tive uma conversa com aquela mulher e ela me contou essas coisas e eu descobri
que você estava mentindo pra mim o tempo todo. Você não tem noção do que significa isso, Martin?
Você ia me fazer ir embora daqui pensando que toda essa história foi mesmo um erro, uma mentira,
coisa da minha cabeça?! Por que você tá fazendo isso, Martin? Me fala! me explica, me faz entender!
— falo aos berros, completamente descontrolada.
— Sai da minha casa, Alice — Martin abre a porta novamente e dá passagem para que eu me
retire.

— Eu não vou tirar o pé daqui enquanto você não conversar comigo feito homem!

— Eu não tenho nada pra conversar com você e já te pedi pra sair; não vou pedir outra vez.—
Covarde... Você é um covarde, sabia? Você não tem coragem, não tem peito pra me encarar, não tem

— Cale a boca, Alice, e vá embora daqui — ele me corta e acena com a mão para que eu saia.

— Eu só saio daqui arrastada!

— Ah, é? Não seja por isso.

Martin vem em minha direção e me puxa pelo braço de uma vez, fazendo-me gritar feito uma
louca:

— Me solta, seu filho da mãe, cretino, idiota! Socorro! Socorro! Me solta!

Faço força para tentar permanecer parada, mas ele é mais forte que eu. Quase alcançando a
porta da sala, começo a espernear e a distribuir tapas e pontapés ao som de pedidos histéricos para
que ele me solte. Ele se esquiva e se defende como pode, mas não larga meu braço. Seu punho forte
começa a me machucar, e, desprovida de qualquer racionalidade, acerto-lhe um tapa em cheio no
rosto.

Ele para. Eu também. Estou ofegante, exaurida, fora de controle. Ainda segurando meu braço,
Martin me olha com olhos cheios de cólera. Meus dedos estão marcados no rosto dele. Por um
segundo, temo. Se esse homem me bater, só sobra minha carcaça!... Mas, com um movimento rápido,
Martin bate com força a porta da sala; e ao som do estrondo forte, me puxa abruptamente para si e
cessa meu escândalo com um beijo. Sua boca furiosa envolve a minha e me imobiliza por completo.

Eu não quero beijá-lo: eu quero brigar com ele, eu quero que ele me ouça, que ele sinta o que eu
estou sentindo, que ele perceba todo o mal que ele me fez! Mas quando ele me traz para si e me beija
e me coloca contra a parede com as duas mãos no meu rosto, todo o meu ódio se esvai aos poucos e
logo cede lugar àquele desejo devorador que nos uniu naquela Casa. Toda minha ira e toda o meu
descontrole são canalizados naquele beijo. O corpo de Martin contra o meu me faz relembrar o
motivo de eu ter querido voltar a esta cidade. Seu corpo, seu cheiro, seu sabor, tudo; e a consciência
de que, apesar do breve sofrimento, é o corpo dele que agora está contra o meu, é o cheiro dele que
eu estou sentindo, é a boca dele invadindo a minha, desperta em mim o mesmo instinto que me levou
à cama dele na primeira vez.

Ele me solta e interrompe nosso momento de torpor. Ainda com as mãos no meu rosto, ele me
olha nos olhos, ofegante; os meus, sempre marejados, olham os dele de volta e confirmam que aquilo
era exatamente o que eu queria, embora não quisesse admitir. Já que eu chegara até ali, eu iria até o
fim. Vendo a hesitação no olhar dele, reato nosso beijo e, dessa vez, assumo o comando. Afasto-o de
mim e, dominada por um espírito ferino, empurro-o para o sofá, onde ele cai sentado. Completamente
descomedida, sento-me sobre ele e tiro sua camisa, ainda trocando aquele beijo desesperado. Ele
explora meu corpo com suas mãos grandes e em dois segundos tira meu vestido floral, deixando-me
apenas de lingerie.

— Eu senti tanto a sua falta... — digo, arfante, em meio a inúmeros beijos.

— Alice...

Não deixo que ele conclua: calo-o com outro beijo. Não quero que ele estrague este momento e
realmente não me interessa, agora, saber o que ele tem a me dizer; só quero aproveitá-lo, nem que
seja pela última vez.

Traço o caminho do tronco nu dele com a boca até alcançar o botão da calça. Ajoelho-me no
chão da sala e desabotoo a peça; abaixo o zíper, afasto o tecido e logo encontro seu membro rígido
protegido pela cueca. Procuro os olhos do Martin e eles parecem aguardar ansiosos pelo que estou
prestes a fazer. Sem demora, tiro seu pênis pulsante de dentro da cueca e o abocanho de uma vez,
fazendo com que Martin solte um gemido forte e se comprima involuntariamente, segurando minha
cabeça contra si. Agarro suas coxas e o chupo vorazmente. Deslizo a língua por toda sua extensão,
que mal cabe na minha boca, tamanha é minha pressa. Ele movimenta sua pélvis contra o meu rosto,
como se estivesse penetrando minha boca, e me deixa ainda mais afoita.

De súbito, Martin me segura pelos braços e inverte o jogo: me põe sentada sobre o sofá e se
ajoelha no chão para me retribuir o agrado. Ele se desfaz da minha calcinha e afasta as minhas pernas
sem muito cuidado, e logo sinto sua língua úmida me invadir e enviar arrepios ao longo da minha
espinha. Agarro-o pelos cabelos e logo sou possuída por uma força que me faz dizer a Martin
obscenidades irreproduzíveis. Absorto pelas minhas palavras e pela sede pelo meu sexo, ele explora
minha intimidade com a língua e me leva à beira do delírio. E logo ele me penetra dois dedos
enquanto lambe meu clitóris, fazendo-me contorcer todos os músculos do meu corpo. Parecemos dois
animais selvagens, indomáveis, famintos um pelo outro.

Instantes depois, ele se levanta e termina de tirar a própria roupa. Sem pudores, ele se achega ao
sofá e aproxima seu corpo do meu, encaixando-se dentro de mim sem qualquer dificuldade. Quando
sinto seu membro ereto me invadir sem delongas, agarro Martin pelos braços e fecho os olhos. Ele
logo beija minha boca entreaberta enquanto me penetra com força e velocidade. Envolvo-o com um
abraço desajeitado e sinto a perna dele roçar contra a minha perna fora do sofá. Arranho suas costas
involuntariamente e ouço o urro que ele solta ao sentir minhas unhas cravarem em sua pele. Sua dor é
expressa na maneira que ele me possui, parecendo estar prestes a entrar em mim literalmente. Ele
morde o lóbulo da minha orelha e sussurra meu nome, fazendo-me abraçá-lo ainda mais forte.
Chamo-o de volta, inebriada em um devaneio extraterreno, um prazer sem precedentes, que me faz
sentir que tudo fez sentido e valeu a pena: estou exatamente onde eu queria estar.

Sem me deixar sair dele, Martin me envolve pelas costas e nos conduz até o quarto, onde deita
meu corpo sobre a cama e me olha no fundo dos olhos outra vez antes de me beijar com paixão. Ele
se ajoelha à minha frente, afasta uma perna minha e leva a outra para cima de seu ombro, dando-me
uma vista de seu tronco suado inteiro. Ele está incansável, lindo, irresistível, e me penetra de joelhos
com força, com cadência, fazendo-me agarrar os lençóis brancos da cama arrumada. Minha
expressão angustiada não demora a denunciar a chegada do orgasmo, que vem como um vulcão
enquanto Martin entra e sai de mim sofregamente.

Percebendo que alcancei o ápice, ele traz meu corpo para perto de si e me abraça ainda
ajoelhado. Envolvo minhas pernas ao redor dele e o beijo enquanto acaricio seus cabelos molhados
de suor. Aos poucos, retomo o fôlego e começo a me movimentar contra o pênis dele, que não saiu de
mim por nem um instante. Renovadas as minhas energias, empurro-o contra o colchão, fazendo-o
deitar-se na cama com o corpo esticado. Apoio minhas mãos no tórax dele e monto em Martin como
uma amazona valente, observando seus olhos fechados se espremerem enquanto suas mãos fortes
seguram minha cintura. Observá-lo de cima para baixo, olhando dentro da minha alma com aqueles
olhos de esmeralda, denunciando em seu olhar todo o prazer e todas as entrelinhas que existem no
nosso sexo desesperado me faz desejá-lo ainda mais. Ele segura meus seios enquanto cavalgo seu
pênis rígido feito pedra e me diz palavras gentis acompanhadas de esporádicas pequenas delícias,
levando-me a um estado de enlevo espiritual inédito.

Percebendo minha exaustão, ele me tira de cima de si e me deita de lado, dando-me um beijo
grato e apaixonado antes de voltar a estimular meu clitóris com a língua. Sinto-me esmorecer,
esgotada de tanto prazer. Ele me lambe e me chupa com cuidado, com carinho, até, e logo torna a me
penetrar com os dedos, sem tirar a língua do lugar certo. Fecho os olhos e deixo-o fazer de mim o
que quiser, pois ele sabe exatamente o que fazer. Ouço-o se levantar e se aproximar de mim
novamente. Com os olhos entreabertos, vejo seu corpo tomar conta da minha visão e seu pênis se
aproximar do meu rosto. Instintivamente, abro minha boca suficientemente e logo ela é preenchida
por aquele membro ereto, que serve a mim e a Martin como fonte de prazer. Ele se ajoelha sobre
mim, deixando minha cabeça entre suas coxas, e penetra minha boca com cuidado. Agarro suas coxas
firmes e tenho uma vista plena de seu corpo suado, que se contrai involuntariamente ao som de
inúmeros sibilos entredentados e expressões verbalizadas de prazer.

— Eu vou gozar... — ele me avisa minutos depois.

Ele se afasta de cima de mim e se ajoelha com meu quadril entre suas coxas. Seu gozo atinge
meu seio e meu pescoço. De olhos fechados, cabeça jogada para trás, músculos retesados, Martin
tem seus últimos espasmos. Exaustos, estamos nós dois. Ele se deita sobre mim e acaricia meu
cabelo. Não trocamos palavras pelos minutos que seguem. Tomo meu tempo para digerir tudo que
acabou de acontecer. Encontrei Martin, ele me desprezou e agora nós acabamos de transar...

A felicidade me contamina. Jogamo-nos para o lado e eu me aconchego no ombro de Martin e


logo começo a me esquecer de como era a sensação de todos aqueles sentimentos ruins que eu sentira
nas últimas doze horas.

— A gente tem que conversar, Alice... — ele diz com voz branda, ainda alisando meu cabelo.

— É, eu sei...

— Vamos tomar um banho e fazer isso, então?

Concordo com um meneio. Levantamo-nos devagar e seguimos em direção ao banheiro da casa


para uma ducha gelada.

Tomamos banho juntos. Parece-me, ainda, uma cena estranha, estar no mesmo espaço que
Martin, aqui, agora, nesta cidade, depois de ter saído de Veredas sem ter certeza nenhuma de que eu o
encontraria aqui ou em qualquer canto do mundo... Mas estou aqui, ele está aqui, à minha frente,
agora atrás de mim, ensaboando minhas costas, passando xampu masculino no meu cabelo,
assoprando espuma no meu rosto, me empurrando para fora do chuveiro, me fazendo rir e quase
escorregar dentro do box. Estou tão feliz que minha felicidade quase me entristece. Que falta eu senti
deste homem!...

Saímos do chuveiro, trocamos de roupa e voltamos para o quarto, onde Martin—Miguel:


preciso me acostumar a me referir a ele como Miguel agora; onde Miguel foi esperto o bastante para
instalar um ar condicionado. Deitamo-nos na cama, ligamos a TV, que transmite o noticiário local, e
permanecemos deitados, um ao lado do outro, esperando que alguém comece o diálogo, mas não
querendo macular a paz deste momento tão precioso.

— Você é maluca, Alice... — Miguel diz enquanto acaricia meus cabelos.

— Eu sei...

Essas são as únicas palavras que dizemos durante algum tempo. Continuo confortável no abraço
de Miguel e, após alguns instantes, ele me pergunta:

— E agora?

Não sei dar uma resposta precisa. Meus planos estavam preparados até o momento do nosso
(não-)encontro—nem a possibilidade de nós irmos para a cama de novo eu havia imaginado. De
agora em diante, eu não sei mesmo o que pode acontecer.

— Agora eu não sei...

— Você sabe que a gente não pode ficar junto, não sabe?

Não quero admitir, mas...

— Sei... — afasto-me um pouco dele, deitando-me de barriga para cima, com as mãos cruzadas
sobre o estômago. — Você me confunde, sabia?

— Por quê?

— Porque eu nunca sei o que você sente, o que está pensando, o que tem vontade...

Miguel se silencia por um minuto, processando a resposta que dará ao que eu disse.

— É complicado, Alice... Você sabe que eu... sou um homem de negócios.

— E por quê? Por que você faz isso? Você é um homem tão lindo, tão inteligente, não precisa
fazer isso!

— Eu sei... — Miguel suspira e se vira para o meu lado, olhando-me pelo meu ângulo lateral;
meus olhos miram o teto, pensativos. — Eu não tenho muitas perspectivas na vida... Eu sei que eu
vou morrer cedo—isso se a polícia não me pegar antes.

— Por que morrer cedo? — meus olhos encontram os dele. — Você tem alguma doença?

— Não, não é isso... É que é perigoso. E eu não quero te envolver nisso, nesse perigo, nessa
vida bandida... Não quero te prejudicar. Por isso acho que a melhor coisa... seria... a gente não se ver
mais.

Meu coração é tomado por um aperto gelado, que me faz arregalar os olhos e contrair a testa.

— Você tá dizendo que é pra gente não se ver de novo de hoje em diante, é isso?

— É... — ele responde em meio a um suspiro e abaixa os olhos.

— Mas por que isso? A gente pode dar um jeito!

— Alice, que jeito? Eu vivo fugido; por mais que as pessoas não procurem a polícia enquanto
estão comigo, elas procuram depois, ou você acha que seu pai não está tentando me encontrar?

— Sim, ele está, mas eu já dei todas as informações falsas possíveis pro detetive!

Miguel me fita por alguns segundos e sorri.

— Você fez isso?

— É claro que eu fiz! Acha que eu quero te ver preso?

— Ué, não sei, afinal você tentou fugir... — ele responde, passando a olhar para o teto assim
como eu. Dessa vez são os meus olhos que procuram os dele.

— Eu não fiz por mal... — tento me justificar. — Só me bateu um desespero no dia seguinte
porque, poxa, eu tinha transado com o cara que me sequestrou! Isso não é normal...

— Não é mesmo. Já procurou ler sobre Síndrome de Estocolmo?

— Já e você tem culpa nisso, não venha me responsabilizar, não.

— Eu? Que culpa eu tenho? Eu me esquivei de você o tempo inteiro!

— Foi você que veio pra cima de mim.

— Foi você que me bolinou primeiro!

— Tá dizendo que eu te estuprei?


— Parcialmente.

Fazemos silêncio por alguns segundos, mas logo explodimos, nós dois, em gargalhada. Se
alguém tem culpa nessa história, embora eu ache “culpa” uma palavra muito pesada, especialmente
para se referir ao que existe entre mim e Miguel, essas pessoas somos nós dois. Eu não deveria ter
feito certas coisas, ele não deveria ter feito outras, mas, no final, nós dois acabamos fazendo o que
ambos queríamos.

— Mas você está certo — continuo. — Eu não devia ter tentado fugir...

— Talvez tenha sido melhor assim...

— Eu vi que você ficou magoado; eu não queria te magoar.

— Eu sei... Mas minha mágoa... — ele para por um momento para formular o que vem a seguir.
— Foi um sentimento bobo. Digo, eu não tinha motivos pra me sentir daquele jeito, sabe?... Eu fiquei
com raiva, é lógico, mas não tinha por que ficar triste, porque eu sabia que, por mais que a gente
tivesse transado, você era só uma refém tentando fazer o que qualquer refém faria se tivesse uma
chance...

— Mas uma coisa você entendeu errado: eu não transei com você só pra tentar fugir no dia
seguinte.

— Eu nunca disse isso.

— Disse sim-senhor.

— Sério?

— Você ficou o caminho todo de volta pra Casa falando que foi um idiota e que era lógico que
eu ia tentar te seduzir pra tentar fugir no dia seguinte.

— Ah, mas isso era lógico mesmo—o que não quer dizer que foi verdade só porque foi lógico.

Agora nós dois olhamos para o teto, com as mãos cruzadas sobre a barriga e as pernas postas
uma sobre a outra; ombros lado a lado; TV ligada e atenções divididas.

— E agora, Joe Lynn? — pergunto.

— O que tem a ver a Jolene?

— Não, não “Jolene” mulher: “Joe Lynn” — soletro as palavras com o dedo indicador,
rabiscando o ar, para que Miguel entenda meu trocadilho —, dois nomes; masculino.

— Ahhh, que espertinha... Mas ainda não entendi.


— É sua música, ué. Você estava escutando no rádio quando a gente estava vindo pra cá aquela
vez.

— E daí?

— A música não diz “Eu tinha que ter esta conversa com você; minha felicidade depende de
você e no que quer que você decida fazer, Jolene”?

— É.

— Então, Joe Lynn...

Ele balança a cabeça afirmativamente.

— Você é muito esperta, já falei isso, né?

— Já.

Breve silêncio.

— Pois é, minha Jolene... — outro suspiro. — Eu continuo achando que o melhor é a gente se
afastar, ainda mais agora que você sabe onde me encontrar.

— Mas por quê? Você acha que eu vou fazer alguma coisa contra você?

— Não acho, mas acho que outras pessoas podem... Talvez eu até me mude daqui agora. A
polícia não é boba, Alice.

— A gente pode se falar por telefone, por e-mail, eu posso vir aqui de vez em quando, a gente
pode dar um jeito!

— Tudo isso leva a mim de um jeito ou de outro; eu não posso me arriscar...

Ele está certo. O que ele faz é errado, é lógico que é errado—é crime! Mas eu não quero
prejudicá-lo de nenhuma maneira...

— Eu vou pensar em um jeito, tá bom? — digo.

— Tá... — o tom dele é de desesperança, mas eu vou pensar em algo, ah! se vou.

•○•

Passamos aquele dia todo juntos. Não conversamos sobre assuntos difíceis ou situações futuras
que ainda precisarão de tempo para ser resolvidas; conversamos sobre outras coisas. Conversamos
sobre a cidade, sobre a vizinhança, sobre morar em um lugar tão pequeno... Matamos a saudade em
todos os sentidos que se possa imaginar, e a imaginação há de ir tão longe que até visitamos a Casa.
Miguel me explicou que aquela casa é uma espécie de herança do pai dele, que já faleceu, e que, por
ser exatamente no marco zero do Nada, ele a escolheu para levar seus reféns. Miguel, ou, nesse caso
especificamente, Martin, fala de sequestro como quem fala de qualquer outro tema do dia a dia. Para
ele, isso é como falar sobre trabalho, literalmente. Tentei dissuadi-lo dessa ideia de profissão, mas
algo parece fazê-lo querer ficar. Lembrei-me da mentira que contei ao homem do bar, dizendo que eu
procurava um modelo para uma campanha, e fiz a proposta sério, mas Miguel recusou. Ele ganharia
um bom dinheiro sendo modelo, e, pelo menos na minha agência, a ele nunca faltaria trabalho... Mas
ele recusou, e não gosta de conversar muito sobre esse assunto ou sobre dinheiro. Curiosa, porém,
ainda estou em saber o que ele fez ou vai fazer com o dinheiro do meu resgate. A caminhonete branca
ele não trocou; a casa em Amistad é simples como outra qualquer, apesar do ar condicionado no
quarto, e as roupas dele também não têm nada de extravagante. Quem o vê na rua, como todos aqui
veem, acreditam-no como um homem sem qualquer distinção dos demais, e isso, de certa forma, me
encanta, pois acho que eu, mera mortal, jamais conseguiria manter um disfarce dessa magnitude por
tanto tempo. Mas Miguel consegue...

Estes são nossos últimos momentos juntos. Ainda é sábado, mas prefiro ir embora e aproveitar o
meu domingo em Veredas, afinal tenho muita coisa para conversar com Milena, que é a única pessoa
com quem posso falar sobre isso abertamente. Depois de fazer meu check-out na pousada e me
despedir do padre (é claro que eu tive que ir agradecê-lo por ter me dado aquelas dicas, e é claro
também que o barman deu um sorriso do tamanho do meu quando percebeu que eu finalmente
encontrei quem eu estava procurando quando eu e Miguel passamos lá ontem à noite, e é claro que a
garçonete (Margarida, o nome dela) há de ter um espaço eterno no meu coração por ter me dado o
endereço de Miguel...), estou agora na porta da casa de Miguel, que me olha de frente, com um misto
de sentimentos no semblante, mãos nos bolsos e nostalgia no ar.

— Então é isso... — digo após um profundo suspiro, encostada à porta do meu carro.

— É isso... — ele responde em tom parecido com o meu.

— Espero que a gente se veja de novo, um dia.

— Não espere... — ele diz com visível pesar.

Sei que a intenção dele é verdadeira, mas quero acreditar que o que vivemos aqui, nesta cidade,
durante um único dia, seja motivo o bastante para fazê-lo repensar todas essas decisões que já estão
previamente tomadas antes mesmo da minha partida. Procurando em minha bolsa por um segundo,
encontro um cartão de visitas meu e entrego a Miguel.

— Caso você mude de ideia...

Ele segura o cartão e o olha com cuidado, como se lesse e relesse cada palavra várias vezes.
Ele o guarda no bolso da camisa, ao lado do coração, e balança a cabeça afirmativamente. Não sei
bem como reagir a esta despedida. Não quero parecer muito emocional, pois tenho certeza de que
vou acabar chorando, e não posso encerrar essas horas tão sublimes que passamos juntos com
lágrimas. Quero que tudo isso fique na minha memória com um sorriso, com uma saudade boa, não
com a ideia de que esta é a última vez que vou vê-lo.

— Até mais, então... — finalizo.

Miguel se mantém calado e se aproxima de mim, envolvendo-me no abraço mais sincero que já
trocamos até aqui. Seguro-o forte contra mim e acaricio suas costas largas de olhos fechados,
tentando segurar as lágrimas que não quero derramar.

— Até mais...

Segurando meu rosto com as duas mãos, ele me beija a testa, o rosto e os lábios pela última vez.
Sorrio sem alegria e desativo o alarme do carro, que apita duas vezes atrás de mim. Ele se afasta
dois passos, dando-me o espaço de que preciso para adentrar o veículo. Aceno em despedida pelo
vidro e dou partida. Pelo retrovisor, observo a imagem de Miguel diminuir ante ao espelho até
desaparecer por completo quando faço a curva à direita para pegar a estrada que me levará de volta
à minha vida, que agora seguirá com a ausência indefinida desse sequestrador de corações, por quem
já é inútil negar minha insensatíssima paixão.
C a p í t u l o 10

Voltei para Veredas com o coração nas mãos. Dirigi sem pressa, reprisando em looping os
momentos tão poucos que revivi com Miguel. O destino foi muito bom comigo por permitir que tudo
acontecesse de forma que eu o reencontrasse e pudesse esclarecer algumas coisas... Uma pena termos
tido tão pouco tempo e ele ter posto na cabeça essa ideia de que não é bom que nós nos vejamos
mais. Mas não posso me deixar abater por isso; preciso manter minha esperança e acreditar que nós
vamos nos encontrar de novo. É claro que eu gostaria de tê-lo perto de mim o tempo inteiro, ou pelo
menos sempre que eu quisesse; é claro que eu gostaria de ter certeza de que ele vai estar lá para mim
quando eu procurar, mas... É difícil colocar na cabeça que não é bem assim que as coisas são.

De qualquer modo, é impossível dizer que estou triste. Claro: não estou jorrando felicidade, mas
foi maravilhoso o que aconteceu, mesmo tendo durado pouco tempo. O que tento fazer agora é manter
minha cabeça no trabalho, na minha vida e na minha espera... Estou agora em constante estado de
espera, aguardando que ele venha a mim de alguma forma... Quando contei a Milena sobre tudo que
aconteceu, ela mal acreditou. Fosse alguém me contando uma história como a minha, talvez também
me custasse acreditar. Às vezes eu ainda me pego pensando que isso tudo é loucura, que eu não
deveria ter feito nada disso desde o começo, mas, por outro lado, não demoro muito a me convencer
de que foi o maior acerto da minha vida, mesmo que tudo tenha começado errado.

Hoje faz três semanas... Três semanas que eu voltei de lá. Não sei, acho que é coisa da minha
cabeça, mas parece que eu espero por um sinal de Miguel desde o dia seguinte à minha volta. Ele
disse que eu não deveria esperar encontrá-lo de novo, mas pedir isso a um coração aflito como o
meu é uma crueldade. Olhando por esta janela do meu escritório, vendo a vida acontecer lá embaixo,
eu me pergunto onde ele está, o que está fazendo, se está pensando em mim, se algum dia vamos nos
reencontrar... E saber que todas essas perguntas permanecerão sem resposta por tanto tempo quanto
Miguel quiser me faz sentir um buraco abrir no peito, buraco este que nada além dele consegue
preencher.

