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Loretta Chase

As Modistas 2

O Escândalo veste Cetim

Tradução/Pesquisa: GRH
Revisão Inicial: Dani Paim
Revisão Final e Formatação: Ana Paula G.
Resumo

A costureira Sophy Noirot, uma moça de aparência inocente por fora


e um tubarão por dentro, podia vender areia aos beduínos. Mas
vender os belos desenhos da Maison Noirot às damas aristocráticas é
um pouco mais difícil, especialmente depois que por um recente
escândalo familiar, ganhou a inimizade de uma das principais
expoentes da moda da alta sociedade.
Conseguir contatos vantajosos para a loja requer cada uma das
habilidades manipuladoras de Sophy, deixando-a com pouca
paciência para patifes provocadores como o Conde de Longmore. O
magnífico cabeça oca só pensa em uma coisa: despir Sophy
completamente.
Mas quando a irmã de Longmore, a cliente favorita e mais rica de
Noirot foge de casa, Sophy não pode deixá-lo ir sozinho atrás dela. Em
uma louca perseguição com o homem que a testa além de toda
lógica, ela descobre que o desejo nunca foi tão perigoso...

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Prólogo

Observem seu feroz aspecto de galo de briga; as mechas de cigano, negras como carvão; o
aspecto aristocrático, para não dizer arrogante – que nunca muda, seja sorrindo a uma dama ou
franzindo o cenho a um agiota adulador.
—A Revista da Corte.
“Esboços da Vida Real.”

Londres.
Quinta-feira 21 de Maio de 1835, de manhã bem cedo.

Os Trollops sabiam como dar uma festa.


As quartas-feiras a noite, depois do baile e o jogo de cartas com o creme de la creme da Alta
Sociedade no Almack, o grupo mais destrambelhado, partia com mais entusiasmo a uma reunião
muito diferente em casa de Carlotta Ou’Neill, onde se oferecia roleta e vários jogos de azar, assim
como jogos mais luxuriosos com mulheres do submundo que se faziam de damas de honra para a
Rainha das cortesãs do momento, de Londres.
Harry Fairfax, Conde de Longmore, formava parte desse grupo, naturalmente.
Não era o tipo de lugar que o pai dele, o Marquês de Warford, desejaria que o filho e
herdeiro de vinte e sete anos, frequentasse, mas Longmore fazia muito tempo tinha decidido que
ouvir os desejos dos pais era o caminho mais fácil a um aborrecimento terrível.
Não se parecia em nada aos progenitores. Não só tinha herdado o aspecto de pirata do tio
avô Lorde Nicholas Fairfax – cabelo preto, olhos pretos e um físico alto e musculoso geralmente
associado com os piratas – mas, além disso, o talento para “Fazer O Que Não Deveria”.
E, portanto Lorde Longmore estava onde Carlotta estava.
E ela estava em cima dele com uma profusão de perfume. E infelizmente, falando.
—Mas você os conhece intimamente. Deve nos dizer como é realmente a nova Duquesa de
Clevedon.

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—Cabelo castanho, —disse, olhando a roda da roleta girar —. Bonita. Diz que é inglesa,
mas age como francesa.
—Querido, poderíamos saber disso pelo Spectacle.
O Morning Spectacle de Foxe era a principal folha de escândalos de Londres. O Marquês de
Warford, de princípios elevados, chamava-o de asqueroso, mas o lia, igual aos outros, das rainhas
dos prostíbulos e alcoviteiras de Londres até a família real. Cada detalhe publicado sobre a recente
esposa do Duque de Clevedon, foi habilmente elaborado pela irmã loira da noiva, Sophia Noirot,
modista malvada de dia, e a espiã mais importante do Foxe, de noite.
Longmore se perguntou onde estava esta noite. Não a tinha localizado no Almack. As
modistas – especialmente as sutilmente francesas – tinham a mesma probabilidade de receber
entradas no Almack, como ele gostaria de fazer-se invisível. Mas Sophia Noirot possuía sua própria
maneira de ser invisível, e era perfeitamente capaz de inserir o elegante corpo curvilíneo em qualquer
parte que tivesse vontade, como uma criada temporária. E assim era como escavava tanta porcaria
para o folhetim do Foxe.
A roda da roleta parou, um dos sujeitos na mesa disse um palavrão, e a garota que se fazia
de crupier, arrastou as fichas para Longmore.
Ele pegou e as passou a Carlotta.
—Seus lucros? Quer que guarde isso em um lugar seguro?
Ele riu.
—Sim querida, as guarde bem. Compra algumas quinquilharias ou algo do estilo.
Ela ergueu uma das sobrancelhas.
Até um momento atrás, até que as imagens de Sophia lhe apareceram na mente, havia
suposto o mesmo que Carlotta: que iriam ao quarto dela. Supostamente, ela era a mantida de Lorde
Gorrell. Mas embora fosse bastante rico, não era muito vivaz para mantê-la entretida.
Dependendo de uma atribuição e dos lucros no jogo, provavelmente Longmore não fosse
rico o bastante. Mas, embora não duvidasse que tivesse a energia e a criatividade para mantê-la
interessada, lhe ocorreu que ela não o entreteria mais de cinco minutos. Inclusive para seus padrões
descuidados, dificilmente justificava um grande investimento financeiro, e o conseguinte tédio de
escutar o pai destrambelhar por gastar mais que a mesada que recebia.
Em outras palavras, Longmore já estava cansado dela.
Não muito depois de abandonar os lucros, Longmore se foi com outros dois de seus amigos,
e duas damas de honra de Carlotta. Tomaram um carro e depois de uma curta discussão, foram a uma

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casa de jogos clandestino de muito má reputação, na vizinhança de St. James. Ali Longmore podia
contar com uma briga segura.
Aborrecido com a conversa no carro, Longmore ficou olhando pela janela. O sol saía cedo
nesta época do ano, e embora o vidro estivesse sujo, podia ver o suficiente. Uma mulher mal vestida
levando uma cesta gasta, caminhava apressada. Seu aspecto deixava claro que não era uma das
numerosas mendigas das ruas de Londres, mas sim uma mulher comum a caminho do trabalho à
mesma hora que seus superiores do beau monde voltavam para suas casas depois das festas.
Movia-se rápido, mas não o suficiente. Uma figura saiu correndo de um beco, tirou-lhe a
cesta e a empurrou.
Longmore baixou o vidro, abriu a porta e saltou do carro em movimento, surdo aos chiados
e gritos dos amigos. Depois do primeiro tropeção, rapidamente recuperou o equilíbrio e saiu atrás do
ladrão. Sua presa era rápida e corria de um lado a outro. Em uma hora mais movimentada, teria
deixado para trás qualquer perseguidor. Mas como era cedo, quase ninguém se interpunha no
caminho de Longmore. Não pensava, só corria com uma fúria cega. Quando o sujeito se meteu em
um pátio estreito, nunca pensou em uma emboscada ou no perigo – embora não teria importado se o
tivesse feito.

O sujeito ia para uma porta que apenas se abriu, sem dúvida os habitantes o estavam
esperando. Mas Longmore chegou antes. Agarrou o ladrão e o arrastou para trás, enquanto a porta se
fechava com força.
Jogou-o contra a parede mais próxima. O homem instantaneamente se encolheu, deslizando
ao chão, e soltou a cesta. Embora não podia estar ferido – estes rufiões não se quebravam facilmente
– ficou ali, com os olhos fechados.
—Eu se fosse você não me levantaria muito rápido, covarde asqueroso, atacando mulheres
—Longmore disse. Recolheu a cesta e deu um olhar ao pátio. Com sorte, os perigosos cúmplices, se
apressariam a resgatar o amigo.
Mas não houve tal sorte. A área estava tranquila, embora Longmore estivesse consciente
que o observavam. Dirigiu-se a Piccadilly.
Poucos minutos depois encontrou à garota. Estava encolhida, chorando frente a uma loja.
—Não se preocupe pela briga. Aqui estão as mercadorias. —Procurou umas moedas nos
bolsos e as colocou na cesta—. Que diabos tem na cabeça, caminhando às cegas sem preocupar-se
com o redor?
—T-trabalho. Tenho que ir trabalhar… Sua senhoria.

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Não se perguntou como sabia que era um lorde.
Todos conheciam o Conde de Longmore.
—Os ladrões e os aristocratas bêbados percorrem as ruas procurando problemas, e você sem
nenhuma arma. O que acontece com as mulheres estes dias?
—N-não sei.
Tremia como uma folha. Tinha machucados e estava suja por conta da queda. Teve sorte
que nenhum desses grupos de estúpidos que saíam em busca do prazer e que iam de volta a suas
casas, a tivesse atropelado.
—Venha comigo.
Parecia que estava emocionada, ou simplesmente intimidada – frequentemente ele produzia
esse efeito, inclusive em seus pares – o seguiu ao carro, do outro lado da rua. Seus amigos poderiam
ter seguido, estavam bastante bêbados. Mas haviam parado para olhar o entretenimento.
—Todo mundo para fora, — disse Longmore.
Fizeram ruídos de protesto, mas saíram a tropeções, olhando à mulher desalinhada.
—Não é seu tipo, Longmore, — Hempton disse.
Crawford sacudiu a cabeça.
—Receio que esteja caindo seu padrão de excelência.
Longmore os ignorou.
—Aonde vai? — perguntou à garota.
Ficou olhando-o, logo a seus amigos, em seguida os bolos.
—Não preste atenção neles. A ninguém interessa o que faz. Só querem chegar à próxima
festa. Aonde quer que o chofer te leve?
Ela engoliu.
—Por favor, sua senhoria. Ia caminho da Sociedade de Costureiras para a Educação das
Mulheres Indigentes
—Esse é um bocado, — Crawford disse.
—Trabalho lá. Já estou atrasada.
Deu o endereço a Longmore que o transmitiu ao chofer com ordens estritas de levar a garota
ao destino na metade do tempo habitual ou Longmore o encontraria e lhe daria uma desculpa
excelente para andar devagar.
Ajudou à menina a subir ao carro e deu a ordem de partida ao chofer.
Pensou a respeito das costureiras.
Uma, na realidade, uma costureira loira.

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Deixou aos amigos que procurassem outro carro, e se foi a pé, a St. James, que ficava a curta
distância. Para chegar ao Crockford’s, tinha que passar pelo Clube White’s de um lado da rua, e um
pouco mais à frente Maison Noirot, casa das modistas francesas.
Passou a loja lentamente. Logo se deteve e olhou para trás, ao andar de cima. Por razões que
desconhecia, duas das três irmãs Noirot ainda viviam ali.
Continuou ao Crockford’s onde procedeu a perder grandes somas de dinheiro por um
momento, e logo começou a ganhar.
Logo depois de uma hora ou mais de aborrecimento crescente, foi embora. Ainda era
anormalmente cedo para os padrões de moda da Sociedade. De todas as maneiras, Londres estava
voltando a vida. As pessoas iam e vinham por St. James: alguns veículos, mas em sua maioria eram
pedestres. A loja ainda não tinha aberto.
Sabia que a Maison Noirot não abria até as dez, embora as costureiras – uma grande
quantidade nestes dias – chegaram às nove.
Em todo caso, nas últimas semanas havia adquirido uma noção geral dos hábitos de Sophia
Noirot.
Esperou.

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Capítulo Um

Na última semana todo mundo elegante esteve em um estado de alteração devido à fuga da
filha de Sir Colquhoun Grant com o senhor Brinsley Sheridan… na sexta-feira, ao redor das cinco
da tarde o jovem casal pediu emprestado o carro a um amigo; e… se foram a toda velocidade ao
norte.
—A Revista da Corte. Sábado 23 de Maio de 1835.

Londres.
Quinta-feira 21 de Maio de 1835.

Brandindo uma cópia do Morning Spectacle de Foxe, Sophy Noirot interrompeu o Duque
e Duquesa de Clevedon enquanto tomavam o café da manhã na Mansão Clevedon.
—Viram isto? —disse, jogando o jornal entre a irmã e o recém adquirido cunhado. A alta
sociedade está frenética – não é divertido? Estão culpando às três irmãs do Sheridan. Três irmãs
malvadas tramando – e somos nós! Oh, queridos, quando vi isto, achei que morreria de rir.
Recentemente, certos membros da Sociedade, em mais de uma ocasião, compararam as
três proprietárias da Maison Noirot – que Sophy faria o estabelecimento da moda mais importante de
Londres embora morresse tentado – com as três bruxas de Macbeth. O rumor dizia que se não
tivessem enfeitiçado o Duque de Clevedon, este nunca teria casado com uma comerciante.
Suas Graças abaixaram as cabeças escuras para o jornal, que mal tinha a tinta seca.
Um passarinho já estava contando os rumores da fuga Sheridan-Grant, ao belo mundo,
mas o Spectacle, como sempre, era o primeiro em confirmar por escrito.
Marcelline levantou a cabeça.
—Dizem que o pai da senhorita Grant vai iniciar um julgamento contra Sheridan na
Chancelaria. Que emocionante, na realidade!
Nesse instante entrou um lacaio e anunciou Lorde Longmore.

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Não agora, maldição, pensou Sophy. Sua irmã tinha feito um alvoroço no belo mundo,
ganhando como inimizade mortal uma das mulheres mais poderosas – que era a mãe de Longmore –
e as clientes estavam abandonando-as em manadas, e Sophy não tinha ideia como reparar o dano.
Agora ele.
Lorde Longmore entrou com um jornal sob o braço.
O pulso de Sophy acelerou. Não podia evitar.
Cabelo e olhos negros brilhantes… o nariz nobre que com certeza havia sido quebrado em
várias ocasiões e que entretanto permanecia tenazmente reto e arrogante… a boca dura e cínica…
altura de mais de um metro e oitenta cinco.
Toda uma beleza masculina.
Se ao menos tivesse cérebro.
Não, melhor não. Em primeiro lugar, os miolos em um homem eram um inconveniente.
Em segundo lugar, e muito mais importante, ela não tinha tempo para ele nem nenhum outro homem.
Tinha uma loja a resgatar de uma morte iminente.
—Trago o último Spectacle, mas já vejo que não fui tão rápido, —disse ao casal na mesa.
—Sophy o trouxe, —disse Marcelline.
O olhar escuro de Longmore se deslocou a Sophy. Fez-lhe um frio movimento de cabeça
e se foi ao aparador para encher o prato.
—Senhorita Noirot. Vejo que levantou cedo. Ontem à noite não esteve no Almack.
—É obvio que não. A Inquisição Espanhola conseguiu que as patrocinadoras não me
dessem permissão.
—Desde quando pede permissão? Decepcionei-me tanto. Estava impaciente por ver que
disfarce usaria. Meu favorito até agora, é o da criada de Lancashire.
Também era o favorito de Sophy.
Entretanto, supunha-se que sua intromissão às festas elegantes para recolher as fofocas
para o Foxe, fosse um segredo escuro e profundo. Ninguém notava às criadas, mas ela era uma
Noirot, tão hábil em fazer-se invisível, como em chamar a atenção.
Mas ele a notou.
Devia ter desenvolvido poderes inusitados de audição e visão, para compensar um cérebro
tão pequeno.
Levou o prato à mesa e se sentou ao lado de sua irmã.
—Sinto-me desolada por ter estragado sua diversão.
—Está bem. Depois encontrei algo que fazer.

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—Assim parece, —Clevedon disse—. E que festa deve ter sido. Como nunca se levanta,
nem faz visitas tão cedo, tenho que concluir que se deteve aqui enquanto ia a caminho de casa.
Como a maioria dos membros de sua classe, Lorde Longmore raramente se levantava
antes do meio-dia. O cabelo despenteado, a gravata amassada, a calça, jaqueta e colete enrugados,
disseram a Sophy que não tinha ido à cama ainda – não à dele, em todo caso.
Sua imaginação a levou rapidamente a um quadro do corpo dele nu entre lençóis
desordenados. Nunca o havia visto nu, e melhor seria que não; mas junto a possuir uma imaginação
superior, tinha visto estátuas, quadros, e – anos atrás – as posses íntimas de certos meninos
parisienses que faziam alarde delas.
Limpou a mente com firmeza.
Um dia casaria com um homem decente que não iria se intrometer em seu trabalho.
Longmore não só estava longe de ser respeitável, mas era um cabeçudo que
constantemente cruzava seu caminho – além disso era o filho mais velho de uma mulher que queria
apagar da face da terra às irmãs Noirot. Somente uma tola auto destrutiva se meteria com ele.
Sophy se fixou na roupa dele. O trabalho do alfaiate era impecável, o traje se ajustava
perfeitamente, delineando cada sentimento dos músculos dos ombros largos e do peito, a cintura
magra, os quadris estreitos baixando as longas, poderosas pernas…
Voltou a limpar a mente, lembrando a si mesma que a roupa era sua vida, e olhou a
vestimenta objetivamente, como uma profissional considerando o trabalho de outro.
Sabia que ele começava a noite elegantemente vestido. O criado pessoal dele, Olney,
encarregava-se disso. Mas Longmore nem sempre se comportava com elegância, e Olney não podia
intervir no que acontecia quando deixava a casa.
A julgar pelo aspecto, muito ocorreu ontem, depois que Olney deixou o senhor dele
preparado.
—Sempre foi o gigante intelectual da família, —Longmore disse ao duque—. Acertou.
Detive-me em Crockford’s. E em outra parte. Precisava de algo que apagasse da mente as horas
deprimentes no Almack.
—Você odeia essas reuniões. Pode-se deduzir que foi atrás de uma mulher. —Clevedon
disse.
—Minha irmã. É uma idiota em relação aos homens. Meus pais se queixam sem parar.
Inclusive eu notei quão deploráveis são os pretendentes dela. Um pacote de libidinosos e arruinados.
Para desalentá-los, fico com Clara e me faço de ameaçador.

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Sophy viu rapidamente o quadro. Ninguém podia parecer mais ameaçador. Olhando o
mundo de baixo, com olhos entrecerrados como um grande pássaro de rapina escuro.
—Que inusitadamente fraternal é, —Clevedon declarou.
—Esse estúpido do Adderly estava tentando cortejá-la. —Longmore se serviu café e
sentou ao lado de Clevedon, frente a Marcelline—. Ela acha que é encantador. Eu penso que está
encantado com seu dote.
—Eu não gosto do sorriso dele. E não acredito que Clara goste muito dele. Meus pais o
detestam por uma dúzia de coisas. —Moveu a xícara de café assinalando o jornal—. Este golpe do
Sheridan não irá tranquilizá-los. Mas é muito conveniente para você, atrever-me-ia a dizer. Uma
maneira excelente de desviar a atenção de suas excitantes núpcias.
Seu olhar se deslocou lentamente a Sophy.
—O momento não poderia ser mais conveniente. Suponho que você não tem nada a ver,
senhorita Noirot?
—Se assim fosse, estaria exigindo a melhor garrafa de champanhe do duque para fazer
um brinde por mim. Teria gostado de ter manejado algo tão perfeito.
Embora as três irmãs Noirot fossem costureiras igualmente talentosas, cada uma possuía
habilidades especiais. A mais velha era a de cabelo escuro, Marcelline, uma artista e desenhista
muito bem dotada. A ruiva Leonie, a mais jovem, era o gênio financeiro. Sophy, a loira, era a
comerciante. Podia suavizar os corações de pedra, e conseguir grandes somas de punhos apertados.
Podia fazer as pessoas acreditarem que o preto era branco. Suas irmãs frequentemente diziam que
podia vender areia aos beduínos.
Se fosse capaz de produzir um escândalo que desviasse de Marcelline as mentes estreitas
e superficiais da Sociedade para outra pessoa, o teria feito. Apesar de amar Marcelline e estivesse
feliz que tenha se casado com um homem que a adora, Sophy ainda estava se adaptando à alteração
de seu mundo, que girava em torno da pequena família e a loja. Não estava segura que Marcelline e
Clevedon realmente entendiam as dificuldades que o recente matrimônio havia criado a Maison
Noirot, ou no perigo que a loja corria de desaparecer.
Mas bem, eram recém-casados, e o amor parecia embaralhar a mente muito mais que a
luxúria. No momento, Sophy não se atrevia a lhes empanar a felicidade, compartilhando suas
ansiedades e as de Leonie.
Os recém-casados trocaram olhares.
—O que pensa? Quer tomar vantagem da distração e voltar a trabalhar? —Clevedon
perguntou.

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—Tenho que voltar a trabalhar, com ou sem distração, —Marcelline disse. Olhou
Sophy—. Façamos uma saída rápida, minha querida irmã. As tias descem para tomar o café da
manhã em uma hora mais ou menos.
—As tias. Ainda estão aqui? —Longmore perguntou.
A Mansão Clevedon era grande o suficientemente para acomodar várias famílias
amplamente. Quando as tias do duque vinham à cidade por períodos curtos para abrir suas próprias
casas, não ficavam em hotéis, mas sim na asa norte.
Recentemente tinham vindo para o casamento.
Originalmente, Marcelline e Clevedon haviam planejado casar no dia seguinte ao que ele
pediu – ou a seduziu – que se casasse com ele. Mas as cabeças mais frias de Sophy e Leonie, tinham
prevalecido.
O casamento, assinalaram produziria um caos espetacular, possivelmente fatal para o
negócio. Mas se alguns parentes de Clevedon assistissem à cerimônia, indicando a aceitação da
noiva, acalmaria a indignação até certo ponto.
Clevedon tinha convidado as tias, que chegaram em massa para impedir a escandalosa
aliança. Mas nenhuma grande dama, nem sequer a rainha, estava à altura das três irmãs Noirot e sua
arma secreta, a filha de seis anos de Marcelline, Lucie Cordelia. As tias se renderam em questão de
horas.
Agora estavam tentando fazer Marcelline respeitável. Na realidade acreditavam que
podiam apresentá-la à rainha.
Sophy não estava totalmente segura que isso faria bem a Maison Noirot. Justamente o
contrário, achava que serviria para avivar as chamas do ódio de Lady Warford.
—Ainda aqui. Parece que não podem ir, — Clevedon respondeu.
Marcelline se levantou, e o resto também.
—Melhor ir antes que desçam. Ainda não aceitam a ideia de que continue trabalhando.
—O que significa que terá que convencê-los, — Longmore disse—. Eu entendo tão bem.
—Deu um sorriso malicioso e inclinou a cabeça.
Era um homem que enchia uma soleira e parecia ocupar toda uma sala. Estava
desalinhado e, além disso, parecia mal, mas sua saudação tinha a graça fácil de um homem elegante.
Era incomodo vê-lo tão cômodo e com tanta graça com esse corpo enorme que tinha. Era
realmente incomodo que exsudasse virilidade.
Sophy era uma Noirot, uma raça apaixonada e a tom com a excitação animal – sem possuir
muitos princípios morais.

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Se ele descobrisse quão frágil era nesse aspecto, estaria condenada.
Fez uma reverência e tomou a irmã pelo braço.
—Sim, bem. Melhor não que percamos tempo. Prometi a Leonie que não ficaria mais de
meia hora aqui.
Saíram rápido.
Longmore as observou ir. Na realidade observou Sophy, um amontoado atraente de
energia e astúcia.
—A loja, — disse quando não podiam ouvir—. Não significa que falte com o respeito a
sua duquesa, mas estão loucas?
—Isso depende do ponto de vista que se tenha, — Clevedon disse.
— Poderiam trancá-la e viver aqui. Você não está sem espaço, nem dinheiro. Por que
continuam fazendo reverências e se sacrificam pelas mulheres?
—Paixão. Seu trabalho é a paixão delas.
Longmore não estava seguro do que era exatamente a paixão. Tinha uma ideia razoável,
mas nunca a havia sentido.
Nem sequer teve um amor depois dos dezoito anos.
Como Clevedon, seu melhor amigo, sabia disto, não disse nada. Só moveu a cabeça e foi
ao aparador. E encheu o prato com ovos, toucinho e pão, e manteiga para engolir tudo mais fácil.
Levou a mesa e se pôs a comer.
Sempre tinha visto a casa de Clevedon como a sua, e lhe disseram para que continuasse
considerando-a igual. Parecia que agradava à duquesa. Por outra parte, sabia que a irmã loira desta
teria lhe metido uma bala – o que era muito mais interessante e entretido.
Por isso a esperou e vigiou. E a seguiu desde a Maison Noirot a Charing Cross. Tinha
visto o jornal em sua mão e deduziu o que era.
Por algum truque na impressão – um pacto com o diabo, o mais provável – o Morning
Spectacle do Foxe saía às ruas de Londres e às mãos sujas dos jornaleiros muito antes que a
concorrência, e além disso continha os últimos escândalos. Embora os entretenimentos do belo
mundo não começassem até as onze da noite, e não terminavam antes do amanhecer, Foxe conseguia
encher as páginas de seu brilhante lixo com detalhes do que cada um tinha feito umas quantas horas
antes.
Esta não era uma façanha menor, até tendo em mente que “manhã,” especialmente nas
classes altas, era uma unidade de tempo flexível, que se estendia muito mais à frente do meio-dia.

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Curioso por saber por que ia tão cedo à Mansão Clevedon, comprou uma cópia de um
pícaro que a vendia na outra esquina, e perdeu tempo olhando-a. Como agora já estava familiarizado
com os informes de Sophy, Longmore sabia que não era algo que pudesse engolir com o estômago
vazio. Entretanto, perseverou. Embora não pôde ver como conseguiu descobrir o escândalo Sheridan,
não seria nada novo. Ela fazia um montão de coisas que o intrigavam – começando com a forma de
caminhar: tinha o porte de uma dama, como as mulheres de sua classe. Entretanto, a oscilação
tentadora dos quadris, prometia algo que não era de uma dama.
—Casei com Marcelline sabendo que nunca renunciaria a seu trabalho, — Clevedon
estava dizendo—. Se o fizesse, seria como qualquer outra mulher. Não seria a mulher por quem me
apaixonei.
—Amor, que má ideia, — Longmore disse.
Clevedon sorriu.
—Um dia encontrará o amor e ficará de quatro. E vou rir até morrer assistindo.
—O amor não vai conseguir nada comigo. Não sou sensível como você. Se me quer
agarrar, não só terá que me deixar de quatro, mas terá que golpear até moer, o que alguns chamam
com otimismo, meus miolos.
—É muito provável, — Clevedon disse—. E será mais divertido.
—Terá que esperar. No momento, a vida amorosa de Clara é o problema.
—Atrevo-me a dizer que as coisas em casa não foram agradáveis para nenhum de vocês
desde meu casamento.
Clevedon deveria saber melhor que o resto. Lorde Warford tinha sido seu tutor. Clevedon
e Longmore haviam crescido juntos. Eram mais irmãos que amigos. E Clevedon tinha adorado Clara
desde que esta era uma menina. Sempre acharam que se casariam. Depois o duque conheceu sua
costureira—e Clara reagiu com um “que bom” —espantando os pais, irmãos e irmãs, sem mencionar
o beau monde em sua totalidade.
—Meu pai se resignou. Minha mãe, não.
A mãe dele estava fora de si. A menor referência ao duque ou a esposa deste, a fazia
gritar. Brigava com Clara sem parar. Estava deixando-a louca, e constantemente arrastavam
Longmore em suas brigas. Quase todos os dias recebia uma mensagem da irmã rogando que fosse e
fizesse algo.
Longmore e Clara tinham assistido à bodas de Clevedon – de fato, benzeram a união. Isto
foi informado prontamente no Spectacle, o que transformou a Mansão Warford em um campo de
batalha.

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—Poderia entender muito bem que Clara me rechaçasse, —Clevedon disse.
—Não vejo como não consegue entender, —Longmore disse—. Ela explicou a viva voz
frente à metade da alta sociedade.
—O que não entendo é por que não manda Adderly passear.
—Alto, loiro, aspecto de poeta. Sabe o que dizer às mulheres. Os homens o veem como é.
As mulheres, não.
—Não tenho ideia o que Clara tem em mente. Mas minha esposa e as irmãs poderão
chegar o fundo. É que entendem as clientes, e Clara é especial, a melhor cliente. Os desenhos de
Marcelline ficam extraordinários nela. Não gostarão que se case com um homem de bolsos vazio.
—Também se fazem de casamenteiras, então? Se for assim eu gostaria que encontrassem
alguém adequado, e me economizassem essas noites deprimentes no Almack.
—Deixe com Sophy. É a que vai às festas e verá melhor que ninguém o que está
ocorrendo.
—Incluindo muito do que as pessoas prefeririam que não visse.
—Tem um olho excepcionalmente agudo para os detalhes.
—E uma pluma excepcionalmente ocupada, —Longmore disse—. É fácil reconhecê-la no
Spectacle. Um fluxo de palavras a respeito de fitas, laços, renda, e babados aqui, e franzidos lá.
Nenhum fio fica sem mencionar.
—Nota os gestos e o aspecto, —Clevedon disse—. Sabe escutar. Ninguém tem histórias
como às dela.
—Sem dúvida nenhuma. Nunca encontrou um adjetivo ou advérbio que não tenha
gostado.
Clevedon sorriu.
—Isso é o que atrai às clientes: a combinação de fofoca e o detalhe intrincado dos
vestidos, contados como um drama. Disseram-me que nas damas tem o mesmo efeito que têm os
homens quando veem mulheres nuas. —Deu uns golpes no Spectacle com o dedo—. Vou pedir que
fique de olho em Clara. Com vocês dois vigiando, será mais fácil que não se meta em problemas.
Longmore não objetou nenhuma atividade que envolvesse Sophy Noirot.
Justamente o contrário, tinha várias atividades em mente, e unir-se a ela para vigiar a sua
irmã, lhe daria uma boa desculpa para ficar ao lado dela – e com sorte, em outras partes também.
—Não posso imaginar uma mulher melhor para o trabalho. À senhorita Noirot não escapa
nada.

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Em sua mente, ela era Sophy. Mas nunca lhe pediu que a chamasse como o fazia a
família. E assim, até com Clevedon, as boas maneiras ditavam que Longmore usasse a forma correta
para dirigir-se à dama mais velha e solteira, da família.
—Contigo e Sophy alerta, os libertinos e os arruinados não terão nenhuma chance. O
próprio Argus, não poderia ser melhor, —Clevedon declarou.
Longmore ficou pensando.
—O cão, quer dizer?
—O gigante com olhos extras. —Clevedon respondeu—. “E ponha a ela como vigilante,
o poderoso e grande Argos, com quatro olhos que olhem a todos os lados,” —citou de alguma
parte—. “E a deusa lhe outorgou uma energia inesgotável: o sonho nunca lhe fechou os olhos, e foi
um vigilante eterno.”
—Isso me parece excessivo. Mas bom, sempre foi romântico.

Uma semana depois.

—Warford, como pôde?


—Querida, sabe que não posso mandar o rei...
—É intolerável! Essa criatura com a qual se casou – apresentada na Corte! – no Salão de
Celebração de Aniversário do Rei! – Como se fosse a realeza de visita!
Longmore estava apanhado no carro com a mãe, o pai e Clara, partindo para o Palácio St.
James. Embora os assuntos da corte o aborreciam terrivelmente, tinha ido ao Salão com a esperança
de ver certa assistente não convidada. Mas só viu a irmã de Sophy – a “criatura” que deixou sua mãe
tão irritada. Então debateu em escapulir, ou caçar uma esposa ou viúva, que estivesse entediada
como ele. O palácio tinha muitos cantos escuros, propícios para momentos de diversão rápida.
Não houve sorte com as damas. O mar de plumas e brilhantes continha uma
superabundância de matronas e virgens dissimuladas. As virgens eram para casar. Não eram
candidatas para divertir-se debaixo de uma escada.
— Estou de acordo, —Lorde Warford disse cuidadosamente. Embora já não se indignava
pelo casamento de Clevedon, fazia muito tempo havia desistido de raciocinar com a esposa.
—Não me parece estranho, —Longmore disse.
—Não acha estranho!, —Sua mãe disse alto—. Não acha estranho! Não se apresenta
ninguém no Salão de Aniversário do Rei.

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—Exceto os dignitários estrangeiros, —Lorde Warford disse.
—Foi uma impressionante infração à etiqueta, inclusive só o fato de pedir uma exceção,
—Lady Warford disse, esquecendo convenientemente ter exigido ao marido que cometesse um
assombroso desacato, pedindo ao rei que não reconhecesse à Duquesa de Clevedon.
Mas era o marido, não o filho, quem devia assinalar isso, e os anos de casamento haviam
ensinado a Lorde Warford, a ser covarde.
—Não pude acreditar que Sua Majestade faria uma coisa assim, inclusive para Lady
Adelaide, —a mãe continuou—. Mas parece que sou obrigada a acreditar, —adicionou
amargamente—. A Rainha adora à tia mais jovem de Clevedon. —Olhou furiosa a filha—. Lady
Adelaide Ludley deve ter usado sua influência em seu nome e o de sua família. Deve ser a filha mais
ingrata e irresponsável que há. Deixar o Duque de Clevedon.
—Eu não o deixei, mamãe. Uma pessoa não pode deixar alguém que não é seu prometido,
—Clara disse.
Longmore tinha escutado esse argumento muitas vezes para querer continuar no carro,
ouvindo outra vez a voz de sua mãe subindo de tom cada vez mais, igual à de Clara. Normalmente,
teria parado a carruagem, e teria descido, deixando todos soltando fumaça, para trás.
Sabia que Clara podia se defender sozinha. O problema era que levaria a mais briga, e
gritos, e mensagens para que fosse à Mansão Warford antes que ela cometesse um matricídio.
Ele pensou intensamente e rápido, e disse,
—Para mim esteve claro que se casaram por trás dos bastidores, para não ferir tanto seus
sentimentos, madame.
Seguiu esse silêncio ferozmente profundo que tipicamente se produzia quando seus pais
estavam decidindo se contra toda razão e evidência, teria dito algo que valesse a pena escutar.
—Com as tias e tudo, a rainha estaria em uma confusão. Dificilmente poderia desprezar
toda a família do Clevedon – as tias já tinham aceitado à esposa.
—A esposa dele, —a mãe disse com amargura—. A esposa dele. —Deu a Clara aquele
olhar que César deve ter dado a Brutus, quando estava lhe cravando a adaga.
—Ao menos se fez por trás dos bastidores, —Longmore seguiu—, e não em frente de
toda a maldita Sociedade.
Enquanto sua mãe sopesava esta ideia em sua cabeça que estava a ponto de explodir de
raiva, chegaram à Mansão Warford. O lacaio abriu a porta e a família desceu, as damas sacudiram as
saias.

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Longmore não disse nada e Clara tampouco, mas lhe deu um olhar agradecido antes de ir
afligida atrás da mãe.
Seu pai, entretanto, ficou um momento na entrada com Longmore.
—Não vai entrar?
—Acredito que não. Tentei o melhor que pude, enrolando e tal.
—Não vai acabar, —seu pai disse em voz baixa—. Não para sua mãe. Sonhos
despedaçados, orgulho ferido, indignação, e todo o resto. Você vê. Não teremos paz nesta família,
até que Clara não encontre um substituto adequado ao Clevedon. E isso não vai passar enquanto ela
continuar incentivando esse grupo de vagabundos. —Fez um gesto depreciativo—. Mande-os
passear, fará? Maldição!

Baile da Condessa de Igby.


Sábado 30 de Maio de 1835.
Uma da manhã.

Longmore estava procurando lorde Adderly fazia tempo. Como o sujeito era muito
estúpido para entender uma indireta, Longmore havia decidido que o mais simples seria golpeá-lo até
que entendesse que devia manter-se afastado de Clara.
O problema era que Sophy Noirot também estava na festa, e Longmore, diferente de
Argus, possuía só o número habitual de olhos.
Distraiu-se vendo Sophy passar daqui para lá, sem que ninguém prestasse a mínima
atenção nela – exceto os estúpidos habituais que achavam que as criadas existiam para diverti-los.
Longmore tratou de aproximar-se mais de uma vez, só para dar-se conta que não precisava de
nenhuma ajuda com os grosseiros.
Acidentalmente derramou chá quente no colete de um cavalheiro que se aventurou muito
perto. Outro que a seguiu a uma antessala, tropeçou em algo e caiu batendo a cara. Um terceiro que a
seguiu por um corredor a uma sala, saiu coxeando pouco tempo depois.
Preocupado com essas aventuras, Longmore não só fracassou em localizar Adderley, mas
perdeu o rastro de sua irmã, quem supunha ele deveria estar protegendo dos libertinos e fracassados.
Teria sido um problema menor, se Sophy estivesse vigiando-a mais de perto. Mas Sophy tinha seus
próprios descarados com quem se preocupar.
Longmore não estava pensando nisso. Pensar não era uma de suas atividades favoritas. E
pensar em mais de uma coisa ao mesmo tempo, desequilibrava-o. No momento sua mente estava nos

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homens que estavam invadindo o que ele pensava ser sua propriedade. Desgraçadamente, não se deu
conta que sua mãe perdeu Clara de vista ao mesmo tempo. E isso ocorreu porque sua mãe estava
tendo uma conversa educadamente venenosa com a melhor amiga e pior inimiga, Lady Bartham.
Resumindo, ninguém dos que deveriam prestar atenção estava fazendo-o, enquanto Lorde
Adderley estava dirigindo Clara do outro lado do salão, dançando uma valsa, para as portas que
davam ao terraço. Ninguém dos que deveriam estar de olhos atentos, viu a piscada que Adderley deu
aos amigos, nem o sorriso maligno.
Foi o movimento da multidão que levou Longmore de volta ao entorno, e a principal
razão por que estava ali.
Não era óbvio. Não tinha que ser. Mas homens como Longmore estavam familiarizados
com isso. Não tinha nenhum problema em sentir algo no ar, o deslocamento de atenção em uma parte
do salão para concentrar-se em outro ponto. Era a mudança na atmosfera que se sentia antes de uma
briga.
A corrente ia para o terraço.
Suas vísceras lhe disseram que algo não estava bem. Não sabia o que, mas o aviso era
peremptório, e ele era um homem que atuava por instinto. Moveu-se, e rápido.
Não teve que empurrar para abrir caminho através da multidão. Os que o conheciam,
sabiam que deveriam se colocar a um lado, ou os tiraria com um empurrão.
Saiu apressado ao terraço, onde havia se juntado uma pequena audiência. Também lhe
abriram caminho.
Nada nem ninguém lhe obstruiu a vista.

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Capítulo Dois

NOVO ESTILO. — ROUPA DE MULHERES. — Madame e a senhora Follett rogam


encarecidamente o favor daquelas damas que ainda não viram nem provaram seus vestidos (e agradecem
àquelas que já o fazem); decidida a superioridade de suas mercadorias que ficam muito bem, e que vão
acompanhadas de preços moderados que nunca deixam de produzir satisfação inclusive naquelas mais
seletivas. —53 New Bond Street, Londres & Rue Richelieu, Paris.
A Revista da Corte. Anúncios.
Sábado 28 de Março de 1935.

Adderly.
E Clara.
Em um canto escuro do terraço.
Mas não tão escuro para que Longmore não visse que Adderley ajudava torpemente Clara
a arrumar o peitilho do vestido.
As costureiras haviam cortado um decote indecente no vestido branco que já havia
permitido a cada mastim boquiaberto do baile, ver o objeto de renda que usava por baixo. Entretanto,
Lorde Adderley tinha descido as mangas do vestido e as alças do espartilho mais abaixo dos ombros,
virtualmente até os cotovelos. Parecia que tinha conseguido soltar o espartilho também.
Quando ela deu umas palmadas para que afastasse as mãos, Adderly ficou frente a ela
para resguardá-la, mas não era grande o suficiente. Lady Clara Fairfax podia ser uma beleza loira de
olhos azuis, mas não era miúda. Como resultado, a roupa interior cara ficou exposta – junto com uma
grande quantidade de pele que geralmente não se mostrava ao público – para que qualquer
espectador a visse.
Esses incluíam uma dúzia ou mais dos que se deslocaram ao terraço e que estavam
fazendo um círculo, como abutres ao redor do cadáver da reputação de Lady Clara Fairfax.
—A criada dela nunca poderá eliminar as rugas dessas dobras, —sussurrou a criada que
estava ao lado de Longmore.
Em um lugar distante de sua mente, maravilhou-se que nesse momento alguém notasse
algo tão corriqueiro como as rugas na roupa de Clara. Nessa mesma parte distante, sabia que não
havia nada do que maravilhar-se, considerando quem falava: Sophy Noirot.
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Entretanto isso estava muito distante. A grande parte de sua mente só se preocupava com
a cena que tinha à frente, e que via através de uma cortina de chamas vermelhas.
—Eu vou tirar as rugas dele, o grande canalha, —grunhiu.
—Não seja um id...
Mas ele já ia como possuído pelo terraço, jogando a um lado quem se interpunha em seu
caminho – embora a grande maioria se afastou para o lado, e rápido, quando o viu vir.
Foi até Adderley e lhe deu um soco na cara.
—...iota, —Sophy terminou. E engoliu um suspiro.
Deveria ter ficado calada. Deveria ser uma criada, e os inferiores não chamavam de idiota
seus superiores. Não de forma audível, em todo caso.
Mas esse era o problema com Longmore.
Interferia em tudo, especialmente com o pensamento claro.
Jogou de lado a primeira reação emocional, e fez provisão ao caráter prático, que sua
prima Emma tinha cultivado. Uma prima devido ao matrimônio, Emma não era nada similar aos pais
vagabundos de Sophy. Não era um cão vadio encantador como seus parentes, mas sim uma
parisiense ruiva, prática.
Do ponto de vista prático, isto era um desastre.
Lady Clara era a cliente mais importante da Maison Noirot. Comprava as criações mais
caras, e muito, apesar da hostilidade da mãe desta. O secretário encarregado dos negócios de Lorde
Warford era quem pagava as contas, E tinha ordem de pagar logo, e em sua totalidade, sem distinguir
entre diferentes costureiras.
Lorde Adderley estava quebrado, ou quase, graças às mesas de jogo.
Se Lady Clara tinha que comportar-se mau, Lorde Adderley não era a primeira escolha de
Sophy.
Se Longmore fosse mais inteligente, menos impetuoso, e vários graus menos arrogante, o
teria aconselhado que não interferisse, nem matasse o amante da irmã. Como Lorde Longmore não
se ajustava a nenhuma dessas categorias, não podia perder tempo assinalando que o assassinato só
complicaria as coisas e deixaria a reputação de Lady Clara arruinada para sempre.
Ele estava furioso, e precisava bater em alguém. E Adderly merecia que alguém o
esmurrasse. Sophy estava tentada a bater nele também.
Esta não foi a única causa por que não fechou os olhos, nem partiu.
Tinha visto Longmire brigar antes, e era uma visão que acelerava o pulso de uma mulher
se não fosse apreensiva, e Sophy é obvio não era.

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O golpe deveria ter arremessado Lorde Addley, mas este só retrocedeu alguns passos.
É mais duro do que aparenta, então. Entretanto, tudo o que fez foi manter-se de pé. Não
deu nenhum sinal de querer brigar, também. Não pôde decidir se estava seguindo algum escuro
código cavalheiresco, ou possuía razões poderosas para proteger o lindo rosto, e todos os dentes.
Enquanto isso, Longmore estava muito acalorado para notar ou se preocupar, se Lorde
Adderley defender-se-ia ou não.
Uma vez mais se aproximou com os punhos em alto.
—Não se atreva, Harry! —Lady Clara gritou. Ficou na frente do amante para protegê-
lo— Não o toque.
E em seguida, irrompeu em pranto – e foram lágrimas muito boas. Sophy não poderia ter
feito melhor, e isso porque era uma perita. Chorando pelo amante ferido – que rumava a um
magnífico olho roxo, se Sophy julgava bem – as lágrimas deslizando pelo rosto perfeito, com o
cremoso e amplo busto, subindo e descendo, Lady Clara representava seu papel à perfeição.
Sua Senhoria despertaria – além dos baixos instintos – a simpatia de todos os cavalheiros
presentes. As damas, felizes de terem sido testemunhas da queda da mulher mais bela de Londres, se
permitiriam sentir pena dela.
—Poderia ter tido um duque, —diriam—. E agora terá que conformar-se com um Lorde
sem um centavo.
A Londres elegante, ainda não se cansava de repetir partes do discurso de Clara
rechaçando o Duque de Clevedon. Um dos favoritos era o comentário final “por que teria que
aceitá-lo?”
Por um momento pareceu que lorde Longmore ia empurrar a irmã para o lado. Em
seguida deve ter se dado conta que era inútil. Revirou os olhos e suspirou e Sophy observou como
subia e descia o peito dele.
Em seguida levantou as mãos e deu a volta.
A multidão se aproximou, bloqueando a visão de Sophy.
Não importava. A qualquer momento à Marquesa de Warford chegaria a notícia do lapso
de virtude de sua filha, e pelo Spectacle, Sophy tinha que estar ali quando isso acontecesse. E em
algum momento, teria que examinar mais de perto um rumor inquietante que tinha ouvido na sala das
damas.
Seria uma noite longa.
Virou procurando a forma mais discreta para ir ao outro lado do salão. Como os outros
criados, esperava-se que as camareiras passassem despercebidas. Deviam manter-se fora dos salões

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principais, onde estava a diversão, e tinham que utilizar as passagens de serviço o máximo possível,
ou auxiliar às damas nas salas de descanso, reparando meias, indo de um lado a outro a procura de
xales e cachecóis, aplicando sais às que estavam a ponto de desmaiar, e limpar o desastre que
deixavam as que estavam muito embriagadas.
Estava decidindo qual das duas portas era mais vantajosa para observar
dissimuladamente, quando Longmore apareceu em seu caminho.
—Você, —disse.
—Eu, milord? —perguntou curvando a língua para falar com a entonação de Lancashire.
Estava consciente que fazia só um instante esqueceu, e falou com ele com seu tom normal, mas
Sophy era uma mentirosa descarada, como o resto de sua família. Olhou-o com os olhos azuis
enormes, tão inocente e carente de inteligência, como as vacas das que se sentia muito orgulhosa de
imitar.
—Sim, você. A conheci de longe, senhorita...
—Oh, não, Sua Senhoria. Não é senhorita, mas somente eu, Norton. Posso lhe trazer
algo?
—Não o faça. Não estou de humor para atuações.
—Vai me colocar em problemas, senhor, —disse, sem adicionar você. Manteve-se em seu
papel, e sorriu intensamente, abrindo mais os olhos, esperando que lesse a mensagem—. Não
podemos perder tempo com os convidados.
—Como diabos ele fez isso? por que ela fez isso? Está louca?
Sophy olhou rápido ao redor. Os convidados estavam ocupados comentando cobre lady
Clara. Aparentemente, Lorde Longmore não estava tão interessado – ou o mais provável, estava
suficientemente alterado para dissuadir qualquer um que sequer o olhasse que não gostasse. Como
era óbvio no estado que se encontrava, ninguém que estivesse em seu são julgamento, atrever-se-ia a
irritá-lo mais no momento. Todos teriam cuidado de não ver aonde ia nem o que fazia.
Ela o segurou pelo braço.
—Por aqui.
Se ele parasse, correria a mesma sorte, arrastando o enorme corpo, que se tratasse de uma
locomotiva inerte.
Mas o último que esperava era ser conduzido por uma minúcia de mulher. Estivesse
confuso ou simplesmente, divertido, mas foi bastante manso. Levou-o por um dos corredores do
serviço. Como a maioria dos criados estava procurando desculpas para ficar perto dos protagonistas
do escândalo, ela duvidava que alguém fosse andar por ali durante um tempo.

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De todas as maneiras olhou de um lado ao outro a passagem.
Segura que não havia ninguém, soltou-lhe o braço.
—Agora, me escute.
Olhou confuso o braço, e logo, a ela.
—Ao fim algo positivo. Abandonamos a atuação da vaca de Lancashire.
—Você sabe o que aconteceria se me descobrissem?
—E por que se importa? Sua irmã está casada com um duque.
—Importa-me, boi – bisão.
Ele inclinou a cabeça para trás um grau, e ergueu as sobrancelhas.
—Disse algo errado?
—Sim, —disse ela com os dentes apertados—. Assim não diga nada mais. Só escute.
—Santos, não vamos discutir isto, não é mesmo?
—Sim, vamos, se quer ajudar sua irmã.
Ele entrecerrou os olhos, mas não disse nada.
—Acredite, não estou mais feliz que você pelo que ocorreu. Tem ideia de como será ruim
para nosso negócio?
—Seu negócio.
Ele falou calmamente, mas ela sabia que não estava. A violência que continha vibrava ao
redor. Entendeu por que as pessoas saíam correndo do caminho dele quando tinha algo contra
alguém ou contra algo.
A violência não seria útil no momento. Tinha que distraí-lo, e por uma vez, a verdade lhe
serviria.
—Adderley está até o pescoço com hipotecas, e deve o primeiro, segundo e terceiro filho,
aos prestamistas. Leonie pode dizer quanto fica, e se tiver algo que valha, surpreender-me-ia muito.
—Já sei. O que quero saber é como minha irmã terminou no terraço com ele. Sei que é
ingênua, mas nunca pensei que fosse estúpida.
—Não sei como ocorreu. Teria jurado que só estava praticando a arte de paquerar com ele
– com todos eles. Nunca mostrou sinais de preferir algum deles.
—Está segura?
Não gostou do tom de sua voz. Indicava problemas para Adderley. Por muito que gostasse
que dessem problemas a Adderley, não podia permitir que Longmore o fizesse em pedaços, pois era
óbvio que era isso o que ele queria.
—Ouvi que pode conquistar às pessoas, e sei que ela esteve se sentindo...

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—Oh, que bom. Agora vamos falar de sentimentos.
Se tivesse um objeto pesado à mão, o teria golpeado. Ele nem sentiria, mas só gesto a
teria feito sentir-se melhor.
—Sim, vamos. Vou evitar todas as complicações dos por que e onde e vou ao ponto. Lady
Clara esteve se sentindo um tanto rebelde e me atrevo a dizer que esteve esperando a oportunidade
para fazer algo mau. Aparentemente Adderley viu essa possibilidade, e transformou uma travessura
menor, em algo maior. Aparentemente. —E franziu o cenho. Havia algo estranho na cena, mas o
analisaria mais tarde.
A prioridade era o homem parado a poucos centímetros dela. Parecia ter deixado de soltar
fogo pelas ventas.
—Vou ter que levá-lo para fora, o porco. O que significa ter que ir a algum bosque
quando romper a alvorada. É o próprio diabo, aquele orvalho matinal nas botas, sem mencionar todas
as reclamações que Olney faz pela pólvora nos punhos da minha camisa.
Sophy o agarrou as lapelas.
—Escute-me.
Olhou as mãos dela com o mesmo desconcerto que olhou o braço antes.
Mas sua senhoria não era o maior pensador do mundo. E tinha que ser muito para que o
desconcertasse. Ela o sacudiu pelas lapelas.
—Só escute, —disse—. Não pode matá-lo a sangue frio.
—E por que não?
Deus, me dê paciência.
—Porque morrerá —disse o mais tranquila possível—, e a reputação de Lady Clara
ficará manchada para sempre. Eu rogo, não faça nada, Lorde Longmore. Deixe-nos agir.
—Nós?
—Minhas irmãs e eu.
—O que propõe? Vesti-lo até matá-lo? Amarrá-lo e fazê-lo escutar as descrições da
moda?
—Se for necessário. Mas peço que você não cause problemas com isso.
Ele ficou olhando-a fixamente.
—Se fizer algo, não o fira, não o deixe incapacitado, nem o mate, —disse, em caso que
não tivesse sido perfeitamente clara—. O golpe alto à direita foi excelente. Expressou
magnificamente a indignação de um irmão.

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—Farei,por Deus. Por acaso, não estará elogiando a reputação de minha irmã? A que
aparecerá no Spectacle de amanhã?
—Se não o fizer, alguém mais o fará. Melhor o diabo conhecido, milord. Só me deixe
fazer o que puder , vá e seja todo varonil e protetor com suas mulheres.
—Ah. —Abriu os olhos de maneira ridícula —. Então isso é o que devo fazer.
—Sim. Pode fazer?
—Com uma mão amarrada nas costas.
—Suplico que o faça da maneira habitual. Não exagere.
—Está bem. —ficou olhando-a.
—Bom. Hora de ir. Sua mãe receberá a notícia a qualquer momento, se é que já não
recebeu. —Fez um movimento de despedida.
Mas ele ficou parado, olhando-a de uma maneira muito concentrada, e ela se deu conta de
um calor e uma urgência em seu interior, e uma sensação de não estar totalmente vestida.
Oh, Por Deus Santo. Não agora.
—Precisa ir, —disse, e tratou de empurrá-lo.
Foi como tentar empurrar uma muralha de tijolos.
Ela o olhou.
—Me fez cócegas.
—Vá. Agora.
E se foi.
Alguns meros instantes antes, Longmore esteve preparado para matar.
Agora fazia o máximo possível para não rir.
Ali estava Sophy, com seu vestido recatado de camareira, o olhar estúpido, de olhos
grandes, que desvaneceu quando perdeu a paciência com ele e o chamou boi.
Em seguida o encanto o puxou pelo braço tentando levá-lo a força. Foi a coisa mais
divertida que tinha visto há muito tempo.
Deixe-nos agir, havia dito.
Não era provável. Mas o deleitava acreditar, ele se sentiu feliz.
Saiu a procura da mãe e irmã em um estado mental agradável. Não foi difícil encontrá-las.
A única coisa que teve que fazer foi ir em direção ao grito.
Só um grito antes que Lady Warford reunisse sua dignidade e desmaiasse.
Ele dispôs uma retirada o mais elegante possível para a mãe e irmã. Atuou como um
homem totalmente protetor, exatamente como lhe disseram que o fizesse.

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Depois se encarregaria de Adderley, prometeu a si mesmo.
E depois…
Sim, Sophy, é obvio.

Mansão Warford.
Sábado na tarde.

—Clara, como pôde! —Lady Warford chorou, e não pela primeira —Está arruinada!
Estava em uma poltrona com uma bebida para recuperar-se em uma mesa ao alcance da
mão.
Clara a necessitava muito mais que sua mãe. Teria gostado de ter sido homem, e resolver
o problema tal como os homens o faziam. Embebedando-se, e brigando, e jogando cartas, e metendo-
se com putas.
Mas era uma dama. Esta sentada reta em uma cadeira, e disse,
—Que pergunta é essa, mamãe? Acha que me humilhei de propósito?
—Fez o que não deveria ter feito, a propósito. Disso não tenho a menor duvida.
No momento não tinha parecido tão mau. Clara e Lorde Addley estavam dançando uma
valsa, e Clara se sentiu enjoada. Muito champanhe, talvez. Ou talvez tivessem dado muitas voltas.
Ou ambas. Ele havia sugerido ar fresco. E foi emocionante deslizar ao terraço sem ser notada. Logo
ele disse coisas tão doces, e parecia tão ardorosamente apaixonado.
E em seguida…
Se estivesse sozinha naquele momento, teria coberto o rosto e chorado.
Mas isso era o que mamãe sempre fazia. Chorava, gritava e desmaiava.
Sentou-se mais ereta, com as mãos cruzadas. Queria subir à janela e ir para bem longe.
A porta foi aberta e entrou Harry.
Queria dar um salto e correr para ele, como costumava fazer quando eram crianças e
estava assustada ou tinha o coração partido por isso ou aquilo: um ninho de pássaros no chão e os
ovos quebrados. Um cachorrinho doente. Um cavalo ferido que teria que ser sacrificado.
Mas já não eram crianças, e mamãe estava totalmente histérica. Harry tinha muito que
manejar.
—Aí está, enfim! Tem que duelar com Addley, Harry. Deve matá-lo.

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—Isso é um pouco excessivo. Vi papai quando entrei. Disse-me que o rufião ofereceu
casar com Clara. —Foi até mamãe e lhe deu um beijo suave na testa. Endireitou-se e disse, —Devia
tê-lo matado quando tive a oportunidade. Mas Clara se interpôs.
O que mais podia fazer? Tinha temido que Harry matasse Adderley, que não tentou
defender-se. Seria um assassinato e Harry seria enforcado, ou se teria que fugir para outro país para
sempre – tudo porque tinha sido uma tola.
Parecia mais que provável que tivesse arruinado a própria vida. Não ia arruinar a do irmão
também.
—Mamãe, se Harry matar Lorde Adderley, minha reputação ficará arruinada para
sempre, —Clara disse—. A única forma de arrumar isto é com o casamento. Lorde Adderley o
propôs, e eu aceitei. E assim é.
Harry a olhou.
—Verdade?
—Sim. Como mamãe está muito desgostosa para mover-se, e em todo caso, não está
preparada para sair e enfrentar o público, eu gostaria que me acompanhasse a comprar meu enxoval
de noiva.
—Enxoval de noiva! —mamãe gritou—. Pensa muito em seus vestidos – e todo mundo
está informado deles. Em meus dias, as damas jovens não davam espetáculos públicos, promovendo
cada ponto que usavam. Que descrevam sua camiseta – em detalhes! – em um jornal, como se fosse
uma cortesã, ou a esposa de um banqueiro! Deveria estar doente de vergonha. Mas nada a
envergonha. Não há de se espantar que ontem à noite tenha se comportado como uma rameira. A
culpa é dessas costureiras francesas. Se voltar a pôr um pé outra vez naquela loja, a renegarei!
—Diabos, o que importa? —Harry disse—. A menos que Adderley tenha um acidente
fatal, terá que casar com ele, goste ou não. Melhor que agora tenha vestidos que goste, porque não é
provável que tenha muitos depois do casamento.
—Adderley a pode levar com a anágua, —mamãe disse—. Não é melhor que um caçador
de fortuna, e um vil sedutor, além disso. Oh, que tenha tido que ver este dia! Um barão recém feito –
nadando em dívidas, graças às mesas de jogos - e a mãe dele, a filha de um taberneiro irlandês!
Quando penso que poderia ter tido o Duque de Clevedon!
—Aconselho rotundamente que não pense nisso. Teriam sido desgraçados.
—E Adderley a fará feliz? —mamãe voltou a afundar nas almofadas, e fechou os olhos.

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—Clara o manterá com rédeas curtas, —Longmore disse—. E se não pode se desfazer de
suas maneiras selvagens, quem sabe? Talvez caia em uma sarjeta, ou um carro o atropele, e Clara
será uma jovem viúva. Tente ver o lado bom.
Deveria saber que não era o melhor com mamãe. Ela não saberia se estava brincando ou
não. Seria como jogar sal à ferida.
Clara tomou uma rota mais efetiva.
—Pergunto-me o que dirá Lady Bartham se me mandar sem um enxoval, sem sequer um
vestido de noiva.
Mamãe e Lady Bartham eram rivais sociais ferozes. Mas pretendiam ser as melhores
amigas.
Seguiu um silêncio curto e tenso.
Depois de instantes, mamãe voltou a sentar, secou os olhos com o lenço, e disse:
—Meus desejos não significam nada. Mas devemos considerar a posição de seu pai. Irei
persuadi-lo para que a deixe ter seu enxoval. —Sacudiu o lenço—. Mas não com essas putas
francesas! Irá onde a Sra. Downes.
—Downes! —Clara disse forte—. Está delirando, mamãe? Fechou a loja.
Conteve o fôlego. Ela que deveria ser a calma. Tinha que ser, com um irmão explosivo, e
uma mãe histérica. Por sorte sua mãe estava totalmente enredada em suas próprias emoções, para
notar as dos outros.
—Foi temporariamente, —mamãe adicionou—. Ontem me enviou uma nota avisando que
voltou a funcionar, graças a Deus. Irá a ela. Sua moral pode estar em pedaços, mas se vestirá
respeitavelmente.
—Está bem, mamãe, —Clara disse docilmente.
Harry lhe deu um olhar inquisitivo.
Ela retribuiu com um de advertência.

Enquanto isso, no número 56 da rua St. James, as irmãs Noirot estavam olhando
incrédulas um pequeno anúncio.

O Spectacle do dia tinha chegado pouco depois que abriram a loja. A manhã esteve
excepcionalmente ocupada e só puderam passar ao lado do jornal.

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Entretanto, neste momento, a competente administradora, Selina Jeffries estava a cargo da
sala de vendas da Maison Noirot.
As três costureiras subiram ao escritório de Marcelline, e se amontoaram na mesa de
desenho, com os olhares fixos em doze linhas impressas em uma das páginas dos anúncios do
Spectacle.
Ali, a Sra. Downes se proclamava encantada de anunciar que, depois de um curto período
de “renovação” voltou a abrir seu estabelecimento de moda.
Sophy se informou ontem à noite, na festa. E disse as irmãs. Todas esperavam que não
fossem mais que os habituais rumores infundados.
Tinham já muitos problemas, tal como estavam.
—Maldita, —Marcelline disse—. Deveríamos ter acabado com ela. Fechou a loja,
dizendo que era para reparos, mas despediu o pessoal. Estava segura que desapareceria de Londres,
como a víbora que é.
A víbora era Hortense Downes, proprietária da loja conhecida na Maison Noirot como
Dowdy’s (fora de moda). Poucas semanas antes, ela e suas seguidoras, as levaram a beira da ruína.
Mas as irmãs usaram seus próprios truques contra ela, expondo-a ao mundo como uma falsificadora
e trapaceira.
Ou isso acreditaram.
Marcelline sacudiu a cabeça.
—Esse assunto de roubar meus desenhos, deveria ter acabado com ela.
—Culpou as costureiras dela, — Sophy disse—. E as patrocinadoras contou que havia
despedido todas, e agora estava com um pessoal novo.
—Que a praga a leve, —Marcelline saltou—. Quem saberia que Hortense a Horrível era
esperta, e recuperaria sua reputação?
—Eu teria feito o mesmo no lugar dela. Jogar a culpa nas ajudantes. Limpar a casa. E
dizer aos clientes a verdade de como foi vítima de empregadas ingratas. Em seguida enviaria notas
pessoais as clientes, antes de pôr o anúncio nos jornais, —Sophy continuou.
—Isto é muito ruim. —Marcelline olhou as irmãs—. Perdemos muitos negócios por
minha culpa.
Sophy e Leonie se olharam.
—Estou vendo. É pior do que imaginava.
—Lady Warford é um poder social terrível. Ninguém quer comprar em um lugar que ela
boicotou, — Leonie interveio.

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—Mas se veste tão mal! —Marcelline exclamou.
—Ela não pensa assim, e ninguém tem a coragem de dizer a ela. Bom, as demais
tampouco são muito entendidas. São como ovelhas, todas sabemos. Ela é a líder e todas a seguem, —
Sophy continuou.
—E me odeia — Marcelline disse.
—Com um ódio que chega a ser branco de tão quente que é, o tipo de ressentimento que
sua classe geralmente reserva para os anarquistas e republicanos —Sophy disse.
Marcelline começou a passear de um lado a outro.
—Não seria tão mau se Lady Clara tivesse se colocado em problemas com o homem
adequado. Ela poderia chegar a ser uma líder da moda, e nos ajudaria a construir uma clientela entre
a geração mais jovem, —Leonie disse.
—Mas escolheu o homem equivocado. —Marcelline disse. Voltou para a mesa de
desenho, jogou a um lado os jornais e tomou um caderno e começou a esboçar com linhas fortes e
rápidas—.Diga a verdade, Leonie.
—Estamos enfrentando a ruína.
Ninguém disse uma palavra sobre o marido de Marcelline, que podia comprar e vender a
loja muitas vezes, só com o dinheiro que levava nos bolsos.
Não queriam que as comprasse.
Esta era a loja delas. Três anos atrás chegaram de Paris, depois de perder tudo. Vinham
com uma menina doente, poucas moedas, e seus talentos. Marcelline ganhou dinheiro nas mesas de
jogos, e com isso começaram.
Agora devia sentir que tinha destruído tudo pelo que haviam trabalhado tanto. Tudo por
amor.
Mas Marcelline tinha direito a amar e ser amada. Havia lutado tanto. Suportado muito.
Cuidou de todas. Merecia ser feliz.
—Enfrentamos a ruína antes, —Sophy disse—. Isto não é pior que Paris, nem a cólera.
—Além disso, sobrevivemos uma catástrofe aqui, também, —Leonie adicionou.
—Com a ajuda de Clevedon, —Marcelline disse—. E que nós não gostamos de aceitar.
Mas aceitamos porque não tínhamos outra alternativa.
—E nos asseguramos que fosse um empréstimo, —Leonie adicionou.
—Que ao que parece, agora não podemos pagar, —Marcelline disse, ainda movendo o
lápis com raiva—. Estamos tão longe de terminar de pagar a dívida, e já temos que pedir outra. Ou
aceitar o fracasso. Leonie tinha razão depois de tudo. Mordemos mais do que podemos engolir.