No final das contas, acho que estou carente. Sim, é claro que estou carente, e só ele pode
consertar isso. Edgar tem sido muito legal comigo, tanto antes da minha viagem quanto depois da
minha volta. Ele disse que (também) me esperaria e, de fato, ele esperou e ainda espera. Quando me
viu na segunda-feira posterior à minha volta, ele estava lá com seu lindo sorriso me perguntando se
estava tudo bem, se eu havia resolvido tudo que eu queria resolver... Restou-me dizer que sim, sem
dar muitos detalhes. Sinto que eu e Edgar sempre vamos ter muito o que conversar, e sinto também
que eu estou devendo isso a ele, mas, depois que voltei de Amistad e de tudo que aconteceu lá, não
consigo olhar para ele com os mesmos olhos, pois sei que os olhos com que ele me olha são
diferentes. Não me arrependo amargamente de ter transado com ele, mas também não quero que isso
se repita, e vejo em todos os traços dele que é exatamente isso que ele quer. Creio que eu deveria ter
uma conversa franca com ele e dizer que o que ele quer que aconteça não vai acontecer, mas também
receio partir o coraçãozinho dele, especialmente porque somos colegas de trabalho e ele é um
companheiro excelente; cuidou de tudo enquanto eu estava viajando com mãos de ouro. E meu pai o
adora. Ele esteve aqui enquanto eu viajei, para ver como o pessoal estava se virando sem mim, e
ficou encantando com o Edgar. Dia desses, enquanto jantávamos lá em casa, ele me falou que “o
rapaz que ficou no seu lugar é mesmo muito bom”. Fico feliz por e orgulhosa dele ao mesmo tempo,
mas também um pouco frustrada por não querer dar a ele o que ele quer.

Anteontem, aliás, Evaristo, aquele detetive, investigador, sei lá, que meu pai contratou para
descobrir o paradeiro de “Martin” esteve lá em casa para conversar comigo. Seja impressão minha
ou não, sinto que estou sendo testada por esse cara. Ele me perguntou se eu me lembrei de mais
alguma coisa desde a nossa última conversa e me fez umas perguntas bastante parecidas com as que
fez da primeira vez, como se estivesse colhendo meu depoimento pela segunda vez para ver se eu me
contradigo em algum ponto. E eu não tenho certeza de se dei todas as respostas iguais às que dei da
primeira vez, mas espero ter me contradito pouco, se o fiz. Sugeri ao meu pai, depois, encerrar essa
investigação, que o cara já devia estar longe, mas ele insiste em manter a busca. Não sei no que isso
vai dar, mas espero que dê em nada, que de problemas eu já estou cheia.

Eu não sei se faço bem ou mal em nutrir esperanças. Hoje faz vinte dias que nos vimos e eu
também não sei por que é que estou contando. Será que eu vou ficar nisso para sempre? Contando os
dias, depois as semanas, depois os meses, quiçá até os anos? Talvez fosse melhor eu seguir a
recomendação dele e não esperar por nada, mas não consigo ser fria assim, e ele sabe disso. Poxa!...
O pior é que não posso nem culpá-lo, afinal não posso dizer que ele me iludiu ou que me fez
promessas vazias: ele foi sincero o tempo todo e me avisou que eu não deveria esperar; estou
esperando porque quero. “Porque quero”, né? afinal quem é que manda no coração? Mas não é nada
bom viver essa vida de espera... É uma situação muito instável. Às vezes estou bem, muito bem sem
ele; às vezes até me esqueço de que ele existe por um dia ou dois, mas basta uma lembrança
involuntária daquele dia que passamos juntos, e dos outros que também passamos juntos, e logo meu
bem-estar-sem-ele vai por água abaixo.

Onde é que eu fui amarrar meu jegue, hein? Num mundo de sete bilhões de pessoas, eu fui me
apaixonar justo por um bandido... Tá certo que, dessas sete bilhões, preciso excluir do número as
mulheres. E as pessoas que moram em outros países. E os gays. E os que não estão na minha área de
interesse e de alcance geográfico. E os que não me atraem fisicamente. Bom, no final das contas o
número de candidatos reduz-se drasticamente, mas, mesmo assim, ter me apaixonado justo pelo
Martin? E pelo Miguel, também, que agora eu tenho que considerar que eles são duas “entidades”
diferentes: primeiro conheci o Martin, agora conheci o Miguel, e parece que o que senti transando
com o Miguel foi ainda mais arrebatador do que o que senti com o Martin... Talvez por ter sido com
o verdadeiro eu dele, sem codinomes, sem disfarces... Ai ai. Ele é um filho da mãe; um filho da mãe
tão grande que não me deu nenhuma pista, sequer deixou um indício de que eu não tô sozinha nessa.
Eu tenho sentimentos por ele, afinal, não é só tesão. É ruim admitir isso, eu sei, mas é a verdade.
Queria tanto saber o que ele pensa, o que ele sente... Ah, que vontade de ser um neurônio só para
saber o que se passa dentro daquela cabeça!

Hoje o dia não está nada bonito e eu estou cansada. E chateada, também. E meio carente, como
sempre. Não sei; olho por esta janela e só tenho vontade de estar em casa, deitada, comendo
chocolate, assistindo a qualquer filme... Saudades do tempo em que eu poderia fazer isso. Tive duas
reuniões hoje, minha cabeça está meio pesada; mas ainda vou precisar ficar mais, pelo menos, meia
hora aqui se não quiser levar serviço para casa ou deixar para amanhã. Paciência. Um longo suspiro
me acompanha até a cantina, onde tomo um café forte para ver se acordo. Já são dez para as seis, o
pessoal já está indo embora. Volto para a minha sala e continuo o que eu estava fazendo. Agora criei
mais um hábito não muito saudável: comecei a ouvir as mesmas músicas country que o Miguel ouve.
Eu sei, eu sei: isso é só meu cérebro buscando meios de me fazer pensar nele contra (contra?) minha
vontade, mas é que a música é realmente boa, de alguma forma. É uma sensação nostálgica, que
combina com aquela cidade, que, por acaso, é onde encontrei Miguel... Sempre coloco “Jolene” para
tocar primeiro, depois deixo qualquer lista de reprodução aleatória rolando no YouTube e meu
pensamento viaja, viaja...

— Alice?

— Oi?

Edgar me chama. Já são seis e vinte; só estamos eu, Edgar e mais duas ou três pessoas no
escritório. Trabalhando, mesmo, só eu.

— Você já tá indo embora? — ele me pergunta.

— Não, ainda vou ficar mais um tempo aqui resolvendo umas coisas, depois vou pra casa... Por
quê?

— Pra saber. Você precisa de ajuda?

Minha cabeça não está muito legal, e sei que Edgar é um menino bom. Não será muito abuso eu
pedir que ele me ajude, sim?

— Já passou do horário, Edgar, pode ir embora; eu me viro aqui sozinha. Obrigada.

— Não, qu’é isso! Eu também tô respondendo e-mails ainda... Assim que eu terminar eu passo
aqui e vejo o que posso fazer por você.

Um fofo esse menino... E eu ainda estou devendo explicações a ele. E ele foi cavalheiro o
suficiente para não me cobrar nada, mesmo sabendo que, de certa forma, ele tem direito a uma
satisfação, vai, afinal não é todo dia que se transa com uma colega de trabalho e, depois, ela vai
viajar por uma semana após ter ouvido de você um “Eu te espero” e, no fim, você fica sem qualquer
justificativa. Talvez eu aproveite este momento que vamos ficar a sós e tenha essa conversa com
ele... Aliás, nós vamos ficar a sós, hein? Agora já não sei se isso é tão boa ideia assim. Não gosto de
ficar a sós com ninguém, imagina com quem eu sei que tem segundas intenções para comigo. A não
ser que ele já não tenha mais intenções, afinal já faz um tempinho que voltei e nem eu nem ele
tocamos no assunto. Se ele estiver fazendo a linha “Para bom entendedor, meia palavra basta”,
embora nem meia palavra eu tenha dito, ele nos poupa a fadiga de ter uma conversa um tanto quanto
desagradável... Enfim.

Edgar termina de responder os tais e-mails e nós vamos até a sala de reuniões, onde tem mais
espaço e é mais confortável. As luzes dos outros escritórios estão apagadas, o andar está vazio e só
se ouvem nossas vozes ecoando pelas paredes do prédio. Extremamente profissional, Edgar real e
literalmente me ajuda a adiantar as coisas que minha cabeça cansada já não consegue processar.
Coisa boa é ser jovem, não é, não? Não que eu seja velha, mas... Argh! Preciso parar de usar a idade
dele como argumento para tudo, seja coisa boa ou ruim: Edgar é só quatro anos mais novo que eu.
Quando ele nasceu, eu ainda nem tinha saído das fraldas. Preciso treinar meu cérebro a parar de usar
essas justificativas preconceituosas para me afastar dele. Se eu quiser fazer isso, que seja por meios
mais legítimos.

Vejo que ele também está cansado e isso me faz sentir um pouco de pesar, como se eu estivesse
abusando da boa vontade dele, mesmo sabendo que ele está aqui por boa vontade. Com a cabeça
apoiada sobre o punho, ele olha para a mesma tela de laptop que eu, tentando encontrar soluções
para um cliente bastante cricri, que não entende nada de Publicidade e acha que as coisas se
resolvem com um estalar de dedos. Tenho estado muito impaciente desde que voltei... Ou os clientes
é que estão se tornando menos suportáveis. Edgar, ao contrário de mim, é muito mais tranquilo; sabe
lidar com as pessoas com mais tato. Quando terminamos essa última tarefa, já passam das sete horas.
Não chegamos a uma solução definitiva, mas ele certamente soube encontrar alternativas mais
eficientes do que as em que eu havia pensado.

— Isso deve resolver o problema desse mala — ele diz, espreguiçando-se na cadeira ao meu
lado.

— É, eu também acho... Obrigada por ter ficado, viu? Sem você aqui eu não teria conseguido.

Ele sorri e me olha durante alguns segundos. Depois leva uma mão ao meu rosto e acaricia
minha bochecha com o polegar, o que me faz enrubescer instantaneamente. Tentando evitar uma
situação constrangedora, levanto-me rapidamente.

— Bom, podemos ir embora, então.

Afasto-me da mesa e sigo em direção à porta. Ele também se levanta e vai para a própria sala.
Pego minha bolsa, desligo o computador, guardo as coisas que têm que ser guardadas, pego as coisas
que preciso pegar e encontro Edgar novamente para descermos até o estacionamento. Entramos no
elevador e logo a porta se fecha. Odeio ficar no elevador com outra pessoa. Se forem duas, três,
cinco, tudo bem, mas elevador com mais uma pessoa é a morte, especialmente sendo essa pessoa o
Edgar.

— A gente ainda não conversou direito depois que você voltou de viagem... — ele diz, com as
mãos no bolso.

Fecho os olhos e meneio a cabeça internamente, querendo não acreditar que ele iniciaria aquela
conversa dentro de um elevador.

— Eu sei... Tô te devendo isso, né? Eu sei, também.

— Se não quiser falar, tudo bem, é só que... Sei lá, fiquei meio que te esperando.

Por que as pessoas gostam de me fazer sentir culpada?


— Desculpa. A viagem correu tudo bem, mas, depois, na volta, acho que minha cabeça ficou um
pouco aérea e... — começo a me enrolar nas minhas próprias justificativas. — ...e... Meu pai,
também, lá em casa... as coisas...

— Você tá saindo com alguém?

Chegamos ao estacionamento. Edgar parece ser o tipo de pessoa que vai direto ao ponto. Acho
que me embaraço mais para responder à pergunta do que para continuar minhas justificativas de
dentro do elevador.

— Não, não é isso... É que...

— Não — ele me interrompe com sutileza —, porque, se for isso, eu entendo. Mesmo. Não
precisa ficar me dando satisfação, eu só queria saber.

Solto um longo suspiro.

— É complicado... — digo.

Paramos em frente ao meu carro. Olhamo-nos nos olhos em silêncio por algum tempo. Não tenho
vergonha de encará-lo, mas sinto certo remorso ao ver os olhos de cãozinho sem dono dele.

— Eu só queria uma chance de te fazer feliz...

Não consigo evitar um sorriso. Ele se aproxima um passo, o que me faz me encostar à porta do
carro. Edgar segura meu queixo com o indicador e o polegar e, olhando para a minha boca, diz em
voz baixa:

— Eu tô muito apaixonado por você, Alice... Você não sai da minha cabeça.

Não era dele que eu queria ouvir essas palavras, mas não posso negar que me senti bem ao ouvi-
las. A ausência de Miguel me faz sentir cada vez mais desamada. Já se passaram dias e dias e dias e
ele não deu qualquer sinal de vida, conforme dissera que não faria... E agora Edgar está, à minha
frente, olhando nos meus olhos, dizendo estar apaixonado por mim... É claro que eu gosto muito dele,
mas não posso dizer que sinto o mesmo. O que sinto é uma vontade esmagadora de ser querida,
beijada, amada, mas não por ele... Por que a vida faz essas coisas com a gente, não? Por que não é o
Miguel aqui me dizendo isso?

— Edgar... — respondo fazendo um aceno negativo com a cabeça.

— Me deixa tentar... — ele se aproxima mais um pouco, encostando sua testa à minha,
segurando-me pelo quadril. — Eu sei que eu consigo...

Tsc, que droga! Por que é que estou em dúvida agora? Por que você está fazendo isso, Edgar? E
por que é que você está quase me convencendo com essa conversa?... Não é de você que eu queria
ouvir essas coisas, mas é você que está aqui me dizendo elas. Queria tanto poder retribuir isso tudo
que você diz sentir por mim... Seria tudo tão mais fácil... Miguel é uma possibilidade remota e você é
o que mais se aproxima de uma possível certeza... Talvez... Talvez não me custe tanto assim te dar
essa chance que você está me pedindo, pelo menos por enquanto. Sei que não é certo fazer isso com
você, mas é que às vezes eu me sinto tão sozinha...

— Por que a gente não tenta?... Hum?... — ele insiste.

Edgar leva uma mão ao meu pescoço e acaba por me beijar. Um beijo morno para mim, mas,
sinto, muito necessário para ele, que me abraça com todo o cuidado de que preciso enquanto acaricia
meus lábios com um beijo tão suave. Se ao menos você fosse feio, chato, babaca, seria mais fácil
resistir. Acabo correspondendo o beijo, que não me excita, mas também não me repele. É um beijo
cauteloso, quase sussurrado. Quando nos desvencilhamos, o sorriso no rosto dele me deixa sem saber
se devo me sentir bem ou mal por tê-lo beijado.

— Você é incrível, sabia? — ele me pergunta com aquele jeitinho garoto.

Sorrio sem jeito e sinto que preciso encerrar essa cena de maneira ao menos paliativa.

— Eu vou pensar, tá bom? — é o que consigo dizer com sinceridade, tentando não alimentar
esperanças nem decepcionar.

— Tá bom... — ele se afasta dois passos. — Vou deixar você ir embora. Amanhã a gente se
fala?

— Claro.

— Então... tá. Boa noite — ele acena e caminha de costas em direção ao próprio carro.

— Boa noite.

Suspiro fundo quando ele sai do meu campo visual. Entro no carro e permaneço parada com as
mãos no volante e os olhos fechados por alguns segundos. Ouço os pneus do carro dele cantando
rampa acima, como se aquilo fosse o anúncio sonoro da felicidade dele. Não estou feliz... Não estou
triste, também, mas... Ah, céus! O que eu estou fazendo da minha vida, hein?

Acho que estou precisando rever minhas escolhas na vida. Acho que estou precisando de uma
ressurreição, ou ao menos de resetar os últimos dois meses. Tenho me sentido muito sozinha e
desamparada, e acho que é isso que está me fazendo tomar decisões que talvez eu não tomaria em
outros momentos da existência.

Depois de amanhã faz um mês que vi Martin pela última vez. Até agora, nenhum sinal de vida
nem de nada. Estou começando a achar que ele realmente falou sério quando disse que eu não
deveria esperar que ele se manifestasse de novo. Cretino! Como pode um homem ser tão cafajeste
assim? E como pude eu, que sempre me julguei uma mulher tão racional, independente, que sabe o
que faz, me deixar levar pela conversa desse cara? É lógico que ele não vai voltar. Ele é um
bandido! Ele mesmo disse que estava procurando a próxima vítima para sequestrar; por que é que ele
se daria o trabalho de vir atrás de mim ou de querer qualquer coisa comigo? É claro que eu fui só
uma boa transa pra ele, é claro! Que mundo é esse em que eu vivo, afinal, onde eu fico esperando um
criminoso voltar para os meus braços de pobre menina rica e me fazer feliz para sempre? Idiota,
patética, ridícula que eu sou—e sou ainda mais, porque sinto que, por mais que eu tenha noção de
tudo isso, eu sempre vou nutrir uma chaminha de esperança de que ele volte um dia...

Enquanto esse dia não chega, tomei uma decisão, uma daquelas que ainda não sei se são boas ou
ruins: dei ao Edgar a chance que ele me pediu. Puramente movida pela emoção e pela falta de
companhia, é claro. Saímos mais uma vez e, nessa vez, conversamos superficialmente sobre minhas
inseguranças e motivos de eu não querer me relacionar com ninguém, mas ele, apaixonado por mim
que está e absurdamente compreensivo que é, deixou claro que não tem problema algum e que ele
entenderia se um dia eu decidisse que é melhor que não estejamos juntos. Frente a essas palavras, um
“não” se torna um tanto quanto impossível. Estamos, então, “juntos”, entre aspas, porque ninguém
oficializou nada no Facebook ainda, e, se não está no Facebook, não aconteceu. Vamos dizer que
estamos “ficando”, embora eu me considere velha demais para usar essa palavra. Saímos,
conversamos, falamos sobre a vida, sobre trabalho, sobre coisas amenas, fizemos sexo mais uma vez
e, argh! É impossível não compará-lo ao Miguel! E não estou reclamando de medidas nem de
performance, não, mas é que... não sei, com o Miguel existe um encaixe, uma coisa, uma sintonia que
não existe com o Edgar. Ele se esforça, eu sinto que sim, para ser um cara legal e consegue sê-lo sem
tentar muito, mas o problema sou eu; minha cabeça ainda está fora do eixo e eu não consigo enxergá-
lo como alguém para estar comigo durante muito tempo.

Conversei com a Milena sobre isso e ela disse que eu preciso largar de ser boba, que o Edgar é
um amor e que eu só tenho a ganhar com ele e a perder com o Miguel; que eu só queria reencontrar o
cara que me sequestrou para satisfazer um fetiche estranho (do que eu discordei bastante, por sinal!
“Fetiche estranho”?! Que absurdo!) e que agora eu deveria era procurar ajuda psicológica para
superar esse trauma, porque isso que eu continuo sentindo mesmo depois de o quê? dois meses de
liberdade? já é demais, especialmente porque eu “acho que estou apaixonada por ele”. Milena é
minha melhor amiga, amo-a para a vida inteira, mas me mata de raiva quando as pessoas decidem
julgar os meus sentimentos e colocá-los em gavetas. O que eu sinto pelo Miguel agora foi colocado
na gaveta “Fetiches”. Vê se tem cabimento!

Ainda não contei aos meus pais sobre esse “caso Edgar”. Acho que minha mãe ficaria feliz em
saber, mas meu pai... Não sei. Ele é meio quadrado para algumas coisas; não sei como reagiria se
soubesse que eu estou me relacionando com um colega de trabalho, sendo que esse colega está só um
degrau abaixo de mim na “hierarquia”. Não custa nada ele pensar que ele só está me fazendo de
escada para tentar chegar onde eu estou, o que seria de uma estupidez tremenda, já que ele sabe que
eu sou a filha do dono e herdeira da porra toda—gente! Uns pensamentos muito estranhos têm vindo à
minha cabeça ultimamente; acho que estou meio descompensada mesmo. Por falar em
descompensação, preciso procurar um médico... Minha menstruação está atrasada. Já pensou se eu
estou grávida? Hahaha! Quem será o pai? O bandido misterioso ou o gatinho sedutor que me laçou
sem querer querendo? Deve ser por isso que eu ando meio louca ultimamente; meus hormônios em
descontrole... Não me preocupo muito porque meu ciclo é quase sempre desregulado (e eu já deveria
ter procurado um médico há tempos por causa disso), mas que seria uma tragicomédia se eu estivesse
mesmo grávida, ah! seria! Minha mãe acharia ótimo, disso eu tenho certeza; meu pai teria um colapso
nervoso; Edgar... Não sei o que ele faria. E Miguel, pelo visto, morreria sem saber. Cretino.
•○•

O dia hoje está particularmente chato. Não aguento mais reuniões, não aguento mais clientes, não
aguento mais essa vida de chefe... Quero ser des-promovida, acho que vou pedir isso ao meu pai;
tanta responsabilidade para lidar...! Acho que preciso de férias outra vez, mas não de uma semana:
de um mês ou dois, e longe daqui, desta cidade, do Edgar, de todo mundo! Falando em Edgar, argh!
Ele é tão perfeito que me irrita. Estamos há nove (?) dias juntos e, por mais que eu procure coisas
para reclamar sobre ele, não existe nada para reclamar! Ele é bonito, gostosinho, bom de cama, me
trata a pão-de-ló, me ajuda no trabalho... Acho que o único defeito dele é não ser o Miguel, mas
disso eu não posso reclamar porque ele não pediu para nascer no útero errado.

Bom, hoje é sexta; amanhã, pelo menos, terei descanso e poderei esticar minhas perninhas e
ficar em casa à toa, sem fazer nada. Ah... Só de pensar nisso eu já sinto um alívio!

— Alice?

Interrompida de meu espreguiçar e meu suspiro, olho para a porta e vejo Edgar entrar.

— Hum?

— Tô de bobeira hoje, quer sair, fazer alguma coisa?... — ele se aproxima de mim e deixa
alguns envelopes em cima da minha mesa.

— Sair?... Pra onde? — pergunto desanimada enquanto manuseio os envelopes que ele trouxe.

— É; jantar, ir ao cinema, fazer alguma coisa...

Ai, jura, Edgar? Não estou muito a fim de sair hoje... Contas, contas... Por que pedi para
entregar essas contas aqui?... Folders, clientes, flyers, “a/c Alice Borges”, sem remetente. Hum...
Rasgo o envelope e puxo o papel sulfite dobrado ao meio duas vezes que sai de dentro dele. Edgar
ainda espera minha resposta. Desdobro o papel e começo a ler em pensamento:

Alice,

Eu não ia escrever esta carta; juro que não ia. Um dos únicos motivos que me fez escrevê-la
foi imaginar este sorriso que está no seu rosto agora que você a abriu e está lendo

Meu Deus! É o Miguel! Uma carta do Miguel! Uma carta do Miguel! Uma carta do Miguel!
— Alice?

Uma carta do Miguel!

— Oi? — meu coração bate a duzentos por hora. — O quê?

— Te chamei pra sair...

— Ahm, posso te responder daqui a pouco? Deixa eu só dar uma olhada nessas
correspondências aqui e a gente já se fala, tá? — digo rápido, descontrolada. Edgar percebe minha
mudança de humor, mas não fala nada, apenas assente com a cabeça e se retira da sala, encostando a
porta em seguida.

Recupero meu fôlego. Minhas mãos estão tremendo e meu peito dói só de saber que em minhas
mãos há uma carta do Miguel para mim. Afoita, retomo a leitura:

Alice,

Eu não ia escrever esta carta; juro que não ia. Um dos únicos motivos que me fez escrevê-la
foi imaginar este sorriso que está no seu rosto agora que você a abriu e está lendo. Outros
motivos existem, mas deixo-os de lado por enquanto. Demorei, sei que demorei, e sei que você
sabe que eu acabaria te procurando de um jeito ou de outro... Eu tentei, eu juro que eu tentei não
fazer isso, mas foi mais forte do que eu.

Sinto que te devo algumas explicações. Mais do que explicações, te devo, acima de tudo,
desculpas. O dia maravilhoso que nós passamos juntos não foi tempo o bastante para colocar
todos os pingos no is, então senti que seria digno da minha parte te escrever e falar pelo menos
brevemente sobre algumas coisas que eu sei que te deixam aflita ou que ficaram em suspenso e
precisam de um fechamento.

Não sei se você conseguiria me entender, portanto vou me poupar o punho de explicar, mas
espero que você saiba—e eu sei que você sabe—que tudo aquilo que eu te falei na cafeteria no dia
do nosso reencontro foi para te deixar para baixo e tentar te convencer de que ter ido atrás de
mim foi errado. O problema é que, no dia seguinte, quando você foi à minha casa, eu percebi que o
maior erro de todos foi ter te dito aquelas coisas e partir seu coração tão cruelmente quanto eu
fiz; mas julguei ser tarde para reparar o estrago. Eu sei: agora, um mês depois, é um pouco tarde
para falar sobre essas coisas, mas antes tarde do que nunca, não é mesmo? Por isso, me perdoe,
por favor, e retire as coisas ruins que eu disse.

Agora você sabe o meu nome. Você deve ser uma das únicas pessoas que o sabe, por isso peço
que guarde o segredo. A pessoa que eu visito no cemitério sempre que posso é meu irmão,
Maurício, mas deixo para falar sobre ele em outra oportunidade. A garçonete do Café Petit é uma
das poucas pessoas com quem eu converso naquela cidade, porque a acho muito engraçada e ela
sempre fica me admirando quando eu vou lá. A gente não conversa sobre nada grave, mas é bom
prosear com alguém de vez em quando, e ela foi muito gentil por me ouvir falar sobre você quando
eu fiz isso.

Não vou me estender muito. Quero dizer muita coisa, mas não posso dizer tudo que quero.
Não quero que leia esta carta como uma carta de amor ou algo do tipo; quero que a leia como um
atestado de vida; um atestado de pensamento, alguma coisa assim. Me dei o trabalho de escrever
estas palavras à mão, ir ao correio e destiná-las ao seu endereço porque sei que isso te deixaria
feliz, e sua felicidade me felicita por tabela. E também para que você tenha certeza de que eu não
sou um monstro sem coração que não se importa com você. Saiba que eu me importo, talvez muito
mais do que me seria permitido importar, mas isso não é culpa minha nem sua. Não espere pela
próxima carta, pois talvez ela não venha, mas, se você quiser responder a esta, enderece a
resposta ao Café Petit (r. Aristides Fonseca, n. 96, Amistad, Maria Soledad) que eu a receberei e
lerei com todo carinho, isso eu lhe garanto.

Desejo que você seja feliz e prospere em qualquer coisa que fizer. Novamente, me perdoe por
ter ousado ferir seus sentimentos: eles são mais valiosos do que qualquer quantia do mundo.
Cuide-se e pense em mim, que, em algum momento, eu estarei pensando em você.

Beijo-te.

M.

Fico paralisada. Levo uma mão à boca e sinto meus olhos se inundarem de lágrimas. Releio a
carta mais duas vezes para me certificar de que isso tudo está mesmo escrito. Cuide-se e pense em
mim me perdoe por ter ousado ferir seus sentimentos eu estarei pensando em você sua felicidade
me felicita por tabela agora você sabe o meu nome te devo desculpas enderece a resposta ao Café
Petit que eu a receberei e lerei com todo carinho... Cada palavra se multiplica e se repete inúmeras
vezes diante dos meus olhos incrédulos. Ele me escreveu uma carta!

Calma, Alice, calma, você precisa se recompor. Guardo a carta dentro da minha gaveta e tento
fingir que ela não existe por enquanto. Levanto-me e vou até o banheiro lavar as mãos e espantar a
emoção. Eu preciso falar com alguém, preciso sair daqui, preciso conversar com a Milena, meu
Deus!

— Ei, tá tudo bem? — Edgar me pergunta quando nos esbarramos na saída do banheiro.

— Ahm, tá, tá sim; me deu uma tontura agora, mas já passou...

— Hum... Já pensou no que eu te perguntei?

— Se importa se a gente sair amanhã? Eu preciso resolver umas coisas hoje depois que eu sair
daqui, talvez seja melhor a gente se ver amanhã com mais calma... — tento me esquivar, mas Edgar é
esperto; deve ter percebido que há algo errado comigo.
— Claro, sem problema nenhum... A gente sai amanhã — ele diz no tom compreensivo de
sempre.

— Tá. Eu... vou voltar pra minha sala. Até mais.

Deixo-o no vácuo e volto ao meu escritório, trancando a porta. Escoro-me contra ela e fito o céu
pelo vidro da janela. Uma carta! Uma carta! Pego meu celular dentro do bolso e mando um
WhatsApp para Milena imediatamente: “Mi, preciso de vc. Ele me mandou uma carta!”. “Não
acredito :o”, ela responde. “Pode acreditar. Vamos almoçar hoje?”. “Vamo. Me encontra no shopping
do centro, pode ser?”. “Pode”. “Ta bom, a gente se fala, bjo”. Meu coração ainda parece que vai
estourar dentro do meu peito. Calma, Alice, calma, foi só uma carta!

Sento-me novamente e tento inutilmente continuar o que eu estava fazendo antes de Edgar entrar
na minha sala com aqueles malditos envelopes. Eu preciso responder essa carta, preciso responder o
quanto antes, mas agora estou desesperada demais para pensar em qualquer coisa. É melhor eu
esperar a ansiedade baixar e pensar direito no que vou dizer. Ainda tenho uma hora e meia até o
almoço... Preciso me conter, preciso me conter, não consigo me conter! Ele me mandou uma carta!...
Ok, ok, ok, pare, Alice, você precisa voltar ao trabalho. Vamos, vamos logo!

Encontrei-me com Milena no shopping para a gente almoçar e mal aguentei esperá-la chegar
para contar a novidade. Trouxe a carta comigo, é claro, para mostrar a ela e provar que isso que
existe entre mim e o Miguel não é nenhum “fetiche estranho”. Ela leu a carta, releu, releu de novo e
ficou com aquela cara de tacho que eu achei o máximo!

— Amiga!... Não sei nem o que dizer.

— Pode dizer que eu fiz a coisa certa; pra mim já tá ótimo!

Ela riu, ainda com a carta na mão.

— Alice do céu... Ele te escreveu uma carta à mão! Onde você arrumou esse homem, meu Deus?
Não existe mais homem assim!

Senti-me dupla, triplamente vitoriosa; cada palavra era um brado de sucesso dentro de mim.
Continuamos a conversa e, em dado momento, ela me fez a pergunta de um milhão de dólares:

— Mas, vem cá, e o Edgar, hein? O que você vai fazer agora?

— Ai, Milena, nem me lembre... Eu não sei onde eu tava com a cabeça quando achei que dar
uma chance a ele seria uma boa ideia. Assim: eu não posso reclamar dele em absolutamente nada;
ele é um amor, um querido, lindo, fofo, gentil, mas não bate aquela coisa, sabe?

— Então por que você não acaba com isso de uma vez?

— Porque, quando a gente começou, essa carta não tinha chegado ainda, né? Eu estava carente,
chateada, depressiva, e ele veio todo cheio de amor pra dar... Não tive como resistir. Mas acho que
agora vou ter que dar um jeito, mesmo; não dá pra continuar do jeito que tá...
— Eu também acho. E você se previna, viu? Você está tomando o anticoncepcional direito? Ou
estão transando com camisinha?

— Tomo direitinho... Na maior parte do tempo, pelo menos.

— Como assim, Alice? Pílula é coisa séria! Tem que tomar direito!

— Milena, eu fui sequestrada, né? Não tinha como “tomar direito” estando num cativeiro!

— E você não procurou um médico depois que saiu de lá?

— Não deu tempo; voltei logo pro trabalho e já virei chefe e aí minha vida virou de cabeça pra
baixo, e ainda mês passado voltei lá pro Miguel e a gente acabou transando de novo.

— Pelo amor de Deus: me diz que vocês usaram camisinha.

— Não sei, não lembro... Mas acho... acho que não, porque foi aquela coisa, aquele fogo e...

— Alice, isso é muito sério. Sua menstruação não tá atrasada?

— Um pouco, mas é normal ela atrasar.

— “Um pouco” quanto?

— Ah, sei lá, uns seis, sete dias...

Daí ela começou a me dar sermão sobre isso e me ocorreu um pensamento grave. Não que eu
esteja contando com a possibilidade de estar grávida, mas, suponhamos que eu estivesse: eu não teria
cem por cento de certeza quanto a quem seria o pai... Porque, veja bem: transei com o Edgar um dia e
não usamos camisinha, se me lembro bem; na semana seguinte, fui para Amistad e, lá, transei com
Miguel... O filho poderia ser de qualquer um deles. Gente, imagina eu grávida do Miguel! Ou, pior
ainda: imagina eu grávida do Edgar! um homem por quem eu não sinto nada!... Alice, Borges.
Grávida do bandido ou do estagiário?—pare de fazer pouco caso do Edgar!

Bom, por enquanto não estou pensando nisso. Aliás, é melhor eu parar de pensar em qualquer
coisa, porque tenho que responder à carta do Miguel. Já driblei o Edgar, tomei meu banho, jantei,
estou aqui na minha cama olhando para a tela do laptop há dezoito minutos e não faço ideia de como
começar a escrever. Vou digitar primeiro e depois escrevo à mão, para ficar bonito como Miguel fez.
Bom, é melhor eu me basear na carta dele para escrever a resposta, não?... Certo, vamos tentar,
então:

Miguel,

Estou há quase vinte minutos olhando para a tela do computador tentando te escrever uma
resposta, mas não consigo, porque sei que nada do que eu disser vai ser tão bonito ou
emocionante quanto tudo que eu li na sua carta. Você não imagina (mentira, você imagina, sim) o
tamanho da felicidade que eu senti quando li as primeiras palavras e, ainda antes de terminar o
primeiro parágrafo, pensei: “Uma carta do Miguel!”. Você não dá ponto sem nó mesmo, hein?

Acho que vou tentar guiar minha resposta de acordo com o que você disse. Então,
primeiramente: não se preocupe com as suas explicações, mesmo as que você não pode (?) dar:
estão todas consideradas, mesmo eu não conhecendo todas. Cada um tem seus motivos e você
certamente tem os seus, portanto eu os respeito, mesmo talvez discordando deles. Por você ter me
dito aquelas coisas na cafeteria, também está tudo bem. Sofri por um dia só, não foi nada tão
devastador assim; no dia seguinte nós já estávamos reunidos e eu soube que foi tudo da boca para
fora e todo o sofrimento valeu a pena. Esteja perdoado.

Fiquei muito feliz também por saber que você tem um irmão. Às vezes acho que você nasceu
de proveta, ou que foi deixado pela cegonha em uma chaminé qualquer... É bom saber que você
tem uma família, que é um ser humano de carne e osso afinal. Se quiser falar sobre ele ou sobre as
coisas que você quer falar mas não pode, também ficarei felicíssima em ouvir. E, por favor: não
me peça para não esperar pela próxima carta, porque você sabe que eu vou. E, por favor
novamente: demore menos de um mês para responder. Você não sabe a agonia que é acordar todos
os dias e pensar que você sumiu da minha vida pela segunda vez, porque, sim, eu penso em você
todos os dias, todas as horas, a todo instante; e se acho que você deveria ser condenado por
algum crime, é pelo que você comete contra o meu coração ao alimentá-lo de tanta distância.

Espero que você esteja bem. Mande lembranças à moça do Café, cujo nome já me esqueci. E
espero intimamente que aquilo que você disse sobre estar planejando sequestrar a próxima vítima
seja mentira, tanto porque não gosto de pensar que, no final das contas, você é um criminoso,
embora prefira se intitular “homem de negócios”, quanto porque fico desde já enciumada
pensando que ela vai ter de você o que eu também tive. Assim sendo, se, na pior das hipóteses, for
verdade o que você disse, sequestre um homem—mas nada de se meter com estilista nenhum,
porque não quero você beijando a boca de ninguém além da minha—não que eu tenha o direito de
querer isso. Se preferir, pode me sequestrar de novo; não vou achar ruim; só precisaríamos
traficar órgãos pelo mercado negro para conseguir o dinheiro do meu segundo resgate, porque,
nesse caso, acho que o senhor meu pai preferiria me deixar morrer a desembolsar outra barganha
pela minha liberdade. Ou a gente foge para algum lugar do mundo e vive do crime juntos—
mentira, eu jamais faria isso.

Se não agradeci ainda, obrigada por ter me escrito; se já agradeci, obrigada de novo e
escreva mais vezes. Desnecessário dizer que estou com saudades e que não vejo a hora de te
encontrar de novo. Cuide-se e pode deixar que eu vou pensar em você, sim.

Com um beijo grande,

Alice.

Será que está bom? Nossa! Demorei meia hora para escrever só isso? Releio as frases uma após
a outra e, bem... acho que está bom o bastante; não vai sair nada melhor do que isso; não sou poetona
que nem o Miguel. Amanhã eu acordo cedinho e, antes de deixar o envelope no correio, passo a
limpo à mão... Só vou precisar tirar a parte em que disse que estou olhando para o monitor há dezoito
minutos... Tsc, ah, ele vai entender que eu digitei primeiro e depois escrevi. Assim sendo, ótimo:
missão do dia cumprida. Posso dormir em paz agora.

Que tola romântica eu me tornei. Estou me sentindo a Luísa de “O Primo Basílio”, trocando
cartas de amor com um varão sedutor e gritando “Eu tenho um amante! Eu tenho um amante!”. Não, eu
não tenho um amante, até porque Edgar não é meu namorado... Ah, Edgar. Preciso dar um fim em
você, rapaz. Não, não preciso te matar, mas preciso te tirar da minha vida o quanto antes; antes que
você entre nela de uma vez por todas.

Aliás, falando em vida, Edgar, tirar, preciso comprar um teste de gravidez de farmácia, por
desencargo de consciência, porque agora estou começando a ficar realmente preocupada com o meu
ciclo menstrual. Atrasar seis, sete dias é uma coisa, mas agora a coisa está mesmo atrasada e, dia
desses, eu comecei a sentir cólicas do nada... Isso não pode ser bom sinal. Meu Deus, do céu... Eu
não posso estar grávida. Imagina quando minha barriga começar a crescer e as pessoas me
perguntarem quem é o pai. Não vou poder dizer que é o Edgar, porque meia dúzia de gente sabe que
nós estamos saindo não oficialmente; não posso aparecer grávida dele assim do nada! Ou, pior ainda,
não posso dizer que estou grávida do homem que me sequestrou algum tempo atrás! Vão me chamar
de louca, no mínimo! E meu pai... Meu pai vai querer ir atrás do Miguel até o inferno se descobrir a
verdade, e eu jamais o entregaria. E eu não posso enganar o Miguel e fingir que o filho é do Edgar;
vai que a criança nasce a cara dele, com aqueles olhos verdes?! Deus do céu... O que eu faço? Devo
contar ao Miguel que acho que estou grávida? Devo contar ao Edgar? Não, não: antes de tudo, devo
fazer o teste de gravidez, não é? É, sim. Vou comprar um ainda hoje, no caminho pro trabalho, e
deixá-lo guardado dentro da gaveta até criar coragem de fazê-lo. Perfeito.

•○•

Mais uma semana se passou. Acabei não comprando o teste de gravidez quando pensei em
comprar, antes de vir para o trabalho... Deixei para comprar anteontem, na volta para casa, mas ainda
não fiz. Está lá, quietinho, na minha gaveta, e só de pensar que ele existe e que, cedo ou tarde, eu vou
ter que fazê-lo e que o resultado pode ser positivo já me dá um embrulho no estômago... E, quanto
mais eu demoro a fazer, mais tensa eu fico, pois agora temo que as chances de ele dar positivo sejam
ainda maiores, visto que o atraso da minha menstruação está anormal mesmo dentro da regularidade
dos atrasos. Ai, Jesus amado... Por que isso está acontecendo comigo?

— Alice?

— Oi, Josi...
— Licença, chegou correspondência pra você.

— Ah, tá bom. Obrigada!

Cartas, cartas! Cadê a sua, Miguel? Cadê? Cadê? Clientes, propostas, mala direta, mala direta,
“a/c Alice Borges”, sem remetente! Isso! Isso! Isso! Abro o envelope sem nenhum cuidado e logo
retiro a folha de papel dobrada ao meio duas vezes, sorrindo de antemão, sem sequer saber o que
está escrito nela.

Alice,

Como você ousa falar em crime sendo a culpada por me fazer responder sua carta três dias
depois de tê-la recebido, sendo que eu havia dito que talvez nem existisse uma próxima carta?
Como você pode exercer tamanha arbitrariedade sobre o meu juízo? Se formos condenados por
crimes do amor, você pega prisão perpétua e eu sou absolvido por legítima defesa.

Eu jamais te sequestraria novamente, sinto informar. Você foi uma boa refém, mas seu pai é
muito ranzinza; não custaria nada a ele te deixar morrer nas minhas mãos, embora minha
intenção seja te matar de delícias e nada mais. Fique tranquila quanto aos meus negócios: ainda
estou de férias e não devo voltar à atividade pelos próximos dois meses ou três. Se você continuar
me fazendo perder o juízo assim com essa facilidade, talvez a gente consiga se ver mais algumas
vezes. Você sabe que eu não posso te dar garantia sobre nada, mas também não posso negar que
sinto muito a sua falta; falta do seu cheiro, do seu gosto, do meu corpo dentro do seu, da sua
chatice, dos seus escândalos, da sua teimosia... falta de você toda.

Sobre o meu irmão, é uma longa história, uma não muito feliz. Ele foi o motivo de eu começar
a fazer negócios... Ele tinha uma dessas doenças indiagnosticáveis e eu não tinha condições de
pagar o tratamento com o salário que ganhava no banco. Num ato de desespero, comecei a ler
sobre sequestros e pensei que isso poderia ser uma forma de conseguir algum dinheiro. Eu
consegui, mas meu irmão não resistiu à doença e acabou falecendo. Ele brigou muito comigo
quando descobriu o que eu estava fazendo, mas... Não posso dizer que não tentei, mesmo sabendo
que eu estava errado. Tenho que sair dessa vida, eu sei; não precisa me lembrar. Talvez isso
aconteça, um dia, mas, por ora, não dá.

Aliás, ontem eu estava aqui pensando... Eu ainda tenho dinheiro guardado (sou um homem
cauteloso). Estava contando com ele pra comprar outra caminhonete ou reformar a minha, mas me
ocorreu que talvez fosse boa ideia eu comprar uma casinha em um bairro simples de Veredas pra
me “esconder” de vez em quando. Em Amistad não vão me encontrar nunca, não tem graça; se eu
fosse pra aí, poderia ser mais emocionante, sem contar que... bem, você sabe, eu poderia te raptar
de vez em quando. Não sei, foi só algo que me passou pela cabeça—apesar de que, você sabe,
também: isso que nós estamos fazendo é loucura! Imagina se seu pai descobre. Imagina se
ALGUÉM descobre. Vão te chamar de louca e inconsequente com razão; dizer que você está
confiando sua integridade física e mental a um criminoso, além de que, já falei também, isso é
uma síndrome e você deveria procurar um psicólogo.
Vou ficando por aqui. Agora já não posso dizer que talvez a próxima carta não venha porque,
verdade seja dita, enquanto eu estiver por aqui eu não vou (nem tentar) resistir e vou te responder.
Se cuida e a gente se fala em breve.

Beijo-te apaixonadamente.

M.

Meu peito transborda de felicidade. Ai, Miguel! Já pensou, você morando em Veredas? Ia ser
tão... tão... tão !!! Releio a carta mais duas vezes. Beijo-te apaixonadamente, ai, como você é lindo,
meu Deus! Mas não posso te responder agora; ainda tenho muito trabalho a fazer por aqui; depois eu
releio mais algumas vezes e te respondo direitinho, ok? Ah, que felicidade!

O dia fica até melhor. Os clientes ficam mais tragáveis, os e-mails ficam mais fáceis de ler, as
reuniões de amanhã parecem mais suportáveis, o céu parece mais azul, mais bonito, a vida fica tão
mais alegre! Até saio para almoçar com a minha mãe, coisa que não faço há muito tempo. Pena que
não posso compartilhar com ela o motivo real da minha felicidade. Talvez um dia eu até possa, mas,
por enquanto... O que será que dona Agnes acharia de ser avó? Já pensou? O que ela ia achar de um
Miguelzinho? Ou de uma mini-Alice? Não, uma Alice só já é suficiente para deixar o mundo
despirocado.

Quando de volta ao escritório, o round 2 acaba tão rápido quanto o primeiro. O labor hoje foi
produtivo: fiz muita coisa em tempo recorde! Amanhã é dia de voltar aos Correios; vou ver se passo
por lá na hora do meu almoço. Já são mais de seis horas, o pessoal já começou a ir embora... Vou
correr mais um pouco para acabar tudo que preciso hoje.

— Já tá indo embora? — Edgar pergunta, entrando na minha sala.

— Ainda não, vou terminar umas coisas aqui... Mas você pode ir, hoje eu consigo dar conta do
recado — sorrio, pressupondo que ele se ofereceria para ficar e me ajudar.

— Não, não, a gente precisa conversar.

Nenhuma conversa boa jamais começou com essas palavras.

— Por quê? O que houve?

— A gente precisa conversar sobre o seu amiguinho “M.”.


C a p í t u l o 11

Um frio na espinha me atravessa; meu coração dispara. Tento me manter calma e não deixar
transparecer meu desespero ao ouvir o que acabei de ouvir.

— Eu não sei do que você está falando — digo inutilmente.

— Não se faça de idiota, Alice. Você sabe muito bem do que eu estou falando.

Edgar fecha a porta atrás de si sem fazer barulho, deixando-nos a sós e em silêncio dentro da
minha sala. Ele cruza os braços e me olha no fundo dos olhos, tentando decifrar meu rosto imóvel.

— Então quer dizer que você anda me traindo — ele continua.

— Eu não estou te traindo; nós não estamos namorando.

— Nós estamos saindo desde que você voltou de viagem, então você está me traindo, sim—e,
pior do que isso: você está me traindo com o homem que te sequestrou.

— Como você sabe disso? Você mexeu nas minhas coisas? Você não tem o direito de mex

— Eu não mexi em nada, foi um... acidente — ele fala com uma calma que me irrita
profundamente. — Fui deixar um bilhete na sua gaveta hoje quando você saiu pra almoçar e, sem
querer, vi um teste de gravidez em cima de um envelope “a/c Alice Borges” sem remetente, o que
achei estranho. Por curiosidade, fui ver do que se tratava... Muito para minha surpresa, era o homem
que te sequestrou te fazendo declarações de amor e querendo vir morar aqui.

Desgraçado! Filho da puta! Começo a ser cada segundo mais tomada de ódio por esse infeliz.

— Você não tinha o direito de fazer isso, Edgar — controlo-me para não dar um escândalo;
ainda tem pessoas no prédio e elas não podem ouvir esta conversa.

— Eu sei, mas agora é tarde. Mas vamos falar sobre esse teste de gravidez... — ele coloca as
mãos nos bolsos e começa a andar de um lado para o outro. — Você está grávida do bandido, é isso?

— Não... Não sei. Talvez.

— Nós também transamos sem camisinha, esse filho pode ser meu.

— Pode... também.

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Edgar olha para fora da janela atrás de mim enquanto
caminha de um lado para o outro e depois me olha fundo nos olhos. Estou roxa de vergonha, de raiva,
de ira, de ódio! Ele se aproxima alguns passos lentamente e para em frente à minha mesa, repousando
as pontas dos dedos sobre o tampo, com os braços afastados, olhando-me nos olhos de um jeito
ameaçador. Em voz baixa e pausada, ele diz:

— Esse filho vai ser meu, Alice.

O pânico toma conta de mim. O que ele quer dizer com isso? Tento me manter fria e impassível.

— Eu ainda não sei se estou grávida — respondo controlando minha fúria.

— Não se preocupe: daqui a pouco você vai ao banheiro fazer esse teste e tirar a dúvida.

— Você não pode me obrigar.

— Meu bem, você não está me entendendo — Edgar sorri de impaciência e volta a me olhar
com olhos seríssimos. — Vou tentar ser mais claro: eu tirei cópias das suas cartinhas. O seu pai é um
homem muito bacana, e ele confia em mim. O que você acha que aconteceria se eu dissesse a ele que
acidentalmente descobri que a filha dele está se correspondendo com o bandido que a sequestrou?
Amistad é uma cidade do tamanho deste prédio; se a polícia for ao “Café Petit” e perguntar quem é o
“M.” que sempre busca correspondências por lá, quais você acha que são as chances de o seu
amantezinho criminoso não ser encontrado e apodrecer na cadeia?

— Você não teria coragem... — meus olhos começam a marejar.

— Não me desafie, meu bem; é só você quem tem a perder aqui. Se esse teste der positivo, o
filho é meu, ponto final. E, a partir de hoje, eu vou tomar conta das suas correspondências, e se eu
suspeitar que você ainda está falando com esse cara, vou ter uma conversinha com seu Nestor; acho
que ele vai adorar saber que o bandido que sequestrou a filha dele e ganhou um bom dinheiro com
isso está por aí e pode ser preso a qualquer momento. Mas, antes... — Edgar pega uma folha de papel
de dentro da minha impressora sobre a mesa. — você vai escrever a resposta pra carta que recebeu
hoje, e vai escrever do jeitinho que eu ditar.