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Semanas atrás, quando o Duque de Clevedon havia encontrado aquele lugar, Leonie
advertiu que não tinham clientes suficientes para manter uma loja grande na rua St. James.
—Sempre mordemos mais do que podemos, —Sophy interveio—. Chegamos sem nada e
construímos um negócio em somente três anos. Propusemos-nos a atrair Lady Clara, e tivemos êxito
– embora não exatamente como queríamos. Não seríamos quem somos, se agíssemos como mulheres
normais, e não vejo por que teríamos que começar a fazê-lo agora, só porque nossa melhor cliente
cometeu um engano com um homem, como a maioria das mulheres, ou porque a mãe dela é
rancorosa. Eu não me vou pôr-se a agonizar, nem me render somente por um pequeno retrocesso.
Marcelline levantou a vista e finalmente, sorriu.
—Só você podia chamar à ruína iminente, um pequeno retrocesso.
—O problema contigo é que está apaixonada, e se sente culpada por isso, o que é
completamente ridículo em uma Noirot, —Sophy disse.
—Tem razão, —Leonie disse—. Casou com um duque e deveria estar feliz contigo
mesma. Até onde eu sei, ninguém fez isso, em ambos os lados da família.
—Não só duque, mas também estupendamente rico, além disso. Sua filha tem castelos de
verdade onde brincar. —Sophy disse.
—Assim deixa de dar voltas às coisas, —Leonie declarou.
—Estou enfrentando um fracasso. Gigantesco, catastrófico, do qual esse réptil horrível da
Dowdy, rirá. Isso me dá direito a me atormentar.
—Não, não é assim, —Sophy disse—. Ele não irá rir, e não vamos fracassar. Pensaremos
em algo. Sempre fazemos.
—Só que precisamos deliberar rápido, porque resta menos de um mês para os pagamentos
do ano, — Leonie adicionou.
Alguém bateu à porta.
—O que foi? — Marcelline exclamou.
A porta foi aberta um pouquinho, por onde se podia ver um pedaço de Mary Parmenter,
uma das costureiras.
—Por favor, Sua Graça, madames. Lady Clara está aqui. Com Lorde Longmore.

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Capítulo Três

Por certo há uma conexão entre o vestido e a mente, e um observador perspicaz pode dar-se
conta; e tanto o que tem uma mente poderosa como o que tem uma fraca, nunca deixa de sentir-se afetado
pela roupa.
Revista e Museu da Dama, Junho de 1835.

Era uma espécie de bordel para damas, Longmore concluiu.


A loja inclusive tinha uma entrada discreta por trás, sem dúvida reservada para as cortesãs
caras e os homens que as mantinham. Poucos minutos antes, uma mulher muito bem vestida, mas
discretamente, os deixou entrar por ali e os levou a um andar superior por uma escada traseira
acarpetada, suavemente iluminada. As paredes de cor verde pálida, estavam adornadas com quadros
pequenos de paisagens e de vestidos antigos.
Ele esteve na sala de vendas da Maison Noirot, mas este era outro mundo. A sala onde a
mulher os levou, parecia um salão para receber visitas. Havia mais quadros menores nas paredes rosa
pálida. Bibelôs de porcelana. Coisas de renda adornando as mesas e os respaldos das poltronas. O
próprio ar cheirava a mulheres, mas era muito sutil. Seu nariz captou uma leve essência, como se por
ali tivesse passado um buquê de flores e ervas. Tudo o que havia ao redor era suave, luxuoso, e
convidativo. Trazia para a mente pinturas de escravas em um harém. Odaliscas.
Ficou tentado de se jogar no tapete e pedir haxixe e bailarinas.
Uma porta foi aberta, e todos seus sentidos ficaram alertas.
Mas era somente a mulher elegante que trazia uma bandeja. Longmore notou o prato de
bolachas. Havia uma licoreira onde deveria estar o bule.
Quando a mulher saiu, disse
—Então assim é como fazem. Convencem com álcool.
—Não, convencem você com a bebida, —Clara disse—. Embora não me importaria de
um gole para me recuperar. —deixou-se cair em uma poltrona—. Oh, Harry. Que diabos vou fazer?
Ele enrugou a cara.
Ele conhecia isso. Augurava lágrimas.

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O pegou totalmente despreparado. Parecia perfeitamente bem quando estavam a caminho.
O queixo alto, olhos soltando faíscas. Não se surpreendeu quando pediu que a levasse a Maison
Noirot. O ato de docilidade com sua mãe, não o convenceu.
Clara tinha uma beleza tão angelical, que acreditavam que era suave e maleável.
Confundiam a indiferença com docilidade. Habitualmente não se importava que quase a maioria das
coisas fossem assim ou assado. Mas quando algo lhe importava, era tão teimosa como um porco.
Desde que as irmãs Noirot lhe puseram as garras, tornou-se extremamente obstinada com
sua roupa.
Jogou pela amurada o pânico.
—Pare, Clara. Nada de chorar. Diga do que se trata, e termina.
Ela tirou um lenço e secou precipitadamente os olhos.
—Oh, é mamãe. Deixa-me com os nervos a flor da pele.
—Isso é tudo?
—Não é suficiente? Sou a grande piada da Sociedade, e estou a ponto de um casamento
apressado, e mamãe não para de me repetir cada coisa que fiz de errado.
—E isto —moveu a mão indicando a sala— será uma coisa mais.
—E o que é uma coisa mais? Isto, pelo menos irá levantar meu ânimo. Justamente o
contrário a uma visita à loja dessa incompetente em Bedford Square, e a que mamãe é tão
irracionalmente devota.
A levou até ali porque era onde ela queria ir… e onde ele preferia ir.
Maison Noirot era estupendamente cara, as proprietárias eram sedutoras (em termos de
roupa) de primeira ordem, era extremamente francesa, e sobre tudo, era o território de Sophy.
Se um homem tinha que ir a uma loja de modas, este era o lugar.
Mas Clara teria problemas em casa. Mais problemas.
—Mamãe vai armar uma confusão. E você levará a pior parte.
—Os vestidos valerão a pena.
E seria sua última oportunidade de uma extravagância, a menos que ele encontrasse a
forma de se desfazer do Adderley e juntamente recuperar a reputação de Clara.
Não estava seguro que Clara quisesse que Adderley desaparecesse, mas se não quisesse,
era estúpida ou louca, e então seus sentimentos não importavam.
Deve ter franzido o cenho sem perceber, porque ela disse:
—Para mim será muito entretido, mas sei que se aborrecerá. Não tem que ficar. Chamarei
um carro para voltar para casa.

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—Chamar um carro? Está louca? Eu não gostaria de escutar. —Deixou cair uma mão
murcha na têmpora, aguçou a voz uma oitava mais alta, e imitou mãe, — Como pôde, Harry? Deixar
a própria irmã em transporte público imundo. Só o Céu sabe quem a viu viajando pelas ruas de
Londres como uma empregada de uma loja. Terei vergonha de olhar minhas amigas nos olhos.
Por atrás dele chegou o sussurro de saias – e risadas contidas?
Virou-se e o pulso acelerou.
Três mulheres jovens - uma morena, uma loira e a terceira, ruiva – o olhavam com um
interesse discreto. As duas últimas tinham olhos grandes assombrosamente azuis. Só nos olhos
detectou a diversão que acreditou escutar, mas não foi muito.
Seria mais preciso dizer que detectou só em seus olhos, já que as irmãs de Sophy Noirot
poderiam ter sido sombras ou um coro grego – ou cortinas das janelas.
Todas estavam muito bem, cada uma a sua maneira e todas bastante bonitas, para não
dizer belíssimas.
Mas ela as deixava na sombra.
Sim. Bastava olhá-la. Cabelo loiro encaracolado, sob um gorro de renda como a espuma.
Olhos faladores de uma cor safira intensa. Uma boca cheia convidativa. Um queixo afiado e
obstinado. Sob o pescoço… ah, isso era melhor até. Deliciosa, de fato, apesar do estilo lunático da
roupa, estimado o furor da moda.
—Duquesa, —Clara exclamou levantando-se da poltrona, fazendo uma reverência.
—Por favor, não me chame de duquesa, —disse Sua Graça —Isto aqui é um negócio.
Enquanto estiver aqui, por que não fingimos estar na França, onde se diz madame a uma duquesa,
igual a uma costureira? Enquanto isso, simplesmente pense em mim como sua costureira.
—A melhor costureira do mundo, — Sophy disse.
—E você seria… — Longmore disse.
—A outra melhor costureira do mundo — Sophy respondeu
—Alguém deveria lhe explicar os superlativos. Mas bem, sei que o inglês não é seu
primeiro idioma.
—Não é meu único idioma principal, milord. O francês é o outro.
—Também devessem lhe explicar o significado de único e primeiro.
—Oh, sim, me ilumine por favor, milord, —disse, abrindo mais os olhos intensamente
azuis—. Nunca tive cabeça para os números. Leonie sempre se queixa por isso, ‘Nunca aprenderá a
contar?’ diz.
—E, entretanto, —começou ele.

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Foi então que se deu conta que sua irmã havia se afastado– que estava indo com as outras
duas a outra porta.
—Para onde está fugindo?
—A olhar moldes. Vai achar muito aborrecido.
—Isso depende.
—Do que? —perguntou Sophy.
—Do aborrecido que me sinta. —Olhou ao redor—Não é muito entretido aqui.
—Seu clube está a somente alguns passos daqui. Talvez preferiria esperar lá. Podemos
mandar a avisar quando Lady Clara tiver terminado, —Sophy disse.
—Não sei. Acho que devo ficar exercendo uma influência moderadora.
—Você, —Sophy disse—. Uma influência moderadora.
—Mulheres excitáveis. Vestidos. A possível violação e pilhagem da conta bancária de
nosso pai. Parece ser necessária a cabeça fria de um homem.
—Harry, você sabe que a papai não importa o que gasto em roupa. —Clara disse—.
Gosta que nos vejamos bem. E sei que a você não importa o que compre. Foi muito amável por ter
me trazido, mas não tem que cuidar de mim. Estou muito segura.
Seu olhar passou pelas três irmãs e se deteve em Sophy. Pensou muito e rápido e
escolheu as palavras com cuidado.
—Muito bem. Um homem pode pensar com mais claridade quando não está rodeado de
mulheres. E preciso de um álibi.
Ela agarrou o chamariz, e seu olhar ficou mais alerta.
—Por quê? Está planejando matar alguém?
—Ainda não. Você não me deixará matar o noivo. Não, quero um álibi para Clara, que se
supõe não tem que estar aqui.
—Mamãe disse que devo ir a Downe’s, mas Harry se compadeceu de mim.
—Compadeci-me de mim. Para acautelar que esperneasse, destrambelhasse e soluçasse.
—Então o mínimo que posso fazer em agradecimento, é lhe prover um álibi, —Sophy
disse.
Podia pensar qualquer quantidade de atos de gratidão agradáveis, mas isso bastaria para
começar.
—Não muito complicado.
Sophy revirou os grandes olhos azuis.
—Eu sei.

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—Sou um homem simples.
—Isto é tão simples, que inclusive um estúpido pode recordar. Quando Lady Clara voltar
para casa, dirá que você estava embriagado e a trouxe para aqui em vez de levá-la a Downe’s,
insistindo que este era o lugar, —Sophy declarou.
—Oh! Isso é perfeito, —Clara disse.
—Funcionará estupendamente. Pode dizer que parei em cima dela e a obriguei a comprar
sessenta ou setenta vestidos, e uma dúzia de camisas e...
Então sentiu a inspiração, e imagens de roupa interior de renda e musselina começaram a
passar por sua mente, e em meio dessa desordem apareceu um diabo angelical de olhos azuis, quase
nu. Ondeou uma mão para limpar as imagens. Agora não era o momento. Estava recém começando
seu assédio, e sabia – sempre podia dizer – que enfrentava com uma fortaleza muito difícil. Havia
todo tipo de corredores secretos, desvios e armadilhas.
Mas se fosse fácil, seria aborrecido.
Continuou
—… e todas essas coisas de um enxoval. E quando nossa mãe recuperar a consciência e
exigir que Clara cancele o pedido, ela apelará a nosso excessivamente consciencioso progenitor,
quem dirá que simplesmente não pode cancelar pedidos enormes de uma hora para outra.
Sophy cruzou os braços. Algo cintilou em seus olhos azuis. Fora isso, sua expressão era
impenetrável, e disse:
—Bem. Fique nisso, e não exagere.
—Não há perigo disso. Em todo caso é bastante fácil para que seja parcialmente
verdadeiro. Só tenho que ir a meu clube e beber sem parar, até que tenham terminado de quebrar meu
pai. Logo, quando Clara voltar para a Mansão Warford, ninguém terá nenhum problema em acreditar
em minha obstinação de ébrio.
Saiu do salão e foi à escada.
Escutou passos apressados e o sussurro de saias atrás dele.
—Lorde Longmore.
Pronunciou seu nome como todos faziam, não precisamente como se soletrava, mas sim
como tantos nomes antigos, com vocais deslocadas e consoantes omitidas. Entretanto, tampouco era
igual, porque tinha um leve sussurro francês.
Olhou para cima.
Ela estava na escada, inclinada sobre o corrimão.

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A vista era excelente: podia ver os sapatos de seda e as fitas cruzadas que ressaltavam o
arco elegante da impigem, e os tornozelos estupendos. As delicadas meias de seda que cobriam o
pedacinho de pé e da perna. Rapidamente, imaginou o que não via. Esse lugar sobre o joelho onde
ficavam as ligas – que em sua mente eram vermelhas, bordadas com frases lascivas em francês.
Por um momento não disse nada.
—Essa foi uma saída estupenda, —disse ela.
—Isso foi o que pensei.
—Odiei colocá-la a perder, mas tive uma ideia, — disse.
—Mas que maravilha. Primeiro um álibi e logo uma ideia. E no mesmo dia.
—Pensei que me poderia ajudar, — disse ela.
—Atrevo-me a dizer que poderia, — respondeu, olhando os tornozelos dela.
—Com sua mãe.
Olhou-a nos olhos.
—O que quer fazer?
—Eu gostaria de vesti-la.
—Seria difícil considerando que ela a odeia. Não a você em particular, e sim por sua
relação com a Duquesa de Clevedon, e sua loja.
—Eu sei, mas acho que poderíamos contornar isso. Quer dizer, eu poderia fazê-la mudar
de opinião, com um pouquinho de ajuda.
—O que propõe, senhorita Noirot? Terei que drogar a sua senhoria para trazê-la
inconsciente a sua guarida e assim possa obrigá-la a usar seus vestidos fascinantes?
—Só como último recurso. O que tenho em mente para você neste momento, é muito
simples. E nunca ninguém saberá que você ajudou e foi cúmplice do inimigo.
—Isto é Londres. Não existe isso de ‘nunca ninguém saberá.’
—Não, realmente, prometo...
—Não é que me importe que alguém saiba.
—Correto. Esqueci. Mas eu não devo ser reconhecida.
—Significa um disfarce?
—Só para mim. Verá, preciso ir onde Dowdy’s e...
—E Dowdy’s é…?
—A guarida daquele réptil horrível, Hortense Downes, o monstro que põe em sua esses
mãe vestidos deprimentes. Preciso me introduzir na loja dela.

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Sabia que no mundo dela os vestidos eram o princípio e o fim de tudo, e se perdiam
mundos se um laço fosse colocado no lugar equivocado.
—Está propondo uma expedição de espionagem atrás das linhas inimigas.
—Sim. Isso, exatamente.
—Pensa explodir o lugar?
—Só como último recurso.
Estava muito feliz de levá-la, embora não explodisse nada. Estaria feliz de levá-la a
qualquer lugar. Mas aceitar tão rápido, significava que ela se iria logo e ainda não se cansou de olhar
os tornozelos.
Fingiu calcular.
—Só é uma hora, mais ou menos. Não interromperia seu ocupado horário.
—Ordinariamente, não. Mas tenho este problema Adderley.
—E se quiser pensar longa e profundamente?
—Não tem que trabalhar no problema Adderley. Não lhe disse que minhas irmãs e eu nos
encarregaríamos disso?
—Não é algo que eu gostaria de deixar às mulheres. Pode ficar desagradável, e odiaria ver
seus belos vestidos arruinados.
—Acredite, Lorde Longmore, minhas irmãs e eu dirigimos situações extremamente
desagradáveis antes.
Seus olhares se encontraram. Nesses olhos azuis ele viu algo inesperado e duro. Mas
desapareceu em um instante, lhe recordando subitamente os homens que a tinham açoitado e que
tinham saído mal com a experiência.
Havia mais nela do que parecia: isso tinha reconhecido antes.
—Deixe-me pensar. Deixe-me fazer isso nas profundidades frias de meu clube.
E continuou descendo.

Duas horas depois.

Perto da famosa janela saliente de White’s, onde Beau Brummell havia presidido umas
décadas antes, irrompeu um zumbido de excitação na garoa cinza da tarde. O ruído foi crescendo até
chamar a atenção de Lorde Longmore.
Este havia se instalado no salão matinal com o Morning Spectacle de Foxe, para revisar a
história de Sophy sobre o desastre de ontem à noite. Considerando o estilo sem fôlego e dramático, e

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a atenção excessiva e aborrecida de cada polegada do vestido de Clara, Sophy ultrapassou a si
mesma. Clara tinha sido a ‘inocência enganada,’ Longmore aparecia como o modelo de irmão
justiceiro, e a descrição do vestido – impregnado de um francês oculto, conhecido somente pelas
mulheres – tomou duas das três colunas da primeira página. Sua reportagem havia deslocado de dita
página, implicitamente, quase todas as fofocas que Foxe chamava notícias.
Longmore o tinha lido depois do café da manhã. Agora não viu mais que então. Não era
claro quão bom seria para Clara – a menos que fosse simplesmente o primeiro passo de uma
campanha. Se se tratava disso, Longmore morria de vontade de ver aonde chegaria.
Depois de rir baixo da coleção maior do mundo de adjetivos e advérbios de Sophy, passou
às outras intrigas e às notícias esportivas. Depois prosseguiu com a propaganda nas últimas páginas.
Ali a Maison Noirot tomou a parte mais importante, relegando aos rincões escuros os anúncios de
artigos de banho de bolso, de dentes artificiais e creme de salada.
Ali encontrou o anúncio da Sra. Downe.
Estava se perguntando a respeito da conexão entre a necessidade de Sophy de ir à loja da
rival e o anúncio, quando alguém na janela disse:
—Quem é?
—Está brincando. Não sabe?
—Perguntaria se soubesse?
Outras vozes se uniram.
—Hempton, inocente. Esteve em coma no último mês?
—Como não ouviu sobre o Pior Casamento do Século? Estão falando disso até na Sibéria
e na Terra do Fogo.
—Mas essa não pode ser a esposa de Sheridan.
— De Clevedon? —disse Hempton—. Mas se ele casou com uma morena. Esta é loira.
Longmore deixou cair o Spectacle, levantou-se e correu à janela.
—O que está acontecendo? — perguntou, embora adivinhou.
Os homens amontoados na janela, lhe deram um espaço.
Sophy Noirot estava parada do outro lado da rua St. James. Uma rajada de vento fez voar
o vestido amarelo pálido por atrás, contra as pernas, produzindo uma espuma de saia e anáguas
ondulantes, para frente. O vento fazia uma piada total de uma nada de renda do guarda-chuva, que
sustentava contra a chuva. O aguaceiro tinha diminuído uma suave garoa, e a figura imprecisa que se
via entre grupos de veículos, cavaleiros e pedestres, parecia uma imagem de sonho.

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Entretanto, o comentário na janela, deixava claro que não era um sonho, mas sim a estrela
da fantasia obscena dos homens.
Ah, era bastante real, usando uma coisa como cachecol que chegava até onde se supunha
que tinham que estar os joelhos, sob jardas de renda e musselina. Sobre o cabelo dourado,
encarapitava-se um gorro ridículo jorrando rendas e fitas e plumas. Longmore pôde ver uma espécie
de redemoinho de rendas e plumas por trás do chapéu, quando se agachou para falar com um
garotinho andrajoso. Deu-lhe algo, e este saiu disparado, e cruzou a rua, atrapalhando aos veículos e
cavaleiros.
Logo levantou a vista direito à janela saliente, a Longmore.
E sorriu.
E todos os homens o olharam.
E sorriram.
E ele sorriu de volta.
Longmore tomou seu tempo. Bebeu o copo de vinho, voltou a ler os anúncios, e logo
pediu suas coisas.
Colocou o chapéu e luvas, pegou a bengala e saiu. A garoa se transformou em uma
neblina fina, e o vento havia diminuído um pouco.
Ela havia caminhado um pouco e estava olhando as pessoas que passavam em Piccadilly.
Todos os homens que passavam a olhavam.
Ele desceu os degraus tranquilamente e foi até ela.
—Poderia ter encontrado um maroto perto da loja para que trouxesse a mensagem que
minha irmã estava pronta para ir. Ou por que não mandar um criado ou uma costureira? Tinha que
vir? Em meio da chuva?
—Sim. Tinha que vir.
—Então imagino que tem que me dizer algo especial.
—Poderia dizer em qualquer lugar. Mas esta era uma boa oportunidade para usar o
chapéu, que é meu próprio desenho. Não sou nenhum gênio com os vestidos, como é Marcelline,
mas meus chapéus são bastante bons.
—Suponho que se impressionará se lhe digo que para mim as roupas das mulheres
parecem todas iguais.
—De jeito nenhum. Você é um homem. E por isso o peço. Preciso de um homem grande
e forte se por acaso me descobrem e tenho dificuldades com os valentões de Dowdy. —Fez uma leve

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pausa—. Enquanto sua irmã estava provando roupa, mencionou Lady Gladys Fairfax, que era uma
pena que não a tivéssemos em nossas mãos.
—A prima Gladys. Não me diga que vem ao casamento.
—Não sei quem serão os convidados, mas quando Lady Clara falou dela, me ocorreu uma
ideia.
Chegaram à esquina com a rua Bennet. Ele se deteve a observar os carros e cavaleiros que
dobravam nesse lugar.
Quando ficou calmo, a puxou pelo cotovelo e cruzou a rua rápido soltando-a ao chegar à
vereda. Ainda sentia o calor do braço em sua palma, que de súbito foi direto à virilha, deixando-o
tonto.
A entrada de trás da loja era por uma passagem da rua Bennet. Ela esperou até que
entraram na passagem.
—Lady Clara diz que sua mãe irá a Dowdy’s no começo de semana para ordenar o
vestido para o casamento. Leonie pode prescindir de mim a manhã de sexta-feira. Levar-me-ia
então?
Depois da agitação na rua St. James, a pequena passagem parecia estranhamente
tranquila. Percebeu um perfume vagamente familiar. Aproximou-se um pouco e ficou olhando fixo à
porta discreta, fingindo estar pensando intensamente enquanto sentia o aroma. Mulher, é obvio, e…
lavanda… e o que mais?
Deu-se conta que sua cabeça estava afundando no pescoço dela. Endireitou-se.
—Valentões. Em uma loja de moda.
—Dois brutos enormes. Encarregam-se dos bêbados e ladrões. Ou isso é o que diz
Dowdy. Pessoalmente, acho que contratou os homens para intimidar às costureiras. Você sabe, como
os que há nos bordéis para...
—Isso soa entretido. Suponho que você irá disfarçada.
—Sim.
—Como criada, suponho.
—É obvio que não, como poderia comprar vestidos caros sendo uma criada? Seria sua
prima Gladys.

Lorde Adderley não se atrasou em pôr o aviso de seu compromisso nos jornais, mas as
notícias viajavam de Londres em questão de horas – mais rápido inclusive do que demorava a
impressão do Spectacle. Na segunda-feira seu alfaiate, o fabricante de botas, de chapéus, o

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fornecedor de vinhos, tabaco e outros que lhe proporcionavam comodidade e entretenimento, uma
vez mais haviam aberto seus livros de conta e lhe outorgaram crédito.
Quase não havia se livrado.
Outra semana mais, e teria que fugir ao estrangeiro. Embora os pares não pudessem ir ao
cárcere por dívidas, não eram imunes a sofrer outras moléstias, como que lhe fechassem o crédito.
Todos seus credores pareciam ter se unido em um complô, porque todos, incluindo os lojistas,
cortaram-lhe o crédito ao mesmo tempo, dois dias antes do baile de Lady Igby.
O casamento vindouro os fez se inclinar para o perdão.
Na segunda-feira na noite celebrou com o Sr. Meffat e Sir Roger Theaker em uma sala de
jantar privada do Hotel Brunswick. Brindaram por cada um através do jantar. Quando ao fim
limparam a mesa, o vinho os fez soltar a língua – não importa, pois não havia ninguém perto para
ouvi-los.
—Foi por pouco, — disse Sir Roger.
—Perigosamente perto, — disse Lorde Adderley.
—Não estava seguro que você conseguiria, — disse o Sr. Meffat—. Os vigiavam como
falcões.
Lorde Adderley deu um encolher de ombros.
—Assim que vi Lady Bartham instalada para fofocar com a mamãe, soube que não
haveria perigo nessa parte, por um momento.
—Longmore era o que me preocupava, — disse o Sr. Meffat.
Adderley resistiu a necessidade de tocar a mandíbula machucada. Tinha mais razão que
ninguém para estar preocupado. Isso o fez suar, e depois explicou a Lady Clara que se devia a
excitação por estar tão perto dela, para tomá-la em seus braços – em outras palavras, todo aquele lixo
habitual.
—Só precisava de alguns poucos minutos, e ele estava do outro lado do salão. De todas
as maneiras foi o agir rápido de vocês o que salvou o dia.
Meffat e Theaker tinham que atrair a atenção para o terraço, sem que fosse muito óbvio.
Não era o mais difícil do mundo. Um só tinha que dizer:
—O que Adderley está fazendo no terraço? E quem é a mulher que está com ele?
Não teria que dizer a muitas pessoas. Uma ou duas, bastaria. A corrente para o terraço
começaria, outros a notariam e a seguiriam, curiosos por ver do que se tratava.
Clara tinha sido a mais fácil de dirigir. Embora não era uma senhorita de colégio – tinha
vinte e um anos, mais velha do que Adderley teria preferido – era tão ignorante como uma menina

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em coisas do amor. Tudo o que teve que fazer foi lhe manter o copo de vinho cheio, e girá-la pela
pista até enjoá-la e sussurrar poesia ao ouvido. Ainda assim, tinha que ser cuidadoso. Muito vinho e
muitas voltas, poderiam adoecê-la – e poderia arruinar a última jaqueta boa que restava.
—Pelo menos conseguiu uma beleza, — Theaker disse—. Em sua maioria, quando o pai
dá um grande dote, é porque são vesgas, ou têm espinhas, ou as pernas arqueadas.
—O que quer dizer é que em sua maioria são cães, — Meffat disse.
—Tenho sorte, eu sei. Poderia ter sido muito pior.
Ela era uma beleza, e isso faria mais agradável deitar-se e ter herdeiros. Mas não era de
seu gosto, uma grande vaca de menina. Gostava das mulheres mais miúdas e magras, e teria
preferido uma morena.
Mas seu dote era enorme, ela tinha sido acessível, e os mendigos não podiam escolher.
—Bendita seja sua inocência, — disse Theaker —. Foi como uma ovelha.
—Eis ai uma que não te dará problemas, — Meffat declarou.

Mansão Warford.
Quarta-feira 3 de Junho.

Clara manteve a compostura até que fechou a porta de seu dormitório.


Engoliu, cruzou rapidamente o quarto e se sentou frente a penteadeira.
—Minha lady? — perguntou sua empregada, Davies.
Ela deixou escapar um soluço, logo outro.
—Oh, minha lady.
—Não sei o que fazer! — Clara enterrou o rosto nas mãos.
—Vamos, vamos, minha lady. Farei uma boa xícara de chá quente, e se sentirá melhor.
—Preciso mais que chá. — E levantou a vista para encontrar o olhar de Davis no espelho.
—Porei uma gota de brandy.
—Mais que uma gota, — Clara disse.
—Sim, minha lady.
Davis saiu apressada.
Clara tomou a nota que Adderley havia enviado.
Uma nota de amor cheia de belas palavras, do tipo que com certeza derretia o coração de
uma menina romântica.

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É obvio as palavras eram belas, tinham sido escritas por poetas: Keats, e Lovelace, e
Marvell e muitos outros. Inclusive Shakespeare! Acreditou que não reconheceria as estrofes de um
soneto de Shakespeare! Ou era um idiota total, ou pensava que ela era a idiota.
—O último, o mais provável, — sussurrou. Enrugou a nota e a jogou no chão—.Tudo era
mentira, sabia. Como pude ser tão tola?
Tudo porque o senhor Bate não tinha lhe pedido uma dança, e o viu girar com Lady
Susan, a filha de Lady Bartham. Ela era petit, morena e bonita, e Clara sempre se sentia desajeitada e
torpe quando estava ao lado dela.
E o que aconteceu?
Um momento de dor. E Lorde Adderley estava a seu lado, com uma taça de champanhe e
um comentário perfeito que por certo a fez rir.
Adulação irlandesa, mamãe teria dito.
Talvez fosse isso. Ou talvez fosse como as belas palavras que escreveu, roubadas dos
escritores dotados. Falso, de todas maneiras.
Champanhe, valsa, e adulações, e Clara engoliu a isca.
E agora…
Parou, foi à janela e olhou o jardim. Lá abaixo a chuva estava golpeando arbustos e flores,
para submetê-los. Se tivesse sido um homem – se tivesse sido Harry –teria subido, e escapado o mais
longe possível.
Mas não era, e não tinha ideia de como fugir.
Tempo, pensou. Era sua única esperança. Se pudessem arrastar o compromisso por meses
e meses, produzir-se-ia um novo escândalo, e todos se esqueceriam deste.
Davis chegou com o chá.
—Pus umas gotas extras, mas terá que bebê-lo rápido. Chegou Lady Bartham e Lady
Warford disse que deve ir imediatamente.
—Lady Bartham. Precisarei mais que umas poucas gotas, e sim uma garrafa.
Tomou o chá com brandy, pôs sua melhor cara, e desceu ao salão.
Foi pior que o antecipado. Lady Bartham foi tão compassivamente venenosa, que deixou
Clara meio cega de raiva, e mamãe, com dor de cabeça.
À manhã seguinte, mamãe anunciou que estava doente de morte com este espantoso
compromisso e as insinuações dos outros. Olhariam o calendário, e fixariam a data do casamento.
—Sim, é obvio mamãe. Para o outono, talvez. Para então, a cidade não estará tão cheia.

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—Outono? —Mamãe gritou—. Está louca? Não podemos perder um instante. Tem que
casar antes que a Temporada termine. Antes da última festa no Salão da Rainha – isso o mais tardar.
—Mamãe, só faltam três semanas!
—É suficiente para preparar um casamento, inclusive um grande – e um pequeno não é
nenhum problema. Já sabe o que as pessoas dirão. E se essas malvadas costureiras francesas onde
Harry a levou, não puderem terminar sua roupa de noiva a tempo, má sorte. Não é minha culpa que
meus filhos me desobedeçam com frequência.

46
Capítulo quatro

Agora graças a imprensa, os navios, e os carros, a vapor, o cérebro prolífico de uma


costureira francesa ou chapeleira ainda não criou um chapéu para as parisienses elegantes, quando
as belas londrinas o obtêm.
—A Belle Assemblée, Março 1830.

Sexta-feira 5 de Junho.
Longmore colocou as rédeas em uma mão e com a outra, tirou o relógio de bolso e o
abriu.
Às onze, havia dito ela. Da manhã – porque as aristocratas elegantes saíam às compras a
tarde.
—É importante que chegue antes que as clientes favoritas de Dowdy. As comerciantes se
dedicam a adular às grandes damas com moedeiros pesados e deixam às assistentes menos
importantes, as senhoritas insípidas do campo. Realmente será importante ver o modelo do vestido
de sua mãe, já que ela é uma de seus clientes mais importantes. E isso significa que não posso ser
atendida por uma assistente. Tem que ser a própria Hortense a Horrível ou a chefe de suas
costureiras.
Eram as onze em ponto. Longmore olhou o céu. Nublado mas sem ameaça de chuva,
como Raide, havia insistido. Raide não ficou contente por ter que ficar para trás. Se chovesse – como
ele havia assegurado a sua senhoria – precisaria de ajuda para subir a capota da carruagem.
Bom, então teriam que se molhar, Longmore decidiu. Embora fosse conveniente para que
se preocupasse dos cavalos e para lutar com capotas temperamentais, nesta ocasião um criado estaria
sobrando.
Guardou o relógio e voltou a olhar a entrada da loja. Não tinha que recolhê-la na Maison
Noirot, mas sim mais à frente, perto do Palácio St. James, em uma loja de fitas. Para não despertar
suspeitas.
Era divertidíssima.
—Primo? —disse uma voz feminina conhecida.

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Piscou. Era a voz de Sophy, mas não era ela. Sabia que a mulher parada ao lado do carro
tinha que ser ela, mas seus olhos se negavam a reconhecê-la. Esta era tão anódina, que
provavelmente passou por ela sem notá-la.
A capa marrom terroso escuro escondia sua figura. O chapéu verde barroso e o gorro de
renda ocultavam quase todo o cabelo. O que se via eram mechas murchas e opacas. Tinha brotado
uma espinha ao lado do nariz perfeito. E nesse nariz colocou um par de óculos de cor, deixando
opaco o azul brilhante de seus olhos a um cinza de dia nublado.
Deu-se conta que ficou boquiaberto. Rapidamente se recuperou.
—Aí está — disse ele.
—Teria me visto antes se não estivesse contando moscas, — disse, tão mal-humorada
como o teria feito Gladys – e com o mesmo acento desgracioso. Subiu ao veículo com a mesma
estupidez de sua prima.
Se não soubesse, teria acreditado que era sua prima fazendo uma brincadeira.
Mas a prima Gladys não fazia brincadeiras. Não tinha imaginação.
—Como o fez? Não pode tê-la conhecido. Não sai de Lancashire há anos.
—Lady Clara a imita muito bem, e foi muito fácil classificar seu tipo. Você sabe que
fazemos isso: catalogamos uma mulher tão logo entra na loja. Grosseiramente falando, tendem a cair
em certas categorias.
—Gladys tem um tipo? Que pena me dá escutar tal coisa. Sempre acreditei que era única,
e mais que suficiente.
Deu o sinal para que os cavalos partissem e teve que manter-se atento a eles. Apesar de
tê-los feito correr no Hyde Park para controlar a energia matinal, ainda estavam excitáveis.
Aparentemente como ele, não estavam acostumados a andar nas ruas do comércio a horas
vespertinas, nem às pessoas comuns. Ante qualquer coisa se metiam em problemas: tentavam lançar-
se aos outros veículos, ir à vereda, ou contra os pedestres, e morder os outros cavalos.
Normalmente teria achado divertido.
Mas hoje era inconveniente. Tinha que levar a cabo um plano com a mulher que estava ao
lado dele e necessitava todo seu engenho. No momento tinha que concentrar-se para chegarem vivos
a Piccadilly. Logo teria que abrir caminho através do tráfico ao aproximar-se do cruzamento com a
rua Regency.
—Que diabos estão fazendo toda esta gente nas ruas, ao amanhecer?
—Ouviram que o conde de Longmore se levantaria cedo e sairia antes do meio-dia.
Acredito que querem marcar o sucesso com luzes e foguetes.

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Conduzia desde menino e nunca teve que esforçar-se tanto.
—Acho que você está assustando os cavalos.
—E eu penso que não estão acostumados às ruas cheias durante o dia.
—Talvez essa espinha os deixa tão incomodados. —Ou talvez fosse o aroma dela. Não
era o de Gladys. Era muito suave, quase imperceptível: mulher, e jasmim e algo mais. Uma espécie
de erva ou galhos verdes.
Não, o perfume não estava incomodando-os. Estava fazendo ele suar e não podia fazer
nada no momento. Não era a única perturbação. Estava extremamente consciente da saia roçando sua
calça, e podia ouvir o sussurro das anáguas sob a saia. Era muito claro, podia ouvir por cima da
cacofonia de animais, veículos e pessoas.
Estava preparado para discutir com ela e não podia, e os cavalos sentiam a agitação.
Era tão ridículo, que riu.
—O que aconteceu? —ela perguntou.
—Você. E eu, levantado e conduzindo a esta hora, a uma loja de modas.
—Sei que se levanta antes do meio-dia em algumas ocasiões.
—Mas não para fazer compras.
—Não. Para uma corrida. Uma disputa de boxe. De luta. Um leilão de cavalos. Não estou
segura de poder oferecer a mesma emoção.
—Suponho que será bastante excitante quando a descobrirem. E o vão ter que fazer. Terá
que despir-se para que a meçam. E se cai a espinha enquanto está tirando a roupa? E se os óculos
agarram na peruca?
—Pus várias capas extras de roupa. Não as deixarei me medir além da primeira ou
segunda capa. E a propósito, não é uma peruca. Pus uma mescla de ovo no cabelo para que fique
opaco. Dizem que fica brilhante depois que o lava.
Seria um grande trabalho tirar o ovo. Era grosso e encaracolado, e a menos que
adicionasse mechas falsas, como tantas mulheres o faziam, tinha que ser longo. Até a cintura? E viu
cabelo comprido dourado descendo por costas nua e suave como seda.
Havia algo para esperar com ânsia.
—Prometeu valentões. Tenho vontade de brigar. Foi o único que me tirou da cama. Tem
ideia do tempo que passou desde que alguém teve a gentileza de responder a meus golpes?
—Se eu fosse um cavalheiro e o visse que vem para mim com os punhos em alto, correria
na direção oposta.
—Os valentões não são cavalheiros. Não vão correr.

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—Se se aborrecer terrivelmente, pode armar uma briga.
—Se é que existem. Nunca escutei que contratem rufiões em uma loja de modas.
—Nunca os notou porque não pensa como terá que levar uma loja. Só nota se o serviço é
bom ou ruim. Mas podem ser muito úteis em uma loja de mulheres. Alguém tem que dirigir os
bêbados pegando as coisas, ou tocando às costureiras. Mas o pior é um grupo de ladras. Chegam em
pequenos grupos de dois ou três, vestidas respeitavelmente e parecem não se conhecer. Uma ou duas
mantêm às comerciantes ocupadas enquanto as outras enchem os bolsos. Têm bolsos especiais na
roupa. São muito rápidas. Surpreender-se-ia quanto podem conseguir se alguém olhe a outro lado,
mesmo que seja um segundo.
—E onde escondem aos sujeitos que trabalham para vocês, então?
—Não precisamos de trapaceiros. Você sabe que começamos em Paris. Era um negócio
familiar, assim começamos jovens. Deixe-me ver. Acho que Marcelline tinha nove anos, assim eu
estava como sete ou oito, e Leonie seis. Quando se está absorta em um ofício da infância, cada
aspecto se faz instintivo. Os bêbados, os ladrões, os homens que achavam que as lojas de corte e
confecção são bordéis – somos perfeitamente capazes de dirigir sozinhas tudo isso.
Recordou o aspecto duro que lhe passou muito brevemente pelo rosto quando disse que
podia dirigir situações difíceis. Mas não teve tempo para deter-se nisso. Quando estavam dobrando à
rua Oxford, dois meninos passaram correndo frente ao carro. Insultando violentamente, Longmore
desviou seu par de cavalos um instante antes que pisoteassem os meninos.
O coração palpitou com força. Um momento de distração ou atraso, e os patifes poderiam
ter morrido.
—Olhem por aonde vão, par de idiotas! — rugiu por cima dos relinchos dos cavalos e os
comentários dos outros choferes.
—Ai, bruxa feia! — uma voz chiou perto de seu ouvido—. Solte-me, porca imunda!
—Oh, não. Não penso soltá-lo, — Sophy disse.
Longmore deu um olhar.
Um menino esfarrapado pendurava pela metade do assento traseiro. Sophy havia o
puxado por um braço e o olhava divertida.
Longmore só pôde dar uma olhada. Seus cavalos e o tráfico requeriam toda sua atenção.
—Que diabos! De onde saiu?
—De nenhuma parte! — o menino grunhiu. Retorcia furiosamente, em vão—. Não estava
fazendo nada. Só queria ir de graça aqui atrás, e a morta de olhos salientes tratou de me puxar o
braço.

50
Isto ao menos, foi o que Longmore supôs que disse. O acento cockney era virtualmente
impenetrável. As palavras eram totalmente diferentes, perdiam consoantes, e as vocais pareciam de
outro planeta.
—E tentava esquentar a mão no bolso do cavalheiro? — ela disse.
—Nunca estive perto de seu bolso! Pareço que sou louco?
—Longe disso, — Sophy disse —. É esperto, e rápido além disso.
—Não o suficiente, — o menino murmurou.
—Teria gostado que o tivesse visto, primo. Os dois que cruzaram eram para distraí-lo
enquanto este entrava de um salto e fazia seu trabalho. Levou dois segundo saltar ao lugar de lacaio.
Talvez teria gostado de ter outros dois mais para se encarregar de seu relógio – talvez seus selos e
lenço, além disso – enquanto você tinha as mãos ocupadas com os cavalos. Suponho que achou que
eu era uma mulher bem educada que ficaria olhando ou gritaria com impotência enquanto ele
recolhia o tesouro e fugia.
Virou para menino.
—Da próxima vez rapaz, aconselho que se assegure que há uma só pessoa no veículo.
Da próxima vez?
Longmore quase atropelou um vendedor de bolos.
—Que próxima vez? Vamos desviar ao escritório da polícia mais próxima e vamos deixá-
lo lá.
O menino soltou uma enxurrada de palavrões incríveis e lutou com toda a força. Mas
Sophy tomou com mais força ou o apertou mais ou lhe fez algo doloroso, porque de repente ficou
quieto e começou a queixar-se que tinha o braço quebrado.
—Tão logo saia deste enredo infernal, vou te dá uma surra que não se esquecerá, —
Longmore disse —. Prima, pode lhe dar um bom golpe para que sossegue um instante?
—Não acho que deveríamos levá-lo a polícia. Melhor o levarmos conosco.
Longmore e o menino reagiram ao mesmo tempo.
—Não! — vociferou o menino.
—Está bêbada? — Longmore saltou.
—Não, com você não. Não vou a nenhuma parte com você. Tenho amigos e virão a
qualquer momento. E então se arrependerá. E acredito que quebrou uma costela por estar dobrado
assim.

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—Cale-se, — Longmore disse ao menino. Precisava ter a cabeça limpa para poder
entender o que Sophy tinha como mente. Não podia fazer isso e traduzir a versão transtornada de
inglês, ao mesmo tempo.
—O que propõe exatamente fazer com ele?
—É maravilhosamente rápido. Poderia ser útil. Para nossa missão.
Ocupado com os cavalos e o tráfico, Longmore não pôde dar mais que um exame rápido.
Tinha ao redor de dez ou onze anos, embora fosse difícil de dizer com os meninos de ruas. Alguns
pareciam ter milhares de anos, enquanto outros, pequenos pela desnutrição, pareciam mais jovens. O
menino tinha cabelo loiro sob o gorro velho e não tinha o pescoço muito limpo, não estava imundo
como muitos outros. A roupa era usada e ficava mau, mas estava remendada e medianamente suja.
—Não vejo como poderia servir a alguém, a menos que queira que coloquem a mão nos
bilros.
—Poderia cuidar dos cavalos.
—Poderia, não é verdade? Sugere que ponha meus cavalos nas mãos de um trombadinha
astuto?
O menino ficou muito quieto.
A loucura era que ela tinha um ponto aí.
—Não tem ideia de quem seja. Talvez seja um bandido procurado pela polícia, a ponto
de ser transportado, na segunda-feira. Tentou roubar meu relógio. E subiu atrás no carro para fazê-lo!
Falta-lhe algo, ou tem algo mau na cabeça, e se pensar que vou deixar meu par de cavalos que estão
na flor da vida, nas mãos imundas do Mad Dick Turpin aqui presente, sugiro que pense de novo e
que tome algo para o dano cerebral.
—Oh! — disse o menino, indignado—. Não sou ladrão de cavalos!
—Simplesmente um ladrão de carteira, — Longmore disse, encurralando-o.
—Como se chama? — Sophy disse.
—Não tenho nome, assim evito problemas, não é?
—Então o chamarei de Fenwick, — disse ela.
—O que?
—Fenwick. Se não tem nome, darei um grátis.
—Esse não, é horrível.
—É melhor que nada.
—Senhor, lhe peço, — o rapazinho recorreu a Longmore—. Faça-a se calar.
Longmore não pôde responder, tentando não rir.

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—Não é nenhum senhor. É um Lorde de verdade, a quem tentou colocar a mão ao bolso.
—Sua Senhoria, diga a ela que se cale. Também diga que deixe de me torcer o braço.
Nunca antes tinha visto um monstro de mulher como esta.
Longmore deu uma olhada em Sophy. Estava olhando o pequeno descarado com uma
expressão especulativa – ou isso parecia. Não estava seguro. Por um lado, só podia dar uma olhada.
Por outro, os óculos o deixavam opacos o brilho dos olhos.
Mas viu o suficiente: um sorriso em uma comissura, e o ângulo da cabeça enquanto
olhava o menino, como um pássaro olhando uma minhoca.
—Agora sim esta em problemas, Fenwick, — disse —. Está pensando.
O pai de Sophy tinha sido um Noirot, e a mãe uma DeLucey. Nenhuma das famílias se
incomodava com a caridade, estavam ocupadíssimos em ir um passo a frente da polícia.
Embora a prima Emma tivesse aceitado em sua casa Sophy e a suas irmãs e lhes ensinado
um ofício, por um tempo haviam ricocheteado de lá para cá entre os pais e a prima. Sua infância não
tinha sido protegida. Aprenderam a sobreviver nas ruas. Rapidamente aprenderam a dar-se conta
como eram os outros.
Sophy, em poucos minutos viu e ouviu o suficiente para entender que o moço era um
estranho achado. Com muito pouco treinamento poderia ser extremamente útil. Não ia permitir que o
jogassem em uma prisão com criminosos comuns.
—Estamos bastante perto da reserva de polícia da rua Great Marlborough, — disse ela —.
Não seria nenhum problema te deixar lá, Fenwick. Ou poderia seguir conosco e cuidar dos cavalos
de sua senhoria, e ficar bem atento.
—Eu gostaria de saber a que terei que estar tão atento, — o menino disse.
—A algum problema. Achei que o reconheceria.
—Não tenho a menor duvida de suas habilidades nesse aspecto, —Longmore disse.
—Se o fizer bem, cuidarei para que tenha uma boa comida e um lugar seguro para dormir.
—Onde, exatamente? — Longmore perguntou.
—Não fique nervoso. Não tenho intenção de lhe impor.
—Por certo que não o levará você. Não sabe nada dele. Com certeza está cheio de
piolhos...
—Isso é uma calúnia! — o menino gritou.
—Me desmente, — respondeu Longmore.
—Não pense que não o farei. Não tenho mais piolhos que você. Banhei-me!
—Quando o batizaram? Mas não, esqueci que não tem nome.

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—Fenwick servirá. Ela pode me chamar de Gregory Pudding Pie se quiser, se me der
comida e uma cama, como diz. Mas não o fará, não é mesmo?
—Ouviu falar da Sociedade de Costureiras para Mulheres Indigentes? —Sophy disse.
O menino entrecerrou os olhos e a olhou.
—Mmm, — disse com cautela.
—Parece que conheço alguém ali.
—Mmm.
—Conheço bem às mulheres encarregadas. —Dificilmente poderia conhecê-las mais. O
ano passado ela e suas irmãs a tinham fundado—. Se conhecer o lugar, saberá que não fazemos
promessas em vão.
Chegaram a Bedford Square.
—Olhe Fenwick. Visitaremos essa loja com sua senhoria — Sophy fez um gesto para
Dowdy’s—. A conhece?
—Fazem roupa para os importantes. Uma menina que eu conhecia trabalhava aqui, mas
mandaram todas ir embora sem nenhuma razão, —respondeu.
Sophy esperava que a garota tivesse ido à Sociedade de Costureiras. Melhor seria que
com suas irmãs se preocupassem com o que ocorreu as costureiras despedidas de Dowdy’s.
Mas cada coisa a seu tempo.
—Enquanto estivermos na loja com sua senhoria, se ocupará dos cavalos e do que faz as
pessoas que estão ao seu redor, —disse ela animadamente—. Dá um assobio comprido e agudo se
estiver a ponto de ter problemas. Faça bem o trabalho e eu cumprirei minha promessa. De acordo,
Fenwick?
—Sem trapaças? — disse o menino.
—Sem trapaças? — ecoou Longmore—. O desembaraço do mucoso!
—Parece que sou uma trapaceira?
O menino lhe deu um longo olhar inquisitivo, especialmente as lentes escuras.
—Sim. Sem mencionar que segura forte como uma esposa.
Ela sorriu.
—Isso, sabia que era esperto. Mas sem trapaças.
Soltou-o e ele fez todo um espetáculo massageando o braço e checando se tinha um osso
quebrado. Sussurrou algo como:
—Estas loucas, e os gorilas de senhores.

54
—Não importam os murmúrios, — disse Longmore—. Não penso passar comprando todo
o dia com uma mulher. Ou o aceita ou não. Decida. Não vou perder o tempo discutindo isto todo o
dia.
—Seja você mesmo, —Sophy disse a Longmore quando se juntou a ele na calçada depois
de uma longa conversa com Fenwick a respeito dos cavalos e o que lhe aconteceria se fracassasse
com o encargo.
—Eu mesmo? Está segura?
—Preciso que seja você mesmo. Lorde Longmore, o filho mais velho de Lady Warford. O
filho da cliente favorita de Dowdy. —Por isso teve que persegui-lo e recrutá-lo. Ela tinha que salvar
sua loja, e devia ir ao território inimigo a averiguar com o que ela tinha a ver com a Maison Noirot.
O mais fácil e efetivo era usá-lo como parte de seu disfarce—. Não há necessidade que se faça passar
por ninguém. Simplesmente seja você.
—E tenho que fingir que você é Gladys.
—Serei tão parecida com ela que não terá que fingir nada. Deixe tudo comigo.
—E se a expulsam da loja?
—Seja você. Ria.
—Se fosse você, sim. Mas Gladys é outra coisa. —Franziu o cenho —Isto é confuso.
—Bobagens. Tudo o que tem que fazer é ser você. Não pense. Não precisa pensar.
E com isto se foi à porta, como certas senhoritas sem tato o faziam.
Ele se adiantou sem esforço e abriu a porta.
Mentalmente, ela se transformou na prima Gladys – feia, torpe e sensível a qualquer
desdém. Entrou com uma careta na boca e olhou ao redor, deixando em evidência que não a
agradariam facilmente. Entretanto, ainda era Sophia Noirot, avaliando o ambiente com olho perito, e
mais que um pouco surpreendida… e preocupada… com o que descobriu.
Embora ninguém pudesse igualar o talento da Maison Noirot, alguém havia tentado fazê-
lo. As paredes estavam recém pintadas de uma cor pêssego pálida com bordas de um amarelo claro, e
alguém pensou em uma variedade de cadeiras coloridas. Esse alguém se deu ao trabalho de arrumar
os tecidos de forma artística. Alguns penduravam de grandes anéis perto da cristaleira. Outros jaziam
sobre as mesas, desdobrados como se recém os tivessem mostrado a uma cliente. Um livro de
ilustrações de roupa estava aberto em uma mesa, convidando a que o folheassem. Havia pequenos
grupos de poltronas cômodas espalhadas pela sala, dando o aspecto de um quente salão privado.
Perto deles, havia mesas com revistas de homens e de senhoras.

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A sala de vendas, embora não tão excessivamente limpa como a da Maison Noirot, estava
mais ordenada e menos suja que o habitual.
A explicação estava atrás do mostrador.
Dowdy tinha contratado uma francesa: bela, elegante e graciosa. Tinha o cabelo loiro
muito bem arrumado sob uma esplêndida touca de renda.
Sua confiança não vacilou, embora seu sorriso de boas-vindas sim, um pouco, enquanto
recebia Gladys/Sophy. O olhar castanho clara da mulher demonstrou um alívio óbvio quando se
transladou a Longmore.
Apesar do sutil do desprezo, nunca passaria despercebido a uma alma sensível, como
Sophy imaginava que Gladys fosse. A francesa não deveria ter dado nenhum sinal de consternação.
Deveria ter demonstrado estar tão encantada de vê-la como se fosse a Rainha Adelaide.
Muitos espécimes tão pouco promissores como a falsa Gladys vinham à lojas de moda.
Como as atendia, fazia toda a diferença do mundo. A francesa pareceu ver Lady Gladys Fairfax mais
como um calvário a suportar, que um desafio emocionante, como Sophy e suas irmãs o teriam feito.
Seus olhos teriam se iluminado quando ela entrou.
—Sra. Downes? — Sophy disse.
—Sou Madame Ecrivier, mademoiselle. Madame Downes está ocupada no momento,
mas eu...
—Ocupada! — Longmore disse, sobressaltando tanto Sophy quanto Ecrivier—. Onde
diabos estaria ocupada se não em sua própria loja? Esta é a loja dela, imagino? Melhor que seja.
Tomou o tempo do mesmo diabo, chegar aqui. Um acidente na Rua Oxford, e todos pararam para
olhar, detendo o tráfico em três direções.
Sophy era muito perita no engano para manifestar seus sentimentos. Não ficou olhando-o,
mas mentalmente o fez. Disse estar confuso, e por um momento ela se alarmou, mas este subterfúgio
ia além das capacidades mentais dele.
Mas coincidência ou não, criou uma boa abertura, e ela soube como continuar o jogo.
—Lady Warford não avisou à Sra. Downes que esta semana viriam familiares? Sua filha,
Lady Clara – minha prima, você sabe – vai casar. Certamente minha tia a informou. Não vejo como
não o fez. Disse que havia encomendado um vestido para o casamento. Nesta loja. Na segunda-feira,
acho eu.
E Dowdy deu uma chilique espetacular, segundo Lady Clara, quando soube que esta
última não tinha ido a sua loja.
—Sim, mademoiselle, minha lady. E muito certo...

56
—Aqui está minha prima. Veio para que tomassem medidas para um vestido para o
casamento de minha irmã, — Longmore disse—. O primeiro casamento na família, devo adicionar. E
onde está a proprietária? Digo, esta sim é uma bonita forma de tratar os clientes. Quem era essa outra
costureira que Clara mencionou? De nome francês, não é? Na Rua St. James. Se soubesse que nos
tratariam com descaso aqui, teria me economizado uma viagem inconveniente.
Madame Ecrivier estava pouco menos que dançando de pânico.
—Oh, não, Oh, não, milord. Não há nenhum descaso. Só um momento, por favor.
Mandarei que alguém avise a Madame. Milhares de desculpas. Por certo que Madame atenderá a
jovem dama. Se me permitir um momento, arrumarei isto.
A francesa se desvaneceu pela porta atrás do mostrador. Apesar de fechá-la, Sophy pôde
ouvir a voz aguda comunicando-se com alguém através de um tubo para falar.
Longmore foi à janela e olhou para fora.
—O carro está ali. Fenwick ainda não vendeu os cavalos, —disse em voz baixa. Quando
baixava a voz, Sophy ficava totalmente imóvel, como um animal farejando o perigo. Tomou um
momento para afastar essa sensação.
—Seus cavalos não poderiam estar mais seguro. Está muito entusiasmado.
—Não se nota.
—Aprendeu a esconder os sentimentos importantes.
Deu uma risada curta e se afastou da janela. Caminhou pelo salão. Apalpou uma
musselina. Folheou um livro de modas. Movia-se com uma graça inconsciente, mas não era a
facilidade ociosa típica de um aristocrata com tempo livre.
A deixou arrepiada ao dar-se conta. Era um homem, simplesmente um homem, disse a si
mesma. Entretanto o rodeava uma aura de perigo, e parecia como se um lobo andasse rondando a
presa.
Detectou passos e vozes aproximando-se da porta de atrás.
—Se soubesse que as comerciantes de Londres tratavam assim as melhores clientes, teria
mandado fazer o vestido em Manchester, — disse para que a ouvissem —. Que me façam esperar
tanto, quando não há outra cliente na loja! Estou segura que me fariam algo tão elegante em casa,
como em qualquer parte de Londres. E a uma fração do que cobram.
Dowdy irrompeu na sala. Era uma mulher extremamente magra, de estatura média. Uma
elaborada capa curta de cambraia bordada que se estendia sobre as amplas mangas a la folle do
vestido de musselina, ajudava a criar a ilusão de uma figura mais cheia. Cachos largos, redondos e
escuros, emolduravam o rosto, sob a touca de tule bordada.

57
O conjunto era atraente, teria que reconhecer. Era uma vergonha que não vestisse as
damas com o mesmo cuidado com que ela se embelezava.
—Minha lady, milord, desculpem, — disse sem fôlego—. Nunca os esperaria tão cedo.
—A loja abre às dez, — Longmore disse—. Ou isso me disseram.
—O letreiro na vitrine diz isso, — Sophy adicionou.
—Tem toda a razão, senhorita - minha lady. —Dowdy disse, muito ocupada atrás do
mostrador—. Chamaram-me. Uma – é – uma pequena dificuldade na oficina. Mas tudo está em
ordem agora. Um vestido para o casamento de Lady Clara Fairfax, não é mesmo? Importaria a sua
senhoria olhar o livro de modelos? Temos toda a última moda de Paris, e uma seleção esplêndida de
sedas.
A julgar pelos miolos na capa, deveria estar desfrutando de um café da manhã,
relaxadamente.
—Minha tia disse que tinha que me pôr em suas mãos.
—E preocupe-se em tratá-la bem, — Longmore disse—. Nada de lhe colocar esse verde
pútrido que comprou em abundância porque o viu sob uma luz equivocada.
Sophy conteve a risada.
—Minha prima é rústica – mas...
—Eu! Rústica!
—Minha menina querida, sua ideia de sofisticação é assistir a uma conferência a respeito
de pássaros embalsamados no Museu de Manchester.
—As melhores fábricas de têxteis estão em Manchester! — ela disse forte.
—Por certo, sua senhoria, — Dowdy disse—. Mas tenho que dizer uma palavra a respeito
de nossas sedas de Spitalfields, você sabe. E quanto a isso, acredito ter exatamente algo para você.
Madame Ecrivier, por favor mostre a sua senhoria a seda estou falando.
Ecrivier estudou Sophy rapidamente e logo deslizou a uma gaveta. Tirou um fardo de
seda azul.
—Azul! Mas nunca uso azul.
—Com grande respeito, minha lady, talvez seja tempo de fazê-lo, sim?
—Que cor vai usar minha tia? Não posso usar a mesma cor, e eu sei que gosta do azul.
Dowdy sorriu.
—Lamento não poder divulgar essa informação. Sua senhoria...

58
—Não divulgá-la! — Longmore disse—. Não permitirei que tratem a minha prima como
se fosse ninguém. E não ficarei perdendo meu tempo. Assim é melhor nos mostrar o que minha mãe
vai usar. Por Deus, acredita que vamos informar aos jornais?
Ela deu um olhar irritado de relance a Sophy.
—Sabe primo, estou achando esta loja muito pesada. A tia me assegurou que nos dariam
muita atenção. Mas primeiro nos fazem esperar, e logo ficam evasivas a respeito do vestido de minha
tia, quando é extremamente importante que o meu complemente o dela.
—Peço perdão a sua senhoria, mas Lady Warford nos proibiu expressamente que
compartilhássemos os detalhes, — Dowdy disse—. Estava preocupada que fizessem cópias antes do
casamento, e lamento dizer que aconteceu antes. Outras costureiras, você vê, mandam a suas moças
às lojas para espiar e...
—Parecemos espiões de costureiras a você? — Longmore requereu—. Juro que é a
experiência mais irritante que já me aconteceu. Vamos, prima. Tive mais que suficiente com toda
esta vacilação e atraso.
Começou a ir à porta.
Deus, ele era perfeito.
Sophy o seguiu.
—Não me ocorre o que direi à titia. Perguntará por que fui a esse outro lugar – as
costureiras francesas da Rua St. James. Como se chama?
—Maison Noirot, —disse ele, e abriu a porta.
Sophy ouviu um juramento afogado a suas costas. Logo:
—Já ouviu sua senhoria. Mostre à dama a seda que Lady Warford escolheu.
Longmore fechou a porta e se virou para as duas mulheres da loja.
—E o modelo.
—O modelo? —Dowdy abriu os olhos pequenos como pontos.
—Já me ouviu. Aqui está minha prima recém chegada do campo. Não se sente nada
cômoda com as maneiras de Londres, e o tratamento que recebeu aqui hoje, não a tranquiliza. Mostre
a ela o modelo. Se gostar, ficaremos. Se não, esta será a última vez que nos verá.
Era Gladys dos pés a cabeça. Nunca saiu do papel, nem por um instante.
Tampouco Longmore o fez. Bom como o faria, quando o único que se requeria dele era
ser ele mesmo, um papel que podia atuar admiravelmente.
Por outra parte, ela… a astúcia era natural nela.

59
Reagia a tudo o que ele dizia igual como teria feito Gladys. Tinha a mesma mescla de
arrogância e insegurança que fazia Gladys tão aborrecida e cansativa. E a mesma vulnerabilidade.
A prima Gladys era uma companhia desagradável, entretanto ele sempre sentiu um pouco
de pena dela.
Houve momentos em que quase esqueceu que não era Gladys. Mas seu aroma o recordava
quem era.
Tudo era muito divertido enquanto atuavam. Entretanto, quando se foi a outra parte com
as duas costureiras, começou a se inquietar. Não havia dito o que deveria fazer se a desmascaravam.
Simplesmente tinha rechaçado essa possibilidade.
Mas quando a despissem, como não iam descobrir que não tinha forma de batata?
Havia dito que estava usando várias capas de roupa. Quantas?
Quanto tempo levaria a ele tirar todas?
Depende, não é verdade?
Sua imaginação pintou imagens que o fizeram sorrir. Mas se entregou ao prazer só por um
instante. Esperava problemas – com muita vontade, de fato.
Melhor se fixar no que acontecia ao redor.
Apoiou a bengala contra uma cadeira, recolheu uma revista feminina de uma mesa
próxima, e a deixou cair. Foi à vidraça com as mãos nas costas, e olhou para fora.
Com todos os pedaços coloridos de tecido e fitas e outras coisas em exibição, não era fácil
ver o que estava ocorrendo lá fora, mas encontrou um lugar de onde podia manter um olho em
Fenwick.
O carro ainda estava do outro lado da rua, perto do prado oval cercado, ao centro da
praça. Tinha-o deixado ali porque havia sombra e porque estaria fora do caminho de alguém que
estivesse deixando ou recolhendo passageiros.
Ouviu que a porta interior era aberta.
Virou-se rapidamente.
Mas era somente uma garota que parecia cansada. Levava uma bandeja com um copo de
vinho e um prato de bolachas. Depois de vacilar um momento, deixou-a na mesa perto da cadeira
onde tinha posto sua bengala. Recolheu algumas revista de esporte e as arrumou perto da bandeja.
Levou as revistas femininas e as colocou em uma mesa mais longe.
Perguntou se queria que lhe trouxesse algo mais.
—Nada. Quanto vão demorar?

60
—Não muito, sua senhoria. É só um vestido. Mas como sua senhoria é uma cliente nova,
irão precisar de alguns minutos para medi-la.
Disse algo mais, mas um grito do lado de fora o levou a janela. Viu dois homens grandes
ao redor de seu carro correndo para o prado. Não pôde ver Fenwick.
Longmore saiu correndo da loja.

61
Capítulo cinco

Os banhos de Londres são numerosos e espaçosos, e estão equipados com todo tipo de
comodidade para os visitantes. O preço habitual de um banho frio é um xelim, ou de um banho quente, três
xelins e seis pennies. Mas se alguém se subscreve por um trimestre ou mais, o gasto diminui
proporcionalmente. Os banhos com água de mar custam três xelins e seis pennies cada vez, e se for quente,
ao redor de sete xelins e seis pennies.
—O Novo Quadro de Londres de Leigh, 1834.