Ele coloca a folha à minha frente e uma caneta sobre ela.

— Eu não vou fazer isso, Edgar — as lágrimas começam a cair dos meus olhos.

— Você não tem escolha, não se quiser que ele continue livre, foragido. Escreva.

— Edgar,

— Anda logo! — ele grita e meu coração salta dentro do meu peito.

Desesperada, pego a caneta enquanto as lágrimas silenciosas escorrem dos meus olhos. Estou
trêmula; mal consigo segurar. Edgar me observa o tempo todo com olhar impiedoso e tom ameaçador.

— Ótimo, vamos lá: qual é o nome dele?

— Martin... — respondo hesitante; não posso revelar o nome do Miguel a esse monstro.
— Muito bem: “Martin: escrevo esta carta para me despedir. Foi bom o que vivemos, mas
precisa acabar. Não posso viver a minha vida à espera de um criminoso; agora tenho um namorado
que me ama e vou me dedicar a fazê-lo feliz. Não me escreva mais; não responderei. Passe bem.
Alice.”

Escrevo cada palavra às lágrimas, sentindo meu peito dilacerar a cada sílaba.

— Perfeito — Edgar toma o papel de mim e o dobra ao meio duas vezes, colocando-o dentro do
bolso. — Amanhã cedo, antes de vir pra cá, eu deixo no Correio pra você. Agora pegue o teste.

Abro a gaveta e pego o teste. Edgar abre a porta da minha sala e verifica se não há ninguém por
perto. Já são mais de seis e meia, quase todos já foram embora. Levanto-me da cadeira anestesiada,
sem saber o que pensar ou sentir, e caminho até a porta; Edgar nos leva até o banheiro e entra junto
comigo; tranca a porta e diz com os braços cruzados:

— Pronto, pode fazer.

Abro a caixinha do teste tremendo. Não pode dar positivo, não pode dar positivo, Deus, por
favor, não pode dar positivo... Leio as instruções rapidamente. Urine sobre o bastão, dois a cinco
minutos, uma tira negativo, duas tiras positivo. Dou andamento ao procedimento e me sinto
extremamente violada, invadida com Edgar me obrigando a fazer isso e me vigiando sadicamente.

— Você é um monstro, Edgar — digo entre dentes, tomada de tristeza e ódio.

— Estou fazendo isso pelo seu bem e pelo bem do nosso filho, Alice.

— Esse filho não é seu!

— Shhh, não fale besteiras, meu bem, vamos esperar o resultado, sim?

São os quatro minutos mais longos da minha vida. Passo-os rezando, de olhos fechados, pedindo
a Deus que o resultado dê negativo. Eu não posso estar grávida desse monstro, meu Pai, por favor,
não, não, não...! Ele vai deixar aquela carta no correio amanhã e o Miguel vai achar que o que eu
disse é verdade; eu vou perdê-lo de novo...! Me ajuda, meu Deus, eu preciso encontrar um jeito de
sair disso; meu pai não pode encontrá-lo...

— E então?

Abro os olhos e observo o bastão. Minhas mãos ficam geladas, minha boca seca e o chão parece
se abrir sob mim. Duas tiras...

— Positivo! — Edgar exclama com um sorriso enorme e olhos arregalados. — Nós vamos ter
um filho!

Ele me abraça desajeitadamente e ri em descontrole, beijando-me por toda parte. Não consigo
sentir qualquer sentimento além de dor, nojo e desespero.
— Semana que vem nós vamos ao médico começar a dar andamento no pré-natal. Eu quero
acompanhar tudo; quero que corra tudo bem durante a gestação e que nosso filho nasça saudável.

Ele abre a porta do banheiro e sai. O andar já está vazio. Eu ainda permaneço sentada sobre o
tampo da privada em silêncio por alguns segundos. Grávida... Eu estou grávida... E esse filho pode
ser do Edgar...

— Vamos, sai desse banheiro, que hoje a gente tem que comemorar!

Mecanicamente, levanto-me e saio do banheiro a passos lentos, sentindo-me derrotada, como se


um trator tivesse passado por cima de mim. Edgar me acompanha por trás, com as mãos nos meus
ombros, massageando-os.

— Estou tão feliz, meu bem! Tão feliz!

Quando chegamos à minha sala, ele me vira para si e tenta me beijar. Enojada, afasto-o de mim,
mas ele resiste e torna a tentar.

— Sai de perto de mim! — exclamo. — Eu tenho nojo de você!

Ele me olha com olhos arregalados, ofegante.

— Você é minha mulher agora, Alice; você vai ter um filho meu; você não pode me rejeitar —
ele diz com um sorriso sarcástico que eleva minha ira a níveis estratosféricos. Respiro fundo e tento
me controlar.

— Você pode me chantagear e me obrigar a me afastar do Martin o quanto quiser — digo


calmamente —, mas não pode me obrigar a transar com você... E, se você tentar, se você tentar,
Edgar, eu juro, juro pela alma deste feto que está dentro de mim que eu corto isso que você chama de
pau e jogo pros cachorros.

A expressão dele se transforma de cão valente a cãozinho assustado. Vendo que eu falo sério,
ele ergue as mãos em rendição e se afasta de mim dois passos. Prossigo:

— Agora sai da minha sala, que eu não quero olhar mais pra sua cara. Vá embora.

Fuzilando-me com os olhos, ele caminha em direção à porta e diz antes de sair:

— Você ainda vai me amar, Alice; você ainda vai me amar, de um jeito ou de outro... Até
amanhã.

Quando a porta se fecha, o baque me traz de volta à realidade. Sento-me na minha cadeira e
enterro o rosto nas minhas mãos. Agora posso chorar em paz. Idiota! Idiota! Por que fui deixar esse
teste e essas cartas dentro da minha gaveta?! Por quê?! Por que eu fui dar uma chance a esse
monstro?! Por que fui me envolver com ele?! Por quê?! O que eu vou fazer agora? Estou grávida!
Tem uma vida dentro de mim e eu vou ser obrigada a conviver com esse desgraçado sendo o pai da
criança! Meu Deus, me ajuda, por favor...
Os dias que seguem são infernais. Edgar está disposto a transformar a minha vida num pesadelo
infinito, e está conseguindo fazer isso sem grandes esforços. Meu sofrimento está estampado no meu
rosto e ele não se compadece de mim por nem um segundo. No dia seguinte à descoberta, conforme o
prometido, ele passou no correio antes de vir para cá e depois me mostrou o comprovante de
postagem da carta; mais tarde, solicitou mudança do número do meu telefone fixo na agência—o que
estava no cartão que eu deixei com Miguel. Não só isso: de alguma forma, ele conseguiu o número do
Café Petit. E ligou para lá bem na minha frente. Quando a mulher atendeu, ele se fez de meu
namorado e pediu a ela a gentileza de não entregar mais as minhas cartas ao Martin, porque agora
estávamos noivos e ele queria poupar esse incômodo; que a próxima carta que chegasse deveria ser a
última, pois era minha despedida. Eu torci tanto, tanto para ela desconfiar que “Martin” e “Miguel”
eram pessoas diferentes e não acreditar no que Edgar disse, mas ela é muito ingênua e deve ter se
sentido ameaçada, especialmente porque ele mentiu dizendo trabalhar na polícia e que era bom evitar
que essa situação piorasse... Desgraçado! Eu deveria ter sido mais rápida que ele e postado uma
carta antes; talvez elas chegassem no mesmo dia, mas não tive coragem de arriscar; fui idiota pela
milésima vez.

Ainda assim, nesse dia, tentei meu último golpe de sorte: pedir à Milena enviar uma carta ao
Miguel por mim. Não sei do que Edgar é capaz e não sei até onde ele consegue me vigiar, mas pensei
que uma carta enviada pela Milena desmentindo toda essa história, explicando um pouco das coisas e
pedindo ao Miguel para não me responder porque não era seguro fosse funcionar, mas, depois da
ligação que Edgar fez ao Café, eu não sei se vai funcionar... A carta foi enviada, agora rezo piamente
para que ela chegue e... Margarida? Era esse o nome da garçonete? a entregue a Miguel apesar de ter
sido pressionada a não fazer isso.

É muito difícil entender a cabeça das pessoas. Apesar de eu ter explicado em detalhes como
funciona a chantagem barata de Edgar, Milena ainda acha que eu devo tentar entendê-lo e acreditar
que ele está certo: antes estar grávida dele do que do Miguel.

— Você só pode estar louca, Milena. Você entendeu o que eu acabei de te explicar? Que o Edgar
está me chantageando e me obrigando a dar a paternidade desse filho a ele?

— Alice, eu sei que o que o Edgar está fazendo é horrível, mas pensa bem! Ele pode ser o pai
dessa criança!

— Mas ele também pode não ser!

— Eu sei que não pode! Mas imagina, quando essa criança nascer, o escândalo que vai ser! Se
esse filho for do Miguel!... Você tem que entender que ele é um bandido, Alice, e deve estar foragido
da polícia agora! Que estrutura essa criança vai ter quando nascer? Ou você acha que ele vai deixar
de ser criminoso do dia pra noite—aliás: sair impune de tudo isso que ele já fez e ir viver com você
feliz para sempre?

— Eu não sei...
— A vida não é tão fácil quanto parece, Alice. Eu vou escrever essa carta, sim, porque não tem
nada que justifique essa atitude do Edgar, mas eu continuo achando que o melhor para essa criança é
que ela seja criada por você e por ele.

Eu não consigo conceber que estou carregando um filho que pode ser de um homem que está me
chantageando de forma tão cruel e desumana. Daí eu fico me perguntando: e se ele contasse tudo ao
meu pai? O que aconteceria? E se meu pai realmente encontrasse o Miguel? É claro que ele o
encontraria e é claro que o Miguel seria preso, mas pelo menos eu estaria livre do Edgar de uma vez
por todas... Mas eu não posso fazer isso; não tenho o direito de entregar o Miguel a troco de estar
livre do Edgar. Eu o amo (eu o amo!?) e o esperaria cumprir sua pena pelo tempo que fosse, mas não
posso trocar a minha paz pela liberdade dele. Eu preciso encontrar um jeito, preciso encontrar...

Na semana seguinte, Edgar foi comigo ao médico. Ele está realmente radiante com a ideia de ser
pai—e, especialmente, ser pai de um filho meu... Eu não duvido do que ele sente por mim, mas
também não duvido que isso seja algum tipo de transtorno mental. Que sentimento é esse que é capaz
de maltratar, chantagear, pressionar tão impiedosamente?... Ele é um verdadeiro ator. Quem nos vê
juntos pensa que realmente somos um casal e estamos chovendo felicidade; ele anda ao meu lado
como se eu fosse um troféu... E agora ele insiste que eu conte aos meus pais sobre a minha gravidez e
sobre o nosso “namoro”, mas eu me recuso veementemente. Enquanto eu puder esconder, eu vou; isso
me dá mais tempo para conseguir pensar em alguma forma de reverter essa situação.

Durante a consulta, pelas palavras do médico, as chances de a criança ser do Edgar são maiores
do que de ser do Miguel, já que o intervalo entre uma transa e outra foi curto, mas Edgar foi o
primeiro e o óvulo certamente foi fecundado pelo primeiro espermatozoide a chegar lá... Isso
multiplica em três o meu luto... Essa vida que existe dentro de mim não tem culpa de nada, mas eu
preferiria morrer a ter um filho desse monstro... Às vezes, nas horas negras, sinto vontade de acabar
com esse mal pela raiz: tirando a criança. Mas algum instinto maternal que já nasceu e cresceu em
mim de forma assustadoramente rápida me faz abandonar essa ideia com a mesma espontaneidade
que me faz tê-la. É uma vida que está crescendo aqui; uma vida inocente, que não tem culpa de nada
disso... No final, a culpa é minha. Eu deveria ter me prevenido, sido mais consciente, evitado que
certas coisas acontecessem... Não posso punir com a morte um ser que não teve responsabilidade
nenhuma sobre as minhas irresponsabilidades.

Além disso tudo, sinto que agora estou sendo vigiada constantemente, por todos os meios; Edgar
está por toda parte, até quando não está. Ele toma conta das minhas correspondências, ele controla
meus horários de chegada e saída, ele me manda mensagens, ele está se aproximando cada vez mais
do meu pai, ele vasculha meu computador às escondidas, meu pen drive, minha bolsa, minhas
gavetas, tudo! A chantagem que ele usa contra mim deu a ele a liberdade de fazer comigo o que bem
entender. A única coisa que ele ainda respeita é minha promessa de cortar o bilau dele caso ele ouse
se aproximar de mim sexualmente, e essa promessa eu vou cumprir nem que seja a última coisa que
eu faça em vida.

Estou tentando seguir minha vida na medida do possível, ainda aguardando que uma epifania se
revele para mim e me dê a solução para isso tudo... Já não tenho mais lágrimas para chorar e aceitei
que derramá-las não resolve o meu problema. Edgar tem controle absoluto sobre mim e eu estou
andando na corda bamba; não posso arriscar nenhum movimento se quiser que as coisas continuem
“bem” para o Miguel... Agora ele já deve ter recebido a carta do Edgar e estar achando que o que eu
disse é verdade... A carta da Milena também deve ter chegado e sido devidamente ignorada,
conforme instruções... Miguel deve estar se sentindo traído, enganado por mim, como se eu fosse uma
vagabundinha qualquer que se apaixonou pelo sequestrador e agora encontrou outro e está realmente
empenhada em fazê-lo feliz... Se ele soubesse, ah, se ele soubesse... Às vezes, no meu mundo ideal,
eu sonho que ele descubra tudo e venha aqui tirar satisfações comigo—não precisa nem ser com o
Edgar: que seja comigo! Mas ele jamais faria isso. Deixei meu cartão de visitas com ele, mas ele não
deixou nada comigo. Apesar do que existe entre nós, foi ele quem disse que precisávamos nos
afastar, que estávamos sob efeito daquela tal de Síndrome e que não nos vermos seria a melhor
solução. Ele vai ler essa carta e pensar que essa foi a deixa que eu encontrei para seguir o conselho
dele. Estar namorando e decidida a fazer outro feliz... Isso chega a ser cômico de tão absurdo! Eu
preciso encontrar um jeito, preciso encontrar um jeito de encontrá-lo... Ao menos se eu conseguisse
me livrar do Edgar por dois ou três dias, talvez eu conseguisse ir a Amistad e conversar com Miguel
pessoalmente! Mas ele não sai de perto; está sempre espreitando, sempre nas sombras, por toda
parte, o tempo todo!... Tsc, vou parar de pensar por enquanto; preciso trabalhar. Coragem, Alice,
coragem...

○•○

Uma parte, senão grande parte, da culpa foi minha. Eu deveria ter sido mais forte e não escrito
aquela carta. Isso teria poupado muita coisa... Mas ela foi embora e eu aguentei por pouco tempo sua
ausência. Ela me deixou um cartão de visitas com nome, telefone e endereço. Eu não poderia me
expor; não poderia entrar em contato de alguma forma que pudesse fazer com que me encontrassem,
por isso tive a ideia de mandar uma carta sem remetente e pedir que ela respondesse pelo Café Petit.
Conversei com Margarida e não foi fácil encontrar uma desculpa para o fato de que eu não tinha
motivo nenhum para não poder receber correspondências em casa; por isso resolvi que era melhor
não dar justificativa nenhuma, que era apenas para ela receber qualquer correspondência que
chegasse de Veredas para mim e me ligar informando. Ela não se opôs e assim ficou combinado.

Dias depois, meu telefone—que eu nunca atendo, porque só ligam por engano, já que só
Margarida tem o número—tocou pela primeira vez. “Oi, Miguel. Chegou carta pra você!”. Eu sabia
que ela não demoraria a responder. Fui ao Café buscar a carta e tive a ideia de dizer a Margarida que
estávamos nos correspondendo às escondidas, que o pai da Alice não aceitava o nosso
relacionamento. Evitar explicações longas usando romantismo como desculpa sempre funciona. Vim
para casa em dois passos e fui ler a primeira resposta. Alice tem um poder sobre mim que às vezes
me assusta. Li cada palavra conseguindo ouvir com clareza a voz dela as pronunciando daquele jeito
marrento, mas apaixonante. E nesse instante percebi que estava apaixonado além da razão, pois
novamente resisti por pouco tempo antes de enviar outra resposta, essa menos econômica do que a
primeira. Até mencionei o fato de estar pensando em comprar um lugarzinho escondido em Veredas
para a gente poder se encontrar de vez em quando... Eu jamais diria isso em sã consciência, mas a
ideia de tê-la perto de mim com essa facilidade me fez colocar isso em palavras sem hesitar.
Enviei a carta mais uma vez e aguardei a resposta, que dessa vez veio mais rápido do que a
primeira. Assim que recebi o telefonema de Margarida, fui buscar a correspondência e voltei para
casa correndo ler a tréplica. Mas, ao contrário de antes, dessa vez meu coração não se encheu de
alegria, mas de angústia. Aquela era minha resposta de despedida. Alice finalmente se tocou que o
que estávamos fazendo era um erro: agora ela tem outro e está decidida a fazê-lo feliz, e eu não
posso culpá-la por isso.

Doeu. Ainda dói. Não tanto pelo fato de ter sido trocado—o que não é bem a realidade, pois não
sou exatamente uma opção para poder ser trocado—, mas mais pelo fato de saber que agora ela está
com alguém que pode dar a ela tudo que eu não posso; fazer com ela tudo que eu não posso. Agora
ela pode estar com alguém que também pode estar com ela quando quiser, em público, em casa, em
paz. Eu... Só poderia encontrá-la às escondidas, de vez em quando, mesmo querendo estar ao lado
dela o tempo todo. Agora ela pode estar com alguém para apresentar aos pais, aos amigos, a quem
ela quiser. Se ela me apresentasse aos pais, meia hora depois eu estaria dentro de uma delegacia
sendo preso. Eu sei, a vida é feita de escolhas e as minhas levaram a isso, mas não deixo de ter
sentimentos por causa disso. Sinto raiva, mágoa e um ciúme devorador, que quase suplanta minha
sensatez e faz querer jogar tudo para o alto e ir atrás dela.

Dias depois, em visita ao Café Petit, eu estava arrasado. Isso nunca me aconteceu antes... É
claro que já me apaixonei e desapaixonei antes, mas a dor que eu senti ao perder Alice foi
dilacerante. Margarida veio conversar sobre isso comigo. Disse que a vida tem dessas, que as
pessoas não ficam com a gente para sempre... Mas ela não sabe o que eu sinto; não sabe que eu
queria Alice na minha vida para sempre, seja ao meu lado ou longe de mim.

Acabei decidindo que seria uma boa ideia viajar. Talvez se eu me distraísse, saísse desta cidade
que está encharcada de memórias que me levam direto à Alice, eu me sentisse melhor, esquecesse
mais rápido. Arrumei minhas malas e fui para o sul. Precisava ficar um pouco sozinho, no frio, na
praia, num lugar diferente. Acabei indo para Florianópolis e me hospedando em uma pousada por
cinco dias. Planejei tudo pelo Google, meio às cegas. Me hospedei na região norte, perto da Praia
dos Ingleses. Eu queria ver gente, movimento, a vida acontecendo, coisa que não há aqui em
Soledad... Mas nada disso funcionou.

Alice esteve comigo o tempo inteiro. Quando eu acordava e olhava para o lado vazio da cama,
pensava que ela poderia tanto estar ali comigo, mas agora era na cama de outro que ela acordaria; saí
à noite para comer um x-tudo no lanchinho ao lado da pousada e fiquei me perguntando o que ela
acharia daquela maionese de leite ou daquele hambúrguer de carne mista, que ela certamente
detestaria e jamais comeria em sã consciência; fui a uma pizzaria com música ao vivo e pude vê-la
criticando o cantor por ele só cantar música sertaneja; fui caminhar na praia e a calmaria da cidade
somada ao barulho recorrente das ondas se quebrando contra a areia nunca me fizeram querer tanto
que ela estivesse ao meu lado, andando comigo... E nesse momento meus olhos verteram lágrimas de
saudade, uma saudade ingrata, doída, intratável, que nada além da presença dela poderia fazer
passar. Ela não estava ali, e talvez nunca mais estivesse...

No sexto dia, a Solidão da praia me fez voltar para Amistad. Não sei se viajar foi uma boa ideia
afinal. Descobri à dura pena que não importa onde você esteja, seus problemas sempre estarão junto,
e não adianta tentar solucioná-los criando outros problemas... Dia desses eu estava no bar de sempre,
bebendo para esquecer. Conheci uma moça linda... Raquel era seu nome. Depois de conversarmos
por algum tempo, acabamos marcando de sair em Maria Soledad, onde tem um pouco mais de opções
do que aqui. Tivemos uma noite muito agradável. Raquel é o completo oposto de Alice, em vários
aspectos, e achei que isso talvez fosse bom para mim, lidar com alguém diferente. Conversamos
bastante, rimos, falamos de tanta coisa... No final, deixei-a em casa e então me dei conta do único
defeito que aquela moça tão legal tinha: ela não era Alice. Nosso beijo foi sem gosto, nossos corpos
não reagiram com descontrole e agora eu me sinto deveras aliviado por não ter ido para a cama com
ela.

Isso foi coisa de duas, três noites. Na semana seguinte tudo já estava de volta à conformidade. O
que era a conformidade: eu, minha Budweiser, Waylon Jennings e a Saudade. Reli a primeira
resposta de Alice inúmeras, inúmeras vezes. A cada releitura, um misto de sentimentos me envolvia.
Com o álcool no cérebro, então, esses sentimentos me arrastavam para um mar de amargura feito uma
tsunami... A carta de despedida eu não consegui ler mais de duas vezes. Li uma vez para saber e a
outra para não ter dúvidas de que eram realmente aquelas palavras que eu havia lido. Num desses
dias de bebedeira, cometi um ato inconsequente: peguei meu celular, cujo número é tão secreto que
nem eu mesmo sei, e liguei para o escritório dela, naquele número que havia atrás do cartão. Queria
tanto que ela atendesse, que falasse comigo pela última vez... Mas não consegui. “Este número não
existe”. Ela estava realmente disposta a me esquecer... Isso me encheu de um desgosto tão sufocante
que eu acabei rasgando aquele cartão em mil pedaços. Se ela estava disposta a me esquecer, que
assim fosse.

Mas uma coisa... uma coisa me deixou intrigado. Naquela carta de despedida, ela me chamou de
Martin. Ela nunca mais me chamou de Martin depois que descobriu meu nome verdadeiro. Eu só
consigo pensar que ela fez isso para me machucar, ou para mostrar que o que ela sentiu foi mesmo só
um fetiche bizarro; que o cara por quem ela sentiu tudo aquilo era ele, não o Miguel, e que, agora que
ela conhecia o Miguel, o fogo da paixão se apagou. Tsc, droga. Eu preciso esquecer essa mulher,
preciso voltar a viver, preciso ter controle sobre as minhas emoções de novo. Não posso me deixar
abater dessa forma; tenho que aceitar que perdi, que outro homem agora tem a chance de ser para ela
tudo que eu jamais poderia ser. Sou um bandido, um criminoso, um homem de negócios, um nada. Sou
ninguém: não tenho nome nem rosto nem rastro; sou um foragido qualquer, que nunca vai estar à altura
do que ela merece; sou um homem triste, e minha tristeza é o preço que pago pela recompensa que eu
nunca receberei: Alice; minha Alice...

Esses pensamentos todos me acompanharam por três semanas. No primeiro dia da quarta
semana, um clique estalou no meu cérebro e eu me convenci de que alguma coisa estava fora do
lugar; alguma peça estava faltando... Minha solidão já atingira níveis insuportáveis e eu precisava de
uma última conversa, de uma última justificativa, de um adeus, que fosse. O que a gente viveu foi tão
intenso! Não poderia simplesmente terminar com uma carta que dizia que agora ela estava decidida a
fazer outro feliz! Ela não poderia simplesmente me chamar de “Martin” para me fazer sentir pior e
desaparecer da minha vida do mesmo jeito que entrou: do nada! Isso era desumano, desleal, cruel, e
a Alice por quem eu me apaixonei não tinha nenhuma dessas características!

Decidi que a procuraria. Dane-se a minha preocupação, dane-se o meu zelo, dane-se se o pai
dela me encontrar, dane-se que eu seja um foragido. Eu precisava falar com essa mulher nem que
fosse pela última vez! Precisei recorrer à Internet para procurar o endereço da agência onde ela
trabalha, já que eu havia destruído o cartão de visitas que eu tinha, e isso não foi muito difícil.
Lembrei-me de que as cartas que eu enviava eram para um bairro na zona sul, mas anotei os dois
endereços que li no site, por segurança, caso alguma coisa desse errado ou sei lá.