A rua, ao contrário das vias comerciais que chegavam até ali, estava quase vazia.
Longmore cruzou rapidamente – a tempo de ver os dois homens saindo detrás do carro com um
Fenwick retorcendo-se entre eles.
O sujeito maior era quase tão alto quanto Longmore, mas mais largo. O outro não era
muito pequeno, mas era musculoso. Ambos tinham cicatrizes na cara. Ambos precisavam barbear-se.
Ambos vestiam roupa cara, mas chamativa.
Bruto Um, o grandalhão, tinha agarrado Fenwick pela gola da jaqueta esfarrapada.
—Adverti que não me fizesse te perseguir. Desta vez não se liberará, trombadinha
indecente.
—Não estou sujo! Tira suas mãos de mim. —Lutou, mas Bruto Um o tinha agarrado além
da gola. De outra forma o menino poderia sair de sua roupa—. Tenho amigos, sim, e farão que se
arrependa! —Levantou a vista e viu Longmore—. Lá. Esse é um!
—Que diabos é isto? O menino estava cuidando dos meus cavalos.
—Com todo respeito, senhor, aproveitou-se de você. Aqui não se pode confiar neste
pequeno bastardo.
—Eu julgarei isso. Solte-o.
—Perdão, senhor, mas é melhor que não. Terá que pagar ao diabo, então, não é verdade?
—Advertimos uma e outra vez que não deveria andar por aqui, —disse Bruto Dois—. A
patroa não o quer. Afeta a vizinhança. Quantas vezes advertimos isso?
—Bom, não podia ir, não é mesmo? Sua senhoria me penduraria, o faria, por abandonar
meu posto. Isso disse, não é verdade sua majestade?
—De todas as maneiras o pendurarão, um destes dias, — disse Bruto Um.
—Solte-o, — Longmore disse.
62
—Com respeito, senhor, não tenha pena dele, — Bruto Dois disse.
—Já passou o tempo para que vá à fábrica, sim, se é que tem sorte, porque é material de
penitenciária, se me perguntarem. Sujando e se fazendo o doente, quando disse que...
—Eu disse a ele que ficasse. Já estou me cansando desta conversa. Deixem o menino
livre, e partam, — Longmore pronunciou.
Bruto Um olhou Bruto Dois. Ambos olharam o menino. Logo olharam para a loja.
—Direi-lhe algo, senhor, — Bruto Um disse—. A patroa não gosta que a contradigam.
—Que gracioso. Tampouco eu gosto, — Longmore disse.
—Por que não acompanho o menino para longe da praça, onde ela não possa vê-lo, —
disse Bruto Um —Farley, aqui, cuidará de seus cavalos, senhor. E você pode seguir com seus
fazeres.
—Não me levará a nenhuma parte! Não irei! — Fenwick chutou seu captor.
Bruto Um lhe deu um murro na cabeça e lhe tirou o gorro imundo.
Longmore se lançou contra o valentão.
Um chiado afogado saiu do loja.
Sophy, que tinha os ouvidos treinados para detectar ruídos do lado de fora, colocou a capa
e saiu do provador.
Dowdy e Ecrivier saíram atrás.
—Mas sua senhoria, seu peitilho, — Dowdy disse.
Sophy correu à janela, onde havia uma costureira parada com uma mão na boca.
Sophy chegou bem a tempo para ver um fulano corpulento dirigindo um murro a
Longmore, quem esquivou o golpe e a sua vez respondeu, pegando-o com tal força que o bruto
titubeou.
—Desculpe-me por Farley e Payton, sua senhoria. Mas outra vez é aquele pequeno
menino horrível criando problemas. Mandarei à garota lá fora para...
Sophy fez um gesto para que se afastasse, e olhou procurando algo que servisse de arma.
A bengala de Longmore estava em uma cadeira próxima. A pegou e saiu.
Ouviu que Dowdy a chamava.
Cruzou correndo a rua.

63
Tendo derrubado o grandão, Longmore estava começando com o outro. Fenwick decidiu
ajudar e se atirou contra o menor, feito um pequeno dervixe1 enlouquecido, lançando murros e
pontapés.
Ignorando seus protestos, Sophy o tirou do meio da briga.
Imediatamente Longmore agarrou o menor e mais fraco, e levantando-o o jogou contra a
cerca. Ao mesmo tempo, o grandalhão parou, deu um rugido e começou a correr para Longmore.
Sophy pôs a bengala no caminho dele, o rufião tropeçou e caiu pesadamente ao
pavimento.
Longmore voltou a segurar o fraco e o jogou na cerca uma vez mais. Desta vez o rufião se
dobrou e ficou feito um monte no chão.
—Hora de ir, — Longmore disse.
Sophy subiu ao carro. Fenwick vacilou.
Os brutos estavam tentando ficarem de pé.
—Você também, Mad Dick, — Longmore ordenou.
O menino se instalou de um salto no lugar do lacaio.
Longmore rapidamente acalmou os cavalos e ordenou a partida.
Enquanto iam, Sophy gritou para trás,
—Digam a sua patroa que cancele meu pedido. Eu não gosto das pessoas que ela
emprega.
Bedford Square e suas rotas adjacentes estavam longe do bulício das principais ruas do
comércio, virtualmente deserta. Longmore só levou um instante para sair da praça para Tottenham
Court.
A área estava suficientemente tranquila para ouvir a respiração intensa de seus
passageiros. Inclusive ele respirava mais rápido do que deveria.
—Por Deus. Não posso deixar vocês dois sozinhos um instante, —Sophy disse.
—Estava aborrecido. Não me disse que armasse uma briga se me aborrecesse? Estava
começando a desfrutar, quando você e Mad Dick se colocaram no meio. Como diabos terei uma boa
luta, se tiver que cuidar de um par de intrometidos e me assegurar para que não tropecem – ou que
não terminem mortos acidentalmente?

1
A palavra dervixe vem do persa e/ou árabe "daruish", e significaria 'monge maometano', o que por ampliação de sentido poderia levar
ao sentido de um mendicante. Existem diversas grafias possíveis para "dervixe", sendo as mais comuns e com registros em dicionários,
além de dervixe, "dervis" e "dervishe". Há ainda os termos "daruês" ou mesmo abdal, que é um nome genérico dado
aos religiosos persas que correspondente ao de dervixe na Turquia e ao de monge entre os cristãos. Seria também o nome dado
aos sacerdotes tártaros.

64
Isso havia agregado interesse e emoção ao que de outra maneira teria sido uma
dificuldade mundana.
—Não ia ficar na loja quando me deu a desculpa perfeita para uma saída rápida. E em
seguida outra excelente desculpa para cancelar o pedido daquele traje horrível. Realmente, não teria
saído tão bem se eu tivesse planejado.
—O que está dizendo, senhorita? — Fenwick interveio atrás deles —. Passamos toda esta
moléstia, e quase me drogaram para me levar a trabalhar, e nem sequer quer o maldito vestido?
—Ela é cheia de truques, — Longmore disse —. Você mesma disse, segundo me lembro.
Como estas ruas eram muito menos caóticas, pôde dar a ela um olhar mais longo. Estava
completamente desordenada. A touca feia pendurava retorcida a um lado da cabeça. O cabelo
gordurento caía pelas costas e colava à testa e bochechas, e o peitilho estava pendurado aberto.
—Sua roupa está caindo, — disse.
—Oh, — e tratou de fechar o vestido sob a capa. Depois de lutar um momento,
murmurou sem fôlego. Soou a um palavrão francês. Mas mais audível, disse:
—Aquela costureira estúpida soltou um fecho. Não sei o que fez, mas não posso abrir esta
maldita coisa. Fenwick, será melhor que você me abra os fechos.
—Por nada do mundo. Há coisas que faço, e outras que não. E me enredar em ganchos e
botões de mulheres e coisas do estilo, é onde puxo a linha.
—Não seja faceiro, — disse Sophy —. Não esperará que Lorde Longmore detenha os
cavalos para me ajudar.
—Melhor ele que eu. Não tocarei nessas coisas.
—Covarde, — Longmore disse. O dia ficava cada vez melhor.
Dobrou na rua lateral mais próxima e parou a carruagem. Mandou Fenwick sustentar os
cavalos pela brida. E se virou para Sophy.
—Fique de lado. Não sou acrobata.
Ela desamarrou a capa que caiu até a cintura. Virou, levantou o cabelo para tirá-lo do
caminho, e inclinou a cabeça.
O pescoço ficou nu ante ele. Uma pele suave perfeitamente cremosa com um traçado de
pêlos finos loiros na borda do couro cabeludo.
Quase podia provar a pele dela. Com a cabeça inclinada, a única coisa que pôde pensar foi
lamber a parte posterior do pescoço, como um gato lambe leite.
—Entre parêntese, esteve brilhante na loja, — ela disse.

65
—Você disse que fosse eu mesmo, — disse com a voz rouca. Podia cheirar a pele. Um
toque de lavanda e… pinheiro?
Mal podia se concentrar nos fechos. Começou pelo suave pescoço.
—Acho que está pelo meio, — ela disse.
—O que?
—O fecho mal fechado. Está em uma barra costurada, não metálico, está vendo?
Voltou a atenção ao vestido novamente. O tecido estava amontoado no meio das costas e
ficava uma pequena abertura onde pôde ver um pedacinho da roupa interior. Musselina delicada.
Bordada. Com pequenas flores.
Teve que engolir um gemido.
—Ficou justamente no centro da coisa. Foi brilhante, — disse ela.
Ele pigarreou.
—Estava sendo eu mesmo.
Disse a si mesmo que não apressasse os dardos.
Ele não era fácil de persuadir. Resistir a tentação nunca teve nenhum sentido para ele.
Mas não ganharia nada caso se deixasse levar agora, em plena via pública. Inclusive um estúpido
como o Conde de Longmore podia entender isso.
Ao trabalho e nada mais, disse a si mesmo.
É obvio que não era nenhuma tarefa árdua. Estava acostumado a pôr e tirar a roupa das
mulheres. Mais de uma vez o fez com o tato. No escuro. E a velocidade que poderiam ser recordes
no hemisfério norte enquanto a mulher sussurrava:
—Apresse-se, Por Deus Santo – ele está vindo!
E se pôs a trabalhar.
Deveria ter demorado alguns segundos, mas estava embolado, e não conseguia desfazê-lo.
Sentia os dedos trêmulos. Por mais que tentasse chegar ao fecho, não podia, e cada vez que falhava, a
temperatura subia um grau mais.
—O que acontece?
—Estes fechos. São o próprio diabo.
—Aquela tola deve ter os dobrado. Deveria ser fácil. Não temos uma quantidade grande de
criadas, e nem sempre se pode ter a irmã à mão. Tem que ser capaz de vestir-se sem ajuda se for
necessário.
—Você deve ser muito flexível, — disse.
Foi o momento equivocado.

66
Ela ficou imóvel, e ele começou a pintar quadros na mente.
Como se ele não estivesse suficientemente acalorado.
Não estava acostumado a comportar-se bem por muito momento. E ela era… flexível… e
sua mente não podia esquecer isso. E cheirava a mulher, lavanda e folhagem. E podia ver um
pedacinho da roupa interior.
A cabeça ia explodir.
—Lorde Longmore?
Reuniu o que restava de prudência.
—O fecho está destroçado ou muito agarrado. Não posso ver qual é o problema. —
Porque se chegava a ficar vesgo com o aroma dela, e com o calor do corpo, e de ser consciente que
suas mãos tinham que fazer o trabalho.
Seu pulso corria a toda velocidade, enviando ondas de calor para baixo.
Cristo.
—Provavelmente enganchou em uma costura. Estava temerosa e muito angustiada. Não
via a hora de acabar comigo. Estou surpresa que não tenha deixado com a francesa. Ecrivier. Não
duvido que você viu do que se trata tudo.
—Deveria ter colocado o garoto para fazer isto. As mãos dele são menores.
—Autorizo-o para que o solte. Não se preocupe se romper o fio. — Sua voz soava
tremula —. Poderemos repará-lo facilmente, ou melhor ainda, jogaremos fora. Tudo o que tem que
fazer é fechar o suficiente para que o peitilho fique no lugar.
—É somente um fecho irritante. Não vou me dar por vencido diante um pedaço de metal
– especialmente com Mad Dick observando, inventando uma zombaria em cockney.
Endireitou os ombros.
Tirou as luvas.
Desta vez, quando tocou o vestido, ela estremeceu.
As palmas de suas mãos suavam.
Inclinou-se para se aproximar mais e ficou vesgo. Encontrou o fecho mal fechado e o
soltou.
Deixou escapar o ar que não sabia estava contendo.
Ouviu-a respirar fundo.
Bom, então.
Tinha-o notado.

67
Não como se nota uma mosca que posa em sua pele nem como um cão que passa o nariz
por sua mão, mas sim daquela maneira feminina especial de notar.
A trama para envolvê-la tinha avançado.
Com um grande sacrifício. Mas valia a pena.
Fechou feliz os outros fechos e botões, pôs a capa sobre os ombros dela e se virou para
colocar as luvas.
Teve uma batalha terrível consigo mesmo, com sua própria natureza, e saiu vitorioso.
Conseguiu um avanço.
—Pode se virar outra vez, pequeno covarde, —disse a Fenwick—. Está decente de novo.
Lorde Longmore voltou para a Rua St. James a uma velocidade que desafiava à morte.
Enquanto se equilibravam aos nós de tráfico, Sophy ouviu às pessoas gritando e
amaldiçoando, mas saíam do caminho.
Ela se agarrou a um lado do carro, desejando que fosse mais rápido.
Ainda podia sentir as mãos dele em suas costas e o fôlego quente em seu pescoço. Ainda
podia ouvir a voz baixa e rouca em seu ouvido.
Sua força de vontade esfumou.
De fato sentia que o cérebro derretia e o mesmo ocorria com seus músculos, e quase se
jogou para trás, as mãos dele, para que fizesse o que quisesse com ela.
Aparentemente, ele não quis fazer nada, felizmente para ela.
Felizmente também, ela já não o necessitava. Tinha servido seu propósito, e ela não fez
nenhum desastre e tudo o que tinha que fazer agora era chegar em casa a servir-se um ou quatro
brandis e contar a suas irmãs sobre o que descobriu.
Ao chegar à loja virtualmente saltou do carro.
Virou para correr à loja quando se lembrou do menino. Por Deus! Como podia esquecê-
lo?
Virou outra vez.
—Bom, o que está esperando? Venha comigo, Fenwick.
Ele deu uma olhada à loja, cautelosamente, mas começou a descer.
—Não, não vai, — Longmore disse—. O menino fez uma pausa, deu uma olhada a ela e
depois a ele. —Virá comigo, cuidarei para que lhe deem comida e uma cama. Há uma loja de bolos
muito ricos...
—Absolutamente não. Fui eu quem fez a promessa.
—Foi ela, sua majestade, — Fenwick disse.

68
—Confiaria nela mais que em mim? Sabe o que é isso? — fez um gesto de assentimento
para Maison Noirot—. Uma loja de modas. De mulheres.
—Talvez seja melhor que fique com ele, senhorita. É maior que você.
—Não, não o fará. Eu te encontrei primeiro. —Foi a grandes passos ao carro. O menino
se inclinou para trás, ao canto mais afastado.
—Sem ofender, senhorita, ele me salvou de ser drogado e a trabalhar à força. Sem
mencionar que poderia me esmagar como uma barata se lhe desse na cabeça.
—Eu salvei sua vida ao tirá-lo de um puxão daquela briga antes que um deles o pisoteasse
acidentalmente. E se sua senhoria houvesse pensando esmagar você, o teria feito justamente depois
que tentou roubá-lo. Agora venha, e deixe de ser ridículo.
Esticou a mão para segurar Fenwick pelo braço. Ele se encolheu e andou para trás.
Logo ela retrocedeu porque ele deu o sinal e os cavalos puxaram energicamente.
E partiram. Com as mãos apertadas os viu afastarem-se.
Longmore sabia que não era boa ideia deixá-la furiosa. Entretanto, era pior deixá-la que
alojasse em casa jovens delinquentes. Quem sabia quem eram os associados do menino? Quem sabia
se era um criminoso endurecido? Endurecido ou não, tipos mais malvados podiam intimidá-lo e fazer
que deixasse aberta a porta traseira a um bando de ladrões e degoladores.
Depois de um momento, Fenwick falou.
—Achei que ela se chamava Gladys.
—Tem centenas de nome, segundo sua conveniência. Não trate de fazer uma lista. Só
conseguirá uma dor de cabeça.
Ouviu um guincho.
Olhou nessa direção e viu Sophy/Gladys trotando ao lado do veículo.
—Devolva o menino! — gritou.
—Vá para casa! — Respondeu ele.
Deu um chiado inoportuno, oscilou e caiu feito um vulto na calçada.
Imediatamente as pessoas foram para o lugar.
Longmore parou o carro, passou as rédeas a Fenwick e se lançou contra a multidão que se
amontoava com rapidez.
—Retirem-se, malditos! Estão tentando pisoteá-la?
A ergueu nos braços. Estava totalmente murcha.
Disse que não deveria entrar em pânico. As mulheres sempre desmaiavam, estavam
acostumadas. Dificilmente um desfalecimento as matava.

69
Entretanto sabia que ela trabalhava muito, e esteve em uma briga só fazia um instante –
uma briga que o tinha deixado sem fôlego. Ela havia se jogado à luta e tinha sido esplêndida,
demonstrando um pensamento inusualmente rápido, especialmente para uma mulher.
Sua consciência o assaltou. Quanto a golpes se referia, não foi muito, sua consciência não
estava em muito boas condições.
—Sou um maldito, sou um maldito, sou um maldito, — sussurrou.
Levou-a por St. James, seguido de uma pequena parada, e dobrou a Rua Bennett. Nesse
ponto olhou por cima do ombro aos curiosos.
—Vão embora!
E o grupo se desfez.
Levou-a pelo pequeno pátio e deu um chute à porta.
Um minuto.
Tudo o que Sophy precisava era um minuto, e teria sido capaz de tomar e levar Fenwick.
Tão logo ela gritou, as pessoas se interessaram. Os curiosos teriam ficado do lado dela porque ela
interpretou o papel da mãe indefesa a qual tinham arrebatado o filho. E teria demonstrado tanta
tristeza que o menino teria sentido pena e teria ido para ela, sabia.
Mas Longmore, o muito maldito, não lhe deu o minuto, nem sequer um instante para
pensar. E a levantou tão facilmente como se fosse um pacote de fitas.
E agora se encontrava esmagada contra o enorme torso duro e quente, com um braço
musculoso sob seus joelhos e o outro em suas costas.
Abriu os olhos.
—Pode me deixar no chão agora.
Sentiu como ficava tenso. Olhou-a com os olhos escuros entrecerrados.
—Quão forte a deixo cair?
Mas não o fez.
—Não levará a menino. Eu o encontrei e você ia levá-lo a polícia, — disse.
—Devi tê-lo feito. Não tem por que andar olhando dos cavalos, que tal se as autoridades
estiverem procurando-o. Juraria que há pôsteres para poder capturá-lo.
Tinha o corpo muito quente e os músculos dela começaram a relaxar e desejava fundir-se
com todo esse corpo grande e firme.
—Coloque-me no chão ou gritarei.
—Isso é jogar sujo.
—Assim que eu jogo.

70
Deixou-a cair, mas não com força nem rápido. Deu todo um espetáculo de fazê-lo com
um cuidado excessivo, soltando-a pouco a pouco, de maneira que ela deslizou lentamente contra seu
corpo, atravessando uma grande expansão de lã, linho e seda, deixando-a tão empapada de
masculinidade que a enjoou, antes que seus pés tocassem o chão.
Sabia que era perigoso. Tinha essa reputação.
Supôs que fosse meramente de uma maneira óbvia: grande, descontrolado e temerário.
Isto não era meramente, mas sim mortal.
—Recomendo que evite muitas moléstias e deixe de brigar comigo, — disse ela —.
Quero o menino e não me deterei diante nada.
Observou-o enquanto ele analisava o que havia dito, enquanto seu olhar escuro se
distanciava.
Depois de um momento, disse:
—Sabe, acho muito difícil de entender.
—Necessitamos um menino na loja, — disse ela.
—Você me disse que não necessitavam. Disse um momento antes que caísse em nossas
vidas.
—Não precisamos de valentões, — disse com paciência—. Precisamos de um rapaz que
leve as mensagens e pacotes. Não é muito jovem nem muito velho para treiná-lo. É rápido, esperto e
de aparência agradável. Com um banho...
—E catando os piolhos...
—Com a roupa adequada e uma leve instrução, será perfeito.
Longmore fez uma careta e ela não duvidou que devia à dor produzida pela reflexão.
Ela esperou, consciente que o suor escorria entre os seios. Se não fosse uma Noirot, teria
apertado as mãos e os dentes para evitar fazer algo fatalmente estúpido.
Mas sendo uma Noirot, foi surpreendente que pudesse manter a mente no menino.
Contudo, graças à prima Emma, ela e as irmãs eram feitas de uma substância muito mais
firme que as demais. Ficou parada e esperou, perguntando-se por que diabos ninguém ia à porta.
Gostaria de um pouco de reforço de suas irmãs agora.
—Muito bem, — disse ele com brutalidade.
Sua voz tinha baixado uma oitava completa e ela não podia pensar.
—Tenho que admitir que não é uma ideia totalmente lunática. Mas o melhor é que eu dê
a notícia a ele. Primeiro o levarei para comer algo e suavizá-lo. Em seguida o trarei de volta.
—Melhor que não seja um truque.

71
Olhou-a com exasperação.
—O que? — desafiou-o ela.
—O engano é seu departamento, senhorita Noirot. O meu é golpear às pessoas. Mas me
sinto adulado que me imagine tão preparado para enganá-la.
Lançou uma risada curta e partiu.

—Diga a minhas irmãs que já voltei, — disse, enquanto passava rapidamente por Mary, a
criada principal, que finalmente abriu a porta.
Subiu apressada e se foi a seu aposento. Precisava lavar-se e trocar-se. Precisava fazê-lo
em água fria.
Tirou a capa e o vestido horríveis e em seguida teve que lutar com as fitas do espartilho.
Recordou aquele momento atormentador sem fim quando Longmore estava ajudando com os fechos.
Não precisava de avisos.
Foi até a lareira e puxou a corda da campainha.
Afastou-se e encheu uma bacia com água. Tirou a espinha e esfregou o rosto.
Não teve tempo para lavar o cabelo. Consumia muito tempo. Mas precisava tirar as
roupas. Onde diabos estava Mary?
A porta foi aberta. Não era Mary, mas Marcelline.
—Querida, está bem?
—Não. Ajude-me, sim? Odeio esta roupa. Não são mais que um problema. Quando tirá-
la, quero que vão direto ao fogo.
—Sophy.
—Vou falar quando tiver tirado estas malditas coisas.
Marcelline foi rapidamente ajudar com o espartilho. Um momento depois, Sophy o jogou
no chão.
—Suponho que as coisas não saíram bem.
—Saíram estupendas.
Disse-se para não ser uma imbecil. Longmore não importava. Era o meio para um fim. O
que importava era a loja.
Começou a tirar capa após capa de roupa, com a ajuda de Marcelline, contou a irmã como
Longmore tinha sido estupendo: o aristocrata dominante e cabeça oca. Como graças a ele pode ver o
modelo e a seda do vestido que Lady Warford havia escolhido. Falou da remodelação de Dowdy e da
costureira francesa.

72
—Isso não é bom, —Marcelline disse.
—Não esperava, mas poderia ter sido pior. Nossos móveis ainda são superiores. Tudo o
que temos que fazer, é deixá-los mais bonitos e atraentes. Maison Noirot deve parecer diferente.
Deve ir dez passos diante de Dowdy’s. As pessoas não notam as diferenças sutis.
Seria necessário dinheiro que não possuíam. Mas Leonie tinha que pensar algo. Ela não
podia pensar em tudo.
—E os desenhos? — Marcelline perguntou—. Do vestido de Lady Warford?
—Os daremos às meninas da Sociedade de Costureiras, para que os desfaçam e os
refaçam. É obvio Lady Warford não verá os defeitos.
—Como pode parar ao lado da filha e não ver a diferença?
—É tal como era Lady Clara antes que caísse em nossas mãos. Não tem uma visão
treinada. E no momento, não vejo como fazê-lo. Estou pensando que tenho que prestar atenção no
problema de Lady Clara primeiro. Neste momento ela é a única coisa que temos entre nós e o
fracasso. Se continuar comprando aqui, seguiremos rezando. Mas se casar com Adderley, não
continuará conosco.
Marcelline passeou daqui para lá por um momento.
—Leonie diria que temos que estabelecer as prioridades, — Sophy disse—. Temos três
problemas, e os classificando do mais simples ao mais difícil, poria Lady Warford como o osso mais
duro de roer. Em seguida poria Lady Clara, e Dowdy’s como o mais manejável. Está de acordo?
Marcelline assentiu, passeando ainda.
—Sabemos o que fazer com Dowdy – ao menos por agora, — Sophy disse —. Assim vou
me dedicar ao problema de Lady Clara.
Marcelline fez uma pausa.
—Seria bom saber o que está passando na cabeça dela, —Marcelline disse.
Lady Clara tinha vindo na quarta-feira e comprado um traje de equitação e dois chapéus
mais, mas Sophy esteve ocupada com Lady Renfrew, uma das primeiras, e mais leais clientes de
classe.
—Podemos trazê-la amanhã para uma prova? Se posso me dedicar a ela, a farei falar, —
Sophy declarou.
—Podemos mandar uma das costureiras com uma mensagem. Mas odeio ter recordar a
qualquer um da mansão Warford que está patrocinando às inimigas de sua mamãe.
—Podemos pedir a Lorde Longmore que leve a mensagem. Imagino que deve voltar em
uma hora mais ou menos.

73
Marcelline levantou as sobrancelhas.
Sophy contou a respeito de Fenwick, e as tentativas de Longmore para ficar com ele.
—Que doce é! — Marcelline disse rindo —. Está tentando protegê-la de um criminoso
perigoso. Se soubesse.
Fenwick era um pequeno inocente, comparado com elas. Embora nunca tivessem sido
ladrões. Mas não havia um jogo, nem um truque nas ruas que não soubessem. Em Paris tiveram que
lidar com todo tipo de rufião e vilão, dos menores aos maiores. Por um tempo, durante a cólera, Paris
esteve quase completamente sem lei. Mas elas tinham sobrevivido.
—Não estava pensando nisso, — disse Sophy—. Estava muito furiosa porque é tão
condescendente. Tanto, que em um momento não pude pensar o que fazer. Mas só foi por um
momento. Logo fiz uma cena e desmaiei. Desgraçadamente tive que fazê-lo na calçada, muito
asqueroso.
Marcelline sorriu.
—Imagino, mas não pôde pensar em algo menos desagradável?
—Talvez, mas não tinha tempo. Conduz como um chofer bêbado, avançando, sem
importar o que tem pela frente.
Marcelline empurrou a um lado com o pé, o montão de roupa horrível no chão.
—Estou de acordo que é melhor queimá-las. E mandarei Mary para que te prepare um
bom banho. Temos que lavar essa confusão que fez no cabelo.
—Isso terá que esperar esta noite. Deixe você e Leonie, sozinhas todo o dia. E tenho uma
cliente para esta tarde. Ficarei bem colocando umas forquilhas, e porei uma bonita touca de renda.
Ninguém notará.
—Não vai sair esta noite, não é?
—Só há a festa de Lorde Londonderry, e ninguém usará nossos vestidos.
—Que bom, — Marcelline disse —. Irá lhe fazer bem uma boa noite de sonho.
O que lhe faria bem, seriam umas mãos grandes em seu corpo que a tentassem.
Um dias destes, prometeu a si mesma. Mas não seriam as mãos de Longmore. O único
que conseguiria seriam consequências horríveis.
Disse-se que tinha assuntos difíceis suficientes nas mãos, e deveria enfrentar aqueles que
não eram totalmente impossíveis.
Tudo o que tinha que saber do Longmore era se traria de volta o menino, ou a faria tomar
medidas drásticas.
Sentiu-se bem imaginando essas medidas.

74
Mais de duas horas depois de ter ido com Fenwick, Longmore voltou para a porta traseira
da loja. Mary abriu a porta, e ele pediu que avisasse Sophy que trazia o “jovem rufião.”
A criada os levou a um cômodo do andar de baixo. Era mais espartano que o salão de
cima, e pelos aparadores e numerosas gavetas, certamente reservada para atividades comerciais.
Apesar de não ser um cômodo onde os clientes entravam, estava escrupulosamente limpo,
como cada parte da loja que ele tinha visto.
Fenwick só olhava o piso, como se nunca tivesse visto um antes.
Provavelmente nunca tinha visto um limpo.
Só tiveram uns minutos para perguntar-se o que havia nas gavetas antes que Sophy
aparecesse.
Desfez-se totalmente da personificação de Lady Gladys.
Fenwick não a reconheceu. Ficou inusitadamente silencioso por um longo instante,
olhando-a fixo.
—Sim, é a mesma dama, — Longmore disse impaciente—. Como já mencionei tem
centenas de nomes e pode se transformar em centenas de pessoas diferentes. E este, — disse a ela—,
é seu querido Fenwick.
—O que lhe fez? — Sophy perguntou.
—Removemos umas capas de imundície.
—Parece que removeu umas capas de pele também.
Fenwick encontrou a língua.
—Sua senhoria me fez tomar um banho. Disse que já tinha tomado fazia uma semana.
Acho que esfregaram muito minha cara.
—Tem que pronunciar bem as palavras, como te ensinei, — Longmore disse.
Fenwick repetiu as palavras com um cuidado excessivo.
—Cansei de traduzir a língua que fala.
—Comi bolo, — Fenwick contou—. Um bolo de carne tão grande como minha cabeça.
—Mostrou o tamanho com as mãos—. Fomos a uma loja e me comprou estas coisas.
Longmore o olhou.
O menino corrigiu as palavras.
—Fomos a uma loja de roupas prontas, perto dos banhos. Sei que tem a intenção de lhe
costurar uma libré maravilhosa, mas não tinha sentido esfregá-lo tanto para voltar a pôr os mesmos –
o que estava usando.
Ela o olhou. Seus olhos tinham uma expressão mais suave que o habitual.

75
Era um beneplácito? Deus Santo.
Ele se aproximou um pouco.
—Fenwick e eu falamos do assunto por um bom momento. Concluímos que
provavelmente seria mais feliz a seu serviço que em qualquer outra parte. Teria um teto sobre a
cabeça, refeições regulares, roupa excepcionalmente elegante, e um lugar seguro onde dormir, onde
seria improvável que o assaltassem ou roubassem, ou o drogassem para levá-lo a trabalhar à força, ou
ao cárcere.
—Eu não poderia ter dito melhor, — disse ela.
—Talvez não, mas teria usado mais adjetivos. Em todo caso não consegui conseguir seu
verdadeiro nome, ou de onde vem, ou a quem pertencia se é que há alguém. É mais que provável que
ele tampouco saiba.
As ruas de Londres ferviam de meninos abandonados que não sabiam quem eram seus
pais, menos ainda se tinham um.
—Atrever-me-ia a dizer que você poderia lhe extrair seus segredos mais profundos e
escuros, —Longmore continuou.
Suas irmãs entraram antes que pudesse responder.
Fenwick ficou olhando-as.
Longmore não podia culpá-lo.
Uma mulher Noirot era bastante chamativa, com toda essa renda, mangas e saias, e
babados e fitas. Três delas, com todas as cores do arco íris, com o sussurro da seda quando se
moviam, provocavam uma experiência alucinante.
—Este é Fenwick, — Sophy disse.
As três mulheres olharam o menino com o mesmo interesse bem educado.
Longmore se perguntou no que estavam pensando. Não, a verdade era que se perguntava
o que passava na cabeça dela.
—Tomei banho, — Fenwick disse.
—Com sabão, — Longmore adicionou—. Bem, vão ficar com ele, ou não?
A Duquesa de Clevedon sorriu.
—Acredito que ficará muito bem.
A senhorita Leonie disse com sua habitual brutalidade,
—Sim. Venha comigo Fenwick. Nossa criada Mary se encarregará de você por agora.
Estamos bem ocupadas hoje. Mas falaremos mais tarde, depois que fecharmos. —Pôs a mão no
ombro dele e dirigiu o menino à porta interior.

76
—Que bom que o deixou limpo e coberto, — disse a duquesa, ainda sorrindo.
—Pensei que era mais fácil simplesmente levá-lo aos banhos públicos e que fizessem um
bom trabalho com ele. Mas agora é de vocês e não as manterei um minuto mais afastadas de suas
clientes.
Inclinou a cabeça e estava virando para ir, quando ouviu o ruído. O cômodo não estava
longe da porta traseira, que alguém parecia querer derrubar.
Lembrou-se dos Rufiões contratados por Dowdy’s.
Recordou Fenwick falando de seus amigos. Os ladrões jovens geralmente andavam em
grupos dirigidos por um criminoso de mais idade.
Bloqueou Sophy para que não fosse na frente dele, e se foi a grandes limiares pelo
corredor e abriu a porta
Seu irmão Valentin estava parado com o punho no alto, a ponto de bater outra vez.
—Que diabos! —Longmore disse—. Todos conhecem esta porta?
—Andei te procurando por toda parte, — Valentin disse—. Fui a sua casa, depois ao
White’s, em seguida à mansão Clevedon – mas não o tinham visto. Então pensei que tivesse passado
a noite fora e fui à casa de Crockford, e ali alguém o viu dobrar à rua Bennet fazia um momento.
Vim e vi seu carro. Bati em cinco portas desta maldita ruela. O que é isto?
—Não importa o que seja. Que diabos quer?
Valentin olhou mais à frente.
Longmore virou e viu que Sophy o tinha seguido.
—Preferiria falar lá fora. Ocorreu algo.
—É Lady Clara, — Sophy disse.
Valentin abriu uns olhos enormes.
—Como diabos...?
—O que fez agora? — Longmore exigiu—. Matou o noivo? A nossa mãe?
—Ela sabe tudo? — Valentin olhou Sophy.
—É a cunhada do Clevedon, imbecil. Praticamente é da família.
—Não nossa família, — Valentin disse.
—Não seja arrogante. Parece constipado. O que fez Clara agora?
—Por que não sai? Preferiria que o mundo não se inteirasse.
—O mundo, — disse assentindo para Sophy—, se inteira de todas maneiras.
Valentin murmurou algo e soltou um suspiro. Logo entrou no corredor e fechou a porta.
—Clara fugiu.

77
Capítulo seis

Algumas pessoas acreditam que o objeto mais sublime da natureza é um navio no meio do
oceano: mas me deem, para satisfação pessoal, os carros de correio que circulam no Piccadilly de noite,
rompem o pavimento, e devoram o caminho ante eles, até o final da terra.
—William Hazlitt, Bosquejos e Ensaios, 1839.

—Não seja idiota, — Longmore disse—. Clara nunca faria...


—Senhores, — Sophy interveio. Este não é o melhor lugar para discutir. As pessoas vão e
vem. As portas se abrem e se fecham.
—Que diabos teremos que discutir? — Longmore disse—. Não posso tomar isto
seriamente.
Mas sua expressão era muito séria.
—Recomendo que o faça. Mas seria melhor em um lugar tranquilo.
Ela se afastou voltando para o cômodo que Longmore acabava de deixar. Nem olhou se a
seguiam. Por um momento ele ficou olhando seus quadris oscilantes. Logo notou que seu irmão fazia
o mesmo.
—Não fique parado aí como uma estatua. É você que quer que isto seja um segredo.
Seguiram-na e ela fechou ambas as portas.
—É uma típica tempestade em uma taça da família Fairfax. — Longmore disse—. Clara é
incapaz de fugir. Não sabe nem se vestir sozinha. Mal que sabe como alimentar-se. Não tem
dinheiro. Aonde poderia ir?
—Levou Davis, — Valentin disse.
—Não pode estar falando sério.
—Que tipo de brincadeira acha que estou fazendo?
—Uma dama não pode ter segredos com sua criada pessoal. Teria que ter dito a Davis.
Embora Davis deve ter se sentido extremamente descontente, embora nunca o teria comentado nem
teria deixado Lady Clara ir sozinha, — Sophy declarou.
Verdade. Davis era um bulldog de camareira, ferozmente leal e protetora – ou isso que
Longmore sempre supôs – com ambos os pés plantados firmemente na terra.

78
—Clara saiu em seu Cabriolet ao redor do meio-dia, — Valentin contou—. Levava
muitos pacotes que disse ser roupa velha que levava para a doação. Depois iria visitar a tia avó
Doura em Kensington e ficaria lá para passar a noite, como o fez antes. Ninguém pensou nada. Não
saberíamos a verdade até manhã, se hoje a tia Doura não tivesse ido visitar mamãe. Então tivemos
um desmaio, como poderão imaginar.
Longmore se surpreendeu não ter ouvido os gritos dali. A mansão Warford ficava só a
algumas quadras longe dali, pois dava para ao Green Park.
— Lady Clara deixou alguma mensagem? — Sophy perguntou.
Valentín ficou rígido. Tirou o chapéu e fez uma saudação extremamente correta.
—Não acredito ter tido a honra de conhecê-la.
Burro pomposo.
Longmore disse:
—Senhorita Noirot, apresento a meu irmão Valentin Fairfax.
Outra genuflexão terrivelmente bem educada do imbecil, que disse:
—Senhorita Noirot, talvez você seja boa e me permita falar com meu irmão em particular.
Ela fez uma reverência nem remotamente correta. Desceu em meio de um grande
torvelinho de laços e rendas e o sussurro de musselinas, como os assistentes a uma peça de teatro
quando uma mulher com fama de língua cáustica aparecia em seu camarote. Logo se levantou com a
graça de uma bailarina de balé. E olhou Valentin com seus olhos azuis.
—Não sou nada boa. Pergunte a Lorde Longmore.
—Ainda estou indeciso respeito a isso, — Longmore adicionou—. Eu diria que com ela,
não se ganha nada escondendo os segredos.
Valentin, olhando embevecido os olhos azuis, não ouviu uma só palavra.
—Uma mensagem, Valentin, — Longmore apressou—. Nossa irmã deixou uma
mensagem?
Valentin se sacudiu do transe e tirou uma nota dos recessos de seu colete e a deu ao
irmão.
Não me casarei com esse homem. Prefiro a desonra o resto de minha vida, e viver
como uma mendiga.
C.

—Oh, que bom — disse Longmore — Isso é o que precisamos: drama.

79
Entretanto recordou como havia enrugado o rosto de Clara, na semana passada quando a
levou até ali. Havia dito… O que havia dito?
Algo a respeito de mamãe perseguindo-a. Algo sobre o casamento. O casamento
apressado.
O casamento que não tinha que ter enfrentado se ele tivesse feito a simples tarefa que até
ele entendia ser necessária: manter Adderley afastado dela.
Sophy estendeu a mão. Ele lhe passou a nota.
Olhou-a rápido. Virou o papel. Clara tinha escrito mamãe, por fora.
—Tão logo mamãe se deu conta que Clara não tinha ido a casa de tia Doura, subiu
correndo e saqueou o quarto de Clara. A nota estava no joalheiro de Clara. Levou tudo o que havia
ali, que não era de grande valor. Geralmente mamãe lhe empresta joias – e ela guarda tudo com
chave.
—Poderia vender os vestidos, — Sophy disse —. A criada pode fazer por ela. Por isso
levou todos aqueles pacotes.
Ambos os homens a olharam.
—Conseguiriam uma boa quantia de dinheiro, com cada um de seus vestidos,
especialmente os que fizemos.
Foi aí que Longmore sentiu os primeiros sintomas de alarme.
Clara. Sozinha nas estradas. Sem ninguém mais que a criada para protegê-la.
Sentiu-se doente.
—Imagino que nossa mãe já tenha descoberto. Terá encontrado os armários e essas
coisas, vazios. Parou de gritar o suficiente para poder fazer algo? — disse Longmore.
—Não gritou nada. Primeiro desmaiou, e depois começou a chorar, e por último se
trancou no quarto de Clara. Não permite ninguém entrar, nem fala com ninguém.
—Oh, não. Pobre mulher, — Sophy levou a mão à boca e fechou os olhos. Só por um
instante. Um rastro de emoção. Longmore se deu conta nesse momento quão estranho era isso:
emoção verdadeira. Não entendia como sabia que era verdade, mas sabia da mesma forma que a
conhecia.
Uma leve demonstração de sentimento, logo voltou a ficar brusca.
—Gostaria que tivesse deixado mais pistas. Mas se levou a criada. E roupa e bagatelas
para empenhar. Prova que planejou até certo ponto. Mas vamos ao primeiro. Nós precisamos
descobrir que direção tomou.
—Nós? — Os irmãos disseram ao uníssono.

80
Lorde Fairfax, a quem Sophy havia visto muitas vezes antes, parecia-se com o irmão mais
velho somente no tamanho. Sua cor era mais parecida ao de Clara. Entretanto era óbvio que eram
irmãos. Ambos a olhavam com a mesma rápida sucessão de expressões: surpresa, confusão,
moléstia.
Eram aristocratas. Seus cérebros não eram maiores e definitivamente não estavam
ajustados à sutileza.
Ela apresentou um aspecto confuso.
—Supus que queriam minha ajuda.
—A você? — disse Lorde Longmore.
Lorde Valentin se lembrou de suas boas maneiras.
—É muito é... amável de sua parte, senhorita é...
—Noirot, idiota. Já lhe disse. A cunhada do Clevedon. E se ela...
—Sim, é obvio, — disse Lorde Valentin—. Poderíamos ir ver o Clevedon para que nos
ajude a organizar a busca.
—Ah, sim? Onde pensam começar a procurar? — disse ela.
—Por que… — Lorde Valentine franziu o cenho e olhou o irmão.
—Porque estou confusa onde começarão. Talvez esteja equivocada, mas me parece que
precisarão de um grupo de busca extremamente grande para procurar em cada ponto de saída de
Londres, e logo todas as rotas possíveis a… bom, todas as partes.
Olharam-se entre eles, e logo, a ela.
—Não posso deixar de me perguntar, também, como fariam isto sem tratar de chamar a
atenção ao fato que Lady Clara fugiu de casa sem outra companhia que a empregada. Talvez me
equivoque – sou uma simples comerciante – mas sempre acreditei que às moças bem educadas,
simplesmente não são permitias a andar sozinhas. Supus que se uma garota fizesse tal coisa, a sua
família não gostaria que se soubesse.
—Bom, — disse Lorde Valentin.
Longmore pronunciou um juramento com veemência.
Sophy poderia ter agregado outros igualmente exaltados, em dois idiomas. Isto era tão
mau, e a tantos níveis. Uma moça decente, viajando sem acompanhante e desprotegida, exceto uma
criada. Era como ter pintado uma marca vermelha nas costas. E na testa. E se o beau monde
descobrisse… depois do que aconteceu com Adderley…
Nada poderia reparar a reputação dela.

81
Não ficava mais que esperar que tivesse repensado e que neste instante estivesse de volta
a sua casa.
Mas Sophy sabia o suficiente para confiar na esperança.
Graças a toda uma vida de prática, nada do que sentia em seu interior se notava.
—Tenho uma grande rede de conhecidos aos quais posso recorrer em momentos como
estes, —ela disse—. Melhor até. Temos Fenwick. Suspeito que poderá recrutar seus associados,
também. Entre esses dois grupos alguém terá notado duas damas assim e assado em um veículo de
tal e qual descrição, indo nessa ou naquela direção.
Esperou os argumentos. Ambos os homens ficaram parados com a mesma expressão de
concentração. Supôs que ambos estavam pensando muito a respeito do que acabava de dizer. Não
podia esperar que fizessem outra coisa ao mesmo tempo.
—Tudo o que preciso é uma descrição do veículo e detalhes característicos. —Pegou o
pequeno relógio que pendurava do seu cinturão e o abriu—. É perto das quatro e meia. Com sorte,
ouviremos algo antes que seja noite.
—Que anoiteça! disse Lorde Valentin — Minha querida menina, ela já terá ido há horas.
Quando cair a noite, poderia estar em Dover ou Brighton ou inclusive em um casco de navio
viajando ao Continente.
—A senhorita Noirot não é sua querida menina, tolo pretensioso.
—Necessitará de documentos para ir ao Continente, — Sophy disse. Justamente o
contrário das Noirot, Lady Clara não saberia como conseguir passaportes falsos, ou cartas de crédito,
nem coisas do estilo, nem como falsificá-los ela mesma.
—Isso só nos deixa com toda a Grã-Bretanha, — Lorde Valentin disse.
—Obrigado por estabelecer o óbvio, — Longmore respondeu.
—Só quis dizer...
—Não importa o que ele quis dizer, senhorita Noirot. Não sabe o que quer dizer, e como
está tão tenso, como nós, qualquer coisa o deixa em pânico.
—Eu acredito que há razão para ter pânico, — disse ela —. Isto não é bom.
—Faz um momento você disse que poderíamos ser úteis. O que quer que eu faça?
—Ou eu, é obvio, — disse Lorde Valentin.
Não havia outra alternativa.
Sophy não podia fazer sozinha. Nunca tinha saído de Londres. Precisava de ajuda.
—Lorde Longmore, sugiro que vá para casa e diga a seu criado que empacote algumas
coisas para uma viagem de vários dias. —ela disse.

82
—Vários dias? —Lorde Valentin passou uma mão pelo cabelo—. Viajando sozinha com
a criada! Clara vai se arruinar para sempre!
A ruína de Lady Clara era o que menos preocupava Sophy nesse momento. Só esperava
que não a assaltassem. Violassem. Assassinassem. Era completamente vulnerável. Não sabia
nenhuma maldita coisa. Era só ver quão facilmente Adderly se aproveitou.
—Por favor, empacotem para vários dias — Manteve a voz baixa e calma, a expressão
tranquila. Não esfregou as mãos. Lorde Valentin necessitava calma, e Longmore precisava acreditar
no que ela estava fazendo.
—Tão logo tenha alguma notícia, enviarei e partiremos.
—Nós, — disse Longmore.
—Estou acostumada a você. Mal conheço lorde Valentine, e ele quase nem me conhece.
Longmore pelo menos entendia – até certo ponto – do que ela era capaz. Sabia que
trabalhava para o Spectacle. Não teria que perder tempo explicando cada detalhe. Tinham trabalhado
bastante bem juntos em Dowdy’s.
Então o tinha usado, e o usaria agora. Um instrumento. Isso era tudo, disse a si mesma.
Voltou-se para irmão menor.
—Milord, aconselho que volte para a mansão Warford. Precisa ajudar sua família a
memorizar uma desculpa simples por que Lady Clara não está para receber visitas. Um resfriado
severo, ou algo do estilo – esse tipo de coisas que mantêm afastada às pessoas.
Olhou o irmão maior.
—Tem uma ideia melhor? — Longmore lhe disse—. Devo assinalar que a senhorita
Noirot tem muito a perder com isto? Clara é a cliente favorita. Tudo o que fazem para ela, é
especialmente feito para ela. Se lhe acontecer algo, ficarão com o maldito enxoval de Clara, e irão à
ruína – porque ninguém pode usar esses vestidos como Clara. —Imitou Sophy enquanto dizia a
última parte—. Sem mencionar que esperam lhe vender mais, uma vez que tenham ideado um plano
para desfazer-se do Adderley.
—Sempre tem que fazer piadas em momentos como este, — disse Lorde Valentine.
—Não estou brincando, como saberia se fosse você o chantageado e abusado para escoltar
a nossa irmã a comprar sua condenada roupa.
—Não é brincadeira, — disse Sophy. —Minhas irmãs e eu queremos Lorde Adderley fora
do quadro. Queremos que sua formosa irmã se case com alguém muito importante. De verdade, é
nossa melhor cliente, e realmente ficaremos em pedacinhos se ela não puder usar a bela roupa de
bodas que estamos fazendo.

83
Nenhuma piada. Horrorosamente verdadeiro. Mais verdadeiro do que poderiam
adivinhar.
Longmore se virou, evidentemente confuso.
—Senhorita Noirot. Você pediu uma descrição do Cabriolé. Sugiro que tome lápis e
papel. Eu o mandei fazer especialmente para ela, e me lembro até do último detalhe. E se me esqueço
de algo, Valentin nos ajudará. Acredita que deveria ter comprado um carro para ele.
Pouco tempo depois, as três irmãs Noirot estavam no dormitório de Sophy, ajudando-a a
empacotar. Contou a respeito de Lady Clara, e seu plano para encontrá-la. Esperava que elas
tivessem uma solução melhor. Sentia que a dela estava longe de ser satisfatória em vários pontos.
Mas, Marcelline e Leonie, que viam os problemas tão bem como ela, não tinham nada
melhor que oferecer.
—Não vejo uma alternativa, — disse Marcelline—. Não só é perigoso para a reputação
dela anunciar seu desaparecimento, mas também o é para sua segurança física. Qualquer quantidade
de canalhas começariam a procurá-la também. — Fez uma pausa enquanto dobrava uma regata—.
Por Deus, a pobre mãe.
Marcelline tinha uma filha que quase tinha perdido. Duas vezes. Sabia pelo que Lady
Warford estava passando nesse momento.
Todas entendiam por que a marquesa se trancou com chave no quarto da filha.
Lady Clara não era mais que uma cliente. Entretanto Sophy estava doente de
preocupação.
—Falando de canalhas, — disse enquanto subia uma meia —, eu gostaria de saber o que
fez Adderley para que ela fugisse assim.
—Importa? — disse Leonie.
—Teria gostado de saber o que foi, antes que voasse, — Sophy disse —. Poderia servir de
munição.
—Pode descobrir quando encontrá-la, — Leonie disse—. E a encontrará. Tem que fazer.
—É obvio que Sophy a encontrará, — Marcelline interveio —Mas meus amores, que
diabos vou dizer ao Clevedon? ficará frenético. Vocês sabem como gosta de Lady Clara.
Ele tinha perdido uma irmã mais nova. Quando a família Fairfax o adotou, Lady Clara
passou a ser uma irmã para ele. Sempre tinham sido muito próximos. Embora passaram por uma
turbulência fazia pouco, Lady Clara assistiu ao casamento dele com Marcelline. E ela parecia ter
aceitado como família… como a irmãs, quase.

84
—Lhe dê algo que fazer, — Sophy disse—. Prometi a Longmore que me encarregaria do
Adderley. Mas não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo. Peça a ele que descubra
discretamente tudo o que puder de Adderley. Preciso do máximo de informação.
—O que poderia descobrir Clevedon, que não seja de domínio público, como seus hábitos
de jogo e o estado de suas finanças? — Leonie perguntou.
—A cena no terraço não foi um ato de paixão impaciente. Soube que havia algo estranho.
Estou segura que foi planejado. Adderley deveria ter brigado desesperadamente pela mulher que
ama, mas deixou que Longmore o golpeasse e permitiu que Lady Clara o protegesse. Deixa que
Clevedon vá a fundo do assunto. Ele pode descobrir tanto em um jogo de cartas informal, como eu
posso, escutando dissimuladamente nas festas e falando com as cortesãs.
Pegou o chapéu que ia usar e se sentou para costurar um véu.
—Talvez eu possa dar uma olhada mais profunda nos assuntos financeiros do Adderley,
—Leonie falou.
—Você e Marcelline terão muito que fazer agora que estarei longe. Sinto ter que lhes
deixar tudo.
—Não seja ridícula. Tem que encontrá-la. Isso é o mais importante.
—Lady Clara é parte de nossa família agora, a mãe dela goste ou não. — Marcelline
franziu o cenho olhando o chapéu que Sophy estava arrumando—. Falando de famílias temos que
falar um pouco, querida, antes que vá.

Embora tivesse feito um bom tempo cruzando Londres depois que Fenwick foi chamá-lo,
eram quase as oito e meia quando Longmore conduziu seu carro ao Café Gloucester em Piccadilly. O
sol já estava se pondo.
Como acontecia cada noite nesta época, prevalecia uma atmosfera de drama e excitação.
Os sete carros do correio ocidental, estavam a ponto de partir e todos eram parte do ato ou
da cena.
Longmore sabia que a comoção tinha sido pior só uns poucos anos atrás. Então, os trinta e
cinco carros do Correio Real partiam de Londres ao mesmo tempo, às oito. Ter retardado meia hora a
partida dos carros ocidentais, havia diminuído algo o congestionamento, mas este não era o lugar
nem o momento ideal para encontrar com a ‘prima Gladys.’ Não era fácil localizar uma mulher
anódina em meio de uma multidão, e a esta hora da noite sempre havia uma grande audiência
olhando a partida dos carros.

85
Então notou um torvelinho maior que o habitual em um grupo de curiosos. Os homens
empurravam uns aos outros, tropeçavam, caindo perigosamente perto das patas dos cavalos e as
rodas.
Em meio de tudo estava a explicação.
Em vez de sua camuflagem usual, Sophy usava o último dos estilos loucos da Maison
Noirot. Seu vestido era de uma cor lilás apagada, mas nada mais era apagado. Uma gola ampla se
espalhava sobre os ombros. Debaixo havia outra gola igual, ou espécie de capa que caía até os
cotovelos. Sob isso, saíam mangas protuberantes como barris de cerveja. Jardas de renda negra
penduravam das golas e pela fronte. Umas coisas verdes como folhas, brotavam da parte superior do
chapéu branco. Laços verdes e um véu branco no bordo anterior do chapéu lhe emolduravam o rosto,
ou o que se podia ver, mais à frente da atraente renda preta.
Era totalmente ridículo.
Estava estranhamente arrumada.
—Por Deus. Por Deus, — disse ele.
Então ela o viu e se apressou a seu carro, oscilando os quadris mais do necessário, pensou
ele, nesta turfa alvoroçada. Seguia-a um criado da hospedaria, levando a bolsa.
—Essa é ela, — disse Fenwick desde seu posto, atrás.
—Isso vejo, — Longmore disse. Antes que pudesse descer para ajudá-la, um rebanho de
homens se equilibrou no veículo. Um deles, que abriu caminho a empurrões e obteve o lugar
principal, estirou a mão para ajudá-la a subir, mas Longmore se inclinou e lhe ofereceu a dele. Ela a
agarrou e sua enorme mão com luvas quase engoliu completamente a dela, envolta em uma luva de
pelica. Houve uma pausa muito leve antes que fosse elevada ao assento.
Os homens ficaram silenciosos durante este processo, admirando a vista posterior. Houve
um suspiro geral quando ela se instalou, – com muito sussurro provocante – no assento esquerdo, e
quase desapareceu sob a capota. Logo, dois homens trataram de lutar para arrebatar as bolsas do
criado, este rapidamente os colocou atrás, onde Fenwick os vigiava junto com Longmore.
Como parecia que ocorreria um distúrbio iminente, e Longmore não tinha tempo para
isso, deu o sinal aos cavalos para que partissem. Não ficou outra coisa que ficar na fila, atrás dos
carros do correio.
—Não é a hora ideal para sair de Londres. Todos os carros do correio ocidental tomam a
mesma rota através do Piccadilly, para o Hyde Park Corner. Seguiremos até chegarmos a estrada de
Brompton. O carro de Portsmouth dobra aí, tal como nós faremos.

86
—Prefiro sair no meio da multidão. Com tudo o que está acontecendo, chama muito
menos atenção entre muitos viajantes.
—E como pretende não chamar a atenção com esse rosto? — disse assentindo para o
vestuário—. Isso deveria ser um disfarce?
—Sim. Supõe-se que sou seu último amor cabeça-de-vento.
Não esteve seguro de ter ouvido bem. Iam sobre as pedras de granito, seguindo a uma
longa e buliçosa fila de veículos. Muitíssimos cascos estralavam contra as pedras, as correntes
soavam, e as rodas colocavam ruído e zumbiam.
Olhou-a.
—Você é minha o que?
—Sou uma cortesã. Minhas irmãs e eu estivemos de acordo que ninguém que o conheça
pensaria duas vezes se o vissem com uma mulher de moral duvidosa – e é menos provável que me
reconheçam que a você. Inclusive as mulheres que compram na Maison Noirot não notam nossas
caras.
Estava fora de si. Ninguém que tivesse a visão funcionando podia deixar de reconhecer
seu rosto que parecia de anjo – a leve direção para cima de seus olhos assombrosamente azuis – o
nariz – os lábios cheios.
—Não somos tão invisíveis como os criados, mas quase, — continuou a lunática—.
Também as pessoas não costumam reconhecer a outra quando está fora de seu meio habitual. Escolhi
especialmente este vestido porque me faz parecer cara, e é mais chamativo que os que as inglesas
decentes usam. Como vê, sou uma viúva alegre. — E tocou o véu atraente—. E ninguém acharia
estranho que uma mulher que anda com você em público, decida cobrir o rosto com um véu.
—Você mesma se designou como minha amante, — disse, suprimindo um sorriso—. É
muito agradável de sua parte.
—Não é nenhum sacrifício. A maioria de meus disfarces são incômodos e não são nada
lindos. Inclusive minha roupa habitual não tem nada de excitante.
—Sob as pautas de quem, pergunto-me. Lembro-me de um chapéu com um arranjo com
um redemoinho atrás, de onde explodiam fitas, flores, plumas e quem sabe que mais.
—Pode ser muito mais atrevida com os chapéus. Mas em Londres, não se pode usar este
tipo de conjunto. Assusta as clientes. Marcelline é a única que consegue usar suas criações mais
atrevidas, porque é a que vai a Paris. E não esqueça que às mulheres casadas permitem mais
flexibilidade aqui assim como lá.
Ele estava muito consciente disso. Aos homens permitia muito mais também.

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Não era uma mulher casada, mas uma costureira algo francesa. Praticamente o mesmo.
—Inclusive se fosse a Paris, não poderia usar o mesmo que Marcelline usa. —
continuou—. As solteiras de lá demonstram mais que são virgens, você sabe. Usam vestidos simples,
o cabelo bem puxado para trás. Não entendo quanto atraente os homens encontram nisso – mas
então… —deu uma risada curta—. O que pode importar a você? O importante é que desta forma,
ninguém sentirá grande curiosidade por você nem por mim, nem pelo que fazemos. A vantagem
adicional é que estarão tão ocupados observando minha roupa, que não prestarão muita atenção a
minha cara.
Uma virgem?
Não podia ser uma virgem.
Era totalmente impossível. Com esse corpo, com essa forma de andar – e, além disso, era
uma costureira!
—A propósito de virgens, falemos de minha irmã.
De acordo com a nota que havia mandado com Fenwick, Sophy tinha uma boa razão para
acreditar que Clara tomou a Portsmouth Road. Agora lhe disse por que. Alguns dos sócios do
Fenwick tinham visto o Cabriolé no Hyde Park Corner. Depois, no caminho de Knightsbridge,
dirigindo-se a Kensington. Mas um pouco depois um menino, em uma hospedaria em Fulham, disse
que uma mulher que parecia um bulldog, perguntou qual era a melhor rota para ir a Richmond Park.
—Fez acreditar que ia viajando à casa de uma tia avó, mas virou e se dirigiu
aparentemente, ao sudoeste. Tem Richmond Park algum significado para ela?
—Nenhum que eu saiba. Se tivesse que adivinhar, o único lugar que teria pensado, seria
Bath. Quando era menina, Clara às vezes ia lá com nossa avó paterna. Eram muito próximas. A avó
Warford morreu faz três anos, e Clara se afetou muito. Sempre gostou das damas idosas, as amigas
de minha avó. —Sacudiu a cabeça—. Não imagino com quem poderia refugiar-se em Richmond
Park.
—Talvez não saiba aonde vai. Algo aconteceu, e não pode tolerar. Assim fugiu. Às cegas.
Simplesmente fugiu.
Chegaram ao caminho do Hyde Park, que tinha pedágio. Ao contrário dos carros de
correio, tiveram que parar, e ele teve que pagar. Aproveitou a parada para ver Fenwick. O menino
estava no assento de trás, com os braços cruzados, na postura típica de tigres, olhando o céu que se
escurecia rapidamente.
Longmore também olhou. Nuvens espessas se moviam lá encima. Não se preocupou.
Levavam a capota erguida e se caísse uma chuva pesada, baixaria as cortinas. O assento de trás não

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ficava coberto, mas Fenwick ficaria bem. Olney tinha empacotado um guarda-chuva e Reade –
profundamente descontente por ter ficado para trás —foi induzido a dar de presente uma de suas
capas mais velhas.
Longmore seguiu conduzindo. Passaram a Hospedaria do Cavalo Branco e as Barracas
Foot.
—Não posso entender o que aconteceu com minha irmã. Sempre foi muito sensível.
—Sensível, mas ignorante.
Ele ouviu um leve tremor em sua voz. Foi mínimo, mas ele estava especialmente
sintonizado com a voz dela, e todas suas mudanças. Às vezes, em uma multidão, só a reconhecia por
sua voz, inclusive quando adotava um de seus acentos provinciais.
—Agora o que? — perguntou agudamente.
—Ela não sabe nada. Inclusive para uma menina de vinte e um anos, é infelizmente
ingênua. —Inspirou fundo e deixou escapar o ar.
Ele observou como o peito subia e descia. Era grosseiro, dadas as circunstâncias supôs,
mas era um homem, e era de noite, e ela estava vestida como uma mulher impura, na moda
Passaram o desvio a Westbourne e se aproximaram da hospedaria Castelo Real. Soavam
as buzinas dos carros de correio. Estavam mandando o carro a Portsmouth por outra rota, pelo
caminho Brompton, onde logo seguiria ele.
—Tem três irmãos. Tão inocente não é. Sabe como são os homens. Deveria saber não
acalentar a esse grupo homens com os parafusos soltos.
—Uma mulher pode acreditar que sabe dos homens, mas até que ocorra, até que um
homem a toque, não sabe.
Lembrou-se da reação desta mulher quando respirou em seu pescoço.
Era possível que não soubesse o que ele imaginou que ela sabia?
Mas isto era ridículo. Não era uma senhorita de escola. Tinha crescido em Paris. Era uma
costureira. E caminhava de uma forma…
Passou a Rua Sloane e dobrou na estrada Brompton. Agora não havia nenhum desfile de
carros, só um solitário não muito mais longe.
—Possivelmente seja isso.
—O que?
—Talvez tenha tido inclusive menos experiência que outras meninas de sua idade. Faz... o
que? —Contou com os dedos enluvados—. Um mês que disse a meu cunhado que fosse ao diabo. Só
imagine o que foi para ela. Estou segura que se sentiu muito liberada e contente depois de rechaçar o

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Duque de Clevedon – mas depois… Tinha que encontrar a si mesma. Tinha que fazer o que outras
meninas fazem aos dezessete ou dezoito anos, em suas primeiras temporadas.
—Sua adoração! —A voz aguda de Fenwick irrompeu em uma parte muito difícil de
reflexão—. Digo, sua alteza!
—Sua Senhoria, — Sophy o corrigiu—. Já lhe expliquei isso. É muito difícil aprender
isso?
—Sua senhoria! — Fenwick disse com mais força—. Melhor que feche o fronte o melhor
que puder. Vem o vento do leste.
—Quem é? O galo de briga do tempo? — Longmore disse.
E então a chuva começou a cair como um dilúvio.
—Melhor que se apresse, sua majestade. O tempo vai ficar feio em um minuto.

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Capítulo Sete

No páramo em Putney, ao sul do povoado, há um obelisco ereto pela Corporação de Londres que
comemora um experimento feito em 1776 pelo Senhor David Hartley, para provar a eficácia de um método,
inventado por ele, para construir casas a prova de fogo, e pelo que obteve uma subvenção do parlamento por
2.500 libras esterlinas.
—Samuel Lewis. Um Dicionário Topográfico da Inglaterra, 1835.

O tempo ficou muitíssimo ruim, e muito rápido. O vento tomou força deixando cair a
chuva de lado em instantes, de maneira que nem a cortina os defendia totalmente.
De todas as formas, qualquer chofer podia dirigir uma equipe de cavalos na chuva. Esta
chuva não atrasaria o Correio Real, e menos até o deteria. Os carros do correio seguiam adiante em
meio de tormentas, inundações, granizos, gelo e tempestades de neve. No momento Longmore só
tinha que enfrentar um aguaceiro. Não trovões nem raios que espantassem os cavalos.
Seguiu conduzindo.
A tormenta seguiu também, com uma intensidade que ia aumentando, e a chuva caindo às
vezes para baixo, e outras de lado, dependendo das rajadas de vento.
Embora deveria ter lua, a tormenta a tinha engolido. A chuva caía a torrentes sobre a
capota do coche escurecendo a vista de Longmore, dos cavalos, e da rota por diante. Escurecia a
pouca luz que os abajures do veiculo podiam jogar no caminho. Quanto mais avançava mais
aumentava a escuridão. Diminuiu a velocidade uma e outra vez até ficar a passo lento. Quando
passaram a Queen’s Elm, ia conduzindo meio cego, confiando nos cavalos para não sair do caminho.
Por sorte esta era uma rota importante, larga e plaina, o que diminuía as probabilidades de terminar
em uma sarjeta.
Mas tinha que ficar atento. Não era possível conversar. De todas as maneiras, com o ruído
da chuva e o vento ululando teriam que conversar a gritos.
Cruzaram povoados que reconheciam graças à luz em algumas janelas. Não muitas. Era
hora de dormir no campo. As hospedarias e botequins estavam acordados, mas não muito mais.