Numa manhã de quarta-feira, tomei todas as providências: fiz um checape na minha companheira
Ford, me certifiquei de encher o tanque, para não correr o risco de acontecer o que aconteceu aquela
vez de novo, calibrei os pneus, fiz reserva no mesmo hotel em que eu estava hospedado no dia do
sequestro, fui à igreja conversar com o padre pela última vez, conversei com o padre, que, embora
não saiba que eu sou um sequestrador, sabe que Alice existe e que é o início e o fim da minha
angústia, me despedi de Margarida e a agradeci por ter tomado conta de mim durante esse tempo e
depois ganhei a estrada.

No meu coração, havia uma nuvem tempestuosa de sentimentos que eu não conseguiria explicar.
Eu sentia raiva, sentia dor, sentia angústia, sentia injustiça, sentia que estava cometendo uma burrice
tremenda, mas também sentia que, houvesse o que houvesse, eu a veria, com os meus próprios olhos,
à minha frente, e me sentiria bem por isso, mesmo que fosse para ouvir o último “não” da minha vida,
mesmo que fosse para vê-la feliz com outro homem: meus olhos registrariam a imagem dela
novamente, e isso me seria o bastante.

O trajeto durou algumas horas. Quando cheguei em Veredas, a ansiedade gritava mais alto do
que os carros no trânsito terrível dessa cidade. Fiz check in no hotel e fiquei no quarto de sempre:
1803, de onde vejo a cidade toda e ninguém me vê. Fui correr pelo Parque das Laranjeiras para
esfriar a cabeça, tomei um banho, almocei no shopping aqui perto e agora cá estou, alugando um
carro para ir ao encontro dela. Acho arriscado sair por aí desfilando com a minha caminhonete;
preferi alugar um carro e manter tudo em low profile para evitar suspeitas.

— Tudo certo, Antônio. Agora é só fazer a vistoria no carro e prontinho! Vamos lá?

Preciso falsificar documentos novos. Caminhamos, eu e a atendente, até o carro e aguardamos


pela vistoria. Enquanto isso, penso em qual é o melhor caminho para chegar, daqui, ao centro. Acho
que não sei andar por Veredas tanto quanto eu acho que sei... Talvez seja melhor eu buscar um trajeto
alternativo que tenha menos trânsito, assim consigo chegar lá mais rápido. Eu deveria ter comprado
um GPS...

— Aqui, a chave — ela interrompe meus pensamentos. — Não tem limite de quilometragem, tá?
Só precisa devolver com o tanque cheio.

— Tá, tá ótimo. Muito obrigado.

— Por nada. Até mais.

Muito simpatiquinha você, moça. Entro no carro e dou partida. Saindo da locadora, penso que é
melhor não arriscar ir por caminhos que eu não conheço; melhor pegar as avenidas principais, que eu
acabo chegando ao prédio com mais garantia de que não vou me perder. Pego o papel com o
endereço anotado dentro do meu bolso e me certifico novamente: Avenida Paraná, 1796, Edifício
Noronha, décimo andar. Certo. Não dá nem para acelerar aqui, porque os carros não deixam; não dá
para sair da terceira marcha. Paciência, Miguel, paciência, que daqui a pouco você chega lá.

Finalmente, alcanço o prédio, que é enorme. Olho-o de baixo a cima e um frio me sobe pela
barriga instantaneamente. É aqui dentro que Alice pode estar... e o pai dela também. É aqui onde eu
posso vê-la pela última vez, ouvir a voz dela pela última vez, partir meu coração pela última vez.
Vamos lá, cara, coragem. Após deixar o carro em um estacionamento próximo, entro no edifício e me
encaminho a um dos elevadores acompanhado por mais três pessoas. Aperto o número 10 e espero a
subida, que faz paradas em andares inferiores que fazem minha ansiedade piorar ainda mais. São os
oitenta e três segundos mais longos da minha vida.

Quando a porta se abre à minha frente, outro frio na barriga. Sinto-me em um filme
hollywoodiano, com todas essas pessoas andando para lá e para cá e esse tititi e esse clima de
escritório que me é tão não-familiar. Respiro fundo, tento controlar a adrenalina e sigo pelo corredor
que leva ao balcão de recepção. Mas não tem ninguém atrás dele para me atender. Muitas pessoas
andando para todos os lados, mas nenhuma por perto para me informar.

— Posso te ajudar? — ouço após esperar por alguns segundos.

Uma mulata bastante esbelta é quem me faz a pergunta.

— Oi... É... Eu estou procurando a Alice. Alice Borges.

— A Alice não trabalha mais neste prédio; ela foi lá pro escritório da zona sul.

Mas... Espera... Argh! Idiota! Imbecil! O que você está fazendo aqui? Aqui é a agência do
centro! A Alice trabalha na zona sul! Idiota! Idiota!

— Qual é o seu nome?

— Ah... Meu nome é Mart--Antônio. Tudo bem, eu tento falar com ela no outro escritório, então.
Obrigado.

— Espera aí — a moça me olha com um olhar espantado e me segura pelo antebraço com força.
— Miguel?!

Meu coração quase para. Ela sabe meu nome verdadeiro! Ela me conhece? Ou me reconheceu de
alguma forma? Não me lembro de tê-la sequestrado.

— Vem cá.

Ela me puxa pelo braço e caminha em direção a algum lugar sem se preocupar muito com as
pessoas que nos olham, que são muitas. Entramos numa sala cheia de carteiras escolares; algum tipo
de sala de treinamento ou de reuniões. Ela tranca a porta e se senta em uma das carteiras, puxando
outra para que eu me sente ao seu lado. Ainda não entendi qual é a dela, mas seu rosto parece
apavorado.
— O que está acontecendo aqui? — pergunto, tentando entender o porquê da reação exagerada.

— Miguel!... — ela exclama, tampando a boca com as mãos e alongando o “e”. — Meu Deus!
Você existe!

Quem é essa mulher? Por que ela me conhece? E por que está tão admirada?

— Eu existo? Do que você está falando? Quem é você?

Ela controla a respiração e se endireita na cadeira, gesticulando para si mesma que se


acalmasse.

— Meu nome é Milena, eu sou amiga da Alice. Ela me contou tudo sobre vocês.

— Tudo? — quero não acreditar que Alice tenha espalhado para o Céu e a Terra tudo que
aconteceu entre a gente. — “Tudo” o quê?

— A história de vocês, a coisa do sequestro, ela ter ido atrás de você te procurar, tudo! Olha,
estou até emocionada! — ela ri de nervoso.

— Ah, então vocês são amigas... Ótimo. Já que é assim, você deve saber que ela me mandou
uma carta dizendo que está namorando outro cara agora. É verdade isso?

— Você não recebeu a outra carta?

— Que outra carta?

— A que eu te mandei!

— Você me mandou?

Ela se cala, mas está afoita. Sinto que tem alguma coisa aqui de que eu não estou sabendo.

— Olha, é uma longa história, e eu não posso te explicar agora. Procura a Alice, fala com ela.
Eu vou te passar o telefone de-- não, não: não é seguro. Faz assim: eu vou te passar o endereço do
escritório dela e o meu telefone. Se você não conseguir falar com ela pessoalmente — ela frisa essa
palavra —, me liga, que eu coloco vocês em contato. Mas por favor: não diga, em hipótese alguma,
que seu nome é Martin. Apresente-se como Miguel.

Ela se levanta e caminha até uma mesa, onde busca um pedaço de papel e caneta e anota o
endereço da Alice.

— Mas por que você está me fazendo todas essas recomendações? O que está acontecendo
afinal? Por que você não pode passar o telefone dela?

— Porque é perigoso. Mas eu não posso te explicar; é muita coisa e é melhor que você ouça
dela. Conversa com a Alice e ouve o que ela tem pra te dizer, por favor.
Cada palavra me deixa mais confuso do que a anterior. Levanto-me para sair; Milena também se
levanta, aparentemente mais ansiosa do que eu. Sinto que tem alguma coisa muito estranha nessa
história...

— Boa sorte — ela diz, me entregando o papel com as informações. — Espero que dê tudo
certo.

— Eu também... — leio o que ela escreveu. Um endereço, um telefone e o nome dela. —


Obrigado.

— De nada. Eu te acompanho até a saída.

Ela me leva até o elevador e renova os votos de boa sorte, o que começa a me preocupar
deveras. Por que ela está me desejando tão boa sorte? Por que não posso saber o telefone da Alice?
O que é perigoso afinal? Não me bastasse o nervosismo de estar prestes a reencontrá-la, agora me
surge essa novidade desagradável... Espero que esteja tudo bem com ela. O elevador chega.
Despeço-me dela com um aperto de mão e mais um agradecimento. Agora preciso ir para a zona sul
tirar essa história a limpo.
C a p í t u l o 12

Passou-se algum tempo. Comecei a sentir os sintomas da gravidez dentro de poucos dias. Não
sei se foi psicológico, só por eu ter tido a confirmação com o teste, mas vieram uns enjoos meio
estranhos em momentos inapropriados, umas cólicas diferentes, vontades de comer comidas
diferentes e essas coisas. A chantagem do Edgar se manteve inabalável, e a cada dia ele insistia mais
e mais que eu dissesse aos meus pais que estou grávida de um filho dele. Isso eu não farei nem sob
tortura, ele pode ter certeza. Mas, apesar de toda a minha tentativa de evitar que isto acontecesse, ele
me “obrigou” a levá-lo para um jantar lá em casa para apresentá-lo formalmente como meu
namorado. Só de lembrar já sinto uma náusea. Foi numa noite de sexta-feira. Ele se convidou e foi lá
conhecer meus pais.

Minha mãe, como era de se esperar, o adorou. É claro: quem não o conhece como eu e não sabe
do que ele é capaz se apaixona facilmente. Bonito, bom moço, educado, extremamente gentil, um
lorde. Meu pai, como já o conhecia (afinal foi ele que o contratou), ficou todo satisfeito, ao contrário
do que eu imaginei que aconteceria. Meu pai é muito profissional, pensei que não fosse aprovar um
relacionamento meu com um colega de trabalho, mas não, achou ótimo, pois “Edgar é um excelente
funcionário; vai ser muito bom pra você”. Que náusea. Passamos todo o jantar fingindo ser um casal
feliz e todos, incluindo empregados, pareciam adorar Edgar tanto quanto eu nunca mais adorei depois
do que ele fez comigo. Eu tentava arduamente fingir que estava achando aquilo tudo muito ótimo, mas
devo ter fracassado miseravelmente.

O jantar não foi o suficiente para satisfazê-lo por completo, mas foi o bastante para acalmá-lo
temporariamente. A fiscalização em tempo integral continuou, mas, pelo menos no escritório, eu tinha
mais paz, pois lá ele também se mantinha profissional na maior parte do tempo, sem me dar maiores
dores de cabeça e, como sempre, era-me muitíssimo útil quando eu precisava. Em todo caso, nunca
mais recebi nenhuma carta sem remetente “a/c Alice Borges” e nenhum telefonema com um DDD
estranho dizendo “Alice, é o Miguel!”. Nos meus sonhos, isso era o que acontecia todos os dias, mas,
no mundo real... Nada.

Semana passada, consegui bater meu carro. Justo eu, que sempre me julgo motoristona e saio
perdendo a paciência com as pessoas desta cidade, que não sabem dirigir direito. Mas não foi culpa
minha: eu estava voltando para casa, meio sonolenta depois de uma noite mal dormida por causa dos
efeitos da gravidez, um dia cansativo de trabalho e por outras preocupações da mulher moderna,
quando, entrando por um caminho que eu geralmente não faço (talvez isso tenha sido um sinal: eu
tinha que bater aquele carro!), um gato sai do meio do nada e atravessa a rua correndo, bem à minha
frente. Para não atropelar o bichinho, virei o volante com tudo para desviar e, no susto e aérea por
causa da sonolência, perdi o controle da direção e boom! A lateral direita da dianteira foi ao
encontro do poste. Ainda bem que foi no poste e que era um gato de rua, não um ser humano. Aliás,
ainda bem que não era um ser humano, que era um poste, que minha habilitação está em dia, que eu
não me feri, que ninguém se feriu, que a parte esquerda do carro ficou intacta, que eu poderia estar
sem cinto, que eu poderia ter sido jogada para fora pelo para-brisa... Muitos “ainda bem” envolvidos
aí.
Os curiosos saíram à rua, loucos para saber o que havia sido aquele barulho e se alguém havia
se machucado. Saí ilesa; foi só um susto mesmo, e, claro, o dano do carro. Nunca bati o carro antes;
fiquei sem saber o que fazer. De todas as pessoas a quem eu poderia ligar, liguei para Milena, que
talvez fosse quem reagiria menos exageradamente à manchete “Bati o carro”. Como já passava das
seis horas e eu já não encontraria oficinas abertas, ela sugeriu que eu chamasse um guincho para
levar o carro à minha casa e, depois, ligasse para a seguradora para ver as medidas cabíveis. Foi o
que eu fiz. Um dos moradores me emprestou uma lista telefônica; chamei o guincho, esperei quase
quarenta minutos para ele chegar e, depois, fui para a casa de carona no caminhão. Primeira e única
vez que andei em um caminhão na minha vida; experiência emancipadora.

Chegar em casa com aquele carro guinchado foi outra cena. Até eu explicar que estava tudo bem
e que havia sido um acidente bobo, que só precisaria me preocupar com o prejuízo do reparo e que
ninguém havia se ferido, nem o gato que eu quase atropelei, levou algum tempo. Minha mãe é meio
desesperada; fica louca até se eu torcer o pé. Meu pai, menos preocupado, tratou de agilizar as
questões do seguro por mim. Acho que fiquei meio estressada-pós-traumaticamente também. Bater o
carro, ao contrário de andar de caminhão, é uma experiência que eu não recomendo a ninguém. Fui
obrigada a dar satisfação ao Edgar no final das contas, porque, agora que ele me vigia em tempo
integral, ele certamente quereria saber por que eu não cheguei ao escritório no meu carro nos dias
seguintes. Expliquei o ocorrido e ele, assim como a minha mãe, veio para cima de mim com
inúmeros cuidados dispensáveis, especialmente agora que estou grávida — até querer me levar ao
médico para ver se estava tudo bem com o bebê por causa do impacto da batida ele queria. Argh, que
desgosto.

Por esse motivo, pela primeiríssima vez, enquanto meu carro ficava na oficina, fui “obrigada” a
aceitar os serviços do Jairo, o motorista que meu pai contratou assim que eu saí do cativeiro. E, olha,
eu deveria ter feito isso bem antes! Ter uma pessoa a seu dispor para te levar a qualquer lugar sem
que você tenha o trabalho de encostar no volante é algo bastante providencial! Além disso, Jairo é
muito bonzinho e tem toda a paciência que eu não tenho para lidar com os motoristas desta comarca
de Veredas. E foi num desses dias que tudo aconteceu.

Estávamos eu e minha mãe em casa, almoçando na santa paz de Cristo. Meu pai dificilmente
almoça em casa, mas eu, de vez em quando, quando posso, passo lá para almoçar com a minha mãe,
porque gosto de conversar com ela sobre coisas de mulher. Tem coisas que amiga não entende: tem
que ser mãe. Às vezes eu sinto uma vontade tremenda de contar a ela sobre a minha gravidez, mas,
afoita como ela é, sei que ela não conseguiria guardar o segredo e não contar ao meu pai. Tenho
certeza de que ela adoraria ter um netinho! Mas daí eu também teria que ceder à conversa fiada do
Edgar e dizer a ela que o filho é dele e isso seria a morte do meu ego, portanto me controlo e
mantenho meu segredo só para mim mesma. De repente, quando estamos conversando depois de
terminar a refeição, meu telefone toca. Milena chamando...

— Oi, Mi — atendi.

— Alice! Onde você tá?!

— Tô em casa, por quê?


— Alice, vai pro escritório agora!

— Por que, o que ac

— O Miguel acabou de sair daqui e está indo pro seu escritório agora!

Foi como se os relógios tivessem parado. Um silêncio sepulcral se formou dentro de mim e eu
juro que podia ouvir meu coração bater contra o meu peito e ecoar dentro dos meus ouvidos.
Empalideci, minha boca secou, meus olhos congelaram; fiquei cega, surda e muda.

— O quê...?

— O Miguel, Alice, ele acabou de sair daqui e está indo te encontrar! Corre! Você tem que
encontrá-lo antes que ele chegue no escritório e dê de cara com o Edgar!

Não, isso não; isso não poderia acontecer em hipótese alguma! Se Miguel e Edgar se
encontrassem, seria o fim de tudo. Ele repetiria todas aquelas mentiras a Miguel e ele acreditaria,
além de que certamente me acusaria de ter desrespeitado a chantagem e o procurado; ele revelaria a
verdade ao meu pai e este chamaria a polícia; Miguel seria encontrado sem muita dificuldade e
acabaria preso. Tudo teria sido em vão.

Esses pensamentos cruzaram minha cabeça em velocidade absurda e eu não conseguia pensar em
nada com clareza.

— O que foi? Quem é? — minha mãe perguntou, percebendo minha expressão indisfarçável.

Fiquei presa nesse lapso catatônico por alguns instantes. Um estalo me chamou de volta à
realidade: eu precisava sair de casa e ir para o escritório imediatamente. Sem perceber, desliguei o
telefone na cara de Milena e saí da mesa feito um relâmpago, dizendo apenas:

— Preciso ir, depois eu te explico. Tchau!

Saí correndo da cozinha, pegando minha bolsa em cima da peça e partindo para a entrada da
casa, onde Jairo me esperava com as mãos cruzadas para trás, olhando para o céu.

— Jairo, pro escritório! O mais rápido possível!

Sem questionar minha pressa e percebendo meu desespero, Jairo entrou no carro e eu em
seguida. Deu partida e saiu de dentro da mansão em velocidade recorde. Sentada no banco de trás, eu
sentia que estava numa corrida contra o fim do mundo. Eu precisava chegar rápido o bastante; Edgar
não poderia estar dentro daquele prédio; eu tinha que encontrar Miguel e explicar tudo a ele antes
que fosse tarde demais.

— Tá tudo bem, dona Alice? — Jairo perguntou me olhando pelo retrovisor.

— Não, não tá nada bem, mas eu não posso explicar.


Ele não questionou; continuou dirigindo o mais rápido que pôde, mas, nesta cidade, em horário
de almoço, indo para a zona sul, a velocidade máxima não é muito diferente da mínima permitida em
áreas comerciais. Ainda assim, ele tentou. Encontrou uns caminhos alternativos que eu desconhecia,
mas que encurtavam a distância na medida do possível. Demoramos exatos trinta e sete minutos para
chegar ao escritório.

Desci do carro antes mesmo de Jairo entrar na rua do escritório.

— Pode me deixar aqui mesmo. Obrigada.

Eu estava na esquina. Caminhei apressada em direção ao prédio, que estava a uns sessenta
metros de mim. Meus passos eram imprecisos, ligeiros, afobados, e o edifício parecia inalcançável.
Foi quando eu o vi saindo de dentro dele, indo a passos largos em direção a um carro no qual ele
entrou e bateu a porta com força.

— Miguel! — gritei.

Ele me olhou de longe e nossos olhares se chocaram como duas locomotivas em colisão. Não
tive tempo de me contentar pelo fato de estar o vendo novamente: só senti um buraco lentamente se
formar dentro de mim ao perceber que, mesmo tendo me visto, ele não saiu do carro; pelo contrário:
baixou o vidro. Comecei a correr em direção a ele e ouvi o barulho do motor sendo ligado. Quando
alcancei o veículo, bati no vidro com força, três vezes, mas ele não abriu.

— Miguel! Abre esse vidro! Fala comigo!

Olhando-me friamente, ele abaixou o vidro o suficiente para que apenas metade de seu rosto
ficasse visível e disse com lágrimas nos olhos:

— Volta pro seu noivo, Alice. Adeus.

Ele acelerou de uma vez e o barulho dos pneus cantando sobre o asfalto se eternizou na minha
mente. Cheguei tarde demais: certamente o que eu temera aconteceu: Edgar e Miguel se encontraram.

○•○

Saio do prédio com mil pulgas atrás da orelha. Tudo ainda me soa estranho demais... Uma amiga
que não pode passar o telefone da outra e que me recomenda que eu só converse com ela
pessoalmente porque é “perigoso”... Não sei, não; nesse angu tem caroço, e eu vou descobrir que
caroço é esse. Entro no carro e releio o endereço do prédio na zona sul. Não é assim tão longe
daqui... Devo chegar lá em vinte ou vinte e cinco minutos se eu for pelas avenidas menos cheias.
Melhor não perder tempo.

Minhas emoções agora estão ainda mais confusas. Se antes eu estava ansioso por ver Alice e
ouvir o que ela tem a me dizer, agora estou ansioso para descobrir o que é que tem de tão perigoso
em nosso encontro. Supus que fosse o fato de eu ser quem eu sou e de fazer o que eu faço, mas isso
não é motivo o bastante; Alice sabe de todas essas coisas e nós já nos encontramos antes, por que
agora seria perigoso que nos falássemos por telefone? Alguém teria descoberto alguma coisa e
grampeado o telefone dela? E que história de “outra carta” é essa que eu não recebi? Está tudo tão
confuso... Eu preciso encontrá-la e descobrir o que é que está acontecendo.

Chego ao prédio dentro do tempo calculado. Há uma vaga pra parar bem aqui na porta, do outro
lado da rua, debaixo da sombra, ainda! Muito bom. Desço do carro e olho para o alto, visualizando
os andares deste prédio, que é menor do que o do centro. Adentro-o e caminho até o elevador do
saguão, apertando o botão de número sete, que, na melhor das hipóteses, vai me levar ao encontro de
Alice. Mas e se ela não estiver aí? E se não quiser conversar comigo? O que eu faço?... Bom, melhor
não pensar nisso agora. Saio do elevador e caminho até o balcão de recepção, onde, ao contrário de
há pouco, tem uma moça para me atender.

— Pois não?

— Oi. A Alice tá por aí?

— Alice? Só um minuto. Qual é o seu nome?

— Miguel — lembro-me da recomendação de Milena.

Meu coração palpita e minhas mãos começam a formigar. A funcionária está com o telefone no
ouvido, certamente ligando para o ramal da Alice.

— Oi, Edgar. Tem um moço querendo falar com a Alice, ela tá por aí?... Ah... Tá bom. Tchau —
ela desliga o telefone. — Pode vir aqui, por favor.

Ela sai detrás do balcão e segue pelo saguão do andar. Não foi Alice quem atendeu o telefone...
Edgar? Alguém do setor dela, provavelmente. Sigo a moça até uma sala e ela abre a porta. Droga.
Preciso pensar em alguma mentira pra dizer quem eu sou e disfarçar minha vinda aqui. Isso que dá ter
o rabo preso: não se pode confiar em ninguém nem dizer qualquer meia-verdade. O tal Edgar
aparece. Não, não deve ser o tal namorado da Alice, não: muito novo. Bonito, sim, mas não combina
com ela.

— Miguel, né? — ele diz, estendendo a mão para me cumprimentar.

— Sim...

— Pode se sentar.

Ele parece bastante convidativo, o que acho estranho. A funcionária fecha a porta, deixando-nos
a sós. Olho para os lados. Esta sala não é da Alice... Sinto um frio no estômago por estar aqui
mantendo diálogo com alguém que eu não conheço sendo quem eu sou; já me acostumei tanto às
identidades falsas que sinto como se “Miguel” fosse um alter ego, o qual tenho que assumir agora
para lidar com esta situação.

— A Alice está em horário de almoço agora, mas eu sou supervisor aqui na agência, também
respondo por ela. No que posso ajudar?

Merda...

— Ahm... Eu... A Alice me... Na verdade eu conheci a Milena, amiga da Alice, num evento e ela
me disse que a amiga dela, Alice, era diretora aqui na agência e que talvez pudesse me encaixar em
alguma campanha como modelo... Me passou o endereço daqui e me falou pra procurar por ela.

— Ah, sim, a Milena... É, você tem um perfil bom, mesmo. Já trabalhou como modelo antes?

Eu não quero conversar com você, cara, só quero saber da Alice...

— Não, não, trabalho no banco, nunca me liguei nessas coisas, não.

— Entendi. Mas não é minha noiva que cuida dessa parte, não; eu posso passar seu contato pro
pessoal desse setor e entrar em contato contigo depois, pode ser?

— Sua noiva?

— Eu falei “minha noiva”? Tsc, desculpa, é ato falho. É que Alice é minha noiva, às vezes me
engano e a chamo de “minha noiva” em vez de pelo nome aqui no escritório.