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Olhou a esquerda. Só a mão enluvada de Sophy, apertada no braço curvo do assento
indicava algo seu medo. Embora teve que voltar rapidamente para olhar o caminho, maravilhou-se
com ela. Outra mulher estaria chiando e chorando neste momento, rogando que parasse.
Estava debatendo consigo mesmo se deveria parar ou não.
Embora o passo lento fizesse parecer que estivessem horas viajando, ele sabia que não
tinham avançado muito. Ainda não cruzavam a Ponte Putney que ficava somente a poucos
quilometros do Hyde Park Corner.
Através da chuva lancinante se deu conta que umas luzes titilavam adiante. Gradualmente
começou a reconhecer os perfis toscos das casas – ou o que pareciam casas. Finalmente chegaram à
antiga e pitoresca casinha dupla do pedágio com seu teto abrangendo toda a largura do caminho,
desviando algo o aguaceiro enquanto esperavam pagar seus dezoito pennies para poder passar.
Embora o porteiro não desejasse prolongar o encontro, respondeu a pergunta do Longmore.
Sim, recordava um Cabriolé. Um veículo excepcionalmente elegante, e um prodígio de
cavalo. Duas mulheres sob o toldo. Não pôde ver muito suas caras. Alguém tinha perguntado a
direção a Richmond Park.
Quando o pressionou por mais detalhe, contou:
—Disse que se mantivessem neste caminho até o cruzamento, assim que observassem o
obelisco de Putney Heath, e seguissem pela estrada, à direita. Disse o que procurar. Não é difícil
seguir o caminho principal, mas alguns se extraviam ali e terminam em Wimbledon. —E se refugiou
com pressa em sua casinha.
—Richmond Park, — disse Longmore em voz alta para que o escutassem através do
vento e a chuva—. Que demônios há lá?
—Li que é belo, — Sophy disse.
—Acredita que foi dar uma de turista?
—Assim espero. Poderia acalmá-la.
Teve que deixar de falar para se ocupar da ponte. Uma estrutura velha, estreita, que se
avultava inesperadamente por aqui e ali. A esta hora da noite e com este tempo, a única forma de
proceder era com cautela.
A precaução não era o estilo favorito de Longmore.
Chiava os dentes quando cruzaram a salvo o outro lado do Tamisa.
Dali, o caminho era em subida até Putney Heath, e o obelisco, ao redor de três
quilômetros. Os cavalos puxavam enquanto chovia torrencialmente. O vento, ululando, conduzia a
água para dentro e caía do rosto de Longmore a gravata. Embora soubesse que a gloriosa

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monstruosidade de seu traje de viagem envolvia capas e capas, a chuva penetraria eventualmente até
sua pele, se é que não o tinha feito ainda.
Deu-lhe um olhar rápido. Ela havia virado a cabeça a um lado, de maneira que a parte
posterior do chapéu recebia toda a chuva. Esse era o único sinal de desconforto. Nenhuma só queixa.
Continuou assombrando-se embora continuasse pendente do caminho e arguia consigo
mesmo o que fazer.
Quando finalmente chegaram a Putney Heath, o vento cessou abruptamente. Um sino
repicou a distância. Logo seguiu um estalo sinistro. Ele virou a cabeça para o ruído, bem a tempo de
ver um raio.
O vento voltou a se levantar da mesma direção. E estava levando a tormenta direto para
eles.
Sophy estava petrificada.
O coração pulsava tão forte fazia tanto tempo, que estava enjoada. Estava com medo de
desmaiar e cair do carro sob uma roda. Se caísse, Longmore poderia nem sequer dar-se conta a
princípio, pela escuridão e o ruído incessante da chuva.
Segura em casa, o tamborilar da chuva, inclusive tão feroz como esta sobre o teto, era até
tranquilizador.
Isto não tranquilizava.
Ela tinha crescido na cidade. Se alguma vez tivesse passado um tempo no campo, fazia
muito tempo. Recordava vagamente ter cruzado a campina quando ela e as irmãs haviam escapado
de Paris assolado pela cólera, três anos atrás. Mas tinham viajado em um carro fechado, de dia e não
num tempo infernal como agora.
Intelectualmente sabia que não estava em um grande perigo. Embora famoso por sua
imprudência, Longmore também era admirado por seu látego. Em um carro, uma pessoa não podia
estar em mãos mais seguras. Conduzia com a calma magnífica que os ingleses chamavam de rigor.
Os cavalos estavam tranquilos e absolutamente sob seu controle. Sabia que viajar pela estrada real
garantia caminhos planos e bem mantidos, as hospedarias se alinhavam a ambos os lados e a curta
distância. A ajuda raramente ficava longe.
De todas as maneiras não se sentia muito valente.
Ela começou principalmente preocupada com Lady Clara. Pela mente de Sophy não
passou as dificuldades da viagem, inclusive viajar de noite. Nesta época do ano prevalecia uma
espécie de anoitecer que não era totalmente escuro. Por outra parte, esta noite tinha prometido ser

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agradável: quando saiu de casa para o Gloucester Coffee House, ela supôs que a lua iluminaria o
caminho.
Justamente o contrário, em minutos uma escuridão terrível, acentuada mais até por luzes
fugazes por aqui e ali, tinha envolvido-os. Ela sentia vazio o mundo ao seu redor.
O silêncio repentino, a explosão do trovão apesar de ser distante, fizeram-na dar um salto.
Longmore virou a cabeça rapidamente, e na pálida luz do veiculo ela viu que ele contraía a
mandíbula.
Virou para ela.
—Está bem?
—Sim, — mentiu ela.
—Os cavalos não ficarão em meio dos trovões. Decidi não correr o risco. Com o pescoço
quebrado, não serei de muita ajuda para minha irmã. Teremos que parar.
Ela se aliviou pela metade. Apesar de sentir-se alarmada ao viajar neste momento, sentia-
se impaciente com a demora. Quando estava em Londres, depois que Fenwick lhe reportou o que os
amigos dele tinham contado sobre o Cabriolé, ela havia procurado Richmond Park em um guia de
estradas. Não ficava muito longe de Londres. Apesar de estar perto, se Longmore não queria seguir a
viagem, nenhuma pessoa sã tentaria fazê-lo.
Embora parecesse que estavam cruzando um terreno deserto sem fim, desabitado, não
passou muito tempo antes que entrassem em um pátio de uma estalagem. Brilhos brancos
iluminavam o céu e os trovões eram cada vez mais frequentes, fortes e mais próximos.
Enquanto os moços dos estábulos se apressavam a se encarregar dos cavalos, Longmore
praticamente a tirou do assento e a arrastou sob o braço até a entrada, dizendo por cima do ombro:
—Cuidem do menino. Se não se afogou, sequem-no bem e deem de comer.
Pouco depois ela sacudia a água do traje e Longmore estava tratando o hospedeiro com a
mesma impaciência dominante que havia demonstrado com Dowdy e a cúmplice desta.
—Sim. Dois quartos. Minha tia precisa de um só para ela. E melhor será que lhe mande
uma criada.
—Sua tia? — Sophy disse depois que o dono saiu para ver os quartos.
Os olhos escuros de Longmore se iluminaram divertidos, e um sorriso muito leve
apareceu nas comissuras.
—Sempre viajo com minha tia, não sabia? Sou um sobrinho muito obediente. Felizmente
tenho muitas.

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Foi tudo o que necessitou: um brilho pícaro em seus olhos e um leve sorriso. O coração
deu um salto, enviando uma onda de calor para cima e fora, mas especialmente para baixo. Teve que
lutar consigo mesma para não correr e abrir uma janela, com ou sem tormenta. Precisava de água
fria.
Disse-se que deveria acalmar-se. Ele tinha usado esse olhar em centenas de mulheres,
provavelmente, com o mesmo efeito. Supunha-se que fosse ela quem deveria matar os homens com
um olhar.
Em todo caso supôs que deveria estar contente que ele tivesse pelo menos um mínimo de
discrição.
Segundo as insinuações, “tia” provavelmente era mais útil que “esposa.” Talvez meio
mundo o reconheceria e sabia que não era casado e não era provável que fosse casar em um futuro
próximo, se é que casaria.
Ele tirou o relógio do bolso.
—É ridículo. Não percorremos nem doze quilômetros e são quase dez e meia.
—Ela não viajaria com este tempo, não é verdade? — Sophy disse em voz baixa, embora
estivessem sozinhos em um pequeno escritório—. Se visitou o parque, não se deteria em uma
hospedaria próxima, ao escurecer?
—Isso eu espero. Mas quem sabe o que acontece na mente dela?
—Está com Davis que não permitiria que se expusesse ao perigo, — disse Sophy.
—Clara pode ser teimosa. Minha esperança é o cavalo. Onde for que queira ir, vai levar
um tempo do diabo tratando de trocar cavalos. O cabriolé só precisa de um, mas deve ser forte. As
hospedarias os reservam para os carros de correio e os de postas. Provavelmente será mais fácil ficar
com o que partiu. Isso significa que terá que parar em intervalos – e ficar por um bom tempo – para
deixar que o animal descanse, alimente-se e bebê água.
Sophy sabia pouco do cuidado dos cavalos. Ela e as irmãs tiveram bastante aprendendo
seu ofício e a comportar-se como damas ociosas. Não era uma façanha menor, pois eram meninas
que tinham muito pouco tempo livre. Mas era impensável aprender somente um ofício. E embora os
DeLuceys e Noirots fossem todos patifes e criminosos maiores ou menores, nunca esqueciam que
tinham sangue azul.
Aprender corte e costura, e ser uma dama – sem mencionar outras menos virtuosas
habilidades típicas dos DeLuceys e Noirot – não deixava tempo para assuntos mais elegantes como a
equitação. Sophy podia distinguir os tipos gerais de veículos, e podia apreciar um belo cavalo, mas
para o resto tinha que confiar no julgamento de Longmore.

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—Acho que vou mandar Fenwick se misturar com os moços dos estábulos, — Longmore
disse olhando a porta por onde o anfitrião se foi—. Eles terão notado se passou por aqui o cabriolé,
ou terão escutado algo dos meninos das postas. Deles obteremos mais detalhes que de qualquer
cobrador de pedágios.
O hospedeiro reapareceu seguido de uma criada gordinha. Enquanto levava Sophy ao
quarto, Longmore ficou falando com o dono.

Enquanto isso, a menos de dezesseis quilômetros dali, na Hospedaria O Urso de Esther,


Clara estava sentada frente ao fogo estudando sua cópia de Os Caminhos de Paterson.
—Portsmouth, — disse a Davis—. Já estamos na estrada e só a um dia de viagem. — Fez
um cálculo—. Nem sessenta quilômetros.
—Londres não está nem a vinte quilômetros, miladi, — Davis respondeu,
—Não vou voltar. Não retornarei a ele.
—Minha lady, isto não é sensato.
—Não sou sensata! — Clara saltou da cadeira, e o guia caiu no chão —. Rechacei um
duque porque não me amava o bastante. Pobre Clevedon! Pelo menos ele gostava de mim.
—Minha lady, todos que a conhecem a amam.
—Não Adderly, — Clara disse com amargura—. Como pude ser tão cega? Mas fui.
Acreditei em todas aquelas palavras que tirava dos livros.
—Alguns cavalheiros não sabem se expressar — Davis disse.
—Quase me obriguei a acreditar. Mas esse não era o ponto, não é mesmo? Que
humilhante que precisasse de Lady Bartham para assinalar o simples fato: se realmente me amasse e
respeitasse, nunca teria feito o que fez.
Sua senhoria não o havia dito tão francamente. Mas Lady Bartham nunca insultava ou
feria alguém sem rodeios nem honestamente. Deslizava ao redor de uma pessoa como uma serpente,
e quando menos se esperava, lançava-se, enterrando os pequenos dentes, tão pequenos que mal os
sentiam… até um momento depois, quando o veneno se infiltrava.
Houve um momento de silêncio, e em seguida,
—Portsmouth é uma cidade naval, minha lady. Muito brutal. Marinheiros, e bordéis, e...
—Está perto. É um porto. Posso conseguir um navio que vá longe. Não pode ser tão
perigosa. Vamos percorrê-la e a explorá-la. Minha reputação está arruinada. Por que não poderia ver
o mundo? Nem sequer vi a Inglaterra! Aonde fui algum dia? A nossa casa em Lancashire e de volta a
Londres, e de volta a Lancashire. Desde que vovó Warford morreu, não vou a nenhuma parte. Ela

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estava acostumada me levar para passear e desfrutávamos tanto. —Engoliu. Ainda sentia falta da
avó. Ninguém podia substituí-la. Clara nunca tinha precisado do conselho dela como agora.
—Costumava a conduzir seu carro, sabe, — Clara continuou, embora Davis sabia
perfeitamente bem. Mas Clara precisava falar, e a criada não chiaria como fazia sua mãe—. Era
excelente com o látego. Conduzíamos ao Richmond Park e visitávamos as amigas dela lá. Iam ao
Richmond Park e Hampton Court passear pelo dia.
Clara tinha ido ao Richmond Park hoje, esperando de algum jeito que o espírito de sua
avó a encontrasse e lhe dissesse o que fazer. Foi do parque não mais sábia, e seguiu a Hampton
Court, mas tampouco encontrou a sabedoria de sua avó ali, e inclusive uma pessoa viva, a grande
amiga de sua avó, Lady Durwich, o único conselho que lhe deu foi que voltasse para Londres e
deixasse de ser boba.
Clara não estava segura aonde ia. A Portsmouth para começar. Depois… a algum lugar,
em qualquer lugar. Mas não a Londres. Não para ele.

O quarto de Sophy era pequeno, mas limpo e a criada estava ansiosa para agradar. As
pessoas de cada classe social julgavam pelo exterior. Enquanto o acento da classe alta e a roupa
elegante certamente que conseguiam um serviço atento, as gorjetas e os subornos podiam aumentar a
qualidade do serviço a um servilismo total.
Sophy não só vestia roupa cara, mas também tinha dinheiro. Marcelline havia se
encarregado de dizer a Leonie que lhe desse dinheiro, e Sophy era generosa com suas moedas.
Queria um jantar, fogo e um banho, e estava feliz de pagá-los.
Conseguiu as três coisas com rapidez e sem escândalo, apesar da hora e o súbito fluxo de
refugiados da tormenta.
Como estava muito agitada por Lady Clara e a loja, mal encostou no jantar. Tinha o sono
leve e sabia que podia tentar dormir depois que tomasse um banho. Assim se acalmaria. É obvio que
se sentiria melhor uma vez que lavasse a mescla espantosa de ovo que tinha no cabelo
Embora os criados tivessem levado uma tina muito pequena, banhou-se sob condições
mais primitivas. E não, não era o mais fácil lavar o cabelo sem ajuda, mas se arranjou.
E assim, depois de um momento, graças à lavagem do cabelo, o banho e o perfume de seu
sabão – e um copo de vinho – seu torvelinho interno começou a acalmar-se.
Colocou a camisola e se envolveu na bata, serviu-se outra taça de vinho e se sentou perto
do fogo para secar o cabelo.

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As paredes da antiga hospedaria eram grossas. Ouvia muito pouco do que acontecia no
quarto. Os trovões foram se apagando à medida que a tormenta se afastava. A chuva continuava
golpeando as janelas, mas ela estava segura e seca ali dentro. A acalmava. Sempre tinha gostado do
som da chuva.
Recordou a chuva de Paris e a garoa da semana passada, quando tinha caminhado pela rua
St. James para tirar lorde Longmore de sua guarida. Embora fingiu olhar o outro lado, observou-o
cruzar a rua para ela… com aquelas pernas longas envoltas na calça bem feita… a jaqueta elegante
que esculpia a parte superior do corpo, enfatizando os ombros largos e torso magro… a gravata
branca como a neve atada com elegância simples sob o poderoso queixo… se movia com a graça
fácil de um homem completamente cômodo com seu corpo e totalmente seguro de si mesmo… era
uma combinação tão estranha… parte cavalheiro elegante e parte rufião… tão alto e atlético…
gostaria de ser o alfaiate dele… gostaria de fazer um pouco justo… sonhar não era nada mal.
…O que estava queimando?

Longmore tentou não pensar em sua irmã em meio a tormenta.


Não estaria à intempérie, disse a si mesmo. Não era tão estúpida. E embora o fosse, Davis
não aguentaria.
Mas onde fosse que Clara estivesse, não era provável que a alcançasse logo e não poderia
protegê-la.
Enquanto por sua mente passavam cenas feias de sua irmã nas garras de um vilão, não
estava completamente inconsciente do que acontecia ao quarto ao lado. Captou as vozes apagadas
quando Sophy falou com a criada e logo os passos e o golpe de algo pesado que puseram no chão e
em seguida o chapinhar.
Estava tomando banho.
Essa imagem era muito mais agradável que a de sua irmã em perigo.
Disse-se que se preocupar com Clara não ia ajudar e somente ficaria com os nervos a flor
da pele, que já estavam alterados com a tormenta.
Pediu que subissem outra garrafa de vinho e passou a jaqueta ao criado para que a secasse
e escovasse.
Como a calça ainda estava úmida, aproximou uma cadeira ao fogo e se sentou para beber.
Pouco a pouco foi se tranquilizando. Clara poderia estar louca, mas não exporia ao perigo
o cavalo. Teria se refugiado. Em uma hospedaria respeitável, se não Davis não a deixaria, e o
caminho a Portsmouth estava cheio de estalagens respeitáveis.

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O vinho e os pensamentos mais otimistas o acalmou o suficiente e começou a cochilar.
Estava pondo os pés na grade, quando Sophy gritou.
De um salto chegou à porta que comunicava os dois quartos, puxou a maçaneta, mas não
abriu. Retrocedeu e a chutou.
A porta abriu de repente e chocou estrepitosamente contra a parede
Emitia sons angustiados e dançava tentando tirar a bata. Da prisão fortificada saía fumaça.
E viu uma pequena chama para cima.
Com grande rapidez chegou até ela e arrebentou as fitas com as quais ela esteve lutando,
tirou a bata de um puxão e a jogou na tina com água.
—Oh! —ela disse—. Oh!
—Está bem? — Sem esperar uma resposta a girou com o coração pulsando depressa
enquanto procurava sinais de fogo incipiente. Descobriu manchas marrom e alguns buracos na borda
do objeto, mas nenhum sinal de fogo ativo.
—Que demônios estava fazendo? —Voltou a dar volta. Embora decorada com babados na
gola, nos pulsos e descendo pela abertura anterior – a camisola era praticamente nada. Musselina
muito fina… através da qual… alguém podia facilmente visualizar o perfil… do corpo… nu.
A mente ficou em nevoa. Sacudiu a cabeça. Não havia tempo para isso agora.
Não há que apressar-se com as cercas. Não era o momento nem o lugar para saltar.
Mas uma parte dele disse “por que não?”
Ignorou-a.
—Está bêbada? — exigiu—. Caiu no fogo?
Alguém bateu na porta do corredor.
—Madame! Madame!
Ela correu a bolsa de viagem e começou a mexer.
Longmore foi até a porta e a abriu. Havia um criado.
—Que diabos quer?
—Senhor – Sua Senhoria – perdão – mas alguém gritou – e um dos hóspedes sentiu
cheiro de fumaça.
Sophy pegou um xale.
—Sim, eu gritei. Acreditei ver um morcego.
—Um morcego, madame? Mas e a fumaça? —O criado farejou—. Cheiro fumaça.
O sujeito tentava olhar esquivando Longmore.

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—Foi o morcego. Agarrei-o e o atirei ao fogo. Deseja uma mordida? Embora receio que
ainda não tenha cozinhado completamente. Não? Bom, então vá, — disse Longmore.
E lhe fechou a porta na cara.
E se virou para Sophy cujas partes mais interessante agora estavam cobertas.
A princípio se assustou porque estava se queimando. Depois descobriu quão fina era a
camisola dela. Agora notou que tinha o cabelo úmido e solto. Caía sobre os seios. Era comprido e
grosso e algumas mechas estavam secando e passando de uma cor marrom pálida a um dourado… e
estavam frisando. Por si só.
A respiração acelerou e isso fez que instantaneamente seus órgãos reprodutores se
excitassem.
Não agora.
Por que não?
—Que diabos aconteceu? —E divisou a garrafa de vinho na mesa pequena perto do
fogo—. Quanto bebeu?
—Não estou bêbada! Eu – eu estava muito agitada para dormir. Banhei-me.
—Ouvi, — disse ele
Ela arregalou os olhos.
—Teria olhado pela fechadura, mas esse método não é tão útil. Só se pode ver uma
pequena parte da sala, geralmente, e em minha experiência, a porção equivocada. Em todo caso
estava perto do fogo bebendo e teria sido uma grande moléstia deixar o calor e a garrafa para me
agachar para ver pela fechadura e não ver muito.
Ela olhou a porta entre os quartos em seguida a banheira e logo a ele.
—Não pensou que valia a pena a moléstia?
Ele deu um encolher de ombros.
—Não sei o que me passou. E ainda não sei como conseguiu passar de estar molhada a
estar queimando.
Houve uma pausa e ela disse:
—Não só tomei banho, mas também lavei o cabelo para tirar essa mescla desagradável de
ovo. Estava ficando rançosa. Com certeza que se pusesse a cabeça no travesseiro os insetos teriam
um festim com meu cabelo.
—Não era tão terrível.
—Diz isso porque não era sua cabeça. Assim que lavei o cabelo, e em seguida tinha que
secar junto ao fogo, não é? E isso foi o que fiz. Mas devo ter cochilado – e quando despertei, minha

100
bata estava queimando. Devo ter desabado na cadeira e ficado muito perto e uma faísca a pegou. E
não podia desamarrar as fitas estúpidas para tirar a maldita coisa. —Piscou—. Obrigada por me
salvar e sinto muito ter lhe causado tanta m... moléstia.
—Bom, foi excitante.
—Eu não gosto de ser excitante des... sa m... maneira.
—Por Deus. Não vai começar a chorar, não é mesmo? Não se desgostou porque arruinei a
bata?
—N... não, cla... claro que n... não.
—Ou porque não olhei pela fechadura?
—Não seja ri... ridículo.
—Então por que está chorando?
—Não estou chorando! —Voltou a piscar—. Estou perfeitamente bem.
—Não, não é assim.
—Sim estou. Só é que… continuo pensando que deveria ter ficado com sua irmã quando
foi à loja no último sábado. Disse que nos encarregaríamos do Adderley, mas não disse a ela. Tinha
outras coisas na mente. Sua mãe. E Dowdy’s. E agora… parece que me equivoquei com minhas
prioridades.
—Que podre. Você não sabia que Clara ia agir como uma idiota.
—Não estava atenta! E agora está em perigo. Não tem a menor ideia de como sobreviver.
Não reconheceria um canalha embora usasse uma placa anunciando. Confiou no Adderley, o pior dos
homens! Deveria ter feito algo!
—Do que está falando? O que poderia ter feito?
Ela ondeou os braços.
—Qualquer coisa. Uma distração.
Voltou a ir para ela e agarrando-a pelos ombros lhe deu uma leve sacudidela.
—Deixe isso.
—Estou tão preocupada.
Tomou o rosto dela entre as mãos e virou para cima para poder olhá-la aos olhos.
Estavam enchendo de lagrimas. Foi como olhar o Mar Adriático através de uma nevoa. Uma
pequena gota deslizava pelo lado do nariz. O lábio inferior se sobressaía e tremia.
Não era o momento nem o lugar.
Não deveria levantar suas barreiras.

101
Mas ela ondulou os braços e suas partes femininas estremeceram e ele só podia ter na
cabeça uma coisa de uma vez, e em todo caso, deveriam nunca funcionavam com ele.
Era assim, e não era um menino bom. De maneira que abaixou a cabeça e esmagou a
boquinha zangada com a sua.
Nunca tinha feito as coisas pela metade. Não seria possível começar agora.
Beijou-a com firmeza, sem temor, precipitadamente, como tudo o que fazia. Nunca lhe
ocorreu ser discreto.
De fato, não lhe ocorreu muito. Simplesmente o fez como fazia tudo, sem pensar nem
preocupar-se.
E logo caminhou à beira de um precipício.
E se lançou, como se abaixo estivesse o mar, e caiu direto no oceano.
De algum jeito estava caindo nela. Sentiu o mar – um pingo de sal das lágrimas, e
também um leve sabor do vinho que ela tinha bebido. Respirou o fresco aroma dela. Onde se
afundava, era quente. Lavanda e algo mais, perfumava o cabelo e essa essência lhe trouxe uma
lembrança: o sol da Toscana e uma vila rodeada de lavanda e jasmim. Sentiu que o alagava a mesma
felicidade inexplicável que havia sentido poucos anos atrás, longe da Inglaterra.
Envolveu-a em seus braços. Instintivamente se afirmava em algo muito maravilhoso para
explicar.
E a boca dela simplesmente se fundiu com a dele, tão suave e dando as boas-vindas.
Também seu corpo se fundiu com o dele, como se fosse o mais natural do mundo. Ela subiu os
braços e o rodeou no pescoço. Os seios se apertaram contra o colete. Era tão cálida e as curvas tão
suaves que o calor aumentava cada vez mais e o pulso acelerava enquanto saboreava mais
intensamente: a doçura de sua boca e aroma de limpo e quão bem as curvas dela se ajustavam a ele.
Deslizou as mãos para as nádegas e a atraiu mais até – e ela fez um leve som afogado
contra sua boca – e embora leve, foi como uma descarga, e foi o sinal que necessitava.
Levantou as mãos.
Levantou a boca.
Deu um passo instável para trás e logo outro.
Seus olhos azuis estavam aturdidos e oscilou um pouco. O xale jazia feito um montão no
chão.
—Por Deus, — disse—. Por Deus.
Inclinou a cabeça para um lado e o observou, como embriagada tentando enfocá-lo.
Diabos.

102
Era a primeira vez dela.
Nunca a tinham beijado antes.
Era completamente impossível.
Não, não era.
Sim, era.
Não importava. Não ficava mais que sair antes o possível do que fosse.
—Não. Faça. Isso. Outra vez, — disse ele.
—Sim, — Disse ela com um sorriso de ébria.
—Não suporto ataques de histeria.
—Sim, — respondeu ela.
Estava tonto também, mas podia vê-la bastante bem. Podia ver muito…. ou não o
suficiente. Também via a cama, somente a alguns passos, tão convidativa.
Bom, então por que não aceitar o convite?
Por que… não sabia por que. Ou por que não.
Deu as costas a ela, à cama, a tudo e se foi a grandes passos.
Sophy o viu sair em uma espécie de neblina.
Viu-o em sua totalidade: o cabelo negro despenteado, como se tivesse passado os dedos –
ou ela tinha passado?... os ombros largos e o movimento das costelas sob o colete… a cintura por
trás e o V invertido do colete… e seguindo para baixo os quadris e pernas longas… e todo aquele
corpo grande movendo-se tão suave e graciosamente como um puro sangue.
Saiu pela porta e a fechou atrás dele com um golpe agudo que a fez dar um salto e que a
tirou de repente desse sonho.
Sacudiu a cabeça, fechou os olhos e os abriu. Passou a língua pelos lábios… como ele
tinha feito.
Foi para a mesa, encheu o copo de vinho e o virou de uma vez, para reforçar sua
resolução.
Foi à porta e a abriu.
Ele ficou congelado, com o copo de vinho a meio caminho da boca, aquela boca perversa
e perigosa.
—Não, — disse ela—. Absolutamente não.
—O que está dizendo? Está louca?
—Estive por um minuto. Mas não pode voltar fazer isso outra vez. Você não pode ser tão
idiota.

103
—Vá. Sabe que quase não usa roupa?
—Não importa, preciso...
—Não importa? escute senhorita Inocência. Há muitas coisas que a um homem podem
não importar. Uma mulher quase nua não é uma delas.
—Tanto pior! Não havia tempo para me vestir. Tenho que dizer enquanto sei por que
estou dizendo, enquanto ainda esteja sob a influência do álcool.
Passou a mão pelo cabelo despenteado.
—Não tem que dizer nada. Tem que ir.
—Não posso me envolver com os clientes. É ruim para os negócios.
—Negócios!
—E não me diga que não é um cliente.
—Não sou cabeça oca. Quando foi a última vez que comprei um vestido?
—Qualquer homem que tenha os meios para pagar nossas faturas, é provável que adquira
uma mulher cedo ou tarde, a que queremos em nossa loja. E não nos patrocinará se tivermos uma
reputação de caçadoras de homens.
—Negócios. Isto se refere à loja.
—Sim, — disse ela—. O que significa que não poderia ser mais verdadeira. Se voltar a
me beijar, vou apunhalá-lo.
Deu meia volta e partiu batendo a porta.
Ela voltou a servir outro copo de vinho, mas o bebeu mais lentamente. O coração
palpitava com tanta força que doía. Não recordava quando tinha feito algo tão difícil e aterrador e tão
oposto ao que realmente queria.
Com razão Marcelline tinha perdido a cabeça pelo Clevedon.
Com razão tinha insistido em explicar a Sophy, pela centésima vez, como se faziam os
bebês.
A luxúria era uma força muito poderosa.
Como todo Noirot, Sophy gostava do perigo, o risco, um jogo de azar. Mas não podia
jogar nem arriscaria a Maison Noirot.
Se permitisse que aquela força poderosa a superasse, arrastaria tudo aquilo pelo que
tinham sofrido e trabalhado tanto.
Levantou-se e foi à banheira e tirou a bata que ele havia jogado ali. Espremeu e a arrumou
sobre uma cadeira – perto do fogo, mas nem tanto. Não estava totalmente perdida. As meninas da
Sociedade de Costureiras podiam desmanchá-la e fazer algo.

104
A bata não era importante. Era a loja que Sophy tinha que salvar – e isso significava
salvar Lady Clara. Isso era tudo o que tinha que fazer, e não seria fácil.
Sorriu. Depois de tudo era uma Noirot, e se fosse fácil não seria tão divertido, afinal das
contas.

105
Capítulo Oito

Richmond Park tem aproximadamente doze quilômetros de circunferência e contém 2253 acres,
dos quais apenas um centésimo está nesta Paróquia; há 650 acres em Mortlake, 265 em Petersham, 230 em
Putney, e o resto está em Kingston. O terreno é muito agradável, com colinas e vales; além disso, é adornado
com um grande número de carvalhos formosos e outras plantações.
—Daniel Lysons, Os arredores de Londres, 1810.

Mansão Warford.
Sábado 6 de Junho.

—Doente? — Adderley disse—. Nada sério…. Espero?


Clara era tão saudável como um cavalo, como uma vaca. Era tudo, menos frágil ou
doentia.
—Esperamos que não, — Lorde Valentin disse—. Pode ter pegado um resfriado ontem à
noite, na casa da tia Doura. Uma casa com correntes de ar. Uma noite úmida.
—Um resfriado, — Adderley repetiu, e sentiu calafrios também. Hoje o abatimento se
sentia no ar da Mansão Warford.
Mais do que o habitual, teria que dizer. Encontrou uma atmosfera glacial para dizer o
melhor. Lady Warford era estritamente bem educada com ele, de uma vez que deixava ver como se
farejasse algo que as boas maneiras não lhe permitiam mencionar. Clara tinha começado com
suficiente calidez – ou tão cálida como sabia – mas cada dia ficava mais distante.
Os sentimentos de ambos não importavam. Clara tinha que casar com ele. Poderiam
espernear tudo o que quisessem, e Lady Warford não poderia deixar passar uma oportunidade sem
lhe recordar – com estrita boa educação – sua baixa origem, mas não ia, e eles não podiam permitir
que se fosse.
O único que não tinha contado, era que Clara adoecesse.
Gravemente doente, a julgar pelos sinais.

106
A cara de Lorde Valentin positivamente era de funeral.
O estômago de Adderly retorceu de puro alarme.
Não podia morrer. Não antes das bodas.
—Há algo que possa fazer?
Lorde Valentine sacudiu a cabeça com tristeza.
—Sinto muito, nada se pode fazer. Nossa mãe está com ela e não se separou de seu lado.
—É obvio mandaram procurar um médico?
—Asseguro, a minha irmã está cuidando dela muito bem. Atrevo-me a dizer que estará
em pé em um ou dois dias.
Mas Lorde Valentin o disse sem muita convicção.
Ansioso e zangado, Adderley partiu.
Tinha dedicado meses cortejando-a, tempo que poderia ter dedicado a alguém mais.
Melhor que não morresse.
Seria tremendamente inconveniente. Não conhecia nenhuma outra mulher com um dote
tão bom e tão fácil de conquistar. E teria que conquistar depressa à nova alternativa. Seus credores
nem sequer esperariam até o funeral.

Quando se sentaram de novo no carro, Longmore se perguntou que diabos tinha lhe
ocorrido ontem à noite, que não aproveitou uma oportunidade perfeita.
Foi a surpresa, decidiu. A inexperiência de Sophy o pegou totalmente despreparado.
Normalmente se recuperava rápido dos assombros, mas tinha sido um dia muito difícil.
Sua irmã fugiu e pela primeira vez em anos tinha que preocupar-se dela. Logo Sophy começou a
pegar fogo.
Com razão sua razão havia se dissolvido.
Depois de algumas voltas na cama – sem dúvida porque suas partes reprodutivas se
prepararam para uma mulher, mas sem resultado –dormiu bastante bem. O dia tinha amanhecido
lindo e ele recuperado a prudência. Agora podia ver as coisas com claridade.
Talvez ela não tivesse muita experiência, mas isso não significava que não possuísse
nenhuma. Era francesa. Tinha bom gosto. Simplesmente era uma menina que discriminava e que não
possuía tanta prática nas artes amorosas.
Um destes dias alguém ia completar a educação dela. Por que não poderia ser ele?
Verdade, nunca teve que educar alguém antes, mas havia uma primeira vez para tudo, e
ele estava sempre aberto a novas experiências.

107
Também era verdade que havia lhe dito que se mantivesse afastado.
Mas isso foi depois.
Até que ele cometeu o engano imbecil de voltar para o quarto, ela esteve bastante
entusiasmada.
Hoje o recebeu alegremente no café da manhã.
Por certo não viu incomodo algum nem desagrado aparente.
Hoje a extravagância da moda era um traje de viagem rosa plúmbeo. Uma coisa como
capa que adoravam as mulheres, cobria as estupendas mangas infladas. Na gola do artigo como capa,
batia as asas uma gola de renda branca, sob o qual ia uma fila de laços, descendo por toda a frente da
capa, que terminava em um ponto sob a cintura, como se um homem necessitasse alguma direção ali.
Os laços seguiam descendo em dois lados da saia, como um V invertido – sim, apontando à mesma
parte. O chapéu de hoje desdobrava flores por toda a borda que lhe emoldurava o rosto, e mais flores
brotavam por trás. Fitas verdes tremiam entre as flores.
Só em olhá-lo, um homem ficava tonto.
Preferia-a nua, mas isto é obvio era divertido.
Como ainda faltava a busca em Richmond Park, a diversão era muito bem-vinda.
Mal deixaram a estalagem, quando Fenwick, atrás no carro, começou a espirrar
fortemente.
Longmore olhou para trás.
—Melhor que não fique doente. Não temos tempo para cuidar de resfriados.
—Só estava cheirando algo.
Longmore o olhou zangado.
Fenwick repetiu a palavra, desta vez bem pronunciada.
—Que aroma é esse?
—Que aroma? — disse Longmore. O único perfume que notava era o de lavanda com
algo mais, de Sophy. Duvidou que Fenwick, desde seu assento, pudesse sentir o perfume.
—Acredito que quer dizer o ar, — Sophy disse —. É o ar do acampo que sente, Fenwick.
—E Inalou profundamente e seu busto subiu e desceu. Foi fácil determinar quanto se deslocou
devido aos laços.
Desfazê-los, definitivamente era algo que esperaria com ânsia.
O que Sophy viu de Richmond Park lhe pareceu lindo. Embora tenha crescido em uma
cidade podia entender quão atraente era uma grande expansão da natureza, e esta era uma área
imensa, quase cinco vezes maior que Hyde Park, segundo o que Longmore havia lhe dito. Podia

108
imaginar facilmente Lady Clara olhando do alto de uma colina, vendo Londres com a neblina em
cima, espalhando-se na distância. Poderia sentir que estava a uma distância segura e longe de seus
problemas.
Mas não era assim. Não tinha ideia como cuidar de si mesma e uma só criada não era
suficiente.
Como não ajudava em nada fazer saber ao mundo que uma inocente andava solta, a
equipe de busca devia ser cuidadosa com o que diziam quando faziam perguntas. Para evitar que
alguém mais procurasse Lady Clara, idearam uma história simples: a Condutora do Cabriolé tinha
deixado a bolsa em uma hospedaria, com um pouco de dinheiro e papéis, e estava tentado devolver.
Não tentaram procurar no parque. Tomaria dias, Longmore disse. Em vez disso
procuraram em várias hospedarias perto das entradas. Ainda assim, passaram horas e quase
completaram o circuito do parque, assim como um desvio a Richmond Hill, antes de conseguir algo.
Era meio da tarde quando encontraram uma estalagem onde Clara tinha parado. Ali
perguntaram qual era a melhor rota para ir ao Palácio de Hampton Court.
—Até ai chega a esperança que tenha retornado a Londres, — Longmore comentou
quando voltaram para a estrada.
—Pelo menos temos notícias.
—Sim. Voltamos a estrada de Portsmouth, depois de uma prodigiosa busca sem rumo.
Quando puser minhas mãos nela...
—Para você é muito fácil.
—Fácil? Que demônios quer dizer?
—Se alguém o insultar ou ofender, o golpeia ou o desafia a um duelo. Se lhe fizerem algo
mau, você pode agir. O que pode sua irmã fazer?
—Supõe-se que não deva fazer nada. É uma menina.
—Assim simplesmente deve tolerar? Ocorreu-lhe como humilhada que ela deve se sentir?
Apostaria qualquer coisa que as chamadas amigas estiveram atormentando-a ladinamente. Como
responder a isso? É impossível. Enquanto isso está extremamente consciente que todos os homens
que uma vez a admiraram e respeitaram, agora pensam que é uma piada suja. Pode imaginar o que
ela sente?
—Sentimentos, — disse com esse tom zombador que lhe dava vontade de dar um soco
nele.
—Sim, sentimentos. Por que não? Não pode devolver o golpe. Não pode detê-los. Deve
ter sido horrível para ela. E por isso fugiu. Isso ou ficar louca, não duvido. Estou preocupada com ela

109
e eu gostaria que não o tivesse feito – mas tenho que admirar que tenha arriscado tudo em vez de
sofrer passivamente.
Produziu-se uma longa pausa. Não tentou enchê-la, só ficou olhando à frente, esperando
que passasse a ira.
Estúpido insensível. Sabia que tinha perdido o tempo, mas realmente, era muito...
—Você a admira.
—Sim. Foi valente.
—Imprudente, melhor dizendo. Estupidamente imprudente.
—Como o irmão.
Outra pausa.
—Tem razão.
A raiva foi uma surpresa, e não foi a única.
Longmore ainda não tinha digerido o admirável discurso a respeito de Clara, quando um
momento depois, enquanto cruzavam o Tamisa outra vez, Sophy divisou o Palácio.
—Oh, que maravilha! — Sophy exclamou—. Oh, olhe! — Ela riu, um som rouco, que
lhe fez cosquinhas nos ouvidos e desencadeou estranhos sentimentos quentes no peito.
—Ia dizer que Lucie adoraria, mas devo ter seis anos também, por estar tão emocionada.
Olhou a expansão do edifício e a olhou.
—Nunca tinha visto antes o Palácio de Hampton Court?
—Quando poderia ter visto?, — disse ainda sorrindo —. Durante três anos, meu mundo
foi Londres. Admito que foi grande e interessante para mim. Mas nunca saí de Londres.
Esta era outra Sophy, quase como uma menina. Praticamente ricocheteava no assento com
a excitação.
—Nem excursões pelo rio?
—Sou proprietária de uma loja. Fica aberta seis dias na semana e trabalhamos de nove as
nove.
Ele se deu conta que trabalhava mais que isso. Até tarde na noite e de madrugada,
espionando para Tom Foxe.
Não havia tempo para excursões de prazer ao campo.
Ele nunca pensou nisso. E por que o faria? Nunca tinha trabalhado. Não sabia nada disso.
Tampouco sabia muito da irmã, aparentemente.
Essa foi outra surpresa. Não sabia se sua mente poderia tolerar mais.
—É estranho, não é verdade? — disse ela.

110
É obvio que era.
—Só tenho que sair da loja e olhar rua abaixo, e vejo o Palácio de St. James. Sei que data
da época dos Tudor, também. Mas há edifícios e ruas ao redor. Carros que vão e vêm. Diligencias e
carretas, e coisas do tipo. Para mim, simplesmente é outro edifício. É mais ou menos o mesmo com
os outros palácios. Todos parecem bastante grandes —fez um gesto amplo— este se estende no
campo. Parece um castelo.
—É um dos mais decrépitos, — Longmore disse—. Durante anos nenhum de nossos
monarcas quis viver aí. Tampouco o rei atual. Nem o último, nem o penúltimo. É para solteiras,
solteironas, e viúvas de heróis de guerra… — E calou enquanto finalmente compreendeu.
Richmond Park. Hampton Court. É obvio.
—Solteironas e viúvas? — Sophy perguntou.
—Nos apartamentos de graça e favor concedidos aqueles que serviram à Coroa de algum
jeito especial. Ou cujos pais, ou maridos, ou irmãos, o fizeram. Principalmente são mulheres
solteiras, em sua maioria idosas. E sei por que Clara veio aqui.
Embora Longmore não tivesse visitado a grande amiga de sua avó fazia tempo, os oficiais
do palácio o reconheceram. Ontem tinham reconhecido a irmã dele também, como o fizeram saber
rápido, oferecendo voluntariamente a informação, antes que perguntasse.
Deviam estar se perguntando por que Lady Durwich era tão popular com os membros da
família Fairfax nestes últimos dias. Longmore apurou Sophy através do labirinto de corredores por
volta dos apartamentos que Lady Durwich tinha ocupado nos últimos vinte e cinco anos.
Vale dizer que tratou de apressar Sophy, que queria olhar as pitorescas torres velhas, e
olhar para os pátios. Foi como tratar de levar uma criança.
—Poderiam dizer que nunca antes viu um montão de tijolos Tudor prestes a cair.
—Possuo uma loja.
—Correto. Seis dias. Nove as nove.
—Às vezes uma de nós leva Lucie ao zoológico, ou ao Anfiteatro Astley, ou a uma feira,
ou algo assim. Mas nunca nos tomamos um dia para sair de Londres. Isto é tão interessante, Lucie
adoraria.
—Bom, então Clevedon deveria levá-la alguma vez, enquanto vocês fazem explodir a
concorrência. Hoje não temos tempo para um tour. A levarei em outro momento. Há pinturas e
estátuas muito bonitas, e os jardins são estranhos, mas agradáveis. Mas agora, a única vista para nós,
é Lady Durwich.
—Entendo.

111
—Não interprete nenhum papel. Deve ser você mesma.
—Uma costureira?
—Lady Durwich tem mil anos. Duvido que fique algo na terra que a deixe boquiaberta.
Ainda assim, sou um tipo antiquado...
—Atrasado, diria eu.
—E algo tímido...
—Isso foi o primeiro que notei em você. Seu acanhamento. Quando irrompeu na casa do
Duque de Clevedon, destrambelhando sobre...
—Bastante tímido, de fato, para apresentá-la a amiga de minha avó como minha querida
amiguinha, especialmente porque não é. —Houve uma fração de uma pausa—. Ainda.
—E nunca serei. Mas posso fingir tão bem que você mesmo acreditará que é verdade.
—O ponto é que não posso me relacionar com ela e com uma mulher fictícia ao mesmo
tempo.
Ela considerou.
—Tem razão.
Um momento depois, um criado os conduziu ao salão de Lady Durwich.
A querida idosa tinha adquirido mais rugas e se encolheu um pouco, mas estava
extraordinariamente bem conservada, pensando que estava pertos dos noventas. Sempre tinha sido
gordinha, plácida, nada tensa – justamente o contrário de sua mãe – e hoje estava tão arrumada como
sempre. Uma vez, ela e a avó Warford tinham formado junto com a Condessa de Hargate, e algumas
outras, um dos grupos mais atrativos de Londres.
—Longmore, não tinha te visto, — e esticou uma mão gordinha, com anéis, que ele
beijou galantemente—. Ultimamente, sua família esteve inusitadamente ocupada me visitando.
Clara, ontem. Mas é obvio, por isso veio. Disse que fugiu, a muito tola. Disse a ela que fosse direto
para casa. Que estupidez! ‘Não o amo,’ disse. Deveria ter pensado nisso antes de sair ao terraço e ter
permitido que tomasse liberdades com ela. Realmente, fiquei assombrada. Sempre acreditei que
Clara tivesse mais juízo. —Seu olhar caiu direto em Sophy—. E esta, quem é?
A dama velha pegou o monóculo e fez um inventário lento de sua acompanhante, do alto
do ridículo chapéu, até a ponta das incrivelmente pouco práticas botas de seda.
—Me é familiar, mas não é uma de vocês, eu sei. Não é uma Fairfax.
—Na realidade não, Lady Durwich. Por favor, me permita lhe apresentar à senhorita
Noirot, uma costureira famosa.

112
Sophy se afundou em uma reverência exagerada, igual a que tinha feito a Valentin – fitas
e laços ondeando, e flores balançando.
—Ora, ora, raramente vemos algo assim agora, — disse Lady Durwich, enquanto Sophy
se levantava—. Uma costureira, não é verdade? Que cor é essa, senhorita Noirot?
—Rosa cinza, miladi.
—Rosa cinza? — comentou ele.
Ambas as mulheres lhe deram o olhar de que tolo.
—A senhorita Noirot é a costureira de Clara, e está muito preocupada com o enxoval de
Clara.
—Deixa de dizer tolices! Sei que é difícil para você, mas há um esforço. Não tenho muito
tempo que perder – dez ou vinte anos no máximo. Talvez fosse melhor que a jovem fale por si
mesma. —Deixou cair o monóculo a sua saia e se inclinou, com um olhar brilhante e espectador em
Sophy.
—Sem fiar muito fino, minha lady, me ocorreu que Lorde Longmore, com todas suas
boas qualidades...
—Oh, descobriu algumas, não é mesmo? — interrompeu ele.
—Com todas suas boas qualidades, — continuou Sophy, levantando levemente a cabeça,
o que pôs a balançar as fitas—. Por exemplo, um prodigioso queixo, um ar de comando, e um
alfaiate excelente. São meramente poucos exemplos. Nestas e em muitas outras matérias não
encontra faltas em sua senhoria. Entretanto, não acredito que seja irracional declará-lo menos que
sobrecarregado com os dons do tato e persuasão. Suspeito que Lady Clara precisará da muita
persuasão.
—Você pode ter razão, — disse Lady Durwich—. Pensei que o problema estava na cuca.
Uma criada entrou com uma bandeja com o chá. Em seguida se produziu um hiato
enquanto Lady Durwich atuava de anfitriã. Embora não havia tempo que perder, Longmore supôs
que a dama não tinha convidados frequentemente – jovens, em todo caso. Embora estivesse louco
por obter a informação e ir, sabia que seria grosseiro se apressava as coisas.
O problema era que ela achou Sophy muito mais interessante que as dificuldades de
Clara. E com razão, pois Sophy jorrava encanto.
Quando Lady Durwich, conversando e desfrutando com o chá e sanduíches, perguntou se
tinha percorrido o palácio antes, Sophy instantaneamente passou de sofisticada costureira francesa a
menina inglesa excitada.

113
—Lorde Longmore mal conseguia me fazer avançar. Parava com a boca aberta como
qualquer criança. Que maravilhoso deve ser para você viver aqui. Não tinha ideia que alguém o
fizesse – fora o pessoal.
—Santo Céu, onde esteve menina? nunca ouviu falar dos apartamentos de graça e favor?
—A senhorita Noirot vivia em Paris até recentemente, — disse Longmore—. É bem
francesa.
—Meus pais eram ingleses. Mas sim, passei a maior parte de minha vida em Paris. Sou
uma ignorante da cidade, como pode ver.
—A senhorita Noirot me contou que é a primeira vez que esteve tão longe de Londres
desde que chegou, — Longmore interveio.
—E agora que vi o campo, assombra-me a audácia de Lady Clara de sair sozinha. Os
caminhos são bons, mas terá que parar para comer e negociar com hospedeiros. Terá que pagar
pedágios, e tomar cuidado de não equivocar-se ao dobrar uma estrada. Não é nada parecido a
conduzir em Londres. Deve ter se sentido desesperada na realidade, para ter fugido.
—Sempre foi uma menina teimosa, — disse Lady Durwich—. As pessoas acham que não
é assim.
—A beleza angelical, — Longmore disse—. Seus apaixonados escrevem os poemas mais
idiotas a respeito dela. Não a conhecem nada.
—Subestimam-na. Como é tão bela, acreditam que não tem cérebro, — Sophy disse.
—É uma mulher, — Longmore adicionou—. Para que precisa de cérebro?
—Para dirigir os homens que não têm. Não é fácil. — Ela se voltou para Lady Durwich—
. Talvez sua senhoria, se me contasse o que mais puder recordar da conversa, poderíamos ter uma
ideia de quais são as intenções dela.
Isto ia durar para sempre.
Longmore se levantou da poltrona e foi à janela. Como o apartamento consistia em um
extenso grupo de salas na planta baixa, e esta janela dava para o norte, ao pátio por onde tinham
chegado, não tinha muita vista para distrair-se: um caminho de paralelepípedos abaixo, e paredes de
tijolos para as rosas que se elevavam três andares, bloqueando a luz.
As veteranas eram conversadoras e esquecidas. Raramente contavam uma história na
ordem devida, desviando-se aqui, ali, em todas as partes. Em poucas horas não haveria luz. Mas
poderiam viajar de noite, enquanto o tempo não os traísse.
Escutou o melhor que pôde a conversa das mulheres.

114
Não era fácil. Sua mente queria perambular os corredores retorcidos e rincões, como os
que havia ali, a parte mais antiga do palácio.
Pensou em sua irmã e o que Sophy havia dito dela. Não tinha sido agradável.
Pensou no cabelo de Sophy caindo como uma cascata pelas costas e sobre os seios, as
mechas longas enroscando-se e ficando dourados à medida que secavam… o perfil dos seios sob a
fina musselina … a silhueta das coxas… o lugar entre elas, o triângulo salpicado de ouro.
Isso era muito mais agradável.
Mesmo assim se sentia tenso. O salão era muito acolhedor e quente. Enquanto as
mulheres fofocavam, ele poderia interrogar os oficiais. Poderia encontrar Fenwick e obter
informação. Tinha decidido se desculpar, quando Lady Durwich exclamou,
—Mas isso! Sabia que era conhecida. Esses são os olhos DeLucey. Os teria conhecido em
qualquer parte.
Sophy estava consciente que Longmore se virou com um olhar mais penetrante.
Sorriu educadamente a Lady Durwich.
—Sua senhoria não é primeira em dizer isso.
—E com razão. Uma pessoa não esquece esses olhos. Embora tenha demorado um
momento em me dar conta. Mas o anterior Conde de Mandeville foi um grande amigo de meu
marido, você sabe. E logo havia Eugenia, a viúva Lady Hargate. Seu filho mais velho, Rathbourne,
casou com uma menina de um ramo torcido – do grupo selvagem. A filha de Lady Rathbourne era
uma grande favorita da Eugenia. Conheci a garota no funeral de Eugenia. Recorda que se reuniu com
Lady Lisle, não é verdade, Longmore? Uma menina linda de cabelo vermelho. Não são esses os
olhos DeLucey?
Sua expressão mudou muito pouco, mas foi suficiente para Sophy. Notou que abriu
levemente os olhos escuros e sua postura mudou em um grau mais alerta, como um lobo farejando.
—Ah, sim. O grupo selvagem DeLucey, — Sophy disse divertida—. ouvi dizer que a
maioria vivia no estrangeiro. Não é impossível que um de meus ancestrais nascesse no lado
equivocado do lençol.
Desde que tinham chegado a Londres, ela e as irmãs estavam conscientes do risco que
corriam. Marcelline passava sem problemas, pois tinha saído a papai. Mas Sophy e Leonie tinham
herdado os olhos DeLucey de mamãe, e esses olhos grandes de um azul intenso eram tão
característicos que inclusive uma dama próxima ou na nonagésima década de sua vida podia
reconhecê-los.

115
O “grupo selvagem” dos DeLuceys – mais conhecido na Inglaterra como os Espantosos
DeLuceys – ainda se desconfiava deles no melhor dos casos, e com justa razão, ou os detestavam, no
pior. Marcelline, Sophy e Leonie eram as últimas do lote. A cólera tinha matado o resto.
—A maioria de nós poderia dizer o mesmo, — Lady Durwich disse, e voltou a tomar seu
monóculo e examinou Sophy outra vez. Sophy tomou o escrutínio com calma. Tinha passado anos
jogando cartas – sem mencionar atendendo a clientes extremamente irritantes.
—Não é que queira cortar as fascinantes fofocas dos tempos passados, — Longmore
disse—, mas o dia está indo e parece que ainda não descobrimos aonde Clara foi depois que partiu
daqui.
—A impaciência da juventude, — Lady Durwich disse—. Isso é o que disse a Clara. Ela
não disse o que aconteceu quando foi passear com Adderley sem acompanhante. Suspeito que foi
algo que não teve nada a ver com ele depois de tudo.
—Como que não tem a ver com Adderley, quando foi ele que lhe tirou a metade da
roupa? —Longmore respondeu.
—Na realidade não foi assim, — Sophy adicionou—. Desceu o decote cinco centímetros
mais ou menos, e arruinou as delicadas dobras do corpo do vestido.
Sabendo que os detalhe ocultos da confecção da roupa deixariam Longmore louco e ao
mesmo tempo tirariam os DeLuceys de sua mente, ela continuou,
—Era muito decotado, minha lady. Tinha um drapeado que cruzava pela frente, com
dobras muito finas. Bordamos uma coroa de rosas com botões, caules e folhas, ao redor da borda da
saia. Tinha um broche – esmeraldas, para ressaltar a folhagem bordada. Pusemos bem abaixo –
assim. —E indicou um espaço entre seus seios — Isto permitia uma bonita exposição de um
pedacinho da regata, de uma elegante cor dourada...
—Sim, sim. Atrevo-me a dizer que Lady Durwich leu a infinidade dos detalhes no
Spectacle, —Longmore a interrompeu—. Como fizemos todos.
—Somente estava assinalando que ante seus olhos de irmão, Lady Clara parecia mais
despida do que objetivamente era o caso.
—Que diferença faz se estava um pouco ou muito? Estava sozinha com ele, desarrumou o
vestido e tratou de ser galante e esconder o fato quando sabia que não podia fazer.
—Ah, mas se realmente tivesse sido galante, não teria tido necessidade de esconder nada,
— disse Lady Durwich—. Se realmente se importasse, não a teria tirado ao terraço em primeiro
lugar. Naturalmente não o disse. Não quis desgostar mais à garota. Mas ela já sabia. Isso foi o que a
pôs nesse estado de pânico. Contou que aquela repelente Bartham o disse na cara – ou indiretamente,

116
mas foi muita óbvia. E Clara disse que foi bastante desagradável ter que suportar a humilhação – mas
fazê-lo por um homem que a desprezava, era intolerável. Tentei raciocinar com ela, mas você sabe
como é. Sua avó poderia tê-la persuadido, mas eu, seria como falar com uma lareira. Não vejo como
se pode arrumar este assunto. É obvio que ela não acredita que se possa – e só temo por ela.

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Capítulo Nove

Hampton Court é um palácio real que fica a vinte quilômetros de Londres, construído pelo
Cardeal Wolsey, que o deu de presente a seu amo Real, Henry… O palácio e os terrenos, que merecem a
atenção de qualquer um, podem ser visitados facilmente mediante uma petição bem educada a um dos oficiais
do lugar.
—Quadro de Londres de Crushley, 1834.

Uma eternidade mais tarde, Longmore tentava levar Sophy pelo mesmo caminho por
onde tinham chegado. Ela se atrasava olhando boquiaberta pelas janelas e corredores estreitos e
portas fechadas, como se pudesse ver através delas.
—Teria ficado para passar a noite, se tivesse permitido.
—Só tentava descobrir o que mais podia. Persuadir a sua irmã para que volte para
Londres, não será fácil. Preciso entender o máximo possível.
Ele não queria entender nada mais. A revelação de Lady Durwich que veio quase junto ao
discurso de Sophy a respeito de Clara, tinha deixado-o a ponto de explodir. Tinha que sair daquele
alegre apartamento, ou quebraria algo.
Já não queria matar Adderley. A morte era muito boa para ele. Precisava que o
golpeassem até deixá-lo como uma bolsa, e que toda sua beleza desaparecesse para sempre.
Necessitava que doesse pelo resto de seus dias, pela forma que tinha ferido a Clara.
—Estou melhor aqui fora. Mulheres discutindo sentimentos. Não é meu assunto favorito.
É mais útil falar com os oficiais e os criados. Parece que Clara foi muito confiante, exceto com Lady
Durwich. Mas Davis falou com um jardineiro a respeito das hospedarias locais e este lhe
recomendou O Urso em Esther. Devemos nos pôr a caminho.
—Eu sei, — disse ela.
—Bom, então.
—Vou.
—Está ficando para trás.
—Estou pensando.
—Não pode caminhar e pensar ao mesmo tempo?

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—Sempre é tão impaciente? Mas para que pergunto?
—Perdemos horas, — ele disse.
—Não mais das que perdeu sua irmã. Não podia viajar com a tormenta. Passou a noite em
uma estalagem. Teve que deixar descansar o cavalo, como disse você.
—Leva um dia de vantagem!
—Você está tão alterado, que acho que não deveríamos partir.
—Não estou alterado. E se o estivesse, não afeta nada como posso conduzir o carro.
—Você está extremamente aborrecido. É sobre o que disse a respeito de Clara, não é
verdade? E o que Lady Durwich disse. E agora você quer matar alguém. Ou golpear alguém. E não
podemos nos dar o luxo que se meta em uma briga agora, porque se o prendem...
—Não irão me prender.
Avançou e ficou ante ele, forçando-o a deter-se. E o agarrou pelas lapelas.
—Escute. Eu me encarregarei do problema de sua irmã.
—Você! Isto não tem acerto. Enganei-me ao pensar o contrário. Esse bandido arruinou a
minha irmã deliberadamente. Nem sequer foi luxúria, o condenado. Foi a sangue frio...
—Encarregar-me-ei dele, — ela disse.
—É uma mulher! Uma comerciante! Que demônios acha que pode fazer?
—Você não tem ideia do que sou capaz.
—Mentir, sim. Atuar, sim. Espionar, sim.
—Você é um quadrado, um aristocrata malcriado. Não sabe nada de mim. Não sabe pelo
que tive que passar. É um menino, um infante. Um bebê grandalhão, temperamental e
desconsiderado que bate nas pessoas quando não consegue o que quer. Você... uf!
Abraçou-a pela cintura, a puxou e ficou colada ao peito dele.
—Então sou um menino?
Sophy se retorceu, mas foi como lutar contra uma muralha de tijolos. Colocou a cabeça
sob a aba do chapéu e sua boca encontrou a dela, quando recordou que deveria se inclinar para trás,
foi muito tarde, porque já estava beijando-a. Desta vez estava fazendo mais decididamente que antes.
Podia senti-lo por toda parte, até os dedos dos pés.
Apertou as mãos. Podia fazê-lo. Podia brigar contra isto. Lutar contra ele. Forçou-se a
bater nele. Golpeou-o no peito, mas foi patético, inclusive se o tivesse feito com mais força,
duvidava que ele fosse capaz de sentir.
Logo, sua boca dura e cínica foi tão ardente, e ele era tão quente e firme… e seguro.

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E podia cheirá-lo. Podia cheirar a pele e masculinidade, e foi como fumar ópio. Seu corpo
grande, o aroma, o sabor, mataram a vontade e o cérebro.
Tudo se desfez. Seu corpo se moldou ao dele, e seus lábios se abriram. O beijo se tornou
escuro, intenso e perigoso, e tudo desapareceu, exceto os sentimentos. Sensações que não podia
nomear giravam em uma espiral em seu coração e o fazia pulsar e pulsar com força, e logo começou
a descer, a uma área perigosa, até sentir uma fome que nunca antes havia sentido.
Suas mãos se abriram somente para agarrar a parte superior dos braços dele, para afirmar-
se porque os joelhos não a sustentavam e estava caindo.
Empurrou-a contra a parede, mantendo cativa sua boca todo o tempo, enquanto a língua
lhe ensinava todo tipo de pecado. Ela o soltou e se deixou levar, deixando que a parede a sustentasse,
e esmagou as palmas contra a parede fria enquanto todo o resto era deliciosamente quente. Ele subiu
as mãos e as pôs também contra a parede, a cada lado de sua cabeça, encerrando-a, e sentiu como
mudava a inclinação da cabeça, para um lado, entregando outras centenas de pecados com o beijo:
com a mudança da direção da boca, com a pressão da língua.
Ouviu algo, mas longínquo, sem importância.
Logo foi mais forte
Alguém pigarreou.
Seus olhos se abriram no mesmo instante que Longmore separou a boca da dela, e em
seguida levantando a cabeça, desviou o olhar para o ruído.
—Com o perdão de sua senhoria — disse uma voz grave.
Longmore levantou a cabeça uns centímetros e deu um olhar de advertência à voz.
—Será que não vê que estou ocupado?
—Sim, sua senhoria — continuou a voz—. Mas...
—Aaag! — Sophy empurrou o peito de Longmore—. Maldito! —Voltou-o a empurrar,
mas foi como empurrar a muralha do castelo.
Olhou para baixo a suas mãos enluvadas, seus olhos escuros cintilaram e uma das
comissuras de sua boca – a perversa, perversa boca – se elevou.
—Mova-se! — ela disse.
Longmore inalou e exalou lentamente, logo retrocedeu devagar. Nem sequer houve tempo
para que sua excitação se acalmasse, embora isso fosse o mais fácil. O difícil era pensar, pois tinha a
cabeça prazenteiramente espessa e quente, e preferia permanecer nesse estado em vez de voltar a
momentos antes.

120
Com olhos entrecerrados observou à causa de sua alteração, Sophy estava um pouco
despenteada, mas se notava. O chapéu havia deslocado a um lado e tinha os lábios inchados e o
olhava com olhos grandes e velados.
Parecia deliciosa.
—Só estava me despedindo.
—Assim é como chama?
—Vou deixá-la aqui. Com sua senhoria. Poderão falar de sentimentos até se cansarem.
Puxou o laço sob o queixo e o desfez. Tirou o chapéu e lhe bateu com ele. No peito, no
braço, e de novo no peito. Logo partiu. O chapéu pendurava das fitas em sua mão, ricocheteava
enquanto caminhava, os quadris oscilavam.
—Ficará perdida sem mim, — Longmore disse.
—Não acredito, — respondeu ela, sem virar-se.
Deu um encolher de ombros e estava endireitando o chapéu quando notou que o oficial de
palácio ainda estava ali. Estava firme e sem expressão alguns passos mais à frente.
—Queria algo? — Longmore perguntou.
O homem olhou a uma janela. Através do vidro ondulado, via-se uma forma escura.
—Lady Flinton é um pouco puritana, milord, — o oficial disse desculpando-se—. Altera-
se com o que ela chama atividades imorais. E me disse que o fizesse parar.
Longmore levantou seu chapéu à figura na janela.
Logo se foi atrás de Sophy.
Como tinha imaginado, havia tomado o rumo equivocado. Encontrou-a no Pátio do
Relógio, golpeando o chapéu contra a saia, observando o Relógio Astronômico.
—Você disse que ia me apunhalar se a beijasse outra vez.
Seu olhar, que já não estavam nublados, mas frio e agudo, descendeu do relógio até ele.
—Estava procurando uma arma, mas parece que levaram todas.
—Levo-a a Sala dos Guardas? Há todo tipo de armas e de coisas para cravar, pendurando
nas paredes.
—Sim, de todas as maneiras.
—Infelizmente não temos tempo. Temos que encontrar minha irmã. —A puxou por um
braço. Não seria tão fácil como pensaria. A parte superior era como uma grande almofada. Teve que
segurá-la por uma parte mais abaixo… perto do pulso. Esteve tentado a tomá-la pela mão, mas isso o
alteraria outra vez. E já tinham perdido muito tempo.
Nenhuma perda na realidade. Mas mesmo assim…

121
Segurou firme e a levou. Ela o seguiu facilmente. Muito mau. Não lhe importaria outra
discussão.
Mas não, deviam ir.
—Achei que ia me deixar aqui, — ela disse.
—Você me convenceu que não… faz um momento… quando estava contra a parede, sob
a janela de Lady Flinton.
—Oh, sim, e falando nisso...
—Oh, que bom. Agora vamos discutir.
—É obvio. Desta vez estava com toda minha roupa, assim não trate de usar desculpas que
estava quase nua.
—Não necessito nenhuma desculpa. Mas poderia ser que usa muita roupa.
Ela deu um olhar de pura exasperação. Estava familiarizado com esse tipo de olhar. Todo
o tempo davam. Entretanto, a versão dela era preciosa.
—A única parte não coberta era seu rosto. E sua boca se movia sem parar e tive que pará-
la.
—Por que nenhuma mulher o cravou antes?
—Tenho reflexos rápidos.
Ela olhou o relógio outra vez.
—Se isso for o que Adderley fez a Lady Clara, com razão a meteu em um problema. É
terrivelmente desonesto que um homem mundano se aproveite de uma moça sem nenhuma
experiência.
Ele nunca esperou essa resposta.
E lhe doeu também.
—Não me aproveitei de você. Só nos beijamos.
—Só, — disse ela.
—Nem sequer toquei sua roupa. Menos ainda tentei tirá-la. —Tinha posto as mãos na
parede, em alguma parte seu cérebro deve ter pensando, manter as mãos afastadas dela.
—É obvio que despi-la parece ser um trabalho de duas horas. Em todo caso, agora que
tem um pouco de prática e eu estava… ocupado produtivamente instruindo-a… significa que será
mais difícil que os homens indecorosos se aproveitem de você no futuro.
Tardiamente captou o que ela havia dito.
—O que quer dizer com razão Clara se meteu em uma confusão?

122
—Não sou uma dama protegida. Cresci em uma loja em Paris. Tenho um negócio.
Supostamente sou engenhosa. Ela é uma menina inocente que sempre teve outros para que a
protejam. Se Adderley a beijou dessa maneira, não teve nenhuma possibilidade. É tão injusto.
Longmore não estava aproveitando-se. Ela não era uma menina de boa criação protegida
do mundo real desde sua infância. Era uma costureira – de Paris! – cuja irmã tinha transformado o
Duque de Clevedon em um idiota vacilante. Beijá-la não podia ser desonesto. Não é?
—Quer dizer que vai me bater com essa extravagância de chapéu outra vez? Ou gostaria
de estar mais apresentável e colocá-lo antes que retornemos ao carro?
Ela lhe bateu com ele uma vez mais. Ele o pegou e foi rápido adiante.
Atrás podia ouvir as solas das frívolas botas golpeando os paralelepípedos, e o sussurro
das anáguas enquanto se apressava. Ele não se virou.
Deixou-a que o alcançasse perto da entrada principal.
Tinha o rosto rosado e ofegava. Estendeu a mão.
—Me dê meu chapéu.
Ignorando a mão estendida, o plantou na cabeça e a puxou pelo braço para sair. Ela se
soltou e correu à janela mais próxima. Devolveu-lhe uma imagem distorcida.
—Parece uma gárgula, — ele disse.
Ela se aproximou mais da janela e ficou olhando um momento.
Então os ombros sacudiram e deu umas risadas. Logo riu com vontade, e as fitas
dançavam e os laços batiam asas e ele pensou que nunca tinha ouvido um som tão maravilhoso.
Sentiu-o assim como o ouviu. Pareceu impregná-lo profundo e tocar um lugar escondido
fazia muito tempo, foi um sentimento agudo, como se tivesse cravado o coração.
Um momento depois tinha passado. A risada terminou em um sorriso. Ela sacudiu a
cabeça. Logo tirou o chapéu e o pôs direito tratando de ver-se no vidro deformado.
Ele veio por trás e o arrumou.
Ela se virou e o olhou, seus olhos azuis brilhavam com uma expressão que o alertou
instintivamente e o pôs cauteloso.
Não se deteve a analisar o que era. Simplesmente fez caso a seu instinto.
Logo amarrou as fitas e retrocedeu, fora do alcance desse azul brilhante.
—Bom. Melhor irmos, — ele pronunciou.
Ninguém havia dito a Sophy que beijá-la significasse algo especial para o conde de
Longmore. Era um homem, e não um famoso por sua castidade ou perseverança.

123
Entretanto, para ela tinha sido uma assombrosa experiência. Por longos momentos não
tinha pensado o mínimo a respeito da Maison Noirot, ou roupa, exceto que sentia que usava muita
roupa.
Se este tipo de coisa ocorria todo o tempo com os homens, nunca seria capaz de ter um
namorico. Não ficaria pensamento para a loja.
Como diabos Marcelline conseguia?
Uma mente mais forte? Ou era o casamento? Talvez o matrimônio tivesse um efeito
calmante.
Era difícil imaginar uma perspectiva mais horrível que casar com Longmore. Era mau em
tantos pontos, que a mente encolheu ao contemplar.
Tinha que acalmar-se de algum jeito. Inclusive agora, totalmente consciente que ele
estava fazendo o que todos os homens faziam, teve que fazer um grande esforço para voltar a pensar
em Lady Clara, e para onde se dirigia.
A resposta veio sozinha a alguns quilômetros pela estrada de Hampton Court, na
Hospedaria do Urso em Esther.
Era uma grande hospedaria para veículos. Quando chegaram, várias carruagens estavam
entrando ou saindo do pátio. Iam a Londres, Longmore disse.
—Todos chegam à mesma hora. Pôde ter notado quando estava me esperando na
Cafeteria de Gloucester. Ou talvez não tenha notado, rodeada de tantos homens tentando chamar sua
atenção.
—Não fique nervoso com esses homens, milord. Eu só tinha olhos para você.
—Ao menos tem bom gosto.
E até aí chegou o intercâmbio porque ele teve que abrir caminho entre os carros. Quando
o deteve, Fenwick saltou com prontidão e foi à cabeça dos cavalos.
Deu-se conta que o menino – um moleque de rua – tinha feito isso uma e outra vez, desde
o começo.
—Faz com tanta facilidade, — Sophy disse enquanto descia. Olhou Longmore—. Você
confiou seu par de cavalos ontem, em Bedford Square. É comum isso?
—Sempre há moços que não fazem nada, desejosos de cuidar dos animais por uma
moeda, —respondeu enquanto a apressava em direção a hospedaria—. Mas você disse ontem o
rápido e suave que saltou à parte posterior de meu carro para me roubar. Pareceria que teve
experiência em um estábulo ou em uma cocheira. Mas não se pode tirar nenhuma informação. Terei
que lhe apertar os polegares para que diga algo.

124
—Me alegro, por esta viagem. Mas não pense que pode impedir.
—Nem em sonhos. Meu rapaz, Reade, o assassinaria enquanto dorme. Meu cocheiro é um
sujeito muito possessivo. Atrever-me-ia a dizer que inclusive agora está tramando contra o menino
por usurpar seu lugar.
A conversa acabou quando entraram, empurrados por vários grupos que iam e vinham.
Mas em poucos minutos os veículos que se dirigiam a Londres, partiram, o torvelinho cessou, e
Longmore pôde encurralar o dono e contou a história da bolsa esquecida.
Apesar de cheio do lugar, o hospedeiro não teve problema em recordar o Cabriolé e às
duas damas. Inclusive mostrou a inscrição no livro de visitantes. Tinham assinado como a senhora
Glasgow e a senhorita Peters. Sophy reconheceu a escrita elegante de Lady Clara. Davis que
certamente não tinha o costume de assinar, escreveu o nome falso com letras apertadas e quadradas
que pareciam desaprovar.
—Foram no meio da amanhã. Em direção a Portsmouth.
—Portsmouth, o pior os lugares — disse quando todos estavam no coche—. É lotado de
bordéis, marinheiros bêbados, e todo tipo de alcoviteiras e rufiões em busca de pombinhos para
depenar. E navios partindo para todas as partes. Ao Continente. Irlanda. América.
Isto era pior, muito pior que Clara sozinha nas estradas.
Deu-se conta que o pânico ia aumentando e tentava afogá-lo. Empurrou-o para longe.
—Não pode ir do país, — Sophy disse.
—Isso não sabe. Ela tentará. É um lugar fervendo com estelionatários e rufiões de todo
tipo, dispostos a aproveitar-se de uma mulher ignorante. Irão vê-la a quilômetros de distância, uma
senhorita protegida e novata total.
—Ela não está sozinha. Tem Davis. Qualquer um que queira conseguir Lady Clara, terá
que passar primeiro pela criada. Pode ter cedido aos caprichos de sua senhora, mas foi com ela para
poder protegê-la.
—Uma mulher.
Não teve que olhar. Sentiu a tensão, esse algo no ar que disse que ela havia lhe dado as
costas. Outra vez.
—Por que supõe que todas as mulheres são frágeis?
—Porque são. Posso tomá-la com uma mão. Poderia me levantar mesmo que usasse
ambas as mãos?
—Esse não é o único tipo de força.

125
—É a camareira de uma dama. Está no alto do escalão dos criados. Para isso não é
necessário levantar pesos pesados, — disse ele.
—Ela fica em pé a todas as horas e em todos os climas. Quando não está atendendo a sua
senhora, está remendando, limpando, tirando e guardando coisas. Se a lady adoece, é a camareira que
faz o trabalho sujo de cuidar dela. Enquanto os doutores e mães dão ordens. A camareira sobe e
desce as escadas dia e noite, procurando e levando. Mantém o olho nos criados baixo dela,
assegurando-se que faça tudo apropriadamente para a lady. Nenhuma pessoa frágil seria capaz de
sobreviver nem meio-dia.
Longmore ficou olhando as cabeças dos cavalos. Nunca tinha pensado na mulher que
cuidava da irmã, além de notar que era feia e que a expressão dela o recordava a todos um bulldog.
—Concederei que é forte. Mas o fato é que continua sendo uma mulher.
—Uma mulher formidável, — Sophy disse—. Lady Clara esteve mais exposta ao perigo
com Lorde Adderley do que está com os Dom Juan navais em Portsmouth.
—É óbvio que nunca teve que lidar com homens do mar.
—Que pouco sabe.
Isso parecia.
—Me ilumine, então.
—Sou uma costureira. Faço chapéus. Todos sabem que somos brinquedos descartáveis.
—Você parece não saber. É muito pouco colaboradora.
—Falava com ironia.
—Melhor que não o faça. Vá direto ao ponto.
—É mais. Tenho razões poderosas para não cooperar e que as expliquei ontem à noite.
Não me diga que não entendeu.
—Não estava escutando muito.
—Você vai fazer com que eu o fira.
—Irá precisar de um tijolo.
—Tenho uma excelente pontaria.
Passaram por Cobham Gate, onde se inteiraram –caso tivessem dúvidas – que o cabriolé
tinha passado no dia anterior.
O sol já estava perto do horizonte. Iria se por ao redor das oito. Tinham um longo
caminho a Portsmouth de mais de oitenta quilômetros.
Desta vez não ia parar mesmo que aparecesse um furacão.

126
Olhou-a. O chapéu estava mais normal. As fitas e as flores estavam mais murchas. Com
razão, tinha batido nele com o artefato. Sorriu com a lembrança.
Ela era um antídoto incrível contra o abatimento.
—Conte algo dos marinheiros. Jogou chá fervendo neles? Fez que tropeçassem em suas
próprias espadas?
—Sabia que se pode matar alguém com um alfinete de chapéu?
—Não, não tinha ideia. Fala por experiência? Matou alguém? Nem sonho em criticar.
—Só feri alguns. É incrivelmente prático. Houve um capitão que gritou como uma
menina e desmaiou.
—Que pena que não tenha feito parte da formação da minha irmã.
—Alguns truques não lhe fariam nada mal. Necessitaria toda uma vida de experiência, e
ainda assim poderia ter caído na armadilha. Adderley é um homem bonito e tem uma maneira
encantadora. Mas Lady Durwich pensou que estava tentando fazer ciúmes a outro homem ou estava
chateada com alguém. Talvez ela que estivesse ciumenta – e se tratava do caso “ vou mostrar a ele”
ou “dois podem jogar” ou...
—Sempre é assim? Sua mente nunca descansa?
—Se não fosse pela imaginação, Marcelline, Leonie e eu, não estaríamos onde estamos
hoje. Você não precisa pensar nessas coisas. Os homens governam o mundo. E o mundo está feito
para a conveniência dos homens aristocráticos. Mas as mulheres têm que imaginar. Inclusive Lady
Clara. Nós a ensinamos a sonhar e a atrever-se um pouco – e me nego a me sentir culpada por isso –
mas fui uma espécie de Pygmalion, não é verdade? E deveria ter...
—Alusões clássicas. Clevedon faz isso o tempo todo. E agora você. Quem foi
Pygmalion?
—O escultor que criou uma bela estátua e...
—Esse, é obvio. E a estátua adquiriu vida.
—Sim.
—Como sabe dessas coisas? De onde uma comerciante tira tempo para aprender quem foi
Pygmalion? Onde aprende a escrever uma prosa tão florida?
Ela lhe deu o olhar educado e interessado. O olhar bem educado que quase deixava vazio
o bonito rosto.
—Não parece uma maravilha que um cavalheiro possa falar e escrever três ou seis
idiomas, que faça discursos no parlamento, que faça experiências químicas, escreva artigos de

127
botânica, funde ou ajude a dirigir meia dúzia de instituições de caridade? Não se pergunta nunca de
onde tiram tempo para tudo isso? Eu é obvio que faço. Tome por exemplo, o Dr. Young.
—Nunca escutei falar dele.
Ela o iluminou.
O sujeito tinha morrido fazia poucos anos. Foi um prodígio. Um médico do Hospital St.
George. Foi participante ativo do Diretório de Longitude, do Anuário Náutico, da Sociedade Real.
Escreveu desde geografia e terremotos, a luz e cálculos de seguros de vida, e harmonia musical.
Inclusive ajudou a decifrar a Pedra Rosetta.
A mente de Longmore voltou para Lady Durwich e o que havia dito sobre os selvagens
DeLuceys. Recordou Lady Lisle, que depois que casou passou quase todo o tempo viajando pelo
Egito com o marido. Uma mulher carismática também, que exsudava uma energia similar…
Virou-se para estudar Sophy… e descobriu Fenwick pendurado em cima da capota.
—O que acha que está fazendo, — disse franzindo o cenho.
—Escutando, — disse o menino—. As coisas que faram.
Longmore corrigiu automaticamente a pronúncia, e o menino repetiu. E se apoiou,
ficando mais cômodo.
—É como escutar contos. Quem era esse tal de “pig man”?
—Pygmalion, — disse ela. E se pôs a contar toda a história, sem esbanjar adjetivos nem
advérbios. O conto tomou vários quilômetros. E depois se lançou em outros contos: Atalanta e as
maçãs2, Ícaro e suas asas, e Odisseu e suas aventuras.
Escutá-la foi uma experiência diferente de ler o que ela escrevia sobre as roupas. Não só
manteve o menino enfeitiçado, mas também Longmore, que esqueceu totalmente de Lady Lisle.

2
Atalanta, na mitologia grega é uma das Abantíades, ora ligada aos mitos da Arcádia ora às lendas da Beócia. Sua filiação é controvertida; é tida como filha
de Íaso, ou de Mênalo, ou ainda de Esqueneu. Como seu pai queria apenas filhos homens, Atalanta foi abandonada no monte Partênio logo após o
nascimento, tendo sido alimentada por uma ursa e depois recolhida e criada por caçadores. Tornou-se também caçadora, protegida por Artêmis. Muito ágil,
era tão rápida "que poderia competir com os deuses Hermes e Íris" os deuses mais rápidos. Como uma profecia afirmava que seria amaldiçoada e
transformada em um animal ao se casar, Atalanta permaneceu virgem. Para demover os pretendentes, seu pai determinou que ela poderia se casar apenas
com quem a vencesse na corrida. Os que fossem derrotados seriam mortos por Atalanta, que os trespassava com uma lança. Muitos jovens já haviam
perdido a vida tentando derrotar Atalanta, quando surgiu um novo pretendente de nome Hipomene, filho de Megareu. Hipomene pediu a ajuda
de Afrodite que lhe deu três pomos (maçãs) de ouro, para que este os deixasse cair, um a um, no decorrer da corrida com Atalanta. Quando Atalanta via os
pomos no chão, deslumbrada com sua beleza, parava para apanhá-los, fazendo com que Hipomene passasse à sua frente. Desta forma Hipomene venceu
a corrida e se casou com Atalanta. Tiveram um filho, Partenopeu, que tomou parte na primeira expedição contra Tebas.

128
Ninguém se equivocaria e tomaria Lorde Longmore por um prodígio intelectual. Mesmo
assim, sendo um homem simples, podia-se aferrar a uma ideia e não deixá-la ir. Sophy tinha dirigido
facilmente quando Lady Durwich se referiu aos DeLuceys. Distrair Longmore tampouco era difícil.
Sabia que não importaria muito que ela fosse uma espantosa DeLucey. Tampouco
importaria que os Noirots fossem igualmente de pouco respeitáveis. O problema era que como não se
importava, não pensaria que seria importante que guardasse para si tal fato. Se pudesse tirar
totalmente da mente dele – onde ela acreditava não haver muito espaço – seria menos provável que
especulasse em voz alta com os amigos.
A Odisseia os manteve até as duas mudanças de posta seguintes. Então Longmore decidiu
que ela parecia cansada e faminta. Enquanto se serviam de uma refeição rápida em uma hospedaria,
disse ela que descansasse.
—A lua apareceu cedo a tarde e permanecerá até altas horas da manhã. Preciso me
concentrar para conduzir, e as fantásticas aventuras dos heróis gregos me distraem muito. E Fenwick
precisa dormir.
Manteve os cavalos a um passo regular e os deixou trotar nos trechos planos. De vez em
quando assinalava lugares de interesse, alguns eram fantasmagóricos à luz da lua, como a Fossa do
Diabo, ou forcas na beira da estrada.
Mas, a maior parte do tempo viajaram em um silêncio cômodo. Duas vezes despertou e
descobriu que dormiu no ombro dele. Não era uma pequena façanha. Inclusive com excelentes molas
e uma manutenção escrupulosa, nenhuma viajem de carro era suave.
A segunda vez que despertou, afastou-se rápido, e ele riu e disse,
—Eu sabia que estava cansada.
—É o vaivém.
—Melhor será que durma se puder. Falta uma boa distância. Só espero poder chegar a
Portsmouth antes que a lua se ponha. Não morro de vontade de percorrer ruas que não conheço antes
do amanhecer.

129
Capítulo Dez

Na realidade, feliz será o visitante afortunado que estiver na Plataforma quando um casco de
navio de guerra de primeira categoria deixe o porto. E gozará de uma das vistas mais grandiosas do mundo,
observando o castelo majestoso deslizando nas águas, ouvindo o assombroso som de seus canhões, quando
ao passar saúda a bandeira da guarnição.
—O novo Portsmouth, Mar do Sul, Guia da Ilha de Anglesey & Hayling, 1834.

A lua se estava se pondo quando chegaram a Portsmouth. Tudo o que Longmore devia
fazer, era manter-se na via principal. Ao longo da Rua High havia muitos estabelecimentos que
pareciam muito prósperos. Para o alojamento, podia-se escolher entre A Fonte e o George, as duas
maiores pousadas para coches. Se decidiu pelo George porque o Correio Real partia dali. Além disso,
havia sido recomendado à camareira de Clara.
Depois de mandar Fenwick a mexericar com os criados e rapazes dos estábulos,
Longmore levou Sophy à hospedaria.
Estava seguro que teria que apoiar-se principalmente em Fenwick já que o estalajadeiro
de uma hospedaria ocupada em uma cidade agitada – ainda acordado e ocupado inclusive a esta hora
– provavelmente não recordaria às duas mulheres. Se Clara se comportasse como fez anteriormente,
deixaria que Davis contratasse o quarto e arrumasse as refeições e essas coisas. As mulheres feias
tendiam a passar despercebidas.
O hospedeiro não lembrava de duas mulheres viajando sozinhas, e o livro de hospedes
confirmou isto.
Longmore se afastou para falar com Sophy.
—O melhor é que nos detenhamos. Pouco poderemos fazer a esta hora.
—Mas você disse que o sol sairia logo, pelas quatro. —E levantou o relógio que
pendurava do cinturão—. E são duas e meia.
—E você parece como o próprio diabo. Precisa dormir.
—Dormi no carro.

130
Tinha dormido no ombro dele, e os adornos absurdos do chapéu fizeram cócegas em seu
queixo de vez em quando. Afundava cada vez mais, até que chegado a um ponto, despertava com um
salto.
Pensou que era adorável – um pensamento estranho a respeito de Sophy, mas assim era.
Uma jovem complicada. Isso a fazia muito interessante. Isso e a boca deliciosa, e o aroma, e a figura
perfeita.
—Não foi um sono adequado. O caso é que parece como um diabo. —E ignorando seus
protestos, pediu um quarto e ordenou uma refeição também. E uma criada. Alguém tinha que lhe
tirar a roupa e colocá-la à cama. Melhor que não fosse ele, ou ninguém descansaria.
Sophy teve uma lembrança muito imprecisa do que aconteceu ao chegarem à estalagem.
O cansaço se acumulou em uma enorme onda que esteve se formando durante semanas.
Simplesmente a dominou. Mal pôde manter os olhos abertos, menos ainda continuar discutindo com
Longmore.
Sim lembrou dos cuidados com ela, e dando ordens a todos. Tinha insistido em uma
criada para ela, a recordava vagamente como tagarelava enquanto subia as escadas. Longmore fez
que subissem algo leve e ela comeu surpreendida por quão faminta estava. Lavou-se e despiu – e
considerando a hora – com a ajuda extremamente alegre e paciente da criada. Longmore deve ter lhe
haver dado uma gorjeta formidável.
Com o cansaço que estava, Sophy não esperava dormir. Quanto mais se prolongava a
busca, mais ansiosa ficava por Lady Clara. Tinha persuadido Longmore que sua irmã estava a salvo
com Davis cuidando dela, mas não tinha conseguido convencer a si mesma. Entretanto, deve ter
dormido porque despertou com o ruído. Estava tão grogue que levou um tempo dar-se conta que
alguém estava batendo a sua porta.
Sentou-se de repente, com o coração pulsando forte, e viu o sol entrando em torrentes
pela janela. Quanto tempo dormiu?
Levantou-se tropeçando, encontrou a bata em uma cadeira próxima, estava a colocando
quando ouviu a voz de Longmore.
—Onde está essa empregada?
Sophy correu à porta e a abriu.
Longmore estava no corredor vestido com a mesma roupa que estava usando quando
chegaram. Não tinha dormido? Por certo que não se barbeou. A sombra em sua mandíbula o fazia
parecer mais perigoso que nunca.
—Clara está aqui.

131
—Aqui? Na estalagem?
—Não. Quer dizer, se estiver, ninguém me disse. Mas não saiu de Portsmouth ainda. Não
deveria ter acordado você...
—Não deveria ter me deixado dormir, — ela disse.
—Preciso de sua ajuda. As pessoas ficam nervosas quando um homem parece andar à
caça de uma moça. Não são francos. Fenwick carece de seu método encantador para extrair
informação dos resistentes, e eu tenho problemas controlando meu temperamento.
—Esteve procurando sem mim, — disse com um tom de recriminação.
Ele parou na soleira e ela retrocedeu dois passos. Ele baixou a vista a seus pés. Estavam
nus.
—Onde estão suas sapatilhas?
Sem esperar uma resposta foi até a cama, encontrou as sapatilhas e assinalou uma cadeira.
Ela se sentou.
—Eu posso pôr minhas próprias...
—Nem sequer está acordada. — ajoelhou-se, pegou um pé e pôs uma sapatilha. Fez uma
pausa e ficou com a vista fixa pelo que pareceu ser um longo tempo.
—Estou acordada. Eu posso fazer isso.
Saiu de seu transe, pôs a outra sapatilha e se levantou.
—Não deveria andar correndo descalça nas hospedarias públicas.
—Não estava correndo, e você não deveria procurar sem mim.
—Precisava dormir. Apostaria qualquer coisa que o necessitava faz tempo. Tem umas
horas ridículas.
—Sou uma mulher que trabalha.
—Deveria deixar de fazê-lo.
—O que?
—Tudo isso é absurdo. Sua irmã se casou com um duque. Disse a Clevedon… — ficou
calado.
—O que lhe disse?
—Isso não importa agora.
—É obvio que me importa neste momento.
—Quer encontrar Clara, ou prefere brigar?
—Provavelmente ambos.

132
—Não me irrite. Não tenho tempo para enforcá-la. Fenwick e eu levantamos justo ao
romper da alvorada.
—Sem mim.
—Sem você. Um canhão infernal disparou. Informaram-me que o faz duas vezes ao dia.
À saída do sol e quando se põe. Depois disso não tive nenhuma razão para tentar dormir. Levei
Fenwick ao cais. Demorei um momento em encontrar a área que queríamos, mas conseguimos.
Descobrimos que navios de passageiros haviam partido, desde que Clara pôde ter chegado. Ficamos
bastante convencidos que não estava a bordo e nenhum. Mas posso explicar tudo isso depois. Só vim
dizer que se apresse.
—Muito bem.
Levantou-se da cadeira e foi ao lavatório. Apesar de despertar bruscamente, ainda estava
adormecida. Esvaziou água e molhou o rosto. Isso melhorou um tanto as coisas. Estava se secando,
quando o viu atrás dela, no espelho.
—Não pode se apressar mais?
—Vou demorar pelo menos meia hora sem a ajuda da criada.
—Não sei aonde foi nem o que está fazendo. Tudo o que sei é que quando perguntei me
disseram “Imediatamente”, pode significar horas. O lugar parece uma casa de loucos. A grande
maioria das criadas parecem estar na sala de jantar, correndo frenéticas de lá para cá, servindo o café
da manhã.
Assinalou o traje de viagem que tinha usado ontem, e que a criada havia colocado
cuidadosamente em uma cadeira.
—Coloque este mesmo? Não vamos a um desfile de modas.
—Não posso chegar e colocar isso. Como pode ser tão obtuso?
—Muito fácil. Não se requer nenhum esforço.
Depois, quando tivesse tempo e pudesse ver mais claro, ia bater nele com algo mais
pesado que um tijolo.
Encontrou a regata, as anáguas e o espartilho e os deixou em cima da cama. Cansada e
zangada – talvez porque fosse ela que não podia resistir brincar com fogo – e talvez por ser quem
era, tirou a bata e em seguida a camisola.
Faria o mesmo se estivesse com suas irmãs, e apressada por ir a alguma parte. Estava
muito consciente que não estava com as irmãs.
—Maldição!
Olhou-o para trás enquanto colocava a regata. Ele tinha dado as costas a sua nudez.

133
Era divertido. O humor melhorou um grau.
—Poderia tentar ir procurar uma criada, — disse.
—Nunca.
—Então olhe. Não me importo. Não sou modesta.
Não era mentira. Só porque fazia roupa para viver não significava que fosse tímida
quando estava nua. Inclusive na frente dele. Ou melhor, especialmente na frente dele. Afinal era uma
Noirot.
—Não estou olhando. Eu tampouco sou modesto, mas preciso manter a cabeça limpa. Por
Júpiter, você é o próprio diabo mesmo.
Ela colocou a calcinha e se amarrou as fitas à cintura. Em seguida, colocou as anáguas.
Colocou o espartilho em cima da cama e começou a passar a fita.
—Por que demora tanto? — E se virou—. Em nome de Satanás e todos seus seguidores, o
que está fazendo?
—É um dos novos espartilhos que Marcelline inventou. A própria pessoa pode amarrar
para cima. Mas a criada não entendeu como funcionava e parece que eu estava muito cansada para
explicar claramente. Desfez o laço e, e preciso...
—Eu posso amarrar. Na realidade sou bastante bom nisso.
—Não me surpreende. — Deslizou o espartilho pela cabeça, e os braços pelas alças.
Puxou para baixo e o acomodou.
Enquanto ajustava as alças, Longmore começou a ajudá-la por trás.
—Começa-se por acima e se amarra embaixo. Assim a pessoa só tem que colocar o e
puxar para frente.
—Que engenhoso, — disse ele.
—Mas a garota desfez o nó e arrumou errado.
—Estou vendo.
Ela estava consciente das mãos dele na parte baixa de suas costas enquanto amarrava.
Sentiu-o passando a fita pelos ilhós enquanto subia por suas costas, puxando com precisão.
É obvio que era hábil para isso. De quantas mulheres os tinha tirado?
Sentia as mãos masculinas quentes nas costas. A respiração dele também era quente na
parte posterior do pescoço. Os pêlos da nuca arrepiaram.
Quando terminou não se afastou imediatamente. Apoiou as mãos em seus quadris. Estava
tão perto que pôde ouvir como acelerava a respiração. Pôde sentir o calor de seu corpo enorme – ou
era seu próprio calor? Estava tão perto que só podia se inclinar muito pouco para trás…

134
O coração se apressou e o diabo que ela tinha em seu interior, nublou-lhe a mente,
apressando-a para que se inclinasse para trás. Não deseja essas mãos destras, capazes, sobre seu
corpo, em sua pele? Parecia sussurrar. Não deseja esse corpo poderoso sobre o seu? Dentro do seu?
Logo a minúscula voz, a que a prima Emma havia metido gradualmente, argumentou: E o
que ocorre com seu poder se sucumbir a isto?
Já havia se entregue a seus demônios interiores e brincado com fogo: tirou a camisola e
dado a ele uma visão total dela. Era uma loucura irresponsável – inclusive para ela – esquecer por
que estava ali.
Lady Clara.
Tudo dependia dela. A loja. O futuro de todas elas. O êxito ou o fracasso humilhante.
Dowdy triunfando sobre elas, rindo delas.
Desolada, recorreu a sua força de vontade.
Ele a virou, tirou as mãos do espartilho, deu outro puxão, e rapidamente o amarrou à
frente.
Afastou-se e colocou uma das mangas fofas.
—Diabos! Deve fazê-lo? — A voz era rouca, baixa, perigosa e fez que a mente se
espessasse.
Ela levantou a cabeça. Ele passava os dedos pelo cabelo.
Ela queria arrancar o cabelo. Mas era uma Noirot.
—Notou o tamanho de minhas mangas? — disse calmamente —. Sem os enchimentos, o
vestido parecerá que uso saias penduradas nos ombros. — Deslizou um braço em um dos
enchimentos—. Disse que as pessoas ficam desconfiadas com você. Olhou-se bem ao espelho? Pelo
menos um de nós deve parecer respeitável. E não demorará muito. Leonie as criou.
—Todas vocês são muito criativas.
Começou a amarrar a fita a alça do espartilho.
—Por que tem que usar algo tão complicado?
—Isto é o que usaria uma de suas queridas amiguinhas que andam na moda, — disse com
paciência—. Embora, duvido que suas roupas sejam tão bem feitas. Nem tampouco estarão nem
perto da última moda.
—Deixe-me fazer isso. Você poderá ser inusitadamente flexível, mas posso ver melhor.
Enquanto a ajudava, ela ajustou as mangas à regata, e arrumou as bordas.
Entretanto, quando tomou uma meia, ele retrocedeu.

135
Mas não se virou. Sophy estava totalmente consciente de seu olhar escuro fixo nela
enquanto subia as pressas as meias e prendia as ligas.
Assim que ficou pronta, ele agarrou o vestido e o pôs pela cabeça. Tentou preencher as
mangas, e soltou uma maldição.
—Não há espaço, maldição! é como tentar passar um travesseiro por uma fechadura.
—Aperte os enchimentos. Estão cheios com plumas. Diminuirão o bastante. Mas tem que
fazer com cuidado.
—Nunca vi um objeto de vestir mais idiota.
—Não é tão difícil. Só tem que se acalmar.
—Para você é fácil falar..
Era fácil falar. Sentir era outra coisa. Ela não estava nada calma. Nunca um homem a
ajudou a vestir-se nem a despir-se. A intimidade era quase dolorosa.
—Eu farei a esquerda e você se encarrega da direita.
Trabalharam rápido, em silêncio. Quando terminaram, ele sabia o que fazer com todo o
resto. Inclusive se agachou para alisar e esticar a saia.
Em seguida se levantou de um salto, tomou o chapéu e o colocou na cabeça, amarrou as
fitas e a empurrou à porta.
—Minhas botas, — ela disse—. Minhas botas.
Olhou os pés com as sapatilhas.
—Isto é diabólico, — disse.
Encontrou-as, a empurrou a uma cadeira, calçou e amarrou as botas. Logo segurou-a pela
mão e a levantou de um puxão tão abruptamente que foi contra ele.
Seus braços a rodearam, disse alguns impropérios mais e se afastou de um salto como se
ela estivesse poluída.
—Com certeza está fazendo isto para me deixar louco.
E eu o que?
Tinha sido beijada por outros homens, mas ele lhe mostrou um mundo inteiramente novo
de beijar.
Mas essa intimidade não tinha nada a ver com isto, ele tocando sua roupa interior, sua
roupa, tudo o que tocava seu corpo. Ela tremia por dentro.
Por fora era uma Noirot.
—Poderia ter mandado uma criada.

136
Ele foi a grandes passos à porta e a abriu. Enquanto estava ali, respirando agitado,
vibrando de impaciência, ela encontrou as luvas e a bolsa. Quando cruzou a porta, ele disse algo em
voz baixa que estranhamente soou a francês.
Longmore levou Sophy à Rua Broad, em cujos hotéis os passageiros podiam obter
passagens a distintos pontos.
Foi assombroso que não se perdesse considerando que havia destruído o cérebro. O que
restava em todo caso.
Não era um homem que se impressionasse facilmente.
Ela tinha deixado-o atônito.
Simplesmente tirou a camisola e pôs uma regata – inteiramente, esplendidamente! – nua.
Tinha-a visto de perfil, e a imagem ficou como uma marca de fogo em sua mente: pele
suave, cremosa e seios perfeitos, e as nádegas mais lindas que tinha visto em toda sua vida, que não
foram poucas.
Logo, ter que ajudá-la a se vestir…
O espartilho perverso. Quando terminou, as mãos tremiam de tanto lutar consigo mesmo
para não desfazer tudo o que havia feito.
Preferiria ter lutado com um botequim cheio de marinheiros bêbados.
Logo as condenadas mangas cheias, ter que alcançá-las através do decote para colocá-los
no lugar.
Ia enforcar a sua irmã. E Adderley.
Enquanto isso, Sophy lia calmamente um guia de Portsmouth que ele tinha comprado em
George umas horas antes.
—Esta foi uma excelente ideia, — disse, soando surpreendida.
—Tenho-as de vez em quando. Não sou do tipo de viajante que goste das guias, mas
estive raramente em Portsmouth. Nas corridas de Goodwood ou de Soberton, quase sempre, mas
aqui, quase nunca. Pensei que a informação seria mais confiável que a de um hoteleiro ocupado
pudesse dar, e sabia que seria uma grande perda de tempo andar sem rumo, perguntando por Clara
em cada hospedaria e escritório de venda de passagens. Esse livro, como pode ver, diminui as
possibilidades.
—Só dois navios a vapor partem no domingo, — disse ela, baixando o dedo pelo índice
da página dos vapores—. Um a Ryde.
—Duvido que a Ilha de Wright seja suficientemente longe para ela, — Longmore
pronunciou.

137
—Há outro que vai a Irlanda aos domingos, também. Daqui a Plymouth, Cork, e depois a
Liverpool. —Olhou-o—. E chega aqui pela manhã.
—Pode-se assombrar que a apresse? Mas os navios que partem mais cedo não o fazem
antes das sete. E fica quase meia hora. O que vai Ryde o faz às oito. Entretanto não acredito que seja
tão estúpida para percorrer todo o caminho a Portsmouth só para viajar a Ryde. E se o fizesse, para
que levantar-se tão cedo, quando há vários botes que vão a Ryde durante o dia? Clara igual a mim,
não se levanta cedo.
—Se não pôde dormir, levantar-se-á cedo. Em todo caso, devemos começar com os
navios do domingo. O que vai a Irlanda parte de um lugar chamado Blue Posts. Começamos por aí?
—Pensei que escolheria primeiro a Irlanda e o Continente os. Mas no caso que decidisse
ir à Ilha Wright, mandei Fenwick a taberna do Quebec. A descrevi, e lhe disse que fizesse uma cena
se aparecesse e fosse embarcar. Não duvido que pensará em algo. Ofereceu fingir que tinha fome e
desmaiar aos pés dela – e se apressou em assinalar que não seria tão difícil porque não tinha tomado
café da manhã.
—Tampouco dormiu muito. Não posso acreditar que o tenha levado e me deixou na
hospedaria.
—Dormiu na parte de trás do carro. Provavelmente foi o beliche mais cômodo que
dormiu no último tempo. —Logo se deu conta que também estava sem tomar o café da manhã—.
Encontraremos algo para comer no Blue Posts.
Aos domingos chegavam visitantes a Portsmouth a explorar as ruínas descritas na guia
que Longmore havia passado a Sophy: as fortalezas, igrejas e navios – sobretudo o Victory, o famoso
navio de Lorde Nelson. Entretanto, no domingo era um dia lento para navegar, e a esta hora da
manhã, não teria que competir tanto por chamar a atenção, contra as multidões de viajantes ansiosos
ou preocupados.
Sophy e Longmore se inteiraram logo que Clara não tinha reservado uma passagem para a
Irlanda. Ainda não. Nenhum par de mulheres aparecia na lista de passageiros desta manhã.
Havia tentado e fracassado, conseguir um beliche na Linha Americana que ia a Nova
Iorque.
—Eu não gostei do assunto, — o agente explicou a Sophy—. Qualquer um podia ver que
era uma dama, não é? – assim como se podia ver que a outra não era. Sabia que algo não andava
bem. Quase não tinham bagagem. Foi fácil rechaçá-la. Não tinha nenhum papel para viajar, não é
mesmo? Nunca passariam pelos oficiais da Alfândega e disse. Também disse que qualquer que fosse
seu problema, só pioraria, sendo uma estrangeira em uma terra estranha. Para mim era muito óbvio

138
que era uma moça bem educada, e a outra não era sua tia. Não Nasci ontem, não é verdade? Espero
que a encontre antes que se meta em um problema do qual não possa sair.
Clara havia encontrado um rechaço similar quando tentou fazer reservas em um vapor que
se dirigia ao Havre.
Sophy e Longmore estavam dirigindo-se ao seguinte escritório de venda de passagens na
lista, quando um menino esfarrapado correu para eles e se deteve.
—Vocês são os que procuram as duas mulheres? Uma alta e bonita? A outra feia e que
parece um bulldog?
—Sim, — Sophy disse.
—Isso pensei. Parecem-se com o que me disse – um cavalheiro alto e sombrio, e a dama
com olhos azuis grandes e muita roupa elegante. Tenho que dizer que Louco Dick diz que as
encontrou e que vão rápido a Taberna Quebec, já que não sabe se poderá mantê-las ali. Muitos
oficiais e coisas desse estilo que o olham feio.
Encontraram Clara no embarcadouro, passeando de um lado a outro, enquanto a criada
montava guarda à penosa pilha de pertences. O dia era quente, mas soprava uma brisa forte, e ela
parecia proteger-se contra isto, cruzando os braços. De vez em quando, olhava a água. A Sophy
pareceu pálida e doente.
A empregada os viu primeiro, mas Longmore lhe fez um gesto com a mão para que
ficasse calada.
Fenwick estava sentado em uma caixa com o queixo em uma mão, observando Clara. Tal
como reportou, havia um número de oficiais navais ao redor. Todos o observavam, e não tentavam
fingir que não estavam fazendo. Ele parecia bastante cansado. Dois dias de viagem tinham restaurado
sua sujeira e o aspecto geral de estar tramando algo nada bom.
Longmore se aproximou e disse:
—Ah, aqui está, Clara, — e com o som de sua voz, Clara se sobressaltou—. percorri toda
a cidade procurando-a.
Ela se equilibrou sobre ele, que abriu os braços, mas em vez de aceitar consolo, começou
a lhe bater no peito.
—Não, — dizia ela—. Não, não, não.
—Que diabos?
—Não vou voltar, — dizia ela—. Não pode me fazer voltar.
—Então, aonde pensa ir?
—Não sei. A qualquer lugar. Qualquer lugar exceto para casa.

139
A cena rapidamente chamou a atenção.
Sophy decidiu que era tempo de intervir. Avançou para o oficial naval mais forte e
próximo, deu um pequeno chiado e desmaiou.
Longmore notou que foi uma perda de consciência estratégica. Assegurou-se de cair nos
braços de um sujeito bonito e musculoso. Por um momento, inclusive Longmore acreditou. Sabia
que estava cansada até um grau perigoso – inclusive ele mesmo estava cansado, e não teve que
trabalhar longas horas antes de partir – e a tinha apressado e tirado da estalagem tão cedo.
Mas Clara correu para ela, exclamando,
—Senhorita Noirot, está mau? Pobrezinha. Meu irmão é tão bruto.
Com isso, os olhos intensamente azuis piscam e se abriram.
—Querida, é você? estivemos tão preocupados. — desprendeu-se graciosamente do muito
bonito oficial.
—Está bem, senhorita? — Perguntou.
—Oh, sim. Um pouco enjoada no momento, — disse com uma voz tênue.
Longmore se adiantou.
—Ela está bastante bem. Não tomou café da manhã, isso é tudo.
Nesse momento houve uma rajada de vento e as duas jovens agarraram seus chapéus,
enquanto suas saias voavam, outorgando aos curiosos uma visão excitante de anáguas de renda e de
tornozelos bem torneados.
O olhar do oficial naval saltava de um par de tornozelos ao outro.
—Fenwick, ajuda a camareira com as bolsas, — disse Longmore—. Damas, acredito que
já entretivemos audiência o suficiente.
O rosto de Clara adotou a expressão de teimosia habitual
Sophy disse:
—Seja razoável, minha querida. Não pode ir de viagem só com isso. — E ondeou a mão
apontando o patético montinho de suas coisas—. Não terá nada que usar.
Para assombro de Longmore, funcionou. Clara olhou as bolsas, à criada e logo Sophy.
—O que você precisa é um brandy, — disse Sophy.
—Sim, — respondeu Clara.
—Vamos ao hotel, — Sophy continuou.
O lábio inferior de Clara tremeu.
—Prometo que tudo se arrumará. Falemos disso em um lugar cômodo.
—Falar não ajudará em nada.

140
—Sim, fará, — e Sophy disse com tanta convicção, que até Longmore acreditou.
Voltaram para o George onde Longmore conseguiu uma sala de jantar privada. Primeiro
ordenou brandy. Se embebedar a irmã a fizesse cooperar, faria com gosto.
Não precisou muito. Depois de um copo, Clara relaxou. Sentou-se perto de Sophy.
—Sente-se um pouco melhor? — Sophy perguntou.
—Não posso suportar voltar. Não há outra forma?
—Vamos arrumar o assunto. Minhas irmãs e eu, e o faremos belamente, tal como
fazemos a roupa. Mas preciso entender tudo o que aconteceu. Pense que estou tomando medidas, e
testando as cores perto de seu rosto.
—É muito fácil. Estava zangada.
—A respeito do que?
—Algo estúpido. Não tem importância.
—Um homem?
Seus olhares se encontraram.
—Muito bem, — Sophy disse—. Não é relevante.
—Por que não? — Longmore interveio.
—Porque, — Sophy lhe deu um olhar. A mensagem foi tão clara como se o tivesse
agarrado pelas lapelas e houvesse dito, Não diga nada. Não faça nada.
Ele se retraiu. Não alegremente. Mas eram mulheres e desconfiava deixar sozinha a irmã
outra vez.
—Continue, — Sophy disse a Clara.
—Estava zangada. E Adderley estava ali com champanha. Bebi muito rápido e dançamos
e me senti tonta.
—Ele a embebedou, — Longmore disse.
Clara o olhou furiosa.
—Não se atreva a me dar um sermão.
—Não ia...
—E não me diga que não deveria ter ido ao terraço com Adderley. Vi você escapulir com
mulheres – inclusive no Palácio St. James!
—Sou um homem, e não o faço com meninas inocentes.
Olhou direto Sophy.
Ele não tinha feito beber. E ela não era uma inocente.

141
Podia ser um pouco mais inexperiente com alguns dos aspectos mais íntimos, mas estava
seguro que sabia mais dos homens que Carlotta O’Neill.
Em todo caso as garotas inocentes não tiravam a camisola na frente dos homens.
Talvez as costureiras o fizessem. Vestir e despir era negócio, depois de tudo.
Talvez ele a tivesse instigado… inadvertidamente. Tinha-a despertado de um sono
profundo, introduziu-se em seu quarto e esperado que se vestisse em um abrir e fechar de olhos.
Talvez o fez para repeli-lo.
Talvez. Talvez. Por que diabos tinha que pensar a esta hora?
—Achei que fosse conversar, — Clara estava dizendo—. Pensei que ia me dizer quão
maravilhosa eu era, e queria escutar isso, porque não me sentia… bonita. Sentia-me grande e torpe.
—Não é tão grande, — Longmore disse.
—Lady Clara não é grande nem torpe, mas assim se sentia, — Sophy disse.
—Sentimentos. — disse ele.
—Sim.
Sentou-se para trás, e bebeu brandy.
—Pensei que Lorde Adderley poderia me roubar um beijo. E estava zangada… e
sentindo… não sei.
—Desafiante, — Sophy disse.
—Sim. Mas não me roubou um beijo mas algo completamente diferente. Não estava
segura de gostar, mas era excitante, porque sabia que era errado. Mas logo tudo aconteceu tão rápido
– e havia toda aquela gente. Em seguida chegou Harry, e sabia que mataria Adderley.
—Teria tentado. Mas suspeito que a senhorita Noirot teria vindo atrás de mim com uma
cadeira ou um suporte de vasos – ou teria chiado e desacordado.
—Teria gostado de saber, — Clara disse.
—Então você não estava tentando protegê-lo. Sabia que não era… verdadeiro.
—As lágrimas sim eram de verdade. Estava aterrada por meu irmão.
—Por mim? Com aquele molengo...?
—Nunca pensa nas consequências. Perderia a calma e o mataria. Logo teria que fugir ao
Continente. Mas nunca fugiu de nada. O julgariam e o condenariam à forca por matar um homem
indefeso.
Longmore ficou olhando a irmã.
—Estava me protegendo? A mim?
—Alguém tinha que fazer, — ela disse.

142
—Por Deus santo, Clara.
—Como ia saber que a senhorita Noirot entendeu e sabia o que fazer? Nem sequer sabia
que ela estava lá. — Olhou Sophy—. Onde estava?
—Melhor não saber, — disse ele—. Terminamos já de falar de nossos sentimentos?
Porque já tive suficientes revelações por um dia. Além disso, vocês parecem que já tiveram
suficiente, também. A aparência de vocês é tão ruim...
—Harry!
—Ambas parecem como o demônio. Recomendo uma dose de sono embelezador pelo
resto da manhã. Se formos ao meio dia, estaremos chegando em Londres esta noite.

143
Capítulo Onze

Um Cabriolet… é na realidade uma recreação do antigo Carro-de-um-Cavalo… Transporta duas


pessoas comodamente sentadas, amparadas do sol e da chuva, entretanto com abundante ar fresco e com
quase a mesma privacidade que tem um carro fechado, quando se fecham as cortinas da frente. Pode entrar e
sair de lugares onde uma carruagem de dois cavalos e quatro rodas não pode dar a volta.
—William Bridges Adams, Carruagens Inglesas de Prazer, 1837.

—Isto é enlouquecedor, — Longmore disse a Sophy enquanto se afastavam de outra


hospedaria de postas—. Não temos uma prece para chegar a Londres antes da alvorada.
Sua irmã conduzia adiante e estabelecia o ritmo. As geleiras se moviam mais rápido.
—Você disse que ela viajaria lentamente, — Sophy disse—. Disse que necessitaria um
cavalo poderoso, e as hospedarias os tinham para os carros de postas e os do Correio Real.
—Nunca me ocorreu que recusaria trocar o dela. Mais de cento e doze quilômetros de
Portsmouth a Londres. Estava disposto a subornar os tratadores de cavalos para lhe conseguir os
cavalos que necessitaria. Estimei um dia de viagem. Mas não considerei que insistiria em manter o
dela.
Os homens se sentiam orgulhosos de dirigir qualquer tipo de besta. Mas Clara não se
imaginava ser uma. Queria a besta que era familiar. E isso significava paradas extensas para que a
criatura se refrescasse e descansasse.
—Eu posso entender que arraste os pés, — Sophy disse —. Antes, a emoção a movia.
Provavelmente é como estar em uma briga. A pessoa não pensa muito que o possam ferir, não é
verdade?
—É obvio que não. O único que interessa é demolir o outro sujeito.
—Ela tampouco pensava muito no perigo ou dificuldades. Nadou em águas profundas.
Agora a margem está muito, muito longe. E tudo o que vê lá, são problemas.
—Sei que se sente desgraçada, — disse tenso—. Mas não há uma maldita coisa que possa
fazer neste momento.

144
—Ninguém pode fazer algo neste momento. Eu só gostaria de saber conduzir. Poderíamos
trocar de lugar de vez em quando.
Ele sacudiu a cabeça.
—Embora soubesse, odiaria conduzir um Cabriolé. É um carro bonito e elegante para
uma dama passear em Londres. Mas não foi feito para viagens longas. Rapidamente se torna
incômodo. Antes estava muito alterada para notar, mas agora estará captando as sacudidas em todo o
corpo.
—Quanto falta?
—Não percorremos nem meio caminho. — E o sol estava aproximando-se do horizonte.
—Acha que deveríamos forçar? Não sei nada sobre conduzir, e você é um perito. Não me
importa viajar todo o dia, mas para sua irmã é diferente.
—Totalmente diferente, — e seguiu explicando o desenho do veículo, suas vantagens e
desvantagens, e concluiu declarando—, O comprei para que o usasse em Londres. Não para que
cruzasse o país – e sobre tudo, sem seu cocheiro!
—Mas o fez.
—Estou surpreso, devo dizer. Nem sequer acreditei que Clara pudesse colocar as meias,
sozinha.
—Não acredito que possa, — disse Sophy.
—Contou como o fez?
—Não.
Clara tinha compartilhado o quarto de Sophy. Tinham dormido na mesma cama, como
irmãs.
Muito estranho. Mas Clara confiava nela. Ou estava encantada com ela.
Mas não fazia nenhuma diferença.
—Disse algo mais coerente que o que disse pela manhã?
—Acredito que foi bastante coerente. Não preciso saber mais. Agora entendo
perfeitamente. Em todo caso pensei que o descanso lhe faria melhor que falar. Amanheceu com
melhor ânimo depois que dormiu.
—E você? Sente-se melhor?
Ela se via de uma cor um pouco azul pálido.
—Sinto-me aliviada que a tenhamos encontrado. Que não lhe tenha ocorrido nada. Só
estou esperando uma brilhante solução para o problema.

145
Nenhuma solução brilhante tinha ocorrido quando pararam em As Armas do Rei em
Godalming. O céu estava escurecendo, e segundo o livro de rotas de Lady Clara estavam a cinquenta
e dois quilometros e meio de Londres.
—Pararemos em Guilford, — Longmore lhes disse—. Há muitas hospedarias, e sei que
podemos contar com um bom jantar e quartos decentes, em várias. —Olhou a irmã que parecia
esgotada e intensamente desventurada—. São só seis quilômetros e meio, Clara. Encontraremos
melhores habitações que aqui. E dali é um percurso curto a Londres, amanhã. Pode tolerar?
Ela levantou o queixo.
—É obvio que posso. Conduzi até Portsmouth, não é verdade? Posso conduzir muito bem
a c-casa.
O tremor ao final disse a Sophy tudo o que precisava saber. Deve ter dito algo a
Longmore, também, porque lhe enrugou o cenho. Mas disse bastante firme:
—Eu irei na frente desta vez. Se tiver dificuldades ou se sentir-se mau, faz um sinal a
Fenwick, e ele nos avisará.
Virou-se para dizer ao menino que se sentasse olhando para trás e que vigiasse bem o
Cabriolé se por acaso tivesse dificuldades.
—Não se sentirá mal viajando dessa forma.
—Mau? — Fenwick disse com desprezo—. Com tão pouco?
Sophy não duvidou que passaria bem entretendo às mulheres, fazendo caras e tentando
vários truques capazes de fazê-lo aterrissar de cabeça no caminho.
Isso, pelo menos distrairia Lady Clara de sua miséria.
Um momento depois, quando estavam de volta no caminho, Longmore disse,
—Quando chegarmos a Guilford, o melhor é que mande uma mensagem rápida ao
Valentin. Assim a família não ficará em pé toda a noite esperando-a. Saberão que está a salvo, e
poderão ir à cama e descansar.
Sophy o olhou.
—O que passa agora? — disse ele.
—Ela tem sorte que você seja seu irmão, e seus pais têm sorte por tê-lo como filho.
Ele riu.
—É verdade, — ela disse—. Até certo ponto.
—Até certo ponto.
—Muitos homens não entenderiam nada.
—Eu não entendo. Não entendo nada.

146
Entretanto era amável, inesperadamente cordial. Os homens nem sempre o eram. Não
necessariamente queriam ser cruéis. Mas estavam tão acostumados a que o mundo rodasse de acordo
a seus desejos que nunca notavam quando rodava sobre as mulheres, as esmagando.
—Entende que sua irmã precisa ajuda, sem julgar. Isso é uma grande coisa.
Ele riu.
—Que engraçado! Quem sou eu para julgar alguém, pergunto-me? Se não fosse por
Clevedon, teriam me expulsado do colégio uma centena de vezes. Como filho mais velho e herdeiro,
deixo muito a desejar.
Ela pensou que ele era elegante e excitante, mas ela não era como os membros da classe
dele. Era uma Noirot, ousada, e gostava de quebrar regras. Segundo as exigências do mundo dele, ela
sabia que era primitivo.
—A política em aborrece. A filantropia significa um montão de comidas ruins e
aborrecidas, e discursos solenes. Não é nada entretido. Você pensaria que a armada seria promissora,
já que oferece tantas oportunidades para brigar. Mas não. Inclusive um oficial deve obedecer ordens.
Intolerável.
—A igreja não é apropriada para o filho mais velho, eu sei, —disse ela—. De outra
maneira seria perfeita para você, não é verdade?
Ficou olhando-a.
—Sim. Deixe-me pensar, — continuou ela —. Lorde Longmore nas sagradas ordens. Hei
aí um quadro.
Ele riu, e as linhas de preocupação no rosto bonito de pirata desapareceram.
—Que possibilidades tão horrorosas têm vocês os aristocratas. Estou começando a sentir
pena de você. Você poderia chegar a ser um pugilista ou um engolidor de espadas no circo...
—Circo!
—Ou um pirata ou um assaltante de estradas ou um condutor de carros.
—Na realidade, a vida é mortalmente aborrecida às vezes, senhorita Noirot, e a meu pai
não importa como tento vivê-la. Deu-se por vencido faz muito tempo. Não sou nenhum modelo. Mas
isso você já sabe.
—É um irmão exemplar. Quanto ao resto, é um homem que se choca com as normas. Sua
irmã também. O problema é que quase é impossível que uma dama possa as romper.
—É mais fácil uma vez que ela se case. Se Clara termina casada com esse porco, vou
animá-la para que as rompa. Irei sugerir as ideias.
—Não chegará a isso, — Sophy disse.

147
—Está muito segura.
—Completamente segura, — mentiu ela.
Nesse momento, não tinha ideia do que fazer. O único que sabia é que tudo dependia do
que ela faria.

Estalagem do Coração Branco.


Essa noite.

—Tive tanto tempo para pensar que não posso evitar —Lady Clara disse.
Assim que chegaram, Lorde Longmore mandou seu recado rápido a Londres. Alugou
quartos, pondo a irmã no quarto entre o dele e o de Sophy. Davis tinha uma cama de armar no quarto
de sua senhora. E um Fenwick muito surpreso e contente tinha uma pequena para ele – com um
espaço como despensa, outorgado aos moços geralmente – ao lado da de Longmore.
Depois de lavar-se, Longmore, Lady Clara e Sophy tinham comido. Depois Longmore
disse às mulheres que dormissem bem e se retirou a seu quarto.
Mas Clara tinha convidado Sophy para que fosse ao quarto dela, beber chá.
Mas não foi chá o que Sophy descobriu na bandeja. Era brandy, um claro sinal que sua
senhoria estava pior do que pareceu durante o jantar.
A noite de maneira nenhuma estava fria. Mas se queixou de sentir um frio mortal e
ordenou que ascendesse o fogo. Sentaram-se frente ao fogo, em cadeiras próximas entre si.
—Se não fosse a presa, e se não tivesse sido tão público, com toda aquela gente me
vendo meio vestida, haveria um caminho mais fácil para escapar.
—Não estava meio vestida, — disse Sophy —. O corpo do vestido estava um pouco
desarrumado. Isso foi tudo.
—Não é que signifique muito, — Lady Clara disse amargamente—. A ruína é a ruína.
—Nós a tiraremos da ruína. Não se preocupe com isso. Deixe que eu o faça. Agora o
único que precisamos é um conto, caso alguém a reconheça em algum momento durante a viagem.
—Não é muito provável.

148
—Realmente acha isso, não é verdade? — Sophy disse—. Como conseguiu sobreviver a
viagem a Portsmouth, está fora de meu entendimento.
—Foi mais complicado do que pensei, tenho que admitir. Não tinha ideia do que
custavam as coisas. Mas sabia que necessitaríamos dinheiro. Mandei Davis vender alguns de meus
vestidos antes de sair de Londres. Ela foi a que se relacionou com os hospedeiros e esse tipo de
gente. Fingimos que era minha tia. Mantive-me no fundo o máximo possível.
—Você de fundo, — Sophy sorriu—. Esse foi um truque extraordinário.
—Usei os vestidos mais feios e um chapéu de Davis, enquanto viajávamos.
—Mas não tão feia em Portsmouth, — Sophy disse—. Alguém poderia tê-la reconhecido.
Diremos que Lorde Longmore a levou para procurar uma antiga amiga que vinha ao casamento.
A diversão desapareceu do rosto bonito de sua senhoria e se transformou na expressão
teimosa que Sophy tinha visto antes.
—É o que diremos — Sophy disse. Se fez um nó no interior. Não podia haver um
casamento. Mas ainda não sabia como pará-lo. Desfazer-se de um noivo não desejado era simples.
Como fazê-lo de maneira que Lady Clara recuperasse a reputação? Era possível?
Enquanto isso o tempo seguia passando para a Maison Noirot.
Sophy se inclinou para Lady Clara e pôs as mãos nos ombros.
—Me escute, — Sophy falou com firmeza. Sua expressão era segura e tranquilizadora.
Podia persuadir qualquer um de qualquer coisa, e assim o faria com esta jovem—. É uma situação
difícil, como você mesmo disse. Você é a mosca que se parou na teia de aranha. É pegajosa, e
separá-la com seu bom nome intacto, vai ser um assunto delicado.
—É ruim. Sabia que era ruim.
—É. Mas você é minha missão, minha única missão no momento. Mas precisa ser
paciente, e confiar em mim.
—Vou tentar, — Lady Clara disse—. Mas fica tão pouco tempo.
Sophy manteve sua segurança e seu aspecto tranquilo, mas seu coração contraiu.
—Quanto resta?
—Menos do que acreditava. — Lady Clara explicou o que aconteceu na quarta-feira e
quinta-feira antes de fugir.
—Antes da última festa da temporada no Salão da Rainha. — Sophy repetiu ao final do
conto. Esperava não ter escutado bem. Sabia que era esperar muito.
A festa estava planejada para o dia vinte e quatro do mês. Dia do Julgamento Final.

149
—Por isso fugi. Foi a última gota. Tinha contado com meses. Mamãe se opunha tanto,
que achei que demoraria o máximo.
Não fazia nenhuma diferença, Sophy disse a si mesma. A loja devia recuperar o negócio
perdido para este dia, não importava como.
—Mais de uma quinzena, então, — Sophy disse muito calma—. Bastante tempo.
—Está segura?
—É obvio.
Lady Clara a olhou esperançosa e confiada, e Sophy teve vontade de chorar.
—Deixe comigo, — Sophy disse.
Maldição. E agora o que?
Sophy fechou a porta do quarto de Lady Clara atrás dela e ficou um momento olhando em
branco a parede da frente.
Tinha participado da caçada da jovem.
Estava levando-a de volta a Londres.
E então o que?
Só um pouco mais de quinze dias – ao mais – para fazer um milagre.
Se fracassasse…
—Ooo! — Uma voz masculina exclamou—. Vejam o que apareceu, rapazes.
Sophy olhou para o ruído.
Oh, perfeito. Isto era o que faltava. Um quarteto de cavalheiros bêbados. Pior ainda,
jovens bêbados, alguns ainda com acne.
—Um milagre, um anjo, muito atraente, — outro disse—. Um anjo caído do céu.
—De onde, bela?
—Não faça conta. É um imbecil. — O último tentou uma genuflexão de ébrio.
Sophy lhes deu de presente uma das reverências especiais Noirot, dessas que os atores e
bailarinas tomavam anos de prática para que fossem perfeitas, e que tomavam os espectadores
totalmente de surpresa. Foi uma excelente distração. Enquanto os meninos estavam tentando decidir
como tomá-lo, ela colocou a mão no bolso oculto da saia e tirou o alfinete de chapéu que guardava
ali para casos emergências. Com sorte, não teria que usá-lo. A pergunta era, voltar ao quarto de Lady
Clara, ou seguir ao seu?
—Uma bailarina de balé, por Júpiter, — um dos meninos decidiu.
—Não dançará para nós? — perguntou outro. Equilibrou-se para ela e tropeçou. Agarrou-
se nela para equilibrar-se, fazendo-a cambalear e que o alfinete caísse.

150
Ela empurrou, ele se afirmou.
—Sim, dancemos, — disse soprando os vapores alcoólicos na cara de Sophy.
—Solte-me.
—Sim, isso. Solte-a, — disse outro—. Ela quer dançar comigo. — E a empurrou,
separando-a de seu amigo.
Ela lhe deu uma cotovelada na barriga. Ele riu, muito bêbado para sentir, e a atraiu para
ele, agarrando-a pelas nádegas.
Ela tropeçou indo para trás e ele a empurrou contra a parede. Começou a sentir-se mal
com o vapor da bebida.
—Eu a vi primeiro, — um disse.
—Espera sua vez, — disse o que estava em cima dela—. Primeiro tenho que conseguir
um beijo.
E levou a cara para ela com os lábios como tromba. Ela o chutou na tíbia, ele se foi para
trás, mas outro já a estava agarrando pelo braço.
O pânico a tomou, e começaram a gelar as vísceras. Eram só meninos. Meninos bêbados,
mas eram muitos. Não tinha nenhuma arma. Não viu nada no corredor. Só um par de botas vazia,
longe, esperando que as limpassem.
Ela torceu a cabeça, mas estava apanhada. Cercaram-na entre todos. Ela chutou e lutou,
mas para eles era só um jogo de bêbados. As mulheres não importavam. Serviam para diversão.
Abriu a boca para gritar. Um deles caiu em cima dela, e a deixou sem ar.
O pânico tomou conta de sua mente. Lutou cegamente, não podia pensar. Empurrou o
rapaz e começou a gritar.
Um estrondo a deixou calada.
Olhou para o ruído.
Longmore estava descendo, o rosto sombrio, os olhos cintilando de fúria.
—Que diabos, — disse o menino que havia caído sobre ela.
Longmore o tirou de cima e o jogou a um lado.
—Não é justo! — o amigo gritou—. Nós a vimos primeiro! —Tentou puxar Sophy para
ele.
Longmore o empurrou a um lado com um murro. Outro foi contra ele e o deu volta. O
menino balançou para trás e caiu.

151
Outro tentou lhe dar um murro, mas Longmore ficou de lado. O punho passou de
comprimento com seu dono. A inércia o levou a escada e se chocou contra o poste e caiu ficando
feito um farrapo.
O corredor ficou em silêncio.
—Alguém mais quer jogar? — Longmore perguntou.
Mal podia vê-los. Via tudo vermelho, e só podia ouvir o ruído do sangue golpeando em
seus ouvidos.
Seus dedos se contraíram, preparando-se para a violência. Pinicavam para quebrar e
esmagar.
Esperou.
Houve um torvelinho e uma refrega, e desapareceram todos.
—Covardes. — E saiu atrás deles.
Golpe apagado.
Golpe apagado.
Golpe apagado.
Olhou para isso.
Sophy estava parada com a testa apoiada na porta. Ouviu um alto, um soluço, e logo
outro.
Viu-a levantar o punho e baixá-lo na porta.
Golpe apagado.
Soluço.
Golpe apagado.
Soluço.
Esqueceu-se do bando de bêbados.
Foi para ela. A virou. As lágrimas desciam como rios pelo rosto. Estava tremendo.
—Está bem? Esses bastardos a machucaram? Sei que são meninos, mas se a feriram...
Ela bateu nele.
—Você, idiota!
Apoiou a testa contra seu peito, como fez na porta. Soluçou e o golpeou, da mesma
maneira. Paf, paf, paf.
—O que? — ele disse.
—Não me ajude!
—Está louca? Tem uma contusão?