Foi como levar um tiro no joelho, ou talvez um tiro doesse menos. Ouvir esse rapaz, um
moleque, dizer que está noivo da mulher que eu amo me joga no chão, de quatro, rendido, derrotado
sem qualquer chance de revanche. Então era tudo verdade: Alice me trocou.

— Ah... — digo, lutando arduamente contra o nó na garganta. — Legal.

— Qual é o seu telefone? — ele pega um bloco de notas sobre a mesa e aguarda que eu diga o
número. Para não sair do disfarce, invento um número qualquer e finalizo a conversa.

— Eu vou avisar o pessoal do setor e eles entram em contato com você.

Levanto-me. Preciso sair deste lugar o mais rápido possível; não quero respirar o mesmo ar que
esse sujeito e não quero correr o risco de que Alice chegue aqui e eu a encontre. Agora já não temos
mais o que conversar: a prova viva do que havia escrito naquela carta está bem na minha frente.

— Obrigado. Fico no aguardo, então — aperto a mão do homem que a tirou de mim e saio da
sala sem mais delongas.

Arrasto meu corpo até o elevador. Tento me manter forte, mas minhas bases me enviam o alerta
cerebral de que vão desmoronar assim que eu estiver em território seguro. Noivos... Alice e esse
cara estão noivos. Como as coisas saem do controle... Eu pensei que nós tivemos algo especial, que
não fomos só um romance proibido e psicótico, que havíamos nos apaixonado de verdade... Agora
vejo que não. Fui tolo: apaixonei-me sozinho, e agora hei de suportar a minha dor da mesma forma.

Abandono o edifício e caminho em direção ao carro estacionado do outro lado da rua com os
olhos anuviados, contando os passos para estar dentro da privacidade do veículo e poder chorar em
paz. Quando desativo o alarme, ouço um grito familiar.

— Miguel!

Olho em direção àquela voz meio-soprano conhecida e a vejo correndo em minha direção. Meu
peito dói; dói de saudade, de dor, de saber que agora ela é de outro. Poupo-me de mais sofrimento e
a ignoro, entrando no carro de vidros fechados. Ela me alcança e bate no vidro com força, mas quem
já não tem mais forças sou eu.

— Miguel! Abre esse vidro! Fala comigo!

Ela parece aflita, mas não consigo me compadecer por nada que ela possa estar sentindo. Abro a
janela o suficiente para que ela ouça com clareza as últimas palavras que desperdiçarei com ela:

— Volta pro seu noivo, Alice. Adeus.

Acelero o carro de uma vez e saio da vaga onde estacionei, deixando-a para trás. As lágrimas
começam a banhar meu rosto sem aviso, silenciosas, e caem doloridas, num fluxo infinito, que me faz
perceber que meu coração está estilhaçado em mais partes do que posso calcular.

Dirijo até o hotel em modo piloto automático. Deixo o carro alugado estacionado na rua ao lado,
volto para o meu quarto e nele fico trancado pelo resto da tarde. Dessa vez o choro vem convulsivo,
rasgado, irrefreável, sem vergonha, e eu o deixo sair de mim como um demônio que abandona um
corpo possuído, e assumo abertamente minha culpa pelo que está acontecendo agora. Sou vítima das
minhas decisões e não posso responsabilizar ninguém pelas consequências que elas acarretaram.
Meu sofrimento é só meu, e eu vou senti-lo em toda sua magnitude, resignadamente.

A noite cai e eu não tenho o que fazer nesta cidade tão grande e solitária. Meu pranto cessou e eu
sinto como se tivesse levado uma injeção anestésica direto no coração. Há um vazio no meu peito e a
tristeza o preenche pacientemente. As lembranças continuam reprisando diante dos meus olhos como
se tudo tivesse acontecido hoje. O dia em que a conheci, o dia em que dançamos, o dia em que
cantamos Supergrass, o nosso primeiro beijo, a nossa primeira transa, nossa despedida, nosso
reencontro... e agora esses últimos eventos malogrados. Entre eles, recordo-me da conversa com a
amiga, Milena. Das coisas que ela disse, eu deixei uma passar batido. Ela mencionou uma carta, uma
que ela me mandou e eu não recebi. Alice sabia exatamente para onde mandar as cartas, por que eu
não receberia essa? Margarida estava recebendo as cartas para mim. O único motivo para eu não
receber uma delas seria se... Margarida não me entregasse mais as cartas. Não, ela não teria motivos
para fazer isso. Não teria...

Essa dúvida me consome por quase dois dias. Duas manhãs após meu encontro desgraçado com
Alice, sinto que preciso tirar essa história de carta que não chegou a limpo. Penso em ligar para
Milena para pedir mais informações, mas acho que não será uma boa ideia. A esta altura, ela e Alice
já devem ter conversado sobre o que aconteceu e eu não quero falar sobre isso nem com ela nem com
ninguém. O melhor a fazer é ligar para Margarida, cortar o mal pela raiz e esclarecer isso de uma vez
por todas.

Pego o celular e busco o telefone do Café na agenda. Chamando... Chamando...

— Café Petit, bom dia?

— Oi, Margarida. É o Miguel.

— Oi, Miguel! E aí, como é que tá a viagem?

— Tudo indo. Escuta, queria falar com você — vou direto ao ponto.

— Comigo? O que foi? Aconteceu alguma coisa?

Apoio os cotovelos sobre meus joelhos e coço minha testa com as pontas dos dedos.

— Aconteceu, sim... Margarida, eu preciso saber se chegou mais alguma carta pra mim depois
da última que eu fui buscar.

Silêncio. Ouço o movimento das pessoas de Amistad passando ao fundo, mas Margarida
emudece.

— Margarida?

— Oi...

— Você ouviu o que eu disse?

— Ouvi...

— Então. Chegou mais alguma carta?

— Ai, Miguel...

— Margarida, pelo amor de Deus: chegou ou não chegou?

Ela suspira.

— É que um homem ligou aqui dizendo que era namorado da Alice e que era da polícia, que eu
não podia mais entregar nenhuma carta, que ele tinha descoberto sobre vocês... Fiquei com medo.

Filho da puta! Eu sabia!

— É mentira! Ele não é da polícia coisa nenhuma! Ele te enganou pra eu não receber mais
nenhuma carta!... — respiro fundo tentando controlar meu ódio. — Onde está essa carta? Você ainda
a tem?
— Tenho, tá aqui guardada...

— Lê pra mim.

— Ler pra você?

— É, Margarida, pega essa carta e lê pra mim. Agora. Por favor.

Sinto que ela hesita. Minha ansiedade está tão alta quanto minha paciência está baixa. Escuto-a
mexer em alguns papéis do outro lado da linha. Dentro de instantes, ela retorna:

— Achei... Pode ler mesmo?

— Foi o que eu te pedi. Estou esperando.

— Tá... Ela diz:

Miguel,

Espero que você leia esta carta a tempo. Pedi à minha amiga Milena postar por mim porque
estou passando por um momento muito difícil por aqui. Queria ter mais tempo de explicar tudo
com detalhes, mas prefiro que a gente tenha essa conversa pessoalmente.

Eu não estou namorando ninguém! É tudo mentira! Estou sendo chantageada por um cara
com quem fiquei algumas vezes depois que voltei para Veredas. Ele foi contratado pelo meu pai
para trabalhar no escritório como meu supervisor e a gente acabou se envolvendo. Acontece que a
gente transou e, há alguns dias, eu descobri que estou grávida. Ele descobriu nossas cartas e viu
um teste de gravidez junto com elas dentro da minha gaveta. O teste deu positivo e ele ameaçou
entregar suas cartas ao meu pai se eu não parasse de falar com você e não desse a paternidade
desse filho a ele, mesmo sabendo que o pai pode ser você. Além disso, me obrigou a escrever
aquela carta que você leu, pra que eu e você nunca mais tivéssemos contato, e ligou para o Café
se passando por meu namorado para obrigar a Margarida a não te entregar mais nenhuma carta
além da próxima que chegasse, que era a da despedida.

É uma longa história, mas o mais importante é: por favor, não me escreva mais, não me ligue,
não me procure. Vou pensar em algum jeito de entrar em contato com você, mas, por agora, não é
seguro que você me escreva; sua liberdade está em perigo. Se receber esta carta a tempo, por
favor, saiba que a outra é mentira. Vou dar um jeito de sair desta situação e te manter informado.

Com amor,

Alice
O mundo para de girar dentro do quarto.

— Grávida? Alice está grávida...?!

— É o que parece.

Não sei o que pensar nem dizer. Alice está grávida...

— Tá bom, Margarida. Obrigado.

Desligo o telefone e levo minhas duas mãos à boca. Tento organizar as informações. Aquele
mauricinho desgraçado está chantageando Alice porque ela está grávida... de um filho que pode ser
meu. Meu Deus! Um filho! Um filho que pode ser meu! Mas a gente transou com camisinha!... Não,
não da segunda vez... Eu tirei a tempo, mas sei que isso não funciona... Mas, se ela sabia que podia
correr o risco de engravidar, por que não me lembrou do preservativo? Ela não toma
anticoncepcional? Eu posso ser pai! O que eu faço agora, meu Deus? Me dá uma luz... Preciso ligar
para a amiga dela. Preciso falar com Alice, tirar essa história a limpo pessoalmente. E quebrar todos
os dentes daquele desgraçado.

Busco o telefone no pedaço de papel guardado dentro do meu bolso. Disco os números e
aguardo segundos intermináveis até que ela atenda.

— Alô?

— Milena, é o Miguel.

— Miguel! Por que você não fez o que eu disse? Por que não escutou o que a Alice tinha pra te
dizer?!

— Não me faz pergunta difícil agora, eu preciso conversar com ela.

— O que você falou com o Edgar?! Você não disse que seu nome é Martin, né? Pelo amor de
Deus!

— Não, ele não me reconheceu, me tratou muito bem, tá tudo sob controle. Eu só preciso falar
com a Alice sobre essa história de gravidez.

— Como você ficou sabendo? O Edgar te contou? Você leu a carta?

— Liguei no Café e a menina leu a carta pra mim pelo telefone; já estou sabendo de tudo.

— Você leu a carta?! Ah! Que alívio!... Tá, tudo bem, eu vou arranjar um encontro entre vocês.

— Não. Eu quero o telefone da Alice.

— Miguel, o Edgar vigia todos os passos da Alice. Se ele descobrir que vocês se falaram por
telefone, ele te entrega pro pai dela!
— Eu não me importo. Quero o telefone da Alice, quero falar com ela imediatamente.

— Ai, meu Deus... Você tem certeza? É a sua liberdade que está em risco!

— Milena, eu quero o telefone dela e me responsabilizo pelas consequências. Por favor.

— Tá... Tá bom, anota aí.

Anoto o número do telefone celular e o do escritório dela. Agradeço a Milena pela solicitude e
encerro a ligação em seguida. É hora de colocar essa história em pratos limpos de uma vez por todas.

•○•

Saio de mais uma reunião com a cabeça cheia. Não tenho conseguido me concentrar direito
desde que vi Miguel saindo daqui e entrando naquele carro e me rejeitando categoricamente. Como
isso dói!... Eu queria tanto que ele tivesse me ouvido, que tivesse falado comigo... “Agora é tarde,
Inês é morta”, diria Camões. Saio da sala de reuniões e volto para a minha. Edgar vem atrás, falando
sobre trabalho, sobre meus pais, sobre o “nosso” filho... Deus sabe quão insuportável se tornou ouvir
a voz desse homem depois de tudo que aconteceu. Dou meia atenção a ele e tento estender os limites
da minha paciência, pois o médico me disse que, durante a gravidez, é bom tentar evitar me estressar.
Não sei se tenho tido muito sucesso nisso, pois as coisas nem sempre estão a meu favor por aqui, e
hoje eu pareço estar particularmente irritada, chateada e Edgar perto de mim não melhora nada. Ele
fecha a porta e continua falando, e eu continuo fingindo que estou prestando atenção. Até que o
telefone toca sobre a minha mesa.

— Pronto.

— Alice, sou eu.

Meu coração dispara. Aquela voz. Era ele. Sim! Era ele!

— O-oi...

— A gente tem que conversar.

— Quem é? — Edgar pergunta.

— Não te interessa, vai pra sua sala, vai — respondo, tampando os furinhos do telefone com a
mão.

— E desde quando você tem assuntos particulares? — ele responde, cínico, cruzando os braços.

— Desde que eu nasci, que foi quando eu parei de te dever satisfações. Agora sai, sai! — abano
a mão no ar para que ele deixe a minha sala.

Estou nervosa. Duplamente nervosa. Edgar me fuzila com os olhos e sai da minha sala batendo a
porta. Respiro fundo e volto a atenção ao telefone.

— Oi, Miguel...

— Alice, me perdoa... Eu já estou sabendo de tudo. Eu li a carta, falei com a Milena, fui injusto
com você, me perdoa...

— Calma, tá tudo bem... — minha voz está trêmula; preciso me controlar. — Onde você está?

— Eu quero te ver; eu preciso te ver. A gente pode se encontrar?

— Miguel, é perigoso, o Edgar está controlando todos os meus movimentos; eu não posso
arriscar te encontrar assim!

— Alice, eu só vou me importar com esse moleque no meu caminho quando eu encontrá-lo e
enfiar a mão na cara dele. Antes disso, eu só preciso te ver... Você pode vir aonde eu estou agora?

— Onde você tá?

— Eu estou no Hotel Mênfis, quarto 1803, aqui perto do centro.

— Hotel Mênfis, 1803... Tá, eu tô indo praí agora; vou só pegar um táxi, que eu ainda tô sem
carro.

— Tudo bem, tô te esperando. Te amo.

— Também te amo, Miguel... Até já.

— Um beijo.

Desligo o telefone com o coração aos pulos, e então outra corrida contra o fim do mundo
começa. Preciso encontrar Miguel. Preciso encontrar Miguel. Preciso sair deste prédio e encontrá-lo
o quanto antes. Pego meu celular, minha bolsa, desligo meu computador, ajeito meu cabelo num rabo
de cavalo e, antes de eu sair da sala, Edgar entra como um vulto, batendo a porta atrás de si em
seguida.

— Quer dizer então que seu namoradinho te encontrou.

— Não é da sua conta, Edgar, some da minha frente.

— Você se esqueceu do nosso acordo?

— Eu não tenho acordo nenhum com psicopata. Você é doente, rapaz, precisa se tratar — não
está sendo fácil manter a calma com esse cidadão.
— Alice, você sabe o que vai acontecer se você sair desta sala e for se encontrar com seu
amante criminoso, não sabe?

— Você estava ouvindo a nossa conversa? — pergunto sem me surpreender com a iminente
resposta positiva.

— Você não sabe que eu estou por toda a parte? Que eu sei de cada respiro que você dá?

— Eu sei que você é um crápula e que foi o pior erro que eu já cometi na minha vida — recolho
tudo que preciso de cima da minha mesa e caminho em direção à porta, a qual Edgar bloqueia. — Sai
da minha frente.

— Pensa bem no que você está fazendo, Alice. Se você sair por esta porta e for se encontrar
com o Miguel, eu ligo pro seu pai no minuto seguinte e tenho certeza de que em dois tempos a polícia
vai estar no Hotel Mênfis, quarto 1803, levando mais um bandido pra trás das grades.

Cerro os meus dentes com força, prestes a explodir de ódio.

— Escuta aqui uma coisa, rapaz: você não manda em mim — ponho meu dedo indicador em
riste contra o peito dele, desejando intimamente que aquele fosse o cano de um revólver e que eu
tivesse visão de raio laser para fritar os miolos desse monstro. — Você não é meu namorado, não é
meu pai, não é meu chefe, você não é nada meu nem pra mim; você é um verme, um parasita, um ser
humano infeliz que precisa chantagear uma mulher pra provar a si próprio que é uma coisa que nunca
vai ser: um homem de verdade. Liga pro meu pai, liga pra polícia, liga pro FBI, liga pro papa, liga
pra sua mãe, liga pra quem você quiser, mas, pela última vez: saia. da minha. frente.

O olhar ameaçador, que agora já não me assusta, de Edgar se mantém fixo sobre mim por alguns
segundos antes de ele dar passagem e deixar que eu saia da minha sala. Saio.

— Você vai se arrepender disso, Alice! — ele exclama, andando alguns passos atrás de mim.

De costas para ele, apenas mostro meu dedo do meio enquanto caminho para o elevador. Chega
dessa vida, chega de ser chantageada, chega disso tudo. Cansei. Está na hora de tomar as rédeas
dessa situação e de enfrentar as consequências, sejam elas quais forem, de frente. Para o inferno o
que esse abjeto possa fazer contra mim!

Saindo do edifício, corro até a avenida próxima à rua da agência e espero pelo primeiro táxi que
passa.

— Hotel Mênfis, por favor.

Minhas unhas já estão acabadas: roí todas. Minhas pernas estão inquietas, meu coração salta...
um estresse emocional horrível. Agora é hora da verdade. Miguel veio até mim e eu não vou
desperdiçar esta chance de contar a ele tudo que tem acontecido ultimamente. Ele precisa saber,
precisa entender. Mas preciso tomar cuidado; preciso alertá-lo de que a liberdade dele realmente
está em jogo com a vinda dele aqui; não posso deixar que tudo acabe com ele sendo preso.
Chegamos ao hotel. Desço do táxi e sigo apressada para dentro do edifício. Para minha surpresa
ou desespero, não tenho que pegar o elevador para encontrá-lo no décimo-oitavo andar: Miguel me
aguarda na recepção. Ao vê-lo, minha angústia cessa imediatamente e dá lugar a um sorriso aliviado,
que também toma conta do rosto dele. Apresso-me para nos aproximarmos e, por fim, nossos corpos
de unem num abraço caloroso, apertado, cheio de saudade.

Não precisamos dizer nada; nossas vibrações falam por si. Não nos importamos que as pessoas
possam estar observando e pensando alguma coisa sobre a nossa indiscrição: abraçamo-nos sem
pressa, emocionados, reunidos. Ele segura meu rosto e me olha nos olhos ao nos desvencilharmos.

— Você tá bem? — pergunta em voz baixa e tom cordial.

— Tô, sim...

— Vamos subir.

Assinto. Seguimos até o elevador de mãos dadas, sem mais demora. Sozinhos dentro do
cubículo, ao fechar das portas e soar da campainha que anuncia a subida ao décimo-oitavo andar,
nossos corpos se conectam novamente num beijo automático, saudoso, sedento. Esquecemo-nos das
dores, das dúvidas, das justificativas, de tudo, e nos entregamos momentaneamente à chama dessa
paixão, que não se apaga por nenhum instante. Nosso beijo dura toda a subida até o quarto de Miguel,
que segue à minha frente quando chegamos ao corredor.

Alcançamos ao quarto dele e nos controlamos. Embora a vontade de estar perto dele, junto a ele,
nele seja grande, é necessário que nos contenhamos, afinal temos muita coisa para discutir e
esclarecer. Ele liga o ar condicionado e se senta na beira da cama; eu deixo minha bolsa sobre uma
mesa que há no quarto e me ajeito no sofá de frente a Miguel, tirando os sapatos que apertam meu pé.
Um longo suspiro e nós iniciamos nossa inquirição particular.

— Então... — ele diz. — Onde é que começa essa história?

Pergunta difícil. Nem eu mesma sei a exata resposta. Ao som de um fungar de indagação e do
estralar das juntas das minhas pernas, rebobino a fita até o ponto em que nos despedimos em
Amistad.

— Bem... A gente se despediu aquela vez, em Amistad, e eu voltei pra cidade e fiquei te
esperando. Eu sei que você falou que não era pra eu te esperar, mas você sabe que eu ia. Ainda antes
de eu viajar, eu tinha conhecido esse cara, o Edgar, e a gente acabou ficando uma ou duas vezes,
naquela coisa de carência e tal. Foi nesse intervalo que a gente transou. Quando eu voltei de viagem,
ele tornou a insistir em querer ficar comigo e eu acabei cedendo.

Miguel escuta tudo atentamente. Meus olhos vagam pelo cômodo enquanto tento recuperar os
fatos e organizá-los em ordem cronológica.

— Depois chegou a primeira carta, e chegou bem na hora que ele estava me chamando pra sair.
Eu li, respondi... depois suspeitei que estava grávida e comprei um teste, mas não tive coragem de
fazer. Daí veio a segunda carta e, no mesmo dia, eu acho, eu saí com a minha mãe, ele mexeu na
minha gaveta enquanto isso e encontrou tanto as cartas quanto o teste de gravidez. Foi aí que começou
a chantagem.

— Você poderia ter mentido o resultado do teste...

— Não, Miguel: ele entrou no banheiro junto comigo e ficou esperando o resultado do teste sair;
não tinha como mentir.

— Esse cara é um demônio, Alice, como você foi se envolver com um sujeito assim?!

— Ele é um demônio porque quer ficar comigo a todo custo e quer ser pai desse filho, mas com
as outras pessoas ele é um amor, um anjinho.

Ficamos em silêncio por alguns instantes. O olhar de Miguel é preocupado; ele rói as unhas,
com os cotovelos postos sobre o joelho e corpo inclinado.

— E se esse filho for dele? — ele pergunta.

— Não é como se ele quisesse fazer um exame de DNA pra saber a verdade. Sendo dele ou
sendo seu, isso não faz diferença. Não pra ele. Se bem que eu acharia muito bom se a criança
nascesse com os olhos bem verdes pra ele ver e saber que o filho não é dele coisa nenhuma.

— Alice, isso é sério: você tem que pensar no bem-estar da criança. Ela tem o direito de saber
quem é o pai de verdade.

— Eu também acho, mas e se o pai for você? O que nós vamos fazer?

Ele volta a pensar por mais alguns instantes.

— Eu não sei... — diz em voz baixa.

— Eu também não sei. Eu não estava pronta pra engravidar; não estava pronta pra ser mãe,
ainda mais de um filho seu. Não me entenda mal, mas, poxa... Você é um homem de negócios, né?
Essa criança vai crescer sem pai, de um jeito ou de outro.

— Eu sei...

Miguel coça a cabeça e olha para a rua pela janela fechada. Ficamos mais alguns instantes em
silêncio, pensando em como sair dessa sinuca de bico em que nos metemos.

— Por que você não foge comigo? — ele continua.

— Oi?

— É, ué, a gente foge, vai pro exterior, se esconde na Suécia, sei lá.
— Miguel, cê tá louco? Eu tenho uma vida aqui no Brasil, não posso simplesmente “fugir” com
meu amor bandido assim. E se a polícia te pega? Eu vou presa junto! E outra: e se esse filho for do
Edgar? Por mais que ele seja um monstro, ele tem os direitos de pai dele.

— Então a gente faz o teste de paternidade.

— Ah, ótimo: a gente faz o teste de paternidade e você vai preso.

— Ninguém precisa saber que eu te sequestrei.

— E você vai ter surgido de onde? Vai ser um qualquer pra quem eu dei uma vez e engravidei?

— O que é que tem?

— Vai ser meu suicídio social, né? “Nossa, ela deu pra um cara que nunca viu na vida e
engravidou!”

— Isso é altamente antifeminista. Seu corpo, suas regras, ué.

— Não estou muito preocupada com feminismo agora; estou mais preocupada com a chantagem
do Edgar e com a sua liberdade.

Nossa conversa não é muito frutífera. Tudo caminha no campo do “E se...?” e nenhuma solução
efetiva parece nos servir. São muitas as possibilidades e poucas as alternativas. Se não houvesse
uma criança envolvida na história, as coisas seriam tão mais fáceis... Ainda bem que Miguel não
menciona em nenhum momento a possibilidade de abortar. Ele deve saber que isso eu jamais faria. O
que será que minha mãe faria? A opinião da Milena eu já sei... Meu pai não pode nem sonhar que este
diálogo aqui está acontecendo. Quem poderia nos ajudar? Acho que vou procurar um psicólogo.

Passamos mais de uma hora tentando chegar a alguma resolução. Sem sucesso. Enquanto isso,
aproveitamos o tempo para nos aproveitarmos. Não transamos, mas nos deitamos juntinhos na cama e
nos curtimos um pouco, já que cada vez que nos encontramos é como se fosse a única, a última.
Queria tanto que esses momentos durassem para sempre, ou que se repetissem todos os dias, ou que
pudéssemos viver felizes em paz, sem precisar nos esconder dos outros... Ah, vida, por que você faz
isso com as pessoas? Tudo poderia ser tão menos complicado... Por que precisava existir um Edgar
no meu caminho? Por que não existe um “Ctrl + Z” para eu dar um “Desfazer” no momento em que
deixei aquelas cartas dentro da minha gaveta? Ah, cazzo! Meu celular toca dentro da minha bolsa.
Estico meu braço para ver quem me liga. Pai chamando...

— Oi, pai.

— Alice, onde você está?

— Eu? — ai, Jesus, onde eu estou?! — Eu... tô... aqui... aqui perto... de uma loja... no shopping.
Por quê?

— Venha pro meu escritório imediatamente. A gente precisa conversar.


— Tá bom, tô indo.

Ele desliga. Meu coração vai parar no meio da minha garganta. Fico branca, gelada, aterrada.

— O que foi? — Miguel me pergunta.

— O Edgar cumpriu a ameaça...

Miguel ergue as duas sobrancelhas e apoia o peso do corpo sobre os braços na cama.

— O filho da putinha é rápido, hein? — diz.

— Miguel, isso é muito sério. Você tem que sair daqui; tem que voltar pra Amistad!

— Eu não vou a lugar nenhum.

— Ele sabe que você está aqui!

— Deixa ele.

— Miguel, meu pai acabou de ligar; o Edgar já deve ter contado tudo pra ele! Eles podem
mandar a polícia vir atrás de você aqui!

— E vão alegar o quê? Que eu te sequestrei? Quem é que vai provar?

— Miguel!...

— Alice, você é muito cagona. E eu sei me virar, não precisa se preocupar.

— E o que eu vou dizer ao meu pai? O Edgar deve ter mostrado as cartas pra ele, deve ter dito
que eu estou grávida, ele deve estar sabendo de tudo agora! E, não sei se você se lembra, mas, na
segunda carta, você cita o fato de ter me sequestrado e fala o endereço do Café na primeira!

— Seu pai sabe que cara eu tenho?

— Não, mas o Edgar sabe! E sabe que você está aqui!

— Deixa ele comigo; se preocupa só com o seu pai agora. O que você vai falar pra ele?

— Não sei... O que você acha?

— O que você quer falar?

— Eu não quero comprometer sua liberdade. O Edgar pode ser bobo, mas meu pai não é. Não
custa nada, inclusive, ele já ter mandado a polícia pra cá enquanto a gente conversa.

— Você se preocupa demais.


— Aquelas cartas são altamente incriminadoras; meu pai não vai acreditar em mim se eu disser
que é tudo mentira ou coincidência; ele confia no Edgar. E minha gravidez uma hora vai aparecer;
minha barriga vai crescer, também não dá pra mentir isso.

— Quanto a isso você pode dizer que o filho é do Edgar, ué.

— Eu não vou fazer isso.

Encarando-me com olhos cuidadosos, Miguel sorri. Ele parece estar medindo minhas palavras.

— Seu pai não deve saber que você está sendo chantageada. O Edgar deve ter contado a versão
bom-moço da história. Você pode usar isso contra ele.

— Posso, mas nada muda o fato de que eu estava me correspondendo com e posso estar grávida
do homem que me sequestrou, e usar a chantagem do Edgar contra ele não vai fazer meu pai desistir
de te encontrar. Agora que ele sabe seu nome e o Edgar sabe onde te encontrar em Amistad, fica tudo
muito mais fácil pra eles.

Miguel fita o chão do quarto e solta um longo suspiro. Espreguiçando-se em seguida, ele se
levanta e pega a chave do carro sobre a mesa.

— Esta conversa vai ficar girando em torno disso e a gente não vai chegar a conclusão nenhuma.
É melhor você ir conversar com o seu pai e falar a verdade.

— Falar a verdade? Você tá louco?!

— Você vê outra opção?

— Agora não, mas a gente pode pensar em alguma coisa.

— Meu bem, seu pai está te esperando “imediatamente”, você acha que nós vamos ter tempo de
“pensar em alguma coisa”?

— Mas e você? O que você vai fazer?

— Eu sei onde te encontrar, fica tranquila. Vamos, eu te levo lá.

— Me levar lá? Você não pode

— Pare de reclamar e venha, Alice; eles não vão estar na porta do prédio me esperando com
escolta armada. Você desce e eu volto pra trás. Vamos.

Meus nervos estão à flor da pele. Não imaginei que o desgraçado do Edgar seria tão rápido ao
cumprir a ameaça, se é que imaginei que ele cumpriria mesmo. O que é que eu vou dizer ao meu pai?
Com que cara eu vou olhar para ele quando ele me perguntar “Que história é essa, Alice?”? Por que
é que eu fui me meter com esse Edgar, meu Deus?... Me dá uma luz! O que eu faço?!
Saímos do hotel de mãos dadas. Ainda não sei por que Miguel está tão tranquilo com toda essa
situação, ou pelo menos parece estar. Eu, no lugar dele, já teria dado o fora daqui há muito tempo.
Será que estou mesmo sendo cagona ou ele é que está se arriscando demais por minha causa? Edgar
cumpriu a ameaça, caramba! A liberdade de Miguel está em perigo agora!

— Você não vai me deixar de novo, né? — pergunto antes de chegarmos ao carro.

— Você acha que eu faria isso?

— Não foi você que disse que a melhor ideia era a gente não se ver mais?

— “É dos sábios mudar de opinião”. Cervantes disse.

— Argh! Você continua insuportável tanto quanto quando eu te conheci — digo, irritada com a
calma que esse homem consegue manter mesmo em situações como esta!

— Obrigado. Você também não mudou nada.

Entramos no carro, que ele certamente alugou, pois não é a caminhonete branca da qual me
lembro. Partimos do hotel em direção ao escritório do meu pai em silêncio. Não sei o que pensar e
não sei o que Miguel pode estar pensando agora. Procuro respostas no olhar dele, mas este se
mantém concentrado na rua e parece não se preocupar com as consequências da conversa que está
prestes a acontecer. Não posso deixar esse homem ir preso, meu Deus!... Tenho que conseguir dobrar
meu pai e fazê-lo não ir atrás dele; ao menos isso.

Minha agonia é tanta que mal vejo a viagem passar. Meus pensamentos estão tão herméticos que,
quando dou por mim, já estamos na porta do prédio. Miguel me olha durante alguns segundos e eu
pego seu olhar no ar quando volto do meu pequeno transe.

— Boa sorte — ele diz.

— O que você vai fazer agora?

— Primeiro vou esperar você descer do carro e entrar; depois vou sair desta vaga; depois não
sei. Dar uma volta no parque, talvez.

— Eu vou te ver de novo, né?

— Hoje?... Pode ser que sim. Mas também pode ser que não... Mas a gente vai se ver de novo,
sim, não precisa se preocupar.

— Vou confiar em você — abro a porta do carro. — Até mais.

Trocamos um beijo de despedida e um abraço que podem ser os últimos que trocaremos até não
sei quando. Recupero meu fôlego, desço do carro e sigo edifício adentro. Meu coração está a ponto
de sair pela boca e já sinto minhas mãos começarem a formigar. Calma, Alice, é só seu pai; não é
como se ele fosse te matar (literalmente) ou algo assim; controle-se. Pego o elevador, subo, saio. De
volta aqui depois de tanto tempo. As pessoas estão felizes em me ver; me cumprimentam sem saber o
porquê da minha vinda. Ah, se elas soubessem...

— Alice!

Milena vem em minha direção, aparentemente aflita tanto quanto eu.

— Oi, Mi...

— Alice, não me diga que o Edgar cumpriu o que prometeu.

— Cumpriu... Como você sabe?

— Ele tá aí!

Um frio me sobe à espinha. Canalha! Cretino! Ele veio pessoalmente contar a história ao meu
pai! Não acredito... Respiro fundo, tentando controlar minha vontade de matar esse filho da mãe.

— Tá... Tudo bem. Meu pai me ligou pra eu vir aqui conversar com ele, vamos ver no que vai
dar.

— E o Miguel?

— Foi ele que me trouxe aqui... Ele é teimoso, não sei o que vai fazer agora, mas não tem jeito:
só me resta confiar nele.

— Ai, amiga... — ela leva uma mão à boca. — Tsc, vai lá. Boa sorte.

Abraçamo-nos. Agora é a hora da verdade. Devo começar a rezar? Quantos Pai Nosso?
Caminho em direção à sala do meu pai e entro sem ser anunciada. Ao abrir a porta, vejo-o sentado
atrás da mesa e Edgar com as mãos para trás das costas, andando de um lado para o outro. Quando
nossos olhos se encontram, ele me sorri vitorioso, como quem diz “Eu avisei”. Nestor tira os óculos
e os coloca sobre a mesa.

— Alice — diz, tomando nota da minha chegada.

Não me aproximo muito da mesa; paro a três passos das poltronas. Edgar ao meu lado, a dois
metros de distância.

— Sente-se — meu pai diz, apontando uma poltrona.

— Estou bem em pé.

Pegando as cópias das cartas que eu recebi, confirmando novamente a afirmação de que Edgar
tirara cópias de ambas, meu pai me pergunta:

— O que você tem a dizer sobre estas cartas?


Furiosa que estou, fúria esta que agora triplica por ter Edgar respirando o mesmo ar que eu,
decido que preciso virar este jogo, e, para fazer isso, não posso me colocar em posição de vítima.

— Não tenho nada a dizer; está tudo aí. Recebi essas cartas e as respondi de próprio punho.

Nestor meneia a cabeça e volta a deixar as cartas sobre a mesa.

— Você mentiu pra mim esse tempo todo, minha filha?

— Mentir? Menti o quê?

— Você sabia onde esse homem estava...

— O senhor nunca me perguntou se eu sabia onde ele estava; não menti em nada. Além disso, a
gente só trocou duas cartas, porque este cidadão aqui — aponto Edgar — começou a me chantagear.
Você contou ao papai sobre a sua chantagem, Edgar? — pergunto, cínica, fitando-o.

Sinto que pisei no calcanhar de Aquiles dele, mas ele se mantém impassível.

— Não tem chantagem nenhuma, Alice, eu só mostrei essas cartas ao seu pai pro seu próprio
bem...

— Nossa, que engraçado! O senhor sabia que o Edgar monitora todos os meus passos, pai? que
ele está aqui hoje, agora, nesta sala, apenas e tão somente porque eu rompi com a chantagem d’ele me
entregar pro senhor caso eu voltasse a me encontrar com Miguel?

— Isso não é verdade.

— Você vai me desmentir na minha cara? Na frente do meu pai?

— Você está se fazendo de vítima pra desviar do assunto, Alice; não fuja da sua
irresponsabilidade.

— Eu tenho nojo de você, Edgar! A Milena! Chama a Milena aqui, pai! Ela é testemunha do que
esse monstro fez! Ele me obrigou a escrever uma carta pro Miguel dizendo que eu agora “tinha um
namorado” e não podia mais falar com ele! Ou o senhor acha que eu realmente estou namorando este
idiota?

Meu pai nos olha com incompreensão.

— E não está? — pergunta.

— É lógico que não! É tudo uma farsa! Ele me obrigou a participar desse circo todo só pra eu
não me encontrar mais com o Miguel! É por isso que ele veio aqui hoje te contar! Porque eu desisti
de ceder à chantagem! O Edgar sabe que essas cartas existem há tempos!

— Você está falando bobagens pra me incriminar, Alice.


— Calem a boca, vocês dois, por favor — meu pai pede com calma, esfregando a testa.

Que ódio! Que ódio! Que ódio desse infeliz! Como ele tem a capacidade de vir aqui
pessoalmente contar tudo ao meu pai e me fazer pagar de louca mentirosa?!

— Você não pode acreditar nele, pai!

— Eu pedi pra vocês calarem a boca.

Silêncio na sala. Edgar mantém a pose de namorado traído o tempo todo; meus pés estão
inquietos; minha respiração está ofegante, meus olhos marejam de ira; sinto o suor brotar da minha
pele. Meu pai relê as cartas sobre a mesa e eu sinto minha privacidade sendo invadida bruscamente.
Mas não posso me importar com isso agora.

— Alice, você tem noção do que você está fazendo? — Nestor me pergunta lentamente.

— “Noção” não: tenho plena consciência.

— Minha filha, você está se envolvendo com o homem que te sequestrou, com o homem que me
roubou mais de cem mil dólares.

— Eu sei e não aprovo o que ele fez. Mas a gente se apaixonou; não foi culpa minha nem dele.

— Isso não é paixão, é Síndrome de Estocolmo — Edgar se intromete.

— Pai, por que esse cara ainda está aqui? — pergunto, impaciente.

— Eu posso sair, se o senhor quiser, seu Nestor.

— Não; você fique aí. Alice... Eu sinto muito; não posso aceitar esse tipo de coisa. Você pode
estar apaixonada, mas isso não muda o fato de que esse homem é um bandido. Eu não tenho escolha a
não ser mandar a polícia atrás dele.

— Pai, você não pode fazer isso! — meu coração gela; sinto o sorriso de Edgar se formar sem
sequer precisar olhá-lo.

— Eu não tenho escolha...

— Pai!...

A porta da sala se abre abruptamente. Olhamos os três em direção a ela para ver Miguel
entrando e a secretária do meu pai atrás, tentando impedi-lo.

— Ah, você está aqui! Ótimo.

A passos rígidos, Miguel se aproxima de Edgar e o puxa pelo colarinho da camisa, acertando-
lhe um soco no rosto que o leva ao chão. Dou um grito de susto que sai acompanhado por outros
vindos do lado de fora da sala, mas não posso deixar de sentir uma onda de satisfação me atravessar
a espinha. Meu pai se levanta; eu me afasto; Edgar geme alto.

— Esse foi por mim.

Miguel chuta a barriga de Edgar, caído.

— Esse é pela Alice.

E chuta de novo.

— E esse é de graça.

As pessoas do outro lado da porta se aproximam mais para ver o que está acontecendo. O tititi
se forma e ninguém entende exatamente o que se passa dentro da sala. Edgar rola no chão duas vezes,
contorcendo-se de dor. Meu pai não diz nada; eu só consigo tampar a boca e olhar a cena, atônita.
Miguel se aproxima de mim e me envolve num abraço. A secretária do meu pai se afasta e ele
gesticula para que ela saia da sala e feche a porta. Restamos nós quatro.

Segundos depois, juntando forças, Edgar se levanta segurando a barriga. O nariz dele sangra.

— Pronto... Chegou o bandido...

— Sim, agora temos dois bandidos na sala: eu e você — Miguel responde.

— Então você... é o Miguel — meu pai constata.

— Sim. Prazer.

Desvencilhamo-nos. Todos olhamos para o meu pai, sem saber exatamente o que dizer ou o que
ele vai dizer.

— O que você está fazendo aqui? — ele pergunta.

— Imaginei que estivessem falando de mim. Não gosto que falem de mim pelas costas.

Dou uma cotovelada em Miguel, que parece não ter a menor noção de perigo. Ele me reprova
com um olhar.

— Estávamos falando sobre te mandar pra cadeia — meu pai continua.

— Hum... Parece razoável. Mas eu tenho uma proposta.

Proposta? Que proposta? De onde ele tirou isso? Por que não falou nada antes? Ficamos todos
em silêncio e voltamos nossa atenção a Miguel, que fita meu pai, que aguarda que ele prossiga.

— Que proposta?
— Eu devolvo o dinheiro do resgate da Alice e você deixa a gente em paz.

— Como assim? — questiono em um arco reflexo.

— Assim sendo, ué. Eu não mexi no dinheiro do seu resgate ainda.

— Como não?!

— Não mexendo, ora!

— Por que você não me falou isso antes?!

— Porque eu tive essa ideia há o quê? Cinco minutos? É. Foi por isso que eu subi aqui.

— Mas...!

— Vocês são patéticos — Edgar diz em voz baixa, ainda estancando o sangue do nariz com a
mão. Paramos para prestar atenção nele. — Estão tão preocupados com esse namorico adolescente
que se esqueceram de dar ao Nestor a grande notícia.

— Que grande notícia? — meu pai pergunta.

— O senhor vai ser vovô, Nestor; vai ter um netinho da Alice com o delinquente.

— Você está grávida, Alice?

— Eu ia te contar, mas queria resolver essa situação antes. Eu não sei quem é o pai e não queria
dizer que o filho é do Edgar.

— Mas não tem problema, a gente pode fazer um exame de DNA — Miguel intervém.

— Não precisa: o filho é do bandido — Edgar continua. — Eu sou estéril.

Três pares de olhares estarrecidos se formam na sala. Uma bomba de silêncio estoura dentro de
mim. Não, não pode ser. Não posso ter ouvido o que acabei de ouvir.

— Você transformou minha vida num inferno porque esse filho podia ser seu e agora me diz que
é estéril? — questiono, furiosamente incrédula.

Edgar dá de ombros.

— Isso não faria diferença, mesmo.

Meu pai limpa a garganta e volta a se sentar.

— Edgar, acho que sua presença não é mais necessária nesta sala; pode voltar ao outro
escritório. E, quando chegar lá, procure o RH: você está demitido.
Sem dizer mais nenhuma palavra, Edgar lança seu olhar de desprezo sobre nós pela última vez
antes de sair da sala. Ao bater da porta, caio em mim e me dou conta de que esta criança que eu gero
é filha minha e do Miguel, que também me olha como quem chegou à mesma conclusão. Não dizemos
nada; nossos olhares dizem tudo. Acabamos nos abraçando silenciosamente enquanto meu pai,
percebendo nosso atordoamento, aproveita o tempo e liga para o outro escritório e conversa com o
setor de recursos humanos sobre a demissão imediata do Edgar. Não demora muito para que
voltemos à cena.

— Queiram se sentar, por favor — ele diz ao colocar o telefone no gancho.

Eu e Miguel nos desabraçamos e, ainda abalados pela notícia de Edgar, nos sentamos nas
poltronas de frente para o meu pai, que nos analisa de fora para dentro com um olhar indecifrável.

— Minha filha... Grávida de um bandido... — ele diz.

Não temos o que responder. Apesar do tom de desprezo, a afirmação é verdadeira; Miguel é um
fora-da-lei.

— O que você espera que eu faça, Alice? — Nestor continua.

— Não sei... — respondo, hesitante. — Realmente não sei. Mas eu sei que eu não vou tirar esse
filho e que eu quero ficar com o Miguel, quer o senhor aprove ou não.

— Considere minha proposta — Miguel emenda.

Meu pai continua nos observando, pousando seu olhar ora em mim, ora em Miguel.
Permanecemos em silêncio durante longos segundos. Esta situação está altamente embaraçosa. Não
consigo olhar meu pai nos olhos; Miguel tampouco. Ele, pelo contrário, nos fita profundamente, com
as mãos cruzadas em frente à boca, como se procurasse uma solução para esse dilema.

— Eu vou aceitar sua proposta... — ele diz, finalmente.

— Vai?!

Meu coração salta de felicidade dentro do peito. Miguel segura minha mão.

— Vou... Com uma condição.

— Qual? — perguntamos juntos.

— Que, além de devolver meu dinheiro, você se entregue à polícia.

— Pai! Não! — exclamo imediatamente. — O senhor não tem o direito de pedir isso!

— Por que não?

— O Miguel já vai te devolver o dinheiro! Isso não é o suficiente?!


— É claro que não. Meu dinheiro é o de menos. Você pode estar apaixonado por esse homem,
mas ele já sequestrou várias pessoas—incluindo você—e roubou de muita gente, não só de mim. Ele
precisa pagar por isso.

— Ele não me fez mal nenhum! Eu estive muito bem dentro do cativeiro; ele não cortou meu
dedo, não cortou minha orelha, não me fez absolutamente nada! Muito pelo contrário! Não é justo o
senhor pedir isso!

— Se tem uma coisa que isso que eu pedi é, essa coisa é “justo”.

— Mas, pai! O Miguel vai ser pai de um filho meu! Eu não p

— Eu aceito.

Miguel me interrompe. Olho-o aterrada, desesperada.

— O quê?! Miguel, você não pode aceitar isso!

— Alice, você está grávida de um filho meu; você e essa criança são as únicas coisas que eu
tenho agora. Se o preço que eu tenho que pagar pra viver em paz com você e com essa criança for
minha liberdade, tudo bem: eu pago.

— Mas, Miguel...

— Está decidido: eu aceito — ele se dirige ao meu pai: — Eu devolvo seu dinheiro, me entrego
à polícia e, depois, eu, a Alice e a criança estamos livres, temos um acordo? — Miguel estende a
mão ao meu pai, que leva algum tempo para respondê-lo.

— Geralmente eu não faço acordos com criminosos, mas... sim, temos um acordo.

Eles selam o negócio com um aperto de mão. Ainda não consigo acreditar. Minhas lágrimas
começam a cair em silêncio.

— Ótimo. Pode chamar a polícia, então.

— Eu não acredito que vocês estão fazendo isso... — digo, pasmada.

— Alice — Miguel me segura pelos braços —, as únicas coisas que eu tenho a perder são você
e esse filho. Eu vou preso, passo algum tempo na cadeia, depois saio em liberdade condicional por
bom comportamento e pronto: nós vamos ter o resto da vida pra ficar juntos. Cedo ou tarde eu iria
acabar preso, mesmo, então que seja agora. E pensa pelo lado positivo: nós vamos nos ver muito
mais se eu estiver na cadeia do que foragido!... Isso não é o fim: é só o começo.

As palavras dele não são o bastante para me consolar, mas, pelo visto, ele e meu pai estão
decididos a seguir adiante com isso que parece ser a única solução para este drama. Por mais que
doa, a mim resta aceitar. Meu pai está com a mão no gancho, olhando-nos com frieza, esperando que
finalizemos nosso momento. Tudo está dito e feito. Com um meneio de cabeça afirmativo, mas
relutante, compactuo com a sentença.

— Pode ligar — Miguel finaliza.

E nesse deus ex machina, tudo se resolve.


Epílogo

Foi tudo tão de repente... Por mais clichê e repetida que esta frase possa parecer, é irrefutável
sua veracidade: a vida é uma caixinha de surpresas. Num dia, eu estava na festa de inauguração de
um escritório da agência de publicidade do meu pai; no mesmo dia, um homem surgido do nada
aparece me fazendo cortesias e eu apago minutos depois, acordando num quarto escuro sem me
lembrar de muita coisa. Sequestrada. Eu, uma rica coitada, sequestrada. E a vida consegue ser tão
canalha que me coloca como sequestrador um homem lindo, e que não era lindo só por fora, mas por
dentro, e que, além de lindo, era insuportável e me tirava do sério com meia dúzia de palavras, e que
me fez me apaixonar cegamente... Acho que tudo aconteceu como tinha de acontecer. Se “Martin”
fosse meu príncipe encantado num cavalo branco, nossa história não seria a mesma, porque ele é meu
sequestrador encantado na caminhonete branca, e na nossa história eu não trocaria uma vírgula.

Minto: trocaria, sim. Trocaria o momento em que Edgar apareceu no meu caminho; trocaria o dia
em que eu tentei fugir da Casa; trocaria meus momentos de descontrole... É uma viagem muito louca
esse negócio de amar. Não que eu seja uma super-heroína com qualidades acima do céu e da terra,
mas sempre cri que eu fosse uma mulher resolvida, inteligente, sensata. Mas depois que Miguel
entrou na minha vida e a virou de cabeça para baixo, perdi o controle completamente. Ir atrás do
homem que me sequestrou! Que sandice! Enfrentar meu pai para não deixar o homem que me
sequestrou ir preso! Engravidar do homem que me sequestrou!... Às vezes me pego pensando nessas
coisas e concluo que fui muito inconsequente. Não me arrependo de nada; acho que, no final das
contas, aprendi algumas lições valiosas com isso tudo. Aprendi a confiar quando não se tem outra
escolha; aprendi que a saída mais fácil nem sempre é a mais certa; aprendi a esperar; aprendi que o
tempo conserta tudo.

Aquele foi um dia difícil. Ver a polícia chegar, algemar Miguel e levá-lo para a delegacia foi
uma das cenas mais tristes que eu já vivi para ver. Meu pai não pareceu se comover com o meu
pranto. As pessoas de fora da sala tentavam entender o que estava acontecendo, mas eu não estava
disposta a nem em condições de dar explicações a ninguém. Acompanhei Miguel até a delegacia, mas
não tinha muita serventia a minha presença por lá. Conversei com um policial para saber o que fazer
a seguir, e, novamente, não havia muito. Instruíram-me a contratar um bom advogado e só.

Foi aí o começo do recomeço. Primeiro, claro, tive que dar inúmeras explicações a inúmeras
pessoas, e, embora eu não me envergonhe de nada do que eu tenha feito, é um tanto quanto
constrangedor dizer às pessoas que o homem que saiu algemado de dentro do escritório do meu pai
era o meu sequestrador, por quem eu me apaixonei e de quem eu esperava um filho. Não que eu
devesse satisfações a alguém, mas é que isso é o tipo de coisa que não passa despercebido. A parte
mais difícil desse ato operístico foi contar à minha mãe, que ficou verde, amarela, azul e branca
conforme eu ia explicando o que, como, quando e onde tudo aconteceu. Talvez o fato de o Miguel ter
sido gentil comigo durante o sequestro tenha ajudado a tornar a digestão da história toda mais fácil.
Mas eu a entendo. Fosse uma filha minha me contando uma saga como essa, eu também ficaria de
cabelos em pé. Para minha sorte, ela acabou entendendo. Claro que eu não esperava que ela dissesse
que Miguel era o genro que ela pediu a Deus, mas ela ter achado razoável o acordo feito entre ele e o
meu pai já me era o bastante.