152
A porta de Clara foi aberta e sua cabeça com o gorro de noite, apareceu.
—Que diabos está acontecendo?
—Nada, — Longmore disse—. Volta para a cama.
—Harry, está brigando outra vez?
—Já passou. Anda vá se deitar.
—Harry.
—Não continue, — disse com os dentes apertados.
Clara o olhou furiosa, mas entrou no quarto e fechou a porta.
—Devemos sair do corredor. Estamos chamando muita atenção.
—Não me importa, — Sophy disse. Ainda tremia.
Ele a levantou.
—Me desça.
—Não. Está histérica.
Trocou-a para segurá-la com um braço enquanto abria a porta do quarto de Sophy.
Quando entraram, fechou-a com um chute.
—Os odeio, — disse ela com a voz alagada de lágrimas—. Aristocratas estúpidos e
bêbados. Não sabia o que fazer.
—Eu sei.
—Odeio ter medo.
—Eu sei.
Levou-a a cama. Ele também estava tremendo, mas de raiva.
E medo.
Se estivesse dormido, não teria ouvido.
As portas eram grossas. Os ruídos do corredor mal se ouviam, afogados. E era uma
hospedaria. As vozes bêbadas eram de esperar.
A teriam humilhado. A teriam ferido.
Se fez um nó no estômago.
Sentou-se na cama, ainda afirmando-a.
—Por que não gritou?
—Achei que poderia contê-los.
—Quatro?
—Estavam bêbados. Facilmente perdiam o equilíbrio. Era fácil lhes desviar a atenção.
Mas… fui lenta.

153
—Está cansada.
—Não arranje desculpas! Não sou indefesa!
—Eu sei. — Não estava seguro o que sabia, exceto que poderia ter ficado ferida, e com
toda certeza sentiu medo, e tinha toda a razão do mundo para estar incontrolável e pouco razoável.
Um montão de meninos de Oxford, ou de onde fosse, bêbados e tentando divertir-se. E ela
parecia como um bom jogo – uma face desavergonhada – o disfarce que tinha escolhido para ajudá-
lo a encontrar Clara. Sentiu-se mau.
—Tirei meu alfinete, mas todos me empurravam. Eram tantos imbecis torpes. Que caiu.
—Deveria ter gritado pedindo ajuda, desde o começo.
—Nunca em minha vida tive que gritar pedindo ajuda.
Que tipo de vida infernal tinha levado? Era uma costureira. Pelas coisas que dizia, o
ofício fazia que a guerra parecesse como tomar chá.
—Sempre há uma primeira vez, — disse ele.
—Ia gritar, mas o imbecil caiu em cima de mim e me deixou sem fôlego.
—Sim, bom. Estou seguro que poderia ter saído sozinha disso. Mas as quedas e choques
já tinham me tirado de meu agradável sono e não ia ficar sem fazer nada se me ofereciam uma briga.
—Sim. — Ela agarrou a cabeça.
Levantou a mão colocando-a sobre a dela, e brandamente lhe apoiou a cabeça em seu
ombro.
—Teve um mau momento.
—Não sei o que fazer. Sempre sei. É horrível não saber. Sentir-se impotente, odeio isso.
—Você não é incapaz. É muito inescrupulosa para ser indefesa. Temporariamente está
confusa, isso é tudo. —Fez uma pausa—. Não só com esses estúpidos.
—Não.
—Com Clara.
—Sim. Ela é uma passageira. Em meu bote, que sobe e desce sem leme, e não sabe onde
está.
—O que mais?
—Você sabe. Sua mãe. Como fazer para que mude.
—Uma causa sem esperança. Jogue-a ao mar.
Empurrou a mão dele e levantou a cabeça.
—Está fazendo nossa vida tão difícil, — ela disse.

154
—Faz a todos. Empreenda algo que você possa dirigir. Adderley, para começar. Ponha
atenção só nele. Esqueça-se de minha mãe. Esqueça-se desses rapazes com espinhas. Não sabem
quão bem saíram. Um minuto mais, e a você teria ocorrido algo e teriam desejado que um sujeito
grandalhão tivesse chegado a deixá-los inconscientes.
Estava-o olhando aos olhos, e ele notou que algo mudou. Uma faísca, uma luz. Como a
primeira estrela da noite.
Logo sua boca começou a subir lentamente.
Viu o diabo espreitando em seus olhos e nas comissuras do sorriso.
Sentiu-se tentado a pôr sua boca ali.
Muito grosseiro, provavelmente.
Mas era um homem, e ela estava muito perto, e era cálida e suave. E agora que estava se
tranquilizando, seu corpo relaxou, também. Estava totalmente consciente de cada curva e onde cada
parte do corpo o tocava.
Ela inclinou a cabeça, tomou uma mão e a levou a bochecha.
Ele ficou sem fôlego.
—Você é impossível, — disse suavemente—. Justo quando quero golpeá-lo com algo…
diz coisas… faz coisas.
—Tudo é parte de meu plano ardiloso. —Disse o primeiro que lhe veio à cabeça. Se foi
adequado, foi pura casualidade.
—Você não se dá por vencido, não é mesmo? — ela disse.
—Obstinado. É um traço de família.
—Sim. Em minha família também há. — Ela suspirou.
Voltou o rosto para sua mão e o beijou na palma.
—Obrigada por me salvar. Nunca antes alguém fez algo assim.
—E por que demônios não?
—Não eram você.
Pôs uma perna a cada lado de seu regaço, levantou-se se apoiando nos joelhos, se afirmou
nos ombros dele e se inclinou como se fosse dizer um segredo… e o beijou na bochecha. Foi um tato
muito leve, como uma mariposa, mas novamente se impressionou, e logo seu coração começou a
palpitar com tanta força, levando sangue a todas as partes, exceto ao cérebro.
Grande Zeus.
Beijou-lhe o lóbulo da orelha.
Colocou os dedos no cabelo.

155
—Oh, — ela disse—. Isto é intolerável.
—O que? — Perguntou com voz rouca.
—O autocontrole.
—Jogue-o pela amurada.
—Bom.
E agarrou uma mecha de cabelo e o sustentou enquanto o beijava firme e
decididamente…
Exatamente como a tinha beijado.
Exatamente como havia ensinado.
Só que melhor.

156
Capítulo Doze

É evidente que as mulheres de todas as idades, são muito boas examinando condutas, analisando
motivos e corrigindo enganos, reprimindo essas faltas às que sabem são propensas, e resolvidas a cultivar
virtudes no que são imperfeitas.
—O Livro da Dama jovem, 1829.

Ela esteve muito alterada antes para dar-se conta.


Mas poucos minutos nos braços dele, escutando a voz rouca ordenando ao mundo como
só ele podia fazê-lo…isso a trouxe de volta.
A ele.
Havia tirado a jaqueta e a gravata e estava despenteado. Contra a luz, as mangas eram
quase transparentes, revelando os braços musculosos, sustentando-a. Sua bochecha se apoiou no
colete de seda. Podia cheirá-lo e sentir: os ombros largos, o torso esbelto sob a camisa e o colete. Seu
olhar tinha descido pelos belos bordados que brilhavam na luz suave.
Notava as coxas fortes abaixo dela, e mais abaixo as pernas longas embainhadas em calça
apertada que não deixavam nada à imaginação.
Em seu interior tudo vibrava.
Havia se sentido tão miserável e selvagem.
Mas ele a tinha resgatado e dito coisas, e recuperado sua mente, assim como a confiança
em si mesma.
E o desejo também.
Desejava-o. Desde o primeiro momento que o viu invadindo o corredor da Mansão
Clevedon, como um assassino.
E agora o desejava com uma paixão mais feroz que tudo o que havia sentido antes.
Quanto tempo se supunha que devia esperar?
Por que tinha que ser boa?
Era uma Noirot.

157
Jogou controle pela amurada.
Beijou-o sem temor e intensamente, tal como ele havia ensinado. E enquanto o beijava
suas mãos se deslocavam pelos ombros enormes, onde o fino linho de sua camisa permitia sentir o
calor da pele, e os músculos que se contraíam com seu tato.
O prazer que lhe produziu foi quase insuportável. Foi como se suas vísceras estivessem
em um mar de sensações, todas em uma tormenta fantástica, que balançavam de lá para cá.
Ela também balançou no regaço dele, permitindo que esses sentimentos maravilhosos a
transportassem. Sentiu que ele ficou tenso e começou a afastar-se.
—Espere, — disse ele—. Espere um…
—Esperar o que? — mordiscou-lhe a orelha.
—Precisa me dizer…
—O que devo dizer?
—Não importa. Esqueci.
Abraçou-a e a beijou também. Sem esperar nem vacilar. Audaz e atrevido, tão direto
como um golpe na cabeça.
Estava tonta, mas sabia o que fazer. Ele a ensinou.
Beijaram-se como em uma dança, como em um duelo: avançando, retrocedendo, em
círculo, em um mundo progressivamente mais escuro e mais quente, aonde o pensamento ia ficando
fora de todo alcance.
Ela encontrou um botão da camisa e o desabotoou. Introduziu as mãos para tocar a pele. E
foi um choque sentir a base do pescoço e clavículas. Para ele também foi impressionante, e o corpo
ficou rígido. Mas não a empurrou, e sim a apertou aproximando-a mais até. Podia sentir a excitação
dele sob ela. Sabia o que era. Teria entendido mesmo que sua irmã nunca tivesse explicado.
Desejava-a.
Desejava-o.
Isso era tudo.
Perigoso. Temerário. Imprudente.
Irresistível.
Ela empurrou, ele a soltou um pouco e a olhou. Seus olhos eram muito escuros. Negros
como a meia-noite. Como o pecado que prometiam.
Voltou-o empurrar, com força, apoiando-se em seu peito. Finalmente entendeu e se
deixou levar, caindo na cama com uma risada afogada.
—Sophy...

158
—Oui. C’est bien moi. (Sim. Essa sou eu)
—Sophy, — disse com a voz rouca de amante. Cócegas lhe subiram e desceram pela
espinha dorsal. E desataram outras coisas em seu interior. Calor. Impaciência.
Engatinhou lentamente em cima dele.
—O que devo fazer? — E começou a desabotoar o colete.
—Diaba, venha para cá.
Empurrou-a, descendo-a, e a beijou. Mas foi diferente, mais tenro. Beijou-a na testa, as
sobrancelhas, o nariz, as bochechas e o queixo. Beijou-lhe a orelha e logo o pescoço. Esse lugar
sensível sob a orelha. Ela sentiu um calafrio.
Beijou-a assim até que ficou tremendo e tonta. Em seguida pôs sua mão enorme nas
costas e a rodou, mudando de posição. Ele ficou em cima e ela ficou olhando essas profundidades
negras sem fundo, que prometiam pecado, e mais pecado.
O coração palpitava loucamente.
Ele desceu as mãos dos ombros, lenta e deliberadamente sobre os seios, e ela ardeu da
cabeça até a ponta dos dedos dos pés. Deixou escapar um suspiro doloroso que soou como um
gemido na noite tranquila. Tudo estava muito calmo. Poderiam ter estado muito longe, só eles dois e
ninguém mais no mundo.
Eles também estavam calmos. Nada rompia o silêncio noturno exceto suspiros e sussurros
de paixão e prazer, e o som da roupa e dos lençóis.
As mãos dele se deslocaram mais abaixo, sobre sua barriga, mais abaixo até, entre as
pernas. Ela se estirou e se moveu, procurando mais, como um gato que está sendo acariciando,
embora nenhum gato podia sentir tudo isto. As mãos dele – as hábeis mãos, ardilosas – riscando sua
forma, captando tudo a respeito dela, todos esses lugares privados que os belos vestidos ocultavam.
Logo ele a pôs de lado e sentiu as mãos deslizando por suas costas, sobre os broches.
Recordou a manhã, e uma onda de mais calor a alagou.
Em um instante soltou o corpo do vestido. Houve um torvelinho de movimento, e se deu
conta que as fitas eram desatadas, enquanto lhe beijava o pescoço e os ombros. Elevou-se para lhe
tirar o vestido, movendo-a para cá e para lá, como se fosse uma boneca. Atirou o vestido a um lado, e
ela ouviu o som que produzia ao deslizar para o chão.
Logo foi a vez de lhe tirar os sapatos. Os enchimentos das mangas voaram longe. Abriu
rápido o espartilho. Com movimentos dos dedos e torcendo o torso, desfez-se do colete.
A camisa estava aberta. Passou as mãos pelo linho elegante, sobre as bordas e os planos
quentes do tórax e da barriga. Seus músculos se contraíram e se retorceram.

159
Ela tocava e ele respondia. Não estava indefesa. Nunca mais estaria.
Tinha poder sobre este homem grande e perigoso.
Mal notou quando ficou sem as anáguas e sem a regata. Suas ligas saíram e as meias
deslizaram para baixo. Não se importou. Ela estava envolvida nele. Tinha-o visto brigar. Conduzir.
Caminhar. Mover-se. Cada vez que estava perto, não podia deixar de olhá-lo. E agora não podia
deixar de tocá-lo, maravilhada com ele, com sua força e beleza, com tudo o que o fazia ser quem era.
Como toda sua família, ela era ousada, apostava, e corria riscos. Agora se atrevia e a
passar a palma da mão pela calça, pela frente, sobre o saliente fascinante localizado ali, quente e
pulsando em sua mão. A voz da prima Emma ressonou em sua cabeça, mas foi muito débil e
longínqua, contida em um canto escuro de sua mente.
Havia muito dele, ultrapassando a razão. Muita masculinidade, esmagando os sentidos.
Um desejo enorme que anulava seu bom julgamento.
Ele se inclinou e a beijou. Esse beijo a fez sentir dor. E apagou as primas, Paris, Londres,
e todo o resto.
Não importou nada a não ser este momento. O mundo ficou reduzido somente a ele, ao
sabor e a como sentia aquela boca… a maneira brusca e delicada ao mesmo tempo… o peso do corpo
dele ao apertar-se contra ela.
Beijou-a por toda parte: o rosto, o pescoço, os ombros, os seios – e isso a fez desejar
gritar outra vez, e rir também. Desceu mais, os beijos eram como pequenos fogos em seu ventre, e
baixou mais até, ao lugar entre suas pernas.
Sentiu as mãos agarrando suas coxas, e com a língua, em suas partes mais íntimas fez o
mesmo que havia feito na boca. Então já nada mais teve sentido… e tudo teve, finalmente.
Tudo mudou. O mundo se transformou em uma lacuna enorme e negra em meio de uma
noite sensual e sufocante. O ar ficou espesso e excitante. O prazer crescia e crescia junto com uma
dor por algo que não pôde nomear, mas que precisava encontrar e alcançar.
Deu-se conta do movimento e o sussurro enquanto ele tirava o resto da roupa. Então
apoiou sua nudez contra ela e voltou a cobrir sua boca, e o beijo foi tão profundo, tão tenro, de uma
doçura sem fim...
E a penetrou de um empurrão, tirando-a do estupor ébrio de luxúria. A névoa de sua
mente desapareceu, e os olhos abriram. Deu-se conta do tamanho e do calor de seu falo… em seu
interior. Era estranho e incômodo, e se sentiu apanhada. O que fiz? pensou.
Mas ainda estava beijando-a, e sua boca passou dos lábios às bochechas e a garganta, e
sua tensão se fundiu sob as carícias delicadas. A impressão se desvaneceu, e seu corpo se acomodou,

160
lentamente aceitando o dele. E foi estranho e magnífico estar tão intimamente unidos. Deslizou as
mãos pelas costas, desfrutando da pele e músculos.
O aroma de homem enchia o ar, seu nariz e sua cabeça. Sentiu-se embriagada com seu
poder, e o dele. Quando começou a mover-se, ela o fez instintivamente, tomando o ritmo igual como
fez quando aprendeu a beijá-lo, como se soubesse sempre, e estivesse esperando o sinal para
começar,
Foi delicado e suave no começo. Ela se sentia como um violino e os sentimentos eram a
música. Logo, quando todas as cordas de seu ser vibravam, a música se fez mais intensa. Os
empurrões lentos e deliberados começaram a acelerar e a ser cada vez mais fortes. O mundo ficou
mais escuro e selvagem e ela se moveu nesse mundo como se finalmente estivesse em seu elemento.
Moveu-se com ele, no mesmo ritmo frenético, acelerando-se instintivamente para um destino
desconhecido.
E tudo o que seu coração dizia, era Sim, leve-me contigo.
E a levou, e depois da feroz pressa febril, novamente chegou a impressão quando algo em
seu interior pareceu explodir e o prazer se liberou, onda após onda, até que tudo se afastou e só ficou
a felicidade. Ali ficou à deriva, em meio da felicidade, e uma calma curiosa a alagou, uma paz
deliciosa e inesperada.
Sophy não esteve segura quanto tempo permaneceu flutuando. Apenas se deu conta
quando ele saiu dela e a atraiu para seu corpo quente, com as costas encostada à parte dianteira de
seu corpo. Sentiu-se muito cômoda, muito segura e muito abrigada.
Talvez dormiu, ou talvez se manteve suspensa em um transe por um momento. Não
estava segura.
Tudo o que soube foi quando a realidade voltou subitamente, abriu os olhos, sua mente
retornou com uma claridade dolorosa, e exclamou,
—Oh, não!
Saltou de seus braços, e se sentou.
—Não posso acreditar! Como pude fazer isso? Não, não, não!
—Sophy, — disse com voz espessa de sono.
—Não é sua culpa. A culpa é minha. Fiz de propósito. Não posso acreditar. Fiz de
propósito – sabia. —retorcia-se em agonia—. Oh! Como pude ser tão estúpida?
—Sophy, — disse ele.
—Por que não explodir a loja, simplesmente? Não seria melhor queimá-la? Que melhor
que isto para destruir um negócio?

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—Sophy, venha dormir.
—Não posso dormir neste momento!
Levantou um braço musculoso, tomou e a desceu.
—Calma, — disse.
—Estamos arruinadas! E eu o fiz por que não fui trabalhar diretamente com Hortense a
Horrível? Não poderia ter lhe feito um favor maior.
—Sophy, dorme. Sem falar. Agora não estamos discutindo isto. Dorme.
Então pôs a enorme mão em um seio. Ela suspirou e se acomodou com as costas
colocadas a ele. E dormiu.
A próxima vez, acordou sozinha. A luz lhe disse que já estava amanhecendo.
Sentiu-a mover-se a seu lado.
—Oh, não. Oh não.
Ele conteve um suspiro.
—O que vou...?
—Espere um minuto. —A virou para ele e a beijou no pescoço. Descobriu que era um
ponto débil. Um de muitos.
—Oh, — disse, de uma maneira que seu membro ficou rígido e atento.
Continuou beijando-a porque gostava do aroma, o gosto e como sentia a pele dela, e como
reagia, toda instinto, sem atuar. Quando fazia amor era completamente honesta.
Beijava-a porque gostava de fazê-lo e porque era um homem imprudente que nunca teve o
hábito de preocupar-se com as consequências.
Passou as mãos pelo corpo nu e ela se retorceu com prazer.
—Não é justo, — disse com voz rouca—. Não é justo.
—Eu tampouco jogo limpo, — disse ecoando o que ela havia dito outro dia. Beijou todos
os lugares por onde suas mãos tinham passado. Atrasava-se nas partes mais deliciosas – atrás da
orelha, a parte interna do cotovelo. Beijou os seios especialmente antes de pôr o botão rosado em sua
boca, chupando brandamente. Moveu as pernas para ele e seu ventre ficou tenso. Passou as mãos no
cabelo, e esse gesto possessivo consumiu todo seu controle.
Até sendo um homem que não pensava, seus instintos eram muito poderosos. E esses
instintos simples lhe disseram que poderia não ter outra oportunidade como esta, e melhor seria que
obtivesse o máximo possível.
Prestou a mesma comemoração ao outro seio perfeito e começou a descer. Deteve-se um
momento no triângulo dourado entre suas pernas, movendo a língua de tal maneira que ela ficou a

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gemer sem controle, sussurrando ninharias em francês e palavras excessivamente carinhosas. Logo
seguiu descendo pela rota que imaginou inumeráveis vezes. Pelas belas curvas das pernas até o belo
tornozelo, pela elegante impigem do pé até os dedos perfeitos. Beijou cada um deles.
Então começou outra vez, descendo para o outro lado.
E quando terminou, a pôs de barriga.
—Meu Deus, — ela disse.
—Harry, acredito, — disse ele—. No momento não precisamos ser tão formais.
—Harry, — ela disse sem fôlego.
Não estava seguro se alguma mulher que não fosse uma parente próxima tivesse
pronunciado seu primeiro nome. Ela fez que soasse… francês.
Estava seguro que nunca antes um nome soou tão elegante e cobiçado. Beijou a nuca e
deixou que suas mãos seguissem cada polegada das costas que percorria sua boca. E que costas era:
reta e suave como a seda… e em sua base a curva bela e a ascensão das nádegas perfeitas.
As beijou com reverência.
Ela riu.
Ficou entre suas pernas e a acariciou com as mãos. Ela ficou sem fôlego, arqueou-se e
começou a mover-se esfregando-se em sua mão. Seus dedos sentiram a umidade, e isso o pôs
impaciente. A puxou para ele, e a penetrou por trás.
—Oh, Oh, Oh, — lançou gritos afogados.
—Sim, — disse ele, enquanto passava o nariz pelo pescoço.
Sim, sim, sim, sim, sim, dizia todo seu corpo. Com uma mão a manteve contra ele, e a
outra a pôs no montículo dourado entre as pernas, enquanto empurrava lentamente em seu interior.
Queria que durasse horas, mas seu controle não era suficientemente forte. Saiu dela, a
baixou suavemente, e a vez se virar.
Voltou-a a penetrar da forma habitual, uma forma esplêndida porque podia ver o rosto e
porque ela o tocou dessa maneira maravilhosa, como se fosse o mais natural do mundo e o tivesse
conhecido toda a vida, e tivesse sido sempre dela.
Ela lhe deu golpezinhos no ventre e foi descendo para esse ponto onde estavam unidos, e
empurrou contra ele, seu ritmo ao uníssono com o dele, para logo dirigir ela.
Viu como o rosto se modificava conforme ir alcançando o clímax, ele empurrou firme e
profundo, e ela gritou. Logo ele se esvaziou, e seu corpo continuou vibrando por um momento mais,
até que se afundou, enterrando o rosto no pescoço dela.

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Voltaram a dormir, e a luz disse a Sophy que era meia amanhã, muito mais tarde que a
hora que ela acostumava a levantar-se. Mas agora não estava ansiosa por deixar a cama.
Era tão agradável dormir nos braços de um homem, e Longmore a acomodou muito perto.
Gosta das mulheres, pensou.
Mas bem, o que sabia ela? Só o que tinha escutado: as mulheres se queixando porque os
homens se viravam e começavam a dormir. Ou indo embora abruptamente.
Ele ainda não havia ido, e isso seria um problema já que a irmã dele estava ao lado.
Sentiu que ele mudava de posição, atrás dela.
Atrás dela. Recordou o que tinha feito. Aquilo foi interessante.
—Deve ir.
—Ainda não.
—Sua irmã.
—Não despertará em horas.
—Não pode estar seguro.
—Ela não tem uma loja. Você se levanta ao amanhecer. Clara dorme como tronco e não
se levanta antes das onze.
Sophy se sentou.
—Oh, bom. Agora vamos discutir.
—Nenhuma discussão, — ela disse. Tinha muito claro agora, como se um fogo tivesse
queimado toda a confusão—. É muito simples. Ninguém deve saber jamais.
Ele apoiou-se em um cotovelo e a olhou.
—Sabe, posso ouvir essas quatro palavras com letras maiúsculas.
—Digo-o de verdade. Se ninguém souber, nada se sabe. Deve me prometer que não
contará a ninguém.
—Não sei de onde tirou que sou um tipo que conta meus assuntos amorosos a meus
amigos. Acredita que sou desses que fazem alarde ao desflorar virgens?
—Quem disse que eu era uma virgem?
—Ninguém teve que dizer nada. Eu sozinho me dei conta. Uma casualidade.
—Porque não sabia o que fazer.
—Isso e por tão estreita é sua pequena parte feminina.
—Não tinha tempo! Nunca tive tempo para os homens.
—Não estava criticando. Foi um pouco impressionante, mas… na realidade…
—Gostou de ser o primeiro.

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—Sim. Isso mesmo. É estranho. Nunca me importou esse tipo de coisa. Mas em seu caso,
farei uma exceção.
Também gostou que fosse seu primeiro homem. O mundo estava cheio de mulherengos e
homens falsos. Marcelline havia se casado com um. Lady Clara estava em problemas por culpa de
outro.
Mas apesar de todas as faltas de Longmore, era exatamente o que parecia. Ele mesmo.
Sempre.
Era tranquilizador.
—Bem, enquanto você se mantenha em silêncio, não há problema.
—E você? Guardará silêncio?
—Não tento anunciá-lo no Foxe’s Morning Spectacle, se for isso o que quis dizer.
—Não é isso. E suas irmãs? Conta tudo a elas, ou não?
—Si-m-m.
—Bom?
—Não dirão a ninguém.
—São mulheres, — ele disse.
—A quem diriam? Às tias de Clevedon? A nossas clientes? Seja sensato.
—Por que teria que começar agora?
—Eu prometo, temos problemas suficientes com Marcelline quando invadiu território
aristocrático. Se começarem a correr rumores que eu seduzi o filho maior de Lady Warford, ela fará
muito mais que boicotar Maison Noirot. Nos esmagará. Para sempre. Nem eu serei capaz de reviver
a loja. E minhas irmãs sabem disso.
—Muito bem, — ele disse—. Enquanto fique em claro quem seduziu quem.
—Essa parte é dolorosamente clara.
—Você não pôde evitar, — adicionou ele.
—De fato, não pude. Se não tivesse tido a oportunidade – se você não tivesse sido tão
impressionantemente pormenorizado – e tentador...
—Trabalhei duro para isso. A parte da tentação. Não estava seguro que você prestasse
atenção.
—Aparentemente dediquei a uma só coisa.
—Que bom. Tinha toda uma estratégia.
Ela o olhou.
—Você pensou?

165
—Tive que fazer, não? Você é complicada.
—Sou mais simples do que você supõe. Não sou uma boa menina.
—Eu não sou um bom menino. É desonesto perseguir meninas inexperientes. Mas não
pude me conter…
—É obvio que não. Eu sou irresistível. Assim não deve se culpar.
—Isso é algo que nunca faço. Mesmo assim, — franziu o cenho—. Podemos ter feito um
dessas… você sabe… uma dessas coisas pequenas rosadas, inquietas, que chiam.
—Um bebê. Eu sei.
—Nesse caso...
—Não cruzemos a ponte até que não cheguemos, — ela disse, ignorando o pânico gelado
em suas vísceras—. Neste momento tenho problemas mais urgentes. As bodas de sua irmã, em
quinze dias mais.
Longmore simplesmente jazia ali, deixando ociosamente que a fascinante visão do mundo
de Sophy o entretivesse, enquanto observava seu maravilhoso corpo nu. Os seios estavam a plena
vista, e que vista tão magnífica era.
Sacudiu a cabeça, e os cachos loiros se moveram para lá e para cá.
Com razão se derreteu ontem à noite.
—Não tinha me dado conta. Achei que minha mãe atrasaria o inevitável o máximo
possível.
Contou o que a irmã dele disse de Lady Bartham e de sua mãe.
—Jurei que esse casamento não aconteceria e restauraria a reputação de sua irmã. Disse
que era minha missão, minha única missão. Sinto muito…
Fechou os olhos brevemente.
—Espere—. Voltou a abri-los, de um azul brilhante—. Não me arrependo disto. —E fez
um gesto para ele na cama—. Foi estúpido de minha parte – mas excitante e maravilhoso e não posso
imaginar um final da virgindade mais emocionante. Mas preciso me concentrar no negócio.
—Correto. — Cruzou os braços sob a cabeça. Teria que fazer algo a respeito dela, mas
não estava seguro do que.
O que fosse, teria que conseguir por si mesmo.
Ela não ajudaria, e ele não ia pedir conselho a ninguém.
Só de pensar em compartilhar seus assuntos amorosos com alguém, fazia que gelasse o
sangue.
Em todo caso tinha jurado Guardar o Segredo. Com letras maiúsculas.

166
Ninguém Deve Saber Nunca.
Tinha-o infectado com seus melodramas.
Olhou-a com carinho por um longo momento.
—Negócio, — ela disse.
—Bom, — ele respondeu.
Ela suspirou e viu como o busto subia e descia.
—Deve ir agora. Sua irmã pode ficar deitada horas, mas Davis já poderia estar movendo-
se.
—Bem.
Saiu da cama e começou a desenterrar sua roupa do caos de roupa, roupa interior, meias e
sapatos.
Sophy se levantou e nua como uma Eva recém feita, ajudou-o a vestir-se.
Quando estava na porta a ponto de ir, ela deu um suspiro, correu para ele e o agarrou
pelas lapelas. Ele inclinou a cabeça.
Ela se levantou na ponta dos pés, e o beijou com firmeza nos lábios.
Logo disse,
—Vá. Vá … — Sua voz desapareceu, tirou as mãos das lapelas e inclinou a cabeça para
um lado. Embora estivesse olhando-o, ele sabia que não o via. Mas ele podia vê-la. Cada polegada
rosa, branca e dourada, dela.
—Espere, — ela disse.
—Sim. —Ela estava pensando. Quase podia ver as rodas girando, as engrenagens
infernais dando voltas.
—Oh. Sim, — ela exclamou.
Ela abriu os olhos. Seu olhar azul se aguçou até adquirir o brilho de uma safira.
Ela apoiou a cabeça em seu peito. Ele levantou uma mão e despenteou os cachos
dourados. Como homem resistiu a outra mão, que lhe picava por tomar um seio.
—Homem esplêndido. Consegui
—Que coisa? — perguntou confuso, perdido com o aroma de seu cabelo e pele, o aroma
de verão de um lugar longínquo onde ele tinha sido feliz—. O que me faz...
—Tenho uma ideia. Sei como vamos salvar sua irmã.

167
Mansão Warford.
Nesta noite.

A família havia terminado de jantar e foi à biblioteca quando Longmore levou a irmã para
casa.
A mãe saltou instantaneamente da cadeira.
—Oh, Clara. Como pôde? — gritou.
Longmore viu clara se endurecer contra o ataque de recriminações, acusações e outros
assaltos verbais, que eram a ideia de Lady Warford dos conselhos afetivos maternais para a filha
maior.
Longmore abriu a boca para dizer algo indevido.
Então Lady Warford correu para Clara, a abraçou e soluçou.
—Oh, menina querida. Estou tão feliz que esteja em casa. Nunca, nunca deve fugir outra
vez. Qualquer problema deve me dizer meu amor. Prometa. Prometa por favor.
Ele pensou que era o primeiro por favor emitido pelos lábios de sua mãe.
—Sinto muito, mamãe, — Clara disse. A voz, afogada contra o ombro da mãe, soava
impressionada.
—Este foi um assunto espantoso para você, — a mãe disse — Traumático para a
sensibilidade de uma menina jovem – mas é obvio não sabia nada de como podem ser os homens.
Confiou nele, menina tola. Mas como podia saber? Sempre é assim. Nunca são o que achamos. —
Deu-lhe outro abraço apertadíssimo, e se afastou—. Devo dizer que Harry me surpreendeu.
Surpreendeu a ambos, não é verdade, Warford?
O pai disse:
—Isso mesmo. Bem feito. Cuidar de sua irmã. No começo foi péssimo...
—Warford, — disse a esposa.
—Mas a encontrou e a trouxe de volta. Algo bom, também. Graças a sua engenhosa
artimanha, descobrimos que Adderley pode não ser completamente o rufião que acreditávamos que
era.
—Preciso beber, — Longmore disse, e foi rápido à garrafa de licor mais próxima. Era
cherry, não sua primeira escolha, mas bastava. Encheu um copo e bebeu um gole.
—Veio todos os dias, — disse Lady Warford.
—Ouviu sobre a prostração de Clara, — Lorde Warford disse—. Esteve muito
preocupado.

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—Flores, querida, — Lady Warford adicionou—. Trouxe flores. E fruta de sua estufa.
Parecia muito aflito, não é mesmo Warford?
—Muito atento, — disse este.
—Disse que entendia que as circunstâncias que levaram a seu compromisso não era o que
alguém podia esperar – mas disse – disse —Lady Warford foi ficando calada—. Não posso recordar
exatamente o que disse, mas foi tudo como deveria ser. Não se pode mudar o fato que está
endividado, e a mãe dele não é o que alguém desejaria. Mas está morta, e ele parece preocupar-se
com você, Clara, e acredito que com um pouco de esforço pode fazer algo dele.
Embora, Clara estava evidentemente desconcertada, viu o olhar de advertência de
Longmore, e conseguiu parecer estar considerando seriamente tudo o que lhe diziam.
Ele não tentou esconder sua credulidade. Embora ninguém esperava isso. Estava seguro
que a preocupação do Adderley por Clara era genuína: se ela adoecesse e morresse antes do
casamento, precisaria encontrar outra fortuna, rapidamente. E os dotes como o de Clara, não
abundavam.
—Se alguém pode fazer dele um homem, é Clara. Em todo caso, como disse antes, temos
que fazer do assunto o que melhor possamos. Haverá menos falatórios se todos parecemos contentes
com o arranjo. Não há nada de errado que o mundo veja que descobrimos tardiamente que Adderley
não é tão ruim como todos acreditam. Da minha parte, prometo ser civilizado com ele a próxima vez
que o vir. —bebeu o resto do cherry e deixou o copo de lado—. Posso ir agora?

169
Capítulo Treze

Para assegurar a honra e evitar que o escândalo se espalhe entre pares… mediante informe, há
uma lei rápida chamada scandalum magnatum mediante a qual qualquer homem acusado de fazer um
relatório escandaloso contra um par do reino (embora seja verdade) é condenado a uma multa arbitrária, e a
permanecer em custódia até que a pague.
—Os pares da Inglaterra, Escócia e Irlanda, Debrett, 1820.

Exclusivo do Foxe’s Morning Spectacle.


Quarta-feira 10 de Junho.
Chamou-nos a atenção uma misteriosa estrangeira proveniente da França que chegou esta semana a
Londres com uma comitiva considerável. Informaram-nos que os baús que contêm o guarda-roupa da dama eram tão
numerosos, que precisou contratar um navio privado. Isto poderia significar uma longa estadia em nossa verde e
agradável ilha. Quanto aonde residirá especificamente a dama, para que propósito – e muito especialmente – sua
identidade, esperamos poder informar a nossos leitores com a presteza habitual.

Teatro da rainha.
Quarta-feira na noite.

Toda Londres estava consciente que o Duque de Clevedon tinha conhecido Madame
Noirot na Ópera de Paris. Entretanto esta era a primeira noite que aparecia em um teatro de Londres
e a ocasião não deixou ninguém – especialmente à parte masculina – com alguma dúvida por que o
duque havia sucumbido à dama.
Era a primeira vez que a viam no círculo de Dos Que Importam. O punhado de clientes da
Maison Noirot que estavam presente e a conhecia, tratava-se principalmente membros das classes
comuns e das filas inferiores da aristocracia. Em geral, importavam, mas não muito. Era o primeiro
olhar que lhe dava a Sociedade Elegante.
Na realidade os homens olharam decididamente, porque Sua Graça havia escoltado ao
camarote não uma mulher estonteante, mas sim duas: a esposa e uma estranha de cabelo loiro.

170
Do outro lado do teatro, no camarote dos Warford, Lady Warford olhava resolutamente o
palco, recusando reconhecer a existência da nova Duquesa de Clevedon.
Clara, entretanto olhava fixo com muito interesse. E disse a lorde Adderley, que se
sentava todo obediência a seu lado no papel de futuro esposo atento:
—Sabe quem é a dama que está com a Duquesa de Clevedon?
Adderley, que esteve observando tanto como outros, deu um olhar de surpresa.
—Não sabe? Achei que poderia ser uma das irmãs dela. Não é loira uma delas?
—As irmãs são solteiras, e esta dama usa o vestido de uma mulher casada. Eu diria que é
uma francesa casada.
Longmore que estava sentado atrás do casal, disse:
—Francesa? Pode notar a esta distância? E sem usar óculos de ópera, como os outros.
—Alguém sempre se dá conta, — Clara disse—. Nós as inglesas podemos usar
exatamente o que as francesas usam, mas sempre parecemos inglesas. —virou-se para olhar o
irmão—. Você esteve em Paris, Harry. Está de acordo?
A mãe fez um ruído gutural e lhes deu um olhar frio. Ambos os descendentes fingiram
não ter notado.
—O que posso notar, é que tem a todo o teatro alvoroçado, — Longmore disse—. Mal se
pode escutar os artistas – o que não sempre é ruim, embora preferiria que o fizesse em uma ópera
alemã longa e aborrecida, em vez de fazê-lo durante O Homem de Água. Mas uma pequena
estimulação para que os atores sejam melhores, não tem nada de errado. Acho que no intervalo darei
uma volta e farei que Clevedon me apresente. Depois poderei contar do que se trata todo o
escândalo, algumas horas antes que o Spectacle, embora seja uma única vez.
Sabendo que uma grande quantidade de sujeitos iriam na mesma direção, saiu do
camarote da família antes que começasse o intervalo, e entrou em camarote de Clevedon antes que o
resto.
Seu leve movimento de cabeça em direção a Clevedon passou por uma saudação correta.
—Ganhei dos outros como por duzentos metros.
—Pensei que o faria, — disse Clevedon —. Pode ser bastante rápido quando se propõe a
isso.
Longmore se virou para Sua Graça.
—Antes que venham as hordas, Duquesa, seria tão amável e me apresenta à dama?
—Madame Veirrion, permite-me lhe apresentar a Lorde Longmore, um muito bom amigo
de meu marido?

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A amiga ficou em branco.
Sua Graça repetiu a apresentação em francês.
—Ah, sim — disse madame—. Um amigo de longo tempo. Como um irmão, não é?
Lorde Lon-mur. — Fez uma leve inclinação de cabeça e os brilhantes arrumados artisticamente entre
as plumas de seu penteado, cintilavam e dançavam. Seu inglês era espantoso e cômico. Para evitá-lo,
Longmore continuou em francês. Isso lhe deu uma leve vantagem sobre a multidão de homens que
entrou numa correria ao camarote, um momento depois. Enquanto a maioria falava um francês
correto, como todo cavalheiro bem educado, era como o francês de Clevedon – francês falado
corretamente por um inglês. Era a versão coloquial de um vestido, como Clara o havia descrito:
tinham todas as palavras corretas, mas soava a inglês.
Longmore, o menos erudito do mundo, por alguma razão tinha uma aptidão especial para
os idiomas. Os que estavam apoiados no latim, em todo caso.
—Mas o senhor Lon-mur fala minha língua como os parisienses, — disse madame —.
Como é isto? Eu, meu inglês é estúpido. Não podem me ensinar. Tentam. Meu marido – meu marido
tão querido — os olhos começaram a ficar úmidos. Um lenço de renda apareceu em sua mão cheia
de anéis e braceletes, e enxugou brandamente as lágrimas—. O pobre Robert! Tenta e tenta me
ensinar. Mas o que? Sou estúpida.
Todos os cavalheiros rogaram estar em desacordo.
Quando todos se acalmaram, Longmore disse:
—Mas você é uma estúpida encantadora e bela, madame. — E continuou em francês—, a
uma mulher bela e encantadora se perdoa até um assassinato. Pode imaginar que algum dos homens
que há aqui a julgaria por assassinar nosso idioma?
Longmore deixou madame e seu séquito pouco antes que começasse o ato seguinte e
voltou para seu camarote.
Sua mãe lançava adagas pelos olhos, e com razão: Lady Bartham se reuniu com ela e
indubitavelmente estava jogando sal em todas as feridas que podia encontrar. Ou infligir.
—Uma dama francesa, tal como deduziu, — Longmore disse a irmã sem incomodar-se
em baixar a voz. As duas mulheres mais velhas deixaram de conversar—. Madame Veirrion. Uma
amiga da duquesa, de seus dias de Paris. Uma viúva – com algum dinheiro, eu diria. Inclino-me ante
o conhecimento da roupa de minha irmã, mas a da dama me pareceu muito cara. As joias, mais fácil
de julgar, e não é falsa, asseguro-lhe isso.
Lady Bartham levou a lente aos olhos e procedeu a inspecionar à dama francesa.
Depois de uma vacilação muito breve, a mãe fez o mesmo.

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—Uma viúva você disse, Longmore?
Sempre se preocupava de usar o título do filho maior quando estava com Lady Bartham,
quem possuía duas filhas casadoiras, ambas eram pequenas fadas de cabelo escuro, muito ossudas
para o gosto dele.
—Uma viúva bastante jovem. Fala o inglês mais espantoso, — Longmore disse.
—Isso não é nenhum problema para você, — Clara pronunciou.
—Não, na realidade, — Adderley disse —. Sempre foi bom com os idiomas. Isso e o
golpe alto, — sorriu arrependido, esfregando a mandíbula. O hematoma ainda era visível—. Mereci
isso, —disse em voz baixa.
Era exatamente o que um homem devia dizer se quisesse fazer as pazes com seus futuros
parentes políticos. Fez tão bem, que um homem menos cínico que Longmore, teria acreditado.
—Ficou bastante tempo lá, — Clara disse.
—É bonita e destroça o inglês de uma forma muito encantadora.
—Está claro que é atraente, — Lady Bartham disse—. Parece ter cativado a todos os
cavalheiros.
—As francesas o fazem tão frequentemente, — Lady Warford disse de uma maneira
sinistra.
—Acreditei que o duque se veria obrigado a chamar os guardas para controlar à multidão,
—Clara disse.

Exclusivo do Foxe’s Morning Spectacle.


Quinta-feira 11 de Junho, de 1835.
Quem é ela? Essa é a pergunta presente nos lábios de todos desde ontem à noite quando a Misteriosa
Estrangeira apareceu no Teatro da Rainha, com um vestido de cetim preto, o peitilho a Sevigné ornamentado
com uma corrida de laços negros. Por acima, as mangas cruzavam, e estavam cheias de duplo cetim branco. O
que a princípio parecia ser uma bata, era na realidade uma ilusão artística produzida por um painel de brocado
de ceda dourada.
Seu correspondente soube por uma autoridade máxima, que madame V___ é descendente de um
conde francês cuja família esteve faz muito tempo associada com a Corte da casa Bourbon, e que pereceu
tragicamente, como tantos membros do antigo regime, na guilhotina. Dado os atuais distúrbios em Paris, não
podemos nos surpreender que a dama, carente do amparo de um marido afetuoso, e sem dúvida agindo sob
recomendações de seus conselheiros, tenha decidido se localizar-se junto com sua considerável fortuna
(rivalizando a do Duque de C__, conforme dizem), nos pacíficos territórios de Sua Majestade Britânica. Também
nos contaram que a dama decidiu procurar uma residência permanente em Londres. Enquanto isso, tomou uma
suíte em uns desses hotéis descritos no Quadro de Londres de Cruchley onde se resguarda o anonimato dos

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grandes e dos opulentos estrangeiros.’ Nos informaram de boa fé que a dama era um das clientes principais da
Duquesa de C__, durante a longa estadia de Sua Graça em Paris, e que tanto Madame como o falecido Senhor
V__ estavam entre os numerosos conhecidos do Duque quando este esteve lá.

Depois das habituais notícias da corte, da fofoca geral, o comentário a respeito da fuga
Sheridan-Grant, ao final da última coluna, antes da folha dos anúncios, apareceu esta nota:
Ontem à noite observamos certo lorde em companhia da dama com a qual vai se casar dentro de
quinze dias. Estamos contentes de reportar que a dama parecia completamente recuperada de sua recente e
alarmante enfermidade. Não podemos dizer o mesmo do lorde e informamos a nossos leitores que mais tarde
nessa mesma noite – seria mais preciso dizer, nas primeiras horas da manhã seguinte – sua senhoria foi visto
entrar em um estabelecimento de jogos, de duvidosa reputação, do qual não emergiu até horas depois da
alvorada. Para todos aqueles – e nos contamos entre eles – que desejaram a sua senhoria um futuro feliz, apesar
das circunstâncias difíceis que precipitaram o compromisso, isto é um giro muito desalentador. Tínhamos a
esperança que ao ter conseguido a mão desta bela dama, sua senhoria mostraria sua gratidão resolvendo não
cair mais no pecado. Esperávamos que ao deixar atrás seus enganos, refletiria nos de seus antepassados, e
resolveria pela dama, mas sobre tudo por sua honra, restaurar a dignidade de seu sobrenome. Como nossos
leitores certamente sabem, ao pai de sua senhoria foi outorgado o título de barão por serviços prestados a um
personagem real. Estes incluíram abundantes empréstimos, um dos quais incluiu a sua bela esposa por um
período indeterminável. Como faz tempo a fortuna se dissipou nas mesas de jogo, devemos perguntar os motivos
e desonestidade de qualquer pessoa que anime a sua senhoria a que continue nessa loucura, lhe estendendo o
crédito para tal propósito.

Mansão Warford.
Quinta-feira na tarde.
Como a maioria da alta sociedade, Lorde Adderley tinha lido o Spectacle com o café da
manhã. Disse muitos palavrões, e tratou mal o ajudante e a cada criado que teve a desgraça de cruzar
em seu caminho. Deixando o pessoal da casa com um ressentimento a ponto de estalar, apressou-se a
cruzar a cidade para apresentar-se ante sua prometida. Lá procedeu a mentir – quer dizer, emitiu uma
negativa indignada, apropriada.
Levava consigo o documento ofensivo. Depois que o levaram ao salão onde sua futura
esposa o esperava, jogou-o em uma mesa dando um bom espetáculo de justa indignação.
—Não sei como esses covardes do Spectacle podem sair com a deles e publicar essas
falsidades imundas. Necessitam que lhes deem uma lição. Faz tempo que passaram dos limites e é
hora de levá-los a julgamento. Se Tom Foxe fosse um cavalheiro, o desafiaria a um duelo. Como não
é, insistirei que o prendam.
Lady Clara respirou fundo e disse,
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—As pessoas podem ser muito cruéis. Pegam as circunstâncias mais inofensivas e a
torcem convertendo-as em algo vergonhoso. Exageram tudo o que ouvem e veem. Mas o Spectacle
nunca menciona nomes, não é verdade? Em todo caso qualquer um que leia isso não acreditará que
se refira a você.
—Não o farão? — franziu o cenho ao olhar o jornal. Embora nunca pensou que Lady
Clara fosse especialmente esperta, supôs que podia somar dois mais dois.
—É obvio que não. Harry disse que até um homem com a mínima inteligência saberia que
não podia jogar lá agora. Disse que o lugar é tão retorcido como a Ponte Putney.
O rosto dele ficou vermelho.
—Longmore esteve aqui – por isso? — assentiu para a folha de escândalos.
—Oh, frequentemente recolhe uma cópia quando volta para casa depois do teatro ou de
uma festa. Passou recentemente. Ia caminho para visitar Madame Veirrion, para tentar persuadi-la a
que saísse de carro com ele. Acha que ela é respeitável?
Não se sair com seu irmão, pensou. Mas disse:
—Não escutei nada contrário.
—Penso que é, — disse Clara—. É amiga da Duquesa de Clevedon e aparentemente
também é conhecida do duque, quando estava em Paris. Não posso imaginar que a levariam ao teatro
se não fosse.
—Clevedon parecesse não se importar o que outros pensam dele.
Não o disse, e ela era muito diplomática para fazê-lo notar, que com uma entrada anual
que chegava às centenas de milhares, o Duque de Clevedon podia se dar o luxo de não se importar.
—Importa-se o que se diz de sua duquesa ou da filha desta, — Lady Clara disse —. O rei
e a rainha a aceitaram. Não acho que ela queira pôr em perigo sua posição associando-se com
pessoas inapropriadas.
—Estou de acordo. Seria uma besteira.
—Se for respeitável, mamãe se sentirá nas nuvens. Seu marido lhe deixou tudo. A mamãe
não importará que seja viúva. Sempre esteve aterrada que Harry termine casado com uma bailarina
de balé, ou com a garçonete de um bar.
Adderley sentiu o rosto arder. Sua própria mãe era um ponto gélido. Mas não era uma
garçonete, e sim a filha do dono de uma hospedaria. Tinha sido uma amante real, como foram um
sem-fim de mulheres “respeitáveis.” Desgraçadamente foi depois que ele nasceu. A ninguém
importava se era um bastardo. Um bastardo real. Não é pouca coisa descender de reis. Ele, ai, era

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descendente de um hospedeiro e de um sombrio cavalheiro latifundiário. Nenhuma gota de sangue
real circulava por suas veias.
—Casar? — disse desconcertado—. Longmore? — Isso era inconcebível—. Chegou tão
longe assim?
Clara deu um encolher de ombros.
—Quem sabe? Mas parecia bastante cativado com ela. E você conhece Harry, sempre se
lança de cabeça — e cortou a frase porque começou a tossir. Levou uma mão à testa.
Foi um gesto pequeno e involuntário. Mas foi suficiente para lhe recordar que ela esteve
recentemente doente – tão doente para que a casa se fechasse exceto para umas poucas visitas,
durante três dias. Ele correu para ela e se ajoelhou ao lado de sua cadeira.
—Querida, sente-se mal?
Ela deixou cair a mão.
—Não. Só um pouco… Oh, não é nada, só que parece que estou muito tempo dentro. O
que preciso é uma dose de ar fresco. Vou pedir o Cabriole e darei uma volta pelo parque.
—Tolices. Se quer tomar ar, eu a conduzirei feliz. Só tem que mandar uma criada para
que lhe traga o chapéu e um xale.
A hora de passeio de moda ainda não tinha chegado quando Lorde Longmore levou seu
carro para a entrada Cumberland do Hyde Park. Escutava a bela acompanhante que batia papo em
um inglês quebrado tão ridículo que não pôde evitar um sorriso, embora não estava muito contente.
—Você tem muito em sua cabeça, — disse madame—. Uma parte de milord está
pendente de mim. A outra, em outra parte. E me sinto obrigada a me perguntar se sou eu a causa de
seu aborrecimento?
—Estranhamente estou começando a desejar que você seja um pouco mais aborrecida. É
quase mais do que posso tolerar. Ontem à noite… — Sacudiu a cabeça.
—Mas que tranquilo parecia! Não parecia nem um pouco temeroso, — respondeu ela.
Olhou-a.
—Enganou a sociedade com uma facilidade assombrosa. Jurava que as mulheres que
viram seu rosto incontáveis vezes enquanto ajustava seus laços e coisas assim, deveriam tê-la
reconhecido, inclusive no teatro. Vários homens que foram ao camarote, estavam no White’s o dia
que parou sob a chuva na Rua St. James, lhes oferecendo generosamente uma vista de suas anáguas e
tornozelos.
—As pessoas veem o que querem. Na loja é a costureira. Quando está em um lugar onde
não se espera que esteja, se é levemente familiar.

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Sua voz simulada, o acento falso, o inglês péssimo; ele também se maravilhou disso: a
facilidade com que Sophy deixava uma personalidade e assumia outra.
—As comerciantes são como as criadas, invisíveis, — continuou ela—. Quando estão
fora de sua esfera, os clientes não as reconhecem. Se alguém se atrever a ser outra pessoa, os que
observam simplesmente aceitam.
As criadas eram outra coisa. A estas ninguém era invisível. Se não fosse assim, Madame
estaria residindo na Mansão Clevedon, e Longmore teria uma preocupação menos. Mas isso estava
fora de toda possibilidade. Não podia esperar que uma casa com um pessoal tão grande pudesse
manter um segredo como esse – ou qualquer segredo, na realidade. Ela tinha saído com um de seus
disfarces e contratado criadas francesas de uma das agências que conhecia e confiava. Estas
constituíam o séquito que a atendia no hotel. Em seu momento o Spectacle explicaria as
circunstâncias sob as quais saiu apressada da França. Ele não duvidava que seria uma dessas histórias
aterradoras de traição e engano, e uma fuga no meio da escuridão, e escapadas traumáticas do
inimigo.
Ele sacudiu a cabeça,
—Ainda é difícil de entender: os mesmos homens que a devoravam com os olhos através
da janela do White’s, agora competiam para ser engenhosos e encantadores em francês.
—Porque toda a cena estava belamente construída. Tudo o que precisávamos era que você
e Lady Clara fingissem não me reconhecer.
—Dei-me conta que Clara conseguiu fazer isso sem mentir absolutamente.
Mas Clara teve que representar sozinha uma pequena parte. Era Sophy a figura central.
Era ela a que devia adotar outra personalidade, com todos os olhos do teatro postos nela.
E o fez com uma habilidade e segurança que o deixaram sem fôlego. Parecia totalmente a
gosto, e ele pensou, Ela está em seu elemento.
—Você jogou sua parte esplendidamente. Tão bem, que quase me deixou boquiaberta.
Ainda não me recuperei da impressão que levei com seu perfeito francês.
Ele deu um encolher de ombros.
—Isso ganhou alguma adulação do Adderley. Inclusive teve a temeridade de elogiar meu
golpe alto – e dizer que merecia.
—Vai dizer qualquer. Está em um problema muito ruim, — ela disse.
E esse era um dos muitos assuntos que preocupavam Longmore.
—Também fará qualquer. Recorde isso, por favor. E também, que não é nenhum
estúpido. Melhor será que tome cuidado.

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Ela ficou tensa.
—Não posso acreditar que esteja me dando conselhos de como atuar. Esqueceu do dia
que passamos em Dowdy’s?
—Isto é diferente.
—É o mesmo. Estou fingindo ser alguém que não sou. Faço isso todo o tempo. Finjo que
não quero dar uma bofetada a uma cliente. Finjo que não é uma idiota. Finjo que gosto de trocar a
fita quatorze vezes porque ela não sabe o que gosta ou quer até que trinta amigas não deem sua
opinião.
—Isto não se trata de mulheres em uma loja.
—Dou-me muito bem conta disso, — ela disse—. Esqueceu-se de quem foi a ideia?
esqueceu-se que você disse que era um plano perfeito?
—Você estava totalmente nua quando me disse isso. Nesse momento, qualquer plano teria
parecido perfeito.
—Bom, então devesse fixá-lo em seu cérebro.
—Bom nada. Isso foi antes que Clevedon nos desse os desagradáveis detalhes a respeito
do Adderley.
Enquanto procuravam Clara, Clevedon fazia seu próprio trabalho de sabujo. Inteirou-se
que as dívidas do Adderley eram muito maiores do que os que rumores –uma cifra muito alta. Estava
tão profundamente aterrado, que alguns de seus credores o mantinham em uma estreita vigilância.
Não seria o primeiro cavalheiro que decidisse escapar de suas obrigações via um navio para Calais
ou outras partes do continente.
—Colocou-se com prestamistas indesejáveis, — disse ela, e fez um movimento de mão de
rechaço—. Sei tudo a respeito deles.
—Seus métodos nem sempre são honráveis, — ele disse.
—Sei como são.
—Não são estúpidos inofensivos como os rufiões que contratou Dowdy.
Ela deixou escapar o ar, exasperada.
—Já lhe disse: eu sei. Você não tem ideia com o que tivemos que lutar lá em Paris.
—Não. E cada vez é mais e mais claro que não sei nada a respeito de você.
…exceto seus seios eram perfeitos, e o traseiro estava além de toda perfeição, e quando
fizeram amor era totalmente honesta.
…E que estava gastando muito tempo pensando como levá-la novamente a sua cama.
—Teremos que nos entregar às lembranças em outro momento, — ela disse—. Ali estão.

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Ele levantou a vista. O carro do Adderley estava se aproximando.
—Só quero que não fique tão segura. Não quero que se meta em um problema.
—Você não sabe do que sou capaz. Eu não sou sua irmã. Nunca tive uma vida protegida.
Não tem ideia do que custa ter uma loja bem-sucedida. Tem que deixar de ficar nervoso com os
credores do Adderley e os prestamistas ruins, e deixar comigo. Deve confiar em mim e saber o que
estou fazendo, para que você possa se concentrar em sua parte. Você tem que ser Longmore, que se
encantou com Madame Veirrion. Olhe para mim. Agora sou Madame.
E se transformou.
Para ele foi uma maravilha observá-la. À medida que o carro se aproximava, a expressão
mudou totalmente: tanto a postura e a forma como se movia – inclusive o rosto não era o mesmo.
Tudo isto passou de uma maneira tão sutil, que era difícil poder pôr em palavras.
Ao contrário da vez que fez a prima Gladys, agora não estava disfarçada: não usava
óculos com um tintura especial para deixar opaco o brilho dos olhos azuis, não tinha nenhuma
mancha que estragasse sua linda pele, nenhuma mescla tóxica para apagar o ouro do cabelo. O
vestuário era mais caro e extravagante que o habitual – e isso não era um lucro menor – mas o rosto
estava a plena vista.
Entretanto, se transformou em alguém mais, como se tivesse centenas de almas ao seu
dispor, e chegar ser outra pessoa tão fácil e totalmente, fosse como quando outra mulher trocava os
chapéus.
De algum jeito, a pura força de sua personalidade, fazia que o mundo acreditasse na
ilusão que criava.
Mas ela tinha razão, ou parcialmente: ele deveria deixar de pensar no enigma delicioso e
complicado que era Sophia Noirot, e concentrar-se na atração que exercia Madame Veirrion.
Tinha chegado ao parque pela Entrada Cumberland, na esquina nordeste, para encontrar-
se ‘acidentalmente’ com o outro casal. A grande maioria do grupo de moda tomava a Entrada Hyde
Park, produzindo uma grande multidão no sudeste do Parque. O objetivo era que parecesse que
Longmore e a companheira estivessem indo, quando ocorresse o encontro.
Quando se cruzaram, os dois carros se detiveram, e Longmore fez as apresentações.
Clara mostrou exatamente o grau correto de curiosidade feminina a respeito de Madame.
Adderley era a versão masculina: tentando calcular os ativos de Madame, sob as capas e
as mangas enormes do traje de passeio, sem ser óbvio. Mas é obvio foi tão evidente para Longmore,
como teria sido para qualquer homem, que Adderley tinha percebido a figura com suas esplêndidas
curvas, e ficou nisso mais do esperado. Fez um esforço valoroso para não parecer interessado – teria

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que lhe dar um pouco de crédito, o mínimo possível – mas Madame manteve sua atenção. Era um
pobre pescado nadando para as redes dela, sem saber onde estavam.
Longmore tinha observado ontem à noite como havia cativado seus amigos. Esta tarde a
observou jogar casualmente a isca: um olhar de relance a Adderley, uma inclinação de cabeça, um
gesto aqui, um sorriso fugaz ali. Em cinco minutos, conseguiu.
Nos olhos de Adderley apareceu um resplendor especulativo, e se produziu um diálogo
silencioso entre eles – e Longmore sentiu dor de cabeça pelo esforço que fez fingindo não notar.
Todo o tempo Madame falava principalmente com Clara. Fez acreditar que estava ansiosa
de ganhar a aprovação desta. E todo o momento Clara escutava o péssimo inglês de Madame com
uma expressão perfeitamente sóbria, parecendo estar totalmente inconsciente do jogo silencioso entre
Madame e Adderley.
—Eu sou muito – Oh, qual é a palavra que quero? — Madame franziu o cenho de uma
forma muito bonita—. Ir muito para frente. Oh, avançar. Eu sou muito avançada, sim? Muito audaz.
—Que nada, — Adderley disse, todo galante. Porco presunçoso e traidor.
Madame fez como que não o notou, aparentemente com toda a atenção em Clara.
—Mas milady Clara, exijo isso. Quem sabe o que chega? Hoje estamos contentes, muito
felizes. No dia seguinte – puf! – foi. Isto é o que chega a minha vida. Um dia é todo felicidade e paz.
O seguinte, é todo agitação. Meu marido morre. Logo Paris fica louca. Quem pode dizer o que
acontecerá.
—Eu não, por certo, — Longmore adicionou.
—O tempo, escapou de nós. Não podemos atender, — fechou os olhos—. Essa palavra
não é correta.
—A palavra que você quer, Madame, é esperar, — disse Longmore. Tinha aprendido seu
truque de usar palavras inglesas que soavam como as francesas, mas cujo significado não era o
mesmo. Exigir, quando queria dizer era perguntar. Ter êxito em vez de seguir—. Acredito que você
quis dizer isso porque como o tempo não nos espera, você não espera o tempo.
—Isso é tão verdadeiro, — disse Madame—. Eu estou apressada. Milady Clara – a muito
bela irmã de Lorde Lon-mur – façamos conhecimento conosco. Nos juntemos outra vez. —Deu um
olhar fugaz por onde estava Adderley—. Amanhã, sim? Assistimos à exposição de pinturas em –
Qual é o lugar, Lorde Lon-mour?
—O Instituto Britânico.
—Esse lugar, — disse Madame—. Eu persuadi Lorde Lon-mour a me acompanhar para
olhar a arte.

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—Oh, sim. Eu gostaria acima de tudo, —Clara respondeu. Não irrompeu em gargalhadas
histéricas, nem mencionou as numerosas vezes que seu irmão havia dito que preferia que lhe
tirassem os olhos com ferros quentes antes juntar-se a uma multidão arrastando os pés, olhando
quadros com a boca aberta e fazendo comentários pomposos e indevidamente equivocados.
Ela simplesmente se virou para Lorde Adderley e lhe deu um olhar de simpatia e disse:
—Mas talvez você achará aborrecido, lorde Adderley? Se for assim, não é necessário por
a prova sua paciência. Meu irmão pode escoltar facilmente duas damas. Pode pedir emprestado o
carro de papai.
—Milord não desfruta olhando pinturas? — disse Madame, levantando a vista para
Adderley, enquanto sua boca se curvava para baixo em uma pequena e adorável careta.
—Na companhia de duas damas tão belas e encantadoras, eu desfrutaria olhando até os
paralelepípedos, — Adderley replicou.

Exclusivo do Morning Spectacle do Foxe.


Sexta-feira 12 de junho.
Uma coincidência curiosa? Uma intrigante informação chamou a atenção deste
correspondente. Recentemente soubemos que há poucos dias antes da celebração no Salão de
Aniversário do Rei em 28 de Maio, foi negado a certo cavalheiro crédito em uma série de
estabelecimentos onde tem grandes conta muito atrasadas. Como todos sabemos, muitos de nossos
alfaiates, fornecedores de móveis, de vinhos e licores, tabaco, fabricantes de botas, etc,
frequentemente se veem obrigados a esperar meses, e até anos para que seus clientes se ocupem de
suas contas. Deve recordar-se que a falecida Majestade, deixou dívidas que alcançaram várias
dezenas de milhares de libras. Só podemos especular a que extremo deve levar um comerciante para
que negue a seus senhores clientes mais crédito. Talvez não devêssemos nos desconcertar tanto em
relação a este giro dos acontecimentos e aquele que levou o mesmo Lorde a um compromisso
apressado como consequência de ter envergonhado certa dama. A dama em questão, como todos
sabem, levará ao matrimônio um dote que se informa está na vizinhança das cem mil libras.

Nesta tarde.
Nesta tarde era a exposição anual de verão dos antigos professores, no Instituto Britânico,
onde se destacavam as obras de todos aqueles que eram alguém, desde sua Majestade descendo por
uma seleção de duques, marqueses, condes, lordes, ladies e barões. Poucos privilegiados tinham
assistido a uma apresentação prévia em particular, no sábado anterior. Na segunda-feira foi aberto ao
público em geral.

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Apesar de sua aversão às hordas presunçosas passando frente as obras decadentes, Lorde
Longmore teria encontrado alguma diversão nos quadros de batalhas e mortes espantosas.
Não estava de bom humor. Pouco depois de ter chegado, Adderley e Madame começaram
a ficar atrás de Longmore e a irmã. Agora haviam se movido ficando fora da fila de escuta, embora
ainda fossem visíveis. Adderley estava bastante perto de Madame enquanto discutiam
ostensivamente o número 23, “Mulher pega em adultério” de Rocco Marconi.
—Viu o Spectacle, suponho, — Clara disse a Longmore, tirando-o de uma agradável
fantasia sombria cujo momento de culminação era quando quebrava os dentes de Adderley.
—Como o resto do mundo.
—Adderley estava furioso, — disse ela—. Tivemos outra cena quando foi me buscar.
Está ameaçando mandar Foxe a prisão, por scandalum magnatum. Fingi simpatia, mas assinalei que
uma semana antes do casamento não era o momento ideal para se meter em confusões legais. Contei
que papai disse que não havia esperança de poder acusar Foxe, pois não nomeava ninguém. Papai
assinalou que se o rei anterior não pode mandar prender cada homem que escrevia escândalos que o
implicavam, um ninguém como Adderley não tinha nenhuma possibilidade.
—Um ninguém como Adderley, — Longmore repetiu—. Disse na cara dele.
Ela lhe deu um olhar inocente.
—Só repeti as palavras de papai.
—Que insensível é.
—Sim. Atrevo-me a dizer que está contando seus problemas a Madame. — Clara deu um
olhar aos dois —. Ela parece muito compassiva, não acha?
Madame estava olhando Adderley, escutando muito atenta, enquanto uma mão enluvada
repousava no centro do apertadíssimo vestido.
—Ela se enganou de ofício, — Longmore declarou —. Pertence aos palcos.
—Estou surpreendida que possa observá-los com uma cara tão séria. Ela é tão divertida,
não é verdade? Tão engenhosa, mas parece ter uma cabeça cheia de borbulhas. Eu gosto bastante
dela.
—E qual de todas ela se refere?
—Ambas. — Olhou o irmão—Não parece estar se divertindo muito.
—Supõe-se que não devo. O sujeito está caçando furtivamente em meu território. Essa é a
cena. Eu deveria estar dando olhares de suspeita. — Isso tinha resultado facilíssimo—. Logo, quando
acabar minha paciência, supõe-se que tenho que ter uma grande briga com Madame.
—Perfeito, — Clara disse—. Correrá a seus braços para que a console.

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Deveria ser muito divertido, mas não era.
—Sim, — ele declarou —. Esse é o plano.
E começou a ir para eles.

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Capítulo Quatorze

Instituto Britânico. Tal como os peregrinos se aproximam de um santuário sagrado com adoração
mesclada de temor e trementes, assim consideramos a exposição de verão da obras dos mestres antigos do
Instituto Britânico… Aqui há 176 pinturas… E dificilmente há uma cuja posse não seja desejável como uma
pedra preciosa.
—A Revista da Corte, Sábado 13 de Junho de 1835.

Embora poderiam pensar que seria impossível, Adderley conseguiu parecer mais
presunçoso até. Tinha um sorriso maligno provocador, enquanto tomava seu tempo afastando
Madame, em cujo ouvido esteve sussurrando.
—Lorde Lon-mur, Lady Clara, — disse Madame com um sorriso muito inocente—.
Somos muito lentos para vocês, acredito.
—Não há pressa, — Longmore disse —. As pinturas estarão aqui por um tempo. Somente
nos sentimos curiosos e quisemos ver o que acharam de fascinante nisto.
—E bem, me recordou outra coisa, e o conto a Lorde Ad’lê uma pequena anedota. — E
ruborizou.
Longmore sabia que tinha uma assombrosa habilidade para atuar. Tinha demonstrado a
ele uma e outra vez. Sabia que podia chorar a vontade. Inclusive podia fazer que os olhos enchessem
de lágrimas sem derramar nenhuma. Nunca tinha ouvido que alguém pudesse ruborizar quando
quisesse.
—Eu gostaria de escutá-la, — ele disse.
Adderley deu um olhar a Clara.
—Receio que não seja adequada para os ouvidos de uma dama solteira.
—Mas é perfeitamente apropriada para uma futura esposa? — Clara disse com as
sobrancelhas elevadas, os olhos frios. Um semblante que sua mãe tinha aperfeiçoado.
—Rogo, querida minha, - minha dama querida – que não se sinta ofendida. É só uma
pequena brincadeira travessa. Lorde Adl’ee a contará quando se casarem.

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Clara desviou seu olhar de gelo ao quadro.
—É interessante, não é? que o adultério seja um crime tão vil quando o comete uma
mulher. Mas com os homens, virtualmente é um ato de honra. Atrevo-me a dizer que esta é uma boa
pintura, mas não é de meu gosto.
Afastou-se com as costas retas e o queixo levantado.
Depois de um momento de vacilação, Adderley foi atrás dela.
—Eu tomaria cuidado, Madame, se estivesse em seus sapatos, — Longmore disse—.
Alguém poderia interpretar errado – mmm – sua simpatia.
—Devo ter cuidado? Vocês os ingleses. Tão rígidos de pescoço. Eu paquero um pouco. O
que tem de errado? É o privilégio da mulher casada.
—Dadas as circunstâncias, poderia ser mal-entendido como mais que um flerte.
Ela ondulou a mão.
—As maneiras inglesas são tão estranhas. Aqui todos observam as meninas solteiras.
Paqueram e dançam, e todos os homens tentam caçá-las. Na França, estas senhoritas se sentam
tranquilas com suas acompanhantes. Têm que ser quietas e modestas, como freiras. São as damas
casadas as que flertam e têm namoricos, mas muito discretos.
—Você já não está na França, madame.
—Você não me aprova, milord? Acha que minhas maneiras não são amáveis?
—Justamente o contrário, são muito cordiais.
—Mas o que significa? De que maneira? Conversar com seu amigo?
—Com o prometido da minha irmã.
—O que há então? Tem medo que o tome? E se fizer isso, talvez seja melhor para ela. Se
eu fosse a noiva, eu não gostaria que se fosse tão facilmente com outra mulher. E que passe a só uns
poucos dias das bodas! Ah, bom. Talvez seja um grande favor o que lhe faço.
A voz de Clara – não o suficientemente forte para entender, mas suficientemente
veemente para transmitir seu desagrado – lhes chamou mais a atenção.
O que fosse que estava dizendo, fez que Adderley ficasse rígido. Um vermelho opaco lhe
obscureceu a pele branca e não parecia tão angelical nem poético.
—Olha lá, está vendo? —Disse Madame—. Já brigam.
—Isso parece.
Clara gesticulava e seu queixo apontava para cima. Começou a afastar-se, e seu caminhar
irradiava raiva. Adderley foi atrás dela. Desapareceram por uma porta.

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—Não é prudente fazer uma cena de ciúmes. Ela o zanga. Tão logo, e antes do
matrimônio, é uma tolice. Assim é como alguém afasta um homem. —E Madame sacudiu a cabeça.
—Talvez ele esteja muito agradado que o afastem.
Ela lançou essa risada francesa característica, seguida do encolhimento de ombros, típico.
—É a vida. O que alguém perde, outro ganha, sim?
Se não soubesse – se não recordasse a si mesmo que sabia – acreditaria que era uma
aventureira, perita em homens, e mundana. Acreditaria que tinha tido uma quantidade de amantes.
Mas não, só eu.
Sabia isso. Sabia que ele foi o primeiro.
E talvez esse fosse o problema.
Havia criado um monstro? Tinha aberto as comportas de deságue? Havia...?
Deus, o que estava pensando? Estava pensando como Sophy.
O assistente que apareceu a seu lado o tirou da fantasia lunática.
—Perdão, milord. Mas Lorde Adderley me pediu que lhes dissesse que o desculpassem, a
dama e você. Devo dizer que sua senhoria, sua irmã, não se sente bem e quis ir para casa.
Longmore olhou ao redor. A briga com Madame, apesar de discreta, estava chamando a
atenção.
A atuação não acabou, disse-se silenciosamente.
Madame estava sacudindo a cabeça.
—Não são um para o outro. Vi imediatamente.
—Verdade? — disse ele —. E com quem você acha que ele irá se dar melhor?
Olhou-o com os olhos entrecerrados.
—É estranho. Desculpe Lorde Seg-mur. Mas eu tampouco me sinto bem. É o ar neste
lugar, acredito. Oprime-me. Ou talvez seja a companhia. Acredito que preferiria voltar para meu
hotel.

Exclusivo do matinal do Spectacle de Foxe.


Sábado 13 de Junho.
A exposição anual de verão do Instituto Britânico atraiu um número de visitantes distintos.
Entretanto, aqueles que assistiram ontem, puderam observar, junto com as obras de arte, um drama que se
desenvolveu sob as pinturas. Um casal recentemente comprometido, mencionado previamente em nossas
páginas, fez sua aparição. Com eles estava o irmão da dama e a dama francesa que sua senhoria escoltou em
tantas ocasiões desde que chegou a Londres. Lamentamos informar que a discórdia se fez presente nos casais.
Embora não diremos que o monstro de olhos verdes apareceu em cena, certos visitantes puderam notar certa

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atmosfera gélida entre as damas, prévia a suas partidas antes de tempo – e por separado. O ar frio poderia
ter resultado quando um dos cavalheiros prestou uma acentuada atenção a acompanhante de seu futuro
cunhado, mais que à dama que em poucos dias será sua esposa. Seríamos negligentes se não adicionássemos
que quando o futuro marido se foi da cena, não foi sua noiva a que deu um olhar lânguido atrás dele.

Maison Noirot.
Domingo na tarde.
—Não, — Longmore disse. Enrugou a nota e a jogou na lareira vazia.
—Não estava pedindo permissão, — Sophy disse.
Estavam na sala do segundo andar onde as irmãs trabalhavam de acordo a seus talentos
individuais. Aqui Sua Graça de Clevedon desenhava suas criações exuberantes. A senhorita Leonie
se esforçava nos livros de contabilidade. E a senhorita Sophia elaborava os dramas da moda para o
Spectacle e ideava planos para manter a Maison Noirot à frente na mente da Sociedade elegante.
Longmore a encontrou trabalhando intensamente. Tinha tinta nos dedos e uma mancha
em uma bochecha. Um cacho dourado escapou de uma forquilha e caía sobre uma sobrancelha.
—Tem tinta no rosto.
—Não mude de tema. Esse convite é perfeito.
—É uma perfeita oportunidade para que você se meta em problemas, — ele disse.
Segundo a nota que Longmore havia jogado longe, Lorde Adderley procurava o conselho
de Madame a respeito de um assunto privado. Faria a honra de jantar esta noite com ele, no Hotel
Brunswick?
—Não, nos economizou problemas. Agora você pode entrar na casa dele.
Ficou olhando-a fixamente.
—Estão decompondo seu cérebro, o cheiro de tinta? Nunca disse algo a respeito de
invadir uma casa. Por que diabos eu teria que fazer isso?
—Para encontrar evidências incriminatórias.
Em sua mente ele viu as palavras escritas com grandes letras maiúsculas.

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—Não encontrou o bastante? Todos os informe que obtém de Fenwick e seus sócios
criminais? A fofoca que Clevedon passou, dos clubes e suas tias? Informes privados que obtém a
senhorita Leonie, não perguntarei como. Que mais necessita?
—Cartas dos médicos encarregados da esposa encerrada em uma casa de loucos, contra
sua vontade.
—O que?
—Seria útil descobrir que já tem uma esposa. Preferivelmente em bom estado e vivendo
na Irlanda. Mas se estiver louca, servirá.
—Seria útil, mas altamente improvável. Esse tipo de coisas ocorre em novelas de horror –
a esposa louca no sótão – o verdadeiro herdeiro do título perdido há muito tempo, trancado nas
masmorras durante vinte anos. Sinto dizer que não é provável neste caso.
—Precisamos de algo potente, — ela disse—. Para a sociedade não é nada que um
cavalheiro esteja até as orelhas com dívidas, que seja um jogador, ou um mulherengo. Não basta para
rebater o crime atroz de Lady Clara por tê-lo deixado beijá-la de uma maneira menos que educada e
ter desarrumado a roupa dela.
—E o que há no último parágrafo do Spectacle que tem a ver com os credores e a curiosa
coincidência? Fez que meu sangue fervesse. Com certeza vai cheirar mal para os puristas. —Ele não
sabia desse detalhe até que não apareceu na folha de escândalos.
—Isso foi bom, mas eu gostaria de algo mais forte. Cartas dos credores ou dos
prestamistas. Advertências interessantes – tais como ‘Melhor que se case rápido, milord, ou espere
dano corporal severo.’ Esse tipo de coisas.
Teve que tomar um momento para acalmar sua mente o suficiente para entender o que ela
estava dizendo. Tinha uma forma de arrastar alguém a uma à corrente furiosa do drama de sua mente
ocupadíssima.
Rapidamente ordenou as coisas e disse:
—Sophy, que tipo de idiota poria por escrito algo como isso? E que tipo de imbecil o
guardaria?
—Você se surpreenderia. A maioria dos criminosos não tem cérebros muito grandes. Têm
cérebros de esquilo e não pensam senão em nozes, nozes, nozes, e como conseguir mais nozes. O
prestamista trapaceiro, por exemplo, não precisa ser um gênio. Só tem que ser bom em amontoar
grandes pilhas de nozes. Pergunte a Leonie. Agora, ela sim tem uma grande mente financeira. Mas a
maioria...
—Sophy.

188
—Adderley tampouco é muito inteligente.
—Tampouco eu sou. Mas sou perfeitamente capaz de seduzir uma mulher se me
propusera isso – e ele...
—Você é muito mais esperto que ele. Não posso acreditar que seja um bobo tão grande
para convidar para jantar uma mulher a poucos dias antes do casamento dele. E convidá-la a um
hotel que não só não pode pagar, mas também onde é seguro o reconhecerão? Cada vez é mais claro
como se meteu nessa dívida impressionante. É um desses homens que assume que tudo sairá a seu
favor: a próxima tiragem de jogo de dados, a próxima partilha de cartas. Em suma, é um cretino e
não tem uma oração para me seduzir. Eu estou seduzindo-o, recorda?
—Não. Nunca estive de acordo que você seduzira alguém.
Ela sorriu, foi até ele, e o puxou pelas lapelas.
—Escute-me, — disse ela olhando-o aos olhos.
—Não. Está falando loucuras.
—Não sou Clara. Posso me cuidar sozinha.
—Nem sempre.
—Sempre. E é obvio neste caso. Adderley está em muito mais perigo comigo, que eu com
ele. Vou jantar com ele, tal como me pede, em Brunswick. O manterei ali no mínimo duas horas.
Isso deve lhe dar bastante tempo para revistar a casa dele, que não é muito grande.
Não era. Adderley teve que vender a maioria de suas propriedades. O que não podia
vender, hipotecava. O imóvel da família estava arrendado a um cavalheiro militar e sua família.
Neste momento, Adderley arrendava uma pequena casa na cidade, perto de Leicester Square.
—É uma propriedade privada. Uma casa. Com criados – embora todos se perguntam
como os paga. Minha trajetória não foi das mais reputadas, como você sabe, mas há algo que nunca
fiz, e é me introduzir sorrateiramente à casa de um cavalheiro.
—Não é muito diferente a entrar nos albergues. Ou entrar em colégio depois do toque de
silêncio. Estou segura que você fez isso.
—Como sabe? — Ela estava muito perto. Seu perfume se disseminava no ar ao redor
dele. Introduziu-se em seu cérebro e atuou como faria o mel em um mecanismo de relojoaria.
—Você foi à escola pública, e sei que não ganhou prêmios por ter boa conduta.
—O que quero dizer é como sabe que as duas coisas não são distintas? Como sabe estas
coisas, Sophy?
Soltou-lhe as lapelas e retrocedeu um passo.

189
—Oh, Por Deus. É óbvio. São edifícios. Com portas e janelas. Os que entram em uma
casa, manipulam a fechadura, ou o fazem por uma janela aberta, ou a quebram se estiver fechada. —
Ondeou uma mão—. Não estou segura qual é o melhor método – mas Fenwick saberá.
—Então deixe que Fenwick o faça. É pequeno e se nota menos. Pode se arrastar para sair
e entrar de espaços estreitos – e sendo um desesperado com experiência, é menos provável que o
peguem e tenha que responder perguntas molestas. Se o pegam podemos arrumar facilmente e tirá-lo
do problema.
—Não sabe ler, — disse ela.
Inclinou a cabeça para um lado, estudando-o, pensando, pensando, pensando. Esse
pequeno cérebro ocupado.
—Pensei que você desfrutaria podendo invadir a casa de Adderley, e descobrir seus
segredos malvados.
—Gozaria se ele se encontrasse na casa. Enquanto você estivesse em outra parte.
—Tente ser lógico. Não vai me ocorrer nada. Não pode. Se Adderley conseguir de mim o
que anda procurando, perderá todo interesse.
—Ou talvez, não. — Longmore não tinha perdido. Justamente o contrário. Estava muito
interessado para sua própria tranquilidade. Não podia recordar ter passado tanto tempo pensando em
uma mulher, como tinha feito com ela.
Não havia suficiente atividade amorosa. Esse era o problema.
—Se me rendo a ele, não estará muito ansioso por agradar. Não estará procurando a
oportunidade de me encontrar sozinha. Não ficará rondando. Não ficará em um alto estado de
excitação. Precisa frustrar-se um pouco – não muito para que não desanime, mas suficiente para que
aumente seu entusiasmo pela caçada. Por que devo explicar isto? Você é um homem, sabe como
pensam os homens.
—Na realidade, não pensamos tanto.
—Você sabe o que quero dizer.
—Sei que essas situações podem escapar da mão. — Recordou os rapazes bêbados. Em
sua mente apareceram imagens dela a mercê do Adderley.
—Eu gostaria de saber como seria possível que escapasse da mão com um homem que
alguém acha repelente. Ou você imagina que todas as mulheres são escravas do desejo, e tudo o que
os homens têm que fazer é beijá-las e acariciá-las para que percam o juízo?
—Ele não vai beijá-la, nem acariciá-la.
—E eu não vou perder a cabeça.

190
—Você não foi totalmente racional comigo, conforme me lembro.
—Aquilo foi com você. Foi completamente diferente. Conheço a diferença – e realmente
acho desencorajador que você não o faça. São todas as mulheres iguais para você? Mas não – não
responda essa pergunta. Acredito que, em geral, não quero saber. Prefiro manter alguns enganos de
menina.
—Enganos de menina? Tem algum, por Júpiter? Porque me parece… —ficou calado.
Deu-se conta que as mulheres tinham sido sempre mais ou menos intercambiáveis para ele. Exceto
ela—. Não importa. Já não sei o que penso.
—Não pense. Tudo o que precisa fazer é entrar na casa dele e procurar evidências
incriminatorias. Eu o manterei ocupado.
Ela ia e ele não podia detê-la – a menos que a amarrasse a uma cadeira e a trancasse com
chave no quarto – mas ela escapuliria, não duvidava.
—Muito bem, — ele disse.
Ela voltou a aproximar-se e lhe pôs uma mão no peito.
—Obrigada. Eu sei que está preocupado comigo, e sei que me diria que me fosse ao
diabo, se não fosse por sua irmã.
Isso não era exatamente verdade, mas não discutiu. Em vez disso tomou o lindo rosto e a
beijou uma vez, firme e possessivamente, na boca. Manteve-a assim e olhou em seus brilhantes olhos
azuis mentirosos, e disse:
—Eu gostaria que tentasse não ser beijada nem acariciada. Por ele.
—Confie em mim, — ela disse em voz baixa.
Desejava-a e pensava muito nela e se preocupava com ela até tal ponto que se sentia
levemente doente. Mas não confiava nela.
Assim não confiou que não faria o que já tinha decidido fazer, embora ele cooperasse ou
não. Vendo que não havia outra alternativa que cooperar, melhor seria que visse o lado bom: seria
muito entretido entrar na casa do Adderley, e encontrar algo que apagasse para sempre o sorriso
maligno de sua cara.
E se não funcionasse, sempre poderia levar um tiro.

Essa noite.
Entrar na casa do Adderley foi bastante fácil.
Depois de um reconhecimento Fenwick reportou que o pessoal se reuniu abaixo, e
estavam fumando, bebendo e jogando cartas, em meio de um grande bulício.

191
O método de entrada do Fenwick foi muito simples. Subiu por um encanamento de
drenagem e dali entrou na casa por uma de muitas janelas que não estavam bem fechadas. Logo abriu
a porta principal a Longmore. Qualquer um que estivesse olhando teria acreditado que um criado
tinha deixado entrar um dos amigos de Lorde Adderley.
Depois disso, a dificuldade maior foi mover-se em uma casa estranha e mal iluminada,
sem se chocar com os móveis ou derrubar coisas que quebravam. Após alguns rangidos e golpes que
lhe pararam o coração, Longmore relaxou.
Tirou da mente o Não Ser Capturado, e se dispôs a Encontrar Algo.
O último resultou ser muito menos simples.
As salas que revistaram tinham todos os sinais de um pessoal abatido se não abertamente
hostil. Isso explicava a festa lá embaixo, e as janelas abertas.
Com Fenwick, encontraram grande quantidade de papel: pilhas de jornais e revistas de
esportes, e folhas das corridas, e o Morning Spectacle de Foxe. Montões de convites e correio sem
classificar. Muita conta de comerciantes, mas nenhuma continha um segredo que Leonie e Clevedon
não tivessem descoberto.
Longmore tomou grande cuidado em revistar a escrivaninha, procurando fundos falsos e
compartimentos escondidos. Não havia nenhum. Não sem desagrado, passou ao dormitório do
Adderley. Procurou na mesa da escrivaninha, na mesa de noite, no guarda-roupa, e sob os
travesseiros e o colchão. Encontrou grande quantidade de imundície e evidência de um trabalho
doméstico escasso, quase ausente. Era um trabalho tedioso, e pareceu que mal tinham começado com
Fenwick, quando em alguma parte da casa começaram a soar as badaladas de um relógio. Nesse
mesmo momento, Longmore escutou os sinos da igreja da vizinhança. Repicaram dez vezes.
As dez.
Tão rápido.
Fenwick que estava encarregado da vigilância, disse:
—Estão se movendo lá embaixo, sua majestade. — Uma pausa. Logo, —Alguém vem
pelas escadas.
Um momento depois Longmore ouviu vozes que se aproximavam.
—Você, ao guarda-roupa.
O moço se desvaneceu instantaneamente ali.
Lorde Longmore se agachou e entrou embaixo da cama.

192
Contrário às tias de Clevedon, quão nobres vinham a Londres por uma curta estadia
ficavam em um dos muitos hotéis de luxo de West End. O Clarendon na New Bond, como outros de
seu tipo, costumavam a acomodar as necessidades de seus convidados com discrição.
Madame Veirrion tinha ocupado uma das suítes maiores. Se ela considerava suas salas
como apartamentos privados, o pessoal do Clarendon estava feliz de secundar essa visão. Eles não
tinham por que comentar, menos até fofocar o que ela fazia, nem a quem recebia ali. Por isso foi que
escolheu o Clarendon para levar a cabo o plano.
Apesar do tarde que era quando Madame voltou, sua entrada atraiu a atenção encantada
tanto do pessoal como dos convidados. Usava um vestido para jantar espetacular, do qual já havia
provido ao Spectacle com uma detalhada descrição, que apareceria na edição da segunda-feira. Era
uma das criações mais gloriosas de Marcelline, e Maison Noirot receberia todo o crédito no jornal.
Em Paris, as capas curtas de tafetá preto eram a última moda, e se usavam com vestidos
de uma textura suave e contrastante, geralmente de musselina de lã, ou musselina. Mas Marcelline
havia ensamblado um cetim rosa intenso com uma capa de tafetá preto, criando um murmúrio
delicioso e sensual quando se movia.
Cada mulher que tinha visto Madame Veirrion esta noite, olhou o vestido com uma
expressão de luxúria, que mais habitualmente se via na cara dos homens.
Lorde Longmore nunca a olhou dessa maneira.
Mas ele era diferente, Sophy se disse. A cara de pôquer dele podia ser tão boa quanto a
dela. Alguém tinha que observá-lo muito de perto para captar como seus olhos escuros brilhavam
quando estava olhando-a de uma maneira mais intensa que o usual… e havia certa separação de sua
boca, ou inclinação da cabeça…
Teve um calafrio ao recordar a última vez que a olhou dessa forma, fazia só poucas horas,
um instante antes que a beijasse.
Ela se encontrava muito mal.
Se não tivesse que resgatar Lady Clara, quase sem tempo para fazê-lo, Sophy facilmente
teria se tornado tola por ele. Poderia ter chorado em seu travesseiro de noite. Ter escrito poesia
nauseabunda a respeito de Amantes Separados pelo Destino. Ter citado parágrafos inteiros de Romeu
e Julieta, e soluçado porque a esses jovens amantes não foi tão mal como a ela.
Mas ela não tinha tempo para comportar-se como uma estúpida sentimental.
Era obrigada a atuar de Cleopatra ao Marco Antonio do Adderley – e na realidade sempre
pensou que ele não merecia à rainha do Egito. Um pouco escuro, impreciso.

193
Estava contemplando o rol de sedutora malvada, e pensando que principalmente
necessitava paciência, quando o lacaio parado na porta de sua suíte, informou-a que Lorde Longmore
a esperava em seu salão.
O coração acelerou.
Tinha acreditado que teria tempo para descansar e repor-se antes que Longmore chegasse.
Ficar calma com ele, não era tão simples como deveria. Com muita frequência sentia que olhava
diretamente a seu cérebro, vendo o que não devia. Era como estar despida, com a diferença que não
se importava que visse seu corpo nu. Mas importava muito que visse o que havia dentro de sua
cabeça.
Não seria fácil manter a guarda alta, depois de uma noite exaustiva com Adderley.
Ele tinha uma mente lenta. Teve que se esforçar durante a conversa enquanto o mantinha
não ao alcance da mão, mas tampouco muito perto. Teve que trabalhar cuidadosamente. Era como
dançar com um homem que tinha dois pés esquerdos. Ele tentou de ser sutil, e foi difícil fingir que
ela não entendia o que ele estava tentando estabelecer.
Era um trabalho duro que a deixou sem energia – e levou mais tempo do que o esperado.
Mesmo assim, obteve êxito. E foi isso o que pôs em sua mente. E foi isso o que a animou
quando foi a seu salão, um verdadeiro quadro de confiança em si mesma.
Uma garçonete saiu apressada, mas Sophy a ignorou. Longmore estava parado na janela,
com um copo na mão. Tinha o cabelo despenteado e a gravata estava enrugada. Não podia dizer se
esteve em uma briga ou dormido com a roupa. Parecia totalmente pouco respeitável, e seus olhos
escuros tinham um brilho perigoso.
Ela despediu a garota com um movimento ondulado.
—Vá para cama. Farei soar a campainha se a necessitar.
Quando a porta se fechou atrás da empregada, Sophy tirou as luvas.
—Espero que o tenham atendido bem. — Notou uma garrafa de licor já quase vazia, em
uma das mesas elegantes do salão.
—Alimentaram-me e mantiveram meu copo cheio. Onde diabos estava?
Ela deixou cair as luvas em uma cadeira, tirou a capa e a colocou com cuidado em cima.
As costureiras dobravam o vestuário e colocavam cada coisa no lugar apropriado. As grandes damas
deixavam esse trabalho a suas empregadas.
—Quanto teve que beber? Esqueceu que estava jantando com Lorde Adderley?
—Durante cinco horas?
—É obvio que não. Não pode ser – que horas são?

194
Deu-lhe um olhar de relance, tirou o relógio e o abriu com um clique.
—É meia hora passada a meia-noite.
—Não são cinco horas.
—Que demônios esteve fazendo todo este tempo?
—Mantendo-o ocupado.
—Você disse duas horas.
—Disse que pelo menos podia lhe dar duas.
—Não foi o que você disse.
—O que importa a diferença? Ou se sente ofendido porque teve que deixar de procurar
porque só teve duas horas?
—Não importa minha busca.
—Não importa? Isso foi todo o ponto deste exercício.
—Aparentemente não, — disse ele—. Aparentemente encontrou muito no que ocupar-se.
—Bom, foi assim muito bem.
—Estou ansioso para saber o que foi isso.
Ela não ia descrever as muitas manobras e contra manobras que teve que usar. Não tinha
nenhuma intenção de instruir nenhum homem – sobre tudo este – nas artes que ela usava para
manipular os varões.
—Deveria saber o que não foi. Não posso acreditar que esteja aqui me olhando furioso
como se fosse uma irmã que se comportou mal. Quantas vezes devo dizer: Não sou Lady Clara que
não sabe mais que deixar-se levar a terraços escuros por senhores sem dinheiro. Não sou Lady
Ninguém. Não sou ingênua.
—De todas as maneiras...
—Supunha-se que nada ia ocorrer. Sei que não posso permitir que algo ocorra. Nada
aconteceu. — Queria sacudi-lo. Como podia acreditar que fosse tão estúpida? Como podia achá-la
tão indiscriminada—? Considerando o péssimo ânimo em que se encontra, só posso concluir que
tampouco ocorreu algo em sua missão. Ou encontrou algo pior do que se poderia imaginar? Restos
horrorosos na adega dos vinhos, ou...
—Montões de pó sob a cama e o que pode ter ou não sido, um roedor morto. Não o
toquei. Estou julgando só pelo aroma. Poderiam ter sido as meias de seu futuro pretendente.
—Procurou sob a cama? Por que não pôs Fenwick para fazer isso? É menor e é menos
provável que bata a cabeça… —foi ficando calada enquanto a imagem de Longmore apertando-se

195
sob a cama lhe vinha à mente—. Oh não! bateu a cabeça? —Foi até ele—. Deixe-me ver. Deveria ter
pedido aos criados que lhe trouxessem gelo. Mandarei buscar gelo.
Ele deu um passo para trás.
—Não bati a cabeça. Sei como agachar a cabeça, estive sob camas antes, embora não
recentemente. Permaneci ali totalmente quieto enquanto um par de criados aproveitavam a ausência
do amo para fornicar contra o guarda-roupa, onde Fenwick se escondeu. — Girou, foi a garrafa de
licor e voltou a encher o copo.
Observou-o enquanto sua imaginação pintava um quadro com o que ele havia descrito.
Ela sabia a respeito dessas coisas. Tinha visto pinturas. Mas as olhou friamente, sentindo
principalmente curiosidade.
Tratou que sua mente se distanciasse, mas fez sua própria exposição de pinturas vívidas
dele, nu, empurrando contra ela e fazendo-a sentir o que nunca antes havia sentido, emoções tão
selvagens, tão deliciosas que até quase doeram.
Sentiu calor em todas as partes ao recordar. Queria cruzar a sala correndo, abrir a janela e
se debruçar.
Mas não, isso não era toda a verdade.
Queria correr para ele e fazer que o fez da outra vez, que a tocasse e a beijasse, e a amasse
e a possuísse, e apagasse da mente a voz insinuante e as ternuras falsas de Adderley, e o corpo e cara
muito perto dela.
Fez que parecesse compassiva, mas divertida.
—Mas não os pegaram, — disse.
—Poderia ter começado a cantar Deus Salve o Rei, e duvido que teriam notado.
Felizmente, a posição não é fácil. Não duraram muito. Depois riram com todas vontade e se foram –
talvez repetir o ato na sala seguinte. Não fiquei para comprovar. Desenterrei Fenwick e nos
desaparecemos. —Bebeu um gole.
Ela não disse nada. Só observou as mãos e os movimentos dos ombros, e o jogo da luz
nos traços do rosto.
—Tive que descer pelo cano de deságue, — disse meio ao silêncio—. Depois Fenwick
criticou minha descida.
Ela encontrou a língua:
—Eu acredito que ele...
—Foi uma perda de tempo total! — Depositou o copo de um golpe na bandeja, fazendo
oscilar a garrafa de licor —. Adderley não tem nada em sua casa que não saibamos. Foi exatamente

196
como lhe disse. As coisas que você esperava são as que encontram os personagens imaginários dos
contos. Para fazer acreditar. Mas isto não é nenhuma maldita fantasia!

197
Capítulo Quinze

Quando minha Julia vai como entre sedas


Então (eu penso) que doce se desloca
Esse farfalhar de sua roupa.
Logo, quando a olho e vejo
Essa atrevida vibração livre para todos os lados;
Oh, como se apodera de mim o resplendor!
—Robert Herrick, A respeito da Roupa de Julia, 1648.

A cabeça foi para trás, como se a tivesse golpeado com força. Então Longmore quis
golpear algo, preferivelmente a si mesmo.
Estava se comportando como um idiota por ter se permitido alcançar um estado de
loucura – e só podia culpar a si mesmo.
Ele havia insistido que se encontrassem ali depois que terminassem com seus respectivos
trabalhos. Desta forma, raciocinou, se Adderley decidisse ficar incomodo, e seguisse Madame a suas
habitações, Longmore estaria no lugar para mandá-lo passear.
Longmore estava no lugar, o que lhe pareceu meses. Segundo as regras da Sociedade, não
era tarde. Entretanto, parecia ser muito tarde que uma mulher voltasse de um compromisso para
jantar, que se supunha duraria duas horas.
E pior, voltar com esse aspecto.
Deslizando, quadris ondulantes, sorriso seguro – o sorriso de uma mulher que sabe que é
desejada, como deve ser. Fazia sua entrada como uma rainha, ou algum ser mítico, uma deusa
transportada em uma nuvem ou em um vento suave. E parecia caminhar em uma nuvem com esse
vestido, uma confecção de capa sobre capa, brilhante, rosa intenso e preto de cetim e renda. À luz
dos abajures a gás, a seda rosa tomava o aspecto de um entardecer tormentoso. Mas não um
entardecer britânico. Trouxe-lhe a mente um pôr do sol mágico e selvagem nas montanhas toscanas,
onde a brisa passava por sua cabeça, levando a fragrância estimulante de lavanda e jasmim.

198
A viu tirar as luvas, e sentiu que acelerava o pulso. E desamarrar a pequena capa preta
que usava sobre os ombros, e o objeto lustroso se movia e soava como centenas de vozes
sussurrantes. A renda da borda, ofuscava a cor rosa do vestido. Em sua mente viu o que havia mais e
mais abaixo, até chegar à pele, e sabia como era ao tato. Sabia como era sentir a curva aveludada de
seu ventre.
Observou como tirava e deixava a capa de lado, e ficou sem fôlego. O decote era
escandalosamente baixo, mal cobria o inchaço sedoso dos seios.
Tudo isso.
Adderley tinha visto tudo isso.
E o dar-se conta o fez sentir-se como um selvagem. Logo se sentiu furioso com ela por
fazê-lo sentir-se como selvagem, e com ele, por deixar que acontecesse. Estava se comportando
como um demente, e um bruto, além disso – Oh, e um colegial, também.
—Maldição, Sophy.
As bochechas dela ruborizaram.
—Não posso acreditar no escândalo que está fazendo por isso. Você é um homem que não
se importa o que diga qualquer. Um homem que ri das normas e que está em seu ambiente com o
risco, e quanto mais perigoso, melhor. Isto é o tipo de coisa que você faz como uma brincadeira.
—Não foi uma piada.
—Bom, então eu gostaria de saber o que aconteceu com seu senso de humor. O que
aconteceu seu sentido de aventura. Eu gostaria de saber...
—Diga você. Que diabos me importa o que você faz? por que ia me importar?
—Você está falando sem sentido.
—Não. Não estou fazendo, especialmente não comigo mesmo. Nunca estive tão…
Alguma vez estive tão o que? Quem era, a não ser o mesmo? O que era isto?
Mas sua boca continuou falando, ficando atrás de seu pensamento, como sempre.
—Deixei-me arrastar por esses seus planos loucos… E é divertido. Mas depois não foi. E
não desfrutei. Nem sequer me diverti entrando na casa com esse Traidor Infantil do Fenwick, porque
todo o tempo, cada minuto, enquanto lia as contas aborrecidas do libertino e as cartas miseráveis de
seus credores – todo esse tempo estava pensando no duas caras do canalha, e que desesperado tem
que estar para apanhar minha irmã, quando há tantas outras mulheres… e ali estava você tão segura
de poder dirigi-lo.
—É porque posso! Eu fiz! Como pode ser tão absurdo? — Ela mantinha a voz baixa, mas
a veemência evidente era bastante clara —. Sei que não tem nenhuma consciência. Que não lhe

199
importam as mulheres. São simplesmente um esporte. Inclusive obter uma esposa da maneira mais
baixa, não é desonesto para ele. Simplesmente é parte do jogo. Para ele não é diferente dos jogo de
dados, as cartas ou as corridas de cavalos. Sei tudo isso. Posso ver muito mais claramente que você.
E você acha que estou em algum perigo com ele – com ele, havendo tantos homens? Você acha que
o deixaria me seduzir? Como pode ser tão idiota?
—Isso é o que eu gostaria de saber, — ele disse—. Como posso ser tão tolo, e arruinar
uma noite perfeita, me preocupando com você? E agora – quando fica bastante tarde para me
divertir, a desperdício mais até, brigando com você.
A cor aumentou, entrecerrou os olhos até que ficaram duas raias azuis. E se lançou em um
furioso francês, em voz baixa.
—É verdade. Uma grande perda de tempo para ambos. Bom, não permita que o detenha
mais, Milorde.
Foi a porta, com a ceda sussurrando furioso, e com os laços que pareciam tremer de raiva.
Abriu a porta, para grande surpresa do lacaio que estava agachado tentando escutar pela fechadura.
—Boa noite, senhor, — ela disse, marcando cada sílaba.
—Boa noite, madame, — Longmore respondeu, e recolheu o chapéu e luvas, e se foi a
grandes passos para a porta.
Ela estava com o queixo em alto, olhando-o desafiante. Um fogo azul acendia seus olhos.
Uma cor vermelha queimava as bochechas e o pescoço. O fogo se estendia a seu peito cremoso que
subia e descia com rapidez.
Longmore passou ante ela e fechou a porta na cara do lacaio.
Jogou ao chão as luvas e o chapéu.
E a levantou em seus braços.
—Oh, não, você não se comportará como um macho dominador comigo. — Bateu no
peito dele—. Coloque-me no chão, — sua voz era fria e dura.
—Tente me forçar, — respondeu ele, sua voz era mais fria e mais dura.
Ela se retorceu.
—Gritarei.
—Não, não o fará. — Beijou-a, e não suavemente, mas sim com toda a frustração a raiva,
e o medo que esteve carcomendo-o durante todo o dia e a noite.
Ela continuou retorcendo-se e lutando – e tampouco com suavidade – mas sentiu como a
boca se entregava antes que o corpo. O resto era só excitação. Ele também estava excitado, e muito
mais.

200
Levou-a a um sofá. Deixou de beijá-la para dizer:
—Agora vou.
—Que bom. Já é hora.
Deixou-a cair ao meio do som do cetim, enquanto ela lutava para sentar.
—Adeus, — ele disse.
—Vá de uma vez.
Ele tirou a jaqueta.
—Nunca mais vou voltar.
—Nunca é muito cedo, — respondeu ela.
Desatou a gravata.
—Terminei com você.
—Eu o fiz faz anos.
Começou a desabotoar a calça. Tinha as mãos muito firmes. Não se apressou. Um. Botão.
De. Cada. Vez.
Ela o observava através de olhos entrecerrados.
—Nunca. Nunca nem em milhão de anos.
—Nem sequer vou tirar a roupa. É muita moléstia.
—Não merece ver meu belo corpo, — ela disse.
—Não é tão belo.
—Sim, é – e muito mais lindo que o seu – que não quero voltar a ver nunca.
Especialmente essa parte. —Ela deslizou o olhar à frente da calça, onde o pênis excitado palpitava
contra o objeto que o cobria. Não sabia a diferença entre brigar com uma mulher e desfrutá-la.
Tampouco ele, nesse momento.
Ela se inclinou para trás no sofá.
Ele pegou um dos pés e a puxou, descendo-a outra vez. Arrastou-se sobre ela e pôs uma
almofada de veludo sob a cabeça.
—Não vou tolerar isto, — e curvou a boca para baixo, toda petulante—. É abominável, o
pior cretino mais insensível e grosso que polui a terra desde seu início.
Ele se inclinou e a beijou em cada comissura, logo o fez diretamente na boca,
intensamente e com fome. Ainda se sentia em um torvelinho, mas cada vez importava menos e
menos. Estava cansado de pensar, de ficar preocupado.
A fez perder o bom humor, e estava acalorada e irritada, tal como ele. Ele não estava
seguro qual era o problema entre eles, mas isso não parecia muito importante.

201
Ela levantou as mãos e as levou a seus ombros e tentou sacudi-lo, o que era absurdo.
Fazia tais ridicularias, como tentar movê-lo à força. Era como tentar lutar com uma casa. Sentiu suas
mãos subindo mais, fechando-se em sua garganta, como se achasse que pudesse asfixiá-lo. Mas logo
ela se levantou um pouco e o abraçou pelo pescoço, puxando-o, e ele caiu sem lutar.
E abaixo foi a uma rica atmosfera, a de Sophy: seu aroma e seu corpo de curvas suaves
sob ele, e o sabor dela, e seu som, o cetim sussurrando contra a renda, os rangidos das anáguas, a
deliciosa música de sua roupa.
Ele baixou a mão deslizando-a pelas curvas de seu pescoço e ombros, e mais abaixo,
sobre o seio cheio, mal coberto com o grande decote. Ela se arqueou para trás com um suspiro e um
“maldito”. Ele deslizou uma mão dentro do decote, e acariciou e massageou um seio perfeito e
sedoso. Depois o fez com o outro. Ela se retorcia sob ele, enquanto seus quadris se moviam com um
deleite sem dissimulação.
Sem disfarce.
Honesto.
Deslizou sua boca na dela e seguiu com um atalho de beijos por onde tinha passado sua
mão, sobre a curva do pescoço, ombros e seios. Puxou e baixou o corpo do vestido, e chupou, e ela,
entre gemidos, disse-lhe em francês que era desprezível, um homem perverso, e nunca, nunca se
renderia a ele, não importava quanto rogasse e suplicasse.
Subiu as saias e as anáguas, e em francês disse que ela era impossível, intolerável, e não
queria nada com ela.
—Vou, e nunca vou voltar, — disse, enquanto se ajoelhava entre suas pernas.
—Que bom, — disse ela, com um grito afogado. —Não vejo as horas de não vê-lo nunca
mais.
Deslizou seus dedos sob o espartilho, para a fita na cintura.
—Não a vou sentir sua falta, — disse, enquanto desamarrava os calções.
—Eu já o esqueci — respondeu ela.
Lentamente ele baixou os calções, mais abaixo dos joelhos. As ligas eram da mesma cor
rosa do vestido. Desenlaçou-as. Acariciou-lhe as coxas aveludadas, movendo-se para cima, para o
monte delicado. O belo lugar feminino, brilhava como ouro à luz do gás. Quando pôs sua mão ali, ela
ficou sem fôlego.
—Ah, isto é meu! — disse ele.
—Nunca.
—Oh, sim, madame. Oh sim, senhorita Noirot. Sophy.

202
Quem quer que você seja.
Esfregou e ela estremeceu e deixou escapar um ruído sibilante. Soou como sim.
Moveu-se contra sua mão, animando e procurando mais.
—Homem estúpido.
—Entretanto sei fazer exatamente o necessário neste momento. — E foi tudo o que pôde
dizer. Ela estava úmida, pronta. Sua mente estava tão espessa, que quase não podia falar, estava
rouco e sem fôlego. Mas ela não estava melhor. Ardiam e estavam enlouquecidos. Mas a acariciava e
lhe dava prazer. Para ele era uma espécie de castigo. Entretanto, também gostava, e muito: como ela
se movia, como ficava sem fôlego com cada onda de prazer, e como a respiração acelerava e cada
vez era mais forte, à medida que a esfregava.
Ela pôs a mão quente em seu órgão e deslizou seus dedos perversos por toda sua
longitude. Sua mão era firme e possessiva.
—Agora, — disse ela, e foi como o grunhido de um gatinho pequeno. Um filhotinho —.
Agora, milord, homem espantoso.
Ele sentiu como o sangue acelerou nas veias, com a mesma urgência que o alagava
quando brigava e que o mantinha lutando. Instintiva. Sem pensar. Penetrou-a e riu – pela sensação de
aperto, pelo triunfo. Agarrou-a pelas nádegas, suas belas nádegas, e empurrou uma e outra vez. Sem
refinamento. Só calor. Desejo. Posse.
Minha, com cada empurrão. Minha. Minha. Minha.
Ela o gozou da mesma maneira: desejo primitivo, simples, genuíno, voraz. Tomou e se
entregou a ele com generosidade sem guardar nada.
Brigaram uma batalha de amantes, uma espécie de guerra que não era guerra. Ainda
quando o ritmo do acoplamento crescia e crescia, e se acelerava e era cada vez mais feroz, o mundo
ia se apagando, suavizando e fazendo-se cada vez mais tenro. Embora, se afastou muito. Não havia
nada mais que o agora.
Sentiu como as mãos se apertavam na parte alta de seus braços, e logo os
estremecimentos quando ela estava alcançando o clímax. Então ela se levantou e passou as mãos
pelo cabelo enquanto o beijava. Ele sentiu algo nesse beijo e em sua própria resposta ou na
combinação. Não tinha palavras para descrevê-lo. A sensação era assustadora, incandescente e nova.
Em seguida o empurrou para baixo com ela enquanto ele a beijava, como um homem morto de fome
e todo mundo era este, ela e ele, acoplados. O mundo se elevou, estremeceu-se, explodiu.
Jazia estirado sobre ela. Sophy também estava estirada, de uma maneira indigna, uma
perna pendurava na beira do sofá com a meia caída até o tornozelo.

203
Nem sequer havia tirado os sapatos.
Tinha sido tão entretido… e excitante. Tantos sentimentos: sensações que nada mais na
vida brindava.
Permaneceu quieta por um momento, enquanto acalmava a respiração, gozando com seu
peso e seu calor e o sentimento indescritivelmente maravilhoso do corpo de um homem – deste
homem – engrenado com o dela.
Neste momento ela se deu o prazer e fingiu ser Madame, que só precisava pensar nos
prazeres do momento. Madame que não tinha mais responsabilidade que gozar, atrair os homens a
suas redes e desfrutar com o poder que tinha sobre eles, e o prazer que podiam lhe dar.
Ele mudou de posição.
—Bom, então deixe que seja uma lição para você.
Ela voltou a se dar um agrado, e passou os dedos pelo cabelo preto e grosso. Ele virou o
rosto para sua mão, como um cão que quer que cocem suas orelhas. Ela se deu conta que era um
homem muito sensual. E isso não devia ser nenhuma surpresa. Era tão físico, estava tão
completamente cômodo e seguro com seu corpo.
—Já não está tão enlouquecido?
—Minha mente está maravilhosamente limpa, — respondeu.
Com uma série de movimentos passou sobre ela e saiu do sofá. Inclinou-se e beijou um
joelho. Em seguida ordenou a roupa dela, com tanta facilidade, como se estivesse vestindo e
despindo-a, durante anos. Ela sabia que só era prática, anos de prática com as mulheres, mas sentia
mais que isso. Havia uma familiaridade, como se sempre tivessem sido amantes. Era quase…
doméstico.
Assim era entre sua irmã e Clevedon. Estavam juntos, e suas vidas se uniram, e tinham
momentos como este todo o tempo. Tomavam o café da manhã juntos.
Longmore colocou a calça e a fechou.
—Não vai dizer que vá dormir? — ela perguntou.
—Por uma razão estranha, não tenho nada de sono.
—Então posso contar o que consegui esta noite, sem que atue como um louco e ciumento.
—Não posso imaginar do que posso ter estado ciumento. — Foi para a bandeja com o
licor que haviam lhe trazido os criados e encheu um copo para ela e para ele. Depois de passar-lhe
endireitou-se e retrocedeu um pouco. Bebeu. Fechou os olhos.
Ela esperou.
Abriu os olhos. Deslizou a vista sobre o busto.

204
—Isso, — disse—. Você jantando com esse mulherengo oleoso, comendo seus seios
magníficos com a vista.
Ela bebeu suas palavras como se fosse o galanteio mais precioso, ou inclusive uma
declaração de devoção eterna. Sim, havia tocado-a, acariciado, chupado – mas “esplêndido”, vindo
dele, virtualmente era poesia. Não era o tipo de homem que adulava às mulheres. Era muito franco.
E ela era tão… não era.
—Marcelline cortou o decote de propósito. Precisávamos dar algo tentador para que
olhasse, enquanto eu estabelecia minhas outras tentações: minha enorme riqueza, da qual falei
descuidadamente. E minha solidão. E como sentia falta de um marido.
Viu a compreensão aparecendo em seus olhos escuros. Sentou-se de lado na beira do sofá,
com o quadril contra a dela.
Na realidade não era pouco inteligente como a gente acreditava.
—Está vendo? — ela disse—. Vê que não tive que manipular para que tentasse me
seduzir?
—Tentou-o com um prêmio maior. O fez acreditar que estava sonhando com muito
pouco. Só pensava deitar-se com você – mas você o tentou a fazer apostas maiores.
—A fortuna de Madame rivaliza a do Duque de Clevedon, segundo o Spectacle.
—Faz parecer miserável o dote de Clara. —Bebeu o vinho lentamente, pensativo—.
Mesmo assim, um pássaro na mão, você sabe.
—Eu sei. Por isso tive que me fazer deliciosamente irresistível.
—E fez um bom trabalho. — A voz havia ficado rouca. Tirou o copo de vinho e pôs o seu
no chão. Inclinou-se e beijou a parte superior de um seio, logo o outro. Depois passou a língua ao
redor do decote.
Ela respirou profundamente. Estava fazendo coisas estranhas com a língua no lugar onde
o decote se juntava com o ombro do vestido e isso o fazia vibrar a boca do estômago. Ela agarrou
uma mecha de cabelo dele.
—Só restam poucos dias, — disse.
Levantou a cabeça e a olhou com os olhos semi fechados.
—Sabemos o que devemos fazer.
—Temos um plano geral. Devemos refiná-lo, considerando os acontecimentos recentes.
Seus olhos eram como a meia-noite, e ela viu esse brilho especial, como a estrela do
diabo.
—Deixemos para mais tarde, — disse ele.

205
Mais tarde.
Desta vez, não estando nem a metade de alterado, nem tão apressado, Longmore a levou a
privacidade do quarto.
Depois de fazer amor, ele adormeceu, e teria dormido até o meio-dia se não tivesse
rodado ao lugar onde ela deveria estar e encontrou a cama fria ao invés do calor de Sophy.
Após apalpar, abriu os olhos e se apoiou nos cotovelos, e procurou. A luz da manhã se
filtrava no quarto através das cortinas meio abertas. Não via sinais de Sophy.
Levantou-se e pensando que espreitar ao redor do apartamento nu provavelmente não
fosse inteligente, colocou a calça. Não sabia quem mais andava a esta hora, mas enquanto algumas
criadas tinham visto tudo e dificilmente se alteravam, havia outras que podiam chiar. Isso poderia
atrair alguns oficiais intrometidos do hotel. Madame não precisava se ver envolvido em um
escândalo com o filho mais velho da Marquesa de Warford.
Encontrou Sophy escrevendo em uma mesinha do salão.
—Que diabos está fazendo? Mal saiu o sol.
—Tenho que escrever minha reportagem para o Spectacle de hoje. Não servirá de muito
se Tom não puder imprimi-lo, e deveria ter entregue faz meia hora. —Deixou a pluma abaixo—.
Mas já acabei e só tenho que enviá-lo. Temos um pequeno sistema para que estas coisas cheguem ao
Spectacle sem serem detectadas.
Usava uma bata vaporosa sobre uma camisola igualmente frívola, a julgar pelos babados
que apareciam pela borda da bata.
Saiu em uma nuvem de fitas e musselinas batendo as asas.
Recordou-a saltando, com a camisa em chamas na noite da tormenta, quando se detiveram
na estalagem. Sentiu que o peito apertava, e que lhe cravavam uma punhalada. Sentiu-se feliz e
aborrecido, ao mesmo tempo.
Foi até a janela e olhou para fora, tentando ignorar essas sensações.
Poucos minutos depois, ela voltou com o cenho franzido e uma carta na mão.
—Isto é interessante. Trouxeram-na faz somente um instante.
Ele lhe deu uma olhada, logo olhou o outro lado, e voltou a olhar para estudá-la melhor. A
letra lhe pareceu familiar. Não a tinha visto recentemente?
Ela se sentou na escrivaninha e rompeu o selo.
Ontem. Foi então que a tinha visto. Amassou a mensagem com a mão, e a jogou longe.
Ela deu uma olhada à carta e sorriu.

206
—Oh, céus, — disse, e a voltou a ler, desta vez mais lentamente, dando risadinhas de vez
em quando.
Longmore ficou esperando enquanto o resto de seu bom humor começava a desvanecer.
—É um grande segredo? Ou pode compartilhar a piada?
Ela lhe passou a carta, mas ele não a pegou. Só olhou a assinatura ao final. Adderley. Tal
como havia pensado.
—Quer lê-la? Ou faço eu? Acredito que terá que lê-la para conseguir todo o efeito.
—Em frente. Leia você.
—Minha Querida Madame Veirrion. Encontro-me sem poder dormir. Na realidade não
pude descansar nada. Tenho o coração muito cheio e a mente muito agitada. Dormir é impossível, até
que tenha descarregado com essa criatura celestial que o roubou completamente. Inclusive agora
escuto sua voz como uma melodia fascinante. Fecho os olhos e quão único que vejo são seus belos...
—Seios, — Longmore disse—. O único que pode ver são seus belos seios, o rufião
pegajoso.
—Olhos, — ela disse, enterrando o dedo no lugar—. Meus belos olhos, como oceanos, de
profundidade e mistério imensurável.
—Vou adoecer, — ele disse.
—Paro de ler?
—Não, não. Continue. Tenho uma necessidade irresistível de ouvi-la, é como quando
alguém boquiaberto um acidente de carros, ou corpos sendo transportados depois que um edifício
vem abaixo.
— Sempre pensei que fosse imune os dores e êxtase do amor. Sempre achei que esses
sentimentos eram para os colegiais e poetas. Então a conheci. Por favor, me perdoe madame –
dificilmente sei o que escrevo. Estou angustiado, confuso. Só sei que não poderia descansar sem lhe
escrever umas poucas palavras, embora sejam torpes...’
—Nessa parte tem razão, em todo caso.
—‘umas poucas palavras, embora sejam torpes, para expressar meus sentimentos. Você é
tão amável, tão pormenorizada, minha queridíssima dama. Rogo que seja complacente com este, seu
humilde suplicante.’
—Que terrível assalto se pode cometer contra um pobre e inocente pedaço de papel.
Ela riu outra vez, e seguiu lendo.

207
—‘Só espero uma ou duas palavras suas para não cair em um desespero total. Um pouco
de esperança é tudo o que procuro –deixe-me saber quando posso vê-la outra vez. Por compaixão,
rogo que seja logo. Seu, devotamente, A.’
Ela olhou Longmore.
—Não é maravilhoso?
—Maravilhoso? O que acontece com sua sagacidade? Que sujeito tão desavergonhado!
Que a praga o leve. Sabia que era baixo, mas cada dia me dou conta, que minha estimativa foi muito
aduladora. Isto ultrapassa tudo! Comprometido com minha irmã e apaixonando por minha – minha –
como-quiser-chamar.
Ela elevou as sobrancelhas.
—Sua como-quiser-chamar?
Ele franziu o cenho.
—Você sabe o que quero dizer.
—Sua ‘tia’ talvez.
—Não uma tia, Sophy. Isso não. Nunca isso. — Como podia ser tão obtusa?—. Nada
como isso.
—O que, então?
Ele ondulou uma mão assinalando a carta.
—Sabe que eu estive acompanhando-a a todas partes. Um cavalheiro não caça
furtivamente no território de outro.
—Por que não escuta o que diz? Está agindo como se Madame fosse real. Isto é falso,
recorda?
—Essa não é a questão.
—É toda a questão, — ela disse.
—O assunto é que não tem por que lhe escrever cartas de amor. Se é que posso dignificar
isso com tal título, o que lamento, pois desacredita às cartas de amor.
—Longmore.
—Achei que agora era Harry. Ou isso também é parte da charada?
—Que parte? — ela disse—. Não estou segura o que quer dizer.
Tampouco ele estava. Ficou olhando fixamente a carta na mão dela. Suas mãos. As
suaves mãos. As tinha passado pelo cabelo dele e fez como se fosse estrangulá-lo e havia segurado o
pênis com elas dizendo que o desejava.

208
—Como se atreve? Como se atreve o canalha a ser açoitado por sua voz? Como se atreve
a presumir estar angustiado e confuso? Nem sequer a conhece. É um maldito insulto.
Estudava-o, com a cabeça para um lado, pensando e pensando, tentando tirá-lo desse
estado.
—O que lhe passa? Está só dizendo essas coisas.
—Sim. Está dizendo as coisas que as mulheres querem ouvir. Que estamos pensando em
seus olhos, não em seus seios. Suas vozes, não nesse lugar entre as pernas. Sua conversa, não a
maneira mais rápida de meter-se sob suas saias.
—Mas ele está tentando me levar a cama, — ela disse—. Essa é a questão. Que diabos lhe
passa? Você disse que tinha a mente clara. Acreditei que esse assunto já estava resolvido. Quantas
vezes temos que fornicar para que você...?
—Nós não fornicamos, — disse, com os dentes apertados.
—Não é de uma dama usar a palavra mais curta.
—Fazemos amor.
Arrebatou-lhe a carta, fez uma bola apertada com ela e a jogou através da sala.
—Você e eu. Fazemos amor. Há uma diferença. Mundos de diferença. E ele não tem por
que fazer amor com você em sua carta analfabeta e idiota. E só porque não lhe escrevo esse tipo de
cartas imbecis que dão arcadas e só porque não digo…
E foi ficando calado, consciente do sentimento, o estranho sentimento de ser apunhalado e
de ficar feliz e miserável ao mesmo tempo.
Olhou-a por um longo instante.
As mãos estavam cruzadas. Outra vez estava com tinta nos dedos, mas não no rosto desta
vez. Olhava-o tão intensamente, transpassava-o com a vista, tentando perfurar seu grosso, muito
grosso crânio, para tentar entender o que mal entendia ele mesmo.
—Só porque não digo…
Foi de volta ao dormitório.
Ela o seguiu.
Recolheu sua roupa do chão, aonde tinha aterrissado, e a jogou em uma cadeira e
começou a vestir-se em um silêncio que ficava cada vez mais tenso.
Finalmente,
—É uma mentira. Você não está acostumado a fingir, e isso está lhe causando problemas
e… o desorienta.
Colocou o colete e o abotoou. Sentou-se e colocou as meias e os sapatos.

209
—Ele está atuando em nossas mãos.
Ele parou, pegou a gravata do respaldo da cadeira e a pôs no pescoço. A amarrou
rapidamente, de uma maneira que seu ajudante teria dado um ataque.
—Adderley é a pomba. Ele é o enganado. Não é real.
Retorceu-se colocando a jaqueta.
—Sim. É, — disse.
—Não é...
—Sim, é. Você e eu: Isso é real. Amo você.
Ele a ouviu inalar rápida e agudamente.
—Esse é meu problema, imbecil que sou. A amo.
Por uma vez, ficou muito calada – por uma vez – muito surpreendida para fingir não estar,
muito fascinada para pôr uma cara inexpressiva. Olhos enormes, com uma surpresa maiúscula e sem
fim.
Ele se agachou e a beijou nos lábios.
—Vou agora. Isto é muito impressionante. Preciso – beber, acho eu. Ou brigar. Qualquer
coias. Amo você. Isso. Isso foi o que aconteceu. Sim.
Virou-se, sacudiu a cabeça. Em seguida riu, e se foi.
Sophy ficou olhando a porta por onde tinha saído.
—Isso não aconteceu, — sussurrou —. Eu imaginei.
Percorreu o quarto com o olhar, não ficava nada dele.
Não podia ter dito tal coisa. Era o último homem da terra que faria tal declaração.
Mas seus lábios ainda lhe faziam cócegas com a paixão desse último beijo, e recordou o
aspecto malicioso de sua boca e a nota estranha de sua risada antes de ir.
Saiu correndo através da porta, à sala seguinte, e a que vinha depois…
E se deteve antes de chegar à porta de corredor.
O que estava fazendo?
Não podia sair de camisola. E para conseguir o que?
Tal como era…
Mas não. Havia tomado cuidado. Sabia que não era surpreendente que uma viúva
estrangeira entretivesse cavalheiros até altas horas da manhã. A grande maioria da alta sociedade
ainda estava voltando para suas casas, e seus apartamentos, como os dos embaixadores, estavam
desenhados para entreter convidados. Aqueles que escutassem sobre a partida de Longmore cedo

210
pela manhã, podiam especular, mas não teriam uma história a menos que ela a desse ao Spectacle. Os
criados eram bem pagos para que não comentassem a respeito de madame, em nenhum idioma.
Se ela saísse de camisola ao corredor, atrás de sua senhoria, outros a veriam – e isso,
definitivamente seria uma história.
Voltou para seu salão.
—Em todo caso não faria a mínima diferença, — murmurou. O que conseguiria se
corresse atrás dele? Mais comentários críticos, sem dúvida.
Sentou-se em sua escrivaninha e olhou a pluma que fazia pouco tinha deixado ali.
O coração ainda pulsava com força. Para ele, as palavras pronunciadas não eram críticas.
Seu coração entendia bastante bem o que significava amo você.
—Parece que eu também o amo, Harry, imbecil que sou, — sussurrou —. Não nos servirá
de muito.
Sentou-se um momento contemplando o inútil da situação, mesmo que uma parte de sua
mente procurava e procurava um plano, já que era parte de sua natureza. Mas não existia nenhum
plano para que as coisas ficassem bem.
Não podia ser amante dele: era ruim para o negócio.
Quanto a um casamento…
Era motivo de risada. Embora ele fosse suficientemente louco e temerário para propor,
não poderia aceitar. A Sociedade ainda fervia pela conquista que Marcelline fez do Clevedon. Outra
má aliança terminaria para sempre com a Maison Noirot. Com Lady Warford no comando da armada
aniquiladora.
Pelo menos Marcelline teve a sensatez de apaixonar-se por um órfão.
Sophy contemplou os Fairfaxes. Todos se uniriam contra ela. Inclusive Lady Clara.
Afinal, uma coisa era ser aficionada à costureira ou a uma criada. Mas era muito diferente aceitar
essa pessoa como uma irmã.
E ainda havia o assunto espinhoso de seus antecedentes.
Não, era ridículo e sem nenhuma esperança, na realidade ela não tinha tempo para abater-
se nem sonhar com métodos loucos. Já tinha um plano, e não havia nada de louco. Mas necessitaria
todo seu engenho para levá-lo a cabo.

211
Capítulo Dezesseis

O Marquês de Hertford convidou um grande grupo do mundo elegante a sua primeira festa da
temporada, na próxima segunda-feira, em sua mansão do Regent’s Park… Soubemos que enviaram mais de
quinhentas convites.
—A Revista da Corte, sábado 13 de junho de 1835.

Exclusivo do Morning Spectacle do Foxe.


Segunda-feira 15 de junho.
À luz do recente incidente na exposição anual de verão do Instituto Britânico, só fica sacudir a
cabeça, assombrados ante a persistente loucura de certo cavalheiro. Este lorde ganhou – mediante meios
justos ou não, deixamos a julgamento de nossos leitores – a mão da beleza principal de Londres, um diamante
de primeira água, um título que até nossos misóginos mais endurecidos não podem negar. Uma dama de fila,
de beleza e graça incomparáveis, que acreditam deveria despertar sentimentos da mais pura devoção no
coração masculino não endurecido por uma teimosia inflexível, produto de anos de auto complacência e uma
indiferença cruel pelas obrigações. É verdade, o cavalheiro despojou o que antes foi um imóvel próspero, que
lhe deixou um pai amante, e reduziu aos que dependem dele à mendicidade. Também é verdadeiro que
Londres não tinha visto em muitos anos um caso tão vergonhoso de imprudência financeira e indiferença,
inclusive do código não escrito que permite a um cavalheiro ignorar o clamor de seus credores, mas que
requer que pague com prontidão todas as dívidas de honra, a seus amigos. Na realidade, para encontrar um
caso similar quanto a desonestidade, devemos olhar para trás, a 1816, quando Beau Brummell escapou destas
costas no meio da noite deixando como responsáveis seus amigos, de umas trinta mil libras obtidas mediante
um empréstimo mútuo, além de dívidas devidas a distintas partes aos que não eram seus amigos.
Atualmente não sabemos o que pensar. Só podemos apresentar a nossos leitores um incidente
singular: no domingo a noite, o cavalheiro foi visto em um recesso tranquilo do Hotel Brunswick. Não há
nada de extraordinário descobrir grupos de cavalheiros desfrutando da boa comida e bebida do hotel.
Entretanto não havia nenhum outro cavalheiro com sua senhoria. Sua única companhia na mesa era uma
jovem viúva francesa que a última vez tinha sido vista de braços com o irmão da futura noiva.

212
Maison Noirot.
Terça-feira na tarde.
—Não, não!, —exclamou Marcelline—. No que está pensando Sophy? É essencial que
Lady Clara use o branco, e você, o azul.
—Achei que tinha feito o de cor ameixa exclusivamente para esta festa, — Sophy disse.
Marcelline ondeou as mãos perto da cabeça despedindo o vestido cor ameixa e os planos
que tinha.
—Isso foi antes que visse os dois vestidos juntos, e você e Lady Clara juntas. Não, nunca
dará certo. O contraste é muito grande.
Um trio de manequins vestia os vestidos nesse momento. Eram parte de um grupo de doze
no total, e representavam uma extravagância que Leonie havia apoiado com entusiasmo. Eram um
espetáculo esplêndido e impressionavam as clientes. Dowdy’s só contava com dois espécimes
antiquados.
—É obvio que há contraste, eu sou uma viúva jovem estupenda. Lady Clara é uma jovem
solteira.
—Eu sei, — disse Marcelline com impaciência —Mas se lady Clara usar o branco, e
você, o ameixa, a diferença será excessiva, e você parecerá fulminante ao se comparar. Espantoso
está muito bem. É excitante. Mas fulminante, é um julgamento. E não é você que deve ser julgada.
— voltou-se para o irmão de Lady Clara—. Apelo a você, Lorde Longmore.
Ele retrocedeu um pouco.
—Ah, não, obrigado. Quando se trata de roupa feminina, sou como Mad Dick. Recuso-me
a ficar perto de ganchos, botões, e coisas como essas, e além de me negar a entrar em disputas
referente a estilos.
Ele, Lady Clara, Marcelline e Sophy estavam em um salão privado no primeiro piso,
longe de todo ocupação e a bulício do andar de baixo – muito mais do que tinham antecipado para os
dez dias que ficavam da Temporada.
À alta sociedade gostava de acabar com uma série de programas esplêndidos em vez de
concluir com só um desdobramento de foguetes. E os anfitriões competiam por fazer o maior.
Igualmente, a competição das mulheres pelo vestido que despertava mais inveja, era uma guerra
feroz e terrível.