A conversa com Nestor, surpreendentemente, foi mais fácil do que a com a minha mãe. Ele me
encheu de perguntas, mas em nenhum momento se colocou contra o meu relacionamento com Miguel
quando ele fosse solto. Acho que a ideia de ser avô amoleceu um pouco o coração dele. Parece que,
de todo mundo, a pessoa menos acostumada à ideia da minha maternidade era eu. Seu Nestor estava
tão solícito que me indicou ele próprio um advogado para tomar conta do caso.

Miguel aguardou julgamento em liberdade, e me atrevo a dizer que foi aí que começamos a
namorar. Foi quando finalmente tivemos tempo de poder parar e conversar com calma; foi quando
começamos a nos conhecer. Nesse ínterim, descobri muita coisa sobre ele. Descobri que ele é
formado; ele me contou a história do irmão que ele visita em Amistad; me contou sobre a família, que
já praticamente não existe; sobre as outras pessoas que sequestrou, sobre um monte de coisas... E
decidimos os nomes que daríamos ao bebê: se fosse menino, Maurício, em homenagem ao irmão
dele; se fosse menina, Helena, em homenagem à mãe.

Outras coisas interessantes acontecerem enquanto ele aguardava julgamento. Por exemplo: um
dia, minha mãe decidiu que era boa ideia que ele fosse lá em casa para um jantar, para que ela
pudesse conhecê-lo, afinal, por bem ou por mal, ele seria pai de um filho meu; dona Agnes seria avó
e não poderia sê-lo sem conhecer o genro. Meu pai ficou com o pé atrás, mas não discordou da ideia,
talvez porque já o conhecesse. Quando disse ao Miguel que esse convite havia sido feito, pela
primeira vez o vi hesitar.

— Tem certeza? — ele perguntou. — Isso não me parece boa ideia.

— A ideia foi da minha mãe; eu só estou repassando o convite. Acho melhor você ir.

Não levou muito tempo para convencê-lo, mas confesso que foi divertidíssimo vê-lo
preocupado com que roupa deveria usar para conhecer minha mãe, como se isso fosse um evento
divisor de águas. Apesar das minhas recomendações para que ele relaxasse e não esquentasse a
cabeça com isso, ele se preocupou exageradamente com todos os detalhes. Em vão, claro, pois ele
não ficaria feio ou mal vestido nem se tentasse, tampouco causaria qualquer má impressão além da
que já tinham.

O dia do jantar foi um episódio à parte. Acho que Miguel não era exatamente o tipo que minha
mãe esperava encontrar. O olhar dela ao encontrar os olhos verdes dele não deixaram passar
despercebido seu espanto.

— Então... você é o Miguel — ela disse.

— Sou sim, senhora. Encantado.

E trocaram cumprimentos formais. Meu pai apenas balançou a cabeça; não houve novo aperto de
mãos depois do acordo que eles selaram. Os empregados ficaram em polvorosa. É claro: não é todo
dia que a boa filha traz um namorado bandido para casa. Celeste, depois, veio me contar que aquele
era o namorado mais bonito que eu já tinha tido, e que dava de dez no anterior, que era o Edgar.
Edgar, por sinal, sumiu das nossas vidas, graças ao bom Deus. Depois do dia fatídico no
escritório do meu pai, ele deixou a VisualiZe definitivamente. O dia da discussão foi o último em que
eu o vi. Mas, em conversa com o meu pai, depois este me assegurou que, no que depender dele, em
agências de publicidade Edgar nunca mais encontra emprego, pois referências de Nestor Borges ele
nunca terá, e referências de Nestor Borges nesse mercado significam muito.

Depois do primeiro jantar lá em casa, à noite, antes de dormir, minha mãe foi até o meu quarto
conversar comigo com uma cara preocupadíssima.

— Minha filha... — ela disse.

Esperei por alguns segundos até que ela continuasse a frase, e a continuação resultou num longo
diálogo sobre quão espantada ela estava por Miguel ser um criminoso; que ela poderia vê-lo na rua e
jamais diria que ele faz o que faz; que, bonito e inteligente desse tanto, ele poderia ter o emprego que
ele quisesse. Quando contei a história do irmão, então, que foi a mola propulsora da coisa toda, ela
se estarreceu ainda mais. No bom sentido, se posso assim dizer. Ficamos uns bons minutos falando
sobre ele e como tudo se deu entre nós. O momento alto do diálogo foi:

— Dá pra entender por que você se apaixonou por ele.

É claro que dá.

Assim que foi iniciado o processo contra o Miguel, os bens dele foram congelados. Por sorte, a
maleta de dinheiro que meu pai entregara a ele como resgate estava enterrada, intacta, no quintal da
casa em Amistad. Ele deve ter feito de caso pensado, e meu pai se beneficiou muito com isso, é
claro, pois teve acesso mais rápido ao dinheiro. Na conta bancária dele, havia cerca de oitenta mil
reais depositados, dinheiro do qual ele certamente viveu da renda durante esse tempo todo. O
dinheiro foi retirado da conta e depositado em uma conta do Estado; Miguel ficou sem nada.
Desempregado, processado, sem renda e em liberdade provisória, o que restou a ele foi aceitar a
proposta que eu tinha feito e ele recusou: trabalhar como modelo em alguma campanha. E não
demorou muito até que ele conseguisse um trabalho, e depois outro, e mais um, e outro. Claro: não foi
nenhuma campanha meteórica de alguma Calvin Klein da vida, mas bastou para sustentá-lo pelos
intermináveis meses que ele ficou aguardando o julgamento. Nesse tempo, ele fez quase exatamente o
que havia dito que faria na segunda carta: alugou um apartamento em um lugar escondido aqui em
Veredas onde a gente pôde se ver o quanto quis.

Acho que esses foram os dias mais felizes que passamos juntos até hoje. Eu saía do escritório e
ia direto para o apartamento, que não era tão escondido assim, e lá nós ficávamos a noite toda juntos,
conversando, namorando, se descobrindo. Descobrir o Miguel por trás do Martin foi algo fantástico.
Talvez fossem efeitos do começo do namoro, mas parece que a cada dia eu o admirava mais. Esse
tempo foi o tempo de percebermos que aquele primeiro “Eu te amo” afobado que trocamos durante o
telefonema que eu recebi quando ele veio atrás de mim era a mais pura e cristalina verdade. Eu o
amava; amava de verdade. Que se danasse quem viesse dizer que estávamos os dois com aquela tal
Síndrome. Depois do tempo que passou e depois de tudo que nós passamos para chegar onde
estávamos... acho que não havia síndrome alguma que justificasse a nossa determinação a querer
estar um com o outro.
As visitas lá em casa se tornaram mais frequentes. Por um motivo ou outro (ou por vários
motivos, todos facilmente elencáveis), minha mãe não levou muito tempo para se afeiçoar ao Miguel.
Meu pai permanecia meio distante, mas jamais disse uma sílaba para se opor ao nosso
relacionamento. Depois que ele teve o dinheiro dele de volta e Miguel se dispôs a pagar, preso, pelo
que fez, foi como se eles estivessem terminantemente quites. Dona Agnes conversava pelos
cotovelos, e Miguel, extremamente cortês, deixava que ela falasse o quanto quisesse, mais
concordando e fazendo interjeições de afirmação do que participando efetivamente do diálogo-
monólogo. Talvez ele fosse, sim, o genro que ela pedira a Deus.

Quando começaram as audiências no tribunal, aquele aperto no peito veio surgindo


gradativamente. Primeiro, realizaram o interrogatório dele no fórum criminal; depois vinham os
depoimentos das testemunhas, as diligências do Ministério Público... Toda uma burocracia. Tentaram
localizar outras pessoas que ele sequestrou, mas não conseguiram, pois não havia nenhuma outra
denúncia a não ser a minha, isso tudo graças à inteligência dele, que preservou a identidade sob o
pseudônimo de Martin e usou documentos falsos para outros fins. A única vítima viva e presente era
eu, e ter que acusá-lo do meu próprio sequestro foi algo um tanto... estranho.

O caso repercutiu muito mais do que eu imaginava. Num dia, só pessoas bem próximas sabiam
que eu havia sido sequestrada; no outro, nosso caso já estava nos jornais com a manchete: “Laços de
um sequestro: julgado em Veredas homem que hoje namora a própria vítima”. Achei um tanto quanto
estranho objetificarem a nossa relação assim, mas, por outro lado, achei bom, em certa medida, que a
imprensa estivesse ciente do que acontecia, pois talvez o apelo popular pudesse ser usado em nosso
favor. Miguel foi acusado pela extorsão do meu pai mediante meu sequestro, crime hediondo, mas
que a mim não trouxe dano nenhum—muito pelo contrário.

Depus mais de uma vez. Senti-me idiota por ter que repetir quase que exatamente as mesmas
palavras mais de uma vez. O que me assustou foi a quantidade de pessoas que me procurou, passadas
as primeiras audiências e o tititi nos jornais, para me dar votos de boa sorte e coragem. Pessoas com
quem eu quase nunca conversei, ou que já nem faziam mais parte da minha vida, vindo a mim por
diversos meios com palavras de incentivo e boa fé. Dois ou três jornais me ligaram para dar
entrevista, mas preferi ficar na minha.

A quantidade de jovens garotas apaixonadas que torciam para que Miguel fosse absolvido era
enorme. Aproveitei-me desse frisson para me pronunciar nas mídias sociais e manifestar meu apreço
por toda aquela comoção. Miguel é meio antiquado; não é muito ligado a essas tecnologias, até
porque não tem muitas pessoas no mundo com quem possa se conectar; mas quando eu mostrava a ele
todas essas coisas, ele ficava admirado. Ler o que as garotinhas publicavam no Twitter com a
hashtag “Alice&Miguel”, então, era sensacional. Acho que o apelo popular foi bom, de certa forma,
tanto para agilizar as coisas quanto para dar visibilidade ao Miguel, porque eu realmente achava que
ele poderia dar muito certo como modelo depois que saísse da prisão.

Das coisas curiosas que advieram desses episódios todos, outra foi o fato de, aos poucos,
conforme aguardávamos a sentença, Miguel ter se tornado uma espécie de bom ladrão. A primeira a
cair nas graças dele foi minha mãe, que, após três ou quatro visitas lá em casa, já o tratava como
filho. Depois, a Milena, que se surpreendeu imensamente ao descobri-lo (e se arrependeu de ter um
dia achado boa ideia que nosso filho fosse criado pelo Edgar). Depois, meus colegas de trabalho na
agência, que não o conheciam pessoalmente, mas sempre ficavam curiosos em virtude do que ouviam
no rádio, na TV e, principalmente, na Internet. Sem-querer-querendo, Miguel conquistou todo mundo.

Quando completei quatro meses de gestação, fomos ao obstetra e descobrimos o sexo do bebê:
uma menina. Eu realmente não tinha preferência por menino ou menina, mas Miguel já havia me dito
que adoraria ter uma mocinha. Ele segurava minha mão enquanto o médico nos mostrava o ultrassom
e explicava aquela imagem borrada que só eles mesmos entendem... Helena: o pedacinho mais lindo
da nossa inconsequência. Minha gravidez progredia bem. Eu não sentia dores, mal-estares, enjoos
terríveis, nada disso: tudo correu na mais perfeita ordem. A única coisa que acontecia é que eu ficava
cada vez mais gorda, é claro; Helena parecia ser duas dentro de mim, e eu parecia comer por três.
Nunca comi tanto! Às vezes eu me olhava no espelho e me sentia uma baleia, um tribufu, mas Miguel
sempre cuidava de dizer que eu estava mais linda do que sempre.

Na quadragésima semana de gestação, Helena nasceu de parto normal. Outra comoção nacional:
“Nasce Helena, filha de Alice Borges e Miguel Zago”, que, a essa altura, todos já sabiam de quem se
tratava. As nossas cyber-fãs foram à loucura. Ainda bem que eu não tenho Twitter, porque, se tivesse,
estaria sendo bombardeada com tweets pedindo fotos, informações, detalhes, autógrafos e todo tipo
de inconveniência. Sei que quando peguei aquele bebê dos olhos verdes como jade nos meus braços,
senti algo que eu nunca havia sentido antes. Uma criança, um ser vivo, saído de dentro de mim, que
agora dependia inteiramente dos meus cuidados... Acho que só nesse momento minha ficha caiu.
Agora eu era mãe... Eram os típicos sintomas de baby blues batendo à minha porta. Mas foram só
sintomas, graças a Deus, que as mudanças hormonais no meu corpo me fizeram mais alegre do que
melancólica.

Quando meus pais e amigos conheceram Helena, foi um “acontecimento social”. Todos estavam
curiosos para saber que carinha teria a filha do casal proibido mais conhecido do país. Os olhos
eram dele, o nariz era meu, mas a carinha ainda era de joelhinho. Foi necessário algum treino até que
Miguel pegasse o jeito e conseguisse segurá-la no colo sem ter a impressão de que poderia quebrá-la
ou deixá-la cair no chão, mas ele acabou se saindo melhor do que a encomenda. Uma cena muito
interessante e paradoxal, um homem daquele tamanho segurando uma criatura tão pequenina nos
braços.

Passaram-se longos treze meses até que o juiz proferisse a sentença. A essa altura, já estavam
todos ansiosos pelo dia em que isso aconteceria. Miguel foi julgado e condenado por extorsão
mediante sequestro com os agravantes de eu ter sido mantida em cativeiro por mais de vinte e quatro
horas e o crime ter acontecido à noite. Por ter se entregado espontaneamente, ser réu primário e eu
não ter sofrido nenhum tipo de violência ou abuso físico ou psicológico, ele foi condenado a pena de
nove anos, pouco mais que a pena mínima, em regime fechado, com possibilidade de liberdade
condicional ou regressão de pena após cumprir dois terços do tempo estipulado. Em outras palavras,
ele passaria seis anos na prisão. O advogado sugeriu que apelássemos para garantir a ele mais algum
tempo em liberdade, mas Miguel não quis: estava disposto a acabar logo com isso.

A imprensa acompanhou tudo de perto. Queriam a todo custo que nós nos manifestássemos em
relação a isso tudo, mas o advogado sugeriu que quanto menos alimentássemos os curiosos, melhor.
Os últimos quinze dias que passamos juntos, tempo dado pela Justiça para entrada com recurso,
foram tristes e felizes na mesma medida. Na terceira semana após o proferimento da sentença, ele
recebeu uma carta o convocando para se apresentar à Justiça, acompanhado do advogado, para
realizar exame de corpo de delito e, por fim, ser encaminhado ao presídio onde cumpriria pena.
Despedimo-nos com um abraço e aquele olhar de promessa, que dizia que ficaria tudo bem no final.

Foi, ao mesmo tempo, uma sensação de perda e de alívio; uma mistura de sentimentos um tanto
quanto estranha. Eu sabia que não o teria por perto pelos próximos seis anos, no mínimo, mas, ao
mesmo tempo, a ideia de que, depois que esse tempo passasse, nós poderíamos finalmente ser felizes
em paz me reconfortava e me fazia criar uma fé inabalável. Assim como eu, todas as pessoas que o
conheciam ficaram “de luto” quando ele foi levado. Mesmo meu pai, que era o responsável por tudo
aquilo (hoje eu já não o culpo), veio me perguntar se eu estava bem e se ele poderia fazer alguma
coisa por mim. O que ele poderia não ter feito ele fez, mas... Tudo bem. Minha mãe também se
comoveu bastante. Milena também. As fãs do Twitter, então... Nem se fale.

Na semana seguinte, ligaram da Globo na agência querendo marcar uma entrevista comigo. “O
caso da mulher que se apaixonou pelo próprio sequestrador”, domingo, no Fantástico. Pensei bem e
acabei aceitando. Boa parte do país, ou pelo menos boa parte da Internet do país, já nos conhecia,
mesmo, não seria um passo muito grande eu sair no programa de maior audiência do domingo à noite
para falar o que todo mundo já estava cansado de saber. O programa foi ao ar quinze dias depois.
Receber Renata Ceribelli na minha casa deve ter sido a coisa mais inusitada que já me aconteceu em
toda a vida. E explicar toda essa história também já estava se tornando algo exaustivo... Mas eu sabia
que essas histórias virais da Internet têm vida curta e isso tudo logo acabaria do mesmo jeito que
começou; fogo de palha.

Só consegui visitar Miguel pela primeira vez no sábado anterior ao domingo em que eu
apareceria no Fantástico. Ele foi detido na Prisão de Segurança Máxima de Veredas. Falando assim,
parece grandioso e ameaçador, mas é um lugar bastante organizado, e não se ouve falar muito em
casos de violência lá dentro. O constrangimento de ter que passar pela revista só não foi maior
porque, graças ao bom senso que ainda existe na humanidade, o processo era feito por uma agente
penitenciária. Tive que engolir minha vergonha e tomar nota de que, em dias de visita, era melhor ir
vestindo roupas de fácil remoção. Quando o encontrei em carne e osso e tato pela primeira vez, foi
uma tortura. Eu queria poder abraçá-lo e beijá-lo e enchê-lo de carícias, mas os agentes que
supervisionavam a visita só permitiam contato físico nas horas da chegada e da saída. Aprendi,
mesmo enquanto visitante, que, dentro da cadeia, não há autonomia, não há privacidade, não há
direitos individuais; tudo pode ser usado contra você. Se alguém se atrevesse a ultrapassar os limites
de contato físico estabelecidos pelos agentes, ou se um dos agentes simplesmente supusesse que
alguém o fez, o horário de visitas do dia estaria suspenso para todos os detentos. Por isso, nós dois
tivemos que aprender, a duras penas, a nos controlar. O máximo que fazíamos era segurar nossas
mãos e nos devorar com os olhos enquanto conversávamos no pátio.

Pedi a ele que ficasse atento à programação da TV, que no dia seguinte ele apareceria no
Fantástico. Ele não gostou muito de eu ter dado entrevista ao programa, mas o sorrisinho de canto na
boca dele ao me dizer que já estava famoso dentro do presídio não me surpreendeu. Todos por lá,
para o bem ou para o mal, pareciam um tanto curiosos quanto à ideia de ter um “famoso” entre eles.
Fiquei receosa de que pudessem fazer mal a ele lá dentro, mas ele disse que as pessoas com quem
havia conversado até aquele momento já haviam dado a ele o manual de sobrevivência na prisão e
tudo tendia a terminar bem.

As semanas passavam. Eu sentia tanto a falta dele que, às vezes, parecia que não conseguiria
suportar. Cada sábado que eu o via era tão pouco para matar toda a saudade e conversar todo o
assunto que tínhamos para conversar. O que aliviava muito levemente a nossa angústia eram as
cartas, que voltamos a trocar com frequência—algumas delas, aliás, altamente ousadas, eram nossa
única válvula de escape para extravasar nossa paixão, que estava tão à flor da pele e não poderia ser
consumada em carne e osso tão cedo. E ele estava mais lindo do que nunca. Ao contrário do que
pensei em meus pesadelos mais pessimistas, a prisão fez muito bem a ele. Lá ele corria, se
exercitava, frequentava a academia, se alimentava direito, estava em perfeita forma. Mas nossa
primeira visita íntima demorou a acontecer; mais de um ano desde a entrada dele no presídio, se não
me engano.

Foi um teste de resistência, tanto para mim quanto para ele, e, em todas as vezes que tinha
oportunidade, Miguel me dizia com todas as letras que eu não era obrigada a esperá-lo; que, ao
contrário dele, eu era uma mulher livre e não deveria me poupar das minhas liberdades em razão da
detenção dele; que ele sofreria a dor da morte, mas entenderia se minha paixão acabasse e eu
acreditasse que não quereria mais estar com ele; que ele jamais deixaria de arcar com suas
responsabilidades de pai caso isso viesse a acontecer. Por um lado, eu achava bonitas todas essas
coisas que ele dizia, mas, por outro, me sentia irritada por ele ter em mente a ideia de que eu poderia
simplesmente deixá-lo para trás quando ele mais precisava de mim.

Assim as coisas foram progredindo, devagar e sempre. Em casa, eu tinha um pelotão de


auxiliares e uma vovó mais do que coruja para tomar conta de Helena quando eu não estava por
perto. Miguel e eu trocávamos cartas com frequência; eu o visitava quase todas as semanas, às vezes
levava Helena comigo, às vezes até minha mãe ia; Nestor se tornou um avô mais babão do que boi
velho... A vida continuou, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano... Helena
já falava pelos cotovelos e entraria na escolinha dentro de pouco tempo. Às vezes ela me dava
um hard time com perguntas como “Por que o papai tá naquele lugar?”, “Quando ele vai sair?”, “A
gente não pode buscar ele agora?”, e eu sempre tentava contornar como podia. Ainda não dei a ela
todas as explicações, mas tenho certeza: para pelo menos uma dessas perguntas, a resposta chega
hoje...

— Ele já tá chegando? — ela me pergunta, saltitante, puxando a barra da minha calça.

— Calma, filha, ele já está vindo — respondo, acariciando os cabelos dela.

Seja dentro de mim ou fora, o dia hoje está lindo. Faz calor, mas não muito, e o céu está mais
azul do que nunca. Meu coração está inundado de alívio e serenidade. Olhando novamente em
direção a esta muralha de concreto, agora o vejo, aproximando-se, de camiseta e calça jeans,
caminhando devagar em nossa direção. Sorrio sem perceber.

— Papai! — Helena exclama alongando as vogais e correndo em direção a Miguel, que,


jogando suas coisas no chão, também corre em direção a ela até que ambos se unam num abraço
cheio de rodopios e levantamentos em direção ao sol.
De braços cruzados, sigo devagar ao encontro deles. Trocamos um sorriso e um olhar. Miguel
me beija a testa e me abraça com um braço, pois, com o outro, segura nossa joia rara.

— Tudo bem? — ele me pergunta.

Respondo afirmativamente com a cabeça.

— Pai, vamo’ comer?! Eu quero batata frita! — Helena bate palmas.

— Batata frita? — ele me olha. — Sua mãe está te acostumando muito mal, mocinha.

— Batata frita, por favor!

Olho ambos com comprazimento.

— Tudo bem... Batata frita.

— Eba!

Entramos os três no carro. Miguel vai no banco do passageiro conversando e brincando com
Helena o tempo todo. Saio de dentro do estacionamento do presídio com um sorriso permanente no
rosto. Sessenta e seis meses depois. Depois de toda a polêmica, de todas as escapadelas, de todo o
esconderijo, de todo o perigo, de toda a chantagem, de todas as dificuldades, de tudo que poderia ter
dado errado, de tudo que poderia ter dado certo, de tudo que poderia ter ou não ter sido, cá estamos
nós. O que vai ser daqui para frente? Sinceramente, não sei. De todas as coisas que aprendi, uma
delas foi que viver um dia de cada vez é a melhor opção, e aproveitar o presente sem se preocupar
com o futuro se tornou uma lei; e agora, neste exato momento, minha única preocupação é encontrar
um lugar para comermos essa tal batata frita... McDonald’s? Ou receita especial da Celeste?
Decisões, decisões...

— Onde você quer comer, Helena? — pergunto.

— Na casa da vovó!

Como sempre, uma resposta na ponta da língua. Crianças: por que tão espertas?! Miguel coloca
uma mão sobre meu joelho e sorri.

— Você está linda — diz.

Olho-o de esguelha, sem tirar os olhos da pista por mais de um segundo. Agradeço com um
sorriso. Mal acredito que ele está aqui, ao meu lado, depois de todo esse tempo... Ah, felicidade que
mal cabe no meu peito! Volto a prestar atenção na direção e ligo o rádio, que imediatamente começa
a tocar Jolene. Claro que fiz tudo de caso pensado. Trocamos um olhar de cumplicidade e, como se
ninguém no mundo pudesse nos escutar, cantamos juntos nossa trilha sonora particular a plenos
pulmões, deixando perdidas no vento as ondas sonoras que marcam o recomeço da nossa eternidade.
“#Alice&Miguel”: de hoje até o infinito.
Sobre a autora

Natural de São Paulo, capital, Ana Cecília Brun é uma jovem escritora de primeira viagem.
“Laços de um Sequestro”, seu primeiro romance, conquistou mais de um milhão de leituras no
Wattpad e mais de 1400 seguidores. Para saber mais sobre a autora, visite suas páginas:
http://facebook.com/anacbrunoficial e http://wattpad.com/user/anacbrun.

“Laços de um Sequestro” também está disponível em formato físico pelo Clube de Autores, site
de publicação independente. Para comprar, visite http://bit.ly/LduSFisico.

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