213
Na quinta-feira, Lady Bartham daria seu baile anual. Como sempre, sua intenção era
deixar na sombra, se não no vazio, todos os outros acontecimentos de final de temporada, incluindo a
festa final do Marquês Hertford ontem, no Regent’s Park, o baile e jantar do Duque e a Duquesa de
Saint Alban nesta noite, e a festa campestre do Duque e Duquesa de Northumberland na Mansão
Sion na sexta-feira.
Era óbvio que para superar a todos os outros, Lady Bartham havia convidado não só os
principais atores do escândalo Adderley, mas também um casal que havia aparecido em poucas listas
preciosas de convidados: o Duque e a Duquesa de Clevedon.
Quando o Beau Monde se inteirou que tanto Lady Clara como sua, segundo rumores, rival
pelos afetos de Lorde Adderley, Madame Veirrion, patrocinavam a Maison Noirot, meia dúzia de
membros femininos desse mundo abandonaram suas costureiras e se apressaram a ir ao número 59
da Saint James. Sem dúvida esperavam dar uma olhada em ambas as mulheres, quem dera tentando
arrancar os olhos – sem mencionar poder ver de perto a glamorosa e nova Duquesa de Clevedon.
Mas eram motivos menores. O mais importante era poder superar todas as demais,
incluindo à sensação parisiense, Madame Veirrion. Parecia que ter um vestido da Maison Noirot era
a única forma de poder alcançar este objetivo – embora significasse que as pusessem na lista de
inimizades da Marquesa de Warford.
Desde que uma encantada Leonie tinha dado todo o crédito a Sophy pelo fluxo de clientes
cobiçadas, tinha estado mais afetiva e menos cansada com as contas que o habitual. Hoje estava se
aproveitando que Sophy estava de volta a Maison Noirot, para visitar os comerciantes. O olho de
Leonie pelos tecidos era tão agudo e conhecedor como o era com os números.
Mas Marcelline era o gênio reconhecido do desenho. Se Leonie estivesse presente, teria
dito a Sophy,
—Mas é obvio usará o azul. Não disse Marcelline que devia usá-lo?
Lady Clara, que havia se movido para estudar os modelos disse:
—Ficará divina de azul. É perfeito para seus olhos. E os diamantes luzirão esplêndidos.
—Diamantes? — Longmore perguntou.
—É obvio, — Lady Clara declarou—. Madame deve estar cheia de diamantes para abrir o
apetite a certo cavalheiro.
Seu olhar escuro se deslocou para Sophy. Não o tinha visto desde cedo na manhã da
segunda-feira. Na realidade, era a primeira vez que a olhava desde que havia chegado com a irmã.
Ela pensou que o brilho em seus olhos era humor.

214
Talvez, depois de tudo não estava apaixonado. Talvez o ataque durou somente um
instante. Logo se recuperou como fazia depois de uma grande festa.
Um homem apaixonado deveria pelo menos parecer um pouco preocupado, talvez pálido
e doente. Deveria sentir as torturas do amor. Como Lorde Adderley havia escrito tão compungido.
Mas, talvez fosse preocupante de sua parte esperar que um homem como Longmore
ficasse nervoso com algo tão mínimo como estar apaixonado. Não estava inquieto. Não lhe podia
acusar de um sentimento excessivo. Ele não era emocional. Não era sensível.
E a encantava isso dele.
E tantas outras coisas além disso.
Não importa. Não importa Não importa.
Concentrou-se no agora, e como sair deste encontro com sua confiança e dignidade,
intactas.
—Não é um momento para que Madame seja sutil, — disse ela.
—Oh, ninguém é sutil no baile de Lady Bartham, — Lady Clara disse, totalmente
inconsciente das correntes entre o irmão e uma de suas costureiras—. As mulheres esvaziam seus
joalheiros usando tudo o que possuem.
—Mas você não, Lady Clara, — Marcelline interveio —. Você usará joias muito simples.
Em todo caso, sua beleza não precisa de adornos, como tampouco o vestido de baile precisa. Um
grande vestido não deve requerer montes de joias para que seja estupendo. Mas o mais importante é
que queremos enfatizar sua pureza e inocência.
—E queremos fingir que eu tenho um pouco de pureza e inocência, — Sophy disse —.
Quer dizer, que a Madame fica algo.
Longmore foi para os manequins e os examinou.
—Por que se opõe? Este azul ressaltará seus olhos – seus olhos celestiais – ou eram seus
lábios – ou sua alma o que Puf Adder proclamou celestial?
—Eu sou celestial. Todo meu ser.
—Lorde Adderley disse isso, de verdade? — Lady Clara se assombrou.
—Pôs por escrito, — Longmore esclareceu—. Madame não lhe contou?
—Quando ia contar? Madame e Lady Clara não estão em bons termos, lembra?
—Estou perdendo a noção de quem é quem, e o que estão fazendo. Muitas sutilezas e
significados escondidos para minha caixa cerebral. Muito subterfúgio.
Mas era sua segunda natureza, Sophy pensou. Ou talvez a primeira.

215
Com um show de bom humor, contou a Lady Clara sobre a carta de amor. Viu Lady Clara
dar um olhar ao irmão – procurando uma reação? – mas ele não notou. Caminhava de lá para cá
frente aos manequins, com as mãos enlaçadas atrás, nas costas. A Sophy pareceu um general
revisando suas tropas.
Em certa maneira, isso era o que estava fazendo. Dois desses vestidos eram parte do
arsenal de Sophy e de Lady Clara.
—Estou muito contente de não ter sabido nada, — Lady Clara disse, quando Sophy
transmitiu, com uma angústia adequada, a súplica final de Lorde Adderley —. Nunca poderia ter
mantido minha compostura ontem, quando foi de visita. — Logo sorriu —. Estava furioso com o
artigo no Spectable. Uma vez mais ameaçou processá-los. Destrambelhou contra a difamação.
Sentei-me com as mãos cruzadas na saia, esperando que terminasse. Acreditei que mamãe fosse
explodir, mas se sentou muito reta, tensa, e desaprovando. Pode ser que captou que estava usando a
tática equivocada porque depois de um momento de não obter nenhuma simpatia, silenciou-se. Logo
me assegurou que o incidente era totalmente inocente.
—Sinto muito ter perdido o espetáculo, — Longmore disse, enquanto inspecionava de
perto o vestido azul —. Tive que fazer uma aparição na festa do Marquês de Hertford.
Tinha ido a essa festa depois de dizer que a amava, Sophy pensou. Depois que lhe disse
que a amava e pareceu como se fosse uma brincadeira ou um enigma… e riu… e se foi.
Marcelline se uniu a ele.
—Há algo que o preocupa sobre o vestido de Sophy? — perguntou abruptamente,
franzindo o cenho, e foi para o vestido branco de Lady Clara—. Sophy, acha que estas mangas
deveriam…? —Olhou o vestido e logo, lady Clara. Entrecerrou os olhos, e estirou os lábios, como
quando seu olho de artista percebia algo errado que ninguém mais via.
—As mangas. Não são bastante… Lady Clara devo incomodá-la e pedir que prove o
vestido.
—Oh, sim, é obvio. Por isso vim. Não foi Harry muito bom ao me trazer, quando poderia
ter ido a Ascot? As corridas se iniciam hoje, e não perdeu nenhuma abertura desde que voltou do
continente.
Marcelline só deu um sorriso e levou a Sua senhoria a uma sala de prova. A porta não
estava fechada e a voz clara e musical de Lady Clara se ouvia perfeitamente.
—Foi uma pena que perdesse o espetáculo de Lorde Adderley. Compensá-lo-ia por Ascot.
Acredito que Harry teria rido até passar mal. Mamãe, naturalmente, não vê o humor. Estava

216
claramente furiosa, mas se controlou. Por isso lhe dou crédito. É muito difícil ficar sentada
silenciosamente, enquanto a insultam.
Longmore se aproximou de Sophy.
—Eu gostaria de vê-la cheia de diamantes e nada mais, — disse nessa voz tão baixa que
lhe derretia a espinha e o cérebro ao mesmo tempo. A irmã respondeu mais forte—, Tinha
curiosidade de saber como a serpente daria conta.
—Oh, culpou você, — Clara disse, com a voz ligeiramente apagada. Sophy podia ouvir o
sussurro do tecido, e Marcelline, murmurando algo.
—A mim? — E se inclinou e lambeu o lóbulo da orelha de Sophy.
Os dedos dela se enroscaram. Realmente devia afastar-se, mas era muito delicioso. Muito
peralta.
—Queixou-se que tinha ferido os sentimentos de Madame. Simplesmente queria lhe
levantar o ânimo. Disse a ele que acreditava que um jantar íntimo com uma dama em um hotel,
parecia uma maneira estranha. Por que não lhe sugeriu uma caminhada enérgica ao ar livre? Ou que
visitasse o Anfiteatro de Astly, ou o zoológico, ou visse uma comédia no teatro?
Longmore estava beijando a pequena parte do pescoço de Sophy que ficava em cima da
renda da regata. Era muito difícil concentrar-se em Lady Clara. Entretanto, Sophy tinha a vontade
muito fraca para afastar-se.
—Isso é… bom, — disse ela.
—Não o perdoou tão facilmente.
—Nada disso, — Lady Clara disse —. Sei que estava chateado comigo. Esperava que
sorrisse e aceitasse o que dissesse. Acha que pode fazer o que tem vontade, meramente porque tem o
poder de me devolver meu bom nome – o bom nome que ele manchou. De propósito.
Longmore deixou de beijar Sophy e a olhou intensamente nos olhos.
—Que complicado. Não posso fazer isto e pensar ao mesmo tempo.
—Então se afaste, — ela disse.
—Não quero, — ele respondeu.
—Sei que queria romper ali mesmo, — Lady Clara continuou—. Mas não se atreve. Um
pássaro em mão, você sabe – mas meu Deus, o que vou fazer se tudo der errado, e...
—Silêncio! — Marcelline disse—. Nada vai dar errado. Confie em nós, querida.
—Confiar em você, — Longmore sussurrou, ainda olhando intensamente aos olhos de
Sophy —. Que coisa tão, mas tão divertida.

217
Como era melhor que Sophy não fosse vista muito na loja no momento, ela evitava o
salão de vendas. Marcelline era a que acompanhava Lady Clara e o irmão ao andar de baixo para se
despedir deles – ante a excitação das clientes, sem dúvida.
Marcelline voltou muito em breve, e com um olhar severo, rapidamente tirou o vestido
ameixa do manequim. O pôs em um braço, e com a outra mão tomou Sophy e a levou a um
provador.
—Não é necessário ter um chilique, — Sophy disse. Marcelline podia ficar
temperamental com seus desenhos—. Se disser que devo usar azul, vou usar o azul.
—Sei por que quer usar o ameixa. É cativante, e fará que Longmore desmaie, —
Marcelline disse.
—Posso fazer que faça algumas coisas, mas não desmaiar. É o tipo de homem que pode
dizer a uma garota que a a-ama – e depois r-rir. Como se fosse uma pi-piada.
Para seu desgosto, começou a chorar.
—Oh, meu amor. — Marcelline jogou o vestido sobre uma cadeira, e a abraçou.
Isso foi tudo. A manteve abraçada, e Sophy chorou e chorou até que tudo passou.
Depois Marcelline a levou para cima, ao salão, e trouxe brandy, remédio favorito das
irmãs Noirot para todo tipo de moléstias.
—Trabalha muito duro, — Marcelline disse, depois que tomaram os primeiros goles—.
Faz muito. Inclusive Leonie diz.
—Mas as deixei sozinhas dirigindo tudo – e tem um marido agora! Ainda são recém
casados!
—Leonie e eu temos ajuda suficiente de Selina Jeffries e algumas costureiras. Clevedon e
eu não temos nenhum problema em encontrar todo o tempo que queremos para passar juntos. Estar
casada não significa que alguém deve passar com seu marido cada minuto que está acordada.
—Ainda assim...
—Mesmo assim, nada. Trabalha muito. Tinha bastante somente cuidando de nossos
interesses. Mas agora pôs sobre os ombros, o de Lady Clara também. E há o irmão dela fazendo
amor ao mesmo tempo em que você está tentando executar um plano delicado, complicado e
arriscado.
Sophy se encontrou com o olhar da irmã por cima da garrafa de brandy.
Intrigas, fugas, e subterfúgios, e outros tipos de maquinações eram parte da herança
familiar. Se havia algo que as irmãs entendiam tão bem ou inclusive mais que a arte do corte e
costura, era a arte do engano.

218
—E estão minhas irmãs, — Sophy disse —, encarregadas do negócio, escravas dos
vestidos, satisfazendo a damas consentidas – enquanto eu estou no Hotel Clarendon fingindo ser a
Rainha de Sabá, por conta do meu cunhado.
Marcelline riu.
—Por Deus, não pode estar tão louca e deixar que isso seja um problema para você!
Clevedon está emocionado de ser parte de nosso plano. E trata de recordar que não lhe importa o
dinheiro. Não é como nós. Nunca teve que pensar nisso, menos ainda, preocupar-se com a riqueza –
e é extremamente improvável que alguma vez o faça. Rogo que não fique nervosa a respeito do
Clevedon e as criadas de madame, e essas coisas. Seus amigos terão ganhado ou perdido em Ascot
esta semana, tanto quanto ele gastou em você. E não se divertirão nem sequer a metade.
Tirou-lhe um peso de cima.
Sophy deu um grande sorriso a irmã.
—É muito divertido. Preocupo-me tanto por Lady Clara, que esqueço que o que estou
fazendo o mesmo desde que nasci e é mais agradável que estar a serviço de mulheres chatas.
—Esse é o único inconveniente, — Marcelline disse com um pequeno suspiro—. Eu
adoro fazer roupa. Não me importam as partes repetitivas, deprimentes e aborrecidas.
—Produzem calma — Sophy disse—. Não pensamos, simplesmente, faz, e produz prazer
fazer algo belo.
—Eu adoro tudo.
—Exceto as clientes.
Marcelline riu.
—Se cada cliente pudesse mandar um manequim em seu lugar. Bom, nem todas. Algumas
são muito entretidas. Lady Clara é uma delícia – ainda quando discute coisas que não sabe. Mas a
maioria – na realidade, quando se pensa nisso… —Se sentou olhando a garrafa—. Tem que haver
uma fórmula.
—Querida minha, se dedicar-se bem a ser uma duquesa, e desenhar vestidos em seu
castelo privado, só para você e para seu próprio gosto, sabe que Leonie e eu podemos dirigir a loja.
—Morreria se me desse por vencida. Secaria algo por dentro. É muito ruim, mas a prima
Emma fez algo em nós, apesar de mamãe e papai, e todos os outros.
—Inspirou-nos — Sophy disse—. Supunha que tínhamos que ser descarados como o resto
– e o somos – mas a prima nos fez algo mais, e não podemos ser menos. Isso é tudo.
Marcelline levantou seu copo e Sophy também.
—Pela prima Emma, — Marcelline disse.

219
—Pela prima Emma, — Sophy a secundou. E beberam.
—E devo usar o vestido azul, por que...
—Porque o outro fará que Longmore desmaie, e precisamos que ele mantenha seus cinco
sentidos, — Marcelline adicionou —. E falando do Longmore… — e levantou as sobrancelhas.
Fizemos amor, havia dito ele.
—Sim, — Sophy falou —. Sim, fiz. Isso que você explicou.
—O assunto de família.
—Estava esperando o momento adequado para contar isso. Mas não houve tempo.
Ultimamente estamos nos vendo pouco.
Contou a irmã o que tinha acontecido indo e vindo de Portsmouth.
Sabia que Marcelline não se zangaria nem desaprovaria. Os Noirot não eram como as
outras pessoas. Havia regras que não entendiam e não lhes importava.
Só escutou e sorriu de vez em quando, e quando Sophy terminou, deu um encolher de
ombros, em um gesto muito francês, que também resultou ser totalmente Noirot.
—Tinha que acontecer, mais cedo ou mais tarde. A pureza e a virtude não estão de acordo
com os Noirot, não é verdade? É extraordinário que tenha mantido sua virtude por tanto tempo.
—Falta de oportunidade, provavelmente.
—Mal tem tempo para dormir. Onde há tempo para os assuntos amorosos? Entretanto
conseguimos achar tempo quando é necessário.
—Não estou segura que deveria que achar tempo.
—Eu sim estou — Marcelline disse —. Sei que é muito inconveniente e não a culpo por
chorar, considerando a difícil e complicada situação com ele.
—Difícil e complicada? Impossível, quererá dizer.
—Parecesse ser bem impossível, admito-o. Mas meu querido amor– minha querida irmã –
realmente devo elogiar seu excelente gosto.

Mansão Warford.
Quinta-feira 18 de junho.
—Por favor, escuta isto mamãe, — Lady Clara disse. Deu uma leve sacudida ao
Spectacle, limpou a garganta, e começou, — Parece, a greta que se abriu faz uns dias entre certo
lorde e uma jovem viúva francesa, foi superada e tudo são carícias e sussurros uma vez mais. Ontem
à noite, o casal jantou no Hotel Clarendon com o duque e a duquesa que os apresentaram, como
nossos leitores recordarão, na semana passada no Teatro da rainha. Madame usava um vestido de

220
veludo repuxado cor rosa. O corpo drapejado com dobras através do busto, as costas muita justas.
Mangas fofas muito curtas, corte na frente para expor…
Quando chegou à parte de ‘carícias e arrulhos,’ Lorde Adderley se levantou de sua
poltrona e foi à lareira, onde ficou a observar as flores de cristal Murano, de Lady Warford. Não pôs
atenção ao resto da leitura que consistia até o último detalhe pestilento do que Madame e a duquesa
usaram.
Sem protestar tinha ido visitá-la hoje, como o fazia todos os dias, exceto as terças-feiras,
porque a família não estava para as visitas esse dia. Mas era como ir todos os dias tirar um dente, ele
pensava. Não estava seguro de poder resistir muito mais: o bate-papo incessante de Clara, e a
educada e fria condescendência da mãe desta.
—Carícias e arrulhos, na realidade, — Lady Warford disse —. Não me surpreenderia se
Longmore rompe a mandíbula de Tom Foxe por sua rabugice.
—O mais provável é Harry rir, — Clara disse —. É interessante, não é, Lorde Adderley?
Que tudo se arrumou entre eles.
—Não posso evitar acreditar que o compromisso para jantar deve ter sido feito
previamente, —ele disse —. Sem dúvida a dama não quis ser um problema para os amigos. O duque
e a duquesa são seus amigos faz tempo, acredito.
—Então, obviamente meu irmão aproveitou a oportunidade para fazer as pazes com
Madame. Pode ser muito encantador, quando se propõe.
—Se Longmore quer ser encantador, pode-se concluir que está decidido a captar o
interesse da dama, — Lady Warford disse —. Tive a sensação que ocorreria isto no momento que o
vi com ela no teatro. Ah, bom. Poderia ter sido pior, estou segura.
Uma garçonete, ou uma bailarina.
—Acho que você gostará dela, mamãe. Parece boa pessoa. Pelo menos não será uma nora
desagradável.
—Nora? — Adderley disse—. Já os levou ao altar?
—Acredito que é só questão de tempo, — Clara disse.
—Mas a você pareceu desagradar, outro dia.
—Isso foi antes de você me contar que Harry tinha ferido os sentimentos dela. Sei o
provocador que pode ser meu irmão.
—Escandalosamente indiscreto, — Lady Warford disse —. Desgraçadamente, Longmore
pode ser indiscreto facilmente, em vários idiomas.

221
—Em todo caso, Lady Bartham pedirá permissão para apresentá-la a mamãe esta noite. E
parece nos temos que gostar, ou engolir.
—Não vejo outra alternativa, mas sim aceitar a conhecer a dama, — Lady Warford disse
—. Nunca se pode estar segura com Longmore. Mas em caso que resulte ter sérios sentimentos,
prefiro ser amável. E se tudo chegar a nada, — Lady Warford fez um gesto de despedida —. Não se
fez nenhum dano. A Temporada está quase terminando, e não terá que vê-la até o próximo ano. Até
então, quem sabe o que acontecerá?
—Verdade, — Lorde Adderley disse—. Quem sabe? —afastou-se da lareira—. Melhor
não incomodá-las mais tempo. Sei que vocês, damas, quererão descansar e preparar-se para o baile
desta noite.
Não tentaram que ficasse.
Fez sua despedida com muita educação, embora sem calidez. Enquanto ia do salão, tão
contente de partir assim como elas estavam vendo-o partir, ouviu o Lady Clara dizer:
—Não vejo a horas de ver o que estará usando Madame Veirrion.
Ele conteve um sorriso e se foi.
Então carícias e arrulhos?
A pequena coquete malvada.
Que o Spectacle imprima o que quiser. Que pensem o que quiserem.
Ele sabia qual era a verdade respeito dela.

Baile da Condessa Bartham.


Quinta-feira a noite.
Longmore observou que Lady Bartham se aproximava.
— Faça o que quiser, — disse em voz baixa —, mas não faça aquela reverencia a minha
mãe.
—Mas qual reverência? — Madame disse.
—Você sabe qual quero dizer. A reverência Rainha Mab da bailarina da morte do cisne.
—Que absurdo. Por que ia fazer essas coisas?

222
Não teve tempo de responder, porque Lady Bartham estava em cima deles, toda sorrisos.
Um momento depois levava Madame para sua mãe.
Deixou-as ir na frente enquanto observava todos pendentes de Madame. O vestido era
bastante bonito na loja. Mas ali era fora de série. Tinha um delicado bordado prateado duplo na capa
superior de crepe azul, que flutuava sobre a capa de cetim mais abaixo. Uma renda muito delicada
batia as asas, e os brilhantes cintilavam nas mangas. Sob a luz dos abajures, era como o brilho do sol
em um mar azul.
O vestido tinha um decote pronunciado para exibir melhor as onze toneladas de diamantes
que usava, e que com sorte, ninguém descobriria que tinham sido colocados na conta do Duque de
Clevedon no Rundell and Bridge.
Longmore olhou ao redor do salão, notando casualmente Lorde Adderley descansando na
sala das bebidas, com um sorriso maligno e prepotente.
—Minha querida Lady Warford, posso lhe apresentar Madame Veirrion? —Lady
Bartham disse.
Lady Warford se sentou um pouco mais reta e mais rígida. Seu olhar azul perfurou direto
a de Madame, como se estivesse preparada para ler seu interior, sem os preâmbulos habituais.
Por um momento Madame se perguntou se Lady Bartham tinha cometido um engano, ou
não tinha entendido. Supunha-se que as damas deviam perguntar primeiro a outras damas, se
queriam conhecer tal ou qual pessoa, para evitar momentos embaraçosos. Talvez Lady Warford
estivesse de acordo, mas havia mudado de opinião.
Meu Deus, estou a ponto de sofrer um desprezo, pensou. O golpe direto – no
acontecimento mais importante da temporada.
Mas nada do que aconteceu no interior de Madame, notou-se em seu exterior. Por fora
levava um sorriso afável, mas nada adulador.
Afinal Madame Veirrion tinha uma grande fortuna e em Paris era Alguém.
Lady Warford deu um assentimento gracioso:
—Madame.
—Lady Warford. — Madame não lhe devolveu a inclinação. Afundou-se em uma
reverência Noirot, a que Longmore havia pedido que não fizesse.
Ela ouviu que todos os que estavam perto deixaram de respirar.
Quando se levantou, observou que Lady Warford tinha um olhar especulativo.
Longmore apareceu ao lado de Madame.

223
—Por Deus, madame, é minha mãe, não Luis XIV. Vocês os franceses sempre tão
grandiosos.
—De que excesso fala? — perguntou Madame — Esta é madame a marquesa, não é
verdade? Onde está o mau na reverência que faço a sua mamãe, tão elegante? A quem, sim, lhe peço
perdão. —Voltou sua atenção a Lady Warford—. Você perdoará, lhe rogo por favor, Madame de –
ah, não. É Lady Warford, devo dizer. Meu inglês ainda não é perfeito.
—Estou segura que o dominará com o tempo, Madame Veirrrion, — Lady Warford
disse—. Tal como parece ter feito com… outras coisas. —Lançou-lhe um olhar ao filho antes de
voltar a olhar—. Acredito que este é seu primeiro baile em Londres?
—Sim Madame – Lady Warford. Faço minha estreia graças à gentileza de sua amiga,
Lady Bartham.
—Mas é obvio. É impossível não ter em minha festa à dama da qual mais se fala em
Londres, —Lady Bartham interveio.
—É obvio, — disse Lady Warford, sorrindo docemente.
Lady Bartham disse rindo:
—E também tenho que ter à segunda, à Duquesa de Clevedon.
—Como se fala quase só inglês, — Longmore disse —, Madame está na afortunada
posição de não entender grande parte do que se diz. Atrever-me-ia a dizer que mal entende três
palavras de dez desta conversa. Madame, parece um pouco enjoada. Acho que precisa de uma
bebida. Lady Bartham – Mãe – Clara, consentem que nos separemos de suas exaltadas presenças?
E a levou.

224
Capítulo Dezessete

Se o senhor Brinsley Sheridan tivesse sido um esbanjador baixo, inútil e extravagante, cujo
matrimônio tivesse sido um hábil acerto com seus credores, seríamos os primeiros em condenar o passo que
deu.
—A Revista da Corte, Sábado 13 de junho de 1835.

Dançaram.
Não foi o que Sophy havia esperado. Esteve tão pendente de seu plano, representando seu
papel que quase havia esquecido que não era uma atriz em um drama, e sim uma dama participando
de um baile.
A música tinha começado quando Longmore a afastava de sua mãe. Em um momento,
Lorde e Lady Bartham começaram a dançar, não entre eles mas com outro casal, como ditava o
protocolo.
Logo Longmore disse:
—Ah, a desculpa perfeita para não conversar. — E levou Sophy entre os casais que
giravam, pôs o braço pela cintura, ela ficou sem fôlego, e disse:
—Não estou segura… faz muito tempo que não d...
—Eu a guiarei, — disse em francês—. Deixe comigo, Madame. Confie em mim.
E começaram a dançar uma valsa, e ela esqueceu o negócio, planos e vilãos. Pois neste
momento só existia este homem, e o movimento de seu corpo atlético e seguro, tão firme e
masculino na dança como em todo o resto.
Deram voltas pela pista de dança uma e outra vez, e parecia que ela flutuava entre nuvens
de sedas e cetim, brancos e cremes e joias de tons vivos, e preto e cinza, tudo girando ao redor dela,
enquanto arco-íris de estrelas cintilavam entre as nuvens: esmeraldas, safiras, rubis, pérolas e
diamantes – sobretudo diamantes – brilhando sob outras milhares de estrelas nos lustres de cristal.
Era como um conto de fadas.
A quantas festas prodigiosas tinha assistido como criada? Quantas vezes havia descrito
tais cenas para os leitores do Spectacle?
Mas sempre de fora.

225
Durante anos não tinha dançado, como tentou dizer. Não desde que chegou de Paris. E
nunca tinha assistido a um baile como este. Nunca antes havia dançado nos braços de um homem que
ela…
Amava.
Levantou a vista e o encontrou olhando-a, com o rastro de um sorriso, enquanto em seus
olhos escuros brilhava a diversão: diversão e de repente algo mais que não pôde decifrar.
—Menina travessa, — disse em francês—. O que lhe disse a respeito da reverência? E por
que acredito que não prestou a menor atenção?
—Tinha uma razão, — respondeu na mesma língua. Era muito mais fácil conversar dessa
maneira que no inglês espantoso de Madame. O francês era natural. Precisava pensar para assassinar
o inglês com um estilo francês verossímil.
—Você sempre tem uma.
—Em primeiro lugar, o movimento de uma bailarina, cativa a vista. Em segunda
instância, expõe o vestido de uma maneira como nenhum outro movimento o faz.
—Inclusive este? Não foi desenhado para parecer mais atraente e belo durante o baile? —
ele disse.
—Está aprendendo.
—Em autodefesa. Como Clevedon.
Olhou a outra lado, e ela seguiu seu olhar. Marcelline e o duque estavam dançando e tinha
que ser óbvio para todos os que os observavam, por que ele tinha quebrado uma regra essencial de
sua classe e se casou com uma comerciante. Também tinha que ser óbvio que se casou com uma
mulher que o amava. Marcelline não estava usando sua cara de pôquer. Era ela mesma, uma mulher
profundamente apaixonada pelo marido.
Merecia sua boa sorte, Sophy pensou. Marcelline trabalhou desde que era uma menina.
Fez o melhor de um matrimônio ruim com um primo mulherengo. E quando chegou a cólera ao
mundo delas destruindo tudo o que tinham e pelo que tinham trabalhado, ela reuniu o que ficou da
família, e as trouxe para a Inglaterra, com um punhado de moedas, e uma vontade implacável de
triunfar.
Sophy deixou de olhar a irmã.
—Se você entende tanto do desenho de um vestido, então sabe que meus motivos eram
secretos. É verdade que todos nossos vestidos se fazem para ser belos durante o descanso e mais até,
quando se está em movimento. Mas peço que ponha em sua mente minha missão anterior – a que nos
levou a Hortense a Horrível. Recorda?

226
—Como se pudesse esquecer. Sua espinha, em particular, está profundamente esculpido –
ou devo dizer permanentemente brotando? – em minha lembrança.
—Fomos para que eu pudesse ver se tratava da mesma velha Dowdy, ou algo diferente e
mais ameaçador. Precisava ver o vestido de sua mãe, porque fariam o melhor trabalho para ela. Era
melhor que o habitual, mas ainda não se podia comparar com o nosso. Mas como fazer que sua mãe
visse isto?
—Não posso ver o que tem a ver com a reverência.
—Quando estavam me apresentando a sua mãe, estava rodeada pelo trabalho da Maison
Noirot: Lady Bartham, Lady Clara e eu usávamos os desenhos de Marcelline. Sua mãe não podia
deixar de notar a diferença entre seu vestido e os nossos. Pode atrasar-se um pouco em compreender
completamente, mas plantamos a semente.
—Negócio, — disse ele —. A reverência era negócio.
—Publicidade, — corrigiu-o.
—Faz que a cabeça me dê voltas, madame.
A fez dar uma volta e também lhe deu voltas a cabeça. Em seguida ela esqueceu o
negócio. Como pode acreditar que a valsa era só uma dança? Com ele era como fazer amor – uma
espécie de fazer amor torturado – tocando-se, mas sem acariciar-se. Tomando-se sem abraçar-se. Um
sentimento crescente de urgência e ardor sem alívio nem clímax possível.
Ela estava suficientemente perto para sentir o calor de seu corpo e sua respiração cada vez
mais rápida. Era tão profundamente íntimo, igual a mão dele tomando a sua e a outra em sua cintura.
Como se sempre tivesse pertencido ali. Perguntou-se a respeito das mulheres que a rodeavam, que
podiam dançar tão intimamente com homens que não eram seus amantes.
Como posso passar por isso como se não tivesse ocorrido? ela pensou. Como retornar a
minha vida sem ele?
Pergunta sem sentido. Ela e ele estavam atuando e este namorico – se é que era isso – se
tratava de um acidente somente. Só uma boba absoluta o transformaria em uma tragédia romântica.
Ela não tinha tempo para isso.
Tinha que levar a cabo uma tarefa. Se cometesse um erro, arruinaria a vida de uma
moça… além das esperanças e os sonhos e anos de trabalho duro, de três mulheres.
Entretanto era difícil permanecer distante e calculista enquanto dançava com ele.
A música terminou muito cedo. Sophy queria abraçá-lo pelo pescoço e beijá-lo até perder
a razão, e aferrar-se a ele, por que...

227
Porque por um curto período de tempo, soube o que era viver em seu mundo, em vez de
entrar sem autorização. Por pouco tempo soube o que era ser especial tal como seus antepassados
tinham sido: não porque eram artesãos hábeis, ou inventores, ou soldados corajosos ou tinham
contribuído com algo de valor para a humanidade, mas simplesmente porque eram especiais de
nascimento: aristocratas.
Entretanto, imaginou-se – acreditado – sentido, inclusive com seu cínico coração negro
dos Noirot, que ela era especial para ele.
Talvez o fosse. Mas sabia como tinha que terminar esta história.
Já era hora de terminar a comédia trágica. Ou farsa. Não estava certa o que era.

Mais tarde.
Longmore ficou olhando como Madame procedeu a cortar uma linha entre os cavalheiros.
Nesse momento estava com sua mãe, que também a observava.
Como fazia Adderley do outro lado do salão.
—Tem a intenção que outros cavalheiros lhe roubem uma dança? — disse sua mãe—. Eu
se fosse você, não estaria muito seguro dela, Harry. Você pode ter sido o primeiro que saiu à porta,
como se diria, mas estes facilmente poderiam recuperar o tempo.
No momento não havia ninguém mais perto, exceto uma dama muito velha – outra das
amigas da avó Warford – que era muito surda. Por um momento, tiveram que repetir tudo seis ou
sete vezes, assim como responder as perguntas com a mesma frequência, mas neste momento a
cabeça da dama estava afundando no amplo busto, e roncava.
Embora ninguém pudesse ouvir, ele se surpreendeu, e deu um olhar intrigado a sua mãe.
—Não me dê esse olhar, — disse zangada—. Só é uma amostra de quão obtuso é.
—Não posso evitar. A dama não me parece como alguém a quem você escolheria como
minha esposa – mas aqui está me empurrando ao altar.
—Não é alguém que escolheria. Mas mesmo assim.
Ele levantou as sobrancelhas.
—Seu inglês é atroz, — sua mãe disse. —Não pode ter tido uma educação adequada.
—Algumas pessoas simplesmente não têm aptidão para os idiomas.
—Apta ou não, não estou nada segura que não seja uma cabeça oca total. Mas é uma
garota bonita...
—Com uma fortuna muito bonita.
—Não seja vulgar.

228
—Se não tivesse um penny, não estaria me empurrando a persegui-la. E não vejo a
necessidade de me apressar, — Longmore disse.
Olhou à pista de dança, em cuja arremata Adderley espreitava, observando Madame.
—Oh, mas olhe. Madame está dançando com o terceiro filho de Lady Bartham. Seria uma
grande pena que ganhasse o coração da dama e sua formidável fortuna.
—Seria muito penoso que perdesse qualquer menina com essa criatura imatura. Mas faz o
que quiser, Harry. Sempre o fez. Sua irmã, também. Juro que fui castigada com os filhos mais
desobedientes. Se ela tivesse me escutado, não estaria nesta situação miserável. Cada dia que passa,
eu gosto menos e menos dele – e antes, já o desprezava. Olhe-o. Duas danças com Clara, e a
abandona. Quando penso nos homens que poderia ter tido. Oh, é muito. E olhe-o, inclusive está
olhando fixamente madame. Como se atreve?
—Todos a estão olhando assim.
—E você é muito frio, devo dizer.
—Acredito que é uma dessas coisas às que alguém tem que se habituar. Ela chama a
atenção aonde quer que vá.
Olhou a madame por um momento, franzindo as sobrancelhas.
—Sabe Harry, recorda-me alguém.
A dança estava terminando, e Longmore viu Adderley abrindo caminho para Madame.
—Oh, não amigo, — Longmore disse —. Divirta-se se quiser, mas não com minha viúva
alegre.
—E por que não poderia? — sua mãe perguntou —. Ela não é sua. E além não faz
nenhum esforço para atraí-la.
—Ele não tem por que tentar fazê-lo, porque está comprometido com minha irmã – além
disso Madame me prometeu esta dança.
—Não faça uma cena, Harry. Não aqui.
—Mãe, deixa-me assombrado. Nunca faço cenas.
Não se apressou e nem empurrou ninguém para fora de seu caminho. Lorde Longmore
não tinha necessidade. Tudo o que tinha que fazer, era pôr certa expressão, e as pessoas se moviam
rapidamente deixando o caminho livre.
Quando Longmore chegou onde eles, Adderley se inclinava muito para dizer algo a
Madame.
—Sinto muito interromper o tête-à-tête, mas esta dança é minha.
—Acho que está equivocado. Madame me prometeu esta dança, — Adderley disse.

229
Madame olhou desconcertada, de um a outro. Logo pôs uma expressão de causar pena.
—Isto é muito ruim. Deve me perdoar Lorde Add’lei. Lorde Lon-mur fala corretamente.
Foi esta dança a que lhe prometi. Minha memória abominável – rogo me perdoe. Mas você terá a
seguinte.
—O que vem é o jantar, — Longmore disse. —Como esta é a dança do jantar, então tenho
o privilégio de levá-la. Para jantar.
—Exatamente, — disse ela—. Me esquecia disso.
—Que fácil esquece, — Longmore disse.
Deu a ele um olhar pouco amistoso e logo deu outro mais afetivo em Adderley.
—O verei depois do jantar, Lorde Add’lei. Se não estiver muito fatigada.
Adderley se inclinou e se afastou com seu sorriso maligno.
Longmore o observou afastar-se antes de voltar-se para Madame.
—Espera cansar-se em minha companhia?
—Isso não foi o que disse. Você tergiversa minhas palavras.
—E seu olhar também?
—Não posso compreender.
—Vi o olhar que lhe deu. Nunca clamei ser um gênio, mas acredito reconhecer um olhar
coquete quando vejo um.
—E por que não poderia paquerar? por que temos este desacordo uma e outra vez? Tenho
uma coleira no pescoço, como um cão? Eu não sou seu cão, Lorde Lon-mur. Não lhe pertenço.
Sonha, ele respondeu em silêncio.
—Talvez não. Mas o cavalheiro pertence a minha irmã, como assinalei. Uma e outra vez.
—Isto é monstruoso. Do que me acusa? De roubar este homem de sua irmã?
—Outro dia você parecia acreditar que era necessário.
Ela fez um gesto de rechaço.
—Estava zangada, e algumas coisas que disse, foram tolas. Mas recentemente conheci sua
mãe, que foi muito afável comigo. E sua irmã esqueceu meu pequeno engano. —por que ia querer
incomodá-las? Aqui sou uma estranha. Sozinha. Ninguém me protege. Só tenho amigos para me
proteger, e estou contente de fazer amigos. — A boca curvou para baixo.
—Eu também me alegro que os tenha. Mas quando fica muito amistosa...
—Não! Só fui simpática. — Os olhos azuis cintilaram—. Paquera um pouco, como todas
as mulheres. Não vejo por que tem que dizer que estou equivocada ao fazê-lo. Você nem sequer
disse uma só palavra de estima especial por mim.

230
—Disse três, segundo me lembro, — disse em voz baixa—. O que mais quer, madame?
Ruborizou-se, das bochechas, descendo pelo pescoço rodeado de diamantes, que caíam
sobre seu busto.
—Acredito que joga comigo.
—É isso o que pensa? Que jogo com seus sentimentos?
—Você parece pensar que é uma grande piada.
—Não é?
As lágrimas brilharam em seus olhos, e nesse momento ele soube que não estavam
atuando – ou se estavam atuando o faziam no limite da verdade.
—Sim, — ela disse —. É. Muito gracioso. Sim.
Virou-se com um sussurro de cetim e renda, e cruzou o salão, oscilando os quadris e o
queixo no alto.
Mal Sophy deu as costas a Longmore, Adderley apareceu em seu caminho.
—Acreditei que prometeu esta dança a lorde Longmore.
—Parece que fiquei fatigada. —Abriu o leque e o agitou energicamente frente ao rosto —
. E está muito quente. —Ele acreditou ser o causador do calor—. Perdi meu humor para dançar.
Perdi meu prazer neste baile.
—Como eu, — disse ele em seu francês com acento inglês—. E você sabe por que.
Ela o olhou por cima do leque.
—Verdade?
—Não o disse? — Sua voz ficou rouca e palpitante —. Não lhe despi meu coração? Cada
palavra que escrevi, a arrebatei a meu coração. Você sabe que estou em uma agonia. Por que me
tortura?
Ela olhou ao redor.
—É indiscreto. Alguém poderia ouvir.
—Devemos resolver isto. Você troca de parecer cada dia.
—Cada dia! Quantos dias passaram? Dias, milord. Não anos, nem meses, nem semanas.
Alguns poucos dias. Umas poucas cartas. — Ah, sim. Havia respondido a carta. Deu razão para ter
esperança, e para se desesperar. Deu-lhe ânimo enquanto parecia afastá-lo ou parecia indecisa. Mas
tinha tomado cuidado de não escrever algo suficientemente indeciso ou de rechaço que fizesse que se
desse por vencido—. Não deve me pressionar.
—Não tenho tempo para esperar. Se você quer pisotear meu coração, faça-o agora. Mate
minha esperança, mas rápido, Por Deus, e me tire de minha miséria.

231
Ela se afastou, ele a seguiu.
—Você me apressa. Não se deve apressar uma mulher nos assuntos do coração.
—Soube de meu coração no instante que a conheci. Soube que tínhamos que ficar juntos.
Tão logo ouviu da minha grande fortuna.
Uma criada se aproximou com uma bandeja cheia de copos de champanhe. Ela negou
com a cabeça e continuou o caminho.
—Não podemos falar aqui, — disse ela. Há muita atividade, muita gente. Precisaremos
nos juntar em outra hora.
—Estão indo jantar. Não haverá um momento melhor. E não haverá outro. Devo saber
esta noite. Prometeu-me uma resposta esta noite.
—É muito impetuoso.
E ela tinha feito todo o possível para que ficasse assim.
—Madame, para mim, o tempo está acabando.
—Ah, sim, tem que casar.
—Isso você decide.
—Não posso ater-me a afastá-lo dessa menina linda. Romper o coração dela? Não sou
desse tipo de mulher. —Não se deteve enquanto falavam, seguia a passo lento, deixando-o que a
seguisse.
—Romper o coração? Apenas me tolera, como você bem sabe. Viu. Toda sua família me
despreza. Se não fosse por um momento de estupidez, estaria livre. Então esperaria e esperaria até
que você se decidisse.
—Um momento de estupidez? E como sei que não sou outro momento de estupidez para
você?
—Que prova deseja?
Tinham chegado às portas francesas abertas para permitir que o ar circulasse no salão de
baile nesta noite cálida. Mais à frente, havia um terraço rodeado por um corrimão de pedra,
iluminado em parte pela luz do salão. Uma parte do corrimão ficava na sombra. Mais longe, os faróis
iluminavam o jardim. Muito romântico. Sorriu a si mesma.
Saiu e se foi à parte sombria.
—Que prova? — disse outra vez.
—Não terei um namorico, — disse ela em voz baixa—. Fui fiel ao meu marido. Não sou
malvada. Não serei sua amante. Não sou uma cortesã.
—Não quero uma amante.

232
Naturalmente. As amantes eram caras, teria que mantê-las.
Ela não disse nada.
—Minhas intenções são honráveis, posso provar.
Ela o olhou.
—Posso. Venha comigo – agora – esta noite. Podemos chegar em Escócia em menos de
dois dias. E nos podemos casar tão logo cheguemos.
—Fugir? Faria isso?
—Por que não? Sheridan o fez não faz muito. E ao contrário dele, não nos perseguirão.
Ela colocou uma mão no coração e deu a volta.
—Madame?
Ela sacudiu a cabeça.
—Não. Mantenha-se longe. Devo pensar. Isto não é o que achei. Não estava preparada. —
Enquanto falava, fez rápidos ajustes no vestido, às escondidas—. Nunca sonhei que iria tão longe.
Fugir comigo – seus amigos se zangarão. Significará vergonha para você, talvez.
—Não me importa. Se a tiver, nada mais importa. Madame, rogo. — Pôs as mãos nos
ombros e a virou. Ela não opôs resistência. Atraiu-a a seus braços—. Venha comigo.
—Não! — chiou ela —. Não! Alto! Ajuda! —Enquanto gritava em francês e inglês,
empurrou-o. Ao fazê-lo, o corpo do vestido deslizou para baixo, tal como havia siso desenhado para
que ocorresse, revelando a renda cara da regata e um pedaço de um dos elegantes espartilhos
venezianos de Marcelline.
Nesse mesmo momento, começou a sair uma pequena multidão ao terraço, com Lady
Clara à dianteira.
Adderley saltou longe como se ela estivesse cheia de furúnculos.
—Que diabos, — disse —. O que é isto?
—É bastante óbvio, — Lady Clara disse. Foi até ele, e lhe deu uma bofetada—. Bruto.
Desprezível. Bruto desprezível.
—Que vergonha! — Alguém na multidão disse.
—Repugna-me, — Lady Clara disse—. Não me casarei com você. O mundo pode pensar
o que quiser de mim – mas não me casaria com você embora fosse o último homem na terra.
Adderley disse:
—Mas eu não...
—Vergonha!
—Que lamentável!

233
Outras vozes se somaram.
Marcelline abriu caminho entre a audiência e foi até Sophy.
—Minha pobre dama! — Olhou Adderley furiosa —. Que monstro!
Adderley disse,
—Mas eu nunca...
—Besta! — alguém gritou
—Bruto!
—Que demônios está acontecendo? — Longmore saiu entre a multidão. Olhou Sophy.
Olhou Adderley. E começou a ir para Adderley.
Clevedon o empurrou para trás.
—Não! Não suje as mãos.
—Não vale a pena o esforço, — alguém gritou.
—Deixem-no que apodreça, — disse outro.
—Mas não em meu terraço, — Lady Bartham interveio. Estava na janela francesa, e a seu
lado se encontrava Lady Warford. Com a luz do salão atrás delas, pareciam anjos vingadores.
—Lorde Adderley, devo pedir que se retire, — Lady Bartham disse —. E não será bem-
vindo se retornar.
Longmore sabia o que tinha que fazer.
—Não o golpeie de modo algum, — Clevedon havia aconselhado, e todas as irmãs Noirot
estiveram de acordo.
Todos haviam dito que este era o momento de Clara. Deixe, e que a vissem todos os que a
tinham julgado.
E assim Longmore tinha deixado que Clara desse a bofetada em Adderley.
Mas o canalha estava indo furtivamente, e as chamas começaram a dançar frente aos
olhos de Longmore.
Começou a ir atrás dele. Não tinha dado nem três passos, quando escutou a voz de
Madame, tremula e plena de lágrimas.
—Lorde Lon-mur, — voltou-se, sua irmã passava um braço pelos ombros, seu belo
vestido todo desordenado. As lágrimas desciam como rios pelo rosto —. Por favor, me devolva a
meu hotel.
A mente se pôs negra de raiva com a visão do vestido. O único que pôde pensar foi matar,
e quase respondeu:
—Clevedon a levará.

234
Mas os olhos azuis o contiveram.
Aspirou uma grande quantidade de ar e o deixou escapar. Virou-se para ela.
—É obvio, Madame.
Levantou-a nos braços e a levou – pelo salão de baile, através de aristocratas boquiabertos
que sussurravam, pelo corredor, descendo as escadas até que saíram da casa.
Depois de poucos minutos chegou o carro do anfitrião. Rapidamente colocou Sophy
dentro.
Quando deram a volta em uma esquina e a Mansão Bartham não era mais avistada, ele
comentou:
—Saiu bem, acho eu.
Ela estava desabada contra ele, chorosa e tremula.
O tremor cessou, ela se sentou reta e tirou o menor lenço do mundo e bruscamente secou
as lágrimas.
—Quase perfeito, — ela disse.
—Quase?
—Supunha-se que você não ia sair atrás do Adderley com assassinato na mente. Supunha-
se que não devia ir atrás dele, e ponto. Eu expliquei. Todos explicamos. Diminuiria o efeito.
Esqueceu-se?
—Minha tia, — disse, olhando pela janela. Às vezes era um burro. Um burro enorme.
—Se você o golpear, o assunto resolve, o problema se soluciona. Não queríamos que
resolvesse dessa forma. O queríamos envergonhado, tal como ele fez com sua irmã.
Inclinou-se para trás e se apoiou no respaldo, fechando os olhos.
—Eu sei.
—Mas se esqueceu. Não se pode esquecer de coisas como essas. Quase estragou tudo.
—Ele a tocou.
—Só por três segundos.
—Viu sua regata.
—Uma polegada, somente.
—E seu espartilho.
—Outra polegada. E todos os outros viram o mesmo. Esse era o ponto.
—Eu sei. Mas estou apaixonado, e um homem apaixonado não pensa de maneira racional.
Fez-se silêncio no carro.

235
De fora se ouvia muito bem o ruído das ferraduras e o rangido das rodas. Ele escutou
vozes distantes e o tangido de um sino.
—Tenho que fazer algo com você, — ele disse.
—Você já fez algo. Várias vezes. Em duas hospedarias. Empregando uma variedade de
manobras.
Fizemos amor.
—Acredito que tenho que me casar com você.
Sophy sentiu que um soluço se acumulava dolorosamente no peito. Mas impôs sua
vontade e o controlou.
—Duas propostas em uma noite. A explosão de cores dos diamantes deve fazer picadinho
com os miolos dos homens.
—Isso é o que eu gosto de você. Tão romântica.
Ela se virou para ele.
—Bom, é uma brincadeira. Para nós. Se não brinco, começarei a chorar. E esta noite
chorei o bastante.
—Isso era para que acreditassem.
—Realmente não sei qual é a diferença.
—E isso, bastante estranho, é outra coisa que também gosto de você. Em todo caso, que
goste ou não, minha mãe quer que me case com você.
—Ela quer que se case com Madame, quer dizer.
—A acha passavelmente atraente, embora não muito inteligente. Mas deve supor que isso
nos faz compatíveis, pois eu não tenho nada especial no departamento cerebral.
—Você não pode casar com Madame. Nem comigo.
—Então, o que propõe que façamos?
—Não sei.
—Bom, pense. Já tirou minha irmã de uma situação que todos estimavam completamente
desesperada. Com certeza poderá idear um plano para nós. Deve fazê-lo. Não tem algum projeto
ardiloso para que minha mãe a queira?
—Com o tempo, espero poder atraí-la a Maison Noirot. Poderia persuadi-la que me tolere
como sua costureira. Mas que me queira, está fora de toda possibilidade. Só imagine como se
sentiria.
—Sentimentos, — ele disse.

236
—É uma mulher. Uma mãe. Tente ficar no lugar dela: Clevedon casou com minha irmã
em vez de sua filha. Logo você decide casar comigo – a irmã da mulher que arruinou seus planos
mais desejados e que portanto, ao menos indiretamente, é responsável pelas dificuldades de Clara.
—Importa tanto que minha mãe a queira?
Você não entende, ela queria gritar. Minha família não fez mais que destruir outras
famílias. Não sou boa. Não sou virtuosa. Sou uma descarada. Mas não quero ser assim.
Mas disse:
—Seus pais o deserdarão. É a arma mais poderosa que têm. Talvez a única.
—Então tomarei habitações em cima da loja, e deixarei que minha esposa me mantenha.
—Harry.
Seus olhares se encontraram.
—Você sabe que é absurdo, — ela disse —Você odiaria esse acerto. Está consciente que
é Leonie que tem as amarras da bolsa? Marcelline e eu não somos boas com o dinheiro. Vale dizer,
somos boas principalmente para gastá-lo.
Ficou olhando-a fixo por um longo momento. Logo suspirou.
—Estamos condenados. Nesse caso…
A puxou para seus braços.

237
Capítulo Dezoito

Na maioria das ruas principais da Metrópoles se mostram xales, musselinas, artigos para roupa
de dama com a ajuda de espelhos, e na noite, com abajures a gás, resultando quase deslumbrante para os
estrangeiros, como em muitas das ficções poéticas que lemos em As Mil e Uma Noites.
—O livro dos Ofícios Ingleses,
E a Biblioteca das Artes Úteis, 1838.

Na sexta-feira, o Spectacle reportou todos os detalhes do incidente no baile de Lady


Bartham – convertendo-o na maior sensação de fim de Temporada – junto com longas descrições de
quão vestidos usavam as principais figura deste drama.
No sábado, o Spectacle informou a seus leitores que Madame Veirrion havia desaparecido
de Londres tão misteriosamente como tinha aparecido. Aparentemente, foi do Hotel Clarendon na
sexta-feira a noite, em um carro de quatro cavalos. E isso foi o último que o Spectacle tinha foi de
descobrir.
No domingo, o Spectacle comunicou que foi proibida a entrada de Lorde Adderley a
todos seus clubes.
Na segunda-feira, o Spectacle anunciou que lorde Adderley havia partido no meio da
noite. Dizia-se que seus credores foram perseguindo-o.
Na terça-feira, Sophy se sentou em sua escrivaninha na área de trabalho que
compartilhava com as irmãs. Estava descrevendo o vestido que Lady Bartham usaria no Almack, na
noite seguinte. Embora não apareceria no Spectacle até na quinta-feira, estava adiantando o trabalho
durante as pausas na loja. Com o aumento de clientes com títulos, e o torvelinho de acontecimentos
de final de Temporada, tinha que descrever mais vestidos que antes.
Graças a Madame Veirrion, Maison Noirot poderia saldar as contas no dia estabelecido
dos pagamentos.
Estava descrevendo os artigos do penteado, quando Mary Parmenter disse que a
necessitavam no salão privado de consultas.

238
Quando Sophy entrou, encontrou Lorde Longmore, Lady Clara e Lady Warford,
estudando o vestido ameixa. Quando entrou, todos se viraram ao uníssono, e três pares de olhos se
fixaram nela.
Sophy não deu um só passo atrás. Não permitiu que seus olhos abrissem. Não fez
nenhuma exclamação. Só mostrou sua cara de costureira com um interesse bem educado.
Lady Warford franziu as sobrancelhas, logo deu um grito afogado.
—Madame Veirrion? Mas eu achei… —Foi ficando calada e baixou a vista para olhar a
roupa que Sophy usava. Elegante e com estilo, como tinha que ser uma costureira. Entretanto não era
nada comparada com o vestuário que uma grande dama como Madame Veirrion, usaria.
Sophy fez uma reverência, não a Noirot. Não era necessário, mas a fez de todas as
maneiras, talvez para irritar Lorde Longmore, que tinha conseguido o que queria quando iram a
caminho do hotel, e logo no hotel na quinta-feira a noite, para logo ir, aparentemente esquecendo-se
que ela existia.
—Sim, é Madame, — Longmore disse —. Mas não é. É uma dessas espantosas mulheres
Noirot, Mãe. Esta é Sophia – a que permitiu ser assaltada na outra noite, para salvar Clara de um
matrimônio miserável.
O coração de Sophy acelerou. Não disse nada, embora fosse muito difícil, estava
descobrindo o que era ter o coração na boca.
Lady Warford passava seu olhar da filha, ao filho e a Sophy.
—O plano que a senhorita Noirot ideou, foi muito ardiloso, — ele continuou —. O fez
porque Clara é a cliente favorita delas. E porque parece gostam dela. —Fez uma pausa breve—. Eu,
da minha parte a amo. Mas me encontro em uma grande dificuldade. Não se casará comigo, a menos
que você a queira.
—Casar! — Uma palavra. Um grito doloroso de sua mãe.
—Não se casará comigo, a menos que a queira, — repetiu —. Eu gostaria que fizesse um
esforço.
Lady Warford fechou os olhos, e oscilou um pouco.
—Talvez seria melhor que se sentasse, Mãe, — Lady Clara disse.
Lady Warford abriu os olhos.
—Tolices. Estou perfeitamente bem. — Levantou o queixo—. Uma costureira. Outra
costureira. —Olhou ao redor, e Sophy viu seu olhar perdido.
—Minha lady, — ela começou.
—Talvez, depois de tudo, me sentarei, — Lady Warford disse.

239
Longmore lhe aproximou uma cadeira. Sentou-se. Depois de um momento disse:
—Essa cena no baile de Lady Bartham. Foi... arrumada?
—Tudo arrumado. Até o último detalhe, — Longmore disse —. Pela senhorita Noirot.
Tudo foi planejado por ela. Ideou-o enquanto trazíamos Clara de volta de Portsmouth. Isso também o
fez a senhorita Noirot. Sem ela, nunca poderia ter encontrado Clara.
—Oh, Harry, — Lady Clara exclamou.
—Não se casará comigo, a menos que você a queira. Você gostou bastante dela, antes.
—Oh, por favor, — Sophy disse —. Isso foi diferente. Então eu era uma dama. Com uma
grande fortuna. O dinheiro cura uma quantidade de maus, como você sabe muito bem. É errado que
você perturbe os sentimentos de sua mãe.
Virou para ela,
—Minha lady, talvez queira beber algo que a reponha. — Sem esperar sua aprovação, foi
ao brandy, que se guardava em um aparador em caso de desmaios ou ataques súbitos, não estranhos
em um estabelecimento para damas. Enquanto o servia, disse —, Não sei que aconteceu na mente de
Lorde Longmore, para lhe produzir tal impressão. Sem prepará-la, atrever-me-ia a dizer.
—Se houvesse dito o que pretendia, ela não teria vindo.
—Viria, — Lady Warford disse lentamente —. Isso é, acreditei que tinha vindo para ver o
que se podia salvar do... enxoval de Lady Clara. — Os olhos encheram de lágrimas—. Para essa
horrível boda. Com esse homem horroroso. E você…
—Ela me salvou, mamãe, — Lady Clara disse —. Me salvou. Duas vezes.
Lady Warford se virou para a filha. Seu olhar era puro amor. Fez que doesse o coração de
Sophy. Sua mãe nunca a olhou assim... quando mamãe estava perto... quando se lembrava que tinha
filhas.
Passou o brandy a Lady Warford. Ela bebeu. E ficou olhando o copo um momento.
Ninguém falou. O coração de Sophy pulsava com tanta força, que todos deviam ouvi-lo. Tanto, que
acreditou que fosse desmaiar. Mas se obrigou a ficar muito direita, e a manter sua expressão
exatamente como tinha que ser. Educadamente interessada. Respeitosa, mas não muito. As
costureiras sempre tinham que manter a parte superior...
—Acredito, talvez, — Lady Warford disse, e fez uma pausa —. Acredito que talvez
possa... gostar dela.
Seus filhos disseram ao mesmo tempo:
—Oh, vamos, Mãe!
—Realmente, mamãe!

240
O olhar de Lady Warford se deslocou para Sophy.
—É irracional esperar que a queira, conhecendo-a tão pouco. Entretanto.
Todos esperaram.
—Entretanto, você me fez... um grande favor. — Fez uma pausa e se serenou —. Um
grande favor que é impossível devolver – e realmente é muito provocador de sua parte. Mas pelo
menos é apresentável. E sua irmã é uma duquesa. Isso não é uma coisa pequena. Em todo caso,
ninguém pode parar o Harry quando mete na cabeça fazer algo.
—Servirá isso, Sophy? Não é o que desejava, mas no momento, é o melhor que ela pode
fazer.
Sophy engoliu um soluço.
—Sim, terá que servir. Farei que me queira mais. Mas enquanto isso – sim, bastará – farei
que assim seja – porque – porque seria muito, mas muito desventurada sem você.
Ela se jogou em seus braços.
Na sexta-feira, no dia seguinte depois do baile no Salão da Rainha, o último da
Temporada, a senhorita Noirot e Lorde Longmore se casaram com uma licença especial, no salão
vermelho da Mansão Clevedon. O grupo que assistiu era maior que o que esteve presente quando o
duque se casou. Desta vez, além das irmãs da noiva e da sobrinha, Lorde e Lady Warford e seus
outros cinco descendentes, observavam.
Mais tarde, depois do café da manhã de bodas, depois que o marquês e a marquesa tinham
voltado para seu lar e estavam sozinhos na quietude do salão, Lorde Warford disse:
—É um vestido novo?
—Sim, é, — Lady Warford disse surpreendida. Seu esposo, até onde podia lembrar,
nunca havia notado nada do que usava. Dava-se conta das contas dos vestidos, e às vezes
resmungava, mas isso era tudo.
—Muito tentador, — disse de súbito —. Recorda-me à menina com a qual me casei.
Ela ruborizou um pouco.
—Verdade?
—Sim. — E se levantou, fechou a porta do salão e passou chave.
E logo ocorreram coisas que a fizeram esquecer mencionar um pensamento curioso que
teve, que tinha a ver com os olhos de sua nora.

241
Depois do café da manhã os recém-casados partiram para Lancashire, as irmãs decidiram
que a Sociedade precisava de tempo para esquecer Madame Veirrion, antes de reunir-se com a nova
Lady Longmore.
Longmore e Sophy se detiveram para passar a noite na Hospedaria Angel, a uns quarenta
e oito quilometros de Londres.
E foi aí e então, depois que havia tirado cada objeto que usava, e fez amor a cada
centímetro de sua pele, e enquanto ele estava deitado, indefeso, relaxado após a consumação do ato,
ela se desenredou de seu abraço, sentou-se e disse:
—Há algo que devo lhe dizer.
—Sempre tem algo guardado.
—Deveria ter lhe dito antes das bodas. Marcelline se espantou porque não o fiz.
—Uma confissão? — levantou apoiando-se nos cotovelos—. Assassinato, por acaso? Um
marido louco no sótão? Mas não, você era virgem.
—Essa é toda a pureza que obterá.
—Não sou um grande devoto da pureza. — Seu olhar se desviou aos seios dela. A luz os
fazia mais brilhantes, como duas belas luas, mas não completamente cheias. Mas como três quartos,
com uma deliciosa ascensão, como seu nariz.
—Me olhe aos olhos, — disse ela.
—Em um minuto. Estou admirando seus seios. Acredito que poderia escrever um poema
a respeito de seus seios. São tão esplêndidos. E a respeito de seu traseiro. É absolutamente perfeito.
Deveria modelar para estátuas de Vênus. Mas não quero um montão de homens lascivos comendo-a
com os olhos. Quero-a só para mim.
—Amo você.
—É que deve ser assim. Sou perfeito para você.
—Isso mesmo. Você me entende. Por isso acho que não tomará isto da maneira
equivocada.
—Soa a algo sinistro.
—A você nada assusta. Olhe-me nos olhos.
Ele fez.
—Bom? — ela perguntou.
—São extraordinariamente azuis. Uma cor pouco comum.
—É o azul DeLucey.

242
—Obviamente se dá na família. É gracioso que sua irmã não os conseguiu, mas sua filha,
sim.
Os olhos azuis abriram enormemente.
Ficou olhando-a por um momento.
—Foi essa a confissão?
—Sim. Você sabia?
—Às vezes posso juntar dois mais dois. Todas essas pistas que deixou cair de seu
passado. Sabia que tinha que haver uma história, mas estava muito ocupado tentando seduzi-la para
tentar espremê-la para tirar-lhe algo. Mas hoje, subitamente clareou.
—Hoje. Antes, durante ou depois da cerimônia? — Ela disse.
—Importa?
—Sim, porque Marcelline disse que me casei sob falsas pretensões.
—Bom, isso teria aumentado a diversão, mas não é verdade. Sabia exatamente no que
estava me colocando. Sempre soube, atrever-me-ia a dizer. Sabia que você não era como ninguém
mais. Sabia que não era aborrecida.
—Nunca ninguém acusou aos DeLucey de serem aborrecidos.
—Mas não vi o quadro total até que todos se reuniram para as bodas, — ele disse —.
Todas vocês estavam juntas: você, a duquesa, Leonie e Lucie. Lembrei-me de Lady Durwich falando
dos DeLucies. Veio-me à mente como você respondeu, fazendo uma pequena piada. E como se
lançou com aquela longa e aborrecida descrição do vestido da minha irmã.
—Para que você não farejasse, — disse ela.
—Resultou. Até hoje. Mas logo foi muito claro. E pensei, Por Júpiter, este dia é cada vez
melhor. Meu matrimônio fará a Sociedade ter um ataque. Pensarão que a Revolução está a ponto de
acontecer, ou o Apocalipse está próximo. Persuadi o pedaço de diabo mais delicioso com forma
feminina, para que minta a respeito de me amar, me honrar e me obedecer pelo resto de nossas
vidas...
—Não foi uma mentira, exceto a parte de obedecê-lo.
—E é uma Espantosa DeLucey. Casei-me e agora faço parte do bando. Meu coração se
elevou. E quase me senti mal ao não poder rir alto.
As comissuras da boca dela começaram a elevar-se.
—Era bastante seguro que não ia se importar.
—Importar? É perfeito.

243
—Você é perfeito, — ela disse—. E acredito que merece um prêmio por não ter caído na
risada, e ter estragado a solenidade da ocasião.
—Quase morri.
Ela voltou para seus braços.
—Uma grande recompensa. —Deu uns golpezinhos no peito e mais abaixo.
—Qualquer coisa?
—Ninguém, — disse ela, — imaginará jamais.

FIM

Série As Modistas
1 – Sussurros de Seda
2 – O Escândalo veste Cetim

GRH
Grupo de Romances Históricos
Para entrar neste grupo, enviar e-mail para
moderacaogrh@yahoo.com.br

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